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A CAPITAL FEDERAL / Artur Azevedo
A CAPITAL FEDERAL / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

PERSONAGENS: LOLA D. FORTUNATA BENVINDA QUINOTA JUQUINHA MERCEDES DOLORES BLANCHETTE EUSÉBIO FIGUEIREDO GOUVEIA LOURENÇO DUQUINHA RODRIGUES PINHEIRO S’IL VOUS-PLAÎT (amador de bicicleta) MOTA LEMOS GUEDES O GERENTE (do Grande Hotel da Capital Federal) UM PROPRIETÁRIO  UM FREQUENTADOR DO BELÓDROMO  OUTRO LITERATO  UM LITERATO  UMA SENHORA UMA HÓSPEDE (do Grande Hotel da Capital Federal) UM CONVIDADO  UM INGLÊS  UM FAZENDEIRO O CHASSEUR
Hóspedes e criados do Grande Hotel da Capital Federal, vítimas de uma agência de alugar casa, amadores de bicicleta, convidados, pessoas do povo, soldados etc.


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ATO I
 
QUADRO I (Suntuoso vestíbulo do Grande Hotel da Capital Federal. Escadaria ao fundo. Ao levantar o pano, a cena está cheia de hóspedes de ambos os sexos, com malas nas mãos, e criados e criadas que vão e vêm. O gerente do hotel anda daqui para ali na sua faina)
 
CENA I O gerente, um inglês, uma senhora, um fazendeiro e um hóspede.
 
CORO E COPLAS
 
OS HÓSPEDES De esperar estamos fartos Nós queremos descansar! Sem demora aos nossos quartos Faz favor de nos mandar!
 
OS CRIADOS De esperar estamos fartos! Precisamos descansar! Um hotel com tantos quartos O topete faz suar!
 
UM HÓSPEDE  Um banho quero!
 
UM INGLÊS  Aoh! Mim quer come!
 
UMA SENHORA Um quarto espero!
 
UM FAZENDEIRO  Eu estou com fome!
 
O GERENTE Um poucochinho de paciência! Servidos todos vão ser, enfim! Eu quando falo, fala a gerência! Fiem-se em mim!
 
CORO Pois paciência, Uma vez que assim quer a gerência!
 
COPLAS
 
O GERENTE Este hotel está na berra! Coisa é muito natural! Jamais houve nesta terra Um hotel assim mais tal! toda a gente, meus senhores, Toda a gente, ao vê-lo, diz: Que os não há superiores Na cidade de Paris! Que belo hotel excepcional O Grande Hotel da Capital Federal!
 
CORO Que belo hotel excepcional, etc...
 
O GERENTE Nesta casa não é raro Protestar algum freguês: Acha bom, mas acha caro
 
Quando chega o fim do mês. Por ser bom precisamente, Se o freguês é do bom-tom Vai dizendo a toda a gente Que isto é caro mas é bom. Que belo hotel excepcional! O Grande Hotel da Capital Federal!
 
CORO Que belo hotel excepcional, etc...
 
O GERENTE (aos criados)  Vamos! Vamos! Aviem-se! Tomem as malas e encaminhem estes senhores! Mexam-se! Mexam-se!...
 
(Vozeria. Os hóspedes pedem quartos, banhos, etc... Os criados respondem. Tomam as malas, saem todos, uns pela escadaria, outros pela direita)
 
 
CENA II O gerente, depois Figueiredo.
 
O GERENTE (só)  Não há mãos a medir! Pudera! Se nunca houve no Rio de Janeiro um Hotel assim! Serviço elétrico de primeira ordem! Cozinha esplêndida, música de câmara durante as refeições da mesaredonda! Um relógio pneumático em cada aposento! Banhos frios e quentes, duchas, sala de natação, ginástica e massagem! Grande salão com um plafond pintado pelos nossos primeiros artistas! Enfim, uma verdadeira novidade! — Antes de nos estabelecermos aqui, era uma vergonha! Havia hotéis em São Paulo superiores aos melhores do Rio de Janeiro! Mas em boa hora foi organizada a Companhia do Grande Hotel da Capital Federal, que dotou esta cidade com um melhoramento tão reclamado! E o caso é que a empresa está dando ótimos dividendos e as ações andam por empenhos! (Figueiredo aparece no topo da escada e começa a descer) Ali vem o Figueiredo. Aquele é o verdadeiro tipo do carioca: nunca está satisfeito. Aposto que vem fazer alguma reclamação.
 
 
CENA III O gerente, Figueiredo.
 
FIGUEIREDO Ó seu Lopes, olhe que, se isto continuar assim, eu mudo-me!
 
O GERENTE (à parte)  Que dizia eu?
 
FIGUEIREDO Esta vida de hotel é intolerável! Eu tinha recomendado ao criado que me levasse o café ao quarto às sete horas, e hoje...
 
O GERENTE O meliante lhe apareceu um pouco mais tarde.
 
FIGUEIREDO Pelo contrário. Faltavam dez minutos para as sete... Você compreende que isto não tem lugar.
 
O GERENTE Pois sim, mas...
 
FIGUEIREDO Perdão; eu pedi o café para as sete e não para as seis e cinquenta!
 
O GERENTE Hei de providenciar.
 
FIGUEIREDO E que ideia foi aquela ontem de darem lagostas ao almoço?
 
O GERENTE Homem, creio que lagosta...
 
FIGUEIREDO É um bom petisco, não há dúvida, mas faz-me mal!
 
O GERENTE Pois não coma!
 
FIGUEIREDO Mas eu não posso ver lagostas sem comer!
 
O GERENTE Não é justo por sua causa privar os demais hóspedes.
 
FIGUEIREDO Felizmente até agora não sinto nada no estômago... É um milagre! E sexta-feira passada? Apresentaram-me ao jantar maionese. — Maionese! Quase atiro com o prato à cara do criado!
 
O GERENTE Mas comeu!
 
FIGUEIREDO Comi, que remédio! Eu posso lá ver maionese sem comer? Mas foi uma coisa extraordinária não ter tido uma indigestão!...
 
 
CENA IV Os mesmos, Lola.
 
LOLA (entrando arrebatadamente da esquerda)  Bom dia! (Ao gerente) Sabe me dizer se o Gouveia está?
 
O GERENTE O Gouveia?
 
LOLA Sim, o Gouveia — um cavalheiro que está aqui morando desde a semana passada.
 
O GERENTE (indiscretamente)  Ah! o jogador... (Tapando a boca) Oh!... Desculpe!...
 
LOLA O jogador, sim, pode dizer! Porventura o jogo é hoje um vício inconfessável?
 
O GERENTE Creio que esse cavalheiro está no seu quarto; pelo menos ainda o não vi descer.
 
LOLA Sim, o Gouveia é jogador, e essa é a única razão que me faz gostar dele.
 
O GERENTE Ah! A senhora gosta dele?
 
LOLA Se gosto dele? Gosto, sim, senhor! Gosto, e hei de gostar, pelo menos enquanto der a primeira dúzia!
 
O GERENTE (sem entender)  Enquanto der...
 
LOLA Ele só aponta nas dúzias — ora na primeira, ora na segunda, ora na terceira, conforme o palpite. Há perto de um mês que está apontando na primeira.
 
FIGUEIREDO (à parte)  É um jogador das dúzias!
 
LOLA Enquanto der a primeira, amá-lo-ei até o delírio!
 
FIGUEIREDO A senhora é franca!
 
LOLA Fin de siècle, meu caro senhor, fin de siècle.
 
VALSA
 
Eu tenho uma grande virtude: Sou franca, não posso mentir! Comigo somente se ilude Quem mesmo se queira iludir! Porque quando apanho um sujeito Ingênuo, simplório, babão, Necessariamente aproveito, Fingindo por ele paixão!
 
Engolindo a pílula, Logo esse imbecil Põe-se a fazer dívidas E loucuras mil! Quando enfim, o mísero Já nada mais é, Eu sem dó aplico-lhe Rijo pontapé!
 
Eu tenho uma linha traçada, E juro que não me dou mal... Desfruto uma vida folgada E evito morrer no hospital.
 
Descuidosa, Venturosa, Com folias Sem amar,
 
Passo os dias A folgar!
 
Só conheço as alegrias, Sem tristezas procurar! Eu tenho uma grande virtude, etc...
 
Mas vamos, faça o favor de indicar-me o quarto do Gouveia.
 
O GERENTE Perdão, mas a senhora não pode lá ir.
 
LOLA Por quê?
 
O GERENTE Aqui não há disso...
 
FIGUEIREDO (à parte)  Toma!
 
O GERENTE Os nossos hóspedes solteiros não podem receber nos quartos senhoras que não estejam acompanhadas.
 
LOLA Caracoles! Sou capaz de chamar o Lourenço para acompanhar-me.
 
O GERENTE Quem é o Lourenço?
 
LOLA O meu cocheiro. Ah! Mas que lembrança a minha! Ele não pode abandonar a caleça!
 
O GERENTE O que a senhora deve fazer é esperar no salão. Um belo salão, vai ver, com um plafond pintado pelos nossos primeiros artistas!
 
LOLA Onde é?
 
O GERENTE (apontando para a direita)  Ali.
 
LOLA Pois esperá-lo-ei. Oh! Estes prejuízos! Isto só se vê no Rio de Janeiro!... (Vai a sair e lança um olhar brejeiro a Figueiredo)
 
FIGUEIREDO Deixe-se disso, menina! Eu não jogo na primeira dúzia! 
 
(Lola sai pela direita)
 
 
CENA V O gerente, depois o Chasseur.
 
O GERENTE Oh! Sr. Figueiredo! Não se trata assim uma mulher bonita!...
 
FIGUEIREDO Não ligo importância a esse povo.
 
O GERENTE Sim, eu sei... é como a lagosta... Faz-lhe mal, talvez, mas atira-se-lhe que...
 
FIGUEIREDO Está enganado. Essas estrangeiras não têm o menor encanto para mim.
 
O GERENTE Não conheço ninguém mais pessimista que o senhor.
 
FIGUEIREDO Falem-me de uma trigueira... bem trigueira, bem carregada...
 
O GERENTE Uma mulata?
 
FIGUEIREDO Uma mulata, sim! Eu digo trigueira por ser menos rebarbativo. Isso é que é nosso, é que vai com o nosso temperamento e o nosso sangue! E quanto mais dengosa for a mulata, melhor! Ioiô, eu posso? entrar de caixeiro, sair como sócio?... Você já esteve na Bahia, seu Lopes?
 
O GERENTE Ainda não. Mas com licença: vou mandar chamar o tal Gouveia. (Chamando) Chasseur. (Entra da direita um menino fardado) Vá ao quarto nº 135 e diga ao hóspede que está uma senhora no salão à sua espera. 
 
(O menino sai a correr pela escada)
 
FIGUEIREDO Chasseur! Pois não havia uma palavra em português para...
 
O GERENTE Não havia, não senhor. Chasseur não tem tradução.
 
FIGUEIREDO Ora essa! Chasseur é...
 
O GERENTE É caçador, mas chasseur de hotel não tem equivalente. O Grande Hotel da Capital Federal é o primeiro no Brasil que se dá ao luxo de ter um chasseur! — Mas como ia dizendo... a Bahia?...
 
FIGUEIREDO Foi lá que tomei predileção pelo gênero. Ah, meu amigo! É preciso conhecê-las! Aquilo é que são mulatas! No Rio de Janeiro não as há!
 
O GERENTE Perdão, mas eu tenho visto algumas que...
 
FIGUEIREDO Qual! Não me conte histórias. — Nós não temos nada! Mulatas na Bahia!...
 
COPLAS
 
I As mulatas da Bahia Têm de certo a primazia No capítulo mulher; O sultão lá na Turquia Se as apanha um belo dia, De outro gênero não quer! Ai gentes! Que bela, Que linda não é A fada amarela De trunfa enroscada, De manta traçada, Mimosa chinela Levando calçada Na ponta do pé!...
 
II As formosas georgianas, As gentis circassianas São as flores dos haréns; Mas, seu Lopes, tais sultanas, Comparadas às baianas, Não merecem dois vinténs!
 
Ai! gentes! Que bela, etc...
 
Seu Lopes, você já viu a Mimi Bilontra?
 
O GERENTE Isso vi, mas a Mimi Bilontra não é mulata.
 
FIGUEIREDO Não, não é isso. Na Mimi Bilontra há um tipo que gosta de lançar mulheres. Você sabe o que é lançar mulheres?
 
LOPES Sei, sei.
 
FIGUEIREDO Pois eu também gosto de lançá-las! Mas só mulatas! Tenho lançado umas poucas!
 
LOPES Deveras?
 
FIGUEIREDO Todas as mulatas bonitas que têm aparecido por aí arrastando sedas foram lançadas por mim. É a minha especialidade.
 
O GERENTE Dou-lhe os meus parabéns.
 
FIGUEIREDO Que quer? Sou solteiro, aposentado, independente: não tenho que dar satisfações a ninguém. (Outro tom) Bom: vou dar uma volta antes de jantar. Não se esqueça de providenciar para que o criado não continue a levar-me café às seis e cinquenta!
 
O GERENTE Vá descansado. A reclamação é muito justa.
 
FIGUEIREDO Até logo! (Sai)
 
O GERENTE (só)  Gabo-lhe o gosto de lançar mulatas! Imaginem se um tipo assim tem capacidade para apreciar o Grande Hotel da Capital Federal!
 
  CENA VI O gerente, Lola, depois Gouveia, depois o gerente.
 
LOLA (entrando)  Então? Estou esperando há uma hora!...
 
O GERENTE Admirou o nosso plafond?
 
LOLA Não admirei nada! O que eu quero é falar ao Gouveia!
 
O GERENTE Já o mandei chamar. (Vendo o Gouveia que desce a escada) E ele aí vem descendo a escada. (À parte) Pois a esta não se me dava de lançá-la. (Sai)
 
GOUVEIA (que tem descido)  Que vieste fazer? Não te disse que não me procurasses aqui? Este hotel...
 
LOLA Bem sei: não admite senhoras que não estejam acompanhadas; mas tu não me apareceste ontem nem anteontem, e quando tu não me apareces, dir-se-ia que eu enlouqueço! Como te amo, Gouveia! (Abraça-o)
 
GOUVEIA Pois sim, mas não dês escândalo! Olha o chasseur. 
 
(O chasseur tem efetivamente descido a escada, desaparecendo por qualquer um dos lados)
 
LOLA Então? A primeira dúzia?
 
GOUVEIA Tem continuado a dar que faz gosto! 5... 11... 9... 5... Ontem saiu o 5 três vezes seguidas!
 
LOLA Continuas então em maré de felicidade?
 
GOUVEIA Uma felicidade brutal!... Tanto assim, que tinha já preparado este envelope para ti...
 
LOLA Oh! dá cá! dá cá!...
 
GOUVEIA Pois sim, mas com uma condição: vai para casa, não estejas aqui.
 
LOLA (tomando o envelope)  Oh! Gouveia, como eu te amo! Vais hoje jantar comigo, sim?
 
GOUVEIA Vou, contanto que saia cedo. É preciso aproveitar a sorte! Tenho certeza de que a primeira dúzia continuará hoje a dar!
 
LOLA (com entusiasmo)  Oh! Meu amor!... (Quer abraçá-lo)
 
GOUVEIA Não! Não!... Olha o gerente!...
 
LOLA Adeus! (Sai muito satisfeita)
 
O GERENTE (que tem entrado, à parte)  Vai contente! Aquilo é que deu a tal primeira dúzia! (Inclinando-se diante de Gouveia) Doutor...
 
GOUVEIA Quando aqui vier esta senhora, o melhor é dizer-lhe que não estou. É uma boa rapariga, mas muito inconveniente.
 
O GERENTE Vou transmitir essa ordem ao porteiro, porque eu posso não estar na ocasião. (Sai)
 
  CENA VII
 
GOUVEIA (só) É adorável esta espanhola, isso é... não choro uma boa dúzia de contos de réis gastos com ela, e que, aliás, não me custaram a ganhar... mas tem um defeito: é muito colante... Estas ligações são o diabo... Mas como acabar com isto? Ah! Se a Quinota soubesse! Pobre Quinota! Deve estar queixosa de mim... Oh! Os tempos mudaram... Quando estive em Minas era um simples caixeiro de cobranças... É verdade que hoje nada sou, porque um jogador não é coisa nenhuma... mas ganho dinheiro, sou feliz, muito feliz! A Quinota, no final das contas, é uma roceira... mas tão bonita! E daí, quem sabe? — talvez já se tivesse esquecido de mim.  
 
CENA VIII Gouveia, Pinheiro, depois o gerente.
 
PINHEIRO (entrando)  Oh! Gouveia!
 
GOUVEIA Oh! Pinheiro! Que andas fazendo?
 
PINHEIRO Venho a mandado do patrão falar com um sujeito que mora neste hotel... Mas que luxo! Como estás abrilhantado! Vejo que as coisas têm te corrido às mil maravilhas!
 
GOUVEIA (muito seco)  Sim... deixei de ser caixeiro... Embirrava com isso de ir a qualquer parte a mandado do patrão... Atirei-me a umas tantas especulações... Tenho arranjado para aí uns cobres...
 
PINHEIRO Vê-se... Estás outro, completamente outro!
 
GOUVEIA Devo lembrar-te que nunca me viste sujo.
 
PINHEIRO Sujo não digo... mas vamos lá, já te conheci pau de laranjeira! Por sinal que...
 
GOUVEIA Por sinal que uma vez me emprestaste dez mil-réis. Fazes bem em lembrar-me essa dívida.
 
PINHEIRO Eu não te lembrei coisa nenhuma!
 
GOUVEIA Aqui tens vinte mil-réis. Dou-te dez de juros.
 
PINHEIRO Vejo que tens a esmola fácil, mas — que diabo! — guarda o teu dinheiro e não o dês a quem to não pede. Fico apenas com os dez mil-réis que te emprestei com muita vontade — e sem juros. Quando precisares deles, vem buscá-los. Cá ficam.
 
GOUVEIA Oh! Não hei de precisar, graças a Deus!
 
PINHEIRO Homem, quem sabe? O mundo dá tantas voltas!
 
GOUVEIA Adeus, Pinheiro. (Sai pela esquerda)
 
PINHEIRO Adeus, Gouveia. (Só) Umas tantas especulações... Bem sei quais são elas... Pois olha, meu figurão, não te desejo nenhum mal, mas conto que ainda hás de vir buscar estes dez mil-réis, que ficam de prontidão.
 
O GERENTE (entrando)  Deseja alguma coisa?
 
PINHEIRO Sim, senhor, falar a um hóspede... Eu sei onde é, não se incomode. (Sobe a escada e desaparece)
 
O GERENTE (só)  E lá vai sem dar mais cavaco! Esta gente há de custar-lhe habituarse a um hotel de primeira ordem como é o Grande Hotel da Capital Federal!
 
  CENA IX O gerente, Eusébio, Fortunata, Quinota, Benvinda, Juquinha, Dois Carregadores da Estrada de Ferrocom malas, depois o Chasseur, Criados e Criadas.
 
(A família traz maletas, trouxas, embrulhos, etc.)
 
O GERENTE Olá! Temos hóspedes! (Chamando) Chasseur! Vá chamar gente! 
 
(O chasseur aparece e desaparece, e pouco depois volta com alguns criados e criadas)
 
EUSÉBIO (entrando à frente da família, fechando uma enorme carteira)  Ave Maria! Trinta mil-réis pra nos trazê da estação da estrada de ferro até aqui. Esta gente pensa que dinheiro se cava! (Aperta a mão ao gerente. O resto da família imita-o, apertando também a mão ao chasseur e à criadagem) Deus Nosso Sinhô esteje nesta casa!... (Vai pagar aos carregadores, que saem)
 
FORTUNATA É um casão!
 
QUINOTA Um palácio!
 
JUQUINHA Eu tou com fome! Quero jantá!
 
BENVINDA Espera, nhô Juquinha!
 
FORTUNATA Menino, não começa a reiná!
 
O GERENTE Desejam quartos?
 
EUSÉBIO Sim sinhô!... Mas antes disso deixe lhe dizê quem sou.
 
O GERENTE Não é preciso. O seu nome será escrito no registro dos hóspedes.
 
EUSÉBIO Pois sim, sinhô, mas ouça...
 
COPLAS-LUNDU
 
EUSÉBIO Sinhô, eu sou fazendeiro Em São João do Sabará, E venho ao Rio de Janeiro De coisas grave tratá. Ora aqui está! Tarvez leve um ano inteiro Na Capitá Federá!
 
CORO Ora aqui está! etc...
 
EUSÉBIO Apareceu um janota Em São João do Sabará; Pediu a mão de Quinota E vei’ se embora pra cá. Ora aqui está! Hei de achá esse janota Na Capitá Federá!
 
CORO Ora aqui está, etc... Esta é minha muié, Dona Fortunata.
 
FORTUNATA Uma sua serva. (Faz uma mesura)
 
O GERENTE Folgo de conhecê-la, minha senhora. E esta moça? É sua filha?...
 
EUSÉBIO Nossa.
 
FORTUNATA Nome dela é Quinota... Joquina... mas a gente chama ela de Quinota.
 
QUINOTA Cala a boca, mamãe. O senhor não perguntou nada.
 
EUSÉBIO É muito estruída. Teve três professô... Este é meu filho... (Procurando Juquinha) Onde está ele? Juquinha! (Vai buscar pela mão o filho, que traquinava ao fundo) Tá aqui ele. Tem cabeça — qué vê? Diz um verso, Juquinha!
 
JUQUINHA Ora, papai!
 
FORTUNATA Diz um verso, menino! Não ouve teu pai tá mandando?
 
JUQUINHA Ora, mamãe!
 
QUINOTA Diz o verso, Juquinha! Você parece tolo!...
 
JUQUINHA Não digo!
 
BENVINDA Nhô Juquinha, diga aquele de lá vem a lua saindo!
 
JUQUINHA Eu não sei verso!
 
FORTUNATA Diz o verso, diabo! (Dá-lhe um beliscão. Juquinha faz grande berreiro)
 
EUSÉBIO (tomando o filho e acariciando-o)  Tá bom! não chora! não chora! (Ao gerente) Tá muito cheio de vontade... Ah! mas eu hei de endireitá ele!
 
O GERENTE Não será melhor subirem para os seus quartos?
 
EUSÉBIO Sim, sinhô. (Examinando em volta de si) O hotezinho parece bem bão.
 
O GERENTE O hotelzinho? Um hotel que seria de primeira ordem em qualquer parte do mundo! O Grande Hotel da Capital Federal!
 
FORTUNATA E diz que é só de família.
 
O GERENTE Ah! Por esse lado podem ficar tranquilos.
 
 
CENA X Os mesmos, Figueiredo.
 
(Figueiredo volta; examina os circunstantes e mostra-se impressionado por Benvinda, que repara nele)
 
O GERENTE (aos criados)  Acompanhem estas senhoras e estes senhores... para escolherem os seus quartos à vontade. (Vai saindo e passa por perto de Figueiredo)
 
FIGUEIREDO (baixinho)  Que boa mulata, seu Lopes! 
 
(O gerente sai)
 
OS CRIADOS e CRIADAS (tomando as malas e embrulhos)  Façam favor!... Venham!... Subam!...
 
EUSÉBIO (perto da escada)  Suba, Dona Fortunata! Sobe, Quinota! Sobe, Juquinha! (Todos sobem) Vamo! (Sobe também) Sobe, Benvinda! 
 
(Quando Benvinda vai subindo, Figueiredo dá-lhe um pequeno beliscão no braço)
 
FIGUEIREDO Adeus, gostosura!
 
BENVINDA Ah! Seu assanhado! (Sobe)
 
O GERENTE (que entrou e viu)  Então, que é isso, Sr. Figueiredo? Olhe que está no Grande Hotel da Capital Federal!
 
FIGUEIREDO Ah! Seu Lopes, aquela hei de eu lançá-la! (Sobe a escada)
 
O GERENTE (só)  Queira Deus não vá arranjar uma carga de pau do fazendeiro! (Sai, Mutação)
 
 
QUADRO II (Corredor. Na parede uma mão pintada, apontando para este letreiro: "Agência de alugar casas. Preço de cada indicação, R$. 5$000, pagos adiantados." Ao fundo um banco, encostado à parede)
 
 CENA I Vítimas, entrando furiosas da esquerda, depois, Mota, Figueiredo.
 
CORO Que ladroeira! Que maroteira! Que bandalheira! Pasmado estou! Viu toda a gente Que o tal agente Cinicamente Nos enganou!
 
MOTA (entrando da esquerda também muito zangado)  Cinco mil-réis deitados fora!... Cinco mil-réis roubados!... Mas deixem estar que... (Vai saindo e encontra-se com Figueiredo, que entra da direita)
 
FIGUEIREDO Que é isto, seu Mota? Vai furioso!
 
MOTA Se lhe parece que não tenho razão! Esta agência indica onde há casas vazias por cinco mil-réis.
 
FIGUEIREDO Casas por cinco mil-réis? Barata feira!
 
MOTA Perdão; indica por cinco mil-réis...
 
FIGUEIREDO (sorrindo)  Bem sei, e é isso justamente o que aqui me traz. Resolvi deixar o Grande Hotel da Capital Federal e montar casa. Esgotei todos os meios para obter com que naquele suntuoso estabelecimento me levassem o café ao quarto às sete horas em ponto. Como não estou para me zangar todas as manhãs, mudo-me. O diabo é que não acho casa que me sirva. Dizem-me que nesta agência...
 
MOTA Volte, seu Figueiredo, volte, se não quer que lhe aconteça o mesmo que me sucedeu e tem sucedido a muita gente! Indicaram-me uma casa no morro do Pinto, com todas as acomodações que eu desejava... Você sabe o que é subir ao morro do Pinto?
 
FIGUEIREDO Sei. Já lá subi uma noite por causa de uma trigueira.
 
MOTA Pois eu subi ao morro do Pinto e encontrei a casa ocupada.
 
FIGUEIREDO Foi justamente o que me aconteceu com a trigueira.
 
MOTA Volto aqui, faço ver que a indicação de nada me serviu e peço que me restituam os meus ricos cinco mil-réis. Respondem-me que a agência nada me restitui, porque não tem culpa de que a casa se tivesse alugado.
 
FIGUEIREDO E não lhe deram outra indicação?
 
MOTA Deram. Cá está. (Tira um papel)
 
FIGUEIREDO (à parte)  Vou aproveitá-la!
 
MOTA Mas provavelmente vale tanto como a outra!
 
FIGUEIREDO (depois de ler)  Oh!
 
MOTA
 
Que é?
 
FIGUEIREDO Esta agora não é má! Rua dos Arcos nº 100. Indicaram a casa da Minervina!
 
MOTA Que Minervina?
 
FIGUEIREDO Uma trigueira.
 
MOTA A do morro do Pinto?
 
FIGUEIREDO Não. Outra. Outra que eu lancei há quatro anos. Mudou-se para a Rua dos Arcos não há oito dias.
 
MOTA Então? Quando lhe digo!
 
FIGUEIREDO Oh! As trigueiras têm sido o meu tormento!
 
MOTA As trigueiras são...
 
FIGUEIREDO As mulatas. Eu digo trigueiras por ser menos rebarbativo... Ainda agora está lá no hotel uma família de Minas que trouxe consigo uma mucama... Ah, seu Mota...
 
MOTA Pois atire-se!
 
FIGUEIREDO Não tenho feito outra coisa, mas não me tem sido possível encontrála a jeito. Só hoje consegui meter-lhe uma cartinha na mão, pedindolhe que vá ter comigo ao Largo da Carioca. Quero lançá-la!
 
MOTA Mas vamos embora! Estamos numa caverna!
 
FIGUEIREDO E é tudo assim no Rio de Janeiro... Não temos nada, nada, nada... Vamos...
 
 
CENA II Os mesmos, uma senhora, depois um proprietário.
 
A SENHORA (vindo da esquerda)  Um desaforo! Uma pouca vergonha!
 
MOTA Foi também vítima, minha senhora?
 
A SENHORA Roubaram-me cinco mil-réis!
 
FIGUEIREDO Também — justiça se lhes faça — eles nunca roubam mais do que isso!
 
A SENHORA Indicaram-me uma casa... Vou lá, e encontro um tipo que me pergunta se quero um quarto mobiliado! Vou queixar-me...
 
MOTA Ao bispo, minha senhora! Queixemo-nos todos ao bispo!... (O proprietário entra e vai atravessando a cena da direita para a esquerda, cumprimentando as pessoas presentes)
 
FIGUEIREDO (embargando-lhe a passagem)  Não vá lá, não vá lá, meu caro senhor! Olhe que lhe roubam cinco mil-réis.
 
O PROPRIETÁRIO  Nada! Eu não pretendo casa. O que eu quero é alugar a minha.
 
OS TRÊS  Ah! (cercam-no)
 
A SENHORA Talvez não seja preciso ir à agência. Eu procuro uma casa.
 
MOTA E eu.
 
FIGUEIREDO E eu também.
 
A SENHORA A sua onde é?
 
O PROPRIETÁRIO  Se querem a indicação, venham cinco mil-réis de cada um!
 
OS TRÊS  Hein?
 
O PROPRIETÁRIO  Ora essa! Por que é que a agência há de cobrar e eu não?
 
MOTA A agência paga impostos e é, apesar dos pesares, um estabelecimento legalmente autorizado.
 
O PROPRIETÁRIO  Bem; como eu não sou um estabelecimento legalmente autorizado, dou a indicação por três mil-réis.
 
MOTA Guarde-a!
 
FIGUEIREDO Dispenso-a!
 
A SENHORA Aqui tem os três mil-réis. A necessidade é tão grande que me submeto a todas as patifarias!
 
O PROPRIETÁRIO (calmo)  Patifaria é forte, mas como a senhora paga... (Guarda o dinheiro)
 
A SENHORA Vamos!
 
O PROPRIETÁRIO  A minha casa é na Praia Formosa.
 
MOTA e FIGUEIREDO Que horror!
 
O PROPRIETÁRIO  Um sobrado com três janelas de peitoril. Os baixos estão ocupados por um açougue.
 
MOTA e FIGUEIREDO Xi!
 
A SENHORA Deve haver muito mosquito!
 
O PROPRIETÁRIO  Mosquitos há em toda a parte. Sala, três quartos, sala de jantar, despensa, cozinha, latrina na cozinha, água, gás, quintal, tanque de lavar e galinheiro...
 
A SENHORA Não tem banheiro?
 
O PROPRIETÁRIO  Terá, se o inquilino o fizer. A casa foi pintada e forrada há dez anos; está muito suja. Aluguel, duzentos e cinquenta mil-réis por mês. Carta de fiança passada por negociante matriculado, trezentos milréis de posse e contrato por três anos. O imposto predial e de pena d’água é pago pelo inquilino.
 
A SENHORA Com os três mil-réis que me surrupiou compre uma corda e enforque-se! (Sai)
 
FIGUEIREDO (enquanto ela passa)  Muito bem respondido, minha senhora!
 
MOTA Com efeito!
 
O PROPRIETÁRIO  Mas os senhores...
 
FIGUEIREDO (tirando um apito do bolso)  Se diz mais uma palavra, apito para chamar a polícia.
 
O PROPRIETÁRIO  Ora vá se catar! (Vai saindo)
 
FIGUEIREDO Que é? Que é?... (Segue-o)
 
O PROPRIETÁRIO  Largue-me!
 
FIGUEIREDO Este tipo merecia uma lição! (Empurrando-o) Vamos embora! Deixálo!
 
MOTA Vamos!
 
O PROPRIETÁRIO (voltando e avançando para eles)  Mas eu...
 
OS DOIS  Hein? 
 
(Atiram-se ao proprietário, que foge, desaparecendo pela esquerda. Mota e Figueiredo encolhem os ombros e saem pela direita, encontrando-se à porta com Eusébio, que entra. O proprietário volta e, enganado, dá com o guarda-chuva em Eusébio, e foge. Eusébio tira o casaco para persegui-lo)
 
  CENA III Eusébio, só; depois, Fortunata, Quinota, Juca, Benvinda.
 
EUSÉBIO Tratante! Se eu te agarro, tu havia de vê o que é purso de mineiro! Que terra esta, minha Nossa Senhora, que terra esta em que um home apanha sem sabê por quê? Mas onde ficou esta gente? Aquela Dona Fortunata não presta pra subi escada! (Indo à porta da direita) Entra! É aqui! (Entra a família)
 
FORTUNATA (entrando apoiada no braço de Quinota)  Deixe-me arrespirá um bocadinho! Virge Maria! quanta escada!
 
EUSÉBIO E ainda é no outro andá! Olhe! (Aponta para o letreiro)
 
JUCA (vendo Eusébio a vestir o casaco)  Mamãe, papai se despiu!
 
AS TRÊS  É verdade!
 
EUSÉBIO Tirei o casaco pra brigá! Não foi nada.
 
FORTUNATA Não posso mais co’esta história de casa!
 
QUINOTA É um inferno!
 
BENVINDA Uma desgraça!
 
EUSÉBIO Paciência. Nós não podemo ficá naquele hoté... Aquilo é luxo demais e custa os óio da cara! Como temo que ficá argumtempo na capitá federá, o mió é precurá uma casa. A gente compra uns traste e alguma louça... Benvinda vai pra cozinha...
 
BENVINDA (à parte)  Pois sim!
 
EUSÉBIO E Quinota trata dos arranjo da casa.
 
QUINOTA Mas a coisa é que não se arranja casa.
 
EUSÉBIO Desta vez tenho esperança de arranjá. Diz que essa agência é muito séria. Vamo!
 
FORTUNATA Eu não subo mais escada! Espero aqui no corredô.
 
EUSÉBIO Tudo fica! Eu vou e vorto! (Vai saindo)
 
JUCA (chorando e batendo o pé)  Eu quero i com papai! eu quero i com papai!
 
FORTUNATA Pois vai, diabo!...
 
EUSÉBIO Vem! vem! não chora! Dá cá a mão! (Sai com o filho pela esquerda)
 
  CENA IV Fortunata, Quinota e Benvinda.
 
QUINOTA Mamãe, por que não se senta naquele banco?
 
FORTUNATA Ah! é verdade! não tinha arreparado. Estou moída. (Senta-se e fecha os olhos)
 
BENVINDA Sinhá vai dromi.
 
QUINOTA Deixa.
 
BENVINDA (em tom confidencial)  Ó nhanhã?
 
QUINOTA Que é?
 
BENVINDA Nhanhã arreparou naquele home que ia descendo pra baixo quando a gente vinha subindo pra cima?
 
QUINOTA Não. Que homem?
 
BENVINDA Aquele que mora lá no hoté em que a gente mora...
 
QUINOTA Olha mamãe! 
 
(D. Fortunata ressona)
 
BENVINDA Já está dromindo. Nhanhã arreparou?
 
QUINOTA Reparei, sim.
 
BENVINDA Sabe o que ele fez hoje de menhã? Me meteu esta carta na mão!
 
QUINOTA Uma carta? E tu ficaste com ela? Ah! Benvinda! (Pausa) É para mim?
 
BENVINDA Pra quem havera de sê?
 
QUINOTA Não está sobrescritada.
 
BENVINDA (à parte, enquanto Quinota se certifica de que Fortunata dorme) Bem sei que a carta é minha... O que eu quero é que ela leia pra eu ouvi.
 
QUINOTA Dá cá. (Toma a carta e vai abri-la, mas arrepende-se) Que asneira ia eu fazendo!
 
(Duetino)
 
QUINOTA Eu gosto do seu Gouveia; Com ele quero casar; O meu coração anseia Pertinho dele pulsar; Portanto a epístola Não posso abrir! Sérios escrúpulos Devo sentir!
 
BENVINDA Está longe seu Gouveia; Aqui agora não vem... Abra a carta, a carta leia... Não digo nada a ninguém!
 
QUINOTA Não! não! a epístola Não posso abrir! Sérios escrúpulos Devo sentir! Entretanto, é verdade Que tenho tal ou qual curiosidade, Mamãe — eu tremo! — Dormindo está?
 
BENVINDA Sim, e ela memo Respondeu já. 
 
(Fortunata tem ressonado)
 
QUINOTA É feio, Mas que importa? Abro e leio! (Abre a carta)
 
(Juntas e ao mesmo tempo)
 
QUINOTA Eu sou curiosa! Não sei me conter! A carta amorosa Depressa vou ler!
BENVINDA É bem curiosa! Não há que dizê! A carta amorosa Depressa vai lê!...
 
AMBAS  Uê!...
 
QUINOTA (lendo a carta)  "Minha bela mulata."
 
AMBAS  Uê!...
 
QUINOTA (lendo)  "Minha bela mulata. Desde que está morando neste hotel, tenho debalde procurado falar-te. Tu não passas de uma simples mucama..." (Dá a carta a Benvinda) A carta é para ti. (À parte) Fui bem castigada.
 
BENVINDA Leia pra eu ouvi, nhanhã.
 
QUINOTA (lendo)  "Se queres ter uma posição independente e uma casa tua..."
 
BENVINDA Gentes!
 
QUINOTA "...deixa o hotel, e vai ter comigo terça-feira, às quatro horas da tarde, no Largo da Carioca, ao pé da charutaria do Machado."
 
BENVINDA (à parte)  Terça-feira... quatro hora...
 
QUINOTA "Nada te faltará. Eu chamo-me Figueiredo."
 
BENVINDA Rasga essa carta, nhanhã! Veja só que sem-vergonhice de home!
 
QUINOTA (rasgando a carta)  Se papai soubesse...
 
BENVINDA (à parte)  Figueiredo...
 
  CENA V As mesmas, Eusébio, Juquinha.
 
EUSÉBIO Já tenho uma indicação!
 
D. FORTUNATA (despertando)  Ah! quase pego no sono! (Erguendo-se) Já temo casa?
 
EUSÉBIO Parece. O dono dela é o home com quem eu briguei indagorinha. Tinha me tomado por outro. Vamo à Praia Fermosa pra vêse a casa serve.
 
D. FORTUNATA Ora graça!
 
BENVINDA (à parte)  Perto da charutaria.
 
EUSÉBIO (que ouviu)  Não sei se é perto da charutaria, mas diz que o logá é aprazive; a casa munto boa... Fica pro cima de um açougue, o que qué dizê que nunca fartará carne! Vamo!
 
QUINOTA É muito longe?
 
EUSÉBIO É; mas a gente vai no bonde...
 
BENVINDA (à parte)  Largo da Carioca...
 
EUSÉBIO (que ouviu)  Que Largo da Carioca! É os bondinho da Rua Direita! Vamo!
 
JUQUINHA Eu quero i co Benvinda!
 
FORTUNATA Vai vai co Benvinda! É perciso munta paciência para aturá este demônio deste menino! 
 
(Saem todos)
 
BENVINDA (saindo por último, com Juquinha pela mão)  Terça-feira... quatro hora... Figueiredo...
 
 
CENA VI
 
O PROPRIETÁRIO (vindo da esquerda) 
 
Queira Deus que o mineiro fique com a casa... mas não lhe dou dois meses para apanhar uma febre palustre! (Sai pela direita. Mutação)
 
 
QUADRO III (O Largo da Carioca. Muitas pessoas estão à espera de bonde. Outras passeiam) 
 
CENA I Figueiredo, Rodrigues, pessoas do povo.
 
CORO À espera do bonde elétrico Estamos há meia hora! Tão desusada demora Não sabemos explicar! Talvez haja algum obstáculo, Algum descarrilamento, Que assim possa o impedimento Da linha determinar!
 
(Figueiredo e Rodrigues vêm ao proscênio. Rodrigues está carregado de pequenos embrulhos)
 
RODRIGUES Que estopada, hein?
 
FIGUEIREDO É tudo assim no Rio de Janeiro! Este serviço de bondes é terrivelmente malfeito! Não temos nada, nada, absolutamente nada!
 
RODRIGUES Que diabo! Não sejamos tão exigentes! Esta companhia não serve mal. Não é por culpa dela esse atraso. Ali na estação me disseram. Na Rua do Passeio está uma fila de bondes parados diante de um enorme caminhão, que levava uma máquina descomunal não sei para onde, e quebrou as rodas. É ter um pouco de paciência.
 
FIGUEIREDO Eu felizmente não estou à espera de bonde, mas de coisa melhor. (Consultando o relógio) Estamos na hora.
 
RODRIGUES Ah! Seu maganão... alguma mulher... Você nunca há de tomar juízo!
 
FIGUEIREDO Uma trigueira... uma deliciosa trigueira!
 
RODRIGUES Continua então a ser um grande apreciador de mulatas?
 
FIGUEIREDO Continuo, mas eu digo trigueiras por ser menos rebarbativo.
 
RODRIGUES Pois eu cá sou o homem da família, porque entendo que a família é a pedra angular de uma sociedade bem organizada.
 
FIGUEIREDO Bonito!
 
RODRIGUES Reprovo incondicionalmente esses amores escandalosos, que ofendem a moral e os bons costumes.
 
FIGUEIREDO Ora, não amola! Eu sou solteiro... não tenho que dar satisfações a ninguém.
 
RODRIGUES Pois eu sou casado, e todos os dias agradeço a Deus a santa esposa e os adoráveis filhinhos que me deu! Vivo exclusivamente para a família. Veja como eu vou para casa cheio de embrulhos! E é isto todos os dias! Vão aqui empadinhas, doces, queijo, chocolate andaluza, sorvetes de viagem, o diabo!... Tudo gulodices!...
 
FIGUEIREDO (que, preocupado, não lhe tem prestado grande atenção)  Não imagina você como estou impaciente! É curioso! Não varia aos quarenta anos esta sensação esquisita de esperar uma mulher pela primeira vez! Note-se que não tenho certeza de que ela venha, mas sinto uns formigueiros subirem-me pelas pernas! (Vendo Benvinda) Oh! Diabo! Não me engano! Afaste-se, afaste-se, que lá vem ela!...
 
RODRIGUES Seja feliz. Para mim não há nada como a família. (Afasta-se e fica observando de longe)
 
  CENA II Os mesmos, Benvinda.
 
BENVINDA (aproximando-se com uma pequena trouxa na mão)  Aqui estou.
 
FIGUEIREDO (disfarçando a olhar para o céu)  Disfarça, meu bem. (Pausa) Estás pronta a acompanhar-me?
 
BENVINDA (disfarçando e olhando também para o céu)  Sim, sinhô, mas eu quero sabê se é verdade o que o sinhô disse na sua carta...
 
FIGUEIREDO (disfarçando por ver um conhecido que passa e o cumprimenta) Como passam todos lá por casa? As senhoras estão boas?
 
BENVINDA (compreendendo)  Boas, muito obrigado... Sinhá Miloca é que tem andado com enxaqueca.
 
FIGUEIREDO (à parte) 
 
Fala mal, mas é inteligente.
 
BENVINDA O sinhô me dá memo casa pra mim morá?
 
FIGUEIREDO Uma casa muito chique, muito bem mobiliada, e uns vestidos muito bonitos. (Passa outro conhecido. O mesmo jogo de cena) Mas por que esta demora com a minha roupa lavada?
 
BENVINDA É porque choveu munto... não se pôde corá... (Outro tom) Não me fartará nada?
 
FIGUEIREDO Nada! Não te faltará nada! Mas aqui não podemos ficar. Passa muita gente conhecida, e eu não quero que me vejam contigo enquanto não tiveres outra encadernação. Acompanha-me e toma o mesmo bonde que eu. (Vai se afastando pela direita e Benvinda também) Espera um pouco, para não darmos na vista. (Passa um conhecido) Adeus, hein? Lembranças à Baronesa.
 
BENVINDA Sim, sinhô, farei presente. (Figueiredo afasta-se, disfarçando, e desaparece pela direita. Durante a fala que se segue, Rodrigues pouco a pouco se aproxima de Benvinda) Ora! Isto sempre deve sê mió que aquela vida enjoada lá da roça! Ah! seu Borge! seu Borge! Você abusou porque era feitô lá da fazenda; fez o que fez e me prometeu casamento... Mas casará ou não? Sinhá e nhanhã ondem ficá danada... Pois que fique! Quero a minha liberdade! (Vai afastar-se na direção que tomou Figueiredo e é abordada pelo Rodrigues, que não a tem perdido de vista um momento)
 
RODRIGUES Adeus, mulata!
 
BENVINDA Viva!
 
RODRIGUES (disfarçando)  Dá-me uma palavrinha?
 
BENVINDA Agora não posso.
 
RODRIGUES Olhe, aqui tem o meu cartão... Se precisar de um homem sério... De um homem que é todo família...
 
BENVINDA (tomando disfarçadamente o cartão)  Pois sim. (Saindo, à parte) O que não farta é home... Assim queira uma muié... (Sai)
 
RODRIGUES (consigo)  Sim... lá de vez em quando... para variar... não quero dizer que... (Outro tom) E o maldito bonde que não chega! (Afasta-se pela direita e desaparece)
 
  CENA III Lola, Mercedes, Blanchette, Dolores, Gouveia, pessoas do povo.
 
(As quatro mulheres entram da esquerda, trazendo Gouveia quase à força)
 
QUINTETO
 
AS MULHERES Ande pra frente, Faça favor! Está filado, Caro senhor! Queira ou não queira, Daqui não sai! Janta conosco! Conosco vai!
 
LOLA Há tantos dias Tu não me vias, E agora qu’rias Deixar-me só! A tua Lola, Meu bem, consola! Dá-me uma esmola! De mim, tem dó!
 
AS OUTRAS Há tantos dias Tu não a vias, E agora qu’rias Deixá-la só! A tua Lola, Meu bem, consola! Dá-lhe uma esmola! tem dó, tem dó!
 
GOUVEIA Não me aborreçam! Não me enfureçam! Desapareçam! Quero estar só! Isto me amola! Perco esta bola! Querida Lola, De mim tem dó!
 
LOLA Ingrato — já não me queres! Tu já não gostas de mim!
 
GOUVEIA São terríveis as mulheres! Gosto de ti, gosto, sim! Mas não serve este lugar Pra tais assuntos tratar!
 
LOLA Então daqui saiamos! Vamos!
 
TODAS Vamos! Há tantos dias, etc...
 
LOLA Vamos a saber: por que não tens aparecido?
 
GOUVEIA Tu bem sabes por quê.
 
LOLA A primeira dúzia falhou?
 
GOUVEIA Oh! não! Ainda não falhou, graças a Deus, e por isso mesmo é que não a tenho abandonado noite e dia! Não vês como estou pálido? como tenho as faces desbotadas e os olhos encovados? É porque já não durmo, é porque já me não alimento, é porque não penso noutra coisa que não seja a roleta!
 
LOLA Mas é preciso que descanses, que te distraias, que espaireças o espírito. Por isso mesmo exijo que venhas jantar hoje comigo, quero dizer, conosco, porque, como vês, terei à mesa estas amigas, que tu conheces: a Dolores, a Mercedes e a Blanchette.
 
AS TRÊS  Então, Gouveia? Venha, venha jantar!...
 
GOUVEIA Já deve ter começado a primeira banca!
 
LOLA Deixa lá a primeira banca! Tenho um pressentimento de que hoje não dá a primeira dúzia.
 
AS TRÊS  Então, Gouveia, então? (Querem abraçá-lo)
 
GOUVEIA (esquivando-se)  Que é isto? Vocês estão doidas! Reparem que estamos no Largo da Carioca!
 
LOLA Vem! Não te faças rogado!
 
AS TRÊS (implorando)  Gouveia!...
 
GOUVEIA Pois sim, vamos lá! Vocês são o diabo!
 
LOLA Ai! E o meu leque?! Trouxeste-o, Dolores?
 
DOLORES Não.
 
BLANCHETTE Nem eu.
 
MERCEDES Tu deixaste-o ficar sobre a mesa, no Braço de Ouro.
 
GOUVEIA Que foi?
 
LOLA Um magnífico leque, comprado, não há uma hora, no Palais-Royal. Querem ver que o perdi?
 
GOUVEIA Se queres, vou procurá-lo ao Braço de Ouro.
 
LOLA Pois sim, faze-me esse favor. (Arrependendo-se) Não! se tu vais à Rua do Ouvidor, és capaz de encontrar lá algum amigo que te leve para o jogo.
 
MERCEDES E esta é a hora do recrutamento.
 
LOLA Vamos nós mesmas buscar o leque. Fica tu aqui muito quietinho à nossa espera. É um instante.
 
GOUVEIA Pois vão e voltem.
 
LOLA Vamos! (Sai com as três amigas)
 
 
CENA IV Gouveia, depois, Eusébio, Fortunata, Quinota e Juquinha.
 
GOUVEIA Com esta não contava eu. Daí — quem sabe? — como ando em maré de felicidade, talvez seja uma providência lá não ir hoje.
 
(Eusébio entra descuidado acompanhado pela família, e, ao ver Gouveia, solta um grande grito)
 
EUSÉBIO Oh! seu Gouveia! (Chamando) Dona Fortunata!... Quinota!... 
 
(Cercam Gouveia)
 
AS SENHORAS e JUQUINHA Oh! seu Gouveia! (Apertam-lhe a mão)
 
EUSÉBIO Seu Gouveia! (Abraça-o)
 
GOUVEIA (atrapalhado)  Sr. Eusébio... Minha Senhora... Dona Quinota... (À parte) Maldito encontro!...
 
QUARTETO
 
EUSÉBIO, FORTUNATA, QUINOTA e JUQUINHA. Seu Gouveia, finalmente, Seu Gouveia apareceu! Seu Gouveia está presente! Seu Gouveia não morreu!
 
EUSÉBIO Andei por todas as rua, Toda a cidade bati; Mas de tê notícias sua As esperança perdi!
 
QUINOTA Mas ao meu anjo da guarda Em sonhos dizer ouvi: Sossega, que ele não tarda A aparecer por aí!
 
TODOS  Seu Gouveia, finalmente, etc...
 
FORTUNATA Ora, seu Gouveia! o sinhô chegou lá na fazenda feito cometa, e começou a namorá Quinota. Pediu ela em casamento, veio se embora dizendo que vinha tratá dos papé, e nunca mais deu siná de si! Isto se faz, seu Gouveia?
 
QUINOTA Mamãe...
 
EUSÉBIO Como Quinota andava apaixonada, coitadinha! que não comia, nem bebia, nem dromia, nem nada, nós arresorvemo vi leprocurá... porque le escrevi três carta que ficou sem resposta...
 
GOUVEIA Não recebi nenhuma.
 
EUSÉBIO Então entreguei a fazenda a seu Borge, que é home em que a gente pode confiá, e aqui estemo!
 
FORTUNATA O sinhô sabe que com moça de família não se brinca... Se seu Eusébio não soubé sê pai, aqui estou eu que hei de sabê sê mãe!
 
QUINOTA Mamãe, tenha calma... seu Gouveia é um moço sério...
 
GOUVEIA Obrigado, Dona Quinota. Sou, realmente, um moço sério, e hei de justificar plenamente o meu silêncio. Espero ser perdoado.
 
QUINOTA Eu há muito tempo lhe perdoei.
 
GOUVEIA (à parte)  Está ainda muito bonita! (Alto) Onde moram?
 
EUSÉBIO No Grande Hoté da Capitá Federá.
 
GOUVEIA (à parte)  Oh! diabo! no meu hotel!... Mas eu nunca os vi!
 
QUINOTA Mas andamos à procura de casa: não podemos ficar ali.
 
FORTUNATA É muito caro.
 
GOUVEIA Sim, aquilo não convém.
 
EUSÉBIO Mas é muito difice achá casa. Uma agência nos indicou uma, na Praia Fermosa...
 
FORTUNATA Que chiqueiro, seu Gouveia!
 
EUSÉBIO Paguemo cinco mil-réis pra nos enchê de purga!
 
QUINOTA E era muito longe.
 
GOUVEIA Descansem, há de se arranjar casa. (À parte) E a Lola que não tarda!
 
EUSÉBIO Como diz?
 
GOUVEIA Nada... Mas, ao que vejo, veio toda a família?
 
EUSÉBIO Toda! — Dona Fortunata... Quinota... o Juquinha...
 
JUQUINHA A Benvinda.
 
EUSÉBIO Ah! é verdade! nos aconteceu uma desgraça!
 
FORTUNATA Uma grande desgraça!
 
GOUVEIA Que foi? Ah! já sei... o senhor foi vítima do conto do vigário!
 
EUSÉBIO Eu?!... Então eu sou argum matuto? Não sinhô, não foi isso.
 
JUQUINHA Foi a Benvinda que fugiu!
 
QUINOTA Cale a boca!
 
JUQUINHA Fugiu c’um home!
 
EUSÉBIO Cala a boca, menino!
 
JUQUINHA Foi Quinota que disse!
 
FORTUNATA Cala a boca, diabo!
 
EUSÉBIO O sinhô se alembra da Benvinda?
 
FORTUNATA Aquela mulatinha? cria da fazenda?
 
GOUVEIA Lembra-me.
 
EUSÉBIO Hoje de menhã, a gente se acorda-se... precura...
 
FORTUNATA Quê dê Benvinda?
 
GOUVEIA Pode ser que ainda a encontrem.
 
FORTUNATA Mas em que estado, seu Gouveia!
 
EUSÉBIO E seu Borge já estava arresorvido a casá com ela... Mas não fiquemo aqui...
 
GOUVEIA (inquieto)  Sim, não fiquemos aqui.
 
EUSÉBIO Temo muito que conversá, seu Gouveia. Não quero que Dona Fortunata diga que não sei sê pai... Quero sabê se o sinhô está ou não está disposto a cumprir o que tratou!
 
GOUVEIA Certamente. Se Dona Quinota ainda gosta de mim...
 
QUINOTA (baixando os olhos)  Eu gosto.
 
GOUVEIA Mas vamos! Em caminho conversaremos. São contos largos!
 
EUSÉBIO Vamos jantá lá no hoté.
 
GOUVEIA No hotel? Não! A linha está interrompida. (À parte) Era o que faltava! Ela lá iria! (Alto) Vamos ao Internacional.
 
EUSÉBIO Onde é isso?
 
GOUVEIA Em Santa Teresa. Toma-se aqui o bonde elétrico.
 
FORTUNATA O tá que vai pro cima do arco?
 
GOUVEIA Sim, senhora.
 
FORTUNATA Xi!
 
GOUVEIA Não há perigo. Mas vamos! Vamos! (Dá o braço a Quinota)
 
FORTUNATA (querendo separá-los)  Mas...
 
EUSÉBIO Deixe. Isto aqui é moda. A senhora se alembre que não estamo em São João do Sabará.
 
JUQUINHA Eu quero i co Quinota!
 
FORTUNATA Principia! principia! Que menino, minha Nossa Senhora!
 
GOUVEIA (vendo Lola)  E lá vamos! Vamos! (Retira-se precipitadamente)
 
EUSÉBIO Espere aí, seu Gouveia! Ande, Dona Fortunata!
 
JUQUINHA (chorando)  Eu quero i co Quinota! (Saem todos a correr pela direita)
 
  CENA V Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, Rodrigues, pessoas do povo.
 
LOLA Então? O Gouveia? Não lhes disse? Bem me arrependi de o ter deixado ficar! Não teve mão em si e lá se foi para o jogo!
 
MERCEDES Que tratante!
 
DOLORES Que malcriado!
 
BLANCHETTE Que grosseirão!
 
LOLA E nada de bondes!
 
MERCEDES Que fizeste do teu carro?
 
LOLA Pois não te disse já que o meu cocheiro, o Lourenço, amanheceu hoje com uma pontinha de dor de cabeça?
 
BLANCHETTE (maliciosa)  Poupas muito o teu cocheiro.
 
LOLA Coitado! é tão bom rapaz! (Vendo Rodrigues que se tem aproximado aos poucos) Olá, como vai você?
 
RODRIGUES (disfarçando)  Vou indo, vou indo... Mas que bonito ramilhete franco-espanhol! A Dolores... a Mercedes... a Blanchette... Viva la gracia!
 
LOLA (às outras)  Uma ideia, uma fantasia: vamos levar este tipo para jantar conosco?
 
AS OUTRAS  Vamos! Vamos!
 
BLANCHETTE Substituirá o Gouveia! Bravo!
 
LOLA (a Rodrigues)  Você faz-nos um favor? Venha jantar com ramilhete francoespanhol!
 
RODRIGUES Eu?! Não posso, filha: tenho a família à minha espera.
 
LOLA Manda-se um portador à casa com esses embrulhos.
 
MERCEDES Os embrulhos ficam, se é coisa que se coma.
 
RODRIGUES Vocês estão me tentando, seus demônios!
 
LOLA Vamos! anda! um dia não são dias!
 
RODRIGUES Eu sou um chefe de família!
 
TODAS  Não faz mal!
 
RODRIGUES Ora, adeus! Vamos! (Olhando para a esquerda) Ali está um carro. O próprio cocheiro levará depois um recado à minha santa esposa... disfarcemos... Vou alugar o carro. (Sai)
 
TODAS  Vamos! (Acompanham-no)
 
PESSOAS DO POVO  Lá vem afinal um bonde! Tomemo-lo! Avança! (Correm todos. Música na orquestra até o fim do ato. Mutação)
 
 
QUADRO IV (A passagem de um bonde elétrico sobre os arcos. Vão dentro do bonde entre outros passageiros, Eusébio, Gouveia, D. Fortunata, Quinota e Juquinha. Ao passar o bonde em frente ao público, Eusébio levanta-se entusiasmado pela beleza do panorama)
 
EUSÉBIO Oh! a capitá federá! a capitá federá!...
 
 
ATO II
 
QUADRO V O Largo de São Francisco. 
 
CENA I Benvinda, pessoas do povo, depois Figueiredo.
 
(Benvinda está exageradamente vestida à última moda e cercada por muitas pessoas do povo, que lhe fazem elogios irônicos)
 
CORO Ai, Jesus! Que mulata bonita! Como vem tão janota e faceira! Toda a gente por ela palpita! Ninguém há que adorá-la não queira! Ai, mulata! Não há peito que ao ver-te não bata!
 
BENVINDA Vão andando seu caminho, Deixe a gente assossegada!
 
CORO Para ao menos um instantinho! Não te mostres irritada!
 
BENVINDA Gentes! meu Deus! que maçada!
 
CORO Dize o teu nome, benzinho
 
COPLAS
 
BENVINDA Meu nome não digo! Não quero, aqui está! Não bulam comigo! Me deixem passá! Jesus! quem me acode? Já vejo que aqui As moças não pode Sozinha saí! Sai da frente, Minha gente! Sai da frente pro favô! Tenho pressa! Vou depressa! Vou pra Rua do Ouvidô!
 
CORO Sai da frente! Minha gente! Sai da frente por favor! Vai com pressa! Vai depressa! Vai à Rua do Ouvidor!
 
BENVINDA Não digo o meu nome! Não tou de maré! Diabo dos home Que insurta as muié! Quando eu vou sozinha, Só ouço, dizê: "Vem cá, mulatinha, Que eu vou com você!" Sai da frente, etc...
 
CORO Sai da frente, etc...
 
(Figueiredo aparece e coloca-se aolado de Benvinda)
 
FIGUEIREDO Meus senhores, que é isto? Perseguição assim é caso nunca visto!... Mas saibam que esta fazenda Tem um braço que a defenda!
 
BENVINDA Seu Figueiredo —Eu tava aqui com muito medo!
 
CORO (à meia voz) Este é o marchante... Deixá-los, pois, no mesmo instante! Provavelmente o tipo é tolo, E há querer armar um rolo! (A toda voz, cumprimentando ironicamente Figueiredo) Feliz mortal, parabéns Pelo tesouro que tens! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! Mulher mais bela aqui não há!
 
(Todos se retiram. Durante as cenas que seguem, até o fim do quadro, passam pessoas do povo)
 
  CENA II Figueiredo, Benvinda.
 
FIGUEIREDO (repreensivo)  Já vejo que há de ser muito difícil fazer alguma coisa de ti!
 
BENVINDA Eu não tenho curpa que esses diabo...
 
FIGUEIREDO (atalhando) Tens culpa, sim! Em primeiro lugar, essa toalete é escandalosa! Esse chapéu é descomunal!
 
BENVINDA Foi o sinhô que escolheu ele!
 
FIGUEIREDO Escolhi mal! Depois, tu abusas do face-en-main!
 
BENVINDA Do... do quê?
 
FIGUEIREDO Disto, da luneta! Em francês chama-se face-en-main. Não é preciso estar a todo o instante... (Faz o gesto de quem leva aos olhos o face-enmain) Basta que te sirvas disso lá uma vez por outra, e assim, olha, assim, com certo ar de sobranceria. (Indica) E não sorrias a todo instante, como uma bailarina... A mulher que sorri sem cessar é como o pescador quando atira a rede: os homens vêm aos cardumes, como ainda agora! — E esse andar? Por que gingas tanto? Por que te remexes assim?
 
BENVINDA (chorosa) Oh! meu Deus! Eu ando bem direitinha... não olho pra ninguém... Estes diabo é que intica comigo. — Vem cá, mulatinha! Meu bem, ouve aqui uma coisa!
 
FIGUEIREDO Pois não respondas! Vai olhando sempre para a frente! Não tires os olhos de um ponto fixo, como os acrobatas, que andam na corda bamba... Olha, eu te mostro... Faze de conta que eu sou tu e estou passando... Tu és um gaiato, e me dizes uma gracinha quando eu passar por ti. (Afasta-se, e passa pela frente de Benvinda muito sério) Vamos, dize alguma coisa!...
 
BENVINDA Dizê o quê?
 
FIGUEIREDO (à parte)  Não compreendeu! (Alto) Qualquer coisa! Adeus, meu bem! Aonde vai com tanta pressa! Olha o lenço que caiu!
 
BENVINDA Ah! bem!
 
FIGUEIREDO Vamos, outra vez. (Repete o movimento)
 
BENVINDA Adeus, seu Figueiredo.
 
FIGUEIREDO Que Figueiredo! Eu agora sou Benvinda! E a propósito: hei de arranjar-te um nome de guerra.
 
BENVINDA De guerra? Uê!...
 
FIGUEIREDO Sim, um nome de guerra. É como se diz. Benvinda é nome de preta velha. Mas não se trata agora disso. Vou passar de novo. Não te esqueças de que eu sou tu. Já compreendeste?
 
BENVINDA Já, sim sinhô.
 
FIGUEIREDO Ora, muito bem! — Lá vou eu. (Repete o movimento)
 
BENVINDA (enquanto ele passa)  Ouve uma coisa, mulata! Vem cá, meu coração!...
 
FIGUEIREDO (que tem passado imperturbável)  Viste? Não se dá troco! Arranja-se um olhar de mãe de família! E diante desse olhar, o mais atrevido se desarma! — Vamos! anda um bocadinho até ali! Quero ver se aprendeste alguma coisa!
 
BENVINDA Sim, sinhô. (Anda)
 
FIGUEIREDO Que o quê! Não é nada disso! Não é preciso fazer projeções do holofote para todos os lados! Assim, olha... (Anda) Um movimento gracioso e quase imperceptível dos quadris...
 
BENVINDA (rindo)  Que home danado!
 
FIGUEIREDO É preciso também corrigir o teu modo de falar, mas a seu tempo trataremos desse ponto, que é essencial. Por enquanto o melhor que tens a fazer é abrir a boca o menor número de vezes possível, para não dizeres home em vez de homem e quejandas parvoíces... Não há elegância sem boa prosódia. — Aonde ias tu?
 
BENVINDA Ia na Rua do Ouvidô.
 
FIGUEIREDO (emendando)  Ouvidorr... Ouvidorr... Não faças economia nos erres, porque apesar da carestia geral, eles não aumentarão de preço. E sibila bem os esses — Assim... Bom. Vai e até logo! Mas vê lá: nada de olhadelas, nada de respostas! Vai!
 
BENVINDA Inté logo.
 
FIGUEIREDO Que inté logo! Até logo é que é! Olha, em vez de inté logo, dize: Au revoir! Tem muita graça de vez em quando uma palavra ou uma expressão francesa.
 
BENVINDA Ó revoá!
 
FIGUEIREDO Antes isso! (Benvinda afasta-se) Não te mexas tanto, rapariga! Ai! Ai! Isso! Agora foi demais! Ai! (Benvinda desaparece) De quantas tenho lançado, nenhuma me deu tanto trabalho! Há de ser difícil coisa lapidar este diamante! É uma vergonha! Não pode estar ao pé de gente! (Lola vai atravessando a cena; vendo Figueiredo, encaminha-se para ele)  
 
CENA III Figueiredo, Lola.
 
LOLA Oh! estimo encontrá-lo! Pode dar-me uma palavra?
 
FIGUEIREDO Pois não, minha filha!
 
LOLA Não o comprometo?
 
FIGUEIREDO De forma alguma! Vossemecê já está lançada!
 
LOLA Como?
 
FIGUEIREDO Vossemecês só envergonham a gente antes de lançadas.
 
LOLA Não entendo.
 
FIGUEIREDO Nem é preciso entender. Que desejava?
 
LOLA Lembra-se de mim?
 
FIGUEIREDO Perfeitamente. Encontramo-nos um dia no vestíbulo do Grande Hotel da Capital Federal.
 
LOLA (apertando-lhe a mão)  Nunca mais me esqueci da sua fisionomia. O senhor não é bonito... oh! não! mas é muito insinuante.
 
FIGUEIREDO (modestamente)  Oh! filha!...
 
LOLA Lembra-se do motivo que me levava àquele hotel?
 
FIGUEIREDO Lembra-me. Vossemecê ia à procura de um moço que apontava na primeira dúzia.
 
LOLA Vejo que tem boa memória. Pois é na sua qualidade de hóspede do Grande Hotel da Capital Federal que me atrevo a pedir-lhe uma informação.
 
FIGUEIREDO Mas eu há muitos dias já lá não moro! Era um bom hotel, não nego, mas que quer? — Não me levavam o café ao quarto às sete horas em ponto! — Entretanto, se for coisa que eu saiba...
 
LOLA Queria apenas que me desse notícias do Gouveia.
 
FIGUEIREDO Do Gouveia?
 
LOLA O tal da primeira dúzia.
 
FIGUEIREDO Mas eu não o conheço!
 
LOLA Deveras?
 
FIGUEIREDO Nunca o vi mais gordo!
 
LOLA Que pena! Supus que o conhecesse!
 
FIGUEIREDO Pode ser que o conheça de vista, mas não ligo o nome à pessoa.
 
LOLA Tenho-o procurado inúmeras vezes no hotel... e não há meio! Não está! Saiu! Há três dias não aparece cá! Um inferno!...
 
FIGUEIREDO Continua a amá-lo?
 
LOLA Sim, continuo, porque a primeira dúzia, pelo menos até a última vez que lhe falei, não tinha ainda falhado; mas como não o vejo há muitos dias, receio que a sorte afinal se cansasse.
 
FIGUEIREDO Então o seu amor regula-se pelos caprichos da bola da roleta?
 
LOLA É como diz. Ah! eu cá sou franca!
 
FIGUEIREDO Vê-se!
 
COPLAS
 
I LOLA Este afeto incandescente Pela bola se regula Que vertiginosamente Na roleta salta e pula!
 
FIGUEIREDO Vossemecê o moço estima Dando a bola de um a doze; Mas de treze para cima Ce n’est pas la même chose!
 
II LOLA É Gouveia um bom pateta Se supõe que inda o quisesse Quando a bola da roleta A primeira já não desse!
 
FIGUEIREDO A mulata brasileira De carinhos é fecunda, Embora dando a primeira, Embora dando a segunda!
 
LOLA E, por outro lado, ando apreensiva...
 
FIGUEIREDO Por quê?
 
LOLA Porque... O senhor não estranhe estas confidências por parte de uma mulher que nem ao menos sabe o seu nome.
 
FIGUEIREDO
 
Figueiredo...
 
LOLA Mas, como já disse, a sua fisionomia é tão insinuante... simpatizo muito com o senhor. FIGUEIREDO
 
Creia que lhe pago na mesma moeda. Digo-lhe mais: se eu não tivesse a minha especialidade... (À parte) Deixem lá! Se o moreno fosse mais carregado...
 
LOLA Ando apreensiva porque a Mercedes me contou que há dias viu o Gouveia no teatro com uma família que pelos modos parecia gente da roça... e ele conversava muito com uma moça que não era nada feia... Tenho eu que ver se o tratante se apanha com uma boa bolada arranja casório e eu fico a chuchar no dedo!
 
FIGUEIREDO (à parte)  Ela exprime-se com muita elegância!
 
LOLA Dos homens tudo há que esperar!
 
FIGUEIREDO Tudo, principalmente quando dá a primeira dúzia.
 
LOLA (estendendo a mão que ele aperta)  Adeus, Figueiredo.
 
FIGUEIREDO Adeus... Como te chamas?
 
LOLA Lola.
 
FIGUEIREDO Adeus, Lola.
 
LOLA (com uma ideia)  Ah! uma coisa: você é homem que vá a uma festa?
 
FIGUEIREDO Conforme.
 
LOLA Eu faço anos sábado...
 
FIGUEIREDO Este agora?
 
LOLA Não; o outro.
 
FIGUEIREDO Sábado de aleluia?
 
LOLA Sábado de aleluia, sim. Faço anos e dou um baile à fantasia.
 
FIGUEIREDO Bravo! Não faltarei!
 
LOLA Contanto que vá fantasiado! Se não vai, não entra!
 
FIGUEIREDO Irei fantasiado.
 
LOLA Aqui tem você a minha morada. (Dá-lhe um cartão)
 
FIGUEIREDO Aceito com muito prazer, mas olhe que não vou sozinho...
 
LOLA Vai com quem quiseres.
 
FIGUEIREDO Levo comigo uma trigueira que estou lançando, e que precisa justamente de ocasiões como essa para civilizar-se.
 
LOLA Aquela casa é tua, meu velho! (Vendo Gouveia que entra do outro lado, cabisbaixo, e não repara nela) Olha quem vem ali!
 
FIGUEIREDO Quem?
 
LOLA Aquele é que é o Gouveia.
 
FIGUEIREDO Ah! é aquele?... Conheço-o de vista... É um moço do comércio.
 
LOLA Foi. Hoje não faz outra coisa senão jogar. Mas como está cabisbaixo e pensativo! Querem ver que a primeira dúzia...
 
FIGUEIREDO Adeus! Deixo-te com ele. Até sábado de aleluia!
 
LOLA Não faltes, meu velho! (Apertam-se as mãos)
 
FIGUEIREDO (à parte)  Dir-se-ia que andamos juntos na escola! (Sai)
 
  CENA IV Lola, Gouveia.
 
GOUVEIA (descendo cabisbaixo ao proscênio)  Há três dias dá a segunda dúzia... Consultei hoje a escrita: perdi em noventa e cinco bolas o que tinha ganho em perto de mil e duzentas! Decididamente aquele famoso padre do Pará tinha razão quando dizia que não se deve apontar a roleta nem com o dedo, porque o próprio dedo pode lá ficar!
 
LOLA (à parte, do outro lado)  Fala sozinho!
 
GOUVEIA Hei de achar a forra! O diabo é que fui obrigado a pôr as joias no prego. Venho neste instante da casa do judeu. É sempre pelas joias que começa a esbodegação...
 
LOLA (à parte)  Continua... Aquilo é coisa...
 
GOUVEIA Com certeza vão dar por falta dos meus brilhantes... Pobre Quinota! Se ela soubesse! Ela, tão simples, tão ingênua, tão sincera!
 
LOLA (aproximando-se inopinadamente)  Tu estás maluco?
 
GOUVEIA Hein?... Eu... Ah! és tu? Como vais?...
 
LOLA Estavas falando sozinho?
 
GOUVEIA Fazendo uns cálculos...
 
LOLA Aconteceu-te alguma coisa desagradável? Tu não estás no teu natural!
 
GOUVEIA Sim... aconteceu-me... fui roubado... um gatuno levou as minhas joias... e eu estava aqui planejando deixar hoje a primeira dúzia e atacar dois esguichos, o esguicho de 7 a 12 e o esguicho de 25 a 30, a dobrar, a dobrar!
 
LOLA (com ímpeto)  A primeira dúzia falhou?
 
GOUVEIA Falhou... (A um gesto de Lola) Mas descansa: eu já a tinha abandonado antes que ela me abandonasse.
 
LOLA Tens então continuado a ganhar?
 
GOUVEIA Escandalosamente!
 
LOLA Ainda bem, porque sábado de aleluia faço anos...
 
GOUVEIA É verdade... fazes anos no sábado de aleluia...
 
LOLA É preciso gastar muito dinheiro! Tenho te procurado um milhão de vezes! No hotel dizem-me que lá nem apareces!
 
GOUVEIA Exageração.
 
LOLA E outra coisa: quem era uma família com quem estavas uma noite destas no São Pedro? Uma família da roça?
 
GOUVEIA Quem te disse?
 
LOLA Disseram-me. Que gente é essa?
 
GOUVEIA Uma família muito respeitável que eu conheci quando andei por Minas.
 
LOLA Gouveia, Gouveia, tu enganas-me!
 
GOUVEIA Eu? Oh! Lola! Nunca te autorizei a duvidares de mim!...
 
LOLA Nessa família há uma moça que... Oh! o meu coração adivinha uma desgraça, e... (Desata a chorar)
 
GOUVEIA (à parte)  É preciso, realmente, que ela me ame muito, para ter um pressentimento assim! (Alto) Então? Que é isso? Não chores! Vê que estamos na rua!...
 
LOLA (à parte)  Pedaço d’asno!
 
GOUVEIA Eu irei logo lá à casa, e conversaremos.
 
LOLA Não! não te deixo! Hás de ir agora comigo, hás de acompanhar-me, senão desapareces como aquela vez, no Largo da Carioca!
 
GOUVEIA Mas...
 
LOLA Ou tu me acompanhas, ou dou um escândalo!
 
GOUVEIA Bom, bom, vamos. Tens aí o carro?
 
LOLA Não, que o Lourenço, coitado, foi passar uns dias em Caxambu. Vamos a pé. Bem sei que tu tens vergonha de andar comigo em público, mas isso são luxos que deves perder!
 
GOUVEIA Vamos! (À parte) Hei de achar meio de escapulir...
 
LOLA Vamos! (À parte) Ou eu me engano, ou está liquidado! 
 
(Afastam-se. Entram pelo outro lado Eusébio, Fortunata e Quinota, que os veem sem serem vistos por eles)
 
  CENA V Eusébio, Fortunata, Quinota.
 
FORTUNATA Olhe. Lá vai! É ele! É seu Gouveia com a mesma espanhola com quem estava aquela noite no jardim do Recreio! (Correndo a gritar) Seu Gouveia! seu Gouveia!...
 
EUSÉBIO (agarrando-a pela saia)  Ó senhora! não faça escândalo! Que maluquice de muié!...
 
QUINOTA (abraçando o pai, chorosa)  Papai, eu sou muito infeliz!
 
EUSÉBIO Aqui está! É o que a senhora queria!
 
FORTUNATA Aquilo é um desaforo que eu não posso admiti! O diabo do home é noivo de nossa filha e anda por toda a parte cuma pelintra!
 
EUSÉBIO Que pelintra, que nada!... Não acredita, fia da minha bença. É uma prima dele. Coitadinha! Chorando! (Beija-lhe os olhos)
 
QUINOTA Eu gosto tanto daquele ingrato!
 
EUSÉBIO Ele também gosta de ti... e há de casá contigo... e há de sê um bom marido!
 
FORTUNATA (puxando Eusébio de lado)  É perciso que você tome uma porvidência quaqué, seu Eusébio senão, faço uma estralada!...
 
EUSÉBIO (baixo) 
 
Descanse... Eu já tomei informação... Já sei onde mora essa espanhola... Agora mesmo vou procurá ela. Vá as duas já pra casa! Eu já vou.
 
FORTUNATA E Juquinha? Por onde anda aquele menino?
 
EUSÉBIO Deixe, que o pequeno não se perde... Está lá no tá Belódromo, aprendendo a andá naquela coisa... Cumo chama?
 
QUINOTA Bicicleta.
 
EUSÉBIO É. — Diz que é bom pra desenvorvê os músquios!
 
FORTUNATA Desenvorvê a vadiação é que é!
 
QUINOTA Ele é tão criança!
 
EUSÉBIO Deixa o menino se adiverti. — Vão pra casa.
 
QUINOTA Lá vamos para aquele forno!
 
EUSÉBIO Tem paciência, Quinota! Enquanto não se arranja coisa mió, a gente deve se contentá c’aquele sote.
 
FORTUNATA Vamo, Quinota!
 
QUINOTA Não se demore, papai!
 
EUSÉBIO Não.
 
FORTUNATA (saindo)  Eu tô mas é doida pra me apanhá na fazenda! 
 
(Eusébio leva as senhoras até o bastidor e, voltando-se, vê pelas costas Benvinda)
 
  CENA VI Eusébio, Benvinda.
 
BENVINDA (consigo)  Parece que assim o meu andá tá direito...
 
EUSÉBIO (consigo)  Xi que tentação! (Seguindo Benvinda) Psiu!... Ó Dona... Dona!...
 
BENVINDA (à parte)  Esta voz... (Volta-se) Sinhô Eusébio!
 
EUSÉBIO Benvinda!!...
 
BENVINDA (assestando o face-en-main)  Ó revoá.
 
EUSÉBIO A mulata de luneta, minha Nossa Senhora! Este mundo tá perdido!...
 
BENVINDA (dando-se ares e sibilando os esses)  Deseja alguma coisa? Estou as suas ordes!
 
EUSÉBIO Ah! ah! ah! que mulata pernóstica! Quem havia de dizê! Vem cá, diabo, vem cá; me conta tua vida!
 
BENVINDA (mudando de tom)  Vam’cê não tá zangado comigo?
 
EUSÉBIO Eu não! Tu era senhora do teu nariz! O que tu podia tê feito era se despedi da gente... Dona Fortunata não te perdoa! E seu Borge, quando soubé, há de ficá danado, porque ele gosta de ti.
 
BENVINDA Se ele gostasse de mim, tinha se casado comigo.
 
EUSÉBIO Ele um dia me deu a entendê que se eu te desse um dote...
 
BENVINDA Vamcês ainda mora no hoté?
 
EUSÉBIO Não. Nos mudemo para um sote da rua dos Inválio. Paguemo sessenta mi-réis.
 
BENVINDA Seu Gouveia já apareceu?
 
EUSÉBIO Apareceu e tudo tá combinado... (À parte) O diabo é a espanhola!
 
BENVINDA Sinhá? nhanhã? nhô Juquinha? tudo tá bom?
 
EUSÉBIO Tudo! Tudo tá bom?
 
BENVINDA Nhô Juquinha eu vejo ele às vez passá na Rua do Lavradio... com outros menino...
 
EUSÉBIO Tá aprendendo a andá no... n... nesses carro de duas roda, uma atrás outra adiante, que a gente trepa em cima e tem um nome esquisito...
 
BENVINDA Eu sei.
 
EUSÉBIO E tu, mulata?
 
BENVINDA Eu tô com seu Figueiredo.
 
EUSÉBIO Sei lá quem é seu Figueiredo!
 
BENVINDA Tou morando na Rua do Lavradio, canto da Rua da Relação. (Assestando o face-en-main) Se quisé aparecê não faça cerimônia. (Sai requebrando-se) Ó revoá!
 
EUSÉBIO Aí, mulata!
 
  CENA VII Eusébio, depois Juquinha.
 
EUSÉBIO O curpado fui eu... Quando me alembro que seu Borge queria casá com ela... Bastava um dote, quaqué coisa... dois ou três conto de réis... Mas deixa está: ele não sabe de nada, e tarvez que a coisa ainda se arranje.
 
Quem não sabe é como quem não vê. (Vendo passar Juquinha montado numa bicicleta) Eh! Juquinha... Menino, vem cá!
 
JUQUINHA Agora não posso, não, sinhô! (Desaparece)
 
EUSÉBIO Ah! menino! Espere lá! (Corre atrás do Juquinha. Gargalhada dos circunstantes. Mutação)
 
 
QUADRO VI Saleta em casa de Lola.
 
CENA I Lola e Gouveia.
 
(Lola entra furiosa. Traz vestida uma elegante bata. Gouveia acompanha-a. Vem vestido de Mefistófeles)
 
LOLA Não! Isto não se faz! E o senhor escolheu o dia dos meus anos para me fazer essa revelação! Devia esperar pelo menos que acabasse o baile! Com que mau humor vou agora receber os meus convidados! (Caindo numa cadeira) Oh! os meus pressentimentos não me enganavam!...
 
GOUVEIA Esse casamento é inevitável; quando estive em São João do Sabará, comprometi-me com a família de minha noiva e não posso faltar à minha palavra!
 
LOLA Mas por que não me disse nada? Por que não foi franco?
 
GOUVEIA Supus que essa dívida tivesse caído em exercícios findos; mas a pequena teve saudades minhas, e tanto fez, tanto chorou, que o pai se viu obrigado a vir procurar-me! Como vês, é uma coisa séria!
 
LOLA Mas o senhor não pode procurar um subterfúgio qualquer para evitar esse casamento? Que ideia é essa de se casar agora que está bem, quem tem sido feliz no jogo? E eu? que papel represento eu em tudo isto?
 
GOUVEIA (puxando uma cadeira)  Lola, vou ser franco, vou dizer-te toda a verdade. (Senta-se) Há muito tempo não faço outra coisa senão perder... O outro dia tive uma aragem passageira, um sopro de fortuna, que serviu apenas para pagar as despesas da tua festa de hoje e mandar fazer esta roupa de Mefistófeles! Estou completamente perdido! As minhas joias não foram roubadas, como eu te disse. Deitei-as no prego e vendi as cautelas. Para fazer dinheiro, eu, que aqui vês coberto de seda, tenho vendido até a roupa do meu uso... Nessas casas de jogo já não tenho a quem pedir dinheiro emprestado. Os banqueiros olham-me por cima dos ombros, porque eu tornei-me um piaba... Sabes o que é um piaba? É um sujeito que vai jogar com muito pouco bago. Estou completamente perdido!
 
LOLA (erguendo-se)  Bom. Prefiro essa franqueza. É muito mais razoável.
 
GOUVEIA (erguendo-se)  Esse casamento é a minha salvação; eu...
 
LOLA Não precisa dizer mais nada. Agora sou eu a primeira a aconselharte que te cases, e quanto antes melhor.
 
GOUVEIA Mas, minha boa Lola, eu sei que com isso vais padecer bastante, e...
 
LOLA Eu? Ah! ah! ah!... Só esta me faria rir!... Ah! ah! ah! ah!... Sempre me saíste um grande tolo! Pois entrou-te na cabeça que eu algum dia quisesse de ti outra coisa que não fosse o teu dinheiro?
 
GOUVEIA (horrorizado)  Oh!
 
LOLA E realmente supunhas que eu te tivesse amor?
 
GOUVEIA (caindo em si)  Compreendo e agradeço o teu sacrifício, minha boa Lola. Tu está a fingir uma perversidade e um cinismo que não tens, para que eu saia desta casa sem remorsos! Tu és a Madalena, de Pinheiro Chagas!
 
LOLA E tu és um asno! — O que te estou dizendo é sincero! Estava eu bem aviada se me apaixonasse por quem quer que fosse!
 
GOUVEIA Dar-se-á caso que te saíssem do coração todos aqueles horrores?
 
LOLA Do coração? Sei lá o que isso é! O que afianço é que sou tão sincera, que me comprometo a amar-te ainda com mais veemência que da primeira vez, no dia em que resolveres dar cabo do dote da tua futura esposa!
 
GOUVEIA (com uma explosão)  Cala-te, víbora danada! Olha que nem o jogo, nem os teus beijos me tiraram totalmente o brio! Eu posso fazer-te pagar bem caro os teus insultos!
 
LOLA Ora, vai te catar! Se julgas amedrontar-me com esses ares de galã de dramalhão, enganas-te redondamente! Depois, repara que estás vestido de Mefistófeles! Esse traje prejudica os teus efeitos dramáticos! Vai, vai ter com a tua roceira. Casem-se, sejam muito felizes, tenham muitos Gouveiazinhos, e não me amoles mais! (Gouveia avança, quer dizer alguma coisa, mas não acha uma palavra. Encolhe os ombros e sai)
 
  CENA II Lola, depois Lourenço.
 
LOLA (só)  Faltou-lhe uma frase, para o final da cena — coitado! A respeito da imaginação, este pobre rapaz foi sempre uma lástima! — Os homens não compreendem que o seu único atrativo é o dinheiro! Este pascácio devia ser o primeiro a fazer uma retirada em regra, e não se sujeitar a tais sensaborias! Bastavam quatro linhas pelo correio. — Oh! também a mim, quando eu ficar velha e feia, ninguém me há de querer! Os homens têm o dinheiro, nós temos a beleza; sem aquele e sem esta, nem eles nem nós valemos coisa nenhuma. 
 
(Entra Lourenço, trajando uma libré de cocheiro. Vem a rir-se)
 
LOURENÇO Que foi aquilo?
 
LOLA Aquilo quê?
 
LOURENÇO O Gouveia! Veio zunindo pela escada abaixo e, no saguão, quando eu me curvei respeitosamente diante dele, mandou-me ao diabo, e foi pela rua fora, a pé, vestido de satanás de mágica! Ah! ah! ah!
 
LOLA Daquele estou eu livre!
 
LOURENÇO Eu não dizia a você? Aquilo é bananeira que já deu cacho!
 
LOLA Que vieste fazer aqui? Não te disse que ficasses lá embaixo?
 
LOURENÇO Disse, sim, mas é que está aí um matuto, pelos modos fazendeiro, que deseja falar a você.
 
LOLA A ocasião é imprópria. São quase horas, ainda tenho que me vestir!
 
LOURENÇO Coitado! o pobre-diabo já aqui veio um ror de vezes a semana passada, e parece ter muito interesse nesta visita. Demais... você bem sabe que nunca se manda embora um fazendeiro.
 
LOLA Que horas são?
 
LOURENÇO Oito e meia. Já estão na sala alguns convidados.
 
LOLA Bem! num quarto de hora eu despacho esse matuto. Faze-o entrar.
 
LOURENÇO É já. (Sai assoviando)
 
LOLA (só)  Como anda agora lépido o Lourenço! Voltou de Caxambu que nem parece o mesmo! — Ele tem razão: um fazendeiro nunca se manda embora.
 
LOURENÇO (introduzindo Eusébio muito corretamente)  Tenha vossa excelência a bondade de entrar. 
 
(Eusébio entra muito encafifado e Lourenço sai fechando a porta)
 
  CENA III Lola, Eusébio.
 
EUSÉBIO Boa nôte, madama! Deus esteje nesta casa!
 
LOLA Faz favor de entrar, sentar-se e dizer o que deseja. (Oferece-lhe uma cadeira. Sentam-se ambos)
 
EUSÉBIO Na sumana passada eu precurei a madama um bandão de vez sem conseguir le falá...
 
LOLA E por que não veio esta semana?
 
EUSÉBIO Dona Fortunata não quis, por sê sumana santa... Eu então esperei que rompesse as aleluia! (Uma pausa) Eu pensei que a madama embrulhasse língua comigo, e eu não entendesse nada que a madama dissesse, mas tô vendo que fala muito bem o português...
 
LOLA Eu sou espanhola e... o senhor sabe... o espanhol parece-se muito com o português; por exemplo: hombre, homem; mujer, mulher.
 
EUSÉBIO (mostrando o chapéu que tem na mão)  E como é chapéu, madama?
 
LOLA Sombrero.
 
EUSÉBIO E guarda-chuva?
 
LOLA Paraguas.
 
EUSÉBIO É! Parece quase a mesma coisa! — E cadeira?
 
LOLA Silla.
 
EUSÉBIO E janela?
 
LOLA Ventana.
 
EUSÉBIO Muito parecido!
 
LOLA Mas, perdão, creio que não foi para aprender espanhol que o senhor veio à minha casa...
 
EUSÉBIO Não, madama, não foi para aprendê espanhol: foi para tratá de coisa munto séria!
 
LOLA De coisa séria? Comigo! É esquisito!...
 
EUSÉBIO Não é esquisito, não madama; eu sou o pai da noiva de seu Gouveia!...
 
LOLA Ah!
 
EUSÉBIO Cumo minha fia anda munto desgostosa pru via da madama, eu me alembrei de vi na sua casa para sabê... sim, para sabê se é possive a madama se separá de seu Gouveia. Se fô possive, munto que bem; se não fô, paciência: a gente arruma as mala, e amenhã memo vorta pra fazenda. Minha fia é bonita e é rica; não há de sê defunto sem choro!...
 
LOLA Compreendo: o senhor vem pedir a liberdade de seu futuro genro!
 
EUSÉBIO Sim, madama; eu quero o moço livre e desembaraçado de quaqué ônus! (Lola levanta-se, fingindo uma comoção extraordinária; quer falar, não pode, e acaba numa explosão de lágrimas. Eusébio levantase) Que é isso? A madama tá chorando?!...
 
LOLA (entre lágrimas)  Perder o meu adorado Gouveia! Oh! o senhor pede-me um sacrifício terrível! (Pausa) Mas eu compreendo... Assim é necessário... Entre a mulher perdida e a menina casta e pura. Entre o vício e a virtude, é o vício que deve ceder... Mas o senhor não imagina como eu amo aquele moço e quantas lágrimas preciso verter para apagar a lembrança do meu amor desgraçado! (Abraça Eusébio, escondendo o rosto nos ombros dele, e soluça) Sou muito infeliz!
 
EUSÉBIO (depois de uma pausa, em que faz muitas caretas)  Então, madama?... sossegue... A madama não perde nada... (À parte) Que cangote cheiroso!...
 
LOLA (olhando para ele, sem tirar a cabeça do ombro) Não perco nada? que quer o senhor dizer com isso?
 
EUSÉBIO Quero dizê que... sim... quero dizê... Home, madama, tira a cabeça daí, porque assim eu não acerto cas palavras!
 
LOLA (sem tirar a cabeça)  Sim, a minha porta se fechará ao Gouveia... Juro-lhe que nunca mais o verei... Mas onde irei achar consolação?... Onde encontrarei uma alma que me compreenda, um peito que me abrigue, um coração que vibre harmonizado com o meu?
 
EUSÉBIO Nós podemo entrá num ajuste.
 
LOLA (afastando-se dele com ímpeto)  Um ajuste?! Que ajuste?! O senhor quer talvez propor-me dinheiro!... Oh! por amor dessa inocente menina, que é sua filha, não insulte, senhor, os meus sentimentos, não ofenda o que eu tenho de mais sagrado!...
 
EUSÉBIO (à parte)  É um pancadão! Seu Gouveia teve bom gosto!...
 
LOLA O senhor quer que eu deixe o Gouveia porque sua filha o ama e é amada por ele, não é assim? Pois bem: é seu o Gouveia; dou-lho, mas dou-lho de graça, não exijo a menor retribuição!
 
EUSÉBIO Mas o que vinha propô à madama não era um pagamento, mas uma... Cumo chama aquilo que se falou cando foi o 13 de Maio? Uma... Ora, sinhô! (Lembrando-se) Ah! uma indenização! O caso muda muito de figura!
 
LOLA Não! — nenhuma indenização pretendo! Mas de ora em diante fecharei o meu coração aos mancebos da capital, e só amarei (enquanto fala vai arranjando o laço da gravata e a barba de Eusébio) algum homem sério... de meia-idade... filho do campo... ingênuo... sincero... incapaz de um embuste... (Alisando-lhe o cabelo) Oh! Não exigirei que ele seja belo... Quanto mais feio for, menos ciúmes terei! (Eusébio cai como desfalecido numa cadeira, e Lola senta-se no colo dele) A esse hei de amar com frenesi... com delírio!... (Enche-o de beijos)
 
EUSÉBIO (resistindo e gritando)  Eu quero i me embora! (Ergue-se)
 
LOLA Cala-te, criança louca!...
 
EUSÉBIO Criança louca! Uê!...
 
LOLA (com veemência)  Desde que transpuseste aquela porta, senti que uma força misteriosa e magnética me impelia para os teus braços! Ora, o Gouveia! Que me importa a mim o Gouveia se és meu, se estás preso pela tua Lola, que não te deixará fugir?
 
EUSÉBIO Isso tudo é verdade?
 
LOLA Estes sentimentos não se fingem! Eu adoro-te!
 
EUSÉBIO Eu me conheço... já sou um home de idade... não sei falá como os doutô da capitá federá...
 
LOLA Mas é isso mesmo o que mais me encanta na tua pessoa!
 
EUSÉBIO Quando a esmola é munta, o pobre desconfia.
 
LOLA Põe à prova o meu amor! Já te não sacrifiquei o Gouveia?
 
EUSÉBIO Isso é verdade.
 
LOLA Pois sacrifico-te o resto!... Queres que me desfaça de tudo quanto possuo, e que vá viver contigo numa ilha deserta?... Oh! bastam-me o teu amor e uma choupana! (Abraça-o) Dá-me um beijo! Dá-mo como um presente do céu! (Eusébio limpa a boca com o braço e beija-a) Ah! (Lola fecha os olhos e fica como num êxtase)
 
EUSÉBIO (à parte)  Seu Eusébio tá perdido! (Dá-lhe outro beijo)
 
LOLA (sem abrir os olhos)  Outro... outro beijo ainda... (Eusébio beija-a e ela afasta-se, esfregando os olhos) Oh! Não será isto um sonho?
 
EUSÉBIO Bom, madama, com sua licença: eu vou me embora...
 
LOLA Não; não consinto! Faço hoje anos e dou uma festa. A minha sala já está cheia de convidados.
 
EUSÉBIO Ah! por isso é que, quando eu entrei, subia uns mascarado...
 
LOLA Sim; é um baile à fantasia. Precisas de um vestuário.
 
EUSÉBIO Que vestuário, madama?
 
LOLA Espera. Tudo se arranjará. (Vai à porta) Lourenço!
 
EUSÉBIO Que vai fazê, madama?
 
LOLA Vais ver.
 
  CENA IV Os mesmos, Lourenço.
 
LOLA (a Lourenço que se apresenta muito respeitosamente)  Vá com este senhor a uma casa de alugar vestimentas à fantasia a fim de que ele se prepare para o baile.
 
EUSÉBIO Mas...
 
LOLA (súplice)  Oh! não me digas que não! (A Lourenço) Dê ordem ao porteiro para não deixar entrar o Sr. Gouveia. Esse moço morreu para mim!
 
LOURENÇO (à parte)  Que diabo disto será aquilo?
 
LOLA (baixo a Eusébio)  Estás satisfeito? (Antes que ele responda) Vou preparar-me também. Até logo! (Sai pela direita)
 
  CENA V Eusébio, Lourenço.
 
EUSÉBIO (consigo) 
 
Sim, sinhô; isto é o que se chama vi buscá lã e saí tosquiado! — Se Dona Fortunata soubesse... (Dando com o Lourenço) Vamos lá, seu... cumo o sinhô se chama?
 
LOURENÇO Lourenço, para servir a vossa excelência.
 
EUSÉBIO Vamos lá, seu Lourenço... (Sem arredar pé de onde está) Isto é o diabo! Enfim!... Mas que espanhola danada! (Encaminha-se para a porta e faz lugar para Lourenço passar) Faz favô!
 
LOURENÇO (inclinando-se)  Oh! meu senhor... isso nunca... eu, um cocheiro!... Então? Por obséquio!
 
EUSÉBIO Passe, seu Lourenço, passe, que o sinhô é de casa e está fardado! 
 
(Lourenço passa e Eusébio acompanha-o. Mutação)
 
 
QUADRO VII Rico salão de baile profusamente iluminado.
 
CENA I Rodrigues, Dolores, Mercedes, Blanchette, convidados. (Estão todos vestidos à fantasia)
 
CORO Que lindo baile! que bela festa! Luzes e flores em profusão! A nossa Lola não é modesta! Eu sinto aos pulos o coração! Mercedes, Dolores e Blanchette. Senhores e senhoras, Divirtam-se a fartar!|Alegremente as horas
 
Vejamos deslizar! A mocidade é sonho Esplêndido e risonho| Que rápido se esvai; Portanto, a mocidade Com voluptuosidade Depressa aproveitai!
 
BLANCHETTE Dancemos, que a dança, Se o corpo nos cansa, A alma nos lança Num mundo melhor!
 
DOLORES Bebamos, que o vinho, Com doce carinho, Nos mostra o caminho Fulgente do amor!
 
MERCEDES Amemos, embora Chegadas à hora Da fúlgida aurora, Deixemos de amar! Que em nós os amores, Tal como nas flores Perfumes e cores, Não possam durar!
 
AS TRÊS Dancemos! Bebamos! Amemos!
 
RODRIGUES (que está vestido de Arlequim)  Então? Que me dizem desta fantasia? Vocês ainda não me disseram nada!...
 
MERCEDES Deliciosa!
 
DOLORES Magnífica.
 
BLANCHETTE É patante!
 
RODRIGUES Saiu baratinha, porque foi feita em casa pelas meninas. Como sabem, sou o homem da família.
 
MERCEDES Você confessou em casa que vinha ao baile da Lola?
 
RODRIGUES Não, que isso talvez aborrecesse minha senhora. Eu disse-lhe que ia a um baile dado em Petrópolis pelo ministro inglês...
 
TODAS  Ah! ah! ah!...
 
RODRIGUES (continuando)  ...baile a que não podia faltar por amor de uns tantos interesses comerciais...
 
BLANCHETTE Ah! seu patife!
 
DOLORES De modo que, neste momento, a sua pobre senhora julga-o em Petrópolis.
 
RODRIGUES (confidencialmente, muito risonho) 
 
Saí hoje de casa com a minha bela fantasia dentro de uma mala de mão, e fingi que ia tomar a barca das quatro horas. Tomei mas foi um quarto do hotel, onde o austero negociante jantou e onde à noite se transformou no polícromo arlequim que estão vendo — e depois, metendo-me num carro fechado, voei a esta deliciosa mansão de encantos e prazeres. Tenho por mim toda a noite e parte do dia de amanhã, pois só tenciono voltar à tardinha. Ah! não imaginam vocês com que saudade estou da família, e com que satisfação abraçarei a esposa e os filhos quando vier de Petrópolis!
 
MERCEDES Você é na realidade um pai de família modelo!
 
DOLORES Um exemplo de todas as virtudes!
 
BLANCHETTE Esse vestuário de Arlequim não lhe fica bem! Você devia vestir-se de Catão!
 
RODRIGUES Trocem à vontade, mas creiam que não há no Rio de Janeiro um chefe de família mais completo do que eu. (Afastando-se) Em minha casa não falta nada. (Afasta-se)
 
MERCEDES Nada, absolutamente nada, a não ser o marido.
 
DOLORES É um grande tipo.
 
BLANCHETTE E a graça é que a senhora paga-lhe na mesma moeda!
 
MERCEDES É mais escandalosa que qualquer de nós.
 
DOLORES Não quero ser má língua, mas há dias encontrei-a num bonde da Vila Isabel muito agarradinha ao Lima Gama!
 
BLANCHETTE Aqueles bondes da Vila Isabel são muito comprometedores.
 
RODRIGUES (voltando)  Que estão vocês aí a cochichar?
 
MERCEDES Falávamos da vida alheia.
 
BLANCHETTE Dolores contava que há dias encontrou num bonde da Vila Isabel uma senhora casada que mora em Botafogo.
 
RODRIGUES Isso não tira! Talvez fosse ao Jardim Zoológico.
 
DOLORES Talvez; mas o leão ia ao lado dela no bonde...
 
RODRIGUES Há, efetivamente, senhoras casadas que se esquecem do decoro que devem a si e à sociedade!
 
AS TRÊS (com convicção)  Isso há...
 
RODRIGUES Por esse lado posso levantar as mãos para o céu! Tenho uma esposa virtuosa!
 
MERCEDES Deus lha conserve tal qual tem sido até hoje.
 
RODRIGUES Amém.
 
BLANCHETTE E Lola que não aparece?
 
DOLORES Está se vestindo: não tarda.
 
UM CONVIDADO  Oh! que bonito par vem entrando!
 
TODOS  É verdade!
 
O CONVIDADO  Façamos alas para recebê-lo!
 
RODRIGUES Propomos que o recebamos com um rataplã!
 
TODOS  Apoiado! Um rataplã... (Formam-se duas alas)
 
CORO Rataplã! Rataplã! Rataplã! Oh, que elegância! que lindo par!... Todos os outros vêm ofuscar!
 
 
CENA II Os mesmos, Figueiredo e Benvinda.
 
(Entra Figueiredo, vestido de Radamés trazendo pela mão Benvinda, vestida de Aída)
 
COPLAS
 
I FIGUEIREDO Eis Aída, Conduzida Pela mão de Radamés! Vem chibante, Coruscante, Da cabeça até os pés!... Que lindeza! Que beleza! Meus senhores aqui está A trigueira Mais faceira De São João do Sabará!
 
CORO A trigueira, etc...
 
II FIGUEIREDO Diz tolices, Parvoíces, Se abre a boca pra falar; Se se cala, Se não fala, Pode as pedras encantar! Eu a lanço Sem descanso! Na pontíssima estará A trigueira Mais faceira De São João do Sabará! 
 
CORO A trigueira, etc...
 
FIGUEIREDO Minhas senhoras e meus senhores, apresento a vossas excelências e Senhorias, Dona Fredegonda, que — depois, bem entendido, das damas que se acham aqui presentes — é a estrela mais cintilante do demi-monde carioca!
 
TODOS (inclinando-se)  Dona Fredegonda!
 
FIGUEIREDO (baixo a Benvinda)  Cumprimenta.
 
BENVINDA Ó revoá!
 
FIGUEIREDO (baixo)  Não. Au revoir é quando a gente vai-se embora e não quando chega.
 
BENVINDA Entonces...
 
FIGUEIREDO (baixo)  Cala-te! Não digas nada!... (Alto) Convidado pela gentilíssima Lola para comparecer a este forrobodó elegante, não quis perder o magnífico ensejo, que se me oferecia, de iniciar a formosa Fredegonda nos insondáveis mistérios da galanteria fluminense! Espero que vossas excelências e senhorias queiram recebê-la com benevolência, dando o necessário desconto às clássicas emoções da estreia, e ao fato de ser Dona Fredegonda uma simples roceira, quase tão selvagem como a princesa etíope que o seu vestuário representa.
 
TODOS (batendo palmas)  Bravo! Bravo! Muito bem!
 
BLANCHETTE (a Figueiredo) 
 
Descanse. A iniciação desta neófita fica por nossa conta. (Às outras) Não é assim?
 
DOLORES e MERCEDES Certamente. (As três cercam Benvinda, que se mostra muito encafifada)
 
FIGUEIREDO (vendo Rodrigues e aproximando-se dele)  Oh! Que vejo! Você aqui!... Você, o homem da família, o moralista retórico e sentimental, o palmatória do mundo!...
 
RODRIGUES Sim... é que... são coisas... estou aqui por necessidade... por incidente... por uma série de circunstâncias que... que...
 
FIGUEIREDO Deixe-se disso! Não há nada mais feio que a hipocrisia! Naquela tarde em que o encontrei no Largo da Carioca, a mulata mostroume seu cartão de visitas...
 
RODRIGUES O meu?... Ah! sim, dei-lhe o meu cartão... para...
 
FIGUEIREDO Para quê?
 
RODRIGUES Para...
 
FIGUEIREDO Olhe, cá entre nós que ninguém nos ouve: quer você tomar conta dela?
 
RODRIGUES Quê! Pois já se aborreceu?
 
FIGUEIREDO Todo o meu prazer é lançá-las — lançá-las e nada mais. Você viu a Mimi Bilontra?
 
RODRIGUES Não.
 
FIGUEIREDO Mas sabe o que é lançar uma mulher?
 
RODRIGUES Nesses assuntos sou hóspede... você sabe... sempre fui um homem da família... mas quer me parecer que lançar uma mulher é como quem diz atirá-la na vida, iniciá-la neste meio...
 
FIGUEIREDO Ah! qui qui! Infelizmente não creio que desta se possa fazer alguma coisa mais que uma boa companheira. É uma mulher que lhe convinha.
 
RODRIGUES Mas eu não preciso de companheiras! Sou casado, e, graças a Deus, a minha santa esposa...
 
FIGUEIREDO (atalhando)  E o cartão?
 
RODRIGUES Que cartão? Ah! sim, o cartão do Largo da Carioca... Mas eu não me comprometi a coisa nenhuma!
 
FIGUEIREDO Bom; então não temos nada feito... Mas veja lá! — se quer...
 
RODRIGUES Querer; queria... mas não com caráter definitivo!
 
FIGUEIREDO Ora, vá pentear macacos!
 
(Às últimas deixas, Eusébio tem entrado, vestido com uma dessas roupas que vulgarmente se chamam de princês. Eusébio aperta a mão aos convidados um por um. Todos se interrogam com os olhos admirados de tão estranho convidado)
 
  CENA III Os mesmos, Eusébio.
 
EUSÉBIO (depois de apertar a mão a muitos dos circunstantes)  Tá tudo oiando uns pros outro, admirado de me vê aqui! Eu fui convidado pela madama dona da casa!
 
BENVINDA (à parte)  Sinhô Eusébio!...
 
FIGUEIREDO (a quem Eusébio aperta a mão, à parte)  Oh! diabo! é o patrão da Benvinda!...
 
BLANCHETTE Donde saiu esta figura?
 
DOLORES É um homem da roça!
 
BLANCHETTE
 
Não será um doido?
 
EUSÉBIO (indo apertar por último a mão de Benvinda, reconhecendo-a)  Benvinda!
 
BENVINDA Ó revoá!
 
FIGUEIREDO (à parte)  E ela a dar-lhe!...
 
EUSÉBIO Tu também tá de fantasia, mulata! O mundo tá perdido!...
 
BENVINDA Eu vim com seu Figueiredo... mas vancê é que me admira!
 
EUSÉBIO Eu vim falá ca madama pro mode seu Gouveia... e ela me convidou pra festa... e eu tive que alugá esta vestimenta, mas vim de tilbo porque hoje é sabo de aleluia e eu não quero embrulho comigo!
 
FIGUEIREDO (à parte)  Oh! bom! foi o seu professor de português!
 
BENVINDA Se sinhá soubesse...
 
EUSÉBIO Cala a boca! nem pensá nisso é bão! mas onde tá o tá seu Figueiredo? Eu sempre quero oiá pra cara dele!
 
BENVINDA É aquele.
 
EUSÉBIO (indo a Figueiredo)  Pois foi o sinhô que me desencaminhou a mulata? O sinhô, um home branco e que já começa a pintá? Agora me alembro de vê o sinhô lá no hoté só rondando a porta da gente!...
 
FIGUEIREDO Estou pronto a dar-lhe todas as satisfações em qualquer terreno que mas peça... mas há de convir que este lugar não é o mais próprio para...
 
EUSÉBIO (atalhando)  Ora viva! Eu não quero satisfação! A mulata não é minha fia nem parenta minha! mas lá em São João do Sabará há um home chamado seu Borge, que se souber... um! um!... é capaz de vi na capitá federá!
 
FIGUEIREDO Pois que venha!...
 
MERCEDES Aí chega a Lola!
 
TODOS  Oh! a Lola!... Viva a Lola!... Viva!...
 
  CENA IV Os mesmos, Lola.
 
CORO Até que enfim Lola aparece! Até que enfim Lola cá está! Vem tão bonita que entontece! Lola, vem cá! Lola, vem já!...
 
(Lola entra ricamente fantasiada à espanhola)
 
LOLA Querem todos ver a Lola! Aqui está ela!
 
CORO Aqui está ela!
 
LOLA Oh, que esplêndida manola! Não há mais bela!
 
CORO Não há mais bela!
 
LOLA Vejam que graça Tem a manola! Não é chalaça! Não é parola! Como se agita! Como rebola! Isto os excita! Isto os consola! O olhar brejeiro De uma espanhola Do mais matreiro Transtorna a bola, E sem pandeiro, Nem castanhola!
 
CORO Vejam que graça, etc... 
 
(Dança geral)
 
FIGUEIREDO Gentilíssima Lola, permite que Radamés te apresente Aída!
 
LOLA Folgo muito de conhecê-la. Como se chama?
 
BENVINDA Benv... (Emendando) Fredegonda.
 
EUSÉBIO (à parte)  Fredegonda? Uê! Benvinda mudou de nome!...
 
FIGUEIREDO Espero que lhe emprestes um raio da tua luz fulgurante!
 
LOLA Pode contar com a minha amizade.
 
FIGUEIREDO Agradece.
 
BENVINDA Merci.
 
EUSÉBIO (à parte)  Aí, mulata!...
 
LOLA (vendo Eusébio)  Bravo! Não imagina como lhe fica bem essa fatiota!
 
EUSÉBIO Diz que é vestuário de conde.
 
LOLA Está irresistível!
 
EUSÉBIO Só a madama podia me metê nestas funduras!
 
BLANCHETTE (a Lola)  Onde foste arranjar aquilo?
 
LOLA Cala-te! É um tesouro, um roceiro rico... e primitivo!
 
BLANCHETTE Tiraste a sorte grande!
 
LOLA Meus amigos, espera-os na sala de jantar um ponche, um ponche monumental, que mandei preparar no intuito de animar as pernas para a dança e os corações para o amor!
 
TODOS  Bravo! Bravo!...
 
FIGUEIREDO Um ponche! Nesse caso, é preciso apagar as luzes!
 
LOLA Já devem estar apagadas. (A Eusébio) Fica. Preciso falar-te.
 
MERCEDES Ao ponche, meus senhores!
 
TODOS  Ao ponche!...
 
BLANCHETTE (a Lola)  Não vens? LOLA Vão indo. Eu já vou. Manda-me aqui algumas taças.
 
DOLORES Ao ponche!
 
CORO Vamos ao ponche flamejante! Vamos ao ponche sem tardar! O ponche aquece um peito amante E as cordas da alma faz vibrar!
 
(Saem todos, menos Lola e Eusébio)
 
CENA V Eusébio, Lola.
 
LOLA Oh! finalmente estamos sós um instante!
 
EUSÉBIO (em êxtase)  Como a madama tá bonita!
 
LOLA Achas?
 
EUSÉBIO Juro por esta luz que nos alumeia que nunca vi uma muié tão fermosa!...
 
LOLA Hei de pedir a Deus que me conserve assim por muito tempo para que eu nunca te desagrade! 
 
(Entra Lourenço com uma bandeja cheia de taças de ponche chamejante)
 
  CENA VI Os mesmos, Lourenço.
 
EUSÉBIO Adeusinho, seu Lourenço. Como passou de indagorinha pra cá?
 
LOURENÇO (imperturbável e respeitoso)  Bem; agradecido a vossa excelência.
 
LOLA Deixe a bandeja sobre esta mesa e pode retirar-se. 
 
(Lourenço obedece e vai a retirar-se)
 
EUSÉBIO Até logo, seu Lourenço. (Aperta-lhe a mão)
 
LOURENÇO Oh! excelentíssimo! (Faz uma mesura e sai, lançando um olhar significativo a Lola)
 
LOLA (à parte)  É um bruto!
 
CENA VII Lola, Eusébio.
 
EUSÉBIO Este seu Lourenço é muito delicado. Arruma incelência na gente que é um gosto!
 
LOLA (oferecendo-lhe uma taça de ponche)  À nossa saúde!
 
EUSÉBIO Bebida de fogo? Não! não é o fio de meu pai!...
 
LOLA Prova, que hás de gostar. (Eusébio prova) Então, que tal? (Ele bebe toda a taça)
 
EUSÉBIO Home, é muito bão! Cumo chama isto?
 
LOLA Ponche.
 
EUSÉBIO Uê! Ponche não é aquela coisa que a gente veste cando amonta a cavalo?
 
LOLA Aqui tens outra taça.
 
EUSÉBIO Isto não faz má? Eu não tenho cabeça forte!
 
LOLA Podes beber sem receio.
 
EUSÉBIO Então à nossa, pra que Deus nos livre de alguma coça! (Bebe)
 
LOLA Dize... dize que hás de ser meu... dá-me a esperança de ser um dia amada por ti!...
 
EUSÉBIO Eu já gosto de madama cumo quê!
 
LOLA Não digas a madama. Trata-me por tu.
 
EUSÉBIO Não me ajeito... pode sê que despois...
 
LOLA Depois do quê?
 
EUSÉBIO (com riso tolo e malicioso)  Ah! ah!
 
LOLA (dando-lhe outra taça)  Bebe!
 
EUSÉBIO Ainda?
 
LOLA Esgotemos juntos esta taça! (Bebe um gole e dá a taça a Eusébio)
 
EUSÉBIO Vou sabê dos seus segredo. (Bebe)
 
LOLA E eu dos teus. (Bebe) Oh! o teu segredo é delicioso... tu gostas muito de mim... da tua Lola... mas receias que eu não seja sincera... tens medo de que eu te engane...
 
EUSÉBIO (indo a dar um passo e cambaleando)  Minha Nossa Senhora! Eu tou fora de mim! parece que tou sonhando!... O tá ponche tem feitiço... mas é bão... é muito bão!... Quero mais!
 
(Dueto)
 
LOLA Dize mais uma vez! Dize que me amas!
 
EUSÉBIO Eu já disse e arrepito!
 
LOLA O coração me inflama! Vem aos meus braços! Vem! Assim como eu te amo, ai! nunca amei ninguém! Se deste afeto duvidas, Se me imaginas perjura, Com essas mãos homicidas Me cavas a sepultura! Será o golpe certeiro, A morte será horrenda! Tu és o meu fazendeiro E eu sou a tua fazenda!
 
EUSÉBIO Se é moda a bebedeira, tou na moda, pois vejo toda a casa andando à roda!
 
LOLA Bebe ainda uma taça Agora pode ser que bem te faça!
 
EUSÉBIO (depois de beber) Não posso mais! (Atira a taça) Oh, Lola, eu tou perdido!
 
LOLA Vem cá, meu bem querido
 
(Juntos)
 
LOLA Vem aos meus braços!  Eusébio, vem! Os meus abraços Te fazem bem!
EUSÉBIO Tou nos seus braço! Aqui me tem! Mas os abraço Não me faz bem!
 
EUSÉBIO Oh! tou cuma fogueira aqui dentro! mas é tão bão! (Abraçando Lola) Lola, eu sou teu... só teu... faz de mim o que tu quiser, minha negra!
 
LOLA Meu? Isso é verdade? Tu és meu? Meu?
 
EUSÉBIO Sim, sou teu! Tá aí! E agora? Sou teu e de mais ninguém!...
 
LOLA Então, esta casa é tua! És o meu senhor, o meu dono, e como tal quero que todos te reconheçam! (Indo à porta e batendo palmas) Eh! Olá! Venham todos!... venham todos! 
 
(Música na orquestra)
 
  CENA VIII Todos os personagens do ato.
 
CORO Lola nos chama! Que aconteceu? Que nos quer Lola? Que sucedeu?
 
LOLA Meus amigos, desejo neste instante Apresentar-lhes o meu novo amante! Ele aqui está! Eu o amo e ele me ama.
 
EUSÉBIO Sim! Aqui está o home da madama!
 
TODOS  Ele!... (Admiração geral)
 
LOLA És o meu novo dono! Pode dizer-me: És minha! É teu, é teu somente O meu sincero amor! Eu dava-te o meu trono Se fosse uma rainha! Tu, exclusivamente, És hoje o meu senhor!
 
EUSÉBIO Sou eu seu novo dono! Posso dizer: É minha!
 
É meu unicamente O seu sincero amô! Por ela eu me apaixono! A Lola é bonitinha! Eu, exclusivamente, Sou hoje o seu sinhô!
 
LOLA És o meu novo dono! etc...
 
CORO Eis o seu novo dono! Pode dizer: É minha! É dele unicamente O seu sincero amor! Gostar assim de um mono É sorte bem mesquinha! Ele, exclusivamente, É hoje o seu senhor!...
 
FIGUEIREDO (a Eusébio) Nossos cumprimentos, Meu amigo, aos centos Queira receber! E como hoje é trunfo, Levado em triunfo Agora vai ser!
 
(Figueiredo e Rodrigues carregam Eusébio. Organiza-se uma pequena marcha, que faz uma volta pela cena, levando o fazendeiro em triunfo)
 
CORO Viva! viva o fazendeiro Bonachão e prazenteiro Que de um peito bandoleiro Os rigores abrandou, Conquistando a linda Lola,
 
Essa esplêndida espanhola Que o país da castanhola Generoso nos mandou!
 
(Eusébio é posto sobre uma mesa ao centro da cena)
 
EUSÉBIO Obrigado! Obrigado! Mas eu tô muito chumbado! Vejo tudo dobrado!
 
LOLA Dancem! dancem! tudo dance! Ninguém canse No cancã, Pois quem se acha aqui presente Tudo é gente Folgazã!
 
CORO Sim! dancemos! — tudo dance! Ninguém canse No cancã, Pois quem se acha aqui presente Tudo é gente Folgazã!
 
(Cancã desenfreado em volta da mesa)
 
 
ATO III 
 
QUADRO VIII A saleta de Lola.
 
CENA I Eusébio, Lola.
 
(Eusébio, ridiculamente vestido à moda, prepara um enorme cigarro mineiro. Lola, deitada no sofá, lê um jornal e fuma)
 
EUSÉBIO Isto tá o diabo! Não sei de Dona Fortunata... não sei de Quinota... não sei de Juquinha... não sei de seu Gouveia... Não tenho corage de entrá em casa!... Se eu me confessá, não encontro um padre que me absorva!... — Lola, Lola, que diabo de feitiço foi este?... Tu fez de mim o que tu bem quis!
 
LOLA Estás arrependido?
 
EUSÉBIO Não, arrependido, não tou, porque a coisa não se pode dizê que não seje boa... Mas minha pobre muié deve está furiosa!... E então quando ela me vi assim todo janota, co’esta roupa de arfaiate francês, feito monsiú da Rua do Ouvidô... Oh! Lola! Lola! as muié é os tormento dos home!... 
 
(Lola que se tem levantado e que tem ido, um tanto inquieta, até à porta da esquerda, volta ao proscênio e vem encostar-se ao ombro de Eusébio)
 
LOLA O tormento! Oh! não!...
 
COPLAS
 
I Meu caro amigo, esta vida Sem a mulher nada val! É sopa desenxabida, Sem uma pedra de sal!
 
Se a dor torna um homem triste, Tem ele cura, se quer; A própria dor não resiste Aos beijos de uma mulher!
 
II Ao lado meu, queridinho, Serás ditoso e feliz; Terás todo o meu carinho, É o meu amor que to diz. Se tu me amas como eu te amo, Se respondes aos meus ais, Nada mais de ti reclamo, Não te peço nada mais!
 
EUSÉBIO Mas... me diz uma coisa; diabo, fala tua verdade... Tu tá inteiramente curada de seu Gouveia?
 
LOLA Não me fales mais nisso! Foi um sonho que passou. (Pausa) A propósito de sonho... foste ver na vitrine do Luís de Resende o tal broche com que eu sonhei?
 
EUSÉBIO (coçando a cabeça)  Fui... sabe quanto custa?
 
LOLA (com indiferença)  Sei... uma bagatela... um conto e oitocentos... (Sobe e vai de novo observar à porta da esquerda)
 
EUSÉBIO (à parte)  Sim, é uma bagatela... a espanhola gosta de mim, é verdade, mas em tão poucos dias já me custa cinco contos de réis! e agora o colá!...
 
LOLA (à parte) 
 
Que demora! (Alto, descendo) Mas enfim? o colar? Se é um sacrifício, não quero!
 
EUSÉBIO O home ficou de fazê um abatimento e me mandá a resposta.
 
LOLA (à parte)  É meu!
 
EUSÉBIO Se ele deixá por um conto e quinhento, compro! Não dou nem mais um vintém.
 
LOLA (à parte)  Sobem a escada. É ele!...
 
EUSÉBIO Parece que vem gente. (Batem com força à porta) Quem é?
 
LOLA Deixa. Eu vou ver. 
 
(Vai abrir a porta. Lourenço entra arrebatadamente. Traz óculos azuis, barbas postiças, chapéu desabado e veste um sobretudo com a gola erguida. Lola finge-se assustada)
 
  CENA II Os mesmos, Lourenço.
 
LOURENÇO Minha rica senhora, folgo de encontrá-la!
 
EUSÉBIO Que é isto?
 
LOURENÇO Fui entrando para não lhe dar tempo de me mandar dizer que não estava em casa! É esse o seu costume!
 
LOLA Senhor!
 
EUSÉBIO Quem é este home danado?
 
LOURENÇO Quem sou eu?... Um credor que quer o seu dinheiro! Quer saber também quem é esta senhora? Quer saber? É uma caloteira!
 
LOLA Que vergonha! (Cai sentada e cobre o rosto com as mãos)
 
EUSÉBIO O sinhô é um grande marcriado! Não se insurta assim uma fraca muié que está em sua casa! Faça favô de saí!...
 
LOURENÇO Sair? Eu não saio daqui sem o meu rico dinheiro! O senhor, que tem cara de homem sério, naturalmente há de julgar que sou grosseirão, um bruto; mas não imagina a paciência que tenho tido até hoje! (Batendo com a bengala no chão) Venho disposto a receber o meu dinheiro!...
 
EUSÉBIO Mas dinheiro de quê?
 
LOURENÇO De quê? Como de quê?... Dinheiro que me deve esta senhora! Dinheiro limpo, que me pediu há quatorze meses para pagar no fim de trinta dias!...
 
LOLA (descobrindo o rosto muito chorosa)  Com juros de sessenta por cento ao ano!
 
LOURENÇO Eu dispenso os juros! Isto prova que não sou nenhum agiota! O que eu quero, o que eu exijo, é o meu capital, os meus dois contos de réis, que me saíram limpinhos da algibeira e seriam quase o dobro com juros acumulados!
 
LOLA (suplicante)  Senhor, eu pagarei esse dinheiro logo que puder... Poupe-me tamanha vergonha diante deste cavalheiro que estimo e respeito!
 
LOURENÇO Ora deixe-se de partes! Se a senhora não se quisesse sujeitar a estas cenas, solveria os seus compromissos! Mas não passa, já disse, de uma reles caloteira!...
 
EUSÉBIO Home, o sinhô arrepare que eu tou aqui! Faça favô de vê como fala!...
 
LOURENÇO Quem é o senhor? É marido desta senhora? É seu pai? É seu tio? É seu padrinho? É seu irmão? É seu parente? Com que direito intervém? Eu tenho ou não tenho razão? Fui ou não fui caloteado?
 
EUSÉBIO Home, o sinhô se cale! Olhe que eu sou mineiro!
 
LOURENÇO Não me calo, ora aí está! E declaro que não me retiro daqui sem estar pago e satisfeito! (Senta-se)
 
EUSÉBIO Seu home, olhe que eu...!
 
LOURENÇO (erguendo-se)  Eh! lá! Eh! lá! Agora sou eu que lhe digo que se cale! O senhor não tem o direito de abrir o bico!...
 
LOLA (chorando)  Que vergonha! Que vergonha!
 
EUSÉBIO (à parte)  Coitadinha!...
 
LOURENÇO A princípio supus que o senhor fosse o amante desta senhora. Vejo que me enganei... Se o fosse, já teria pago por ela, e não consentiria que eu a insultasse!...
 
EUSÉBIO Hein?
 
LOLA (erguendo-se e correndo a Eusébio)  Não! Não! Sou eu que não consinto que tu pagues!... Não! Não tires a carteira! Eu mesma pagarei essa dívida!
 
LOURENÇO Mas há de ser hoje, porque eu não me levanto desta cadeira! (Torna a sentar-se)
 
EUSÉBIO Mas eu...
 
LOLA Não! não pagues! Esse dinheiro pedi-o para mandá-lo a minha mãe, que está em Valladolid... Eu é que devo pagá-lo (Voltando suplicante para Lourenço)... mas não hoje!...
 
LOURENÇO (batendo com a bengala)  Há de ser hoje!...
 
LOLA Não posso! não posso!...
 
LOURENÇO Não pode?... Dê-me esse par de bichas que traz nas orelhas e ficarei satisfeito!
 
LOLA Estas bichas custaram três contos!
 
LOURENÇO São os juros.
 
LOLA Pois bem! (Vai a tirar as bichas)
 
EUSÉBIO (pegando-lhe no braço)  Não tira as bichas, Lola!... (Ao credor) Seu desgraçado, não tenho dois conto aqui no borso, mas me acompanha na casa do meu correspondente, na Rua de São Bento... vem recebê o teu mardito dinheiro!
 
LOURENÇO (batendo com a bengala)  Já disse que daqui não saio!
 
LOLA (abraçando Eusébio)  Não, Eusébio, meu querido Eusébio! Não!...
 
EUSÉBIO (sem dar ouvidos a Lola)  Pois não sai, não sai, desgraçado! (Desvencilhando-se de Lola) Espera aí sentado, que eu vou buscá teu dinheiro! (Sai arrebatadamente. Lola, depois de certificar-se de que ele realmente saiu, volta, e desata a rir às gargalhadas. Lourenço levanta-se, tira os óculos, as barbas e o chapéu, e também ri às gargalhadas)
 
  CENA III  Lola, Lourenço.
 
LOLA Soberbo! soberbo! Foi uma bela ideia! Toma um beijo! (Dá-lhe um beijo)
 
LOURENÇO Aceito o beijo, mas olhe que não dispenso os vinte por cento.
 
LOLA Naturalmente.
 
LOURENÇO Você há de convir que sou um grande artista!
 
LOLA E então eu?
 
LOURENÇO Você também, mas se eu me houvesse feito cômico em vez de me fazer cocheiro, estava a estas horas podre de rico!
 
TANGO
 
I Ai! que jeito pro teatro! Que vocação! Eu faria o diabo a quatro Num dramalhão! Mas às rédeas e ao chicote Jungido estou! Sou cocheiro de cocote! Nada mais sou! Cumprir o nosso destino Nem eu quis nem você quis! Fui ator desde menino E você foi sempre atriz!
 
II
 
Quando eu era mais mocinho (Posso afiançar!) Fiz furor num teatrinho Particular! Talvez outro João Caetano Se achasse em mim. Mas o fado desumano Não quis assim! Cumprir o nosso destino, etc...
 
LOLA Mas por que não acompanhaste o fazendeiro? Era mais seguro!
 
LOURENÇO Pois eu lá me atrevia a andar por essas ruas de barbas postiças! Nada, que não queria dar com os ossos no xadrez!
 
LOLA Tens agora que esperar aqui a pé firme!
 
LOURENÇO Estou arrependido de ter perdoado os juros. (Batem à porta)
 
LOLA Quem será?
 
LOURENÇO (depois de espreitar)  É o filho-família.
 
LOLA Ah! o tal Duquinha! Tomaste as necessárias informações? Que me dizes desse petiz?
 
LOURENÇO (abanando a cabeça com ares de competência)  Digo que no seu gênero não deixa de ser aproveitável... O pai é muito severo, mas a mãe, que é rica, satisfaz todos os seus caprichos... Não digo que você possa esperar dali mundos e fundos, mas é fácil obrigá-lo a contrair dívidas, se for preciso, para dar alguns presentes, e ouro é o que ouro vale.
 
LOLA Manda-o entrar.
 
LOURENÇO Não se demore muito, porque o fazendeiro foi a todo o vapor e não tarda aí.
 
LOLA Temos tempo. A Rua de São Bento é longe. (Sai. Lourenço tira o sobretudo, a que junta as barbas, os óculos e o chapéu, e vai abrir a porta a Duquinha)
 
  CENA IV Duquinha, Lourenço.
 
(Duquinha tem dezoito anos e é muito tímido)
 
DUQUINHA A senhora dona Lola está em casa?
 
LOURENÇO (muito respeitoso)  Sim, meu senhor... e pede a vossa excelência que tenha o obséquio de esperar alguns instantes.
 
DUQUINHA  Muito obrigado. (À parte) É o cocheiro... não sei se deva...
 
LOURENÇO Como diz vossa excelência?
 
DUQUINHA Se não fosse ofendê-lo, pedia-lhe que aceitasse... (Tira a carteira)
 
LOURENÇO Oh! não!... Perdoe vossa excelência... não é orgulho; mas que diria a patroa se soubesse que eu...
 
DUQUINHA Ah! nesse caso... (Guarda a carteira)
 
LOURENÇO (que ia sair, voltando)  Se bem que eu estou certo que vossa excelência não diria nada à senhora dona Lola...
 
DUQUINHA (tirando de novo a carteira)  Ela nunca o saberá. (Dá-lhe dinheiro)
 
LOURENÇO Beijo as mãos de vossa excelência A senhora dona Lola é tão escrupulosa! (À parte) Uma de trinta! O franguinho promete... (Sai com muitas mesuras, levando o sobretudo e demais objetos)
 
  CENA V
 
DUQUINHA Estou trêmulo e nervoso... É a primeira vez que entro em casa de uma destas mulheres... Não pude resistir!... A Lola é tão bonita, e o outro dia, no Braço de Ouro, me lançou uns olhares tão meigos, tão provocadores, que tenho sonhado todas as noites com ela! Até versos lhe fiz, e aqui lhos trago... Quis comprar-lhe uma joia, mas receoso de ofendê-la, comprei apenas estas flores... Ai, Jesus! ela aí vem! Que lhe vou dizer?...
 
  CENA VI Duquinha e Lola.
 
LOLA Não me engano: é o meu namorado do Braço de Ouro! (Estendendolhe a mão) Como tem passado?
 
DUQUINHA Eu... sim... bem, obrigado; e a senhora?
 
LOLA Como tem as mãos frias!
 
DUQUINHA Estou muito impressionado. É uma coisa esquisita: todas as vezes que fico impressionado... fico também com as mãos frias...
 
LOLA Mas não se impressione! Esteja à sua vontade! Parece que não lhe devo meter medo!
 
DUQUINHA Pelo contrário!
 
LOLA (arremedando-o)  Pelo contrário! (Outro som) São minhas essas flores?
 
DUQUINHA Sim... eu não me atrevia... (Dá-lhe as flores)
 
LOLA Ora essa! Por quê? (Depois de aspirá-las) Que lindas são!
 
DUQUINHA Trago-lhe também umas flores... poéticas.
 
LOLA Umas quê?...
 
DUQUINHA Uns versos.
 
LOLA Versos? Bravo! Não sabia que era poeta!
 
DUQUINHA Sou poeta, sim, senhora... mas poeta moderno, decadente...
 
LOLA Decadente? nessa idade?
 
DUQUINHA Nós somos todos muito novos.
 
LOLA Nós quem?
 
DUQUINHA Nós, os decadentes. E só podemos ser compreendidos por gente da nossa idade. As pessoas de mais de trinta anos não nos entendem.
 
LOLA Se o senhor se demorasse mais algum tempo, arriscava-se a não ser compreendido por mim.
 
DUQUINHA Se dá licença, leio os meus versos. (Tirando um papel da algibeira) Quer ouvi-los?
 
LOLA Com todo o prazer.
 
DUQUINHA (lendo) Ó flor das flores, linda espanhola, Como eu te adoro, como eu te adoro! Pelos teus olhos, ó Lola! ó Lola! De dia canto, de noite choro, Linda espanhola, linda espanhola!
 
LOLA Dir-se-ia que o trago de canto chorado!
 
DUQUINHA Ouça a segunda estrofe: És uma santa, santa das santas! Como eu te adoro, como eu te adoro! Meu peito enlevas, minh’alma encantas! Ouve o meu triste canto sonoro, Santa das santas, santa das santas!
 
LOLA Santa? Eu!... Isto é que é liberdade poética!
 
DUQUINHA A mulher amada pelo poeta é sempre santa para ele! Terceira e última estrofe...
 
LOLA Só três? Que pena!
 
DUQUINHA (lendo) Ó flor das flores! bela andaluza! Como eu te adoro, como eu te adoro! Tu és a minha pálida musa! Desses teus lábios um beijo imploro, Bela andaluza, bela andaluza!
 
LOLA Perdão, mas eu não sou da Andaluzia: sou de Valladolid.
 
DUQUINHA Pois há espanholas bonitas que não sejam andaluzas?
 
LOLA Pois não! o que não há são andaluzas bonitas que não sejam espanholas.
 
DUQUINHA Hei de fazer uma emenda.
 
LOLA E que mais?
 
DUQUINHA Como?
 
LOLA O senhor trouxe-me flores... trouxe-me versos... e... não me trouxe mais nada?
 
DUQUINHA Eu?
 
LOLA Sim... Os versos são bonitos... as flores são cheirosas... mas há outras coisas de que as mulheres gostam muito.
 
DUQUINHA Uma caixinha de marrons glacés?
 
LOLA Sim, não digo que não... é uma boa gulodice... mas não é isso...
 
DUQUINHA Então que é?
 
LOLA Faça favor de me dizer para que se inventaram os ourives.
 
DUQUINHA Ah! já percebo... Eu devia trazer-lhe uma joia!
 
LOLA Naturalmente. As joias são o "Sésamo, abre-te" destas cavernas de amor.
 
DUQUINHA Eu quis trazer-lhe uma joia, quis; mas receei que a senhora se ofendesse...
 
LOLA Que me ofendesse?... Oh! santa ingenuidade!... Em que é que uma joia poderia ofender? Querem ver que o meu amiguinho me toma por uma respeitável mãe de família? Creia que um simples grampo de chapéu, com um bonito brilhante, produziria mais efeito que todo esse:
 
Como te adoro, como te adoro! Linda espanhola, linda espanhola, Santa das santas, santa das santas!
 
DUQUINHA Vejo que lhe não agrada a escola decadente...
 
LOLA Confesso que as joias exercem sobre mim uma fascinação maior que a literatura. E demais, não sou mulher a quem se ofereçam versos... Vejo que o senhor não é de opinião de Bocage...
 
DUQUINHA Oh! Não me fale em Bocage!
 
LOLA Que mania essa de não nos tomarem pelo que somos realmente! Guarde os seus versos para as donzelinhas sentimentais, e, ande, vá buscar o "Sésamo, abre-te" e volte amanhã. (Empurra-o para o lado da porta. Entra Lourenço)
 
DUQUINHA Mas...
 
LOLA Vá, vá! Não me apareça aqui sem uma joia. (A Lourenço) Lourenço, conduza este senhor até a porta. (Sai pela direita)
 
DUQUINHA Não, não é preciso, não se incomode. (À parte) Vou pedir dinheiro a mamãe. (Sai)
 
  CENA VII
 
LOURENÇO Às ordens de vossa excelência. (Só) A Lola saiu-me uma artista de primeiríssima ordem! — Bom! vou caracterizar-me de credor, que o fazendeiro não tarda por aí. Quatrocentos mil-réis cá para o degas! Que bom! Hão de grelar esta noite no Belódromo, onde conto organizar uma mala onça! (Sai cantarolando o tango. Mutação)
 
 
QUADRO IX No Belódromo Nacional.
 
CENA I Lemos, Guedes, um Frequentador do Belódromo, pessoas do povo, depois amadores, depois S’il vous-plaît, depois Lourenço.
 
(Durante todo este ato, ouve-se, a intervalos, o som de uma sineta que chama os compradores à casa das pules, à esquerda, e uma voz que grita: "Vai fechar!")
 
CORO Não há nada como vir ao Belódromo! São estas corridas
 
Muito divertidas! Desgraçadamente Muito raramente O povo, coitado! Não é cá roubado! Mas o cabeçudo, Apesar de tudo, Pules vai comprando, Sempre protestando! Tipos aqui pisam, Mestres em cabalas, E elas organizam As famosas malas! E com artimanha (Manha mais do que arte) Quase sempre ganha Pífio bacamarte! 
 
(Entrada dos amadores)
 
CORO DE AMADORES Aqui estamos os melhores Amadores Da elegante bicicleta! Nós corremos, prazenteiros, Mais ligeiros, Mais velozes que uma seta! A todo o público Dos belódromos Muito simpáticos Se diz que somos. O povo aplaude-nos Quando vencemos, Mas também vaia-nos Quando perdemos! Aqui estamos os melhores, etc...
 
O FREQUENTADOR DO BELÓDROMO (a Lemos e Guedes)  Parece impossível!... No páreo passado joguei no número 17 por ser a data em que minha mulher morreu, e, por causa das dúvidas, joguei também no número 18, por ser a data em que ela foi enterrada... e ganhou o número 19! Parece impossível!...
 
LEMOS É verdade! Parece! (A Guedes) Você já viu velho mais cabuloso?
 
O FREQUENTADOR  Agora vou jogar no 25... Não pode falhar, porque a sepultura dela tem o número 525.
 
GUEDES É... é isso... vá comprar, vá.
 
O FREQUENTADOR  Vou jogar uma em primeiro e duas em segundo. (Afasta-se para o lado da casa das pules)
 
LEMOS E que me dizes a esta, ó Guedes? O S’il vous-plaît foi arranjar tudo, e do Lourenço nem novas nem mandados!
 
GUEDES Quem sabe se ele teve de levar a Lola de carro a algum teatro?...
 
LEMOS Qual! Não creias! Pois se ele é um cocheiro que faz da patroa o que bem quer!...
 
GUEDES Está só pelo diabo! Uma mala segura, e não há dinheiro para o jogo!... Olha, aqui está de volta o S’il vous-plaît.
 
S’IL VOUS-PLAÎT (aproximando-se, vestido de corredor)  Venho da pista. Está tudo combinado.
 
LEMOS Sim, mais ainda não temos o melhor! O caixa da mala não aparece!
 
S’IL VOUS-PLAÎT Que diz você? Pois o Lourenço...
 
GUEDES O Lourenço até agora!
 
LOURENÇO (aparecendo entre eles)  Que estão vocês aí a falar do Lourenço?
 
OS TRÊS  Ora graças!
 
LOURENÇO Vocês sabem que eu sou de palavra... Quando digo que venho é porque venho!
 
LEMOS Estávamos sobre brasas!
 
LOURENÇO Já estão vendendo?
 
GUEDES Há que tempos!
 
S’IL VOUS-PLAÎT Já se fez a segunda apregoação.
 
LOURENÇO O que está combinado?
 
S’IL VOUS-PLAÎT Ganha o Menelik.
 
LOURENÇO O Félix Faure não corre?
 
S’IL VOUS-PLAÎT Corre.
 
LOURENÇO Se tiver boa máquina, pode ganhar sem querer.
 
S’IL VOUS-PLAÎT Está combinado que ele cairá na quinta volta.
 
LOURENÇO Quantas voltas são?
 
S’IL VOUS-PLAÎT Oito.
 
LOURENÇO Quem mais corre?
 
S’IL VOUS-PLAÎT O Garibaldi, o Carnot e o Colibri.
 
LOURENÇO Que Colibri é esse?
 
S’IL VOUS-PLAÎT É um pequenote... um bacamarte... não vale nada... nem eu o meti na combinação!
 
LOURENÇO Os outros quatro quanto recebem?
 
S’IL VOUS-PLAÎT Quinze mil-réis cada um.
 
LOURENÇO E dez por cento dos lucros para vocês três... Bom. (Dando dinheiro a Lemos) Tome, seu Lemos; vá comprar dez pules... (Dando dinheiro a Guedes) Tome, seu Guedes: compre outras dez... Vá cada um por sua vez, para disfarçar... Senão, o rateio não dá para o buraco de um dente! Eu compro três cheques. Vamos. 
 
(Afastam-se todos)
 
  CENA II Benvinda, Figueiredo.
 
BENVINDA Me deixe! Já le disse que não quero mais sabê do sinhô!
 
FIGUEIREDO Por que, rapariga?
 
BENVINDA O sinhô co’essa mania de querê me lançá é um cacete insuportave! Tá sempre me dando lição e raiando comigo! Pra isso eu não percisava saí de casa de sinhô Eusébio
 
FIGUEIREDO Mas é para o teu bem que eu...
 
BENVINDA Quais pera meu bem nem pera nada! Hei de encontrá quem me queira mesmo falando cumo se fala na roça!
 
FIGUEIREDO Estás bem aviada!
 
BENVINDA Eu mesmo posso me lançá sem percisar do sinhô!
 
FIGUEIREDO Oh! mulher, olha que tu não tens nenhuma experiência do mundo! És uma tola... uma ignorantona... não sabes o que é a capital-federal!
 
BENVINDA Como o sinhô se engana! Eu já tou meia capitalista-federalista!
 
FIGUEIREDO Bom; tu’alma, tua palma! Estou com a minha consciência tranquila. Mas vê lá: se algum dia precisares de mim, procura-me.
 
BENVINDA Merci! (Vai-se afastando)
 
FIGUEIREDO Adeus, Fredegonda!
 
BENVINDA (parando)  Que Fredegonda! Assim é que o sinhô me lançô! Me deu logo um nome tão feio que toda a gente se ri quando ouve ele!
 
FIGUEIREDO É porque não sabem história! Fredegonda foi uma rainha... era casada com Chilperico...
 
BENVINDA Pois eu por minha desgraça não sou casada nem com seu Borge. Ó revoá. (Afasta-se)
 
FIGUEIREDO (só)  No fundo estou satisfeito, porque decididamente não havia meio de fazer dela alguma coisa... Parece que vai chover... mas já agora vou assistir à corrida. (Afasta-se)
 
  CENA III Lourenço, Lemos, Guedes, depois o Frequentador do Belódromo.
 
LOURENÇO Bom! venham as pules. 
 
(Lemos e Guedes entregam as pules, que ele guarda)
 
LEMOS A mala não transpirou. Félix Faure é o favorito.
 
GUEDES Queira Deus que o S’il vous-plaît não dê com a língua nos dentes!
 
O FREQUENTADOR (voltando)  Comprei no 25... Mas agora me lembro... somando o número da sepultura dá a soma de 12. Cinco e dois, sete; e cinco, 12. Ora 12 e 12 são 24.
 
LEMOS Vinte e quatro é o tal Colibri. Não deite o seu di-nheiro fora!
 
O FREQUENTADOR  Aceito o conselho... Já cá tenho o 25... e não pode falhar! O diabo é que parece que vai chover. O tempo está muito entroviscado! (Afasta-se)
 
LOURENÇO (que tem estado a calcular)  Se o Félix Faure é o favorito, o Menelik não pode dar menos de sete mil-réis.
 
GUEDES Para cima!
 
LOURENÇO Separemo-nos. Creio que a diretoria já nos traz de olho... No fim da corrida esperá-los-ei no lugar do costume para a divisão dos lúcaros. Até logo!
 
LEMOS e GUEDES Até logo. (Afastam-se. Benvinda volta passeando)  
 
CENA IV Lourenço e Benvinda.
 
LOURENÇO (consigo)  Estes malandretes ganham pela certa... não arriscam um nicolau... (Vendo Benvinda) Não me engano: é a celeste Aída do sábado de aleluia... Reconhecerá ela na minha fisolostria o cocheiro da Lola? Vejamos! (Passa e acotovela Benvinda) Adeus, coração dos outros!
 
BENVINDA Vá passando seu caminho e não bula ca gente!
 
LOURENÇO Tão zangada, meu Deus!
 
BENVINDA Que deseja o sinhô?
 
LOURENÇO Pelo menos saber onde mora.
 
BENVINDA Moro na rua das casa.
 
LOURENÇO Não seja má! Bem sei que é aqui mesmo na Rua do Lavradio.
 
BENVINDA Quem le disse?
 
LOURENÇO Ninguém. Fui eu que lhe vi na janela.
 
BENVINDA Pois não vá lá que não lhe arrecebo!
 
LOURENÇO Por que não me arrecebe, marvada?
 
BENVINDA Vou sê franca... Só arrecebo quem quisé me tirá desta vida. Não nasci pra isto. Quero vivê em família.
 
LOURENÇO Ah, seu benzinho! isso é que não pode ser! Hoje em dia não é possível viver em família!
 
BENVINDA Por quê?
 
LOURENÇO Por quê? Ainda me perguntas, amor?
 
COPLAS
 
I LOURENÇO Já não se encontra casa decente, Que custe apenas uns cem mil-réis, E os senhorios constantemente O preço aumentam dos aluguéis! Anda o povinho muito inquieto, E tem — pudera! — toda a razão; Não aparece nenhum projeto Que nos arranque desta opressão! Um cidadão neste tempo
 
Não pode andar amarrado... A gente vê-se, e adeusinho: Cada um vai pro seu lado!
 
II Das algibeiras some-se o cobre, Como levado por um tufão! Carne de vaca não come o pobre, E qualquer dia não come pão! Fósforos, velas, couve, quiabos, Vinho, aguardente, milho, feijão, Frutas, conservas, cenouras, nabos, Tudo se vende pr’um dinheirão! Um cidadão neste tempo etc...
 
BENVINDA Tenho sede, venha pagá um copo de cerveja.
 
LOURENÇO Com muito gosto, mas da Babilônia, que as alamoas estão pela hora da morte!
 
BENVINDA Vamo.
 
LOURENÇO Como você se chama, seu benzinho?
 
BENVINDA Artemisa.
 
LOURENÇO Que bonito nome! Vamos ali no botequim do Lopes. (Saem)
 
 
CENA V Eusébio, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, depois Figueiredo.
 
(Eusébio entra no meio das mulheres; traz o chapéu atirado para a nuca, e um enorme charuto. Vêm todos alegres. Acabaram de jantar e lembraramse de dar uma volta pelo Belódromo)
 
EUSÉBIO Não, Lola! Tu hoje há de me deixá i pra casa! Dona Fortunata deve está furiosa!
 
LOLA Que dona Fortunata nem nada!
 
MERCEDES Havemos de acabar a noite num gabinete do Munchen!
 
DOLORES Não o deixamos!
 
BLANCHETTE Está preso!... E, demais, vamos ter chuva!
 
EUSÉBIO Na chuva já tou eu, se não me engano. Aquele vinho é bão, mas é veiaco!
 
FIGUEIREDO (aproximando-se)  Olá! viva a bela sociedade!
 
LOLA Olha quem ele é! o Figueiredo!
 
MERCEDES O Radamés!
 
DOLORES Você no Belódromo!
 
FIGUEIREDO Por mero acaso... Não gosto disto... No Rio de Janeiro não há divertimentos que prestem! Não temos nada, nada!
 
EUSÉBIO (num tom magoado)  Como vai a Fredegonda, seu Figueiredo?
 
FIGUEIREDO A Fredegonda já não é Fredegonda!
 
TODOS  Ah!...
 
FIGUEIREDO Tornou a ser Benvinda, como antigamente. Deixou-me!
 
TODOS  Deixou-o?
 
FIGUEIREDO Deixou-me, e anda à procura de alguém que saiba lançá-la melhor do que eu!
 
EUSÉBIO Uê!
 
FIGUEIREDO Deve estar aqui no Belódromo... Acompanhei-a até cá para pedirlhe que tivesse juízo, mas a sua resolução é inabalável... Pobre rapariga!...
 
EUSÉBIO (muito comovido, para o que concorre o vinho que bebeu)  Coitada da Benvinda!... Podia tá casada e agora... anda atirada por aí como uma coisa à toa... sem ninguém que tome conta dela... (Com lágrimas na voz) Coitada!... não façum caso... Eu vi ela pequena... nasceu e cresceu lá em casa... (Chorando) Minha fia mamou o leite da mãe dela!
 
TODOS  Que é isso?! Chorando?! Ora esta!...
 
EUSÉBIO (com soluços)  Que chorando que nada! Já passou!... Não foi nada!... Que qué vacês! Mineiro tem muito coração!...
 
TODOS  Vamos lá! Que é isso? Então?...
 
LOLA Há de passar. São efeitos do Chambertin! — Eusébio, ande... então?... vá comprar umas pules para tomar interesse pela corrida.
 
EUSÉBIO Eu não entendo disso!
 
FIGUEIREDO Escolha um nome daqueles. Olhe, ali, na pedra... Ligúria, Carnot, Menelik, Colibri e Félix Faure!
 
EUSÉBIO Colibri! Eu quero Colibri!
 
FIGUEIREDO Ouvi dizer que não vale nada... É o que aqui chamam um bacamarte... Não lhe sorri nenhum dos presidentes da República Francesa?
 
EUSÉBIO Não sinhô, não quero outro! Colibri é o nome de um jumento que tenho lá na fazenda.
 
DOLORES, MERCEDES e BLANCHETTE (ao mesmo tempo)  Não faça isso! Se é bacamarte, não presta! É dinheiro deitado fora!
 
LOLA Deixem-no lá! É um palpite! Vá comprar cinco pules naquele guichê.
 
EUSÉBIO Naquele quê?
 
FIGUEIREDO Naquele buraco.
 
EUSÉBIO Canto custa?
 
FIGUEIREDO Cinco pules são dez mil-réis.
 
EUSÉBIO Mas como se faz?
 
FIGUEIREDO Estenda o braço, meta o dinheiro dentro do buraco, abra a mão, e diga: "Colibri".
 
EUSÉBIO Sim, sinhô. (Afasta-se)
 
FIGUEIREDO Pois é o que lhes conto: estou livre como o lindo amor!
 
MERCEDES
 
Se me quiser tomar sob a sua valiosa proteção...
 
DOLORES Se quiser fazer a minha ventura...
 
BLANCHETTE Se me quiser lançar...
 
LOLA Vocês estão a ler! Ele só gosta de...
 
FIGUEIREDO (atalhando)  De trigueiras! Eu digo trigueiras, por ser menos rebarbativo... Acho que as brancas são encantadoras, apetitosas, adoráveis, lindíssimas, mas que querem? — tenho cá o meu gênero...
 
MERCEDES Isso é um crime!
 
DOLORES Devia ser preso!
 
BLANCHETTE Deportado!
 
LOLA Sim, deportado... para a Costa da África!...
 
QUINTETO
 
LOLA Ó Figueiredo, eu cá sou franca: Estou com pena de você!
 
AS OUTRAS Nós temos pena de você!
 
FIGUEIREDO Façam favor, digam por quê!
 
LOLA Por não gostar da mulher branca!
 
AS OUTRAS Por não gostar da mulher branca!
 
FIGUEIREDO Meu Deus! Deveras? Por isso só?
 
TODAS Somos sinceras! Causa-nos dó!
 
FIGUEIREDO Oh! oh! oh! oh!
 
TODAS Oh! oh! oh! oh!
 
COPLAS
 
I LOLA Pele cândida e rosada, Cetinosa e delicada Sempre teve algum valor!
 
FIGUEIREDO Que tolice!
 
TODAS Sim, senhor!
 
LOLA A cor branca, pelo menos, Era a cor da loura Vênus, Deusa esplêndida do amor.
 
FIGUEIREDO Quem lhe disse?
 
TODAS Sim, senhor!
 
FIGUEIREDO Se eu da Mitologia Fosse o reformador, Vênus transformaria Numa mulata!
 
TODAS Horror!... 
 
II FIGUEIREDO A mimosa cor do jambo Pede um meigo ditirambo Cinzelado com primor!
 
LOLA Que tolice!
 
TODAS Não, senhor!
 
FIGUEIREDO Eu com os ovos, por sistema, Deixo a clara e como a gema, Porque tem melhor sabor.
 
LOLA Quem lhe disse?
 
TODAS Não, senhor!
 
FIGUEIREDO Se eu da Mitologia Fosse o reformador Vênus transformaria Numa mulata!
 
TODAS Horror!...
 
(Juntos)
 
FIGUEIREDO (às cocotes) Gosto do amarelo! Gosta do amarelo! Que prazer me dá! Maus exemplos dá! Nada mais anelo, Vara de marmelo Nem aspiro já! Merecia já!
 
EUSÉBIO (voltando)  Aqui está cinco papezinho do Colibri. Custou! Toda a gente queria comprá! Eu meti o dinheiro no buraco, e o home lá de dentro perguntou: "Onde leva?" Eu respondi: "Colibri", e ele ficou muito espantado, e disse: "É o premero que compra nesse bacamarte."
 
FIGUEIREDO Vamos ver a corrida lá de cima. Pedirei um camarote ao Cartaxo.
 
TODOS  Vamos! (Saem)
 
 
CENA VI Benvinda, Lourenço e Povo.
 
LOURENÇO (correndo)  Correndo ainda apanho; mas olhe que o Menelik... (Desaparece)
 
BENVINDA Não sinhô, não sinhô! Não quero Menelik! Compre no que eu disse! (Só, no proscênio) Não gosto deste home: tem cara de padre... é muito enjoado... Nem deste, nem de nenhum... Não gosto de ninguém... O que eu tenho a fazê de mió é vortá para casa e pedi perdão a sinhá véia. 
 
(Ouve-se o sinal do fechamento do jogo)
 
PESSOAS DO POVO  Fechou! Fechou! Ora! e eu que não comprei! 
 
(Dirigem-se todos para o fundo: vão assistir à corrida)
 
LOURENÇO (voltando)  Sempre cheguei a tempo de comprar a pule! (Dando a pule a Benvinda) Mas que lembrança a sua de jogar no Colibri!
 
BENVINDA É porque é o nome de um burrinho que há numa fazenda onde eu fui passá uns tempo.
 
LOURENÇO Ah! é cabula? (Ouve-se um toque de campainha elétrica) Se ele vencesse, você levava a casa das pules! (Ouve-se um tiro de revólver e um pouco de música) Começou a corrida! Vamos ver! 
 
(Afastam-se para o fundo)
 
  CENA VII Gouveia, Fortunata e Quinota.
 
FORTUNATA (entrando apressada à frente de Gouveia e Quinota)  Não! não quero vê meu fio corrê na tá história!... E logo que acabá a corrida, levo ele pra casa, e aqui não vorta!... Que coisa!... Benvinda desaparece... Seu Eusébio desaparece... Juquinha não sai do Belódromo... Tou vendo quando Quinota me deixa!...
 
QUINOTA Oh! mamãe! não tenha esse receio!
 
FORTUNATA Que terra! Eu bem não queria vi no Rio de Janeiro!
 
QUINOTA Que vida tão diversa da vida da roça! (A Gouveia) Não ficaremos aqui depois de casados.
 
GOUVEIA Por quê?
 
QUINOTA A vida fluminense é cheia de sobressaltos para as verdadeiras mães de família!
 
FORTUNATA Olhe seu Eusébio, um home de cinquenta ano, que teve até agora tanto juízo! Arrespirou o à da capitá federá, e perdeu a cabeça!
 
GOUVEIA Apanhou o micróbio da pândega!
 
QUINOTA Aqui há muita liberdade e pouco escrúpulo... faz-se ostentação do vício... não se respeita ninguém... É uma sociedade mal constituída!
 
GOUVEIA Não a supunha tão observadora...
 
QUINOTA Eu sou roceira, mas não tola que não veja o mal onde se acha.
 
FORTUNATA Parece que já está chuviscando... Eu senti um pingo...
 
QUINOTA O senhor, por exemplo, o senhor, se pensa que me engana, enganase. Conheço perfeitamente os seus defeitos.
 
FORTUNATA (à parte)  Aí!
 
GOUVEIA Os meus defeitos?
 
QUINOTA Oh! são muitíssimos — e o menor deles não é querer aparentar uma fortuna que não existe. Desagradam-me esses visíveis esforços que o senhor faz para iludir os outros. O melhor partido que o senhor tem a tomar... e olhe que este é o conselho da sua noiva, isto é, da pessoa que mais o estima neste mundo... o melhor partido que o senhor tem a tomar é abrir-se com papai... confessar-lhe que é um jogador arrependido...
 
GOUVEIA Oh! Quinota!...
 
FORTUNATA Não tem — ó Quinota nem nada! É a verdade!...
 
QUINOTA Irá conosco para a fazenda, onde não lhe faltará ocupação.
 
FORTUNATA Sim sinhô; é mió trabaiá na roça que fazê vida de vagabundo na cidade! — Outro pingo!
 
QUINOTA Papai precisa muito associar-se a um moço inteligente, nas suas condições. Sacrifique à sua tranquilidade os seus prazeres; case-se, faça-se agricultor, e sua esposa, que não será muito exigente e terá muito bom-senso, todos os anos lhe dará licença para vir matar saudades daquilo a que o senhor chama o micróbio da pândega.
 
GOUVEIA (à parte)  Sim, senhor, pregou-me uma lição de moral mesmo nas bochechas!
 
FORTUNATA Seu Gouveia, é mió a gente i pro lugá por onde Juquinha tem de saí!
 
GOUVEIA Deve sair por acolá... Vamos esperá-lo na passagem. (Estendendo o braço) É verdade! já está chuviscando.
 
(Saem. O final da corrida. Um toque de campainha elétrica. Pouco depois de um pouco de música. Vozeria do povo, que vem todo ao proscênio)
 
CORO Oh! Quem diria Que ganharia O Colibri! Ganhou à toa! Pule tão boa Eu nunca vi Aqui!
 
  CENA VIII Lemos, Guedes, Lourenço, o Frequentador do Belódromo, depois Eusébio, Figueiredo, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, depois S’il vous-plaît, Juquinha, depois Fortunata, Quinota, Gouveia, depois Benvinda, depois Lourenço.
 
LEMOS Ganhou o Colibri! Quem diria?
 
GUEDES O Colibri... que pulão!...
 
LOURENÇO Que desgraça!... O Félix Faure caiu de propósito, mas por cima do Félix Faure caiu o Menelik, por cima do Menelik o Ligúria, por cima do Ligúria, o Carnot, e o Colibri, que vinha na bagagem, não caiu por cima de ninguém e ganhou o páreo! Que palpite de mulata! Onde estará ela? Vou procurá-la. (Desaparece)
 
O FREQUENTADOR (a Lemos e Guedes)  Então? eu não dizia? ganhou o 24! Doze e doze, vinte e quatro. (Com uma ideia) Ah!
 
OS DOIS  Que é?
 
O FREQUENTADOR  Fui um asno! 24 é a data da missa de sétimo dia de minha mulher! (Lemos e Guedes afastam-se rindo) Ora esta! ora esta!... E era um pulão!... (Abre o guarda-chuva) Chove... Naturalmente não há mais corridas hoje... (Afasta-se. Há na cena alguns guarda-chuvas abertos. Aparecem Eusébio, Figueiredo e as cocotes. Vêm todos de guarda-chuvas abertos)
 
FIGUEIREDO Bravo! Foi um tiro, seu Eusébio, foi um tiro!... O Colibri vendeu apenas seis pules e o senhor tem cinco!
 
S’IL VOUS-PLAÎT (metendo-se na conversa, e abrigando-se no guardachuva de Eusébio)  Dá mais de cem mil-réis cada pule!...
 
EUSÉBIO Mais de cem mil-réis? Então? Eu não disse? Co aquele nome, o menino não podia perdê! O Colibri é um jumento de muita sorte! (A S’il vous-plaît) O sinhô conhece ele?
 
S’IL VOUS-PLAÎT
 
Quem? O Colibri? Sim senhor!
 
EUSÉBIO Vá chamá ele. Quero le dá uma lambuge!
 
S’IL VOUS-PLAÎT Nem de propósito! Ele aí vem! (Chamando Juquinha que aparece) Ó Colibri! está aqui um senhor que jogou cinco pules em você e quer dar-lhe uma gratificação.
 
JUQUINHA (aproximando-se muito lampeiro)  Aqui estou. Quê dê o home?
 
EUSÉBIO Era o Juquinha!
 
JUQUINHA Papai! (Deita a correr e foge)
 
EUSÉBIO Ah! tratante! O Colibri era ele! Alembrou-se do jumento!... E foge do pai! Ora espera lá! 
 
(Corre atrás do Juquinha e desaparece. A chuva cresce. O povo corre todo e abandona a cena)
 
LOLA Onde vai? Espere! (Corre atrás de Eusébio e desaparece)
 
AS MULHERES  Vamos também! Vamos também! (Correm atrás de Lola e desaparecem)
 
FIGUEIREDO Então, minhas filhas? Não corram! (Vai atrás delas e desaparece)
 
FORTUNATA (entrando de guarda-chuva)  É ele! É ele! É seu Eusébio! (Sai correndo pelo mesmo lado)
 
QUINOTA (entrando, idem)  Mamãe! Mamãe! (Corre acompanhando Fortunata)
 
GOUVEIA (idem)  Minhas senhoras!... Minhas senhoras! (Corre e desaparece)
 
BENVINDA (entrando perseguida por Lourenço, ambos de guarda-chuva)  Me deixe! Me deixe!... (Desaparece)
 
LOURENÇO (só em cena)  Dê cá a pule, seu benzinho, dê cá a pule, que eu vou receber! (Desaparece. Mutação)
 
 
QUADRO X A Rua do Ouvidor. 
 
CENA I Primeiro Literato, Segundo Literato, pessoas do povo, depois Fortunata, Quinota, Juquinha.
 
CORO Não há rua como a rua Que se chama do Ouvidor! Não há outra que possua Certamente o seu valor! Muita gente há que se mace Quando, seja por que for, Passe um dia sem que passe Pela Rua do Ouvidor!
 
PRIMEIRO LITERATO  Tens visto o Duquinha?
 
SEGUNDO LITERATO  Qual! Depois que se meteu com a Lola, ninguém mais lhe põe a vista em cima!
 
PRIMEIRO LITERATO  É pena! Um dos primeiros talentos desta geração...
 
SEGUNDO LITERATO  Apaixonado por uma cocote!
 
PRIMEIRO LITERATO  Felizmente a arte lucra alguma coisa com isso. O Duquinha faz magníficos versos à Lola. Ainda ontem me deu uns, que são puros Verlaine. Vou publicá-los no segundo número da minha revista.
 
SEGUNDO LITERATO  Que está para sair há seis meses?
 
PRIMEIRO LITERATO  Oh! vê que linda rapariga ali vem!
 
SEGUNDO LITERATO  Parece gente da roça. (Ficam de longe, a examinar Quinota, que entra com a mãe e o irmão. Vêm todos três carregados de embrulhos)
 
FORTUNATA Vamo, minha fia, vamo tomá o bonde no Largo de São Francisco. As nossa compra está feita. Amenhã de menhã vamos embora!
 
QUINOTA Sem papai?
 
FORTUNATA Ele que vá quando quisé! Hei de mostrá que lá em casa não se percisa de home!
 
QUINOTA E... seu Gouveia?
 
FORTUNATA Não me fale de seu Gouveia! Há oito dia não aparece! Fez cumo teu pai! Foi mió assim... Havia de sê muito mau marido!
 
JUQUINHA Eu não quero i pra fazenda!
 
FORTUNATA Eu te amostro se tu vai ou não vai! Anda pra frente! (Vão saindo)
 
PRIMEIRO LITERATO (a Quinota)  Adeus, teteia!
 
FORTUNATA Quem é que é teteia? Arrepita a gracinha, seu desavergonhado, e verá como le parto este chapéu de só no lombo!... (Risadas) Vamo! Vamo!... Que terra!... Eu bem não queria vi no Rio de Janeiro! (Saem entre risadas)
 
  CENA II Primeiro Literato, Segundo Literato, pessoas do povo, depois Duquinha.
 
SEGUNDO LITERATO  Tu ainda um dia te sais mal com esse maldito costume de bulir com as moças!
 
PRIMEIRO LITERATO  Nada disse que a ofendesse. "Adeus, teteia" não é precisamente um insulto.
 
SEGUNDO LITERATO  Pois sim, mas que farias tu se dissessem o mesmo à tua irmã?
 
PRIMEIRO LITERATO  Não é a mesma coisa! Minha irmã é...
 
SEGUNDO LITERATO  Não é melhor que as irmãs dos outros. 
 
(Entra Duquinha, vem pálido e com grandes olheiras)
 
DUQUINHA Ah! meus amigos! meus amigos! Se soubessem o que me aconteceu?
 
OS DOIS  Que foi?
 
DUQUINHA Ainda não estou em mim!
 
OS DOIS  Fala!
 
DUQUINHA O fazendeiro... aquele fazendeiro de quem lhes falei?...
 
OS DOIS  Sim!
 
DUQUINHA Apanhou-me com a boca na botija!...
 
PRIMEIRO LITERATO  Mas que tem isso?
 
DUQUINHA Como que tem isso? Aquele homem é rico! Dava tudo à Lola!
 
SEGUNDO LITERATO  Tu também não lhe davas pouco!
 
DUQUINHA (vivamente)  Dinheiro nunca lhe dei —, nem ela o aceitaria...
 
PRIMEIRO LITERATO  Pois sim!
 
DUQUINHA Joias... vestidos... pares de luvas... leques... chapéus... Dinheiro, nem vintém! Quem sempre me apanhava algum era o Lourenço, o cocheiro.
 
SEGUNDO LITERATO  És um pateta! Mas conta-nos isso!
 
DUQUINHA Estávamos — ela e eu — na saleta e o bruto dormia na sala de jantar. Eu tinha levado à Lola umas pérolas com que ela sonhou... Vocês não imaginam como aquela rapariga sonha com coisas caras!
 
PRIMEIRO LITERATO  Imaginamos! — Adiante!
 
DUQUINHA Eu lia para ela ouvir os meus últimos versos... aqueles que te dei ontem para a revista... Depois que te amo, depois que és minha, Nado em delícia, nado em delícia...
 
PRIMEIRO LITERATO  Eu sei. Verlaine puro.
 
DUQUINHA Obrigado. — No fim de cada estrofe, eu dava-lhe um beijo... um beijo quente e apaixonado... um beijo de poeta!... Pois bem, depois da terceira estrofe: Oh! se algum dia destino fero Nos separasse, nos separasse...
 
PRIMEIRO LITERATO (continuando) O que faria contar não quero...
 
DUQUINHA Que se o contasse, que se o contasse... No fim dessa estrofe, Lola, que esperava a deixa, estende-me a face, eu beijo-a e o fazendeiro, de pé, na porta da saleta, com os olhos esbugalhados dá este grito: Ah! seu pelintreca!...
 
SEGUNDO LITERATO  E tu?
 
DUQUINHA Eu?... Eu... eu cá estou. Não sei o que mais aconteceu. Quando dei por mim estava dentro de um bonde elétrico, tocando a toda para a cidade!...
 
PRIMEIRO LITERATO  Fizeste uma bonita figura, não há dúvida! Podes limpar a mão à parede!
 
DUQUINHA Por quê?
 
PRIMEIRO LITERATO  Essa mulher não te perdoará nunca tal covardia!
 
SEGUNDO LITERATO  Olha, o melhor que tens a fazer é não voltares lá!
 
DUQUINHA Ah! meu amigo! isso é bom de dizer, mas eu estou apaixonado...
 
SEGUNDO LITERATO  Tu estás mas é fazendo asneiras! Onde vais tu buscar dinheiro para essas loucuras?
 
DUQUINHA Mamãe tem me dado algum... mas confesso que contraí algumas dívidas, e não pequenas. — Ora, adeus! não pensemos em coisas tristes, e vamos tomar alguma coisa... alegre!
 
OS DOIS  Vamos lá!
 
(Afastam-se pela direita, cumprimentando Mercedes, Dolores e Blanchette, que entram por esse lado e se encontram com Lola, que entra da esquerda, muito nervosa e agitada. Figueiredo entra da direita, observa as cocotes, para, e, colocado por trás, ouve tudo quanto elas dizem)
 
CENA I Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, Figueiredo, pessoas do povo, depois Duquinha.
 
LOLA Ah! venham cá. Estou aflitíssima! Não calculam vocês que série de desgraças!
 
AS OUTRAS  Que foi? que foi?
 
RONDÓ
 
LOLA  Com o Duquinha a pouco eu estava Na saleta a conversar, E o Eusébio ressonava Lá na sala de jantar. O Duquinha uns versos lia, Mas não lia sem parar, Que a leitura interrompia Para uns beijos me furtar; Mas ao quarto ou quinto beijo, Sem se fazer anunciar,
 
Entra o Eusébio, e o poeta vejo Dar um grito e pôr-se a andar! Pretendi novos enganos, Novas tricas inventar, Mas o Eusébio pôs-se a panos: Não me quis acreditar! Vendo a sorte assim fugir-me, Vendo o Eusébio se escapar, Fui ao quarto pra vestir-me E sair para o apanhar. Mas no quarto vi, de chofre, —‘Stive quase a desmaiar! — Vi as portas do meu cofre Abertas de par em par! O ladrão foi o cocheiro! Nada ali me quis deixar! Levou joias e dinheiro Que nem posso avaliar!
 
BLANCHETTE O cofre aberto!
 
DOLORES Joias e dinheiro!
 
MERCEDES O cocheiro!
 
LOLA Sim, o cocheiro, o Lourenço, que desapareceu!
 
BLANCHETTE Mas como soubeste que foi ele?
 
LOLA Por esta carta, a única coisa que encontrei no cofre! Ainda por cima escarneceu de mim! (Tem tirado a carta da algibeira)
 
MERCEDES Deixa ver.
 
LOLA Depois! Agora vamos à polícia! Não! à polícia não!
 
AS TRÊS  Por quê?
 
LOLA Não convém. Logo saberão por quê. Vamos a um advogado! (Julga guardar a carta, mas está tão nervosa que deixa-a cair) Vamos!
 
AS TRÊS  Vamos! (Vão saindo e encontram com Duquinha)
 
DUQUINHA Lola!
 
LOLA (dando-lhe um empurrão)  Vá para o diabo!
 
AS TRÊS  Vá para o diabo! 
 
(Saem as cocotes. Figueiredo disfarça e apanha a carta que Lola deixou cair)
 
DUQUINHA (consigo)  Estou desmoralizado! Ela não me perdoa o ter saído, deixando-a entregue à fúria do fazendeiro! Sou um desgraçado! Que hei de fazer?... Vou desabafar em verso... Não! vou tomar uma bebedeira!... (Sai)
 
 
CENA IV Figueiredo, pessoas do povo.
 
FIGUEIREDO Ora aqui está como uma pessoa, sem querer, vem ao conhecimento de tanta coisa! Vejamos o que o cocheiro lhe deixou escrito. (Põe a luneta e lê) "Lola. — Eu sou um pouco mais artista que tu. Saio da tua casa sem me despedir de ti, mas levo, como recordação da tua pessoa, as joias e o dinheiro que pude apanhar no teu cofre. Cala-te; se fazes escândalo, ficas de mal partido, porque eu te digo: 1º: que de combinação representamos uma comédia pra extorquir dinheiro ao Eusébio; 2º: que induziste um filho-família a contrair dívidas para presentear-te com joias; 3º: que nunca foste espanhola e sim ilhoa; 4º: que foste a amante do teu ex-cocheiro — Lourenço." Sim, senhor, é de muita força a tal senhora Dona Lola!... Não há, juro que não há mulata capaz de tanta pouca vergonha! (Sai)   CENA V Gouveia, pessoas do povo, depois Pinheiro.
 
(Gouveia traz as botas rotas, a barba por fazer, um aspecto geral da miséria e desânimo)
 
GOUVEIA Ninguém, que me visse ainda há tão pouco tempo tão cheio de joias, não acreditará que não tenho dinheiro nem crédito para comprar um par de sapatos! Há oito dias não vou à casa de minha noiva, porque tenho vergonha de lhe aparecer neste estado!
 
PINHEIRO (aparecendo)  Oh! Gouveia! como vai isso?
 
GOUVEIA Mal, meu amigo, muito mal...
 
PINHEIRO Mas que quer isto dizer? Não me pareces o mesmo! Tens a barba crescida, a roupa no fio... Desapareceu do teu dedo aquele esplêndido e escandaloso farol, e tens umas botas que riem da tua esbodegação!
 
GOUVEIA Fala à vontade. Eu mereço os teus remoques.
 
PINHEIRO E dizer que já me quiseste pagar, com juros de cento por cento, dez mil-réis que eu te havia emprestatado!
 
GOUVEIA Por sinal, que disseste, creio, que esses dez mil-réis ficavam ao meu dispor.
 
PINHEIRO E ficaram. (Tirando dinheiro do bolso) Cá estão eles. — Mas, como um par de botinas não se compra com dez mil-réis, aqui tens vinte... sem juros. Pagarás quando quiseres.
 
GOUVEIA Obrigado, Pinheiro; bem se vê que tens uma alma grande e nunca jogaste a roleta.
 
PINHEIRO Nada! — Sempre achei que o jogo, seja ele qual for, não leva ninguém para diante. — Adeus, Gouveia... aparece! Agora, que estás pobre, isso não te será difícil!... (Sai)
 
  CENA VI Gouveia, depois Eusébio.
 
GOUVEIA Como este tipo faz pagar caro os seus vinte mil-réis! Ah! ele apanhou-me descalço! Enfim vamos comprar os sapatos! (Vai saindo e encontra-se com Eusébio, que entra cabisbaixo) Oh! o Sr. Eusébio!...
 
EUSÉBIO Ora! inda bem que le encontro!...
 
GOUVEIA (à parte) Naturalmente já voltou à casa... Como está sentido!... Vai falar-me de Quinota!...
 
EUSÉBIO Hoje de menhã encontrei ela beijando um mocinho!
 
GOUVEIA Hein?
 
EUSÉBIO É levada do diabo! não sei como o sinhô pôde gostá dela!
 
GOUVEIA Ora essa! a ponto de querer casar-me!
 
EUSÉBIO Era uma burrice!
 
GOUVEIA Custa-me crer que ela...
 
EUSÉBIO Pois creia! Beijando um mocinho, um pelintreca, seu Gouveia!... Veja o sinhô de que serviu gastá tanto dinheiro com ela!...
 
GOUVEIA Sim, o senhor educou-a bem... ensinou-lhe muita coisa...
 
EUSÉBIO (vivamente)  Não, sinhô! não ensinei nada!... Ela já sabia tudo! O sinhô, sim! Se arguém ensinou foi o sinhô e não eu! Beijando um pelintreca, seu Gouveia!...
 
GOUVEIA Dona Fortunata não viu nada?
 
EUSÉBIO Dona Fortunata?... Uê!... Como é que havera de vê?... Olhe, eu lá não vorto!
 
GOUVEIA Não volta! ora esta!
 
EUSÉBIO Não quero mais sabê dela.
 
GOUVEIA Deve lembrar-se que é pai!
 
EUSÉBIO Por isso mesmo! Ah! seu Gouveia, se arrependimento sarvasse... Bem; o sinhô vai me apadrinhá, como noutro tempo se fazia cum preto fugido... Não me astrevo a entrá in casa sozinho depois de tantos dias de osença!
 
GOUVEIA Em casa? Pois o senhor não me acaba de dizer que lá não volta porque dona Quinota...
 
EUSÉBIO Quem le falou de Quinota?
 
GOUVEIA Quem foi então que o senhor encontrou aos beijos com o pelintreca? — Ah! agora percebo! A Lola!...
 
EUSÉBIO Pois quem havera de sê?
 
GOUVEIA E eu supus... Onde tinha a cabeça?... Perdoa, Quinota, perdoa!... Vamos, senhor Eusébio... Eu o apadrinharei, mas com uma condição: o senhor por sua vez me há de apadrinhar a mim, porque eu também não apareço à minha noiva há muitos dias!
 
EUSÉBIO Por quê?
 
GOUVEIA Em caminho tudo lhe direi. (À parte) Aceito o conselho de Quinota: vou abrir-me. (Alto) Tenho ainda que comprar um par de sapatos e fazer a barba.
 
EUSÉBIO Vamo, seu Gouveia! (Saem. Ao mesmo tempo aparece Lourenço perseguido por Lola, Mercedes, Dolores e Blanchette)
 
  CENA VIII Lourenço, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, pessoas do povo.
 
LOLA e os OUTROS  Pega ladrão! Pega ladrão!... 
 
(Lourenço é agarrado por pessoas do povo e dois soldados que aparecem. Grande vozeria e confusão. Apitos. Mutação)
 
 
QUADRO XI O sótão ocupado pela família de Eusébio.   CENA I Juquinha, depois Fortunata, depois Quinota.
 
JUQUINHA (entrando a correr da esquerda)  Mamãe! Mamãe!
 
FORTUNATA (entrando da direita)  Que é, menino?
 
JUQUINHA Papai tá i!
 
FORTUNATA Tá i?
 
JUQUINHA Eu encontrei ele ali no canto e ele me disse que viesse vê se va’mecê tava zangada, que se tivesse, ele não entrava.
 
FORTUNATA Oh! aquele home, aquele home o que merecia! — Vai, vai dizê a ele que não tô zangada!
 
JUQUINHA Seu Gouveia tá junto co ele.
 
FORTUNATA Bem! venha todos dois! (Juca sai correndo) Quinota! Quinota!...
 
A VOZ DE QUINOTA Senhora?
 
FORTUNATA Vem cá, minha fia. — Eu não ganho nada me consumindo. Já tou véia; não quero me amofiná. (Entra Quinota) Quinota, teu pai vem aí... mas o que está arresolvido está: amenhã de menhã vamo embora.
 
QUINOTA E seu Gouveia?
 
FORTUNATA Também vem aí.
 
QUINOTA (contente)  Ah!
 
FORTUNATA Não quero mais ficá numa terra onde os marido passa dias e noite fora de casa!...
 
  CENA II Fortunata, Quinota, Juquinha, Eusébio, depois Gouveia.
 
JUQUINHA (entrando)  Tá i papai!
 
EUSÉBIO (da porta)  Posso entrá? Não temo briga?
 
QUINOTA Estando eu aqui, não há disso!
 
FORTUNATA Sim, minha fia, tu é o anjo da paz.
 
QUINOTA (tomando o pai pela mão)  Venha cá. (Tomando Fortunata pela mão) Vamos! Abracem-se!...
 
FORTUNATA (abraçando-o)  Diabo de home, véio sem juízo!
 
EUSÉBIO Foi uma maluquice que me deu! Raie, raie, Dona Fortunata!
 
FORTUNATA Pai de fia casadeira!
 
EUSÉBIO Tá bom! tá bom! juro que nunca mais! mas deixe le dizê...
 
FORTUNATA Não! não diga nada! Não se defenda! É mió que as coisa fique como está.
 
JUQUINHA Seu Gouveia tá no corredô.
 
QUINOTA Ah! (vai buscar Gouveia pela mão. Gouveia entra manquejando)
 
EUSÉBIO Assim é que o sinhô me apadrinhou?
 
GOUVEIA Deixe-me! Estes sapatos novos fazem-me ver estrelas!
 
FORTUNATA Seu Gouveia, le participo que amenhã de menhã tamo de viage.
 
EUSÉBIO Já conversei co ele.
 
GOUVEIA (a Quinota)  Eu abri-me!
 
EUSÉBIO Ele vai coa gente. Não tem que fazê aqui. Tá na pindaíba, mas é o memo. Casa com Quinota e fica sendo meu sócio na fazenda.
 
QUINOTA Ah! papai! quanto lhe agradeço!
 
JUQUINHA A Benvinda tá i.
 
TODOS  A Benvinda!
 
FORTUNATA Não quero vê ela! não quero vê ela!
 
(Quinota vai buscar Benvinda, que entra a chorar, vestida como no 1º quadro, e ajoelha-se aos pés de Fortunata)  
 
CENA III Os mesmos, Benvinda.
 
BENVINDA Tô muito arrependida! Não valeu a pena!
 
FORTUNATA Rua, sua desavergonhada!
 
EUSÉBIO Tenha pena da mulata!
 
FORTUNATA Rua!
 
QUINOTA Mamãe, lembre-se de que eu mamei o mesmo leite que ela!
 
FORTUNATA Este diabo não tem descurpa! Rua!
 
GOUVEIA Não seja má, dona Fortunata. Ela também apanhou o micróbio da pândega.
 
FORTUNATA Pois bem, mas se não se comportá dereto... (Benvinda vai para junto de Juquinha)
 
EUSÉBIO (baixo à Fortunata)  Ela há de casá com seu Borge... Eu dou o dote...
 
FORTUNATA Mas seu Borge...
 
EUSÉBIO Quem não sabe é como quem não vê. (Alto) A vida da capitá não se fez para nós... E quem tem isso?... É na roça, é no campo, é no sertão, é na lavoura que está a vida e o progresso da nossa querida Pátria! (Mutação)

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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