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Narrado por Heitor.
Não tínhamos notícias de Pentesileia; a rainha das Amazonas tardava nos seus longínquos e selvagens domínios, enquanto Tróia desesperava. O destino de uma cidade estava dependente dos caprichos de uma mulher! Amaldiçoei-a e amaldiçoei os deuses por permitirem que uma mulher continuasse sentada num trono depois da morte da Velha Religião. O domínio absoluto da Mãe Kubaba acabara. No entanto, Pentesileia continuava a reinar sem que ninguém a contestasse.
Demétrios, o escravo grego que fugira do acampamento inimigo, informou-me de que a rainha nem sequer convocara ainda as mulheres das suas inúmeras tribos; não viria antes que o Inverno enchesse de neve os caminhos das montanhas.
Todos os augúrios diziam que a guerra acabaria naquele décimo ano; apesar disso, o meu pai continuava a recear abandonar as muralhas, humilhando-se e humilhando Tróia, pois não era uma humilhação terrível deixar que a nossa sorte dependesse daquela mulher? Rangiam os meus dentes perante a injustiça das suas decisões, criticava-o abertamente nas assembleias. Mas o meu pai tomara uma decisão e não se desviava do caminho escolhido. Vezes sem conta garanti-lhe que Aquiles não representava para mim nenhum perigo, que as nossas melhores tropas conseguiriam repelir os Mirmidões, que nós chegaríamos à vitória sem Menão ou Pentesileia. Mesmo depois de lhe ter transmitido as informações de Demétrios sobre a demora de Pentesileia, o meu pai permaneceu intransigente, comentando que se a rainha das Amazonas só vinha depois do Inverno, então esperaria de bom grado pelo início do décimo primeiro ano.
Agora que todo o exército grego se encontrava de novo na praia, tínhamos voltado às nossas ameias, daí apreciando as diversas bandeiras que flutuavam no cimo das casas gregas. Junto ao Escamandro, num local onde uma muralha interna separava alguns dos alojamentos, flutuava uma bandeira que não havia visto antes, uma bandeira com uma formiga branca sobre um fundo negro. A formiga segurava na boca um raio vermelho. Aquela era a bandeira dos Mirmidões, a bandeira de Aquiles de Éaco. O rosto de Medusa não poderia ter instilado um tão profundo medo nos corações troianos.
Obrigado a ouvir discussões sem a mínima importância quando todo o meu ser ansiava pela guerra, assistia a todas as assembleias. Alguém tinha de lá estar para protestar que o exército estava cansado de esperar e de treinar, alguém tinha de lá estar para ver o rei fazer ouvidos de mercador a todos os meus protestos, para ver Antenor, o inimigo de toda e qualquer acção positiva, sorrindo displicentemente.
Não me apercebi de nada de especial naquele dia que iria mudar as nossas vidas. Contrariado como sempre, desloquei-me à assembleia. A corte tagarelava na maior confusão, ignorando o estrado do trono, aos pés do qual um queixoso estava a apresentar o seu caso - um problema de uma importância extraordinária, relacionado com os esgotos que levavam as águas da chuva e os excrementos de Tróia para o poluído Escamandro. Tinham recusado o acesso aos esgotos ao novo bloco de apartamentos do queixoso, e ele, proprietário e senhorio, muito naturalmente, estava furibundo.
- Tenho coisas mais importantes a fazer do que vir para aqui contestar o direito de um bando de burocratas impenitentes a frustrar as aspirações dos cidadãos honestos que pagam os seus impostos! - gritou ele para Antenor, o qual, na sua qualidade de chanceler, defendia os responsáveis pelos esgotos da cidade.
- Tu não apresentaste o pedido a quem devias! - atirou-lhe Antenor.
- Mas quem somos nós? Egípcios? - perguntou o senhorio, erguendo os braços. Eu falei com o homem do costume, que me disse que sim! Só que, antes de eu ter feito a ligação, apareceu-me um esquadrão de guardas que me impediu de fazer o que quer que fosse! Teria muito menos problemas se vivesse em Nínive ou Karkemish! Ou em qualquer outro sítio do mundo que os burocratas não tivessem conseguido paralisar com os seus estúpidos regulamentos! Porque a verdade é esta: Tróia está quase tão paralisada como o inerte Egipto! Vou emigrar! Vou emigrar!
Antenor dera já início ao discurso de defesa dos seus muito queridos burocratas quando um homem irrompeu arquejante pela sala, encaminhando-se imediatamente na direcção do estrado do trono.
Não o reconheci, mas Polidamas sabia quem era. - Que se passa? - perguntou-lhe Polidamas.
O homem, por um momento, não conseguiu dizer nada, de tão ofegante que vinha. Molhou os lábios, tentou de novo falar, mas acabou a apontar desvairadamente para o meu pai, o qual, esquecido o problema dos esgotos, não tirava os olhos dele. Polidamas ajudou o homem a sentar-se no degrau superior do estrado e pediu que lhe trouxessem um copo de água. Até o irado senhorio se apercebeu de que aquele caso era mais importante do que o seu e afastou-se um pouco - embora se mantivesse perto o suficiente para ouvir o que o homem tinha a dizer.
A água e uns breves momentos de descanso eram os remédios de que o homem precisava. Logo falou:
- Meu rei e senhor, trago grandes notícias!
O meu pai pôs um ar céptico.
- Que notícias? - perguntou.
- Rei Príamo, hoje, ao nascer do dia, assisti, no acampamento grego, a um augúrio pedido por Agamémnon, que queria saber a causa da peste que matou dez mil homens!
Dez mil mortos devido à peste no acampamento grego?! Abeirei-me do trono, quase a correr. Dez mil homens! Se o meu pai não entendesse o significado de tão pesadas baixas, então só poderia estar louco - e, se ele estava louco, Tróia pereceria! Menos dez mil gregos, mais dez mil troianos! Ah, pai, deixa-me sair com o exército! Estava prestes a dizer-lhe isto quando me apercebi de que o homem não acabara ainda. Havia mais notícias. Esperei.
- Houve uma altercação terrível entre Agamémnon e Aquiles. O exército está dividido. Aquiles retirou do exército grego os seus mirmidões e o resto dos homens da Tessália. Aquiles não combaterá por Agamémnon! A guerra ainda não começou e obtivemos já uma vitória!
Agarrei-me às costas do trono para me apoiar, o senhorio desatou a dar vivas, o meu pai ficou paralisado e lívido, Polidamas fitava incrédulo o seu espião, Antenor encostou-se a uma coluna como se de repente tivesse perdido as forças, os outros participantes na assembleia mais pareciam estátuas.
No meio do silêncio, ressoou um riso estridente.
- Assim caem os poderosos! - berrou o meu irmão Deífobo. - Assim caem os poderosos!
- Silêncio! - atirou-lhe o meu pai. Depois, virando-se para o homem, perguntou-lhe: - Qual foi a causa da altercação entre Agamémnon e Aquiles?
- Meu rei, foi tudo por causa de uma mulher - disse o homem, já mais calmo. - Calcas exigiu que Criseida, uma cativa de Lirnesso oferecida ao rei supremo, fosse enviada para Tróia. Apolo ficou tão furioso com a captura de Criseida que espalhou a peste pelo acampamento grego. E anunciou que o seu castigo só terminaria quando Agamémnon desistisse da cativa. Agamémnon tinha de obedecer. Aquiles riu-se do rei supremo. Escarneceu dele. Por isso, Agamémnon ordenou a Aquiles que o compensasse - que lhe entregasse a mulher que capturara em Lirnesso, Briseida. Aquiles entregou Briseida ao rei supremo, mas retirou todos os seus homens do exército grego!
Deífobo achou isto ainda mais divertido.
- Uma mulher! Um exército dividido ao meio por causa de uma mulher!
- Ao meio, não! - replicou Antenor. - Os soldados que se retiraram não são mais de quinze mil. E se uma mulher pode dividir um exército, não nos esqueçamos de que foi uma mulher que trouxe esse mesmo exército para as portas de Tróia!
O meu pai bateu com o ceptro no chão.
- Antenor, calado! Deífobo, estás bêbedo! Cala-te também! - Depois, concentrando-se de novo no mensageiro, perguntou-lhe: - Ouve-me com atenção: essas tuas notícias são mesmo seguras?
- Não poderiam ser mais seguras, rei Príamo. Eu ouvi e vi tudo. Ouviu-se na sala um imenso suspiro; num ápice, a pesada atmosfera clareou. Onde antes reinavam a apatia e o desânimo, viam-se agora sorrisos radiantes. Mãos apertaram mãos, um murmúrio deliciado elevou-se no ar. Só eu estava triste. Aparentemente, Aquiles e eu estávamos condenados a nunca nos enfrentarmos no campo de batalha.
Páris avançou na direcção do trono.
- Meu querido pai, quando eu estive na Grécia, contaram-me que a mãe de Aquiles - uma deusa - mergulhara todos os seus filhos nas águas do rio Estige a fim de que eles se tornassem imortais. Quando Aquiles nasceu, ela quis dar-lhe a mesma sorte. Porém, enquanto pegava nele pelo calcanhar direito, deu-se conta, para seu grande espanto, de que cometera um erro - esquecera-se de pegar nele também pelo calcanhar esquerdo. É por isso que Aquiles é um homem mortal. Mas nunca pensei que o seu calcanhar direito pudesse ser uma mulher! Briseida... Lembro-me bem dela: é um espanto de mulher.
O rei explodiu.
- Eu já tinha mandado calar toda a gente! Quando repreendo um filho, a repreensão dirige-se a todos os meus filhos! Não estamos aqui para perder tempo com anedotas! O caso em discussão é demasiado importante para isso!
Páris pareceu abatido com a reacção do nosso pai. Senti pena dele. Nos últimos dois anos, envelhecera; agora que estava na casa dos quarenta, a idade começava a deixar marcas inexoráveis na sua pele; o vigor e a beleza da juventude começavam a definhar. Aquele que outrora fascinara Helena, agora aborrecia-a. Toda a corte estava a par disso. Tal como estava a par da ligação que ela mantinha com Eneias. Bom, não creio que a troca compensasse Helena: o grande amor de Eneias chamava-se Eneias.
Mas nunca era possível saber o que se passava na bela cabeça de Helena. Depois de o meu pai ter repreendido Páris, limitou-se a puxar pela mão do marido e a afastar-se com ele um pouco. Nem sinal de emoção nos seus olhos ou no seu rosto! Depois, apercebi-me de que, afinal, o seu rosto não era propriamente um enigma. De facto, havia nos seus lábios uma sombra de um sorriso - um sorriso como que de superioridade, um sorriso irónico... Porquê? Ela conhecia bem os reis gregos. Sendo assim... porquê aquele sorriso?
Ajoelhei diante do trono.
- Pai - disse eu, com uma voz forte e controlada -, se os deuses realmente querem que expulsemos os Gregos da nossa terra, o tempo de o fazer só poderá ser este. Se eram Aquiles e os Mirmidões que te impediam de tomar uma decisão, então, agora, a razão para a tua relutância desapareceu. Além disso, eles têm menos dez mil homens devido à peste. Nem mesmo com a ajuda de Pentesileia e Menão disporíamos de uma oportunidade tão extraordinária como esta. Por isso te peço, meu pai: dá ordem de batalha ao teu filho e ao teu exército!
Antenor avançou. Antenor ... ! Sempre Antenor ... ! -Antes que tomes uma decisão, rei Príamo, rogo-te que me concedas um favor. Permite-me que eu envie um dos meus homens ao acampamento grego, a fim de que ele possa confirmar se aquilo que o homem de Polidamas diz é verdade.
Polidamas aquiesceu de bom grado.
- Concordo inteiramente, rei Príamo - disse ele. - Deveríamos confirmar estas informações.
- Nesse caso, Heitor - disse-me o meu pai -, terás de esperar um pouco mais pela minha resposta. Antenor, envia imediatamente o teu homem ao acampamento grego. Convocarei uma nova assembleia para esta noite.
Enquanto esperávamos, levei Andrómaca até às ameias da grande torre virada a noroeste, a qual dava directamente para a praia ocupada pelos Gregos. A minúscula bandeira flutuava ainda no acampamento mirmidão. Porém, era tão escasso o movimento na base de Aquiles que poderíamos facilmente concluir não haver qualquer contacto entre o acampamento mirmidão e os seus vizinhos. Incapazes de pensar em comer, vigiámos os Gregos toda a tarde; aquela prova evidente de desunião no seio do acampamento grego era todo o sustento de que precisávamos.
Ao cair da noite, regressámos à cídadela, mais esperançados agora na confirmação das notícias. O enviado de Antenor chegou antes de termos tempo para ficar inquietos e, com meia dúzia de breves frases, repetiu aquilo que o homem de Polidamas nos dissera. Houvera uma discussão terrível, Aquiles e Agamémnon nunca se reconciliariam.
Helena encontrava-se ao fundo da sala, muito longe de Páris, acenando abertamente para Eneias, a sua máscara sorridente perfeitamente tranquila, já que ela sabia que, por ora, todos os boatos sobre a sua ligação com o dardaniano seriam eclipsados pelas escaldantes notícias da dissensão grega. Quando Eneias se abeirou dela, Helena segurou-lhe no braço e os seus olhos enormes fitaram-no num claro convite. Mas eu estava certo a respeito dele. Eneias ignorou-a. Pobre Helena. Se Eneias tivesse de escolher entre os encantos dela e os encantos de Tróia, eu sabia qual seria a sua decisão. Um homem admirável, sem dúvida, mas também um homem que tinha de si mesmo uma imagem demasiado dourada.
Contudo, Helena não pareceu desconcertada com a inopinada partida de Eneias. Uma vez mais, dei comigo a meditar no que pensaria ela acerca dos seus concidadãos. Ela conhecia tão bem Agamémnon... Por um momento, perguntei-me se não seria melhor interrogá-la, mas Andrómaca estava comigo e Andrómaca odiava Helena. As poucas informações que Helena me poderia fornecer - decidi - não justificariam a sova verbal que Andrómaca me daria, se viesse a saber que eu me tinha encontrado com a esposa de Páris.
- Heitor! Encaminhei-me na direcção do trono e ajoelhei diante do meu pai.
- Meu filho: confio-te o comando dos nossos exércitos. Envia arautos tendo em vista a mobilização para a batalha dentro de dois dias, ao alvorecer. Diz aos guardas da Porta Ceia que oleiem a pedra e preparem os bois. Há dez anos que estamos encarcerados, mas agora sairemos da nossa prisão para expulsarmos os Gregos de Tróia!
Enquanto lhe beijava a mão, a sala explodiu em ensurdecedores vivas. Eu era o único que não sorria. Aquiles não estaria no campo de batalha. Seria vitória, uma vitória sem Aquiles?
Os dois dias passaram com a rapidez da sombra de uma nuvem na encosta de uma montanha. Todo o meu tempo foi preenchido com encontros com oficiais e com as ordens que tinha de dar a armeiros, engenheiros, condutores de carros e oficiais de infantaria. Enquanto não estivesse tudo em andamento, não conseguiria pensar em descansar. Por isso, só pude ver Andrómaca na noite anterior à batalha.
- Chegou o momento que eu tanto temia - disse ela mal eu entrei no nosso quarto.
- Andrómaca, por favor, não fales nesse tom. Ela limpou as lágrimas impacientemente.
- É mesmo amanhã?
- Ao alvorecer.
- Não tiveste um momento que fosse para mim?
- Tenho-o agora.
- Depois de dormires, partirás. - Os dedos dela agarravam-se à minha blusa. - Não consigo encarar com ânimo o que se vai passar, Heitor. Há algo de muito errado nisto tudo.
Errado? - exclamei, obrigando-a a erguer o queixo. - Que há de errado em combater contra os Gregos? Por todos os deuses, já não era sem tempo!
- Que há de errado? Tudo. Tenho a sensação de que as peças estão todas demasiado bem encaixadas umas nas outras... - Ergueu a mão direita, cerrou parcialmente o punho, deixando o dedo mindinho e o dedo indicador espetados: o sinal que nós fazíamos para esconjurar das nossas vidas todo o mal. Depois, muito nervosa, trémula, disse-me: - Cassandra não tem parado um só momento, desde que o homem de Polidamas chegou com a notícia da disputa entre os reis gregos.
Desatei a rir.
- Oh, Cassandra! Por amor de Apolo, mulher, será possível que não vejas? A minha irmã Cassandra é uma louca varrida! Ninguém dá ouvidos aos seus funestos presságios!
- Ela pode ser louca - disse Andrómaca, decidida a que eu a ouvisse -, mas as suas predições nunca falharam! A pobre rapariga não pára de gritar que os Gregos nos armaram uma cilada - ela insiste que foi Ulisses quem congeminou tudo, ela assegura que os Gregos urdiram tudo isto para que nós saíssemos das muralhas!
- Começas a aborrecer-me com as tuas superstições! - disse-lhe e agarrei-a e abanei-a - algo que nunca lhe fizera em tantos anos de casados. - Eu não estou aqui para discutir a guerra com Cassandra. Estou aqui para passar contigo esta noite.
Magoada, olhou para a cama e encolheu os ombros. Depois, abriu a cama, despiu a túnica e apagou as lamparinas, o seu corpo - tão alta que ela era! - tão firme e encantador como na noite do nosso casamento. As gravidezes não haviam deixado no seu corpo um único vestígio; a sua pele quente brilhava à luz da única lamparina que deixara acesa. Deitei-me e abracei-a e, por um bocado, esqueci-me do que a manhã traria. Depois, decidi entregar-me ao sono, o corpo saciado, a mente sossegada. Porém, antes de o véu da inconsciência ter caído inteiramente sobre mim, ouvi Andrómaca chorar.
- Que se passa agora? - perguntei, erguendo-me sobre um ombro. - Continuas a pensar em Cassandra?
- Não, estou a pensar no nosso filho. Estou a pedir aos deuses para que, depois de amanhã, ele continue a conhecer a alegria de ter o pai vivo.
Como é possível que as mulheres se comportem sempre assim? Como é possível que acabem sempre por dizer aquilo que os homens não querem nem precisam de ouvir?
- Deixa-te de choraminguices e dorme! - gritei-lhe. Ela afagou-me a testa, apercebendo-se de que tinha ido demasiado longe.
- Bom, talvez seja pessimismo a mais da minha parte... Aquiles não combaterá... Portanto, tu não tens nada a temer...
De súbito, irado, afastei-me dela e dei um murro na almofada.
- Cala-te, mulher! Eu não preciso que me lembres que o homem com quem eu anseio combater não estará no campo de batalha!
Ela fitou-me assombrada.
- Heitor, Heitor, será possível que tenhas enlouquecido? Será possível que Aquiles seja mais importante para ti do que Tróia? Do que eu? Do que o nosso filho?
Há certas coisas no mundo que só os corações dos homens podem entender. Astianacte compreender-me-ia melhor do que tu.
-Astianacte não passa de um rapazinho... Desde que nasceu que os seus olhos não têm visto outra coisa senão guerra, que os seus ouvidos não têm ouvido falar de outra coisa senão da guerra! Vê os soldados treinando, segue ao lado do seu pai num magnífico carro de guerra à frente do cortejo militar - vive num mundo de ilusões! Mas nunca viu o campo de batalha depois da batalha terminada!
- O nosso filho não tem medo de aspecto nenhum da guerra!
- O nosso filho tem apenas nove anos! Não permitirei que ele se transforme num desses guerreiros insensíveis e cruéis em que a tua geração se transformou!
- Pois eu não permitirei os teus excessos - disse-lhe eu, num tom tão cortante como o gelo. - Não permitirei que interfiras na educação futura de Astianacte. Logo que regresse do campo de batalha, retirar-te-ei o meu filho e confiarei a sua instrução e educação aos meus homens.
- Faz isso e matar-te-ei! - rosnou ela, fora de si.
- Experimenta e logo verás quem morre primeiro! A resposta dela foram lágrimas e soluços. Sentia-me demasiado furioso para a afagar ou para tentar qualquer tipo de reconciliação. Passei por isso o resto da noite escutando o seu choro frenético, incapaz de incutir alguma brandura no meu coração. A mãe do meu filho tinha-me dito que preferia fazer dele um rapazinho efeminado a transformá-lo num guerreiro.
Levantei-me da cama quando a luz do dia não tingira ainda a penumbra. Olhei para ela; estava deitada com o rosto virado para a parede, recusava-se a olhar para mim. A minha armadura estava pronta. Tomado de uma excitação ímpar, num instante esqueci Andrómaca. Bati as palmas e os escravos vieram num ápice. Vestiram-me a túnica almofadada, apertaram as correias das botas, encaixaram as grevas e afivelaram-nas. Reprimi a extrema ansiedade que sempre se apoderava de mim antes de qualquer combate, enquanto os escravos me vestiam o saiote de cabedal reforçado, a couraça, as protecções dos braços, as cintas dos antebraços e as tiras de cabedal para os pulsos e a testa. Colocaram-me nas mãos o elmo, o boldrié sobre o ombro esquerdo para suportar a espada que me roçava a anca direita; por fim, suspenderam do meu ombro direito o escudo enorme, com uma cintura muito fina a meio, e ajustaram-no ao meu lado esquerdo. Um criado deu-me a minha maça, outro ajudou-me a enfiar o elmo sob o antebraço direito. Estava pronto para a batalha.
- Andrómaca, adeus - disse-lhe eu, num tom que não indiciava qualquer perdão.
Mas ela permaneceu imóvel, o rosto virado para a parede. Os corredores estremeciam, os chãos de mármore ecoavam os sons do bronze e das botas ferradas; sentia o ruído dos meus passos espraiando-se diante de mim como se fosse uma onda. Aqueles que não iam combater saíram a saudar-me. De cada porta, saíam também os guerreiros que logo encontravam o seu lugar atrás de mim. As nossas botas atacaram as lajes: sob o impacte dos calcanhares revestidos a bronze, faíscas elevavam-se do chão. Ao longe, ouvíamos já tambores e trombetas. À nossa frente, estava já o grande pátio, para lá do pátio, as portas da cidadela.
Helena esperava-nos no pórtico. Parei, acenando para que os outros avançassem sem mim.
- Boa sorte, cunhado - disse ela.
- Como podes desejar-me boa sorte, se vou combater contra os teus concidadãos?
- Eu não tenho país, Heitor.
- A nossa pátria é sempre a nossa pátria.
- Heitor, nunca subestimes um grego! - Recuou um pouco, parecendo surpreendida com as suas próprias palavras. - Dei-te um bom conselho, Heitor: não merecias tanto.
- Os Gregos são iguais a todos os outros homens.
- Serão mesmo? - Os seus olhos verdes assemelhavam-se a jóias. - Não estou de acordo contigo. Preferia um inimigo troiano a um inimigo grego.
- Será uma batalha aberta, frontal. Vamos vencer. - talvez. Mas não paraste para pensar por que razão Agamémnon se encarniçou tanto por causa de uma mulher, quando ele tem centenas delas?
- O que conta é que Agamémnon se encarniçou realmente por causa de uma mulher. A razão é irrelevante.
- Pois eu creio que a razão é tudo. Não subestimes nunca a astúcia grega. E, acima de tudo, não subestimes nunca Ulisses.
- Oh! Ulisses não passa de uma ficção!
- É precisamente isso que ele quer que tu penses dele. Mas eu conheço-o melhor do que tu, Heitor.
Virou-me costas e foi para casa. De Páris, nem sinal. Bom. de qualquer modo, o meu irmão não combateria - limitar-se-ia a observar.
Setenta e cinco mil soldados de infantaria e dez mil carros esperavam por mim, devidamente formados ao longo das ruas secundárias e das pequenas praÇas que conduziam à Porta Ceia. Aqui, aguardava-me o primeiro destacamento de cavalaria, os homens que conduziriam os meus carros. Os seus gritos ressoaram como trovões mal eu apareci na praça, erguendo bem alto a minha maça para os saudar. Subi para o meu carro e enfiei cuidadosamente os meus pés nos estribos de vime que permitiriam que me equilibrasse sempre que o carro guinasse, especialmente quando os cavalos fossem num galope desabrido. Depois, os meus olhos atentaram naqueles muitos milhares de elmos encimados por plumas cor de púrpura; a cintilação do bronze era sangue e rosa sob o imenso ouro do sol, a porta erguia-se já diante de mim.
Os chicotes estalaram. Os bois atrelados à enorme pedra que suportava a Porta Ceia bramiram aflitos logo que começaram a puxar. A vala fora já oleada e engordurada; os focinhos dos animais quase chegavam ao chão. Muito lentamente, a porta foi-se abrindo, chiando e atroando enquanto a pedra deslizava ao longo do fundo da vala; a porta parecia ficar mais pequena à medida que se abria; ao mesmo tempo, a vastidão de céu e planície parecia tornar-se ainda mais imensa. Depois, os ruídos que marcavam a abertura da Porta Ceia pela primeira vez em dez anos foram sufocados pelos gritos de alegria que romperam das gargantas de milhares e milhares de soldados troianos.
Logo que as tropas começaram a descer na direcção da praça, as rodas do meu carro começaram também a rodar; eu avançava já, estava já na planície com os meus aurigas atrás de mim. O vento penetrou-me o rosto, pássaros voavam na pálida abóbada do céu, os meus cavalos empinaram as orelhas e deram às suas pernas elegantes o ritmo de um galope, enquanto o meu condutor, Quebríones, enrolava as rédeas à volta da sua cintura e executava os movimentos com que costumava controlá-los. Finalmente a batalha! Aquela, sim, era a verdadeira liberdade!
Meia légua após a Porta Ceia, parei e virei-me para organizar as minhas tropas, fazendo da frente uma linha recta com carros na posição mais avançada; a Guarda Real - dez mil soldados de infantaria troianos e mil carros de guerra formava o centro da minha vanguarda. Tudo foi feito rápida e primorosamente, sem pânico nem confusão.
Quando tudo estava já em ordem, atentei na muralha inimiga, erigida sobre a planície entre os dois rios, isolando assim a extensa praia ocupada pelos Gregos. As passagens em cada extremidade das muralhas brilhavam já de um milhão de reflexos: os invasores gregos abandonavam as muralhas e avançavam na direcção da planície. Entreguei a minha lança a Quebríones e pus o elmo na cabeça, ajustando depois a pluma de crina de cavalo escarlate. Os meus olhos encontraram-se com os de Deífobo, a meu lado na linha da frente; um a um, tanto quanto os meus olhos conseguiam enxergar, atentei nos rostos daqueles que faziam parte da linha da frente. O meu primo Eneias comandava o flanco esquerdo, o rei Sarpédon o direito. Eu comandava a linha da frente.
Os Gregos aproximavam-se cada vez mais, o sol refulgia nas suas armaduras de uma forma mais e mais intensa; tentei ver quem ficaria de frente para mim, perguntando-me se seria o próprio Agamémnon, ou Ájax, ou qualquer outro dos grandes chefes gregos. O meu coração batia menos depressa porque não seria Aquiles. Depois, voltei a olhar para a linha da frente e fiquei pasmado. Páris estava lá! Estava, com o seu precioso arco e a aljava, à frente do destacamento de Guardas Reais que lhe havia sido atribuído havia uma eternidade. Perguntei-me que artimanhas Helena não teria usado para o convencer a abandonar a segurança dos seus aposentos.
Narrado por Nestor
Rezei uma breve oração ao deus que as nuvens amontoa no céu; embora tivesse combatido em mais campanhas do que qualquer outro homem vivo, nunca enfrentara um exército como o de Tróia. E também era verdade que a Grécia nunca havia organizado um exército como o de Agamémnon. Os meus olhos ergueram-se para os diáfanos e majestosos picos do distante Ida e perguntei-me se os deuses não teriam abandonado o Olimpo para se sentarem nas alturas do Ida a fim de assistirem à batalha. Aquela era uma guerra digna do seu interesse: nunca os meros mortais haviam sonhado com uma guerra capaz de envolver tantos meios - tão-pouco os deuses, que apenas travavam pequenas guerras entre si e com hostes muito limitadas. Se se reunissem no Ida para assistir à batalha, não haveria entre eles unanimidade: toda a gente sabia que Apolo, Afrodite, Ártemis e outros eram adeptos fervorosos de Tróia, ao passo que Zeus, Poseidon, Hera e Palas Atena eram a favor da Grécia. Ninguém sabia ao certo de que lado estava Ares, o Senhor da Guerra, pois embora os Gregos fossem o povo que mais havia espalhado o seu culto, a verdade é que Afrodite, a secreta amante de Ares, apoiava Tróia. Hefaísto, o marido de Afrodite, era, muito naturalmente, favorável à Grécia. O que era bom para nós, pois Hefaísto presidia à fundição dos metais e a outros mesteres aparentados; os nossos artífices teriam desse modo algum apoio divino.
Se havia algum homem feliz naquele dia, esse homem era eu. Uma única coisa toldava o meu prazer: o rapaz que me acompanhava no meu carro, um rapaz que estava muito nervoso e impaciente pois queria ter um carro só para si, pois queria ser um guerreiro e não um condutor. Mirei-o de relance. O meu filho Antíloco... Pouco mais do que um menino desmamado, o meu filho mais novo e também o mais querido, o fruto do crepúsculo da minha vida. Quando deixei Pilos, tinha ele apenas doze anos, Muitos foram aqueles que me pediram que o deixasse partir comigo para Tróia: a todos respondi que não, nem pensar! E o resultado foi este: Antíloco embarcou clandestinamente! Escondeu-se num dos navios e, quando dei por isso, já o patife estava em Tróia! Então, pediu ajuda a Aquiles e, depois de muita conversa, conseguiram convencer-me a deixá-lo ficar. Aquela era a sua primeira batalha, mas eu daria tudo para que ele não estivesse ali a meu lado, para que ele tivesse ficado na arenosa Pilos, entretido a compilar listas de mantimentos!
Colocámo-nos em ordem de batalha diante dos Troianos. A linha tinha uma légua de comprimento; constatei, sem surpresa, que Ulisses tinha razão. Os Troianos eram muito mais do que os Gregos. Mesmo que toda a Tessália tivesse vindo connosco, eles seriam sempre mais. Perscrutei as hostes inimigas, procurando os homens que as conduziam, e vi imediatamente Heitor no centro da linha da frente. As tropas de Pilos integravam a nossa linha da frente, juntamente com as forças dos dois Ájax e de dezoito reis menores. Agamémnon, chefe da nossa vanguarda, estava defronte para Heitor. O nosso flanco esquerdo era comandado por Idomeneu e Menelau e o direito por Ulisses e Diomedes, esse tão estranho par de amantes. Um tão quente, o outro tão frio! Quem sabe, talvez os dois juntos fossem a perfeição.
Heitor conduzia uma equipa soberba de cavalos, tão negros como azeviche, e erguia-se no seu carro como o próprio Ares Eniálios. Tão grande e tão erecto como Aquiles. Contudo, não via uma única barba branca entre os troianos; Príamo e outros da sua idade tinham ficado no palácio. Eu era o homem mais velho naquele campo de batalha.
Os tambores rufaram, as trombetas e os címbalos soaram estridentes anunciando a refrega, que, de facto, não tardou. Com efeito, a batalha começou quando nos encontrávamos ainda a cem passos uns dos outros. Lanças voaram como folhas ao sabor do medonho sopro do Inverno, setas caíram rapidamente sobre as suas presas como se águias fossem, soldados de infantaria investiram e foram rechaçados. Agamémnon dirigia a nossa linha da frente com um vigor e uma vigilância que nunca suspeitara que tivesse. Na realidade, muitos de nós nunca haviam combatido juntos. Podíamos agora, pela primeira vez, avaliar as capacidades bélicas uns dos outros. E foi reconfortante verificar que Agamémnon se revelou competente o bastante para enfrentar capazmente Heitor naquela primeira manhã. Heitor, aliás, não fez qualquer tentativa para travar um duelo com o nosso rei supremo.
Heitor berrou e vituperou, lançou vezes sem conta os seus carros contra a nossa linha da frente, mas a verdade é que não conseguiu rompê-la uma só vez. Conduzi algumas investidas durante a manhã; Antíloco soltava o grito de guerra de Pilos, mas eu poupava os meus pulmões, um instrumento precioso para a batalha. Vários foram os troianos que morreram sob as rodas do meu carro, pois Antíloco era um bom condutor, evitando-me problemas e sabendo sempre qual era o momento certo para recuar. Ninguém poderia dizer que o filho de Nestor punha em perigo a integridade do seu velho pai só porque queria combater em vez de conduzir um carro.
A minha garganta começou a ficar seca e a armadura estava branca de poeira; acenei para o meu filho e retirámos para as linhas da retaguarda a fim de bebermos água e de recuperarmos algum alento. Quando olhei para o céu, verifiquei espantado que o Sol se abeirava já do seu zénite. Regressámos imediatamente à linha da frente e, com forças renovadas, guiei os meus homens na direcção das hostes troianas. Fizemos algum trabalho rápido aproveitando o facto de Heitor estar ocupado com outras porções do seu exército. Depois, ordenei a retirada e recuámos em segurança para a nossa própria linha sem perdermos um único homem. Heitor perdera mais de uma dúzia naquela breve refrega. Suspirando de satisfação, sorri silenciosamente para Antíloco. O que ambos queríamos era a armadura de um chefe, mas não tínhamos encontrado nenhum.
Ao meio-dia, Agamémnon ordenou a um arauto que soasse a trombeta das tréguas. Contrariados, os dois exércitos baixaram as armas; pela primeira vez, a fome e a sede, o medo e o cansaço tornavam-se realidades desde que a batalha começara. Quando vi que todos os chefes se encaminhavam na direcção de Agamémnon, disse a Antíloco que me conduzisse também ao rei supremo. Ulisses e Diomedes chegaram ao mesmo tempo que eu. Todos os outros já lá estavam. Os escravos andavam numa azáfama, trazendo vinho misturado com água, pão e bolos.
- Que se passa, Agamémnon? - perguntei.
- Os homens precisam de descansar. Este é o primeiro dia de combates intensos ao fim de muitas luas - por isso enviei um mensageiro a Heitor, propondo-lhe um encontro para negociações.
- Excelente! - disse Ulisses. - Com alguma sorte, poderemos prolongar esse encontro o tempo suficiente para que os homens recuperem forças e comam.
Agamémnon fitou-o com um sorriso imenso.
- Como o estratagema serve para os dois lados, Heitor não recusará a minha oferta.
Os não combatentes retiraram mortos e feridos da faixa que separava os dois exércitos; mesas e bancos não tardaram a surgir e os chefes dos dois lados avançaram para a faixa de separação a fim de conferenciarem. Comigo, seguiram Ájax, Ulisses, Diomedes, Menelau, Idomeneu e Agamémnon; com grande interesse e maior curiosidade, preparámo-nos para assistir ao primeiro encontro entre o rei supremo e o herdeiro de Tróia. Heitor era um homem de tez muito escura. Cabelos negros
Nota: Eniálios - Cavaleiro, condutor de carros de guerra.
espreitavam sob o elmo e caíam-lhe pelas costas numa trança. Os olhos que nos miravam - tão astutamente como nós o mirávamos a ele - eram também negros.
Apresentou-nos os outros chefes: Eneias da Dardânia, Sarpédon da Lícia, Acamas, filho de Antenor, Polidamas, filho de Agenor, Pandaros, o capitão da Guarda Real, e os seus irmãos Páris e Deífobo.
Menelau emitiu uma rosnadela quase inaudível e lançou um olhar furioso a Páris; no entanto, tanto ele como Páris temiam demasiado os seus régios irmãos para se permitirem criar-lhes problemas. Os troianos pareceram-me um belo grupo de homens, todos eles guerreiros consumados, à excepção de Páris, que parecia perfeitamente deslocado - bonitinho, entediado, amaneirado. Enquanto Agamémnon fazia as suas apresentações, observei atentamente Heitor, procurando detectar a sua reacção aos nomes que ia ouvindo. Quando chegou a vez de Ulisses, examinou o mais inteligente dos nossos chefes com uma atenção muito particular; havia um brilho de perplexidade no seu olhar. Contudo, não me diverti nada ao constatar o dilema que ia na mente de Heitor; de facto, até tive pena dele. Os homens que não conheciam Ulisses, a Raposa de ítaca, tinham tendência a subestimá-lo devido às estranhas proporções do seu corpo e ao aspecto imundo, quase que ignóbil, que ele cultivava sempre que achava adequado. Dei comigo a pedir-lhe silenciosamente: Olha para os olhos dele, Heitor, olha para os olhos dele! Mas a natureza de Heitor preferia Ájax, que vinha logo a seguir a Ulisses; para Heitor, Ájax era muito mais interessante e atraente do que Ulisses. Pior para ele: não entendera a importância da Raposa.
Heitor atentou com espanto nos músculos poderosos do nosso segundo maior guerreiro; pela primeira vez na sua vida, pensámos nós, Heitor teve de erguer a cabeça para olhar para o rosto de outro homem.
- Não houve entre nós qualquer conferência nestes últimos dez anos, filho de Príamo - disse Agamémnon. - Julgo que chegou a hora de discutirmos.
- Que queres discutir?
- Helena.
- Esse assunto está encerrado.
- De modo nenhum! Negas que Páris, filho de Príamo e teu irmão germano, raptou a esposa do meu irmão Menelau, rei da Lacedemónia, e a trouxe para Tróia, insultando desse modo toda a nação grega?
- Nego.
- Helena pediu-me que a trouxesse - acrescentou Páris.
- Claro que não admites que usaste a força.
- Isso é evidente: não foi preciso usar força nenhuma. - Heitor bufava que nem um touro. - Que propostas pretendes fazer, nessa tua linguagem tão formal, rei supremo?
- Que devolvas Helena e todos os seus bens ao seu único e verdadeiro marido, que nos indemnizes pelo tempo que perdemos e pelos problemas que tivemos, reabrindo o Helesponto aos mercadores gregos, e que não te oponhas ao estabelecimento de colónias gregas na Ásia Menor.
- Os termos da tua proposta são inaceitáveis.
- Porquê? Tudo o que nós pedimos é o direito a uma coexistência pacífica. Eu não combateria se pudesse alcançar pacificamente os meus objectivos, Heitor.
- A satisfação das tuas exigências seria a ruína de Tróia, Agamémnon.
-A guerra será muito mais ruinosa para Tróia. Tu estás a defender-te, Heitor - e essa nunca é uma posição vantajosa. Ao passo que nós desfrutamos dos lucros de Tróia há dez anos - e também dos lucros da Ásia Menor.
A conferência prosseguiu: palavras sem qualquer peso efectivo atiradas a esmo, enquanto os soldados descansavam na erva pisada e fechavam os olhos devido à intensidade do sol.
- Muito bem. Nesse caso, faço-te uma última proposta, príncipe Heitor disse Agamémnon algum tempo depois. - Encontram-se entre nós os dois homens directamente envolvidos no episódio que deu origem a isto tudo. Menelau e Páris. Proponho-te que Menelau e Páris travem um duelo nesta mesma faixa onde nos encontramos agora, entre os dois exércitos. O vencedor ditará os termos de um acordo de paz.
Se Páris não parecia um duelista brilhante, que dizer de Menelau? Heitor não precisou de muito tempo para decidir que Páris seria um vencedor fácil.
- De acordo - disse ele. - O meu irmão Páris travará um duelo com o teu irmão Menelau. O vencedor ditará os termos de um tratado.
Olhei de relance para Ulisses, que estava a meu lado.
- Esperemos que seja um troiano a interromper o duelo - segredou-me ele. Caso contrário, a reputação de Agamémnon sofrerá horrores nos anos mais próximos.
Retirámos para as nossas linhas e deixámos os cem passos de terreno vago aos dois homens. Menelau começou por testar o escudo e a lança, ao passo que Páris se pôs a ajeitar a armadura com um ar displicente. Por fim, foi dada a ordem para que o duelo principiasse. Os dois homens lançaram-se em círculos lentos à volta um do outro, Menelau investindo com a lança, Páris desviando-se para evitar o golpe. Alguém do exército grego gritou um comentário escarninho a propósito do modo como Páris se desviava da lança: milhares de gargantas troianas rosnaram furiosas, mas Páris ignorou o insulto e continuou a esquivar-se com delicados movimentos. Nunca considerara Menelau capaz fosse do que fosse, mas era óbvio que Agamémnon sabia o que estava a fazer ao propor o duelo. Eu pensara que Páris seria um vencedor fácil, mas estava redondamente enganado. Embora não possuísse nem o instinto nem o arrojo que fazem de um homem um chefe, Menelau aprendera a arte do duelo tão escrupulosamente como qualquer outra coisa. Faltava-lhe o ardor, mas não a coragem, o que era uma vantagem enorme num combate singular. A certa altura, arremessou a sua lança com tal violência que conseguiu arrancar o escudo a Páris; vendo-se perante a espada de Menelau, Páris preferiu fugir a empunhar a sua própria espada. Menelau foi no seu encalço.
Toda a gente sabia já quem ia vencer; os Troianos remeteram-se a um profundo silêncio, os nossos homens desataram num alarido ensurdecedor. Os meus olhos não largavam Heitor, que avaliara mal as possibilidades do irmão e que, por outro lado, era um homem de princípios. Se Menelau matasse Páris, Heitor teria de aceitar o tratado. Ah! Sem que Heitor lhe tivesse feito sinal nenhum, Pandaros, o capitão da Guarda Real, pôs uma flecha no seu arco. Com um grito, avisei Menelau, que parou e se desviou. Demasiado tarde. Enquanto as nossas hostes berravam de indignação, a flecha alojou-se no flanco de Menelau. Um uivo de pesar do lado troiano saudou o facto de ter sido um troiano a quebrar as tréguas. Por causa de Pandaros, Heitor via a sua honra manchada.
Os exércitos embrenharam-se então na luta com uma fúria que estivera ausente durante a manhã; um dos lados defendia a honra manchada, o outro vingava uma ofensa, e ambos os lados ceifavam e golpeavam num frenesi histérico.
Muitos homens pereceram num breve espaço de tempo; os cem passos que haviam separado as linhas depressa minguaram; num instante, foram ocupados por uma sólida massa de corpos e pelas nuvens de pó que nos cegavam e sufocavam.
O culpado, Heitor, estava em todo o lado ao mesmo tempo, percorrendo o centro da batalha no seu carro, desferindo fatais golpes de lança. Nenhum de nós conseguia aproximar-se dele o suficiente para tentar abatê-lo; em contrapartida, muitos eram os homens que, com gritos de puro terror, morriam sob os cascos dos seus três cavalos negros. Não consegui entender, naquele primeiro dia, como conseguia Heitor conduzir os seus cavalos no meio daquela medonha confusão humana; mais tarde, porém, os seus processos, de tão estudados e imitados, converteram-se num verdadeiro lugar-comum, de tal modo que eu próprio os segui e considerei que não tinham nada de especial. Vi Eneias abeirando-se do centro com um bando de dardanianos na sua esteira e perguntei-me como é que ele conseguira deslocar-se da sua ala no meio daquele caos. Abandonei a lança em favor da espada, juntei os meus homens e conduzi-os para o grosso da batalha, derrubando, do alto do meu carro, tudo o que me aparecesse pela frente, golpeando a esmo rostos imundos de suor, não perdendo de vista Eneias enquanto pedia reforços.
Agamémnon mandou mais homens, comandados por Ájax. Eneias viu-o e chamou os seus cães de guarda, mas não antes de eu ter o privilégio de ver aquela verdadeira torre desferindo golpes tremendos, o braço convertido numa foice incansável que cortava o joio inimigo. Ájax não trazia o machado, pois, naquele primeiro dia de batalha, preferira a espada, dois cúbitos e meio de morte sob a forma de uma dupla lâmina. Embora a usasse como um machado, erguendo-a bem alto e cravando-a no inimigo com um grito de júbilo capaz de aterrorizar o mais destemido dos homens. Empunhava o seu enorme escudo melhor do que qualquer outro homem vivo; o escudo nunca vacilava enquanto ele o erguia a escassa distancía do chão, uma massa de bronze e estanho cobrindo-o da cabeça aos pés. Atrás dele vinham seis corpulentos chefes de Salamina e, sob a protecção do próprio escudo de Ájax, ocultava-se Teucro com o seu arco, disparando setas atrás de setas, numa série de movimentos tão fluidos que pareciam até contínuos, impecavelmente rítmicos. Vi soldados gregos que estavam demasiado longe de Ájax para poderem ver os movimentos da torre humana sorrindo uns para os outros e recobrando ânimo só de ouvirem o famoso grito com que Ájax saudava Ares e a Casa de Éaco.
Rodeado pelos meus próprios homens, saudei-o mal o vi avançar na minha direcção; Antíloco abrandara as rédeas do nosso carro e, boquiaberto de espanto, fitava a torre humana.
- Desapareceram, velho! - rosnou Ájax.
- Nem mesmo Eneias quis enfrentar-te - disse eu.
- Zeus transformou-os em sombras! Porque é que eles não combatem como verdadeiros guerreiros? Mas está descansado que eu hei-de apanhar Eneias!
- Onde está Heitor?
- Tenho andado à procura dele toda a tarde. Ou ele é uma miragem ou então sou eu que fico sempre para trás. Mas eu não o vou largar. Mais tarde ou mais cedo havemos de encontrar-nos.
Ouviram-se gritos estridentes de aviso; voltámos a formar num ápice, pois Eneias regressara, trazendo consigo Heitor e uma parte da Guarda Real. Olhei para Ájax.
- Eis a tua grande oportunidade, filho de Télamon!
- Dou graças a Ares! - Abanou os ombros couraçados para melhor distribuir o peso da armadura e, com a ponta da enorme bota, afastou afectuosamente Teucros.
- Vai-te embora, irmão. Este é só para mim. Protege Nestor e mantém Eneias à distância.
Teucro abandonou a protecção do escudo e correu para ao pé de mim. Nos seus olhos brilhantes, devotados, não havia qualquer sinal de preocupação. Nunca ninguém pusera em causa a sua lealdade, apesar de a sua mãe ser Hesíona, a irmã de Príamo.
- Vamos, rapaz - disse ele para o meu filho -, conduz-nos através destas carcaças e vê se consegues alcançar Eneias. Temos de o manter ocupado. Rei Nestor, proteges-me enquanto eu uso o arco?
- De bom grado, filho de Télamon - disse eu.
- Porque é que Eneias está na linha da frente, pai? - perguntou-me Antíloco enquanto avançávamos. - Pensava que ele comandava uma ala.
- Também eu - respondeu Teucro em vez de mim. Os meus homens e alguns dos salaminianos de Ájax foram connosco e conseguimos manter Eneias afastado o suficiente de Heitor, de forma a que Ájax conseguisse obrigar o herdeiro a travar um duelo. Logo que o duelo começou, a batalha amainou drasticamente; os homens seguiam com tanta atenção os movimentos de Heitor e Ájax que nem reparavam para onde arremessavam setas ou lanças.
Ájax nunca usava carros de guerra, provavelmente porque não havia carro de guerra que suportasse o seu peso, mais o de Teucro e o do condutor. Na realidade, Ájax fazia de conta que ele próprio era um carro de guerra.
O bronze retiniu contra o bronze. Uma protecção de um braço saltou sob a súbita expansão dos músculos e caiu para logo ser esmagada pelos pés dos contendores. Ájax e Heitor eram adversários à altura um do outro. Enquanto à sua volta a batalha se desvanecia, as duas torres continuavam a investir e a aparar golpes. Eneias chamou-me a atenção com um assobio estridente.
- Um duelo destes não se pode perder, velho guerreiro! Prefiro ver a combater! E tu? Eneias da Dardânia pede tréguas!
- Concordo com as tréguas até ao final do duelo. Se for Ájax o vencido, defenderei o seu corpo e a sua armadura com a minha própria vida! Mas se for Heitor o vencido, ajudarei Ájax a roubar-te o corpo e a armadura de Heitor! Nestor de Pilos está de acordo com as tréguas!
-Assim seja, então! No círculo que então se juntou, todos os soldados baixaram as armas. À volta do nosso limitado território, a batalha prosseguia, violenta, implacável. Nós, em contrapartida, nem nos mexíamos, nem falávamos. O meu coração inflamava-se só de ver Ájax combatendo. Não havia a menor falha na sua guarda, não havia a menor exposição do seu corpo por detrás daquele escudo colossal. Heitor dançava como uma chama viva em torno daquela massa, desferindo golpes, cortando grossas fatias da superfícíe do escudo. Nenhum deles parecia dar-se conta da passagem do tempo, nenhum deles dava mostras de fadiga; a todo o momento, os seus braços erguiam-se e arremetiam com uma energia que não diminuía. Por duas vezes, Heitor quase perdia o seu escudo; contudo, aparou os golpes de Ájax com a sua própria espada e continuou a combater, mantendo em seu poder o escudo e a espada apesar de tudo o que Ájax pudesse fazer. Aquela seria uma batalha longa e ferocíssima. Quando um deles via uma aberta, logo investia; e quando investia, logo se lhe deparava a espada inimiga; nenhum deles, porém, perdia o ânimo e o duelo prosseguia tão furioso como de início.
Senti mexerem-me no braço: era um mensageiro de Agamémnon.
- O rei supremo quer saber por que razão a batalha está parada neste local, rei Nestor.
- Concordei com tréguas temporárias. Vê com os teus próprios olhos, mensageiro! Combaterias se houvesse um duelo destes na tua secção?
O homem atentou nos contendores.
- Reconheço o príncipe Ájax, mas... quem é o outro?
- Diz ao rei supremo que Ájax e Heitor estão a travar um combate de morte!
O mensageiro desapareceu imediatamente, deixando-me à vontade para continuar a assistir ao duelo. Ájax e Heitor continuavam a golpear e a justar furiosamente - há quanto tempo durava aquilo? Não precisei de proteger os olhos quando olhei para a bola amarelo-pálida do Sol, para lá das nuvens de poeira. Sim, o Sol abeirava-se já do horizonte! Por Ares, quanta energia, quanta resistência!
Agamémnon parou o seu carro ao lado do meu.
- Pudeste prescindir do teu comando, Agamémnon?
- Ulisses substituiu-me. Por todos os deuses! Há quanto tempo dura o duelo, Nestor?
- Já passou quase uma oitava parte da tarde.
- Em breve terão de parar. O Sol está já a pôr-se!
- Inacreditável, não é?
- Ordenaste tréguas?
- Os homens não queriam combater. Nem eu. Como vão as coisas no resto do campo?
- Estamos a fazer melhor do que resistir, apesar de sermos muito menos do que eles. Diomedes tem sido um verdadeiro titã. Matou Pandaros, o chefe troiano que quebrou as tréguas, e foi-se embora com a armadura do inimigo mesmo nas barbas de Heitor. Ali! Ali está Eneias! Não admira que ele quisesse tréguas ... !
Diomedes atingiu-o no ombro com uma lança e crê que Eneias está bastante ferido.
Então foi por isso que ele deixou a ala e veio para aqui...
O dardaniano é, entre todos os homens de Príamo, o mais astucioso. Mas, segundo se diz, é também o mais egoísta. Como está Menelau? A flecha atingiu algum sítio vital? Não. Macáon fez-lhe uma ligadura e mandou-o de novo para o campo de batalha.
- Portou-se muito bem, o teu irmão.
- Foi uma surpresa para ti, não foi?
Por sobre a poeira e o clamor do campo de batalha, ouviu-se o longo e desalentado toque da trombeta que anunciava a noite. Os homens baixaram as armas e, arquejantes, procuraram um sítio para descansar. Escudos eram arrastados pelo chão, espadas eram desajeitadamente embainhadas, mas Heitor e Ájax continuavam a combater. No fim de tudo, foi a noite o vencedor; os dois colossos mal viam as armas diante deles quando desci do meu carro e corri a separá-los.
- Nem leões como vocês conseguem ver de noite - disse-lhes eu. - Nenhum de vós venceu, nenhum de vós foi derrotado. Portanto, agora que chegou a noite, dêem tréguas às vossas espadas.
Heitor tirou o elmo com uma mão trémula.
- Confesso que não lamento que o duelo tenha chegado ao fim. Não aguentaria muito mais.
Ájax deu o seu escudo a Teucro, que mal se aguentava de pé sob tão pesada carga.
- Nem eu, nem eu... - disse a torre humana.
- És um grande homem, Ájax - disse Heitor, estendendo-lhe o braço direito. Ájax entrelaçou os seus dedos à volta do pulso do príncipe troiano. Com um sorriso, comentou: - O mesmo posso dizer de ti, Heitor.
- Custa-me a crer que Aquiles seja melhor do que tu... Olha, toma, ofereço-te a minha espada!
Ájax fitou a lâmina com um prazer evidente, após o que a ergueu bem alto. -A partir de agora, usá-la-ei sempre, seja em que batalha for! Em troca, ofereço-te o meu boldrié. Segundo o meu pai, o meu avô dizia que o recebera das mãos de seu pai, que era o próprio Zeus Imortal. - Baixou a cabeça e retirou a preciosa relíquia; era um objecto raro, de um cabedal púrpura brilhante decorado com um padrão de ouro.
- Usá-lo-ei em vez do meu - disse Heitor, deliciado. Encantado, dei-me conta da intensa satisfação que ambos sentiam, da afeição mútua e do respeito que haviam ganho um pelo outro em tão terríveis circunstâncias. Até que as asas geladas de uma premonição deixaram a minha mente transida de medo: aquela era uma troca aziaga!
Naquela noite, acampámos no sítio onde estávamos, sob as muralhas de Tróia, com o exército de Heitor entre nós e a imensa Porta Ceia, aberta de par em par. As fogueiras foram acesas, os caldeirões suspensos sobre elas; escravos corriam a trazer enormes bandejas de pão de cevada e carne; o vinho, misturado com água, não faltava. Por um momento, reparei no vaivém dos archotes por alturas da Porta Ceia; os escravos troianos andavam na mesma azáfama que os nossos, assistindo o exército de Heitor. Depois, fui comer com Agamémnon e os outros, em torno de uma fogueira. Mal avancei para a luz que a fogueira desenhava, os rostos deles viraram-se para me saudar - e eu vi o tremendo vazio que sempre se apodera dos homens depois de uma batalha duramente travada.
- Não avançámos sequer um dedo - disse eu para Ulisses.
- Eles também não - retorquiu Ulisses tranquilamente, a boca meio cheia de carne de porco.
- Quantos homens perdemos? - perguntou Idomeneu.
- Mais ou menos os mesmos que Heitor, talvez menos - disse Ulisses. As baixas que houve não chegam para alterar a correlação de forças.
- Nesse caso, creio que amanhã será um dia decisivo - comentou Meríona, bocejando.
- Sim, amanhã será um dia decisivo - concordou Agamémnon, bocejando também.
Pouco mais conversas houve. Os corpos queixavam-se das dores e das feridas, as pálpebras caíam pesadas, as barrigas estavam cheias. Era tempo de nos enrolarmos em peles à volta do fogo. Contemplei as muitas centenas de pequenas luzes de fogo semeadas por toda a planície, cada uma delas uma fonte de conforto e segurança na imensidão da noite. Plumas de fumo erguiam-se na direcção das estrelas, o fumo de dez mil fogueiras sob as muralhas de Tróia. Deitei-me e, por um momento, mirei as muitas estrelas cuja cintilação ora se avivava, ora se esbatia, ao sabor daquele nevoeiro de fumo que os homens haviam erguido, até que todas elas se dissolveram no sono, que é aquele que traz a escuridão da mente.
O segundo dia foi muito diverso do primeiro. Não houve tréguas que aplacassem a carnificina, não houve duelos que nos prendessem a atenção, não houve magníficos actos de heroísmo que elevassem a refrega acima do nível do comum dos homens. A lida era penosa e amargamente obstinada. Os meus ossos ansiavam por um merecido descanso, os meus olhos estavam cegos pelas lágrimas que todos os homens choram quando vêem um filho morrer. Antíloco chorou também pelo seu irmão; depois, pediu-me que o deixasse tomar o lugar do irmão na linha da frente. Não pude recusar. Tive de chamar um dos meus homens para conduzir o meu carro.
Imune a todos os cercos e tão mortífero como o próprio Ares, Heitor estava no seu elemento, atravessando constantemente o campo de batalha, acicatando as suas tropas com uma voz portentosa que não dava tréguas aos soldados nem a si mesmo. Ájax não teve tempo para o perseguir; Heitor fez avançar toda a Guarda Real sobre os homens de Ájax e Diomedes; dispondo de muito mais soldados do que os seus dois mais perigosos inimigos, impediu que estes avançassem. Sempre que Heitor usava a sua lança, era certo e sabido que um homem morreria: com a lança, Heitor era tão bom como Aquiles. Se se abria uma brecha na nossa linha, Heitor empurrava os seus homens para dentro dela; logo que a brecha se tornava um facto consumado, enviava mais e mais homens para dentro dela, como uma serra cravando os seus dentes cada vez mais fundo num gigante da floresta.
Ah, o sofrimento, a crueldade, a dor! De novo as lágrimas me cegaram quando outro dos meus filhos tombou, as entranhas dilaceradas por uma lança que Eneias arremessara. Escassos momentos depois, Antíloco por pouco não era decapitado por uma espada! Ah, não! Não o mais amado dos meus filhos! Por favor, misericordiosa Hera, omnipotente Zeus, não me levem o meu querido Antíloco!
De vez em quando, mensageiros vinham informar-me da situação noutras partes do campo; dei graças aos deuses pelo facto de pelo menos os nossos chefes estarem sãos e salvos. Talvez porque os nossos homens estavam cansados, ou porque não tínhamos connosco os quinze mil homens de Aquiles, ou por qualquer outra mais obscura razão, começámos a perder terreno. Lenta e imperceptivelmente, fomo-nos afastando cada vez mais das muralhas de Tróia, fomo-nos abeirando cada vez mais das nossas próprias muralhas. Dei comigo no meio das hostes da primeira linha. O meu condutor soluçou de raiva quando se viu obrigado a fazer recuar os cavalos.
Heitor abateu-se sobre nós; pedi freneticamente por ajuda, pois o carro do príncipe troiano avançava na minha direcção, erguendo-se já sobre o caos humano que me rodeava. A sorte estava comigo. Diomedes e Ulisses, não sei como, ocuparam o centro da nossa linha da frente, colocando os seus homens ao lado dos meus. Diomedes não fez qualquer tentativa para travar um combate singular com Heitor; em vez disso, concentrou-se no condutor do príncipe, o qual, pelos vistos, não era o condutor habitual de Heitor, pois revelava uma inesperada inexperiência. Diomedes arremessou a sua lança e trespassou o homem que, caindo para trás agarrado às rédeas, obrigou os cavalos a pararem. Com a ajuda de Ulisses, conseguimos afastar-nos em segurança, enquanto Heitor cuspia imprecações e serrava as rédeas com uma faca.
Procurei voltar ajuntar a minha secção da linha da frente, mas já não era possível. O medo apossara-se dos homens, muitos eram já os que falavam de sinais aziagos. Nenhum de nós poderia alimentar mais ilusões: o nosso exército retirava. Apercebendo-se disso, Heitor, com um grito de triunfo, mandou avançar o resto das suas linhas de reserva.
Ulisses acabou por salvar o dia. Saltou para um carro vago - onde estava o carro dele? - e deteve os Beócios quando estes começavam a debandar; obrigou-os a enfrentarem o inimigo por algum tempo, até que, por fim, lhes ordenou que recuassem lentamente e em perfeita ordem. Agamémnon seguiu imediatamente o seu exemplo; aquilo que ameaçara ser uma verdadeira derrocada - e uma derrota fragorosa - transformou-se numa retirada com um mínimo de perdas. Diomedes carregou, com os seus homens de Argos, sobre os dentes dos troianos que continuavam a avançar, e eu segui-o com Idomeneu, Euripilo, Ájax e todos os seus homens.
Os nossos flancos tinham convergido para a linha da frente; o exército transformara-se numa cerrada formação com uma delgada frente suportando a investida de Heitor e o grosso dos nossos homens atrás de nós, recuando.
Teucro não largava o seu esconderijo atrás do escudo do irmão, as flechas voando constantemente e acertando sempre nos seus alvos. Heitor aproximava-se; Teucro viu-o, sorriu e pôs uma nova flecha no seu arco. Mas Heitor era demasiado esperto para se deixar abater por uma flecha de que estava certamente à espera. Uma após outra, Heitor aparou com o escudo as flechas. Teucro ficou furioso - e a raiva levou-o a cometer um erro fatal: saiu do seu esconderijo. Heitor estava à espera dele. Já não tinha consigo nenhuma lança, mas encontrara uma pedra que, nas suas mãos, valia tanto como uma lança. Atingiu Teucro no ombro direito e o irmão de Ájax caiu por terra como um touro num sacrifício. Demasiado ocupado para reparar no que acontecera, Ájax continuou a combater. Ah, ali, ali!
O meu grito de alívio ecoou numa dúzia de gargantas quando a cabeça de Teucro se elevou no meio dos cadáveres. Vimo-lo depois rastejando por entre mortos e feridos na direcção de Ájax. Agora, porém, Teucro era apenas mais um peso que o irmão teria de arrastar; os troianos continuavam a carregar.
Olhei desesperadamente para a retaguarda, para ver a que distância estávamos das nossas muralhas; fiquei pasmado: as nossas últimas linhas penetravam já no acampamento.
Ulisses e Agamémnon conseguiram que a retirada terminasse sem pesadas baixas. Finalmente, podíamos refugiar-nos na nossa cidade de pedra. Além disso, estava demasiado escuro para que Heitor se atrevesse a perseguir-nos. Deixámo-los do outro lado do fosso e da paliçada, escarnecendo de nós e rosnando como cães furiosos colados às nossas pernas.
Narrado por Ulisses
Não foi uma reunião muito alegre aquela que tivemos nessa noite em casa de Agamémnon; pouco mais fizemos do que entregarmo-nos à entediante tarefa de recuperar as forças para o dia seguinte. Doía-me a cabeça, a minha garganta estava ferida de tanto gritar, os meus flancos estavam em carne viva devido ao atrito da couraça e apesar da protecção almofadada que usava por baixo. Todos nós apresentávamos pequenas feridas - peles esfoladas, escoriações diversas, cortes dos tipos mais variados - e o sono apoderava-se já de nós.
- Um tremendo revés - disse Agamémnon, no meio de um silêncio exausto. Tremendo, Ulisses.
Diomedes correu a defender-me.
- Tal como Ulisses previra! - exclamou. Nestor aquiesceu. Pobre Nestor. Pela primeira vez, parecia ter a idade que realmente tinha e não era caso para admirar. Perdera dois filhos naquele dia. Com uma voz que o esgotamento tornara aguda, disse: - É cedo para desesperares, Agamémnon. A hora da vitória chegará para nós - e tornará doces todas as derrotas.
- Eu sei, eu sei! - exclamou Agamémnon.
- Seria melhor que alguém fosse contar a Aquiles - disse Nestor, num murmúrio apenas audível para aqueles que conheciam o nosso plano. - Ele está a cumprir o prometido, mas, se não o mantivermos informado, pode muito bem avançar antes do tempo.
Agamémnon trespassou-me com o seu olhar.
- Ulisses, a ideia foi tua: vai tu visitar Aquiles. Arrastei-me exausto na direcção do acampamento de Aquiles. Obrigar-me a atravessar todo o acampamento grego (já que a base de Aquiles ficava num dos extremos) fora a maneira que Agamémnon encontrara para se desforrar de mim.
Contudo, enquanto caminhava, descansado e tranquilo, a energia começou lentamente a voltar aos meus músculos. Acabei por me sentir mais retemperado depois deste pequeno esforço do que me sentiria se tivesse dormido a noite inteira. Quem me visse pensaria por certo que Agamémnon me mandara insistir junto de Aquiles para que mudasse de ideias. Os soldados não ficaram por certo surpreendidos quando me viram atravessar a porta do acampamento mirmidão. Os homens de Aquiles - tanto os mirmidões como todos os outros soldados da Tessália - miraram-me com um ar triste. Estavam ávidos de guerra - e reduzidos à mais absoluta impotência.
Quando entrei na casa de Aquiles, estava este aquecendo as mãos junto ao trípode de fogo, tão esgotado e nervoso como qualquer um dos chefes que haviam combatido durante aqueles dois dias. Pátrocles estava sentado diante dele: dir-se-ia que o seu rosto não era feito nem de carne nem de pele, mas sim de granito. Creio que não fiquei surpreendido com a atitude de Pátrocles: a causa era evidente e tinha um nome de mulher, Briseida. O meu relacionamento com Diomedes era tão amistoso quanto sensual, uma ligação que fazia todo o sentido naquelas circunstâncias e que nos proporcionava um prazer extremo. Porém, se ele ou eu quisesse dormir com uma mulher, não havia mal nenhum. Não era nenhuma catástrofe, nenhum de nós se sentia traído. Pátrocles amava e imaginara-se em segurança, permanentemente livre de rivais. Ao passo que Aquiles, como todos os homens que ardem por outras coisas que não a carne, não se entregara verdadeiramente ao seu amante. Sentindo-se atraído apenas por homens, Pátrocles considerava que fora cruelmente traído. Pobre Pátrocles... Pobre, apenas porque amava.
- Que te traz ao meu acampamento? - perguntou Aquiles num tom o mais azedo possível. - Pátrocles, pede aos escravos que tragam comida e vinho para o rei.
Suspirando grato, sentei-me numa cadeira enorme e esperei que Pátrocles saísse.
- Ouvi dizer que as coisas correram mal - disse Aquíles logo que o amigo saiu.
- Como se esperava, Aquiles. Não te esqueças disso - retorqui. - Heitor conseguiu que os seus soldados lutassem duramente durante todo o dia, mas Agamémnon não conseguiu o mesmo dos nossos. A retirada começou logo que começaram os murmúrios - todos os augúrios estavam contra nós, o céu estava cheio de águias voando do lado esquerdo, uma luz dourada banhava a cidadela de Tróia e outras coisas do género. Quando os homens desatam a falar de sinais aziagos, não há nada a fazer. De maneira que recuámos e Agamémnon teve de nos conduzir para o interior das fortificações a fim de passarmos a noite.
- Disseram-me que Ájax e Heitor tinham travado um duelo.
- Sim, um duelo que durou mais de uma oitava parte da tarde - e que, mesmo assim, não chegou ao seu desfecho. Mas não te preocupes, Aquiles. Heitor será para ti!
- O problema não é esse, Ulisses: o problema é que há homens a morrer sem qualquer necessidade! Deixa-me combater amanhã! Por favor!
- Não - retorqui eu, num tom categórico. - Só combaterás quando o nosso exército correr perigo de aniquilamento. Ou quando os navios começarem a arder - caso Heitor consiga entrar no nosso acampamento. Mesmo em tais circunstâncias, dirás a Pátrocles que comande as tuas tropas - não deves ser tu a sair com elas. - Fitei-o gravemente. - Não te esqueças do juramento que fizeste diante de Agamémnon.
- Está descansado, Ulisses, eu cumpro sempre aquilo que juro. Aquiles baixou a cabeça e caiu num silêncio que parecia interminável. Quando Pátrocles voltou, foi assim que nos viu: Aquiles todo curvado e eu a olhar, com um ar ausente, para a sua cabeleira dourada. Pátrocles ordenou aos criados que pusessem a comida e o vinho na mesa. Depois, ficou tão parado e frio como uma coluna de gelo. Aquiles lançou-lhe um breve olhar e logo se virou para mim.
- Diz a Agamémnon que não volto atrás na minha palavra - disse-me ele num tom perfeitamente formal. - Diz-lhe que arranje outro para o salvar dos apuros em que se meteu. Ou então que me devolva Briseida.
Bati na coxa, fingindo que estava exasperado.
- Como queiras, Aquiles.
- Fica e come, Ulisses. Pátrocles, vai deitar-te. Nunca naquela casa! Pátrocles deu meia volta e disparou porta fora.
Podia ser que dormisse mais tarde; porém, quando deixei o acampamento mirmidão, senti-me tão cheio de vida, tão cheio de energia, que me apeteceu fazer uma maldade qualquer. Foi por isso que me encaminhei para o pequeno vale onde a minha colónia de espiões continuava alojada. Muitos dos meus agentes que tinham ficado no acampamento (outros tantos estavam a viver em Tróia) estavam a acabar de jantar; Tersita e Sinão saudaram-me calorosamente.
- Novidades? - perguntei, enquanto me sentava.
- Uma novidade muito interessante - disse Tersita. - Ia procurar-te por causa dela.
- Ah! Sou todo ouvidos, Tersita!
- Quando a batalha terminou, chegou a Tróia um novo aliado - um primo distante de Príamo, chamado Reso.- Quantos soldados trouxe? Sinão riu-se.
- Nenhum! Reso não passa de um fanfarrão. Se o picarmos, só sai vento! Intitula-se aliado de Tróia, mas, de facto, é um refugiado! Foi corrido pelo seu próprio povo...
- Sim senhor, sim senhor! - disse eu, e esperei pelo resto.
- Reso possui um trio de magníficos cavalos brancos que são referidos num oráculo troiano - disse Tersita. - Diz esse oráculo que os cavalos de Reso são os filhos imortais do alado Pégaso, tão velozes como Bóreas e tão selvagens como Perséfona antes de Hades a ter possuído. Se esses cavalos beberem água do Escamandro e comerem erva troiana, Tróia nunca cairá. Uma promessa, diz o oráculo, de Poseidon, o qual, no entanto, parece que está do nosso lado.
- Eu sei que Poseidon está do nosso lado, mas diz-me uma coisa: os cavalos já beberam água do Escamandro e já comeram erva troiana?
- A erva, já comeram, mas na água do Escamandro ainda não tocaram.
- Não sou eu quem os vai censurar! - retorqui, divertido. - Eu também não beberia daquela água!
- Príamo ordenou que lhe trouxessem um ou dois baldes de água do Escamandro, mas de um local mais próximo da nascente... - disse Sinão, tão divertido como eu. - O rei de Tróia decidiu transformar a coisa numa cerimónia pública. Os cavalos vão beber dos baldes amanhã ao alvorecer. Entretanto, coitados dos cavalos, vão passar uma sede horrível!
- Muito interessante... - Levantei-me, esticando braços e pernas. - Tenho de ver essas fabulosas criaturas com os meus próprios olhos. Creio que, se tivesse um trio de cavalos brancos, poderia dar à minha imagem um pouco mais de... como dizer?... elegância.
- Sim, de facto um bocadinho mais de elegância não te ficava nada mal zombou Sinão.
- Um bocadinho? Um bocadão! - ajudou Tersita.
- Muito grato pelas vossas apreciações, meus senhores! Digam-me: onde é' que eu posso encontrar esse trio imortal?
- Isso é que nós não conseguimos saber - respondeu Tersita, franzindo o sobrolho. - Sabemos apenas que se encontram na planície, com o resto do exército troiano.
Diomedes, Agamémnon e Menelau estavam à minha espera nas proximidades da minha casa; avancei descontraidamente na direcção deles como se estivesse a dar um passeio higiénico. Sorri para Diomedes, um sorriso cujo significado ele conhecia bem e que o encheu de entusiasmo.
- Aquiles está calmo - disse eu para Agamémnon.
- Os deuses sejam louvados! Assim já posso ir deitar-me. Logo que Menelau e Agamémnon partiram, entrei na minha casa com Diomedes e chamei um criado.
- Traz-me um fato de cabedal leve e dois punhais - disse eu.
- Então o melhor é eu ir equipar-me de igual modo - disse Diomedes.
- Encontramo-nos na ponte do Simoente.
- E quando é que dormimos?
- Mais tarde, mais tarde!
Envergando um cabedal macio e escuro, e com dois punhais no cinto, Diomedes foi ter comigo à ponte do Simoente. Protegidos pelas sombras, atravessámos silenciosamente a ponte; logo a seguir à ponte, vinham os fossos e a paliçada.
- Qual é o nosso objectivo? - murmurou ele.
- Apetecia-me ter um trio de cavalos brancos imortais...
- Com um trio desses, vais melhorar muito a tua imagem... Lancei-lhe um olhar desconfiado.
- Não me digas que estiveste a falar com Sinão e Tersita!
- Não, não estive - retorquiu ele com o ar mais inocente deste mundo.
Onde é que estão os cavalos?
- Não faço ideia. Algures no meio desta escuridão.
- É o mesmo que procurar uma pulga na pele de um urso. Apertei-lhe o braço.
- Cala-te! Vem aí alguém. Mentalmente, saudei a minha protectora: a minha querida Palas Atena, a Dama Coruja, trazia-me sempre sorte. Escondemo-nos no fosso junto à ponte e esperámos.
Saído da escuridão da noite, um homem avançou rapidamente na direcção da ponte. Ouvia-se a armadura dele a tilintar: para andar de armadura naquelas circunstâncias, só poderia ser um espião amador. E nem sequer se lembrou de se furtar ao luar - extraordinário! Os raios da lua banharam-no por um longo momento, revelando um homem baixinho e gordo, envergando uma armadura que lhe devia ter custado bom dinheiro. Coroando o elmo, lá estava a pluma púrpura de Tróia. Deixámo-lo aproximar-se de nós e só depois saltámos sobre ele. Tapei-lhe a boca, sufocando-lhe o grito; Diomedes prendeu-lhe os braços atrás das costas; depois, atirámo-lo violentamente para o chão. O homem fitou-nos com uns olhos que, de tão esbugalhados, quase lhe saíam das órbitas; tremia tanto como uma alforreca. Não, não era um dos espiões de Palamedes. De certeza que trabalhava por conta própria.
- Quem és tu? - rosnei-lhe eu num murmúrio feroz.
- Dólon - conseguiu ele dizer.
- Que fazes tu aqui, Dólon?
- O príncipe Heitor pediu voluntários para irem ao acampamento grego, porque queria saber se Agamémnon tenciona sair amanhã.
Estúpido Heitor! Por que raio é que ele não deixava a espionagem nas mãos de profissionais como Palamedes?
- Um homem chegou esta noite. Reso. Onde fica o acampamento dele? perguntei, afagando a lâmina do meu punhal.
O homem engoliu em seco e desatou numa tremideira.
- Não sei, não sei! - baliu o desgraçado. Diomedes abeirou-se dele e, calmamente, cortou-lhe uma orelha. Depois, mostrou-lhe o apêndice que acabara de perder, enquanto eu lhe tapava a boca para ele não gritar. Só lhe tirei a mordaça da minha mão quando ele percebeu que tinha mesmo que falar.
- Fala, serpente! - atirei-lhe.
O homem falou. E quando acabou de falar partimos-lhe o pescoço.
- Olha-me só para estas jóias, Ulisses! - exclamou o meu amigo.
- Um homem muito rico... Se calhar, era daqueles que se dedicam a roubar os mortos depois da batalha. Enfim, um homem que não era digno das atenções de Heitor. Tira-lhe as bugigangas todas que ele traz e esconde-as. Quando voltarmos, leva-as para o teu baú. Será a tua parte dos despojos desta noite, pois eu quero ficar com os cavalos.
Diomedes pôs-se a apreciar uma enorme esmeralda.
- Não me posso queixar, Ulisses... Só com esta esmeralda, poderei comprar cem cabeças de gado para povoarem a planície de Argos.
Encontrámos o acampamento de Reso exactamente no sítio que Dólon indicara. Numa elevação próxima, parámos para combinar a nossa estratégia.
- Que idiota! - murmurou Diomedes. - Porque é que está tão isolado?
- Deve sentir-se superior aos outros... Quantos é que vês?
- Uma dúzia. Mas não te sei dizer quem é Reso.
- Sim, também contei uma dúzia. Primeiro matamos os homens, depois levamos os cavalos. Sem barulho.
Com os punhais entre os dentes, deslizámos silenciosamente, Diomedes na direcção da fogueira, eu na direcção oposta. Em operações deste género, a prática é muito útil; a escassa corte de Reso morreu enquanto dormia, e os cavalos, vagas formas brancas no negrume da noite, não chegaram a assustar-se.
Foi fácil descobrir quem era Reso. Também ele era um coleccionador de jóias. Era o que estava mais perto da fogueira; as jóias cintilavam ao sabor das chamas.
- Olha-me só para esta pérola! - sussurrou Diomedes, erguendo-a à luz da lua.
- Mais mil cabeças de gado - disse eu, sussurrando ainda mais baixo do que ele, pois havia sempre o perigo de alguém aparecer inesperadamente.
Os cavalos tinham sido amordaçados, não fossem romper as cordas e desatar a correr para o Simoente a fim de matarem a sede. Melhor para nós; desse modo, não haveria relinchos. Enquanto eu procurava os cabrestos e saudava o meu novo trio de cavalos, Diomedes procedeu à colheita de tudo o que valesse a pena levar para o nosso acampamento; depois, colocou a carga no dorso de uma mula. E foi assim que regressámos à ponte do Simoente, onde o meu amigo de Argos juntou aos seus tesouros as jóias de Dólon.
Agamémnon não ficou nada satisfeito por eu o ter acordado. Mas desatou a rir-se mal lhe contei a história de Reso e dos seus cavalos.
- Percebo que queiras ficar com os filhos do alado Pégaso, Ulisses, mas...
e o pobre Diomedes? Com que é que ele fica?
- Estou satisfeito com o que tenho - respondeu o astuto Diomedes, com um ar muito nobre.
Sim, aquela era a resposta certa. De facto, porque haveria Diomedes de dizer a Agamémnon - que tinha um baú de guerra para encher - que acumulara uma fortuna formidável apenas numa noite?
A história dos cavalos de Resos era já o tema de todas as conversas quando, ao alvorecer, os nossos homens tomaram o desjejum; ficaram deliciados com a novidade e saudaram-me entusiasticamente quando passei com o meu novo trio de cavalos na direcção da ponte do Simoente, à frente mesmo de Agamémnon, que queria que Tróia visse.
Tróia viu e não gostou. A batalha foi sangrenta, crudelíssima. Agamémnon aproveitou uma oportunidade única e cavou uma profunda brecha na linha troiana, obrigando-os a retirar. Os nossos homens ficaram entusiasmados com a perspectiva de acabarem com eles e forçaram-nos a recuar até perto das muralhas de Tróia. Aí, porém, os Troianos, em muito maior número do que nós, voltaram a juntar-se e a organizar-se e a nossa sorte mudou por completo. De súbito, os reis começaram a ceder.
O primeiro foi Agamémnon, que nesse dia estava cheio de energia e de ânimo. Quando seguia ao longo da linha, na nossa direcção, abateu com uma lança um homem que tentou detê-lo, mas não viu o homem que vinha atrás e que cravou a sua lança na coxa do rei supremo. A ponta da lança era farpada, a ferída sangrava copiosamente; o nosso rei supremo viu-se forçado a deixar o campo de batalha.
Depois, foi a vez de Diomedes. Conseguiu atingir o elmo de Heitor com um dardo, deixando-o atordoado por um momento. Radiante, Diomedes avançou para desferir o golpe fatal enquanto eu me concentrava nos cavalos e no condutor de Heitor, procurando imobilizar o carro. Nenhum de nós viu a figura que se ocultava por detrás do carro até que ela se ergueu com o arco preparado para disparar, os dentes brancos cintilando num sorriso quando lançou a flecha. Esta quase se cravava no chão. Mas não era o chão o seu alvo: era o pé do meu amigo de Argos. Preso ao chão pela flecha, Diomedes amaldiçoou o archeiro e prometeu vingar-se dele. Páris - pois era esse o nome do archeiro - escapuliu-se num ápice. Não havia dúvida: Tróia também tinha um Teucro.
- Baixa-te e arranca-a! - gritei para Diomedes, correndo a protegê-lo com alguns dos meus soldados de ítaca.
Diomedes fez o que eu lhe disse enquanto eu brandia um machado que tirara a um morto. Não era a minha arma preferida; o machado era demasiado pesado e difícil de manejar; porém, para rechaçar um anel de inimigos, não havia melhor. Decidido a permitir que Diomedes recuasse em segurança, empunhei ferozmente a medonha arma até que o meu amigo conseguiu afastar-se, coxeando e cheio de dores, demasiado incapacitado para poder continuar num campo de batalha.
Nesse exacto momento, também eu fui atingido. Alguém arremessou uma lança e com tal pontaria que a maldita lança se cravou na barriga da minha perna, um pouco abaixo dos tendões do jarrete. Os meus soldados rodearam-me até eu conseguir arrancá-la, mas a ponta da lança era farpada e levou consigo um grande bocado de carne. Sangrando abundantemente, tive de perder um tempo precioso a estancar a ferida com ligaduras que fiz com a roupa de um morto.
Menelau e os seus espartanos chegaram entretanto para nos ajudar; a muito custo, consegui juntar-me a eles. Ájax apareceu também e ele e Menelau afastaram-se um pouco para que eu pudesse esconder-me atrás do carro de Menelau. Um guerreiro glorioso, Ájax! Com o sangue a ferver, ceifava tudo à sua volta com uma energia que eu nunca poderia ter. E foi assim que conseguiu que os Troianos recuassem. Um dos chefes troianos reagiu, fazendo avançar mais e mais homens e estacando assim o recuo. Por muitos inimigos que os nossos valorosos soldados e o poderoso Ájax conseguissem ceifar, havia sempre soldados troianos prontos a tomarem o lugar dos camaradas mortos, saltando para a batalha como os soldados saltando dos dentes do dragão.
Agradecendo aos deuses que Heitor tivesse desaparecido, tratei de fazer alguma coisa de útil, pedindo que se procedesse a uma concentração das nossas forças naquela área. Euripilo era o chefe que estava mais perto e não demorou, avançando por um dos lados: mesmo a tempo de apanhar com uma flecha de Páris num dos ombros. Macáon veio logo a seguir e teve a mesma sorte. Páris. Ah, o verme! Não desperdiçava flechas com soldados; escondia-se num sítio seguro e confortável e esperava que aparecesse um príncipe. Nisso divergia de Teucro, pois Teucro disparava contra qualquer alvo.
Por fim, não sei bem como, consegui chegar-me à retaguarda, onde encontrei Podalírio tratando de Agamémnon e Diomedes, que aguardavam desconsolados a evolução da lida, tão próximos da batalha quanto a sua ousadia permitia. Foi com horror que me viram chegar a mim, logo seguido de Macáon e Euripilo.
- Mas porque é que tu combates, meu irmão? - perguntou Podalírio, furioso, enquanto deitava Macáon no chão.
- Trata primeiro de Ulisses - disse o ofegante Macáon, cuja ferida sangrava lentamente.
E foi assim que a minha ferida foi tratada e ligada em primeiro lugar; Podalírio tratou depois Euripilo, preferindo cravar um pouco mais a flecha no ombro antes de tirá-la, pois temia que os danos fossem maiores se a arrancasse com uma força parecida com aquela com que a flecha se cravara.
- Onde está Teucro? - perguntei, afundando-me ao lado de Diomedes.
- Ordenei-lhe que abandonasse o campo de batalha - disse Macáon, ainda à espera da sua vez. - Por causa do golpe de Heitor, o ombro de Teucro inchou de tal maneira que, agora, mais parece a rocha com que Heitor o atingiu. Tive de drenar uma parte do fluido que se concentrou no inchaço. Tinha o braço completamente paralisado mas agora já consegue mexê-lo.
- As nossas hostes estão a minguar - disse eu.
- Demasiado - disse Agamémnon com um ar pesaroso. - Os soldados também já se deram conta disso. Não te apercebeste da mudança?
- Sim, apercebi-me - retorqui, levantando-me e experimentando a minha perna. - Sugiro que regressemos ao acampamento antes que o pânico tome conta dos homens. Os soldados não tardarão a retirar rumo à praia, mesmo que não haja ordens nesse sentido.
Apesar de ter sido eu o responsável pela retirada, nem por isso deixei de a considerar um rude golpe. Eram muito poucos os reis que restavam para controlar os homens; dos principais chefes, só Ájax, Menelau e Idomeneu permaneciam no campo de batalha. Uma secção da nossa linha rompeu-se; a brecha alargou com uma velocidade surpreendente. Inopinadamente, todo o exército virou costas e desatou a fugir para a segurança do acampamento. Eram tão estridentes os gritos de Heitor que conseguia ouvi-los do alto das nossas muralhas; pouco tempo depois, os Troianos mais pareciam cães esfomeados perseguindo uma presa. Os nossos homens estavam ainda a entrar no acampamento através da ponte do Simoente, com os Troianos atacando a sua retaguarda, quando Agamémnon, lívido de terror, deu as suas ordens. A porta foi fechada antes que o último - e o mais corajoso - dos homens conseguisse entrar. Tapei os ouvidos e fechei os olhos. A culpa é tua, Ulisses! Tudo por culpa tua!
Era demasiado cedo para que uma batalha terminasse. Heitor tentaria assaltar as nossas muralhas. Deambulando pelo acampamento, as nossas tropas demoraram algum tempo ajuntar-se e a entender que, agora, a sua tarefa consistiria em defender as fortificações. Escravos correram a aquecer caldeirões de água para derramar sobre as cabeças daqueles que tentassem escalar as muralhas; não nos atrevíamos a usar azeite a ferver, pois temíamos que as muralhas acabassem por arder. As pedras já se encontravam empilhadas ao longo das muralhas há vários anos, pois nós sabíamos prever as emergências.
Os Troianos, frustrados, concentraram-se ao longo da trincheira, os chefes rodando impacientes nos seus carros, exortando os homens a formarem de novo. Heitor continuava no seu carro dourado, com o seu velho condutor, Quebríones, controlando agora as rédeas. Apesar do renhido conflito, parecia tão erecto e confiante como sempre. Pois que parecesse. Pousei o queixo sobre as mãos enquanto os nossos homens começavam a preencher os espaços à minha volta no topo das muralhas e preparei-me para ver o que iria Heitor fazer para lançar o seu assalto. Porque, das duas uma: ou estava disposto a sacrificar muitos dos seus soldados ou tinha de definir um plano muito mais perspicaz do que o recurso à simples força bruta.
Narrado por Heitor
Encurralei-os dentro das suas próprias muralhas como se fossem ovelhas; a vitória, apertava-a já na palma da minha mão - e não me fugiria! Eu, que vivera toda a minha vida dentro de muralhas, sabia, muito melhor do que qualquer outro homem, como lançar um assalto efectivo a fortificações de todo o género. Em todo o mundo conhecido, só as muralhas de Tróia eram realmente invulneráveis. Aquele era o meu grande momento. Sentia já a glória de uma vitória sobre Agamémnon e jurava que, acontecesse o que acontecesse, faria com que esse rei arrogante conhecesse o desespero que nós experimentávamos desde o dia em que os seus mil navios haviam saído de Ténedo. Uma fileira de cabeças erguia-se já na patética muralha, enquanto eu inspeccionava as tropas do alto do meu carro, com Polidamas a meu lado. Quebríones fora buscar água para os cavalos.
- Que achas? - perguntei a Polidamas.
- Bom, é claro que não estamos diante de nenhuma Tróia... No entanto, estas muralhas apresentam alguns perigos. As duas passagens, tão longe uma de outra, foram uma medida inteligente. A trincheira e a paliçada também foram obra de peritos. Já te apercebeste do erro deles?
- Já. O espaço entre a muralha e a trincheira é demasiado amplo - respondi. - Usaremos as passagens deles, mas não para atacar as portas. Usá-las-emos para atravessar a paliçada e a trincheira. Depois, os nossos homens avançarão ao longo da trincheira a fim de atacarem a própria muralha. Esta é uma zona em que a extracção de pedra é muito difícil. Daí que eles tivessem de recorrer à madeira, excepto no que toca às torres de vigia e aos contrafortes.
Palamedes aquiesceu.
- Sim, eu faria exactamente o mesmo, Heitor. Mando homens a Tróia para trazerem combustíveis?
- Imediatamente - tudo o que possa arder, mesmo a vulgar gordura usada nos cozinhados. Enquanto tratas disso, convocarei uma reunião dos meus chefes, disse eu.
Quando Páris - o último a chegar, como sempre - apareceu, anunciei ao grupo o que tencionava fazer.
- Dois terços do exército penetrarão através da passagem do Simoente, um terço através da passagem do Escamandro. Vou dividir as tropas em cinco segmentos. Eu comandarei o primeiro, com Polidamas. Páris, tu ficarás com o segundo. Heleno, tu comandarás o terceiro, com Deífobo. Os nossos três segmentos dirigir-se-ão para o Simoente. Eneias, tu ficarás com a quarta secção e rumarás ao Escamandro. Sarpédon e Glauco seguirão também para o Escamandro.
Heleno estava radiante porque eu lhe dera o comando de um dos segmentos, preterindo Deífobo, o qual não conseguia decidir se estava mais furioso com essa desconsideração ou com o facto de Páris ficar a comandar a sua própria divisão. Eneias também não ficou muito feliz por eu o ter associado a Sarpédon e Glauco: para ele, era como se estivesse a considerá-lo um estrangeiro.
- Quando os homens chegarem às extremidades interiores das passagens, mudarão de rumo a fim de caminharem na direcção uns dos outros; aqueles que chegarem ao Simoente seguirão na direcção do Escamandro e vice-versa, até preencherem todo o espaço ao longo da muralha, entre a própria muralha e a trincheira. Entretanto, os não combatentes desmantelarão a paliçada e usarão as estacas para fazer escadas e achas para o fogo. O fogo será o nosso melhor instrumento. O fogo fará com que a muralha grega se desmorone. Por isso, a nossa primeira tarefa consistirá em pegar fogo à muralha, de tal modo que os defensores não consigam apagá-lo.
Entre os chefes, encontrava-se o meu primo Ásio, uma criatura insuportável pois tinha a mania de pôr sempre em causa as minhas ordens.
- Heitor - disse ele bem alto, para que toda a gente ouvisse -, não vais usar a tua cavalaria?
- Claro que não - retorqui, sem a menor hesitação. - De que nos serviria a cavalaria? A última coisa de que precisamos é de cavalos e de carros enfiados num espaço fechado.
- Então e não atacamos as portas?
- Ásio, os Gregos terão a maior facilidade em defender as portas.
- Essa agora ... ! - atirou-me Ásio com um ar desdenhoso. - Pois bem: deixa-me mostrar-te como é que se faz!
Antes que eu pudesse contrariá-lo, Ásio lançou-se numa corrida imparável, gritando para que os homens do seu esquadrão o seguissem nos seus carros. E lá foi ele na direcção da passagem do Simoente. Embora fosse uma passagem ampla, a verdade é que um trio de cavalos também ocupa muito espaço; os cavalos das pontas ficaram em pânico mal viram as estacas pontiagudas que se projectavam do fosso de cada lado da passagem; ao fim de pouco tempo, esse pânico comunicou-se também ao cavalo do meio. Num abrir e fechar de olhos, os três cavalos empinaram-se e pararam, lançando o caos entre os aurigas que vinham atrás de Ásio. Enquanto o condutor de Ásio fazia um esforço hercúleo para controlar os cavalos, as portas no final da passagem abriram-se um pouco. Pela bandeira, concluí que eram Lápitas; estremeci de medo. Ásio era um homem morto. Um dos dois chefes dos Lápitas arremessou a sua lança, que trespassou o peito do pobre fanfarrão. Sob o impacte da lança, Ásio deu um salto enorme no seu carro e foi esparramar-se em cima das estacas do fosso. O condutor do carro foi a vítima seguinte; os Lápitas esconderam-se atrás do carro e assim atacaram os que vinham atrás de Ásio. Não havia nada que eu pudesse fazer. Terminada a carnificina, os Lápitas retiraram em boa ordem e as portas do Simoente foram fechadas.
Agora, antes de fazer avançar os meus homens, teria de limpar a passagem do Simoente de todos aqueles cadáveres. Porém, Eneias, Sarpédon e Glauco demorariam ainda algum tempo a chegar à passagem do Escamandro - a qual, concluí com satisfação, não disporia de defensores. Com efeito, Aquiles era o homem que estava mais próximo das portas do Escamandro - e Aquiles recusara-se a cumprir o seu dever perante Agamémnon. Para ele, uma rapariga tonta era mais importante do que os seus concidadãos. Mas que farsante ... !
Os homens avançaram em passo de corrida e viraram para dentro ao longo da base da muralha, saudados por uma tempestade de lanças, flechas e pedras. Com os escudos sobre as cabeças, pouco sofreram com tais mísseis, enquanto se encaminhavam firmemente na direcção da passagem do Escamandro, onde as tropas estrangeiras começavam também a virar para dentro. Os não combatentes estavam já a desmantelar a paliçada de madeira, fazendo escadas com as estacas mais compridas e cortando as outras para que servissem de acendalhas para a fogueira. Azeite, pez e gordura dos cozinhados começavam já a chegar de Tróia quando tive a ideia de ordenar aos meus homens que construíssem estruturas sobre as quais poderiam colocar os seus escudos, servindo-lhes estes de telhado.
As fogueiras não tardaram a ser acesas; vi o fumo começando a subir na direcção dos rostos de súbito assustados ao longo do topo da muralha. Cascatas de água desciam do alto das muralhas, mas algumas das minhas coberturas tinham sido adaptadas de forma a protegerem as fogueiras, impedindo a sua extinção; por outro lado, o azeite, de mistura com a água, provocava uma fumarada horrenda, o que era, para nós, uma grande vantagem.
Tentámos escalar a muralha com as escadas, mas os Gregos eram demasiado astutos para permitirem que tal acontecesse. Ájax não parava ao longo da secção central, onde eu estava, atroando vigorosamente o seu grito de guerra e derrubando escadas com o poderoso pé. Um desperdício, enfím. Ordenei a cessação do assalto.
- Só vamos lá com o fogo - disse eu a Sarpédon, cuj as tropas já se tinham encontrado com as minhas.
As primeiras fogueiras - as da nossa secção - depressa pegaram, e com que fúria! Archeiros lícios mantinham as cabeças no parapeito baixo sob as coberturas, enquanto outros lícios e os meus troianos alimentavam as fogueiras.
- Deixa-me tentar o assalto às muralhas - pediu Sarpédon. Escudadas pela fumarada, as escadas foram encostadas à muralha e aí ficaram enquanto os archeiros de Sarpédon disparavam uma chuva de flechas na direcção dos defensores. Então, como que por magia, as plumas dos elmos lícios começaram a ondular no topo da muralha; logo se lhes deparou oposição. Ouvi um chefe grego pedir reforços, mas eu não estava à espera de Ájax e dos seus salaminianos. Ao fim de breves momentos, a pequena vitória transformou-se numa derrota fragorosa; corpos caíam aos nossos pés, gritos de guerra lícios transformavam-se em gritos de dor. E Teucro estava atrás do escudo do irmão, disparando os seus dardos, não para a confusão de homens que se encontrava no alto das muralhas, mas para nós, que estávamos em baixo.
Depois de um gemido sufocado ao meu lado, senti o peso de alguém que, ao cair, se agarrava desesperadamente a mim; ajudei Glauco a deitar-se na terra; tinha uma flecha espetada no ombro, apesar da armadura. A ferida era demasiado profunda. Olhei para Sarpédon e abanei a cabeça; da boca de Glauco saia já uma espuma rósea, sinal de morte iminente.
Sarpédon e Glauco eram como gémeos: haviam governado juntos e o seu amor permanecia incólume há muitos, muitos anos. A morte de um deles significaria por certo a morte do outro.
Os gritos angustiados de Sarpédon ouviram-se por um breve momento apenas; depois, Sarpédon pegou numa manta que cobria um soldado ferido, envolveu com ela o rosto e os ombros e avançou sem medo por cima de uma das fogueiras. Um pouco acima, havia uma corda suspensa de um gancho, uma corda em que os Gregos não tinham reparado, tal era a sua ânsia em afastarem os Lícios do topo das muralhas. Sarpédon agarrou-se à corda e içou o seu corpo com uma força que parecia sobre-humana, tão grande era a dor que sentia devido à morte de Glauco. A madeira chiou e rangeu, os toros enegrecidos começaram a abrir fendas e a partir-se; de súbito, uma secção enorme da muralha abateu-se diante dos nossos olhos. Os infelizes troianos que se encontravam debaixo dela morreram esmagados; os infelizes gregos que estavam no alto dessa secção afundaram-se tão rapidamente como a muralha; num instante, toda a secção central da minha linha foi varrida pela destruição. Através do buraco assim aberto, pude ver os altos edifícios de pedra e os alojamentos de madeira dos soldados, e, para lá das construções, as imensas filas de navios, e o cinzento Helesponto. Então, Sarpédon tapou-me a vista; lançou fora a manta, pegou na espada e no escudo e penetrou no acampamento grego, anunciando, com uivos medonhos, a morte dos seus inimigos.
Os Gregos dispersaram antes de nós avançarmos; os nossos homens eram como uma torrente imparável invadindo o acampamento inimigo. Momentos depois, porém, os Gregos voltaram ajuntar-se e enfrentaram-nos. Ájax estava presente e ele era uma peça decisiva na resistência; porém, naquele caos, nunca encontraríamos o espaço necessário para travarmos um duelo. Nenhuma das linhas da frente cedia um passo que fosse; Idomeneu e Meríona trouxeram os seus soldados cretenses e, nesse momento, o meu irmão Alcátoo encontrou a morte. Afastei as lágrimas dos meus olhos e amaldiçoei a minha fraqueza, ainda que esta fosse feita mais de fúria do que de mágoa. Com uma tal fraqueza, combateria ainda melhor.
Rostos apareciam e desapareciam - Eneias, Idomeneu, Meríona, Menesteu, Ájax, Sarpédon. Havia agora muitos troianos entre os lícios e os dardanianos; olhei de relance para trás e verifiquei que a brecha na muralha aumentara muito de tamanho. Só as plumas cor de púrpura obstavam a que matássemos os nossos próprios homens, tão apinhado era o campo de batalha, tão violentamente disputado era o terreno. Homens morriam estupidamente, homens morriam corajosamente; constantemente escorregávamos em seixos que nao eram seixos, mas sim cadáveres e, em certos sítios, o amontoado de homens era tal que os mortos ficavam em pé, as bocas escancaradas, o sangue jorrando fervilhante das feridas. Os meus braços e o meu peito estavam forrados de sangue de outros homens, todo o meu corpo escorria sangue.
Polidamas apareceu de repente a meu lado.
- Heitor, precisamos de ti. Um grande número dos nossos soldados já entrou no acampamento através da brecha, mas os Gregos são fortes. Por favor, segue para o Simoente o mais depressa possível!
Precisei de algum tempo para retirar sem semear o pânico entre aqueles que ficavam; por fim, porém, consegui recuar até encontrar a muralha grega, junto à qual segui, animando constantemente os homens, lembrando-lhes que a vitória só seria nossa quando queimássemos os mil navios e impedíssemos o inimigo de regressar à sua pátria.
A meio do meu caminho, houve alguém que me passou uma rasteira. Quase lhe cortava a cabeça; só não lha cortei porque, antes de desferir o golpe fatal, verifiquei que o inimigo era afinal Páris, o meu irmão, que estava perdido de riso!
Por todos os deuses! Não vês onde pões os pés? - perguntou-me ele.
Fitei-o abismado.
- Páris, tu não páras de me surpreender! Há homens a morrer por todo o lado e tu aqui escondido, seguro e confortável! Até tens tempo para te divertires, passando-me rasteiras!
A minha repreensão não chegava para apagar o sorriso dele.
- Bom, se pensas que te vou pedir perdão, estás muito enganado! Se não fosse eu, tu não estarias hoje aqui - essa é que é essa! Quem é que mandou os chefes gregos para a enfermaria com as suas flechas? Hã? Quem é que obrigou Diomedes a deixar o campo de batalha? Hã?
Icei-o pelos seus longos caracóis negros e pu-lo de pé.
- Então manda mais chefes para a enfermaria! - rosnei-lhe. - Porque não experimentas com Ájax? Hã?
Lançando-lhe um olhar prenhe de ódio, Páris escapuliu-se num instante; logo descobri que a parte da nossa linha que estava com problemas era precisamente aquela que sofria o ataque de Ájax e de um grande contingente de salaminianos.
Toda a frente da batalha mudara de direcção. Lutávamos agora por entre as casas, uma lida difícil e perigosa; cada edifício albergava gregos - cada edifício era uma emboscada. Porém, aqueles que se encontravam no terreno estavam a recuar na direcção da praia e dos navios. Ájax ouviu o meu grito de guerra e respondeu com o seu famoso «Ai! Ai!». Abrimos caminho por entre os corpos que se erguiam na constante refrega e, por fim, ficámos diante um do outro. A minha lança estava já pronta. Então, quando me preparava para lhe desferir o primeiro dos meus golpes, Ájax baixou-se subitamente e logo se ergueu com uma pedra enorme nas mãos, uma daquelas pedras que serviam de cunho para os navios que estavam na praia. A minha lança era inútil. Desfiz-me dela e empunhei a espada, contando com a minha velocidade, superior à dele, para o atingir primeiro. Ájax arremessou a rocha com toda a sua força e à queima-roupa. Senti uma dor dilacerante pois a pedra acertou-me em cheio no peito. Depois, caí inconsciente.
Das agitadas trevas da inconsciencia, emergi para um mundo de terrível sofrimento; senti o sabor do sangue na minha boca e vomitei, abri os olhos e vi sangue enegrecido no chão ao pé de mim e logo voltei a perder os sentidos. Quando de novo voltei a mim, a dor já não era tão forte; um dos nossos cirurgiões estava ajoelhado ao meu lado. Convoquei todas as minhas forças para me erguer, o que consegui com a ajuda do médico.
- Tens uma forte contusão ao nível das costelas e algumas veias rompidas, mas nada de mais sério, príncipe Heitor - disse-me ele. - Os deuses hoje estão connosco! - exclamei arquejante, apoiado ainda nele.
Quanto mais me movia, menor era a dor; continuei a mover-me. Alguns dos meus homens tinham-me levado para lá da passagem do Simoente e tinham-me deitado junto ao meu carro. Quebríones fitava-me com um sorriso imenso.
- Pensámos que estavas morto, Heitor.
- Leva-me para o campo de batalha - disse eu, subindo para o carro.
Não ter de fazer a pé aquele caminho era uma bênção; porém, mal cheguei à retaguarda, tive de descer. Julgando que eu estava morto, o meu exército começara a ceder; porém, logo que souberam que afinal eu estava vivo e que regressara à batalha, os homens ganharam novo ânimo e organizaram-se para resistir e avançar. Os Gregos, ao verem o meu rosto, devem ter sofrido um rude golpe. Dispersaram e fugiram pelos caminhos entre as casas até que um chefe que eu não conhecia conseguiu detê-los sob a proa de um navio que estava isolado dos outros, um navio que era certamente mais importante do que os outros, pois estava muito à frente da primeira fila de navios, uma fila aparentemente infindável. Dizimámos aqueles soldados gregos pois eles recusavam-se a recuar mais; agora, apenas Ájax, Meríona e uns quantos cretenses permaneciam no campo de batalha para nos enfrentarem.
A proa do navio isolado erguia-se sobre a minha cabeça; concluí que o êxito já não me fugiria quando Ájax se postou diante de mim e ergueu a sua espada - a minha espada, pois eu oferecera-lha. Investi e ele aparou brilhantemente o meu golpe; o nosso duelo voltava a ser travado, mas, desta feita, não teríamos espectadores, pois, à nossa volta, toda a gente combatia com igual ferocidade.
- De quem é o navio? - perguntei, ofegante.
- Pertenceu a Protesilau! - respondeu ele, tão ofegante como eu.
- Vou - incendiá-lo!
- Incendeio-te - eu - primeiro! Mais gregos apareceram para defender aquele que, sem sombra de dúvida, era para eles um precioso talismã; essa onda de homens acabou por me separar de Ájax. Alguns dos meus soldados da Guarda Real estavam agora comigo e os gregos que combatiam contra nós não tinham a qualidade dos salaminianos. Continuámos a avançar, derrubando inimigos atrás de inimigos. Voltei a ver Ájax, mas, desta feita, o grande guerreiro nada fez para que recuássemos. Com uma série de poderosos movimentos, conseguiu subir ao convés do navio de Protesilau, tão rápido e tão ágil como um acrobata. Aí, pegou numa comprida vara e fê-la girar em círculos lentos, derrubando todos os meus homens mal eles assomavam à coberta.
Quando o último grego a enfrentar-me morreu sob os meus golpes, empoleirei-me nos ombros de um soldado e escalei a proa do navio de Protesilau. Daí à coberta era um único salto. Diante de mim, Ájax continuava a desafiar-me, ainda invencível.
Examinámo-nos atentamente, cada um de nós sentindo nesse exacto instante toda a exaustão que a tremenda batalha em nós provocara. Abanando lentamente a sua enorme cabeça, como que para se convencer a si mesmo de que eu não existia, Ájax fez rodopiar a sua vara. Ergui a espada e enfrentei a vara com a lâmina e com tal êxito que depressa a parti ao meio. A súbita perda de equilíbrio quase fazia cair Ájax; endireitou-se, porém, logo procurando a espada. Avancei rapidamente, certo de que ele estava liquidado, mas, uma vez mais, Ájax provou-me que era um grande guerreiro. Em vez de me enfrentar, correu para a popa e, com toda a força que tinha nos músculos das pernas, saltou do navio de Protesilau para aquele que estava imediatamente atrás, no meIo da primeira fila de embarcações.
Abandonei o duelo. Havia uma parte de mim que amava aquele homem e estava certo de que ele também me amava. Amigos ou inimigos, haveria sempre entre nós uma profunda afeição. Eu sabia que os deuses não queriam que nos matássemos um ao outro; nós tínhamos trocado prendas no final de um terrível duelo.
Encostei-me à amurada e olhei para baixo: um mar de plumas cor de púrpura, um mar de troianos.Dêem-me um archote!
Um homem atirou-me imediatamente um archote. Apanhei-o, avancei para o mastro no meio dos ovéns e deixei que o fogo lambesse sôfrego aquelas cordas gastas, aquela madeira seca e rachada. Ájax observava-me do outro navio, os braços pendendo-lhe flácidos e impotentes junto ao corpo, as lágrimas deslizando-lhe pelas faces. O braseiro ateou num ápice; um lençol de fogo subiu o mastro até aos vaus reais e a coberta desatou a chorar lágrimas de fumo, devido a outros archotes que os homens enfiavam pelas aberturas destinadas aos remos. Corri de novo para a proa, ergui-me sobre ela.
- A vitória é nossa! - gritei. - Os navios estão a arder! Os homens repetiram o meu grito, avançando de novo para enfrentar os Gregos que se concentravam junto aos navios que descansavam na praia, atrás do solitário talismã de Protesilau.
Capítulo Vigésimo Sétimo
Narrado por Aquiles.Passei a maior parte do tempo no telhado da mais alta das casernas dos Mirmidões, mirando das alturas a planície para lá das nossas muralhas. Quando o exército dispersou e fugiu, eu vi; quando Sarpédon abriu a brecha na muralha, eu vi; quando os homens de Heitor se espalharam pelos caminhos do nosso acampamento, eu vi. E não quis ver mais nada. Ouvir Ulisses esboçando o seu plano era uma coisa. Ver o seu plano tornar-se realidade era insuportável. Regressei profundamente triste à minha casa.
Pátrocles estava sentado num banco junto à porta, o rosto lavado em lágrimas. Mal me viu, virou-me as costas.
- Vai ter com Nestor - disse-lhe eu. - Vi-o há pouco. Trazia consigo Macáon. Pergunta-lhe que notícias há de Agamémnon.
Um pedido sem sentido. As notícias, já eu as sabia. Mas pelo menos não teria de olhar para Pátrocles, nem teria de o ouvir rogar-me uma vez mais que mudasse de ideias. O clamor do conflito que grassava para lá da paliçada que encerrava os meus soldados estava ainda distante; a parte do acampamento junto ao Simoente era a mais assediada. Sentei-me no banco e esperei por Pátrocles.
- Que disse Nestor? No seu rosto só havia desprezo.
- A nossa causa está perdida. Ao fim de dez longos anos de trabalho e sofrimento, a nossa causa - está - perdida! E a culpa é toda tua! Euripilo estava com Nestor e Macáon. Tivemos um total de baixas impressionante e Heitor investe furiosamente. Nem Ájax consegue deter o seu avanço. Os navios acabarão por ser pasto das chamas.
Respirou fundo, mas logo prosseguiu.
- Se não tivesses hostilizado Agamémnon, nada disto teria acontecido! Tu sacrificaste a Grécia por causa da tua paixão por uma mulher insignificante!
- Porque não acreditas em mim, Pátrocles? - perguntei-lhe. - Porque estás contra mim? Por ciúme? Por causa de Briseida?
- Não, Aquiles. Apenas porque estou profundamente desiludido. Tu não és o homem que eu pensava que eras. Não é uma questão de amor. É uma questão de orgulho.
Não lhe disse aquilo que pensava dizer-lhe porque, entretanto, ouvi um grito imenso. Corremos para a nossa paliçada e subimos os degraus para ver o que se passava. O meu tormento acabara. Agora, agora já podia combater! Mas como explicar a Pátrocles que teria de ser ele, e não eu, a conduzir os homens da Tessália?
Mal descemos as escadas, Pátrocles ajoelhou na poeira do caminho.
- Aquiles, os navios vão arder todos! Se estás realmente decidido a não combater, então deixa-me sair e conduzir as nossas tropas! Tu sabes que eles odeiam estar aqui parados enquanto toda a Grécia morre! É o trono de Micenas que tu queres? É isso? Queres regressar a uma Grécia que, não dispondo de soldados, não estará em condições de resistir às tuas tropas?
O meu rosto retesou-se de raiva perante tais suspeitas. No entanto, consegui responder-lhe normalmente.
- Não nutro qualquer ambição nesse sentido, Pátrocles. O trono de Agamémnon não me interessa rigorosamente nada.
- Então deixa-me chefiar os nossos homens! Deixa-me levá-los para a praia, antes que Heitor incendeie todos os navios!
Aquiesci com um ar formal.
- Muito bem. Autorizo-te a comandar os homens. Compreendo o teu ponto de vista, Pátrocles. O comando é teu.
Mal acabei de dizer isto, dei-me conta de que o plano poderia ainda ser melhorado. Ergui por isso Pátrocles e disse-lhe: - Mas imponho uma condição. Envergarás a minha armadura, levando assim os Troianos a pensar que é Aquiles quem está a combater.
- Enverga-a tu e vem connosco!
- Não, Pátrocles, eu não posso fazer isso - retorqui. Conduzi-o imediatamente à armaria e vesti-lhe a armadura de ouro que pertencera a Minos e que o meu pai me dera. Era demasiado grande para ele, mas fiz tudo o que pude para que ela lhe assentasse bem, sobrepondo as chapas da frente e de trás da couraça, almofadando o elmo. As grevas chegavam-lhe às coxas, o que não era mau; com efeito, desse modo, protegê-lo-iam mais do que as suas próprias grevas. Desde que não se abeirassem demasiado dele, confundi-lo-iam com Aquiles. Consideraria Ulisses que a minha decisão equivalia a uma quebra do juramento? E Agamémnon? Bom, tanto pior se fosse essa a opinião deles. Eu faria tudo o que estivesse ao meu alcance para proteger de todo o mal o meu maior amigo - e amante.
As trombetas soaram; os Mirmidões e os outros soldados da Tessália formaram ao fim de pouco tempo - era óbvio que há muito que estavam prontos para se envolverem na tremenda refrega. Acompanhei Pátrocles até à zona onde as tropas se reuniriam, enquanto Automedonte corria a atrelar os meus cavalos; embora o carro de pouco servisse naquele campo de batalha tão apinhado, era necessário que toda a gente visse Aquiles. Toda a gente diria que aquele era Aquiles e não Pátrocles.
Mas... como era possível? Os homens saudavam-me com gritos ensurdecedores, olhavam para mim com o mesmo amor que sempre me haviam dedicado. Como era isso possível, se até mesmo Pátrocles se virara contra mim? Protegi os olhos e mirei o sol: pouco faltava para que se despedisse. Óptimo. O logro, assim, pouco tempo duraria. Pátrocles não correria perigo.
Automedonte estava pronto. Pátrocles subiu ao carro.
- Meu querido primo - disse-lhe eu, a mão no seu braço -, limita-te a expulsar Heitor do acampamento. Faças o que fizeres, não te atrevas a persegui-lo na planície! Entendido?
- Perfeitamente - respondeu ele, dando aos ombros para me afastar.
Automedonte fez avançar o meu carro na direcção da porta entre a nossa paliçada e o resto do acampamento, enquanto eu subia ao telhado da caserna para ver como tudo se passaria.
A batalha grassava agora diante da primeira fila de navios. Heitor parecia invencível. Uma situação que se alterou num instante quando quinze mil novos soldados avançaram sobre os Troianos, vindos do Escamandro, conduzidos por uma figura que envergava uma armadura de ouro e que vinha num carro revestido a ouro puxado por três cavalos brancos.
- Aquiles! Aquiles! Ouvi ambos os lados gritando o meu nome, uma sensação tão estranha quanto desconfortável. Mas foi o suficiente. No instante em que os soldados troianos viram a figura que vinha no carro e ouviram o meu nome, converteram-se de vitoriosos em derrotados. Fugiram. Os Mirmidões estavam sequiosos de sangue e lançavam-se com toda a sua fúria sobre os soldados que se deixavam ficar para trás, abatendo-os sem piedade, enquanto «eu» gritava o meu grito de guerra e incitava-os a prosseguir.
O exército de Heitor escapava, tanto quanto podia, pela passagem do Simoente. Nunca mais!, jurei, nunca mais um pé troiano pisaria o nosso acampamento! Nem mesmo o mais astuto dos ardis fabricado pela mente de Ulisses conseguiria convencer-me do contrário. Dei-me conta de que estava a chorar. Eu sabia por quem chorava - por mim, por Pátrocles, por todos os soldados gregos que tinham morrido. Ulisses conseguira levar Heitor a abandonar as muralhas de Tróia, mas o preço era medonho. A única coisa que podia fazer era rezar para que Heitor tivesse perdido pelo menos tantos homens como nós.
Ah, terrífica visão! Pátrocles perseguia já os Troianos ao longo da planície!
O meu coração quase se afundava no peito quando entendi qual era o seu objectivo! No interior do acampamento, o caos era tal que ninguém poderia aproximar-se dele o suficiente e constatar que Aquiles não era afinal Aquiles! Na planície, porém... - oh, tudo era possível! Heitor voltaria a reunir as suas forças e Eneias estava presente. Eneias conhecia-me. Ele conhecia o meu rosto e não a minha armadura.
De súbito, pareceu-me preferível ignorar tudo o que se passava. Deixei o telhado e fui sentar-me no banco à porta da minha casa, esperando que viesse alguém. O Sol estava prestes a pôr-se, as hostilidades cessariam. Sim, o meu amigo nada sofreria! Sobreviveria. Tinha de sobreviver!
Ouvi passos: o filho mais novo de Nestor, Antíloco. O pobre rapaz chorava e contorcia muito as mãos - haveria sinal mais claro? Tentei falar com ele, mas senti a língua presa ao céu da boca; tive de lutar comigo mesmo para lhe fazer a tão temida pergunta.
- Pátrocles? Pátrocles morreu? Antíloco rompeu a soluçar.
- Aquiles, o seu pobre corpo nu jaz na planície e as hostes troianas querem levá-lo - Heitor vestiu a tua armadura e exibe-a nas nossas barbas! Os Mirmidões estão inconsoláveis, mas não deixam que Heitor se aproxime do corpo, embora ele tivesse jurado que Pátrocles acabaria por servir de pasto aos cães esfomeados de Tróia!
Ao levantar-me, os meus joelhos cederam; caí por terra num ápice, contorcendo-me na poeira onde Pátrocles ajoelhara. Irreal, tudo irreal! E, no entanto, aquilo só poderia ser real - e bem real. Eu já estava à espera que aquilo acontecesse. Por um momento, senti o poder da minha mãe dentro de mim e ouvi bem nítido o marulhar do mar. Gritei o nome de Tétis, cheio de ódio por ela.
Antíloco puxou-me para si e deu-me o seu colo para que a minha cabeça repousasse. As suas lágrimas quentes caíam no meu braço, os seus dedos afagavam-me a nuca.
- Ele não conseguiu entender - murmurei. - Recusava-se a entender. Nunca me ocorreu isso... Como foi possível que ele - precisamente ele - pensasse que eu abandonaria a minha gente? Obrigaram-me a jurar que não revelaria o segredo a ninguém. Ele morreu a pensar que eu era mais orgulhoso do que Zeus. Ele morreu cheio de desprezo por mim. E agora... agora não lhe poderei explicar nada! Ulisses, Ulisses!
Antíloco já não chorava.
Que tem Ulisses a ver com isto tudo, Aquiles? Lembrei-me nesse instante do juramento, abanei a cabeça e levantei-me. Juntos, encaminhámo-nos para a porta da paliçada.
- Pensaste que eu ia matar-me? - perguntei-lhe.
- Só por um breve momento.
- Quem matou Pátrocles? Heitor?
- Heitor envergou a armadura de Pátrocles, mas há algumas dúvidas quanto ao homem que realmente matou o teu amigo. Quando os Troianos se viraram para nos enfrentarem, Pátrocles desceu do seu carro. E depois tropeçou.
- Foi a armadura que o matou. Era demasiado grande para ele.
- Nunca o saberemos, Aquiles. Pátrocles foi atacado por três homens. Foi Heitor quem lhe deu o último golpe, mas é possível que Pátrocles já estivesse morto. Mesmo assim ainda conseguiu fazer algumas vítimas entre os aliados troianos. Matou Sarpédon. Quando apareceu para ajudar os Troianos, Eneias reconheceu Pátrocles. Os Troianos ficaram furiosos com o embuste e reuniram de novo o seu exército. Então, Pátrocles matou Quebríones, o condutor de Heitor.
Pouco depois, desceu do carro e tropeçou. Antes que ele conseguisse levantar-se, atiraram-se a ele como chacais - Pátrocles não tinha nenhuma possibilidade de se defender. Heitor despiu-lhe a armadura, mas os Mirmidões impediram-no de levar o corpo. Ájax e Menelau continuam a combater para que o corpo de Pátrocles venha para o nosso acampamento.
- Tenho de ir ajudá-los!
- Não podes, Aquiles! O Sol está a pôr-se já. Quando chegares ao campo de batalha, já tudo estará terminado.
- Mas eu tenho de ajudá-los!
- Deixa Ájáx e Menelau tratarem de tudo. - Antíloco pôs a mão no meu braço e disse-me: - Tenho de te pedir perdão.
- Porquê?
- Porque duvidei de ti. Devia ter percebido que era Ulisses quem estava por detrás disto tudo.
Amaldiçoeei a minha língua. O meu juramento tinha de ser cumprido: mesmo quando eu era afectado pelo sortilégio.
- Não contes a ninguém o que se passou, Antíloco! Ouviste-me bem: a ninguém!
- Sim, Aquiles - disse ele. Subimos ao telhado e os nossos olhares logo se concentraram na faixa da planície onde se travava a batalha. Distingui facilmente Ájax e verifiquei que era ele quem estava a comandar agora as minhas tropas - que não cediam nem um palmo de terreno -, enquanto Menelau e outro que me pareceu ser Meríona levavam um corpo nu sobre um escudo para longe da refrega. Era Pátrocles que eles traziam! Os cães de Tróia não devorariam o meu amigo!
- Pátrocles! - gritei. - Pátrocles! Alguns dos homens ouviram, olharam para mim e apontaram. Gritei vezes sem conta o seu nome. Todo o exército ficou em silêncio. Então, ao longo do campo, ouviu-se o longo e áspero toque da trombeta da escuridão. Heitor, com a minha armadura de ouro cintilando fulva sob os últimos e ténues raios do Sol, conduzia já o seu exército de regresso a Tróia.
Deitaram Pátrocles num esquife improvisado, no meio do amplo espaço das assembleias diante da casa de Agamémnon. Menelau e Meríona, cobertos de sangue e imundície, estavam tão exaustos que mal se aguentavam de pé. Depois, Ájax abeirou-se de nós, num passo trôpego. Quando o elmo lhe caiu dos dedos agora despojados de vigor, não encontrou em si a força para se baixar e apanhá-lo. Fui eu quem lhe apanhou o elmo e o deu a Antíloco. Abracei o meu primo, uma forma de o ajudar a suportar com honra a exaustão e o desgosto, pois Ájax estava esgotado tanto de corpo como de espírito.
Os reis formaram um círculo para verem Pátrocles. As feridas dele haviam sido causadas pelos golpes mais vis: uma ferida debaixo do braço, onde havia uma abertura na couraça, outra nas costas e outra na barriga, onde a lança mergulhara tão profundamente que expusera as entranhas. Eu sabia que aquela última ferida fora causada por Heitor, mas estava certo de que fora o segundo golpe que o matara.
Uma das mãos pendia mole do esquife. Segurei-a entre as minhas e afundei-me no chão ao lado dele.
- Vem, Aquiles, vem - disse-me Automedonte.
- Não. O meu lugar é aqui. Cuida de Ájax por mim e diz às mulheres que venham lavar e vestir Pátrocles. O meu amigo permanecerá aqui até eu matar Heitor. Oiçam o meu juramento! Os corpos de Heitor e de doze jovens nobres troianos hão-de jazer aos pés de Pátrocles! O seu sangue chegará para pagar ao Guardador do Rio, quando Pátrocles lhe pedir para o levar para a outra margem!
Algum tempo depois, chegaram as mulheres para lavar Pátrocles. Lavaram-lhe o cabelo que o suor e a poeira emaranhara, fecharam as feridas com bálsamos e fragrantes unguentos, com uma esponja apagaram as marcas avermelhadas que as lágrimas haviam deixado à volta dos seus olhos cerrados. Só por isso já me sentia infinitamente grato: quando mo trouxeram, os seus olhos já estavam fechados.
Permaneci ao lado dele a noite toda, a sua mão nas minhas; a minha única emoção consciente era o desespero de um homem cuja derradeira memória de um ente querido era uma torrente de ódio num rosto inflexível. Duas sombras estavam agora sequiosas do meu sangue: Ifigénia e Pátrocles.
Ulisses veio mal o Sol nasceu, trazendo duas taças de vinho com água e uma bandeja de pão de cevada.
- Bebe e come, Aquiles.
- Não beberei, nem comerei, enquanto não tiver cumprido o juramento que fiz diante do corpo de Pátrocles.
- Ele agora já não sabe nem liga ao que tu possas ou não fazer. Se juraste matar Heitor, precisarás de todas as tuas forças.
- As minhas forças não soçobrarão. - Olhei à meia volta, piscando os olhos, só então me apercebendo de que não havia sinais de actividade em sítio nenhum. - Que se passa? Porque é que estão todos a dormir ainda?
- Heitor também teve um dia muito duro ontem. Um arauto veio há pouco de Tróia, pedindo um dia de tréguas para que possam chorar e enterrar os mortos.
A batalha só amanhã recomeçará.
- Se recomeçar! - atirei-lhe. - Heitor voltou para dentro da cidade - nunca mais sairá!
- Estás enganado - retorquiu Ulisses, os olhos cintilando. - Eu tenho razão, Aquiles. Heitor pensa que já nos subjugou e Príamo não acredita que tenciones voltar ao campo de batalha. O ardil com Pátrocles resultou. Heitor e o seu exército continuam na planície. Não chegaram a entrar na cidade.
- Então, amanhã, poderei matá-lo.
- Amanhã. - Fitou-me com um olhar cheio de curiosidade. - Agamémnon convocou um conselho para o meio-dia. As tropas estão demasiado cansadas para se porem a discutir como vai o teu relacionamento com Agamémnon. Espero por isso que estejas presente. Virás?
Estreitei a mão fria.
- Sim, irei. Automedonte tomou o meu lugar junto de Pátrocles para que eu pudesse assistir ao conselho. Trazia ainda vestido o meu velho saiote de cabedal, todo eu era terra, poeira, imundície. Sentei-me ao lado de Nestor, olhando-o de relance com uma questão muda que o velho logo entendeu; Antíloco estava presente. Tal como Meríona.
- Antíloco adivinhou, por causa de qualquer coisa que tu lhe disseste ontem - segredou-me o velho. - Meríona adivinhou porque ouviu as imprecações de Idomeneu durante a batalha. Decidimos que seria melhor confiarmos neles e prendê-los ao mesmo juramento que nós fizemos.
- E Ájax? Não adivinhou?
- Não.
Agamémnon estava seriamente preocupado.
As nossas baixas foram catastróficas - começou ele com um ar pesaroso. - Tanto quanto pude avaliar, contamos já com quinze mil mortos e feridos desde que a batalha começou.
Nestor abanou a sua cabeça branca, a barba sedosa e brilhante balouçando-lhe sobre as mãos.
- Catastrófico é um adjectivo muito suave! Ah, se ao menos nós tivéssemos Héracles, Teseu, Peleu e Télamon, Tideu, Atreu e Cadmo! Os homens já não são o que eram. Com ou sem mirmidões, Héracles e Teseu teriam destroçado todo o exército inimigo. - Limpou as lágrimas com os dedos repletos de anéis. Pobre velho. Perdera dois filhos no campo de batalha.
Por uma vez vi Ulisses irado. Levantou-se de um salto.
- Eu avisei-os! - exclamou ele com um ar feroz. - Avisei-os em termos muito claros de que teríamos de suportar duros revezes, de que teríamos de passar por um longo túnel de trevas antes de vermos a primeira luz da vitória! Nestor, Agamémnon, qual a razão dos vossos lamentos? Nós tivemos quinze mil mortos e feridos, Heitor teve vinte e um mil! Deixem-se de devaneios, por favor! Nenhum desses lendários heróis poderia ter feito aquilo que Ájax fez - aquilo que todos os homens aqui presentes fizeram! Sim, os troianos combateram bem! Estavam à espera de outra coisa? Mas é Heitor quem os mantém unidos. Se Heitor morrer, o ânimo dos troianos perecerá com ele. E onde estão os reforços deles? Onde está Pentesileia? Onde está Menão? Heitor não tem tropas frescas para levar para o campo de batalha amanhã, ao passo que nós temos quase quinze mil tessalianos, entre os quais sete mil mirmidões. Amanhã, vamos derrotar os troianos. Poderemos não entrar dentro da cidade, mas deixaremos o seu povo nas garras do mais profundo desespero. Heitor combaterá amanhã e Aquiles terá a sua grande oportunidade. - Olhou para mim com um ar satisfeito. -Apostei tudo o que tinha em ti, Aquiles. - Não duvido! - exclamou Antíloco, com uma ironia que era uma verdadeira farpa. - Talvez eu tenha percebido o teu plano porque não te ouvi propô-lo. Soube dele em segunda mão, através do meu pai.
Ulisses ficou de súbito muito atento, as pálpebras entrecerradas. -A pedra de toque do teu plano era a morte de Pátrocles. Porque insististe tanto na necessidade de Aquiles permanecer longe de tudo, mesmo depois de os Mirmidões terem saído para combater? Seria mesmo para que Príamo pensasse que Aquiles nunca se curvaria ao apelo da guerra? Ou seria para insultar Heitor, levando-o a enfrentar um homem inferior a Aquiles, ou seja, Pátrocles? Logo que assumiu o comando, Pátrocles era um homem morto. Heitor derrotá-lo-ia - isso era mais do que certo. E Heitor derrotou-o. Pátrocles morreu. Tal e qual como tu congeminaste, Ulisses.
Levantei-me num áPice; era como se as palavras de Antíloco tivessem aberto uma ferida imensa no meu cranio. As minhas mãos procuraram Ulisses, desejosas de lhe partirem o pescoço. Porém, nesse mesmo instante, caíram sem forças. Afundei-me na minha cadeira. Não fora Ulisses quem tivera a ideia de vestir Pátrocles com a minha armadura. Essa ideia fora minha, só minha. E quem poderia saber o que teria acontecido se Pátrocles tivesse corrido para a batalha sem qualquer disfarce? Não, eu não podia acusar Ulisses - a culpa era só minha.
- Estás certo e errado ao mesmo tempo, Antíloco - disse Ulisses, fazendo de conta que eu nem sequer me tinha mexido. - Como poderia eu saber que Pátrocles morreria? O destino de um homem na batalha não está nas nossas mãos. Está nas mãos dos deuses. Porque tropeçou Pátrocles? Não terá sido um dos deuses que apoiam Tróia quem o fez tropeçar? Eu não passo de um homem mortal, Antíloco. Não posso prever o futuro.
Agamémnon levantou-se.
- Gostaria de lembrar que todos nós jurámos que cumpriríamos o plano de Ulisses. Aquiles sabia o que estava a fazer quando pronunciou o juramento. Tal como eu. Tal como todos nós. Ninguém nos obrigou a jurar, ninguém nos enganou. Decidimos concordar com o plano de Ulisses porque não tínhamos uma alternativa melhor. Nenhum de nós conseguiria tão-pouco definir uma alternativa melhor. Já se esqueceram da raiva que sentimos quando Heitor estava em segurança dentro das muralhas de Tróia? Já se esqueceram de que é Príamo quem reina em Tróia, e não Heitor? Todo este plano foi concebido a pensar em Príamo, mais do que em Heitor. Nós sabíamos qual seria o preço. E decidimos pagá-lo. Não há mais nada a dizer.
Agamémnon fitou-me gravemente.
- Preparem-se para a batalha amanhã ao alvorecer. Aquiles: eu vou convocar uma assembleia pública e, diante dos nossos oficiais, devolver-te-ei Briseida. Jurarei também que não tive com ela nenhum relacionamento carnal. Entendido?
O rei supremo parecia um velho, de tão exausto que estava. A cabeleira que, dez anos antes, exibia apenas uns salpicos de branco, era agora percorrida por largas faixas grisalhas; de ambos os lados da barba corriam veios brancos. Apoiado em Antíloco, cansado e agitado, levantei-me e voltei para junto de Pátrocles.
Sentei-me na poeira junto ao esquife e peguei na mão dura e fria do meu amigo. A tarde passou como água caindo, gota após gota, no poço do tempo. A minha dor esbatia-se, mas a minha culpa nunca se esbateria. A dor é natural; a culpa, é um golpe que infligimos a nós mesmos. O tempo cura a dor; mas só a morte pode curar a culpa. Estes, e só estes, eram os meus tristes pensamentos naquela tarde.
O Sol punha-se já do outro lado do Helesponto, uma mancha suavemente líquida que tingia de rosa os céus. Só nessa altura alguém se atreveu a perturbar a minha imensa solidão. Esse alguém era Ulisses, o rosto obscurecido pelas sombras, os olhos muito fundos, as mãos como que sem vida junto ao corpo. Com um suspiro profundo, agachou-se na poeira ao meu lado, uniu as mãos sobre os joelhos e assim ficou, apoiado nos calcanhares. Por um longo tempo não trocámos palavra; o cabelo dele ganhava o tom das chamas sob os derradeiros raios do Sol, o seu perfil delineava-se, numa pureza de âmbar, contra a penumbra que sobre a terra caía. Parecia haver nele, pensei, qualquer coisa de divino.
- Que armadura vais envergar amanhã, Aquiles?
- A de bronze revestida a ouro.
- Uma boa armadura, sem dúvida, mas gostaria muito que usasses uma outra. - Fitou-me com um ar grave. - Diz-me, Aquiles: que sentimentos nutres por mim? Apeteceu-te estrangular-me quando o rapaz falou, não foi? Mas depois... depois mudaste de ideias...
- Sinto por ti o mesmo que sempre senti, Ulisses. Só uma geração futura será capaz de te julgar. Tu não pertences ao nosso tempo.
Baixou a cabeça, pôs-se a brincar com a poeira.
- Por minha causa, perdeste uma armadura preciosa. Heitor sentir-se-á todo ufano quando a envergar, esperando, como espera, eclipsar-te a todos os níveis. Mas eu tenho uma armadura de ouro que te assentará na perfeição. Pertenceu a Minos. Aceitas envergá-la?
Fitei-o com curiosidade.
- Como é que essa armadura chegou às tuas mãos? Ulisses estava a traçar rabiscos na poeira; por cima de um desenhou uma casa, por cima de outro um cavalo, por cima de um terceiro um homem.
- Listas de mantimentos. Nestor usa símbolos nas suas listas de mantimentos. - Franziu o sobrolho e apagou os desenhos com a palma da mão. - Não, os símbolos não chegam. Precisamos de algo mais - precisamos de algo que seja capaz de transmitir ideias, de pensamentos sem forma, de asas no interior da mente... Já ouviste por certo as histórias que se contam a meu respeito... Que eu não sou filho de Laertes? Que sou fruto dos amores entre Sísifo e a minha mãe?
- Sim, já ouvi falar disso.
- Essas histórias são verdadeiras, Aquiles. E ainda bem que são! Fosse Laertes meu pai e a Grécia teria ficado mais pobre... Só não reconheço publicamente a minha paternidade porque, se o fizesse, os nobres de ítaca retirar-me-iam o trono num abrir e fechar de olhos. Mas estou a divagar. Queria apenas dizer-te que a armadura em questão foi obtida por meios desonestos. Sísifo roubou-a a Deucalião de Creta e deu-a à minha mãe como prova do seu amor. Envergarias uma armadura que foi roubada?
Perfeitamente.
- Nesse caso, trá-la-ei ao alvorecer. Só mais uma coisa.
- O quê?
- Não digas a ninguém que fui eu que ta dei. Diz a toda a gente que é uma prenda dos deuses - que a tua mãe pediu a Hefaísto que a fizesse, durante a noite, nos seus fogos eternos, a fim de que tu pudesses levá-la para o campo de batalha, como convém ao filho de uma deusa.
- Se é isso que desejas, não direi outra coisa.
Dormi um pouco, afundado no chão, encostado à base do esquife. Um sono inquieto, atormentado. Ulisses acordou-me pouco antes da primeira luz da manhã e levou-me para a sua casa. Sobre uma mesa, via-se uma massa enorme, tapada por um manto imenso de linho. Destapei a armadura sem qualquer entusiasmo, imaginando que seria por certo uma boa armadura, embora sem nada de extraordinário - de ouro, sem dúvida, mas muito inferior àquela que Heitor agora usava. O meu pai e eu sempre consideráramos essa armadura a melhor de todas as que Minos envergara.
Talvez fosse, mas a verdade é que a armadura que Ulisses me deu era, sem sombra de dúvida, a melhor das duas. Bati com as juntas dos dedos naquele ouro imaculado e ouvi um som surdo, pesado, completamente diferente do som que produziria uma armadura com várias camadas de metal. Curioso, virei o escudo tremendamente pesado e descobri que não era igual aos outros escudos, habitualmente muito espessos e providos de várias camadas de metal. Não, naquele escudo parecia haver apenas duas camadas, uma chapa exterior'de ouro que cobria uma única chapa de um metal cinzento-escuro que, à luz das lamparinas, não emitia qualquer brilho ou reflexo.
Já tinha ouvido falar de um tal metal, mas só o vira na ponta da minha lança, a Velha Pélion: os homens chamavam-lhe ferro temperado. Nunca sonhara que um tal metal pudesse existir em quantidade suficiente para produzir uma armadura e um escudo com aquele tamanho. Todos os elementos tinham sido feitos com o mesmo metal; a camada inferior era de ferro temperado, a camada superior, de ouro.
- Foi Dédalo quem fez esta armadura, já lá vão trezentos anos - disse Ulisses. - Dédalo foi, em toda a história da humanidade, o único homem que soube temperar o ferro, que o soube transformar no cadinho, misturando-lhe areia; o ferro absorve alguma dessa areia e torna-se ainda mais duro do que o bronze. Dédalo reuniu grandes quantidades de ferro em bruto até dispor do suficiente para fazer a armadura; depois, com um martelo, aplicou o ouro sobre as chapas de ferro temperado. Quando uma lança atinge a superfície, o ouro pode ser alisado e polido, pois só o ferro é que sofre com o impacte.
- E pertenceu a Minos?
- Sim, a esse mesmo Minos que, com o seu irmão Radamanto e o teu avô Éaco, se encontra no Hades para julgar os mortos à medida que estes se vão reunindo nas margens do Aqueronte.
- Não sei como te agradecer, Ulisses. Quando a minha vida chegar ao fim e tiver de comparecer diante desses juízes, tira-me a armadura e dá-a ao teu filho.
Ulisses desatou a rir-se.
- Telémaco? Não, esta armadura não lhe serve... Dá-a antes ao teu filho.
- Vão querer enterrar-me com ela. Terás de ser tu a entregá-la a Neoptolemo. Quero ir para o túmulo vestido com uma simples túnica.
- Se é esse o teu desejo, ele será cumprido. Automedonte ajudou-me a envergar o vestuário da guerra, enquanto as mulheres se espalhavam pelos cantos da casa murmurando rezas e mágicas palavras destinadas a esconjurar o mal e a impregnar de poder a armadura. Para onde quer que fosse, o meu brilho era tão intenso como o de Hélios.
Agamémnon falou perante os oficiais reunidos em assembleia. Pareciam feitos de pedra todos aqueles rostos que o miravam. Depois, foi a minha vez de aceitar a imperial humilhação: num instante, Nestor apareceu com Briseida. Não vira ainda Criseida, mas não acreditava que tivesse sido enviada para Tróia. Após a assembleia, dispersámos para o desjejum: assim desperdiçávamos um tempo precioso.
De cabeça erguida, Briseida avançou a meu lado, silenciosamente. Parecia doente e cansada, mais abalada do que no dia em que comigo abandonara as ruínas de Lirnesso. No interior da paliçada mirmidã, passámos por Pátrocles; o esquife fora levado para ali por causa da assembleia. Estremecendo de horror, Briseida recuou mal viu o corpo do meu amigo.
- Vem - disse-lhe eu.
- Ele foi combater, apesar de tu não o quereres acompanhar?
- Sim. Heitor matou-o. Procurando nela um qualquer resto de doçura, fitei-a. Briseida sorriu e era puro amor aquilo que o seu sorriso me dizia.
- Meu querido Aquiles, estás tão cansado! Eu sei o que Pátrocles significava para ti, mas é tempo de secares as lágrimas.
- Morreu cheio de desprezo por mim. Renegou a nossa amizade.
- Então é porque não te conhecia verdadeiramente.
- Não, os motivos foram outros... Algo que não te posso explicar, Briseida.
- Não precisas de explicar nada. Para mim, Aquiles, tudo o que fazes está certo.
Saímos em passo de marcha pelas passagens do acampamento e formámos na planície orvalhada ao alvorecer. Estava um tempo ameno e a brisa era como uma carícia de lã cardada. Os Troianos formaram diante de nós, filas de homens a perder de vista - teriam por certo diante dos seus olhos um espectáculo idêntico àquele que nós víamos. A excitação era como que um punho enfiado na minha garganta, as juntas dos meus dedos, quando por mero acaso olhei para elas, estavam brancas, tal era a força com que agarrava a haste gasta e escura da minha Velha Pélion. Dera a Pátrocles a minha armadura, mas não a Velha Pélion.
Heitor surgiu retumbante, vindo da sua ala direita, num carro puxado por três garanhões pretos, vacilando um pouco devido aos movimentos do carro, envergando soberbamente a minha armadura. Reparei que havia juntado plumas escarlates às plumas douradas do elmo. Parou diante de mim; fitámo-nos sôfregos de sangue. O desafio era implícito. Ulisses ganhara a sua aposta. Apenas um de nós deixaria vivo o campo de batalha. Tanto eu como Heitor estávamos conscientes disso.
Singular, o silêncio que por um momento se abateu sobre o campo de batalha. Nenhum dos exércitos emitia um único som, nenhum cavalo resfolegava, nenhum escudo retinia, enquanto aguardávamos que soassem os tambores e as trombetas. Achava aquela nova armadura muito pesada; precisava de tempo para me habituar a ela, para saber manobrar com ela. Heitor teria de esperar.
Os tambores rufaram, as trombetas atroaram e Áiropos preparou a tesoura com que iria cortar os fios de muitas vidas. Mal eu gritei o meu grito de guerra, Automedonte fez avançar rapidamente o meu carro, mas Heitor mudou de direcção e internou-se nas suas próprias linhas. Bloqueado por uma massa efervescente de soldados de infantaria, não tinha a menor possibilidade de o perseguir. A minha lança erguia-se e baixava-se, encharcada em sangue troiano. Não sentia nada, a não ser o fascínio de matar. Naquele momento, até mesmo o juramento que fizera diante de Pátrocles perdera toda a sua importância.
Ouvi um grito de guerra conhecido e vi um outro carro procurando abrir caminho por entre a turba. Era Eneias, que investia friamente, armando-se de paciência pois era contra os Mirmidões que estava a combater e os Mirmidões sabiam esquivar-se aos seus golpes. Respondi-lhe com o meu grito de guerra. Ele ouviu-me, saudou-me e correu imediatamente para o duelo. Aparei com o escudo a sua primeira lança; senti até à medula a vibração do impacte, mas aquele mágico metal reduziria a nada todas as lanças: a de Eneias caiu por terra, com a ponta desfeita. A velha Pélion voou num belo arco por sobre as cabeças dos homens entre nós, imponente e precisa. Eneias viu a ponta aproximando-se da sua garganta, ergueu de repente o escudo e baixou-se. A minha querida lança trespassou o couro e o metal imediatamente acima da cabeça de Eneias, derrubou o escudo e prendeu o dardaniano debaixo dele. Empunhando a espada, abri caminho por entre os meus homens, decidido a alcançá-lo antes que Eneias conseguisse libertar-se. Os Dardanianos recuaram perante a nossa carga e o sorriso de triunfo desenhava-se já no meu rosto quando me vi envolvido numa repentina vaga de homens, esse frustrante e irritante fenómeno que por vezes se verifica no campo de batalha, quando a concentração de soldados é extrema. Foi como se, de súbito, uma onda enorme se tivesse levantado num mar calmo, precipitando-se sobre a linha de uma ponta à outra; homens chocavam uns contra os outros e caíam por terra como se fossem simples tijolos encostados uns aos outros que tivessem sido empurrados por uma mão qualquer.
Quase que levantado no ar, levado, como se fosse o destroço de um naufrágio, por aquela onda viva de homens, gritei desesperado porque havia perdido Eneias. Quando consegui libertar-me, já ele tinha desaparecido e eu encontrava-me a cem passos da frente. Ordenei aos Mirmidões que formassem adequadamente e só depois voltei à frente da batalha; quando lá cheguei, encontrei a Velha Pélion, prendendo ainda o escudo de Eneias ao chão. Arranquei a minha lança e atirei o escudo para um dos não combatentes que cuidavam da minha bagagem.
Pouco depois, mandei Automedonte e o carro para a retaguarda, deixando a Velha Pélion ao seu cuidado. Aquilo era trabalho para o machado. Ah, que magnífica arma num campo de batalha apinhado! Os Mirmidões mantinham-se ao meu lado. Éramos imbatíveis. Porém, por muito frenética que fosse a acção, nunca deixei de procurar Heitor - que encontrei, pouco depois de ter morto um homem que usava as insígnias dos filhos de Príamo. Não muito longe, profundamente abalado com o que sucedera ao irmão, Heitor observava-me. Os nossos olhos encontraram-se; o campo de batalha parecia ter deixado de existir. Encontrei claros vestígios de satisfação na sua expressão grave logo que nos fitámos pela primeira vez. Aproximámo-nos cada vez mais um do outro, abatendo os nossos inimigos com uma única ideia em mente: travarmos um duelo, abeirarmo-nos um do outro o suficiente para que pudéssemos combater. Então, no meio da turba apinhada, ergueu-se uma nova vaga de homens. Qualquer coisa, não sei o quê, esmagou-me um dos flancos e quase perdi o equilíbrio ao ser levado pela vaga para trás, cada vez mais para trás. Homens caíam e eram pisados e esmagados, mas não era por isso que eu chorava. Chorava porque perdera Heitor. Das lágrimas passei à fúria e a um frenesim assassino.
Esse furor desvairado só acalmou quando, à minha frente, não havia mais do que uma mancheia de plumas cor de púrpura, quando a erva pisada e dilacerada se tornou visível sob os seus pés. Os Troianos tinham desaparecido; os homens que eu abatia eram aqueles que tinham ficado para trás. A retirada revelava uma clara organização; os chefes troianos conduziam-na, de novo nos seus carros. Agamémnon deixou-os partir, limitando-se, por ora, a ordenar às suas linhas que voltassem a formar. O meu carro surgiu vindo de nenhures e eu saltei para dentro dele, juntando-me a Automedonte.
Procura Agamémnon - disse eu, ofegante, deixando cair o escudo com um suspiro de alívio. Uma maravilhosa protecção, mas demasiado pesada.
Todos os chefes estavam presentes. Parei o carro entre Diomedes e Idomeneu. Sentindo o sabor da vitória, Agamémnon voltara a ser o rei dos reis. Uma ligadura de linho cobria-lhe uma ferida no antebraço, da qual caíam lentas gotas de um tom carmim, mas Agamémnon parecia nem dar por isso.
- Eles estão a retirar - dizia Ulisses. - Contudo, nada indica que tencionem refugiar-se dentro da cidade - pelo menos por ora. Heitor crê que ainda tem hipóteses de vencer. Não precisamos de nos apressar. - Olhou de relance para Agamémnon com o ar de quem acabara de ter uma ideia brilhante. - Agamémnon: e se nós fizéssemos aquilo que fizemos durante nove anos? Ou seja: porque não dividimos em dois o nosso exército e tentamos abrir uma brecha irremediável nas hostes deles? A um terço de uma légua daqui, na direcção das muralhas da cidade, o Escamandro apresenta uma longa curva, uma espécie de laço. Heitor encaminha-se já para esse local. Se conseguirmos levá-los a espalharem-se pelo pescoço da curva, poderemos usar o Segundo Exército para empurrar pelo menos metade dos Troianos para a barriga da curva, enquanto o Primeiro Exército continuará a empurrar a outra metade na direcção de Tróia. Não conseguiremos fazer grande coisa com aqueles que fugirem para Tróia, mas poderemos massacrar aqueles que ficarem encerrados nos braços do Escamandro.
Era um plano excelente e Agamémnon apercebeu-se disso imediatamente.
- Concordo inteiramente, Ulisses. Aquiles e Ájax, levem as vossas unidades dos tempos do Segundo Exército e tratem da saúde aos troianos que conseguirem prender na curva do Escamandro.
- Só o farei se me garantires que Heitor não conseguirá fugir para a cidade retorqui eu, num tom ligeiramente insubordinado.
- De acordo - respondeu sem demora Agamémnon.
Caíram na armadilha como peixinhos do rio numa rede. Formámos diante dos troianos quando eles chegaram ao pescoço da curva do rio. Agamémnon carregou imediatamente com a sua infantaria, atacando as hostes centrais e dispersando-as rapidamente. As secções centrais do exército troiano não podiam retirar ordenadamente perante a imensa massa de homens que Agamémnon comandava. À esquerda, Ájax e eu aguentámos as nossas forças até que cerca de metade dos troianos fugitivos se deram conta de que haviam fugido para um beco sem saída. Depois, bloqueámos o único sítio por onde poderiam fugir. Juntei a minha infantaria e conduzi-a para a curva. Ájax fez o mesmo, mas do lado direito. Os Troianos entraram em pânico. Desesperados, não paravam de rodopiar, recuando cada vez mais até que as suas hostes de retaguarda se viram à beira do rio. O peso dos homens que continuavam a retirar diante das nossas tropas empurrou-os inexoravelmente para trás; como ovelhas à beira de um precipício, os homens que estavam na retaguarda começaram a cair nas poluídas águas do rio.
O velho deus Escamandro fez metade do trabalho por nós; enquanto Ájax e eu arrancávamos deles estridentes súplicas de piedade, o rio afogava-os às centenas. Do meu carro, pude ver as águas correndo mais claras e mais fortes do que era usual; o Escamandro não podia estar mais cheio. Aqueles que perdiam o pé na margem não tinham qualquer esperança de recuperar o equilíbrio e combater contra a corrente, pois a armadura e o panico impediam-nos de reagir como deveriam. Mas porquê aquela enxurrada? Porque corria o Escamandro tão cheio e tão forte? Não tinha chovido... Por um momento, espreitei o monte Ida; o céu sobre o Ida estava repleto de nuvens negras e havia cortinas opacas de chuva caindo como cutelos sobre os contrafortes para lá de Tróia. Um dilúvio tão violento que até' parecia que os montes haviam desaparecido.
Dei a Velha Pélion a Automedonte e desci do carro empunhando o machado. Quanto ao escudo, não podia levá-lo, pois era demasiado pesado. Teria de combater sem escudo e não podia contar com Pátrocles para me acompanhar. Porém, antes de avançar para a refrega, lembrei-me de chamar um dos não combatentes que tratavam das minhas bagagens; devia a Pátrocles os cadáveres de doze jovens nobres troianos. No meio da derrocada troiana, não seria difícil encontrá-los. Aquele desejo horrendo, irracional, de derramar o sangue de outros homens, voltou a invadir-me, e não conseguia encontrar troianos que chegassem para saciar esse desejo. Quando cheguei à margem do rio, não parei; caí sobre os poucos troianos aterrados que havia encurralado. O peso da armadura de ferro ancorou-me no meio da violenta corrente; continuei a desferir os meus golpes mortíferos, tingindo mais e mais de vermelho as águas do Escamandro.
Um troiano tentou travar comigo um duelo. Dizia chamar-se Asteropaio; pertencia pelo menos à alta nobreza de Tróia, pois usava uma armadura de bronze dourada. Partiu para o duelo numa posição vantajosa, pois encontrava-se na margem, ao passo que eu tinha água até à cintura e só dispunha do meu machado para enfrentar as suas muitas lanças. O seu erro foi pensar que a Aquiles faltava astúcia. Quando se preparava para arremessar o seu primeiro míssil, peguei no meu machado pela ponta do cabo e atirei-lho como se fosse um punhal. Asteropaio amedrontou-se tanto perante tal visão que falhou o alvo. O machado rodopiou, cintilando sob o sol intenso, e atingiu-o em cheio no peito, cravando-se violentamente na sua carne. O nobre troiano não viveu mais do que um instante, logo caindo à água como se fosse uma pedra.
Como queria recuperar o meu machado, avancei pelas águas na direcção dele e virei-o para cima. Porém, a cabeça do machado estava enfiada até ao cabo no peito do homem, o metal fendido da couraça emaranhado à volta dela. Tão concentrado estava naquela tarefa que nem liguei ao rugido surdo que os meus ouvidos haviam captado, tão-pouco senti a água erguendo-se bravia como um garanhão ainda pouco habituado às rédeas. Num abrir e fechar de olhos, fiquei com água pelas axilas e Asteropaio balouçava no rio, tão leve como um bocado de cortiça. Agarrei-lhe no braço e estreitei-o contra mim, usando o meu próprio corpo para o equilibrar, enquanto tentava retirar o machado. O rugido, agora, mais parecia um ribombar assanhado; tinha de lutar contra a violência da enxurrada se não queria perder o pé. Por fim, consegui arrancar o machado; imediatamente, enrolei a correia do cabo à volta do meu pulso, não fosse perdê-lo para o rio. O deus Escamandro berrava bem alto a sua fúria; dir-se-ia que preferia que o seu próprio povo o destruísse com os seus esgotos a que eu o poluísse com o sangue dos troianos.
Então, inopinadamente, uma parede de água abateu-se sobre mim como uma avalancha de neve. Nem mesmo Ájax ou Héracles teriam resistido a uma tão violenta investida! Ah, ali, ali! Um ramo de um olmo que se debruçava sobre as águas! Saltei para o agarrar. Os meus dedos, de início, encontraram apenas folhas, mas só pararam de lutar quando sentiram a solidez da madeira; o ramo curvou-se sob o meu peso logo que as minhas pernas voltaram a sentir a violência da torrente.
Por um instante, a parede de água pairou sobre mim como se fosse um braço líquido erguido pelo deus, um braço que o deus baixou depois sobre a minha cabeça com toda a fúria que residia no seu coração. Sorvi sôfrego o ar antes de o mundo se converter numa imensa massa líquida, antes de eu ser empurrado e puxado num sem-número de direcções por uma força muito superior à minha. O meu peito quase explodia, mas as minhas mãos agarravam-se ainda com firmeza ao ramo do olmo; desesperado, pensei no sol e no céu; dando-me conta da amarga ironia daquela situação - pois estava prestes a ser derrotado, não por um troiano, mas sim pelas águas de um rio - todo o meu ser chorou de raiva. O luto por Pátrocles e a matança de troianos haviam consumido muitas das minhas forças, além de que aquela armadura de ferro era um perigo de morte.
Supliquei a ajuda da dríade que vivia no olmo, mas as águas continuavam a cair implacáveis sobre a minha cabeça; então, a dríade do olmo, ou qualquer outra ninfa, ouviu-me, e a minha cabeça conseguiu emergir. Respirei sofregamente o ar da vida, sacudi a cabeça para que as águas do Escamandro não me turvassem mais a vista e olhei à minha volta desesperado. A margem que, momentos antes, estivera a escassos passos de mim, havia desaparecido. Agarrei-me melhor ao ramo do olmo, mas a dríade abandonou-me. O que restava da margem cedeu, deixando a descoberto as poderosas raízes da velha árvore. O meu corpo e o ferro que o envolvia constituiam uma carga demasiado pesada; a massa de folhas e de ramos toda se curvou sob esse peso e o olmo mergulhou nas águas; o clamor da enxurrada sufocaria por certo todos os gemidos de desespero da magnífica árvore.
Nem por isso larguei o ramo, perguntando-me se o Escamandro seria suficientemente forte para arrastar tudo aquilo na direcção do mar. Porém, o olmo permaneceu direito, com a copa erguida sobre as águas, uma represa que detinha todos os destroços que iam na direcção do nosso acampamento e da paliçada mirmidã. Corpos empilhavam-se contra a massa imensa da árvore como se fossem flores castanhas com gargantas carmesins, plumas cor de púrpura engrinaldavam o verde dos ramos, mãos flutuavam brancas e repugnantemente inúteis.
Larguei o ramo e tentei avançar para a margem do rio; tinha mais pé agora, visto que as terras e a árvore haviam cedido, mas não o suficiente. Vezes sem conta, a inexorável enxurrrada arrancou os meus pés à precária superfície constituída pelo fundo lodoso do rio; vezes sem conta, mergulhei na feroz torrente. Continuei, porém, a lutar, aproximando-me cada vez mais da margem. Consegui mesmo agarrar-me a umas ervas, mas logo estas se separaram do solo encharcado. Uma vez mais cedi à violência das águas, enleado e desesperado. Com a terra da antiga margem do Escamandro escorrendo-me dos dedos, ergui os braços aos céus e roguei ao senhor de tudo:
- Pai, Pai, deixa-me viver o suficiente para matar Heitor! Ele ouviu-me. Ele respondeu-me. De súbito, a sua medonha cabeça, que morava nas infinitas distâncias dos céus, baixou-se na direcção da terra que os humanos habitavam; por um breve instante, o deus omnipotente amou-me o suficiente para me perdoar o pecado e o orgulho, lembrando-se talvez de que eu era o neto do seu filho, Éaco. Senti a sua presença em todo o meu ser e julguei mesmo ter visto a sombra da sua mão monstruosa pairando negra sobre o rio. O Escamandro suspirou submisso perante o poder que governa tanto os deuses como os homens. Um momento antes, estivera a um passo da morte; agora, as águas do rio mais não eram do que gotas à volta dos meus tornozelos; com um salto, desviei-me do olmo, que se esbarrondava impotente na lama.
A margem oposta, mais alta, ruíra estrondosamente; o Escamandro dissipava a sua energia ao longo da estreita faixa líquida que trespassava a planície, uma bênção preciosa que o sequioso solo bebia de um só gole.
Com um passo vacilante, abandonei finalmente o leito do rio e sentei-me exausto sobre a erva encharcada. No céu imenso, o carro de Febo estava já para lá do seu zénite; tínhamos começado a combater no início da sua jornada, que chegara já a meio. Perguntando-me onde estaria o resto do exército, regressei à realidade, apercebendo-me, envergonhado, de que a minha ânsia de matar me levara a ignorar por completo os meus homens. Alguma vez aprenderia? Não seria essa ansia de matar uma parte da loucura que seguramente herdara da minha mãe?
Ouvi gritos. Os Mirmidões marchavam na minha direcção e, ao longe, Ájax voltava a formar as suas forças. Havia gregos por todo o lado, mas não se via um único troiano. Subi para o meu carro, sorrindo radiante para Automedonte.
- Leva-me a Ájax, meu velho amigo. Ájax estava de pé diante dos seus homens, com uma lança numa mão maciça, uma expressão sonhadora nos olhos. Desci do carro. Todo o meu corpo escorria água.
- Que te aconteceu? - perguntou-me.
- Estive a combater com o deus Escamandro.
- Bom, parece que venceste. O Escamandro acalmou.
- Quantos troianos sobreviveram à nossa emboscada?
- Não muitos - disse ele, muito sereno. - Entre os dois, dizimámos à volta de quinze mil troianos. Outros tantos, talvez, conseguiram apanhar o exército de Heitor. Fizeste um bom trabalho, Aquiles. Há em ti uma sede de sangue que nem eu conseguiria igualar.
- Preferia o teu amor a essa sede.
- É tempo de nos reunirmos com Agamémnon - disse ele, sem compreender as minhas palavras. - Eu hoje trouxe o meu carro.
Segui com ele no seu carro - bom, de facto, «carroça» seria uma palavra mais apropriada, visto que tinha quatro rodas - enquanto Teucro foi no meu carro com Automedonte.
- Algo me diz que Príamo ordenou que abrissem a Porta Ceia - disse eu, apontando para as muralhas.
Ájax duvidou. Porém, já bastante perto das muralhas, verificámos que era eu quem tinha razão. A Porta Ceia estava aberta e o exército de Heitor entrava na cidade à frente de Agamémnon, que pouco podia fazer perante a multidão concentrada à volta da entrada.
- Que Hades os leve! Heitor refugiou-se no interior das muralhas! - rosnou Ájax.
- Heitor pertence-me a mim, Ajax. Tu já tiveste a tua oportunidade.
- Eu sei, primo. Abrimos caminho por entre os homens de Agamémnon. Como de costume, o rei supremo estava com Ulisses e Nestor. E furioso.
- Estão a fechar a porta - disse eu.
- Heitor apinhou-os tão bem que não nos foi possível obrigá-los a virarem-se na direcção contrária - tal como não tivemos qualquer possibilidade de tentar um assalto. Dois destacamentos decidiram permanecer cá fora. Diomedes está a combater contra eles até obter a sua submissão - disse Agamémnon.
- E Heitor?
- Julgo que entrou. Ninguém o viu.
- Miserável! Ele sabia que eu o queria para mim! Outros começaram entretanto a aparecer: Idomeneu, Menelau, Menesteu, Macáon. Juntos, vimos Diomedes pôr termo à resistência daqueles que, voluntariamente, haviam permanecido no exterior - homens sensatos, pois renderam-se quando viram o fim próximo. Admirando a sua coragem e disciplina, Diomedes decidiu não os matar, fazendo deles seus prisioneiros. Só então veio ter connosco, um júbilo extremo estampado no rosto.
- Quinze mil troianos morreram junto ao Escamandro - disse Ájax. -Ao passo que nós não perdemos mais de mil homens - disse Ulisses. Os soldados que descansavam atrás de nós soltaram um imenso suspiro de alívio. Ao mesmo tempo, do alto da torre de vigia, veio um grito tão desvairado que os nossos sorrisos logo se esbateram.
- Olhem! - apontou o dedo magro e trémulo de Nestor. Virámo-nos para ver. Heitor estava encostado aos painéis de bronze da porta, o escudo descansando contra a porta, duas lanças na sua mão. Envergava a minha armadura de ouro, com a pluma escarlate entre a plumagem cor de púrpura do elmo, e, no brilhante boldrié púrpura que Ájax lhe dera, tremeluziam as ametistas. Eu, que nunca me vira com aquele vestuário de guerra, concluí que a armadura de ouro assentaria magnificamente em qualquer homem que a envergasse - desde que tivesse corpo para a vestir, o que era, manifestamente, o caso de Heitor. Mas não de Pátrocles. Quando ajudara o meu amigo a vesti-la, deveria ter-me apercebido de que estava a condená-lo a uma cilada fatal.
Heitor pegou no escudo e avançou alguns passos.
- Aquiles! - chamou. - Fiquei cá fora porque temos um duelo a travar! Olhei para Ájax, que aquiesceu. Peguei no meu escudo e na Velha Pélion, dei o machado a Automedonte. Combater com um machado contra um homem como Heitor seria um grave insulto.
O meu coração martelava na garganta, impelido por um júbilo e uma excitação imensos. Deixei para trás os reis e avancei na direcção dele com um passo cadenciado, como um homem caminhando para o sacrifício; não ergui nenhuma lança, ele também não. Parámos a três passos um do outro, cada um de nós decidido a descobrir que espécie de homem era o outro, nós que nunca tínhamos estado mais perto um do outro do que a distância que uma lança pode alcançar. Tínhamos de falar antes que o duelo começasse e abeirámo-nos tanto um do outro que quase podíamos tocar-nos. Olhei para o inabalável negrume dos seus olhos e logo me dei conta de que Heitor era feito da mesma matéria que eu. Com uma única e importante diferença, Aquiles: o espírito de Heitor não tem qualquer mácula. Ele é o guerreiro perfeito.
Amava-o muito mais do que me amava a mim mesmo, do que amava Pátrocles ou Briseida ou o meu pai, pois Heitor era eu próprio noutro corpo; Heitor era o arauto da morte, quer fosse ele a dar-me o golpe fatal, quer eu resistisse mais alguns dias até que outro troiano qualquer pussesse termo à minha vida. Um de nós tinha de morrer naquele duelo, o outro morreria pouco tempo depois, pois assim fora decidido no momento em que os fios dos nossos destinos haviam sido entrelaçados.
- Todos estes anos, Aquiles... - começou ele e logo se calou, como se não conseguisse exprimir através das palavras aquilo que sentia.
- Heitor, filho de Príamo, daria tudo para que pudéssemos ter sido amigos. No entanto, a guerra que entre nós se ergue não pode ser apagada.
- Antes a morte às mãos de um inimigo do que o fim às mãos de um amigo - disse ele. - Quantos pereceram junto ao Escamandro?
- Quinze mil. Tróia cairá.
- Só depois da minha morte. Os meus olhos não verão esse desfecho.
- Nem os meus.
- Nós nascemos para a guerra, unicamente para a guerra. O desfecho da guerra não nos interessa - e agrada-me que assim seja.
- O teu filho tem idade para te vingar, Heitor?
- Não, não tem.
- Nesse caso, disponho já de uma vantagem sobre ti. O meu filho virá a Tróia para me vingar, enquanto que Ulisses fará com que o teu filho não viva o suficiente para chorar o facto de ser ainda uma criança pequena e não poder vingar o pai.
O seu rosto todo se franziu.
- Helena avisou-me que devia ter muito cuidado com ele. Ulisses é filho de um deus?
- Não. É filho de um vilão. Creio que ele encarna o espírito da Grécia.
- Gostaria de poder avisar o meu pai da importância de Ulisses.
- Não viverás para o fazer.
- Pode ser que te vença, Aquiles...
- Se venceres, Agamémnon dará ordens para que te abatam. Calou-se por um momento, perdido em reflexões.
- Alguém chorará a tua morte? Mulheres? Um pai? -Alguém chorará por mim depois de morto. E, nesse momento, o nosso amor queimava mais intensamente do que o nosso ódio; estendi a minha mão rapidamente, antes que as fontes desse ardor admirável pudessem secar. Com a sua mão, Heitor envolveu também o meu pulso.
Porque ficaste para me defrontar? - perguntei, segurando-lhe o pulso.
Os dedos dele apertaram com mais força ainda; o sofrimento ensombrava-lhe o rosto.
- Como poderia eu refugiar-me na cidade, Aquiles? Como poderia eu encarar o meu pai, sabendo que milhares e milhares de troianos morreram devido à minha imprudência e estupidez? Deveria ter retirado para Tróia no dia em que matei o teu amigo, aquele que envergou esta armadura. Polidamas avisou-me, mas eu ignorei as suas palavras. Eu queria defrontar-te. Foi por isso - só por isso -que mantive o meu exército na planície. - Recuou, libertando o meu braço, o seu rosto de novo o rosto de um inimigo. - É muito bela essa tua armadura de ouro. Julgo que é de ouro maciço. É demasiado pesada para ti, Aquiles. A minha é muito mais leve. Proponho-te, por isso, que façamos uma corrida antes que as nossas espadas se encontrem.
Mal isto disse, Heitor desatou a correr, deixando-me plantado onde estava por um momento, antes de me lançar na sua perseguição. Uma ideia astuta mas errada, Heitor! Porque haveria eu de tentar apanhar-te? Terias de virar-te e enfrentar-me não muito longe dali... A um quarto de légua da Porta Ceia, na direcção do nosso acampamento - a direcção que ele tomou -, erguiam-se as muralhas troianas; o exército grego não o deixou correr mais.
Depressa recuperei o fôlego; quem sabe, talvez o combate contra o velho Escamandro me tivesse dado um segundo fôlego. Heitor virou-se, eu parei.
- Aquiles! - gritou. - Se eu te matar, juro-te que devolverei aos teus homens o teu corpo imaculado! Jura que farás o mesmo comigo se for eu a morrer!
- Não! Eu jurei que ofereceria o teu corpo a Pátrocles! Um estranho redemoinho de vento cercou-me de repente a cabeça, a poeira do chão infiltrava-se nos meus olhos. Heitor estava já a erguer o seu braço, a Velha Pélion largava já a minha mão. Heitor arremessou com violência a sua lança, que atingiu fragorosamente o centro do meu escudo, ao passo que a Velha Pélion caiu molemente aos meus pés. Heitor lançou o seu segundo míssil antes que eu conseguisse baixar-me para apanhar a Velha Pélion. O caprichoso vento voltou a varrer tudo à minha volta. Não cheguei a apanhar a Velha Pélion. Heitor empunhou a sua espada e carregou. Via-me perante um dilema muito claro: ou ficava com o escudo e protegia-me de um adversário brilhante, ou largava-o e combatia sem qualquer protecção. A armadura era suportável, mas o escudo era demasiado pesado. Por isso, larguei-o de imediato e enfrentei-o com a minha espada. Mesmo a meio de uma investida, Heitor era capaz de parar; e largou também o seu escudo.
Quando as nossas espadas se encontraram, descobrimos o infinito prazer de um combate perfeito. Com a minha espada, detive a violência fatal da sua lâmina; os nossos braços erguiam-se firmes e desferiam ferozes golpes e nenhum de nós cedia um palmo de terra que fosse; recuámos no mesmo momento e girámos em círculo, cada um de nós procurando uma abertura. As espadas assobiavam uma canção de morte enquanto esculpiam o ar. Olhei de relance para o seu braço esquerdo quando ele investiu, mas o seu golpe rompeu o cabedal que me cobria a coxa e dilacerou a carne que havia por baixo. Sentindo os dois a mesma ânsia de sangue, nenhum de nós parava para atentar nas respectivas feridas; estávamos demasiado ávidos de um desfecho sangrento. Golpe após golpe, as espadas erguiam-se cintilantes, desciam violentas, deparavam-se-lhe a lâmina uma da outra, e voltavam de novo ao princípio.
Procurando uma abertura, tratei de me mover cautelosamente. Heitor era um pouco mais baixo e menos corpulento do que eu - portanto, teria de haver certamente uma falha qualquer na minha armadura, um sítio qualquer em que Heitor não estava adequadamente protegido. Mas onde? Cheguei-me quase ao seu peito, mas ele afastou-se rapidamente - e, nesse momento, quando ergueu o braço, reparei que a couraça não chegava a roçar a base do seu pescoço. Por outro lado, o elmo não descia o suficiente para tapar essa pequena porção do seu corpo. Recuei, obrigando-o a seguir-me, manobrando para alcançar uma melhor posição. E foi nesse preciso momento que a irritante fragilidade dos tendões do meu calcanhar direito me fez tropeçar, ainda que não chegasse a torcer o pé. Apesar de todo o horror que senti, verifiquei ao mesmo tempo que o meu corpo conseguira compensar a fragilidade do calcanhar, mantendo-se direito. No entanto, todo o esforço que tive de fazer para me manter de pé deixou-me à mercê da espada de Heitor.
Imediatamente, o herdeiro de Tróia deu-se conta de que aquela era a sua grande oportunidade. Num ápice, correu para mim com a velocidade de uma serpente no momento do derradeiro ataque, a lâmina erguida bem alto para me desferir o golpe fatal, a boca aberta num desvairado grito de júbilo. Investi nesse mesmo momento. De algum modo, o meu braço suportou o poder maciço do seu braço quando a espada desceu sobre mim. A espada dele chocou com a minha com um clangor imenso e logo saltou para o lado. Então, a minha lâmina, sem qualquer vacilação, ergueu-se para se enterrar no lado esquerdo do pescoço de Heitor, entre a couraça e o elmo.
Levando consigo a minha espada, Heitor caiu tão rapidamente que não pude sequer ajudá-lo a deitar-se no chão. As minhas mãos largaram o punho da espada como se ele, de repente, queimasse como fogo. Aos meus pés jazia Heitor: a ferida era fatal, mas restava-lhe ainda um nada de vida. Os enormes olhos escuros estavam fixos em mim, dizendo-me que sabiam da morte, que aceitavam o fim. A lâmina dilacerara por certo todos os vasos sanguíneos que encontrara e cravara-se no osso; porém, como permanecia enterrada na carne, Heitor não exalara ainda o último suspiro. O herdeiro de Tróia moveu as mãos lentamente, convulsivamente, até que elas se enclavinharam na aguçada lâmina. Aterrorizado com a possibilidade de ele arrancar a espada antes de eu estar pronto - alguma vez estaria pronto? -, ajoelhei a seu lado. Heitor não se movia agora e a sua respiração era cada vez mais pesada e difícil e as juntas das suas mãos estavam brancas, tão extrema era a força com que agarravam a espada, e, pelos dedos lacerados, o sangue escorria abundantemente.
- Combateste bem - disse eu. Os seus lábios moveram-se; virou a cabeça um pouco para tentar falar comigo e o sangue jorrou violento. Com as minhas mãos cobertas de sangue, amparei-lhe a cabeça. O elmo rolou e a sua trança preta caiu sobre a poeira, a ponta já desenredada.
- O meu maior prazer teria sido combater a teu lado e não coNtra ti - disse-lhe eu; faria tudo o que estivesse ao meu alcance para satisfazer os teus últimos desejos. Sim, faria tudo. Ou quase tudo.
Os olhos dele brilhavam e sabiam. Um fino rio de sangue escorria-lhe do canto da boca; o tempo dele estava a escoar-se rapidamente e eu não conseguia suportar a ideia de que ele ia morrer.
- Aquiles? Quase não consegui ouvir o meu nome. Baixei-me, encostei o ouvido aos seus lábios.
- Diz.
- Dá o meu corpo... ao meu pai... Quase tudo, mas não isso.
- Não posso, Heitor. Jurei que daria o teu corpo a PátrocLes.
- Dá o meu corpo... ao meu pai... se o deres a Pátrocles... o teu corpo... será devorado... pelos cães de Tróia.
- O que tem de ser, será. Eu jurei, Heitor.
- Então... acabou-se... tudo... Heitor contorceu-se com uma força que só os deuses lhe poderiam ter dado e as suas mãos cravaram-se ainda mais na lâmina; num derradeiro esforço, arrancou a espada. Os olhos dele perderam num ápice todo o brilho, a garganta rompeu num estertor, uma espuma rósea fervilhava à volta das suas narinas. Nesse instante morreu.
Com a cabeça dele ainda entre as minhas mãos, ali fiquei ajoelhado e imóvel. O mundo inteiro caiu de súbito no mais profundo dos silêncios. As fortificações de Tróia pareciam tão mortas como Heitor. Do exército de Agamémnon, nas minhas costas, também não vinha um único murmúrio. Quão belo era Heitor, o meu gémeo troiano, a minha outra metade! E quão terrível, quão lancinante, era a minha dor!
-Porque o amas, Aquiles, se foi ele qUem me matou? Levantei-me de um salto, o coração martelando desvairado. A voz de Pátrocles falara dentro de mim! Heitor estava morto, eu jurara matá-lo, e agora - agora, em vez de me sentir exultante, eu chorava! Chorava! Enquanto Pátrocles continuava à espera de que eu lhe pagasse a travessia do Rio!
Os meus movimentos mataram o silêncio. Na torre de vigia, ouviu-se um medonho uivo de desespero. Era Príamo, amaldiçoando a morte do filho que mais amava. Outros imitaram-no; o ar encheu-se das lamentações histéricas das mulheres, dos gritos que os homens imaginavam chegar aos ouvidos dos deuses, das punhadas que homens e mulheres davam no peito, produzindo um som que se assemelhava ao dos tambores fúnebres; e, atrás de mim, o exército de Agamémnon erguia-se num alarido incessante, aclamando Aquiles.
Como um selvagem, desatei a despir Heitor, sufocando a odiosa tristeza que impregnava o meu coração, arrancando de mim o instinto que me levava a chorar a morte de um inimigo, enquanto amaldiçoava todos os elementos da armadura que ia desmembrando. Quando terminei, os reis aproximaram-se e formaram um círculo à volta do corpo nu de Heitor. Agamémnon fitava o rosto morto com um sorriso de escárnio. Ergueu a sua lança e enterrou-a no fLanco de Heitor; todos os outros o imitaram, cravando no indefeso guerreiro os golpes que, fosse ele vivo, nunca lhe teriam desferido.
Enojado, virei-lhes as costas - talvez assim pudesse esfriar um pouco a minha raiva e secar as lágrimas. Quando me voltei, descobri que só Ájax se coibira de ultrajar o corpo de Heitor. Como podiam os homens chamar-lhe brutamontes se, entre todos os presentes, só ele compreendera? Brutalmente, afastei Agamémnon e os outros todos.
- Heitor pertence-me. Peguem nas vossas armas e vão-se embora! De súbito envergonhados, afastaram-se. Mais pareciam uma matilha de cães furtivos, desejosos de devorarem a refeição roubada, mas impedidos de o fazerem porque eu os enxotara.
Retirei o boldrié púrpura da sua fivela na couraça e peguei no meu punhal. Depois, rasguei as correias das botas e prendi os tornozelos de Heitor com o cabedal tingido e incrustado de jóias do boldrié, enquanto ÁJax, impassível, assistia à destruição da sua prenda. Automedonte surgiu com o meu carro; prendi o boldrié à traseira do carro.
- Desce - disse eu a Automedonte. - Eu próprio conduzirei o carro.
Os meus três cavalos brancos sentiam o cheiro da morte e não queriam avançar; porém, logo que enrolei as rédeas à volta da cintura, os animais acalmaram. Vezes sem conta passei sob a torre de vigia. As muralhas de Tróia gritavam de dor.
O exército de Agamémnon gritava de júbilo.
A trança de Heitor desfez-se na terra encharcada até se transformar num informe emaranhado cinzento; os braços deslizavam moles pelo chão, abertos para trás. Por doze vezes vergastei os cavalos entre a torre de vigia e a Porta Ceia, exibindo a esperança morta de Tróia sob as suas próprias muralhas, proclamando a inevitabilidade da nossa vitória. Depois, só parei na praia.
Pátrocles jazia amortalhado no seu esquife. Dei três voltas à praça e só então desci do carro e cortei com o punhal as amarras do boldrié. Pegar na forma flácida de Heitor era fácil; no entanto, e não sei porquê, arremessá-la para o chão, deixá-La como um resto amorfo aos pés do esquife, revelou-se a mais difícil das tarefas. Apesar disso, consegui executá-la. Briseida afastou-se espavorida. SenteI-me no banco que ela deixara, a cabeça entre os joelhos, e de novo rompi num choro incontrolável.
- Aquiles, vem para casa - pediu ela. Decidido a dizer-lhe que não, ergui a cabeça. Também ela sofrera; não podia permitir que sofresse mais. Levantei-me, lavado ainda em lágrimas, e com ela segui para a minha casa. Sentou-me numa cadeira e deu-me um lenço para limpar a cara, uma bacia para lavar o sangue que me tingia as mãos, vinho para que eu me recompusesse. Não sei como, conseguiu tirar-me a armadura de ferro e ouro, após o que me tratou da ferida que eu tinha na coxa.
Depois, tentou despir-me a protecção almofadada, mas eu impedi-a.
- Deixa-me em paz - disse-lhe.
- Tens de tomar banho, Aquiles. Deixa-me lavar-te.
- Não posso lavar-me enquanto Pátrocles não tiver sido enterrado.
- Pátrocles converteu-se no teu espírito mau - disse ela serenamente - e isso é escarnecer do que ele foi em vida.
Com um irado olhar de censura, abandonei imediatamente a minha casa. Encaminhei-me, não para a praça onde Pátrocles jazia, mas para os seixos da praia e aí caí como se fosse apenas mais um seixo.
o meu sono foi um transe de uma paz absoluta até ao momento em que, no informe abismo em que eu morava, uma alvura imensa, como que de filamentos feita, veio ter comigo, cintilando de uma luz sobrenatural, as trevas do abismo pairando por entre os débeis filamentos. Essa imensidão de branco, vinda das mais extremas lonjuras, aproximava-se cada vez mais do centro da minha mente, ganhando forma e opacidade à medida que ia entrando dentro de mim, até que, ao penetrar o ceRNe do meu espírito, assumiu a sua derradeira forma. Os inflexíveis olhos azuis de PátroCles fixavam a minha nudez. A sua terna boca ganhara a dureza do metal, a dureza que eu encontrara na nossa despedida, e a sua cabeleira loura estava raiada de vermelho.
Aquiles, Aquiles - sussurrou ele numa voz que era a voz dele e que, ao mesmo tempo, era uma outra voz, lúgubre e gelada -, como podes tu dormir se eu não fui ainda inumado, se eu não pude ainda atravessar o Rio? Liberta-me, Aquiles! Liberta-me do meu barro! Como podes tu dormir se eu não fui ainda inumado?
Estendi-lhe os meus braços, rogando-lhe que me compreendesse, tentando explicar-lhe por que razão o deixara substituir-me à frente dos meus homens, balbuciando explicações umas atrás das outras. Abracei-o e os meus dedos abraçaram o vazio; a forma que era Pátrocles esbateu-se e escoou-se na escuridão até que o último som da sua estranha voz se dissipou, até que o derradeiro fio da sua luminescência se apagou. Nada! Nada! Gritei. E acordei ainda a gritar, debatendo-me com violência, agarrado e acalmado por uma dúzia dos meus soldados. Afastando-os impacientemente, avancei trôpego por entre os navios, a luz cinzenta do alvorecer guiando os meus passos. Os homens que o meu grito acordara perguntavam uns aos outros que ruído horrível fora aquele.
o vento da noite desnudara Pátrocles, atirando para a poeira da praça o manto que o cobria; os mirmidões que formavam a sua guarda de honra não se tinham atrevido a aproximar-se para tapar o meu amigo. Por isso, mal entrei cambaleante na praça, foi Pátrocles quem eu vi. Dormindo. Sonhando. Tão em paz, a encarnação da bondade. Um sósia de Pátrocles. Eu tinha acabado de ver o verdadeiro PátroCles e os seus lábios tinham-me dito que ele nunca me perdoaria. Aquele coração que a mim se entregara tão generosamente desde os dias da nossa adolescência partilhada estava agora tão frio e tão duro como mármore. Nesse caso...
nesse caso, por que razão era o rosto do sósia tão terno, tão radioso de bondade? Poderia um tal rosto pertencer à sombra que me atormentara durante o sono? Seria possível que os homens mudassem tanto depois de mortos?
o meu pé tocou em gelo; rompi nuM estremecimento incontrolável ao ver o cadáver de Heitor no sítio onde o deixara na noite anterior, as pernas torcidas como se estivessem partidas, a boca e os olhos escancarados, a carne branca sem vida exibindo os cortes róseos de uma dúzia de feridas, a ferida do pescoço tão aberta como as guelras de um peixe.
Virei costas aos meus mortos ao dar-me conta de que os mirmidões se encaminhavam na minha direcção, acordados pelos gritos tresloucados do seu chefe.
Eram conduzidos por Automedonte.
- Aquiles, chegou a hora de enterrar Pátrocles.
- Há muito que o devíamos ter feito. Numa jangada conduzimos Pátrocles à outra margem do Escamandro; depois, envergando o nosso vestuário de guerra, levámo-lo sobre o seu escudo. Eu ia à frente, segurando a sua cabeça na palma da minha mão direita. Todo o exército se espalhara pelos penhascos e pela praia num raio de duas léguas, para ver os mirmidões conduzindo Pátrocles ao seu túmulo.
Penetrámos na gruta e deitámo-lo suavemente no carro funerário de marfim. Pátrocles envergaria no túmulo a armadura que vestira no momento da sua morte; o seu corpo estava coberto de cachos dos nossos cabelos; as suas lanças e todos os seus bens pessoais foram colocados em trípodes de ouro ao longo das paredes pintadas. Olhei de relance para o teCto, perguntando-me quanto tempo faltaria para que também eu fizesse daquele túmulo a minha morada. Não muito, diziam os oráculos.
o sacerdote colocou a máscara de ouro sobre o seu rosto e atou os fios sob a cabeça, colocou as mãos enluvadas de ouro sobre as suas coxas, os dedos entrelaçados sobre a espada. Cânticos foram entoados, libações derramadas para o chão do túmulo. Então, um a um, os doze jovens troianos foram erguidos sobre uma enorme taça de ouro assente num trípode, aos pés do carro funerário, e as suas gargantas cortadas. Selámos a entrada do túmulo e regressámos ao acampamento, à praça das assembleias defronte da casa de Agamémnon, onde se realizavam os jogos fúnebres. Fui buscar as minhas presas e suportei a agonia de ter de as exibir perante os vencedores. Por fim, enquanto os outros festejavam, voltei sozinho para a minha casa.
Heitor jazia agora na poeira à saída da minha casa, para onde fora levado depois de termos retirado Pátrocles do seu esquife; a memória daquela aparição no meu sonho quase me levara a sepultá-lo com Pátrocles, como um cão rafeiro aos pés de um herói; no entanto, no derradeiro instante, não conseguira fazê-lo. quebrara o juramento que fizera ao meu mais velho e querido amigo - ao meu amante! - e ficara eu com Heitor. Pátrocles já tinha a travessia paga: doze jovens nobres troianos. Um preço suficientemente alto.Bati as palmas; as criadas vieram a correr. -Aqueçam água, tragam os óleos sagrados, mandem chamar o embalsamador. Quero o príncipe Heitor preparado para ser sepultado.
Levei o corpo para um pequeno armazém junto à minha casa e deitei-o numa laje alta o bastante para que as mulheres pudessem cuidar dele. Mas fui eu quem lhe endireitou os membros, fui eu quem lhe fechou os olhos. Os olhos voltaram a abrir-se, muito lentamente, cegos. Um horrendo espectáculo se seguiu, o trabalho do embalsamador. o esvaziamento do cadáver, a pele cobrindo nada. Enquanto a tudo assistia, pensava no momento em que aquele homem faria o mesmo do meu corpo.
Briseida estava sentada à minha espera, curvada numa cadeira. Olhou de relance para mim, mas, por um momento, nada disse. Depois, com uma voz neutral, atreveu-se: - Tenho a água pronta para o teu banho e há comida e vinho. Tenho de acender as lamparinas, a noite vem aí.
Ah, se ao menos a água tivesse o poder de lavar as manchas que corroem o espírito de um homem! o meu corpo estava de novo limpo - mas não o meu espírito.
Briseida sentou-se no divã defronte do meu enquanto eu me convencia a comer qualquer coisa, a saciar a minha sede. Sentia-me como se, durante anos, tivesse andado a correr como um louco.
Então, ela usou essa mesma palavra: louco. Disse-me:
- Aquiles, porque te comportas como um louco? o mundo não vai acabar só porque Pátrocles morreu. HÁ pessoas que estão vivas e que te amam tanto como ele te amava. Automedonte. Os mirmidões. Eu.
- Vai-te embora - disse-lhe eu, farto.
- Irei quando acabar. Aquiles: para curares as tuas feridas, só há um remédio. Deixa de servir a Pátrocles e devolve Heitor ao seu pai. Não tenho ciúmes, nunca tive. o facto de tu e Pátrocles terem sido amantes não me afectou, tal como não afectou o meu lugar na tua vida. Mas Pátrocles tinha ciúmes e os ciúmes deixaram-no cego. Crês que ele pensava que tu tinhas traído os teus ideais. Porém, para Pátrocles, a verdadeira traição foi o facto de me teres amado. Foi aí que tudo começou. Depois disso, aos olhos de Pátrocles, tudo o que fizesses estaria errado. Não estou a condená-lo - estou apenas a dizer a verdade. Ele amava-te e sentiu que, amando-me, tu traíras o seu amor. E se tinhas traído o seu amor, então nunca poderias ser a pessoa que ele pensava que eras. Era preciso que ele encontrasse em ti defeitos. PátrocLes precisava de encontrar razões para a devastação que produziras nele.
- Não sabes do que estás a falar - disse-lhe eu.
- Sei, sim, Aquiles. Mas não era de Pátrocles que eu queria falar. Queria falar-te de Heitor. Como podes fazer isto a um homem que te defrontou com tanta coragem e que morreu com tanta honra? Devolve-o ao pai, Aquiles! Não é o verdadeiro Pátrocles que te persegue, mas sim o Pátrocles que tu construíste para instilares em ti mesmo a peçonha da loucura! Esquece PátrocLes! No fim de tudo, ele revelou que, afinal, não era teu amigo.
Esbofeteei-a com tal violência que BrisEida caiu no chão. Horrorizado, levantei-a, deitei-a e verifiquei, aliviado, que não perdera a consciência. Avancei trôpego para uma cadeira, afundei-me nela, pus a cabeça entre as mãos. Nem Briseida escapava àquela loucura - e era loucura! Como curá-la? Como expulsar de mim a minha mãe?
De repente, senti qualquer coisa envolvendo-me as pernas, puxando debilmente pela bainha do meu saiote. Tomado de terror, ergui a cabeça para ver que nova aparição decidira acossar-me. Confuso, fitei a cabeça branca e os traços abatidos, deformados, de um homem muito velho. Era Príamo! Não poderia ser outro senão Príamo! Príamo ali! Quando ergui os cotovelos dos meus joelhos, ele agarrou-se às minhas mãos e desatou a beijá-las, as lágrimas caindo sobre a mesma pele que o sangue de Heitor tingira de vermelho.
- Devolve-me o meu filho! Devolve-me o meu filho! Não deixes que os cães o devorem! Não o deixes sozinho e profanado! Não lhe negues o luto que lhe é devido! Devolve-me o meu filho!
Olhei para Briseida, que se soerguera no divã, os olhos enevoados de lágrimas.
- Vem, Príamo, senta-te - disse eu, erguendo-o e sentando-o na minha cadeira. - Não é próprio de um rei, suplicar de joelhos. Senta-te.
Automedonte apareceu à porta.
- Como é que ele chegou aqui? - perguntei-lhe, abeirando-me dele.
- Numa carroça puxada por uma mula e conduzida por um rapaz idiota, uma pobre criatura que só diz disparates. O exército está ainda a festejar, o guarda que estava na passagem era um mirmidão. O velho disse que queria falar contigo. A carroça estava vazia e nenhum deles estava armado, de modo que o guarda deixou-os entrar.
- Vai buscar lenha para o fogo, Automedonte. Não digas a ninguém que o velho está aqui. Avisa o guarda e agradece-lhe por mim.
Enquanto esperava pelo fogo - estava muito frio - sentei-me ao pé de Príamo e peguei nas suas mãos deformadas. Estavam geladas.
- Precisaste de muita coragem para vires ao nosso acampamento.
- Não, nenhuma - respondeu ele. Os olhos escuros, remelosos, fitaram os meus. - Outrora - disse-me ele -, governei um reino feliz e próspero. Até que cometi um erro. O erro estava dentro de mim. Dentro de mim... Os Gregos foram enviados pelos deuses para me punirem. O meu orgulho tinha de ser castigado. A minha cegueira tinha de ser castigada. - O lábio tremia-lhe, a humidade que lhe cobria os olhos dava-lhes um brílho novo. - Não, não precisei de coragem nenhuma para vir até aqui. Heitor foi o preço mais elevado que tive de pagar.
- O preço mais elevado - disse eu, incapaz de o não dizer - será a queda de Tróia.
- A queda da minha dinastia, talvez, mas não a queda da cidade. Tróia é maior do que a minha dinastia, mesmo agora.
- Tróia, a cidade, cairá.
- Bom, Aquiles, quanto a isso divergimos. Mas espero que não haja entre nós divergências quanto às razões da minha vinda. Príncipe Aquiles, dá-me o corpo do meu filho. Pagar-te-ei tudo o que pedires.
Não quero que me pagues nada, rei Príamo. Podes levá-lo - disse-lhe eu.
Príamo caiu de joelhos pela segunda vez e de novo me beijou as mãos; a minha carne toda se arrepiava. Acenando para Briseida, libertei-me das mãos de Príamo.
- Senta-te e come comigo enquanto preparam Heitor. Briseida, cuida do nosso visitante.
Saí para falar com Automedonte.
- O boldrié de Ájax - disse-lhe eu - pertencia a Heitor, ao contrário da armadura. Vai buscá-lo, Automedonte, e leva-o para a carroça.
Quando regressei, encontrei Príamo recuperado, conversando todo contente com Briseida; ocorrera nele uma daquelas estranhas mudanças de disposição que são características dos muito velhos. Ouvi-o perguntar a Briseida se gostava da vida que levava comigo, ela que nascera na Casa de Dárdano.
- Estou satisfeita, rei Príamo - disse ela. - Aquiles é um bom homem, não há nele nada de ignóbil. - Curvou-se um pouco, perguntou num murmúrio: Rei Príamo, porque é que ele pensa que vai morrer em breve?
- Os destinos de Aquiles e Heitor estão ligados - retorquiu o velho rei.
Foram os oráculos que o disseram.
Quando me viram, mudaram de assunto, como seria de esperar. Jantámos depois e descobri que estava esfomeado, mas obriguei-me a comer tão devagar como Príamo e a não beber demasiado vinho.
Depois do jantar, conduzi-o à sua carroça. Jazia já nela o corpo de Heitor, coberto por um manto. Príamo não quis ver o corpo do filho. Subiu para a carroça, para junto do pobre idiota, e logo se afastou a caminho da passagem do nosso acampamento. Ia tão direito e orgulhoso como se estivesse a conduzir um carro de ouro maciço.
Briseida estava à minha espera com a cabeleira desprendida, uma túnica folgada caindo-lhe até aos pés. Fui direito à nossa cama enquanto ela apagava as lamparinas.
- Estás tão cansado que nem te despes? Tirou-me o colar e o cinto, despiu-me o saiote, deixando-os no chão. Exausto, deitei-me de costas e ergui os braços e deixei-os repousar sobre a minha cabeça. Briseida subiu para a cama, sentou-se ao meu lado, debruçou-se sobre mim e pos-se a brincar, enfiando os punhos nas minhas axilas. Sorri para ela, de súbito tão feliz e despreocupado como uma criança pequena.
- Nem força tenho para te afagar o cabelo - disse-lhe eu.
- Então deixa-te estar quieto e dorme. Eu estou aqui.
- Estou demasiado cansado para dormir.
- Então descansa. Eu estou aqui.
- Briseida, promete-me que não me deixarás nunca. Nem mesmo quando o meu fim chegar.
- Quando o teu fim chegar? A sua expressão risonha logo se dissipou; estava debruçada sobre mim, mas eu quase não lhe via os olhos, pois, em todo o quarto, a única lamparina acesa estava bem longe de nós. Com um imenso esforço, ergui os braços e amparei a sua frágil cabeça com as minhas mãos, tal e qual como fizera com Heitor no momento da sua morte.
- Ouvi o que perguntaste a Príamo e ouvi a resposta dele. Sabes muito bem o que quero dizer, Briseida.
- Recuso-me a acreditar! - exclamou ela.
- Há certas coisas a que um homem é condenado no próprio dia em que nasce e essas coisas são-lhe anunciadas. O meu pai a nada me condenou, mas o mesmo não posso dizer de minha mãe. A minha presença em Tróia significaria necessariamente a minha morte. E, agora que Heitor morreu, Tróia cairá. A minha morte é o preço que é preciso pagar pela queda de Tróia.
- Aquiles, não me deixes nunca!
- Daria tudo para não te deixar nunca, mas é impossível... Por um longo tempo Briseida ficou quieta e calada, os olhos fixos na minúscula chama que crepitava na concha da lamparina, a respiração rítmica e vagarosa. Por fim, disse-me:
- Ordenaste que Heitor fosse preparado para o enterro antes de vires ter comigo esta noite.
- É verdade.
- Porque não mo disseste? Se me tivesses informado da tua decisão, eu nunca teria dito aquilo que disse.
- Talvez as tuas palavras fossem necessárias, Briseida. Eu bati-te. Um homem não deve nunca bater numa mulher ou numa criança, ou em qualquer criatura mais fraca do que ele. Quando os homens baniram a Velha Religião, os deuses deram-lhes o poder na terra. Contudo, os homens teriam de cumprir certas cláusulas: essa era uma delas.
Ela sorriu. -Tu não bateste em mim, mas sim no teu demónio, e, ao bater-lhe, extirpaste-o de ti. O resto da tua vida pertence-te a ti, não a Pátrocles, e isso é motivo de sobra para que eu me sinta muito, muito alegre.A exaustão que sentia desapareceu num ápice; ergui-me sobre um cotovelo para olhar para ela. A minúscula lamparina teria sido amável para qualquer mulher; porém, como Briseida não tinha nenhuma imperfeição, a escassa luz dava-lhe a aura de uma deusa, brunia a sua pele pálida de um ouro desmaiado e enriquecia o fogo tremeluzente do seu cabelo e dava aos seus olhos um toque de âmbar líquido. Os meus dedos hesitantes tocaram a sua face e traçaram uma linha que termínou perto da sua boca, no sítio em que a força da minha mão deixara um inchaço. O pescoço dela estava envolto em sombras, os seios deixaram-me como louco, os pequenos pés eram o limite do meu mundo.
E porque admitira finalmente que precisava desvairadamente dela, encontrei em Briseida coisas que estavam muito para além dos meus sonhos. Se, no passado, tentara conscientemente agradar-lhe, agora, só pensava nela como uma extensão do meu próprio ser. Dei comigo a chorar; o cabelo dela ficou molhado sob o meu rosto, as mãos dela acalmaram-se e procuraram as minhas mãos e cerraram-se nelas numa paz dolorosa, e tão cedo não se largaram, as nossas mãos sobre as nossas cabeças na almofada partilhada.
Heitor habitava de novo o palácio dos seus antepassados, embora desta vez não o soubesse. Através de Ulisses, ficámos a saber que Príamo ignorara as pretensões dos seus filhos mais velhos e escolhera Troilo, ainda um rapaz, como seu novo herdeiro. Protestavam os Troianos que Troilo não atingira ainda a maioridade - um termo que nós não conhecíamos nem usávamos.
Com efeito, à decisão de Príamo deparara-se forte oposição; o próprio Troilo suplicara ao rei que desse o título a Eneias. Ao ouvir tal, Príamo lançara-se numa diatribe contra o dardaniano que só terminara quando Eneias abandonara indignado a Sala do Trono. Deífobo também estava furioso; tal como o jovem sacerdote Heleno, que recordou ao pai o oráculo segundo o qual Troilo só salvaria a cidade depois de ter atingido a maioridade. Príamo respondeu que Troilo havia já chegado à maioridade, mas Heleno manteve as suas súplicas. Que não demoveriam Príamo. Troilo acabou mesmo por ser declarado herdeiro de Tróia. E nós, na praia, começámos a afiar as nossas espadas.
Durante doze dias, Tróia chorou Heitor. A meio desse período, chegou Pentesileia das Amazonas com dez mil guerreiras montadas. Mais uma razão para afiarmos as nossas espadas.
Afiávamos as espadas e afiava-se a nossa curiosidade. Com efeito, as Amazonas eram criaturas únicas. Consagravam inteiramente as suas vidas a Ártemis, a Donzela, e a um Ares asiático. Viviam nas longínquas fortalezas da Cítia, no sopé das montanhas de cristal que constituem o tecto do mundo, conduzindo os seus enormes cavalos pelos caminhos das florestas, caçando e pilhando em nome da Donzela. Viviam sob o domínio da deusa Terra na sua tripla identidade inicial
- Donzela, Mãe, Velha - e dominavam os seus homens tal e qual como as mulheres haviam feito no nosso mundo, antes de a Nova Religião ter substituído a Velha. É que, no nosso mundo, os homens haviam descoberto um facto vital: a semente de um homem era tão necessária para a procriação como a mulher que fazia crescer o fruto. Antes de tal descoberta ter sido feita, os homens eram considerados não mais do que um luxo dispendioso.
Entre as Amazonas, a sucessão fazia-se inteiramente segundo a linha feminina; os seus homens eram pouco mais do que escravos e nem sequer iam para a guerra. Os primeiros quinze anos da vida de uma mulher, após a primeira menstruação, eram exclusivamente dedicados à deusa Donzela. Depois, retirava-se do exército, escolhia um marido e gerava os seus filhos. Só a rainha não se casava, embora deixasse o trono sensivelmente na mesma altura em que as outras mulheres abandonavam o serviço de Ártemis, a Donzela; em vez de escolher um marido, a rainha submetia-se ao golpe fatal do machado, sacrificando-se pelo seu povo.
Ulisses encarregou-se de esclarecer as nossas dúvidas relativamente às Amazonas; parecia ter espiões em todo o lado, mesmo no sopé das montanhas de cristal da Cítia. Contudo, aquilo que mais nos apoquentava era o facto de as Amazonas montarem cavalos. Os outros povos não montavam cavalos: nem mesmo os longínquos Egípcios. Um homem sentar-se em cima de um cavalo? Era demasiado difícil... A pele do cavalo era escorregadia, se lhe puséssemos uma manta em cima, a manta caía; a única parte do corpo do cavalo que os homens podiam usar era a boca, visto que podiam inserir nela um freio ligado ao arnês e às rédeas. Portanto, o mundo usava os cavalos apenas para puxarem carros. Nem sequer podíamos pô-los a puxar carroças, pois o jugo estrangulava-os. Assim sendo, como era possível que as Amazonas montassem cavalos - e ainda por cima combatessem em cima deles?
Enquanto os Troianos choravam a morte de Heitor, nós descansámos, perguntando-nos se alguma vez voltaríamos a vê-los fora das muralhas. Ulisses estava seguro de que eles voltariam a sair, mas os restantes chefes gregos duvidavam que tal acontecesse.
Ao décimo terceiro dia, vesti a armadura que Ulisses me dera, descobrindo, com alguma surpresa, que, agora, me parecia muito mais leve. Atravessámos as passagens do acampamento à escassa luz da aurora, intermináveis correntes de homens arrastando-se pela planície orvalhada, uns quantos carros na dianteira. Agamémnon decidira formar ao longo de uma frente situada a cerca de meia légua da muralha troiana adjacente à Porta Ceia.
Eles estavam à nossa espera. Não tantos como antes, mas, mesmo assim, mais numerosos do que nós. A Porta Ceia já estava fechada.
As hordas amazonas estavam posicionadas no centro da vanguarda troiana; enquanto esperava que as nossas alas formassem, sentei-me num dos resguardos laterais do meu carro e examinei-as com toda a atenção. Montavam uns cavalos enormes e muito peludos de uma raça que eu desconhecia - uns feios focinhos aquilinos, crinas e caudas tosquiadas, cascos peludos. Quanto à cor, os cavalos eram uniformemente baios ou castanhos, com uma única excepção: o belo cavalo branco mesmo no centro das hostes amazonas. Só poderia ser o cavalo da rainha Pentesileia. Apercebi-me então do processo que usavam para montar os cavalos - um processo muito inteligente! Cada guerreira podia ajustar as ancas e as nádegas a uma estrutura de couro, atada com correias debaixo da barriga do cavalo; desse modo, o risco de caírem seria mínimo.
Usavam elmos de bronze, mas, quanto ao mais, envergavam cabedal curtido e cobriam-se, da cintura até aos pés, com uma espécie de canos de cabedal, atados com correias desde os tornozelos aos joelhos. Nos pés, usavam botas pequenas e macias. A arma preferida era obviamente o arco e as flechas, embora algumas trouxessem espadas.
Nesse preciso instante, soaram as trombetas e os tambores da batalha. Ergui-me de novo, a Velha Pélion na mão, o escudo de ferro confortavelmente dependurado do ombro esquerdo. Agamémnon concentrara todos os seus carros na secção da linha da frente defronte das Amazonas. Lamentavelmente, eram poucos os nossos carros.
As mulheres abriram caminho por entre os carros de guerra como se fossem harpias, guinchando e berrando. Setas silvaram dos seus pequenos arcos, voando sobre as cabeças daqueles que seguiam nos carros e descendo na direcção dos pés dos que vinham atrás. Aquela constante chuva de morte perturbou até os meus mirmidões, que não estavam habituados a combater contra um adversário que disparava a uma distância que impedia uma retaliação imediata. Juntei o meu pequeno segmento de carros de guerra e obriguei as Amazonas a recuarem, usando a Velha Pélion como um arpão, aparando as setas com o meu escudo e gritando aos outros para que fizessem o mesmo. Mas havia algo de extraordinário naquele bizarro confronto: aquelas estranhas mulheres não alvejavam os nossos cavalos!
Olhei de relance para Automedonte, o qual, com uma expressão severa e preocupada, procurava controlar os nossos cavalos. Os olhos dele encontraram-se com os meus.
- Deixemos o resto do exército tratar dos Troianos - disse eu. - Concentremo-nos nestas mulheres. Se conseguirmos aguentá-las, já me darei por contente.
Automedonte aquiesceu, logo fazendo guinar o carro para evitar uma guerreira que lançara o seu corcel na nossa direcção; as pernas dianteiras do animal cavalgavam portentosamente e os seus cascos enormes seriam capazes de fazer saltar os miolos de um homem. Peguei num dardo e arremessei-o contra a guerreira, assobiando de satisfação pois o dardo abateu-a instantaneamente, fazendo-a cair sob as pernas do portento. Então, decidi arrumar a Velha Pélion e pegar no machado.
- Mantém-te perto de mim que eu vou descer.
- Não desças, Aquiles! Elas esmagam-te! Ri-me dele. Era muito mais fácil no chão; passei palavra aos mirmidões.
- Esqueçam o tamanho dos cavalos. Abeirem-se das patas deles - elas não matarão os nossos cavalos, mas nós mataremos os delas. Um cavalo por terra é tão bom como uma Amazona a menos.
Os Mirmidões seguiram as minhas instruções sem a menor hesitação. Alguns ficaram bastante maltratados sob as patas dos cavalos, mas a maior parte aguentou-se no meio daquele dilúvio de setas, retalhando barrigas peludas, ceifando pernas encimadas por saias, torcendo pescoços equinos. Porque eram homens organizados, disciplinados e rápidos, e também porque o meu pai e eu nunca havíamos desencorajado a iniciativa ou a versatilidade, os Mirmidões forçaram as Amazonas a retirar. Uma vitória que nos saiu cara. O campo ficou juncado de cadáveres mirmidões. Mas aquela vitória já ninguém nos podia tirar. Recobrado o ânimo, os meus homens estavam prontos para matar mais Amazonas e mais cavalos.
Subi de novo para o carro e tentei localizar Pentesileia. Ali estava ela! No meio das suas mulheres, tentando levá-las a formar organizadamente. Acenei para Automedonte.
- Em frente, Automedonte! Só paramos quando alcançarmos a rainha! Conduzi a carga no meu carro, antes que elas estivessem preparadas. Mesmo assim, muitas foram as setas que caíram em cima de nós; Automedonte teve de usar um escudo para se proteger. No entanto, não consegui abeirar-me de Pentesileia o suficiente. Por três vezes, conseguiu evitar-nos, enquanto continuava a organizar as suas linhas. Automedonte estava todo suado e arquejante, incapaz de comandar os meus três garanhões com a facilidade de Pátrocles.
- Dá-me as rédeas - disse-lhe. Os nomes dos meus cavalos eram Xanto, Bálio e Podargo. Chamei cada um deles pelo seu nome e a cada um deles pedi que me desse o seu melhor. Eles ouviram-me, embora Pátrocles não estivesse presente para responder por eles. Ah, que bom! Conseguia pensar de novo em Pátrocles sem sentir o peso da culpa!
Sem que fosse preciso usar o chicote, os meus cavalos, tão corpulentos como os das Amazonas, conseguiram abrir caminho por entre estes. Gritando o meu grito de guerra, devolvi as rédeas a Automedonte e peguei na Velha Pélion. A rainha Pentesileia estava ao alcance da minha lança e cada vez mais próxima, ao passo que a desordem das suas linhas piorara em vez de melhorar. Pobre mulher, não possuía os talentos que são necessários a um bom general. Cada vez mais perto, cada vez mais perto... Pentesileia teve de desviar a sua égua branca para evitar uma colisão tremenda com os meus cavalos. Os seus olhos pálidos faiscaram, o seu flanco ofereceu-se à Velha Pélion. Mas não consegui disparar. Saudei-a e ordenei uma retirada.
Um cavalo das Amazonas sem cavaleiro - ou melhor, uma égua; afinal, parecia que as Amazonas só tinham éguas - tinha as patas amarradas, as rédeas debaixo de uma delas. Automedonte passou pela égua; mandei-o parar, peguei nas rédeas da égua e obriguei-a a seguir-nos.
Logo que me vi longe do tumulto, desci do carro e examinei a égua que perdera a sua Amazona. Gostaria do cheiro de um homem? Como é que eu ia sentar-me naquela estrutura de couro?
Automedonte estava lívido.
- Aquiles, que estás tu a fazer?
- Pentesileia não tem medo de morrer. Merece por isso uma morte melhor.
Combatê-la-ei como um igual - machado contra machado, os dois montados num cavalo.
- Enlouqueceste? Nós não sabemos montar cavalos!
- Ainda não sabemos... Mas não achas que, depois de termos visto as Amazonas, conseguiremos aprender?
Saltei para cima da égua, usando a roda do carro como um degrau; os lados da estrutura eram salientes e rijos; tive por isso a maior dificuldade em enfiar-me naquela estranha coisa, pois era demasiado pequena para as minhas ancas. Porém, uma vez sentado naquilo, fiquei espantado. Era tão fácil permanecer direito e equilibrado! A única dificuldade eram as pernas, que ficavam suspensas, caídas, sem qualquer suporte. A égua estava amedrontada, mas a sorte estava do meu lado, pois o animal parecia manso; quando puxei as rédeas para que ela virasse, obedeceu. Montava um cavalo: era o primeiro homem em todo o mundo a fazê-lo.
Automedonte passou-me o machado, mas o escudo estava fora de questão. Um dos meus mirmidões correu para mim, com um sorriso arreganhado, e deu-me um pequeno escudo redondo, o escudo que as Amazonas usavam.
Com os Mirmidões atrás de mim num alarido deliciado, carreguei sobre o exército feminino, procurando a rainha. No meio da confusão, a minha égua não conseguia avançar mais depressa do que um caracol. Além disso, parecia já ter adoptado o seu novo cavaleiro: é possível que o meu peso a tivesse intimidado.
Quando vi a rainha, lancei-lhe o meu grito de guerra. Com um bizarro e ululante guincho - o seu grito de guerra - Pentesileia virou-se na minha direcção, fazendo avançar a sua égua branca por entre a multidão com um movimento dos joelhos - mais um truque para eu aprender - enquanto, com a mão direita, pegava num machado dourado. Com uma voz brusca, imperiosa, ordenou às suas guerreiras que se afastassem para formar um semicírculo. Os meus mirmidões correram a formar a outra metade do círculo. A batalha devia ter tomado a mesma direcção que nós, já que, entre os Mirmidões, vi tropas que pertenciam a Diomedes e o rosto sombrio e desagradável do seu primo Tersita. Que estava Tersita a fazer ali? Ele era um dos chefes dos espiões de Ulisses.
O teu nome é Aquiles? - perguntou a rainha num Grego atroz. É esse mesmo! Avançou para mim, o machado encostado ao dorso da égua, o escudo firme. Consciente da minha inexperiência naquele novo tipo de duelo, decidi deixá-la usar primeiro alguns dos seus truques, confiando que a minha sorte me evitaria problemas até me sentir mais confortável. Pentesileia fez com que o seu corcel me oferecesse o flanco, mas logo rodopiou e avançou sobre mim com a velocidade de um relâmpago; afastei-me mesmo a tempo e aparei o golpe com aquele escudo forrado a pele de vaca, lamentando não ter um de ferro mas do mesmo tamanho. A lâmina dela fez um corte profundo no escudo, mas logo emergiu livre e tão facilmente como uma faca cortando queijo. Pentesileia podia ser um mau general, mas era uma belíssima combatente. Tal como a minha égua castanha, que sabia melhor do que eu quando é que se devia virar. Aprendendo com a rainha, ergui o machado e desferi o golpe. Falhei por muito pouco. Depois, experimentei um outro truque dela: fiz com que a minha égua colidisse com a égua dela. A rainha abriu muito os olhos; por sobre o escudo, ria-se de mim. Mais acostumados um ao outro, trocámos golpes com uma velocidade que não parava de aumentar; os machados ressoavam e faziam faísca. Podia sentir o poder do seu braço e tinha de admitir que, naquela arte, Pentesileia era um artífice consumado. O machado dela era muito mais pequeno do que o meu, concebido para ser usado apenas por uma mão, o que fazia dela um inimigo muito perigoso; o melhor que eu podia fazer com o meu machado era agarrar no cabo muito mais perto da cabeça do que era normal, usando apenas a minha mão direita. Mantive-me à direita dela e obriguei-a a cansar os seus músculos, aparando cada um dos golpes com uma força que fazia vibrar todas as fibras do seu corpo.
A minha força resistiria muito mais tempo do que a dela, mas odiaria vê-la humilhada. Seria melhor acabar com aquilo rápida e honrosamente. Ao dar-se conta de que o seu tempo acabara, ergueu os olhos para mim e concordou silenciosamente; então, tentou um último e desesperado truque. A égua branca empinou-se, rodopiando ao descer e arremessando-se contra mim com tal violência que a minha égua castanha vacilou, quase escorregando. Enquanto a levava a recompor-se com a minha voz e a mão esquerda e os calcanhares, o machado de Pentesileia desceu sobre mim. Ergui o meu próprio machado para o enfrentar e, num ápice, fi-lo cair. Então, não hesitei: o flanco de Pentesileia recebeu a minha lâmina como se fosse barro mole. Não confiando nela enquanto permanecesse montada e erecta, puxei o machado rapidamente. A mão dela procurou o punhal, mas faltavam-lhe as forças. Rios escarlates jorravam já, tingindo a brancura da égua. A rainha das Amazonas vacilava, ameaçando tombar desamparada. Desci imediatamente da minha égua castanha, a fim de a agarrar antes que se estatelasse no chão.
O peso dela fez-me cair por terra. Ajoelhei depois, com a sua cabeça e os ombros nos meus braços, sentindo-lhe o pulso. Não estava ainda morta, mas a sua sombra pairava já sobre nós. Fitou-me com uns olhos tão azuis e pálidos como as águas beijadas pelo sol.
- Pedi aos deuses que fosses tu - disse ela.
- O rei deve morrer às mãos do mais valoroso dos seus inimigos - disse eu - e tu és rei na Cítia.
-Agradeço-te que tenhas posto termo ao duelo tão rapidamente. Assim, não fui obrigada a admitir que me faltavam as forças. Absolvo-te da minha morte em nome da Donzela Archeira.
O estertor da morte fazia-se ouvir já, mas os lábios ainda se moviam. Curvei-me para a ouvir.
- Quando morre sob o golpe do machado, a rainha tem de exalar o seu último suspiro para a boca do seu carrasco, o qual reinará depois dela. - Tossiu, mas buscou todas as forças que lhe restavam para continuar a falar. - Toma o meu alento. Toma o meu espírito até que também tu sejas uma sombra e eu possa pedir-te que mo devolvas.
Não havia nos seus lábios nem sinal de sangue; o seu último suspiro encontrou a minha boca e assim morreu. Deitei-a delicadamente no chão e levantei-me. Gritando de dor e desespero, as guerreiras investiram contra mim, mas os Mirmidões puseram-se à minha frente e permitiram-me sair do campo de batalha montado na égua castanha. Procurei Automedonte. A estrutura de madeira e cabedal era um despojo muito mais valioso do que os rubis da rainha.
Alguém falou comigo.
- Proporcionaste à multidão um belo espectáculo, Aquiles. Estou certo de que poucos homens - ou mulheres, já agora - terão visto alguém fazer amor com um cadáver.
Automedonte e eu virámo-nos num ápice, mal acreditando no que estávamos a ouvir. Era Tersita, o espião, que me fitava com um sorriso trocista. Desprezar-me-ia assim tanto o exército grego, ao ponto de um homem como Tersita se achar no direito de me atirar à cara os seus imundos pensamentos, considerando-se a salvo de todo e qualquer castigo?
- Só foi pena as mulheres terem investido e tu não poderes chegar ao clímax - continuou ele, o escárnio estampado no rosto. - Sempre gostava de ver a mais poderosa das tuas armas....
Tremendo de uma fúria gélida, ergui a minha mão.
- Desaparece, Tersita! Vai esconder-te atrás do teu primo Diomedes ou de Ulisses, o teu titereiro!
Tersita virou costas, mas ainda disse: -Averdade dói, não é? Bati-lhe apenas uma vez. Uma dor tremenda trespassou-me o braço quando o meu punho cerrado encontrou o seu pescoço sob o elmo. Tersita caiu como uma pedra, contorcido como uma serpente. Automedonte chorava de raiva. - O cão! - exclamou, ajoelhando ao pé do espião. - Partiste-lhe o pescoço, Aquiles, está morto. Bons ventos o levem!
As Amazonas sofreram uma derrota esmagadora, pois os seus corações tinham morrido com Pentesileia; continuaram a combater apenas para morrer, naquela que fora a sua primeira incursão ao mundo dos homens. Quando tive tempo, procurei o corpo da rainha, mas dele nem sinal. Ao fim do dia, um dos meus soldados veio ter comigo.
- Aquiles, eu vi levarem o corpo da rainha do campo de batalha.
- Para onde o levaram? E quem o levou?
- Levaram-no para o rei Diomedes. Ele apareceu com alguns dos seus soldados de Argos, despiram a rainha, ataram o cadáver pelos tornozelos ao carro de Diomedes e assim o levaram, mais à armadura.
Diomedes? Não podia acreditar que tal fosse possível. Porém, logo que os homens começaram a limpar o campo, procurei o rei de Argos a fim de o confrontar com as minhas informações.
- Diomedes, é verdade que levaste a minha presa, a rainha das Amazonas?
- É verdade, sim! - atirou-me ele, os olhos cheios de ódio. - Atirei-a ao Escamandro!
Decidi falar-lhe cortesmente.
- Porquê?
- E porque não? Tu assassinaste o meu primo Tersita - um dos meus soldados viu-te abatê-lo com um golpe pelas costas. Mereces perder a rainha mais a armadura!
Cerrei os punhos.
- Agiste de uma forma precipitada, meu amigo. Pergunta a Automedonte o que Tersita me disse.
Com alguns dos meus mirmidões fui à procura do corpo da rainha, sem qualquer esperança de o encontrar. O Escamandro corria de novo forte e cheio e fétido; durante os doze dias que durara o luto por Heitor, tínhamos reforçado as margens do rio a fim de mantermos seco o nosso acampamento; logo a seguir, porém, os dilúvios haviam voltado ao monte Ida.
A escuridão caíra; acendemos archotes e vagueámos pela margem, procurando debaixo de arbustos e salgueiros. Até que alguém gritou. Corri para o local de onde veio o grito, fazendo um esforço tremendo para ver no meio das trevas. Pentesileia estava no meio do rio, balouçando ao sabor da corrente, presa por uma comprida e pálida trança a um ramo do mesmo olmo a que eu me agarrara para não morrer. Retirei-a das águas do rio e envolvi-a numa manta. Depois, coloquei-a sobre a sua égua branca, que Automedonte encontrara vagueando pelo campo deserto, procurando desesperada a sua amazona.
Quando voltei à minha casa, Briseida estava à minha espera.
- Meu querido - disse-me ela -, Diomedes veio visitar-te. Como não estavas, deixou-te várias coisas e uma mensagem. Pediu-me que te apresentasse as suas mais sinceras desculpas e que te dissesse que, quanto a Tersita, ele teria feito exactamente o mesmo que tu fizeste.
Diomedes deixara-me a armadura e as armas de Pentesileia. Sepultei-a no túmulo de Pátrocles, deitada na posição do rei guerreiro, com a armadura vestida e uma máscara de ouro cobrindo-lhe o rosto. A égua branca jazia aos pés da rainha; desse modo, o belo animal entraria no reino dos mortos como sempre vivera: montada pela sua amazona.
Nos dois dias seguintes, não se registou na planície qualquer sinal de actividade troiana. Intrigado com o que poderia acontecer nos tempos mais próximos, decidi ir falar com Agamémnon. Ulisses estava com ele, tão bem-disposto e confiante como sempre.
- De uma coisa podes estar certo, Aquiles: eles voltarão a sair. Príamo está à espera de Menão, que se dirige para Tróia à frente de vários regimentos de élite hititas que o rei Hatusílis disponibilizou depois de ter recebido uma elevada maquia. No entanto, segundo os meus agentes, os Hititas demorarão ainda meia lua a chegar a Tróia e, entretanto, temos de resolver um problema mais urgente. Rei supremo, posso pedir-te que expliques a Aquiles o que se passa? - disse o astucioso Ulisses, que sabia muito bem quando é que devia mostrar-se o mais deferente dos súbditos perante o rei supremo.
- Claro - disse o nosso rei supremo com um ar altivo. -Aquiles, há oito dias que não chega à nossa praia nenhum navio de abastecimentos de Assos. Suspeito de um ataque dardaniano. Gostaria que levasses o teu exército e que fosses ver o que se passa realmente em Assos. Não podemos combater Menão e os Hititas de barriga vazia, mas também não podemos combatê-los com um exército desfalcado. Proponho-te, por isso, que resolvas o problema de Assos e que voltes rapidamente para aqui.
Aquiesci.
- Muito bem, rei supremo. Levarei dez mil homens, mas não mirmidões. Autorizas-me a recrutar outros homens que não os meus?
- Claro, claro! - retorquiu imediatamente o rei supremo. Estava muito bem-disposto.
A situação em Assos não diferia muito do que Agamémnon previra. Os Dardanianos haviam cercado a nossa base; após dura refrega, abandonámos as nossas muralhas defensivas e derrotámo-los em campo aberto. O exército inimigo era afinal uma manta de retalhos poliglota; os homens que reinavam nas ruínas de Lirnesso - fossem eles quem fossem - haviam recrutado quinze mil homens de outras cidades, possivelmente ao longo de toda a costa. Muito provavelmente, o seu destino era Tróia, mas a verdade é que não tinham conseguido resistir à tentação que Assos representava. As muralhas tinham-nos mantido à distância e eu chegara a tempo de evitar um assalto fatal. Por isso, aqueles soldados, além de perderem Assos, também perderam a vida. Tróia nunca abriria as suas portas para os receber.
Quatro dias bastaram para resolvermos o caso; fizemo-nos ao mar no quinto. Porém, os ventos e as correntes não nos ajudaram nada: chegámos à nossa praia apenas na noite do sexto dia. Dirigi-me imediatamente à casa de Agamémnon, descobrindo, enquanto caminhava, que, na minha ausência, o exército estivera envolvido numa importante acção.
Encontrei Ájax no pórtico.
- Que se passou? - perguntei-lhe, ansioso por conhecer todos os pormenores.
Fitou-me com um esgar triste.
- Menão chegou mais cedo do que o esperado, com dez mil soldados hititas. São magníficos combatentes, Aquiles! E nós... nós estamos cansados... Apesar de termos mais soldados do que eles e de os Mirmidões participarem na batalha, os Hititas empurraram-nos para dentro das nossas muralhas. Felizmente que já era noite quando a batalha terminou.
Apontei para as portas fechadas.
- O rei dos reis não recebe visitas? Ájax sorriu.
- Deixa-te de ironias, primo! Agamémnon não está nada bem... Nunca fica bem depois de um revés. Mas podes entrar que ele recebe-te.
- Vai dormir, Ájax. Hoje, perdemos; amanhã, venceremos.
Agamémnon estava de facto com um ar muito cansado. Estava ainda sentado à mesa de jantar, acompanhado apenas por Nestor e Ulisses. Tinha a cabeça enterrada nos braços, mas ergueu-a mal eu entrei.
- Então? Resolveste o problema de Assos? - perguntou-me imediatamente.
- Sim, rei supremo. Os navios de abastecimento chegarão amanhã, mas os quinze mil homens que vinham para Tróia ficaram pelo caminho.
- Excelente! - exclamou Ulisses. Nestor nada disse - nem parecia dele! Olhei para ele e fiquei espantado: tinha o cabelo desgrenhado, a barba emaranhada, os olhos raiados de sangue. Quando se apercebeu de que eu estava a olhar para ele, ergueu uma mão para logo a baixar; pelas suas faces enrugadas, deslizaram lágrimas irreprimíveis.
- Que aconteceu, Nestor? - perguntei-lhe ternamente. Creio que já sabia a resposta.
Respirou fundo, soluçou.
- Oh, Aquiles, Aquiles! Antíloco morreu! Ergui a mão para esconder os meus olhos.
- Quando?
- Hoje, no campo de batalha. A culpa foi toda minha... Ele tentou livrar-me de apuros e Menão matou-o com uma lança. Não consigo sequer olhar-lhe para o rosto! A lança entrou pelo occipício e saiu-lhe pela boca, desfigurando-o por completo! E o meu filho era tão belo! Tão belo, Aquiles!
Os meus dentes rangiam de raiva.
- Menão pagará por isso, Nestor. Pelos votos que fiz ao rio Esperquio, juro-te que Menão pagará.
Mas o velho abanou a cabeça.
- Oh, Aquiles, já nada mais me importa! Antíloco está morto. O cadáver de Menão não trará de volta o meu filho... Perdi cinco filhos nesta maldita planície
- cinco dos meus sete filhos. E Antíloco era aquele que eu mais amava. Tinha vinte anos. E eu, que tenho quase noventa, ainda estou vivo! Não há justiça nas decisões dos deuses.
- Acabamos com eles amanhã? - perguntei a Agamémnon.
- Sim, amanhã - respondeu ele. - Estou farto, mais do que farto, de Tróia! Não suportaria passar aqui outro Inverno! Não tenho notícias de Micenas
- a minha mulher deixou de me mandar mensageiros, o mesmo faz Egisto. Tenho mandado mensageiros, é certo: quando voltam, todos me dizem que as coisas vão bem em Micenas. Mas eu estou desejoso de voltar para casa, para Clitemenestra, para o meu filho, para as duas filhas que me restam! - Olhou para Ulisses. - Se não conquistarmos Tróia neste Outono, voltarei para casa.
- Tróia cairá este Outono - disse Ulisses, com um suspiro. Nos olhos cinzentos daquele homem frio, tão duro como o ferro, surgiram de súbito indícios de uma tremenda fadiga. - Também eu estou farto de Tróia. Se tenho de permanecer vinte anos longe de ítaca, faço votos para que os dez últimos anos não sejam passados na Tróada. Preferia combater contra um exército conjunto de sereias, harpias e feiticeiras a enfrentar mais Troianos.
Fitei-o com um sorriso imenso.
- Sereias, harpias e feiticeiras nunca se atreveriam a combater contigo, Ulisses. A menos que tivessem enlouquecido... Seja como for, essas são questões que pouco me interessam. Tróia é o fim do meu mundo.
Conhecedor das profecias, Ulisses nada disse. Limitou-se a olhar para a sua taça de vinho.
- Só queria que me prometesses uma coisa, Agamémnon - disse eu. A cabeça do rei supremo estava de novo oculta pelos braços.
- Tudo o que quiseres, Aquiles.
- Enterra-me na gruta do penhasco, com Pátrocles e Pentesileia, e trata de tudo para que Briseida se case com o meu filho.
Ulisses ergueu-se de súbito.
- O deus chamou-te, Aquiles?
- Não, creio que não. Mas o seu chamamento deve estar para breve. - Estendi-lhe a mão. - Promete-me que o meu filho envergará a minha armadura.
- Já te prometi isso, Aquiles. O teu filho envergará a tua armadura. Nestor limpou os olhos, assoou-se à manga.
- Tudo será feito segundo os teus desejos, Aquiles. - Os seus dedos trémulos puxaram os cabelos brancos numa fúria desesperada. - Ah, se ao menos o deus me chamasse! Tantas vezes lhe pedi, mas ele não me ouve! Como posso voltar a Pilos sem nenhum dos meus filhos? Que vou eu dizer às suas mães?
- Tu voltarás a Pilos, Nestor - disse eu. - Ainda tens dois filhos. Quando te vires nos teus bastiões e contemplares a areia da praia, Tróia esbater-se-á na tua mente ao ponto de se confundir com um sonho. Lembra-te apenas daqueles que caíram e oferece-lhes libações.
Cortei a cabeça de Menão e deixei cair o corpo aos pés de Nestor. Um novo ânimo invadiu-nos a todos nesse dia; o ressurgimento troiano pouco tempo durou. Retiraram lentamente na direcção da cidade, ao passo que eu, com uma estranha agonia no mais fundo de mim mesmo, matava todos os inimigos que ficavam para trás. O meu braço parecia mole e lento, embora o machado continuasse a desferir tantos e tão terríveis golpes como dantes. Porém, à medida que ia dizimando os melhores soldados que o rei Hatusílis dos Hititas tinha para oferecer no altar encharcado de sangue que era Tróia, a carnificina ia também provocando no meu íntimo uma repugnância insuportável. Nas regiões mais fundas de mim mesmo, ouvi uma voz suspirando: pareceu-me a voz de minha mãe, embargada pelas lágrimas.
No final do dia, prestei a minha homenagem a Nestor e assisti aos derradeiros ritos de Antíloco. Deitámos o rapaz junto dos seus quatro irmãos, na câmara reservada para a Casa de Neleu, e pusemos Menão aos seus pés, como se de um cão se tratasse. Porém, a ideia de assistir aos jogos fúnebres e de participar nos festejos era-me absolutamente insuportável; escapei-me logo que pude.
Briseida estava à minha espera. Briseida estaria sempre à minha espera. Afaguei-lhe o rosto e disse-lhe,
- Tu és um lenitivo para todas as mágoas.
- Senta-te e faz-me companhia - disse ela. Sentei-me, mas logo vi que não conseguia falar com ela; um gelo horrendo começava a apossar-se do meu coração. Briseida continuou a falar toda animada, até que olhou para mim; então, toda a sua vivacidade se dissipou como que por magia.
- Que se passa, Aquiles? Abanei a cabeça sem dizer palavra, levantei-me e só parei à porta. Aí fiquei, olhos erguidos para as infinitas extensões do céu.
- Que se passa, Aquiles?
- Ah, Briseida! Todo o meu ser se dilacerou! Nunca, em toda a minha vida, senti tão intensamente o vento! Nunca, em toda a minha vida, senti um tão forte cheiro a vida! Nunca, em toda a minha vida, vi as estrelas tão quietas e claras!
Briseida puxou por mim, aflita.
- Vem para dentro - rogou-me. Deixei que me levasse para uma cadeira e que me sentasse, enquanto se afundava aos meus pés e se abraçava aos meus joelhos, olhando-me fixamente nos olhos.
- Aquiles... é a tua mãe? Com um sorriso, ergui-lhe o queixo.
- Não. A minha mãe abandonou-me para todo o sempre. Ouvi-a despedir-se de mim no campo de batalha. Chorava. O deus chamou-me, Briseida. Finalmente chamou-me. Muitas vezes me perguntei como seria, mas nunca me passou pela cabeça que o chamamento do deus fosse esta consciência tão aguda, tão absoluta da vida. Pensava que seria um momento de glória e exultação, pensei que seria algo que me transportaria fisicamente para o último dos meus combates. Mas não. É algo de sereno, de misericordioso. Estou em paz. Acabaram-se os demónios de outros tempos, acabou o medo do futuro. Amanhã é o fim. Amanhã, deixarei de existir. O deus falou. O deus não me deixará amanhã.
Briseida rompeu em protestos, mas eu detive as suas palavras com a minha Mão.
- Um homem tem de fazer dignamente a sua última caminhada, Briseida. É o deus que o deseja, não eu. E eu não sou nenhum Héracles, tão-pouco um Prometeu, para me atrever a resistir-lhe. Não passo de um homem mortal. Vivi trinta e um anos e vi e senti mais do que a maior parte dos homens que, por cem vezes, vêem as folhas das árvores ganhando o tom dourado do Outono. Eu não quero viver mais tempo do que as muralhas de Tróia. Todos os grandes guerreiros morrerão nestes campos. Ájax. Ájax! Ájax... Não faria sentido que eu sobrevivesse. Enfrentarei as sombras de Pátrocles e de Ifigénia, que estarão do outro lado do Rio - e já sem mágoas nem dor. Os nossos ódios e amores pertencem ao mundo dos vivos - ódio e amor são forças que não podem existir no mundo dos mortos. Fiz o meu melhor. Mas cheguei ao fim. Roguei aos deuses que permitam que o meu nome continue a ser cantado por todas as gerações de homens que hão-de vir. Essa é a única imortalidade a que um homem pode aspirar. O mundo dos mortos não dá alegrias, mas também não dá tristezas. Se, nos lábios das futuras gerações, eu puder combater contra Heitor um milhão de vezes, então é porque, de facto, nunca terei morrido.
Lágrimas sem fim chorou Briseida; o seu coração de mulher nunca poderia entender a complexidade da urdidura no tear do tempo; por isso, Briseida nunca poderia regozijar-se comigo. Mas vem sempre uma altura em que a dor é tão profunda que até mesmo as lágrimas acabam por secar. Serena e queda, Briseida falou por fim comigo.
- Se morreres, morrerei também - disse.
- Não, Briseida, tu tens de viver. Casarás com o meu filho, Neoptolemo. Dar-lhe-ás os filhos que não me deste. Nestor e Agamémnon juraram-me que tudo farão para que isso se cumpra.
- Essa é uma promessa que não posso fazer. Nem mesmo a ti. Tu tiraste-me de uma vida e deste-me outra. Não poderá haver uma terceira vida. Tenho de partilhar a tua morte, Aquiles.
Ergui-a, sorri-lhe.
- Quando vires o meu filho, mudarás de ideias. O destino das mulheres é sobreviverem. Tudo o que me deves é uma noite mais. Depois, dar-te-ei a Neoptolemo.
Narrado por Automedonte
Deixámos despreocupadamente as nossas muralhas, sabendo que íamos enfrentar um exército que quase fora arrasado. Aquiles seguia singularmente sereno a meu lado, mas nem por um momento me interroguei sobre o significado da sua disposição. Erguia-se como um farol na sua armadura de ouro, as belas plumas douradas do elmo flutuando ao vento e beijando-lhe os ombros sempre que o terreno acidentado me obrigava a fazer um súbito desvio. Aguardando o seu habitual sorriso de camaradagem, olhei-o de soslaio e sorri para ele, mas, naquele dia, Aquiles esqueceu-se do nosso breve ritual. Olhava sempre em frente. O que viam os seus olhos? Não poderia saber. Uma paz grave e controlada impregnava aquele rosto de seu natural arrebatado; de súbito, tive a sensação de que a meu lado seguia um estranho. Nem uma só vez falou comigo durante a viagem para o campo de batalha, nem uma só vez vi nos seus lábios um sorriso, qualquer sorriso. Era natural que tivesse ficado triste com o comportamento de Aquiles. Contudo, inexplicavelmente, não senti qualquer tristeza. Pelo contrário: senti-me apoiado, encorajado, como se houvesse nele uma indefinível qualidade capaz de me purificar.
Combateu melhor do que nunca, parecendo determinado a concentrar toda a sua imensa glória no espaço de um único dia. Porém, em vez de se deixar arrebatar pelo seu habitual furor assassino, Aquiles esforçou-se por assegurar um avanço organizado dos seus Mirmidões. Usou a espada e não o machado, e usou-a no mais absoluto silêncio, um silêncio só comparável ao do rei quando preside ao grande sacrifício anual ao deus. A esta ideia, logo outra se ligou; e logo entendi a diferença que nele havia. Aquiles sempre fora o príncipe e nunca o rei. Naquele dia, ele era o rei. Perguntei-me se não tivera alguma premonição de que o pai, Peleu, teria morrido.
Enquanto manobrava o carro, mirei duas ou três vezes o céu, pois não estava a gostar nada daquele tempo. Já ao alvorecer, o céu estava soturno, prometendo, não frio, mas tempestade. Agora, havia na imensa abóbada um singular matiz acobreado e, a leste e a sul, enormes nuvens negras juntavam-se, disparando já OS seus relâmpagos. Nuvens que formavam um tecto sobre o Ida, onde - disso estávamos certos - os deuses se haviam reunido para assistir à infindável guerra.
Para os Troianos, foi uma derrota esmagadora. O exército troiano não conseguia deter-nos, tanto mais que, naquele dia, todos os chefes do nosso exército pareciam possuídos de uma forma inferior da grandeza que aureolava Aquiles como os raios em torno da cabeça de Hélio. É a grandeza solar de Aquiles que contamina os outros, pensei; Aquiles tornou-se o maior de todos os reis.
Ao fim de não muito tempo, os Troianos cederam e fugiram. Tentei localizar Eneias, perguntando-me por que razão o dardaniano nada fazia para garantir a coesão do exército aliado. Mas a sorte devia ter abandonado Eneias, pois não havia nem sinal dele em todo o campo de batalha. Mais tarde, vim a saber que o dardaniano se recusara a enviar os seus homens para reforçar as claudicantes linhas troianas. Sabíamos que Tróia tinha um novo herdeiro: Troilo. lembrei-me então de que Aquiles me dissera que Príamo insultara Eneias aquando da cerimónia de investidura de Troilo. Pois bem: Eneias mostrara a Príamo que fizera muito mal em insultar um príncipe dardaniano que também era herdeiro.
Já tínhamos visto Troilo no campo de batalha, quando Pentesileia, e posteriormente Menão, se haviam juntado ao exército aliado. Tivera sorte, o jovem herdeiro: não tivera de enfrentar nem Aquiles, nem Ájax. Porém, naquele dia, tudo mudaria. Aquiles perseguia-o implacavelmente, aproximando-se cada vez mais dele. Quando se apercebeu do inevitável, Troilo pediu ajuda. Os seus homens responderam de imediato, formando uma barreira protectora. Depois, vi-o mandar um mensageiro a Eneias, que se encontrava relativamente perto. Vi o homem falando com Eneias, que o escutou com aparente interesse. Vi o mensageiro afastar-se na direcção de Troilo. Mas não vi Eneias erguer um só dedo que fosse para ajudar o herdeiro. Bem pelo contrário: deu meia volta ao seu carro e, com os seus homens, demandou outras paragens.
Não faltava valentia a Troilo. Era irmão de Heitor e, com mais uns anos, teria sido outro Heitor. Porém, a sua juventude era um óbice intransponível. Quando me viu já muito perto, ergueu a lança, enquanto o seu condutor mantinha o veículo na posição certa para o arremesso; seria a última lança que Troilo arremessaria antes que nos abeirássemos demasiado dele. Senti o braço de Aquiles roçando o meu e logo me apercebi de que estava a erguer a Velha Pélion. Com um magnífico arremesso, a soberba lança foi imediatamente disparada, tão direita e veloz como um dardo lançado pela mão de Apolo. As suas farpas de ferro cravaram-se profundamente na garganta do rapaz, abatendo-o sem um gemido. Para lá das cabeças dos desesperados soldados troianos, vi Eneias observando a cena com uma expressão amarga. Apresámos a armadura de Troilo bem como os seus cavalos e arrasámos o que restava das suas tropas.
Após o fim de Troilo, Eneias pareceu reviver. Libertou-se da sua apatia e fez avançar sobre nós todos os soldados aliados. Era possível vê-lo constantemente entre os soldados; contudo, fazia tudo o que estava ao seu alcance para não se aproximar demasiado de Aquiles, de modo a que este não pudesse arremessar a sua lança. Astucioso, o dardaniano. Ansiava desesperadamente pela vida; perguntei-me que paixões moveriam aquele homem. pois ele seria tudo menos cobarde.
O Sol sumira-se no céu, a tempestade tornava-se uma ameaça cada vez mais nítida. Era tão portentosa a energia que os céus acumulavam que os nossos soldados logo começaram a falar de presságios funestos. As nuvens estavam cada vez mais baixas, os relâmpagos trespassavam os ares cada vez mais perto, o ribombar dos trovões sufocava o clamor da batalha. Em toda a minha vida nunca vira um céu assim, tal como nunca sentira tão estranhos arrepios na espinha, provocados pela violência do Pai Céu. A luz ensombrecera e havia nela um lúgubre brilho sulfuroso e as nuvens eram tão negras como as barbas de Hades, enroscando-se como fumo saindo de uma imensa frigideira cheia de azeite, ganhando um intenso tom azul sempre que os relâmpagos as iluminavam. Ouvi os Mirmidões dizendo que, com aqueles sinais, o Pai Zeus pretendia dizer-nos que a nossa vitória seria total; e imaginei, pela forma como estavam a comportar-se, que os Troianos pensariam exactamente o mesmo.
De súbito, um raio de fogo branco caiu mesmo em frente de nós, queimando tudo aquilo em que tocou. Os cavalos empinaram-se e eu tive de tapar os olhos, temendo que tão intensa luz me deixasse sem ver. Logo que me senti menos aturdido, virei-me para Aquiles.
- Vamos desmontar - disse eu. - O chão é mais seguro. Pela primeira vez nesse dia os seus olhos encontraram-se com os meus. Fitei-o perplexo. Era como se os raios rodopiassem em torno da sua cabeça; nos seus olhos amarelos, brilhava a luz de uma intensa alegria; Aquiles ria-se dos meus medos!
- Estás a ver, Automedonte? Estás a ver? O meu bisavô prepara-se para chorar a minha morte! Ele considera-me um digno descendente!
Abri a boca de espanto.
- Chorar a tua morte? Aquiles, que queres dizer com isso? Agarrou os meus pulsos com toda a sua força.
- O deus chamou-me, Automedonte. Hoje é o dia da minha morte. Comandarás os Mirmidões até que o meu filho chegue a Tróia. O Pai Zeus está a preparar-se para a minha morte.
Não podia acreditar no que acabara de ouvir. Impossível acreditar ! Como se estivesse no meio de um pesadelo, vergastei os cavalos para que avançassem. Quando o meu choque se dissipou um pouco, reflecti sobre o que deveria fazer. E tomei uma decisão: aproximei-me o mais possível de Ájax e Ulisses, cujos homens lutavam lado a lado.
Não sei se Aquiles reparou no que eu estava a fazer; se reparou, deve ter considerado a minha táctica absolutamente irrelevante. Ergui os olhos ao céu e rezei, pedindo ao Pai que me levasse a mim e não a ele; mas o deus limitou-se a rugir o seu escárnio, deixando-me a tremer de medo. Os Troianos, de súbito, fugiram na direcção das suas muralhas, e nós seguimo-los tumultuosamente, decididos a acabar com eles. Ájax estava mais perto agora; continuei a avançar na sua direcção até que, a certa altura, consegui segredar-lhe que Aquiles pensava que o deus o tinha chamado. Se havia no mundo um homem capaz de evitar o fim de Aquiles, esse homem só poderia ser Ájax.
Estávamos já à sombra da Cortina Ocidental, demasiado perto da Porta Ceia para que Príamo pudesse permitir-se abri-la. Aquiles, Ájax e Ulisses tinham encurralado Eneias contra a porta. Aquiles estava decidido a liquidar Eneias; era isso que o seu silêncio me dizia, enquanto eu pedia aos deuses que não lhe dessem a oportunidade de travar um duelo com o mais perigoso de todos os aliados ainda vivos.
Ouvi-o dar um grito de satisfação e vi que o dardaniano estava já ao alcance das nossas lanças, demasiado ocupado para se dar conta de todos os que assolavam as suas tropas. Naquele momento, Eneias era um alvo perfeito. Aquiles ergueu a Velha Pélion, os músculos do braço inchando portentosos enquanto concentrava todas as suas forças para o arremesso, a axila nua coberta por uma fina penugem dourada. Fascinados, os meus olhos atentaram na linha da lança destinada a Eneias, sabendo que a vida do dardaniano chegara ao fim, que a última ameaça troiana não mais pairaria sobre nós.
Tudo pareceu acontecer nesse mesmo instante, ainda que eu jure, diante de todos os deuses e humanos, que não foi o carro que fez com que Aquiles perdesse o equilíbrio. O seu calcanhar direito vacilou, apesar de o pé estar firmemente encaixado no estribo; lutando para se manter direito, Aquiles ergueu bem alto o braço direito. Ouvi um ruído surdo e vi a seta enterrada na axila nua. Quase toda a seta trespassara o corpo de Aquiles: só as penas azuis da ponta assomavam sobre a carne dilacerada. A Velha Pélion caiu no chão sem chegar a ser arremessada, enquanto Aquiles se erguia como um titã; depois, com uma voz triunfal, como se houvesse conquistado a própria mortalidade, lançou pela última vez o grito de guerra de Quíron. O braço caiu e enterrou ainda mais a seta. A arma fatal cravara-se no seu ser mais profundamente ainda do que a morte ou do que toda a ignomínia do mundo. Tive de controlar os cavalos com ambas as mãos, pois Xanto mergulhava aterrorizado e Balio baixava a cabeça desesperado e Podargo desatara a martelar o chão com os seus cascos. Mas Pátrocles não estava lá para falar por eles, para dar ao seu sofrimento e horror palavras humanas.
Todos os que ouviram o grito de guerra viraram-se para ver; Ájax gritou como se também ele tivesse sido trespassado. O sangue jorrava já daquela boca sem lábios e de ambas as narinas, caindo em cascata sobre a armadura de ouro.
Ulisses estava mesmo atrás de Ájax; lançou um grito de raiva e impotência, a mão esticada, apontando. Em segurança perto de uma rocha, ali estava o assassino: Páris. Com o arco na mão. Sorrindo para nós.
Breves momentos terão passado antes de Aquiles ter caído sobre o resguardo do carro para logo ser amparado por Ájax, que o deitou no chão com um clangor metálico que ecoou nos nossos corações e que nunca se esbateria enquanto fôssemos vivos. Abeirei-me de Ájax e ao lado dele fiquei enquanto Ájax ajoelhou com o primo nos braços, enquanto Ájax lhe tirou o elmo e fitou, vazio de palavras, aquele rosto tingido de escarlate, lívido de morte. Aquiles viu quem o amparava, mas a visão da morte era muito mais forte e estava muito mais próxima. Tentou em vão falar, mas as palavras afogaram-se na sua garganta; por um momento, o derradeiro adeus esteve ali, nos seus olhos. Então, as pupilas dilataram-se e o amarelo da íris deu lugar a um negrume transparente. Três convulsões horrendas que puseram à prova a força de Ájax e tudo estava acabado. Estava morto. Aquiles estava morto. Fitámos as luminosas janelas vazias dos seus olhos e nada vimos para lá delas. Com uma mão enorme e desajeitada, Ájax cerrou-lhe os olhos; depois, colocou de novo o elmo na cabeça do primo e apertou firmemente as correias; as lágrimas caíam-lhe cada vez mais rápidas, a boca retorcia-se num esgar aflito.
Estava morto. Aquiles estava morto. Alguma vez conseguiríamos suportar a dor da sua morte?
Por um largo momento, o choque deve ter reduzido os dois exércitos à mais absoluta imobilidade; de súbito, porém, os Troianos caíram sobre nós como cães lambendo o sangue de homens. Queriam o corpo e a armadura. Ulisses correu de imediato para nós, sem se preocupar com as suas lágrimas. Um silêncio imenso apoderara-se dos Mirmidões: diante dos seus olhos abismados, o impossível tornara-se realidade. Curvando-se, Ulisses pegou na Velha Pélion e brandiu-a defronte dos seus rostos.
- Vão deixar que eles o levem? - gritou. - Só os baixos truques de um vilão poderiam ter morto Aquiles! Vão ficar aí parados e deixar que eles roubem o corpo do vosso querido chefe? Em nome de Aquiles, ordeno-vos que o defendam!
Os Mirmidões acordaram do estupor em que o choque os deixara e voltaram a formar; nenhum troiano se aproximaria de Aquiles enquanto um único dos seus soldados fosse vivo. Formando diante de nós, aguentaram a carga inimiga com uma mágoa selvagem. Ulisses ajudou Ájax a erguer-se, ajudou-o a erguer nos seus braços a frouxa e pesada forma. As lágrimas continuavam a deslizar pelas faces de Ájax.
- Leva-o para lá do campo de batalha, Ájax. Eu não permitirei que eles penetrem nas nossas linhas.
Como se de súbito se tivesse lembrado de um pormenor importante, Ulisses enfiou a Velha Pélion na mão direita de Ájax e empurrou-o para que ele não tardasse mais. Sempre nutri sérias reservas relativamente a Ulisses, mas a verdade é que Ulisses era um rei. Com a espada na mão, virou-se e fincou os pés na terra ainda fumegante do sangue de Aquiles. Aguentámos a carga troiana e repelimo-la. Quando viu Ájax afastando-se, Eneias desatou a uivar como um chacal. Virei-me para Ulisses.
- Ájax é forte, mas não suficientemente forte para ir muito longe com Aquiles nos seus braços. Deixa-me ir atrás dele. Poderei depois levar Aquiles no carro.
Ulisses concordou. E foi assim que conduzi os cavalos na direcção de Ájax, que acabava de abandonar as linhas e se arrastava pesadamente na direcção da praia. Estava eu ainda demasiado longe para ajudar, quando um carro passou por mim a toda a velocidade. O seu condutor queria apanhar Ájax. Um dos filhos de Príamo seguia no carro, pois levava as insígnias cor de púrpura da Casa de Dárdano na sua couraça. Enquanto procurava dar um novo ânimo aos meus cavalos, gritei para Ájax, a fim de o avisar do perigo. Mas Ájax pareceu nada ouvir.
O príncipe troiano saltou do seu poleiro, empunhando a espada, sorridente.
O que revelava que não conhecia Ájax, que continuou a andar como se nada tivesse acontecido. De súbito, ergueu Aquiles mais alto nos seus braços e trespassou o troiano com a Velha Pélion. Ulisses fizera bem em entregar-lha.
- Ájax, deita Aquiles no carro - disse eu, aproximando-me dele.
- Não. Eu levo-o.
- É demasiado longe. Vais dar cabo de ti. -Eu levo-o!
- Deixa-me pelo menos tirar-lhe a armadura - disse eu, desesperado. Eu levo-a no carro. Não faz sentido que leves a armadura.
- Sim, tens razão. Desse modo, poderei sentir o corpo do meu querido primo, e não o metal que o envolve. Podes tirar-lhe a armadura.
Depois de termos libertado Aquiles daquele peso horrendo, Ájax continuou a sua caminhada, embalando o primo, beijando-lhe o rosto destroçado, falando com ele, cantarolando como uma mãe adormecendo uma criança.
O exército seguia-nos lentamente, ao longo da planície; mantive o carro a uma escassa distância de Ájax; as suas pernas imensas arrastavam-se num esforço sublime; dir-se-ia que Ájax seria capaz de caminhar cem léguas com Aquiles nos seus braços.
O deus contivera a sua dor demasiado tempo. Por fim, deixou-a cair sobre as nossas cabeças, e toda a abóbada celeste rompeu a disparar brancos raios de fogo. Os cavalos estremeceram e pararam, agrilhoados pelo medo; até mesmo Ájax parou, enquanto os trovões ribombavam por sobre as humanas cabeças e os relâmpagos desenhavam nas nuvens um fantástico rendilhado. A chuva libertou-se finalmente, gotas imensas e pesadas descendo à terra nitidas e esparsas, como se o deus estivesse demasiado comovido para chorar abundantemente. Porém, depressa as lágrimas se transformaram em dilúvio e, ao fim de algum tempo, já nós chapinhávamos num mar de lama. O exército avançou connosco, agora que o Senhor do Trovão obrigara ao fim de toda a refrega. Todos juntos, passámos com Aquiles o Escamandro, Ájax à frente e o rei imediatamente atrás. Sob o dilúvio, deitámo-lo num esquife, enquanto o Pai lhe limpava o sangue com lágrimas do céu.
Eu e Ulisses dirigimo-nos imediatamente à casa de Aquiles, a fim de falarmos com Briseida. Ela estava à porta, parecia esperar-nos.
- Aquiles morreu - disse Ulisses.
- Onde está ele? - perguntou ela, com uma voz imperturbável.
- Diante da casa de Agamémnon. - Ulisses estava ainda a chorar. Briseida afagou-lhe o braço e sorriu.
- Não há razão para lágrimas, Ulisses. Aquiles será imortal. Tinham instalado um dossel sobre o esquife para proteger da chuva o corpo de Aquiles; Briseida mergulhou sob o dossel e ficou parada a olhar para as ruínas daquele homem magnífico, água e sangue diluindo o brilho do seu cabelo, o rosto lívido e imóvel. Perguntei-me se ela estaria a ver o mesmo que eu: aquela boca sem lábios parecia magnífica na morte, ao contrário do que sempre fora em vida.
Com aquela boca, o seu rosto era o rosto do perfeito guerreiro.
Porém, o que Briseida pensaria, nunca o cheguei a saber, porque ela não o revelou, nem então, nem nunca. Com ternura extrema, curvou-se e beijou-lhe as pálpebras e pegou nas suas mãos e juntou-as sobre o peito e só parou de lhe ajeitar a roupa quando achou que Aquiles estava bem.
Mas ele estava morto. Aquiles estava morto. Alguma vez conseguiríamos suportar a dor da sua morte?
Sete dias chorámos a sua morte. No último dia, quando o Sol se despedia já da terra, deitámo-lo no carro fúnebre de ouro e levámo-lo para a outra margem do Escamandro, para o túmulo no penhasco. Briseida foi connosco, pois ninguém tinha coragem de a impedir de assistir à cerimónia; vinha no final do longo cortejo, as mãos entrelaçadas, a cabeça curvada. Ájax amparou a cabeça de Aquiles com a palma da mão, enquanto, sobre um escudo, o transportávamos para a câmara fúnebre. Estava vestido de ouro, mas não com a armadura de ouro. A armadura ficara sob a custódia de Agamémnon.
Depois de os sacerdotes terem pronunciado as palavras rituais, colocado a máscara de ouro sobre o rosto de Aquiles e procedido às libações, abandonámos com passos lentos o túmulo que ele partilhava com Pátrocles, Pentesileia e doze jovens nobres troianos. A atmosfera que reinava no túmulo era mais estranha do que todos os estranhos portentos e eventos a que havíamos assistido naqueles dias; uma atmosfera doce, pura, inefável. No cálice de ouro, o sangue dos doze jovens continuava líquido, e tão intensamente carmim como no primeiro dia.
Virei-me para verificar se Briseida vinha atrás de nós. Não vinha. Estava ajoelhada junto ao carro funerário. Ainda que não pudesse alcançá-la rapidamente, corri para o túmulo, com Nestor a meu lado. Emudecemos ao vê-la enterrar o punhal no peito com as poucas forças que lhe restavam. Num ápice, caiu sem vida. Sim, Briseida tomara a decisão correcta! Como poderíamos nós enfrentar a luz de mais um dia sem Aquiles? Curvei-me para apanhar o punhal, mas Nestor deteve-me.
- Vamos embora, Automedonte. Eles não querem mais ninguém aqui. Os festejos fúnebres realizaram-se no dia seguinte, mas não houve jogos. Agamémnon explicou-nos as suas razões.
- Duvido que haja alguém com ânimo para disputar jogos, sejam eles quais forem. Mas não é essa a principal razão. A principal razão reside no facto de que Aquiles não queria ser enterrado com a armadura que a mãe - uma deusa - encomendou a Hefaísto. Aquiles queria que essa armadura fosse dada como prémio ao melhor dos homens do nosso exército. Em vez de jogos fúnebres.
Não pus em causa as suas palavras, mas a verdade é que Aquiles nunca tal me dissera.
- Como vais decidir quem é o melhor dos nossos homens? Levando em conta os feitos de armas? O problema é que, por vezes, os feitos de armas não constituem uma prova evidente de uma grandeza genuína.
- Precisamente - disse o rei supremo. - Foi por isso que decidi fazer um torneio de palavras. Quem achar que é o melhor dos homens que restam no nosso exército, que avance e que apresente as suas razões.
Apenas dois contendores avançaram. Ájax e Ulisses. Um combate sem dúvida singular! Eles representavam os dois pólos da grandeza: o guerreiro e o - que haveríamos nós de chamar-lhe? O homem que usava todas as suas faculdades mentais para atingir os seus fins?
- Sim, estou de acordo - disse Agamémnon. - Ájax, tu trouxeste o corpo de Aquiles para o nosso acampamento. Ulisses, tu tornaste possível que isso acontecesse. Ájax, falarás tu primeiro. Diz-me porque pensas que mereces a armadura.
Ájax parecia tão perturbado como seco de palavras; levantou-se, o maior gigante que jamais vira, incapaz de dizer fosse o que fosse. O seu aspecto era também lastimoso; havia algo de errado no seu lado direito, desde o rosto até à perna. Vira-o arrastar essa perna durante o cortejo e o braço direito também não se movia de uma forma natural. Uma ligeira trombose, pensei. Ájax sofrera uma ligeira trombose. O facto de ter carregado durante tanto tempo com o corpo do primo afectara a parte mais frágil de Ájax, a sua mente. Quando finalmente falou, Ájax teve de fazer longas pausas, pois não encontrava as palavras certas.
- Imperial rei dos reis, amigos reis e príncipes... Eu sou primo direito de Aquiles. O pai dele, Peleu, e o meu pai, Télamon, eram irmãos germanos. O pai deles, Éaco, era filho de Zeus. É grandiosa, a nossa linhagem. É grandioso, o nosso nome. A armadura deverá ser minha porque a minha linhagem é essa, porque o meu nome é esse. Não posso permitir que a armadura de Aquiles seja dada a um homem que é filho bastardo de um vulgar ladrão.
Os vinte homens presentes agitaram-se nas suas cadeiras, franziram o sobrolho intrigados. Que estava Ájax a fazer? A injuriar Ulisses? Não que Ulisses reagisse; como que surdo, limitava-se a olhar para o chão.- Eu vim para Tróia voluntariamente, tal como Aquiles. Não havia nenhum juramento a prender-nos. Não fui eu quem foi desmascarado por fingir que estava louco, mas sim Ulisses. Apenas dois homens neste grande exército travaram um duelo com Heitor - Aquiles e eu. Eu não precisei de um Diomedes para fazer o trabalho sujo por mim. Que fará Ulisses com a armadura? De que lhe servirá? A sua frágil mão esquerda nunca poderia arremessar convenientemente a Velha Pélion. A sua cabeça ruiva afundar-se-ia sob o peso daquele elmo. Se duvidam do meu direito à propriedade do meu primo, atirem-na para o meio de um bando de troianos - e verão qual de nós a resgatará!
Voltou coxeando para a sua cadeira, sentou-se pesadamente. Agamémnon parecia embaraçado, mas era evidente que a maior parte dos presentes concordava com o que Ájax dissera. Perplexo, examinei Ulisses. Por que estranha razão pretenderia ele a armadura?
Ulisses avançou e postou-se diante de nós, adoptando uma atitude descontraída, com as pernas bem separadas, o fogo da cabeleira acentuado pela luz. Ruivo e canhoto, pensei. De certeza que não corre sangue divino naquelas veias.
- É verdade que tentei furtar-me à guerra de Tróia - disse Ulisses. - Eu sabia quanto tempo esta guerra iria durar. Se não tivesse havido o juramento, quantos de vós teriam participado voluntariamente nesta expedição se soubessem que ela iria durar tanto tempo?
- No que toca a Aquiles, eu sou a única razão por que ele veio para Tróia eu, e mais ninguém, descobri o plano que fora urdido para o manter em Ciros.
Ájax estava presente, mas não entendeu nada. Perguntem a Nestor: ele confirmará as minhas palavras.
«Quanto a linhagens, ignoro as vis insinuações de Ájax. Também eu sou bisneto do omnipotente Zeus.
«No que toca a coragem física, haverá alguém que duvide da minha? Eu não possuo o corpo de um gigante para escorar essa coragem, mas a verdade é que sempre me saí muito bem em todos os campos de batalha. Se duvidam disso, contem as minhas cicatrizes. O rei Diomedes é meu amigo e amante, não meu lacaio.
Fez uma pausa, ainda que por razões diversas das de Ájax. Ulisses não tinha o menor problema com as palavras.
- Eu pretendo a armadura para mim por uma única razão - porque quero dar-lhe o destino que Aquiles pretendia que lhe fosse dado.
«Se eu não posso envergá-la, poderá Ájax? Se é demasiado grande para mim, certamente que é demasiado pequena para ele. Dêem-me a armadura. Eu mereço-a.
Ergueu os braços num gesto largo, como que a dizer que os seus motivos eram incontestáveis, após o que regressou à sua cadeira. Muitos vacilavam agora, mas a nossa opinião pouca importância teria. A decisão caberia sempre a Agamémnon.
O rei supremo olhou para Nestor.
- Que achas, Nestor? Nestor suspirou.
- Que Ulisses merece a armadura.
- Que assim seja, então. Ulisses, a armadura é tua. Ájax gritou logo que ouviu tais palavras. Empunhou a espada, mas não chegou a fazer o que pretendia fazer com ela. Mal se levantou, estatelou-se no chão e aí ficou. Tentámos levantá-lo, mas todos os nossos esforços foram vãos. Por fim ' Agamémnon ordenou que trouxessem uma maca e oito soldados levaram-no. Ulisses colocou a armadura num carro de mão enquanto os reis dispersavam, pesarosos e abatidos. Quanto a mim, fui beber vinho, na esperança de que o vinho curasse o azedume que me corroía. Quando Ulisses concluíra o seu breve discurso, ficáramos a saber o que pretendia ele fazer com a armadura - dá-la a Neoptolemo. Talvez em Tróia fosse possível oferecer a armadura de um morto, como se de um simples presente se tratasse. Contudo, na nossa região do mundo, a armadura de um morto, ou era enterrada com ele, ou era disputada nos seus jogos fúnebres. E era pena que assim fosse. Tendo em conta aquele desfecho, era verdadeiramente lamentável.
Havia muito tempo que a noite caíra quando desisti de me embriagar. Caminhei pelas ruas desertas, entre os elevados edifícios, procurando uma luz, uma única luz, um sítio qualquer que me pudesse oferecer algum conforto. E ali estava ela, finalmente, uma luz solitária na noite! Era a casa de Ulisses. A cortina da porta não fora ainda baixada e por isso entrei, com um passo vacilante, vergado pela fadiga.
Ulisses estava sentado ao lado de Diomedes, os olhos perdidos nas últimas brasas da fogueira, a mente perdida em silenciosas reflexões. Tinha o braço sobre os ombros do rei de Argos, os seus dedos acariciavam lentamente o ombro nu do amante. Eram tão fortes os laços que os uniam que, ao vê-los assim, senti-me como um cão sem dono, senti-me ainda mais só do que efectivamente estava. Aquiles estava morto. E era eu quem conduzia os Mirmidões, eu que não nascera para comandar. Uma situação verdadeiramente aterradora. Abeirei-me da luz e afundei-me numa cadeira.
- Perturbo? - perguntei então, algo tardiamente. Ulisses sorriu.
- De modo nenhum. Toma, bebe.
O meu estômago todo se revolveu.
- Não, obrigado. Tenho andado toda a noite a tentar embriagar-me, mas sem o menor êxito.
- Tão sozinho, Automedonte? - perguntou Diomedes.
- Mais só do que jamais quis estar. Como posso eu substituí-lo? Eu não sou Aquiles!
- Não te preocupes - murmurou Ulisses. - Há dez dias, enviei um mensageiro a Neoptolemo, dizendo-lhe que viesse. Tomei essa decisão quando vi as sombras da morte enegrecendo o rosto de Aquiles. Se os ventos e os deuses o ajudarem, Neoptolemo não tardará a chegar a Tróia.
Senti um alívio tão grande que quase o beijei.
- Agradeço-te do fundo do coração, Ulisses! Os Mirmidões têm de ser comandados pelo sangue de Peleu.
- Não me agradeças por ter tomado uma decisão sensata. E ali ficámos sentados, falando disto e daquilo enquanto a noite se ia escoando, cada um de nós encontrando nos outros o consolo de que tanto precisava. A certa altura, tive a sensação de que ouvira um longínquo tumulto; porém, como o barulho se esbateu rapidamente, voltei a concentrar-me naquilo que Diomedes estava a dizer.
Até que ouvimos um grito imenso; desta feita, todos ouvimos. Diomedes levantou-se de um salto, tão intenso e vigilante como uma pantera, procurando de imediato a sua espada, enquanto Ulisses continuou sentado, sem saber muito bem o que havia de fazer, a cabeça empinada, os ouvidos alerta. O tumulto redobrou de intensidade; saímos imediatamente e avançámos para o local de onde vinham os gritos.
Ao fim de pouco tempo, estávamos na margem do Escamandro, onde mantínhamos um curral de animais destinados a sacrifícios - cada um deles individualmente escolhido, consagrado e marcado com um símbolo sagrado. Alguns dos outros reis já lá estavam e um guarda impedia o acesso daqueles que eram movidos pela mera curiosidade. Claro que o guarda nos deixou passar imediatamente; juntámo-nos a Agamémnon e Menelau, que se encontravam ao pé da cerca que rodeava o curral, perscrutando um qualquer objecto que pairava algures no meio da escuridão extrema. Ouvimos gargalhadas dementes, uma voz que dizia coisas perfeitamente incoerentes e que se erguia cada vez mais alto, gritando para as estrelas, berrando a sua raiva e o seu escárnio.
- Este golpe é para ti, Ulisses, filho de um ladrão! Morre, verme! Morre, sicofanta! O teu nome é Menelau!
E a ladainha prosseguia, enquanto nós sondávamos as trevas sem nada enxergarmos. Até que alguém deu um archote a Agamémnon, que o ergueu bem alto, espalhando a luz por um vasto espaço. Os meus olhos esbugalharam-se de horror.
O meu estômago, que continha apenas vinho pois eu tinha recusado toda a comida, parecia erguer-se em espasmos; afastei-me dos outros e vomitei. A luz do archote iluminava um mar de sangue. Ovelhas e vacas e cabras jaziam em lagos de sangue, os olhos vidrados e fixos, os corpos desmembrados, as gargantas cortadas, as peles exibindo por vezes dezenas de feridas. Ao fundo, Ájax saltava com uma espada ensaguentada na mão. A sua boca só se abria para berrar insultos ou para romper naquelas gargalhadas que nos faziam gelar o sangue. Com o outro braço, agarrava um vitelinho que, aterrado, escoiceava contra a implacável força bruta do gigante. De nada lhe valeu, pois Ájax encheu-o de golpes. De cada vez que a sua espada penetrava no pobre animal, Ájax chamava ao vitelo Agamémnon. Por fim, rompeu em novas e dementes gargalhadas.
- Ah, quem me dera ser cego para não ver isto! Ao que ele chegou! - murmurou Ulisses.
Conseguindo controlar as ânsias de vómito, perguntei a Ulisses:
- O que é que se passa com Ájax?
- Loucura, Automedonte. Ájax enlouqueceu. É o resultado de diferentes coisas. Aquela cabeça sofreu demasiados golpes ao longo dos anos - demasiado sofrimento - talvez uma trombose, também. Mas chegar a este ponto ... ! Pobre Ájax! Só espero que ele não recupere o suficiente para entender o que fez.
- Temos de detê-lo! - disse eu.
- Se quiseres, experimenta tu, Automedonte. Mas não me peças a mim que enfrente Ájax no meio de um acesso de loucura.
- Nem a mim - disse Agamémnon. Assim, tudo o que fizemos foi ficar ali a ver.
Com o alvorecer, a loucura esfumou-se. Ájax recuperou o entendimento no meio de um lago de sangue que lhe chegava aos tornozelos. Pôs-se a olhar à sua volta como se estivesse no meio de um pesadelo - para as dezenas de animais consagrados que os rodeavam, para o sangue que o cobria da cabeça aos pés, para a espada que tinha na mão, para os reis que, em silêncio, o observavam para lá da cerca. Tinha ainda uma cabra numa das mãos, medonhamente mutilada, sem pinga de sangue nas veias agora mortas. Com um guincho de horror, deixou cair o animal, compreendendo finalmente o que fizera durante a noite. Depois, correu para a cerca e saltou por cima dela e rompeu numa fuga tresloucada, como se as Fúrias estivessem já a persegui-lo. Teucro deixou-nos sem demora e foi no seu encalço; quanto aos outros chefes gregos, incluindo eu, ficaram onde estavam, demasiado abalados para fazerem fosse o que fosse.
Menelau foi o primeiro a conseguir falar.
- Vais permitir que ele escape impune, irmão? - perguntou ele a Agamémnon.
- Que queres que eu faça, Menelau?
- Ájax tem de morrer! Ájax matou os animais sagrados! A morte é o único castigo possível! São os deuses que no-lo exigem!
Ulisses suspirou.
- Os homens que os deuses mais amam são precisamente aqueles que os deuses mais depressa condenam à loucura - disse. - Deixa-o em paz, Menelau.
- Ele tem de morrer! - insistiu Menelau. - Executa-o e não deixes que nenhum homem cave a sua sepultura!
- Sim, essa é a punição prevista - murmurou Agamémnon.
- Não, não, não! - exclamou Ulisses. - Deixem-no em paz! Não te basta que Ájax se tenha condenado a si mesmo, Menelau? Só por causa do que fez esta noite, a sombra dele nunca mais sairá do Tártaro! Deixem-no em paz! Não lancem mais achas para a fogueira que devasta aquela desgraçada cabeça!
- Ulisses tem razão - disse Agamémnon, afastando-se já da carnificina. Ájax está louco, irmão. Ele que expie o seu crime o melhor que puder.
Ulisses, Diomedes e eu avançámos pelas ruas e por entre os murmúrios dos homens, gelados de medo com o que se passara. O nosso destino era a casa onde Ájax vivia com a sua primeira concubina, Tecmessa, e com o filho de ambos, Eurísaces. Quando Ulisses bateu à porta trancada, Tecmessa espreitou a medo pela janela. Só depois abriu a porta, com o filho encostado a ela.
- Onde está Ájax? - perguntou Diomedes. A mulher secou as lágrimas.
- Foi-se embora, rei Diomedes. Não sei para onde. Ele disse que ia banhar-se nas águas do mar, a fim de que Palas Atena pudesse perdoar-lhe. - As lágrimas voltaram, mas logo Tecmessa conseguiu contê-las. - Ájax deu o escudo ao filho. Disse que o escudo era a sua única arma que não fora manchada pelo sacrilégio. Disse-nos ainda que todas as outras armas deveriam ser enterradas com ele. Por fim, deixou-nos entregues aos cuidados de Teucro. Digam-me, por favor: que se passa com ele? O que é que ele fez?
- O que ele fez, nunca o compreenderá, Tecmessa. Fica em casa, nós encontrá-lo-emos.
Estava na praia, no sítio onde as suaves ondas se enrolavam delicadamente, demandando a lagoa, e onde umas quantas rochas se erguiam sobre a areia grossa. Teucro estava ao seu lado, ajoelhado, curvado sobre ele - o firme Teucro, que pouco falava, mas que estava sempre presente quando Ájax precisava dele. Mesmo agora, no derradeiro momento.
A cena falava por si mesma: uma rocha plana, uns quantos dedos acima da areia grossa, a superfície fendida por algum golpe do tridente de Poseidon, o punho da espada enfiado numa das fendas, com a lâmina para cima. Ájax despira a armadura e banhara-se no mar; na areia, desenhara uma coruja, símbolo de Atena, e um olho, símbolo da Mãe Kubaba. Depois, encostara o peito à ponta da espada e caíra sobre ela com todo o seu peso; a espada trespassara-o no centro do peito e saíra pela espinha. Dois cúbitos de lâmina espreitavam por sobre a espinha. O rosto banhava-se no seu próprio sangue, os olhos cerrados, traços de loucura ainda nos seus traços. As mãos enormes caíam moles, os dedos ligeiramente encurvados.
Teucro ergueu os olhos e fitou-nos com uma expressão amarga. Quando os seus olhos se detiveram em Ulisses, disseram-lhe, muito claramente, que era ele o único culpado. Não sei o que Ulisses pensou nesse momento. Só sei que não vacilou.
- Que podemos fazer? - perguntou a Teucro.
- Nada - disse Teucro. - Eu próprio o enterro. -Aqui? -perguntou Diomedes, horrorizado. - Não, ele merece melhor!
- Sabes que isso não é verdade. Ele também sabia. Eu também sei. Ájax terá aquilo que as leis dos deuses dizem que ele merece - a sepultura de um suicida. É tudo o que eu posso fazer por ele. É tudo o que resta entre mim e ele. Ele terá de pagar na morte, tal como Aquiles pagou em vida. Foi isso mesmo que ele disse antes de morrer.
Deixámos os dois irmãos sozinhos. Os dois irmãos que lutavam sempre juntos, o mais pequeno sob o escudo do gigante. Em oito dias, Aquiles e Ájax tinham desaparecido - o espírito e o coração do nosso exército.
- Ai! Ai! - exclamou Ulisses, as lágrimas deslizando-lhe pelas faces. Quão estranhos são os caminhos dos deuses! Aquiles arrastou Heitor junto às muralhas de Tróia com o boldrié que Ájax lhe oferecera. Agora, Ájax matou-se com a espada que Heitor lhe dera. - O seu rosto desfigurou-se de súbito, moldado pela mais extrema raiva. - Pela Mãe, estou tão farto de Tróia ... ! Odeio até o cheiro do ar de Tróia!
Narrado por Agamémnon
Os dias de guerra aberta tinham acabado; Príamo fechara a Porta Ceia e espreitava-nos das suas torres. Uma mancheia de chefes troianos e aliados sobrevivera, mas, dos grandes comandantes, só Eneias restava. Mortos os filhos que mais amara, Príamo pouco consolo encontraria agora nos inúteis. Aquele era um tempo de espera, enquanto as nossas feridas cicatrizavam e os nossos espíritos recuperavam lentamente o ânimo. Um facto curioso acontecera, uma prenda dos deuses com que nenhum de nós sequer sonhara: Aquiles e Ájax pareciam ter impregnado de forma indelével o espírito de cada um dos soldados gregos. Não havia um único que não estivesse determinado a conquistar as muralhas de Tróia. Referi o fenómeno a Ulisses, pois gostaria de saber o que pensava ele sobre o assunto.
- Não há nisso mistério nenhum - retorquiu Ulisses. - Aquiles e Ájax transformaram -se em heróis e os heróis nunca morrem. O que os homens estão a fazer é muito simples: estão a assumir plenamente as responsabilidades que Aquiles e Ájax lhes deixaram. Além disso, estão desejosos de voltar para casa. Mas não derrotados. A única vingança possível para os acontecimentos destes dez anos de exílio é a queda de Tróia. Pagámos um preço muito elevado por esta campanha - um preço de sangue, de cabelos brancos, de corações dilacerados, de rostos que amamos mas que, agora, muito provavelmente, não seríamos capazes de reconhecer, de lágrimas, de um amargo vazio. A pouco e pouco, Tróia foi-nos corroendo a todos. Ninguém se atreverá a regressar à pátria antes de ver as ruínas de Tróia, tal como ninguém se atreverá a profanar os Mistérios da Mãe.
- Nesse caso - disse eu -, pedirei conselho a Apolo.
- Apolo é muito mais troiano do que grego.
- Mesmo assim, pedir-lhe-ei conselho. Apolo é a boca oracular. Perguntar-lhe-ei que temos nós de fazer para entrar em Tróia. Apolo não pode negar uma resposta sincera aos mais altos representantes de um povo - seja qual for esse povo!
O sumo-sacerdote, Taltíbio, examinou as refulgentes entranhas do sagrado fogo e suspirou. Taltíbio em nada se assemelhava a Calcas; sendo grego, usava o fogo e a água para adivinhar, deixando os animais unicamente para os sacrifícios. Por outro lado, também não anunciava as suas descobertas durante o augúrio propriamente dito. Só as revelava perante a assembleia dos reis.
- Que viste, Taltíbio? - perguntei-lhe.
- Muitas coisas, rei supremo. O meu entendimento não chegou para algumas delas. Duas houve, porém, que me foram plenamente reveladas.
- Que coisas foram essas?
- Em primeiro lugar, não poderemos conquistar a cidade com aquilo que temos. Há um objecto e uma pessoa que os deuses muito apreciam e de cujo apoio precisamos. Se eles estiverem connosco, os deuses deixar-nos-ão entrar em Tróia. Caso contrário, o Olimpo unir-se-á contra nós.
- Que objecto e que pessoa são esses, Taltíbio?
- Em primeiro lugar, trata-se do arco e das flechas de Héracles. Quanto à pessoa, é Neoptolemo, o filho de Aquiles.
- Obrigado, sumo-sacerdote. Podes retirar-te. Observei os rostos dos reis. Idomeneu e Meríona tinham uma expressão tão grave quanto triste; o meu pobre irmão Menelau tinha o mesmo ar de sempre; Nestor estava tão velho que todos nós temíamos por ele; Menesteu continuava a cumprir sem queixas os seus deveres de soldado; Teucro não perdoara a nenhum de nós; Automedonte continuava inconsolável, pois não queria comandar os Mirmidões; e Ulisses - ah, Ulisses! Quem poderia saber o que se passava no fundo daqueles olhos tão belos, tão luminosos?
- Não dizes nada, Ulisses? Sabes onde estão o arco e as flechas de Héracles. Que possibilidades teremos nós de os reaver?
Ulisses levantou-se lentamente. -Ao longo de quase dez anos, não recebemos nenhuma notícia de Lesbos.
- Ouvi dizer que ele tinha morrido - disse Idomeneu com um ar sombrio. Ulisses desatou a rir-se.
- Quem? Filoctetes, morto? Nem com o veneno de uma dúzia de víboras! Acredito que Filoctectes está vivo e continua em Lesbos. Temos, pelo menos, de tentar. Quem deverá ir, Agamémnon?
- Tu e Diomedes. Vocês eram amigos de Filoctetes. Se ele tem de nós boas recordações, isso dever-se-á a ti e a Diomedes. Partam imediatamente para Lesbos e peçam-lhe o arco e as flechas que herdou de Héracles. Digam-lhe que guardámos a parte que lhe cabe dos despojos e que nunca nos esquecemos dele - disse eu.
Diomedes estirou-se.
- Um dia ou dois no mar! Uma óptima ideia!
- Mas falta resolver o problema de Neoptolemo - disse eu. - Teremos de esperar mais de uma lua pelo filho de Aquiles - se o velho Peleu o deixar vir.
Ulisses, que já estava à porta, virou-se para mim.
- Não te preocupes, Agamémnon: eu já tratei disso. Há mais de meia lua que mandei uma mensagem a Neoptolemo, para que viesse sem demora para Tróia. Quanto a Peleu, proponho que façamos oferendas ao Pai Zeus!
Oito dias passados, a vela cor de açafrão do navio de Ulisses voltou a surgir no horizonte. O coração num alvoroço, esperei na praia, junto aos ancoradouros vazios. Mesmo supondo que sobrevivera, Filoctetes estava em Lesbos há dez anos e nunca nos mandara uma mensagem que fosse. E os nossos mensageiros também nunca o haviam encontrado. E as doenças podiam devastar implacavelmente a mente de um homem... Bastava pensar no caso do pobre Ájax.
Ulisses vinha na proa, acenando-nos alegremente. Suspirei de alívio, um imenso alívio. Ulisses podia ser o mais tortuoso dos homens, mas não sorriria assim se tivesse falhado. Menelau e Idomeneu juntaram-se a mim. Nenhum de nós sabia exactamente o que esperar daquele navio. Tínhamos visto Filoctetes às portas da morte; e, caso tivesse sobrevivido, com certeza que ficara sem a perna. Imaginava já Filoctetes mutilado, uma ruína de cabelos brancos; de certeza que não era aquele homem que subira à amurada e que saltara os muitos cúbitos que separavam a amurada do chão tão lépido como um rapaz. Mas era mesmo ele ... ! Não mudara nada! A passagem dos anos não se notava nele! Tinha uma bela barba loura e envergava apenas um saiote. Dependurado do ombro, um arco poderoso e uma velha aljava repleta de flechas. Sabia que Filoctetes tinha pelo menos quarenta e cinco anos, mas o seu corpo rijo e bronzeado parecia ter menos dez e as suas pernas poderosas continuavam perfeitas. A única coisa que podia fazer era olhar para ele boquiaberto.
- Porquê, Filoctetes, porquê? - foi tudo o que consegui dizer-lhe quando nos sentámos em minha casa, partilhando o nosso vinho.
- A resposta é simples, Agamémnon... Deixa-me contar-te a história do princípio ao fim.
- Conta-me tudo, peço-te - disse eu, pela primeira vez feliz desde que Aquiles e Ájax tinham morrido. Era esse o efeito que Filoctetes tinha em nós; ele enchia de vida e animação as minhas velhas e bolorentas salas.
- Precisei de um ano para recuperar todas as minhas faculdades mentais e o uso da minha perna - começou Filoctetes. - Receando que o povo de Lesbos me hostilizasse por eu ser grego, os meus criados levaram-me para o cume de uma montanha e fizeram de uma gruta a minha casa. Era uma montanha a oeste de Termos e Antissa. A aldeia, ou mesmo a quinta, mais próxima, ficava a muitas léguas de distância. Os meus criados eram fiéis e leais: por isso, ninguém sabia quem eu era, nem onde eu estava. Imagina a minha surpresa quando Ulisses me disse que Aquiles saqueara Lesbos quatro vezes nestes últimos dez anos! Eu não sabia de nada!
- Bom, é natural que não soubesses: só as cidades é que são saqueadas - disse Meríona.
- Claro, claro.
- Mas não te aventuraste a sair da tua toca, depois de teres recuperado? - perguntou Menelau.
- Não - retorquiu Filoctetes. - Não me aventurei. Apolo apareceu-me num sonho. Disse-me que ficasse onde estava. Foi o que eu fiz e, para ser franco, não me custou nada. Dediquei-me à caça. Matava veados e javalis; depois, na aldeia mais próxima, os meus criados trocavam a carne por vinho ou figos ou azeitonas. Era uma vida idílica, meus amigos! Não tinha preocupações, não tinha nenhum reino para governar, não tinha responsabilidades. Os anos iam passando, eu sentia-me feliz, e nunca me passou pela cabeça que esta guerra pudesse ainda durar. Pensava que já tinham regressado todos à Grécia.
-Até que nós subimos ao cume da montanha e te encontrámos - disse Ulisses.
- Apolo disse-te que podias vir para Tróia? - perguntou Nestor.
- Sim. E estou muito contente por poder participar nesta guerra. Um mensageiro surgira entretanto e segredara qualquer coisa a Ulisses, que se levantou imediatamente para acompanhar o homem à porta. Quando voltou, tinha uma expressão cómica, tão grande era a sua surpresa.
- Agamémnon - disse-me ele -, um dos meus agentes informou-me de que Príamo está a planear uma nova batalha. O exército troiano concentrar-se-á junto das nossas muralhas, amanhã, muito antes do alvorecer, com ordens para atacar enquanto estivermos a dormir. Não acham interessante? Uma violação flagrante das leis que governam a guerra. Aposto que a ideia foi de Eneias.
- Francamente, Ulisses! - disse Menesteu, inesperadamente, fazendo um ruído trocista com os lábios. - Quem és tu para criticares as violações dos outros? Há anos que tu não fazes outra coisa!
A boca de Ulisses contorceu-se.
- Sim, o que dizes é verdade, Menesteu. Mas também é verdade que Tróia nunca violou nenhuma dessas leis.
- Pelos vistos, vão violá-las pela primeira vez - disse eu. - Ulisses, autorizo-te a usares de todos os meios para que possamos entrar nas muralhas de Tróia.
- Nesse caso... proponho que os matemos à fome! - retorquiu ele imediatamente.
Todos os meios... menos esse - disse eu.
Era noite cerrada quando formámos; a escuridão demoraria ainda muito a dissipar-se. Eneias depressa concluiu que as suas movimentações haviam sido demasiado lentas. Eu próprio conduzi o assalto. Destroçámos por completo o exército troiano, mostrando-lhes do que éramos capazes mesmo sem Aquiles e Ájax. Constrangidos devido à baixeza dos planos de Eneias, os Troianos entraram em pânico quando caímos sobre eles. Tudo o que tivemos de fazer foi persegui-los e abatê-los às centenas.
Filoctetes usou as flechas de Héracles com um efeito devastador. Desenvolvera um novo sistema: os homens corriam para todas as suas vítimas, arrancavam as preciosas flechas, limpavam-nas e devolviam-nas à aljava.
Aqueles que escaparam, fugiram para a cidade; a Porta Ceia fechou-se nas nossas barbas. A batalha fora breve. Mal o Sol nasceu, vimos os campos juncados de cadáveres troianos; a derradeira flor de Tróia fora finalmente abatida.
Idomeneu e Meríona vieram ter comigo, com Menelau na sua esteira; logo a seguir, surgiram os outros, fazendo um círculo com os carros, a fim de discutirmos a batalha.
- Não há dúvida, Filoctetes: as flechas de Héracles possuem uma estranha magia - disse eu.
Filoctetes sorriu.
- Admito que gostam mais deste trabalho do que da caça ao veado, Agamémnon. Porém, quando os meus homens contarem as minhas flechas, verificarão que faltam três. - Fitou Automedonte, que se saíra muito bem à frente dos Mirmidões. - Tenho boas notícias para ti e para os Mirmidões.
- Boas notícias? - perguntou Automedonte.
- Belíssimas notícias! - exclamou Filoctetes. - Consegui forçar Páris a travar um duelo comigo. Um dos nossos soldados indicou-me quem era Páris.
Furtivamente, fui-me abeirando dele. Por fim, surpreendi-o num local onde não encontraria nenhum esconderijo. Desatei a enaltecer as minhas proezas como archeiro e a escarnecer do seu pequeno arco, dizendo-lhe que a sua arma era boa para as mãozinhas delicadas da mais delicada das donzelas... Como, aos olhos dele, eu tanto podia ser um soldado troiano como um mercenário assírio, Páris caiu na armadilha e aceitou o meu desafio. A fim de lhe aguçar o apetite, disparei desajeitadamente a minha primeira flecha. Mas tenho de admitir que ele tem uma pontaria óptima. Se não tivesse erguido rapidamente o escudo, a primeira flecha dele ter-me-ia acertado em cheio no diafragma. Depois, tratei-lhe da saúde. A primeira flecha cravou-se na mão que retesava o arco, a segunda no calcanhar direito - pensei que era um alvo adequado, tendo em conta que foi ele quem matou Aquiles - e a terceira no olho direito. Claro que não teve morte imediata: nenhuma das flechas acertou num orgão vital. Mas acabará por morrer, mais cedo ou mais tarde. Pedi ao deus que guiasse a minha mão, que o fizesse ter uma morte lenta. - Dando uma palmadinha no ombro de Menelau, desatou a rir-se. - Menelau perseguiu-o por algum tempo, mas não gostou do que viu, e com razão: quem é que ia gostar dum rapazinho naquele estado, todo porco e ensanguentado, apesar de ser tão bonitinho?
Desatámos todos a rir; ordenei a vários mensageiros que espalhassem a notícia de que o assassino de Aquiles era um homem morto. Sim, Páris, o sedutor, chegara ao fim.
Narrado por Helena.
A maior parte do tempo, passava-o sozinha. Ah, se Penélope, a minha prima, me visse! O que ela não se teria rido! O tempo convertera-se num fardo tão insuportável que acabei por me dedicar à tecelagem! Compreendia agora que esposas negligenciadas e tecelagem formavam um par indissolúvel... Páris não se abeirava sequer de mim - literalmente. E Eneias também não.
Com a morte de Heitor, a atmosfera do palácio alterara-se drasticamente. Hécuba fora acometida de uma estranha demência. Não parava de criticar Príamo pelo facto de o rei não ter feito dela a sua primeira esposa. Perturbado e confuso, o rei protestava que Hécuba era a sua principal esposa, a sua rainha! A reacção de Hécuba era sintomática: acocorava-se no chão e desatava a uivar tal qual um cão velho! Completamente louca! Bom, mas pelo menos agora já percebia onde fora Cassandra buscar a sua loucura. Um lugar desesperadamente infeliz. Viúva de Heitor e, por isso mesmo, despojada do seu estatuto de futura rainha, Andrómaca comportava-se como uma sombra. Constava que Andrómaca e Heitor tinham tido uma acesa discussão antes de ele ter partido para a última batalha e que ela fora a culpada do triste desfecho. Heitor pedira-lhe que olhasse para ele, que se despedisse dele, mas Andrómaca permanecera deitada na cama, com a cara virada para a parede. Acreditava nessa história; Andrómaca exibia aquela expressão medonha de tremendo sofrimento e implacável remorso que é típica das mulheres apaixonadas e culpadas. Por outro lado, perdera todo o interesse pelo filho, Astianacte. Logo que Heitor descera à sepultura, Andrómaca confiara aos homens a educação do rapaz.
O pouco que restava do mundo de Príamo desintegrou-se quando Troilo caiu às mãos de Aquiles. Nem mesmo a morte de Aquiles conseguiu arrancar o rei ao desalento em que caíra. Eu sabia o que se dizia na cidadela - que Eneias não ajudara Troilo porque Príamo o insultara durante a assembleia em que nomeara Troilo seu novo herdeiro. Também acreditava nesta história: com Eneias, os insultos pagavam-se caro.
Foi então que Eneias pediu a Príamo que o deixasse conduzir um ataque de surpresa - pela calada da noite! - ao acampamento grego. O abjecto rei troiano concordou.
Não havia nada que conseguisse deter as línguas afiadas da cidadela, mas também não havia nada que se pudesse fazer. Eneias era tudo o que restava a Tróia. Príamo, no entanto, não cedeu completamente: com efeito, acabou por nomear herdeiro o seu filho Deífobo, o porco selvagem, como eu lhe chamava. Um acto provocatório que, no entanto, não perturbou minimamente Eneias. O que não admira, pois Eneias nunca se sentira tão seguro e confiante.
Aos meus olhos, aquele rosto moreno do herdeiro dardaniano não apresentava grandes mistérios: eu sabia que fogos lavravam sob aquela aparência fria; eu sabia que, para satisfazer a sua implacável ambição, Eneias seria capaz de tudo. Como um lento rio de lava, Eneias ia avançando inexoravelmente, engolindo, um a um, todos os seus inimigos.
Quando solicitou autorização a Príamo para conduzir o ataque nocturno ao acampamento grego, Eneias sabia muito bem o que estava a pedir ao rei - estava a pedir-lhe que violasse as leis dos deuses. E só eu me apercebi da imensidão do triunfo de Eneias quando Príamo deu o seu consentimento. Finalmente, Eneias conseguira espezinhar Tróia.
No dia do ataque, fechei-me nos meus aposentos, os ouvidos bem tapados com pequenos chumaços, para não ouvir o tumulto e os gritos. Andava a tecer uma bela peça de lã, com um padrão muito intrincado e uma infinidade de cores. Graças a uma extrema concentração, conseguia esquecer-me de que, lá fora, se travava uma batalha. Penélope, a Tecedeira, Penélope, a esposa daquele ruivo de pernas arqueadas que não conhecia a honra e ignorava os escrúpulos, ficaria espantada com a qualidade do meu trabalho! Estava capaz de apostar que ela nunca teria tecido uma peça tão bela... Conhecendo-a como eu a conhecia, estava certa de que, agora, a pobre Penélope se tinha dedicado a tecer sudários.
«Aquela fingida... Aquela hipócrita... Oh, um poço de virtudes ... ! Vaca maldita, sempre a censurar-me ... », estava eu a dizer para mim mesma, lembrando-me de Penélope, quando senti um estranho formigueiro nos meus braços, como se, nesse exacto momento, alguém tivesse saído da sepultura para se pôr a observar o meu trabalho. Seria possível que Penélope, a Tecedeira, tivesse morrido? Não, uma sorte dessas não teria eu!
Porém, quando ergui a cabeça, verifiquei que era Páris quem estava nos meus aposentos e não a sombra de Penélope. Estava encostado ao vão da porta, a boca abrindo-se e fechando-se no mais absoluto silêncio. Páris? Páris encharcado em sangue? Páris com uma flecha cravada num olho?
Quando tirei os pequenos chumaços dos ouvidos, o ruído cresceu tão depressa como Ménades descendo uma encosta decididas a matar. O outro olho de Páris fitava-me com o fogo da loucura, enquanto a sua boca cuspia palavras que eu não conseguia entender.
Ao fim de breves momentos, o choque que senti de início esbateu-se por completo. Desatei a rir-me, um riso que era mais forte do que eu, um riso que se transformou em gargalhadas estridentes e que me obrigou a sentar-me num divã. Vendo-me rir, Páris, desesperado, caiu de joelhos! Começou então a rastejar, com a mão direita arrastando uma cauda carmim ao longo do chão branco, a flecha enfiada no olho balouçando para cima e para baixo, tão ridiculamente que desatei a rir-me ainda mais. Alcançando os meus pés, envolveu-me as pernas com o braço que estava incólume e encheu de sangue o meu vestido. Enojada, afastei-o com o pé, deixando-o estirado no chão. Depois, corri para a porta.
Encontrei Heleno e Deífobo no pátio principal, ambos ainda com a armadura vestida. Como nenhum deles reparasse em mim, toquei no braço de Heleno; no braço de Deífobo é que eu não tocava, nem que me pagassem!
- Perdemos - disse Heleno com uma expressão fatigada. - Eles estavam à nossa espera. - Lágrimas assomaram-lhe aos olhos. - Nós infringimos as leis! A maldição caiu sobre nós!
Encolhi os ombros.
- Que me interessa isso? Eu não vim saber notícias da vossa estúpida batalha - eu já sabia que vocês iam perdê-la. Vim apenas pedir-lhes ajuda.
- Pede o que quiseres, Helena - disse Deífobo, com um sorriso cheio de malícia.
- Páris está nos meus aposentos - vai morrer, acho eu. Heleno estremeceu.
- Páris vai morrer? Páris? Desandei.
- Não o quero nos meus aposentos! - gritei-lhes. Logo que me alcançaram, pegaram em Páris e deitaram-no num divã.
- Eu não o quero nos meus aposentos! - repeti. - Levem-no daqui para fora! Heleno fitou-me com uma expressão estarrecida.
- Helena! Não podes expulsar o teu marido neste estado!
- Olha bem para mim! Que lhe devo eu a não ser a minha ruína? Há anos que ele me ignora! Há anos que ele faz de mim o alvo de todas as piadas de todas as cadelas despeitadas que há em Tróia! E agora, agora que precisa de mim, pensa que eu ainda sou a mesma idiota aluada que ele convenceu a deixar Amiclas!
Pois bem, eu já não sou essa Helena! Ele que morra, mas não aqui! Ele que morra nos braços da cadela com quem anda agora!
Páris acalmara; o seu olho esquerdo, esbugalhado, não me largava; era um olhar estarrecido, estupefacto.
- Helena, Helena! - gemia o desgraçado.
- Vai gemer para a cama da outra! - gritei-lhe. Heleno afagou-lhe os caracóis grisalhos.
- Que aconteceu, Páris?
- Um caso muito estranho, Heleno! Um homem desafiou-me para um duelo. Áquela distância, só eu ou Teucro conseguiríamos acertar no alvo. Um homem corpulento, com uma barba loura, um aspecto selvagem. Parecia um rei dos bosques do monte Ida. Mas eu não o conhecia, nunca o tinha visto em toda a minha vida! Aceitei por isso o desafio - eu sabia que a vitória seria minha! Mas não foi. Ele venceu-me. E depois desatou a rir-se, tal e qual como Helena!
Estava a prestar mais atenção à flecha do que àquela triste história. De certeza que já tinha visto flechas daquelas... Ou teria ouvido falar delas numa qualquer canção cantada pelo harpista de Amiclas... Uma flecha muito comprida, de madeira de salgueiro tingida com o sumo das amoras, penas brancas de ganso na ponta, salpicadas com a mesma tintura carmim.
- O homem que te alvejou chama-se Filoctetes - disse-lhe eu. - Não merecias tamanha honra, Páris! Tens uma das flechas de Héracles enterrada na tua cabeça. Antes de morrer, Héracles deu o seu arco e as suas flechas a Filoctetes. Ouvi dizer que Filoctetes também tinha morrido, devido a uma mordedura de serpente, mas é óbvio que o rumor era falso. Essa flecha, outrora, pertenceu a Héracles.
Heleno fitava-me com o mais feroz dos olhares.
- Cala-te, harpia sem coração! Como te atreves a atormentar um homem moribundo só para dares vazão à tua cólera?
- Sabes, Heleno - atirei-lhe eu -, tu ainda és pior do que a louca da tua irmã. Ela, pelo menos, não finge que é boa da cabeça... Mas agora agradecia que levassem Párís daqui para fora. Fazem-me esse favor?
- Heleno? - disse Páris, puxando com uma mão débil pelo saiote do irmão. Leva-me para o Ida, para a minha querida Oinone. Ela curar-me-á - ela tem os dons de Ártemis. Leva-me para Oinone!
Meti-me entre os irmãos, tresloucada de raiva.
- Não me interessa saber para onde é que o levam! Só quero que o levem daqui para fora! Levem-no para essa tal Oinone - hah! Será que ele não compreende que está condenado? Arranca a flecha, Heleno, deixa-o morrer! É isso que ele merece!
Heleno e Deífobo sentaram-no então na beira do divã. O mais forte dos dois, Deífobo, curvou-se para pegar nele, mas Páris não o ajudava nada; poltrão como era, não fazia outra coisa senão chorar, transido de medo. Quando finalmente se ergueu, Deífobo deu-se conta de que tinha nos braços um peso morto. Páris nem sequer se agarrava ao irmão.
Heleno foi atrás de Deífobo para o ajudar. Ao passar por ele, o seu braço roçou acidentalmente na haste da flecha. Páris entrou em pânico, desatou a gritar e a dar aos braços desvairadamente, o corpo numa convulsão constante. Deífobo perdeu o equilibrio e os três irmãos caíram no chão num emaranhado de corpos. Ouvi um ronco gorgolejado, sufocado. Então, Heleno ergueu-se e ajudou Deífobo a levantar-se e eu pude ver o que eles não tinham visto.
Páris jazia metade de costas, metade sobre o lado esquerdo, uma perna contorcida debaixo da outra, a mão mutilada esticada. Os seus dedos mais pareciam garras, o pescoço e as costas estavam rigidamente arqueados. Devia ter caído de borco, com Deífobo em cima dele. Depois, Heleno, ao cair em cima de ambos, fizera-o girar sobre si mesmo. A flecha estava partida; as penas tingidas da ponta e dois cúbitos do fuste estavam no chão ao pé dele e, do seu olho, ressaltava não mais do que um dedo de madeira lascada. Um fino fio de sangue escuro corria-lhe do olho, formando já um charco no mármore do chão.
Devo ter gritado, pois Deífobo e Heleno viraram-se imediatamente para mim.
Heleno suspirou.
- Está morto, Deífobo. Deífobo abanou desalentado a cabeça.
- Páris? Páris morto? Só então o levaram dos meus aposentos. Tudo o que eu tinha para me lembrar que o meu marido havia existido eram as marcas das suas mãos na minha saia e as manchas vermelhas no chão alvíssimo. Por um momento, fiquei imóvel, paralisada; depois, encaminhei-me para a janela e olhei para o mundo lá fora, sem nada ver. Aí fiquei até que a escuridão caiu. Não seria capaz de dizer o que pensei durante todo esse dia, à janela da minha sala. A minha memória não guarda nada.
O eterno e odioso vento troiano transformara-se num queixume estridente em torno das torres quando alguém bateu à minha porta. Um mensageiro curvava-se diante de mim.
- Princesa, o rei ordena que vás à Sala do Trono.
- Obrigada. Diz-lhe que irei o mais depressa que me for possível.
A imensa Sala do Trono encontrava-se envolta numa semiescuridão. Só à volta do estrado do trono havia algumas lamparinas acesas, derramando um lençol de uma suave luz amarela sobre o rei, sentado no trono, e também sobre Deífobo e Heleno, que o rodeavam, trocando olhares furiosos por sobre a cabeleira cristalina de Príamo.
Parei junto aos degraus.
- Que desejas de mim, rei Príamo? Com o sobrolho muito franzido, Príamo curvou-se um pouco e fitou-me; o seu desagrado ao ver-me suplantava todos os outros sentimentos permanentemente estampados nos seus traços: a dor, o desespero, a desesperança mais absoluta.
- Filha, tu perdeste o teu marido e eu perdi mais um filho. Já perdi a conta aos filhos que a guerra me roubou - disse ele com uma voz trémula, não mais do que um sussurro na escuridão. - Os deuses levaram-me os melhores dos meus filhos. Agora, estes dois que aqui vês, com o corpo do irmão ainda quente, desataram a rosnar um para o outro numa altercação interminável, cada um deles exigindo a mesma coisa, cada um deles determinado a obtê-la.
- Mas afinal que história é essa? - perguntei, tão exasperada que até me esqueci das normas de cortesia.
- Por que raio é que as divergências entre esses dois me hão-de dizer respeito?
- Dizem-te respeito e muito! - atirou-me o velho, quase tão grosseiro quanto eu. - Deífobo quer casar-se contigo. Heleno quer casar-se contigo. Por isso, terás de me dizer qual deles preferes.
- Nenhum! - exclamei, revoltada.
- Um deles terá de casar contigo - disse o rei. De súbito, naquele rosto enrugado e mirrado, havia indícios muito claros de que Príamo achava a situação picante, como se aquela disputa fosse para ele uma novidade excitante! - Diz-me o nome daquele que preferes! Casarás com ele dentro de seis luas!
- Seis luas! - exclamou Deífobo. - Eu não posso esperar tanto tempo! Eu quero-a agora, pai - agora!
Príamo ergueu-se.
- O corpo do teu irmão ainda não arrefeceu! - atirou-lhe.
- Escusas de te afligir, rei Príamo - disse eu, antes que Deífobo rompesse num dos seus famosos acessos de fúria. - Eu fui casada duas vezes. Não tenciono casar-me uma terceira vez. Quero dedicar o resto da minha vida ao serviço da Mãe. Por isso, não haverá casamento nenhum.
Heleno e Deífobo desataram a cuspir protestos, mas Príamo ergueu a mão e silenciou-os.
- Estejam calados e escutem o que eu tenho a dizer! Deífobo, tu és o mais velho dos meus filhos e foste nomeado herdeiro. Dentro de seis luas, casarás com Helena. Mas não antes! Quanto a ti, Heleno, tu pertences a Apolo. O teu amor por Apolo deveria ser mais forte do que qualquer mulher. Mesmo esta.
Deífobo não conteve os gritos de satisfação. Heleno parecia aturdido. Porém, enquanto olhava para ele, eu própria aturdida com a súbita decisão, Heleno pareceu crescer e mudar, como se certas partes de si mesmo amolecessem e outras endurecessem. Uma mudança muito estranha.
Fitando firmemente o pai, disse-lhe então:
- Durante toda a minha vida, tenho visto os outros satisfazerem os seus apetites, enquanto que eu passo fome e sede. Pai, ninguém me perguntou se eu queria servir o deus - eu fui-lhe consagrado no próprio dia em que nasci! Quando Heitor morreu, devias ter-me nomeado herdeiro, mas Apolo impediu-te de o fazeres! E depois de Troilo morrer, voltaste a preterir-me! Agora, pedi-te algo muito menos importante e, uma vez mais, recusaste as minhas pretensões. - Fez uma pausa, ergueu-se muito altivo e orgulhoso. - Pois bem, há momentos na vida em que mesmo o mais insignificante dos homens não tem outra saída senão revoltar-se! Esse momento chegou para mim. Vou deixar Tróia. Condeno-me a um exílio voluntário. Prefiro transformar-me num vagabundo que nada vale a permanecer aqui, vendo Deífobo arruinar tudo o que resta de Tróia. Odeio ter de te dizer isto, pai, mas a verdade é que tu não passas de um idiota.
Enquanto Príamo digeria o insulto, fiz mais uma tentativa.
- Rei Príamo, suplico-te! Não me obrigues a casar de novo! - exclamei.
Deixa-me consagrar a minha vida à deusa!
Mas Príamo abanou a cabeça.
- Casarás com Deífobo. Não suportava permanecer mais tempo na mesma sala que eles; fugi dali para fora, como se as Filhas de Kore me perseguissem. O que aconteceu a Heleno, não sei. Nem me interessa!
Enviei uma mensagem a Eneias, implorando-lhe que se deslocasse aos meus aposentos. Em toda a cidade de Tróia, Eneias era a única criatura que poderia sentir-se tentada a ajudar-me. Enquanto esperava, deambulando nervosa pelo quarto, as dúvidas começaram a atormentar-me. Embora a nossa ligação tivesse acabado havia já muito tempo, imaginava que ele sentiria ainda alguma afeição por mim. Mas... sentiria mesmo? Ah, onde estaria ele que nunca mais vinha? O tempo fugia, fugia, fugia, cada momento que passava era mais longo, mais sombrio, mais vazio! Pus-me à escuta dos seus passos fortes, determinados. Em vão. Passos nenhuns! Desde a morte de Heitor, os passos de Eneias eram, em toda a cidade de Tróia, os únicos passos que tinham a capacidade de inspirar confiança. Mas onde estaria ele que nunca mais vinha?
- Que queres de mim, Helena? - perguntou-me; abeirara-se do quarto tão silenciosamente que eu nem sequer dera pela sua chegada.
Rindo e chorando, corri a abraçá-lo.
- Já pensava que não vinhas! - disse eu, erguendo o rosto para que ele me beijasse.
Eneias afastou-se.
- Que queres? Olhei-o nos olhos; quando falei, a minha voz soou nervosa, tremida.
- Eneias... ajuda-me! Páris morreu!
- Eu sei.
- Compreendes por certo o que isso significa para mim! Páris está morto! Eu estou à mercê deles! Ordenaram-me que casasse com Deífobo! Com aquele cão nojento! Ah, por todos os deuses! Na Lacedemónia, não o deixariam sequer tocar na bainha da minha saia ... ! Mas aqui, aqui, Príamo ordena-me que me case com ele! Eneias, se tens por mim alguma afeição, vai ter com Príamo e diz-lhe que é verdade que eu não quero casar - não tenho o menor desejo de voltar a casar-me! Não, nunca mais!
A expressão de Eneias era muito clara: dir-se-ia que eu lhe havia proposto a mais desagradável das tarefas.
- Estás a pedir-me o impossível, Helena.
- O impossível? - disse eu, estupefacta. - Eneias, para ti, nada é impossível! Tu és o homem mais poderoso em Tróia!
- Aconselho-te a que cases com Deífobo. Aceita e esquece.
- Mas eu... eu pensava... eu pensava... Eu sei que já não me queres, mas... pensava que sentias por mim alguma afeição e que... me defenderias!
Riu-se, enquanto erguia a cortina, preparando-se para sair.
- Helena, eu não vou ajudar-te. Faz um esforço para entenderes a minha posição. Cada dia que passa cria um novo abismo entre os filhos de Príamo - cada dia que passa é, para mim, um passo em frente rumo ao trono de Tróia. A minha ascensão é um facto, Helena, e não vou pô-la em perigo por tua causa. Entendido?
- Sabes qual é o fim de homens ambiciosos como tu, Eneias! Voltou a rir-se.
- O fim? O fim é um trono, Helena! Um trono!
- Rogar-te-ei uma praga, Eneias! - atirei-lhe. - Gastarei tudo o que tenho para que essa praga se torne realidade! Pedirei aos deuses que nunca te sentes em trono nenhum - que nunca conheças a paz - que vagueies pelo mundo como um desgraçado - e que acabes os teus dias no meio de selvagens, no meio de um povo miserável, numa miserável cabana!
Creio que as minhas palavras o assustaram. A cortina balouçou; Eneias desapareceu.
Logo que Eneias partiu, pus-me a pensar naquilo que me esperava: o casamento com um homem que eu odiava, um homem que, só de me tocar, já me causava náuseas. Apercebi-me então de que, pela primeira vez na minha vida, estava reduzida aos meus próprios recursos. De que, se queria libertar-me daquela horrível cidade-prisão, teria de o fazer sem a ajuda de ninguém.
Menelau não estava longe e duas das Portas de Tróia estavam sempre abertas. Porém, as mulheres do palácio não estavam acostumadas a caminhar pelas ruas, nem os seus pés delicados estavam habituados aos sapatos das mulheres do povo, os mais adequados a longas caminhadas. Sair pela Porta Dardaniana, passar sob a Porta Ceia e chegar à praia grega era uma missão impossível. Quer dizer... a menos que eu fosse montada num animal! As mulheres de Tróia costumavam usar burros; empoleiravam-se no dorso do animal, mas de lado, e não de frente, como as amazonas. Sim, teria de ser essa a solução! Roubaria um burro e iria até à praia envolta nas sombras da noite.
Roubar o burro não foi difícil. Nem montá-lo. Porém, quando cheguei à Porta Dardaniana - muito mais distante da cidadela do que a Porta Ceia - o burro recusou-se a avançar mais. Como era um animal habituado à cidade, desagradavam-lhe os perfumes do campo, os cheiros penetrantes que anunciavam já o Outono, a aragem que vinha do mar. Chicoteei-o, mas ele desatou a zurrar - e que zurro triste aquele; quem o ouvisse, pensaria por certo que o asno estava a finar-se!
Não se finou ele, finou-me ele a mim. Os guardas da Porta Dardaniana correram a investigar. Reconheceram-me e detiveram-me.
- Eu quero ir para junto do meu marido! - supliquei, chorosa. - Por favor! Deixem-me voltar para o meu marido!
Claro que não me deixaram ir. Em contrapartida, o maldito do burro, depois de tanto zurrar, decidiu que, agora, já gostava dos cheiros da planície. Enquanto ele corria para a liberdade dos campos, eu era encerrada no palácio. Mas os guardas não foram acordar Príamo. Quando dei por mim, estava à porta do quarto de Deífobo.
Aguardei passivamente que ele se levantasse e assomasse à porta. Quando apareceu, fitei-o calmamente. Agradeceu cortesmente aos guardas e deu-lhes até uma prenda; mal os guardas acabaram de fazer as suas vénias, Deífobo ergueu a cortina do seu quarto.
- Entra - disse ele. Não me mexi.
- Querias ir para o teu marido, não era? Pois bem, aqui está o teu marido!
- O nosso casamento ainda não foi celebrado. Além disso, tanto quanto sei, tu tens uma esposa!
- Já não tenho. Divorciei-me.
- Terás de esperar seis luas - foi o que o teu pai disse!
- Mas, minha querida, isso foi antes de tu teres tentado fugir para os gregos e, em particular, para os braços de Menelau... Quando o meu pai souber disso, não me imporá nem uma lua, quanto mais seis! Especialmente quando eu o informar de que já consumei a união....
- Não te atreverias ... ! - rosnei-lhe. A resposta de Deífobo foi puxar-me por uma orelha com uma mão e pelo nariz com a outra. Foi assim que me arrastou para o seu quarto. Aturdida de dor, incapaz de me libertar da força bruta dos seus braços, caí na cama como um peso morto. Só havia uma violação pior do que aquela: a morte. A última coisa em que pensei antes de entregar a minha mente nas mãos da Mãe foi que, um dia, violaria Deífobo da mais horrenda das maneiras: matá-lo-ia.
Narrado por Diomedes
Pouco depois do malogrado ataque troiano, Agamémnon convocou um conselho, apesar de Neoptolemo ainda não ter chegado. Uma atmosfera geral de optimismo impregnava o nosso acampamento. Só as muralhas nos detinham. Agora, porém, Ulisses não pensava noutra coisa senão nas muralhas. Esse era, naquele momento, o seu único objectivo. Quem sabe, talvez Ulisses conseguisse congeminar uma solução...
Os conselheiros tagarelavam bem-dispostos enquanto Agamémnon se demorava a conversar com Nestor, divertido com qualquer coisa que o velho rei lhe segredara. Terminada a conversa, o rei supremo ergueu o ceptro e bateu com o bastão, dando assim início à assembleia.
Ulisses, creio que tens novidades.... É verdade, rei supremo. Primeiro que tudo, creio que encontrei já um processo que nos permitirá entrar nas muralhas troianas, embora não possa ainda falar disso. Porém, há também notícias muito interessantes noutras áreas.
Fitou Menelau, aproximou-se dele, pôs a sua mão sobre o ombro do irmão de Agamémnon, afagou-o.
- Chegaram aos meus ouvidos certos rumores. Rumores relativos a uma acesa discussão entre Príamo, Heleno e Deífobo. Por causa de uma mulher. Por causa de Helena, para ser mais preciso. Pobre Helena! Após a morte de Páris, solicitou que a deixassem dedicar-se ao serviço da Mãe Kubaba, mas Deífobo e Heleno pediram a Príamo a mão da viúva do irmão. Príamo decidiu a favor de Deífobo, que não esperou pela celebração do casamento pAra fazer dela sua mulher. A corte ficou furiosa, mas Príamo recusou-se a anular a união. É que, segundo me disseram, Helena foi detida pelos guardas da Porta Dardaniana quando se preparava para fugir de Tróia. Queria vir ter contigo, Menelau.
Agitado, ofegante, Menelau disse qualquer coisa que ninguém entendeu e logo escondeu o rosto entre as mãos. Quanto a mim, pensava na bela e altiva Helena reduzida ao nível de uma vulgar concubina de Deífobo.
- Heleno ficou tão revoltado com o desfecho deste caso - prosseguiu Ulisses - que resolveu escolher o caminho do exílio. Interceptei-o nos arrabaldes da cidade, esperando que a desilusão que sentia o levasse a confiar-me os oráculos de Tróia. Encontrei-o no altar consagrado a Apolo Timbreu, o qual, segundo ele, o instruíra para que me revelasse tudo o que eu quisesse saber. Pedi-lhe que me revelasse os oráculos de Tróia - todos eles. Devo dizer-lhes que há muito tempo que não me sentia tão cansado... Heleno recitou milhares de oráculos! Contudo, obtive aquilo que pretendia.
- Tiveste muita sorte - disse Agamémnon.
- A sorte, rei supremo - replicou Ulisses, num tom neutral, apesar de não ter gostado nada da observação, - é algo que, infelizmente, sobrestimamos. Não é a sorte que conduz ao êxito, mas sim o trabalho duro. A sorte é aquilo que acontece no momento em que os dados caem na mesa. O trabalho duro é aquilo que acontece quando um troféu cai nas mãos de um homem apenas porque ele lutou para o obter.
- Claro, claro, claro! - exclamou o rei supremo, arrependido já do seu comentário. - Peço-te desculpa, Ulisses! Trabalho duro, sempre trabalho duro! Eu sei que é verdade, admito que é verdade. Mas fala-nos dos oráculos, peço-te...
- No que nos diz respeito, apenas três dos oráculos de Tróia assumem uma importância evidente. Por sorte, nenhum deles representa um obstáculo intransponível. Muito resumidamente, eis o que rezam esses oráculos: Tróia cairá este ano, se os chefes gregos possuírem a omoplata de Pélops, se Neoptolemo combater e se Tróia perder o Paládio de Palas Atena.
Levantei-me de um salto, excitado.
- Ulisses, eu tenho a omoplata de Pélops! O rei Piteu deu-ma após a morte de Hipólito. O velho gostava muito de mim - a omoplata de Pélops era a mais preciosa das suas relíquias. Ou ma dava a mim, ou a Teseu. Preferiu dar-ma a mim. Trouxe-a comigo para Tróia para me dar... enfim... para me dar sorte.
Ulisses pôs um sorriso arreganhado.
- É caso para dizer: a sorte está do nosso lado! - disse ele para Agamémnon. - Quanto a Neoptolemo, o caso já está tratado e nutrimos grandes esperanças de que ele venha combater ao nosso lado. Resta-nos o Paládio de Palas Atena, a qual, por sorte, é a minha protectora. Que tal, hã?
- Não estou a gostar nada das piadas, Ulisses - disse o rei supremo.
- Ah - onde ia eu? No Paládio. Pois bem: essa venerável imagem terá de ser nossa. É a imagem mais venerada em Tróia e a sua perda seria para Príamo o mais rude dos golpes. Tanto quanto sei, a estátua encontra-se algures nos subterrâneos da cidadela. Um segredo muito bem guardado... Mas estou certo de que conseguirei descobrir esse segredo... O mais difícil será mover a imagem - dizem que é muito pesada. Diomedes, irás comigo a Tróia?
- Vamos já, se quiseres! Como não havia mais nada de importante a discutir, Agamémnon dissolveu o conselho. À saída, Menelau acercou-se de Ulisses.
- Crês que a verás? - perguntou ele, ansioso.
- É provável, Menelau, é provável - respondeu-lhe Ulisses, num tom delicado.
- Então, diz-lhe que eu vou pedir aos deuses que a ajudem a fugir e a vir ter comigo.
- Está bem, eu digo. - Porém, enquanto nos encaminhávamos para a sua casa, virou-se para mim e disse-me: - Não digo coisa nenhuma! O destino da cabeça de Helena é o machado, e não o travesseiro de Menelau.
Desatei a rir-me.
- Vai uma aposta? - perguntei-lhe.
- Entramos pela conduta? - foi a minha primeira pergunta quando começámos a traçar um plano.
- Entras tu. Eu não posso. Tenho de chegar a Helena sem levantar suspeitas. Portanto, tenho de ir disfarçado.
Deixou a sala, mas logo voltou, trazendo um pequeno e terrível chicote. Este chicote era formado por quatro correias e, na ponta de cada correia, havia um globo de bronze eriçado de pequenas pontas. Perplexo, olhei para Ulisses e para o chicote. Até que ele me virou as costas e começou a despir a blusa.
- Açoita-me, Diomedes. Recuei, horrorizado.
- Mas tu enlouqueceste, Ulisses? Eu, açoitar-te a ti? Não consigo! Ulisses virou-se para mim, manifestamente irritado.
- Nesse caso, fecha os olhos e faz de conta que eu sou Deífobo. Eu tenho de ser açoitado, Diomedes - tenho de ficar bem marcado!
Pus o meu braço sobre os seus ombros nus.
- Pede-me o que quiseres, mas não isso. Açoitar-te a ti - um rei! - como se fosses um escravo rebelde?
Com um riso brando, encostou o seu rosto ao meu braço.
- Ora, Diomedes, que importância podem ter mais umas quantas cicatrizes na minha carcaça já tão flagelada? Eu quero que me confundam com um escravo rebelde, Diomedes. Um escravo que acabou de fugir do acampamento grego terá necessariamente de ter umas boas marcas nas costas... Vá, usa o chicote.
Abanei a cabeça.
- Não.
- Usa o chicote, Diomedes! - berrou-me ele, com um ar feroz. Sem que o desejasse, peguei no chicote; Ulisses curvou-se. Enrolei as quatro correias na mão, enchi-me de coragem e golpeei-lhe a pele. Cada um dos meus golpes deixava-lhe nas costas quatro vergões róseos; com um misto de repulsa e fascínio, os meus olhos fixavam-se no resultado da minha involuntária violência.
- Mais forte, Diomedes! Bate com mais força! - disse ele, impaciente. Sem sangue, não é nada!
Fechei os olhos e obedeci. Mais dez vezes o açoitei com aquele cruel objecto de tortura; de cada vez, o chicote arrancou mais sangue à sua carne, deixando-lhe cicatrizes para toda a vida, como se ele mais não fosse do que um escravo rebelde.
Quando terminei, beijou-me.
- Não fiques triste, Diomedes. Para que me serve uma bela pele? - Estremeceu. - Por acaso até nem é desagradável... E o aspecto? Ficou com bom aspecto?
Acenei que sim, recusando-me a falar. Despiu o saiote e envolveu o baixo ventre com uma peça de linho muito suja; depois, desatou a mexer e a remexer no cabelo até ficar todo desgrenhado; mas só parou depois de o ter escurecido com a fuligem do trípode do fogo. Juro que os seus olhos brilhavam de puro gozo. Por fim, foi buscar um par de grilhetas.
- Prende-me às tuas grilhetas, tirano de Argos! - disse-me ele, todo satisfeito. Obedeci de novo às suas ordens, ainda que as chicotadas me tivessem magoado muito, provavelmente mais do que a ele. Para Ulisses, aquilo era muito simplesmente um meio para alcançar um fim. Enquanto eu lhe prendia os tornozelos com as grilhetas de bronze, Ulísses delineava o seu plano.
- Tenho de entrar na cidadela logo que chegue a Tróia. Seguiremos juntos no carro de Ájax - é um carro forte, estável e silencioso. Paramos no bosque que fica perto da pequena torre de vigia contígua à Cortina Ocidental. Aí, separamo-nos. Farei o teatro necessário para que me deixem entrar pela Porta Ceia e, depois, pelas portas da cidadela - direi que tenho de falar com Polidamas com a máxima urgência. Creio que o nome dele me abrirá todas as portas.
- Mas - disse eu, erguendo-me -, tu não vais falar com Polidamas.
- Não. Vou ter com Helena. Imagino que, depois do casamento forçado, Helena terá todo o prazer em ajudar-me. Com certeza que ela conhece os segredos dos subterrâneos da cidadela. Até pode ser que saiba onde se encontra o Paládio. Passeou-se um pouco pela sala, praticando.
E eu?
Tu esperas no bosque até que passe metade da noite. Depois, sobes pela conduta e matas todos os guardas que se encontrem nas proximidades da pequena torre de vigia. Eu tratarei de levar a imagem até às muralhas. Quando ouvires o canto da cotovia nocturna com esta variação - e assobiou-a três vezes - corre para a conduta, a fim de me ajudares a fazer sair a estátua.
Ulisses deixou-me no bosque. Ninguém dera por nós. Trôpego e cambaleante, correu como um louco na direcção da Porta Ceia, gritando, guinchando, rojando-se na poeira do chão, transformando-se, por obra e graça do seu teatro, no mais triste espécime humano que alguma vez vira em toda a minha vida. Ulisses sempre gostara de ser outras pessoas muito diversas dele, mas creio que a personagem do escravo fugitivo era precisamente aquela que mais lhe agradava.
Quando a noite chegou a meio, acerquei-me da conduta e rastejei lentamente por aquele espaço sinuoso e sufocante, sem fazer barulho. Quando saí da conduta, descansei um pouco e deixei que os meus olhos se habituassem ao luar, enquanto me mantinha alerta aos poucos sons que vinham da passagem superior das muralhas. Estava muito perto da pequena torre de vigia que Ulisses escolhera para o nosso encontro por ela se encontrar muito longe de outros pontos da muralha protegidos por guardas.
Cinco guardas estavam de sentinela, bem acordados e alerta; no entanto, tinham-se enfiado todos na guarita! Quem é que comandaria aqueles soldados? Permitiam que eles se refugiassem do frio, negligenciando assim os bastiões? Ah, num acampamento grego, não teriam grande futuro!
Envergava um saiote de macio cabedal escuro e uma blusa, tinha um punhal entre os dentes e uma espada pequena na mão direita. Quando me abeirei da janela da guarita, tossi bem alto, para eles ouvirem.
- Vai ver quem está lá fora, Maio - disse alguém. Maio saiu, como se fosse dar um passeio; com efeito, um ataque de tosse não teria nada de alarmante quando ouvido no alto das muralhas mais poderosas do mundo. Não vendo ninguém, Maio ficou nervoso - embora, idiota como era, não tivesse pedido reforços. Era óbvio que, naquele momento, já pensava que a tosse mais não fora do que um produto da sua imaginação. Apesar de tudo, avançou com a lança preparada para o que desse e viesse. Deixei-o passar. Depois, ergui-me silenciosamente, calei-o com uma mão e ceifei-o com a espada que tinha na outra. Calmamente, sem fazer barulho, arrastei-o para um canto escuro.
Momentos depois, emergiu outro guarda, à procura de Maio. Cortei-lhe a garganta sem um único ruído: dois já estavam, faltavam ainda três. Então, antes que os três começassem a ficar nervosos, abeirei-me de novo da janela e desatei aos soluços como se estivesse a cair de bêbedo. Um dos homens soltou um suspiro exasperado; outro saiu a correr, impaciente. Envolvi-o com os meus braços como se estivesse completamente toldado pela bebida e, quando o bronze deslizou sob as suas costelas do lado esquerdo, o homem nem um ai deu. Mantendo-o direito, com ele rodopiei numa ébria dança, imitando uma voz troiana. Infalível: o quarto dos cinco homens saiu. Atirei-lhe o cadáver com um risinho sumido e, enquanto ele afastava o camarada morto, trespassei-o com a espada. Arrastei-os pelo chão com um ligeiro tinido metálico, como se eles estivessem a internar-se na escuridão da noite. Então, espreitei pela janela.
Só faltava o capitão da torre, que estava sentado a uma mesa, resmungando baixinho para si mesmo. Vendo-se obviamente perante um dilema, o capitão estava de olhos fixos num alçapão. Estaria à espera de alguém com quem havia marcado algum encontro? Entrei imediatamente na guarita, saltei sobre ele por detrás, detendo-lhe o grito com a mão. Morreu tão rapidamente como os outros e com os outros foi ter ao canto escuro. Depois, sentei-me cá fora à espera; se o visitante de quem o capitão estava à espera aparecesse entretanto, seria preferível que não encontrasse ninguém na torre.
Pouco tempo depois, Ulisses assobiou a sua variação sobre o canto da cotovia - era imensa a sua inteligência! Claro que teria de ser uma variação e não o próprio canto da cotovia - pois poderia muito bem acontecer que uma cotovia decidisse desatar a cantar nas proximidades da torre. Em suma: não havia nenhuma cotovia por perto; fazia votos para que também não aparecesse nenhuma visita, pois não poderia avisar Ulisses.
Levantei a porta do alçapão e desci pela escada. Ulisses estava à minha espera ao fundo.
- Espera! - murmurei, e logo saí para ver se havia alguém por perto. Mas as ruas não podiam estar mais calmas e escuras.
- Tenho-a comigo, Diomedes, mas ela é tão pesada como Ájax! - disse-me Ulisses logo que voltei. - Vai ser difícil arrastá-la por uma escada de vinte e cinco cúbitos.
Ela - o Paládio - estava precariamente empoleirada sobre o dorso de um burro. Levámo-la para dentro da câmara inferior da torre e mandámos embora o burro. Assombrado, examinei a imagem à luz da lamparina. Oh, era tão antiga! Uma forma feminina, dificilmente reconhecível ao fim de tanto tempo, esculpida a partir de uma madeira escura, demasiado suja e enfarruscada pela passagem de uma eternidade para que pudesse considerá-la bela - ah, bela é que ela não era! Tinha uns pés minúsculos, pontiagudos, umas ancas enormes, uma vulva obscena, uma barriga imensa e flácida, dois seios bulbosos, os braços colados ao corpo, uma cabeça redonda, uma boca saliente. Além disso, era tremendamente gorda. Mais alta do que eu e, de facto, muito pesada. Os pés minúsculos e pontiagudos permitir-lhe-iam talvez rodopiar como se fosse um daqueles piões com que as crianças brincam; a verdade, porém, é que a estátua não se aguentava sobre aqueles pés; ou seja, não tínhamos outra alternativa senão pegar nela.
- Ulisses, achas que ela cabe na conduta? - perguntei.
- Cabe. A barriga dela não é maior do que os teus ombros. Além disso, ela é mais redonda do que tu. Tal como a conduta.
Então, tive uma ideia brilhante. Fui à procura de uma corda. Felizmente, encontrei-a rapidamente. Depois, atei-a sob os seios da estátua, e ainda fiquei com corda bastante para enrolar nela a minha mão. Comecei a subir a escada, arrastando-a com a corda, enquanto Ulisses a segurava por baixo, com uma mão nas imensas e obesas nádegas e a outra dentro da vulva.
- Crês - disse eu, ofegante, quando chegámos à guarita -, crês que ela alguma vez nos perdoará os nossos abusos?
- Claro que perdoa - disse ele, descansando no chão ao lado dela. - Ela é a primeira Atena, que é Palas, e eu pertenço-lhe.
Fazê-la descer pela conduta revelou-se mais fácil do que fazê-la subir pela escada; Ulisses tinha razão. As suas formas redondas deslizavam melhor pela conduta do que os meus ombros largos e as minhas angulosidades masculinas. Mantivemo-la atada com a corda; a corda revelou-se um elemento precioso mal nos fizemos à planície, já que, com ela, pudemos arrastá-la até ao bosque e ao carro de quatro rodas de Ájax. Aí, gemendo baixinho, num derradeiro esforço, içámo-la para dentro do carro e caímos para o lado. A Lua encaminhava-se ainda para oeste, o que significava que dispúnhamos ainda de tempo suficiente para a conduzir até ao acampamento grego.
- Conseguiste, Ulisses! - disse eu, exultante.
- Não teria conseguido nada sem a tua ajuda, meu amigo. Quantos guardas tiveste de matar?
- Cinco. - Bocejei. - Estou cansado.
- Como é que achas que me sinto? Tu, pelo menos, tens as costas em boas condições...
- Não me fales mais disso! Conta-me antes o que aconteceu no interior da cidadela. Estiveste com Helena? - Foi fácil enganar os guardas. Ao fim de pouco tempo, já estava dentro da cidade. Nas portas da cidadela só havia um guarda - e estava a dormir. Peguei nas correntes e passei por cima dele - parece incrível, mas é verdade. Encontrei Helena sozinha - Deífobo estava não sei onde. Ficou algo surpreendida quando viu um escravo imundo e ensanguentado prostrar-se aos seus pés; só que, um instante depois, viu-me os olhos e reconheceu-me. Quando lhe pedi que me conduzisse aos subterrâneos, não hesitou. Creio que estava à espera de Deífobo.
Mas nós escapámo-nos antes que ele chegasse. Logo que encontrámos um sítio seguro, Helena ajudou-me a libertar-me das grilhetas. Depois, descemos aos subterrâneos. - Soltou um risinho malicioso. - Creio que os subterrâneos lhe devem ter dado muito jeito quando andava com Eneias... Helena conhecia aquilo tão bem como as palmas das suas mãos... Mal entrámos na húmida e escura cripta, desatou a fazer-me perguntas - como é que estava Menelau - e tu - e Agamémnon - e mais este, e mais aquele... Tudo o que eu lhe pudesse dizer seria pouco...
- Mas... e o Paládio? Como é que conseguiste trazer a estátua se só tinhas Helena a ajudar-te? - perguntei.
Os ombros dele abanaram de riso.
- Enquanto eu dizia as orações e pedia o consentimento da deusa para a levar para outro sítio, Helena desapareceu. Pouco depois, voltou com o burro! Então, ajudou-me a sair dos subterrâneos, por uma porta que dava directamente para a rua sob a muralha da cidadela, onde me beijou - um beijo perfeitamente casto, devo dizer! - e me desejou que tudo corresse o melhor possível.
- Pobre Helena... - disse eu. - Deífobo é por certo o motivo que a levou a juntar-se a nós na luta contra Tróia. A balança de Helena pende agora para o nosso lado.
- Tens toda a razão, Diomedes.
Agamémnon mandou erigir um altar magnificente na praça das assembleias e entronizou o Paládio no interior de um nicho de ouro. Depois, convocou todos os homens que pudessem caber naquela área e explicou-lhes como eu e Ulisses havíamos raptado a deusa. Agamémnon havia já nomeado um sacerdote especial para Palas Atena e o sacerdote ofereceu-lhe as melhores vítimas que pôde encontrar; o fumo era tão branco como a neve e ergueu-se tão rapidamente na direcção dos céus que logo concluímos que a deusa adorava a sua nova casa. Ah, o que a pobre devia ter odiado a sua casa troiana, tão fria, tão húmida, tão escura! Sem a menor hesitação, a cobra sagrada coleou rumo à sua casa sob o altar, após o que esticou a cabeça para lamber o leite do pires e engolir o seu ovo. Uma cerimónia tão feliz quanto imponente.
Concluídos os rituais, Ulisses, eu e os outros reis deslocámo-nos a casa de Agamémnon, a fim de festejarmos. Nenhum de nós recusaria um convite para jantar com o rei dos reis; os seus cozinheiros eram, sem sombra de dúvida, os melhores. Queijos, azeitonas, pães, fruta, carne assada, peixe, doces à base de mel, vinho.
A disposição era excelente, a conversação alegre, o vinho magnífico, o folguedo muito; a certa altura, Menelau pediu ao harpista que cantasse. Já um pouco sentimentais por obra do vinho, instalámo-nos confortavelmente para o ouvir.Estava ainda para nascer um grego que não amasse as canções, os hinos, as baladas do seu país; nós preferíamos ouvir o bardo a ir para a cama com mulheres.
O harpista cantou-nos uma das baladas de Héracles, após o que esperou pacientemente até que os veementes aplausos se esbatessem. Era um poeta magnífico e um magnífico músico; Agamémnon trouxera-o de Áulida dez anos antes, mas era originário do Norte e dizia-se que descendia do próprio Orfeu, o maior de todos os bardos.
Alguém pediu o Hino de Guerra de Tideu, outros queriam ouvir o Lamento de Dánao, Nestor exigia a História de Medeia; porém, a cada pedido, o bardo, com um sorriso terno, respondia que não. Então, ajoelhando diante de Agamémnon, disse-lhe o seguinte: - Rei supremo, eu compus uma canção que fala de acontecimentos muito mais próximos de nós do que os feitos dos antigos heróis. Permites-me que cante essa composição?
Agamémnon inclinou a imperial cabeça já meio grisalha.
- Canta, Alfides de Salmidessos. Alfides passou ternamente com os dedos pelas cordas tensas e logo extraiu da sua lira uma lenta e sofrida melodia; a canção era simultaneamente triste e gloriosa, uma canção sobre Tróia e sobre o exército de Agamémnon que combatia diante das suas muralhas. Extasiados, escutámos atentamente a longa canção, os queixos descansando nas mãos, os olhos cerrados, as faces molhadas. A composição terminava com a morte de Aquiles. O resto era demasiado doloroso. Apesar de já ter passado algum tempo, continuávamos a evitar pensar no triste fim que Ájax tivera.
«O ouro da vida vestia-o na morte: Da vida despedido, não mais que uma sombra, A máscara perfeita cobria-lhe o rosto.
Juntas, as suas mãos, eram já luvas de ouro; Todo o seu ser mortal em ouro transformado, Toda a sua glória em metal convertida: Aquiles, o Sem-Par, a tua voz calou-se! Ó divina musa, anima meu engenho, Deixa-me dar a vida àquele que morreu! Veste-o de ouro vivo com as minhas palavras, Deixa que os seus passos voltem a retumbar, Espalhando o terror entre os seus inimigos! Deixa que o seu carro atravesse a planície, O medo espalhando na soturna Tróia!
Deixa que eu o cante e às suas plumas de ouro, Deixa-me lembrá-lo fulgente como o Sol, Incansável correndo p'la erva orvalhada, Com as rédas na couraça o ritmo marcando! Deixa que Aquiles, o filho de Peleu, O nascido sem lábios, a glória reviva!
Com os corações dilacerados, aplaudimos o harpista Alfides de Salmidessos durante longo tempo; o bardo fizera-nos entrever a imortalidade, visto que a sua canção viveria muito mais tempo do que nós. Era como se, apesar de vivermos ainda, estivéssemos já para lá da vida, inscritos na eternidade através das suas palavras. Uma carga demasiado pesada para os nossos humanos ombros.
Quando os aplausos finalmente terminaram, apeteceu-me ficar a sós com Ulisses; uma assembleia de homens não me parecia o ambiente mais adequado, depois de o harpista ter instilado em nós tão terríveis emoções. Olhei para Ulisses, que entendeu imediatamente o meu pedido, sem ter de macular com palavras o recolhimento que as circunstâncias impunham. Levantou-se e encaminhou-se na direcção da porta. De súbito, porém, deteve-se, com uma exclamação de puro espanto. Porque pairava sobre a sala o mais intenso dos silêncios, virámo-nos todos para ele. E ficámos tão assombrados como ele.
De início, era como se houvesse algo de sobrenatural naquela aparição. O sortilégio em que caíramos devido à canção de Alfides era ainda muito forte: dir-se-ia que o bardo chamara um fantasma para ouvir a sua música. Aquiles também veio para o ouvir!, pensei eu. Mas quem lhe dera o sangue para que a sua sombra ganhasse substância?
Então, examinei mais atentamente a aparição e concluí que não era Aquiles. Aquele homem era tão alto e corpulento como Aquiles, mas era muito mais jovem. A barba, não mais do que uma penugem, era loura também, mas mais escura; o âmbar dos olhos era também mais forte, mais intenso. E, mais importante que o resto, tinha dois lábios perfeitos.
Nenhum de nós sabia há quanto tempo estaria ali o rapaz; porém, pelo sofrimento que o seu rosto traduzia, não havia a menor dúvida de que ouvira pelo menos a parte final da canção.
Agamémnon levantou-se e encaminhou-se para ele de braços abertos.
- Tu és Neoptolemo, o filho de Aquiles! Sê bem-vindo!
O jovem aquiesceu com um ar grave.
- Obrigado. Vim para ajudar o exército grego, mas fiz-me ao mar antes de
- antes de saber que o meu pai tinha morrido. Fiquei a saber graças à canção.
Ulisses juntou-se aos dois.
Haveria melhor maneira de ficares a saber tão horrenda notícia? Suspirando, Neoptolemo baixou a cabeça. - Tens razão. A canção diz-nos tudo o que haveria para dizer. E Páris? Já pagou?
Agamémnon pegou-lhe nas mãos.
- Já, Páris já pagou.
- Quem o matou?
- Filoctetes, com as flechas de Héracles.
O rapaz fez um esforço para se mostrar polido, para manter uma expressão impassível.
- Lamento imenso, mas eu não vos conheço. Qual de vós é Filoctetes?
- Sou eu - retorquiu imediatamente Filoctetes.
- Eu não estava cá para vingar a morte do meu pai. Gostaria, por isso, de te agradecer.
- Eu sei, meu rapaz, eu sei. Preferias ter sido tu, não era? Mas acontece que eu fiquei frente a frente com o patife por um mero acaso - ou com a conivência dos deuses; quem somos nós para saber? Bom, mas como tu não nos conheces, deixa-me apresentar-te os nossos chefes. O nosso rei supremo foi o primeiro a saudar-te. O segundo foi Ulisses. Quanto aos outros, eis os seus nomes: Nestor, Idomeneu, Menelau, Diomedes, Automedonte, Menesteu, Meríona, Macáon e Euripilo.
Tão poucos que nós somos!, pensei eu nesse momento. Tantos que partiram já! Tantos!
Ulisses, um extasiado Automedonte e eu conduzimos Neoptolemo à paliçada mirmidã. Era uma caminhada algo longa e as notícias da sua chegada já se tinham espalhado. Soldados saíam aos montes das casernas e juntavam-se sob os débeis raios de sol para o saudarem tão entusiasticamente como costumavam saudar o seu pai. Descobrimos que as suas parecenças com Aquiles não se limitavam ao físico; Neoptolemo reagia à desvairada alegria dos homens com o mesmo sorriso tranquilo e o mesmo aceno desatento do pai; tal como o pai, Neoptolemo encerrava-se em si mesmo, evitando toda e qualquer exposição do seu carácter. Enquanto caminhávamos, fomos-lhe contando aquilo que a parte final da canção não lhe revelara: o triste fim de Ájax, a morte de Antíloco e de tantos outros. Depois, falámos-lhe dos vivos.
Os Mirmidões estavam já formados. As aclamações só se ouviram depois de o rapaz - teria, quando muito, dezoito anos - lhes ter falado. Depois, desataram a bater com as espadas nos escudos, produzindo um tal ruído que Ulisses e eu desandámos logo, a caminho do nosso acampamento.
Estamos a chegar ao fim, Diomedes.
- Se os deuses conhecem o significado da palavra «piedade», a todos peço que esse fim chegue depressa.
- Dez anos... - disse Ulisses, afastando dos olhos um cacho de cabelo mais rebelde. - É curioso... Calcas acertou em cheio... Terá sido uma questão de sorte? Ou será que Calcas possuía mesmo a Segunda Visão?
Estremeci ao ouvi-lo exprimir tais dúvidas.
- Não é correcto duvidar-se das faculdades dos sacerdotes.
- Talvez, talvez. Ah, daria tudo para não voltar a ter no meu cabelo uma partícula que fosse desta maldita poeira! Para me fazer de novo ao mar! Para lavar todo o fedor desta planície com límpida água salgada! Para ir para qualquer sítio do mundo em que não haja vento e em que as estrelas não tenham de competir com dez mil fogueiras! Para me purificar de tudo isto!
- Os teus anseios são os meus, Ulisses. Embora seja difícil acreditar que o fim se aproxima.
- O fim virá com um cataclismo capaz de rivalizar com aqueles que são obra de Poseidon.
Fitei-o.
- Já traçaste o plano final?
- Já.
- Conta-me tudo! -Antes de tempo? Diomedes, Diomedes! Nem mesmo a ti eu contava! Mas descansa que já não terás de esperar muito...
- Vamos para dentro. Quero tratar-te dos vergões. Desatou a rir.
- Eles curam-se sozinhos - disse. Na noite seguinte, Neoptolemo jantou connosco.
- Tenho uma coisa guardada para te dar, Neoptolemo - disse Ulisses logo que a refeição terminou. - É a minha prenda para ti.
Neoptolemo olhou para mim, confuso.
- Que quer ele dizer? Encolhi os ombros.
- Ninguém consegue adivinhar o que se passa naquela cabeça, Neoptolemo. Ulisses voltou à sala com um trípode enorme, sobre o qual se erguia a armadura de ouro que Tétis encomendara a Hefaísto. Neoptolemo levantou-se de um salto, tartamudeando qualquer coisa que não entendi; depois, com dedos delicados, apaixonados, tocou na couraça.
- Fiquei furioso - disse ele, com lágrimas nos olhos - quando Automedonte me disse que tinhas ganho a armadura a Ájax. Tenho de te pedir perdão, Ulisses. Ganhaste-a para ma dares?
Ulisses sorriu.
- Esta armadura vai assentar-te lindamente, rapaz. Ela deve ser usada, e não pendurada numa parede ou entregue aos parentes de um morto, que nunca se serviriam dela. Usa-a, Neoptolemo. Que ela te dê sorte, são os meus sinceros votos! No entanto, vais precisar de algum tempo para te habituares a ela. Pesa sensivelmente o mesmo que tu.
Nos cinco dias seguintes, envolvemo-nos numas quantas escaramuças menores; Neoptolemo teve o seu primeiro contacto com os Troianos e não podia ter ficado mais satisfeito. O filho de Aquiles era um guerreiro, nascera para a guerra, tinha fome de guerra. O seu único inimigo era o tempo - e ele sabia-o. Diziam-nos os seus olhos que ele compreendia que desempenharia um papel menor na guerra de Tróia; e que, além disso, iria participar apenas no desfecho dessa mesma guerra; as coroas de louros seriam para aqueles que haviam suportado dez anos de uma luta insana. Contudo, Neoptolemo era afinal o factor decisivo. Renovara a esperança, a fúria, o entusiasmo; os olhos dos soldados, fossem eles de Argos ou da Etólia ou da Tessália, seguiam-no com uma devoção canina sempre que ele subia ao carro do pai, envergando a armadura do pai. Para eles, ele era Aquiles. E, enquanto os dias iam passando, eu continuava a observar Ulisses, ansiando pelo próximo conselho.
O conselho foi convocado meia lua depois de Neoptolemo ter chegado; segundo um dos arautos imperiais, realizar-se-ia no dia seguinte, após a refeição do meio-dia. Eu sabia que era inútil tentar arrancar fosse o que fosse a Ulisses; por isso, depois de termos ceado, pus um ar completamente desinteressado, enquanto ele saltava de assunto em assunto tão destramente como o melhor dos atletas salta os mais difíceis obstáculos. Reagiu muito bem à minha indiferença; porém, quando eu me despedi dele com um ar algo altivo, rompeu num riso incontrolável. Apetecia-me dar-lhe um pontapé, mas ainda me doíam as chicotadas com que o marcara (doíam-me mais a mim do que a ele, de facto) e, por isso, contive-me; limitei-me a fazer uma acerba apreciação a propósito dos seus antepassados.
Todos apareceram bem cedo na casa de Agamémnon, como cães acorrentados farejando sangue fresco, cuidadosamente vestidos com os seus melhores saiotes e jóias, como se tivessem sido convidados para uma recepção formal na Sala do Leão, em Micenas. O arauto-mor postou-se aos pés da Cadeira do Leão, clamando os nomes dos presentes para um subordinado cuja tarefa consistiria em decorá-los; a memória desse humilde funcionário seria o veículo que conduziria esses nomes à posteridade.
«Imperial Agamémnon, rei supremo de Micenas, rei dos reis; Idomeneu, rei supremo de Creta; Menesteu, rei supremo da Ática; Nestor, rei de Pilos; Menelau, rei da Lacedemónia; Diomedes, rei de Argos; Ulisses, rei das Ilhas; Filoctetes, rei de Hestaiótis; Euripilo, rei de Orménion; Toante, rei da Etólia; Agapenor, rei da Arcádia; Ájax, filho de Oileu, rei da Lócrida; Meríona, príncipe de Creta, herdeiro do trono de Creta; Neoptolemo, príncipe da Tessália, herdeiro do trono da Tessália; Teucro, príncipe de Salamina; Macáon, cirurgião; Podalírio, cirurgião; Epeu, engenheiro.
O rei dos reis acenou para que os seus arautos se retirassem e entregou a Meríona o Bastão do Debate. Dirigiu-se então a nós na linguagem rebuscada que é característica das declarações formais.
- Depois de Príamo, rei de Tróia, ter transgredido as sagradas convenções da guerra, solicitei a Ulisses, rei de ítaca, que concebesse um plano que nos permita conquistar Tróia, ainda que, para tal, tenhamos de recorrer a dúbios estratagemas. Ulisses, rei de ítaca, comunicou-me que havia concluído já o seu plano. Convoquei-os para que ouvissem o que ele tem para nos dizer. Régio Ulisses, tens a palavra.
Sorrindo para Meríona, Ulisses levantou-se.
- Faz-me um favor, Meríona, fica tu com o Bastão. - Pegou depois num rolo de pele clara e macia que estava em cima da mesa no centro da sala e encaminhou-se para a parede defronte de nós. Desdobrou o rolo e pregou-o à parede com quatro pequenos punhais cravejados de jóias, cada um deles num dos cantos.
Ficámos todos a olhar para aquilo sem entender rigorosamente nada, perguntando-nos se não estaríamos a ser vítimas de uma brincadeira de mau gosto. O que tínhamos diante de nós era um esboço a carvão, representando um cavalo enorme, ao lado do qual se erguia uma linha vertical. Tendo em conta os materiais e o autor, até nem se podia dizer que o desenho estivesse mal feito. Mas para que serviría aquilo? Ulisses fitou-nos com um ar enigmático.
- É verdade, meus amigos, é o desenho de um cavalo. Devem ter ficado intrigados com o facto de Epeu, o engenheiro, se encontrar hoje entre nós. Pois bem: eu pedi que ele fosse convocado, porque quero fazer-lhe algumas perguntas e ouvir as respostas de um técnico especializado.
Virou-se para Epeu, que se sentia tão confuso quanto constrangido na companhia de tão augustas personagens.
- Epeu, tu és considerado o melhor engenheiro que a Grécia produziu desde a morte de Éaco. Além disso, diz quem sabe que não há, em toda a Grécia, ninguém que trabalhe melhor a madeira do que tu. Peço-te que examines atentamente o desenho. Repara na linha vertical junto ao cavalo. O comprimento dessa linha corresponde à altura das muralhas de Tróia.
Desconcertados, examinámos o desenho tão atentamente como Epeu.
- Em primeiro lugar, Epeu, gostaria de saber a tua opinião acerca do seguinte: durante dez anos, pudeste observar as muralhas de Tróia; crês que existe, em todo o mundo conhecido, algum aríete, algum engenho de cerco, capaz de abater a Porta Ceia?
- Não, rei Ulisses.
- Muito bem. Uma segunda questão: usando os materiais, os meios e os artífices de que dispões actualmente no nosso acampamento, serias capaz de construir um grande navio?
- Sem dúvida, rei Ulisses. Não faltam no nosso acampamento os carpinteiros navais, os pedreiros, os serralheiros, isto já para não falar de trabalhadores não qualificados. E julgo que, num raio de cinco léguas, há madeira suficiente, e da melhor qualidade, para construir, não um navio, mas uma frota.
- Excelente! Eis a terceira pergunta: serias capaz de construir um cavalo de madeira do tamanho deste animal que vês desenhado na pele? Repara uma vez mais na linha a negro. O comprimento dessa linha equivale aos trinta cúbitos de altura das muralhas troianas. Poderás, portanto, concluir que a altura do cavalo é de trinta e cinco cúbitos. E - quarta questão - poderias montar este cavalo sobre uma plataforma dotada de rodas, capaz de suportar todo o seu peso? E - quinta questão - o cavalo poderia ser oco?
Epeu começava a sorrir; era evidente que o projecto lhe agradava sobremaneira. -A minha resposta a todas as tuas questões é um «sim», rei Ulisses.
- E quanto tempo levarias a executar tal trabalho?
- Seria... uma questão de dias, rei Ulisses. Ulisses desprendeu a pele e entregou-a ao engenheiro.
- Obrigado, Epeu. Podes retirar-te. Espera-me em minha casa.
Estávamos perfeitamente perplexos. Creio que os nossos rostos, naquele momento, exprimiriam apenas desconcerto, apreensão e desconfiança; porém, enquanto esperávamos que Epeu abandonasse a sala, Nestor desatou num risinho, como se, de repente, tivesse ouvido a mais hilariante das anedotas - e Nestor, velho como era, ouvira já muitas.
Ulisses abriu muito os braços e como que cresceu em altura, erguendo-se como uma torre. A sua corrida começara: nenhum dos atletas presentes poderia detê-lo ou fazê-lo vacilar. Sublinhada por gestos magníficos, a sua voz retumbou na sala.
- E é assim, meus amigos reis e príncipes, que vamos conquistar Tróia! Ficámos parados e calados a olhar para ele.
- Sim, Nestor, tens razão. E tu também, Agamémnon. Em primeiro lugar, um cavalo com tais dimensões, segundo as minhas estimativas, poderá albergar cerca de cem homens na sua barriga. E se esses cem homens saírem silenciosamente, pela calada da noite e sem levantarem suspeitas, não precisaremos de mais ninguém para abrir a Porta Ceia.
De todos os cantos da sala, surgiu num ápice um vendaval de perguntas. Os cépticos berravam, os entusiastas aplaudiam - e o pandemónio só acabou quando Agamémnon se levantou da Cadeira do Leão, tirou o Bastão a Meríona e desatou a bater com ele no chão.
- Podem fazer todas as perguntas que quiserem, mas, por todos os deuses, com alguma ordem! E só depois de mim! Ulisses, senta-te e bebe uma taça de vinho. Depois, explica-nos o teu plano tintim por tintim.
Caía a noite quando a assembleia foi dissolvida; acompanhei Ulisses à sua casa. Epeu esperava pacientemente, com o rolo de pele desdobrado diante dele; o engenheiro, enquanto aguardava por nós, fizera um sem-número de pequenos desenhos. A partir desse instante, limitei-me a ouvir, pois só eles falavam... E tudo discutiram: questões técnicas, as coisas de que Epeu precisaria, o tempo aproximado que o trabalho demoraria, a necessidade de um secretismo absoluto...
- Podes trabalhar no pequeno vale que fica por detrás desta casa - disse Ulisses a Epeu. - É uma cova profunda; e, como temos árvores a rodear-nos por todos os lados, ninguém verá a cabeça do cavalo. Por outro lado, das torres de vigia da cidade, também não conseguirão vê-lo. Mas esta localização apresenta outras vantagens. Há tantos anos que nos ocultamos neste vale que os curiosos já deixaram de nos importunar. Poderás recorrer aos homens que aqui vivem como mão-de-obra não qualificada. Os técnicos que vierem de outros locais do acampamento só poderão abandonar o vale quando o trabalho estiver pronto. Estás de acordo em trabalhar nestas condições algo limitadas?
Os olhos do engenheiro cintilaram.
- Podes confiar em mim, rei Ulisses. Ninguém saberá o que aqui se passa.
Narrado por Príamo.
Vindo da gelada imensidão da Cítia, bóreas, o vento norte, abatia-se, uivante, sobre as terras de Tróia, tingindo as nossas árvores de âmbar e amarelo; o Verão do décimo ano despedira-se já e Agamémnon continuava na praia, um cão sarnento guardando o osso fétido em que Tróia se havia transformado.
Tudo acabara. Pouco antes da morte de Heitor, ordenei que os últimos pregos de ouro fossem arrancados de portas, soalhos, persianas, dobradiças; o cadinho era o seu destino. O tesouro estava vazio; todas as oferendas votivas dos templos haviam sido usadas para fazer lingotes; ricos e pobres queixavam-se dos impostos; e, apesar de tudo isso, eu continuava sem os meios necessários para comprar aquilo de que Tróia precisava para manter acesa a chama da guerra - mercenários, armas, engenhos bélicos. Há dez anos que a fonte de rendimentos que era o Helesponto secara por completo. Não para Agamémnon, que obrigava todos os navios gregos que se dirigiam para o mar Euxino a pagar uma pesada taxa. Quanto aos navios de outras nações, impedia-os pura e simplesmente de passarem o Helesponto. Não nos faltavam os alimentos, porque as nossas portas sul e nordeste se mantinham abertas e os camponeses tinham podido continuar a cultivar as suas terras; mas havia muito tempo que não tocávamos naqueles legumes e frutos que nas nossas terras não se davam. Quanto aos lendários cavalos de Laomedonte, poucos eram aqueles que ainda pastavam na planície a sul de Tróia; fora obrigado a vender a maior parte desses belíssimos exemplares. O mal que fazemos outro mal atrai, verdade mais certa não há. Aquilo que, outrora, Laomedonte e eu havíamos negado aos Gregos, pertencia agora a esses mesmos Gregos, pois vim a saber que quase todos os meus cavalos tinham ido parar às mãos do rei Diomedes de Argos. Ah, a soberba, a vanglória... Quanto mais alto o voo, maior a queda...
Acenderam as lareiras do meu quarto para que a minha carne pudesse aquecer, mas não havia, em toda a terra, um único fogo que fosse capaz de dissolver o desespero que se apegara ao meu coração como um bebé esfomeado se aferra ao seio da mãe. Cinquenta filhos haviam gerado as minhas mulheres, cinquenta belos rapazes. Quase todos mortos agora. O deus da Guerra apartara de mim os melhores, deixando-me a escória para me consolar na velhice: triste consolo... Tinha oitenta e três anos e, quem me visse, diria por certo que eu sobreviveria a todos os filhos que me restavam. As lágrimas molhavam-me as faces sempre que via Deífobo pavoneando-se nos palácios ou nas paradas. Herdeiro do trono, aquilo? Não, não mais do que um pobre farsante, uma imitação barata! Ah, Heitor, Heitor, Heitor! A minha esposa Hécuba enlouquecera; uivava como uma cadela velha a quem não davam sustento; a sua companhia preferida era Cassandra, mais louca ainda do que a mãe. Ainda que, estranho caso este, a beleza de Cassandra tivesse florido tanto como a sua demência. Duas grandes fitas brancas trespassavam-lhe agora a longa cabeleira negra, o rosto emagrecera, revelando os ossos, os olhos surgiam tão grandes e brilhantes que mais pareciam safiras tão negras como azeviche.
Por vezes, forçava-me a subir à torre de vigia da Porta Ceia, para ver os incontáveis tufos de fumo erguendo-se na praia, os navios dispostos, fila após fila, ao longo das areias. Os Gregos não se decidiam a lançar o assalto; nós estávamos à beira de um abismo e eles não nos permitiam a esmola de um consolo, pois não sabíamos que intenções eram as suas. Continuavam a dedicar-se às suas misteriosas tarefas como se o tempo não lhes pesasse. O que restava do exército de Tróia estava concentrado na Cortina Ocidental; era aí que Agamémnon atacaria, se ataque houvesse.
Cada noite era para mim um tormento sem sono; cada manhã encontrava-me tão desperto como se, no mundo, nunca tivesse havido noite. Contudo, não estava ainda derrotado. Enquanto, na minha carcaça mirrada, vivesse um espírito, Tróia não cairia. Os dentes de Agamémnon podiam ferrar-se nas nossas muralhas, mas Tróia seria sempre minha. Nem que tivesse de vender não só o ouro, mas também todas as pessoas que viviam dentro das suas muralhas.
Soprava o álgido bóreas há três dias; deitado na cama, os olhos fixos na janela e nos indícios de claridade que começavam a derramar-se sobre o Ida, chorava por Heitor. A luz cinzenta que antecede o dia raiava-se do brilho enevoado das minhas lágrimas.
Ouvindo um grito que a distância esbatia, estremeci e obriguei-me a sair da cama. O grito parecia ter vindo da Cortina Ocidental. Vai ver o que se passa, Príamo, vai ver o que se passa, disse baixinho para mim mesmo. Instantes depois, ordenei que me trouxessem o carro.
O tumulto crescia, novas e muitas vozes se erguiam, mas eu estava ainda demasiado longe para saber se uma tal agitação seria causada pelo medo ou pela dor.
Deífobo veio ter comigo, esfregando uns olhos cheios de sono, fazendo uma carranca desagradada.
- Vamos ser atacados, pai? - perguntou-me.
- Como queres que eu saiba? Vou até às muralhas, para saber o que se passa.
O cavalariço-mor surgiu com o meu carro, o condutor avançou trôpego, entorpecido ainda pelo sono; depressa parti, deixando o herdeiro para trás. Ele que fizesse o que muito bem entendesse. Se queria voltar para a cama, que voltasse.
Formigava de gente toda a área à volta da Porta Ceia e da Cortina Ocidental; homens corriam em todas as direcções, gesticulando e gritando, mas não via ninguém envergando à pressa a sua armadura. Saltavam, rodopiavam, gritavam a toda a gente que subisse ao alto das muralhas e visse o que havia para ver.
Um soldado ajudou-me a subir as escadas da torre de vigia da Porta Ceia; penetrei silenciosamente na guarita. O capitão vestia não mais do que uma tanga e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, enquanto que o seu lugar-tenente estava sentado numa cadeira, rindo-se desvairadamente.
- Que significa isto, capitão? - perguntei. Demasiado obcecado com aquilo que o afectava - fosse lá o que fosse para se dar conta do que estava a fazer, o capitão pegou-me no braço com toda a força e levou-me sem demora, e sem qualquer cerimónia, até à passagem superior das muralhas. Aí chegados, virou-me na direcção do acampamento grego e apontou para a praia com um dedo trémulo.
- Vê bem, rei Príamo! Apolo ouviu as nossas orações! Franzi os olhos (em muito bom estado, tendo em conta a minha idade) e perscrutei a praia, já banhada de luz. Olhei, olhei, olhei! Como entender aquilo? Como acreditar naquilo? As chaminés gregas já não deitavam fumo, não pairava no ar cheiro nenhum a madeira queimada; não havia no acampamento uma única formiga - pois era isso o que os Gregos pareciam, vistos dali - que se movesse; e, na praia, uma vasta faixa de seixos brilhava ao sabor do sol. O único indício de que ali houvera navios era aquela série imensa de sulcos profundos que se estendiam até às águas da lagoa. Os navios tinham partido! Os soldados tinham partido! De um exército de oitenta mil homens, restava apenas uma pequena cidade de casas cinzentas. Agamémnon fizera-se ao mar de noite.
Gritei de júbilo. Não conseguia sair dali, não conseguia conter a minha alegria. Até que as minhas pernas cederam e caí desamparado na pedra da passagem superior da muralha. Rompi a rir e a chorar, a rolar nas duras pedras como se elas fossem tão macias como a lanugem do cardo, balbuciei os meus agradecimentos a Apolo, ri-me que nem um menino, como um menino desatei a dar aos braços. O capitão ergueu-me; abracei-o e beijei-o, prometendo-lhe qualquer coisa de que logo me esqueci.
Deífobo apareceu a correr, com o rosto transfigurado. Pegou em mim e comigo rodopiou numa dança demente, enquanto os guardas faziam um círculo à nossa volta e marcavam o ritmo.
Já não havia na praia nenhum monstro grego emboscado, pronto a lançar sobre nós as suas garras! Tróia estava finalmente livre!
Não houve nunca no mundo notícia que se tivesse espalhado tão depressa. Toda a cidade estava já acordada e bem acordada, toda a cidade corria para as muralhas para aclamar a boa nova, para cantar, para dançar. A luz do Sol ia apagando as sombras e os nossos olhos viam mais claro: sim, não havia qualquer dúvida, Agamémnon partira, partira, partira! Ah, querido Senhor da Luz, obrigado! Obrigado!
Alerta agora, o capitão continuava a meu lado, protegendo-me. Subitamente tenso e apreensivo, puxou-me pela manga. Então, Deífobo deu-se conta da ansiedade do capitão e abeirou-se de nós.
- Que se passa, capitão? - perguntei, inquieto.
- Rei Príamo, há qualquer coisa ali, ao longe, na planície... Já me tinha chamado a atenção antes de o Sol nascer. Pensei que fosse uma árvore, pois está junto ao bosque do Simoente. Mas agora, com esta luz, vê-se bem que não é uma árvore, mas sim um objecto enorme. Consegues ver, rei Príamo?
- Sim, estou a ver, estou a ver - retorqui, com a boca seca.
- Sim, há ali qualquer coisa... - disse Deífobo, lentamente. - Será um animal?
Outros homens estavam a apontar para o misterioso objecto, discutindo a sua natureza; então, os raios oblíquos do Sol da manhã beijaram-no e revelaram uma superfície castanha e polida.
- Vou ver o que é aquilo - disse eu, encaminhando-me para a porta da guarita. - Capitão, manda abrir a Porta Ceia, mas não deixes que o povo saia. Eu próprio examinarei o estranho objecto. Deífobo, vem comigo.
Ah, que bem me sabia aquele vento, apesar de tão frio! Atravessar a planície era uma verdadeira panaceia para todos os meus males! Ordenei ao condutor que seguisse pela estrada de seixos. Os solavancos eram inevitáveis, mas, apesar de tudo, a viagem era agora muito mais suave do que noutros tempos. O progresso incessante de homens e carros gastara uniformemente a pedra e as fissuras entre elas haviam sido preenchidas pela lama em que as chuvas outonais tinham transformado a muita poeira dos campos de Tróia.
Claro que todos nós tínhamos já percebido de que objecto se tratava; no entanto, nenhum de nós queria acreditar no que os olhos viam. Que estava aquilo a fazer ali? E para que estava ali? Ah, com certeza que não era o que pensávamos!
Quando nos abeirássemos dele, verificaríamos por certo que se tratava de outra coisa - um objecto muito mais estranho, completamente diferente. No entanto, quando Deífobo e eu nos acercámos daquilo, com alguns membros da corte na nossa esteira, concluímos que o objecto era efectivamente aquilo que parecia: um gigantesco cavalo de madeira!
Erguia-se muito acima das nossas cabeças, uma criatura castanha, de madeira de carvalho, de proporções imensas. Quem o fizera - deuses? Homens? - imitara escrupulosamente a anatomia do cavalo; impossível confundi-lo com uma mula ou um burro; no entanto, e como se tratava de um gigante, as pernas eram muito mais grossas do que as pernas dos vulgares cavalos, e os cascos, mais próprios de um mamute, assentavam sobre uma plataforma de toros. Esta plataforma dispunha de rodas pequenas mas sólidas - doze de cada lado. O meu carro encontrava-se sob a sombra da cabeça do cavalo; estiquei o pescoço o mais que pude para examinar a parte inferior da queixada. Construído com madeira polida, o cavalo era, ao mesmo tempo, corpulento e firme; as juntas entre as pranchas de madeira haviam sido seladas com pez, como se do casco de um navio se tratasse; essas linhas de junção haviam sido disfarçadas com um bonito padrão, pintado num tom ocre. A cauda e a crina tinham sido esculpidas; recuando para melhor examinar a cabeça, verifiquei que os olhos tinham sido incrustados com âmbar e azeviche, que as cavernas das narinas tinham sido pintadas de vermelho e que os dentes, abrindo-se num relincho, eram de marfim. Sim, era de facto uma estátua muito bela.
Um destacamento da Guarda Real juntara-se já a nós, tal como a maior parte dos membros da corte.
- Deve ser oco, pai - disse Deífobo. - Se não fosse oco, as rodas não aguentariam.
Apontei para os quartos traseiros do cavalo.
- É um objecto sagrado, Deífobo. Estás a ver? Uma coruja, a cabeça de uma serpente, um escudo e uma lança. Pertence a Palas Atena.
Alguns dos presentes mostravam-se cépticos; Deífobo e Cápis resmungavam desconfiados, mas um outro filho meu, Timeta, não podia estar mais excitado.
- Pai, tu tens razão! Os símbolos são mais eloquentes do que todas as línguas. É uma prenda dos Gregos para substituir o Paládio.
O sumo-sacerdote de Apolo, Lacoonte, disparou, furioso:
- Com as prendas dos Gregos, todo o cuidado é pouco! Cápis envolveu-se imediatamente na discussão.
- Pai, este cavalo é uma armadilha! Porque haveria Palas Atena de obrigar os Gregos a tão duro trabalho? Palas Atena ama os Gregos! Os Gregos roubaram o Paládio porque ela consentiu que o roubassem! Palas Atena nunca trocaria os Gregos pelos Troianos! O cavalo é uma armadilha!
- Acalma-te, Cápis - disse-lhe eu, mais concentrado no cavalo do que nas palavras dele.
- Pai, suplico-te que me ouças! - teimou ele. - Abre-lhe a barriga e vê o que ela contém!
- Não te deixes iludir por prendas gregas - disse Lacoonte. - O cavalo é uma armadilha.
- Concordo com Timeta - disse eu. - O cavalo foi construído para substituir o Paládio. - Lancei a Cápis um olhar feroz. - Basta de discussões, Cápis! Entendido?
- Seja como for - disse Deífobo, revelando um inusitado espírito prático, o cavalo não foi feito para entrar nas nossas muralhas. É demasiado alto para caber nas portas. Não sei qual foi o objectivo que presidiu à sua construção, mas de uma coisa estou certo: não pode ser uma cilada. O cavalo terá de ficar na planície. Portanto, não representa qualquer perigo para nós ou seja para quem for.
- É uma cilada! - exclamaram Cápis e Lacoonte, quase que em uníssono. As discussões continuaram inflamadas, enquanto mais e mais membros da corte de Tróia se juntavam à volta do assombroso cavalo, não só para exprimirem o seu deslumbramento, mas também para exporem as mais diversas teorias e me inundarem de opiniões. Para lhes fugir, decidi não ficar parado e dar voltas e mais voltas ao cavalo, examinando-o minuciosamente, sondando o significado dos símbolos, maravilhando-me com a qualidade do trabalho dos artífices. Encontrava-se exactamente a meio caminho entre a praia e a cidade. Mas de onde viera? Se tinham sido os Gregos a construí-lo, nós ter-nos-íamos apercebido disso... Só poderia ser uma prenda da deusa... Sim, era por certo uma prenda da deusa!
Lacoonte enviara alguns dos guardas reais ao acampamento grego; eu continuava a dar as minhas voltas, quando dois guardas surgiram num carro de quatro rodas, com um homem entre eles. Os guardas desceram do carro e ajudaram o homem a descer.
A pobre criatura tinha os braços e as pernas acorrentados, farrapos eram a sua roupa, todo o seu corpo era uma imundície pegada.
Um dos guardas ajoelhou diante de mim.
- Rei Príamo, encontrámos este homem escondido numa das casas gregas. Estava como o vês agora, acorrentado. Foi açoitado há pouco tempo, como se pode ver pelos vergões ensanguentados. Quando o capturámos, suplicou que lhe poupássemos a vida e pediu-nos que o levássemos à presença do rei de Tróia, a fim de lhe comunicar aquilo que sabe.
- Fala, homem, eu sou o rei de Tróia - disse-lhe eu.
O homem molhou os lábios, gemeu, fez um esforço para falar mas não conseguiu. Um guarda deu-lhe água; ele bebeu-a avidamente e só então me saudou.
- Agradeço a tua bondade, rei Príamo - disse ele.
- Quem és tu? - perguntou Deífobo.
- O meu nome é Sinão. Sou grego, natural de Argos, um nobre da corte do rei Diomedes, de quem sou primo. Mas fiz parte de uma unidade especial do rei supremo de Micenas comandada pelo rei Ulisses de ítaca. - O homem calou-se, vacilou, teve de ser ajudado pelos guardas.
Desci do carro. - Soldado, senta-o na beira do teu carro. Eu vou sentar-me ao lado dele. Mas logo houve alguém que me trouxe um banco e por isso ficámos diante um do outro.
- Estás melhor assim, Sinão?
- Obrigado, rei Príamo. Já tenho forças para continuar.
- Explica-me por que razão um nobre de Argos como tu foi açoitado e acorrentado.
- Rei Príamo, eu conhecia o plano que Ulisses tramou para se livrar do rei Palamedes. Pelos vistos, Palamedes insultara Ulisses antes da nossa expedição a Tróia ter começado. Diz-se que Ulisses é capaz de esperar uma vida inteira pela oportunidade ideal para se vingar dos seus inimigos. No caso de Palamedes, esperou apenas oito anos. Há cerca de dois anos, Palamedes foi executado por alta traição. Ulisses congeminou as acusações e fabricou as provas que levaram à condenação de Palamedes.
Fiquei sinceramente intrigado.
- Mas por que razão haveria um grego de conspirar contra outro, tendo em mente a sua morte? Eram vizinhos rivais? Disputavam algum território?
- Não, rei Príamo. Ulisses é rei das ilhas a oeste da ilha de Pélops, Palamedes era rei de uma importante cidade portuária da costa oriental. Tratou-se de umproblema pessoal: Ulisses nutria por Palamedes um rancor desmedido. Porquê, não sei.
- Estou a ver. Nesse caso, porque te trataram como a um escravo? Se Ulisses foi capaz de fabricar acusações de traição contra outro rei grego, porque não fez o mesmo em relação a ti, um mero nobre?
- Eu sou primo direito de um rei mais poderoso do que ele e por quem Ulisses nutre grande afeição. Além disso, eu contei a minha história a um sacerdote de Zeus. Se eu vivesse, o sacerdote não diria nada. Mas, se morresse, fosse qual fosse a causa da minha morte, o sacerdote divulgaria tudo o que sabia. Como Ulisses não sabia qual era o sacerdote que conhecia a verdade, julguei que estaria para sempre em segurança.
- Quer dizer então que o sacerdote nunca contou a história? - perguntei eu. - É o que posso concluir, visto que estás vivo.
- Não, rei Príamo, nada disso - disse Sinão, bebendo mais água; parecia menos abatido agora, apesar da desgraça que lhe acontecera. - O tempo passou, Ulisses nada disse e nada fez, e - bom, rei Príamo, a verdade é que eu nunca mais pensei no assunto! Porém, nestes últimos tempos, o exército caiu num profundo desânimo. Após a morte de Aquiles e Ájax, Agamémnon perdeu todas as esperanças de conseguir entrar em Tróia. Convocou por isso um conselho e propôs uma votação. O resultado da votação foi este: regressariam à Grécia.
- Mas esse conselho deve ter-se realizado a meio do Verão!
- É verdade, rei Príamo. Contudo, a frota não pôde partir porque os augúrios não eram auspiciosos. O sumo-sacerdote, Taltíbio, explicou-nos porquê. Era Palas Atena quem fazia soprar os ventos contrários. Ficara muito agastada connosco por causa do roubo do Paládio. E exigia uma compensação. Depois, foi Apolo quem declarou a sua ira. Queria um sacrifício humano. E o sacrificado seria eu! Apolo disse mesmo o meu nome! O sacerdote a quem tinha confiado a minha história já não se encontrava em Tróia: Ulisses tinha-o mandado numa missão a Lesbos. Por isso, quando contei a minha história, ninguém acreditou nela.
- O rei Ulisses não se tinha esquecido de ti....
- Pois não, rei Príamo. O rei Ulisses limitou-se a esperar pelo momento certo para desferir o seu golpe. Açoitaram-me e acorrentaram-me e deixaram-me aqui à mercê do teu povo. Bóreas começou a soprar: os navios gregos podiam finalmente partir. A raiva de Palas Atena e de Apolo fora aplacada.
Levantei-me, andei um pouco, voltei a sentar-me.
- Mas... e este cavalo de madeira, Sinão? Porque está ele aqui? Pertence a Palas Atena?
- Sim, rei Príamo. Palas Atena exigiu que o Paládio fosse substituído por este cavalo de madeira. Fomos nós mesmos que o construímos.
- Porque é que a deusa não exigiu muito simplesmente que devolvessem o Paládio? - perguntou Cápis, desconfiado.
Sinão pareceu surpreendido.
- Porque o Paládio fora maculado.
- Continua - ordenei-lhe.
- Taltíbio profetizou que, a partir do momento em que o cavalo de madeira entrasse na cidade de Tróia, esta resistiria a todos os ataques. Tróia não cairia nunca e recuperaria toda a sua antiga prosperidade. Ulisses sugeriu, por isso, que construíssemos um cavalo demasiado grande, um cavalo que não coubesse nas portas de Tróia. Dessa forma, disse ele, obedeceríamos a Palas Atena, mas faríamos com que a profecia nunca se cumprisse. O cavalo de madeira teria de permanecer na planície. - O pobre homem calou-se, gemeu, mexeu os ombros, tentou sentar-se mais confortavelmente. -Ai! Ai! Retalharam-me todo!
- Descansa, Sinão, que em breve trataremos das tuas feridas - disse-lhe eu, procurando consolá-lo. - Mas primeiro temos de ouvir a história toda.
- Sim, rei Príamo, eu compreendo. Mas não sei que possas fazer. Ulisses é muito esperto. O cavalo é demasiado grande.
- Veremos isso mais tarde - disse-lhe eu com um ar severo. - Termina a tua história.
- Já terminou, rei Príamo. Eles partiram e deixaram-me aqui.
- Partiram para a Grécia?
- É verdade, rei Príamo. Com este vento, chegam lá num instante.
- Explica-me uma coisa - disse Lacoonte, ainda muito céptico. - Porque é que puseram rodas no animal?
Sinão pestanejou, surpreso.
- Está-se mesmo a ver porquê - retorquiu. - Para o tirarmos do nosso acampamento!
Impossível duvidar do homem! O seu sofrimento era demasiado real, tal como aqueles vergões, tal como o seu extremo emagrecimento. E a história dele fazia todo o sentido.
Deífobo ergueu os olhos para a poderosa massa de madeira e suspirou.
- Que pena! Se ao menos pudéssemos levá-lo para dentro da -, Fez uma pausa. - Sinão - disse ele então -, que aconteceu ao Paládio? Foi... maculado?
- Depois de o terem levado para o nosso acampamento - Ulisses roubou-o...
- Era de esperar! - disse Deífobo, interrompendo o homem.
- A deusa foi colocada no seu altar - prosseguiu Sinão - e o exército reuniu-se para a ver. Porém, quando os sacerdotes lhe fizeram as oferendas, por três vezes as chamas envolveram a deusa. Quando as chamas finalmente se esbateram, Palas Atena começou a transpirar sangue - gotas enormes de sangue ressumavam da sua pele de madeira e rolavam-lhe pelas faces e molhavam-lhe os braços e saíam-lhe dos olhos como se a pobre deusa estivesse a chorar. O chão tremeu e, vinda do céu claro, uma bola de fogo caiu sobre as árvores para lá do Escamandro - com certeza que a viram. Os homens, desvairados, desataram a dar punhadas no peito e a pedir perdão à deusa - o próprio rei supremo ajoelhou. Descobrimos depois que a deusa prometera um favor à sua irmã Afrodite - se o cavalo de madeira fosse levado para dentro de Tróia, a capital da Tróada conseguiria reunir todas as forças do mundo e conquistar a Grécia.
- Hah! - rosnou Cápis. - Tudo encaixa demasiado bem na tua história! Esse Ulisses decide fazer um cavalo demasiado grande e depois faz-se ao mar!
Acreditam que os Gregos iam ter tanto trabalho para, logo a seguir, se fazerem ao mar? Porque haveriam eles de se preocupar com o tamanho do cavalo se, neste momento, estão já a caminho de casa?
- Porque - disse Sinão, num tom de voz que indicava que estava a perder a paciência -, na próxima Primavera, contam voltar!
- A menos que - disse eu, levantando-me - consigamos levar o cavalo para dentro de Tróia.
- Não conseguem - disse Sinão, encostando-se contra o resguardo do carro e fechando os olhos. - É demasiado grande.
- Conseguiremos, sim! - exclamei. - Capitão! Traz cordas, correntes, mulas, bois e escravos. A manhã ainda mal começou. Se começarmos já, o cavalo entrará em Tróia ainda de dia.
- Não, não, não! - gritou lacoonte, um profundo terror estampado no rosto.
- Por favor, rei Príamo! Deixa-me ao menos fazer as minhas súplicas a Apolo!
- Faz o que muito bem te apetecer, Lacoonte - disse-lhe eu, afastando-me.
- Entretanto, tratemos de cumprir a profecia.
- Não! - gritou o meu filho Cápis. Mas todos os outros atroaram, cheios de júbilo:
- Sim! Sim! Sim!
Passámos quase todo o dia naquela lida. Atámos cordas reforçadas com correntes à dianteira e aos lados da maciça plataforma de toros; depois, atrelámos mulas, bois e escravos; com uma lentidão quase infinita, o cavalo de madeira avançou pela estrada. Um trabalho penoso, frustrante, exasperante. Nenhum grego - homem nenhum! - esperaria de nós tamanha pertinácia, pois aquele era um trabalho para Hércules! A cada curva, o animal tinha de ser cuidadosamente guiado, para que não saísse da estrada de pedra; era essencial que as rodas não tocassem no terreno lamacento, pois poderiam afundar-se; não haveria no mundo rodas capazes de aguentar convenientemente uma tal montanha de peso.
Ao meio-dia, tínhamos já o cavalo diante da Porta Ceia, onde pudemos constatar que a cabeça tinha mais cinco cúbitos de altura do que a passagem arqueada que encimava a imensa porta de madeira.
- Timeta - disse eu para o meu filho, aquele que se mostrara mais entusiasmado com a misteriosa aparição -, diz aos soldados que tragam picaretas e martelos. Vamos deitar abaixo o arco.
Uma operação que pareceu durar uma eternidade! As pedras usadas por Poseidon, Construtor de Muralhas, não cediam facilmente aos golpes dos meros mortais; porém, a pouco e pouco, foram-se fraccionando e caindo, até que, por sobre a Porta Ceia, havia já uma ampla abertura. Os animais e os homens que estavam atrelados à criatura puxaram então as correntes presas a cordas; a portentosa cabeça do cavalo voltou a avançar. Vendo os dentes do cavalo abeirando-se mais e mais da entrada de Tróia, sustive a respiração; então, gritei para avisar toda a gente, mas já era demasiado tarde. A cabeça não conseguia passar. Demolimos mais uma pequena porção do arco e tentámos de novo. Mas nem mesmo assim passou. Por quatro vezes, a cabeça do cavalo avançou até conseguir atravessar a Porta Ceia. Então, o gigantesco objecto rodou, gemendo, na direcção da Praça Ceia. Hah, Ulisses! Os teus intentos haviam sido frustrados!
Para que não restassem dúvidas, decidi que o cavalo devia ser rebocado pela íngreme colina e levado para dentro da cidadela. Para executar tal operação, precisámos do dobro dos animais e demorámos o que me pareceu uma eternidade, ainda que o povo também ajudasse. A Porta da Cidadela não tinha qualquer arco a encimá-la; o cavalo coube à justa.
Conduzimo-lo para o verdejante pátio consagrado a Zeus, onde para sempre ficaria. As lajes abriram fendas sob aquele peso imenso e as rodas afundaram-se no chão, no meio de fragmentos de pedras, mas o substituto do Paládio mantinha-se bem direito. Não havia na terra nenhuma força que pudesse movê-lo agora. Mostráramos a Palas Atena que éramos dignos do seu amor e respeito. Ali mesmo jurei publicamente que o cavalo seria mantido em perfeitas condições e que, na sua base, seria erigido um altar. Tróia estava a salvo. O rei Agamémnon não regressaria na Primavera com um novo exército. E nós, depois de recuperarmos de dez anos de guerra, conduziríamos as forças do mundo para conquistarmos a Grécia.
Mal terminei, ouvi o riso desvairado de Cassandra; correu para mim, o cabelo flutuando livre, os braços estendidos. Uivando, gemendo, guinchando, caiu no chão e agarrou-se aos meus joelhos.
- Pai, tira o cavalo da cidade! Leva-o para onde ele estava! Esta criatura é a morte de Tróia!
Lacoonte estava presente, acenando gravemente o seu acordo.
- Rei Príamo, os augúrios não são bons. Ofereci uma corça e três pombas a Apolo, mas ele rejeitou-as a todas. Esta coisa atrai a ruína à nossa cidade.
- Eu assisti à cerimónia. O que o meu pai diz é verdade - disse o mais velho dos dois filhos de Lacoonte, lívido e trémulo.
Temita logo avançou para me defender; eu já não suportava mais aquelas discussões e o medo começava a conquistar as vozes à minha volta.
- Vem comigo, rei Príamo - suplicou Lacoonte. - Vem comigo ao altar e vê com os teus próprios olhos! O cavalo está amaldiçoado! Destrói-o, queima-o, livra-te dele!
Com os dois filhos à sua frente, Lacoonte correu para o altar de Zeus. As minhas velhas pernas não me permitiam correr tanto como ele. De súbito, ao chegar ao estrado de mármore, deu um grito horrendo. Tal como os seus filhos. Quando um dos guardas o alcançou, Lacoonte estava já caído, um corpo com forças apenas para gemer, as mãos procurando agarrar os filhos, que se contorciam em horrendas convulsões. Então, o guarda recuou num ápice e virou para nós um rosto horrorizado.
- Rei Príamo, não te aproximes! - exclamou. - É um ninho de víboras! Eles foram mordidos!
Ergui as mãos para o imenso firmamento que o Sol, ao despedir-se, tingia de carmim.
- ó Pai dos Céus, tu enviaste-nos um sinal! Abateste Lacoonte diante dos nossos olhos porque ele se opôs à oferenda da tua filha ao povo da minha cidade!
O cavalo é bom! O cavalo é sagrado! O cavalo manterá os Gregos longe das nossas portas!
Tinham chegado ao fim aqueles dez anos de guerra contra um inimigo poderoso. Tínhamos sobrevivido e continuávamos a ser senhores do nosso próprio destino. O Helesponto e o Euxino voltavam a ser nossos. A cidadela teria de novo pregos de ouro. E nós voltaríamos a sorrir.
Conduzi os membros da corte ao meu palácio e ordenei que começassem os festejos; aplacados os derradeiros receios, os nossos corações abriram-se à euforia como se fôssemos escravos a quem o seu amo e senhor acabara de conceder a liberdade. Gargalhadas, canções, tambores, címbalos, clarins, trombetas - o alegre tumulto do povo chegava aos ouvidos da cidadela e a cidadela respondia ao povo com idêntico tumulto. Tróia estava livre! Dez anos, dez anos, dez anos! Tróia vencera! Tróia obrigara Agamémnon a desaparecer das suas praias - para sempre!
No entanto, para mim, o melhor de tudo foi ver a cara de Eneias! O dardaniano não fora ver o cavalo, não saíra sequer do palácio enquanto nós andávamos naquela luta insana. Contudo, ser-lhe-ia difícil evitar a festa... Um triste espectáculo, o de Eneias: os dentes cerrados, o sobrolho muito franzido, uns olhos sem brilho... Eu vencera, ele perdera. O sangue de Príamo permanecia vivo. Tróia seria governada pelos meus descendentes e não por Eneias.
Narrado por Neoptolemo.
Fecharam-nos a porta do alçapão bastante antes do alvorecer, e nós, que conhecíamos a escuridão de tantas e tantas noites, só então descobrimos o que era realmente a escuridão. Eu abria muito os olhos, abria-os até não poder mais, procurando ver, procurando enxergar qualquer coisa, mas não havia nada para ver, nada para enxergar. Nada. Estava completamente cego e o mundo era um negrume tangível e insuportável. Um dia e uma noite dentro disto..., disse eu para mim mesmo. Quer dizer, se a sorte estivesse do nosso lado... Pelo menos um dia e uma noite, agachados no interior daquela prisão, sem uma réstia de luz para nos guiar - não tínhamos o sol para nos apercebermos da passagem do tempo, cada instante era uma eternidade, os ouvidos estavam tão atentos, tão concentrados, que a mera respiração dos homens soava como uma trovoada distante.
O meu braço roçou no de Ulisses; o meu corpo todo estremeceu, mais forte do que a mente que o governa. As minhas narinas contraíam-se, e com razão, pois era muito intenso o fedor a suor, a urina, a fezes, apesar dos baldes de couro cobertos que Ulisses distribuíra a cada trio de homens. Compreendia agora por que razão Ulisses se mostrara tão inflexível quanto a esse pormenor que a muitos parecia irrelevante. Se não fossem os baldes, seria impossível não ficarmos sujos de excrementos. Cem homens de súbito atacados de cegueira - como era possível que alguns homens conseguissem sobreviver a toda a uma vida de cegueira?
Nunca mais voltarei a ver, pensei eu a certa altura. Os meus olhos adaptar-se-ão à luz? O choque que sofrerão quando de novo virem a luz não os condenará a uma escuridão permanente? Sentia a minha pele retesada, sentia o terror devorando tudo à minha volta, consumindo o ânimo de cem dos mais corajosos homens vivos, agora encarcerados, agora vencidos por um pavor de morte. A minha língua aferrava-se ao céu da boca; procurei o odre para beber um pouco de água, não porque tivesse sede, mas apenas porque era preciso não estar parado, porque era preciso fazer qualquer coisa.
Claro que tínhamos ar: abençoado ar, engenhosamente filtrado através de um labirinto de minúsculos orifícios que percorriam todo o corpo do cavalo. No entanto, Ulisses avisara-nos de que não veríamos a luz através desses orifícios enquanto fosse dia, porque o labirinto fora protegido por várias camadas de panos. Por fim, fechei os olhos. Doíam-me tanto, por causa do muito esforço que fizera para tentar descortinar o que quer que fosse, que, ao fechá-los, me senti profundamente aliviado. Assim, descobri, era mais fácil suportar a escuridão.
Ulisses e eu estávamos sentados costas contra costas, como todos os outros. Naquela prisão, os nossos próprios corpos eram os únicos descansos para as costas uns dos outros. Procurando descontrair-me, repousei contra as costas dele e tratei de me lembrar de todas as raparigas que havia conhecido. Fiz um catálogo meticuloso - a mais bela e a mais feia - a mais alta e a mais baixa - a primeira e a última com quem tinha ido para a cama - uma que desatara num risinho nervoso por causa da minha pouca experiência e outra que já quase nem tinha forças para revirar os olhos depois de uma noite nos meus braços. Concluído o capítulo das raparigas, dei início a um outro, a saber, o de todos os animais que tinha caçado, o de todas as caçadas em que havia participado - leões, javalis, veados. Expedições marítimas, em busca de golfinhos e serpentes enormes e muitos outros monstros das profundezas aquáticas, ainda que não tivéssemos apanhado mais do que uns quantos atuns e percas-do-mar. Revivi os meus dias de treino para a guerra com os jovens mirmidões. As pequenas guerras que travei na companhia deles. Os momentos em que conheci grandes homens, e quem eles eram. Contei os navios e os reis que haviam partido para Tróia. Recapitulei os nomes de todas as cidades e aldeias da Tessália. Cantei mentalmente as baladas dos heróis. E assim foi o tempo passando - a passo de caracol.
O silêncio tornou-se mais intenso, mais profundo. Devo ter dormido, pois acordei com um estremeção, logo descobrindo que, nesse mesmo instante, Ulisses me tapara a boca. Descansei a cabeça no seu colo, os olhos quase saindo das órbitas, tal era o meu pânico, até que me lembrei da razão por que não conseguia ver nada. Eu tinha acordado devido a um repentino movimento da imponente construção; ao recuperar a calma, dei-me conta de um novo moviinento - um suave solavanco. Soergui-me, procurei as mãos de Ulisses e apertei-as com toda a minha força. Ele baixou a cabeça, encostando o cabelo à minha face. Encontrei a orelha dele e segredei-lhe: - Já começaram a puxá-lo? Senti o sorriso dele contra o meu rosto.
- Claro. Nunca duvidei que eles levassem o cavalo para Tróia. Como eu previa, acreditaram piamente na história de Sinão - sussurrou ele.
A súbita actividade acabou com a sufocante inércia do nosso cárcere; por um longo tempo, sentimo-nos mais animados, mais alegres, enquanto o cavalo avançava ao sabor de guinadas e solavancos; pusemo-nos a calcular a velocidade a que iríamos, a estimar quanto tempo demoraríamos a chegar às muralhas, a debater o que faria Príamo quando confirmasse que o cavalo era demasiado grande. E, ao longo desse tempo, rejubilámos com o facto de podermos falar uns com os outros, numa voz baixa mas não sumida, pois sabíamos que os ruídos produzidos pela nossa construção não deixariam que as nossas conversas chegassem aos ouvidos troianos. Ouvíamos o cavalo a avançar, mas não conseguíamos ouvir nem os homens, nem os bois. Apenas as rodas rodando, atroando, guinchando.
Não foi difícil apercebermo-nos do momento em que o nosso transporte chegou à Porta Ceia. O cavalo parou, todo o movimento cessou. Não sei quanto tempo estivemos ali parados - eu tive a sensação de que foram vários dias, mas por certo estava errado. Em silêncio, desatámos a rezar a todos os deuses que conhecíamos, pedindo-lhes que convencessem os Troianos a não desistirem; e que os convencessem a destruir o arco que encimava a porta, tal e qual como Ulisses previra. Até que, por fim, o cavalo voltou a mover-se. Um solavanco estridente que nos lançou por terra: com os rostos colados ao chão, deixámo-nos ficar quietos, parados, calados.
- Idiotas! - rosnou Ulisses. - Fizeram mal os cálculos. Após quatro solavancos idênticos, o cavalo avançou de novo, rodando normalmente. Quando viu o chão começando a inclinar-se, Ulisses não conseguiu impedir um risinho de puro gozo.
- Estamos a subir a colina que conduz à cidadela - disse-me ele. - Imagina só! Conduzem-nos ao palácio!
Então, uma vez mais, um pesado silêncio caiu sobre tudo. Depois de a construção ter parado com um portentoso gemido, víamo-nos de novo entregues aos nossos próprios pensamentos. O gigantesco cavalo demorou algum tempo a firmar-se no seu novo terreno, como se fosse um animal monstruoso descansando na lama; perguntei-me em que sítio estaríamos realmente. Pelos orifícios, chegava-nos um perfume de flores. Tentei avaliar quanto tempo demorara o cavalo a chegar ali, mas não consegui. Sem vermos o Sol, ou a Lua, ou as estrelas, como poderíamos estimar a passagem do tempo? Decidi encostar-me de novo às costas de Ulisses e envolver os joelhos com os braços. Estávamos mesmo ao pé da porta do alçapão, ao passo que Diomedes ficara no extremo oposto, a fim de manter a ordem (tínhamos instruções para matar todo e qualquer homem que cedesse ao pânico). Ainda bem que ficara com Ulisses. Ulisses era tão firme como uma rocha; o facto de o ter a meu lado era o bastante para aplacar todos os meus receios.
Quando me pus a pensar no meu pai, o tempo voou. Não queria pensar nele, pois temia a dor que o meu coração prenunciava; contudo, o anticlímax da nossa última espera desprendeu-me inexoravelmente o pensamento. E não senti qualquer dor, pois, quando abri as janelas da minha mente para que ele entrasse, senti-o fisicamente comigo. Eu era de novo um menino e ele um gigante erguendo-se muito acima da minha cabeça, um deus e um herói aos olhos de uma criança. Tão belo... Tão estranho, com aquela boca sem lábios... Tenho ainda nos meus lábios aquela cicatriz... Certo dia, tentara cortar os meus lábios, pois pensava que, assim, ficaria mais parecido com ele; o avô Peleu surpreendera-me em flagrante delito e, por castigo, aplicou-me uns valentes açoites. Tu não podes ser outra pessoa, disse-me ele. Tu és tu mesmo e mais ninguém. Com ou sem lábios. Ah, e o que eu rezei para que a guerra contra Tróia durasse o suficiente, a fim de que eu pudesse juntar-me a ele! Quando fiz catorze anos e me tornei um homem, supliquei aos meus avós, Peleu e Licomedes, que me deixassem partir para Tróia. Ambos recusaram.
Até àquele dia em que o avô Peleu entrou nos meus aposentos, com o rosto abatido de um homem moribundo, e me disse que podia partir. Não me disse mais nada. Apenas que podia partir. Não me falou da mensagem que Ulisses lhe enviara - aquela que dizia que Aquiles tinha os días contados.
Enquanto viver, não esquecerei nunca a balada que o bardo cantou diante de Agamémnon e dos outros reis. Sem que dessem por mim, entrei e fiquei à porta; bebi sequioso todas as palavras do bardo, deleitando-me com os feitos de meu pai. Até que o bardo falou da sua morte, da minha avó e da escolha que ela lhe oferecera, uma escolha que, para ele, não o era: viver uma longa e próspera vida na mais total obscuridade, ou morrer jovem e coberto de glória. O meu pai escolhera a morte. Mas a morte era um fim que eu nunca conseguira associar ao meu pai. Para mim, Aquiles estava acima do mortal destino dos homens; nenhuma mão humana poderia abatê-lo. No entanto, Aquiles era um homem mortal; Aquiles morrera. Morrera antes que eu pudesse vê-lo, antes que eu pudesse beijar a sua boca sem precisar que ele pegasse em mim, sem precisar de me pôr em bicos de pés enquanto ele se baixava. Diziam-me os soldados que, agora, eu tinha praticamente a mesma estatura que ele.
Ulisses adivinhara as minhas inquietações e contara-me tudo o que sabia ou suspeitava. Contara-me o plano que havia urdido, não poupando ninguém - e muito menos ele mesmo; explicara-me as razões da desavença entre o meu pai e Agamémnon e da retirada do exército da Tessália. Perguntei-me se teria suportado aquilo que o meu pai suportou: ver a sua reputação para sempre maculada. Talvez eu não tivesse tanta força como ele, tanta determinação, em circunstâncias tão terríveis. Com o coração dilacerado, jurei a Ulisses que não revelaria a ninguém aquele segredo; uma qualquer voz dentro de mim dizia-me que o meu pai queria que as coisas ficassem como estavam. Ulisses pensava que era como que uma expiação para um grande pecado que o meu pai pensava ter cometido.
Porém, nem mesmo naquela escuridão eu conseguia chorar pelo meu pai. Os meus olhos estavam secos. Páris, o assassino de Aquiles, estava morto. Teria de matar Príamo. Talvez então conseguisse chorar.
Dormitei de novo. O som do alçapão a abrir-se acordou-me. Ulisses movia-se como um relâmpago, mas tinha de ser ainda mais rápido. Uma luz desmaiada, estonteante, coava-se pelo buraco no chão do cavalo, fazendo brilhar alguns pares de pernas muito juntas. Ouviram-se sons de um tumulto sumido; então, um dos pares de pernas tombou. Senti um corpo caindo por terra; depois, um ruído surdo. Dentro do cavalo, houvera alguém que não conseguira suportar aquela prisão um momento mais que fosse; quando Sinão, que estava lá fora, puxara a alavanca que abria o alçapão, ninguém dera ordens para avançarmos, mas um dos homens estava já pronto para sair.
Ulisses olhou para baixo e logo desenrolou a escada de corda. Avancei para ele. As nossas armaduras estavam guardadas na cabeça do cavalo e tínhamos uma ordem de saída rigorosa; enquanto fazíamos fila para descer do cavalo, a primeira coisa em que as mãos dos homens tocavam era a sua própria armadura. - Eu sei quem caiu - disse-me Ulisses. - Levarei por isso a minha armadura e esperarei até que chegue a sua vez; depois, levarei a dele. Caso contrário, os homens que deveriam sair depois dele não receberão a armadura certa.
Fui eu o primeiro a pisar terra firme. Não tão firme como isso, afinal: um tapete de flores outonais, cujo perfume deixaria qualquer um estonteado.
Depois de todos terem descido, Ulisses e Diomedes trataram de saudar Sinão com abraços e beijos. O astuto Sinão, que era primo de Ulisses. Como não o vira antes de termos entrado para o cavalo, fiquei espantado com a sua presença ali. Não admirava que os Troianos tivessem acreditado na história que ele lhes impingira! Estava imundo, cheio de sangue, tinha um ar miserável, enfermiço. Nem o mais rebelde dos escravos seria tratado de uma forma tão abominável! Ulisses dir-me-ia mais tarde que Sinão, por sua livre vontade, passara fome durante duas luas, a fim de ficar com um ar verdadeiramente doente.
Sinão tinha um sorriso de orelha a orelha; abeirei-me deles quando ele começou a falar.
- Príamo acreditou em tudo, primo! E os deuses estavam do nosso lado - Zeus mandou um agouro terrível! Lacoonte e os seus dois filhos morreram ao pisarem um ninho de víboras! Não poderia ter corrido melhor.
Deixaram a Porta Ceia aberta? - perguntou Ulisses.
- Claro. Toda a cidade está a dormir, ou melhor, a curar a bebedeira - o que eles celebraram! Logo que as festividades no palácio começaram, nunca mais se lembraram da pobre vítima do acampamento grego. Por isso, não tive qualquer dificuldade em chegar ao promontório de Sigeu, onde acendi uma fogueira para avisar Agamémnon. À minha fogueira, respondeu imediatamente a do rei supremo, nas encostas de Ténedo - neste momento, Agamémnon deve estar a chegar à praia de Sigeu.
Ulisses abraçou-o de novo.
- Fizeste um trabalho magnífico, Sinão. Serás recompensado!
- Eu sei. - Fez uma pausa, pôs um ar inchado de satisfação. - Sabes, primo, creio que teria feito o que fiz mesmo que não houvesse recompensa nenhuma.
Ulisses mandou cinquenta homens para a Porta Ceia: era preciso impedir os Troianos de fecharem a porta antes que Agamémnon entrasse; os restantes homens ficaram onde estavam, armados e prontos para a acção, vendo os tons rosa e dourado do alvorecer erguendo-se lentamente por sobre a alta muralha que rodeava o pátio principal, aspirando profundamente o ar da manhã, saboreando o perfume das flores sob os nossos pés.
- Quem caiu do cavalo? - perguntei a Ulisses.
- Equíon, o filho de Porteu - informou-me ele, sem mais, claramente concentrado noutro problema. Não parava quieto, pigarreava ansioso. Ulisses, ansioso? Nem parecia dele! - Agamémnon, Agamémnon, onde estás? - perguntou ele em voz alta. - Já devias cá estar!
Nesse exacto momento, o som de uma única trombeta espalhou-se pela quietude do alvorecer. Agamémnon chegara à Porta Ceia. Podíamos finalmente avançar.
Dividimo-nos. Ulisses, Diomedes, Menelau, Automedonte e eu, comandando mais uns quantos, avançámos tão suavemente quanto nos era possível na direcção da colunata; depois, virámos para um alto e amplo corredor que conduzia à área do complexo de palácios que pertencia a Príamo. Aí, Ulisses, Menelau e Diomedes deixaram-me, seguindo por uma passagem que levava aos aposentos que albergavam Helena e Deífobo.
Um grito imenso, solitário, desvairado, rasgou o profundo silêncio em que a cidade se encontrava mergulhada e abateu-se sobre a cabeça de Tróia como uma águia caindo sobre a sua presa. De súbito, os corredores do palácio encheram-se de gente, homens ainda nus, acabados de sair das camas, empunhando incertas espadas, aturdidos devido ao muito vinho que tinham bebido. O que nos permitia levar a cabo a nossa missão com uma calma extrema; era fácil aparar aquelas investidas tontas e abatê-los logo de seguida. Mulheres uivavam e guinchavam, o mármore debaixo dos nossos pés depressa ficou escorregadio por causa do muito sangue - não, os Troianos não tinham escapatória possível. Poucos eram aqueles que se davam conta do que estava a acontecer. Alguns, no entanto, estavam despertos o suficiente para me confundirem com o meu pai, tanto mais que eu envergara a armadura dele; desatavam a fugir, gritando a plenos pulmões que Aquiles voltara do mundo dos mortos e comandava aquele exército de sombras.
A ânsia de matar era o que me movia: não poupava ninguém. Com o aparecimento dos guardas, a resistência começou a ganhar alguma firmeza; finalmente, tínhamos de enfrentar alguns bons combatentes, ainda que o estilo do combate não fosse o de um campo de batalha. As mulheres contribuiam para o pânico e a confusão, dificultando as manobras dos homens da cidadela. Na minha esteira, vinham alguns dos homens que haviam entrado em Tróia graças ao cavalo; ansiando pelo fim de Príamo, deixei-os chacinar a seu bel-prazer. Só Príamo me interessava: só Príamo poderia pagar a morte de Aquiles.
Mas eles adoravam aquele rei velho e tonto. Aqueles que haviam acordado com as ideias mais ou menos assentes, tinham envergado uma armadura e corrido por atalhos através daquele labirinto, decididos a protegê-lo. Uma muralha de homens armados barrava já o meu caminho, as lanças apontadas, as suas expressões dizendo-me que estavam dispostos a morrer ao serviço de Príamo. Automedonte e alguns outros juntaram-se a mim; permaneci quieto por um momento, estudando a situação. Com as pontas das lanças apontadas ao meu peito, esperavam que eu me movesse. Afastei um nada o meu escudo e olhei por cima do ombro.
- Vamo-nos a eles! Saltei em frente tão rapidamente que o homem que estava diante de mim, instintivamente, se afastou para o lado, desse modo perturbando todos os outros.
Usando o escudo como uma muralha, choquei estrondosamente contra eles. Os soldados de Príamo não poderiam resistir a tão tremendo peso; ao cair em cima deles, a linha desfez-se, as lanças caíram ao chão, inúteis. Ergui-me, fazendo rodopiar o machado; um homem perdeu um braço, outro metade do peito, um terceiro o cocuruto da cabeça. Aquilo era como abater árvores novas. Em combates corpo a corpo, a minha estatura e o poder do meu braço deixavam-me sem rival.
O meu machado não parava de ceifar inimigos.
Coberto de sangue da cabeça aos pés, passei por cima dos cadáveres e dei comigo numa colunata que rodeava um pequeno pátio. No centro desse pátio, havia um altar erguido sobre um estrado com degraus; um frondoso loureiro protegia do sol a mesa do altar.
Príamo, o rei de Tróia, estava encolhido no degrau superior, a barba e o cabelo brancos brilhando como prata sob a luz que se coava através dos ramos do loureiro, o corpo esquelético envolto na túnica de linho com que se deitara.
Pega numa espada e morre, Príamo! - gritei-lhe, baixando o machado.
Príamo não olhava para mim; aqueles olhos remelosos, molhados de lágrimas, como que fitavam o vazio; não me via, não me ouvia, estava longe, muito longe de mim. O ar estava saturado de ruídos de morte e sangue e o fumo espalhava-se já como uma bruma, baixando as lonjuras do céu. À sua volta, Tróia morria - e Príamo encolhia-se nos degraus do altar de Apolo, a um passo da loucura. Creio que não chegou nunca a compreender que tínhamos entrado em Tróia graças ao cavalo - o deus poupou-o a isso. Tudo o que Príamo entendia era que já não havia razão nenhuma para que continuasse a viver.
Uma mulher muito velha estava agachada a seu lado, febrilmente agarrada ao braço dele, a boca aberta numa constante sucessão de uivos. Digo bem: uivos. Os gritos dela assemelhavam-se mais aos uivos dos lobos do que a qualquer humano grito. Uma jovem com uma longuíssima cabeleira negra estava de costas para mim, junto à mesa do altar, as mãos sobre a laje, a cabeça inclinada para trás em oração.
Mais homens surgiram para defender Príamo; enfrentei com desdém aquela investida. Alguns exibiam as insígnias dos filhos de Príamo - um facto que me acicatou ainda mais. Matei-os a todos até que só um restava, não mais do que um rapazito - seria ílio? Que me importava quem ele era? Quando tentou atacar-me com a sua espada, arranquei-lha facilmente; depois, peguei nele pelas longas tranças com a mão esquerda, abandonando o escudo. O rapaz debateu-se, fartou-se de esmurrar as minhas grevas, mas eu arrastei-o até aos degraus do altar. Príamo e Hécuba agarraram-se ainda mais um ao outro; a jovem não se virou para ver.
- Aqui está o teu último filho, Príamo! Vais assistir à sua morte! Finquei o calcanhar no peito do jovem, com tanta força que o pobre se viu obrigado a erguer os ombros do chão, para logo morrer com a cabeça esmagada pela pá do machado. De súbito, pela primeira vez, Príamo pareceu dar-se conta de que eu estava ali. Levantou-se de um salto. Com os olhos fixos no cadáver do seu último filho, procurou uma lança que estava encostada a um dos lados do altar. Hécuba tentou detê-lo, uivando como uma loba.
Mas o pobre velho mal conseguia andar. Tropeçou e caiu aos meus pés com a cara enterrada nos braços, oferecendo o pescoço à lâmina do machado. A velha agarrara-se às coxas dele; a jovem virara-se finalmente, mas não era para mim que olhava, era para o rei, uma profunda compaixão estampada no rosto. Ergui o machado. Avaliei bem o golpe: era fundamental que não houvesse o mínimo erro. A lâmina dupla abateu-se tão leve como uma fita tremulando ao sabor do vento e eu senti dentro de mim, naquele instante sublime, o sacerdote que vive nos corações de todos os homens nascidos para reinarem. O machado do meu pai cumpriu a sua parte brilhantemente. O pescoço de Príamo rasgou-se sob a cabeleira cor de prata, a lâmina cravou-se na pedra do chão, a cabeça saltou bem alto. Tróia estava morta. O seu rei morrera como os reis costumavam morrer nos tempos da Velha Religião: decapitados pelo sagrado machado. Quando me virei para ver o que se passava à minha volta, só encontrei gregos.
- Procura um quarto que possas trancar bem trancado - disse eu a Automedonte. - Depois, volta aqui e leva as duas mulheres para esse quarto.
Subi os degraus do altar.
- O teu rei está morto - disse eu para a jovem - uma mulher extremamente bela. - És minha cativa. Quem és tu?
- Andrómaca da Cilícia, a viúva de Heitor - disse ela, num tom de voz firme.
- Nesse caso, cuida da tua sogra enquanto puderes. Em breve serão separadas.
- Deixa-me ir ter com o meu filho - disse ela, sem qualquer agitação, perfeitamente controlada.
Abanei a cabeça.
- Não, Andrómaca, isso não é possível.
- Por favor! - exclamou, com uma expressão tão firme e controlada como antes.
Os últimos resquícios de fúria evaporaram-se; senti por ela uma imensa compaixão. Agamémnon nunca permitiria que o rapaz vivesse. As suas ordens eram claras: toda a Casa de Príamo teria de perecer. Antes que eu me visse obrigado a responder-lhe que não uma segunda vez, Automedonte regressou ao pátio de Apolo. As duas mulheres, a mais velha uivando ainda e sempre, a outra implorando serenamente que a deixassem ver o filho, foram levadas dali para fora.
Depois disso, abandonei o pátio e tratei de explorar o labirinto de corredores, abrindo cada uma das muitas portas e espreitando para ver se haveria mais troianos que as minhas armas pudessem abater. Mas não encontrei ninguém. Até que cheguei a um outro pátio e abri mais uma porta.
Deitado numa cama, dormindo profundamente, estava um homem dotado de uma constituição física poderosa. Um homem bem-parecido, moreno o suficiente para passar por um filho de Príamo; no entanto, tirando a cor da pele, não havia nele mais nada que fizesse pensar na prole da Casa Real de Tróia. Entrei no quarto sem produzir um único ruído e coloquei-me à beira dele, com o machado roçando-lhe o pescoço. Nem assim acordou. Então, abanei-o violentamente pelo ombro esquerdo. Os efeitos da bebedeira da noite anterior ainda se faziam sentir - e de que maneira! O homem resmungou qualquer coisa, as suas pálpebras tremeram um nada. Continuaria a dormir se, de repente, os seus olhos não tivessem entrevisto uma inesperada criatura envergando a armadura de Aquiles. Despertou num ápice e só a lâmina do machado o impediu de correr para a sua espada. Lançou-me um olhar feroz.
- Quem és tu? - perguntei, com um sorriso.
- Eneias da Dardânia.
- Sim senhor! Eneias da Dardânia! És meu prisioneiro, Eneias. Eu sou Neoptolemo.
Um clarão de esperança iluminou-lhe os olhos.
- O quê? Quer dizer que não me vão matar?
- Porque haveria eu de querer matar-te? És meu prisioneiro - e eu não mato os meus prisioneiros. Se os Dardanianos nutrirem ainda alguma estima por tí e estiverem, por isso, dispostos a pagar o exorbitante resgate que tenciono exigir, poderás ser de novo um homem livre. Será um prémio para quem, por vezes, se mostrou... enfim... tão simpático para com o inimigo no campo de batalha.
Uma explosão de alegria inundou-lhe o rosto.
- Nesse caso... nesse caso serei rei de Tróia! Desatei a rir.
- Quando o teu resgate for pago, Tróia já não existirá... Vamos arrasar a cidade e vender os seus habitantes como escravos. Na planície de Tróia, haverá apenas sombras... Creio que, no teu caso, a decisão mais sensata seria emigrar. Desviei o machado. - Levanta-te. Virás comigo, nu e acorrentado.
Eneias protestou, mas fez exactamente o que lhe mandei. Portou-se como um cordeirinho.
Um soldado mirmidão trouxe-me o meu carro por entre a fumarada imensa que se espalhava pelas ruas e as chamas que consumiam as casas. Libertei as duas mulheres da sua prisão e amarrei-lhes os braços com cordas. Por sua própria iniciativa, Eneias estendeu as mãos para que o prendesse. Com os meus três cativos convenientemente amarrados, ordenei a Automedonte que conduzisse o meu carro para fora da cidadela, na direcção da Praça Ceia. O saque da cidade consumava-se agora - não era um trabalho digno para o filho de Aquiles. Alguém enganchara o cadáver decapitado de Príamo à traseira do carro, tal como sucedera com o cadáver de Heitor; aquele resto, não mais do que um boneco ensanguentado, deslizava pelas pedras, por entre os pés dos meus três cativos vivos. A cabeça de Príamo estava espetada na Velha Pélion, a cabeleira e a barba prateadas empapadas em sangue, os olhos escuros esbugalhados, petrificados na dor e na ruína, mirando cegos as casas que as chamas devoravam e os corpos mutilados que juncavam as ruas. Crianças pequenas choravam em vão pelas suas mães, mulheres corriam como loucas à procura dos seus bebés ou fugiam de soldados que só ficariam satisfeitos depois de as violarem e matarem.
Impossível suster a fúria irracional do exército. Naquele dia de triunfo, os homens vingavam-se de todo o sofrimento por que haviam passado ao longo de dez anos de exílio, dez longos anos de saudades da pátria e dos seus, de muitos camaradas mortos e de muitas esposas infiéis, de ódio por todas as pessoas e coisas troianas; como animais selvagens, lançavam-se sobre as suas presas no meio daquelas ruas que o fumo amortalhava. De Agamémnon, nem sinal. É possível que alguma da minha pressa em deixar a cidade resultasse da relutância que sentia em encontrar-me com ele naquele dia de total devastação. É que aquela vitória era dele - não minha.
Não muito longe da cidadela, Ulisses emergiu de uma rua secundária, saudando-me calorosamente.
- Já de partida, Neoptolemo? Aquiesci sem a menor alegria.
- Sim, e tão depressa quanto puder. Agora que a minha fúria se esbateu, creio que o meu estômago não aguenta tanto sangue e devastação.
Apontou para a cabeça.
- Estou a ver que encontraste Príamo.
- Sim.
- E os outros, quem são? - Inspeccionou os meus prisioneiros, presenteando Eneias com uma vénia muito exagerada. - Não estava nada à espera de encontrá-lo vivo! Estava certo e seguro de que ias ter muitos problemas com o príncipe Eneias.
Não resisti a mirar com escárnio o dardaniano.
- Dormia que nem um bebé, enquanto Tróia caía! Encontrei-o a ressonar na cama, tão nu como veio ao mundo!
Ulisses desatou a rir-se; Eneias ergueu-se furioso, os músculos dos braços retesando-se num combate insano contra as cordas que os prendiam. De súbito, dei-me conta de que dera a Eneias o mais mortificante dos destinos. O antigo pretendente ao trono de Tróia era demasiado orgulhoso para suportar o escárnio. No instante em que o acordara, não conseguira pensar noutra coisa senão no trono de Tróia. Agora, começava a entender o que significaria o seu cativeiro - os insultos, a chacota, a hilaridade, a história, vezes sem conta contada, de como fora encontrado a dormir, e ainda bêbedo que nem um cacho, enquanto todos os outros combatiam.
Desamarrei as cordas que prendiam a velha Hécuba e obriguei-a a avançar. A loba continuava a uivar. Depois, estendi a Ulisses a ponta da corda.
- Uma prenda especial para ti, Ulisses. Leva-a contigo e oferece-a a Penélope: dará uma boa criada. Além disso, uma cativa que foi rainha contribuirá, e não pouco, para o prestígio da tua rochosa ilha.
Ulisses pestanejou, sinceramente surpreendido.
Para quê, Neoptolemo? Deixa lá, não é preciso...
- Eu quero que ela seja tua cativa, Ulisses. Se eu tentasse levá-la comigo, Agamémnon opor-se-ia e acabaria por ficar com ela. Mas a ti, não ousará ele disputar Hécuba... Não faz sentido que seja só a casa de Atreu a exíbir régios cativos.
- E a jovem? Sabes quem ela é, não sabes?
- Sei. Mas Andrómaca não me escapará. - Curvei-me para lhe segredar ao ouvido: - Ela queria ir ter com o filho, mas isso era impossível... Que aconteceu ao filho de Heitor?
Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Fitou-me com uma expressão soturna.
- Astianacte está morto. Não podíamos permitir-lhe que vivesse. Fui eu próprio que o encontrei. Atirei-o da torre da cidadela. Filhos, netos, bisnetos - todos tinham de morrer.
Mudei de assunto.
- Encontraram Helena? A soturnidade logo se esbateu com uma imensa gargalhada.
- Claro que encontrámos!
- Como morreu ela?
- Helena, morta? Helena? Ela nasceu para chegar a velha e bem velha e para morrer serenamente na cama, rodeada por filhos, netos e criados lavados em lágrimas! Consegues imaginar Menelau cravando o seu punhal no coração de Helena? Ou permitindo a Agamémnon que ordene a execução de Helena? Por todos os deuses, Menelau tem mais amor àquela criatura do que todo o amor que poderia ter por si mesmo!
As gargalhadas esbateram-se, mas, de quando em quando, ainda vinha um risinho.
- Encontrámo-la nos seus aposentos, rodeada por uns quantos guardas. Deífobo estava pronto para matar o primeiro grego que visse. Mas Menelau mais parecia um touro enraivecido! Enfrentou sozinho os troianos e saiu-se muito bem! Eu e Diomedes não passámos de meros espectadores... Quando acabou com os guardas, desafiou Deífobo para um duelo. Helena estava a um canto, com a cabeça para trás, os seios muito espetados, os olhos tão brilhantes como sóis verdes. Tão bela como Afrodite! Nunca haverá no mundo uma mulher capaz de lhe fazer sombra, Neoptolemo! Menelau estava pronto para o duelo, mas a verdade é que não houve duelo nenhum... Helena foi mais rápida do que ele: pegou num punhal e cravou-o nas costas de Deífobo, entre as omoplatas. Depois, caiu de joelhos. Com o peito bem espetado.
- «Mata-me, Menelau! Mata-me!» - exclamou. «Eu não mereço viver! Mata-me já! »
- Claro que ele não a matou. Aqueles seios foram mais fortes do que toda a sua raiva. Abandonaram juntos o quarto, sem sequer olharem para nós!
Acabei também por me rir.
- Que estranha ironia! Pensar que vocês combateram um grupo de nações durante dez anos, decididos a que Helena morresse, para agora a verem partir para Amiclas, tão livre como antes - e de novo rainha ... !
- Bom, a morte não costuma vir quando a esperamos, pois não? - disse Ulisses. Os ombros dele vacilaram e, pela primeira vez, dei-me conta de que Ulisses era um homem com quase quarenta anos, de que ele sentia amargamente a sua idade e o seu exílio, de que, apesar de todo o seu apetite pela intriga, tudo o que ele queria era voltar para casa. Saudou-me e logo se afastou, levando atrás de si aquela loba velha que continuava a uivar. Acenei para Automedonte e seguimos na direcção da Porta Ceia.
Os cavalos avançaram lentamente pela estrada que conduzia à praia. Eneias e Andrómaca vinham a pé, atrás de nós, o cadáver de Príamo entre os dois, saltando ao sabor dos acidentes da estrada. No interior do acampamento, contornei a base dos Mirmidões, rumo ao Escamandro, que passámos a pé. Por fim, tomei o caminho que levava aos túmulos.
Quando os cavalos não puderam avançar mais, desprendi o cadáver de Príamo da barra a que viera amarrado, peguei nele pela túnica que o cobria e assim o arrastei até ao túmulo do meu pai. Deixei aquela massa mole e sem vida na pose de um suplicante, ajoelhada, e enterrei a base da Velha Pélion no chão, empilhando depois pedras à sua volta, como se fosse um pequeno monumento funerário. Concluído esse trabalho, virei-me para ver Tróia lá em baixo, na planície, as casas jorrando chamas para o céu sombrio, a porta escancarada como a boca de um cadáver depois de a sua sombra se ter refugiado nas obscuras vastidões subterrâneas. E então, por fim, chorei por Aquiles.
Tentei imaginá-lo quando estivera em Tróia, mas correra já demasiado sangue; uma bruma de morte pairava sobre a terra. No fim de tudo, só um Aquiles consegui evocar: aquele que eu vira muitos anos antes, a pele brilhante depois do banho, os olhos amarelos cintilando de prazer porque era para mim, o seu filho ainda pequeno, que ele estava a olhar.
Sem me preocupar que vissem as minhas lágrimas, regressei ao carro e subi para junto de Automedonte.
- Para os navios, amigo do meu pai! Voltamos para casa! - disse-lhe eu.
- Para casa! - ecoou o fiel Automedonte, que partira de Áulida com Aquiles. Para casa!
Na planície, as chamas devoravam Tróia, mas os nossos olhos não viam outra coisa senão o sol que reverberava no mar tão escuro como vinho e que nos dizia que aquele era o caminho para casa.
O destino de alguns sobreviventes.
AGAMÉMNON regressou são e salvo a Micenas, sem saber que a sua esposa, Clitemenestra, usurpara o trono e casara com Egisto. Depois de uma agradável recepção, Clitemenestra convenceu-o a tomar banho. Enquanto ele chapinhava feliz na água quente do banho, a rainha pegou no machado sagrado e matou-o.
Depois, matou a concubina de Agamémnon, Cassandra, a profetisa. Temendo que Egisto matasse Orestes, Electra, a filha mais velha de Agamémnon e Clitemenestra, levou para bem longe o irmão. Orestes viria a vingar o pai, matando a mãe e o amante desta. Porém, fizesse o que fizesse, Orestes não tinha saída: os deuses exigiram-lhe que vingasse a morte do pai, mas condenaram-no por matricídio. O irmão de Electra acabou por enlouquecer.
Segundo a tradição latina, ENEIAS fugiu ao incêndio de Tróia com o pai, o velho Anquises, empoleirado nos seus ombros, e com o Paládio debaixo do braço. Fez-se depois ao mar, tendo acabado por aportar a Cartago, no norte de África, onde a rainha, Dido, se apaixonou perdidamente por ele. Quando Eneias abandonou Cartago, Dido suicidou-se. O destino final de Eneias teria sido, ainda segundo a mesma tradição, a planície do Lácio, na Itália Central, onde se instalou após ter travado uma guerra. lúlo, filho de Eneias e da princesa Lavínia do Lácio, tornou-se rei de Alba Longa e dele descenderia Júlio César. Contudo, a tradição grega nega tudo isto. Diz que Eneias foi levado como cativo pelo filho de Aquiles, Neoptolemo, o qual, posteriormente, negociou com os Dardanianos o seu resgate; segundo a tradição grega, Eneias ter-se-ia instalado mais tarde na Trácia.
ANDRÓMACA, a viúva de Heitor, foi feita prisioneira por Neoptolemo, que fez dela ou sua esposa, ou sua concubina. Andrómaca deu-lhe pelo menos dois filhos.
ANTENOR, juntamente com a esposa, a sacerdotisa Teano, e os filhos, pôde abandonar livremente Tróia, após a queda da cidade. A família viria a instalar-se na Trácia - ou, segundo alguns, na Cirenaica, no norte de África.
ASCÂNIO, o filho de Eneias e da princesa troiana Creúsa, permaneceu na Ásia Menor depois de o seu pai ter partido com Neoptolemo. O trono de Tróia viria a ser seu, mas Tróia havia já perdido todo o seu antigo esplendor e poder.
O navio de DIOMEDES foi afastado da sua rota por uma tempestade e acabou por naufragar na costa da Lícia, na Ásia Menor. Diomedes, no entanto, sobreviveu. Acabou por chegar a Argos, onde descobriu que a mulher cometera adultério e lhe usurpara o trono. Foi derrotado e banido para Corinto, tendo travado depois uma guerra na Etólia. Aparentemente, Diomedes nunca mais teve um reino. O seu último paradeiro conhecido foi a cidade de Luceria, na Apúlia, Itália.
HÉCUBA acompanhou Ulisses ao Quersoneso da Trácia. Os seus uivos perpétuos deixaram tão aterrado o rei de ítaca que este acabou por abandoná-la na praia. Apiedando-se dela, os deuses transformaram-na numa cadela preta.
HELENA participou em todas as aventuras de Menelau.
IDOMENEU teve o mesmo problema que Agamémnon e Diomedes. A rainha usurpou o trono de Creta e partilhou-o com o amante, que expulsou Idomeneu. O antigo rei de Creta viria a instalar-se na Calábria, Itália.
CASSANDRA, a profetisa, rejeitara na sua juventude as propostas amorosas de Apolo. O deus vingou-se, amaldiçoando-a: Cassandra profetizaria sempre a verdade, mas ninguém acreditaria nela. Foi de início cativa do Pequeno Ájax; contudo, foi-lhe tirada depois de Ulisses ter jurado que a violara no altar de Atena. Agamémnon também a queria e levou a melhor sobre os outros. Cassandra seguiu para Micenas no navio do rei supremo. A profetisa troiana avisou-o de que a morte os aguardava em Micenas, mas Agamémnon não acreditou em tais palavras. A maldição de Apolo manteve-se até ao fim: Cassandra foi assassinada por Clitemenestra.
O navio do PEQUENO ÁJAX naufragou durante a viagem de regresso à Grécia. O príncipe morreu afogado.
O navio de MENELAU foi desviado da sua rota pelos ventos e acabou por aportar ao Egipto, onde (com Helena) visitou muitas terras, permanecendo nessa região durante oito anos. Regressou à Lacedemónia no mesmo dia em que Orestes matou a mãe. Menelau e Helena reinaram na Lacedemónia e lançaram as bases do futuro estado de Esparta.
MENESTEU não voltou a Atenas. No regresso a casa, aceitou a ilha de Melo como o seu novo reino.
NEOPTOLEMO sucedeu no trono a Peleu, mas, após um conflito com os filhos de Ascasto, abandonou a Tessália e foi viver para Dodona, no Epiro. Viria a ser morto quando saqueava o santuário da pitonisa de Delfos.
NESTOR regressou a Pilos rapidamente e em segurança. Passou o resto da sua longuíssima vida no trono de Pilos, na mais absoluta paz e prosperidade.
Como o seu oráculo doméstico previra, ULISSES esteve vinte anos sem ver ítaca. Depois de ter deixado Tróia, deambulou pelo Mediterrâneo e teve um sem-número de aventuras com sereias, feiticeiras e monstros. Quando finalmente chegou a ítaca, encontrou o palácio cheio de pretendentes à mão de Penélope, desejosos de lhe usurparem o trono através do casamento com a rainha. No entanto, Penélope conseguira protelar um compromisso, insistindo que só voltaria a casar-se quando acabasse de tecer a sua própria mortalha. Todas as noites, Penélope desmanchava o trabalho que tinha feito no dia anterior. Ajudado pelo filho, Telémaco, Ulisses matou todos os pretendentes. O rei e a rainha de ítaca viveram felizes até ao fim dos seus dias.
FILOCTETES foi expulso do seu reino de Hestaiótis, tendo decidido emigrar para a cidade de Crotona (Lucânia, Itália). Levou consigo o arco e as flechas que tinham pertencido a Héracles.
São muitas as fontes da história de Tróia. A Ilíada de Homero é apenas uma delas; abarca apenas cinquenta e alguns dias de uma guerra que (todas as fontes concordam quanto a este ponto) durou dez anos. O outro poema épico atribuído a Homero, a Odisseia, contém também muitas informações acerca da guerra e daqueles que a travaram. As outras fontes são frequentemente fragmentárias e incluem, entre outros, Eurípedes, Píndaro, Higino, Hesíodo, Virgilio, Apolodoro de Atenas, Tzetzes, Diodoro Sículo, Dionísio de Halicarnasso, Sófocles, Heródoto.
Crê-se que o saque verdadeiramente importante de Tróia (com efeito, houve vários) ocorreu por volta do ano 1184 a. C., uma época de grandes convulsões no extremo oriental do Mediterrâneo, em consequência de catástrofes naturais, designadamente terramotos, e da migração de novos povos, tanto para essa zona como de partes dessa zona para outras partes. Das regiões a sul do Danúbio, vários povos deslocavam-se para a Macedónia e para a Trácia, ao passo que alguns povos gregos colonizavam já as costas do mar Egeu e do mar Negro da actual Turquia. Estes movimentos convulsivos sucederam-se a migrações mais antigas e precederam outras migrações; viriam, aliás, a persistir até épocas relativamente recentes. Foram eles que deram origem a muitas das mais ricas tradições da história da Europa, da Ásia Menor e da bacia do Mediterrâneo.
Os dados arqueológicos surgiram com as descobertas de Heinrich Schliemann em Hissarlik, na Turquia, e de Sir Arthur Evans, em Cnossos, na ilha de Creta. Parecem restar poucas dúvidas de que foi travada uma guerra entre os Gregos Aqueus e os habitantes de Tróia (também chamada Ilio). É praticamente seguro que o objectivo dessa guerra era o controlo dos Dardanelos, esse estreito vital entre o mar Negro (Euxino) e o Mediterrâneo (Egeu), já que o controlo dos Dardanelos (o Helesponto) implicava um monopólio do comércio entre os dois mares. Era difícil obter certos produtos importantes, nomeadamente o estanho, sem o qual o cobre não poderia ser transformado em bronze.
O comércio, a economia e a necessidade de sobrevivência foram muito provavelmente as razões desta guerra, mas isso não implica que prescindamos de todos aqueles ornamentos que relevam da lenda, como é o caso da história de Helena ou do Cavalo de Madeira.
Algumas das personagens deste romance são mais conhecidas pelas versões latinas dos seus nomes: é o caso de Hércules (Héracles), Vénus (Afrodite), Júpiter (Zeus), Vulcano (Hefaísto) ou Marte (Ares).
Apesar da existência de tábuas de argila (Linear A, Linear B, etc.) descobertas em Pilos e noutros locais de Micenas, os povos do Egeu do final da Idade do Bronze não eram letrados (no sentido que hoje damos a esta palavra). Entre estes povos, a capacidade de escrita, e não as «listas de mantimentos», como Ulisses as denomina desdenhosamente (as tábuas acima referidas - que eram uma forma de Grego), só viria a surgir pouco antes do século VII a. C.
As moedas pertencem também ao século VII a. C. Portanto, no tempo da guerra de Tróia, o dinheiro enquanto tal não existia, ainda que o ouro, a prata e o bronze fossem usados como instrumentos de permuta.
No que toca a unidades de sistemas de medição, escolhi termos como «talento», «légua», «passo», «cúbito» ou «dedo». Em épocas muito posteriores, a légua viria a equivaler a três milhas; contudo, no âmbito deste livro, a légua poderá ser considerada como equivalendo apenas a uma milha, ou seja, 1,6 quilómetros.
O passo era um duplo passo, medindo cerca de cinco pés britânicos, ou seja, 1,6 metros. Quanto ao cúbito, discute-se se seria a distância desde o cotovelo ao pulso, ou desde o cotovelo aos ossos do punho fechado, ou desde o cotovelo às pontas dos dedos. No contexto deste livro, dever-se-á considerar que um cúbito equivalia a quinze polegadas (375 milímetros). Comprimentos menores eram medidos com o dedo médio (um pouco menos de uma polegada, cerca de 20 mm). Um talento era a carga que um homem podia transportar às costas: cerca de cinquenta e seis libras modernas (ou 25 quilos). O grão era uma medida de capacidade: considere-se que o recipiente usado para retirar de uma ânfora uma determinada quantidade de grãos (ou de água) continha cerca de quatro pints americanos, ou seja, um litro. Os anos, provavelmente, eram determinados de acordo com os ciclos das estações, ao passo que o mês era medido de acordo com a Lua - corresponderia talvez ao período entre duas luas novas. Horas, minutos e segundos eram desconhecidos.
Colleen McCullough
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