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Sul do Texas, 1846.
Rose jamais esqueceria aquele cheiro. A mistura de bosta de vaca com tabaco era tão impactante que, mesmo que mil anos se passassem, ainda sentiria a mesma ânsia de vômito que a tomou de assalto naquela manhã, ao ver o homenzarrão à sua frente.
O padrasto a encarou, puxando-a com mais força. Tinha seis anos. Era órfã. O pai morreu no mar, em 1840, num episódio que ficou conhecido apenas como um hostil combate resultante da revolução de 35. A mãe se casou dois anos depois com Carl Loreto, um mestiço mexicano que surgiu numa noite em sua casa e nunca mais saiu de lá.
Rose não se lembrava direito da mãe. Tudo nela era apenas pequenos reflexos, relances de momentos já findados. Porém, sabia que a genitora tinha os mesmos cabelos cor de sol que os seus, e que foi dela que puxou os olhos azuis.
E havia também a herança. Não dinheiro ou bens. O que a falecida genitora deixou para a filha foi a presença daquele monstro que tocava nela durante a noite, que a chamava de putinha, que a impediu de ir a escola, e que a fazia comer seus restos como porcos, numa espécie de vingança por uma infração que Rose não fazia ideia que cometera.
Logo travaram. Diante de um casebre, ela encarou outro homem. Alto, bigodes grandes e um sorriso maldito no rosto. O padre Juan dizia que os demônios podiam incorporar nos adultos e fazê-los machucar as pessoas. Naquele instante, Rose soube que ali estava a besta que a atormentaria para sempre, causando nela um mal irreparável.
— Puta merda! — O homem reclamou, encarando a menina. — Quantos anos têm isso?
— Seis. — O padrasto retrucou. — O que queria, por três dólares?
— Qualquer coisa que eu pudesse meter o pau sem matar.
— Ela vai aguentar, já peguei menores.
Alheia àquele estranho diálogo, os olhos azuis de Rose volveram-se para o lado. Um servo, ao longe, corria pela imensidão da colina. Era primavera, as flores brotavam, colorindo a floresta. As montanhas pareciam menos áridas. Apenas pareciam. Como tudo em sua vida, a imagem era ilusória.
Sorria para o animal quando o solavanco voltou sua atenção aos homens.
— Rose — o padrasto a chamou. — Vai entrar na casa e fazer tudo que o tio mandar, entendeu? — ordenou. — Ou eu irei machucar você. — pigarreou. — Irei machucar muito você — retificou, dando ênfase.
Mais? Como ele poderia machucar mais do que já fazia? As costas ainda doíam dos vergões das varas de marmelo, os tabefes no rosto eram tão fortes que ela jurava que algo balançava dentro da cabeça quando a movia, e o terror das mãos ásperas no meio das suas pernas a agoniava como um terrível pesadelo que parecia não ter fim.
— Eu não quero — choramingou, contudo, numa estranha coragem.
O primeiro bofetão. O impacto do chão e o silêncio. Ela sabia, por experiência, que as agressões nunca terminavam após se manifestarem. Então, esperou. A espera não durou muito. Dois chutes, e uma cusparada no rosto.
— Não suja o que eu vou comer — o homem de bigodes reclamou, afastando o padrasto.
Comer?
Por alguns segundos, se imaginou dentro de um caldeirão, fervendo, como se fosse o principal ingrediente de uma sopa.
Estranhamente, aquele pensamento não lhe causou medo. Parecia o fim de uma intensa agonia.
Subitamente, foi puxada do chão. O homem de bigode quase deslocou seu braço, tamanha brutalidade com que lhe ergueu.
Enfim, foi levada para dentro do casebre.
A porta fechou.
Rose nunca mais foi a mesma.
Parte 1
Capítulo 01
San Antonio, Texas, 1860.
O galho bateu contra seu rosto, causando um leve corte que ela mal sentiu. Percorria, afoita, numa corrida desesperadora, o caminho entre a floresta e o campo onde os escravos trabalhavam na fazenda do coronel Theodoro Hill. Não que lá estivesse segura, mas, esperava, alguém faria alguma coisa para tentar impedir o estupro.
Alguém... As mulheres da casa... Alguém... Talvez... Era uma vã probabilidade, mas era a única coisa que tinha. Mesmo que todas as suas expectativas se focassem em uma corda bamba, precisava de algo para se agarrar. Não era esperança, era desespero.
Logo, o pé direito enroscou-se na relva seca. O tombo a machucou, mas, na adrenalina, Rose se ergueu imediatamente. Contudo, em segundos, o pé falseou.
Havia torcido o tornozelo e, ao sentir que não conseguia permanecer em pé, os soluços de pânico escaparam de seus lábios.
Tentou rastejar, olhando rapidamente para os lados, buscando qualquer esconderijo, porém, não havia nada próximo onde pudesse se proteger.
Momento depois, foi vista. O rapaz bonito de cabelos e olhos negros absolutos pareceu muito satisfeito em vê-la tão a sua mercê, sem conseguir proteger-se (Deus sabia que, assim que se tornou mais velha, ela passou a lutar como nunca para evitar os abusos sexuais). Ele logo rumou em sua direção, fazendo com que a antecipação da agressão fizesse todo o corpo feminino pulsar de medo.
— Loreto! — o rapaz gritou na direção do seu padrasto. — Segure os braços dela que eu vou arregaçar as pernas.
A risada maldita do outro a revoltou. Depressa, o homem que a criou surgiu atrás de Drew Hill, filho do coronel e xerife da cidade de San Antonio.
— Já sabe, meu senhor — o outro disse ao rapaz. — Não encontrará uma belezura dessas no saloon de Vicence. Então, é justo que me pague a mais.
— Tão ranzinza — Drew gargalhou. — Olhe para a minha cara e veja se meu problema é dinheiro!
Enquanto o moço desabotoava as calças, o padrasto a cercou, pegando seus braços e os colocando atrás da cabeça. Ela esperneava, enquanto tentava de desvencilhar dos braços fortes, mas a força física nunca foi seu forte e logo soube que seria estuprada... De novo.
Quantas vezes, naqueles anos todos? Há mais de uma década ela era submetida a qualquer homem que pudesse pagar, em dinheiro ou fumo. O padrasto também se aproveitara, algumas vezes, mas esses momentos eram mais raros, desde que padre Juan descobrira.
Porém, padre Juan foi morto assim que fez a denúncia ao xerife Hill. Uma manhã a cidade de San Antonio acordou sem o pároco local, que foi encontrado com dois tiros na testa, próximo da igreja.
No fundo, não interessava a ninguém a perda daquele divertimento. Porque era isso que Rose Davis era: uma diversão. Diferente das moças de saloon , ela era menor, mais loira e tinha aquela beleza impressionante que fazia os homens suspirarem.
E mais: era barata. Vicence não cobrava apenas pelos favores de suas meninas, cobrava também pelo quarto e pelas bebidas. Loreto, todavia, pedia apenas alguns trocados ou tabaco. Francamente, que homem se importaria em ter um quarto limpo se era para devorar tamanha beldade por custo tão baixo?
O novo padre, Antony, não pareceu revoltado ao saber da situação. Ao contrário, certa vez até surgiu diante da porta de Loreto, com uma garrafa grande de vinho, e ficou com ela alguns minutos. Não enfiou-se na menina, mas a alisou de muitas formas, fazendo seu estômago revirar e a esperança desaparecer de sua mente infantil.
— Por favor... Por favor... — ela murmurou enquanto Drew deitava-se em cima dela.
— Por favor, o quê, putinha?
— Por favor, me mate...
A risada maquiavélica de Drew adentrou sua mente e se instalou lá. Ela o viu retirando o revólver do coldre e apontando para a sua face, apertando o cano contra sua bochecha.
— Implore — murmurou.
Não se fez de rogada. Não suportava mais.
— Por favor, aperte o gatilho.
Fechou os olhos, sentindo, subitamente, um alívio tão imenso que nenhuma palavra poderia descrever.
— Não ouse matá-la — Loreto resmungou. — Não tem ideia do quanto eu ganho por mês...
Subitamente, um estrondo. O cheiro da pólvora e o silêncio característico após um disparo.
Rose abriu os olhos. A luz do sol a encontrou e ela pensou que havia alguma coisa errada porque ainda sentia o peso de Drew sobre si e a aspereza do solo contra suas costas.
— O que diabos...? — o grito do jovem senhor de terras fê-la sair do torpor.
— Saía agora de cima dela!
O tom era nitidamente igual. Era como se Drew falasse consigo mesmo.
Assim que o rapaz a largou, ela se sentou, abraçando a si mesma, tentando resguardar-se só Deus sabia do quê. Tudo no mundo a machucava, e não havia abraços que pudessem protegê-la.
Então o viu. Outro Drew. O mesmo olhar, a mesma pele, a mesma aparência. Vestia-se diferente, contudo. Impecável em um conjunto de montaria, chapéu de abas largas, botas de couro e a postura rígida de alguém que não parecia estar de brincadeira.
— Damien — Drew resmungou. — O que diabos você fez?
— Salvei a dama — o outro resmungou. — Matei o maldito que a prendia, e só não vou atirar em você porque é meu irmão.
Carmen, uma escrava que trabalhava na casa grande, disse, certa vez, que o coronel tinha dois filhos. Ela, a negra, havia visto o mais velho numa única ocasião, e contara que eram gêmeos idênticos, tão iguais como se fossem uma só pessoa diante do espelho. Boatos se alastravam que apenas a mãe deles, a senhora Margareth Hill, conseguia identificá-los.
Um deles, Drew, havia permanecido na fazenda para ajudar o pai a manter a enorme criação de gado. O outro, o mais velho, Damien, havia ido para Carolina do Sul, a fim de estudar. Por algum motivo, o Coronel Hill sonhava com um advogado na família.
— Isso não vai ficar assim — Drew prometeu.
— Não vai ficar mesmo — o irmão berrou.
Estava furioso, e Rose se encolheu ainda mais.
— Volte para casa. Lá conversaremos.
O tom era de ordem. Não levou muito para ela perceber que o mais velho tinha características de liderança. Era forte, autoritário e parecia acostumado a mandar.
No mais, era igual ao irmão. Alto, cabelos e olhos negros, pele branca e bem cuidada. Era bonito. As escravas costumavam suspirar muito por Drew, mas Rose sempre sentiu apenas nojo.
Blasfemando, Drew a deixou. O corpo de Loreto parecia obsoleto a todos. Ninguém se importava com aquele homem, ninguém o enterraria. Viraria comida de corvos, e ela tinha pena dos pobres animais, que se alimentariam daquela carniça nojenta.
— Senhorita — Damien curvou-se diante dela.
Assustada, percebeu ele retirar o casaco de denin. Quase correu ao sentir a aproximação, mas, por fim, ele não fizera nada além de cobri-la.
Nem todos os homens eram iguais, disse a si mesma. Havia aprendido aquela lição na infância, através de padre Juan.
— Peço desculpas pelo meu irmão — murmurou.
Lágrimas surgiram nos olhos femininos. O que Drew fazia com ela, já há alguns meses, não tinha perdão nem solução. O dano que lhe provocara era irremediável. De todos os homens que a submeteram, Drew sempre foi um dos mais agressivos e torturadores.
— Posso levá-la até sua casa? Seus pais...?
Ela apontou o morto com a face.
— Meu padrasto — explicou. — Não tenho mais ninguém.
— Tem onde ficar?
— Somos arrendatários. Tenho um casebre para morar.
— Faço questão de acompanhá-la — ofereceu-se.
Rose encarou-o. Ao contrário de Drew, aquele olhar negro era doce e gentil.
— Não é necessário... — murmurou.
— Mas, está com o pé machucado — ele perseverou .
— Uma pequena dor diante de tantas maiores — deu os ombros. — Eu sobreviverei.
Todavia, aceitou a mão que lhe estendeu. Por algum motivo desconhecido, o toque daquele homem aqueceu seu coração. Provavelmente, era porque havia sido, assim como seu querido amigo falecido, a única pessoa a lhe demonstrar generosidade.
— Eu ouvi... — ele comentou, inseguro. — Seu pedido para morrer.
Rose encarou o jovem. Deviam ter idades aproximadas, mas era nítido que experiências de vidas diferentes. Damien Hill era rico, poderoso, estudado e mantinha a postura ereta de alguém que jamais havia sido desafiado na vida. Observando-se a si mesma, notou que ela não passava de um trapo humano, onde morrer seria o findar de todo sofrimento.
Dando com os ombros, aceitou que ele a guiasse em direção ao alazão que estava atado em uma árvore próxima.
Até chegarem a sua casa, não trocaram mais nenhuma palavra.
***
— Não tolerarei sua completa aquiescência diante de um fato tão grave!
A voz da mãe surgiu no corredor. Damien escondeu um sorriso triste, ao perceber que, mais uma vez, a genitora tomava partido.
Margareth Hill era uma mulher forte, aguerrida e não costumava ter muitas papas na língua para dizer o que pensava. Era uma leoa, sempre pronta a proteger o filhote. Porém, o filhote daquela mulher felina era Drew. Desde cedo, ficou nítido para o mais velho que a mãe protegia e amava o filho caçula, rejeitando-o de uma forma que beirava a crueldade.
Não havia nenhum motivo especial para isso, ele sabia. Ela simplesmente não o amava. E uma mãe não amar a um filho não lhe espantava, já que, pelo lado paterno, Drew vivia a mesma coisa.
Theodoro Hill estava sentado em sua enorme cadeira estofada. Sua postura de ex-militar lhe remetia rigidez de seriedade. À sua frente, a mesa de mogno marrom deixava o ambiente rústico e, mais adiante, o seu irmão gêmeo e a sua mãe pareciam corroídos de raiva, enquanto rasgavam seu nome para o pai.
— Damien atirou em mim! — Drew afirmou, e o irmão sabia que não era a primeira vez que ele dizia isso. Desde a infância, o irmão fazia o possível para deixá-lo numa situação desfavorável com o genitor. — É o xerife, não fará nada?
Por fim, perceberam sua presença à porta. Damien sorriu, enigmático, enquanto sentia uma risada histérica brotar de seu ser.
— Papai sabe que, caso eu tivesse atirado em você, estaria morto agora, da mesma forma que o homem que segurava a moça que você tentava estuprar.
Margareth balançou o leque. Os dias estavam cada vez mais quentes.
— Que homem? — ela questionou. Pelo jeito não sabia de tudo.
— Ele matou o senhor Loreto — Drew entregou, ignorando o irmão, voltando-se ao pai. — E não queria estuprar ninguém. Estava em cima de Rose Davis.
O suspiro de alívio da mãe incomodou tremendamente o mais velho.
— Ah, Rose Davis... — ela murmurou. — Quem se importa com aquela vagabunda?
Drew riu.
— Eu com certeza, não. Putas são para serem usadas, mesmo.
Passos rápidos. Em segundos, Damien estava de fronte ao irmão. O ódio parecia transparecer seu olhar.
— Com que direito fala isso de uma senhorita?
— É o que ela é — Drew devolveu. — Parece muito encantado pela beleza de Rose — gracejou. — Se não tivesse matado o padrasto dela, a teria por uma corda de fumo ou por poucos dólares.
A frase chocou o advogado.
— O homem a vendia?
— Desde que ela era criança — a mãe respondeu. Seu tom deixava claro o quanto não se importava com o fato. — Rose Davis teve mais homens entre as pernas do que você tem livros no teu quarto. Portanto, o que importa o que Drew fez? Não tem o direito de sair por aí impedindo-o de se divertir.
Ignorando tamanha frieza, o rapaz voltou-se para o pai.
— E o senhor sabia? Como permitiu? É o xerife daqui!
— Como xerife eu ignoro certas coisas para manter a paz do vilarejo. Como, por exemplo, ignorarei a morte do meu arrendatário. O assunto está encerrado.
Contudo, nem a mãe, nem os gêmeos saíram da sala diante da frase.
— Se eu pegar Drew ou qualquer outro homem tentando estuprar a moça novamente, eu o matarei.
O choque de Margareth foi seguido por uma risada debochada do mais jovem.
— Isso é uma ameaça, meu irmão?
— É um aviso.
— Tanto faz — deu os ombros. — O que não falta nessa fazenda são pretas para eu...
Damien deu um passo à frente. Algo em seu íntimo se inflamou de tal forma que, não fosse a mãe, ele teria partido para uma luta corporal.
— Ah — Drew riu. — Se ofende também por eu falar das escravas? Esqueci-me de que é um abolicionista.
A família Hill, tradicional sulista e latifundiária, mantinha domínio sobre muitos escravos e era completamente contra a abolição. Contudo, Damien era contrário a essas ideias. A alforria dos escravos era uma meta particular que colocaria em prática assim que assumisse a administração das terras paternas.
— Não quero esses assuntos dentro da minha casa! — o pai gritou. — Não admito que ideias nortistas sejam mencionadas em meu lar com tanta naturalidade.
Drew deu os ombros.
— Devia dizer isso ao seu amado primogênito. Porque, por mim, meu pai, esses pretos desgraçados vão limpar minhas botas até o último dia de minha vida.
Damien fechou os olhos com força, tentando manter o autocontrole enquanto o irmão e a mãe saíam da sala. Por fim, quando percebeu que estava a sós com o pai, o encarou.
— Isso tudo — expandiu os braços. — Não é certo, meu pai.
— Até a Bíblia nos é favorável — o genitor se defendeu.
— Nenhuma Bíblia me fará apoiar a escravidão de pessoas, e o abuso, como os de Drew.
O pai recostou-se na poltrona.
— Me pergunto, filho... O que fará quando herdar tudo que tenho?
— Darei liberdade aos negros.
— E como manterá a fazenda, sem mão de obra?
— Os contratarei como empregados, dando a eles um salário justo.
O pai respirou fundo, estafado.
— É apenas um sonhador, Damien. Mas, a vida vai mudá-lo.
— Índole não se muda, meu pai — devolveu.
Ficaram alguns segundos em silêncio, como se absorvendo aquelas palavras.
— Contudo — Damien por fim se manifestou —, no momento me contenho em proteger a moça loira.
— Rose Davis — o pai a nomeou. — Sinto pena da mulher.
Mas, nada fez para protegê-la, o filho pensou.
— Drew está noivo de Constance e eu penso que chegou a hora de você também encontrar uma boa moça cristã para lhe ocupar os pensamentos.
— E ser infeliz, como o é com minha mãe?
— Um casamento é mais do que você presencia, entre sua mãe e eu.
Damien recusou as palavras, e logo se despediu.
Porém, enquanto se afastava do escritório do pai, o pensamento de dividir a vida ao lado de uma mulher o tocou. E, na figura feminina, ele viu uma moça loira tão bela quanto as rosas que lhes davam o nome.
Naquele dia, Theodoro Hill soube que a volta do filho as suas terras mudaria o destino de Rose Davis, irremediavelmente.
Capítulo 02
Honra
Padre Antony bebericou o café e sorriu, enquanto ouvia a senhora Margareth tagarelar sobre como planejava um casamento perfeito para seu amado filho Drew. O marido, ao lado deles, dava ares de estar completamente absorvido em pensamentos alheios, longe daquele assunto torpe que não parecia entretê-lo ou interessá-lo.
— Como Damien reagiu ao saber do noivado? — questionou, assim que a mulher deu uma pequena pausa na tagarelice.
O suspiro descontente feminino fez o padre arrepender-se da pergunta. Contudo, a curiosidade minava sua discrição.
— Damien sempre soube que Constance nunca o quis — Theodoro respondeu.
A mulher morena de olhar penetrante, de fato, nunca se interessaria por alguém tão maçante quanto Damien Hill. Não atraído por bebedeiras ou flertes, o típico filho mais velho respeitador e educado, não parecia interessante o suficiente para atrair um olhar de alguém que ansiava por uma vida cheia de aventuras.
E foi assim que a jovem de origem espanhola reparou que o irmão gêmeo de Damien lhe despertava mais emoção. Drew, de aparência igual ao outro, ou seja, tão belo quanto, era seu oposto de atitudes e caráter. Namorador, galanteador, empolgante. Como não ansiar por ele? Assim sendo, começou a demonstrar interesse em algo a mais com o jovem. Como Constance era filha de um comerciante local importante, logo os pais dos jovens arranjaram o casamento.
Damien retornou da Carolina do Sul dias antes do grande acontecimento. Ao saber que a mulher que o havia rejeitado uma vez estava prestes a se casar com o irmão que nunca se deu bem, deu apenas os ombros, como se o fato não o incomodasse.
— Damien é incapaz de expressar sentimentos — a mãe focou na ótica negativa. — Mas, vamos falar de coisas boas — abriu os braços. — Mandarei tirarem uma fotografia de Constance. Minha falecida sogra deu ao meu amado filho um relicário de ouro, para que Drew guardasse nele algo que lhe fosse especial. Nada melhor que a foto da esposa, não é?
— Damien também tem o relicário — Theodoro interrompeu. — Seria muito bom encontrar uma moça honrada para meu outro filho. Estou ansioso para que ambos possam desfrutar um matrimônio.
— Que mulher se interessaria por alguém como ele? — Margareth arqueou as sobrancelhas, descontente. — Prefere livros a festas. Prefere conversar com reles escravos a moças da cidade. Prefere lidar com o gado do que com gente.
— O gado não fala de mim pelas minhas costas, mãe — o rapaz de chapéu surgiu diante dela, deixando claro que ouvira sua recriminação. Porém, como sempre, em seguida, ele a ignorou, inclinando-se ao padre, pegando sua mão e a beijando, em sinal de respeito.
Os Hill eram católicos praticantes, e a figura do padre, mesmo que não trouxesse nada de espiritual àquela casa, era respeitada como se devia.
— O gado não precisa conviver com você — a mulher devolveu.
— Margareth! — o pai bramou, ríspido.
Damien sorriu. Mascarava as emoções desde que se lembrava. Não queria dar a mãe o prazer de saber que suas palavras sempre causavam uma tristeza incômoda nele. Sentando-se ao lado do padre, logo uma escrava surgiu, para lhe servir o café.
— Não é necessário, Mathilda — recusou. — Eu mesmo me sirvo.
A escrava assentiu e se afastou, brevemente.
Não foi surpresa para os pais que ele soubesse o nome da serva. Damien sabia o nome de todos. Isso, claro, não se passava com seus genitores. Animais não deviam receber nomes para que não houvesse apego na hora de vendê-los ou matá-los.
— Então, meu filho... — Padre Antony começou. — Estávamos falando em encontrar uma boa esposa para você.
— Acho que sou capaz de escolher uma mulher por mim mesmo. — Devolveu. — Além disso, não acredito que seja a melhor hora para desposar alguém. Burburinhos de que o Texas vai se separar da União despontam por todo lado.
— Isso se aquele filho da puta chamado Abraham Lincoln se eleger — Theodoro reclamou. Contudo, em seguida enrubesceu. — Perdão, padre...
— Sou padre, mas não tolo. Concordo totalmente com sua opinião sobre Lincoln.
— Vai acontecer — Damien retorquiu. — É inevitável. Assim como a abolição.
— Blasfêmia! — o padre exclamou. — Essas pessoas pagarão muito caro por tramar contra as leis de Deus.
— Deus não faz acepção de pessoas, padre.
O homem de batina pareceu zangado.
— Quem disse isso?
— A Bíblia — devolveu, sem piedade. — Atos, capítulo dez, verso trinta e quatro. O senhor nunca leu?
— Damien! — o pai rugiu, calando-o.
Uma risadinha irônica surgiu nos lábios de Margareth.
— Entende agora, padre? — ela murmurou, parecia um segredo entre ambos, mas na verdade a pauta era de conhecimento de todos ali.
O rapaz deu os ombros, como se aguardasse um retorno do padre:
— A bíblia é um livro muito difícil e nem todos são capazes de compreendê-lo, meu filho. — Padre Antony explicou, por fim, envergonhado. — Por isso, deve ouvir os sacerdotes, homens escolhidos por Deus para guiar o rebanho. Assim, preste atenção, os negros não têm alma, não podem se converter, se tornarem cristãos, porquanto, devem permanecer na qualidade de animais, a servir seus senhores.
O olhar meticuloso do rapaz era praticamente uma afronta. Mesmo assim, ninguém o desafiou.
O que era uma sorte para todos eles. Porque Damien tinha sua própria teologia, pronta a ser aplicada.
Os negros não eram animais! E mesmo que fossem, desde quando animais foram criados para servir? Deus os havia criado, no Éden, para serem companhia aos homens.
A serpente, o pecado, corrompeu tudo. E ali, diante daquele padre, ele soube que o mal criado naquele universo distante permanecia forte e destruidor.
— Se uma guerra civil estourar, como eu acredito que acontecerá — prosseguiu Damien, após algum silêncio perturbador onde ele esforçou-se para ignorar o padre —, quero evitar deixar uma esposa à minha espera, pois terei que me alistar, e poderei morrer durante a batalha.
Ele quase podia ouvir a mãe dizer: “ Que assim seja ”.
— Pretende se alistar?
— Meus dois filhos lutarão, caso ocorra à guerra! — Theodoro respondeu por ele. — Fui Coronel durante Guerra Mexicano-Americana, e jamais permitiria que meus filhos se escondessem embaixo da saia da mãe enquanto nossa amada terra precisa de proteção!
— O senhor é um homem valoroso, coronel — o padre afirmou. — E um patriota.
O tema, então, centralizou-se, no quanto estava na hora do Sul declarar guerra. Os malditos nortistas, além de tentarem abolir os escravos que mantinham as fazendas do Sul, ainda cobravam tarifas exorbitantes em cima dos produtos sulistas. Aquilo tinha que acabar. E tanto o padre quanto o fazendeiro só viam uma solução: a luta armada.
Erguendo-se, Damien se afastou. Sequer foi percebido, enquanto saia da sala; naquele instante notou que ele era praticamente um estranho entre os seus.
***
O som dos cascos fez o sangue de Rose correr com velocidade nas veias. Com as mãos trêmulas e com o coração saltando, ela largou a enxada onde organizava a horta e correu para dentro da casa. Em segundos, estava com o rifle nas mãos, arma que encontrou escondidas entre as coisas de Loreto. Provavelmente, o homem mantinha-o em secreto por medo de Rose pegá-lo e matá-lo enquanto dormia.
Não seria mentira dizer que era exatamente o que ela teria feito, caso soubesse da arma antes.
Não sabia atirar. Na verdade, a única coisa que a moça sabia era cuidar da casa e das plantas. Não era audaciosa nem uma heroína, como as que a escrava velha Lucia costumava relatar nas rodas de prosa que ela ouvia ao longe, pois nem os escravos queriam se aproximar dela.
Logo, baixou a arma. O coronel das terras surgiu em seu alazão. O homem não era um perigo, pois nenhuma vez a quis, quando Loreto tentou vendê-la para ele. Os filhos vinham atrás, e ela se arrepiou diante da semelhança. Sabia que ali estava um diabo e um anjo. Identificar qual era qual era tarefa impossível.
— Eu soube que seu padrasto morreu — Coronel Theodoro sequer a cumprimentou. Tampouco desceu do seu cavalo. Autoritário, diante dela, parecia estar falando com um cão. — Quero saber se continuará a pagar para viver aqui, ou se irá embora?
Ir embora? Para onde? Uma moça como ela só teria espaço nos saloons da vida, e ela não conseguia se imaginar a prostituir-se mais.
— Meu padrasto só manteve o pagamento em dia porque eu escondia o dinheiro das vendas dos milhos, coronel — respondeu. — Manterei o pagamento em dia, e peço que me deixe ficar.
O homem assentiu, parecendo indiferente. Depois, deu a volta com o cavalo, e saiu, cavalgando, sem olhar para trás. Um dos filhos o seguiu, sem se dignar a encará-la. Porém, o outro ficou parado. Olho no olho. Ela tremeu.
— Precisa destravar a arma, moça — ele sorriu. — Não vai conseguir atirar com ela assim.
Era o anjo. Aquele que não a olhava como um lixo humano.
— Não sei atirar.
— Eu posso ensiná-la, se não se ofender. Já soube que precisa se defender, ainda mais agora que viverá sozinha, nessa casa longe de tudo.
Silêncio. Era como se Rose medisse suas palavras.
— Não me apresentei, não é? Sou Damien Hill.
— Se sabe que preciso me defender, deve saber meu nome — ela devolveu.
Era perspicaz. Com certeza, Rose era o tipo de moça que só não estava, naquele instante, casada com um intelectual porque não tivera oportunidade de estudo.
— Rose Davis — ele assentiu. — Um nome que combina muito com sua figura — sorriu novamente. — Parece aquelas rosas de campo, amarelas — apontou.
Não era um flerte. Ela percebeu que o Hill diante dela era um homem que apenas buscava sua amizade.
— Eu o aguardarei — disse. — Para quando puder me ensinar — ergueu o rifle.
— Será uma honra.
Damien segurou a ponta do chapéu e o baixou, num gesto de despedida. Depois, saiu a galope.
Mesmo quando a figura máscula dele desapareceu no horizonte, o coração dela prosseguia a bater, descompassado.
Capítulo 03
Sentimentos
— Segure com força — Damien ordenou, postando-se atrás da loira. — Quando você atirar vai dar um solavanco. Precisa se manter firme para não cair pra trás com o coice.
Apesar de o homem estar atrás dela, com as mãos na arma, ajudando-a a mirar, ele não a tocava, sequer tentava algum tipo de sedução barata. Aquilo era tão tranquilizador que Rose quase suspirava de alívio.
Homens costumavam representar horror para ela. O toque, o som da voz, as bocas molhadas. Em tudo, ela tinha nojo. Ela queria distância. Mas, não o jovem Hill com suas roupas simples e suas botas de couro. Ele não parecia rico nem dominador. Parecia apenas um igual, alguém a quem ela poderia nutrir afeição, assim como ao falecido padre de sua infância.
— Atire — ele mandou.
Ela não conseguiu.
— Eu tenho medo — assumiu, pela primeira vez em sua vida, em voz alta.
Damien a fez baixar a arma, depois, puxou-a levemente para ficarem frente a frente.
— Há muitos anos existia um sábio que disse: “ Sob a direção de um forte general, não haverá jamais soldados fracos ”. Eu estou aqui, dirigindo seus atos. Não carece se preocupar com nada, apenas se concentre em aprender, está bem?
Ela assentiu, envergonhada. Depois, voltou-se para o alvo. Ergueu a arma.
— Onde aprendeu a atirar tão bem? — indagou a ele.
— Meu pai me ensinou desde que eu era moleque. Antes de me enviar para uma escola de padres, a fim de que me formasse.
— E permaneceu com a pontaria tão perfeita? Numa escola de padres?
— Eu costumava fugir das aulas com um amigo especial e íamos treinar tiro ao alvo nas florestas. Era divertido — contou.
— E foi lá que ouviu falar desse sábio?
Por que estava tão interessada? Por que até o respirar baixo dele acalmava-a?
— Sócrates? — ele riu baixinho. — Sócrates me rendeu algumas horas de joelhos sobre pedregulhos, em penitência. Os padres não gostavam que lêssemos sobre tal assunto. Acho, nisso, a religião do norte mais liberal.
— Os protestantes?
— Isso. Parece que lá eles têm uma mente mais aberta em relação à literatura. — Pareceu pensar, depois. — Bem, é o que dizem, mas não dá para ter certeza. Nunca fui para lá.
Voltou a segurar a arma com ela.
— Não tenha medo — disse, novamente. — Estou atrás de você, Rose Davis.
Era como uma promessa. Subitamente, o medo realmente desapareceu. Lágrimas formaram-se nos seus olhos, porque em suas vinte e poucas primaveras de vida, Rose Davis nunca viveu um momento tão desprovido de medo quanto aquele.
Apertou o gatilho. O repuxo a impulsionou contra o corpo de Damien. Não se abalou, não tremeu nem chorou. Tudo nela, ao contrário, era conforto e gentileza.
Ele, contudo, afastou-se tão logo ela adquiriu equilíbrio. Sorriu.
— Meus parabéns, acertou o alvo — apontou.
Os olhos azuis da loira levaram certo tempo para abandonar aquele rosto másculo. Enfim, ela encarou a lata, adiante, e a viu no chão, com um buraco a lhe perfurar.
— Eu consegui... — parecia não acreditar.
— Parabéns, Rose. Agora você é oficialmente uma atiradora — brincou. — Bem, precisa treinar mais, mas já é um começo.
Um breve cafuné no topo de sua cabeça, um carinho inocente e delicado. Então, ele se afastou, não percebendo o turbilhão de emoções que despertou na nova amiga. Um sentimento que a acompanharia para todo sempre.
***
Rose Davis era uma das joias mais raras que ele já havia conhecido. Descrevê-la como bela seria até uma afronta diante de tal aparência. Rose tinha mais que beleza. Ela parecia possuir um espírito tão intenso que subjugava até mesmo aqueles lindos olhos azuis e longos cabelos dourados.
Porém, naquela manhã, quando Damien viu o rifle apontado para sua cabeça, ele quase riu, percebendo que ela também era uma mulher valorosa, que não mais se deixaria explorar.
Só então notou que ensiná-la a atirar foi o melhor presente que ele poderia ter lhe dado. Um primeiro presente. Provavelmente, jamais o último.
— Definitivamente — Damien começou, tirando o chapéu. — Precisamos de um código para que você saiba quem sou eu e quem é Drew...
Foi pelo tom gentil de sempre que ela percebeu que era o irmão bom que estava diante de si.
— Me desculpe. Não tinha como saber... São iguais.
— Não se preocupe, a única pessoa que nos distingue é minha mãe. Até mesmo meu pai nos confunde.
Ela assentiu, compreensiva.
— Por favor, então, crie alguma palavra-chave para nos servir de código.
Subitamente, ele abriu a boca. De repente, não mais o cowboy másculo e gentil que ela conhecia. Agora, um cantor. E de uma voz melodiosa e sublime.
“Antes de soprarem as brisas de maio,
Antes de o melro cantar no bosque:
Se me quiseres ver uma vez mais,
Vem, oh, vem depressa!
Vem, oh, vem depressa!”.
Era uma canção tão delicada que Rose viu-se a abrir a boca, em espanto. Nunca ouvira aqueles versos, mas, repentinamente, era como se eles a atingissem de tal maneira que ela soube que jamais os esqueceria.
— Será a nossa melodia, Rose... Quando eu citar uma estrofe dela, saberá que sou eu...
Ela aquiesceu.
— Que linda canção.
— É Shakespeare — ele explicou. — Um escritor inglês. Eu costumava ler muito seus romances quando estava na escola, e gostava tanto da forma com que ele narrava o amor, que cantava suas palavras, como se fossem uma música. — Encarou-a, mais seriamente. — Bom, agora o é. Nossa música, Rose.
Algo no íntimo feminino explodiu, mas diante do semblante inexpressivo, ela apenas concordou mais uma vez.
***
O que Rose Davis sequer imaginava era que todos os sentimentos que pareciam eclodir dentro dela, também se manifestavam em Damien. Contudo, ele era assim, de postura acanhada e não muito aberto ao amor.
Até porque, o que diria a ela?
Ao longe, observou-a próxima da entrada da igreja, sentada em um banco de madeira do outro lado da rua, com o terço velho de pedras na mão.
Ela encarava o templo com aquele olhar profundamente desprovido de intenções mundanas.
Rose era assim... sofrida demais, alheia demais... Haveria espaço num coração tão destruído para um sentimento como o dele? A resposta parecia clara demais: não.
Tudo que ouvira sobre ela não lhe causou nojo, nem desprezo. Desde o primeiro dia que a viu, lutando contra seu irmão e o padrasto, as lágrimas parecendo querer escapar dos olhos, a boca aberta, buscando respirar, enquanto proferia um pedido desesperador de que Drew a matasse... ele soube que a moça era alguém marcada pela tristeza e pela solidão.
Sequer os negros se aproximavam muito dela. E isso que as moças escravas costumavam serem corrompidas por Drew. Mesmo assim, o conhecimento de todo aquele vilarejo de que a loira era uma escrava sexual do padrasto causava tamanho horror que ninguém sequer a cumprimentava.
E, pelo jeito, nem na casa de Deus ela tinha espaço. Mesmo assim, ele admirou-a por estar ali, ouvindo de longe o sermão, como se pedindo perdão por crimes que não cometera.
Se fosse ele no lugar dela, o que sentiria? Ódio por um deus que lhe desviou a face ou simplesmente ânsia de vingança por todos aqueles que destruíram sua infância e seus sonhos?
— Por que não entra? — indagou, assim que se aproximou, nervoso por vê-la tão afastada dos demais.
Ela o encarou assustada.
— “ Se me quiseres ver uma vez mais” — ele murmurou, acalmando-a.
O sorriso tornou a surgiu na boca bonita.
— Padre Antony disse que a Casa de Deus não é meu lugar.
Aquilo fez o sangue de Damien ferver.
— Por que não o enfrenta?
A resposta era tão simples que ela riu, enquanto encarava o templo. O que faria aquela comunidade com uma jovem como ela, tão logo enervasse o padre local?
— Então por que não vai embora?
— Não foi padre Antony que me ensinou a fé. Não será ele a me tirar a única coisa que tenho. — Voltou o rosto para Damien. — Quando aconteciam, você sabe, as coisas que faziam comigo... Era em Deus que eu me agarrava para não enlouquecer. Ele não me defendeu, mas me fez forte. Forte o suficiente para suportar as provações.
Ela era extremamente admirável.
— Diga-me, Rose... Quem a ensinou a ter tanta fibra?
O elogio à fez sorrir. Era casto e delicado, como ela.
— Eu já tive um amigo antes de você.
— Oh, somos amigos? — ele brincou. — Isso me deixa feliz.
Ela entendeu o gracejo.
— Padre Juan me ensinou as letras e a entender a Bíblia. A maioria das coisas eu já me esqueci, mas ainda tenho um pequeno Novo Testamento embaixo do meu travesseiro. E, sempre que podia, eu o lia, para me lembrar das dores de Cristo.
— Padre Juan? Não foi ele que morreu baleado?
— Sim — afirmou. — Ele denunciou ao seu pai o que faziam comigo. Então, alguns homens o mataram.
— Meu pai não fez nada?
Era incrível como todo o mundo dele parecia desmoronar naquele instante.
— Damien, não reparou que é a única pessoa a não falar comigo como se estivesse escorraçando um cachorro?
Mesmo que tudo nele tornara-se revolta e repugnância, ele tentou não passar isso no olhar, para ela. Apenas, assentiu, incomodado, e então volveu-se para a igreja.
A missa não durou muito. Padre Antony apenas dizia palavras decoradas, sem o menor sentimento, e a única demonstração de entusiasmo que teve foi durante o aviso da confraternização que teria após o ato religioso.
Quando começaram-se os cânticos de encerramento, Damien respirou aliviado. Na parte externa da congregação, ele buscou o pai com o olhar. Rose já havia ido embora, e todos pareciam entretidos demais para reparem no seu semblante dominado pela raiva.
— Damien! — uma jovem lhe segurou o braço. Seu sorriso fútil lhe deu nos nervos. — Desde que chegou, não conseguimos trocar uma única palavra.
Constance Miller era a moça mais bonita de San Antonio. De aparência doce e delicada, ela costumava ter o perfume de jasmim. Não escondia de ninguém o quanto gostava de ser mimada e rica, e o quanto estava satisfeita com o enlace com Drew.
Damien até poderia lhe afagar o ego e lhe dar alguma atenção. Porém, estava ocupado demais procurando o pai.
— Ainda está magoado por meu noivado com seu irmão?
Se ele bem lembrava, pediu-a em casamento apenas porque considerou que era o certo a fazer, na época. Queria ter uma noiva quando voltasse para casa, e assumisse a fazenda. Ansiava por filhos. Apenas isso. E Constance era a mulher mais indicada.
Era...
Aquele pensamento morria diante de olhos azuis tristes que pareciam tocá-lo como nada jamais tocou.
— Estou feliz por Drew — disse, e estava sendo absurdamente franco.
Drew merecia uma esposa como ela.
— Então virá à cerimônia no mês que vem?
— Não perderei por nada.
Afastou-se, antes que ela prosseguisse com seu falatório sem propósito. Por sorte, logo avistou o pai.
Theodoro percebeu que o filho bufava, e achou por bem afastar-se dos comerciantes locais e ir ao seu encontro, antes que Damien fizesse um espetáculo a curiosos.
— Xerife! — O rapaz começou, antes mesmo dos dois homens se separarem do amontoado de pessoas. — Qual foi o resultado da investigação da morte de Padre Juan?
O coronel encarou o filho e respirou fundo.
— Está andando demais com Rose Davis.
— Não mude de assunto.
— Já disse que precisa se casar. Achar uma boa mulher...
— Ela é minha amiga — o cortou. — E é uma boa mulher. Seria alguém ainda melhor, não fosse o completo desinteresse que a lei dessa cidade demonstrou por ela. Abandonada por todos, viu seu único protetor ser assassinado. Exijo saber quem o matou!
— Para quê? Vai se vingar? — ironizou. — Pois já o conseguiu. Loreto atirou no padre, quando o sacerdote tentou levar a menina para um orfanato católico.
— E não fizeste nada?
— Rose Davis era o brinquedo do banqueiro, do dono da ferrovia, do juiz... e até do novo padre — disse, baixo. — Seria uma afronta a esses homens.
Damien deu um passo para trás, assustado, revoltado.
— Sempre o considerei um homem de valor, meu pai — confessou. — Hoje, sinto apenas vergonha de já o ter considerado meu ídolo.
— Damien...
— Condenou uma criança, uma menina inocente, a uma vida de degradação para não ficar numa situação política ruim com os homens poderosos dessa cidade.
— Damien... — tentou, novamente.
Contudo, o filho não o deixou prosseguir.
— Se qualquer homem, incluindo meu irmão, tentar abusar daquela jovem novamente, tomarei seu partido e protegerei a honra de Rose. Eu matarei o homem que o fizer. Então, se não quer ver seus tão influentes amigos mortos com uma bala na cabeça, e seu filho degolado por assassinato, é melhor espalhar a notícia.
Sem mais, afastou-se do pai, deixando-o embasbacado para trás.
Capítulo 04
O toque
O som do sininho da porta fez o comerciante encarar a jovem loira que entrava. Fechou a cara, pois o seu estabelecimento era um lugar sério e não permitia a vinda das moças de saloon e nem de Rose Davis, a escória da cidade.
Num dos cantos, a senhorita Constance Miller arregalou os olhos, enquanto soltava risinhos abafados pelo leque em direção a uma amiga igualmente morena que a acompanhava.
— Gostaria de comprar cinco quilos de açúcar e cinco de farinha de trigo, por favor — a jovem pediu, baixo, largando sobre o balcão certa quantidade de dinheiro.
Quem sempre ia ao local era Loreto, mas a cidade inteira sabia que o homem simpático fora morto por causa daquela vadia.
— Recolha seu dinheiro, moça, que gente da sua laia não é bem vinda ao meu comércio. Sou um cristão! Um homem de bem.
Rose mal conseguia olhar para ele. August Mandis, o comerciante, também já a havia usado certa vez. Porém, ela não queria que aquilo fosse do conhecimento de ninguém ali, especialmente da jovem bonita que ria dela, das suas roupas velhas e do seu olhar assustado.
Com as mãos trêmulas, apanhou o dinheiro e começou a se afastar, quando trombou em alguém.
Por alguns segundos, respirou aliviada, ao ver o rosto de seu querido amigo Damien a encará-la. Porém, segundos depois, o sorriso diabólico a fez perceber que era o próprio diabo que estava diante de si.
— Essa cadelinha está achando que é dama da sociedade, agora? — gargalhou Drew.
Porém, o riso durou pouco e logo ele pareceu envergonhado pelo palavreado, ao notar a noiva em um dos cantos.
— Constance! — exclamou. — Lamento por ter cruzado seu caminho com essa mulher.
Rose encarou a jovem. Reconheceu o nome, é claro. Todos em San Antonio sabiam que Constance Miller era a mulher mais desejada e invejada do local. Contudo, os sentimentos de Rose não se igualavam a inveja ou coisa do tipo. Tudo que ela queria era ter paz, algo que Constance parecia possuir em abundância.
— Não me incomodo — disse a morena, o sorriso igualmente diabólico nos lábios.
Então aquele olhar negro a mediu, de cima para baixo, como se estivesse diante do esgoto.
As mãos de Rose tremeram e ela nada pôde fazer a não ser sair correndo do lugar, buscando qualquer canto onde pudesse se abrigar de tamanha dor.
Por quê?
Qual seu crime?
Ela não conseguia se defender, quando criança. E lutou muito, quando adulta. Agora, acreditou que as coisas seriam mais fáceis, mas...
Colidiu em algo sólido, braços masculinos que, momentaneamente, lhe causaram aflição.
— Ei — o rapaz a encarou, tentando acalmá-la. Um sorriso puro, que parecia vir do fundo do coração. — Rose... — a chamou, quando ela pareceu assustada. — “ Se me quiseres ver uma vez mais”, lembra-se?
Então, ela parou de se debater. Contudo, as lágrimas não paravam de correr, e ela mal conseguia aguentar o peso daquele passado do qual não tivera nenhuma responsabilidade.
— O que houve? — inquiriu. — Fale-me, Rose — exigiu.
— O açúcar... A farinha... — disse, entre soluços abafados, apontando o comércio. — Não quis ofender ninguém... Não quis...
Então, Damien pareceu compreender tudo. Pegando-a pelo braço, a arrastou para o mesmo lugar do qual ela saiu. Entrou no comércio, o olhar sério a encarar o comerciante. Atrás dele, Rose tremia de forma incontrolável, não apenas por temor ao que poderia acontecer a ela, mas também pelo que poderia ocasionar ao nome de Damien quando as pessoas descobrissem que eram amigos.
— A moça pediu para comprar açúcar e farinha?
August pareceu assustado.
— Entenda, Sr. Damien...
— É Doutor Hill. Sou advogado. E poderei levar o senhor à justiça, pois Rose Davis é uma cidadã branca e têm direitos. Aliás, acostume-se a isso, porque em breve, não apenas ela, mas mais cidadãos americanos, não importando a sua cor, sua origem, ou sua condição social, também terão direitos que deverão ser respeitados.
Um risinho masculino fê-lo girar a face para um dos lados. Só então Damien percebeu que Drew e sua noiva estavam no local.
— Sempre defensor dos fracos e oprimidos, meu irmão.
— Sou um homem de caráter e honra. Coisa que você não é!
Apesar das palavras grosseiras, Drew não esboçou nenhuma reação. Os mantimentos foram arrumados rapidamente e, em menos de dois minutos, Rose e Damien saíam do estabelecimento, carregando sacolas.
— Jamais poderei agradecê-lo por tudo, Damien... — ela murmurou.
Ele olhou para os lados.
— Como levará as sacolas? Tem alguma carroça?
Ela riu.
— Nem um cavalo eu tenho, doutor — brincou. — Não se preocupe, eu as levarei com as mãos.
— São pesadas — ele pareceu não querer soltá-las.
— Eu aguento.
— Vou levá-la.
— As pessoas da cidade verão.
— E teme o que vão pensar?
— De mim? Já sei que nada que eu fizer pode piorar a minha situação. Mas, não vai querer seu nome envolvido ao meu, Damien. Sou muito grata pela sua amizade, mas que ela seja apenas de nosso conhecimento. Não quero ser um estorvo em sua vida, pois em breve, provavelmente, encontrará uma jovem como Constance e pensará no futuro... Enfim, quero que sua futura esposa tenha de ti a imagem perfeita.
Ele sorriu, doce.
— Rose... — balbuciou. — Ela já o tem.
Rose sentiu a frase como uma punhalada. Os olhos, inconvenientes, nublaram-se. Puxando a sacola, ela deu as costas a ele, e começou a caminhar rapidamente em direção à estrada que levava a saída do vilarejo.
Então, Damien gostava de alguém? Já estaria noivo?
O pensamento cruzou sua mente e fez com que todo seu corpo tremesse.
Não sabia muito sobre ele. Apenas o que pouco conversavam, nas vezes que se viam. Assim sendo, provavelmente, ele até já estivesse de casamento marcado.
Por que doía tanto? Por quê?
O que era aquela vontade sufocada de chorar?
Quando ela tropeçou e o corpo quase se projetou para frente, foi que notou que Damien não a havia deixado. Ele estava atrás dela, protetor, e a amparou, no exato momento que Rose considerou que cairia no chão.
Então a voz dele surgiu, num sussurro, contra suas orelhas, e tudo nela tornou-se labaredas de fogo:
— Você será a mãe de meus filhos, Rose Davis.
Não importava o que custasse, aquela promessa se cumpriria.
***
Theodoro Hill não se casou por amor. Aliás, ninguém da sua família sequer havia passado pela experiência da paixão. O mundo sempre foi um lugar difícil, ainda mais no Texas, palco de muitos conflitos desde que se lembrava.
Assim sendo, quando saiu da guerra e assumiu a fazenda de seus antepassados, aleatoriamente escolheu a jovem que mais lhe agradava para ser sua esposa. Margareth era filha do banqueiro da região, tinha uma boa família e era de agradável visão. Porém, a convivência a tornou insuportável.
Conforme os anos foram passando, vieram os filhos. Dois. Iguais. E, sem nenhum motivo ou propósito, Margareth se apegou ao último. Apesar de serem idênticos, ela costumava falar que Drew era mais bonito. Protegia o caçula, mesmo nas piores travessuras, e sequer tentou impedi-lo de estuprar a serva da cozinha, na primeira vez que esteve com uma mulher.
Em contrapartida, Theodoro volveu o olhar para o filho rejeitado. O oposto do irmão, Damien era gentil, compassivo e solidário. Principalmente, amava a terra, era grato por ela. Gostava de cavalgar com o pai e tratava os escravos com respeito e consideração. Theodoro sempre quis um diploma, pois percebia o avanço do norte industrial e considerava importante que a família tivesse mais que posses agrícolas. Assim, escolheu o primogênito para enviar a faculdade.
Portanto, naquele instante, enquanto ouvia Margareth tagarelar da última, chamada por ela, ofensa à família, ele apenas mantinha o pensamento longe, desejando ardentemente morrer e deixar toda aquela “família exemplar” para trás.
— Você não vai fazer nada?
A pergunta não era bem uma pergunta. Era uma exigência.
— O que quer que eu faça?
— Damien está sendo visto com aquela vagabunda da Rose Davis praticamente todos os dias. Não pode permitir que ele manche o nosso nome dessa forma.
Theodoro parecia com o olhar longe.
— Meu filho me chamou para conversar durante a festa de confraternização no domingo. — ele contou. — E, pela primeira vez, eu vi decepção nos olhos de Damien.
— Decepção? — ela desprezou.
— Damien disse que tinha vergonha de mim — confessou. — Não imagina como doeu.
— Vergonha? Por que motivo?
— Porque eu ouvi você, anos antes, quando me disse para não fazer nada referente à morte de padre Juan. Que eu devia apenas informar que havia sido um assalto mal sucedido, e que o assaltante fugiu.
— Foi o melhor!
— Foi uma mentira que condenou Rose Davis a uma vida de degradação e amargura. Acha mesmo que Deus não vai nos cobrar por algo tão grave?
— Deus não se importa com cadelas vagabundas — devolveu. — Deus se importa com a paz dentro das suas cidades. O que acha que aconteceria se a vadiazinha abrisse o bico para as freiras do orfanato e delatasse todos os homens de bem dessa cidade que se deixaram levar por um único momento instintivo?
Theodoro baixou a face, envergonhado.
— Deserde Damien — aconselhou. — Ele pode causar muitos problemas.
— É seu filho, como pode falar assim? — estava pasmo.
— Quero proteger os Hill daquele pensamento nortista que ele sempre teve e que nunca tentou esconder.
— Quer é colocar tudo pelo que sempre lutei nas mãos inconsequentes de Drew — devolveu. — Damien é meu primogênito e meu herdeiro legítimo. Drew herdará as terras que possuo mais ao leste e algumas ações no banco. O deixarei muito bem amparado, se dê por satisfeita.
Margareth suspirou, irritada.
— Sabe que Abraham Lincoln será eleito presidente, não sabe?
— Se opondo a escravidão? Ele já levou uma surra de Stephen Douglas antes [1] .
— Ele não tem apoio no Sul, mas irá vencer no norte — Margareth garantiu. — E eu sei que vai estourar uma guerra, tão logo isso ocorra. E quando acontecer, sei que mandará seu amado Damien para lá. — sorriu, maliciosa. — E Damien irá morrer lá, então meu Drew herdará tudo.
Theodoro não se chocava mais pelas palavras da mulher. Ela maldizia o filho mais velho sempre que tinha oportunidade.
— Mandarei os dois — afirmou. — Talvez suas palavras se voltem contra você.
— Nunca — parecia segura. — Deus sempre ouve as preces de uma mãe.
Margareth Hill sabia, Deus a ouvia naquele instante. Todavia, o Todo Poderoso não estava nada satisfeito pelas suas blasfêmias.
Capítulo 05
Despertar
Constance Miller sorria de ponta a ponta enquanto recebia os cumprimentos na porta da igreja. Feliz demais, a recém-casada mal encarava o marido, que também se mostrava muito venturoso pelo enlace.
Eram iguais, Drew e Constance: rasos e superficiais.
Como não iriam adorar aquele casamento?
A festa, uma das maiores já vista em San Antonio, atraiu gente de várias cidades. Mais de dez terneiros haviam sido mortos para serem assados, e a bebida era servida sem custos em mesas largas e cumpridas, onde gente de todo tipo sentava-se, festejando.
Todos, menos Damien.
O pensamento dele estava longe. Na mulher loira que não havia sido convidada e no fato de que, com a aproximação da guerra, Rose ficaria sem sua proteção.
— O próximo será o seu, meu filho — Theodoro achegou-se a ele, pousando a mão em seu ombro.
— Sim, meu pai. Eu me casarei assim que possível.
A frase chocou o homem. Não esperava aquele retorno.
— Tem alguma jovem em mente?
— Rose Davis.
Theodoro abriu a boca em espanto, mas não lhe retrucou. Seu filho já era homem feito, e devia fazer as próprias escolhas, mesmo que não concordasse com elas.
— Sua mãe vai morrer de desgosto — disse, contudo.
— Não me agradeça — a frase foi dita num murmuro.
Theodoro, dessa vez, gargalhou.
***
Tão logo Abraham Lincoln foi firmado presidente dos Estados Unidos da América, os sete estados escravistas do sul declararam cessão à União e formaram os Estados Confederados da América.
A guerra estava às portas.
Mesmo em seu discurso de posse, Lincoln já deixava claro que o inevitável viria, a passos largos, impiedoso, sobre o povo.
Os burburinhos começaram a correr, em todo canto. Rose Davis não tinha tempo para buchichos, pois sua pequena propriedade onde plantava milho, batata, tomates e verduras lhe ocupava o tempo por demais. Não apenas isso, claro, ela passava os dias pensando em Damien e em suas palavras enigmáticas.
Desde aquela afirmação estranha, há quase três meses, ele passou a visitá-la todos os dias. Nunca avançava nenhum limite, jamais tentava intimidá-la, mas parecia inquirir sobre os sentimentos dela a cada frase que dizia.
Contudo, como a jovem poderia acreditar na veracidade das intenções do outro?
Hill seria o herdeiro absoluto de Theodoro. Estava pronto para ser o maior fazendeiro do Texas. Além disso, era advogado, letrado. Sem contar que mantinha o respeito da sociedade pela pontaria rápida naquela região árida.
Damien Hill teria a mulher que quisesse.
Mas, ele queria Rose Davis?
Só o pensamento a faria rir. Que homem desejaria uma mulher como ela? Com um passado tão tenebroso? Damien estava arriscando sua posição na sociedade em tentar cortejá-la.
— Você está preocupada com o que as pessoas vão pensar, é isso? — ele indagou, certa vez, quando ela lhe transmitiu seus pensamentos.
— Preocupo-me com você, sim. — Rose afirmou. — É o único amigo que tenho. Já tive outro, e quando tentou desafiar o poder local, foi morto.
— Que homem de San Antonio teria culhões nas calças para duelar comigo, Rose? — ele riu. — A maioria não passa de velhos de vistas nubladas.
Mesmo assim, aos seus olhos, era impossível. Um amor impossível.
Contudo, não conseguia desprezá-lo. Ansiava por suas visitas diárias, quando sentavam-se na varanda e ela lhe servia chá de folhas de laranjeira e conversavam sobre a vida dele na escola ou sobre como o sol havia amarelado os pés de couve da horta dela.
Nenhum toque inconveniente, nenhuma palavra desprezadora. Damien agia como ela imaginava que um homem agiria quando respeitava uma mulher a qual desejava por esposa.
E ela mal conseguia esconder a felicidade por aquilo. Portanto, quando os confederados atacaram o Forte Sumter em 12 de abril de 1861, e a norte respondeu positivamente em sinal de guerra, Rose foi uma das únicas pessoas a não sentir medo nem ansiedade pelo futuro. Até porque, Damien lhe transmitia muita confiança.
Certo dia, chegou a sua casa com um envelope. Entregou a ela, e viu seu olhar assustado diante de tantas notas de dólares.
— O que quer que eu faça com isso?
— Rose, serei enviado à guerra. Vou lutar pelo Sul. Vamos perder, isso é fato. Lincoln fará tudo que puder, e até o que não puder, para evitar que a nação se divida. Não poderei protegê-la, enquanto estiver longe, mas com esse dinheiro você poderá ir para o norte e viver tranquilamente lá, até que tudo se finda. Quando acabar, a buscarei e nos casaremos.
— Isso é loucura, Damien — ela murmurou. — Não posso aceitar.
Então, depois de tanto tempo a cortejá-la, Damien não resistiu mais. Puxou-a de encontro ao corpo, e beijou-a nos lábios. Não apertou seu corpo, nem tentou subjugá-la, porque sabia o quão assustada ela ficaria com seu ato; todavia, queria, de alguma forma, que ela tivesse certeza dos sentimentos dele, e do quanto se preocupava com o que poderia acontecer a ela.
Rose não fugiu. Enquanto recebia o beijo intenso e delicioso na boca, ela aceitou amparar-se naquele corpo adorado.
Estranhamente, o pensamento mais irônico possível lhe passou na mente: o quão sortuda ela era por ter se apaixonado por seu único amigo?
— Eu poderei morrer na guerra, Rose — ele reafirmou o que mais o atormentava, assim que a soltou. — Eu sei disso, aliás, acho que é o mais provável que aconteça. A vida já me ensinou que normalmente os bons morrem, e os maus prevalecem.
Ela sabia daquela verdade. Da euforia, sentiu as lágrimas inundando seus olhos e o coração apertar, como se estivesse sendo exprimido por mãos cruéis.
— Esse dinheiro te dará um recomeço, longe de toda essa gente maldita — afirmou. — Eu mandarei meu soldo para você, também. O enviarei para um banco, em seu nome, e quando tudo se findar, você poderá sacá-lo. Se eu sobreviver à guerra, me casarei contigo e te darei uma vida honrada. Se não, te darei um recomeço, algo que possa te fazer prosseguir.
Só então, as lágrimas que ela escondeu a custo escorreram por seus olhos.
— Por que está fazendo tudo isso por mim?
— Que pergunta sem cabimento! — Damien gargalhou. — Que outro motivo eu teria que não fosse o fato de que eu a amo desde que a vi pela primeira vez, Rose Davis?
Ela esperou outro beijo, mas Damien simplesmente curvou-se diante dela e afastou-se, voltando-se na direção do cavalo.
— Quando eu for chamado para ir à guerra, espere por mim — pediu. — Não vá se casar com outro homem.
Rose riu.
— Nenhum outro seria louco o bastante.
— Nenhum outro entende a preciosidade que você é, minha amada — ele murmurou.
E então afastou-se, deixando-a nas nuvens.
Capítulo 06
A paixão
Mesmo diante dos trovões e do barulho quase ensurdecedor da chuva, Rose Davis abriu os olhos naquela noite de quinta-feira sabendo que havia algo errado.
O som do lado de fora unia-se ao ecoou-o de algo além dos efeitos da tempestade. Eram cascos de cavalos a bater contra o solo úmido. Subitamente, um relinchar invadiu o ambiente, e ela saltou da cama improvisada de feno, num misto de susto, medo e ansiedade.
Nunca conseguiu dormir direito à noite. Sempre temia as visitas noturnas de Loreto ao seu canto do casebre. Ele ou qualquer outro homem, pois ela nunca sabia quando teriam forasteiros.
Então, sempre que se deitava, tentava dormir de forma leve, para conseguir acordar a tempo de se proteger. Fugir, claro, não era opção. Não havia lugar seguro para uma mulher como ela naquela terra inóspita. Assim sendo, ela precisava resguardar-se com o que tinha. Antigamente, as pernas e braços. No momento, o rifle que ela passou a amar.
Ergueu-se rapidamente, empunhando a arma em direção à porta.
E então esperou...
Não levou muito tempo, é verdade. Basicamente, três suspiros apreensivos dela e então o som de duas batidas anunciou o visitante.
— Quem é? — questionou, tentando ao máximo demonstrar coragem na voz.
— Rose — o tom era conhecido. — Vem, oh, vem depressa! — A voz potente ecoou.
Imediatamente, a mulher baixou o rifle, correndo até a porta. Abriu-a, e encarou Damien, que estava completamente molhado.
— Rose... — ele murmurou, segurando o rosto dela, puxando-a para um beijo.
Por algum motivo desconhecido, ela entendeu que aquele beijo tinha um significado especial. Então, viu as lágrimas e assustou-se.
— O que aconteceu?
— Vim me despedir — ele murmurou. — Minha amada... Minha melhor amiga — sorriu. — Não faz ideia do quanto me sinto apreensivo por ti...
Pela primeira vez, Rose tocou um homem. Até então, sempre que erguia a mão era para empurrá-los, afastá-los de si. Naquele instante, ela sentiu um forte impulso de acariciá-lo, tentar fazê-lo entender que ela o amava, mesmo que provavelmente jamais conseguisse pronunciar as palavras.
— Quando vai partir? — indagou.
— Amanhã. Amanhã irei para a guerra, Rose...
— Por que fala como se fosse à última vez que nos veremos?
Ele sorriu, triste.
— Eu quero voltar vivo. Eu farei tudo que puder para voltar vivo. Mas, não posso arriscar o seu futuro, querida... Não o seu. Você já sofreu demais, precisa de segurança.
Subitamente, um envelope surgiu entre eles.
— Não quero seu dinheiro, Damien — ela negou, antevendo o conteúdo.
— Não é dinheiro. Aí dentro existe uma carta de recomendação. Quando sair daqui, durante a guerra, procure a mulher da carta. Digamos que ela me deve um favor... — ele riu. — Também há o nome de um homem. Eu redigi, nessa noite, uma carta para ele, e amanhã enviarei. Procure-o, e ele saberá o que fazer por você.
— Um homem e uma mulher? Quem são e por que quer que eu vá para perto deles?
— Ambos são meus amigos da época da faculdade. Ele, meu colega, hoje é juiz. Ela foi expulsa da escola de padres, entenderá o porquê quando a conhecer. Enfim... — deu os ombros. — Não importa o que acontecer comigo, Rose... Você precisa pensar no seu futuro e precisa seguir adiante.
— Até conhecê-lo, Damien, eu não tinha sequer um motivo para existir. Agora parece pedir para que eu o esqueça.
— Jamais. Quero que se lembre de mim todos os dias. Mas, querida... Por mais animados que estão meu pai e meu irmão... Eu sei que perderemos essa guerra.
— Por que tem tanta certeza?
— Porque Deus intervirá em favor dos escravos — decretou. — As pessoas que dominam a religião sempre conseguem enganar por algum tempo, mas não para sempre. E, eu sinto, do fundo da alma, que o tempo da escravidão chegou ao fim em nossa pátria.
Ela sorriu, encantada.
— Jamais pensei que fosse um homem de fé.
— Digamos que eu vejo Deus onde as demais pessoas não veem — ele riu. — Vejo Deus no sorriso de uma criança, ou no rabo balançando de um amigável cachorro. Na sombra de uma árvore num dia quente, ou na chuva em tempos áridos. Contudo, não o vejo em infinitos sermões estafantes ou na hipocrisia de um templo luxuoso. Você consegue me entender?
Ela assentiu.
— Então, Rose... é a primeira pessoa a me compreender. Não que isso me surpreenda, pois desde que eu a vi pela primeira vez, eu soube, era especial. Isso — uniu a mão direita dela ao seu coração —, nossos corações, eles batem ao mesmo tempo.
Dois corações que batiam ao mesmo tempo... Mas, durante quanto tempo? Subitamente, Rose entendeu que aquela poderia ser a última vez que o via. Ele, o único homem depois de padre Juan a lhe estender a mão. Mais que isso, Damien a ensinou a atirar, a proteger-se e ainda a amparou com dólares para fugir, quando chegasse o momento.
Contudo, como ela conseguiria partir sem notícias dele? Se permanecesse em San Antonio, pela família Hill, saberia se o seu amado vivia ou não. Mas, longe de tudo, ao norte... O que lhe restaria?
Não podia partir... Não podia deixá-lo partir...
Porém, uma mulher não tinha muitas escolhas em tempos como aquele. Com a aproximação da guerra, não muito restaria.
Apenas o calor daquele toque, o sabor daquele beijo...
Então, Rose segurou o rosto dele com as duas mãos e o puxou contra si. Arrebatou-o com outro beijo, dessa vez mais carnal, mais feminino, dando a ele o que nunca havia dado a nenhum outro.
Sim, tomaram dela a honra e a dignidade. Arrancaram a cortes profundos sua vontade de viver, de sorrir e de amar. Mas, Damien estava curando todas as feridas.
Damien...
Repentinamente, ele a empurrou. Ela soube imediatamente o porquê. O desejo que despertara nele, semelhante aos dos outros homens, contudo, era repelido pelo jovem.
— Quando for minha esposa — ele jurou.
— Eu sou sua, não me importa o que dizem as leis morais ou as leis dos homens. Eu sou sua, Damien... Nunca fui de mais ninguém...
Não havia como resistir aquilo. Damien era, acima de qualquer coisa, um homem com sangue nas veias. Apertando-a contra o peito, ele encarou o rosto, tentando decifrar se havia entendido alguma coisa errada.
Porém, o desejo, a paixão... Tudo estava ali. No respirar rápido, no corpo quente, na forma como ela parecia querer esfregar-se contra ele, mas impedir-se por vergonha ou decoro.
E então ele riu, baixinho, deliciando-se com aquela estranha timidez. Porque, afinal, de que adiantava falsos moralismos ou recato entre eles? Ambos se conheciam mais intimamente que o físico. Rose e Damien podiam decifrar a alma um do outro, aventurados num mundo onde tantos buscavam a mesma coisa, mas poucos tinham tanta sorte em encontrar.
— Eu te amo... — ele murmurou mais uma vez.
A força daquele amor seria para sempre.
***
Rose arqueou as costas sobre o feno, sentindo todo o corpo pulsar. Nua, entregue sob a luz da lamparina, ela podia visualizar pequenas gotas de suor a escapar das costas largas de Damien.
Estendendo as mãos, ela passeou os dedos naquela pele molhada, deliciando-se com o contraste de suas mãos frias.
Damien era vagaroso na arte de amar. Se bem que ela não tinha muita experiência, porque amor, amor mesmo, era sua primeira experiência. Tudo no passado era apenas dor e agonia.
Havia agonia agora, também, mas era intercalada com palpitações que centralizavam-se no seu gozo de mulher.
Estava molhada, e sabia que lambuzara os dedos de Damien antes, quando ele pôs a mão na sua parte mais íntima. Na experiência gritou, não acreditando que podia haver tanto prazer em algo tão simples.
Deu-se conta, em seguida, que não era o ato... era a pessoa. Era ele, Damien, quem lhe despertava tantas sensações inexplicáveis.
Ele abandonou seus seios, e passou a lhe beijar a boca. Enquanto a mão firme erguia sua coxa, adentrou no seu corpo, fazendo-a gemer baixo, como se aquela delícia fosse o maior dos pecados.
— Rose — o murmuro másculo fê-la encará-lo. — Nunca haverá outra mulher para mim.
Ela sorriu diante da promessa. Quis lhe dizer o mesmo, mas quando ele passou a meter forte o pênis para dentro dela, tudo na loira se perdeu em gemidos, gritos e êxtase.
A chuva caia com intensidade lá fora. Como se a tempestade se agitasse mais com a união dos seus corpos.
Apaixonada, Rose enfim entregou-se ao clímax.
***
— O que está fazendo?
O murmuro feminino fez Damien sorrir.
Rose Davis estava deitada sobre seu peito, encarando-o curiosamente enquanto lhe via a escrever algo.
Ele a observou demoradamente. Oh, céus, ela era linda! Impecável, num corpo deliciosamente nu, esparramado sobre o dele. Nunca se cansaria de olhá-la.
Segundos antes, Damien buscou a calça atirada no chão. O grafite que tinha num dos bolsos surgiu diante dos olhos azuis da mulher, e logo ele arrumou um pedaço de papel do envelope que havia lhe trazido. Num quadradinho de cerca de dois centímetros, ele escreveu uma frase.
“Vem, oh, vem depressa!”
Mostrou a ela, fazendo o rosto da mulher tornar-se curioso.
— Drew e eu ganhamos de herança um relicário — mostrou a ela um coração de ouro preso em um cordão no pescoço. — Aqui — apontou um pequeno pino, quase invisível a olho nu. — Aqui abre o coração. Vovó disse que devíamos por nele algo que nos lembrasse de nosso amor. Normalmente, os homens da família que usaram esse coração colocavam a foto da esposa, mas eu não tenho nada seu, então...
— Vai por a frase? — ela sorriu, encantada.
— Nossa canção — ele murmurou, atraindo-a para mais um beijo. — Para que eu nunca a esqueça — afirmou. — Nunca me esquecerei — jurou. — Por isso — dobrou o papel e o pôs dentro do coração, fechando-o em seguida —, não importa para onde irei, você estará comigo junto com as palavras de Shakespeare.
***
Quando o dia amanheceu, Damien encilhou o cavalo, e subiu em sua montaria com o olhar carregado de dor.
Encarou mais uma vez a mulher com a qual passou a noite, a mulher que amava, e então lhe disse, mais uma vez, como num rogo sem fim:
— Rose, não permaneça em San Antonio.
— Até ter notícias suas, não sairei daqui — negou. — Por favor, compreenda.
— Temo por ti...
— E eu por ti. Mas, não arredarei o pé até saber que está bem.
Damien assentiu. Não havia muito que dizer para convencer aquela teimosa. Então, preparou-se para galopar, mas a mão feminina em seu tornozelo o conteve.
— Não morra — pediu.
— Não morrerei. Mas, se acontecer, de onde eu estiver, eu irei te proteger.
E diante daquela promessa, Rose Davis viu o único amor que já havia tido em sua vida partir em direção a desgraça.
Capítulo 07
A morte
— O que mais me revolta — Drew esbravejava enquanto limpava seu coldre 45, diante dos colegas de regimento — é que o Compromisso Clay nos garante o direito de termos a mão de obra que quisermos. E agora esses porcos nortistas se acham no direito de dizer que não podemos ter escravos? Quem são esses porcos nortistas para nos dizer isso?
O urro dos demais homens, em aprovação, revirou o estômago de Damien.
Desde que chegaram ao regimento em Norfolk , numa manhã quente, o irmão mais novo conquistara os companheiros de batalhão, com suas ideias tremendamente bairristas e desprovidas de qualquer sensibilidade. Em contrapartida, Damien não havia feito amigos. Não concordava com nada do que diziam, e só estava lutando naquela guerra porque um homem não era nada sem honra. E honra exigia a defesa de sua família, por mais que não houvesse amor entre eles.
Afastando-se dos demais, ele suspirou.
No século 19, atraídos pelo baixo preço de terras, o norte cresceu tremendamente em população oriunda da Europa. Logo, a industrialização se expandiu. Contudo, para as fábricas gerarem lucro era necessário que houvesse compradores para os produtos. E, para haver compradores, as pessoas precisavam de emprego, de salário, e não serem escravizadas. Foi por isso que o Acordo de Mississipi, assinado em 1820, proibia a escravidão acima do paralelo 36º40'.
Durante a época de faculdade, caiu nas mãos de Damien um livro chamado “A Cabana do pai Tomás”. O livro era muito desprezado dentro da universidade, não apenas por ser abolicionista, mas também por ter sido escrito por uma mulher. A senhora Harriet Beecher Stowe não parecia digna de escrever um romance com tamanho peso. Mesmo assim, o título chamou a atenção de Damien e o texto tocou profundamente seu coração.
Contra suas origens, suas raízes e seu credo, ele viu seus valores desmoronarem. Passou a gerar, no seu coração, o desejo pela mudança.
Todavia, de nada adiantava aquele desejo, se o mesmo não o houvesse sido despertado em outros homens. Mas, aconteceu. Um livro... Um livro mudaria para sempre o destino de toda uma nação.
Damien acreditava no poder das palavras. E o poder atingiu Abraham Lincoln. Dizia-se que quando o Presidente encontrou-se com Harriet, disse-lhe “ A senhora despertou essa guerra ”. Se foi a autora, ou não, Damien jamais saberia, mas que ela teve papel fundamental com sua obra em mudar corações, disso não restava-se nenhuma dúvida.
Aliás, a única coisa que lhe despertava incertezas era o futuro da guerra. Sentimentos radicais, como os dos seus compatriotas de confederação, não ganhavam batalhas. Mais soldados, mais alimentos, e mais poder bélico, isso sim ganhava guerras. E isso o Norte tinha. A força industrial do Norte era cinco vezes maior que o do Sul. O número a mais de pessoas beirava os sessenta por cento. Fora que as terras do norte eram mais produtivas, capaz de manter não só as tropas como também a população.
Era questão de tempo, Damien sabia, para o Sul fracassar. A fome, as mortes, tudo avassalaria suas terras. Até então, o Texas servia apenas como fornecedor para as tropas do Sul... mas, e se invadissem suas terras? Matassem sua família? Rose?
Esperava que ela tivesse mudado de ideia. Que tivesse pegado um trem e ido para o Norte. Lá era mais seguro, e sem saberem seu passado, Rose teria, esperava, uma vida segura e tranquila.
Se ele morresse ali, talvez ela até se casasse...
Aquele pensamento doeu profundamente, mas tudo que Damien queria era vê-la feliz, numa casa grande cheia de filhos e netos.
Pela primeira vez, notou o quão profundo podia ser o amor por alguém. Abnegar seus próprios sentimentos, renunciar ao ciúme, para sabê-la feliz.
Isso, claro, se ele não saísse vivo dali. Porque, caso saísse, ninguém a tiraria dele. Porque, pelos céus, como a queria. Como desejava ver novamente seu sorriso, ouvir seu doce tom, cheirar seu perfume de flores.
— Chegou a hora, homens! — ouviu ao longe.
O plano era atacar as tropas unionistas antes que elas evacuassem e destruíssem todos os navios que os sulistas desejavam ardentemente colocar as mãos.
— Que Deus me proteja — Damien orou, baixinho, antes de empunhar a arma e sair, na direção dos homens.
***
O sol parecia queimar.
Havia as vozes altas, os estrondos e o desespero.
Mas, o sol parecia queimar.
Era apenas isso que ele sentia, realmente.
Deitado no chão, sem ouvir nenhum som, realmente (alguns segundos antes uma bomba estourou perto dele, e tudo agora se resumia a instinto), e com o corpo cheio de machucados provocados pela luta, Damien quase sentiu a morte ao seu lado, preparando-se para ceifá-lo. Contudo, foi o rosto de uma loira linda que apareceu, diante dele, e então as forças voltaram.
Ergueu-se um pouco.
Não, não era o sol que queimava. Os barcos, todos... as labaredas atingiam o céu. O ar, carregado pela fumaça, mal dava para respirar. Buscando forças, ele começou a rastejar entre cadáveres.
Surgiu um unionista, com seu bonito uniforme azul e ele sentiu que o homem não pestanejaria em despejar as balas do revólver na sua cabeça. Foi mais rápido. Em segundos, o derrubava.
— Nunca duvide de um homem do Texas — sussurrou.
Mais um estrondo. Precisava sair dali.
Não houve tempo.
Na margem do Rio Elisabeth, Damien Hill desaparecia e surgia um novo homem.
A alcunha de Drew Hill marcaria para sempre a trajetória daquele homem.
***
Margareth Hill gritou quando o agente funerário da cidade apareceu. Ao lado dela, Theodoro Hill parecia não ter forças para erguer a mão, e aceitar a carta que o homem trazia.
— Um dos vossos filhos está no hospital. Muito ferido, talvez não resista. Porém, quando acordou, disse a enfermeira que não sabia qual era seu nome. Provavelmente, foi atingido por uma bomba, perdeu as memórias.
— E o outro? — Margareth questionou.
— O outro está morto, senhora. Também atingido por uma bomba. Contudo, foi despedaçado.
Não havia espaço para piedade cristã naquela localidade, e o agente não poupou a mãe das palavras mordazes.
— Saber qual é qual, é o nosso dilema — o agente explicou. — Apenas a senhora conseguia identificar os seus filhos.
— Onde ele está? — o pai, enfim, se pronunciou.
— No hospital militar instalado na Virgínia.
Atrás deles, Constance permanecia em silêncio. Contudo, era possível identificar o horror pelo olhar assustado da jovem.
Quando Margareth voltou-se para ela, a mulher parecia implorar:
— Por favor — murmurou à sogra —, por favor, que seja Drew.
Margareth não respondeu. No entanto, ela tinha uma única certeza, não perderia Drew por nada. Não importava quem estivesse deitado naquela cama hospitalar na Virgínia, seria o seu filho amado quem ela traria para casa.
***
À porta da enorme enfermaria, um homem de aparência mexicana entregou a Margareth um envelope. Dentro dele, um cordão em formato de coração. A única coisa inteira que havia sobrado do corpo do filho daquela mulher.
Contudo, ela não abriu o envelope.
Não queria saber a verdade.
Não importava qual era a verdade.
Deixando o homem, ela aproximou-se do leito. Encarou o corpo de um rapaz bonito, machucado, dormindo.
— Diga-me, Margareth — Theodoro parecia implorar. — Quem é ele?
— É Drew.
Theodoro gritou alto pela dor que parecia destruí-lo.
— Não! Não, Damien! Não meu Damien! — ele não se importava com o outro filho, vivo, ali.
Então, se afastou, como se fugisse da presença deles, como se a imagem daquele rapaz idêntico ao seu amado filho lhe machucasse demasiadamente.
Só então Margareth se aproximou. Encarou o rosto marcado pelos ferimentos e queimaduras.
E, num momento rápido, arrancou dele o colar que ele mantinha no peito, substituindo-o por outro, com a foto da nora Constance.
Capítulo 08
O recomeço
Rose Davis encarou Mathilda, a escrava da casa, com o rosto ansioso. Não recebia visitas, a outra jamais havia vindo até ela, mas soube que era algo sobre Damien assim que pôs os olhos na mulher.
— Ele está morto — ela avisou, o coração apertado, lágrimas a escorrer pela face escura. — Senhor Damien me pediu para vir até a senhora, caso ocorresse algo a ele na guerra. E eu vim — ela parecia querer justificar o quão boa serva era. — O senhor Damien está morto, e com ele se vai toda a esperança dos escravos dessa fazenda.
Rose permanecia estática, permitindo-a derramar seu pranto pelo seu bom senhor e por todo o seu povo. Sentia pena. Mas, em nada se assemelhava aos próprios sentimentos.
Damien estava morto. Rose também.
— O senhor Drew sobreviveu, aquele demônio desgraçado — a negra disse, a voz entrecortada. — Ele está agora num hospital, sendo cuidado, e voltará para casa, assim que estiver melhor. Voltará a sua rotina de açoites e estupro. Enquanto isso, o bom irmão, que protegia os fracos... esse está morto — ela gritou.
E então correu na direção oposta, voltando para a fazenda, como se todos os juízos da sua cabeça houvessem dissipado.
Quando a mulher desapareceu entre as árvores, enfim, Rose caiu de joelhos no chão. A mão tocando o ventre que crescia a cada dia, o desespero atingindo sua razão e as lágrimas, enfim, livrando-a de qualquer amarra, a escapar-lhe pelos olhos.
— Obrigado por tudo, meu amor... — ela murmurou, entre soluços, enquanto se erguia e volvia para casa.
Naquela noite, Rose Davis arrumou seus poucos pertences.
Na manhã seguinte, desaparecia de San Antonio, como um fantasma sendo exorcizado para sempre de um casarão.
***
Atravessar um país em plena guerra foi uma das maiores façanhas de vida de Rose Davis. Contudo, com o dinheiro deixado por Damien, e com a coragem de alguém que pouco tinha a perder, após três meses difíceis em viagem, ela chegou à estação de Trenton, em New Jersey, com o semblante orgulhoso de alguém que atingira um objetivo.
Com um papel na mão, ela decidiu que não era hora de descansar. Levando uma sacola de pano onde tinha apenas dois vestidos e um pedaço de pão, seguiu indicações de transeuntes e acabou parando em frente ao fórum da cidade, onde, momentos depois, um secretário bem vestido e de semblante estafado a olhava de cima a baixo.
— O juiz Kest não está recebendo o público.
— Um amigo dele me pediu para procurá-lo — ela insistiu. — Por favor, apenas diga que eu vim em nome de Damien Hill.
O homem pareceu indeciso. Por fim, provavelmente porque desejava se livrar daquela mulher, ele bateu na porta de uma sala bonita e entrou. Rose permaneceu estática, enquanto o aguardava.
Segundos depois, surgiu.
— Por favor — indicou a porta. — O juiz a aguarda.
Richard Kest era um homem de aproximadamente quarenta anos, bonito, alto e risonho. Não lembrava, nem em sonhos, o juiz de San Antonio, um velho mesquinho e corrupto. Aquele homem tinha uma doçura no olhar que logo a fez sorrir, em resposta ao semblante feliz dele.
— Damien me enviou uma carta há meses — aproximou-se dela, dando-lhe um abraço inconveniente, fazendo-a arregalar os olhos. — Contudo, como você não aparecia, achei que havia desistido!
— Desistido?
— Do casamento! — ele exclamou, soltando-a, enquanto a fazia sentar-se diante de sua mesa. — Damien já assinou as papeladas - que ele mesmo providenciou — sussurrou. — Fiquei extremamente surpreso que ele me pedisse para... driblar a lei... Bom, você conhece Damien, ele é extremamente correto com regras. Mas, enfim, era por uma boa causa, não? Ele estava indo para a guerra. E, então, me diga, como está Damien?
Rose baixou a face, nervosa.
— Morto.
Richard abriu a boca, espantado.
— Eu lamento — foi sincero. — Receba meus sentimentos.
Mais uma vez, um abraço. Por que diabos aquele homem gostava tanto de abraçar?
— Damien foi o meu melhor amigo, meu companheiro de juventude. Eu estava algumas classes a frente dele, na faculdade, mas sempre estávamos juntos, fora das aulas. Ele tinha ideias nortistas enraizadas e eu era o típico filho de fazendeiros do Alabama. Mas, veja só: estou aqui, sentado em uma cadeira em plena New Jersey, defendendo a causa dos abolicionistas.
Rose assentiu.
— A vida muda às pessoas.
— Muda — concordou. — Damien nunca quis se casar, mas ele deixou muito claro na missiva o quanto te amava e o quanto desejava o casamento. Explicou os problemas com a família, e então me pediu o favor. — Ergueu-se, indo em direção a um armário. Retirou de lá vários papeis. — Precisa apenas assinar, Rose... — apontou a linha pontilhada. — A data está retroativa, contudo, tão logo assine, será Rose Hill, viúva de um dos homens mais poderosos do Texas. Se o estado sobreviver à guerra, creio que terá muito a fazer por lá.
Ela assinou rapidamente. Não porque queria aquele sobrenome, ou porque queria a herança de Damien. Mas havia alguém a crescer, dia após dia, em seu ventre. E por essa criança, ela precisava de algo que não a denominasse como mãe solteira.
— Jamais voltarei para lá. Quero apenas o sobrenome. Damien me deixou dinheiro e o nome de Georgina Harris. Disse que ela me ajudaria.
A gargalhada de Richard inundou o ambiente.
— Damien... Aquele safado...
Subitamente, enrubesceu.
— Desculpe-me, senhora — murmurou. — Não queria ter dito isso de seu marido.
— Queria sim — ela sorriu.
— Bom, eu queria mesmo — riu, novamente. — Ah, Damien... Como sentirei falta daquele bastardo desgraçado. Morreu me devendo dez dólares, sabe? — lágrimas surgiram nos olhos. — Gostávamos de jogar a noite, por dinheiro. Depois, sempre devolvíamos um ao outro, porque, afinal de contas, não queríamos brigar e, enfim, um dia ele gastou os meus dez dólares levando flores para uma moça que morava na cidade onde estudávamos. A garota atirou as flores na cabeça dele, e eu nunca mais vi meus dez dólares...
Rose permaneceu em silêncio, respeitando a dor de Richard. Era diferente da dor que ela sentia. Ele ainda tinha motivos para viver. Ela só abria os olhos de manhã pelo filho que carregava no ventre.
— Bom, Rose... Damien com certeza não iria querer ver-me a trazer-lhe ainda mais luto. Irei levá-la até Georgina.
— Sabe onde ela mora?
— Georgina Harris? — ele gargalhou. — Apenas se prepare, minha querida... terá uma grande surpresa.
***
A senhorita Harris era dona da maior propriedade de macieiras daquele lado do país. De família rica, enviada a escola cristã por algo que Rose só foi capaz de compreender tempos depois, a mulher na faixa dos trinta e tantos anos era a figura mais exótica que Rose já havia conhecido, desde então.
Primeiro de tudo: usava calças.
Usava calças!
Pelos céus, quando Rose a viu, ficou tão vermelha que não conseguia sequer se mover. Os cabelos, mesmo que não tivessem sido cortados, eram atados num coque tão apertado que dava a impressão de que era tinha um corte masculino. E, por fim, quando viu Rose pela primeira vez, praticamente deixou escapar o quanto a achou tentadora e bonita.
— Você pode me chamar de George quando estivermos a sós — ela disse, assim que Rose entrou na sala principal.
Richard Kest escondia um sorriso por trás de um semblante pacífico.
Pelos céus, se Damien não houvesse dito na carta que lhe deixou que confiava a vida àqueles dois, ela teria saído correndo dali em segundos.
— Sou Rose Da... — calou-se. — Hill — disse, por fim.
— Então o velho Damien se amarrou — Georgina gargalhou. — Eu sabia que um dia alguém fisgaria aquele coração. Onde está, aquele infeliz?
Silêncio.
— Oh... — a mulher masculina percebeu o clima instantaneamente. — Foi durante a guerra? Onde?
— Na Virgínia... — Rose murmurou. — Eu estou grávida — contou a moça, ignorando o olhar assombrado de Richard. — Então, se puder me aceitar como sua empregada, eu seria muito grata. Mas, se não quer uma criança aqui, irei compreender também. Damien me deixou algum dinheiro para que eu recomeçasse.
— Guarde seu dinheiro para seu filho, quando nascer, Rose — Georgina sorriu. — Eu preciso de ajuda na propriedade. Quero começar a fabricar compotas de maçã, mas nenhuma mulher quer ser minha empregada e os homens costumam me olhar como se pudessem me modificar o jeito, como se eu fosse apenas um objeto defeituoso que eles poderiam consertar, caso tivessem a chance.
— Eu não! — Richard se defendeu.
Georgina sorriu para o amigo. Estava tudo bem entre eles.
— Nenhuma mulher quer trabalhar para você? — a frase pareceu estranha para Rose.
— Eu sou machona, Rose — ela disparou, usando o termo mais chulo que conhecia. — Eu gosto de dormir com mulheres. E a maioria delas acha que eu vou me apaixonar imediatamente, tão logo apareçam na minha frente; então fogem de mim. Você compreende?
Rose assentiu.
— E você vai fugir? — questionou.
— Nenhuma mulher me feriu, até então, George — ela contou, sem medo. — Não temo a você. Serei muito grata se me der o trabalho.
Selaram a amizade com um aperto de mãos.
No final daquele dia, quando Rose guardava seus parcos pertences dentro de um armário, ela lembrou-se do seu amor, e pensou que Damien estava certo... ele sempre olhava por ela... mesmo que estivesse morto.
Parte 2
Capítulo 09
Os anos que passaram...
San Antonio, Texas, 1867
Do alto da montanha, Drew Hill encarava com nítida paixão a terra que se estendia até onde os olhos pudessem ver. Tudo ali lhe pertencia, mas ele considerava o bem material apenas um empréstimo de Deus.
Sim, o Criador lhe dera a benção de poder viver naquele lugar belíssimo, onde ele criava gado e cultivava algodão. Uma vida simples, mas repleta de satisfação.
Sorriu.
A propriedade estava gerando mais lucro que nunca. Apesar da intensa força que os unionistas empregaram durante as batalhas, não haviam conseguido invadir o estado, portanto, não obstante a derrota dos confederados durante a guerra civil, o Texas, seu lar e sua propriedade, haviam permanecido intocáveis.
Drew ficou ferido em batalha logo no início da guerra, numa tentativa fracassada dos seus compatriotas de roubar os navios da União. Levou meses para conseguir sair do hospital, e jamais pôde voltar à batalha, pois ficou manco, devido a gravidade das lesões sofridas. Assim sendo, enquanto a grande maioria dos demais fazendeiros se empenhavam em proteger as fronteiras e lutar, ele pôde cuidar dos negócios e gerir com cuidado cada pedaço daquela terra.
Era feliz, desde então, mesmo sentindo um profundo vazio existencial que muitas vezes o levava a beber demais para fugir das dúvidas que pareciam assolá-lo. Drew não se lembrava de absolutamente nada anterior ao dia que acordou no hospital e viu o rosto de uma preocupada enfermeira.
Ao retornar ao lar, descobriu possuir uma bonita esposa, pela qual não sentia nenhum desejo, e um pai que o desprezava mais do que um filho poderia o ser. Mais tarde, soube os motivos. O pai não aceitava que ele houvesse sobrevivido enquanto seu irmão gêmeo, Damien, morreu de forma sangrenta.
Soube também que o pai não era o único em luto. Cada escravo da fazenda parecia odiá-lo, e a mãe se mostrava indiferente, apesar de não tratá-lo mal. Assim sendo, refugiava-se nas pernas das moças do saloon e no rum que comprava do México.
Todavia, mesmo assim, ele se achava um felizardo. Afinal de contas, havia sobrevivido, tinha dinheiro, poder e tempo para consertar os erros do passado – dos quais ele não se lembrava de ter cometido – dando aos antigos escravos – agora empregados – um tratamento digno e um salário honroso.
Não foi fácil, de início. Ninguém em San Antonio parecia confiar nele. Os homens o tratavam com ódio e as mulheres pareciam temê-lo. Mas, com o passar dos anos, enfim, o povo pareceu se acalmar e aceitar que o Drew carrasco havia desaparecido na guerra e aquele novo senhor de terras era um homem digno de confiança.
Seu maior problema era Constance. Apesar de bela, educada e carinhosa, a esposa não lhe despertava desejos. Tentou dormir com ela várias vezes, mas fracassou em todas. De início, a morena se mostrava compreensiva, afinal de contas, ele havia sido abalado em batalha. Contudo, aos poucos, sua paciência foi se esvaindo e, no momento, eles sequer deitavam na mesma cama.
Assim, ele aliviava sua inquietação masculina com as prostitutas. Era terrível, ele sabia, mas... simplesmente não conseguia tocar em Constance. Tudo nela lhe parecia errado e ilícito.
Volveu o cavalo, andando vagarosamente em retorno. O sol queimava, mas ele estava protegido pelo antigo chapéu de abas largas do irmão Damien.
Como queria lembrar-se dele! Diziam que era bom e generoso. Diziam também que o irmão amara uma jovem que morara nas terras arrendadas, mas ela fugiu tão logo o irmão faleceu. Talvez, aquela jovem desconhecida fosse a única fonte verdadeira onde poderia desvendar Damien. Porque, afinal, o pai mal olhava para a sua cara, a mãe não se interessava em falar de Damien, e Constance mal o havia conhecido.
Repentinamente, o som de cascos. Um dos empregados apareceu diante dele, o olhar ansioso.
— O que houve? — questionou, preocupado.
— Seu pai — o homem respondeu. — Se apresse.
***
Theodoro Hill morreu no dia que soube que seu primogênito havia sido despedaçado pelas bombas, durante a invasão em Norfolk. Mesmo assim, por ser o homem teimoso que era, ele levou algum tempo para enfim entregar a alma para a morte.
Agora, enquanto agonizava na cama, vítima de pneumonia, ele não via nenhum rosto ao qual amava em torno de si. Tudo que ali havia era a nora enjoativa, a esposa maquiavélica e o filho mais novo, que inutilmente passou a imitar o irmão, tão logo voltou da guerra, buscando sua aprovação.
Tossiu, sentindo por fim que o seu momento chegava. Ergueu a mão. Logo Drew segurou a dele, buscando confortá-lo.
— Drew... — gemeu, cansado demais da vida.
— Sim, meu pai... — murmurou. — Diga-me, o que precisa?
— Eu só queria te dizer...
— Sim? — Drew insistiu, sentindo as lágrimas escapando dos olhos.
— Eu nunca te amei.
Por fim, o jovem homem soltou as mãos do pai e o percebeu morto. Não chorou, porque de certa forma as palavras finais do pai destruíram sua capacidade de sentir.
***
Benjamin Cross fedia. Não qualquer cheiro, mas era aquela mistura asquerosa de porco com suor. Por que diabos o juiz da cidade de San Antonio tinha que atender a população sem sequer tomar um banho, assim que chegava da sua fazenda?
Drew Hill sentiu a cabeça latejar e a garganta sufocar. Precisava sair dali o quanto antes. Precisava fugir daquele mundo asqueroso, voltar às montanhas pedregosas, onde encontrava paz.
— Onde eu assino? — indagou, rapidamente, querendo se livrar de uma vez de todo aquele esquema de papeladas que foi posto tão logo o pai faleceu, há dois meses.
— Temos um problema — Benjamin negou. — Você sabe, quando alguém morre, precisamos encaminhar a certidão de óbito para Austin...
— Poupe-me dos detalhes, por favor — cortou. Estava prestes a vomitar. — Aconteceu um imprevisto? Posso voltar outra hora — disse, em seguida. — Não temos pressa para o inventário, sou o único herdeiro.
— Esse é o problema — o juiz negou. — Você não é o único herdeiro.
Só então o cheiro asqueroso de Benjamin passou a não ter importância. Arregalando os olhos, Drew encarava o homem como se houvesse entendido errado.
— Seu irmão, Damien...
— Damien está morto.
— Sim, está. Contudo, antes de morrer ele havia se casado com a senhorita Rose Davis. E, com ela, teve um casal de gêmeos. Portanto, as crianças têm direito a cinquenta por cento de tudo que o senhor Theodoro Hill deixou.
Drew estava simplesmente embasbacado. Ele tinha parentes? Sobrinhos, dos quais desconhecia completamente a existência?
— Claro, pode lutar na justiça para anular...
— Não! — negou.
— A senhorita Rose Davis era uma sem-vergonha — Benjamin apontou. — Tenho certeza que ela iludiu seu irmão. Quem pode garantir que as crianças são realmente filhos...?
— Isso não é problema seu! — Drew retrucou, rapidamente, incomodado com aquela observação. — Damien casou-se com essa mulher e ela tem seus direitos. Não acho justo tentar anulá-los.
— Mas...
— Acredito que essa decisão é minha, não?
Diante do exposto, o juiz nada pôde fazer para afastá-lo das ideias de justiça que pareciam brotar imediatamente em seu ser.
***
— Aquela cadela!
Os gritos de Margareth Hill inundavam o casarão, mas o filho sequer lhe dava atenção. Ao seu lado, a esposa Constance escondia um sorrisinho de satisfação ao ver a sogra tão nervosa.
— Desgraçada! Puta!
— E, ainda assim, mãe dos seus netos — Constance murmurou.
Provocar a sogra era um divertimento para ela, costumava lhe fazer bem. Com a passagem dos anos, o absoluto desinteresse do marido, a falta de filhos (oh, como ela queria ser mãe!), e a rudeza de jeitos de Margareth, brigar com a mãe de Drew era seu passatempo preferido.
E costumava lhe render sonoras gargalhadas.
— Ela vai tirar de você seus direitos — Margareth apontou. — Não vê que ela está vindo para ficar com metade do que pertence ao seu marido?
— Ela trará crianças! — retorquiu. — Crianças animam as casas, fazem bem ao espírito das pessoas. Quem sabe a senhora até aprende a ter um pouco mais de generosidade.
Margareth deu dois passos na direção da mulher, desejando esbofeteá-la, mas Drew se pôs no caminho.
— Não tocará na minha esposa, mãe — negou, firme, daquele jeito autoritário que só ele tinha. — Constance está certa, são nossos parentes, e são herdeiros legítimos. Terão seus direitos garantidos.
A mulher crispou o olhar.
— Não mudou nada...
Drew arqueou as sobrancelhas.
— É a única pessoa de todo lugar a me dizer isso. E, pelo que ouço falar, fiz bem em mudar. Se Rose Davis e eu um dia já nos conhecemos, torço para que, caso eu tenha sido um crápula com ela, como fui com a maioria dos daqui, ela possa me perdoar.
Margareth o encarou. Havia mistério naquele olhar, mas Drew era incapaz de identificar o que tanto parecia corroer a mãe. Subitamente, ela desviou-se dele e saiu da sala, resoluta.
Só então, o homem encarou a esposa.
— Obrigado por ter ficado ao meu lado.
O sorriso bonito dela o fez sorrir também. Não a desejava, mas a queria muito bem.
— Acha que Rose Davis pode perdoar todas as pessoas que lhe fizeram mal?
A sobrancelhas negra dele arqueou.
— Parece saber mais do que me disse, durante os anos.
— Não sei muito — ela negou. — Você sabe, ela era considerada uma pária e eu era uma mocinha de família, cujos ouvidos não podiam ouvir o que quer que fosse que pudesse me escandalizar. Enfim, na única vez que a encontrei, ri dela.
Aquela confissão surpreendeu Drew.
— Riu? Por quê?
— Porque era uma tola, Drew — assumiu. — Ela parecia uma ratinha assustada e eu estava prestes a me casar com você, um partido a quem todas desejavam. — suspirou. — No fundo, não passava de uma garotinha mimada... Enfim, será que ela vai me desculpar?
Ele pousou a mão em seu ombro, confortando-a.
— Querida, tenho certeza de que todo o mal que Rose já viveu nessa cidade, o seu é o menor deles — puxou-a, beijando-lhe levemente a testa. Parecia um conforto de irmãos. — Irei atrás dela, já possuo o endereço de onde mora. Espero que Rose descubra que muitas coisas mudaram em San Antonio, e que possa contar conosco como uma família.
Diante do novo sorriso de Constance, ele firmou-se naquela promessa.
Capítulo 10
Reencontro
Rose Hill bateu o pé levemente, quase num movimento sucessivo, a fim de balançar o corpo e se aquecer. Aquela época do ano era deveras fria em Trenton e, no lado externo da casa onde ela fabricava as compotas de maçã, a neve se alastrava até os confins no horizonte.
— Não! — ela respondeu, firme, pela milésima vez naquele último ano, enquanto colocava o doce caramelizado em pequenos vidros temperados.
Sentada diante de uma mesa, Rose prosseguia seu trabalho enquanto ouvia o resmungar ranzinza do amigo.
— Estou aqui, de joelhos diante de você...
— Só está perdendo o seu tempo — ela retrucou.
— Eu preciso da porra de uma esposa, Rose! — Richard Kest decretou. — O partido republicano acredita que é a melhor chance que eu tenho para me eleger deputado. Porém, um deputado solteiro? Sem filhos? Minha cara, serei surrado nas urnas!
— E por que diabos você quer se tornar político? Tem um ótimo emprego.
— Posso fazer mais tendo um cargo...
— Parece não ter juízo nessa cabeça — ela ralhou, interrompendo-o, nervosa, fechando com força o pote de compota e se erguendo da mesa. Adiante, um caldeirão fervia mais maçãs, e ela se aproximou para mexer a mistura. — Não sabe o que aconteceu com o presidente Lincoln? Qual é o seu problema?
Richard tentou abrir a boca, mas quando Rose se irritava, não conseguia parar de falar.
— É isso que quer para a sua vida? Uma morte prematura? Sabe quantos malditos escravistas ainda estão as soltas, buscando vingança? Quer morrer?
— Quero lutar por um país mais justo...
— Não existe justiça, imbecil! — o xingou, voltando-se para a mesa.
Kest se ergueu, encarando-a, enfadonho.
— Justiça é apenas ilusão.
— Foi a justiça que conseguiu soltar os negros...
— Sim, para prosseguirem não sendo americanos com direitos. De que serve não estar preso em correntes se sequer emprego conseguem com facilidade? Boa parte dos escravos continua escravo, só mudou a forma com que são chamados.
Suspirou alto.
— George me disse que eles nem podem deixar as casas no sul porque não tem para onde ir. Continuam a trabalhar sem salário, a troco de restos, para não morrerem de fome. E vão reclamar com quem? Juízes? Xerifes? A lei fecha os olhos para todos.
— Rose...
— Não só para eles. A lei fechou os olhos para mim há muito tempo, Richard. E só estou aqui gritando com você porque um dia um homem bom cruzou meu caminho. E sabe o que aconteceu com ele? Ele está morto.
Richard ficou em silêncio.
Enfim, ela parecia ter se acalmado após o desabafo. Suspirou.
Rose Hill não chorava, por mais que ele acreditasse que aquilo faria bem a ela. Lágrimas serviam, dizia sua mãe, para limpar a alma, de dentro para fora. Porém, Rose não conseguia. Provavelmente tinha a impressão que no momento que começasse a prantear por Damien, não pararia nunca mais.
E havia as crianças. Rose já foi uma mulher marcada pelo abuso e agressões. Agora, ela era apenas uma mãe. A mãe dos filhos do homem que ela amou mais do que tudo naquela vida maldita. Então, prosseguia sua jornada dando o melhor de si para que os gêmeos pudessem ter uma vida digna, repleta de amor, mesmo que jamais pudessem conhecer o pai que, provavelmente, os amaria tanto quanto a mãe.
— Rose — Richard murmurou, numa última tentativa. — Case-se comigo...
— Não.
— Pelas crianças. Eu serei um bom pai.
— Não vou me casar com você. — Permanecia firme. — Eu te amo como amaria um irmão, se tivesse um. Mas, não te amo nem te amarei como um dia amei Damien. Esse lugar foi e será para sempre dele.
Assentindo, o juiz Kest curvou-se e deixou o local.
***
— Tio George! — Danielle Hill gritou, assim que viu George Harris entrando em sua carruagem. — Por favor, me traga caramelos?
O adulto sorriu.
— É claro, meu amor — respondeu. — E você, Daniel? — indagou a outra criança, dessa vez um menino de cabelos negros. — O que quer da cidade?
— Um livro! — a resposta imediata fez o rapaz transexual sorrir.
Desde que as crianças aprenderam a ler na escola próxima de sua fazenda, Daniel desenvolveu fascínio por literatura. Amava os clássicos de Grimm e sonhava em ser um valente cavaleiro. Rose sempre sorria diante do falatório, apertando o filho contra os braços e dizendo a ele que aquela miniatura de gente já era o seu herói.
George saiu do local sorrindo, sem perceber a amiga, de avental, há uma distância media, a observar os filhos.
— Danielle e Daniel — gritou, chamando-os. — Já fizeram a lição?
Era nítido que nenhum deles havia feito seus deveres escolares, pois desde que chegaram da escola naquela manhã, haviam ido brincar.
Rose nunca os impunha a regras rígidas. Exigia, sim, boas notas, mas lhes dava a liberdade para correrem pela floresta, brincarem com os animais e inventarem seus próprios mundos infantis. Ela teve sua infância roubada por monstros reais, mas seus filhos teriam uma experiência única da qual se recordariam com saudosismo quando crescessem.
— Mãe! — ouviu o grito de Danielle. — Daniel disse que eu sou feia.
Sorriu. Sabia que o filho mais velho adorava provocar a irmã. Até porque, Danielle era mais o tipo sapeca de princesinha, sempre aprontando para o outro; de tal modo, era a forma do irmão devolver-lhe as malcriações.
Contudo, chamou-os novamente.
— Peça desculpas a sua irmã — ordenou.
Sofria para evitar o sorriso.
— Por quê?
— Porque você a ofendeu.
— Só disse a verdade, ela é feia mesmo.
— Ela é igualzinha a você, então... — Rose parecia pensar. — Oh, você é feio também?
Seis anos de idade, e pouca experiência em desafiar a mãe, fizeram Daniel arregalar os olhos diante da gafe. Pareceu emburrado, depois, por fim, se desculpou, pegando na mão da gêmea e a puxando para dentro da casa, onde eles fariam a lição.
Rose sorriu, sentindo-se estranhamente grata por ter aqueles dois serezinhos em sua existência. Quando soube que estava grávida, desesperou-se. Até pensou em usar as ervas das escravas... Mas... Era um filho de Damien... Ela não podia matar a única coisa que tinha dele.
E, então, quando soube que além do dinheiro no envelope, Damien havia lhe deixado também um sobrenome, tudo nela pareceu se acalmar. Os filhos não eram bastardos. Eram filhos de um confederado que morreu na guerra. Ela não era mãe solteira, era uma viúva. Ninguém os trataria mal. Ao contrário, as pessoas costumavam olhar para ela com zelo e piedade.
— Enfim, paz... — ela murmurou, alegre.
Anos antes, havia invejado exatamente esse ponto da vida de Constance, a noiva de Drew. Agora, sabia que aquilo que ela tinha naquela fazenda afastada do mundo era o que de melhor poderia desejar no mundo.
Os pensamentos, repentinamente, foram interrompidos pelos sons de cascos de cavalo.
Volvendo-se em direção a estrada, imaginando se George estava retornando, se havia se esquecido de algo, ou simplesmente ocorrera algum problema.
Até que o viu...
Rose sentiu o coração palpitar, os olhos encherem-se de lágrimas e a alma se aquecer. Reconhecer, ao longe, o cavaleiro, pareceu rasgar em pedaços seu coração, e restaurá-lo em seguida. Abriu a boca, a respiração entrecortada, uma felicidade sem precedentes a inundando como um mar em dias de cheia. Tanta felicidade, porém, interrompida em seguida, a mente a lembrar-se de que Damien estava morto.
Não era seu amor. Nunca seria.
Seu amor... Seu amor estava morto.
Mas ali... ali...
Soluçou. Ali era Drew... O que Drew fazia ali?
Correu em direção a casa. Fechou a porta e as janelas. As crianças estavam no quarto, então, não haveria problemas para elas. Precisava resolver o problema rápido.
Antes de racionar direito, ela buscou o rifle que havia levado consigo de San Antonio.
Segundos depois abria a porta novamente. A arma apontada para a cabeça de Drew Hill.
— É bom que você tenha um ótimo argumento para evitar que eu te mate agora mesmo — ela avisou.
O sol a tocou naquele instante. O frio intenso sumiu, por alguns segundos. Então, o olhar deles se encontrou.
Era como uma melodia idílica, abandonada. Era o fim de sua paz.
Capítulo 11
Drew e Rose
A sonora gargalhada de Arthur Douglas espantou Drew. Arqueando a sobrancelha negra, ele aguardou que o homem se explicasse.
Havia chegado àquela cidade gelada do norte na manhã de terça-feira. O dia estava movimentado, muita gente indo para as fábricas, as ruas cheias, ele quase ficou asfixiado com tanto movimento.
Por fim, chegou à hospedaria. Tão logo se apresentou, Arthur, o proprietário, o surpreendeu dizendo que também era do Texas, mas que havia se mudado para Trenton antes da guerra, para assumir uma herança de família: aquela confortável hospedaria.
Tão logo Drew deixou suas coisas no quarto, voltou para o saguão, onde passou a conversar com o homem, entre uma xícara de café e outra. Assim, acabou por contar os motivos que o traziam àquela cidade, e disse-lhe o endereço de onde Rose estava, conseguido no cartório, buscando, através disso, indicações para o rumo que devia tomar.
— Eu sei quem é Rose Hill — Arthur o surpreendeu.
— Sabe?
Ficou espantado por ela usar o nome de casada.
— A bela viúva? Que homem em Trenton ainda não tentou conseguir conquistar aquele coração frio? — gargalhou. — Que minha esposa não me ouça, claro...
Drew assentiu, sorrindo.
— Rose é viúva de um confederado. Tem dois filhos, gêmeos. Um garotinho muito esperto e uma menininha linda. Também é uma mulher de fibra, trabalha bastante para dar educação aos filhos. Porém, é claro, todos tem uma mancha e ela também.
— Mancha?
— Ela trabalha para uma machona — disse, enrubescendo. — Não que eu acredite que a senhora Rose tenha algo com aquela abominação, mas... Você sabe...
Drew sorveu o café.
— Na verdade, não... Eu não sei.
Por que aquele título o incomodava tanto? Sequer conhecia a patroa de Rose.
— Georgina Harris gosta de ser chamada de George. Eu acho uma afronta a Deus.
Georgina Harris? George? Por que aquele nome parecia tão familiar?
— Mas, claro, todos desconfiam que na verdade Rose Hill vai acabar é se casando com o juiz Kest. O magistrado é louco por ela, vai vê-la sempre, é o único homem da cidade para quem Rose dá a mínima atenção.
— Pode ser que sejam amigos.
— Um homem e uma mulher? Duvido muito.
Aquele assunto, por um estranho motivo, estava incomodando demais Drew. Assim sendo, ele se levantou.
— Onde posso conseguir uma charrete? Ou um cavalo?
Logo depois daquilo, Arthur lhe emprestou sua bonita égua de estimação, indicando-lhe a estrada que levaria as propriedades de Harris.
Cavalgou rapidamente, ansioso para encontrar logo a esposa de Damien. Estranhou, claro, a reação. Desde que soubera dela, instalara-se em seu íntimo uma poderosa necessidade de olhar para o rosto da mulher, saber-lhe os segredos, conhecer um pouco mais do passado daquele que havia sido igual a ele, mas que ele não conseguia se recordar sequer do tom da voz.
Todavia, tão logo chegou diante da enorme mansão cercada por macieiras, um rifle havia sido apontado para sua cabeça.
E ali estava ela...
Não precisava de muito para saber que a encontrara, enfim. Loira, bonita, determinada. Não havia muitas mulheres como Rose no mundo, especialmente, no dele.
— É bom que você tenha um ótimo argumento para evitar que eu te mate agora mesmo — o aviso chegou a ele, surpreendendo-o.
Aquela voz...
" Por favor, me mate ".
A cabeça de Drew começou a latejar. O som surgiu assim, subitamente, tão de repente que ele se assustou.
" Por favor, aperte o gatilho ".
Era a voz dela...
— Nós nos conhecemos...
Não era uma pergunta. Era a constatação de que aquela mulher diante dele também havia sido machucada por ele. Mais uma, entre tantas.
— Sim, desgraçado — o tom dela era cada vez mais raivoso. — Nós dois nos conhecemos.
— Desculpe — murmurou. — Eu... Eu não consigo me lembrar.
A gargalhada irônica o pegou de surpresa.
— Não me surpreende. Quantas mulheres você já estuprou na vida, Drew Hill? Quantas você avassalou, seu covarde?
— Eu estuprei você?
Parecia um pesadelo.
— Umas três vezes. — A voz saiu baixa. Repentinamente Rose pareceu compreender. — Você realmente não se lembra?
— Eu perdi as memórias durante a guerra — ele contou. — Eu... eu não sei o que dizer.
Mesmo que a arma permanecia apontada para ele, Drew desceu da égua. Seu rosto estava enrubescido de vergonha e indignação.
— Eu... Eu sei que não haverá desculpas suficientes para você. Eu queria me recordar do que fiz e pagar meus pecados. Contudo, não posso. Tudo que posso fazer é implorar que me perdoe, assim como todas as outras mulheres.
Repentinamente, o rifle baixou.
— O que diabos você quer aqui?
— Meu pai morreu — contou, de supetão. — E como Damien deixou filhos e esposa, você têm direitos.
— Não quero nada. Onde assino para me abster de qualquer direito e vê-lo partir o mais rápido possível?
Partir? Dando-se conta de que Rose poderia desaparecer da sua frente de um momento para o outro, Drew entrou em colapso. Não entendia sequer os motivos, mas olhar para ela, ver aqueles lindos olhos cor do céu, ouvir o respirar baixo dela... tudo aquilo parecia tão familiar que doía. Ela era como um porto seguro, uma ilha em que pudesse se agarrar antes de se afundar no mar do esquecimento e do desespero.
— Peço que repense isso, Rose.
— Não quero nada — manteve-se firme.
— Não me lembro de Damien — ele cortou, ansioso. — Mas, sei que ele se casou contigo para protegê-la com seu sobrenome. A herança para os filhos deve ter confortado seus últimos momentos. Então...
— Damien não sabia que seria pai. As crianças foram concebidas no dia anterior a sua ida para a guerra. Então, não vai me ludibriar com essas palavras.
Ela era firme e decidida. Ele a admirou tremendamente.
— Vai tirar dos seus filhos a única coisa que eles podem ter do pai?
Enfim, a sentença a calou. Percebeu a confusão nos olhos escuros, como se os pensamentos estivessem voando rápido.
— De quanto estamos falando?
— Da metade de tudo que pertenceu a Theodoro Hill. Meu pai havia feito um testamento anterior, deixando tudo para Damien, mas o mesmo foi anulado tão logo Damien faleceu. Então, depois disso, também passei a ser herdeiro.
Rose assentiu.
— Dei-me um tempo para pensar.
Era um pedido justo.
— Estarei na hospedagem de Arthur Douglas. Acredito que o conheça?
— Sim.
— Então... Assim que tomar sua decisão, por favor, me procure.
***
— O que, diabos? — Kest gritou. — Não! Está maluca?
George Harris parecia concordar com o amigo.
— Sim, perdeu completamente o juízo, Rose!
— Ora, ora. Olhe quem me aponta isso? Um idiota que quer ser político numa época em que eles são caçados por fanáticos, e um rapaz preso no corpo de uma mulher. Querem mesmo me julgar?
Ambos enrubesceram. Mesmo assim, Richard Kest não desistiu.
— Voltar a San Antonio depois de tudo que você passou é...
— Voltar a San Antonio com dinheiro e mãe dos herdeiros da maior propriedade local, adicione isso a sua frase.
Subitamente, Kest percebeu... Ali, naquele olhar, brilhava o desejo de vingança.
— O que você quer?
— Além de arrasar todos eles?
— Rose...
— Muita gente naquela cidade me deve mais do que os pesadelos que assombram minhas noites. Eu posso ressurgir das cinzas e varrer muitas daquelas pessoas do mapa.
— Fala como se já tivesse tomado a sua decisão.
— E já a tomei. Daniel e Danielle partirão comigo, na próxima semana, em direção a San Antonio.
Kest respirou fundo. Ao seu lado, George não conseguia nem respirar.
— Muito bem — suspirou Kest. — Eu posso me afastar por algum tempo.
— O que quer dizer? — Rose inquiriu.
— Que eu amava Damien demais para deixar a esposa dele se enfiar naquele covil sozinha. — Aproximou-se e tirou a aliança de noivado do bolso. Depois, puxando a mão dela, a pôs em seu dedo. — Pronto, estamos noivos.
— O quê?
— Você ouviu. Quer ir para o inferno? Irá! Mas, eu irei contigo.
George riu.
— Estou comovido com tanto romantismo.
Rose encarou o amigo seriamente.
— Richard, merece se casar por amor. Então...
— Eu não quero me casar por amor — interpelou. — Quero uma esposa que não vá me encher a paciência por eu ir ao saloon apreciar a carne das outras. E isso tenho certeza que terei contigo.
— Você é um idiota.
— Nisso, concordo com ela — George interveio.
— De qualquer forma, eu parto contigo. — foi firme. — Depois, quando desistir dessa palhaçada, voltamos e podemos anular o noivado, caso você assim decida.
— Como assim, caso eu decida?
— Pode se apaixonar por mim durante esse tempo.
A gargalhada irônica de George foi acompanhada por Rose.
— Por que não? Eu sou um pedaço de mau caminho! — defendeu-se.
— É um safado, isso sim — Rose aproximou-se dele e o abraçou. — Mas também é o melhor amigo que eu poderia desejar. Obrigada.
Um pigarrear fê-la voltar-se para George.
— Você também, meu amigo. — Puxou-o para o abraço. — Eu voltarei depois de fazer Drew Hill desejar ardentemente não ter nascido.
Naquela noite, logo após Richard ter ido embora, e Rose ter colocado as crianças para dormir, George a interpelou em direção ao quarto.
— O que sentiu quando o viu?
A questão não se tratava sobre o passado e sim sobre a aparência.
— Drew e Damien eram iguais. Então, é estranho...
— Rose — George segurou suas mãos. — Não temo por sua vida, mas por sua sanidade. Tantos anos depois da morte de Damien, e você ainda o ama. Nunca quis seguir em frente, porque nunca o esqueceu. Agora, vai conviver com um homem que é igual àquele que...
— Drew não é igual à Damien. Pode ser fisicamente, mas na sua essência... Ele jamais será como Damien.
Harris sorriu.
— Boa sorte, minha querida. Você vai precisar...
Capítulo 12
O retorno
Drew Hill assustou-se diante do homem a sua frente. De alguma forma, sentia que conhecia aquela aparência, aqueles cabelos negros, olhos escuros e aquela postura resoluta.
Era como se o próprio cheiro do outro, ele já houvesse sentido anteriormente. O perfume amadeirado, mesclado a tabaco... Provavelmente fumava charutos e devia ter fumado um antes de ter ido ao seu encontro.
— Não fomos apresentados — o outro disse. — Sou Richard Kest.
Então, era o juiz. O homem que o dono da hospedaria acreditava que tivesse um envolvimento com Rose. Não quis estender a mão e cumprimentá-lo, mas, viu-se em seguida a praticar o ato.
Kest também não parecia muito confortável com a situação. Provavelmente, ouvira sobre as coisas que ele praticara no passado. Por todos os deuses, como gostaria de saber quais crimes havia cometido, para poder, pelo menos, tentar se redimir um pouco.
— A semelhança é incrível. — Disse, apertando sua mão.
Drew afastou-se da porta. Richard o observou de costas, enquanto o outro ia em direção à cadeira. Mancava um pouco, nada que se destacasse naquela postura autoritária e graúda, mas havia sim uma leve limitação.
— Por favor, sente-se.
Richard o acompanhou, fechando a porta do quarto. Depois, respirou fundo, aconchegando-se na poltrona estofada, esfregando as mãos nas coxas, tentando não sentir um arrepio estranho percorrer seu corpo.
— Você conhecia meu irmão... — Drew observou.
— Era meu melhor amigo.
Drew sorriu.
— Não lembro-me dele, mas sempre dizem coisas boas sobre Damien.
— Damien era um homem como poucos. Honrado, honesto, decente. Eu tenho orgulho de tê-lo conhecido, orgulho-me de ele ter sido meu companheiro de vida. Foi Damien que me ensinou a ser um homem melhor.
Depois pigarreou. Enfim, estava ali por um motivo, e desejava falá-lo logo e ir embora. Encarar aquele desgraçado lhe custava muito.
— Está incomodado pela semelhança — Drew analisou, tentando acalmar o outro, que parecia bastante nervoso.
— Sei quem é, Drew Hill, e saber que um homem tão cruel divide a aparência com alguém tão puro e bom quanto Damien me causa repulsa.
Que resposta poderia dar para aquilo? Richard Kest estava absurdamente certo. Ele, Drew, era um cretino, estuprador, assassino, torturador e sádico. E aquelas características lhe pesavam tanto que, em várias oportunidades, pensou em dar-lhe cabo da própria vida.
— Eu não me lembro... — murmurou.
— Que conveniente — o tom era cruel.
— Não é uma desculpa, eu realmente não me lembro de nada. É claro que ouço comentários, e é claro que estou tentando me tornar um homem melhor, mas...
— Olhe, isso não me interessa — Richard cortou. — O que você fez não tem perdão.
Drew assentiu. De alguma forma, era verdade.
— Estou aqui porque Rose decidiu ir a San Antonio, pela herança dos filhos. É claro que como as crianças ainda não tem idade legal para tomarem suas próprias decisões, a mãe, como tutora, vai responder por elas.
— De acordo.
— E eu, como noivo e futuro marido de Rose, irei acompanhá-la.
Aquilo doeu. E doeu mais do que o corpo quando acordou naquele dia após a guerra, convalescente, no hospital. Doeu mais que a perna, quando nevava. Doeu mais que qualquer dor que ele já se lembrava de ter sentido.
Porém, por que doía? Rose não era nada sua. Era de Damien. E o irmão estava morto. Ela tinha o direito de refazer sua vida. Todavia... todavia...
Engoliu em seco, pensando em Constance. Subitamente, desejoso que a esposa não existisse. E aquele pensamento era de tal crueldade que, em seguida, ele se recriminou, maldizendo a própria existência.
— Estou de pleno acordo — afirmou, forçando um sorriso. — Será bem vindo à fazenda...
— Ótimo — Kest se ergueu. — Nós partiremos assim que seja possível. Não é necessário nos aguardar...
Depois, deu as costas e saiu, sem se despedir.
***
— Não fique nervosa.
O som calmo do amigo a fez sorrir. Deram as mãos, num gesto automático, comum a eles, para que os nervos fossem tranquilizados.
Rose tremia. Richard sentia isso. Assim que desceu na estação férrea, o amigo percebeu seu estado de nervos. Já fazia alguns anos que Rose deixara aquela cidade, porém, era como se estivesse lá durante todo aquele tempo.
— Eu estou aqui — ele murmurou. — Sou um juiz federal, um republicano, ninguém vai tentar nada — tentou transmitir-lhe positividade. — Daniel e Danielle precisam de você.
O que ele jamais imaginaria é que o misto de sentimentos de Rose iam além do desespero em ver a igrejinha de sua infância, as ruas de sua juventude, as pessoas que lhe assolaram os sonhos.
Havia nela algo muito poderoso, algo que se formou e se expandiu tão logo visualizou Drew Hill novamente.
Vingança.
O quanto a escuridão poderia dominar um coração? O quanto a maldade poderia esconder-se durante anos e surgir, assim, tão poderosa, avassalando seu bom senso?
— Richard — chamou-o. — Lembra-se dos papeis que Damien fez? Uma certidão de casamento sem data, para o caso de que ocorresse algo a ele na guerra, eu ficasse protegida?
— Sim, isso não está de acordo com a lei, mas...
— Você conseguiria providenciar outra?
— Do que está falando?
— Quero que deixe uma certidão pronta, eu a assinarei. Assim, caso aconteça algo comigo, você será o padrasto e o tutor de Daniel e Danielle.
Os gêmeos corriam pela plataforma, brincando. Richard encarou as crianças, pasmo, e depois volveu para a amiga.
— No que está pensando?
— Um soldado que vai para guerra deve ir preparado para morrer. Foi Damien que me ensinou isso.
— Não está indo para a guerra...
— Se algo me acontecer, quem assumiria a tutela de meus filhos? Por Deus, não posso sequer imaginar o que Drew poderia fazer a Danielle.
Então, o amigo compreendeu o que mais a afligia.
— Eu farei o que me pede — ergueu a mão dela e beijou sua palma. — Rose, e se oficializarmos isso sem precisarmos brincar com a lei.
— Richard, por favor...
— Eu sei que não somos apaixonados. Mas, somos amigos. Grandes amigos. Eu não me importaria de passar o resto dos meus dias ao seu lado. E sei que também adoraria viver ao meu.
Rose sorriu.
— Me perdoe — pediu. — Eu não consigo... Não consigo... — balbuciou. — Damien ainda é tão forte em mim, em meu coração. Não consegue imaginar o que ele fez por mim, o quanto desafiou as normas e as leis dessa cidade por minha causa. Damien me amou de uma forma tão maravilhosa, que não posso imaginar-me casada com outro homem, mesmo sendo esse meu amigo mais querido.
Richard sorriu.
— Eu compreendo, querida. Por favor, não se agonie.
Naquele instante, ele a puxou de encontro ao corpo. O beijo gentil que lhe deu na testa era um carinho de irmãos, semelhante aos que trocava com George.
Contudo, aos olhos do homem que se aproximava, aquilo pareceu provocar um vulcão em seu âmago.
Drew Hill os viu a distância. Havia recebido a carta deles uma semana antes, informando o dia e a hora que chegariam de trem em San Antonio. Assim que desembarcaram, ficou a observá-los.
Olhar Rose era algo que lhe provocava intensas sensações.
Porém, depois de alguns minutos, o juiz e ela passaram a trocar carinhos. Primeiro um conforto, unindo as mãos, depois um beijo... e agora ele sentia-se pronto para a guerra, desejando-a tirá-la daquele homem.
Mas, por quê? Rose não era nada sua! Nada!
— Bom dia — cumprimentou-os, assim que se aproximou.
Não houve resposta. Os adultos pareceram assustados diante dele, e logo afastaram as mãos. Subitamente, porém, duas pessoas miúdas surgiram como num piscar de olhos.
Sorriu.
— Eu sou Danielle e esse é meu irmão, Daniel — a menina se apresentou.
Drew sentiu o coração palpitar. Era tão espontânea e vivaz. Tão linda. Já Daniel era mais quieto, mas tinha aquele olhar... Onde havia visto aquele olhar, antes?
— Eu sou seu tio, Drew — se apresentou, estendendo a mão para ela, desejando beijá-la, como se faria a uma senhorita.
Porém, tão logo isso aconteceu, Rose puxou a criança.
— Não quero você perto dos meus filhos.
Era mais um corte profundo em sua alma.
Ao ser afastado das crianças, Drew Hill soube que Rose estava ali para puni-lo por todos os seus pecados.
Capítulo 13
Crianças
Quando a charrete parou diante da enorme mansão dos Hill, Rose abriu a boca, espantada.
Definitivamente, a guerra não havia atingido o poder daquela família. Estava tudo ali, a ostentação do palacete, o jardim bem cuidado, os negros andando de um lado para o outro – dessa vez sem as peias de ferro que lhes prendiam nos pés e lhes dificultavam o movimento —, e a beleza que só a riqueza em abundância poderia produzir.
Nunca se aproximou muito da casa grande. Primeiro porque temia Drew, e em segundo porque o padrasto não a perdia de vista um segundo. Porém, nas poucas escapadelas que dava, costumava parar perto de um enorme carvalho ao longe e observar as festas, os encontros daquela família.
Os Hill sempre recebiam convidados em festividades católicas como o Natal ou o dia de algum padroeiro. Punham uma enorme mesa no jardim e assavam um leitão ou um carneiro, para oferecerem aos seus amigos. Rose lembrava-se de salivar diante da visão.
A fome havia sido uma companheira constante, tanto quanto o abuso e as torturas. A fome talvez fosse até mais cruel que as demais.
Ela não sabia qual era o sabor dos bolos, o primeiro que comeu foi na casa de George, mas recordava-se do cheiro machucar sua barriga e a boca salivar tanto que ela precisava mastigar folhas de canela para aguentar a angústia, a tontura e o abatimento.
Afastou os pensamentos, volvendo o olhar para os filhos. Danielle e Daniel eram muito próximos e, naquele momento, estavam juntinhos, olhando pela janelinha da charrete, apontando com o dedo qualquer coisa que lhes chamasse a atenção, rindo baixinho, em segredos só deles.
Ela não se importava em levantar cedo e trabalhar muito para dar àquela dupla o tanto de comida que eles quisessem, o tanto de livros que lhes satisfizessem a sede de sabedoria infantil, o tanto de tempo para que brincassem e extravasassem a energia.
Eles eram a forma de viver um passado que não teve. Ambos eram sua segunda chance. Através do sorriso dos filhos, ela podia sorrir.
Subitamente, seus pensamentos foram desviados. Drew surgiu à porta da charrete, abrindo-a, estendendo a mão para ela, para ajudá-la a descer.
Quis recusar aquele toque, mas, ao mesmo tempo, queria deixar claro que não o temia.
Então, aceitou.
O contato da pele dele contra a sua, mesmo num toque tão inocente e rápido, fez todo o seu corpo estremecer. O coração bateu rápido, e ela moveu-se com extrema ligeireza, buscando afastar-se, tentando conter o tremor que a tomou, a ânsia de fugir para bem longe dele, e do rosto que tanto a remetia a Damien.
Drew ainda ajudou Danielle a descer. Ele sorria para a menina de uma forma... era paternal. Era como se ele quisesse ser o pai dela...
Rose afastou o olhar. Por Deus, por que aqueles pensamentos? Machucavam-na tanto! Enfrentar o Drew de seu passado era mais simples, já que ela era uma mulher fortalecida pela vida. Mas, aquele Drew... Aquele homem gentil e doce...
Cerrou os olhos, com força. Ouviu a voz de Daniel, falando sobre os cavalos com a irmã, e então preparou-se para volver-se para o filho, para abstê-lo de ideias idiotas – Ele que se atrevesse a tentar cavalgar! Ainda não tinha sete anos! – quando o toque de Richard, mais uma vez, acalmou todo o seu ser.
Ali estava seu amigo. Tinha que manter a calma. Richard a protegeria – e as crianças – de tudo. Sabia disso.
— É claro que eu vou ensiná-la a cavalgar...
Levou um certo tempo, mas enfim ela entendeu a fala. Voltou-se para os filhos e viu Drew apontando para uma égua baia muito bonita ao longe. Só então compreendeu que ele falava com Danielle.
— Minha filha não vai arriscar a vida em cima de um cavalo.
— Todos devem aprender a cavalgar — Drew retrucou. — Danielle mais que todos. Ela é uma herdeira, precisará ter mãos de ferro e nervos de aço para manter a fazenda de seus antepassados, cuidar das plantações e...
— Ela é uma menina! Uma criança!
— Mulheres são tão capazes quanto qualquer homem — Drew deu os ombros. — Além disso, pelo que percebi, o rapazinho aqui prefere ler ao invés de cuidar do gado. — Fez um cafuné na cabeça de Daniel. — Estou certo? — questionou o menino.
— Eu prefiro ler — Daniel respondeu, sorrindo, adorando a aprovação.
Rose sentia-se muito incomodada com a observação.
— Nem toda mulher nasce para ser dona de casa, nem todo homem nasce para lidar com a terra. Alguns preferem a literatura, algumas preferem a liberdade de uma cavalgada.
O som de passos adiante fê-lo erguer a face para o topo da escadaria. Antevendo a chegada de mais pessoas, ele os convidou a entrar.
Daniel e Danielle, encantados, o seguiram imediatamente. Richard, porém, segurou firme o braço de Rose.
Ao voltar-se para o amigo, viu-lhe o espanto.
— O que foi?
— Essa frase... Esse ditado... — murmurou. — Damien disse exatamente a mesma coisa, certa vez.
A mulher ficou abismada.
— Quando conheci George, digamos que não fui a mais agradável das pessoas. Eu não aceitei sua condição, assim tão simples. E, quando Damien foi defendê-lo, me disse isso...
— O que quer insinuar?
Subitamente, Richard deu-se conta do que falava. Assustou-se.
— Eu não sei, querida — admitiu. — Eu realmente não sei o que pensar.
***
Constance Hill não conseguia esconder o fato de que estava encantada com as crianças. Ela sorria de forma tão genuína que Rose perguntou-se várias vezes se não estava tendo uma alucinação.
Cumprimentou Daniel como se ele já fosse um homenzinho, fazendo o filho enrubescer de alegria, e pegou Danielle nos braços, apertando-a num abraço tão gracioso, que fez Rose sorrir, involuntária.
Era difícil odiar alguém que tratava bem seus filhos.
No fundo, não sabia se aquilo era real, ou uma encenação. Mal viu Constance, enquanto jovens. No único encontro, havia ficado nela a pior das impressões. Porém, a vida mudava as pessoas, a vida a mudou tremendamente, e por que não mudaria Constance?
— Seja bem vinda — a outra estendeu a mão para ela. — Fico feliz que Drew a achou. — Os olhos brilharam, era quase impossível negar a veracidade daquela afirmação. — Realmente, estou muito feliz — reafirmou.
E diria mil vezes, se Margareth Hill não aparecesse repentinamente, com os olhos chispando de raiva, e uma expressão de puro desgosto e desafeto.
— Você é nossa vovó? — Daniel indagou, aproximando-se da velha.
— De você, não sou nada.
— Mãe!
A exclamação de Drew não surtiu efeito. Margareth permanecia com olhar arredio, pronto para enfrentar uma guerra. Contudo, logo foi segurada no braço por Rose e arrastada para longe dos demais.
O trio de adultos que ficou na sala arregalou os olhos, mas ninguém se intrometeu.
— Veja bem — Rose disse, assim que elas ficaram a uma distância segura das crianças. — Você não gosta de mim, e eu não vou nem um pouco com a sua cara — afirmou. — Contudo, se você insultar os meus filhos, se você maltratar os meus filhos...
— O que você vai fazer? — questionou, com o queixo erguido.
— Vou quebrar todos os seus dentes, e moer a sua carne, antes de dar aos cães.
Apertou com força a mão no braço da mulher, machucando-a.
— Não me provoque, Margareth — avisou. — Eu não voltei para o inferno para brincar de herdeira rica. Eu voltei para destruir todo mundo que me maltratou. Você não está na lista ainda, mas pode entrar.
Por fim a soltou, deixando a outra com o olhar arregalado.
***
Rose Hill foi acomodada no antigo quarto de Damien. Ela não pôde esconder a emoção, assim que entrou no lugar. Podia sentir Damien ali, seu cheiro, cada pedaço daquele canto resplandecendo resquícios do homem que havia amado.
O quarto era enorme, e havia um conjugado, onde o seu amor mantinha uma pequena biblioteca. Entre os livros, foram arrumadas duas camas de solteiro, para as crianças.
— Acho que você prefere ficar com os filhos por perto — Constance disse, enquanto lhe mostrava o lugar. — Ninguém vem aqui desde que Damien morreu. Margareth é aquela cobra peçonhenta que parece dar graças a Deus pela morte do filho, e Drew... Bem, Drew mudou muito desde que aconteceu... — avisou. — Ele também foge daqui.
Estavam sozinhas ali. As crianças lanchavam e Richard estava arrumando as malas no quarto frontal ao dela.
— Não foi só ele que mudou — observou a loira.
Um riso triste escapou dos lábios de Constance.
— Não há orgulho nesse mundo que se mantenha em uma mulher infeliz — disse, abrindo-se com a outra. — Eu fiquei tão aliviada quando soube que teria mais alguém nessa casa... Vivo aqui sem amigos desde que a guerra acabou.
Sentou-se na cama.
— Por que não tem filhos? — a curiosidade de Rose despertou, apesar de não querer. — Recordo-me de ouvir Damien falando que estava muito feliz pelo seu casamento com Drew.
— Quando nos casamos, Drew queria filhos. Não vou dizer que dormir com um homem é um prazer sem limites, ora, você sabe como é... machuca, arde e a gente fica suja depois que eles terminam — ela murmurou. — Mas, Drew não era ruim comigo, como era com as escravas. — O olhar assombrado de Rose a fez rir. — Acha mesmo que eu não perceberia as necessidades sádicas do meu esposo tão logo passássemos a viver juntos?
Respirou fundo, e então prosseguiu.
— Tudo bem, eu estava disposta a ser uma jovem amante disponível, mas... Então Drew foi para a guerra. Quando voltou, aguardei um tempo, aguardei que me procurasse, mas ele nunca o fez. Depois, passei eu a tentar conseguir algo dele... O resultado é que hoje dormimos em camas separadas.
Rose aproximou-se, sentando-se ao lado dela.
— Sou uma mãe sem filhos, Rose — ela encarou a loira. — Se um dia você queria me ver destruída por ter rido de você naquela mercearia, bom... Aí está a sua vingança. Nada pode ser pior para uma mulher que anseia por segurar um bebê, ser impedida de tê-los.
— Eu tenho dois — Rose sorriu, apertando os ombros dela. — Pode pegar emprestado.
Constance gargalhou.
— Sério — murmurou. — Não sei como aceitou voltar para esse inferno. Se eu pudesse ir embora... Oh, já estaria longe. Longe daquela megera da nossa sogra.
— Margareth Hill não me põe medo.
— Ela também não me dá medo — concordou. — Mas, ela sabe ser cruel quando quer... E ela sabe cutucar o ponto fraco de cada um.
A loira pareceu entender.
— Ela já sabe que eu sou uma amargurada pela falta de um bebê para sugar meus seios, para eu apertar nos braços, para eu ser chamada de mãe. Mas, ela ainda não a conhece o suficiente para tentar destruí-la. Não permita que o faça.
Aceitando aquele bom conselho, Rose viu Constance sair do quarto.
Capítulo 14
August Mandis
Na primeira semana após a chegada a propriedade dos Hill, Rose permaneceu numa luta frenética para se inteirar de todos os documentos que precisava para preservar a herança dos filhos.
Benjamin Cross, o juiz, não a intimidou com seu olhar sugestivo e nojento (ele também estava na sua lista negra!) e, com Richard Kest ao lado, ela só assinou todos os documentos após o aval do amigo.
San Antonio entrou num total estado de euforia pela novidade. Ora, naquelas bandas a vida costumava seguir um ritmo cadenciado, e a volta de uma antiga moradora que fora tão gravemente marcada e humilhada por todos, causou um frenesi disparado em vários corações.
Não que o corpo curvilíneo, os longos cabelos loiros, os olhos azuis claros ou a beleza estonteante de Rose receasse alguém. Bem da verdade, ela não causaria medo nem em um ratinho de esgoto. Mas, daquela vez, ao lado da mulher, um juiz republicano federal se punha de forma protetora e carinhosa, deixando bem claro que compartilhava com ela da sabedoria de todo o passado. Isso, fora, claro, as duas crianças que eram herdeiras dos Hill.
Portanto, assim que chegou, recebeu algumas cestas de boas-vindas. Gargalhou diante dos nomes nos cartões, nomes esses como os do juiz Cross, que achavam que poderiam conter seu furor com alguns pães, uvas e geleias.
A vingança vinha a galope. Todos sabiam. Todos sentiam. E não estavam errados.
As cestas, devolveu. Não queria aqueles presentes, assim como não fazia questão sequer de olhar para aquelas caras nojentas. Mas, havia um objetivo e ela não se faria de rogada em cumpri-lo.
Assim sendo, só conseguiu um espaço de tempo para começar a colocar em dia seus planos no final da primeira semana. Naquele dia, em especial, Richard havia levado as crianças para o primeiro dia de aula, e ela foi atrás de Drew Hill.
Corajosa, bateu na porta de seu escritório. Por mais que seu corpo inteiro estremecesse sempre que olhava para ele, havia em seu íntimo uma gana tremenda que a manteve firme.
— Rose? — ele parecia surpreso.
E tinha motivos. Ela praticamente não lhe encarara desde que chegara.
— Gostaria de discutir sobre a compra dos mantimentos para a fazenda — avisou, aproximando-se da mesa. — E também sobre de quem os arrendatários se abastecem.
— Os arrendatários compram de quem desejam — ele deu os ombros, curioso. — Não entendo...
— Quero estabelecer novas normas tão logo fechem seus contratos.
— Do que está falando?
— Não aceito mais que a fazenda adquira o que não produz de August Mandis.
Só então Drew percebeu onde ela quisera chegar. Cortar o negócio com Mandis faliria o dono da mercearia. Os Hill e seus arrendatários praticamente mantinham aquele lugar aberto, já que não havia fazendas tão abastadas quanto à deles em San Antonio.
— Mas...
— Podemos comprar mantimentos em estoque, em grande escala de outras cidades, trazidos através das ferrovias, e vendermos a um preço melhor aos arrendatários.
— Para isso precisamos designar um empregado para buscar por melhores orçamentos, para...
— Acho que não está me entendendo, Drew — ela sorriu. — Eu não estou pedindo para você, estou lhe comunicando que é isso que você fará ou eu irei impedir todo e qualquer processo futuro de produção da propriedade, inclusive a venda do gado, do algodão...
— Ei — ele riu. — Calme, Rose. Não estou dizendo...
— Ótimo! — Cortou-o. — Que bom que chegamos a um consenso.
Drew Hill fixou o olhar nela. Aquela mulher era fascinante e ele mal conseguia impedir o olhar de dançar pelo corpo perfeito. Céus, o que era aquilo?
Aquele pulsar diante do cheiro dela? Aquele desejo que se fixava em todo o seu corpo, fazendo-o suar?
Enquanto ela se erguia e saía, pomposamente, do escritório, ele pensou em Constance. A sua esposa era uma pessoa honrada e decente, não merecia aquela cruel punhalada, mas... Mas...
Desde que Rose chegara à fazenda, era nela que ele pensava antes de dormir. Era nela que seus olhos se mantinham fixos sempre que ela se aproximava. Estava ficando louco... Louco! Rose Davis, ou melhor, Rose Hill era sua cunhada! Não tinha o direito de manchar a memória de Damien. Além disso, tirando Constance, ainda havia o fato de que ele fora um canalha contra ela, no passado.
Provavelmente, a loira o odiava mais que tudo.
Estava ali para se vingar de todos, assim, era apenas questão de tempo para ela atingi-lo.
Estranhamente, não se importou.
— Tio Drew?
A voz infantil fê-lo encarar Daniel. Abriu a boca, pasmo.
— Você não devia estar na escola?
— Tio Richard me deixou lá, mas eu fugi — mostrou todos os dentes para o outro, como se estivesse lhe contando um segredo. — Não conte a Danielle, ela vai ficar com inveja.
As classes eram separadas entre gêneros. Danielle não estudava com o irmão.
— E onde está o juiz?
— Tio Richard deve ter ido à cidade.
Por que Drew praticamente visualizou Richard Kest indo visitar o puteiro? O saloon não ficava longe, e o rapaz poderia sim ir até o local dirigido por Vicence. Contudo, não dava ares de ser alguém que frequentava aquele tipo de ambiente. Mas, havia algo... Algo lhe dizendo que era exatamente lá que Richard estava.
Incomodou-se por Rose. A mulher sabia que o noivo gostava de chinocas [2] ?
— Não fez bem, Daniel — advertiu o menino. — A escola é muito importante...
— Minha mãe me disse que meu pai, às vezes, fugia — ele contou, sorrindo. — O senhor sabe, ele nunca gostou da escola dos padres.
Então, veio a primeira grande recordação. Sim, por algum motivo, Drew soube que aquilo era real. Damien odiava estudar, mas amava livros. Exatamente como o filho. Já Danielle havia herdado a paixão por cavalos e pela liberdade.
— Tio Drew, eu queria falar com o senhor sem minha mãe por perto — o garotinho admitiu. — Pode me dizer qual livro meu pai gostava mais?
***
Faziam-se muitos anos que Drew Hill não entrava naquela biblioteca. Bem dizer, ele considerava que jamais entrou, mas... A mãe lhe contou que era o lugar especial de Damien, e que Drew ia lá para infernizá-lo, sempre que estava em casa. Desse modo, ele não quis macular aquele santuário com sua presença grosseira.
Contudo, era familiar... Cada livro, cada estante... Cada capa dura, preta, vermelha, branca... Não importava a cor, era como se ele reconhecesse aquelas linhas, aquelas gravuras, aquelas letras.
Subitamente, parou. Um livro pequeno, capa escura e em francês surgiu diante dele.
“ La Belle et la Bête ”
A Bela e a Besta. Por que aquilo lhe trazia tantas emoções?
Pegou-o. Então, se aproximou da cama e sentou-se, abrindo o livreto.
“ Gabrielle-Suzanne Barbot ”. Aquele nome escrito na primeira pagina lhe remeteu a uma lembrança.
— Eu queria ter uma filha para chamá-la de Gabrielle — murmurou. — Em homenagem a minha autora favorita...
Ele gostava de ler? Aquilo o surpreendeu.
— Tem uma sobrinha de nome parecido — o garotinho sentou-se ao seu lado.
Subitamente, Drew se emocionou. Puxando-o levemente, lhe beijou o topo da cabeça.
— Sim, é verdade. Danielle é um sonho — ele afirmou. — E eu a amo tremendamente, assim como a você — confessou. — Tome — estendeu o livro para o garoto. — É seu. — ofereceu. — Essa história mostra que mesmo diante dos piores monstros, das maiores bestas, o amor sempre prevalece.
O menino abriu o livro.
— Não entendo essas letras.
Drew conseguia identificá-las. A cada dia que passava, mais assustado ficava. Então, ele sabia francês?
— Vou ensiná-lo — prometeu. — Mas, primeiro irá para a escola. Não pode fugir de lá, ouviu?
E então ergueu-se, estendendo a mão para a criança.
Momentos depois, ao deixá-lo diante da pequena construção de alvenaria, sob o olhar assustado e desconfortável do professor, Drew sentiu os olhos úmidos e uma confusão tamanha em sua mente que pensou que fosse enlouquecer.
Quem, na verdade, era ele?
***
— Não é porque está com roupas caras que deixará de ser uma vagabunda, Rose Davis — August Mandis ralhou, encarando-a com desprezo.
Atrás de Rose, a serva Mathilda se escondia, assustada, diante de tanto ódio.
Porém, Rose riu. Não uma risada maquiavélica, ou simbólica, mas sim uma risada debochada, de alguém que realmente não perderia a chance de pisar em cima daquele monte de estrume.
— August Mandis, o tão pudico mercador de San Antonio — observou. — Quem te conhece, que te compre, seu velho tarado, desgraçado — xingou. — Eu sei seus segredos sujos, ainda lembro como você tentou me obrigar a enfiar meus dedos de criança dentro dessa bunda gorda e grande.
O homem arregalou os olhos.
— Saía daqui, sua cadela!
— Vou sair — ela concordou. — Mas antes, vim avisá-lo. Todas as compras da fazenda Hill estão canceladas. Não iremos mais negociar com você. E qualquer um dos arrendatários que comprar contigo, será imediatamente expulso de nossas terras.
— Nossas, você diz?
— Sim, metade do que pertence aos Hill agora é dos meus filhos. E eu respondo por eles. — Aproximou-se, perigosamente. — Eu poderia te matar — avisou. — Mas, eu prefiro te ver a mendigar o pão.
Então, chamando Mathilda, ela afastou-se do lugar, jurando nunca mais colocar os pés lá.
Porém, segundos depois, um grito surgiu atrás dela, revoltado.
— Você quer me falir, sua cretina? — o homem se alvoroçou. — Eu mando te matar, puta!
Subitamente, o som de palmas. Rose volveu o olhar e percebeu Richard sorrindo, debochado, diante do espetáculo.
— Isso é uma ameaça pública? — o amigo perguntou. — Porque eu posso mandar prendê-lo nesse momento, senhor...?
— Mandis! — o outro respondeu. — E você, quem é?
— Sou juiz de New Jersey. Aliás, um juiz federal, e membro do partido republicano.
Citar os republicanos sempre dava tremores aos sulistas.
— E está aqui por quê?
Parecia que nem todas as novidades haviam chegado aos ouvidos dos homens e mulheres de San Antonio.
— Vim acompanhar minha noiva — apontou Rose. — Algum problema?
O homem pareceu assustado. Não respondeu, simplesmente voltou-se correndo para o estabelecimento.
— Devo chamar o xerife? — Richard a encarou.
— O xerife atual é o juiz da cidade. Outro filho da puta que vou destruir.
O noivo assentiu, compassivo.
— O que faz aqui? — Rose questionou.
— Vim resolver minhas inquietações masculinas — apontou o saloon com a cabeça. — E você, meu amor?
— Vim resolver minhas inquietações assassinas — ela murmurou. Depois aceitou o braço que ele lhe estendeu. — Mathilda — chamou à serva que permanecia de lado, ainda muito temerosa. — Pegue a charrete, vamos voltar para casa.
Assim que ela sumiu no horizonte, Richard murmurou em seus ouvidos.
— Você está apenas começando, Rose? Ou isso é o fim?
— É o começo — ela respondeu. — O melhor deixarei por último. O melhor é a cabeça de Drew Hill em uma bandeja.
Capítulo 15
Pecados
A gargalhada feminina e gentil de Danielle invadiu o ambiente. Richard sorriu diante da visão, atento também a melhor amiga ao seu lado, que parecia encarar a brincadeira infantil entre Constance e a filha com uma incrível naturalidade.
Rose era assim. Nunca foi ciumenta. Desde que os filhos nasceram, ela sempre permitia que as pessoas os pegassem no colo e brincassem com eles. Claro, não era relapsa, nunca os perdia de vista, mas sempre conseguia reagir com exímia transparência e autocontrole quando não era o foco da devoção dos filhos.
E, claramente, desde que chegaram ali, os gêmeos se apaixonaram pela tia carinhosa que sempre estava disponível para brincar e fazer piqueniques no enorme jardim.
— Você confia nela?
A indagação tinha motivo. Constance havia sido alguém no passado de Rose. Claro, diante de tanto horror, era uma leve mancha, mas era inegável dizer que o riso da outra ainda ecoava nos ouvidos da loira.
— Você não acredita que as pessoas possam mudar? — Rose questionou. O semblante permanecia impassível.
— Não sei.
— Você mudou — ela retrucou. — Você me disse, mas George já havia me sugerido antes que, quando se conheceram, você foi por demais desagradável.
Richard riu baixinho.
— Tem razão. Mas, naquela época havia Damien e sua insistente posição defensora. Ele via a antiga Georgina como uma vítima de alguma anomalia divina. Ora, dizia que nasceu no corpo errado, e me atirava na cara perguntas de “o que faria se fosse com você”? Era impossível permanecer cruel nas brincadeiras se cada vez que as fazia era bombardeado de questionamentos morais e religiosos.
Suspirou diante do silêncio.
— O que você queria que eu fizesse? George me roubava todas as namoradas! O que aquele infeliz faz na cama que é tão bom que eu não sei fazer?
Rose deu os ombros, segurando um riso.
— Então, você realmente acredita na remissão de Constance.
Ela volveu o rosto para o amigo.
— Constance era o que se esperava dela. Uma menina recatada, perfeitinha, de família respeitável e noiva de um Hill. Ela riu de mim, numa situação consequente de uma vida regada de mimos. Contudo, a guerra tirou dela o véu que lhe cobria as ilusões. Encarar a verdade a mudou, a amadureceu.
— Que verdade?
— Ela não pode ser mãe — Rose murmurou, como se fosse algum segredo.
Numa época em que tudo que se esperava de uma mulher era uma criança, aquilo devia ser a maior das punições.
— Por quê? Tem alguma doença?
— Disse-me que até antes da guerra, Drew a procurava, e tentaram, poucas vezes. Mas que, quando ele voltou ferido, fugiu dela. E, desde então, ele não mais tem relações. Creio que ela não gostava de dormir com ele, mas pensava seriamente em engravidar, então fazia o sacrifício...
Aquilo atiçou Richard.
— É mesmo?
— Estou vendo em seus olhos sua sem-vergonhice — a loira ralhou. — Não ouse fazer bobagem, Richard, ou eu te castro!
Rapidamente, o homem cobriu suas partes baixas.
— Não fale isso nem brincando.
— Constance já sofreu bastante, ao lado daquele verme desprezível, refém dessa família maldita. Deixe-a em paz!
Depois disso, a mulher se aproximou da outra e da filha. Sorriu para elas, sentando-se na toalha estendida sobre o gramado verdejante.
— Já faz algum tempo que não a via — Constance sorriu, diante da presença da outra.
— Muito ocupada, assumindo a posição que necessito, para proteger o patrimônio dos meus filhos.
A morena abriu a boca, chocada.
— Não pedirá ao seu noivo para controlar a herança?
— Ele não é o pai — Rose negou. — Por que eu pediria tal coisa?
— Nós mulheres... — ela murmurou. — Bom, você sabe... Nosso papel é apenas procriar e calar a boca.
Rose negou com a face.
— Enquanto vivo, Damien me ensinou a lutar. Depois, ele me deu meios para que eu sobrevivesse, caso morresse... Foi o que acabou acontecendo — completou, incomodada. — Contudo, igualmente, significou a percepção que somos tão ou mais fortes que os homens. Apenas, alguns deles não desejam que saibamos disso. Alguns temem que nós possamos enfrentá-los. Mas, Constance, você não carece temer. Porque você é forte, apenas não descobriu isso ainda.
Depois disso, voltou os olhos para Danielle que as observava atentamente.
— Danielle cresceu sem pai, mas eu protegi minha filha, e cuidarei dela até meu último suspiro. Porém, assim que conseguir segurar uma arma, a ensinarei a atirar. Irei ensiná-la a defender-se por si mesmo. Nunca — voltou-se novamente para a outra —, nunca se permita ser protegida por outra pessoa. Porque, caso as pessoas falhem ou desapareçam com o tempo, você estará desamparada.
Constance assentiu.
— Não sei atirar — admitiu. — Não sei fazer nada além de bordados.
— Então está na hora de você aprender — Rose sorriu.
Era um sorriso cúmplice que muito agradou a morena.
***
Richard sorriu constrangido. Que diabos de ideia era aquela? Desde que Drew saíra de manhã para cuidar dos assuntos da fazenda e as crianças foram levadas para a escola, Rose surgiu na porta do seu quarto, o rosto excitado, como alguém fazendo algo proibido.
A ideia parecia sem propósito. Rose era sempre séria demais, até carrancuda. Tirar dela gargalhadas era algo que apenas as crianças ou George conseguia. Ele, raras às vezes, conseguiu fazê-la rir.
Porém, enquanto ela o puxava pela mão soltando gritinhos felizes, ele meditou que aquele era um dia único e diferente dos demais. Logo, soube o porquê. Constance Hill os aguardava na charrete, em frente à casa, e eles foram em direção a montanha, para treinar tiro ao alvo.
— Faz muitos anos que não uso o rifle — Rose estava completamente estimulada, em pé, de pernas abertas, firme, apontando para um toco ao longe.
Atirou. Nem parecia que o tempo passara. Ela acertou na mosca.
Volvendo os olhos para a loira, notou o orgulho pela pontaria sem igual. Rose era uma armamentista por convicção. Acreditava piamente que se cada pessoa possuísse uma arma, nenhum bandido teria chance.
— Quando estamos aprendendo, o repuxo nos surpreende e você pode se machucar — ouviu a voz dela, em direção à morena. — Por isso pedi para Richard vir, ele é forte e vai segurá-la.
Richard arregalou os olhos, enquanto Constance abria a boca, envergonhada. Claro que Rose não tivera nenhuma malícia, ao contrário, era nítido nela o desejo de ajudar, e Richard precisou se ater a isso.
Então, postou-se atrás de Constance. Assim como Damien havia feito com ele anos atrás quando o ensinou a usar armas. Ajudou-a a erguer o próprio rifle e apontar.
Ela não pestanejou e logo puxou o gatilho. O coice a atirou para trás e ele pôde sentir todo aquele perfeito corpo feminino tocando o seu.
Sorriu, sem graça. Afastando-a.
Sim, afastando-a. Devia ter se tornado uma bicha, influenciado por George. Desde quando ele se afastava de uma fêmea daquelas?
Baixou os olhos para o volume das calças e sorriu, tranquilo. Ah, não... Ali estava seu amigo manifestando-se ao cheiro de feminidade.
Porém, segundos depois, percebeu o olhar de Rose cravado nele, e o sinal de corte que ela fez com os dedos fez seu amigão preso nas calças baixar-se rapidamente.
— Eu atirei! — Constance parecia feliz demais.
Na verdade, havia errado o alvo, mas quem se importaria com aquilo?
— Sim, querida — Rose se aproximou dela. — Vamos treinar e logo você será uma distinta pistoleira.
***
Constance estava diferente. Sentado à mesa de jantar, Drew conseguia perceber uma animação incomum que parecia iluminá-la, tornando-a uma mulher com viço pela vida. As crianças e Rose haviam transformado sua esposa cansada em alguém cheia de alegria.
Ele sentia o mesmo, mas sabia não ter aquele direito. Amava as crianças. Queria ficar perto dos sobrinhos, ensinar a pequena sobre a lida do campo e dar ao menino todos os livros que pudesse ter lido. Porém, Rose era extremamente protetora e seu olhar resplandecia ódio.
Ela parecia estar a planejar algo. E ele seria a vítima. Isso era mais que claro, já que August Mandis havia aparecido naquela manhã para implorar que ele não aceitasse as ordens da mulher e não quebrasse o acordo entre eles de compra de mercadorias. Estranhamente, Drew sentiu uma enorme satisfação em dizer-lhe que não iria confrontar sua família por causa da vontade do homem.
Subitamente, o som de passos. Apenas uma pessoa naquela casa não jantava com a família e Drew respirou fundo, a aguardar a mãe.
Margareth logo surgiu, nervosa, irritada, encarando com nítido desprezo cada um daqueles rostos.
— Saía do meu lugar — ela voltou-se para Danielle, que se sentava próximo de Constance.
Obviamente, a menina não sabia que aquela cadeira era a escolhida pela avó durante todos aqueles anos. Próxima de Drew, e longe de Theodoro e Damien, na antiga organização da casa.
Danielle preparou-se para levantar-se, quando a voz de Rose surgiu, das sombras.
— Fique sentada — ordenou.
E depois, encarou a mulher mais velha.
— Nunca mais grite com a minha filha. Se não fosse sua idade, lhe mostraria a ter respeito por uma criança através do meu punho.
Aquela família era uma bomba prestes a explodir. Drew soube naquele instante que chegara o momento.
Os passos de Margareth ecoaram novamente. Logo a mulher ficou de fronte a loira.
— Repita! — seu tom era ameaçador.
— É surda? Não repetirei uma única palavra. Abaixe essa crista, porque faz muitos anos que você não é mais o galo desse galinheiro.
O som de um tapa. O rosto de Rose girou para a direita. Drew ergueu-se rapidamente e postou-se entre as mulheres, mas a loira não deu sinal de revide.
— Eu sei que me odeia — disse, contudo. — Não porque eu era a pobre coitada que seu amado filhinho pegava a força. Odeia-me porque Damien me amava. E eu o amava. E você nunca desejou que ele fosse amado por alguém. Entretanto, agora, tem que ver, diante dos olhos, o fruto desse amor na figura dos meus filhos.
Pasmo, Drew percebeu que as armas de Rose machucavam mais que as agressivas de Margareth. Ela cutucava fundo a ferida. Parecia ter planejado e pensado em cada passo ao longo dos anos.
— Drew não tem filhos, e sabe quem herdará tudo? Serão os filhos de Damien. Esse é seu castigo, sua cadela. Vai agonizar velha vendo os filhos de Damien controlando a fazenda e toda a fortuna dos Hill.
Constance não retrucou, sequer Drew. Ele porque, envergonhado, sabia que ela dizia a verdade. Ela porque admirava demais a cunhada e passou a querê-la mais bem ainda depois das palavras ditas.
— Vai pagar — Margareth murmurou. — Vai pagar muito caro por tudo.
— Não — Rose negou. — Quem aqui está em dívida é você. E é você que está, nesse momento, a pagar seus pecados.
Quando Margareth Hill deixou a sala de jantar, todos respiraram aliviados.
Capítulo 16
Desejo
Rose Hill conversava com os empregados da fazenda com tanta autoridade que parecia a Drew que ela havia nascido para aquilo, para comandar, ser uma fazendeira.
A rotina no campo não era fácil. Só quem lidava com gado e algodão tinha ideia do tamanho das dificuldades que se encontrava a cada seca ou safra mal organizada. Porém, ela realmente parecia disposta a aprender o ofício e responder pelos filhos.
Sorriu, encantado.
Era nítido que ela havia voltado à vida em San Antonio para punir todos de seu passado. Essa lista o incluía, mas, ao mesmo tempo, para ele era impossível evitar olhar para ela, encarar-lhe as formas, seu sorriso, seu jeito gracioso e, ao mesmo tempo, franco de viver.
Era errado, tinha essa consciência. Ele era casado e ela era noiva. Mas, por que o cheiro dela o embriagava em uma teia de imoralidade? Não conseguia evitar pensamentos impuros.
E aquilo... aquele homem desleal... Aquilo não era ele. Ou, ao menos, não era desde que acordara do coma.
O antigo Drew, pelo que diziam, sequer pestanejaria em tentar os favores da cunhada. Mas, esse novo Drew... ele não se mostrava tão desgraçadamente imoral. Pelo menos era o que acreditava... até ela aparecer em sua vida.
Constance não merecia aquilo, repetiu, pela milésima vez, a si mesmo.
— Olha demais para sua cunhada — o som atrás dele o gelou.
Voltou-se para a esposa.
— Estava apenas observando-a a dialogar com os antigos escravos.
— Não sabe mentir, Drew — ela retrucou. — Até tenta, para me poupar a amargura e o ciúme, mas não consegue.
Girou o rosto para o lado, evitando contato visual com a morena. O que poderia dizer?
— Vamos ser sinceros um com o outro, meu marido — ela pediu. — Você não me toca há anos, desde que voltou da guerra.
— Eu sou um homem deformado, querida... — murmurou, buscando se justificar.
— Vá para o inferno, Drew Hill! — Constance gritou, pela primeira vez, desde que ele voltara do hospital. — Você manca levemente e, sinceramente, mal se percebe. Essa é a única deformidade que restou da guerra. Acha que não sei que vai ao saloon e dorme com as mulheres? — seus olhos se encheram de lágrimas. — Dorme com putas, mas se recusa a me dar um filho. E agora está aí, a observar sua cunhada! A esposa do seu irmão! Onde está sua dignidade? Sua honra?
Ele baixou a face, nitidamente envergonhado. Por fim, Constance o deixou, correndo em direção ao quarto.
Ele não a seguiu porque não havia o que dizer. Era tudo verdade. Principalmente seu desejo a cada dia mais incontrolável por Rose.
***
Constance Hill não chegou ao quarto. Interceptada ainda no corredor por Richard, ela deixou-se abraçar pelo homem, que pareceu compreensivo e solidário a sua dor.
— Querida — ele murmurou nos seus ouvidos, e ela ergueu o rosto a encará-lo. — Perdoe-me, mas eu ouvi tudo. E devo discordar de você, não acredito que esteja sendo desprezada por seu esposo.
— Por que diz isso?
— Porque tenho quase certeza que o homem que se recusa a ir para a cama com você não é seu marido. — Puxou seus ombros e fê-la encará-lo. — Aquele homem manco e de postura acanhada não é Drew Hill.
A morena não parecia surpresa. Era como se a possibilidade já houvesse passado em sua mente um milhão de vezes.
— É Damien — ela sussurrou. — Algo sempre me disse que era Damien...
Richard assentiu.
— Contudo, não temos como ter certeza.
— Mas, podemos investigar. Se ele for Damien, não é meu marido e sim de Rose, e eu estarei livre para me casar com um homem que possa me dar filhos.
Subitamente ela o encarou como se ele não passasse de um objeto que lhe daria um determinado fim. Um fim mais que desejado.
— Acabo de me sentir usado — Richard murmurou.
Mas, que fosse! Ele tinha que descobrir se aquele homem era realmente o melhor amigo antes que Rose Davis enfiasse uma bala na cabeça do desmemoriado.
***
Rose encarou o alazão e respirou fundo. Nunca havia cavalgado antes, mas um dos empregados havia lhe demonstrado como ela devia subir na sela. Afinal, não queria ir para a cidade de charrete, pois sempre chamava muito a atenção. Além disso, ser mulher significava que ela precisava estar acompanhada, mesmo que fosse de Mathilda, e ela queria quebrar aquele estigma.
Aparecer diante do padre Antony era um desejo que nutria há muito tempo.
Iria cruzar a porta daquela igreja e esperaria que ele tentasse expulsá-la. Então, ela lhe retalharia.
— A sela feminina é mais complicada de se usar — a voz de Drew surgiu às suas costas. Estava no estábulo, não pensou que ele fosse surgir ali. — Afinal de contas, equilibrar-se de lado é uma das façanhas que só as mulheres são capazes.
Ela queria ignorá-lo. Mas, não conseguia. Ficava zonza diante dele. Por mais que o odiasse, a semelhança com Damien lhe fazia pestanejar.
— Eu sei disso, não precisa falar o óbvio — devolveu, irritada.
Então, segurou no suporte e tentou dar impulso. Malditas saias pesadas, porque não conseguiu.
Subitamente, mãos em sua cintura. Rose gelou, sentindo um calor estranho subir por todo seu corpo. Fazia muitos anos que não era tocada por um homem... Não! Afastou os pensamentos. Era tocada por Richard e George. Recebia deles abraços e carinho. Contudo, era diferente quando algo remetia a Damien. Ao seu único amor.
— Tire suas mãos sujas de mim! — a voz revoltada seguiu-se ao seu girar de corpo.
Preparou-se para lutar contra ele, quando seu olhar encontrou-se aquele negro intenso. Havia a doçura de um anjo ali, e na sua vida, apenas um anjo havia reinado.
Quando os lábios de Drew tocaram o seu, ela esqueceu-se que diante de si estava um abusador maldito, que a havia desgraçado. Naquele curto instante, enquanto seu corpo era envolvido pela magia do amor, ela visualizou Damien.
Mas, a razão logo voltou. Esmurrando-o, ela o afastou.
— Seu filho da...
Não terminou a frase. Sentia-se tão culpada pelo beijo quanto ele.
— Constance é uma mulher maravilhosa, não merece um desgraçado como você — gritou.
Então, viu o desespero no olhar escuro.
— Eu sei — ele respondeu. — Eu me penitencio todas as noites, antes de dormir. Rezo o terço, implorando que Deus me perdoe, que me mude, mas, por todos os anjos do céu, eu não consigo amá-la, porquanto, ao mesmo tempo, eu só tenho você em minha mente...
A confissão revoltou Rose.
— Eu te odeio! — gritou.
— Não foi ódio que senti contra minha pele, contra minha boca, meu corpo. Pode negar o quanto quiser, mas eu sei que está tão confusa quando eu.
Subitamente, era pareceu mais ereta. Respirou fundo, buscando o autocontrole. Então, aproximou-se dele, aparentando calma.
— A única coisa que quero de você é a sua morte — murmurou. — E eu não descansarei enquanto não a tiver.
Quando ela afastou-se do estábulo esqueceu-se imediatamente do padre e da sua vingança. Tudo que queria, naquele instante, era o rifle e uma bala na cabeça de Drew Hill.
***
Na mesma noite, assim que entrou em seu quarto, pronta para dormir, enfim Rose entregou-se as lágrimas. Já amava Constance como uma irmã e culpava-se tremendamente pelo que fizera no estábulo. Drew estava certo, ela retribuiu o beijo.
Pior que isso, havia maculado a memória de Damien.
Deitando-se na cama, Rose tentou afastar o pensamento daquele toque, daquela boca, daquela pele... Mas, foi impossível. Tudo nela pulsava numa cadência ritmada de desejo. Então, apertou as pernas, uma contra a outra, tentando aliviar-se daquele ato sujo e imoral.
Quando o gozo se aproximou, ela choramingou de vergonha e auto degradação. Nunca, em toda a sua vida, sentiu-se tão suja, mesmo nos piores estupros, nos piores momentos... Nada assemelhava-se a ter um orgasmo pensando em seu maior inimigo: Drew Hill.
Capítulo 17
Religião
— Eu realmente achei que a senhora fosse aprender a cavalgar — Mathilda observou, enquanto entrava, insegura, dentro da nave da igreja.
Rose quase revirou os olhos. Odiava ficar se justificando, mas considerou que a antiga escrava merecia uma explicação.
— Não me dei bem com cavalos. — Murmurou. — E, tanto faz, porque sei que gosta de sair da cozinha para vir me acompanhar.
— Oh, é verdade, senhora — ela assentiu, rapidamente. — Gosto muito de guiar a charrete. É divertido.
Então, sentaram-se em uma fileira de bancos.
— Senhora — Mathilda sussurrou, culpada. — Negras não podem vir aqui...
Rose tentou não lhe dar ouvidos, mas viu-se a encarar a mulher.
— O quê?
— Ordens do padre Antony. Por favor, posso sair?
— Vai ficar onde está — Rose ordenou, firme. — E nunca mais se atreva a faltar uma missa. Você e todos os de pele escura que moram na fazenda dos Hill.
— Mas, senhora...
— Eu já disse. Cale-se e me obedeça!
Mathilda assentiu, baixando a face. Apesar da aparente grosseria de Rose, ela sorriu em seu íntimo. A nova patroa era justa e bondosa. Porém, quando se tratava de pôr o passado em dia, ela parecia um monstrengo ansioso por destruição.
A serva fez o sinal da cruz e em seguida ficou em oração. Não era católica, mas gostava daqueles gestos. Sabia que a avó havia ensinado a mãe dela sobre os deuses antigos que ficaram na África, mas tanto a avó quanto a mãe foram mortas antes de ela ser vendida, ainda menina, ao coronel Theodoro. E o Deus dos brancos daquela nova terra não aceitavam os da sua raça. Ao menos isso foi o que ela ouviu por muito tempo, até a senhorinha Constance lhe indicar o contrário.
Teve sorte, de início. A dona Margareth nem olhava para os servos e o coronel não era do tipo que gostava de se engraçar com as negras. Então, ficou feliz de ter sido enviada para os Hill. Porém, a paz acabou aos seus catorze anos, quando o senhorzinho Drew entrou na cozinha. Viu, nos olhos negros como demônios dele, tudo que ele queria, mas não disse.
Tornou-se mulher naquele dia. Sangrou e doeu muito. Mas nada se comparava ao que ela sabia sobre a loira ao seu lado.
Se ela, mesmo que não quisesse, ainda nutria certa raiva pelo, agora, bondoso senhor de terras, Rose Davis devia querer sua morte.
Drew Hill pegou Mathilda apenas uma vez. Depois, não a quis mais, pela graça de Jesus Cristo, o deus dos brancos que ela passou a querer bem depois de senhorinha Constance falar sobre a bondade dele. Mas, fora diferente com Rose. Ele a teve muitas vezes. Certa vez, Mathilda colhia framboesas na fazenda quando ouviu seus gritos. Ecoavam com tanta dor que ela imaginou que Rose estivesse sendo rasgada em duas.
Não... Não era a dor física, entendeu depois. Era a dor na alma. Era a dor que não passava, mesmo que os anos se cruzassem, um após o outro.
E ali estava ela. Novamente nas terras dos Hill. Agora, não mais como alguém a ser submetida, mas alguém a se temer.
Mathilda se lembrava de como o senhor Damien voltava dos passeios, após ir ver a loira. Seu olhar apaixonado dizia mais que qualquer coisa. Uma vez, após saber que ele a havia beijado, Damien a rodopiou no ar, para compartilhar sua felicidade.
“ Eu a amo, doce Mathilda ”, disse, tão feliz como nunca. “ Eu a farei mãe dos meus filhos ”.
E fez.
Aquelas duas pequenas crianças cheias de energia tinham os cabelos e os olhos do pai. O nariz, a boca, o formato do queixo... Enfim, a personalidade também. De tudo, eram Damien. Assim, era impossível não amá-las.
— O que essa negra faz dentro da casa de Deus?
Enfim, a voz de padre Antony. Mathilda arregalou os olhos, temendo apanhar. Levemente, aproximou-se de sua senhora, esperando por proteção. Então, viu-a erguendo-se e voltando-se para o padre.
— Há quanto tempo, sacerdote... — Rose disse, firme, alto, a postura reta e um sorriso zombador nos lábios.
— Cadela... — Antony sussurrou. — Como se atreve a sujar a casa de Nosso Senhor Jesus Cristo com sua presença profana?
— Da mesma forma que você se atreveu — ela devolveu — a alisar meu corpo sagrado com suas mãos sujas quando eu era uma criança pequena.
Então, retirou um revólver da bolsinha, e a apontou para o padre.
— Não ousaria... — ele disse. — Nunca me mataria dentro da Igreja.
— Meu caro padre, eu te mataria até dentro do banheiro, enquanto estivesse com as calças arriadas. Mas, não foi para isso que vim.
Baixou a arma.
— Mostrei-a apenas como sinal do quanto estou disposta a dialogar.
— Me obrigando a ouvi-la? Caso contrário, me matará?
— Como você é inteligente e perspicaz. — elogiou, o sorriso permaneceu no rosto. — Como deve ter sido informado, as coisas mudarão em San Antonio. Agora, quem manda na cidade sou eu.
O padre riu, zombeteiro.
— Não me diga.
— E quem não aceitar, vai morrer.
— Drew Hill já foi informado?
Rose deu os ombros.
— Ele sabe que está na lista de morte, caso aceite ou não. Questão de tempo, óbvio.
O padre sentou-se em um dos bancos. Tentava transparecer calma, mas suava bastante.
— Você sabia que tudo que diz é crime?
— O senhor sabia que sou noiva de um juiz? Tenho certeza que Richard achará muito fácil me livrar das acusações, tendo em vista que toda a cidade tentou armar minha morte e a dos meus filhos, por conta da herança, e eu apenas me defendi.
Mathilda arregalou os olhos, diante da confissão.
— O que você planeja, realmente?
— Depois de conseguir que seja excomungado? Depois de descobrir seus segredos sujos (oh sim, eu sei que os têm!), e te ver na lama, na sarjeta?
Respirou fundo.
— Escute bem, padre. Só irei dizer uma vez, e não se atreva a me contrariar. A partir desse domingo, as portas dessa igreja serão abertas a todos os negros da cidade, especialmente os da fazenda Hill. E não sentarão escondidos, nos últimos bancos. Sentarão onde quiserem, e o senhor pregará para eles igualmente. Se ousar chamá-los de animais, se ousar insultá-los, eu estarei com a minha arma pronta para destroçar a sua cabeça.
— Seria presa na hora.
— Isso é algo que eu deverei pensar depois, não? Já o senhor, estará mais preocupado em viver no inferno, prestando contas a Lúcifer de todo mal que fez.
Então, afastou-se em direção à porta. Mathilda a seguiu.
— Nos veremos no domingo, padre Antony. Espero que, no final dele, o senhor ainda esteja vivo e eu em liberdade.
***
O juiz estava ao longe, observando-a. Rose sorriu para ele, mostrando todos os seus dentes, transparecendo no seu olhar que não o temia. Aliás, era ele que devia temê-la.
Muitos dos homens que a destruíram já haviam morrido ou eram apenas forasteiros de passagem por San Antonio. Alguns outros, uma minoria, eram empregados nas fazendas, mas a culpa os assolava, e fugiam antes de praticar o ato, provavelmente pensando em suas filhas da mesma idade.
Porém, aqueles três homens: o dono da mercearia, o padre e o juiz... eles eram os mais terríveis. Claro, Drew estava na lista, mas por último, o que planejava para ele era o pior.
Ela iria destruí-lo. Arrancaria tudo dele, deixá-lo-ia na completa miséria. Queria insultar seu nome, destruir sua imagem. Depois que ela acabasse, Drew teria vergonha de um dia ter se dito homem.
Todavia, aquele não era o momento de pensar em Drew Hill. O juiz a encarava e ela precisava deixar claro que não tardaria em pegá-lo. Pensou em fazer um gesto qualquer, com os dedos, simbolizando uma arma a atirar, quando trombou em alguém.
Era Drew.
O que diabos ele fazia ali?
— Mathilda, busque a charrete para sua senhora, por favor — ordenou à serva. Assim que a mulher sumiu, ele encarou-a. — Rose, nós precisamos conversar.
Ela não queria falar com ele. Não queria sequer olhar na sua cara.
— O que você quer?
— Eu preciso... — emudeceu. Sua angústia era palpável. — Por que eu acho que já a amei, Rose? Diga-me, já nutri sentimentos por você? Por que tudo em você me é familiar? Seu gosto? Seu cheiro?
O semblante enojado dela o arrepiou.
— Provavelmente porque seu corpo se lembra de todas às vezes que me tomou a força.
— Rose...
O que podia dizer para aquilo?
— Se pudesse me ajudar a recuperar minhas memórias... Se pudesse... Talvez eu possa recompensá-la por toda a dor. Não sei o que poderia fazer, mas...
— A única coisa que eu quero é colocar chumbo na sua cabeça, desgraçado. Então, eu não me importo nem um pouco com a sua agonia ou a sua dor. Por mim, que se afogue em desespero.
Quando ela o deixou, rumando em direção à charrete que aparecia ao longe, Drew sentiu algo além do explicável. Era um sentimento de injustiça. Contudo, por quê?
Capítulo 18
Relicário
Richard Kest parecia ansioso. Assim que ela cruzou a porta de entrada da mansão dos Hill, ele a segurou nos braços, puxando-a em direção ao quarto.
— O que é? — Rose questionou.
Estava com os nervos a flor da pele, desde o encontro com Drew.
Em segundos, Constance apareceu diante dela. Ambos pareciam cúmplices em um pensamento, e estavam nervosos em declará-lo a ela.
— Aconteceu alguma coisa com meus filhos?
— As crianças estão bem — o homem adiantou-se. — Minha querida, precisamos saber de algo.
— Sim?
— Se existe qualquer possibilidade de você não reconhecer Damien, caso o visse?
— O quê?
Que pergunta sem propósito era aquela?
— Vou ser franco e dizer logo a verdade — Richard falou, firme. Porém, segundos depois, buscou fôlego e coragem. — Estamos, Constance e eu, desconfiados que o homem que vive aqui não é Drew, e sim Damien.
Aquela frase trouxe lágrimas aos olhos de Rose. Ela se viu, em seguida, empurrando o melhor amigo.
— Rose...
— Tem ideia do quão cruel é isso? Tem ideia de que está brincando com meus sentimentos? Acha mesmo que se Damien estivesse vivo, em tantos anos, ele não teria ido a minha procura?
— Não se perdeu a memória — Constance retrucou. — Tudo que resta no Drew que vive aqui é sua integridade. E, Deus me perdoe, mas o antigo Drew não tinha a menor honra. Então...
— Eu não quero ouvir mais — Rose interrompeu-a, tentando se livrar das mãos de Richard.
— Rose, por favor...
— E se estiver errado, Richard? — ela indagou, à queima roupa. — Imagina o quão cruel é para mim enterrar Damien duas vezes em meu coração? Sabe o que significou para mim perdê-lo na primeira vez? E agora, nutrir esperanças para vê-las sendo avassaladas novamente?
— E quanto a mim? — Constance elevou a voz. Era a primeira vez que era firme o suficiente para calar a cunhada. — Se o homem com quem convivo é Damien, eu sou viúva, mas estou presa a ele. E ele é seu marido, e não meu!
Só então Rose deu-se conta de que não era a única a sofrer, naquele passar de anos.
— Você sabe a história. Eram gêmeos idênticos e a única pessoa capaz de identificá-los era a mãe. Você confia no julgamento de Margareth?
Margareth poderia ter sido tão cruel?
O coração de Rose começou a bater descompassado.
— Existe alguma coisa, Rose — Richard lhe girou para ele. — Qualquer coisa... Qualquer... Que possa garantir que Drew é Damien? Um sinal de nascença? Uma verruga? Sei lá, você já o viu pelado!
— Sim, há quase dez anos — ela retrucou. — Não lembro... — subitamente o silêncio. — Existe algo...
— O quê?
— O relicário — ela murmurou. — Damien me disse que o de Drew tinha uma foto de Constance.
— É verdade. Antes do casamento, Margareth mandou-me fazer um retrato pequeno.
— E o de Damien, o que tinha?
Ela não respondeu.
— Se for Damien, eu saberei — disse, contudo. — Preciso ter essa certeza.
***
Ele estava de costas para ela. Podia ouvir sua respiração rápida enquanto fazia o laço firme em volta da égua favorita.
Rose, por alguns segundos, permitiu-se imaginar que fosse Damien. Os ombros largos, o som da respiração, a maneira gentil com que acariciava a cabeça do animal sempre que se mexia demais.
Parecia Damien... Parecia demais.
Como não se dera conta daquilo antes? E se Margareth houvesse mentido, aproveitando-se da amnésia do filho? Drew disse que a amava... não disse? E se não tocava em Constance porque ainda era fiel a esposa que havia deixado para trás?
E se...
E se fosse apenas mais uma ilusão? Mais uma dor para carregar, mais uma vez, derramar as mesmas lágrimas? Estava focada em sua vingança, devia permanecer fixa naquilo, mesmo que...
— Rose?
Ele a encarava. Havia notado sua entrada e a percebeu também em transe, dentro dos próprios pensamentos.
Enfim, ela deu dois passos em sua direção. Parou.
— Vou fazer algo agora — antecipou. — Não ouse se mexer. Se tentar, eu te mato.
Só então viu o revólver na mão dela.
— Você confia demais em armas.
— Damien matou meu padrasto, que me vendia, se é que você não se lembra — ela contou. — Uma única bala, e eu fui resgatada do inferno. Se tem alguém nesse mundo por quem sou grata é pelo sr. Colt, que criou uma arma tão fácil de usar e tão letal ao mesmo tempo.
Drew assentiu, compreensivo, erguendo as mãos.
— Ao seu dispor, senhora — disse, sorrindo.
Então Rose se aproximou. Ele não se moveu, mas não conseguiu tirar os olhos dos lábios entreabertos dela. Tão perfeitos... tão...
Desviou o olhar, enquanto a via remexendo em sua camisa. O relicário de ouro surgiu entre os dedos femininos e, como se o conhecesse bem, ela apertou o dedo no pino secreto.
— Acha que já não fiz isso antes? Um milhão de vezes? Pensa que sou Damien, é isso?
Diante das lágrimas femininas, ele se calou. Por fim, ela o deixou, saindo correndo em direção à mansão. No estábulo, Drew Hill permaneceu em igual sentido de luto.
A foto de Constance balançava no cordão.
***
— Rose! — o grito de Richard a estancou.
Rose o encarou. As lágrimas desciam em cascata pelo seu rosto. Constance, ao lado dela, baixou a face, constrangida.
— É Drew! — a loira retrucou. — Satisfeito? É Drew!
— E se trocaram os...
— Vá para o diabo, Richard Kest! — o grito dela foi ouvido na cozinha. — Pare de me torturar, eu não aguento mais isso!
Quando ela sumiu nas escadas, o juiz encarou a jovem.
— Não devíamos ter feito isso... — A culpa resplandecia na morena.
— Margareth trocou os relicários, tenho certeza. Precisamos achar o de Damien e entregar a Drew. Talvez haja algo dentro dele que faça com que Damien se recorde de quem é.
Constance negou.
— Richard, devemos aceitar...
— Escute, Constance. Eu cresci ao lado daquele infeliz. Se alguém é capaz de reconhecê-lo, essa pessoa sou eu. Eu tenho certeza que aquele homem é Damien.
— E como vai provar isso?
— Da única forma que posso — ele deu os ombros. — Eu vou encurralar Margareth Hill.
***
Rose já secava as lágrimas quando as batidas na porta a fizeram ir até a entrada. Não estava com o menor ânimo para enfrentar o amigo, mas aceitou a entrada de Richard em silêncio.
— Eu não vim me desculpar, apesar de achar que devo — ele antecipou-se a qualquer fala dela. — Devia ter pensado melhor em seus sentimentos. Sei que sofreu muito na vida, Rose, e que Damien significou, pelo pouco tempo em que estiveram juntos, seu porto seguro. Mas eu devo isso ao meu amigo. Porque antes de conhecê-la, era ele meu companheiro. Eu jamais me perdoaria se o deixasse para sempre com a estigma de crimes que não cometeu.
E antes que ela pudesse expressar qualquer palavra, ele saiu do quarto, batendo a porta.
Capítulo 19
Pai e Mãe
Havia algo em Benjamin Cross que enojava Drew. E não era apenas o cheiro fétido e a aparência repugnante que lembrava porcos gordos. Era aquele olhar, como se soubesse demais, como se considerasse-se inabalável, como se tudo nele fosse uma amostra da ira demoníaca de alguma entidade das trevas.
Contudo, mesmo assim, ele o recebeu com um cordial aperto de mão. Afinal de contas, não era apenas o juiz da cidade. Desde a morte de seu pai, Cross se auto intitulou xerife e ninguém reclamou daquilo.
A cidade caminhava por si mesma, os roubos ou desavenças eram sempre resolvidos entre as partes, sem precisar de muita interferência. Theodoro, por exemplo, só teve um único caso em mãos, que foi a da morte do antigo padre, e sem nenhum tipo de culpa, arquivou o processo, responsabilizando forasteiros que ninguém viu, pelo homicídio.
E ninguém se importou.
Porque, sinceramente, todos que ali viviam estavam mais preocupados com a chuva que às vezes demorava a descer, com o preço do sal para o gado, que subiu e com as taxas pagas aos nortistas antes e após a guerra. A aparência era mais importante que a justiça.
Ninguém queria saber se um padre havia sido assassinado por um padrasto cruel. Ora, Loreto era mau apenas para Rose, no mais, era um excelente cidadão. Tratava com deferência as mulheres e era um freguês que honrava seus compromissos na mercearia. Ia à missa aos domingos, e pagava seu dízimo sem nenhuma falha.
Ah, claro, era a menina que o seduzia. Sim, todos sabiam disso. Todos sabiam que Rose Davis, no auge dos seus seis anos havia seduzido o padrasto e, depois, não conseguindo conter aquele fogo juvenil, ele a vendia aos demais homens.
A culpa era dela.
Toda dela.
Os homens tão altamente estimados pelos cidadãos de San Antonio jamais deveriam ser responsabilizados pelo que acontecia naquele casebre no meio do mato.
Isso tornava a vida em San Antonio muito calma. Até, claro, o filho mais velho do mais poderoso fazendeiro e xerife da cidade aparecer. Foi Damien Hill que tomou partido da loira, ensinou-a a atirar, e... pasmem!, depois disso ela se recusou a receber os homens, metendo balas em suas cabeças, sempre que tentavam se aproximar da casa.
Não matou ninguém, mas fê-los perceber que a farra havia acabado. Vicence, o dono do puteiro, ficou muito feliz com a novidade, viu sua clientela crescer, mas, definitivamente, o sentimento não foi compartilhado pelos demais.
Contudo, a guerra começou. Não houve muito espaço para pensar em algo além das trincheiras. Foram tantas mortes... tantas... E no meio daquela bagunça, a loira Rose Davis desapareceu. Agora, anos mais tarde ela se reinventava como mulher, intitulando o sobrenome de maior peso no Texas, assumindo a maternidade de duas crianças que, inegavelmente, eram filhos de Damien (eram a cara do pai!), e também a herança que começou a causar nervos em todos.
Claramente, Rose, agora, Hill, aparecera em San Antonio em busca de vingança. Provavelmente, não pensara muito naquilo durante os anos, mas, o sentimento claramente a dominou assim que retornou.
E Benjamin Cross não era idiota. Rose estava levando August Mandis à miséria, estava revoltando o padre, e ele sabia que era o próximo da lista. Então, resolveu agir antes que ela agisse.
— Eu não irei contrariar a minha família, causar um mal estar com minha cunhada por causa de Mandis — Drew negou, assim que lhe ouviu as ideias. — Desculpe, mas o que Rose decidiu, está bem para mim.
— Pense melhor — Cross pigarreou. — Você sabe que Rose está atacando homens que já fizeram parte do seu passado. Você está incluso nessa lista, meu caro.
— Estou? O senhor sabe que de nada me lembro antes da guerra. Contudo, se devo algo a Rose, eu pagarei. Imagino o quanto sofreu, e acho que merece justiça.
Diante de tais palavras, Benjamin se ergueu, revoltado.
— Vai se arrepender, Drew Hill — disse.
— É uma ameaça?
— Minha? Óbvio que não! Vai se arrepender por não pôr aquele demônio em forma de mulher nas rédeas. Lembre-se do que eu lhe disse quando ela destruir você.
Então, afastou-se do escritório, saindo da casa com nítida raiva.
***
No lado de fora da casa, o negro Malaquias aguardava o juiz com a face baixa e temerosa. O homem era cruel e desumano, ele sabia, então sempre tentava evitar um confronto ou encará-lo nos olhos.
— Traga a charrete! — Cross gritou.
O filho de escravos saiu correndo. Por mais que não fosse mais sujeito a um senhor, ainda era considerado como tal pelo juiz. Assim sendo, não tardou em cumprir o que lhe fora ordenado.
Porém, assim que se aproximou da charrete, viu a bonita Mathilda a lhe sorrir. Sorriu de volta. Se pudesse, se casaria com ela, teria filhos com ela... Mas, sonhos não eram para gente como ele e, então, ele logo se afastou, sem desconfiar que de uma janela a loira Rose Hill observava tudo atentamente.
***
— Filho da puta desgraçado! — Cross resmungou. — Por que está demorando tanto?
Subitamente, sua atenção foi chamada por um riso infantil. Gostava do som. Vozes infantis femininas sempre lhe atraiam.
Deu alguns passos e então viu a pequena Danielle a brincar no jardim com dois gatos manchados. Era tão pequena e fofa, como a mãe, naquela idade.
Sem pensar muito, Cross aproximou-se.
— Olá, menina — cumprimentou, dando-lhe seu melhor sorriso. — Eu sou o juiz Benjamin, e você? Quem é?
— Sou Danielle — ela respondeu prontamente, aproximando-se do senhor, com a pureza tranquila que só alguém sem malícia poderia ter.
— Você é a filha de Damien! — Benjamin fingiu surpresa. — Eu era muito amigo do seu pai.
— É mesmo?
Touché!
— Sim, Damien e eu costumávamos caçar juntos. Ah, deixa eu lhe contar um segredo. Estou com os bolsos cheios de balas — aproximou a boca do rosto dela. — Se você for quietinha lá para aquela floresta — apontou com a face o montante cheio de árvores — eu vou dá-las todas à você.
— Minha mãe disse que não posso aceitar nada de estranhos — ela contrariou, recusando.
— Mas, não sou estranho, sou o amigo do seu pai.
Subitamente, uma mão no seu ombro. Benjamin Cross mal conseguiu voltar-se antes de receber um forte soco no rosto. Caiu como um trapo para o lado, e segundos depois, sentiu um peso em cima de si.
A menina, assustada, começou a gritar, enquanto Drew Hill lhe agredia, um soco atrás do outro, sem parar, como se estivesse possesso por demônios.
O sangue escorreu enquanto a mente ficou dormente. Por fim vozes, e então, Drew saiu de cima dele.
— O que aconteceu?
A voz era de Rose Davis. Ele reconheceria o tom em qualquer lugar. No seu olhar quase fechado pelas agressões, percebeu Drew lacrimejando.
E não eram lágrimas de tristeza ou pesar, eram de ódio.
— Você — gritou para o negro que acompanhava Cross. — Tire esse desgraçado daqui antes que eu o mate!
Ao ser posto na carroça, Benjamin Cross soube que sua recaída com crianças não ficaria apenas nos socos dados por Drew.
Rose Davis o encarou. Ela prometeu vingança através dos olhos azuis.
E ela iria cumprir...
***
Drew Hill acariciou a face da menina com carinho. Depois, voltou os olhos para o menino próximo, e o chamou.
— Daniel, você é o homem da casa. Um dia será o patriarca dessa família. Proteger sua irmã é sua obrigação. Então, nunca mais a deixe sozinha com estranhos.
O garotinho assentiu, avergonhado.
— Está fazendo tempestade em um copo d’agua. — a frase de Rose atrás de si o surpreendeu.
— Você por acaso ouviu algo que eu disse?
— Danielle jamais iria com ele. Minha filha me obedece, e teria gritado por socorro caso ele tentasse obrigá-la. Além disso, eu estava na janela, observando. Crê mesmo que eu não ficaria de olho nas minhas crianças com aquele desgraçado perambulando por aqui. — Então, voltou-se para Daniel. — Filho, não se preocupe, isso não é sua responsabilidade.
Carinhosamente, segurou os braços da menina.
— Até crescer e aprender a se proteger por si mesma, fique sempre por perto de pessoas que te amam. Sua mãe, seu tio Richard, tio George ou tia Constance.
Drew ficou estupefato.
— E eu? — quase gritou. — Pare de tentar jogar meus sobrinhos contra mim.
— Você é em quem menos confio, meu caro — ela retrucou, e depois voltou-se para a filha. — Mas, quando ficar mais velha, confie em si mesma. Um rifle afastará qualquer imbecil que cruzar seu caminho, Danielle. E essa é uma das grandes verdades da vida.
Então, se ergueu. Encarou Drew com determinação, porém, segundos depois, respirou fundo, e disse, com dificuldade:
— Obrigada.
Foi curta, rápida e constrangida. Mesmo assim, era a primeira vez que houve uma troca de cumplicidade entre eles.
— Eu morreria por ela — ele disse, e era sincero. — Daniel e ela são tudo que resta do meu irmão.
— Você sequer o amava — Rose negou. — Por que se sente assim, agora?
Drew deu os ombros.
— Eu esperava que com você na casa eu tivesse respostas.
Por fim, ela se aproximou das escadas, puxando as crianças.
— Não existem respostas. E, se existem, deixe-as no passado. Você não vai querer se lembrar de quem era.
— Eu já disse — ele retorquiu. — Eu quero me redimir...
— Não existe remissão — negou. — Sua passagem para o inferno já está certa. — Depois, sorriu. — Não se preocupe. Se eu conseguir fazer tudo que planejo, não estará sozinho lá.
Capítulo 20
O Celeiro
Rose sorriu para a serva Mathilda. Era tarde da noite, já, mas assim que pediu o chá, a empregada correu para servi-la.
Sentada em uma poltrona na sacada do casarão, ela meditou no quanto a jovem negra estava se mostrando prestativa. Enfim, era uma aliada. E Rose precisava de aliados diante de tudo que planejava.
— Querida — chamou-a. — Sente-se aqui, ao meu lado.
A negra arregalou os olhos, mas não se objetou. Parecia acanhada, nervosa, como se encostar a bunda naqueles bancos fosse um crime.
Provavelmente o seria, alguns anos antes.
— Quantos anos têm, Mathilda? — indagou, curvando-se diante da mesinha e servindo outra xícara de chá.
Estendeu à negra, que pareceu surpresa.
— É melhor, não, senhora. Dona Margareth pode ver...
— Você não é mais uma escrava, é uma americana livre, e pode tomar chá quando quiser. Se Margareth ver, o máximo que acontecerá é ter um infarto, o que pouparia a todos nós de sua presença perturbadora.
Mathilda pousou a mão na boca, rindo envergonhada.
— A senhora é cruel, quando quer.
— Sou sim — Rose afirmou. — Margareth torturava Damien psicologicamente. Dizia a ele coisas que uma mãe jamais deveria expressar a um filho. Eu a odeio.
Silêncio.
— Sabe — Rose suspirou. — Damien, antes de me cortejar, era um amigo. Nós passávamos várias tardes tomando chá. Falávamos sobre tudo. Ele me contou da mãe.
Mathilda não demonstrou surpresa. Ela desconfiava daquilo, pois desde que a loira entrara na vida do finado patrão, ele havia se tornado mais calmo e mais confiante. Era como se o simples fato de Rose Davis existir aliviasse um certo peso em sua alma.
— Você não me respondeu, querida — Rose observou. — Qual sua idade?
— Tenho vinte e dois, senhora.
Rose pareceu impressionada. Mathilda parecia ter bem menos.
— E não se casou ainda?
A outra negou.
— As coisas são complicadas.
— Entendo. Eu a vi sorrindo para aquele bonito empregado do juiz. Qual o nome dele?
— Malaquias.
— Malaquias... — Rose murmurou. — É um nome poderoso. Bíblico, sabia?
— Estranho os brancos darem nomes bíblicos aqueles que não têm alma, não é? — Mathilda observou, alheia ao olhar surpreendido de sua senhora.
— Quem não tem alma, Mathilda? — Rose ficou possessa. — Não acredite no que aquele filho da puta que se diz padre fala! — ralhou. — Vá lá dentro e me traga uma Bíblia.
Era uma ordem direta, e a serva obedeceu. Pouco depois, surgiu com um encadernado negro enorme nas mãos.
— Sente-se novamente. Quero lhe mostrar algo — Rose indicou o banco.
A serva sentou-se ao seu lado. Pareciam tão amigas naquela posição que a loira sorriu, involuntária.
— Aqui oh — apontou um trecho. — Eclesiastes capítulo três: “ Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro; e todos têm o mesmo fôlego, e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade ”. — leu. — Você é uma mulher, um ser humano, não um animal. Mas, mesmo que fosse um animal, como Antony prega, você teria alma. Os pássaros no céu, os cães que andam por aqui, os gatos que Danielle brinca... são todas criaturas de Deus, todas receberam seu fôlego. O fôlego que a Bíblia cita é a alma. Aliás, você sabia que a esposa de Moíses era negra?
— Era? — Mathilda estava impressionada.
— Sim, ela era cusita. Os cusitas viviam na Etiópia.
Mathilda sorriu.
— Como a senhora sabe de tudo isso?
— Um antigo padre me ensinou. Ele era abolicionista. — respirou fundo, completando: — E um cristão de verdade. Não aquela vergonha que usa batina e que se senta na igreja sentindo-se importante.
A outra respeitou a dor que viu nos olhos de Rose.
— Então, querida, desconsidere tudo que esse idiota fala em nome de Deus, porque há de chegar a hora que o Próprio irá julgá-lo pelas mentiras que sai de sua boca venenosa. Enfim... — deu os ombros. — Eu posso ensiná-la sobre a Bíblia, se quiser. — Subitamente, deu-se conta de algo: — Mas, interessante, fugimos do assunto. Falávamos de Malaquias.
A negra enrubesceu.
— Eu gosto muito dele, mas jamais iremos ficar juntos.
— Ora, e por que não?
— Ele trabalha para o juiz sem salário. Não poderíamos ter uma casinha e...
— Eu poderia dar uma a vocês — Rose apontou. — Arrendar o casebre que morei, vocês poderiam reformar, e Malaquias cuidaria da terra.
— A senhora faria isso por nós? — a outra ficou surpresa.
Era raro alguém se importar com o amor impossível de dois antigos escravos.
— Em troca de um favor — Rose murmurou. — Não se preocupe, nada grave, mas, uma informação que apenas ele pode me dar.
Mathilda sorriu, feliz.
— Tenho certeza que ele lhe daria as informações que quisesse, de bom grado.
— Maravilhoso! — Rose exclamou. — Então vamos combinar. Amanhã você irá até as terras do juiz, e falará com Malaquias. Pedirá para ele vir me ver no celeiro, às duas da manhã. Precisamos nos ver às escondidas, você entende?
Mathilda entendia. Sabia que o brilho de vingança parecia ainda mais intenso no olhar azul da loira.
— Farei isso, senhora — prometeu.
Logo depois, elas se despediram sem que ambas notassem que Drew Hill ouvira toda a conversa escondido, atrás da porta.
***
Rose estava aprontando alguma coisa. O quê? Ele não fazia ideia, mas passou o dia sorrindo como se uma peça de comédia inteira estivesse passando pelos seus olhos, mexendo com seu imaginário e a fazendo feliz.
Era referente ao juiz, disso tinha certeza. Não que a culpasse. Cross podia ter ficado quieto em seu canto, mas preferiu atiçar os instintos de Rose, tentando fazer mal a Danielle.
Na verdade, Drew queria tomar para si aquela vingança, em especial. Porque só de imaginar aquele velho desgraçado tentando enganar a sua doce sobrinha, ele sentia o sangue ferver e uma vontade intensa devastando sua mente. Por ele, o mataria. Mas, havia leis que deviam ser cumpridas. Drew era contra duelos, preferia que o juiz pagasse seus crimes perante a justiça dos homens.
Todavia, em uma coisa Rose tinha razão. Naquela terra esquecida por Deus, pouca justiça mundana haveria.
Um relâmpago cruzou o céu. Puxou o relógio de bolso e viu que faltavam menos de dez minutos para o encontro marcado. Escondido atrás do celeiro, em uma posição onde podia ver e ouvir tudo, ele aguardou pacientemente, mesmo que a chuva que se anunciou durante a tarde, surgisse com força durante aquela madrugada e movesse as telhas que lhe protegiam como se fossem arrancá-las.
Enfim, Rose chegou. Escondida por baixo de um capuz, ela pingava, completamente encharcada. Porém, aquele sorriso maquiavélico que por algum motivo o incomodava estava ali. Sim, planejara aquilo com prazer. E o prazer não devia ser oriundo de fazer o mal. Ele sabia disso. Sabia que ela também tinha esse conhecimento. Contudo, como culpá-la?
Momentos depois, outra pessoa entrou no celeiro. Era o negro.
— Obrigada por ter vindo, Malaquias — Rose lhe estendeu a mão, apertando-a firmemente.
O homem aceitou o cumprimento, um tanto acanhado.
— Mathilda me disse que a senhora quer me ajudar.
— Sim, eu quero. Sei o que deve sofrer nas mãos de Benjamin Cross.
— Ele é o diabo, senhora. O diabo — afirmou.
Drew não precisava ver para ter certeza que por baixo da roupa velha, Malaquias mantinha diversos hematomas. Benjamin Cross era conhecido por usar o tronco mesmo após a abolição da escravatura.
— Você é livre e quero que trabalhe para mim. Claro, se isso te interessar.
— Me interessa muito, senhora.
— Então, você sabe que eu tenho uma condição, não é?
— Eu falarei tudo que sei — ele disse.
Naquele instante, Drew notou que Rose não era a única com sede de vingança.
— Você sabe quem sou eu, não sabe, Malaquias? Sabe o que faziam comigo ainda criança?
O homem assentiu, constrangido.
— Benjamin Cross ia me ver todas as semanas, mas parou quando eu cheguei à juventude. Percebi que ele gosta de crianças, meninas... Estou certa? Assim que cresci ele perdeu o interesse.
— Está certa, sim senhora.
— Então, o que quero saber é simples. Existe alguma menina na fazenda dele ao qual ele deseja, mas não pôde tocar?
Malaquias pareceu muito incomodado.
— A senhora conhece dona Mariah Cross?
— A esposa do juiz? Só de ouvir falar.
— Quando ela se casou com ele, contava minha falecida mãe, trouxe consigo uma negra muito bonita que era sua serva particular. O juiz estuprou a serva há uns doze anos, e ela engravidou. A serva morreu no parto, e dona Mariah criou a menina.
— O juiz não conseguiu pegar a menina?
— Dona Mariah fica de olho. — Aproximou-se, respeitosamente, e quase cochichou. — Dizem que a primeira filha da dona Mariah morreu de febre, mas todos os escravos sabem que o senhor Benjamin pegou a filha, quando tinha dois anos, e fez coisas com ela. A menina teve sangramento e morreu. Dona Mariah também sabe e o odeia, mas não tem como fugir dele, por mais que tenha tentado.
Um abusador costumava ser carrasco. Rose sabia disso. Sabia que não era única vítima.
— Então, Malaquias... Nós iremos fazer o seguinte...
O restante da conversa Drew ouviu com os olhos arregalados, quase como se não acreditasse na teia que Rose havia tecido.
Definitivamente, ela não estava brincando quando disse que iria se vingar.
***
Assim que Malaquias saiu do celeiro, Rose sentou-se em um monte de feno e ficou a meditar nos planos e projetos. Ela quase sentia o gosto doce daquela represália. Esperou por aquilo por toda a vida. Agora, aconteceria.
Benjamin Cross estava com os dias contados.
Subitamente, um movimento. Levantou-se rapidamente, percebendo Drew Hill parado a poucos metros dela.
— Não faça isso, Rose — ele murmurou.
— Você ouviu? — ficou furiosa. — Como se atreve?
— Está se tornando alguém tão má quanto eles. Se você quer puni-lo, podemos buscar a lei em Austin.
A gargalhada histérica o comoveu.
— Como se eu confiasse na lei dos homens. Ninguém me tirará o sabor do sangue de Benjamin Cross.
Preparou-se para sair, quando foi segurada pelo braço por Drew.
— Eu me preocupo com você — ele murmurou. — E se o seu plano der errado? Por favor, desista disso. Eu irei ajudá-la a conseguir justiça. Moveremos céus e terra por isso, mas...
Repentinamente ela aproximou-se. Os narizes quase colados.
— Desde quando somos amigos? — ela inquiriu. — Desde quando confio em você?
Drew tentou se conter, mas ela estava tão próxima, tão disponível, tão...
Então, beijou-a. Mais que isso, segurou firme sua cabeça e a puxou contra si, afundando sua língua naquela boca pequena e sedenta.
Quando ouviu um baixo gemido, tudo nele se perdeu na paixão desesperadora que sentia por ela.
O corpo quente, a forma como seus contornos femininas pareciam encaixar-se em seu corpo másculo, a maneira como ela também pareceu correspondê-lo, como se evitar o toque também a desesperasse...
E então, toda a sua honra foi atirada ao leu.
Empurrando-a contra o feno, ele puxou-lhe o vestido para cima. Sequer pensou enquanto arrancava-lhe os calções, e abrir os botões da própria calça. Sem prepará-la (ela sequer precisava), ele fundiu seu pênis duro dentro da cavidade úmida cercada por pelos encaracolados e loiros.
Rose gritou, selvagem, enquanto ele socava com força seu membro nela. Uma, duas, dez vezes. Eles não conseguiam parar, guiados por instintos animalescos, primitivos.
Rose o cercou com as pernas, enquanto sentia derreter-se com aquela carne dura.
Então, a subida no mais alto monte e a queda livre de lá. O gozo, o prazer, o clímax.
Tudo rápido. Mas nada tão rápido quanto o arrependimento.
A culpa.
Afastando-o, ela agarrou os calções e saiu correndo do celeiro.
Drew viu as lágrimas, mas não a seguiu. Sentando-se no monte de feno, ele também permitiu-se chorar.
Drew Hill não se lembrava de ter chorado tanto antes daquele dia.
***
A porta do quarto dos filhos estava aberta. Lá, as crianças dormiam sem medo ou temor. A mãe os observava em seus sonhos, enquanto as lágrimas rolavam pela sua face, e ela cobria a boca com as mãos, impedindo o som.
Fechou a porta, aproximando-se da cama, afogando o pranto no travesseiro.
Sentiu-se um lixo. Maculara a imagem de Damien e traíra Constance, a quem já considerava uma irmã.
— Assim que eu terminar minha vingança, vou embora daqui — prometeu a si mesma. — Perdoe-me... Perdoe-me...
O perdão, contudo, não chegava ao seu coração.
***
Drew parecia alheio a tudo. Richard o encarou, enquanto percebia traços de completa culpa absorvendo sua racionalidade.
No exato momento que um relâmpago cruzou o céu, Drew o percebeu.
— Você ouviu? — a pergunta trazia vestígios de loucura.
— Sim, eu o ouvi com Rose. Eu também desconfiei de sua postura durante o dia e também a segui. Iria aparecer, quando você surgiu. Ouvi os gemidos, sei que dormiu com ela.
Drew se ergueu.
— Pode sacar sua arma e atirar em mim — disse. — Não vou reagir, eu mereço.
Richard sorriu.
— Estou falando sério — o cowboy insistiu. — Mate-me. Sou um homem sem dignidade, honra ou decoro. Eu dormi com...
— Você acha que eu irei matá-lo? — Richard o cortou. — Acha que eu irei matá-lo porque fez sexo com a sua esposa, Damien?
Capítulo 21
Benjamin Cross
Maldito fosse Drew Hill!
Benjamin Cross gemeu enquanto se virava na cama. Já estava deitado no leito há uma semana, vítima da surra recebida pelo filho do falecido Theodoro.
Que ódio sentia! Queria usar de seu poder como xerife e colocá-lo na cadeia, mas mal conseguia se mexer. Além disso, sabia que uma inimizade com aquela família era o mesmo que enfiar a mão dentro de uma colmeia de abelhas. Era pedir para morrer.
Como Drew podia ser tão diferente do pai? Theodoro sim, era um homem de valor. Não se envolvia, não se preocupava com os problemas alheios. Gerenciava apenas o que precisava.
Claro, não devia ter mexido com a sobrinha de Drew, mas... quem iria adivinhar que o desgraçado gostava da criança? No passado, ele sempre desprezou o irmão.
Repentinamente, seus pensamentos foram interrompidos pela entrada de uma figura pequena e delicada.
Enquanto continha a surpresa de ver Celeste entrar em seu quarto sozinha (a esposa nunca deixava a menina sozinha. Nunca!), ele passeou com seus olhos de águia pelas formas acanhadas.
Ainda não tinha seios. Nem era encorpada como as outras negras. Mulatinha, chamava a atenção pelos cabelos não tão crespos. Havia herdado aquilo dele. Sim, Benjamin sabia que Celeste era sua filha, mas isso não a tornava menos desejável.
A menina aproximou-se da mesinha e colocou sobre ela uma jarra com água. Depois disso, voltou os olhos para o acamado.
— O senhor se sente melhor?
Depois de vê-la? Estava ótimo!
— Dona Mariah me pediu para ir à floresta durante a tarde pegar framboesas para ela fazer seu doce favorito. Mas, antes de ir, o senhor precisa de alguma coisa?
Ele mal conseguia conter a ânsia de salivar diante dela.
— Você não quer chegar mais perto da cama? — ele indagou, inocentemente, tentando atrai-la.
— Eu preciso ir — ela retrucou, em pânico, e sumiu do quarto.
Então, Celeste estaria na floresta durante a tarde. Aquela novidade era muito proveitosa.
Retirando as coberturas de cima de si, ele levantou-se. Firmando-se nos dois pés, decidiu dar um passeio. A tarde seria muito divertida.
***
A semana que se seguiu ao encontro romântico de Drew e Rose foi bastante estranha para ambos. Eles fugiam um da presença do outro, apesar dos olhares insistirem em se buscarem.
Drew estava sufocado, de várias maneiras. A mãe o pressionava para conseguir uma anulação do testamento, a esposa buscava sua presença para conversarem, mas ele fugia dela como o diabo da cruz e, por fim, o juiz Kest havia enfiado na cabeça que ele era Damien, e não cessava de tentar convencê-lo do fato.
— Você acha que eu não queria sê-lo? — questionou, revoltado, após mais uma vez ser colocado contra a parede, pelo outro. — Ou acha que fiquei feliz em acordar do coma, voltar para minha casa e descobrir que fui eu que, por exemplo, desvirginou Mathilda, estuprando-a, batendo nela, humilhando-a, e sabendo-a agora minha serva, a qual eu tinha toda a responsabilidade?
Todas as palavras eram cercadas de dor.
Estavam de fronte a mansão. Drew, com suas costumeiras roupas surradas, preparava-se para fiscalizar a plantação. Richard o interrompeu assim que tentou se afastar.
— Eu sei que está confuso — Kest insistiu.
— Não estou confuso. Apenas, pare de me atazanar. Pare de atazanar Rose também. Não vê que ela sofre? Que eu sofro? Não sabe que eu daria a vida para ser o pai de Daniel e Danielle? Que eu deixaria me matarem apenas para poder chamá-los de filhos?
Richard o observou atentamente.
— Conte-me novamente como foi acordar naquele hospital.
Era como falar com as paredes!
— Mais uma vez? Já lhe narrei um milhão de vezes.
— Deixamos algo escapar — decretou. — Quero ouvir novamente.
Drew respirou fundo. Não adiantava. A única forma de se livrar do outro era falando.
— Acordei uma ou duas semanas depois da batalha, não sei ao certo. Estava sozinho e na minha cabeça tudo era apenas... — pareceu buscar a palavra. — Vazio. Então, uma enfermeira apareceu e pediu meu nome. Disse que no meu uniforme havia apenas a sigla D. Hill. Ninguém sabia se era referente a Damien ou Drew. Eu também não sabia. Alguns dias depois, minha mãe apareceu. Eu estava dormindo, mas ela me reconheceu.
— Só isso? Diante da personalidade de sua mãe, você confia tão cegamente assim?
— Eu me lembrei de uma única coisa, nesse tempo todo — confidenciou. — Enquanto estava deitado, recordei-me que havia algo importante para mim... e era no cordão que eu mantinha no pescoço. Abri o coração e vi a foto de Constance.
Sua decepção era palpável.
— Era uma mulher bonita. Mas, não havia nada além do oco em meu peito. Depois de me recuperar e vir para casa, Constance se mostrou uma boa amiga, mas, não havia amor. E, pelo que ouvi sobre mim, deve ser verdade. Acredito que o Drew do passado era incapaz de amar alguém.
Richard sentiu pena dele. Não de Drew, mas de Damien. Seu irmão, seu amigo, seu companheiro. A pessoa generosa, paciente e dedicada com quem dividiu a juventude, com quem dava risada nas bebedeiras, com quem aprendeu a atirar e a se tornar um homem melhor.
Ele sabia que Damien amava Rose. Lembrou-se da carta que recebeu, dias após o início da guerra, com a certidão de casamento precisando apenas de um carimbo com data retroativa. Conseguiu favores de gente que lhe devia muito. Por fim, deixou os documentos prontos, apenas à espera da loira que viria...
E ela veio.
Ele amou Rose, da mesma forma que amou Damien. Ela era diferente do amigo, era mais durona, mais centrada, mais ranzinza e, ao mesmo tempo, tinha a mesma essência. Rose era pura e verdadeira. Aquilo era algo quase impossível de se encontrar naqueles dias.
— O cordão — murmurou. — Você o abriu antes ou depois da chegada de sua mãe?
— Depois. — respondeu.
— Então Margareth pode ter trocado os cordões. Ela conseguiria isso facilmente. Onde está o outro?
— Foi enterrado com meu irmão.
— E onde ele foi sepultado?
— Você quer exumar o corpo de Damien? — a ideia era tão descabida que ele ficou em choque. — Mesmo que pudesse, o que eu jamais permitiria, Damien foi enterrado numa vala comunitária, na Virgínia. Eram milhares de mortos, e estávamos em guerra. Além disso, não havia muito o quê enterrar.
Richard assentiu.
— Ele foi enterrado antes da chegada da sua mãe?
— Não sei, mas creio que sim. Meus pais demoraram dias para chegarem até mim. Não é fácil sair do sul do Texas e aparecer na Virgínia, se você não sabe.
— Então... Sua mãe deve ter recebido os pertences de Drew — Richard murmurou, ligando os fatos. — Sim, foi isso que aconteceu. Devem ter tirado o cordão do corpo, e entregado a ela, que fez a troca.
— Sua capacidade de fantasiar choca-me. Por que ela faria isso?
— Porque ela te odiava. Você sabe disso! Lembro-me de certa vez que ela e seu pai foram te visitar na escola. O olhar de desprezo e repugnância da senhora Margareth não é algo fácil de esquecer. As coisas que te disse, fazendo-o chorar. Tirar sua identidade era mais que permitir que Drew voltasse a viver, era arrancar de ti também a mulher que você amava, condenando-o a viver ao lado de uma pela qual não nutria sentimentos.
De fato, aquilo era muito ferino. Porém, Margareth seria tão cruel?
— Ela é minha mãe — murmurou, numa defesa que ele mesmo não compreendeu.
— A natureza sempre faz as mães serem loucas pelos filhos, mas você uma vez me disse que nem todas nasceram para tal benção. Lembra-se?
— Não! — retrucou. — Não me lembro de nada disso. Porque não sou Damien!
— Por que não aceita e tenta provar que é? Você se tornaria marido de Rose e permitiria a Constance se casar com outra pessoa e ser feliz! Por que recusa tanto a ideia se é o melhor para todos?
— Porque a dor de descobrir que na verdade tudo que diz é mentira pode ser maior que a dor que quase me tirou a sanidade. A dor que senti quando acordei daquele coma e descobri o tipo de homem que eu era. A dor que senti quando vi os olhos de Mathilda, quando cheguei em casa. A dor que me avassalou diante de cada escravo de costas marcadas, temendo a mim. Ser Damien seria um sonho, do qual eu ficaria louco se acordasse.
Richard assentiu.
— Tudo bem, compreendo. Porém, peço sua autorização para flertar com sua mãe?
— O quê? — a surpresa escapava pelos seus poros.
— O quê? — Richard gargalhou, repetindo. — Eu já flerto com “sua esposa de mentira” e estou noivo de “sua esposa de verdade”. Nem sei porquê ainda se choca com os rumos que nossa vida anda tomando.
***
Benjamin Cross lambeu os lábios diante da visão. Celeste, a doce menina de seus olhos, estava agachada diante dos arbustos de framboesa, colhendo-as enquanto mordiscava algumas, alheia a sua observação sucinta.
Era uma sorte que Mariah não a viu saindo, naquele dia. A chata da esposa nunca a deixava sozinha. Mas, ele percebeu a mulatinha baixa correndo em direção a floresta, sem olhar para trás, com determinação.
Seguiu-a de perto. Queria estar bem longe para enfim tomá-la. Segurou aquele desejo por anos, e agora se satisfaria.
E ela nem havia sangrado ainda! Era ventura demais!
Finalmente, andou em sua direção. A menina sentiu sua presença e voltou-se para ele, assustada.
— Senhor? — ela questionou, num misto de assombro e medo.
Claro, percebia seu olhar, sabia que ele a espreitava, devia adivinhar que, às vezes, também tentava espiá-la a tomar banho.
Nem lhe deu chance de reclame. Segurando-a firme, agarrou seus cabelos, jogando-a no chão. Enquanto ria, subiu em cima do seu corpo pequeno, forçando a abertura das suas pernas.
Porém, segundos depois, sentiu um forte impacto na cabeça. Tudo se tornou escuridão e ele desmaiou.
***
Foi um assovio feminino que o acordou. A dor na fronte estava insuportável, e ele sentia-se prestes a desfalecer. Contudo, abriu os olhos.
A vista nublada percebeu uma silhueta feminina a curta distância, carregando o rifle com balas.
— Foi muito corajosa, Celeste — a outra pessoa elogiou.
Reconheceu o timbre. Era Rose! Tentou se mexer, sentindo uma enorme angústia a tomá-lo, entretanto, acabou por perceber que estava com as mãos e pés atados.
Assim, completamente indefeso perante o furor daquela mulher carregada de ódio.
— Obrigada, querida — Rose falava com a menina. — Agora você pode ir.
— A senhora ficará bem sozinha?
— É claro. Eu tenho contas a acertar com esse demônio. Pode ir tranquila.
Então, a vista voltou ao normal e ele percebeu Rose Davis a lhe encarar com o ar sombrio e divertido.
— Me amarrou, cadela? — provocou-a. — É tão covarde assim?
— Covarde? Covarde é quem tenta abusar de alguém mais fraco. — ela devolveu. — Não sou covarde, estou apenas sendo equivalente. Quando você me molestava, eu também era atada para não espernear, lembra-se?
O que ela iria fazer?
Subitamente, o rifle foi apontado para ele.
— Espe...
Não, ela não esperou. Um primeiro disparo e o urro de dor. Rose não atirou para matá-lo e sim atirou no meio das suas pernas, em cima do seu pênis.
Nunca pensou haver dor tão grande no mundo.
— Puta! Puta! — xingava, revoltado, enquanto os dentes batiam tanto que pareciam trincar.
Rose se aproximou. O pé em cima do seu órgão genital.
Forçou o calçado, afundando ainda mais, machucando tanto que o homem desmaiou.
***
Já estava escurecendo quando acordou novamente. Acreditou que ela fosse matá-lo, mas parecia que a diversão da maldita não teria fim. Sentada sobre a grama, Rose comia framboesas e, ao notá-lo acordado, logo se ergueu, sorrindo.
— Para um demônio que estuprou a própria filha, e queria estuprar a outra, você é bem fraco, hem velho? — provocou.
Lágrimas brotaram nos olhos de Benjamin.
— Mate-me — implorou.
— E perder toda a diversão? Não vê-lo morrer por si mesmo, agonizando durante horas? Você deve estar brincando comigo!
Subitamente, som de cascos. Diante deles, Drew Hill surgiu montado a cavalo. O semblante surpreso dele parecia contrastar com a total apatia da mulher.
— Rose — ele murmurou. — O que você está fazendo?
— Por que está aqui? — ela questionou, em seguida, completamente descontrolada.
— Você sumiu, eu fiquei preocupado.
Benjamin riria se não estivesse sofrendo tanto. Drew Hill, o maldito, preocupado com alguém?
— Rose — Drew desceu do cavalo e começou a se aproximar, vagarosamente. — Dê-me a arma... — pediu.
Subitamente, outro disparo. Rose sequer havia olhado na direção do juiz, tão rápido puxou o revólver e disparou contra a cabeça de Benjamin Cross.
Drew abriu a boca, embasbacado.
— Menos um — ela murmurou. — Está chegando a sua hora — prometeu.
E então se afastou, como se o fato de ter matado um homem fosse o mesmo que pisar em uma formiga.
Capítulo 22
As mulheres de San Antonio
Drew Hill quase não conseguia acreditar nos próprios olhos.
Enquanto adentrava a fileira de casas que iam desde a cabana onde os antigos escravos moravam, até o enorme prédio, residência do juiz e sua família, ele percebia uma multidão multicor em fileiras em volta da estrada, ansiosos pela sua chegada como se a esperassem, como se soubessem que ele viria.
Com a morte do juiz, tecnicamente não haveria outro homem em San Antonio para assumir o posto de xerife, então ele retirou a estrela dourada do peito do falecido e a pôs em si mesmo.
Tão logo matou Benjamin Cross, Rose virou-se de costas e foi embora. Ele não tentou prendê-la, pois estava confuso demais, diante de tudo que acontecia nos últimos dias.
Sabia que precisava fazer justiça, mas... e quando a justiça humana confrontava-se com a justiça de fato? Prender Rose Hill seria o correto? O que Damien faria?
Depois, jogou o corpo do homem em cima do cavalo e foi na direção da casa dele. Não sabia o que dizer a viúva, mas tentou pensar nas palavras corretas.
Contudo, não precisou verbalizar. Tão logo surgiu diante da casa, a mulher surgiu, como se já soubesse que ele viria.
— Obrigada por trazer o corpo — ela se adiantou. — Malaquias — chamou um dos antigos escravos, sua voz era completamente fria —, leve-o para o sepultamento e mande chamar o padre.
— Senhora... — Drew tentou falar, mas logo foi interrompido.
— Celeste viu tudo — a mulher apontou uma menina mulata linda, próxima da porta de entrada. — Benjamin percebeu homens estranhos rondando a fazenda e foi atrás deles, sozinho. Celeste o seguiu e viu três homens atirando nele. Com medo, voltou para casa.
Era uma mentira. Todos ali sabiam, especialmente Mariah Cross, que mal conseguia impedir um sorriso satisfeito nos lábios.
Mais tarde, ao retornar para casa, confrontou Rose. Parecia ilógico que os planos dela houvessem sido tão engenhosamente arquitetados. Porque... Porque... Sinceramente, ele não conseguia ver a maldade por trás dos olhar límpido. Mas, ela havia assassinato a sangue frio um homem diante dos seus olhos. Aquilo parecia tão longe da imagem que mantinha da loira.
Contudo, que imagem? E se ela já tivesse, anos antes, o desejo de avassalar a todos?
— O que foi? — ela inquiriu, maliciosa.
— Sabe que o que fez é passível de punição?
— É mesmo? E quem vai me punir? Tenho uma legião de testemunhas na fazenda Cross, incluindo a viúva, indicando que o juiz foi morto por bandidos. — Repentinamente, ela riu. — Oh, está pensando em testemunhar contra mim? Você? A pessoa que mais teria vantagem caso eu fosse presa?
Ele negou.
— Está enganada, não iria contra você. Porém, existem princípios...
— Que não se mudam? — ela atirou. — De fato, Richard tem razão em dizer que você se parece demais com Damien, às vezes. Mas, sabe? Damien matou Loreto e só não te matou porque são irmãos. Damien não teria tentado impedir-me...
— De se tornar uma assassina? Pode acreditar, ele teria — afirmou. — Ele preferia ter sujado as mãos, mas não te ver com sangue entre os dedos. Além disso, pelo que sei, Damien matou Loreto para te salvar.
— Ele fez o que era certo. Eu também fiz, não ache que irei perder o sono por qualquer tipo de culpa. Estamos em uma terra sem lei, uma terra do mais forte. Eu aprendi isso desde pequena. Estou apenas fazendo justiça.
— Justiça... — ele murmurou. Aquilo o incomodava demais.
— Ao contrário de mim, você sempre se impôs pela força ou dinheiro. Não faz ideia do que é dormir com fome, dormir machucada por estupros ou por surras. Não faz ideia do que é ser vendida por fumo como uma porca pronta para o matadouro. Não ouse me julgar, não tem qualquer direito.
Quando ela se afastou, ele ainda permaneceu na sala principal da casa, a meditar sobre cada frase dita.
***
— Rose fez o quê? — Richard parecia atônito.
— Eu ainda não consigo crer no que meus olhos testemunharam. — Drew murmurou, engolindo o rum com um único gole. — Mas, ela está certa em dizer que não tenho o direito de julgá-la. Quem o tem, Richard?
Quando Drew se afastou, o juiz Kest permaneceu sentado na poltrona externa da sacana, observando as montanhas ao longe e pensando que talvez devesse começar um processo para convencer Rose a voltar para Trenton.
Inventaria alguma coisa. Qualquer coisa. George podia estar doente, talvez. O fato é que Rose a cada dia se distanciava mais da mulher que ele havia conhecido. Entendia o que ela fez ao padre e ao comerciante, mas... assassinar o juiz era algo terrível. Ela planejara aquilo, não agira por impulso, e pior... nada dissera a ele. Se estava agindo sem lhe falar, era porque já havia perdido o controle de si mesma.
Só então notou porque Rose havia pedido a certidão de casamento que garantiria a guarda das crianças à Richard.
O som de passos, e ele se voltou-se para o lado. Margareth Hill pareceu incomodada ao vê-lo, mas Richard lhe deu seu melhor sorriso.
— Por favor — ele pediu. — Sente-se, senhora. Não somos inimigos, ao contrário, queremos a mesma coisa — avisou. — Quero minha noiva comigo em Trenton, e bem longe da fazenda e de Drew.
Era uma isca. Margareth foi fisgada instantaneamente.
Sentando-se na poltrona ao lado, ela encarava-o com o olhar de águia. O media. E gostava do que via.
— Recordo-me de vê-la indo visitar Damien, certa vez — Richard observou. — Fiquei muito impressionado com sua beleza, mas sinceramente, não esperei que os anos houvessem-lhe sido tão generosos. Continua praticamente igual, talvez ainda mais bela.
— O que é isso, juiz? Um flerte?
— Pode me culpar? Minha noiva não me dá a menor atenção e diante de mim existe uma mulher texana extremamente atraente. Perdoe-me se fui desagradável.
Margareth sorriu.
— Tenho idade para ser sua mãe.
— Mas não o é.
Quando ela gargalhou, Richard soube que havia vencido.
***
Rose sorriu diante da menina que lhe serviu o chá. O cheiro de maçã a fez pensar imediatamente em George e na falta que o amigo lhe fazia. Contudo, livrou-se logo dos pensamentos, firmando-se na senhora elegante à sua frente.
— Eu lhe devo tudo, Rose Davis — Mariah Cross murmurou.
Rose negou.
— É Hill — corrigiu. — E não me deve nada, ao contrário, eu que agradeço pelo seu pronto auxílio.
A outra suspirou.
— Ele iria fazer com Celeste o que fez com minha pequena Judith. — Seus olhos encheram-se de lágrimas. — Minha filhinha, que ainda mamava em meus seios.
— Ninguém lhe ajudou?
— Minha família disse que agora eu pertencia a Benjamin, e que meus problemas deviam resolver-se dentro da minha casa. Mas, o que eu faria, só? O xerife Theodoro era amigo de meu falecido marido, que era o juiz. O padre, igualmente. Quem se atreveria a avassalar gente de tanto poder? Além disso, ele era muito agressivo, você sabe, Benjamin...
— Sim, eu sei.
A loira largou sobre a mesa a xícara de chá.
— As vidas das mulheres de San Antonio não são nada fáceis. Agora, com Drew Hill como novo xerife, talvez as coisas melhorem um pouco.
— Por que diz isso?
— Desde que voltou da guerra, ele se mostra um homem muito honrado.
— Mas não o era antes. Índole não se muda. Damien me ensinou isso.
A mulher suspirou.
— Damien Hill... — sorriu. — O vi poucas vezes, mas era tão gentil. Por que os bons morrem logo?
— Os maus também vão morrer, senhora — Rose deu os ombros. — Fale-me da senhora Mandis.
— A esposa do dono da mercearia? Morreu há anos.
— Ele tem filhos?
— Não, não tem. A esposa morreu no parto, junto com o bebê.
— Então não há perigo de atingir um inocente quando eu me voltar contra ele... — Rose murmurou. — E sobre padre Antony? O que sabe?
— Além de ele roubar dinheiro da arquidiocese?
Quão boa notícia!
— Não me diga!
— Enviaram muito dinheiro para uma reforma há uns dois anos, mas ele fingiu roubo. Benjamin encobriu tudo.
— E eu teria como provar, caso o acusasse?
— Eu tenho os papeis — Mariah prontificou-se. — E terei o maior prazer do mundo em entregá-los a você.
Rose sorriu para a outra.
— Eu sabia que precisaria da união feminina para derrotar os covardes. Eu agradeço muitíssimo.
— Fez mais por todas nós do que qualquer outro antes de ti. Virou uma heroína, Rose.
— Eu prefiro a palavra “justiceira”.
A outra assentiu.
— Permita-me a curiosidade: Depois de avassalar o padre e o dono da mercearia, contra quem vai lutar?
— Drew Hill — sequer pestanejou em responder.
— E como fará isso? Desde que assumiu a fazenda, ele se mostrou um homem decente. Será difícil incriminá-lo de qualquer forma.
— Não irei incriminá-lo, irei matá-lo em um duelo.
E depois dessa frase, ela voltou a bebericar o chá com a certeira certeza de que não falharia.
Capítulo 23
Amizade
Desde a morte de Benjamin Cross, há duas semanas, a vida de padre Antony passou a ser guiada pelo medo.
O clérigo sabia que tudo fora obra de Rose Davis. Sim, mesmo que houvesse testemunhas, era nítido que nada naquela história estava certo. Cross era covarde demais para ir atrás de bandidos, era xerife apenas por causa da posição que poderia manter, e nunca desafiaria um homem para um duelo.
Nada fechava. Porém, Rose havia sumido de sua igreja, e ele pensou que aquilo podia ser um bom sinal, não é? Tirando o fato de tê-la alisado uma ou duas vezes na infância, e tê-la proibido de entrar no templo mais tarde, o que mais ela teria contra ele?
Era diferente de August e Benjamin. Ambos estupraram a moça durante anos. Era nítido que o ódio dela por eles devia ser maior.
Assim, com esses pensamentos positivos ele tentava não pensar em uma bala metida nas fuças, ou numa castração inesperada. Durante a noite, a cada movimento do vento, acordava.
Seu estado de apavoramento era tanto que, ao receber uma carta da arquidiocese solicitando que fosse conversar com o bispo, ele respirou aliviado.
Deixou San Antonio durante uma manhã chuvosa, sem avisar ninguém. Simplesmente fechou a igreja e foi embora.
Nunca mais voltou.
***
Rose encarou o jovem sacerdote com um sorriso amistoso no rosto. Assim que se aproximou, curvou-se em respeito, e beijou sua mão.
— Eu vim apresentar-me — ela declarou. — Sou Rose Hill.
— É um prazer, Rose — o novo padre sorriu, tranquilo. — É a primeira pessoa que vejo na cidade.
— A igreja ficou fechada por um mês, padre — ela explicou. — Assim, sem nenhuma explicação. Então, ninguém esperava a vinda de um novo sacerdote. — Suspirou, fingindo inocência. — O que houve com padre Antony? — indagou.
— Parece que aconteceram alguns problemas, mas ele já está se penitenciando em um mosteiro.
Ela sorriu.
— Espero que ele encontre a paz.
— Eu também.
Depois disso, ambos sentaram-se para conversarem. O novo padre, Peter, era jovem, cerca de trinta anos, e estava muito feliz pela designação. Abolicionista, ele acreditava que poderia fazer um bom trabalho em San Antonio. Viu em Rose, imediatamente, uma aliada.
— O que precisar — ela garantiu. — Estou à disposição.
Depois, saiu da igreja contendo uma gargalhada.
***
O sol estava tão forte que Rose precisou abrir a sombrinha floreada para se proteger. A poeira percorria toda a rua, através do vento, e ela tossiu. O ar seco de San Antonio nunca fora de seu total agrado.
Porém, provavelmente em breve partiria para Trenton. Faltava pouco para concretizar tudo que desejava.
Subitamente, sentiu a presença de alguém. Voltou-se e deu de cara com August Mandis.
— Antony me escreveu — ele contou, como se aquilo a interessasse. — Nós sabemos que matou Benjamin e denunciou Antony a Igreja. Então, eu vim te pedir...
— Pedir o quê?
— Misericórdia.
A frase saiu engasgada pelas lágrimas.
— Você destruiu a minha vida. As dívidas no banco se acumulam e eu não tenho vendas. Consegui um comprador para a casa, irei embora de San Antonio. Nunca mais ouvirá falar de mim.
— E outra menina qualquer nesse vasto mundo, ouvirá?
— Eu não abusarei mais de nenhuma garota, Rose Hill — ele prometeu. — Eu sei que estará em meu encalço. Eu sei que mandará me vigiar, e me matará, caso eu faça mal a alguém. Enfim, você conseguiu tudo que quis. Por favor, me deixe viver.
Rose respirou fundo. Aceitar aquela oferta era dar cabo de sua penúltima vingança, aquela a ser praticada antes de chegar até Drew. Mas, então, ela apiedou-se do olhar de pânico do homem.
Era uma réstia de humanidade. Provavelmente, a sua última.
Poderia se arrepender daquilo para sempre... Mas, por fim, assentiu.
— Desapareça da minha frente — mandou.
Era a última vez que ouvia falar de Mandis.
***
Richard sorria de forma sedutora para Margareth, que por algum motivo escuso, resolvera tomar o chá da tarde com os netos.
Drew surgiu, suado, da lida no campo, e entrou na sala de estar com olhos inquisidores.
— Rose? — indagou aos presentes.
Preocupava-se com ela. Onde quer que estivesse, com certeza não estaria fazendo boa coisa. Tentou colocar alguns empregados em seu encalço, mas a maioria era por demais leal à loira. Então, decidiu ele mesmo tentar seguir seus passos.
Mesmo que a tentação fosse enorme, resistiu aos encantos. Buscava conversar com ela naturalmente, lutava para conquistar sua amizade, mas ela sempre conseguia fugir do seu olhar, e ir à cidade sozinha, em busca de sua retaliação.
Contudo, Benjamin estava morto. Antony fora retirado da Igreja e August fugiu. O último que restava na lista negra dela era ele. Questão de tempo, sabia, para que travassem o combate final.
Obviamente, ele recusaria.
Se ela quisesse matá-lo, que o fizesse, ele não moveria um músculo. Todavia, Rose parecia estar buscando algum tipo de alternativa para deixá-lo contra a parede.
— Rose não apareceu ainda — Richard respondeu. — Acho que foi à cidade.
Droga! Iria atrás dela antes que aprontasse novamente.
Porém, o som de cavalos o interrompeu. Olhando adiante, percebeu uma charrete aproximando-se diante da mansão.
Diante da visão, estremeceu.
A figura de um homem estranho surgiu perante Drew. Por algum motivo, sabia que conhecia aquele rapaz. Mais que isso, todas as dúvidas de Richard passaram a se travar também em si.
Porque ali, diante dele, estava George Harris, alguém que havia nascido como mulher, mas que se transformou diante dos seus olhos e a quem passou a defender como a um irmão.
Alguém que amava...
Alguém a quem confiaria Rose, caso morresse...
Por Deus! Subitamente percebeu que era Damien Hill!
Capítulo 24
Damien, Richard e George
— Você se lembrou? — Richard quase gritou. — Lembrou-se?
— Não... Não me lembro de nada. Mas, sinto algo referente a George — volteou para o outro, que o encarava com nítido assombro. — Existe alguma possibilidade de você e eu termos nos visto alguma vez na vida?
— Você diz, Drew e eu? — George murmurou. — Não — respondeu, firme. — Não há a menor possibilidade.
— Você quer prova maior que essa? — Richard parecia nervoso. Por que diabos era tão difícil aqueles cabeças duras perceberem a verdade? — Você sempre soube que havia algo errado, pressione sua mãe e consiga a verdade.
— O problema não é Margareth Hill — Drew murmurou. — Convencer Rose de que sou Damien, quando eu mesmo não tenho certeza, será muito difícil. Eu não posso fazê-la sofrer mais. Preciso de garantias.
— Deve haver algo. Algo só dos dois. Você precisa se lembrar. Por Rose, por Daniel, Danielle, Constance e, especialmente, por si mesmo.
O cowboy balançou a face, negando.
— Acha que é tão fácil. Que basta querer. Simplesmente, não aparece nada... nada. É tudo um vazio.
— Mas, são muitos acontecimentos — Richard insistiu. — E o fato de você reconhecer George é para mim a maior de todas as provas.
— Ainda assim, Rose refutaria isso. Diria que eu poderia ter ido em segredo atrás de Damien, num dia qualquer, e visto George a distância. Você sabe, ele não é o tipo de cara que você esqueceria.
— Ei! — George gritou, ofendido. — Não sou menos homem porque me falta um pinto!
— Na verdade, é sim — Richard riu.
Em seguida, recebeu um pontapé na canela.
— Olha aí, olha aí! — o juiz apontou. Pareciam dois pivetes. — Agindo como uma mulherzinha.
Subitamente, uma gargalhada. Um riso que Drew Hill não soltava desde que acordara naquele hospital. Porque, mais uma vez, havia algo confortável em seu coração, como se houvesse presenciado aquelas atitudes muitas vezes no passado.
— Se eu sou Damien Hill — ele disse, por fim. — Por favor, me ajudem a recuperar minha memória e, com isso, minha mulher e meus filhos.
***
Constance estava animada, Rose percebeu. Elas haviam passado o dia no armarinho comprando tecidos para a costureira arrumar roupas novas para as crianças e, estranhamente, a morena havia comprado algodão para mandar fazer um vestidinho de bebê. Agora, enquanto seguiam de charrete até a fazenda, ela não resistiu a dúvida:
— As coisas entre Drew e você estão melhores?
Culpou-se tremendamente pela indiscrição. Não tinha o direito de questionar nada. Não depois da tremenda falta de fidelidade que demonstrou. Um dia contaria a amiga, e lhe pediria perdão. De preferência quando Constance já estivesse com os filhos tão sonhados, e Rose longe o suficiente para não amargurá-la com sua presença.
— Nada mudou entre Drew e eu.
Havia alívio no coração de Rose. E mais culpa. A cada dia ela parecia mais e mais afundada no mar de dor que entrara por própria responsabilidade.
— Eu espero que vocês possam se acertar, querida — foi sincera.
Constance então deu aquele risinho incômodo que Rose acreditava que ela só soltava quando estava planejando algo.
Subitamente, uma ideia lhe passou pela cabeça.
— Você pensa em engravidar de outro homem! — atirou sobre a outra, num tom de acusação. — Ficou louca?
— Não, não! — Constance negou imediatamente. — Não vou abrir as pernas para o juiz, seu noivo, por mais que ele queira, pois estou cansada dessa vida sem sabor. Quero um homem que me faça pegar fogo. Assim como foi com você, quando cita Damien! Então, vou procurar.
Como assim, procurar? Ela era casada!
— E Drew?
— Damien — ela negou. — Damien é problema seu. Assim que Richard provar que ele não é meu marido, eu vou desaparecer daquela fazenda e da vida de Margareth — riu.
Então, Constance também estava a acreditar naquelas fábulas?
Por fim, chegaram. Constance entregou as rédeas a um dos capatazes, e aceitou a ajuda do homem para descer. Ambas seguiram reto até a entrada. Contudo, tão logo entraram, a loira estancou, encarando a figura desconhecida à morena, que estava em pé, bebericando rum, ao lado de uma mobília rústica.
— George?
Rose correu até o amigo e jogou-se nos braços dele. Sentiu o aperto forte, como se enfim a vida voltava aos eixos. Era como respirar ar puro após ficar presa por séculos em uma masmorra fria. George foi um porto seguro onde ela se agarrou quando tudo havia se perdido. Foi mais que seu patrão, foi seu amigo.
— George? — ouviu o tom de dúvida de Constance.
Voltou-se a morena para explicar, quando a percebeu empalidecer.
Provavelmente, era mais um choque na vida da esposa de Drew. Saber existirem mulheres que não eram bem mulheres, devia realmente causar certa incerteza.
— Ele nasceu como Georgina Harris — explicou, da forma mais simples que conseguiu. Constance podia ser ignorante, mas não era maldosa. — Mas, nunca se sentiu Georgina. Então, se intitula George.
George não pareceu incomodado pela observação. Dando dois passos em direção à morena, estendeu a mão. Constance achou que ele fosse apertá-la, como era de praxe aos homens daquela banda, mas a mulher (ou seria homem?), curvou-se e beijou seus dedos com deferência.
— É um prazer, senhora.
Que sorriso... Que atitude cavalheira... que...
Barulho. Constance mal conseguia tirar os olhos de George para perceber Richard ao lado, bufando.
— Pode parar já com isso. Não vai me tirar mais uma!
— Não fiz nada — George se defendeu.
Rose, então, os enxotou da sala, deixando a morena completamente absorvida em sentimentos desconhecidos e intensos.
***
— Por quê? Rose, querida, por que se recusa a ter esperança?
— Não é ele.
— Não é? Ou você não quer que seja?
Rose encarou George. Estavam em seu quarto. Richard, sentado em uma poltrona lateral, observava a discussão em silêncio, como se a analisasse.
— Não quero que seja — admitiu. Como aquilo a feriu! — Porque se for, Damien não foi atrás de mim quando...
— Ele perdeu a memória! Você sabe disso! Não entendo, Rose, como pode ser tão cruel? Ele está sofrendo tanto quanto você!
— Isso é o que ele fala — retrucou. — Seria muito cômodo assumir a posição do irmão.
— Está ouvindo o que diz? Ficou louca? Ele amava você!
Richard então se ergueu. Agachou-se ao lado de Rose, segurando suas mãos.
— Eu entendo, Rose... — sussurrou, fazendo os olhos dela encherem-se de lágrimas. — Durante anos, tudo que a manteve foi o desejo ardente de vingança. Agora, saber que Drew está morto te impossibilitaria de matar aquele que mais deseja.
— Isso não faz sentido — George negou. — Rose não é assim.
— Ela sempre foi assim — Richard voltou-se para ele. Falavam dela com tanta franqueza como se ela não estivesse ali. — Mas, ela escondeu isso. Contudo, não mais conseguiu disfarçar depois que voltamos. Por isso tenho uma certidão de casamento guardada, não é? Uma certidão que me daria o título de seu marido, e a guarda das crianças, caso você perdesse o duelo final para Drew.
Era real. Tudo que Richard dizia era real. Rose não pôde negar.
— Por Deus! Vou te colocar num manicômio, Rose Hill! — George reclamou. — Você pensa em duelar com o irmão de Damien?
— Na verdade, Rose vai duelar é com o próprio Damien. — Segurou firme seus ombros. — Prometa-me que não vai achar um meio de ele aceitar um duelo sem antes me permitir provar que ele é Damien. Não o mate, Rose. Não ainda. Porque provavelmente estará destruindo seu grande amor.
— Não posso esperar para sempre — ela recusou a oferta.
— Me dê uma semana.
— Uma semana? — George voltou a gritar. — Outro louco!
— Eu tenho um plano — Richard sorriu. — E hoje à noite vou colocá-lo em prática.
Rose então assentiu, levemente.
— Uma semana, Richard — murmurou. — Nem um dia a mais.
Um leve beijo fraterno nos lábios, e a saída alegre do outro do seu quarto fê-la entender que havia tomado uma boa decisão.
Capítulo 25
A verdade
— Deixe-a sentir seu cheiro — ele murmurou para a menina, levando a mão dela até a boca da égua mais mansa que possuía. — Daniel — voltou-se para o garoto, que observava a ação —, venha também. Mesmo que você goste de livros, precisa aprender a lidar com os animais.
— Por quê? — o menino parecia reticente.
— Porque os animais são a maneira mais próxima que temos de nos aproximar de Deus — ele explicou. — É a criação Dele, e Ele nos deixou para que a respeitássemos.
— Mas, comemos carne — ele deu os ombros.
Drew agachou-se, ficando a altura do menino.
— Por isso oramos a Deus antes de começarmos a comer. Para agradecermos a ele o alimento, mas também por perdão, para que nos desculpe por usarmos a criação como alimento.
— Não seria mais fácil deixar de comer carne?
Drew riu. Que perspicaz! A cada dia que passava ele gostava mais do garoto.
— Sim, é uma boa ideia, filho...
A palavra escapou dos lábios e ele envergonhou-se por ela. Não tinha aquele direito, ainda não. Richard prometeu dar fim naquela agonia, mas antes da confirmação, não podia deixar as crianças iludirem-se.
— Vamos deixar as explicações religiosas para o novo padre — ele brincou, desviando o assunto. — Vem — pegou-o no colo, colocando-o em cima da égua. — Apenas, concentre-se em manter-se equilibrado.
Não foi difícil. Estava no sangue daquelas crianças o completo comprometimento com os equinos.
Danielle se saía melhor. Era mais ativa, mais elétrica, mas Daniel também não vacilou diante dos leves galopes que a velha égua marrom dava. Sorriu, orgulhoso.
— Não é perigoso?
O som atrás de si fê-lo voltar-se. O coração disparou. Por mais que Rose e ele evitassem se entreolharem, toda vez que um surgia diante do outro, muitas sensações se mesclavam.
Se tudo que Richard pensasse fosse certo... ela seria sua. Por Deus, não poderia haver desejo maior no coração de um homem do que ter para si a mulher que ele amava.
Sim, ele amava Rose Davis. Não mais podia esconder aquilo.
— Vejo no seu olhar que está começando a duvidar que é Drew Hill — ela murmurou, sem surpresa.
— Isso explicaria tudo que sinto quando olho para você.
Não se fez de rogado. Usou as palavras que precisava. Não aguentava mais. Estava ficando louco por ela.
— Você não é Damien Hill...
— Por que tem tanta certeza?
Pareceu que ela não ia responder. Seu rosto impassível, como uma máscara, não denotava piedade.
— Já ouviu falar em Love Bird?
— O pássaro do amor? — Drew arqueou as sobrancelhas. — É claro, todos já ouviram. Costumam serem fieis ao seu par para sempre.
— Sim, Damien me contou isso. Disse que na faculdade havia um colega apaixonado pelas aves, e que lhe explicou que quando elas escolhem um companheiro, ele é para a vida toda.
Drew suspirou. Ela parecia estar sofrendo e ele a respeitou.
— Sabia que elas reconhecem a voz do seu companheiro? Damien brincava dizendo que eles deviam ter uma canção própria, como a nossa.
Uma canção?
— Damien e você tinham...
— Uma melodia? Sim, tínhamos. Mas, o tempo de outrora não volta mais. Damien não volta mais. Se fosse ele, a primeira coisa de que se recordaria seria da nossa canção... A canção de outrora...
Ele viu as lágrimas, mas não a deteve. Deixou-a sair correndo, em prantos, enquanto voltava-se para as crianças. Viver e morrer estava se tornando comum para ele. Afogou novamente a esperança em seu peito e sorriu para Daniel.
— Você está indo muito bem, sobrinho — reafirmou.
Quando Daniel e Danielle saíram para lanchar, foi ele a chorar.
***
— Faz ideia de quantos anos se passaram desde que eu senti esse prazer?
Richard sorriu para a dama nua no leito. Ao menos não havia mentido quando lhe disse que era uma bonita mulher preservada. Margareth Hill mantinha certa sensualidade que fez tornar sua manipulação um jogo muito divertido.
— A vida com o coronel não era muito interessante, não é? — bisbilhotou.
— Theodoro nunca me deu prazer — Margareth suspirou, profundamente. — Isso eu conseguia de um ou outro escravo bonito que às vezes ele comprava.
Richard não ficou espantado. Ele já imaginava aquilo.
— Me protegia com ervas para não pegar barriga, e me divertia sempre que Theodoro ia caçar ou fazer alguma coisa na cidade. Mas, depois, perdeu a graça.
— Eu imagino. A vida para as mulheres sempre foi mais complicada. Para nós, homens, basta ir até um saloon qualquer.
Margareth assentiu, acariciando o braço do rapaz.
— Bom, amor, eu peço para ficar mais um pouco com você, posso? Quero vê-la dormir...
— Você pode tudo...
Beijando-a, Margareth sentiu todo o seu corpo voltar ao fogo que, antes, estava adormecido.
Depois de outro orgasmo, ela caiu em sono profundo.
***
Não era difícil conseguir extrato de melissa. As escravas viviam moendo a erva, e Richard ouvira certa vez que uma esposa sempre colocava o produto em leite morno e dava para o marido, antes de ele dormir, para que o homem não acordasse enquanto ela se aventurava com o cunhado no quarto ao lado.
Então, resolveu arriscar. E não é que deu certo? Um bom sexo, repetido, diga-se de passagem, e o leite com melissa fez Margareth roncar. E tão logo ele ouviu o ressonar, saiu da cama, vestiu-se e passou a abrir as gavetas e cômodas o mais silenciosamente possível.
Não que fosse tarefa fácil. Precisava ser cuidadoso, olhava a cada segundo para a cama, e tentava encontrar algo que ele não fazia ideia do que era, sem despertá-la.
Contudo, sabia que havia algo no quarto de Margareth. Algo que a delatava. Algo que provava suas suspeitas. Algo que devolveria a vida a Damien, e a sanidade a Rose.
Porém, não estava fácil encontrar.
Papeis de compra, de venda, formulários bancários, cartas trocadas com irmãs de estados distantes, fotografias... Havia muitas coisas naquela gaveta, porém...
Tocou em algo. Um envelope.
Puxou-o.
“ Damien Hill ”.
Sorriu, sentindo o coração saltar no peito. Olhou novamente para trás. A mulher permanecia em sono absoluto.
Abriu o envelope. Não havia nada nele além de um cordão de ouro com um relicário.
Richard sorriu antes de sair do quarto. Estava prestes a desvendar aquele mistério.
***
Margareth acordou ao nascer do sol. Nunca havia dormido tanto, com tanta satisfação. Espreguiçou-se na cama, e levantou-se, pronta para se lavar e ir tomar café da manhã.
O sexo sempre devolvia o bom humor a uma mulher!
Foi até o armário, buscou o vestido. Encarou-se no espelho, percebendo-se até mais bela que de costume. Contudo, tão logo baixou o olhar sobre o móvel, intuiu que as gavetas estavam mal fechadas.
Pensamentos terríveis cruzaram sua mente, quando abriu a última delas, à esquerda. O envelope... Onde estava?
Richard... Não!
Vestiu-se rapidamente e foi até o quarto do juiz. Bateu com raiva, e ele logo surgiu, um sorriso bonito no rosto.
— Bom dia, amor — cumprimentou, tranquilo.
— Devolva-me! Devolva-me agora! — exigiu.
— O quê?
— Sabe bem o quê, desgraçado! Quero o cordão!
— Ah! — Richard pareceu compreender. — O cordão que devia estar enterrado com Damien, mas que não está porque você o trocou pelo de Drew?
Ela empalideceu.
— Você quer contar para eles ou me dará a honra? — indagou o homem, mantendo o sorriso.
— Não prova nada.
— Prova que você mentiu sobre isso. E se mentiu sobre isso, pode ter mentido sobre todo o resto. Cai-se por terra toda a sua armação.
O sorriso dele desapareceu por alguns segundos.
— Uma mãe capaz de tirar do filho a própria identidade... Que tipo de mulher é você?
Margareth engoliu em seco.
— Filho da puta... — ela murmurou.
— Desculpe-me, mas isso, com todo respeito, é meu querido amigo Damien. Ele sim, que filho da puta! E que puta! Uau, hem? Puta boa para nunca se esquecer! Agora, sobre a minha querida mãezinha, ela não. A senhora Kest é uma pessoa muito decente. Certamente tem defeitos. Muitos, até. Todavia, lhe garanto, desonra não está entre eles.
Depois disso, Richard fechou a porta. Ela ainda encarou a madeira fria como se estivesse diante de um pesadelo, ao qual não conseguia acordar.
Então, começou a andar, vagarosamente, como se não sentisse os próprios passos.
Subitamente, no final do corredor, visualizou alguém cruzando. O vestido claro e os cabelos loiros deixavam claro que era Rose.
A cadela sempre levantava cedo. Ia ver a cozinha, falar com os empregados, enfim, parecia que tinha comichão na cama e não conseguia descansar.
Porém...
Se Rose estava ali...
Volveu o corpo, quase numa corrida. Chegou ao antigo quarto de Damien e abriu a porta. A cama vazia e arrumada, ela nem notou. Andou depressa até a biblioteca que agora era outro quarto.
Os gêmeos dormiam. Anjos inocentes diante do demônio a lhes espreitar.
— Crianças — ela chamou, balançando-os. — Arrumem-se depressa que a vovó quer levá-los para uma aventura.
Se estranharam sua presença assim que acordaram, nada demonstraram. Ora, eram puros, e pareciam felizes por enfim ela estar a aceitá-los.
Mal sabiam eles que Margareth Hill estava prestes a levá-los para a morte.
Capítulo 26
Maternidade
— Senhora Rose — Mathilda gritou, fazendo a loira voltar-se para a outra. — Senhora Rose — repetiu, agora, falando mais baixo.
— O que é? — Rose encarou a serva. — Estou ocupada, Mathilda. Estou vendo com o capataz sobre...
— Senhora, por acaso eu vi dona Margareth saindo com as crianças agora a pouco. Achei um tanto suspeito, e vim lhe comunicar.
Rose largou os papeis que o homem havia lhe dado naquele exato momento. Enquanto seu coração pulsava rapidamente e sua mente inquieta começou a imaginar os motivos pelos quais Margareth resolvera levar seus filhos só Deus sabia para onde, ela ergueu as saias e correu em direção a casa.
Chegou rapidamente no quarto e abriu a porta. A entrada escancarada do quarto infantil lhe angustiou. Foi até as camas. Vazias.
Voltou-se e percebeu Mathilda atrás dela. Por alguns instantes ficou paralisada.
— Não quero lhe assustar, mas dona Margareth tinha aquele olhar...
— Que olhar?
— O olhar de quando me punia nos açoites — explicou. — Então, achei melhor vir até a senhora. Espero que as crianças estejam bem.
Rose tocou o ombro da negra com carinho, e saiu do quarto.
Precisava de ajuda... Do rifle... De um cavalo... Para onde Margareth teria ido? O que ela faria, meu Deus?
***
Drew Hill encarou um Richard Kest com o olhar definitivamente exausto. Não havia dormido à noite, sentado em sua cama, observando Constance ressonar na cama ao lado, imaginando qual destino pior poderia ter um homem que era incapaz de saber exatamente a própria identidade e que levava outras pessoas inocentes em seu inferno pessoal.
— Não estou no clima — avisou, já se afastando.
Richard segurou seu braço. O sorriso alargou-se mais.
— Encontrei seu relicário.
O olhar de Drew arregalou-se.
— Tem certeza?
— Sua mãe parecia bem nervosa ao me confrontar. Então, tenho... Sim, Damien. Você é Damien, Margareth praticamente confessou isso para mim.
Richard puxou sua mão e pousou o relicário em seus dedos.
— Não o abri — disse. — Imagino que tenha uma fotografia de Rose, não sei se tiveram tempo de tirar uma. Mas, respeitei sua privacidade. É seu direito saber o que contêm seu cordão.
— Eu...
Queria dizer mais coisas, mas os olhos lacrimejaram ao encarar o coração de ouro. Subitamente, uma imagem diante dos seus olhos.
“ Quero que sua futura esposa tenha de ti a imagem perfeita ”.
Aquela frase... A voz de Rose. Subitamente, a cena transcorreu perante ele como um sonho idílico. Estavam em frente à mercearia, ela tinha sacos nas mãos e lágrimas nos olhos.
“ Você será a mãe de meus filhos, Rose Davis ”.
— Damien — Richard o chamou. — O que foi?
“ Desde que eu a vi pela primeira vez, eu soube, era especial. Nossos corações, eles batem ao mesmo tempo ”.
— Ei, amigo! — Richard quase gritou, sacudindo-o.
Enfim, o rapaz olhou para ele.
— Não preciso abrir o cordão — avisou. — Eu sei o que tem nele. Não é uma fotografia, é uma canção.
— Uma canção?
— Rose e eu tínhamos uma música.
Pôs as mãos para trás, retirando o cordão que estava nele nos últimos anos.
— Isso não é meu, pertencia a Drew.
O juiz lacrimejou.
— Meu amigo... Damien, você se lembrou?
— Sim, eu me lembrei. Eu preciso ver Rose... Eu preciso contar...
Como se tivesse ouvido um chamado, ela surgiu diante dele. Damien andou até ela, mas não conseguiu falar. Entre soluços, ela interrompeu qualquer felicidade que transparecia nos olhos masculinos.
— Rápido! — ela implorou. — Sua mãe... ela pegou Daniel e Danielle...
E mais uma vez, a maldade humana impediu aquelas duas almas gêmeas de ficarem juntas.
Contudo, daquela vez, temporariamente.
***
Por mais que as informações se desencontrassem, tão logo Rose e Damien correram em direção aos estábulos, foram interrompidos por alguns servos.
Todos eram unânimes em apontar uma montanha ao norte, que havia, em tempos antigos, servido como cemitério de muitos nativos.
Não se precisava ser um gênio para entender as intenções de Margareth. Ela sempre odiou o filho, e a descoberta da verdade, resultou numa última punição àquele que odiava. Destruir as crianças destruiria o resto de sanidade de Damien.
Rose não sabia disso ainda, e tampouco lhe importava. A única coisa que queria era ver o rosto dos gêmeos, e saber-lhes bem. Então, ela prontamente aceitou a mão de Damien e subiu no cavalo com ele.
Richard havia ficado para chamar George, e alguns empregados foram designados a averiguar nas redondezas. Se Margareth mudasse de ideia no meio do caminho, ela teria que ser encontrada.
Contudo, dez minutos de cavalgada em silêncio e logo a avistaram. Rígida, olhava adiante do profundo precipício, como se pensasse com cautela nos seus atos.
Segurando suas mãos, estavam os dois inocentes. Rose percebeu, à distância, que eles observavam a vó em silêncio, como se esperassem algo dela.
— Filhos! — Rose gritou, saltando do cavalo antes mesmo de Damien parar. — Venham para perto da mamãe — chamou.
Daniel a percebeu primeiro. Tentou seguir em sua direção, mas foi segurado por Margareth.
Volveu o olhar para a mãe, que subitamente ficou em pânico.
— Por favor, senhora Margareth... — Rose implorou. — Não faça isso. Por favor...
— Parece que esse galo velho voltou a cantar no galinheiro — Margareth gargalhou, ao ver-lhe o desespero. — Não é justo, desgraçada, que você seja feliz.
Então, viu Damien. Seu olhar ficou ainda mais demoníaco.
— Eu sempre odiei você, eu sempre odiei ser sua mãe! — gritou.
Nitidamente, estava descontrolada.
— Por quê? O que te fiz?
A loucura dos olhos dela deram lugar a uma calmaria. Margareth estava tão firme, tão certa de si mesmo que sequer notou a presença de outras pessoas chegando a eles.
— Eu queria ser mãe — ela contou, sorrindo. — Sonhava em me casar, ter filhos, ser a pessoa mais feliz do mundo. Quando Theodoro surgiu, pareceu-me ser a resposta a minhas preces. Um homem respeitável, rico, poderoso, e disposto a me dar uma família.
Outra risada, dessa vez, de desdém.
— Mas, ninguém me falou que horrível que seria... Que eu teria que abrir as pernas para um marido relapso, depois parir duas crianças de forma extremamente desumana, e, por fim, ter que criá-los, tirando de mim meu sono, minha privacidade e meu viço. Quantas vezes, Damien... Quantas vezes peguei o travesseiro e prensei contra seu rosto? Mas, depois imaginava que seria enforcada e desistia.
— Damien... ? — Rose murmurou.
Não era a única surpresa. Outra mulher, atrás dela, cobriu a boca, em choque.
— Não é justo ter que ser mãe, ver a pele envelhecer, ser cobrada pela educação, ser obrigada a amar quem eu não queria. Por que querem nos obrigar a amar quem não desejamos?
Damien ouvia em silêncio. Respeitou seu desabafo.
— Mas, com o tempo, Drew pareceu me entender. Ele sim, era um filho de verdade. Ele se vingava do mundo como eu queria fazer, e por isso eu o amava. Mas, você não. Você assemelhava-se a personificação dos meus sonhos. Por que você poderia amar e ser feliz, enquanto eu, por tua culpa, fui tão desgraçadamente destruída?
— Eu nunca te fiz nada, mãe — ele murmurou. — Mas, se fiz, puna a mim. Deixe as crianças em paz.
— As crianças serão a sua punição. Nunca mais dormirá a noite pensando nos filhos estirados no penhasco, mortos... Eu te conheço, e conheço essa cadela por quem se apaixonou. Ambos sofrerão tanto que sequer vão conseguir se olhar. Nunca vão superar, porque amam essas coisinhas nojentas.
Ela balançou Danielle em direção ao penhasco e Rose gritou.
— Devia admirar-me, sabe, filho — ela murmurou. — Eu podia fingir, mas, ao contrário, eu sempre deixei claro meus sentimentos. Você não gosta tanto de sinceridade? Então, estou sinceramente feliz em matar primeiro a menina dos seus olhos.
Subitamente, uma explosão.
A cabeça de Margareth deu um impulso para trás, mas voltou à frente. Seus olhos arregalados, segundos depois, ficaram vermelhos, manchados pelo sangue.
Então, sem forças, ela largou as crianças, que correram em direção à mãe, e desabou em direção ao além.
Quando os olhos de todos voltaram-se para trás, a ver quem lhe tiraram a vida, perceberam Constance a segurar um rifle fumacento. Em seu rosto havia um misto de muitas coisas, mas o ódio era o maior delas.
— Vadia — a morena murmurou. — Daria a vida para ter um bebê, e você queria matar o seu?
Então, George aproximou-se dela. Ajudou-a a baixar a arma e, enfim, voltar a raciocinar.
Capítulo 27
O amor final
Na enorme sala oval de entrada da mansão Hill, Rose sentava-se numa confortável poltrona com os dois gêmeos no colo. Com o rosto afundando no vão de seus pequenos corpos, apertava-lhes contra si, sentindo uma angústia tamanha que mesmo a morte de Margareth não conseguia apagar.
Próximo deles, Damien observava a cena silenciosamente. Respeitou Rose, imaginava que o instinto materno era poderoso e, sabia, nada no mundo poderia ser mais importante para ela que aquelas duas crianças.
Era um contraste com suas próprias experiências. Sempre soube do desamor da mãe, mas jamais pensou que ela fosse chegar àquele ponto.
Margareth Hill tirou dele sua identidade, sua família, seus valores, condenou-o a viver como um homem que praticara crimes que Damien – o verdadeiro – jamais teria cometido e, ainda por cima, obrigou-o a permanecer ao lado de uma jovem bondosa que nada tinha a ver com toda aquela podridão. Para finalizar, aos ser desmascarada, premeditou matar dois inocentes.
Enquanto pensava em Constance, sentiu o toque leve dela em seu braço.
— Seria desagradável dizer que estou aliviada em não ser sua esposa?
Ele quase riu.
— Assim que possível, iremos desfazer o erro e você terá sua certidão de casamento atualizada, com seu estado civil de viúva. Será livre, Constance, e desejo muito que seja feliz.
Ela sorriu.
— Você me perdoou por ter atirado em sua mãe?
— Salvou a vida dos meus filhos. Farei o inquérito, inocentando-a. Existem várias testemunhas, incluindo as crianças. Mas, não creio que alguém em Austin queira saber mais que isso.
Constance assentiu.
— Vou deixá-lo com sua esposa. A verdadeira — completou. Então, chamou os gêmeos. — Daniel e Danielle? Não estão com fome?
Rose permitiu que eles saíssem do seu colo. Só quando ambos sumiram da sua visão, foi que ela encarou Damien.
— Margareth pode ter mentido, apenas mais uma manipulação — permaneceu firme.
— Richard achou o cordão — ele afirmou.
— Assim, você leu o que tem dentro.
— Não, não preciso ler, eu sei.
Havia medo no olhar de Rose.
— Você não é Damien! — prevaleceu.
Então, o homem ajoelhou-se diante dela. Pousou a mão em seu joelho, carinhoso e compreensivo.
— Eu sei o que está fazendo, Rose — ele murmurou. — Está se protegendo. Você já sofreu demais, e quando se entregou para mim, na noite que concebemos nossos filhos, você colocou esperança no nosso amor. Pediu-me para sobreviver à guerra, e eu te prometi que sobreviveria. Porém, depois, soube que eu havia morrido. Sentiu-se traída e temerosa com um futuro que agora incluía dois serezinhos dos quais não esperava que teria que cuidar. Criou outro muro, dessa vez mais difícil de ser transpassado. Mas, amor, sou eu.
Ele sorriu, enquanto ela chorava.
— Que contraste com minha mãe! — Admirou-a. — Margareth teve amas, nunca teve que cuidar de mim ou de Drew, e mesmo assim... Mesmo assim, ela odiava ser mãe. Enquanto você, mesmo diante de tudo, do futuro nefasto e terrível que se aproximava, ganhou forças e criou nossos filhos, sozinha.
Silêncio. Contudo, o pranto que continuava a ser derramado, fê-lo prosseguir.
— Existem mulheres e homens que são fracos. Passam a vida a se lamentar, a choramingar pelos cantos. E existem as pessoas que mesmo diante de tudo, não se entregam. Você, Rose querida, está nessa segunda classe. Talvez tenha sido por isso que eu tenha me apaixonado desde a primeira vez que a vi.
— Se você é quem diz ser, sabe que nosso primeiro encontro não foi algo bonito.
— Eu a ouvi pedindo para morrer. Porém, tão logo atirei em Loreto, você se levantou. Não como uma derrotada, mas como alguém disposta a prosseguir. Ergueu a cabeça, indo para casa com determinação, mesmo com a perna machucada, parecia dizer ao mundo que não precisava de ajuda.
Ela abriu a boca, extasiada. Aqueles detalhes... ninguém os sabia, a não ser Damien.
— Depois, enfrentou a todos. Lembra-se de quando lhe procurei, após tê-la ensinado a atirar? Apontou o rifle para mim. Deixou claro que nunca mais seria submetida a alguém.
— Damien... — ela murmurou. — Você é mesmo Damien?
— Posso não ter me lembrado do seu rosto ou da nossa vida, antes da guerra, assim que a vi. Mas, recordei-me do seu cheiro, do seu corpo. Meu coração lembrou-se do nosso amor. E agora, só preciso que você se lembre, Rose. Preciso que você me sinta, como me sentia, antes. Você consegue?
Subitamente, ela jogou-se em seus braços. Quantas vidas até aquele reencontro? O quanto ambos sofreram, até se acharem? O quanto tiveram suas esperanças destruídas, antes do alento daquele amor?
— Eu te amo — ela murmurou. — Eu te amo tanto, nunca amei mais ninguém.
— Eu também — ele murmurou contra o ouvido dela. — Estamos juntos, agora, Rose... Nada mais vai nos separar.
Era uma promessa que, para sempre, se cumpriria.
***
— Mais uma! — Richard gritou. — Mais uma namorada!
— Eu nunca fui sua namorada — Constance negou, enquanto ajudava Mathilda a colocar sua mala na charrete. — Eu apenas fui uma amiga com quem flertou.
Richard bufou enquanto encarava George que continha uma gargalhada.
— Sua hora vai chegar — George prometeu. — Vai conhecer alguém...
— Eu sei! — o outro devolveu, não querendo piedade.
— E eu não vou roubá-la de você porque já encontrei meu amor — seus olhos pousaram em Constance, que sorriu.
Depois disso, a mulher voltou-se para o casal que os observava do alto da escada. Aproximou-se.
— Foi como uma irmã para mim — Rose admitiu. — Não fui a mais leal das pessoas...
— Você dormiu com o seu marido, por favor! — Constance deu os ombros. — Até quando vai se culpar por isso?
Rose havia admitido para ela o erro, alguns dias antes, e recebido uma gargalhada como resposta.
— Antes de George, provavelmente eu não teria entendido porque uma mulher se submeteria a um homem com tanto prazer. Não fazia ideia que havia encantos no amor — admitiu, sem constrangimento. Mas agora...
— Você sabe que ele, por mais que chamamos de ele, é ela, e não te dará filhos, não é? — Rose murmurou.
A frase, apesar de cruel, era certeira.
— Se tem algo que a vida me ensinou é que eu não preciso gerar para ser mãe — Constance sorriu. — Margareth gerou e nunca foi. George e eu iremos para o oeste, e iremos adotar alguns órfãos da guerra que estão nas minas de carvão.
Rose emocionou-se com aquele desfecho.
— Serei mãe não apenas de uma, mas de muitas crianças, Rose. E eu serei feliz, porque George me ensinou a me amar, e a me sentir mulher.
A outra então abraçou-a fortemente.
Depois, Constance chegou-se ao homem.
— Não foi um grande marido, mas foi um grande cunhado — ela brincou.
— Sabe que sempre terá lugar nessa casa, não é? Você é minha família, Constance. Jamais estará sozinha — ele adiantou.
— Irmãos nem sempre tem o mesmo sangue, não é mesmo?
Depois da troca de abraços com os gêmeos que estavam perto dos homens, a morena subiu na charrete.
Constance ia em busca de seus sonhos. E realizaria todos eles.
***
Damien observava a esposa escovando as longas madeixas longas diante do espelho.
Desde que descobriram a verdade, passaram a dormir juntos, mas ainda havia muitos sentimentos em Rose e ele não tentou uma aproximação mais íntima.
Contudo, naquela noite, depois de Richard falar que pediria uma transferência para San Antonio e passaria a viver perto deles, a mulher parecia mais animada.
Ela amava seu melhor amigo como um irmão. Soube que haviam ficado noivos apenas como uma defesa contra um Drew que não existia. Não se enciumou. Entre Rose e ele havia uma lealdade além das palavras e dos gestos.
Subitamente, ela se ergueu e caminhou até ele. Vestia uma longa camisola branca de linho e estava linda, sob a luz das velas.
— Sabe o que eu pensei, naquela vez que me deu o envelope com dinheiro?
Sentou-se ao lado do corpo espichado dele. Ele tocou seus braços com carinho.
— No que, amor?
— No quão sortuda eu era por ter me apaixonado por meu melhor amigo...
Damien puxou-a contra si. Segurando seu face, lambeu seus lábios. Precisava dela, estava ficando louco.
— Não quero intimidá-la, amor — ele murmurou. — Mas, hoje, acho que devemos providenciar irmãos para Daniel e Danielle.
Ela gargalhou.
— É mesmo?
— Estão ficando muito folgados, não notou?
Deslizando a mão pelo peito musculoso, ela o encarou.
— Como está lidando com a situação?
— Eles estão entendendo que sou o pai deles, e que o tio morreu. Mais difícil é tentar explicar porque a avó fez aquilo, mas...
— Nós, adultos, não conseguimos entender. Que dirá aqueles dois anjos...
— Nossos anjos — ele sorriu. — E então? Você quer tentar mais um?
Ela sequer respondeu. Deslizando a mão pelo laço da camisola, Damien abriu-a, expondo os seios rosados diante dele.
— Você quer mais um filho? — ela riu.
— Acho que Constance enfim me convenceu com aquela tagarelice toda. — brincou. — Não pude segurar meus filhos no colo quando bebês, não pude vê-los dar os primeiros passos, falar as primeiras palavras. Acredito que seja esse o motivo da minha ansiedade — ele sorriu. — Claro, seu lindo corpo nu não tem nada com isso.
Rose gargalhou, enquanto subiu sobre o colo do marido.
— Me ame, Damien — ela pediu.
Enquanto ele achegava-se àquele corpo de mulher, ela pôde ouvir uma melodia baixa soprar de seus lábios:
“Antes de soprarem as brisas de maio,
Antes de o melro cantar no bosque:
Se me quiseres ver uma vez mais,
Vem, oh, vem depressa!
Vem, oh, vem depressa!”
— Para sempre, minha querida... — ele jurou. — Vou te amar para sempre.
E Rose sabia que Damien Hill era homem de cumprir sua palavra.
Josiane Biancon da Veiga
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