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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAMINHADA / Odette de Saint Maurice
A CAMINHADA / Odette de Saint Maurice

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Um sussurro indistinto. Não sei ainda se a emergir de mim se a arrancar-me de mim.

Ontem aconteceram coisas. Ou não?

Envolve-me a noção de que vivi horas belas e as horas belas às vezes não são mais do que anseios, esperanças ou sonhos.

Sonhos. Naturalmente sonhei. com a ilha dos Pêssegos. com a oferta do pequeno quadro de Renoir pintado naquele recanto onde morava (mora) a paz. com as mãos unidas de João Alfredo e Teresa. com a possibilidade de haver lugar na terra para abrigar ideais.

Até mesmo os meus ideais.

Ontem não aconteceu nada, pela certa.

Durante as horas de sono colhi às mãos cheias o que a suceder teria enchido tudo de beleza à minha volta. Horas de sono de ontem para hoje. Horas da noite, quando mesmo que haja horizontes a escuridão não deixa vê-los.

Horizontes? ...

Esta mania de não aceitar gaiolas para o que o coração deseja!

Pela janela, ou melhor, pela fresta do reposteiro de veludo de um tom de rosa murcha (rosa da cor natural da rosa cor-de-rosa) entra uma claridade que me revela a presença do sol no dia.

 

 

 

 

Sol no dia. Sol na vida. Tempo Bom, quente. Tenho que fazer, não posso continuar adormentada a olhar para o que não está.

Sento-me e bocejo. E fico de boca aberta.

Além, em cima da minha cômoda, apoiado ao solitário de cristal antigo onde dois cravos são o mundo cheio de flores, um quadro. Sim, um quadro! Emoldurado numa delicada barrette doirada e...

Pois, é!...

Renoir. O recanto onde mora a paz, na ilha dos Pêssegos!

Não sonhei, foi verdade.

É verdade!

E salto da cama e corro em três passos e seguro no meu tesoiro, nisto que não vale dinheiro porque nunca o venderei (NUNCA, João Alfredo, conde de Ribatorpes e barão de Montelongo!) e abraço-o de novo, abraço-o como abraçaria tudo quanto amo, rostos, sorrisos, saudades, ilusões, trabalho, fé. E horas belas. Mesmo quando não são mais do que horas.

O sussurro indistinto deixa de ser dúvida para se tornar certeza. Lá dentro conversa-se. Naturalmente a Teresinha, a Luísa Maria e a Emília.

Ou a Emília retirou-se hoje de manhãzinha e são apenas as meninas que tagarelam possivelmente arranjando-me o pequeno almoço?

Visto o roupão, aliso os cabelos sempre rebeldes (são no meu Eu o refúgio das minhas indisciplinas disciplinadas), abro a porta e no corredor distingo... Sim, uma voz masculina. A voz do Pedro, que já chegou.

O Pedro com notícias de Catarina!

Eis-me diante do Pedro. Das notícias de Catarina.

A Teresa e a Luisa Maria beijam-me a desejar-me bom-dia.

O Pedro pode talvez contribuir para que o dia seja Bom. O dia claro e luminoso que não existe só para nós, dentro desta salinha impecavelmente limpa e arrumada. Existe também para os que não possuem salinhas, nem limpas nem sujas. E para os que não dispõem de tempo para ficar à espera de horas belas, porque as preenchem tão intensamente que nem lhes sobra vagar para permitir que os pensamentos tomem o lugar das ocupações. Não sei se será melhor ou pior, assim. Sei que é. Agora mesmo, quando os meus relógios me participam com os seus tins harmoniosos que são dez da manhã. Ambos, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão.

- É tardíssimo! - comento, como se dissesse algo que eles desconhecessem. E para o Pedro: - Já chegaste há muito tempo?

- Passava pouco das nove.

Percebo as razões. Primeiro sabe que sou normalmente matinal. E depois...

- Tens aulas? - preocupo-me.

- Só práticas e já lá vai a que me importava mais que as outras, a última de uma cadeira! - e explica.

- De resto podia ter ido e voltado, mas pus-me a conversar com a Teresa e a Luisa e acabou-se. Fiz gazeta. O Paulo dá-me os apontamentos e eu fico a fazer uma idéia.

- Claro!

- A Madrinha não quer o pequeno almoço? indaga a Teresa.

- Quero, filha. Mas não tenho pressa.

- O tabuleiro está pronto. A Emília deixou tudo em ordem.

Ah... a Emília deixou tudo em ordem... Confirma-se que pensei há momentos. Cumpriu agora de manhã a decisão da noite passada.

Lá se foi a mais eficiente de todas as serviçais do mundo. Que falta me vai fazer!

Lá se foi a mais intratável de todas as serviçais do mundo. Que alívio sinto!

E oscilando entre os dois sentimentos vejo sair a Teresa e a Luisinha que ambas querem obsequiar-me servindo-me o café com leite (muito café e pouco leite) que vence a minha compreensão de que um copo de sumo de frutas me faria muito melhor à saúde.

O Pedro, a preencher o momento, vai dizendo:

- Já sei, querida Madrinha, que a ilha dos Pêssegos, documentada com fotografias muito bem escolhidas, está a cumprir a sua missão da melhor maneira! Felicito-a do fundo do coração. Confesso que não esperava semelhante resultado, apesar da confiança que deposito nas suas iniciativas.

Sorrio-lhe.

- Achas que eles acreditarão realmente?

- A si, Madrinha... parece-lhe que eles acreditaram?

- Ó Pedro, não gosto nada que me respondam a uma pergunta com outra pergunta!

- Pois sim, mas eu, antes de me pronunciar, desejo orientar-me, porque na verdade não sei ao certo o que hei-de pensar! Para mais não conheço senão o João Alfredo, o que dificulta uma opinião generalizada.

- Em todo o caso, pela descrição das meninas, talvez possas deduzir algo.

- Pela descrição da Teresa e da Luisa tudo se torna quase palpável. Enorme de veracidade, como que visto através de uma lupa!

- E consideras estranho, o facto?

- Considero. Não são garotos perante as quais a história da Branca de neve e os sete anões se apresente indiscutível.

- São rapazes que deixaram de acreditar em muita coisa que tinha a maior importância e de repente descobriram que ainda havia imensas coisas boas à espera deles.

- Eu e o Paulo estivemos ontem a conversar acerca deste assunto até tarde... e sabe, Madrinha?...

- Não sei. Saberei, espero-o.

Demorarei a saber, porque o meu espanto lhe corta a frase.

Lá vem o tabuleiro com o café com leite, torradinhas e biscoitos. O tabuleiro nas mãos da Emília. Seguido pela tranqüilidade inalterável da Teresa e da Luisa que ignoram o que em mim já era convicção.

- A Emília já tinha voltado da rua! - explica a Luisinha. - Atardou-se um bocadinho porque esteve a fazer outro café.

E a Emília:

- Eu sei que a minha senhora não gosta de café requentado!

Emília, a eficiente!

Ai, eficiente Emília, se nunca fosses intratável!...

O sorriso que me oferece, o sorriso dos dias bons, envolve a frase que ela não esconde das duas assistentes da cena de ontem:

- A minha senhora não está zangada comigo, pois não?... -e após uma pausa durante a qual a Luísa, a Teresa e talvez o Pedro pretendam decifrar o que vai dentro de mim e nada é senão um Nada que me conserva silenciosa, sem saber que decidir. A minha senhora desculpa, pois desculpa?...

Desculpar... Para que continuem as intratabilidades... ?

E ela na tentativa da justificação máxima:

- O tal Dr. Crisóstomo sempre tinha razão... eu às vezes porto-me como uma miúda de sete anos mal-educada... Passa-me não sei o quê pela cabeça e só faço e digo asneiras!

Encaro-a.

Emília boa rapariga, lúcida a aceitar as suas próprias verdades, vale bem que me arrisque a suportar novos acessos da garota birrenta. Afinal tanto agüentamos que mais isto que custa?

E o Pedro, que ainda me não desfitou, faz-se voz da minha voz.

- Vai aos teus afazeres descansada, Emília. A Madrinha nem sequer pensa mais no assunto, seja ele qual for. - e ri abertamente. - Está com os olhos tão transparentes que lhe vejo dentro da alma a resposta que esperas: estás perdoada, Emília...

Apetecia-me acrescentar numa súplica "não tornes mais, Emília". Mas não sou capaz, porque de facto tenho a alma cheia de perdão e não cabe nela mais nada neste momento. Só daqui a bocadinho.

Então a Emília dá-nos um novo exemplo da sua idade mental. Abraça a Luisa Maria, abraça a Teresa, dá um beijo na testa do Pedro sobre a madeixa dos cabelos claros e derrama sobre mim uma inesperada torrente de lágrimas. Lágrimas de alegria. Tudo isto velozmente.

E velozmente se apresta para sair. Detém-se junto à porta, numa advertência que me é dirigida:

- A minha Senhora não se preocupe com o almoço que eu já fui à rua e já trouxe tudo quanto era preciso. E se o menino Pedro quiser cá almoçar, chega.

E pumba - desaparece!

Começo a rir. Estou contente por ser capaz de deixar que a minha alma se encha de perdão.

Preciso de ser mais paciente para com a Emília. Como se na realidade ela tivesse sete anos e eu precisasse de a educar.

A Luisa deita-me o café na grande almoçadeira. A Teresa o leite. O Pedro os pequeníssimos comprimidos de sacarina. Seis. (Há muito que aboli o açúcar, por causa da ameaçada linha...).

E finalmente o perdão que me ocupava principia a recolher-se no misterioso refúgio onde se açoitam os sentimentos, no mais profundo do nosso ser para dele emergirem à vez quando no tempo que nos cumpre viver surge a necessidade de actuarmos sob um ou outro. Às vezes (muitas vezes!) sucede que eles, os sentimentos, querem dominar-nos, e então é uma destas confusões...

Confusões de sentimentos, toda a gente sabe a trapalhada que geram. Eu também.

Neste instante tudo em mim é ordem e equilíbrio. E enquanto mexo devagarinho o café com leite, (Madrinha, olhe que arrefece!... -Não gosto de me escaldar...) e recuso torradinhas e biscoitos (Só um não engorda!... -Pois sim, mas não me apetece...) deixo que a curiosidade, lógica e indispensável dentro da situação presente, manifeste os seus direitos.

- Ora salvo erro, Pedro, tu ias contar-me qualquer coisa acerca de uma conversa que tiveste com o Paulo ontem à noite a propósito dos rapazes e do mito da ilha dos Pêssegos?...

- Exacto.

- E então?

- Então afigura-se-nos demasiadamente problemática uma aceitação sem desconfianças da parte deles.

- Mas tu não te recordas de me haveres até recomendado que lhes pedisse sigilo para que o projecto da compra da ilha não fosse divulgado, etc. etc. etc. ?...

- Recordo-me perfeitamente.

- Nessa altura não te custou reconhecer da parte deles uma credulidade total...

- Nem custa!

- Mas sendo assim... ?

- Madrinha... olhe que me fez há pouco uma pergunta...

- À qual respondeste com outra.

- O ponto de dúvida veio de si.

- Certo.

- Pois foi esse ponto de dúvida que o Paulo e eu voltámos por todos os lados. Estou convencido de que a nossa perplexidade é igual à sua. Afigura-se-nos inconcebível que seis matulões cuja existência até agora não serve de exemplo a ninguém se deixem absorver por uma idéia que é como que um raio de luz!

- E no entanto estão mesmo absorvidos! exclama a Teresa, que não deve ter gostado muito da alusão do Pedro na parte que toca ao João Alfredo.

- Pois... pela idéia! E, encantados, nem sequer pretendem deixar de se sentir envoltos por ela. O que não garante que estendam as mãos para uma realidade. Fazem pensar numa criança ante a qual se desfaz a lenda do Menino Jesus. Ela sabe que os brinquedos não vêm pela chaminé... mas nega-se a reconhecer a evidência. Não para enganar os outros, mas para tentar conservar aquela sensação maravilhosa que ao desfazer-se iria defraudá-la irreparavelmente.

Encaro-o.

- Foi a essa conclusão que tu e o Paulo chegaram?

- Foi, Madrinha.

Começo finalmente a beber o café com leite.

Tento descobrir até onde o Pedro e o Paulo terão razão. E, concentrando-me, revejo o grupo do João Alfredo ontem, diante de mim... No chão, de cócoras, de joelhos, amontoados... Só trazeiros, numa confusão de tecidos de calças. O mais gordo de todos, o do Fofo...

Falso, o entusiasmo com que admiravam e disputavam as fotografias?

Falso, de qualquer maneira, não. De qualquer maneira, espontâneo e fervoroso.

Sinto nos lábios a forma da pergunta que dirigi ao Pedro, "achas que eles acreditarão realmente? ".

Sim, fui eu que primeiro dei aceitação à incerteza. Sou eu que tenho de encontrar a mais justa das respostas de que ela precisa.

E a resposta vem-me da atitude que se conserva tão nítida ante os meus olhos que me parece possível estender as mãos e tocar nos seis rapazes. Vem da expressão com que me ofereceram esperanças e ambições.

- Pedro, - digo, - por mais estranho que possa afigurar-se e ser, eles acreditam.

- Era isso o que eu queria ouvir, Madrinha. De resto, as coisas estranhas podem ser autênticas, sempre. Eu, quando disseco um cadáver, posso achar muito estranho que aquela coisa espatifada tivesse podido estar ao meu lado em qualquer parte tão vivo como eu próprio... A minha estranheza não impede que o cadáver houvesse sido um Homem. A minha estranheza não impede que o Homem possua uma alma, embora eu não seja capaz de a encontrar quando estudo um cérebro cortado aos bocadinhos, um coração aberto ao meio...

Não posso acabar de beber o meu café com leite. Uma náusea imensa alaga-me ao pensar no... e no... A Luisa e a Teresa encolhem-se. E o Pedro, que percebe o que se passa, acrescenta:

- Por mais estranho que seja, devemos habituar-nos a aceitar a evocação destas imagens. Porque enquanto não vencermos a repugnância, ou o medo, nada poderemos em favor dos que necessitam da nossa firmeza de ânimo para não morrerem antes de tempo.

Reconheço - como o Pedro está grande. Grande por dentro!

Ainda relativamente há pouco e apesar do seu esbelto metro e oitenta e tal, era tão novito! Novito nos pensamentos, nas atitudes, nas palavras...

Agora é um homem. Um homem que conta:

- Eu estudara o dia inteiro e sentia a cabeça a estoirar de tão cheia de nomes de veias e mais o diabo a quatro que existe nesta polpazita da nossa mão, aqui, junto ao polegar. Se continuasse julgo que a minha capacidade de fixar cedia como um balão cheio demais. E resolvi sair, enquanto o Paulo me impunha silêncio, porque lhe interessava chegar à página não sei quantas. Primeiro pensei em ir um bocadito a casa da Rosarinho, mas a S'Dona Teresa Mafalda, que foi quem me atendeu quando liguei para lá, pediu-me que não fosse, porque ela se sentira um pouco engripada e já estava a deitar-se. Decidi-me por um cinema. No que exibia o filme que me interessava, nem um único bilhete. Em frente, do outro lado da Avenida, o anúncio luminoso de outro filme chamou por mim... e lá fui. Entrei precisamente quando estava a principiar. E desabou-me em cima a história mórbida de um indivíduo que matava as pessoas com um gás que as volatilizava, imagine! e perseguia duas irmãs gêmeas que estavam apaixonadas por ele e só porque se atraiçoavam mutuamente, com demonstrações da mais requintada perfídia, iam evitando o fim que as esperava. Confesso, e sem vergonha nenhuma, que não agüentei. Não entendo as vantagens de semelhantes histórias, por mais bem filmadas e interpretadas que sejam. E eu, que precisava de beleza para descansar o espírito, levantei-me, saí da fila entre os protestos dos espectadores a quem por segundos roubara a visão de uma qualquer cena macabra, e quando cheguei à rua pensei que melhor me faria, em vez de procurar o convívio dos homens que talvez não correspondessem às minhas necessidades espirituais, achar-me só com a natureza. Para sentir a Vida.

O Pedro está um homem.

Um homem às direitas emergindo sólido do rapaz às direitas que foi. Tudo o que diz sob a nossa atenção presa de cada palavra, de cada gesto com que sublinha a expressão (sim, que a Teresa e a Luisinha crescem de momento a momento no sentido de uma evolução moral que há-de permitir a assimilação até dos problemas mais difíceis), confirma a presença da consciência do adulto.

Do adulto que continua a falar. Lembrando algo que vai explicar muito.

- A Madrinha sabe que eu gosto da noite. Gosto de andar na noite...

Podem as coisas à primeira vista não ter nada que ver umas com as outras. Podem. Mas mal o Pedro pronunciou estas duas frases e logo me acudiu à lembrança uma citação que vem de há anos, de há bastantes anos já. Na verdade ele sempre adorou a noite, tanto que a Rosa Maria chegou a confidenciar-me o seu receio de que o filho tivesse alma de noctívago.

"Se fosse grande, havia de aproveitar para andar pelas ruas a respirar sem que os outros me disputassem o próprio ar... Nesta solidão povoada, uma pessoa deve sentir-se como que dona da vida. "

Teria sido assim que ele se exprimiu, quando ainda usava calções?

Fosse ou não fosse, a reminiscência bate certa com a frase sobre que apoia o que continua a dizer.

- e resolvido a aproveitar-me daquela solidão povoada, desci a Avenida toda, dei a volta à estátua dos Restauradores, voltei para cima, até ao carro que conseguira deixar estacionado relativamente perto do primeiro dos cinemas, daquele onde não coube. Batiam as onze horas não sei onde. Talvez na torre de uma qualquer igreja que o vento favorável aproximasse de nós.

Onze horas.

Batem onze horas lá dentro, nos meus dois relógios - o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão.

São onze horas no meu reloginho de pulso que me esqueci de tirar esta noite.

Em nenhum deles as onze horas que o Pedro evoca.

- Achei cedo para regressar a casa e foi então que me apeteceu ir ver o mar. Fui ver o mar. Estava uma noite maravilhosa e não há dúvida de que a cidade prejudica a noite. Mostra apenas pedaços do céu- e ofusca o brilho das estrelas. Ali, sobranceiro à praia, o céu dominava tudo, até o próprio mar, calmo como um lago, que parecia reflectir o luzeiro lá de cima... E cheirava bem, cheirava tão bem e era tão bom e dava-me uma tal noção de segurança, segurança no sentido de realmente possuir a Vida, que, mais uma vez reconheci quanto se ganha em vencer os muros dentro dos quais os homens julgam que podem ser felizes esquecendo-se de que o melhor está ao alcance de todos quando nada se exige senão do nosso próprio esforço o contacto com as obras de Deus.

Ele detém-se por momentos. Talvez cansado de falar. Ou de pensar.

A Emília surge, observa-nos sem uma única palavra e retira-se levando o tabuleiro. De certo impressionada com o ar sereno com que estamos todos.

Sim, eu estou serena, conquanto saiba que dentro de instantes toda a paz que o Pedro evoca e transmite será abalada pela notícia que veio trazer-me e que no momento exacto escutarei. Tornada natural pela força das circunstâncias. Pelos antecedentes que criaram as circunstâncias.

- Depois...

Ele a recomeçar. Para se aproximar do que tem a dizer e nenhuma estabilização evitará que talvez e apesar de tudo me choque.

- Depois... Bom, eu estava fora da máquina, encostado ao capot. De súbito avistei, vinda não percebi de onde, um vulto que levei minutos a classificar. Rapaz ou rapariga?... Um rosto esquálido, semi-tapado por longos cabelos. Calças e uma espécie de jaqueta que me pareceu esfarrapada. Alguém a pedir esmola e o sexo não interessava. A voz rouca que me interpelou continuava a não identificar quem a possuía. O que a voz rouca ia dizer esclarecer-me-ia de muito mais do que eu naquele instante pudesse visionar. Começou por uma interpelação ". Tos só ou acompanhado?" Sinceramente lhe digo, Madrinha, que relanceei o olhar à minha volta e até onde se tornava possível descobrir qualquer coisa, tentando perceber se eu iria ser alvo do atentado de algum bando de jovens patifes. Não sou medroso, mas uma luta com uns tantos malfeitores em desigualdade de número não me agradava visto as minhas possibilidades de defesa se tornarem nulas... Não avistei o que quer que fosse que se me afigurasse suspeito. E então respondi "que estava só". A admitir que a criatura pretendesse avisar companheiros escondidos algures, eu tinha tempo de sobra para me meter no carro e arrancar. A criatura não deu um passo. Ou antes, deu um passo para mim e apoiou-se ao carro, ao meu lado. ". Vim práqui com um gajo que se pôs na alheta e me deixou sem um chavo. Dás-me boleia prá cidade? - e a encararem-me, os belos olhos cor de azeitonas de Elvas cheios de uma luz onde leio a mais sentida repugnância, o Pedro prossegue: - Desencostei-me do carro, pus-me na frente da criatura e inquiri "és homem ou mulher?" A criatura teve um gesto de cabeça a atirar para trás os cabelos de modo a deixar o rosto bem à vista e soltou uma risada. E então reconheci:

- Catarina?

- Catarina de Ribatorpes. Precisamente. E quando lhe pronunciei o nome, assim, cara a cara "Catarina de Ribatorpes", ela pareceu indecisa, como se o achar-se identificada tanto lhe incutisse o desejo de desaparecer como o de afundar-se ainda mais na vergonha da sua situação. Não desapareceu.

- É natural. -murmuro. -A Catarina deixou de entender o sentido da palavra dignidade.

- Exactamente, Madrinha, e por mais horrível que seja a constatação. A Catarina deixou de entender muita coisa tão importante que todos os que se encontram como ela estragam não a própria vida, apenas, mas a vida a que temos direito, boa e limpa. Catarina, ali, diante de mim, manchava a noite, dissolvia o cheiro do mar e da terra, escurecia as luzes das estrelas. Depois de eu assim a haver reconhecido e de ela não se ir embora, lembrei-me de si, Madrinha, dos seus esforços para aliviar os problemas da condessa de Ribatorpes. E decidi colher informações para lhas trazer.

- Obrigada, filho.

- Ela não ia fazer-se rogada para falar. Como a troçar de tudo.

- Como, não. A troçar mesmo. - rectifico.

- Sim, de facto a troçar. com que então sabes o nome que me obrigaram a usar quando se lembraram de me pôr cá neste mundo?... "Como vês", respondi.

- Perguntou-te logo quem eras?

- Não perguntou nada.

- Então?

- Oiça com calma.

Calma. Alaga-me, a calma! Se é sentimento (e não o julgo assim, antes se me afigura estado) ocupa o espaço que podia ser preenchido por um outro bem diferente - a indignação (e será sentimento, a indignação, ou estado, também?).

O Pedro conta:

- Ela pôs-se a rir e observou "pelo ar com que olhas pra mim deves pertencer ao número dos imbecis

que se espantam com o facto de uma herdeira rica andar a estas horas a pedir boleias. Agradeci-lhe o imbecil e ela prosseguiu "de resto tens todo o aspecto de um menino arrumado e aprumado, desses para quem existir é fazer o que pode considerar-se escrito no código das coisas convenientes e inconvenientes." Comecei a pensar que Catarina de Ribatorpes não era tão estúpida como eu imaginava. E decidi dialogar. "Não leste esse código?" E ela "Na escola onde me formei estava escrito às avessas". "Na escola onde te formaste? Que escola? "A da liberdade". "Que gênero de liberdade?" "Achas que a liberdade tem gêneros?" "Claro! A tua pode ser absolutamente contrária à dos outros". "Pois na minha a primeira das noções é que os outros são uma trampa e nem pra eles devemos olhar senão quando precisamos de lhes passar por cima". "É o que tens feito? ". "Tàvisto! ". "E sentes-te satisfeita? ". "Sinto". "Não desejas nada a não ser a vida que levas? ". "Nada porque me sinto dona de mim mesma. Faço o que quero sem peias nem conselhos nem o raio que parta os idiotas que andam como aqueles burros que dantes puxavam à nora, nos poços, pra tirar água. com os olhos tapados". "Que vantagens pensas obter desse sentido de propriedade? ". Aqui ela não me respondeu logo. Dir-se-ia estar a interrogar-se.

- Como se nunca houvesse encarado o futuro?

- Talvez, Madrinha.

- E depois?

- Depois largou a rir. "Vantagens? "-disse. "Não as espero, tenho-as. Desconheço o que seja achar que o que faço está mal, seja o que for. Queres melhor situação? ".

- E tu, Pedro?

- Eu, Madrinha, enchi o peito de ar... e volvi-Lhe "Considero essa situação ignóbil, ultrapassando tudo quanto o mais execrável egoísmo possa determinar". Então ela pôs-se muito séria. "Sabes? Não vim ter contigo pra ouvir lérías. Isso tinha eu e preferi perder alguns bens materiais a suportar a chatice das censuras e das lições de moral. A noite pode dar-nos outras coisas. E como és um puritano, fica-te a olhar as estrelas que ainda me hás-de ver embarcar noutro carro". Deitei-lhe a mão a um braço. "Catarina... ouve". "O quê? Mais? ". "Ainda não ouviste nada. Vais ouvir agora". - E agarrei-a com tanta força que ela embora escabujasse na tentativa de se soltar não o conseguiu e aquietou-se. Felizmente, porque se continuasse creio que a largava, não fosse algum carro parar perto de nós e a cena suscitar reparos que catalogassem a minha conduta de maneira diametralmente oposta ao que representava. Imagine só - um rapaz a maltratar uma rapariguinha indefesa... A rapariguinha indefesa que ao acabar com a resistência largou a rir, a rir às gargalhadas-. "fala se te apetece. Já agora quero saber o que armazenas dentro desse aspecto tão significativo de como devem andar os rapazes incumbidos da defesa dos bons princípios... ". "Pois vou começar, Catarina". E principiei. "Em primeiro lugar não entendo como não tratas de receber a tua parte da herança do teu Pai. E ela "ah, sim?... Então ficas a saber que gosto de viver à custa de quem me quer dar dinheiro.

Em cada nota de cinqüenta ou cem paus que recebo, penso na reviravolta que os meus avós cheios depergaminhos hão-de dar nos seus jazigos de ricaços. Até o meu Pai deve estar de barriga pra baixo no caixão, a estas horas, pra esconder a cara com vergonha! ".

Silêncio entre nós.

Olho de relance para a Teresa e para a Luisa que escutam de boca aberta. Pasmadas!

Hesito por instantes, não muito certa de que não haja qualquer contra-indicação para a incrível lição que estão a receber. Lição, sim. Lição da vida onde um problema intrincado se acha exposto sem que ainda possamos achar-lhe a solução. Lição escrita em páginas negras. A vida é branca e preta.

O conhecimento do preto não impede que se ame o branco. Talvez seja mais perigoso para os que só conhecem o branco continuarem em branco na ignorância do preto. Preto porque o branco se tornou sujo...

E sem deixar perceber a breve indecisão, murmuro, para o Pedro:

- Continua.

O Pedro tem os lábios secos, como que crestados pelas palavras que tem de proferir.

- Isso quer dizer - perguntei-lhe, -. que ages como que a vingares-te de quem não foi culpado de nada em relação a ti? ". "Ora essa? Não foram culpados de que eu nascesse? Acaso pedi para me trazerem ao mundo ? ". "O facto de não o haveres pedido não se torna motivo de queixa. Todos nos continuamos uns aos outros, e isso apenas nos obriga a respeitar uma lei que por mais discutida que seja escapa às explicações racionais dos homens". Soltou um palavrão. E eu prossegui "Aliás, a vítima de tudo quanto fizeres de mal acabas por ser tu própria, tu que ainda tens muitos dias à tua frente para viver. No fim de contas os que morreram não sentem nada. Sobretudo se, de acordo com as promessas da nossa religião, tiverem obtido o descanso eterno".

E ela "Favas prá religião, que pode ser tua, minha não. Eu não acredito nessas histórias da Carochinha". "Tu não acreditas em nada que seja susceptível de te fazer sentir remorsos". "Remorsos? Isso que é? Qualquer coisa que se coma com batatas? ". Percebi que tudo o que lhe dissesse era perfeitamente inútil. Parecia-me, Madrinha, que estava a atirar com bolas de farinha amassada que batiam numa parede voltando-me às mãos todas amachucadas, todas deformadas. Apeteceu-me virar costas e deixá-la sem perder mais tempo. Mas tornei a pensar em si, na condessa de Ribatorpes, e até na Ilha dos Pêssegos.

- E então?

- Então, insisti "Responde-me uma coisa, voltando ao ponto de que parti para o que estava a dizer-te: não achas que se recebesses a tua fortuna terias a liberdade da mesma forma com a vantagem de poder gozá-la com todo o conforto? ". "Por enquanto ainda não preciso desse dinheiro. Faz parte das minhas teorias andar ao calhas, sujeita às surpresas que aparecem. Gosto desta coisa de abordar um desconhecido, como ainda agora aconteceu contigo... É uma experiência gira. Quando eu mudar de idéias, descansa que o que me pertence às minhas mãos há-de vir ter. Por enquanto, a mama que se torça de desespero ao pensar no que se tornou a menina bem nascida e bem criada com a qual aliás sempre teve uma forma de se incomodar muito dela. Quando me mandaram pró estrangeiro começaram a partir as amarras que podiam talvez ter-me prendido a outra orientação e isso não o sabes tu, com certeza". "Por acaso, sei, Catarina". E ela, com o que talvez fosse, não inquietação, que não a julgo capaz de se preocupar com coisa alguma, mas desagrado, um desagrado que iria tornar-se raiva "Sabes?... Como?... ". "Não te interessa". "Interessa, sim! O meu futuro e o meu presente podem ser do domínio público, mas o meu passado, não!... "O teu passado não é do domínio público. Mas na individualidade do que foi o teu lar pode haver penetrações que se apoderem do que afinal não é segredo". Ela ficou a mirar-me, julgo que diligenciando recordar-se de mim em qualquer lugar que lhe desse a chave do que se lhe afigurava misterioso, Porque sabia eu tanto? Sem conseguir localizar-me, inquiri "Donde me conheces, afinai? ". "De fortuitos encontros numa sociedade a que deixaste de pertencer". "Quem és tu? ".

Finalmente, a pergunta! A pergunta que a lógica deveria ter colocado no início da cena entre os dois e que a haver sido formulada não deixaria que eu própria me debruçasse como neste instante sobre o abismo daquela alma.

- Olhei-a a direito, Madrinha. Puz as minhas mãos nos ombros dela e articulei, devagarinho: "Sou o Pedro Ferreira de Macedo. Este nome diz-te alguma coisa? ". Ela pestanejou, franziu a testa, num esforço para se lembrar. "Pedro Ferreira de Macedo?... Sim, já ouvi o teu nome... muitas vezes. Pedro-Ferreira de-Macedo... Isto... isto não é moderno... vem de longe... com um ar de coisa de família... E principiou a alterar-se, era na minha casa... A Mamã, quando vinha... quando vinha de onde?... Sim, sei... De casa daquela amiga que tem quatro filhas, a Teresa Mafalda Abegorim, falava... falava de um Pedro que morava no segundo andar do prédio da outra... o filho de um médico... o Pedro Ferreira de Macedo. Eaqui, Madrinha, não fujo à verdade se lhe confessar que tive medo de ser mordido!

- Mordido?

- Mordido, tal foi o arreganho com que ela avançou para mim, o nariz quase a tocar o meu "és então uma das cobaias dela? Um dos seus lindos porquinhos da índia?

- Quê?

- Assim, tal e qual! E prosseguiu "Á, isso explica a tua santidade... os teus conselhos, a tua serafinice". Aqui, Madrinha, interrompi-a "Mais uma palavra nessa direcção e parto-te a cara! ". Ela recomeçou a rir. "Pois estou contente que isto se passasse... gosto que vás meter-lhes tudo no bico... que vás contar-Lhes, a Ela e à Mamã e a toda a gente, que a Catarininha anda na gandaia... Anda na gandaia e andará, marimbando-se pra tudo quanto os outros possam pensar e sentir, porque a vida é minha e ninguém tem nada comigo. Não peço seja o que for, e por isso que não queiram dar-me nada... nem sequer a sua reprovação, que pra mim é igual ao litro. Vai, vai contar-lhes... E já agora conta também ao meu mano, que andou pra trás nas suas resoluções porque é um gordo ignóbil, comodista como todos os gordos. com o tacho bem cheio, vivem contentes. E quanto a ti, porquinho da índia, sabes o que me apetecia? Obrigar-te a refocilar na lama pra ver se perdes a mania de olhar os outros como se fosses o melhor do mundo.

O Pedro detém-se. Dá-se nele como que uma evasão.

- E depois, Pedro?

- Depois, Madrinha, eu disse-lhe que ela não merecia que eu lhe ouvisse uma única palavra mais. Não ouvi. Mas ouviu-me ela as últimas, que foram estas "Já. andei a patinhar na lama, Catarina de Ribatorpes, aprendi a diferenciar o mal do bem e escolhi, para uso próprio, o direito de preferir o bem ao mal. A limpeza dos meus pensamentos e dos meus actos não resulta do desconhecimento dos erros e das tentações. Por isso não olho os outros como o melhor do mundo, mas sim como um homem consciente que gosta de pertencer ao grupo dos melhores.

- Mais nada, Pedro?

- Mais nada, Madrinha. Meti-me no carro, arranquei... e ela lá ficou. Sozinha na noite.

- Não disse realmente mais nada, a Catarina?

- Que eu percebesse, não. O motor não deixava. Catarina, sozinha na noite.

- Pedro...

- Madrinha?

- Foi pena não ficares a saber a morada dela.

- Pensei nisso depois. A caminho de casa, decidido a telefonar para si mal chegasse, como fiz, reconheci que talvez me houvesse precipitado. Talvez pudesse fazer qualquer coisa por ela. Fui demasiadamente rude.

- Não creio que ninguém possa o que quer que seja por Catarina. Ela está como um bicho danado. Ataca quem tentar suavizar a sua situação.

- Mas a Madrinha, se eu porventura descobrisse onde ela mora, era capaz de se arriscar?...

- Não sei, Pedro. Sinceramente, não sei. E não sei.

Não sei como socorrer quem não deseja ser socorrido. Não sei como dar a quem não deseja receber. E ela avisou "não queiram dar-me nada... "

Não há nada para dar-lhe. Nem apoio nem alívio; nem compreensão nem piedade.

Catarina de Ribatorpes, a rapariga cheia de absurdos. Sem horizontes. Perdida na noite.

A noite onde os horizontes se não vêm.

Catarina de Ribatorpes. Sozinha.

Tão só que os meus pensamentos a abandonam.

Pois se ela não quer nada, porque hei-de teimar em oferecer-lhe a minha pena de a saber tão horrivelmente sem ninguém?...

O Pedro não quis almoçar. Ainda ia ao hospital falar com um Professor.

Arranjo-me, decidida a trabalhar um pouco antes de comermos.

Mas uma lentidão invulgar em mim demora-me tanto no quarto de banho que o repique da uma hora nos meus relógios (o velho-novo do. ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão) diz-me que já não vale a pena começar (ou prosseguir) qualquer tarefa.

De resto o meu espírito está sob nevoeiro. Nevoeiro que se corta à faca enquanto um sol radioso me entra pela casa dentro. Nevoeiro onde a tristeza se não desfaz em lágrimas.

Tristeza.

Não quero pensar em Catarina.

E penso na vida vazia dessa rapariga que podia ter a vida tão cheia, em contraste com as que por nada possuírem se encontram vazias na vida vazia.

Não quero pensar em Catarina.

E penso em Ana Margarida que vai acolher no seu palacete raparigas de vida vazia a quem ela possa conceder algo que lha encha - se mais não for ensinando-as a sonhar com a Ilha dos Pêssegos, sonho para modelar no vestido novo que se cobiça ou no livro de poemas que se ambiciona publicar.

NÃO QUERO PENSAR EM CATARINA,

E penso em Casimira Abegorim que vai consagrar a sua existência a quem precisa de amor de Mãe, enchendo com o amor de tantas raparigas sem nada a sua vida que ela não admite que seja vazia.

NÃO QUERO PENSAR EM CATARINA.

E penso na Luisa e na Teresa que ambas de mãos estendidas para mim confiam em que já não vão ficar sem nada na vida - um nada que nenhum dinheiro pode pagar.

- Minha senhora, o almoço está na mesa.

- As meninas?

- A Luisinha esteve na cozinha a fritar as batatas. A Teresinha está a escrever, na saleta.

A Luisinha. A Teresinha.

Há melhoras acentuadas nas disposições da Emília para com estas duas garotas que ela considerou intrusas a disputarem-lhe o ar da casa e a minha afeição. Como se na minha casa com tantas janelas para abrir pudesse faltar o ar e na minha afeição de nascente funda lugar para quem o merecer...

Para quem merecer.

Ante os que não merecem fecho a alma como fecho as janelas em dias de frio. Frio de dentro para fora e de fora para dentro.

Se não houvesse frio não havia janelas fechadas.

Se não houvesse o mal não havia falta de amor.

Mas tudo está no mundo e só nos cumpre saber destrinçar as coisas e os factos.

Necessito de cortar o fio às divagações que estão a arrastar-me para fora desta salinha onde neste momento a refeição comanda a hora: ninguém vive sem comer.

Comemos.

As batatas fritas (aos palitos grossos) estão ligeiramente encruadas e no sorriso da Emília há laivos de contentamento. Ninguém faz nada tão bem feito como ela... E segura das suas aptidões tranqüiliza a Luisa Maria, que se desola.

- Deixe lá, menina! Ninguém nasce ensinado. E p'rá outra vez ficam melhores!

Quando chegamos à sobremesa, depois de havermos tagarelado sem motivo (falámos de gatos e de cães a propósito de uma casca de queijo!) a Teresa pergunta-me:

- A Madrinha vai começar a trabalhar, já?

- O mais depressa possível, sim. Porquê?

- Não tem dez minutos livres?

- Arranjam-se. Sou-te precisa?

- É.

- Para quê? "Trriimm. Trrim...

O telefone. Por tal sinal que hoje esteve excepcionalmente discreto e até agora ainda não me solicitou. A Luisa atende.

- Então, Teresa?

A Teresa mostra-me duas folhas de papel garatujadas de ambos os lados.

- Queria que ouvisse isto e me desse a sua opinião.

- O que é isso, filha?

A Luisa estende-me o telefone, num gesto rápido.

- É p'ra si, Madrinha.

- Quem?

- Diz que é o Artur.

Artures há bastantes... Que Artur será?...

- Que Artur, Luisa?...

- Pela voz pareceu-me o primo do Pedro. Ah... o Artur Xavier de Sá. O Arturito! Aceito o auscultador.

- Olá, meu rapaz!...

E o diálogo estabelece-se formal, primeiro. Como está, como passou, como vão os teus pais, e que é que tens feito... etc. etc. etc. Dois minutos banais conquanto agradáveis como tudo quanto lhes diga respeito, aos meus garotos tornados crescidos mas nem por isso menos aconchegados no meu afecto; Pelo contrário! O meu afecto aumentou com eles. À medida que o tempo passa e os miúdos se arrecadam nas saudades de ontem, os graúdos tornam-se cada vez mais importantes para mim.

Ao fim dos dois minutos suspeito de que o telefonema do Artur não proveio de um simples interesse pela minha saúde e pelas minhas ocupações. Ao fim de três a suspeita cede lugar à certeza.

- A Madrinha está livre logo à noite?

- Sim e não.

(Sim porque não tenho qualquer plano. Não porque estão aqui a Teresa e a Luisa.)

- Confirme o sim, Madrinha! Espere-me ás 21 e20.

- Para quê, Artur?

- Tenho bilhetes para a Bernardette Salomon. Sorrio.

- Parabéns! Parece que tem sido um êxito e é difícil conseguir uma entrada para quem não se preveniu com antecedência.

- Foi lá no jornal que me dispensaram quatro platéias. Duas deu-mas o Chefe de redacção, as outras duas... nem sequer imagina quem mas ofereceu!

Imagino, mas acho tão inadmissível a idéia que a rejeito.

- Adivinhe, Madrinha!

- Não!...

Ele pressente no meu nãão um si-im... Oiço-o rir.

- É isso mesmo, Madrinha!

Ai a vida e os romances por ela criados, maiores que todos os das imaginações dos homens por mais criadoras... Ai a vida e as personagens que nenhum dramaturgo é capaz de descrever...

- Pois foi o tal, que me apareceu com pèzinhos de lã... Bom, eu depois conto-lhe, que tem a sua graça. Se visse a amabilidade com que me abordou!... "Que os bilhetinhos eram para eu levar os meus Pais comigo..." Veja só a ternurinha!...

- E levas os teus Pais, claro!

- Pois levo os meus Pais e quero levá-la também a si! Não arranje desculpas hoje! Aliás disse-me há três dias: "telefona-me depois para combinarmos". Cá estou a telefonar!

Os meus olhos incidem com tanta franqueza sobre as duas rapariguinhas que ambas reagem, percebendo a origem da indecisão.

E diz a Luisa, com a vivacidade que lhe é peculiar:

- A Madrinha não vai deixar de sair por nossa causa!

- Era o que faltava! - acentua a Teresa.

E eu para o Artur que de lá deve ter ouvido a reacção delas:

- Espera um bocadinho.

- Tá bem.

Sem a preocupação de tapar o bocal no gesto de quem não deseja que o que se passa entre paredes ecoe além do fio que liga interior e exterior, dirijo-me às pequenas:

- Custa-me deixá-las aqui sós, à noite, sem ser por um motivo de força maior!

E a Teresa:

- Ver uma boa peça de teatro aproveitando uma oportunidade que não se repete facilmente, admirar uma actriz de categoria que se vai embora de Portugal não tarda, e estar ao pé de uns amigos com os quais não se contacta todos os dias, é um motivo de força maior!

- E vocês?

- A gente arruma-se, deixe lá!

- Vê-se televisão!

A voz do Artur magoa-me o tímpano.

- Estou a perceber que a opinião das meninas que aí tem em casa pesa mais na sua decisão do que a vontade de estar connosco.

- Não sejas ciumento, Artur! Para estar contigo e com os teus Pais não preciso, de resto, de ir ao teatro! Mas...

- Sim?

- Irei!...

- Ah, Bom... Vou aí buscá-la.

- Não gosto de andar de motocicleta, Artur. Ele solta uma risada.

- Não vou de moto. Vou de táxi, com os meus Pais.

- Não vens coisa nenhuma. Pois para que hás-de fazer um desvio? Vou no meu carrito.

- Não vai nada. Sei que não gosta de guiar quando se engalana...

- E quem te diz que vou engalanar-me?

- O facto de a conhecer lindamente.

- Bonito diploma, chamar-me vaidosa...

- A vaidade numa mulher permite-lhe conquistar o que alguns homens ganham no tiro aos pombos.

- Taças?

- Não. Glórias!... O bom gosto faz parte dos melhores títulos nobiliárquicos.

E a rir nos despedimos.

O Artur vem buscar-me às 21 e 20.

Na mão de Teresa continua à espera de mim as folhas de papel garatujadas dos dois lados. E ela, vendo que nessas folhas de papel me concentro, responde à pergunta que lhe dirigi há dez minutos.

- Isto, Madrinha, é o rascunho de uma carta para a minha Mãe. Posso ler-lha?

- com certeza.

A Emília está a levantar a mesa, sem rumor. A Teresa alisa as folhas garatujadas e, numa voz que só a pouco e pouco irá deixando de tremer, começa:

"Querida Mãe

"Gostava de principiar esta carta dizendo-lhe que tenho muitas saudades de casa, mas não posso. Nem devo, porque isso iria quebrar a promessa que fiz a mim mesma de pelo menos tentar sempre ser verdadeira nas minhas afirmações.

Para eu sentir saudades de casa tornava-se necessário que ao olhar para trás na minha ainda tão curta existência eu reconhecesse que aí me ficaram as melhores recordações dos melhores dias de vida e não é assim. Aí me ficaram, pelo contrário, coisas que por preço nenhum eu desejava que tornassem a acontecer-me. Por nenhum preço, minha Mãe. Porque a felicidade não se compra nem se vende. Deus não faz negócio.

Quando escrevo que não sinto saudades de casa

- do ambiente de casa! - não quero dizer que não sinto saudades suas e do Pai. Sinto, sim. A minha Mãe e o meu Pai são insubstituíveis, tais como os recordo no que representam de precioso entre as maiores afeições permitidas a qualquer pessoa. Estão presos aos bonitos dias em que eu pequenina conheci nos seus braços a doçura da segurança e do carinho de que uma criança precisa como uma ave precisa do ninho. Mas as pessoas não ficam sempre pequeninas. As aves não ficam sempre nos ninhos.

E se tenho saudades dos meus Pais, não as tenho da vida a que queriam obrigar-me. Era como se pretendessem enrolar-me toda no colo onde eu dantes cabia inteirinha. Impossível!

E por ser impossível e por eu a distância perceber que o meu horror pela violência a que pretendiam sujeitar-me cada vez se torna maior, é que não tenho saudades de casa e suporto resignada a saudade dos meus pais - e não falo dos meus avós pois já sei que eles vêm aí.

Mãe, eu ainda não percebo claramente se já sou ou não uma mulher, no que se depreende moralmente desta classificação. Pensando que a Mãe e o Pai desejavam que eu casasse e sem demora com o sujeito daí, parece-me que devo ser uma mulher, pois uma criança não casa. Mas como não sinto a menor vontade de decidir da minha vida por enquanto e pelo contrário acho que devo continuar a estudar enquanto espero que uma inesperada promessa do destino se cumpra... "

(Aqui os olhos da Teresa erguem-se procurando nos meus as impressões que por esta insinuação eu colha, mas nada deixo transparecer do meu sorriso interno e ela prossegue):

"... admito que ainda sou pelo menos muito criança. Logo em seguida, porém, a firme determinação de não me submeter nunca ao que os outros possam querer que eu queira, diz-me que só uma mulher é capaz de pensar como eu penso - antes precisar de trabalhar para o pão de cada dia do que morrer de fome diante de pratos cheios de dinheiro.

Não julgue, Mãe, que me encontro influenciada pela Madrinha para me mostrar tão segura da minha vontade. Contra essa hipótese, que abalaria o mérito de eu ser capaz de pensar por mim, deve impor-se-lhe a lembrança de como reagi quando todos estavam contra a resistência que opus. Quando eu podia ter desmoralizado por completo deixando-me intoxicar pelo veneno do oiro.

Agora sinto-me completamente livre de influências, más ou boas. Começo a pôr em ordem os meus desejos, as minhas convicções e as minhas esperanças.

Não sei o que me reserva o futuro. E gosto que seja assim, porque viver na espectativa é Viver, o que me parece deveras importante. Não interessa a ninguém que o avisem com anos de antecedência de que em tal data lhe nascerá um filho ou morrerá num desastre de automóvel. Qualquer das coisas pode tirar o interesse aos dias do futuro.

Quanto a voltar para aí, nem pensar nisso!

Creio que os avós, regressando, me garantirão um lar, o que considero muito importante.

Aí, minha Mãe, eu não tinha lar. Nem o teria, nunca mais. A Mãe e o Pai, de resto, não precisam de mim, e a prova está em que me queriam casar sem me dar tempo a dizer uff.

(Abençoados dezasseis anos que me aparecem neste uff para que eu saiba que a Teresa está certa - não é nem uma mulher nem uma criança, mas uma rapariga com o coração e a cabeça nos lugares que lhes competem.)

"Reconhecendo que a Mãe e o Pai não têm saudades (habituaram-se a viver sem mim durante os anos do colégio) a minha consciência tranquiliza-se. E não pense, Mãe, nem deixe o Pai pensar (a Mãe tem uma grande influência no Pai e ainda bem que os dois são tudo um para o outro!) que não gosto dos dois. Gosto muito, profundamente. Mas não lhes faço falta. E por isso deixem que eu viva a vida como Deus deixar. Não pensem nunca mais em obrigar-me.

A Mãe esqueceu-se do que sofreu quando a quiseram impedir de correr para o Pai. com o triunfo dele, os seus vinte anos desapareceram da sua memória. Foi pena! A Mãe podia ter emoldurado em oiro o dia em que decidiu casar com o Pai, aceitando a pobreza. Foi o princípio de tudo aquilo que hoje possui e a Mãe adora. A Mãe adora tudo o que tem - mas não concebia nada sem o Pai, pois não?

Então, Mãe querida, consinta que eu possa vir também a adorar aquele que eu escolher para Marido. A adorar para sempre, contra tudo e todos. A adorar até ser capaz de viver com ele numa ilha deserta. Uma ilha cor-de-rosa-rosa. Cheia de flores. Ouvindo o mar a cantar.

Aí, Mãe, nessas terras calcinadas sob as quais os homens escavam e escavam suando e praguejando ("cuidado com os palavrões, olhem a criança..." - eu) nunca se ouve o mar.

Mãe, se puder, tenha vontade de me convencer de que afinal sou mais importante que o dinheiro. E não gaste aí, nem deixe que o Pai gaste, o resto da mocidade. Venha de férias, ao menos. Venha, Mãezinha!

Há coisas muito mais bonitas do que as pedras doiradas. E muito mais importantes do que ter cada vez mais dinheiro.

Com um grande beijo...

Parece-me que a Teresa não leu o final. Ou eu não o ouvi.

A voz dela, que se tornara segura, acaba num murmúrio, embargada pelas lágrimas.

Sinto lágrimas nas minhas mãos.

Não são as da Teresa Souzelo. São as minhas.

- Então Madrinha?

- Disseste o que sentias, não tenho observações a fazer-te.

- Mando a carta?

Por que não?

Então vou passá-la a limpo.

Uma tarde sem nada para contar.

Sentei-me a escrever; escrevi durante a tarde inteira. Tão mergulhada no trabalho que me alheei dos pequenos barulhos da casa. Ninguém me incomodou.

Vim depois a saber que a Teresa copiou a carta e ocupou o resto do tempo a ler um livro de Hector Malot (um bom autor para os novos). A ler esteve também a Luisa. As Mil e uma Noites; numa versão para a juventude.

A Emilia passou a ferro.

O telefone não tocou.

E agora...

Tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim.

Sete.

Nem sequer as confirmo no meu reloginho de pulso, tão querido como quem mo deu.

Os meus relógios (o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão) são tão seguros, tão conscientes das horas que marcam que não me sinto no direito de duvidar do que afirmam. São relógios que sabem o que dizem!

E eu... saberei o que faço, sempre... ou perderei por vezes a noção da realidade?

Perco a noção da realidade, por vezes.

Pois não me esqueci completamente de que vou ao teatro logo à noite?

Sim, para me arranjar tenho tempo, mas... e estes cabelos que estão uma vergonha? Guardo os meus papéis - estes papéis que tão freqüentemente brigam com outros afazeres, dominando-os! - e lastimo o irreparável.

- Estou linda para sair, não haja dúvida!... Podia ter parado às seis horas e ir num pulinho à Assunção...

- Se a Madrinha quiser, eu dou-lhe um jeito... Muitas vezes penteei a minha Mãe, e ela gostava!

Encaro a Luisa Maria, que acaba de afirmá-lo. Bem, a habilidade não é apanágio dos que atingiram a fase adulta. Eu, por exemplo, nunca soube pentear-me...

Sorrio-lhe:

- Aceito o auxílio!

E o telefone que nunca tocou durante a tarde retine neste momento, aqui à nossa beira.

A Luisa atende. Atende e noto que empalidece.

- Um momento, se faz favor. Pareceu-me que disfarçou a voz.

Disfarçou. Tenho a certeza quando ela me diz, tapando o bocal:

- É a minha Mãe.

- Ah!...

Venço a dorzinha que me magoa ante a constatação que se me impõe: pode acontecer que uma filha não exulte de alegria quando sua Mãe lhe fala inesperadamente...

A Mãe de Luisa Maria não lhe fala. É a mim que procura.

- Peço desculpa de a incomodar... mas a situação criada obriga-me a agir sem delongas. Reconhecemos que valia mais resolver isto imediatamente.

- Estou às suas. ordens, senhora D. Maria Regina.

- Cheguei a Lisboa ontem à noite e desde esta manhã que não paro a fim de resolver o assunto do colégio para a Luisa Maria.

- Perfeitamente.

A voz agreste torna-se mais agreste ainda.

- Decidi há bocado pelo que se me afigurou mais conveniente e amanhã de manhã, se me dá licença, vou aí buscar a Luisa Maria e saber se lhe devo, minha senhora, alguma coisa.

O "minha senhora" metido à força numa tentativa de me testemunhar consideração, não ameniza nem o que me parece insultuoso (dever-me alguma coisa, deve - reconhecimento pela ternura com que abri os braços à filha, e isso não é capaz de testemunhar-me porque um talpormenor se lhe torna indiferente; dinheiro, não...) nem o desagrado ante a solução que pela certa contribuirá para fazer desta garota traumatizada pelos desgostos uma rapariga infeliz, uma rapariga de vida vazia.

Uma rapariga de vida vazia?... Meu Deus, mas então... ?

O meu silêncio alonga-se e do lado de lá, algures na cidade, algures no mundo (não sendo aqui ao pé de mim, em qualquer parte pode ser), a minha interlocutora estranha, impacienta-se, receia que o telefone se haja desligado.

- Alô, alô... Está? Tenho de tentar.

TENHO DE TENTAR.

- S'Dona Maria Regina, desculpe... vieram dar-me um recado.

Não chega a ser mentira. Na verdade o meu espírito recebeu uma sugestão.

E como da outra vez tento vencer o meu desagrado, tornar-me simpática, para diplomaticamente salvaguardar os interesses de quem tanto espera de mim.

- Compreendo perfeitamente as suas diligências, as suas preocupações e o seu desejo de resolver o problema.

- Não é só desejo, é necessidade. vou casar-me dentro de um mês e o assunto da Luisa tem de ficar solucionado.

- Sem dúvida, sem dúvida! Sou inteiramente da sua opinião!

- Sim... claro!

(Pressinto em cada som da concordância uma sílaba a formar uma frase que ela gostaria de proferir mas não ousa "e que não fosse, quem manda na minha filha sou eu... "

- Claro! Claro!...

O jogo continua.

Ela tem a força dos direitos legais. Eu apenas a da razão moral. Ela não quer que a minha razão moral a acuse. Eu não quero que a força dos direitos legais vença a minha decisão de ajudar a garota que espera de mim... o que talvez não consiga dar-lhe mas pelo que hei-de lutar!

- vou pedir-lhe um obséquio, s'Dona Maria Regina... se porventura não for para si um grande transtorno.

- Queira dizer.

- Em vez de vir de manhã a minha casa, poderia ser a seguir ao almoço? Tenho uns compromissos que me não convinha adiar...

(não tenho mas posso ter - logo a mentira é apenas subterfúgio)

- Bom, preciso de comprar umas roupas para a Luísa...

- Talvez queira vir buscá-la e depois trazê-la consigo, para conversarmos um pouco...

A Luisa com um dedo espetado acena energicamente "que não" e põe as mãos em jeito de prece a implorar-me que a retenha comigo.

Se eu possuísse a varinha de condão que Ana Margarida, a condessa de Ribatorpes, vai erguer no ar...

A resposta não demora:

- Não, não vale a pena. Posso tratar de algumas coisas sozinha. Irei então após o almoço. A que horas?

- Às três da tarde, convêm-lhe?

- com certeza.

- Então... até amanhã.

- Até amanhã. - e clic.

E nem uma pergunta a informar-se da saúde, da disposição, da evolução da pequena durante estes dias... Nada!...

Toda a minha piedade envolve o vulto franzino da rapariguinha cujos olhos fitos em mim imploram desesperadamente:

- Salve-me!

Pois sim, Luisinha. Pelo menos, vou tentar!

Jantamos em silêncio.

A Teresa, com ar sério, parece tão mergulhada em pensamentos como a Luisa e eu. E creio que embora partindo de um ponto único cada uma de nós reflecte em direcções opostas.

Domina-nos a idéia dos conflitos familiares, mas enquanto a Teresa os enfrenta e a Luisa os sofre, eu procuro a maneira de tornar defensáveis as suas reivindicações. E custa-me não poder ir agora, já, falar com Ana Margarida.

Se eu tivesse podido adivinhar o telefonema da Mãe de Luisa Maria, não aceitava o convite para o teatro!...

bom, paciência! Fica para amanhã de manhã, a minha tentativa máxima.

E contudo... gostava de resolver o mais depressa possível este assunto que assume características de espinho cravado na minha sensibilidade. Um espinho que talvez me estrague uma noite que me prometia felicidade. Ou não me espere a companhia de alguns dos que há tanto têm direito de permanência entre as minhas amizades.

- Madrinha... ?

Luisa Maria é a primeira a voltar ao ponto de partida das nossas preocupações, logo aqui e ao momento actual.

- Madrinha, são nove menos vinte, precisa de se aprontar!

- Tens razão, filha! Arranjo-me num instante.

- Quando precisar de mim para a pentear, chame.

- Chamo.

Antes de sair da saleta, pergunto a ambas:

- Vocês vão ficar toda a noite a magicar nas coisas que hoje não podem já resolver-se?

- Nem talvez amanhã... - acrescenta a Teresa, num sorriso doce. E logo me tranqüiliza. - Não, Madrinha, prometemos-lhe.

Não devia haver combinação prévia, mas era como se houvesse. A Luisa acena sim, sim, e sim.

- Vemos televisão.

- Há um filme francês que talvez seja giro! - elucida a mais nova.

- E depois cama, para dormirmos e recuperarmos forças. Não adianta nada estarmos a pensar sempre no mesmo.

Pois não!

Pois não.

E suspiro, diante do espelho que me devolve a imagem de alguém que de vez em quando não está muito certa de nada nem de ninguém (talvez seja cansaço, apenas!). Pois não, não adianta estar sempre a pensar no mesmo.

Mas...

eu devia ir hoje, não ao teatro, mas a casa de Ana Margarida...

Pronta, E com uma cabeça aceitável, por fora. (A Luisa tem realmente muito jeito). Por dentro a minha cabeça continua a funcionar num desacordo total com a aparência, logo de acordo com a situação. Por dentro não me arranjei para ir ao teatro.

Porque devia ir a casa de Ana Margarida.

A Teresa, que decidiu espreitar à janela a partir das 21 e 15 m, avisa-me:

- Madrinha, parou um táxi à nossa porta. - e logo a seguir. - É o Artur. Já se apeou. Vem com certeza tocar cá para cima.

A campainha retine, com vivacidade.

- Pois... lá vou! E lá vou.

Despeço-me das meninas, despeço-me da Emília "é preciso esperar pela senhora" ? - "não muito obrigada e até amanhã", e desço.

O Artur aguarda-me a pé firme, no passeio.

De dentro do táxi emerge o João Ferreira, o irmão de Rosa-Maria. O tio João.

- Oh, minha querida amiga, que prazer vê-la!

- E eu, como gosto de estar convosco! Dentro de mim qualquer coisa me adverte "antes querias ir a casa de Ana Margarida". Não aceito que a minha consciência se ache no direito de me acusar de falta de sinceridade. Indo a casa de Ana Margarida eu não obedecia a um impulso que me levasse a buscar momentos de alegria só meus - antes diligenciaria conseguir algo para alguém. Indo ao teatro com estes concedo a mim mesma o que só a mim diz respeito. Portanto gosto realmente de estar com eles, com o Artur, com o João e com a Eliza.

A Elisa que ao meu lado, no táxi que se apressa para se livrar de nós o mais depressa possível e arrancar em nova corrida com outros clientes (os motoristas de praça também precisam do pão de cada dia) não cessa de se extasiar diante do meu óptimo aspecto.

(a D. Laura, a mãe do Fernando Vasco, diria excelente)

A Elisa Castro Ferreira é uma... (óptima ou excelente?...) pessoa. Encantadora. Muito boa esposa. Muito boa Mãe. Principalmente muito certa. Sempre de acordo com todas as iniciativas do marido, sempre conformada com as dificuldades com que defrontou ao longo da vida, sempre feliz por ser casada com o João (um homem cheio de qualidades e com pouca sorte até muito tarde - talvez a pouca sorte dele haja resultado em grande parte de haver sido um péssimo estudante, recusando-se a tirar um curso na altura em que os Pais tudo podiam proporcionar-lhe e preferindo um emprego mais do que medíocre que viera a dar-lhe sérios dissabores) e Mãe do Artur. Nisto, o João teve sorte. Apagada, discreta, simples, doméstica dos pés à cabeça, a. Elisa nunca lhe causou problemas. O que faz com que sempre eu a tenha apreciado muito. E que me ache contente na sua companhia. Como agora, sentindo a sua pequena mão enluvada poisada na minha num inequívoco testemunho de carinho.

Conversamos até à paragem do táxi ante as grandes portas escancaradas do teatro que regurgita. Conversamos sem coisa alguma de importante a servir-nos de tema sobre coisas importantíssimas. Os pormenores do nosso dia-a-dia, talvez semelhantes aos de milhares de pessoas e tão exclusivamente nossos. A saúde, o trabalho, as preocupações, os ganhos, o custo da vida...

O custo da vida.

A vida custa. A uns tantos?... Só?... Eu ouso crer que a todos, embora a cada qual sob determinado aspecto.

Há quem tenha fome de pão e quem tenha fome de instrução. Quem sofra com frio e quem sofra com calor. Quem chore porque foi maltratado e quem chore porque está doente. Quem padeça porque perdeu um ente querido e quem chore porque não tem quem lhe queira...

Muito doce, uma voz penetra nos meus pensamentos:

- Chegámos, amiga. Não quer sair do carro?... Pestanejo para que os meus olhos abandonem o

eu dentro de mim a que se recolheram desde há instantes. Não sei o que estava a Elisa a contar-me agora. Sei o que reflectia, apenas. E censurando-me por assim e mais uma vez me ter deixado evadir pondo-me a pensar quando me cumpre conviver, aceito de antemão a censura dos três pares de olhos que me esperam de fora do táxi. Não há qualquer censura neles, mas compreensão um pouco divertida. Pelo menos em dois dos pares de olhos. Nos do casal Ferreira. Creio que sempre me consideraram um bocadinho zuca... (como há dias certos clientes do Samuel Crisóstomo, quando levei a Emília ao consultório dele...)

- Como está, passou bem?. Samuel Crisóstomo, em pessoa. com a mulher e a filha - uma bonita rapariguinha de ar glacial que se me afigura estranha desde há algum tempo.

E se eu acabasse com a mania das observações? Talvez não seja despropositado mas até conveniente! E depois de ver sumir-se o médico e a família para lá da porta rasgada para a platéia - mundo-de-luzes-e-vozes, troco sorrisos com algumas pessoas que me conhecem e eu conheço, acotovelo e sou acotovelada por dezenas de desconhecidos.

Não há dúvida de que o teatro regista uma enchente. Assim a mereça, o espectáculo.

O Artur observa, junto de mim:

- As opiniões dividem-se. Há quem afirme que se fosse uma peça portuguesa representada por portugueses, só teria tido gente na primeira noite. Na segunda, depois da crítica a desfazer, sobreviveriam os corajosos, os confiantes e os provincianos de visita à cidade. Mesmo com um nome de prestígio a encabeçar o elenco.

- Na segunda opinião... ou na segunda noite? pergunto.

Ele ri-se.

- Na segunda noite.

- Então qual vem a ser a outra opinião?

- De certas pessoas que só vêm ao teatro quando acontece uma companhia estrangeira em "tournée" incluir-nos no roteiro de viagem existe aprovação delirante. Desde que não oiçam português - tudo é sensacional.

Rio ainda quando me sento no meu lugar - quarta fila, coxia central. Rio quando saúdo a família Fontemora, instalada num camarote de primeira ordem. A Alicinha atrai as atenções. Está linda, não há dúvida, com os seus longos cabelos cada vez mais pálidos (quase apostava em como os aclarou...). Mas o que atrai as atenções não é a sua beleza indiscutível. Muita gente da que está aqui comparticipou da festa do seu pedido de casamento. E outros reconhecem-na das fotografias dos jornais ao lado do Fernando Vasco (perdão, do Jacques Bertrand).

Agora, ao lado da Alicinha, outra rapariga acaba de sentar-se e acena-me alegremente um cumprimento. O Artur, que ainda está de pé, na coxia, responde-Lhe comigo.

É a Lili. A Leonor Augusta Abegorim, a filha mais velha do Dr. Juiz Álvaro Abegorim.

Os Abegorins. Teresa Mafalda. Ana Margarida. A casa de Ana Margarida onde eu havia de estar esta noite.

E lá vou eu a perder-me dentro das minhas reflexões!

Não, não vou.

Um zumbido enérgico como que soa só para mim, em jeito de despertador.

Não é para mim, é para toda a gente que ainda não entrou e agora se apressa para se instalar, sussurrando as últimas frases das conversas interrompidas e os cumprimentos que tanto mostram que se vê os outros como mostram aos outros que se está presente. As luzes principiam a diminuir gradualmente. Uma música estridente preconiza algo que vai acontecer, o pano de cena abre-se devagar...

e o espectáculo da assistência é interrompido pelo espectáculo no palco.

Assisto em ondas. Ora atenta, ora a léguas de tudo o que se passa no palco e não sei por ora classificar.

Afigura-se-me uma história decadente. Depois reconheço que não existe história. Dizem-se frases, actua-se sem palavras, representa-se por música, depois canta-se e dança-se. Bernardette Salomon é espantosa, não há dúvida. Quando representa sinto-me erguer na crista de uma onda. Onda de admiração.

Mas quando ela, em cena, simboliza o tempo que passa enrodilhada em cima de um tronco ressequido (a encenação é assinada, elucida-me o Artur, por um nome célebre do teatro romeno) os demais intérpretes, corpos modelados em malhas brancas (afim de sugerir a nudez) rostos cobertos por máscaras negras (a fealdade das conveniências, parece), mergulho no desinteresse total que me leva direitinha aos meus próprios pensamentos.

É nesta situação que chego ao primeiro intervalo.

O teatro estrondeia, aplaudindo. Há autênticos berros lá para cima, em repetidos "bravo... "

Os actores desapareceram, só agradecerão no fim.

O palco, cheio de pedras e de paus, parece agüentar com o peso de uma demolição. Como se o tecto houvesse caído. A música estridente volta a soar e as luzes, gradualmente, acendem-se. Parece toda a gente entusiasmada.

O Artur comenta baixinho:

- Até mesmo os que não perceberam nada do que ali foi dito no mais veloz francês!...

- Francês? - observo. - Calão parisiense!

O João quer ir fumar. A Elisa deseja um café. Acompanho-os embora nem fume nem tencione passar aqueles minutos encostada ao balcão do bar, à espera de ser atendida.

Fico a conversar com o Artur. Ou melhor, tento conversar com o Artur, mas somos constantemente interrompidos por quem nos cumprimenta. Ele conhece imensa gente, aliás.

Explica-me, a sorrir:

- Desde que sou escrevinhador de notícias pessoais, é isto! Não imagina a popularidade de quem toma nota de nomes para os publicar... Todos gostam de se ver citados. Principalmente os que vão aos funerais. Já tenho recebido reclamações por esquecer uma ou outra pessoa... Ainda há dias um sujeito se queixou ao meu chefe de redacção porque eu fizera de conta que o não vira no enterro de um primo afastado do director de um banco e...

O e mergulhou na incógnita. Um fulano com ar de total suficiência dá uma forte palmada no ombro do Artur, saúda-o com: - Então rapaz, que me contas desta maravilha?... Isto sim, an? De resto quis que viesses assistir exactamente porque a partir daqui tenho umas idéias... e sabes, acho que nós os dois juntos podemos dar brado...

Sinto confirmar-se a minha suposição que continua a ser suposição e já é certeza. O tal amigo da onça, o tal que quis banquetear-se com o que não lhe pertencia, deseja apoderar-se da colaboração do Artur. Precisa do talento criador do rapaz e, sem escrúpulos, tenta aliciá-lo, naturalmente convencido de que a ingenuidade do moço escritor fará dele um autêntico banco sobre o qual possa empoleirar-se para chegar onde pretende.

A seu tempo saberei pormenores do caso. O Artur contar-me-á tudo.

Porque o sujeito se afastou com ele, um pouco levando-o um pouco forçado pelos numerosos grupos que se constituem e oscilam dividindo outros, vejo-me só, junto de uma montra cheia de jóias. Admiro-as, com os olhos. Só com os olhos, O que me entretém é ouvir os comentários atrás de mim.

- Fantástico!

- Assombroso!

- É um grito de liberdade!

- Verdadeira lição de arte de representar.

- Um banho de civilização.

- Uma preciosidade literária.

- Fiz assinatura para todas as noites. Já vi esta peça cinco vezes.

- Termina no fim da semana, é uma lástima!

- Isto sim! Isto é teatro!...

- A Bernardette atinge o sublime!

- É uma actriz fabulosa!

- Eu já a tinha visto em Paris, num outro gênero, e achei-a sensacional!

- Faz lembrar a Simone Mignonet, não acham?...

- A Simone Mignonet não se compara com a Bernardette.

Deixo de contemplar as jóias para tentar identificar o detractor da Simone Mignonet - ou não seja o nome da Simone um elo da cadeia dos meus mais sinceros e profundos interesses (Simone, Jean-Paul, Fernando Vasco...). É uma mulher nova, chiquíssima, ostentando... Dá-me vontade de rir. Deve ter tantas jóias em cima dela quantas as que faíscam na vitrine de ourivesaria que estive a admirar, só com os olhos... E palpita-me que esta formusura espampanante também deve ser para admirar só com os olhos.

As opiniões que emite, continuando a estabelecer paralelos entre as duas grandes actrizes francesas são descabidas e patetas. E depois, onde a vantagem de denegrir um talento para fazer ressaltar outro?... Ao cabo e ao resto não é nada preciso... Mas a bonita mulher certamente riquíssima entende que no estrado da fama só cabe uma de cada vez. E rodeada por homens de sorrisos estereotipados e outras mulheres janotas (nenhuma tanto como ela) acaba de demolir a Simone Mignonet, que aliás já não tem quem a queira para sair de França, diz e acrescenta "Qualquer dia acaba a representar numa cidade de província em teatros de terceira ordem, verão... "

A dois passos de mim, um homem grisalho, bem parecido, sussurra para um sujeito baixo, magrinho, que me cumprimenta quando nota que os observo, a ambos (o sujeito baixo e magrinho é um dos nossos mais válidos e sérios críticos literários): "o contracto foi firmado há dois dias. A Mignonet vem em Janeiro do próximo ano à frente de um elenco sensacional. E há hipóteses do Jacques Bertrand estar nessa altura integrado na companhia dela. Isto no entanto depende de uma série que ele tem de filmar para a Televisão Francesa. No entanto contamos que a futura mulher o influencie no sentido de vir a Portugal, pois há-de gostar de passar umas semanas com a família".

O resto do diálogo dilui-se no afastamento de ambos, dirigindo-se para a platéia.

Dentro de mim um sorriso feito de tantos sorrisos que me sinto a sorrir sem me importar que aparentemente possa parecer a quem der por mim que me rio sem motivos!

Sem motivo?

Ai as afirmações contraditórias... Ai a esperança na benéfica influência da Alicinha Fontemora...

A mulher pontificadora e o seu grupo (agora falam todas umas com as outras submergindo o que dizem numa confusão de sons) fazem-me pensar no liceu da Ana Maria, no liceu onde andou a Ana Maria. Sim, no liceu onde andou a Ana Maria Ferreira de Macedo, onde anda a Rosarinho. onde andaram as irmãs da Rosarinho, e a Marta, e a Inês, e a Cristina, e tantas, tantas outras...

Quantas dessas rapariguinhas vão ser mulheres apenas para admirar com os olhos? Mulheres que abrem a boca sem saber o que dizem, só para não estarem caladas...

Que pena!... Que pena as rapariguinhas não aprenderem a evitar a frivolidade que leva ao ridículo! E principio a isolar-me dentro de mim.

Mas não me isolarei. O João, que acompanhou a Eliza ao bar, aparece justificando a demora e a desculpar-se "Não se rompia"!

Também o Artur, cujo ar expressivo de um intenso divertimento íntimo me promete novidades, se aproxima de nós. Aliás temos de voltar para a platéia. A música estridente recomeçou a alagar o teatro. A peça vai dar-nos o seu segundo acto.

Este segundo acto sobressalta-me, primeiro.

De repente, o que não parecia nada define-se e procura erguer uma temática.

O amor não é nada, o indivíduo é como uma árvore, vive unicamente para si próprio.

(por isto o tronco seco sobre o qual Bernardette Salomon de quando em quando se enrodilha como um trapo)

O indivíduo não tem senão uma obrigação - viver o melhor possível antes que de si reste um feixe de ossos como da árvore seca restam os galhos.

(por isso os paus que são cenário)

O indivíduo pode fazer o que quiser e cada um deve levar os dias como um penhasco que não precisa para coisa alguma do penhasco seu vizinho.

(por isto as pedras no palco dão a idéia de ter havido um desmoronamento)

Um desmoronamento.

Eis o que está a acontecer diante dos meus olhos espavoridos, diante desta gente muito contente pronta para aplaudir uma obra de arte.

Parece-me que alguém murmura ao meu lado "desde que não oiçam português tudo é sensacional".

Ninguém murmurou nada.

O silêncio no teatro espectador é absoluto. Uns tentam compreender palavras. Outros intenções.

O Artur está de boca aberta. Mas não falou agora. Falou há bocado, lembro-me. A frase que se me sobrepôs à longa tirada da Bernardette Salomon.

- uff, que até falta o ar! - foi dita por ele ainda antes de nos instalarmos aqui. Ficou dentro do meu espírito que ma repetiu como se fora um gravador. DESDE QUE NÃO OIÇAM PORTUGUÊS TUDO É SENSACIONAL.

Até o incrível e o falso!

Porque não é falso que o indivíduo seja como uma árvore - ou possa ser. O que é falso é que a árvore viva unicamente para si própria.

A árvore - uma das generosas criações de Deus:

dá-nos a sombra nos dias de sol;

dá-nos a lenha para o lume nos dias de frio;

dá-nos a fruta de inverno e de verão;

enche de beleza as paisagens;

abriga os passaritos - desinteressadamente;

alimenta-se do que não precisamos - o anidrido carbônico;

fornece-nos algo sem o que não podemos viver - o oxigênio.

(o oxigênio da Ilha dos Pêssegos)

A Ilha dos Pêssegos. João Alfredo.

Ana Margarida.

A reprodução do quadro de Renoir para cada um dos quartos das raparigas que hão-de colher esperanças

51

às mãos cheias na casa vazia que vai ficar cheia - a casa Ribatorpes.

Onde talvez amanhã principie a OBRA.

Com Luísa Maria. A Luisinha.

Filha que a sua Mãe dispensa.

Porque há problemas entre Mães e Filhas?

Há más filhas? Há.

Há más Mães? Há.

As más filhas são criaturas degeneradas.

E as más Mães o que são?

Por que há más Mães?

Talvez porque há pessoas más. Ou inconscientes.

As Mães más resultam das raparigas sem preparação alguma para o que a vida espera delas, para o que a vida quer entregar-Lhes. Raparigas que no casamento não vêm o lar, mas uma existência diversa da que tinham em meninas. Raparigas que no nascimento de um filho não reconhecem a formação da família, mas uma sobrecarga de trabalhos e chatices. Noites mal dormidas. Obrigações de cada hora. O banho. As fraldas. Os biberões.

As Mães más não gostam de ninguém.

Porque são más mulheres, só gostam de si próprias.

Não são como as Árvores!

As árvores vivem mais para os outros do que para elas próprias.

As árvores são como o Amor - tudo para nós.

(Sem oxigênio não se vive...)

É mentira o que a Bernardette Salomon está ali a dizer.

- Madrinha?

Uma revoada de aplausos... O teatro vem abaixo.

Os bravos esganiçados repercutem-se, multiplicam-se, do segundo balcão para as últimas filas da platéia.

Creio que só o Artur ouviu o que eu disse. Porque o disse.

A acusação soltou-se-me dos pensamentos e formou-se-me na voz. As palmas desatinadas evitaram o escândalo que a minha atitude podia provocar, pelo menos nestas filas mais próximas.

Palmas, palmas, palmas.

Tenho uma vontade louca de chorar.

Claro que assim não haverá só más Mães. Haverá cada vez mais má gente.

Pois acaso sem amor é possível viver?

O amor não é nada?

Meu Deus, o amor é tudo. Quando o indivíduo espalha sombra, calor, alimento, beleza, carinho e paz. Como a árvore.

E enquanto o entusiasmo crepita em meu derredor as minhas mãos caídas juntam-se. Não, não para aplaudirem. Para formarem um gesto de prece:

- Árvores... por favor... continuem a ensinar-nos a viver!

Um grande cansaço íntimo aconselhava-me a dizer: - não.

A imposição de uma amizade sincera ditou-me: - sim.

E eis-me sentada com a Elisa, o João e o Artur no vasto salão de chá (restaurante e café), recusando o bife que o João insiste que eu coma. Decido-me por uma tosta mista e uma cerveja. O João pede o bife. A Elisa quer chá e bolos. O Artur prefere uma sanduiche de presunto e um café duplo.

- Depois não dormes, filho. - observo.

- É isso que pretendo. vou trabalhar até tarde. E a Eliza, queixosa:

- Qualquer dia adoeces. Ninguém vive sem dormir.

- Eu durmo, Mãe.

- Dormes? Duas ou três horas por noite.

- Preciso de aproveitar o tempo. Os dias não chegam para nada, principalmente por causa das minhas obrigações lá no jornal. - E recordando-se das novidades que o seu olhar me prometera, exclama: - Ah, e a propósito do jornal, nem sequer imaginam o que o tipo me propôs.

Pela forma como se expressa, deduzo que os Pais dele estão tão ao par do assunto como eu.

O criado, obsequioso, coloca sobre a mesa o que havíamos pedido (o bife do João cheira que consola).

E tão íntimos como se nos achássemos reunidos numa das nossas casas, alheados por completo dos que já neste salão vasto e confortável não deixaram um lugar vago (está imensa gente da que vi no teatro) conversamos acerca do caso que o Artur nos expõe de uma maneira que não me engana. A repugnância que sente ultrapassa a surpresa e abafa a conveniência de aceitar uma proposta realmente espantosa depois do sucedido.

O fulano, que pela certa percebera a dificuldade de pôr em marcha a idéia cujos pormenores, sendo de outro, lhe escapavam, sentindo-se em terreno escorregadio procurava convencer o Artur de que o que se passara não fora senão um mal entendido e oferecia agora ao rapaz um importantíssimo papel a desempenhar: o de seu colaborador.

- O que o tipo quer, - deduz o João e muito bem, - é utilizar-te, obrigando-te a desenvolver os teus planos ao serviço dele.

- Evidentemente. Ou o Pai julga que tenho ilusões e que vejo nisto um acto de contricção do gajo?

Ponho-me a rir.

- Deve ter passado dias e noites a bater com a mão no peito muito arrependido do mal que te fez...

O Artur, a beber o café, quase se engasga.

- É isso, Madrinha. Acredite que a cara dele, olheirenta, era tão reveladora da crise atravessada que até me meteu dó!

Rimos todos. E rimos ainda mais quando a Elisa ao trincar delicadamente o "bolinho" transbordante de chantilly sofreu o resultado do brusco rebentar da caixita de massa que lhe encheu o nariz de creme.

Depois, serenada a hilaridade (necessária como reacção, para descontrairmos os nervos tensos desde o espectáculo - a Elisa confessa que não percebeu senão palavras soltas e o João arrumou a peça com um único comentário-patacoadas!) indago:

- E que foi que lhe respondeste?

- A única coisa que me safava na ocasião. Que ia pensar. Depois...

O João interfere:

- com a tua ida para a tropa, a coisa esquece e acabas por te livrar do sujeito.

Dão-se duas reacções diferentes. O Artur pára de mastigar e põe-se a rir. A Elisa deixa o terceiro bolinho de chantilly em meio e põe-se a chorar.

E um após outro explicam os seus motivos.

Diz o Artur, fitando o Pai:

- Estou convencido de que entretanto o tipo se afunda, e quando eu recomeçar a sério, quando eu recomeçar para me estabilizar, talvez ele tenha o capital empatado em negócios com os quais eu não possua quaisquer ligações.

Diz a Elisa, fitando o marido:

- Bem escusavas agora, depois de uma noite tão agradável, de me fazer pensar nisso...

Todos nós sabemos a que isso ela se refere, com aquele ar assustado de quem vê erguer-se-lhe na frente um papão.

E de um e de outro lado duas mãos apoiam-se nas da mulher que tem medo do que se lhe afigura à mais terrível das ameaças para o filho.

- Então, Mãe? ...

- Então, Elisa? ...

- Mãe, eu gosto de poder cumprir o meu dever. Acredite e alegre-se comigo.

- Elisa, eu também fui tropa e não morri!

E ela, enxugando os olhos discretamente ao lencinho que tira da carteira:

- Pois sim... mas no teu tempo era outra coisa! Não havia tantos perigos...

E eu:

- Elisa, há perigos em toda a parte, em todas as direcções, em todos os tempos. Existimos no meio dos perigos e apesar disso a maioria subsiste, nunca o sofre...

- Está bem, está bem, mas eu conheço um rapaz que era uma perfeição, uma estampa, e veio de lá todo estropiado...

E neste instante sucede algo lá fora, na rua. Guincham travões, buzina um automóvel desesperadamente, gritam seres humanos. Um movimento de espanto em todo o recinto, depois pessoas que se precipitam para investigar, para saber o que foi. Muita gente apinha-se junto das janelas afim de espreitar.

O Artur, com o seu sentido agudo de jornalista, corre lá para fora.

- Algum desastre, pela certa. E o João:

- Estão sempre a acontecer! Sempre.

O Artur reaparece, pálido que faz impressão.

- Um atropelamento! Um rapaz... debaixo de um autocarro. Deve ter ficado sem pernas.

Elisa, os perigos estão em toda a parte. Qualquer pessoa pode ficar estropiada. Sem ir para a tropa.

Acordo bruscamente, com a sensação de que me espera algo de importante para fazer.

São oito da manhã. Devem passar uns minutos porque não as ouvi nos meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão.

Passam cinco minutos - vejo-os no meu reloginho de pulso que descansou na mesa de cabeceira.

Oito e cinco. Cedo demais para o que já sei perfeitamente o que é: ir a casa de Ana Margarida.

bom, mas enquanto me arranjo, e saio, e chego não chego lá... as horas tornar-se-ão convenientes.

Horas convenientes.

A Berta fita-me penalizada.

- A senhora condessa não está!...

Sinto-me um pouco incrédula. Mas a rapariguinha, adivinhando as minhas dúvidas, esclarece-me:

- A senhora condessa levantou-se muito cedo, pediu o carro e saiu. Parece que ia tratar de uns assuntos por causa da modificação do palacete.

O coração bate-me contente.

Ana Margarida em acção - a entrar na ponte que leva ao seu novo reino. Ana Margarida a iniciar a caminhada...

- Virá muito tarde, Berta?

- Não faço idéia. A senhora condessa não disse. Hesito entre regressar a casa e ficar. Mas ficar

até quando? Ana Margarida pode demorar-se.

- Berta, pede em meu nome à senhora condessa que me telefone assim que chegar. É um assunto urgente.

- Fique descansada, minha senhora. Fico descansada, embora ansiosa.

O assunto tem de estar resolvido antes que a Mãe da Luisa Maria transponha a porta da minha casa.

Onze da manhã.

A Teresa anda contente a ajudar a Emília nos arranjos domésticos. Requereu o direito de limpar o pó e cantarola.

A Luisa Maria está a ler o jornal soltando suspiros que traduzem a sua inquietação.

Meio-dia. Avisam-me de que o tempo passa os tins dos meus relógios.

Um toque repenicado na campainha da porta da rua.

Penso - acaso Ana Margarida em vez de telefonar decidiu vir, alertada pela minha urgência?...

Lá fora, na escada, uma voz troveja:

- Correio!...

Correio, cá em cima?... Algum registo, talvez.

A Emília surge.

Sim, um registo. Uma carta.

Porquê?

Não conheço a letra, não conheço o nome da remetente, não conheço ninguém na cidade de onde vem. Tavira.

Assino no livro das confirmações - recebido - e contemplo o sobrescrito. Depois rasgo-o, para me inteirar do conteúdo. E o telefone retine.

Atendo, com a folha de papel na mão.

- Está?...

- Estou, sim. bom dia!

E depois de me saudar, Ana Margarida confirma a informação de Berta. Foi falar com um antiquário pois tenciona vender algumas das coisas que lhe enchem as divisões (coisas? preciosidades!) pois talvez o ambiente onde vão viver rapariguinhas deva ser mais claro, mais luminoso, mais jovem...

- Ana Margarida...

- Sim?

- Preciso muito de lhe falar.

- Estou ao seu inteiro dispor.

- Você está de facto resolvida?

- Resolvida! Completamente!

- Bom... -e olho a Luisa Maria que continua a ler. - Ana Margarida, tenho aqui o seu primeiro caso (não quero ainda alertar a garota).

- Já?... -e depois. - Meu Deus! Posso vê-la? Ah, sim... vê-la...

- com certeza.

- Está consigo?

- Sim. - vou imediatamente para aí. - e desliga sem me dar tempo a acrescentar o que quer que seja. Aliás agrada-me que ela venha. Mais importante do que tudo quanto eu pudesse explicar-lhe é o encontro com Luisa Maria.

Sim, não há dúvida. Principiou a grande realização.

Leio a carta e pasmo.

"Minha senhora.

Peço desculpa de procurá-la para lhe expor este assunto com tanta franqueza, mas estava a reler o seu último livro e como não tenho à vontade para tratar de certos assuntos com a minha Mãe, lembrei-me que talvez a senhora me pudesse atender.

É o seguinte:

Eu tenho 13 anos e ando no quarto ano do liceu. Há um rapaz da minha idade que eu conheço desde pequena e sei que gosta de mim. Até há perto de dois meses eu não sabia o que era ter ciúmes de alguém, porque não tinha razões para isso. Mas nessa altura, eu que andava muito com ele comecei a aborrecer-me de estar ao pé dele por causa duma rapariga que não o deixava.

Entretanto o meu Pai é amigo dum senhor casado a quem eu sempre achei uma "tara".

Há dias a mulher dele foi para Lisboa para fazer uma operação e o meu Pai convidou-o para cá vir jantar. Eu na altura não sabia porquê, mas até dei pulos. No dia seguinte de manhã quando ele (que mora na minha rua) desceu do carro, levantei-me da cama e fui à janela só para o ver passar. Penso que estou apaixonada por ele. Cheguei até a desejar a morte à mulher dele, mas depois pensei e pedi a Deus que ela se salvasse, porque apesar de tudo acho que ainda era muito pior para mim vê-lo casado com outra. Já fui umas duas ou três vezes à garagem dele quando vinha do liceu.

Desculpe, mas eu tinha que contar isto a alguém. Não posso contar à minha irmã que é mais nova, nem ao meu irmão, por isso...

Muito obrigada.

Rosalina Teixeira

Sinto-me com as mãos apertadas na cabeça. Do mais profundo de mim emerge uma aflição imensa.

Como acudir? Como?...

As mãos descem-me da cabeça que de súbito me dói e creio que nelas palpita um desejo veemente de levantar as saias à Rosalina de Tavira para lhe dar naquele rabiosque uma boa dose de açoites. Mas depois começa a reflexão a esclarecer-me de que os açoites não bastam para salvar uma garota de 13 anos da primeira aceitação do mal.

Algumas linhas da carta faíscam-me sob os olhos: "não tenho à vontade para tratar certos assuntos com a minha mãe... "

Uma situação que se repete atrozmente, e não é de hoje, pelo contrário. A falta de intimidade entre Mães e filhas, tão contrária a tudo o que se torna desejável e aconselhável, tão prejudicial, vem de longe no tempo.

De longe no tempo vem a recordação de alguns conselhos que ainda não localizo. Perpassam em frases soltas, trancadas, mas violentas no seu conteúdo. Há que dizer...

que elas não valem pelos olhos mas

pelas belas almas.

Toda a gente tem a obrigação de estender a mão aos novos...

TODA A GENTE...

Foi nas vozes de três rapazes que eu escutei isto e muito mais há já uns anos.

Nas vozes do Pedro, do Paulo e do Fernando Vasco, quando me contaram tudo o que se havia passado durante as férias no Reichavater - o grande colégio da Alemanha onde tinham vivido as suas férias. Nas vozes que se entreajudavam para reproduzir o que fora dito pelo burgomestre Robert Stann a propósito da educação requerida pelos tempos actuais.

Toda a gente tem a obrigação de estender a mão aos novos.

A mão não para bater mas para acudir.

Como posso eu auxiliar esta garota que precisa de vigilância, de esclarecimento, de noções de moral? Tem Pai e Mãe.

Tem Pai e Mãe...

Encontro-me num dilema cruciante.

Posso atraiçoar a confiança que me testemunha, mandando esta carta para esse Pai e essa Mãe que necessitam de conhecer a filha? Ou escrevo-lhe a ela meia-dúzia de linhas a dizer-lhe "come, dorme, estuda e deixa-te de paixonetas desmioladas? "

- Minha senhora!... Minha senhora! MINHA SENHORA!

- An? Que é, Emília?

- Acaba de chegar a senhora condessa de Ribatorpes.

- Sim, acabo de chegar, eu, Ana Margarida.

Ana Margarida.

O problema da Rosalina Teixeira fica por agora sem solução.

Está exposto o caso da Luisinha. Ana Margarida absorve os meus pensamentos mais depressa do que lhos exponho.

E sentada na minha frente, pálida e esguia no seu luto total, não sabe o que seja uma hesitação.

- Levo-a já hoje comigo!

- Se a Mãe concordar... - observo.

- Ah, sim... pois claro. Se a Mãe concordar. E não se retira. Aceita o meu almoço simples,

conversa com as duas pequenas que a cercam de atenções.

A Luisa não sabe sequer que neste momento o seu destino está em jogo. É completamente desinteressada nos carinhos que oferece a Ana Margarida.

Não vou dizer que a Teresa é menos sincera na simpatia que lhe testemunha. Apenas...

Sim, ouso afirmar que os olhos da Teresa vêm na condessa de Ribatorpes acima de tudo e principalmente a Mãe do João Alfredo. E isto não tem mal nenhum.

Chegou a Senhora D. Maria Regina mãe da Luisa Maria. Viúva e noiva.

É uma mulher de trinta e poucos anos, morena, bonita. Vestida de preto, como Ana Margarida. Viuva, como Ana Margarida. Viuva e noiva.

A viúva-noiva está aqui para se livrar da filha ante a viúva-viúva que abre a sua casa(e o seu coração) para tentar tornar felizes algumas raparigas entre as quais a primeira será talvez a menina que incomoda a noiva em que a sua Mãe se tornou...

Contemplo-as a ambas, silenciosa. Demasiadamente silenciosa. A observar a diferença entre as duas viúvas, tão próximas afinal nas idades (uns oito anos entre as duas?). E bonitas. Ana Margarida é mais do que bonita - é bela na sua elegância de sempre que o luto parece realçar. Os traços finos, que nenhuma pintura ajuda, lembram um rosto de Madona italiana. Recordo-me de uma imagem não sei onde. Talvez em Itália. Julgo que em Turim.

Em Turim, na igreja de Maria Auxiliadora. Maria Auxiliadora. Auxiliadora...

Ana Margarida está aqui para auxiliar - como Maria Mãe de todos nós.

A semelhança e o reconhecimento da semelhança obrigam-me a perceber que preciso de sair desta não presença em que a minha presença se concretizou, notando o ar espantado das duas viúvas que esperam, uma que eu erga a ponte por onde há-de transitar a menina que muda de rumo, outra que eu a despache porque na verdade ela não está aqui a fazer nada senão à espera de ir-se embora. Pelo menos, é o que pensa e não pode continuar a pensar.

De resto o silêncio termina com uma pergunta da viúva-noiva, um tanto embaraçada:

- Bom... creio que a Senhora (a senhora sou eu) podia chamar a Luisa Maria?... Tenho bastante que fazer, ainda.

- Antes de chamar a Luisa Maria, queria fazer-lhe uma proposta.

- Uma proposta?

- Uma proposta precedida de uma explicação.

- Faz favor.

- A explicação necessita de um ponto de apoio o qual será uma resposta sua a uma pergunta minha.

- Ela aguarda e eu formulo o quesito: - Está realmente disposta a internar a sua filha num colégio segundo o que me disse?

- Sim, num colégio donde sairá apenas depois de concluídos os estudos.

- E... se ela por qualquer razão não quisesse estudar?

- Como?

- Sim, se ela, traumatizada por se ver afastada de tudo o que mais lhe importava na vida, - o amor dos Pais - deixasse de ser a aluna aplicada que até aqui se mostrou?

- Continuaria no colégio e nessa altura até à maioridade.

- Sem férias nem dias consigo?

- Quando vier a Lisboa, visitá-la-ei.

- É tudo?

- Já lhe expliquei os motivos. - e franze -a testa, desagradada. - De resto, mesmo que ela mudasse de intenções, eu agora não a levaria comigo para casa. O Damião não deseja presenças que entre nós possam pôr em perigo a ventura, perturbando a nossa intimidade.

Dentro de mim, reflexões sobre reflexões, atropelando-se umas às outras. Procuro desembaraçá-las para me libertar de um emaranhado que venha a tolher-me o raciocínio. Vejamos: a conclusão a que ela chegou quanto à intimidade perturbada, não é tola. Tola é a conclusão a que chegou ante o cuidado de que tenho estado a revestir o que de pergunta passou a questionário - supõe que todas as minhas palavras visam conseguir que a filha volte com ela para o lar a que deixou tão completamente de pertencer. "O Damião não deseja presenças que entre nós possam pôr em perigo a ventura..." Mas então...

Então? ...

Ordem e calma - imponho a mim mesma.

- Mas... perdão... e o seu filho?

Sim, o filho dela, o garoto de dez anos, o Alfredo Manuel de quem a Luísa já me mostrou o retrato

- caracóis escuros emoldurando um rosto redondo de menino para quem tudo ainda deve afigurar-se certo?

- O meu filho?...

- Sim, o seu filho?...

- Ainda não sei. Talvez vá passar uma temporada com os meus ex-sogros que vivem muito sós e se sentirão encantados com a companhia do miúdo.

- Ah, bem, bem, bem - e dentro de mim o avesso da palavra a magoar-me. - Mal, mal, mal...

E porque reconheço que nada há a fazer para que a viúva-noiva queira continuar a ser Mãe dos filhos do ex-marido (pois não são os Pais do falecido os ex-sogros... ?) decido acabar com isto e chegar onde devo para tentar resolver a situação. Volto ao caso da Luisa Maria.

- S' Dona Maria Regina, uma só coisa mais a saber - quanto vai pagar por mês no colégio que escolheu?

- Por agora, mil e oitocentos escudos.

- Bom... -e encaro Ana Margarida que se conserva harmoniosamente serena, confiante em mim. Chegou o momento de principiar o que tenho a dizer.

Ninguém já pode fugir ao que espera por nós. Ao que há-de levar-nos a todos até aos rumos abertos que nos não neguem o direito de olhar os horizontes.

- S' Dona Maria Regina, se fosse possível a sua filha encontrar um lar, um lar onde viva sem quaisquer encargos seus, onde a presença dela se torne numa compensação para alguém que vai dedicar-se inteiramente a uma obra de formação de raparigas, mas formação no sentido de querer acima de tudo dar-lhes felicidade, consentiria?

A viúva-noiva mira-me tão espantada que me dá subitamente vontade de rir porque me recordo do ar com que fui observada no consultório de Samuel Crisóstomo quando lá levei a Emília. Muitas vezes passo por tonta - de facto!

Consigo não rir, esperando que ela reaja por si própria.

Reage.

- Trata-se de algum asilo? Eu não preciso de caridade.

- Sossegue, S'Dona Maria Regina. Não se trata de nenhum asilo. De resto não creio que nos asilos, por mais bem intencionados que sejam, haja acima de todas as preocupações a dominante de querer tornar realmente felizes as rapariguinhas. Nos asilos dá-se alimentação, guarida, instrução... mas os sonhos e os desejos pequeninos que tantas vezes são o amparo ou a destruição de uma alma jovem, não interessam a ninguém. Nem podem interessar numa organização que escolhe as sem-nada (ou os sem-nada) para lhes dar o essencial. Bem vê que os sonhos e os desejos pequeninos são muitas vezes o fútil, o supérfluo... Não se tornam cuidado para quem sabe que está a conceder o mais importante de tudo.

A viúva-noiva deixou, pelo menos aparentemente, de ter pressa. O que estou a dizer-lhe interessa-lhe. É algo de novo, de diferente.

No fim de contas creio bem que não há ninguém que não guarde em si a pena de não haver um dia realizado um dos tais sonhos ou desejos pequeninos que tantas vezes, amontoados, levam à frustração e ao descalabro.

- Nesse caso... se não é um asilo, o que vem a ser?

- Uma Fundação. - enuncia a voz clara e doce de Ana Margarida. - A Fundação Ribatorpes.

- A Fundação Ribatorpes? Nunca ouvi falar.

- Pois não, porque ainda não tem história. A Fundação vai começar... talvez hoje, se me confiar a sua filha. Comprometo-me não só a proporcionar-lhe o que a senhora D. Maria Regina queria que ela tivesse no colégio, educação, instrução, vigilância, mas também um ambiente alegre, tranqüilo, sadio, onde ela aprenda o valor de cada dia.

E a viúva-noiva acha muito estranho tudo aquilo.

- Mas... a que propósito uma tal obra?... E porque escolhe a minha filha?

Ana Margarida e eu trocamos um olhar cheio de um pensamento que não necessita de ser formulado para que o saibamos comum. Como sabemos que não devemos revelá-lo a quem não o entenderia. "Escolhemos a sua filha como escolheremos outras raparigas de vida vazia".

Disponho-me então a explicar a iniciativa de Ana Margarida em moldes ajustados à comprensão de quem não concebe que se possa querer, como razão de sobrevivência, contribuir para que os outros sejam ditosos.

- Escute, s'Dona Maria Regina. A senhora condessa de Ribatorpes (os títulos impressionam favoràvelmente certas pessoas) enviuvou recentemente. Possui uma enorme fortuna e um palacete cheio de obras de arte onde ela não sabia em que se ocupar, criados ambos os filhos que para nada carecem do dinheiro nem das horas livres da Mãe. E pensou, a senhora condessa, em deixar tudo para se entregar a Deus, isolando-se num convento. O mundo em que viveu até há pouco, por motivos de ordem sentimental que não interessam senão à própria (motivos aliás de uma dignidade absoluta) deixou de ter para ela a mínima importância. E foi então, mercê até do conhecimento de uma nossa amiga comum, a irmã do Dr. Juiz Álvaro Abegorim, a senhora D. Casimira Abegorim que vai dedicar-se a uma obra de amparo às raparigas, obra participante da que no século passado foi fundada em Itália pelo padre João Bosco, mais tarde -São João Bosco (os salesianos, não sei se conhece?)... -e não espero a resposta, prossigo: - que a senhora condessa acolheu a inspiração de se doar inteiramente a servir a Deus da mesma forma mas não isolando-se, pelo contrário, consagrando-se a rapariguinhas que ela possa ajudar a serem felizes. A Luisa Maria seria assim a primeira, a pedra base da obra em marcha.

- Mas... -e a viúva-noiva anda, sem dúvida, à procura de termos para expressar o seu espanto, a sua incapacidade de abranger a Idéia - e quanto é que quer por mês?

Engulo o que ia soar sob a forma de uma resposta torta.

Ana Margarida não perde a harmonia da sua calma. A doçura dos seus claros olhos não se perturba.

- Eu não peço nada. Só quero que me deixem dar.

- Mas...

- Oiça, minha senhora. Se dispõe de tempo, levo-a à minha casa, para que se aperceba de que sou na verdade extremamente rica. É esta fortuna que eu preciso de tornar útil! Já não me interessam luxos, jóias, automóveis, festas mundanas - pelo menos para perder tempo.

Mas vamos a minha casa e lá poderá testemunhar a obra de que lhe falei.

Ambas saem. Fico com a Luísa e a Teresa.

A Emília desenha-se no rectângulo da porta da saleta onde nos encontramos e avança. Traz na mão...

Ah? ...

Oh! ü...

- Imagine a minha senhora que o pateta do correio da tarde, que é novo cá na área, foi meter isto na caixa dos senhores lá de baixo. E a criada é que viu e veio trazer!

Isto.

Carta da Ana Maria.

Uma grande carta? Pelo menos um sobrescrito volumoso!

E não tenho pressa de esgotar a alegria de os ir ter a todos comigo, presentes em cada uma das linhas, em cada uma das palavras desta missiva.

A Teresa, que me observa, adivinha:

- Está com um ar radioso, Madrinha. São notícias dos Macedos, pois são?

Aceno que sim e poiso as minhas duas mãos sobre a mesa. Entre as mãos e o tampo da mesa, a carta fechada que afago como se tentasse acariciar os cabelos sedosos da minha Ana.

Ana, Rumané, Maria Rosinha.

Trrrrriiiiümmmmmmmmmmmmmmm...

E a Teresa atende (a Emília já se retirou).

- Alô?... Ah, sim! Está, está! - e estende-me o auscultador. - É a condessa de Ribatorpes.

Finalmente!

Tudo resolvido!

A senhora D. Maria Regina, a viúva-noiva, gostou do palacete Ribatorpes. Sim, acredito que mais do palacete do que das intenções que vão povoá-lo. E entrega a filha aos cuidados de Ana Margarida que apenas exige uma garantia - a menina não será perturbada na paz que lhe vai ser oferecida. A Mãe, evidentemente, nunca será contestado o direito de visitar a filha mas também nunca exigirá que a Luisa Maria abandone a Fundação ou dela saia a não ser por expresso desígnio da principal interessada. Quanto ao mais sem problemas. A despedida cifrara-se em dois sorrisos: um de resignação, onde o desgosto se acolhia - o da filha; outro de alívio, onde a liberdade se albergava- o da mãe.

Maria Regina está agora apta a ser cada vez mais noiva e menos viúva.

- E a Luisa, manda-ma agora? - pergunto, depois de ser pormenorizadamente informada do que tanto me interessava. - Ah, não? ... Já aí fica, hoje? E continuo a ouvir. A Luisa vai ocupar o quarto de hóspedes estilo Império que é o mais próximo dos aposentos dela, Ana Margarida. A Luisa vai ter professoras em casa (aliás mais tarde talvez seja necessário constituir grupos, para que possam estudar as que o desejem). A Luisa vai amanhã vestir-se na bombocas, casa especializada em artigos para a adolescência. A Luisa vai. A Luisa vai.

Ana Margarida revive em cada uma das suas resoluções acerca da Luisa Maria, que vem por fim ao telefone. Tem a voz embargada.

- Madrinha, não sei como hei-de agradecer-lhe! Acho que vou ser muito feliz... Já comecei a sentir-me feliz! Adoro a Mãe Margarida!... Só uma coisa me magoa, precisar de me separar de si. Mas compreendo que não pode ser de outra maneira!

Assim começa a Carta da Ana Maria, que leio agora:

Meu Criador, tudo me deste e ma conservaste e no meu amor por ela eu te amo a Ti, meu criador, em cada momento da minha vida!

E sabe porque lhe digo isto, Madrinha? vou contar-lhe.

O Pai operou recentemente a filha de um sujeito muito importante de cá, proprietário de um jornal. Conversando acerca dos seus rebentinhos e das lides literárias chegaram por qualquer associação de idéias que me escapa (não aprofundei o assunto) até ao meu livro. Claro que ao livro por referência do Pai. E o senhor, amabilíssimo, logo mostrou desejos de o dar a ler a um amigo encarregado da crítica do seu jornal. Como ainda não há livro se não em provas (e a propósito, Madrinha, ainda falta muito para sair... ?) e o senhor insistisse, o Pai convenceu-me (sem grande custo, confesso) a emprestar-lhe o manuscrito que é bastante legível. Pois ante-ontem soube a opinião do tal critico, opinião particular pois acho que não vai escrever nada no jornal a meu respeito. "Para uma rapariga não está de todo mal... mas precisa de muitas correcções principalmente de idéias" pois lhe pareceu, entre outras coisas absurdas, que eu evidenciava uma certa hereticidade (eu não sabia que hereticidade é a qualidade de ser-se herético) naquela comparação sacrílega do amor que se tem a Deus com o amor que se dedica à nossa Mãe". Fiquei tão aflita, tão aflitinha, que depois de discutir o problema com os meus Pais bastante em desacordo com um tal parecer mas não suficientemente versados na matéria para me tranqüilizarem, procurei aontem à tarde o padre Dr. Álvaro Fontes, prior da igreja a cuja missa vamos, Sacerdote que goza do maior prestígio por ser realmente sabedor, cónscio das suas responsabilidades e inteligentíssimo. O Pai, que adora conversar com ele quando se encontram em casas que ambos freqüentam como amigos, achou muito bem a minha idéia e a Mãe também a aplaudiu - até que ela ficou preocupada com o levantar de um problema em que a sua formação moral nunca viu senão coisas de que Deus gostava. Pois foi concordante com esta a opinião do padre Fontes, que me mandou embora para casa depois de me fazer uma festa na cabeça e de me dizer: "Vai em paz, filha. Heréticos são aqueles que se esquecem de que o amor da Mãe por um filho é na verdade o reflexo do amor de Deus por nós. Ou não somos os Seus filhos... por quem Ele tudo faz e fez? Por quem ele deu a vida?... As Mães também são capazes de dar a vida pelos filhos... Abençoados os que, como tu, sabem compreendê-lo e senti-lo! "

E pronto, aceito o que a minha alma me transmite e não penso mais no senhor que pretende ser mais papista do que o Papa. A frase não é minha, é velha-relha e acho que não melindra... Ai, Madrinha, a gente às vezes já nem sabe bem para que lado olhar se se põe com medo dos que estão a olhar para nós, em vez de o ter da consciência, que é o mais importante de tudo.

A propósito disto aconteceu-me hoje uma coisa muito curiosa. O Rumané, em geral, ouve as nossas conversas familiares sem se imiscuir. Nunca ficamos a saber se ele está atento se não está, se se interessa se não interessa. Bom, não ficávamos, que eu já cheguei a uma conclusão.

Ontem à noite os Pais e eu debatemos largamente o tema das heresias. Ou antes - o tema das coisas injustas que se dizem e fazem. Ou ainda melhor - o tema dos maus juízos e das agressões morais (expressão do meu Pai) a que se anda sujeito neste mundo.

Pois quando chegou a casa para almoçar, o Rumané abeirou-se de mim com uma cara muito séria e pousou-me ao lado um embrulho. "Tome, Ana. Comprei para si".

Era um livro.

Desembrulhei e fiquei sem entender o presente - a razão do presente. Claro que um livro é sempre um presente que não precisa de justificação. Aquele, precisava! Eu tinha na minha frente uma biografia de Antônio Nobre que é uma forma como outra qualquer de erguer barreiras em frente dos sonhos de cada um.

Mas adiante, para notícias que não falem só de mim (foi jeito que me ficou...).

O Pai continua em excelente forma (sabe que a D. Laura me escreveu uns dias antes do compromisso - é assim que ela diz - do Fernando Vasco com a Alicinha Fontemora, em ar (juro!) de sondagem?... muito embora todos os dias julgue descobrir mais meia-dúzia de cabelos brancos por cima das orelhas, junto às fontes. Para mim nascem daquela dor horrível que ele sentiu maior que ninguém. São como as galinhas efervescentes de uma bebida gasosa, a subirem do fundo à superfície e inspiram-me um constante desejo de os arrancar para acabar com o testemunho do sofrimento acabado. O toleirão não deixa. Acha que lhe dão um certo ar... que fica mais bonito... Claro que ignora o que vejo nas suas "cãs". De resto trabalha cada vez mais, porque a clínica moderada do início tem subido de uma maneira que a continuar se tornará insuportável. Os médicos, famosos e afamados, não são de ferro... e Nós precisamos do nosso Pai! Às vezes é um bocadinho complicado conciliar os interesses da vida profissional com o da vida familiar. O que vale ao Pai (e a Nós) é a esperança de que o Pedro e o Paulo não se atrasem nem um minuto (não atrasam!) para virem prestar-lhe a assistência que há-de equilibrar os interesses gerais. E também a grande pausa que aí vem. Setembro - Setembro e a quinta! Setembro e nós todos juntos!

Ai, Madrinha, até sinto o coração a pulsar-me nos tornozelos! A pulsar e a dar-me uma vontade de correr, de saltar por cima do oceano e chegar lá, lá, lá... Lá onde o Domingos radioso escreveu a dizer "Até já começámos as limpezas do solar..." A Mãe largou a rir, claro! E comentou ". Quando formos, já está tudo sujo outra vez".

Realmente, ainda falta tanto!

Mas não quero pensar nisso. Só quero pensar que Setembro vai ser um mês maravilhoso!

(Setembro, que grande mês! - fulgura-me o pensamento.)

E sabe a quem é que eu o digo mais vezes? A pardalinha da casa, à Maía Rosina.

Ai, a Maia Rosina! Oiro e azul em porcelana branca e a gracinha de um botão a abrir em pinceladas de inteligência.

(esta rapariga está a escrever cada vez melhor)

Todos os dias surge uma palavra nova, um raciocínio tão precoce que o Pai até já diz "ou eu estou muito esquecido ou ela leva a dianteira aos meus outros filhos em muito." A Mãe sorri, sem concordar nem discordar. Mas sorri... e o sorriso atraiçoa-a descobrindo-Lhe os pensamentos. A Maria Rosa ultrapassa-nos!

Anda com uma ligeireza assombrosa (ante-ontem fomos achá-la a trepar para um sofá como se entre os pés dela e o assento não houvesse mais de quarenta centímetros de diferença). E sai-se com cada uma! Há bocado, por exemplo. Queria água - àuá - e vai aponta para um copo assim - "àuá poço... Dá a manina!" O poço era o copo. Largámos a rir, a Mãe, eu e a Laura. E a cartuxinha não gostou... Ficou muito séria, a olhar-nos, sem perceber a nossa hilaridade... Desconfio que em matéria de orgulho não destoa na família... Esta aliás é também a opinião do Rumané, de quem não lhe digo mais nada hoje porque ele me preveniu de que ia escrever-lhe breve. Não sei até onde se revelará no que lhe contar e no entanto creio que ele bem precisa de se abrir com alguém. Porquê? Não sei. Porquê não sei, mas sei que sei... E é isso o que eu desejo imenso que a Madrinha perceba.

vou começar agora a minha colaboração nos tais programas que a Madrinha sabe. Quando me sair um que me pareça razoável, mando-lho para que me dê a sua opinião. Não queira ser-me favorável, achando tudo bem. É preciso que não me estrague com o seu carinho que só me encontra perfeições.

É verdade - imagine só: esta semana recebi duas declarações de amor! (uma delas fez-me lembrar as assiduidades do Joaquinzinho Bento, lá em Penarim...) Calcule que um é médico do Hospital. Tem trinta e quatro anos, é careca e usa barbas (que pena o que lhe sobra na cara não lhe crescer na cabeça!) Escreveu-me uma carta que me ia escangalhando a rir. Não, Madrinha, não estou afazer troça, juro! Mas concebe um sujeito destes a pedir muito respeitosamente namoro à donzelinha dos seus anseios tal e qual como o avô Joaquim à avó Teresa numa carta que a avó, toda comovida, me mostrou pouco antes de nós virmos para Luanda, quando lá fui um dia almoçar? Era a primeira de um grande maço atado com umafitinha cor-de-rosa... "Minha senhora, desde que tive a honra e o gosto de a conhecer em casa dos amigos que em tão boa hora se lembraram de nos reunir que o meu pensamento se alimenta da sua formosa imagem..." Bom, nesses tempos era assim e estava certo. Mas hoje ? ... Pois hoje ainda acontece e aconteceu-me. Fiquei tão atrapalhada!... Depois tomei a única decisão possível e conveniente. Encarnei a personagem e respondi-lhe no mesmo tom agradecendo a preferência e declinando-a por me encontrar já prometida em casamento (a Mãe soube de tudo, riu e aplaudiu a corrècção com que me livrei de insistências). Quanto ao segundo pretendente... é pior. Giro, tipo desportista, anda atrás de mim no carrão com que julga inebriar-me. E abordou-me nestes termos "Olha lá, pequena, és livre ou andas de bandeirola abaixada?..." E eu, taco a taco - "ando de bandeirola abaixada." E ele: "pois não desisto de substituir o freguês com que andas ocupada". Como vê, os dois "gêneros" não se confundem e eu sinto-me irresistível. Aliás sou irresistível... ou não tenha prendido para-sempre o melhor e mais belo rapaz do mundo - o meu Paulo! Para mim,

além de o reconhecer como tal, É-o e não proteste evocando o Pedro. Sinceramente lhe digo que adoro que o Pedro seja meu irmão mas se não fosse garanto-lhe que não me agradava. Porquê? Tem sido um bocadinho leviano, não acha? Já vai na quarta inclinação (e não duvido de que seja a definitiva) ao passo que o meu Paulo nunca pensou noutra que não eu. E por isto me sinto segura dele, tão segura que arrisco o para sempre. Se fosse de outra maneira, se eu o julgasse capaz de vir um dia a desviar de mim o bater do coração... não me casava, Madrinha. Eu entendo que o amor que leva à constituição da família tem de ser totalmente apoiado em confiança-confiança e de parte a parte.

Ainda ontem estive a dizer isto mesmo à Laura que veio do Hospital a fazer beiço porque segundo ela o Quico andava a dar trela demais a uma enfermeira que o Pai admitiu agora. Ferrei-lhe uma sarabanda com a qual pretendi convencê-la de que se ela vai passar a vida a desconfiar do marido só porque ele dirige a palavra a outra mais valia que ficasse solteira. É evidente que ela não opta pela solução, mas creio bem que vai ser o seu pedaço aborrecida para o Quico. Bom, também não garanto que o Quico não venha a fazer as suas maroteiras... Pelo menos a Arminda considera-o um bocadinho tero-lero. Mas a Arminda não faz fé neste assunto, porque cá na minha idéia o que ela não deseja nada é que a Laura case, não por inveja, Deus nos livre, mas porque a companheira de tantos anos lhe faz falta. Aliás não só o casamento a leva. De qualquer maneira, ela mudava de rumo... (!) E a preocupação da nossa cozinheira (que aumentou mais três quilos num mês) incide principalmente na falta que a Laura nos vai fazer na quinta, em Setembro.

Madrinha -já contou o número de folhas que acaba de ler... ? que tal?... Ah, é verdade, porque é que demorei tantos dias a obedecer à ordem do seu telegrama?

O exame, Madrinha! O exame! Acabei o meu sétimo ano. Dispensei das orais com 18, 3. Quem diria que eu viria quase a competir com o meu sábio irmão e o meu brilhante noivo ?

Sinta-se cada vez mais orgulhosa da sua

ANA MARIA

Ana Maria! Minha doce e adorada Ana Maria, como estas horas foram belas!

E continuam a ser belas, 13 horas que os meus relógios marcam cheios de compostura, simultâneos, para não deixarem os seus créditos por mãos alheias.

Tenho aqui diante de mim, acabada de chegar, a Maria do Rosário Abegorim. A Rosarinho.

A Rosarinho que após dez minutos de compreensível acanhamento tagarela como se fosse hábito vir almoçar comigo. E tagarelo eu também porque não me faltam razões para conversa.

A vinda da Rosarinho foi decidida ontem à noite, quando eu ainda me achava envolta na alegria maravilhosa da carta da Ana que daqui a pouco vou ler à namoradinha do Pedro cujos olhos se tornaram mais azuis na ânsia de ter notícias da família a que há-de pertencer. Ela telefonou-me e com toda a simplicidade fez-me lembrar o meu convite-promessa no dia do pedido de casamento da Alicinha Fontemora. "Se pudesse ser amanhã... eu gostava tanto que me aconselhasse por causa de uma coisa".

Cá estamos mas por ora não sei ainda a que respeito vou ser consultada.

A Maria do Rosário tem muito de que falar e as irmãs são tema inextinguível. Quando principiamos a comer a sopa, sei que a Rita recebeu ontem mais uns versos do Antônio Fontemora todos de cortar o coração, que a Leonor Augusta ouviu um raspanete do Pai porque depois de ter ido à noite ao cinema se lembrou de ir com o Júlio tomar chá a uma pastelaria o que a fez chegar atrasada quase uma hora decorrida sobre a que o Dr. Abegorim calculara ("a menina veja se percebe que é devagar que se vai ao longe...) e que a Mirita já comprou o tecido para o vestido de noiva - uma "mousseline" estampada que é uma belezinha - e que só para o véu são precisos 18 metros de tule. "Isso não é demais?" "Não, porque ela vai ficar como que metida dentro de uma nuvem". E tudo muito bem explicadinho, preenche-nos até ao creme de chocolate que as duas meninas repetem, deliciadas.

Quando a Emília me traz o café, a Rosarinho abandona o assunto.

- Lê-me a carta da Ana Maria?

- Não será melhor depois de me expores o motivo capital da tua presença aqui? - E não revelo que desejo esperar por quem ela não sabe que vem aí.

- O motivo capital? - e a Rosarinho ri. - O motivo capital era o desejo que eu tinha de visitá-la!

Rio com ela e a Teresa connosco.

- Eu calculava isso! Mas... A menina alarma-se.

- Não, não foi invenção, o motivo! Há motivo. Só o que não é é capital!

- Bem...

- vou já expor-lho e fica a saber que não fiz batota!

- Pronto!

- Conhece a Dr. a D. Branca Mimosa? Nem hesito.

- Pessoalmente e de tradição. A Ana Maria adorava-a.

- Todas nós a adorávamos.

Estranho o tempo do verbo que ela emprega.

- Adoravam ?... Mas vocês ainda vão ter física para o ano!

- Vamos, mas não com ela!

Recordo-me de súbito de o ouvir à Ana. "A Dr. a D. Branca Mimosa está quase a atingir o limite de idade... "

- Ah? ... Chegou a reforma, não é?

- Faz setenta anos em Setembro. Não volta ao liceu. - e treme, a vozinha doce da Maria do Rosário. - Despediu-se de nós na última aula. Chorávamos todas! Creio que chorou o liceu em peso. E olhe, sem combinarmos umas com as outras, parecia um cortejo a segui-la pelos corredores... E só se ouvia soluçar! E ela, que tem emagrecido muito nestes últimos meses (a senhora Reitora pensa que era com o desgosto de nos deixar que ela quase nem comia) a tremer ao pé do portão, a querer empertigar-se, muito valente... e depois a acenar-nos com a mão sem coragem de se voltar para trás a fim de nos ver ainda...

Branca Mimosa, física eminente, uma das primeiras mulheres doutoradas entre nós, autora de um trabalho notabilíssimo publicado em dezanove línguas, premiada nos Estados Unidos, investigadora nata... Branca Mimosa, mulher sem ninguém, porque toda a família lhe morreu há muito. Branca Mimosa, professora adorada pelas suas alunas...

A voz da Rosarinho, à qual durante segundos os meus pensamentos se sobrepuseram, vence-os agora, nítida e fluente.

- e então ficámos a pensar que não estava certo que a deixássemos partir assim. A Dr. a D. Branca Mimosa não merece ser posta de parte sem mais nada! É preciso fazer qualquer coisa, qualquer coisa que seja pelo menos uma boa recordação nossa, do nosso afecto, do nosso respeito...

Interrompo-a.

Creio que os soluços que a acompanharam constituem a melhor das recordações da sua vida de trabalho.

Ela discorda.

- Oh, não! Não tem graça nenhuma, uma lembrança feita de lágrimas! De cada vez que evocar o nosso choro a pobrezinha desata a chorar também!

- Então o que é que tu queres?

- Eu e outras, enquanto não são todas porque ainda não tratámos de nada!

- Pois muito bem, o que é que tu e as outras querem?

- Uma coisa que seja... não sei, uma grande alegria, uma espécie de prêmio... lindo, lindo, lindo!

Uma grande alegria. Uma espécie de prêmio... lindo, lindo, lindo...

Não disfarço a minha compreensão das esperanças com que ela me encara.

- É portanto uma sugestão, o que tu esperas de mim, Rosarinho?

- Eu e outras, que falei de si a várias das minhas colegas e elas estão tão confiantes como eu na sua ajuda.

Sinto-me bastante perplexa. De repente não tenho nenhuma idéia!

- Se fosse em tempo de aulas... fazia-se-lhe uma festa no liceu.

A Maria do Rosário franze o narizito.

- Isso não tem novidade! Festas há muitas. Sorrio, ante o meu fracasso.

E ela prossegue:

- Queríamos uma coisa mais íntima e ao mesmo tempo geral... Uma coisa muito para ela e muito de nós todas!

- Rosarinho, não te parece deveras difícil de arranjar algo que seja íntimo e de toda a gente?

Uma leve sombra de decepção no azul daquele olhar magnífico.

- Para nós, sim. Por isso pedimos ajuda. Já não sorrio. Suspiro.

Realmente muita falta às vezes faz uma varinha de condão, ou a lâmpada de Aladino!...

E depois, de súbito, na contradição dá-se como que o-choque das electricidades... Um estranho som algures, uma luz que não vejo e uma certeza a definir-se. Intimo e de toda a gente... ?

Intimo?

De toda a gente? ? ?

De toda a gente, de toda a gente, de toda a gente...

Preciso de raciocinar.

- Oláááa! ...

A Rosarinho até salta na cadeira. Cora de emoção e atira-me um beijinho na ponta dos dedos, naturalmente com vergonha de o oferecer a quem chega. O Pedro!...

O Pedro, que eu convidei para vir tomar o café e ouvir a leitura da carta da irmã. (O Paulo não precisa, deve saber de cor e salteado praticamente tudo o que ela me conta. E o Pedro também bastante, porque o futuro cunhado não costuma ser avaro das notícias que possam interessar a todos, mas enfim, o Pedro havia de gostar de se achar reunido com a Rosarinho aqui, sob a protecção desta espécie de anjo tutelar, que é o que eles no fim me consideram.) O Pedro que nós não ouvimos chegar, de tão entretidas que estávamos. E ele reconhece-o:

- É que nem me viam, an?... Pois durante mais de um minuto esperei ali à porta que dessem por mim, atônito com o silêncio aqui dentro!

- Há silêncios absorventes, Pedro! - e depois de receber os seus beijos amigos, enquanto ele, feita uma festa nos cabelos da Rosarinho e apertada a mão da Teresa (foi primeiro o aperto de mão e a seguir a festa) se senta e aceita o café que a Emilia se apressa em servir-lhe bem quentinho como ele gosta, elucido-o:

- Sabes? A Rosarinho deixou-me deveras perplexa! -e explico-lhe porquê.

Ele estava a par do projecto sem estruturação. E concorda comigo:

- Realmente, fácil de achar não é. Mas enfim, julgo que a Madrinha acabará por descobrir.

Pois... ele também!...

E dentro do meu raciocínio esfalfado, a decisão de me arriscar. Se for tolice, a Rosarinho faz uma careta e o Pedro declara-mo sem a mínima cerimônia.

- Nem vocês imaginam a idéia que de repente me assaltou!

- Diga, diga!

Uma última hesitação. E depois:

- Julgo que não será fácil nesta altura reunires todas as colegas que desejem associar-se na homenagem à Dr. a Branca Mimosa.

- Fácil? Nem fácil nem difícil! Todas é impossível. Até nem uma maioria se consegue por causa da dispersão imposta pelas férias!

- Pois!... - e isto auxilia-me. Afoito-me: - Tu podes talvez convocar um grupo e encarregá-lo de comunicar com o máximo de condiscípulas que por sua vez irão alargando um círculo, passando palavra acerca do que pretendem levar a cabo. E pedem que cada uma contribua com a importância que entender e com uma fotografia dos seus tempos de aluna do liceu.

A Rosarinho está suspensa.

- Sim... - balbucia.

E reparo que a mão dela se encontra fechada entre as duas belas mãos do Pedro, num gesto tão natural que é a sorrir cá por dentro que prossigo:

- Depois a comissão organizadora de que talvez possam fazer parte, entre outras que não conheço, a Marta, a Inês, a Cristina...

- Ai fazem com certeza! Ainda ontem falei com a Marta e ela está pronta para tudo. E as minhas irmãs também ajudam ao que for preciso, embora só a Lili é que tenha sido aluna da Dr. a Branca.

- Ora sucede (vai suceder, se Deus quiser!) que vocês vão reunir-se em Setembro. (Setembro, que grande mês!) em São Boaventura, incluindo já a Ana Maria.

Os olhos do Pedro reluzem tanto que me captam. Ele já sabe o que vai ouvir. Adivinha-me os pensamentos.

E passo-lhe a palavra.

- É isso mesmo! Explica tu à Rosarinho.

E por mais extraordinário que se afigure, ele fala com as palavras quase exactas com que eu descreveria o projecto acabado de nascer.

- Em Penarim existe uma estalagem modesta mas muito confortável e nada cara. A Dr. a EJ. Branca Mimosa nunca pela certa foi a Penarim. A Dr. a D. Branca Mimosa raramente sai de casa. A Dr. a D. Branca Mimosa não tem família. As meninas vão convidá-la a ir passar uma semana a Penarim, com todos nós, como se pertencesse à nossa família, aos nossos íntimos. Aliás acredito que muitos amigos encham os oito ou nove quartos da estalagem de São Boaventura, que foi este o nome que o dono lhe deu (a propósito, o Fernando Vasco antes de partir recomendou-me que não me esquecesse de reservar quarto para ele e os Fontemoras decidiram logo ir conhecer o que no fundo não lhes interessa nada, mas enfim...), pois querem associar-se à festa da nossa Mãe.

(agora nas mãos do Pedro estão cingidas ambas as mãozinhas da Rosarinho que se apresta a dizer de Rosa Maria, como o Pedro - a nossa Mãe.)

E o Pedro continua.

- Tem de ser assim, porque no solar não cabem todos, claro! Portanto, a Dr. a D. Branca Mimosa ficará em Penarim, vivendo connosco todos aqueles dias. As meninas, com o dinheiro apurado, pagarão as viagens e as dormidas na estalagem...

Se ela não couber num dos carros que forem!

- colabora a Rosarinho que já apreendeu tudo.

Isso! Aliás com as refeições não gastam nada,

porque passará o tempo ao pé de nós, na quinta. Estou certo de que por isso sobrará dinheiro e, com esse dinheiro, mandarão emoldurar quantas fotografias tiverem conseguido reunir para as oferecerem à Dr. a D. Branca Mimosa.

Uma pausa.

A Teresa, que não pronunciou uma única palavra durante todo este tempo, declara:

- Que coisa tão bonita!...

A Rosarinho desprendeu as mãos das mãos do Pedro e oferece-mas. Aceito-as, transbordante de carinho. E ao mesmo tempo de receio. Não gostava nada, mas mesmo nada, que a Rosarinho começasse a elogiar esta idéia que me aconteceu.

A Rosarinho entre-abre os lábios. E uma pequena frase que nada parece ter de comum com o que foi dito, cai-me no coração de um modo tal que nunca mais dele sairá a intenção que traduz:

- Que pena a Mirita e a tia Casimira já cá não estarem nessa altura!...

E a vida não tem neste momento se não horas belas para me oferecer.

Já passa das quatro horas e ainda não paramos de tagarelar. À Rosarinho e o Pedro enchem cada momento tornando-o tão grande de sentido que fica pequeno de extensão. Nenhum de nós se lembra de que tem que fazer durante a tarde. Pelo menos eu e o Pedro. O Pedro, com um exame à porta.

A Rosarinho, contente, está livre por agora de obrigações. Venceu o ano com boas notas. Exame, daqui a onze meses e tal...

- Para que curso vou? - responde a uma interrogação minha - Continuo a pensar em físico-químicas.

- A pequena é de idéias fixas! - ri o Pedro.

- Calculo...

A intenção da frase é clara e não escapa a nenhum. Rosarinho colabora:

- Desde miúda, quando se me metia qualquer coisa na cabeça não havia volta a dar-lhe. Por causa disso até me lembro de...

(já sei que vem aí uma das engraçadas histórias em que foi fértil a infância da mais nova das Abegorins)

- Devia eu ter para aí os meus sete anitos. Fiquei sozinha em casa, como aliás acontecia várias vezes. As minhas irmãs tinham ido a uma festa, não sei onde, e eu, mais miúda, não mereci as honras do convite. E andava de um lado para o outro sem saber com que me entreter, tão estúpida que nem aceitei o que costumava adorar - ir para a cozinha brincar aos jantarinhos ao pé da Sofia que nessa altura cheia de pena da pequerrucha que ficava sempre ao canto do borralho (a "pequerrucha" só tinha escola de manhã) me dava tudo e mais alguma coisa para que não continuasse desazada - frase dela. Por acaso que nessa altura aprendi até a fazer um bolo que nunca mais esqueci!

- Bem Bom! - aprova o Pedro, interessado nas habilidades de doceira da futura esposa.

Ela prossegue:

- Cá na minha cismava que também havia de ter uma festa e nas minhas cogitações procurava maneira de a resolver a contento. Fui sentar-me em dada altura a um cantinho da janela da sala, concentradíssima, a pensar, ou antes, a desenvolver o meu plano. A Sofia, quando deixou de me ver no corredor, foi espreitar-me e lá achou que o meu silêncio e a minha quietude lhe permitiam continuar descansada as suas ocupações... E eu... sabem o que fiz? Primeiro juntei uma porção de cadeiras na sala (trouxe-as do escritório e do nosso quarto). Depois fui ao quarto dos armários, apeei uma data de vestidos da Mãe e da Lili, que eram os maiores, vesti as cadeiras todas... liguei a telefonia... e quando a Sofia voltou para ver o que se passava ao som da música achou-me divertidíssima a tomar chá com as minhas amigas...

- Conseqüências? - pergunto.

- Nenhumas! Creio que ela teve mais pena de mim do que se preocupou com a necessidade de arrumar tudo aquilo. E deixou-me continuar até que eu, já saturada, abandonei a brincadeira. De resto, ela também tinha a sua fisgada. Quando o Pai chegou, encontrou tudo como eu deixara. É claro que a coisa lhe meteu uma certa confusão. Mas a Sofia, que nunca teve papas na língua, explicou-lhe tudo. - a a Rosarinho, enternecida, conclui: - A partir desse dia tornou-se muito raro que as minhas irmãs saíssem sem mim. Pelo menos todas. Quando eu ficava, por não ter idade para acompanhar a Lili, a Rita ou a Mirita também não saíam.

- Pode portanto deduzir-se que achaste para o teu mal um óptimo remédio! - risonha opinião do Pedro.

Maria do Rosário colabora no sorriso.

- Eu arranjava sempre remédio para os meus males. - e lembra: - De uma vez foi um destes remédios!... Mas nessa altura já era grande e se a história das cadeiras vestidas não foi asneira, antes uma reacção da garota que se sentia isolada e vista a distância até a mim me enternece, a outra podia ser grave se no fundo eu não fosse como sou.

E o Pedro, maliciosamente:

- E como és tu... ? E ela, compenetrada.

- Posso dizer que a rapariga ideal para emparceirar com um rapaz às direitas...

- Logo, uma rapariga às direitas? ...

- Evidentemente. - e atirando os longos cabelos para trás, naquele seu gesto característico: - Se alguma das minhas irmãs agora me ouvisse chamava-me peneirenta... garantidinho!

- Lá por isso, - corrobora o Pedro, - sou capaz de te classificar da mesma forma, recordando a ajuizada menina que pretendeu certo dia experimentar a morte debaixo de uma mesa...

- Experimentar, não! Saber como se morria...

- Vem tudo a dar na mesma!

- Não vem, não senhor! Mas se me ajuizares por esse facto do qual eu era a única vítima, posso rebater a tua afirmação com a minha maneira de proceder no tal dia em que... -e para mim, que os escuto tão feliz como eles. - Conto?

- Conta! - aprovo, aguardando.

(Tim... -são quatro e meia. Deixem ser, relógios, não perturbem! Não tenham pressa por mim. Estas são horas belas. Quando forem feias, então corram, corram... Mas agora, devagarinho. Por favor, devagarinho...)

- Devia eu andar aí pelos onze anos. E sei perfeitamente que ia para um ponto de francês que me assustava imenso. Nessa altura eu tinha aulas de tarde, a seguir ao almoço. Ora lá em casa não havia safa para qualquer falta se não em caso de doença. E vai... resolvi adoecer!... - e a rir para o Pedro. - Não, não tomei nenhum frasco de tinta. Porque na verdade só desejava fingir-me doente.

- Que feio! - comenta o Pedro, que não perde o ensejo de gracejar com ela, certo como está de que a Rosarinho não afina.

- Lá feio é... mas em determinadas ocasiões dá jeito!

(até dá - penso, evocando certas obrigações diante das quais às vezes nos apetecia enfiar debaixo dos cobertores para se fugir ao que não pode deixar de ser).

- E nessa manhã o tal jeito sugeriu-me um estratagema. Primeiro queixei-me com imensas dores de cabeça. Depois desatei a tossir. A minha Mãe, como de costume, inquietou-se. Viu-me a garganta - nada. Pôs-me o termômetro... e o ordinarão, nada... Claro que não havia solução: "A menina vai porque tem ponto... e depois logo à tarde, se continuar a queixar-se, telefona-se ao Dr. Graciano Mendes para que venha vê-la. Mas... -e sorri, não sei bem se para nós sé para o quadro que revê, compondo-o em palavras, - o diabo tece-as! E a minha Mãe ia nesse dia almoçar fora com o Pai. Eu fiquei portanto sozinha com a Sofia. Então, tanto magiquei que achei. A Sofia, claro, é uma simples, sempre pronta a acreditar em tudo o que as suas meninas lhe dizem. E em se tratando de doença - ainda mais completamente, já se sabe. Ora como a Mãe saísse cedo porque ainda ia ao cabeleireiro e eu continuasse queixosa, a Sofia principiou a apoquentar-se e a resmungar "que não havia o direito de sacrificar as crianças pondo as estudações à frente da saúde, e etc. e tal... E eu não estive com meias medidas. Decidi provar-lhe que estava realmente enferma livrando-me do ponto. Para isso tinha de convencer o termòmetrozinho a subir... E como de ouvir as minhas irmãs já possuía umas tantas noções de física, não duvidava de que o termômetro só sairia dos seus inofensivos 36 e poucos graus se lhe chegasse o calor. Pois aquecê-lo-ia! E fui à cozinha, a pensar num bico do fogão de gaz aceso. Mas nisto vi a panela da sopa ao lume, a ferver... e catrapuz! Destapei-a e mergulhei o termômetro, com a ponta do mercúrio Para baixo. A Sofia andava a arrumar os quartos, eu estava à vontade. E nisto... um ligeiro estremeção nos meus dedos... e do termômetro... a parte que eu segurava! O resto desfizera-se na sopa.

- Que horror! - comenta a Teresa, esbogalhada.

- E depois?

Eu e o Pedro sentimo-nos tranqüilos. Não aconteceu nada... Não podia acontecer! Porque a Rosarinho é a. Rosarinho!

- E depois, - continua ela, - a minha aflição nem se descreve! E não era pela perda do termômetro, que isso podia atribuir-se ao descuido de qualquer de nós, sempre prontas a deixarmos tudo ao Deus dará. Era pela noção de que aquela sopa podia ser fatal - na altura não pensei sequer que só pudesse fazer mal. Vi as minhas irmãs a comerem vidros e mercúrio e a morrerem as três uma após outra...

- Na verdade passaste um mau bocado! - aprecia o Pedro.

- Ai se passei! Passei... mas reagi imediatamente e tomei a única solução possível. Agarrei na panela da sopa com um pano da louça que estava ali à mão e despejei-a inteirinha na pia! Nem queiram imaginar o espanto da Sofia quando pouco depois entrou na cozinha e viu a panela vazia dentro do lava-louças! E como apesar de simples não vai ao ponto de acreditar em fantasmas, logo deduziu que aquilo fora obra de uma mafarrica de carne e osso chamada Rosarinho... E foi ter comigo que, falhadas ingloriamente as tentativas para me escapar ao liceu, aceitara como expiação das minhas culpas o tratar de pelo menos estudar um bocadinho de gramática até à hora de sair. "Rosarinho, que foi que aconteceu à sopa?" - perguntou. E eu, como se dissesse a coisa mais natural do mundo "Deitei-a fora". Ela pasmava, coitada! - "Ó rica, mas deitou-a fora porquê?..." O porquê não podia ser revelado e não havia explicação aceitável, a não ser a que dei. "Olha, porque me apeteceu". E dali não houve que sair, embora a Sofia de mãos na cabeça barafustasse "Mas oiça lá, a menina daqui em diante tenciona continuar a deitar fora a sopa... ou foi só por esta vez?... É que se foi só hoje, eu não digo nada à sua Mama. Mas se é para continuar, aviso-a... Vejam o disparate, an? "... Houvera, disparate, sim. Mas não no facto de ter despejado a sopa... Podia a Sofia guardar o silêncio - eu não tornaria a repetir o que tanto me pesava na consciência. Não tornei, claro. Mas durante muito tempo lembro-me de ver a Sofia a olhar-me como se receasse que a sua querida menina fosse sujeita a crises de falta de juízo. E várias vezes a ouvi resmungar na cozinha "é que não cabe na cabeça de ninguém, ora não há! Deitar fora uma panela de sopa..." Creio, de resto, que ela só fazia estes surdos comentários quando eu estava perto e não havia hipóteses de que outra qualquer pessoa desse por eles. A boa da Sofia nunca contou nada a ninguém. E eu... é a segunda vez que falo nisto.

- A segunda? -estranha o Pedro.

- Sim. A primeira foi quando nesse ano me confessei na Quaresma.

- Tiveste uma grande penitência? - quer saber a Teresa.

- Não. O padre achou que o meu reconhecimento da culpa me desculpara aos olhos de Deus. E bem assim a forma que a mim mesma impusera de nunca mais ter medo da disciplina que me ia arrastando ao mal. - O azul luminoso dos seus olhos envolve-nos numa atmosfera de pureza. - Foi na verdade a última vez que apanhei um medíocre a francês. Quando cheguei ao quarto ano já só tinha Bons +e Muito Bons.

Gosto. Gosto de saber isto. Gosto de tudo quanto está aqui ao pé de mim - pessoas, factos, sentimentos, projectos...

Projectos.

O projecto da festa a que a Dr. a D. Branca Mimosa há-de estar associada, em Setembro. É preciso defini-lo já.

E sem que eu saiba exactamente como durante alguns segundos me achei só comigo embora no meio de tudo isto de que GOSTO, o assunto gira de novo em volta da professora a quem é preciso oferecer de presente uns dias felizes. (Lá em Penarim, ao pé de todos, ela há-de sentir-se feliz, pois não é assim?...)

E a Rosarinho pergunta-me:

- E de que maneira há-de a gente convidá-la?

- De que maneira?

- Vamos em grupo, vai só uma?... Penso e sugiro:

- Talvez uma ou duas de cada ano...

- E convida-se de viva voz? Cabe ao Pedro pronunciar-se:

- Se me aceitam a colaboração, eu diria que o convite escrito seria melhor. Fica, enquanto que as palavras se esvaem.

- Mas um convite assim... banal, sem mais nada? E ele:

- Não, um convite sem qualquer banalidade. Um convite muito bem redigido, tão bem redigido que nele caiba o agradecimento sincero das alunas que a estimam e respeitam. E talvez impresso em letras doiradas...

- como se fosse um pergaminho? - alvitra a Maria do Rosário.

- Isso! E sabes? Não devia ser entregue em mão!

- Então?

- Vocês arranjam um bonito ramo de flores... espera... -e a inspiração brota, - um ramo de rosas brancas e de mimosas...

- para a Dr. a D. Branca Mimosa!... -Maria do Rosário resplandece. - Acho lindo!

A Teresa observa:

- Lindo como tu querias.

- Já agora, - acrescenta o Pedro, - se vocês tivessem uma colega que soubesse desenhar...

- Temos! Temos a Rita Mónica, que tem imensa habilidade, parece até que vai para as Belas-Artes.

- pois então ela podia iluminar o pergaminho, que aliás em vez de imprimir-se devia ser escrito por uma outra capaz de fazer letra gótica... an?...

- Lá isso descobre-se quem saiba, nem que seja preciso recorrer a uma de fora. Há duas condiscípulas minhas que têm irmãs em cursos comerciais onde há cadeiras que ensinam todos os tipos de letras.

Então, visto isso, não resta qualquer dificuldade!

E eis que surge a dificuldade. Rosarinho torna-se perplexa.

- Bom... lá isso...

- Qual o problema, menina?

- O texto precisa de ser muitíssimo bem escrito.

- Sem dúvida.

- E quem é que há-de redigi-lo?...

- Não. te lembras de nenhuma, entre vocês?

- À altura, não! Nem a Marta, que sempre foi a melhor a português.

E agora também sobre mim desce a inspiração.

- Creio bem que de facto não existe a mínima dificuldade.

Eles esperam. O que vou dizer?...

- Têm a Ana Maria!

- Ah? ?... Não, não esperavam.

E nos olhos cor de azeitonas de Elvas do Pedro e nos olhos azuis da Maria do Rosário adivinha-se a imagem que lhes trago de longe para se instalar entre nós.

Porque é que depois desta idéia surgir e se impor

- claro que a Ana Maria compõe o texto, é só escrever-lhe e explicar tudo que ela imediatamente se associa! - que a necessidade de cumprir o estabelecido renasce. Está aqui a carta da Ana Maria para ser lida.

E leio a carta da Ana Maria.

Nas vibrações da minha voz extingue-se a presença da que esteve connosco durante alguns minutos infinitamente bons e puros.

A Teresa Souzelo, de cabeça baixa, deve tentar perceber, ela que não conhece a Ana, o meu ar emocionado, o ar de encantamento da Maria do Rosário, o ar transbordante de saudade do Pedro.

Do Pedro que de súbito como que escorrega de onde tem estado sentado e fica de joelhos na minha frente com o rosto apoiado no meu regaço - este regaço onde coube inteirinho.

Afago-lhe os cabelos que cheiram a lavado, a madeixa rebelde que se esquiva a todos os pentes, o pescoço muito claro a emergir do colarinho impecável. Como se os meus dedos fossem os dedos da Rosa Maria. Como se este Pedro de um metro e oitenta e tal tivesse as dimensões do Pedro que -eu conheci todo vestidinho de branco, menino lindo entre quantos meninos lindos a vida me tem mostrado. Como se eu fora a Mãe deste filho que não tenho.

E ele vem buscar a minha mão carinhosa e apoia nela primeiro a testa, e depois os lábios num beijo que é para mim mas também é para os que estão lá longe...

- mas vêm aí, Pedro!... Vêm aí!...

E de súbito começamos a rir. Ri ele, rio eu, ri a Rosarinho e ri também a Teresa.

- Pois... não tarda Setembro! - exclama o Pedro.

- E eu ainda hoje vou escrever à Ana Maria a explicar-lhe tudo muito bem explicadinho. -entusiasma-se a Maria do Rosário, a quem a necessidade dessa aproximação com a futura cunhada oferece algo que um dia lhe pareceu impossível de alcançar.

E a Teresa também diz qualquer coisa, mas já não sei o quê.

O instante certo diluí-se num acontecimento inesperado, com a entrada da Emília a atender o telefone que nenhum de nós ouvira tocar.

- É para o menino Pedro.

- Para mim? Mas não disse a ninguém que vinha cá...

É o menino Paulo.

O Pedro atende.

- Que há?

Chegam-me aos ouvidos as palavras surdas que vêm ainda não sei de onde.

- Eh, pá, ainda bem que tive a idéia de te procurar aí.

- Mas que há?

- Tu não te assustes... mas dirige-te imediatamente a casa dos teus avós.

- Hein?

- O avô Joaquim pede que não te demores. Eu sigo para lá direito. Parece que deu qualquer coisa à avó Teresa.

- Oh, não. NÃO!

E que importa à adversidade o não Não do meu Pedro arrancado a um momento tão feliz?

O sim dos factos não se compadece nem dele nem de mim que o encaro num espanto quase indignado.

- com que direito, vida? - nem da Rosarinho que estala em choro. Da Rosarinho que, ciente da comunicação do Paulo, expande um lamento que é protesto e reacção.

- Não quero mais gostar de pessoas de idade. A gente não as conhece, não sofre mesmo que tenha pena. Mas depois de se lhes dar um lugar no coração, não se agüenta...

O Pedro repele a frase cujo sentido apreende. A Maria do Rosário pensa na avó Teresa e pensa na pobre D. Ester...

Lívido, balbucia.

- Rosarinho... a minha avó não vai morrer. E eu:

- Claro que não! - e para o Pedro. - Vamos para lá imediatamente.

A Rosarinho declara que também vai. E a Teresa, embora não conheça a avó Teresa, pede-me que não a deixe sozinha. Na verdade custa menos comparticipar de uma dor do que desconhecer como é que os outros a suportam.

Embora atordoada com esta notícia brutal, lembro à Rosarinho que deve pedir licença à Mãe a fim de nos acompanhar.

Ela concorda imediatamente e telefona. Teresa Mafalda não está em casa. Apenas a Sofia. A Sofia que ante a explicação não hesita em assumir a responsabilidade de uma atitude e a autoriza a ir comigo para o pé da pobre senhora D. Teresa.

Pobre senhora D. Teresa. Pobre senhora D. Ester.

NÃO!

O avô Joaquim (o jeito de o designar assim ficou-me no hábito de os ouvir chamá-lo desde pequerruchos, por mais ridículo que seja admitir um tal parentesco entre mim e ele) tornou-se uma pessoa inútil ante o acidente. A única coisa de que foi capaz resumiu-se no apelo dirigido ao neto. Depois sentou-se numa cadeirinha baixa ao lado do leito que é deles há perto de cinqüenta anos, com as lágrimas em fio pela cara abaixo, as mãos a rasgarem um lenço aos bocadinhos, impossibilitado de qualquer reacção. Sem palavras.

Nós e o Paulo chegámos praticamente ao mesmo tempo. E ao mesmo tempo o médico que o Paulo teve a presença de espírito de ir buscar ao próprio consultório. Um especialista que mal entendia a urgência de deixar tudo e todos para seguir o futuro clínico mas nem olhou para os que na sala de espera discordavam da saída precipitada (lembrá-la-iam aplaudindo-a se a angustia um dia os colhesse como colhera os que agora dali o levavam) quando soube que se tratava da Mãe do seu colega Rui Manuel de Macedo.

O Dr. Francisco Barbedos era um cardiologista eminente. É um cardiologista eminente. E o Paulo, demonstrando sentido clínico, vislumbrara a origem do mal que prostrou Teresa de Macedo.

Francisco Barbedos não perde tempo. E não nos deixa perder tempo.

Cada um de nós assume as suas funções.

O Pedro vai requisitar oxigênio.

O Paulo assiste aos socorros urgentes que Francisco Barbedos presta à enferma - gravemente enferma.

Eu tento levar o Joaquim de Macedo para fora do quarto.

A Teresa tenta confortar a Rosarinho que não pára de chorar na salinha de entrada.

São 18 horas. Tristes. Que levam para longe, longe, as horas belas, tão belas, que foram nossas durante umas poucas de horas.

E eu não quero pensar se não que as horas belas de hoje sofreram interrupção.

Sofreram.

Porque é que sofrer se torna preciso em tudo

- ou pelo menos em tanto?

Dez da noite.

A notícia da doença da avó Teresa correu célere e a salinha pequenina transborda de amigos inquietos.

Estão a Elisa e o João (não lhe são nada - o João é irmão de Rosa Maria - mas adoram-na).

Estão a Mariana e o Henrique de Lemos.

Um casal íntimo de apelido ridículo - Mariposo.

Um companheiro de sempre do avô Joaquim - o IJT. Miguel de Sá que enviuvou há dois anos e cuja presença neste momento só faz mal ao marido da doente - ou não seja a imagem viva da solidão terrível, de perda irreparável que ele teme e em que não deve pensar.

Estão o Paulo e o Pedro. O Pedro mudo e impenetrável, esmagado pela dúvida sob a qual todos nos achamos.

A Teresa Mafalda e o Dr. Abegorim entram acompanhados pela filha mais velha, a informar-se do estado da avó do Pedro. Não se demoram e quando saiem levam a Rosarinho. E levam a Teresa, a meu pedido. Vão deixá-la lá em casa.

O Artur aparece.

Francisco Barbedos, o médico, volta e demora-se no quarto da doente.

Espreito da porta. Aquela testa alta profundamente enrugada comunica-me as apreensões que o dominam. Receia o pior.

Chega a Madrinha do Rui Manuel de Macedo. Madrinha de baptismo. Madrinha de casamento. Uma senhora da idade da avó Teresa a quem o desgosto de ver assim a amiga de infância pode fazer muito mal. E no entanto não arreda pé, sentada ao lado do leito onde Teresa de Macedo, a respirar oxigênio, " luta com a morte.

Estou ao pé da cama, apoiada ao braço do Paulo.

Olho-o. Ele suspira.

Os nossos pensamentos ligam-se, prendem-se ao mesmo facto. Não pode haver nada mais doloroso do que ser-se obrigado a admitir a partida eterna daqueles que amamos. E a idade marca sempre a etapa final.

Olhando Teresa de Macedo, Ângela Custódia Teixeira tem de por força pensar que talvez a próxima a partir seja ela.

E percebo que choro. Choro por todos eles.

Choro apoiada ao Paulo.

- Madrinha, vou levá-la a casa.

- Não.

- Mas não está aqui a fazer nada.

- Paulo, posso não fazer nada aos outros, faço a mim. Prefiro ver a temer.

Meia-noite.

A vida, lá fora, tem direitos inalienáveis e reapossa-se das suas criaturas.

O Henrique e a Mariana retiram-se.

A Elisa quer ficar, mas o João não é nada sem ela. Convenço-a a acompanhá-lo.

- Quem fica ao pé da s'Dona Teresa?

- Fico eu. - sereno-a.

- E eu. - diz o Paulo. Elisa contesta.

- Mas a utilidade de um rapaz a cuidar de uma doente é muito discutível.

- Ajudo a Madrinha no que for preciso.

- E eu! - oferece-se Ângela Custódia Teixeira, que foi à cozinha arranjar um chá (a intimidade antiga permite-lhe a singeleza das atitudes).

- A s'Dona Ângela devia ir para casa descansar. Ela encara-me. E reduz a zero a minha opinião.

- Desculpe, minha querida. Mas prefiro ver a temer, também.

Francisco Barbedos um feixe de esperanças.

vai retirar-se. Deixa-nos.

- Está a reagir muito melhor do que eu admitia. Se até de manhã a situação se mantiver, acredito que se salve.

E o Pedro, até aqui como que em crise de estupor (estupor - entorpecimento das faculdades intelectuais) rompe em soluços.

Tento persuadir o avô Joaquim a ir deitar-se, ou melhor, a ir estender-se no divã "das emergências" que lhe abrimos aos pés do leito da mulher (afastar-se dela nem pensar!).

- Quer adoecer também? Ele encolhe os ombros.

- Sem ela, tudo se me torna indiferente.

- E quando ela se levantar daqui, deseja que encontre um inválido no lugar do marido?

- Ou um ausente. - e é o Pedro quem vai mais longe para o demover da decisão de continuar sentado a olhar para a companheira sem a qual nada lhe resta, nem a saudade dos entes queridos que o Pedro representa ao impor-lhe uma conduta.

Joaquim de Macedo ouviu a opinião com que o cardiologista se despediu. E deixa-se convencer.

O Dr. Miguel de Sá (o amigo viúvo) parte.

Estamos agora eu, o Pedro, o Paulo e Ângela Custódia.

A avó Teresa, serena, parece dormir.

Dorme de facto.

- É um óptimo sinal. - observa Paulo. - Quando um doente sossega, o organismo defende-se.

E o Pedro:

- Sinceramente que não percebo como é que a avó pôde ter um acidente destes assim, sem mais nem menos! Nunca se queixou de nada...

Ante-ontem disse-me que andava cheia de dores

de cabeça... e que se continuassem ia ao médico. - revela a amiga, que logo acrescenta. - De resto a Teresa foi sempre assim! Nunca gostou de falar nos seus achaques, nunca gostou de se lamentar.

- Os excessos são todos prejudiciais! Os que passam os dias a lastimarem-se acabam por não convencer ninguém. Os que não abrem a boca arranjam complicações como esta! As dores de cabeça podiam ser já um aviso...

Baixinho, o Pedro e o Paulo trocam impressões acerca do que a eles, como futuros médicos, interessa sobremaneira.

Eu vou espreitar ao quarto o casal silencioso.

Joaquim de Macedo, recostado nos almofadões, não despega os olhos do rosto branco e tão bonito da esposa amada. Pelas rugas das faces cavadas correm lágrimas em fio. A luz do candeeiro antigo em cima da cômoda mostra-mas e atrai-me. E como a nora se aqui estivesse pela certa faria, ajoelho-me ao lado dele, afago-lhe a cabeça grisalha e um tanto calva, e peço-lhe do fundo do coração:

- Não perca a coragem!... Tenha fé em Deus!

Cinco da manhã.

Teresa de Macedo acordou há instantes e pede água. Bebe meio copo e apanha a terceira injecção indicada na receita - uma de três em três horas (dá-lha o Paulo). Depois pergunta pelo marido, eu aponto-lho agora e finalmente adormecido. Sorri-me e murmura:

- Acho que não vou desta... Beijo-a na testa e respondo, baixinho:

- Claro que não! Era uma coisa muito estúpida, partir quando eles estão a chegar...

E ela, a mostrar-me que se conserva lúcida:

- Ah, sim... Setembro! - depois volta o rosto e acrescenta. - Até daqui a bocadinho. Tenho sono.

E tem, não há novidade. É mesmo sono!

Volto para a salinha.

O Paulo fuma.

O Pedro, enterrado numa poltrona, apoia nos braços dela os cotovelos, rosto escondido nas mãos.

Ângela Custódia observa-o atentamente. Depois olha-me e diz:

- Chega a impressionar como este rapaz se parece com o Pai. Estou a vê-lo e é como se visse o Rui Manuel... nem imagina quando?

Não, não imagino.

- Na noite em que a Rosa Maria deu à luz precisamente este filho. Sentado na sala da clínica, enquanto o tempo se escoava sem que o menino nascesse (não havia complicações, era tudo normal e só a nossa impaciência o achava demais) o Rui Manuel esteve assim, exactamente assim, nem sei quantas horas!

Encaro-a enternecida.

- Não sabia que tinha assistido ao nascimento do Pedro!

- Ah, pois assisti! Assisti é como quem diz... estava na sala ao lado com a Teresa e a Joana, a Mãe da Rosa Maria, tão aflita como se não houvesse passado pelo mesmo. E quando a pequena soltou o grito libertador a que logo respondeu o choro do recém-nascido, fui eu que enfiei a cabeça pela porta da sala de partos e avistando o rapagão vim como tonta a correr e a gritar de um tal modo que devo ter acordado toda a gente, direitinha àquele: Tens um filho, Rui!... -e depois, a sorrir, corrige. -Direita àquele, não. Ao outro... Mas eles são iguais.

Eles são iguais e o passado vem arrancar-nos por momentos ao peso do presente.

É tão bom conversar com alguém que sabe daquilo que nem por se haver diluído nos dias acabados deixou de ter importância para nós!...

Sete e meia da manhã e o médico bate à porta.

Teresa de Macedo continua a dormir. Barbedos dá novas indicações ao Pedro e ao Paulo, reafirma a sua convicção de que o pior já passou. Voltará à tarde.

Joaquim, já a postos, ouve os conselhos do cardiologista. É necessário que tente controlar-se a fim de que a mulher não venha a afligir-se notando a angústia dele. E isto é muito mais incisivo do que tentar fazê-lo pensar em si próprio.

- Madrinha, - diz o Pedro, - como vamos arrumar o dia na assistência à avó?

Sensato como sempre e ciente de que não entrego facilmente a pasta que aceitei, preocupa-se também com os imperativos da vida que não pára.

O Paulo colabora:

- Vamos constituir turnos, não acham?

- Vocês estão em exames. Precisam de estudar. Por isso vão, que eu fico. A seguir ao almoço revezamo-nos. vou a casa tratar do que não puder ficar para amanhã e volto à tarde. E depois dividimos a noite pelos três.

  1. Ângela Custódia Teixeira decide:

- De noite fico eu. Não me custa nada.

- Precisa de dormir.

- Fui sempre muito avessa à cama! Não sinto precisão de sono, ao contrário da Teresa, que é uma dorminhoca.

- Mas tem de descansar!

- Descanso um bocadinho antes do jantar.

- E se fosse descansar agora?

- Nem pense nisso! Temos de pôr a casa em ordem e de ir à rua comprar alguma coisa para se comer.

- Ah, pois!... - e sugiro. - Talvez fosse a propósito tomar um café com leite.

- E obrigar o avô a alimentar-se!

- A avó toma leite frio de duas em duas horas.

Organizamos as coisas práticas que não podem deixar de ser feitas.

E lembro-me de que não como nem bebo nada desde ontem ao almoço. Ontem, quando estávamos tão longe deste abanão que pôs em perigo as estruturas da nossa existência. Como um terramoto.

As horas más raramente se fazem anunciar.

Alteram-se os nossos planos.

São oito e meia e chegam, uma a seguir à outra, a Elisa e a Mariana.

Vêm ambas sem qualquer solicitação, sem qualquer prévia combinação. Vêm expontâneas. Vêm por amizade.

E não deixam que façamos nada, nem D. Ângela Custódia nem eu.

Uma e outra tomam resoluções - e não tardarei a reconhecer que esclarecidas e razoáveis. O tempo que não sentiram, dormindo, deixou-as muito mais frescas do que nós que o sentimos inteiro a passar.

Mariana dá ordens (é engraçado mas dá!) ao filho e ao que é como se fosse:

- Vocês vão imediatamente para casa comem

- que a Joaquina já lhes ficou a preparar o pequeno almoço, e deitam-se a dormir. A seguir ao almoço podem vir cá num pulinho, mas não ficam! É absurdo estarem aqui a olhar-nos quando os espera um exame dos fundamentais daqui a não sei quantos dias.

O Paulo sorri:

- Nós estamos preparados, Mãe. Ela sabe, mas não adere:

- Pois sim, mas não fazem aqui nada.

- As injecções não são nada?

- Se for preciso, chama-se uma enfermeira.

Não é preciso. Nós voltamos a horas de as aplicar. - decide o Pedro.

- Está bem, seja. Agora ponham-se a andar. Enquanto Mariana os comanda a eles, a Elisa

organiza-me o dia. Ou quer organizar...

- Vá-se embora, vá descansar, vá sossegadinha, que eu por mim faço tudo o que puder.

- E eu ajudo! - declara Mariana.

Bem sei que são eficazes e tão competentes para a missão que as espera como eu - se não mais. No entanto... no entanto dir-se-ia que me reconheço como se de lá de longe o amor filial me houvesse passado procuração...

Entretanto a Elisa não desiste de me obrigar ao que se lhe afigura essencial.

- Tem o seu trabalho, não pode esquecer-se disso! Ah, o meu trabalho! ?... "Não me hei-de tornar

escrava dele!

Ai vida cheia, vida cheia - serás tão transbordante que me possas fazer sentir desejos de a reconhecer vazia?

E para quê, ODETTE? Para quereres logo a seguir tornar a enchê-la?

- Não ouviu nada do que eu lhe disse, pois não?... Tento sorrir à Elisa, para que me desculpe da

ausência que lhe não passou despercebida. Mas o sorriso distende-se-menum bocejo muito âââââââââââ... Elisa agora impõe:

- Vá-se embora. Alivie os nervos tensos desta noite assustadora. Olhe, tome um banho bem quente.

Um banho bem quente.

Quente, quente. Que mais alenta do que lava. Que de súbito me alaga em sono.

- Emília, acorda-me em sendo meio-dia.

Silêncio. De que emerge a minha consciência num sobressalto. Que horas são?

No pulso, o meu reloginho tão precioso como quem mo escolheu, responde-me: 2 horas e vinte minutos...

A Emília não me chamou!

Tic tic tic tic tic tic, pelo corredor fora. A Emília à porta da cozinha.

- Fui lá ao meio dia em ponto, mas a minha senhora estava a dormir tão bem que não tive coragem. Mesmo assim não quis tomar a responsabilidade e perguntei à menina Teresinha o que havia de fazer e ela também achou que não devíamos acordá-la.

E a Teresa colabora na eficiência disciplinada da Emília:

- Em todo o caso, Madrinha, e para não agir de modo a que em vez de a beneficiar pudesse prejudicá-la, resolvi saber do estado da senhora D. Teresa e só depois decidir se devia ou não deixá-la descansar mais um bocadinho. Se houvesse algum problema não tinha dúvidas em despertá-la imediatamente, pois estava certa de que a Madrinha nunca nos perdoaria o contrário.

- Nunca perdoaria é força de expressão... -respondo. - Em todo o caso seria horrível que eu não me encontrasse onde fosse precisa por estar a dormir regaladamente! - e ansiosa pela confirmação de que o tudo em ordem (ordem relativa, evidentemente) me permitira duas horas e tal de sono a mais. - Que foi que te disseram?

- Que as melhoras continuavam a acentuar-se, embora lentamente, claro.

- Claro!...

A Emília quer saber:

- A minha senhora deseja o pequeno almoço? Tim - fazem os meus relógios, o velho-novo do ferro-velho logo apoiado pelo novo-velho do tempo de Napoleão.

- Às duas e meia, Emília?... Talvez seja um bocadinho fora de horas...

- Eu disse isto porque a senhora não gosta de comer de garfo quando se levanta...

Tem razão. A sua eficiência vence a minha lógica sempre lógica. Realmente e de qualquer maneira é a primeira refeição do dia a que vou tomar.

- Está certo. - concordo. - Arranja-me então o pequeno almoço.

De qualquer maneira, o pequeno está bem aplicado. Antes ou depois tanto faz. O almoço que vou comer será sempre pequeno.

Ligo para casa dos avós Macedos. Apesar das palavras da Teresa, quero saber directamente o que há. Já passaram mais de duas horas e meia sobre a última confirmação colhida.

Atende-me a Mariana.

- Está recostada em almofadas, com a mão direita entre as mãos do sr. Macedo que sentámos numa poltrona ao lado dela, e bebeu há instantes um caldinho desengordurado. O Barbedos telefonou e vem vê-la antes de ir para o consultório.

Quero explicar a minha demora. Ela interrompe-me.

- Tá-te queda. Quando vieres, chegas! Preocupo-me por ela.

- Precisas de ir para casa, Mariana!

- Quando chegares, vou. De resto as ofertas de assistência chovem. A Laura Peres chegou há bocadinho o que logo permitiu a dispensa da Elisa.

- Ainda bem! - digo. - Ela não tem ninguém que lhe faça nada em casa.

- Pois por isso é que a mandei embora. E despedimo-nos.

Até já.

A Emília traz-me o almoço. Pequeno...

Pequeno porque pequeno o farei sem apetite, pequeno porque ela assim o classifica fornecendo-o em volta do café com leite. De resto - enorme! Em três tabuleiros- que às 15 horas menos 10 ela acha que um só não basta.

Vejamos (que eu mesmo assoberbada pelas preocupações não posso deixar de trocar uma olhadela maliciosa com a Teresa) o que neles vem disposto:

No primeiro tabuleiro: café (no balão onde é feito), leite, um ovo estrelado com presunto, os frascos das vitaminas. O guardanapo e o açúcar.

No segundo tabuleiro: torradas, queijo, um boião com mel, três fatiazinhas de carne assada. Uma taça com fruta - peras, laranjas e maçãs reinetas.

No terceiro tabuleiro: Um bolo de canela, bolachas, bolos secos, marmelada... e o correio.

E a Emília, perfilada, atenciosíssima:

- Mais alguma coisa, minha senhora?

- Não, Emília. Bem hajas!

Preparo o café com leite. Decido-me pelo ovo estrelado com presunto e por uma fatia de bolo de canela a fim de evitar que ela se melindre julgando menosprezado o esforço que emprega em me alimentar convenientemente.

A Teresa vai desbastando o pratinho dos bolos secos enquanto vejo o correio.

Ah, meu Deus, que Bom! Seis linhas maravilhosas num postal colorido que leio e releio e torno a ler pelo meio das dezenas de linhas que enchem três cartas, uma banal de uma rapariguinha a pedir-me um autógrafo, outra a dar-me parte de um grave problema familiar sobre o qual terei de me debruçar, outra da Maria Helena Icanha a falar-me de um novo namoro na cadeia dos seus namoros - a procura do amor não basta para encontrar o Amor!...

Seis linhas que me fascinam.

"Estendo os braços e aperto a Vida ao peito. Saboreio as horas e nem quero sentir a pressa de Setembro. As saudades são boas de agüentar pela tua Rosa Maria

Como pode caber tanto em tão pouco! E como tão pouco pode ser tanto! E penso. E digo:

- Creio que este postalzinho vai ajudar imenso ao restabelecimento da s'D. Teresa!

A Teresinha pergunta:

- Ela é muito amiga da nora?

- Muitíssimo! E não me admiro nada que o acidente de ontem haja sido uma conseqüência das apoquentações que sofreu apesar do cuidado com que o Pedro lhe deu a notícia de que se passara com a Mãe, poupando-a e ao avô a um certo número de pormenores.

- Compreende-se perfeitamente! Quando se está longe, o desconhecimento das realidades concorre para as deformar. A s'D. Teresa se calhar pensou que tudo fosse pior do que estavam a dizer-lhe...

- É natural. - aquiesço. - Passou-se o mesmo connosco!... Que no fim de contas ainda ia sendo muito pior do que nós o temíamos...

- Por isso é que as ausências são às vezes insustentáveis. Quando uma pessoa desata a afligir-se imaginando as razões que não vê...

Trim-trim-trim...

Quando uma pessoa desata a imaginar o que não vê aflige-se - ai se se aflige!

Porque hei-de pensar, ouvindo o telefone, que é de casa dos Macedos para me alertarem com más novas?

Não é de casa dos Macedos (Macedos de cá...) nem são más novas.

Fala a D. Aniceta a avisar-nos de que os Torredalto chegam na madrugada próxima. Mandaram um telegrama e requerem marcação de hotel.

  1. Aniceta pede-me uma sugestão para que fiquem perfeitamente alojados. Pede-me que resolva eu como entender.

Perfeitamente.

Eugênio Torredalto não conhece dificuldades de dinheiro. Vai ficar perfeitamente alojado.

Lista telefônica.

B... C... E... E... F...

H...

Hotel

J... L... M...

Majestade.

- Tudo cheio, minha Senhora. Em todo o caso um momento que vou saber se há alguma desistência nas marcações que temos.

Aguardo que a proficiência do funcionário me dissipe a perplexidade. Ei-la, à proficiência.

- Não há desistências, minha Senhora. Mas fica-nos livre esta tarde uma suite.

(Uma suite!... É óptimo, porque pode muito bem acontecer que eles queiram levar-me a Teresa e a Teresa dorme na salinha contígua ao quarto...)

- Reserve a suite, se faz favor. Os hóspedes chegam de madrugada, na TAP.

- Em que nome, minha senhora?

- Torredalto. Eugênio Torredalto.

- Bem, minha Senhora. E... devemos mandar buscar os hóspedes ao Aeroporto, não é verdade?

Hesito. Tenho o meu carrinho, posso transportá-los. O pior é a bagagem que não cabe - embora a que tragam com eles não possa ser muita devida às limitações dos pesos...

Decido.

- É natural que seja eu própria a levá-los ao Hotel. No entanto as malas que trouxerem justificarão a presença da vossa carrinha.

A bonita carrinha azul onde em letras doiradas se lê "Hotel Majestade".

Letras doiradas.

Com dinheiro tudo tem o direito de ser doirado.

- Madrinha?

- Filha?

- A que horas chega o avião? A D. Aniceta não disse, pois não?

- Não.

- A Madrinha quer que eu pergunte para as informações do Aeroporto, enquanto se prepara para sair?

- Pois sim, Teresinha.

E ela tenta desesperadamente vencer a barreira do pihh-pihh-pihh que não deixa falar porque a linha está ocupada.

- Sempre interrompido! - oiço-a barafustar. Dou um jeito em mim mesma. E lanço-lhe uma

pergunta.

- Estás contente por os teus avós virem, Teresa?

- Sim, Madrinha. É bom que venham já.

Abafo um suspiro. A frase magoa-me. "É bom que venham já... "

Teresa Souzelo sente a necessidade de muito que não está com ela dentro do meu pequeno lar.

Oiço a Teresa indagar da hora da chegada do avião (finalmente venceu a barreira do pihh-pihh-pihh). Vejo a Teresa diante de mim.

- É esperado às 2 e 15 da madrugada.

- Bem.

E duas mãozinhas me seguram os braços, impedindo-me o gesto de pentear. E um olhar ansioso perscruta o meu.

- Madrinha... não sabe porque é que eu acho bom que venham já? Madrinha, errar é humano, como se costuma dizer. A Madrinha está a errar.

- Eu? - balbucio, reconhecendo mais uma vez quanto sou transparente, quanto não posso evitar que pelo coração sejam projectadas no rosto as impressões experimentadas.

- É bom que venham já porque quanto mais tempo eu vivesse ao pé de si mais difícil me seria ir-me embora... E nos nossos destinos não cabe uma existência lado a lado. A Madrinha não pode guardar-me para sempre!

Baixo a cabeça. Contemplo as duas mãozinhas nos meus braços. Ergo-os. E uma após outra, beijo-as, às mãozinhas que se crispam.

- Trrrrr im

A campainha da porta da rua interrompe a nossa emoção.

Sorrimos uma para a outra, a Teresinha e eu, porque não queremos chorar. E somos assim restituídas, eu e a Teresa, tão próxima dos meus problemas e da maneira como os encaro, à lembrança viva da avó Teresa.

Viva, graças a Deus. Neste mundo onde nada é para sempre.

- São horas de eu ir, Teresinha.

- Posso ir também?

- com certeza.

E a Emília, à porta.

Minha senhora, a senhora condessa de Ribatorpes.

Ai... a campainha que interrompeu a nossa emoção ...

Ai... Ana Margarida!

Nitidamente perturbada. Tão perturbada que gagueja. - O que há, Ana Margarida?

Em clarão, perpassam-me pelo écran das antevisões dois rostos alternando-se. O de João Alfredo. O de Luisa Maria.

Alguma coisa com eles?

E enfim, sentada ao meu lado, o início do que vai esclarecer-me.

- Pelo amor de Deus, conte-me tudo! Conte-me seja o que for! E principalmente, diga-me onde está!...

- Mas onde está... quem? E o que é que deseja saber?...

- Não me engane! Estou pronta para tudo!...

- Não estou a enganá-la, não pretendo enganá-la, Deus me livre! Mas não a percebo!...

- Eu sei que tem notícias dela! Ah... ela... Catarina! Catarina de Ribatorpes.

Não quis revelar-lhe o horrivelmente tanto e tão pouco que me trouxe novas da rapariga sem horizontes. De que vale enterrar novos espinhos no seu coração ferido se o sangue a correr não pode salvar ninguém?

Mas... quem lhe falou então do encontro na noite entre o Pedro e a Catarina?

Ela elucida-me, para me forçar à total franqueza.

- A Teresa Mafalda disse-me que o Pedro Ferreira de Macedo a viu.

- Ahahah! ...

- Viu?...

- Viu.

- Deus!

Penso várias coisas e sinto pena. Pena de não haver recomendado ao Pedro que não contasse nada em casa dos Abegorins. Pena que ao contar ele não pedisse a Teresa Mafalda que guardasse segredo. Pena do ar de mendiga com que Ana Margarida me fita esperando o que não tenho para dar-lhe.

E abano a cabeça, devagarinho.

- O que sei é pouco demais, Ana Margarida.

- Mas esse pouco? ...

- Não pode ser pior do que aquilo que já visionou.

- Mesmo assim?

- Mesmo assim! ...

Que adianta ocultar?

Que adianta explicar?

E depois reboa dentro de mim uma frase que ontem proferi e escutei noutra boca. Prefiro ver a temer... Ana Margarida prefere saber a imaginar. E num arranco, revelo-lhe o que sei. Talvez omitindo passagens demasiadamente brutais. Quando acabo, a condessa de Ribatorpes hesita, indaga:

- Onde vive ela?

- Ah, ignoro-o! - e com a maior pena de estar neste momento a ser sincera, pois na verdade também eu gostava de conhecer o paradeiro de Catarina. - Se eu soubesse dizia-lhe! Quer que lhe dê a minha palavra de honra?

- Não. Sei que diz a verdade. E é terrível! Tim-tim-tim-tim-tim.

Nos dois. No relógio velho-novo. E no novo-velho. No do ferro-velho e no do tempo de Napoleão. Napoleão. Ferro-velho. Coisas antigas, idas, acabadas.

Tudo passa com o tempo. Nada pode guardar-se para sempre. Talvez nem os desgostos!

Seis horas e entro em casa dos Macedos (velhos...) sem haver perguntado a Ana Margarida nem pela Luisa Maria nem pelo João Alfredo. (João Alfredo - ai! - fiquei de lhe dar notícias das minhas primeiras diligências para a compra da ilha dos pêssegos...)

Entro e deixo ficar fora da porta os cuidados pelos outros, colhida inteiramente pelos cuidados destes. Ou antes - regressada ao ambiente de que parti esta manhã e parece que foi há tanto.

A Teresa está melhor - graças a Deus. As esperanças fortificam-se.

Leio-lhe o postal de Rosa Maria e o sorriso que lhe entre-abre os lábios fixa-se, como que se instala para ficar. Ela cerra os olhos e quase me arrisco a jurar que Teresa de Macedo não vê nem ouve nada do que se passa à sua beira, a olhar lá para longe, para a serra, para o grande portão que vai abrir-se para nos deixar viver, se Deus quiser, uns dias de felicidade.

Deus há-de querer! São Boaventura intercederá por nós, se precisarmos de advogado no céu.

Penso-o e no fundo do meu coração espero que esta pequenina irreverência não mereça castigo. Não merece. Não há nela nenhum mal, mas a saudade da imagem de pedra no seu nicho a saudar-nos logo à chegada.

São Boaventura. A quinta.

O solar.

O Domingos.

A Joana.

O Tomás.

Penarim...

- Já escrevi à Ana Maria a explicar-lhe a nossa idéia e a pedir-lhe que nos mande a carta para acompanhar o convite e as flores.

Rosarinho. Rosarinho aqui, a sussurrar-me tudo isto e muito mais semelhante a isto, com a mão esquerda na minha mão direita, enquanto ambas contemplamos o sorriso calmo da avó Teresa.

Rosarinho. Marta. Inês. Cristina.

Todas na salinha. Vieram saber da avó Teresa, da avó da sua amiga Ana, e não têm pressa de se retirarem.

A Mariana informa-me:

- São amorosas! Querem formar turnos para virem entreter a s'Dona Teresa - porque para a tratar reconhecem que não têm competência.

A Laura, de piquete ao telefone, diz-me que os Fontemoras já telefonaram para se informarem do estado da avó Teresa. Muito amáveis - salienta.

Telefonou de resto muita gente que ela nomeia mas cujos nomes, ainda que alguns sejam meus conhecidos, não retenho.

avô Joaquim (sr. Macedo) na sala de jantar, conversa com dois amigos que o distraiem (o viúvo não está felizmente!).

  1. Ângela Custódia ainda não chegou. Convenceram-na a ir descansar durante a tarde. Vem para ficar de noite, vigiando - assegurou.

Até à primeira hora de amanhã fico também. Depois arranco para o aeroporto - e explico os motivos à Mariana com quem durante algum tempo converso acerca dos Torredalto, acerca de muita coisa de que ela tem conhecimento e porque se interessa.

E vem o Henrique buscar a mulher.

E vem o Ernesto Peres buscar a mulher.

E chegam o Pedro e o Paulo.

E a Rosarinho, sobressaltada, lembra que são horas de ir-se embora. Não está habituada a andar sozinha a partir de uma certa hora e já passa das sete e meia.

(a atrapalhação dela faz-me pensar na Ana Maria quando teve- de sair sem mais ninguém certo dia em que foi jantar a casa dos Peres. Mais rigorosamente

- do Fernando Vasco que então acelerava o ritmo do seu coraçãozinho de menina ainda indecisa).

- Madrinha...

- Sim, Maria do Rosário?

- O Pedro acaba de oferecer-se para me levar a casa no carro dele. Acha que devo... ?

(e de novo a Ana Maria me ocupa, na imagem daquela vez em que o Fernando Vasco a convidou para ir ao cinema e Rosa Maria a esclareceu segundo ela própria conta a pág. não sei quantas do seu livro em provas "as coisas não têm mal, os actos das pessoas é que podem tê-lo, como aliás as próprias pessoas... "- e a propósito do livro em provas, aqueles sujeitos da tipografia estão a atrasar-se incrivelmente, já lá vai Maio, Junho está no fim e o diário da Ana rapariga do liceu não há forma de aparecer!)

- Porque não hás-de aceitar, Rosarinho? As coisas não têm mal, os actos das pessoas é que podem tê-lo, como aliás as próprias pessoas!...

E sinto-me contente de responder-lhe com as palavras exactas que nesse dia Rosa Maria utilizou para que a filha se sentisse responsável pelos seus actos.

O Pedro vai levar a Rosarinho a casa. De automóvel.

A Rosarinho é pura como um fio de água cristalina que brota de uma fraga no alto da serra. Nada de micróbios.

O Pedro é bom e quer a Rosarinho para sua esposa, para Mãe dos seus filhos. O Pedro é um rapaz às direitas. Ao lado dele Rosário está como um tesoiro guardado num cofre forte. Em segurança.

Porque o Pedro quer a Rosarinho para sua esposa, para Mãe dos seus filhos. SAGRADA.

Demora, a ir e voltar, vinte minutos, o Pedro. Em hora de ponta, impossível mais rapidez.

Estou ao lado da Teresa de Macedo que dormita com a mão direita apoiada no postal da nora.

Os amigos do Joaquim retiraram-se e o Paulo faz-lhe companhia.

O Pedro senta-se ao meu lado.

Baixinho, pômo-nos a conversar.

E de súbito o nosso diálogo inespecífico quebra-se do meu lado, ou melhor, bifurca-se. Porque uma idéia se me impõe.

- Pedro... escuta. Ele escuta, claro!

- Pedro, por que foi que referiste a Teresa Mafalda o teu encontro com a Catarina?

Uma certa incompreensão nos olhos dele. Nem sabe de que Catarina se trata. Depois e com a mesma rapidez de centelha, o entendimento.

- Ah! ? ... Mas eu não falei com a s'Dona Teresa Mafalda acerca da Catarina!

- Essa agora? Mas foi por ela que a Ana Margarida soube que tu a encontraste naquela noite ao pé da praia...

O entendimento dele alarga-se e vai abarcar-me.

- Pois... realmente parece que lho disse, mas não. O caminho que a dolorosa revelação seguiu foi outro.

- Outro?

- Sim, Madrinha. Eu explico. O Dr. Abegorim e o Dr. Lemos andam à procura da Catarina por causa de importantes problemas da herança que estão por resolver.

- Sim... ?

- Eu não o ignorava... e considerei oportuno pôr o Pai do Paulo ao corrente do que ocorrera, aliás e como sabe bastante aborrecido por na altura não haver forçado a minha investigação oferecendo uma boleia à rapariga a fim de na verdade ficar a conhecer a morada dela.

- Não havia nenhuma garantia de que ela te levasse até à porta do actual refúgio!

- Evidentemente. Mas podia pelo menos ter tentado e não tentei.

Agora já percebo a linha seguida pela notícia.

Pedro-Henrique.

Henrique-Álvaro Abegorim.

Álvaro Abegorim-Teresa Mafalda. Teresa Mafalda-Ana Margarida.

Ponto de partida - o Pedro.

A Teresa Mafalda disse-me que o Pedro Ferreira de Macedo a viu.

Suspiro e reconheço: era impossível evitar que Ana Margarida tivesse conhecimento da degradação da filha! E volto a alagar-me em piedade. Pobre condessa de Ribatorpes.

Felizmente que há a Luisa Maria.

Que há a Luisa Maria e vai haver muitas outras. Raparigas de vida vazia para a Fundação Ribatorpes. Raparigas de vida vazia para encherem a vida de uma mulher a quem eu espero um dia ouvir dizer "Bendito seja o dinheiro'".

O dinheiro posto ao serviço de uma obra de amor!

O Pedro e o Paulo saiem para jantar e levam com eles a Teresa, a meu pedido.

Eu não quero nada. Tomarei qualquer coisa antes de ir para o aeroporto. Ou até mesmo no aeroporto, enquanto esperamos pelo avião.

O Joaquin aceita um copo de leite e três bolachas. É o primeiro alimento que não arranca o queixume: "Não me passa na garganta" - e a conseqüente recusa.

Atendo ao telefone o médico o qual uma vez informado da evolução positiva da doente se despede até amanhã.

Teresa de Macedo continua a recuperar, graças a Deus.

vou vê-la. Está a contemplar o postal de Rosa Maria. A contemplar a vista de Luanda cidade ampla, moderna. E sorri-me:

- Será alguma destas, a rua onde eles moram?

Sento-me ao lado dela e miro a avenida marginal e as aderentes com prédios altos e claros. Infantilmente, analisamo-los como se...

Como se...

A moradia que habitam coubesse num destes andares que são pontinhos na fotografia obtida de avião! A moradia com as suas divisões espaçosas e a larga varanda ao pé da qual se erguem árvores que espalham sombra. A larga varanda onde numa cadeira cheia de almofadas Rosa Maria espera que os dias ao passarem lhe restituam por completo a saúde e lhe ofereçam o momento de vir até nós, nós que no postal de Luanda infantilmente tentamos vê-la a ela. Vê-los - a todos.

São nove e meia (21 e 30).

Regressam Pedro e o Paulo trazendo a Teresa (Souzelo).

Encarrego a Teresa de avisar a D. Aniceta de que irei buscá-la cerca da uma da madrugada, certa de que ela vai querer esperar os antigos amos. Há coisas tão evidentes que nem precisam de ser discutidas.

E nisto:

- Está na sala uma senhora à sua procura, Madrinha!

- vou já, Teresinha.

Penso que seja alguma amiga de Teresa de Macedo, com quem conversa D. Ângela Custódio que chegou há bocadinho. (Conversa, não. Fala para a entreter, impedindo-a de responder-lhe para que se não canse).

E dou de caras com Casimira Abegorim. A futura irmã Casimira que me sorri como se estar aqui diante de mim fosse a coisa mais natural deste mundo - e não é, porque o conhecimento dela com a avó do Pedro não vai além de um afável cumprimento no vestíbulo da entrada do prédio ou de uma breve troca de impressões dentro do elevador acerca do tempo ou das crianças que elas ano a ano, uma no 4. ? andar, outra no 2. ?, foram vendo crescer. "O Pedro está um homem" - "E a Ritinha, tão crescida que há dias até julguei que era a Lili... "

Pois Casimira Abegorim nem sequer nota o meu ar surpreendido tão certa das razões que a trouxeram e estão longíssimo de serem as que num inesperado receio me parece vislumbrar "virá acaso para me manifestar o desagrado da família da Rosarinho por esta haver sido levada a casa pelo Pedro no carro dele? "

(E não tardará que recorde tão intensamente que é como se estivesse a ouvi-la a frase há horas dita para mim pela Teresinha Souzelo "Errar é humano... A Madrinha está a errar"...)

Sinto-me corar - culpada de um juizo precipitado e injusto.

Casimira está aqui trazida por algo que desde ontem tem enchido esta casa e é maravilhoso que exista e se manifeste quando os amigos provam que o são - a solidariedade!

Com efeito, desde ontem que os amigos provam que o são e a solidariedade emerge da palavra para ser facto, passando do estado abstracto ao concreto.

Casimira Abegorim vem para ficar à cabeceira da cama da doente, como uma enfermeira vigilante e dedicada. Vem para que os outros (nestes outros, eu) com obrigações durante o dia, possam dormir sossegados. Vem porque ao escolher uma existência estruturada em leis religiosas, leis de amor ao próximo, ela sente que está de acordo com a vocação que se lhe tornará destino.

E é tão certa, tão lógica, que a aceito como se fosse realmente natural e certo que a irmã do Dr. Álvaro Abegorim venha tratar da mãe do Dr. Rui Manuel de Macedo com quem nunca até hoje trocara mais de meia dúzia de frases acerca do tempo e das sobrinhas de uma e dos netos de outra.

Tudo está bem quando é belo e Bom.

  1. Aniceta tagarela. Desde que a fui buscar à porta, eram l, 15 m. Sem se importar que eu lhe responda por monossílabos. Atribui o meu mutismo ao cansaço, às preocupações...

Estou cansada e estou preocupada. Cansada destas últimas trinta e tantas horas que tiveram laivos'de beleza (solidariedade!) mas não foram belas. Preocupada diante de muitas coisas para fazer e resolver.

Ana Margarida e Catarina. A ilha dos Pêssegos para o grupo do João Alfredo (Fofo...).

O meu trabalho parado. As provas do meu livro novo que nunca mais chegam. O livro da Ana Maria que de chofre se me impôs à lembrança ante um atraso inexplicável e que nestas últimas semanas tão cheias escapou à minha vigilância. Estou cansada e preocupada por tudo isto, mas os sons breves com que eu pontuo a verve da D. Aniceta não resultam deste cansaço e desta preocupação.

Sinto-me ligeiramente atordoada com o burburinho que nos cerca neste restaurante onde vim tomar um copo de café com leite (leite com café) e comer uma sanduíche de fiambre, enquanto a Teresinha bebe um chocolate e a antiga governanta dos Torredalto se delicia com um sumo de ananaz - tudo quanto aceitou.

E olho pela janela aberta ao pé da qual fica a nossa mesa as pistas lá fora, sob as luzes violentas dos candeeiros e dos projectores. E vejo as enormes aeronaves quietas, estáticas, umas resfolegando na fadiga da chegada, outras na emoção da partida.

É incessante o movimento de gente e carrinhos e carrinhas e autocarros como de longo curso que não percorrem mais de algumas dezenas de metros. Dir-se-iam cansados os que chegam de horas de imobilidade nos seus cômodos assentos dentro de um compartimento suspenso entre céu e terra do qual não há que sair. Dir-se-iam impossibilitados de andar os que vão partir, como se as pernas se recusassem a transportá-los...

Fantasias de romancista!

Nem os que chegam vêm cansados, nem os que partem receiam coisa alguma. Pelo menos na regra geral

- as excepções não são senão... excepções!

Eu sou excepção, acabou-se!

E viajante por gosto, com a nítida compreensão de que não há limites nem obrigatoriedades para os perigos (dizia uma velha avó que tive que ao sair da cama se pode partir uma perna...) aceito o automóvel, o comboio, o navio... mas o avião! ...

Lá vem mais um.

Um risco luminoso corta o céu.

O ronco (ou silvo) atroa tudo. O edifício enorme, regorgitante do barulho que é presença do homem homem em si e homem continuado na máquina estremece. Penso que o avião vai cair - agora será o desastre horroroso e eu aqui!

Não tenho nada a ver com o avião que desce, de uma companhia estrangeira, e sinto medo como se estivesse dentro dele.

O avião ignora o meu pânico e as minhas deduções. Porque ainda mal as sinto formularem-se-me no espírito e já ele, triunfalmente seguro, se aproxima no chão a rodar como um avião que o Pedro teve em pequeno. Dava-se-lhe corda e ele deslizava imponente...

O avião do Pedro. O Pedro.

Os Macedos.

Os Macedos de lá.

Hão-de vir com certeza de avião!

Sinto o coração dar-me um pulo esquisito.

Eles hão-de vir de avião?...

Foram de barco. Sempre andaram de barco. A Rosa Maria identifica-se comigo neste receio absurdo dos aviões - "nem todos andam de avião, não é verdade"? -. Nunca desejou voar e o Rui Manuel aceitou o pequenino ridículo da mulher como aceita as suas razões mais conscientes. Agora, porém, a necessidade de pouparem tempo - tempo para que Setembro seja um grande mês! - é capaz de a obrigar a vencer o temor. E então chegarão aqui. Num avião da TAP

- como dentro de momentos os Torredalto.

Encolho-me toda. Encolho-me espiritualmente... À vista não se nota, creio.

Procuro no rosto de D. Aniceta uma qualquer impressão que o meu gesto íntimo pudesse ter provocado. Não há nenhuma.

Dirijo o olhar para a Teresa... e...

E? ?...

Levanto-me com tal ímpeto que a cadeira se desiquilibra e cai com estrondo. Muita gente se volta para dar fé do que foi. Muita gente observa o que está a suceder. Uma senhora de meia-idade bem vestida e de aspecto normal (eu!) corre por entre as mesas cheias, esbarrando em dois criados que servem, e vai deitar a mão a uma criatura esfarrapada e suja que de começo parece querer livrar-se e fugir.

O escândalo ronda.

Mas a criatura suja e esfarrapada decide aquietar-se, o que permite à senhora de meia-idade (eu...) largá-la. Largá-la mas sem arredar pé. Mirando aquela miséria que confrangeria se não enojasse.

Na mesa a que está sentada acham-se mais três criaturas. Do sexo masculino - revelam os bigodes e as barbas (um deles tem tanta barba, tão espessa e basta, que só se lhe vêem os olhos - a testa desaparece sob o matagal que desce da cabeça desgrenhada).

Decido ignorá-los, porque só ela me interessa. Catarina.

E digo-lhe:

- Preciso de falar contigo.

O ar dela já não consegue revoltar-me. Os absurdos já são demais na porcaria do conjunto, no abandalhamento da atitude, na perfídia da expressão.

E porque nada me diz, fechada em algo que talvez não tarde em querer saltar numa seta de zombaria, acrescento, decidida a erguer o meu escudo para que tudo quanto daqui em diante suceda possa alvejar-me sem dano.

- Não julgues que tenho o menor desejo de gastar contigo o tempo dos meus porquinhos da índia.

Mas quero ser paga do conto e oitocentos que te emprestei. Dá-me a tua morada. E ela:

- Não lhe dou a minha morada, nem lhe pago porque não tenho chêta!

- Não tens porque não queres! O testamenteiro da tua família e o advogado que está a gerir os assuntos de dinheiro andam à tua procura exactamente para que entres na posse do que é teu.

E ela:

- Por enquanto não me interessa nada. Quando interessar eu apareço, para que o idiota do meu irmão não pense que vai abarbatar-se com tudo. Quanto à Mãezinha, descanse que ela ainda me há-de aturar...

De súbito invade-me um grande medo. Um medo atroz de que um dia, no palacete Ribatorpes, quando os quartos vazios estiverem cheios e cheios com as vidas vazias das raparigas a quem Ana Margarida há-de ajudar a achar a ventura, entre para fazer mal, entre para magoar, entre para destruir, esta erva daninha feita gente.

É preciso impedi-la. É PRECISO IMPEDI-LA!...

Mas como?

As pessoas desinteressam-se de nós. Tudo voltou ao ritmo que por momentos cortei.

Da mesa ao pé da janela aberta, onde adivinho que a Teresinha e a D. Aniceta devem trocar impressões ditadas pela minha maneira de proceder, dirigem-me sinais cuja razão me é transmitida por uma voz feminina avisando pelo alti-falante que o vôo n. ? não sei quantos da carreira que vem de Luanda descerá dentro de minutos.

O avião em que chegam os Torredalto.

Os companheiros de Catarina estão de pé. Catarina levanta-se. E atira-me, com uma risadinha:

- Dê saudades à mama e ao mano... não se esqueça!

É preciso que eu não esqueça outra coisa... - obter a morada dela, custe o que custar! Tenho de saber onde vive (vegeta!) esta rapariga na qual se afundam nomes, virtudes, tradições - tudo quanto fica bem mesmo aos que não herdam fortunas e títulos.

O grupo afasta-se. Ela, escorrida e cambaleante, no meio deles.

Continuo imóvel.

- Acaba de aterrar na pista n. ? tal o avião procedente de Luanda..." - diz a voz feminina a prevenir-me de que daqui a instantes os Torredalto transporão a porta de acesso às formalidades após as quais estará a Teresinha, estará a D. Aniceta, estarei eu e a seguir o Hotel Majestade.

A morada de Catarina! Preciso da morada de Catarina!...

E a Catarina vai além...

A minha hesitação não pode prolongar-se. Tenho de decidir-me. Ou renuncio a descobrir e cumpro os meus deveres de amizade acompanhando a Teresinha e a D. Aniceta que me acenam de ao pé da porta (D. Aniceta deve ter pago a conta, para maior confusão minha!) na pressa de descerem para a sala de espera, ou sacrifico os deveres de amizade arriscando-me sei lá a que juízos todos razoáveis no que tiverem de mal a meu respeito, e corro atrás de Catarina.

Corro atrás de Catarina.

Lembro-me de Rocambole. (Rocambole, a lendária personagem criada no século passado por Ponson du Terrail a quem sucediam aventuras de tal modo extravagantes que se tornavam inacreditáveis).

Eis-me protagonista de uma aventura extravagante e autêntica nos seus mínimos pormenores.

Atrás de mim ficam os que vieram de longe e tinham o direito de me encontrar ali, a aguardá-los a restituir-lhes o bem de que fui durante dias a fiel depositária. A Teresinha.

Persigo um grupo que se afasta banhado pelas luzes que atiram com a noite lá para longe, um longe para que me dirijo.

Ziguezagueio por entre grupos e seres isolados que tenho de empurrar a fim de não perder de vista os que me levam metros de avanço. Há quem reaja em várias línguas. Há quem me fite como naquela tarde os circunstantes na sala de espera do Samuel Crisóstomo.

É necessário seguir a Catarina.

Sigo-a.

Detenho-me a uma das portas da aerogare. Lá vão eles. Irão apanhar um taxi? Irão de autocarro?

Passa alguém por mim que me saúda.

- Como está, passou bem?...

Não olho. Não sei quem é.

Eles vão lá adiante, a pé. Mas não irão a pé. Dirigem-se para um dos parques de estacionamento. Têm carro. Um deles tem carro!

Carro! Preciso de ir buscar o meu.

Ladeio a carrinha do Hotel Majestade (felizmente a Teresinha e a D. Aniceta sabem o nome do hotel onde os Torredalto ficarão alojados).

Enquanto me instalo ao volante, perco-os de vista. Quase sinto vontade de me morder a mim mesma, no desespero do fracasso! Mesmo assim arranco e por pouco não atropelo um polícia. Um polícia, para cúmulo! Vai exigir-me carta de condução, documentos do automóvel e aniquilar as últimas possibilidades de descobrir onde mora Catarina.

Não acontece nada. O sujeito é simpático e não está de serviço. Aliás saiu a correr de um táxi e vai disparado para o edifício transbordante de vida, com certeza a receber alguém que chega (quem sabe se um filho a prestar serviço no ultramar que vem passar férias à metrópole? ).

Ai imaginação, imaginação!...

E... lá vão eles - não tenho tempo de pensar em mais nada.

Lá vão num belo descapotável - e por isso os vejo tão bem. Completamente ignorantes de que lhes sigo no encalço.

Luzes amarelas. Passo.

Luzes verdes. Sem problema.

Luzes vermelhas - ai que se somem! Não, não desaparecem. Além, num cruzamento sem sinalização está tudo engarrafado, não me escapam.

Quando o trânsito se escoa, eles aceleram na grande avenida livre.

Conquanto absolutamente certa de que a eles não passa pela cabeça o que está a acontecer, conservo uma distância prudente.

Ao virar de uma esquina depois de muitas, julgo que tomaram qualquer direcção impossível de imaginar. Há várias transversais à direita e à esquerda...

Afrouxo.

E ei-los, perto perto, parados. Chegaram ao seu destino.

Mas... será ali que mora Catarina?

Estaciono mais à frente e espero um pouco. Depois saio do carro, fecho-o e dou uns passos na direcção do prédio moderno cuja porta transpuseram.

O coração bate-me com força.

Que vou eu fazer, Deus?

Se eu telefonasse a Ana Margarida para vir?

Não devo.

Se eu telefonasse ao Pedro e ao Paulo a fim de me acompanharem?

Percebo que estou com medo. Um medo sensato.

Ergo os olhos ao céu onde a noite é beleza. E vejo que no último andar do prédio para onde entraram se acendem luzes.

Será ali que mora Catarina?... Ou um ponto de partida para achar Catarina?

O tempo decorre e eu só dou por ele quando um guarda-nocturno me aborda bastante desconfiado.

- Oiça lá... vocemecê não mora aqui por estas bandas, pois não?

Não sei se hei-de desatar a rir ou a chorar. O zeloso guarda nesta nossa época sob certos aspectos mais rocambolesca do que o era para Rocambole, está no seu pleno direito de me julgar chefe de alguma quadrilha de gatunos a estudar as hipóteses de um assalto ao edifício que miro desde que aqui cheguei.

Tenho de justificar-me. Mais - e a inspiração é repentina e benfazeja! - de conseguir um aliado.

Este homem vai compreender as razões que a romancista colhe às mãos cheias (e conteste quem quiser o dom de criar vida!).

- Ai, senhor guarda-nocturno, - murmuro sofredora (sofredoramente autêntica na angústia que me avassala), - se o senhor guarda me pudesse ajudar! Imagine que eu tenho um filho, um rapaz de vinte anos, que se desviou do bom caminho... e anda por aí ao Deus dará com outros... Bebem, jogam... não estudam, não trabalham... E era tão bonzinho!... Eu queria ver se conseguia levá-lo comigo para casa... é por isso que aqui estou à espera que ele saia...

- Mas que saia de onde? - indaga o meu interlocutor, meio convencido meio duvidoso.

E eu aponto, ousadamente, o andar lá em cima no prédio moderno onde vi acenderem-se as luzes.

- De ali...

O guarda-nocturno rende-se.

Oh, oh... então é um dos gabirús guedelhudos

que ainda há três noites amotinaram aí o bairro apedrejando dois automóveis... ? Foi um sarilho dos diabos que meteu polícia e tudo. O que os livrou do calabouço foi o dinheiro, que um deles é riquíssimo, o dono do automóvel em que andam...

- aquele! -e indico o descapotável, gesto que acabaria de dissipar quaisquer desconfianças se o vigilante da noite ainda conservasse algumas.

- Pois, aquele! O tipo não sabe o que tem! e já totalmente cortês - A senhora também é endinheirada, não?

Para quê negar? Estou bem vestida e dentro de instantes ir-me-ei no meu automóvel...

- Pois!... - aquiesço. E ele:

- É um dos males desses gajos. Uns filhos-família que são uma miséria! -(o paradoxo exprime uma realidade incontestável!) - Se eles tivessem que trabalhar p'ra comer, saíam melhores. Assim, só gastam...

Ele fala, fala.

Sei que fala mas não sei o que diz (deve girar tudo em volta do mesmo) porque penso, penso...

não vou subir lá acima.

Exponho-me sem resultado a enxovalhos e insultos mais que certos!

O rumo a seguir é outro.

A quem pertence a casa?

- A qual deles pertence a casa? - oiço-me a perguntar.

- Ai a senhora isso não sabe?

- Não, o meu filho não me disse. Aliás foi um outro amigo dele que me avisou de que vinham para aqui.

- A senhora não tem marido? Continuo a inventar.

- O meu Marido é oficial da Marinha. Anda embarcado.

- Pois quem devia ir lá acima armado de cavalo marinho era um homem, um homem e teso!

- Eles não abriam a porta, se calhar...

- Capazes!...

- Cada um na sua casa é rei e se não incomodam a vizinhança...

- Incomodam mas dentro de horas em que as queixas não têm a lei por elas!

- Como?

- De tarde, e às vezes até à meia-noite (olhe que os tipos não excedem nem um minuto a meia noite, an?) é uma bagunçada de violas e baterias e coros... Depois... como agora! Um silêncio de morte! Não há ponta por onde se lhes pegue! Mas se o Pai de um, ou os Pais deles todos, fossem por ali acima e os desancassem...

Dentro de mim a noção de que desancá-los não resolvia nada. Impossível resgatar de fora para dentro. Tem de ser de dentro para fora... Mas em casos como o de Catarina... ? ...

O guarda-nocturno agora aconselha-me:

- Eu cá, se fosse à senhora, ia-me embora que não está aqui a fazer nada. O seu filho é capaz de lá passar a noite... e quanto à senhora subir, eu até ia consigo, mas olhe que não adianta!...

Claro que não adianta.

Mas adianta agarrar na ponta da meada, achar a pista para a casa onde mora Catarina.

- Então o dono da casa vem a ser... ?

- A mulher que lhes limpa a casa diz que o recibo está no nome de um tal Bento...

- Bento? - o nome não me soa estranho. Bento?...

- Acho que Joaquim Bento.

AN? ?... AH!

Não invento mais nada. Não preciso. E nem posso acreditar que o destino assim me haja posto nas mãos a chave da casa onde mora Catarina.

Joaquim Bento?...

O Joaquinzinho Bento de Penarim? O segundo filho do senhor Bento farmacêutico?...

Oh, santo nome de Deus!

E considero-me eu romancista!

A romancista continuas a ser tu, vida, -e mais uma vez me dás uma lição espantosa, arquitectando compondo, decidindo...

O Joaquinzinho Bento... ? ? ?

Tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim.

Sete da manhã nos meus dois relógios de que me achei ausente durante horas que se me afiguram meses.

O pouco sono que me deu algum descanso (algum apenas porque os sonhos se me enrolaram nas verdades em confusão crescente - onde acabam umas e começam os outros em dados momentos?) gastou-se e sento-me na cama a fim de conciliar intenções e deveres para hoje.

Telefonar para saber da Teresa de Macedo.

Falar ao Pedro, ou ao Paulo, a fim de que procurem o Joaquinzinho Bento (uma vez obtida a confirmação de ser ele mesmo) e consigam a direcção de Catarina.

Ir ao Hotel Majestade encontrar-me com os Torredalto e explicar o sucedido até onde for possível.

E o mais que adiante há-de surgir!

As três primeiras coisas são prementes.

Levanto-me.

- Emília!

- Minha senhora? - e alarma-se. - A senhora está doente?... Tem tão má cara!

- Sinto-me cansada, Emília.

- A senhora D. Teresa está melhorzinha?

- Ontem, quando saí de lá e graças a Deus, sim.

- E os tais senhores amigos da minha senhora, chegaram bem?

- Espero que sim.

No olhar dela a justificada surpresa. Então só espero... não sei?

Pois, não sei!

Desenha-se-lhe nos lábios uma pergunta que não formula porque a necessidade de me comunicar algo se lhe impõe.

- Ai, minha senhora, e antes que me esqueça. Houve correio à tarde e trouxeram acho que aquelas provas de que a Senhora há dias esteve a falar ao tal senhor da livraria. Pelo menos o rapazola que aí veio perguntou pela Senhora e disse que aquilo era urgente.

"Sempre o mesmo"-penso. -"Eu aguardo tempos infindos, chegando a transtornar os meus planos e os meus desejos na incerteza de quando virão. Eles atrasam-se, demoram-se e depois requerem que atire tudo para trás das costas afim de não perturbar as suas conveniências"...

Enfim!

E a roer este verdadeiro osso do ofício, encaminho-me para a minha salinha de trabalho.

Em cima da mesa redonda, aguardando-me com um ar inofensivo que nunca se sabe o que oculta, o sobrescrito grosseiro atafulhado com as provas tipográficas e o correio.

- A minha senhora quer já o pequeno almoço?

- Só café com leite. Café forte.

E sento-me para tomar posse da correspondência.

Uma carta aberta. Propaganda de uma lavandaria

acabada de inaugurar nem reparo onde. Uma carta de avião, com letra desconhecida. (Vem dos Açores. Será da Ilha dos Pêssegos?...) A sorrir, poiso-a para abrir antes dela uma carta em muito bom papel, branco e liso, onde uma caligrafia de traço firme nada me diz.

E logo me sinto a sorrir, contemplando o convite que vem confirmar o já aceite para 26 de Agosto.

É original a forma, não há dúvida! Comunicativa.

A MIRITA E O ZÉ vão casar

Os Pais dela O Pai dele

Teresa Mafalda da Câmara de Sousa Medeiros de Passos Abegorim Eurico Chaves

e Dr. Álvaro de Passos Abegorim

desejam a sua presença no dia 26 de Agosto na Igreja de São Sebastião da Pedreira, às 18. 00 horas.

  1. S. F. F.

O meu coração batendo contente assegura-me que fiz bem em ter dito logo que sim à Mirita. Este é um casamento a que não assistirei por obrigação, mas por prazer. Sincero.

vou gostar de ver a Casimira dirigir-se para o altar pelo braço do Juiz Abegorim. vou gostar de olhar para a Rosarinho ao lado do Pedro e visionar o que será daqui a anos, num dia que espero da bondade de Deus poder ainda viver. vou gostar de sentir que as irmãs da noiva, e as amigas presentes, são raparigas que desejam uma existência límpida cheia de amor puro e tranqüilo com filhos e netos à espera do mundo num futuro inevitável. vou gostar de tudo o que a 26 de Agosto estará comigo porque eu estarei com tudo. Enquanto Setembro não chega!

Acabo de beber o café com leite e de comer uma das torradas que a Emília trouxe - não quis desgostá-la recusando a atenção. E não me soube mal. Mal sabe-me a carta que vem dos Açores.

Minha senhora

Dirijo-me a si porque na desorientação em que me encontro me parece ser a única pessoa capaz de me dar um conselho.

Tenho 22 anos, o curso comercial e nenhumas esperanças.

O meu Pai, viúvo de minha Mãe há oito anos, tornou a casar e a minha Madrasta que diante dele finge gostar imenso de mim, passa o tempo durante o qual somos obrigadas a conviver a lastimar-se de ter a sua intimidade perturbada por uma estranha. Não que me não estime realmente - dá-se ao cuidado de mo repetir! mas na verdade é uma pena que não leve uma existência à parte, pois num casal jovem como eles são (ela tem 35 anos e o meu Pai 51 e o "jovem" refere-se ao casamento ainda recente) necessita de independência e de não precisar de controlar as suas atitudes e os seus planos por causa de uma terceira pessoa. A terceira pessoa sou eu - eu que nesta cidadezinha onde vivo não sei como resolver a situação visto que embora empregada numa tabacaria não ganho para mim. E mesmo que ganhasse, não fazia sentido que arranjasse quarto fora da casa do meu Pai pois logo havia de cair nas bocas dO mundo que inventariam explicações que só me colocariam mal, pois ou iriam atentar contra a minha honestidade ou contra o meu feitio. Como vivo contrariada o meu Pai censura-me de andar sempre de "cara fechada", como ele diz, e a minha Madrasta, silenciosa, ergue os olhos ao céu e suspira com ar de mártir como quem diz "vê tu o que eu sofro".

Uma rapariga minha amiga que me tem emprestado os seus livros é que me lembrou o escrever-lhe e foi ela até que me conseguiu a sua direcção. Parece que uma senhora conhecida dela esteve em casa da Senhora uma vez.

Nos livros que eu li não há nenhuma rapariga com uma situação parecida com a minha, mas isso não deve impedir que a Senhora encontre maneira de me dizer como é que eu hei-de viver daqui em diante, sem ser um estorvo para os outros e sem me sentir como sinto uma rapariga que não tem nenhuns motivos para viver.

Desculpe minha Senhora, e por caridade, responda-me.

AURORA"

Dobro a carta. Enfio-a no sobrescrito. E de novo aquela frustração de não possuir a varinha mágica das fadas... A varinha de condão.

Levanto-me, guardo a carta na minha carteira. Para quê? Mas para a entregar a Ana Margarida.

Telefono para me informar da Teresa de Macedo. Atende-me o Pedro que foi saber da avó ao sair de casa e me dá boas notícias. Aliviada, tento contar-lhe em poucas palavras o ocorrido esta madrugada. Não considera improvável que o Joaquim Bento da morada que lhe indiquei seja o Joaquinzinho Bento de Penarim, o filho do senhor Bento farmacêutico que tal como o irmão estava a causar enormes dores de cabeça à família. Vai entrar em acção com o Paulo e talvez com o Artur cuja antiga habilidade para detective pode reacordar tornando-se de muita utilidade neste caso, E promète-me:

- O mais depressa que for possível informo-a do que conseguir apurar.

HOTEL MAJESTADE.

Porteiro agaloado. Porteiro a quem os galões dourados conferem a sobranceria de quem não é grande - julga ser. Os grandes não levantam a cabeça com esforço, andam de cabeça naturalmente levantada...

Lembro-me de ver este sujeito no dia da festa dos Fontemora, servil para quem entrava, servil para mim, que vinha chiquíssima. Agora, na singeleza das dez da manhã, não me reconhece categoria que justifique o esforço da amabilidade.

- Não acha cedo para visitar uns senhores que chegaram aqui de madrugada? Talvez seja melhor voltar logo.

Ergo o rosto e encaro o homem. Bem a direito na obliqüidade do desnível dos tamanhos. Ele é muito mais alto do que eu...

- Pois talvez seja cedo, realmente. Esperarei numa sala que se levantem. Queira no entanto ordenar que ao mais pequeno sinal de que estejam despertos os avisem da minha presença.

Ele pestaneja.

- Da presença de quem?

E não me apetece nomear-me.

De uma amiga.

A resposta não o satisfaz, mas O peso do meu olhar força-o a engolir o desagrado.

- Está bem, entre.

A ironia da situação transborda de mim e forma um sorriso.

- Agradecida!

E piso as alcatifas do amplo vestíbulo e escolho o salão que se rasga mesmo ao centro. Instalo-me numa poltrona disposta a aguardar.

Aceito como punição de haver feito tudo ao contrário do que parecia lógico e certo o tempo inútil de esperar.

Passam talvez vinte minutos, não mais. E aparece, a correr para mim, a Teresinha, de braços estendidos:

- Ó Madrinha, mas o que foi que lhe aconteceu? Sim, realmente... o que foi que me aconteceu? Ela tem o direito de mo perguntar. Eu tenho o

dever de lhe explicar.

Por que ponta pegar na meada?

- Tu sabes, de repente vi a Catarina... e decidi ir atrás dela.

A expressão da Teresa torna-se inquieta, o que me indica que peguei na ponta errada do emaranhado da situação.

E eu:

- Não sabes quem é a Catarina?

- A Catarina é aquela rapariga com quem falou?

- Sim, é.

- Pois não, não conheço.

- É a irmã do João Alfredo.

- Ah!...

Ah, agora sim. Tenho nas mãos a ponta certa, posso continuar.

A Teresa, sentada ao meu lado, espera que eu prossiga. Tem de esperar um bom bocado, porque surgem, sem reserva que indique ressentimento, a Maria Alice e o marido, os avós da Teresa.

Dez minutos de abraços, cumprimentos, indagações, respostas, pasmos.

- Ó Maria Alice, mas o tempo não passa por ti!... Dir-se-ia que ainda estás mais nova do que quando partiste.

Ela não contesta porque tem a noção da própria beleza. Mas agradece, generosa.

- Olha quem fala! Estás uma rapariga... E a Teresinha:

- É uma rapariga...

- Por dentro. - acrescento ante o exagero.

- Não há nada mais importante. Sentamo-nos todos.

O porteiro, do vestíbulo, espreita a nossa intimidade e não adivinho se sou eu que subo na consideração dele se são os Torredalto que descem na categoria que lhes atribuira. Não percebo e não me interessa perceber. Oiço a Maria Alice e o Eugênio falarem à vez, encadeando o que dizem, corroborando, definindo, sem me darem azo a mudar de assunto para justificar a minha conduta na noite que passou, para acabar a explicação que muito interessa a Teresinha.

Assim às onze e vinte (no meu precioso reloginho de platina e brilhantes... -precioso pelas certezas que em si contém...) sei que a Maria Helena se deixou realmente dominar pela febre do oiro ". como se a penúria de alguns anos a tornasse para sempre sôfrega" e que o Dinis evoluiu no sentido de uma frieza calculista que impressiona. Sei que se tornaram muito tensas as relações familiares a partir do instante em que eles, avós, tomaram o partido da neta "Coitada da garota, não havia a mínima possibilidade de a ver casada com aquele homem" - Sim, quase quarenta anos de diferença não são de admitir, quando vinte e tal já causam tantos problemas, como no caso de Ana Margarida e Sebastião (A NECESSIDADE DE CONTAR).

Catarina na noite.

A carta da Aurora - uma aurora envolta em escuridão.

" Escuridão nas horas que não são belas. As horas de Catarina rapariga sem horizontes. Horizontes que se abrem para Teresa Souzelo.

- Foi então que me decidi e disse à Maria Alice "nós já não estamos aqui a fazer nada. Quando viemos, pesou na balança da resolução a presença da Teresinha. Pois a Teresinha precisa de nós, vamos continuar a nossa missão de avós visto que a de Pais terminou". E pronto, cá estamos para dedicar a esta garota os últimos anos de vida.

- Os últimos que hão-de ser muitos. - consigo dizer. - Vocês estão novíssimos.

- A Maria Alice sim. Eu fiquei muito abalado depois daquela trabuzanada a seguir ao incêndio das fábricas Mas enfim, enquanto agüentar, cá estou.

- Eu já combinei com o Eugênio e não ficamos a viver em Lisboa.

- Ah, não?

- Não. Lisboa está uma terra de barafunda, muito bonita...

- muito progressiva!

- e nós habituámo-nos ao sossego. Sim, que sossego havia!

- Tanto que de vez em quando era preciso ir ouvir barulho em qualquer parte.

- Metíamo-nos num avião e zut - lá íamos até Lourenço Marques, até Johanesburgo, até Luanda matar saudades da Becas, até uma praia qualquer, que as temos e de categoria!...

Onze e quarenta e sete. Preciso de ir-me embora e ainda não cumpri a missão capital que me retém nesta poltrona onde me sinto como se em vez de macio veludo os estofos fossem da mais áspera lixa. Sim, missão capital. Que não me reconheço o direito de usufruir a alegria gêmea da amizade constituída sem me fazer perdoar do que para outros quaisquer se afiguraria insulto, desconsideração... - sei lá bem o quê.

E então resolvo interrompê-lo. Ergo as mãos, na esperança de que o gesto revele o meu desejo - ou a minha necessidade - de falar.

O gesto resulta.

E ambos me sorriem:

- Sim?

- Devo-lhes, com os meus pedidos de desculpa, uma explicação. Pela certa a Teresinha e a D. Aniceta disseram que eu estava com elas no aeroporto à espera do avião...

- Disseram tudo. - riposta o Eugênio. - Incluindo a gentileza de nos marcar este hotel, que ainda não havia no nosso tempo, e as constantes atenções para com a nossa neta que aliás não oculta o seu pesar de não poder continuar na sua companhia muito embora nos adore e esteja radiante por nos ter com ela, visto que...

(não posso, não posso deixá-lo prosseguir, se ele recomeça não pára e eu careço de terminar a minha exposição - Jesus, o Torredalto dantes não falava tanto!)

- entretanto já se sabe que ela irá para junto de si sempre que a minha amiga o desejar e for oportuno, pois não somos daquelas pessoas que para provarem os seus afectos se tornam exclusivistas ao ponto de apenas demonstrarem egoismo e...

E corto-lhe a frase:

- E posso acabar o que tenho a dizer?

- Oh, com certeza!

- Pois eu tudo abandonei de repente ao avistar a filha de uma amiga em torno da qual existe um problema gravíssimo. A rapariga, herdeira de uma grande fortuna, aliás a meias com um irmão e a Mãe, saiu de casa e leva uma existência estranha de cujos perigos nem se apercebe, talvez porque não quer pensar senão do dia de hoje. Ora eu assumi um compromisso - o de tentar descobrir o paradeiro dela, ou seja, a sua actual morada, que todos desconhecem. E por isso... percebem? - larguei tudo sem me preocupar com o meu dever de continuar ali...

- Não havia dever, amiga! Encaro Maria Alice.

- Havia dever de amizade, sim.

- Esse trouxe-a agora aqui!

E o Eugênio acrescenta à tão simpática afirmação da mulher:

- Fez muito bem em obedecer ao impulso que a levou atrás da mocita, julgo...

- Sim, fui atrás dela.

- E descobriu onde mora a Catarina? - indaga a Teresa, em ligação com o seu interesse suscitado pela irmã do João Alfredo e suspenso até este momento pela força das circunstâncias.

- Descobri onde ela estava naquela altura e a quem pertencia a casa, julgo. E julgo que em breve receberei notícias concretas. Encarreguei o Pedro de tratar do assunto:

E o Eugênio:

- Há muitos Pedros na terra... mas por acaso esse Pedro será o filho do Dr. Macedo?

Mal entendo, no alerta do nome:

- Como?

- Sim, o filho do director do novo hospital de Luanda?

A pressa (pressa justificada) dilui-se na sugestão de notícias deles (não me passara pela cabeça esta idéia que tão natural seria!)

- Vocês conhecem o Rui Manuel de Macedo?

- Conhecer no sentido exacto da palavra, não. Fomos consultá-lo antes de partir para cá porque o meu genro, que como sabe trabalha com ele (oh, pois eu sei mas não me lembrava!) me tinha dito maravilhas a seu respeito e eu não me sentia grande coisa. O clima da região das minas é mau e até a Maria Alice se ressentia. Eu queixava-me ainda mais, claro, principalmente do coração que me dava uns saltos no peito... - (ele fala, fala natural, e eu não consigo as noticias porque anseio!). - O Dr. Macedo viu-me cuidadosíssimo, e segundo ele, tratando-me como devo, estou para durar. A amiga sabe que estes desequilíbrios podem não ser mais do que uma conseqüência da carência do complexo vitamínico... B... não foi o que ele disse, Maria?

- E ele? Como está ele? - pergunto assaz incorrectamente, tão mais presa no desejo de saber deles do que em ficar descansada no que respeita à saúde do Torredalto.

E este, compreensivo e generoso:

- Isso é que é amizade, an? Deixo que ma leia nos olhos.

- Gosto deles como se o meu sangue lhes corresse nas veias.

- Pois o Dr. Macedo está esplêndido! Quando o maroto me revelou a idade, eu nem podia acreditar! Uns cabelos brancos nas têmporas... e acabou-se! - Rosto liso, ar aberto, olhar jovem...

- E segundo a filha, a Ana Maria, me mandou dizer, ele envelheceu bastante com a doença da mulher...

- (o coração pula-me no peito, talvez deva tomar o tal complexo de resultados insofismáveis) - Por acaso não lhe falou dela, o Rui Manuel?

- Falou, falou! Deixe reunir idéias para ver a que propósito e como foi, já que tanto deseja notícias dos seus amigos.

- Desejo. E não esperava recebê-las assim.

- Fresquinhas! De há três dias!

- E então?

- Ora salvo erro o Dr. Macedo referiu-se à esposa depois de... Espere, espere, vamos por ordem que é mais fácil.

(ai o método organizador deste homem que foi um grande industrial)...

- Primeiro fez-me muita festa apenas por eu ser o sogro do Carlos, de quem teceu os maiores elogios. Depois, quando e a propósito de me haver dado mal no clima da região aurífera, comuniquei o meu regresso à metrópole, respondeu-me que já não faltava muito para me seguir, embora de visita. E nesta altura foi que me falou da esposa, lembro-me perfeitamente! Perfeitamente, mesmo! E... táte... é isto mesmo, sem tirar nem pôr!... Contou que a s'Dona Rosa Maria (até fixei o nome, hein?) estivera gravemente enferma, que graças a Deus recuperara e que a viagem deles tinha por alvo o cumprimento de uma promessa a... a nossa Senhora... nossa Senhora de... ?

- Do Monte Alto, padroeira de uma vila lá nas Beiras onde eles possuem uma quinta.

- Exactamente, uma quinta, a quinta de São Boaventura! - e feliz da boa memória, prossegue:

- A partir daqui estabeleceu-se o convívio fácil. Eu lembrava-me de a minha amiga, no casamento da Becas, se referir imenso a uma quinta de São Boaventura que pertencia a um seu grande amigo, médico, pai de uns catraios sensacionais... E não estive com meias medidas, falei-lhe de si. E ele, que até então só vira em mim o sogro de um dos seus internos, ligou de repente o nome à pessoa. "Espere... mas então o meu amigo é o famoso Eugênio Torredalto... pai de uma menina a quem ela sempre se referia com infinita ternura"... E eu: "precisamente a mulher do Carlos!" E ele "A s'Dona Berta Maria"? "A Becas". A partir daqui, calcula o que foi tagarelar. Olhe, a conversa acabou com um convite para ir a casa dele.

Não consigo suportar o anseio de saber. Quero já, já, que ele me diga se:

- Esteve com a Rosa Maria?... Como a achou?

- Minha querida, lamento imenso, mas não estive com a sua Rosa Maria. Era tardíssimo, havia clientes à espera de vez capazes de me tragarem, fulos com a demora, eu precisava de regularizar uns assuntos... declinei o convite que aliás acabou numa combinação. vou com a Maria Alice e a Teresinha assistir à festa de Nossa Senhora do Monte Alto, que acho que é lindíssima no seu gênero, quando eles vierem, em Setembro.

(Setembro - que grande mês!...)

E ao mesmo tempo que a esperança de Setembro me envolve, uma outra palavra me traz ao momento que passa, saltando do inesperado das revelações de Eugênio Torredalto. Tardíssimo. Ele não viu Rosa Maria (e os outros) porque era tardíssimo. Também agora é tardíssimo.

Quase uma hora.

E eu liberta dos deveres que me trouxeram é retiveram nesta poltrona onde o veludo volta a parecer lixa da mais grossa apesar da satisfação de estar junto de amigos. De resto não posso pôr a minha satisfação pessoal à frente do que também se chama dever.

Ir levar a Ana Margarida notícias de Catarina. Más, más notícias.

(antes ver que temer)

E...

Levanto-me.

A Maria Alice, esbelta como sempre (quem me dera esta figura sem o sacrifício das dietas) deseja reter-me:

- Almoce connosco. Depois então vai à sua vida. Nós também saímos para começar a procurar casa.

Aceito para outro dia. Hoje não posso.

- Então amanhã vem jantar connosco.

- Marcamos depois, está bem? Tenho imenso que fazer e para além de tudo a Mãe do Rui Manuel adoeceu e preciso de lhe dedicar todos os momentos livres.

Acompanham-me até à rua, falando da Teresa de Macedo e do mal que a prostrou.

O porteiro agaloado desbarreta-se quase amàvelmente e pergunta-me se desejo táxi.

- Não, obrigada. Tenho carro. Despeço-me dos meus amigos. Até breve.

A Teresinha abraça-me estreitamente. E ao ouvido soa o pedido que não deixarei de atender:

- Assim que souber da Catarina diga-me, sim?... Encaro-a e, na troca de um beijo, cicio por meu

turno ao ouvido dela:

- E do João Alfredo, também desejas notícias? Ela sorri e vem responder-me no último degrau

quando já inicio a retirada:

- Principalmente se ele perguntar por mim... a Madrinha diz-lhe que estou aqui... está bem?

Está bem, Teresinha. Pois por que não?

A Luisa parece outra.

Estranho como em dias - tão poucos - uma pessoa tanto pode modificar-se.

Dir-se-ia que cresceu e engordou. E tem principalmente um olhar iluminado que faz bem sentir a acariciar-nos.

Pergunto-lhe se gosta, se já gosta deste seu novo lar. A resposta é-me dada pela maneira como se agarra ao braço direito de Ana Margarida - esta Ana Margarida afadigada que me diz de Luisa Maria:

- Vai ser o meu braço direito. Sentamo-nos, embora eu declare que não me

demoro. A saber que me demorarei bastante. Ana Margarida não aceita a minha pressa e convence-me a ficar para almoçar.

- Saio logo em seguida. Tenho um livro inteiro em provas para rever.

- Pois seja, sai logo em seguida. De resto preciso de ir tratar de uns assuntos concernentes às modificações a introduzir na casa. Sabe? Comecei a desmanchar o quarto de Catarina.

Gostava de me reconhecer com o direito de protestar para lhe oferecer uma réstea de fé no regresso próximo da filha. Porque tal não sucede, limito-me a murmurar:

- Faz bem. Ela não volta. Pelo menos para ocupar o quarto horrível que a sua mórbida imaginação exigiu.

Ana Margarida percebe que trago qualquer coisa de novo para revelar-lhe Não faz perguntas. Aguarda.

Procuro a melhor forma de a não chocar demasiadamente. Esta mulher cuja sensibilidade foi toda ela uma chaga pode sangrar ao mais pequeno toque. E acrescento:

- Pelo menos não voltará com hipóteses de ocupar os seus aposentos vermelhos. Se um dia chegar a transpor de novo a porta desta casa, será para lhe pedir um quarto branco de paredes nuas.

- Acredita numa recuperação que faça dela uma virgem digna de véus imaculados?

- Não, Ana Margarida!

- Não? -e pestaneja, longe de vislumbrar o que vai ouvir.

- Não. Acredito na conversão da pecadora que venha pedir cela de penitente. - e deixo que de mim transborde o que não havia premeditado e é inspiração sem raízes porque na verdade eu própria não creio no futuro que lhe anuncio: - A Catarina há-de cair em si. Há-de apavorar-se quando se reconhecer sem nada. Há-de ter medo ao perceber que a mocidade dura pouco demais. Há-de dobrar-se sobre si no desespero do tempo perdido e na náusea do mal. Há-de buscar na paz do isolamento as noites que merecem os dias. E nessa altura será preciso um quarto vazio à espera dela. Um quarto onde toda uma parede lhe ofereça a ilha dos pêssegos e a convença de que depois de muito caminhar se avistam horizontes.

A voz de Ana Margarida não treme ao volver-me: Para a Catarina chegar aí, teria de estar completamente caída num abismo, mergulhada em lama a gritar por socorro sem ninguém lho levar, com o céu a brilhar no alto das escarpas por onde rolou com o corpo a tocar a morte e a insurgir-se contra um fim prematuro.

E então, porque abordámos o ponto extremo, digo:

- Ela chegará aí.

- Sabe dela, nesse caso?

- Vi-a.

Ana Margarida faz-se lívida, mas não esboça um gesto. E escuta, imóvel, exangue, tudo o que lhe conto sem omitir coisa alguma. Para quê? Nem sempre, realmente e quando chega o momento de algo acontecer, disfarçar é piedade.

Ana Margarida só volta a manifestar-se quando lhe afirmo que não tardaremos em saber onde mora a Catarina, graças às diligências conjuntas do Pedro, do Paulo e talvez do Artur. Pedro Ferreira de Macedo. Paulo de Ataíde Lemos. Artur Xavier de Sá. E tudo se resume numa indagação que se solta num suspiro:

- E depois?

- Depois? Não sei, Ana Margarida. Na altura pensarei.

- Pensará. sozinha?

- Sim. Acho melhor que não interfira. Aliás não vale a pena que se entregue a novas inquietações por causa disto. A Catarina por enquanto avança para o barranco, de tal maneira segura na ilusão do atalho por onde segue que nem com projectores a alagarem de realidade as mentiras ela as notaria.

- Sou da mesma opinião, Mãe. Aliás a nossa amiga começou a obra, deixe-a continuar. Acho que ninguém pode ajudá-la a chegar ao fim.

- Ninguém precisar de ajudar Senhora. Senhora ter ajuda de Deus.

Tudo quanto dissemos, nesta salinha cor-de-rosa (cor de rosa como as flores dos pessegueiros) mergulhadas no assunto que nos prende as almas, foi ouvido por duas pessoas de cuja presença não nos apercebemos, duas pessoas tão completamente diferente uma da outra (sê-lo-ão, de facto?) e tão afins nas conclusões diversas a que chegaram. Porque o João Alfredo confia em mim. E o Nicolau Gogó na força divina que me ampara e conduz.

Na sala de jantar, conversamos.

Ana Margarida diz-me que não tenciona, contrariamente ao que a princípio delineou, modificar por completo este ambiente requintado. Luxo a mais? Não, beleza para encher os olhos, beleza para ensinar a alma a desejá-la.

- Não poderão ter terrinas da Companhia das índias? Pois na salinha de estar das suas casinhas pequeninas, (que outras se não fazem agora como se pensar em verdadeiros lares para famílias fosse um crime de lesa-pátria), gostarão de colocar uma terrina da fábrica de Coimbra. Na falta de candelabros de prata comprarão candelabros de casquinha. O tapete de alcatifa substituirá o velho Arraiolos. Não só o valor efectivo das coisas conta. Acima de tudo importa comodidade, beleza, gosto pela vida, gosto pelas coisas que vestem a vida. Enquanto elas desejarem um objecto para um lugar vazio, sentirão o estímulo que nunca deixa as horas insípidas. Sei, por experiência própria, o que é dobrarmo-nos sob o peso da inutilidade, o que é sufocar sob a pressão de olhar para o que quer que seja sem conhecer o desejo que alenta, que justifica, que impulsiona.

(Deus, como é bom ouvir falar esta mulher que conheci imóvel e silenciosa como feita de pedra. De pedra fria).

- No fundo, é a sua teoria da ilha dos Pêssegos. Há que nunca esgotar a capacidade de querer. Por isso me sinto quase como uma priveligiada. Aliás aceito o que me acontece naturalmente, porque salvando-me sinto forças para acima de tudo restituir ao mundo, válidas e certas, raparigas frustradas... frustradas pela situação inversa do que foi a minha. E essa é a glória da minha compreensão. Tão grave para a criatura é não ter que desejar como desejar sem ter. Por isso eu quero tanto que todas as que venham consigam satisfazer o que for ponto de partida para a caminhada ao meu lado como quero que não esgotem a capacidade de cobiçar, mas cobiçar conscientemente, as coisas pequenas que podem ser enormes de significado.

(Penso na carta que trago na carteira, a carta dessa Aurora cheia de sombras, mas não ouso interromper Ana Margarida).

- Por tudo isto não transformo este salão que é, reconheço-o, um banho de beleza. Nem os quartos, a não ser o de Catarina. - (uma pequena paragem, mas não a aproveito, porque não passa realmente de uma paragem, imposta pela imagem da filha perdida). -Venderei alguns móveis supérfluos, que de facto os enchem demais, pois o Sebastião, no seu amor pelos objectos de arte os adquiria sem se lembrar de que já não havia sítios para eles. Tenho tudo sobrecarregado! E se não me desfarei de nenhuma coisa, móvel ou adereço, herdado, em contra-partida não vejo motivos para conservar os comprados desde que sejam desnecessários. Aliás o João Alfredo vai levar o que quiser para a casa dele.

(dirijo um olhar rápido a João Alfredo tentando captar as impressões dele, mas come tranqüilo e de rosto baixo e nada consigo perceber).

- Entretanto resta-me o problema das jóias antigas que não sei se já viu... na vitrine do salão grande. É natural que me sirva delas para prendas de casamento, obrigando-as a abandonar a sua qualidade de belezas mortas, ressuscitando-as. Darão alegria, serão amadas e admiradas... Acho um destino muito belo. Mais belo que o de gelarem entre paredes de vidro nas salas de um museu ou entre as paredes de ferro do cofre de um Banco, onde aliás estão e ficarão enquanto esta casa permanecer fechada.

- Fechada? - e eis-me finalmente liberta da aceitação do meu silêncio todo feito da emoção de ouvir... o que tenho estado a ouvir. É que de uma compreensão total surge esta incompreensão: - Fechada? Porquê?

- Ontem falei com a Casimira Abegorim. Continuo a não perceber, porque em Casimira

Abegorim vejo a noiva. Talvez a primeira a usar uma peça do tesouro Ribatorpes, a primeira a tornar alegre uma jóia triste.

- com a Mirita? - pergunto, a tentar certezas.

- Não, com a tia, a irmã do Álvaro.

- Ah!

- vou em Outubro ter com ela. Quero passar uns tempos no Instituto, em Turim, a documentar-me acerca da mecânica da organização e dos métodos de assistência, de todas essas mil particularidades materiais que é preciso conhecer para que alguém saiba desembrulhar-se dentro de uma organização como a que quero orientar tanto com o coração como com a cabeça.

- Acho muito bem! - aprovo. E depois, a pensar na carta que me parece ouvir a gemer baixinho dentro da carteira, acrescento na direcção de Luisa Maria. E a Luisinha?

- A Luisinha? Tenciono levá-la comigo. De resto devo amanhã ter uma reunião com o Dr. Henrique de Lemos onde, entre outros assuntos, estudaremos as condições legais que a Mãe dela terá de aceitar por escrito a fim de que não surjam mais problemas. E é natural que não surjam visto que estes filhos deixaram completamente de interessar-lhe.

- Estes ? - e estranho o plural, de facto.

É agora a Luisinha quem me reponde:

- O meu irmão escreveu-me. Foi de vez para os avós. O futuro marido da minha Mãe achou melhor porque ele, apesar de tão novinho, fez uma cena quando soube que eu não voltava para casa.

- Mas... foi ele que quis... ou mandaram-no?

- Ele disse que se eu era a mais ele também, porque tudo quanto era do papá deixava de ter lugar Já em casa. E então o senhor Damião deu-lhe duas bofetadas e parece que se voltou para a Mama ordenando que levasse o miúdo imediatamente se não que o desfazia. E o meu irmão explicou que não era preciso mandá-lo por que ele ia sozinho. Mas não foi sozinho. A mama ontem de manhã meteu-se no carro e foi a Braga entregá-lo aos Pais do Papá, que se agarraram a ele a chorar... Enfim, cenas!

Cenas! Desditas. Fraquezas. Misérias. Maldades. E a carta dentro da minha carteira... E outras coisas a saber.

- Então... e os teus estudos?

- A Mãe Margarida, quando voltarmos, põe-me professores em casa. Prometi que em seis meses me habilito ao exame do 5. ano! Sou capaz... porque não vai haver nada a impedir-me de querer!

Capto o olhar de Ana Margarida. Um olhar onde me surge uma expressão que me é (era!) completamente desconhecida nela. Uma expressão de triunfo!

Agora a sua razão surge independente das razões que aceitou. Onde caiu a semente, germina a planta tão robusta que me parece já ver a grande árvore copada que há-de ser um dia.

E completa a explicação da Luisa Maria, no desenvolver crescente de projectos que amadurecem:

- Não penso arranjar professores só para a Luisinha. Penso arranjar de acordo com o que me parece ter-lhe dito já, um curso para quantas desejarem estudar. Lá em baixo na cave. depois de algumas obras, instalarei salas de aula, ginásio, e o mais que se afigurar conveniente. Tenho de pensar nas raparigas que não estudaram por falta de meios... e nas gordinhas que nunca realizaram exercícios físicos por que os Pais não tinham dinheiro ou não concordavam com a despesa...

Quantas que não fazem nada do que sonham, desejam ou precisam!

(quantas quantas quantas quantas quantas quantas).

- Acha bem, minha amiga? Sinto-me transformada em sorriso.

- Se acho bem, minha amiga! ...

O Nicolau, perfilado, espera que nos levantemos. Acabou o serviço. Erguemo-nos.

A boca sabe-me a café. Doce. Muito bom. Ana Margarida põe-me completamente à vontade.

- Não faz a mínima cerimônia comigo. Sai quando lhe aprouver.

- Preciso de ficar um pouco mais. Tenho isto para si.

A carta da Aurora açoreana, que ela volta nas mãos, admirada. Tão admirada que indaga:

- Mas é para si... ?

- Puro engano, Ana Margarida. Pertence-lhe por direito.

- Ah... bem! - e nisto a percepção do que lhe trago.

O João Alfredo pede licença para retirar-se. Beija a Mãe. Estende-me a mão que prendo.

- João Alfredo, devo-te uma explicação. Ainda não falei a tratar de nada a respeito da ilha - (só a Luisinha me fita suspensa, a condessa de Ribatorpes nem ouve, mergulhada na leitura) - porque as ocasiões me têm faltado. Não sei se sabes que a avó do Pedro Ferreira de Macedo adoeceu com extrema gravidade.

Os olhos míopes interessam-se por detrás das lentes grossíssimas.

- Não sabia.

- Teve um acidente cardíaco...

- E está mal?

- Esperamos em Deus que o pior tenha passado. De qualquer modo foi um grande susto e uma perturbação na ordem dos meus dias, percebes?

Um aceno.

- Aliás houve outra. Chegaram esta madrugada os avós da Teresa... da Teresinha que conheceste lá em casa...

- Bem sei.

Não havia necessidade de esclarecê-lo. Não existe outra Teresa para ele a não ser a Teresinha... E prossigo:

- Queriam que eu almoçasse hoje com eles, não aceitei. Não tenho tempo livre, nenhum. Mas no primeiro minuto disponível destas obrigações, trato do vosso assunto.

- Não faz mal. Nós esperamos cheios de calma.

- e logo a seguir. - A Teresinha continua em sua casa?

- Não. Ficou com os avós, como é natural.

- Sim, é natural. - e o peito largo dilata-se-lhe num suspiro. - É natural que eu nunca mais a veja.

- Natural porquê?

- Rumos opostos...

- E não haverá transbordos? Ele não responde.

- João Alfredo...

- Sim?

- A Teresinha está, por enquanto, hospedada no Hotel Majestade.

- Obrigado pela informação.

- A informação não é minha. É da Teresinha. Pediu-me que ta desse se perguntasses por ela.

Olho para mim mesma. Ou antes, para trás de mim. Terei asas, sem nunca haver dado por isso? É que o João Alfredo mira-me com uma expressão de assombro que apenas a minha metamorfose em anjo explicaria...

Não dou pela saída dele. Nem por mais coisa alguma, envolta na frase com que Ana Margarida me prende ao prender-me as mãos nas suas com a carta daquela triste Aurora entre elas.

- Talvez tenha de a levar também comigo para Turim.

- Pois vai mandá-la vir?

- Posso acaso proceder de outra maneira?

Oscilo entre deveres que me exigem.

Ir para junto de Teresa de Macedo ou ir para casa ver as provas do meu livro?

Uma coisa é minha, a outra está prestes a deixar de pertencer-me.

Ir ver a minha amiga - impõe-mo a amizade que se inquieta e perturba.

Ir para casa ver as provas do meu livro - que há compromissos alheios que nos obrigam a não escolher o mais fácil. Sim, que o mais fácil é ir para onde o coração leva a gente.

Estou em casa a ver as provas. Ou antes - a preparar-me para a revisão das provas.

Imaginará alguém, ao pegar no livro que nas suas mãos se afigura um objecto simples, mais ou menos importante pelo conteúdo das páginas, o que o autor experimentou quando pela primeira vez ante os seus olhos surge em letra de forma tudo quanto dele brotou como a água da fonte (quando o escritor é sincero, autêntico, tudo se solta sem tortura, naturalmente - a tortura principia depois)?

A tortura, para mim, principia agora.

Nestes linguados onde o que era só meu se prepara para ser de toda a gente, o que ao surgir me parecia perfeito, explêndido, indispensável, perde o encanto com que a força criadora o adornava. Só noto defeitos, fragilidade, inutilidade. As dúvidas instalam-se na mesa de trabalho, com ar de troça, à espera de que eu me dê por vencida e destrua o que está como ponte de passagem entre o manuscrito e o livro - as provas tipográficas!

E a agravar tudo, as letras erradas, as linhas que saltaram no texto, as palavras que são verdadeiramente o avesso das que lá se deviam achar e estragam o sentido como se pretendessem arrastar-nos para o ridículo máximo...

Ai um livro em provas!

Meu Deus, se eu escrevo porque me fizeste nascer com este dom, que é tão meu como o próprio coração, porque me castigas com a obrigação de chegar ao fim sem desertar cobardemente diante do que na realidade se diria não o LIVRO mas a figura do LIVRO estropiada num espelho côncavo de feira?

Espelho côncavo de feira. Feira de vaidades.

Vaidade de ser a autora de um livro. Escritora.

Não, eu não sinto vaidade. Sinto respeito por mim e por todos quantos ao longo dos dias dos meses dos anos foram escritores, são escritores, serão escritores. Obrigados a detestarem o que lhes pertence como o próprio coração quando revêm as provas dos seus livros.

Uma só coisa julgo semelhante no mundo. O primeiro ensaio de uma composição musical desconhecida de uma orquestra, quando cada um toca para seu lado e tudo menos o que está na pauta, obrigando a talvez sinfonia ou o talvez concerto a assemelhar-se com o que teria lugar entre as visões infernais de um Dante ou as alucinações de um demente...

Ai as provas tipográficas!

Tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim...

Oito horas nos meus relógios. Não. Oito horas num dos meus relógios. No velho-novo do ferro-velho. O novo-velho do tempo de Napoleão não apoia a afirmativa do companheiro. Porquê? Ah, sim, na lufa-lufa em que tenho existido esqueci-me de dar-lhe corda!

Antes que me passe de idéia, levanto-me e restituo à vida a máquina parada. Acerto-o. Oito e cinco minutos.

Estão revistos, em quatro horas, oitenta e cinco graneis. Faltam dois dobros. Prossigo ou deixo o tanto ainda a penar para amanhã?

- A minha senhora quer jantar agora?

A Emília aproveitou o ver-me aqui parada diante da consola para, depois de muitas espreitadelas à porta que fingi não notar, com a pequena frase trivial me restituir ao que não pode ser apenas o dever de trabalhar. Há outras coisas à minha espera.

Janto, sem apetite. Mas não posso deixar de dar corda ao meu eu máquina humana. Sem corda nem os relógios!... E eis-me rumo a casa dos Macedos (velhos).

Na salinha, lá dentro, o Joaquim, o Dr. Miguel de Sá, a Casimira, o Pedro e o Paulo, conversam.

De passagem, o Pedro comunica-me que ainda não conseguiu saber nada. Mal tenha informações seguras, avisa-me.

Eu sei que me avisa.

Agora, instalada na beira da cama da Teresa de Macedo, animo-a contando-lhe as notícias do filho colhidas de quem lhe apertou a mão há três dias. E a minha mão direita que apertou a mão direita de Eugênio Torredalto que apertou a mão direita de Rui Manuel de Macedo fica aprisionada entre as mãos desta mulher que se diria buscar assim um pouco do calor do filho ausente.

Sinto-a inquieta, preocupada com a distância, e lembro-lhe que para Setembro já não falta muito.

E ela:

- Resta saber se lá chego!

- Que tolice, Teresa! Claro que chega e passa... -'Deus sabe em que condições! Se ficar inválida, mais vale que não...

- Olha os pensamentos lúgubres!

- Sempre me horrorizou a hipótese de não ser mais do que um contrapeso na existência!

Ralho:

- Senhora D. Teresa de Macedo, se continua nesse tom vou chamar o seu neto e ele que a ature. Não vim vê-la e trazer-lhe boas novas para sair daqui com a alma coberta de crepes.

E ela:

- Deixe-me desabafar consigo... se não rebento! É que passei o dia a magicar nisto... e noutras coisas também. A minha amiga sabe que nunca mostrei vontade de ir para o pé deles... Estou (tenho estado) muito apegada a isto tudo, à casa, ao ambiente, à independência... Coitado do Joaquim, por minha causa achou conformação, que ele, por ele, já lá se encontrava. E agora, depois deste aviso que recebi, não penso senão nisto: nada tem afinal importância senão eles. Desperdicei tempo ingloriamente, inutilmente! É portanto para o pé deles que eu hei-de ir, acompanhando-os quando voltarem para Luanda. Mas... valerá a pena, ainda?... Como eu fui até agora, sim. De outra forma, não. E a grande pergunta impõe-se-me e magoa-me. Será tarde e por castigo da minha culpa já não irei como era mas como talvez fique - um trambolho que só serve para dar aos entes queridos preocupações e canseiras?

- Desabafou, Teresa?

- Desabafei, amiga.

- Então oiça. Não nos compete discutir a vontade de Deus nem antecipar com suposições os Seus desígnios. Diz um velho ditado popular - ajuda-te e Deus te ajudará... Portanto afaste de si essas negras previsões que nada resolvem, porque nem trazem nem evitam, e faça os possíveis por viver como for da vontade de Deus, colaborando na obra divina, merecendo a Ajuda... - e para aligeirar o tema. - Tome os remèdiozinhos todos, descanse e sobretudo... vitaminize-se!

Teresa sorri enfim e de súbito:

- Ai, a propósito de vitaminas... quer saber uma coisa muito curiosa? Imagine que o Dr. Barbedos não acredita na importância do complexo no comportamento do coração, nem atribui à sua carência a responsabilidade que o Rui Manuel lhe assaca.

- Ah, não?

- Não! E soube-o hoje porque exactamente o Pedro, estranhando não haver nenhum frasco de complexo entre o meu arsenal de medicamentos, me foi buscar um num instante e quando o Dr. Barbedos me veio ver (que ele saiu minutos antes da minha amiga chegar!) com aquele seu olhar de lince logo o notou. E perguntou-me para que era. Expliquei-lho até recordando que eu, que andava sempre a tomar aquelas coisas, desde que o Rui Manuel partiu num inexplicável desmazelo me deixara andar sem ligar nenhuma aos conselhos dele "a Mãe e o Pai se querem ter saúde e viver até tarde encharquem-se em vitaminas... "

- Ele dá esse conselho a toda a gente!

- Pois! E com resultados, sabe-se!

- Sabe, não há dúvida!

- Pois o nosso ilustre especialista, depois de me ouvir, sorriu e disse-me "Minha querida senhora, eu quanto a isto sou da opinião das velhas tias dos antigos solares minhotos que perfilhavam a opinião de que cautela e caldos de galinha não faziam mal a ninguém..." E esta?...

Ponho-me a rir. Teresa ri comigo. Contagiamo-nos uma à outra e cada vez rimos mais, divertidas com a frase, a comparação e o incidente...

E quando saio enfim, já perto da meia-noite, levo comigo o aspecto risonho da convalescente que vim achar tão sucumbida e a certeza de que só de falar nelas as vitaminas parecem actuar...

Acabei de ver as provas do meu livro. Acho-o francamente mau. E como eu gostava dele enquanto o escrevia!

Apetece-me destruí-lo, atirá-lo fora, esquecer que dentro de um mês vai estar à venda.

E depois uma certa paz. Uma paz que me vai alagando. Que me domina e obriga a entregar serenamente ao empregado da tipografia que o vem buscar o grande sobrescrito acastanhado onde ele parte para o seu destino.

É que isto acontece-me sempre, invariável como o passar dos dias segundo a segundo no tique-taque dos meus relógios.

Ainda com o último publicado o meu horror me forçasse a tê-lo enfiado numa gaveta até receber um telefonema do meu Editor a protestar contra a demora que estava a ocasionar-lhe um grande prejuízo (os editores preocupam-se muito com os prejuízos materiais e é natural, porque um livro representa empate de capital e não se come, nem veste, nem paga aos empregados que por sua vez têm despesas a que é impossível fugir, sem dinheiro - NINGUÉM VIVE SEM DINHEIRO -) e a pedir-me em todos os tons que não o atrasasse mais. E eu com ele pronto...

Pois atingem trinta e cinco centímetros de altura, colocados uns sobre os outros, os macinhos de cartas que recebi a dizerem-me das mais diversas formas coisas boas boas boas e a principal "gostei muito". De entre elas ficou-me presa ao coração esta frase: "Acabei agora mesmo de ler o seu livro. Ri, chorei e quando cheguei à última página fiquei a olhar para ela à espera de mais".

E a pensar nisto, deixo de pensar no livro que me abandonou para seguir o seu destino.

Houve uma espécie de paragem na minha vida durante estes dias - ao todo três. Depois do trabalho de revisão, como durante, nada de especial. Não falei com Ana Margarida. Não soube do João Alfredo. Não tenho tido correio.

Não recebi qualquer comunicação dos Torredalto.

Não vi nenhuma das minhas amiguinhas.

A avó Teresa continua felizmente a recuperar, já se levanta e dá uns passinhos até à cadeira onde repousa durante a tarde.

O Pedro telefonou-me a avisar-me de que em breve terá algo a dizer-me. Talvez amanhã. Esperemos amanhã.

Dias de muito, vésperas de nada... E vice-versa.

Eis o balanço deste dia que ontem era amanhã para hoje:

Ás 9 da manhã.

- Minha senhora... minha senhora, desculpe vir acordá-la... mas é que estão lá fora os meninos para falar à minha senhora... e acho que é importante.

Arrancada a um sono que se tornou profundo a partir das tantas da madrugada, imagino o grupo do João Alfredo (Fofo) a requerer o cumprimento das diligências adiadas.

E a minha imaginação estremunhada:

- Pede-lhes que esperem um bocadinho. vou arranjar-me num instante.

A Emília acha natural a resposta e sai deixando-me na crença de que são eles que me aguardam.

No corredor, a caminho do quarto de banho, desfaz-se-me a suspeição porque o som das vozes lá dentro me esclarece e tranqüiliza. Ou alarma. Tranqüiliza e alarma. Não preciso de criar explicações. Preciso de calma para o que vou ouvir.

À minha espera, às 9 e cinco da manhã, o Pedro e o Paulo. Portanto, notícias de Catarina. vou saber onde ela mora!

O Pedro e o Paulo, descontraídos, abrem-me os braços para a expressão de amor filial que lhes mereço desde sempre. Qualquer deles me aceitou como a imagem de uma possível Mãe a continuar a Mãe que Deus lhes deu.

- Desculpem-me vir recebê-los de roupão, meus filhos. Não quis demorá-los, demorando-me.

- Nem demorar as novidades que lhe trazemos...

- graceja o Pedro.

Não vale a pena discordar. Pois se é verdade...

- Conseguiste saber, então?

- Bastante.

Estamos sentados em torno da minha mesinha. A Emília surge, avança.

- A minha senhora quer que lhe traga o pequeno almoço?

- Vocês dois tomam alguma coisa? - indago.

- Se o café é do bom-(eles sabem que é, pois não bebo outro)-um café. -riposta o Paulo em nome de ambos.

- Pronto! - e lá vai a Emília contente por haver sido bem sucedida na iniciativa.

- Então? - e os meus olhos pesquisam os olhos cor de azeitonas de Elvas do Pedro.

- Onde mora Catarina?... Já vai. Antes porém quero dizer-lhe que o Joaquim Bento dono do tal andar é efectivamente o Joaquinzinho Bento de Penarim. Do grupo fazem parte, entre outros, o Roberto Maldonado, não sei se a Madrinha se lembra dele...

(aceno uma afirmativa que o não interrompe)

- e o Frederico Alvarela.

- Quem? Ele repete.

- O Frederico Alvarela. Precisamente. O filhote do antigo dono da Quinta Maior!

- Bonito grupo! - comento.

- Lindo! Porque os outros, embora eu não lhes saiba por enquanto os nomes, devem ser do mesmo naipe.

- Claro! - e não contenho a admiração. - Como é que conseguiste apurar a junção desses três válidos elementos da nossa sociedade?

- No primeiro dia, por um golpe de sorte, vi o Frederico entrar para o prédio em questão. Admiti, naturalmente, que ele vivesse com os Pais num qualquer andar do edifício, porque não sabia ainda que nele só havia apartamentos, ou sejam, cochichos com duas divisões onde a cozinha está metida dentro de um armário com portas de correr... No dia seguinte, ou seja, ante-ontem, mais ou menos à mesma hora, montei guarda numa leitaria que fica do outro lado da rua, à esquina, não sei se reparou...

Não reparei mas não tem interesse o facto e nem eu lhe respondo nem ele se preocupa com o esclarecimento. E prossegue:

- Na verdade, avistei o Frederico, desta feita a sair do prédio. E desta feita decidi abordá-lo. Como tinha o carro estacionado perto, consegui arrancar e contornar a placa de modo a ir apanhá-lo a meio da rua. Parei, fiz-lhe imensa festa e ofereci-lhe boleia... Aceitou. Comecei a investigação prudentemente, querendo saber "se ele ia para a Faculdade". Não ia. Ia para perto encontrar-se com uns amigos. Fiz caminho para o tal perto que me indicou, perguntei-lhe pela família toda... e ele lá foi respondendo sem me dar margem a grandes indagações mas dizendo o bastante para eu ficar ciente de que o andar no tal prédio era mesmo do Joaquinzinho Bento, do de Penarim. Quando ele me disse que podia parar, diante de um café bastante conhecido pela freqüência estranha, eu continuava como antes. Então ensaiei um ataque, convidando-o para no dia seguinte - ontem - irmos almoçar juntos a qualquer parte. Nesta altura deve ter estranhado o evidente desejo de aproximação da parte de quem tão pouco lhe mostrara os dentes durante anos. E despediu-se, recusando. A partir daí entrou o Paulo em acção. Indiquei-lhe o café e nessa noite ele, agarrado a um maço de apontamentos, porque tinha um exame ontem a seguir ao almoço, foi para o café, arriscando a integridade física.

Não entendo o perigo.

- Arriscando a integridade física porquê? O Paulo sorri, tomando a palavra.

- A Madrinha está a ver um indivíduo sem barbas nem bigode nem pera a estudar num café de barbudos e guedelhudos trajados de modo a confundirem-se com as raparigas que à primeira vista parecem rapazes?

Estou a ver e inquieto-me:

- Espero que ao menos não levasses gravata!...

- Não levei gravata. Ia com camisola preta de gola alta. E mesmo assim a minha situação, com um café duplo na frente, não era agradável, porque mal entrei fez-se um silêncio que se ia mais e mais adensando... Os tipos sentiam que estava ali um espia.

- Não eras um espia!

- Para eles era! E de qualquer modo, eu achava-me em missão oficial de investigador, não há dúvida.

- Não devias ter ido só...

- Ó Madrinha, se fosse acompanhado a coisa agravava-se porque eles veriam na presença de uma data de estranhos uma autêntica provocação, ao passo que assim podiam admitir a hipótese de uma entrada por engano...

- Ah, bem... - e reconheço a justeza da dedução.

- Oiça agora como tudo se passou. Após a hostilidade de um mutismo que durou talvez mais de dez minutos, houve primeiro umas frases veladas acerca dos intrometidos, dos burgueses que precisam de levar uma boa ensinadela. A seguir um deles começou a tocar viola e a cantar uma espécie de balada que não era balada nenhuma, era uma melopéia com palavras improvisadas onde entre outras percebi estas frases "não queremos nada com os herdeiros do cheirete a mofo", "exigimos a independência e não deixamos que nos metam sopa pelas goelas abaixo... e "não cabem onde cabemos e contestamos-lhes o direito de nos roubarem espaço..." e... - com licença!

A Emília e os meus tabuleirinhos, em dia de gala. Naperons bordados, almoçadeira inglesa, biscoitos, torradinhas, fiambre, ovos mexidos, compota de ananaz, leite e café.

- O cafezinho p'rós meninos.

Xícaras de porcelana. Açúcar em quadradinhos.

- Quantos, menino Pedro? Quantos, menino Paulo?

E eu anelando pela continuação da cena espantosa...

- A minha senhora não deixe arrefecer o cafezinho...

Pois sim, Emília.

E coma, que a minha senhora há três dias

que mal toca nas coisas. - Pois sim, Emília.

E os meninos comam também. Provem os biscoitinhos. Foram feitos por mim, ontem. Estão fresquinhos.

- Pois sim, Emília.

E tratamos de dar-lhe satisfação, eu e eles, bebendo e comendo, para que serenada a nosso respeito graças aos seus cuidados pela nossa alimentação nos deixe e me deixe conhecer o desenlace da situação.

- E depois, Paulo?

- Nesta altura, um dos criados, tão barbudo como os fregueses, aproximou-se de mim e disse-me que me aconselhava a ir estudar para outro lado. E nisto... entra um novo grupo. Um grupo ruidoso e descomplexado que não fazia a mínima idéia de que uma presença estranha perturbava o ambiente normal do recinto.

- Ó Paulo, - interrompo, - e entre a assistência ninguém que te conhecesse? Nem o Frederico Alvarela, nem o Maldonado?...

- Até àquele instante, ninguém. A partir daquele instante... dois defensores inesperados, nem a Madrinha imagina quem!...

Espero. E ele:

- Dois rapazes do grupo do João Alfredo de Ribatorpes.

- Dois?...

- Dois! Viram-me quando um qualquer deve ter-Lhes feito notar a minha presença indesejável e dirigiram-se-me no mesmo instante. Pensei que vinham com o intuito de me lançar qualquer desafio... e devo confessar que senti um enormíssimo receio invadir-me. Se houvesse provocações, as conseqüências seriam sempre muito desagradáveis porque das duas uma, ou eu virava costas e saía vaiado por aquela malta e a sentir-me em acto de pura cobardia...

- Estou farto de discordar dessa tua maneira de encarar o problema, pois não há hipótese de reconhecer ponta de cobardia numa atitude de exclusiva prudência.

Apoio a opinião do Pedro, mas o Paulo, sem nos ligar importância, continua:

- ou agüentava firme e levava uma tareia de resultados imprevisíveis!

Aproveito para confirmar que ele não podia senão retirar-se.

- Felizmente, - prossegue o meu herói, - o problema não saiu do enunciado dentro do meu espírito. Os recém-vindos estenderam-me as mãos em saudação cortez e instalaram-se à minha mesa como se fossem amigos velhos. - Aqui detém-se e encara-me, a sorrir.

- A Madrinha nem supõe que era a sua protecção a envolver-me?

- A minha protecção? - tartamudeio.

- Pois! Os dois mocitos conheciam-me de vista por indicação de um terceiro...

- Ah... ? ... -e de súbito diviso cinco de um grupo de seis. Porque o sexto talvez já não seja freqüentador do café onde Catarina deve ir. Já não usa nem barbas nem bigodes nem cabelos até aos ombros como timbre de independência.

E ele, apanhando a minha compreensão:

- Pois, Madrinha, os meus companheiros pertenciam ao grupo do João Alfredo de Ribatorpes. Eram, soube-o depois, o Teco e o Licas. O Albertinho de Serramoura e o Luís Caiate. A partir daquele instante, entre ambos, percebi que estava sob custódia. Era como se eu tivesse entrado para me encontrar com eles. Evidentemente que vim a saber muita coisa depois de outras dizer. Porque tive de lhes explicar a razão que ali me levara.

- Revelaste-lhes que andavas à procura de Catarina?

- Sim.

- E os motivos?

- Também.

- E eles?

- Eles contaram-me que já não iam ali há bastante tempo, quase que desde a vinda deles aqui a sua casa...

- Ah, isso quer dizer que o meu nome entrou onde não pode ter a mínima aceitação? - e rio-me. É engraçado pensá-lo.

- Engraçado é ouvir a maneira como eles o proferem. Dá a idéia de que estão a chupar um rebuçado.

- Falaram-te da Ilha dos Pêssegos?

- Não.

(a ilha dos Pêssegos, saber as hipóteses da compra!

- ai imaginação, imaginação... )

- Respeitam a discrição...

- Evidentemente.

- Bom... e depois?

- Depois eles ignoravam a morada de Catarina. Mas...

- Mas?

- Prometeram-me informar-se junto dos outros. Aceitei a Colaboração.

- Pudera!

- Tornava-se muito mais fácil para eles de que para qualquer de nós, visto que aquilo funciona de certo modo em regime de clã. E então, ontem, à noitinha, voltámos a reunir-nos.

- No mesmo café?

- Não, na rua. Ou melhor, na minha rua, à porta de casa. Senhores de todas as informações obtidas directamente do Joaquinzinho Bento de quem eu lhes falara e que acabava de regressar de uma estadia acampado não sei onde. Haviam utilizado como argumento convincente a necessidade que o irmão tem de contactar com ela.

- E a propósito, o João Alfredo ficou a par do assunto, não?

- Não. A meu pedido, eles guardaram segredo. Pelo menos, prometeram-mo.

- E então?

- Então, metemo-nos no meu carro, os quatro, e fomos admirar o refúgio de Catarina.

Espero, ansiosa.

- E onde mora ela?

- Na rua banal de um sítio decente num prédio vulgar. Pela fachada não se nota nada.

- Mas nada... o quê?

- Não se nota que ali mora Catarina!

- Vocês entraram?

- Entrei eu. - diz o Pedro.

- Essa agora! ?...

- Essa agora, porquê?

- Foste recebido?

- Pois fui.

- Mas como?

- Bati à porta, perguntei por Catarina. Ela apareceu. Ao reconhecer-me ficou naturalmente espantada. Evoquei o nosso encontro à beira-mar, declarei que não cessara de pensar nela e que obtivera a direcção através do meu amigo Joaquim Bento. Ela acreditou porque entretanto ele já lhe falara de Penarim e de nós. Devo esclarecer que primeiro me atendeu como se tivesse as mãos cheias de pedras para me atirar. Depois humanizou-se e convidou-me a entrar. Declinei o convite por falta de tempo e marquei um encontro para hoje à noite. vou buscá-la às 22 horas.

- Vamos!

- Nós achamos que não deve ir, Madrinha.

- Oh, Pedro, eu prometi a Ana Margarida!

- Prometeu descobrir a Catarina e informar a senhora condessa do que apurasse! Pode fazê-lo... embora tanto o Paulo como eu sejamos do parecer que a condessa de Ribatorpes também lá não deve ir.

- Mas porquê?

- Acima de tudo porque não vão lá fazer nada. Aquilo é um antro.

- com quem vive ela, afinal?

- Ela não vive com ninguém. Pelo que me explicaram os rapazes, a casa pertence a uma comunidade, ou seja - tem para aí uma dúzia de donas. As raparigas cotizam-se, pagam a renda entre todas e vegetam entre aquelas paredes.

E eu, a sentir-me ridiculamente ingênua:

- E não saiem?

- Saiem! Claro que saiem. Andam por aí, como a Catarina naquela noite, livres, livres, livres, livres. A apregoar a sua liberdade que as torna escravas de uma existência miserável.

Ficamos por instantes calados.

A Emília entra, observa que alguma coisa desapareceu dos tabuleiros, que a minha almoçadeira e as xícaras foram utilizadas, e retira-se levando tudo.

Dilata-se-me o peito num suspiro. Um suspiro que marca a minha decisão.

- De qualquer maneira, Pedro, eu quero lá ir. Para contar a Ana Margarida e para contar também a todas as que possam um dia deixar-se perturbar pelas proclamações entusiastas e pelos convincentes elogios das que se afundam nessa vida que as incautas, as inocentes e as estúpidas se arriscam a julgar maravilhosa.

O Paulo e ele trocam um olhar. Nesse olhar, a resistência.

- Madrinha, nada resolve indo sujeitar-se a tocar naquela imundície.

- Tomo banho quando chegar a casa, Pedro. e sem transição, indago. - O teu Pai, Paulo, sabe que vocês localizaram a Catarina?

Responde o Pedro:

- Tenciono ir buscá-la e levá-la depois à presença do Dr. Lemos. Mas com a Madrinha não creio que consiga persuadi-la a acompanhar-me.

- Pedro? -Uma idéia repentina me obriga ao que vou dizer. - Pedro... acaso a Catarina terá coração para se interessar por ti?

- Oh, Madrinha? ... A Catarina não tem coração.

- Haverá alguém sem coração?

- Pois há, Madrinha.

- Encontraste algum caso, ao estudar anatomia?

- e porque ele nada replica, prossigo: - Pedro, eu posso não ir contigo e deixar-te modelar, não o barro, mas a lama. Age à tua vontade. Mas um dia irei lá, onde mora Catarina. No entanto...

- Sim, Madrinha?

- Vês algum inconveniente em que eu esteja presente ao lado do Henrique?

- Não, Madrinha. - E põe-se de pé, para retirar-se. São

Dez e trinta. Nos meus relógios - dois que cantam para quem os ouve, um que só trabalha para mim, no meu pulso.

- Temos uma reunião às onze no hospital. Precisamos de ir.

- Sim, filhos.

- Logo telefono-lhe ao fim da tarde a dizer-lhe o que ficar combinado com o Dr. Lemos para o encontro.

- Sim, Pedro.

- E o melhor será, enquanto o Pedro vai buscar a Catarina, eu vir buscar a Madrinha no meu carro.

E não é confusão minha. O Paulo diz o meu carro. Já há pouco me parecera ter ouvido a frase, mas a estranheza que possa ter provocado diluiu-se no muito que estava a apreender acerca de outras coisas. Agora retenho-a e surpreendo-me. O Paulo não tinha automóvel.

- No teu carro ? - e fito-o à espera de que ele corrija a expressão.

Não corrige e ri:

- Acha que não mereço? E por isso duvida?... Pois foi o prêmio de uma data de exames com notas bonitas...

E o Pedro:

- Parece um catraio a quem deram um relógio por ter passado a 3. a classe, sempre a mostrá-lo a toda a gente. E se duvida, Madrinha, oiça...

Não tenho tempo de duvidar, porque ainda mal o Pedro acaba a frase e já incontidamente o Paulo exclama:

- Vá espreitar à janela, Madrinha!...

É claro que nos despedimos a rir à gargalhada.

Rio ainda quando o Paulo e o Pedro, um de cada lado de uma amorosidade de um carrinho castanho acobreado, tão pequenino como nunca vi nenhum, verdadeiro automóvel grande em estilo liliputiano, o apontam de indicador estendido a olharem cá para cima.

- É este!...

- Parabéns, Paulo! Não o estragues!...

É o Pedro quem me responde, porque já o Paulo está ao volante:

- Descanse, Madrinha, que ele em certos cruzamentos vai a pé e leva o carro à cabeça...

E continuo a rir, imaginando o Paulo, muito esguio e muito alto, a erguer nos braços acima de todos os riscos o seu minúsculo carrinho, quando fecho a janela e me disponho a continuar o meu dia que...

Trriim-trim-trim na porta da rua.

- Há-de ser o correio, Emilia. Vinha a chegar quando estava a dizer adeus aos meninos.

Tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim.

Isso mesmo! 11 horas.

- O correio, minha senhora.

O correio. Uma pesada carta única. Em papel de avião.

No timbre Luanda.

A letra, embora não de todo estranha, não é...

Nem de Ana Maria. Nem de Rosa Maria.

Ah... carta do Rumané!

A primeira que dele recebo e por isso não lhe reconhecia a letra. Bicuda, miúda (faz-me lembrar a letra usada pelos rapazes bem educados do século XIX, a letra em que escreviam Eça, Camilo, Nobre e o meu trisavô) nada tem a ver com as letras grossíssimas traçadas em numerosas folhas por um dedito infantil há tantos anos já, as letras do ditado que um dia me foi mostrado por uns pais felizes e orgulhosos da corajosa e digna atitude do seu filhito posto de castigo. E penso, enquanto abro a carta, que deve ter sido escrita com a caneta que o Rui Manuel lhe levou de presente no dia a seguir ao feito memorável. Porque acho que o pequeno não só não a perdeu como nunca perdeu mais nenhuma...

E é a sorrir à recordação que se torna clima em torno de mim que principio a ler.

Minha Madrinha

Estava na praia, sentado a olhar o mar. Pela primeira vez desde a doença da Mãe viemos passar o fim de semana na nossa casinha a meia-hora de Luanda. Fiquei contente porque mesmo quando não está bom tempo é bom estar na varanda a ver a chuva bater no mar com tanta força que o mar em cada onda parece protestar contra a água que devassa a sua intimidade.

Hoje não está a chover-pelo menos agora não chove, o que não quer dizer que uma nuvenzita que anda a passear não faça desabar sobre a gente um senhor temporal lá para as tantas.

Quando disse que estava contente por vir, não disse tudo. É que melhor que o mais foi com a decisão do Pai nos serem confirmadas as melhoras da Mãe, que já tem licença de andar pela casa à vontade. vontade mas não todo o dia, ainda. Depois do almoço, além da sesta tantas vezes imposta pelo facto de se começarem os dias muito mais cedo do que aí, faz um longo repouso durante o qual não tem senão licença de ler uma hora antes de se levantar. E acho que isto vai ser assim até São Boaventura para, segundo o Pai diz, agüentar em plena forma a procissão. ". Em plena forma e em glória, acrescenta a Ana, para Nossa Senhora se sentir orgulhosa da sua obra" ao ver a Rosinha-Mãe.

(e eu sorrio mais, porque nesta irreverência não há qualquer falta de respeito que a torne sacrílega)

Mas voltando ao principio - eu estava na praia. A Serafina também, a brincar com a Maria Rosinha que aqui caía além se levantava (em casa anda muito bem, corre tudo e até já trepa para as cadeiras com sério risco da sua linda cabeça) mas na areia não se agüenta nas varetas - umas varetas gordas que se ficam assim saiem trambolhos - a Ana diz que não, que até são bem feitíssimas as pernas da "mana"... "

Os Pais e a Ana tinham ficado em casa, eles dois a jogarem xadrez, a Ana a ler umas revistas que trouxera de Luanda.

E por causa disto é que tudo se passou.

De repente, vi a minha irmã a correr na minha direcção. Primeiro até me alarmei: sabe, é que aquela coisa da Mãe deixou-nos a todos um bocado assustadiços, quando as coisas saiem do normal pensamos logo horrores. Depois, pela cara dela, percebi que vinha divertida.

Vinha divertida e contente. A enfiar-me debaixo do nariz uma das tais revistas que tinha comprado, aberta com fotografias de alto a baixo nas duas páginas. "Vê, vê se conheces".

E eu ia de espanto em espanto e parecíamos dois tontinhos apontando uns e outros, a rir e a comentar:

"Olha, a nossa vizinha do lado, a Alicinha Fontemora!... Que bonita, puxa!..." "E o Fernando Vasco, caramba, que chique!..." "Olha... a Rosarinho do 4. ? andar... neste grupo..." "Épá... até aposto que os cabelos que se vêm aqui atrás desta dama emproada são do Paulo... E ao lado... a testa com a madeixa é do Pedro!... "

Depois, eram artistas mais ou menos conhecidos, gente da alta, com nomes ilustres. E um grupo de raparigas e rapazes que de copo na mão deviam estar a fazer um brinde ao "Jacques Bertrand." E aqui julgava eu que se acabava a reportagem. Mas não! A Ana Maria virou a folha "deste lado há mais e melhor. "

Em cima, o cabeçalho dizia "O artista e as suas origens". As origens eram os Pais, ao lado dele, e ele ao seu lado, Madrinha!

E de repente percebi que a Ana Maria se tinha sentado ao pé de mim e que estávamos de cabeças encostadas a olhar para si. Mais. A Ana estendera o indicador e fazia festas ao retrato. Não, não era ao retrato sossegue - que o Fernando Vasco não a interessava. Fazia-lhe festas, a si.

É que ambos sentimos a sua falta! Eu sou sincero, Madrinha. Como não tenho sombras da sensibilidade da Ana, até agora tinha saudades suas mas sem as perceber muito bem. Era... como é que eu hei-de explicar? Era como da minha quinta. Gosto muito dela mas como não posso lá viver sempre, paciência, não vale a pena estar a pensar sempre no mesmo! Percebe? "

(percebo)

E depois ficámos os dois a conversar e a Ana Maria falou tanto da Madrinha, contou tantas coisas passadas, lembrou tantos factos da nossa vida, que aconteceu como se eu de repente descobrisse que tinha um buraco na alma. Um buraco sem ser ferida. Um buraco assim... olhe, Madrinha, como na platéia de um cinema esgotado quando um lugar fica vazio! Na minha alma havia esse vazio. Era a falta da Madrinha!

E eu, que tantas vezes quero falar para traduzir os meus pensamentos e não sou capaz, fui capaz de explicar à Ana Maria as minhas impressões, uma espécie de vergonha de não ter dado por nada mais cedo, todo entregue à santa vidinha em que por aí ando normalmente. E depois de desabafar perguntei-lhe ". Achas que a Madrinha gostava que eu lhe escrevesse" E ela sabe o que me respondeu? Isto "tu é que sabes se gostas de lhe escrever".

(doce e inteligente rapariguinha!)

Entretanto anoitecera. A Maria Rosinha já regressara a penates para comer e ir dormir. E nós voltámos também. Durante o jantar, não se falou senão da Madrinha, do Pedro, do Paulo, do casamento do Fernando Vasco, da Alicinha Fontemora (a propósito do casamento ele escreveu de Paris aos Pais a convidá-los para Padrinhos, o casamento é em Setembro) e das meninas Abegorim. Isto é, a nossa casa só cheirava a Lisboa, embora cheirasse a mar. Até a Laura veio meter a sua colherada. cheia de pena de não ir mas não pode, porque o curso de enfermagem, como a Madrinha naturalmente sabe, começa a ser dado em Setembro e ela vai viver no hospital, visto que o curso será dado em regimen de internato, pois têm ao mesmo tempo aulas práticas e teóricas - o Pai explicou que elas com a aprendizagem do serviço não só vão aprendendo a sério mas também colaboram, aliviando a falta de pessoal que é um problema e pagando assim as despesas dos estudos. A Mãe acha que a organização do Pai não pode ser melhor e não deve ser "cegueira de amor" porque há dias um jornal daí dava uma grande notícia acerca do hospital e elogiava tudo.

Mas voltando à Laura (eu sou um bocado baralhado a escrever, pois sou?) a única coisa que a conforma é a esperança de que a Madrinha venha ao casamento dela, em Fevereiro. Coitada, foi tão boa! É que o adiou logo que soube que nós íamos à Metrópole em Setembro. Por isso acho que merece uma grande festa e não pode haver uma grande festa na nossa casa sem a Madrinha presente.

E o Pedro? ...

Bem, Madrinha, tenho uma novidade para lhe dar ainda com reservas porque não tenho a certeza toda. Parece! O Pai acha que o curso de Medicina cá está muito bom e por isso é capaz de decidir que o Pedro venha continuar cá ao pé da gente. "

(nó na garganta. E o Paulo? Tem de ficar, por causa dos Pais, claro. E a Rosarinho? À espera do Pedro... Nunca nada inteiramente completo mesmo quando a vida se veste de coisas certas!)

E já que falo em estudos. Se for para diante o grande projecto da Universidade de Luanda (tão completa como as de aí) para mim também é Bom, pois continuo a pensar nas físicas e nas químicas para me decidir com certeza pelo curso de Farmácia. Sabe do que eu gostava, Madrinha? De vir um dia a ter um laboratório meu onde eu possa investigar fórmulas para medicamentos capazes de curar doenças que ainda matam muita gente, como o tal cancro. A Ana Maria já me prometeu ajuda, embora ainda não se haja pronunciado acerca da carreira que vai abraçar. Flutua um bocadinho... e todos nós desconfiamos que ela acabará por se dedicar inteiramente a escrever. Pelo menos foi isto que me disse há dias, ao referir-se ao seu futuro ao lado do Paulo. "Creio que as horas que me sobrarem de cuidar do Paulo, de casa e dos meus filhos, será todo para escrever". O Pai gostava que ela tirasse um curso superior, mas não vai obrigá-la. Não faz parte da maneira de ser dele forçar-nos. Aconselha-nos, mas entende que depois de grandes temos de viver à nossa maneira e não à maneira dos outros.

(claro - claro - claro)

Parei um bocadinho e voltei atrás para reler o que escrevi e ver se não havia muitos disparates na forma. Eu escrevo mal, não é como a Ana e como o Artur, portanto não há que exigir-me brilho. E mesmo com um português de trazer por casa estou contente comigo. Sabe porquê? Porque consegui explicar-me e isto para um macambúzio é muito Bom. Deve ser mesmo por eu ser macambúzio que desejo poder ganhar a vida num laboratório!

Há dias falei com um rapaz pouco mais velho do que eu que quer tirar um desses cursos modernos para "relações públicas". Até sinto calafrios à idéia de ser obrigado a falar com meio mundo e falar para convencer.

A Ana Maria é que às vezes comenta com muita piada "eu nem percebo, sendo tu tão bisonho, como tens tanta saída entre as raparigas..." E é que tenho mesmo, Madrinha! Mas não me entonteço com isso pois desconfio que não se trata de conquistas devidas aos meus encantos irresistíveis. Elas é que são desmioladas e se atiram aos rapazes como gato a bofe. Foi no fim da semana passada que de repente até me assustei quando percebi que estava a namorar quatro raparigas ao mesmo tempo! E olhe Madrinha que não andei atrás de nenhuma nem pedi namoro a nenhuma! Foram elas que declararam que me namoravam e pior! - sabiam umas das outras sem se importarem nada, pois qualquer delas dizia ser muito mais capaz de me prender do que as outras. A Ana, que sabe disto, riu-se e disse-me que era uma para cada refeição. Mas eu não acho graça, embora deixe andar porque não quero más famas, entende? "

(entendo)

Assusta-me pensar na minha futura mulher. Como é que, ao ver isto, hei-de acreditar que haja uma realmente digna do meu amor, da minha vida toda? Porque eu gostava de ser um marido como o meu Pai, mas para isso tenho de encontrar uma rapariga como a Ana ou como a minha Mãe. E onde ? A Ana diz que não seja pessimista, e lembra a Rosarinho do Pedro, e a Marta do Domingos, e a Cristina do Vic, e até a Inês do Artur. Mas haverá uma assim à minha espera?

Estas daqui tiram-me a vontade de acreditar!

Estas e outras! E não estou a falar à toa, Madrinha, Porque estão a acontecer coisas que até parecem mentiras. Olhe uma, que o Pai contou precisamente ontem à mesa, à Mãe. Um dos médicos admitidos recentemente no Hospital, um rapaz de 28 anos, casou antes de vir para cá, há meses. Namorava a pequena há oito anos e aquilo acho que era um grande amor. Tinham comprado um apartamento giro e ele, o marido, desejoso de fazer carreira a sério, não só para ser alguém mas também para se sentir como uma pessoa deve ser quando serve os outros, aplicava-se o mais possível no hospital e estava já a montar consultório, e o meu Pai diz que ele vai fazer nome porque é inteligente e consciente. Pois nem a Madrinha imagina as conseqüências disto, que qualquer pessoa sensata considera louvável e digno. A mulher dele, queixando-se de estar muito abandonada, porque o marido preferia a profissão à companhia dela, deixou-o e foi-se embora para a metrópole. Que amor, an ? Diante de uma coisa destas, qualquer rapaz tem de ter medo de vir a casar. Oito anos de namoro e menos de um ano de casamento por causa dele levar a vida a sério... Bolas! A Ana, quando ouviu a descrição dos factos, ficou tão indignada que eu só queria que a Madrinha estivesse presente para a admirar!... É claro que a Ana, quando casar, achará maneira de preencher as horas durante as quais o Paulo estiver a viver para a sua profissão. E fará do tempo de espera uma reserva de alegrias que tornará em autêntica festa a chegada dele todos os dias, sempre! E se calhar há outras como a Ana. Mas também há as que nem o diabo gostava que lhe caíssem em sorte.

Enfim, complicações em que a gente não pensa quando é catraio e me fazem ter séria pena de crescer. Até aqui só pensei- na obrigação de estudar e de não dar desgostos à minha família. Lá para diante por muito que as coisas dependam do que eu for, não dependem só de mim.

Tenho sido um rapaz feliz. Mas dar-me-à isto garantias de vir a ser um homem feliz?

As pessoas são muitas vezes um monte de contradições. Eu ralho com a Ana Maria porque ela escreve cartas que nunca mais acabam... e eu já vou na página 12... É um escândalo!... Mas soube-me tão bem ser capaz de lhe contar tudo isto!

E aqui termino.

Acabo de olhar novamente para o seu retrato ao lado do Fernando Vasco (está anunciada para breve a estreia aqui de um novo filme dele e também se anuncia um festival em que tomará parte, entre outros, o Vic Nusen). E quero acabar com uma recomendação: Não deixe nunca de ser bonita, não, Madrinha?... É que está tão bonita!

Um beijo do seu

Rumané

  1. S.

"Ele" deixou-me ler. Progressos notáveis a caminho de uma extroversão de que mesmo assim duvido... e escrevo este aditamento a propósito da sua beleza e para tranqüilizar o meu irmão: a nossa Madrinha nunca deixará de ser bonita, porque a sua beleza exterior é o retrato da beleza da sua alma. Por isso os anos não podem alterá-la. Almas como a sua não criam rugas nem se tornam flácidas!

Beijos da sua

Ana Maria

Ana Maria!

Ana Maria a sublinhar a carta deste menino que tem receio de crescer porque as histórias que a vida conta o intimidam. As histórias do que não devia acontecer. As histórias de que os protagonistas, se neles houvesse um resto de dignidade, se haviam de envergonhar!

Uma mulher que abandona o seu marido porque ele é um médico como a todos seria exigível que fossem (e a médico ou a motorista de praça ou a cavador de enxada há que requerer doação total no exercício da sua profissão, que todas são dignas quando bem cumpridas) não é uma mulher, é um ser abjecto, um corpo sem alma...

Sem alma. Ou com uma alma tão feia que por mais galante que o exterior se afigure não tardará em deixar ver que tudo é feio na criatura de alma feia.

Graças a Deus que há almas bonitas. Muito mais bonitas do que a minha, apesar do elogio da Ana. A sua própria alma. A alma da Ana Maria.

12 h. e 30 m.

- Minha senhora, vieram trazer esta encomenda. P'rá senhora fazer o favor de assinar este papel...

Papel timbrado da "Tipografia Mercedes"...

- Ah! ...

Assino na linha marcada com uma cruzita e enquanto a Emília sai levando o documento comprovativo de que recebi... desembrulho o grande pacote sobre as 12 páginas (13, aliás) da carta do Rumané com post-scriptum da Ana Maria. E da enorme folha de papel amarelado emerge...

SOU UMA RAPARIGA DO LICEU

O livro da Ana Maria. A alma da Ana Maria!

Está bonita, a capa. Sugestiva, embora estes olhos que nos encaram por cima de uma espécie de muro (será muro para transpor na leitura?) não sejam os olhos da Ana. Os olhos da Ana, de cor indefinida, que de manhã num dia me pareceram azuis, e à tarde verdes, e à noite castanhos doirados, e na semana seguinte eram cinzentos como nuvens de temporal. Olhos que mudam de cor segundo a influência dos sentimentos, não podem ser estes olhos escuros que em todos os livros espalhados diante de mim são iguais até à monotonia.

Mas que interessam afinal os olhos da capa? O que conta é a alma da Ana Maria a vibrar em cada página destes livros - do livro em que pego, o livro que folheio, a ler aqui, ali, além...

A ler, não. A reler. E a reencontrar a emoção da primeira leitura fundida num encantamento que se diria resultar do encontro com o inédito.

Aqui, ali... além...

Apesar de todas as minhas boas intenções, debalde procuro, há dois dias, tempo para me concentrar, para me dar aos meus pensamentos, concretizando-os no papel.

A minha casa está um tanto de pernas para o ar. Qualquer coisa não corre bem dentro do clima a que nos habituámos e que nos dá uma calma propicia ao desenvolvimento natural das nossas ocupações. E não chego a perceber porquê!...

Levantamo-nos às horas do costume. Comemos normalmente. Tudo se passa dentro daquela seqüência a que a Mãe preside, atenta aos mais pequenos pormenores.

A presença da Arabela, sob o aspecto material da vida...

O coração pesa-me, doi-me.

(a Arabela ? Que longe tudo isso Teria o Pedro voltado a saber dela?)

vai! ...

Chego à paragem do autocarro com as pernas a tremerem-me.

Pressinto que o Paulo me vai dizer qualquer coisa de grave a respeito do meu irmão.

Óh, Pedro, Pedro! Como podes tu, - tu! - ser capaz de fazer coisas que não deves!

O Paulo está à minha espera. Trocamos um aperto de mão, rápido, e ficamos calados, um ao lado do outro, à espera do autocarro. Temos sorte. Não demora, é dos de dois andares e em cima está vazio.

Subimos e instalamo-nos, bem à frente. O Paulo, que percebe a minha angústia, entra imediatamente no assunto.

(no assunto, um assunto que só não atingiu a extrema gravidade porque ele, o Pedro, era um rapaz às direitas. É.)

Esta noite não me deitei à hora costumada. Sem a Mãe em casa - e que estranha sensação esta de não ter a Mãe em casa pela primeira vez desde que me conheço (não me lembro nada do nascimento do Rumané, claro)! - que estranha e que desagradável! - o ar espantado com que eu e o Pai nos achamos, sentindo o vazio! - esperei pelo Paizinho, como logo percebi que era o meu dever absolutamente lógico.

A Laura ainda tentou aconselhar-me a ir dormir por causa do Liceu, mas nem insistiu, de tal forma a encarei, segura da minha determinação.

O Rumané esse jantou e foi para a cama. A única manifestação que teve a demonstrar-me que também não ficara insensível ao estado anormal da situação da nossa casa, foi não requerer o direito de ver televisão até aquele fatal anúncio com que engalfinham todos os menores de doze anos...

O Paizinho chegou era meia-noite e meia hora. Não mostrou estranheza por me encontrar a pé.

E das páginas que me trazem tanto do que foi solta-se num bercito de ferro pintado de branco com lençóis e colcha cor-de-rosa a facezinha redonda de uma menina que iria chamar-se Maria Rosa e trazer para junto do leito da Mãe o filho que andava transviado. É como se estivesse a ver, a contemplar agora mesmo, a recém-nascida e o primogênito...

- Minha Senhora... a menina Teresa e os avós perguntam pela Senhora. Posso mandar entrar?

- Ah, pois com certeza!

Diante de mim, Eugênio Torredalto, a mulher e a neta.

Maria Alice é que explica a visita inesperada às.. 13 e 10.

- íamos perto daqui quando decidimos fazer um desvio para tentar levá-la a almoçar connosco.

- E se eu não estivesse?

- Corríamos o risco! E a Teresa:

- Não chegou a ser risco, porque quando subimos já tínhamos a certeza de a encontrar, Madrinha!

- Porquê?

- Vi o carrito na placa.

- Oh, Teresa? ... Eu às vezes ando a pé... E também acontece darem-me boleia!

- Mas felizmente que isso hoje não aconteceu! A réplica predispõe-me a aceitar o convite que os trouxe até mim.

- Pois vou convosco, se me dão vinte minutos para me arranjar...

(escandalosamente, ainda me encontro de roupão...)

- Meia-hora! - concede Eugênio Torredalto. Que à Maria Alice ofereceria o dobro...

- Agradecida!

E deixo-os na salinha.

Tim.

Muito gentis, os meus dois relógios velhos-novos (qualquer dia já serão ambos só velhos-velhos ao meu lado, perdida com o tempo a mocidade) informam-me que ainda disponho de 15 minutos.

Não me perco em divagações e acabada de retocar (nunca deixe de ser bonita, não, Madrinha?) enfio o vestido azul com muitas cores pequeninas a animá-lo que veio ontem da modista. - à minha senhora não leva casaco?

- Levo, sim, Emília.

(creio que os medicamentos que ela sempre se resolveu a tomar estão a exercer resultados benéficos pois as crises de intratabilidade não se têm verificado)

- Qual deles? O cinzento ou o beije?

- Talvez o cinzento fique melhor.

Não fica mal. Nem bem, Remedeia enquanto a D. Eugênia não me acaba o azul-azul do tom do fundo desta malha de seda que me decora.

E depois de ver no meu reloginho todo branco (branco de platina, esmalte e brilhantes) que ainda poupei três minutos no prazo marcado, apresento-me aos meus amigos.

- Pronto, cá estou!

E paro, a olhá-los primeiro admirada, depois emocionada.

Estão todos três sentados e cada um a ler... o livro da Ana!

Que a Teresa se lhe prenda desde a primeira página, não estranho. Mas a Maria Alice... e o Eugênio!... E é o Eugênio quem, fechando o volume, indaga:

- A pequena escreve mesmo assim?

- Mesmo assim!

- Há aqui uma descrição do Dr. Macedo que pelo que dele apreendi me parece exacta.

- Tudo o que a Ana conta é verdadeiro.

- Deve ser uma rapariga excepcional! - observa a Maria Alice.

- É uma rapariga como todas deviam ser: certa! Eugênio está de pé.

- Vamos indo?

A mulher aquiesce.

- São horas. Teresinha? ...

Teresa baixa o livro, encara-me como se estivesse a regressar de muito longe e balbucia:

- Madrinha... posso levá-lo para continuar?

- Estás interessada?

- Estou fascinada!

- vou transmitir à Ana Maria essa tua frase'.

- e acrescento. - Leva o livro.

Leva-o ela e levo eu um exemplar para a avó Teresa a quem o entregarei logo. Tenho de ir visitá-la!

O Pedro e o Paulo recebê-los-ão à noite.

Os da Ana devem ir a caminho, de avião. Estava combinado com o editor, não deixou de fazê-lo, estou convencida. Em todo o caso telefonar-lhe-ei para ter a certeza de que em breve a Ana apertará ao peito o seu primeiro livro.

- Como eu apertei já lá vão tantos anos o meu Canto da Mocidade!

- Foi o seu primeiro livro, pois foi, Madrinha?

- Foi, Teresa!

- Acho que o vi um dia lá em casa, na estante da minha tia Becas.

- E não o leste?

- Era muito pequenita ainda! Lia mal... Mas recordo-me de ter soletrado o título! Depois... nunca mais o vi. Ou melhor - nunca me lembrei de procurá-lo.

- É natural!

- A Madrinha não tem nenhum que me empreste?

- Tenho, mas não deve já interessar-te.

- Porquê?

- Porque são contos para crianças.

- Escritos por uma criança... que era muito garota nessa altura! -comenta Maria Alice.

- Sim... foram todos escritos entre os 14 e os 17 anos. Quando propuz a um editor a sua edição em livro (tinham sido publicados antes numa revista juvenil) e recebi a resposta afirmativa... lembro-me que desatei aos pulos no meio da casa, primeiro a rir... e depois a chorar de tal modo que a minha Mãe ao acorrer para saber o que se passava imaginava que me tinha sucedido algum mal! É engraçado! Nunca mais experimentei nada semelhante a essa espantosa alegria.

- Compreende-se. Era o encontro com a realidade da esperança!

- Pois!

E estamos na sobremesa - uma deliciosa salada de pêssegos no fim de um delicioso almoço, às 14 e 55.

Sobre a colher que levo à boca poisa, leve como um toque de creme de natas (chantilly), a frase de Eugênio Torredalto "era o encontro com a realidade da esperança".

O meu pois está a ecoar no sorriso com que aguardo a colher a transbordar de doçura. Que continua cheia porque me colhe de chofre a frase com que o antigo industrial marca a hora. 14 e 56.

- A propósito de realidades e de esperanças, minha amiga, desejava um esclarecimento seu... que ali a cachopita não consegue explicar-se de modo que eu a entenda. - A cachopita dirige-me um rápido sinal de cumplicidade cujo alcance ainda não abarco.

Ontem telefonou lá para o Hotel à procura dela um rapaz... acho que um tal João Alfredo... (aahhü!) - e do bastante que conversaram o que mais me chamou a atenção foi a insistência com que ouvia a Teresa referir-se a uma tal ilha dos Pêssegos...

(agora já compreendo o sinal da Teresinha)

- Ora eu lembro-me de ouvir a Maria Helena salientar a estranha passagem de uma carta que a minha amiga lhe escreveu e na qual aludia a uma ilha... acho que dos Pêssegos, precisamente, uma ilha acerca da qual não lhe dizia nada de concreto por ela não se encontrar em estado de desejá-la... Ou não seria assim?

Não posso neste momento repetir as palavras exactas com que evoquei a Ilha dos Pêssegos nessa carta de que Eugênio Torredalto assim me faz lembrar. Mas sei que o sentido nela contido era precisamente o que ressalta do que ele evoca.

E encaro-o.

- Era assim.

- Interesso-me pelo caso, que já antes me fizera bastante confusão, pois nunca me constou que houvesse qualquer ilha com semelhante nome. No entanto, a geografia nunca foi o meu forte e além disso aburdam nomes estranhos de terras de cuja existência nós nunca demos fé... E ante o entusiasmo evidente com que a Teresa se referiu a essa Ilha, decidi pedir-lhe a si informações, pois não se me dava passar umas férias num local por certo encantador como esse deve ser e...

(Eugênio Torredalto a desejar a Ilha dos Pêssegos!) Interrompo-o:

- E porque é que você chegou à conclusão de que a Ilha dos Pêssegos deve ser um local encantador?

- Pelas coisas que ouvi à Teresa, justamente!... Ela falou de um lago com peixes amarelos... e de caminhos verdes que parecem levar ao céu... e de sítios inteiramente cor-de-rosa onde parece ter-se refugiado toda a paz da terra...

- Mas... de concreto-concreto, que lhe disse a Teresa?

(tenho poisada no prato a minha colher da qual continua a subir para mim o perfume da frase de Torredalto "a realidade da esperança... ")

- De concreto-concreto... só percebi isto: a ilha dos Pêssegos vai ser comprada por um grupo que deseja construir nela um mundo novo, um mundo puro, um mundo Bom... Quando lhe perguntei onde ficava, respondeu-me que algures no mar dos Açores. Como não me lembrava de qualquer ilha com esse nome lá no arquipélago, admiti que podia estar esquecido e fui consultar uma enciclopédia mas nada achei que confirmasse a existência de semelhante ilha.

(a realidade da esperança)

- Meu caro amigo, nem sei que responder-lhe. Porque essa ilha maravilhosa é como certos palácios encantados que a uns se mostram e de outros se escondem. Para mim, para a Teresa, para o João Alfredo de Ribatorpes, a ilha é uma realidade a emergir das nossas esperanças... Que importa que não venha nos mapas, se nós acreditamos nela, com toda a força do nosso poder de sonhar? Desejamos a ilha dos Pêssegos?... Tornêmo-nos dignos dela. E a ilha surgirá do mar.

Maria Alice contempla-me, imóvel. A mão da Teresa vem poisar na minha, ao lado da salada de pêssegos.

Torredalto abana a cabeça:

- Onde começa a verdade e acaba a fantasia, minha amiga?

- Porque não pergunta ao contrário? Onde começa a fantasia e acaba a verdade?

E ele, num suspiro:

- Está a falar a mesma linguagem que a Teresa usou. Não consigo entendê-la.

- Não perca a esperança da realidade, Torredalto! Pode muito bem acontecer que você ainda vá visitar a sua neta à Ilha dos Pêssegos...

Pêssegos. Tão bons nesta salada que acabo de comer às 15 e 16. Horas de nos retirarmos. Todos. Eles para irem assinalar o andar que já escolheram (contaram-mo durante a refeição) perto do mar, na linha de Cascais. Eu para estar um bocadinho junto da Teresa de Macedo. A Teresinha para:

- ... ler o livro da Ana!...

O livro da Ana!... O livro da minha Ana!...

Às 16 em ponto, vejo-o entre as mãos da avó Teresa que o passa para as mãos do marido. E ambos, emocionados, repetem:

- O livro da Ana Maria!

O livro da Ana, a visita adorada, o companheiro estremecido.

A avó começa a ler. O avô, sentado na cadeira ao lado, lê com ela. Devagarinho, página a página, aqui com um sorriso, acolá com uma lágrima furtiva, sinto-os a isolarem-se da minha presença, a entrarem para esse passado presente em tudo quanto descreve a sua querida menina.

São 16 e 40. Posso retirar-me descansada que os não deixo sós.

Tenho o resto da tarde livre. vou para casa trabalhar ou aproveito para fazer umas compras?

Chego à rua ainda hesitante. Paro sem saber se volto à esquerda se à direita.

Do lado esquerdo acena-me, avançando para mim, a amiga de infância da Teresa de Macedo.

Alegramo-nos ambas com as melhoras que se acentuam, D. Ângela Custódia Teixeira e eu. E admiramos juntas a dedicação extraordinária de Casimira Abegorim dando as noites dos seus dias numa obra de caridade pura. Como admiramos os cuidados permanentes de quantos se têm aplicado em não permitir que Teresa de Macedo e o marido possam sofrer a ausência dos entes queridos.

É nas horas más que se conhecem os amigos.

Nas horas da adversidade.

Horas. 16 e 55.

Não vale a pena ir para casa trabalhar. Chega não chega, começa não começa, aproxima-se o telefonema do Pedro. Ou do Paulo... Sei que, alterada em relação a tanto, não vou escrever nada que preste. E resolvo-me. Sigo para a Baixa. De táxi.

Um pavor, o trânsito! Vinte minutos para um escasso percurso.

As longas filas que passam, as longas filas que se formam, que nunca se esgotam porque ao passarem umas já as outras se multiplicam... E isto em todos os cruzamentos...

O tempo de que disponho já é pouco, mas chega para comprar dois pares de sapatos, uma carteira, umas luvas e um prato de casquinha que me andava a tentar.

E nisto:

- Oh, que surpresa!...

Diante de mim, encantadas, Teresa Mafalda e sua filha Mirita.

- A Mirita anda a preparar a lista do casamento! De acordo com os usos modernos, vantajosos para

os noivos. Evitam-se as repetições, dantes tão vulgares (a minha avó contava que juntara oito escovas de fato com encaixes de prata e dez queijeiras em cristal!) e ficam eles possuidores do que foi motivo de muitos sonhos. E a quem gasta, tanto faz... Ou antes - faz, porque sabe de antemão que vai dar uma alegria com o presente escolhido.

E admiro, a pedido da rapariguinha, radiosa e radiante, os muitos objectos seleccionados.

- De todos os preços! - esclarece Teresa Mafalda.

- Não se podem forçar as pessoas a comprar coisas caras! De mais a mais o casamento é bastante íntimo.

Limitámos os convites, como não podia deixar de ser, visto que a nossa casa embora seja grande (grande para os tempos que correm!) não comporta muita gente.

A Mirita preenche o meu entusiasmo. Tudo está certo e é de bom gosto.

A balança da cozinha, os copos de cristal ("podem dar-me dois ou três copos de qualquer tamanho e na colaboração consigo o serviço! "), os pratos de cristal, os pyrex, um jogo de formas para bolos, um relógio de cozinha, três frascos num estojo para bebidas, um balde para gelo...

À sucapa, enquanto ela se entusiasma com uma jarra de porcelana de que Teresa Mafalda discorda, peço à empregada atenciosa que me reserve doze copos do serviço. Os de água ou os de vinho? Os de água, pode ser.

Sou quase apanhada, quando entrego o sinal da reserva (já não me chega o dinheiro para pagar a importância total) porque a Mirita me faz árbitro da pendência. Tenho de ser sincera - também não gosto muito da jarra.

Ela faz beicinho e desiste. Teresa Mafalda, satisfeita, mostra vontade de ouvir a minha opinião acerca de algumas dúvidas suscitadas pela escolha do enxoval. Ao fim da tarde seguinte (amanhã) uma bordadora vai lá a casa para tomar conta da maior parte dos lençóis (uma porção de peças de pano compradas pela cunhada) e de umas tantas toalhas de mesa. E convida-me para ir jantar. Mirita pede-mo com os olhos e o sorriso.

- Pois vou com todo o prazer! Todo!

E às 19 e 55 entro em casa.

- Emília, os meninos já falaram?

- Falou o menino João Alfredo, só.

Os meninos (eles) não falaram portanto ainda. É cedo.

Acaba o dia.

Começa a noite.

É tarde. 22. E nada de me darem notícias. Que se passará?

Trrim-trrim...

Não, não. é o telefone, é a porta da rua. O Paulo a entrar.

- Vamos, Madrinha? Estranho:

- Porque é que não telefonaram como ficou aprazado de manhã?

- Porque o meu Pai chegou a casa para jantar há pouco mais de uma hora e de tal maneira angustiado que nos esquecemos de tudo a ouvi-lo contar o que se passara no escritório dele.

Aguardo, para entender.

- Imagine a Madrinha que um cliente morreu no gabinete do meu Pai, às quatro da tarde.

- O quê?

- Não sei se por acaso ouviu falar num Tito Branco de quem o Dr. Álvaro Abegorim era amigo?...

Tito Branco?

A minha memória, agitada, funciona. Tito Branco, Tito Branco, TITO BRANCO... ? ? ? ? ?

- Ah, sim, creio que me recordo Era o Pai de um rapaz que foi preso por causa de um desfalque... O Pedro contou-me.

- Exactamente, Madrinha. Era.

- An?

- ERA.

Recuso-me a aceitar a hipótese que ele assim me oferece.

- Não!

- Sim, Madrinha. Teve um colapso quando ventilava com o meu Pai o caso do filho... e pronto!

- Chama-se a isso morrer de dor! - balbucio, atarantada.

- Pode calcular como o meu Pai ficou! Médico, óbito reconhecido, bombeiros para transportar o cadáver... E avisar a viúva! Enfim, uma tragédia!

Compreendo perfeitamente que não tenham podido organizar nada para a noite. O caso, grave, de Catarina de Ribatorpes, torna-se mesquinho ante a morte de um homem... um homem vitimado pelo desgosto. Desgosto que me parece ver surgir das mãos de um filho como arma parricida.

Mas... também Catarina de Ribatorpes ergue nas mãos uma arma que pode ser fatal...

Catarina!...

E penso que não temos tempo a perder.

- Para quando ficou o encontro que devia ser hoje, Paulo?

- Mas o encontro é agora, Madrinha!

- Agora?

- O assunto não pode ser protelado.

Por mais que nos magoem, temos de encarar as realidades como um marquês de Pombal. É preciso enterrar os mortos e cuidar dos vivos!

- Sendo assim?

- O Pedro foi buscar a Catarina e eu vim para aqui. Desculpe não a haver prevenido mas naquela perturbação admiti que estivesse à nossa espera. Não estava?

- Estava, com efeito.

- Então, vamos?

- Vamos!

Visto o casaco a correr. A correr pego em dois livros da Ana. O Paulo já dentro do elevador tem um ar tão fechado que não acho o momento próprio para lhe depor nas mãos a presença da noiva - da noiva a viver dentro desta obra que ele tem esperado ansiosamente apesar de a conhecer quase toda não só no que diz (pelas descrições do Pedro) mas também pelo que contem...

De qualquer maneira quando o livro surge tudo é diferente. Como se as nossas mãos pegassem nas idéias para as trazer ao colo. Apertadas ao peito como eu tenho os dois exemplares do livro da Ana e pelos quais o Paulo, absorvido pelas preocupações, não dá.

Espero que a ocasião surja. Porque isto pode esperar, já nada destrói o que de promessa passou a certeza.

E depois de me instalar no carrinho minúsculo do Paulo (mais espaçoso do que eu supunha!) os livros discretamente colocados no assento de trás, pergunto:

- Onde vai realizar-se o encontro?

- No escritório do meu Pai, precisamente. Às 22 e 40.

No gabinete onde morreu um homem. com o desgosto a ferir-lhe o coração.

O Paulo, de pé, parece muito interessado em ver os títulos impressos a dourado nas lombadas dos tratados de direito e sociologia e psicologia que enchem a grande estante de mogno.

O Henrique, a testa ampla encurtada pelas rugas, consulta documentos, na secretária.

Sentada numa cadeira de espaldar (a poltrona não me atrai e nenhum dos homens me convidou a instalar-me onde a morte esteve há bocado) penso no drama que ali ocorreu. Um drama entre os muitos que este gabinete de advogado conhece. Um dia ele contou-me vários casos que...

- Paulo!

- Meu Pai?

- São onze horas". Achas que o Pedro consegue trazer a pequena Ribatorpes?

- Consegue, Pai, porque ela não sabe para onde vem.

Não sabe. Se soubesse não teria subido a escada íngreme que dá acesso a este terceiro andar por dentro tão luxuosamente arranjado (sofreu grandes obras) que não condiz com o exterior feio do prédio.

Não sabia e o olhar com que nos mira traduz mais espanto do que raiva.

De facto, como pôde ela... ?

- Sim, como pude acreditar que não fosses apenas um traidor?

O insulto desliza pela epiderme do Pedro e cai-lhe aos pés em poça de lama.

- Porquinho da índia, manejado como um fantoche!...

Observo o que me defronta como se precisasse de o desenhar de cor.

O Paulo, ao lado da secretária do Pai, brinca com a chave do automóvel sem desfitar Catarina que permanece especada à entrada da porta vedada a qualquer recuo pela silhueta do Pedro.

O Henrique, de braços cruzados, hirto, mira-a dos pés à cabeça. Depois encolhe os ombros e começa a falar.

- A menina tem a certeza de que viria ao meu escritório sem ser trazida por um inofensivo ardil?

- O ardil não é inofensivo, desde que me confirma a impossibilidade de acreditar em quem quer que seja.

(estaria ela disposta a acreditar no Pedro?)

- E não entendo a necessidade de me encurralarem aqui dentro!

- Preciso de falar consigo.

- Estou no meu direito de não querer ouvi-lo. Cortei com tudo ao abandonar o lado em que os senhores estão colocados. Quando a minha Mãe naquela noite me mandou sair de casa, decidi que havia de vingar-me de todos...

- Acha que tira grandes resultados da vingança que desaba em conseqüências sobre si?

- Isso é comigo e escusam de pretender afastar-me da vida que faço.

- Oiça, menina... -e a voz serena do advogado prepara a tirada que pressinto importante. - Há muito que dizer ante as suas resoluções. À frente de todas, uma constatação. O Pedro Ferreira de Macedo pertence ao nosso lado, a este lado de gente que se respeita a si própria agindo de acordo com regras moral e socialmente certas... lado com o qual a menina diz haver cortado. Ora não o fez tão completamente que não seguisse o Pedro. Porquê?

O pasmo invade-me. Catarina não responde. Morde os lábios, dá um passo atrás, esbarra no Pedro cujas mãos a detêm poisando-lhe nos ombros. Ela torce-se... mas depois como que cede à pressão daquelas mãos esguias e fortes que a dominam e não largam. Fica imóvel, apoiada ao rapaz.

De repente, sucede como se a luz de um projector me mostrasse Catarina por dentro. A alma de Catarina.

E eu, que detestei esta rapariga, que continuo a detestá-la, sinto uma vontade imensa de lhe abrir os braços, de lhe oferecer apoio, de...

Henrique recomeça:

- Não quer responder-me, não é verdade? Porque reconhece neste momento que as suas certezas são gigantes com pernas bambas... prestes a caírem, as certezas enormes, todas enrodilhadas na sua inutilidade. Bom, mas adiante, que não foi para isso que se tornou necessário trazê-la à minha presença, por advogado dos assuntos de sua Mãe e de seu Irmão. A Catarina é herdeira de uma parte da fortuna Ribatorpes e precisamos de regularizar os seus direitos, visto que não tarda em atingir a maioridade o que lhe confere a posse dos seus bens sem que haja interveniência de tutores. Creio que não vale a pena, por um mês e pouco. O seu Irmão e a sua Mãe, para além da entrega dos dinheiros em depósito bancário que há a efectuar, desejam saber quais as suas preferências nos lotes do que é divisível e cuja relação tenho neste "dossier"...

Catarina dá dois passos em frente. E mais dois e mais dois. Pára junto da secretária de Henrique de Lemos.

O Paulo deixou de brincar com a chave e encara-a. O Pedro avança e fica a meio do gabinete, diante de mim.

- Doutor... -articula ela, como se lhe custasse falar, - por enquanto não me interessa nada do que me pertence. Quando eu quiser... apareço!

- Mas não pode ser, Catarina! Temos de regularizar tudo... e depois a menina fica independente e que utilize ou não os seus bens isso já não interessa a ninguém! Deixe-me contudo perguntar-lhe se não lhe parece viável viver à sua maneira... gastando aquilo que é seu?

- Faz parte do meu plano andar aos caídos. E como não me falta quem me dê dinheiro, deixo-me estar como estou. E de resto as nossas despesas não são grandes. Usamos as mesmas calças e as mesmas camisolas durante meses seguidos. Não vamos aos cabeleireiros nem nos preocupamos com as malhas nas meias, porque não usamos meias. Nesta liberdade as ambições perdem muito do seu sentido, pelo menos as ambições das pessoas alinhadas em preconceitos. As minhas são diferentes e não as cedo por preço nenhum! E depois disto... creio que posso ir-me embora.

Estou de pé ao lado de Catarina. Na disposição firme de a defender atacando-a.

- Catarina... quando saiste de casa dos teus Pais, naquela noite, precisavas de dinheiro. Emprestei-te um conto e oitocentos. Já há dias to pedi... porque tu és rica e eu não. Tu podes não precisar de dinheiro para te vestires e para ires ao cabeleireiro, mas eu preciso. Tu não trabalhas e eu trabalho. Tu estás habituada a aceitar esmolas e eu não. Por isso e diante de testemunhas volto a dizer-te que necessito dessa importância. Agradeço-te que ma pagues.

Ela baixa o rosto para o peito magro, nitidamente hesitante. Depois murmura:

- Não trago nada comigo.

- Posso mandar receber a tua casa?

Ela permanece imóvel um momento. Imóvel e silenciosa.

Nós esperamos.

De súbito, o Pedro coloca-se ao lado dela e diz-lhe:

- Na tua liberdade não cabem conselhos, bem sei. Mas acho que em vez de fazeres mal aos outros estás a fazer mal só a ti. Não percebo qual o gozo da miséria em que vives. Podes fazer o que te apetece com dinheiro teu para gastares...

E eu, num impulso:

- Não penses, Catarina, que a tua conduta detém os passos do teu irmão a dirigir-se para um caminho certo. Nem que impede a tua Mãe de vir a ser feliz, pelo contrário. A solidão em que se achou determinou a aceitação de uma vida nova, uma vida maravilhosa. Naquela grande casa onde contigo tudo era errado, estão a começar magníficas coisas certas.

E os olhos de Catarina estão agora erguidos para os meus, numa estupefacção que é incredulidade. Ou impossiblidade de entender.

- Naquela grande casa, Catarina, onde tu tinhas tudo e nada querias, vão viver raparigas que nada têm e desejam alguma coisa. Desejam, acima de tudo, a Mãe que deixaste livre para se dar em ternura e amor às que a rodearão da alegria de se sentir necessária na vida.

E ela, vaga ainda:

- Ah, bem... temos então a casa transformada em pensionato?

- Empregaste um tempo de verbo errado, Catarina. Tu não tens nada. Tem a tua Mãe. O palacete Ribatorpes transformado na sede de uma Fundação.

Um silêncio cortado pelo buzinar de um automóvel que passa. com certeza a transportar algum ferido ou doente em estado grave.

Lembro-me do homem que aqui morreu hoje. Assassinado pelo desgosto.

Henrique de Lemos põe-se de pé.

- Bom... creio que nada mais temos a dizer, por agora. A sua atitude, Catarina, criará embaraços perfeitamente inúteis e sem quaisquer vantagens para ninguém. Entretanto, pense... pense, se for capaz. E no caso de mudar de idéias... já sabe onde há-de dirigir-se.

Catarina atira num gesto rápido os longos cabelos escorridos para trás - gesto brusco com que marca qualquer modificação.

- Não preciso de pensar. Estou disposta a aceitar o que me pertence. Tenho de pagar com juros o que devo a essa aí...

Num repente o Pedro deita-lhe a mão a um braço.

- Catarina... não!

Catarina desprende-se com violência.

- Não se pode tocar na Madrinha do menino, pois não?

- Não!

Ela suspira. É verdade, sim! Suspira tão profundamente que estremece. E depois encolhe os ombros, recuando. Mas pára, e para Henrique de Lemos diz:

- Quando tiver necessidade de contactar comigo, já sabe por este - (espeta o indicador para o Pedro) - onde eu moro.

Depois volta-se para o Pedro.

- Adeus.

O Pedro sente-se na obrigação de ser atencioso.

- vou levar-te.

- Não vais, porque eu não quero. Nem nunca mais quero ver-te, ouves? Nunca mais!...

Não posso jurar que este nunca mais preceda uma crise de choro. Não posso jurar mas estou convencida de que a frase já soou dentro de lágrimas.

A verificação fica por fazer, a certeza por ter. Catarina já se foi embora, mais uma vez a perder-se na noite. Catarina, a rapariga cheia de absurdos. Tão cheia de absurdos que...

Perceberá o Pedro o que se me afigura incrível e autêntico? Percebê-lo-ão o Henrique, que de cabeça baixa fecha o dossier do caso Ribatorpes e o arrecada numa gaveta, e o Paulo que acende um cigarro com ar abstracto?

Catarina afundar-se-à de vez ou encontrará um dia a redenção através de um amor que venha a tornar-se sofrimento?

Porque Catarina está apaixonada pelo Pedro! Pelo Pedro da Rosarinho. Pelo Pedro que talvez pudesse salvá-la mas que nunca fará mais por ela do que hoje fez - dar-lhe uma ilusão com desígnios que nada têm a ver com as esperanças dela. Sim, porque Catarina teve esperanças.

Principiaria hoje para ela a caminhada numa direcção nova?

Até onde irá Catarina?

Dias de nada, vésperas de muito.

Dias de muito, vésperas de nada.

Hoje foi um dia imensamente cheio. Um dia. a transbordar.

Tim - tim...

Os meus relógios trazem-me à realidade, cantando a par as duas da madrugada. É que já não estou no dia cheio. Estou dentro de um novo dia. Como irá ele ser?

Não posso adivinhar e não devo deixar que os meus pensamentos me cansem mais.

Boa noite, vida. Logo continuamos.

Até às sete badaladas nos meus relógios sem cansaço apesar da idade (que bonito exemplo, tão velhos o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão e sempre sempre a trabalharem sem acharem excessiva a sua obrigação) um dia sem nada de especial a marcá-lo se eu não admitir imodestamente que valeu a pena acrescentar mais umas tantas páginas ao meu novo livro. Se eu não achar que foram momentos válidos esses durante os quais dei ordens à Emília que teve de ir ao mercado fazer compras, e telefonei para saber da avó Teresa (melhorzinha, graças a Deus!), louca com o livro da neta. Como louco está o Paulo que de manhãzinha ao entrar no carro encontrou os dois exemplares que me esqueci de dar-lhe. Ele passou por cá (subiu e desceu) a testemunhar-me o seu agradecimento pela surpresa feita de júbilo. O Pedro, a meio da tarde, chamou-me ao telefone para se referir ao livro da irmã de cuja apresentação gostou deveras - o conteúdo conhece-o de sobra! E disse-me que o Paulo nem sequer pensou em estudar para o exame que tem daqui a dias enquanto não chegou à última página. E quando chegou à última página parece que foi preciso o Pedro impedi-lo de recomeçar tudo outra vez...

Lembrá-lo, faz-me sorrir.

A sorrir me preparo para ir jantar a casa dos Abegorins. A sorrir decido levar um exemplar do livro da Ana de presente à Rosarinho. Ou antes, a todas elas, às meninas do andar de cima do prédio onde a Ana cresceu, onde a Ana escreveu "Sou uma rapariga do liceu".

Dentro do elevador. Fecho as portas e carrego no botãozito que o põe em marcha. Um esticão, um ronco... Bbrrbrbrnrrrbrbrrbrr... Tchique!

Abro as portas do elevador. Fecho as portas do elevador. E de dedo na campainha da porta oiço a estridência lá dentro do meu repenicado Trim.

Pacientemente, espero. Demoram a abrir. Talvez não tenham ouvido! Repito o toque. Trim-trim-trim-trim...

Um grande silêncio depois. Um silêncio estranho para lá desta porta que devia abrir-se para me dar entrada no lar que me aguarda.

Ao longe (de longe!) vem música.

E então ergo os olhos. Lá para cima, há caminho de elevador. Lá para cima. De onde vem a música...

Invade-me uma estranha sensação. Sei que parei aqui porque realizei um gesto antigo. Não estou no quarto andar, estou no segundo. A tocar à porta do lar sem família da família Macedo.

- O Pedro vem tomar o café connosco, prometeu-me! Não podia vir jantar, anda aflito por causa de um exame...

(O Pedro aflito... é o que se chama força de expressão...)

Rodeia-me, absorve-me, a alegria contagiosa das quatro raparigas. Das cinco, aliás, que está presente a Alicinha Fontemora, supremamente bela e elegante na sua frialdade branca e loira que se anima ao falar do casamento em Setembro.

(ai Setembro!...)

A animação dela perde-se um tanto no muito que todas querem dizer-me, indiferentes aos protestos de Teresa Mafalda "não macem a nossa amiga".

Não me maçam nada, Jesus! Tornam-me feliz!

Escuto-as e na acumulação dos assuntos consigo situá-los sem os baralhar, enquanto Casimira Abegorim, a tia Casimira, ri de me ver transformada em esteio de cacho. Estou na verdade sentada no sofá com as cinco apinhadas à minha volta. Cinco, que a Alicinha colabora. A Alicinha que me olha como nunca olhou - e admito que por influência do muito que o Fernando Vasco (Jacques Bertrand) lhe deve ter dito do seu afecto por mim.

A Sofia (a criada que as ajudou a criar) entra com os aperitivos e parece admirada com o espectáculo invulgar decerto - as suas meninas a portarem-se como se fossem catraias ignorantes do que sejam cerimônias quando se trata de mostrar que gostam de alguém!...

Teresa Mafalda serve-me o que aceito: um gin tônico. As pequenas querem vermute, todas. com gelo e limão.

E enquanto esperamos que chegue o dono da casa (Teresa Mafalda já acha estranha a demora), vou retendo o que oiço.

A Rita diz-me que o Antônio Fontemora prometeu mandar-lhe uns versos acabados de compor e pergunta-me se depois quero lê-los. Quero!

A Lili revela-me que o Dr. Abegorim começou a simpatizar com o Júlio Matinha, cujas qualidades incontestáveis vencem as barreiras que ele havia erguido contra o futuro genro tão humilde como bom rapaz.

A Mirita lamenta que eu haja chegado tarde para a ajudar a escolher os bordados para os lençóis e para as toalhas de mesa. (Meu Deus, esqueci-me completamente!) Entretanto pede à Mãe que me mostre o que a tia Casimira hoje lhe ofereceu - uma maravilhosa toalha de renda de Bruxelas.

- Loucuras da minha cunhada! - observa Teresa Mafalda. - Para além de tudo ainda se desfaz em presentes...

A loucura é um deslumbramento. Compreendo que Casimira não haja resistido a satisfazer o que agora é enlevo e há pouco devia ter sido cobiça no olhar da noivinha...

Teresa Mafalda senta-se ao meu lado (e é quando percebo que a Rosarinho se sumiu!) e refere-se ao casamento da filha. Inicialmente desejara uma grande festa...

- O meu vai ser uma grande festa! - interfere a Alicinha.

- mas depois reconheci que na verdade não temos situação de fortuna para esbanjar dinheiro. São realmente luxos que podem dispensar-se. A felicidade não precisa deles, é bonita só por si, sem enfeites, e então acordámos num almoço feito em casa para o qual, evidentemente, vou contratar uma cozinheira, destas que são excepcionais e trabalham a dias... com a Sofia e duas mulheres a ajudar, tendo método, as coisas fazem-se com certeza! Para o serviço de fora, as minhas amigas emprestam-me as suas serviçais. A Ana Margarida cede-me a Berta e o Nicolau...

E a Mirita, de súbito:

- Ai... vou mostrar-lhe o presente que me mandou a senhora condessa.

Enquanto espero, oiço Teresa Mafalda inquietar-se mais com o atraso do marido. Costuma chegar cedo... e são quase nove horas!

Mirita regressa. Não com um presente, mas com dois, que admiro com toda a sinceridade.

O do sogro (futuro) - um colar de pérolas que embora de cultura são lindíssimas. Olho-o e tento lembrar-me de um parecido que conheço muito bem. Como não hei-de conhecer!... O colar de Rosa Maria que o marido lhe ofereceu no dia do baptizado da Rosinha-Filha...

A prenda de Ana Margarida faz com que as nossas cabeças se unam mais para nos concentrarmos a admirá-la. As pequenas, que desde ontem acho que a miram e remiram, não se cansam desta contemplação. Justa.

Num estojo - os brincos compridos, o anel e a gargantilha de rubis que foram peça de museu na vitrine do salão. A primeira jóia que regressou à vida... Como os brincos, o anel e a gargantilha devem estar contentes ao sentirem o toque da carne macia da sua jovem dona!

Felicito a Mirita e ambas nos pomos a conversar acerca do passado desconhecido desta jóia que um dia enfeitou uma donzela (ou dona) como vai enfeitá-la... Mas a minha imaginação não tem tempo de funcionar.

Álvaro Abegorim, sem que o ouvíssemos chegar, de entretidas, entra no salão. Pálido, de ar carregado, dir-se-ia que me olha com uma surpresa mesclada de desagrado. Não desagrado pela minha presença, mas pelo que a minha presença (visita ainda de cerimônia!) possa implicar de contenção, de domínio de si próprio, obrigando-se a agir ao contrário de que talvez desejasse.

- Que tens tu, Álvaro? - escuto na voz preocupada da mulher.

- Um aborrecimento muito grande. - e esboça um gesto na minha direcção. - Tenho de pedir-lhe imensa desculpa... mas sou hoje um péssimo conviva.

- Por favor, não se preocupe comigo!

- Podíamos jantar, Teresa?

- Está tudo pronto, Álvaro.

- Depois, se não levam a mal, tenho de sair.

- Tens de... ? Mas que sucedeu? Estamos todos suspensos.

A Sofia, à entrada da sala, anuncia:

- A sopa está na mesa.

Nós aguardamos a resposta de Álvaro Abegorim, já desenhada nos seus lábios, incontível.

- Soube esta tarde da morte do meu amigo Tito Branco e...

- Ah, Tito Branco! - exclamo, interrompendo-o involuntariamente. - Bem sei!

O Juiz encara-me, surpreendido.

- Conhecia-o?

- De nome. E ontem à noite estive no escritório do Henrique de Lemos.

- Então está a par do sucedido?

- Estou!

Mas Teresa Mafalda, que não está a par de coisa nenhuma, deseja naturalmente que o marido a esclareça.

A boa disposição que povoava esta sala torna-se em silêncio de expectativa. Silêncio que aceita a história trágica da morte repentina de um homem doente da alma. com a alma tão doente que o coração não suportou o contágio.

Porque o assunto não tem para mim qualquer novidade, alheio-me um tanto dos pormenores que arrancam exclamações doloridas às senhoras, às meninas. Ligada ao gabinete luxuoso de Henrique de Lemos, uma imagem se sobrepõe à do sacrificado. A imagem confusa de uma rapariga pela qual não há nada a fazer, pelo menos por enquanto. Da rapariga de quem amanhã sem falta tenho de ir dar notícias a Ana Margarida.

Não ignoro que me cumpria havê-lo feito hoje. O espinho durante todo o dia me magoou. E magoou mais porque o deixei enterrado sem coragem de o puxar como agora. Tentei não pensar que era preciso ir contar as coisas como são a Ana Margarida. Tentar não pensar não remedeia nada. A necessidade continua no seu lugar - o espinho que me magoa. O espinho que hei-de arrancar amanhã. Amanhã quando for a casa da Condessa de Ribatorpes.

E tento esquecer (como durante o dia) o pico na minha consciência. Aliás a dorzita acha-se de certo modo atenuada pelo bálsamo de uma convicção. Dantes, a Mãe dela não poderia agüentar. Agora, a Mãe Margarida, a Mãe para tantas saberá agüentar.

E volto com serenidade ao ambiente que me cerca.

Álvaro Abegorim narrou os factos e tem pressa porque vai velar o cadáver numa igreja cujo nome não fixo e para onde entrou esta tarde, após a autópsia.

Passamos à sala de jantar. A sopa está fria.

- É melhor trazer outra, quente.

Percebo a hesitação da Sofia. "Lá dentro não deve haver que chegue para outra"... Mas, correctíssima, limita-se a balbuciar:

- Talvez eu pudesse ir aquecer esta... Estive p'ró fazer... mas não pensei que os senhores se demorassem tanto!

As três raparigas mais velhas levantam-se, ajudam a levar os pratos para a cozinha. E é ao notar o gesto das três (Lili, Mirita e Rita) que o Juiz nota, como eu, a falta da mais nova.

- Que é da Rosarinho? Não a vi ainda! A Alicinha esclarece:

- Quando me fui pentear, ao quarto, ela estava a ler.

(adivinho o quê... e aceito o sorriso que volta a apoderar-se de mim)

Galante, a noiva do Fernando Vasco oferece-se:

- Se o sr. Doutor quer... eu vou chamá-la.

- Agradeço, Alicinha.

E voltam a Lili, a Mirita e a Rita, mais a Sofia, com os pratos da sopa.

E Rosarinho seguindo Maria Alice de Mendonça Peres Fontemora. Rosarinho rosada, os olhos a brilharem, uma atitude entre confusa e segura. - Desculpe, Pai!... - Não me ouviu chegar, Maria do Rosário?

- Não ouvi nada... nada...

- Por causa do que estava a ler?

- Sim, meu Pai.

- Posso perguntar-lhe qual o livro que assim a absorveu?

- com certeza, Paizinho. É o livro da Ana Maria. E sou eu que explico:

- Fui eu que lhe trouxe o livro da irmã do Pedro, que acaba de sair.

Álvaro Abegorim encara-me:

- E é de molde, a obrazinha, a prender tanto a atenção?

Não sei qual a resposta que ele decifra no olhar com que lhe respondo. Sei apenas que o Juiz não esboça qualquer censura pela incorrecção do atraso da filha. Melhor ainda - além de não esboçar qualquer censura, ainda diz à garota cujo ar encantado nada altera:

- Hás-de depois emprestar-mo para ler, ao livrinho.

E eu fico muito contente.

Que Bom, se todos os Pais quisessem ler o livrinho da Ana! O livrinho não. O livro.

Às 9 e 5 da manhã, em mim a recordação da noite amena ontem vivida no lar dos Abegorins, (com o Pedro, o Zé Chaves e o Júlio Matinha a tornarem ainda mais alegres as meninas a quem a juventude e a felicidade permitiam -graças a Deus! - esquecer que o Pai estava amargurado a velar o corpo de um amigo), e a noção de que preciso de ir a casa de Ana Margarida.

Arrumo muito bem arrumadinha a recordação (as boas recordações nunca devem deitar-se fora, podem um dia ser-nos preciosas como companheiras de horas ocas!) e enfrento o dever. Sem deixar para logo o que posso fazer agora.

A minha senhora vem almoçar?

Julgo que sim, Emília. Mas não tem a certeza?

- Não, Emília.

- A minha senhora já viu a carta que eu puz em cima da cômoda?

- Carta? Não, não reparei. Mas... carta chegada quando? Eu ontem" só saí à hora do jantar...

- Foi o carteiro que tornou a deitar a correspondência no cacifo errado.

- Bom... já vou ver a carta.

- Eu também tive correio.

- Ah, sim?

- A minha irmã quer saber se eu posso ir ao casamento do meu sobrinho Arnaldo, porque se puder sou eu a Madrinha.

- E... quando casa o teu sobrinho?

- Em Setembro, minha senhora! (Setembro, Setembro, SETEMBRO...)

- Em Setembro com certeza que sim, Emília. Devo poder dispensar-te.

- A minha Senhora vai viajar?

- Tenciono ir passar umas fériazinhas na quinta de São Boaventura.

E a sentir-me embalada pelas doces sugestões desta frase, procuro na minha cômoda a carta que ontem o carteiro deitou num cacifo errado. Abro-a. Começo a lê-la.

Sento-me, para poder chegar ao fim.

Minha Senhora

Imagino o pouco tempo de que pode dispor e nem sei como me atrevo a escrever-lhe, a si que só conheço de nome. Não, conheço-a sem ser de nome. Conheço-a dos seus livros e porque muitas vezes me tenho admirado da sua compreensão pelas raparigas que sofrem, com ou sem culpa, é que me atrevo a vir desabafar consigo. Se quando chegar ao fim desta carta achar que sou uma tola, uma leviana que nada merece, rasgue-a e não pense mais em mim.

Minha Senhora, eu tenho 21 anos feitos há pouco. E desde os quinze que namoro um rapaz bastante mais velho do que eu. Dizer que namoro é pouco para a verdade. Eu não o namoro - adoro-o.

Sou filha de pais separados e toda a minha vida me vi como que partida ao meio entre Pai e Mãe - até porque ambos me querem muito e eu gosto muito de ambos. Talvez por isso ainda mais me prendi ao sonho, de ter um lar, mas um lar bem constituído, um lar para ter família, um lar onde eu criasse filhos que nunca precisassem de se sentir vítimas. Que quem se sente partido ao meio sofre horrores. Mas parece que sobre mim pesava uma pouca sorte sem remédio. O homem por quem me enamorei, rico, caprichoso, (é vendedor de automóveis) fazia de mim gato sapato. Ora parecia amar-me profundamente e mostrava acolher todos os meus ideais, ora desaparecia durante meses andando com umas e com outras. E depois, quando eu, cansada de esperar por ele, decidida a acabar com tudo (aliás era este o conselho da minha Mãe e das minhas Amigas, e cheguei a aceitar namoro por duas vezes a dois rapazes cheios de qualidades, ) ele aparecia logo e tudo entre nós se recompunha no meio das suas desculpas e promessas. E assim chegámos até que há alguns meses ele me disse que íamos casar. Comecei a tratar dos papéis e a procurar casa. Começámos os dois a procurar casa e alugámos uma amorosinha que era para mim o paraíso. Bom, não foi bem alugar. A casa ainda estava em acabamentos e ele deu um sinal. E mandou-me escolher móveis, etc. Eu andava doida de alegria! Como suspeitar dele?

Ai, minha senhora, como suspeitar? E como dizer-Lhe o que tanta gente considera como uma vergonha (a minha maior amiga, a que eu julgava a minha melhor amiga, deixou de me falar quando a escolhi para com ela desabafar a minha aflição). Que eu a vergonha é o que menos me apoquenta. Horroriza-me, sim, pensar na situação em que se vai achar o meu filho. Pior ainda do que partido ao meio, sem Pai!

Já percebeu o que se passa, pois já, minha Senhora ? Mas não imagina ainda a extensão do mal! É que ele acaba de casar com outra!

Assim, minha senhora! Há dois meses, de repente, telefonou-me (teve essa crueldade) para me dizer que se casara na véspera e eu não devia mais procurá-lo fosse para o que fosse.

Durante os primeiros momentos julguei que fosse brincadeira. Como podia acreditar, como ? Não era brincadeira, era tudo verdade. Tudo fora planeado, arquitectado...

Eu ouvira contar que havia homens maus. Supunha que se tratava de exageros. Hoje sei que há homens maus. E mulheres más.

Andei desorientada. Depois acabei por contar tudo à minha pobre Mãe que chorou durante três dias sem parar e depois começou afazer um casaquinho de malha para o bebê com uma frase que nunca mais esquecerei "no fim de contas, é meu neto"... Mas as malhas do casaco são tecidas com lágrimas!

Tudo isto é trágico. Mas ainda não cheguei ao fim.

Sou empregada num liceu feminino, como contínua, porque somos modestas. E agora fui convidada a retirar-me (fui despedida) porque não convém que as raparigas tomem conhecimento do meu caso, que é um mau exemplo. Serei um mau exemplo, minha senhora, ou apenas e afinal um exemplo que advirta as raparigas, que as previna, que as ajude a defender do muito mal que nos pode ser feito ?

E será justo que me acusem - ou seria justo que me ajudassem nesta hora tão difícil, tão complicada?

Eu sei, minha senhora, que está tudo mal. Mas estaria melhor se eu fosse uma maluca e andasse com uns e com outros? Será pior cair nesta desgraça de não ter um lar para criar o meu filho?

Sou realmente - tornei-me! - uma criatura à margem da sociedade, merecedora não de socorro, mas sim de desprezo?

E que poderei eu fazer, sem ter onde ganhar a vida, a vida que não posso negar ao meu filhinho ?

Minha senhora, perdoe-me. Mas se pudesse ajudar-me a perceber ao certo porque é que hei-de ser eu a castigada e não ele! Que eu não lhe desejo nenhum mal... Mas ele, a mim, não desejou senão mal! Porquê?

Desculpe esta carta ir tão mal escrita. Mas só tenho o primeiro ciclo. Não quis estudar!

Só fiz asneiras, até hoje. Mas gostava tanto, tanto, de nunca mais fazer nenhuma!

Humildemente me despeço, com a maior gratidão por este bocadinho em que, de qualquer maneira, me deixou estar ao pé de si.

Olívia da Conceição Martinho

Caiem-me as lágrimas pela cara abaixo. Molham o sobrescrito que tenho no regaço. O sobrescrito que não pode ser destruído. Traz o remetente desta rapariga que...

- Minha senhora, o telefone para a senhora!... Nem o ouvi tocar, de tão absorvida.

- Quem é, Emília?

- Diz que a D. Aniceta. Ai, a D. Aniceta, agora!...

- A minha senhora quer que eu diga que não está?

Coitadinha da D. Aniceta, que culpa tem ela que haja na vida casos que nunca deviam suceder? Que culpa tem ela de que haja homens sem escrúpulos e raparigas desditosas? Que culpa tem ela de que os dias não sejam sempre de sol... ou não chova quando a água faz falta à terra?

- Tou?... D. Aniceta?...

Cumprimentos e perguntas. Muitos cumprimentos e muitas perguntas.

Se pode vir passar esta tarde comigo? com certeza que sim! Faz-me transtorno?... Talvez faça. Mas que culpa tem a pobre D. Aniceta de que eu precise de ir imediatamente a casa de Ana Margarida levar-lhe notícias de Catarina? Sem dúvida, levar-lhe notícias de Catarina. Mas também e talvez mais do que isso.

Na salinha cor de rosa onde Berta me instala, um silêncio penetrante que me entrega a mim mesma enquanto a condessa de Ribatorpes não volta. E é possível que se demore. Saiu com a menina (a menina é a Luisa Maria).

Penso que talvez me conviesse aproveitar o tempo. Mas não me apetece.

Aliás nesta quietude não existem férias. Pelo contrário - funciona-me o cérebro numa diligente acomodação de idéias a pôr em ordem. E entre todas a que não tarda em ocupar o maior espaço. Tenho de dar ao João Alfredo novas da ilha dos Pêssegos. Estará ele em casa? Se estiver, posso aproveitar.

E decido premir o botão da campainha, junto da ombreira da porta. Um botãozinho de prata, como as maçanetas das portas e o corrimão da escadaria.

- Berta, eu...

Não. Não é Berta quem está diante de mim, a informar-se do que desejo, mas Nicolau. Nicolau Gogó, que me saúda com simpatia. com afecto.

Estendo-lhe a mão que ele aperta com um sorriso Bom.

- Eu gostar muito de ver senhora!

- Também eu a ti, Nicolau!

- Senhora querer alguma coisa em que Nicolau poder ser últil?

Busco, do cantinho onde tenho as recordações arrumadas, aquele dia em que Nicolau me defendeu de Catarina.

Nicolau homem digno.

Ele espera que eu lhe responda. Abandono a imagem do que foi, solicitada pelo que há-de ser.

- Nicolau, o senhor conde (sim, conde e barão, conde de Ribatorpes e barão de Montelongo) já saiu?

- Muito cedo, de automóvel.

- Vem almoçar?

- Não deixar dito, Senhora. Mas se ser preciso algum recado, eu dar. Eu... -parece ligeiramente embaraçado, mas depois, sob o meu olhar que lhe mostra toda a simpatia que lhe dedico, decide-se. - Eu desejar que Senhora saber que Nicolau Gogó estar sempre pronto a tudo que Senhora querer. Nicolau ser poucochinho na vida, um nada ao lado de Senhora... mas ter coração no peito que ser coração de gente. E saber valia de obra de Senhora aqui dentro! Senhora ter salvo senhora condessa, Senhora condessa gostar de viver e sorrir como nunca ter sorrido, nem dantes... quando rir para visitas, quando rir para senhor conde. Dantes riso de senhora condessa ser só na boca. Agora sorriso vir de dentro da alma... Muito obrigado, Senhora!

Sinto-me tão comovida, tão comovida... tão comovida que os olhos se me alagam e os lábios me tremem.

Que lindas palavras estas! Acho que nunca ouvi nenhum agradecimento tão expressivo e tão profundo numa singeleza total. A singeleza de quem ignora artifícios. A singeleza dos puros.

E estendo as mãos. E nas minhas mãos brancas aperto as mãos negras e rosadas (as palmas são rosadas) do meu amigo Nicolau.

- Oh, Senhora, eu não ser digno!

Puxo-o um pouco. Ele inclina-se e eu beijo a testa lisa do filho da negra Gogó, mais válido, mais útil, mais ser humano do que tantos que andam por aí convencidos de que são alguém quando não prestam para coisa nenhuma.

Os homens autênticos são-no de dentro para fora e não de fora para dentro.

E fico a conversar com Nicolau. Interessam-me as suas decisões e os seus projectos, agora que possui bens que lhe permitem mudar de situação. Não vai para Luanda viver? Tomar conta dos prédios que herdou, estabelecer-se, como lhe foi recomendado pelo homem que o trouxe da Guiné, pequenino sem eira nem beira e o deixou defendido e protegido para o futuro?

- Por enquanto não ir, Senhora. Fazer falta em casa. Ser de confiança para tomar conta do projecto de Senhora condessa. Quando Senhora condessa ir à Itália, eu talvez ir conhecer Luanda e tomar conta de coisas. Mas ficar, não! Não ter lá ninguém! Homem como eu não saber viver sem família...

- Podes casar-te, Nicolau!

Ele sorri, os dentes brancos irradiando luz.

- Ser difícil eu casar, Senhora! com branca não, que não acreditar no amor de branca por negro.

- Há casos, Nicolau!

- Eu saber que há casos. Mas porque Deus havia de querer eu para caso?

- Se fores a Luanda podes encontrar uma rapariga de cor... Quem sabe se não estará uma que Deus te destinou, à tua espera?

As pupilas brilhantes aceitam a hipótese.

- Pois... Senhora, se isso acontecer, e senhora condessa não precisar de eu, eu casar com alegria e tentar realizar desejo de senhor conde com grande restaurante. Desenvolver o recebido é dever! Eu trabalhar para isso... para desenvolver fortuna e deixar fortuna a filhos.

- Gostavas de ter filhos, Nicolau?

- Muito, Senhora!

Apetecia-me continuar o diálogo, aprofundar a maneira de ser deste rapaz consciente e bondoso (Sebastião de Ribatorpes sabia porque o estimava!...) mas soam vozes a distância, vozes que se aproximam

E tenho na minha frente Ana Margarida e Luisa Maria.

Contei exactamente como foi com Catarina. Luisa, estática, fixa-me num esforço de compreensão. Para ela há pormenores ainda difíceis de apreender. Naturalmente, é nova demais. Tem de ser adulta para absorver até ao fim as coisas que exigem preparação e maturação.

Ana Margarida, o nariz afilado, as faces de súbito cavadas, brinca com os dedos, como se estivesse muito entretida a dobrá-los e a esticá-los. Espero um comentário. Não o faz. Não o fará.

E quando o silêncio se torna longo em excesso, abandona as mãos, encara-me e pergunta-me:

- Dá-me o gosto de almoçar connosco? Ana Margarida recusa assim ocupar-se da filha. É horrível, uma Mãe ter de arrancar de si as fundas raízes que vêm do princípio do ser. Mas acontece, quando há motivos que nenhuma vontade pode transpor.

Ana Margarida de Ribatorpes tem motivos que nenhuma vontade transporá.

Num suspiro, fecho o assunto que tanto me ocupou. E aceito o almoço.

O almoço, ao qual sirvo como aperitivo a Ana Margarida a carta da Olivia da Conceição Martinho. A carta que ela lê com os olhos a dilatarem-se-lhe de espanto primeiro. De angústia depois. A carta que acaba de ler a chorar como eu chorei. A tomar a decisão que eu de antemão conhecia.

- Depois do almoço... vou à procura dela.

Acha bem?

- Acho muito bem, Ana Margarida.

Á decisão que eu de antemão conhecia. A única decisão possível.

Vão ouvir-se risos de criança, dentro de meses neste grande palacete onde tanto chorou uma Mulher. Uma Mulher que em breve conhecerá o sentido da palavra avó.

Sim, Ana Margarida será uma avó para o filho da Olívia da Conceição Martinho. Como se fosse a Mãe do Pai que o pobrezinho não tem.

Uma tarde simples, dando atenção a D. Aniceta. D. Aniceta feliz, a contar-me imensas coisas todas minhas conhecidas, quer antigas quer modernas. De novo, apenas uma hipótese - é natural que volte a viver com a família Torredalto, a olhar pela casa como antigamente. E isto torna-a feliz como os pastéis de nata que trouxe da rua (da minha pastelaria favorita, a Delícia de Mel, sabe-se!) e que ela adora. Come cinco. Não faz cerimônia. E não se preocupa com a gordura. Ri, a balançar-se toda:

- Como o peso dos anos já ninguém mo tira... o peso das banhas não me afecta! A elegância foi-se com a juventude, não há nada a fazer... E depois de ir para o outro mundo não como mais nada... Por isso agora aproveito.

Aproveita. Come mais um pastel de nata. Fica certa a meia-dúzia.

Um dia.

Dois dias.

Três dias.

Nada de especial a amostrar. Trabalhei, fui visitar a avó Teresa que já não fala senão nas nossas férias na quinta em Setembro.

Toca o telefone. É A Luisa Maria, entusiasmadissima, a dar-me várias notícias. Leu o livro da Ana, que a Teresa Souzelo lhe emprestou, e gostou tanto, tanto, tanto, deseja tanto conhecer a Ana Maria, que a Mãe Margarida prometeu ir também a Penarim quando os Macedos vierem, em Setembro...

(acho bem que o município responsável da vila vá pensando num hotel de Turismo, em Penarim, que a Estalagem de São Boaventura não vai chegar para tanta gente...)

Telefonema n. 2

Quando nos meus relógios (os tais) passam 40 minutos das dez.

O João Alfredo a pedir imensa desculpa de não me haver falado já sabendo que eu perguntara por ele, mas estivera uns dias fora. No Algarve, em casa de um amigo. Não, nenhum do grupo. Um que eu não conheço, estudante de Ciências Geográficas (ah! ? ? ? ? ? ). E dá-me a novidade maior. Vão partir para a base aérea da Ota, onde serão incorporados. (Eu não sabia que eles tinham escolhido a aviação como arma). Poderão vir despedir-se de mim amanhã à tarde? E se fosse possível a Teresinha estar presente... ?

Amanhã à tarde espero por eles. Pelos meus rapazinhos para a ilha dos Pêssegos.

(ai a ilha dos Pêssegos depois dos dias passados em casa de um universitário de Ciências Geográficas...)

Telefonema n. 3

Quando nos meus relógios (sempre os mesmos...) cantam as onze cheias de sol.

Sou eu que o faço. Para convidar a Teresinha a passar a tarde de amanhã comigo.

Virá.

Telefonema n. 4

A seguir ao almoço. Não reparo nas horas. Uma chamada com pré-aviso. Às sete da tarde receberei uma comunicação de Luanda...

Ai? ... Que terão eles a dizer-me?

Telefonema n. 5

Feito por mim, a avisar o Pedro e o Paulo. Talvez queiram estar ao meu lado quando se estabelecer a ligação. Para estarem um pouco com eles...

Telefonema n. 6

Meia hora antes de tocar a campainha para que a distância ceda ao gênio de Graham Bell. Pois que é a criação do telefone senão a presença em nós dos que estão longe?

Ana Margarida a dar-me conta do que se passa com a Olívia da Conceição Martinho. Não a encontrara nas primeiras diligências efectuadas porque segundo a Mãe, uma senhora de ar modesto e sofredor, ela fora passar três dias a casa de uma colega que a convidara, condoída da situação. Finalmente, falara-Lhe. É uma linda rapariga de olhos sonhadores, "totalmente fora da nossa época traduzida em usos e costumes". Não queria acreditar quando lhe dissera ao que ia. Depois desatara a chorar abraçada primeiro à Mãe, depois a ela. Dentro de uma semana instalar-se-á no palacete, com armas e bagagem. E a Mãe, evidentemente. As Mães não são para deitar fora... claro!

Claro!...

E sinto-me contente ao pensar que o assunto ficou resolvido.

Meu Deus, que bom teres feito com que Ana Margarida seja capaz de utilizar a sua imensa riqueza como se fora a lâmpada de Aladino!

Estou ainda emocionada desta gratidão quando o telefone volta a soar, para o Telefonema n. 7

O telefonema de Luanda!

E o Pedro e o Paulo sem chegarem!

- Está, está, está?...

Levo mais de cinco minutos a repetir está-está-está. E os cinco minutos são às vezes muito na vida. O Pedro e o Paulo aparecem a tempo.

- Está? Está? Está?...

- Madrinha? ...

- Sou eu, querida!

- Madrinha, recebi o meu livro! Ah... era por isto! Foi por isto!...

- Madrinha, estou radiante! Acho que nem caibo na pele de alegria!

O Paulo não consegue dominar-se. Tira-me o telefone das mãos, exclama para ela:

- Querida, não rebentes pela tua rica saúde! Olha que me fazes uma falta danada!...

Ri ela lá. Rimos nós cá.

O Pedro disputa o telefone ao Paulo. E leva a melhor.

- Ana... como estão todos?

- Óptimos! À espera de Setembro!

Como nós. À espera de Setembro. Do grande mês!

E o telefonema n. 7, que nos encheu de alegria e ocupou até ao jantar (eles saiem a correr porque têm precisamente um jantar de anos em casa de um colega) e podia perfeitamente ser o último de hoje para me deixar adormecer a recordar as poucas palavras da Ana, adormecer talvez para sonhar com eles todos, não consegue cumprir o que me teria sido tão agradável.

Às 11 e 45 (no meu reloginho de pulso) recebo o

Telefonema n. 8

- Já estava a dormir, Madrinha?

- Não, Paulo! Mas que se passa?... Aconteceu alguma coisa? Pareces alterado!

- Estou aborrecido com uma coisa.

- Ocorrida em casa do teu colega?

- Não, Madrinha!

- Então?

- Nós saímos cedo porque tínhamos resolvido ir dançar a qualquer sítio.

- E não foram?

- Fomos. Estamos, ou melhor, estou eu. (realmente distingo um brouhaha confuso para

além da voz do Paulo com o que talvez seja música à mistura...)

- E sabe quem encontrámos? Pelo torn, calculo.

- A Catarina de Ribatorpes?

- A Catarina.

- E isso é o que te alarma?

- Não, Madrinha. O que me alarma é... Mas eu conto. A Catarina simulou, em dado momento, um desmaio.

- Simulou?

- Eu acredito que simulou. Estava a fumar quando entrámos... viu-nos ou melhor, viu o Pedro...

(sei agora que o Paulo pensa o mesmo que eu, apenas com uma diferença, eu acredito na dor que pode salvar e ele só reconhece o mal no Mal)

- E depois, Paulo?

- Claro que quando ela caiu no chão, houve um certo burburinho. Eu não liguei, mas o Pedro sentiu-se no dever de acudir. E depois veio dizer-me que ia levá-la a casa.

- E foi?

(que pergunta estúpida...)

- Se não tivesse ido eu estava a falar-lhe?

(o telefonema, no fundo, é tão estúpido como a minha pergunta)

- E que queres tu que eu faça, Paulo? Que me meta no carro e vá buscar o Pedro lá, onde mora Catarina?

Um momento durante o qual só oiço o brouhaha e os sons desarticulados da música. E porque ele nada responde diante da hipótese impossível, eu acrescento, realmente tranqüila:

- Paulo, ele já não é uma criança! Não há novidade! Nenhuma Catarina do mundo pode arrancar o Pedro à Rosarinho.

- Está convencida disso?

- Pois como queres que seja de outra maneira?

- Pois... sim, com certeza. Deve estar na razão. Desculpe ter-lhe telefonado. Mas pensei...

- Que pensaste, tu?

- Que talvez não fosse descabido a Madrinha dizer-lhe duas palavras, acautelá-lo... O Pedro tem pena da Catarina e a pena pode levá-lo a aproximar-se demais.

- Pois sim, filho. Eu digo. Direi.

Mas o quê?

O que os dias vierem a mostrar-me que se torna preciso. Mas talvez não surja nada que o justifique. Eu acredito no Pedro.

E acredito na Rosarinho.

A Teresinha está presente.

Entretidas a conversar, esperamos que eles cheguem. Eles. Os donos da ilha dos Pêssegos.

Sim, os donos. Já sei as condições, o preço, tudo. Se ainda for possível continuar a situá-la nos Açores, à ilha, depois de o João Alfredo ser amigo de um estudante de Ciências Geográficas...

Ainda é possível!

Sinto-o ao olhar os meus seis amigos, de ar lavado nas barbas e nos bigodes. Porque só o João Alfredo (o Fofo) continua de cara rapada e cabelos mais curtos. Os outros conservam-se de barbas e bigodes. E curioso! Pela maneira moderna como vestem, marciais nas fisionomias, fazem-me lembrar rapazes de séculos passados...

Tantos que usaram barbas e bigodes (e cabelos grandes. -.) e nem por isso deixaram de dignificar a vida!

Aceitam todos os aperitivos que a Emília preparou e bebem vermute branco e tinto com gosto. E contam do tempo que os aguarda a partir de agora, o tempo que os há-de levar a merecer a ilha.

- Mas... vocês continuam a querer comprá-la? E o Licas:

- Se não houver nenhum obstáculo... Então arranco, jogo tudo por tudo.

- Meus filhos, já sei o que lhes interessa acerca do assunto.

Eles aproximam de mim as cadeiras, copos nas mãos, suspensos.

- A aquisição torna-se possível desde que vocês assegurem que a ilha dos Pêssegos não se prestará ao exercício de qualquer espécie de comércio. Cedem a ilha com garantias, ou seja, cedem a ilha desde que ela se conserve um lugar puro... onde para sempre more a paz!

Os olhos deles reluzem.

Os olhos do João Alfredo, por detrás das lentes grossas, estão poisados na Teresa, que lhe sorri.

- E... o preço?

- Bom, filhos... muito por alto, aí uns trinta mil contos.

O Teco não domina o entusiasmo:

- À volta de cinco mil contos a cada um de nós? ... Mas isso é de graça!

- Levam em conta o facto de na ilha não haver quaisquer comodidades, comodidades no sentido actual da palavra, e exigir grandes despesas se quiserem fazer obras, ter electricidade, telefone... etc. etc...

E o Fadista, emocionado:

- E... eles reservam a ilha, para a gente?

- Talvez seja melhor dar um sinal... - sugere o Carola, o herdado. - Eu cá por mim, posso!

- Não vale a pena preocuparem-se com isso. Para que a ilha possa ser vendida, há inúmeras formalidades a satisfazer e vocês sabem que burocràticamente tudo demora a concretizar-se. Eu estou ligada ao caso, informam-me quando for necessário entrar na parte final do negócio.

Agora o João Alfredo (cada vez me dá menos jeito tratá-lo por Fofo!) encara-me. E sorri, a dizer:

- Quando eu souber voar, um dia não resisto e dou lá um salto, para ao menos a ver de cima... à nossa ilha!

Dentro de mim, a interrogação: qual a verdade nele?

Impedem-me os outros de tentar descobri-la. Todos estão contentes por irem p'rá tropa - como diz o Tòdinho. Todos contam coisas. Todos asseguram que adoram voar. Todos sabem que afinal podem vir a ter o brevet (os helicópteros para a ilha!) porque ainda para mais todos estão resolvidos a continuar os estudos!

E é sob a alegria desta notícia que se preparam para me deixar. A mim, porque a Teresa saiu há instantes, veio buscá-la o avô. Saiu depois de garantir ao João Alfredo que doravante lhe há-de escrever todas as semanas (ouvi o pedido e a promessa...).

Acompanho-os à porta. Dou-lhes, com um grande abraço em troca do beijo que me depõem na testa, o voto que me nasce no coração.

- Que Deus os guarde, meus filhos!

Um a um, transpõem a porta. Vão descendo a escada.

- Adeuzinho!

- Até qualquer dia!

- A gente dá notícias!

- Não se esqueça de nós!

- Obrigados por tudo!

O João Alfredo continua na minha frente. com um ar que não me ilude. Ele quer dizer qualquer coisa e ignora como pegar na primeira palavra.

Eu ajudo-o resoluta.

- João Alfredo... sabes que a ilha dos Pêssegos não passa da mais bem intencionada das invenções?

Por detrás das lentes grossas as pálpebras velam por instantes os olhos míopes. Quando as abre, duas lágrimas escorregam-lhe pelas faces.

Lá de baixo, um dos amigos chama por ele, certamente a traduzir a admiração de todos pela demora:

- Fofo!...

E o jovem conde de Ribatorpes (e barão de Montelongo) estende-me as duas mãos onde apoio as minhas que ele aperta com força:

- Que importa que ainda não tenha sido encontrada? Eu acredito nela... há-de estar em qualquer sítio. E hei-de viver, dia a dia, sempre, à espera de descobri-la.

Mais nada.

A escada vazia, as vozes deles na rua. Fecho a porta, corro à janela a espreitá-los.

Seguem a três e três - lado a lado. Afastam-se com passo firme, certo. Sabem para onde vão, porque escolheram um destino e iniciaram a caminhada que os há-de levar até onde os espera o que for da vontade de Deus!

Onze horas nos meus relógios que se tornam normais na sua existência ao meu lado, certos o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão a desejarem-me boa-noite.

Noite em que os minutos, pelos segundos (tique-taque), me vão envolvendo em pensamentos onde saudades, recordações e esperanças povoam a minha solidão. A solidão que deixa de o ser.

Tanto à minha volta, à espera dos dias que vêm aí!

Tique-taque. Eles

Tique-taque. Todos

Tique-taque. Nós

Tique-taque. Eu

Tique-taque. Sonhos

Tique-taque. Pactos

Tique-taque. Idealizações

Tique-taque. Acontecimentos

Tique-taque.

Tique-taque.

Tudo !

O tempo passa. Tique-taque. tique-taque iique-taque

Boa-noite.

ATÉ... SETEMBRO! ...

 

 

                                                                                                    Odette de Saint Maurice

 

 

 

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