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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAMINHO DE JERUSALÉM - P.2 / Jan Guillou
A CAMINHO DE JERUSALÉM - P.2 / Jan Guillou

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

MONASTERIO BEATAE MARIAE DE VÀRNHEMIO foi o nome dado, finalmente, ao mosteiro de Varnhem. O padre Henri, que de novo estava sentado no seu antigo scriptorium, sentiu um arrepio de felicidade ao escrever em definitivo essa designação. A Virgem Santa devia ter esse mosteiro a si dedicado com toda a razão, pois foi ela que teve uma participação maior na sua criação através da revelação dada à senhora Sigrid durante a inauguração da catedral de Skara. E agora, finalmente, todo o processo tinha chegado ao ponto desejado.

 

 

 

 

O padre Henri, na verdade, tinha muito do que se alegrar, tal como -, ele agora tentava expressar bem na sua longa carta. Os cistercienses tinham ganho uma jogada, não só complicada como perigosa, contra o próprio imperador da Alemanha, Frederico Barbarossa. E o padre Henri tinha mexido os seus pauzinhos do lugar onde estava, acompanhando dois grandes amigos que desempenharam um papel importante no assunto, o arcebispo Eskil e o padre Stephan, de Alvastra. Quem podia imaginar uma evolução dessas vinte anos atrás, quando ele e o padre Stephan percorreram o triste e frio caminho até o norte, na Escandinávia?

O imperador Frederico Barbarossa tinha derrubado o papa Alexandre III e colocado no seu lugar um outro papa da sua corte, mais obediente, em Roma. Em face dessa movimentação, o mundo cristão teve de escolher entre ficar ao lado do papa Alexandre III ou ao lado do usurpador, em Roma. O resultado final desta batalha, entretanto, já estava decidido.

Muitos soberanos receavam o imperador alemão e queriam estar de bem com ele. Entre estes, infelizmente, estava o rei Valdemar, da Dinamarca, e com ele vários dos seus bispos mais acovardados. Mas o arcebispo Eskil, de Lund, amigo dos cistercienses, assumiu uma posição contrária à do seu rei e a favor do papa Alexandre III. E com isso Eskil foi obrigado a fugir para o exílio.

Na realidade, a rixa era mais uma vez aquela já antiga, de saber se os reis e imperadores deviam ter poderes sobre a Igreja ou se a Igreja devia continuar livre e independente em relação aos poderes laicos.

A jogada de contra-ataque dos cistercienses veio da Svealand e das duas Götaland. Convenceram o rei Karl Sverkersson, que não sabia muita coisa sobre o imperador Frederico Barbarossa para chegar a receá-lo, a concordar com a criação de um arcebispado com poderes sobre as três províncias. Naquela situação não importava em que cidade a sede do arcebispado ficaria. Bastava que existisse. O rei Karl Sverkersson, inteligentemente, abriu mão de fazer de Linkõping a sua capital a favor de Aros Oriental. Que seja, raciocinaram os cistercienses. O principal é que a gente possa malhar o ferro enquanto está quente.

E, então, aconteceu que o padre Henri se encontrava na catedral de Sens quando Eskil estava na presença do papa e conseguiu a nomeação do irmão Stephan para arcebispo da Svealand e das duas Götaland. Como o arcebispado da Noruega também estava a favor do verdadeiro papa, a balança da luta pendeu contra Frederico Barbarossa e seu papa imposto. Depois, Eskil pôde voltar para a Dinamarca em triunfo e Stephan se instalou em Aros Oriental sem problemas. A batalha estava vencida.

Um terceiro irmão cisterciense instalado no terceiro arcebispado nórdico não era, certamente, pouca coisa. Varnhem já tinha sido subtraída do rei Erik Jedvardsson, antes que seu sucessor, Karl Sverkersson, assegurasse ao mosteiro novas propriedades e novos privilégios, inclusive, doando um terreno seu para a construção de um novo mosteiro para freiras em Vreta, na Götaland Oriental.

E mesmo não havendo nenhuma dúvida a respeito de qual seria a solução final para qualquer conflito de interesses em relação a qualquer mosteiro entre a casa real e a Igreja, como no caso Varnhem, logo aconteceu outro problema semelhante na Svealand.

Uma mulher iniciada e dedicada a Deus, de nome Doter, tinha doado uma grande propriedade sua, em Viby, perto de Sigtuna, para os cistercienses, exatamente como a mãe de Arn fizera em relação a Varnhem. E exatamente como no caso de Varnhem, vieram os parentes querendo declarar como inválida a doação. Desta vez, tratava-se de um filho, de nome Gere.

Mas Gere não tinha muito apoio a esperar do novo arcebispo Stephan. Antes pelo contrário. Stephan conseguiu rápido o acordo do rei Karl Sverkersson, reconhecendo como boa a doação através de uma carta carimbada com o selo real. Gere, aliás, não ficou de mãos abanando. Todo o resto que sua mãe deixou foi parar nas suas mãos mesmo. Mas o mais importante no caso foi o reconhecimento de que qualquer doação feita para os cistercienses jamais, dali em diante, poderia ser questionada.

Ao mesmo tempo, uma vez assegurada a posse de Varnhem, estava na hora de realizar as necessárias restaurações para que o mosteiro ficasse como era antes. Na realidade, Varnhem tinha ficado ocupado apenas por uma dúzia de irmãos, com a missão de fazerem pequenos reparos e conservar o mosteiro habitável e, principalmente, evitar com a sua presença que fossem feitas depredações.

Durante todos esses anos que passaram, a Vitae Schola, na Dinamarca, ficou muito melhor do que Varnhem, sob todos os aspectos. Mas, por isso mesmo, também era natural que, naquela hora, ao decidir liderar os trabalhos de restauração, o padre Henri fosse buscar, em primeiro lugar, na Vitae Schola, as forças novas necessárias para a reforma. E a esse respeito escreveu instruções completas logo que terminou o seu cântico de louvor pela vitória justa dos mais fiéis a Deus contra os poderes laicos de Barbarossa.

Entre aqueles que foram convocados para Varnhem, encontravam-se o irmão Guilbert e Arn. Durante mais de dez anos, trabalhando na Vitae Schola, o irmão Guilbert tinha conseguido colocar em bom funcionamento a ferraria, com vários noviços capazes que ele ensinou e preparou. Em Varnhem, a situação era justamente o contrário. Na realidade, a ferraria estava parada. Por isso, era claro que o irmão Guilbert teria de ser chamado de volta para Varnhem.

No que dizia respeito ao noviço Arn, a questão era mais complicada. Os conhecimentos práticos de Arn, ele os tinha obtido, principalmente, do irmão Guilbert. Portanto, no caso de este ser chamado para Varnhem, era mais lógico que Arn ficasse na Vitae Schola.

Mas o padre Henri tinha um plano para Arn, que ainda não queria desvendar e muito menos pôr no papel, numa carta que, eventualmente, acabaria arquivada, à disposição de todos os cistercienses.

Em vez disso, ele disfarçou suas intenções dando instruções para que alguns cavalos escolhidos da Vitae Schola fossem trazidos para Varnhem, a fim de ver se as idéias do irmão Guilbert teriam mais sucesso entre os bárbaros da Götaland Ocidental do que com os bárbaros dinamarqueses. Escreveu que, neste caso, não queria se meter em detalhes, deixando todas as decisões práticas para o irmão Guilbert tomar. Tendo acabado de escrever esta passagem embaraçosa — embaraçosa porque ele não podia escrever toda a verdade a respeito de suas intenções, mas mesmo assim teria de escrever de maneira tal que não pudesse ser considerada como mentira —, o padre Henri passou para a questão das plantações na horta. Os melhores noviços do irmão Lucien deveriam ir para Varnhem, para ® que, assim que chegassem, fossem ordenados irmãos da ordem cisterciense. O irmão Lucien seria responsável pela escolha das plantas certas nas quantidades necessárias. Enxertos, sementes e todo o resto deviam ser transportados com todo o cuidado da Dinamarca.

Ao terminar a sua longa carta, o padre Henri ficou arredondando as letras durante algum tempo para que ficassem mais bonitas. Trabalhou bem concentrado, sem pensar em nada mais, até que terminou. Ao colocar a pena de lado, deu um suspiro de alívio e de felicidade. Olhou em volta, no seu velho e amado scriptorium. Por algum motivo, ele sempre achou que essa sala era o seu lar espiritual, o lugar onde ele sempre iria realizar seus trabalhos mais importantes. Nessa altura, as prateleiras dos livros tinham muitas partes vazias, mas era apenas uma questão de tempo. Era ali naquela sala que ele iria terminar a obra da sua vida e, a seu tempo, seria sepultado sob as pedras do chão da igreja onde já descansava a senhora Sigrid, a fundadora de Varnhem.

Recostou-se na cadeira de couro, já bastante usada, olhou para cima, vendo as rachaduras na alvenaria do teto, deixou voar os pensamentos por um momento à volta de coisas práticas a realizar e a priorizar, mas acabou por relembrar vivamente o momento do triunfo na catedral de Sens.

A catedral sempre fora um milagre de beleza, algo com que os especialistas em arquitetura, como o irmão Guilbert, ficariam ainda mais encantados do que o próprio padre Henri. Tinham começado a construção segundo um estilo totalmente novo, onde a abóbada era pontiaguda e apontava direto para cima, de modo que todas as igrejas no mesmo estilo dariam a entender que, realmente, se dirigiam para Deus, e as abóba-das não ficavam arredondadas, curvadas sobre si mesmas, denunciando um limite humano muito distante do céu. A forma das pedras tinha uma ligação importante com a fé, segundo o padre Henri. Acima de tudo, tratava-se de encontrar uma harmonia entre a forma e o conteúdo, especialmente numa área sagrada. A ornamentação vistosa levava os pensamentos a fugir do mundo superior. Mas a forma que por si mesma procurava chegar ao alcance de Deus, uma forma pura e em pedra apenas, descrevia uma ligação diferente e magnífica. Não seria, talvez, de bom aviso mandar vir plantas e informações sobre novas maneiras de construir lá do país de seu nascimento? Não. Existiam outras melhorias, muito mais práticas, em que pensar, tratando-se de Varnhem no seu estado atual. Dedicar-se primeiro à beleza da forma seria um pecado.

Para Arn nada existia que pudesse se chamar de lar. Varnhem não era o seu lar, nem tampouco a Vitae Schola, perto de Limfjorden. Nem qualquer outro lugar. O seu lar era onde estavam seus irmãos e, acima de tudo, onde estivessem o irmão Guilbert e o padre Henri.

O pior, ao viajar da Vitae Schola, foi deixar Chamsiin. O irmão Guilbert tinha decidido que Chamsiin devia ficar como reprodutor na Vitae Schola, e ele falou por quê, para Arn, fazendo um desenho complicado na areia, mostrando quais os cavalos que eram descendentes de Chamsiin e quais os que eram descendentes de Nasir e assim se explicava por que Nasir e um outro garanhão jovem descendente de Chamsiin e Aisha deviam seguir para Varnhem, e Chamsiin devia ficar na Vitae Schola. Depois de tudo bem explicado, Arn não podia questionar mais a decisão.

O garanhão jovem era malhado, de um castanho-avermelhado e cinza, e, depois da missa de despedida de Vitae Schola, o irmão Guilbert explicou, também, para Arn que o jovem animal devia chamar-se Chimal, que na linguagem secreta dos cavalos significava Escandinávia. Mas ao ver a tristeza nos olhos de Arn, o irmão Guilbert chamou-o de lado e explicou que não era pecado nem coisa de se envergonhar sentir falta e ter saudades do seu cavalo. Aqueles que disserem que um cavalo é apenas uma coisa, um haver sem alma e, portanto, algo impossível de amar não sabem de nada. Estariam certos apenas formalmente. Mas o mundo estava cheio de homens, inclusive homens fiéis a Deus, que estavam certos, formalmente, em relação a um ou a outro caso, mas ainda assim não sabiam entender. Diante de Deus, o irmão Guilbert jurou que havia muitos e muitos homens que achavam certo amar cavalos como Chamsiin.

Todavia, por outro lado, é preciso lembrar que nem os cavalos, nem os próximos, nem os irmãos e os familiares vivem para sempre. Até pela simples razão de que, no caso dos cavalos, eles não vivem tanto quanto os homens. E Arn, certamente, pelo menos pelo que o irmão Guilbert podia ver em relação ao futuro dele, ia ter que sofrer, durante a sua vida, a perda de mais de um cavalo. Era como se se tratasse de familiares mais velhos que, pela ordem da vida, se vão primeiro, mas não se trata de um pensamento pecaminoso. Chorar por alguém, lamentar a perda de um cavalo, faz parte da vida, tal como Deus a ordenou.

Arn deixou-se consolar, mas apenas porque não era pecado lamentar ter sido obrigado a deixar Chamsiin para trás.

Embora agora já fosse considerado como homem e não mais garoto, ele ainda chorou um pouco quando as carroças deixaram a Vitae Schola. Ninguém notou, a não ser o irmão Guilbert. E só ele também podia entender a razão do choro. Tanto os outros irmãos quanto os noviços sentiam tão pouco quanto Arn a existência de um lar em qualquer lugar que não aquele onde estivessem outros irmãos, num bom mundo de Deus. Mas o que sabiam os outros a respeito de cavalos de ultramar?

Pouco antes da Feira de Bartel, em fins de agosto, tempo de colheita no auge e hora, também, de abater os bodes na Götaland Ocidental, Arn olhou para a torre da igreja crescendo para o céu, primeiro imprecisa como se fosse algo estranhamente com nós ou ressecado ou atingido por algum raio, uma coluna de madeira no meio de um bosque de carvalhos, depois visível, nítida.

Arn não conseguia lembrar-se da torre como quando era criança. Não era isso que o emocionava. Mas era alLque a sua mãe estava sepultada, ela, a quem todas as noites dedicava as suas orações. Era como se ela existisse, ainda viva, lá dentro, embora apenas restassem seus ossos. Dos recantos da memória, Arn foi buscar um retrato pouco nítido da sua pessoa como criança, de pé, sozinho, entre homens estranhos, ainda não os seus amados irmãos, acompanhando a missa de corpo presente. Cheio de respeito, entrou a cavalo pelo portão do mosteiro, notando não reconhecer quase nada à sua volta, mas reconhecia, sim, embora tudo parecesse em decadência. Ao cumprimentar o padre Henri, que veio ao encontro dos recém-chegados, pouco antes do portão de entrada, ele pediu a bênção e se apressou na direção da igreja, onde, à entrada, se ajoelhou e fez o sinal-da-cruz, antes de se aproximar do altar.

Lá na frente estavam dois noviços de joelhos, trabalhando com o cinzel e o martelo no bloco de pedra que cobria a sepultura da sua mãe e que antes tinha apenas um pequeno sinal, quase imperceptível. Agora que os cistercienses tinham alcançado sua grande vitória sobre o poder laico e indicado o Monasterio Beatae Mariae de Varnhemio como lugar seguro, não só para os irmãos, como para os ossos dos mortos, o padre Henri havia decidido que a sepultura de Sigrid deveria ser devidamente marcada. A idéia, no entanto, era para que o trabalho estivesse pronto antes de a caravana da Vitae Schola chegar. Mas, durante a viagem, o tempo estivera muito bom e favorável. E daí a chegada antecipada.

Ao chegar na frente, meio confuso, Arn saudou os noviços, primeiro em latim que eles ainda não entendiam bem, depois em francês que eles não entendiam nada e, finalmente, em nórdico que era a sua língua, embora mais cantada do que aquela de que ele se recordava. E, depois, ajoelhou-se e fez uma oração de agradecimento por ter chegado bem.

A seguir, Arn leu o texto já gravado na pedra da sepultura e aquele que apenas estava esboçado. E sentiu que a sua mãe vivia, que ela estava ali, não apenas a sua alma, mas em carne e osso, como se ela estivessem sorrindo por baixo da pedra. Sorrindo para ele. Lá, por baixo daquela pedra, jazia Sigrid, nossa mais querida e respeitadíssima doadora em eterna paz, nascida no ano do Senhor de 1127 e falecida no ano de 1155, abençoada, em memória. Foi o que ele leu. Depois do texto, havia o desenho de um leão e algo mais que ele não conseguiu ligar à situação. Arn apenas conseguia ver as mãos dela na sua frente, sentir o aroma da sua presença e achava até poder escutar a sua voz.

Mas, durante a missa de boas-vindas, quando todos estavam reunidos, o nome da sua mãe foi citado repetidamente e isso o encheu de sentimentos incompreensíveis, de modo que ele resolveu imediatamente se confessar. Receava que tivesse sido atacado pelo orgulho.

Semanas antes de o padre Henri ser reinstalado como prior de Varnhem e do próprio arcebispo Stephan chegar de visita, o irmão Guilbert e Arn trabalhavam como loucos, junto com dois noviços do local, para colocar em ordem o fornecimento de água. Dois grandes açudes tinham sido negligenciados e precisavam ser escavados, recuperados, o canal que levava a água para os alcatruzes, grandes e pequenos, estava parcialmente entupido, de tal maneira que a força da corrente chegava enfraquecida com uma redução de até nove dízimos da sua verdadeira capacidade. A roda do moinho e a sua engrenagem necessitavam de muitos reparos. A corrente de água era o motor do mosteiro e, ao mesmo tempo, sua fonte de limpeza, tão importante nos lavatórios e na cozinha quanto como força motriz para os foles, os moinhos e as bigornas. Por causa da importância do trabalho, a pequena equipe foi dispensada de todas as missas e momentos de leitura do dia. Arn deitava-se na cama logo depois das vésperas e dormia profundamente, sem sonhar, até a primeira missa da manhã. E os dias de trabalheira seguiam-se uns aos outros, num ritmo que parecia dar a sensação cada vez mais forte de que o tempo ficava suspenso e flutuando num único compasso de trabalho.

No entanto, no dia em que o arcebispo e a sua escolta transpuseram, cavalgando, o portão do mosteiro, a água escorria de novo pelos lavatórios e pela cozinha, as instalações para as visitas tinham sido caiadas e limpas de novo e em uma das ferrarias escutava-se a batida do martelo na bigorna.

Depois da missa da recepção, na orédica, o arcebispo falou aos irmãos sobre a vitória do bem sobre o mal e como a ordem cisterciense estava tão forte que nenhuma ameaça externa existia nesta remota parcela do mundo. Apenas existiam as ameaças permanentes em todos os seres humanos, os pecados do orgulho ou da preguiça ou da apatia. Só estes podiam atrair o justo castigo de Deus. E, por isso, ninguém devia descansar, recostar-se sobre os louros colhidos, mas apenas continuar trabalhando na horta de Deus, com a mesma perseverança de sempre.

Depois da refeição de agradecimento, o arcebispo Stephan e o padre Henri se retiraram para aquela encruzilhada onde sempre costumavam sentar-se para conversar, perto do quintal agora decadente. Tiveram, então, uma longa conversa a respeito de um assunto que não queriam que os outros irmãos escutassem. Falavam muito baixo, de tal maneira que os irmãos no quintal apenas conseguiam entender uma ou outra palavra e só quando os dois respeitáveis senhores se excitavam com os seus próprios pensamentos e, como num fogo-fátuo, falavam um pouco mais alto. Depois, rapidamente, voltavam a baixar o tom de voz.

Após cerca de uma hora de conversa, pareciam ter chegado a um acordo e, então, mandaram chamar Arn, que já se encontrava diante de mais uma tarefa difícil em uma das ferrarias, onde o mecanismo do fole não queria funcionar.

Arn foi até o lavatório e tomou um banho completo, pensando se não seria melhor raspar a cabeça, coisa que ele tinha deixado de fazer nas últimas semanas, enquanto liberado de todos os compromissos, menos trabalhar nas instalações de água. Ao passar a mão na careca, sentiu que o cabelo já tinha crescido pelo menos um centímetro. Dessa maneira, não era possível se apresentar perante o arcebispo, mas, por outro lado, não podia se atrasar diante do chamado deles.

Um pouco envergonhado, Arn seguiu para o claustro, ajoelhou-se diante do arcebispo e beijou a sua mão, pedindo desculpa por seu aspecto meio negligente. O padre Henri explicou rapidamente que Arn pertencia ao grupo que havia cumprido tarefas especiais nas últimas semanas, mas o arcebispo acenou que esse problema não tinha importância e pediu a Arn para se sentar, o que era um favor surpreendente.

Arn sentou-se num banco de pedra, intranqüilo, diante dos dois homens respeitáveis, por não saber por que razão eles queriam falar em especial com ele, que era apenas um jovem noviço. Jamais poderia imaginar o que iria acontecer com ele. Na realidade, até achava que a sua vida já estava traçada, numa trilha determinada e tão certa quanto o movimento das estrelas no firmamento.

— Meu jovem, será que ainda te lembras de mim? — perguntou o arcebispo, bondosamente, mas surpreendentemente em francês, em vez de latim.

— Não, monseigneur, sinceramente, isso eu não posso dizer — respondeu Arn, embaraçado, olhando para o chão.

— Da primeira vez que nos vimos, você tentou me bater, me chamou de velho antiquado ou algo assim e declarou que não queria ficar sentado a ler esses livros enfadonhos, mas isso, aparentemente, você também já esqueceu, não é verdade? — continuou o arcebispo com um assomo simulado de dureza, numa simulação tão aparente que todas as pessoas no mundo a teriam percebido, menos Arn.

— Monseigneur, peço realmente por sua compreensão. Minha única desculpa é que eu era ainda uma criança e não sabia de nada — respondeu Arn, corando de vergonha e tentando imaginar como é que ele podia ter levantado a mão para o arcebispo. Mas nesse momento o arcebispo e o padre Henri desataram a rir em alto e bom som.

— Sim, sim, meu jovem, eu tentei fazer graça, não estou aqui para exigir vingança pelas injúrias antes recebidas. Devo até ficar agradecido, depois do que ouvi dizer, por não ser agora que você queira me bater. Não, não precisa pedir desculpa novamente! Agora, o que você vai fazer é escutar. O meu velho amigo Henri e eu temos discutido bastante a seu respeito. Aliás, já fazíamos isso desde quando você chegou aqui, criança. Você deve saber, pelo menos, que foi um milagre que o trouxe até nós; não é verdade, meu filho?

— Eu li a história — respondeu Arn, em voz baixa. — Mas eu, pessoalmente, não me lembro de nada. Só me lembro do que li.

— Mas se São Bernardo e Nosso Senhor o trouxeram de volta para o reino dos vivos e o conduziram até nós, quais devem ser as conclusões a tirar disso? Já pensou nesse problema? - perguntou o arcebispo num tom de voz agora mais objetivo, como se começasse nesse momento a conversar a sério.

— Quando eu era criança e caí de um muro alto, o Senhor se mostrou generoso para comigo e talvez para com a minha mãe e o meu pai, perante as suas preces mais sinceras. É essa a verdade. É isso a que podemos considerar como certo — respondeu Arn, ainda sem se atrever a levantar o olhar.

— Certo, certo, nada mais precisa ser dito a esse respeito — reagiu o arcebispo Stephan, com um ligeiro acento de impaciência na voz. —

Mas, então, vamos deparar imediatamente com a questão do porquê, não é verdade?

— Sim — interferiu Arn. — Vamos deparar com a questão de saber por quê, mas para essa pergunta jamais consegui uma resposta. Quando se trata do perdão de Deus, acontece que isso, muitas vezes, fica acima da compreensão humana. E não sou exatamente o único a não entender tudo a respeito do perdão de Deus.

— Ah, agora começo a reconhecer de novo aquela criança impulsiva que tentou me bater e me chamou de velho antiquado. É assim mesmo, meu caro jovem! Responda de volta, reaja! E não estou sendo irônico, não, gosto de ouvi-lo quando responde de volta. Isso significa que não o transformamos num simples vegetal podado, crescido no quintal. Você mantém a sua vontade e o seu senso de vida. E isso nós achamos ótimo. Henri descreveu, especialmente, essa sua qualidade para mim. Aliás, há muito tempo não falo em francês. Você não tem nada contra se mudarmos para o latim, não é?

— Não, senhor, reverendo.

— Ótimo. Na realidade, estava apenas tentando devolver uma batata quente que você me deu quando nos vimos pela primeira vez e você disse que eu nem falava bem a língua nórdica. Bom, essa tentativa de fazer graça caiu pela base. O seu francês é muitíssimo bom. Aliás, como é que pode ser, as suas leituras devem ser quase todas em latim, não é?

— Seguimos uma linha em que eu falo em latim quando se trata de coisas espirituais e de leituras; em francês, durante metade do tempo de trabalho; e nórdico, com os noviços que não entendem o francês — respondeu Arn, levantando pela primeira vez os olhos e fixando-os nos olhos do arcebispo. Tinha já ultrapassado a maior parte do seu embaraço.

— É uma linha ótima a seguir, desde que não esqueça a sua língua materna, melhor ainda se tudo terminar como pretendo — murmurou o arcebispo, pensativo. — Mas deixa que lhe pergunte uma coisa muito definida e gostaria que me respondesse com toda a sinceridade. O Senhor Deus já falou com você? Já revelou as Suas intenções para contigo?

— Não, senhor, reverendo. Deus nunca falou comigo, diretamente. E não sei nada a respeito de Suas intenções para comigo — respondeu Arn, de novo rebaixado e embaraçado. Era como se tivesse que se envergonhar por não ter recebido diretrizes direta e pessoalmente de Deus, que, no entanto, lhe tinha dado a vida de volta através de um milagre. Era como se ele, através do pecado, tivesse se tornado indigno dos planos originais de Deus. Sabe-se lá o que teria acontecido...

Os dois anciãos consideraram, pensativos e em silêncio, aquilo que Arn tinha respondido. Não disseram nada por uns longos momentos, mas no final se entreolharam e acenaram afirmativamente um para o outro. E o padre Henri pigarreou longamente, como costumava fazer antes de iniciar uma longa explicação.

— Meu querido filho, está na hora de você escutar o que vou dizer e nem por isso deve ficar com medo — começou o padre Henri com visível emoção. — Stephan, meu grande amigo, e eu chegamos a uma decisão que acreditamos ser a única correta. Nós sabemos, tão pouco quanto você, quais são as intenções de Deus a seu respeito. A única coisa que nós sabemos é que se trata de algo muito especial. Mas como nenhum de nós sabe o que será, isso pode decorrer, por exemplo, do fato de Sua chamada estar ainda muito longe. A nossa missão e a sua missão podem ser, portanto, a de prepará-lo tão bem quanto possível para essa chamada, não é verdade?

— Naturalmente, sim, padre — respondeu Arn, em voz baixa. De repente, começou a sentir a garganta seca.

— A sua cultura é bastante elevada e o seu trabalho com as mãos tem sido para nós de grande ajuda intra muros — continuou o padre Henri. — Mas você não conhece nada do mundo lá fora. Por isso, terá que visitá-lo, terá que voltar para o burgo de seu pai, em Arnäs, situado a um dia de cavalo daqui. Aliás, um dia de cavalo nórdico. Você entende o que eu quero dizer. Se fosse com um cavalo de ultramar, seria meio dia, acho eu. De qualquer forma, essa é a ordem que nós agora lhe damos. Voltará para o lugar que antes foi o seu lar.

— Claro... Vou obedecer, naturalmente, às suas ordens — adiantou Arn, se bem que as palavras lhe ficassem atravessadas na garganta. Ele se sentia atingido por uma tremenda pancada, como se fosse excomungado, arremessado para fora da sagrada comunhão. —

— Vejo que não gostou da nossa ordem — constatou o arcebispo.

— Não, senhor, reverendo. Tenho tentado me comportar bem, aqui, entre nós. Não quero de forma alguma me engrandecer ao dizer isso, mas posso assegurar que fiz o meu melhor — respondeu Arn, de coração cortado.

— Você é um cisterciense, meu jovem amigo — declarou o arcebispo Stephan. — Pense nisso. Você é para sempre um dos nossos. Porque aquilo que foi feito não poderá ser desfeito. Pode ser também que o seu futuro seja o de se tornar um dos nossos intra muros para sempre. É justamente isso que nós não sabemos. Pode ser que você volte depois de ter achado que o mundo além destes muros não serve para você. E voltará, então, bem preparado para avançar com os seus votos monásticos. Mas deves aprender aquilo que ainda não sabe e não vai conhecer o mundo lá fora ficando aqui dentro, por muito que possa ler. Nós queremos o melhor para você. Verá que tanto Henri como eu o amamos e vamos pedir a Deus por você, enquanto estiver longe daqui, Mas você tem de aprender como é o mundo lá fora. Isso é essencial.

— Quando é que vou poder voltar? Quanto tempo vou ter que ficar longe? — perguntou Arn, com a esperança recém-acesa de que não seria excomungado para sempre e de que a provação seria por tempo determinado.

— Quando Deus quiser, você voltará de novo para nós. Se Deus não quiser, Ele dará a você, lá fora, outra missão. Você deve perguntar a Ele nas suas orações. Não é uma coisa que nós possamos decidir, visto que se trata de uma questão entre você e Deus — constatou o arcebispo, dando sinal de que ia levantar-se, de que a conversa tinha chegado ao fim. Mas aí se lembrou de outra coisa a acrescentar, animando-se um pouco. — Sim, mais uma coisa, meu jovem. Enquanto estiver lá fora, você deve saber que não serão apenas os seus irmãos que vão rezar por você. Terá também o seu arcebispo como amigo. Poderá sempre vir até mim para falar das suas preocupações. Não esqueça isso.

E assim se levantou o arcebispo Stephan, estendendo a mão para Arn, que se ajoelhou e, de cabeça baixa, como sinal de obediência, a beijou.

Ao sair de Varnhem, cavalgando, Arn de início se sentia com a mente pesada. Apesar das muitas explicações e exortações do padre Henri, ele ainda não tinha conseguido se recuperar da sensação de estar sendo vítima de uma punição, como se tivesse desmerecido a companhia dos outros irmãos.

Entretanto, começou a cantar, procurando consolo, e isso, em breve, já o estava ajudando. E ao descobrir que isso o ajudava, mudou o seu estado de espírito e começou a cantar ainda mais, como todos entre os irmãos, nem mais nem menos. Mas cantar, para ele, voltou a ser de repente uma grande alegria, a maior em muitos anos, fazendo lembrar os tempos em que ele cantava com voz de soprano no coral dos irmãos.

Enquanto o seu humor mudava drasticamente, tão rápida e inesperadamente quanto o tempo na primavera, ele começou também a encher-se de excitação e expectativa. Era, de fato, verdade que nada sabia do mundo secular. Mal se lembrava de como era Arnâs, aquele lugar que um dia tinha sido o seu lar. Lembrava-se, sim, de uma torre muito alta, de um burgo atrás de uns muros em que ele e mais algumas crianças brincavam rodando arcos e o seu pai lhe mostrava como atirar com arco e flecha. Mas tinha dificuldades em recuperar uma imagem mais nítida de como e onde, na realidade, tinha morado. Tinha, sim, a sensação de que todos moravam juntos, de uma maneira ou de outra. De que era escuro e que havia um fogo gigantesco, mas ele não confiava na sua memória nessa parte, visto que tudo lhe parecia muito estranho. Mas agora ia ver novamente tudo com os seus próprios olhos. Já no dia seguinte estaria chegando, se bem que com um cavalo melhor teria sido possível chegar ao anoitecer daquele mesmo dia. Mas estava montando um velho cavalo nórdico, muito lento, um daqueles que o irmão Guilbert dizia não servir para procriar e muito pouco para qualquer outra coisa. No entanto, como o noviço Erlend ainda se encontrava em Arnäs para ensinar outras crianças a ler, tal como fizera com Arn e Eskil em outra época, agora Erlend podia usar um cavalo manso para voltar para Varnhem. Era suposição do padre Henri que o noviço Erlend talvez não fosse mais preciso em Arnäs depois da volta de Arn, tanto em termos de ensino como de qualquer outra coisa.

Uma pessoa deve aprender a se ajustar ao seu destino, tal como Deus o define. Não adianta nada reclamar, dizendo que gostaria de ser outra pessoa ou de estar em outro lugar. Em vez disso, deve-se tirar o melhor partido da situação, desde que satisfeitos o melhor possível os planos de Deus. Aquele que por último na fila de todos os irmãos repetiu isso para Arn na hora da partida foi o irmão Rugiero, também chamado para Varnhem, visto que o padre Henri achou a comida feita lá muito ruim, uma calamidade nórdica.

O irmão Rugiero deixou cair uma pequena lágrima na hora da despedida, mas disfarçou. Por outro lado, embrulhou um gigantesco lanche para a viagem, alimento suficiente para uma semana ou mais. Arn protestou, mas o irmão Rugiero fechou rapidamente a sua mochila, dizendo qualquer coisa no sentido de que não podia ser prejudicial ter um pouco de comida na hora das boas-vindas, ao chegar em casa. Aparentemente, tanto para o irmão Rugiero como para todos os outros irmãos na Vitae Schola, Arn teria vindo até eles porque seus pais eram pobres e tinham dificuldade em alimentar todas as bocas. Esse sempre foi, aliás, o motivo mais usual para aquelas crianças que entravam para os mosteiros.

Após algumas horas de viagem, Arn viu ao longe a cidade de Skara, com as duas torres da catedral se erguendo, poderosas, sobre um conglomerado de casas de madeira, todas baixas. Logo em seguida, começou a sentir o cheiro da cidade, já que estava cavalgando contra o vento. Era fumaça e putrefação, mais lixo e restos de animais, tudo cheirando tão mal e tão forte que ele não teria qualquer dificuldade em fazer o caminho certo na última meia hora antes da cidade mesmo que a escuridão fosse total. Ao chegar perto, a curiosidade de Arn se acendeu ao ver uma grande construção em andamento. Fez um pequeno desvio para melhor examinar a construção. Estavam construindo um castelo.

Segurou o cavalo e se espantou, cada vez mais, com o que viu. Havia muita gente em movimento e a maioria arrastava blocos de pedra sobre 5 troncos roliços, mas o trabalho parecia avançar muito lentamente. Em nenhum lugar ele viu blocos e guinchos ou aparelhos de suspensão. Tudo parecia funcionar pela força dos músculos humanos. Havia muita gente mal vestida que fazia muita força e que era supervisionada por homens armados que não pareciam nada amigos dos que trabalhavam. E nenhum daqueles que se esforçavam e empurravam as pedras lá embaixo parecia estar feliz com o seu trabalho.

Os muros não eram especialmente elevados e consistiam, principalmente, em taludes de terra que, com facilidade, qualquer cavalo podia subir até o cume, e uma vez chegado lá qualquer bom cavalo iria saltar por cima com um único salto. Chamsiin, por exemplo, iria vencer esse obstáculo sem problemas.

Arn não sabia muita coisa a respeito de guerra e de obras de defesa, a não ser aquilo que havia lido, o que, na sua maior parte, eram livros sobre estratégias e táticas romanas. Mas lhe parecia que aquele futuro castelo seria muito difícil de defender se os sitiantes erguessem uma torre de madeira e a empurrassem contra os muros. Embora, talvez, os métodos romanos já estivessem ultrapassados.

Um dos homens que supervisionavam os trabalhos descobriu o olhar fixo de Arn e avançou até ele, dizendo palavras duras que Arn não entendeu realmente, mas que lhe pareceram protestar contra a sua presença e que não era bem-vindo. De imediato, Arn pediu desculpas e dirigiu seu cavalo, de novo, em direção à cidade.

A cidade de Skara era cercada de uma espécie de muros constituídos por troncos de madeira, galhos e de terra amontoada. Perto do lugar por onde se podia entrar, existiam várias tendas e pessoas que cantavam estranhas canções e tocavam algum tipo de instrumento. Ao chegar mais perto, descobriu que havia muitos homens sentados, juntos, em uma das tendas, bebendo cerveja. E já deviam estar fazendo isso há muito tempo, visto que um ou outro entre eles já tinha caído no chão e dormia. Para seu espanto, viu ainda uma mulher com as roupas em desalinho, que avançava aos trancos e barrancos na direção de uma tenda menor e viu um homem, sentado, sem a menor perturbação, esvaziando a bexiga.

Arn não entendeu nada do que estava vendo no comportamento dos seus concidadãos e essa sensação se confirmou nitidamente quando três garotos o descobriram, apontaram o dedo e riram dele, sem que ele tivesse a mínima idéia do motivo. De qualquer maneira, Arn precisava passar por eles para seguir pela abertura no muro. Entretanto, depois de segredarem alguma coisa entre si, os garotos avançaram e impediram a passagem de Arn.

— Aqui, para entrar, é preciso pagar pedágio para os pobres, jovem monge! — disse o mais velho e mais temerário dos três.

— Não tenho muito comigo para dar — respondeu Arn, sinceramente pesaroso. — Tenho apenas um pouco de pão...

— Pão já serve. Nós nada temos. E quanto você tem, jovem monge?

— Tenho apenas quatro pães feitos hoje de manhã — acrescentou Arn, conforme era verdade.

— Tá bem, vamos aceitar! Dá logo os pães! — gritaram os três. E pareceu aos olhos de Arn que, de repente, eles tinham ficado felizes.

Fortalecido pela idéia de, inesperadamente, ser tão fácil poder dar uma alegria para o seu próximo, Arn abriu a sua mochila e pegou os pães que os três rapazes puxaram de suas mãos, soltando gargalhadas e correndo rápido do lugar, sem ao menos dizerem obrigado. Arn olhou preocupado para eles, já longe. Desconfiou que tinha sido enganado de alguma maneira, mas não entendia a razão para alguém fazer uma coisa dessas. E depois ainda ficou com a consciência pesada por pensar mal do seu próximo.

Em seguida, quando ia atravessando o portão, dois homens armados, meio sonolentos, impediram a sua passagem. Queriam, primeiro, que ele dissesse quem era e o que ia fazer. Arn respondeu que era um noviço de Varnhem e que ia visitar a catedral, mas que continuaria a viagem dentro de pouco tempo. Os homens, então, deixaram que ele passasse, mas riram muito e disseram alguma coisa meio estranha, que ele devia evitar fazer isto e aquilo, conversa cujo conteúdo Arn também não entendeu. E ao dar a entender que não tinha entendido nada, os dois homens riram ainda mais.

Ao transpor o portão, Arn hesitou sobre o caminho a tomar. A direção da catedral era fácil de ver pelas suas duas torres elevadas que, aliás, podiam ser vistas de qualquer lugar da cidade. Mas entre todas as casas de madeira, baixas e muito juntas, parecia existir estrume por todo o lugar. Arn pensou, primeiro, em seguir por outro caminho entre todo aquele lixo. Entretanto, viu chegar um cavaleiro por uma ruela que parecia ir dar diretamente na catedral. As patas do cavalo, a cada passo, se enterravam na lama, em excrementos de animais e em putrefação. Hesitando muito e com o mau cheiro irritando o nariz, Arn tomou o mesmo caminho, mas na direção contrária. Era ainda de manhã. Por todo o lugar se escutavam os galos cantando, e de certos recantos, no caminho pelas ruelas, quase foi atingido por porcarias atiradas de penicos e de tachos de cozinha. As pessoas viviam com o seu gado e suas galinhas. Foi o que Arn conseguiu entender pelo que viu e escutou. Ficou muito mais admirado do que cheio de repugnância.

Enfim, quando saiu da área povoada das ruelas e se deparou com a catedral, entrou numa praça com longas filas de tendas onde se realizava algum tipo de comércio. Também o terreno estava mais limpo nessa área.

Arn desmontou do cavalo com todo o cuidado, querendo ver onde punha os pés e amarrou o animal num poste à entrada da catedral, junto de dois outros cavalos. Hesitou um momento entre satisfazer a sua curiosidade e ver o que estava sendo vendido nas tendas e ir dedicar-se primeiro a visitar a casa de Deus. Tão logo fez essa pergunta a si mesmo, sentiu vergonha de ter podido hesitar sobre tal questão e entrou imediatamente pela porta da igreja, ajoelhou-se e fez o sinal-da-cruz.

A igreja estava quase vazia, havia pouca gente e estava tão escuro que Arn teve que parar por momentos antes de a vista se habituar à escuridão. Lá na frente, junto do altar, luziam umas vinte velas pequenas. Viu, então, uma mulher que acendia mais uma vela e que, depois, se ajoelhou para rezar.

Em algum lugar, na frente, no meio da escuridão, havia um grupo de coral que começou a cantar salmos. Mas não cantavam bem. Arn podia escutar, nitidamente, duas vozes que cantavam diretamente em falso e isso o deixava admirado. Cantar desse jeito era como querer iludir o Senhor na casa de Deus.

Enfim, acabou entrando numa das alas laterais e sentou-se em um banco de pedra para refletir e tentar entender o que via e o que escutava, antes de começar suas orações. Não se sentia em casa nessa casa de Deus. No altar, havia suspensas grandes telas de pano em cores gritantes, junto com duas imagens de santos e uma Virgem Maria pintada em azul, amarelo, vermelho e verde. Por uma janela envidraçada, em cima, na lateral da torre e na sua frente, entrava a luz partilhada pelo vidro num arco-íris, com todas as cores. Isso deu uma impressão a Arn de pompa e de impureza como se a ostentação fosse prelúdio de falsidade. A imagem de Jesus Cristo em uma das paredes da torre estava enfeitada com ouro e prata, como se o Senhor fosse um conde terreno. Então ele se ajoelhou e pediu a absolvição pelos pecados cometidos, assim como pediu perdão a Deus pelas pessoas que fizeram da Sua casa um acúmulo de idolatria e de mau gosto.

Mas do calcário do banquinho de pedra, ele sentiu chegar, ao se sentar de novo, um calor extraordinário como se a pedra quisesse falar com ele. Ficou com a sensação de já ter se sentado ali naquele banco antes, se bem que isso era impossível. Depois, ele viu a própria mãe na sua frente andando na sua direção, sorrindo para ele. Mas a visão desapareceu rápido quando o coro começou a cantar um novo salmo, o que rasgou seus ouvidos, sem dó nem piedade.

O coro estava cantando em duas vozes, mas o conjunto ainda cantava mal. O cantor líder da segunda voz sempre entrava mal e liderava os outros para o erro. Na crença de que poderia agora fazer uma boa ação, Arn dirigiu-se para a frente, colocou-se junto do coro e pegou na segunda voz, cantando certo. A letra, ele sabia de cor desde criança.

O capelão da catedral Inge, que dirigia o coro, sentiu primeiro que devia ser uma piada de Deus, cansado de tanto descompasso sonoro, ter corrigido todos os participantes. Mas aí descobriu a presença de Arn, lá bem junto do grupo, que sem a menor timidez assumiu a liderança da segunda voz. Ao terminarem o salmo, no qual Arn participou sem ser convidado, o capelão, com toda a simplicidade, avançou e foi buscar Arn, colocando-o no meio do coral e com isso contratando-o para o resto da missa.

Mais tarde, vários entre os cantores, com grande alacridade, queriam fazer perguntas a Arn, mas o capelão tomou-o pelo braço e levou-o para a sacristia, onde a luz entrava por duas pequenas janelas, de modo que os dois podiam se ver um ao outro enquanto falavam. Arn foi convidado a sentar-se e o capelão lhe ofereceu um copo grande com água e fez piada dizendo que aquela água era um pagamento pequeno para uma bonita atuação musical.

Arn, que não entendeu que o capelão estava fazendo graça, afastou logo o copo, dizendo que não tinha exigido nenhum pagamento para cantar na casa de Deus. Ao responder à pergunta sobre o seu nome, disse apenas chamar-se Arn de Varnhem, nada mais.

O capelão da catedral ficou excitadíssimo, pensando ter feito um achado. Ali estava um jovem que não podia ser qualificado ainda como irmão entre os cistercienses, que por algum motivo fora mandado embora e que, por isso, estava disponível como reforço extraordinário do coro. Todos podiam dizer o que quisessem desses monges estrangeiros, mas que eles sabiam cantar ninguém podia negar. Era para até os anjos de Deus ficarem fascinados.

Como nunca ninguém tinha falado para Arn com segundas intenções, ele não entendeu nada, mais uma vez, do conteúdo de todas essas perguntas que o apressado capelão lançava sobre ele.

Quer dizer, então, que ele tinha deixado Varnhem para voltar para casa? Ah, sim. E onde ficava esse seu lar? E o que faziam seu pai e sua mãe? Ah, é, sua mãe falecera, paz à sua alma e salvação para a sua alma, mas o pai, que é que ele faz? Trabalha como todos, com o suor do seu rosto? Quer dizer, na plantação como caseiro com trato de trabalho ou como liberado, comprador da sua liberdade?

Arn respondia sem mentir tanto quanto podia. Mas em relação àquela pergunta capciosa, se seu pai era rico, isso ele negou. Entendia que a palavra “rico” era algo vergonhoso e não queria pensar em nada vergonhoso a respeito do seu próprio pai. E, em relação às palavras caseiro com trato de trabalho e liberado, o que significavam ele não sabia, embora duvidasse de que qualquer delas se aplicasse ao seu pai.

Para o capelão da catedral, no entanto, tudo estava claro. Ali estava o filho de um pobre homem que trabalhava duro na agricultura. Talvez um escravo liberado que tinha bocas demais para alimentar e que tentou se livrar, pelo menos, de uma delas, mandando o filho para o mosteiro. E agora o jovem estava voltando para casa e, além disso, na idade mais devoradora, não servindo para nada, a não ser para fazer as orações na hora de comer. Ali havia uma oportunidade para fazer algo de bom para todas as partes. Era uma questão de segurar a oportunidade durante o vôo. Carpe diem.

O jovem capelão talvez estivesse pensando na esperança de essa possibilidade se concretizar, embora fosse muito tímido para falar de uma vez o que estava pensando.

— Creio, meu jovem noviço, que você e eu podíamos nos ajudar um ao outro para vantagem de todos — disse o capelão, satisfeito com a sua idéia.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa, padre, não hesitarei, mas em que é que seria essa ajuda? Sou apenas um pobre noviço — respondeu Arn, sem mentir, visto que acreditava naquilo que estava dizendo.

— Muito bem, muitos são pobres entre as gentes na terra, mas Deus dá até mesmo aos pobres, por vezes, grandes talentos. E você, caro Arn... Não é assim que você se chama? Sim, acho que sim!... Você, meu caro Arn, você recebeu um grande presente dado por Deus.

— Ah, isso é verdade — concordou Arn, baixando os olhos por timidez, pensando que o grande presente que recebera de Deus fora o de continuar vivendo. No entanto, estava intrigado. Como é que o capelão podia saber alguma coisa sobre o assunto?

— Muito bem. Então, tenho a satisfação de lhe dizer que você poderá acabar com as suas preocupações, tanto para você como para seu pai e, ao mesmo tempo, fazer um grande agrado a Deus. Está pronto para ouvir a minha proposta? — disse o capelão da catedral, inclinando-se para a frente com ares de triunfo e sorrindo para Arn, os dentes sujos, muito amarelados e com mau hálito.

— Sim, padre — reagiu Arn, recuando amedrontado. — Mas ainda não entendi no que está pensando, padre.

— Podemos oferecer a você cama e mesa e roupa nova, também, se você ficar aqui participando no coro da igreja. É uma grande honra para um pobre homem, você deve saber disso. Mas é conseqüência do grande presente que Deus lhe deu. E você também sabe disso.

Arn ficou tão surpreso que, primeiro, nem sabia o que responder. Só agora entendia que o sacerdote queria falar do seu canto, aliás, um canto sem nada de mais, e não do fato de Deus o ter chamado de volta, do reino da morte. Continuava sem saber o que responder.

— Bem, bem. Posso compreender que você ficou até sem voz — constatou o capelão, satisfeito. — Não acontece todos os dias a gente matar vários pássaros com uma só flecha. Seu pai continuará a ter menos uma boca para alimentar e nós aqui daremos alegrias a todas as almas, vivas e mortas, através de missas mais bonitas. E você terá suas roupas, comida e alojamento. São muitas bênçãos distribuídas em um único dia, você não acha?

— Não... Quero dizer, sim, acho que sim — respondeu Arn, desorientado. Ele não queria de forma alguma ficar preso nas mãos daquele sacerdote que cheirava mal da boca, mesmo dentro de uma catedral como aquela. Mas também não sabia como sair da situação. Não sabia como dizer não a quem devia obediência.

O capelão da catedral, que continuava a traduzir mal tudo o que via e ouvia, achou que o assunto estava encerrado, ajoelhou-se e depois se levantou resoluto, para de imediato tomar as medidas práticas na seqüência da contratação do jovem cantor.

— Venha comigo! — disse ele, excitado. — Vamos até o alojamento dos cantores do coral para que você conheça os outros e receba um quarto quase só para si.

— Não... Não vai... Não vai dar certo, padre! — gaguejou Arn, desesperado. — Quero dizer... Estou, claro, profundamente agradecido pela sua bondosa oferta, padre... Mas não vai dar cer...

O capelão olhou inquisitivamente espantado para o jovem de tonsura nova e com as mãos calosas de um escravo, que correspondiam a trabalhos de baixo nível. O que é que, em nome da paz serena, poderia levar esse desajeitado e pobre jovem a dizer não a uma oferta tão generosa? E parecia que, simplesmente, ele se torturava para dizer não. —

— Estou com o meu cavalo lá fora, sou responsável por ele e preciso entregá-lo a outro noviço quando chegar em casa — tentou explicar.

— Você está dizendo que tem um cavalo? — murmurou o capelão, perplexo. — Está brincando, não pode ser, quero ver com os meus próprios olhos!

Arn, obedientemente, deixou-se guiar por toda a catedral, enquanto o capelão, ao seu lado, calculava o valor de um cavalo, para chegar à conclusão que, de qualquer maneira, era muito mais do que aquilo que ele tinha oferecido na forma de comida e alojamento.

Lá fora, na luz, o cavalo emprestado de Arn continuava ainda amarrado, com a cabeça baixa, pesada, e parecendo muito cansado. O capelão, no entanto, achou que o cavalo era magnífico. E Arn descobriu, para seu desespero, que a mochila com todas as lingüiças de cordeiro e o presunto defumado tinha desaparecido, e nem podia imaginar quem teria levado tudo. O capelão, por sua vez, falava muito bem do cavalo, que era ótimo, e Arn protestava e dizia que o cavalo não tinha nada de especial e que não podia entender como é que o seu presunto e as suas lingüiças tinham desaparecido. Aí, o capelão ficou zangado e explicou que, evidentemente, ninguém podia ser tão idiota a ponto de deixar tudo bem à disposição dos ladrões.

Arn estava horrorizado só de pensar que tinha sido roubado, que dessa maneira tinha estado em contato direto com um pecado maior e perguntava inocentemente se não era possível ir procurar os ladrões e recuperar de volta o roubo, se feita a promessa de perdão para os ladrões. Isso fez com que o capelão ficasse ainda mais zangado. Teve uma explosão de raiva e chamou Arn de estúpido. Arn achou que, com isso, ele o estava depreciando.

Quando pensava em pedir desculpas por, sem intenção, ter sido estúpido, o capelão acabou se afastando, resmungando palavras irritadas a respeito de cavalos e burros. Arn rezou imediatamente uma curta oração de absolvição para os infelizes que foram tentados a roubar. Em sua oração, acrescentou que, no seu entendimento, ele também teve culpa no que aconteceu. Não devia ter deixado a mochila de maneira a tentar aqueles de espírito frágil e, além disso, esfomeados.

A norte de Skara, realizava-se o casamento de Gunnar de Redeberga, que era caseiro nas terras do deão Torkel, da catedral de Skara. O deão que esteve presente, pessoalmente, ao casamento, sentia-se satisfeito por ter decidido certo pelo seu caseiro, visto que esse Gunnar, não se podia dizer que fosse uma grande beleza de homem e não tinha muito o que oferecer como dote. Mas o deão sentiu compaixão pelo caseiro e pelos seus próprios salários e, por isso, ordenou que Gunnar tivesse uma esposa.

Um senhor de terras riquíssimo, chamado Tyrgils, de Torbjõrntorp, tinha recebido a ajuda do deão numa questão difícil e, então, num momento de fraqueza, prometeu um favor de compensação e esse favor foi o de casar sua filha mais nova, Gunvor, com Gunnar de Redeberga. Foi uma boa solução para todos. Tyrgils não tinha precisado custear um dote muito grande, como seria o caso se casasse melhor a sua filha, mas agora a questão era casá-la e isso já estava acertado. E Gunnar de Redeberga tinha também uma exigência correspondentemente baixa em se tratando do dote a entregar. E agora, apesar da sua falta de dinheiro e de terras e de seu rosto meio pateta, ia casar com uma jovem donzela, razoavelmente bonita e digna da maior confiança.

O deão achou ter procedido bem com todos, em especial com o seu fiel e obediente caseiro Gunnar, que jamais por suas próprias forças teria conseguido uma donzela fértil para casar. Como Gunnar realizava bem os seus compromissos como caseiro e compensava até sete vezes os custos, era justo que o deão mandasse refazer a casa dele na expectativa da chegada de crianças que mais tarde iriam garantir a continuação da manutenção da casa e da horta pela mesma família. Assim, não seria preciso se preocupar em despejar Gunnar quando ele chegasse à velhice, sem ter filhos que pudessem alimentá-lo e tratar das terras.

Todos estavam, portanto, satisfeitos pela maneira como tudo se encaixou. Todos, menos Gunvor, que chorou amargamente durante uma semana, antes de ser obrigada a dizer sim diante do deão e de prometer cumprir com suas obrigações matrimoniais para que o casamento se completasse.

Só depois da noite de núpcias, e da maneira como ela decorresse, o casamento seria considerado realizado por todos e por cada um, e também pela Igreja. As mulheres mais velhas falaram com Gunvor em detalhe, descrevendo as adversidades e os deveres que uma jovem esposa ia enfrentar e como ela devia se comportar. Gunvor acabou tapando os ouvidos com as mãos para não escutar mais aquelas palavras pavorosas.

Gunvor tinha pedido, insistentemente, a seu pai, Tyrgils, para escapar desse homem feio e rústico e deixar que ela se casasse com outro Gunnar, terceiro filho de uma família vizinha, em Lângavreten. Ela e o jovem tinham falado sobre o assunto e ambos queriam que assim sucedesse.

Mas, então, seu pai Tyrgils ficou fulo e explicou que ele não tinha recursos para uma solução dessas. Lângavreten era um burgo tão grande quanto o seu e, por isso, o dote teria de ser muito grande, se como vizinhos eles quisessem unir ambas as famílias no repasto pelo casamento. E sem um dote bem gordo também ele não poderia se mostrar como um homem de honra. E não havia nenhuma outra solução para o problema e as orações dela não tinham ajudado nem um pouco. O pai dela tentou apenas uma vez dar-lhe algum consolo e fez isso assegurando-lhe que os caprichos das donzelas iam e vinham e, principalmente, acabavam indo de vez. Assim que ela tivesse os seus primeiros rebentos para cuidar, todo o resto estaria esquecido.

E agora, ali estava ela, no seu vestido de noiva, enquanto os homens bebiam cada vez mais à volta da mesa do casamento e era como se uma faca a cortasse cada vez que ela escutava risos e conversas a respeito da roupa de cama que todos queriam ver depois. Ao olhar para o futuro marido, já bem bebido, se arrastando e vacilando, e recebendo palmadinhas nas costas de outros homens, acompanhadas de gestos obscenos indicando uma pica tão grande quanto a de um cavalo, de maneira que às vezes ela congelava, outras vezes suava e pedia à Virgem Maria para levá-la para casa imediatamente, deixar que por sua graça divina ela caísse morta, sem que isso fosse considerado suicídio e, portanto, um pecado. E, dessa maneira, a salvasse daquela situação pavorosa. Mas dentro de si ela sabia muito bem que a Mãe de Deus jamais iria satisfazer um pedido pecaminoso como esse e que toda esperança já havia morrido. E que ela, em breve, inevitavelmente, seria violada por aquele homem, já na meia-idade, bêbado, e que nada poderia fazer a não ser abrir as pernas, obedientemente, tal como as matronas lhe haviam ensinado.

Mas quando ela viu o sol se pôr ao longe, assinalando um anoitecer inevitável, escutou, de repente, a voz forte e clara da Mãe de Deus dentro si. E, com um grito selvagem, se jogou para cima da mesa e de um salto ágil chegou à porta e lá fora pegou na saia do vestido de noiva e correu tudo o que podia.

Lá dentro, no repasto do casamento, demorou um pouco antes que os homens já bêbados entendessem o que estava acontecendo. A maioria, por este ou aquele motivo, nem sequer tinha reparado que a noiva havia fugido. Mas logo alguns se recompuseram e, com as pernas vacilando, iniciaram a perseguição à noiva fugitiva, enquanto um deles, que nunca se soube quem teria sido, gritava: “seqüestraram a noiva!”, “seqüestraram a noiva!”, “seqüestraram a noiva!”.

O grupo de bêbados voltou então, cambaleando, para pegar em espadas e lanças e botar a sela nos cavalos meio sonolentos enquanto as mulheres, nervosas, procuravam pela noiva fugitiva que ainda continuava visível, lá longe, correndo a caminho de Skara.

Ainda mais longe vinha Arn a cavalo, num trote tranqüilo, mas com o estômago roncando de fome. Não estava com pressa, por ter visto que a noite iria ser escura, sem estrelas e sem lua e que, por isso, tinha que procurar um lugar para dormir e só chegaria a Arnâs no dia seguinte por volta do meio-dia.

E aí, na sua direção, vinha avançando uma jovem com as roupas em desordem, o olhar espantado e os braços abertos. Ele parou seu cavalo e ficou em silêncio, olhando para ela, incapaz de entender aquilo que via ou de dizer o que quer que fosse como saudação amigável.

— Me salve, me salve dos demônios! — gritava a garota e caiu em seguida, exausta, no chão, logo diante das patas do cavalo dele.

Arn saltou do cavalo, desorientado e com medo. Que o seu próximo, ou seja, ela, estava em dificuldades não havia dúvida, mas de que maneira ele poderia salvá-la?

Ele se abaixou e ficou de cócoras, ao lado do pequeno corpo arfando da jovem e estendeu a mão com cautela para acariciar seus cabelos castanhos, muito bonitos, mas não se atreveu. Nesse momento, ela levantou os olhos para ele e seu rosto se encheu de felicidade e começou uma fala inconsistente a respeito da doçura dos olhos dele, de Nossa Senhora que lhe mandou um anjo salvador e de várias outras coisas, de tal forma que ele começou a suspeitar do equilíbrio dos seus sentidos.

Foi nessa situação que os bêbados e furiosos convidados do casamento os foram encontrar, a noiva fugitiva e seu seqüestrador. O primeiro homem a descer do cavalo pegou imediatamente a noiva, que começou a gritar de cortar o coração e, por isso, amarraram seus pés e mãos e colocaram uma mordaça na sua boca. Dois homens seguraram Arn, mantendo seus braços presos atrás das costas e obrigando sua cabeça a inclinar-se para a frente. Arn não ofereceu qualquer resistência.

Logo em seguida, chegou o noivo, Gunnar de Redeberga, e alguém entregou a ele, de imediato, uma espada, já que era ele que, segundo a lei, tinha o direito de matar o seqüestrador da noiva em flagrante. Ao ver a espada levantada por cima da cabeça, Arn pediu humildemente para rezar primeiro suas orações e aqueles ali reunidos, mal respirando e com falta de ar pela corrida e a excitação do momento, acharam que era um pedido cristão que ninguém, honradamente, podia negar.

Arn não sentia nenhum medo, ao se ajoelhar no chão. Apenas espanto e surpresa. Era só para isso que Deus tinha poupado a sua vida, para ser injustamente degolado por uma multidão de bêbados que, aparentemente, achava que ele tinha por intenção machucar a mulher? Era por demais idiota para ser verdade e, por isso, não pediu por sua vida, mas para que a razão voltasse à cabeça desses infelizes que estavam a ponto, por pura desorientação, de cometer um grande pecado.

Arn deve ter parecido muito mal, de joelhos, pedindo por sua vida que todos os homens achavam estar terminada em breve. Um jovem ainda sem barba, só com penugem no rosto, vestido com uma capa marrom de monge e com nítidas características monásticas de quem teve a cabeça raspada. E alguém começou a rezar por Arn, na crença de que ajudaria o infeliz nas suas orações. Outro alguém disse que não era coisa de homem matar um indefeso monge menor de idade. Pelo menos, devia ser dada a ele uma espada para se defender e morrer como homem. Ouviu-se, então, um murmúrio de concordância e, de repente, Arn viu cair uma espada nórdica, curta e pesada, à sua frente, na grama.

Agradeceu, então, longamente, a Deus, antes de apanhar a espada. Entendeu que tinha recebido a chance de sobreviver.

O deão Torkel, de Skara, tinha agora chegado muito perto e podia ver, claramente, tudo o que acontecia e ia acontecer, a partir daquele momento. E aquilo que ele viu ou que acreditava ter visto, viria a ter grande importância.

Naquele mesmo momento, Gunnar de Redeberga avançou de espada em punho para acabar de uma vez com aquela inconveniência que perturbava a sua própria festa de casamento e verificou que havia desferido um golpe no ar. Mas não entendeu nada do que aconteceu, visto que não se achava bêbado demais.

Desfechou novo golpe sem acertar no alvo. E depois, outro. E mais outro.

Arn achou que o homem na sua frente estava indefeso e adivinhou que isso tinha a ver com a bebedeira. Melhor assim, pensou ele. Dessa maneira, não estava arriscado a fazer mal ao seu próximo.

Para Gunnar de Redeberga, no entanto, aquilo que acontecia era como se fosse um pesadelo. Seus vizinhos começaram a rir dele. E de cada vez que Gunnar dava seu golpe, aquele danado de demônio já estava em outro lugar. Só podia mesmo tratar-se de um demônio, visto que sempre estava em outro lugar, sem fugir, mas sempre em outro lugar.

Arn, tranqüilamente, mudava de posição, na direção errada, com a espada na mão esquerda. O irmão Guilbert sempre salientava que, tendo a espada na canhota, isso iria significar complicações para qualquer adversário destro. Neste caso, aparar os golpes com a sua própria espada não era preciso, bastava mudar de lugar o tempo todo. E Arn contava que dali a pouco o velhote iria cansar-se e desistir. E daí ninguém precisar se ferir, visto que Deus tinha interferido para salvar a todos.

Entretanto, humilhado e até um pouco amedrontado, Gunnar de Redeberga pediu ao velho guerreiro Joar para assisti-lo na sua função legal. E já que a figura principal do casamento estava sendo insultada mais do que parecia suficiente e já que Joar, com a sua experiência, tinha visto como o pequeno monge iludia o adversário com pequenos truques, o experimentado espadachim se jogou resoluto no combate para resolver rapidamente a questão. Os protestos desesperados do deão de pouco serviram.

Arn, de repente, estava correndo perigo, ficou com medo, jogou a espada para a mão direita, girou o corpo e se defendeu com dois golpes rápidos, pela primeira vez, a sério.

Gunnar de Redeberga logo caiu no chão, o pescoço cortado, e Joar desabou gemendo, depois de receber uma estocada direto no meio da barriga.

Todos ficaram petrificados. Os convidados do casamento, todos eles, tinham acabado de ver uma coisa que não podia ter acontecido, uma coisa que mais parecia um milagre.

Em contrapartida, Arn ficou parado, horrorizado, achando que na sua vida nunca tinha visto uma matança igual. Aquele que o tinha atacado primeiro jazia no chão, estrebuchando suas últimas gotas de sangue e de vida, enquanto o segundo, considerado um espadachim de primeira, estava ferido de morte. Arrasado por seus atos endiabrados, Arn deixou cair a espada no chão e baixou a cabeça em oração, preparado para no momento seguinte ter sua cabeça justamente cortada por qualquer um dos que estavam à sua volta.

Mas o deão da catedral estendeu os seus braços para o céu e começou a cantar um salmo, o que, de momento, evitou como inconvenientes quaisquer novos ataques a Arn. E, depois, continuou falando energicamente no espírito do milagre que todos tinham acabado de ver. Que uma pessoa, sem dúvida inocente, por força da sua inocência, tinha recebido uma proteção excepcional e que ele próprio tinha visto o arcanjo Gabriel por trás do indefeso monge, dirigindo o seu braço na ação defensiva. Logo em seguida, vários dos presentes ali reunidos podiam testemunhar a mesma ocorrência, na realidade, um milagre divino, de como um pequeno e jovem noviço desarmado enfrentou dois guerreiros adultos.

Retiraram as cordas da agora, finalmente, libertada noiva que se ajoelhou, também, em agradecimento a Deus por ter mandado alguém para salvá-la no último instante. Foram cantados alguns outros salmos, mas Arn, compreensivelmente, preferiu se abster.

Depois disso, o deão teve uma conversa com Arn a respeito de onde ele vinha e decidiu que ele próprio iria viajar com o noviço de volta para Varnhem e que o corpo de Gunnar de Redeberga devia ser levado para casa, para o habitual velório, e que o ferido Joar devia ser levado de maca para o seu lar.

Depois disso, ele olhou em volta e, com o semblante duro, perguntou quem é que tinha gritado três vezes “seqüestraram a noiva!”. Mas todos viraram os olhos para o chão e ninguém respondeu. Então, perguntou se existia alguém que, realmente, achava possível que aquele jovem monge de Varnhem fosse um seqüestrador de noivas, mas também ninguém se pronunciou a respeito disso.

Era um par muito estranho que chegou cavalgando a Varnhem naquela manhã amena de outono, em que os bordos, os carvalhos e as faias à volta do mosteiro começavam a mudar de cor para amarelo e vermelho.

O deão da catedral, Torkel, estava de excelente humor, visto que Deus lhe tinha concedido a graça de testemunhar um dos Seus milagres na terra. Foi uma graça especial.

Arn, que jejuava desde as atrocidades cometidas e se recusava a passar a noite em qualquer outro lugar que não na catedral, rezando, apresentava um rosto pálido, cinza, e o peso dos seus grandes pecados. Arn sabia que o discurso confuso do padre a respeito do milagre era uma inverdade. Deus havia mostrado a graça concedida através da espada colocada à sua disposição para se defender de qualquer ataque, mas não para ferir quem quer que fosse. Mas ele tinha abusado dessa graça e cometido o pior de todos os pecados. Sabia que estava perdido e se surpreendia pelo fato de Deus não o ter jogado no chão de imediato, quando ele cometeu o imperdoável.

Ao entrar no mosteiro através do portão entre dois freixos enormes, a única coisa aparente que restou daquilo que a mãe de Arn oferecera antes, ele pediu perdão e foi direto para a igreja, para pedir forças e, em seguida, se confessar com toda a sinceridade.

O deão Torkel pediu, orgulhoso, uma audiência ao padre Henri, para lhe contar as grandes notícias.

Acabou sendo uma conversa estranha entre os dois homens e não apenas porque ambos tinham dificuldade em se entender. O deão Torkel falava tão mal o latim quanto o padre Henri falava mal o nórdico. Além disso, o deão falava tão excitado que não conseguiu contar nada de compreensível, até que o padre Henri lhe pediu para se tranqüilizar, beber um copo de vinho e começar novamente do início.

E quando, no seguimento, pouco a pouco, o padre Henri começou a entender a catástrofe que tinha ocorrido, foi impossível para ele perceber a razão do riso tolo e da alegria do deão.

Que Arn não era nenhum seqüestrador de noivas, já se sabia. Que ele, mesmo assim, pudesse ser julgado culpado por uma coisa dessas, para começo de conversa, seria muito difícil para o colega nórdico, de pouca instrução, transformar em algo compreensível.

Que a partir daí, atendendo a que alguém teve a idéia maligna de jogar uma espada para Arn se defender, a história só poderia resultar num morto e em outro ferido de morte. Isso estava absolutamente claro. Nesse caso, num pensamento profano, era como se Deus, Nosso Pai, quisesse fazer uma brincadeira cruel com os convidados do casamento ali reunidos. Ou, talvez, melhor, quisesse puni-los por sua cruel imprevidência ao considerar que, quando a amedrontada mulher se pôs em fuga, o primeiro homem que ela encontrou era um seqüestrador. Na realidade, esse comportamento foi abominavelmente bárbaro, em especial, pelo fato de as pessoas acharem que tinham todo o direito de executar na hora o homem que encontraram pela frente. Embora, por outro lado, essas fossem as leis em vigor nessa parte do mundo. Por isso, aquelas pobres almas estavam agindo de boa-fé.

Entretanto, o mais difícil de engolir eram as concepções virtuosas, aos seus próprios olhos, do colega deão que achava ter sido escolhido para testemunhar um milagre, vendo a figura do arcanjo Gabriel por trás de Arn, ajudando-o no manejo da espada.

O padre Henri murmurou para si mesmo que se o arcanjo Gabriel, realmente, tivesse visto o que estava para acontecer, ele não teria se apressado em ficar por trás de Arn, mas, sim, do lado daqueles bêbados idiotas, para os ajudar. Mas o padre acabou não falando alto sobre o assunto.

Mais difícil era dar vazão à imaginação do deão Torkel, que pediu a ajuda do mosteiro para registrar a história do milagre, escrevendo tudo o que ele tinha para contar e enquanto ele ainda tinha seus sentidos bem alerta e se lembrava dos nomes de todas as testemunhas.

O padre Henri respondeu de início negativamente em relação a esse pedido, mas acabou solicitando mais informações a respeito do que as leis do lugar diziam quanto ao comportamento do noviço Arn. Assim, por um longo período, o deão Torkel ficou distraído quanto ao pedido de ajuda, para ver no papel a sua história do milagre.

As leis diziam que o seqüestrador de noiva, se apanhado em flagrante, devia ser derrubado e jogado no chão. No entanto, ainda que culpado, sua vida seria poupada por não poder ser equiparado a homicida.

Por um lado, a lei estipulava que se doze homens testemunhassem que Arn era inocente e que um milagre havia acontecido, Arn ficaria livre no tribunal, se o processo chegasse lá. Por outro lado, se os familiares do lorto ou, na pior das hipóteses, dos dois mortos, quisessem levar a questão para tribunal, havia que considerar a pergunta se Arn, como ele efetivamente se chamava, tinha algumas pessoas dispostas a ser seus defensores, desde que não fossem estrangeiros. Portanto, teria Arn defensores habilitados? Pertencia, por acaso, a alguma família?

— Sim — suspirou, aliviado, o padre Henri. — O jovem pertence a uma boa família. Seu nome é Arn Magnusson, de Arnàs. Seu pai é, portanto, Magnus Folkesson, e o irmão do seu pai é Birger Brosa, de Bjälbo, e o jurista Eskil é seu parente, et cetera, et cetera. O garoto pertence, portanto, à família folkeana, embora eu duvide de que ele próprio entenda o significado disso. Algum problema em relação a defensores propostos, — pelo que se entende, não existe.

— Não, claro que não! Louvado seja o Senhor! — confirmou o deão Torkel. — Vou informar imediatamente os respectivos parentes de que não terão sucesso em esperar qualquer coisa do tribunal. Melhor assim. Dessa maneira, eles não terão nada contra em testemunhar que o milagre aconteceu, de verdade!

Apesar de os dois homens de Deus, aparentemente, terem encontrado uma solução muito simples para o problema legal, os dois estavam com estados de espírito muito diferentes. O deão estava tão feliz que parecia flutuar um pouco acima do chão, visto que sua história do milagre, de que iria falar muitas vezes na catedral, estava salva e, além disso, iria ficar bem bonita, devidamente escrita no pergaminho por quem sabia fazer isso melhor do que ninguém.

O padre Henri, que sabia não ter acontecido nenhum milagre, estava satisfeito por ver que Arn não seria atingido pela dura e cega lei da Götaland Ocidental. Mas lamentava o sentimento de culpa de Arn e lamentava seu próprio sentimento de pecado, por achar que tanto ele quanto o irmão Guilbert detinham uma grande parcela de culpa no que acontecera.

— Será que posso receber agora a ajuda no registro por escrito que esta importante história exige? — perguntou o deão, ainda excitado.

— Sim, naturalmente, irmão — respondeu o padre Henri, surpreendentemente deliberado. — Vamos tratar disso, imediatamente.

O padre Henri mandou chamar um dos escribas e explicou para ele, em francês, já que estava certo de que o deão, por ser menos letrado, nada entendia da língua, que se tratava apenas de manter uma boa expressão no rosto e de escrever tudo e não fazer objeções, por mais louca que a história pudesse parecer.

Enquanto o deão, com as passadas ágeis de um jovem e a bênção divina do Senhor, se dirigia com o escriba para o scriptorium, o padre Henri se levantou pesadamente da cadeira para procurar o infeliz Arn. E sabia muito bem onde poderia encontrá-lo.

 

O DEÃO TORKEL ERA UM HOMEM PRÁTICO e muito escrupuloso com dinheiro, especialmente o seu. O caseiro Gunnar de Redeberga tinha partido desta vida, numa hora muito inconveniente e nos seus melhores dias de força e vida, e isso sem ter lançado no mundo nenhum descendente para ocupar o seu lugar. O seu casamento tinha sido interrompido de maneira lamentável e inimaginável.

Ao se recuperar do grande choque, o deão Torkel, que garantiu a si mesmo o privilégio de testemunhar um milagre do Senhor com os próprios olhos, começou em seguida a encarar as conseqüências mais terrenas da tragédia. Um dos casos prioritários era a necessidade de encontrar um novo caseiro, trabalhador, para Redeberga.

Como era o confessor da indicada e quase casada noiva Gunvor, o deão não podia evitar de tirar algumas idéias simples daquilo que ouviu durante a confissão dela. Gunvor tinha desejado tirar não apenas a sua vida como também a do seu indicado marido, o que ia lhe custar por parte do deão apenas uma semana de penitências suaves, mas ela também confessou que os seus desejos pecaminosos derivavam de uma inclinação amorosa a favor de outro jovem também chamado Gunnar.

Esse Gunnar de Lângavreten, que foi logo chamado pelo deão Torkel, era o terceiro filho do seu pai e, por isso, normalmente, não devia casar-se, visto que, caso contrário, a propriedade Lângavreten teria de ser partilhada em três pedaços pequenos demais. Gunnar, porém, era um jovem desembaraçado cuja inclinação, de fato, era a de trabalhar na terra e não a de acabar sendo guarda-costas de outro sujeito qualquer.

O deão Torkel, ao chamar o jovem Gunnar, escutou sua confissão e, com isso, conseguiu saber rapidamente como tudo podia ser organizado. O jovem tecia tão ardentes desejos por Gunvor quanto Gunvor por ele.

Portanto, tudo estaria resolvido da melhor maneira possível com o jovem par se transformando nos novos caseiros do deão Torkel em Redeberga. O pai de Gunvor, Tyrgils de Torbjõrntorp, possivelmente, tinha pensado coisa melhor para sua filha do que ser a esposa de um terceiro filho. Mas, na situação atual, ele achava que não seria fácil casar a sua filha, por muito que ela fosse uma boa moça. A história da sua terrível festa de casamento já estaria se espalhando por toda a Götaland Ocidental. O deão não tinha contribuído com pouco para essa divulgação, visto estar disposto a espalhar o mais possível a história do milagre nas suas muitas prédicas. Por isso, para o dono de terras, Tyrgils, era muito mais seguro casar de imediato a sua filha Gunvor, na primeira oportunidade que se apresentasse.

E para o pai do jovem Gunnar, Lars Kopper, de Lângavreten, a solução não era nada má, visto que estaria casando o seu terceiro filho e, além disso, conforme os desejos do rapaz. Ambos os pais tanto ganharam no dote da noiva quanto no do noivo. E o jovem par não daria descanso aos seus pais caso não cedessem aos seus desejos. Para eles a oportunidade tinha chegado como uma dádiva dos céus.

O deão Torkel plantou a primeira semente através de uma cura pastoral, uma conversa com Gunvor. Depois, fez a mesma coisa com Gunnar. A seguir, foi muito simples: chamou os dois pais e o problema estava resolvido. A festa de casamento podia ser marcada de imediato.

Na Festa de São Miguel, em fins de setembro, a colheita já feita, ninguém mais precisava fazer a proteção dos prados, realizou-se a festa de noivado em Redeberga, com a presença do deão, para testemunhar o noivado entre Gunvor e Gunnar. Ao falar para eles na festa e na hora em que todos os convidados ainda estavam suficientemente sóbrios para escutar as palavras de um homem de Deus, o deão relembrou que era dever de todos reverenciar o milagre do Senhor, que, afinal, contra todas as previsões, ia uni-los como marido e mulher.

Para Gunvor, esse foi o dia mais feliz da sua vida. Que importava ela ir viver em circunstâncias um pouco piores do que aquelas em que nascera? Estava na fortaleza, sentada na cadeira de couro entrelaçado, junto do seu Gunnar, aquele que ela pensava ter perdido para sempre. Do mais profundo desespero, ela tinha subido que nem uma cotovia para a felicidade celestial. Esse Gunnar a quem ela agora estava ligada era o homem a quem não só se entregaria de muito boa vontade, antes lamentava ter de esperar e se conter até o dia do casamento na primavera. No entanto, era um fardo leve de suportar, comparado com aquele que ela tinha todas I as razões para recear nos seus momentos mais negros da vida e que a levariam a ficar deitada por baixo do outro “Gunnar, o maduro, quase todas as noites. Pelo menos, era assim que todas as matronas descreviam a infelicidade para ela.

Gunvor e Gunnar, o jovem, agora eram independentes e podiam se encontrar quando quisessem, desde que houvesse gente por perto. E durante as festas na fortaleza, algumas se prolongando por mais de cinco horas, era permitido que dessem uma saída para ver o pôr-do-sol. Saíam de mãos dadas e ambos sentiam apreensão e felicidade diante da idéia de viverem juntos, de envelhecer e morrer numa fazenda menor do que aquelas em que foram crianças, mas, enfim, sempre juntos.

Todas as questões que Gunvor gostaria de levantar para discussão jamais encontravam resistência por parte do noivo e isso fazia com que ela se sentisse aliviada.

Ela seria eternamente agradecida à Virgem Maria por tê-la salvado das garras da tragédia no último momento. Jamais deixaria de levantar essa questão nas suas orações.

Mas ainda que o ser humano seja apenas um instrumento de Deus e que nada aconteça contra a Sua vontade, e ainda que todos os agradecimentos Lhe sejam devidos, ela não podia esquecer aquele jovem que, de qualquer maneira, havia sido o instrumento divino. Ele parecia tão pobre na sua capa marrom de monge, tão desgastada, e tão indefeso diante daqueles canalhas bêbados que o obrigaram a baixar a cabeça que queriam decepar. Mas, depois, ele conseguiu salvá-la, salvando os dois.

Por isso, ela queria doar os dois cavalos baios que recebera como presente de noivado para o mosteiro de Varnhem e, além disso, ela queria viajar até o mosteiro para apresentar os seus agradecimentos, pessoalmente, ao pequeno monge que fizera a felicidade dos dois, pondo em perigo a sua própria vida.

Seu Gunnar achou que essa era uma idéia muito boa, exaltou a sua futura mulher e, por isso, se ofereceu para acompanhá-la até Varnhem.

A decisão dos dois viria como um delicioso alívio para a alma do jovem Arn, que, no entanto, não era tão pequeno nem tão pobre quanto Gunvor pensava.

O irmão Guilbert tinha trabalhado na forja de espadas durante seis dias e o trabalho havia sido realizado, alternadamente, em períodos de febre ou de fúria ou de inspiração divina. Evidentemente, suas outras obrigações, ele as ignorou por completo e o padre Henri não disse sequer uma palavra a esse respeito. Por isso, as batidas do martelo no ferro soaram na forja de Varnhem até mesmo durante um ou outro momento de orações.

Mas já há muito tempo que o irmão Guilbert não fazia uma espada segundo os métodos mais modernos. Aliás, seria absurdo tentar vender essas espadas para os bárbaros nórdicos. Jamais eles pensariam em pagar o preço real por esse trabalho. Além disso, também não tinham muita precisão das espadas damascenas, visto que nem as suas eles sabiam manusear.

Ao fabricar a espada nórdica, ele partia da escolha de três espécies de ferro que ele juntava dobrando o material muitas vezes e alisando-o outras tantas. Através dessa mistura, conseguia-se uma certa flexibilidade, mas, entretanto, era preciso aperfeiçoar o som e inserir desenhos na espada. Era assim que os nórdicos gostavam de suas espadas. Quanto melhores as padronagens, melhores eram consideradas as espadas. De preferência, o desenho devia transformar-se numa cobra na folha da espada ao soprar ar quente na folha fria. Mas ele conseguia ainda assim uma certa firmeza, muito maior do que aquela que era costume encontrar nesse canto do mundo.

Entretanto, a espada em que ele trabalhava agora em santo desespero, de início, tinha tido um único núcleo de aço endurecido. A arte de transformar ferro em aço era desconhecida entre os nórdicos. O irmão Guilbert tinha usado o seu melhor ferro para essa finalidade e o tinha mantido no fogo durante três dias completos, compactado em carvão, couro e tijolos para que a transformação acontecesse. O abençoado núcleo de aço, ele o trabalhava na forja em camadas de ferro maleável. O fio devia ficar suficientemente afiado para até mesmo poder raspar a cabeça de qualquer monge. A cada batida com o martelo contra a bigorna e a cada oração, ele ia completando devagar, mas com segurança, uma obra de arte só possível de encontrar em Damasco ou no ultramar, onde outros como ele tinham aprendido a arte sarracena. O irmão Guilbert tinha muitas idéias estranhas a respeito dos sarracenos, mas isso era algo que ele sabiamente evitava discutir. Por muito que gostasse do padre Henri e o considerasse o mais inteligente e o mais tolerante dos priores a que um pecador podia se submeter, tinha a certeza de que os sarracenos de modo algum poderiam ser um bom tema para conversar com ele.

No sétimo dia, já estando bem avançado no seu trabalho, um noviço com um semblante amedrontado o interrompeu, e aparentemente ficou ainda mais apavorado quando viu o irmão Guilbert com um aspecto selvagem, o olhar fixo e o cabelo emaranhado. No entanto, o noviço tinha sido mandado pelo padre Henri para o chamar para uma reunião, mesmo que estivesse ele com a mão na forja.

O irmão Guilbert interrompeu de imediato o seu trabalho e foi para o lavatório para se tornar apresentável diante de seu prior.

O padre Henri esperava por ele no scriptorium, seu segundo lugar favorito. Embora ainda não tivessem entrado muito no outono, as noites já tinham começado a esfriar e o padre Henri nunca aprendera a tolerar as temperaturas nórdicas. Daí, o scriptorium em vez do banco de pedra na encruzilhada perto do quintal.

— Boa-noite, meu caro Vulcanus — saudou o padre Henri, de brincadeira, o irmão Guilbert, quando este, de banho tomado, mas ainda continuando suado, se inclinou para passar pela porta construída para servir para homens bastante mais baixos do que ele.

— Boa-noite, meu caro Júpiter, nesse caso — respondeu o irmão Guilbert no mesmo tom de voz, sentando-se sem ser convidado diante da carteira de escriba junto da qual o padre Henri estava de pé, desenhando.

Houve um momento de silêncio, enquanto o padre Henri terminava algum rabisco e, então, limpou a pena e a colocou no seu devido lugar. Depois, pigarreou daquela maneira que o irmão Guilbert conhecia como muitos outros uma Varnhem ou na Vitae Schola como sendo o sinal de que estava a caminho um explicação mais ou menos longa.

— Daqui a pouco, vou escutar a confissão do nosso filho Arn — começou o padre Henri, com um suspiro profundo. — E vou dar-lhe a absolvição. De imediato. Ele não está esperando por isso e não vai gostar, visto estar cheio de remorsos e pensando apenas no seu pecado e... Bom, você pode imaginar o resto. Mas é bom saber, meu querido e, na verdade, amado irmão, que eu, realmente, examinei a fundo meu coração e meus rins diante deste problema e a conclusão a que cheguei não é apenas desagradável para você e para mim. Aquilo que aconteceu, na realidade, não é culpa de Arn, mas sim nossa. Nós estamos diante de um conflito entre a lei mundana, por mais bárbara nesta parte do mundo que ela nos possa parecer, mas ela é a lei local, de um lado. E, do outro lado, a lei de Deus. A lei mundana não atinge Arn, nem tampouco a lei divina. Para você e para mim, a situação é mais delicada. E neste ponto você já deve saber do que é que estou falando. Por favor, poupe-me de ouvir você dizer: “Eu não disse?”

— Mas foi o que eu disse, padre, com toda a humildade — respondeu o irmão Guilbert, rápido. — Devíamos ter dito a ele quem ele era. Se soubesse quem era quando encontrou os camponeses bêbados...

— Ninguém precisava sair sofrendo, eu sei! — interrompeu o padre Henri, com mais desespero do que irritação na sua voz. — De qualquer forma, fizemos o que fizemos e precisamos agora pensar nas conseqüências. Por minha parte, vou começar o trabalho convencendo Arn de que ele está perdoado pela lei de Deus. Acho que não vai ser fácil. Que Deus me ajude, eu gosto realmente desse garoto! Quando foi embora, cavalgando, a caminho da casa de seu pai, ele saiu daqui como uma pessoa rara, sem pecado...

— Um Parsifal [1] — murmurou o irmão Guilbert, pensativo. — Na realidade, um jovem Parsifal.

— Um quê, um quê? Ah, bem, sim — murmurou o padre Henri, reagindo um pouco perturbado na seqüência dos seus pensamentos. Ficou em silêncio por momentos, antes de continuar.

— Agora, irmão Guilbert, eu lhe ordeno como seu prior. Quando Arn o procurar, você vai dizer quem ele é com todos os detalhes que eu não posso esclarecer. Você sabe do que estou falando, não é verdade?

— Sei exatamente o que você quer dizer, padre, e eu vou obedecer às suas ordens, ponto por ponto — respondeu o irmão Guilbert, profundamente sério e respeitoso.

O padre Henri meneou a cabeça, pensativo e em silêncio. Depois, levantou-se e saiu, despedindo-se com um aceno. O irmão Guilbert continuou sentado durante bastante tempo, visto ter que arranjar forças interiores para dizer as palavras certas na hora de cumprir a ordem que tinha acabado de receber.

Arn havia passado dez dias em uma das celas de Varnhem para convidados. Mas deixou de lado todas aquelas coisas servidas apenas para convidados. O colchão de palha bem enchumaçado, as cobertas vermelhas e as peles de carneiro. E ele próprio se obrigou a manter-se em silêncio e alimentar-se apenas de pão e água.

O padre Henri foi encontrá-lo pálido, com olheiras e com a marca do sofrimento no olhar. Era impossível definir como se comportaria o jovem monge, como falaria, se estava na posse de todos os seus sentidos e se ele iria entender o que lhe estava para acontecer. O padre Henri decidiu que, de início, se comportaria de maneira neutra, não demonstrando nem pena, nem condenação.

— Agora já estou preparado para escutar a sua confissão — disse o padre Henri, sentando-se numa ponta do catre duro, de madeira, e fazendo sinal para que ele também se sentasse ao seu lado.

— Padre Henri, me perdoe, eu pequei — começou Arn, mas teve de interromper sua fala com um tímido pigarrear provocado pelos seus dez longos dias de silêncio, que tornaram sua voz insegura. — Eu cometi o pior dos pecados e não tenho quaisquer desculpas. Matei dois homens, ainda que pudesse apenas feri-los um pouco. Matei dois homens, embora soubesse que para a minha alma seria muito melhor se eu próprio morresse e fosse encontrar Nosso Senhor, Jesus Cristo, sem esse pecado no meu alforje. Por isso, estou preparado para me submeter a qualquer penitência e punição que o padre quiser me dar. E nada, absolutamente nada, me parecerá ser demais.

— Isso é tudo? Nada mais a acrescentar? — perguntou o padre Henri, num tom quase menos sério, mas logo se arrependeu por sentir que isso podia ser considerado como uma maneira jocosa de encarar as agonias do jovem.

— Não... Isso é tudo... Quero dizer, cheguei a ter pensamentos indignos e pensamentos errados, ao procurar justificar meus atos, mas tudo isso está enquadrado no que já confessei — respondeu Arn, visivelmente embaraçado.

O padre Henri sentiu-se imediatamente aliviado pelo fato de Arn se mostrar lúcido e com total controle sobre a sua fala diante de uma pergunta tão confusa. Mas, então, aconteceu o inesperado, o perdão de Deus, que muitas vezes ultrapassava o entendimento humano. O padre Henri respirou profundamente e se aconselhou mais uma vez com Deus antes de pronunciar as duas palavras decisivas. Aí, esperou por alguns momentos até sentir dentro de si o apoio divino de que precisava.

— Te absolvo! Te absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, meu filho — disse ele, fazendo o sinal-da-cruz, primeiro sobre Arn e depois sobre si mesmo.

Arn olhou para ele, fixamente, como que enfeitiçado, sem condições de entender o que acabava de ouvir. O padre Henri esperou até que o conteúdo das palavras tivesse caído fundo no espírito de Arn. Depois, pigarreou, um pigarro especial, totalmente consciente, como sinal de que a seguir viria a explicação.

— A graça do Senhor, na verdade, é muito grande. E você, meu filho, está realmente livre de todos os pecados. Eu o perdoei como seu confessor, como humilde servidor de Dau* e com Seu apoio. Vamos nos regozijar da grande mercê que aconteceu, mas nada de chegar a conclusões apressadas. Você deve saber que todo esse tempo que usou no seu isolamento para se aconselhar com Deus, eu também usei para me aconselhar com Ele. E se Deus, por acaso, disse alguma coisa a você que não disse a mim, pode-se dizer que existe alguma intenção nisso, visto que acabamos de ter diante de nós uma situação muito especial para enfrentar, a mais difícil que já tive como confessor. O sofrimento que você teve durante esses dias em que se arrependeu foi em si grande parte de uma grande penitência.

— Mas... Mas foiiiiiii... Não é possível... Assassinato? — gaguejou Arn.

— Não me interrompa e escute bem — continuou o padre Henri, tranqüilo, mas decidido, achando que Arn falava muito mais do que receava. — O mundo bondoso de Deus tem duas faces neste caso e nós precisamos tentar ver esse mundo por inteiro. Existe um mundo lá fora, extra muros, com leis às vezes muito estranhas. Segundo essas leis, você é inocente. Portanto, isso é muito simples. Mas nós temos o nosso mundo mais elevado, intra muros, e este mundo exige de nós muito mais. Para começar, a minha culpa e a do irmão Guilbert são muito maiores do que a sua, em relação a esses assassinatos. Vou explicar essa questão mais em detalhe dentro em pouco. Mas, também, temos de tentar ver a sua ação segundo uma perspectiva divina, mais elevada, por muito louca que ela possa parecer a nós, seres pecadores. E precisamos tentar entender aquilo que Deus nos quis dizer. Não foi por essa sua ação que Ele se preocupou com você. Pode ter certeza. A sua grande missão na vida, no momento, ainda está por vir. Mas Deus utiliza os instrumentos mais práticos que estão à Sua disposição para punir os homens com grandes pecados. Porque o que aconteceu foi o seguinte: eles obrigaram uma jovem, Gunvor, que você encontrou pela primeira vez naquele caminho, a se casar com um homem por quem ela sentia repugnância. E eles a obrigaram a isso para seu próprio prazer e por sua própria ganância. Por ela tentar, em desespero, fugir dessa obrigação, esses homens ficaram cheios de raiva e queriam matar qualquer um que se apresentasse na sua frente. E aí mentiram ao dizer que o primeiro que encontrassem seria um seqüestrador de noivas, seqüestrador que, segundo as leis locais, teria que ser morto. Ao ver tal situação, Deus se enraiveceu e ficou no caminho dos pecadores para puni-los de maneira dura, com uma severidade que só está ao Seu alcance. Esse tal de deão Torkel não está completamente errado ao dizer que viu um anjo guiando a sua mão, embora tudo isso a respeito do milagre et cetera, et cetera, evidentemente, é bobagem. Você foi a ferramenta de Deus e executou a punição Dele, que talvez fosse incapaz de executar, caso eu e o irmão Guilbert não o tivéssemos enganado. Por isso, você está perdoado e livre de pecado, meu filho. O seu jejum termina aqui, mas pensa comer hoje à noite com cuidado. Não é aconselhável comer muito depois de um jejum prolongado. Muito bem. Isso é tudo.

Arn não respondeu durante um longo tempo e o padre Henri deixou que ele ficasse repensando suas idéias, visto que o que foi dito precisava de tempo, sim, para firmar raízes no consciente dele, antes de continuar falando sobre o mesmo assunto ou de mudar para outra questão.

Arn não tinha dificuldade nenhuma em compreender a lógica formal naquilo que o padre Henri havia dito. Mas a condição para que uma tal lógica vingasse era, primordialmente, a verdade absoluta e a humildade diante de Deus. Fora disso, seria tudo e apenas um jogo de palavras. Quase sentia vergonha em relação ao primeiro pensamento que teve ao escutar as duas palavras de absolvição. O pensamento de que o padre Henri tinha posto o dedo sobre a sua convicção de que havia um amor corrupto em relação a seu filho, que ele construíra uma tolerância especial para este caso, uma tolerância que não usaria em relação a outros casos semelhantes. Era ruim pensar uma coisa dessas do padre Henri e Arn achou que, dessa forma, não poderia ser considerado livre de pecado após ter recebido a sua absolvição. Mas não era, no momento, a oportunidade certa para se confessar de novo.

— Agora, chegou a hora de levantarmos a questão dos pecados meus e do irmão Guilbert e da nossa participação no que aconteceu — suspirou o padre Henri. — Lá fora, no mundo laico, as pessoas são diferenciadas e avaliadas de maneiras diferentes, como se todas não tivessem a mesma alma. Portanto, não é como acontece aqui entre nós, onde cada um não tem mais nem menos valor do que o seu irmão. Lá fora, o homem não é avaliado segundo a sua alma. O homem não vê apenas o seu próximo. Vê um escravo ou um rei, um conde ou um serviçal. Vê um homem ou uma mulher cujos ancestrais são ricos em posses ou não são, mais ou menos do mesmo jeito que você próprio e o irmão Guilbert avaliam os cavalos. Assim é no mundo lá fora. Infelizmente.

— Mas todas as pessoas têm ancestrais, todas são descendentes de alguém, desde os tempos de Adão e Eva. E todos nós nascemos nus — constatou Arn, com uma ponta de surpresa na sua voz.

— Claro que todos nós temos ascendentes. No entanto, segundo essa maneira de avaliar as pessoas, alguns poucos são considerados superiores e desses poucos alguns têm ascendentes ricos, com posses herdadas em seqüência, geração após geração.

— Quer dizer, se a gente nasce rico, continua rico e se a gente tem ascendentes superiores, não precisa fazer nada por seu lado, já é superior também? E então não faz diferença nenhuma se a pessoa é boa ou ruim, inteligente ou idiota, vai ser superior mesmo assim? — raciocinou Arn, se mostrando ao mesmo tempo curiosamente consciente ao avançar pela primeira vez um passo para dentro do que acontecia nesse outro mundo lá fora.

— É isso justamente o que acontece e, por isso mesmo, ainda existem hoje escravos lá fora, e você sabe muito bem disso, não é verdade? — acrescentou o padre Henri.

— Oh, sim — respondeu Arn, algo hesitante. — Meu próprio pai tinha escravos. Isso é uma coisa na qual há muito tempo não pensava, como se fosse uma recordação indesejável. Tenho pensado mais na minha mãe, nas minhas orações da noite, mas nem tanto no meu pai e nunca no fato de ele ter escravos. Mas assim era. E me lembro de ele uma vez ter cortado a cabeça de um escravo. Não me lembro mais da razão, mas nunca esquecerei a imagem da degola.

— Está vendo!... E receio que o seu pai tenha escravos ainda hoje. De fato, ele é descendente de uma família superior e isso significa, lembre-se bem, isso significa que você é, também, superior. No sepulcro de sua mãe, existem duas marcas. Certamente, você já viu essas marcas, se bem que nunca falamos delas. Uma é a cabeça de um dragão e uma espada, essa é a legenda de sua mãe. A outra é a imagem de um leão em pé, essa é a legenda de seu pai. Essa é a legenda da família folkeana e, portanto, você é um folkeano e nem sabe certamente o que isso significa.

— Não, de jeito nenhum — reagiu Arn, retraído e se mostrando como se jamais pudesse sequer fantasiar o significado de ser uma outra pessoa.

— Concretamente, isso significa o seguinte — interrompeu o padre Henri. — Você tem direito a cavalgar com espada, tem direito a usar um escudo com a legenda da família. E, se essas almas primitivas o tivessem visto dessa maneira, jamais sequer teriam sonhado em o atacar. E, se você não estivesse com espada nem usando o seu escudo, mesmo assim bastaria que tivesse dito o seu nome, que é Arn Magnusson de Arnäs, para que o espírito de combate deles murchasse e acabasse em nada. Foi isso que eu nunca lhe disse. Nunca lhe contei quem você é aos olhos do mundo lá fora e isso foi erro meu. Se tiver que me desculpar de alguma coisa, evidentemente, vou ter de assinalar que nós aqui não temos em relação ao próximo uma idéia semelhante àquela que se tem lá fora. E, assim, não queria iniciar você na tentação de acreditar que é superior aos outros. Acho que você deve compreender e, quem sabe, me desculpar.

— Mas isso não poderá fazer de mim uma outra pessoa que não aquela que sou, não é verdade? — constatou Arn, ruminando seus pensamentos. — Eu sou como Deus me formou, igual a todos os outros, igual ao senhor e aos escravos lá fora. Não tenho culpa nem vantagem nisso. E por que razão, aliás, as almas infelizes que queriam me matar iriam se conter por causa de um nome? Eu continuava a ser apenas um monge jovem que, aos seus olhos, não saberia nem como empunhar uma espada. E, então, como é que um nome poderia amedrontá-los?

— Porque, se eles tivessem sequer posto a mão em cima de você, nenhum deles iria ver o sol se pôr dali a alguns dias. Não sobraria nem um. Todas as famílias folkeanas, incluindo a tua família, ficariam no encalço deles. E nenhum camponês nesta terra infeliz sequer iria sonhar em fazer uma tal idiotice. Assim é lá fora. E você precisa começar a se habituar com essa idéia.

— Mas eu não quero me habituar a esse pensamento, a essa ordem irracional e ruim, padre. Eu nem sequer quero viver num mundo assim.

— Mas está obrigado — interrompeu o padre Henri, curto e definitivo. — Isso porque foi decidido assim. Em muito breve, você voltará ao mundo lá fora, mais uma vez. Essa é a minha ordem.

— Vou cumprir a sua ordem, mas...

— Nada de mas, — interrompeu de novo o padre Henri. — Aliás, você está proibido de raspar a sua cabeça, novamente. E vai interromper o jejum a partir de agora. Lembre-se apenas de não comer muito de início. E depois do jantar deverá ir imediatamente falar com o irmão Guilbert, que lhe contará outro lado da verdade a seu respeito, um lado que você também ainda não conhece.

O padre Henri levantou-se lentamente do catre de madeira nua, sentindo-se, de repente, mais velho e com as articulações endurecidas e pensando pela primeira vez que a sua vida tinha entrado no outono, que o tempo estava escorrendo pela ampulheta e que talvez ele não viesse a saber o que Deus tinha estipulado por missão para o Seu amado filho.

— Me desculpe, padre, mas gostaria de fazer uma última pergunta, antes de o senhor ir embora. Posso? — disse Arn, com uma expressão no rosto que ele pensava ser de desespero.

— É claro, menino, faça quantas últimas perguntas quiser. As perguntas jamais acabam. É sempre assim.

— Onde estão o pecado seu e o do irmão Guilbert? Isso eu ainda não consegui entender...

— Muito simples, meu filho. Se você soubesse quem era, não precisaria matar ninguém. E se tivéssemos dito quem você era, só assim você ficaria sabendo. Nós escondemos a verdade de você, acreditando que assim o estávamos defendendo e porque Deus nos ensinou intensamente que nada de bom poderá vir de coisas ruins. É assim, muito simples. Mas também nada de mau poderá surgir das coisas boas. E você não tinha más intenções. Muito bem, nos vemos nas vésperas!

O padre Henri deixou Arn sozinho por algumas horas, as de que ele precisava para rezar e agradecer a Deus, coisa que o padre Henri nem precisava mencionar. E, de fato, assim que o padre se foi, Arn caiu de joelhos e agradeceu a Deus, à Virgem Maria e a São Bernardo, nessa ordem, por terem salvo a sua alma através da Sua infinita bondade. Durante as suas orações, ele sentiu como se Deus lhe tivesse respondido. A vida voltou ao seu corpo, atravessando-o com uma corrente de calor e de esperança. E, finalmente, com uma sensação tão trivial como a de estar com fome.

Gunvor estava como que embriagada com sua própria bondade, o que a fazia muito feliz. Na realidade, era um grande sacrifício aquilo que ela e Gunnar estavam a ponto de realizar. Os dois bonitos cavalos que receberam de presente eram quase metade de tudo o que os dois possuíam, e deles fazer uma doação não era propriamente uma coisa fácil. Mas estavam certos em fazer essa doação e ela estava orgulhosa e feliz por ver que nem ela nem Gunnar tinham hesitado, quando se aproximavam de Varnhem. Tal como Gunvor via a situação, a Virgem Maria tinha correspondido às suas orações mais sigilosas. Não fazendo com que ela caísse nos braços libertadores da morte, mas, sim, enviando um pequeno monge que com dois golpes de espada modificara para sempre não apenas a sua, mas também a vida de Gunnar. Ambos iriam viver agora juntos até que a morte os separasse. E nem um dia sequer se passaria sem que os dois agradecessem a Nossa Senhora pela decisão de os redimir e dar aos dois aquilo que na vida para eles tinha mais valor.

Mas mesmo que o jovem monge, de certa forma, tivesse sido apenas um instrumento sem importância, uma pá de estrume em comparação com a sublime ação de Nossa Senhora, ele era ainda a única pessoa para quem Gunvor e Gunnar podiam se voltar, para agradecer, e ele pertencia ao mosteiro que era o único lugar neste mundo onde os agradecidos podiam entregar suas ofertas. O pai dela sempre teve a idéia de que era preciso implantar no seu espírito o significado da oferta, ainda que ele, sem dúvida, fizesse as suas ofertas para outros que não os santos divinos.

Ao entrar no receptorium, a cavalo, ela seguia atrás do seu Gunnar, com a mãe, Birgite, e a irmã de Gunnar atrás de si. Entraram no lugar onde os visitantes eram recepcionados. Ela sentiu muito respeito e veneração ao estar dentro dos muros do mosteiro, tendo atravessado o bonito arco da entrada onde os cascos dos cavalos faziam um eco que parecia música e no jardim interior onde as flores das mais diversas origens desabrochavam, enquanto uma pequena fonte jorrava água. Ela achou o cerimonial impressionante e desde logo na chegada se sentia como que respirando a presença de Deus.

Desceram dos cavalos, prendendo-os, e o irmão que estava de serviço como recepcionista veio ao seu encontro, perguntando qual era o assunto. Ao receber as explicações de Gunnar, ele pediu para que ficassem à vontade e ofereceu os bancos de pedra para que sentassem junto da fonte. Mandou buscar cerveja e pão que abençoou e repartiu entre eles. Deu as boas-vindas a todos e, depois, foi procurar o prior.

Tiveram que esperar um bom tempo, mas não falaram muito entre si, visto que os quatro ficaram contagiados pela serenidade do lugar. Ia ser difícil a volta para casa, refazendo todo o caminho nos cavalos da mãe, Birgite, e da irmã, Kristina, duas pessoas em cada, pensou Gunvor. Mas ela continuava convencida de que valia a pena fazer a doação de dois cavalos, ainda que muito bonitos, em troca daquele presente de amor que os habitantes do mosteiro haviam intermediado em nome de Deus, não era verdade?

Finalmente, abriu-se uma pequena porta de carvalho, com enfeites de ferro, e entrou na recepção o reverendo prior que veio ao encontro deles. O seu cabelo plantado como uma coroa à volta da parte raspada da cabeça já se apresentava grisalho, mas seus olhos castanhos eram bondosos e cheios de vida, o que o fazia parecer mais novo do que realmente era. Ele abençoou a todos, sentou-se lenta e calmamente, e como formalidade apanhou um pedaço de pão que também abençoou e comeu com eles. Depois, foi direto ao assunto e quis saber como é que aquelas pessoas que não eram ricas, se bem que estivessem vestidas com as suas melhores roupas, queriam oferecer um presente tão valioso para os servidores de Deus. A sua fala, por vezes, era difícil de entender, pois ele usava muitas expressões religiosas específicas da Igreja.

Gunnar, que de preferência seria aquele a quem caberia falar por todos, ficou embaraçado e nisso coube a Gunvor a responsabilidade de explicar, sem que Gunnar fizesse a mínima objeção, a razão da oferta. Contou, então, para o padre Henri como ela no fundo do seu coração tinha colocado todas as esperanças da vida em Nossa Senhora e como a salvação chegou através de um jovem monge e como isso teve como resultado que ela e aquele a quem ela mais amava podiam agora viver juntos o resto do tempo de suas vidas na terra.

O prior escutou primeiro com muita atenção, interferiu aqui e ali com uma ou outra pergunta de que Gunvor não chegou a entender qual era a importância e, em seguida, o rosto do reverendo brilhou de satisfação, num rompante de felicidade interior. O velho reverendo acenava afirmativamente com a cabeça, concordando com aquilo que escutava e que parecia já saber por antecipação e, no final, fez uma oração, ainda que numa linguagem estranha.

Depois, mandou chamar um monge gigantesco que chegou sujo e suado e que passou em revista os cavalos, às vezes com aparente satisfação, outras com grunhidos de mau humor. Explicou, em seguida, qualquer coisa para o prior numa linguagem completamente incompreensível.

— Que Deus seja louvado pelo vosso belo presente — disse o padre Henri, e todos agora escutavam com a maior atenção, ainda que, ao mesmo tempo, o enorme monge se dirigisse de volta para a égua e a segurasse pelo cabresto, começando a falar com ela de uma maneira carinhosa, enquanto não parecia nem um pouco interessado pelo imponente garanhão. — A vossa oferta é muito grande, o vosso desejo de nos doar esses bens preciosos é digno de muito respeito — continuou o padre Henri. — Mas podemos apenas aceitar a égua, já que o garanhão, para nós, não vai servir para nada. Mas não gostaria que vocês vissem isso como desdém de nossa parte. O presente que aceitamos já é de grande valor e talvez a Mãe de Deus já tenha ficado satisfeita com vocês e pensou que estariam oferecendo coisa demais. Portanto, peço a vocês que conservem o garanhão.

Enquanto eles hesitavam quanto ao que dizer em resposta, o padre Henri fez um pequeno sinal para o irmão Guilbert, que se dirigiu a todos com uma vênia e levou depois a égua consigo pela porta de madeira que fechou atrás de si. Gunnar ficou imensamente satisfeito. Tinha tido a maior dificuldade em se separar do seu garanhão. E, ao mesmo tempo, refletiu sobre a reação da égua que sempre lhe dava problemas na hora de lhe botar o cabresto e que agora tinha seguido o monge, uma pessoa estranha, inclusive através daquele portão bem estreito, sem qualquer reação de teimosia. Pareceu a ele que a égua estava dominada pelo mesmo tipo de senso de respeito que eles próprios sentiam ao entrar no seio da casa de Deus. Ao mesmo tempo, partia do princípio de que os monges não deviam saber muita coisa a respeito de cavalos.

Ao observar que os convidados, generosos e agradecidos, tinham aceito a sua recusa de metade do presente oferecido, o padre Henri voltou a sentar-se, satisfeito, e perguntou por pura formalidade se ele podia oferecer alguma coisa de volta. Talvez algumas orações?

Foi, então, que Gunvor, corando, perguntou se ela poderia agradecer pessoalmente ao jovem monge pelo que ele fizera, mas pediu desculpas imediatamente, por ter feito essa pergunta atrevida e acrescentou que seu noivo estava de acordo com ela nesse desejo.

Talvez ela tivesse pensado que o monge ancião iria ficar aborrecido e achar a sua pergunta indevida. Mas, para seu alívio, o padre Henri se mostrou, ao contrário, bem alegre e achou a sugestão muito boa. Levantou-se rápido como se fosse um jovem e partiu ágil, mas, de repente, pareceu lembrar-se de alguma coisa, parou e virou-se.

— Mas vocês vão ter que se encontrar com ele a sós — disse, sorrindo, um sorriso muito aberto que deixou ver um buraco entre os dentes no maxilar inferior. — Esse jovem ficaria desnecessariamente constrangido, caso o seu prior ficasse por trás do seu ombro. Ele não está habituado a receber agradecimentos. Mas não fiquem preocupados. Ele é um de vocês e entenderá tudo o que vocês lhe disserem.

O padre Henri abençoou os seus convidados, se despedindo, e desapareceu pelo portão de carvalho, com passos rápidos como um jovem, mas murmurando palavras ininteligíveis.

Todos ficaram durante um tempo falando entre si, achando incompreensível a situação. Não conseguiam encontrar qualquer explicação. De qualquer forma, parecia não ser inconveniente que um jovem monge se encontrasse sozinho com os convidados, nem mesmo quando estes fossem em parte mulheres, ao passo que teria sido inconveniente se Gunvor e Gunnar tivessem viajado sozinhos para Varnhem.

Quando Arn, limpo e tímido, veio ao seu encontro, Gunvor ajoelhou-se diante dele e pegou em suas mãos, coisa que pôde fazer só porque seu noivo, a mãe Birgite e Kristina estavam também presentes, ao lado. Depois, deixou que as suas palavras de agradecimento saíssem torrencial-mente de sua boca.

Mas enquanto falava ela sentiu que as mãos que segurava não eram, na realidade, as de um garoto. As mãos eram largas e duras como pedra. Era como se ela tivesse pegado nas mãos do seu pai ou nas mãos de um ferreiro. Mas ao olhar para cima, encontrando os olhos azul-claros de Arn, pareceu a ela que o seu rosto infantil e suave nada tinha a ver com aquelas mãos e que, então, talvez Nossa Senhora não lhe tivesse mandado um monge qualquer, já que essas mãos não pertenciam a um jovem supostamente fraco.

Corando, Arn ficou sem saber o que fazer naquela situação. Por um lado, tinha que respeitar os agradecimentos sinceros da jovem. Por outro lado, achava que ela estava dirigindo os seus agradecimentos na direção errada. Conseguiu livrar-se das mãos dela, com todo o cuidado e logo que achou oportuno pediu que ela se levantasse. Abençoou-a, mas lembrando que os seus agradecimentos deviam ser dirigidos, por justiça, a alguém mais lá em cima. Gunvor concordou de imediato e assegurou que iria agradecer sempre enquanto vivesse.

Arn cumprimentou, então, os outros, apertando suas mãos, e isso fez com que reconhecessem que Gunvor tinha razão. Eram mãos calosas. Depois, voltaram a sentar-se e ficaram em silêncio.

Foi aí que Gunnar achou que devia dizer alguma coisa antes que fosse tarde demais. E se não dissesse alguma coisa, iria arrepender-se para o resto da sua vida. Por uma questão de coragem e honra, tinha que dar expressão aos seus pensamentos.

E Gunnar começou, explicando, meio atabalhoada e entrecortada-mente, que ele e Gunvor há muitos anos se amavam em segredo e pediam insistentemente a Deus que os unisse, embora nada parecesse dizer que isso iria acontecer e apesar de seus pais terem rejeitado seus sonhos como caprichos infantis. Mas ele achava que não podia viver sem a sua Gunvor. E ela sentia a mesma coisa por ele. E que no dia em que ela foi levada para o casamento, ele não queria viver mais. E ela também não. E mesmo atendendo a que foi Nossa Senhora que, finalmente, teve pena deles, não havia dúvidas de que fora Arn quem veio em serviço dela e para cumprir a sua vontade. —

Diante dessas palavras, diante dessa simples e sincera tentativa de, numa linguagem rude, expressar o verdadeiro conteúdo de uma graça espiritual, Arn sentiu um enorme respeito e agradeceu. Embora já tivesse absorvido as palavras do padre Henri, chegando à conclusão de que a absolvição que ele lhe ofereceu estava correta, tudo tinha resultado como que nos andaimes e no esqueleto de uma casa que ainda não estava pronta. Mas agora, com esse presente de amor que os dois jovens e simples camponeses tinham recebido e pelo qual, de todo o coração, tinham vindo agradecer a ele, o menor de todos os instrumentos de Deus, era como se a casa, de repente, ficasse pronta, com todos os muros e todo o madeiramento do telhado e todas as janelas nos seus devidos lugares.

— Gunnar, meu amigo — disse ele, com o seu interior em júbilo —, isso que vocês me disseram vai ficar comigo como uma recordação para sempre, podem estar certos. Mas a única coisa que posso dar a vocês em agradecimento é a palavra das Sagradas Escrituras, e não pensem nada de mal a esse respeito antes de ouvir as palavras que vou citar. Sem dúvida, foi o amor de vocês que venceu tudo e todos. E a Mãe de Deus viu esse amor e, por isso, teve pena de vocês. E escutem agora as seguintes palavras do Senhor e deixem que essas palavras fiquem vivendo para sempre na sua casa e nos seus corações:

 

Põe-me como selo sobre o teu coração,

como selo sobre o teu braço;

porque o amor é forte como a morte,

o ciúme é cruel como o sol;

a sua chama é chama de fogo,

verdadeira labareda do Senhor.

As muitas águas não podem apagar o amor,

nem os rios afogá-lo.

Se alguém oferecesse todos os bens de sua casa pelo amor,

seria de todo desprezado.

 

Ele citou esse texto na linguagem deles, de modo que todos entenderam tudo. E teve de repetir várias vezes o mesmo texto para que eles o fixassem na memória e ainda disse a eles de onde, nas Sagradas Escrituras, essas palavras de Deus vinham, dos Cantares 8:6-7.

Ao se separarem, todos se cumprimentaram de novo, apertando efusivamente as mãos. E Gunvor perguntou qual era o nome dele. Arn estava passando pela primeira vez pela oportunidade de dizer o seu nome para alguém. O nome que pertencia ao mundo lá fora, Arn Magnusson de Arnäs. Mas ele se conteve, achava que era um nome muito presunçoso. E disse apenas que se chamava Arn.

Ao cavalgar de volta para casa, Gunnar pôde ter a sua noiva sentada na sua frente, na sela, seus braços à volta da cintura dela, naquele mesmo garanhão forte, devolvido. Não havia nenhuma razão para voltar andando. E Gunnar sentia seu peito arfar aceleradamente. E sentia que aquele vento fresco do outono jamais tinha sido tão agradável e tão livre. Cavalgava com a sua futura mulher no colo, sentia o calor do corpo dela e o pulsar vibrante do coração dela no seu braço. E juntos repetiam, vezes sem fim, as palavras de Deus que falavam do seu amor vitorioso.

 

Escureceu rapidamente naquele dia e o tempo evoluiu para uma tempestade. Não era possível manter uma conversa ao ar livre e eles receberam a informação de que poderiam ficar à vontade no parlatório, junto da capela. Com o capuz balançando com o vento, Arn estava já se dirigindo para o encontro, no claustro, mas antes recomendou que Gunvor e Gunnar se resguardassem bem no caminho para casa nessa que seria a primeira tempestade do outono. E se resguardassem com algo mais do que com o calor do amor. Se bem que, pensava ele, o amor deles dois fosse suficientemente forte para afrontar todos os ventos, tanto os ventos da vida quanto os da tempestade que se aproximava.

O irmão Guilbert já estava esperando dentro do parlatório, bem limpo e ainda com o cabelo molhado, quando Arn entrou. As chamas de três velas acesas tremularam quando ele abriu e fechou a porta, rapidamente. Primeiro, os dois rezaram juntos um padre-nosso e, a seguir, uma oração em silêncio, cada um por si, diante daquilo que iria ser revelado.

Ao levantar o olhar, finalmente, depois da sua oração, o irmão Guilbert tinha os olhos rasos de carinho pelo seu discípulo, mas também uma estranha expressão de pena que Arn apenas tinha entrevisto uma ou outra vez, no passado.

— Sou Guilbert de Beaune como irmão em nossa ordem, isso você já sabe — começou ele, lentamente. — Mas era também o meu nome em outra ordem que está muito próxima da nossa. Podemos dizer que é a nossa ordem irmã, armada. Uma ordem que tem o mesmo pai espiritual que nós. E você sabe quem é.

— O sagrado São Bernardo de Clairvaux — constatou Arn, esfregando as suas mãos em cima da pesada mesa de carvalho e deixando cair a cabeça, mostrando que estava ali para escutar e nada dizer.

— Isso mesmo — continuou o irmão Guilbert, tomando fôlego —, ele mesmo e ninguém mais foi o fundador do Sagrado Exército de Deus, a Ordem dos Templários, e foi lá que eu combati a favor da causa de Deus, durante doze longos anos. Portanto, fui soldado no ultramar durante doze anos e já enfrentei mais de mil homens em combate, homens bons e maus, corajosos e covardes, competentes e incompetentes, e nunca nenhum me venceu. Como você muito bem já entendeu, existe também um lado teológico nessa questão e não apenas aquele lado que tem a ver com a capacidade de as mãos e os pés se movimentarem. Mas agora vamos passar por cima desse aspecto. O fato é que até agora jamais conheci um homem superior a mim, com a espada ou a lança, e a cavalo, e não estou dizendo isto para me vangloriar, você sabe que aqui dentro ninguém se vangloria. Digo isto porque é verdade e para que você, de uma maneira precisa e clara, saiba de quem aprendeu a arte de usar a espada, a lança, o escudo, o arco e a flecha, e, mais importante do que todo o resto, o cavalo. Antes de continuar e por pura curiosidade devo lhe fazer uma pergunta. Isto nunca lhe ocorreu?

— Não — respondeu Arn, inseguro e, ao mesmo tempo, deslumbrado pela idéia de ter cruzado armas, durante todos esses anos, desde que se lembrava, com um vencedor abençoado por Deus. — Não, pelo menos desde o início. Sempre existiam apenas o senhor e eu. Mais tarde, depois de ter enfrentado aqueles homens que me queriam matar e de ter visto a maneira infantil e desajeitada como eles manuseavam a espada, comecei então a pensar uma coisa e outra. A diferença entre eles e o senhor, meu querido irmão Guilbert, era abismal.

— Muito bem, vamos ficar por aí e falar um pouco a respeito disso. Não é perigoso. Antes pelo contrário, será muito bom para você — continuou o irmão Guilbert, como se ele, pura e simplesmente, tivesse mudado de assunto e já tivesse dito o que devia dizer. — Pelo que eu entendi, veio um homem direto por trás de você, tentando acertar a sua cabeça, não é verdade?

— Sim, acho que sim — afirmou Arn, se encolhendo. Não estava gostando do curso que a conversa estava tomando.

— Você se esquivou e ao mesmo tempo mudou a espada de mão. O homem na sua frente baixou a guarda pelo fato de estar olhando, não para a sua espada, mas para a sua cabeça que ele pensava já estar rolando pelo chão. Você viu a abertura na guarda e atacou de imediato. Mas teve tempo para pensar que tinha de se virar rápido e para o lado, ao mesmo tempo, a fim de enfrentar o outro, pronto para atacar você de novo. Foi o que você fez. O outro já tinha levantado de novo a espada, mas tinha de mudar de pé. Aí, você viu a brecha entre os ombros e o joelho dobrado, pela cintura, e deu uma nova estocada. Foi assim que aconteceu, mais rápido do que você ou qualquer outro pudesse pensar, não é verdade?

O irmão Guilbert tinha falado o tempo todo de olhos fechados e muito concentrado, como se estivesse vendo tudo de novo dentro de si.

— Sim, foi precisamente assim, é verdade — reagiu Arn, envergonhado. — Mas eu...

— Nada disso! — interrompeu o irmão Guilbert, elevando a mão em sinal de que era para parar. — Não se desculpe nunca mais por este caso. Você já foi absolvido. E voltemos de novo para aquilo que o padre Henri me mandou esclarecer para você. Na realidade, não teria feito diferença nenhuma se aqueles desordeiros fossem três ou quatro. Você teria matado todos. Acho que, para dizer a verdade, não existe ninguém lá fora que lhe possa enfrentar com a espada, pelo menos, neste país. Mas pense no que aconteceria se você e eu nos defrontássemos de verdade, num combate de vida ou morte. O que aconteceria?

— Antes de eu piscar os olhos duas vezes, o senhor já teria me acertado... Ou talvez três vezes — respondeu Arn, desorientado. Não podia sequer imaginar a terrível situação.

— Nada disso! — riu o irmão Guilbert. — Não estou falando, evidentemente, de um exercício, daqueles que a gente fez sempre que eu comandava e você obedecia. Mas de uma situação em que você teria de pensar por si mesmo e ser obrigado a me dar combate. Como iria combater contra mim?

— Não posso nem imaginar esse pensamento tão pecaminoso. Eu jamais iria levantar uma arma com a finalidade de matar a quem eu amo, — respondeu Arn, envergonhado, como se mesmo assim tivesse acabado de pensar o impensável.

— Eu ordeno que pense nisso. Estamos tratando do assunto teoricamente. Ninguém aqui pretende se debater de verdade. Mas, vamos pensar, como é que você se debateria comigo em teoria?

— Eu não iria avançar direto contra o seu corpo — começou Arn, hesitante e refletindo um instante, antes de continuar obedientemente a trabalhar na questão. — Se eu avançasse direto, a sua força e alcance iriam definir rápido a situação. Eu teria que me esquivar por muito tempo, esperando, aguardando até...

— Sim? — disse o irmão Guilbert, com um pequeno sorriso nos lábios. — Até quando?

—Até... chegar a oportunidade a meu favor, até que o senhor tivesse se movimentado tanto que seu peso e força já não trabalhassem tanto a seu favor. Mas eu não deveria nunca...

— Então, é assim que você pensa que esse combate seria! — interrompeu o irmão Guilbert. — E com isso passemos para uma coisa mais importante. A idéia do padre Henri de não lhe contar quem você era é fácil de entender, por pura lógica, não é verdade? Nós tínhamos de evitar, a todo custo, que você ficasse convencido, tínhamos de salvá-lo de toda arrogância, em especial, ao se tratar de coisas nossas, aqui de dentro, coisas que acontecem escassamente lá fora, onde eu vivi antes de chegar aqui, consideradas como coisas baixas. Treinei muitos irmãos na minha vida no ultramar. Não fazia outra coisa enquanto em guerra. E, por isso, posso dizer que vi poucos homens com o seu talento de Deus quando se trata do manuseio de armas. E você tem dois segredos que o tornam muito forte. E deve conhecer um deles, não é verdade?

— Posso mudar da mão direita para a esquerda — respondeu Arn, com voz baixa e baixando os olhos para a mesa, na sua frente. Era como se ele se envergonhasse, sem saber por quê.

— Isso mesmo — constatou o irmão Guilbert. — E agora vou mencionar o segundo segredo. Você não é um homem alto como eu. Mais da metade de todos os homens que, eventualmente, você vai enfrentar com a espada lá fora serão mais altos e mais fortes do que você. Mas seu único treino na vida foi enfrentar um homem mais alto e mais forte. É nisso que você é melhor. Portanto, nunca temas os homens mais altos do que você. Receie antes aqueles que são do seu tamanho ou menores. E mais uma coisa. Aquele perigo de orgulho que tanto preocupava o padre Henri existe, de fato, embora talvez não naquela forma que ele imaginou. Eu vi muitos homens morrerem, justamente, por serem orgulhosos, só porque no meio de um combate contra um adversário inferior ou talvez alguém que apenas parecia inferior, acabaram cheios de admiração por si mesmos, exageradamente. Por Deus, já vi homens morrerem com um sorriso de orgulho ainda nos lábios. Não esqueça isso, nunca! Mesmo que todos os homens, seus compatriotas, lá fora, sejam inferiores em treino, o que eu acredito, qualquer um deles poderá feri-lo ou matá-lo no momento em que você sofrer do mal do orgulho. É como se a punição de Deus, de algum modo, caísse mais rápido sobre aquele que peca com a arma na mão. O mesmo acontece com a raiva ou a ganância. Por isso, eu lhe digo e isso você nunca deverá esquecer, a arte que você aprendeu entre estes muros sagrados é uma arte abençoada. Se levantar a espada alguma vez em pecado, você vai ficar muito perto da punição de Deus. Pela terceira vez, nunca esqueça isso. Amém.

Quando o irmão Guilbert terminou a sua explicação, ficaram os dois sentados em silêncio durante algum tempo, Arn, com o olhar distraído, fixo em uma das três velas, enquanto o irmão Guilbert o observava dis-farçadamente. Era como se estivessem esperando um pelo outro e nenhum deles quisesse ser o primeiro a dizer qualquer coisa, com medo de que o outro preferisse falar de qualquer outro assunto.

— Talvez você esteja pensando qual foi o pecado que me fez passar dos templários para os cistercienses? — perguntou o irmão Guilbert, por fim.

— Sim, isso é claro como água — respondeu Arn. — No entanto, eu não posso imaginar o senhor como um grande pecador, meu caro irmão Guilbert. Simplesmente, não faz sentido.

— Isso se deve, principalmente, ao fato de você não poder se imaginar no mundo lá fora. O mundo lá fora está cheio de pecados e de tentações. É um atoleiro. É um chão com muitas armadilhas, buracos enormes cavados para fazer cair os incautos. O meu pecado foi o de simonia. O pior dos pecados no regulamento dos templários. Será que você sabe sequer do que se trata?

— Não — reagiu Arn, sinceramente, e, ao mesmo tempo, admirado. Tinha ouvido falar de milhares de pecados, grandes e pequenos, mas nunca dessa tal simonia.

— É o de ser pago pelos serviços prestados em nome do Senhor — respondeu o irmão Guilbert, com um suspiro. — Na nossa ordem, tínhamos de lidar com muito dinheiro, pra lá e pra cá, e, por vezes, ficava difícil ver o que era pecado e o que não era pecado. Mas eu não vou me desculpar. Já reconheci o meu pecado e ainda hoje continuo fazendo penitência por ele. Também não me foi dado o privilégio de morrer pela causa de Deus, de espada em punho. É isso aí. Mas se não fosse pelos meus pecados que me trouxeram para esta vida tranqüila, você jamais teria me encontrado e então seria outro homem completamente diferente do que é hoje. Isso dá no que pensar, visto que Deus tem sempre uma finalidade em vista, em tudo o que acontece.

— Prometo que jamais trairei o senhor, jamais o decepcionarei, meu amado irmão — disse Arn, rápida e emocionadamente.

— Bom — reagiu o irmão Guilbert. Inclinou-se para a frente e, divertido, olhou bem o rosto aberto, infantil, de Arn e seus olhos espantados. — Você deve aguardar um pouco com as suas promessas. Mais cedo do que você espera vai ter que fazer algumas. Todavia, no momento, a nossa conversa terminou e eu lhe ordeno a passar a noite, entre a missa da meia- noite e a missa da manhã, na igreja. Procura Deus em seu coração durante esta noite de tempestade. A ordem vem do padre Henri. Por isso, te apresse e durma algumas horas antes que nos vejamos de novo, talvez, na missa da meia-noite.

— O senhor ordena e eu obedeço — murmurou Arn. Levantou-se e saudou o mestre com uma vênia, indo em seguida para a sua cela onde montou o sino para tocar e o acordar antes da missa da meia-noite e não dormir demais. Depois, caiu imediatamente no sono.

O irmão Guilbert ficou sentado mais um pouco, refletindo diante das velas flamejantes. Depois, apagou-as, soprando. E, em seguida, caminhou a passos largos para a ferraria onde dois dos noviços haviam mantido o fogo aceso, enquanto ele falava com Arn. O serviço ainda não estava pronto. Tinha que usar o último dos óleos secretos que trouxe do ultramar. E havia uns arranjos a realizar na parte de ornamentos.

Depois da missa da meia-noite, Arn foi deixado sozinho na igreja de Varnhem e passou as primeiras horas de joelhos junto do túmulo da sua mãe, diante do altar. Para longas horas de orações, as pessoas tinham direito a usar almofadas que podiam ser retiradas da sacristia e colocadas por baixo dos joelhos.

Arn estava aturdido. Não sabia mais direito quem era. Era como se fosse duas pessoas em uma. A primeira era aquela que ele conhecia, o noviço Arn da Vitae Schola, mais do que de Varnhem. E a outra era Arn Magnusson, de Arnas, na realidade, mais uma mera inscrição do que ele próprio. Nessa noite tempestuosa, pediu a Deus uma orientação para saber entre os dois qual era o melhor e pediu a São Bernardo para conduzi-lo direito na vida, para que ele não escorregasse para os pecados de que o mundo lá fora parecia estar cheio. E, finalmente, pediu uma orientação para, acima de tudo, entre todos os pecados, evitar o do orgulho.

Que o pecado da arrogância fosse o primeiro a evitar não era bem a sua própria idéia. Sinceramente, ele se sentia livre desse pecado sobre o qual tudo o que ele sabia era que o padre Henri e o irmão Guilbert o receavam tanto que tinham mantido em segredo a sua personalidade.

Nas suas orações, Arn conseguiu que a tempestade lá fora acabasse e o tempo parasse. Ou melhor, ao cair em orações, ele conseguiu que todos os seus sentidos o acompanhassem, de tal maneira que o tempo não mais existia. Portanto, o amanhecer chegou rápido e com ele, a tempestade amainou.

Para seu espanto, todo o coro entrou e se colocou atrás do altar. Alguns dos cantores piscaram os olhos para Arn, em sinal de amizade e da surpresa sigilosa que estava por vir. E Arn adivinhou, então, que seria uma missa de despedida da espécie que aconteceria, normalmente, quando algum irmão mais importante que não ele, iria viajar.

Mas, nesse momento, ele escutou o ruído de roldanas e cordas em movimento e quando se voltou um pouco, viu que a grande bacia batismal estava sendo descida na entrada da igreja e que estava sendo preparada a água benta para algum batismo. Aí é que ele não entendeu mais nada do que estava por acontecer.

Então, de repente, o coral da igreja começou a cantar o mais imponente de todos os cânticos ao Senhor, o hino ao eterno reino e seus eternos poderes. Arn notou imediatamente que os cantores se esforçavam ao máximo e de fato se apresentavam o melhor possível. E, em certas passagens, que ele próprio acompanhava, murmurando, de olhos fechados, umas vezes ele sentia frio, outras quase suava. Era como se seu peito se enchesse de uma luz divina que o arrebatava e o elevava para os céus, com a força misteriosa do cântico, a caminho do Senhor.

Mas quando ele desviou o olhar para cima, numa passagem mais longa, viu que alguns dos cantores tinham levantado o rosto e estavam olhando para a bacia batismal, evidentemente, sem o menor desvio no tom musical. E, então, Arn também se voltou para trás e o que viu lhe pareceu a coisa mais estranha e mais surpreendente em toda a sua vida. Lá nos fundos, o padre Henri abençoava uma espada que o irmão Guilbert estendia na sua frente. A espada era borrifada com água benta como se fosse batizada. Era incrível. Uma espada na casa de Deus!

Logo que o imponente hino Te Deum terminou, tendo sido cantados todos os seus versos, o padre Henri e o irmão Guilbert vieram para a frente do altar. O irmão Guilbert trazia a espada estendida nas mãos, com os braços alongados na sua frente, como se fosse uma hóstia ou algum tipo de objeto sagrado. A espada foi colocada cuidadosamente sobre o altar e, em seguida, o padre Henri rezou um padre-nosso e todos o acompanharam murmurando a oração. Depois, o padre Henri virou-se para Arn e fez sinal para que ele se aproximasse e ficasse junto da sepultura da sua mãe. E enquanto ele obedecia, o coro começou a cantar um cântico em francês que ele jamais tinha escutado em toda a sua vida e que os cantores mal conseguiam dominar, como acontecia com os outros cânticos. Arn estava tão absorvido pela situação que nem conseguia escutar as palavras do cântico. Em vez disso, seus olhos procuravam absorver tudo o que acontecia na sua frente.

Então, a espada foi trazida do altar e colocada sobre a sepultura da mãe e na frente de Arn, o punho virado para o altar e a ponta virada para ele. Era uma espada maravilhosamente bonita, com uma folha brilhante de metal branco, de aço duro, de um tipo que Arn jamais tinha visto.

O punho da espada fora feito de tal maneira que os anteparos dourados formavam uma cruz e sobre essa cruz estava esculpido um texto de conteúdo claro: INHOC SIGNO VINCES, com este sinal vencerás. Quer dizer, somente com este sinal poderás vencer, achou Arn, imediatamente.

O punho da espada fora feito precisamente conforme as mãos de Arn. Ele a experimentou e viu que o punho encaixava perfeitamente na sua mão e ficava como se fizesse parte do seu corpo. O dourado brilhava por ser feito recentemente, e seu brilho, da luz do sol, deveria dar uma sensação de segurança para aparar os golpes contrários. O dourado não era para dar a sensação de riqueza ou arrogância. Nada disso.

E, então, o padre Henri e o irmão Guilbert se ajoelharam, virados para Arn, do outro lado da sepultura, e toda a igreja ficou em silêncio. Era como se todos houvessem suspendido a respiração. O padre Henri fez sinal para que o irmão Guilbert prosseguisse, já que daí em diante ele sabia melhor. O irmão Guilbert deu um rápido e pálido sorriso perante a recomendação feita e agiu dominado pela importância mágica do momento. Virou-se para Arn e olhou bem nos seus olhos.

— Arn, nosso adorado irmão — começou ele, em francês e não em latim. E em voz alta que ecoou sob as arcadas da igreja, continuou: — Faz comigo o seguinte juramento que eu te indicarei:

 

Eu, Arn Magnusson, juro perante Jesus Cristo,

diante desta Sepultura Sagrada e do Templo,

que a espada que agora recebo

jamais será levantada com raiva

ou com a finalidade de ganho pessoal.

Esta espada servirá às boas causas de Deus,

à verdade e à honra, minha e de meus irmãos de fé.

Com esta fé e sob este sinal

eu vencerei.

Mas se eu enfraquecer na minha fé,

Deus, com todo o direito, me fulminará.

Amém.

 

Arn teve de repetir o juramento, primeiro duas vezes em francês e, depois, uma terceira vez em latim, sempre segurando a espada com ambas as mãos pelo punho. A seguir, o padre Henri pegou a espada, beijou-a e, de olhos fechados e em silêncio, rezou uma oração, enquanto a conservava diante de si, estendida. Depois disso, ele se virou para Arn e disse algumas poucas palavras:

— Nunca esqueças o teu juramento para Deus, meu filho. Esta espada, que agora é tua enquanto viveres, é uma espada abençoada que só por ti poderá ser usada ou por um templário do Senhor. Esta espada e outras que a ela são semelhantes são as únicas que têm direito a entrar na casa de Deus, não esqueças isso. E porta esta espada sem enfraquecer teu amor a Deus e sem decepcionar a honra que a acompanha esta espada.

Com as mãos que tremiam um pouco, o padre Henri estendeu a espada para Arn, que pareceu hesitar antes de aceitá-la. Era como se estivesse com medo de que ela queimasse suas mãos.

Mas, ao segurá-la, o coro iniciou um novo hino, alegre e impressionante, de congratulações, em francês. Um hino que Arn também desconhecia.

Arn viajou nesse mesmo dia. Mas desta vez a saída de Varnhem foi planejada melhor do que a primeira, que terminou rapidamente num acidente. O cavalo que ele agora montava era o garanhão Chimal, que tinha desempenhado o seu serviço de criação em desenvolvimento durante um ano e não precisava voltar antes disso. Vestiram Arn de cinza e vermelho como qualquer homem do baixo mundo. Arn nem se lembrava mais das roupas que vestia quando criança. Apenas se lembrava das vestes de noviço. Cortaram também o cabelo dele, bem curto e por igual à volta da cabeça. Não havia mais sinal de tonsura.

O irmão Rugiero forneceu-lhe um novo alforje, bem pesado, que desta vez ninguém iria furtar fora dos muros do mosteiro. Não, desta vez não seria enganado. No alforje seguiu também uma boa coleção de plantas, guardadas em sacos de couro para se manterem úmidas, além de sementes e caroços de frutas para plantar.

Ao seu lado, estava pendurada a imponente espada, suspensa em uma simples bainha de couro. Uma espada que parecia tão leve na mão como se fosse uma parte viva do seu corpo. Era tão fácil de manusear e tão equilibrada que ele, sem dificuldade, podia apontá-la para a ponta do seu dedão do pé, sem que para isso tivesse que empunhá-la com as duas mãos.

Sem disfarçar muito seu orgulho com palavras, o irmão Guilbert contou tudo a respeito dessas espadas e no que elas se diferenciavam das espadas normais. Talvez nem tudo, afinal, acrescentou ele, timidamente. Mas o resto iria Arn descobrir em breve, por si próprio.

Arn se despediu longa e emocionadamente de todos, e se sentiu cheio do carinho e do amor de todos, de uma forma que jamais poderia imaginar antes da última missa, ao ver e ouvir a seriedade enorme dos cantores na despedida mais bonita que lhe poderiam ter oferecido.

Finalmente, no receptorium, ele ficou sozinho com o padre Henri e o irmão Guilbert, o primeiro fez sinal para ele subir no cavalo, o que ele fez. E já sentado na sela, Chimal, impaciente, dançando, escutou do padre Henri:

— Pense numa última coisa, agora, que você está mais preparado do que na vez anterior para enfrentar o mundo lá fora — disse ele, mas parou por momentos, subjugado pelos seus próprios sentimentos. — Você está levando agora uma poderosa espada, isso você sabe. Mas lembra sempre as palavras de São Bernardo: Vê, guerreiro de Deus, quais são as tuas armas? Não são elas, antes de mais nada, o teu escudo de fé, o teu elmo de redenção e a tua malha de gentilezas?

— Sim, padre, juro que nunca esquecerei — respondeu Arn, olhando sem piscar nos olhos do padre Henri.

— Au revoir, mon petit chevalier Perceval— disse, então, o irmão Guilbert, fustigando duramente o impaciente garanhão que, de imediato, os cascos batendo forte no chão de pedra, se lançou pela passagem estreita em direção ao mundo lá fora.

— Isso aí foi um pouquinho descuidado. Imagina se ele cai do cavalo — murmurou o padre Henri, preocupado.

— Arn não cai de cavalo nenhum. Dificilmente, isso seria a coisa que mais poderia ameaçá-lo neste momento — respondeu o irmão Guilbert, abanando sorridente a cabeça, diante da desnecessária preocupação do seu prior.

— Aliás, não gosto nada desse absurdo a respeito de Parsifal e do Santo Graal e de todos os cânticos vulgares envolvidos — cortou o padre Henri, virando-se e avançando alguns passos na direção do portão de carvalho. Mas, como aconteceu muitas vezes antes, parou no meio do caminho, lembrando-se de que tinha mais alguma coisa a dizer:

— Parsifal para cá, Parsifal para lá, tudo isso vai ficar esquecido dentro de pouco tempo, como todas as histórias secundárias. É um disparate! É o que é, nada mais!

— Não pode ser um disparate tão ruim, assim. Afinal, parece que o senhor conhece bem essas vulgaridades, padre — comentou o irmão Guilbert, rindo muito, insolente e de bom humor, de uma forma que ele não costumava ser em relação ao seu prior.

Na realidade, ambos estavam comovidos com a despedida, mas nem um nem outro queriam mostrar suas emoções. Mas o irmão Guilbert, em contraste com o padre Henri, estava seguro de que iria se encontrar com Arn de novo. Isso porque, em contraste com o seu prior, também estava seguro de que já sabia qual a missão que Deus, afinal, estava guardando para o jovem Arn.

 

O SENHOR MAGNUS ESTAVA SENTADO na casa-grande, no meio de uma tarde vazia, bebendo cerveja demais e de mau humor. Tinha remorsos de não conseguir amar o seu segundo filho, Arn, que, no entanto, era o mais querido de sua mulher, Sigrid, enquanto viva. E abençoada seja a sua memória.

Magnus sentia dificuldades em reconhecer para si mesmo, ainda que agora se obrigasse a isso com a ajuda de remorsos, que tinha dois filhos adultos que não abençoavam a sua família com aquela honra que competia à sua ascendência. De que ajudava eles terem sangue azul em suas veias se o povo apontava o dedo e torcia o nariz para os dois?

No caso de Eskil, Magnus já tinha se conformado com a situação passada, porque o que o povo tinha dificuldades em entender era quanto ao futuro. Era o comércio e as novas maneiras de trabalhar com a terra e encher as burras de prata. Em tudo isso, Eskil era muito inteligente e deixaria para seus descendentes o dobro da herança que um dia ainda viria a receber. Aqueles que faziam pouco de Eskil, que ele quase não se interessava pelas virtudes masculinas, eram incultos, não entendiam a orientação de Deus quanto à procura da felicidade por parte das pessoas durante sua passagem na terra. Eskil iria ser, em tudo o que significasse alguma coisa, um senhor rico e poderoso em Arnäs. A esse respeito não havia dúvida alguma.

Na verdade, que o filho primogênito não fosse um homem com gosto para brincar com armas era uma coisa à qual podia se sobreviver sem grandes perturbações. Este era o caso de Eskil de Arnäs. A vantagem estaria no fato de ele sobreviver por mais tempo, sem porte de espada e de escudo.

Mas que também ao segundo filho faltassem as virtudes masculinas, isso era pior e tornava a desgraça maior. Magnus tinha escutado alguns dos seus escudeiros falarem baixo a respeito de Arn como a freira de Varnhem. Mas ele decidiu engolir o vexame e fingir que não tinha escutado do que fazer do caso um problema. Já era ruim demais saber que os escudeiros estavam com a razão. O que os monges fizeram com o garoto de quem Magnus tinha uma vaga lembrança, de um rapazinho esperto que cedo aprendeu a atirar flechas com o arco, não era fácil de ver ou de entender. Eram bonitas as orações à mesa desde que Arn tinha voltado para casa, mas daí a ter melhorado a honra da casa era outra questão.

O garoto chegou cavalgando num bonito dia de outono em cima de um cavalo magro que atraía o riso de todos e, pior do que isso, veio com uma espada à cintura que mais parecia feita para mulheres, se é que se poderia imaginar uma espada assim. Era longa demais e leve demais, além de ser malfeita e muito brilhosa. Magnus resolveu rápido mandar guardá-la na sala de armas da torre para não atrair mais risos malvados para com o jovem inocente.

Um pai deve amar seus filhos legítimos, essa era a ordenação inquestionável de Deus. Mas a questão era saber quanto desapontamento e quanta desonra poderiam arranhar esse amor até que, finalmente, esse sentimento não pudesse mais ser chamado de amor.

Outra questão, evidentemente, era a de poder transformar o garoto em gente normal, mas ele parecia ter estado tanto tempo entre os monges que ele próprio não era mais senão um monge. De certa forma, o que nem sempre era para alegria de todos podia-se dizer que agora existia um padre na casa. Era como se à noite, na ceia, ninguém pudesse mais falar à vontade, expressar seus pensamentos do jeito que vinham à cabeça. Pelo contrário, havia que ter cautela com as palavras e deixar de lado as que fossem menos conformes com as leis divinas.

Beber também não era muito com ele. Isso se viu logo na primeira refeição de boas-vindas, que, na realidade, devia ser de alegria e de brincadeiras. Tal como estava nas Sagradas Escrituras, na volta do filho pródigo, Magnus mandou matar um bezerro gordo, ou melhor, mandou matar um leitão, já que era mais refinado ainda. Todos se vestiram de maneira especial para a noite e Arn vestiu algumas roupas de Eskil como adulto, já que este ainda não tinha degenerado e ainda não estava parecido com seu bisavô, Folke, o Gordo.

Mas, durante a noitada, ninguém deixou de notar que Arn, seu filho, tinha pouco a ver com um homem de verdade. Ele apenas bebeu dois canecos de cerveja durante toda a noite e comeu do belo leitão, pedante-mente, com as pontas dos dedos como se fosse uma mulher. E ainda que se esforçasse por se sentir à vontade, ele parecia estar um pouco atrasado em tudo o que se dizia, tinha dificuldade em entender as piadas e em responder a quem tentasse ajudá-lo no ambiente. Também parecia não ter herdado nem um pouco da rapidez de pensamento nem da língua ferina da sua mãe.

Como o álcool ajudava a soltar os pensamentos do mesmo jeito que soltava a língua, Magnus ziguezagueava na abominável idéia de que Arn tinha se transformado em mulher entre os monges. Tais histórias eram contadas por aqueles de pouca fé ou contrários às leis de Deus. Falava-se de inomináveis pecados praticados por certos monges.

Com a sua mente um pouco turva, Magnus tentou ajuizar a situação de Arn, que se sentia melhor entre as mulheres. Seria isso o sinal de que ele estava dominado pela fraqueza especial dos monges ou essa aptidão para se sentir melhor entre as mulheres do que entre os homens indicava, de fato, o contrário?

Em relação à fraqueza, pensou ele primeiro. Era como se esses homens desvirtuados fossem como mulheres e, por isso, estavam mais à vontade entre elas.

Pelo contrário, corrigia ele. Se o homem tem outro tipo de fraqueza, ainda que semelhante, a de bolinar as mulheres, não seria natural que ele procurasse, mais ou menos disfarçadamente, a companhia justo de mulheres? Existiam muitos garotos escravos em Arnäs, mas como todos estavam de olho no filho pródigo, qualquer tentativa deste para dar em cima dos garotos escravos iria resultar numa tempestade de rumores e isso não passaria despercebido ao povo da casa.

Não, esse tipo de homem-mulher, homem afeminado, ele não era. Isso seria a pior vergonha que ele poderia lançar sobre a casa de seus ancestrais e sua família. Nesse caso, teria de ser morto, rapidamente, para restaurar a honra da casa.

Vermelho de raiva, Magnus gritou para as escravas, amedrontadas, que trouxessem mais cerveja, e elas obedeceram, sem palavras e rápidas como o vento.

Depois de ter examinado seus últimos pensamentos, e de parar a meio de mais uma jarra de cerveja, se lembrando de onde estava, Magnus rompeu em choro, subjugado pelas emoções. Na realidade, ele tinha pensado muito mal desse Arn que era seu filho legítimo e que tinha sido a menina-dos-olhos de sua querida esposa, Sigrid. O que é que Deus, Nosso Senhor, queria dizer com tudo isso? Primeiro, ainda garotinho, Arn teve que ser doado a Deus. A esse respeito, todos os sinais tinham indicado, claramente, esse caminho, e sobre o assunto não havia mais dúvidas. Muito bem, se Arn tivesse se tornado um homem de Deus para o resto da sua vida, tudo estaria certo. Na realidade, Magnus não pertencia ao grupo daqueles que negariam tudo o que de bom os monges tinham feito pela Götaland Ocidental. Pelo contrário, ele reconhecia para quem quisesse ouvir que muito daquilo que era melhor em Arnäs do que em outros burgos se devia aos conhecimentos trazidos pelos monges.

Mas que Arn, em vez de continuar fazendo o bom trabalho de Deus entre os monges, viesse de novo para o mundo que antes era o seu lar, e agora como meio homem, meio monge, o que é que isso poderia significar? Àqueles que diziam serem os caminhos do Senhor muitas vezes tortuosos não lhes faltavam razões.

O pior, talvez, era que o garoto insistia em trabalhar como escravo. Apenas alguns dias depois da chegada de Arn a Arnäs, já cavava, já murava e já martelava por toda parte. E não adiantou Magnus ter explicado, com todo o cuidado, para seu filho que ele não precisava se esfalfar daquele jeito. Podia chamar os escravos desocupados, que os havia em bom número nessa época do ano. Foi, então, que a quantidade de trabalhos em andamento se multiplicou e Arn passou a correr de um lado para o outro, acompanhando todos. Daí, o que resultaria de tudo isso era impossível saber de antemão, mas seria uma burrice dizer não, antes de ver.

Se bem que uma coisa ganhou o reconhecimento de todos os homens, inclusive dos mais desdenhosos entre os escudeiros. Arn fez a relação de todos os cavalos do burgo e fundiu um novo tipo de ferradura com uma espécie de unha na parte da frente que evitava a queda da ferradura. Com certeza absoluta, a situação ficou melhor do que antes, no que dizia respeito às ferraduras dos cavalos. Magnus perguntou tanto aos escudeiros quantos aos escravos da ferraria e todos concordaram com isso.

Foi uma boa coisa. E tudo o que fosse melhor hoje do que ontem, em Arnäs, era uma boa coisa. Essa era a opinião de Magnus e também a de Eskil. Mas o tormento era ver o filho legítimo de um aristocrata trabalhar na lama e na fumaça como se fosse um escravo e não se envergonhar nem um pouco disso. Antes pelo contrário. Arn costumava fazer a oração antes das refeições, agora na linguagem nórdica, agradecendo a Deus por mais um dia de trabalho abençoado.

Em muitas coisas, Eskil tinha menos dúvidas que seu pai, dizendo que, em primeiro lugar, ninguém devia menosprezar o conhecimento. E, em segundo lugar, a perícia manual que, sem dúvida, o irmão demonstrava, aprendida com os monges, era uma coisa que devia ser ensinada. Se Arn apenas ensinasse os escravos, dentro de algum tempo estes poderiam assumir os trabalhos. Mas primeiro era absolutamente necessário ensinar, e o único que podia fazê-lo era Arn. Aliás, era errado menosprezar esse trabalho que empurrava o burgo para a frente. Qualquer passo dado em frente era uma vantagem para todos.

Para se consolar, Magnus pensava que talvez, apesar de tudo, Arn tivesse trazido consigo tantas coisas novas dos monges que isso, certamente, faria de Arnäs um burgo mais forte e mais rico. Se bem que era preciso fazer, a todo custo, com que os escravos aprendessem tudo, rapidamente, de Arn, para que este pudesse se desligar e deixar de desonrar sua família suando feito um escravo.

Uma coisa melhor, porém, pensava ainda Magnus, agora, num momento que a cerveja o tinha tornado mais emotivo, era saber que Arn tinha se dado bem com a madrasta, Erika Joarsdotter. Magnus não sabia muito bem o que Arn e sua mulher, Erika, faziam na cozinha, isto porque ele jamais tinha posto lá os pés, mas Erika se mostrou muito satisfeita e estava alegre com aquilo. Além disso, foi bom que Erika tivesse encontrado alguém na família que a tratasse bem. Eskil sempre tivera dificuldade em falar com a madrasta, e ele próprio, Magnus, evidentemente, tentou algumas vezes engravidá-la, visto que isso era o que devia fazer, mas só na terceira tentativa ela lhe deu mais um filho. Esse filho não iria acabar entre os monges, com certeza, mas, sim, entre os escudeiros. E desde tenra idade. Foi assim que Magnus decidiu.

Erika tinha um defeito físico que todos notavam. Sua beleza não era de se jogar fora, mas assim que ela abria a boca era impossível não notar que ela era fanhosa, que o som da sua fala vinha mais do nariz do que da boca. Os menos aristocratas iriam rir dessa fala. Por isso, Erika jamais falava quando houvesse homens estranhos por perto, e o problema também existia quando ela tinha que desempenhar o papel de anfitriã e fazer com que as mulheres convidadas se sentissem bem. Para Magnus, era difícil agüentar sua mulher. E ele se lembrava muitas vezes de Sigrid, a pessoa que tinha estado mais perto dele na sua vida. E isso ele podia dizer só para si próprio ou para Deus.

De qualquer forma, era impossível deixar de considerar que Erika era sobrinha de um rei, que seu sangue era azul e que as duas filhas e o filho que ela procriou tinham sangue azul. E isso pelos dois lados.

Um anjo tinha vindo para Arnäs. Tudo o que tocava se transformava imediatamente numa coisa melhor ou mais bonita. Ele era o único homem que Erika Joarsdotter tinha encontrado na vida que lhe falava como se ela tivesse a mesma capacidade de entendimento que todos os outros. Jamais ele se manifestou dando a entender que a fala dela era fanhosa. Ao contrário, pedia desculpas por ainda não ter voltado a falar completamente a língua da sua infância, isto por ter passado toda a adolescência falando dinamarquês. E jamais, também, ele demonstrou como seu irmão mais velho, Eskil, que Erika Joarsdotter era uma estranha que viera substituir a mãe dos dois rapazes.

 

Bem cedo, logo depois do amanhecer, quando todos os homens ainda dormiam, no dia seguinte à festa de boas-vindas em sua intenção, Arn chegou à cozinha, sóbrio e bem lavado, onde Erika tinha começado o longo trabalho do dia, com as escravas da casa. Respeitosamente e com palavras cuidadosamente escolhidas, Arn pediu a ela para lhe indicar quais eram as suas obrigações como dona da casa. Acabaram dando uma volta pela cozinha e pelas despensas. De todas as perguntas que fez, Erika tirou por conclusão que ele sabia mais como as carnes deviam ser penduradas, defumadas e guardadas e como o peixe devia ser cozinhado do que, normalmente, os outros homens. E disso ele não se envergonhava nem um pouco.

Então, não demorou muito para que tudo começasse a mudar, à medida que ele deixava que Erika o acompanhasse e decidisse, embora fosse indicando e explicando o que era preciso ser feito de imediato e o que podia demorar e levar mais tempo.

Arnäs era um burgo rodeado de água por dois lados. No lugar mais afastado do burgo, junto do lago Vänern, estava situada a fortaleza e os muros de defesa. Era onde os dois braços de mar, se juntavam e formavam o fosso. Mas as sujeiras do curtume e das latrinas, do matadouro e da cervejaria eram jogadas nos dois braços de mar, e esse desmazelo, segundo Arn, tinha por conseqüência o fato de muitos dos filhos dos escravos terem os olhos vermelhos e as bocas babando, assim como erupções feias na pele. Muitas das crianças morriam, já depois de terem passado pela pior época após o nascimento.

A grande mudança a fazer seria, dali em diante, jogar o esgoto somente no braço oriental do Vänern, enquanto que o braço ocidental seria mantido livre de qualquer sujeira. Dessa forma, Arn mostrou para ela através de um mapa desenhado na areia, apontando e descrevendo como seria possível puxar uma corrente de água do lado limpo, passando pela cozinha e jogando do outro lado a água suja. Com uma corrente de água passando permanentemente pela cozinha, seria possível ganhar tempo no trabalho e manter a cozinha limpa, além de se produzir uma comida ainda melhor. A cozinha ficaria melhor ainda se o chão fosse empedrado e cimentado, e tivesse uma pequena inclinação para a água de lavagem escorrer para o esgoto.

No entanto, essas modificações iriam tomar bastante tempo. Mais rápido seria plantar uma horta entre as cozinhas. Arn começou por limpar todos os espaços entre os compartimentos dos escravos, retirando o lixo e levando-o para perto da horta onde seria cortado e esmagado para se transformar em esterco próprio para lançar na terra ou para queimar, caso não servisse para esterco ou demorasse muito tempo para se transformar em húmus como todos os restos de espinhas e ossos. Mas ele fez questão de pedir a Erika que fosse ela a dar as ordens, para que todos obedecessem e ajudassem, e ficassem convencidos de que era ela como dona da casa que tomava todas as decisões.

Mais difícil foi mudar as coisas em relação aos excrementos humanos. Para Arn, esses excrementos eram tão bons para estrume quanto os dos outros animais, desde que bem utilizados. No entanto, os excrementos humanos eram piores, caso fossem parar na comida ou na água. Em vez de fazerem suas necessidades em qualquer lugar, todos seriam obrigados a usar as latrinas especiais com barricas e qualquer um dos escravos que fosse encontrado defecando em qualquer outro lugar seria duramente punido.

Resmungou-se bastante a respeito dessas mudanças entre os escravos, mas Erika Joarsdotter tornou-se uma dona-de-casa rigorosa, começando a acreditar muito mais em Arn do que em qualquer outra pessoa.

Como tinha passado cinco anos como noviça num mosteiro, antes de ser retirada de repente por seu pai, para se casar, ela já conhecia, na realidade, muito daquilo que Arn descrevia. Eventualmente, ela teria pensado que havia uma ordem divina dentro dos mosteiros, que essa ordem pertencia a um mundo superior. Por isso, tudo lá dentro era muito mais limpo do que fora de lá. Era como se houvesse um conteúdo espiritual nessa limpeza. Por isso, também, ela nunca havia pensado ser possível ter a mesma ordem aqui fora, na vida de todos os dias. Até que Arn chegou e lhe abriu os olhos. Ela ainda corava um pouco ao se lembrar do erro cometido ao cumprimentar Arn pela primeira vez com algumas frases em latim, pensadas por antecipação. Como se o latim, de alguma maneira, pudesse cobrir o seu defeito, tornar bonito o que era feio.

 

Entretanto, ao responder, Arn falou umas frases mais longas também em latim, das quais ela apenas entendeu metade. Ela apenas conseguia disfarçar, mostrando que estava seguindo a conversa. Mas logo que Arn descobriu a dificuldade dela, voltou a falar a língua normal, mas em voz alta, para que os outros escutassem. E explicou que, como os dois eram os únicos a falar o latim em Arnäs, seria mal-educado perante os outros mantê-los fora da conversa.

Agora, que ela o conhecia melhor e que os dois falavam muito um com o outro quase todos os dias, ela relembrou o seu erro, tocou no assunto, e ambos riram do acontecido. Por sua vez, ele contou que, nesse caso, tinha sido muito mais divertido quando ele, pela primeira vez, se encontrou com o padre em Forshem. Parecera natural para ele, diante de um homem de Deus, falar a língua da Igreja, o latim, e fez uma saudação respeitosa, disse o seu nome e disse ainda que estava muito satisfeito em voltar à igreja da sua infância, mais ou menos isso. Mas como tinha gente em volta, na entrada da igreja, o padre respondeu como se falasse latim de verdade, mas não falava nada. E Arn imitou o padre, mais ou menos, dizendo: Pax vobiscum hummelidumdum, pater noster et Ave Maria kru-silurum hokuspokusum, lasum et dosum per áspera ad ostra.

Arn se divertiu com a imitação e ambos caíram depois numa cordial gargalhada. E ele continuou, alegre e despreocupado, a descrever como ficara perplexo ao escutar o latim de mentirinha do padre, tanto que nem conseguiu reagir, enquanto o padre se recompôs bem e disse para todos os que estavam em volta que sim, sim, mas também, que o latim não era tão simples assim para os jovens. Depois, se desculpando e com uma piscadela de olho atrevida para Arn, saiu correndo para o outro lado da rua em missão de muita urgência.

Eles riam quase chegando às lágrimas e, então, caíram nos braços um do outro e ela acariciou-o, maternalmente, na face. Foi aí que ele ficou com medo e se afastou rapidamente dela, pedindo encarecidamente que o desculpasse.

Com a chegada de Arn, os dias de Erika Joarsdotter em Arnäs ficaram luminosos e suas responsabilidades como dona-de-casa tornaram-se uma tarefa muito mais fácil, de tal maneira que, cedo pela manhã, ela se levantava de um jeito que antes não podia sequer imaginar. E quando, logo em seguida, os homens na casa grande começaram a perceber que o que vinha para a mesa tinha sabor de novidade e de coisa melhor, começaram também a elogiá-la com palavras de apreço que ela nunca tinha escutado antes. E, sobretudo, a respeito daquele tal presunto defumado.

Na verdade, Arn trouxera consigo uma porção de salsichas e alguns pedaços defumados de carne de porco, quando chegou de Varnhem, e embora quase tudo tivesse desaparecido durante a festa de boas-vindas, sem que alguém agora se lembrasse bem de tais iguarias, ela se lembrou pelo menos de perguntar a ele como é que se faziam essas coisas. E logo ele entrou em ação, construindo um defumador de madeira preparado com alcatrão. Quando ficou pronto, ele próprio fez algumas experiências com pedaços de carne de porco que mostrou para ela. E logo tanto ela como algumas das escravas da casa estavam defumando carne de porco para todo mundo, com um sabor que parecia vir direto de algum mosteiro.

Mas a essa altura já Arn estava dedicando seu tempo a outro projeto, visto que isso de construir um defumador com madeira ainda era possível, mas, em geral, na cozinha, em muitos outros casos, era preciso usar tijolos. E aí ele desapareceu da presença dela e começou a construir uma olaria. Havia argila que servia para essa finalidade perto da praia e por cima do curtume, no braço oriental das águas, e Arn levou uma semana para ensinar aos escravos escolhidos como usar formas, a fim de que todos os tijolos fossem do mesmo tamanho. E como levá-los depois para o forno, para queimar a argila como quem faz pão, embora a uma temperatura muito mais elevada, com a ajuda de foles e durante muito mais tempo. Logo em seguida estava sendo construída com tijolos mais uma despensa junto da cozinha. Arn chamou Erika para dar uma olhada em tudo, dar uma volta pela construção, subir nos andaimes, descrevendo e explicando para ela como mais tarde, quando tudo estivesse pronto, seria possível trazer gelo do Vänern e esfriar a câmara de tijolos, mantendo tudo frio mesmo durante os dias mais quentes do verão. Primeiro, ela riu só de pensar no caso, visto que todo o mundo sabia que era impossível encontrar gelo no verão. Foi, então, que ele, pela primeira vez, pareceu um pouco magoado e permaneceu em silêncio, de cabeça baixa, como se quisesse se concentrar, não dizendo nada antes de a raiva passar. Depois, já calmo e com espírito de tolerância, ele explicou para ela como se fazia. Que não era nenhum milagre e que dava para conservar o gelo e utilizá-lo para esfriar as coisas durante o verão.

Nas suas orações, Erika Joarsdotter agradecia repetidamente a Deus por ter mandado esse filho pródigo que não era seu filho, mas que a tratava como se ela fosse sua mãe. E que dava à sua vida em Arnäs um brilho e um significado que antes nunca tivera. Mas nem para Deus ela ousava dizer aquilo que pensava todos os dias, que Arn, na verdade, era como se fosse um anjo enviado para Arnäs.

Eskil vacilava, não sabia, verdadeiramente, o que pensar a respeito do seu irmão mais novo que, de repente, entrou pelo portão do burgo, cavalgando num animal hediondo, como se mais uma vez estivesse voltando, milagrosamente, dos mortos vivos, tal como havia acontecido antes através de um suposto milagre.

A primeira sensação foi a de um forte amor fraternal. Afinal, aquilo de que Eskil se lembrava mais do que qualquer outra coisa na vida era do dia em que ele e seu irmão mais novo foram obrigados a se afastar um do outro na frente do portão da casa grande. E como ele correu atrás da carruagem em que Arn foi levado e acabou caindo na trilha da carruagem, chorando e vendo Arn desaparecer para sempre entre o nevoeiro das lágrimas e o pó da estrada, arrebatado por uma incompreensível ordem de Deus.

Quando abraçou o recém-chegado Arn no mesmo lugar em que eles antes tinham se separado, primeiro achou que ia abraçar um ser delicado, quase um desnutrido, até que sentiu a força ursina dos braços de Arn à volta do seu corpo num abraço que quase o deixou com falta de ar. Evidentemente, foi um momento de quase incontrolável alegria.

Mas já na primeira noite, durante a festa de boas-vindas, Eskil começou a sentir uma certa preocupação pelo seu irmão mais novo, que parecia não estar gostando da festa, que quase desrespeitosamente empurrou a comida para longe e bebeu cerveja como se fosse uma mulher, e que também em outras situações parecia ser retardado.

Em breve, uma perturbação surgiu. O pai e o filho mais velho passaram a evitar Arn e este, por sua vez, constatando o seu desagrado, procurava a companhia dos escravos e da dona da casa em vez da companhia dos homens. Os escudeiros foram os primeiros a fazer caretas, a revirar os olhos para cima e a fechar os punhos nas costas de Arn em sinal de escárnio. Eskil pensou em chamá-los e falar duro com eles, mas não o fez porque ele próprio não estava livre dos mesmos sentimentos que os escudeiros demonstravam com as suas caretas.

O pai fazia questão de falar o menos possível a respeito de Arn, e a única coisa sábia que ele e Eskil decidiram foi deixar o tempo correr, deixar que Arn continuasse a fazer o que quisesse entre os escravos e as mulheres e, depois, tentar persuadi-lo, gentilmente, a se dedicar também a outras coisas.

E assim se passou muito tempo em que nada aconteceu de especial entre eles, cada um para o seu lado. Nem Magnus nem Eskil se preocupavam em saber o que Arn estava fazendo entre os escravos e na cozinha, no lado mais a sul de Arnäs, onde os dois raramente iam.

Mas uma coisa era impossível deixar de notar. À mesa chegavam novas espécies de carnes e a mais gostosa de todas para Eskil era o presunto defumado que não era duro, nem seco, nem salgado, como alimento especial e necessário para os invernos, mas, sim, saboroso e suculento de dar água na boca só de pensar nele. E a outra coisa que era impossível deixar de ver era como a senhora Erika tinha mudado. Como ela tinha começado a falar alto e sem constrangimentos, apesar do seu defeito na voz. E como ela sorria disfarçadamente à mesa, ao responder a perguntas, como aquela de dizer por que razão ela agora fazia novas comidinhas para almoços e ceias.

Eskil era um homem que favorecia as mudanças, tendo compreendido depois que sua mãe, Sigrid, era muito mais rápida de pensamento que seu pai. As mudanças faziam a diferença, criavam riquezas se fossem boas. E se não fossem, mudava-se tudo outra vez. Assim era em Arnäs. E assim continuaria a ser. Por isso, Arnäs era um burgo que crescia, melhor e mais rico que os burgos dos outros, onde nunca se mudava nada.

Por isso, também, em breve, Eskil não podia mais ficar ignorante. E pediu a Arn para lhe mostrar o que estava fazendo. Arn ficou logo muito satisfeito, quase feliz, e queria até levantar logo da mesa para mostrar tudo para seu irmão mais velho.

Aquilo que Eskil viu, na volta que deu, fez com que mudasse totalmente de opinião. Era claro que Arn não era retardado. Ele sabia muito bem o que estava fazendo. E Eskil logo chegou à conclusão de que tinha sido uma burrice fazer julgamentos precipitados.

Ao visitar as instalações dos escravos, viu que estava tudo mudado, que todo o lixo era retirado, tal como se retirava a sujeira das vacas no estábulo durante o inverno. E que agora podia-se andar por todo lugar sem a preocupação de saber onde pôr os pés.

Primeiro, Eskil chegou a tentar fazer graça, dizendo que, evidentemente, estava tudo muito mais bonito, mas que não servia para nada em se tratando de escravos, ensinando-os a viver como gente. Mas logo se arrependeu do que disse.

Arn explicou, seriamente, que, assim, sem viver na sujeira, os escravos ficavam mais saudáveis, seus filhos sobreviviam melhor e em maior quantidade. E que, naturalmente, era muito melhor ter escravos saudáveis do que escravos doentes, assim como escravos vivos eram melhores do que mortos. Além disso, as doenças dos escravos podiam espalhar-se para as gentes. Por isso, finalmente, a limpeza era a melhor coisa para todas as partes envolvidas. E, depois, Arn explicou ainda seus planos para dividir as duas correntes de águas, uma das quais seria mantida limpa. E como as latrinas em buracos substituíam os excrementos onde calhava e como eles acabavam servindo de estrume, fazendo o bem em vez de espalhar o mal.

A seriedade com que Arn podia falar até mesmo de coisas tão vulgares como a merda dos escravos fez com que Eskil tivesse uma impressão duas vezes mais forte. Por um lado, parecia até que se tratava de uma piada. Por outro lado, parecia tão claro e óbvio que até fazia a cabeça rodar. Imagine-se, medidas tão simples, que até mesmo os escravos podiam cuidar delas, realmente, produziam grandes melhorias? Era muita vantagem para pouco trabalho. E sem que isso custasse uma prata a mais.

Quando chegaram à cozinha e Arn mostrou como o lixo e o estrume melhoravam pequenos canteiros, onde era possível agora cultivar cebolas e alho-porro e muitas outras coisas de que Eskil nem ouvira falar e nem sabia o que era. E quando ele entrou na cozinha e viu o chão de lajotas, de pura lama queimada, bem, primeiramente disse que não valia a pena fazer o lugar bonito, onde apenas as escravas e as mulheres trabalhavam. Mas, aí, Arn riu pela primeira vez, como se aquela nuvem escura de seriedade se abrisse um pouco e um raio de sol aparecesse, e explicou que aquilo não era para agradar aos escravos, mas para que a comida chegasse à mesa mais limpa e mais pura, o que seria melhor, sem dúvida, para todos.

Ao ver o novo defumador e ao escutar as explicações de Arn a respeito de como os presuntos e outras carnes e peixes eram ali tratados, e ao ver a nova construção feita de tijolos, que viria a ser um novo tipo de des-pensa onde o gelo e a escuridão iriam conservar tudo durante o verão, Eskil ficou tão emocionado que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Isso porque agora ele não tinha mais dúvidas. Agora ele estava certo de que Arn, embora não fosse um homem que os escudeiros fiéis respeitassem, tinha trazido do mosteiro conhecimentos enormes e abençoados, e que esses conhecimentos iriam significar para Arnäs novos e impressionantes passos em frente. Na verdade, tudo tinha ficado no mesmo lugar durante muitos anos, melhor do que nos outros burgos, mas ainda assim no mesmo lugar, sem se mexer é avançar, sem progredir.

Eskil abraçou Arn, fortemente, e pediu desculpas por não ter entendido antes que ele era seu irmão de verdade e tão bom quanto ele próprio. Arn teve, então, que confortá-lo e se confortando também, com todos os sentimentos à flor da pele. E, enquanto isso, as escravas da casa ficaram se entreolhando sem sequer poder imaginar do que se tratava.

Assim que Eskil descobriu essa atitude das escravas, logo se empertigou e olhou duro para elas. E elas logo desapareceram rapidamente. Foi então que Eskil sugeriu a Arn que fossem até a sala de contas na torre beber uma caneca ou duas de cerveja.

Primeiro, Arn quase disse que havia muito trabalho esperando por ele e que só no fim do dia de trabalho realizado as pessoas deviam gozar dos seus frutos, regados com o suor dos seus rostos. Mas Arn se arrependeu a tempo, reconhecendo que não tinha o direito de impor as regras da sua vida anterior no ambiente em que vivia com seu próprio irmão. Afinal, era o reconhecimento de seu irmão que ele estava esperando e pelo qual tinha rezado tanto em suas preces. Arn havia sofrido com a frieza e a desconfiança por parte de seu pai e de seu irmão. Mas aguardava que algum dia, em breve, eles iriam entender que aquilo que ele fazia era bom para todos. Portanto, dessa maneira, não era pecado nenhum beber uma cerveja com seu próprio irmão, ainda que no meio da tarde.

O senhor Magnus deu uma desculpa para não levar Arn na viagem à Noruega, a fim de negociar uma herança com os parentes de lá. Já era difícil levar Eskil consigo. Isso porque a visitação aos noruegueses quase sempre acabava em jogos de armas quando a cerveja muito forte começava a fazer seus efeitos. Aquele que não fosse bem rápido e habilidoso ou ainda não fosse bastante velho para dizer não às brincadeiras dos jovens arriscava-se a se ferir de verdade e seriamente entre os noruegueses.

No entanto, apesar do perigo, ele queria levar Eskil. Os negócios seriam difíceis e especiais, e Eskil, mesmo com muita cerveja no bucho, tinha a grande capacidade de fazer contas de cabeça, de todas as mercadorias e dizer quanto valiam em pratas. Eles já haviam falado muito a respeito do assunto, ele e Eskil, chegando à conclusão de que era mais inteligente vender essa herança norueguesa, mesmo que isso fosse causar muito sangue derramado entre muita gente. Na Noruega, como na Götaland Ocidental, era uma questão de honra guardar suas heranças e não deixar que fossem parar nas mãos de outra família.

Mas as vantagens de possuir um burgo perto de um grande fiorde eram muito pequenas, caso não fosse para lá morar. Se fosse para morar, tudo seria diferente. O fiorde nunca congelava, o ano inteiro, e de lá o comércio seria mais fácil do que a partir do Vänern.

Aquilo que todos os outros talvez fizessem seria colocar um libertado ou um parente norueguês para explorar o burgo, mas Magnus e Eskil estavam de acordo que essa solução se transformaria somente em posse, mas não em renda. Seria possuir sem ganhar nada com isso. Nenhum parente na Noruega aceitaria pagar renda alguma pela exploração da terra.

Com a venda, portanto, seria possível receber a prata, passível de ser utilizada em algo melhor. Isto porque, com a volta de Arn, seria preciso olhar o futuro. Talvez até ele merecesse ter algum tipo de herança. E, por isso, talvez fosse melhor comprar algumas terras perto de Arnâs ou algumas terras da família de Erika, ao sul de Skara, ou por que não comprar terras da família PU, em Husaby? Qualquer dessas possibilidades seria mais segura e menos perigosa para Arn, do que mandá-lo viver entre os noruegueses, sempre dispostos a lutar pelas armas.

Entretanto, a questão de dizer a Arn que ele estaria fora da viagem à Noruega sem ferir a sua sensibilidade teve uma solução simples. Era uma época, no outono, em que Svarte e seu filho escravo, Kol, estariam caçando veados e javalis. Já tinham trazido boas presas para casa. Arn e Erika tinham muito o que fazer no novo defumador, já que, segundo Arn, era muito melhor defumar as carnes de animais silvestres do que salgá-las e secá-las. Mas justo diante da viagem para a Noruega e da conversa complicada entre Magnus e Arn a respeito da burrice em mostrar um filho dócil e nada agressivo entre os noruegueses, o próprio Arn veio perguntar se podia acompanhar Svarte e Kol em suas caçadas e aprender a caçar.

Magnus ficou duplamente feliz com essa pergunta. Por um lado não precisaria dar a explicação dolorosa a respeito dos parentes noruegueses e da sua mania de brincar com espadas e machadinhas depois de beber cerveja. E, além disso, pela primeira vez, Arn se mostrava interessado em aprender uma atividade que estava incluída entre as atividades aristocráticas. Um bom caçador era bem-visto, até mesmo se fosse escravo.

Entretanto, Magnus não tinha qualquer esperança de que Arn, certo ou errado, um meio monge, pudesse aprender alguma coisa de uma arte difícil e máscula como a caça.

Nem Svarte tinha qualquer esperança também. Mas precisava obedecer. Quando escutou que tinha de levar consigo o segundo filho, outro meio homem, pensou imediatamente o que ia acontecer. Uma vez, dois outonos antes, havia sido obrigado a fazer o mesmo com o filho mais velho da casa, Eskil, que, pelo menos, por enquanto, ainda não era tão redondo quanto um barril de cerveja, mas se tornou uma verdadeira preocupação, transformando a caçada num fiasco total. Não era fácil levar o filho do dono para uma caçada, querendo decidir acerca de tudo, até mesmo do que não entendia.

Svarte estava um pouco menos preocupado com este segundo filho do dono. Eskil era aquele que mais se parecia com seu pai. Em relação a Arn, os outros escravos e escravas falavam muito e, de várias maneiras, o descreviam, mas sempre positivamente Que era um homem que sabia tudo sobre coisas das quais os patrões não sabiam nada. E, ainda por cima, era suave ao dar as suas ordens. Nunca tinha levantado a mão para ninguém, nunca tinha punido ninguém com chibatadas nem levantado a voz com palavras duras para ninguém.

Svarte achava que essas excentricidades tinham mais a ver com a estranha fé dos senhores do que com aquilo que os escudeiros e outros homens andavam dizendo por aí. A fé dos senhores era em muitos aspectos incompreensível. Seus deuses, que eram muitos, tantos que ninguém conseguia conhecer a todos, castigavam as pessoas sem que estas tivessem feito alguma coisa de especial. Era mais uma punição por coisas pensadas. Como se os deuses conseguissem escutar aquilo que as pessoas pensam! E era como se eles, tendo escutado, se interessassem em manter em ordem todas as punições por pensamentos errados.

No que dizia respeito a esse Arn, Svarte lembrava-se muito bem de que ele, quando criança, subira em uma das fendas altas da torre, atrás de uma gralha, e caíra lá de cima, mas tivera sorte ao cair em cima de um montão de neve. A criança, naturalmente, perdeu a respiração durante algum tempo, antes de voltar a si, mas, entretanto, os senhores já tinham rezado e pedido para seus deuses, e prometido tudo, o possível e o impossível. E tudo terminou com eles tendo que mandar embora o garoto como punição para si mesmos ou como punição contra o garoto. Não era fácil decidir por um caso ou outro, visto que tanto um como o outro eram muito difíceis de entender.

Mas agora parecia que a punição estava paga e ele tinha voltado para casa, mas não como qualquer um. Svarte já tinha visto Arn trabalhar na ferraria e tinha que reconhecer, contra sua vontade, que em matéria de martelo e bigorna, ele não tinha muito a ensinar ao garoto. Ou, para dizer a verdade, por muito dolorosa que fosse, era provável o contrário, que ele tivesse alguma coisa a aprender, o que não era fácil de engolir.

Ao partir, aconteceram várias outras coisas que puseram minhocas na cabeça de Svarte. Como estavam levando junto um dos filhos dos senhores, puderam ir buscar as armas na sala da torre e escolher livremente entre as armas ali guardadas. Pela maneira como Arn pegou nos arcos e como ensaiou, puxando a corda, até as mais fortes, sem demonstrar esforço, Svarte achou que esse garoto já tinha pego mais de um arco e flecha. Ele também escolheu corretamente as flechas, ao decidir qual o arco que devia pegar. Svarte tinha imagens muito confusas a respeito do que as gentes cristãs e brancas faziam nos seus mosteiros e isso de, aparentemente, treinarem tiro ao alvo não condizia com a piada provocante que ele e os outros escravos contavam na situação.

Ao carregar seus cavalos de transporte e ao escolher os animais para «5 cavalgar, antes de colocar os arreios, Kol, timidamente, lembrou a Arn que, como filho do dono da casa, ele poderia escolher primeiro qual o cavalo que queria, e podia escolher entre os melhores animais e não esse cavalo dos monges que não parecia grande coisa. Foi nessa hora que Arn riu muito, sem más intenções, e disse que tão logo tivessem cavalgado um pouco em chão aberto, ele iria mostrar que aquele cavalo não era um animal qualquer.

Svarte não era mais cavaleiro do que qualquer um, mas também não era menos. Ele botava ferraduras em todos os cavalos em Arnäs, agora com ferraduras novas, melhores do que aquelas usadas antes. E ele cavalgava como todos os outros, habituados com os cavalos, homens livres ou escravos, camponeses ou escudeiros. Mas como Arn ele jamais aprenderia a cavalgar, disso ele estava certo e reconhecia de imediato. Logo que se afastaram um pouco de Arnäs, Arn fez coisas que ninguém podia fazer com o cavalo, a esse respeito tanto ele como seu filho, Kol, concordaram. E esse tal cavalo que parecia não valer nada aos olhos de toda a gente, quando parado, ao se movimentar com Arn segurando nas rédeas, ele se mostrava tão forte e rápido quanto o cavalo de Oden. Só assim se pode pensar de um cavalo como esse.

Não era nada fácil para eles conversar e se entender, sendo necessário muitas vezes repetir as frases. Por isso, durante as primeiras horas, não conversaram muito.

Tão logo chegaram às florestas de carvalhos de Kinnekulle, ao norte de Husaby, notou-se que Arn era um caçador tão ruim quanto o seu irmão. Em contrapartida, aquilo que o diferenciava bastante do senhor Eskil era a maneira como reconhecia seus erros, pedia desculpas e fazia incontáveis perguntas acerca de como devia ser feito.

Como aconteceu na primeira vez que estiveram bem perto de alguns veados, deitados numa clareira, descansando. O vento estava relativamente forte e eles estavam se aproximando com o vento contra. O tempo estava seco e as folhas das árvores no chão voavam conforme o vento e faziam um certo barulho que confundia os ouvidos dos animais, de modo que em breve estariam à distância do tiro, embora tudo estivesse acontecendo à luz do dia. Svarte e Kol já tinham visto os veados há muito tempo, quando Arn, de repente, os viu também e, excitadíssimo, foi falar para eles. Mas essa fala também os veados ouviram. E devem ter entendido o que estava para acontecer, visto que logo se levantaram e desapareceram na floresta numa corrida veloz feita de longos pulos.

Durante o descanso à noite, perto do fogo, Arn fez muitas perguntas, algumas infantis, a que Svarte e Kol responderam pacientemente, sem mostrar o que pensavam dessas perguntas. É claro que a aproximação tem que ser realizada contra o vento, senão os veados e os javalis descobrem a nossa chegada, e os outros animais também, diga-se de passagem. Eles conseguem ouvir essa aproximação, normalmente, à distância do alcance de uma flecha, se houver silêncio. Se houver ruídos normais na floresta, meia distância. Não, não se deve atirar nos que têm chifres. O gosto da carne deles é ruim, especialmente nesta época do ano, quando acabaram de passar pelo caldo. Ah, sim, o caldo é a época de cobrir as fêmeas e, por isso, a carne dos machos cheira forte demais. É a mesma coisa com os javalis. Não se deve atirar nos machos maiores, mas, sim, nos de tamanho médio. Se der para atirar numa fêmea com muitos filhotes, melhor ainda. Quando ela cai e morre, os filhotes reúnem-se todos à sua volta. E se tivermos sorte e a ajuda dos deuses, é só matar todos de uma enfiada. Os leitões são os mais saborosos.

No momento em que eles estavam perto do fogo, respondendo respeitosamente às perguntas ingênuas do filho do seu senhor, ouviu-se um rugido bem forte vindo da floresta, junto deles. Arn levantou-se amedrontado, num pulo, e pegou rápido no arco e na cesta de flechas, questionando Svarte e Kol com o olhar, mas eles permaneceram tranqüilos e sorridentes nos seus lugares. Ao ver que eles não se mexiam, Arn sentou-se novamente, sem entender nada. Svarte explicou, então, que as pessoas ignorantes chamavam aquele som de tudo, desde o grito de guerra do rei da montanha até o rugido dos feiticeiros se vingando do homem. Essas coisas ruins existiam, sim, mas neste caso o que acabavam de ouvir era o rugido de algum veado velho, com algum resto de caldo ainda no corpo. Esse som amedrontava muita gente porque era sempre muito forte, mas para os caçadores era uma melodia dos céus. Esse rugido significava que dentro de algumas horas, nas primeiras luzes do amanhecer, eles talvez ficassem diante de um rebanho de fêmeas, bezerros e vitelas, atrás do qual estava o veado mais velho. Se seguirem algum veado mais velho na escuridão, os caçadores têm as maiores chances de encontrar, especialmente um pouco mais cedo no outono, aquelas fêmeas e seus filhotes, bons para levar para casa, para as panelas e fornos da cozinha, para salgar e secar.

Bem cedo, momentos antes de amanhecer, eles se levantaram e seguiram, lentamente, com todo o cuidado, por dentro da floresta à procura do velho veado e da sua companhia de fêmeas e filhotes. No entanto, estava difícil andar sem fazer barulho. A temperatura, durante a noite, tinha descido muito e congelado as folhas das árvores no chão que eles pisavam. Até Svarte e Kol tinham dificuldade em evitar os ruídos. Já Arn, ao andar, parecia aos ouvidos deles como se fosse um bando de escudeiros avançando pelo caminho. Mas isso eles só pensavam, não diziam nada. No silêncio da manhã, qualquer pequeno ruído soaria como um estouro de foguete nos ouvidos sensíveis dos veados.

Quando Svarte parou e não ousava avançar mais, eles tinham chegado a uma clareira perto de uma lagoa. Tinham um vento fraco contra si. Aliás, nem Svarte nem Kol teriam avançado de outra maneira. Mas a lagoa, ainda que pequena, estava no meio, entre eles, a clareira e os animais. E da lagoa subia uma névoa bem espessa. Podiam ouvir bem perto o poderoso rugido do velho veado, mas ver as fêmeas e os filhotes estava difícil. Só de vez em quando, através da névoa, conseguiam ver de relance os almejados corpos dos animais. Mas estavam longe demais e nada podiam fazer. Se tentassem avançar disfarçadamente pela clareira, seriam descobertos. Restava ficar no lugar e esperar.

Depois de algum tempo, Arn perguntou, em voz muito baixa, como tinha aprendido recentemente, a razão por que não atiravam. Eles responderam, murmurando, que era longe demais para atirar. Era impossível acertar no alvo antes de ter o veado a metade dessa distância. Arn olhou incrédulo para eles e assegurou, murmurando também, que ele podia atirar.

Svarte queria abanar a cabeça negativamente, seria tolice atirar, mas pensou antes que era melhor que Arn aprendesse com os próprios erros que com o próprio escravo. E repetiu o que tinha dito na noite anterior, perto do fogo. Atrás do ombro, através dos pulmões. Assim, o veado fica quieto, depois de um bom tiro. Porque logo abaixo e atrás do ombro está o coração. Mas se o tiro sair errado, o veado começa a correr disparado, com medo, e espalha o medo para os outros. Caso o disparo acerte nos pulmões e o veado fique quieto, pode-se tentar um segundo disparo.

Arn carregou o seu arco com uma flecha, segurou a arma com o dedão da mão esquerda e fez o sinal-da-cruz. Depois, todos ficaram à espera.

Ao final de uma espera que, com certeza, pareceu muito mais longa para Arn do que para os outros dois, surgiram três veados que ficaram quietos, escutando no horizonte, diante deles, na névoa. Mas os três veados estavam agora na linha de tiro e visíveis. Arn ainda tocou levemente no ombro de Svarte e perguntou com os olhos, em vez de com a boca. Svarte confirmou, bem baixo, no ouvido de Arn, que a posição era boa, mas estavam longe demais. Arn fez sinal que tinha entendido.

Mas logo, de repente, suspendeu o seu arco e apontou para o veado em melhor posição, calculando a curva a uma distância de um braço acima dele, e soltou a flecha, sem hesitar. Eles ouviram a flecha acertar no alvo e viram a vitela ficar quieta como se não entendesse que estava ferida de morte. Arn disparou novamente. E ainda mais uma vez, em seqüência rápida. Logo se escutou a queda dos animais no chão.

Arn quis correr logo na névoa para ver o que tinha acontecido, mas Kol pegou-o pelo braço. E Arn ficou com receio de ter feito alguma coisa errada, novamente. Mas não ficou com raiva. Antes, acenou que tinha entendido. E ficaram esperando que o sol aquecesse a lagoa e acabasse com a dança das nuvens.

Svarte e Kol deitaram-se junto do tronco de uma árvore, depois de terem estendido as mantas que traziam nas costas, e caíram no sono. Arn sentou-se, mas não conseguiu dormir. Tinha disparado o seu arco da melhor maneira possível e estava certo de que havia acertado com seus dois primeiros tiros, mas não sabia ao certo o que teria acontecido com o terceiro tiro, embora pressentisse que alguma coisa tinha saído do normal. Talvez tivesse disparado rápido demais, talvez estivesse tenso demais na hora do disparo. Seu coração batia tão forte que ele chegou a acreditar que os veados podiam ouvir as batidas.

O sol já tinha subido no horizonte há muito tempo quando Svarte acordou. Depois, ele próprio acordou Kol. E os três partiram para a lagoa, a fim de ver o que tinha acontecido.

A vitela que Arn havia visado primeiro jazia morta onde tinha caído, ao ser atingida. E nem outra coisa era de esperar, explicou Svarte, depois de, cuidadosamente, ter examinado o local da ferida. A flecha tinha atravessado ambos os pulmões e a ponta saíra do outro lado. Por isso, a vitela tinha ficado no lugar. Não havia sentido nenhuma dor e, por isso, não havia corrido, em fuga.

O bezerro não estava no lugar onde devia estar, mas havia pistas de sangue que Svarte e Kol logo encontraram. Ao pesquisar o sangue, eles fizeram sinal um para o outro e depois para Arn. Kol avançou, dizendo que o bezerro também tinha sido atingido nos pulmões e que estaria por perto, morto, prestes a ser encontrado. Enfiou uma flecha no chão onde encontraram o sangue e depois seguiram em frente, de cabeça baixa, em direção ao lugar onde os três achavam que o terceiro animal tinha sido atingido. Encontraram sangue numa ponta de grama que esfregaram entre os dedos e depois cheiraram, e logo, de novo, era como se soubessem de tudo o que tinha acontecido.

Svarte falou que o veado estava ferido de morte, mas ainda não tinha morrido e que devia estar febril, a duas ou três distâncias de flecha. E que era melhor voltar e buscar os cavalos, já que não era bom chegar ao animal cedo demais. Era bom deixar que ele morresse em paz.

Ao voltar com os cavalos, verificou-se que tudo o que Svarte e Kol tinham falado era verdade. O segundo bezerro que Arn tinha atingido com o último disparo estava caído e morto um pouco mais longe. Svarte mostrou como a flecha de Arn tinha entrado um pouco atrás no peito do animal, mas quando Arn de brincadeira pediu desculpas, Svarte não pôde evitar um sorriso que tentou esconder. Depois, Svarte explicou a sério que mesmo se o veado estivesse perfeitamente quieto no lugar, no momento do disparo da flecha, ele teria tempo para dar um pequeno passo em frente enquanto a flecha estava a caminho. No caso, foi isso que aconteceu.

Até a noite, ficaram procurando pelos veados de novo, mas sem sucesso. Svarte contou que isso dependia do fato de o vento ter ficado muito fraco, sendo impossível contar com ele para uma aproximação. Os veados logo notavam a presença do homem, mesmo que a movimentação do caçador fosse praticamente nula.

Todos estavam, porém, de muito bom humor, ao cair da noite. Os três veados caçados pendiam, um ao lado do outro, de um forte ramo de carvalho. Tinham tido muita sorte como caçadores de um dia só.

Junto do fogo, à noite, Svarte e Kol ofereceram os corações dos veados para os seus deuses, possivelmente na crença de que o filho do seu dono não entendia o que estavam fazendo, virando as costas e murmurando as palavras sobre o fogo na sua própria língua. Na hora da ceia, Svarte e seu filho é que ficaram perplexos. Kol foi apanhar pequenos ramos de aveleira para grelhar no fogo baixo pedacinhos de fígado e de rim, além de rodelas de cebola, que Svarte tinha trazido na sua sacola de couro. Os dois escravos ficaram espantados quando Arn se dispôs a comer esse lanche. Todos sabiam que esse tipo de comida servia apenas para escravos. Mas Arn, porém, comeu e repetiu, com o mesmo apetite que os outros dois, pondo de lado a sua carne de porco salgada. Depois disso, era como se os três ficassem mais próximos e mais à vontade entre si.

Quando já se encontravam deitados perto do fogo e bem cobertos com os seus mantos para agüentar a noite, Svarte aventurou-se a fazer uma pergunta, se no mosteiro do Cristo Branco aprendia-se, realmente, a usar o arco e flecha dessa maneira. Arn, que a esta altura entendeu que tinha atirado bem, ficou lisonjeado com a pergunta. E pensou que muito poucos tinham tido a chance de ter o irmão Guilbert como professor e explicou, depois, que não era uma coisa normal os monges atirarem com arco e flecha, mas que ele, a esse respeito, havia tido a sorte de receber lições de um professor muito competente. Svarte e Kol riram muito da história, e Kol acentuou que gostaria de encontrar esse professor. Mas aí, quando Arn respondeu por brincadeira que isso só seria possível se Kol e Svarte se deixassem batizar, os dois escravos silenciaram e ficaram tristes, olhando para o fogo.

Para apagar sua brincadeira ferina, Arn acrescentou que, independentemente daquilo que eles pensassem, os mosteiros do Cristo Branco eram um mundo, no entanto, onde não havia escravos e onde todos eram iguais, cada um valendo o mesmo que qualquer outro. Mas sobre o assunto, ele apenas recebeu o silêncio como resposta. No entanto, Arn quis continuar no tema e pediu, com palavras simples e sem rodeios, da melhor maneira que lhe era possível, para lhe dizerem por que razão Svarte e Kol ainda eram escravos, como no tempo em que ele próprio ainda era criança. Muitos dos outros tinham obtido a liberdade. Por que não Svarte e a sua família?

Svarte, que agora precisava responder, quer quisesse ou não, explicou lentamente que tudo dependia daquilo que cada um fazia para poder ser libertado ou não. Os escravos que trabalhavam na agricultura eram libertados com mais facilidade que os que trabalhavam como pedreiros ou caçavam. Os lavradores eram utilizados na abertura e preparação de novas terras para Arnäs e recebiam a liberdade em troca de arrendamento. Mas caçar para conseguir peles durante os invernos e caçar para obter carnes durante os outonos eram funções que o desempenho ia direto para a cozinha de Arnäs e, por isso, era impossível conseguir a liberdade, no caso, justamente, por trabalhar nessas funções. E o mesmo se podia dizer dos que trabalhavam na construção ou nas ferradas. E para que Arn não pensasse que ele tinha ido longe demais e falado atrevidamente, Svarte acrescentou que não se lamentava. Muitos dos homens que trabalhavam como madeireiros estavam na mesma situação.

Arn refletiu por momentos, enquanto os outros dois esperavam em silêncio. E disse, depois, que achava esse sistema injusto. Se é que tinha entendido bem, as peles de arminho e de marta davam boa receita tanto quanto o milho, o trigo e as rações. Foi, então, que Kol soltou uma gargalhada quase atrevida e, quando Arn perguntou qual era a piada, Kol gaguejou como resposta que seria difícil encontrar uma maneira de utilizar a escravatura e torná-la justa. E Svarte lhe deu um toque na perna por baixo do manto para que fechasse a boca.

Mas Arn não ficou zangado nem um pouco com o atrevimento de Kol. Pelo contrário. Acenou com a cabeça afirmativamente, em silêncio, para si mesmo, e disse depois que pedia desculpas por ter pensado mal e que Kol tinha toda a razão. Ele mesmo jamais queria e jamais iria ter um homem como escravo.

Como Svarte e Kol não tinham mais nada a dizer sobre o assunto, a conversa entre eles morreu. Arn rezou a sua oração da noite por todos, se aconchegou na manta e em seus cobertores de tal maneira que deu a entender que já tinha dormido ao relento antes. E virou-se para dormir. Depois, fingiu que não escutava aquilo que os outros dois ficaram falando em voz baixa.

Mas Svarte e Kol tinham dificuldade em dormir. Eles se juntavam um ao outro para se aquecerem mutuamente, tal como estavam habituados. E refletiram longamente sobre esse filho do dono e seus deuses estranhos.

Levantaram-se cedo de manhã por causa da geada, um pouco antes do amanhecer, e comeram logo a refeição matinal, aquela sopa que Kol tinha começado a preparar na noite anterior e ficara sobre o fogo durante toda a noite. Svarte e Kol foram se substituindo na recolha de mais lenha e juntando um pouco mais de água. Com a sopa, feita de cebola e pedaços de veado jovem, eles comeram pão escuro integral. E logo em seguida o calor voltou novamente aos seus corpos.

Fazia uma bonita manhã. E quando eles desciam, cavalgando e carregando a sua carga pesada, pelas encostas de Kinnekull, na esparsa floresta de carvalhos, de repente, todas as terras de Arnäs estavam a seus pés. Avançavam com o sol subindo rápido e colorindo o lago Vänern ora em cores de prata, ora em cores de ouro. E Arn estava feliz, respirando profundamente o ar fresco. No horizonte, viu brilhar qualquer coisa na igreja de Forshem e a partir daí era possível procurar corretamente onde estava o burgo de Arnäs, embora ainda não fosse possível vê-lo.

Ao longo das encostas da montanha, viam-se principalmente as florestas de carvalhos e de faias, mas embaixo havia os campos enormes, bem lavrados, que no momento estavam negros, da terra preta, mas pontilhados de prata por efeito da geada. Arn pensou que jamais o mundo fora mais bonito, que Deus devia ter criado essas encostas de carvalhos e esses campos num momento de grande inspiração. Começou, então, a cantar de alegria, mas viu pelo canto dos olhos que isso, aparentemente, estava assustando Svarte e Kol, de modo que logo parou de cantar. Refletiu, depois, se devia perguntar a razão por que não gostavam dos seus cânticos, se era a magia do Cristo Branco que os assustava ou se era qualquer outra coisa. Mas se arrependeu a tempo, visto que tinha chegado à conclusão de que devia avançar bem lentamente na conversa com esses dois, com a escravatura tão entranhada nos seus sentidos que a liberdade, aparentemente, mais os assustava do que atraía.

Durante a viagem, com o sol subindo, o gelo foi derretendo e dali a pouco não se escutava mais o som das ferraduras dos cavalos batendo no chão duro. As águas do Vänern tinham mudado para o azul, mas eles tinham avançado bastante, descendo a montanha, e em breve deixariam de ver o lago até que chegassem em casa.

Chegaram a Arnäs por volta do meio-dia e foram recepcionados com vivas, já que não era pouca coisa voltar de uma caçada tão curta com três veados mortos. Entre as escravas de casa, a alegria foi maior ao saber que tinha sido Arn que havia abatido os animais, e assim levantaram as panelas ou o que tinham à mão e bateram umas nas outras por cima da cabeça, acompanhando com gritos, enrolando a língua, que era o sinal dos escravos nos momentos de boas-vindas e de alegria e satisfação. Arn não pôde evitar um certo sentimento de orgulho, mas pediu a São Bernardo imediatamente que o vigiasse e o avisasse em relação a esse terrível pecado do orgulho e arrogância.

Eles retiraram a pele e cortaram rápido os veados em pedaços, levando logo as peles para o curtume. Mas agora não estavam mais na caçada onde Arn era noviço. Estava na hora de determinar como a carne devia ser preparada e isso era Arn que decidia, quase sem a mínima timidez, como devia ser feito. Pensou que tal como Svarte e Kol tinham ensinado a ele a respeito de pistas de sangue e dos passos barulhentos na folhagem seca, ele agora podia ensinar a eles como as carnes deviam ser penduradas ou defumadas. E, por isso, achou natural que fosse ele a decidir tudo.

Os lombos e as alcatras deviam ser limpas e mandadas para o defumador. Os pescoços e as costelas deviam ficar pendurados nos novos ganchos recentemente fundidos e colocados dentro da despensa gelada, emparedada com tijolos. O que restava, o coração, fígado, rins e fraldas, ele entregou, com o semblante determinado, para Svarte e Kol. Depois, deixou que Erika Joarsdotter decidisse o que devia ser defumado e deu a ela e às suas escravas instruções de como o trabalho devia ser conduzido, com tempos determinados de defumação para as alcatras e os lombos e para as carnes de fêmeas e de machos. Quando tudo estava pronto, perguntou respeitosamente a Svarte e Kol se seria uma boa idéia voltar de imediato para a região de caça, porque se assim fosse era melhor partir logo e começar o trabalho já na manhã seguinte. Os dois olharam espantados para ele, mas acenaram que sim, concordando. Kol foi buscar novos cobertores de peles e pães frescos. E logo estavam de novo a caminho.

Na volta para Kinnekulle, Arn quis saber se tinha exigido demais ou se os dois tinham pensado em ficar em casa pelo menos uma noite no quente da cama, antes de ir caçar novamente. Será que eles estavam tão entusiasmados quanto ele em prosseguir na caçada? As respostas vieram com esquivas e ele chegou à conclusão de que eles não tinham pensado em sair tão rápido, novamente. Arn imaginou que a reação deles dependia do fato de nunca na vida terem tido a oportunidade de conversar direito com os patrões. Entretanto, achou que isso não poderia ser mudado com pressa. Precisava dar bons exemplos. Era a única coisa a fazer. Seria impossível conquistar essas duas almas com ordens de comando.

Ao chegar de novo às encostas de Kinnekulle, onde a floresta de carvalhos ficava mais densa, viram a distância um rebanho de javalis. Svarte, que os viu primeiro, parou o cavalo e indicou o lugar onde o rebanho se encontrava. Arn teve de fixar bem o olhar entre as sombras da floresta, antes de descobrir onde os animais estavam. E estavam bastante mais perto do que tinha pensado. Os javalis pararam todos, com os focinhos virados para os cavaleiros recém-chegados. Pareciam em suspenso, determinados a esperar e a ver o que o inimigo iria fazer, antes de fugirem. A floresta por cima e à volta deles era constituída por troncos esparsos e parecia fácil de passar com os cavalos.

Arn dirigiu Chimal para junto do enorme garanhão nórdico em que Svarte estava montado e perguntou se podia atirar naqueles javalis. Svarte teve de se esforçar para responder respeitosamente e disse que, caso aproximassem mais os cavalos, os animais iriam fugir. Nessa altura, Arn demonstrou um pouco de impaciência. Ele já tinha percebido isso. Mas seria possível para os javalis correrem mais rápido do que os cavalos?

Diante dessa pergunta mais idiota, Svarte teve de se esforçar ainda mais para ser respeitoso na resposta. E Arn reparou muito bem como ele fez uma inspiração profunda antes de falar. É como se estivesse falando com uma criança, Svarte disse que em campo aberto era evidente que o cavalo podia correr mais que um javali, em especial, o cavalo de Arn. Mas no caso, em primeiro lugar, o campo não era aberto. E em segundo lugar, mesmo que pudessem correr ao lado dos javalis, o que é que eles podiam fazer, sentados em cima dos cavalos?

Arn abriu um largo sorriso e puxou das costas o arco, sem responder, e esticou-o com a maior facilidade, como se o arco não fosse um dos mais duros de Arnas, retirou algumas flechas da bolsa e colocou-as debaixo do braço que segurava o arco. Em seguida, passou para Svarte uma parte da carga do seu cavalo e perguntou-lhe quais os animais que deviam ser abatidos primeiro, caso ele conseguisse cavalgar ao lado dos javalis. Svarte respondeu, baixando o olhar e mordendo a língua para não rir descaradamente, que era melhor abater animais de tamanho médio ou menores.

Arn agradeceu abanando a cabeça, e partiu lentamente na direção dos javalis, como se pensasse que eles iriam permanecer no lugar, à espera da morte. Svarte e Kol olharam um para o outro, divertidos, sem dizer nada, apenas encolhendo os ombros.

No momento em que os javalis empinaram os rabos no ar, dando sinal de que era a hora de fugir, Arn pôs o cavalo a galope, aumentou a velocidade e parecia até que o animal estava voando. Svarte e Kol ainda tiveram tempo de ver como ele atirou a primeira flecha, em pé nos estribos, sem segurar nas rédeas, e ainda tiveram tempo para ver, também, como o primeiro javali caiu, abatido. Depois, ouviram apenas o som dos cascos do cavalo batendo no chão juncado de folhas das árvores. E o chiar de mais um javali abatido. E depois, mais outro.

Levou tempo para explicar tudo para Svarte e Kol. O primeiro javali, como eles tinham visto, já corria quando foi atingido. E esse eles encontraram logo e acabaram de matar. Mas depois foi mais difícil saber pelo jovem senhor Arn onde encontrar os outros que ele abateu, saber onde ele esteve e qual o caminho mais além que o javali atingido tinha seguido. Isso ele, na maior excitação, não tinha fixado na memória. Mas, ao escurecer, todos os três javalis estavam devidamente pendurados num ramo de árvore.

Entretanto, foram obrigados a acampar muito mais abaixo na encosta do Kinnekulle do que tinham pensado. Mas valeu a pena, visto que eles, aparentemente, com a maior facilidade, já tinham abatido mais três animais. Além disso, tinham que voltar com a maior rapidez para Arnäs, já que a carne de porco selvagem degenerava mais rápido do que a carne de veado.

Junto do fogo, à noite, tiveram dificuldades de novo em conversar Finalmente, Svarte abriu a boca para murmurar, baixando os olhos, que ninguém podia cavalgar tão rápido e atirar ao mesmo tempo, em especial no meio da floresta. Só com feitiçaria isso era possível.

Primeiro, Arn ficou com medo. Achava ter entendido que a feitiçaria era um pecado tão grande para os infiéis quanto para os cristãos. Foi, então, que ele assegurou aos dois que jamais se prestaria a feitiços, visto que isso era um grande pecado. Mas logo se lembrou que, para os escravos de seu pai, a feitiçaria não era considerada um pecado. Antes pelo contrário, ficavam curiosos em saber como conseguir isso era possível e como funcionava tão bem nas caçadas. Para eles, a feitiçaria não era uma coisa ruim, mas boa.

A respeito desta situação, Arn ficou muito pensativo e não sabia como reagir. Após alguns momentos, iniciou então uma longa explicação sobre os métodos de treino que ele tinha seguido durante toda a sua vida, usando cavalos melhores, tais como Chimal, e conhecendo melhor os cavalos usados. E que tudo isso, e nada mais do que isso, era a explicação para o fato de ele poder ficar em pé na sela e atirar.

Em breve, porém, entendeu que eles não queriam acreditar nele. Kol, que tinha se tornado um pouco mais franco do que seu pai na convivência com Arn, falou confusamente que ele havia entendido que Arn não gostaria de compartilhar a sua feitiçaria, mas que isso estava mais do que certo, visto que tanto ele como seu pai eram apenas escravos e que Arn era o filho do dono.

Diante disso, Arn ficou sem resposta e rezou em silêncio e durante bastante tempo para que recebesse o apoio de São Bernardo no esclarecimento da verdade para Svarte e Kol. E que dessa verdade deviam ser retiradas todas as suspeitas de trabalhos abomináveis.

Algot Pälsson, de Husaby, possuía muitos burgos e florestas, mas, na sua opinião, apenas duas riquezas. Eram as suas duas filhas, Katarina e Cecília, que tinham acabado de deixar a sua infância para trás e se impunham agora como duas adoráveis flores. Ambas eram a luz dos seus olhos, dizia ele, muitas vezes, em alto e bom som. Mas como elas também mostravam sinais indiscutíveis e espírito indomável e falta de modos, em especial Katarina, que era a mais velha, elas eram também suas maiores preocupações. Mas, a esse respeito, ele não dizia nada em alto e bom som.

Quando Katarina estava com doze anos de idade, quase que ele a comprometeu com Magnus Folkesson, de Arnàs, e isso teria sido uma grande felicidade, uma luz na vida, em vez da escuridão que, justamente, então, caiu sobre ele por sua mulher, Dorotea Rõriksdotter, ter morrido na cama ao dar à luz e com ela a vida que teria sido a do filho primogê-nito de Algot.

Se ele tivesse conseguido casar sua filha mais velha com um folkeano, era como se a tivesse casado com um rei, ou, pensando bem, no fato de que suas posses e burgos estarem rodeados tanto pelos da família folkeana quanto pelos da família erikiana melhor do que com o rei. Evidentemente, ele agora era um libertado do rei Karl Sverkersson nessa mesma cidade, Husaby. Era uma honra ter a responsabilidade de manter em ordem um burgo real. E Husaby era também maior e sua situação, mais bonita em Kinnekulle do que em qualquer dos seus burgos.

Mas estar ligado ao rei Karl Sverkersson na Götaland Ocidental era uma posição que não estava livre de riscos, visto que tão forte era a família Sverker na Götaland Oriental quanto era fraca na Götaland Ocidental. Nesta província, nem Karl Sverkersson se atrevia a dizer que era rei. Era apenas um conde na Götaland Ocidental e com isso tanto a família de Folke quanto a de Erika se contentaram. Mas até mesmo o otimista que preferia ver o futuro luminoso para si devia ficar preocupado com aquilo que poderia acontecer. No dia em que o rei Karl fosse assassinado por qualquer das duas outras famílias, uma possibilidade característica na vida de todos os reis, não seria fácil continuar a morar em Husaby e ser seu representante.

Por isso, tudo teria sido melhor se Katarina fosse a dona da casa em Arnäs. Assim, Algot não teria colocado todos os ovos na mesma cesta. Tanto fazia que qualquer das famílias viesse a assumir o poder real, a sua família continuaria em boa companhia e com isso segura em termos de vida e de posses.

Mas tudo foi por água abaixo com o fato de Magnus Folkesson, ao final, ter escolhido unir-se com a família de Erika. Algot não podia nem censurar Magnus pela inteligente manobra, mas apenas reclamar por sua falta de sorte. Tinha falado também com Magnus a respeito do caso e sabia que ambos pensavam da mesma maneira e davam grande importância ao fato de suas terras fazerem fronteira umas com as outras.

No entanto, ainda não era tarde demais para que qualquer insegurança pudesse ser dissipada. Magnus tinha um filho na mesma idade de Katarina e Cecília e esse filho, Eskil, a seu tempo, viria a ser o senhor de Arnâs. Com um pouco de boa vontade, essa solução podia ser considerada como até melhor. Porque antes Katarina teria sido obrigada a casar-se com um homem nos seus melhores anos, enquanto ela ainda era apenas uma criança.

Todavia, havia o problema das filhas não terem bons modos. Nenhuma delas atuava com aquele recolhimento necessário e habitual na companhia dos homens jovens que um pai podia exigir. Na realidade, essa falta de modos baixava o seu valor e, na pior das hipóteses, constituía um risco de elas acabarem sem possibilidades de se casar. Por isso, seu pai resolveu separar as filhas. Enquanto Katarina estava em casa, Cecília permanecia como noviça no mosteiro de Gudhem. E quando Cecília vinha para casa, era a vez de Katarina viajar para Gudhem, para aprender a ser disciplinada e a receber os conselhos do Senhor e, com isso, muitos conhecimentos apropriados para uma dona-de-casa em Arnäs. Estes últimos, certamente, não eram para desprezar e elevavam o valor das filhas, embora elas próprias não agradecessem de forma alguma o fato de viverem separadas e fechadas num mosteiro, e cada uma por sua vez aprendendo a ser disciplinada. Agora, estava na hora de Katarina viajar para Gudhem e ela não falava nada bem a esse respeito.

Custava muita prata às freiras para manter as duas meninas em Gudhem e a prata era a única maneira de pagamento aceitável por elas. Mas, segundo Algot, valia a pena aquilo que ele pagava pelas filhas, pois daria um retorno sete vezes maior quando se casassem. E, além disso, ele teve uma motivação inesperada para fazer negócios com Magnus Folkesson, que parecia possuir uma ilimitada quantidade de prata nas suas caixas de tesouro. Através da venda de terras com florestas de carvalhos para Arnâs, Algot recebeu a prata de que precisava e, além disso, muitas possibilidades, ao finalizar os negócios, de falar dos bons hábitos que suas filhas estavam adquirindo à custa daquele dinheiro por ele recebido. Dessa maneira ainda, podia relembrar a Magnus a parte daquela promessa de casamento quebrada pela metade, e que Katarina e Cecília ainda continuavam sendo um bom negócio para os dois.

Algot Pälsson tinha escutado apenas alguns boatos fracos a respeito do segundo filho de Magnus Folkesson que tinha sido mandado para um mosteiro na mais tenra idade e que agora tinha voltado para Arnäs. Aquilo que se dizia a respeito do rapaz não era para se considerar como uma grande honra. Na realidade, era como se ele fosse meio monge.

E Arn, que era como ele se chamava, confirmou aquilo que se dizia dele, ao chegar cavalgando numa tarde de outono, nevoenta e fria, duas semanas antes da grande reunião do conselho provincial em Axevalla. Trouxe dois escravos com ele e chegaram carregados com carnes de veado e javali que queriam oferecer como participação de Husaby na sua caçada. Magnus Folkesson e Algot tinham feito um acordo de que, sempre que as gentes de Arnäs fossem caçar nas terras de Algot, as quais em certas épocas eram melhores para a caça do que as terras de Arnäs, em especial, pelos javalis procurarem as florestas de faias no outono, então, um quarto dos animais caçados seria mandado para Algot em Husaby como direito de compensação.

Tendo em conta o que trouxeram e descarregaram em Husaby, suas caçadas tinham sido muito bem-sucedidas. Mas, depois de descarregarem, eles tinham por objetivo voltar para casa na escuridão, cavalgando, visto que o mais velho dos escravos dizia conhecer o caminho mesmo no escuro.

Algot, porém, reclamou de imediato. Ruim seria deixar quem veio com carnes tão preciosas voltar para casa à noite. Além disso, achou ele rápido, poderia ser considerado como pura providência divina essa oportunidade oferecida por Deus de proporcionar um encontro entre Katarina com um dos filhos de Arnäs, mesmo considerando que era o pior deles. Não faz diferença, pensou Algot, embora talvez ela prefira o filho mais velho.

E assim acabou acontecendo uma pequena festa em Husaby, logo antes do feriado do Dia de Todos os Santos, na proximidade do inverno. Enquanto se retiravam as selas dos cavalos e estes eram colocados na cavalariça, as carnes eram levadas para dentro, para serem preparadas e grelhadas pelo cozinheiro de Husaby, e os acompanhantes de Arn eram colocados na casa dos escravos, Katarina veio ao encontro de seu pai e sugeriu com o mais inocente dos semblantes que não se devia deixar que o visitante dormisse na casa grande entre todos os outros, visto que em Arnäs os hábitos eram mais elevados. Em vez disso, ela podia determinar que o jovem Arn ficasse numa cama própria em uma das pequenas casas fechadas durante o inverno. Algot apenas grunhiu uma aprovação curta para essa sugestão, sem entender direito ou sem querer entender quais as verdadeiras intenções de Katarina.

Arn ficou muito envergonhado, nunca tinha sido convidado por ninguém antes e não estava ciente de como devia se comportar. O tanto que sabia por ter escutado dizer em Arnâs é que parecia muito mal comer e beber pouco na casa dos outros. Por isso, resolveu, com um suspiro profundo, e enquanto retirava a sela e tratava de Chimal, que tentaria, realmente, comer e beber como um porco, de maneira què seu pai não precisaria se envergonhar dele fora de Arnâs. Uma coisa acontecera de bom. Eles não tinham tido tempo para comer há muitas horas, visto que o terreno molhado fez com que essa satisfação ficasse muito demorada e complicada. Portanto, falta de fome é que não havia.

Então, iria tentar mesmo comer e beber que nem um porco, ainda que fosse difícil tomar uma decisão dessas, tão anticristã. Caminhou até a fonte, onde ele viu que os escravos estavam concentrados, para se lavar e logo sentiu que tinha atuado como qualquer convidado não devia, visto que os escravos se retiraram, amedrontados, murmurando qualquer coisa, e apontando para algum lugar atrás das suas costas. Enfim, vai ter que ser assim de qualquer jeito. Não deve ser chique a pessoa se lavar, pensou ele. Mas ainda que fosse obrigado a comer como um porco, não queria cheirar como tal.

Resolveu deitar-se para descansar um pouco na cabana de madeira que lhe indicaram. Esticou o corpo na cama e ficou olhando para o teto onde, à luz flamejante da vela, viu nitidamente as imagens de veados e javalis. Estava satisfeito por ter feito alguma coisa mais do que tijolos e com isso conseguir que o seu pai o visse com outros olhos. E com esse pensamento consolador e as imagens dos animais silvestres diante dos olhos, Arn adormeceu.

Quando uma escrava da casa veio e com todo o cuidado o acordou, a escuridão já era completa e várias horas se tinham passado desde que ele adormecera. Amedrontado, levantou-se, pensando que talvez parecesse que tinha recusado a festa de boas-vindas, o que certamente poderia causar problemas. Mas a escrava tranqüilizou-o e disse que, ao contrário, tudo estava para começar agora e que era só segui-la. Tinha demorado bastante a assar as carnes.

Ao entrar na sala escura em Husaby, sentiu-se transportado para a Antigüidade. A sala, longa e escura, era atravessada por duas filas de pilares de madeira esculpida. Arn imaginou que o teto era pesado, com grama e terra, e precisava, portanto, desse apoio. Na cumeeira do telhado existiam três aberturas com proteção para escapamento da fumaça, mas ele ainda sentiu alguns pingos de água no rosto ao percorrer a sala ao longo do braseiro central. Os pilares quadrados eram decorados por todos os lados até a altura de um homem com padronagens em cor vermelha de dragões sinuosos e animais lendários. E as mesmas decorações existiam junto da mesa de honra e dos lugares de descanso ao fundo da sala, no canto entre a parede longa e a curta. Para Arn, era uma habitação paga, sombria e fria.

Ao descobrir que Algot e a filha Katarina usavam vestimentas de festa, assim como os quatro homens, para ele desconhecidos, à volta da mesa de honra, Arn sentiu-se constrangido por usar apenas a sua roupa de caçador, de lã grosseira e pele de veado. Mas quanto a isso ele nada podia ter feito. Nesse momento todos estavam de olho nele, esperando que fizesse alguma coisa. Ele desejou a paz do Senhor para todos e cumprimentou cada um por sua vez, fazendo uma vênia, começando pelo dono da casa e sua filha Katarina. Notou que ela sorriu para ele um pouco desdenhosamente e imaginou que deveria ter feito e dito algo mais.

Algot Pälsson, no entanto, não viu nenhuma razão para manter seu importante, mas constrangido, convidado em mais dificuldades e levantou-se logo do seu lugar na mesa, apertou a mão de Arn e conduziu-o para se sentar à sua direita, no lugar de honra. Depois, mandou entrar a grande trompa de bebida que já era conhecida em Husaby desde o tempo do rei Olof Stõt, segundo se dizia, e estendeu-a solenemente para Arn, para que com o primeiro gole iniciasse a festa.

Arn não pôde deixar de examinar a trompa por momentos antes de levá-la à boca. Primeiro, pensou não em como era pesada, mas em todas as imagens pagas que estavam nela gravadas e onde a cruz cristã devia ter sido gravada muito mais tarde, talvez como proteção contra o pecado. Entretanto, achando que todos esperavam que ele entornasse pela garganta toda a bebida, como um animal, respirou fundo e, realmente, deu o melhor de si, bebendo até sufocar, enquanto os outros ficaram olhando, excitados. Ofegante, colocou na mesa a trompa que ainda continha um terço da cerveja por beber. Mas Algot pegou logo nela e despejou o resto no chão, virando-a então, mostrando que não tinha mais nada. Os outros bateram na mesa com a palma da mão, em sinal de que o convidado havia honrado a casa bebendo tudo. Arn desconfiava já que aquela ceia iria se transformar em algo a nunca mais recordar com alegria.

Depois, trouxeram a carne assada e mais cerveja em grandes jarras para cada um. A carne era de veado, grelhada no espeto. E o javali, de meia-idade, grelhado do mesmo jeito. Como Arn esperava, a carne do veado estava dura e seca, sem condimentos, a não ser quanto ao sal, com o qual, no entanto, foram muito generosos. Quer dizer, eles assaram o animal que naquela manhã ainda vivia, algo que o irmão Rugiero consideraria como um pecado quase tão pesado quanto o da blasfêmia. Arn prometeu a si mesmo não fazer cara feia nem reclamar por nada. Elogiou logo a boa carne, bebeu impetuosamente a sua cerveja, estalando a língua de satisfação, visto que era assim que os outros faziam. Mas estava difícil para ele encontrar o que falar, e Algot precisava ajudá-lo na conversa, perguntando a respeito da caçada. Aliás, qualquer homem diante da possibilidade de jactar-se a respeito de suas caçadas podia se tornar até um bardo, mesmo que, normalmente, fosse o homem menos falador do mundo.

Mas Arn não sabia como se fazia ao ser convidado a jactar-se das suas caçadas. Portanto, respondeu curto, em poucas palavras, e elogiou, em contrapartida, seus escravos como caçadores competentes, o que não foi aceito muito bem entre os anfitriões. Para começo dessa ceia, a conversa se arrastava, avançando à velocidade de um caracol em cima de uma trilha seca. Finalmente, Algot perguntou se Arn tinha abatido algum dos animais, uma pergunta maliciosa e arriscada na medida em que o convidado sempre podia juntar um ponto a mais na sua história, sem que ninguém pudesse levar a mal. E Arn respondeu em voz baixa, de olhar desanimado, dizendo que tinha abatido seis dos veados e sete dos javalis, mas acrescentou logo em seguida que seus escravos tinham abatido quase outros tantos. Estabeleceu-se um grande silêncio à volta da mesa e Arn não entendeu que isso era conseqüência de que ninguém acreditava nele. Todos achavam que, evidentemente, ele podia ter exagerado um pouquinho, mas não dessa maneira escabrosa, a classificar como pura mentira.

Um jovem cujo parentesco com Algot Arn não conhecia exatamente, perguntou, então, na gozação, se por acaso tinha acontecido de ele ter abatido todos os animais com a primeira flecha disparada. Arn, que não achou perigo nenhum nessa pergunta, respondeu com a verdade, que tinha abatido, sim, todos os animais com o primeiro disparo. Foi, então, que o jovem soltou sem restrições uma gargalhada de escárnio e pediu para erguer seu caneco em homenagem ao grande arqueiro. Arn bebeu junto com ele, a sério, mas as suas faces esquentaram ao perceber o escárnio e a zombaria nos olhos dos outros. Que não tinha respondido com inteligência a essas perguntas, isso ele podia entender. Mas, tendo dito apenas a verdade, como é que podia ter sido mais inteligente da parte dele ter mentido? Essa pergunta merecia ser repensada. Mas nesse momento ele desejava apenas poder mentir com algo mais inteligente e ser dispensado de ver a zombaria e o escárnio nos olhos dos outros.

Algot Pälsson tentou ir em socorro de Arn, rapidamente, começando a dizer que tinha ouvido falar de novas plantas vindas do mosteiro. Talvez Arn pudesse contar alguma coisa mais a respeito do assunto. Mas o jovem que se dirigiu a Arn com escárnio não queria deixar que ele se soltasse do anzol. Desviando o olhar na direção de Katarina, afirmou em alto e bom som que ruim seria que certos fanfarrões acabassem tendo boas mulheres que não mereciam. E continuou numa conversa obscura que levou Arn a considerar que esse homem era inimigo e estava enamorado de Katarina, coisa que de forma alguma lhe dizia respeito.

Algot fez uma nova tentativa para dirigir a conversa para os temas mais pacíficos do mosteiro e para longe do tiro ao arco que poderia atrair mais constrangimentos para a mesa. Mas Tord Geirsson, que era o nome do jovem malicioso, queria vencer Arn em grande estilo, queria mostrar-se forte para Katarina. E propôs que trouxessem um arco e flechas e que assim se fizesse um pequeno torneio de poucos disparos, nessa sala que era suficientemente longa. Arn concordou de imediato, por notar pelo canto dos olhos que Algot Pälsson tinha tomado impulso para evitar o torneio.

Rapidamente, mandaram as escravas da casa trazer o arco e a bolsa de flechas e colocaram um fardo de palha junto da porta da sala, a uns vinte e cinco passos de distância. Tord Geirsson recebeu o arco e as flechas e disse em voz alta que aquela não era exatamente uma distância difícil para atingir javalis e que talvez o senhor Arn, sendo um arqueiro tão competente, quisesse mostrar primeiro como se faz. Depois, ele próprio atiraria em segundo lugar.

Arn sentiu-se bem frio e decidido e se levantou em seguida. Não gostava nem um pouco daquela situação em que a sua sinceridade e honestidade o tinham colocado, mas queria tirar rápido esse problema do caminho e, como ele entendia a coisa, havia apenas uma maneira. Em passos largos, avançou para Tord Geirsson e pegou das mãos dele o arco, quase que rudemente, e esticou-o com rapidez e à vontade. Depois, escolheu com cuidado três flechas, segurando duas na mão do arco e colocando a terceira na corda. Puxou tudo o que o arco permitia para disparar com força total, a fim de que a flecha encurvasse o menos possível no caminho. E soltou a flecha. Esta foi parar no meio do alvo, mas um dedo abaixo da mosca. Todos esticaram o pescoço para ver e começaram a falar uns com os outros, em voz baixa. Arn sabia agora como o arco funcionava e preparou com todo o cuidado os dois disparos seguintes que realizou sem a menor pressa. Acertou os dois ainda melhor. Depois, estendeu o arco para Tord Geirsson e se afastou, indo sentar-se à mesa.

Tord Geirsson ficou com o rosto pálido, olhando fixamente para as três flechas lá longe, todas bem juntas na mosca. Achou que já tinha perdido, mas não sabia ainda como iria arranjar-se para dominar a dificuldade em que ele mesmo se metera. De todos os caminhos que podia ver, achou todos vergonhosos e acabou escolhendo o menos inteligente. Jogou o arco para longe, com raiva, e saiu da sala sem dizer uma palavra, mas com as gargalhadas fortes dos outros nos ouvidos.

Arn rezou por ele em silêncio, que sua raiva pudesse desaparecer e que pudesse ter aprendido com a sua arrogância. Por seu lado, rezou a São Bernardo por sua lembrança a respeito de arrogância e pediu para que não fosse levado a valorizar esse acontecimento simples em mais do que ele valia.

Assim que Algot Pälsson se recuperou da surpresa em relação ao talento de Arn, ficou muito satisfeito e logo todos na mesa beberam à saúde de Arn, a sério, pelo grande atirador que ele demonstrou ser. E muito mais cerveja foi trazida e Arn começou a sentir-se melhor e até passou a achar gostosa a carne dura de veado que não foi pendurada como devia. E a cerveja ele tentava beber como se fosse um verdadeiro veterano.

Katarina assumiu, então, a função de servir Arn de cerveja, atitude muito polida que ela devia ter tomado desde o início, visto que estava sentada no lugar de dona da casa e Arn no lugar de honra. Primeiro, ela o achou muito vacilante e muito pequeno. Mas, agora, o achava muito mais importante do que seria permissível.

Dali a pouco, já tinha mudado de assento à mesa, passando do outro lado do pai e para junto de Arn, tão junto que este podia sentir o corpo dela quando falava com ele, o que ela fazia cada vez com mais intensidade e cada vez mais mostrando como ela gostava das coisas inteligentes que Arn dizia. Suas mãos tocavam as de Arn, de vez em quando, como se não fosse essa a intenção.

Arn estava cada vez mais excitado e bebia toda a cerveja que ela lhe punha na frente. Além disso, estava muito satisfeito em ver que Katarina, no início, segundo ele, de olhares tão frios e desdenhosos, quando ele entrou na sala, agora era toda sorrisos e atenções. E cheia de rodeios sensuais que o empolgavam e subiam por dentro dele até a cabeça.

Se Algot Pälsson quisesse desempenhar com mais cortesia seu lugar de amo e senhor em sua casa, teria de chamar a atenção de sua filha, em especial, por saber da falta de modos por parte dela e de sua irmã. Mas achava que havia uma diferença colossal se o comportamento pouco conveniente de uma jovem senhora fosse dirigido para um amigo orgulhoso, ® mas pobre, como Tord Geirsson ou para um jovem senhor de Arnäs. Portanto, ele deixava passar aquilo que os bons pais não costumavam deixar de descobrir e de corrigir com veemência.

Toda aquela cerveja bebida começava a fazer girar a cabeça de Arn e, quase tarde demais, descobriu que precisava vomitar. Mas foi andando atrapalhadamente pela sala, para não sujar o lugar onde se comia. Quando o ar frio bateu no seu rosto lá fora e ele se jogou para a frente para vomitar qualquer coisa parecida com meio veado de carne dura e um bom barril de cerveja, ele se arrependeu amargamente, mas não podia nem pensar em rezar, antes de vomitar tudo a que tinha direito.

Depois disso, enxugou muito bem a boca e respirou profundamente o ar fresco, falou qualquer coisa para si mesmo a respeito de ter agido mal por muito que tentasse agir bem e voltou para a sala para, sem mais rodeios, se despedir, dar as boas-noites, desejar a paz do Senhor para todo mundo e agradecer a mesa abundante. Avançou, depois, mais uma vez, em direção à porta da sala, as pernas vacilantes, mas resolutas, saindo para a praça central do burgo e direto para a fonte que agora estava vazia de gente, na escuridão e abraçada pela névoa. Arn borrifou o rosto com a

 

A CAMINHO DE JERUSALÉM água fria, falou alto para si mesmo, com rudeza e repreensão, e desapareceu em seguida na sua casinha. Conseguiu achar a cama mesmo na escuridão e caiu para a frente como se fosse um touro na hora da marretada mortal.

Na casa grande, já noite adentro, quando se escutavam apenas roncos indistintos, Katarina saiu escondida para o largo. Algot Pälsson, que no momento dormia mal depois das noites de grandes bebidas, escutou quando ela se esgueirou do quarto e entendeu muito bem para onde ela tencionava ir. Como bom pai, devia tê-lo evitado o seu ardil e dado a ela um bom castigo.

Como bom pai, consolava-se ele, também podia desistir de tudo isso para que, senão por outro motivo, conseguir, enfim, ter uma filha em Arnäs.

Para aqueles que não sabiam de nada, parecia que o povo da família Folke iria partir de Arnäs para a guerra. Mas para aqueles que estavam por dentro, que sabiam de tudo, até isso era provável.

Um grande grupo militar se amontoava na praça do burgo e reverberava entre os seus muros o barulho das ferraduras dos cavalos, o chocalhar frustrante das armas e o entrecruzar de vozes impacientes. O sol estava ainda subindo no horizonte e ia ser um dia frio, mas sem neve. Os caminhos deviam estar bons. Duas carroças bem carregadas tiveram que ser levadas para fora, as rodas chiando e gemendo, para dar mais lugar para todos os cavaleiros. Todos esperavam pelos chefes da família que iam realizar o cerimonial da oração do topo da torre e alguns dos homens faziam chacota, dizendo que iria ser um longo cerimonial se fosse o garoto monge o encarregado da oração. Para esquentar, ou para esquecer a impaciência, quatro dos escudeiros de Arnàs começaram a esgrimir suas armas, as espadas e escudos, enquanto os escravos amedrontados seguravam seus garanhões e os amigos à volta os incitavam com gritos de apoio e bons conselhos.

Foi mesmo Arn, realmente, que fez a oração do cerimonial, junto com seu pai, seu tio Birger Brosa e Eskil. Na verdade, era preciso mesmo a proteção de Deus e de todos os santos para essa viagem que poderia terminar bem, mas que também poderia terminar com os ventos da guerra soprando por toda a Götaland Ocidental.

Ao chegar à praça do burgo e ao ver os quatro escudeiros cruzando suas espadas, Arn parou, espantado e paralisado diante desses homens que deviam ser os melhores combatentes da defesa armada de seu pai e que nada sabiam de como manusear a espada. Jamais poderia imaginar uma coisa dessas. Embora já adultos e pesadamente uniformizados, com malhas de aço até os joelhos e vestes especiais com as armas e cores da família, eles pareciam mais uns garotos, umas crianças até, que mal sabiam qualquer coisa a respeito de espadas e escudos.

Magnus, que viu o olhar de desprezo de seu filho, entendeu que ele talvez tivesse ficado com medo dessas brincadeiras impróprias, e pousou sua mão, tranqüilamente, sobre o ombro de Arn, consolando-o e dizendo que não precisava ficar com medo. Esses homens estavam a seu serviço. Eram, sim, grandes guerreiros e isso era bom para Arnäs.

Então, pela primeira vez, em muito tempo, Arn chegou a pensar que era um pouco retardado e que de nada entendia. Mas, aparentemente, uma luz se acendeu na sua cabeça e, de maneira ainda hesitante, sorriu para seu pai e assegurou que ele, de forma alguma, tinha sentido medo dessa esgrima deles e que se sentia, sim, seguro, diante do fato de ver neles as armas e as cores de Arnâs, as mesmas que as suas. Arn não queria ferir seu pai, dizendo o que pensava da incapacidade desses homens em utilizar a espada e o escudo. Enfim, já tinha aprendido que nesse baixo mundo a maneira inteligente de agir era a de nem sempre dizer toda a verdade.

Preocupação maior foi quando Magnus descobriu que Arn, ingenuamente, tinha colocado a espada que recebeu dos monges na cintura, a espada que apenas podia servir para atrair o ridículo, pois mais parecia uma espada de mulher. Resolveu de imediato ir até a sala de armas buscar uma boa e bonita espada norueguesa para oferecer e substituir aquela que Arn tinha. Mas, então, Arn se irritou e disse que não, assim como quando lhe quiseram impor um cavalo nórdico, pesadão e lento, para substituir o seu cavalo magro e monástico.

Magnus tentou explicar que as forças da família precisavam cavalgar agora, mostrando todo o seu potencial para dar medo aos seus inimigos e conquistá-los pacificamente. E que até Arn, que estava vestindo as cores da família, precisava convencer-se desse fato, acompanhar todo o mundo, para não atrair a chacota dos outros. E era a chacota de todos que ele iria atrair como filho tão próximo do chefe da família, usando uma espada de mulher e um cavalo que não servia para nada.

Arn se conteve por bastante tempo e de forma expressiva, antes de responder. Mas, então, sugeriu com palavras suaves que não se importava de montar qualquer um dos garanhões negros, nada ágeis, que ele quisesse, mas que em relação à espada preferia não ter nenhuma do que deixar de usar a sua. Diante disso, Magnus cedeu, não feliz por completo, mas satisfeito ao menos por ter conseguido que seu filho deixasse de montar um cavalo ridículo.

E com isso todos puderam iniciar enfim, a sua saída de Arnäs, a caminho da reunião do conselho de todos os gotas, que era o nome da assembléia na qual o rei Karl Sverkersson, pela primeira vez, em dois anos, iria tomar parte e onde ele iria ter de escolher entre a guerra e a paz.

À frente cavalgava o comandante da força armada, sozinho, com a bandeira da família bem em cima, tremulando na lança. Depois dele, seguiam Birger Brosa e Magnus Folkesson, lado a lado, vestidos em prata e azul e agasalhados com seus mantos azuis, forrados de peles de marta, e de elmos brilhantes na cabeça. Ao lado esquerdo, atrás, junto da sela, estavam amarrados seus escudos, onde um leão dourado se erguia, resoluto, pronto para o combate. Depois, ainda, seguiam Eskil e Arn, vestidos e armados do mesmo jeito que os seus chefes de família. Finalmente, em seguida, vinham os escudeiros em formação de dois, todos com suas lanças guarnecidas com as bandeirolas da família tremulando ao vento nas pontas.

Outras tantas famílias iriam se juntar do sul e do ocidente da província e se uniriam todas perto de Skara para então se incorporar à família de Erika e demonstrar claramente, quando chegasse a hora de entrar na assembléia, uma união fortíssima, diante da qual a guerra custaria ao rei Karl a oposição das famílias de Folke e de Erika, transformados em inimigos, não apenas por laços de sangue, mas também através da sua vontade conjunta em não se submeter. A assembléia de todos os gotas seria realizada fora do burgo real, em Axevalla.

Dois jovens, cavalgando lado a lado por um longo caminho, se fossem outros que não Eskil e Arn, falariam sobre a luta de poderes em que eles próprios, inevitavelmente, estavam inseridos. Mas Eskil queria antes contar sobre seus negócios na Noruega.

E Arn continuava pensativo e recolhido, tal como tinha estado desde que voltou de Varnhem. Na manhã seguinte à noite passada em Husaby, cavalgou furiosamente até Varnhem para se confessar ao padre Henri e quando, finalmente, chegou a casa, mal-humorado, foi logo buscar os dois elmos que, segundo já tinha percebido, Eskil e ele seriam obrigados a botar na cabeça. O que Arn mudou nos elmos não aparecia muito pelo lado de fora, mas o que ele fez foi acolchoá-los por dentro para aquecer as cabeças e, principalmente, para evitar que as orelhas esfriassem.

Em silêncio, portanto, é que eles dois não poderiam continuar, pensou Eskil, achando que devia ser ele o primeiro a quebrar o gelo, falando daquilo que a sua cabeça estava cheia. E, assim, seria mais fácil se aproximar de Arn para saber o que estava pressionando a cabeça dele.

Eskil começou a contar seus negócios noruegueses, que tinham saído muito bem. Encontraram um representante familiar que assumiu todas as responsabilidades e proveitos na administração das fazendas da família. Por isso, podia dizer-se que as propriedades continuavam na família e que, além disso, tinham voltado para casa com muita prata norueguesa, o que era muito bom para Arnäs. Mas o melhor foi ter podido vender sem causar descontentamento e controvérsia entre os familiares.

Na Noruega, o que deixou Eskil perplexo foi um peixe seco a que chamavam de klipfisk. No norte do país, daria desse peixe em abundância, um lugar denominado Lofoten. As quantidades pescadas eram tão grandes que dava para comer e vender em todo o país e ainda sobrava. Por isso, pelo peixe ser muito abundante, era também muito barato. Além disso, era muito fácil de transportar e, quase por mágica, era muito fácil de guardar por muito tempo, até que fosse colocado na água para amolecer e tirar o sal. A idéia de Eskil era a de comprar todo esse peixe norueguês em excesso e depois vendê-lo nas províncias de Götaland Ocidental e Oriental. Havia muitos períodos de jejum e, em especial, os quarenta dias antes da Páscoa, em que era pecado comer carne. O peixe que se podia pescar nos lagos e no mar das províncias de Götaland não era nem de longe suficiente, em especial para aqueles povos que moravam longe dos lugares de pescaria, como nas cidades de Skara e Linkõping.

Para surpresa de Eskil, Arn sabia de que peixe se tratava, embora não o conhecesse como klipfisk e, sim, como kabalao, ou, melhor, bacalhau. Arn disse ainda que já tinha comido muito desse peixe e não apenas em períodos de jejum. Há muito que esse peixe existia no mundo monástico. Também pensava que, se apenas fosse possível ensinar os moradores das cidades a entenderem a utilidade do peixe salgado e seco, o que para ele não seria uma tarefa fácil, já que não tinha em grande apreço a inteligência dos moradores das cidades, enfim, se tudo isso fosse possível, com certeza seria muito lucrativo em prata para aquele que fosse o primeiro a fazer esse comércio. Sem dúvida, esse tipo de peixe era ótimo para conservar, transportar e comer, e que a necessidade de boa comida podia ser muito grande durante o jejum e durante os longos invernos. Caso as pessoas não morassem em mosteiros, claro.

Eskil ficou muito satisfeito e convencido de que tinha encontrado mais um novo produto que poderia render muita prata. E já via diante de si hordas de citadinos feios correndo para comprar seu peixe em grandes quantidades. Estava resolvido que logo mandaria uma missão comercial para seus parentes noruegueses com uma grande encomenda. O peixe salgado e seco tinha um grande futuro pela frente.

Quando o imponente comboio de forças folkeanas chegou à entrada da igreja de Forshem com os primeiros homens, os últimos cavaleiros ainda estavam longe, tão longe que não se viam. Os sinos da igreja tocavam com grande aparato como se anunciassem destruição ou a salvação, e os camponeses se apresentaram em grande número para assistir ao espetáculo. Mas se mantiveram em silêncio, horrorizados. Não era fácil saber se todo esse poderio militar iria servir para lançar o país na desgraça da guerra ou para manter a paz. Era difícil de ver isso a olho nu. Para o camponês vulgar, a visão da parada folkeana produzia mais medo do que esperança.

Após terminado o tempo de descanso na metade do caminho e depois do encontro com seus companheiros de outras terras e de, juntos, formarem agora uma força quase com o dobro dos componentes, Eskil resolveu, cheio de dedos, perguntar a Arn por que ele estava tão sombrio, quase triste, e qual fora a razão da visita ao mosteiro de Varnhem e de ficar dez dias com a camisa de cilício que Eskil logo notou, apesar da tentativa de Arn em escondê-la, e de penitência, a pão e água. Eskil se apressou a acrescentar que não era sua intenção penetrar nos segredos sagrados da confissão, mas que ele, apesar de tudo, era seu irmão e que irmão devia poder falar com irmão, também, a respeito de coisas difíceis e não apenas de peixe e prata.

Arn contou então, sem restrições, como ele tinha se desonrado ao se embebedar e vomitar, e como, em seguida durante a noite em Husaby, havia feito com uma mulher aquilo que pertencia ao domínio do casamento, entre esposa e marido, e que por essas heresias ele estava cheio de remorsos.

Mas Eskil não se mostrou nem um pouco preocupado ao escutar o que Arn falou. Ao contrário, riu tão alto que seu pai se virou na sela e dirigiu para eles um olhar de reprimenda. Afinal, desta vez, os homens de Folke não estavam cavalgando para a reunião do conselho por prazer e para participar de brincadeiras.

Em voz baixa, mas ainda alegre no seu tom, Eskil contou que tinha entendido tudo. Aliás, não era difícil adivinhar o resto. Isso de vomitar o excesso de comida e de bebida não era nada de mais, não era nada com que se preocupar. Indicava apenas que a pessoa tinha apreciado o tratamento recebido, o que era um bom costume. Mas, depois, isso com Katarina, fora com ela, não? É, embora nada estivesse definido, era muito possível que ele ou Arn acabasse se casando com Katarina ou com Cecília. Mas como Algot Pälsson de Husaby estava sob pressão, dizendo que lhe faltava prata e, no entanto, tinha que gastar prata o tempo todo, e que lhe faltava entendimento nessas coisas de administração, tudo levava a crer que as suas terras acabariam se juntando às de Arnäs, sem que para isso fosse necessário chegar ao noivado. Mas essa espera certamente tinha provocado impaciência lá em Husaby e aquilo que Katarina agora tinha feito era simplesmente tentar apressar os planos de Deus nesse sentido. Mas em relação a isso era melhor rir do que franzir a testa com preocupações.

Arn, no entanto, tinha dificuldade em rir da situação, visto que, por muito que tentasse examinar a questão por todos os ângulos, não poderia jamais escapar à sua responsabilidade diante de Deus pelo que fizera por sua própria vontade. Ainda que essa vontade tivesse sido muito cambaleante e estimulada pela cerveja. Tal como Eskil, também o padre Henri achou esse pecado menos grave do que Arn tinha pensado e que ele próprio de início tinha pensado, mas à medida que foi fazendo perguntas, acabou chegando às mesmas conclusões que Eskil. Uma mulher gananciosa e avara tinha armado para cima de Arn com cerveja e outras táticas em que as mulheres são mestras, quando querem ser manhosas como as serpentes. E Arn, ainda inocente em mais de um aspecto, não havia conseguido escapar dessa arremeuda.

Por isso, escapou também de uma penitência maior e assim ficou livre de pecados diante de Deus. Mas continuou a ter dificuldades em se alegrar como devia, depois de tão grande alívio. Era como se ele tivesse praticado um grande pecado uma segunda vez, sem ter recebido uma penitência realmente digna desse nome. E isso não o deixava nada satisfeito, como, certamente, Eskil e o padre Henri haviam esperado. Arn tinha uma sensação preocupante de que, ainda que perdoado, o seu pecado permanecia guardado em algum lugar dentro de si. E pelo que se lembrava, não foi preciso muita pressão da parte de Katarina para que ele cedesse, quando ela lhe mostrou por que viera e como devia ser feito.

O rei Karl Sverkersson observava de pé na crista de uma colina de Axevalla, junto com seus homens mais próximos, a entrada da coluna das famílias folkeana e erikiana na praça da assembléia. Era como se estivesse entrando um grande mar azul e amarelo-dourado, visto que as cores da força folkeana eram o azul e a prata e as da força erikiana, azul e dourado. As pontas das lanças com as bandeirolas azuis tremulando pareciam uma floresta que se alongava no horizonte até onde os olhos enxergavam. As duas famílias não tinham vindo apenas com algumas dúzias de escudeiros como guarda de honra, mas, sim, com um exército bem armado e o que elas queriam dizer com isso não era difícil de entender. Pior ainda era ver que entre aqueles que cavalgavam na frente não estavam apenas Joar Jedvardsson e seu genro, Magnus Folkesson, mas também Birger

Brosa, de Bjâlbo. Essa mensagem também era fácil de ler. Agora, a família de Bjâlbo, a mais forte do ramo folkeano, tinha aderido ao inimigo.

A única coisa boa a constatar era a ausência do jovem pretendente ao trono, Knut Eriksson, filho do falecido rei Erik Jedvardsson, entre os componentes do exército azul. Com ele presente, teria sido difícil manter a paz na assembléia. Afinal, a ausência de Knut Eriksson era um sinal de boa vontade para que a paz fosse mantida.

O rei Karl precisava agora apenas realizar uma reunião com os seus homens. Todos tinham visto e entendido a mesma mensagem. Os seus planos de aproveitar essa assembléia para se entronizar como rei sobre a Götaland Ocidental teriam de ser adiados para o futuro. Nada disso iria ser possível de acontecer contra as opiniões das famílias folkeana e erikiana, tão decididamente apresentadas ao chegar em grande força.

Entretanto, não era apenas uma questão de se mostrar forte, mas também de saber escolher a segunda melhor opção, a de conseguir que o filho primogênito do rei, uma criancinha quase recém-nascida, o infante, fosse considerado conde da Götaland Ocidental.

Em seguida, era só esperar ainda por uma saída feliz para a disputa entre Emund Ulvbane e Magnus Folkesson. Essa era uma armadilha bem armada. Sob certos aspectos, Magnus era o elo mais fraco da cadeia folkeana. E se fosse possível quebrar esse elo, muito ganho viria em seguida.

As forças folkeana e erikiana estabeleceram o seu acampamento no lado ocidental da praça da assembléia. Parecia o campo de um exército já a distância e era isso justamente o que se pretendia.

Quando as tendas já estavam erguidas e as carroças descarregadas, chegou a família sverkeriana e seus amigos com o infante do rei, que era meio-irmão de Kol e Boleslav do lado oriental. E eles demonstraram ter uma força quase igual. Portanto, o lado ocidental da praça brilhava todo em azul, ouro e prata. O oriental, em vermelho, ouro e preto.

No norte e no sul, ficaram as famílias que não se ligaram a nenhum dos lados. E por lá as cores eram misturadas e mais pálidas. Muitos homens na Götaland Ocidental acharam melhor chegar à assembléia de vestes normais e sem armas pesadas.

A assembléia não devia começar antes do meio-dia, quando o sol estivesse bem alto. Portanto, havia ainda tempo para muitas conversas e aconselhamentos. Do lado de fora da maior tenda do campo azul, estava colocada a legenda da família folkeana, com o leão dourado, e a da família erikiana, que era nova e agora representada por três coroas douradas contra um fundo azul. Esta legenda podia ser considerada como um insulto contra o rei Karl Sverkersson. Era como se o rei Erik Jedvardsson fosse aquele que a família erikiana teria saudado como seu soberano, isso porque todos sabiam que as três coroas eram a sua marca e as armas de mais ninguém. E aqueles que saudavam o rei Erik Jedvardsson diante do rei Karl Sverkersson afirmavam com isso que estavam ali como inimigos. Essa hostilidade era cada vez mais clara, visto todos saberem agora com mais certeza que fora Karl Sverkersson o homem por trás do assassinato de Erik Jedvardsson e que o pobre dinamarquês Magnus Henriksen fora apenas o álibi de Karl e perdera tudo no mesmo momento em que Erik Jedvardsson caíra morto. Isso porque nesse mesmo momento, quando Magnus Henriksen achava que tinha vencido em Aros Oriental com um rei morto a seus pés, todo o apoio desapareceu e todas as promessas foram quebradas por Karl Sverkersson em Linkõping, que agora passeava no campo na companhia do assassino do rei, seu próprio mandado.

Foi assim que Karl Sverkersson conquistou a coroa real. E dizia-se que o homem que ele mandou ajudar Magnus Henriksen a matar Erik Jedvardsson era Emund Ulvbane, e que Emund também fora aquele cuja mão segurava a espada que separou a cabeça do corpo de Erik Jedvardsson.

Se esse rumor estivesse certo, então, Magnus estava em disputa com um assassino real e, por isso, era preciso pensar bem como essa disputa devia ser encaminhada. Afinal, era fácil de ver que a questão era mais do que a disputa sobre algumas terras na fronteira entre as propriedades de Arnäs e as áreas de que o meio-irmão do rei, Boleslav, ultimamente, havia feito dotação para Emund.

Mas pensando friamente, não se deixando levar e, acima de tudo, não se deixando pressionar por aqueles que, certamente, estavam interessados em fazer pressão, daria para vencer o jogo sem muita dificuldade. O próprio homem de leis, Karle Eskilsson, que era neto do homem de leis Karle de Edvâra, também era parente da família folkeana. E, nesse momento, estava ele a caminho da tenda dos folkeanos para aconselhamento.

Lá estavam ainda Joar Jedvardsson, Birger Brosa, Magnus e seus dois filhos e os quatro comandantes das forças folkeana e erikiana.

Havia dois assuntos a tratar, e o juiz Karle, que era a autoridade mais elevada na tenda, devia ser o primeiro a falar. Falou curto e grosso e foi direto ao assunto para que não se perdesse tempo. Se o rei Karl tencionava se proclamar soberano também da Götaland Ocidental, e estava claro que era essa a sua intenção, e se todos os amigos da casa de Folke e todos os homens da casa de Erik lhe negavam essa condição, então, a questão estava decidida. Nessa situação, nenhum homem de leis e nenhum bispo poderia aprovar o exigido privilégio real. Mas se, como os rumores também formalizavam, o rei Karl quisesse, como compensação, exigir a aprovação da assembléia para elevação do seu filho Sverker a conde da Götaland Ocidental, qual seria a reação?

Birger Brosa disse que na sua opinião isso podia ser uma solução muito boa. O rei Karl deixaria de ter uma retirada vergonhosa e ficaria de espírito menos combativo. A Götaland Ocidental estaria livre desse seu poder real e se ele quisesse chamar de conde ao seu infante, isso seria bom, certamente, para o seu próprio orgulho, mas, na realidade, não significava nada. Só dali a muitos anos esse conde poderia se tornar uma espada em defesa do rei, mas naquele momento constituía apenas uma palavra a mais. E dessa maneira seria possível evitar a guerra entre as duas partes aparentemente iguais em força, o que era a pior de todas as guerras. Joar Jedvardsson e Magnus Folkesson concordaram imediatamente com o que Birger Brosa disse. Achavam também que uma guerra entre duas forças iguais era uma coisa que devia ser evitada ao máximo. Aquele que viesse a ganhar uma guerra dessas teria de pagar muito caro pela sua vitória e acabaria rodeado de viúvas e de órfãos e de terras devastadas e queimadas.

O juiz Karle definiu, então, que todos estavam de acordo sobre essa questão e que ninguém era contra.

Quanto à segunda questão, a disputa de terras entre Magnus e o jovem representante de Boleslav, Emund Ulvban, havia algo de malicioso nessa disputa. A questão era pequena demais para ser elevada a tal nível. E mais estranha ainda para ser elevada a tema de uma assembléia. Portanto, a intenção poderia ser a de criar uma controvérsia que, tal qual um incêndio, poderia crescer e transformar-se em guerra. Por trás de Emund Ulvbane estava Boleslav, o meio-irmão do rei Karl. Mas Boleslav era uma criança, nem sequer adolescente incapaz de tecer intrigas guerreiras a seu bel-prazer. Por trás de Boleslav estava, portanto, o rei Karl e, por isso, era este que queria que houvesse disputa.

O juiz Karle disse entender que essa disputa devia ser solucionada com mão leve, se a intenção fosse a de preservar a paz. Mas como ambas as partes na disputa podiam apresentar tantas dúzias de escudeiros de honra quantas fossem necessárias, praticamente numa seqüência sem fim, a questão, portanto, não poderia ser resolvida conforme a lei prescrevia. Qual seria, então, o melhor caminho? E o que é que Magnus teria a dizer sobre o assunto?

Magnus falou, então, de maneira curta e imperativa, explicando que, na sua opinião, a solução com escudeiros de honra iria deixar tudo da mesma maneira. Por isso, tinha pensado em sugerir um acordo em que ele propunha um pagamento de trinta marcos de prata pelas terras em disputa. Talvez dez marcos a mais do que o seu verdadeiro valor, mas o preço, segundo Magnus, não seria alto demais, se com isso a disputa terminasse em acordo. Se a paz podia ser comprada por apenas dez marcos, então, sairia mesmo muito barato.

Pensativo, o juiz Karle acenou com a cabeça, afirmativamente. Gostou da proposta. Declarou, então, que na assembléia o assunto seria discutido até que todos achassem que a disputa teria travado, sem solução. Nessa altura, Magnus apresentaria a sua proposta de acordo e levaria os seus trinta marcos de prata para a assembléia. Então, muito simplesmente, o homem de leis e os seus nomeados julgariam a proposta como boa para o estabelecimento de um acordo e ninguém ficaria em condição de ir contra a decisão.

Com isso, a reunião do conselho terminou e todos se separaram satisfeitos, com a intenção de sair para o campo e encontrar os amigos.

Eskil e Arn saíram juntos e foram ver cavalos e armas, saudando gente da sua própria família que Eskil conhecia, mas não Arn, e gente da família erikiana que nenhum deles conhecia, enquanto Eskil explicava para Arn como eram os procedimentos em uma assembléia. Arn precisava saber que armas como a espada não poderiam ser levadas para dentro do círculo de cal que definia justamente os limites da própria assembléia. E que se tivesse que fazer o juramento de honra, ele tinha de saber de cor as palavras e dizê-las de maneira clara e precisa, sem hesitações ou gaguejos, visto que isso levava a desconfianças. As palavras eram:

“Juro dizer a verdade e nada mais que a verdade, assim os deuses me ajudem”.

Arn logo soube repetir as palavras, mas objetou, dizendo que esse « juramento ia contra a primeira mensagem do Senhor e representava idolatria. Afinal, quem eram os deuses que podiam ajudar? Como seria possível fazer um juramento perante ídolos?

Mas Eskil apenas riu dessas preocupações e explicou que, embora as palavras fossem do tempo dos avós, seu conteúdo não tinha em vista outra coisa que não Deus. E para convencer Arn do que estava dizendo, salientou que logo as primeiras palavras na lei dos gotas esclareciam a questão e a tornavam clara como água:

“Cristo está na frente em nossas leis. A seguir, vêm os ensinamentos cristãos e todos os cristãos: o rei, os camponeses e todos os que aqui habitam, os bispos e todos os homens que sabem ler'.

Arn pareceu, então, ficar satisfeito e fez até piada, dizendo que Eskil entrava, certamente, nessa lei como camponês, enquanto ele, na certa e com dificuldade, entraria, se esgueirando, na qualificação como homem que sabia ler. De qualquer maneira, sem sombra de dúvida, eles tinham a lei do seu lado.

Na hora certa, chegou o bispo Bengt, de Skara, e abençoou a paz da assembléia. E o juiz Karle, com voz sonora, declarou abertos os trabalhos. E que seria criminoso quem intentasse contra a paz da assembléia. Depois disso, o murmúrio foi geral entre os milhares de homens ali reunidos e que, sob tensão, viram o rei Karl abrir caminho, devagar, na direção da colina mais elevada onde estava o juiz. Em breve seria definido se haveria paz ou guerra.

Ao chegar lá em cima na colina, todos puderam ver que o rei trazia uma criança no colo e muitos compreenderam logo o que isso significava e deram um suspiro de alívio. A paz tinha sido salva, visto que Karl Sverkersson não tencionava exigir a coroa da Götaland Ocidental com a espada na mão.

Depois disso, aconteceu tudo como Karl e Birger Brosa haviam previsto. Karl Sverkersson levantou a sua criança bem alto sobre a cabeça, para que todos a pudessem ver, e pediu à assembléia que saudasse o novo conde Sverker, da Götaland Ocidental. Do lado da família sverkeriana e dos homens reunidos em volta dos meios-irmãos do rei, Kol e Boleslav, escutou-se imediatamente um sim e depois todos se voltaram sob tensão para aquele lado da assembléia onde pontificava a cor azul e ouro, na frente, estavam Joar Edvardsson, Magnus Folkesson e Birger Brosa.

Birger Brosa, com um sorriso, segredou que era para esperar uns momentos e todos fizeram isso e ficaram quietos. E todos os homens atrás deles fizeram o mesmo. Os murmúrios na assembléia começaram a morrer e dali a pouco todo o mundo ficou em silêncio. Apenas se escutava o vento. E, então, num rompante, os três homens da frente elevaram suas mãos para os céus como se fossem uma e a mesma pessoa. E logo em seguida se elevou no ar uma floresta de mãos atrás deles. E irrompeu por toda a praça um grito de júbilo e alegria. E de alívio.

O bispo Bengt pôde, então, abençoar o novo conde que começou a chorar como qualquer recém-nascido, de maneira que pareceu se tratar mais de um batizado do que da sagração do homem mais importante de toda a Götaland Ocidental.

Nos trabalhos da assembléia, o que vinha a seguir dizia respeito apenas a uns poucos. Eram questões de crimes e de direitos lesados. Depois, seriam enforcados alguns ladrões de igrejas, para animar aqueles que vieram à assembléia de muito longe, agora, que todos os assuntos de grande importância já tinham sido resolvidos. Demorou, portanto, quase para o final da tarde, a questão levantada entre Magnus Folkesson e o assassino do rei, Emund Ulvbane. Quando isso aconteceu, no entanto, houve como que um sopro de vento frio perpassando por toda a assembléia. E os homens com vestes de cores sverkerianas acorreram de todos os lados. Era evidente que eles estavam esperando algo de importante, embora a questão fosse da menor importância.

A princípio, tudo aconteceu como previsto pelos folkeanos. Dois grupos de doze escudeiros de cada lado foram chamados a depor sob juramento e todos asseguraram, assim os deuses os ajudassem, que as terras em questão já pertenciam desde tempos imemoriais àqueles por quem tinham feito seu juramento.

Depois, também tudo seguiu como previsto. Magnus Folkesson ofereceu sua prata, explicando que com isso estava disposto a entrar em acordo. Pediu que a contraparte aceitasse a oferta, visto que o preço era bom e a paz entre vizinhos era ainda mais valiosa do que essa prata. Emund Ulvbane rejeitou a oferta, teimosamente, que nem um touro, mas o juiz Karle e seus assessores julgaram e sentenciaram a favor do acordo, sem sequer precisar conferenciar a respeito do caso. E com isso muitos homens começaram a se dispersar, murmurando palavras de decepção. Viram todos que o caso estava definido e não podia levar a mais nada.

Mas, então, Emund Ulvbane avançou e pisou com desprezo na prata que acabava de lhe ser atribuída pela lei. E levantou sua mão direita em sinal de que tinha algo para dizer. Imediatamente se fez silêncio. Todos aguardavam sob tensão, visto que Emund Ulvbane se mostrava furioso e ameaçador.

— Segundo a assembléia decidiu, devo eu me submeter ao que foi resolvido — começou ele, falando com uma voz de trovão, conforme sua estatura que era muito forte. — Mas penoso é ver que a prata pode substituir a honra e o direito. Penoso também é precisar se conciliar com um homem sem honra como Magnus Folkesson. Pois você, Magnus, não é homem, nem no peito nem no espírito. E eu considero seus filhos tão desprezíveis quanto você. São duas cachorrinhas de merda, um deles é freira e o outro, um barril de cerveja.

E com isso Emund Ulvbane fez sinal para um dos seus escudeiros apanhar a prata, enquanto se mantinha de pé onde estava, as mãos pendendo lateralmente e os olhos procurando, desdenhosamente, pelos do inimigo. Mas o único que do outro lado enfrentou o seu olhar era um dos que ele tinha chamado de cachorrinho, um jovem com olhos de cordeiro inocente que olhava para ele sem demonstrar medo, mas como se estivesse espantado e compadecido.

Depois, estabeleceu-se o tumulto na assembléia. Havia muita ansiedade. Muitos se apressaram a procurar abrigo. A paz que há pouco parecia tão certa, agora corria grandes riscos.

Na tenda folkeana, reuniram-se logo as figuras principais para conferir opiniões, mas o ambiente era de pessimismo. Tanto Joar Jedvardsson quanto Birger Brosa, que conheciam alguma coisa de leis, disseram ter uma impressão ruim daquilo que a lei prescrevia para o caso de alguém, tão abertamente, ter usado de palavras insultuosas na assembléia. E de como seria difícil contornar a situação. De qualquer forma, com prata, desta vez, seria impossível.

Era preciso esperar pelo juiz Karle para saber o que a lei dizia. E foi uma espera triste. Muito poucas foram as palavras trocadas. Eskil mandou buscar um barril de cerveja e canecos para todos. E todos beberam em silêncio como se costumava fazer no início de qualquer velório.

Quando o juiz Karle chegou à tenda, veio cheio de pesares e preocupações. Isso foi fácil de ver. Fez uma saudação muito curta e entrou imediatamente no assunto, sem palavras desnecessárias:

— Amigos, vocês querem saber o que diz a lei a respeito das palavras insultuosas ditas. Mas, antes, quero declarar que serão vocês a decidir o que deve ser feito. A esse respeito, eu não tenho nada a decidir. Mas em relação a esses insultos que ouvimos da boca de Emund, a lei é muito precisa, tão precisa que eu acho que Emund não poderia ter acertado tanto na mosca. Acho que por trás do que ele disse existem muitos conselhos e pensares. Ouçam agora a lei que eu vou ler para vocês.

O juiz descobriu, então, que estavam servindo cerveja. Interrompeu o que estava fazendo, pegou num caneco e bebeu alguns goles bem grandes, enquanto parecia que estava murmurando a lei de memória. Em seguida, colocou o caneco de lado, enxugou a boca com as costas da mão e leu o texto da lei com uma voz cantante:

Dizer palavras insultuosas a outrem: “Você não é homem, nem no peito nem no espírito.” “Sou tão homem quanto você. “ Eles devem se encontrar onde três caminhos se encontrem. Acontece que aquele que diz, diz as palavras, e aquele a quem elas são ditas, e que as palavras recebeu, não vem nem reage, então, ele será como foi chamado; ele é sem honra e de testemunho incapaz, em coisas de homem ou de mulher. Se ele vem, em contrapartida, aquele que as palavras recebeu, e não vem, aquele que as palavras deu, então, grita o insultado três vezes “criminoso” e faz uma marca para ele na terra. Então, será ele muito pior, aquele que insultou, por não manter sua palavra. Os dois, então, se defrontam com armas completas. Cai aquele que recebeu o insulto, para ele segue meia penitência. Cai aquele que insultou, crime com palavras é pior, a língua é a assassina. Ele está condenado.

Fez-se silêncio por longos momentos, enquanto todos examinavam mentalmente o que fora dito como sendo a lei. O juiz Karle, que havia se sentado, pegou novamente no caneco de cerveja e bebeu mais um gole. Mas em breve todos os olhares começaram a concentrar-se em Birger Brosa, que estava sentado e com a cabeça pendente em sua dor. Ele notou os olhares e compreendeu que tinha de ser quem iria dizer, com palavras dolorosas, aquilo que, na maioria dos casos, todos já tinham pensado. Seu irmão, Magnus, estava de rosto pálido, quase branco, e como que paralisado.

— Enfrentar Emund Ulvbane num duelo é para muitos homens bons, até para homens melhores do que os que aqui estão sentados, a mesma coisa que uma morte certa — começou ele, com um suspiro profundo. — Por isso mesmo, o rei Karl e seus conselheiros espertamente criaram esta situação, e foi por isso mesmo que Emund recebeu as terras que limitam com Arnâs, só por isso. Meu irmão Magnus tem de escolher entre se defrontar com Emund pela espada ou tornar-se um homem sem honra e essa é uma escolha que eu não desejaria nem para o pior dos meus inimigos. Mas é assim, e só assim, que a situação se põe. E eu não posso nem dar qualquer bom conselho.

Magnus não disse nada, e também não pareceu querer dizer coisa alguma. Em vez dele, foi Joar Jedvardsson que tomou a palavra:

— Muito mal julgou o rei Karl nossa vontade de manter a guerra longe de nós — começou ele, dolorosamente. — No entanto, a guerra virá, mais cedo ou mais tarde. É isso que Karl Sverkersson agora nos mostrou e que todos nós entendemos. A razão pela qual o meu sobrinho, pretendente ao trono, Knut Eriksson, não veio a esta assembléia, foi para evitar que ficasse ainda mais difícil manter a paz na reunião. Mas Knut é a pessoa que com falsidade e assassinato por parte de Karl Sverkersson terminou sem o pai e sem a coroa. Mas em breve chegará o tempo maduro, como todos nós sabemos, para exigir o restabelecimento da honra. Aí eu pergunto, meus amigos, de que servirá se Magnus perder a sua vida?

Todos aqui dentro desta tenda e também lá fora já sabem que esta manobra de Karl Sverkersson serve apenas para assassinar a figura principal da família folkeana na Götaland Ocidental, antes mesmo de a guerra começar. Com isso ele vai ganhar tanto quanto a gente vai perder. Magnus Folkesson pode atrair muita gente para segui-lo em combate pelas cores folkeanas, mas, desculpem se agora eu falar abertamente como a questão exige, é menos certo se outros tantos estariam dispostos a seguir Eskil Magnusson nessa empreitada. Se Magnus tiver que morrer por nossa causa, se Deus quiser, então, é melhor que ele morra no campo de batalha nessa guerra que será inevitável. Nós podemos todos, e agora, tanto os da família erikiana quanto os da família folkeana, juntos, e de uma vez só, abandonar tudo aqui e ir embora. Assim, todos nós mostraremos, e em conjunto, onde estamos. Essa é a minha opinião.

— Foi uma colocação muito inteligente, meu caro amigo — disse Birger Brosa, mas, ao mesmo tempo que se fazia menor na cadeira, em sinal de indisfarçável desconforto, o que, para quem o conhecia melhor, significava justamente o contrário do que havia dito. — Todavia, a lei é clara. Se Magnus não se apresentar para o duelo, será considerado um néscio, um homem desonrado que nem sequer poderá servir como testemunha. Um homem assim não poderá nunca liderar a família folkeana. Isto nunca aconteceu e nunca acontecerá. Disso nós sabemos. E até Karl Sverkersson sabe, tal como seus espertos conselheiros que nos colocaram nesta situação difícil. Magnus poderá escolher apenas entre duas coisas. E isso é doloroso para um irmão dizer, mas sou obrigado a dizê-lo porque é verdade. Ou ele se retira com vida, mas como homem desonrado, ou ele aceita um duelo, onde apenas um milagre poderá salvar sua vida. Esta última hipótese é a melhor. Nenhum duelo está definido por antecipação. Mas aquele que covardemente foge de um duelo estará definindo sua vida para sempre. Assim é a vida.

O juiz Karle levantou-se, então, devagar, declarando que ele nada mais tinha a acrescentar sobre o assunto. Não havia nenhuma dúvida quanto ao conteúdo da lei, e a decisão final era para ser tomada pelos três líderes presentes, não adiantava nada mais pessoas para decidir sobre o caso. E assim ele saiu da reunião, abanando a cabeça em sinal de inconformismo, ao se retirar da tenda.

Fez-se silêncio novamente na tenda. Todos agora aguardavam o que Magnus tinha para dizer. Era dele a grande decisão, se não a decisão final. Não se tratava apenas da sua vida, mas também da honra de toda a família folkeana.

— Já tomei a minha decisão — disse ele, quando já não podia ficar mais tempo em silêncio, diante da insustentável espera por suas palavras. — Amanhã, ao amanhecer, aqui neste lugar, na praça da assembléia, a que nós chamamos o encontro dos três caminhos, enfrentarei Emund com armas completas, tal como a lei menciona. Que Deus esteja comigo e que todos vocês rezem por mim. Mas não existe nenhuma outra saída. Na nossa família ninguém escolhe o caminho da desonra e, na verdade, também ninguém iria seguir um homem desonrado.

Eskil e Arn estavam sentados lá atrás na tenda e ninguém dos mais velhos tinha prestado atenção neles. Agora que seu pai tinha falado, e como todos achavam que ele tinha se condenado à morte, Eskil susteve repentinamente a respiração para não chorar, mas se recuperou a tempo.

No doloroso silêncio que se seguiu, nada mais sendo dito contra o que Magnus acabava de falar, sinal de que todos concordavam com a solução final para sua vida, Arn, no entanto, desesperado, achou de falar o que restava dizer.

— Desculpem, se também nós, filhos, tivermos alguma coisa a dizer sobre o assunto — começou ele, ainda inseguro. — Mas isso afeta a nós, assim como a todos os outros... Quero dizer, de qualquer maneira. Não é verdade que também nós fomos agredidos, tanto quanto nosso pai, Magnus, quando Emund nos chamou de cachorrinhos, ou seja lá o quis dizer?

— É, isso é verdade — respondeu Birger Brosa, melancolicamente. — Você e Eskil foram agredidos tanto quanto seu pai, Magnus. Mas é compromisso dele defender a honra de todos.

— Mas não é verdade que, segundo a lei, nós temos o mesmo direito de nosso pai de defender a nossa honra? — perguntou Arn, com toda a simplicidade da inocência de uma criança, de modo que alguns dos homens mais idosos não puderam deixar de sorrir, apesar da seriedade do momento.

— Não iria honrar a pessoa de Magnus, caso ele mandasse qualquer um dos filhos, que ainda não são adultos, para o matadouro — murmurou Birger Brosa, meio zangado, se levantando no mesmo momento para ir lá fora mijar e deixando os outros sem fala.

Depois de uma curta hesitação, Arn decidiu correr atrás de Birger Brosa e teve de percorrer com a vista um bom bocado antes de o encontrar, visto que a escuridão da noite já invernosa tinha descido rápido enquanto estavam lá dentro. Foi, então, que ele se dirigiu resolutamente para seu tio, quando ele estava puxando as calças para cima, e falou, sem hesitar e com toda a convicção:

— Devo dizer para o senhor, agora, uma verdade importante, meu caro tio. O senhor tem que acreditar em mim, visto que nesta hora tão séria não há lugar para mentiras. Acontece, apenas, que sou aquele que melhor sabe esgrimir com a espada entre os três que foram agredidos. Também é verdade que acredito poder derrotar esse tal de Emund com a maior facilidade. E derrotar o senhor e qualquer um dos nossos escudeiros.

Por isso, o senhor terá que estabelecer que sou eu o escolhido para o duelo e não o meu pobre pai.

Birger Brosa teve tanta dificuldade em voltar a si diante dessas palavras que, de repente, verificou que ainda continuava com as mãos nas calças, como se ainda não tivesse urinado. Pouco do que ele sabia de Arn era que todos faziam piada a seu respeito por ter vivido num mosteiro, e até mesmo Emund tinha escutado falar do assunto, visto que chamou Arn de freira. E agora estava ali diante dele aquele jovem, crente em Deus e muito sério, lhe falando de uma coisa que não podia ser verdade, mas com uma cara onde não se via o mínimo sinal de mentira. Birger Brosa não sabia em que acreditar, a não ser no fato de o rapaz não parecer estar louco e seu discurso dizer coisa com coisa. A dúvida dele devia ser muito aparente. Arn fez um movimento de impaciência com as mãos, antes de ter uma nova idéia:

— Querido tio, o senhor é muito maior do que eu, mais ou menos como Emund — disse Arn, ansiosa e entusiasticamente dominado pela sua idéia. — Por favor, pegue a minha mão e coloque seu pé contra o meu — continuou ele, estendendo a mão na direção do tio que, por pura surpresa, pegou-a e, com surpresa, sentiu sua força, enquanto Arn ajustava a posição dos pés, de modo que os corpos ficassem de lado, um contra o outro, como se estivessem medindo a força de seus braços. — Isso mesmo — disse Arn, de repente, divertido. — Tente agora me derrubar com a sua força que é maior do que a minha!

Birger Brosa fez uma tentativa meio hesitante que não teve outra conseqüência senão provocar o riso de Arn. Aí ele fez outra tentativa, desta vez, com mais convicção e no momento seguinte estava estendido na neve suja e na lama. Birger se levantou, espantado, pegou novamente a mão forte de Arn e de novo foi parar no chão, como se o garoto pudesse brincar com ele como quisesse. Depois da terceira tentativa, Arn não quis mais continuar e levantou as mãos, virando as palmas para a frente, em sinal de que queria parar.

—Agora, por favor, escute, meu caro tio — disse ele. — É assim que eu posso lidar com Emund ou com quem quer que seja. Por isso, preciso contar o motivo para o senhor. Durante todos os meus anos no mosteiro, treinei todos os dias, mais do que qualquer outro homem que o senhor conheça, todos os jogos de armas com um homem que, em outros tempos, foi um templário na Terra Santa. Eu juro perante a Virgem Maria e São Bernardo, que são os meus santos protetores, que sou aquele que melhor entre nós todos poderá se defender com a espada. E o senhor deve saber que um homem como eu não pode mentir para ninguém, muito menos para amigos e muito menos ainda neste momento tão grave.

Birger Brosa sentia como se a convicção e a verdade descessem como uma luz sobre ele. Com isso, ficou convencido de que Arn, de fato, falava a verdade. E quando observou mais profundamente o que isso podia significar, sua alma brilhou e ele olhou para Arn pleno de felicidade, no momento em que o abraçou. Como o homem inteligente que era, ao se tratar de luta pelo poder, reconheceu que a mais negra das situações para a família folkeana podia se transformar em uma situação favorável. E isso independentemente de Arn ou Emund Ulvbane vencer a luta ao amanhecer do dia seguinte. Arn venceria. Ou, então, perderia com grande honra, maior do que aquela que Magnus conseguiria. Mas, então, a vitória de Emund seria considerada como mesquinha.

Entretanto, surgiram dúvidas e insatisfações quando Birger Brosa de novo entrou na tenda com os amigos já chorosos e explicou que Arn devia ser o homem a aceitar a luta contra Emund Ulvbane e que a explicação para isso devia ser a de que Arn fora o mais atingido, no que Emund o chamou de cachorrinho, além de dirigir seu escárnio contra a casa de Deus onde Arn se formou.

Magnus foi contra, sob grave agonia. Porque ao mesmo tempo que ele via a sua vida ser salva, a vida da qual ele já tinha começado a se despedir-se, via também que iria perder o seu filho. E chorava por sentir que não podia deixar de ser considerado ruim o fato de ele não ter assumido toda a responsabilidade e, em vez disso, mandar para o matadouro um filho que nem sequer tinha atingido ainda a idade adulta. Magnus tinha dificuldade em aceitar como séria a explicação atenuante de Arn, de que era mais inteligente mandar para o duelo aquele dos três que melhor sabia manusear a espada.

Joar Jedvardsson, confuso, deixou os folkeanos à sua sorte durante a noite, assim como os quatro escudeiros, ainda em dúvida, que se despediram de Arn, olhos no chão, pedindo a bênção de Deus para ele. O jovem Arn, afinal, ainda era imberbe, com apenas alguma penugem nas faces.

Quando os folkeanos foram deixados a sós, Magnus sugeriu que rezassem pelo tempo que agüentassem, durante a noite. Arn achou que essa era uma boa proposta, mas confundiu todos ao começar rezando pela vida de Emund Ulvbane, por seus pecados e pela sua arrogância.

Ao amanhecer do dia que todos na Götaland Ocidental iriam recordar por longos tempos e a respeito do qual se contariam muitas lendas, reuniram-se à volta do lugar conhecido como o encontro dos três caminhos quase tantos homens quantos os que tinham estado presentes na assembléia. Esse lugar estava à distância de três tiros de flecha da praça onde se realizou a assembléia que se definiu pela paz. Poucos tinham sido aqueles que voltaram para casa na noite anterior, ainda que a assembléia já tivesse terminado. Poucos eram aqueles que preferiram não ver com os próprios olhos a luta que poderia determinar o início da guerra.

Ninguém da família folkeana, nem da família erikiana, tinha voltado para casa. Todos sem exceção teriam de mostrar para os homens do rei que aquele que assassinasse um amigo estaria dando um golpe em todos eles. Mais importante ainda era estar também ao lado daquele homem que teria a sua vida terminada para salvar a honra. Era preciso estar ao lado dos amigos desde o nascimento até a morte. E agora era a hora da morte.

Do ocidente vieram os folkeanos e os erikianos, de semblantes sérios e em silêncio. Do oriente, chegaram os homens do rei e seus amigos, falando e rindo alegremente entre si e considerando a situação com desdém. Acreditavam que a vitória seria deles de qualquer maneira. Se Magnus Folkesson preferisse salvar a sua vida não comparecendo, a vitória seria dos homens do rei, visto que os folkeanos estariam desonrados. E se Magnus Folkesson enfrentasse Emund Ulvbane, a vitória seria certa, na mesma, mas daria muito mais prazer em ver.

À frente dos folkeanos vinham Birger Brosa, Magnus Folkesson e seus dois filhos, todos envoltos nas suas mantas azuis, espessas, forradas com peles de marta, todos com seus elmos e com os escudos leoninos no braço esquerdo. Ficaram em frente dos seus amigos, todos em silêncio, aguardando. Emund e seu séquito estavam intencionalmente atrasados.

O tempo estava frio e o sol que em breve apareceria no horizonte por trás dos homens do rei coloria o céu de vermelho como se fosse sangue. Seria um bom dia para morrer, era o que todos pensavam, enquanto sob um murmúrio de impaciência esperavam a chegada dos primeiros raios de sol e com isso a hora de a luta começar.

E quando o primeiro raio de sol surgiu por cima do horizonte ouviu-se um grito de guerra do lado dos homens do rei, ao mesmo tempo que Emund Ulvbane jogava para longe a sua manta, puxando a sua pesada espada e avançando com grandes passadas para o centro do lugar escolhido.

Mas o que aconteceu depois ninguém esperava. O mais baixo dos filhos de Magnus Folkesson, aquele a quem chamavam de garoto monge ou freira, pôs de lado a sua manta azul, tirou o elmo da cabeça e retirou da bainha a sua espada, a sua longa mas frágil espada que ele beijou, fazendo talvez um juramento que ninguém pôde ouvir. Depois, fez o sinal-da-cruz e avançou lentamente, mas sem hesitar, na direção de Emund.

Primeiro, houve um grande silêncio entre os milhares de presentes ali reunidos. Depois, um murmúrio geral de desaprovação. Todos viram que o garoto monge nem sequer tinha colocado sobre o corpo a malha de aço. Bastaria o mais brando dos golpes para jogá-lo morto no chão. Nem o seu elmo ele tinha na cabeça.

Para Emund Ulvbane, isso era um grave insulto. Era como se quisessem que ele desistisse da luta ou que, sem muita honra, acabasse com a vida de um inofensivo garoto monge. Assim, deve ter sido pensado, consideraram até todos os folkeanos presentes, que ficaram tão surpresos quanto os homens do rei, ao ver o jovem Arn entrar numa luta de vida ou morte em vez de seu pai. No entanto, isso era assumir um risco louco, visto que ninguém acreditaria na possibilidade de Emund Ulvbane mostrar-se menos agressivo ou desistir de uma luta em que a sua vitória era certa. Mas coragem não faltava a esse garoto que oferecia a sua própria vida para salvar a vida do pai e a honra da família. Assim pensavam até os homens do rei.

Emund Ulvbane, porém, não se deixou envolver e decidiu dar um fim rápido e degradante para a luta, tal como o insulto folkeano merecia. Daí, correu resoluto na direção de Arn, com a espada levantada e preparada para separar de imediato a cabeça do adversário.

Logo Emund Ulvbane jazia no chão. Certamente, teria desfechado o golpe com força demais na direção da cabeça de Arn que se esquivou. O golpe perdeu-se, mas Arn nem aproveitou a oportunidade oferecida por Deus. Antes, continuou quieto no lugar, esperando que o furioso combatente do rei se levantasse e atacasse de novo.

Três vezes Emund Ulvbane desferiu seu golpe contra o adversário que, sem problemas e sempre rodando em círculos, os evitou, sem sequer tentar aparar esses golpes com a sua espada. Aqueles que estavam mais longe e não viam com toda a nitidez o que estava acontecendo, achavam que Emund estava brincando, cruelmente, de gato e rato. Mas quem estava mais perto viu nitidamente que não era nada disso que acontecia.

Entre os folkeanos e os erikianos escutou-se de vez em quando uma gargalhada ou outra, mas dali a pouco toda a praça estourava em gargalhadas que caíam como escárnio sobre Emund Ulvbane, enquanto este, apesar dos seus furiosos esforços, apenas conseguia abrir grandes buracos no ar.

Arn já se sentia seguro. Ainda que seu adversário fosse alto e forte, ele não era tão alto quanto o irmão Guilbert e nem um décimo tão competente. Nesse momento, era preciso, acima de tudo, evitar a morte de Emund e não se deixar atingir pelo orgulho e a arrogância. Em breve, os golpes de Emund passariam a ser mais seguidos e mais pesados. E então seria o momento de contra-atacar. Arn estava satisfeito por ter conseguido levar a sua vontade em frente, não vestindo a malha de aço nem mantendo o elmo na cabeça. Isso, apesar de todos os bons conselhos recebidos e de todas as tentativas feitas para convencê-lo a fazer o contrário. No entanto, justamente para conseguir a vitória sem matar era preciso se movimentar com rapidez e ter uma boa visão em todos os momentos, visto que o mínimo erro poderia levar à morte.

Quando Arn começou a se defender, Emund já tinha ficado tão lento nos seus movimentos que todos notaram isso. E Arn ainda o cansava mais, enfrentando seus golpes com a espada e o escudo, mas sempre de viés para que a espada do adversário resvalasse e fosse parar no chão. As faíscas se soltavam do ferro cada vez que o golpe da pesada espada de Emund acertava na pedra. Arn sempre fazia de conta que ia aparar o golpe na sua espada, mas virava o punho no último instante e o golpe de Emund mais uma vez resvalava na direção da pedra do chão. Mas Arn nem precisava mais aplicar esse contragolpe, e já Emund jazia novamente por terra, em função do seu próprio peso e força. E, então, Arn avançou rápido e assestou a ponta da sua espada na garganta de Emund e falou para ele, pela primeira vez. Emund estava de joelhos, ofegante, e a todos pareceu que aquele seria seu último momento.

Os dois combatentes encontravam-se agora no meio do terreno, longe demais para que todos pudessem escutar o que foi dito. Apenas dava para adivinhar que aquele que muitos chamavam de garoto monge havia oferecido a Emund a possibilidade de salvar a pele desde que se — entregasse e, como sinal, estendesse para ele seu escudo. Mas, em vez disso, Emund, de repente, jogou o corpo para trás, evitando a ameaça da ponta da espada, e se levantou. E assim a luta ia continuar.

Entretanto, até os homens do rei reconheceram, então, aquilo que era a verdade e que, antes, ninguém tinha podido ver ou entender. Aquele folkeano que Emund tinha desdenhado como cachorrinho e freira era totalmente superior a ele. E não se tratava de milagre ou de feitiçaria, ou de circunstância, já que todos tinham visto isso por tempo demais para que seus olhos pudessem estar enganados. Guerreiros experimentados começaram a descrever uns para os outros o que estavam vendo, tentando entender e seguir em pensamento o que Arn conseguia fazer com a espada. Já tinham chegado à conclusão de que a arte de Arn era grande e que Emund tinha encontrado o seu superior. Do lado folkeano o escárnio começou a aumentar, dirigido contra o vencido. E do lado dos homens do rei uma ou outra voz se levantava para que Emund se entregasse e oferecesse seu escudo. Todos tinham visto que a sua vida já tinha sido poupada várias vezes.

Todavia, Emund Ulvbane colocava a sua honra acima de tudo. E no caso, muito acima de um cachorrinho qualquer. Além disso, por ter entrado tantas vezes em combate, ele sabia bem que, às vezes, as situações mais desesperadas podiam virar, sem que isso pudesse ser considerado um milagre. Ao continuar, porém, ele resolveu ser mais cuidadoso e se movimentar mais, sem golpear tanto, para poupar suas forças.

Primeiro, isso tornou Arn mais resoluto, achando que não poderia vencer através da rendição do adversário. A rendição teria sido a atitude mais razoável, ao verificar que seus golpes nunca acertavam no alvo e devia ter entendido que Arn podia acertar nele quando quisesse. Arn sentiu que precisava pensar muito claramente e que ele, por muito que Emund fosse fraco, não podia deixar-se dominar pela presunção. Mostrando grande poder de decisão, resolveu jogar para longe o seu escudo, a fim de atrair Emund para nova série de golpes desesperados que acabariam de vez com suas forças.

Foi então que correu um sussurro de aflição por todo o lugar ao ver que Arn, além de jogar o escudo para o chão, tinha mudado a espada para a mão errada. Agora as possibilidades de Emund acertar seus golpes tinham duplicado, eram muito maiores do que antes. E Emund mordeu a isca, foi buscar novas forças e atacou com desespero e fúria. Arn, que o tempo todo se movimentava em círculos, para Emund na direção errada, teve várias oportunidades para atingir a cabeça ou o pescoço dele. Muitos viram isso e se perguntavam por que Arn evitava fazê-lo.

Entretanto, Arn tinha uma intenção especial. Não queria atingir a cabeça, nem o pescoço de Emund, mas, sim, seu punho direito, onde a malha nórdica não cobria. Quanto mais ele rodava à volta de Emund, mais esse alvo aparecia com mais freqüência, mas ele esperou até que o alvo surgisse completamente aberto. E, então, ele desfechou seu golpe, pela primeira vez, com toda a força.

Houve novo sussurro de aflição e horror entre os milhares de homens ali reunidos, quando viram a espada pesadíssima de Emund voar pelos ares, ainda com a mão dele segurando o punho.

Emund caiu de joelhos, em silêncio. Jogou o escudo para o chão e segurou com a mão esquerda o punho direito, tentando estancar o sangue que de lá jorrava.

Arn avançou e dirigiu a ponta da sua espada para o pescoço dele. Todos esperavam, agora, debaixo de um silêncio repentino, pelo golpe de misericórdia que era o direito legal de Arn.

Mas, em vez disso, Arn levantou o escudo de fundo vermelho de Emund com a cabeça preta, virou as costas para o adversário, apanhou o seu próprio escudo e voltou na direção de seu pai, a quem entregou o escudo de Emund.

Alguns dos homens de Boleslav, irmão do rei, correram até Emund e o retiraram às pressas das vistas de todo o mundo.

Magnus Folkesson, com lágrimas nos olhos, de orgulho e de alívio, levantou em triunfo aos céus o escudo vermelho conquistado e todos os folkeanos puxaram por suas espadas e bateram com elas em seus escudos. E foi grande e barulhento o aplauso geral.

Nenhum homem ali presente jamais iria esquecer esse dia. E aqueles que não estiveram lá escutaram tantas vezes a grande história que era como se também tivessem estado presentes.

 

Knut Eriksson, aspirante ao trono, voltou da Noruega para a Götaland Ocidental como um furacão outonal. Primeiro, dirigiu-se ao seu tio Joar Jedvardsson para festejar o advento e receber as boas-vindas pelo regresso, na igreja de Eriksberg. Mas depois disso teve que realizar muitas visitas a amigos, dizendo, para não falar outra coisa, que tinha vindo para caçar. Tinha-se chegado à época denominada inverno dos lobos na Götaland Ocidental, época em que a neve não está tão alta para prejudicar o uso de cavalos e de escravos que encurralam os animais, mas complica a fuga dos lobos. Nessas épocas, era tradição os jovens e ousados caçadores cavalgarem de burgo para burgo procurando por notícias de lobos. Mas além da caça havia muita coisa a discutir em relação à vitória das famílias folkeana e erikiana na reunião do conselho em Axevalla. E Knut tinha muita coisa a dizer sobre essa vitória e muitas outras idéias a apresentar para que, mais tarde, na hora certa, fosse mais fácil colher os frutos.

A primeira razão e a finalidade mais importante desta caçada aos lobos em toda a província era visitar Arnäs. Ao chegar, ele e seus homens já eram esperados, visto que no dia anterior tinha chegado um mensageiro. Magnus já tinha mandado Svarte e Kol e todos os escravos disponíveis para os bosques ao norte de Arnäs para empurrar os lobos para o lugar onde seria mais fácil caçá-los.

Eram jovens fortes e brincalhões, metade dos quais era de noruegueses que entravam na praça do burgo, os cascos dos cavalos fazendo um barulho infernal, e estes sendo recebidos pelos escravos da casa que seguravam suas rédeas. Knut Eriksson saltou rápido da sela e correu de braços abertos na direção do seu tio Magnus. Mas a segunda pessoa que abraçou foi Arn. Levantou o primo pelos antebraços, sacolejando-o e dizendo que esse era um encontro muito desejado, já que era de Arn, acima de todo o mundo, que ele tinha uma das lembranças mais fortes da sua infância. De início, Arn não entendeu onde Knut queria chegar, mas depois que ele relembrou, alegremente, aquela vez em que ambos se infiltraram disfarçadamente nessa mesma casa grande para escutar o bardo norueguês que o pai de Knut, o santificado Erik, trouxe consigo, e em que, juntos, receberam a mijada de ninguém menos do que um rei e um santo.

Foi então que Arn se lembrou e disse que a imagem era forte, muito melhor até como lembrança do que no momento em que a cena aconteceu. Ambos riram muito. Era bem o reencontro de dois amigos depois de muitos anos. Com o braço sobre os ombros de Arn, Knut entrou na casa grande como convidado de honra e os dois homens falavam alto e quase ao mesmo tempo um com o outro, o que fez rir quem estava por perto, porque um falava com sotaque norueguês e o outro, com sotaque dinamarquês.

Era como se Deus tivesse abençoado esta visita, pois Arnäs nunca havia estado melhor. E também nunca tinha havido tanta felicidade numa mesma sala e num mesmo momento.

Magnus era considerado agora como o pai daquele que tinha abatido Emund Ulvbane em duelo e trazido com isso muita honra para a casa paterna e sua família. Eskil também sentia uma enorme felicidade, tão grande quanto a de seu pai, por ver que seu irmão, antes tão difamado, agora era aquele de quem mais se falava bem. E que agora todas as sombras entre pai e filhos se tinham dissipado por completo. Por seu lado, Arn sentia que ele, o filho pródigo, só agora tinha voltado para casa. Erika Joarsdotter era recebida agora com a mais elevada consideração e escutava as mais belas palavras de todos os lados. Seus lombos de veado, assados no forno, com os melhores condimentos, e os leitãozinhos de javali com mel que ela agora apresentava na mesa, junto com a melhor cerveja da casa, provocavam altos gritos de surpresa e admiração por parte de todos os convidados, que a toda a hora saudavam Magnus por sua felicidade em ter escolhido uma dona-de-casa daquele calibre. Nenhum dos convidados se importava mais com a voz fanhosa de Erika.

Knut Eriksson não podia ter tido uma recepção mais calorosa na casa que, pelos seus planos, ele considerava como a mais importante em toda a Gõtaland Ocidental. Por esse motivo, também ele se sentia muito feliz e muito alegre com essa visita.

Quando já ninguém agüentava mais comida e apenas bebia, surgiu na conversa o assunto que todos sabiam que mais cedo ou mais tarde viria à tona, o do duelo na assembléia de Axevalla.

Arn se sentia constrangido e falava muito pouco sobre o assunto. Dizia apenas que tinha vencido um homem desajeitado e estúpido que usava uma espada pior que a sua, e não tinha muita mobilidade e treino. E que o assunto não valia assim tanta conversa. Mas Knut pediu para ver, pelo menos, a espada. E aquilo que o filho do rei e convidado de honra pedia tinha que ser atendido imediatamente. E, assim, logo uma das escravas da casa chegou com a espada estendida nas mãos.

Knut tirou a espada da bainha, pegou-a, sopesou-a, surpreso, e avançou para um espaço onde pôde balançá-la, cortando o ar. E todos puderam ver que ele já tinha empunhado uma espada antes. Achou que a espada era leve e flexível demais, exatamente como tinha ouvido falar. E, por isso, pediu a Arn que explicasse o caso.

Arn resmungou que a espada tinha pouco a ver com conversa de mesa e com bebida. Mas então ele viu o rosto rosado de Erika Joarsdotter e escutou as palavras calorosas dela ao insistir para que ele mostrasse e explicasse tudo. E então ele logo cedeu.

Aproximou-se de Knut e pediu para tirar da bainha a espada dele que, por sua vez, sopesou.

— O que você tem aqui é uma espada norueguesa, pesada e bonita, bem ornamentada, meu caro amigo de infância — disse ele, balançando a espada, pensativamente, no ar. — Se você acertar o golpe, talvez nem o elmo agüente. Mas veja agora o seguinte!

E levantou a espada para com ela golpear a beirada da lareira, de modo que ela se partisse ao meio. Knut chegou a gritar de medo. Arn parou o golpe, como que surpreso, mas, depois, caiu na gargalhada e entregou a espada, com todo o cuidado e com todo o respeito, a Knut, dizendo que jamais iria danificar uma espada com a qual talvez um reino viesse a ser conquistado.

Entretanto, Arn pegou a sua espada que Knut ainda conservava na mão, jogou-a com a folha lateral e com a toda a força contra a pedra da lareira, sem que acontecesse nada além do estrondo do aço batendo na pedra.

— Aí é que está a diferença, meu caro Knut — disse ele, zombeteiro, enquanto encurvava repetidamente a ponta da sua espada. — As nossas espadas nórdicas são de ferro puro e podem se quebrar, além de serem pesadas para manobrar. A espada que eu tenho é flexível na ponta até um terço do seu tamanho e não quebra, além de ser leve para manobrar.

Aquilo que ele disse provocou admiração, mas não desconfiança. Knut pediu para trocar alguns golpes com Arn e puxou novamente pela sua espada, enquanto Arn, obedientemente, levantava a sua. Para salientar aquilo que devia ser mostrado, Arn aparou os golpes de Knut várias vezes no ar, fazendo com que a espada pesada perdesse força perante a flexibilidade da outra. Por isso, Arn pôde permanecer quieto, sem se esforçar muito, enquanto Knut precisava fazer muita força a cada golpe, sem que esse golpe fizesse qualquer estrago. Até que Arn, de repente, inclinou o punho na hora de aparar o golpe, de maneira que a espada de Knut resvalou na sua e foi parar no chão, ao mesmo tempo que ele próprio se desequilibrava para a frente e caía. Os amigos noruegueses, especialmente, acharam a cena muito divertida.

No entanto, Knut levantou-se sem raiva, antes cheio de admiração, e foi direto para Arn, para o abraçar como amigo. E acrescentou que iria prestar atenção para que as suas duas espadas estivessem sempre do mesmo lado. Jamais iria querer ter Arn como inimigo.

Graças à eloqüência dessas boas palavras e à influência da boa cerveja, os presentes se sentiram emocionados, brindando com mais uma rodada à saúde de todos. E todos sentiram, também, que entre Arn e Knut havia uma ligação muito mais forte do que apenas laços de sangue.

Momentos depois, quando Erika Joarsdotter se levantou para desejar boa-noite, Eskil foi até ela para lhe agradecer, elogiar e desejar um bom sono. Isso ele nunca tinha feito antes, e ela sentiu como se um gelo, finalmente, tivesse se derretido entre eles à maneira como o gelo se derrete nas primaveras tardias.

Quando Arn foi até ela para lhe desejar boa-noite, ela falou baixinho, o seu semblante iluminado, para que só Arn pudesse escutar, que nunca ninguém tinha ouvido tantos elogios pela comida feita por outro. Mas Arn refugou o comentário, dizendo que tinha sido a comida da casa aquela que os convidados haviam saboreado e que, na realidade, os dois tinham trabalhado em conjunto para o sucesso do repasto. E acrescentou, piscando o olho, que isso tinha de ficar como segredo entre os dois. Se não, esses bodes noruegueses iriam voltar a dizer que ele não era macho. E assim os dois se separaram, com grande amor, um amor perfeito entre madrasta e enteado.

Eskil achou, então, que estava na hora de realizar algumas modificações no banquete. Aqueles que ainda tivessem espaço para mais cerveja deviam subir para uma das salas da torre. Estava fria, mas as escravas já haviam acendido o fogo na lareira. Assim, aqueles que quisessem dormir sem barulho nos ouvidos poderiam fazê-lo. E também aqueles que quisessem fazer barulho, poderiam fazê-lo sem perturbar a dona da casa.

Todos os jovens escolheram ir para a sala da torre. Magnus achou melhor dar boa-noite.

Na sala da torre que de início continuava fria, antes de chegar o calor do fogo e sair o frio da madrugada, os jovens também mudaram o tom das conversas nessa reunião social.

Knut começou falando, manhosamente, que talvez não tivesse sido uma boa idéia Arn ter poupado a vida de Emund, o assassino do rei. Mas que, de certa maneira, talvez até tivesse sido bom que Arn agisse dessa forma, apressou-se logo ele a acrescentar. Assim, Emund continuava a se mostrar ridículo para sempre e já era chamado de Emund Enahand, o Maneta, em vez de Emund Ulvbane. No entanto, o assassino do rei não merecia viver, e como filho do rei assassinado talvez ele, Knut, acabasse aquilo que Arn tinha começado.

Arn empalideceu diante dessas palavras e não pôde nem responder. Mas também nem precisou. Eskil reagiu de imediato, metendo-se no assunto, de uma forma que ninguém esperava.

Eskil demonstrou primeiro que entendia perfeitamente a posição de Knut e aquilo que ele pretendia fazer. E que pessoalmente nada tinha contra. No entanto, havia um pequeno problema nesse plano que eles como bons amigos deviam resolver.

Eskil foi buscar um pergaminho que desenrolou sobre uma mesa, pegou uma vela e pediu a todos para se aproximarem. E assim todos fizeram, imediatamente, juntando-se à volta dele, cheios de curiosidade.

Eskil apontou primeiro para Arnäs e seguiu depois pelo rio Tidan até à praça da assembléia de Askeberga, na direção oriental, para parar depois em Forsvik, na praia do lago Vättern, que era o lugar onde Emund Ulv-bane, quer dizer, Enahand, o Maneta, logo retificou ele, tem o seu burgo principal.

— Agora vejam e pensem bem — disse Eskil, assinalando com o dedo as terras de Emund —, aqui está Emund, em Forsvik, sozinho em terras do inimigo, com a mão cortada. A situação não pode ser para ele nem agradável, nem segura. Do fedelho Boleslav, ele não pode esperar nenhuma ajuda e deve demorar ainda um bocado antes de Karl Sverkersson mostrar por aqui, na Götaland Ocidental, seu focinho. Vejam agora! Se nós aqui em Arnäs comprarmos as terras de Emund, ficaremos na posse de todas as terras entre os lagos Vänern e Vättern. Todos os caminhos e todo o comércio ficam nas nossas mãos. Seria um grande passo em frente.

Eskil achou que todos tinham entendido, mas não era bem assim. Meio sombrio, Knut respondeu que uma coisa não tinha nada a ver com a outra.

Isso levou Eskil a explicar que talvez fosse melhor realizar o negócio primeiro, antes de dar ao assassino aquilo que ele merecia. Caso contrário, suas terras seriam herdadas por familiares inimigos. Mas diante da situação atual, disse Eskil quase sussurrando, talvez Emund não ofereça tanta resistência à idéia de se mudar para um lugar mais seguro e, por conseguinte, talvez a gente possa oferecer a ele um preço bem mais baixo por Forsvik. Não parece ser uma negociação exageradamente difícil.

Nesse momento, dois dos seguidores noruegueses de Knut desataram a rir. Um deles era Geir Erlendsen, e o outro, Elling, o Forte, que era como todos o chamavam, não sem razão. Agora, os dois tinham entendido tudo e riam. E todos riram, de quase chegar às lágrimas. Todos, menos Arn, que não achava graça nenhuma na questão.

Todos beberam à saúde de Eskil por sua clara e iluminada idéia, prometendo de imediato que, como bons amigos, iriam proceder de forma que esse negócio fosse realizado da melhor maneira.

— Raramente, você, amigo Eskil, fez uma proposta tão simples à pessoa certa — arrotou Geir Erlendsen, depois de mais um gole. — Acredito que Emund, o Maneta, vai achar difícil dizer não à sua proposta, mesmo que seja baixa. E, mais tarde, poderá deixar tudo por nossa conta. Talvez até venha a receber de volta uma parte da sua prata!

— Na qualidade de vosso líder e futuro rei, juro que assim honraremos a nossa amizade! — exclamou Knut Eriksson, e de novo todos riram com grande satisfação, enquanto Arn continuava não entendendo nada do que se havia acabado de resolver.

Antes que ficasse tarde e que no dia seguinte se tornasse mais difícil cavalgar na neve, o amigo norueguês Eyvind Jonsson achou que estava na hora de escutar o poeta contando suas histórias de ancestrais e amigos — para fortalecer os sentidos. O bardo, que se chamava Orm Rõgnvaldsen, avançou na sala, esperou que todos recebessem mais um caneco de cerveja e procurou sentar-se confortavelmente, antes de começar. Os homens do lado dos anfitriões aguardavam e tinham a certeza de ir escutar histórias de velhos feitos, histórias que eram as mais apreciadas por todos os homens. Mas aquilo que o bardo começou a contar era uma saga totalmente nova. E foi assim que ele falou:

Foi na ressurreição de Cristo e muitos presságios tinham sido vistos no céu. O consagrado rei Erik estava presente na missa solene da igreja da Santíssima Trindade, naquele que era conhecido como o Monte do Senhor, a leste de Aros, quando ele recebeu uma mensagem através de um dos seus homens. O inimigo estava próximo da cidade, assim dizia a mensagem. Queriam decidir que, sem demora, se formasse uma tropa armada para ir ao seu encontro. Conta-se que ele respondeu: “Deixem que eu escute esta missa solene até o fim e em paz. Creio, de fato, no Senhor e que em outro lugar Ele nos oferecerá o restante do Seu serviço religioso.” Dito isto, ele se ofereceu ao serviço de Deus, fez o sinal-da-cruz e saiu da igreja. Pegou em armas e armou seus homens. Apesar de serem poucos, ele dirigiu-se com eles corajosamente ao encontro de seus inimigos.

O inimigo os encontrou em combate, dirigindo seus ataques, principalmente, contra o rei. E quando o inimigo conseguiu jogar o rei por terra, eles o feriram, uma ferida atrás da outra. Em breve, o rei já estava meio morto, mas eles avançaram nele com mais crueldade ainda, cuspindo e urinando em cima dele. Com palavras de escárnio, destacou-se Emund Ulvbane, que era assassino contratado de Karl Sverkersson, e golpeou o rei sem respeito e pela frente, rasgando a sua respeitável cabeça. E assim o consagrado rei Erik, tantas vezes vencedor, saiu da guerra para entrar na paz, trocando seu abençoado reino terreno pelo reino celestial. Mas do lugar onde a sua cabeça caiu, brotou imediatamente uma fonte que ainda hoje corre e se chama a Fonte de Santo Erik. Essas águas têm feito muitos milagres. E assim vive ainda hoje o santificado Santo Erik entre nós.

Quando o bardo Orm Rõgnvaldsen terminou a sua história, o silêncio reinava por completo na sala. Não se escutaram as tradicionais batidas dos canecos na mesa, exigindo mais cerveja. Em vez disso, Knut pediu a Arn para fazer uma prece pela beatitude de seu pai e que a prece fosse dita na linguagem da igreja para dar à oração toda a força. Arn cumpriu a missão, mas ainda continuava estremecido pela dor e por alguma coisa parecida com raiva diante do que tinha ouvido.

Entretanto, foi isso que Knut Eriksson aprontou ao contratar o competente Orm, conhecedor de tantas palavras, para dizer em todas as casas que visitasse a mesma história. Ninguém no país podia evitar essa história, deixar de conhecê-la. Essa foi a idéia de Knut.

No dia seguinte, a caçada aos lobos correu muito bem em Arnäs. Foram abatidos oito animais. E as peles de lobos eram as melhores para enfrentar o inverno.

A grande missa do Natal nesse ano seria realizada na igreja de Husaby, indicada a igreja real. No entanto, nenhum rei iria se apresentar lá nesse ano, isto porque os gotas ocidentais tinham se oposto à presença do soberano. Mas viria a Husaby o homem de leis, Karle, a autoridade mais importante na Götaland Ocidental. Por isso, os folkeanos viriam também a Husaby festejar a grande missa do Natal e não o fazendo na sua igreja, em Forshem.

Mas alguns dias antes chegou uma mensagem a Arnäs, que o padre de Forshem mandou. Por sua vez, ele tinha reagido a uma pergunta do capelão da corte de Husaby, uma pergunta que ele próprio tinha provocado ao se vangloriar de ter acolhido no coral da igreja um cantor muito bom. A questão agora era a de saber se Arn poderia chegar alguns dias antes a Husaby, para ensaiar com o coro local, a fim de que a missa natalina pudesse se enriquecer com a sua presença. Arn achou que isso era uma proposta cristã à qual não poderia dizer não. Parou com os trabalhos de construção e se aprontou para partir imediatamente a cavalo. Magnus queria mandar alguns escudeiros com ele, já que Arn agora era um homem visado que poderia dar grande fama a quem o matasse, além de ser um homem cuja morte iria alegrar, e muito, os amigos da casa de Sverkersson. Mas Arn declinou da oferta, explicando que a cavalo e à luz do dia ninguém conseguiria alcançá-lo, caso não se importassem que ele levasse seu próprio cavalo, o tal que era fraquinho e monástico, acrescentou ele, rindo muito.

Atualmente, Magnus também conseguia sorrir a respeito do assunto, achando que tinha julgado mal tanto o cavalo quanto a espada de Arn. E tanto a capacidade de Arn no manuseio da espada quanto no domínio do animal. Magnus havia pedido desculpas por tudo isso e não era preciso falar mais sobre o assunto.

Arn partiu no dia seguinte, ao amanhecer, bem equipado e bem envolvido em pele de lobo, e com as vestes da igreja nas mochilas da sela. Estava um frio de rachar, mas ele conseguia manter uma boa velocidade, de modo que tanto ele quanto Chimal podiam manter-se bem aquecidos, sem suar. E já ao meio-dia tinham chegado à igreja de Husaby e à casa do padre. Foi chegar e colocar Chimal na cavalariça e já estava bebendo um pouco de cerveja de boas-vindas e comendo um pouco de pão feito pela esposa do padre, como mandava a tradição, e logo ele foi para a igreja, que era a maior da Götaland Ocidental, depois da igreja de Skara, tendo uma torre enorme a oeste, construída há tanto tempo que a memória do homem desconhecia.

Arn estava de muito bom humor, visto que gostava de cantar e também porque achava que todos conheciam de cor os hinos natalinos. Além disso, o Natal era uma época solene mas de grande alegria, que tornava fácil as cantorias, mesmo para aqueles que não tinham tido muito tempo para as ensaiar.

Entretanto, entre os cantores do grupo coral, Arn não era o único a ter ensaiado com os cistercienses. Havia também Cecília Pâlsdotter, que nos anos anteriores alternou com sua irmã, Katarina, o aprendizado de boas maneiras no mosteiro de Gudshem, perto de Hornborgasjõn.

Arn ouviu a voz dela assim que entrou na igreja fria. A sua voz sobressaía clara e pura acima de todas as outras vozes e Arn parou, cheio de admiração, continuando a escutar. E concluiu que nunca tinha escutado nada tão bonito. Achou que era como se fosse a voz soprano de um garoto no coro, tal como uma vez antes ele certamente havia soado como garoto no coro da Vitae Schola. Embora essa voz que ele ouvia agora fosse ainda melhor. Havia mais consistência e mais vida nesse soprano.

Arn tinha parado bem longe dos cantores que ensaiavam e não viu de quem era essa voz celestial, mas também não se preocupou muito no momento, antes fixava o olhar no chão de pedra para que com os olhos não prejudicasse os ouvidos que queriam ouvir tudo, os mínimos detalhes da música.

Quando o coro lá na frente já tinha cantado quatro dos dezesseis versos que Arn sabia que o hino continha, o padre que conduzia os cantores, fez uma parada para corrigir alguma coisa e ralhar com um cantor na segunda voz. Nessa altura, Arn avançou e saudou o padre, fazendo uma vênia, meio constrangido, para o grupo de cantores.

Foi então que ele a viu pela primeira vez. Era como se ele tivesse visto Birgite de Limfjorden de novo, embora agora como mulher adulta, aquela

Birgite por culpa de quem ele teve que fazer tanta penitência e que motivou quase uma discussão com o padre Henri a respeito do que o amor realmente significava. Era o mesmo cabelo ruivo numa trança que caía sobre as costas, os mesmos olhos castanhos cheios de vida e o mesmo rosto pálido e bonito. Arn deve ter olhado com insistência, visto que ela dirigiu um sorriso provocante para ele, habituada como estava, certamente, a que os homens jovens fixassem seus olhares nela. Mas ela não sabia de quem se tratava. O padre ainda não tinha dito nada a respeito de ter requisitado um cantor extra e acima de tudo nada a respeito de quem era. O padre não podia saber ao certo se um filho de Arnâs se daria ao trabalho de vir mais cedo apenas para ensaiar um pouco algumas canções.

O padre de Husaby ficaria feliz se esse tal de Arn fosse pelo menos metade tão bom cantor quanto o padre de Forshem, meio rústico, dizia que era, pois a missa natalina seria excepcionalmente bonita, dado que ele já tinha conseguido uma bela soprano para a primeira voz. E como ele era um padre mais divertido do que severo, não renunciando a uma boa piada e a boas surpresas, se a ocasião se apresentasse, resolveu de imediato organizar uma pequena brincadeira.

Usando poucas palavras, disse que tinha chegado um cantor da igreja de Forshem, o que Arn achou uma maneira muito estranha de ser indicado, e que estava na hora de ensaiar o mesmo hino que tinham acabado de cantar, mas apenas com dois cantores em duas vozes. E aí fez sinal para Cecília, que se aproximou e ficou em frente dos outros, com evidente autoconfiança e de novo se divertindo perante o camponês de Forshem que não parava de olhar para ela.

Arn compreendeu que era ela a dona da voz celestial e isso fez com que olhasse para os olhos dela fixamente ainda mais, com aquele olhar amoroso dos grandes apaixonados.

Ao fazer aquilo que o padre lhe tinha dito, para começar cantando sozinha na primeira voz, Cecília elevou o tom acima do normal só para provocar e colocar o cantor de Forshem, realmente, no seu devido lugar.

Mas, logo a seguir, ao ouvir ou, mais do que ouvir, ao sentir em todo o seu corpo, como o novo cantor colocava a sua segunda voz bem junto da sua e como ele a seguia como se fosse numa dança em que as duas vozes evoluíam em curvas sonoras, uma atrás da outra, uma entrando na outra, uma saindo da outra, sempre com a mesma facilidade, como se sempre tivessem cantado juntos, ela não resistiu e não pôde deixar de levantar o seu olhar para ele. E ele já estava olhando para ela, e quando os seus olhos se encontraram ambos sentiram como se a voz de Deus houvesse falado através das suas cordas vocais. Então, ela começou a variar a sua cantoria, tornando-a muito mais difícil. E ele continuou a segui-la na sua segunda voz, com a mesma facilidade de antes. E os dois já não viam mais os outros cantores nem o padre ao seu lado, todos como que boquiabertos diante de tanta beleza que se projetava como uma luz contra os arcos da igreja. Os dois apenas olhavam um para o outro, até que terminaram, não antes de terem cantado todos os dezesseis versos do hino.

Foi quase um dia inteiro de ensaios em que muito foi feito. O padre de Husaby foi agradável para todos e permaneceu de bom humor o tempo todo como nunca ninguém o tinha visto antes. Para aqueles que queria corrigir, ele o fazia com suavidade e em breve todos começaram a saber como tudo devia ser cantado, em especial, com a possibilidade no momento de ter dois cantores, cada um cantando a sua parte. E, além disso, tinha um coral com dois vocalistas, um coral com uma soprano e uma segunda voz e, inclusive, uma única terceira voz, já que Arn sabia como colocar uma terceira voz onde quisesse nessas simples canções natalinas.

Por isso, estavam todos de bom humor quando se reuniram à noite para a ceia. Arn e Cecília tiveram, então, a primeira oportunidade de falar um com o outro e caíram numa conversa entusiástica a respeito de onde cada um tinha aprendido a cantar. E logo estavam falando do mosteiro de Gudhem ou da Vitae Schola, ou ainda de Varnhem. E assim, olhos nos olhos, os dois saíram pela escada da igreja onde os dois escudeiros de Cecília a aguardavam com a sua capa e o seu cavalo para seguirem sem demora para a casa dela, no burgo real de Husaby, a fim de passar a noite, tal como o seu pai, Algot, tinha severamente recomendado.

Um dos escudeiros avançou alguns passos ameaçadores na direção do jovem monge que estava andando muito perto da jovem cuja castidade ele fora mandado defender. Mas o outro escudeiro, que tinha estado na assembléia de Axevalla, segurou-o pelo braço e chamou sua atenção, ao mesmo tempo que se esgueirava e saudava, respeitosamente, o senhor Arn de Arnâs.

Foi então que Cecília, a filha de Algot, de repente parou a conversa alegre sobre os cânticos no mosteiro. Achava que tinha escutado mal. Esse jovem amigo, de olhos suaves e carinhosos, não podia ser aquele homem de que todos falavam em todas as ocasiões onde se bebia cerveja, em todos os lugares da Götaland Ocidental.

— Qual é o seu nome, meu caro cantor de mosteiro? — perguntou ela, com a dúvida na voz.

— Sou Arn Magnusson, de Arnâs — respondeu Arn, rapidamente, e reconheceu no mesmo momento que aquela era a primeira vez na vida que dizia o seu verdadeiro nome. — E quem é você? — acrescentou ele, deixando demorar o seu olhar bem fundo nos olhos dela.

— Sou Cecília Algotsdotter, de Husaby—respondeu ela, timidamente, deixando assim a mesma impressão em Arn que ele tinha deixado nela, ao dizer o seu nome. É que, naquele momento, ambos compreenderam que realmente fora Deus, Nosso Senhor, que os tinha juntado. Por isso mesmo, haviam sentido aquela forte emoção dentro de si durante o encontro caloroso e quase labiríntico de suas vozes lá dentro na igreja.

No ano da graça de 1166, a missa do Natal na igreja de Husaby iria permanecer viva na memória de todos. Hinos mais bonitos em louvor do Senhor jamais tinham sido ouvidos. Sobre isso todos concordaram. E nem o cansaço que normalmente atingia a todos, mais cedo ou mais tarde, depois de ficar em pé sobre o chão de pedra durante tanto tempo, nem isso aconteceu nessa missa.

Também para os olhos foi uma festa. Era como se Deus falasse. Ver o jovem folkeano com sua manta azul e seu cabelo louro e a filha de Pälsson de seda na cor verde da sua família em contraste com seu cabelo vermelho, cantando juntos, com grande alegria e com toda a energia, isso fazia com que todos vissem o que Deus queria fazer com os dois. E se seus pais, presentes, não tivessem entendido nada, muitos seriam aqueles que, durante o banquete em Husaby, estariam dispostos a explicar tudo para eles. Isto porque todos sabiam que não havia nem prata nem negócios no caminho, assim como todos sabiam que Algot Pälsson estava em grandes dificuldades. Era como se Nosso Senhor Jesus Cristo falasse para a congregação ali reunida ao deixar que as duas vozes celestiais espalhassem a mensagem alegre do Natal, que o amor é que concilia, o amor é a força que enfrenta o mal. E o amor que foi visto e ouvido naquela missa natalina era forte e evidente.

É claro que Algot Pälsson viu tudo o que os outros viram e estavam em pior posição na igreja do que ele. Como curador do soberano no burgo real de Husaby, ele se encontrava entre os da primeira fila, ao lado do homem de leis, Karle Eskilsson, e do senhor Magnus. E aquilo que ele viu e que todos viram fez nascer nele muita esperança. Mas ele sabia por experiência que o senhor Magnus e o filho Eskil não eram fáceis na hora de fazer negócios. E que tal como a situação se apresentava agora, em que o segundo filho, Arn, tornara-se altamente considerado e amigo de Knut Eriksson, de quem se falava sigilosamente que iria ser o futuro rei do país, podia acontecer que essa clara e calorosa esperança fosse transformada em cinzas no momento em que se começasse a discutir negócios. Talvez os habitantes de Arnäs tivessem grandes planos para um casamento mais proeminente. Talvez quisessem unir ainda mais as famílias erikiana e folkeana. Talvez seus pensamentos estivessem dirigidos ainda dessa vez para alguma filha real norueguesa. Todos podiam ver e ouvir que Cecília e Arn estavam sonhando e voando alto e cantando como pássaros alados. Mas isso poderia não significar nada na hora da verdade, ao fechar o negócio.

Algot Pälsson vivia, portanto, entre a esperança e o desespero ao examinar essas possibilidades. E ele também sentia medo diante do banquete planejado. Era como se queimasse todos os barcos na praia depois da chegada, tal como os ancestrais haviam feito, segundo as lendas. Para eles não tinha havido volta. Nem para Algot havia agora qualquer volta.

O dever de Algot como curador no burgo do rei era o de encarar a hipótese de o soberano chegar quando quisesse, na companhia de quem quisesse, com quantas pessoas quisesse e ficar por quanto tempo quisesse. Um burgo real devia estar preparado para dar uma grande festa, de um momento para o outro.

Se o próprio rei Karl Sverkersson tivesse mandado um mensageiro para avisar que viria com a sua corte para assistir à missa do Natal em Husaby, como ele e muitos outros reis já haviam feito antes muitas vezes, tudo estaria na mais perfeita ordem. Mas seria também pouco inteligente, se se pensasse naquilo que aconteceu ao pai do soberano, Sverker, o Velho, justamente a caminho da missa do Natal. E a Götaland Ocidental era no momento uma terra nada segura para os homens da família sverkeriana.

Em vez disso, veio a mensagem de que os folkeanos, com o juiz e os senhores de Arnâs na frente e muitos escudeiros, viriam festejar o Natal em Husaby, como se os direitos reais fossem deles. Dizer não, teria sido arriscado, em especial ao dar a única verdadeira razão, a de que o burgo pertencia a Karl Sverkersson e a nenhum dos folkeanos. Dizer a verdade e o correto, no entanto, poderia significar o mesmo que a morte. >o

Mas dizer sim, como Algot Pälsson fez, poderia significar também o mesmo que a morte. Entretanto, agora era inverno e nenhum exército real poderia chegar antes da primavera, caso pudesse chegar. Mas se o exército real chegasse e vencesse, não seria fácil explicar como o vencido inimigo podia ter comido as barbas do rei no próprio burgo real. A única coisa que restava a Algot esperar era que os folkeanos e seus amigos vencessem na primavera. Caso contrário, ele não conseguiria viver por muito tempo. A respeito desta situação embaraçosa ele não disse nem uma palavra para Cecília, e suspeitava até que ela, com a sua cabeça de mulher, não iria entender o acontecido.

No entanto, a festa foi muito boa. Se bem que, no começo, a situação para Algot foi muito difícil, por ter ficado encaixado, quando se sentaram na mesa de honra, entre os ombros do juiz Karle e os dos três principais folkeanos de Arnäs, sentados por ordem, ao seu lado. Não era nada difícil imaginar o que todos sabiam do significado de atrevidamente estar se alimentando da comida do rei como se fora a sua comida. Eles nem sequer evitaram fazer piada em voz alta a respeito do caso, bebendo de vez em quando à saúde do rei e soltando sonoras gargalhadas cada vez mais expressivas.

Cecília e Arn não tiveram nenhuma chance de se aproximarem e ficarem a sós durante a festa. Podiam falar um com o outro só trocando olhares, visto que, na maior parte do tempo, ficaram apenas a alguns passos um do outro. Esta forma de conversa, no entanto, pareceu a menos silenciosa que se possa imaginar, porque, para os presentes, cada troca de olhares dos dois era como se ribombassem os sinos da igreja dentro da sala.

Magnus e Eskil entenderam rapidamente que estavam com um problema pela frente, mas também chegaram a um acordo, resolvido com poucas palavras sussurradas, de que aquele não era o momento nem o lugar para levantá-lo, quer com Arn, quer entre eles próprios.

Depois do banquete do Natal em Husaby, os folkeanos e seus escudeiros saíram a cavalo na direção sul, para alguns dias de visita a Joar Jedvardsson, Knut Eriksson e seus amigos.

Depois de muita comida e muito divertimento, voltaram todos cansados para Arnäs. Mas não demorou muito para que Knut Eriksson e seus escudeiros noruegueses selvagens também chegassem a Arnäs, armados como se quisessem algo mais do que simplesmente ir para mais uma caçada aos lobos, lá para o norte, em Tiveden. Embora a caçada tenha sido mesmo a razão que deram para a sua visita.

O tempo, porém, no momento, estava péssimo para a caça, o que, segundo parecia, ainda favorecia mais os planos de Knut Eriksson. Era muito aquilo que ele tinha para continuar com a gente folkeana. Com Eskil, ele queria falar a respeito da espécie de negócios a que o futuro rei dos sveas e dos gotas devia dedicar-se, e Eskil tinha muito a dizer sobre o assunto. Acima de tudo, Eskil achava que o soberano que também governasse tanto a Svealand como a Götaland Oriental devia ativar os seus negócios com Sachsen e Lübeck, na Alemanha, muito mais do que antes. O que ainda ninguém tinha entendido era como utilizar o mar Báltico. Era como se esse mar terminasse onde a Dinamarca começava, depois das florestas da província de Smâland. Uma ligação comercial pelo mar, desde que conservada em paz e caso se pudesse fechar contrato em especial com os mercadores de Lübeck, seria muito lucrativa. Mas então seria preciso cunhar uma nova moeda real, porque estava na hora de parar de trocar peles de marta por produtos estrangeiros. E depois era preciso montar uma linha comercial entre a Noruega e os lugares orientais do reino, que viria de Lodõse até o Vänern, sobre os territórios de Arnäs, alcançando depois o Vättern. Acima de tudo, segundo Eskil, por esse caminho seria possível realizar grandes negócios com peixe seco, o famoso bacalhau de Lofoten, que podia ser comprado por quase nada e vendido com uma margem muito boa de lucro.

Knut Eriksson ficou muito entusiasmado com essas idéias sobre negócios e disse que Eskil iria ser o seu principal assessor em tudo o que tivesse a ver com comércio e dinheiro, assim que ele em breve assumisse as três coroas reais.

O que devia ser feito de imediato, no entanto, era apenas fechar o negócio com Emund, o Maneta, de Forsvik, já que as suas terras eram necessárias para fechar a ligação entre a Noruega e as províncias de Svealand e Götaland Oriental. Mas esse era um negócio que devia ser muito bom para uma das partes e menos bom para a outra, acentuou — Eskil, de tal maneira que seria necessário realizá-lo pela nova forma, a de contrato de compra por escrito. Não havia muito pergaminho e muitas pessoas com o dom de escrever em Arnäs, mas o suficiente para preparar um contrato desses. Arn foi consultado a respeito disso e aceitou a incumbência. Tanto na Vitae Schola como em Varnhem, ele havia funcionado, de vez em quando, como arquivista, e nos arquivos de ambos os mosteiros havia muitas cartas dessa espécie, relativas a heranças e compras. Caso o informassem quem era o comprador, o que era comprado de quem e por qual importância, Arn faria o documento.

Arn escutou por momentos a descrição feita por Eskil e subiu em seguida para a sala de contas na torre, pegou o que precisava para o trabalho a realizar e desapareceu pelo resto do dia. No entanto, na hora da ceia, ele voltou com uma carta muito bonita em pergaminho, onde colocou o selo de Magnus Folkesson sobre o lacre. A carta estava escrita em latim, como tais documentos, de preferência, eram sempre escritos para valerem em juízo. Por isso, Arn foi obrigado a repetir várias vezes em linguagem comum o que havia escrito para que os outros entendessem:

 

Em nome da Santíssima Trindade, eu, Magnus, senhor de Arnäs, e meus dois filhos, Eskil e Arn, reconhecemos perante os que hoje vivem e aqueles que amanhã viverão, que a vergonhosa e prolongada discordância entre Emund Ulvbane e nós e nossos filhos chegou hoje ao seu término e conseguimos, com a ajuda de Deus e a concordância de ambas as partes, que Emund Ulvbane entregue o seu burgo Forsvik com todos os seus pertences, os prados, as florestas, as águas piscatórias e tudo o necessário que faz parte do burgo, para nós, livre e para sempre. Por este acordo estabelecido em contrato, pagaremos cinqüenta marcos em prata por tudo, em linguagem comum.

Até eu, Knut Eriksson, que depois de Deus sou autor da entrega e do acordo agora estabelecido, reafirmo ser testemunha, junto com muitas outras testemunhas, desta entrega. Epara que isto seja firme e estabelecido para sempre, esta carta será autenticada com os selos de Magnus e de Knut, e isso nos compromete, através do poder que recebemos de Nosso Senhor Jesus Cristo, sua mãe, a sagrada Virgem Maria e Todos os Santos, a tirar a paz de todo aquele que vier a pretender quebrar este acordo e interferir nas condições acordadas. Conforme os testemunhos de Eskil e Arn Magnusson, Eyvind Jonsson, Orm Rognvaldsen, Ragnar, prior de Forshem e muitos outros, cujos nomes eram demais para contar e assinalar aqui.

 

Quando Arn terminou de ler este texto pela terceira vez, para que todos entendessem o que ali estava escrito, houve um longo momento de viva discussão. Os amigos noruegueses acharam que ele não devia citar Emund como Ulvbane, mas como Enahand, o Maneta. Magnus contestou, dizendo ser mais previsível que Emund colocasse o seu selo no documento como Ulvbane. Isso apesar de Enahand, o Maneta, ser um apelido mais verdadeiro e mais merecido. Mas a questão principal no momento não era difamar, mesmo que a difamação fosse mais do que merecida, mas, sim, realizar o negócio. Os carniceiros noruegueses, depois disso, ficaram sussurrando uns com os outros, asseverando que a condenação final e a morte do sujeito, de qualquer forma, estava definida. Ao certo, ninguém sabia o que eles queriam dizer com isso.

A seguir, Knut também não queria ser citado apenas pelo nome do pai. Que fosse acrescentado rex sveorum etgothorum, palavras que só Arn, de início, conhecia e entendia e contra as quais se opunha. Segundo ele, aquilo que se queria incluir possivelmente se tornaria e merecia se tornar verdade, mas, naquele momento, não devia ser citado no documento por antecipação. Isso seria vender a pele antes de o urso estar morto.

Sobre esta disputa, nenhum dos outros entendeu nada antes de Arn explicar que as palavras significavam rei dos sveas e dos gotas. Magnus, então, tomou a palavra e falou que para todos os presentes era claro como água que assim esperariam que acontecesse dentro de um futuro não muito longe e que talvez por direito se o já devesse ser reconhecido, mas que para muitos sveas e para muitos gotas essa situação ainda era realmente desconhecida. Para eles, o rei da Svealand e da Götaland Oriental ainda era Karl Sverkersson. Entretanto, o documento atual era apenas uma carta cujo valor seria maior quanto mais verdadeiras fossem as informações nela contidas. Na realidade, por enquanto, Karl Eriksson era Karl Eriksson e que isso seria verdade mesmo depois que ele se tornasse rei. Aposto o seu sigilo na carta, esta teria sempre o mesmo valor de verdade para todo o futuro, mesmo sem as quatro palavras que se queria incluir.

Como Knut não parecia querer ceder nessa questão, Arn salientou que ele tinha escrito como se, de fato, Erik fosse soberano, com palavras que podiam ter um duplo sentido. E então leu de novo, lentamente, o destaque:

“... e isso nos compromete, através do poder que recebemos de Nosso Senhor Jesus Cristo, sua mãe, a sagrada Virgem Maria e Todos os Santos, a tirar a paz de todo aquele que vier a pretender quebrar este acordo e interferir nas condições acordadas”.

Arn explicou que se se lesse aquele “nos” como se apenas significasse Knut Eriksson, então, Knut teria recebido o seu poder de Deus e esse poder divino só um soberano poderia receber. Além disso, apenas um soberano poderia ajuizar o término da paz para quem quer que fosse. Evidentemente, aquele “nos” poderia significar também as pessoas todas cujos nomes estavam incluídos no documento e, nessa ocasião, talvez um pouco mais rebuscado, seria entendido que todas elas ameaçavam tirar a paz e todas estavam comprometidas com o cumprimento do estabelecido no documento. Entretanto, não seria fácil dizer como o documento devia ser lido e isso também não fora a intenção de Arn ao escrever o texto. A intenção fora a de dizer que Knut Eriksson era rei pela graça de Deus, ainda que isso não ficasse dito.

Knut aceitou, então, a explicação, deu a Arn o seu sigilo com as três coroas e pediu que ele fosse até a sala de contas da torre para realizar a colocação do seu sigilo na carta. Assim, só faltava o sigilo de Emund, mas que isso, dentro de pouco tempo, seria uma realidade ninguém duvidava, ainda que o próprio Emund, àquela hora, não fizesse a mínima idéia do que lhe estava para acontecer em matéria de negócios.

No dia seguinte, Eskil e Knut, todos os escudeiros noruegueses e metade da escuderia de Arnäs iriam a cavalo até Forsvik para resolver o assunto. Arn perguntou ainda se era preciso ir com tantas armas para resolver uma questão pacífica com uma carga de prata a reboque, mas Eskil explicou que a melhor maneira de evitar qualquer disputa ou combate seria a de dar motivos mínimos para com quem queríamos fazer negócio a entrar em briga. Os escudeiros noruegueses, em especial, teriam um efeito fortemente congelante nessa idéia. Ao apor o seu sigilo na carta, Emund precisava estar em perfeita saúde e espírito tranqüilo. Caso contrário, tudo iria por água abaixo. Arn, então, achou que tinha entendido tudo e ele próprio se tranqüilizou.

Logo Knut chamou Arn de lado, dizendo que neste caso era melhor e mais inteligente que ele não viesse. A sua presença iria perturbar a tranqüilidade de Emund de forma inconveniente. Agora, tratava-se de uma questão de negócios e, portanto, era mais uma questão para o irmão Eskil resolver. Mas em breve chegaria a hora em que a questão seria outra, para Arn resolver e não Eskil, que para essa ele não seria de muita utilidade.

Arn concordou muito rápido e muito fácil com a proposta, tão rápido que chegou a surpreender e a preocupar Knut com a conversa. Mas Arn tinha outros planos e outros desejos e contou um pouco timidamente que, enquanto seus amigos estivessem fora, resolvendo o problema nas praias do lago Vättern, ele iria resolver outro assunto em Husaby. Knut entendeu imediatamente do que se tratava, visto que Eskil já lhe tinha contado a respeito de Cecília e da complicação que adviria do relacionamento entre ela e Arn.

Foi pouco depois do dia da Festa de Santa Gertrudes, em meados de março, que a primavera já se sentia no ar, a neve permitia uma corrida fácil e os gelos ainda estavam firmes, que a tropa, bem carregada e bem armada, saiu de Arnäs. No entanto, tudo o que precisava seguir com a tropa tinha de ser levado nas costas ou nas bolsas laterais pendentes das selas dos cavalos, já que nenhuma carroça podia seguir junto, nem tampouco qualquer trenó, visto que a época do ano já não permitia e o risco de se afundar nos gelos era grande, com as cargas pesadas. E eram essas as intenções da tropa, no sentido de que nessa época, portanto, Emund e a sua gente não estariam esperando por visitas e isso iria facilitar o negócio.

Cavalgaram primeiro na direção norte para chegar ao rio Tidan, cujo gelo ainda sustentava a passagem, e assim seria mais fácil chegar ao local de reuniões de Askeberga, onde ficariam para passar a noite nas cocheiras existentes no lugar. No dia seguinte, partiriam ao amanhecer para chegar a Forsvik justamente ao anoitecer, a tempo de entrar na praça do burgo antes que o pessoal de Emund descobrisse a visita.

Isso foi o que sucedeu, felizmente. Emund e o seu pessoal foram tomados de surpresa e desarmados em seguida, sem problemas. Seus escudeiros e os outros homens considerados capazes de agir com armas foram enclausurados nas despensas e na ferraria, sendo vigiados pelos soturnos noruegueses. Na casa grande ficaram apenas Emund, seu filho mais velho, Germund, sua mulher, Ingeborg, e três crianças. Lá dentro, na casa grande, estavam ainda os escravos necessários que os visitantes revistaram para se assegurar que ninguém estava armado.

Tornou-se uma visita melancólica em que Eskil e Knut usaram da palavra, falando alto e sem transmitir preocupações na voz, enquanto Emund e a sua gente apenas respondiam por monossílabos e com desconfiança perante tudo o que era dito.

Eskil parecia estar de muito bom humor e desde o início disse que a visita era de negócios e que, certamente, seria fácil chegar a bom termo nas negociações, mas que, como a tradição impunha, talvez fosse melhor se dedicarem um pouco, primeiro, aos prazeres da mesa e, em especial, aos prazeres da bebida para fazer soltar a língua. Enquanto comiam, mandou buscar a urna com a prata que foi colocada sobre a mesa, entre ele e Emund, que na seqüência mudou um pouco de semblante para melhor, não tanto por ele se tentar com a prata, mas por ter receado que o negócio se faria não com prata, mas a troco da sua vida e das dos seus descendentes. A prata na mesa falava de negócios e não de mortes. Mesmo assim a conversa se desenvolveu com dificuldades.

Ao terminar de comer, Eskil propôs muito respeitosamente que se passasse à discussão do negócio, e nessa questão era melhor que a conversa se fizesse entre os homens, razão pela qual a esposa, Ingeborg, e as crianças deviam se retirar. Os anfitriões obedeceram sem pestanejar.

Ao ficarem a sós, Eskil, Knut e Emund, o primeiro falou de maneira simples e clara. Na questão do preço, eventualmente, poderia parecer um pouco baixo. Na realidade, Forsvik valia mais do que os cinqüenta marcos de prata, isso qualquer um podia perceber. Ele, então, interrompeu o que estava dizendo para abrir a urna com o dinheiro e a carta de compra que leu na linguagem comum, sem, no entanto, mencionar todos os nomes no documento e em especial o de Knut Eriksson. Emund ficou, então, convencido de que se tratava, efetivamente, de um negócio, se bem que, para ele, um mau negócio.

Eskil salientou, depois, que os trinta marcos que Emund havia recebido durante a reunião do conselho em Axevalla, e agora eram essas palavras mencionadas pela primeira vez, de certa maneira deviam ser considerados como parte do preço de compra, visto que esses trinta marcos foram oferecidos, pagos e destinados para uma reconciliação que, então, não foi aceita por Emund, mas que agora Emund tinha toda a vantagem em aceitar.

Emund acenou com a cabeça afirmativamente, dizendo que entendia essa forma de pensar e assinalando cuidadosamente que os oitenta marcos de prata eram uma boa soma de dinheiro, em especial, se na compra e venda houvesse inclusa a idéia de reconciliação. Eskil, então, disse estar feliz com a facilidade com que eles puderam se entender até ali.

Mas Emund ainda não estava pronto para apor o seu sigilo na carta e a receber a prata, antes de obter certas garantias, visto que não se sentia seguro e tranqüilo para fazer negócios, com os seus próprios escudeiros mantidos presos por dominadores noruegueses da pior espécie guerreira e que ele não podia entender como aquele homem que se sentava à mesa com eles e que se chamava Knut tinha alguma coisa a ver com o assunto deles, visto que para ele Knut era um desconhecido.

Eskil respondeu dizendo que ele podia compreender as restrições de Emund. Mas podia-se passar por cima delas de uma forma muito simples, carregando os trenós e fazendo com que a família de Emund, junto com os escudeiros que quisessem, partisse e deixasse o burgo na manhã seguinte. Logo que os trenós partissem e depois de esperar o tempo suficiente para que todos estivessem em segurança, se finalizaria o negócio. Dessa maneira, Emund não precisaria se sentir inseguro a respeito da vida de seus familiares e de sua segurança.

Emund concordou, mas, ao mesmo tempo, acrescentou que a sua própria vida não iria valer muita coisa no momento em que ele ficasse sozinho em Forsvik, rodeado por homens que não eram seus amigos.

Eskil acenou afirmativamente com a cabeça, dizendo que, pensando bem, a situação já era a mesma agora. Mas que se os amigos e parentes de Emund pudessem viajar e avançassem o suficiente para impossibilitar a sua recuperação, isso seria já uma situação muito diferente daquela em que todos seriam assassinados de imediato por ter sido difícil fazer acordo.

Emund disse então estar disposto a entrar em acordo. Mas tinha uma última coisa a propor. Que a prata dada em pagamento pela compra fosse embarcada nos trenós junto com os seus parentes.

Essa proposta, Eskil achou ruim, visto que não era nem elegante nem de tradição pagar por uma coisa que ainda não se recebeu. Se Emund recusasse as condições propostas, toda a prata ficaria perdida, sem utilidade para ninguém. Acabaram concordando a meio caminho, depois de discutir o assunto para a frente e para trás. Metade da soma seguiria nos trenós pela manhã e Emund receberia a outra metade logo que confirmasse a venda com a colocação do seu sigilo no documento. Assim se fez.

E assim se passou uma noite em que muitos em Forsvik tiveram dificuldades em dormir.

Quando a manhã chegou, deixaram sair metade dos escudeiros presos para que pudessem comer e equipar os trenós necessários. Depois, Emund se despediu da sua mulher, Ingeborg, e de suas crianças, pegou a metade da prata conforme compromisso assumido e a colocou no trenó da frente, ao lado da esposa. E assim os trenós partiram sobre os gelos do lago Vättern.

Os que ficaram na casa grande não trocaram muitas palavras, enquanto esperavam que os trenós se afastassem o suficiente para não serem alcançados. Depois, chegou a hora de encerrar o negócio. Emund estava abatido e pálido e tremia com a sua mão esquerda, ao apor, com a ajuda de Eskil, o seu sigilo no lacre queimado na carta de compra. Cheirava mal o toco do seu braço direito envolto em ligaduras de linho.

Quando a carta já estava em ordem, Eskil enrolou-a com todo o cui-dado e enfiou-a por dentro de sua camisa. Depois, empurrou a urna com « a segunda metade da prata na direção de Emund e se despediu, explicando que pelo seu lado nada mais havia a fazer em Forsvik. Alguns dos seus homens iriam ficar no burgo até chegar a primavera. Depois, viria um novo grupo de Arnäs para tomar conta de tudo.

Em seguida, saiu da sala, ainda respeitoso em relação a Emund, reuniu os seus homens de Arnäs, subiu na sela do cavalo e iniciou a marcha de volta sem pressa.

Mas lá dentro, na casa grande, ninguém fez menção de deixar Emund viajar no trenó que o aguardava. Quando já tinha corrido tempo suficiente para que Eskil não estivesse mais à vista ou pudesse escutar quaisquer ruídos de Forsvik, Elling, o Forte, e Egil Olafsson saíram e mataram de imediato os escudeiros que esperavam pelo seu dono e jogaram os cadáveres em cima do trenó.

Quando estavam prontos, voltaram para a casa grande e se sentaram sem dizer uma palavra sequer que, aliás, não precisava ser dita. Todos lá dentro tinham escutado e entendido tudo.

Foi então que Knut se virou para Emund e falou com voz grave e extrema frieza:

— Você, Emund Enahand, o Maneta, perguntava quem eu era, já que você não conhecia nenhum Knut. Mas agora vou dizer a você que eu não sou um norueguês qualquer. Eu sou Knut Eriksson, filho de Erik Jedvardsson, e se você tinha uma dívida com Eskil Magnusson, você ainda tem uma dívida para comigo.

Emund percebeu qual era a dívida a que ele se referia e correu imediatamente, pensando fugir, mas foi logo retido pelos noruegueses, sob suas manifestações alegres. Levaram-no para fora aos empurrões e às bofetadas, aos pontapés e com muito escárnio. Jogaram-no no chão, quebrando o gelo da geada. E amarraram seus braços e suas pernas. E assim ele ficou esticado no chão, apenas com um pedaço de lenha como travesseiro.

Geir Erlendsen achava que ele tinha de ser amarrado de outro jeito, de modo que Knut pudesse ver e executar a antiga tradição norueguesa de bicar como uma águia o corpo dos safados, sangrando-os até a morte, com muito sofrimento. Melhor seria, depois de quebrar as costelas do assassino do rei e de as espalhar pelo chão, que Knut, em seguida, com as suas próprias mãos, tirasse o coração de Emund, separando-o do seu corpo.

Knut Eriksson, porém, não queria nem ouvir falar disso. Não queria nem sujar as suas mãos com o sangue de um néscio. Tal como se falava nas Sagradas Escrituras, ele preferia que o assassino morresse do mesmo jeito que matara seu pai, degolado pela frente.

Emund Ulvbane comportou-se como um homem e não pediu por sua vida. Com um único golpe, Knut Eriksson cortou a sua cabeça, separando-a do corpo, e mandou que a colocassem na ponta de uma lança no meio da praça do burgo para lembrar aos escravos que restaram que um novo dono existia em Forsvik. Deixou que o corpo de Emund fosse jogado no trenó, junto com os cadáveres dos outros escudeiros. O trenó foi levado depois para ser queimado lá fora no meio do gelo.

Knut Eriksson e a maioria dos seus homens ficaram mais um dia em Forsvik e foram ver o que existia de bom nas despensas e na garagem de barcos. E o que encontraram fez a sua alegria. Na garagem de barcos havia muita madeira cortada, de carvalho, boa para construir um barco.

Eyvind Jonsson, Jon Mickelsen e Egil Olafsen Ulateig tiveram que ficar em Forsvik para construir o barco, para ficar pronto assim que os gelos do lago Vättern permitissem navegar. Seria um bom trabalho que apenas os noruegueses, construtores de barcos, sabiam e podiam fazer.

Com o restante dos seus escudeiros noruegueses e alguns dos escudeiros de Arnäs, Knut Eriksson retornou à província de Götaland Ocidental. Ele havia dado o primeiro passo no caminho que o levaria ao reinado das três coroas.

 

Esta é a voz do meu amado!

Ei-lo aí,

Que já vem saltando sobre os montes,

Pulando sobre os outeiros.

O meu amado é semelhante ao gamo,

Ou ao filho do veado.

Eis que está detrás da nossa parede,

Olhando pelas janelas,

Espreitando pelas grades.

O meu amado fala e me diz:

Levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem.

Porque eis que passou o inverno,

A chuva cessou, e se foi.

(Cantares, 2:8-11)

 

Murmurando sem parar as palavras do Senhor a respeito do que mais lhe preenchia o ser, Arn cavalgava na direção de Husaby, levantando grandes bolos de terra, de neve e gelo, com as patas de Chimal. O garanhão galopava, estava quente e suava, mas para Arn o calor estava dentro de si e achava que a velocidade contra o vento frio da primavera seria suficiente para o resfriar. Ele sabia muito bem que talvez esse estado de espírito não fosse o mais recomendável para entrar na casa de Deus, para cantar as

Suas palavras e nada mais. E estava absolutamente certo de que o padre Henri teria muitos pontos de vista restritivos a respeito do assunto.

Mas ele cavalgava como um doido, a uma velocidade louca, porque não podia ser de outra maneira. Ele estava tão impregnado por Cecília que todo o resto parecia ficar de lado, inclusive o próprio Senhor. E era como se o Diabo o estivesse tentando com pensamentos ruins, como se lhe perguntando se ele queria escolher entre o amor do Senhor e o amor de Cecília. Entre os dois amores, qual escolheria? Era como se esses pensamentos ruins se impusessem a ele, mesmo que ele tentasse evitá-los. E que o Diabo, realmente, tivesse descoberto uma alma com uma grande fraqueza.

Teve de parar, descer de Chimal e rezar, pedindo perdão pelos pensamentos ruins que estavam entranhados no seu corpo. Rezou até que quase congelava. Depois, continuou a viagem a um ritmo mais calmo, já que tinha chegado bem perto de Husaby, tão perto que, em breve, as gentes do burgo já o podiam ver.

Chegou em boa hora na igreja, pôs Chimal na cocheira do padre, limpou-o do suor e cobriu-o com um pano simples para que não esfriasse rápido demais, depois da transpiração ocasionada pela cavalgada. Chimal olhou para ele com um olhar pensativo como se o garanhão estivesse possuído e pudesse ver por dentro do seu dono.

Era o dia da Festa da Anunciação à Virgem Maria, em fins de março, na época de as cegonhas chegarem à Götaland Ocidental e de os homens botarem os arados nos campos como se fazia na Vitae Schola, na Dinamarca. E a missa desse dia era ótima para Arn, onde ele poderia cantar tão bem quanto na missa do Natal. A Virgem Maria era a protetora do mosteiro de Varnhem e todos os cantores de Varnhem conheciam todas as missas de cor que diziam respeito à santa.

No entanto, durante os cânticos na igreja, era como se ele se encaminhasse para o pecado, embora cantasse com Cecília da mesma forma encantadora, como na festa natalina. Só que nas linhas em que as palavras falavam de amor para Nossa Senhora, ele olhava Cecília nos olhos e interpretava cada palavra, como se a dirigisse para ela. E sentia que o mesmo acontecia quando ela cantava para ele.

 

Sem entender que com isso estava ofendendo Algot Pälsson, Arn se convidou para passar alguns dias no burgo real de Husaby, para que ele e Cecília pudessem ensaiar novos cânticos para a próxima missa. Justo como Arn tinha pensado, sem que entendesse a razão de tal procedimento, Algot Pälsson não era homem para dizer não a qualquer pedido de um filho de Arnâs. Por isso, logo tudo se acertou, sem que muita coisa mais precisasse ser dita, tal como Arn havia proposto.

A seguir, no entanto, deflagrou-se uma luta entre os dois jovens de um lado e, do outro, todos os que queriam ou eram obrigados a permanecer na companhia deles. Os jovens usavam de toda a sua esperteza para conseguir falar um com o outro a sós. Algot e as mulheres mais idosas da casa perceberam isso e, por sua vez, usavam de toda a sua perspicácia para vigiá-los a todo momento. Desde que ficassem sentados na sala com outras pessoas por perto, cantando em louvor ao Senhor, cada cântico mais bonito que o outro, ninguém tinha nada contra. A persistência de Arn e Cecília em se sentarem juntos e cantarem era muito grande, mas não maior do que a persistência daquelas pessoas que os rodeavam para vigiá-los. E ainda insistiam para que eles não ficassem muito juntos, próximos demais um do outro. Na hora da ceia, os jovens se sentavam na mesa de honra, mas com Algot como verdadeiro separador entre os dois, que não conseguiam ficar mais perto um do outro do que quando Cecília, respeitosamente, colocava mais cerveja na caneca de Arn, o que o fazia sofrer, já que tinha decidido nunca mais na sua vida beber tanta cerveja como na sua primeira visita a Husaby.

Justo antes do dia da Festa da Anunciação à Virgem Maria, o padre Sune, de Husaby, esteve presente em uma reunião com o bispo Bengt, de Skara. Apesar de os caminhos estarem ainda difíceis por causa da neve na época, estiveram reunidos nesse colégio muito mais homens de Deus do que se esperava, sinal de muita preocupação depois das histórias que se contavam e que corriam como o vento na Götaland Ocidental, depois da assembléia de Axevalla. Todos sabiam agora que o rei Karl Sverkersson não iria contentar-se em perder todo o poder na Götaland Ocidental, como também todos sabiam que aquele que mais estava contra o rei e disposto a tomar a sua coroa era Knut Eriksson. Na pior hipótese, o rei Karl chegaria a Götaland Ocidental com um exército, e quem então iria se sagrar vencedor não era fácil dizer. Ao certo, apenas se sabia que uma guerra assim iria devastar o país.

A questão que o colégio reunido com o bispo Bengt tinha que definir era se a Igreja devia assumir uma posição favorável a uma ou a outra das facções em luta pelo poder laico. Tantos eram os homens de Deus favoráveis ao rei Karl, entre eles o próprio bispo, quanto os favoráveis a Knut Eriksson, mas a maioria achou que o mais inteligente era a Igreja não participar da luta pelo poder laico. Caso a Igreja se lançasse nessa luta, era de esperar muita amargura pela frente. O colégio reunido com o bispo Bengt chegou rápido a esta conclusão, e Sune de Husaby foi uma das vozes mais fortes a favor dessa posição. Se não por outro motivo, porque ele próprio seria obrigado a entrar nessa luta ao realizar a missa de Natal para os folkeanos na igreja real de Husaby.

Entretanto, havia também outra coisa sobre o que falar, quando ainda estavam reunidos os homens de Deus, e quem falou primeiro foi o prior que contou mais uma vez para quem quisesse ouvir, e também para quem não agüentava mais ouvir, ter sido testemunha de um milagre, no momento em que um pequeno e indefeso monge de Varnhem, com a ajuda do arcanjo Gabriel, jogou dois guerreiros no chão.

Como o padre Sune estava presente à ceia no burgo real de Husaby e viu Arn também à mesa, não pôde deixar de pensar na história do milagre e a contou do jeito que a tinha ouvido. Todos à mesa ouviram com interesse, excitadíssimos, com a exceção de Arn, que demonstrou não estar gostando do que ouvia. O padre, então, teve a idéia de que talvez Arn soubesse mais alguma coisa sobre o acontecido. Afinal, ele também vinha de Varnhem e devia ter ouvido a história antes ou talvez até conhecesse o pequeno monge de que se tratava. Por isso, o padre queria saber mais alguma coisa sobre o que aconteceu. Essa foi a pergunta que ele fez a Arn.

Todos perceberam que Arn achou a pergunta dolorosa, mas ninguém conseguiu entender por quê. Que Arn sentisse inveja de algo que teria acontecido a outro monge era difícil de acreditar.

Arn respondeu gaguejando, visto que se sentiu fisgado e não sabia, ao contrário de muitas outras pessoas, se soltar através da mentira. Mas disse, por ser verdade, que o prior tinha entendido todo o acontecido às avessas. Não se tratava de nenhum milagre, nem de nenhum pequeno monge indefeso, já que ele era o próprio descrito. O que aconteceu foi que um grupo de camponeses bêbedos chegou correndo de uma festa de noivado e, sem a menor consciência, todos o acusaram de seqüestrador da noiva. Isto, apesar de ele se encontrar fora dos muros do mosteiro apenas há algumas horas. Tentaram matá-lo, mas para que essa morte ocorresse de maneira máscula, deram a ele uma espada para se defender.

Nesse momento da sua explicação, Arn teve de fazer uma pausa e repensar no que devia dizer para completar a sua história. Melhor para ele seria não explicar mais nada. Achava que já tinha dito tudo o que precisava ser dito e porque não estava nem um pouco orgulhoso do que havia feito. Ao contrário, sentia-se angustiado. No entanto, já tinha aprendido o suficiente de como as pessoas raciocinavam no baixo mundo para entender que elas podiam achar que queria se valorizar. Quem queria jactar-se, na realidade, era o prior, que na sua presunção achou ter testemunhado um milagre do Senhor, onde apenas houvera um acidente. Mas tudo isso era difícil de apresentar aos outros sem falar mal do prior.

No silêncio impaciente que se seguiu, em que Arn parecia não querer dizer mais nada, foi Cecília que falou, pedindo que ele continuasse. Então, ele levantou os olhos e fixou-os no olhar dela. E era como que se ele visse a Virgem Maria falando para ele e explicando-lhe como colocar as suas palavras contando uma boa história a respeito de um acontecimento horrível.

E foi em frente, passando rápido pela situação penosa. Quer dizer, camponeses bêbedos resolveram, por engano, matar alguém que eles julgavam ser um pequeno e indefeso monge que, na realidade, era Arn, muito bem treinado na arte marcial da espada por um cavaleiro templário ao serviço do Senhor. Por isso, a luta foi curta. Evidentemente, não se tratou de um milagre, assim como não foi nenhum milagre aquilo que aconteceu em Axevalla.

No entanto, aconteceu, sim, um milagre nesta história, um milagre de amor. Porque, na continuação que o prior não pôde ver ou não soube entender, viram-se os efeitos da infinita bondade da Virgem Maria e dos seus cuidados com aqueles que se mostraram a ela dedicados. Arn ficou um pouco envergonhado diante das suas palavras a respeito do prior, mas ninguém na sala se interpôs no caminho ou se exaltou, de modo que ele logo ganhou coragem para continuar.

A Virgem Maria tinha ouvido por muito tempo as orações profundas de uma jovem chamada Gunvor e de um jovem chamado Gunnar. Eles tinham um amor tão forte um pelo outro que preferiam morrer a ter que abdicar da felicidade de viver juntos como marido e mulher, com a bênção de Deus.

Gunvor havia fugido, no seu desespero mais terrível, da festa do seu próprio noivado imposto, antes de se deitar com o noivo e antes do casamento se ter concretizado. Saiu, então, correndo pela estrada onde encontrou o pequeno monge que nada sabia, nem entendia, mas que a Virgem Maria havia enviado em socorro de Gunvor. Com isso, ela encontrou a salvação. Acabou para ela a perspectiva de uma vida difícil com um homem com quem não queria viver, visto que ele foi um dos que morreram na hora.

O prior, entretanto, precisava de um novo caseiro para a sua fazenda onde essa festa de noivado teve lugar. E o novo caseiro escolhido acabou sendo Gunnar. Com isso, Gunnar e Gunvor puderam se casar e viver felizes até o fim dos seus dias terrenos. Com a ajuda da Virgem Maria, seu amor havia vencido todas as leis e tradições existentes, visto que o amor era mais forte que todo o resto. Foi isto mesmo que a Santa Mãe de Deus demonstrou ao corresponder às orações mais ardentes de Gunvor e Gunnar, e dando a eles a recompensa por nunca terem desistido até o último dos piores momentos em confiar nela.

Ao chegar a este ponto da história, Arn declamou os versos das Sagradas Escrituras relativos à vitória do infinito amor, versos que ele tão bem sabia de cor, inclusive, na linguagem comum, de tal maneira que em qualquer altura podia dizê-los. Com isso, ele deixou uma impressão fortíssima em todos os que estavam à mesa e mais forte ainda em Cecília, o que tinha sido a sua intenção e a sua esperança.

O padre de Husaby ficou pensativo por alguns momentos e depois confirmou que as palavras que Arn tinha citado para eles eram realmente as palavras de Deus. Com o amor era assim, acrescentou ele. O amor podia operar milagres e as Sagradas Escrituras continham muitos exemplos disso. Evidentemente, não era uma coisa fácil de entender, já que a maioria das pessoas que viviam segundo a ordem estabelecida na Götaland Ocidental festejava seus noivados por outras razões que não aquelas que uniram Gunvor e Gunnar. Entretanto, continuou ele, Arn havia contado essa história com muito senso religioso e, por isso, o padre de Husaby compartilhava as mesmas idéias dele. Nossa Senhora, realmente, tinha demonstrado um milagre de amor e de fé e não um milagre da espada e da violência. Disso, certamente, havia algumas lições a aprender.

Para todos os que estavam à mesa naquela hora, as lições a aprender constituíam um assunto meio obscuro. Porém, mais preciso do que isso o padre de Husaby não foi. Em contrapartida, depois de a ceia e as orações terem terminado, o padre puxou Algot de lado e teve com ele uma conversa que ninguém ouviu.

Possivelmente, foi essa conversa que levou Algot a ter novas idéias, visto que no dia seguinte, pela manhã, perguntou a Arn se ele, que era um cavaleiro de primeira, não queria levar Cecília consigo num passeio a cavalo, aproveitando o bonito tempo primaveril. É claro que Arn não se fez de rogado.

E assim aconteceu que Cecília e Arn seguiram a cavalo pelas encostas sulinas de Kinnekulle no primeiro dia quente da primavera, enfrentando ventos suaves e mornos. Os salgueiros tinham desabrochado e corria muita água pelos córregos, com o chão apenas marcado aqui e ali pela neve. Era como se eles no primeiro momento nem se atrevessem a falar um com o outro, apesar de, finalmente, terem sido deixados em paz. Havia escudeiros a segui-los, claro, mas a uma certa distância, de onde podiam vê-los mas não ouvi-los. Tudo o que Arn tinha dito a ela em seus calorosos pensamentos noturnos ou quando avançou febril para Chimal e, expansivo, gritou palavras ao vento, tudo ficou por dizer. E em vez disso deixou-se embaraçar numas descrições infantis sobre o comportamento de Chimal e entre razões pelas quais os cavalos da Terra Santa eram muito melhores do que os outros.

Nessa conversa, Cecília apenas se mostrou razoavelmente interessada. Mas, de qualquer maneira, ela sorria como que para o encorajar a falar. Ela mesma tinha tido uma longa conversa noturna com Arn em seus sonhos, embora tivesse imaginado tempo todo que ele seria o primeiro a falar as palavras certas e que ela responderia, estimulando mais palavras do mesmo gênero. Diante da conversa a respeito das qualidades dos cavalos e de como eles deviam ser acasalados, ela se conteve e ficou quase muda.

Enquanto Arn quase chegava ao desespero diante da sua própria timidez e pela decepção de ainda não ter dito a ela tudo o que pretendia, logo que a primeira oportunidade se apresentasse, ele pediu silenciosamente à Santa Mãe de Deus para lhe dar nem que fosse apenas um pouco da força que Gunvor havia mostrado. E logo as palavras chegaram a ele, como se Nossa Senhora, suave e sorridente, o conduzisse para o caminho certo. Reduziu a marcha de Chimal, deu uma olhada para trás, para os escudeiros que continuavam a distância, não podendo ouvi-lo, e disse as palavras certas, o olhar bem fixo nos olhos dela e o júbilo dentro de si:

 

Enlevaste-me o coração, Minha irmã, minha esposa, Enlevaste-me o coração, Com um dos teus olhares, Com um colar do teu pescoço. Que belos são os teus amores, Minha irmã, esposa minha! Quanto melhor é o teu amor do que o vinho! E o aroma dos teus ungüentos Do que o de todas as especiarias!

Favos de mel manam dos teus lábios, minha esposa! Mel e leite estão debaixo da tua língua, E o cheiro dos teus vestidos E como o cheiro do Líbano.

(Cantares, 4:9-11)

 

Ao escutar as palavras de Deus, que eram também as palavras de Arn a ela dirigidas, Cecília parou seu cavalo e olhou longamente para seu amor, mas falou primeiro com os olhos, com os olhares, os mesmos com que ele e ela tinham sido obrigados a dizer tudo até aquele momento. Respirando aceleradamente, ofegante, mas quieta em cima da sela, Cecília disse:

— Você não pode nem imaginar, Arn Magnusson, o quanto eu esperei ansiosamente por essas palavras — pronunciou ela, finalmente, sem desviar seus olhos. — Assim tem acontecido sempre, desde que nossos olhares se encontraram, quando pela primeira vez os nossos cantares se uniram. Eu quero ser sua, mais do que quero qualquer outra coisa no mundo.

— Também eu lhe pertenço, Cecília Pälsson, mais do que a qualquer outra pessoa no mundo e para todo o sempre — respondeu Arn, com tanta solenidade que isso fez as palavras parecerem uma prece. — Realmente, de verdade, você tomaste o meu coração com um único olhar, como dizem as palavras do Senhor. De você eu jamais vou querer me separar.

A seguir, cavalgaram por mais um tempo, sem nada dizer, até que chegaram perto de um antigo carvalho, meio decadente, que se espraiava por cima de uma pequena cascata. Aí, saltaram dos cavalos e se sentaram no chão, fazendo do carvalho um encosto. Os escudeiros de Husaby, primeiro hesitantes, pararam um pouco longe e pareciam discordantes se deviam ou não chegar mais perto. O ruído da cascata fazia com que eles nada pudessem ouvir, mesmo que se aproximassem mais. No entanto, resolveram também se sentar onde estavam e de onde, se necessário, tudo podiam ver, mas nada escutar.

Cecília e Arn juntaram as mãos e ficaram olhando um para o outro, sem nada dizer durante um longo momento, apenas sentindo dentro de si o efeito de um verdadeiro milagre.

Finalmente, Arn voltou a falar, dizendo que teria de voltar para Arnäs, por muito que lhe custasse a separação. Mas teria de contar para seu pai, Magnus, em que pé a situação estava entre eles. Sua intenção era talvez a de celebrar o noivado já durante o verão.

Primeiro, ela se mostrou muito alegre e satisfeita diante dessas palavras, mas levou as mãos ao coração, quase como num gesto de dor, e deixou que uma sombra avassalasse o seu semblante.

— Pode ser que precisemos de tanto apoio de Nossa Senhora, a Virgem Maria, quanto Gunvor e Gunnar, sobre quem você contou tão bela história ontem — disse ela, séria. — Isso porque nosso amor vai enfrentar provações difíceis e grandes barreiras, como você sabe, certamente, não é verdade?

— Não, a esse respeito não sei nada — exclamou Arn. — Isso porque barreiras tão elevadas não existem, nem a montanha é alta demais, nem a floresta é profunda demais, ou o mar, grande demais para velejar sobre ele. Com a ajuda de Deus, nada impedirá o nosso caminho!

— A ajuda de Deus é o que devemos pedir fervorosamente em nossas preces — respondeu ela, baixando o olhar. — Meu pai é um homem de Karl Sverkersson e o seu, de Knut Eriksson, isso todos sabem. Meu pai receia pela sua vida por esse motivo, e, enquanto Karl viver, ele certamente não vai se ligar fortemente aos folkeanos. Assim é a situação, meu queridíssimo Arn... Oh, que alegria em poder dizer essas palavras! Por isso, é muito provável que o nosso amor tenha mais que um grande mar para atravessar, enquanto Karl Sverkersson for rei e o meu pai, seu servidor.

Arn, entretanto, não se deixou desanimar nem um pouco por esse quadro. Não era apenas porque sua confiança era grande, mas também por acreditar que a Virgem Maria estaria a seu lado e ao lado de Cecília. Acontecia, porém, que, assim como ele conhecia Aristóteles e o sagrado São Bernardo de Clairvaux, o mundo superior e o inferior de Platão e as regras de convivência dos cistercienses, isso que o povo de Götaland Ocidental desconhecia por completo, assim ele desconhecia por completo as regras que determinavam a luta pelo poder, isso de que o povo de Götaland Ocidental sabia tudo a respeito.

Arn confiava inteiramente, isso sim, na sua crença de que a maior força no mundo era o amor.

Magnus e Eskil estavam sentados na sala de contas da torre e sua conversa não estava fácil. Era bom para eles que Arn estivesse bem ocupado com longos dias de trabalho. Passava a maior parte do tempo no lago Vänern, onde serrava blocos de gelo com o mesmo formato de tijolos para a construção de muros. Os blocos de gelo eram trazidos para Arnäs em trenós e ficavam armazenados em seus porões gelados entre camadas de serragem trazida da oficina madeireira. Ele decidira que estava na hora de recolher o gelo, antes que ficasse fino demais no lago. Era bom que ele permanecesse bem ocupado. Seria difícil manter a conversa caso Arn estivesse ali com eles.

Os homens, na sua juventude, e, pelo que se dizia, também as mulheres, eram atacados por tentações às vezes bem fortes. Isso eles conheciam por experiência própria. Fazia parte da vida como ela era e não havia muita coisa a fazer, a não ser esperar que tudo passasse como um resfriado da primavera. Magnus lembrava-se dessas coisas do tempo em que era ainda muito jovem. E quando se lembrou, também se emocionou e reconheceu para Eskil que a mulher que foi a sua primeira esposa em Arnäs e que foi a mãe de Eskil e de Arn, no início, não significava mais para ele do que um par de bonitos cavalos baios ou algumas outras coisas boas para usar na fazenda. Mas com o tempo, ela, Sigrid, tornou-se para ele a mulher mais querida. Isso que Arn chamava de amor podia crescer com bom senso, vivendo bem, juntos, e com inteligência. Magnus, ao pensar um pouco mais sobre o assunto, achava até que Erika Joarsdotter, nos últimos tempos, tinha se tornado mais razoável e era mais fácil de lidar com ela e, em certos momentos, verdadeiramente agradável. Pelo menos, nunca antes foi tão fácil vê-la tratando das coisas da casa. Assim, era isso a que Arn chamava de amor.

No entanto, essa sabedoria dos mais velhos não era passível de ser transmitida aos mais novos por palavras. Não fazia sentido tentar falar em bom senso em situações onde o bom senso não existia. O mesmo era dizer para alguém que acabasse de perder um amigo e acabasse de o acompanhar à última morada, que o tempo cura todas as feridas. Embora sendo verdade, não faria sentido dizer isso para alguém no pior momento da dor.

Portanto, o que fazer com Arn e sua decisão de partir amanhã mesmo para a sua festa de noivado em Husaby?

Eskil argumentava, dizendo que era preciso pensar friamente, o que era mais fácil de fazer, sem a presença de Arn, já que este era como se fosse ferro em brasa. Na realidade, existiam razões a favor e também razões contra. E, nessas ocasiões, mais do que em quaisquer outras, era preciso pesar umas e outras como se fossem prata e, ao final, estabelecer o que pesava mais.

Contra a proposta de Arn falava mais do que qualquer outra coisa o fato de ninguém saber quem deteria o poder real nos próximos dois anos. Enquanto, porém, Karl Sverkersson fosse rei, Algot Pälsson devia se precaver e não unir sua família a um inimigo do soberano. Isto, se fosse um homem inteligente. E, por parte deles, de Arnäs, também não seria inteligente unir pelo casamento a sua família com a família de um inimigo de Knut Eriksson, visto que ao pensar em alguém para ser rei que não Karl, só se poderia pensar, justamente, em Knut Eriksson.

A favor da proposta de Arn, no entanto, falava algo que tinha a sua importância. Agora, que Forsvik, no Vättern, pertencia a Arnäs, todo o norte da Götaland Ocidental era dominado por eles. E aquela parte sul do rio Tiveden representava a linha de comércio entre quatro províncias. E a parte mais fraca da defesa dessa cadeia era, justamente, a região de Kinnekulle, onde estavam situadas as terras de Algot. Caso fosse possível dominar as terras de Kinnekulle e as praias do lago Vänern ao sul, isso iria valer de muito. E se acontecesse ser possível fazer esse negócio, era preciso que Algot estivesse em grandes dificuldades e passível de ser convencido a dar essas terras como presente de casamento por parte da noiva, um presente cujo valor seria o dobro do usual.

No entanto, tudo isso seria impossível de acontecer enquanto Karl Sverkersson estivesse vivo. Se, porém, ele deixasse a vida terrena, então Algot faria de imediato o negócio, mais rápido do que Knut Eriksson pudesse imaginar.

Assim se punha a questão. Enquanto o rei Karl Sverkersson continuasse seguro na sua fortaleza junto do lago Vättern, não havia nada a fazer. Mas partindo ele desta vida, logo seria possível realizar esse negócio tão importante para Arnäs.

Nesses cálculos, Eskil apenas via um ponto fraco. Era a questão de saber se Birger Brosa e a sua família tinham outros planos. Assim acontecera antes, quando o próprio pai, Magnus, quis noivar com Cecília ou Katarina, pela mesma razão daquela agora falada. E em vez delas acabou acontecendo o noivado com Erika Joarsdotter, pelo fato de o conselho da família ter achado essa união mais favorável.

Magnus afirmou não ter ouvido falar antes de quaisquer planos para casar com Erika. Mas acabou se unindo à família erikiana através de Erika Joarsdotter. Knut tinha uma irmã, também, chamada Margareta, mas essa já estava casada com o rei Sverre, da Noruega.

Como o irmão de Magnus, Birger Brosa, era casado com Erigida, filha do rei Harald Gille, da Noruega, a banda norueguesa já era bastante forte. Não, no momento, Magnus não via nenhum outro casamento mais conveniente para Arnäs ou para a família do que a união com Katarina ou Cecília, qualquer uma servia. Embora para Arn apenas Cecília contasse e mais ninguém. Em toda a sua vida, nunca ninguém mais iria contar.

Restava decidir quem iria contar toda a situação para Arn. A mensagem era simples. Enquanto o rei Karl vivesse, não haveria noivado.

Mas tão simples quanto colocar a idéia em poucas palavras, muito mais complicado era dizê-las para um filho jovem ou um irmão que vivia em um estado febril ou de loucura a que chamava de amor.

Magnus devia levar a mensagem adiante, visto que era o pai e detinha por direito todo o poder sobre a família. Mas Eskil devia ser a pessoa indicada, visto que era irmão e não detinha quaisquer poderes. Não precisaria convencer, apenas explicar. E assim eles ficaram virando o assado de um lado para o outro, até que decidiram ser Eskil aquele que iria apresentar a questão para Arn.

Uma semana antes da Festa de São Tibúrcio, quando os gelos ainda existiam, mas começavam a escurecer, Knut Eriksson chegou a Arnäs sem ser anunciado. Tinha viajado rápido, apenas na companhia de Geir Er-lendsen, do bardo Orm Rõgnvaldsen, e de Berse, o Forte. A viagem tinha decorrido bem. Ficaram passeando por toda a Götaland Ocidental onde o bardo tinha feito jus ao bom salário que recebia. E estavam chegando de Skara onde Knut tinha muitos ouvidos e muitos olhos, e onde compraram boas informações de um homem que tinha acabado de deixar os serviços de Karl Sverkersson na ilha de Visingsõ.

Knut não disse quais as razões da sua visita a Arnäs, a não ser que tinha de falar com Arn, que foi encontrar, angustiado, entre os escravos da casa e da cozinha, num lugar e numa situação que mal condizia com um homem na sua posição, segundo Knut Eriksson.

Para a surpresa de Arn, Knut queria que os dois fizessem em seguida um torneio de tiro ao alvo. E logo foi feito um alvo de palha amarrada, colocado no meio da praça do burgo. Arn não quis negar, mas também não estava sentindo nenhuma satisfação com a brincadeira. Enfim, colocaram o alvo a uma distância de quarenta passos, o que Arn achou que era longe e difícil demais para Knut, mas este queria que fosse assim. Escolheram os arcos entre os melhores e mais fortes. E todos no burgo vieram ver o que estava acontecendo. Todos sabiam que era o provável futuro rei do país que iria atirar as suas flechas, tendo um dos filhos de Arnäs como adversário. E ninguém queria dizer, depois, que tinha falhado como testemunha do ocorrido.

Quando os dois já estavam de arcos preparados e Arn ainda achava que não era hora de brincar, Knut pegou-o pelos ombros e abraçou-o, dizendo, então, qual era a sua idéia.

— Agora, meu querido amigo de infância, você vai atirar para ganhar de ninguém menos do que o seu rei. E tudo depende dessas flechas.

Pense, inclusive, que se trata de Cecília. Sim, é claro, já sei tudo sobre o relacionamento entre vocês. Pense que sou o seu rei e que posso dá-la a você, e que para isso basta apenas que me vença. E agora eu vou atirar primeiro. Não precisa me responder no momento. Agora, pense apenas em atirar bem.

Enquanto Arn se sentia abalado por essas palavras e se recompunha para, realmente, atirar bem, Knut disparou as suas dez flechas e com isso espantou de admiração todos os presentes que não sabiam que ele era tão bom atirador.

A seguir, foi Arn que disparou, de rosto frio e grande silêncio dentro de si, como se tudo, realmente, dependesse dessas flechas. Todos puderam ver, então, que havia uma grande diferença entre os dois e que Arn era o melhor.

De novo, Knut abraçou Arn efusivamente, dizendo-lhe que naquele momento ele poderia muito bem ter acabado de conquistar Cecília como esposa. Depois disso, deixaram a praça e foram para a torre, onde Knut mandou que servissem cerveja.

Assim que ficaram sozinhos, Knut nem esperou que a cerveja chegasse e foi logo explicando para Arn como era que a situação se apresentava. Pois havia chegado o momento. Para ele a questão era a coroa de rei e para Arn era Cecília. Muitos eram os conhecidos que Knut Eriksson tinha em toda a província e, por isso, ele sabia de tudo o que era importante saber e também de tudo o que para muitos poderia parecer menos importante, como o caso entre Arn e Cecília.

Arn respondeu, taciturno, que bem podia entender que a existência de muitos conhecidos era importante para quem lutava para conquistar as três coroas, mas não entendia era a razão da brincadeira com o arco e as flechas que acabavam de ter. Qual a razão desse torneio em que um futuro rei se arriscou a perder e a ser reconhecido como perdedor?

Nesse momento, chegaram as escravas da casa com a cerveja, e Knut riu abertamente diante dessa interrupção, visto que tinha compreendido o motivo da impaciência e do espanto de Arn. Beberam, então, à saúde dos dois, respeitosamente, como mandavam as regras da boa cortesia e hospitalidade. Mas Knut viu nos olhos de Arn aquela impaciência que exigia uma resposta rápida. No entanto, a resposta ainda tardou, já que Knut começou por falar do seu pai, o consagrado Santo Erik que tinha sido bom para todos, que não exigia nada para si, que preferia a camisa de cilício e as longas orações à vida na corte, que ajudava os fracos e era contra os fortes, e que morreu como um santo nas mãos de criminosos. Talvez Arn já tivesse escutado essa história antes, mas havia um detalhe a acrescentar.

O pai de Erik Jedvardsson foi Jedvard, de Orkney, que viajou de barco à vela com Sigurd Jorsalafar para a Terra Santa e lá o rei norueguês prestou grandes serviços. E como agradecimento pela ajuda cristã, o rei Sigurd ofereceu a Jedvard, de Orkney, dois pequenos pedaços da cruz sagrada onde o nosso Salvador foi torturado e morto. O rei Sigurd tinha recebido, justamente, uma boa quantidade dessas madeiras santificadas das mãos do rei Balduin, de ultramar, ou seja, do reino de Jerusalém.

Aqui, Knut fez uma pausa para perguntar a Arn se ele já tinha ouvido falar de ultramar, e o riso alegre e os acenos afirmativos com a cabeça feitos por Arn lhe deram a entender que sim.

Muito bem, esses dois pedaços da sagrada cruz foram recebidos por herança pelo pai de Knut, Erik Jedvardsson, que os fez embutir numa cruz de ouro que ele sempre trazia ao pescoço. Quando Emund Enahand, o Maneta, degolou o rei, a relíquia sagrada caiu no chão e foi apanhada por um covarde que a levou para o mandante do crime, o homem a quem hoje chamam de rei Karl Sverkersson. Portanto, ele não é apenas um criminoso, assassino de um soberano, mas também o ladrão que se apoderou de uma relíquia sagrada de Deus. A cruz de ouro com os pedaços de madeira da cruz do Salvador pende agora do pescoço do próprio Karl Sverkersson e isso neste momento deve ser abominável aos olhos de Deus; sobre esse assunto não há a mínima dúvida, certo?

Arn concordou de imediato que isso devia ser abominável aos olhos de Deus e disse que tudo devia ser feito para corrigir esse erro.

Aí Knut Eriksson sorriu para Arn e repetiu, tranqüilo, que agora havia chegado o momento. Mas para chegar onde a sagrada relíquia de Deus se encontrava, apenas alguns poucos homens podiam fazê-lo, homens que agüentassem o frio e soubessem velejar bem, que pudessem atirar com o arco e flecha, e que se defendessem com a espada melhor do que ninguém.

Por isso, tinham disputado esse torneio, continuou Knut. Existiam homens que eram bons em atirar em torneios, mas não em combate, quando a cabeça está cheia de raiva e de medo. O mesmo aconteceu com Arn, que teve de atirar e ao mesmo tempo pensar em Cecília. E Arn passara pela prova muito bem.

Agora, e não mais tarde, era preciso fazer o que tinha que ser feito, continuou ainda Knut. E fez a Arn aquela que era realmente a grande pergunta. Não sem antes garantir que quando ele se tornasse rei seria o primeiro a abençoar o noivado entre Arn e Cecília. E a pergunta era se ele aceitaria segui-lo numa viagem, sendo apenas um num grupo de oito homens.

Era a terceira vez que alguém dizia para Arn que ele não ficaria com Cecília enquanto Karl Sverkersson vivesse. E se ele tinha hesitado nos dois primeiros casos, agora não tinha mais dúvidas.

Ao chegarem a Forsvik, perto das praias do Vättern, descobriram que Eyvind Jonsson, Jon Mickelsen e Egil Olafsen Ulateig tinham construído um barco pequeno, mas muito bonito, com boca larga, fundo chapado para águas rasas e a possibilidade de remar com três pares de remos. Os escudeiros noruegueses se desculparam por não terem decorado o barco com os caracteres rúnicos que teriam completado o trabalho, mas a condição de navegabilidade tinha vindo em primeiro lugar, isto porque em breve os gelos teriam se derretido. Esse pequeno barco, construído como se fosse um barco viking norueguês, no entanto podia velejar mais rápido do que os outros barcos na época, em especial na Götaland Ocidental. E podia singrar mais rápido do que todos os barcos quando avançando a remos, em especial com remadores noruegueses, e também podia ser empurrado facilmente sobre os gelos. Knut estava muito satisfeito com o que viu e explicou tudo para Arn, que ainda não conhecia muita coisa da Noruega, como era o caso dos outros membros da família.

Depois de três dias de espera, chegou a hora de partir. Fizeram antes uma missa que Arn, para fortalecer o espírito de todos, rezou na linguagem da Igreja. Após a missa, Knut Eriksson falou diante de todos, inci-tando-os. Era a hora da decisão. Sua maior força estava no fato de serem apenas oito homens, mas dos bons, capazes de atravessar o lago Vâttern numa altura em que ninguém acreditaria possível. Lá longe, no promontório sul, na ilha de Visingsõ, vivia o mandante do assassinato do rei, Karl Sverkersson, com a sua guarda de escudeiros, achando que estava a salvo. Mas Deus não podia continuar ao lado de alguém que matara um santo para tirar vantagem pessoal disso. Ao conquistar aquilo que estava para ser conquistado, também ficou claro que cada um iria receber uma recompensa segundo a sua participação.

Nada mais foi dito. O barco foi retirado por cavalos da cova de gelo na praia onde ficou dentro de água para que as pranchas de madeira inchassem e não deixassem entrar água. Os cavalos foram colocados no seu lugar e cada um deles recebeu a ponta de uma corda para realizar o duro trabalho de arrastar o barco até a água. Já em cima do gelo, foi fácil para os oito homens puxar o barco chato. Após meio dia de trabalho, chegaram a um canal aberto no gelo que ia dar ao mar, no meio do lago Vättern, e já avistavam a ilha de Visingsõ ao longe. O vento vinha do oeste, como sempre nessa época do ano, e em breve poderiam içar a vela. Quanto mais ao sul eles velejavam, mais se alargava o canal e mais as águas se abriam. E, então, eles acharam que Deus estava a seu lado. Se tivessem vindo um dia antes, seriam obrigados a deixar seu barco no meio dos gelos, bem à vista logo que a luz do dia chegasse. Um dia mais tarde não haveria gelo, e em Näs, na fortaleza do rei, os guardas estariam de sentinela, junto dos muros, para vigiar o mar e alertar sobre os perigos que poderiam vir do lago.

Armaram a vela e remaram lentamente para Näs. Chegaram à praia não antes de já estar bem escuro. E aí ficaram esperando numa pequena enseada, atrás de ramos densos de amieiro. Jogaram a vela sobre o barco e acenderam fogo em dois vasos de ferro, não sem antes escolherem vigias para entrar nas terras e ver se o fogo não poderia ser visto. De qualquer forma, era preciso algum tipo de aquecimento, já que as noites na Escandinávia, na época, eram ainda muitíssimo frias.

Knut estava de bom humor. A parte mais difícil já tinha sido ultrapassada. Sentou-se bem junto de Arn e disse que aquela seria ou a última noite juntos ou a primeira, numa longa viagem pela frente.

Depois, falou sobre o homem que assassinou o seu pai e que tentou assassinar o pai de Arn, com esperteza e num combate desequilibrado, mas Arn interrompeu as intenções dele. E do resto nem se precisava falar. Tudo isso já era do conhecimento dele que tinha pensado muito sobre o assunto.

No entanto, ainda estava em dúvida, admitiu ele para Knut. Tinha jurado que jamais iria levantar a sua espada com raiva ou para receber vantagens pessoais. E agora parecia que estava a ponto de realizar justamente isso. Com a morte de Karl Sverkersson, ele iria ganhar muito, sem dúvida. Disse que já tinha entendido que não se tratava apenas da questão de conseguir de volta a santa relíquia que por direito pertencia ao bom amigo Knut e que, erradamente, estava agora à volta do pescoço de Karl Sverkersson. Já tinha entendido que esse pescoço iria ser cortado na hora de liberar a cruz.

Knut disse que nada podia fazer para livrar Arn dessa agonia, pois aquilo que Arn disse era a pura verdade. Em vez disso, Knut falou em tom baixo, mas caloroso, sobre Cecília e que alegria seria se, como seu rei, ele pudesse juntá-los em casamento em qualquer uma das igrejas e, se assim o desejassem, diante do arcebispo de Aros Oriental. Nesse momento, Arn ficou mole e sentiu calor, se bem que a noite estava fria e úmida como de costume na transição do inverno para a primavera. Respondeu que qualquer igreja estaria bem para ele, desde que ficasse por perto. E, em seguida, puderam os dois rir juntos à vontade e, ao terminar, Knut falou para Arn que, se assim fosse o caso, ele poderia emprestar uma entre várias espadas norueguesas sobre a qual ninguém tinha jurado nada, muito menos feito uma jura sagrada.

Depois disso, Knut baixou a voz e explicou o que iria acontecer. Em Skara, tinham pago por muitas informações, mas a mais importante viera de um homem que pouco antes tinha deixado o serviço na casa de Karl Sverkersson em Näs. Tinham então sabido que quando não havia nenhum perigo em Näs, como agora, quando os gelos nem suportavam peso nem se quebravam, Karl Sverkersson, todas as manhãs e antes de mais nada, fazia uma pequena caminhada até a praia, para ficar sozinho por algum tempo. Por que fazia isso, ninguém sabia ao certo, mas sempre era o mesmo passeio todas as manhãs, bem cedo. Justo na hora do amanhecer, isso acontecia, assim que a primeira luz do dia iluminava o caminho onde poria os pés.

Por essa informação importante, o traidor de Karl Sverkersson havia recebido uma soma bem merecida.

Se Deus ajudasse, tudo aconteceria antes da noite terminar, visto que aquele era o último dia antes do degelo total, as águas ficariam livres, e Karl Sverkersson podia começar a esperar por barcos inimigos. Por isso, restava apenas rezar e depois tentar dormir um pouco.

Havia um vigia. O barco estava bem escondido no escuro por trás das folhagens densas dos amieiros, perto da praia.

Arn não dormiu muito durante a noite fria e talvez nem os outros tivessem dormido bem, embora fossem noruegueses e, ao que parecia, não estivessem nem um pouco preocupados com o fato de o dia seguinte poder ser o último de suas vidas.

Mas tudo aconteceu como se Deus estivesse ao seu lado até o último momento, e ainda além disso. Arn ficou preparado, com arco e flecha, quando ainda estava escuro. No entanto, ao surgir a primeira luminosidade, mudou para uma posição melhor. Ao lado dele, estavam o próprio Knut, Jon Mickelsen e Egil Olafsen Ulateig, e todos eles estavam vestidos com grossas peles de lobo e as pernas enroladas com duplas faixas de panos, tudo por causa do frio. Estavam tão perto dos muros da fortaleza que seria possível para eles acertar a borda dos muros até com um tiro de flecha. Arn conservava uma espada norueguesa ao lado, na cintura. A sua própria espada, ele não a queria usar nessa missão. Pouco falavam uns com os outros.

Mas, quando o pesado portão de carvalho da fortaleza de Näs se abriu, foi como se todo o frio tivesse desaparecido de todos os seus membros do corpo e eles estivessem em brasa devido à tensão do momento.

Viram, então, um homem saindo, acompanhado de dois outros homens, andando em direção à praia, muito perto do lugar onde eles próprios estavam. Arn fez um movimento para preparar o seu arco, mas os outros três logo o contiveram.

Na fraca luminosidade da manhã, era difícil diferenciar as cores. Mas quando os três homens da fortaleza passaram a caminho da praia, a apenas alguns passos de distância, viu-se que o que ia na frente vestia um manto vermelho e uma cruz de ouro que brilhava no seu pescoço.

Knut Eriksson levantou a mão para que ninguém fizesse nada antes dele, apesar de todos terem entendido que quem ia na frente era o próprio rei.

O rei Karl Sverkersson foi andando até a praia do lago Vättern. Aí parou, abaixou-se e com as mãos em concha apanhou água do lago e bebeu, antes de se ajoelhar para, pela última vez, agradecer por aquela água em mais uma noite ter salvo a sua vida.

Não havia geado durante a noite, o chão estava sem gelo quebradiço. Por isso, Knut Eriksson pôde avançar logo que os três homens se ajoelharam no canto da praia, sem que pudessem escutar os seus passos. E, então, cortou a cabeça do rei, de um só golpe, e depois a de um dos seus dois escudeiros. Mas o outro, ele não matou. Em vez disso, apontou a sua espada para a garganta dele e fez sinal para que Egil e Jon se aproximassem, o que fizeram de imediato, não sem antes dizerem baixo para Arn ficar onde estava.

Arn viu como o mais querido de todos os seus amigos de infância se abaixou para apanhar a corrente de ouro e depois a lavou do sangue nas águas do lago. Em seguida, correu na direção de Arn, depois de ter falado alguma coisa ao ouvido dos seus escudeiros noruegueses que, por sua vez, com a mão na boca do escudeiro ainda vivo, o arrastaram consigo.

Puseram, então, o barco a flutuar e entraram nele. Os escudeiros nos remos e Knut na popa, junto do leme, com o prisioneiro numa das mãos e a corrente de ouro na outra. Quando tudo estava pronto para a partida, soltaram o prisioneiro, dizendo para ele em voz alta:

— Chegou a hora de dizer para você que está livre. Você recebeu sua vida de presente, mas precisa saber também quem, depois de Deus, lhe deu essa vida de presente. Eu sou Knut Eriksson e sou seu rei. Esteja presente amanhã na missa de São Tibúrcio e agradeça a Deus por sua vida. Foi Ele que o salvou, mas foi Ele também que nos conduziu até aqui. Mas se apresse para que ninguém fique pensando que foi você que matou Karl Sverkersson!

Em seguida, Knut fez sinal para que os remadores se fizessem ao mar, e com remadas fortes eles se afastaram até a distância de um tiro de flecha, altura em que Knut jogou o prisioneiro na água como se fosse um gato e este correu o mais rápido que pôde, na direção do portão entrea-berto nos muros da fortaleza real, a fortaleza cuja construção seria tão segura que jamais alguém pensaria ser possível matar o rei.

Os remadores descansaram os remos à espera que os escudeiros de Karl Sverkersson, armados de bestas e arcos e flechas viessem correndo para a praia. Atiraram sim, mas sem resultado, enquanto o rei Knut, como sinal de vitória, mostrava a relíquia divina acima de sua cabeça.

Depois, fizeram rota para Forsvik, situado contra o vento. Ninguém ,« na Götaland Ocidental poderia remar contra o vento como os amigos noruegueses de Knut.

Na semana seguinte ao Dia de Filipe e Jacó, no início de maio, quando todo o gado saía para os prados e a vista dos cercados do burgo comprovava os consertos realizados, a primavera tardia transformou-se em verão. Os ventos mornos do sul mantiveram-se constantes por muito tempo, todas as verduras tenras surgiram e cresceram ao mesmo tempo, e havia um tapete branco de anêmonas entre os carvalhos nas encostas de Kinnekulle. Também se ouviu pela primeira vez a coruja na região.

Desta vez, Arn chegou a cavalo, sozinho, avançando devagar na direção de Husaby. Era como se ele quisesse prolongar a tortura agradável da espera, agora que ele sabia que Cecília seria sua. Tinha também muita coisa em que pensar, visto que nos últimos tempos só havia cumprido missões a serviço de Knut Eriksson. Muita coisa havia acontecido, e ele não estava certo de ter entendido bem todas as intenções de Knut.

Ao voltar a Forsvik, depois da sua feliz viagem a Visingsõ, eles conseguiram velejar até o porto, tal a diferença na espessura do gelo em apenas um dia. Knut mandou logo um mensageiro para Arnäs, e Magnus Folkesson o mandaria em seguida para Joar Jedvardsson, em Eriksberg. Em primeiro lugar e antes dos demais, os amigos tinham de saber do ocorrido, visto que em breve os exércitos estariam se reunindo.

Arn se preparou para cavalgar com o rolo da mensagem e garantiu que chegaria mais rápido, mas Knutdisse então que havia coisas mais importantes em que Arn poderia ajudar o seu rei e que, para Cecília, ele poderia partir logo que se tivesse feito o que deveria ser feito.

Antes de mais nada, Knut, junto com Arn, tinham que atravessar o lago Vättern de novo com cavalos e escudeiros, até Bjälbo, e lá informar Birger Brosa sobre o que havia acontecido. Não havia sequer um dia a perder. Porque a falta de informações adequadas seria o mesmo que a morte, isto porque todos os amigos deviam ter tempo para se reunir antes que o inimigo atacasse. Além disso, seria conveniente que Birger Brosa ficasse sabendo do que acontecera por um deles que, não só, mas ainda por cima, fosse um dos que tivessem estado juntos, no momento em que o safado da ilha de Visingsõ foi despachado para a última viagem. O mesmo devia acontecer com o segundo homem mais importante a encontrar, o arcebispo Stephan, em Aros Oriental. Knut tinha de conquistar tanto Birger Brosa quanto o arcebispo Stephan para a sua causa, e esses dois homens se davam bem com Arn. Arn nada podia dizer contra essa argumentação.

Ao chegar a cavalo a Bjälbo, Birger Brosa os recebeu primeiramente como se fossem um grupo de jovens de visita a amigos, e adiantou, se desculpando, que no dia seguinte teria que deixá-los, pois tinha que estar presente a uma cerimônia em Linkõping. Mas quando, ao serem deixados a sós, a pedido de Knut, Birger Brosa ficou sabendo do que tinha ocorrido, decidiu não mais viajar. Ninguém de Bjälbo poderia mais botar o pé em Linkõping, que havia sido a cidade de Karl Sverkersson e que agora, certamente, seria a cidade de Boleslav ou Kol.

Birger Brosa ficou sentado em silêncio, pensando, sem que seu rosto demonstrasse em que direção seus pensamentos seguiam. De repente, levantou-se e disse que havia apenas uma escolha. Agora, todos os folkeanos estavam por trás de Knut Eriksson na sua luta para tomar de volta a coroa que havia sido de seu pai. Era a única saída. Todos os folkeanos deviam estar unidos contra os sverkerianos e seus seguidores dinamarqueses. Todos deviam mostrar sua força e nenhuma hesitação. Assim como também deviam utilizar a vantagem em tempo e conhecimento do caso da maneira mais inteligente possível.

Pelas condições do gelo no dia anterior, em que Karl Sverkersson encontrou seu fim no lago Vättern, ainda devia demorar alguns dias para que o conhecimento do caso se espalhasse a partir da ilha para o resto do país. Birger Brosa achou que era seu dever usar esse conhecimento na Götaland Oriental, mas propôs que Knut, do mesmo modo, devia agir rápido e se dirigir para Aros Oriental, conquistar o arcebispo Stephan para o seu lado e depois tentar reunir os sveas em uma assembléia junto das pedras de Mora, para decidir sobre a escolha do novo rei. Tudo isto tinha que acontecer rápido; portanto, não havia mais tempo para visitas ou descanso. E assim como Birger Brosa falou, assim se fez.

Também Knut Eriksson concordou imediatamente com o que Birger Brosa havia dito, já que ele sabia que Birger Brosa era o mais inteligente de todos em tudo o que dizia respeito à luta pelo poder. Mas quando todos se preparavam para a partida, Knut fez um pedido que pareceu muito estranho para Arn. Queria que do depósito de Bjälbo saíssem escudos folkeanos, mantos e bandeirolas azuis para colocar na ponta das lanças, e ainda um grupo de escudeiros. Birger Brosa imediatamente acenou concordando, mostrando que tinha entendido exatamente a intenção de Knut Eriksson no pedido que pareceu a Arn, simultaneamente, ser pequeno demais para se perder tempo com ele e grande demais para a ocasião. Mas Arn, nos últimos tempos, tinha compreendido que homens como Knut e Birger, muitas vezes, pensavam em outros caminhos que não os seus e nos quais ele era um viajante muito pouco experimentado.

Em Aros Oriental, o arcebispo Stephan, primeiro, recusou-se a receber Knut Eriksson, quando este, na companhia de Arn, solicitou uma audiência ao entrar nos domínios do arcebispado. Segundo rumores, o arcebispo tinha ficado muito irritado e disse qualquer coisa a respeito de esse homem vir apenas para fazer intrigas.

Todavia, quando o arcebispo Stephan soube que Knut tinha chegado na companhia de Arn Magnusson, mudou de opinião, e se dispôs a receber os dois de imediato. Assim que entraram no escritório sombrio do arcebispo, Arn logo se ajoelhou e beijou-lhe a mão enquanto Knut hesitou em fazer o mesmo. Para irritação de Knut, a conversa seguinte foi feita na linguagem da Igreja, de modo que ele se tornou o menos importante dos três, e muitas vezes caiu novamente em irritação contra Arn por palavras que não eram dele, mas sim do arcebispo.

Aquilo que o arcebispo Stephan tinha a dizer para Knut Eriksson era, no entanto, bem claro e fácil de entender, embora fosse pouco agradável. A Igreja não podia nem queria assumir uma posição nessa luta que agora estava se aproximando. Como arcebispo, Stephan cuidava do reino de Deus e não dos desejos terrenos dos pretendentes ao trono e das suas lutas intestinas. Por isso, não ia assumir qualquer posição, nem a favor de Knut, nem a favor dos irmãos de Karl Sverkersson, nem ainda de qualquer outro pretendente que no tempo viesse a surgir do sul. Os poderes terrenos eram uns, o de Deus, outro.

Knut Eriksson se conteve ao entender que nada mais tinha a ganhar nessa questão, mas pediu então que os dois, ele e Arn, recebessem a comunhão sagrada do próprio arcebispo na missa do dia seguinte. Arn achou que não havia nada de mau no pedido e deve ter influenciado o arcebispo na hora de lhe apresentar a proposta de Knut. Mesmo que o arcebispo Stephan tivesse intuído que as intenções de Knut não eram apenas as de receber a comunhão, ele teve de aceitar a proposta. Talvez tivesse entendido também que essa atitude seria uma maneira boa e amistosa de se afastar desse encontro com um homem que podia ser o próximo soberano do reino. Mesmo que a Igreja não pudesse se meter na luta pelo poder também era verdade que a Igreja teria de estar sempre de bem com o poder do reino.

Logo que, respeitosamente, eles se despediram do arcebispo, Knut demonstrou estar cheio de energia e de boa disposição, dizendo que ainda podiam ganhar muito com a visita. E ao chegar de volta, para junto dos seus homens, ainda vestidos como no início da viagem, sem as cores azuis, ele disse para eles se dispersarem pela cidade e darem origem a certos rumores.

Para a missa, no dia seguinte, Knut e Arn chegaram a cavalo, à frente dos escudeiros que agora vestiam os mantos azuis e exibiam as cores azuis também na ponta das lanças. Knut e Arn, além dos seus mantos azuis, traziam as suas armas e escudos que exibiam o leão folkeano e as três coroas.

Os rumores espalhados tinham atraído tanta gente para a missa que a maioria nem conseguiu lugar dentro da igreja e teve de esperar fora. Diante da escada que conduzia à igreja, Knut e Arn desceram dos seus cavalos, enquanto seus escudeiros paravam e seguravam os animais.

Knut e Arn caminharam, então, para dentro da igreja e todos abriam, respeitosamente, espaço para eles. Na sala de armas, Knut retirou, como devia, a sua espada da cintura e deixou-a no lugar. Mas, ao o subir para a entrada da igreja, se surpreendeu ao ver que Arn não tinha retirado a sua e logo achou que devia avisá-lo. Mas Arn apenas sorriu para ele, numa atitude meio indecifrável e abanou a cabeça. E aquilo que aconteceu depois, em frente do arcebispo para receber a comunhão surpreendeu ainda mais Knut Eriksson, visto que lá bem na frente Arn desembainhou a sua espada, de tal maneira que se ouviu um murmúrio de medo em toda a assembléia. No momento seguinte, porém, Arn estendeu a espada para o arcebispo que a recebeu respeitosamente e a beijou e a benzeu com água benta, antes de a devolver para Arn, que fez uma vênia e voltou a colocá-la na bainha, caindo de joelhos e segredando para Knut fazer o mesmo, imediatamente.

Todas as outras pessoas tinham se afastado para que Knut e Arn ficassem a sós de joelhos e recebessem a comunhão diante do próprio arcebispo. Depois, eles não ficaram no lugar para o resto da missa, antes saíram lentamente, lado a lado, da igreja, logo que receberam o sagrado sacramento de Deus.

Quando chegaram à escada da igreja, já lavrava um grande alarido entre as gentes do lado de fora, visto que o rumor tinha chegado de que o arcebispo tinha abençoado a espada, embora ninguém soubesse de que espada se tratava.

Entretanto, Knut já empunhava a sua espada e falava em voz bem alta que aquela espada tinham sido abençoada por Deus e que com ela ele tinha acabado com a vida do usurpador que havia assassinado o rei Erik, justamente, nesse lugar. Depois disso, ele tirou a corrente de ouro do pescoço e exibiu-a ao sol de modo que a cruz refletisse a sua luz, e disse que aquela era a relíquia roubada que ele tinha retirado do pescoço do assassino Karl Sverkersson. Disse ainda que ele, Knut, tinha grande respeito pelos sveas, tão grande quanto o seu pai, Erik, tivera. E que convocava uma assembléia para dali a cinco dias e que quem pudesse devia partir a cavalo para todos os homens de leis e chefes na Svealand e informar a respeito da assembléia.

Ao terminar sua fala, levantou-se novamente um grande alarido que, primeiro, veio mais dos seus próprios escudeiros do que dos outros, mas logo em seguida de todos os presentes ali reunidos. Ninguém podia acreditar em outra coisa, porém, senão em que o arcebispo havia tomado posição em relação à questão de quem devia ser escolhido como rei sobre a Svealand. E esse foi também o rumor que a partir dali se espalhou com todos os ventos.

Mais tarde, no mesmo dia, quando Knut já tinha voltado para o acampamento e mandado buscar água da fonte de Santo Erik para que ele próprio abençoasse todos que com essa intenção viessem até ele, Arn foi liberado de seus compromissos para com o rei.

Knut chamou-o de lado e disse que os próximos dias seriam muito tediosos, na espera e nas conversas com um visitante após o outro. Para isso, talvez Arn, achava Knut, não tivesse a paciência necessária. Não seria muito mais agradável partir por esses caminhos, cavalgando para os braços de Cecília? Isto porque jamais Knut iria ser tão duro para com seus homens a ponto de não entender que era melhor não ficar no caminho e se interpor a tanta felicidade.

Então, Arn abraçou o mais querido de seus amigos e ambos se despediram em seguida. Arn saiu cavalgando por causa dos seus sonhos e Knut ficou, por causa dos seus poderes.

Levou uma semana para Arn atingir as encostas de Husaby e, no entanto, estava viajando mais rápido do que qualquer outro homem na Escandinávia. Tinha tido tempo, ainda, para passar por Arnäs para contar tudo que ocorrera e para tomar banho e mudar de roupa.

E agora, finalmente, estava com Husaby à vista e cavalgava tão lentamente e com as rédeas tão curtas que Chimal estava impaciente, como que dançando de um lado para o outro em vez de avançar. Entretanto, quanto mais ele se aproximava de Husaby, menos se preocupava com o que de estranho ele tinha visto na luta pelo poder.

Algot Pälsson tinha sido chamado a Arnäs para combinar o presente de casamento e chegou-se à conclusão de que era suficiente que a conversa se realizasse entre Eskil e Magnus, de um lado, e Algot, do outro, sem que Arn precisasse estar presente.

Esta proposta, para Arn, era boa demais. Primeiramente, porque ele não se importava nem um pouco a respeito de ele e Cecília serem um bom negócio, ou um mau negócio, para qualquer um dos seus pais. Em segundo lugar, porque ele queria mesmo era encontrar-se com Cecília com tudo o que de bom queria dizer para ela, sem que fossem observados pelo pai dela ou pelos seus desconfiados escudeiros.

Era como se tudo fosse bom demais para ser verdade. Em breve, ele estaria com ela. Em breve, ele estaria abraçando a sua amada e lhe dizendo que a festa de noivado poderia ser realizada já no dia de Eskil, a 12 de maio, em Husaby.

Magnus e Eskil tinham combinado o seguinte, evidentemente sem primeiro falar com Algot, que a festa de noivado seria em Husaby e a de casamento em Amas. Cecília receberia Forsvik como dote de casamento. O que seria o dote dela era coisa que o irmão Eskil e o pai Magnus iriam tentar pressionar Algot para dar. Acreditavam que seria difícil para Algot dizer não à proposta deles.

Mas isso não era sofrimento nenhum para a consciência de Arn. Mais algumas florestas ou praias, o que era isso comparado com o maior de todos os dons que Deus tinha dado ao homem?

E embora Algot não ligasse muito para os sentimentos da sua filha, assim como o pai, Magnus, não quisesse levar a sério seu segundo filho nessa questão, a verdade é que Algot, através desse casamento, conseguia a segurança, sua e de sua família, em termos de vida e de propriedades. Até aí, Arn conseguia entender tudo, agora, tal como entendia tudo o que se relacionava com a luta pelo poder.

O que um pouco antes, da última vez que tinha se encontrado com Cecília, parecia difícil e sem saída, tinha agora se transformado em irradiante luminosidade. Tal como Gunvor e Gunnar, jamais poderiam deixar de agradecer à Virgem Maria pelo seu mais uma vez demonstrado poder e sabedoria, de que o amor é força maior.

Quando Arn se aproximava do burgo real de Husaby, foi reconhecido por escravos que trabalhavam na colheita de feno. Alguns correram logo para o burgo para anunciar a sua chegada. Por isso, houve grande correria e preocupação, e quando Arn chegou bem mais próximo todas as escravas e escravos da casa, escudeiros e outras gentes que viviam no burgo estavam na entrada, em fila dupla, que levava até a entrada da casa grande. E enquanto Arn passava entre as duas filas, escravas e escravos irrompiam em gritos de aplauso, os escudeiros bramiam suas armas umas contra as outras e fazia-se barulho com quaisquer outros instrumentos que os escravos tivessem nas mãos.

Cecília veio até a ponte em frente da casa grande e avançou alguns passos como quem pensasse correr ao encontro de Arn, antes de pensar melhor e conseguir se conter, juntando as mãos e esperando, as costas em posição reta. Sua avó, Ulrika, veio logo em seguida e chegou à ponte com o semblante de quem estava pronta para repreendê-la, mas, quando viu Arn entre os escravos e os escudeiros, também se conteve e se colocou na posição de espera como sua neta.

No interior de Arn, desenrolava-se uma grande luta, enquanto ele descia do cavalo, que logo um escravo se apresentou para segurar as rédeas. Seu rosto esquentava e ele sentiu que corava, seu coração batia descompassada e violentamente, de tal maneira que pensou até estar prestes a perder os sentidos e precisou recorrer a toda a sua força de vontade para se dirigir a Cecília conforme a etiqueta e com todo o respeito, diante de todos aqueles olhos, enquanto ela esperava controladamente que ele chegasse, com o olhar baixo, segundo a tradição para o momento.

Foi, então, que ela levantou os olhos e os dois se olharam, olhos nos olhos, por alguns momentos. Depois, quebraram-se todos os controles de cortesia, todas as etiquetas, e os dois correram ao encontro um do outro e ao entrarem em contato, o fizeram de maneira que, de forma alguma, estava prevista para quem ainda não tinha passado pela festa de noivado. Mas também ninguém se conteve. Os escravos voltaram a gritar e a bater com todos os instrumentos à mão. E o barulho era tão grande que ninguém conseguia sequer se ouvir ao falar. E isso ocorreu por um bom momento.

Os escravos de Husaby sabiam já tudo o que estava acontecendo e o que estava por vir e muitos deles esperavam seguir com Cecília depois do casamento. Era já do conhecimento deles todos, entre os escravos, que aqueles que fossem com Cecília e o jovem senhor Arn teriam um tratamento melhor do que em qualquer outro lugar. O que se contava de Arn entre os escravos eram apenas as coisas boas, nada sobre espadas e arcos e flechas que, esses sim, eram os assuntos das conversas entre os homens livres, principalmente na hora de beber sua cerveja. Dizia-se que o jovem senhor Arn tratava os escravos como homens.

Cecília e Arn não queriam mais se separar, mas foram obrigados a isso, quando a vovó Ulrika tossiu pela terceira vez. E, então, as duas mulheres e Arn entraram na casa grande para que Arn ingerisse sua bebida de boas-vindas e quebrasse um pedaço de pão. Uma vez lá dentro da casa grande, a vovó Ulrika cortou a palavra dos jovens e começou a perguntar a respeito dos dotes e onde o noivado teria lugar. Arn teve que se esforçar para responder claramente a tudo, como se isso realmente lhe interessasse muito e teve de descrever a situação de Forsvik, a quantidade de fazendas e o tamanho das principais construções, a quantidade de escravos no burgo e outras coisas de que ele não possuía informações seguras. Só então, Ulrika começou a perguntar acerca de coisas que para Arn eram consideradas as mais importantes: como os folkeanos na Götaland Oriental tinham se comportado e se os sveas ainda estavam em assembléia. Arn pôde assegurar, tranqüilamente, que os folkeanos nas duas Götalands, Ocidental e Oriental, estavam unidos com a família eri-kiana, achando que a essa hora, certamente, Knut Eriksson já teria sido escolhido como rei na assembléia dos sveas, visto que tinha ouvido da parte de todos e de cada um quando cavalgava de Aros Oriental através da Svealand que não havia nenhuma dúvida a respeito do caso. O rei Erik Jedvardsson tinha sido um soberano muito querido na Svealand e, pelo que ele pôde entender, Karl Sverkersson nem de longe era considerado da mesma maneira. Em relação aos irmãos Kol e Bodeslav, praticamente ninguém os conhecia entre os sveas e muito menos se preocupava com eles. Era de acreditar, portanto, que a essa hora Knut Eriksson já fosse rei dos sveas e que ele viria para uma asrembléia na Götaland Ocidental no verão, para ser eleito soberano também aqui.

Diante dessas notícias favoráveis, a senhora Ulrika considerou-se satisfeita e achou também que ela tinha feito sofrer os dois jovens, obrigando Arn a falar de assuntos que, certamente, eram mais importantes do que seus delírios e sentimentos calorosos, assuntos estes que, igualmente, no momento, deviam merecer deles o maior interesse. Ela os surpreendeu, dizendo com convicção que o tempo estava ótimo e que não havia nenhum perigo em dar uma volta a cavalo na direção de Kinne-kulle. Depois dessas palavras, Cecília levantou-se e foi abraçar a sua avó Ulrika que, normalmente, sempre se mostrava sombria e severa.

Logo em seguida, Cecília recebeu uma égua mansa, já devidamente selada e com todos os arreios. E ela própria se apresentou logo vestida com um manto verde, bem rodado e quente, que a cobria desde o pescoço até os tornozelos. Suspendeu, então, a saia rodada do manto no seu braço e pulou rápido para se sentar na sela, antes que Arn ou qualquer dos escravos tivesse tempo de esboçar ajuda. E enquanto Arn recebia uma sacola de pele com pão e carne de porco e copos de madeira, trazidos por uma escrava da casa, bem prestativa e atenciosa, caso a viagem se alongasse, como ela falou, sem esconder um riso maroto, Cecília deu um comando à sua égua que partiu a galope. Lá na frente, ela virou-se para trás e gritou para Arn, para ele tentar alcançá-la, se fosse capaz. Aí, Arn girou a cabeça para trás e riu com sonoras gargalhadas, feliz toda a vida, acarinhou Chimal amorosamente no pescoço, e fez brincadeira, dizendo que os dois, agora, tinham pela frente uma caçada que não podia terminar malsucedida. Depois, jogou o corpo para cima da sela com um único salto, o que fez com que à volta se escutasse um murmúrio de admiração, e partiu em seguida. Mas, de início, ele fez com que Chimal saísse num galope moderado, para que não alcançasse rápido demais os agitados manto verde e cabelo ruivo que estavam lá na frente, mas ainda assim apenas a algumas aceleradas de distância.

Quando já estavam longe da vista de Husaby, Arn resolveu colocar Chimal a galope de verdade, na velocidade máxima. Como se fosse o próprio vento, ele alcançou e passou por Cecília, mas logo voltou para trás, em grande velocidade, na direção dela. Desviou-se no último momento e galopou em círculos à volta dela, saboreando o seu riso aberto e luminoso que o fazia ousado e, em breve, quase convencido. Acabou ficando em pé na sela, balançando com os braços no ar e cavalgando novamente por ela, a galope, de tal maneira que Cecília, verdadeiramente espantada diante de tantas artes, teve que parar sua égua, enquanto ele, rindo ainda, virou-se na direção de Cecília, os braços pendentes, ao lado, e os olhos nela, de tal maneira que não viu o ramo de carvalho que estava entre eles e o derrubou como uma luva jogada ao chão.

Pareceu uma queda horrível e ele ficou estendido no chão, sem se mexer. Fora de si, toda preocupada, Cecília susteve a égua, desceu e se jogou para Arn em desespero, acariciando o seu rosto sem vida. Foi, então, que ele abriu um dos olhos, depois o outro, e a pegou nos braços, rindo à beca, e rolando no chão com ela, sobre as madressilvas, enquanto ela fazia de conta que estava zangada por ele a ter deixado com tanto medo.

De uma vez, os dois ficaram em silêncio, se sentaram e se abraçaram forte e longamente, sem dizer nada, como se as palavras não existissem e houvesse apenas o cantar dos pássaros.

Ficaram sentados até que começaram a sentir dor no corpo, em função da posição torcida. Foi ela, primeiro, que se separou dele e se deitou ao lado na grama. Ele, depois, ficou ao seu lado, bem junto, acariciando seu rosto, lutando corajosamente contra a sua timidez. Beijou-a, então, primeiro, na testa, depois nas faces, por fim, nos lábios. Logo ela correspondeu aos seus beijos e, momentos depois, os dois tinham perdido sua primeira timidez, levada para longe pelos ventos do verão.

Acabaram chegando tarde ao burgo real de Husaby.

 

A NATUREZA BOA DE CECÍLIA e jogou os dois na mais profunda infelicidade. Alguém poderia obstar que Deus, Nosso Senhor, é quem, afinal, decide tudo o que de bem ou de mal acontece, e que a felicidade ou a infelicidade dos seres humanos os atinge sem escolher, no momento em que as parteiras, de repente, cortam o cordão umbilical de alguém.

Este ponto de vista em relação aos ensinamentos de Cristo não era incomum na Götaland Ocidental, mas para os cistercienses ou para Arn essa fé era apenas um resto do antigo paganismo e quase uma profanação, visto que, dessa maneira, não significava nada a pessoa ser boa ou má, pecar ou fazer boas ações, errar ou acertar, assim como amar a Deus. Através da sua vontade livre, junto com o amor a Deus, todos os homens e todas as mulheres conduziam a sua própria vida. Tal como Arn assim amargamente explicava, a infelicidade deles tinha origem, mais do que em qualquer outra coisa, justamente na natureza boa de Cecília. Era preciso apenas compará-la por um momento com a sua irmã Katarina para, imediatamente, ver isso. Mais ainda, foi entre as duas irmãs que tudo se decidiu desde o primeiro momento.

Para Katarina, a felicidade de Cecília representava a sua própria infelicidade. Quando Cecília não mais voltasse para Gudhem, para novos estudos e novos progressos, quer nas coisas do espírito, quer nas coisas materiais, isso significava, segundo Katarina, que ela ficaria para sempre fechada como uma ratazana dentro dos odiados muros do mosteiro. Mais forte ainda ficou esse sentimento quando ela soube qual foi o dote que seu pai, Algot, teve de pagar para poder casar uma das suas filhas com um folkeano. Pensar que, depois disso, Algot iria deixar que Katarina se casasse não seria de acreditar, e ela receava, portanto, que ficaria presa no mosteiro para sempre e iria secar como uma velha solteirona entre outras solteironas.

Cecília e Arn, por enquanto, ainda só tinham festejado o seu noivado e tudo dependia não deles, mas da luta pelo poder. Tinha ficado mais difícil para Knut Eriksson conseguir que os sveas o escolhessem para rei nas pedras de Mora do que se esperava. E quando, enfim, a questão se definiu, ele demorou ainda mais para concretizar suas intenções de vir para a assembléia a reunir na Götaland Ocidental, isto porque Boleslav enviou um exército atrás dele e ele teve de convencer os sveas que a primeira coisa que estes tinham que fazer pelo seu novo rei era se reunir e formar um exército para defendê-lo.

Entretanto, Boleslav não pôde reunir um exército tão grande, já que achava que o tempo corria contra ele, se demorasse muito. Com componentes da sua própria família e com os dinamarqueses, ele se dirigiu contra Bjälbo e foi logo derrotado por Knut Eriksson e os seus sveas, por Birger Brosa e os folkeanos da Götaland Oriental. Com isso, estava tudo bem por enquanto, mas tudo demorou o seu tempo e o verão já estava para mais da metade.

Magnus Folkesson, de Arnäs, entretanto, tinha decidido, teimoso como um touro, que haveria um rei na mesa durante a festa de casamento de Cecília e Arn e, por isso, quis esperar que Knut passasse pela assembléia na Götaland Ocidental onde não teria qualquer dificuldade em se eleger.

Em conseqüência disso, Arn e Cecília já poderiam ser marido e mulher diante de Deus ao viajar para Gudhem, quando, na realidade, eram apenas noivos. No entanto, em breve já se poderia ver que Cecília estava com uma criança de Arn abaixo do seu coração.

Preocupado, Arn consultou o seu irmão Eskil a respeito do caso, visto que ele era muito conhecedor das leis mundanas do país, mas Eskil logo soltou uma gargalhada e disse que a lei previa nesse caso que Arn, se o pai de Cecília, realmente, quisesse fazer um escândalo e levasse a questão para a assembléia, para se fazer justiça, teria de pagar seis marcos de prata como indenização. Eskil achava, por isso, que Algot Pälsson difícilmente iria discutir por pequenos valores. E acontecer pior do que isso não seria possível.

Cecília queria encontrar-se com Katarina, por questão de amor fraternal e, se possível, para lhe dar um pouco de consolo. Para ela, não era difícil imaginar os sofrimentos de Katarina dentro dos muros do mosteiro, pois conhecia bem a sua irmã.

Mas não conhecia, como em seguida se veria. Se conhecesse, nunca teria posto os pés em Gudhem paraa consolar.

Quando as duas se encontraram nos jardins do mosteiro de Gudhem, Cecília fez todo o possível para não ficar falando o tempo todo da sua própria felicidade e, em vez disso, tentou esforçadamente consolar Katarina. Assim que o casamento se realizasse, ela iria falar com o pai e a sua palavra teria, então, mais peso, uma vez que ela estaria incorporada na família folkeana. Alguma coisa iria ser possível fazer para chamar à razão o pai, Algot, talvez uma coisa muito simples, a de apelar para a sua avareza. Sem dúvida, custava uma boa quantidade de prata e, por sua vez, uma boa quantidade de floresta de carvalhos, para manter filhas enclausuradas em mosteiros. Seria dinheiro jogado fora, ainda mais porque se tratava de uma filha que não apreciava nem um pouco esse tipo de amor paternal. Diante dessa verdade, as duas sorriram afetadamente.

De novo, Cecília foi levada a falar da sua felicidade, de como de início iriam viver em Arnas durante o tempo em que seria impossível viajar por causa da neve, de como depois iriam mudar para Forsvik, no Vättern, de como iriam viajar com Eskil para encontrar os parentes noruegueses e de outras coisas mais a respeito de tudo o que Katarina considerava como a vida feliz e livre fora dos muros do mosteiro. Cecília estava tão feliz, tão encantada com a sua própria felicidade, que não via como os olhos de Katarina ficavam pequenos de ódio e de inveja. Quando Katarina, furtivamente, lhe perguntou se ela tinha comparecido a muitos banquetes nos últimos tempos e se era isso que tinha feito a sua cintura ficar mais larga, Cecília não conseguiu esconder a sua alegria e contou para ela o segredo do que seria, certamente, um pequeno pecado, avaliado pelo preço de seis marcos de prata e por alguns Pater Noster e ave-marias, talvez um pouco de tempo com a camisa de cilício e uma semana a pão e água ou o que mais poderia ser como penitência. O certo era que ela já estava grávida. E quando entrou por esse caminho na conversa, ela não mais podia se conter, já que tanto receava quanto ansiava o momento de dar à luz e ser feliz.

Katarina já nem sequer escutava mais aquilo que considerava conversa fiada, infantil, da sua irmã mais nova. Já estava pensando como aquele evento poderia constituir a sua própria salvação.

Finalmente, ao chegar a hora da separação, Katarina abraçou carinhosamente a sua irmã e pediu a ela para se cuidar e ser muito cuidadosa também com a esperada criança e que transmitisse para Arn os seus mais calorosos votos de felicidades.

Mas assim que o portão do mosteiro se fechou atrás de Cecília, que, para raiva de Katarina, pareceu ter dado um suspiro de alívio ao sair, esta se apressou a procurar a priora, friamente decidida a mudar tudo, quanto mais depressa melhor.

Gudhem era um convento recentemente construído e montado com donativos do rei Karl Sverkersson que também doou o terreno para a construção do convento Vreta, para freiras, na Götaland Oriental. O que a família erikiana achava de um convento que tinha Karl Sverkersson como benemérito, na verdade, ninguém sabia ao certo. Mas a priora de Gudhem, a madre Rikissa, que pertencia à família sverkeriana e era parente próxima do assassinado, rei Karl, já tinha demonstrado a sua profunda preocupação. Gudhem talvez tivesse que mudar ou suspender as suas atividades. Se Knut Eriksson fosse aclamado rei, como todos acreditavam, não iria valer muito a pena pertencer à família sverkeriana na Götaland Ocidental, nem ficar dentro de um convento com origens sver-kerianas. Era do conhecimento de todos como Erik Jedvardsson, no seu tempo, tinha estendido suas mãos sôfregas sobre Varnhem.

A madre Rikissa era uma mulher muito dura, sempre mal-humorada, alguns a chamavam de “madre irritada” e, de tempos em tempos, não era fácil nos contatos com as jovens noviças. Mas, como parente chegada do próprio soberano, ela detinha um bom conhecimento no que dizia respeito aos poderes terrenos.

Quando Katarina veio se confessar e, inesperadamente, disse ter cometido um antigo pecado que ocultou nas suas confissões anteriores, o de ter tido relações carnais com o jovem Arn Magnusson, ela devia ter sido muito severa contra Katarina por haver guardado esse segredo por longo tempo. Mas como Katarina explicou, com um olhar submisso, cabeça baixa, fazendo menção de enxugar uma lágrima, seu pecado tinha se tornado ainda pior, já que esse tal de Arn não apenas a tinha seduzido, prometendo casar com ela, como também seduziu sua, irmã, Cecília, que agora estava grávida.

A madre Rikissa viu imediatamente a grande oportunidade que se abria. Katarina, certamente, também havia visto o mesmo, já que logo salientou que o sedutor era muito amigo de Knut Eriksson e que, certamente, muita coisa portanto iria mudar para o inimigo, se Arn Magnusson fosse excomungado.

Madre Rikissa pensou, ao ouvir essas palavras, que Katarina e ela própria eram farinha do mesmo saco, pelo menos ao imaginar a mesma coisa nesta grande questão. Por isso, contentou-se em lhe aplicar uma penitência muito suave pelas falhas em suas confissões e pela tardia confissão final, mandando-a embora para uma semana de recolhimento na solidão, no silêncio, a pão e água, mais a lista habitual de orações. Katarina se humilhou e beijou a mão de madre Rikissa, reconhecida, agradecendo depois em voz alta para a Virgem Maria pela brandura com que fora tratada e saiu com um pequeno sorriso de satisfação que o olho rápido da madre Rikissa não deixou de perceber.

Mas, em seguida, a madre Rikissa disparou, andando com passos decididos, batendo os calcanhares no chão, com aquele som que as noviças de Gudhem tanto receavam, em direção ao scriptorium para resolver aquilo que precisava ser resolvido o mais depressa possível.

Escreveu para Boleslav, dizendo para ele se dirigir ao arcebispo de Aros Oriental, contando o descrito, e escreveu para o bispo Bengt, em Skara, para que o mais breve possível processasse a excomunhão antes que o crime fosse, pior ainda, abençoado por algum dos servidores do Senhor na corporação através da oficialização do casamento entre os dois pecadores. Ela tinha esperança de conseguir o bispo Bengt para o seu lado, por saber que ele partilhava de suas preocupações, achando que o tempo das liberalidades para com a Igreja e seus melhores servidores estava para terminar. E também porque o bispo Bengt devia favores à família sverkeriana.

Katarina e a madre Rikissa, em breve, receberam aquilo que desejavam, ainda que seus desejos tivessem motivos diferentes. Duas semanas mais tarde, o bispo Bengt, durante uma missa na catedral de Skara, anunciou que Cecília Algotsdotter e Arn Magnusson estavam excomungados. Nenhum servidor da Igreja em toda a Götaland Ocidental poderia dali em diante se ocupar de assuntos relacionados com qualquer dos dois, no que se referia à comunidade cristã. O único santuário à sua disposição eram os mosteiros.

Pela segunda vez, Arn e Cecília viajaram juntos para o mosteiro de Gudhem, mas, desta vez, era uma viagem lamentável. Magnus mandou que uma guarda de escudeiros os acompanhasse e que todos os escudeiros portassem as cores e as bandeirolas da casa folkeana, como foram especificamente instruídos para fazer. Magnus não queria que seu filho cavalgasse com vergonha e despercebidamente para a penitência e o exílio.

Eles não tinham muito a dizer um para o outro, já que tudo havia sido dito entre eles muitas vezes. Cecília tinha tido dificuldades em perdoar Arn por muito que este explicasse ter estado completamente bêbe-do de cerveja quando Katarina viera até ele. Nem conseguia saber o que estava acontecendo. Mas, sendo assim, ele podia muito bem tê-la avisado, para que ela, na sua ignorância, não fosse arrastada para um pecado que poderia ter sido evitado caso ele não houvesse escondido o fato. Contra isso, Arn tentou fracamente se defender, dizendo que, em parte, ele não achara fácil contar para quem ele amava mais do que ninguém no mundo que tinha pecado com a irmã dela e, em parte, porque não conhecia a lei que considerava isso como ato abominável. Neste último caso, Cecília acreditava nele, apesar de achar que justo ele, entre todos, não soubesse da lei cristã. Quando já tinham repetido esta discussão muitas vezes, começaram então a pensar no caminho a seguir. Tal como Arn entendia a situação, o caso podia demorar bastante antes de o pecado ser penitenciado e rebaixado em Roma, talvez um ano. Mas ela via o futuro muito mais negro do que isso.

Ao se separar dela diante dos muros de Gudhem, Arn jurou perante Deus que voltaria um dia para vir buscá-la. Ele jurou pela sua espada para a convencer ainda mais desse juramento, o que ela achou apenas ser uma infantilidade. Mas ele repetiu e insistiu para que ela acreditasse nele, que nunca vacilasse e deixasse de acreditar nisso. Enquanto respirasse, ele sempre iria pensar no momento em que os dois iriam se reunir novamente e pediu a ela para jamais fazer os três juramentos de praxe como noviça, visto que tais juramentos não podiam ser revertidos. Era melhor viver como noviça, embora as noviças, tal como os noviços, vivessem pior nos conventos do que aquelas e aqueles que fizessem os votos definitivos de praxe. Ela acenou afirmativamente com a cabeça, em silêncio, escapou dos seus braços e correu para o portão do convento, onde a madre Rikissa já a esperava, severa e cheia de desprezo. “No momento em que o portão de carvalho rodou nas suas ferragens e se fechou nas costas de Cecília, Arn sentiu uma tristeza tão grande que quase perdeu o fôlego. Caiu de joelhos e rezou, rezou por muito tempo. Em silêncio e com toda a paciência, os escudeiros esperavam, um pouco afastados, mas também afetados, cheios de pena de Arn, da família folkeana, e revoltados por toda a alegria que lhes fora roubada, a eles próprios e à família erikiana, a parentes e amigos. Sentiam ódio da família sverkeriana que, como todos sabiam, estava por trás de tudo o que acontecia.

Arn cavalgou apenas por algum tempo junto com os seus homens de Arnäs. Depois, fez uma parada e mudou de vestimentas, trocando as vestes de armas da família folkeana pela simples roupa cinzenta de linhagem, debruada de vermelho, que fora a primeira roupa mundana que ele vestira quando, menos de um ano atrás, havia saído do mosteiro de Varnhem. Na época, a idéia era a de que ele viesse aprender alguma coisa do chamado baixo mundo. Ele aprendeu muito nesse ano que passara, mas, nesse momento, achava que a maior parte do que havia aprendido era só maldade.

Arn decidiu contra a vontade de todos que viajaria sozinho para Varnhem, cavalgando pelas praias orientais do lago Hornborgasjõn e pelas florestas de Billingen. Todos o desaconselharam a fazer isso, visto que a época era de agitação e ninguém podia ter certeza do que o esperava na sombra das florestas. Arn respondeu, então, dizendo que não tinha a intenção de abandonar a sua espada e que Deus devia proteger aqueles salteadores ou quaisquer outros da ralé que se atrevessem a atacá-lo, no estado de espírito em que se encontrava. Em seguida, jogou-se para cima de Chimal e disparou sem mais palavras. Todos os escudeiros da sua comitiva sabiam que nenhum deles poderia seguir aquele garanhão do jeito que ele avançava. Por isso, nada podiam fazer, a não ser iniciar a triste volta para Arnäs sem a companhia daquele cuja vida eles juraram defender com a sua própria vida, caso necessário.

Arn cavalgou durante muito tempo por cima de galhos, folhas e formigas onde ninguém vivia e a marcha difícil fez com que ele se atrasasse e chegasse às encostas de Billingen quando já estava escurecendo. Sabia que bastava apenas continuar para o norte e encontraria logo as terras de Varnhem onde, eventualmente, ele reconheceria o caminho ou poderia perguntar a alguém. Mas era moroso e difícil cavalgar na montanha de noite; o céu estava fechado, cheio de nuvens, e não havia nem estrelas, nem lua, que pudessem iluminar o seu caminho. Continuou por mais algum tempo, enquanto podia ver para onde dirigia Chimal, mas logo teve de parar e se preparar para passar a noite. Iria sentir frio, visto que não tinha nenhum manto de pele de cordeiro e apenas uma manta fina, mas aceitou essa provação como um pequeno começo da expiação e da penitência que ele esperava ter de cumprir. Queria sofrer muito, desde que isso encurtasse o tempo de punição para que, com a ajuda de Deus, pudesse cumprir o seu sagrado juramento de ir buscar Cecília no convento de Gudhem.

No crepúsculo, encontrou uma pequena cabana em que brilhava a chama de uma pequena fogueira e, ao lado, existia um estábulo meio decadente onde uma vaca mugia, perturbada pela sua aproximação. Achava que ali viviam, certamente, escravos liberados ou fugidos, mas ele preferia dormir na cabana deles do que ao frio, na floresta, a céu aberto.

Sem nada recear, entrou na cabana para pedir abrigo para a noite. Já não tinha medo de nada que até pudesse ser pior do que já lhe tinha acontecido e estava com prata para pagar, o que pudesse ser considerado como honestidade cristã, em vez de se impor pela espada e conquistar a moradia de que precisava.

No entanto, ficou um pouco amedrontado diante da velhinha enrugada, sentada perto do fogo, remexendo numa panela. A sua voz era como um grasnado, ao lhe dar as boas-vindas, como seria de praxe, e em vez de com respeito, ela o saudou, antes, com desprezo e palavras que ele não entendia bem. Que aqueles como ele deviam ter medo da escuridão e aqueles como ela já estavam habituados com a escuridão.

Arn respondeu com palavras tranqüilizantes e explicou que apenas queria abrigo para a noite, que poderia machucar seu cavalo se continuasse a subir a montanha na escuridão, e acrescentou que estava disposto a pagar pelo serviço prestado. Como ela não replicou, ele saiu e tirou a sela de Chimal para o colocar no estábulo, ao lado da vaca muito magra e sozinha que lá estava. Ao voltar para a cabana, ele retirou a espada da cintura e jogou-a num catre, em sinal de que era ali que ele pensava que ia dormir. Jogou um pequeno pedaço de madeira no fogo e sentou-se para aquecer as mãos.

Desconfiada, a velhinha cerrou os olhos na direção de Arn por um longo momento, antes de, finalmente, perguntar se ele tinha direito a portar espada ou se ele portava espada de qualquer jeito. Arn respondeu, dizendo que a esse respeito havia várias interpretações, mas que ela não tinha nada a recear da sua espada. Para a tranqüilizar, puxou pela pequena bolsa de pele que Eskil lhe dera na despedida e pegou duas moedas de prata que colocou junto do fogo para que brilhassem. Ela pegou imediatamente as moedas e levou-as à boca para trincar e provar se eram verdadeiras. Arn achou isso incompreensível, por não entender como alguém podia duvidar da sua palavra ou das suas boas intenções. Entretanto, ela pareceu ficar satisfeita com o que os seus poucos dentes lhe disseram e perguntou, então, se ele, como todos os outros, tinha vindo para saber o que o futuro lhe reservava na vida. Arn respondeu que tudo o que esperava estava nas mãos de Deus e sobre isso ninguém mais podia profetizar.

Ao escutar isso, ela soltou uma gargalhada tão alto que deixou à mostra uma boca com apenas metade dos dentes, e com os caninos enegrecidos. Então, remexeu novamente a sua mistela em silêncio e perguntou se ele gostaria de um pouco de sopa. Arn disse que não e diria não, também, se se tratasse de um banquete real. Estava já disposto a viver a pão e água.

— No que você vai encontrar na vida, eu vejo três coisas, rapaz — disse ela, de repente, como se o que ela acreditava ver se impusesse, apesar do pouco interesse de Arn. — Vejo dois escudos, quer saber o que eu vejo? — continuou ela, fechando os olhos para ter uma imagem melhor dos seus pensamentos. A curiosidade de Arn já tinha sido acesa e isso talvez ela também tivesse visto por trás dos seus olhos fechados.

— Que escudos a senhora vê? — perguntou ele, certo de que agora ela iria dizer qualquer coisa sem sentido.

— Um escudo tem três coroas douradas contra o céu, e o outro, um leão — disse ela, num tom de voz cantante e com os olhos ainda cerrados.

Arn ficou mudo de espanto. Não podia entender como uma velha como ela, vivendo sozinha no meio de terras virgens, pudesse ter a mínima idéia de tais detalhes. E muito menos pudesse saber quem ele era ou pudesse adivinhar o que quer que fosse pelo seu vestuário. Ele se lembrava de uma história qualquer a que tinha dado pouca importância em que Knut falara de seu pai, Erik Jedvardsson, ter tido uma profecia a respeito dessas três coroas durante uma cruzada. Mas isso tinha acontecido longe dali, no outro lado do mar Báltico.

— E qual é a terceira coisa que a senhora vê? — perguntou ele, timidamente.

— Vejo uma cruz e escuto palavras na cruz. E as palavras que escuto são “com este sinal, vencerás” — continuou ela, na sua voz cantante, sem mudar a expressão do rosto ou abrir os olhos.

Arn achou primeiro que ela devia ser mais esperta do que ele pensava e devia ter lido a inscrição latina gravada na sua espada.

— A senhora quer dizer “in hoc signo vincefi — disse ele, testando-a. Mas ela apenas abanou a cabeça, como se aquelas palavras em latim não significassem nada para ela.

— Vê alguma mulher no que me espera no futuro? — perguntou ele, com um certo receio que transpareceu na sua voz.

— Você vai ter a sua mulher! — gritou ela, com voz aguda e abrindo os olhos, o seu olhar selvaticamente firme e fixo nele. — Mas nada vai acontecer como você espera, nada!

Ela riu para ele, meio rouca, quase grasnando, e era como se tivesse perdido o senso, não podendo ele esperar dela nenhuma palavra mais que fizesse sentido. Logo em seguida, Arn desistiu e se deitou no lugar onde tinha jogado a espada. Enrolou-se na sua manta e virou-se para a parede, fechando os olhos, mas adormecer não conseguia. Ficou virando e revirando na mente durante um tempo aquilo que a velha tinha dito e achando que seria tão verdadeiro quanto simples. Que ela pudesse ver a família folkeana e a família erikiana na sua pessoa era impressionante, isso ele tinha que reconhecer. Mas, de resto, não tinha dito nada que ele já não soubesse. Que ele ia receber Cecília de volta era um consolo, mas era também o que ele esperava acontecer. Mas que nada iria acontecer como ele previa, isso ia contra tudo. Finalmente, acabou adormecendo.

Quando acordou ao amanhecer, a velha tinha desaparecido, mas Chimal estava onde fora deixado, no pequeno estábulo, e relinchou para ele, dando as boas-vindas, como se nada tivesse acontecido.

Já passava do meio-dia quando ele entrou pelo portão do mosteiro de Varnhem e todos os aromas conhecidos dos jardins e da cozinha do irmão Rugiero o assaltaram de novo. Sua chegada era esperada, mas levantou uma certa expectativa. Dois irmãos vieram correndo para ele, um deles pegou Chimal e o levou. O outro acompanhou Arn em silêncio até o lavatório, apontando para as suas roupas. Como Arn não entendeu, o irmão disse direto que, como excomungado, ninguém podia falar com ele, sem que pelo menos se limpasse um pouco e depois de receber as vestes de noviço.

Arn se lavou durante bastante tempo e, com todo o cuidado, cortou o cabelo longo sob orações que acompanhavam o ritual. Na sua capa de noviço de que ele se lembrava bem, seguiu então para se encontrar com o padre Henri lá fora, no lugar favorito deste, no claustro. O padre Henri olhou para ele com muita severidade, mas também com algum amor. Aí suspirou profundamente e puxou por sua estola, fazendo sinal para Arn se preparar para a confissão. Arn se ajoelhou e rezou uma prece para São Bernardo, pedindo que lhe desse forças e sinceridade para confessar-se e dizer tudo o que não era tão fácil de admitir.

O rei Knut Eriksson chegou com a sua corte e Birger Brosa a Arnäs e eram muitos os homens que tinham que ter a paciência de esperar para serem acomodados. No entanto, todos eram esperados e chegou da vila mais próxima o aviso de que estavam famintos e muito cansados e que deviam ser muito bem recebidos.

Birger Brosa estava impaciente e queria uma reunião o mais rápido possível, antes da cerveja de boas-vindas e de ficarem sentados de barrigas distendidas e pensamentos entorpecidos, quando era necessário discutir assuntos da maior importância. Mesmo com a presença do rei Knut, tudo acabou acontecendo como Birger Brosa queria, e aqueles que tinham a ver com os assuntos em discussão reuniram-se na casa grande com apenas um pouco de cerveja no estômago.

Primeiro, fez-se uma prece pedindo a bênção do Senhor para a reunião e para que as discussões fossem proveitosas. Desnecessário e quase uma burrice dizer que a falta de Arn correu como uma labareda por toda a sala. Mas a questão de Arn era apenas uma das que tinham de ser discutidas e sobre as quais teria de haver concordância geral.

Birger Brosa foi o primeiro a usar da palavra no início da reunião quando todos se acomodaram. E ele insistiu que a primeira questão a resolver era a realização da assembléia na Götaland Ocidental, já que muita coisa dependia do fato de Knut receber, quanto mais rápido melhor, a sua segunda coroa. Ninguém foi contra.

Depois, todos se dedicaram um bom tempo à discussão sobre a melhor maneira de mandar as convocações e como a informação sobre a assembléia devia ser difundida. Como nada do que se dissesse sobre este assunto fosse algo de novo ou desconhecido de todos, esta questão também morreu rápido.

A questão seguinte, segundo Birger Brosa, devia ser a de ver como Knut devia agir da melhor maneira para quando, eleito soberano, interrompesse a vergonha que tinha atingido a família folkeana com a excomunhão de um dos seus membros. Neste caso, era o próprio Knut que devia falar.

Knut Eriksson começou garantindo que Arn, como todos sabiam, era o seu amigo mais querido, e que Arn lhe tinha prestado grandes serviços que deviam ser recompensados, além de que tudo o que os erikianos e os folkeanos pudessem fazer pelos outros vinha em primeiro lugar e antes de mais nada. Depois disto tudo dito e de muito mais, dentro do mesmo ponto de vista, ele, finalmente, entrou no assunto em questão.

Do modo como ele entendia a coisa, qualquer arcebispo podia, sem dificuldades, levantar a excomunhão dada pelo bispo Bengt, de Skara. No entanto, o problema era que o arcebispo tinha viajado e ninguém sabia para onde. De qualquer forma, não estava em Linkõping, o que seria mau se ele estivesse entre os afetos sverkerianos, mas ele também Si não estava na Svealand. Isso os afetos de Knut não deixariam de notar. Um arcebispo não se esconde assim tão facilmente.

O problema era que esses homens de Deus às vezes eram muito insensíveis. Por isso, mesmo que se conseguisse encontrar o arcebispo desaparecido, não seria fácil prever como ele se colocaria se o seu rei exigisse uma decisão a respeito de um assunto que a Igreja pretendia que fosse só seu a decidir. Os padres, a gente podia ameaçar, claro. Esse povo da Igreja era muito ganancioso e muito cioso de suas terras, querendo sempre receber novas doações, o que por vezes os tornava mais suscetíveis a acordos nas negociações. Seria impossível, no entanto, dizer mais qualquer coisa a respeito do caso, antes de se realizarem as duas assembléias. Knut entendia que, primeiro, ele tinha que ser eleito rei na Götaland Ocidental, tal como o seu querido parente e inteligente conselheiro, Birger Brosa, havia dito. Dali em diante, ele poderia negociar com o arcebispo com maior amparo. Além disso, era preciso que o prelado saísse do seu esconderijo, antes de se saber ao menos qualquer coisa a respeito de como ele se colocava diante da questão.

Magnus concordou com a exposição sobre o assunto, lamentou a situação, mas achou que não se podia ir muito mais longe. Portanto, queria prosseguir com o assunto seguinte que era mais importante. Com o andamento dos processos na Igreja e atendendo que o assunto teria que ser levado para decidir em Roma, tudo estava muito incerto para as gentes cristãs normais. A única coisa que se sabia era que ia levar muito tempo para resolver a questão. Era preciso, entretanto, pensar na criança que ia nascer de Cecília e Arn. Segundo as mulheres, Cecília devia dar à luz a criança mais ou menos em meados do inverno. Que essa velha ovelha ranhosa do convento de Gudhem iria querer que a criança fosse despachada o mais cedo possível, ninguém tinha dúvidas, por muito que considerasse isso uma atitude indevida. Que fazer, então?

Primeiro, Knut Eriksson declarou que tão logo fosse eleito rei na Götaland Ocidental, ele iria, não sem certo prazer, ter uma contenda com a velha sverkeriana de Gudhem. Certamente, ela iria entender que não estava mais num barco seguro, o que deveria torná-la menos dura nas negociações.

Birger Brosa discordou dessa idéia e achou que, primeiro, Knut devia pensar bem antes de chamar sobre si a irritação da Igreja, como seu pai havia feito. Seria melhor ir pelo outro caminho, com panos quentes em vez de ameaças. Segundo, nenhuma criança nascida em cama impura podia ser mantida no convento. Seria, no entanto, pedir demais e ninguém teria vantagem em deixar que houvesse rumores malignos como conseqüência dessa expulsão. Com isso, a questão era muito simples: quem deveria tomar conta do filho de Arn Magnusson? E, além disso, devia um filho bastardo tornar-se um filho legítimo quando de um casamento posterior?

Eskil disse ter resposta para essas duas perguntas. Não era uma boa idéia deixar que esse filho de Cecília e Arn fosse parar em casa de Algot Pälsson. Aliás, Eskil não sabia se seria um filho ou uma filha. E muito menos sabia como é que todos podiam estar tão certos de que seria um filho. De qualquer forma, dizia-se já que Algot havia murmurado que em vez de um genro iria ter em casa um bastardinho. Essas palavras não denotavam uma sensibilidade normal. Portanto, a criança devia ficar na família folkeana.

Em relação à segunda questão, se filhos bastardos podiam se tornar legítimos, a resposta era muito simples. Caso se conseguisse levantar a excomunhão e em seguida realizar o casamento entre Arn e Cecília, tudo estaria bem resolvido de novo.

Birger Brosa disse, depois, pensativo, que como ele tinha crianças em casa bem pequenas e para elas e as duas amas, parecia a ele que seria melhor o garoto ir para Bjälbo. Ninguém se manifestou contra.

A última questão que eles tinham a discutir era menos importante, mas também uma pedra no sapato. Algot Pälsson não apenas tinha resmungado a respeito do bastardinho, mas também reclamado em alto e bom som e amargamente que um filho de Arnäs tivesse mudado tanto um bom negócio que agora se podia dizer que o mesmo tinha ido por água abaixo. Evidentemente, Algot não representava nenhum perigo e devia ter cuidado ao levantar sua espada contra os folkeanos. Mas, entretanto, constituía uma preocupação e cairia mal se ele continuasse a resmungar por aí.

Magnus respondeu com alguma tristeza que essa era uma questão que dependia apenas da correspondência mandada a Roma e todo o resto a isso ligado, o que demoraria bastante tempo. Se demorasse pouco, tudo seria colocado nos seus devidos lugares como havia sido pensado desde o início e com isso seria obtida a paz. Mas se a questão demorasse vários anos, como se escutou falar que aconteceria, então o problema piorava. Nesse caso, dizia ainda Magnus, teria que ser considerada a hipótese de realizar o negócio como pensado, mas com Katarina e Eskil como figurantes. Aliás, Katarina tinha acabado de ser liberada do seu convento, em Gudhem.

Este pensamento não era difícil de entender, mas afetou o ambiente à volta da mesa. Todos sabiam que fora Katarina a origem de todo o problema que fazia sofrer não apenas Cecília e Arn, mas toda a família folkeana. Era uma dor muito grande, suspirava Eskil, ter que pagar a Katarina tão alto por seu ato de malvadez.

Birger Brosa disse, então, que apesar de tudo era uma idéia inteligente, e que o jovem Eskil devia entender que se tratava apenas de um negócio e não de sentimentos. Portanto, caso Arn não fosse liberado, Eskil devia se preparar para casar com uma mulher para quem talvez ninguém em seu perfeito juízo pudesse sequer virar as costas, pelo receio de receber um punhal nelas.

E assim aconteceu. Ali, naquela mesa, os negócios e a luta pelo poder — e não o amor — eram os objetivos mais importantes.

Padre Henri não fez o mínimo gesto de dar a Arn a absolvição dos pecadores ao escutar a sua confissão. Arn também não esperava isso, porque, primeiro, ele estava excomungado e nem mesmo um prior como o padre Henri poderia levantar a excomunhão. Em resumo, o padre Henri explicou o significado do pecado de Arn e mandou, depois, que ele fosse para uma cela, para repensar seu ato, a pão e água e todo o resto que se poderia esperar.

Durante o tempo em que esteve fora, no chamado baixo mundo, Arn conseguiu praticar três grandes pecados. Primeiro, ele tinha matado dois camponeses bêbedos. Segundo, ele próprio bêbedo, teve relações carnais com Katarina e, terceiro, teve relações carnais com Cecília.

Desses três pecados, os dois primeiros poderiam ser perdoados, de uma maneira tão simples e fácil que até Arn se surpreendeu. Mas o terceiro pecado, praticado ao ter relações carnais também com Cecília, a mulher que ele amava e com quem desejava viver como marido e mulher para sempre, foi um pecado tão grave que ele acabou sendo excomungado, arrastando Cecília para a mesma penalidade. Não era fácil de entender. Matar dois homens não valia nada. Ter relações com uma mulher que Arn não amava nem um pouco nada valia. Mas fazer o mesmo com uma mulher a quem ele amava acima de tudo no mundo, tal como o amor estava descrito nas Sagradas Escrituras, esse era o pior dos pecados.

Dos arquivos de Varnhem, foram mandados para ele os textos da lei e nesses textos estava tudo escrito, clara e implacavelmente. Nesses arquivos, existiam apenas, evidentemente, aqueles casos em que a Igreja tinha conseguido fazer passar. Todo o resto, os crimes por duelos, por difamação e multas a donos de hortas por terem matado escravos uns dos outros ou roubado gado uns dos outros, nada disso tinha interesse para a Igreja. Mas a lei que Arn havia infringido era, portanto, uma coisa pela qual a Igreja tinha lutado e, no final, tinha feito passar. No texto do código de casamento, no oitavo grupo, estava escrito:

Se alguém se deita com sua filha, esse processo terá de ser mandado por escrito para Roma. Se pai e filho tiverem a mesma mulher, se dois irmãos tiverem a mesma mulher, se os filhos de dois irmãos tiverem a mesma mulher, se mãe e filha tiverem o mesmo homem, se duas irmãs tiverem o mesmo homem, se as filhas de duas irmãs ou de dois irmãos tiverem o mesmo homem, isso são atos abomináveis.

Assim estava escrito. Em latim, e em letras bem bonitas. Já a tradução em língua comum estava escrita, a seguir, com letras apenas cursivas. Arn não teve a menor dificuldade para reconhecer a proibição. Soube imediatamente de que parte das Sagradas Escrituras o texto tinha sido copiado.

Mas existiam nas Sagradas Escrituras proibições das espécies mais loucas e estranhas e tudo o que Arn achou que podia ser interpretado de maneira diferente caiu por terra. Que era abominável algum pai se deitar com a filha era fácil de entender. Mas que isso fosse o mesmo que uma vez, completamente bêbedo, ter se deitado com Katarina e, depois, num ato de amor, ter feito algo, não apenas com os órgãos do corpo, mas também com todos os sentimentos e que isso, feito com Cecília, fosse ainda a mesma coisa, era impossível compreender.

Arn ficou ruminando para a frente e para trás sobre as leis de Deus para não chegar a lugar nenhum. Por muito que testasse os seus conhecimentos teológicos das regras contidas no Antigo Testamento, onde encontrou essa proibição, que, certamente, ele infringiu, causava estranheza haver também outras proibições de igual nível como usar roupas de outras cores durante o mês de luto ou cortar o cabelo de certa forma.

Todas essas proibições estavam também inscritas nas leis da Götaland Ocidental. Ele se lembrava bem do respeito que seus parentes e amigos sentiram quando Karle, o homem de leis, declamou o que estava escrito na lei, em Axevalla. Havia tão pouco espaço para interpretação que seu próprio pai se preparou para morrer segundo as palavras ditas e citadas.

Quer dizer, segundo a lei, ele, Arn, tinha cometido um crime equivalente ao abominável crime de um pai dormir com a sua filha.

No entanto, era a sagrada Igreja de Deus que tinha de julgar. E entre os homens de Deus existiam pensamentos e pontos de vista por trás de um crime, diferentes daqueles que valiam para os homens da Götaland Ocidental.

Por muito que virasse e revirasse o problema, ele acabava sempre por chegar à conclusão de que era ao padre Henri que cabia decidir. Embora estivesse claro que não seria julgado por nenhuma assembléia, ele torceu o nariz diante do pensamento de como seria fácil se defender com a espada ou com um sem-número de escudeiros de honra, folkeanos.

Arn seria julgado pela sagrada Igreja de Deus e, então, existiria pelo menos bom senso e a possibilidade de comparar o bem contra o mal. E assim ele balançava entre a esperança e o desespero.

Sua esperança tornou-se ainda maior quando um irmão veio buscá-lo para se encontrar com o arcebispo Stephan. Arn não tinha a menor idéia de que o arcebispo se encontrava em Varnhem e, primeiro, acreditou que isso talvez tivesse a ver com o seu caso, visto que o arcebispo uma vez tinha dito para ele que teria sempre um amigo no mundo superior que estaria sempre a seu lado, e esse amigo era nada mais, nada menos, do que o próprio arcebispo.

Cheio de novas esperanças, Arn se apressou quanto pôde para chegar ao claustro o mais rápido possível, onde encontrou no lugar de sempre o padre Henri e, para sua alegria, também o arcebispo Stephan. Ele se ajoelhou imediatamente e beijou a mão de Stephan e não se sentou, antes de o lugar lhe ser oferecido.

Todavia, aquilo que Arn viu nos olhos do arcebispo, quando este o observou por momentos em silêncio, não foi compreensão. Arn sentiu nesse olhar como sua esperança mais calorosa novamente esfriava com rapidez.

— Não foi pouco aquilo que você fez no pouco tempo que esteve fora, no baixo mundo — começou o arcebispo, finalmente. Ele pareceu muito severo no tom de voz, e o padre Henri, ao lado, não olhava para Arn, antes parecia observar apenas as suas próprias sandálias.

— Você sabe muito bem — continuou o arcebispo, no mesmo tom de severidade — que o poder da Igreja não deve se misturar com o poder mundano. E, no entanto, foi isso que você fez e não foi coisa pouca o vexame então que me fez passar. Você fez isso com os olhos bem abertos e até mesmo com um certo prazer.

O arcebispo ficou em silêncio, a fim de ver se Arn se desculpava e se explicava. Mas Arn, que estava todo preparado para tratar dos seus pecados carnais, ficou totalmente perplexo. Não entendeu nada do que o arcebispo havia falado e disse isso, pedindo desculpas pela sua estupidez. O arcebispo suspirou, então, profundamente, mas Arn percebeu um pequeno sorriso em Sua Reverência como se ele, afinal, acreditasse na estupidez de Arn.

— Você não pode ter uma memória tão curta a ponto de ter esquecido que nos vimos não faz muito tempo em Aros Oriental, certo? — perguntou o arcebispo com uma voz que era a um tempo suave e severa.

— Não, Sua Reverência, mas não entendo como é que eu poderia ter pecado nessa altura — respondeu Arn, hesitante.

— É muito estranho isso! — exclamou o arcebispo. — Você chega carregando em sua companhia um desses candidatos a rei como esta parte do mundo está cheia, infelizmente. Colabora no pedido de que eu fosse correndo e quase coroasse o homem na hora. E quando eu recusei esse pedido, por motivos que você, certamente, conhecia por antecipação, que faz você então? De uma maneira geral, me engana e me deixa de traseiro exposto, é isso que você faz. E como você é um dos nossos e assim continuará sendo para sempre, tanto o padre Henri como eu nos perguntamos por muito tempo e com toda a sinceridade em que é que você pensava quando fez o que fez.

— Eu não pensei muito no caso — respondeu Arn, tentando ganhar tempo, porque só agora começava a lembrar-se do que se tratava. — Como Sua Reverência disse e é verdade, eu sabia muito bem que a Igreja não podia de forma alguma dizer que oferecia o seu apoio a Knut Eriksson. Mas achei que não haveria nenhum mal ao mundo se Sua Reverência fosse o próprio a dizer isso para o meu amigo. E foi isso que aconteceu.

— E, depois, o que é que vocês pensaram após a realização do espetáculo que fez aquela multidão de idiotas acreditar que eu apoiava e iria coroar aquele canalha?

— Eu não entendi muito bem aquilo — respondeu Arn, envergonhado. — Não havíamos conversado sobre o que iria acontecer se Sua Reverência se recusasse a aceitar os desejos de Knut Eriksson, que acreditava ter chegado com um pedido muito simples. Não consegui que ele entendesse que não era bem assim, isto porque já se sentia como um rei. E, então, pensei que Sua Reverência iria explicar tudo, como aconteceu.

— Sim, sim, sim — silvava o arcebispo e agitava impacientemente as mãos. — Isso você já disse. — Mas agora quero saber o que aconteceu depois que eu coloquei aquele canalha no seu devido lugar!

— Aí, ele me pediu para perguntar a Sua Reverência se nós dois podíamos ser honrados e receber a comunhão, durante a missa do dia seguinte, das suas mãos. Achei que nada havia de anticristão nesse desejo. Mas eu não sabia que...

— Quer dizer que os dois não haviam falado antes a respeito do assunto. Você não sabia nada do que viria a acontecer? — interrompeu o arcebispo, severamente.

— Não, Sua Reverência, eu nada sabia — respondeu Arn, ainda envergonhado. — O meu amigo não acreditava em outra coisa que na aceitação imediata do seu primeiro pedido. Dessa história de comunhão, nós não havíamos falado antes, de jeito nenhum.

Os dois anciãos olharam intensamente para Arn, que não desviou o olhar ou revelou a menor hesitação, visto que o que ele disse era a absoluta verdade, como se ainda continuasse sob as regras da confissão.

O padre Henri tossiu levemente e olhou para o arcebispo, que encarou o seu olhar e acenou com a cabeça, concordando. Eles haviam chegado a conclusões discutidas por antecipação, isso Arn podia entender. Mas de que se tratava, disso Arn nada sabia.

— Sim, sim, meu jovem amigo, às vezes você é mais do que toleravelmente infantil. Isso a gente tem que reconhecer — disse o arcebispo, com um novo tom de voz muito mais tolerante. — Você levou a sua espada e a estendeu a mim. Você sabia que eu não poderia fazer outra coisa senão abençoá-la. E vocês dois estavam de uniforme de guerra. O que é que você estava pensando disso?

— A minha espada é sagrada e nunca rompi com esse meu juramento. Senti orgulho ao saber que eu podia levar essa espada sagrada perante Sua Reverência. Pensava também que Sua Reverência iria sentir o mesmo orgulho, uma vez que a sagração desta espada foi realizada aqui entre nós, os cistercienses — respondeu Arn.

— E você nem imaginou sequer que seu amigo, esse tal de Knut, iria utilizar-se disso? — perguntou o arcebispo, com um sorriso cansado, ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

— Não, senhor, Sua Reverência, mas depois compreendi que...

— Depois, virou um espetáculo em toda a província de Svealand! — salientou o arcebispo, com voz sibilina. — Os rumores correram, dando a entender que eu, da minha cadeira, tinha abençoado essa espada que havia matado o rei Karl Sverkersson, como se eu, na seqüência, tivesse abençoado e quase ungido e coroado Knut Eriksson. E desde então nunca mais tive um momento de sossego. Todos os pequenos reis, os meios-reis e os pretendentes a reis estão atrás de mim, todos de uma vez! Vou deixar o país por algum tempo. Por isso, estou aqui e não por sua causa, como você julgou. No entanto, acredito em você no que diz respeito a tudo o que aconteceu em Aros Oriental e você tem a minha absolvição nesse caso.

Arn caiu de joelhos perante o arcebispo e beijou sua mão, agradecendo por sua tolerância que imerecidamente lhe tinha sido atribuída, já que a sua estupidez jamais poderia ser uma defesa correta e suficiente. Num pequeno momento de felicidade, Arn convenceu-se de que tudo estaria ultrapassado agora, que seu pecado não tinha sido o de possuir Cecília por amor, mas o de ter ajudado Knut Eriksson, num momento de esperteza, a iludir o próprio arcebispo.

Mas ainda não tinham terminado. Ao se levantar e sentar de novo, por insistência do arcebispo, Arn, no seu lugar, diante dos dois velhos amigos, recebeu a sua sentença.

— Agora, escute bem o que vou dizer — salientou o arcebispo. — Os seus pecados estão perdoados, no que diz respeito a essa tal de provocação que você fez com o seu próprio arcebispo. Mas você rompeu com a lei de Deus, no momento em que esteve com duas mulheres que são irmãs. E por um pecado desses, que é abominável, não existe nenhum perdão. O normal seria condená-lo a uma penitência pelo resto da sua vida. Mas nós vamos demonstrar a nossa tolerância por achar que essas são as intenções de Deus. A sua penitência irá durar meia vida, vinte anos, e o mesmo vale para a sua amante. A sua penitência será cumprida como templário de Deus e o seu nome, de agora em diante, será Arn de Gothia e nenhum outro. Vá agora cumprir a sua penitência e que o Senhor conduza os seus passos e a sua espada, e que as Suas graças o iluminem. Que assim seja! O irmão Guilbert vai lhe explicar tudo com mais detalhes. Vou viajar agora, mas nós nos veremos a caminho de Roma, que é para lá que você vai primeiro.

Tudo girou na cabeça de Arn. Achou que tinha sido absolvido, mas não foi. A metade de uma vida era mais tempo do que aquele que ele tinha vivido e ele não podia nem imaginar-se como um senhor idoso, com trinta e sete anos de idade no momento em que a sua penitência terminasse. Olhou apelativo para o padre Henri, sem nada dizer. E parecia que não sairia do lugar antes de o padre Henri dizer qualquer coisa para ele.

— O caminho para Jerusalém começou cheio de curvas, meu queridíssimo Arn — disse o padre Henri, tranqüilamente. — Mas assim se fez a vontade de Deus. A esse respeito, nós dois estamos absolutamente convencidos. E agora vá em paz!

Quando Arn se levantou, de cabeça baixa e quase cambaleando, e se afastou, os dois homens ainda ficaram sentados no lugar durante muito tempo e se engajaram numa longa conversa, cada vez mais profunda, a respeito da vontade de Deus. No entanto, uma coisa ficou clara: era vontade do Senhor enviar mais um grande guerreiro para o Seu Sagrado Exército.

Mas e se Knut Eriksson tivesse se tornado rei um pouco mais cedo, de modo que Arn e Cecília já fossem marido e mulher? E se ela, Cecília, que parece ser uma pessoa de coração tão bom e tão infantil quanto o de Arn, não tivesse visitado a sua irmã, Katarina, no convento? E se a madre priora, Rikissa, não fosse da famílistasverkeriana e, portanto, não pusesse toda a sua força e poder de decisão ao dar início a toda esta disputa?

Se tudo isso e muito mais não tivesse acontecido, o Sagrado Exército do Senhor teria ficado com um grande guerreiro a menos. Por outro lado, já dizia o filósofo que esse tipo de raciocínio jamais podia ser sustentável. Se o “se” não existisse, o arcebispo poderia ser um cavalo. Entretanto, Deus tinha demonstrado nitidamente a Sua vontade e, diante disso, era preciso se curvar.

Nos dias seguintes, o irmão Guilbert tratou de Arn com todo o cuidado. Tinha recebido como missão levar Arn a entender aquilo que agora e por muito tempo valeria para ele. Não deixou que Arn falasse da sua punição, nem de tudo o que ele tinha que deixar para trás. E manteve essa linha com mão forte.

Arn iria acompanhar o arcebispo Stephan até Roma, mas a partir daí os seus caminhos seriam diferentes. O arcebispo tinha assuntos a resolver com o papa Alexandre III, e Arn teria que se apresentar no forte dos tem-plários em Roma, que era o maior do mundo. Acontecia que era em Roma que todos os que se candidatavam a entrar para a ordem eram aprovados ou reprovados. Evidentemente, eram muitos os que se sentiam chamados a combater no Sagrado Exército do Senhor. E não menos pelo fato de, através dessa missão, se considerarem penitenciados por todos os seus pecados. E de irem para o céu, caso morressem com a espada na mão. Em conseqüência disso, depois da prova, era escolhido apenas um em cada dez candidatos.

Essa prova dificilmente iria constituir um problema para Arn. Entre as exigências para entrar na ordem, havia a de o candidato pertencer a uma família que tivesse brasão, uma regra de que o irmão Guilbert não gostava, por ter visto muitos guerreiros em combate que teriam sido bons irmãos na ordem e que acabaram não sendo aceitos por causa disso. Mas esse também não era problema para Arn, que tinha o leão dourado no brasão da família folkeana. E as outras duas regras também não ofereciam nenhuma dificuldade. O irmão Guilbert sorriu ao explicar secamente que essas exigências em consideração eram constituídas, uma delas por saber, mais ou menos, um quarto daquilo que Arn sabia das Sagradas Escrituras, de lógica e de filosofia. E talvez fosse bastante valer um quarto daquilo que Arn valia como combatente. E, é claro, era preciso uma carta de recomendação do arcebispo nórdico e do padre Henri. Mas isso não era o principal. Com essas cartas de recomendação, chegavam, esperançosos, muitos filhos de condes franceses. Mas com as qualidades de Arn, nenhum deles tinha vindo. E quando Deus formulava a Sua vontade, ninguém podia contrariá-Lo.

Arn sentia um pouco de pena de si mesmo a respeito da vontade de Deus, que considerava cruel em destreza. Por que razão seria necessário que ele caísse em desgraça e tivesse que deixar a sua amada Cecília para obedecer à vontade de Deus de mandá-lo combater no ultramar?

O irmão Guilbert reconheceu que não tinha nenhuma resposta para essa questão, mas que a resposta talvez surgisse com o tempo. Em compensação, disse também que há muitos anos que ele sabia que isso ia acontecer. O irmão Guilbert confessou ter encontrado muito poucos ou talvez nenhum homem com as capacidades de Arn. E se Deus lhe dera essas raras qualidades, não seria já com uma determinada intenção? E o mesmo não podia ser dito a respeito do fato de Arn ter sido mandado para Varnhem já aos cinco anos de idade para se formar em tudo o que fizesse dele um templário aceitável?

Arn podia ver, facilmente, a lógica desse raciocínio, mas isso não lhe diminuía a tristeza ou a sua saudade.

O irmão Guilbert mostrou a Arn muitos novos equipamentos em que ele trabalhou por muito tempo, seguindo as medidas de Arn. O mais importante era uma malha de aço com mais de quarenta mil anéis, em duas camadas, com uma linhagem entre elas e um tecido muito macio na parte de dentro. A malha de aço começava por cobrir a cabeça e se estendia pelos braços, até os punhos, e cobria até abaixo dos joelhos. E, no entanto, era mais leve do que as malhas nórdicas. Além disso, havia também umas calças em malha de aço que protegiam as pernas e iam até os pés. Aquele que estivesse equipado com essa vestimenta estaria protegido desde a cabeça até a ponta dos pés E isso era o que a nova maneira de combater exigia. Finalmente, o irmão Guilbert apresentou uma túnica preta com uma cruz branca que ele devia usar, enquanto acompanhasse o arcebispo como escudeiro até Roma. Mas era também a veste da Ordem dos Templários. Portanto, Arn já estaria totalmente equipado quando chegasse ao forte em Roma. E o arcebispo já tinha autorizado até que ele usasse essa vestimenta durante toda a viagem.

Arn sentiu-se honrado e orgulhoso ao provar esses novos equipamentos, mas não existia alegria nos seus olhos. Com isso, porém, também o irmão Guilbert não tinha contado. Entretanto, diante da partida de Arn dali a dois dias, ele preparou uma surpresa especial que, segundo acreditava, teria influência no espírito do seu jovem aprendiz.

O irmão Guilbert passou o braço pelos ombros de Arn e foi andando com ele na direção da cavalariça como se fora apenas para dar mais uma volta e ter mais uma conversa. Mas quando chegou à baia parou e apontou apenas para dentro. Lá estava o garanhão Chamsiin que Arn tanto adorava.

Arn, primeiro, ficou em silêncio. Depois, gritou um sinal e as orelhas de Chamsiin logo se empinaram, virando a cabeça na direção de Arn. E no momento seguinte já galopava o mais rápido que podia, até chegar junto do cercado onde estavam o irmão Guilbert e Arn. Deu várias voltas sobre si mesmo, voltou para a cerca e relinchou não se sabe se reclamando da ausência ou para dar boas-vindas ao seu querido amigo.

Arn saltou por cima da cerca e abraçou Chamsiin pelo pescoço, beijando-o repetidas vezes.

— Ele é seu, agora — disse o irmão Guilbert. — Esse é o nosso presente de despedida para você, Arn de Gothia. É que aprendi como templário que, na Guerra Santa, a confiança em Deus, sem dúvida, é o mais importante. Depois, a seguir, vêm os exercícios e a humildade. E, finalmente, vêm as boas armas e um cavalo como Chamsiin.

Quando Arn, na sua vestimenta preta com a cruz branca, subiu em Chamsiin para iniciar a sua longa viagem, na qual, primeiro, teria de alcançar o arcebispo, ele mostrava decisão em seu rosto, mas também era visível a sua tristeza, que já vinha desde o momento da sua condenação.

Todas as missas foram cantadas. Todas as palavras de despedida foram ditas. Mas ali estavam ainda o padre Henri e o irmão Guilbert para falar mais alguma coisa. Era difícil para eles agir com dignidade cristã, pois a tristeza de Arn lhes doía tanto quanto era forte a certeza de que, agora, realmente, estava sendo feita a vontade de Deus.

— Por Deus, morte a todos os sarracenos! — disse o padre Henri, com combatida presunção.

— Por Deus, morte a todos os sarracenos! — respondeu Arn, ao desembainhar a sua espada sagrada e apontá-la para o alto, para o céu, e fazer mais esse juramento. Depois, montou em Chamsiin e partiu a trote.

O padre Henri queria entrar imediatamente no mosteiro, mas o irmão Guilbert levantou o dedo, em sinal de que deviam esperar mais um pouco, e apontou para longe, na direção de Arn.

Ficaram assim por algum tempo, sem que o padre Henri soubesse da razão da espera, mas o irmão Guilbert continuava de dedo apontado, pedindo para esperar.

De repente, viram como Arn avançou vários passos de galope para a direita, depois para a esquerda, e a seguir viram o forte animal trocar de passos de galope para a direita e para a esquerda, a cada salto, uma arte difícil, por aquilo que o padre Henri podia entender. Mas a alegria de poder realizar essas artes não dava para esconder.

— Está vendo o que eu estou vendo, querido padre Henri — disse baixinho o irmão Guilbert, quase com devoção. — Que Deus cuide de Arn, mas que Deus possa também cuidar dos sarracenos que vão enfrentá-lo.

Este último voto pareceu ao padre Henri incompreensível, quase no limite da blasfêmia. Mas não era a hora de dizer palavras de repulsa, não naquele momento em que o mais querido de todos os filhos de Varnhem estava partindo para sempre.

Além disso, o padre Henri sabia muito bem que o irmão Guilbert, sob certos aspectos, tinha uma visão muito estranha a respeito dos sarracenos. Entretanto, partiu do princípio de que Arn, antes tão puro quanto Parsifal, jamais seria vítima de algumas dessas tentações. Deus, certamente, ia estender a Sua mão protetora sobre um guerreiro como Arn.

 

 

[1] Parsifal ou A História do Santo Graal, o título de um romance escrito por Chrétíen de Troyes, cerca de 1182. Obra inacabada. Parsifal, educado pela mãe na solidão, acaba aprendendo as leis das armas e da cavalaria na corte do rei Artur. Depois de várias aventuras, chega ao castelo do rei Pecador e assiste à procissão do Santo Graal. Vários indícios fazem-no entender que a sua timidez o impede de alcançar a verdade e salvar o rei. (N. T.)

 

 

                                                                                                    Jan Guillou

 

 

 

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