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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CANÇÃO DOS NOVE CÉUS / Emilly Amite
A CANÇÃO DOS NOVE CÉUS / Emilly Amite

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Contam as histórias que os deuses criaram nove reinos acima das nuvens após a vida ser criada sobre o mundo:
O nono reino é descrito pelas criaturas dos céus como algo divino e inalcançável, desligado dos outros oito e que nem mesmo eles, seres mágicos e dotados de grande poder, força e imortalidade, jamais conseguiram adentrar: O Oásis Celestial, onde vivem os quatro deuses lunares. Para nós, terrenos, eles são divindades criadoras da vida no mundo, e que por alguma ideia maldosa, criaram os “celestes inferiores” com pequenas doses de poderes para fazer a vida dos mortais um pouco mais difícil, ou para tornas suas existências eternas menos tediosas.
Os Primeiro e Segundo Céus, reinos habitados por Solaris, criaturas místicas com a pele dourada ou bronze escuro e olhos de sol, alguns deles extremamente habilidosos, capazes de controlar os ciclos da vida abaixo deles e também as mentes dos outros celestes. Estes são governados pelo imperador de Solar, Sarki, que dizem ser apenas menos poderoso que os deuses lunares.
Os Terceiro e Quarto Céus, habitados por Ventus, criaturas dotadas de beleza sobrenatural, asas semelhantes as das libélulas, mas tão grandes quanto os próprios Ventus e se vistas contra a luz, criam espectros coloridos e brilham conforme se movimentam com graciosidade. Eles possuem grandes olhos cinzentos e são capazes de dominar os ventos e as mudanças outonais, são estes as criaturas mais pacíficas dos Céus.
Os Quinto e Sexto Céus, habitados por Tenebris, criaturas das sombras, que podem assumir a forma que desejarem, mas são sempre escuros, cercados de trevas, levam dor e destruição para onde vão e têm a estranha habilidade de neutralizar o poder dos Vernuns, consumir sua luz com um simples toque. Os Tenebris, porém, sob ordens dos Solaris, se tornaram bons aliados e já não interferem mais de forma ruim nas vidas daqueles acima ou abaixo dos céus, ou é o que acreditamos.
E por fim, os dois mais perto da terra, o Oitavo e o Sétimo Céus, governados por Vernuns, favoritos dos deuses depois dos Tenebris, são criaturas nascidas das tormentas das tempestades, manipuladores de energia, alguns deles criados da mais pura energia. Porém, seus corpos de luz eram inconstantes, e muitos deles morriam ao se desfazer em tempestades sobre o mundo mortal.
As lendas contam que um mago Ventus habitante do Quarto Céu deu forma física constante aos Vernuns, transformando-os em criaturas semelhantes aos humanos, suas peles ficaram num tom pálido brilhante, os cabelos em vários tons de chumbo a prateado, como se fossem as cores das nuvens em tormenta. Dessas criaturas corpóreas emanava intenso poder, eles tornaram-se mais fortes, já não morriam ao invocar as tempestades e podiam andar livremente sobre o solo do mundo humano sem serem absorvidos por ele.
Aos Vernuns, o Imperador do Primeiro Céu deu-lhes a missão de proteger a entrada dos reinos acima das nuvens, impedindo que os terrestres entrassem sem permissão, então, essa era a ordem dos céus, ou pelo menos, era assim que contavam essa história.
Outra história conta que, no início, quando os Vernuns se apresentaram aos povos do mundo mortal, eles vieram como nossos aliados, estendendo sua proteção a todos sobre a terra, mandando as chuvas nas horas certas para favorecer nossas plantações e manter a terra sempre viva e em troca, eles levavam uma parte mais do que justa das colheitas e dos animais, uma vez que os Oitavo e Sétimo Céus eram desprovidos de solos férteis para o plantio e os corpos físicos dos Vernuns precisavam de alimento comum, pois antes seus corpos de luz, criavam a própria energia.
Nós os considerávamos bênçãos dos céus no início, mas com o passar do tempo, o Rei Drascius III ficou ganancioso em relação ao que os Vernuns tinham nas cidades acima das nuvens. Ele pediu para ser levado para conhecer as cidades, e quando voltou, exigiu um palácio sobre as nuvens para manter o tratado com os Vernuns.
Eles aceitaram o pedido do rei, cheios de boas intenções, mas não satisfeito em ter apenas o castelo acima das nuvens, quis ter uma aliança mais “firme” e tomou como esposa a filha do rei do Sétimo Céu, porém, a jovem princesa, sem saber lidar com um humano, o levou à morte em sua noite de núpcias, e assim, a relação do mundo mortal com os reinos acima das nuvens ficou tensa.
O herdeiro de Drascius, príncipe Meriles, filho mais velho do rei e de sua falecida esposa humana, Flarines, não aceitou a morte do pai como acidental, então declarou guerra aos Vernuns.
Não preciso contar o terrível fim dessa história, já que os Vernuns tinham poderes e força sobre-humana. Na verdade, não foi tão terrível, pois os Tenebris intercederam em favor dos humanos, fazendo o jovem rei Meriles assinar um acordo de paz e manter as relações com os Vernuns, que claro, nunca mais foram como era antes.
Ouvi essa história diversas vezes, contadas hora uma, hora outra, com muitas variações, desde nomes a datas, mas sempre as mesmas histórias e o mesmo aviso: “Nunca se aproxime das entradas dos Céus, ou você pode nunca voltar! ”
Mas e quando não somos nós a tentar entrar no reino deles? E quando um deles desce até nós e muda completamente o nosso destino, ou até mesmo o destino de todos acima do reino humano?

 


 


Capítulo 1

 


Os gêmeos da tempestade.


Não havia sequer uma estrela no céu naquela noite. A escuridão preenchia cada pedaço daquele mundo sempre claro e brilhante. Os corredores do Castelo Azul estavam desertos e silenciosos conforme eu corria, o som de meus passos parecia estar sendo absorvido por toda aquela escuridão, que para piorar ficava cada vez mais intensa, tão densa que quase podia ser tocada.

“Tenebris!”

Identifiquei imediatamente o ser que vagava entre as sombras, porém não era a Tenebris que estava acostumado a ver sempre por aqui em companhia de Nibbis. Aumentei a velocidade para chegar logo ao quarto de minha irmã, que havia deixado o salão de jantar sem dar nenhuma explicação, ela estava com a pele mais pálida do que o comum e seu brilho havia diminuído drasticamente durante aquele tedioso jantar com a corte do Oitavo Céu.

Em toda minha vida, nunca havia ficado tão nervoso antes com o nascimento de um filho, pois sabia que era tudo sempre muito bem organizado e não havia riscos. O nascimento de um Vernum na família real era algo muito raro e celebrado, ainda mais quando se tratava de mim. Eu era o príncipe mais velho, o favorito da rainha, e dentre todas as minhas esposas, de casamentos arranjados que eu nunca fiz questão de mostrar interesse verdadeiro, mas cumpria com meus deveres para evitar brigas desnecessárias, nunca escondi que minha favorita era minha gêmea, Nibbis.

Nós havíamos nos casado quase um século atrás, Nibbis não me amava da mesma forma, eu sempre soube, mas ela havia aceitado seu dever sem questionar a rainha e embora não me amasse, ela parecia sempre feliz e nunca me recusava, não até descobrir a segunda gravidez. Esse seria nosso segundo, pois já tínhamos um filho em idade adulta, Yoru, que havia se tornado o melhor guerreiro Vernum dos Oito Céus, graças a união dos irmãos da tempestade, Nibbis e eu.

As Vernuns fêmeas podiam prever o dia e a hora dos nascimentos de seus bebês e, assim, elas avisavam as sacerdotisas Ventus, para que acompanhassem o nascimento, e colocassem o selo sobre o bebê assim que este viesse ao mundo, pois senão a descarga de seus poderes poderia destruir toda uma cidade, ainda mais tratando-se de nossos filhos, pois nós, os gêmeos Asterath, éramos os Tormentadores mais fortes do Oitavo Céu.


Senti a escuridão se mover em direção ao quarto de Nibbis, então, um frio subiu por minha espinha e tive que conter uma explosão de meus raios quando ouvi os gritos abafados vindos do quarto. Quase derrubei a porta ao entrar no aposento que parecia um breu, até usar uma faísca de meu poder para poder enxergar lá dentro. Com terror, não sabia o que ver primeiro: o sangue cor de chumbo que manchava os lençóis da cama de Nibbis, as sombras agitando-se nos cantos mais escuros que não pertenciam à dama de companhia de Nibbis e que estava fora do alcance dos raios, ou o rastro do sangue que ia em direção ao quarto de banho.

Segui a trilha com os joelhos vacilando a cada passo, sentindo o coração falhar a cada batida, meus olhos, como metal derretido, agora cintilavam como os olhos de uma fera enquanto me forçava a manter a calma. Ao tocar a madeira fria, empurrei a porta semiaberta do quarto de banho e quase desabei ao ver Nibbis dentro da banheira, que trasbordava água e sangue, ela tinha uma criança nos braços que havia acabado de nascer, a menininha se mexia no colo dela, com pequenas faíscas prateadas circulando seu pequeno corpo. Encarei Nibbis horrorizado e cobri a boca para evitar colocar o jantar para fora com o pânico que fez meu interior se retorcer.

? Por que mentiu? ? quis saber, dando um passo para longe da banheira, esperando o que sabia que viria depois daquilo, um nascimento sem um lacre. Nibbis deu-me um sorriso cheio de orgulho e dor, as lágrimas manchando seu belo rosto, os olhos cinzentos e opacos fixos nos meus, algo estava muito errado naqueles olhos, pois não eram os olhos de Nibbis, os seus olhos eram negros como a noite sem estrelas.

? O Oitavo Céu vai cair agora, Galathis! E junto com ele vai levar o exército que Mendal criou! Nunca mais seremos uma ameaça para nada, nem ninguém! ? Ela apertou a criança nos braços, não levaria mais que uma batida de um coração, sem o selo, a criança não teria como conter a Fúria dos Céus e derramaria seu poder sobre tudo. Nibbis chorou abraçando a criança que havia começado a brilhar com tanta intensidade, que não foi mais possível para mim enxergá-las, não haveria tempo de tentar salvar nada, nem ninguém, então tudo que pude fazer, foi abraçar minha amada e dizer adeus.

? Desculpe, Yami, por te deixar partir! ? A voz de Nibbis, as últimas palavras que foram para a nossa menina, não passaram de um sussurro quando seu choro, os trovões e relâmpagos irromperam da criança em seus braços, destruindo as paredes, derrubando o castelo, se espalhando por todos os lados e consumindo cada pedaço do Oitavo Céu.


Capítulo 2

 


Abaixo dos Céus.


Nunca havia visto o céu tão negro em toda minha vida. Estava voltando para a cidade com a carroça carregada de lenha quando o mundo começou a desabar dos céus, literalmente. Procurei por proteção embaixo de um dos arcos de pedras, que marcavam a entrada da Cidade dos Sinos e observei o céu. Os raios e trovões eram cada vez mais frequentes, raios que riscavam os céus de fora a fora e abafavam qualquer outro som com suas explosões brilhantes.

Alguns minutos depois, a chuva caía mais intensa e os raios aumentavam, até que muito próximo a mim, desabou um bloco de algo que parecia ser um grande pedaço retorcido de aço e vidro. Cinco passos, era a distância entre mim e aquele bloco. Forcei meus olhos em choque a olharem para cima a tempo de ver bem alto no céu, quase no meio da floresta uma cidade inteira caindo das nuvens, desmanchando-se enquanto os raios a atingiam e esfarelavam blocos ainda maiores do que o que caiu perto de mim. Uma chuva de escombros, vidros e água.

Pensei imediatamente em fugir, mas uma massa negra rodopiante se soltou dos escombros e veio em minha direção e fiquei paralisado, sem saber o que fazer até que a massa se chocou contra meu peito, derrubando-me no chão.

Quando a massa se desfez algo ainda estava sobre mim e, embrulhado em um manto negro, havia um bebê. Olhei daquela pequena criança que mal havia aberto os olhos pela primeira vez para a cidade ainda caindo do céu. A massa havia vindo daquela cidade, e a criança em meu peito era pequena e tinha a pele pálida, tão branca quanto a lua e muito brilhante que mal destacavam os ralos cabelos quase prateados em sua cabeça, mas foi perdendo o brilho aos poucos, até ficar levemente cintilante.

? Uma Vernum? ? Peguei a criança com cuidado, afastando-a de meu corpo, com medo de que ela pudesse ser uma Tormentadora e me matar caso liberasse seus raios, mas o bebê apenas bocejou e continuou adormecido.

“Yami”

Soou uma voz do além próxima a mim, uma voz vinda do escuro.

? Não parece um bom nome! ? retruquei, começando a sentir como se tivesse ficado louco. ? Você veio do céu e brilha... Luyen! Esse é um bom nome! ? Realmente estava enlouquecendo por pegar uma criança Vernum e cogitar levá-la para casa. Porém, ninguém nasce para morrer sozinho, numa floresta fria e numa noite chuvosa, nem mesmo um dos seres que mais causam a destruição em nosso mundo!


Não tinha certeza se era sorte ou azar, mas eu tinha comigo talvez a única fêmea Tormentadora sobrevivente daquela destruição. Olhei para a criança em meu colo, embrulhada naquele manto negro espesso, provavelmente o motivo de eu ainda não ter recebido uma descarga elétrica. Ela se mexia inquieta, irritada com o calor da terra, uma vez que os céus eram sempre frios, pelo que diziam.

Eu nunca havia pisado sequer próximo aos portais de passagem, não me atreveria a chegar lá, pois mesmo em trégua, me lembrava das antigas histórias e sabia muito bem o que os Vernuns podiam fazer com intrusos.

Pensei em soltar o cavalo da carroça e cavalgar com aquela criança até um dos portais, entregá-la para os guardas e deixar que eles cuidassem dela, mas toda vez que olhava para ela, desistia da ideia, embora tivesse certeza de que Nalla iria me matar quando chegasse em casa com uma criança Vernum.

Caminhei pela estrada escorregadia de pedras e lama naquela escuridão assustadora, carregando aquela criança com o máximo de cuidado e prestando atenção na floresta ao meu redor, para não correr o risco de ser surpreendido por criaturas selvagens.

Entrei na pequena vila pouco antes da uma da manhã, escondendo a criança quase brilhante o melhor que pude das vistas dos homens que saíam bêbados das tavernas para observar o céu. As nuvens escuras e pesadas rolavam sobre nossas cabeças, algumas vezes mostrando as ruínas do Oitavo Céu, os pedaços que ainda flutuavam sobre uma plataforma translúcida acima de nós, manchada de sangue prateado e forrada com destroços, uma cena assustadora de completa devastação. Olhei novamente para a criança em meu colo, como ela havia sobrevivido àquilo?

Eu me apressei pela estrada falhada, coberta de pedras lisas e lama, queria chegar em casa o mais rápido possível, mas pouco antes de entrar na floresta em que vivia, escutei um estrondo nos céus, e esse foi coberto por luzes douradas, manchas negras que se espalhavam como fumaça, e que logo começaram a ser varridas por fortes ventos, tão intensos que arrancavam as copas das árvores.


Os sete Céus restantes estavam em guerra?!


Naquela noite da tempestade, depois da queda do Oitavo Céu, os sete Céus abaixo do Nono entraram em guerra, pois foram incapazes de descobrir quem havia atacado e destruído aqueles que mantinham a proteção dos reinos acima das nuvens.

Corri para casa o mais rápido que pude, passando pelas árvores como uma gazela em fuga, porém, consegui chegar em segurança. Nalla estava sentada sob a janela, observando os clarões e estrondos da batalha nos céus. Cada clarão, cada relâmpago fazia seus cabelos dourados parecerem ainda mais brilhantes, mas o olhar em seu rosto era triste.

? Cheguei... ? Tive que quase gritar para que ela me ouvisse acima dos sons que vinham do alto.

? Que bom que voltou a salvo! ? Nalla levantou num pulo vindo em minha direção sem me ver de verdade, quando olhou para mim com um sorriso aliviado no rosto, ela empalideceu ao ver o que eu trazia em meus braços. Nalla veio ao meu encontro e desenrolou a manta, observando atentamente a criança.

? Onde a encontrou?

? Ela caiu do céu na hora que o Oitavo se despedaçou! ? expliquei.

Os olhos de Nalla fixaram-se nos meus, por um momento tive a certeza de que ela me mandaria levar a menina de volta, na certa, equipes iriam procurar por sobreviventes “caídos”, mas ela tirou a criança do manto e a aninhou no colo, em seguida foi até a cozinha e pegou uma faca.

? Nalla! O que vai fazer! ? esbravejei dando um passo vacilante em sua direção.

? Não vou machucá-la! ? Ela revirou os olhos, então furou a ponta do dedo, vertendo uma gota de sangue sobre a boca da menina. ? Vi Juliet fazer isso quando estava em Hasgarn alguns meses atrás, ela estava ajudando um Vernum a camuflar sua aparência! ? Quando ela explicou, notei que a pele da criança havia parado de brilhar, ainda estava com aquela estranha cor branca, que foi ficando mais rosada aos poucos e os cabelos que eram de um cinza pálido, ficaram negros como carvão. A criança abriu os olhos prateados, ela parecia encarar Nalla, como se estivesse agradecendo, então, seus olhos também escureceram e ela adormeceu, chupando o dedo. Nalla sorriu e piscou para mim.

? Sorte que você tem os cabelos escuros, não é? ? A encarei boquiaberto, não podia acreditar que ela nem sequer surtou com o fato de eu ter levado uma criança Vernum para casa.

? É só isso? ? perguntei. ? Não vai surtar? Gritar? Me mandar levar de volta? ? Nalla riu maneando a cabeça negativamente.

? Claro que não, Den! Um dia, talvez alguém venha buscá-la, até lá, nós cuidaremos dela! ? Ela ergueu a criança, agora com aparência totalmente humana, o único resquício que indicava de onde ela havia vindo, era uma longa cicatriz irregular em sua pequena perna. ? Pensou em algum nome?

? Luyen. ? Ocultei o nome que o vulto negro soprou para mim, pelo que conhecia minha esposa, talvez ela escolhesse o outro nome. Como esperava, ela franziu o cenho e torceu os lábios num bico.

? Se você acha esse um bom nome... Bom, não saí da floresta por muito tempo, ela pode se passar tranquilamente por nossa filha! Se alguém nos vir e desconfiar, diremos apenas que nasceu antes do que esperávamos e não contamos nada a ninguém para não trazer má sorte! ? Nalla abraçou a criança, se soubesse que ela reagiria assim, teria vindo mais depressa para casa.


Passei a madrugada inteira organizando o quarto de costura de Nalla para acomodar Luyen, quando o dia amanhecesse, faria um berço de madeira e iria até a cidade comprar tecidos para Nalla fazer roupas para a menina.

Esperava que demorasse muito, muito tempo para alguém resolver procurar pelos sobreviventes da queda do Oitavo Céu!


Algumas semanas depois, soubemos que o Rei da Cidade Nublis, capital do Sétimo Céu, acolheu os poucos sobreviventes Tormentadores do Oitavo Céu, entre eles um príncipe de uma das casas principais, e o tornou líder do exército dos Retalhadores, que eram Vernuns que não podiam invocar a tempestade magnética de seu sangue, apenas as tempestades comuns através de poucos Vernuns cantores, mas estes Retalhadores ainda podiam lutar usando armas feitas com metal e raios.

Diferente dos Retalhadores, haviam os Vernuns Tormentadores, ou Invocadores, que podiam manipular os raios que habitavam seus corpos, conjurando fortes tempestades magnéticas, e foram esses, os mais poderosos seres acima das nuvens, que morreram com a queda do Oitavo Céu, enfraquecendo a defesa dos Sete restantes.


Capítulo 3

 


As ruínas do Oitavo.


Yoru Asterath, o príncipe sobrevivente do Oitavo... Meu nome, aquele título parecia um abismo escuro e deserto para mim enquanto caminhava pela segunda vez naquele dia entre os escombros do Castelo Azul, meu antigo lar, a casa de nuvens e de sonhos. Um jovem, agora sem lar, observando a destruição atentamente do que um dia foi meu lugar favorito no mundo inteiro. Ninguém havia tocado ali, ninguém havia caminhado sobre aquele lugar após a queda do Oitavo.

Por ser o único Tormentador sobrevivente da nobre casa Asterath, e agora, general do exército Retalhador do Sétimo Céu, havia deixado minha exigência antes de aceitar o cargo: ninguém entraria nas ruínas do Oitavo sem minha permissão, e assim foi... Só não sabia até quando essa exigência seria cumprida. Talvez até Sarki reivindicar oficialmente o local, mesmo tendo certeza que ele já o considerava seu.

Ênya me acompanhava de perto, observando atentamente cada nova expressão que eu fazia enquanto andava analisando mais uma vez as ruínas. Ah! Ela estava irada com isso! Não queria minha atenção em algo que já não “existia” mais. Ela enrolou uma mecha de cabelo nos dedos e ficou brincando, mantendo a expressão vazia com o mais puro tédio.

Desviei o olhar das ruinas por um instante para encará-la, estava profundamente irritado com a presença dela aqui, mas Ênya não me largava desde os treinamentos no Quarto Céu, onde fomos transformados em guerreiros pelos mestres das armas nos Campos do Vento Negro, onde eu ia, a Solaris ruiva me seguia como uma sombra, nem parecia uma Solaris, ou era uma Solaris com alma de Tenebris. Eu nunca neguei que ela era incrivelmente bela, com sua pele brilhante cor de bronze e olhos avermelhados como o pôr do sol, coisa que os outros guerreiros ignoravam por conta do “PROBLEMA” estampado nas feições delicadas e um tanto esnobes de Ênya. Mas ser sempre gentil com ela e ignorar aquele aviso que só faltava saltar de seu rosto me custou um pouco caro.

Se Ênya sentia algo em relação ao que havia acontecido aqui dias atrás, não demonstrava nada. Afinal, ela era do Segundo Céu, uma Solaris de uma casa nobre, não se importava com aqueles abaixo dela, exceto comigo, o que me deixava ainda mais frustrado.

Respirei fundo e ignorei a presença dela, enquanto, mais uma vez, analisava a destruição. Os corpos que não foram destruídos pela explosão, foram removidos no dia seguinte e tiveram seus lacres removidos, para que eles pudessem, assim, voltar às suas formas de energia e se desfazerem para esperar por uma próxima vida. Por mais que tivesse procurado, não consegui encontrar os corpos dos meus pais nos destroços do castelo, uma dor me consumia aos poucos junto com a dúvida:

“Será que se eu estivesse aqui na hora do ataque, poderia tê-lo evitado ou pelo menos salvo alguém?” Essa era a questão que não saía de minha cabeça.

Algo estava muito errado naquelas ruínas, os destroços pareciam ter se projetado de um único ponto, como se toda aquela destruição tivesse um único ponto de início, como se o ataque tivesse acontecido de apenas um lugar, pois os destroços seguiam a mesma linha e em um ponto estava tudo limpo, como se a destruição tivesse iniciado ali. Mas quando se tinha um ataque desse nível, não deveriam haver mais pontos de onde partiriam as explosões? Quem iniciaria um ataque a um dos reinos sobre as nuvens e só atacaria o castelo? O pior era pensar em quem tinha tal poder para causar todos aqueles danos!

Fazia todo sentido atacarem inicialmente o castelo se o objetivo fosse destruir a família que controlava aquele lugar para tomar o poder, mas quem quer que tenha feito aquilo, não parecia querer tomar o Oitavo, e sim destruir tudo! E foi bem-sucedido nisso. Olhei novamente para o chão, para as marcas que riscavam o que sobrou do piso azul-céu do castelo e percebi que quem havia feito tal coisa só podia ter um poder semelhante aos nossos.

Apenas um Tormentador poderia ter destruído o Oitavo! Ou, talvez, um Solar, afinal, os raios dos Solaris podiam ser semelhantes aos nossos, caso fossem muito bem treinados.

? Quantas vezes você ainda vai voltar aqui? ? Ênya perguntou, sua voz estava carregada de tédio enquanto olhava em volta, procurando por algo interessante nas ruínas. Essa única frase me fez perceber que ela deveria ser a última pessoa a saber sobre minha descoberta, embora fosse precisar revelá-la em breve para acabar com a briga entre os Sete restantes.

? Quantas vezes eu quiser, Ênya! Se estiver incomodada, só precisa voltar até o portal e ir para casa! ? rosnei apontando com o queixo o local onde a passagem ainda estava aberta para o próximo Céu.

? Sabe que é proibido! Está fechado para qualquer um pisar nesse lugar, Yoru, até mesmo você! Eles só respeitaram seu pedido de não deixar ninguém pisar aqui por causa de seu luto...

? Fique em silêncio, Ênya! Está me atrapalhando! ? ralhei, irritando-me cada vez mais com sua voz.

? Yoru, olha, eu realmente sinto muito pelo que aconteceu com sua família. ? Podia sentir a mentira e mordi com força os lábios para o riso sarcástico não sair. ? Mas você tem que deixar isso de lado! Já estão todos em uma batalha terrível por ficarem jogando a culpa do atentado uns em cima dos outros! Então, mais cedo ou mais tarde o culpado vai aparecer! Aí você poderá acertar contas com quem fez isso! ? ela ronronou, aproximando-se de mim e tocando meu rosto com as costas da mão. Contive a vontade de tirar aquela mão dali e respirei fundo mais uma vez. Ela ainda não havia percebido que a briga não era por tentarem descobrir quem havia feito aquilo, e sim para saber quem ficaria com o território, que, no momento, pertencia a Sarki, o atual Imperador do Primeiro Céu. É claro que deveria pertencer a mim, mas sabia que não podia tomar meu território de volta, pelo menos não sozinho e era muito cedo para pedir aos Tormentadores sobreviventes para lutarem por nosso lar.

? Vou vir aqui quantas vezes achar necessário, até que tudo se esclareça! Com ou sem permissão! ? rosnei, passando os olhos uma última vez pelo local e suspirando pesadamente. Voltaria ali logo mais quando ne livrasse de Ênya.

? Que desperdício de tempo! ? Ela revirou os olhos e tomou meu braço. ? Vamos voltar, Yoru, sei como te fazer esquecer essa dor... Posso te dar outro lar, uma nova família! ? Ela mordeu os lábios, seus olhos âmbar cintilavam mesmo com o dia escuro, nublado.

A ideia do que ela estava pedindo naquele momento me atingiu como uma pedrada. Minha mãe, Nibbis, estava grávida quando morreu na queda do Oitavo. Dessa vez não fiz nenhum esforço para conter a raiva, deixando meus raios espalharem-se ao meu redor, fazendo Ênya me soltar com um grito histérico de medo.

? Não me toque! Ou lhe mostrarei para quê ? exatamente ? fui criado, Ênya! ? Um rosnado fez o chão abaixo de nós vibrar, Ênya me encarava perplexa, pois nunca agi daquela forma com ela antes. Mas ia passar, isso tinha que passar, pois agora eu estava sozinho.

? Me desculpe! Estava apenas...

? Eu sei, eu sei! ? Tentei acalmar a ira dentro de meu peito e me esforcei para não explodir também, ou destruiria o que restou dos indícios que quem quer que havia feito aquilo pudesse ter deixado. Ênya se aproximou novamente, vacilante e cuidadosa agora e estendeu a mão para mim. Mesmo irritado, arrumei a trança de cabelos cinzentos que caía sobre meu ombro e suspirei cansado.

? Vamos ? disse pegando o braço dela, então fomos em direção ao portal, passando com cautela entre os destroços. Não podia negar que era reconfortante o toque dela, em grande parte por ser uma Solaris, por poder aquecer o coração das pessoas, embora Ênya não usasse seu poder dessa maneira nunca. Peguei pelo canto dos olhos o pequeno sorriso satisfeito de Ênya e continuei ao seu lado até a passagem para o Céu acima.

 

Naquela mesma noite depois de deixar Ênya em casa na Cidade Púrpura, capital do Segundo Céu, acabei voltando ao Oitavo, carregando comigo um pingente de uma bolha de cristal, contendo uma pequena quantidade do poder de minha mãe, um amuleto de proteção dado por ela a mim antes de sair de casa, a energia podia identificar o último local que ela esteve antes de morrer.

Nibbis era a pessoa mais doce que já havia pisado nos Oito Céus, ela devia ter nascido como uma Ventus, pois sua personalidade não fazia jus ao grande poder que tinha, mas que raramente usava. Em todos os anos que vivi no Castelo Azul, só a vi cantar para conjurar tempestades uma vez, e seu canto havia feito uma cidade inteira florescer no reino humano.

Eu amava minha mãe, amava o canto que herdei dela, pois sabia que Tormentadores eram destruidores natos, mas ela provou a todos que nós podíamos ser doces e gentis. Ela me ensinou a cantar e trazer as chuvas calmas, gentis, tempestades controladas, e não destrutivas como os outros costumavam fazer e treinar duro para fazê-las.

Em silêncio, caminhei até o ponto onde o castelo ficava, mesmo sentindo uma estranha presença seguindo-me por aquele lugar deserto. Acima de minha cabeça, uma bola de luz flutuava clareando o caminho, pois estava nublado demais e a lua cheia não aparecia por entre as tormentas do Sétimo aquela noite. Nuvens sobre nuvens, sempre achei graça nisso, pois quando era mais novo costumava me perguntar o motivo de estarem no Céu e ainda assim existirem nuvens sobre nossas cabeças.

Cheguei ao castelo e comecei novamente a procurar pelo ponto limpo de onde a energia havia explodido, mas algo chamou minha atenção, o vulto negro correndo entre os escombros, vigiando-o. Rocei os dedos no cabo da lança presa em minhas costas, a armadura de couro negra vestindo-me cobria meu brilho e o capuz negro sobre os cabelos cinzentos impediam aquele espião de saber sobre minha identidade. Fingi por um momento não estar vendo a sombra, o Tenebris que me seguia desde que pisei ali mais cedo, então, andei observando o chão, pressionando entre os dedos o pingente com a energia.

Quando cheguei onde deveria ser o centro do castelo, o pingente começou a vibrar levemente em minha mão, informando-me que estava próximo ao local certo, mas não tive tempo de estourar o cristal, pois uma flecha voou em minha direção! A desfiz num piscar de olhos com um relâmpago. Observei irritado meu audacioso atacante, então percebi que a cidade brilhava ao meu redor. Acabei sorrindo com ironia ao ver Ênya com o arco na mão e a luz solar que se espalhava a partir do ponto que ela estava. O tiro de aviso havia partido dela, mas havia algo em seu olhar, um pedido de desculpas silencioso, talvez.

? Yoru Asterath, você está pisando em local proibido, protegido pelo Imperador Sarki Hellenon V! ? O Vernum que falava era Nalic, general do exército Retalhador e, por isso, meu superior, ele tinha um olhar cruel e repreensivo no rosto de feições duras, bufei irritado encarando Ênya intensamente, na certa ela correu para procurar por mim assim que a deixei em casa, ela sem dúvida foi ao Sétimo atrás de mim e como não me encontrou em Cidade-Nublis, correu ao encontro de Nalic, para informar sobre as idas às ruínas. Ah! Eu a faria pagar por sua língua cumprida mais tarde!

? Estava tentando ser útil e descobrir o que aconteceu com o MEU reino! Ao contrário do que os outros estão fazendo! Brigar por um território destruído não vai trazê-lo de volta, nem o povo...

? Basta, Yoru! ? Nalic vociferou, dando um passo à frente com sua espada de raios na mão, evitei ao máximo pensar em como o desarmaria facilmente com uma simples descarga, mas o pingente vibrando em minha palma aberta e me impediu de fazer tal coisa, talvez o pingente também tivesse as vontades de minha mãe. ? Ninguém assumiu a autoria do ataque! Se você ficar aqui, sendo o único sobrevivente de sua casa, sabe o que pensarão de você? Que você os matou para tomar o lugar da Rainha Mendal! ? Ele ergueu a mão para que eu não o interrompesse, o general viu o ódio cintilando meu olhar e respirou fundo. ? Sei que você nunca faria isso, e prefiro não levantar essa suspeita, então, por agora deixe esse lugar! Pelo menos até que essa briga acabe! Espere tudo se normalizar e poderá vir aqui novamente com os outros, alteza! ? Nalic baixou a arma e mostrou a passagem para o próximo Céu. Não tinha o que discutir, se fosse punido por estar ali não poderia fazer nada de útil para ajudar aos Tormentadores sobreviventes. Passei por Ênya, fulminando-a com um olhar e apenas disse antes de passar pelo portal de nuvens:

? A situação nunca vai “normalizar”, general, pois o que destruíram aqui não foi apenas um reino, foi minha vida! E nada pode fazer isso mudar! Eles nunca, NUNCA me deixarão vir investigar! ? Respirei fundo para evitar as outras palavras que queria falar e que na certa me renderiam uma briga ali mesmo, então atravessei o portal com Nalic e Ênya em meu encalço.


Ênya:


Dando uma última olhada para trás, vi o Tenebris que nos seguia sorrir para mim de forma satisfeita, mesmo que sua presença sombria me fizesse sentir um pouco mal, fiz um breve aceno e sorri de volta.

“Não o deixe ir para casa hoje!” Foi o que a sombra sussurrou para mim na noite em que prendi Yoru em minha casa na Cidade Púrpura. No começo da madrugada, quando recebemos a notícia que o Oitavo caiu, a ordem que o Tenebris me deu foi outra. “Jamais o deixe pisar no centro do castelo! Ou ele nunca será seu!”

E eu, sem pensar duas vezes, obedeci.


Capítulo 4

 

 

Tempestades na janela


“A chuva caía do lado de fora da cabana simples recém-construída, a lareira ainda mantinha algumas brasas crepitantes que clareavam a pequena sala. Fiquei sentada de pernas cruzadas em frente à lareira brincando com os dedos no mosaico do tapete, imaginando como faziam aquilo para desviar minha atenção do que ia acontecer ali e diminuir meu nervosismo. Eu estava envergonhada, pois havia molhado o tapete ao entrar pingando água, mas Chris pediu que ficasse ali e sumiu escada acima.

Ele apareceu poucos minutos depois com uma toalha e uma camisa seca e me entregou. Estava com o coração a mil quando tirei lentamente o vestido molhado e dei um leve sorriso provocativo para Chris, e ele reagiu àquilo da forma como eu esperava. Os olhos cor de mel dele desceram por meu corpo e subiram novamente, fixando os olhos nos meus. Ele me deu um sorriso quente e foi até a cozinha, voltando com uma garrafa de vinho na mão e duas taças na outra, a essa altura, já estava vestida com sua camisa, o tecido era macio e carregava o cheiro amadeirado dele.

? Pelo que me lembro, hoje mais cedo você disse que nunca mais queria me ver! ? Ele mantinha o sorriso descontraído no rosto.

? Você me chamou de insuportável! ? retruquei, dando-lhe um empurrão e tomando a garrafa da mão dele.

? Você é! ? Chris pegou a garrafa de volta, passando um braço ao redor dos meus ombros. Seu calor fez cócegas em minha pele e me fez morder os lábios para evitar rir.

? E você é um chato! Por isso vive aqui sozinho! Porque ninguém te aguenta lá na cidade! ? Nós dois rimos, mas fui eu que me aproximei primeiro, tomando o rosto de Chris entre as mãos e beijando-o. Nós já havíamos nos beijado antes e todas as vezes ficava um gosto de que ainda não era o suficiente, mas agora estávamos a sós, e numa cabana no meio da floresta. Não me preocupei com o que meus pais pensariam, afinal, eles haviam partido para a cidade no dia anterior e me deixaram em casa por ser “mais seguro”. Não me importei em ficar para trás dessa vez, afinal tinha planos para aquela noite.

? Luyen! ? Ele segurou meus ombros e me afastou por um instante.

? Você não quer... ? Senti meu rosto esquentar de vergonha e puxei a blusa, apertando-a sobre mim, meu coração disparou ainda mais.

? Não é isso! Eu só quero as coisas da maneira certa! Não é justo que tenhamos que nos relacionar às escondidas. ? Ele parecia quase engasgar nas palavras. Fiquei tão irritada que trinquei o maxilar.

? Eles não vão deixar. E meu pai vai querer matar você!

? Ainda não fizemos nada! ? Ele roçou o polegar em minha bochecha.

? Isso porque você está fugindo de mim!

? Não diga isso! ? Chris me apertou nos braços, e respirou fundo, corei ao me lembrar do que tinha dito sobre meu perfume inebriante que só eu tinha, ele descreveu como algo semelhante à terra úmida e flores doces, então acariciou meu pescoço com o nariz e sorriu contra minha pele.

? Então pare de fingir que não me quer! ? Eu me soltei de seu aperto e passei uma perna por cima dele e o beijei novamente, mais intensamente, forçando-o a abrir a boca para mim. Sorri por dentro com a vitória, quando as mãos de Chris foram para meus quadris e se fecharam ali e ele soltou um gemido.

? Você é terrível, Luy! ? Ele beliscou meu pescoço com os lábios, e senti como se uma corrente elétrica passasse por meu corpo. Chris deslizou as mãos por minhas pernas e parou um instante, tocando a longa cicatriz que ia do joelho até a coxa. ? O que é isso? ? perguntou beijando meu pescoço.

? Não sei... Está aí desde que era pequena, não ligue! ? Ele voltou a beijar meu pescoço, meus ombros, fazendo com que me derretesse. Era como se uma energia me consumisse toda vez que a língua dele roçava em minha pele. O apertei ainda mais, sentindo o coração disparar quando ele tomou minha boca e deslizou as mãos por meu corpo. E, dessa vez, realmente senti a energia, algo vibrando em êxtase em meu corpo e se movimentando sob minha pele, e foi estranhamente doloroso, mas agradável, então, meu corpo começou a brilhar, minha pele havia ficado completamente branca e brilhante! Meus cabelos sempre escuros agora estavam cinzentos, quase na cor das nuvens num dia nublado. Segurei com força as mãos de Chris, perplexa, assustada, e ele me encarou tão assustado quanto eu deveria estar.

? Vernum... ? A palavra saiu tão baixa e engasgada que mal ouvi. Vi um misto de surpresa e admiração estampado no rosto dele. Então Chris me segurou pela cintura, para me tirar de cima dele, conclui.

? Chris! ? choraminguei assustada com o coração disparado, mas ele não se afastou como imaginei que faria, Christian apenas me deitou de costas no tapete e beijou meu pescoço com carinho.

? Eu sabia que você podia brilhar, Luyen, mas nunca achei que fosse literalmente! ? Ele riu, mas a diversão havia desaparecido para mim, estava com medo e confusa e queria sair dali! Chris não parecia se incomodar com o que eu era, mas EU não sabia o que era!

? Me solte! ? Tentei me desvencilhar dos braços dele, mas ele não deixou.

? Está tudo bem, Luy. Não tenho medo de você! Podia ter me contado! ? Chris deu um beijo em meu rosto e acariciou minha bochecha novamente, mas tudo que sentia agora era medo de mim, do que estava acontecendo comigo.

? Eu não sei o que está acontecendo... Me deixe ir pra casa! ? implorei, então me levantei empurrando-o para longe e corri até a porta. Chris hesitou, mas por fim, veio até mim e segurou minhas mãos carinhosamente.

? Se precisar, eu ainda estarei aqui amanhã! ? E apertou levemente a as minhas mãos brancas e frias contra aquela pele bronzeada, um sinal claro de compreensão. Senti um aperto no peito, e aquela sensação da energia correndo por mim, vazando, voltou com tudo, então, luz irradiou para todos os lados e um estrondo terrível me fez encolher o corpo tapando os ouvidos, só então percebi que aquilo era eu! Que eu estava emitindo aquele som enquanto gritava, como o som de mil trovões e que eu estava vazando raios como uma tempestade.

Quando abri os olhos, o chalé não existia mais, apenas destroços, restos do que Chris demorou alguns meses para construir. Meus olhos demoraram a entender o que realmente havia acontecido. Chris estava caído a alguns metros de mim, com o rosto virado para baixo num ângulo muito errado e seu corpo estava com uma cor estranha. Dei alguns passos vacilantes na direção dele, a chuva agora caía mais forte, apagando os pequenos focos de incêndio dos destroços da cabana. Estiquei minha mão trêmula na direção dele, tremendo cada vez mais, quando o toquei, seu corpo desmanchou-se em cinzas em minhas mãos.”


Às vezes eu ainda acordava de madrugada com o mesmo pesadelo, não pesadelo, a mesma lembrança terrível de quase dois anos atrás, quando descobri ser diferente de meus pais. Pulei da cama e corri até o banheiro no final do corredor e coloquei o jantar para fora, segurando os cabelos para que não os sujasse. Quando o pesadelo era mais vívido, quando sentia o cheiro das cinzas, não conseguia conter meu estômago e corria até o banheiro como dessa vez. Eu me apoiei na porcelana fria e olhei pela janela, a claridade da lua que parecia tentar confortar-me, mas nem isso conseguia me fazer sentir melhor.


Eu havia crescido na floresta de Peregris, no continente Sul de Boghkar, o “mundo das tempestades”, foi assim que o chamaram depois do aparecimento dos nove Céus.

A floresta era densa e não havia outros moradores naquela região, exceto pelos animais que viviam por ali e pelos poucos viajantes que costumava observar da janela redonda de meu quarto no segundo andar do chalé. Sempre fui instruída pelos meus pais a me esconder sempre que víamos oficiais ou viajantes curiosos naquela região, nunca entendi o motivo direito, uma vez que todos pareciam sempre gentis uns com os outros.

Sempre soube que tinha algo de estranho em mim, pois, por mais que minha aparência fosse semelhante à de meus pais, os cabelos escuros, a pele rosada e os olhos azuis cinzentos, parecidos com os de minha mãe, toda vez que me feria, o sangue que escorria era cor de chumbo e atraía qualquer coisa metálica leve à minha volta. Também pelo estranho fato de que toda vez que eu cantava, a chuva caía do céu dependendo da intensidade de minha voz, e sabia que isso não era apenas coincidência. Gostava até de imaginar que podia fazer chover! Meus pais juravam que era porque eu havia nascido durante a guerra dos Céus e poderia ter sido afetada pela magia deles, mas isso nunca me convenceu totalmente e sempre desconfiei que havia algo mais.

Exatamente dois anos antes, a pouco mais de um quilômetro de onde nós vivíamos na floresta, um jovem construiu um chalé para morar longe das cidades. E foi num dia em que estava nadando no lago, que o conheci, Christian.

Ele era um jovem caçador que encontrou, naquela densa floresta esquecida pelo mundo, um meio de viver em um lugar mais tranquilo. Depois da primeira conversa que tivemos, todos os dias quando a noite caía, esperava meus pais dormirem para sair de fininho pela janelinha do sobrado, então eu corria até a floresta e ficava à beira do lago conversando com Chris por horas a fio e gostava dele cada vez mais.

Ninguém sabia sobre o relacionamento de nós dois, afinal, meus pais me escondiam de todos, então, como Chris vivia só na floresta, achei que ele era confiável o suficiente para me aproximar. Pela primeira vez eu tinha um amigo! Claro, tinha que contar Coralie como minha amiga, ela era uma jovem muito instável, filha de Juliet, a amiga de minha mãe, mas nós nos víamos pouco, pois Juliet vivia na cidade e não se arriscava pelas estradas sozinha com a filha. Porém, com Chris, sentia algo mais quando estava com ele, e estava disposta a levar até onde pudesse minha curiosidade. Minha mãe havia me contado o suficiente para me fazer pensar que estava fazendo a escolha certa com Chris, afinal, ele era doce, gentil, e sabia que ele também me olhava de forma diferente, não apenas como um amigo.

Sabia que nunca, nunca me arrependeria tanto de algo, de uma escolha em minha vida, como quando decidi deixá-lo fazer parte de meu mundo fechado.

Se eu não tivesse o conhecido, ele ainda estaria vivo!

Essa era a verdade que me atingia todas as noites quando eu não mais fugia pela janelinha do sobrado para encontrá-lo na floresta.


“Naquela noite, quando aquele desastre aconteceu, voltei para casa desesperada e chorei durante toda a madrugada, fazendo com que os raios vazassem de mim e marcassem todo o chão da casa, meu brilho era tão intenso que mal podia ver nada além de mim mesma. Quando a energia diminuiu e desapareceu, adormeci na sala enquanto ainda chorava, enrolada na colcha do sofá.

No dia seguinte, a conversa com os meus pais foi difícil, pois não conseguia acreditar que não era realmente filha dos dois, tive que contar que havia desobedecido as ordens de ficar longe de estranhos, e o pior, que a desobediência, que meu apego a outra pessoa, havia causado a morte do jovem.

Acabei chorando mais, porém, quando tentavam se aproximar de mim, me abraçar, eu não permitia, com medo de feri-los também! Então, sabendo que não teria outra alternativa, Den, que eu pensei minha vida toda ser meu pai, me contou que eu havia caído do céu. Eles explicaram que eu era uma Vernum e que tinha adquirido aparência humana através do sangue de Nalla, assim, poderia me passar por filha deles e estaria segura. Eu conhecia todas as raças dos Nove Céus pelas histórias que meus pais me contavam e pelas descrições de Juliet.

? Por que não me devolveram? Por que não me entregaram para os oficiais dos portais? ? perguntei ainda em lágrimas, sentindo a dor da perda não só do amigo e amante, mas também de saber que aquela, por mais carinhosa e maravilhosa que tenha sido por todos aqueles anos, não era minha família de verdade.

? Os céus entraram em guerra pouco depois que o Oitavo caiu, Luy! E seria perigoso entregá-la para os oficiais! ? explicou Den esticando o braço para acariciar minha cabeça, mas eu me esquivei novamente, por medo de fazer o mesmo que fiz com Chris.

? Deviam ter me entregado! Muitos oficiais fizeram buscas! Ouvi várias vezes Coralie falando sobre isso! ? vociferei levantando-me do sofá em fúria. ? Ele ainda poderia estar vivo! ? engasguei com as palavras, engolindo o choro, com medo de que os raios voltassem.

? Nós te amamos no momento em que te vimos, filha. Só queríamos te proteger! ? Eu sabia o quanto me amavam, mas nunca deveriam ter escondido o que eu era.

Depois daquela conversa, saí de casa com meus pais, atravessamos a floresta em direção a cabana, ou até o que havia restado dela. Chegando lá, Nalla e Den olharam apavorados o que eu havia feito com um simples descontrole emocional. Não havia restos de Chris para que pudéssemos enterrar, apenas cinzas que foram lavadas pela chuva e roupas, que recolhemos e enterramos próximas ao lago, marcando o local com uma pedra pintada de cinza.”


Mesmo depois de dois anos, não havia voltado à forma humana e a aparência de uma Vernum adulta era chamativa demais para que eu saísse com frequência de casa, mesmo assim, não quis aceitar me disfarçar novamente. O pior de tudo era ter que lidar com o que poderia vir a seguir, Cris sempre ia a cidade para comprar mantimentos, vender caças, couro e outros itens, e quando sentissem sua falta? Se alguém sentisse, e fosse procurá-lo? Era estranho ninguém ter aparecido ainda, talvez pensassem que poderia ter morrido por ataque de algum animal selvagem... Mesmo assim, alguém deveria vir a qualquer hora.

Eu sabia que voltar a aparência humana era apenas uma forma de tentar esconder o que havia feito, e também não queria me esquecer, queria lembrar para ter a certeza de que jamais tocaria em alguém novamente e pagar por aquilo, caso viessem procurá-lo.


Capítulo 5

 

 

Verdades reveladas


Yoru:


Estava quase voando para a sala do conselho, onde haviam convocado uma reunião de emergência que soube apenas por uma das criadas do castelo, pois ela havia aberto a boca e não percebeu minha presença ali. Os investigadores Tenebris, que haviam jurado não haverem sobreviventes do Oitavo além daqueles que treinavam nos campos do Vento Negro, agora haviam descoberto indícios que alguém sobreviveu a queda e vivia disfarçado entre os humanos.

Os Vernuns do Sétimo, que agora eram responsáveis pelas chuvas e tempestades na terra, estavam estudando estranhos fenômenos numa área de uma floresta chamada Peregris, pouco mais de três quilômetros abaixo de onde ficava a capital do Oitavo. As chuvas naquela região ora caíam sob comando dos Vernuns, ora, caíam sem ordem, como se algo as chamasse lá de baixo.

Há pouco menos de dois anos, uma forte tempestade magnética irradiou de um ponto específico naquela floresta, mas, até então, diziam ser um fenômeno causado por máquinas elétricas dos humanos. Em nenhum momento acreditei naquilo, mas tinha ordens de não interferir na investigação, pois envolveria o meu lado emocional. Por ser vigiado bem de perto, evitei ir até o mundo humano para não causar problemas, embora eles não soubessem que EU seria o problema caso algo de errado fosse descoberto.

Entrei bufando na sala do conselho, evitando esmurrar a porta imensa ao passar. Meus olhos raivosos prometiam violência ao primeiro que me dissesse que não poderia estar presente naquela reunião. Como se lendo a ira em meus olhos, meu sogro, Rei Boroni, permitiu que ficasse na sala, lançando um olhar a seus conselheiros para que continuassem o relatório.

? Então... Como dizia antes da intromissão do príncipe Yoru, majestade... ? Frezi, seu conselheiro engoliu em seco e olhou diretamente para mim, como se implorasse por misericórdia, continuou ? Os controladores das quinta e sexta torres finalizaram o relatório informando que os fenômenos anormais na região correspondente à Floresta de Peregris foram causados por um corpo de energia, ou seja, um Vernum Tormentador, e pelo tipo da energia pura, um Tormentador sem um lacre, provavelmente o mesmo que causou a destruição do Castelo Azul e do Oitavo ? explicou Frezi baixando os olhos para os papéis em suas mãos trêmulas.

? Então, quanto tempo faz que descobriram que a destruição do Oitavo partiu do castelo? ? perguntou outro homem presente na sala, não precisei olhar para ele para saber que se tratava de um Tenebris, pois a energia escura vazava daquele macho, deixando o ambiente ainda mais tenso. Mesmo assim, desviei os olhos para o Tenebris por um instante, uma névoa negra envolvia as pernas dele, ele tinha a pele cor de ébano, assim como os cabelos e olhos. Pequenos pingentes prateados pendiam das longas tranças negras que batiam no meio de suas costas, lembravam as ponteiras dos chicotes que, pelos relatos de alguns criados, ele gostava de usar, os jaspes sanguíneos cravados em sua pele, em toda extensão do braço direito, também mostrava o número de inimigos derrotados por ele.

Príncipe do Quinto Céu, Owyn. Reconheci imediatamente.

? Desde o início, alteza! ? respondeu Frezi, parecendo ainda mais nervoso, sua pele branca havia ficado com um tom verde leitoso e ele transpirava.

Por um instante, senti o ambiente girar ao meu redor e engoli o caroço que havia se formado em minha garganta com dificuldade.

? Vinte anos... ? sussurrei contendo os raios que agora escorregavam em minhas palmas frias. ? Quase vinte anos! Durante todo esse tempo vocês souberam que a destruição foi causada por alguém de dentro do castelo e nunca me disseram nada?! ? Ah! Estava furioso!

? Eu lhes dei ordem para não contar! ? rugiu o rei para mim, fazendo-me encará-lo perplexo. ? Um ano depois da queda, descobrimos que o ataque partiu de dentro do próprio Castelo! Não eram raios de Solaris! Mas o que adiantaria lhe contar que um Tormentador dentro do Castelo destruiu tudo? Se todos morreram...

? Nem todos morreram, não é? Provavelmente, quem destruiu o céu está andando lá embaixo livremente! ? vociferei em resposta.

? Não por muito tempo! ? Owyn deu um sorriso cruel, estalando os dedos que terminavam em garras negras. ? Já foram enviadas equipes de busca para capturar o Tormentador!

? E como saberão quem é, se está disfarçado? ? o rei perguntou.

? Simples! ? Frezi ergueu uma pequena esfera metálica reluzente, que, quando Frezi a ergueu, começou a brilhar e soltar alguns raios em minha direção.

? Vamos detectar a energia dele com essas esferas de magia! Elas emitem raios apenas quando são aproximadas de Tormentadores! Em seguida, trazê-lo como prisioneiro para que seja julgado e condenado por seus crimes! ? explicou Frezi sacudindo a esfera nas mãos.

? Quero estar presente no julgamento, e quero vê-lo primeiro quando o capturarem! ? exigi olhando diretamente para o rei.

? Desde que não o mate antes que possamos julgá-lo! ? Mesmo contra minha vontade, assenti e com um último olhar para os presentes, saí da sala batendo as portas atrás de mim.

O ódio ainda me corroía por dentro, pelo tempo em que sabiam o que havia acontecido, e por saber que finalmente teria minha vingança. Queria ver a luz deixar os olhos daquele assassino, ou melhor, queria eu mesmo fazê-la se apagar. Um sorriso se desenhou em meus lábios enquanto caminhava pelos corredores distraído, pensando em todas as formas que destruiria a criatura desalmada que destruiu meu lar.

Doreen estava sentada na janela do quarto com o semblante tenso, na certa estava esperando que eu saísse da reunião, estava tão distraída que não sentiu quando entrei no quarto nas pontas dos pés e fiquei a analisando. Ela temia que algo ruim acontecesse, pois eu havia saído do quarto furioso mais cedo, soltando raios para todos os lados. Na certa, ela torcia para que eu não brigasse com seu pai, pois se caso o fizesse, que os deuses protegessem o Rei do Sétimo de minha fúria. Mas não era idiota a ponto de fazer isso, estava no território dele e não no meu.

Para que notasse minha presença, abri e fechei a porta novamente, batendo-a com força suficiente para as dobradiças de ferro rangerem em protesto ao peso das portas de madeira escura. Doreen deu um pulinho e cobriu a boca, em seguida me olhou de cima a baixo e veio em minha direção.

? O que descobriu? ? ela perguntou tocando gentilmente meu rosto, mas a segurei firmemente e num rápido movimento a girei, apertando-a contra a parede.

? Você sabia! ? rosnei para ela, não foi uma pergunta.

? Sabia de quê?

? Sobre o Oitavo! ? grunhi apertando mais seus pulsos frágeis.

? Yoru, acha que meu pai me contaria alguma coisa sobre as investigações? Ele sabe o quanto sou fiel a você! Nunca me contaria nada com receio que eu lhe passasse informações! ? Ela gemeu, tentando soltar os braços do meu aperto. Havia apenas sinceridade nos olhos rosados e brilhantes dela. A soltei e comecei a andar pelo quarto, ficando ainda mais nervoso com a situação.

? Me desculpe! ? Soltei meu peso sobre a poltrona aveludada cinza ao lado da cama e fiquei em silêncio encarando o nada, forçando minha mente a trabalhar.

? O que houve lá? ? Doreen esfregava os pulsos doloridos. Então um pouco relutante, contei tudo que ouvi na sala.

Doreen não tirava minha razão. Ela também ficaria furiosa se fosse o contrário! Estava casada comigo há três anos a pedido do rei, para que quando o Oitavo fosse reerguido, eu, o novo rei dos Tormentadores tivesse uma rainha semelhante ao meu lado. As poucas Tormentadoras sobreviventes dos grupos de caça não eram “dignas” aos olhos do rei do Sétimo e eu já tinha outra esposa, Ênya, mas ela não poderia me ajudar a refazer o Oitavo.

Ênya era uma jovem nobre do Segundo, nós éramos casados desde pouco depois da queda do Oitavo, mas nunca a deixava ficar por perto, em parte porque eu a detestava e também porque Ênya transformaria a vida de Doreen num inferno. Mas havia aceitado o pedido de casamento de Ênya porque o pai dela era um importante político e conselheiro do Imperador Sarki e achei, erroneamente, que um relacionamento com ela poderia ajudar-me a me aproximar dos Solaris e assim conseguir tomar de volta o que restou do Oitavo das mãos do Imperador.

Doreen sabia como eu ficava irritado quando se tratava do assunto sobre o Oitavo. Havia pedido formalmente para reconstruir o Reino acima do mundo humano mais de uma vez, mas Sarki negava o pedido, dizendo que poderia atrapalhar as investigações.

E as lutas! Aquelas lutas desnecessárias e terríveis com grandes perdas para os Céus mais baixos. Nós podíamos tê-las evitado desde o início se aquela informação de que um Tormentador foi o causador de tanta destruição tivesse chegado aos ouvidos de Sarki antes!

? Por que eles não liberaram essa informação antes? ? Doreen perguntou, sentando-se na cama próxima de onde eu estava, com as mãos cruzadas sobre o peito, a cabeça inclinada para trás deixando a cascata de cabelos prateados caírem como um véu. De canto de olho, a vi estender a mão para passar os dedos entre os fios, mas a recolheu, pois sabia que o meu humor estava terrível, e sabia também, que eu não correspondia completamente seus sentimentos, embora nunca a negasse.

Desviei o olhar da marca que havia deixado em seu pulso, sentindo-me um monstro por aquilo, franzi o cenho e suspirei.

? Porque alguém está ganhando muito com essa guerra, alguém também ganhou muito com a morte de todos os Tormentadores do Oitavo! ? retruquei ainda pensativo.

? Como assim?

? Não sei ainda o motivo, mas vou descobrir! ? Eu me ajeitei na poltrona para encarar Doreen. ? E você vai me ajudar! Primeiro, vamos esperar encontrarem o Tormentador e escutar seu depoimento sobre o motivo de ele ter feito o que fez!

Ela sorriu com a confiança que depositei nela, com o fato de a estar incluindo em meus planos. Novamente me senti mal por ela e queria de alguma maneira compensar aquilo, todo aquele amor que ela dava sem muitas vezes receber nada em troca.

? Sempre que precisar, saiba que estarei aqui! ? Ela deslizou para meu colo e me beijou ternamente.

Agora era questão de tempo, pouco tempo, até que o encontrassem, e eu o destruiria, extrairia até a última gota de informação que este traidor soubesse e, depois, o mataria.


Capítulo 6

 

 

Raios e escuridão


Luyen:


No sábado de manhã, acordei irritada.

Minha garganta ainda estava ardendo depois de ter vomitado novamente na madrugada anterior. Caminhei até a cozinha arrastando os pés, ainda sem enxergar nada em seus devidos lugares. Por ficar sempre acordando de madrugada, eu dormia mal, e acordava pior do que quando fui dormir. Sombras cinzentas estavam quase parecendo tatuagens sob meus olhos, quase dois anos sem dormir direito...

Quase dois anos sem voltar a usar a aparência “humana”, mas era melhor assim, pois evitava que eu machucasse meus pais, que agora sabia que não eram realmente meus pais, mas ainda assim os amava. Desde o acidente com Chris não deixava eles se aproximarem muito, evitava abraços, na verdade, evitava qualquer contato físico.

Eu me movi para a cozinha lentamente e fui até a mesa, meus pais haviam saído para fazer as entregas na cidade, havia uma garrafa de leite fresco em cima da mesa, junto com frutas e pão recém assado, ainda dava para sentir o cheiro na cozinha e o forno à lenha estava morno.

Peguei alguns cortes de lenha, acendi o fogão e coloquei leite para esquentar enquanto fazia um chá. Atravessei a sala espreguiçando-me a caminho do banheiro, queria verificar o quão terrível estava minha aparência essa manhã.

Olhei no espelho acima da pia e não estava tão mal, as sombras continuavam sob meus olhos, meus cabelos cinzentos ondulados estavam um caos total e minha pele tinha um leve brilho.

Havia acordado todos os dias nos últimos dois anos e visto o mesmo rosto no espelho, meu rosto, igual ao que era antes, porém, diferente. Não só pela cor que havia mudado, pelos olhos castanhos que agora eram prateados, mas pela pessoa que eu via ali. Não era mais eu, não sabia dizer o que realmente havia mudado em mim, talvez tudo, talvez nada. Talvez fosse apenas a forma que eu enxergava o mundo agora, mas a cada dia que eu olhava para o espelho, eu tinha cada vez mais certeza de que estava no lugar errado, e que estava chegando a hora de partir.

Amarrei os cabelos num coque apertado e fui para a cozinha tomar café e aquecer água para tomar um banho, porém, quando fui colocar mais lenha no fogão, só havia alguns tocos. Nalla devia ter usado o restante da lenha cortada para assar os pães de manhã. Logo depois de terminar meu desjejum, troquei a camisola por uma calça cinza macia e uma camiseta preta com botões de bambu, coloquei as botas de couro já gastas até o joelho, peguei o machado de meu pai que estava apoiado atrás da porta da cozinha e fui em direção à floresta cortar lenha.

Estava caminhando sem um local específico para ir, apenas olhando os raios coloridos de sol que passavam pelas folhas e galhos das árvores, iluminando o chão da floresta coberto com as folhas do outono. Em poucos minutos andando distraída com o machado sobre o ombro, cheguei sem querer a margem do lago.

Senti como se água gelada corresse por minhas veias e me vi paralisada, olhando para o lago. Tentei com o máximo de esforço não virar o rosto para a esquerda, só ficava repetindo em minha mente “É só se virar e ir embora!” Mas eu nunca mais voltei ao lago depois do que houve com Chris, e, antes, esse era um caminho que eu fazia todos os dias no meio da tarde. Agora, eu só queria ir embora dali, mas não conseguia me mover.

Fiquei parada próxima à margem do lago, com os olhos fixos na água, com medo de olhar para o lado, ver a pedra na margem do lago e me obrigar a aceitar o que havia feito, implorei aos deuses lunares que me dessem força para me virar e correr, mas se eles realmente se importassem comigo, não teriam deixado eu transformar alguém que amava em cinzas. O pensamento sobre coisas aleatórias dos Céus me acalmou por um instante, porém, algo chamou minha atenção vindo do meio da floresta: passos. Fui obrigada a olhar em volta e procurar pelos donos daqueles passos, como meus sentidos haviam mudado ao me transformar, os donos daqueles passos podiam estar longe ainda.

Meu corpo se moveu quase que sozinho, num pulo estava escondida atrás de uma árvore grande que tinha as raízes parcialmente submersas no lago. Abaixei-me entre as raízes e fiquei em silêncio, esperando quem quer que fosse aparecer, tapei a boca com as costas da mão, minha experiência com caças me lembrava o que uma respiração alta podia custar.

Não demorou para que os visse, estavam num grupo pequeno e vinham em minha direção! Eles eram, sem sombra de dúvidas, habitantes dos Céus. Vernuns para ser mais precisa, pois tinham as peles pálidas e cintilantes como a minha, os olhos deles variavam entre tons de prateado, chumbo e negro.

Cinco Vernuns, todos com uniformes cinzentos e detalhes em prata, uma insígnia no formato de cruz transpassada por um raio sobre o peito de cada um deles, indicava que eram oficiais do Sétimo Céu. O Vernum da frente tinha os cabelos espetados e trazia nas mãos uma pequena esfera que brilhava e soltava raios, notei também que os raios pareciam apontar direto para mim! Meu coração acelerou ainda mais, como se quisesse denunciar minha localização, gritava para eles “Ei, estamos aqui!” Traidor!

? Vasculhem toda a área! Não pode estar muito longe! ? O Vernum ergueu a esfera, que brilhou e começou a soltar raios ainda mais longos em minha direção. O que eles estavam procurando ali? Será que estavam realmente me procurando?

A possibilidade era mínima, como saberiam quem eu era, se eu nunca saía da floresta? Então, outra possibilidade passou em minha cabeça, uma que fez meu estômago afundar e eu começar a suar frio.

“Eles sabiam sobre Chris, ele devia ter alguma família na cidade e sentiram a falta dele, então, mandaram os oficiais atrás dele.”

Mas isso também não era possível, se fosse o caso, seriam oficiais humanos atrás dele, não iam enviar Vernuns, na verdade, criaturas como eles não se envolveriam em algo como o desaparecimento de um simples humano... Aquilo me corroeu por dentro, Chris não era um simples humano, não para mim.

Os Vernuns estavam cada vez mais próximos, carregavam armas assustadoras, como lanças brilhantes deformadas e de aparências perigosas. Pensei em aparecer para eles, me entregar, uma vez que se estivessem me procurando, iriam me encontrar em breve. As raízes não me davam muita proteção, e não tinha para onde correr.

Eu me levantei e fiz menção a ir para onde estavam, porém, quando saí de traz das raízes, a esfera na mão do Vernum brilhou e começou a soltar raios para todos os lados, um dos raios, riscou o chão, fazendo as folhas se levantarem e me atingiu. Fiquei esperando sentir qualquer dor, mas não aconteceu, os raios estavam dançando em volta de mim, como se me cercassem.

O Vernum que trazia a esfera olhou diretamente para mim e soltou um estranho chiado, em seguida, o som como de um trovão saiu de sua boca e algo me acertou pelas costas, derrubando-me no chão da floresta, a dor foi tão intensa que minha visão escureceu. Assustada, tentei me erguer, mas alguém segurou meus braços atrás do corpo, estava me prendendo. O desespero tomou conta de mim, abri a boca para tentar falar, mas não conseguia dizer nada. Era como se meu corpo e minha voz, estivessem dormentes.

Fui levantada do chão por dois oficiais, senti uma dor aguda em meu ombro em seguida, sangue cor de chumbo pingou, manchando as folhas laranjas que forravam o chão. O Vernum que carregava a esfera se aproximou e me observou atentamente, depois segurou meu queixo com força e me obrigou a encará-lo.

? Como se chama, criança? ? Fiquei tentada em cuspir na sua cara, já que não me deram a chance de conversar normalmente, apenas me atacaram, mas as armas dos oficiais ao meu redor, o olhar cruel deles, me fizeram responder à pergunta.

? Luyen.

? Luyen... ? O Vernum olhou para o oficial que estava ao meu lado, com a arma bem próxima ao meu pescoço e fez um pequeno aceno.

? O que querem comigo?

? O que queremos? Sabe o que queremos! Sabemos que foi você a culpada por aquela destruição! ? Ele rosnou descendo a mão para minha garganta e a fechou. Senti como se o chão estivesse se movendo sob meus pés e um zumbido alto fez com que eu não escutasse o que ele estava dizendo enquanto apertava a mão em meu pescoço, tirando-me o ar. Desejei que ele me matasse.

? Basta! Frezi, o Rei mandou que levássemos o culpado com vida para ser condenado! ? O oficial ao meu lado segurou o pulso dele. Odiei aquele oficial, eu merecia aquilo, mas preferia que eles fizessem aquilo ali, não queria ser levada para ser julgada em lugar algum.

? Me matem logo! Eu destruí a cabana, eu matei o Christian, vamos! Só acabem logo com isso! ? gritei forçando meus braços mesmo com a dor em meu ombro. Talvez se eles vissem que eu estava tentando resistir, eles me matariam de uma vez. Porém o oficial ergueu as sobrancelhas brancas e perguntou:

? Do que está falando, garota?

? Não é por isso que estão aqui? Vieram me buscar porque eu matei o garoto na cabana?

? Ficou louca? Não estamos aqui por acontecimentos terrestres! Viemos buscá-la pela queda do Oitavo! ? Foi minha vez de ficar surpresa, minhas pernas tremeram e se não estivesse sendo segurada por aqueles oficiais, teria caído de joelhos no chão.

? Não tive nada a ver com isso! ? eu me defendi.

? Ah, claro! ? Ele me deu um sorriso irônico. ? Você é a única Vernum Tormentadora sobrevivente daquele dia, se não foi você, como sobreviveu?

? Não sei do que está falando! Eu nem lembro de nada sobre isso! Só sei o que meus pais me contaram! ? retruquei. O Vernum parecia não acreditar, ele encarou os outros oficiais e pigarreou:

? Luyen, você deverá permanecer em silêncio até que um oficial solicite sua palavra. Você será detida e julgada por seus crimes! ? O Vernum guardou a esfera na bolsa a tiracolo e fez um gesto para os oficiais que me seguravam.

? Já disse que não tive nada a ver com a queda do Oitavo! ? Minha voz ficou alta, desesperada, mas o oficial apenas sorriu de forma provocativa.

? Ora, você acaba de confessar que matou um humano, isso também é um crime, e os humanos mandam qualquer criminoso dos Reinos Celestes para que sejam julgados pelos de sua espécie!

? Eu posso pelo menos falar com meus pais?

? Eles vivem próximos daqui? ? O Vernum perguntou, uma pontada de esperança me preencheu, pelo menos eu poderia me despedir deles, isso se aqueles brutos me permitirem esperar os dois chegarem da cidade.

? Sim, na cabana perto da estrada principal!

? Eles sabem da sua verdadeira natureza?

? Sabem. ? Quando disse aquilo, o Vernum deu um sorriso no mínimo assustador, ele passou os dedos pelos cabelos brancos e acenou para dois oficiais que estavam atrás dele, os dois começaram a caminhar em direção à estrada com as armas em punho.

? Não são seus reais familiares, e por serem humanos, serão denunciados às autoridades do Reino Sul e serão julgados por dar asilo a um criminoso Vernum, e, como você disse sobre a morte do humano, suponho que como uma boa filha você deve ter contado a eles, e se está aqui solta, significa que não foi entregue as autoridades locais! ? Meu coração acelerou de forma descontrolada e tentei forçar meus braços para sair daquele aperto, mas os oficiais mantinham as mãos firmes em meus braços, e qualquer vestígio do poder que havia usado sem querer com Chris, estava adormecido.

? Eles não me deram asilo! Eles me criaram! Eu fui encontrada ainda criança na floresta, meu pai disse que eu caí do Céu! ? gritei, tentando os defender, tentando fazer aquela criatura de olhos frios à minha frente aceitar a minha verdade e por um momento, ele pareceu confuso, seus olhos foram para meu peito.

? Um crime ainda maior, manter uma criança não humana em território humano, deveria ter sido entregue aos guardiões dos portais! Se é que não foi tomada de alguma Vernum sobrevivente! ? Ele estava disposto a não entender e cada vez mais meu medo aumentava.

? Por favor! ? implorei. ? Eu sou a única responsável! Por favor! Deixem eles em paz e eu vou com vocês sem resistir! ? Foi meu único pedido, o Vernum me encarou, o olhar cruel, impassível, então um sorriso ainda pior apareceu em seu rosto e ele falou:

? Você não nos representa nenhum problema, garota! ? Dizendo isso, ele fez um aceno para um oficial que apareceu das sombras ao seu lado. Ao vê-lo, meu estômago se revirou em pânico, ele tinha a pele escura, assim como os olhos e os cabelos, e a escuridão parecia emanar dele, vazar em algo frio como a noite sem luar. O ser que apareceu se aproximou e tocou meu rosto, tentei novamente me soltar, mas aquela coisa fria e terrível desceu por minha coluna e escorreu por meu corpo como se fosse algo me vestindo de dentro para fora. Parecia que meus sentidos estavam deixando meu corpo, então o mundo se apagou ao meu redor.


Capítulo 7

 

 

Assassino?


Yoru:


Recebi o aviso de Frezi pouco antes do almoço naquele sábado, eles haviam capturado um Vernum dentro da floresta de Peregris e estavam voltando para o Sétimo com o prisioneiro e o levariam direto para o calabouço. Ao receber a notícia, meu sangue ferveu nas veias e mal pude conter a ansiedade. Queria ir para o mundo humano encontrá-los, mas tinha que me conter, ao menos parecer racional numa hora como aquela.


? Vai encontrar com eles? ? perguntou Doreen enquanto se arrumava para ir almoçar com o pai. Ela estava num vestido cinza pálido de veludo que se ajustava perfeitamente as curvas do belo corpo, mantendo sua postura altiva e distante, como deviam ser os herdeiros de Boroni, mas o olhar dela demostrava toda preocupação que sentia comigo naquele momento tenso, não podia ficar mais agradecido com seu cuidado comigo.

? Vou, quero estar lá embaixo quando chegarem com ele! ? Estava tão ansioso por aquilo que nem sequer havia dormido direito na noite anterior, deixando Doreen preocupara com uma possível reação minha diante do prisioneiro.

? Yoru... ? Doreen se aproximou e segurou meu rosto antes que eu saísse do quarto como um louco para os calabouços. ? Por favor, não o mate antes da hora, isso pode te trazer problemas! ? ela implorou.

? Eu sei. ? Beijei sua testa, passando os dedos entre os fios escuros e suaves dos cabelos dela. Doreen gostava de manter aparência semelhante a humana, a pele rosada e olhos coloridos como os deles, achava que assim aparentaria ser mais gentil, ficava em sua real aparência somente na presença do pai, pois Boroni não suportava humanos, assim como muitos de nós, e isso incluía a mim, mas não tinha direito de pedir que ela parasse de ficar como gostava.

Por fim, dei as costas a ela e saí do quarto, respirei fundo antes de caminhar pelo castelo até o calabouço, pois não sabia se conseguiria segurar a fúria quando encarasse o assassino de um reino inteiro de frente. Eu ignorei os guardas e criados que me olhavam e cochichavam conforme andava pelo castelo com o queixo erguido e olhos focados. “O herdeiro sobrevivente” era assim que costumavam me chamar desde a queda de meu lar. Alguns simplesmente me desprezavam, outros tentavam me agradar de qualquer maneira, pois sabiam que cedo ou tarde reconstruiria o Oitavo e, aos poucos, traria os Tormentadores de volta com ajuda de minha esposa, Doreen e de meus companheiros de treinamento, embora houvesse poucas mulheres no grupo, nós agora éramos menos de cem no total! De mais de cem mil.... Éramos cem mil antes daquele assassino acabar com tudo!

Virei no último corredor do primeiro andar do castelo com o sangue começando a ferver novamente ao lembrar de nossas perdas, não estava muito distante da sala do trono, ali, escondida no corredor secundário que dava para a cozinha, havia uma passagem secreta que levava a uma escadaria em espiral e a um longo corredor que cortava o subsolo do castelo e terminava na entrada dos calabouços. Doreen mostrou aquela passagem a mim logo após o casamento, pois o corredor principal também levava ao Jardim das Estrelas. Um jardim nada convencional, onde não havia flores vivas, plantas e árvores comuns, mas havia Tarcis por toda a extensão do jardim, as flores cinzentas e cíclicas de cinco pétalas com aparência simples, mas que, durante a noite, brilham com tons de azul, púrpura e prateado, iluminando todo o ambiente e do alto da torre leste do castelo, o jardim ao anoitecer ficava parecendo um pedacinho do verdadeiro céu que havia caído sobre as barreiras que mantinham o Sétimo no ar.

Já estava totalmente perdido em pensamentos até escutar o som de gritos exaltados vindos da entrada do calabouço. Acelerei o passo, já com a mão sobre o punho da espada presa em minhas costas e um sorriso se formando em meu rosto com a pequena possibilidade do prisioneiro, daquele assassino estar lutando com os oficiais. Se estivesse, poderia matá-lo imediatamente e acabar de uma vez por todas com isso, seria a desculpa perfeita! “Ele estava atacando os oficiais e precisou ser detido!” Duvido que alguém fosse contra isso, nossos números não podiam diminuir ainda mais, e se ele foi capaz de destruir o Oitavo... Eu me pergunto que risco estávamos assumindo o trazendo como prisioneiro para cá.

Com isso em mente, corri ainda mais rápido para a porta semiaberta no final do corredor escuro e, com um chute, escancarei a porta pesada do calabouço. Ao entrar, fiquei surpreso e temeroso ao ver os últimos raios espalhados pela antessala dissiparem conforme Rafen, o oficial Tenebris, levava o prisioneiro desacordado para uma das celas. Eu não consegui ver o prisioneiro, pois as sombras de Rafen e a enorme silhueta do oficial o cobriram, mas meu coração estava disparado no peito, quase saltando por entre minhas costelas. Finalmente, depois de toda aquela espera, poderia olhar nos olhos do assassino de um reino inteiro e perguntar o porquê.

? O prisioneiro deu muito trabalho, Frezi? ? comentei em tom de deboche que fez o conselheiro rosnar. Embainhei a espada com um pouco de pesar e passei os dedos entre os cabelos, ajeitando-os como costumava fazer quando estava muito nervoso ou ansioso. O conselheiro bufou e arrumou a túnica amassada, olhando irritado na direção de Rafen.

? Ela não deu tanto trabalho quando foi capturada no reino humano, mas despertou quando estávamos chegando e explodiu em raios! ? ele resmungou, colocando sua espada de volta na bainha, assenti distraidamente olhando para a cela, e só então percebi algo de errado na sentença de Frezi.

? Ela? ? Encarei surpreso o conselheiro.

? Sim, ela! É uma Tormentadora fêmea! Diz ter sido criada por humanos, mas parece que foi criada por uma matilha de lobos selvagens! Ela quase derrubou Rafen agora a pouco! ? Arqueei ainda mais as sobrancelhas e dei alguns passos vacilantes na direção da cela que Rafen havia acabado de trancar, não me atrevi olhar para a mulher que havia destruído meu lar. Rafen saiu do calabouço batendo os pés e murmurando desculpas, mas a verdade é que ele devia estar irritado, mais que isso, pelo fato de que uma jovem destreinada o ter quase derrubado.

? Informações? ? pedi a Frezi, que se abaixou ao lado da cela e cutucou a mulher lá dentro com o indicador, ela estava apagada, eu odiava a sensação da dormência causada pelos poderes dos Tenebris, mas aquela assassina merecia sentir aquilo e, mesmo sendo uma mulher, a faria pagar.

? Ela diz se chamar Luyen, vivia com pais humanos na floresta de Peregris, não temos mais informações sobre eles, mas sabemos onde é a casa em que vivem, então deixei dois oficiais lá, estão esperando os pais adotivos voltarem para que deem seu depoimento sobre a garota, não podemos trazê-los sem permissão de autoridades humanas, mas se for preciso, posso conseguir facilmente, alteza.

? Você chegou a falar sobre o Oitavo com ela? ? perguntei me aproximando um pouco mais, tentando ver além da cortina de cabelos cinzentos espalhados ao redor da mulher.

? Ela jura que não sabe nada sobre isso e que foi pega ainda criança pelos humanos, pela versão que nos disse quando a capturamos, seus pais lhe disseram que ela caiu do Céu! ? Frezi deu uma risada debochada e bateu na grade, em seguida esticou as costas e foi em direção à saída.

? Aonde vai?

? Relatar ao rei que a captura foi bem-sucedida, assim eles podem reunir o conselho para ouvir o depoimento dela e preparar o julgamento o mais rápido possível.

? Não os incomode agora, Boroni está almoçando com Doreen e Adrias, sabe que ele não gosta de ser interrompido quando está com os filhos ? expliquei, então Frezi assentiu, fez uma breve reverência, sem nenhuma formalidade me deixou sozinho no calabouço junto com a mulher.

Ri com a ironia e me encostei na parede da cela, tentando controlar meus sentimentos antes de tentar acordá-la. Sabia que Frezi não me suportava, mas o conselheiro sabia disfarçar muito bem seus desafetos. Sabia também que Frezi havia me deixado ali sozinho com a prisioneira, pois tinha certeza que eu a mataria e daria motivos para Boroni me divorciar de Doreen e assim, Frezi poderia ficar com ela. Mas eu não era nenhum moleque ignorante, não ia dar esse gostinho a Frezi, nem permitir que ele tomasse Doreen de mim, não é porque não a amava da mesma forma que não gostava dela. Fora que Boroni devia odiar aquela Tormentadora tanto quanto eu, afinal, sua rainha estava no Oitavo quando esse caiu.

A garota dentro da cela se mexeu, deixando-me em alerta, podia ter rido pelo poder de Rafen não ter sido o suficiente para derrubá-la por algumas horas, ela era durona! Bom, ia ser mais divertido assim! Eu me posicionei em frente à cela e observei enquanto ela se apoiava nas mãos e se levantava ainda de costas para mim. Tentei manter a calma quando ela respirou fundo e fez um som como um gemido de dor, mantive minha raiva sob um frágil controle quando ela sentou sobre os calcanhares, passou os dedos pelos cabelos cor de nuvens de tempestade que caíam em ondas até a cintura, então ela endureceu e se virou, percebendo que havia alguém atrás dela.

Quando os olhos prateados dela se fixaram nos meus, tudo em mim congelou. Em qualquer lugar que visse aquele rosto, aqueles olhos, eu os reconheceria. O rosto semelhante ao de Nibbis, traços delicados lábios cheios, mas os olhos rajados de prata e azul-céu idênticos aos de Galathis, meu pai, ela possuía até a mesma expressão, o mesmo jeito analítico no olhar e nos lábios torcidos nos cantos.

A jovem se levantou assustada e se afastou das grades, ficando o mais longe possível de mim, ela não havia percebido que eu mal conseguia respirar ao olhar para ela. Dei outro passo mais para perto da grade, sem conseguir desviar os olhos da garota. Era impossível! Nibbis estava grávida de uma menina quando a vi pela última vez meses antes de deixar o Oitavo para o treinamento, mas o nascimento seria uma semana após a queda, a não ser...

Engoli em seco, a sensação de que o mundo escorria sob meus pés que sentia dias antes voltou com tudo, só que dessa vez tudo dentro de mim parecia estar da mesma forma, se desfazendo. Inspirei profundamente, e o cheiro dela era semelhante ao aroma de terra molhada, orvalho e Tarcis brancas, as flores favoritas de minha mãe, nossa mãe! A garota ainda me observava, assustada demais para se mover, para sequer respirar em minha presença, a única coisa que conseguir fazer foi me virar com cuidado, para ver se cada parte do corpo ainda me pertencia e sair dali sem dizer nada.

Disparei quase voando pelo castelo, ignorando cada ser que falou comigo pelo caminho de volta que passou em borrões por mim. Eu precisava de Doreen, agora! Precisava que alguém que me dissesse que aquilo era apenas um sonho e que estava alucinando e que aquela garota presa no calabouço não era real.

Mas e se fosse ela a responsável pela destruição do Oitavo? Não tinha dúvidas de que a garota era minha irmã, se não fosse pelos olhos, pela aparência, eu a teria identificado pelo cheiro.

? Marina, vá buscar Doreen, diga que tenho urgência em falar com ela! ? Quase berrei ao passar pela dama de companhia de Doreen no corredor. A senhora que andava distraída lendo um dos livros de minha esposa, quase pulou ao me ver ali tão cedo, mas ao encontrar meu olhar, assentiu e foi ao encontro da princesa sem questionar.

O quarto estava apertado, quente e sufocante demais para tudo que estava sentindo naquele momento. Não estava nada certo! Eu fui treinado para lidar com emoções de forma simples, criado para controlá-las como se fossem uma extensão de meu corpo, e aquele treinamento me manteve firme até ver uma parte do que havia desaparecido para mim, viva dentro daquele castelo. Abri as vidraças, me apoiei na soleira da janela do meio e fiquei olhando para o nada esperando a chegada de Doreen, pensando em mil e uma possibilidades e o mais importante agora: descobrir como aquilo havia acontecido e o que fazer para evitar que ela morresse. A possibilidade de recriar o Oitavo e trazer os Tenebris puro sangue da família Asterath de volta foi tão intensa que um tremor tomou conta de mim. Apoiei a cabeça nas mãos e lancei, pela primeira vez em toda minha vida, uma oração silenciosa aos deuses habitantes do Nono Céu. A linhagem Asterath poderia sobreviver!

Doreen entrou no quarto alguns minutos depois, o peito subindo e descendo rapidamente enquanto dispensava as damas e se aproximava de mim com o semblante preocupado.

? Frezi avisou ao meu pai que capturaram o Tormentador, e que é uma mulher... Você a viu? ? Doreen me virou completamente na direção dela, seus olhos pareciam sondar minha alma atrás de respostas que eu parecia ser incapaz de lhe dar.

? Ela é minha irmã. ? Foi tudo o que consegui dizer. Doreen devia ter mais ou menos dez anos quando ouviu falar que a princesa do Oitavo estava esperando uma criança, e eu já havia lhe dito que minha mãe estava grávida quando morreu, mas aquilo... Parecia ser demais até para Doreen.

? Yoru, é impossível! Ninguém que estava lá sobreviveu a queda Oitavo! Ela não pode ser sua irmã!

? Mas é! ? retruquei abaixando a cabeça, tentando respirar normalmente.

? Pense, se ela for, como sobreviveu? Sua mãe iria dar à luz dias depois da queda! As Vernuns Tormentadoras não erram a data de nascimento dos seus bebês! ? Doreen tentava me fazer entender algo que eu já sabia, mas fui firme em minha suspeita:

? A não ser que tenha nascido antes da hora! ? Ou que tivesse mentido, foi o que não ousei dizer alto, aquilo seria traição e Nibbis jamais faria algo assim.

? Mas é muito difícil...

? Não é impossível!

? Se for assim, ela não destruiu o Oitavo! Deve haver mais algum Tormentador lá embaixo ? Doreen concluiu, frustrada.

Fiquei em silêncio, pensando na possibilidade... Eram chances pequenas, mas tinha um palpite, e se estivesse certo, poderia salvar a garota, que a menos de meia hora, queria condenar. Dei uma risada amarga ao lembrar daquele ódio que se dissipou tão rapidamente. Doreen estava acariciando o meu peito, tentando me fazer ficar calmo e na certa imaginando que estava distraído demais para perceber, até ter uma ideia com sua carícia.

? Preciso que você vá até o calabouço verificar algo para mim. ? Eu lhe ofereci um pequeno sorriso, mais triste que qualquer expressão que estava tentando esconder. Mas Doreen assentiu sem questionar.

? Diga-me o que quer que eu faça, e eu farei! ? Beijei as costas de suas mãos e expliquei exatamente o que Doreen devia procurar na garota, mostrando minha própria marca.


Capítulo 8

 

 

Aprisionada


Luyen:


Aos poucos, a tonteira foi passando e a escuridão que se apossou da minha mente foi me soltando. Não fazia ideia do que havia acontecido depois que aquele homem obscuro me imobilizou quando eu finalmente consegui fazer aqueles raios me responderem e os soltei contra eles, só queria escapar daquele lugar úmido e escuro e voltar para casa.

Mas o gigante de pele escura, provavelmente um Tenebris, fez o poder adormecer novamente e me apagou. Minha cabeça doía muito e uma sensação de peso e cansaço estava sobre meus ombros. Forcei meus braços a aguentarem meu peso, parecia que havia ganhado alguns quilos, ou ainda era a sensação de dormência daquele poder sobre mim. Aos poucos consegui me erguer e sentei sobre os calcanhares, testando cara parte de mim para ter certeza de que nada havia parado de funcionar.

Quando meus sentidos voltaram a cem por cento, senti que alguém me observava, e foi como gelo escorrendo em minha coluna. Olhei por cima do ombro, um homem me olhava com um ódio animalesco no olhar, a mesma expressão que vi algumas vezes em lobos prontos para atacar suas presas enquanto acompanhava meu pai em caçadas na floresta. Mas no momento em que o encarei, aquele ódio se desfez, e um misto de confusão e assombro tomou conta daqueles olhos negros.

Os cabelos do Vernum eram de um prateado quase branco e caíam ao redor dos ombros até os antebraços, ele era forte, alto e vestia roupas finas, uma túnica negra bordada em prata, o que destacava ainda mais a brancura de sua pele, semelhante à minha.

Eu estava dentro de um calabouço, presa por um crime que não cometi, só então percebi a mão do homem sobre o punho da arma em suas costas e tremi. Saltei para trás, me escondendo nas sombras da cela, como se isso fosse ajudar de alguma maneira caso ele quisesse me matar.

Ele continuou me observando em silêncio por longos minutos, e cada batida de meu coração parecia ser a última, mas num momento, ele soltou a mão do punho da espada e desapareceu pela porta aberta atrás de si. Escorreguei pela parede e caí sentada no chão, chorando desesperada sem saber o que fazer. Não sabia o que aconteceria com meus pais, pois não vi mais os oficiais que foram atrás deles pouco antes de apagar.

Eu me aproximei das barras da cela, na esperança de que houvesse alguma solta, mas elas tinham uma estranha sensação de ardência ao toque, mesmo assim, quando fiz força para tentar abri-las, senti como se minhas mãos estivessem derretendo e gritei, puxando as mãos da grade. A pele havia queimado com tanta intensidade que parte dela tinha grudado nas grades.

Sentei no chão, encolhendo-me de dor e praguejando aquele miserável por ter me colocado dentro daquela cela. Se um dia tivesse a mínima chance de escapar, na saída, eu daria um jeito de fritá-lo. Tirei um lenço do bolso da calça e, com os dentes, o rasguei em dois, enrolando-os cuidadosamente nas palmas queimadas e choramingando de dor ao fazê-lo. Dessa vez, sem tocar as grades, me aproximei o máximo possível para ver o local onde estava. Era apenas uma prisão, que conhecia pelas detalhadas histórias de Chris, de quando ele vivia na cidade e trabalhava para a guarda local.

Sabia o suficiente sobre o que faziam com as pessoas naquele tipo de lugar para temer por minha vida, mas nada ali me dava alguma dica de onde exatamente estava. A pequena janela em minha cela era alta demais para que pudesse olhar por ela, e agora não conseguiria me pendurar nas grades para olhar devido às queimaduras doloridas nas mãos, então tudo que tive que fazer foi sentar e esperar, obrigando-me a manter a calma ou minha cabeça me mataria antes do que aquelas pessoas.


Não demorou muito para as portas do calabouço se abrirem e um oficial entrar trazendo uma bandeja metálica em direção à cela, pelo menos sabia que, se morresse, ia morrer de barriga cheia. Eu observei o homem que se aproximava sem conseguir identificar o que ele era pela aparência, não batia com a descrição de nenhuma das quatro raças dos céus.

Uma trança grossa de cabelos negros como a noite passava sobre seu ombro e ia até sua cintura, sua pele era de um belo marrom dourado um pouco cintilante, ele devia ser pouco mais alto que o primeiro que estava me observando quando acordei. Não tinha visto muitos homens além de Chris, pois nunca saía da floresta, via apenas os viajantes que caminhavam pela estrada à beira da floresta, mas esse homem de olhos prateados que parou em frente à cela era sem dúvidas a criatura mais linda que já havia visto em minha vida! Não só pelo corpo bonito e bem definido, pelo rosto perfeito de lábios cheios e nariz reto, mas tinha algo mais em seu olhar, algo vivo e ao mesmo tempo sombrio.

Ele parou diante da grade e desapareceu numa pequena nuvem de fumaça negra, antes de estar diante de mim na parte de dentro da cela. Deixei um gritinho escapar sem querer enquanto me esquivava para longe dele. Ele deu um sorriso divertido, colocando a bandeja no chão.

? Tentou arrancar as barras solares? ? ele perguntou, virando-se de costas para mim e encarando a pele agarrada nas grades.

? Estava tentando fugir ? retruquei, ele olhou novamente para mim, as sobrancelhas erguidas e um sorriso nos cantos dos lábios.

? Grades solares afetam qualquer um abaixo do Segundo, menina. Não tente de novo! ? Ele deu uma risada baixa e saiu da cela da mesma forma que entrou. Diferente dos outros oficiais, esse vestia um uniforme negro com um símbolo prateado no peito, uma espécie de nuvem com um pequeno raio sobre ela e oito pequenas estrelas circulando o símbolo, destacando a cor de sua pele. Ele jogou a trança negra para trás, e ela enroscou na enorme lança presa as suas costas. Não pude evitar rir, quando ele parou de caminhar em direção à porta para desenroscar o cabelo da lâmina em ziguezague. Ele olhou para trás, não havia nada de divertido em seu rosto, apenas as presas longas a mostra e garras negras nas pontas de seus dedos, onde deveriam haver unhas.

? Qual é a piada? ? ele perguntou num rosnado, voltando e apoiando-se na grade para me encarar. Eu iria morrer de qualquer maneira, então, por que não me divertir antes?

? Ri de você todo atrapalhado com o cabelo! ? Suas narinas expandiram e ele rosnou, um som animalesco e terrível que fez o sangue fugir de meu rosto, mas num segundo, uma máscara de calma apareceu e sua expressão se tornou suave.

? Não fui eu que quase perdi as mãos tentando escapar de grades solares, até um cachorro velho e cego sabe que deve ficar longe delas! ? ele debochou, mostrando um sorriso zombeteiro. ? E essa é uma arma nova, às vezes me esqueço que não estou mais com minha espada habitual. ? Queria lhe perguntar porque estava com uma arma nova, mas desisti de perguntar qualquer coisa quando o cheiro da comida que ele havia deixado ali dentro invadiu meus sentidos, lembrando-me que mal havia tomado café.

? Posso perguntar seu nome?

? Poder pode, só não sei se quero responder! ? Ele passou a unha na grade, soltando a pele que estava ali. ? Fiquei sabendo que haviam prendido o assassino que destruiu o Oitavo e decidi vir ver com meus próprios olhos, mas te olhando assim, não acredito que seja você!

? Tem mais alguém preso nesse lugar? ? Minha pergunta foi inocente, mas só depois percebi que podia soar como uma confissão e meu sangue gelou nas veias.

? Hmm... É grosseira também! Interessante. Nunca vi alguém cuja condenação fosse quase certa com tanto bom-humor! Vamos ver se toda essa coragem ainda vai estar aí quando te colocarem diante do tribunal dos Céus, menina! ? Meu estômago revirou, mas não ia dar o gostinho a ele de ver meu medo.

? Nunca vi um guarda como você também! Me diga, todos são tagarelas assim como você por aqui? Porque se forem, minha estadia não vai ser tão horrível afinal! ? retruquei irritada. Ele me fulminou com os olhos semicerrados, estalou a língua e se virou, saindo do alcance de minha visão, me levantei e fui até a grade para ver se ele tinha saído.

? Falou tanto, mas não vai nem falar seu nome? ? perguntei, ele negou com a cabeça, mas antes que ele passasse pelo arco de saída, alguém empurrou a porta do calabouço, fazendo-a ranger de forma que fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem.

Uma mulher estonteante entrou, seguida de duas guardas femininas. Não sabia para onde olhava primeiro, para o corpo perfeito dentro do vestido cinza de veludo, ou para o cabelo branco em ondas até o meio das costas, adornados com uma tiara prateada, os olhos vermelhos da mulher se fixaram em mim e ela ergueu a mão, chamando as guardas e o oficial marrento de volta para onde eu estava.

Ela andava de forma elegante, a cabeça levemente erguida, os lábios cobertos por um batom de cor chumbo, em sua mão esquerda, um anel da mesma cor com uma pedra azul enfeitava seu dedo anular. Ela tamborilou as garras longas e transparentes na grade e me olhou de cima a baixo, por mais incrível que pareça, ela tinha uma expressão serena e bondosa no rosto.

? Hamza, abra a grade, por favor? ? ela pediu, direcionando o olhar ao oficial, ele bufou, e semicerrou os olhos quando notou meu sorrisinho para ele, pois ela havia me revelado seu nome sem saber de nossa pequena desavença.

? Princesa, ela pode ser perigosa! ? O oficial colocou um braço, afastando a jovem da grade, mas ela revirou os olhos e apontou as duas guardas atrás dela.

? Com você e com elas aqui, não preciso me preocupar com a garota, Hamza! ? Aquilo me irritou mais do que deveria, afinal, para eles eu era uma criminosa. Novamente, senti aquela estranha energia fluindo por mim, e deixei que escorressem por meus dedos. Porém, os raios não tomaram forma deixando-me completamente frustrada, queria apenas que eles fossem embora e me deixassem comer.

O oficial tocou o ombro das mulheres e, como havia feito antes, em seguida estava diante de mim na cela. A mulher o encarou de sobrancelhas erguidas e ele baixou os olhos como uma criança pega em uma travessura.

? Sem autorização, não é? ? ela perguntou com um leve sorriso repuxando os lábios perfeitos.

? Sim, alteza.

? Bom saber! ? ela cantarolou. ? Hamza, prenda os braços dela atrás do corpo, por favor. ? Quando ela pediu aquilo, qualquer bondade que havia visto nela, desapareceu, porém, o olhar malicioso do oficial foi ainda mais perturbador.

? Espere! ? implorei quando ele, com um sorriso torto, foi para trás de mim, não fui tola de lutar depois de ver a lança de aparência perigosa em suas costas, ele podia enroscar o cabelo nela, mas não acreditei nem por um minuto que ele não soubesse como me partir ao meio com ela. Ele segurou meus cotovelos e os levou para trás, forçando-me a arquear as costas. A mulher não tirava os olhos dos meus, ela se aproximou e as guardas atrás dela levantaram as armas, esperando alguma reação minha.

? Não vou te machucar, apenas fique parada ? disse ela a um palmo de distância, ela era pouco mais alta que eu e tinha um cheiro agradável e tranquilizador, semelhante ao vento num dia nublado e a terra pouco antes de chover. Hamza apertou mais meus braços quando ela se aproximou e começou a desabotoar minha camiseta. Um desespero tomou conta de mim e tentei me soltar, mas Hamza me apertou ainda mais contra seu corpo como uma rocha atrás de mim.

? O que está fazendo? ? Minha voz saiu quase como uma súplica, não estava usando nada por baixo da blusa. A mulher me encarou e franziu o cenho, balançando a cabeça negativamente de leve.

? Fique calma, já disse que não vou te machucar. ? Ela desabotoou minha blusa e desceu um pouco, até poucos centímetros acima de meus seios e pressionou a palma da mão no meio de meu peito. Algo formigou ali, e num instante os raios escaparam de mim para todos os lados. Baixei a cabeça, fechando os olhos e gritando, tentando fazer aquilo ceder, com medo de matar o oficial que me segurava ou as mulheres à minha frente. Meus gritos eram abafados por trovoadas tão altas que fizeram o chão tremer. Naquele instante só conseguia pensar no que fiz com Chris na cabana e que não queria que aquilo acontecesse de novo.

A mulher gritou assustada, cambaleando para trás e as guardas avançaram para mim com armas em punho. Mesmo com todos aqueles raios, Hamza não se afastou nem um milímetro, ele mantinha meus braços apertados atrás de meu corpo, e me senti aliviada por ainda sentir seu pulso mesmo que acelerado através das mãos apertadas em mim.

? Não precisa! ? gritou a mulher erguendo as mãos para elas. ? Era só o que eu precisava saber! ? Ela se virou e soltou um palavrão imundo, um dos que fazia Nalla atirar panelas em meu pai quando ele chegava das caçadas sem uma carcaça, soltando-os pela casa. Criei um pouco de coragem e ergui a cabeça, olhando para frente onde a mulher estava com as guardas. Os raios haviam derretido as grades da cela, na verdade, as paredes da cela também estavam completamente destruídas e fumegantes.

? Coloque-a num lugar seguro, depois vá até a sala de reuniões, Hamza. ? A mulher fez um aceno, dispensando as guardas e me lançou um último olhar espantado antes de sair do calabouço.

Hamza afrouxou o aperto em meus braços, meu corpo inteiro tremia e um nó em minha garganta desceu aos poucos, quando escorreguei das mãos dele, caindo no chão e chorando como uma criança desesperada.

Hamza se abaixou à minha frente e segurou meu rosto entre as mãos, alguns raios ainda vazavam de mim quando ele me tocou, então, o empurrei para longe, apertando-me mais contra a parede, forçando minha respiração, mas não conseguia me acalmar.

? Por favor... ? Não conseguia fazer minha voz sair entre os soluços e o choro incessante. Hamza estava agachado à minha frente, os braços sobre os joelhos, observando-me com expressão séria. Virei o rosto e tentei limpar as lágrimas, não queria que aquele homem irritante me visse chorar.

Ele se levantou, achei que finalmente iria embora, mas ele pegou minha mão mesmo com os fiapos prateados de energia que ainda escapavam de mim e me levantou do chão.

? Na... ? Não consegui mandá-lo me soltar, pois antes que pudesse reclamar, fui apertada num abraço quente e confortável, mais aconchegante que qualquer travesseiro. Mesmo contra os músculos fortes de seu peito, parecia estar afundando em algo quente e macio.

? Não pode me machucar com isso! ? Ele falou contra o topo de minha cabeça. ? Sou um Tenebris, mesmo que você descarregasse todo seu poder sobre mim, isso não passaria de cosquinha! Nunca vai conseguir me afetar com isso! Se quiser me matar, vai ter que tentar com mais afinco, menina! ? Eu me afastei um pouco para ver seu rosto, e lá tinha um pequeno sorriso.

Solucei e chorei com mais força enquanto ele mantinha os braços ao meu redor. Nem sequer liguei quando ele me guiou para outra cela, bem mais afastada das outras quatro que destruí com meus poderes, uma cela quase na entrada do calabouço. Ele fechou os botões ainda abertos de minha blusa e me deu as costas. Hamza fechou a grade e antes de sair virou-se para mim, com um sorriso debochado no rosto:

? Vou pedir para trazerem outra coisa para você comer, sua brincadeirinha com os raios estragou o almoço! Não sei se as cozinheiras vão ficar felizes com isso, então, se sentir algum gosto estranho na comida que virá, comece a gritar! Elas não gostam que estraguem comida por aqui e costumam fazer travessuras com quem desperdiça!

Olhei para ele incrédula, havia passado de implicante a gentil a implicante novamente tão rápido que mal pude registrar.

? Vou ficar atenta. ? Ele piscou para mim e foi para a porta do calabouço, mas antes de sair ele se virou novamente para mim:

? Não perguntei seu nome.

? Não precisa saber! Se não fosse a... Princesa, eu nem saberia o seu, Hamza! ? Ele franziu o cenho e estalou a língua.

? Diga logo, ou vou arrumar um apelido muito ruim para você!

? Não se preocupe com isso, vou morrer logo! Me dê o apelido que quiser e aproveite o tempo que vai ter para usá-lo contra mim! ? O sorriso tinha sumido de seu rosto.

? Vou pensar em um muito bom então! ? Ele acenou por cima do ombro e desapareceu da minha vista. Só quando fiquei sozinha novamente que percebi que aquele abraço, mesmo que por curto período tempo, havia feito aquela dor em mim desaparecer.


Capítulo 9

 

 

Problemas


Yoru:


Já estava rodando de um lado para outro na sala de reuniões, tentado a roer as garras enquanto esperava pelas notícias de Doreen, marcando o carpete vinho aveludado em meu trajeto repetitivo. Não estava preocupado apenas aguardando notícias da jovem, mas temendo por minha esposa também, afinal, Doreen não tinha proteção contra raios de Tormentadores, nunca ofereci a ela essa proteção, pois não havia mais Tormentadores, além daqueles que eu confiava, para ela se preocupar, e jamais ergueria um dedo contra ela.

Doreen apareceu na sala de reunião deserta quase vinte minutos depois de ter ido atrás da garota Tormentadora no calabouço. Inspirei profundamente aliviado e a abracei quando Doreen se aproximou em passos largos, a expressão de espanto ainda gravada em seu belo rosto delicado e isso me fez ficar em alerta. A observei um pouco admirado quando ela se afastou um pouco para me encarar, eram raras as vezes que a via em sua verdadeira forma, a pele cintilante e os cabelos brancos eram mais chamativos que a simples aparência humana que ela gostava de vestir. Como se tivesse lido meus pensamentos, num piscar de olhos ela já estava novamente com sua aparecia humana e com as bochechas coradas, Doreen abriu a boca para falar algo, mas meneou a cabeça e me abraçou novamente, mais apertado dessa vez e com as mãos trêmulas, isso me fez ficar com um pouco de medo do que poderia vir a seguir.

? Ela não tem um lacre, Yoru! ? disse Doreen se afastando para me encarar.

? Você fez o procedimento corretamente?

? Sim, ela ficou um pouco assustada, mas, por sorte, Hamza estava no calabouço, ele neutralizou o ataque dela sobre nós...

? Ela as atacou? ? Arqueei as sobrancelhas e Doreen revirou os olhos.

? Me desculpe, me expressei mal! Quando toquei o local onde deveria estar o selo, o poder dela despertou e vasou, mas Hamza conseguiu controlá-la sem nenhum problema!

? Entendo... Isso é bom! ? E ruim ? Mas o que ele estava fazendo lá, afinal?

? Estava procurando por um demônio sem coração que destruiu o Oitavo, mas lá embaixo só achei uma garota assustada e sem nenhum controle ou limites de poderes! ? Hamza apareceu numa cortina negra de fumaça, ele sentou-se sobre uma das poltronas de couro da grande mesa se reuniões e colocou os pés em cima dela.

? Algum interesse em particular na prisioneira, príncipe? ? perguntei sem perceber que estava falando com o tom mais baixo e hostil, indicando uma pontada de ciúme em minha voz. Mal tinha visto a garota uma vez e já estava assim... Tento parecer mais calmo, mas aquilo fez Doreen se apertar ainda mais mim. Hamza respirou fundo, fazendo uma das maçãs da fruteira no meio da mesa flutuar até ele.

? Se não se lembra, coronel, eu não sou mais um príncipe da casa Tsaus então não precisa usar esse título, e sim, tinha um interesse em descobrir quem matou parte de minha família. ? Ele girou a maçã nos dedos antes de dar uma mordida.

Sempre me esquecia que o pai de Hamza, e segundo marido da rainha Malira, era um Tormentador, isso fazia de Hamza um híbrido, estes eram raros e muito perigosos, pois tinham características ou até mesmo poderes de duas raças, embora nunca tivesse visto Hamza manifestar nada além de escuridão, seu dom sombrio, nem nunca o havia visto com outra forma, a tal transformação diabólica dos Tenebris que muito ouvi falar, mas nunca presenciei. Não fazia ideia de quem era o pai de Hamza, mas entendi que ele havia entrado naquele calabouço com o mesmo objetivo, olhar nos olhos de um assassino, e na certa ficou tão surpreso quando eu ao vê-la.

–Vai ter alguns problemas, alteza, para conseguir provar que ela é uma herdeira sobrevivente da casa Asterath ? disse Hamza, surpreendendo tanto Doreen quanto a mim com as palavras ditas de forma tão casual.

? Como sabe? ? a princesa perguntou.

? O óbvio? Todos sabiam que a princesa Nibbis estava nos últimos dias da gestação de uma menina que seria dada em casamento ao príncipe Yoru quando chegasse à idade adulta. O nascimento aconteceu antes, mas sem sombras de dúvidas, ela é a princesa...

? Yami ? concluí. ? Como sabe tanto? ? perguntei semicerrando os olhos ao encarar Hamza, ele se ajeitou na cadeira, esticando o corpo de forma preguiçosa, tentando demonstrar calma. Porém seu cheiro, mesmo que mascarado por seu poder, demonstrava um pouco de nervosismo. Os olhos cor de chumbo de Hamza encontraram os meus:

? Fui deserdado pouco depois da queda do Oitavo, alteza, sabia de todas as fofocas políticas de todos os reinos, mas a mais falada era sobre a filha caçula dos irmãos da tempestade, a gravidez de Vernuns é longa demais para esconder. ? Ele deu um risinho sarcástico.

Doreen sentou-se também, cruzando os braços sobre a mesa e suspirando pesadamente, ela certamente não sabia sobre esses assuntos, pois era jovem demais na época para se lembrar dessas “fofocas”, mas certamente estava irritada ao saber sobre Yami ser minha prometida.

? Agora, o que me pergunto é: como ela sobreviveu? ? Hamza estava olhando a maçã, riscando a casca com as garras negras das pontas de seus dedos. ? O único ser que poderia ter feito a criança não se desmanchar e saído ileso daquela tempestade, teria que ser um Tenebris!

? E não um Tenebris qualquer, mas um que sabia a hora que a criança nasceria... Ou que estava perto quando aconteceu ? disse Doreen olhado séria para mim, que mantive uma expressão pensativa e tranquila no rosto, embora por dentro estivesse quase explodindo. Aos poucos, senti meu sangue esvair do rosto quando uma lembrança voltou a minha mente, talvez com uma possível explicação.

? Honén ? sussurrei para nenhum deles em particular.

? Quem seria essa? ? Doreen perguntou, Hamza soltou um rosnado que fez tanto os meus cabelos, quanto os de Doreen se arrepiarem.

? Minha irmã gêmea ? disse ele rispidamente, esmagando a maçã com a mão e transformando-a num fino pó negro iridescente.

? Honén vivia no Castelo Azul junto com minha mãe, era sua dama de companhia e confidente dela, era a pessoa em quem Nibbis mais confiava... ? E dizendo aquilo, as memórias que havia enterrado no mais profundo de minha mente voltaram como flashes de luz, memórias que preferia não desenterrar por enquanto. ? O que sabe dela, Hamza?

? Ela desapareceu na queda do oitavo, alteza. ? Ele tentava manter a voz clara e suave, mas o brilho maligno em seu olhar e os movimentos descompassados de seu peito, diziam o quanto estava nervoso por desenterrar aquele fantasma.

? Desapareceu, não morreu... ? O lembrei com certa cautela, então Hamza ergueu o punho da túnica negra e mostrou uma tatuagem em seu braço esquerdo, o símbolo do Oitavo Céu, ergui as sobrancelhas, pois não entendi o que aquilo significava, então Hamza emendou:

? Nós a fizemos juntos, quando ela se despediu de mim para ir viver em Loran, no Castelo Azul. Foi uma marca feita com nossas sombras misturadas... A ideia era que se algum de nós morresse o outro imediatamente saberia, pois a tatuagem desapareceria. ? O olhar de Hamza mudou por um segundo, o brilho cruel foi substituído por algo bom, mas ele rapidamente endureceu e cobriu a marca, afastando-a como se fosse algo ruim.

? Hamza, há alguma chance de ela ter vivido todos esses anos no reino humano? Ou nas ruínas do Oitavo? ? Doreen tirou a pergunta de minha boca, aproximando-se de nosso amigo.

? Não sei dizer, alteza.

? Na última vez que consegui estar nas ruínas, havia um Tenebris me vigiando, rondando estre os escombros... Agora começo a pensar que poderia ser ela. Se Honén foi a responsável por retirar Yami do Castelo e levá-la para os humanos, então ela poderia muito bem ter ficado por perto de Yami para vigiá-la, e também ficar nas ruinas, esperando que alguém descobrisse sobre isso. Afinal, ela ... ? Engoli as palavras antes de soltá-las, pois Hamza me olhava como se fosse saltar em mim, não queria brigar com ele logo agora que precisava de sua ajuda.

? Onde quer chegar? ? Hamza fechou as mãos em punho e estreitou os olhos, podia ouvir o rosnado crescendo em seu peito de forma alarmante.

? Quero que você a encontre. ? Olhei diretamente nos olhos de Hamza quando fiz o pedido, a tensão entre nós era óbvia e foi o que fez Doreen afastar um pouco sua cadeira e se preparar caso precisasse interromper uma briga, mas não pretendia chegar a isso. Ela sabia que eu jamais pediria algo que Hamza não pudesse fazer, a nossa amizade era surpreendente para os outros, tanto que alguns duvidavam dela e achavam que estávamos esperando uma oportunidade para trair um ao outro, ainda mais por sermos de raças que se detestavam.

? Por que a quer?

? Eles precisarão de provas que ela foi retirada do Oitavo, precisarão saber que ela era uma criança e quem ela era! Eu a reconheci de imediato, mas eles não aceitarão minha palavra de que ela é Yami Asterath e que destruiu o Oitavo por nascer uma semana antes do previsto! Eles querem desesperadamente por um culpado e por um espetáculo de execução para acalmar os ânimos. ? Respirei fundo, minhas mãos suavam contra a madeira fria da mesa. ? Eu preciso de você para salvá-la, Hamza. Preciso da sua ajuda! E nesse momento, a única que pode provar isso é Honén. ? Dei minha cartada final e Hamza bufou irritado, mas se jogou contra a cadeira num gesto de rendição, pois sabia que aquela era a verdade.

? Se for realmente ela ? completou Doreen.

? E os humanos com quem ela vivia? Ouvi Frezi dizendo que Adão e Marcus ficaram lá embaixo no reino humano para capturar os dois ? Hamza perguntou com o tom de voz mais calmo.

Cruzei os braços e soltei um chiado de deboche, maneando a cabeça negativamente.

? Acha que vão escutar humanos? Com certeza serão levados à Corte da cidade mais próxima e serão condenados pelo crime que cometeram ao não entregar um integrante dos Céus para os emissários ou para os oficiais dos portais, como foram instruídos a fazer! ? Cuspi as palavras, o ressentimento pelos humanos que a mantiveram lá crescia a cada minuto.

? Mas, Yoru, eles podem não ter culpa! Eles encontraram uma criança e a criaram! Qual mal há nisso? ? Doreen apertou meu braço gentilmente.

? A garota não tem nenhum ferimento, a não ser os causados pela captura e os de sua tentativa de fuga. ? Hamza segurou o riso por algum motivo que eu desconhecia e continuou: ? Ela me pareceu muito bem tratada, para alguém torturada por quase duas décadas por humanos. Talvez você devesse escutá-los, ou convencer Boroni a escutá-los como testemunhas, isso pode ajudar enquanto procuro por Honén! ? Hamza sem querer havia confirmado que procuraria sua gêmea, o que fez um peso ser tirado de meus ombros, a esperança crescia cada vez mais dentro de mim.

? Vou ver o que descubro sobre eles ? disse Doreen beijando as costas de minhas mãos, o sorriso que lhe dei foi a deixa para que Hamza se retirasse sem aviso, desaparecendo numa cortina de névoa negra.

Foi uma escolhe inteligente me aliar ao Tenebris e escolhê-lo como guardião de minha esposa, agora poderia pedir para que cuidasse da outra também, isso se conseguisse livrá-la da condenação.


Capítulo 10

 

 

Sombra de minha sombra


Hamza:


Materializei-me perto dos calabouços depois de sair daquela sala de reuniões. Tinha a vaga sensação de que as paredes do castelo queriam se fechar sobre mim e que o piso se movia sob mim, mas não estava pisando sobre as nuvens lá fora para que isso estivesse realmente acontecendo. Odiei com todas as minhas forças ter jurado lealdade ao príncipe da casa Asterath, pois agora estava preso naquela missão de encontrar um fantasma que não via há quase trinta anos. Honén deixou o Quinto para viver no Oitavo pouco depois de concluir seu treinamento e viver o resto dos seus dias como uma dama de companhia para a princesa Nibbis. Malira, nossa mãe, ofendida por tal desonra uma vez que Honén seria sua sucessora, mesmo sendo a filha mais jovem, açoitou Honén até que sua pele se desfizesse.

Só soube o que estava acontecendo quando cheguei ao castelo após o treinamento e ver o chão tingido com o sangue de minha gêmea, que estava desacordada, mas ainda presa por dois guardas enquanto a rainha ainda a açoitava. Fúria era uma palavra fraca para o que senti ao ver aquilo! Intervi por Honén sem pensar duas vezes, atirando aquele monstro que chamava de mãe longe, e matando os dois guardas que permitiram tal atrocidade. Jurei que aquilo não seria esquecido e que me vingaria por ela, jurei que um dia faria nossos irmãos mais velhos pagarem também, pois assistiram aquilo sem fazer nada para impedir, eram todos monstros.

Temendo pela vida dos outros filhos, Malira me expulsou do Quinto, usando um lacre de sombras para impedir que tornasse a pisar em seu território e, caso o fizesse, seria caçado por todos os irmãos de minha raça. Embora quisesse zombar dela, pois os outros de “minha raça” fossem apenas Honén e Larick, deixei o Quinto por ora com Honén destruída em meus braços. Levei minha irmã para o Oitavo Céu na mesma hora, onde Yoru treinava com seu pai. Galathis era um dos melhores curandeiros de todos os Céus, embora quase não usasse esse dom por conta de sua posição.

O príncipe Yoru não fazia ideia de que Honén e eu éramos seus primos, filhos do irmão mais novo de Galathis, Murlock, que morreu misteriosamente meses depois de Honén e eu nascermos, mas ele pareceu prever aquilo, pois pediu a Galathis que cuidasse de nós dois no lugar dele se algo o acontecesse. Mas Galathis nunca revelou a Yoru essa informação e talvez fosse por algum motivo importante que nunca me foi conveniente questionar.

Galathis não era obrigado a salvar Honén, uma vez que Malira só se casou com seu irmão para provar que podia misturar as raças ou fazer o que bem entendesse. A rainha dos Tenebris o impediu de nos ver e barrou sua entrada no Quinto, mesmo assim, Galathis abriu as portas de sua casa e permitiu que Honén vivesse como dama de Nibbis. Em agradecimento, quando o Oitavo caiu, ofereci minha lealdade ao príncipe sobrevivente da casa Asterath e fui formalmente deserdado.


Abri os olhos irritado por ter voltado tanto em minhas lembranças. No dia em que o Oitavo caiu, eu trabalhava no Sétimo em minha ferraria junto com Jan. Todos acima do Oitavo puderam ouvir os gritos dos Tormentadores que foram atingidos por aquela onda de devastação. Pude ouvir cada pedaço do céu caindo, junto com os pedaços de meu coração ao perceber que havia uma grande chance de nunca mais ver Honén. E pensar que apenas um bebê havia feito aquilo! Um bebê que até então todos achavam que não chegou a nascer. Estiquei as costas contra a parede fria de pedra cinzenta, estendendo cada músculo, tentando fazer a tensão desaparecer. Então me levantei e caminhei em passos silenciosos até a entrada do calabouço, passei os dedos sobre os fios da trança escura e desmaterializei, transformando-me em sombras.

Observei a garota sentada no fundo da cela com a tigela de sopa que devia ter acabado de chegar. Ela cheirou o líquido fumegante e o soprou antes de colocar cuidadosamente na boca. Teria rido do medo dela de poder ter recebido comida envenenada, mas logo o sorriso sumiu. Ela era e não era culpada pela morte de parte de minha família, mas também fazia parte dela. Não sabia o que sentir em relação ao fato de Yami Asterath estar ali, viva, diante de meus olhos. Esperei pacientemente a jovem acabar de comer colherada por colherada antes de sair, a vi tomar até a última gota e se esticar no chão imundo, apreciando a sensação de alongamento, em seguida adormeceu como se estivesse no lugar mais tranquilo do mundo.

Ela não se parecia tanto com Nibbis quanto havia achado antes, embora o rosto tivesse o mesmo formato e os cabelos de um cinza escuro tivessem a mesma cor, nada no rosto da jovem lembrava a princesa. Por um bom tempo a observei dormir, sem entender como ela havia sobrevivido àquela queda, a destruição que seu poder devia ter causado a ela. Obra de Honén, sem dúvidas, a Tenebris mais poderosa já nascida! Bufei sentindo-me estranho por dentro, teria que ir atrás dela logo.

No momento em que ia dispersar-me para começar minha busca por Honén, vi a garota se encolher e cravar as unhas que começavam a se tornar garras nos braços, sua respiração se alterou e ela parecia estar tendo um pesadelo. A princípio imaginei que ela poderia estar sonhando com o momento de sua captura... Mas não. Eu conhecia bem aquela mudança, o cheiro dela não era de medo, era de pesar, de dor. Eu me lembrei do exato momento em que os raios vazaram da menina enquanto Doreen tentava descobrir se ela tinha um lacre sobre os poderes. Ela não estava com medo de que fizessem mal a ela, estava com medo de me ferir e gritou porque achou que seu poder me mataria por estar a segurando.

Aquela garota dentro das grades solares havia matado alguém com seus poderes, e seja quem fosse, foi importante para ela. Enviei uma pequena nuvem de fumaça em direção à garota, uma das habilidades adquiridas com muito esforço, mas que por muitas vezes me ajudava a dormir. Imediatamente ela relaxou, se não conseguíssemos salvá-la da condenação, seus últimos dias pelo menos não seriam assombrados por pesadelos.

Com um pouco de pesar, fechei os olhos e me dispersei, senti-me levado pela corrente de ar, manipulando a brisa que me levava para longe do Sétimo. Tinha uma lista de lugares que poderia encontrar Honén, mas começaria pelo mais próximo deles.

As ruínas do Oitavo eram no mínimo, assustadoras. Havia grandes buracos nas nuvens que antes eram completamente fechadas, dava para ver o mundo humano por aqueles rombos, partes da destruição ainda estavam espalhadas pelas florestas abaixo dos campos de energia brilhante que mantinham algumas partes das ruínas ainda de pé. A destruição foi tão potente que arruinou parte das barreiras dos magos Ventus que fizeram a cidade. O tempo parecia ter parado ali depois da devastação que os poderes de um simples bebê, a recém-nascida dos irmãos Asterath, causou a uma cidade. Caminhei com cuidado entre os destroços, tão limpos que parecia que o acidente havia acabado de ocorrer. Acidente, não atentado. Não havia se passado nem um dia desde que todos achavam que aquilo havia sido um atentado para destruir o Oitavo, mas mesmo descobrindo que um nascimento sem um lacre havia causado tal destruição, algo não parecia certo naquela história.

Passei pelos destroços do que um dia havia sido os arcos de pedra-luz que formavam a entrada do castelo, ainda podia ver com clareza em minhas memórias as pessoas sorrindo ao passarem por ali, observando com admiração o brilho das pedras contra o sol do entardecer, formando arco-íris nas nuvens do solo. Uma prova que aquele mundo não era apenas cinza. Agora as pedras jaziam no chão sem o brilho, como se a vida das pedras tivesse sido tomada também. EU Me perguntei se teria feito alguma diferença se estivesse ali na hora, se poderia ter controlado aquele poder e salvo meu segundo lar.

Honén.

E se ela fosse o motivo de a menina ter sobrevivido? E se mesmo com a descarga de poder “controlada” pela Tenebris, aquela fosse a devastação causada por um poder dormente? Minha pele se arrepiou quando pensei nisso, no momento em que a princesa tocou o peito da jovem para saber se ela tinha um lacre, era notável o esgotamento. Os raios que vazaram estavam fracos, disformes e mesmo assim destruíram parte do calabouço.

Observei ao redor no centro do castelo, onde os destroços se projetaram de um único ponto para todos os lados, só então percebi que deveriam haver mais destroços, pois o castelo azul tinha doze andares. Mas não havia mais nada ali, era como se tivessem virado poeira. Era difícil acreditar que alguém no núcleo daquela explosão sobreviveu, muito mais difícil acreditar que Honén teria conseguido tirar a menina dali, e sair com vida. Um segundo antes de me dispersar novamente, vi de relance o local onde os tronos de Mendal e seu falecido marido ficavam e, por um momento, achei ter visto um estranho corte no piso sob o tapete rasgado, mas já estava sendo levado pela corrente, então ignorei aquilo.

Fui para o segundo lugar em minha lista, onde talvez poderia encontrar minha gêmea. Desci ao mundo humano, seguindo os rastros da magia que havia sido liberta ainda naquele dia e, não muito longe do centro da floresta, avistei os guardas ainda esperando perto de uma cabana antiga, quase completamente coberta por hera e musgo. Franzi o cenho para as expressões cruéis nos rostos dos dois, sabia do que eles eram capazes, ainda mais se tratando de humanos. Naquela hora, invejei o poder dos Solaris, pois se o tivesse, podia influenciar as mentes dos dois para deixar os humanos em paz.

Eu me espalhei pelo ar ao mesmo tempo em que disfarcei minha presença, olhando em todas as direções e sentindo todas as presenças da floresta. Pequenos animais em suas tocas, os predadores caçando, o rio estreito que seguia até o lago no coração da floresta... E então uma presença que me fez voltar à minha forma física e espreitar entre as árvores, seguindo o cheiro dela. Nunca achei que se ela estivesse realmente viva, seria tão fácil encontrá-la.

Não precisei dar sequer mais um passo na direção dela. A jovem estava sentada na beira do riacho com as pernas cruzadas dentro da água, a pele no mesmo tom marrom dourado que a minha cintilava contra a luz do sol, porém os olhos prateados com rajados azuis e vivos, iguais aos do nosso pai e muito parecidos com os da garota na cela solar, vigiavam os meus passos. Os tons verdes e amarelados da floresta ao redor faziam-na parecer uma pintura, mal percebi que próximo onde ela estava, não havia sequer um som de animal, nem pássaros, até o sussurro do vento contra as folhas havia cessado. Ela, Honén, passou a mão entre os fios úmidos dos longos cabelos negros que cobriam a parte superior nua de seu corpo e ela sorriu para mim. Um sorriso que fez algo frio descer por minha espinha.

? Olá, irmãozinho! ? Ela sorriu, virando um pouco a cabeça ao observar-me. ? Você não mudou nada! ? Honén cantarolou, levantando-se e dando alguns passos em minha direção.

Não consegui evitar um rosnado de alarme e colocar a mão no punho da lança em minhas costas, mas aquilo não afetou o sorriso no rosto dela, não limitou seus passos dançantes até onde estava paralisado.

? Por quê? ? Minha voz não passou de um sussurro, mas pelo endurecimento das expressões dela, percebi que ela sabia do que se tratava a pergunta.

? Porque o circo foi armado para distrair a todos do verdadeiro perigo, Hamza ? ela sussurrou, aproximando-se devagar para só então tocar meu rosto com a palma aberta, aquele calor tão familiar e aconchegante tomou conta de mim e me fez ficar menos tenso. ? Coisas piores estão por vir, irmão e a filha dos gêmeos, Luy, pode ser nossa única esperança. ? Seu sorriso triste foi o que me fez largar o punho da lança e abraçá-la.

? Senti sua falta. ? Foi tudo que consegui dizer, Honén apenas riu e me apertou um pouco mais.

? Eu sei que sentiu. Agora, precisamos conversar. E muito!


Capítulo 11

 


Sem saída


Luyen:


No momento em que abri os olhos e percebi que ainda estava dentro daquela cela, meu coração acelerou. Procurei em minha mente ainda entorpecida pelo sono por sinais de pesadelos, mas não havia nada ali, a não ser aquela doce escuridão que cercou minha mente enquanto eu dormia pela primeira vez desde aquele último dia com Chris.

Eu me levantei num pulo e apoiei as mãos na parede, logo percebi também que elas já não doíam mais por conta da queimadura. Tirei as ataduras improvisadas com cuidado, desconfiada e me espantei ao ver que não restou sequer cicatriz em minhas mãos.

? Quando você deixa o reino humano, seu processo de cura acelera e são poucas as feridas que podem deixar cicatrizes num Vernum. ? Uma voz masculina grave e bonita cantarolou aquelas palavras para mim. Não precisei olhar para o lado para saber que era o Vernum que estava parado me olhando antes. De alguma forma estranha, havia gravado seu cheiro e sua presença. O encarei seriamente, seus olhos cor de carvão estavam fixos em mim, os cabelos prateados agora amarrados num rabo apertado e ele estava de pé ao lado da cela, girando uma fruta que não conhecia nas mãos.

? Quem é você? ? perguntei baixo, minha voz estava rouca na certa por causa dos gritos de mais cedo. Ele se moveu um pouco desconfortável e passou os dedos nos lábios em formato de arco.

? Yoru Asterath. ? Ele desviou o olhar e suspirou. ? Príncipe do Oitavo céu. ? Meu estômago se revirou novamente, ele era do lugar que diziam que eu havia destruído.

? Ah... Me chamo Luyen. ? disse um pouco sem graça.

? Sei quem você é! ? Ele me lançou um sorriso um pouco triste e respirou fundo. ? Preciso lhe fazer algumas perguntas Ya... Luyen. Quero que você seja sincera, senão, não poderei te ajudar, entendeu? ? Ergui as sobrancelhas mais que surpresa.

? Achei que me quisessem queimando numa fogueira lá fora. ? Apontei para a janela com o queixo, ele fez uma careta e meneou a cabeça em negação.

? Primero, não matamos ninguém na fogueira, até mesmo porque dificilmente fogo sem ser o solar nos afeta. ? Ele pigarreou batendo nas grades com as garras translúcidas e me encarou novamente. ? Segundo... ? Ele parecia um pouco perdido em seus pensamentos, coçou a cabeça, então estendeu a fruta para mim. EU Me aproximei desconfiada da grade, temendo que ele tirasse uma faca de qualquer lugar e me matasse quando eu me aproximasse o suficiente, então, só estendi a mão sem me aproximar muito. Ele pareceu compreender meu gesto amedrontado então me entregou a fruta que tinha um perfume doce e cítrico e se afastou das grades, para meu alívio.

? Que perguntas? ? O encarei séria e fiquei brincando com a fruta, não ia tentar comer aquilo até ele sair, poderia ser algo para me apagar. Ele suspirou e começou a caminhar em frente à cela, ele era bem bonito, mas não se comparava a Hamza, o oficial rabugento.

? Desde quando vive no reino humano? ? Ele se apoiou na parede de pedra ao lado da grade e ficou me encarando, como se estivesse me analisando, aquilo me incomodou um pouco, pois estava suja por causa daquela captura de... Não fazia ideia quanto tempo atrás, mudei de posição, ficando um pouco mais longe de suas vistas.

? Desde que nasci, acho. Meu pai dizia que quando caí do céu ainda tinha marcas de nascimento... ? O Vernum bateu na grade com força, me fazendo pular para trás com seu rosnado.

? Os humanos não são seus pais! ? Meu coração estava acelerado, não fiquei com medo, mas me assustei com aquela reação hostil. Estava mais do que na cara que o tal ressentimento entre Vernuns e humanos ainda existia.

? Eles me criaram e eu os chamo de pais sim! ? retruquei irritada.

? Não deveriam tê-la criado! Se tivessem entregado você aos oficiais, essa bagunça toda poderia ter sido evitada! ? Yoru parecia estar completamente alterado, seu peito subia e descia rapidamente, sua pele branca parecia cintilar agora.

? Você tem um temperamento horrível, não é mesmo? ? zombei. Ele franziu o cenho para mim e pressionou a testa com o polegar para se acalmar.

? Não... Apenas fico irritado com humanos que não sabem se por em seus lugares!

Não conseguia acreditar nas palavras dele. Independentemente de serem humanos ou não, eles me criaram com todo amor desde que... Engulo em seco e tento controlar minha língua. Eu havia matado a família dele, e certamente a minha também. Meus joelhos cedem enquanto escorrego pela parede até o chão e fico encarando aquela fruta azulada, ignorando o olhar novamente analítico de Yoru.

? Eles foram bons para mim. Cuidaram de mim com todo amor, não merecem ser culpados de nada ruim! ? O encarei com um olhar suplicante e tentei pedir ajuda a ele, já que aqueles que me capturaram não pareciam dispostos a serem menos brutos com meus pais: ? Dois ho... Oficiais ficaram lá embaixo para esperar por eles e não sei o que pode acontecer, por favor, os ajude! Não deixem que lhes façam mal! ? implorei, mas Yoru endureceu ainda mais sua expressão e virou-se de costas para mim.

? Eles vão ter o julgamento merecido por terem mantido um membro dos Céus no reino humano. Podiam ter matado muitas pessoas, sabia? ? Ele me olhou por cima do ombro e se afastou, parecia que aquela conversa havia acabado, ele não estava ali para me ajudar, apenas queria atirar na minha cara coisas que eu já sabia, como se não soubesse que era uma ameaça para eles! Bom, pelo menos depois do que houve com Chris. Uma raiva fora do comum subiu por meu corpo até minha garganta, então levantei rapidamente fui até as grades sem me preocupar com o que elas podiam me causar.

? Se só havia monstros como você naquele lugar, então talvez tenha sido merecido o que aconteceu! ? gritei sem pensar. Ele virou totalmente o corpo para trás. Um ódio feral brilhava em seus olhos agora cinzentos e raios vazavam de suas mãos tão apertadas que as juntas dos dedos pareciam prestes a saltar.

? O que você disse? ? ele rosnou, se aproximando tanto da grande onde eu estava encostada que nossas respirações se misturaram.

? Preciso lavar seus ouvidos, Yoru? ? respondi com o máximo de sarcasmo que pude, Yoru tremia violentamente, pelo visto meu palpite sobre ele ter um péssimo temperamento estava certo. Ele desviou o olhar e bufou, passando os dedos entre os fios prateados de seu cabelo e soltou um riso de escárnio.

? Bom... Vai melhorar seu comportamento quando começar a conviver conosco, não podia esperar muita educação de uma princesa que foi criada por aqueles bárbaros, humanos não são muito educados, de qualquer forma. ? Ele simplesmente virou as costas e saiu andando, deixando-me de boca aberta e com sangue fervendo de raiva! Melhorar meu comportamento? Da maneira que ele disse, era como se eu fosse um cão que precisasse ser adestrado, domesticado! Peguei a fruta que ele me entregou, que estava quase esmagada entre meus dedos, ela soltava um sumo escuro que escorria e pingava no chão. A atirei com toda a força contra ele, acertando o meio de suas costas, onde a fruta explodiu com um som abafado e espirrou um suco púrpura, manchando as vestes brancas dele.

Yoru se virou e olhou direto em meus olhos, depois encarou perplexo os restos da fruta no chão, não consegui evitar quando meus lábios se repuxaram nos cantos. Estava tão chocado que piscou umas duas vezes para o chão antes que seus olhos encontrassem os meus novamente, dei uma risada debochada e fiz um gesto vulgar para ele, do tipo que faria uma vassoura voar em minha direção se estivesse às vistas de minha mãe.

? Ah, menina! ? ele rosnou novamente, dessa vez exibindo longas presas que faziam seus lábios cheios enrolarem para cima. ? Juro que se não fosse minha irmã, ia te deixar aí para aprender a ter modos! Mas como sou bonzinho... ? Ele inspirou profundamente e passou a mão na mancha em suas costas. ? Nos vemos quando estiver disposta a conversar como um ser racional!

Irmã! A resposta que eu queria dar às suas últimas palavras desapareceram tão rápido quanto me vieram a mente quando ele mencionou o “Irmã”.

O sorriso também desapareceu de meu rosto, que esquentou rapidamente e não sabia como reagir àquilo. Mas não ia pedir desculpas, afinal, ele mereceu. Fiquei olhando até que ele desapareceu pela grande porta de madeira com alguns passos fluidos, sentei-me novamente no chão. Ele estava ali para me ajudar, para me salvar... Porque era meu irmão! Bati a cabeça de leve na parede, certamente estava começando a ficar louca, alguém foi até lá me oferecer ajuda e eu o destratei. Era óbvio que estaria zangado e agora sabia exatamente o porquê! Se eu realmente causei toda aquela destruição e a morte de seus... Não, nossos pais, foi culpa minha, lógico que ficaria zangado comigo chamando outras pessoas de pais! Mas isso não era justificativa para que me tratasse daquela maneira!

Agora estava ainda mais preocupada com meus pais humanos, pois não sabia o que minha ira momentânea poderia custar, afinal, não foi aquele tipo de educação que me deram e minha atitude só reafirmou o que Yoru disse sobre a “educação dos humanos”. Mesmo assim, aquela “frutada” me tirou um pouco a irritação por sua grosseria.

Com minhas mãos curadas, pude me pendurar nas grades da janela, forçando meus joelhos contra a parede para olhar lá fora, mas dessa vez as protegi com um pedaço de pano. Não podia ver nada além de uma densa neblina e... Céus! Mesmo por trás das grades, podia ver duas luas imensas acima de nós, eram ainda maiores do que costumava ver da floresta e tinham um brilho dourado hipnotizante.

? Devia me preocupar do meu marido ter entrado em nosso quarto soltando raios para todos os lados, com as costas tingidas com suco de furpas? ? Ao ouvir a voz feminina, meus joelhos escorregaram sobre a parede com o susto e soltei as grades, acabei caindo sentada de bunda no chão.

? Ah, inferno! ? resmunguei, levantando-me e esfregando a parte dolorida. A princesa deu uma risadinha e me olhou de cima a baixo.

? Parece muito bem-humorada para quem está para ser condenada. ? ela comentou prestando atenção exagerada nas longas garras à mostra, se estivesse realmente bem-humorada, diria a ela que havia combinado com Hamza, pois ele me disse a mesma coisa algumas horas antes de ela aparecer a primeira vez. Mas a princesa apenas continuou: ? Yoru veio te ajudar e chegou no quarto furioso, todo sujo e babando igual a um cachorro louco. ? Os olhos dela fitaram os meus e senti meu estômago embrulhar de nervoso.

? Ele é muito esquentadinho, mereceu que eu lhe atirasse aquela fruta, foi sorte a mira que tive de dentro dessas grades ser ruim, pois queria acertar a cabeça ? retruquei. Como pensei antes, se ia morrer, não adiantaria grande coisa ser tão educada, ainda mais com pessoas que pareciam dispostas a tornar meus últimos momentos, ou dias, piores. Não havia esquecido do que ela me fez antes. A mulher estalou a língua e se aproximou da grade, agora vestida com um vestido negro esvoaçante de um tecido leve que não marcava o corpo, mas deixava pele demais à mostra. Definitivamente ela queria me deixar mal.

? O humor dele anda instável por causa de tudo que anda acontecendo. Você deveria ser mais compreensiva, menina! E menos grosseira também, embora a culpa da destruição não seja sua só por nascer em uma hora errada, ainda assim você representa tudo que ele perdeu! ? Bufei um pouco chateada, ela conseguiu me deixar com a consciência pesada.

? Espera! ? quase gritei ? Como sabe disso? Quero dizer... Sobre o meu nascimento e sobre a destruição... ? Ela ergueu a mão delicada para me silenciar.

? Se você era um bebê quando foi achada pelos humanos, óbvio que não teria feito aquilo de propósito! Mas é informação demais para eu lhe dar e talvez não caiba a mim contar sobre isso a você... ? Ela ficou pensativa e mordeu os lábios, olhando pela pequena janela atrás de mim.

? Então veio aqui só me fazer um pouco de companhia? ? perguntei depois de um silêncio constrangedor. Ela revirou os olhos e tornou a me encarar, dessa vez seu olhar era mais suave.

? Vim ver o que eu teria que enfrentar ? disse com um sorriso um tanto malicioso nos cantos dos lábios, sorriso que fez um comichão percorrer minha pele. ? E perguntar algo que Yoru esqueceu por estar discutindo bobagens com você.

? Pode perguntar. ? Tentei parecer mais educada com ela embora as “bobagens” não significavam isso para mim.

? Enquanto você viveu no reino humano... Uma mulher esteve com você? ? Abri a boca para lhe responder, mas ela pareceu ler minha resposta se formando e emendou: ? Não sua mãe! Uma mulher que poderia ter... Uma presença um pouco... Pesada? ? A encarei confusa com a pergunta. Fora minha mãe, Juliet parecia absolutamente normal para mim, Coralie podia ser difícil, mas também era normal... Nenhuma delas aparentava ter uma presença pesada ou estranha.

? Desculpe desapontá-la, mas eu vivia isolada! Não conheci mulher nenhuma assim, na verdade só conhecia três mulheres e as poucas outras pessoas que via eram os comerciantes ou viajantes que observava de longe. Minha família me mantinha escondida... ? E agora sabia exatamente o motivo.

? Bom... Teremos que esperar Hamza voltar com notícias e torcer para que ele ache Honén antes de você ir a julgamento. ? Ela deu um pequeno sorriso e aquilo fez novamente gelo descer por meu estômago. A princesa se virou para sair, mas me joguei contra as grades e agarrei seu pulso. Ela não pareceu assustada com o gesto, mas me olhou com cautela.

? Espere, por favor! ? Talvez ela me ouvisse, talvez me ajudasse. ? Meus pais... Os oficiais! ? Lágrimas verdadeiras e assustadas rolaram por meu rosto, ela então se aproximou e as limpou.

? Adão e Marcus não vão fazer nada a eles. Eu vou garantir que seus pais estejam seguros, Luyen. ? Havia sinceridade naqueles olhos cor de vinho e eu relaxei e me afastei das grades antes que elas me queimassem.

? Se não fosse por essas grades, eu te abraçaria! ? falei soluçando. Ela gargalhou e se afastou.

? Não imunda desse jeito, mas pode ficar tranquila, quando estiver fora daí, vou cobrar o abraço! ? Ela piscou para mim e desapareceu pela porta de madeira barulhenta. Olhei novamente pela janelinha da cela e desejei com todas as forças que a princesa estivesse falando a verdade, que nada de mal aconteceria a meus pais. Agora o problema era saber se nada de mal aconteceria a mim também!


Yoru:


O tapete vinho felpudo de meu quarto estava marcado de tanto que já havia circulado por ele novamente. Doreen havia me visto entrar furioso como um furacão pelo quarto e ir direto para o banheiro tirar aquela roupa, mas pude vê-la saindo do quarto e, de soslaio, ainda a peguei mordendo os lábios para não rir. Ah! Ela ia se ver comigo quando voltasse, seja lá para onde tinha ido.

Aquela garota selvagem na cela, ao contrário do que pensei antes, não tinha nada a ver com Nibbis. A camisa manchada que enfiei de qualquer jeito no cesto dentro do banheiro era prova suficiente disso. Não podia esperar mais, claro, de uma Vernum criada por humanos. Por outro lado, saber que havia restado algo, alguém de minha família era quase o suficiente para tirar um peso de mim. Sentia como se não estivesse mais sozinho, mesmo que Doreen e Hamza estivessem sempre ao meu lado, ela seria diferente para mim. Mas aquele peso só estaria totalmente longe de mim quando descobrisse como livrá-la da condenação que poderia vir, uma vez que todos já sabiam sobre a captura, seria em breve.

Descobrir também o motivo de não terem conseguido colocar um lacre em Yami era essencial para mim, pois mesmo que tivesse dito que ela poderia ter nascido mais cedo, sabia que era impossível, Vernuns podiam dizer com precisão quando suas crias viriam ao mundo, independente se viriam mais cedo ou não. Não queria acreditar que minha mãe faria algo como aquilo de propósito, ela não era uma traidora! Apertei os punhos com tanta força no dossel branco da cama que quase o parti, então respirei fundo e tentei me acalmar, estava próximo ao horário do jantar e sabia que Doreen não se atrasaria para a refeição.

Joguei-me na cama sentindo a pele ser acariciada por toda aquela seda escura e suspirei, atirando a toalha para cima da poltrona de leitura de Doreen. Ela certamente faria um escândalo quando entrasse e me visse de cabelos molhados na cama, mas era suficiente para irritá-la depois de ter saído com aquele sorrisinho no rosto.

Não se passaram nem dez minutos desde que me deitei quando Doreen apareceu, fechou as portas suavemente e se virou para a cama, mas o que viu primeiro foi a toalha molhada em cima de sua poltrona, depois os meus cabelos marcando o lençol e franziu o cenho para mim. Sorri preguiçosamente para ela, um sorriso provocativo que não dava fazia muito tempo, talvez fosse porque as coisas pareciam estar melhorando, meu humor também. Doreen apontou apenas um dedo antes de sumir com a toalha e deslizar para meu lado na cama, o tecido fino e translucido do vestido escorregou, deixando as pernas a mostra. Sua pele começou a brilhar suavemente e os cabelos brancos também. Ela passou os dedos em meus cabelos e bufou irritada.

? Já disse para não se deitar com o cabelo molhado ? ela reclamou, mas não parecia estar realmente incomodada, deitou a cabeça em meu ombro e ficou um tempo encarando o nada.

? Conheço esse olhar ? sussurrei acariciando seu rosto com as pontas dos dedos.

? Está calmo assim agora porque sabe que vamos livrá-la, e vai poder se casar com ela e trazer os Asterath de volta, não é? ? Direto ao ponto, Doreen jamais enrolava quando queria discutir algo. Era uma das qualidades que eu mais gostava nela.

? Doreen...

? Ela não vai te aceitar. ? Doreen estava me encarando séria, sua mão que acariciava meu peito parou. ? Foi criada por humanos, tem costumes deles enraizados. Ela não vai aceitar se casar com você, Yoru. Pra eles, relacionamentos como o de Galathis e Nibbis é hediondo.

? Vou convencê-la do contrário. ? Doreen não desviou o olhar, não havia raiva ali, nada de ciúme, só uma seriedade fria que fazia meu estômago se retorcer.

? Meu pai me casou com você para que pudesse ter uma família novamente quando reconstruísse o Oitavo. Eu te aceitei por amor e você sabe disso. Mas com ela aqui eu não sirvo de nada para você. ? Ela se levantou, virando o rosto para o lado, mas antes que saísse da cama, segurei seu braço e a derrubei de volta ao meu lado.

? Não diga isso... Eu... ? As palavras morreram em minha garganta. Doreen ficou esperando que eu dissesse algo, mas as palavras simplesmente desapareceram. Ela respirou fundo, soltou seu braço e deu um pequeno sorriso tristonho.

? Minha mãe costumava me dizer que o maior erro dos soberanos dos Céus era selecionar o poder. Querer sempre deixar a linhagem mais forte, porque isso atrairia um tipo de atenção ruim. Ela tinha certeza de que, uma hora, aquele poder iria trazer conflitos ao invés de manter a paz. Eu a achava ingênua por achar que eles faziam isso por paz. ? Ela não me encarava, brincava com as sedas do vestido, as unhas longas quase o perfuraram quando ela me olhou e voltou a falar. ? Hoje eu me pergunto: será que seria diferente se eles apenas nos deixassem ser felizes, sem querer sempre mais e mais poder?

? Doreen...

? Acho que amor é um poder muito maior que todos os raios, ou toda a escuridão. Eu me pergunto o que o mundo se tornaria se todos nós tivéssemos mais amor no coração do que essa ganância e sede por controle. ? Ela se levantou e caminhou devagar até a porta, olhando sempre para mim. ? Não seja como meu pai. Ele não é um bom exemplo a se seguir e se Mendal fosse uma pessoa boa também, ela estaria aqui ainda hoje.

Ela não se virou uma segunda vez antes de deixar nosso quarto. Não tive tempo de pensar numa resposta e, mesmo se pensasse em uma, ela não deveria ser dita, pois no fundo sabia o quanto Doreen estava certa. Mas precisava trazer minha família de volta, era minha obrigação! E se Yami fosse a única que pudesse me ajudar, eu iria lutar por aquilo até onde pudesse.

Pensei em levantar e ir até o calabouço olhar Yami mais uma vez, mas se Doreen me visse indo até lá, poderia ficar ainda mais chateada. Não queria arrumar confusão com ela logo agora que mais precisaria de sua ajuda. Olhei pela janela aberta, pela primeira vez naquela semana, o céu estava limpo, aberto, revelando as duas luas sorrindo uma para a outra no céu. As saudei, parecia que depois de muito tempo, os lunares estavam finalmente respondendo às nossas orações.


Fui acordado por Doreen pálida em sua forma humana me sacudindo. Ela esperou que eu me sentasse e arrumasse os cabelos, enquanto tomava fôlego. Era incomum vê-la nervosa daquela maneira. Sabia que não devia ser notícia boa.

? Vamos, fale o que houve! ? Segurei seus ombros, ela suspirou e me puxou para fora da cama, então começou a vasculhar o armário atrás de roupas para mim.

? O tribunal dos Céus foi reunido, Yoru! O julgamento vai começar quando Owen e Malira chegarem! ? Doreen estava ofegante, me entregou as roupas. Uma calma gélida tomou conta de mim, mal senti enquanto vestia as roupas e Doreen dava um jeito em meu cabelo. Minha maior irritação era por novamente terem me deixado de fora, como se não dissesse respeito a mim. Eles não estavam me levando a sério. Bom, eu provaria o quanto estavam errados ao me tratar como qualquer um em breve.

? Nada de Hamza, não é? ? Ela negou sem me encarar.

? Apenas Adão e Marcus estão chegando com os p... ? Ela se calou, sabia como ia chamá-los. ? Os humanos que a criaram.

? Vamos torcer para que pelo menos sejam úteis lá! ? E que não sejam mortos! Pensei e lancei um pedido aos Lunares: Deixem que ela viva!


Capítulo 12

 

 

O tribunal dos Céus


Luyen:


Minhas costas estavam doloridas pelo chão duro, mas, pelo menos estava descansada, nada de pesadelos novamente. Pela forma com que meu estômago rolava e se retorcia, sabia que devia estar quase na hora do almoço. Observei atenta através das grades, procurando pelo oficial do dia anterior, Hamza, mas nem sinal dele. Aliás, não havia sinal de nenhum outro guarda por ali e eu estava quase louca para usar o banheiro! Eu me aproximei da janelinha no alto da cela, agora com as mãos curadas podia me pendurar nelas e olhar o local que estava e ver se algum guarda me levaria ao banheiro.

Quando me transferiram de cela, me colocaram em uma que ficava de frente para a porta e de lado com o que parecia ser um pátio cinzento e vazio. Rasguei as barras das calças e enrolei nas mãos só por garantia antes de agarrar as grades e puxar meu corpo para cima. Dei um pulo e agarrei as barras, antes de me erguer, aguardei um momento para saber se não me queimariam. Foi uma surpresa perceber que parecia estar bem mais leve que antes, só estava ali há dois dias, não tinha como ter perdido tanto peso assim.

Olhei em volta com cuidado de não tocar o rosto nas grades e fiquei completamente decepcionada ao perceber que só havia nuvens e neblina ao redor daquela prisão. Bufei irritada e como se fosse adiantar algo, soprei para tentar espantar aquele nevoeiro. Como se por mágica, as nuvens se moveram como se tivesse soprado um golpe de ar contra elas, fazendo um túnel livre no meio daquela névoa. O susto foi tão grande que me soltei da grade e caí sentada novamente. Esperei alguns instantes até me pendurar novamente para ver o mundo lá fora.

A paisagem era entediante. Tudo, desde as construções até o chão e o céu, estava em tons de cinza, chumbo e prateado. Tão diferente dos belos verdes, marrons e dourados da floresta. Mesmo assim, absorvi o máximo de informações do ambiente. Não havia pontos de fuga, para todos os lados, depois de olhar bem, notei guardas carregando aquelas estranhas armas como raios sólidos. Depois de um bom tempo observando as nuvens acima de mim, percebi que algo brilhava como uma teia sob elas. Forcei um pouco a vista e notei que era magia, uma barreira mágica que fluía do centro do céu para as bordas e brilhava suavemente emitindo pulsos que faziam algo adormecido em mim vibrar. Havia também uma espécie de cone de magia, como se estivesse atravessando a cidade.

? Barreira de lumis. ? Yoru pigarreou, virei para trás e soltei a grade. Minha vontade de responder “quem perguntou?” desapareceu ao me lembrar de ontem. Meu irmão. Ao invés de ser grossa como pensei, resolvi tentar algo diferente:

? O que ela faz? ? perguntei, notando surpresa em sua expressão. Ele esperava por uma grosseria?

? Ela mantém o sexto Céu acima de nós. Essas barreiras nos conectam ao Nono Céu, é como uma espécie de árvore, lá em cima é a copa e um tronco de energia desce mantendo os Céus flutuando, é como se cada Céu estivesse sobre galhos espalhados em diferentes alturas... ? Ele coçou a cabeça, franzindo o cenho e acabei rindo.

? Você é péssimo para ensinar, não é? ? Não disse de forma ofensiva, apenas brinquei dessa vez. Yoru me encarou sério, os olhos tentavam esconder uma preocupação, mas algo em sua presença emanava nervosismo.

? Talvez. ? Ele estava ainda mais elegante que na primeira vez, usando um manto azul escuro bordado em prata e calças negras, mas o cabelo estava solto dessa vez. Reparando bem, até que éramos um pouco semelhantes. Queria perguntar mais sobre a barreira e sobre quem a criou, mas percebi que ele olhava para fora com frequência, estava com pressa.

? Não veio aqui para me ensinar sobre a magia do seu mundo, não é?

? O correto é NOSSO mundo, Yami, e não, não vim para isso. ? Ele pigarreou, eu respirei fundo para manter a calma e disse devagar.

? Meu nome é Luyen. ? Os olhos dele chegaram a brilhar, mas ele não disse nada sobre.

? O tribunal dos Céus já se reuniu para seu julgamento. ? Meu interior se liquefez e meus joelhos fraquejaram. Yoru ainda me encarava, não sabia se estava esperando que eu dissesse algo ou que implorasse por sua ajuda.

? O que... Devo esperar disso? ? quis saber.

? Nada de bom, eles não têm piedade ou compaixão. Então, quando entrar lá não demonstre medo, seja clara com cada uma de suas respostas quando lhe derem a palavra. Não deixe que aqueles desgraçados pensem que você é mole só porque viveu com humanos. ? Novamente ele conseguiu me irritar com o modo que falava dos humanos, como se fossem inferiores. Abri a boca para retrucar, mas ele emendou:

? Eu não vou deixar tirarem mais ninguém de mim... Não importa o quão grosseira você seja! ? Ele sorriu de lado e saiu, Doreen estava parada na porta olhando para mim, me deu um sorriso encorajador e desapareceu com Yoru.

A essa altura, já tinha perdido completamente a fome, minha cabeça latejava e só conseguia pensar em meus pais, se estavam bem, se os Vernuns que desceram aquele dia os capturaram, mas não os trouxeram para cá. Fiquei caminhando em círculos dentro da cela, estava começando a ficar desesperada e pensei em invocar aquele poder novamente e destruir as grades, mas se fugisse antes do julgamento, eu lhes daria a certeza de que tinha alguma culpa naquilo. Precisava ser forte e me defender da melhor forma possível, ainda provaria para aqueles brutos arrogantes que meus pais me deram uma educação descente, mesmo que eu raramente a usasse.

Não demorou muito para que alguém entrasse novamente no calabouço, meu coração deu um salto, achando que já seria levada para o julgamento, mas quem apareceu foi uma mulher trazendo uma bandeja com comida nas mãos e um embrulho sob o braço. Ela parecia um pouco incomodada em estar ali, usava óculos redondos e delicados, os cabelos na altura dos ombros eram de um cinza azulado. Uma Vernum Tormentadora, sem dúvida. Quando ela se aproximou da grade e empurrou a bandeja para dentro, reparei em suas mãos sem nenhuma marca de que usava armas e o corpo mais cheio que o de Doreen deixavam claro que ela não era uma guerreira.

? Seu almoço... Vai precisar estar firme para mais tarde. ? Ela deu um sorriso tímido, se encostou na parede ao lado da grade e continuou a me encarar com os olhos azuis quase brancos. Vestia um manto cinza sobre uma blusa negra com o símbolo das oito estrelas ao redor de uma nuvem com um raio bordado no peito e calças da mesma cor.

? Não parece ser da guarda ? comentei mexendo o caldo escuro com aroma de carne e vegetais que soltava um delicioso vapor em meu rosto.

? Não sou da guarda, não do Sétimo, pelo menos. ? Ela observou enquanto eu comia, o que me incomodou um pouco, mas não faria sentindo me envenenarem antes do julgamento, então não parei de comer.

? Essas estrelas... ? Apontei para o bordado e ela deu um sorriso triste.

? O símbolo do Oitavo.

? É uma sobrevivente da queda? ? Quis saber mesmo que já soubesse a resposta. Ela apenas assentiu e desviou o olhar. ? Posso saber como...?

? Muitos de nós estavam nos campos de treinamento na hora da destruição. ? Pela sua expressão, decidi que era mais seguro mudar de assunto.

? Yoru a mandou aqui?

? Ele pediu para que eu viesse trazer a comida já que os outros guardas estão com medo e nenhum dos servos pisariam aqui também. ? Ela girou um molho de chaves nas mãos e moveu as sobrancelhas, lançando-me um olhar divertido. ? Chegou ao ouvido deles que você destruiu metade do calabouço com Hamza neutralizando seu poder, imagino se ele não tivesse feito aquilo.

Neutralizando!

Tomei mais algumas colheradas do ensopado, meu estômago fazia força para manter a comida, mas eu mal conseguia parar de tremer de nervoso. Não conseguia pensar em nada para dizer à mulher que me observava agora com apenas frustração no olhar, para ela, provavelmente eu representava alguém que ela perdeu também e não fazia ideia do que dizer. Quando acabei de comer, para minha surpresa, ela abriu a cela e estendeu a mão para que eu fosse à frente.

? Onde vamos? ? perguntei olhando nervosa em volta.

? Ao banheiro, aposto que nenhum daqueles brutamontes te deixou sair, não é? Vai ficar feio se você ficar nervosa na frente do tribunal e mijar nas calças! ? ela zombou dando uma gargalhada e me deu um leve empurrão. Meu rosto queimou, mas não quis retrucar, pois estava mesmo tão apertada que esse acidente realmente podia acontecer.

Ela não me tirou do calabouço, mas numa porta quase perto da saída, havia um banheiro que não estava tão imundo quanto imaginei que estaria, e ao lado do vaso havia um balde com água. Olhei torto para a mulher, ela ergueu as sobrancelhas como se me desafiasse a reclamar, então estendeu o rolinho que trazia embaixo do braço.

? Melhor que nada, não é?

? Hu-hum ? resmunguei, realmente não queria ser julgada com a aparência de um cachorro que rolou na lama, embora não imaginasse como havia ficado tão suja daquela maneira. Na certa, o grandão Tenebris que me apagou deve ter me empanado no chão da floresta por diversão.

Após me aliviar e me limpar com a água gelada do balde e amarrar meus cabelos num coque, pois a água não foi suficiente para que eu os lavasse, coloquei as roupas do embrulho, peças íntimas, uma calça cinza meio folgada nas pernas, mas com a cintura alta, e uma blusa de mangas longas com botões simples na frente. O tecido parecia uma malha fina e fria, mas muito agradável. Por fim, quando saí do banheiro, ela me ofereceu um par de sapatilhas no mesmo tom da roupa.

? Bem melhor. ? Ela colocou a mão em minhas costas e me conduziu de volta à cela, a porta para fora do calabouço não estava trancada, se eu derrubasse a mulher, poderia fugir... Mas para onde? ? Nem pense.

? Em quê? ? perguntei inocentemente sentindo meu sangue congelar.

? Fugir. ? Ela riu. ? Vai dar de cara com os guardas e mesmo que consiga passar por eles, não tem para onde fugir, pois Nublis é uma fortaleza, existe um muro ao redor da cidade, muros com muitas pedras de sol! ? Ela trancou a cela novamente e se virou para sair e eu a segui com os olhos, então ela disse por cima do ombro. ? Quando estiver fora dessas grades, passe no laboratório da biblioteca, quero estudar você! ? Ela deu um sorriso assustador e uma piscadinha para mim. ? Pode procurar por Prisla, siga o rasto de medo dos guardas que você me encontrará!

Fiquei sozinha novamente, esperando pelo momento que me levariam até o tal tribunal, então era sentar, esperar e torcer para nada de pior me acontecer.


Yoru:


As cortes haviam se reunido na sala do trono para o início do julgamento de Yami. Ao entrar no salão acompanhado de Doreen e de meus oficiais, Miska e Nithan, senti todos os olhos se voltarem para nós. Boroni fez uma breve saudação e apontou para os lugares vazios ao lado do príncipe Adrias para que fossemos até lá.

Subimos os degraus de pedra até nossos lugares e nos sentamos, a cadeira parecia querer me engolir e o piso sob meus pés era como areia sendo levada pela maré, sem Hamza ali, sem Honén... Precisava ter fé. Yami era uma das poucas sobreviventes daquilo tudo, eles precisavam perceber a verdade! A verdade que nem eu mesmo acreditaria de tão impossível. Esfreguei o pescoço, o nervoso ameaçava me consumir, mas Doreen segurou minha mão e me encarou com o olhar firme. Aquilo bastou para me acalmar.

Ao nosso redor, as cadeiras foram arrumadas para formar um semicírculo ao redor de uma cadeira feita de pedras solares para o caso da garota tentar alguma gracinha. Passei os olhos pelas cadeiras, pelos rostos de seus ocupantes. Na ponta mais próxima à saída esquerda do salão estava Brine, rainha do Sexto Céu. Ela revirava os pesados trançados de seus cabelos negros um tom mais escuro que a pele e olhava para o nada, encurvada para frente como se o mundo pesasse em suas costas. A rainha Tenebris era menos pior que Malira, mas ainda assim era odiosa. As duas podiam dar as mãos e tocar o terror no mundo se fossem amigas, para nossa sorte, também detestavam uma a outra, rivais na beleza e na maldade. Ao lado dela, e de seus oficiais, estava Rawina, rainha do Quarto Céu. Sua presença irradiava calma, os olhos grandes cinzentos observavam cada um ali com nada além de paz em sua expressão e apenas o príncipe Ian lhe fazia companhia, nada de guardas.

O rei Ventus do Terceiro, Ginaw e o rei do Segundo, Salis, estavam cochichando como velhas fofoqueiras enquanto esperavam “vossa graça” Malira chegar.

Já Sarki não havia dado o ar de sua graça, pelo visto, o julgamento de um assassino de um reino inteiro não era importante o suficiente para levantar a pança real de seu trono de ouro e descer até onde as tempestades se formavam. Não teve nem a decência de enviar a princesa, enviou o pai de Ênya em seu lugar. Rassis me encarava e deu um breve aceno para mim.

? Ele está com cara de quem vai te devorar, Yoru ? Doreen cochichou, disfarçando para que ele não percebesse que a conversa era sobre ele.

? Veja pelo lado bom, não trouxe Ênya com ele! ? brinquei, mas fiquei irritado ao ver Ênya abrir as portas e entrar com o máximo de graça que conseguiu. Ela estava num vestido cor de crepúsculo e sua pele dourada brilhava mais que o normal.

? Hmm, nada exibicionista ? grunhiu Doreen ao meu lado ao encará-la. Ênya suportou o olhar e deu um pequeno sorriso de lado, mas o que deixou Doreen prestes a voar em sua garganta foi que ela veio até nós e disse em alto e bom som para que todos na corte pudessem ouvir:

? Olá, meu marido. Há tempos que não vai me ver! ? disse fazendo um beicinho, pegando minha mão e a beijando. Doreen rosnou ao meu lado, mas Ênya voltou-se para ela e completou: ? Doreen, querida. Está no meu lugar, o lado direito é da Primeira esposa. ? O sorriso viperino que lançou a Doreen fez a raiva fervilhar em minhas veias.

? Comporte-se, Ênya, isso aqui não é uma festa! ? pedi. ? Sente-se com seu pai, ele estava te esperando.

? Mas... ? Ela ficou desconcertada, olhou para Doreen, por fim Boroni trovejou:

? Sente-se no local correspondente à sua casa, minha jovem. ? Suas palavras foram suaves, mas as veias saltando na testa de Boroni não eram um bom indicativo. Ênya parecia que ia retrucar, mas o aperto de advertência que dei em sua mão foi suficiente para fazê-la marchar contra vontade até o outro lado da sala e sentar-se ao lado do pai, que também não parecia feliz com a situação.

? Desculpe por isso. ? Segurei a mão de Doreen, que ainda estava com o pulso acelerado e o rosto pálido de raiva. Beijei sua mão delicadamente e lhe ofereci um sorriso, o melhor que podia dar naquele momento. Uma pequena declaração de preferência que foi vista por todos os soberanos dos Céus. Doreen ficou tensa por um instante, mas relaxou ao meu lado.

Muitos instantes e murmúrios depois, o chão tremeu e o dia, que amanhecera claro, se tornou noite. Chagava a outra que amava uma entrada dramática.

Malira Tsaus. A rainha do Quinto Céu entrou seguida de seus filhos. Ela vestia escuridão, assim como Owyn, Hugre e Cari. Todos três com aqueles longos cabelos com pontas metálicas estalando ao caminharem quase sem tocar o chão. Eles seguiram até a direita de Boroni e sentaram-se sem trocar palavra alguma com qualquer um de nós. Rafen deixou a sala seguido por mais dois oficiais Tenebris depois de um olhar do rei.

Boroni esperou um momento que pareceu uma eternidade, olhou para todos os presentes e se ergueu. Sua voz fez a sala tremer quando anunciou:

? A corte dos Céus está reunida, que se inicie o julgamento da acusada de destruir o Oitavo Céu! ? Ele apontou para as portas que rangeram quando foram abertas e os oficiais entraram trazendo Yami presa por grilhões nos pulsos, pescoço e tornozelos. Minhas mãos se fecharam em punhos, não havia necessidade daquilo!

Alguns olhavam com um misto de surpresa e curiosidade, outros espantados. A garota apenas soltou um muxoxo quando Rafen a empurrou contra a cadeira e prendeu as correntes nas argolas dos pés da mesma. O oficial segurava a cara de frustração pelo que aconteceu no dia anterior. Ah! Ele ia se ver comigo depois!


Capítulo 13

 

 

O julgamento.


Luyen:


Quase uma hora depois que a tal Prisla veio me oferecer um momento mais humano, três guardas entraram no calabouço com as expressões mais cruéis que eu já vira. O grandão de olhos negros vinha sorrindo, sacudindo correntes com argolas pesadas nas pontas. Ele se aproximou da grade e, como Hamza havia feito, transformou-se em fumaça e apareceu em minha frente pegando-me rapidamente pelo braço e me apertando contra a parede enquanto passava aquelas argolas por meus pulsos. Ele se abaixou para colocar as argolas em minhas pernas também, senti-me tentada a dar uma joelhada em seu rosto, mas um tapa dele e era provável que eu desmontaria. Por fim, colocou uma das argolas em meu pescoço e deu um puxão, fazendo-me desequilibrar para frente e quase cair, os três começaram a rir.

? Talvez eu peça pra deixarem você de enfeite em meu quarto quando acabar! Vai ficar uma beleza amarrada em minha cama! ? ele sussurrou aproximando o rosto do meu. Aquela energia toda estava dormente com seu toque. Não podia fazer nada contra ele no momento, as correntes pesadas mal deixavam que eu me movesse, mas respirei fundo e cuspi com vontade contra seu rosto. Os outros dois guardas ficaram tensos e os sorrisos sumiram, mas o oficial apenas se afastou e limpou o rosto.

? Porco ? rosnei.

? Vamos ver se vai ter toda essa garra lá dentro. ? Ele me arrastou para fora da cela e os outros dois seguiram atrás de mim com armas em punho, como se com todas aquelas correntes eu fosse capaz de fugir ou tentar fazer alguma coisa contra eles.

Ao invés de me importar com aqueles brutamontes sombrios que me arrastavam, comecei a prestar atenção ao meu redor. O corredor escuro e sem janelas chegou ao fim depois de uma longa caminhada, as argolas estavam ferindo meus tornozelos enquanto caminhava, mas ignorei a dor ao passar por uma porta de madeira trabalhada em pedras cinzentas e entrar num corredor largo e brilhante, havia tanta luz que me encolhi quando meus olhos foram atingidos por ela. Aos poucos, minha visão foi voltando e tive que prender o fôlego para não suspirar.

O lugar em que estava, mesmo que pudesse ver as pedras pálidas rajadas de todos os tons de cinza por baixo, parecia estar coberto por uma camada de nuvens! As paredes se curvavam no alto formando um arco e no teto havia esferas de luz branca e pulsantes que faziam minha pele ficar ainda mais luminosa. As grandes janelas tinham cortinas esvoaçantes cor de chumbo e através dos vidros abertos, podia ver um pátio grande e deserto e mais à frente, um jardim fechado, que só identifiquei por folhas que subiam pelos muros.

O oficial não permitiu que eu visse muito, continuou me arrastando como um cão na coleira através dos corredores frios. Depois de duas curvas e mais alguns passos barulhentos devido a todo aquele metal arrastando, paramos em frente a uma porta dupla que era maior que a fachada de minha casa no reino humano. Ela era prateada e tinha o símbolo do Sétimo Céu trabalhado em ouro no centro das duas portas, de forma que fechadas formavam o símbolo.

Esperamos ali até que uma voz soou grave dentro daquelas portas e elas rangeram, abrindo-se para revelar uma plateia aguardando um espetáculo. Yoru estava sentado ao lado do rei, sua expressão ficou tensa ao ver as correntes e a forma com que o oficial me puxou para a sala. Mantive minha cabeça erguida e minha expressão séria mesmo vendo todas aquelas pessoas ali. Pelas marcas que usavam, deviam ser os soberanos dos Céus. Meu estômago rolou após ver alguns sorrisos viperinos direcionados a mim, como o da mulher de pele ébano cujo rosto lembrava o de Hamza e que parecia ter ponteiras de chicotes presas as tranças do cabelo.

Distraída passando os olhos por aquelas pessoas, não percebi o puxão que o oficial deu e soltei um gemido quando ele praticamente me jogou sobre a cadeira e prendeu as correntes em argolas nas pernas e braços dela. O sujeitinho ainda deu um sorrisinho antes de parar a alguns palmos atrás de mim e fazer pose com a arma em punho, querendo parecer mais ameaçador, como se o tamanho de uma porta e a montanha de músculos não fossem suficiente para me intimidar. O Vernum sentado no trono olhou-me com desprezo, acenou para o sujeito que havia me capturado no dia anterior, quando ele começou a falar, os murmúrios cessaram:

? Essa Vernum foi capturada numa floresta no reino humano, nossos controladores estavam há tempos monitorando fenômenos relacionados à magia de tormenta vindos daquela região. A magia que ela liberou, captada pela esfera receptora, mostra que tem a mesma impressão mágica que destruiu o Oitavo há pouco menos de vinte anos. ? O sujeito passou os olhos pelas pessoas dentro da sala, que começaram a elevar as vozes e me lançar palavrões e ofensas, pedindo aos oficiais que me matassem. Meu interior estava se desfazendo e o pânico começava a me tomar, mas aquela sensação de dormência não me deixava tentar me defender.

? Silêncio! ? urrou o homem ao trono no centro ao lado da princesa Doreen. Pela semelhança com ela, aquele devia ser o rei do Sétimo. ? Vocês estão aqui para assistir a um julgamento, não para julgar. ? rosnou e esperou pelo silêncio que embora tenha chegado logo, os olhares terríveis e cruéis ainda estavam sobre mim. ? Prossiga, Frezi. ? Então era esse o nome do canalha de cabelos espetados.

? A Vernum alegou ser uma sobrevivente da destruição que houve lá. Então, vamos ouvir o que tem a dizer. ? Ele parou de falar para me encarar, cada um na sala me observava com atenção predatória e sentia que poderiam avançar em mim a qualquer instante. Tomando cada gota de coragem que me restava, contei:

? Fui criada por um casal na floresta de Peregris e tinha certeza que era humana até dois anos... ? Meu coração acelerou, não ia falar de Chris para aquelas pessoas. ? Meu pai me disse que caí do céu ainda bebê na hora que a tempestade começou. A única marca que tenho disso é uma cicatriz na perna.

Quando parei de falar, algumas pessoas riam, outras ainda olhavam com raiva e me chamavam de mentirosa, mas antes que eu pudesse tentar falar novamente, Frezi virou-se para o rei e disse:

? Adão e Marcus trouxeram os humanos. ? E com um aceno, as portas se abriram, mal pude olhar por cima do ombro, mas pelos cantos dos olhos vi meu pai preso por um oficial humano que acompanhava o oficial Tenebris e ao lado, minha mãe com os olhos marejados me encarou e o horror contorceu seu rosto ao me ver ali no centro. Ela puxou o braço do aperto do oficial e correu para mim, ignorando as armas e passando pelo brutamontes como se ele não estivesse ali. Para eles, ela podia ficar até solta já que não era uma ameaça a ninguém naquela sala, mas os olhares de raiva que alguns, incluindo Yoru, deram a ela, fez meu sangue ferver.

? O que fizeram com você? ? ela sussurrou, abaixando-se ao meu lado e pegando meu rosto com as mãos trêmulas.

? Vocês estão bem? Não fizeram nada? ? Ela negou com a cabeça e olhou para o rei que encarava entediado a cena.

? Que espécie de monstros vocês são para prendê-la assim? ? ela gritou, se estivesse com as mãos soltas, teria tapado sua boca.

? Se não puder dar as informações que precisamos e se manter calada, vou ordenar que os oficiais a retirem da sala. ? Frezi pigarreou. Meu pai se aproximou alguns passos e pôs a mão em meu ombro, os olhos escuros estavam calmos, porém tristes. Atrás dele, o guarda humano que os acompanhava, certamente por ordem de alguma autoridade maior da cidade de Rinma, estava pálido e olhava para todos com cautela.

? Muito bem, falem ? Frezi ordenou.

? Meu nome é Densis Ferlock ? papai começou, seguindo algum tipo de regra que eu desconhecia. ? Estava voltando da Floresta Miscra pouco antes da meia noite com a carroça carregada de lenha, quando a chuva começou a engrossar e busquei abrigo sob um arco de pedras. Ao olhar para o céu, eu notei que a frequência dos raios ficava cada vez maior, então um pedaço de concreto e vidro caiu perto de mim. Foi aí que vi o Céu desmoronando, pensei em correr, mas vi uma massa negra vinda do alto, rodopiando em minha direção. Ela me atingiu e me derrubou, só então desapareceu. Quando me dei conta, havia um embrulho em cima de mim e nele havia uma criança brilhando, com uma cicatriz de queimadura na perna. ? Ele suspirou e olhou para mim e deu um meio sorriso. ? Eu levei a criança para casa, imaginei que devido ao que estava acontecendo, não haveria guardas nas passagens.

? E por que não entregaram a criança no dia seguinte? ? Frezi questionou, olhando feio para meu pai.

? Porque... ? ele começou, mas minha mãe apertou sua mão e completou:

? Porque nós nunca tivemos filhos, eu não podia ter, mas sempre quis uma criança e quis ficar com ela. ? Olhei surpresa para ela, que não me encarava agora, mas podia ver seus olhos ficando avermelhados, como se estivesse fazendo força para não chorar. ? Eu disfarcei sua aparência usando meu sangue e a escondi, não permiti que os oficiais e caçadores que fizeram as buscas por sobreviventes a levassem.

Novamente, as pessoas ali começaram a murmurar e xingar.

? Quem garante que ela não teve uma cúmplice solar que alterou as mentes deles para que acreditassem que a pegaram criança e se esconder na casa deles? ? Um Tenebris de pele ébano e tranças longas e negras com uma expressão quase sádica no rosto perguntou.

? Eu não fiz isso! ? retruquei zangada vendo minha mãe ficar nervosa e tremer. ? Eles estão dizendo a verdade! Fui criada lá!

? Tem testemunhas que possam afirmar isso? ? Frezi questionou, pensei em Coralie e Juliet, mas minha mãe negou com a cabeça, ela não as colocaria em risco dessa maneira. O sujeito sorriu novamente e olhou para o Rei.

? Precisamos de provas de que vocês falam a verdade, se não tem como provar que ela era mesmo uma criança quando a pegaram...

? O homem disse que uma massa negra rodopiante o atingiu e deixou a criança sobre ele. ? Yoru se ergueu e virou-se para o homem das tranças de chicote. ? Príncipe Owyn, uma das formas dos Tenebris vagarem de um lugar para outro é deformando sua forma física para uma massa ou fumaça negra, não é? ? ele questionou, fazendo com que o outro estreitasse os olhos em sua direção.

? Sabe que sim, Yoru. Você tem um Tenebris como guarda costas de sua segunda esposa ? murmurou. ? O que quer insinuar com isso? Que um Tenebris causou aquilo? ? Ele rosnou levantando-se irritado.

? Jamais diria tal coisa, alteza, até porque o Oitavo foi destruído por uma tormenta ? Yoru retrucou, fazendo um novo murmúrio subir. ? Mas ela pode ter sido retirada da cidade por um Tenebris, afinal, um não teria sido afetado pela tempestade.

? Onde quer chegar, Yoru? ? As narinas do rei inflavam, fazendo-o parecer um touro enfurecido.

? Majestade, receio que ela tenha sim causado a destruição do Oitavo, mas não da forma que o senhor está pensando. A garota não lhe lembra alguém? ? Yoru virou em minha direção, agora todos pareciam estar me analisando também, até que um mais escondido chiou e xingou um palavrão imundo. ? Não parece com Nibbis Agarathis? ? Se é que era possível, o rosto macilento do rei empalideceu.

? Está querendo dizer que essa garota é a filha que Nibbis estava esperando antes de morrer? ? Ele se ergueu como se fosse vir em minha direção, mas se conteve.

? Sim, e que a destruição do Oitavo foi causada por um nascimento sem um lacre ? ele completou com um sorrisinho no rosto, e novamente o povo começou a gritar que era mentira, invenção, loucura. Gentinha mal-educada! Ainda ousavam dizer que humanos que eram bárbaros!

? Impossível! ? Uma mulher linda de pele quase bronze e cabelos cor de cobre gritou. ? Vernuns não erram a data de nascimento de suas crias! ? a garota rosnou apontando um dedo para mim.

? Nascimentos antecipados não são comuns ? interveio uma mulher de aparência etérea com olhos grandes e longas asas translúcidas, ela me olhava quase com ternura agora. ? Esse tipo de nascimento é raro, mas pode acontecer. Ainda mais para uma Tormentadora com a idade de Nibbis. Nossos ancestrais deram às tormentadoras o dom de prever o nascimento de suas crias para que os lacres fossem feitos, mas qualquer magia, por mais precisa que seja, pode falhar ? ela cantarolou com a voz melodiosa e suave.

? Impossível! ? a outra ainda gritava. ? Se essa for a princesa Yami... ? Ela parou de falar e olhou assustada para Yoru, que sorria. A essa altura, a sala já havia virado uma guerra. Uns gritavam com os outros sobre a possibilidade e improbabilidade de acontecer tal coisa.

Boroni parecia que ia explodir, ele observava furioso o caos se formar e aproveitando a deixa, o oficial humano puxou meus pais para fora da sala, aquilo podia ficar perigoso para eles, quando minha mãe tentou ficar na sala, eu fiz um aceno com a cabeça para ela sair.

? SILÊNCIO! ? Boroni gritou e trovões sacudiram a sala, me fazendo encolher. ? Yoru, você tem como provar que essa jovem é a filha ne Nibbis, sua irmã? ? Pelo visto, apenas por minha aparência ser semelhante a essa tal Nibbis não foi suficiente para que o rei acreditasse nas palavras dele.

? Eu a reconheci pela impressão, majestade. Mas só posso provar que ela não tem um lacre ? Yoru argumentou.

? Ela pode ser qualquer outra pessoa, pode ser uma Tormentadora criada com o propósito de destruir os Céus! ? O que chamavam de Owyn rosnou em minha direção. ? Impressões mágicas podem ser facilmente corrompidas!

? Acha que não reconheceria um membro de minha casa, Owyn? ? Yoru rosnou, agora sem nenhuma formalidade nas palavras, Doreen ficou tensa ao lado dele e apertou sua mão.

? Acho, alteza, que o sonho, a esperança de que tenha restado alguém vivo em sua casa está destruindo seu raciocínio lógico! ? Owyn sorriu como uma cobra e Yoru se levantou furioso, levando a mão a espada ao lado do corpo. Boroni, no entanto, fez apenas um gesto e os dois ficaram em silêncio, presos em seus lugares.

? Infelizmente, príncipe Yoru, não há como provar que ela é uma sobrevivente da casa Asterath... ? Yoru olhava para o rei com um misto de descrença e raiva.

? O cheiro...

? Pode muito bem ser forjado também, para que ela pudesse se safar nesse momento! ? o rei disse calmamente virando-se para mim. ? Não há provas de que você possa ser quem afirmam que é, se não há provas disso, que a destruição foi causada por um nascimento sem lacre...

? Também não há provas que eu destruí aquele lugar com qualquer poder que vocês acham que eu tenho controle! ? gritei. ? Eu não sei controlar isso!

? Por favor... Não precisa fingir! ? Owyn novamente sorriu.

? Se não há como provar que você é Yami Asterath, e existem provas que sua impressão mágica é a mesma que causou a queda do Oitavo, então a única alternativa que tenho é lhe condenar a morte pelos seus crimes. ? Boroni de levantou do trono erguendo um cetro de vidro com uma bolha metálica na ponta.

Meus sentidos pareciam estar desaparecendo e só escutava um zumbido em meus ouvidos, podia ver Yoru tentando falar com o rei e Doreen ao seu lado falando também, mas parecia que nada adiantava. Estava condenada. Não escutava as palavras de Boroni, mas podia sentia os sorrisos cruéis das criaturas a minha volta. Fechei os olhos tentando respirar normalmente, não choraria na frente deles, não daria esse gostinho.

Quando o oficial brutamontes me soltou da cadeira e tentou me levar sabe-se lá para onde, a escuridão explodiu ao meu lado e se espalhou, serpenteando e tomando forma, o cheiro adocicado e perfumado como fumaça de cedro fez aquela sensação de torpor desaparecer.

Hamza estava de pé ao meu lado, ele segurava as correntes que a pouco estavam nas mãos do oficial brutamontes, que cambaleou para longe de nós e ficou tenso, olhava quase assustado para Hamza, esse lhe deu um sorriso preguiçoso e piscou para mim. Do lado dele havia uma mulher, tão linda quanto ele, a pele no mesmo tom de marrom dourado e olhos cinzentos, uma cascata de cabelos negros brilhantes e o corpo quase despido, dentro de um vestido prateado que mais parecia líquido, como se tivesse escorrido dos ombros para o chão.

? O que significa isso? ? Boroni rosnou quando viu a garota ao lado de Hamza, do outro lado da sala, Owyn chiou e se colocou à frente das duas mulheres ao seu lado como se quisesse defendê-las de alguém.

? Peço desculpas por entrar assim, majestade. ? Hamza fez uma reverência, mas a mulher que estava a seu lado não o fez. ? Trouxe alguém que pode provar que essa jovem é Yami Asterath. ? Ele novamente sorriu e fez um gesto gracioso com a mão para que a mulher falasse:

? E quem seria essa? ? Boroni franziu o cenho e farejou o ar na direção dela, que não se alterou em nada, mantinha a expressão séria no rosto perfeito.

? Honén Tsaus ? Yoru respondeu. ? Ela era dama de companhia de minha mãe. ? A mulher deu um pequeno sorriso e fez uma breve reverência a ele, não ao rei do Sétimo, mas ao príncipe do Oitavo.

? Pois bem, o que tem a dizer, Honén? ? Frezi questionou, dando um passo para longe da mulher.

? Estava com Nibbis Asterath quando ela deu a luz à menina ? a mulher falou alto e claro, sua voz fez um arrepio subir por minha coluna. Já havia escutado aquela voz! ? Estava com ela quando anunciou a data do nascimento da princesa Yami, na semana das festividades de inverno. Fiquei ao lado dela durante os três anos e quase dois meses de gestação. Porém, antes de completar o tempo, Nibbis começou a passar mal durante o jantar e foi para seu quarto, me pediu que chamasse as sacerdotisas do Terceiro, pois já sentia as dores do parto... ? As pessoas começaram a murmurar novamente, mas se calaram com apenas um olhar irritado da mulher. ? Continuando. Enviei um mensageiro até o Terceiro, mas a menina começou a nascer e Nibbis pediu que eu ficasse do lado dela. Ela implorou para que eu neutralizasse o poder da criança quando nascesse, para que desse tempo das sacerdotisas chegarem. Mas não houve tempo. A menina nasceu e eu usei o máximo de força que pude para manter a escuridão ao redor delas para que a criança ficasse em silêncio, sabíamos que se ela despertasse e chorasse seria o fim. Mas Galathis entrou no quarto de banho e o barulho fez a criança despertar e chorar. ? Ela estava com os olhos vidrados, presa em suas próprias lembranças.

O silêncio na sala não era perturbado nem pelas respirações daquelas criaturas, todos estavam quietos, com total atenção na mulher que falava com aquela voz aveludada.

? Continue ? Frezi pediu.

? Ela começou a brilhar e a tormenta se espalhar. Nibbis pediu para que eu tentasse salvar pelo menos a menina. Eu a envolvi com o meu poder, fazendo um casulo ao nosso redor, mesmo assim, ela ainda teve a perna danificada pelos raios que vazavam dela. Fui atirada para fora da cidade e consegui descer até a floresta e deixar a criança com um humano antes de perder a consciência devido a drenagem dos meus poderes. Acordei dias depois ainda na floresta e não encontrei mais a criança.

? Quer dizer que nunca mais a viu depois disso? ? Frezi questionou.

? Não disse que nunca mais a vi. A encontrei novamente há cerca de dois anos.

? E por que não a trouxe? ? perguntou Boroni piorando ainda mais sua expressão de irritação.

? Porque ela estava protegida, bem cuidada e como um membro banido do Quinto Céu e serva da princesa do Oitavo eu poderia ser interpretada de maneira incorreta caso voltasse com uma Tormentadora sem o lacre depois de quase dezoito anos fora. Perguntas demais seriam feitas. ? Ela bufou e esperou que alguém dissesse algo, mas todos olhavam uns para os outros, tensos e receosos.

? Pode nos provar que é verdade o que diz? ? Frezi quase sussurrou, a mulher o olhou com desdém e deu de ombros.

? Tragam a esfera de memórias, se quiserem. Não tenho nada a esconder ou temer. ? Mais murmúrios, até Boroni olhava chocado para ela, como se ela tivesse acabado de dizer algo terrível. Até mesmo Hamza ficou tenso com aquelas palavras. Porém Frezi olhou para mim com nada além de frustração no olhar e disse:

? Tirem a blusa dela e mostrem que não tem o lacre. ? Meu estômago afundou, mas para meu alívio, Doreen disse que era desnecessário.

? Eu mesma olhei ontem, ela não tem um lacre. ? Frezi abriu a boca, disposto a discutir, mas Boroni ergueu a mão e me encarou:

? Um recém-nascido não tem controle de seus poderes, e nem culpa por qualquer dano causado por eles, quem responde nesse caso, se há sobreviventes, é a mãe. Nibbis não está entre nós e como foi dito por Honén Tsaus, foi um nascimento antecipado. Declaro Yami Asterath, inocente.

No momento em que ele proferiu aquelas palavras, as pessoas começaram a gritar e discutir, mas foi Owyn que disse que Honén poderia estar mentindo.

? Quer que traga a esfera, príncipe? Se ela se ofereceu para doar suas memórias, significa que não tem nada a temer, mesmo assim sacrificaria sua irmã? ? Yoru perguntou baixo, mas podia ver os raios se formando em suas mãos. Irmã! Hamza e Honén olhavam para ele com ódio brilhando nos olhos, uma ameaça silenciosa que me fez querer sair da sala o quanto antes, mas ainda estava presa por aquelas correntes que Hamza segurava firmemente.

? É bom ter certeza ? Owyn rosnou e levou a mão a espada.

? Já fiz minha declaração, Owyn Tsaus. Se tiver algum problema com sua irmã, resolva longe dessa sala. ? Boroni fez um gesto, dispensando as pessoas ali, a maioria sumiu em explosões brilhantes das mais diversas cores, mas Owyn e as duas mulheres foram os últimos a sair. A mulher de pele bronze e cabelos cobre também ficou, ela se dirigiu até Yoru e passou o braço ao redor do dele, então deu o sorriso mais forçado do mundo para mim e disse:

? Bem-vinda a família, cunhada. ? Seria mais prazeroso beber um copo de álcool com cacos de vidro. Yoru bufou, mas apenas virou-se para falar algo com o rei que também olhava feio para a mulher, depois de um aceno positivo, ele se voltou para nós.

? Leve Yami para um dos quartos de hóspedes, encontro vocês mais tarde. Preciso falar com Honén primeiro. ? Hamza acenou e se virou para sairmos dali. Por cima do ombro, vi Yoru e Doreen se aproximarem de Honén, ignorando completamente a outra mulher. Pensei em parar para falar com a princesa, mas a agradeceria por falar do selo depois.

Andamos um pouco pelo corredor e só depois de um bom tempo eu começava a voltar ao normal. Mesmo sentindo as pernas começarem a tremer e meu coração acelerar, não me permiti desabar ali, não com tantos guardas e serviçais me observando com curiosidade e medo.

Depois de dois ou três lances de escadas e vários corredores claros e arejados, Hamza abriu uma porta e me levou para dentro, fechando-a suavemente atrás de nós. Ele me encarou com um sorriso nos cantos dos lábios:

? Nada a me dizer? ? Bufei e me encostei na madeira fria da porta, absorvendo cada detalhe do quarto antes de retrucar.

? Precisava demorar tanto? ? resmunguei, ele gargalhou e ajeitou uma mecha do cabelo negro que caiu por cima do ombro.

? Gosto de entradas dramáticas, princesa. Se pudesse ver a surpresa nos seus olhos quando chegamos para te livrar... ? Ele piscou e riu de novo, soltei um chiado e dei um puxão nas correntes.

? Não me chame assim ? murmurei.

? Assim como, princesa? ? Ele deu um passo para perto. ? Você é.

? Mas não quero que me chame assim! ? Meu coração acelerou.

? Hmm... Se isso te incomoda tanto... Vou te chamar só de princesa a partir de agora! ? Inacreditável!

? Meu nome é Luyen! ? retruquei ? Foi esse o nome que meus pais me deram... Meus pais! ? Eu me virei para ir até a porta, mas Hamza puxou a corrente, me fazendo virar em sua direção novamente, o olhei incrédula.

? Eles já foram levados para o reino humano. Doreen vai garantir que um oficial vá até as autoridades e os libere da punição por manter um membro celeste lá embaixo ? explicou. Fiquei aliviada e irritada ao mesmo tempo:

? Vai me deixar por mais quanto tempo nessas correntes? ? reclamei as sacudindo para fazer barulho e irritá-lo. Hamza apenas deu um sorriso preguiçoso e meu rosto queimou.

? Ah, esqueci... ? Ele deslizou os dedos pelas argolas de metal e elas simplesmente se tornaram pó sob seu toque, o mesmo aconteceu com o do pescoço e dos tornozelos quando ele se abaixou para tocá-los. Esfreguei os braços aliviada por aquele incomodo ter desaparecido.

? Obrigada. Por tudo ? murmurei.

? De nada.

? Honén... ? Talvez fosse uma boa hora para começar meu interrogatório, mas só de mencionar o nome dela, Hamza ficou tenso. ? Ela é...

? Minha gêmea. ? A surpresa deve ter ficado muito evidente em meu rosto, pois Hamza riu, andou até próximo a janela e sentou-se numa poltrona verde musgo que estava na direção da luz. Aproveitei para me sentar na borda da cama enorme no meio do quarto, o colchão macio me fez querer me jogar para trás e dormir o resto do dia.

? Então você é irmão daquele... Owyn? ? Ia dizer “daquele monstro”, mas achei melhor não, mesmo que parecesse que havia uma tensão entre eles, não ia arriscar ofender, não agora que queria respostas. Hamza deu apenas um aceno como resposta e desviou o olhar. Abri a boca para perguntar sobre o motivo pelo qual ela foi banida do Quinto, mas a porta se abriu e Doreen e Yoru entraram. Honén estava na porta, ela sorriu para mim e acenou antes de mover um dedo para que Hamza fosse com ela. Ele suspirou e saiu, deixando-me com os dois.

? Está me devendo um abraço. ? Doreen cruzou os braços e se aproximou, minha única reação foi levantar num pulo e apertá-la como um urso desesperado, rir como uma louca e agradecer.


Capítulo 14


Livre?


Doreen manteve os braços em volta de mim por todo o tempo que eu quis abraçá-la, e quando soltei, Yoru sabiamente não ofereceu um abraço também. Ainda lembrava claramente da forma com que ele olhou para minha mãe e isso ainda me deixava com raiva, mesmo que ele tivesse acabado de salvar minha vida.

? Então, Yam... ? ele começou, mas foi interrompido por Doreen.

? Luyen ? ela sussurrou. ? O nome dela é Luyen. ? Doreen me lançou um olhar compreensivo e eu quase a abracei novamente. Podia facilmente ser amiga dela.

? Luyen. ? Ele fez força para soltar o nome. ? Gostaria que soubesse que estamos aqui para ajudar no que puder na sua adaptação.

? Adaptação... ? repeti sentindo um peso sobre meu peito. ? Não vou voltar para casa? ? Quis saber, Yoru franziu o cenho e negou com a cabeça.

? Sua casa foi destruída no momento que você nasceu, Oshya! ? ele rosnou, novamente, aquele temperamento de merda.

? Se minha casa foi destruída, aquela que fui criada é a única que me resta, então ? retruquei começando a me irritar também. Bom, nós dois pelo visto nos parecíamos no temperamento explosivo.

? Não é seguro para eles... Para os humanos, você pode os matar se não tiver um treinamento e o controle adequado de seus poderes ? ele rebateu e um frio passou por minha espinha, eles podiam muito bem acabar como Chris. Doreen mudou o peso do corpo enquanto me observava atenta. Yoru continuou sem notar nada diferente em meu silêncio e fiquei grata por isso.

? Ainda temos alguns problemas a resolver com a sua chegada, como a apresentação formal às cortes, você vai ter que passar pelo rito de purificação mesmo já tendo passado da idade...

? Yoru. ? Ele endureceu quando Doreen pigarreou, olhando-o feio como se o desafiasse a falar algo, ele sustentou seu olhar antes de voltar aqueles olhos prateados para mim:

? Você já...

? YORU! ? Doreen gritou dessa vez, me deixando perplexa. ? Depois! Deixe isso para depois! A menina precisa descansar, precisa se alimentar e só depois eu mesma cuido desse assunto, com Prisla, e Luyen, claro. ? Yoru bufou, mas assentiu.

? Você terá a nossa proteção, Oshya. ? Yoru suspirou ? Hamza!

A fumaça negra se espalhou pelo quarto, fazendo aquele perfume inebriante se espalhar novamente e minha cabeça começou a rodar. Hamza apareceu do lado de Yoru e Honén estava com ele também, pendurada no braço do irmão e um sorrindo alegre.

? Quero que tome conta de Luyen...

? Não preciso de uma babá! ? rosnei.

? Não diria isso depois do que fez com as celas lá embaixo, princesa. Parece uma criança desastrada! ? Hamza zombou, eu chiei para ele, mas ele apenas riu, mesmo com Yoru e Doreen nos olhando incrédulos.

? Um tenebris é a melhor opção para que você esteja segura, Luyen. E precisamos que ele possa te neutralizar até que possamos provar que você não é... Perigosa! ? Hamza assentiu e deu um meio sorriso para mim. Nem tive tempo de começar a latir algumas verdades para ele, pois Yoru pegou a mão de Doreen e parou a poucos passos da porta.

? Instrua ela em nossos costumes, pois imagino que Boroni não vá ficar muito contente se Doreen perder os compromissos para ajudá-la. ? Hamza franziu o cenho e me estudou por alguns segundos. ? Você é o melhor que conheço e o único que confio aqui dentro.

Parecia que Yoru estava tentando comprar o humor de Hamza com tais palavras. Hamza olhou para Honén, que mordeu os lábios e desviou o olhar.

? Você é péssimo pra ensinar, de qualquer forma ? o tenebris murmurou para ele, depois lentamente, como se fosse um esforço, se virou para mim: ? Será um prazer lhe guardar e instruir no que puder, alteza. ? Seu Mentiroso! As palavras podiam muito bem ter sido gritadas para ele, pelo modo que a diversão dançou em seu olhar quando eu o encarei feio.

? Nos veremos novamente no jantar. Uma dama de companhia deve vir em breve...

? Eu já estou aqui ? Honén falou alto e claro, fazendo Yoru parar na porta para olhá-la. ? Mande uma criada para verificar, se achar necessário. Mas estive com Nibbis até o seu último momento e nada me faria mais feliz do que cuidar de Luyen também. ? Meu sangue esfriou, algo no olhar dela me fez estremecer, mas não deixei transparecer. Yoru apenas acenou e deixou o quarto.

Fiquei ali em pé olhando para a porta, sentindo os olhares de Hamza e Honén em minhas costas, mas quando me virei, Honén havia desaparecido.

? Ela já volta. ? Hamza suspirou pesadamente, seus olhos cinzentos me estudaram novamente e ele resmungou algo para si, soltando o peso numa poltrona que gemeu em protesto.

? Queria poder ir para casa. ? Hamza manteve os olhos nos meus.

? Espere as coisas se acalmarem, eles permitirão que você os visite.

? Eu não quero...

? Não quer ficar. Eu sei. ? Algo no modo em que se moveu o fez parecer tenso, cansado. Não adiantaria eu discutir com ele sobre isso, Hamza não tinha poder para me deixar sair dali, então mudei o foco da conversa.

? O que significa Oshya? ? repeti a palavra de Yoru, Hamza latiu o que parecia ser uma risada disfarçada de tosse e desviou o olhar.

? Não vai querer saber.

? Se não quisesse, não teria perguntado! ? retruquei cruzando os braços e batendo os pés para enfatizar que ainda esperava uma resposta.

? É um termo usado para tratar crianças pirracentas. Crianças que não sabem controlar seu temperamento.

? Vou chamar vocês dois assim também! ? Ele riu novamente e seus olhos encontraram os meus, fazendo um arrepio percorrer minha coluna.

? Nem parece que eu acabei de salvar você lá dentro. ? Estava me chamando de ingrata?

? Vai ficar jogando isso na minha cara toda hora? ? resmunguei.

? Não preciso, toda vez que você olhar pra mim, vai se lembrar disso. ? Ele suspirou e ficou de pé. ? Agora tenho que cuidar de você também, mas tenho que ficar de olho em Doreen. ? Uma sombra passou em seu rosto e ele se moveu para a porta. ? Sugiro você descansar! Vou avisar Honén para trazer seu jantar no quarto, duvido que queira companhia do rei com cara de psicótico para você enquanto come. ? Tive que assentir em concordância. ? Amanhã vou estar aqui bem cedo para começar as instruções.

? Isso é mesmo necessário? ? choraminguei.

? Mesmo se não fosse, Luyen, eu faria. ? Ele piscou para mim, e num instante não estava mais lá, desapareceu naquela cortina de fumaça perfumada. Deitei na cama, pensando numa forma de me livrar daquele lugar, estudando uma forma de ir embora. Mesmo sabendo que agora estava mais perto do meu verdadeiro lar, não conseguia deixar de pensar em meus pais.

Cobri o rosto com os braços, fechando os olhos e ficando num breu. O rosto alegre de Chris veio em minha mente, depois a cabana destruída e seu corpo, as cinzas se espalhando com a chuva. Abri os olhos rapidamente para a luz do quarto e solucei sentindo as lágrimas escorrerem para minhas orelhas. Se eu voltasse para casa e não soubesse controlar aquele poder, meus pais seriam os próximos. “Ora, há pouco tempo você estava querendo partir, agora quer voltar?” Sabia que o dia que teria que sair de casa chegaria, mas nunca imaginei que seria assim.

Suspirei cansada, rolando na cama, observando o quarto bonito ao meu redor. Talvez não fosse tão ruim assim.


Yoru:


Uma dor de cabeça pulsante começou a me irritar durante a hora do jantar. Hamza pediu que deixasse... Luyen comer no quarto, pois aquele dia tinha sido estressante demais para ela e ele conhecia bem o humor de Boroni com relação a situações que ele tinha que “abrir mão” de seu poder pelo bom senso. Doreen olhava-me de soslaio algumas vezes enquanto o rei resmungava coisas sobre Yami para ele mesmo, num tom de voz no mínimo raivoso. Aquilo não era um bom sinal, ele não havia gostado nada de tê-la inocentado, na certa achando que eu poderia desistir do Casamento com Doreen já que minha prometida Tormentadora e de sangue real estava viva.

?... Não creio que seja uma boa hora para um evento formal de apresentação, meu pai! Metade das cortes no julgamento queriam a cabeça da menina. ? Adrias comentou entre uma mordida e outra de seu jantar. O olhar cruel de Boroni fez algo frio escorregar por minha coluna, ele deu um sorriso controlado e assentiu:

? Mesmo assim, eles podem nos julgar mal se não o fizermos. Fora que a garota ainda precisa passar pelo rito de purificação. ? Ele grunhiu ? E acho que deveríamos chamar uma sacerdotisa Ventus para testar a possibilidade de colocar um lacre nela, só para evitar acidentes.

Olhei incrédulo para Boroni, um lacre feito depois do Tormentador adulto tiraria completamente sua habilidade de manifestar seu poder! Doreen olhava para o pai com o mesmo assombro estampado no rosto.

? Pai! Como pode dizer algo assim? ? ela o repreendeu, Boroni voltou sua atenção para a filha com um falso ar de inocência.

? Ela pode ser perigosa! Quem garante que ela não vá perder o controle e destruir o Sétimo também? ? Bile queimou minha garganta com a naturalidade que ele dizia aquelas blasfêmias:

? Ela é um membro de minha casa... De minha família! Você não tem o direito de fazer tal coisa! ? o lembrei, mas o rei apenas arqueou as sobrancelhas e riu.

? Dentro da minha casa, vocês seguirão as minhas regras, príncipe. ? Abri a boca para dizer que poderia queimar no inferno com sua casa, mas ele baixou os olhos para o prato e continuou: ? Não disse que chamaria uma sacerdotisa, disse que talvez.

? Coloquei dois Tenebris na guarda dela ? repliquei.

? E tinha uma na hora de seu nascimento, mesmo assim ela destruiu o reino inteiro de sua avó! ? Ele rosnou em resposta, batendo os talheres refinados de prata sobre a mesa. Não o reino de meus pais, nem meu, de Mendal, minha avó.

? Ela não vai receber um lacre, pai. ? Doreen olhou friamente para ele, colocou o guardanapo sobre a mesa e levantou-se. ? Se o fizer, eu rejeitarei o nome, minha linhagem e deixarei o Sétimo ? ela disse calmamente, mas aquele brilho cruel nos olhos cor de vinho foi o suficiente para o rei estremecer, tanto de raiva por ser desafiado diante de mim e de Adrias, quanto por imaginar sua filha favorita longe de si. Ela era a única que dobrava o rei.

? Doreen... ? ele rosnou, mas ela acenou para mim, uma ordem silenciosa para que a seguisse, então deixou a mesa, parando na porta apenas para dizer:

? Ela será assistida, Prisla irá treinar seus poderes para que a princesa Asterath não cause nenhum problema, além disso, Hamza consegue conter o poder dela facilmente, já o fez antes. Quanto ao rito de purificação, eu mesma o conduzirei e espero que isso seja o suficiente para o senhor.

Ira pura brilhava nos olhos de Boroni.

Mas não para Doreen, para mim. Ele sabia que sua filha estava fazendo aquilo por mim, em nome de seu amor por mim. Evitei sorrir como queria para ele, bastava que ele quisesse a cabeça de minha irmã numa bandeja sobre aquela mesa, assim como eu queria antes de saber quem realmente era. Quando saí da sala com o olhar de Boroni queimando minhas costas, tive certeza de que se ele tivesse tormentas agora, o castelo do Sétimo cairia sobre nossas cabeças.

Acompanhei Doreen em silêncio até nosso quarto, fechei as portas atrás de nós e fiquei esperando que ela dissesse algo. Doreen foi até as janelas e as abriu, deixando o ar frio da noite entrar, as luas estavam cheias e brilhantes no céu, uma cena rara para um dos Céus das chuvas. Ela sentou-se no parapeito da janela e o brilho dourado das luas fez seus cabelos e olhos se acenderem como pedras preciosas, um sorriso triunfante foi o que bastou para que eu encerrasse o espaço entre nós, ergui seu queixo com suavidade e deslizei a boca por seu pescoço:

? Você é incrível! ? sussurrei enquanto a beijava.

? Eu sei. ? Ela passou os braços ao redor de meu pescoço e arqueou o corpo. ? Ela é minha família também. Não poderia fazer menos do que isso por ela, por você. ? Seus dedos enrolaram meus cabelos e ela sorriu de uma forma linda, como eu nunca havia visto antes.

? Acho que você merece um prêmio! ? brinquei. ? Ninguém enfrenta o rei dessa maneira e sobrevive! ? Ela deu uma gargalhada e se agarrou em mim.

? Eu enfrentaria até o imperador Solaris por você.

Tomei sua boca num beijo longo e carinhoso que a fez apertar ainda mais os braços ao meu redor, mas a afastei um pouco, pequei seu pulso e sussurrei contra sua pele, até um símbolo brilhante aparecer ali. Doreen observou a marca e seus olhos se encheram de lágrimas.

? Para que nenhum de nós jamais a machuque. ? Um pequeno símbolo de proteção marcado na pele, para que nenhum raio de tormenta jamais a afetasse. Não só porque ela lidaria com Yami, mas também para que soubesse que eu me importava.


Hamza:


Com os olhos fixos no quarto da garota e minhas sombras espiralando ao seu redor, sentia que ela havia dormido há pouco mais de meia hora. Honén olhava para mim com um meio sorriso no rosto, os olhos prateados brilhavam contra a luz tímida das luas que começavam a desaparecer entre as nuvens.

? Ela é um amor! ? sussurrou minha irmã olhando através de minhas sombras para a garota enroscada nos lençóis.

? Ela é malcriada, teimosa, mal-agradecida...

? Ah, para! ? Honén riu jogando os cabelos negros para trás e inspirando profundamente, porém o sorriso morreu aos poucos. ? Sinto muito. A mantive escondida durante todo esse tempo, impedia o poder dela de se manifestar... Mas aquele dia... Foi emoção demais, ela acabou descobrindo na hora errada o que era.

? Ela feriu alguém, não foi? ? Honén me encarou e assentiu devagar, demorou um pouco para que voltasse a falar.

? Deixei ela sozinha um pouco. Não achei que fosse acontecer nada. Ela foi para a casa do garoto humano... ? Ela mordeu os lábios e desviou o olhar. Mesmo sem dizer nada, senti a vergonha e a irritação passar por aquela ligação.

? Então foi como Drascius e a princesa Lunnere ? murmurei. ? Ela o matou. ? Não foi uma pergunta, mas Honén assentiu mesmo assim.

? Depois disso, ela abandonou a aparência humana que sua mãe de criação havia lhe dado, eu não consegui mais mantê-la sob controle sem me aproximar. Não queria que ela me descobrisse, isso poderia piorar a situação...

? Está ruim de qualquer maneira ? resmunguei. ? Boroni foi desafiado por nós com aquilo. Ele sabe o que Luyen significa para Yoru, o rei vai fazer de tudo para que ela desapareça. ? Um estranho arrepio percorreu meu corpo, olhei novamente para a jovem através da escuridão, mas ela estava bem, estava segura.

? Não só ele... ? Honén me encarou com mais do que preocupação nos olhos. ? Owyn. Nós a defendemos e ele sentiu.

Só a menção dele me fez rosnar. Aquele covarde ainda tinha dívidas altas comigo, e se cruzasse a linha que me mantinha inerte... Eu iria cobrar cada uma delas, dele e de todos que fizeram aquilo com Honén. Ela deu um risinho, quebrando meu transe.

? Você é fácil de ler. ? Ela estendeu a mão, acariciando meu rosto. ? Mas esqueça isso, temos problemas mais graves pra resolver agora e precisamos daquela garota treinada para isso. ? Uma carranca surgiu em meu rosto e Honén riu de novo, não podia negar que era um alívio depois de todo aquele tempo, vê-la ali e ainda sorrindo.

? Sugere que eu a treine?

? Ninguém mais faria melhor! ? Ela piscou ? Yoru é um idiota! ? A repreendi com um olhar, mas ela deu de ombros. ? Você sabe que é verdade. Ele está obcecado com o Oitavo, acha que ela é o caminho para ressuscitar a casa Asterath. ? Honén coçou uma cicatriz em seu braço, estava tensa.

? Ela foi criada por humanos, ? Foi minha vez de rir. ? se Yoru tentar tocar nela, ela vai arrancar a cabeça dele.

? É provável. De qualquer forma, temos que mantê-la segura. ? Honén olhava tensa para cima.

? O que está escondendo?

? Por que acha que estou escondendo algo? ? Ela se arrepiou, mas não me olhou. Peguei seu braço, obrigando-a a me encarar, quando seus olhos se voltaram para mim, minha pele se arrepiou também, por um instante achei que mudaria de forma.

? Nibbis não teve a criança antes da hora, mas ela também não escolheu mentir. ? Foi tudo que ela disse antes de transformar-se em uma imensa figura de fiapos de sombras e garras e desaparecer com suas imensas asas negras por cima dos muros em direção a cidade. Fiquei ali sentado em choque sobre o telhado da torre leste. Por que ela não me contava de uma vez o que havia acontecido? Do que tinha tanto medo a ponto de soltar fragmentos de verdade aos poucos?

Teria que perguntar, mais cedo ou mais tarde, ela diria. Se não contou tudo ainda é porque algo a assustava e eu não iria forçá-la a falar, mesmo que isso representasse um risco. Levantei-me mesmo querendo ficar um pouco mais, porém tinha muito o que fazer e logo cedo teria que apresentar nosso mundo a garota. Bufando, saltei do telhado em direção ao pátio central para fazer uma verificação. Mesmo com as sombras espalhadas por todo o local, sentia que estava sendo observado. Um sorriso se formou em meu rosto ao sentir a presença escapar pelas brechas da barreira.

Bom, estava muito entediado, queria brincar com alguém!


Capítulo 15

 

 

Fora das grades


Luyen:


Sabia que estava entre sonhar e despertar.

O cheiro de comida tentava me despertar enquanto a voz doce de Chris tentava me fazer ficar com ele mais um pouco. Estávamos no lado de fora da cabana, conversando sob as folhas caindo das árvores, quando aqueles homens apareceram. Não homens. Um grupo de oficiais dos Céus com sorrisos cruéis nos rostos. Meu coração acelerou, me virei para mandar Chris entrar na cabana e não sair, mas ao olhar para o lado, vi seu corpo se desmanchando com a água que começava a cair dos céus.

Um pesadelo.


Levantei-me da cama num pulo, passando os dedos entre os fios embolados do véu de cabelos cinzentos que caíam sobre meu rosto. Aos poucos, percebi que estava num quarto grande e confortável. Não estava no chalé, não estava em casa. O que aconteceu ontem também não era um pesadelo. Fora bem real!

Sentei-me na cama, cruzando as pernas e respirando fundo tentando acalmar a mente e desembolar o ninho que havia se formado em meus cabelos, analisando tudo que foi dito no dia anterior e pensando numa maneira de escapulir daquela confusão o quanto antes.

? Bom dia, princesa! Pesadelo? ? A voz veio quase junto com a doce fragrância de fumaça adocicada, porém o susto que tomei me fez ter um sobressalto e cair da cama para o tapete lateral. Hamza gargalhou com a cena, fazendo meu rosto esquentar e me erguer para fuzilá-lo com o olhar.

? Sério? Não podia simplesmente bater na porta? ? grunhi ignorando sua pergunta.

? Por que bater se eu posso aparecer aqui dentro? ? Ele arqueou as sobrancelhas como se seu gesto de invadir aposentos fosse algo natural.

? Mas não vai fazer mais isso! Bata na maldita porta! E se eu estivesse nua? ? Ele deu de ombros e continuou olhando para mim com falsa inocência estampada no rosto. Hamza deu alguns passos para perto da cama, me encolhi um pouco receosa, mas ele apenas encostou no arco do dossel e ficou mexendo em uma mecha escura de seus longos cabelos negros soltos.

? Aí que está a graça! Te pegar de surpresa faria você ficar mais prevenida e não tão à vontade num lugar com pessoas que te odeiam! ? Ele piscou para mim e estendeu a mão para que eu me levantasse, mas recusei o gesto, apoiando as mãos no colchão macio e me erguendo do chão. Sabia de quem ele estava falando, o rei não havia ficado muito satisfeito em me inocentar, parte de mim sabia que ele queria me ver desaparecer e a outra tentava acreditar que conseguiria passar desapercebida da ira de um rei até estar fora dali.

? Invadiu meu quarto, mas não me trouxe um café... ? resmunguei.

Hamza mantinha a expressão contida, parecia vazia, errada de alguma forma, mas seus olhos prateados eram despertos, como se fossem nuvens de tempestade em movimento.

? Não sou sua empregada. Mas depois de ontem, não me surpreende que não me peça para levá-la à mesa do café!

? O rei iria querer meu sangue na xícara dele. ? Dessa vez, Hamza riu e assentiu, um arrepio percorreu meu corpo.

? Ele queria colocar um lacre em seu poder, te incapacitar para sempre, mas foi ameaçado pela princesa Doreen, que se responsabilizou por você! ? ele comentou, sentando-se na borda da cama, estava a menos de meio metro de mim.

Não sabia o que significaria receber um lacre e perder os poderes, para mim era apenas uma forma de poder viver em paz com meus pais novamente, mas Doreen havia intervindo por mim, não Yoru.

? Acho que ela é a pessoa que mais gosto aqui até agora... ? murmurei indo até o armário e verificando tudo até achar um roupão azul dobrado e uma toalha fofa. Hamza me observava com as sobrancelhas erguidas, o que me fez parar para encará-lo. ? O quê?

? Eu salvei seu pescoço, princesa, e ela é sua favorita? ? Meu rosto, orelhas e pescoço queimaram novamente, mas com mais intensidade dessa vez.

? Já pedi que não me chamasse de princesa. Luy está bom. E você não me parece muito confiável.

Suas sobrancelhas se estreitaram e as sombras dos móveis ao redor dele pareciam ter ganhado densidade.

? Não podia esperar que eu dissesse diferente! Invadiu meu quarto pela chance de me ver sem roupa! Você parece um pervertido só que com essa cara séria ai! ? comecei a falar rápido, me enrolando quase em desespero para tirar aquela expressão sombria do rosto dele. Hamza se levantou da cama e num instante estava perto da porta.

? Acredite, menina, eu não tenho nenhum interesse em ver você sem roupa! ? Ele bufou e virou-se para sair. ? Você é irritante! Quase idêntica ao seu irmão, uma versão feminina do Yoru!

Aquilo pareceu mais um tapa na cara do que uma provocação ou um pequeno surto de mal humor, bem, eu mereci dessa vez.

? Não me compare com aquele... Ele... ? Gesticulei perdida sem saber um modo certo de me referir ao que Yoru me parecia ? AH ESQUECE! Você é um pé no saco! ? praticamente gritei em resposta, entrei no banheiro luxuoso anexo ao quarto e bati a porta para não ouvir uma resposta pior.

Pelo menos sabia que todos naquele lugar tinham um péssimo humor. Tirei aquela roupa cinzenta que ainda usava desde a noite anterior e me enfiei na banheira. Diferente da cabana, não precisava carregar água até ali, ela caia de duas pequenas fendas na parede de pedra brilhante, uma quente, outra quase gelada, quando a banheira encheu, as águas pararam sozinhas. A água estava na temperatura perfeita quando entrei e quase choraminguei de alegria pelo banho de verdade. Fiquei curiosa quanto a magia do castelo, o banheiro, diferente do quarto, tinha decoração simples, mas bela. As paredes eram de pedras azuis rajadas levemente de branco e as louças em tom de marfim mal destacavam o ambiente.

Fiquei na água até alguém começar a berrar do lado de fora e espancar a porta do banheiro. Revirei os olhos, tendo que deixar o refúgio aquático e sair dali antes do que queria.

Saí embrulhada no roupão, já fazendo cara feia para quem quer que estivesse prestes a derrubar a porta para me fazer sair do banheiro. Desisti de discutir assim que vi Honén de braços cruzados diante da porta, com o cenho franzido e quase rangendo os dentes.

? Não podia só chamar? ? resmunguei.

? Não deveria irritar Hamza! ? Ela rebateu indo até o armário e tirando um longo vestido azul pálido de tecido fino e mangas até os cotovelos e o colocando em cima da cama, junto com as roupas íntimas e um par de sapatos pretos sem salto.

? Aquele macho de quase dois metros de altura e meia tonelada de músculo foi fazer fofoca para a irmã que a princesinha irritou ele? ? retorqui no tom mais sarcástico que pude. Honén me fuzilou com um olhar e se aproximou, espiralando escuridão ao seu redor.

? Primeiro: Hamza tem dois e dez de altura, segundo: aquele macho é meu gêmeo, sabe o que isso significa para nós Tenebris? Que temos uma conexão mental, ou seja, tudo que ele vê e escuta, eu vejo e escuto também. ? Ela apontou as roupas na cama, mesmo querendo encrencar mais um pouco, fui até o vestido sem desviar os olhos dela e comecei a me vestir por baixo do roupão. Ela revirou os olhos e sentou-se na poltrona, soltando o ar e se alongando como um gato. ? Eu disse que não devia encrencar com ele, pois ele é um dos poucos que pode te ajudar aqui dentro. Se não souber manter aliados, Luyen, não vai conseguir sobreviver a isso!

? Só queria ir embora ? retruquei tirando o roupão após vestir as peças íntimas e colocar rapidamente o vestido. ? Se vocês têm uma conexão mental, não seria mais fácil apenas conversarem mentalmente? Ontem você o chamou para fora do quarto...

? O chamei para fora, pois queria dar privacidade a você, seu irmão e sua cunhada... Ou diria co-esposa? ? Honén sorriu de forma quase perversa. ? Mas não funciona assim, não para nós, pelo menos. Somos mestiços, há um limite de distância para que possamos nos manter conectados. Dentro do mesmo Céu sim, mas se qualquer um de nós sair do limite de uma barreira... ? Ela meneou a cabeça e veio até mim, puxando meu braço para que me sentasse de frente ao grande espelho emoldurado em pedras negras, então começou a trançar parte de meu cabelo.

? O que é uma co-esposa? ? quis saber.

? Pergunte a Doreen! Aposto que vai ser muito interessante que saiba por ela! ? Honén mordeu os lábios cheios, evitando uma risadinha e me olhando através do espelho com os olhos prateados brilhantes, eram estranhos, como nuvens de tempestade girando... Quase hipnóticos.

? O que posso te perguntar que você possa me responder? ? Honén sorriu ainda mais e sussurrou “tudo e nada”. ? Enigmas não ajudam! ? bufei.

? Ah! Ajudam muito! ? Ela bateu com o nó do dedo indicador em minha têmpora. ? Eles fazem você pensar melhor!

Honén ficou em silêncio enquanto trabalhava em meus cabelos e eu pensando no que deveria perguntar para quebrar o silêncio tenso entre nós. Depois de um tempo, algo veio à minha mente quando ela já estava finalizando o penteado.

? Você disse que servia a minha mãe... ? Ela imediatamente parou o que fazia para me olhar. ? E disse que estava lá quando aquilo... Quando eu destruí tudo...

? Não foi sua culpa ? ela disse firmemente.

? Mas...

? Você não tinha consciência e Nibbis... ? Os olhos de Honén se encheram de dor. ? Nibbis também não.

Fiquei observando-a terminar de enrolar as várias tranças numa parte solta de meu cabelo, fazendo com que elas o amarrassem, ficou bonito, tanto que não tive coragem de dizer que odiava cabelos presos.

? Como ela era? ? perguntei quando ela fez menção a sair, andei rapidamente até a mesinha com o café e servi duas xícaras de chá, um convite para que ela continuasse ali. Honén sorriu e sentou na beirada da cama, aceitando a xícara que ofereci sem dizer nada. Só depois de tomar quase metade da dose de chá, Honén olhou direto nos meus olhos e sorriu como nunca imaginei que alguém poderia sorrir. Talvez todo amor e tristeza do mundo coubessem naquele sorriso:

? Ela era o amor da minha vida.

Senti como se o piso sob meus pés começasse a escorregar. Ela ainda mantinha os olhos prateados, rajados de negro fixos nos meus.

? Eu...

? Honén? ? Num instante Hamza estava atrás dela, tocando seu ombro com a mão. Sua gêmea olhou para cima e deu um aceno curto que mais me parecia um “está tudo bem”. ? Prisla quer te ver.

? Já estou indo! ? Ela se levantou resmungando. ? Mais tarde conversamos mais! ? Honén piscou e desapareceu numa cortina de fumaça. Hamza me encarou ainda com aquela carranca, então serviu uma boa xícara para ele também e sentou na poltrona em minha frente.

? Agora está realmente parecendo uma princesa.

? Hmmm talvez eu deva tirar tudo isso então ? resmunguei, mas Hamza não se alterou, ele continuou bebericando o chá enquanto me observava, deixando-me um bocado sem graça. ? Qual a necessidade disso tudo? ? perguntei apontando as roupas. ? Não vou sair daqui mesmo!

? Ah. ? Ele sorriu ? Vai sim. Vamos dar um passeio na cidade, do lado de fora da fortaleza! ? Ele sorriu e eu quase me derreti em cima da cadeira. Lá fora, no meio de milhares de Vernuns...

? Não quero sair!

? Mas eu pensei que o que você mais quisesse era sair daqui, Luyen! ? ele falou num tom doce assustador, eu apenas neguei desesperadamente.

? Não lá ? sussurrei.

? Com medo? ? Ele piscou lentamente. Ah! Dissimulado!

? Eles vão querer me matar! ? Minha voz agora não passava de um sussurro.

? Tecnicamente, você é uma Vernum Tormentadora e sem um lacre, eles são Retaliadores, e comigo com você eles não vão se atrever a te atacar! ? Ele sorriu e se levantou, estendendo a mão para mim.

? Desculpe... Por mais cedo... ? quase implorei ? Se isso for algum tipo de castigo não tem necessidade! Já aprendi minha lição!

Hamza começou a rir e seus olhos brilharam com divertimento.

? Bom saber que está disposta a ceder tão facilmente, Luyen! Reconhecer seus erros é o primeiro passo para aprender mais e ter amigos! ? ele zombou chegando bem perto de mim e segurando meu braço, puxando-me para cima mesmo sob meus protestos silenciosos, travando os pés no chão e enrolando o outro braço no dossel da cama. ? Mas preciso ir lá fora pegar umas coisas e Yoru me pediu para lhe ensinar os costumes dos Céus, então nada melhor para começar nossa aula do que um passeio pelo centro de Nublis!

? Continuo achando uma péssima ideia! ? Revirei os olhos e soltei o braço da cama, ele iria me soltar dali a qualquer momento mesmo. Pelo visto, eu ceder não era exatamente o plano dele, pois suas sobrancelhas arqueiam e ele ficou sério.

? Vai ser legal! ? Ele pigarreou e coçou o pescoço, mas abriu a porta e começou a me conduzir pelos corredores brilhantes daquele lugar novamente.

? Minha instrução inclui eu poder tirar dúvidas sobre vários assuntos com você? ? Hamza ficou sério e meneou a cabeça levemente em direção aos guardas nas pontas dos corredores.

? Fora do alcance dos ouvidos desse lugar, princesa! ? ele sussurrou. Dessa vez, não protestei ou deixei alguma gracinha escapar, pois os guardas nos fins dos corredores realmente me olhavam cautelosos, vigilantes. Com o braço apertado ao de Hamza, segui silenciosamente com ele pelos corredores brilhantes e cheios de nuvens que absorviam o som de nossos passos até um par de grandes portas prateadas.

O lado de fora era exatamente como eu havia visto pelas grades do calabouço, construções cinzentas e um tanto sem vida, cascalho e o tempo fechado com nuvens pesadas em um tom cinza claro como se os sóis tentassem iluminar aquele lugar mesmo assim. Aquelas portas por onde saímos davam para o pátio que havia visto através das grades do calabouço, olhando com cautela ao meu redor, percebi nas paredes de pedra mais afastadas nas muralhas que havia pequenas janelinhas na parte mais baixa, então era ali que estava presa! Os calabouços eram sob as muralhas do castelo.

? Analisando o local para uma fuga futura? ? Hamza deu um risinho quando me encolhi um pouco. ? Não tente, por favor ? ele pediu.

? Ordens para me matar caso o faça, não é?

? Claro que não! ? Ele franziu o cenho para mim ? Só respondo a seu irmão e ele jamais ordenaria algo assim... ? O Tenebris então abaixou um pouco como para arrumar algo em seu uniforme e sussurrou para mim ? As mãos de Boroni podem provocar acidentes.

Se era me assustar que ele queria, conseguiu. Agarrei seu braço com mais força e andei tão perto que o vestido roçava em sua perna.

? Pode ficar tranquila quando eu ou Honén estivermos por perto. ? Hamza levou a mão casualmente à lança de aparência mortal em suas costas e sorriu para mim de uma forma que me fez relaxar, ele me protegeria. Não duvidei dele.


O pátio era maior do que eu esperava, passamos por uma espécie de praça com flores brancas estranhas e que me pareciam sem vida, diferente das flores coloridas que meu pai recolhia para minha mãe todas as manhãs. Porém ao nos aproximarmos das flores, senti um perfume que me fez diminuir o passo para inspirar profundamente. Hamza riu novamente e deu um puxão suave em meu braço para que continuasse.

? Qual é a graça? ? O olhei de cara feia.

? Tarsis. ? Hamza nem sequer olhou para as flores. ? Você tem esse perfume, Luyen ? ele comentou com a voz suave.

Pelos céus acima de minha cabeça! Meu rosto pegou fogo e cada pedaço de mim faiscou ao ouvir aquelas palavras. Olhei de soslaio para o tenebris, ele estava sério, mas com malícia brilhando nos olhos rajados.

? Se está tentando me constranger em forma de castigo pelo que disse mais cedo...

? Estou conseguindo? ? Revirei os olhos e resolvi ignorar a provocação, continuamos caminhando até os portões imensos de metal negro no fim da muralha, com um aceno de Hamza, os portões rangeram e se abriram. Um frio na barriga me fez olhar para trás e perceber que estava realmente fora daquele lugar. Uma estrada larga estava diante de nós e para onde olhava só havia nuvens. O castelo ao que parecia ficava no centro de uma campina de nuvens!

Não havia nada para me impedir ali, guardas, Vernuns, ninguém! Se escapasse por aquele campo até um dos portais, poderia escapar e...

? Nem pense ? ele murmurou cansado.

? Está falando de quê? ? Tentei parecer inocente, porém minha voz saiu tremida.

? Eles vão caçar você, caso fuja. ? Não precisei me esforçar para saber que ele não estava falando apenas de Boroni. ? E você não conseguiria correr de mim de qualquer forma!

? Convencido! ? Ele apenas deu um meio sorriso e seguiu em frente.


Deixei a “conversa” morrer conforme caminhávamos pela estrada cercada de nuvens, era estranho estar andando sobre elas, depois de todo o tempo passado ouvindo histórias sobre os habitantes dos céus e seus reinos jamais vistos por humanos. Para mim, estava sendo mais sem graça do que fantasiei quando era criança. Reinos acima das nuvens, com cidades avançadas e lindas, seres que beiravam os poderes dos deuses e que eram quase divinos também... Observei Hamza de soslaio novamente, nada nele parecia divino ou sobrenatural, porém mais cedo... Aquilo pareceu assustador.


Estava prestes a reclamar e perguntar aonde íamos que não chegávamos nunca, quando de repente ela surgiu. E nada me preparou para o que eu estava vendo. As lágrimas brotaram em meus olhos antes mesmo que pudesse de alguma forma escondê-las e Hamza precisou me segurar para que eu não saísse andando sem rumo.

As nuvens sobre nós estavam manchadas em tons de vermelho, rosa e púrpura, os primeiros raios coloridos do sol passavam por entre elas e banhavam a cidade branca, fazendo-a ser tingida por aquelas cores e refletir luz por todos os lados. As ruas pareciam feitas de vidro fosco, salpicados de flocos prateados pálidos que brilhavam contra a luz. As poucas plantas e árvores espalhadas pelas ruas tinham longos galhos escuros com folhas cinzentas e amareladas e, mesmo aquela cor estando por todos os lados sob aqueles raios coloridos, elas pareciam especiais.

Casas, prédios, lojas... Tudo ali parecia perfeitamente organizado. Pessoas... Vernuns abriam as lojas, conversando animadamente uns com os outros e oferecendo produtos aos que chegavam. Não era tão diferente do reino humano assim... Só mais limpo, organizado e... Mágico.

Hamza estava me observando quando virei para ele. Por um momento, cheguei a pensar que me mostrar aquilo poderia ser um plano para me fazer reconsiderar o desejo de correr de volta para a floresta.

? Gostou? ? Ele continuou caminhando, porém mais lentamente para que eu pudesse olhar tudo.

? Nada mal ? comentei.

? Você é difícil de agradar, hein?

Hamza seguiu pela rua principal por pouco tempo, havia muitos olhares sobre nós, cochichos e pessoas encarando de maneira estranha, mas também havia sorrisos e acenos ? especialmente femininos ? na direção do oficial tenebris. As pessoas se vestiam de maneira simples, mas bonita, vestidos soltos de cores claras para as mulheres, os homens ? machos ? usavam calças de um tecido escuro e túnicas em tons que variavam entre branco, cinza, chumbo e negro. A grande maioria usava chumbo.

? As cores das túnicas indicam os que podem ou não serem convocados para o combate e qual nível de treinamento que tem ? Hamza explicou ? branco quem usa são os de idade avançada, ou únicos machos numa família, esses não podem lutar, cinza são muito jovens ou sem treinamento, chumbo são soldados em treinamento e negro são os que têm patentes mais altas. ? Olhei para o Vernum de branco que estava sentado na calçada, amarrando os cordões da bota, ele parecia ter no máximo uns quarenta anos, mas algo no cheiro dele revelava idade avançada. Aquilo me assustava, o quão rápido estava interpretando sinais por sons, cheiros e olhares.

? Interessante, ? comentei percebendo que Hamza podia estar esperando alguma reação para voltar a falar. ? sempre prontos para se algo der errado.

Hamza assentiu e apontou discretamente com o queixo para um grupo de garotas que usavam calças coladas aos corpos, e túnicas curtas cor de chumbo, na altura dos umbigos, duas delas estavam armadas.

? São poucas as que conseguem acompanhar o ritmo dos treinamentos, mas o recrute é aberto para ambos. ? As mulheres olharam em nossa direção como se soubessem que estávamos falando delas, então colocaram a mão sobre o peito e fizeram uma breve reverência antes de voltarem às suas conversas.

Todos ali se pareciam um pouco, as peles pálidas ou acobreadas e os cabelos que variavam também entre branco, cinza e nanquim. Eu me sentia estranhamente comum ali, e isso era bom. Na segunda esquina depois de dois arcos dourados que dividiam a cidade, entramos numa rua paralela entre o que parecia ser uma padaria e uma loja de tecidos. A rua cheia de árvores me lembrava um túnel e pouca luz solar passava por ali. No fim dela, havia uma praça grande no centro de um lago de águas cristalinas com quatro pontes ligando a praça à cidade. Ao me aproximar, notei que podia ver o mundo lá embaixo através dele. Mas o que vi fez meu estômago se revirar.

Era apenas destruição.

Escombros, casas e ruas e prédios, tudo destruído. E de alguma maneira mais terrível ainda, os Vernuns naquela praça, brincando com crianças ou passeando em barquinhos pelo lago, ignoravam como se aquilo fosse normal.

? Eu... Causei aquilo. ? Não foi uma pergunta.

? Não se sinta culpada.

Não tinha como não sentir culpa ao olhar aquilo. Estava prestes a pedir a Hamza que me levasse lá, mas ele me puxou para um lugar isolado por árvores altas de folhas rosadas no canto da praça, onde uma clareira fazia o mundo ali fora parecer mais natural.

Hamza sentou na grama e esticou as costas contra o trono áspero, inspirando profundamente.

? É estranho ter árvores aqui, isoladas da terra, quero dizer. ? Tentei qualquer assunto que me tirasse aquela visão da mente.

? As barreiras oferecem energia e os nutrientes para que elas cresçam, mas é difícil fazer plantas vingarem aqui, mesmo com magia ? disse suspirando e fechando os olhos. ? Mesmo assim, no Céu dos Ventus há um campo imenso rodeado pela floresta mais linda que já vi. De vez em quando vou lá para descansar dessa loucura.

? Então... ? Sentei no chão também, irritada pela falta de mobilidade do vestido, encostei ao troco de uma árvore a menos de um metro de onde Hamza estava e suspirei. ? O que pode me contar sobre isso? ? Girei um dedo, me referindo a tudo ao nosso redor e Hamza sorriu.

? Tudo, Luyen!


Capítulo 16

 

 

Perguntas


Hamza:


A garota parecia desconfortável ao tentar sentar-se na grama azulada, ela arrumou o vestido e dobrou os joelhos, então soltou o corpo, se encostando à árvore atrás de si, suspirou irritada ao tentar se esticar e por pouco não ri da cena, ia me lembrar de avisar Doreen e Honén que ela provavelmente ia preferir calças a vestidos.

? Então, o que pode me contar sobre isso? ? Ela moveu um dedo para englobar o local, seus olhos curiosos analisavam tudo ao redor, mas ainda havia uma pontada de tristeza e remorso desde o momento em que viu o Oitavo pelo espelho d’água.

? Tudo, Luyen! Tem muita coisa para contar, vai ter que ser mais específica sobre o que quer saber primeiro. ? Luyen mordeu os lábios e olhou em volta como se procurasse algo para me perguntar, mas seus olhos se voltaram para mim e havia algo mais que curiosidade ali.

? Honén... O que ela quis dizer com “Ela era o amor da minha vida”?

? Exatamente o que parece. ? Sussurrei. ? Foi por Nibbis que Honén deixou o Quinto. ? Aquela ira fervilhou dentro de mim novamente, como se estivesse vendo em minha frente minha irmã presa por nossos irmãos enquanto era chicoteada, e o sorriso daquela serpente venenosa que um dia chamei de mãe. E Honén suportou aquilo por amor.

? Se acalme! ? Os olhos de Luyen estavam arregalados, olhando a escuridão que eu deixava vazar sem perceber. Dissipei a magia e olhei em volta, pelo menos as pessoas estavam distraídas demais e ninguém além da princesa havia visto aquilo.

? Me desculpe.

? Então... Honén era apaixonada por minha mãe e desistiu de tudo por isso?

? Não. Nibbis a correspondia e, por ter certeza disso, Honén abriu mão de uma vida de aparências, por uma vida com amor. ? Suspirei cansado. Luyen estava de olhos arregalados. ? O quê foi? Achando estranho porque as duas eram mulheres? ? quis saber. Luyen negou com a cabeça, o rosto ficando ligeiramente pálido e os olhos brilhando.

? Isso não me surpreende ou incomoda. ? Ela agitou as mãos ? O estranho...

? Humm?

? É que Nibbis era casada! ? Luyen arregalou os olhos e dessa vez, mesmo com aquele pesar que sempre me incomodava, tive que rir de sua expressão.

? Seu irmão também é casado com Doreen e com Ênya ? retruquei. ? Fora que ninguém além de minha mãe, meus irmãos e Honén sabiam disso. Minha mãe escondeu por vergonha de perder a sucessora para sentimentos que um Tenebris não deveria ter. Honén escondeu por receio de Galathis, seu pai, não aceitar aquilo e a afastar de Nibbis.

? Acha que ele faria isso? ? ela perguntou, tirando uma mecha do cabelo cinzento do rosto. ? Quero dizer... Eu não os conheci, não compreendo bem esses modos diferentes...

? Não sei, talvez não fizesse, pois ele tinha medo de perder o afeto de Nibbis, se o preço para tê-la fosse dividi-la com outra mulher, acho que ele o faria ? falei.

? Isso é tão estranho. ? Luyen bufou, encostando a cabeça no tronco da árvore e se alongando.

? No reino humano, talvez. Aqui, nem tanto. Casamentos com mais de uma pessoa e casamentos com membros da própria família são comuns. Mas Nibbis era favorita de Galathis.

? Então ele também tinha mais de uma esposa? ? Luyen estava de olhos arregalados, tive que me forçar a não rir da cara dela dessa vez.

? Sim, Luyen! Príncipes e princesas acabam se casando mais de uma vez, para manter a descendência. ? Ela franziu o cenho e bufou. ? Você tem um problema com isso?

? Com vários casamentos? ? ela perguntou e eu assenti. ? Claro que sim! Odiaria ser a segunda opção de alguém! Imagina? “Ei, hoje à noite está disponível para mim?” “Não! Já prometi para a outra essa noite!” ? Luyen fez uma careta ao mudar a voz para fazer a imitação do “casal” conversando e eu acabei gargalhando alto com a cena.

? Vai ficar irritada então, pois a ideia é que você seja a terceira esposa de Yoru ? comentei apenas para ver sua reação, mas com uma pontada de ciúme que não deveria estar lá no fundo. Como imaginava, Luyen empalideceu e meneou a cabeça negativamente de forma desesperada.

? Nem pensar! Primeiro: ele é meu irmão! Isso é muito, muito estranho! Segundo: eu não sou boa em compartilhar, sou egoísta!

? Ele não compartilha da sua aversão a poligamia. Vai ser difícil achar alguém monogâmico para você por aqui, princesa! São raros os que escolhem apenas um para compartilhar a vida e, no seu caso, é um pouco pior, pessoas de sangue real só são permitidas se relacionarem com outros de sangue real. ? Dei um longo suspiro, agradecendo por ter escapado desse tipo de aprisionamento quando abandonei o quinto ? Meu irmão mais velho tem dois companheiros, mas tem duas concubinas e filhos com elas. ? Owyn. Era difícil pensar nele e não sentir raiva. Luyen estalou a língua e desviou o olhar, ficou observando as pessoas na praça, as poucas crianças brincando, os raios de sol que atravessavam as nuvens grossas acima de nós, pintando aquele mundo tempestuoso com cor.

? Eu era livre e não sabia ? Luyen sussurrou, fazendo-me olhar pra ela. ? Às vezes, eu corria pela floresta quando me sentia sufocada dentro de casa, ia longe, mas sempre tinha um limite que eu não ousava ultrapassar, porém era por que não queria deixar meus pais preocupados, mal sabia quanta liberdade tinha. Aqui o limite não é imaginário, é real. ? Ela me encarou com os olhos prateados, que se moviam como as nuvens ao nosso redor. ? Agora eu sei como um pássaro se sente ao ser colocado numa gaiola e levado para enfeitar a parede da casa de alguém, ele não canta por alegria, ele pede socorro em sua língua, mas os outros não podem fazer nada para ajudar, senão são presos também. ? Luyen reparou que eu estava a encarando, ela baixou os olhos e coçou o pescoço nervosa.

? Sinto muito por não poder voltar pra casa ? falei. Ela assentiu e voltou a me observar.

? Não me disse o que prefere.

? Hum? ? Pisquei perdido com a pergunta.

? Deixa eu descobrir! ? Ela riu. ? Você tem jeito de conquistador, fica olhando para as pessoas desse jeito sedutor e sorri só pra deixar as pessoas constrangidas. Aposto que adoraria tem um harém! ? Luyen semicerrou os olhos quando dei um meio sorriso para ela. Seu rosto ficou com as bochechas cheias de cor.

? Ah! Não havia percebido que estava te seduzindo. ? Sorri de verdade para ela, fazendo seu sangue tingir ainda mais o rosto e o pescoço. ? Um harém seria bem legal, realmente! ? Ri mais e Luyen revirou os olhos.

? Então por que não tem um?

? Porque eu também não sou do tipo que gosta de dividir. Sou bem ciumento, na verdade. E se for pedir exclusividade, o mínimo que posso fazer é dar o mesmo! ? Luyen riu e se levantou, arrumando a saia do vestido e os cabelos para voltar a caminhar.

? Você se casaria com uma pessoa só apenas para ela não escolher outros também! Isso não é exatamente uma virtude ? ela resmungou e se virou para a trilha entre as árvores. Estendi o braço para que ela o pegasse, Luyen hesitou, mas entrelaçou o braço no meu para continuar o passeio. Duvidava que quisesse voltar para dentro das muralhas do castelo tão cedo.


? Escolher apenas uma pessoa para passar a vida é mais difícil ? comentei pouco tempo depois ao avistarmos um casal de Vernuns sorrindo entre as árvores, sentados juntos num banco de pedras. ? Você tem que lidar com as partes ruins da pessoa também, tem que aceitar que alguns dias vai estar tudo bem, outros nem tanto...

? E isso é ruim? ? Luyen ainda observava o sorriso da garota Vernum.

? Acho que é assim que descobrimos o quanto se ama, quando mesmo com os defeitos e problemas, você escolhe continuar ao lado de quem gosta e enfrentar o mundo ao lado dela. ? Luyen sorriu discretamente e assentiu.

? Até que você não é tão idiota quanto eu pensava, Hamza!

? Nunca mais te digo nada legal, você é desalmada! ? Luyen gargalhou e apertou meu braço com um pouco mais de força, por alguma razão, estar perto dela me fez sentir um pouco melhor, mesmo sentindo lá no fundo que algo estava muito, muito errado.


Luyen:


Estava tão à vontade ao lado de Hamza, tendo saído de dentro do castelo e passeado pelas ruas bonitas e cheias de vida daquela cidade, que mal percebi as horas passando. Por fim estava faminta, querendo parar em algum lugar para comer, mas Hamza me levou por uma rua escura e estreita quase no fim da cidade. Poderia ter desconfiado das intenções de Hamza, mas sentia que podia confiar nele, que talvez ele pudesse ser meu amigo. E se ele conseguia me tirar tão tranquilamente do palácio, talvez ele pudesse me levar até o reino humano para ver meus pais.

Ele parou diante de uma porta de madeira gasta e deu três batidas rápidas, ninguém atendeu. Hamza suspirou e deu mais batidas e nada.

? Talvez não tenha ninguém ai! ? Tentei, meu estômago estava rolando de fome.

? Tem sim, ela nunca sai. ? Ele revirou os olhos e esmurrou a porta com força dessa vez. Ela? Antes que eu perguntasse, a porta se abriu e uma mulher com expressão de quem ia matar alguém apareceu.

? Vai derrubar a porta? Que droga, Hamza! Sabe que é só entrar! ? Por algum motivo, achei sua aparência simples, a mulher, que não soube classificar, tinha pele cor de avelã, rosto suave, mas pouco expressivo, olhos negros e cabelos escuros presos em dezenas de tranças finas, enroladas numa faixa grossa no alto da cabeça. Suas mãos estavam cobertas por luvas grossas de couro, assim como o avental gasto que vestia.

? Desculpe, Rijan. ? Ele sorriu ? É que a princesa ? Ele me deu uma encarada significativa. ? não gosta de como eu apareço dentro dos lugares sem bater, estou tentando me acostumar.

A mulher revirou os olhos para ele, então os voltou para mim, me observou de cima a baixo e bufou.

? Menina, tentar fazer um Tenebris deixar de invadir privacidade é como tentar ensinar um gato a pedir comida. Na primeira vez que o ignorar, ele vai roubar comida e depois fingir que nada aconteceu! ? Pisquei atordoada pela lógica estranha, mas tentei sorrir.

? Eu assustei ela hoje mais cedo, vai demorar para que o humor dela volte, Jan. ? Hamza interveio, já que a mulher continuava a me observar esperando que eu dissesse algo ou risse daquilo. Se é que era para rir. ? Vai nos fazer ficar aqui esperando pra sempre? ? ele zombou e a mulher chiou, dando-nos passagem.

? Esperava você ontem, está atrasado! ? Ao entrarmos, percebi que não era uma casa comum, era uma ferraria. Bom, deveria ter imaginado pelas vestes dela. A área de trabalho dela estava à vista, atrás de uma cortina enrolada contra o batente da porta, ficamos numa sala quase como uma recepção, mas cheia de armas por todas as superfícies. Tentei com muita vontade não pensar num motivo para Hamza ter me levado ali. A mulher ainda me observava com interesse, o que fez minhas orelhas e pescoço queimarem.

? Deixe que eu as apresente. ? Hamza andou até a mulher e deu um tapinha em seu ombro. ? Luyen, essa é Rijan Mavres, a melhor artesã e armeira dos Nove Céus! ? A mulher revirou os olhos, mas sentia algo como orgulho vindo dela. ? Jan, essa é Luyen Asterath, irmã do príncipe Yoru e...

? Destruidora do Oitavo! ? Os olhos da mulher brilharam com curiosidade e algo mais, senti meu estômago embrulhar e meu constrangimento ficou tão evidente que Hamza deu uma cotovelada nela. ? Ah, desculpe não foi por mal!

? Luy, Rijan não é muito sociável, vive dentro dessa toca porque ela não sabe conversar com as pessoas sem ser uma ogra e ofender todo mundo! ? Hamza se esquivou bem no instante que a mulher quase o acertou com um soco.

? Ah... Bem... ? Um buraco podia se abrir e me engolir a qualquer momento, pois não conseguia pensar em nada normal para dizer, era como se minha mente estivesse vazia. ? Podemos ser amigas então, eu vivia numa cabana no meio da floresta e mal conheci cinco pessoas em vinte anos, um eu matei... Então sou tão antissocial quanto você!

As palavras simplesmente saíram e eu fiquei ali, estática olhando para a mulher, esperando que ela tentasse me atingir com algo também. Para minha surpresa, ela e Hamza gargalharam e minha tensão se desfez. Se tivesse uma cadeira atrás de mim, eu teria caído sentada.

? Ela é pura? ? ela perguntou, aproximando-se de mim e puxando minha mão. ? Mãos ásperas...

? Costumava ir pra floresta cortar lenha ? eu me defendi.

? Ah, isso não é ruim, garota! Pelo menos está habituada a ferramentas... Diga, quem matou? Foi com um machado? ? Dessa vez não pude evitar engasgar com o nó em minha garganta.

? Rijan, a arma! Não posso demorar aqui! ? Hamza me olhou preocupado, mas Rijan não se afastou, ela queria uma resposta.

? Foi com minha magia ? confessei, ela assentiu e se afastou, soltando apenas uma de minhas mãos, puxou uma lâmina curta e fina de dentro do avental e cortou minha palma. Xinguei alto e tentei puxar a mão, mas ela pegou um frasquinho que Hamza estendeu rapidamente e recolheu algumas gotas do sangue, em seguida um brilho dourado passou por seu corpo e minha mão foi curada.

? Rijan! ? Hamza ralhou, eu ainda olhava incrédula para minha mão.

? Volte semana que vem, terei alguma coisa pra ela! ? Rijan sorriu e piscou para mim, ela puxou um embrulho cumprido de cima da lareira apagada e o entregou ao oficial Tenebris, ele não me parecia muito bem.

? Até logo, Jan. ? Ele estendeu a mão para mim um pouco relutante, eu ainda olhava para a marca acinzentada do corte curado na mão e a mulher observava o frasquinho com curiosidade. Antes mesmo que saíssemos para a rua, Rijan já havia desaparecido atrás das cortinas.


A volta estava estranhamente silenciosa. Passamos por uma rua por fora da cidade em direção ao castelo, mesmo silencioso, podia sentir que Hamza me observava. Conforme as horas foram passando, as cores da cidade foram ficando mais vivas e o lugar mais quente. Faltava pouco para chegarmos ao castelo-prisão novamente e eu estava prestes a gritar para que ele parasse de me olhar como se eu fosse um bicho, bom, talvez fosse.

? Desculpe por Rijan, ela é um pouco sem jeito com pessoas. ? Hamza tocou meu ombro.

? Não é mais sem jeito que eu ? retruquei, um sorriso travesso apareceu no rosto dele.

? Ah! Ninguém é mais sem jeito que você! Te salvei e até agora não recebi um agradecimento apropriado! ? Estanquei no caminho e o olhei incrédula.

? Você quer um agradecimento por ter me salvado, é isso?

? Seria bom! ? Ele pigarreou.

? Eu te agradeci no minuto que chegamos no quarto! Quer que eu agradeça mais quantas vezes? ? resmunguei.

? Ah, você só disse obrigada. ? Ele riu e eu respirei fundo para não catar algo para atirar nele, só então me lembrei que estávamos andando numa estrada feita de nuvens e que provavelmente não machucaria se eu o empurrasse de cara no chão ali fora.

? O que ela queria com meu sangue, afinal? ? Mudei de assunto antes que perdesse a paciência de vez.

? Provavelmente vai fazer algo para você com sua própria impressão. ? Ele pigarreou tocando a lança nas costas. ? Rijan sabe fazer armas com essência natural, assim nenhuma outra pessoa pode usar sua arma.

? Como assim “outra pessoa não pode usar”? ? Hamza suspirou e tirou aquela estranha lança retorcida de trás de si e a segurou com dois dedos. O metal era escuro e bonito e as lâminas lembravam os riscos de um raio, mas a arma não era igual à dos dois oficiais tenebris que estavam durante o julgamento, aquelas nem pareciam armas, eram somente cabos sem lâmina.

? Vamos, pegue! ? Ele estendeu a mão para que eu pegasse a arma. Revirei os olhos e segurei o cabo firmemente, com medo de deixá-la cair. Quando ele soltou a arma em minha mão e se afastou um passo com um sorriso convencido no rosto, não houve nada. Ela pesava pouco mais que o machado que eu usava para cortar lenha, a girei no punho e fiquei olhando para Hamza com as sobrancelhas erguidas. Os olhos dele não saíam da arma em minha mão, olhos tão arregalados que pude ver com clareza cada rajado negro nos olhos prateados.

? Não sei o que era para acontecer, mas sinto que sua amiga armeira te passou a perna. ? Comecei a rir e lhe devolvi a arma, Hamza a pegou em silêncio e ficou olhando ainda chocado enquanto eu caminhava para os portões do castelo.

“Isso só pode ser algum tipo de brincadeira cruel.” Tive certeza de ter escutado essas palavras dele, mas Hamza já estava caminhando ao meu lado novamente, muito, muito sério dessa vez.


Hamza sequer entrou no quarto, ele desapareceu assim que chegamos perto da porta numa cortina de fumaça, não conseguia entender o que havia feito para deixá-lo com aquele humor, Hamza só podia ser louco mesmo. Eu me atirei na cama assim que entrei e fechei as portas, estava faminta, mas não o suficiente para me arriscar sozinha pelo castelo atrás da cozinha, até porque sabia que não era bem-vinda por todos ali. Poucos minutos depois, Honén e Doreen estavam no meu quarto trazendo comida para quatro pessoas em um carrinho.

? O passeio foi divertido? ? Doreen perguntou, sentando-se à beira da cama com um doce de aparência estranha entre os dedos.

? Foi instrutivo ? murmurei pegando um bolinho salgado no carrinho.

? E onde está Hamza? ? Honén quis saber, olhando desconfiada para minha expressão de paisagem.

? Eu sei lá! Saiu por aí! ? resmunguei. Ela me deu aquele olhar de advertência antes de desaparecer também, engoli em seco e Doreen riu, servindo um líquido azulado numa taça para mim.

? Algo errado? ? Neguei dando uma golada no líquido que queimou por dentro como fogo. Tossi e quase engasguei com aquilo, Doreen começou a rir e abanar as mãos.

? Me desculpe! Não sabia que não estava acostumada a beber! ? Ela mordeu a boca, tentando evitar rir mais enquanto eu tentava voltar a respirar normalmente.

? Tudo bem, acho. ? Tossi, pegando outro copo com água e tomando para tentar limpar o gosto ruim.

? O que fez para espantar Hamza? Atirou algo nele também? ? Ela bebericou aquele troço horrível e me encarou com curiosidade. ? Ele geralmente é bem tolerante e paciente com pessoas difíceis, para ele ter fugido...

? Ei! Eu não fiz nada! Acho. ? Doreen levantou uma sobrancelha como se duvidasse daquilo. ? É sério, só fiz uma piadinha com algo da arma... Nada de mais!

? Talvez não tenha sido nada de mais então. ? Doreen piscou, oferecendo um prato com legumes e frango, tudo ali parecia um pouco sem sabor, diferente das comidas deliciosas e temperadas de minha mãe.

Honén apareceu novamente no quarto, só que com um sorriso discreto no rosto. Doreen ergueu as sobrancelhas e fez um gesto com os ombros, uma pergunta silenciosa.

? Não é nada demais! ? Honén acrescentou, sentando-se ao meu lado e pegando algo para comer também. ? Hamza foi entregar a arma que encomendou de Jan para Yoru!

? Não acho que essa Rijan seja realmente confiável! ? resmunguei, as duas me olharam surpresas pela afirmação. Doreen serviu mais daquela bebida para ela, em seguida perguntou:

? E qual é o motivo de achar isso, Luyen? ? A princesa sorriu para mim, mas Honén estava séria, me encarando como se gritasse para que eu desviasse o assunto da conversa.

? Bom... Logo que eu cheguei a loja ela foi bem grosseira e insensível. ? Embora não fosse mentira, aquela afirmação me fazia parecer fútil. Honén parecia mais aliviada e bebeu um longo gole do copo de Doreen antes dessa rir.

? Rijan é grossa mesmo, mas é uma das pessoas mais confiáveis que conhecemos! Mas vai se acostumar com isso! Espero... ? Doreen serviu um pouco mais da bebida e tomou num único gole, deixando Honén e eu surpresas. ? Eu tenho outro assunto a tratar com você, Luy. Mas isso é mais delicado.

? Lá vem! ? Honén sorriu como se preparasse para ver um espetáculo, ela se posicionou na cadeira para me observar e Doreen parece ainda mais desconfortável com isso. Pelo jeito, a pergunta seria algo difícil de responder.

? Luyen, você já dormiu com um homem?

Podia ter afundado no piso do quarto enquanto meu rosto queimava e Honén passava mal de rir.


Capítulo 17

 

 

Tempestade sem raios


Yoru:


Doreen continuou deitada na cama, me observando andar em círculos pelo quarto, estava com um peso a menos na consciência agora.

? Vai fazer um furo no chão e cair no salão! ? brincou sorrindo para mim com expressão de divertimento mal escondida. ? Ela quase surtou quando perguntamos. ? Doreen riu ainda mais, eu parei de andar a me sentei ao lado dela na cama.

? Isso é bom ? falei. Ela me fuzilou com um olhar enciumado.

? Me entristece saber que não posso ser eu a trazer sua família de volta! Embora eu tenha sido escolhida para você justamente para isso. ? Ela me deu as costas e voltou a folhear seu livro.

? Eu ainda amo você! ? A virei com cuidado, os deuses sabiam que se aquela mulher ficasse com raiva, não havia tormenta ou escuridão que evitasse sua tempestade, mesmo que ela não a tivesse no sangue, tinha na alma. ? Mas Yami foi prometida a mim antes mesmo de eu te conhecer! ? tentei me justificar.

? Acha que ela vai te aceitar? ? Doreen perguntou com sarcasmo carregado no tom de voz. ? Luyen, não Yami! Ela é Luyen, foi criada por humanos, tem sentimentos mais fortes por isso, Yoru! ? Ela se moveu rápido, ajoelhando-se na cama e segurando meu rosto estre as mãos delicadas, mas firmes. ? Olhe para mim e diga com sinceridade: você vai ter coragem de forçar aquela garota a se casar com você caso ela não queira? Vai ter coragem de forçá-la na cama? ? Suas perguntas foram como gelo em minhas veias.

? Eu... Claro que não Doreen! Que tipo de pergunta é essa? Vindo de você...

? Então esteja preparado para ser rejeitado por ela. ? Ela se levantou da cama irritada. ? E por mim também se você continuar insistindo nisso! Eu não estou aqui para ser segunda opção de ninguém! Como se já não me bastasse Ênya atirando isso na minha cara o tempo todo! ? ela rosnou, sua aparência calma mudou para a verdadeira, a pele pálida brilhante e cabelos cor da lua. ? Eu faria tudo por você, Yoru, fiz tudo ao meu alcance e mais até agora para que você fosse feliz e para salvar aquela garota por ser sua irmã!

? Doreen...

? Mas eu não vou aceitar menos do que mereço e se você não me quer, bom, eu posso viver com isso, longe de você! ? Ela se virou para sair do quarto, mas me levantei e a segurei rapidamente antes que escapasse. Ela tentou se desvencilhar, mas a apertei contra meu corpo, envolvendo-a com os braços, sentindo seu corpo tremer.

? Me desculpe! ? A virei para mim, limpando as lágrimas que escapavam por seus olhos.

? Eu já tenho que aturar Ênya! Não vou aguentar isso de novo! ? Ela chorou mais. ? Mas eu aguento me livrar de você para não sentir mais isso! Mesmo que te ame! ? Ela socou meu peito, tentando se afastar, mas a puxei para a cama, sentando-me e a abraçando com cuidado.

? Você é minha escolha, Doreen! Eu escolhi me casar com você. Yami foi escolha de nossos pais! Se essa for a única maneira de eu fazer a vontade deles...

? Ah! ? Ela bufou tentando se afastar novamente, mas não permiti. ? Está procurando desculpas para isso, Yoru. ? Respirei fundo, afundando o rosto em sua barriga, ela estava relutante, mas passou os braços ao redor de minha cabeça, afagando meus cabelos como sempre fazia.

? É difícil lidar com tudo isso...

? Pois então... Eu vou deixar que quebre a cara! Vou deixar que lide com ela do seu jeito e vai entender o que eu quis dizer depois! ? Puxei seus braços, derrubando-a na cama e deitando a cabeça sobre ela. ? Mesmo assim, não podemos levar ela ao círculo das tempestades agora, Yoru. A festa é em dois dias e sabe que depois da cerimônia ela ficará mal por dias, isso se não apagar e dormir por uma semana!

? Eu entendo. Vamos esperar então, não quero dar motivos a seu pai para achar que estamos fazendo pouco caso dele, embora ele saiba que uma apresentação como essas possa perturbá-la ? falei. Doreen assentiu.

? Talvez ele esteja fazendo isso justamente para que ela perca o controle e ele tenha motivos para se livrar dela ? disse tão baixo que mal escutei. Era uma possibilidade. Boroni não gostava de perder.

Doreen continuou me acariciando em silêncio, eu estava perdido em pensamentos, tentando descobrir como evitar uma tragédia. Precisaria de Hamza na cola dela durante a festa de apresentação, ou corria o risco de Yam... Luyen fazer um estrago e dar motivos para que o tribunal dos Céus se reunisse novamente. Doreen ainda estava zangada por eu não ceder sobre Luyen, sabia disso, mas não entendia o que havia errado com ela, Doreen sabia que eu a amava, não tanto quanto ela a mim, mas por que estava tão irritada por causa de Luyen? Inspirei fundo novamente enquanto ela acariciava minha cabeça, dava para sentir sua frustração ainda, mas eu tinha que tentar...

Um choque.

Prendi a respiração e fiquei totalmente silencioso.

? Yoru? ? Doreen ergueu a cabeça para me encarar.

? Shihhh! ? sibilei para que ficasse em silêncio. Outra vibração de energia. Aquele cheiro... Ah eu sabia bem o que era aquele cheiro.

? O que houve afinal? Está me assustando! ? Ela assustada? Eu estava assustado demais para responder. Ergui a mão trêmula, puxando seu vestido pra cima para tocar as pontas dos dedos em sua barriga e sentir aquela vibração suave de energia contra minha pele, não passava de uma cosquinha. ? Yoru! ? Doreen franziu o cenho.

? Você está grávida. ? Encostei os lábios contra a pele pálida de sua barriga e sorri. ? Nós vamos ter um bebê ? afirmei. Doreen começou a chorar novamente e eu me deitei ao seu lado, fechando os braços ao redor dela, mais apertado dessa vez. ? Por que está chorando?

? Porque agora eu posso te dar uma surra e te mandar embora porque já tenho um pedacinho seu só pra mim! ? Ela gargalhou e puxou meu rosto para me beijar. Definitivamente, uma tempestade só que sem raios.


Luyen:


Pouco depois do jantar que eu quase não consegui comer, o meu estômago ainda dava voltas de nervoso em minha barriga. Honén mantinha em seu rosto a mais pura expressão de paisagem, os olhos prateados calmos me analisavam as vezes, esperando que eu tivesse alguma reação além da cara de susto.

? Eles não vão querer que eu faça isso agora, não é? ? perguntei após repassar pela milésima vez toda a explicação sobre a cerimônia da chuva em minha mente. Honén continuava rindo, enquanto me ajudava a sair da banheira, pelo visto eu estava pior do que parecia.

? Não devia estar nervosa assim! Não é nada demais, todas as meninas Vernuns tormentadoras passam por isso quando são crianças! É só uma maneira de ajudar a ter controle de seu poder essencial!

? E por que precisa ser virgem para isso? ? perguntei ainda mais inquieta.

? Porque depois que se tem relações a primeira vez, seu poder aumenta e se torna mais hostil. Acontece com muitas criaturas com magia! ? Honén sentou ao meu lado na cama e começou a pentear meu cabelo. Suas mãos eram sempre tão gentis... E pensar que ela havia desistido de ser rainha do Quinto Céu por seu amor...

? Entendo. ? Pensei em Chris e o que havia feito com ele, meu estômago embrulhou e suspirei cansada. Nunca mais ia querer ninguém me tocando, não ia ficar hostil. Fiquei em silêncio olhando para Honén através do espelho, mesmo depois de ela já ter finalizado de me pentear. Eu me estiquei na cama e fiquei brincando distraída com as franjas da cortina do dossel, Honén sentou na poltrona ao lado da cama e suspirou, puxando um livro sabe-se lá de onde.

? Honén... Por que não me deixou falar sobre a arma para Doreen? ? quis saber. Honén desviou os olhos das páginas para me encarar e mordeu o lábio inferior como se debatesse se deveria ou não me contar algo. Ergui as sobrancelhas, esperando uma resposta, porém Honén voltou para a leitura e respirou fundo.

? Há um tabu envolvendo armas com essência. ? Ela parecia desconfortável em falar, podia sentir algo diferente em seu cheiro, mas não conseguia identificar o que era, um cheiro incômodo e ácido. ? É muito raro alguém que possa segurar armas essenciais de outras pessoas e isso é associado a magia proibida. Por isso é melhor evitar falar sobre isso.

? Isso não explica a reação de Hamza! ? argumentei.

? Claro que explica! Se outras pessoas ficarem sabendo que você consegue segurar armas essenciais, podem pensar que ele te ensinou a fazer isso! ? Franzi o cenho para ela, mas Honén continuava piscando seus longos cílios negros em minha direção, com ar de que não havia nada de errado. Resolvi então ignorar e me deitei sobre o braço, fiquei um longo tempo olhando-a, até que Honén se irritou com toda minha atenção sobre si e atirou um livro em mim.

? O que é isso? ? grunhi.

? Um livro! ? Ela revirou os olhos. ? em suas páginas tem letras, palavras, e todas elas juntinhas formam uma história! É para ler! ? Pensei em lhe atirar o livro de volta, mas quem fez a pergunta idiota fui eu.

? Você é igualzinha a ele! ? Ela soube na hora que eu falei de Hamza. Dois mal-educados que mudavam de humor como trocavam a roupa. Folheei algumas páginas do livro e suspirei, voltando a memória de que minha mãe havia me ensinado a ler, desde então devorava os livros, uma vez que quase não podia sair e havia pouco para fazer na cabana, então aproveitava o tempo com os livros que eles traziam para casa quando iam à cidade, mas a maioria eram livros medicinais, de ervas ou catálogos de animais de caça.

 

? Bom dia, princesa! ? A voz de Hamza fez com que eu desse um pulo, levantando assustada e procurando por Honén, é claro que ela não estaria ali, peguei no sono na metade do livro quase no final da madrugada e sonhei com o romance da história. Sentei na cama de pernas cruzadas, ainda de olhos fechados, mas o sono foi mais forte e eu caí para frente de cara no colchão, escondendo o rosto com os braços. ? Eu disse bom dia! ? Hamza riu quando tateei a cama procurando algo para atirar nele.

? Se eu te desejar um bom dia, você terá um dia bom longe de mim e me deixará dormir até a hora do café da tarde? ? Ele apenas riu, espalhando aquela fumaça negra doce pelo quarto. Por algum motivo, aquele perfume me despertou e eu o olhei irritada.

? Isso é um enfeite novo? ? O oficial apoiou a mão na cama e puxou o livro dali, não percebi que tinha dormido sobre o livro e meu rosto estava coçando na lateral. Estiquei o pescoço para ver minha aparência na penteadeira, meu rosto estava marcado com os riscos da capa do livro. Soltei um gemido caindo na cama novamente e cobrindo o rosto com o travesseiro.

? Saia daqui! Já te pedi pra chamar antes de entrar! ? rosnei envergonhada.

? Em minha defesa, eu bati e chamei cinco vezes! Invadi o quarto para ter certeza de que ainda estava viva! ? Ouvi sua voz abafada por causa do travesseiro. Eu o peguei e o atirei contra o oficial, então levantei-me e saí marchando para o banheiro sob o olhar implicante dele. Fiquei esfregando o rosto por quase dez minutos para tentar tirar a marca do livro, mas ela apenas ficou mais suave. Saí do banheiro e comecei a revirar o armário em busca de algo melhor para usar, algo que não fosse um vestido e elegante, o que parecia ser difícil achar ali.

? Onde está Honén? ? perguntei, olhando para Hamza pelos cantos dos olhos, ele estava perdido em pensamentos, olhando para mim tão sério quanto no dia anterior, quando percebeu que eu estava falando com ele, piscou e sorriu um pouco.

? Ela está com Prisla, não faço ideia do que estejam fazendo e nem quero saber! ? Minhas orelhas queimaram, e Hamza riu. ? Você é maliciosa demais para alguém tão... Comportada! ? Parei de procurar roupas para encará-lo com raiva.

? Acredite, não foi por falta de tentativa! ? grunhi. Hamza levantou as sobrancelhas curioso e sentou-se na poltrona ao lado da cama.

? Gostaria de saber mais sobre isso ? disse. Tentei disfarçar e abaixei em frente ao armário, havia algumas peças de roupa mais escuras na parte de baixo e eu as revirei, mas não consegui evitar as palavras, parecia que eu queria contar a ele.

? O nome dele era Christian ? comecei. ? Ele foi morar na floresta e eu o conheci num dia enquanto recolhia lenha perto do lago. No começo era só amizade, mas... Eu comecei a gostar dele de outra forma, e ele correspondia. ? Eu apertei firme o tecido negro nas mãos, sentia o olhar de Hamza sobre mim. ? Num dia que meus pais foram a cidade, eu sabia que eles só voltariam no outro dia, então fui a cabana de noite, estava chovendo... ? O nó em minha garganta se intensificou, não havia percebido ainda as lágrimas escorrendo por meu rosto, usei a roupa para limpá-las. ? Eu o matei.

Peguei a roupa e entrei no banheiro para vesti-la, mas fiquei um bom tempo ali, até que me acalmasse, até que aquele sentimento horrível desaparecesse. Vesti as calças de um tecido grosso e escuro semelhante ao brim e uma blusa cinza de um tecido fino transparente com uma faixa escura cobrindo os seios. Amarrei o cabelo num rabo alto e lavei o rosto mais uma vez antes de sair do banheiro para enfrentar o olhar acusatório de Hamza.

O tenebris estava sentado de pernas cruzadas na poltrona, quando me viu, ele se levantou e estendeu o braço para mim. Não havia nada em seu olhar que demonstrasse qualquer tipo de acusação pelo que fiz.

? O quê? ? perguntei, pegando seu braço. Ele sorriu para mim e se inclinou um pouco para sussurrar algo em minha orelha.

? Vamos passear no bosque, enquanto o seu príncipe não vem!

Antes que entendesse suas palavras, a fumaça negra nos circulou e senti meu corpo ficar leve, como se estivesse me desfazendo e tudo passou num borrão ao meu redor. A sensação era enjoativa, mas num segundo desapareceu, quando senti o cheiro da terra úmida, das folhas caídas da floresta ao nosso redor. Olhei espantada para Hamza antes de olhar em volta e perceber que estava na minha floresta.

? Vamos ver seus pais!


Capítulo 18

 

 

Despedida


Hamza:


Precisava continuar agindo normalmente, não podia me descontrolar por causa daquilo... Mas perceber que ela podia usar Korayer, minha lança, havia acabado comigo. Aquilo não era possível! Fugi de meus pensamentos quando a escuridão se dissipou revelando a floresta ao nosso redor. Luyen me encarou espantada quando percebeu que estávamos na floresta em que ela vivia, na certa esperava alguma reação negativa de minha parte após dizer que matou o homem humano por quem tinha sentimentos. Quem era eu para julgar, ainda mais sabendo que ela sequer sabia o que era?

? Hamza... ? Meu nome saiu de seus lábios como uma canção. Os olhos azuis prateados estavam tão cheios de alegria que me doeu que aquela seria a última vez que ela os veria, e eu me certificaria disso. ? Não vai ter problemas por me trazer aqui? ? perguntou.

? Se você abrir essa bocona e falar para alguém que estivemos aqui, nós dois teremos um problema, Luyen! ? Ri. ? E eu nunca mais farei nada legal por você se disser para alguém que estivemos aqui sem a permissão de Frezi! ? Ela revirou os olhos e começou a caminhar pela trilha estreita, a luz do sol que atravessava as copas das árvores a deixava com uma aparência quase doce, diferente do limão que realmente era!

? Você é um pé no saco! ? ela resmungou.

? Você tem um, por acaso, para saber como é levar um chute lá? ? Seu rosto mudou de cor, envergonhada pela pergunta.

? É modo de expressão! ? Luyen retrucou me empurrando.

? Então use uma expressão de algo que você possa afirmar que é realmente incômodo! ? impliquei.

? Falar que você é incômodo como pisar numa pinha quando se está descalço é longo demais! ? ela murmurou como se realmente estivesse pensando em algo para usar como comparação ? Acho que seria mais como deixar o machado cair no pé!

? Já deixou o machado cair no pé? ? A encarei perplexo. Luyen mordeu os lábios e baixou o rosto, constrangida novamente.

? Estava distraída...

? E pensar que eu te deixei pegar minha lança! Podia tê-la deixado cair e cortado os pés! ? Ela me deu uma cotovelada e franziu o cenho.

? Não seria tão desastrada assim! E se a lança caísse, não cortaria o pé todo, só as pontinhas!

Aquela era a conversa mais idiota que já tive na vida.

? Se cortasse os dedinhos, ia ficar com o pé menor e ninguém mais te confundiria com um troll por causa deles! ? Luyen estancou no meio da trilha e me encarou.

? O quê?

? Não pode me culpar! Você bate tanto os pés no chão quando anda que todo o castelo treme! Os guardas já procuram o perigo quando você vem andando a dois corredores de distância! ? Gargalhei da cara de pânico que ela fez ao olhar para os pés, quando percebeu que eu estava apenas implicando, beliscou a lateral de meu corpo com força, aquilo só fez com que eu risse mais. Fazia tempos que não me divertia tanto às custas de alguém.

? De novo, você é um pé no saco e posso dizer isso usando experiências dos outros! ? Ela saiu andando na frente, mas sem bater os pés como fazia quando estava irritada, o que me fez morder a boca para evitar rir novamente.

A floresta foi se abrindo, as cores e os sons pareciam mais vivos naquele pedaço onde o sol iluminava a cabana coberta por hera. O lugar parecia uma pintura tomando vida, a magia ali não era como nos Céus, mas estava em cada detalhe vivo e brilhante do lugar. Luyen sorriu e respirou fundo antes de correr até a porta da casa, onde a mulher humana estava de costas, levanto um montinho de lenha cortada para dentro.

? Luyen! ? Ela soltou a madeira e abraçou a princesa, apertando-a, em seguida olhando cada pedaço procurando por ferimentos.

? Estou bem, estou bem! ? Luyen ria afagando a cabeça da mulher. Em seguida o homem saiu da cabana também, sem acreditar no que estava vendo, abraçou as duas e começou a chorar.

? Achei que não a veria novamente, filha! ? Ele segurou o rosto de Luyen, que tentava conter as lágrimas e beijou o topo de sua cabeça. Luyen então me olhou, pedindo para que me aproximasse. Os dois pareceram nervosos com minha aproximação, mas quando Luyen disse que eu era um amigo, eles confiaram nela.

? Venham! Vamos tomar um café! ? a mulher chamou, Luyen pegou a lenha no chão e entrou na casa seguindo os dois, esperando que eu fizesse o mesmo. A porta levava a uma cozinha quente, com uma mesa grande de madeira, onde nos sentamos ao redor, ao lado de um fogão grande que estava aceso e a casa cheirava a pão fresco e café. A simplicidade do lugar era mais aconchegante que qualquer pedaço dentro dos castelos flutuantes, marcas de carvão riscavam as paredes da cozinha com desenhos tortos, certamente feitos por uma criança, mas que os pais não tiveram coragem de apagar.

? Como estão tratando você, querida? Soube que foi inocentada... ? O homem pigarreou, olhando-me de soslaio algumas vezes. Luyen tentou não parecer nervosa ao responder:

? Eles são muito gentis comigo, pai! ? Sorri ao perceber que ela não deixaria de chamá-los assim mesmo que não fossem seus reais familiares. ? Hamza me trouxe de surpresa hoje! Não achei que poderia sair tão cedo! ? Ela sorriu para mim, seu pai, no entanto, fechou a cara. Ele sabia o que eu era e não parecia ter gostado da forma casual que a filha se referiu a mim.

? Entendo... ? Ele franziu o cenho, mas disfarçou quando sua mulher apareceu para chamar Luyen para ajudá-la com o forno. A princesa se levantou sorridente e foi até o forno grande tirar os pães enquanto sua mãe fazia algo no fogão.

? Não veio trazê-la apenas para um passeio, não é? ? ele murmurou para que apenas eu escutasse. As risadas das duas me distraíram por um instante.

? Não, não vim ? respondi igualmente baixo. Puxei uma bolsa pequena presa em meu cinto, algumas barras pequenas de ouro tilintaram ali. Entreguei-lhe a bolsa rapidamente e voltei à minha pose casual quando Luyen deu uma olhada para o pai em silêncio, incentivando-o a falar comigo. Quando ela voltou a se distrair com sua mãe, ele me encarou com os olhos escuros faiscando.

? O que é isso? ? chiou.

? Para vocês pegarem suas coisas e partirem para o continente sul. ? disse. o homem arregalou os olhos, ira brilhava ali.

? Não vou me afastar de minha filha! Não podem fazer isso! ? ele rosnou, dando uma olhada para ver se Luyen não estava nos ouvindo.

? Ela se importa com vocês, se eles quiserem atingi-la, vão matá-los para conseguir isso. Ser uma princesa só coloca ela em mais risco e a princesa do Sétimo conseguiu que os humanos não os condenassem por manter um membro dos Céus aqui embaixo ? falei rapidamente. ? Vocês precisam deixar esse lugar, podem não se importar com suas vidas desde que estejam perto dela, mas acha que ela vai suportar viver com o peso de vocês morrerem pelo apego dela a vocês? ? O homem me encarou sério por um momento, apertou a bolsa na mão e suspirou.

Quando as duas trouxeram o café, tive que admitir que ele era um mentiroso nato, pois soube colocar um sorriso no rosto e no olhar, de forma que nem mesmo Luyen reparou em sua tristeza.

? Então... Hamza, não é? ? a mulher, Nalla, me perguntou, assenti uma vez, ela deu um sorriso conspiratório para Luyen, que fez a garota revirar os olhos e desviar de meu olhar. ? Você é um Tenebris, por que trabalha com Vernuns? Não existe uma rivalidade entre as duas raças?

? Mãe! ? Luyen ralhou.

? Tudo bem! ? Dei de ombros ? A maioria dos Vernuns não gostam de nós porque somos capazes de absorver e anular os poderes deles. Mas eu tenho um contrato com príncipe do Oitavo.

? Ah, entendo! ? Ela sorriu, servindo-me uma caneca de café com um creme e um pão coberto de açúcar. Nalla era muito sorridente para alguém na presença de um Tenebris, fazia parecer que não ligava para o que eu era.


Depois de tomar o café, ouvindo Luyen conversar com a mãe como se nada nunca tivesse acontecido, lembrei a princesa de que não poderíamos nos demorar e que Yoru a procuraria a qualquer momento, Luyen então se apressou e foi ao seu quarto com Nalla para pegar algumas coisas que queria levar com ela.

? Partam o mais rápido possível ? falei ao sairmos da cabana para a varanda. O humano me olhou, as rugas nos cantos dos olhos e a falha na cor dos cabelos e da barba mostravam mais que alguém envelhecendo, contavam uma história de vida que eu talvez jamais saberia.

? Eu rezava para esse dia nunca chegar. ? Ele suspirou olhando para o céu com os olhos marejados. ? Acho que os deuses não nos escutam porque suas cidades não deixam que nossas vozes cheguem lá!

? Nem as nossas próprias orações chegam a eles. Não acredito que sejam as cidades que impedem isso.

? Talvez os deuses não se importem mais ? retrucou.

? Ou talvez queiram que aprendamos a não depender de milagres. ? Ele riu de minha réplica e segurou meu braço com força.

? Cuide bem dela! ? ele exigiu, sem ter a mínima noção do que aquele pedido significava e de para quem o pedia. ? Não há nada mais precioso para nós no mundo inteiro. ? Os olhos cor de terra se voltaram para dentro no momento em que as duas ainda sorridentes saíram da casa, Luyen carregava uma bolsa pequena com algumas coisas. Ela abraçou a mãe, a beijou e se despediu dos pais, saiu dali sorrindo feliz, sem nem imaginar que era a última vez.

? Vamos voltar antes de percebam que não estávamos na cidade! ? Peguei o braço dela para nos levar de volta.

? Obrigada por me trazer! ? Luyen sorriu para mim. Algo no meu peito se apertou ao ver aquele sorriso, não podia deixá-la saber que Doreen me mandou ali para mandar seus pais embora, antes que Boroni pensasse em os usar como instrumento de vingança e tentar afastar Luyen de Yoru. Será que me agradeceria quando soubesse da verdade? Que mesmo sem autorização eu a levei para se despedir? Pensaria nisso depois.

? Vamos.


Capítulo 19

 

 

Perto demais.


Luyen:


Hamza nos levou de volta para dentro do quarto, mas não me soltou quando chegamos lá. Ele estava de cenho franzido olhando para o quarto, os olhos pareciam mais escuros naquele momento.

? Algo errado? ? quis saber. Ele soltou meu braço e abriu as mãos, espalhando sombras e fumaça para todos os lados, fazendo com que eu me agarrasse a ele assustada. Ele me deu um sorriso malicioso, mas não conseguiu esconder a preocupação.

? Acho que... Não é nada, afinal! ? ele murmurou, recolhendo aquela escuridão. Eu me joguei contra a poltrona do quarto, Hamza me deu uma olhada de esgueira e suspirou.

? De novo... Algo errado? ? perguntei, Hamza sentou na poltrona mais perto da janela e me encarou de uma forma que fez minha pele formigar de nervoso.

? Luyen, sobre a arma ontem...

? Ah, não se preocupe! Honén me disse tudo! ? Não sabia como era possível, mas Hamza perdeu a cor e arregalou os olhos.

? Ela... Disse para você o que significava? ? Assenti. ? Eu não quero que se sinta pressionada a fazer qualquer coisa quanto a isso...

? Não se preocupe, só não contar para ninguém, assim ninguém vai poder dizer que você fez algo errado! ? Sorri. ? Aliás, estou te devendo uma por hoje, então é óbvio que não vou dizer para ninguém. ? Hamza piscou parecendo confuso, franziu o cenho e apoiou o rosto na mão.

? O que exatamente Honén disse sobre isso para você?

? Ela disse que conseguir segurar armas essenciais de outras pessoas tem a ver com magia proibida e que poderiam dizer que você me ensinou a fazer isso, então podia ter problemas caso eu falasse! ? Hamza estava me olhando incrédulo.

? Ela te disse isso?

? Sim, disse. ? Hamza começou a rir como se tivesse escutado uma piada incrível. ? Qual é a graça?

? Não é nada! ? Ele se levantou e suspirou, passando os dedos pela lâmina da lança em suas costas. Um meio sorriso se desenhou em seus lábios e seu olhar mudou por um instante para algo terno.

? Bom... Eu não achei que fizesse muito sentido. Até porque não acredito que se possa ensinar magia em alguns minutos... ? comecei a pensar, procurando uma explicação lógica naquilo. Hamza se aproximou, deu um peteleco em meu nariz, fazendo-me chiar e querer socá-lo.

? Não pense em coisas muito difíceis, pode acabar derretendo sua cabeça, princesa! ? ele zombou, no instante que percebi a maldade em suas palavras, agarrei o livro de Honén e o atirei contra ele, mas Hamza desapareceu naquela cortina de fumaça antes mesmo que o livro estivesse na metade do caminho.

Filho da mãe, temperamental! Indeciso! Não conseguia entender!


Fiquei alguns minutos andando pelo quarto, estava entediada de ficar ali e o passeio na floresta para ver meus pais só aumentou minha vontade de sair um pouco pelo castelo. Honén e Hamza não apareceram, Doreen e Yoru também não. Bem, eu não era uma prisioneira, não fazia sentido ficar confinada no quarto. Meu medo de encontrar com Boroni era bem menor que minha curiosidade, então, ignorando a vozinha em minha cabeça que mandava eu ficar em um local seguro, escapuli do quarto quase saltitando para os corredores.

Os guardas no fim do corredor de meu quarto me lançaram olhares preocupados e cochicharam enquanto eu caminhava despreocupada para fora daquela ala do castelo. Andei mais perto das grandes janelas abertas para sentir a brisa com cheiro de chuva. Virei à esquerda quando saí do corredor principal, o tempo lá fora estava fechado, mesmo assim aquela claridade branca me fez suspirar. Não era de todo ruim viver ali, só... Um pouco sem graça. Virei à esquerda mais uma vez no fim daquele outro corredor, tendo noção de que estava fazendo um círculo, mas meu quarto era o penúltimo daquela área, então ou o outro corredor era fechado, ou virava para outro lado. A claridade no fim do corredor era mais forte, me dei conta de que no lugar de janelas, havia na verdade portas de vidro ali.

Dei uma olhada para trás, os guardas que estavam me observando, certamente por eu estar andando sozinha pelo castelo, desviaram os olhares e fingiram estar prestando atenção em qualquer outra coisa, menos em mim. Ao me aproximar das portas, nenhum deles veio em minha direção, toquei as maçanetas douradas e dei mais uma olhadinha. Armas ainda nas cinturas e posturas inalteradas, mesmo com os olhos atentos. Abri as portas e saí para uma área que não tinha visto no dia anterior quando saí com Hamza, um jardim enorme estava à espera ali! Muito perto de meu quarto!

Saí sorridente observando o lugar com total atenção. O jardim era dividido no que pareciam ser quadrantes, arcos de pedra coberto por plantas e pequenas flores de um azul pálido dividiam o jardim em quatro partes. Segui então pela trilha central e fui calmamente em direção ao primeiro arco, não havia guardas ali fora, acabei me sentindo mais tranquila assim. Passando pelo primeiro arco, dei de cara com um banco de pedra fazendo um semicírculo ao redor de uma fonte de pedras que formavam uma pequena cachoeira. Andei ao redor dela, olhando as plantas de aparência sem graça, mas muito perfumadas. Acabei me lembrando do comentário de Hamza sobre meu cheiro e travei no lugar, sentindo meu rosto queimar.

? Não devia estar aqui fora sem sua acompanhante, princesa ? uma voz desconhecida e mansa falou. Eu me virei surpresa para ver quem estava ali e dei um passo para trás, relutante. Ele estava ao lado de Boroni no julgamento, o Vernum era bonito também, o rosto lembrava o de Doreen, cabelos pálidos iguais, sorriso suave, só que os olhos dele eram do mesmo tom azul pálido das flores.

? Não vi Honén em lugar algum, como ninguém me disse que eu deveria permanecer no quarto, resolvi sair um pouco ? eu me expliquei. O Vernum sorriu e estendeu o braço para mim. Quando me viu dar outro passo para trás, ele recolheu a mão constrangido.

? Ah! Me perdoe! ? Ele sorriu. ? Adrias Vetrovir.

? Alteza! ? Fiquei surpresa e fiz uma reverência, ele era realmente irmão de Doreen, príncipe do Sétimo.

? Não precisa de formalidade comigo. ? Ele estendeu o braço uma segunda vez, mas eu ainda estava relutante. ? Se está com medo por causa de meu pai, já lhe adianto que sou mais parecido com minha irmã do que com o rei. ? Por algum motivo, acreditei imediatamente em suas palavras e peguei o braço estendido.

? Isso é reconfortante! ? Ele riu do alívio estampado em meu rosto.

? Vou te levar para conhecer o restante do jardim! ? Ele suspirou, me conduzindo pelo lugar, entre as trilhas estreitas cheias de flores. Adrias parecia ser uma pessoa tranquila, sua aparência passava certa paz. O príncipe notou que eu ainda o estava analisando e pigarreou: ? Não saia de seu quarto sem um dos gêmeos ? ele alertou ? Não é para a segurança dos outros, mas sim pra sua!

? Ah. ? Ele notou minha confusão e sorriu novamente, só que com malícia dessa vez, aquilo fez algo frio escorrer por minha coluna. O príncipe parou para arrumar uma mecha de cabelo solta atrás de minha orelha e se inclinou, quase roçando a boca em minha orelha.

? Meu pai não é o único que tem a ganhar caso você... Desapareça. ? Dizendo isso, ele se afastou um passo para olhar meu rosto petrificado de medo.

? Não estou fazendo questão de ficar aqui, para ser sincera.

? Infelizmente, há regras sobre você não poder fazer parte do reino humano, e nenhum outro Céu é receptivo a Vernuns ? explicou. ? Então, princesa, não saia sozinha por aí! Eu detesto qualquer tipo de violência, não quero descobrir que alguém lhe fez mal. ? Ele segurou mais firme meu braço e continuou se afastando comigo em direção aos outros jardins, nisso, um clarão rasgou os céus pouco acima de nossas cabeças, seguido por um estrondo ensurdecedor. Eu me encolhi para perto do príncipe quando aquilo voltou a acontecer, cada vez com mais frequência.

? Uma Tormentadora com medo de tempestades.

? Não é medo ? É sim! ? É só... Falta de convívio com tempestades tão próximas! ? Adrias meneou a cabeça achando graça.

? Seu irmão está feliz com alguma coisa.

? Hmm? ? Pisquei sem entender.

? Ele está cantando! Por isso a tempestade! Os trovões... Isso é o idioma Vernum! Não reparou que a maior parte do tempo está trovejando baixo por aqui?

? Então isso são...

? Palavras, ele está cantando. Você não entende, pois quando viveu no reino humano, não aprendeu a ouvir a voz das tempestades. ? Ele sorriu, fechando os olhos apreciando aqueles sons estrondosos. Em seguida, chuva pesada começou a cair. As gotas frias, quase geladas aparentemente também passavam uma mensagem, e essa eu pude entender na pele. Era algo bom, novo.

A princípio pensei que éramos dois loucos parados no meio da chuva, mas ao olhar em volta, para as janelas abertas do castelo, percebi que vários criados estavam com as mãos para fora, sentindo aquela chuva também. Eu me virei para Adrias, queria perguntar mais sobre aquilo, mas a escuridão tomou forma atrás de mim e um braço grande e quente envolveu meus ombros.

? Alteza. ? Hamza fez uma reverência a Adrias, esse fez um aceno para Hamza e olhou para uma das torres do castelo.

? Os raios de sol podem atravessar até a mais intensa tempestade, Oficial ? o príncipe comentou, lançando um olhar carregado de significado a Hamza, que me apertou um pouco mais e assentiu. Adrias me encarou por um instante antes de se despedir e desaparecer, desmanchando-se em uma névoa cinzenta.


Fui levada de volta ao meu quarto por Hamza, ele parecia prestes a morder alguém, esperava que não fosse eu, mas aquele frio na barriga dizia que era exatamente isso que iria me acontecer. Hamza me deixou entrar e puxou a porta, fechando-a com suavidade demais para o sentimento que transbordava por seu olhar.

? Como você faz isso...? Essa coisa de sumir em um lugar e aparecer em outro? ? perguntei tentando puxar assunto de algo seguro para tentar distraí-lo. Hamza respirou fundo e estreitou os olhos, percebendo o que eu estava tentando fazer.

? Ir de um lugar para outro? ? ele perguntou, assenti, sentando-me na cama de pernas cruzadas e mordendo a boca, como se esperasse ansiosa por uma explicação. ? Passo no vazio. É uma habilidade de todos os Tenebris, funciona como entrar num outro plano, onde há apenas escuridão e a forma mais primitiva da magia, como se fosse um túnel secreto e serve como um atalho. Você dá um passo no vazio na direção para onde quer ir, visualizando o destino, então, a escuridão e a magia crua desse mundo te levam para lá ? explicou.

? Então... É uma outra dimensão acessível apenas para Tenebris? ? questionei.

? Tenebris e outras criaturas de sombras. ? Ele deu de ombros.

? Ah... ? Comecei a mexer nas franjas do dossel, olhei para Hamza com a melhor cara de paisagem que pude, mas ele continuava me encarando como se fosse me morder. Suas narinas estavam dilatando, parecia que estava fazendo uma contagem mental para começar a falar.

? Eu não vou gritar... Não se preocupe! ? Ele sorriu dando alguns passos para perto da poltrona e sentou-se no braço da mesma. Uma parte tensa minha se afrouxou em alívio e fechei os olhos. ? VOCÊ FICOU LOUCA? ? O grito me fez dar um pulo na cama e cravar as unhas nos lençóis, meu coração disparou, mandando aquela energia por meu corpo.

? VOCÊ DISSE QUE NÃO IA GRITAR! ? gritei de volta, agarrando o travesseiro como se pudesse usá-lo de escudo. Hamza estava em minha frente num segundo, segurando meus ombros e olhando quase dentro de minha alma.

? Sabe o que poderia ter acontecido se tivesse encontrado Boroni lá fora naqueles jardins? O lugar favorito da falecida rainha? ? Hamza tremeu. ? Não teria chegado a tempo de te ajudar, Luyen! Ele te odeia! Não te absolveu por querer!

? Achei que não fosse prisioneira aqui! ? retruquei.

? Não é prisioneira, mas não pode sair por aí sem Honén ou eu a acompanhando! É perigoso, droga! ? ele rosnou com o rosto a quase um palmo do meu. ? Acabei de me arriscar saindo com você do castelo! Yoru não gosta de seus pais humanos!

? Você saiu e me largou aqui sozinha. Fiquei entediada! ? Os olhos dele ficaram negros.

? Você é inacreditável! ? Olhei para as mãos que ainda prendiam meus ombros e Hamza percebeu isso, mas seus olhos se voltaram para os meus, estava tão perto que sentia sua respiração contra meu rosto. ? Sua sorte foi que Adrias estava lá! Não saia mais sozinha desse quarto, entendeu? ? ele grunhiu contra meu rosto. Meu sangue ferveu!

? Quem você pensa que é para mandar em mim? ? retruquei ? Até onde eu sei... Eu sou uma princesa, você é o oficial que devia estar fazendo minha guarda, então quem errou por não sair comigo foi você! Não tem direito de me dar ordens, oficial ? disse séria, mas quase mordendo a boca para evitar sorrir. Eu tinha vencido essa!

? Você... ? Sombras se espalharam ao nosso redor, mas mantive meus olhos fixos nos dele, não estava com medo, não ia ceder primeiro. Sua respiração estava alterada e os olhos quase ferais brilhavam em meio a escuridão que tomou o quarto, ele estava com o corpo quase inteiro inclinado sobre mim, uma das mãos apertando a madeira do dossel e a outra ainda em meu ombro. Achei que ele gritaria novamente, que tentaria me obrigar a ficar no quarto, mas seus olhos desceram para minha boca e meu corpo esquentou.

? Perdeu algo aí? Vai continuar em cima de mim? ? Ele se afastou rápido, mais rápido do que eu admitiria que não queria que ele se afastasse. Briguei comigo mesma mentalmente, só podia estar começando a ficar louca.

? Perdão... Alteza! ? Ele fez uma reverência, o olhar que antes quase me fez derreter estava quase gélido. Ele se virou para a porta, mas antes que saísse, o bom senso deve ter sentado em minha mente para observar a desgraça acontecer.

? Vai me deixar sozinha de novo? E se eu escapulir para outro lugar?

Hamza ficou tenso, mas ele olhou para mim por cima do ombro e deu um meio sorriso arrogante:

? Quer que eu fique trancado aqui dentro o dia todo com você?

? Ah-há! ? Apontei um dedo para ele. ? Então não aguentaria ficar trancado aqui também! ? resmunguei ? Agora sabe como me sinto. ? O sorriso dele aumentou e aquela sensação de formigamento em minha pele voltou.

? Ah, princesa! Se fosse ficar trancado sozinho aqui, ficaria entediado. Mas com a sua companhia... Acho que me esqueceria do tempo lá fora por um bom tempo.

Pelos deuses lunares! Meu rosto queimou e algumas outras partes de meu corpo incendiaram ao ouvir aquilo.

? Achei que tivesse que cuidar de Doreen também! ? quase gaguejei.

? Era o que estava fazendo quando você escapuliu. Vou pedir a Yoru para que arrume outro guarda que cuide de sua esposa, para que eu possa ficar inteiramente à sua disposição! ? Havia um duplo sentido na frase. Hamza se retirou antes que eu pensasse numa resposta adequada, minha mente estava demorando o triplo para trabalhar desde a hora em que seus olhos pousaram em meus lábios.

? Estou ferrada ? choraminguei.


Honén apareceu no quarto pouco mais tarde e passou o resto do dia tentando me instruir nos costumes dos céus para um evento que seria obrigada a participar, minha apresentação aos soberanos dos Céus. Ela começou explicando primeiro o que eu precisava saber sobre os Vernuns em geral, isso enquanto escapava de todas as minhas perguntas sobre o motivo do irmão dela ser tão temperamental.

? Preste atenção, Luyen! ? Honén revirou os olhos, batendo com o livro na mesa de cabeceira. Já estava escurecendo e eu ainda a perturbava com minhas perguntas que não tinham nada a ver com o que tentava me ensinar. ? Vai ficar falando do Hamza? Ótimo, vai lá e o agarre, talvez isso faça esse seu fogo acalmar, depois pare com essa obsessão porque preciso de você focada! Sua cabeça ainda está em jogo caso faça alguma besteira na festa! ? Meu rosto começou a queimar.

? Não seja boba! ? retruquei ? Não tenho nenhum interesse no seu irmão! ? Ela ergueu as sobrancelhas duvidosa.

? Sei... Então pare de falar nele. O que eu te disse sobre os Ventus cinco minutos atrás? ? De novo, minhas orelhas, rosto e pescoço queimaram.

? Que eles são sensíveis, pacíficos, mas curiosos demais e não medem perguntas, mesmo que te ofendam. ? Honén ergueu as sobrancelhas surpresa por eu ter acertado.

? Ótimo, vamos ficar nisso até você decorar tudo! A recepção é em três dias!

Peguei um livro grosso para anotações que ela tinha me dado e comecei a escrever tudo que parecia importante, ou seja quase tudo que ela dizia. Mas por alguma razão, aquele olhar de Hamza não saía de meus pensamentos.

Eu estava ferrada de verdade.


Capítulo 20

 

 

Desconfianças


Hamza:


Yoru precisava parar de andar em círculos toda vez que nos reuníamos, o chão da sala de reuniões estava ficando com marcas de sua caminhada repetitiva, fora que ele parecia meio louco andando assim. Doreen estava sentada em minha frente, observando-me com tanta atenção que chegava a ser irritante, se continuasse me encarando daquela forma, Yoru desconfiaria que tínhamos um segredo. Estiquei as costas contra o assento de couro acolchoado e suspirei cansado, esperando que o príncipe se aquietasse para conversarmos sobre a princesa e o posicionamento estranho de Boroni.

? Ênya esteve aqui! ? Yoru por fim parou de andar, os olhos escuros do príncipe cintilavam com raiva, não de mim, mas dela.

? Ela de vez em quando vem aqui, alteza. É sua esposa e você não vai até ela para.... ? Pigarreei e parei de falar pelo olhar raivoso de Doreen, mesmo assim não havia nada de incomum naquilo, afinal, era esposa dele e com certeza queria receber atenção também. Tive que morder a boca novamente para evitar fazer um comentário maldoso a respeito de Yoru fugindo dela porque não aguentava com as duas. Porém, meu olhar não deve ter escondido esse pensamento dele, pois Yoru franziu o cenho em minha direção.

? Eu a encontrei no quarto de Luyen, com uma adaga de aço solar na mão.

? O quê? ? Doreen quase gritou, então a presença estranha no quarto de Luyen era isso. Meu interior silenciou numa calma gélida, letal. Talvez Yoru conseguisse o divórcio antes do que planejara, eu daria um fim naquela Solaris metida.

? Ela disse que era um presente para Luyen, como um modo de boas-vindas a família! ? ele rosnou ? Mas Ênya foi rápida e desapareceu com a arma quando tentei tomar dela. ? Yoru soltou um grunhido de uma fera. Ênya certamente estava procurando encrenca. Ela havia tentado bater em Doreen assim que ela e o príncipe se casaram, esse foi o motivo de Yoru ter me pedido para fazer a guarda pessoal de Doreen, não porque ela precisava de proteção, mas porque foram precisos três guardas para segurarem a princesa e de meu poder para apagá-la para que pudéssemos por fim soltar os dedos em garras de Doreen do couro cabeludo de Ênya. A Solaris chegou a chamar de selvagem, por sorte, muita, muita sorte, Doreen já estava inconsciente.

? Como se uma arma fosse um ótimo presente de boas-vindas! Ela diria “ei, cunhada! Olha o que eu trouxe para você! Ops, desculpe te acertar com ela, cinco vezes! ” ? Doreen zombou, fazendo com que Yoru parecesse ainda mais furioso. A princesa pigarreou: ? Ênya ter feito isso é suficiente para que você peça o divórcio, Yoru ? ela disse baixo, eu permaneci em silêncio tentando controlar meu temperamento, não podia demonstrar nada. Aquilo não devia ser da minha conta... Mesmo que fosse. Yoru esfregou as têmporas com os polegares e bufou, meneando a cabeça negativamente.

? Não havia nenhum guarda comigo para testemunhar, se eu pedir o divórcio com alegações sem provas, Rassis vai pensar que estou querendo isso por causa de Luyen e vai defender o ciúme da filha. ? Doreen revirou os olhos e apoiou o rosto nos braços cruzados, tamborilando as unhas longas na mesa.

? Luyen escapuliu do quarto quando fui ver Doreen ? comentei. ? Ela foi direto para os jardins. ? Yoru e Doreen arregalaram os olhos. ? Por sorte Adrias a encontrou e a acompanhou até que eu chegasse. ? Se eu não dissesse aquilo, Adrias certamente o faria, ele não tinha nada contra a garota, mas não gostava muito de Tenebris, como o resto dos Tormentadores.

? Honén não estava com ela? ? Yoru rosnou.

? Honén passou o dia com Prisla, tentando arrumar um meio de evitar que Luyen frite todos na festa caso ela fique nervosa ? retruquei bufando. ? Você me encarregou de cuidar de duas pessoas, e agora com Doreen nessa situação... ? Yoru olhou para a mulher com carinho, um meio sorriso nos cantos dos lábios.

? Araik vai fazer a guarda de Doreen a partir de agora ? Yoru decidiu por fim. ? Vai ser melhor, pois Araik pode ficar com ela por mais tempo e me relatar coisas mais... Importantes. ? O príncipe pigarreou sem jeito. ? Você e Honén farão a guarda de Luyen, já que apenas os dois podem contê-la. ? Não precisava perguntar a Honén se ela aceitaria, era óbvio que sim, mas ouvir Yoru dar uma ordem como aquela à minha gêmea... Aquilo fez meu sangue ferver. Acabei apenas assentindo para não lhe responder como deveria. Doreen, ao que percebi, entendeu meu silêncio e apertou o braço de Yoru, que continuava alheio a mim, olhando distraído pela janela.

? Boroni está numa reunião com Sarki, é sobre Luyen e o Oitavo ? o príncipe murmurou. ? Não faço ideia do que podem estar planejando, pois não fui convidado para isso. ? Ele bateu com o punho na mesa, furioso seria pouco para descrevê-lo por ter sido excluído.

? Então, durante a festa, o cuidado terá que ser redobrado ? completei. Ele assentiu sem nem me encarar. ? Eles ainda podem achá-la uma ameaça e caso algo aconteça durante o baile...

? Teremos que sair daqui ? Doreen concluiu. ? Tenho um bom lugar para escapar. Mas que só podemos usar numa emergência, apenas no caso de desaparecer dos céus povoados com a garota. ? Ela olhou para Yoru, que parecia surpreso. Eu também a observava, esperando para saber que lugar era esse.

? Onde? ? perguntei não aguentando mais o mistério no sorriso da princesa.

? A Floresta Azul. ? Ela sorriu. Os cabelos de minha nuca se arrepiaram e até mesmo Yoru parecia chocado.

? Esse lugar não existe, Doreen! É um mito! Uma história para crianças dormirem! ? De fato eu mesmo já havia escutado a história da floresta azul, uma floresta mais verde e viva que a floresta do reino humano, onde nada faltava e durante a noite, por estar muito próxima ao reino lunar, a floresta era mergulhada em luz azul.

? Está dizendo que sabe como entrar na Floresta Azul no Nono céu? A floresta que ninguém jamais comprovou existir? ? ele questionou em tom de deboche, nem mesmo ele acreditava na existência daquele lugar. A princesa o olhou feio e mexeu no cabelo, um pouco constrangida.

? A floresta fica numa fenda de magia entre o Primeiro e o Nono, tecnicamente ela não pertence a nenhum Céu ? Doreen explicou. ? Dentro da floresta existe um povo pequeno que se esconde do restante dos Céus, eles se dizem os donos da fenda e embora sejam pequenos, não há como quebrar as barreiras deles e invadir aquele lugar, por isso tantos acreditam ser uma lenda!

? Então como você sabe de tudo isso? ? Tive que perguntar, já que Yoru estava apenas rindo como um idiota, deixando Doreen ainda mais irritada.

? Entrei lá quando era criança. Estava no primeiro Céu com minha mãe, fazendo uma visita a princesa Alfia, que era muito amiga de minha mãe... ? Doreen ficou com as bochechas cinzentas diante de nosso olhar chocado, jamais pensaríamos que Edrias, a falecia rainha do Sétimo, fosse amiga da princesa do Primeiro a filha única de Sarki. ? Nós estávamos fazendo um passeio do lado de fora do Castelo Dourado, Alfia nos levou para um almoço ao ar livre no campo perto do fim das barreiras, onde os campos do Primeiro terminam, eu queria olhar para saber se dava para enxergar o reino humano de lá, andei até as teias de magia que suspendem os céus e me apoiei nelas para olhar. ? Ela mordeu os lábios e baixou os olhos. ? Eu caí entre as tramas da teia, achei que fosse morrer, mas só saí rolando. Quando percebi estava dentro de uma floresta imensa!

? Espera... Está falando sério? ? Yoru sentou-se ao lado dela e segurou seu rosto, a princesa assentiu.

? Tinha tudo lá dentro! A floresta realmente parece mais... Viva! Eu estava com fome, então morangos brotaram ao meu redor, depois fiquei com sede e bem perto de onde eu estava uma nascente apareceu! ? Yoru a interrompeu com uma gargalhada.

? Meu amor! Devia estar sonhando! ? Doreen puxou as mãos debaixo da mesa e socou as costelas de Yoru com tanta força que o príncipe se encolheu e tossiu, olhando incrédulo para ela.

? Estou falando sério! ? Ela então puxou uma corrente fina dourada de dentro do decote de seu vestido, na ponta, reluzia uma chave pequena, adornada pelo que pareciam flores e asas minúsculas em bronze. Ela se virou para mim, puxando minha mão por cima da mesa e colocando a chave em minha palma. O meio sorriso que me deu e o olhar de compreensão que não foram pegos por Yoru disseram mais do que precisava para entender que ela já sabia. ? Se algo acontecer, a leve para a cabana no meio da floresta, o povo que vive lá a fez para mim... Ia lá toda vez que mamãe e eu passeávamos no Primeiro.

Yoru franziu o cenho quando fechei a mão ao redor da chave e a guardei. Teria que verificar depois, mas de alguma maneira, acreditava na palavra da princesa.

? Vou ir ver se está tudo bem com Honén e Luy. ? Não devia ter me referido a sua irmã pelo apelido, dava para sentir algo possessivo pulsando através do olhar do príncipe. Doreen apertou o braço dele e pigarreou:

? Você, leve um pedaço de torta para mim no quarto? ? Ela se levantou indo em direção a porta, Yoru ergueu as sobrancelhas.

? Não está cedo demais para desejos?

? Não é desejo, eu quero torta e você vai levar para mim! ? Ela sorriu com malícia, Yoru bufou, mas não negou, o que quase me fez rir da cara dele. Doreen agora estava com a coleira dele na mão.

Segui para a porta logo depois da princesa ter sumido pelo corredor, ao me virar para a direita e seguir para o quarto de Luyen, Yoru segurou meu ombro, os olhos escuros faiscavam.

? Você só precisa protegê-la, entendeu? Não tente tirá-la de mim, Hamza, ou...

? Não tenho intenção de tomar nada de você, Yoru. ? Até porque Luyen não pertence a ninguém para ser tomada! ? Não tenho nenhum interesse em sua irmã! ? retruquei irritado e acabei não segurando a língua. ? Não deveria se preocupar mais com o que Ênya pode querer fazer com Doreen caso descubra a gravidez? O bebê de Doreen será um Asterath também e terá Tormenta no sangue. Sua primeira esposa não tem um filho seu, ela pode ficar com inveja e arrumar algum problema para sua segunda esposa. ? Yoru empalideceu, como se só agora lhe caísse a ficha de que era uma possibilidade. Se algo acontecesse a Doreen, Boroni faria algo acontecer com Yoru e com todos ligados a ele também.

? Cuide de suas obrigações ? ele rosnou, me segurei para não socar sua cara, então fiz uma breve reverência e saí andando antes que perdesse a cabeça.

A magia nebulosa do teto estava mais escura e com relâmpagos naquela noite, significava que Boroni estava irritado. Eu tinha quase certeza que tinha algo a ver com a visita de Sarki... E se Sarki estava ali...

Eu me apressei para o quarto de Luyen, no caminho, ao passar pelo corredor principal da ala leste, vi Doreen conversando alegremente com Prisla, a Tormentadora lhe roçou a barriga com as pontas dos dedos e as duas deram pulinhos, animadas com o novo membro que chegaria à família. Isso deveria bastar para Yoru, mas se nem a gravidez de Doreen o fez mudar de ideia quanto ao tentar desposar Luyen...

Parei no corredor seguinte e bati na parede, respirei fundo tentando me acalmar. Era um idiota! Aquela garota era malcriada, respondona e arrogante... Não devia ter sentimentos por ela! Afinal, quem era eu para tentar impedir que o príncipe tentasse? Só um mestiço banido, que mal tinha para onde ir se deixasse de servir ao verdadeiro rei do Oitavo. Ele podia dar o que Luyen precisava.

Não.

Aquele pensamento estava errado.

Ele precisava de mim para protegê-la. Era eu quem podia conter a princesa caso ela perdesse o controle, foi a mim que ela agradeceu por tê-la livrado no tribunal.

Já havia cedido em tudo, já havia deixado muito do que queria cair por entre meus dedos como areias de uma praia. Não ia abrir mão daquela oportunidade sem ao menos tentar! Luyen talvez fosse a resposta de minhas orações, quando pedia aos deuses um motivo de verdade para continuar lutando.

 

Luyen:

 

Honén estava dormindo na cama ao meu lado. Não exatamente ao meu lado. Ela simplesmente tinha se enroscado em mim como uma cobra tentando sufocar um animal para comê-lo, só que com carinho. Estava com medo de me mover e acordá-la, mas ao mesmo tempo implorava para que alguém aparecesse ali para tirá-la de mim, meu bumbum havia ficado dormente tinha mais de meia hora, pois a perna que Honén enroscou em mim estava pesando demais.

Fumaça negra se espalhou pelo quarto, Hamza apareceu ali num instante. A princípio estava com um sorriso arrogante no rosto, mas ao me ver na cama com Honén, seus olhos passaram de surpresos a assustados quando movi as mãos num pedido de ajuda desesperado. Quase lhe disse que ele era uma resposta às minhas orações, mas Hamza iria usar isso como alguma piadinha maldosa contra mim pelo resto da vida.

? Ela tentou agarrar você? ? ele perguntou, aproximando-se da cama e tirando a irmã com todo cuidado de cima de mim.

? Isso é uma possibilidade? ? quis saber assustada. Hamza riu e desapareceu na fumaça sem ao menos dar um boa noite. Eu me levantei para esticar um pouco as pernas e esfreguei minha parte traseira com força para ver se a dormência passava. Honén havia pego no sono no meio da “aula” e rolou para cima de mim enquanto eu tentava voltar ao meu livro de romance. Apaguei as luzes do quarto, deixando apenas a da cabeceira acesa.

Peguei o leite quente que uma das serviçais trouxera mais cedo, mas que já estava frio a essa altura, não queria desperdiçar então concentrei a magia nas pontas dos dedos. Raios eram quentes, não é? Talvez conseguisse esquentar o leite.

Pra quê?

Na hora que o pingo de energia se manifestou por meus dedos, a caneca explodiu em minhas mãos, lançando cacos para todos os lados, o leite havia desaparecido e apenas uma mancha marrom escura grudenta estava em meu vestido. Doreen não podia entrar no quarto, ela me mataria caso visse aquilo. Tirei o vestido rapidamente e o embolando. A pele de minhas mãos e barriga também estavam grudentas, fui ao banheiro, molhei a toalha e comecei a me limpar. Voltei ao quarto e peguei uma camisola qualquer, então comecei a catar os cacos da caneca.

? O quarto está fedendo a açúcar queimado ? Hamza falou, o cheiro forte de queimado não me deixou sentir sua chegada.

? Fui tentar aquecer o leite e explodi a caneca! ? Hamza me ajudou a catar os caquinhos e os empilhou no pires sobre a penteadeira. Percebi que ele estava mordendo os lábios com força para não rir. ? Vamos, eu sei que quer falar algo! Deboche logo! ? grunhi.

Hamza gargalhou.

? Luyen, mesmo que fraco, o calor produzido pelos raios que você pode manifestar ainda é poderoso demais para fazer coisas simples como essa. ? Ele rui ainda mais. Empilhei os cacos que recolhi junto aos outros no pires, ia usar a toalha para limpar a mancha, mas Hamza chiou, ele simplesmente arrastou o banquinho da penteadeira, colocando o pé do mesmo sobre a mancha. Fiz uma careta e ele riu novamente.

? Vamos deixar isso só entre nós! ? Ele piscou ? Se mais alguém souber, Boroni pode achar que você estava na verdade tentando dar um jeito de explodir o castelo dele! ? Hamza continuava rindo, eu por outro lado apenas senti um frio em minha espinha e marchei de volta para a cama fazendo uma careta.

? Seria bom que alguém me ensinasse a controlar isso! ? reclamei.

? Então, está me dizendo que quer treinar? ? ele perguntou com um tom malicioso dessa vez. Engoli em seco.

? Acho que não é uma boa ideia, no fim das contas. ? Hamza ainda estava em pé ao lado da cômoda me observando, observando demais. Não sei o que me deu na cabeça naquele momento, mas apoiei um joelho em cima da cama, e me sentei de pernas cruzadas, fazendo com que a camisola curta de veludo azul escorregasse, deixando pele demais à mostra, joguei o cabelo para o lado e comecei a trançá-lo, fingindo não ligar para a presença do oficial. Arrisquei olhar para o oficial, sentindo meu rosto e pescoço queimarem, Hamza estava olhando para mim de uma forma diferente... Como um lobo que acabou de encurralar uma lebre.

? Vai ficar aí a noite toda me olhando? Não tem que ir cuidar de Doreen ou dormir? ? consegui falar, seu olhar se voltou lentamente para o meu e ele respondeu sério:

? Yoru designou outra pessoa para fazer a escolta pessoal de sua esposa, posso ficar aqui a noite toda caso queira. Sou todo seu agora. ? Aquele tom malicioso fez meu sangue ferver.

? Acho que ninguém vai tentar me atacar enquanto eu durmo ? disse, entrando embaixo das cobertas para abafar a sensação. O fato de me esconder pareceu finalmente ter efeito na direção dos olhos dele.

? Uma pena. ? Hamza suspirou, esticando os braços e indo para a porta.

? Uma pena que ninguém queira me atacar? ? Fingi surpresa e espanto na voz, o oficial arregalou os olhos e meneou a cabeça em negação.

? Não... Eu... ? Mordi os lábios prendendo o riso, Hamza franziu o cenho e foi minha vez de rir dele. ? Você não presta, Luyen! ? Mostrei a língua para ele e me joguei para trás. Hamza parou perto da porta, me desejou boa noite e saiu escondendo um meio sorriso lindo que mal consegui pegar.

? Boa noite ? murmurei contra os travesseiros.


Capítulo 21

 

 

Festa?


Luyen:


? Preciso mesmo vestir isso? ? Choraminguei no momento em que Honén apertou mais as faixas do espartilho, fazendo com que o ar dos meus pulmões fosse expelido. Três dias estudando incansavelmente para não ofender ninguém naquela maldita festa, e tudo isso seria jogado fora se não chegasse sangue suficiente ao meu cérebro por culpa dos puxões de Honén.

? Ainda consegue respirar direito? ? Honén perguntou, dando mais uma volta com a fita azul de cetim nos punhos.

? Sim, ? Inspirei para testar. ? consigo. Honén deu um sorriso quase sádico, o que fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem.

? Então não está apertado o suficiente! ? Ela deu mais um puxão, dessa vez tossi e inclinei o corpo sobre a penteadeira, tinha a ligeira impressão que pontos pretos começavam a obscurecer minha visão. ? Vai valer a pena! ? ela murmurou. Escutei o tecido deslizando enquanto ela dava um laço, quase implorei para que ela soltasse aquilo.

? Beleza nenhuma vale costelas quebradas! ? retruquei com dificuldade. Não adiantava discutir, Honén apenas continuou arrumando o vestido e cantarolando uma canção que não me era estranha. Por fim, ela foi até a penteadeira e virou o espelho novamente para que eu pudesse me ver. Se eu ainda tivesse algum ar nos pulmões, o teria perdido.

O vestido azul escuro descia apertado pela cintura e se abria no quadril numa cascata de um tecido fino quase transparente, duas faixas de cetim se cruzavam em minha cintura, presas no meio por uma pequena flor prateada, fazendo com que as faixas caíssem aos meus pés. O corpete rendado também era transparente de um azul mais escuro e bordado com uma linha prateada, formando arabescos da mesma flor do enfeite e outra faixa azul pregueada de cetim envolvia meu busto, subindo pelo ombro esquerdo.

? Eu estava errada! ? arfei. ? Estou tão linda que podia ficar nisso para sempre! Ou seja, até não aguentar mais ficar sem respirar! ? Honén riu alto e pegou uma tiara dentro da gaveta da penteadeira, as mesmas flores prateadas unidas por gavinhas de pedras minúsculas brilhantes. Doreen apareceu no quarto e deu um gritinho animado antes que Honén me colocasse aquele adorno, ela estava incrivelmente linda também, usava um vestido vinho esvoaçante com uma coroa prateada na cabeça e lábios na mesma cor do vestido, dessa vez não me senti mal com sua beleza, estava me sentindo “nas nuvens” com aquela roupa. Honén entregou a tiara nas mãos da princesa e murmurou algo sobre ir se vestir apropriadamente, então desapareceu numa cortina de fumaça, deixando-me a sós com minha cunhada.

Doreen estava atrás de mim, penteando meu cabelo para colocar a tiara. Eu a observava através do espelho curiosa com o que podia estar se passando em sua mente, uma vez que sua expressão era dura, até um pouco cruel. Ela me encarou pelo reflexo e suspirou e sorriu, como se uma máscara tivesse se desfeito.

? Algo errado? ? perguntei um pouco tensa.

? Quando você entrar naquele salão, levante a cabeça, olhe todos nos olhos e não esqueça quem você é, Luyen Asterath! Não deixem que vejam o amor que herdou dos humanos, está lidando com feras, e elas não a pouparão caso percebam o quanto seu coração é sensível. Mostre-se como uma Tormentadora, libere a fúria da natureza que você nasceu para ser ou não sobreviverá à corte dos céus!

? Quis dizer liberar a fúria figurativamente, não é? ? Doreen riu.

? Sim, claro! Não precisa jogar raios neles! ? Ela se abaixou até minha orelha e cochichou. ? A não ser que seja muito engraçado! ? Ela piscou para mim, me olhei uma última vez no espelho, absorvendo tudo que ela disse, endureci minha expressão e peguei seu braço.

Do lado de fora, Hamza e uma guarda feminina nos aguardavam. O oficial, que cochichava algo com ela e ria, ficou chocado por um instante, seus olhos desceram e subiram, encontrando os meus. A surpresa estampada neles fez meu rosto esquentar. Doreen pigarreou e me deu um leve empurrão na direção do oficial.

? Estão lindas! ? ele disse depois de alguns segundos e estendeu o braço para mim, foi então que vi uma tatuagem com o símbolo do oitavo em seu braço e fiquei curiosa para perguntar sobre, mas faria quando estivesse sozinha com ele, não queria que as duas pensassem que eu estava reparando demais!

? Onde está Yoru? ? perguntou Honén. Não via meu irmão há dias e quase me sentia culpada por não ligar tanto para ele a ponto de me preocupar, mas queria manter o máximo de frieza, já que qualquer sinal de carinho, mesmo que fraternal, poderia ser entendida de maneira errada.

? Sabe o que não deve fazer lá dentro, não é? ? Hamza sussurrou enquanto caminhávamos rápido demais através dos longos corredores enevoados, ainda mais para o pouco que eu conseguia respirar.

? Não devia estar me dizendo como me dar bem e passar uma boa impressão? ? perguntei.

? Devia estar me perguntando como evitar todos eles! De preferência pedindo para voltar ao seu quarto ? ele murmurou enrugando as sobrancelhas.

? Não seja chato, é uma festa! Sabe o que tem em festas? Coisas boas para comer!

? Já esteve em alguma? ? Ele me fitou.

? Claro que não!

? Quer apostar como vai perder o apetite em menos de dez minutos lá dentro? ? Ele ergueu um pouco a mão para que eu a apertasse.

? O que eu ganho se passar os dez minutos? ? Hamza semicerrou os olhos e fez um bico contemplativo.

? Pode me pedir o que quiser. ? Ele sorriu maliciosamente, quase dei graças pelo vestido ser tão apertado que o resultado do meu rosto corado poderia ser dele.

? Tudo bem.

? Não vai me perguntar o que eu quero se ganhar? ? Hamza pigarreou, lhe dei um meio sorriso convencido como resposta.

? Não vai ganhar ? disse simplesmente e continuei a caminhar para evitar que ele tentasse mais qualquer assunto a respeito.

Pelo que Honén havia me dito sobre a festa, sabia que era quase um tipo de reunião de pessoas importantes dos sete Céus para que eu fosse apresentada formalmente a eles como um membro dos Céus e da casa Asterath, Yoru faria um brinde à sua casa e anunciaria algo importante que ninguém se deu o trabalho de me contar, mas pelas caras de mistério que faziam quando eu perguntava, já me dizia que sabiam a respeito. Porém o que estava me preocupando era o tal pronunciamento de Sarki, o imperador Solaris que eu sequer conhecia, mas por algum motivo temia a ponto de sentir minha pele se arrepiar a menção do nome.

Chegamos ao fim do corredor da Ala Sul do castelo e começamos a descer uma escada. Estava prestes a reclamar da distância, quando Honén cutucou minhas costas, o sinal para que eu mudasse minha expressão “humana sorridente” para “Tormentadora fria”. Podia escutar o burburinho depois das portas de vidro fosco.

? Lembre-se, não deixe ninguém irritar você! Conte até dez e imagine que está apertando a cara da pessoa contra a lama e como ela ficaria se isso acontecesse! ? Hamza explicou ao meu ouvido.

? Eu vou rir se imaginar isso! ? Tentei, mas antes de ouvir a resposta de Hamza, as portas se abriram ao mesmo tempo em que se escutava a voz daquele parasita chamado Frezi me anunciar.

Havia me perdido completamente pelos corredores do castelo e levei alguns segundos para perceber que estávamos no pátio principal, e que haviam colocado uma espécie de cobertura mágica luminosa ali, para que parecesse que estávamos num salão. Todos olhavam para nós, meu braço estava tão apertado ao redor do de Hamza que as pontas dos meus dedos formigavam, torcia para ser isso e não meu poder tendo um chilique.

O pátio estava cheio de mesas dispostas em semicírculos com toalhas de cores diferentes, marcando os lugares das respectivas cortes dos Céus, meus olhos passaram por cada rosto até pararem em um que me deu arrepios. Olhos grandes dourados e cabelos perfeitamente penteados de um louro pálido, a pele gasta pela idade e barba ficando cinzenta. A pele cor de bronze brilhava um pouco, mas aqueles olhos pareciam tão cruéis... Ele estava sentado sobre um trono dourado numa espécie de palanque ao lado de uma mulher de rosto delicado que não tirava os olhos do chão. Ao lado dela, Doreen e Yoru estavam sentados e do outro lado do Solar, Boroni fazia uma carranca. O lugar foi tomado por um silêncio perturbador, não escutava sequer a respiração do oficial ao meu lado.

? Estão esperando que diga algo ? Hamza sussurrou tão baixo, mesmo assim tive um sobressalto, e olhei novamente em volta com o coração martelando tão alto que mal podia pensar. Honén havia me dito isso na noite anterior, era uma festa de apresentação então eu teria que fazer um “agradecimento” por ser incluída nos círculos celestes. Depois de eu reclamar que não tinha nenhum interesse em permanecer nesse círculo, Honén me bateu com um livro e me fez decorar aquelas palavras:

? Eu, Luyen Asterath, ? comecei tentando não gaguejar ? agradeço a todos por essa calorosa recepção e também por ser reestabelecida à minha família verdadeira. ? Mentira! Não havia nada de caloroso nos olhares deles, não me sentia em família com Yoru e tudo que queria naquele momento era pular para fora daquelas proteções, cair no reino humano novamente e correr até a cabana na floresta.

A maioria das pessoas parou de me olhar e voltou às suas conversas, ignorando-me completamente. Eu me perguntava se havia sido tão falsa em minhas palavras quanto a recepção de boas-vindas deles parecia. Hamza nos guiou até um dos círculos de conversa, onde o príncipe Adrias conversava quase silenciosamente com a Tormentadora que me deu roupas no calabouço, Prisla. O príncipe parou sua conversa para me observar e um sorriso suave se desenhou em seus lábios.

? Princesa, ? Ele se levantou e puxou a cadeira ao seu lado para mim, senti Hamza endurecer ao meu lado, mas não disse nada, apenas me soltou para que eu pudesse me sentar. ? está deslumbrante essa noite. ? Ele arrumou a cadeira para mim e sentou-se novamente, o príncipe vestia azul e prata, os cabelos quase brancos trançados caíram sobre o ombro e a coroa de prata reluziu no momento em que se inclinou para sentar-se novamente.

? Obrigada ? agradeci um pouco constrangida com a repentina atenção, Prisla não parecia contente em ter o assunto interrompido, mas a outra guarda sentou ao lado dela e as duas começaram a conversar. O príncipe certamente entendeu aquilo como uma oportunidade de mudar seu parceiro de conversa, torci para não ser eu, mas era quem estava mais perto.

? Então, Luyen... Está tão desconfortável quanto parece por conta da quantidade de pessoas potencialmente perigosas aqui? ? brincou. Meu rosto queimou e o príncipe riu, estendendo a mão para pegar uma jarra com vinho, serviu uma dose generosa numa taça e a colocou em minha mão. Hamza observou cada movimento do príncipe com atenção, mas sua expressão sequer deixava transparecer qualquer coisa além de completa falta de interesse.

Quase tomei o conteúdo da taça de uma única vez, o vestido não me deu espaço para fazê-lo.

? Depende... Meu agradecimento soou tão falso quanto eu pensei? ? O príncipe começou a rir novamente, voltou a encher minha taça e assentiu.

? Fiquei surpreso por ninguém ter protestado! ? Soltei um gemido e me encolhi um pouco, tentando aparecer menos ainda. ? Vamos pensar positivo, ninguém esperava sequer que você aparecesse! Depois do julgamento, a maioria está surpresa de você ter se dado ao trabalho de fingir estar agradecida por estar aqui... Ainda mais contra sua vontade.

? Não me ajuda a sentir melhor ? murmurei contra o copo, bebendo um pouco mais. Hamza pigarreou.

? Melhor maneirar, Luyen. Não está acostumada com bebidas celestes, você pode não reagir bem a isso! ? Lancei um olhar desafiador ao oficial e ri.

? Não estou acostumada à bebida nenhuma, Hamza, estou torcendo para que a minha reação a essa ? Movi o líquido arroxeado na taça. ? seja no mínimo começar a achar graça de tudo, no máximo desmaiar e dormir por uma semana! ? Adrias achou graça de minha resposta, mas Hamza me fuzilou com os olhos, quase podia ver o que queria dizer: “perigoso, blá, blá, blá...” bom, talvez eu já estivesse levemente sob efeito daquele vinho.

? Adoraria ficar conversando com você e a vendo fazer o oficial começar a arrancar os cabelos, Luyen, mas acho que preciso fazer sala para a primeira esposa de meu cunhado, ou ela vai querer avançar em minha irmã a qualquer momento, ou pior, vai querer vir falar com você! ? Adrias deu um suspiro cansado e puxou minha mão apenas para dar um beijo suave em minha palma. Meu rosto esquentou e puxei a mão constrangida, o príncipe pigarreou e desapareceu entre os convidados de asas brilhantes, indo em direção àquela mulher irritante de pele bronze.

Olhei de canto de olho para Hamza, ele estava ainda em silêncio, olhando para o nada. Não fazia ideia do porquê estava me sentindo mal pelo gesto carinhoso do príncipe, mas estava começando a confiar nele e sabia que tinha mais um aliado ali. Servi mais vinho para mim e fiquei quietinha ouvindo as conversinhas das pessoas, por sorte, ninguém mais tentou puxar assunto comigo naquela hora.


Hamza:


A canção das Ventus estava começando a me irritar. Melodias suaves e cantos serenos como se tudo fosse apenas paz e tranquilidade, era como se não soubessem que aquela porcaria de festa fosse apenas um teste, uma armadilha para que Luyen se descontrolasse na frente de Sarki e Boroni tivesse um motivo real para executá-la.

Luyen não estava fazendo muito para ajudar, também. Estava sentada bebendo vinho de furpas como se não houvesse amanhã, mas pelo menos não estava arrumando encrenca com ninguém com aquela língua comprida também. Mas, no momento, o que mais me incomodava era o quanto Adrias estava ficando apegado a ela.

“Está fazendo cara feia de novo! ” A voz de Honén soou alta em minha mente, ela estava do outro lado da mesa, olhando para Luyen com um sorriso irritante no rosto, tentando me provocar.

“Não estou, não. ” respondi “Só estou sério. Sou o guardião da princesa, se ficar de sorrisinhos por aí, vou passar uma ideia errada!”

“Está com ciúmes de Adrias! Até ele já percebeu!” Honén olhou para o príncipe, que tentava manter uma conversa educada com Ênya, mas a Solaris estava olhando para nós e tentava a todo custo desviar dele para vir até nós. Até Luyen. Adrias revirou os olhos na hora que a Solaris se distraiu, quando a dama de companhia de Korla passou esbarrando as asas nela. Ele olhou diretamente para onde Luyen estava servindo-se de mais vinho e deu um breve sorriso, voltando sua atenção para Ênya.

“Será que ele está apaixonado?” Honén perguntou.

“Você está tentando me irritar?” rosnei em resposta. Seu riso de diversão encheu minha mente. “Já mentiu para ela sobre a arma!”

“Só tentando te fazer admitir o que eu já percebi!” Honén voltou a conversar com Prisla sobre raios-bola e parou de me atormentar. Por um instante, respirei aliviado, mas o alívio desapareceu quando notei quem se aproximava da mesa com um sorriso sádico no rosto. Hugre se aproximou devagar e colocou a mão sobre o encosto da cadeira de Luyen, o que me fez levantar em defensiva e rosnar para ela.

? Olá, irmãozinho menos favorito! ? Ela sorriu, mexendo nas tranças do cabelo, me observando como se escolhesse um local para cravar suas presas no momento em que se transformasse.

? Hugre. ? Fui até o lado de Luyen e tirei a taça de vinho de sua mão. Da mesa no centro da festa, Yoru nos observava preocupado, ele olhava entre mim e Hugre como se debatesse se deveria ou não se meter.

? Não bastava cair por aquela que desonrou nossa família? Agora é a cadelinha do príncipe sem reino? ? Não era força de vontade que me mantinha no lugar, era ódio. Aquela raiva me congelou e eu fiquei travado no lugar olhando para minha irmã, não podia estragar aquele momento...

? Você tem uma boca grande... Me diga, é uma convidada bosta assim em todas as festas? ? Luyen cortou meus pensamentos e Hugre piscou incrédula, ninguém jamais falou com ela daquela maneira.

? Quem você pensa que é... ? Hugre começou a espumar e suas mãos começaram a mudar, mas Luyen deu um risinho debochado e apoiou a mão em meu ombro.

? Eu sou a princesa do Oitavo, essa festa tecnicamente é minha e você deveria estar se comportando nela! Seria uma pena que eu causasse algum estrago nessa sua carinha linda por culpa dessa sua língua cumprida! ? Luyen rebateu. Hugre mudou o peso do corpo para o lado esquerdo e começou a mexer nas pontas metálicas de suas tranças. Merda! Ela fazia aquilo quando começava a se zangar.

? Seu poder não me afeta, garota ? ela sibilou, dando mais um passo em direção a Luyen, espalhando fumaça negra com cheiro de enxofre ao nosso redor. Eu me movi rápido, quase me colocando em frente a ela. Olhei de relance para Luyen, pronto para dar um passo no vazio e tirá-la dali, mas a princesa sequer parecia afetada pela escuridão de Hugre.

? Meu poder pode até não te fazer nada... ? disse com a voz baixa e suave fechando o punho e erguendo-o na altura do rosto ? Mas certamente minhas mãos podem, e eu estou tentada a enfiar a mão na sua cara! ? Hugre deu um passo para trás, chiando para a princesa, porém um sussurro baixo vindo da escuridão a fez recuar ainda nos olhando com despreso.

? Inacreditável ? murmurei. ? Ninguém nunca falou assim com ela! Você não tem noção de perigo? Hugre é uma das tenebris mais perigosas do Quinto! ? Depois de Honén, mas não diria isso a ela.

? Agradeça ao vinho! ? Luyen deu outra risadinha e apertou mais forte meu braço, seu rosto estava mais brilhante e os olhos alegres demais. Revirei os olhos e dei a volta na mesa, mas, dessa vez, sentei ao lado dela, Hugre podia tentar alguma gracinha com magia caso eu estivesse longe. Luyen pegou a taça novamente e deu outra golada longa, a encarei feio, mas ela sequer parecia ligar.

? Sério?

? Para o caso de alguém mais vir com alguma grosseria. Só recarregando! ? Ela piscou para mim. ? Lanças, espadas e raios não são as únicas armas, palavras, às vezes, são mais úteis e podem vencer mais guerras! Basta saber usar as palavras certas!

? Você é inteligente demais para alguém que passou duas décadas trancadas numa cabana na floresta ? comentei, Luyen riu, mas dessa vez não a deixei pegar mais vinho, ela fez um bico e voltou o olhar para mim, mas algo estava diferente da diversão boba de antes.

? Nada para fazer num lugar deserto e muito material de leitura são a combinação perfeita para afiar uma mente! ? disse mais séria dessa vez. Surpresa e quase uma pontada de orgulho me invadiram quando percebi que ela estava fingindo a tonteira com o álcool para não ter que interagir com os convidados e usar aquilo como desculpa depois.

? Você não presta! ? sussurrei, quase tocando os lábios em sua orelha ao me inclinar para que ninguém me ouvisse. A pele de Luyen se encheu de cor e ela mordeu a boca para evitar rir.

Passei os olhos pelos convidados mais uma vez, para ter certeza de que ninguém estava reparando demais. Parecia que ninguém ali, exceto um grupo de Ventus, estava interessado na Tormentadora que destruiu um dos céus. Todos comiam e bebiam e conversavam, ignorando a existência dela como se ela sequer estivesse ali. Embora tenha me irritado com o pouco que faziam dela, uma parte de mim ficou aliviado, menos problemas.

Do outro lado do pátio, o grupo do Quinto céu ainda nos observava, e novamente me irritei ao perceber que Malira observava Honén e Prisla.

? Sua família me parece ser toda meio...

? Monstruosa? ? completei. Luyen franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.

? Ia dizer problemática ? ela sussurrou.

? Monstruosa se encaixa mais ? retruquei. Nenhum dos maridos de Malira estava ali, ela os mantinha quase prisioneiros, os usava quando queria, como se fossem objetos, e depois do que fez com Honén... ? E não são minha família. Não mais. Um dia terei uma de verdade.

? O que é uma família de verdade para você? ? Luyen quis saber. Porém não tive tempo de responder à sua pergunta, a voz estrondosa de Boroni pediu silêncio e atenção. Yoru estava olhando para mim e para Luyen, reparando na nossa proximidade e o príncipe não parecia nada feliz com aquilo. Ele fez um aceno para que a princesa fosse até ele, Luyen me deu uma olhada preocupada, então seguiu até o centro onde eles estavam, parando ao lado de Yoru que lhe estendeu o braço e a manteve ao lado dele. Tentei parecer indiferente aquilo, não queria arrumar encrenca na festa.

Sarki se levantou e sorriu, de uma forma fria a cruel que fez o pouco da escuridão em meu interior se revirar, nem havia notado Honén atrás de mim até que ela me apertou um pouco, do lado de Yoru, Luyen olhava desconfiada o imperador Solaris de pé na frente de todos. Ela não parecia bem, sua pele estava adquirindo um estranho tom cinzento, dava para perceber sua agitação, mas aparentemente ninguém se importava, ou não o suficiente para tirá-la dali.

? Meus caros celestes reunidos aqui para a apresentação da princesa recém encontrada do Oitavo ? Boroni começou, sua voz baixa e rouca causava estranhas vibrações em meu corpo, tinha a vaga sensação que minha mente tentava lutar contra algo, mas não sabia ao certo o quê. ? Em comemoração ao retorno de um membro da família Asterath, de minha amiga Mendal, resolvi dar um presente ao príncipe do Oitavo.

Yoru deu um passo à frente e fez uma reverência ao imperador, Luyen tentava discretamente soltar o braço do irmão, ela queria distância do Solaris agora perto demais.

? Majestade. ? Yoru se aproximou mais com o movimento da mão dourada do solar.

? É com imenso prazer diante de todos, declaro que a restauração do Oitavo Céu será iniciada, e que Yoru Asterath receberá sua coroa de direito, tornando-se o rei do Oitavo. ? Os aplausos soaram tão falsos quanto o discurso de agradecimento de Luyen. Yoru sorriu abertamente e fez outra reverência em agradecimento. ? A casa Asterath não demorará a encher novamente, uma vez que um herdeiro já está a caminho!

Doreen ergueu sua taça com um sorriso discreto e tímido no rosto, dessa vez os aplausos, pelo menos por parte da corte do Sétimo e Oitavo, foram reais.

? Fico muito agradecido por isso, Majestade! ? Yoru agradeceu a Sarki mais uma vez, mas antes de voltarem a sentar-se, o olhar de Sarki mudou para um divertimento cruel ao olhar para o rosto macilento, mas quase alegre de Boroni.

? É claro que também não deixaríamos a última vontade de Mendal passar em branco depois dessa comemoração! ? Aquela alegria disfarçada sumiu do rosto de Boroni e, pela expressão incômoda no rosto de Doreen, eu já podia imaginar o que vinha a seguir. Juro que rezei para que ele não dissesse aquelas palavras.

? Majestade? ? Doreen recuou um pouco na cadeira. Sarki sorriu para ela como uma cobra quando vê um rato encurralado.

? Celebraremos a coroação do rei do Oitavo e o casamento dele com sua noiva prometida ao mesmo tempo! ? Sarki abriu os braços, gelo escorreu por minhas veias, Honén me apertou forte, pois se não estivesse fazendo... ? Vou adorar estar presente no casamento de Luyen e Yoru Asterath!

O murmúrio ficou mais intenso e os celestes ali se agitaram com as palavras do Imperador solar. Por quase vinte anos ele barrou a reconstrução do Oitavo... E isso agora não me parecia um bom sinal! Mas além daquilo, o sorriso triunfal de Yoru que murmurava algo para Luyen, como se tentasse acalmá-la enquanto a princesa tentava se desvencilhar dele sem disfarçar dessa vez, fez algo queimar dentro de mim. Naquele momento, sentia como se o Sétimo fosse começar a desabar também. Luyen havia se soltado do aperto de Yoru, dava para ver o pânico em seus olhos quando ela deixou o pátio, correndo para dentro do castelo.

“Vá atrás dela!” Honén não percebeu que não precisava ordenar aquilo.


Capítulo 22

 

 

Perdendo o controle.


Luyen:


Sair.

Eu precisava sair dali imediatamente! Mesmo parada em choque quando ouvi as palavras daquele Solaris sobre o meu... Casamento, senti Yoru sorrindo atrás de mim. Aquilo não era uma festa de apresentação, era uma armadilha em que eu havia caído e agora estava presa até o pescoço na lama.

Teria corrido para fora do castelo, mas a festa estava acontecendo no pátio principal e depois do que tinha sido anunciado por Sarki... Um nó se formou em minha garganta. Aquilo parecia um pesadelo e Sarki podia muito bem ter feito aquilo de propósito para que Boroni tivesse mais um bom motivo para me matar! Doreen grávida e mesmo assim... Mesmo assim eles me obrigariam a casar com meu irmão?

Caminhei sem rumo pelos corredores desertos, olhando de vez em quando para o teto tempestuoso, como era de se esperar, o humor do rei devia estar horrível depois daquilo. As esferas brancas de luz que iluminavam os corredores projetavam sombras ao longe e a canção das Ventus que vinha do lado de fora, fazendo as janelas vibrarem suavemente, começaram a me dar a estranha sensação de que estava num pesadelo.

Talvez fosse isso! Um pesadelo.

Virei à esquerda num corredor qualquer, sem ver de verdade para onde estava indo. Quando meus pensamentos finalmente se acalmaram, percebi que estava muito mais escuro ali que em qualquer outro lugar, e que as esferas de luz se apagavam uma a uma. Dei um passo para trás, receosa com a escuridão que começava a espiralar nos cantos dos corredores.

? Ora se não é a anfitriã da festa! ? Uma voz profunda acompanhada do cheiro de fumaça com um toque cítrico me fez virar para traz e estacar.

? Owyn... ? Minha voz tremeu.

? Príncipe Owyn ? ele corrigiu ? De fato, sou. ? Sorriu, revelando os dentes brancos levemente pontiagudos. ? Não devia estar lá fora aproveitando o início de seu noivado, princesa? ? Ele riu com deboche, a túnica azul escura de veludo escorregou quando ele ergueu as mãos, colocando-as em cada lado de minha cabeça. Estava paralisada de medo contra a parede do corredor, sentindo a escuridão espiralar ao meu redor.

? Não tenho intenção de me casar ? retruquei. ? Nem com Yoru, nem com ninguém.

? Uma princesa, com uma casa para reconstruir... E não quer se casar? ? Owyn zombou, inclinando a cabeça para o lado, fazendo com que as pontas metálicas daquelas longas tranças negras estalassem.

? Não é o sonho de todas, sabe? Ser mãe e ter filhos... ? Tento parecer menos amedrontada dessa vez, mas mesmo assim minha voz ainda tremeu.

? Não é pra ser um sonho, é uma obrigação! ? ele rosnou, esmurrando a parede ao lado de minha cabeça. Eu me encolhi assustada ao perceber que suas mãos não eram exatamente mãos. Lembrei-me de Yoru contando sobre o irmão ser casado com dois homens, mas ter mulheres com filhos dele por ser obrigado a passar a linhagem para frente. Encarei aqueles olhos negros assustadores e vazios de qualquer emoção humana, mas tudo que sentia agora era uma boa dose de pena.

? Não me olhe assim, garota! ? Owyn falou baixo, de uma forma letal que fez os pelos em meus braços se eriçarem.

? Você está quase me fazendo entrar dentro da parede, se puder se afastar, ficarei feliz em parar de te encarar! ? resmunguei. Owyn se afastou menos de um palmo e riu.

? Destruiu um dos céus... E agora está aqui, presa em outro com mais inimigos do que nos outros Sete. ? Owyn ergueu a cabeça, suspirando de maneira... Cansada?

? Não entendo... ? O tenebris me olhou com ar de deboche novamente.

? Ah! Não percebeu então! ? Ele estalou a língua. ? Boroni é o vizinho mais próximo do Oitavo, e mesmo assim ele foi o único que não lamentou a queda do Oitavo... E de quebra casou a filha com o único príncipe sobrevivente da casa Asterath, o que tinha a coroa garantida nas mãos... Por que acha, Luyen, que ele queria tanto te condenar?

? Pelo que me lembro, você também não me queria aqui! ? o lembrei. O tenebris assentiu.

? Mas está aqui, não é?

Uma explosão de fumaça e sombras fez Owyn se afastar um passo, de forma calma, sem perder a elegância assustadora. O cheiro adocicado da fumaça de cedro quase me fez desabar de alívio, num instante, Hamza estava de pé ao meu lado com um braço ao redor de meus ombros e a lança torta na outra mão.

? Deixe ela em paz ? Hamza grunhiu as palavras baixa e pausadamente. Ele parecia estar prestes a explodir e o prateado em seus olhos brilhava na escuridão do corredor. Owyn nos encarou sério e sequer se moveu ou pareceu intimidado por aquilo, mas algo mudou em seu olhar ao reparar em algo sobre a pose defensiva do oficial ao meu lado.

? Devia ter mais amor próprio, Hamza ? ele cantarolou com deboche. ? Receber ordens de seres inferiores e agora guardar a refeição dos outros... ? Ele gargalhou e Hamza rosnou.

? Suma daqui!

Owyn apenas meneou a cabeça negativamente, olhando-me com desdém novamente antes de jogar as tranças para trás e dar alguns passos para dentro de uma fenda nas sombras e encarar o irmão por cima do ombro.

? Você é patético. Um Tenebris que não pode mudar, nem é um tenebris de verdade. ? E, dizendo aquilo, desapareceu, levando a própria escuridão consigo. Hamza encolheu os ombros e levou alguns segundos para me olhar da cabeça aos pés e passou os dedos entre os fios soltos de seus cabelos.

? Ele não te fez mal?

? Além de quase fazer com que eu me borrasse de medo? Não. ? O oficial deu um risinho nervoso e passou o braço ao redor de minha cintura, estava escuro suficiente para ele não ter visto a careta que eu fiz para o gesto, mas ele foi o único que se preocupou em vir atrás de mim, e eu não tinha certeza se conseguiria andar naqueles saltos sem um apoio, não quando meus joelhos ainda tremiam.

? Temos que voltar ? Hamza lembrou. Meu estômago começou a se revirar novamente e o espartilho apertado não fazia muito para me ajudar.

? Não quero, quero ir para meu quarto! Por favor! ? Estava disposta a me humilhar e me atirar de joelhos no chão, se aquilo me ajudasse a não ter que voltar para aquela festa.

? Sei que não quer ir, mas não mostre fraqueza na frente daquelas cobras! Volte lá e faça aquela cara arrogante e convencida que fez quando brigou com Hugre mais cedo! ? Hamza segurou meus ombros com força, os olhos rajados fixos nos meus. ? Eu prometo que faço qualquer coisa que você queira depois! Só... Aguente até o final!

? Qualquer coisa? ? perguntei. De novo, o olhar do Tenebris desceu para minha boca e um meio sorriso apareceu em seus lábios.

? Qualquer coisa.

? Acho que posso aguentar mais um pouquinho então. ? Meu coração acelerou no instante em que seus olhos se voltaram para os meus e um sorriso sincero brincou em sua boca.

? Vamos então. ? Hamza estendeu o braço para que eu o pegasse, então votamos para o pátio principal.

? Sabe, você ganhou a aposta. Mas como não especificou um prêmio, não vai ganhar nada! ? disse tentando acalmá-lo. Hamza apenas riu e continuou a andar, tinha certeza de tê-lo escutado murmurando um “depois eu cobro”.

Ele estava tentando me acalmar. Mesmo assim, sentia a tensão vinda dele desde aquelas palavras de Owyn. Algo no que o príncipe do quinto falou o fez ficar diferente, ainda estava brincalhão comigo, mas aquele humor que sempre brilhava em seus olhos havia sumido.


Yoru veio rapidamente em nossa direção quando passamos pelas portas em direção à mesa do Sétimo, onde Honén estava séria ao lado de Prisla. Ele estava bufando, olhando para nós irritadinho demais para meu gosto.

? Onde estava? ? indagou pegando meu braço, Hamza bufou e soltou meu braço devagar, como se relutasse em fazê-lo.

? Bebi muito, precisava ir ao banheiro ? retruquei de forma casual.

? Você saiu nervosa demais para ser só isso, Luyen! ? ele replicou.

? Vocês me enfiaram um casamento goela abaixo numa festa que deveria ser só um jeitinho fingido de eu dizer que estava à vontade aqui. Desculpe parecer desesperada! ? tripliquei com sarcasmo. Os olhos escuros de Yoru brilharam e sua boca estava apertada numa linha fina.

? Pelo menos finja que está feliz! Depois conversamos sobre isso, Luyen! Não armei nada disso. ? Ele me soltou, arrumou a trança e voltou para o lado de Doreen. Hamza estava parado ao meu lado como um poste, sequer parecia estar respirando. Tornei a caminhar em direção à mesa para pegar mais uma bebida, dessa vez eu precisava mais do que queria.

? Aquele pedido... ? comecei. Hamza ergueu as sobrancelhas ? É qualquer coisa mesmo?

? Sim. Qualquer coisa ? respondeu sério.

? Se eu te pedir para socar meu irmão, você faria?

Hamza fez um som como um latido ou uma tosse e cobriu a boca com a mão.

? Eu disse qualquer coisa, Luyen. Seriam dois coelhos numa cajadada...

? O quê? ? Fiquei confusa. Hamza suspirou e balançou a cabeça, voltando a ficar em silêncio.

Malira, Hugre e Owyn estavam de pé perto da mesa principal, a rainha do Quinto falava com Sarki. Por alguma razão, os dois combinavam, como se fossem dois lados de uma moeda. Comecei a observar melhor os Tenebris que andavam em meio aos outros convidados, vez ou outra eles me encaravam e seus olhos sempre negros pareciam carregar uma escuridão completa. Fui diminuindo os passos antes de chegar na mesa e me virei para Hamza. Ele piscou, confuso com minha reação.

Seus olhos eram prateados, rajados de negro.

? Algum problema?

? Você é mestiço. ? Não foi uma pergunta. Hamza franziu o cenho e desviou os olhos. ? O que Owyn disse... Sobre você... ? A expressão de Hamza endureceu e eu soube que deveria mudar de assunto imediatamente.

? Esqueça isso ? ele murmurou. ? Vou pegar algo para você beber e voltar a ficar alegrinha.

Nisso, desapareceu numa nuvem de fumaça. Eu estava certa? O que tinha de mal em ser mestiço? Queria perguntar e conversar sobre aquilo... E se ele era, tinha uma grande possibilidade de Honén ser também. Eu me virei para a mesa, para perguntar a ela, mas alguém estava atrás de mim.

? Parece que além de cunhadas, vamos ser co-esposas, não é?

? Você é a... Primeira esposa de meu irmão, certo? ? perguntei. A Solaris respirou fundo, dilatando as narinas com a minha provocação. Pelos deuses! Doreen tinha um enorme motivo para ter ciúmes, Ênya era linda! A pele cor de cobre reluzia com um brilho dourado suave, os olhos cor de âmbar e os cachos ruivos caindo ao redor do corpo esguio...

? Ênya. ? Ela estendeu a mão. ? Parece que não fomos devidamente apresentadas. Meu marido, ao que parece, esqueceu as boas maneiras.

? Ah, isso com certeza ele não tem! ? Apertei a mão dela, mas o meu comentário não teve o efeito que eu esperava sobre ela. Sua pele se aqueceu de uma maneira nada agradável e ela apertou minha mão com força.

? Não tolero que falem mal dele! ? Ela aproximou o rosto do meu para rosnar em minha cara.

? Você que disse, eu só concordei! ? falei, mas ela estava usando aquilo como desculpa. ? Ah, desculpe... Eu entendo. É chato ter tanta concorrência a uma cama! ? Mesmo em provocação, aquilo me enjoou. Ênya rosnou de novo, puxando-me para perto dela.

? Acho que você não entendeu quem está enfrentando! ? ela falou baixo. Eu estava de saco cheio de ameaças, sustos e surpresas desagradáveis. Hamza tinha razão, festas eram chatas e eu deveria ter ficado em meu quarto!

Sem querer.

Juro que foi sem querer quando aqueles raios escaparam por minhas mãos, fazendo uma barreira luminosa tremeluzente ao nosso redor. Ênya gritou e tentou soltar-se de minhas mãos, mas eu a segurava mesmo sem querer e ela começou a tremer e caiu de joelhos no chão. Estava tão surpresa e assustada que não consegui sequer gritar dessa vez, mas outras pessoas faziam, se afastando de nós ou simplesmente desaparecendo.

? Hamza, Honén! ? Yoru gritou.

No instante seguinte, braços delicados prenderam minha cintura e uma sensação horrível de dormência, como daquela primeira vez na floresta quando fui apanhada, tomou conta de mim. Meu corpo ficou mole e alguém me segurou para que não caísse. Não perdi os sentidos dessa vez, só parecia... Desligada.

Yoru segurou Ênya que chorava olhando as marcas vermelhas e altas de queimaduras nos braços.

? Levem ela de volta ao quarto e não deixem que saia! ? Boroni trovejou, olhando-me irado com Sarki espantado ao seu lado. Milagrosamente ele não havia ordenado que me levassem para o calabouço.

? Peço perdão, majestade. ? Hamza fez uma reverência e seu braço se apertou mais ao meu redor. ? Agora a pouco a princesa deixou a festa explicando se sentir mal e eu insisti para que ela voltasse, dizendo que ela havia cometido uma indelicadeza. A culpa foi minha por não ouvir seu pedido. ? Se eu conseguisse me mover, teria socado ele por se culpar para me livrar.

? Entendo ? o rei grunhiu. Hamza e Honén não esperaram uma segunda ordem, a última coisa que vi, do pátio quase deserto, foi Ênya se encolhendo com os braços queimados, mas me olhando por cima do ombro de Yoru com ódio velado.


Hamza desapareceu assim que me deixou no quarto com Honén. Ela soltou as fitas do corpete do vestido e, mesmo um pouco transtornada, fiquei feliz em poder respirar fundo novamente.

? Estraguei tudo, não foi? ? perguntei. Honén suspirou, me enfiou numa camisola de veludo e me deixou sentar na beirada da cama. Alguns segundos depois, uma caneca de leite quente com canela e mel apareceu fumegando sobre a penteadeira, Honén me entregou a caneca antes de sentar-se ao meu lado e suspirar.

? Não sei, Boroni deve estar indeciso quanto a isso ? ela comentou.

? O quê?

? Ele deve te odiar por Sarki aprovar seu casamento com Yoru e te amar por tentar matar Ênya! ? Ela riu. Meu coração disparou e eu neguei.

? Não tentei matar ela! ? eu me defendi.

? Mas se em algum momento ele te perguntar isso, diga que sim! Talvez você o ganhe assim! Ninguém gosta de Ênya mesmo! ? Honén gargalhou e eu me preocupei levemente com o senso de humor dela.

Fiquei em silêncio por alguns instantes enquanto tomava o leite. Talvez não tivesse sido boa ideia, pois ele estava se misturando com o vinho em meu estômago e tive que me esforçar para não estragar os tapetes bonitos com uma mistura de álcool e canela.

Algumas batidas suaves contra a porta me deixaram apreensiva. Hamza invadia os lugares como fumaça, Yoru e Doreen entrariam direto...

? Entre ? Honén chamou. A maçaneta virou e a silhueta alta e luminosa de Adrias apareceu, ele entrou no quarto devagar e fez uma breve reverência que me deixou confusa.

? Peço desculpas pelo ocorrido, Luyen. Tentei manter aquela criatura pestilenta longe... Mas me distraí. ? Ele se inclinou um pouco. Fiquei constrangida com o gesto, ele não tinha que se desculpar por aquilo.

? Não se desculpe... Eu que não consegui me controlar.

? Ênya tira qualquer um do sério ? ele admitiu, Honén tossiu uma risada e tentou disfarçar, começando a trançar meu cabelo. Adrias tinha uma presença doce, tranquilizadora, que me fazia querer tê-lo por perto. Ele podia ser um bom amigo e aliado. ? Mas não se preocupe, um Tormentador não pode fazer grandes danos a um Solaris. Ela só tem algumas queimaduras e um curandeiro Solaris pode consertar aquelas marcas em poucas horas ? ele me confortou.

? Sinto muito, de verdade! Não queria fazer mal a ela... ? Só dar uns tapas. ? Acho que estou de castigo no quarto, não é? ? perguntei. Adrias sorriu um pouco e assentiu.

? Meu pai deve estar dividido entre te amar e te odiar. Se você tivesse feito Ênya virar cinzas, ele certamente te daria uma medalha! ? Adrias fez outra reverência e disse antes de sair ? Só... Tente não sair sozinha por aí até a situação se acalmar. Boa noite.

? Boa noite ? sussurrei. O que ele disse sobre transformar Ênya em cinzas fez o cheiro da cabana destruída voltar a minha mente... O rosto sem vida de Chris...

Corri para o banheiro e vomitei todo o conteúdo de meu estômago. Honén segurou minha trança e afagou minhas costas enquanto as contrações iam e voltavam, até eu estar apenas apoiada no vaso olhando para o nada. Honén permaneceu em silêncio ao meu lado, me levou de volta para a cama e deitou ao meu lado. Ela me observava com os olhos tristes enquanto afagava minha cabeça.

? Um dia... Um dia isso passa ? ela sussurrou. Sabia que se referia a destruição do Oitavo, de estar lá e não ter salvo minha mãe. Não fazia ideia de como era para ela, estar ao lado de alguém que lhe tirou tudo, mesmo que sem intenção.

? Honén... ? Talvez aquela fosse uma boa hora para perguntar sobre Hamza, mudar o assunto.

? Humm? ? Ela acariciou o topo de minha cabeça.

? O que são realmente os tenebris? ? perguntei um pouco receosa. Os dedos dela em minha cabeça pararam de se mover.

? Nós somos a personificação de todos os medos que assolam nas sombras, tomamos forma do que lhe dá mais medo, mas não afetamos uns aos outros. ? Sem enrolações, sem medo de me assustar. Eu me virei para encará-la. Os olhos dela eram parecidos com os de Hamza, com aqueles riscos prateados, mas diferente dos dele, a escuridão estava lá.

? São...

? Somos como pesadelos encarnados. O breu quando o relâmpago desaparece. ? Ela suspirou. ? Já percebeu quando está de noite, durante uma tempestade... O relâmpago corta os céus, quando ele desaparece, a escuridão parece mais... Viva? Nos dá a sensação de que existe algo mais além de só o escuro depois da luz. Isso somos nós.

Ela continuou me observando, esperando talvez uma reação de medo, que eu me afastasse. Porém, apenas deitei o rosto no braço novamente e a encarei por um longo tempo.

? Mas você e Hamza são mestiços, não são?

? Como percebeu? ? Ela ergueu as sobrancelhas e apoiou o rosto no braço também.

? Owyn... Ele disse para Hamza quando os dois se encontraram no corredor que um Tenebris que não se transforma nem é um Tenebris de verdade. ? Ela enrugou a testa. ? E os olhos de vocês dois são diferentes dos outros. ? Honén mordeu os lábios e assentiu.

? Hamza e eu somos mestiços. Mas eu posso me transformar... E ele, ele não ? ela cochichou. ? E isso fazia com que os outros vivessem nos maltratando, até que um dia, sem querer, eu mudei de forma, então começaram a implicar só com ele. Hamza então foi para os campos do Vento Negro no Quarto Céu, treinar com os Ventus e Retaliadores. Ele se tornou fisicamente forte, já que essa sua magia natural nunca apareceu. O máximo do poder Tenebris que ele consegue é atravessar as fendas ou invocar escuridão.

? Então ele ficou realmente irritado quando perguntei. ? Honén torceu a boca num bico e negou.

? Ele não gosta de falar sobre isso. Mas não ficaria irritado com você por uma pergunta dessas.

? Certeza? ? quis saber.

? Claro! É difícil irritá-lo, ele teve anos com Tenebris preconceituosos e ignorantes para treinar sua paciência. Embora você consiga isso com uma frequência assustadora! ? Acabei rindo com ela.

? Obrigada, Honén! ? Ela piscou surpresa, podia ver a pergunta em seus olhos. ? Por estar aqui comigo, e por não me odiar... Por quem perdeu. ? Ela então sorriu e passou os dedos em minha bochecha.

? Você tem uma parte viva do meu coração destruído. Jamais a odiaria! Como não a amaria, sabendo que tudo que amei ainda sobrevive em você, mesmo que apenas um pedacinho? ? Ela beijou minha testa e me abraçou. ? Eu vou cuidar de você até o dia que a escuridão em mim possa encontrar minha luz novamente.


Capítulo 23

 

 

Círculo das tempestades.


Pouco antes de o dia amanhecer, alguém estava esmurrando a porta de meu quarto como se o mundo estivesse acabando lá fora, cada batida mais pesada que a anterior e os murmúrios irritados seguidos de meu nome começaram a me irritar! Certamente queria acordar o resto do castelo também.

? Mais cinco minutos... Ou cinco dias ? choraminguei rolando na cama e cobrindo a cabeça com o travesseiro.

? Nem pensar! ? uma voz feminina resmungou, no segundo seguinte alguém arrancou as cobertas de cima de mim com tanto entusiasmo que se eu não tivesse me agarrado na cabeceira, teria sido arrancada da cama com aquele puxão. ? Vamos, garota, ou vou jogar água fria em você! ? Era Prisla.

? Achei que estivesse confinada aqui! ? resmunguei, ela assentiu, agarrou meu pé e me puxou para fora da cama. ? Você é tipo uma assombração que agarra o pé das pessoas para arrastá-las para o tormento eterno? ? Prisla fez uma careta de deboche para mim e jogou um bolo de tecido branco em minha cama.

? Depressa, temos que sair antes que a vossa malvadeza acorde! ? Ela ficou ao lado da cama batendo o pé para que eu me apressasse. Ainda sonolenta, comecei a revirar o bolinho branco e descobri que era um vestido simples de capuz e mangas longas. Olhei feio para a Tormentadora, claro, minha cara de sono já devia estar naturalmente feia.

? Isso só reforça minha ideia de que você vai me carregar para o além! ? Comecei a me vestir lentamente, Prisla irritada, me deu uma travesseirada com força suficiente para me fazer cuspir um pulmão.

? ANDA LOGO OU EU VOU TE ARRASTAR NUA PELOS CORREDORES, LUYEN! ? Aquilo foi como uma dose de café, pulei da cama já mergulhando no vestido, tão rápido que até a Tormentadora se espantou.

? Se podia se vestir tão rápido, por que enrolou tanto? ? Ela me entregou uma xícara de chocolate quente e fez um movimento para que eu a acompanhasse para fora do quarto.

? Óbvio, ? Dei uma golada no chocolate. ? me faltava o incentivo certo! ? Bebi o restante de uma vez e coloquei a caneca sobre a mesinha perto da porta antes de pegar um sobretudo, jogar por cima dos ombros e sair atrás dela.

? Sem fazer barulho ? ela cochichou.

? Para onde vamos? ? quis saber.

? Ao ciclo das tempestades, ? respondeu ? um campo de tempestades no Oitavo, onde há um altar e as Vernuns recebem um selo, isso vai te ajudar a manter sua tormenta sob controle.

Meu sangue gelou ao ouvir aquilo. Era o tal ritual que Honén havia me dito antes.

? Como... Como é? ? perguntei enquanto descíamos as escadas em direção ao corredor que levava ao jardim.

? Nada demais. Não é como os rituais das sombras dos bruxos. ? Ela deu uma risadinha.

? Bruxos? ? quase parei de andar. Prisla cutucou minhas costas para que eu não parasse e assentiu. Já tinha ouvido falar de bruxos parecidos com os humanos quando vivia na cabana, meu pai contava histórias deles às vezes, mas dizia que eles não pertenciam a esse mundo.

? Há muito mais lá fora do que podemos imaginar, Luy! ? Prisla beliscou minha bochecha e abriu as portas para o jardim. Lá fora, o tempo estava escuro e cheirando a chuva, uma densa neblina cobria tudo e eu mal podia ver a silhueta de algo grande a alguns passos de nós. Prisla fechou as mãos em concha e soprou, um entranho vento morno nos circulou e desapareceu com a neblina, deixando o veículo em nossa frente às vistas.

Aquilo parecia uma carruagem meio redonda, porém no lugar de uma porta, havia um rasgo que se movia como se um vento fantasma o balançasse lentamente, não havia rodas, ele apenas flutuava alguns palmos acima do chão e uma massa negra rodopiava embaixo dele, deixando uma fumaça negra densa espiralar ao seu redor. Na frente, duas bestas imensas presas por correntes douradas, esticavam as asas membranosas como asas de morcegos, alongando-as e grunhindo baixo. Eles pareciam com cães, mas do tamanho de touros e sequer tinham olhos, suas cabeças grandes e compridas tinham apenas bocarras cheias de presas amareladas. Ambos roíam as correntes ao redor de seus pescoços incomodadas.

? Não tenha medo, Luyen! Eles são uns amores! ? Honén passou perto de uma das feras e acariciou o ponto sobre as fendas em seus focinhos. Uma das criaturas lambeu seu braço, deixando uma marca brilhosa e gosmenta ali. Honén puxou aquele tecido para que eu entrasse. Olhei feio para ela, Honén revirou os olhos e murmurou algo, então uma cabeça saiu de dentro do rasgo e eu dei um gritinho, quase subindo em cima de Prisla.

? Deixa de ser boba! É Doreen! ? Meu coração estava quase na boca, Doreen riu e acenou para que eu entrasse logo. Ainda meio desconfiada, entrei no veículo com Prisla em meu encalço, o interior do veículo tinha uma cor vermelha quase vinho e tinha a aparência de ser todo recoberto por veludo. Nos sentamos naquelas dobras macias que pareciam bancos, era macio demais, mas confortável e quentinho. Doreen estava sentada em minha frente ao lado de outra Vernum, a mulher me deu um breve aceno e Doreen nos apresentou.

? Luyen, essa é Araik, minha guarda. Ela assumiu o lugar de Hamza já que você precisa de atenção especial! ? Não pude deixar de notar o tom malicioso na voz da princesa e a mordidinha que ela deu nos lábios. A guarda apertou minha mão com um meio sorriso e voltou sua atenção para um livro grosso em seu colo.

? Ela está relendo como a iniciação funciona... Só para que não façamos nada errado! ? Prisla explicou. Fiz um aceno com a cabeça, um solavanco me fez cravar aas unhas nas pernas, então aquele rasgo que era a porta se fechou, grudando as pontas umas nas outras e o veículo começou a subir.

? O que...

? Um Moroodoch. ? A voz de Honén ressoou dentro do veículo, antes que eu perguntasse o que aquilo significava, ela acrescentou ? Um devorador de sonhos, você está dentro da barriga de um monstro gigante, só que esse é filhote.

Meus olhos se arregalaram e as quatro começaram a rir.

? Droga! Não brinquem assim! ? resmunguei colocando a mão sobre o peito. Elas começaram a rir mais ainda.

? Não estamos brincando! Isso é mesmo um animal! ? Prisla riu, rapidamente, tirei as mãos apoiadas naquela... Coisa e as esfreguei na roupa.

? Acredite, ele está mais ofendido com seu bumbum dentro da bolsa dele do que você com as mãos aí! ? Era dia de zombar de mim!


A conversa morreu quando começamos a escutar sons de trovões por todos os lados. Araik fechou o livro e ficou em silêncio de olhos fechados, sua pele começou a emitir uma luz branca e bonita, os cabelos acinzentados pareciam feitos de luz e três pequenos aros em forma de raios apareceram ao redor do seu pulso. Surpresa, me virei para Prisla para perguntar o que estava acontecendo, mas ela estava da mesma maneira, olhos fechados, um sorriso tranquilo no rosto e emitindo aquela mesma luz suave.

? O que é isso? ? perguntei a Doreen, ela também estava com os cabelos e pele luminosos, mas não parecia tão... Luminosa quanto as outras duas.

? O círculo das tempestades ? ela respondeu. ? Estamos quase no centro dele, então os Vernuns Tormentadores costumam ficar ainda mais... Vivos aqui! ? Doreen sorriu e tirou um espelho de dentro da bolsa ao lado de seus pés. Eu estava exatamente como Araik e Prisla, minha pele brilhava e os meus olhos estavam completamente prateados. Só então percebi que sentia uma paz... Algo tão bom dentro de mim... Como se fosse me desmanchar em luz e me espalhar pelo céu. Quase podia sentir qual seria a sensação.

? Luyen! ? Araik quase gritou meu nome. Abri os olhos assustada, voltando minha atenção para a guarda, ela apontou com o queixo para meus braços, quando vi o que ela estava apontando, meu sangue gelou. Era como se eu estivesse desaparecendo, meus braços pareciam transparentes, mas quando me dei conta daquilo, eles voltaram ao normal.

? Um dos perigos de não se ter um lacre... ? Prisla franziu o cenho e pegou minhas mãos para observá-las. ? Você pode se desmanchar e perder a forma física caso se deixe levar.

Aquilo me assustou, foi como um golpe físico. Eu podia... Morrer a qualquer momento?

? A iniciação é quase como uma segunda etapa do lacre, ela vai ajudar você a ter controle sobre sua tormenta, e esperamos que sobre a sua forma também! ? Doreen comentou baixo. ? Vamos descer.

Levei alguns instantes para perceber que estávamos paradas e que Honén estava de pé ao nosso lado dentro daquela... Daquele... Bicho. A porta, rasgo, boca, sei-lá-o-quê se abriu e ela saiu primeiro, estendendo a mão para nos ajudar.

Ao sair de dentro do Moroodoch, a claridade fez com que meus olhos doessem, mas conforme minha visão voltava, fiquei deslumbrada.

Estávamos no meio de um campo... Um campo de nuvens! Pisávamos em cima de nuvens cinzentas que rolavam e mudavam de cor, clarões sob nossos pés, seguidos de estrondos que deveriam ser ensurdecedores, mas eram quase como música para mim. Ao nosso redor, nuvens e mais nuvens se erguiam como paredões em milhares de tons de cinza, chumbo e branco, ascendendo com os relâmpagos, desenhando silhuetas luminosas em cada nuvem.

Olhei para o alto e me espantei, pois esperava ver mais nuvens de tempestade, mas o que tinha era um céu escuro infinito, borrifado de estrelas, onde uma onda de luzes coloridas parecia dançar.

? Bem-vinda ao lugar onde as lendas dizem que tomamos forma física! ? Doreen sorriu. Minhas bochechas estavam doloridas, eu as esfreguei e notei que estava sorrindo como uma boba. Honén pegou meu braço e caminhamos por entre as nuvens por alguns minutos, até pararmos num lugar onde havia mais luz e nossos passos ficaram mais firmes também.

? Altar de gelo ? Araik anunciou, Prisla, novamente, soprou as mãos em conchas e um redemoinho se formou sob nossos pés, varrendo a neblina que estava na altura dos nossos joelhos, deixando mais visível a tempestade negra sob nossos pés.

Sabia que não deveria ter medo daquilo, mas olhando para baixo, quase me derreti ao notar que estávamos sobre uma plataforma de gelo sólido que não media mais de três metros quadrados sobre as barreiras mágicas no centro de um furacão.

? Suba aqui. ? Araik me deu a mão e me puxou, subi os três degraus de gelo com as pernas trêmulas e soltei um soluço. A Vernum estava mordendo os lábios para não rir, mas suas mãos estavam frias e meio úmidas. Podia ter caçoado do fato de ela estar com medo também, mas percebi que a parte de baixo do meu vestido estava molhada, agarrando nas pernas por causa da caminhada até ali.

? Esse lugar não tem magia controlando a umidade ? Prisla avisou ao notar minha avaliação.

? Entendo... ? Araik me guiou até o centro daquele altar de gelo, cujo chão era todo riscado com símbolos circulares. Ela retirou o sobretudo que eu havia colocado sobre o vestido, o ar gelado não me incomodou muito, mas as solas de meus pés sobre aquele gelo... Ah, estava começando a pinicar.

? Deve sentar-se aqui, de pernas cruzadas e com as mãos abertas para o alto ? ela instruiu. Honén, Doreen e Prisla se posicionaram ao lado de pequenos pilares cônicos de gelo e colocaram as mãos direitas sobre eles. Quatro cones, Araik certamente ficaria com o último. ? Só fique assim, em silêncio e tente não dormir.

Pelo menos, não seria nada assustador. Dizendo isso, ela foi até o último pilar e fechou o círculo. As quatro se encararam por alguns segundos, fizeram acenos e fecharam os olhos, estendendo as mãos que não estavam sobre os pilares para o céu.

As quatro começaram a cantar, uma melodia suave e tranquilizadora que começou a fazer as nuvens ao nosso redor clarearem e rodopiarem no ritmo da canção. Os raios diminuíram conforme a música ficava cada vez mais baixa e suas vozes mais estranhas.

Foi de repente. Um trovão fez minha cabeça vibrar, mas não me assustei, pois parecia que estava saindo de mim! A voz das quatro agora não passava de um sussurro, um coro baixo e grave que lançava arrepios pela minha coluna. Elas, incluindo Honén, brilhavam e lançavam riscos de luz para o alto e esses riscos se uniam acima de mim, formando uma bola brilhante.

Os minutos começaram a passar e o som que elas faziam estava começando a ter um estranho efeito sobre mim, não conseguia mais ficar em silêncio ali, abri a boca sem saber ao certo o que estava fazendo e comecei a cantar também, porém algo diferente do que elas estavam cantando. A princípio parecia que estava em silêncio, mas logo que fechei meus olhos e deixei a música criar vida, comecei a sentir os pingos gelados em meu rosto e braços erguidos. Conforme eu cantava, cada vez mais alto, mais intensa a chuva ficava.

Raios, trovões e ventos começaram a rugir ao nosso redor, porém não me incomodavam, sentia-me ligada a eles de forma tão intensa que podia sentir a energia vibrar em mim buscando se libertar. Abri os olhos e sorri quando vi o que havia virado o mundo a minha volta.

Estava no centro de um cone de nuvens cinzentas que rolavam e mudavam de cor e intensidade, raios contínuos as iluminavam, piscando e girando enquanto cantava cada vez mais alto. Era tão lindo! A chuva havia desaparecido, mas um vento morno levantou meus cabelos que haviam se tornado luz pura e minhas mãos erguidas terminavam em pequenos raios, absorvendo a luz dos relâmpagos do cone de nuvens. Sentia como se pudesse ficar ali para sempre vendo aquela tempestade me circular.

Aos poucos, minha garganta começou a doer, lágrimas escorriam por meu rosto e meus braços começaram a pesar. A tempestade foi perdendo a força e se desfazendo até sobrar apenas aquele céu escuro e luzes coloridas. Estava dolorida, tanto que meu corpo tremia e tinha a vaga sensação de que não conseguiria me mover dali. Baixei a cabeça cansada e sorri ao me deparar com pequenas pulseiras prateadas em forma de raios marcadas em minha pele. Eu me deitei naquela plataforma de gelo ? desabei ? era a melhor maneira de descrever.

O rosto sorridente de Honén apareceu em minha frente alguns instantes antes de tudo ficar escuro.


Capítulo 23

 

 

Marcada


Yoru:


Irritação tomou conta de mim assim que acordei pouco antes do início da manhã e percebi que Doreen não estava no quarto, em nenhum lugar do castelo para ser mais exato. Fui direto para o quarto de Luyen, e me irritou mais ainda constatar que ela não estava lá também, assim como Araik, Prisla e Honén também haviam desaparecido.

Elas haviam levado Luyen para a iniciação no círculo das tempestades sem me avisar antes! Ah! Aquilo me deixou no mínimo furioso! E se Boroni tivesse a intenção de fazer algo...

? Boroni já estava irritado ontem durante a festa. É compreensível que elas tenham feito isso o quanto antes, assim se Boroni decidir encrencar com a princesa, ela já terá a marca das tempestades e isso dá mais controle...

? O que fará com que Boroni fique menos preocupado? ? interrompi Hamza, estávamos no laboratório de Prisla esperando por elas para saber como havia sido. ? Boroni só ficará satisfeito quando ela desaparecer, assim como Ênya, e Doreen for a única ao meu lado ? afirmei.

? Mas com a marca, ele terá que procurar outro motivo para acusá-la de qualquer coisa, e fazer planos para se livrar de alguém inocente leva tempo.

? Tempo suficiente para que a reconstrução do Oitavo comece, eu pegue minha coroa e possamos ir embora? ? Não precisei comentar sobre o casamento, Hamza ficou tenso e desviou o olhar.

Respirei fundo e tentei não pensar sobre aquilo. Sobre a proximidade dele com Luyen... De como os olhos dela brilhavam quando ele estava por perto e o quanto ela ficava confortável com a presença dele e apreensiva ou irritada quando eu me aproximava. Se não fosse o fato de que ele e Honén precisassem estar perto para controlá-la, eu daria um jeito para que ele não se aproximasse mais.

Droga! Hamza era meu amigo desde sempre! Não queria acabar com uma amizade por causa de algo que podia ou não ser coisa da minha cabeça. Mas Luyen era minha! E Sarki havia deixado isso bem claro! O oficial ficou em silêncio, olhando pela janela por um bom tempo antes de responder:

? O Sétimo não é seguro para nenhum de nós. Talvez lugar nenhum acima do reino humano seja. ? Olhei incrédulo para ele, Hamza continuava olhando para fora, movendo uma flor de Tarcis entre os dedos.

Preferi ficar em silêncio e não discutir. Ele havia sido banido do Quinto e bem recebido no Oitavo. Será que havia se esquecido disso? Fechei os olhos ao entender então o que ele havia realmente dito: o único lugar seguro acima do reino humano havia sido destruído quase vinte anos atrás.

Andei pela sala, olhando os equipamentos e máquinas de testes que Prisla colecionava, as pilhas impecáveis de documentos e anotações e as montanhas de livros. Nada daquilo me surpreendia, o que me chateava é que ela mal tinha liberdade de trabalhar, sempre vigiada por Frezi ou outros alquimistas de Boroni.

A porta da sala se abriu, deixando Hamza e eu em alerta, mas eram apenas Honén e Prisla sorridentes. Eu me segurei para não ir até elas e sacudi-las, até porque o olhar de Hamza sobre mim quando elas entraram dizia o suficiente do que ele faria comigo caso encostasse em sua gêmea. Amigos ou não, ele ainda era um tenebris e ainda podia me matar.

? Nós nunca vimos nada como aquilo! ? Prisla deu um gritinho, ela me segurou pelos ombros e riu eufórica.

? Do que está falando, mulher? ? quis saber. Prisla riu novamente e ergueu os braços:

? Luyen é fantástica! Eu já presenciei várias iniciações, mas essa... ? Ela suspirou, os olhos pálidos da alquimista brilharam ? Em outras iniciações, as garotas mal podiam fazer chover quando a magia das tormentas ia tomando conta delas... Mas a Luyen! Caramba! Ela fez uma tempestade de alto nível só com o canto! ? Prisla gargalhou e apertou as mãos fechadas sobre o peito. ? Eu quero colocar ela num vidrinho!

Olhei para Honén, ela estava de olhos arregalados observando Prisla e fazia movimentos circulares com o indicador ao redor da orelha. Revirei os olhos, era melhor falar com alguém mais são.

? Vou falar com Doreen ? avisei. ? Depois converso com vocês dois. ? Honén e Hamza me olharam feio, mas acenaram de volta antes que eu deixasse a sala.

Segui rapidamente para o quarto dela, não de Doreen, de Luyen, precisava ver como ela estava. Os corredores ainda estavam vazios, pois era muito cedo, mesmo assim, tive o desprazer de encontrar com Boroni quando desci as escadas para o terceiro andar. Os cabelos na altura do queixo estavam um pouco bagunçados, mas as roupas prateadas finas, impecáveis como sempre. O rei me olhou de cima a baixo e fez uma careta disfarçada na hora que fiz uma breve reverência.

? Majestade. ? Não ia parar, ia seguir meu caminho, mas o rei entrou em minha frente, os olhos faiscando com irritação.

? Não deixe aquela selvagem sair do quarto até que tenha controle... Ou até que eu mande colocar um lacre nela! ? rosnou. Meu interior ferveu com a vontade de mandá-lo para o inferno, mas só teria que aguentar mais pouco tempo até estar em casa novamente.

Em casa e com minha família.

? Não vai ser preciso, majestade. Doreen, Honén, Prisla e Araik a levaram até o círculo das tempestades e a iniciaram. ? Boroni perdeu o pouco da cor que tinha quando falei aquilo.

? Você... ? ele rosnou novamente dando um passo vacilante em minha direção ? Deixou sua esposa grávida, minha filha grávida, lidar com aquela... Monstruosidade? ? Ele estava quase espumando.

? Ela não é uma monstruosidade ? retruquei. ? E Doreen não me pediu autorização, sequer me avisou que iria fazer isso, óbvio que não teria permitido que fizesse tal coisa. ? Mesmo que pudesse mandar nela, duvidava que Doreen me escutaria. Boroni ficou em silêncio, olhando para mim, a confusão era notável em sua expressão, bem como Hamza falou, ter algo para acusar uma pessoa levava tempo e Boroni estava sem seu trunfo agora: a instabilidade de Luyen havia sido descartada de seus planos.

? Os conselheiros dos outros Céus estarão aqui durante quatro dias para reuniões, evite que ela saia do quarto durante esses dias. Não quero oferecer um espetáculo a mais ninguém ? ele grunhiu e seguiu seu caminho. Mil pensamentos de como seria agradável chutar aquele traseiro velho passaram por minha cabeça, mas não podia me levar.

“Só mais um pouco, Yoru!”

Disse para mim mesmo e segui meu caminho.


Parei em frente ao quarto de Luyen com a mão na porta enquanto pensava se deveria ou não entrar. Só queria saber se estava bem, nada além disso! Entrei no quarto e fechei a porta atrás de mim, dando alguns passos para frente por instinto e parando aos pés da cama.

A essa altura, o quarto já tinha absorvido o seu perfume.

Em cima da cama, ela estava espalhada, como se tivesse chegado e se atirado ali ainda com o vestido cerimonial. Os cabelos prateados embolados ao redor do rosto tranquilo lhe davam um ar pacífico, combinando com o sorriso ainda gravado em seus lábios.

Eu me aproximei com cuidado da cama, mesmo que ela não fosse acordar por algumas horas depois daquilo, preferi não fazer barulho. Ajoelhei ao lado da cama e toquei seu rosto de leve, só assim para que ela ficasse perto de mim sem me olhar feio ou atirar coisas em mim. As três marcas estavam lá, decorando seu pulso e me dando a certeza de que agora, pelo menos por pouco tempo, ela estaria segura de qualquer que fossem os planos de Boroni. A declaração de Sarki havia sido tanto uma felicidade quanto um medo para mim. Poderia restaurar minha casa, mas a que custo? O ciúme de Boroni pela preferência de Doreen ficou visível a todos. De repente, algo terrível se passou por minha mente... Mas não. Não tinha como ser real!

Luyen havia nascido adiantada depois do jantar com a corte do Oitavo, em que a rainha do sétimo estava presente. E se Boroni a tinha enviado lá com algo para dar a minha mãe para que ela começasse a dar a luz mais cedo? E se ela não teve tempo de escapar, mas os planos do Sétimo fossem derrubar o Oitavo para ter o controle dos dois reinos? Talvez, apenas talvez, tudo tenha dado errado nos planos deles e aquilo fugiu do controle...

Ah, devia estar começando a ficar louco! A mãe de Doreen era a pessoa mais bondosa que havia conhecido depois de minha própria mãe, e Boroni a amava tanto que jamais arriscaria sua vida por poder.

Luyen se virou na cama, tirando-me de meus pensamentos. Suspirei cansado e apertei sua mão um pouco.

? Interessante... ? A voz me fez levantar rapidamente e me afastar da cama. Adrias estava parado na porta com os braços cruzados sobre o peito e uma expressão séria, quase irritada, tirando a imagem que tinha dele: um bobo silencioso. ? Doreen acabou de me pedir para que te procurasse. Imagino o que aconteceria se ela entrasse nesse quarto e te visse aqui sozinho.

? Só vim ver se estava bem ? eu me defendi, aproximando-me da porta e de meu cunhado também. Quando ia passar por ele, Adrias segurou meu braço, impedindo minha passagem.

? Não dê motivos a ele ? rosnou baixo. ? Se vai continuar com essa teimosia, espere estar de volta em sua casa! Não dê motivos a meu pai para fazer mal a ela! ? Adrias me soltou. ? Ele estava vindo nessa direção.

Bufei irritado e saí dali rápida e discretamente.

Adrias continuava parado em frente ao quarto de Luyen, ele só se moveu quando virei o corredor.

Que raios! Eu estava enfiado em problemas naquele lugar!


Capítulo 24

 

 

Tentada


Luyen:


Três dias.

Fazia exatamente três dias que eu não saía de dentro do quarto para nada e mal recebia visitas de Doreen ou Prisla, ou até mesmo Hamza que estava sempre aparecendo. Depois do desastre da festa, sabia que não podia perambular por qualquer lugar naquele castelo pelo risco de dar de cara com o rei, os criados também me olhavam de forma estranha quando saía dos meus aposentos sem Doreen, Hamza ou Honén ao meu lado. Porém ficar dependendo deles para andar por aí estava me deixando louca, ainda mais considerando o terrível mal humor de Hamza depois daquele dia.

Talvez realmente tenha ficado zangado comigo quando falei sobre ele ser mestiço.

Bufei e comecei a andar em círculos pelo quarto, um pouco triste por não poder sair.

Embora achasse lindos os vestidos que Doreen mandou fazer para mim quase como uma forma de suborno para que eu ficasse dentro do quarto e ficar agradecida por ela aparecer de vez em quando para conversar, já estava deprimida trancada ali dentro, morrendo de saudade de correr pela floresta verde ao entardecer.

Num súbito e louco desejo desesperado, peguei as primeiras roupas que não eram vestidos no armário para escapulir dali: calças escuras de um corte simples que se moldavam ao corpo, justo, mas maleável que dava uma agradável sensação de não estar usando nada. A bata de mangas médias que iam até meus cotovelos, o bordado prateado do braço se estendia como pequenos raios até o lado esquerdo do peito, onde havia o mesmo símbolo do oitavo, o mesmo que havia visto tatuado no braço de Hamza algumas noites atrás na “recepção de boas-vindas” que, aliás, me fez sentir menos bem-vinda ainda, principalmente depois de quase fritar Ênya.

Procuraria por Hamza pelo castelo e pediria para que me levasse na cabana para ver meus pais novamente, talvez ele fosse legal comigo de novo, se não estivesse com raiva de mim, é claro. Doreen já havia me alertado sobre pedir para voltar ao reino humano, embora as visitas aos meus pais tivessem sido permitidas, mesmo depois do vexame da festa, voltar definitivamente não era uma opção. Sem pensar duas vezes, escapuli do quarto aproveitando a ausência dos guardas.

Depois de várias voltas por longos corredores desertos do castelo, onde poucos guardas me olhavam e se encolhiam um pouco receosos com minha presença, dei de cara com o portal que levava ao pátio traseiro, e lá fora, várias outras construções de pedra cinzenta que eu ainda não havia explorado ? assim como grande parte do castelo ? me aguardavam.

Caminhei distraída, quase dançante para fora daquela prisão de pedras, queria ir a uma das cidades também, mas não podia sair de perto de Hamza ou Honén enquanto não soubessem o quanto meus poderes estavam sob controle com aquelas marcas de tempestade e como Hamza não estava falando direito comigo, provavelmente não poderia ir a Nublis novamente.


Nada ali me chamava atenção, não havia nada para me distrair além de nuvens carregadas, pesadas e negras sob e sobre mim, ao redor também era tudo que via, cinza, nuvens e aquelas insistentes gotículas de água que estavam me deixando com frio dessa vez. Estava quase desistindo de vagar por ali, pensando em voltar ao meu quarto e pedir alguns livros a Honén, quando o som de metal se chocando chamou minha atenção vindo de um dos galpões mais afastados do castelo. Embora soubesse que tinha que voltar para meu quarto, minha curiosidade foi muito maior, então, como um gato sorrateiro esperando encontrar algo para roubar numa cozinha, corri até lá.


A porta negra de metal com o mesmo símbolo das oito estrelas e um raio no centro estava entreaberta, me esgueirei pela fresta e segui um corredor largo o suficiente para passar uma carruagem tranquilamente, sem risco de arranhar as paredes escuras de pedra com os metais das rodas, as janelas daquele galpão eram maiores que as do castelo e mesmo assim, ali parecia ser bem mais escuro. O som de metal agora havia cessado, mas podia ouvir algo como golpes em uma superfície, segui o som pelo corredor até dar de cara com uma sala grande de treinamento.

Do outro lado, de onde vinham os sons dos golpes, Hamza estava de frente para um saco de pancadas, com os cabelos amarrados firmemente num coque atrás de sua cabeça. Cada movimento de seu corpo parecia firme e fluido quando golpe após golpe acertava o couro negro que parecia ceder cada vez mais sempre que era atingido. A pele marrom dourada, brilhado com o suor, destacava ainda mais o desenho dos músculos, dando a ele um ar poderoso. Senti meu rosto corar e um calor percorrer meu corpo após mais alguns instantes observando. Mesmo sem ter feito som algum e ter entrado ali de forma sorrateira, Hamza virou-se olhando diretamente para mim.

Meu rosto aqueceu ainda mais ao perceber o olhar de satisfação em seu rosto e me dar conta que ainda o observava. Ele pegou uma toalha e secou o rosto, em seguida a jogou sobre os ombros e veio em minha direção lentamente. Não fazia ideia de como controlar meus batimentos ou como fazer aquele estranho fogo que começava a tomar conta de mim ceder, mas cada passo que ele dava em minha direção fazia com que aquilo se atiçasse ainda mais, e de alguma forma ainda mais terrível, eu tinha certeza que ele sentia isso, pois suas narinas dilataram e o olhar se tornou quase feroz.

? Então, Luyen... ? Hamza me encarou com sério. ? Não devia estar em seu quarto? Pelo que me foi informado por seu irmão, você deveria ficar lá até terem certeza de que não era... Perigosa! ? Perigosa! O fogo que me consumia foi transformado em irritação num piscar de olhos, encarei Hamza e cruzei os braços sem saber ao certo o que fazer com eles.

? Você está me evitando, todos estão me evitando, na verdade, mesmo depois daquela iniciação! ? reclamei ? Disseram que eu não era uma prisioneira, mas não parece isso, uma vez que nem posso sair daquela porcaria de quarto! ? Bufei. ? Se é para ficar aqui, queria fazer algo para passar o tempo, não aguento mais ficar trancada lá.

Os olhos dele brilharam com algum sentimento que não consegui identificar logo de cara. Ele inclinou o corpo um pouco para o lado, fazendo aquela sensação de choque passar novamente por mim. Um pouco constrangida ao notar o sorriso nos cantos de seus lábios, olhei em volta analisando melhor a sala de treino.

? Não sabia que estava sentindo minha falta, princesa! Teria ido vê-la caso tivesse sido informado disso! ? Ah! Meu coração disparou ainda mais, mas não consegui negar aquilo. ? E posso treinar você, caso esteja entediada demais, já que posso lidar com toda a sua energia. ? O sorriso dele aumentou e dessa vez não precisei pensar duas vezes para sentir o toque de malícia daquelas palavras, Hamza estava a apenas dois palmos de mim agora.

? Não preciso de treino. Quero apenas fazer algo que não seja sentar e ler! ? Estava nervosa demais com sua proximidade e saí soltando as palavras sem medi-las. ? Não preciso saber distribuir socos por aí, muito menos matar pessoas! Estava segura no reino humano, coisa que não parece certa aqui, não é mesmo? Nem todos engoliram a história de que eu era uma recém-nascida quando aquilo aconteceu e depois do que fiz com Ênya...

Algo se acendeu no temperamento dele, talvez algo que não devia estar lá.

? Está preocupada com a sua segurança, Luyen? ? ele rosnou, dando mais um passo em minha direção, fazendo-me colar as costas na parede. ? Mas não quer fazer nada a respeito? Quer ser protegida pelos outros? E se chegar uma hora que ninguém vier te defender, o que vai acontecer? Vai morrer porque negou minha ajuda? – Um palmo era o que nos separava agora.

? Não é pra isso que Yoru colocou você na minha cola, pra cuidar de mim e não deixar que nada aconteça? Se não pode fazer isso, você não tem serventia então! ? Era simplesmente impossível segurar minha língua quando na verdade deveria ficar quieta. Os olhos de Hamza ficaram totalmente negros, escuridão, do tipo que fazia eu me esconder debaixo dos cobertores, vazou dele, preenchendo tudo, deixando tudo num breu. Meu coração acelerou, mas de alguma forma ainda podia enxergá-lo. Ele apoiou uma das mãos na parede ao lado de minha cabeça e a outra colocou aberta no meio de meu peito e me pressionou contra a parede.

? Você fala demais, Luyen. ? Ele inspirou profundamente, inclinando-se para frente de modo que seu rosto quase tocou o meu. ? A questão é... O que você tem a proteger? Sabe que todos acima dos céus, com exceção dos Ventus, odeiam os humanos? ? Mal conseguia respirar, estava tensa, nervosa, pois sabia quais seriam suas próximas palavras. ? Seus pais humanos falaram a seu favor, deixaram o cheiro deles aqui, deixaram suas impressões... Então me diga, Luyen, já que não quer lutar para se defender... ? Seus olhos se demoraram em minha boca, tempo o suficiente para o medo daquela escuridão passar e outra sensação, além da raiva, pulsar em mim. Droga! Porque ele me causava essas sensações? ? Lutará por eles?

? E você quem vai me ensinar? ? retruquei tentando me esquivar, mas Hamza não se moveu um centímetro, a mão que estava em meu peito afrouxou, mas ele manteve um dedo no ponto que fazia meu poder despertar.

? Posso te ensinar uns truques ou outros. ? Ele desceu os olhos para o ponto onde seu dedo pressionava, para os raios pequenos que se formavam em minhas palmas fechadas, que nem mesmo aquelas marcas em meu pulso continham e sorriu. Um sorriso que fez minha pele se arrepiar e calor preencher todo meu corpo, mais intenso entre minhas pernas. Seus olhos estavam prateados novamente e tão de perto assim, comecei a reparar mais em seu corpo, o movimento rápido de seu peito e... Caramba! Ele era incrivelmente bonito, não tinha como negar. Fixei o olhar no colar com uma chave em seu pescoço para me distrair dele e falhei miseravelmente.

? Que tipo de truques? Não pode fazer os mesmos truques que eu... ? Minha voz falhou, mas mesmo assim abri a palma deixando aquelas pequenas faíscas de luz vazarem. Os dedos de Hamza desceram de meu peito, por entre meus seios e pararam pouco abaixo de meu umbigo. A essa altura já estava com as pernas trêmulas. Hamza abriu a boca para falar algo, mas a porta da sala se abriu e Doreen apareceu acompanhada de Araik, ela ergueu as sobrancelhas ao nos ver ali e Araik teve um ataque de riso mal disfarçado de tosse. Não sabia onde me esconder por conta da posição comprometedora em que estávamos, mas Hamza não se alterou, ele levantou o rosto calmamente, afastando-se de mim e deixando a mão cair. Sempre ficava um pouco tonta quando ele estava perto de mim daquela forma e me esquecia fácil de o quando ele era maior, quando ficou completamente ereto e colocou as mãos casualmente nos bolsos da calça, eu mal chegava a seu ombro.

? Desculpe, interrompemos algo? ? Doreen perguntou com sua voz doce e gentil de sempre, mas seu olhar para Hamza era quase cúmplice. Hamza sorriu para ela de uma maneira quase angelical e piscou:

? De maneira alguma, princesa. Estava apenas persuadindo nossa doce Luyen a passar por um treinamento... Não é, Luy? ? Os olhos como metal derretido se voltaram para mim e minha pele se arrepiou, tinha a vaga sensação que estava acenando positivamente com a cabeça quando ele ficou sério e Doreen pigarreou tentando disfarçar uma risada também.

? Não creio que ele possa me ensinar nada de útil ? comentei asperamente apenas para tirar aquela pose de superioridade que ele ostentava, porém, Doreen ergueu as sobrancelhas e encarou Araik, que deu um sorrisinho cruel e fez um sinal com a cabeça para Doreen. Ela caminhou decidida até o outro lado da sala, onde apanhou duas espadas e posicionou-se no centro da área de treino. Hamza não hesitou, caminhou até o canto da sala, sacou sua lança que estava apoiada no suporte então foi até a frente de Araik, Doreen cutucou meu ombro para que eu os observasse. Cruzei os braços e franzi o cenho para a cena, a guarda de Doreen era menor que eu, tinha um corpo quase infantil, mas seus olhos eram pura determinação.

Hamza posicionou-se à frente da guarda de forma estranha, um tanto ameaçadora demais. Caramba! Eles eram doidos? Aquela menina não podia vencer ele! Porém ela apenas sorriu quando ele esticou os ombros e girou a lança por cima da cabeça, a posicionando de modo que ficou com a ponta mais fina atrás de sua perna esquerda e a parte com a lâmina maior a poucos palmos acima do ombro direito, onde segurava-a quase no fim do cabo. Um sorriso de Araik foi como um gatilho que o fez baixar rapidamente a mão esquerda e agarrar o cabo, girando a arma com precisão letal! Cobri a boca para evitar um grito, a lâmina mais longa a acertaria bem na altura das costelas! Eu me preparei para correr e procurar por ajuda, mas o sorriso de Doreen ao meu lado me fez voltar os olhos para a luta. A única coisa que ouvi foi o alto som de metal se chocando.

Olhei boquiaberta Araik segurando as duas espadas como um “X” na lateral, barrando o ataque de Hamza, e o pior, ela nem sequer tremia sob a pressão que o golpe impôs. Depois daquele golpe, os dois pareciam dançar, se não fosse o som das armas e os riscos de sombra que elas faziam quando os dois as brandiam, eu pensaria que tinham largado as armas para dançar. Araik ergueu uma das espadas enquanto a outra fazia uma barreira e girou sobre os calcanhares, fazendo os cabelos cor de chumbo se abrirem como um leque, ela bateu a espada que usava de escudo contra a lança de Hamza que descia cruel, e usou a outra rapidamente, acertando o punho da arma na lateral do joelho dele. Hamza desequilibrou e num piscar de olhos, ela saltou desferindo um golpe com a palma da mão no estomago de Hamza, derrubando-o tão facilmente que quase acreditei que ele a tivesse deixado ganhar. Araik então apoiou o joelho sobre o peito dele e tomou a lança do oficial.

? Distraído, comandante? ? Ela deu um risinho de deboche e se levantou. Hamza continuava encarando-a sério, se estava irritado por ter sido derrubado por uma mulher, não demonstrou em momento algum.

? Talvez... ? Ele encolheu as pernas e deu um salto, ficando de pé e arrumando a trança bagunçada. ? Aprendeu uns truques novos? ? Ele sorriu de forma maliciosa.

? E muito bom estar sempre preparada, ainda mais quando não sabemos de onde o perigo pode vir ? ela comentou com um tom cruel, o olhar de Hamza se tornou sombrio, fazendo uma sensação fria escorregar por minha espinha. Araik soltou as armas em qualquer lugar no salão, veio em direção a Doreen e ambas foram saindo dali como se nada tivesse acontecido.

? Você não devia estar aqui fora, Luyen! Yoru vai ter um troço se souber que você saiu do quarto sem Honén, ainda mais com os conselheiros ainda aqui! ? Doreen me lançou um olhar longo, que pelo pouco que conhecia dela, significava que ela ia me acobertar, mesmo a contragosto, agradeci.

Hamza ficou um bom tempo em silêncio olhando para o nada, sua expressão agora era cruel, mas algo cheirava a medo, ou ansiedade, não sabia distinguir ao certo, pois ainda estava me adaptando aos sentidos mais apurados que me ajudavam a reconhecer emoções através do odor exalado pelos que estavam a minha volta.

? Seus treinos começam amanhã quando aqueles abutres forem embora. ? Ele me pegou de surpresa, estava novamente a poucos passos de mim. ? Eu a treinei e ela está melhor do que eu! Quero você melhor que ela ou pelo menos boa o bastante para me derrubar também! ? Ele me deu uma piscadela antes de se virar para recolher as armas.

? Eu... ? Não tinha como fugir daquilo.

? Tenho que buscar a arma que Rijan fez para você também. ? O olhei feio, mas Hamza apenas sorriu ? O quê? Não vai mais ficar trancada no quarto, isso não é bom o suficiente? Ainda vai ter o prazer de me ver assim novamente. ? Ele moveu as mãos mostrando o corpo seminu, meu rosto queimou novamente e uma risada quase sensual escapou dele.

? Você é quem não presta! ? murmurei lhe dando as costas e indo para a porta batendo os pés no chão.

? Todos vão saber que é você que está chegando, pés de chumbo!

Lembrei do que ele havia dito na floresta sobre eu andar fazendo barulho e travei. Não olhei para trás, apenas mostrei um dedo a ele por cima do ombro e saí, mesmo assim ouvi sua gargalhada ecoar pelas paredes do salão. Por alguma razão, acabei sorrindo com aquilo. Era o som mais bonito que já tinha ouvido.


Yoru:


Aqueles velhos conselheiros idiotas dos Céus não saíam do castelo. Boroni havia me informado que eles ficariam por quatro dias, nesse tempo evitei ter reuniões com Hamza e Honén, pois podíamos ser escutados por Gresh, o conselheiro de Malira, e os gêmeos não queriam dar motivos para sua mãe se unir a Boroni numa aliança apenas para que ele os expulsasse do Sétimo também.

Porém havia um meio de conversar com aqueles dois sem ter problemas com aquelas cobras linguarudas. Pedi a Prisla para avisar Honén que gostaria de encontrá-la no salão de treinos para que me mostrasse seu treinamento e saber se ela conseguiria fazer a guarda de Luyen caso saíssem do castelo. Se alguém ouvisse aquilo, não desconfiariam dos motivos para irmos até o galpão, e lá ela poderia detectar a presença de outro Tenebris facilmente.

Andei calmo pelos corredores, evitando chamar qualquer tipo de atenção errada, porém, ao passar pelas portas que davam acesso ao pátio traseiro, quase esbarrei em Luyen que vinha distraída mordendo os lábios e tentando esconder um sorriso.

? Ah! Me desculpe... ? As palavras morreram quando ela ergueu os olhos e percebeu que era eu. O que raios ela estava fazendo ali?

? Não foi avisado que não deveria sair do quarto? ? quase rosnei para ela, segurando seu braço com mais força do que pretendia. Ela olhou meu punho contra seu cotovelo e me lançou um olhar irritado, fazendo com que eu a soltasse.

? Fiquei entediada ? ela reclamou.

? É perigoso! ? alertei tentando controlar meu temperamento. Luyen parecia não entender o risco que corria! Ela revirou os olhos e começou a mexer em uma mecha prateada do cabelo.

? Meus pais diziam isso sobre sair pela floresta também. Me alertavam sobre ursos e lobos, eu saía todos os dias escondida. Vou fazer vinte anos, não é? ? Sempre com uma resposta na ponta da língua e sem deixar de chamar os humanos de pais. Irritado, observei-a de cima a baixo, ela estava com uma roupa de treino do Oitavo, o que fazia pouco para esconder as curvas delineadas de seu corpo e a graciosidade que tinha, quando estava de boca fechada, claro. Sequer conseguia pensar o que aqueles velhos babões imaginariam se a vissem assim, certamente, depois de fantasiar, imaginariam que estávamos planejando algo e a treinando em segredo. Ela cruzou os braços e mudou o peso do corpo, as sobrancelhas erguidas revelavam que ainda esperava uma resposta.

? Não quero brigar, Luyen. ? Suspirei e saí de seu caminho. ? Só... Evite problemas! Por favor. ? Afaguei o alto de sua cabeça e ela se esquivou chiando. ? Pelos deuses! Eu não vou te arrancar um pedaço, mulher! Não posso encostar em você? ? ralhei.

? É melhor evitar ? ela murmurou parecendo desconcertada. Respirei fundo e resolvi continuar meu caminho para evitar discutir, porém só então me dei conta do caminho que ela estava fazendo e travei novamente.

? De onde está vindo? ? perguntei. Luyen piscou e seu rosto mudou de cor, como uma criança apanhada em uma travessura.

? Estava apenas dando uma volta para conhecer o lugar ? ela respondeu brincando com os bordados da blusa, disfarçando. ? Fui até o galpão, mas agora estou indo ver se Honén me arruma mais alguns livros interessantes para ler. ? Ao galpão. Ela não esperou que eu dissesse algo, apenas passou pelas portas e desapareceu pelo corredor, como se o vento a carregasse para dentro.

Segui rapidamente até as grandes portas metálicas e quase voei até a sala de treino, escutando sons de golpes e risadinhas baixas e conspiratórias. Meu temperamento estava prestes a explodir novamente, precisava ficar calmo...

Tinha que respirar.

Porém, ao entrar na sala de treino, quase deixei que raios vazassem e destruíssem tudo. Hamza treinava com Honén com tal ferocidade que nem pareciam ser irmãos. Os dois lutando era algo de outro mundo, assustador, fluido, cada golpe tão pesado e forte que o chão vibrava quando defendiam os golpes um do outro. Porém sabia que Luyen não tinha visto aquilo. Hamza estava, seminu, com aquele sorriso filho da mãe que fazia até Doreen rir como uma garotinha apaixonada.

? Está fazendo o quê? ? rosnei. Hamza e sua gêmea pararam os golpes, sem entender o duplo sentido da pergunta.

? Treinando? ? Honén piscou. ? Devia se juntar a nós, alteza, ficar trabalhando apenas com a parte burocrática pode estar te deixando mole!

Hamza nem tentou disfarçar uma risada e se virou, soltando o cabelo para prender melhor os fios soltos. Aquele filho da mãe definitivamente fazia essas coisas de propósito.

? Precisamos conversar sobre algo ? disse, aceitando o convite de Honén para me juntar ao “treino”. Tirei a túnica e me aproximei de onde estavam, Hamza me entregou o aparador de couro se afastou, deixando sua gêmea como minha oponente.

? Se puder falar sem apanhar! ? Ela sorriu de maneira fria, movendo suavemente os pés descalços, colocando-se em posição. Ignorei sua provocação e me posicionei diante dela, apagando tudo ao nosso redor. Não duvidava que ao mínimo de distração, ela pudesse mesmo me derrubar.

? Estamos sozinhos? ? perguntei desviando do primeiro golpe da tenebris. Um soco lento demais, ela estava realmente querendo implicar comigo.

? Tudo limpo ? Hamza falou baixo. Honén aproveitou minha distração, chutando a lateral de meu corpo tão rápido que mal tive tempo para erguer o braço e parar o golpe. Ela deu um salto para trás e retomou à posição.

? Durante a festa... ? Ela atacou novamente, desferindo uma sequência de socos que eu aparei ? Você tentou não ficar às vistas de Sarki o tempo inteiro. ? Ela assentiu.

? Não é bom estar na mira dele. ? Ela fungou, mudando para uma sequência de chutes altos.

? Mas ele te olhou de maneira estranha quando você se aproximou para neutralizar Luyen... Como se tivesse percebido algo em você... ? Os olhos de Honén mudaram e o chute que deu no aparador foi tão forte que rasgou o couro dele e por pouco não me jogou contra a parede. Hamza num instante estava ao lado dela. A Tenebris tremeu e meneou a cabeça repetindo “estou bem” diversas vezes.

? Não parece nada bem. ? Hamza estava sério a observando. Ela suspirou e voltou ao treino, tentando parecer normal.

? Por favor, Honén, me diga o que sabe! O que aconteceu aquele dia para que você sumisse e não trouxesse a princesa de volta? ? Estava disposto a implorar por qualquer informação. Não conseguia aceitar bem o fato de Sarki ter permitido só agora a reconstrução do Oitavo... Depois de todo aquele tempo pedindo autorização, até parecia...

? Uma distração ? Honén disse como se tivesse lido meus pensamentos. Pisquei incrédulo, saindo da base e esperando que dissesse mais. Ela cruzou as pernas e sentou no chão olhando para o nada por um longo tempo.

? Que tipo de distração? ? Hamza perguntou, sentando-se ao lado da irmã.

? Do tipo que chama atenção de todos para algo banal e tira ainda mais atenção das merdas que estão acontecendo embaixo do nariz deles! ? ela grunhiu e socou o chão, fazendo escuridão se espalhar.

? Do que está falando, afinal? ? sussurrei.

? O exército de Tormentadores de Mendal não era seu único trunfo. Ela tinha algo pior guardado, um trunfo na manga para evitar qualquer ataque de fora, o exército era só para segurar as coisas até poder usar esse trunfo caso algo desse errado, pois ela já desconfiava de coisas... Quando os Lunares pararam de interagir ? Honén explicava, Hamza estava ao lado dela de olhos arregalados e mal respirava. Eu devia estar na mesma situação. ? A ideia de Mendal nunca foi começar uma guerra, ela só queria ter certeza de que ninguém ameaçaria seu reino... ? Ela me encarou com os olhos brilhantes, cheios de lágrimas. ? Só que outras pessoas acharam que era exatamente para uma guerra que ela estava se preparando. Então um ataque vindo de dentro... Isso não podia ser previsto. ? Tinha a vaga sensação de que meu corpo estava ficando dormente.

? Está dizendo que minha mãe fez isso de propósito? Que ela se vendeu para algum inimigo e resolveu usar sua própria filha pra destruir seu reino? ? Minha voz saiu como um trovão e Hamza rosnou de volta, colocando-se na frente de Honén.

? Você não está preparado pra essa conversa, alteza. ? Honén limpou as lágrimas dos olhos e se levantou, pronta para ir embora.

? Ah! Não vai mesmo! Não sem me explicar isso direitinho! ? grunhi segurando seu ombro, mas Hamza pegou minha mão, tirando-a dela e espalhando aquela dormência por mim. ? Como ousa? ? rosnei, mas ele não me soltou.

? Quer saber o motivo de Sarki ter olhando estranho para mim, príncipe? ? Ela me encarou. ? Porque eu sobrevivi aquilo, e porque eu fiquei lá dentro anos, sabia de tudo que acontecia, via tudo. E porque eu sou a única que pode dizer o que havia de errado com Nibbis, pois ela era minha An-hai!

An-hai.

Minha pele se arrepiou. Se elas tinham uma ligação pela alma... E Honén a viu morrer. Nem mesmo a minha dor chegava perto do que ela devia ter sentido por todo esse tempo, talvez ainda sentisse.

? Sinto muito. ? Não tinha palavras para aquilo. Hamza esfregou as costas dela, ainda me olhando feio, mas murmurando palavras calmantes para a irmã.

? Pense um pouco, alteza. Por que depois que Sarki se autoproclamou imperador dos Céus, logo após os Lunares pararem de interagir, todos os outros Reinos Celestes começaram a criar exércitos?

? Não entendo... O que o imperador Solaris teria a ganhar caso o Oitavo caísse? ? arrisquei perguntar. Honén baixou os olhos, constrangida.

? Não sei ainda. Mendal era tão antiga quanto ele e contava histórias... Contos de antes mesmo dos Céus existirem... Mas até então são só histórias. Prisla e eu estamos procurando por pistas, mas até acharmos algo concreto, melhor evitar ficar no caminho dele. ? Honén então deu um passo para trás, desaparecendo numa cortina negra.

? Vou verificar a Floresta Azul, me dê a chave! ? pedi, estendendo a mão para Hamza. O oficial apenas riu e negou.

? Doreen a entregou para mim, alteza. E depois do que acabamos de ouvir... ? Sua expressão ficou tensa ? Não devia sair do lado de Doreen, não se esqueça de que sua primeira esposa é uma Solaris com ligação direta com o Imperador.

? Quanto a Luyen... ? Ia falar para ele ficar longe, tomar cuidado com a maneira com que se portava perto dela.

? Prometi a Rijan que apareceria antes do almoço. ? Ele pigarreou, foi até o banco onde havia deixado sua lança e a camisa e as pegou. ? Não gosto de deixá-la esperando. ? Rápido como um raio, ele atravessou para fenda também.

Bufei irritado.

Talvez fosse só coisa de minha cabeça, pois havia me esquecido completamente que Hamza tinha uma loja de armas em Nublis com a outra mestiça. Eles certamente tinham algo. Fiquei um pouco mais aliviado e saí do salão indo rápido até o castelo para ver Doreen.

Agora a atenção seria redobrada, pois se Honén estivesse certa e Sarki tiver algo a ver com tudo aquilo...

Nós estaríamos todos em risco.


Capítulo 25

 

 

A mesma essência


Luyen:


Hamza não havia aparecido novamente desde aquela hora no salão de treinos e Honén tinha escapulido um pouco depois do almoço para algum lugar que não pôde me dizer. Como sempre, eu tinha “ordens” de meu irmão para não sair do quarto até o fim do dia, pois os conselheiros dos outros Céus ainda estavam lá e eu não deveria deixar que me vissem andando por aí depois do acidente na festa. Obviamente fiquei irritada por Doreen ter dito que era uma ordem e me senti vinte vezes mais tentada a sair do quarto só para atazanar meu irmãozinho um pouco, porém minha cunhada não queria me largar!

Doreen, que ainda estava no quarto fingindo querer companhia, mas eu sabia que era só uma maneira de me manter dentro do cômodo, insistiu para que eu tomasse um banho para provar um dos vestidos que ela havia encomendado para mim. Quando tentei me negar e dizer que ia até a biblioteca pegar um livro, ela rosnou como um cão raivoso, o que me fez correr para o banheiro e xingá-la uma meia dúzia de vezes antes de ir tomar o tal banho. Óbvio que não o faria na frente dela, não depois de saber que ela também conseguia derrubar Hamza como se ele não fosse quase meio metro maior que ela, fiquei preocupada com o que ela podia fazer comigo.

Doreen me colocou num vestido negro de veludo com um decote mais do que chamativo começando desde as beiradas de meus ombros, descendo em V até o meio de meus seios, mangas apertadas até os cotovelos e uma saia longa rodada com uma abertura até minha coxa. Olhei para ela através do espelho da penteadeira e dei um choramingo triste.

? Pra que isso, mulher? ? resmunguei. Era lindo e o contraste com minha pele quase luminosa era ainda mais chamativo. Doreen mordeu os lábios pintados de vinho na mesma cor de seus olhos e moveu as sobrancelhas de forma provocativa. Quase conseguia enxergar um plano maligno sendo maquinado através de seus olhos.

? Só queria testar para ver se ficava bom em você! ? Ela arrumou uma mecha solta de meu cabelo. ? Semana que vem teremos um evento no Segundo Céu... Quero você maravilhosa, não aceito gente mal arrumada perto de mim!

Revirei os olhos e me virei para o espelho. O vestido era realmente bonito, abraçava cada curva do corpo e mesmo simples, sem enfeites ou adornos, parecia completo e bonito de forma simples.

? Espera... Segundo Céu? ? Engasguei ? No meio de um monte de Solaris? ? Doreen sacudiu a cabeça confirmando, um frio passou por minha espinha. ? Ficou louca? Depois do que eu fiz...

? Exatamente por isso vamos! ? ela me interrompeu, contornando a mesa e pegando uma caixinha com uma tinta preta e pincel, então começou a traçar uma linha sobre minhas pálpebras. Quando terminou, puxou duas mechas de meu cabelo, as trançou e prendeu atrás de minha cabeça com um grampo de prata. ? Vamos mostrar que depois da marca você lá está controlada. ? Ela piscou e deu um passo para trás, o vestido fino azul escuro farfalhando com o movimento. Doreen sorriu ainda mais observando melhor sua “obra” concluída e me virou para que me olhasse no grande espelho oval da cômoda.

? Estou linda! Nada melhor do que toda essa produção para ficar na festa do quarto trancado! ? zombei. Não fazia ideia do motivo de estar pensando qual seria a reação de Hamza se me visse com aquele vestido e pior, pensando em como seria se ele o tirasse para mim. Meu rosto e corpo começaram a queimar. Doreen riu discretamente, depois bufou irritada e moveu as mãos em direção a porta.

? Pelos deuses! Se isso é tudo vontade de ir lá fora e ser vista, vá procurar Yoru para mim! Diga a ele que quero comer algo doce e gostoso e que estou esperando em nosso quarto! Depois disso, volte para cá! ? Ela sentou na poltrona em frente à janela e ficou me observando.

Fiquei ali parada alguns instantes, debatendo se deveria ir atrás de meu irmão, se ela se irritaria caso eu dissesse que não queria mais sair. Demorei tanto pensando que Doreen pigarreou apontando a porta e não pensei duas vezes antes de me virar e sair. Afinal, uma grávida pedindo doces ao marido era uma boa desculpa para eu deixar o quarto, até mesmo para o caso de encontrar Boroni, já que estava fazendo mimos para a filha dele.

Pelo menos daquela vez, os corredores estavam cobertos por nuvens claras, então talvez o risco de sair do quarto fosse pequeno. Caminhei em passos firmes usando o som dos saltos conta o piso de pedra lisa como uma distração para meu nervosismo e segui quase dançante, passando pelos guardas de cabeça erguida, ignorando os olhares desconfiados deles.

Havia visto meu irmão por último no pátio, então talvez fosse um bom lugar para começar, fora que não conhecia outras áreas do castelo mesmo. Não tive nenhum problema até chegar as portas e sair para o pátio, por sorte, ou talvez nem tanta, Yoru estava parado perto das escadas bem próximo a mim. Ele se virou surpreso ao escutar a porta se abrir e fez uma carranca, já até podia avinhar suas próximas palavras: reclamar por eu não estar em meu quarto.

? Nem comece! ? eu me adiantei ? Doreen me mandou te procurar, ela disse que quer algum doce bem gostoso e disse que vai estar te esperando no quarto. ? Yoru bufou e meneou a cabeça, seu rosto parecia um pouco mais pálido também, podia ter rido dele por ter ficado encabulado por receber ordens da esposa grávida.

? Ela vai se aproveitar disso até o último minuto. ? Ele riu, passou os dedos entre os cabelos, aquilo devia ser um hábito de quando estava nervoso, em seguida veio em minha direção, para dentro do castelo na verdade, eu que estava no caminho. Yoru parou ao meu lado e me encarou, havia algo brilhando ali, talvez triste e cansado, mas aliviado também. Desviei os olhos para qualquer outro lugar que não fosse aquele abismo em seu olhar e me detive na espada prateada fina ao lado de seu corpo.

? Um trabalho muito bonito ? comentei. Yoru seguiu meus olhos e sorriu um pouco.

? Uma das armas essenciais feita por Jan. Ela é incrível, não é? ? Ele sacou a espada e o metal cantou ao ser retirado da bainha. A lâmina era bonita, trabalhada em aço-luz e toda decorada com raios, o punho longo sugeria uma arma para ser empunhada com as duas mãos.

? Muito bonita...

? Eu amo armas essenciais! Primeiro porque não se pode identificar que uma arma possui essência de seu dono até alguém tentar usá-la e se dar mal! ? Yoru sorriu, girando a espada em punho e a posicionando na frente do rosto, apoiando a lâmina com a mão. Exibido!

? Hamza me disse que outras pessoas não podem usar armas essenciais, mas não me disse o motivo ? falei tentando incentivá-lo a continuar conversando, era a primeira conversa racional que tínhamos e não queria que ele pensasse que eu o odiava, só queria que ele tivesse certeza de que eu odiava a ideia de me casar com ele, mas ainda queria um irmão. Porém, comentar de Hamza o fez fazer um bico e pigarrear.

? Armas essenciais se tornam absurdamente pesadas para qualquer um que não seja seu dono, prejudicando um combate, já que a pessoa não vai conseguir erguer a arma suficiente para atacar ou se defender, fora que uma arma essencial pode bloquear a magia de qualquer um que não seja seu dono, então mesmo que consiga erguê-la, ficará indefeso de outra maneira, sem magia, você se torna mais indefeso ? ele explicou enquanto brincava com a espada, girando ela em dois dedos para mostrar como era leve. Mordi a boca para não rir ao lembrar do que Honén havia explicado sobre a magia para pegar uma arma daquelas, talvez fosse divertido assustar meu irmão um pouquinho levantando a arma dele.

? Aposto que consigo levantar essa espada ? falei. Yoru gargalhou desavergonhadamente, pouco se importando com a careta que eu fiz para aquela reação. Como continuei em silêncio esperando seu ataque de riso passar, ele tossiu, disfarçando.

? Se conseguir isso, eu te dou qualquer coisa que quiser! ? ele disse, estendendo a mão com a arma para mim, mas não a deixou no ar, colocou a ponta da espada no chão e manteve o punho de pé, para que eu o pegasse. Ele me daria qualquer coisa... Já sabia exatamente o que pedir!

Eu me aproximei mais um passo, Yoru me observava sério, mas dava para sentir sua ansiedade, só não entendia com o quê. Os olhos escuros não deixaram minhas mãos quando envolvi o punho morno da espada a poucos centímetros de onde ele ainda segurava a arma com as pontas dos dedos para que ela não tombasse.

? Vou soltar no três ? sussurrou. Não me movi, apenas fiquei de olho na espada. ? Um... dois... três!

Sua mão se afastou e ele deu um passo para o lado.

O puxão que a arma deu quando ele soltou quase me derrubou para frente! Envolvi as duas mãos na espada, mas mesmo assim não foi suficiente, ela desabou me levando para baixo também, mas meu irmão me segurou antes que eu caísse deitada e estragasse o vestido. A espada não teve a mesma sorte, caiu como uma pedra fazendo um som alto e me senti até culpada por aquela espada tão bonita cair contra as pedras lisas do pátio. Yoru me soltou para pegar a espada e me ajeitei, ainda sentindo meu rosto arder de irritação.

Xingei algo batendo o pé com força e me encolhi ao lembrar que poderia estragar o sapato e apanhar de Doreen. Yoru estava rindo novamente, só que dessa vez parecia um pouco desapontado.

? Por que não consegui? ? perguntei frustrada.

? Como eu já expliquei, ? Ele suspirou e embainhou a espada novamente. ? você não pode pegar uma arma essencial de outra pessoa, a menos que essa pessoa seja sua An-hai. ? Yoru encarou triste a arma.

? An-hai? O que é isso? Não existe nenhuma magia que possa fazer com que eu pegue a arma essencial de outra pessoa? ? Quis saber, tinha uma impressão ruim sobre aquilo. Yoru franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.

? Só um An-hai pode pegar a arma essencial de seu parceiro... Veja bem... ? De novo, ele estava sem jeito para explicar. ? An-hai é alguém ligado a você pela alma, como alguém predestinado a te encontrar, alguém que te completa. Mas é difícil encontrar alguém assim ? Yoru concluiu e bufou. ? Vou logo levar um doce para Doreen! Volte para seu quarto, por favor, Luyen. ? Ele me deu um tapinha “carinhoso” nas costas e entrou no castelo, mas eu estava ali parada, com o coração a mil e sentindo cada pedaço de meu corpo ficar dormente e minha mente esvaziar, podia escutar um zumbido alto, mas não me atrevi a me mover. Tinha a impressão que meu corpo não responderia caso tentasse sair dali.

Era brincadeira.

Só podia ser uma brincadeira de Hamza.

“Isso só pode ser algum tipo de brincadeira cruel.”

De repente aquela frase sussurrada por ele, fez todo sentido.


Hamza:


Voltei ao castelo pouco depois de pegar a arma que Rijan havia preparado para Luyen. O embrulho sequer pesava sob meu braço enquanto caminhava pelo pátio em direção a entrada do salão de treino, como tinha dito para Luyen voltar no outro dia para iniciarmos seu treinamento, podia lhe entregar a arma assim que aparecesse.

Rijan havia acertado na escolha da arma, um Karmok simples, a ajudaria a controlar a magia e usá-la como arma, assim seria mais fácil treinar a garota para evitar outros problemas como aquele com Ênya. Uma parte de mim ficou mais tranquila ao carregar aquela arma, pegá-la e perceber que o incidente do outro dia... Quando Luyen segurou minha lança, fora real. Já a outra parte estava me xingando por estar permitindo que aqueles flertes e proximidade com a princesa fossem tão longe.

E o mais estranho e talvez engraçado disso tudo era que Doreen sabia e me incentivava a cortejar sua cunhada, afinal, ela sairia ganhando ainda mais se Yoru perdesse essa. Interrompi meu trajeto e respirei fundo, apertando a caixinha de madeira escura com força em meus dedos. Eu não queria deixar ele ganhar mesmo. Abri os olhos e continuei caminhando, mas fui cada vez mais devagar ao reparar em alguém nas portas do castelo. Luyen estava ali! E pelos deuses! Aquilo só podia ser coisa de Doreen. Os cabelos prateados caindo sobre o ombro mal coberto por aquele vestido de veludo que abraçava cada curva de seu corpo, a brisa leve movimentou a fenda da saia do vestido, deixando suas pernas delineadas expostas.

Estava quase rezando para aquilo ser um sonho, pois mal conseguia me manter longe. Estava tão encantado com ela que não percebi algo de errado à primeira vista. Luyen estava parada olhando para o nada, as mãos apertadas do lado do corpo e expressão completamente vazia. Andei rapidamente até ela e segurei seu rosto com minha mão vazia.


Luyen:


A mão quente envolveu meu rosto e me fez ter um sobressalto, fiquei tão perdida em pensamentos que não percebi Hamza se aproximando de mim. Seus olhos rajados procuravam por algo de errado.

? O que está fazendo aqui? Aconteceu algo? ? ele perguntou sério. O rosto perto demais me fez despertar do torpor e dar um passo para trás.

? Nada errado, Doreen só queria que eu mandasse o marido dela procurar algo de gostoso para ela comer... Eu acabei ficando aqui e me distraindo! ? expliquei, conseguindo relaxar um pouco. Aquilo devia mesmo ser algum tipo de truque. Hamza riu e suspirou, olhando para uma das janelas do castelo.

? Ela certamente está adorando isso.

? Mandar nele como se ele fosse um cachorrinho? ? disse ? Com certeza ela está! ? Eu me virei para voltar ao meu quarto, mas Hamza segurou meu braço.

? EI! Fugindo? ? Ele deu um sorriso travesso. ? Tenho algo para você! Já que está aqui não tem por que esperar até amanhã! ? Hamza abre a tampa da caixinha de madeira em sua mão e mostra algo como um bracelete prateado com algumas correntes pequenas e finas, ligando o bracelete a cinco anéis.

? O que é isso? ? perguntei preocupada. Ele revirou os olhos e pegou minha mão esquerda, colocou os anéis nas pontas de meus dedos, quase na altura das unhas e abriu o fecho do bracelete, o colocou em meu pulso e ajustou as correntinhas de forma que se ajustaram a minha mão como uma luva.

? Isso é um Karmok. Uma arma mais usada para manipular sua magia, para que ela tome qualquer forma. Pode tanto fazer armas usando seus raios, quanto usar apenas eles, os direcionando! ? explicou. Fiquei com medo de fazer a próxima pergunta, mas como se ela quisesse ser feita, escapou de meus lábios antes que eu pudesse mudar de ideia.

? Isso é uma arma essencial? ? Hamza me encarou por um tempo que pareceu uma eternidade antes de assentir. Meu coração disparou e um nó se formou em minha garganta. Tinha um monte de sentimentos misturados que não sabia explicar, mas será que era por causa disso?

Hamza podia ser meu An-hai?

? Vamos testar? ? ele perguntou, assenti ainda um pouco entorpecida, observando-o com atenção. Hamza deu outro sorriso ainda mais bonito e me levou para o centro do pátio, onde esferas grandes de metal estavam espalhadas ao redor dos bancos. Esferas metálicas maciças que Prisla havia me explicado que ajudavam a fazer chover no reino humano.

? Vamos, por que não? ? E deixei que ele me mostrasse o que fazer.


Capítulo 26

 

 

An-hai.


Luyen:


Entrei no quarto quase como um furacão e me joguei na cama com o coração quase saindo pela boca, após aquela tentativa de teste com o Karmok. Hamza devia ser louco! Ele sabia que os conselheiros dos outros Céus estavam na sala de reuniões no segundo andar, de frente para o pátio onde estávamos, mas não foi isso que me perturbou a ponto de eu voltar para o quarto tão abalada.

Mesmo de olhos abertos, meu corpo ainda tremia com a sensação daquele toque que fez as esferas de metal tornarem-se nada além de montinhos distorcidos de aço. Não foram os ventos que invoquei com a ajuda de Hamza e daquela arma para mantê-las no ar que me deixaram nervosa, nem os raios que choveram ao nosso redor fazendo quase tudo que estava perto o suficiente para ser atingido por aquela devastação que invoquei virar pó.

Fechei os olhos e lembrei do exato momento que os clarões começaram a cair ao nosso redor, quando dei um passo para trás assustada, colando o corpo em Hamza, ele tinha sussurrado com os lábios tocando minha orelha para que eu ficasse calma, pediu para que moldasse aquela energia a minha vontade. O oficial deslizou as mãos por meus braços para que eu os mantivesse erguidos, alimentando aquela fúria dos céus que podia controlar muito mais facilmente com aquele bracelete metálico.

“Não tema a energia que tem, Luyen.” As palavras sussurradas e o hálito quente em minha orelha fizeram aquele fogo me consumir por dentro e a energia ficou mais intensa, mas ao sentir algo pressionado contra minhas costas, firme como um tronco de árvore... Cada pensamento desapareceu de minha mente e fez com que aqueles raios disparassem em todas as direções, explodindo as esferas e fazendo metal quente cair ao solo. O riso baixo de Hamza e o modo que ele deixou as mãos caírem para meu quadril foram o suficiente para me soltar de seu aperto e correr de volta ao meu quarto como uma medrosa que era.

Arranquei a porcaria do vestido preto de veludo que Honén me enfiara antes, ficando apenas com as peças íntimas, desfiz o penteado, deixando os cabelos livres e me atirei de bruços na cama, tentando abafar aquele calor. Não tinha chegado longe com Chris e ainda tinha medo de ferir alguém novamente. Mas Hamza... Ele fazia meu sangue ferver, podia lidar muito bem com minha “energia” e para completar...

Não me deixei pensar naquela ligação. Não até ter certeza de que estava sã, de que meu corpo não o desejava tanto que queria calar meus pensamentos para saciar aquele desejo gritante.

? Tinha que ter visto a cara dos emissários que estavam na sacada observando... ? Olhei por cima do ombro assustada, Hamza surgiu em meio aquela fumaça perfumada, como sempre, sem perguntar se podia ou não entrar, e agora eu estava numa situação ruim, pois não queria que ele saísse, embora também quisesse enxotá-lo dali. Seu olhar percorreu meu corpo, que naquela hora não adiantaria muito esconder, ele já havia visto tudo mesmo.

? O que quer? Não fez o suficiente? Boroni vai mandar me jogar no calabouço de novo! ? esbravejei, fechando os dedos em punho e me ajoelhando na ponta da cama, estava em dúvida se bateria nele ou o beijaria caso se aproximasse. Como se para testar minha vontade de bater ou não nele, Hamza veio até a beirada da cama e se apoiou no dossel a pouco menos de um palmo de mim, seus olhos brilhavam de uma forma que fez meu interior se derreter ainda mais.

? Ele não vai fazer nada, Luy... ? Sua voz saiu baixa, suave e eu como uma mariposa atraída pelo fogo, me aproximei um pouco mais. ? O Karmok neutralizou o seu poder... Nada além das esferas sofreram dano. Não representa mais perigo para Boroni... Não se você não quiser ? ele sussurrou, seu rosto estava a alguns centímetros do meu, e cada espaço entre nós parecia ruim de alguma forma.

? Então... Nada de grades? ? Nem sabia o que estava falando mais.

? Nada de grades, mas posso arrumar algumas correntes se você quiser. ? Meu corpo reagiu àquela oferta se arrepiando, e ele viu isso. Perto demais, o ar quente quando ele suspirou aqueceu meu rosto e fechei os olhos, tentando lembrar de coisas ruins para ter força e me afastar, minha mão que ainda estava com o Karmok se fechou apertando a madeira do dossel abaixo da mão dele, porém, a outra mão desobediente tocou seu peito. Estava quase descendo os dedos para os botões de sua camisa, Hamza sorriu e estendeu a mão, acariciando meu rosto com as pontas dos dedos. Meu coração estava tão acelerado que tinha certeza de que ele ouviria, ele sorriu ainda mais e fechou os olhos.

? Eu sei sobre a arma essencial ? falei. Hamza abriu os olhos imediatamente, me encarando sério, mas aquele brilho sedutor não deixou seu olhar.

? E...?

? Por que não me disse? Quero dizer... Isso... ? Os dedos que passeavam por meu rosto e pescoço de repente pararam, mas ele não se afastou, apenas continuou olhando para mim, para dentro de minha alma.

? An-hai, ponte entre almas ? sussurrou, eu assenti. ? Porque você é prometida de outra pessoa. Porque eu não poderia ficar com você, já que perdi meu título e seria egoísta da minha parte querer tomar você do seu dever...

? Eu não tenho dever nenhum! Doreen já está grávida, Yoru já tem como formar a família dele novamente! Eu não aceito isso como uma obrigação minha! ? esbravejei, todo aquele fogo morreu e me levantei da cama num pulo, me afastando de Hamza. Ele sentou-se em minha cama e antes que fosse para longe de seu alcance, ele puxou meu pulso e fechou os braços ao meu redor.

? Você não me deixou terminar de falar. ? Ele percorreu minha cintura com as mãos e me virou para ele novamente, então me puxou para cima, de forma que eu ficasse sentada sobre ele com as pernas em volta de seu tronco.

De novo.

Juro que tentei não estremecer e amolecer como manteiguinha quando ele fez aquilo. Hamza começou a deslizar os dedos por minhas costas, meu pescoço, e de novo acariciou minha boca com a ponta do dedo, lançando correntes por meu corpo.

? Também não te disse nada porque queria te conquistar, queria que gostasse de mim pelo que eu sou, assim como eu comecei a gostar de você... Pelo seu humor terrível e língua afiada. ? Sorri para o tom de voz debochado dele. ? Eu queria que me visse além disso, não quero usar isso como desculpa para pedir que fique comigo, Luyen... ? Ele parecia nervoso, senti como se ele fosse me tirar de seu colo e se afastar. Então abri a boca e fechei os lábios ao redor de seu dedo, passando a língua por ele. Hamza gemeu e tirou a mão, não consegui evitar uma risadinha. Ele me olhou feio.

? O quê?

? Estou tentando falar sobre meus sentimentos, Luyen! Consegue se conter por mais alguns instantes? Sei o quanto quer me agarrar! ? Ri novamente e Hamza segurou minhas mãos juntas em frente ao seu corpo. Ele ficou um longo tempo de olhos fechados, como se debatesse se deveria ou não dizer algo.

? Hamza...

? Eu vou ser egoísta dessa vez! ? disse ? Não pensarei nos outros, não quero pensar no povo que pode ou não precisar de você ou no seu irmão, meu amigo idiota e desesperado pela casa que precisa ser erguida! Porque eu preciso de você, Luyen! Eu sempre abri mão de tudo para um bem maior, por achar que tinha que ajudar a consertar as coisas e deixar minha vontade para depois! Mas dessa vez... Dessa vez eu não quero. ? ele sussurrou segurando meu rosto firme entre as mãos quentes, minha garganta oscilou. ? Você é o meu bem maior, é uma resposta a tantos pedidos em orações que achei jamais terem sido ouvidas até você aparecer naquele calabouço! E como eu disse antes, não gosto de dividir. ? Ele encerrou o espaço entre nós, puxando meu corpo para o seu e me beijando com tal intensidade que aquele nó em minha garganta sumiu. ? Amo você, Luyen, e nada mais me importa se você não estiver aqui, comigo!

Pelos deuses! Não fazia ideia do que responder. Apenas o beijei novamente e apertei mais o corpo contra o seu, deslizando a língua pela sua, apreciando a sensação e o gosto. Suas mãos se fecharam em meu quadril e sua boca desceu para meu pescoço, mordendo de leve a curva perto do ombro.

? Não tem mesmo nada a ver com essa ligação, não é? ? perguntei ofegante. A vibração que o “não” em resposta fez em minha pele, fez aquele calor se intensificar entre minhas pernas. Hamza também percebeu isso, porque riu daquela maneira que fazia minha pele se arrepiar. Suas mãos subiram de minha cintura para meus seios, onde ficou fazendo voltas com os dedos sobre a renda azul, enquanto sua boca ainda deslizada levemente em meu pescoço.

Dessa vez, não havia raios tentando escapar, a energia que fluía por mim era absorvida por ele. Hamza estava ofegante, a pressão dele entre minhas pernas se intensificou quando enrolei os dedos em seus cabelos e o beijei novamente, enfiando a língua em sua boca, o tomando para mim. Suas mãos subiram para o fecho do meu sutiã, mas antes que ele o abrisse, a porta se escancarou:

? Luyen! Eu soube do que aconteceu no p... ? Yoru entrou aos berros no quarto, mas congelou ao ver Hamza e eu na cama. Raios começaram a escapar das mãos dele e eu chiei. ? Que porcaria está acontecendo aqui? ? ele gritou dando um passo em nossa direção. Mais rápido do que pude registrar, Hamza se desfez sob mim e apareceu em pé perto da cama, em uma posição defensiva, não por ele, estava me escondendo de Yoru.

? Eu que devia perguntar isso! Não sabe bater, droga? ? gritei, levantando-me, pegando o roupão sobre a poltrona e me cobrindo com ele. Yoru estava em choque, olhava com raiva e mágoa para Hamza.

? É melhor sair e conversarmos em outro lugar, Yoru ? Hamza disse com calma, mas Yoru explodiu. Avançando para o Tenebris, que apenas rosnou deixando escuridão e fumaça sair dele, espalhando um torpor estranho pelo quarto quando os raios se intensificaram nas mãos de meu irmão. Ele o estava neutralizando para não me ferir? Isso era uma possibilidade?

? Como ousou fazer isso? ? Yoru gritou com Hamza ? Sabe o que ela significa para mim! ? Seus olhos se voltaram para mim e ele meneou a cabeça negativamente. ? Como você pode?

Meu temperamento se acendeu novamente e contornei o oficial, ficando de frente para meu irmão mesmo com um aviso de Hamza, apontei um dedo para ele e grunhi.

? Não tem o direito de dizer o que eu faço ou com quem fico, Yoru! Não venha com essa de “o que ela significa para mim”! Eu não significo mais do que uma parte de sua família que ainda vive! Mas a mulher que está te dando uma nova família é quase desprezada por você! ? Ele franziu mais ainda o cenho. ? Acha que não percebi? Você me vê como uma posse! Vi como sorriu quando Sarki disse que ia ficar feliz em ir ao... Nosso casamento!

? Luyen...

? Você vai me escutar! ? gritei ? Eu não sou sua propriedade! Não vou ser obrigada a me casar com você para que você restaure a sua casa ou sei lá o quê! ? Dei um passo mais para frente, quase respirando o mesmo ar que ele e ergui o punho com a arma. ? Eu prefiro morrer do que deixar que me toque!

? Não diga isso! ? ele rosnou, Hamza atrás de mim estava completamente parado, mas podia sentir tensão e irritação emanando dele através daquelas sombras, mas, pelo menos, estava me deixando resolver com meu irmão sem se meter. Bom.

? Vou repetir, eu prefiro a morte do que me casar por obrigação com você! Não vou me sujeitar a isso!

Yoru me encarava, os olhos negros faiscando. Raiva, decepção, traição, mágoa... Tudo passava por aqueles olhos. Mas, por fim, Hamza me afastou devagar e delicadamente, como se pedisse licença e saiu do quarto praticamente arrastando meu irmão com ele. Do lado de fora, ouvi a discussão dos dois continuar, Yoru não deixaria aquilo barato, mas por um momento me senti culpada, pois eles eram amigos e eu podia ser o motivo de acabar com aquilo. Fiquei agarrada à parede para escutar melhor.

“... vou designar outra guarda para ela! Você não precisa mais fazer isso, já estava cuidando dela bem demais! Depois conversarei melhor com ela e a farei entender...” ? ouvi Yoru gritar isso, e não aguentei mais. Saí do quarto quase explodindo e voei em cima de meu irmão, o colocando contra a parede. Yoru piscou chocado, mas não disse nada quando comecei a latir como um cão raivoso:

? Caramba, qual seu problema? Não ficou claro para você que não adianta tentar afastar ele? Que você não vai ter nada de mim para os seus planos familiares? Eu não vou ser igual minha mãe que abaixou a cabeça e cumpriu deveres que não queria! Não vou me sujeitar a você amando outra pessoa! Meu corpo e alma podem ser de Vernum, Yoru, mas meu coração é humano e egoísta!

? Então é a ele quem você ama? ? Yoru perguntou. Um frio passou por minha coluna e eu fiquei em silêncio encarando séria meu irmão.

? E se for? ? indaguei baixo, sentindo minha pele formigar de nervoso. Yoru desviou o olhar fechou os punhos com força.

? É uma tradição Asterath... ? Bati a mão com força na parede, fazendo-o olhar para mim de novo, só que assustado dessa vez.

? Dane-se as tradições! Crie novas! Dê mais valor a quem tem, Yoru! Você já está com uma família que te ama incondicionalmente! Pare de olhar só para o seu umbigo e deixe de ser tão egoísta, pois quem muito quer, nada tem! ? falei mais calma. ? Coloque amor em primeiro lugar, não regras ou tradições, e vai ver como tudo vai ser melhor! ? Yoru suspirou cansado e se afastou sem dizer mais nada, deixando Hamza e eu plantados no corredor.

? Não sei se o silêncio dele é bom ou ruim. ? Bufei. Hamza estava sério, olhando para mim quando me virei para encará-lo.

? Agora além de pés de chumbo, vão te conhecer pelos gritos também! ? Ele pigarreou, evitando rir. ? Acho que até em Nublis eles te escutaram colocando o príncipe do Oitavo no lugar dele! Amanhã isso vai ser a fofoca do momento.

? Ah, Hamza! ? Eu lhe dei uma cotovelada ? Vai se ferrar!

Voltei para meu quarto em seguida, mas o oficial não me seguiu.

Infelizmente.

Dei de cara com Honén deitada na minha cara com um sorriso sinistro no rosto, dando tapinhas na cama e agitando uma garrafa de vinho na outra mão, me chamando para sentar com ela.

? Estou mesmo precisando disso aí! ? Ela riu e eu quase chorei por meus planos estragados para aquela noite.

Yoru idiota! Cortou minha brincadeira!

 

Depois de uma noite mal dormida, tendo sonhos eróticos e acordar um pouco triste e sozinha, Doreen estava no meu quarto logo cedo, quase antes de clarear o dia, deitada na cama e tagarelando sem parar por causa da ausência de seu marido. Depois que os conselheiros foram embora, Yoru foi com o pai de Ênya ao segundo Céu ver a esposa que eu tinha quase transformado em torresmo e Doreen estava quase criando tormenta própria de tão nervosa. Honén apareceu com um chá de flores e ficou perto dela, para o caso de precisar usar sua escuridão para apagar a princesa antes que ela fizesse mal a si mesma ou ao bebê.

? Fique calma! Ele certamente foi só ver como ela estava para não deixar o clima ruim, Doreen! ? Honén esfregou suas costas com a palma da mão, a princesa suspirou e se virou para olhar a Tenebris atrás dela.

? Eu não gosto de Ênya ? ela resmungou ? Há algo de muito errado por trás daquele jeito dissimulado que ela tem.

? Você tem razão em não gostar dela ? Honén murmurou. Pelo olhar distante e tenso da Tenebris e a falta de continuidade em suas palavras, Doreen me encarou de cenho franzido que pelo seu olhar, pensamos a mesma coisa. Honén sabia de algo sobre ela que não queria nos contar.

Esperava, de coração, que não fosse algo que nos colocaria em risco.

 

Yoru voltou apenas no dia seguinte, eu estava com Honén no quarto da princesa tomando café, quando ele apareceu com cara de culpado e olhar baixo, o que fez Honén me lançar um olhar carregado e nós duas deixarmos o quarto para que eles pudessem conversar, mas pelo olhar da princesa, era quase óbvio que ele tomaria uma surra.

Honén foi para o laboratório de Prisla para continuar suas pesquisas que eu não fazia ideia sobre o que eram, e eu corri de volta ao meu quarto, para me arrumar e ir treinar com Hamza.

Tinha acabado de me vestir, trançar o cabelo e colocar o Karmok no pulso e dedos quando alguém bateu na porta, pela educação, não era Hamza. Ao abrir, fui surpreendida por Adrias numa roupa escura diferente dos trajes finos que sempre usava, seu cabelo estava amarrado apertado atrás da cabeça, mas os olhos pálidos estavam calmos como sempre.

? Bom dia, princesa! ? Ele sorriu e fez uma mensura. ? Seu mestre de treinos está ocupado hoje com uma pequena missão, por isso vou acompanhá-la apenas desta vez! ? Adrias explicou, estendendo o braço para que eu o pegasse. Fiquei um pouco decepcionada, e achei estranho o sumiço repentino dele, mas fazer o quê?

? Sabe onde ele foi? ? Arrisquei perguntas. Adrias meneou a cabeça negativamente, bufei e peguei seu braço estendido. Diferente da vez anterior, ele passava uma sensação poderosa, algo adormecido sob a pele que me fez querer recuar um passo, mas não deixei que percebesse isso. Fechei a porta do quarto e saí dali com ele.

? Bom... De qualquer forma, não conseguiria me concentrar com ele me ensinando algo mesmo!

Adrias começou a rir.

? Depois de anteontem... Imaginei que vocês não conseguiriam manter um treino decente, não sem derrubar as paredes do salão de treinos. ? Ele piscou e eu senti meu rosto queimar.

? Você ouviu...

? O castelo todo ouviu, Luyen! ? Ele gargalhou quando me encolhi, prestes a voltar para o quarto. ? Veja pelo lado bom, meu pai certamente não te odeia mais!


Caminhei com Adrias até o salão do outro lado do pátio, o príncipe puxou as grandes portas atrás de nós quando entramos e passou o trinco, mas ele mantinha o olhar tranquilo enquanto fazia aquilo, então não desconfiei daquilo, mesmo sabendo que devia.

? Só para o caso de alguém sem um selo de proteção aparecer... ? Ele deu tapinhas na porta. ? Tem placas solares, evita problemas para quem tiver fora e chegar desavisado! ? explicou, indicando o meio da sala para que eu o seguisse.

? Se placas solares bloqueiam a magia de tudo, por que tenebris podem passar por elas? ? Adrias endureceu um pouco quando mencionei tenebris.

? Eles ignoram quase todas as leis naturais... Não duvido que possam absorver até magia Solaris. ? Adrias soltou o ar pelo nariz. ? Eles não dominaram os Céus ainda porque não querem. ? Essa segunda parte, foi quase óbvio que deixou escapar sem querer. O Vernum sorriu novamente ao se posicionar no centro da sala, indicando duas esferas metálicas polidas do outro lado do cômodo. Olhei os objetos com as sobrancelhas erguidas e ele deu uma risadinha, pelo jeito, sabia de mais que só a briga entre mim e Yoru.

? Você deixa algo escapar por acaso? ? perguntei me aproximando dele. Adrias moveu as sobrancelhas em provocação e apontou as esferas no fim do salão.

? Meia tonelada de metal. Precisa movê-las sem fazê-las explodir ou derreter, de preferência, com uma corrente de ar! ? explicou, estendendo a própria mão, ele também usava um Karmok prateado, mas os seus anéis não terminavam em garras, era mais como uma luva. Ele moveu os dedos como se fosse os fechar ao redor de algo, então um tufão se formou no chão, fazendo uma das esferas se levantar até o teto, a ventania fazia as armas nos suportes sacudirem e espalhou coisas por todos os lados, por fim, ele a fez descer e pousar suavemente no chão.

Olhei para Adrias boquiaberta, ele como sempre, parecia a calmaria em pessoa.

? Isso não devia ser coisa de Ventus? ? perguntei ? E como... Como fez isso? Achei que Retaliadores não tinham tormenta! ? Adrias deu um sorriso curto e ajeitou o Karmok na mão, distraído.

? Minha mãe era Tormentadora ? disse. ? Eu não sou retaliador, Doreen é.

? O quê? Achei que fossem filhos da mesma pessoa! ? Estava em choque.

? Vai, tente erguer a esfera, te conto se conseguir.

? Não me disse como tenho que fazer! ? falei na defensiva, olhando temerosa as esferas.

? Já deve ter feito antes, mesmo sem querer não é?

O olhei feio, mas tentei. Ergui o braço como ele havia feito, tentando controlar energia para enviar uma corrente de ar até as esferas. Porém tudo que consegui foi um golpe de ar que fez algumas armas tremerem. Olhei para Adrias com o rosto queimando, mas ele não estava rindo, pelo menos. Apenas me encarava com os olhos pálidos como se analisasse qual a melhor forma de me explicar aquilo.

? Em minha defesa, você não me disse o que fazer ? murmurei.

Adrias revirou os olhos e chegou mais perto de mim, se posicionando perto demais e segurando minha mão que vestia o Karmok com sua.

? Deixe que a energia flua, como quando libera os raios, mas antes dela, já percebeu que tem algo mais? Antes da energia pura se libertar tem algo antes, como um vazio? ? falou baixo. ? Esse vazio antes da explosão de energia que você quer, use a energia para empurrá-lo para fora para formar um redemoinho. ? Ele me soltou e deu um passo para trás.

Cavalheiro.

Era a palavra perfeita para defini-lo.

Encarei Adrias por mais um instante antes de me concentrar, fechar os olhos e tentar sentir o tal vazio. Estendi a mão novamente e senti aquilo, não sabia definir como era sensação, pois era diferente de tudo que já tinha sentido.

O vento começou a circular ao nosso redor, mas não conseguia direcioná-lo, estava fazendo mais bagunça na sala do que direcionando a ventania para as esferas.

Adrias se aproximou, sua trança chicoteava ao redor do rosto e ele olhava sério para as esferas. Ele se posicionou atrás de mim e estendeu o braço para segurar o meu novamente.

? Force a magia através do Karmok, use-o como uma válvula de escape enquanto você a molda ? explicou. Foi o que fiz, tentei moldar aquela magia, pensando na arma como uma colher enquanto eu rodava a sopa num prato. Deu certo! As esferas começaram a subir, pouco, mas saíram do chão!

Adrias riu, o rosto estava perto demais do meu, pois pude sentir o hálito morno em minha bochecha. Nisso, meu coração acelerou e as esferas despencaram e o tornado dissipou, mas não sem antes se espalhar por todos os lados como um golpe e quebrar as janelas do alto do salão.

Adrias gargalhou e se afastou coçando a cabeça.

? Como suspeitava ? disse quando o olhei feio. ? Seu problema é com contato físico! ? Adrias riu enquanto ajeitava a trança de cabelos brancos bagunçada.

? Engraçadinho ? resmunguei sentindo meu rosto queimar ainda mais. O que ele estava tentando fazer?

Fui até um dos bancos perto das portas e me sentei, tentar controlar vento era mais cansativo do que soltar raios para todos os lados.

? Raios são sua habilidade principal, digamos assim ? Adrias comentou, sentando-se ao meu lado. ? Se aprender a controlar os ventos de tempestade antes da tempestade em si, seu poder aumenta e sua resistência também.

? Então começamos com o mais difícil? ? quis saber, o príncipe assentiu. ? Bom, consegui tirar elas do chão. Me deve uma história. ? O lembrei. O sorriso dele diminuiu um pouco, mas assentiu mesmo assim.

? Minha mãe era uma confeiteira. Ela trabalhava perto do Castelo Azul no Oitavo, meu pai tinha uma aliança forte com Mendal e sempre ia lá. Num dia estava caminhando pela cidade e a viu... Ele gostou dela, mas pra algo... Pra se divertir. ? Ele estava sério, mais para algo zangado do que para sério. ? Ela não falou sobre mim, não até ele aparecer anos depois e me descobrir. Ela foi obrigada a me entregar a ele, pelas leis celestes, crias de sangue real, quando os pais não são casados, ficam com quem tem maior poder hierárquico. ? Adrias suspirou. ? Nunca mais a vi depois que fui trazido para cá.

? Sinto muito... ? Meu interior começou a se desfazer. Eu...

? Ela morreu antes de você nascer, não se preocupe com isso! ? Ele certamente leu o pânico em meus olhos e sorriu.

? Mesmo assim!

? Vamos voltar e ver o que meu cunhado aprontou? ? Ele levantou um dedo. ? Se prestar atenção, vai ouvir gritos irritados de Doreen!

Não consegui ouvir nada além dos gritos de culpa em minha mente por ter me sentido tão bem com sua aproximação. Onde estava Hamza afinal?


Capítulo 27

 

 

Segundo Céu


Luyen:


A semana se passou rápido demais, como se o tempo tivesse pressa de chegar a algum lugar.

Sarki havia liberado a reconstrução do Oitavo Céu, então uma grande quantidade de trabalhadores das quatro cidades ao redor de Nublis se reuniram e desceram para começar a trabalhar sob a supervisão de Yoru e a sua equipe de Tormentadores que haviam sobrevivido. Eles voltavam para o Sétimo ao anoitecer e pareciam bastante animados com a reconstrução. Pelo que Yoru dizia, podia levar menos tempo do que planejavam para reconstruir o Oitavo, pois magos Ventus estavam dispostos a mandar ajuda também. Pelo que entendi, iam reconstruir por hora apenas a cidade principal para que os Tormentadores do Sétimo pudessem habitá-la.

Realmente estava feliz com aquilo, pois Yoru estava mais concentrado em reestabelecer o seu reino destruído do que me atazanar por qualquer motivo. Mas, para mim, as coisas estavam loucas. Depois do treino com Adrias e da revelação sobre sua mãe, Hamza ficou mais fechado para mim. Na verdade, ele voltou sério da “pequena missão” e depois de saber sobre o treinamento com Adrias, começou a me esfolar nos treinamentos, me fazendo usar magia até me sentir esgotada e querer dormir por uma semana toda vez que acabávamos.

Depois do sacode que dei em meu irmão no corredor, na frente de Hamza e da declaração que fiz a ele indiretamente, Hamza se mantinha um pouco distante, o máximo que conseguia eram longas olhadas durante os treinos, que me deixavam irritada com ele, mas não dizia nada, esperando para ver o que ele queria com aquilo. Não sabia se havia ficado com ciúme de Adrias ou o quê, mas já estava perdendo a paciência com ele.

Depois da missão de Hamza que eu não soube o que era, Honén passava horas no laboratório com Prisla e eu só a via na hora de dormir. Como Adrias disse, aparentemente Boroni não me odiava mais, tanto que me permitiu participar das refeições no salão principal com os outros, o que de longe era uma coisa boa, pois Adrias queria ficar perto de mim conversando, Boroni nos olhava como um lobo observando ovelhas e Yoru parecia sempre prestes a espumar, e quando saía da sala de jantar acompanhada por Hamza, o oficial estava sempre sério.


? Dá pra me dizer o que está acontecendo ou vou ter que virar adivinha? ? indaguei quando Hamza me deixou em frente à porta do meu quarto depois do jantar em que Adrias e Doreen estavam especialmente falantes, discutindo sobre uma festa que NÃO queriam ir no dia seguinte no Segundo Céu. O oficial parou para me observar, os olhos rajados faiscando contra a luz tempestuosa do teto.

? Não há problema algum, Luyen. ? Seu tom estava mais seco do que de costume. Ele não estava usando o uniforme essa noite, os cabelos soltos ao redor dos ombros se destacavam sobre a bata prateada que fazia maravilhas com seu corpo, mostrando os braços definidos e os botões abertos exibindo o peito forte, a calça escura de linho delineando as coxas. Ele acompanhou o movimento dos meus olhos e os seus brilharam um pouco quando o encarei.

? Se não há problema, por que desde aquele dia você nem tentou chegar perto de mim novamente? ? perguntei, dando um passo em sua direção. Rezei para que não se afastasse, não saberia o que fazer caso ele recuasse de mim. Para meu alívio, não o fez, apenas pegou uma mecha de meu cabelo e a puxou entre os dedos.

? Isso não é verdade ? sussurrou sem se aproximar mais. ? Estamos treinando juntos há uma semana, princesa. ? Mas não era a mesma coisa, parecia que estava evitando me tocar, não me olhava como naquela noite.

? Você... Mudou de ideia. ? Eu me afastei em direção a porta, sem dar chance para que dissesse algo, apenas entrei em meu quarto e bati a porta sentindo meu peito se apertar.

? Por que mudaria de ideia? ? Ele espalhou aquela fumaça perfumada pelo quarto e se aproximou, fazendo-me recuar contra a porta fechada e apoiou as mãos do lado de minha cabeça, se aproximando devagar de forma que podia ver até as marcas rajadas em seus olhos ? Só porque você e o príncipe pareciam muito à vontade juntos? Por que Adrias parece ter interesse em você? ? sussurrou contra minha boca. Cada pensamento em minha cabeça desapareceu e eu comecei a rir. Hamza não se afastou, mas arqueou as sobrancelhas numa pergunta silenciosa.

? Com ciúme, Hamza? ? questionei.

? Estava fazendo de propósito para me testar? ? ele disse mais baixo, de uma forma que me pareceu um pouco irritada.

? Não... Não estava fazendo nada de propósito ? falei. ? Mas queria muito saber porque se afastou. ? Levei minhas mãos para aqueles cabelos sedosos e enrolei os dedos nele, tentando aproximá-lo.

? Quer saber todos os motivos? ? Ele roçou os lábios de leve contra a maçã de meu rosto.

? Gostaria.

? Primeiro... ? Ele deu um beijo sob minha orelha, minha respiração ficou irregular. ? Boroni resolveu te dar um voto de confiança por você gritar para todos ouvirem que não queria tomar o marido de Doreen. ? Ele desceu as mãos da parede para minha cintura.

? Hmm, isso não é motivo para você se afastar.

? Segundo: ? sussurrou escovando a boca contra meu pescoço. ? o rei acha que Adrias tem interesse em você e isso o ajudaria, afinal, teria os dois Herdeiros casados com os herdeiros do Oitavo. ? Mesmo com sua boca em meu pescoço, meu corpo congelou. Estava saindo da frigideira para cair no fogo?

? Mas eu não...

? Mas Adrias percebeu isso e está fazendo de tudo para parecer o mais interessado possível para que o rei mantenha simpatia a você. ? Hamza apertou os dedos em minha cintura e mordeu meu pescoço de leve, fazendo aquele calor voltar. ? Ele já me disse para não me preocupar, que para ele você é apenas uma amiga. Então, para manter você em segurança aos olhos do rei, eu preciso ficar mais afastado. ? Seus lábios beliscaram a pele onde havia mordido e eu gemi, descendo as mãos para suas costas, para puxá-lo mais para mim. Hamza riu.

? Está prestando atenção, Luy?

? Hu-hum. Nada de brincadeiras às vistas dos outros, mas duvido que você não saiba ser discreto, quem quer, dá um jeito. Tem vários lugares que poderia ser discreto comigo! ? Segurei seu rosto para passar a língua por sua boca. ? Ainda não é uma boa desculpa, você não me convenceu, oficial!

? Ah, quanto a isso. ? Ele se afastou um pouco para puxar meus braços e beijar meus pulsos. Os olhos prateados se voltaram para os meus e ele sorriu abertamente. ? Você ainda está no Cio.

Franzi o cenho.

? O quê? ? quase gritei. Hamza riu ainda mais e mordeu os lábios.

? Duvido que queira um bebê enquanto está sob o teto de outra pessoa, já que a reconstrução do Oitavo começou... Isso pode esperar, não é?

? Existe... Existe isso? ? Eu me afastei de Hamza, ele soltou outra gargalhada, infinitamente mais divertida que a anterior.

? Sim, Luy, existe! E dura em média três semanas, a chance de concepção é muito grande. ? Eu me esquivei dele com os olhos arregalados e o rosto queimando.

? Ah! Por que Honén não me disse nada?

? Honén adora bebês, certamente ela queria um! ? Ele riu, se aproximou e segurou meu rosto, depositando um beijo carinhoso em minha testa. Mordi os lábios ao observá-lo de cima a baixo novamente.

? As chances são muito grandes? ? perguntei tentando não o agarrar novamente.

? Muito.

? Os humanos tomam...

? Não funciona com ninguém acima dos Céus, Luy. ? Ele riu. ? Acredite, eu sinto tanto por isso quanto você. ? Ele segurou meu rosto entre as mãos e mordeu minha boca, deixando escapar um rosnado ? Não sabe como é difícil te evitar assim! ? sussurrou.

? Então... É melhor sair daqui porque estou prestes a fazer uma besteira! ? O empurrei e fui para o banheiro, ligando a água fria para tentar tirar aquela sensação de sua boca contra minha pele.

? Quando isso passar, quero ver se ainda vai querer me agarrar dessa forma! ? Sua voz ressoou contra a porta. ? E trate de dormir, amanhã vamos ao segundo Céu.

? A tal festa? ? perguntei, entrando de roupa e tudo na banheira gelada, espalhando água pelo banheiro.

? Pois é... Aniversário da sua cunhada menos favorita.

Enfiei a cara na água só pra xingar. Ouvi Hamza rir e depois silêncio.

Aparentemente, era um doce sendo tirado da boca atrás do outro, viver naquele lugar. E amanhã... Amanhã seria pior, seria tirar o doce da boca e chupar um limão com casca e tudo.


No dia seguinte, não houve treinamento, já que Prisla e Honén não nos acompanhariam para o aniversário de Ênya, estaríamos só Doreen, Hamza, Yoru e eu, nem mesmo Adrias iria. Ah! Aquilo seria ainda pior do que imaginava. Uma festa num lugar cheio de Solaris lindos e irritadinhos sem o humor brilhante de Adrias para ajudar.

No meio da tarde, Doreen me arrastou para uma sala de banho perto da torre leste para nos arrumarmos. Não era muito divertido ficar numa imensa sala cheia de vapor com a princesa sem roupa nenhuma na piscina de água quente. A sala de pedras azuladas não era muito grande, um pouco maior que a cozinha do chalé de minha casa, mesmo assim tinha espaço suficiente para ficarmos confortáveis ali.

Casa.

Estava louca para descer novamente, só que dessa vez pediria a Hamza que me levasse durante algumas horas ao invés de alguns minutos. Precisava andar pelas florestas novamente, ver o rosto de minha mãe, ouvir a voz rouca de meu pai.


? Está pensativa hoje. Mais quieta que o normal! ? A voz de Doreen me chamou de volta para a realidade. Ela estava sentada de pernas cruzadas na piscina, de olhos fechados, com a cabeça descansando sobre os braços cruzados sobre uma toalha enrolada na borda de pedras escuras, os cabelos brancos embolados num coque no alto da cabeça quase podiam ser confundidos com o vapor na sala.

? Yoru não disse o que foi fazer aquele dia no Segundo? ? indaguei sem pensar em qualquer outro assunto mais seguro. Os ombros de Doreen tencionaram e ela abriu os olhos vinho em minha direção, quase pude sentir a onde de raiva emanando dela.

? Foi cumprir com seus deveres de marido ? retrucou de forma ríspida, escondendo o rosto nos braços. Sabia que era um risco, mas me aproximei e acariciei seu ombro. Doreen suspirou e tornou a me encarar, dessa vez seus olhos estavam marejados. ? Eu sei que... Ele se casou primeiro com ela. Eu estou errada em querer tanto que ele peça o divórcio?

? Acho que não ? admiti. ? Acho que você é a pessoa mais forte que conheço. Eu não aguentaria, já teria arrastado a cara dela no chão de pedras! ? Doreen riu.

? Talvez eu faça isso hoje, dependendo de como ela vai se portar!

? Vamos torcer para que ela se comporte bem! ? Doreen ergueu as sobrancelhas, sorri com malícia para minha cunhada. ? Pense, se ela se comportar mal na casa dela, você estará errada porque é de fora... Mas se ela se comportar mal em sua casa quando você já estiver no Oitavo?

? Vou poder colocá-la para correr!

Nós duas rimos como loucas psicóticas antes de sair daquela piscina e ir para o quarto nos arrumarmos.

 

Hamza estava no pátio com Yoru para partirmos quando saímos. Hamza me deu uma olhada de cima a baixo, estava com o mesmo vestido de veludo negro daquela primeira tentativa com o Karmok, não deixei Doreen colocar a tiara em mim, preferi apenas amarrar os cabelos e não usar muitos adornos, isso a fez rir e achar que eu estava me precavendo para uma briga.

Estava mesmo.

Hamza estendeu as mãos para nós e pela ausência do bichinho gigante de passeio, soube que ele ia fazer aquela coisa de pisar na escuridão, então tratei de me agarrar a ele com segundas intenções. Yoru, por sorte, não viu quando passei o braço ao redor do Tenebris e discretamente apertei sua bunda. Hamza teve um acesso de tosse e segurou os outros dois enquanto me dava uma olhada que evitei, olhando para o nada com o mais puro ar de inocência.

? Vamos ?ele sussurrou e deu um passo adiante. Quando a fenda se abriu, fechei os olhos e dei um passo adiante o acompanhando.


Aos poucos, a sensação do frio e o cheiro de cedro foi substituído por um aroma interessante e quente, algo como o aroma do final da tarde num campo aberto, quando o sol ainda quente está contra o rosto...

Abri os olhos apenas para querer fechá-los novamente. Luz, luz dourada banhava aquele lugar, brilhando por todos os lados. Estávamos no centro de um jardim, com vários tons de vermelho, laranja e amarelo nas plantas, mas o que chamava atenção e fazia meus olhos doerem era a construção majestosa que rodeava aquele jardim.

Colunas douradas que pareciam salpicadas com pó de ouro formavam arcos que se encontravam no alto, formando o desenho de uma ampulheta, mas, no segundo andar, ao invés de arcos abertos, havia paredes num tom creme perolado. Mais ostentoso impossível.

? Estamos no palácio de Sarki? ? perguntei baixo. Yoru revirou os olhos e meneou a cabeça negativamente.

? É a casa do pai de Ênya, estamos no centro de Púrpura, capital do Segundo ? explicou.

? Por que Púrpura? ? quis saber. Doreen apontou um dedo para trás de si, olhei por cima do ombro e abri a boca. Um dos arcos dava para um corredor largo e curto, onde, do outro lado, podia ver o sol vermelho baixando no horizonte, pintando o céu já parcialmente escuro e estrelado com diversos tons de roxo, laranja e vermelho. Yoru deu o braço a Doreen e os dois seguiram em direção à entrada de onde vinha o som de música e pessoas conversando.

? Fica assim sempre ? disse Hamza passando o braço ao redor de minha cintura, estava hipnotizada pelas cores do horizonte e nem queria sair dali. Porém o troco pela brincadeira antes do passo veio, e eu tirei os olhos do horizonte para ver outro espetacular misto de cores.

Hamza estava me encarando com diversão enquanto sua mão casualmente brincava em na curva de minhas costas e descia além. Eu me virei para beijá-lo, mas Hamza puxou meu braço e riu baixo.

? Nem pensar, princesa ? ele sussurrou, ignorando meu biquinho e me levando para o interior daquele lugar. ? Está linda. Linda, sensual e com fogo, uma combinação que pode causar problemas... Então, por favor, comporte-se! ? Suspirei pesadamente e assenti.

? Quero só ver se vou ser recompensada por isso! ? Ele piscou para mim, então, entramos naquela festa.


Se eu estava achando o lado de fora ostentoso, é porque não tinha visto ainda o lado de dentro. Yoru havia errado em dizer que aquilo era uma casa, era um palacete.

O salão em que a festa acontecia era tão grande quanto o do castelo de Boroni, tudo em dourado e vermelho, longas mesas com pratos refinados e bebidas borbulhantes no mesmo dourado, tudo parecia extremamente extravagante. Bem a cara de Ênya.

Solaris de peles bonitas e brilhantes douradas, bronze ou de um marrom iluminado quase se esbarravam de tão cheio que o lugar estava, e pelo que havia sido escrito no convite, todas as pessoas ali eram “amigos íntimos” que foram convidados. Porém, uma aura sombria no canto me chamou atenção.

Owyn e Hugre estavam ali. A Princesa tenebris, deslumbrante e assustadora num vestido vinho de tecidos finos, quase transparentes, nos olhava com a mesma cara de quem sentiu um cheiro ruim de sempre.

Ótimo, problemas! Ainda bem que não tinha colocado brincos. Se fosse ter briga, não precisaria tirá-los. Owyn estava completamente ausente à nossa presença, Hamza olhou para os dois por um breve momento e os ignorou também.

? Vai se esquivar por todos os cantos, ou vai falar com sua cunhada agora? ? Hamza cochichou.

? Achei que sua irmã não gostasse de mim! ? Hamza me olhou surpreso, com um sorriso enorme se formando no rosto.

? Estava falando de Ênya, mas bom saber que já tem planos a nosso respeito, Luyen! ? Pelos céus! Meu coração disparou com aquele sorriso, e acabei sorrindo de volta ignorando todos ao nosso redor. Droga.

? Você está me enfeitiçando, só pode! ? resmunguei sentindo o rosto esquentar. Comecei a procurar por Ênya, olhando ao redor, com certeza ela estaria mais brilhante e chamativa que todos.

Perto das mesas, Doreen fazia jus a uma mulher grávida, estava conversando com uma Ventus enquanto devorava umas tortinhas. Yoru não estava ao lado dela, ah! Numa festa de aniversário de sua primeira esposa, certamente estaria ao lado de Ênya, ou poderia arrumar problemas se ficasse apenas com Doreen.

? Não sei como ela aguenta isso! ? resmunguei. Hamza assentiu.

? Seu irmão está lá com ela. ? Ele apontou para as escadas no fim do salão, onde Ênya descia com Yoru ao seu lado, ele mantinha uma expressão vazia e entediada no rosto, mas Ênya, desfilando escada abaixo com o vestido azul brilhante cheio de pequenas pedras que reluziam contra as luzes dos lustres... O sorriso dela era grande, arrogante e eternamente convencido de que tinha um brinquedo só dela nas mãos.

Ao desviar o olhar deles para Hamza, vi seu rosto tenso. Então não estava errada, aquela expressão no rosto dela não era certa.

? Devia ficar um pouco com Doreen, Luyen ? ele sussurrou para mim, meus olhos se detiveram nas mesas, onde Doreen havia cravado as unhas no próprio vestido de chiffon, a provocação de Ênya havia sido para ela.

? De novo: não sei como ela aguenta.

? A maioria dos Solaris aqui nos acha inferiores. Não sei por que ela se casou com ele, para eles, Ênya é uma louca por se casar com alguém baixo, sendo filha do conselheiro de Sarki ? Hamza comentou. ? Ela tem propostas bem mais interessantes, mas as dispensa.

? Sou louca por não acreditar que isso seja por amor? ? Fiz uma careta para aquele sorriso de víbora, os dois estavam no salão cumprimentando as pessoas, mas Yoru só olhava para Doreen e essa ignorava-o completamente. ? Agora estou entre perder a amizade de Doreen se for falar com a vela de Samhaim, ou fazer a vela me odiar se for ficar com Doreen! ? Hamza mordeu os lábios com força para não rir, e me olhou feio.

? Vela de Samhaim?

? É, no reino humano eles decoram as casas para o Samhaim, algumas velas douradas são colocadas na soleira das portas decoradas com fitas azuis ou verdes. Ênya agora está parecendo uma vela dessas. ? Hamza virou para mim e riu quase sem conseguir disfarçar.

? Caramba, Luy! Você não presta e não está me ajudando a ficar sério!

? Não sabia que minha função era te irritar para você ficar com cara de cão raivoso, vou sair de perto então, pois estou pensando em mais comentários maldosos e não quero te fazer rir mais! ? brinquei, então fiz minha escolha, preferia ser odiada pela Solaris que já havia quase pururucado na minha festa.

Doreen suspirou aliviada quando cheguei perto dela e me ofereceu uma tortinha de queijo e uma taça de vinho, que aceitei sem cerimônia. As mãos da princesa estavam trêmulas e frias.

? Está tudo bem? ? perguntei. Doreen me deu um olhar significativo e apontou o queixo na direção de sua co-esposa.

? Insuportável. ? Ela deu um gole na bebida e bufou.

? Não devia estar bebendo isso ? adverti, ela apenas me deu outra olhada longa e estendeu seu copo para mim, era um tipo de suco suave de flores para o qual eu torci o nariz e bebi meu vinho, atacando em seguida a tortinha de queijo e me deliciei com o sabor.

? Sabia que toda essa comida, pelo menos todos os ingredientes, vêm do reino humano? ? A Ventus de olhos de corça que esteve no julgamento, e única que queria me inocentar lá, se aproximou, pegou uma tortinha e comeu com gosto.

? Majestade. ? Doreen fez uma reverência e eu a imitei sem saber ao certo quem era aquela.

? A comida da festa? ? perguntei voltando ao assunto, a Ventus meneou a cabeça negativamente. ? Quer dizer... Toda comida dos Céus vem de lá?

? Sim, esse foi o tradado antigo! ? Ela inclinou o rosto como se ouvisse algo ao longe. ? Nós fornecemos a condição climática perfeita o ano todo e os terrestres fornecem a terça parte de tudo que colhem! Poucos lugares nos Céus têm estrutura para plantio. Apenas algumas frutas e flores que podem ser consumidas crescem aqui! ? Ela explicou sorrindo, pegando uma tortinha daquela fruta roxa bonita e comendo.

Pisquei em choque. A Ventus de asas brilhantes então saiu rodopiando, dando as mãos para outro como ela, mas de cabelos dourados e olhos cinza-esverdeados.

? Rawina Jastan, rainha do Quarto Céu, aquele dançando com ela é seu filho caçula, Primus ? Doreen explicou, olhando a Ventus dançando com o filho ao som dos violinos.

? Você sabia disso? ? perguntei.

? Sobre os alimentos? ? Assenti. ? Claro! Quase tudo que temos vem de lá! Até mesmo tecidos, especiarias... O que não é básico que não vem em troca do clima, é negociado com pedras e metais preciosos dos picos das montanhas nebulosas, onde os humanos não conseguem chegar. Temos trabalhadores Vernuns nas montanhas todos os dias ? Doreen explicou.

? Então, tudo que consomem... Até no Segundo e Primeiro vem do reino humano? ? Doreen que estava observando Yoru ainda ao lado de Ênya, se voltou para mim.

? Sim, Luyen! Tudo vem de lá! Por isso existe tanto cuidado com os alimentos aqui em cima. Evitamos o desperdício ao máximo.

? As montanhas Nebulosas são acessíveis apenas por Vernuns? Eles usam esses metais apenas para ornamentos? ? insisti. Doreen franziu o cenho, talvez percebendo onde eu queria chegar.

? Sim, as montanhas ficam pouco abaixo do Círculo das tempestades, onde nosso poder nasce, é perigoso para alguém que não seja Vernum se aproximar ? explicou. ? Os Ventus também não precisam de tanto alimento quanto os outros, e pelo que soube dos tenebris... Os Quarto e Quinto Céus são bem... Menos ostentosos quanto os Céus Solaris e Vernuns.

? O que eles oferecem? ? Apontei discretamente com o queixo para os Solaris ao nosso redor.

? Apenas a luz... Luz do sol. Sarki pode bloquear o sol para que os raios não cheguem lá embaixo... Isso mataria tudo, plantas, animais... Então os tributos pagos aos Solaris são maiores ? ela quase sussurrou essa frase, olhando em volta para ter certeza de que não havia atenção em nós.

Abri a boca, para contar a ela do que eu estava começando a desconfiar, mas alguém falou algo primeiro, fazendo minha suspeita ficar presa na língua.

? Ora, ora! ? Ênya se aproximou sorrindo, rodeada de convidados e com duas taças na mão. Os olhos vermelhos quase como o pôr do sol se detiveram em Doreen. ? Minha adorada co-esposa! ? Ela se inclinou um pouco, dando um beijo a distância no rosto de Doreen que tentou não se esquivar.

? Ênya. ? Doreen sorriu ? Felicidades. Espero que tenha mais ótimos aniversários.

? Ah, vou ter sim, obrigada! ? Ênya a olhou de cima a baixo. ? Pelo jeito, a gravidez não lhe beneficia tanto, parece um tanto cansada! Eu a convidei, mas não precisava se esforçar para vir aqui! Sabemos como são instáveis as gestações de Vernuns. ? Ênya sabia exatamente onde alfinetar para magoar as pessoas, pois mesmo incrivelmente forte, Doreen se encolheu levando a mão a barriga, tensa com a ameaça quase imperceptível na preocupação de Ênya. Os convidados que prestavam atenção à conversa se entreolharam e se afastaram um pouco, mas os olhos de Yoru e Hamza estavam em nós.

? Difícil você saber quando o marido passa pouco tempo ao seu lado, não é? Vai demorar até que saiba como uma gravidez pode ou não ser cansativa! ? retruquei, passando um braço ao redor de Doreen, fazendo aquela víbora decorada de pôr-do-sol notar minha existência.

? Desculpe, alguém falou com você? ? Ênya já estava com o rosto começando a mudar de cor. Os murmúrios ao nosso redor ficaram mais altos.

? Não preciso de um convite para me intrometer quando o assunto é minha família ? retruquei calmamente olhando minhas unhas.

? Não está em sua casa... ? ela começou, mas a interrompi com uma risada debochada.

? E estar em sua casa lhe dá o direito de destratar seus convidados? Não é uma boa anfitriã, talvez por isso Yoru não passe tanto tempo aqui.

Algumas risadas disfarçadas em meio ao murmúrio puderam ser ouvidas, Yoru estava tenso e em silêncio, o inútil do meu irmão sequer tentou defender Doreen, e eu queria bater nele por isso! O rosto de Ênya assumiu um tom amarelo e ela tremeu, de raiva, percebi. Porém, ela deu um sorriso amarelo e nos deu as costas.

? Aproveite a festa, já tinha sido avisada que não podia esperar um bom comportamento de uma Vernum criada por selvagens, ainda mais depois do que fez comigo na sua festa!

Ah!

Cada fibra do meu corpo tremeu com a vontade de puxar os cabelos vermelhos dela e varrer o chão com sua cara. Mas me contive, queria muito, muito retrucar que ela não tinha a educação esperada de uma Solaris, mas Doreen apertou meu braço em aviso para que me contivesse.

Pelos olhares dos outros convidados, fiquei um pouco envergonhada de ter agido daquela maneira, afinal, isso só reforçava o preconceito contra os humanos, porém quando me virei novamente para Doreen séria, seu olhar brilhava com aprovação e uma pontada de carinho. Aquele olhar valeu ter mais um título na cabeça:

“malcriada”.


Capítulo 28

 

 

Última barreira


Doreen.


Luyen só podia ser louca.

Ela novamente havia arrumado um jeito de queimar Ênya, só que sem magia dessa vez. A Solaris estava tão constrangida ao se afastar de nós que por pouco imaginei que ela avançaria e tentaria bater em Luyen. Olhei para minha cunhada com a taça vazia na mão, os olhos rajados de prata e azul estavam observando as pessoas com cautela, ela estava tensa, mexendo numa mecha de cabelo cinzento.

? Obrigada ? murmurei estendendo uma taça com vinho para ela, Luyen sorriu para mim e pegou a taça, dando um longo gole antes de murmurar um “de nada”. ? Gostei de ouvir que sou considerada da família!

? Graças aos deuses que não como co-esposa. ? Nós duas rimos. Dei um gole no meu chá gelado e suspirei. Aquele lugar era odioso para mim, estar ali, sentir alguns olhares de pena, pois todos me viam como a “segunda opção” de Yoru. Casamentos com vários parceiros eram comuns, mas apenas os primeiros eram vistos com bons olhos e embora eu estivesse me fazendo mais importante por carregar um filho dele, ainda me sentia como uma segunda opção.

? Vamos, não fique com essa cara! ? Luyen murmurou. ? Ele te olha o tempo todo e sorri para você. Ao lado da vela de Samhaim, ele só faz cara de limão espremido! ? ela brincou, me fazendo rir um pouco.

? Mas ele não me defendeu ? a lembrei.

? Estamos na casa dela, Doreen! E duvido que se ela tentasse fazer algo ruim a você, ele teria ficado parado olhando. ? Ela tentou novamente e assenti. Não precisava da proteção dele, mas seria bom saber que as palavras de Luyen na outra noite atingiram o alvo e ele passou a perceber melhor as pessoas ao seu redor, mas, pelo visto, ele ainda continuava com medo de tomar atitudes mais firmes.

Bufei irritada e terminei de beber meu chá. A música suave dos violinos e o cheiro dos incensos perto das portas começou a me dar uma sensação estranha, um enjoo e dor de cabeça repentinos e a sensação de que a sala começava a girar ao meu redor.

Olhei em volta procurando por Hamza, poderia pedir que me levasse de volta caso a tonteira não passasse, mas o tenebris não estava em parte alguma.

A luz dourada do salão começou a ficar desfocada, pontos escuros surgiam em minha visão e minha barriga começou a doer de forma que encolhi o corpo e me agarrei a Luyen para não desabar. Com a respiração entrecortada e a vontade de vomitar aumentando, meus joelhos começaram a vacilar. Olhei para o centro da festa, onde Yoru estava de costas dançando com Ênya, e de relance vi a Solaris mostrar os dentes para mim e sussurrar algo para Yoru, então ela o beijou.

? Doreen! ? Luyen apertou meu braço e agitou a mão em frente ao meu rosto, tentando me refrescar.

? Os incensos... Acho que estão me fazendo mal! ? balbuciei. Mal conseguia respirar e, naquele momento, sentia que ia perder os sentidos.

? Vamos, vou te levar para pegar um ar! ? Luyen passou o braço com cuidado ao redor de minha cintura, seu rosto estava lívido e os olhos assustados buscavam alguém no salão antes de me levar através do corredor largo até o jardim deserto.


Luyen:


Não sabia o que fazer!

Doreen estava quase desabando ao meu lado quando a levei para fora e a sentei nos murinhos de pedra ao redor das flores douradas sob uma árvore de tronco liso e brilhante. A princesa estava respirando com dificuldade e seu corpo estava ficando quente demais.

? Droga, Hamza! Cadê você? ? resmunguei segurando o rosto da princesa quando ela gemeu e se encolheu de novo.

? Chame Yoru! Preciso ir embora! ? ela pediu.

Não podia deixar ela ali sozinha, mas também não podia ficar esperando que piorasse. Quase não dava para ver a movimentação na festa dali, por causa da curva suave do corredor, gritar também não adiantaria.

Ah, droga!

Apoiei Doreen de costas na árvore e me virei para voltar ao salão, mas meu estômago afundou ao ver Ênya parada bem ali, nos encarando com ar de riso. Ela não tinha limites?

? Eu preciso de Yoru, agora! Ela não está bem ? avisei, mas Ênya apenas riu e deu mais um passo em nossa direção, tirando das dobras do vestido uma adaga reluzente em punho.

? Sabe, eu achava que me livrar de Doreen resolveria parte de meus problemas, já que isso faria Boroni enlouquecer e querer começar uma guerra. Isso daria bons motivos para liquidar o Sétimo também ? ela falou baixo, olhando diretamente para mim. ? Aí você aparece e estraga meus planos, mas também me dá chance de vingança! ? rosnou.

? Ficou louca? ? engasguei, chegando para trás e me colocando em frente a Doreen. Ênya olhou por cima do meu ombro para a Vernum perdendo a cor atrás de mim.

? Estavam tão entretidas tentando me envergonhar lá dentro que não me viram trocar as bebidas, não é? ? ela zombou, sorrindo ainda mais e girando a adaga nos dedos. Só então me dei conta de que quando Ênya se afastou de nós no salão, suas mãos estavam vazias.

? Você a envenenou? ? gritei.

? Não tem como provar isso, tem? ? Ênya me se movia como um gato se preparando para o bote, olhando entre eu e Doreen, que ficava cada vez pior.

? Você é louca! Como pode fazer isso por causa de um homem?

? De homem? Me poupe! ? Ela riu ? Gosto de Yoru, ele é uma boa distração, mas não... Ele não me interessa. Você sim! ? Ela passou a língua sobre os lábios, de forma que me fez recuar mais um passo. ? Minha mãe estava naquele castelo quando você o destruiu! Mas eu sei, ele me contou que ela estava na sua festa, escondida... E eu esperava que ela tivesse vindo hoje, o outro copo de veneno era para ela!

Outro choque. Os olhos vermelhos agora estavam incandescentes e sua pele começou a brilhar.

? Do que está falando? ? indaguei, dando um passo para o lado tentando ganhar tempo, mas Ênya apenas espelhou meu movimento.

? Luyen... Chame ajuda! ? Doreen choramingou atrás de mim, envergando o corpo para frente e perdendo o resto da cor. Não tinha como sair dali e deixá-la sozinha. Caramba! Que convidados patetas que não sentiam a falta da anfitriã eram esses?

Movi o Karmok na mão, fazendo as garras embutidas nas pontas dos anéis saltarem. Ênya estalou a língua, encarando a arma em meu punho.

? Seu pode não me afeta mais! ? Ela fez um biquinho. ? Obriguei Yoru a me dar proteção, para que sua irmã selvagem não me ferisse novamente! E depois de chorar bastante pelos ferimentos em meus braços... Ele aceitou fazer isso! ? Ênya exibiu a marca de pequenos raios no pulso, idêntica à que Doreen possuía.

? Qual seu problema, afinal? ? rosnei, pinçando a mão para o caso de precisar me defender daquela adaga e, pela expressão de ódio no rosto de Ênya, era o que teria que fazer.

? É isso que espera que eu faça, não é? Revele nossos planos, o que pretendemos fazer... E se eu não conseguir acabar com vocês, você usa essa língua afiada para contar tudo? Me poupe! ? ela chiou ? Já conheço esse papel!

? Eles vão te pegar de qualquer jeito! Você envenenou a princesa!

? Sem provas, sem testemunhas, afinal, para todos eu não passo de uma carente de atenção tentando chamar atenção do marido que não liga muito para mim! Todos viram como me tratou, posso muito bem dizer que vim esclarecer as coisas e vocês me atacaram! ? ela murmurou, puxando a adaga e fazendo quatro cortes rápidos nos braços, sangue dourado começou a ensopar o vestido e escorrer pelo braço? Por que me atacou, Luyen? ? ela começou a gritar, então sua pele começou a brilhar e calor irradiou dela, fazendo-me cambalear para trás e cair sentada ao lado de Doreen já inconsciente.

? Você é louca! ? gritei tentando usar vento para empurrar aquele calor para longe, mas não adiantou muito.

? Ou você que é? Me atacou na sua festa, me destratou na minha... Afinal, minhas palavras foram apenas preocupadas com a saúde de Doreen, você que agiu como uma grossa e saiu logo depois com Doreen antes de ela começar a passar mal sem avisar a ninguém ou chamar ajuda! É noiva de um príncipe... Foi anunciado em sua festa e não queria as outras esposas tomando seu lugar como Primeira! Quem você acha que vai estar certa diante deles? ? Ênya sorriu e começou a gritar a plenos pulmões “SOCORRO, ELA ME ATACOU, ELA ENVENENOU A PRICESA!”

Eu me preparei para tentar me explicar, mas a voz de Ênya parecia não ser ouvida, ela olhou para trás de cara feia, só então que percebemos a sombra que nos rodeava. Ênya xingou e explodiu em fogo e luz dourada, fazendo com que eu me apertasse a Doreen, tentando protegê-la, mas aquele calor foi absorvido ? devorado ? pela escuridão.

? Parece que alguém resolveu finalmente tirar a máscara! ? Uma voz de arrepiar se espalhou pelo ar, rodopiando ao nosso redor em meio àquela fumaça negra densa.

? Quem está ai? ? Ênya rugiu tentando expandir seu poder novamente.

? Seu pior pesadelo ? a voz sussurrou.

“Feche os olhos” a mesma voz me ordenou e eu não pensei duas vezes antes de obedecer, tapando os de Doreen e fechando meus próprios, não sabia o que era, mas a sensação de dormência e pânico começaram a tomar conta de mim.

Um segundo após, Ênya gritou e todo calor desapareceu, deixando um rastro de frio para trás, do tipo que arrepiava a espinha.

Minha curiosidade foi maior do que o bom senso, acabei abrindo um olho e vendo através daquela fumaça, o corpo de Christian queimado no meio daquilo, os olhos desfocados e a boca aberta com as mãos estendidas em minha direção.

Mal pude virar o rosto para longe de Doreen antes de vomitar o vinho e as tortinhas.

? Eu disse para não olhar! Além de bocuda é curiosa demais. ? A voz agora estava mais branda e ele me pegou pelo braço e me levantou. Olhei para meu salvador e não sabia ao certo como agradecer a ele. Owyn estava de pé ao meu lado, ele se abaixou para verificar o pulso de Doreen.

? O que...

? Ela precisa de cuidados. Imediatamente. ? Owyn pegou a princesa nos braços e me encarou com os olhos negros faiscando. ? Nunca lhe ensinaram que uma língua afiada pode te trazer mais problemas do que resolvê-los? Ela não te considerava uma ameaça até você abrir essa boca e soltar patadas para todos os lados. Aprenda a medir suas palavras, garota, uma boca grande pode ser útil, mas quando é desmedida pode ser seu passe para o além também! ? o tenebris rosnou e meu rosto queimou, tanto de vergonha quanto de raiva. Sabia que estava certo.

? Por que nos ajudou? ? Minha voz saiu tremida.

? Não vou deixar uma guerra entre os Céus estourar agora. ? Owyn suspirou. ? Estive investigando eles por um bom tempo! Não estava prestando atenção nas palavras dela, não é? Vamos, vou levá-las ao Sétimo.

? E os outros? ? questionei olhando para o salão ? Como ninguém ouviu isso? ? Movi as mãos entre nós, Owyn apenas me olhou feio.

? Solaris, ela pode mexer com a cabeça das pessoas, fez todos naquele salão congelarem. Yoru por ter mais... Contato com ela, provavelmente está apagado a essa altura, ela deve tê-lo nas mãos, porém ele vai acordar agora que ela não está mais aqui.

? Você a...

? Está viva, fugiu. Apenas uma Tenebris conseguiria devorar completamente aquele tipo de magia ? dizendo isso, Owyn agarrou meu braço para nos tirar daqui. Mas outra fumaça se espalhou no ar e Hamza apareceu com a lança em punho e ódio cintilando no olhar, rosnando para Owyn.

? Hamza, calma! ? comecei, Owyn, porém revirou os olhos e colocou a princesa nos braços de Hamza sem se preocupar com a arma que atravessou seu corpo como se ele não passasse de fumaça.

? Veneno de lanígrio, pergunte à sua gêmea o que ela sabe sobre devorar o sol e me agradeça depois. ? Ele desapareceu sem que eu realmente pudesse agradecê-lo. Hamza, no entanto, passou um dos braços ao meu redor e deu um passo à frente, nos mergulhando naquele poço negro antes de emergirmos no corredor luminoso do castelo de Boroni, de frente para as portas brancas do laboratório.

Ele espancou a porta de Prisla.

? Essa droga é protegida para entradas diretas ? ele rosnou.

? PRISLA! HONÉN! ? gritei espancando a porta também. A Vernum abriu a porta xingando e olhando feio para nós, mas seus olhos se arregalaram ao ver Doreen no colo de Hamza.

? Lanígrio ? Hamza grunhiu, invadindo a sala e colocando a princesa sobre uma maca. Fiquei ao lado dela, segurando suas mãos incapaz de soltá-la. ? Onde está Honén?

Prisla, com as mãos tremendo enquanto revirava frascos numa prateleira, murmurou algo incompreensível para mim, mas pelo jeito, Hamza entendeu. Ele se virou para mim, com os olhos mais calmos agora.

? Ele te feriu? ? perguntou.

? Não! Ele nos salvou de Ênya... Ela... Ela disse algo sobre matar Doreen, dar motivos pra Boroni começar uma guerra e... Destruir o sétimo também! Disse mais algo sobre vingança pois a mãe dela morreu no Oitavo e o veneno no copo era pra outra pessoa... ? expliquei tentando lembrar-me das palavras daquela louca, agora, segura, minhas pernas tremeram e me joguei contra a cadeira ao lado da maca, mas sem soltar as mãos frias de Doreen.

Hamza rosnou, então, sem aviso, saiu da sala sem me dizer nada.

? Segure a cabeça dela um pouco erguida, por favor. ? Prisla arrumou os óculos no rosto, analisando o frasco com líquido esverdeado.

? Ela vai ficar bem? ? perguntei. Prisla fez uma careta.

? Lanígrio é um veneno hemorrágico ? ela murmurou ? O antídoto demora a fazer efeito... E se ela perder o bebê... Você acredita nos deuses, Luyen? ? Prisla perguntou.

? Preciso acreditar ? sussurrei segurando o rosto de Doreen firmemente enquanto Prisla despejava com cuidado o conteúdo do frasco em sua boca.

? Então reze, Luyen.

Foi o que fiz.


Hamza:


Saí rapidamente da sala e me preparei para dar um passo, quando alguém agarrou meu braço. Nem precisei olhar para o lado para saber que Adrias também queria ir até lá, aquilo já tinha deixado de ser um segredo, de qualquer forma.

Encarei o príncipe por um segundo antes de darmos um passo e a escuridão se rasgar diante de nós, deixando-nos em frente às ruínas do Castelo Azul. Honén estava ali, sentada aos pés dos restos do trono de Mendal, ao seu lado, uma pedra branca havia sido removida do piso e Honén segurava uma caixa aberta de madeira azul nas mãos, alguns pergaminhos abertos em seu colo e ao redor dela. A área do castelo já havia sido limpa, mas seria o último lugar a ser reconstruído.

Avancei para ela como um animal enfurecido, tirando-a do chão pelos ombros e a sacudindo.

? CONTE-ME O QUE HOUVE AQUI, HONÉN! CONTE-ME POR QUE SE ESCONDIA DO IMPERADOR AQUELE DIA E PORQUE NÃO QUIS IR AO SEGUNDO HOJE! ? gritei sem conseguir segurar aquele misto de emoções que ameaçava estilhaçar minha mente. Minha gêmea ergueu os olhos rajados para mim, uma lágrima solitária rolou por seu rosto e ela ergueu o pergaminho que não havia deixado cair quando a levantei.

? Porque eu devorei Elán, mãe de Ênya e esposa de Rassis, a possível espiã de Sarki que queria fugir do Oitavo após se soltar do corpo de Nibbis, eu devorei aquela desgraçada e a magia dela ? Honén sussurrou. ? Eu a matei por ter tirado Nibbis de mim e ter tentado acabar com Yami quando viu que o poder da criança não a afetou. E quando eu estive diante daquele tribunal e confessei ter sobrevivido com a princesa Yami, eles souberam que eu sabia de tudo ? ela confessou.

? De tudo o quê? ? Adrias perguntou. Honén observou o príncipe com cautela antes de responder:

? Que foi uma Solaris que fez Nibbis dar a data errada de nascimento da menina e que ficou agarrada à mente da princesa por todo aquele tempo para nos vigiar.

Um frio subiu por minha espinha quando ela disse aquilo.

? Por que não matou a Solaris antes? ? quis saber.

? Alguns Solaris inferiores tem a habilidade de se transformar em luz e se agarrar ao corpo e mente de um hospedeiro. Eles não podem ser mortos sem que o hospedeiro morra também ? Adrias explicou, Honén, que estava fazendo força para não chorar, deixou mais algumas lágrimas escaparem.

? Não podia fazer mal a ela, Hamza! ? ela disse como se implorasse por perdão. Se ela tivesse matado Nibbis...

? Por que não contou a alguém? ? indaguei.

? Quem acreditaria numa tenebris mestiça de que a princesa do Oitavo estava possuída por uma Solaris? ? Ela se encolheu ? Eu tentei... Até o fim eu achei que poderia neutralizá-la.

? A pergunta mais importante você não fez, Hamza. Por que os Solaris iriam querer a destruição do Sétimo e Oitavo? ? Adrias se ajoelhou, recolhendo os documentos que Honén havia deixado cair e empalidecendo ao ler alguns deles. ? Isso é da biblioteca particular de meu pai! ? o príncipe sussurrou, observando os carimbos de sete estrelas no fim dos pergaminhos.

Olhei minha gêmea, esperando por uma resposta.

? Porque os Vernuns não protegem os reinos celestes dos humanos, até porque isso não faz sentido, eles não representam ameaça para nós. ? Ela se abaixou e pegou um pergaminho diferente dos outros, com um desenho com várias esferas e assinaturas, como uma espécie de tratado.

? Então...

? Nós somos a única barreira entre os Celestes e os humanos. Os Vernuns são os únicos que podem impedi-los de chegar lá embaixo. E eu tenho nas mãos o trunfo de Mendal. O que pode segurá-los ? ela explicou, apertando o pergaminho nos dedos. Adrias, com os outros documentos ao seu redor, ficava mais pálido a cada linha que lia.

? Isso são relatos da expulsão dos Celestes do reino humano! Os Lunares os baniram para os céus, pois como seres superiores, começaram a destruir os humanos por acharem que tinham mais direto aos frutos da terra. Como punição, os Lunares nos baniram para os céus, onde quase nada podia se criar, então eles viveriam com o que receberiam dos humanos em troca de servir a eles, cuidando dos ciclos das chuvas, dos raios do sol, ventos, dando a eles toda a condição favorável à vida ? Adrias falava baixinho, como se com medo de quem poderia ouvir aquilo. ? Os Lunares colocaram os mais fortes... Os Vernuns entre os outros celestes para que esses protegessem os reinos humanos. Esse é o motivo de os Celestes não gostarem de humanos.

Honén assentiu.

? O Oitavo, uma das barreiras já caiu, então se a última cair... ? Adrias começou e eu engoli em seco, tentando não pensar na resposta daquilo, mesmo assim, Honén a disse:

? Então eles tomarão a terra outra vez.


Yoru:


Pela primeira vez, estava nervoso em sua presença, mas não estava andando de um lado para outro, não quando precisava desesperadamente manter suas mãos aquecidas entre as minhas. Seu coração ainda batia, mas não alegre como sempre, parecia fraco, lutando para ficar ali.

Devia ter ouvido Luyen quando tive a chance.

Devia ter deixado Hamza dar um fim à Ênya naquele dia que ela entrou armada no quarto de Luyen... E, agora, as palavras do tenebris não saíam de minha mente: “Sua primeira esposa não tem um filho seu, ela pode ficar com inveja e arrumar algum problema para sua segunda esposa.”

Luyen estava do outro lado, se recusava a sair da sala até que Doreen despertasse, mas não queria me dizer o que havia de fato acontecido lá. Só tinha surtado novamente e dito que eu não merecia Doreen.

Ela tinha razão. Eu não merecia aquela luz que sempre esteve acesa em todos os momentos sóbrios de minha vida, e que agora estava prestes a se apagar por minha negligência. O que faria se ela se apagasse para sempre? Eu me ajoelhei ao lado da cama e implorei, implorei aos Lunares para que se lembrassem de nós e não me tirassem a única pessoa que jamais me deixou sozinho.


O silêncio dos deuses

Lunares


No labirinto de trevas,

Existe sempre um ponto de luz,

Pois se a luz não estiver lá,

Como acharemos o caminho de volta?


Capítulo 29

 

 

Descobrindo planos


Hamza:


Recolhemos todos os documentos que Honén espalhara pelo piso do castelo em ruínas. Adrias continuava olhando o nada, pensativo. Parecia que tinha acabado de colocar todo o entulho daquele lugar em suas costas. Honén não havia dito sequer uma palavra depois do que nos revelou ali, o Oitavo e o Sétimo eram barreiras para segurar os outros Celestiais acima do reino humano.

Estávamos enfiados em problemas.

Honén não soltou aquele pergaminho de cor diferente nem por um momento, ela me lançava olhares tensos, sabia que tinha mais algo a falar comigo, mas não arriscaria com o príncipe ali perto. Ele era de confiança, sim, mas depois do que nos disse sobre saber da possessão de Nibbis, talvez ela tivesse medo de dizer algo perto dele e ser considerada traidora.

? Se a ideia é destruir o Sétimo para ter o caminho livre, porque esperar tanto tempo para fazê-lo? ? Adrias ponderou. ? Vinte anos... E eles tiveram tanto tempo para fazer isso enquanto estávamos ocupados discutindo a autoria dos ataques, procurando por sobreviventes...

? Uma distração ? Honén falou. ? Depois da queda do Oitavo, era preciso tempo para jogar um Céu contra outro, fazer com que todos desconfiassem de todos.

? As alianças entre os Céus se desfizeram depois daquilo! ? murmurei, Honén estava certa.

? Sarki era um dos poucos que já estava lá na época do banimento, ele foi um dos que apoiou o massacre aos humanos. Ainda existem ruinas das cidades que eram habitadas por celestes lá embaixo, eu vasculhei cada uma delas nesses vinte anos, mas eles trouxeram tudo para cá, não deixaram nada lá embaixo que eu pudesse usar, esses documentos que estavam na biblioteca particular de seu pai são os últimos nos Sete.

Adrias observou Honén, levantou de onde estava sentado sobre as pedras e ficou em silêncio observando as luas no céu, por um momento, achei que ele não diria nada.

? Sarki, Mendal e Boroni eram os mais antigos líderes de suas cidades quando aconteceu o banimento. ? Ele mostrou a lista no pergaminho. ? Mas isso não quer dizer que outros não estivessem lá. Malira é tão velha quanto Mendal, mas não era soberana dos Tenebris naquela época, ela não deixaria de usar isso para chantagem ou benefício próprio.

? Ela nunca comentou sobre isso ? ponderei.

? Há outra possibilidade... Mendal jamais falou sobre isso abertamente, eu escutava ela e Boroni falando sobre isso em reuniões privadas, fechadas até mesmo aos seus conselheiros ? Honén contou. ? Eu usava magia, permitida por Mendal, para ouvir isso, por algum motivo, ela queria que eu soubesse, mas não deixava que mais ninguém ouvisse isso.

? Espera, Honén, está dizendo que meu pai e Mendal tinham uma aliança? ? Adrias estava chocado. Minha irmã ajeitou os cabelos soprados pela brisa da noite e assentiu devagar, com os olhos prateados brilhando como olhos de uma fera.

? Ele também sabia sobre a arma secreta dela ? murmurou. ? A localização desse documento. ? Moveu o pergaminho nas mãos. ? Ela confiou a mim para que eu entregasse a ele na hora certa, caso ela mesma não pudesse usá-lo.

Era como se a rainha do Oitavo soubesse que não conseguiria sobreviver para impedir algo como o que estava prestes a acontecer.

? Precisamos ir ao Sétimo, conversar com Prisla, Yoru e Luyen. Ela disse que Ênya disse coisas estranhas sobre o Sétimo ? alertei, Honén assentiu, ela então se deformou, fazendo seu corpo crescer, transformando-se num imenso ser de fumaça e sombras, colocando o documento dentro de seu corpo e nos engolindo com sua escuridão.


Estávamos no meio do corredor para a sala de Prisla quando ouvimos os gritos de Boroni e nos entreolhamos preocupados.

? Aconteceu algo na festa? ? Adrias perguntou. Estávamos tão assustados com as descobertas sobre a queda do Oitavo, que havia me esquecido completamente do que tinha acontecido a Doreen.

? Ênya envenenou a princesa ? expliquei. Adrias empalideceu e correu para a porta entreaberta do laboratório. La dentro, Boroni rosnava como um cão raivoso para Yoru, com razão.

? Por favor, majestade, se acalme! Doreen precisa de silêncio para se recuperar! ? Luyen pedia mantendo as mãos erguidas, tentando acalmar o soberano.

? Não me peça calma, garota! O que fizeram com minha Doreen? ? ele gritava com as mãos apertadas com força dos lados do corpo. Eu me adiantei para o lado de Luyen, para evitar que ele ficasse tão nervoso que a atacasse.

? Pai, se acalme ? Adrias pediu, fechando a porta atrás de Honén. A situação ali era tensa, mas precisávamos daquela sala fechada para a próxima conversa. Honén me deu um aceno, mostrando que a sala estava protegida e ninguém nos escutava. Yoru estava perto da janela, com raios vazando das mãos e além dos gritos e da respiração ofegante do rei, o único som que era ouvido era aquele apito baixo vindo do aparelho que Prisla conectara ao pulso de Doreen para monitorar seu coração.

? Isso não era para estar acontecendo... ? Boroni disse mais calmo, Honén já havia enviado sua magia até ele, o rei se abaixou perto da maca onde Doreen ainda estava adormecida e beijou a testa da filha. O rosto velho ainda mantinha vigor, mesmo antigo, aquele Retaliador ainda conseguiria usar uma espada caso precisasse.

Bom, pois precisaríamos em breve.

? Luyen se colocou na frente de uma Solaris para defender sua filha, majestade. Não deveria gritar assim com ela! ? A voz causou arrepios em minha coluna, Owyn saiu de trás de uma cortina que dividia a sala em duas e fez um aceno para Prisla. Boroni deu uma olhada para Luyen, apenas um olhar breve como se pedisse desculpas, mas nada realmente dito.

O que estava acontecendo ali, afinal?

Honén e eu olhamos surpresos para nosso irmão, Yoru mais ainda, Prisla e Boroni, no entanto, não pareciam surpresos com a presença sombria dele. Bom, depois de ele ter salvo Doreen e Luyen, precisava dar uma chance para se explicar, mesmo que ainda o odiasse.

? Se quer alguém para culpar, culpe seu genro idiota que foi se casar logo com uma espiã de Sarki! Ela o manipulou diversas vezes! Por sorte, nunca falamos nada de importante na presença dele.

? O que... ? Yoru estava mudando de cor, não sabia ao certo se de raiva ou medo.

? Alguém me explica o que está acontecendo? ? Luyen olhou para nós, assustada.

? É uma conversa longa, princesa. ? Owyn suspirou. ? Talvez queira nos contar sobre isso, Honén? ? Os olhos negros de Owyn se voltaram para ela, Honén não se encolheu diante do desafio naquele olhar, muito pelo contrário. Ela sentou ao lado de Doreen, segurou as mãos da princesa e começou a contar tudo que havia dito para mim e Adrias nas ruínas do Oitavo.


Depois de um longo momento em silêncio tenso. Boroni olhou para todos nós e suspirou antes de começar a falar com a voz rouca:

? Mendal sabia que ter aquele tratado faria com que o Oitavo sofresse algum tipo de atentado. Ela garantiu que pelo menos uma parte conseguisse se salvar, mantendo alguns dos seus nos campos do Quarto. ? Ele pigarreou, olhando para Yoru. ? Nós já tínhamos a ideia de fazer uma aliança através do casamento, mas nos detestávamos demais e éramos velhos demais para fazer isso. Não poderia pedir a Adrias para se casar com Nibbis, pois ela se recusaria por causa de sua An-hai, então teríamos que esperar Doreen ficar mais velha. Porém não esperávamos que aquilo realmente acontecesse.

Yoru estava do outro lado da sala em choque, olhando para o nada.

? Eles jamais tiveram intenção de juntar Yami e Yoru no fim das contas, não é? ? Adrias perguntou e Boroni negou.

? Yami era parte da aliança com Malira ? Boroni confessou, meu estômago se revirou e eu olhei para Owyn, que me deu um sorriso terrível, cheio de veneno. ? Ela seria entregue para o príncipe Cari.

? Mas isso não será mais necessário ? Owyn completou ao me encarar.

? Não estou entendendo mais nada ? Yoru confessou. Eu também não estava.

? Mendal, Brine, Malira e eu tínhamos um acordo para o caso de um ataque vindo de Sarki. Estávamos formando alianças para misturar os Tenebris e Vernuns para criarmos uma raça mais forte, o exército de Mendal era apenas uma das barreiras ? Boroni explicou.

? E quando foi que começaram a desconfiar que Sarki queria destruir os Céus? ? perguntei. Boroni olhou para Doreen, ainda dormindo e bufou cansado.

? Quando os Lunares pararam de interagir conosco e Sarki se proclamou imperador e começou a delegar ordens, dizendo que Solaris eram superiores e criando níveis entre nós. Mas a maioria não percebeu isso, pois foram manipulados pelo poder Solaris de influenciar a mente das pessoas, apenas os mais antigos que haviam vindo do mundo lá embaixo perceberam que algo estava errado.

? Como? ? Luyen perguntou.

? Os lacres ? Owyn respondeu por Boroni, mostrando a marca no peito de Prisla. ? Todos os Celestes recebem uma marca, para cada um a explicação é diferente, para vocês, Vernuns, disseram que era um meio de evitar que se desmanchassem quando usassem o máximo de seu poder, mas na verdade, o lacre só reduz suas magias e os faz suscetíveis ao poder dos Solaris ? explicou. ? Por isso Luyen, Hamza e Honén não sofrem influência deles. Ênya tentou e não conseguiu manipulá-la, mas sua magia foi repelida pela ausência do lacre.

? Quando ameacei colocar um lacre em Luyen, foi apenas para que eles tivessem a ilusão de que ela não era uma ameaça ? Boroni completou ao perceber o olhar feroz de Honén e Yoru sobre ele.

Até mesmo eu estava em choque.

? Espera... Honén e Hamza...

? Mestiços de Tormentadores e Tenebris. ? Owyn fez um gesto com a mão, mostrando os olhos. ? Tenebris não são afetados pela manipulação Solaris, pois não houve desculpa para colocar um lacre em nossos poderes, por que acha que Sarki nos odeia tanto? ? Owyn riu ? Já meu irmãozinho... Ele tem mais tormenta no sangue do que trevas.

? Pelos deuses ? Luyen murmurou, olhando-me pelos cantos dos olhos, não consegui entender aquele olhar porque nossa atenção foi chamada para outro ponto.

? Se os Solaris... Se Sarki sempre foi uma ameaça, por que não fizeram algo desde o começo? ? Adrias quis saber. O príncipe estava sentado ao lado de Luyen, ele parecia não acreditar no que estava sendo dito.

? Por que esperávamos que os Lunares estivessem apenas esperando algo realmente ruim acontecer.

? O Oitavo caindo não foi algo ruim o suficiente? ? Luyen perguntou com a voz alterada por irritação.

? A queda do Oitavo foi algo de dentro ? ele murmurou. ? As mães tormentadoras, antes dos Ventus começarem a distribuir lacres a torto e direito, podiam conter a primeira explosão de magia de suas crias facilmente, depois que todas receberam os lacres, ficou impossível conter o poder real deles ? Boroni explicou. ? Acredito que isso também tenha sido premeditado, pois Sarki sabia que Vernuns com os poderes lacrados morreriam para outros com plenos poderes.

? De novo, por que raios vocês deixaram que eles recebessem esses lacres então? ? Luyen gritou batendo na mesa e se encolhendo quando Doreen gemeu.

? Porque não esperávamos que alguém se enfiasse dentro da cabeça de uma mãe Tormentadora e usasse sua cria pra destruir um Céu inteiro! Esperávamos ataques de fora, mas não de dentro. E caso não tenha entendido quando disse da primeira vez, Solaris manipulam mentes, eles fizeram todos acreditarem que os lacres eram benéficos e que era para segurança deles.

? E os Ventus então... ? comecei, Owyn completou:

? Estão quase todos sendo manipulados por Sarki e sua corte. Poucos são os que estão livres, apenas a rainha do quarto, e ela, na maior parte do tempo, se faz de louca para evitar confrontos.

? O que aconteceu com todos que não foram manipulados, os antigos que vieram lá debaixo? ? Luyen quis saber, pelo olhar de Boroni, eu sabia qual era a resposta.

? Mortos ? falei.

? Sim... Tiveram mortes misteriosas e sem solução. Depois disso, Mendal, Malira Brine e eu decidimos fazer nossas alianças secretas e fingir que também estávamos uns contra os outros para evitar os olhos dourados sobre nossas ações. Desde então nós nos mantemos neutros para evitar que nossas cabeças rolassem antes de podermos evitar uma tragédia maior, mas Mendal e sua corte foram eliminados, pois um movimento dela foi visível demais.

? Então voltando a isso, ao plano secreto de Mendal. Qual era? ? eu perguntei. Honén tirou o documento de dentro do próprio corpo e abriu aquele pergaminho para que todos vissem, agora podia ver bem os círculos com nomes e assinaturas. ? São... Mundos?

? O tratado de paz dos Doze Mundos. Um círculo mágico que liga doze mundos diferentes e seus líderes, Mendal esteve na reunião antes de uma guerra e assinou esse tratado, fazendo com que nosso mundo fosse incluído numa espécie de proteção ? Boroni murmurou. ? Todos nós ouvimos quando as vozes de divindades se espalharam por todos os lados, dizendo que qualquer briga ou guerra seriam paradas por essas divindades, que eles interviriam caso houvesse guerras entre os mundos que eles tomaram para si.

? Então o nosso mundo foi incluído nesse “círculo de proteção” quando Mendal foi até lá e assinou esse documento que Honén está segurando? ? Adrias indagou.

? Sim. E Mendal assinou sua própria sentença ao fazer isso. Desde a manipulação dos lacres e das mentes... Tudo isso foram passos planejados até o nascimento sem lacre de Luyen, para tirar o Oitavo do caminho. Assim, Sarki poderia descer sem uma guerra, e não teria que se preocupar com a intervenção dessas divindades ? Owyn explicou.

? Mesmo assim, ainda teria o Sétimo no caminho e os Tormentadores sobreviventes! ? Prisla tirou as palavras de minha boca. Luyen fez um som como um engasgo e se aproximou de Doreen com os olhos cheios de lágrimas.

? Foi isso que Ênya quis dizer com a... Morte de Doreen. Ela envenenou a princesa para que a morte dela fizesse Boroni começar uma guerra com o Segundo, e assim eles teriam motivo para eliminar o Sétimo...

? A última barreira que defende o mundo humano ? Owyn completou. ? Eu estava lá para monitorar Ênya. Não desconfiava dela até o dia da sua festa. Ela usou um condutor para fazer sua magia despertar, assim ela se feriu e ela teria motivos para pedir que Yoru desse a ela um selo de proteção contra o poder puro de Luyen. ? Boroni parecia prestes a explodir, olhando com remorso a filha adormecida na maca. Luyen sacudia a cabeça transtornada.

? Agora eu me pergunto se a morte de minha amada Edrias no Primeiro Céu não foi uma armação também ? Boroni parecia murmurar apenas para ele mesmo. Não sabíamos das condições da morte da rainha do Sétimo, nunca foi dito nada sobre isso, e pelo olhar de Boroni... Podia ser algo importante também.

? Mas isso não faz sentido... Solaris são mais fortes em poder que Vernuns, não é? ? Luyen perguntou. Para minha surpresa, Boroni negou.

? Vernuns Tormentadores, mesmo com lacre, são muito mais poderosos que Solaris. Os raios geram muito mais calor do que o fogo solar deles.

? Isso explica muita coisa, principalmente o fato de termos sido colocados como barreira entre os celestes.

? Isso também explica como Honén conseguiu devorar uma Solaris, mas não conseguiu impedir a tormenta de Luyen ? murmurei. ? E o motivo de Sarki não ter mandado ninguém atrás dela, ele acha que Luyen matou a Solaris que foi manipular Nibbis.

? Mas Ênya já sabe que eu matei a mãe dela ? Honén sussurrou. ? É questão de tempo até que Sarki saiba, isso se ela já não contou.

? E quanto aos Lunares? ? Adrias quis saber. ? Eles viram tudo isso acontecer e até agora não se manifestaram... tem alguma ideia do que aconteceu para que eles não se interessassem mais?

? Precisaríamos entrar no Nono para descobrir. Não há como entrar lá a não ser pela passagem do Primeiro... Ou com magia Ventus.

? E não poderíamos arriscar pedir ajuda a um mago Ventus que pode ou não estar sendo manipulado. Se Sarki desconfia que sabemos de seus planos, com isso ele teria certeza.

? Mas se ele atacar, essas divindades não vão intervir? ? Luyen olhou o documento na mão de Honén.

? Eles precisam ser invocados com sangue daquela que assinou o tratado. Só Yoru e Luyen podem fazer isso ? Boroni explicou.

? Não. Honén e eu também podemos. ? Owyn deu um sorrisinho debochado mas disfarçou. Yoru, Luyen e Prisla, no entanto, nos olhavam estupefatos.

? Hamza e Honén são filhos de Murlock, irmão mais novo de Galathis ? Owyn falou. Yoru agora estava ainda mais chocado e Luyen franziu o cenho, quase podia ver o que estava se passando em sua cabeça quando ela me encarou novamente de boca aberta.

Primos.

? Nós somos Asterath também ? Honén disse baixinho, olhando para Yoru, que me encarava sem disfarçar. Se o momento permitisse, teria dito que eu podia ajudá-lo agora a reestabelecer a família com Luyen. Mas a piadinha não cairia bem naquele momento, não quando ela ainda me olhava assustada.

? Voltando ao assunto importante ? Adrias pigarreou. ? Por que eles planejariam atacar agora? Depois de todo esse tempo e sabendo desse tratado?

? Porque a destruição do Oitavo foi um teste, houve brigas e batalhas entre os Céus depois daquilo e, mesmo assim, essas divindades não surgiram. Sarki pode ter perdido o temor, achando que eles não vão intervir de verdade e sem os Lunares... Ele teria caminho livre.

? Mas ele não sabe que esses guardiões precisam ser invocados? ? Luyen perguntou.

? Não, ele não sabe ? Owyn afirmou, ele mexia nas pontas das tranças pensativo.

? O que vamos fazer então? ? Adrias sussurrou de modo quase inaudível. ? Não conseguiremos segurar um ataque Solaris sem os Tormentadores, nem mesmo Luyen com o poder liberado poderia deter todos eles. E invocar os guardiões sem provas do que Sarki pretende fazer...

? Vamos apelar para os Lunares ? Owyn concluiu.

? E como faremos isso se não dá pra entrar no Nono e descobrir o que está acontecendo por lá? ? Revirei os olhos olhando feio para meu irmão.

? Com inteligência e uma pessoa de língua afiada! ? Owyn sorriu, olhando para Luyen. ? Vamos tirar Sarki do Primeiro, assim você e Luyen podem entrar pelo portal e chegar ao Nono, serão nossos espiões dessa vez!

Queria retrucar que não confiava nele e que não deveria fazer o que ele estava falando, muito menos arriscar Luyen naquela loucura. Porém ninguém, nem mesmo Yoru, discordou de Owyn.

Por alguma razão, tinha impressão de que esse plano nos meteria em mais problemas.


Capítulo 30


A caminho da Lua


Luyen:


Saí daquela sala com a cabeça explodindo de informações.

Guerras, deuses lunares, divindades guardiãs, lacres... Tudo parecia cada vez mais absurdo e perigoso e a única coisa que eu conseguia me preocupar agora é o que aconteceria com o reino humano se nós falhássemos em impedir Sarki de descer.

Por pouco, muito pouco, Ênya não conseguiu me matar, mas eu estava tão chocada naquele momento que não tive reação. Doreen ainda estava inconsciente, mas pelo que Prisla disse para o rei antes de sairmos, já estava fora de perigo, só precisavam ter certeza de que o bebê também estava bem.

Hamza caminhava ao meu lado silencioso, estávamos andando pelo castelo sem rumo até que eu virei no corredor e, sem perceber, havia feito o trajeto até meu quarto sem realmente notar que estava indo para lá. O oficial não ficou do lado de fora, ele entrou comigo e fechou suavemente a porta atrás de si. Chutei os sapatos pelo quarto e caí sobre a cama, me espalhando e tentando descansar por um momento.

Yoru convocaria Sarki no dia seguinte para uma “reunião” sobre a reconstrução do Oitavo, mesmo com Boroni alegando que era perigoso, depois do que Ênya fez, corria o risco de Sarki já estar sabendo que Luyen vira a verdadeira face da Solaris e corríamos o risco de Sarki já descer pronto para atacar, isso se saísse de lá. Owyn havia nos dito que o Solar raramente saía de seu trono e, quando o fazia, parecia sempre drenado de magia.

Depois disso, Hamza e eu teríamos que chegar até o Primeiro Céu, invadir sem sermos vistos, e, de quebra, conseguir atravessar o portal que levava ao Nono Céu, isso com a sorte de não sermos pegos. Nunca pensei que pudesse ter tantas emoções num único dia. Olhei para o lado, onde Hamza estava de pé olhando para as luas pela janela, os cabelos negros se movendo suavemente contra o vento... Meu primo.

Fechei os olhos e apertei as costas das mãos contra eles, tentando clarear a mente, pensar direito... Estávamos deixando passar algo, eu sentia isso! Parecia que algo em nossos planos não estava certo, e não era só o fato de Ênya ter fugido.... Era tudo!

Uma pressão ao meu lado na cama me fez abrir os olhos, mesmo quase surtando, aquele cheiro de fumaça de cedro tinha o poder de me acalmar. Hamza deitou ao meu lado, passou um braço por debaixo de meu pescoço e começou a acariciar minha cabeça com as pontas dos dedos, fazendo todos os pensamentos de minha mente desaparecerem.

? Não está ajudando ? resmunguei. Ele se inclinou para frente, roçando os lábios na minha orelha.

? Já está mais calminha... ? sussurrou, fazendo minha pele se arrepiar. Primos.

Eu me afastei um pouco e ele ergueu as sobrancelhas, surpreso com minha reação.

? Esse afastamento tem a ver com o que eu disse sobre nossos pais, Luyen? ? Hamza perguntou, assenti, olhando para longe, tentando focar em qualquer coisa que não fossem seus olhos. Hamza bufou, ele segurou meu queixo com a mão livre e me beijou, forçando minha boca a se abrir, roçando a língua contra a minha. Sua mão que estava em minha cabeça escorregou para meu pescoço, e para o decote de meu vestido, levantando o tecido e contornando meus seios com as pontas dos dedos. Já estava sem fôlego com o beijo, aquilo só piorou minha situação.

? Não... ? tentei protestar, mas o que minha boca queria dizer era diferente do que meu corpo, coração e mente ansiavam. Hamza leu isso em mim, pois sua outra mão puxou meu vestido para cima, e seus dedos passearam em minhas pernas com carícias circulares, subindo cada vez mais até chegar no ponto quente e pulsante entre minhas pernas. Ele ignorou a renda ali, tirando-a do caminho, então começou a circular os dedos naquele ponto, arrancando um gemido de mim.

? Agora... Diga: o que te incomoda mesmo? ? ele sussurrou contra minha boca, movendo os dedos lá embaixo, fazendo-me abrir mais as pernas e meu corpo estremecer. Hamza riu quando seus dedos começaram a escorregar na umidade mais embaixo. Fechei os dedos com força contra sua túnica, fazendo força para não levar as mãos até seu cabelo e puxar sua boca de volta para a minha. ? Estou esperando, Luyen. Quero ouvir você dizer que não quer, aí eu paro. ? Sua voz soou como uma carícia contra minha boca, ele passou a língua sobre meus lábios e voltou a me beijar. A mão contra meu seio parou de fazer voltas para apertar de leve, o que me fez gemer alto dessa vez, sem conseguir me conter.

? Você... Não presta! ? ofeguei. Não queria mais saber de guerras, de Solaris ou guardiões, só conseguia imaginar qual seria a sensação de sua língua contra minha pele nua.

? Ignore aquilo... E pense só no quanto você quer isso...

Inclinei mais a cabeça para trás, apreciando aquele toque, a sensação da boca de Hamza contra meu pescoço.

? Acho que te amo... Independente de sangue, linhagem ou o que se esconde sob sua pele... Se é escuridão ou tormenta... Só me importo com o modo que me sinto quando estou com você ? ofeguei.

? E como se sente? ? Hamza perguntou, mordendo minha orelha suavemente.

? Livre. ? Ele sorriu e me beijou de novo e de novo sem parar com as carícias, até que meu corpo inteiro tremeu com aquele prazer e faíscas vazaram de minhas palmas, fazendo o quarto brilhar com a luz.

Estava prestes a tirar o vestido e me entregar completamente, quando alguém bateu na porta e eu revirei os olhos. Parecia até alguma intervenção divina tentando evitar que eu me divertisse um pouquinho. Hamza rosnou para a porta e tirou as mãos de mim.

? O que é? ? Minha voz saiu mais trêmula do que eu planejara.

? Preciso falar com você. ? Era a voz de Adrias.

? Um momento! ? pedi, ouvi o riso de Adrias e senti mais vontade de bater nele pela intromissão, mas não podia fazer nada agora. Não era hora mesmo! ? Quando isso acabar... ? sussurrei enquanto arrumava a bagunça de minhas peças íntimas. ? Vamos embora daqui você e eu. Para uma casa que nós não sejamos interrompidos assim!

Seu sorriso foi resposta suficiente para mim. O vi mexer numa chave em um colar sob sua blusa antes de se levantar e abrir a porta para o príncipe. Adrias estava evitando sorrir quando entrou no quarto um pouco sem jeito.

? Desculpem interromper, é importante.

? Tudo bem... Pode se sentar. ? Indiquei a poltrona a ele, Hamza ficou de pé ao lado de onde estava sentada na beirada da cama, de olho no príncipe.

? Sobre a ida ao Primeiro... Tem algo que meu pai não contou a vocês, a ninguém, na verdade. ? Adrias arrumou os cabelos brancos atrás das orelhas e nos encarou sério. ? Edrias, a mãe de Doreen, morreu por causa da magia da princesa Solaris, a filha de Sarki. Isso jamais foi a público, pois a princesa veio pessoalmente dizer que foi um acidente. Ela e Edrias eram muito amigas, então na época Boroni não desconfiou de nada. Mas agora... A princesa Alfia nunca mais deixou o primeiro depois daquilo, e pelo que Owyn disse, ela também não foi mais vista por nenhum Solaris.

? Quer dizer que pode não ter sido um acidente? ? perguntei, Adrias assentiu.

? Pode ter sido a primeira tentativa de fazer Boroni atacar.

? Mas porque nos dizer isso? ? Hamza questionou, o príncipe o deu um olhar significativo a Hamza antes de responder:

? Edrias não tinha um lacre também ? ele sussurrou. ? Então, quando a hora chegar, tomem cuidado. E Sarki também só deixa o Primeiro quando anoitece, então a chance de ele vir hoje é grande, estejam preparados para o caso de precisarem ir rápido. ? O príncipe avisou e se levantou para sair. ? Vou ficar com Doreen enquanto o rei ajuda Yoru a fazer Sarki deixar a toca.

O príncipe deixou o quarto e eu me levantei da cama de um salto, indo direto para o armário pegar as roupas de treino e vesti-las. Hamza ficou em silêncio me observando trocar de roupa e amarrar as botas, mas depois do que o príncipe falou, ele parecia ainda mais sério.

? Algo errado? ? quis saber. Puxei um elástico de fitas da penteadeira e comecei a trançar o cabelo o mais rápido que pude, essa era a hora de pedir a Hamza que me levasse até a floresta. Não sabia o que nos esperava, não podia perder a oportunidade de ver meus pais antes daquilo, talvez até pedir para que fossem embora por um tempo, para que se afastassem para outro continente fora do alcance dos Céus.

? Está tudo errado, Luy. ? Hamza suspirou, se aproximou de mim e colocou os braços ao meu redor antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Mesmo sabendo que não fui capaz de enfrentar Ênya, e de que aquela missão podia acabar em alguma tragédia... Mesmo estando com medo do que podia acontecer, passei os braços ao redor dele e beijei seu rosto.

? Se nós nos dermos mal, vamos nos dar mal juntos, não é? ? Hamza gargalhou alto e me apertou mais.

? Otimista! Me encheu de ânimo!

? Hamza, quero ir lá embaixo falar com meus pais antes de irmos ao Primeiro. ? Puxei seu braço na esperança de que ele me levasse, mas sua expressão mudou para algo tenso, sombrio.

? Preciso lhe confessar algo. ? Aquelas palavras fizeram gelo descer por minha coluna e a única coisa que pensei foi que algo havia acontecido a eles. ? Fique calma! Eles estão bem... Só não estão mais lá!

? O quê?

? Eu os mandei embora naquela vez que fomos a floresta, Luyen. Não sabíamos o que esperar das cortes dos Céus, então Doreen me fez ir lá e pedir para que fossem embora ? ele explicou. Pisquei atordoada por um instante, em nenhum momento ouvi qualquer conversa sobre aquilo entre ele e meu pai, mas certamente o fizeram quando estávamos assando pão na cozinha. ? Luy... Diga alguma coisa! ? Hamza segurou meu rosto.

? Eu... Obrigada. Por se preocupar ? falei.

? Agradeça a Doreen! ? Ele beijou minha testa.

? Por isso que ela é minha pessoa favorita aqui! ? retruquei. Hamza riu.

? Não deixe Honén ouvir isso! ? Fiquei nas pontas dos pés para beijá-lo. Mal havia tocado sua boca com a minha quando, de novo, Adrias pigarreou na porta.

? Sarki está a caminho. É hora de invadir!

Hamza assentiu, num instante, estávamos dando um passo para dentro daquele túnel escuro.


Capítulo 31

 

 

Sol e nuvens


Luyen:


Assim como a sensação de pisar no Segundo Céu, o primeiro, mesmo no meio da noite, era quente e aconchegante. Hamza nos fez surgir em cima de um telhado de lajotas escuras de um dos prédios mais altos da cidade, de forma que não ficássemos às vistas das pessoas que pudessem estar passando pelas ruas, e também fora das vistas das torres de vigia do castelo, a poucos metros de nós. A construção era pelo menos três vezes maior que a de Boroni.

O tenebris moveu as mãos, fazendo uma espécie de gesto, então, de suas mãos, brotaram sombras sussurrantes e essas se espalharam em todas as direções para dentro do pátio, entrando em frestas, portas e janelas.

? Truque novo? ? perguntei baixo.

? Não... Um dos primeiros que aprendi, na verdade. ? Seus olhos estavam totalmente negros e se moviam rápido, ele estava vendo através daquelas sombras, avaliando o lugar.

A cidade sob nós estava silenciosa, quase não havia pessoas nas ruas, e o mais estranho, quando via alguma, eram sempre mulheres ou crianças.

? Tem algo errado lá fora ? sussurrei ainda mais baixo, me aproximando de Hamza. Seus olhos voltaram ao normal alguns instantes mais tarde e ele olhou para a cidade.

? Há algo errado lá dentro também. Lá dentro está deserto, não há sequer sentinelas.... Só duas presenças perto do portal que fica num pequeno jardim atrás do grande salão. ? Hamza se ergueu um pouco, ficando de joelhos para observar melhor as entradas do castelo.

? Não acha isso estranho? ? perguntei ? As entradas para os outros Céus são espalhadas por áreas abertas, mas tem guardas para protegê-las. E pelo que as lendas contam, o Céu dos Lunares não é acessível nem mesmo para os outros Celestes... Então porque a entrada do Nono fica aqui?

? Não tinha parado para pensar nisso ? Hamza confessou um pouco envergonhado. ? Devíamos ter pensado nisso antes, mas agora, temos que entrar lá! Não sabemos como estão as coisas no Sétimo, Sarki pode desconfiar e voltar a qualquer momento, ou ficar entediado com seu irmão.

Podia ter dado uma cotovelada em Hamza pela gracinha, mas era uma possibilidade, Yoru não sabia manter assunto por mais de cinco minutos sem começar a ficar nervosinho.

O tenebris estendeu o braço e nos ergueu rápido, dando um passo adiante. Escuro. Claridade novamente.

Estávamos no interior do palácio.

Algo ali fez minha cabeça pulsar e doer, pois me encolhi contra o corpo de Hamza tenso ao meu lado.

“Tudo bem. É a magia daqui.” A voz dele mal passou de um sussurro.

Hamza não me soltou nem por um instante enquanto andávamos por aqueles corredores escuros, um braço ao meu redor, outro com a lança em punho. As paredes do castelo eram no mesmo tom de ouro envelhecido, tanto por fora quando por dentro, porém, do lado de fora, as luas faziam a construção imponente e bela, já por dentro... A combinação de lamparinas a óleo e janelas com cortinas vermelhas de veludo completamente fechadas dava um ar sobrenatural e arrepiante ao lugar.

Em passos rápidos, entramos no grande salão deserto. Ao passarmos pelas portas, senti algo como uma membrana barrando a porta e minha pele se arrepiou, mas Hamza não comentou nada sobre aquilo, então ignorei, seguindo-o para as portas fechadas atrás do imenso trono dourado vazio. As sombras ao nosso redor ficaram mais intensas e se espalharam, formando uma espécie de barreira atrás de nós.

? Se alguém chegar... ? Hamza murmurou, colocando a mão na maçaneta. Ele me lançou um olhar de aviso ao girá-la, pincei a mão, projetando as garras do Karmok e me preparei para o caso de alguém saltar gritando “surpresa! Pegamos vocês”.

O tenebris contou até três nos dedos, então as puxou.

Nada além de uma luz branca e intensa atingiu, fazendo até mesmo as sombras de Hamza desaparecerem, mesmo sendo luz, a sensação era errada, nem de longe passava a sensação de algo bom. Quando conseguimos enxergar melhor sem ter que usar os braços contra a luz, percebemos no chão um círculo com marcas estranhas, riscos, desenhos e letras num idioma que jamais havia visto, mas não pareciam estranhas a ele.

? Sabe o que é? ? Minha voz soou mais alta do que pretendia, mais melodiosa também.

? É... Magia proibida ? ele sussurrou. ? Mas é um portal.

Hamza tocou meu ombro, meus olhos não saíam das marcas no chão, era como se estivessem me chamando. Como uma boa covarde, dei um passo para trás sentindo como se tivesse engolido um quilo de pedras.

? Isso é o portal? ? quis saber.

? Não vou insistir para que vá comigo, Luy. ? Ele apertou minha mão, o calor de seus dedos emaranhados nos meus fez meus joelhos trêmulos se firmarem.

? Eu disse que se fosse para nos darmos mal, o faríamos juntos!

? Isso é que é ter coragem, estar quase se borrando de medo e querer ir mesmo assim! ? Ele riu. Dessa vez, enfiei o cotovelo em suas costelas o fazendo tossir.

? Anda, antes que eu comece a ouvir meu corpo ao invés de minha cabeça e fuja daqui! ? Hamza levou aquilo a sério, ele me deu um puxão para dentro do portal, mal tive tempo de gritar antes de sentir minha pele se arrepiar, as solas dos pés e as palmas das mãos ficarem frias e formigando e senti um frio na barriga.

Era como ter uma corda invisível me puxando para cima, minha voz havia desaparecido e só conseguia enxergar luzes como de estrelas explodindo ao meu redor enquanto me suspendiam mais e mais.

Parecia que aquilo estava durando uma eternidade, não conseguia ver Hamza e nem sentir nada. Comecei a ficar em pânico, meu coração disparou, mas um par de mãos me puxaram daquele túnel de luz e caí deitada sobre Hamza.

? Quase ? ele resmungou, tirando-me com cuidado de cima. ? A passagem é uma espécie de prisão, também. ? Sua voz fez com que eu me acalmasse um pouco.

Minha cabeça estava rodando, tanto que não tinha conseguido ainda me concentrar em onde estava e o que tinha ao meu redor. Hamza ficou sentado perto de mim por alguns momentos enquanto eu me recuperava, quando finalmente consegui me mover e enxergar normalmente, sentei-me e meu queixo caiu.

Não parava de me surpreender.

No reino humano, podíamos ver apenas uma lua.

Nos Céus, víamos duas.

Ali, no reino Lunar, quatro grandes luas faziam um arco no céu borrifado de estrelas de tantas cores que mal conseguia desviar os olhos. A luz branca e pura fez meu coração acelerar e meus olhos se encherem de lágrimas. Cada lua numa fase, crescente, cheia, minguante e nova, mesmo a mais escura ainda era vista, pois seus contornos brilhavam com espectros coloridos. As nuvens sob nós eram de um azul brilhante e pareciam rolar lentamente ao redor de um imenso círculo prateado, demarcando o que deveria ser uma espécie de... Não sabia definir aquilo.

Pilastras altas de um material que parecia vidro salpicado de estrelas fazia a luz das luas se espalharem por todo o lugar. Elas estavam dispostas em vários círculos grandes sobre plataformas também de vidro em cima daquelas nuvens, nada de telhado ou cobertura, até porque seria um desperdício colocar algo que impedisse a visão daquela imensidão.

? Socorro... Hamza. ? choraminguei. O tenebris estava imediatamente em minha frente segurando meu rosto, procurando assustado por algum problema. ? Não consigo parar de olhar!

Ele suspirou aliviado e começou a rir.

? Agora você me entende. ? Desviei o olhar do céu para encará-lo curiosa. ? Assim que eu me sinto quando olho para você.

? Já conseguiu minha atenção, oficial! ? Sorri ? Agora... Onde estão os tais deuses Lunares?

Olhei em volta uma segunda vez, prestando atenção em coisas mais importantes além da beleza divina e hipnótica daquele lugar. Hamza me acompanhou, andando atento com a lança ao alcance da mão, mas presa a bandoleira. Devagar, subimos os poucos degraus até aquela plataforma e franzi o cenho para o que vi.

No primeiro círculo, havia uma mesa posta com alimentos que pareciam ter sido recém colocados ali. Frutas frescas, pães, carnes ainda fumegando e vinho em jarras úmidas pelo frescor. Hamza pegou uma pera numa das bandejas e arquejou, soltando a fruta que ficou parada no ar.

Não, não parada.

Caía tão lentamente que dava a impressão de estar parada e ao redor dela, um brilho dourado suave pulsava. Hamza xingou e deu um passo para longe, assustado.

? Mas que diabos... ? Toquei a fruta também, ela girou lentamente quase sem sair do lugar. ? Que tipo de magia faria algo assim? ? sussurrei.

? Do tipo que mataria quem a tentasse invocar! ? Hamza rosnou baixo, cutucando meu ombro com os dedos e apontando noutra direção.

? Pelos deuses! ? Cobri a boca ao perceber o que ele estava me mostrando. Centenas de pessoas espalhadas por aqueles círculos estavam congeladas, paradas em posições de dança, comendo, falando... Todas presas numa espécie de feitiço do tempo.

Corremos para a outra plataforma, onde aquelas pessoas estavam espalhadas ao redor de quatro tronos de prata cravejados com pedras azuis, e sobre os encostos forrados em veludo, diamantes gigantes lapidados em formas de luas em suas fazes enfeitavam os tronos.

Sentados sobre os eles, havia quatro homens, maiores em estatura que os demais ali, suas peles eram ainda mais pálidas que as dos Vernuns, quase azuladas. Dois deles, um de cabelos negros e lisos, e outro de cabelos brancos ondulados, pareciam ter o mesmo rosto, gêmeos, conclui. Estavam sentados um ao lado do outro, inclinados como se estivessem fofocando algo que ficou perdido naquele congelamento. Sobre seus tronos, os diamantes tinham o formato de lua crescente e lua minguante.

Já os outros dois, com aparências mais velhas, um de cabelos prateados cacheados e barba longa, segurava uma taça transparente cheia de vinho, se não fosse a túnica mais refinada que dizia sobre sua posição, a lua cheia adornando seu trono diria. E a esquerda dele, o último, o deus Lunar da lua nova tinha uma expressão entristecida, olhando para longe.

? Os deuses lunares... Estão presos num feitiço temporal!

? Como isso é possível? ? Não havia uma explicação para aquilo, havia? ? Tem ideia de como podemos acordá-los? ? perguntei.

? Só achando a fonte da magia que os mantém em sono. ? Hamza começou a vasculhar o lugar, passando entre as pessoas adormecidas como um raio.

? O que procuramos? ? quis saber para ajudá-lo.

? Fios de magia... São quase invisíveis, mas não podem ser sentidos por outro tipo de magia ? ele resmungou. ? Pode ser visível em alguns, em outros não.

Comecei a procurar pelos tais fios de magia, enquanto vasculhava o lugar do chão ao alto, tinha a vaga sensação de que o nosso tempo começava a desacelerar também. De certa forma parecia que estávamos dentro de uma pintura como as que via no meio dos livros de meu pai.

Alguns minutos se passaram e nada de encontrarmos os fios. Vasculhamos em todos aqueles círculos, cinco, no total, todos com Lunares adormecidos.

? Nada ? quase gritei ao ouvir de longe Hamza perguntar se já tinha visto algo. Eu me virei frustrada para voltar até onde ele estava, só então, contra a luz das luas, percebi algo estranho. ? Hamza! ? chamei, apontando para a parte de trás de um dos tronos, onde um fio fino quase como uma teia de aranha brilhava. Hamza veio correndo até onde eu estava e assentiu.

? Definitivamente aquilo é um fio de magia. ? Ele sorriu. ? Só precisamos segui-lo.

Sem tocar o fio, começamos a correr para onde ele se estendia. Para nossa surpresa, o fio acaba no meio do nada a poucos metros dos tronos, num lugar onde havia apenas algumas letras como aquelas do portal desenhadas sobre a plataforma.

? Só pode estar brincando ? urrei, chutando o nada, mas meu pé atingiu algo e eu xinguei por causa da dor. Hamza mordeu a boca para não rir e bateu a ponta da lança contra uma barreira invisível, ela ondulou como a superfície da água.

? Obrigado pés de chumbo! ? Hamza estendeu a mão, tocando a barreira e grunhindo quando essa a repeliu.

? Até a magia sabe quando você merece ? zombei. Ele fez uma careta para mim, então, fez algo que me deixou mais uma vez de queixo no chão. Hamza colocou as mãos conta a barreira e espalhou raios sobre ela, conduzindo a energia para que ela partisse a barreira.

Funcionou.

Primeiro um trovão, depois som como vidro se partindo e em seguida... Em seguida ele parou de soltar raios abruptamente, dando um passo cambaleante para trás.

Duas mulheres se mantinham ajoelhadas uma de frente para a outra, com as mãos entrelaçadas e sobre um espelho repleto de marcas e símbolos pulsantes, como se vibrassem no ritmo dos corações das duas. Uma dourada, a outra prateada. Seus corpos marcados pelos mesmos símbolos que brilhavam em vermelho e se apagavam lentamente.

? O que... é isso...?

? Edrias e Alfia ? Hamza disse baixinho. ? A vida delas está alimentando a magia proibida!

? O que... Como? ? Estiquei a mão para tocá-las, mas Hamza puxou minha mão com urgência.

? Não pode tocá-las antes de quebrar o fluxo de energia. ? Ele avisou, então começou a analisar as inscrições ao redor delas. ? A letra inicial, que pode desmanchar o círculo e quebrar a magia, está sempre dentro de uma marca com dois pontos.

? Entende bastante de magia proibida, não é? ? perguntei sem maldade, mesmo assim Hamza me olhou feio. ? Desculpe.

Devagar, contornamos o círculo até encontrar uma letra diferente, parecida com um pequeno triângulo aberto riscado e com duas bolinhas em ambos os lados.

? É essa. ? Ele apontou.

? Como faremos isso?

? Honén que é boa em quebrar feitiços ? Hamza murmurou. ? Isso precisa de magia oposta para se partir... Precisamos analisar a magia e descobrir que tipo de coisa pode quebrar esse selo... ? Ele colocou a mão na boca e ficou ali, pensativo, observando a marca. Eu, com minha paciência limitada e mal desenvolvida pela criação humana, peguei a lança de Hamza rapidamente e acertei a ponta metálica contra a letra, fazendo o piso rachar, dividindo a marca em duas. A luz do círculo se apagou, as marcas pararam de pulsar, as mulheres tombaram para o lado ainda desfalecidas e o oficial me olhava espantado.

? Você é louca? ? ele grunhiu ? Podia ter gerado uma explosão de magia! ? Tirou a lança de minha mão passou o dedo na lâmina. ? Podia ter trincado minha arma também!

? Mas deu certo!

Conforme a luz do fio foi se apagando, as pessoas naquele lugar foram caindo ao chão, movendo-se, resmungando e olhando ao redor confusas, sem saber o que estava acontecendo ali. Hamza fez um aceno para que eu fosse até eles, enquanto ele verificava as duas mulheres.

Com um pouco de medo, fui até o centro onde aquela festa estivera congelada e deixei que as pessoas retomassem completamente a consciência até que percebessem a presença de alguém que não deveria estar ali. As pessoas me olhavam confusas, e se olhavam também, tinha a impressão que elas provavelmente não sentiram nada do que havia acontecido ali.

? Garota Tormentadora... O que faz em nosso reino? Como entrou aqui? ? O Lunar no trono da lua minguante falou.

? Eu invadi pelo reino Solaris. ? Sinceridade, não sabia como eles podiam reagir a qualquer outro tipo de resposta mesmo. O Lunar franziu o cenho, e o mais velho no trono da lua cheia pigarreou.

? Poderia... Nos dizer o que está acontecendo aqui? ? ele pediu. ? Por que tenho a sensação de... Ter... Dormido tanto?

? Vocês estavam dormindo. Havia um feitiço aqui, impedindo o tempo de passar... Acho ? comecei, o murmúrio e protestos das pessoas ao meu redor fizeram com que eu me encolhesse um pouco.

? Como é? ? o lunar de cabelos negros rosnou, mas o ancião moveu a mão para que esse ficasse em silêncio. Hamza já estava ao meu lado, com a mulher dourada em suas costas, os braços ao redor de seu pescoço e a cabeça em seu ombro, adormecida. A prateada em seus braços.

? Yohen, Yulen, Daizu e Danar ? Hamza fez uma reverência cuidadosa para não derrubar as mulheres. ? É uma honra estar na presença dos deuses lunares.

? Expliquem-se! ? o senhor trovejou ? O que estão fazendo aqui?

? Nossa, o senhor está muito estressadinho para alguém que dormiu tanto! ? resmunguei ? Óbvio que viemos acordá-los. Quero dizer, viemos ver porque não interagiam mais com os outros celestes, descobrimos que estavam enfeitiçados e eu acabei se salvar vocês de um soninho ainda mais longo, obrigada, de nada! ? zombei, talvez um pouco de grosseria fizesse aqueles cérebros travados funcionarem com mais clareza.

? Como ousa falar assim? ? De novo, o de cabelos negros se ergueu, apoiando-se no trono, mas acabou cambaleando e caindo sentado novamente.

? Desculpem por ela, majestades. Luyen caiu de cabeça do Oitavo quando era bebê. ? Hamza me deu uma olhada irritada, quase mandando-me dobrar a língua, eu devolvi o olhar, já tinha aprendido minha lição com Owyn. Hamza então contou a eles sobre o fio de magia, sobre o tempo sem interação, a autopromoção de Sarki como imperador e todos os problemas lá embaixo.

Os Lunares, tanto os que estavam sentados nos tronos, quanto os que ouviam nossa explicação, estavam chocados e enfurecidos.

Yohen, o Lunar da lua cheia se moveu, incomodado, e nos encarou por longos minutos antes de erguer as mãos trêmulas para coçar a barba.

? Sarki sempre foi ganancioso ? começou. ? Durante os tempos que vivemos em solo verde, lá embaixo com os humanos, ele sempre queria mais... Mais territórios, mais trabalhadores... Ele sempre quis ter. Quando percebemos que aquilo estava subindo demais à sua cabeça, já era tarde. Ele havia virado muitos dos imortais contra os humanos, então nós precisamos intervir. Com ajuda dos Ventus, criamos os Céus para banir os celestes do reino humano, pois eles mereciam mais a terra que nós.

? Mas Sarki nunca aceitou isso. Ele não suportava ter que fazer algo para merecer receber os frutos da terra ? O Lunar da lua nova completou.

? Nunca pensamos que ele fosse capaz de tal coisa para retomar o reino humano! Os Vernuns eram os nossos mais queridos Celestes, eles mantinham todos os outros sob controle para nós. ? Yohen suspirou. ? E agora...

? Precisamos de ajuda... Sarki pode atacar o Sétimo Céu a qualquer momento! ? pedi, aquela conversa estava se estendendo demais, Sarki podia voltar ao Segundo a qualquer momento, ou pior, se irritar com Yoru e perceber que não estávamos lá.

? Nós... Sentimos muito ? Yulen falou, deixando-me atordoada até perceber que aquilo significava. ? O feitiço de tempo drenou nossa magia. Não somos deuses, meus jovens, nós temos apenas magia mais forte que a dos Solarias, mas vai levar alguns dias até que possamos intervir!

? O quê? ? gritei ? Não temos todo esse tempo!

? Não podemos fazer nada até nos recuperarmos. Somos em poucos, também ? Daizu explicou.

Minha garganta estava apertada e Hamza ajeitou a rainha Vernum nos braços. Yulen se ergueu de seu trono com dificuldade, as mãos trêmulas e chegou até Hamza, colocou as mãos sobre a cabeça das mulheres e um brilho suave as cobriu. Fazendo-as despertarem.

? Vocês têm nossa gratidão por terem nos livrado do feitiço! Em poucos dias estaremos lá para ajudar ? ele prometeu baixo.

Ia começar a gritar com eles, mas Hamza passou um braço ao meu redor e me puxou para si, mergulhando-nos naquela escuridão antes que eu pudesse dizer uma besteira. Havíamos nos arriscado para ir até lá e sair sem ajuda! Os outros contavam conosco... Contavam com aqueles “deuses”


? Vai ficar tudo bem. Nós vamos conseguir ? Hamza sussurrou.

Estávamos de volta no Primeiro Céu, na sala do trono de Sarki, eu ainda olhava aquela abertura atrás do trono, Hamza tocou meu ombro para me lembrar que precisávamos sair dali. Ele mantinha a princesa do Primeiro presa e a rainha do Sétimo nos olhava sem entender o que estava acontecendo. Hamza lhe dava breves explicações do que havia acontecido enquanto andávamos o mais rápido possível para fora do castelo, elas mal conseguiam se mover pelo tempo em que ficaram paradas lá.

Ao chegarmos no pátio, meu coração quase parou ao notar que estava entardecendo e que o lugar ainda continuava vazio. Hamza olhou para o céu em choque, em seguida me agarrou e deu um passo no vazio no momento eu que me dei conta do que havia de errado.

Não tínhamos passado apenas alguns minutos lá em cima.


Capítulo 32

 

 

Luz e sombras


Hamza:


Aquele lugar havia sido tomado por caos.

Não havia mais um pátio quando pisamos no que deveria ser os portões do castelo de Boroni. Fogo Solaris explodia no céu contra barreiras luminosas de raios e ventos, gritos de ordem vinham de todos os lugares, onde o exército Tormentador se espalhava em grupos, protegidos por escombros das muralhas e por raios que choviam quando aquele fogo se precipitava do outro lado das barreiras.

No céu, duas bestas aladas gigantescas feitas de sombra e fumaça com bocas cheias de dentes negros rugiam fazendo tudo vibrar, abrindo suas bocas imensas e devorando parte daquele fogo solar como se não fosse nada para elas.

Honén e Hugre.

Elas voavam juntas, devorando magia para proteger a resistência abaixo delas, onde Prisla, Yoru e Araik, de mãos erguidas para o céu, atacavam o exército Solaris para mantê-los longe. Ainda assim, vários Solaris estavam espalhados pelo pátio, lutando contra os soldados de Boroni que ainda se mantinham de pé.

Ao nosso redor, corpos de Vernuns e Tenebris se misturavam, sangue vermelho e chumbo formaram poças já secas nas lajotas cinzentas, dizendo muito sobre quanto tempo havia se passado ali.

? Pelos deuses... ? Luyen soltou um soluço e agarrou meu braço mais forte. Aquilo era ainda pior que aconteceu no Oitavo. Edrias, como se tivesse despertado naquele instante, se soltou de nós e correu na direção de Boroni, que estava ao lado de Malira e Brine, os três tentavam manter a linha de frente com o máximo de seus poderes, mas eles pareciam esgotados. Já a princesa Solaris não ousou sair de perto de nós. ? Nós demoramos demais.

? A magia lá nos afetou também! ? grunhi, puxando Luyen em direção ao que restara castelo, com a lança já em punho para abrir caminho se fosse necessário.

Uma das bestas voou baixo, rosnando para nós em um aviso.

“Adrias está com o pergaminho, eles estão na torre leste!” A voz de Honén ressoou dentro de minha mente.

A princesa Solaris não dizia nada, só nos acompanhava em silêncio. Não sabia até que nível ela tinha culpa naquilo, ou se só havia sido usada por Sarki, mas o buraco vazio em seus olhos dizia muito sobre suas intenções, ela não moveria um dedo contra ou a favor de nós.

Raios explodiam em todas as direções, assim como os trovões estrondosos que balançavam os Céus. Do outro lado das barreiras, Rijan, com um grupo pequeno, girava suas foices presas a correntes como um demônio sanguinário, causando danos ao grande número de peles douradas lá.

? Mais rápido ? rugi, era como se o pátio tivesse ganhado centenas de metros a mais. Luyen chiou e deu um puxão no braço, soltando-se de mim. Eu me virei preparando o ataque, pois senti a aproximação sufocante de um Solaris, mal vi o lampejo de dourado antes que um redemoinho o atirasse longe contra as barreiras de raios.

? Adrias é um bom professor. ? Ela tentou parecer tranquila, mas suas mãos tremiam tanto que as garras metálicas do Karmok batiam.

“Por favor, Hamza! Invoque os guardiões!”

Cada vez mais intensos, os raios Solaris preenchiam os Céus.

Se não agíssemos logo... O Sétimo não aguentaria até o anoitecer. Nem mesmo com a Aliança de Boroni. Entramos correndo no castelo, poeira e pedras jogadas por todos os lados, diminuíam o ritmo de nossa corrida, mesmo assim Luyen não parou.

O salão principal havia sido feito de enfermaria, Doreen estava ali, de pé, bem, auxiliando as curandeiras de Nublis e de Phantagia, capital do Quarte, com os feridos. Tanto Vernuns quanto tenebris estavam sendo cuidados. Mesmo assim, aquela cena apertou meu peito, não conseguia perdoar Malira pelo que fez a Honén, nem mesmo com sua ajuda agora.

Luyen soltou a Solaris ali e seguiu comigo para a torre por dentro do vazio. Duvidava que a Solaris fosse fazer uma bobagem numa sala com curandeiras tenebris, treinadas para matar tanto quanto para salvar.


As colunas que mantinham a cobertura da torre tinham se partido e a cobertura há muito tinha sido levada pelos intensos ventos que rodopiavam ali em cima. A vista da batalha era ainda mais terrível. Os Solaris haviam devastado Nublis e formavam um semicírculo ao redor do castelo. Da muralha, só restavam escombros que serviam de barricada aos que ainda defendiam o castelo e as entradas do Sétimo nas plataformas atrás dele.

Adrias usava dois Karmoks, um em cada mão, ele estava com os braços erguidos ao lado do corpo, foi então que percebi que quem matinha a barreira ao redor do castelo era ele, os outros lá embaixo apenas o auxiliavam.

? A caixa. ? Ele apontou com o queixo para o quadrado de madeira azul atrás de si, sem tirar a atenção de sua tarefa. Luyen acenou para mim e se juntou ao príncipe, ele lhe deu instruções rápidas, então ela subiu no beiral da torre e começou a cantar.

Sua voz fez um arrepio subir por minha coluna e uma sensação de calmaria tomar conta de mim. Aquele canto veio seguido de trovões ritmados e uma tempestade tão intensa, como nunca havia se visto antes. Granizos do tamanho de meu punho começaram a cair onde o exército Solaris se concentrava, mesmo assim não era suficiente, pois as pedras desapareciam em vapor antes de tocar a barreira de calor que Sarki projetara.

Ele estava olhando direto para nós.

Sem perder mais tempo, peguei a caixa e puxei o pergaminho de dentro, abrindo-o contra o chão. A assinatura de Mendal não passava de uma gota de sangue escura no canto do papel. Cortei a palma da mão e toquei aquela marca, sentindo uma magia estranha pulsar antes de um puxão.

A princípio, nada de diferente aconteceu e assim como os “deuses Lunares” tive medo de ser apenas um pedaço de papel que não serviria para nada, só tinha uma magia para assustar quem tentasse usá-lo. A batalha continuava lá embaixo, a barreira de Sarki ainda se mantinha intacta e Hugre e Honén já estavam exaustas por devorar magia. As duas estavam pousadas em extremidades opostas, usando a magia que devoraram contra as barreiras douradas.

Apertei as mãos em punho, reunindo magia para lançar uma descarga contra aquelas barreiras também, Luyen me olhou preocupada, mas não parou de cantar e Adrias se mantinha firme também. Fechei os olhos e me preparei para liberar a tormenta em mim, herdada de Murlock.


Um estrondo.

Em seguida uma onda de poder sombrio.

Uma escuridão que jamais havíamos visto igual tomou conta de tudo. Sombras intensas e tão poderosas que consumiram a luz dos Solaris, dos Vernuns lá embaixo e a barreira de Adrias. Aquilo... Aquilo que varreu o Sétimo era o tipo de escuridão que fez os Tenebris nascerem.

? Hamza... ? A voz de Luyen chegou trêmula até mim, aquela onda havia devorado até mesmo os sons, estávamos mergulhados num silêncio aterrador.

? Estou aqui ? sussurrei, estendendo a mão para ela, ainda podia senti-la, a tirei de cima daquele beiral e a abracei. Não sabia ao certo o que havia feito, mas tive a impressão de que o mundo acabaria ali.


Luyen:


? Vocês não aprendem? Não prestaram atenção nos avisos? ? Uma voz feminina estranha fez um arrepio subir por minha pele. A voz veio de dentro daquele breu que tomou conta de tudo segundos antes.

Logo em seguida, atrás de nós uma luz branca e intensa brilhou, dissolvendo a escuridão como o sol quando surge em meio as nuvens. Ainda agarrada a Hamza, me virei lentamente apenas para cair de joelhos ao ver aquelas duas criaturas de pé sobre os destroços das pilastras da torre.

Uma mulher de pele branca como neve, olhos vermelhos e marcas negras como flores e gavinhas que subiam por seus braços até desaparecer sob a manga do vestido azul. A coroa negra sobre os cabelos lisos brancos a faziam ainda mais impressionante, mas não era nada comparada a imensa foice de vidro amarelado que carregava. Era dela que vinha toda aquela escuridão, percebi pelo sorriso arrogante em seu rosto lindo.

Ao seu lado, o homem era seu equivalente na beleza, embora parecesse humano com a pele branca, cabelos negros na altura da cintura, olhos verdes vivos como folhas novas e expressão séria, contida, havia algo mortal em sua pose tranquila.

? Vocês são... Os guardiões? ? Honén havia pousado atrás de nós e agora estava em sua forma verdadeira. Ela encarava surpresa os dois, como se nem ela esperasse que eles aparecessem.

? Soberanos dos Doze ? a mulher a corrigiu. ? Estou surpresa por termos sido convocados após terem quebrado regras! Achei que a ordem de resolver problemas com conversas tivesse sido convincente o bastante! Pelo visto... Alguns não tem medo. ? Ela riu.

? Vocês parecem irmãos! ? comentei, surpresa. Óbvio que não eram, o cheiro deles estava misturado. A mulher me deu uma piscadinha.

? Meu tio! ? Ela o indicou com o queixo, que por sua vez só revirou os olhos.

? Não reconheço esse mundo ? o homem disse baixo, olhando em volta. Lá embaixo, todos estavam olhando ao redor, tentando entender o que havia acontecido, mas Sarki não esperou para ver, ele lançou aquela onda de calor novamente, só que sem as barreiras de Adrias, o fogo solar veio direto em nossa direção. Eu me encolhi preparando-me para o impacto quando o fogo chegou próximo.

Apenas para se chocar com uma barreira de vento que circulava ao nosso entorno. O homem chiou e olhou feio para baixo.

? Estão querendo morrer mais cedo. ? Ela estalou a língua e sombras nos cobriram e desapareceram tão rápido que mal pude entender o que havia acontecido, apenas ao olhar para o lado e ver Malira, Boroni ferido e Brine ali, a alguns metros de Sarki e seu exército dourado, que percebi que a mulher havia nos levado até lá.

? Queremos entender o que está acontecendo antes de acabar com vocês... ? ela rosnou, encarando Sarki com ódio brilhando no olhar. O Solaris grunhiu e acumulou magia novamente, mas a mulher moveu apenas um dedo, colocando-o sobre os lábios cheios e ele ficou congelado no chão, preso a gelo e sombras, olhando-a com terror.

O mesmo havia acontecido com todo os Solaris atrás dele.

Até eu, em silêncio e sem ter culpa de nada, estava com medo.

? Estamos no mundo das tempestades... Majestade. ? Honén fez uma mensura e a mulher sorriu para ela.

? Gostei de você! Pode me chamar de Nike, se quiser. ? Ela indicou o homem ao seu lado com o queixo. ? Esse é Susano.

Eu me movi inquieta, colando mais o corpo em Hamza, ele apenas apertou meu ombro com carinho, como se pedisse que eu ficasse calma.

? Nosso mundo não está no círculo ? Malira explicou, se aproximando de nós com cautela, seu rosto estava lívido e os olhos cuidadosos ao observar os dois. ? Mendal foi até o mundo de gelo muitos anos atrás e assinou um tratado de paz. ? Ela gesticulou para Hamza, que não deixou de olhar feio para sua mãe, mas estendeu o papel a ela. ? Mendal nos disse que no caso de Sarki resolver nos atacar e não pudéssemos contar com os Lunares, poderíamos pedir ajuda através dele.

A mulher estendeu a mão e pegou o papel, dando um sorrisinho provocativo para Hamza que fez meu sangue ferver. Os olhos vermelhos varreram o documento e ela franziu o cenho.

? Não estávamos nessa reunião... ? Susano falou ? Isso foi no dia do casamento. ? Ele deu um olhar significativo a Nike, sua postura não se alterou em nada, mas um brilho dolorido cortou seu olhar por um momento, então ele se virou para nós:

? O nosso aviso foi que nós acabaríamos com qualquer problema dentro dos Onze restantes. Seu mundo, ao que parece, não está incluído no círculo pelas raízes de Cahidén, mas foi incluído por essa... Mendal, através de um pacto de sangue ? Susano falou.

? Vocês não têm direito de chegar aqui e me impedir de levá-los de volta para casa! ? Sarki que estava observando quieto até aquele momento gritou. ? Nosso lar foi tomado! Fomos forçados a sair...

? Para começar, é culpa sua que tenhamos sido banidos, Sarki ? Boroni trovejou, cortando a ladainha de Sarki, que sem aquelas ondas de luz solar, não passava de um velho louco. Boroni não estava bem, segurava a ferida no peito e tossia quando a dor o fazia se encolher, Edrias o apertou com carinho e Boroni, mesmo com dor, a olhava com adoração, como se ela tivesse derretido o coração de pedra do velho rei. Susano foi até ele e o curou com um simples toque da mão.

? Então... O que exatamente está acontecendo aqui? ? Nike perguntou e todos começaram a falar ao mesmo tempo, ela revirou os olhos, mas Honén se aproximou dela, segurou seu rosto e tocou a testa dela com a da mulher, sem medo, sem cerimônia.

As marcas no corpo da mulher se acenderam e, por alguns instantes, só houve silêncio. Sarki tentou se soltar, mas Owyn, num instante, estava ao seu lado, segurando-o pela lapela da armadura dourada.

? Está passando memórias a ela ? Hamza sussurrou tão baixo que pensei ter imaginado ouvir aquilo.

Quando as duas se separaram, Nike estava bufando, suas mãos tremiam e os olhos vermelhos se voltaram para Sarki.

? Todos os Solaris concordavam com isso? ? ela perguntou num tom baixo e letal.

? Não, senhora. Não concordávamos ? a princesa Alfia, que tiramos do Nono Céu junto com Edrias, falou.

? FIQUE EM SILÊNCIO! ? Sarki gritou para a Solaris, rosnando e babando como um cão louco, Nike o ignorou, silenciando-o com uma mordaça de sombras.

? Quem é você? ? Susano perguntou.

? A filha que ele prendeu e usou de fonte de magia para adormecer os Celestes que protegiam os Céus ? Alfia disse baixo, Edrias estendeu a mão para ela e a outra a pegou, sorrindo. ? Me recusei a fazer parte daquilo, tinha seguidores e pessoas que apoiavam que continuássemos nos Céus, mas ele queria retomar o reino terreno de qualquer maneira. Como não fui a favor, fui tirada de seu caminho.

? E os que te apoiavam? ? Susano perguntou.

? Os que não foram mortos, se recusaram a descer para lutar ? Owyn respondeu por ela, provavelmente a princesa não saberia do que se passava no Primeiro.

Nike e Susano se entreolharam.

? Nós cumpriremos a lei ? Susano falou. Nike posicionou sua foice atrás de si e encarou os Solaris assustados, os dedos dela estavam tão apertados no cabo da arma, que parecia que ia quebrá-la a qualquer momento. Havia algo no olhar dela... Como se aquilo fosse mais difícil do que parecia. Mas ela não moveu a foice. A arma desapareceu de sua mão, transformando-se num pingente em sua pulseira prateada. Sarki, mesmo com a mordaça, começou a rir.

? Está achando graça de quê? ? ela perguntou, olhando-o agora como se ele não passasse de um inseto.

? Não vai destruí-los? ? Malira deu um passo à frente, incrédula.

? A lei... ? Owyn começou e foi interrompido.

? Nós sabemos quais são as leis. Nós as criamos! ? Susano falou calmamente. Ele suspirou e tocou o ombro dela, Nike então moveu apenas um dedo sobre os lábios e uma rajada de gelo explodiu dela, varrendo o exército Solaris, transformando-os em nada além de farelo de gelo. Apenas uma coroa dourada em formato de raios de sol sobrara. Cambaleei para trás, com o estômago embrulhado e um nó na garganta.

? Podem cuidar dos próprios feridos. ? Nike nos olhou de soslaio e deu um sorriso assustador. ? Afinal, a lei era destruir ambos os lados que estivessem em guerra. Que isso não saia daqui.

Não houve sequer um murmúrio em protesto ou concordância. Todos olhavam em choque aquela devastação.

? Vamos estender a ligação de Cahidén para cá também. Assim ficarão sob proteção dos outros guardiões ? Susano completou, abaixando-se e tocando o chão com a palma aberta. Um pulso suave de energia passou por nós e subiu, como se cobrisse o lugar com uma membrana de magia. Ele ergueu as sobrancelhas e sussurrou algo para ela que talvez tenha escutado mal: “dois mundos”.

Alfia, por fim, se adiantou saindo do choque.

? Fez o que era certo... Ele era mau ? Alfia sussurrou, aproximando-se de ambos para os agradecer.

? Ele não era mau, era ganancioso. Pessoas más não tem medo das consequências de seus atos, já enfrentamos pessoas más de verdade, elas tiram tudo de seu caminho sem medo de quem irá enfrentá-las para impedir seus planos. Esse... Ele almejou algo, mas teve medo o tempo todo. Era só um idiota com poder, como muitos por aí. ? Nike encarou Malira de um modo que fez um arrepio percorrer minha espinha, aquele olhar parecia um aviso.

Ela então se afastou, pegando a mão de Susano e um brilho começou a circulá-los.

? Estão em paz agora ? ele disse ? Espero que não precisemos voltar.

? Eu também não! ? falei. Nike ergueu uma sobrancelha e Hamza me beliscou. Tá, tá... Língua grande.

? Esperem! ? Honén se adiantou, pegando a mão de Nike. ? Me levem com vocês? ? pediu, Susano franziu o cenho, mas Nike assentiu.

? Honén! ? Hamza depois daqueles longos minutos em silêncio se precipitou, agarrando o ombro da irmã. ? Vai me deixar de novo?

? Eu nunca deixaria você! Estará sempre aqui comigo! ? Ela sorriu tocando a cabeça de Hamza. ? E você... Eu cumpri minha promessa, está segura! Nibbis vai me perdoar se eu quiser ir viver um pouquinho longe daqui! ? Honén riu e me abraçou apertado, beijando meu rosto com carinho.

“Vão procurar pelo lugar que ninguém vá bater na porta de vocês bem no meio da festa!” ela sussurrou, deixando-me com um nó na garganta. É claro que tinha ouvido aquilo.

? Obrigada... Por tudo! ? choraminguei. Honén limpou as lágrimas de meu rosto e se afastou, segurando a mão de Nike novamente. Ela encarou Malira antes daquela luz brilhante e branca a cobrir por completo:

? Eu perdoo você... Mesmo que não tenha pedido!

A luz explodiu e varreu o Sétimo, deixando para trás o aroma de terra e chuva.

Quando a claridade desapareceu, a destruição que havia ocorrido ali estava apenas em nossa mente. O palácio estava refeito, as muralhas de pé e o pátio deserto, pois os corpos... Os corpos... Tinham virado poeira de luz e começavam a subir no ar e desaparecer.

Malira, no entanto, ainda olhava o lugar que Honén havia estado antes de desaparecer, os olhos negros marejados e as mãos apertadas ao lado do corpo. Talvez não houvesse só escuridão nela afinal.

Não houve despedidas, nem celebração.

Malira desapareceu segundos mais tarde com Owyn, Hugre e os outros Tenebris do Quinto. Logo após ela, Brine também se foi levando sua corte e os soldados que estavam com ela. Yoru, que esteve em silêncio também durante todo aquele tempo, correu para dentro do castelo, certamente para encontrar Doreen e Boroni, junto com Adrias e Edrias também entraram.

Por último, olhando para o castelo, Alfia murmurou:

? Perdemos muito... Muito que não pode ser recuperado. Mas ainda estamos aqui. ? Ela deu alguns passos até alcançar a coroa dourada. ? O que ele odiava quando estávamos com os humanos é que eles compartilhavam tudo, mesmo quando tinham pouco. Sarki era egoísta, para ele, compartilhar era um sinal de fraqueza, pessoas fortes tomavam o que queriam. ? Ela passou os dedos pelo metal e suspirou. ? Ele não percebia que na curta existência deles, compartilhando tudo... Tinham coisas que poder ou riqueza alguma podia comprar. Amor... Felicidade! ? Alfia colocou a coroa sobre a cabeça e encarou o céu por alguns instantes ? De nada adianta uma existência longa, se ela não passa de um vazio. Nós temos uma nova chance de corrigir os erros... E quando isso passar um pouco ? Ela gesticulou ao redor, para as perdas que tínhamos sofrido. ? Poderemos achar um novo meio juntos, e talvez possamos ver aqueles campos verdes lá embaixo novamente! Mas, para isso, temos que dar o primeiro passo. ? Alfia sorriu para nós e desapareceu num brilho de luz dourada.

? Será que ela não percebeu que todos já tinham ido? ? perguntei.

? Pelos deuses, Luyen! Ela estava falando uma coisa bonita!

? E eu estava aqui pensando que ela tinha ficado louca! ? Meu peito ainda doía por Honén, por todos aqueles que eu não conhecia, mas que tinham dado as vidas para cumprir o papel que lhes foi imposto. Mas Alfia estava certa, estávamos vivos, então tínhamos uma chance de recomeçar.

? Então... Quer procurar um lugar para se esconder comigo? ? Hamza me puxou contra si, exibindo uma chave pendurada em seu colar.

? Não vamos nem nos despedir?

? Você é mal-educada mesmo, eles não vão sentir! Depois voltamos para ver o que aconteceu! ? Hamza beijou minha testa e me ergueu no colo, dando um passo para trás, onde mergulhamos naquele vazio antes de estarmos à beira de nuvens douradas.

? Onde estamos? ? quis saber.

? No limite do Primeiro ? ele murmurou, estendendo a mão para a teia brilhante dourada. A trama se abriu, dando-nos passagem para uma imensa floresta...

A floresta brilhava em azul! Contra a luz de três grandes luas, a floresta inteira era mergulhada naquela luz calma, bonita... Que por algum motivo, parecia acalentar meu coração. Conseguia escutar o som da água correndo em algum lugar, sentia o cheiro de frutas vindo de todos os lados e o brilho suave de vagalumes voando por todas as direções, vindos principalmente das copas altas das árvores... Tudo aquilo parecia ser algum tipo de remédio para a alma.

Hamza segurou a minha mão e me guiou por entre os troncos largos das árvores, podia sentir a presença de outras pessoas ali, mas para onde quer que olhássemos, não víamos ninguém. Depois de alguns minutos andando, notei um rolo de corda e madeira preso a uma das maiores árvores ali e olhei para cima.

Uma casa na árvore iluminada por flocos de luz dourada, quase igual ao chalé de meus pais na floresta, só que no alto. A chave no colar de Hamza se soltou, abriu um par de asas de bronze e voou até o chalé, que se acendeu todo como se estivesse esperando por nós. Comecei a rir.

? Cheio de surpresinhas? ? perguntei.

? Presente de Doreen! ? Ele riu mostrando-me a chave. ? Ela me deu a chave quando soube de nós, na esperança que eu te tirasse de perto de Yoru!

? Ela ainda é minha pessoa favorita! ? Segurei o rosto de Hamza e me ergui nas pontas dos pés para beijá-lo.

Hamza puxou a corda e a escada desenrolou, batendo com um som abafado contra o tronco da árvore. Subimos sem receio até a longa varanda que contornava o chalé, só por precaução, comecei a enrolar a escada.

? Pro caso de alguém nos achar aqui... ? Hamza riu e me ajudou a puxá-la.

? Já disse que você não presta hoje? ? sussurrou, apertando-me contra si e beijando meu pescoço.

? Vai dizer de novo já, já! ? Hamza me pegou nos braços mais uma vez e me levou para dentro.

Acabei entendendo o que Alfia queria dizer.

Nada compraria aquela alegria que estava começando a sentir.


Epílogo:

 

Yoru:


Doreen arrumou mais uma vez o laço do vestido de Nibben enquanto caminhávamos por Nublis em direção ao Castelo. Ela estava com os olhos marejados e fazia um bico, batendo os pés no chão com força, o que fazia os cachinhos prateados de seus cabelos se desarrumarem.

? Ela puxou o seu temperamento! ? Doreen reclamou, segurando a menina para arrumar os cabelos também. Não consegui deixar de rir daquilo. Nibben estava irritada, pois preferia ter ficado em Castelo Azul para brincar com Prisla e com as coisas perigosas de seu laboratório.

? Não fique chateada, minha princesa! Lohan vai estar lá para brincar com você! ? A lembrei. Nibben me olhou por cima do ombro ainda com uma carranca, mas parou de bater os pés.

? Acha que eles vêm? ? Doreen perguntou.

? Luyen não perderia a oportunidade de vir implicar com seu irmão, Doreen! ? Tirei uma mecha da frente de seu rosto e a beijei com ternura. Luyen e Hamza dificilmente deixavam a Floresta Azul, a não ser que envolvesse comida ou oportunidade de arrumar encrenca com alguém. Duvidava que ela perderia a coroação de Adrias.

Boroni faleceu poucos meses depois do nascimento de Nibben e do tratado de paz que Alfia havia proposto aos Céus e ao rei humano, abrindo os reinos Celestes a eles, mas também permitindo que nós vivêssemos lá, caso quiséssemos. Mas ele teve a chance de conhecer a neta e ver a filha se tornar rainha, antes de tornar-se tempestade e ir descansar, Edrias o acompanhou dias depois.

Ênya e seu pai desapareceram antes mesmo da batalha no Sétimo e não foram mais vistos, certamente escaparam para algum território humano, quando perceberam que os planos de Sarki não dariam certo, certamente pela intervenção de Owyn, Ênya devia ter imaginado que o Sétimo não estava sozinho e fugiu quando teve a chance. Para meu alívio, Alfia anulou meu casamento com a Solaris.

 

Araik nos recebeu no portão principal e nos acompanhou para dentro do castelo. Todos ali estavam comemorando a coroação do príncipe, incluindo os poucos humanos que já trabalhavam e viviam por ali, incluindo a noiva de Adrias, uma amiga de Luyen do reino humano, Coralie, mestiça de Vernum e humana. Aquele era o motivo da mãe humana de Luyen ter se negado a dizer que havia testemunhas da criação de Luyen por eles, a garota mestiça também podia ser considerada perigosa.

Para mim, só era algum tipo de milagre estranho, não fazia ideia que Celestiais podiam ter crias com humanos.

? Estão atrasados! ? resmunguei quando estávamos perto das portas de entrada do salão. A escuridão ao nosso redor se distorceu, Luyen e Hamza apareceram no instante seguinte, com Lohan pendurado no ombro do pai.

? Atraso é o nome do meio da mamãe ? ele resmungou, o que lhe rendeu um puxão de orelha por parte de Luyen. O menino era quase uma cópia do pai, a não ser pelos olhos azuis rajados de prata de Luyen.

? Ao que parece, a língua afiada também se herda! ? disse Doreen como cumprimento, jogando os braços ao redor de Luyen.

? Vou consertar isso, não se preocupe. ? Ela revirou os olhos e seguiu para o salão, fazendo fofocas com Doreen. Hamza apertou minha mão e sorriu, pelo visto, aquela parte de sedutor filho da mãe de meu amigo não havia sumido.

? Vocês parecem bem ? falei, Hamza assentiu e deu uns tapinhas em meu ombro. Tinha demorado a aceitar aquilo, mesmo depois de tudo que passamos. Sair do castelo naquele dia após a saída dos guardiões e perceber que Hamza e Luyen haviam desaparecido me fez ficar um bom tempo sem falar com ambos. Mesmo assim, consegui me desculpar com eles, pois Doreen me ameaçou de morte caso não tivesse Luyen com ela no momento em que Nibben nascesse.

? E o Oitavo? ? Hamza perguntou.

? Enchendo mais rápido do que imaginava. Estamos com muitos humanos, vindos de vários reinos também ? comentei. ? Uma visita especial espera por vocês lá embaixo depois da cerimônia!

Hamza sorriu, já sabia que eram os pais humanos de Luyen, mas não diria nada até que a coroação terminasse, ou ela sairia no meio da cerimônia para vê-los. Já dentro do salão, todas as cortes dos Céus estavam reunidas ali para mostrar que aprovavam Adrias e reforçar nossas alianças, até mesmo os quatro reis Lunares ranzinzas estavam lá. Para compensar a falta de ajuda naquela batalha, eles apareceram dias depois e usaram suas magias para refazer o Oitavo e, depois do tratado com o reino humano, fizeram mais acessos aos reinos Celestes.

No trono que havia sido de Boroni, Adrias agora recebia a coroa das mãos de Alfia. Ela se mostrou tão diferente de Sarki... Todos os ideais, pensamentos e ações. Isso me fez mudar também, e lembrar daquelas palavras que Doreen me disse uma vez: “Eu me pergunto o que o mundo se tornaria se todos nós tivéssemos mais amor no coração do que essa ganância e sede por controle.” Alfia nos mostrou o que o mundo podia se tornar.

Um lugar melhor.

Doreen e Luyen estavam do outro lado do salão, nos olhando e cochichando.

? Pelo visto, Alfia estava certa. Tudo pode ser consertado ? Hamza comentou, fazendo-me voltar a atenção para ele. ? Até mesmo amizades.

? Tudo... Menos o comportamento daqueles dois! ? grunhi. Hamza seguiu minha linha de visão, revirou os olhos e tentou não rir quando o alvoroço seguido de gritos e protestos começou.

Nibben havia subido nas costas do trono, tirado a coroa da cabeça de Adrias, montado nas costas de Lohan, que estava transformado num lobo de sombras e fumaça e corrido para fora do salão.

? Luyen! ? Adrias protestou.

? Eu não ensinei isso a eles! Juro! ? Luyen se defendia dos olhares acusadores, mas as gargalhadas de Doreen e sua própria risada mal disfarçada mostravam o contrário.

“Você não presta!”

Como se tivesse lido minha mente, ela me encarou, movendo as sobrancelhas e piscou.

? Melhor ir atrás deles. ? Hamza bufou.

Era mesmo um mundo melhor.

 

 

                                                   Emilly Amite         

 

 

 

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