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- Ainda nada! Sempre nada no horizonte! Nem uma vela!
- Decididamente, sr. conde, começo a pensar que São Savínio, meu patrono, me abandonou definitivamente. Em pouco tempo estes malditos devoradores de homens poderão regalar-se com as nossas miseráveis carcassas.
E Savínio Bignache, estendendo a mão, designou a João dAmblayves, seu companheiro e patrão, inquietantes formas alongadas, que traçavam largos rastos prateados à volta da jangada onde os dois homens tinham procurado refúgio, e que havia vinte-e-quatro horas os levava através do Oceano Índico e a um pobre marinheiro de Dieppe.
Este último acocorado ao meio da jangada, a cabeça" entre as mãos, os olhos espantados, parecia nãoligar importância à grave situação em que se encontrava. De tempos a tempos, endireitava-se, murmurava algumas palavras sem nexo e deixava escapar um riso breve, um riso que fazia mal.
Se desejais saber a minha opinião, sr. conde, declarou Bignache ao fim dum momento, não há erro possível. o de Dieppe perdeu a razão!
-"Queira Deus que não sigamos o seu exemplo! Pode muito bem acontecer, com este sol de fogo que nos desvaira constantemente. Há certos momentos em que os ouvidos me zumbem. Parece-me ouvir tocar os sinos.
- Ah! sim, os sinos!
Bignache levantou lentamente a cabeça; uma melancolia profunda velava o seu olhar. Sonhava sem duvida com os alegres carrilhões dos campanários de Gasconha, seu
país natal e também do conde, doce país que ele não tornaria a ver! Naquela situação desesperada, o pobre rapaz rememorava as boas recordações de outrora: a herdade
natal, os pais, depois o castelo onde, com a idade de dezoito anos, entrara ao serviço de João dAmoiayves. Um longo período já passara, no decurso do qual tinha
fielmente servido o seu patrão; depois, farto de levar uma existência demasiado tranquila, encheu-se do desejo de aventuras e viagens. Falava-se muito, neste ano
de graça de 1510, nas descobertas maravilhosas efectuadas pelos Portugueses nas índias orientais, e dos extraordinários feitos de Vasco da Gama. O intrépido conde
João DAmblayves não tinha podido resistir mais tempo à atracção do desconhecido.
"- E então em Bordéus a bordo dum navio de Aquilon, que tinha já navegado por muitas vezes com destino às grandes índias.
Durante a primeira Parte da travessia, Savínio Bignache compartilhou da admiração e interesse do
contorno da África, parando Por vezes para fazer escala em países estranhos,
povoados de indígenas, ainda de usos e costumes selvagens.
Depois o navio tinha-se aventurado através do Oceano Índico, tão pérfido muitas vezes para os navegadores. Uma tarde a tempestade desencadeou-se irresistível. A
nave, balouçada como uma casca de noz, com os mastros partidos, tinha lutado durante horas contra os elementos desencadeados; o capitão e a equipagem tinham-se multiplicado
em prodígios de coragem e de sangue frio. Trabalho perdido! O Aquilon, reduzido a escombros, foi de encontro a um rochedo, afundando-se em alguns minutos.
E Savínio Bignache revivia as cenas trágicas que se tinham sucedido à catástrofe; cada um se esforçara para escapar à morte.
Precipitados nas ondas furiosas, os dois gascões tinham nadado; depois eles e um marinheiro conseguiram agarrar-se a um destroço que flutuava ao acaso, fazendo dele
uma espécie de jangada confeccionada a toda a pressa com tábuas grosseiramente juntas e tonéis vazios. Reunindo todas as suas forças, recolheram-se a bordo deste
refúgio providencial; depois, incapazes de lutar por mais tempo, tombaram inanimados. Durante longas horas o trio deixou-se levar para o desconhecido. A noite estava
passada; clareavam as primeiras horas do dia. Emfim, um após outro, os náufragos arrancaram-se pouco a pouco do entorpecimento que os paralizara.
Contudo, se os infelizes conseguiram escapar à morte, a situação não se apresentava nada risonha. As suas vestes estavam reduzidas a miseráveis farrapos.
Alto, de sólida estatura, João dAmblayves,
apenas vestia um gibão rasgado e uns calções em farrapos, mas tinha conseguido conservar o cinto passado à volta da cintura, e a sua fiel espada que lhe servira
tantas vezes em frequentes combates.
Estas dramáticas tribulações não pareciam ter atenuado a energia do fidalgo gascão. Os seus belos olhos negros iluminavam sempre, com uma chama resoluta, o rosto
trigueiro enquadrado numa curta barba. Os seus cabelos negros muito espessos, cortados rentes à nuca, mostravam o pescoço musculoso, emquanto que o gibão largamente
rasgado deixava divisar um peito de atleta, bronzeado pelo sol.
Savínio Bignache era muito mais baixo do que o seu patrão; os braços e as pernas curtas, sustinham um corpo ligeiramente obeso, mas o rosto vivo, de nariz arrebitado
e envolto duma opulenta cabeleira ruiva exprimia ao mesmo tempo a manha e a franqueza. O bravo rapaz, engenhoso e espertalhão, não desdenhava de ordinário nem as
mulheres nem a bela bebida, mas João dAmblayves fechava os olhos a estes defeitos; ainda que o rapaz fosse de seu natural bastante poltrão, sabia-o dedicado até
à morte.
Durante longo tempo os dois companheiros calaram-se, passeando ainda os seus olhos pela imensidade do mar. Os raios do sol reflectiam-se nas ondas calmas. Fascinados
pela cintilação contínua das vagas, os náufragos pareciam verdadeiramente atraídos por esta vasta superfície luzente que se estendia diante deles, mas voltaram de-pressa
à realidade, quando as formas alongadas dos tubarões passavam, de novo rapidamente, pela sua vizinhança. Os peixes sentiam que boa presa estava
ali, e que poderiam, sem dúvida, dum momento para outro lançar-se ao assalto.
- Têm lindos dentes, os monstros! Estendido ao comprido na jangada, Bignache via bem os tubarões que nadavam nas ondas claras, descobrindo por vezes os seus ventres
brancos, agitando lentamente as barbatanas, dirigindo os olhos pequeninos e cruéis para a sombra quadrangular da jangada, que se destacava por cima deles, e onde
se distinguiam as três silhuetas dos homens.
- Meu Deus! comeria com apetite um bom pato bem gordo, sr. conde! arriscou ao fim de alguns instantes Bignache. O estômago começa a importunar-me seriamente!
- Por agora contentar-me-ia com um simples bocado de pão, ripostou João, decidindo-se, emfim, a sair do seu mutismo. Mas, ai de nós! para que serve aguçar assim
o apetite. Estamos privados de tudo. Não há a mínima provisão a bordo desta jangada. Nem a mais pequena gota de água doce.
- O facto é que as minhas guelas estão secas, e começam a encarquilhar-se cada vez mais, resmungou o fiel servidor. E a perspectiva dum socorro torna-se cada vez
mais problemática. Onde estaremos exactamente?
João DAmblayves sacudiu evasivamente os ombros.
- Quando a tempestade surpreendeu o Aquilon, o capitão Tavernier tinha-me declarado que esperava alcançar antes de dois dias as costas da índia. Nós não devemos
estar, sem dúvida, muito longe das costas, mas ignoro para onde o capricho das ondas terá arrastado a nossa jangada. De resto continuo bastante céptico quanto aos
socorros
que nos possam sobrevir. Se por fatalidade encontrássemos algum navio indiano, corríamos o risco de ser massacrados pela tripulação.
- Entretanto, a nossa situação não tem nada de atraente. Se não encontrarmos alguma terra onde nos refugiemos, eis-nos condenados a morrer de fome e sede. O aspecto
deste pobre diabo que partilha do nosso destino, também não é sedutor!
Exprimindo-se assim, Bignache designava o seu vizinho marinheiro, que não se tinha ainda mexido, e que continuava a fixar o Oceano, com as pupilas dilatadas, parecendo
não se importar com a presença do gascão e do seu criado.
Os dois homens calaram-se e mergulharam de novo na sua absorvente meditação. De-pressa foram sacudidos pela voz trémula do marinheiro que resmungava palavras sem
nexo. E eis que voltando-se bruscamente, interrompendo o seu monólogo, o louco atira-se a Bignache que lhe estava mais próximo. Antes de ter podido pôr-se na defensiva,
o bravo rapaz sentiu-se vigorosamente apertado pela garganta.
- Jesus! O que é que ele tem! Quere estrangular-me.
O homem encarniçara-se, e o infortunado Savínio esforçava-se sem sucesso para escapar ao terrível abraço. Preso e furioso, sentia o seu agressor apertar-lhe a garganta
como num torno. Parecia que o sol endoudecera de vez o marinheiro; uma espuma esbranquiçada saía-lhe dos lábios.
- Socorro! Sr. conde. Ele quere estrangular-me!
João dAmblayves, não tinha esperado este apelo para acorrer em seu auxílio. No mesmo momento em que Bignache, sufocado, se debatia
desesperadamente, ele agarrava o seu agressor pelo cabeção e atirava-o contra a jangada; depois, tirando a espada da bainha, encostou a ponta da lâmina à garganta
do desvairado.
Um movimento, um gesto, e mato-te como
a um cão!
Durante alguns instantes o homem imobilizou-se, dominado. O olhar do gascão fixara-se sobre ele com uma expressão tão ameaçadora que ele não ousou recalcitrar. Longas
lágrimas saltavam-lhe nas pálpebras, e corriam-lhe pela cara tisnada pelo sol. Quanto havia estado ameaçador havia pouco, estava agora humilde, o corpo agitado de
soluços" suplicando ao seu antagonista indulgência.
- Vamos, esta crise está passada.
João alargou pouco a pouco o abraço. compreendia que não tinha mais nada a temer da parte do infeliz. Este último, envergonhado, tinha-se estendido ao comprido,
escondendo o rosto entre os braços, continuando a chorar.
- Deixe-o, sr. conde, arriscou Bignache que se refazia emfim das suas emoções. É mais para lastimar do que para repreender!
E os dois companheiros deitaram-se de novo ao lado um do outro. João conservava a sua arma à mão, pronto a toda a eventualidade, mas o marinheiro não se mexia. Ouviam-no
gemer de vez em quando, e os seus lamentos confundiam-se com o ligeiro marulhar das ondas que vinham espumar docemente contra a jangada.
Os dois gascões puseram-se então a perscrutar com angústia o horizonte, e nada viram também desta vez. No céu de safira nem uma nuvem; o calor cada vez mais insuportável.
Nem uma vela na jangada que pudesse permitir aos três náufragos
procurar um pouco de sombra, e preservar-se dos ataques implacáveis da luz ardentíssima.
- Se isto continua, resmungou Bignache, parece-me que vou fazer como o de Dieppe. vou perder a cabeça. Julgo que a minha pobre cabeça vai estalar!
E como o seu companheiro não respondia, o infeliz apressou-se a preguntar:
- Porque diabo não ficamos nós na nossa boa Gasconha, onde a existência nos era tão doce?
- Porquê? É preciso repetir-to ainda? Porque uma força irresistível me atirava para o mar! Já estava farto de me aborrecer ao canto do fogo, lendo livros de cavalaria,
ou recebendo os vizinhos, que me falavam de comércio ou de assuntos que em nada me interessavam.
- Sempre vos disse, sr. conde. era preciso casar-vos!
- Casar-me! Casar-me. Ora essa! Não estás bom de cabeça! Nunca encontrei no meu caminho alguém que pudesse.
Bignache não permitiu ao seu interlocutor acabar a frase:
- No entanto as meninas Huguette, Maria, Heloísa.
- Frivolidades tudo isso! Simples caprichos! Distracções de algumas semanas agradáveis, é verdade, e não o nego. Mas nunca teria pensado viver uma existência inteira
com alguma delas. Nunca senti por nenhuma dessas pequenas um amor verdadeiro.
- Pela minha parte ficaria bem contente com uma certa Joaninha, suspirou Savínio Bignache. De-resto, passaram-se entre nós algumas pequenas coisas. Mas quando o
sr. conde me declarou que
queria partir para as grandes índias, entre ela e vós não hesitei!
- Não devias ter assim procedido, disse João. Vejo agora que te envolvi numa aventura que te custará muito provavelmente a vida.
- Para que há-de estar a martelar a cabeça, sr. conde, replicou filosoficamente o bravo moço. Não sabeis já que vos sou dedicado até à morte? De-resto, mais cedo
ou mais tarde. temos que por lá passar! Só tenho uma pena .Tinha preferido dizer adeus ao mundo na minha velha Gasconha. A perspectiva de ser morto ou vivo, devorado
por um tubarão, não me sorri lá muito. Mas como nós não podemos escolher. E depois é preciso que vos diga. que tenho confiança a-pesar-de tudo. A Providência não
pode abandonar-nos -depois de nos ter protegido contra tantos perigos. E ainda. tenho uma comichão nos ouvidos.
João dAmblayves não pôde impedir-se de declarar divertido:
- Verdadeiramente, não vejo que relação possam ter os teus ouvidos e a nossa situação.
- Quando um acontecimento imprevisto está para produzir-se, os meus ouvidos comicham-me, afirmou Bignache, peremptório, e salvo vosso respeito, sr. conde, os meus
ouvidos não me enganam nunca!
- Nessas condições, possam elas presagiar-nos um próximo socorro, disse João, cujo rosto enérgico se tinha iluminado num rápido sorriso. Vê tu, meu bom Bignache,
se nós conseguíssemos chegar a terra, poderíamos ir às grandes índias, conhecer esses países de sonho, que são, ao que parece, verdadeiros paraísos!
Esquecendo a triste situação em que se encontrava, o gascão encantava o companheiro com o seu entusiasmo, mas este prudentemente ia de vez em quando deitando umas
olhadelas na direcção do de Dieppe, temendo novo ataque, mas o infeliz continuava tranquilo, e parecia profundamente adormecido; então Bignache deu toda a atenção
aos devaneios do patrão, e esforçou-se o melhor que pôde para esquecer a tirania da fome, que se fazia sentir cada vez mais.
João dAmblayves falou ainda, evocando pela décima vez as riquezas maravilhosas que tinha esperado encontrar em seguida a esta perigosa travessia. Os diamantes de
Golconda, as safiras e os magníficos e incomparáveis rubis de Ceilão, as pérolas do golfo Pérsico e de Colombo, as porcelanas da China longínqua, os esplêndidos
estofos de seda e algodão. o sândalo. o âmbar. os perfumes.
- Mas, sr. conde, para que serve desejar e possuir tantas riquezas, decidiu-se a opinar Bignache ao fim dum momento. A fortuna bastante considerável que vos deixaram
vossos pais, permitiam-vos viver largamente.
- Largamente talvez, mas aborrecido, certamente. Compreendes, meu bom Bignache, nada vale às riquezas que nós próprios conquistamos, com risco da nossa vida! Quantas
vezes invejei navegadores que voltavam às praias da velha Europa, com os seus barcos cheios de mercadorias de todas as espécies, tesouros e pedras preciosas.
- Emquanto esperamos, suspirou o infortunado Savínio, a nossa nave reduziu-se a modesta jangada. Quanto à equipagem, não se sabe muito bem nem o que faz, nem o que
diz. Da carga mais vale não se falar!
Mas João dAmblayves parecia não fazer caso destas apreciações, misturadas ao mesmo tempo da amargura e prudência, do seu interlocutor. João continuava a falar e
a descrever as maravilhas que poderia ter encontrado. Fulgores estranhos brilhavam-lhe nas pupilas, as narinas dilatavam-se-lhe, por vezes respirava a plenos pulmões,
erguendo o peito. Parecia-lhe sentir o cheiro agradável da canela, da noz moscada, dos cravos da índia. Já não era a superfície brilhante das ondas que ele via,
desdobrando-se sob o seu olhar encantado, mas as cidades de sonho do Oriente misterioso, com os seus templos de jaspe e pórfiro, onde a luz quente destilava perfumes
de sândalo. A sedutora miragem fazia-lhe esquecer as horas atrozes e angustiantes que vivia, e a morte que o esperava em breve. Uma vez mais, tinha-se deixado levar
pela atracção da aventura, que o tinha conduzido a estas regiões longínquas e estranhas. Um vinco ligeiro desenhava-se na comissura dos lábios e a mão que se tinha
fechado sobre o pulso do seu criado, estava agitada dum leve estremecimento.
- "Misericórdia! disse Bignache para si. Vai agredir-me como o de Dieppe."
João de-pressa se libertou da visão embriagadora que tinha apagado por um momento tudo o que a sua situação tinha de trágico. O seu rosto contraiu-se. Um tubarão
tinha roçado pela jangada, e a vista do terrível animal fez evolar e desaparecer o sonho. Bruscamente passou a mão pela testa humedecida.
- Perdoa Bignache. Tens razão. Não sei o que digo. Seria preciso estar louco para esperar ainda.
- Sr. conde, está perdoadíssimo!
E a espectativa voltava, lancinante. Em vista dos tormentos da sede e da fome, e a impossibilidade absoluta de se abrigarem contra os ataques implacáveis do sol,
os dois homens imobilizaram-se. A energia que os tinha animado até aqui, ia-se extinguindo; constantemente parecia-lhes ouvir tocar os sinos. Ao pé deles o marinheiro
jazia, ofegante.
Eis que de-repente, no momento em que os dois companheiros se sentiam de novo presos duma profunda angústia, um grito terrível se ouviu perto deles. O de Dieppe,
que eles julgavam adormecido, tinha-se levantado dum salto.
Maldito. que fazes, homem?
João tinha-se levantado, e lançando-se sobre o homem esforçava-se por retê-lo e passar-lhe um braço à volta da cintura, mas o outro escapou-se agilmente; antes que
o pudesse agarrar, soltava um grito de demente, e estendendo os braços, mergulhou nas ondas.
- Desgraçado! Está perdido! berrava Bignache. Os tubarões.
Os dois gascões inclinavam-se e esforçavam-se por estender uma mão em auxílio do demente, mas este longe de procurar o antigo refúgio, nadava vigorosamente e distanciava-se
cada vez mais, insensível aos apelos repetidos dos companheiros.
Não pôde ir muito longe. Uma rápida curva desenhou-se no oceano calmo. Uma forma alongada apareceu durante alguns instantes. Um grito atroz ressoou. A cabeça do
infeliz, que se distinguia a umas vinte braçadas, desapareceu subitamente e quási ao mesmo tempo, o mar tingia-se duma cor avermelhada; voltou o silêncio, opressivo,
perturbado unicamente pelo marulhar das vagas.
João e Bignache trocaram um olhar aterrado.
Meu Deus! contudo é melhor que fosse
assim, murmurou Savínio. Já não tem que sofrer! E depois, quem sabe, dentro de algumas horas, teremos nós a mesma sorte!
Acabrunhado, o gascão não respondia; pela expressão aflita da sua fisionomia não era difícil adivinhar que ele tampouco alimentava alguma esperança de sair indemne
desta aventura. Os sedutores países do Oriente não seriam para ele uma realidade. Jamais os conheceria. O Oceano fecharia a breve trecho a sua mortalha sobre os
dois náufragos que continuavam, contudo, a observar ansiosamente o horizonte.
II
Um socorro oportuno
Durante quanto tempo ficaram os dois gascões acocorados lado a lado, deixando errar ao acaso sobre as ondas calmas, os seus olhares deslumbrados pelos reflexos da
luz do sol? Impossível saber. Caiu a noite rapidamente, cintilando as estrelas no céu claro. Uma brisa suave veio acariciar-lhes os rostos escaldantes. Traços fosforescentes
ziguezagueavam à superfície do Oceano. A magia da noite ostentava as suas maravilhas; contudo, João e Bignache não se sentiam enfeitiçados. A fome e sobretudo a sede, continuava a torturá-los. A todo o momento parecia-lhes ouvir o grito atroz que tinha soltado o marinheiro quando fora devorado pelo tubarão.
Pela terceira vez, Savínio tomou a palavra para repetir, tentando convencer-se:
- Contudo, tenho uma comichão nos ouvidos. Talvez que não esteja tudo perdido.
João dAmblayves tinha-se contentado em levantar desdenhosamente os ombros; depois sob um
céu estrelado, balançados pelas vagas, foram vencidos por um sono pesado, entrecortado de pesadelos que os fazia acordar sobressaltados, querendo beber, sentindo-se
fracos como crianças. Os seus corações batiam precipitadamente, os olhos febris de olheiras fundas, e os rostos macilentos, indicavam abatimento e profunda fadiga.
Como parecia estar longe a energia de que tinham dado provas os dois homens, durante as horas que se tinham seguido ao naufrágio do Aquilon! Deixavam-se levar dora-avante
pelo destino, sem reagir, à mercê dos acontecimentos. O Oceano é tão vasto, que já não esperavam nenhum socorro, e por vezes vinham-lhes aos lábios orações aprendidas
na meninice. Reviviam, angustiados, cenas das suas existências tão breves, e que pareciam estar agora tão perto do seu termo.
Mais uma vez o sol se ergueu sobre as ondas, o sol que de novo ia torturá-los, abrasá-los. Deitaram-se, e puseram os gibões sobre o rosto para se protegerem um pouco
mais. E sempre à volta do seu sinistro refugio, os tubarões passavam para cá e para lá, certos, sem dúvida, que os últimos sobreviventes não tardariam a imitar o
exemplo do seu infortunado companheiro de viagem.
Bignache já não dizia nada, tinha-se acocorado, olhando as ondas fascinado pelo contínuo espelhar. Parecia que o Oceano o atraía, que uma força irresistível o incitava
a abandonar a jangada.
- Vejamos, queres endoidecer? interrompeu João, quando surpreendeu a atitude anormal do seu criado. Esqueces-te das recomendações que tu próprio me fazias ontem? .
- Ontem podíamos ainda esperar. Hoje sinto que já não tenho forças. Parece-me que tenho
a garganta em fogo. Para quê obstinar-se? Expormo-nos a sofrer mais ainda? Ah! Tudo está acabado!
O pobre rapaz ia prosseguir nas suas lamentações quando, de-repente, sentiu apertarem-lhe o pulso como num torno. Ao mesmo tempo a voz de João fazia-se ouvir, parecendo
alegre desta vez:
- Coragem! Talvez nos venham socorrer. Olha! Lá adiante!
Bignache apressou-se a obedecer ao seu patrão, e depois de procurar alguns instantes, elevou uma mão à altura das fontes para proteger a vista contra o brilho dos
raios do sol que o deslumbrava ainda.
- Não vejo nada, sr. conde! balbuciou.
- Sim, homem! Segue o meu dedo. Não distingues alguns pontos negros que se destacam mais ou menos à altura do horizonte?
Bignache correu mais uma vez o Oceano com o olhar, e de-pressa o seu rosto se alegrou.
- Tem razão, sr. conde. Também distingo uns pontos negros. Mas é curioso! Parece-me que se aproximam e que se tornam brancos.
- Quere dizer que são velas, portanto barcos! Tão intensa era a satisfação do gascão, que deu
uma sonora palmada no ombro do seu criado. Bignache quási perdeu o equilíbrio, tal era a sua fraqueza; resmungou, mas o amo não lhe deu tempo para protestar.
- De-pressa! É preciso fazer-lhes sinal. Poderiam passar sem dar pela nossa presença!
Os pontos brancos aproximavam-se ainda. João podia agora contá-los. Eram sete barcos de velas triangulares iguais às dos barcos de pesca. Contudo, quando as suas
silhuetas se desenharam melhor,
na testa de João vincou-se uma ruga de dúvida. Verificou, com efeito, que se tratava dumas embarcações chamadas cafurs, cada uma com cerca de vinte índios, de turbantes
e pequenos canhões. Os recém-chegados tinham visto a jangada e os dois tripulantes; com todas as velas içadas, aproximavam-se, e Bignache imóvel ao pé do patrão,
começou a sofrer uma apreensão cada vez maior.
- Esta gente não me parece simpática! disse ele. Estou com medo de termos escapado a um perigo grande para cairmos noutro maior!
- Estarás tu com medo, maroto?
- Medo, sr. conde! Deus me proteja! Todavia, deveis concordar que não estamos em estado de resistir a estes bárbaros. Vede como parecem decididos a pôr-nos à sua
mercê. Não vêem procurar-nos como amigos, mas como adversários!
João dAmblayves de-pressa pôde constatar que os receios do seu companheiro eram fundados. Os caturs iam ao encontro da jangada. Os índios que iam a bordo observavam
os dois náufragos com uma insistência inquietante; muitos traziam lanças e escudos.
- com mil diabos! Estes atrevidos parecem-me mais dispostos a atacar-nos do que a socorrer-nos!
- Era o que eu vos dizia, sr. conde! Bignache, cada vez mais embaraçado, passava
uma mão pela sua abundante cabeleira ruiva. Esquecia momentaneamente a fome e a sede que o importunava há tanto tempo, para só pensar neste novo perigo.
- Então ? Que faremos ?
- Defender-nos! É simples!
O bravo moço pensou que o seu patrão queria gracejar, mas verificou de-pressa que João dAmblayves
tinha tirado a arma da bainha, e que no seu olhar cintilavam pequenos clarões. Nada restava do homem que havia pouco parecia curvado sob o peso da fatalidade. Estava
ali um inimigo que se preparava para atacar, por isso ele o esperava de pé firme, e espada na mão.
As intenções dos tripulantes dos caturs não deixavam nenhuma dúvida no espírito dos sobreviventes do Aquilon.
O primeiro barco estava somente a umas cem braçadas da jangada, retinindo de roucos gritos de guerra. Os índios pertenciam a um bando de piratas e preparavam-se
para se lançar sobre a presa que se lhes oferecia.
- Estamos perdidos! balbuciou Bignache. Para que combater?
- Para quê? cobarde! Mas eu prefiro cem vezes morrer com as armas na mão do que servir de pasto aos tubarões. Se ainda tens sangue nas veias, segue o meu exemplo!
- Mas, sr. conde! Eu não tenho como vós, uma espada!
- Combaterás com os punhos!
Tal declaração não convenceu o fiel criado. A bravura não era o seu fraco; de resto não tinha a mínima ilusão de sair vitorioso do combate; que poderiam fazer os
dois contra os fanáticos que se preparavam a assaltar-lhes o frágil refúgio ?
- Vamos! Um pouco de coragem, medroso! João dAmblayves não parecia impressionado com a presença dos caturs, cujas equipagens manobravam agora de maneira a rodear
a jangada. O seu olhar seguia friamente os três primeiros escaleres. Os índios inclinavam-se curiosamente, e agitando
lanças esperavam sem dúvida assustar o estranjeiro, que eles viam em pé e de espada na mão.
Um índio muito alto que se agitava diante da primeira embarcação, gritou aos gascões algumas palavras que eles não compreenderam; contudo, pela mímica e gestos do
indígena, perceberam que os intimavam a render-se.
- Queres a minha espada? gritou ele. Vem buscá-la "bonifrate"!
Mas os recém-chegados não pareciam dispostos a abordar a jangada; alguns brandiam arcos, outros colocavam as flechas nas aljavas de vime.
- Valia mais transigir, arriscou Bignache. Bem vedes, sr. conde, que os nossos corpos serão transformados em pregadeiras de alfinetes antes mesmo de vossa senhoria
ter mandado uma espadeirada a esses atrevidos. É mesmo evidente. E depois, senhor, reflecti. Eles não são talvez tão ruins como parecem. Vale mais cair em seu poder
do que.
- Ser seu escravo? protestou o gascão. Ser vendido como um animal? Nunca! Toma bem sentido nisto.
- Contudo, vós sois hábil e corajoso, sr. conde, e podereis evadir-vos. Acho que não há que escolher.
A-pesar-das insistências ?de Bignache, João dAmblayves, estava irrevogável na sua decisão. Esperava impassível, pronto a defender-se até à morte, quando de-repente
se ouviram clamores a bordo dos caturs. Os olhares dos índios que até aqui convergiam para a jangada, mudaram de rumo. com as costas da mão, Bignache limpou o suor
que lhe corria abundantemente pelo rosto. Já se via crivado de flechas; fechando os olhos, esperando
o final, ia maldizendo a teimosia do patrão; todavia os assobios sinistros das flechas que ele esperava ouvir a todo o instante não se produziam. Longe de procurar
iniciar o ataque para abater ou capturar os náufragos, os índios abandonaram bruscamente a manobra começada e deram meia volta a toda a pressa. Duns barcos para
os outros as equipagens dos caturs interpelavam-se, agitando-se e os olhares convergiam para um ponto que aparecia no horizonte.
- Que é isto? Estarei sonhando, sr. conde?
- Não, estás acordado. Estes demónios parece que nos abandonam.
- Mas porquê? O que é que se passa então ?
- Sinto-me tão desejoso de saber como tu, meu bom Bignache!
João dAmblayves continuava esperando, em pé no meio da jangada, de espada na mão; nada na sua fisionomia fazia transparecer a inquietação profunda que o pungia intimamente.
Não era sem espanto que ele assistia a esta fuga precipitada, no momento em que se via na eminência de sucumbir aos ataques dum inimigo feroz.
Todavia, os dois náufragos pareciam já não interessar aos índios. Os caturs afastavam-se no meio duma certa confusão; os gritos de vitória e de guerra que se tinham
sucedido, num momento, tinham bruscamente cessado. Os piratas pareciam fugir a um perigo surgido de-repente.
Em três minutos, os dois gascões de pé, um junto do outro, assistiram a esta retirada precipitada, sem terem tempo para suposições. Os sete barcos afastavam-se rapidamente,
e daí a pouco João pôde compreender a razão desta súbita partida.
um navio aproximava-se e a sua silhueta desenhava-se cada vez mais próxima.
- Desta vez, Bignache, parece-me que se produziu algo de novo!...
O gascão já não procurava esconder o seu contentamento. O seu olhar habituado há tanto tempo a pesquisar a superfície das águas, reconhecia as velas triangulares
latinas.
-Não me engano!... É um navio cristão!...
Estamos salvos!... Vem em nosso auxílio!...
Durante algum tempo os dois homens esperaram ainda. O navio aproximava-se e João pôde constatar que não se tratava duma nave ou galera, mas sim duma magnífica caravela
igual às que Vasco da Gama e os seus intrépidos companheiros utilizavam para as suas longas viagens às índias, viagens que os tinha tão brilhantemente celebrizado
e consagrado.
Todavia, uma particularidade prendia a atenção do gascão, à medida que crescia a silhueta do navio. As velas eram dum azul de céu e a sua cor confundia-se por vezes
com a do mar, refletindo a abóbada celeste. Duas grandes cruzes vermelhas distinguiam-se sobre a vela grande, e sobre a do mastro da proa, batidas pela briza.
- Não distingo bem o pavilhão, resmungou Bignache. Não é a flor de liz do rei de França que arvoram em Dieppe os que se aventuram a percorrer estas paragens?...
João d'Amblayves ficou um momento sem responder; observava atentamente os estandartes que se agitavam ao vento alegremente, na caravela , embandeirada.
- Estes pavilhões trazem as armas da casa real
de Portugal, respondeu emfim.
- Talvez seja alguma das caravelas do Gama, o grande descobridor, disse Bignache, que também conhecia de longa data os feitos do grande Português. Mas que importa.
Vão-nos socorrer. Poderemos, emfim, matar a fome e a sede e, sobretudo, afastar a perspectiva pouco animadora de acabar a existência no estômago dum desses malditos
tubarões.
O gascão não respondeu e limitou-se a remeter a espada à bainha. Da caravela tinham avistado os dois homens. Agora dos caturs apenas restavam uns pontos negros que
desapareciam no lado sul do horizonte.
- Estes demónios sumiram-se como um bando de pardais, grunhiu Bignache, que estava mais comunicativo desde que o perigo desaparecera. Ah! não vos tinha dito, sr.
conde, que os meus ouvidos nunca me enganam? E continuo a ter comichão. Vai certamente passar-se qualquer coisa de extraordinário.
Sempre sem resposta! João estava demasiado absorvido pela aproximação da caravela azul, para prestar a mínima atenção ao palavriado do companheiro. Agitava agora
a mão repetidas vezes, respondendo aos sinais que lhe faziam os marinheiros do navio, agrupados no pavez, nas toldas da proa e da ré, ao pé dos morteiros e dos canhões.
Agora, as horas de angústia que os dois infelizes tinham vivido, pareciam estar esquecidas. Não desviavam os olhos do casco do navio, todo pintado de azul. À proa
destacavam-se em letras brancas duas palavras: São Jorge. Os raios do sol faziam refulgir os capacetes, as couraças e os ferros das lanças que os tripulantes da
caravela ostentavam.
O barco aproximava-se e João via-o acercar-se
como um sonho. Estavam, emfim, acabados os pesadelos. Tão hostil tinha sido, havia pouco, a atitude dos índios, quão disposta a socorrer era agora a atitude dos
portugueses. Já os marinheiros se apressavam a lançar cabos que vinham pender e balançar ao longo da quilha.
- Este navio ainda é mais importante do que o Aquilon, sr. conde, assegurou Bignache, piscando os olhos.
O bravo moço interrompeu as suas reflexões; a caravela, habilmente manobrada, passava agora quási rente à jangada. Ouviu-se uma voz vinda da ponte, e João pelos
gestos que lhe dirigiam do São Jorge, percebeu que devia esforçar-se por apanhar as amarras, quando do navio lhas lançassem. Dominando a fadiga e o esgotamento,
os dois gascões apressaram-se a estender os braços; produziu-se um violento choque; perdendo o equilíbrio, foram fortemente precipitados um contra o outro. De-pressa
se levantaram e, reunindo as suas forças, a-pesar-das constantes oscilações do seu pequeno refúgio, conseguiram agarrar e trepar pelo cabo. Durante alguns instantes
os náufragos esforçaram-se por subir, mas a sua fadiga era tal, que dois dos homens do São Jorge, de capacete de lã azul, deixaram-se escorregar pela corda para
os ajudar a trepar; dezenas de mãos estendiam-se para os agarrar. Fatigados, João e Bignache sentiram-se içados pelos cabeções vigorosamente; incapazes de resistir
mais tempo, deixaram-se cair na tolda da caravela, emquanto vultos curiosos se agrupavam à volta deles.
Mas os marinheiros que faziam círculo à volta dos gascões de-pressa desapareceram. Acabava de Se ouvir uma voz clara de comando. Todos recolheram
docilmente aos seus postos, e de novo a caravela azul singrou a toda a vela. A jangada abandonada, sobre a qual João e o companheiro tinham vivido horas desesperadas,
distanciou-se lentamente, balançada pelas vagas, emquanto que os tubarões, desiludidos, desapareciam sob as ondas, sem dúvida para procurar outra presa na imensidade
do Oceano.
III
A amazona do mar
Durante algum tempo, João dAmblayves e Bignache estiveram estendidos, lado a lado, aniquilados pelo esforço dispendido. Mal distinguiam os tripulantes da caravela,
que iam e vinham sobre o convés. O médico de bordo, que se tinha ausentado por instantes, de-pressa voltou com um frasco que chegou várias vezes às narinas dos náufragos.
Um cheiro forte, picante e desagradável, fez despertar os gascões. As lágrimas saltavam-lhes aos olhos.
- Obrigado, senhores, murmurou por fim João numa voz fraca. Acabam de nos salvar!
O médico que se ocupava activamente de João e Bignache, viu, com alegria, que os náufragos recobravam pouco a pouco a lucidez:
- No portuguese? interrogou.
- Não, não somos portugueses, respondeu João. Somos franceses. Franceses da Gasconha.
A fisionomia do físico tinha-se sombreado de-repente. Parecia ao mesmo tempo surpreendido
e contrariado de encontrar franceses nestas paragens perdidas do Oceano Índico. Geralmente, além de alguns comerciantes de Dieppe, poucos navios franceses se aventuravam
através da índia oriental, que os navegadores portugueses consideravam já como seus domínios.
- Pode retirar-se Diogo. Eu próprio interrogarei estes homens!
Os gascões voltaram ligeiramente a cabeça, intrigados pela voz harmoniosa e estranha que se elevava perto deles. Uma surpresa intensa se desenhou nos seus rostos
fatigados, quando alguns passos à frente dos marinheiros e soldados que ainda restavam a contemplá-los, apareceram três personagens, que se tinham aproximado sem
ruído, emquanto o gascão trocava, sem sucesso, algumas palavras com o médico.
No personagem que acabava de interpelar o físico, havia realmente algo para intrigar João e o companheiro, impossível descrever os seus traços. Um elmo de pluma
ondulante escondia-lhe o rosto e cobria-lhe a cabeça altiva; apenas através dos interstícios se divisavam dois olhos negros. De altura mediana, trazendo o escudo
no braço esquerdo e descansando a mão enluvada sobre a espada, o desconhecido ostentava uma soberba couraça de ornamentos doirados finamente cinzelados, coberta
duma cota de veludo azul. Tinha um aspecto deslumbrante.
Um pouco mais atrás, um segundo personagem, alto, o rosto moreno enquadrado duma barba curta acastanhada, aparentava apenas uns trinta anos e encontrava-se vestido
com um gibão de veludo carmezim, guarnecido de pesados galões de oiro e prata; com uma das mãos, molemente, agitava a
aba duma enorme capa que caía em pregas rubras sobre a espada, que a outra mão acariciava. O olhar, encimado de espessas sobrancelhas, observava sem simpatia os
náufragos que lhe inspiravam evidente desconfiança, sobretudo depois que João se tinha exprimido em francês; no entanto, obedecia respeitosamente ao homem do elmo,
que parecia ser o comandante da caravela azul.
Quanto ao terceiro indivíduo, todo vestido de negro, conservava-se prudentemente no último plano; pequeno, definhado, ligeiramente corcunda, o rosto magro, de olhar
fugidio e sonso, o nariz ponteagudo, a pele amarelenta e viscosa, e os cabelos negros como as penas dum corvo. Este personagem inspirava desde o primeiro instante
uma repulsa irresistível.
Mas João dAmblayves e Bignache, ocupavam-se principalmente do primeiro desconhecido. O homem do elmo, sem mesmo se preocupar em levantar a viseira, tinha parado
a dois passos dos gascões; a sua voz, estranha e sonora, sem dúvida por sair através do capacete, fazia-se ouvir de novo:
- Sois ambos franceses?
O desconhecido exprimia-se num francês bastante correcto, carregando ligeiramente nos "r". João dAmblayves, contente por encontrar alguém que o pudesse compreender,
apressou-se a responder:
- Já o tinha dito há pouco ao médico. somos ambos franceses!
- E que vínheis procurar nestas paragens? Ignorais, porventura, que só os marinheiros e soldados do rei D. Manuel de Portugal têm direito de navegar pelo Oceano
Índico, seu domínio?
- Deus meu, ignorava que todo este vasto mar
pertencesse ao vosso soberano. Julgava que cada um era livre, para vogar à aventura. O mundo é tão grande. Mas, permiti que me apresente, senhor. João dAmblayves,
gentil-homem da Gasconha. De minha parte, a quem tenho a honra.
Pronunciando estas palavras, João tinha-se amparado à parede e esforçava-se por levantar-se. O homem do elmo impediu-o com um gesto, e esquivando-se à pregunta que
lhe era dirigida:
- Não vos incomodeis! Precisais de estar ambos deitados. Estais num estado de depressão lamentável. vou, de-resto, mandar tratar de vós.
Os dois náufragos estavam de facto com um aspecto desastrado; os trajos em farrapos e ainda por cima, na precipitação de abandonar a jangada, tinham-se esquecido
de trazer os gibões, que lhes serviam para temperar um pouco os raios do sol. As camisas rasgadas deixavam ver o peito bronzeado.
- Estamos realmente sem forças devido ao esforço considerável que dispensamos; foi a Providência que vos pôs no nosso caminho. Dentro de algumas horas estaríamos
irremediavelmente perdidos.
João dispunha-se a contar algumas peripécias passadas a bordo da jangada com o seu fiel servidor; mas mal tinha pronunciado algumas palavras, não pôde continuar
tal o estado de fraqueza em que se encontrava. Sucumbiu de novo, esboçando um gesto de impotência.
O desconhecido do elmo voltou-se então para o homem de preto que se encontrava atrás dele, sem dizer nada, demorando-se a encarar os gascões.
- Coelho! Chama três marinheiros e manda conduzir os dois franceses para a cabine verde!
O interpelado parecia embaraçado com esta ordem, mas o desconhecido deixou logo escapar um gesto de impaciência, e o outro não insistindo afastou-se num passo saltitante.
Dois minutos mais tarde voltava com três homens.
O segundo personagem também parecia surpreendido com a decisão do seu chefe:
- Acaso esqueceis que estes homens são franceses? insinuou. Se se tratasse de corsários ou aventureiros? Não devemos tratá-los com consideração.
- Não, Rui, devemos antes de tudo ser humanos! Por serem franceses, não deixam por isso de ser homens como nós. Devemos ter piedade pelo que sofreram!
- Tomai cuidado! Essa vossa fraqueza perder-vos-á!
Um clarão tinha perpassado pelas pupilas do homem da capa carmezim, e as suas mãos enluvadas tinham-se crispado; porém, esta atitude altiva não durou muito tempo;
de novo a voz bizarra, quási feminina do seu chefe, se fazia ouvir:
- Quem comanda a bordo do São Jorge? Esquecei-vos, Rui da Mota, que sois meu subordinado, e que me jurastes obediência?
- Estou certo de nunca o ter esquecido, e de vos ter dado em muitas circunstâncias provas irrefutáveis da minha fidelidade e dedicação. Ainda recentemente ao pé
do capitão-general Afonso de Albuquerque.
- Afonso de Albuquerque não tem nada que ver com esta discussão. Sou aqui a única autoridade depois de Deus. O São Jorge pertence-me. As minhas ordens devem ser
consideradas como leis. Estes dois homens estão, de hoje para o
futuro, sob a minha protecção; exijo que os tratem como hóspedes e que lhes prestem todos os cuidados que necessita o seu estado.
O tom do desconhecido não admitia réplica. Rui da Mota não insistiu, inclinou-se, mal dissimulando a raiva que o acometia.
Imóveis, João e Bignache tinham assistido a esta discussão entre os dois portugueses, por sua causa; contudo, como aqueles se exprimiam na sua língua natal, estes
não puderam compreender o sentido das suas palavras; de-resto a sua fraqueza era imensa e a chegada de Coelho com os três marinheiros veio pôr termo a esta conversa.
Num momento os quatro recém-chegados, levantando com precaução os náufragos, transportaram-nos para a cabine indicada pelo seu capitão.
Cinco minutos mais tarde, João e o seu fiel companheiro, encontravam-se estendidos sobre duas camas no interior dum compartimento diminuto, cujo interior era forrado
de veludo verde. Coelho, que se tinha ausentado mais uma vez, apareceu com um prato carregado de carnes frias, pastéis e frutos, aos quais veio juntar uma ânfora
cheia de vinho.
- Bemdita seja Nossa Senhora! exclamou Bignache segurando um prato e estendendo-o ao seu patrão: nunca tive tanta fome na minha vida! bom proveito, sr. conde. Aqui
tendes o vosso almoço!
João dAmblayves não se fez esperar. Caía de fraqueza. Por isso apressou-se a morder com todos os dentes numa perna de carneiro assado, estendendo outra ao criado
que também não se fez rogado.
Imóvel, de pé, encostado à porta, Coelho observava-os.
Os seus lábios finos enrugavam-se, o rosto magro iluminava-se dum sorriso indefinido.
Durante cerca dum quarto de hora, João e Bignache não disseram uma palavra; estavam demasiado ocupados a restaurar-se, e parecia-lhes que acabavam de servir-lhes
o mais lauto banquete do mundo.
- com mil diabos! Sinto-me reviver, exclamou emfim João, depois de ter levado várias vezes a ânfora à boca. E depois este vinhozito ressuscitaria um morto! Toma,
bebe um pouco! À tua saúde Bignache!
O bravo moço deitou a mão rapidamente ao recipiente que lhe oferecia o patrão, depois deixando escapar um suspiro de satisfação, deu um estalo com a língua, declarando
como conhecedor:
- Famoso, de facto! Nem pareço o mesmo homem!
O bravo rapaz, uma vez refeito, recobrou pouco a pouco a sua facúndia; o rosto fatigado coloria-se um pouco, os olhos retomavam o brilho habitual, e um largo sorriso
iluminou a sua fisionomia.
- Então, sr. conde, não morremos ainda esta vez!
E como o gascão opinasse alegremente com a cabeça, Bignache apressou-se a acrescentar:
- O que pensais sobre esta caravela azul?
- O que penso? Meu Deus, que chegou bem a-propósito! Foi a própria Providência que a fez chegar até a nós!
- Bem, compreendo! Mas que vos parece este capitão? Tipo engraçado, heim? E que maneiras estranhas! Não viajei muitas vezes, mas o que eu nunca pude imaginar foi
que um capitão de
caravela pudesse conservar assim um elmo em pleno mar! Inda se fosse para combater.
- Tens mil vezes razão, Bignache, disse João passando o braço pelos lábios sujos de gordura, os modos deste indivíduo intrigam-me e inquietam-me ao mesmo tempo.
Verdade é que não tenho razão de queixa da sua atitude para connosco. É a ele que devemos estar tão bem tratados.
- Naturalmente, que não é ao espantalho de carmezim! Ah! esse! Eu surpreendi os olhos que ele vos deitou em certo momento! Brr. Fiquei gelado! E quanto ao outro.
Mas para que havemos de falar nele, se continua a observar-nos como se fôssemos verdadeiros fenómenos!
Exprimindo-se assim, Bignache designava com um sinal de cabeça Coelho, que continuava obstinadamente encostado à porta, não perdendo de vista um só dos seus movimentos.
- Sabes o que me fazes lembrar, amigo? declarou Bignache voltando-se para o homem de negro. Um sinistro corvo!
- Cuidado, interrompeu João, ele pode compreender.
- Compreendes! Não há perigo! replicou o bravo rapaz, levantando desdenhosamente os ombros. Olhai esta máscara, sr. conde! Nem sequer um músculo mexe, uma autêntica
cara para bofetadas! Não é verdade amigo ?
E como Coelho continuava impenetrável, Bignache acrescentou:
- Bem vedes, sr. conde. Esta máscara de cera não entende uma palavra de francês. Ainda não acreditais? Esperai, vou interrogá-lo!
Voltando-se para Coelho o gascão preguntou:
- Dize lá, amigo, como se chama o teu capitão?
e porque se veste com tanto espavento para receber hóspedes? Singular idea a de disfarçar-se assim! Será ele terrivelmente feio? Eu e o meu patrão gostaríamos de
conhecê-lo um pouco melhor. Nem uma palavra. Parecia que Coelho não percebera que falavam com ele.
- És surdo? És mudo ?
Esta nova pregunta não teve mais sucesso de que as outras.
Então Bignache voltou-se, sorrindo para o companheiro :
- O que vos dizia eu, sr. conde, um verdadeiro néscio.
- Talvez, mas um néscio de quem devemos desconfiar. Não reparaste no seu olhar dissimulado?
- Olhar de pássaro moribundo! Em todo o caso daria dinheiro para saber o que esta caravela azul fazia nestas paragens.
- Darias dinheiro, pobre Bignache! Esqueces-te, então, que toda a nossa fortuna se perdeu no Aquilon e que não nos resta sequer um "soldo" ?
Os dois companheiros interromperam-se. Coelho vinha buscar os pratos e as travessas, sempre imperturbável.
O homem de negro, feito o serviço, ia sair, quando, bruscamente, uma silhueta se recortou na moldura da porta. Coelho inclinou-se, e João que se tinha voltado, reconheceu
o estranho personagem ainda enfiado no elmo e na couraça, que os tinha recolhido pouco tempo antes a bordo do São Jorge.
com um gesto, o recém-chegado fez sinal ao homem de negro para se afastar; Coelho não hesitou e desapareceu com os pratos vazios.
- Como poderei agradecer-vos o vosso generoso acolhimento. começou o gentil-homem gascão.
Mas o desconhecido não lhe permitiu acabar a frase:
- Senti-vos melhor, sr. dAmblayves? .
- Muito melhor, asseguro-vos.
Os olhos negros tornaram a brilhar por detrás da viseira.
- Ainda bem. Espero que em breve não conservareis da vossa aventura mais de que uma má recordação!
O capitão da caravela azul falava lentamente e João continuava intrigado e seduzido pela sua voz cantante e quási sobrenatural.
Bignache encolhia-se na cama e o seu olhar espantado procurava debalde divisar o rosto ao visitante, que estava de pé à cabeceira de dAmblayves.
- Desculpareis uma curiosidade bastante legítima, senhor; gostaria de saber quem teve a bondade de recolher-nos e tratar-nos.
- Encontrai-vos a bordo do São Jorge, conde dAmblayves.
- Sem dúvida, mas quem é o São Jorge?
- A caravela azul. O terror dos piratas índios!
A insistência com que o seu interlocutor se esquivara às preguntas começava a exasperar o gascão; através dos interstícios da viseira, distinguia o olhar misterioso
que o fixava com certa ironia; depois, calmamente, a voz continuou:
- Tranquilizai-vos, conde dAmblayves. Não tardará muito que tenhais completa satisfação; porém, antes disso, e antes de vos dizer o meu
nome, exijo que me conteis com a maior sinceridade, as aventuras de que fostes herói antes de vos recolher à jangada, onde eu e os meus homens vos descobrimos!
- Por Deus, senhor, que as minhas intenções são honestas. Pela minha honra, posso assegurar-vos que nem eu nem Bignache somos nenhuns corsários. Não tenho absolutamente
nada a esconder-vos!
João sentia-se agora suficientemente refeito, para pôr o seu interlocutor ao corrente das suas peregrinações e projectos; o homem do elmo sentou-se à cabeceira,
e ele começou a narração.
João falou por muito tempo. Disse como se tinha aventurado por esses mares imensos, levado pela atracção do desconhecido e da aventura; confiou as suas esperanças
de igualar os intrépidos viajantes que descobriam terras maravilhosas e conseguiam conquistar verdadeiros tesoiros.
O seu vizinho escutava-o sem o interromper um só instante, meneando às vezes a cabeça, as mãos enluvadas e nervosas descansando sobre a espada de punho finamente
cinzelado.
O gentil-homem gascão contava como o marinheiro de Dieppe, acometido de loucura se tinha precipitado nas ondas, quando a porta que Coelho tinha fechado sobre si,
se entreabriu docemente. Uma silhueta apareceu, e João reconheceu nela o homem da capa carmezim. Rui da Mota parecia inquieto e irritado, por ver o seu capitão demorar-se tanto tempo na cabine onde se encontravam os dois náufragos.
O capitão da caravela azul tinha-se voltado de-repente.
- O que há? interrogou com uma voz subitamente mais rude.
- Nada. apenas estava inquieto.
- Não vos inquieteis, Rui da Mota, e lembrai-vos antes que não vos permito que não executeis as minhas ordens. Irei ter convosco dentro de momentos.
- Continuaremos a singrar com destino a Goa?
Rui com dificuldade se conservava calmo. A resposta pouco amável do capitão tinha-o exasperado. Como o olhar dos gascões convergiam para ele com curiosidade, Rui
da Mota esboçou um sorriso, e inclinou-se com deferência diante do capitão.
- Naturalmente que vamos para Goa! respondeu o desconhecido. Tenho que me encontrar aí forçosamente com o capitão-general Afonso de Albuquerque. E que fique entendido
que não quero ser incomodado por nenhum motivo. Fixem bem isto.
João não tinha compreendido as palavras em português que o seu vizinho dirigira ao visitante, mas percebeu sem custo que elas tinham exasperado Rui da Mota. Durante
alguns instantes o imediato demorou-se hesitante. Parecia custar-lhe imensamente deixar o seu chefe só com os náufragos, temendo pela sua vida. Contudo, o capitão
tendo-se voltado outra vez, Rui não insistiu e contentou-se em fechar ruidosamente a porta atrás de si.
- Onde estávamos nós, conde dAmblayves? interrogou, desejoso de evitar qualquer pregunta que o gascão pudesse fazer sobre Rui.
O interpelado continuou a narrativa que parecia ter despertado um vivo interesse no seu interlocutor;
logo que terminou, inclinou-se para o capitão da caravela azul:
--Sabeis agora quem sou. Não seria ocasião de me dizer emfim a quem devemos a vida e a quem devemos estar agradecidos?
O desconhecido pareceu hesitar alguns instantes; os seus dedos crisparam-se sobre os copos da espada, e bruscamente as mãos abandonando a arma, elevaram-se até ao
elmo emplumado. Durante alguns momentos obstinaram-se contra as peças articuladas da gola; depois num gesto lento, levantaram o capacete que tinha dissimulado até
ali as feições do enigmático personagem.
João e Bignache não puderam reprimir uma exclamação de assombro: aos seus olhos deslumbrados, um rosto dum oval puro acabava de aparecer; uma cabeleira opulenta,
dum negro de azeviche, caía-lhe sobre os ombros; dois olhos magníficos franjados de longas pestanas, fixavam os dois gascões aturdidos.
- Misericórdia! balbuciou Bignache. O capitão é uma mulher!
A estupefacção em que se encontravam os dois homens parecia divertir a estranha personagem; a sua voz elevava-se de novo, cantante, límpida, natural, desde que tinha
retirado o elmo:
- Permiti que me apresente por meu turno, conde dAmblayves, declarou. Sou Leonor Rodrigues!
IV
Surge o amor!
- Leonor Rodrigues!
Parecia realmente a João dAmblayves estar sonhando, tanto a sua aventura lhe parecia inverosímil. Verdade é que o nome de Leonor Rodrigues não lhe era desconhecido.
Quantas vezes, emquanto o Aquilon atravessava o continente africano, o capitão Tavernier tinha feito alusão àquela que índios e portugueses chamavam a "Amazona dos
Mares"! Ávida de aventuras, esta rapariga, pertencendo à alta nobreza do Algarve, não tinha hesitado, vendo-se órfã, a consagrar toda a sua fortuna à construção
duma caravela devidamente apetrechada. Tinha saído de Portugal alguns meses depois da chegada de Vasco da Gama a Calicut. Depois, as proezas desta virgem guerreira
contra os piratas indianos, dir-se-iam pertencer ao domínio da fantasia, tanto elas pareciam incríveis.
Desde que Tavernier tinha contado as façanhas da heroína ao gascão, quantos acontecimentos trágicos se tinham sucedido! João e Bignache tinham esquecido essas histórias.
E falando francamente.
custava-lhes a acreditar que uma mulher pudesse celebrizar-se assim nos mares longínquos. E eis que no momento em que eles menos esperavam, lhes aparece esta Leonor
Rodrigues, com um sorriso irónico ao canto dos lábios, parecendo divertida da surpresa que lhes tinha provocado!
- Então! conde dAmblayves, pareceis admirado?! Pensáveis talvez que Leonor Rodrigues não passava dum mito, tal como as sereias do astucioso e lendário Ulysses? Puro
engano). Podeis constatar que não tenho nada de imaterial.
E a rapariga continuava a rir graciosamente, afastando com um gesto muito feminino os cabelos que lhe caíam sobre a testa.
- Se alguma vez eu pudesse imaginar que.
João levantou-se da cama, e inclinando-se respeitosamente, pegou na mão da sua imprevista vizinha e depôs um longo beijo na sua luva cinzenta.
Um riso claro ressoou na cabine.
- Como se reconhece bem em vós o espírito francês, sempre galante para com as mulheres. declarou ela bastante lisonjeada com a homenagem que lhe era rendida, descobrindo
uma dupla fieira de dentes semelhantes a pérolas.
O gentil-homem gascão não respondia. Estava absolutamente encantado. A beleza da sua vizinha tinha-lhe produzido uma impressão considerável; parecia-lhe que só a
presença da "Amazona dos Mares" bastava para transformar a estreita cabine; o seu olhar extasiado não podia desprender-se daquele rosto que resplandecia em todo
o fulgor das suas vinte primaveras, daqueles lábios purpurinos, e. sobretudo, desses grandes olhos negros que o envolviam com uma insistência que não era destituída
de interesse e simpatia.
Leonor Rodrigues tinha ouvido, de facto, com atenção, a dramática narrativa do francês; não podia deixar de comover-se pensando nos perigos que ele atravessara.
A piedade que primeiro experimentara, quando o tinham recolhido a bordo da caravela azul, transformava-se num interesse cada vez mais vivo à medida que João lhe
confessava o amor do imprevisto, e a sede inextinguível de aventura, que o tinham impelido para esses mares distantes. Ela também obedecera a esse mesmo irresistível
apelo. Compreendia o entusiasmo de João; e depois este parecia-lhe tão diferente dos outros aventureiros que ela encontrara desde que levava aquela vida arriscada!
A maior parte dos portugueses ou espanhóis que se atreviam a navegar até às índias magníficas, eram atraídos pêlo engodo do oiro e não os entibiavam escrúpulos de
nenhuma espécie. Os seus hábitos eram mais selvagens, grosseiros. O espírito da cavalaria, desprezam-no. Havia, é certo, Rui da Mota, seu primo afastado e seu lugar-tenente
e que dia a dia se tornava mais assíduo e amável junto dela; mas esse Rui nunca lhe tinha inspirado senão uma simpatia medíocre. Por duas vezes, tinha recusado escolhê-lo
como esposo, a despeito das suas declarações apaixonadas.
Até aqui, na verdade, a "Amazona dos Mares" não perdera tempo a pensar no casamento; tinha muito respeito pela sua independência e liberdade, para se prender a um
desses quaisquer aventureiros que ela encontrasse ao acaso nas suas escalas. E, depois, nunca ninguém tinha conseguido fazer palpitar-lhe o coração. O seu único
e sincero amor, era a aventura, o perigo, os belos dias de navegação sob o céu de safira dos trópicos, as meditações intermináveis sob miríades de estrelas, emquanto
luminosos sulcos fosforescentes cortavam caprichosamente as ondas calmas, que o vento mal enrugava.
E o São Jorge, as suas velas azues de cruzes vermelhas, impelidas por uma briza favorável, levava Leonor para o seu misterioso destino. O capitão não pensava em
regressar à longínqua Europa. Essas plagas cheias de sol, banhadas pelo Oceano Índico, mais do que nunca exerciam sobre ela verdadeira fascinação. Nada a chamava
já ao seu país natal; não tinha ela perdido todos quanto amava? . Por isso esperava satisfazer, nestas regiões desconhecidas, a sua sede de ideal e o seu amor pelas
viajens. Insaciável, seguia sempre a sua rota, combatendo com a coragem dum leão, quando os piratas dos mares índicos tentavam impedir-lhe a passagem, desafiando
a morte e provocando a admiração dos grandes navegadores, até do próprio Albuquerque.
Agora a rapariga felicitava-se por este encontro; o seu olhar apreciava a máscula fisionomia do gascão. Desde que João se lhe tinha confiado, ela tinha sentido até
ao mais profundo do seu ser um sentimento desconhecido e novo. Parecia-lhe que o seu coração batia mais forte e que uma pesada opressão a abatia. Por mais miserável
que lhe parecesse o gascão nos seus farrapos, por mais desfiguradas que estivessem as suas feições, deixando transparecer imensa fadiga, parecia-lhe belo como Apolo.
E Bignache, que esperava estendido no seu canto, não deixou de surpreender a agitação que se lia nos belos olhos extraordinariamente brilhantes de Leonor.
Foi nestas circunstâncias que os dois jovens se encontraram, pela primeira vez, a bordo da caravela azul. João teria gostado de reter ainda a "Amazona dos Mares" no seu pequeno abrigo, obter da sua boca novas explicações; mas ela reagiu de-pressa. Tinha
que dar ordens ao piloto. Sorridente, anunciou aos náufragos que poria novos trajos à sua disposição; depois partiu, ligeira, a-pesar-da cota de malha que a protegia.
Durante um momento, João ficou olhando a porta que a rapariga deixava entreaberta. O seu rosto resplandecia. Como que se operava em si mesma uma transformação completa.
- Então, sr. conde! Que vos parece esta aventura?
Bignache, que se tinha calado um pouco, decidiu-se, emfim, a falar; os seus pequeninos olhos brilhantes fixavam-se no amo com interesse e malícia.
João dAmblayves voltou-se subitamente e passou a mão pela testa; depois, incapaz de se conter por mais tempo:
- O que penso, sr. Bignache? Mas simplesmente que a Providência guiou os nossos passos. Não lamento agora as horas atrozes que passamos na jangada, tão perto dos
tubarões.
- É linda, esta menina! afirmou o fiel servidor.
- Mais que linda! Quando vi o seu rosto julguei que me encontrava em presença duma feiticeira. Não fazes idea da sensação que tive quando o elmo se levantou, descobrindo
o seu rosto adorável.
- Está bom, sr. conde! Imagino sem dificuldade.
João tinha visto o sorriso furtivo que enrugava os lábios do companheiro; por isso apressou-se a protestar:
- Não, Bignache, desta vez não é o que tu pensas. Leonor não pode ser comparada a todas as outras que eu conheci.
E o gentil-homem gascão, ia confiar a sua profunda inquietação ao criado que considerava como um amigo, quando Bignache levou bruscamente um dedo aos lábios:
- Atenção, sr. conde. Vem gente!
Alguém se aproximava de facto, e a porta abrindo-se deu passagem a Coelho. O homem de negro trazia-lhes as vestes que Leonor lhes tinha prometido. Sem pronunciar
uma palavra, depôs os fatos numa das camas, afastando-se silenciosamente.
- Na verdade, sr. conde, resmungou Bignache, não me agradam as maneiras de fuinha deste maroto. Reparastes no seu olhar dissimulado? E o outro, o mesmo. Esse ferrabraz
de carmezim. Se ele pudesse deitar-nos ao mar, com certeza que já o tinha feito! Não sei se veremos com frequência estes homens; no entanto, tenho um conselho a
dar-vos; abramos os olhos!
Semelhante declaração era inútil. João tampouco gostava das maneiras dos dois portugueses.
- Reparastes na careta de Rui quando a linda Leonor lhe disse para a deixar só connosco? Primeiro liguei pouca importância a este gesto de mau humor, mas quando
vi que o capitão era uma mulher, disse para mim: "Bignache, meu amigo, eis o ciúme picando o sujeito. O ferrabraz deve estar apaixonado pela capitã, o que não será
nada de extraordinário!"
As feições do gascão tinham-se crispado ligeiramente emquanto o criado falava, mas reconquistou de-pressa a sua calma e começou a vestir-se, aconselhando o companheiro
a imitá-lo.
No decurso das horas e dias que se seguiram, os dois náufragos puderam visitar e conhecer melhor a caravela azul, da qual seriam passageiros por um espaço de tempo
ainda incerto. Por emquanto só sabiam uma coisa: O São Jorge fazia vela para Goa, e ali Leonor contava encontrar o capitão-general Afonso de Albuquerque.
O manhoso Bignache podia verificar cada vez mais a satisfação que tomava o seu amo e a "Amazona dos Mares", quando se encontravam juntos; e frequentes vezes o bravo
rapaz surpreendeu-os apoiados na tolda, trocando opiniões; e se Leonor tinha prazer nesta convivência, o fiel servidor compreendia, pelas palavras entusiasmadas
que lhe dirigia o gentil-homem gascão, que este último estava cada vez mais preso aos encantos da linda capitã.
Também Bignache se sentia, às vezes, impelido para a cabine da "Amazona dos Mares". porque Leonor não era a única mulher a bordo do navio. Tinha trazido com ela
uma aia, uma gentil filha de Lisboa, chamada Isabel. Tanto quanto se mostrava arisca aos homens da equipagem, tanto mais parecia apreciar os cumprimentos sem conta
que lhe dirigia Bignache. E muitas vezes os encontravam juntos sobre a ponte.
Contudo, Bignache escapava-se às vezes a estes agradáveis encontros e interrompia as lições de Francês que dava a Isabel para vigiar Rui da Mota e Coelho. O bravo
rapaz estava prevenido de que os frequentes encontros da capitã com o seu amo, tinham despertado no lugar-tenente uma irritação e um ciúme cada vez mais vivos. Muitas
vezes o descobria na ponte ou na tolda ocupado a espiar os dois jovens; por isso não se privava de transtornar e interromper a sua indiscreta missão.
sobretudo, as palavras de ameaça que ele ouvia proferir a Rui, levava-o a incitar João a pôr-se em guarda.
- Tomai conta, sr. conde, não cessava de repetir; se não estiverdes na defensiva, este vilão far-vos-á passar um mau bocado!
Ao que o gentil-homem respondia encolhendo Os ombros; depois acariciando a espada com a mão, assegurava com força que saberia defender-se se Rui tivesse a imprudência
de o atacar.
Por emquanto o homem da capa carmezim estava prudentemente na reserva; mas Bignache, que o não perdia de vista, podia constatar que ele se encontrava muitas vezes
com Coelho; às vezes surpreendia-os ocupados a escutar, fosse detrás dum montão de cordas, fosse em algum canto escuso da caravela, uma discussão animada. Sem dúvida
nenhuma os dois homens eram cúmplices. Detestava-os igualmente, prometendo, se a ocasião se apresentasse, frustrar-lhes as manobras, desmascará-los e defender a
segurança ameaçada do seu amo.
Entretanto, Leonor continuava presidindo à marcha do navio. Não sem surpresa, João viu-a dirigir e comandar as manobras dos marinheiros; semelhante a um verdadeiro
lobo do mar, porta-voz na mão, a rapariga multiplicava as vozes de comando; meio nus, de capacetes frígios de lã azul, os marinheiros ocupavam-se a ferrar ou largar
as velas, segundo o rumo dos ventos, emquanto que aqui ou ali, soldados ou artilheiros, a quem se encontrava confiada a defesa da caravela, jogavam aos dados, estendidos
ou acocorados à sombra das grandes velas latinas.
Desde que os dois gascões se encontravam a bordo, nenhum acontecimento se tinha produzido. A caravela azul tinha avistado algumas embarcações,
mas os indígenas que as tripulavam, fossem malaios ou índios, de-pressa se afastavam do barco cristão, cuja reputação conheciam.
Leonor aproveitava esta prolongada calma para conversar com João. Sentia vivo interesse pelas descrições do gentil-homem, fazendo-o contar episódios da sua juventude
turbulenta e das suas aventuras em Itália, onde tinha seguido o exército francês. João prestava-se de boa vontade a satisfazer esse desejo; e a pouco e pouco as
suas conversas iam-se tornando mais ternas; o gascão tinha primeiro retido a confissão que lhe queimava os lábios. Mas, quanto mais dias passavam, menos ele duvidava
da natureza dos sentimentos que sentia pela capitã; contudo, Leonor tinha tantas vezes aludido ao seu amor pela independência, que João tinha preferido calar-se.
Emfim, uma noite, os jovens encontraram-se ao pé um do outro, junto ao farol da popa, donde se via a lua vacilante reflectir-se na superfície tranquila do mar. Tudo
à volta parecia calmo. Os marinheiros estavam estendidos sobre a tolda. João e Leonor encontravam-se sós no seu refúgio. Somente se ouvia o ligeiro marulhar das
vagas que morriam de encontro ao casco. Uma brisa suave, rescendendo a sândalo, acariciava o rosto dos jovens. As estrelas cintilavam ern miríades no céu claríssimo.
A sentinela, no seu posto, continuava a observar o horizonte, emquanto o piloto imóvel no seu lugar, guiava o barco, com as mãos crispadas sobre o leme.
Pouco a pouco o francês e a portuguesa deixaram-se invadir pelo encanto desta tranquilidade. Parecia-lhes agora que viviam num mundo de magia
e sonho. Mais uma vez o mar exercia sobre eles o seu eterno sortilégio. -.
Então o gascão decidiu-se a falar. Olhava a cabeça deliciosa de Leonor, que se apoiava no seu ombro, emquanto a sua mão morena lhe prendia o braço. Durante alguns
segundos, hesitou ainda; depois, quási subitamente, a força misteriosa que o tinha emudecido até ali pareceu desvanecer-se de-repente; ele, de ordinário tão reservado,
tão retraído, decidiu-se a declarar-lhe que não poderia, de futuro, conceber a existência sem Leonor a seu lado.
A joven não tinha tentado um só instante, levantar a cabeça ou interromper este colóquio imprevisto abordado pelo seu vizinho. Escutava a voz máscula que lhe dizia
tão doces palavras de amor. Este amor não o tinha ela lido há muito nos seus olhos? Um sorriso pairou-lhe nos lábios, uma covinha desenhava-se-lhe na face. Também
ela vivia um belo sonho e agradecia à Providência o ter-lhe deparado no seu caminho este belo mancebo, este nobre e bravo cavaleiro, que acarinhava os mesmos ideais.
E quando ele volveu para ela os seus olhos inquietos temendo uma recusa, esperando mil repreensões, ela ofereceu-lhe simplesmente os lábios. Ela também o amava e
sentia-se feliz junto dele, a bordo da caravela azul, protegidos pela sombra das grandes velas, ligeiramente batidas pela brisa.
Pela primeira vez os dois enamorados trocaram um beijo prolongado; depois estreitamente enlaçados, embalados pelas ondas, prosseguiram por longo momento o seu- dueto
de amor. As palavras de sempre saltavam-lhes aos lábios, parecendo-lhes sempre novas. Nem a voz monótona do vigia indicando
as horas, meias horas e quartos de hora, acompanhando o seu anúncio de preces à Virgem e aos santos, os arrancou ao seu êxtase.
Contudo, se João e Leonor se voltassem neste instante, poderiam ver duas inquietantes silhuetas, que coladas ao longo da escada que ligava a tolda à popa do barco,
os observavam com persistência.
E a doce serenidade que encantava os dois jovens teria certamente dado lugar a uma surda angústia, se tivessem surpreendido algumas das palavras que as duas sombras
trocavam em voz baixa, e se os raios descorados da lua lhes tivessem permitido reconhecer nelas Rui da Mota e Coelho.
v
Bignache está alerta
- Ouves bem, Coelho? É preciso que ele morra!
Rui da Mota havia levado o homem de negro para um desvio do lado da proa e ali, escondidos ao pé dum canhão, os dois portugueses falavam em voz baixa, cuidadosamente
dissimulados na sombra.
Coelho meneou lentamente a cabeça.
- É algo difícil. murmurou. Primeiro há a capitã, com a qual é preciso contar. e depois, sr. D. Rui, esqueceis aquele maldito criado que segue o amo como uma sombra.
Ainda há pouco tivemos que deixar a tolda, por ele ter aparecido de-repente. Quem sabe se agora não estará ele a espiar-nos.
- Desembaracemo-nos dele também. Encontraremos, certamente, a bordo marinheiros que nos secundarão, dando-lhes alguns cruzados, evidentemente! Depois destes malditos
franceses terem entrado a bordo da caravela, a capitã parece que Perdeu o juízo. A própria Isabel só vê pelos olhos
deste Bignache, que diz galanteios e que a sabe enganar com lisonjas; é mais feliz de que todos os marinheiros juntos. Eu sei que muitos murmuram. O descontentamento
é tal, que só poderemos, sem dúvida, esperar.
- Uma revolta, senhor? interrompeu bruscamente Coelho, que tinha adivinhado o pensamento do seu interlocutor. Não penseis nisso! Antes de dois dias estaremos em
Goa. Temos, portanto, muito pouco tempo para revoltar a equipagem. E depois, há a bordo tanta gente a quem a capitã fez bem, que teríamos sempre a temer alguma indiscreção.
- Em todo o caso, é preciso agir, tomar uma resolução. Se o São Jorge chegar a Goa com os dois franceses a bordo, está tudo irremediavelmente perdido para nós. Leonor
cairá nos braços de dAmblayves, de quem está cada vez mais apaixonada. Só nos restará dizer adeus às nossas esperanças!
Durante alguns instantes, os dois companheiros calaram-se, inquietos. Rui da Mota crispava raivosamente os punhos. Desejava há tanto tempo conquistar o coração e
a mão da sua prima! Durante meses tinha-a acompanhado nas suas longínquas e perigosas expedições; durante meses não tinha cessado de a cumular das suas assiduidades,
dos seus protestos, das suas declarações e das suas amabilidades. Trabalho perdido: a jovem tinha recusado obstinadamente as suas propostas e mudado habilmente de
conversa quando ele lhe falara em casamento. Por fim o português tinha-se resignado. Julgava até aqui que só o desejo de viver independente e livre a impedia de
encarar a possibilidade dum casamento com ele; tinha-se, então, decidido a esperar, e eis que em alguns dias apenas
este dAmblayves conseguia o que ele não obtivera em tanto tempo.
Rui já não podia ter nenhuma ilusão; a atitude de Leonor, os frequentes e ternos encontros que ela continuava a ter com o gentil-homem gascão, não lhe deixavam dúvida
alguma sobre os sentimentos de sua prima: ela amava-o! O seu coração batia por este aventureiro. E ele, Rui da Mota, não passava dum comparsa, que só tinha para
se consolar o seu papel de lugar-tenente!
E dia a dia o português sentia o terrível aguilhão do ciúme despedaçar-lhe atrozmente o coração; o seu ódio pelo francês aumentava cada vez mais. A idea de o fazer
desaparecer, impunha-se tenazmente ao seu espírito.
Contudo, para bem executar as suas maquinações, o lugar-tenente do São Jorge precisava dum cúmplice. O cúmplice foi-lhe fácil encontrá-lo em Coelho. Rui da Mota
sabia que podia contar absolutamente com este criado. Não tinha Coelho fugido de Lisboa para bordo da caravela, para evitar com as autoridades certas complicações
que poderiam tê-lo condenado a remar perpetuamente numa galera?
Rui conhecia perfeitamente a vida anterior de Coelho; por isso, já tinha pensado aproveitar-se desta circunstância quando se proporcionasse ocasião. Foi assim que
o velhaco, temendo ser denunciado, se tornou num instrumento dócil, pronto a favorizar as subtis manobras destinadas a aproximar Rui de Leonor, de quem o primo pretendia
a mão e a fortuna, e a desembaraçá-lo para sempre dum tão perigoso rival.
Contudo, o desejo que tinha de servir cegamente
o lugar-tenente, cuja presença temia, não calava de todo a prudência de Coelho.
- Verdadeiramente, senhor, arriscou, saindo das suas reflexões e meditações complicadas, não vejo como poderemos conseguir.
Rui sacudiu desdenhosamente os ombros:
- Meu caro Coelho, hás-de ser sempre um medroso! Quem não se aventurou, não perdeu nem ganhou I Emfim, como a hipótese duma possível revolta te parece demasiado
arriscada e difícil de realizar, teremos que voltar ao nosso primeiro projecto, que consiste em suprimir, pura e simplesmente, este maldito gascão.
- Mas. o criado.
- Mandámo-lo para o diabo! Em certos momentos pude constatar que se isolava sobre a ponte, apoiado à pavesada. Facilmente se pode atacá-lo pelas costas e precipitá-lo
no mar. Os tubarões que pululam nestas paragens, encarregar-se-ão de o fazer desaparecer para sempre!
- Tudo isso me parece complicado! Mais valia penetrar na sua cabine, com a ajuda de dois ou três marinheiros, que sei dedicados. Podemos contar absolutamente com
Manuel, Gabriel e Joaquim. São decididos, não têm os olhos tapados, e por alguns cruzados seriam capazes de matar pai e mãe. Durante a próxima noite, podem muito
bem entrar na cabine verde e com duas punhaladas bem aplicadas, enviar o francês e o seu acólito para o diabo. Em seguida é facílimo transportar os cadáveres para
a ponte e deitá-los ao mar.
- Perfeitamente; mas se as duas mulheres desconfiassem.
- Não vejo hesitação possível. Se nos intimidamos com semelhantes considerações, estamos
perdidos. Reflecte: o plano parece-me sedutor, previne os nossos três homens, e amanhã, à meia-noite, quando os franceses estiverem profundamente adormecidos. podemos
fazer com que não tornem a acordar!
E como Coelho parecia ainda hesitar, pensando em todos os riscos e consequências que poderiam resultar do desaparecimento dos dois náufragos, Rui insistiu:
- Pensa bem nisso. Até aqui pudemos adiar, mas agora não há tempo a perder. Repito-te que se o São Jorge chega a Goa com estes malditos a bordo, podemos dizer adeus
às nossas esperanças. E eu não hesitaria em denunciar-te ao capitão-general, por me teres tão bem secundado!
Estas últimas frases pareceram dissipar os escrúpulos de Coelho. Endireitou-se subitamente; depois, fazendo um gesto resignado:
- Está bem! entendido, tendes razão. Só nos resta adoptar esta solução. Avisarei Manuel e os seus camaradas. Durante a próxima noite acabaremos definitivamente com
este dAmblayves e o seu Bignache!
- Atenção! Parece-me que vem aí ainda esse maldito criado!
Os dois miseráveis imobilizaram-se, ofegantes, com o rosto contraído; contudo as suas apreensões de-pressa se dissiparam. A silhueta de Bignache recortava-se um
pouco mais adiante, ao pé da escada da tolda. O bravo rapaz prosseguia na sua missão, não longe da popa do barco, sem dúvida para deixar o seu amo e Leonor prosseguir
nos seus ternos encontros.
- Tranquilizai-vos, senhor. Está bastante longe. Certamente não nos ouviu.
Rui da Mota deixou escapar um sorriso de alívio; depois segurando o vizinho pelo braço, encaminhou-se para a ponte.
- De resto, falávamos numa língua que ele não compreende! soprou ao ouvido de Coelho. Mas, nada de falaças. preciso ser prudente. Então, entendido. Até amanhã.
As últimas palavras do lugar-tenente perderam-se levadas pelo vento; depois as suas silhuetas afastaram-se sem ruído. Sentiam-se cada vez mais certos de conseguir
o seu sinistro projecto, que os desembaraçaria duma vez para sempre dos incomodativos franceses.
No entanto, os dois patifes ficariam infinitamente inquietos se tivessem surpreendido uma silhueta que, agachada por detrás dum monte de cordas, se levantava lentamente.
Emquanto discutiam a meia-voz, uma mulher habilmente escondida a três passos deles, ouvia toda a sua conversa, no meio da maior indignação. Esta mulher era Isabel,
a aia de Leonor, a quem Bignache, tantas vezes dirigia galanteios.
Isabel estava sentada por acaso no lado da proa, junto ao segundo canhão. Bignache tinha-a deixado há pouco, dirigindo-se para a tolda. A rapariga esperava ali que
o seu amigo voltasse quando dAmblayves e a capitã se tivessem retirado para as suas respectivas cabines. Imóvel, retendo a respiração, a aia tinha então visto Rui
e Coelho aproximarem-se do seu esconderijo; apurando ansiosamente o ouvido, conseguiu ouvir tudo.
Isabel estava no cúmulo da indignação. Esperou alguns instantes que os cúmplices se afastassem; depois deslizando pela ponte e contornando os grupos de marinheiros
estendidos, profundamente adormecidos,
dispunha-se a procurar a capitã, quando de-repente, parou; depois de ter reflectido uns instantes, aventurou-se pela escada da tolda.
Bignache continuava esperando ali, sentado num degrau, fazendo de guarda, vigilante, para afastar os importunos que se aproximassem. Dum salto, levantou-se quando
viu o vulto que escorregava para junto dele.
- Comol? És tu Isabel? exclamou, segurando a recém-chegada pelo braço. Não te tinha dito para me esperares?
Na sua pitoresca linguagem, onde se misturavam palavras portuguesas e francesas, a rapariga apressou-se a contar a Bignache o inquietante diálogo que acabava de
surpreender, inesperadamente.
Bignache teve que interromper por várias vezes a sua vizinha, para compreender bem do que se tratava. As suas sobrancelhas carregaram-se subitamente.
- O velhaco! rosnou ele serrando os punhos. Fizeste bem em prevenir-me, Isabel. vou precaver-me. Saberemos estar alerta!
- Vamos prevenir a capitã! insistiu a rapariga.
A aia dispunha-se já a transpor a escada da tolda a-fim-de avisar a sua ama, da qual divisava a silhueta encostada à de dAmblayves, mas Bignache reteve-a bruscamente
pela manga.
- Alto lá! Se tu prevines a tua ama, lá se vai tudo por água abaixo.
E como Isabel se detinha profundamente estupefacta, o bravo rapaz explicou-lhe:
- Mas tu não compreendes então, grande parva, que se prevenirmos a capitã ela irá em seguida interrogar o Rui. Muito naturalmente o patife
negará e protestará com indignação contra o que chamará uma calúnia infame. Não é melhor deixá-lo executar o seu plano. Quando ele se aventurar, na próxima noite
com os seus cúmplices a entrar na cabine onde eu durmo com o meu amo, prometo-te que não perderão com a demora. Apanhados em flagrante, envergonhados e denunciados,
Rui da Mota e Coelho farão bem triste figura!
Bignache, por sua vez, teve de explicar por várias vezes, para fazer compreender à portuguesa, quais eram as suas intenções; sem dúvida Isabel aprovou o seu plano,
porque o seu rosto se iluminou e um sorriso malicioso passou-lhe pelos lábios; por fim como ela se dispunha a partir, Bignache puxou-a para si, sentou-a nos seus
joelhos e gratificou-a com um grande beijo.
O serviço que acabas de nos prestar vale
bem uma recompensa, pequerrucha!
O gascão e a companheira não se demoraram na escada da tolda. Um murmúrio de vozes fez-lhes compreender que Leonor e dAmblayves interrompiam, emfim, o seu terno
encontro e voltavam para as suas cabines. Prudentemente retiraram-se sem ruído, na ponta dos pés; quando o gentil-homem se separou de Leonor e voltou à câmara verde,
não desconfiou um só instante que tivesse sido tão zelosamente vigiado. Bignache já o precedera, deitando-se apressadamente; e de olhos fechados, parecia dormir
a sono solto.
Contudo, aquele sono era fingido. Quando por sua vez o seu amo se abandonou aos braços de Morfeu, Savínio levantou-se da cama e estendeu a mão; constatou que dAmblayves
tinha deposto a espada no seu lugar; depois, evitando fazer o menor
ruído, foi estender-se como um cão fiel, ao pé da porta.
As horas passaram, afinal, sem que o menor incidente se produzisse. Tudo estava calmo a bordo do navio, mas Bignache pensava que não perdia nada por esperar. Esta
calma anunciava tempestade. Rui da Mota e Coelho, tencionavam pôr o seu sinistro projecto em execução antes que o São Jorge avistasse Goa! Mas esta perspectiva não
suscitava nenhuma apreensão ao bravo moço, e um sorriso malicioso iluminava-lhe o semblante, quando pensava no mau bocado que faria passar aos dois cúmplices.
- Não tenho que hesitar, meditava Bignache. Prevenirei o sr. conde, mas antes falo-ei jurar de nada dizer à capitã. Esta última apenas o deve saber, quando os culpados,
apanhados em flagrante, forem desmascarados e obrigados a confessar as suas sinistras intenções.
E o bom servidor fez como tinha decidido. Logo que dAmblayves se levantou e terminou a sua "toilette", fechou-se com ele um longo momento e contou-lhe detalhadamente
o inquietante diálogo que Isabel tinha surpreendido, emquanto o conde se encontrava com Leonor na tolda; sem dúvida o gentil-homem aprovou o plano imaginado pelo
seu fiel companheiro, porque nada na sua atitude nem nas suas palavras denunciaram as suas intenções; mostrou-se solícito com a capitã, e a-pesar-de tudo bastante
amável para com o lugar-tenente.
Rui também se empenhava em se tornar atencioso junto dos dois franceses; sem dúvida esperava assim afastar todas as suspeitas e alcançar mais facilmente os seus
fins. Coelho, esse, afectava á mais completa submissão às ordens de Leonor;
era em vão que Bignache, que o observara por várias vezes, demoradamente, se esforçara por ler no seu rosto um pouco de inquietação, surpreender um olhar, um estremecimento.
O português estava imperturbável, representando admiravelmente o seu papel.
- Paciência! O último a rir é o que ri mais!
Bignache não podia deixar de esfregar as mãos, pensando na armadilha que tinha preparado de acordo com o seu amo, e a decepção profunda que sentiriam os dois acólitos
e os seus cúmplices, tão convencidos de alcançar os seus fins.
Rui da Mota tinha falado com três dos marinheiros da equipagem, e Bignache que vigiava disfarçadamente o lugar-tenente, tinha compreendido facilmente que se tratava
dos nomeados Manuel, Joaquim e Gabriel. O português tinha-os na mão, por meio de alguns cruzados. Assim os acabara de persuadir a secundá-lo no seu criminoso projecto.
Contudo, em nenhum momento o bravo rapaz pensou aproximar-se dos velhacos para surpreender as suas conversas. A sua presença teria podido despertar desconfiança;
por isso resignou-se, mau grado seu, a esperar, achando as horas intermináveis.
Leonor, que Isabel sob conselho de Bignache, não tinha avisado, também não suspeitava do drama que se ia desenrolar pela noite adiante, na caravela azul. Continuava
a dirigir a manobra. O São Jorge, batido por uma briza favorável, aproximava-se cada vez mais do continente; por vezes à superfície das ondas apareciam linhas de
recifes, que as vagas vinham franjar de espuma; o piloto devia estar constantemente acordado, pois sabia que estas paragens eram particularmente perigosas,
para os navegadores e que a mínima imprudência podia comprometer irremediavelmente a segurança e existência da equipagem.
Mas o velho José, que ia ao leme do governo, era um lobo do mar perfeito. A caravela azul prosseguia normalmente a sua rota.
- Amanhã estaremos em Goa, declarou Leonor, vindo encostar-se à balaustrada junto a dAmblayves. Conhecerás um país maravilhoso, semelhante àqueles que imaginavas
antes de deixar o teu país natal!
- Sim, apressou-se a responder o gentil-homem, há muito tempo que aspiro a conhecer esses países magníficos, mas Goa é a que mais me entusiasma, porque ali nos uniremos
para sempre!
A capitã apoiou amorosamente a cabeça morena no ombro do seu companheiro. O futuro estava decidido. Na véspera, no mesmo momento em que se tramava uma negra traição
contra a sua felicidade, tinham eles decidido casar-se quando a caravela azul chegasse a Goa. Alguns minutos bastaram para que a jovem abandonasse todos os seus
desejos de independência. Amava João e este pagava-lhe do mesmo modo. Parecia-lhe ter-se transformado numa pessoa diferente; irresistivelmente deixava-se arrastar
pelo turbilhão que a conduziria a uma nova existência. Ah! certamente os projectos que o oceano ouvira não sofreriam nenhuma modificação; seriam felizes dora-avante;
a virgem insencível, cujas façanhas legendárias eram contadas desde as margens do Tejo até ao Douro, tinha encontrado o seu senhor. e também. feito a sua mais bela
conquista.
Devotada inteiramente ao seu sonho, Leonor
não tinha pensado nas consequências que podiam resultar deste amor, nem o ódio que a sua decisão poderia desencadear. Amava, e era amada! O resto, pouco importava!
Tinha encontrado em João a personificação do ideal e valente cavaleiro, que outrora povoava os seus sonhos. Só se preocupando com dAmblayves, não surpreendia certos
olhares, certas atitudes dalguns dos homens da sua equipagem, que a pudessem fazer pensar que se dava alguma coisa anormal e que aquele que ela considerava dora-avante
como seu noivo, tinha a seu lado, a bordo da caravela azul, dois terríveis adversários, que podiam contrariar os seus projectos de felicidade e de amor, com os piores
obstáculos: o ciúme e o ódio.
Contudo, a "Amazona dos Mares", não previa semeadoras de dificuldades. Estavam já esquecidas as declarações apaixonadas de seu primo, o lugar-tenente! De-resto,
não estava ela habituada, como capitã do São Jorge, que todos se inclinassem cegamente perante a sua vontade?
Pouco importava que os portugueses que estavam sob as suas ordens, se queixassem da importância que tinha tomado junto de si um estranjeiro. Somente ela se considerava
dona do seu coração.
E o dia decorreu sem que nada viesse quebrar a sua harmonia e tranquilidade. Os pássaros do mar tornavam-se numerosos e vinham ziguezaguear à volta dos mastros,
soltando gritos agudos; por vezes a brisa trazia perfumes inebriantes, cheiro a canela e cravos da índia, que denunciavam a vizinhança de terra. O vigia continuava
a perscrutar o horizonte com o olhar.
Às vezes a caravela azul encontrava alguns barcos de pesca conduzidos por indígenas; embarcações
habilmente pilotadas vinham igualmente deslizar nas ondas calmas, mas nenhum barco grande foi divisado, sequer. Esta ausência de qualquer navio de importância, não
admirava a capitã; conhecia, de facto, de longa data, o antagonismo feroz que opunham os conquistadores portugueses ao Samorim de Calicut; frequentes combates travavam-se
próximo do continente; as caravelas e naves, melhor armadas, levavam quási sempre vantagens; depois os destemidos lusitanos, entre os quais se distinguia Leonor,
tinham-nos perseguido implacàvelmente, de maneira que os piratas não deviam certamente sentir nenhum desejo de afrontar os seus intrépidos inimigos.
Cedo caiu a noite do céu calmo. Mais uma vez a natureza ostentou a sua magia sob o olhar encantado de João e da sua noiva, que o tinha vindo encontrar, como de costume,
ao pé da lanterna da popa. Voltando ao terno encontro, o último antes do desembarque, a capitã continuava a não suspeitar da tragédia que se preparava. Frequentes
vezes Bignache, sempre alerta, surpreendeu sinais de inteligência que o lugar-tenente e Coelho tinham trocado com os três cúmplices. Savínio estava agora, mais que
nunca, convencido que os miseráveis continuavam resolvidos a pôr em execução durante a noite o seu criminoso projecto.
Quando o velador anunciou com as preces habituais que eram onze horas da noite, os dois gascões não se demoraram mais, Bignache sobre a ponte, dAmblayves na tolda.
Cada um se separou das companheiras e entraram para a cabine verde. A pouca distância, dissimuladas na sombra propícia da noite, cinco silhuetas impacientes estavam
imóveis. Rui da Mota e os companheiros, retendo a respiração,
esperavam ainda, antes de se aventurar ao crime planeado.
Emfim, pouco depois da meia-noite, os patifes, encorajados pela calma que persistia a bordo da caravela, decidiram-se a sair do esconderijo. Olhando ansiosamente
à sua volta, certificaram-se de que ninguém, de entre os seus camaradas, suspeitava das suas criminosas intenções e que Bignache não rondava pela vizinhança; quando
se sentiram absolutamente seguros destes dois pontos, dirigiram-se para a escada da tolda. Tudo ali estava completamente deserto; então, semelhantes a fantasmas,
introduziram-se na plataforma onde se encontravam as duas câmaras. As luzes de azeite, que faziam destacar na noite, pouco tempo antes, os rectângulos luminosos
das janelas, estavam agora apagadas; Leonor, dAmblayves e Savínio, pareciam dormir profundamente.
Rui foi o primeiro a aventurar-se; colou ansiosamente o ouvido contra a porta da câmara dos dois franceses; depois, como Coelho se aproximasse, inclinou-se para
ele e disse-lhe ao ouvido:
- Corre tudo lindamente! Eles estão a dormir !
O lugar-tenente voltou-se para os três homens que esperavam o seu sinal. Movendo um braço, significou-lhes que era chegado o momento de agir. As mãos dos tratantes
dirigiram-se apressadamente à cintura e muniram-se de punhais de lâminas afiadíssimas. Sentiam-se mais decididos que nunca a obedecer escrupulosamente às ordens
que lhes tinha dado o primo de Leonor. Rui também segurava a sua adaga; avançando a mão que tremia ligeiramente para o puxador da porta da cabine, fê-lo voltar sem
ruído; depois abriu a porta.
Durante alguns instantes, os três marinheiros que esperavam, retendo a respiração, viram o português introduzir-se no interior da câmara, onde dormiam aqueles que
ele tinha implacàvelmente condenado à morte; depois viram que se voltava de novo para eles, fazendo-lhes sinal de o seguirem. Entraram, então, um após outro; somente
Coelho, cuja bravura não era uma virtude dominante, ficou prudentemente de fora, a dois passos do camarote, pronto a dar alarme se algum intruso viesse surpreender
os companheiros na execução dos seus criminosos projectos.
VI
Rui é apanhado
Durante alguns instantes, os intrusos imobilizaram-se, procurando avançar nas trevas. A cabine verde encontrava-se mergulhada na mais profunda obscuridade; somente
se ouvia a respiração regular dos dois adormecidos.
Um sorriso mau perpassava pelas feições de Rui. Desta vez ia vingar-se; o seu perigoso rival encontrava-se à sua inteira mercê. Apertando a adaga na mão crispada,
o lugar-tenente procurava distinguir a forma estendida de dAmblayves. Queria ele próprio ferir este gascão que odiava com todas as suas forças, e que tinha feito
evolar-se as ?suas mais queridas esperanças. Chegara ao pé da cama e os seus olhos já habituados à obscuridade, faziam-no distinguir João estendido, imóvel, à sua direita.
Então o miserável inclinou-se e brandiu a sua arma; ao pé dele, os três velhacos que ele tinha subornado, dispunham-se a prestar-lhe auxílio e a suprimir o infortunado
Bignache. Ia jogar-se a cartada. Rui não hesitou mais e a sua adaga abaixou-se
com a rapidez dum relâmpago e tocou na forma estendida.
O lugar-tenente sentiu-a mole, e, cedendo sob o seu golpe, veio abater-se a seus pés; os seus cúmplices lançaram-se por seu lado sobre a cama onde de ordinário dormia
o fiel criado do francês. Uma exclamação de espanto se lhes escapou; ao pé da porta uma voz zombeteira elevava-se.
- Apanhados na rede, seus patifes. Agora podemos ajustar contas à nossa vontade!
Rui soltou um grito de raiva. Era João que acabava de pronunciar estas palavras, João que de espada na mão se arremessava para o limiar da porta, barrando-lhes arrojadamente
a retirada. Ao pé dele, outra silhueta se destacava também resoluta: Savínio Bignache!
Os dois gascões tinham sabido habilmente preparar a malha, na qual os patifes caíam desastradamente. Evitando deitar-se nos lugares habituais, tinham disposto, o
melhor possível, os cobertores, de maneira a dar a ilusão aos intrusos que estavam ali deitados; depois, no momento em que Rui e os três cúmplices atacavam, eles,
acocorados junto do tabique, tinham saltado. Agora, a sua manha obtinha pleno sucesso; os criminosos estavam apanhados como ratos em ratoeira.
A surpresa dos quatro miseráveis era tal, que ficaram imóveis durante alguns segundos, incapazes de proferir uma palavra. Estavam tão certos de conseguir a sua agressão
e tão longe de esperar esta brusca reviravolta da situação!
Coelho nem sequer tinha pensado em socorrer o lugar-tenente e os seus acólitos em perigo; quando ouviu a voz sonora do gentil-homem, apressou-se a fugir e alcançar a escotilha.
O cobarde não queria, por nada deste mundo, ficar comprometido em assunto que tomava uma aparência tão complicada.
- Como é amável da vossa parte vir visitar-me!
João esperava sempre, espada na mão, pronto a cair sobre aquele que tentasse atacá-lo; contudo, nenhum deles pensava em travar conhecimento com a sua espada. A estupefacção
parecia ter paralisado Rui da Mota e os três marinheiros.
- Os meus parabéns, senhores. Verifico, por conseguinte, que estavam armados!
Depois, sem se voltar, João gritou a Bignache que continuava impassível a seu lado:
- Vai! Faze o que é preciso!
- Contudo, sr. conde, objectou o fiel servidor não posso deixar-vos assim, só contra todos!
- Vai, já te disse. Saberei, se for preciso, matar estes corsários!
O tom do seu amo não admitia réplica; Bignache não insistiu. Afastou-se e veio bater à porta da cabine vizinha.
- Emfim, que significa, senhor. Impaciente, cada vez mais inquieto, Rui da Mota tinha arriscado um passo para o limiar da porta, quando, bruscamente, sentiu a ponta
da espada do gascão apoiada à sua garganta.
- Mais um passo, digníssimo lugar-tenente, e terei o desgosto de vos degolar como a um vulgar frango!
Rui não falava francês, contudo não lhe foi difícil compreender a significação das palavras do seu interlocutor, que não parecia nada disposto a gracejar.
- Em boa verdade, disse João, parece-me,
Rui, que não mediste bem a gravidade dos vossos actos! Admirai-vos de me ver aqui; a mim parece-me antes que a vossa presença nesta cabine se torna anormal e suspeita.
Sem dúvida que tínheis intenção de me fazer presente desta adaga. e os vossos dignos companheiros de oferecer as suas facas ao meu criado!
O lugar-tenente não se mexia, tremendo de raiva. Ao pé dele, os três marinheiros preparavam-se a agir, mas o gascão, adivinhando-lhes a intenção, declarou com uma
voz calma:
- Sr. D. Rui, farieis bem em aconselhar prudência a estes marotos; se algum deles esboçar o mínimo movimento, sois vós o responsável e sereis gentilmente degolado,
antes que estes patifes tenham tido tempo de me fazer a mais pequena arranhadura!
Uma praga respondeu a estas palavras. Rui da Mota mantinha-se quieto; compreendia que estava à mais completa discrição do seu feliz rival. O seu embaraço tornou-se
maior quando viu Bignache, que voltava acompanhado de Leonor e da sua aia.
João afastara-se agora ligeiramente para deixar passar a capitã; esta trazia na mão uma lâmpada de azeite que levantou à altura do seu rosto; não sem espanto olhava
o primo e os três marinheiros que estavam de pé, a cabeça baixa, conservando ainda as armas na mão.
- Vamos, explicai-vos. Que fazieis aqui, nesta cabine, Rui?
- Trata-se duma horrível desconsideração, Leonor, protestou logo o miserável. Não ireis imaginar.
Um sorriso de altivo desprezo perpassou pelo rosto da rapariga.
- Vejamos, que armas leais! replicou ela. compreendo! Íeis muito belamente assassinar o nosso hóspede, senhor meu primo!
- Asseguro-vos.
- Para que haveis de juntar a mentira ao crime e à infâmia, Rui ? . Não achais ainda a vossa consciência suficientemente pesada?
- Por favor, Leonor, deixai ao menos desculpar-me, explicar-me.
- Não é preciso explicar nada. Já compreendi suficientemente! Dai-me essa adaga!
O lugar-tenente murmurou algumas palavras ininteligíveis, depois estendeu a arma à sua prima. A capitã não tinha dificuldade em reconstituir a cena que se desenrolara;
os cobertores esfarrapados traíam facilmente as intenções homicidas dos intrusos. Avisados a tempo, João e Bignache tinham astuciosamente escapado à morte e desmascarado
os seus pérfidos adversários.
- De-pressa, vão acordar toda a equipagem e prendam estes quatro homens!
Em vão Rui se multiplicava em protestos. Leonor estava inflexível. Dois minutos mais tarde um grupo de marinheiros entrava na câmara e apressava-se em desarmar os
miseráveis.
- Pela minha honra, Leonor, repetia o lugar-tenente com veemência, apenas vim aqui para defender o sr. dAmblayves.
- Saberei toda a verdade, contentou-se a responder a capitã. Toda a gente para a ponte!
Em pouco tempo os quatro prisioneiros, solidamente amarrados, foram levados para o pé do mastro grande. Rui protestava ainda, agitando-se, afirmando a sua inocência,
mas não conseguia convencer
sua prima, que o tinha surpreendido em flagrante.
--Toda a gente para a ponte! repetiu Leonor num tom que não admitia réplica. Ouviram, espero que respondam à chamada.
Marinheiros e soldados alinharam-se perante a capitã, e esta pôde constatar que um só homem faltava: Coelho. Em vão tinham chamado o velhaco; este parecia ter desaparecido
misteriosamente.
- Terá talvez caído ao mar?! aventurou João.
Bignache apressou-se a desenganar o seu amo.
Ele, deitar-se ao mar! Não há perigo!
Tem demasiado amor à sua carcassa amarelecida e não tem a menor intenção de fazer alguma visita aos tubarões! Ainda há pouco eu o vi pela janela, no momento em que
os nossos visitantes se dispunham a entrar na nossa cabine! Estava de sentinela, sem dúvida; quando o maroto percebeu que as coisas não marchavam à medida dos seus
desejos, apressou-se prudentemente a bater em retirada. Emquanto esperais, não vos inquieteis, eu encarrego-me de o procurar!
O bravo rapaz afastou-se a passos apressados. Rui renovou os seus protestos indignados:
- É uma infâmia! O francês tem-me raiva. Quis comprometer-me.
Contudo, o lugar-tenente teve que abandonar a sua afoiteza, quando a capitã lhe preguntou, com uma voz firme:
- com quem faláveis, ontem à noite?
- com quem?
O miserável olhava à sua volta assustado, mas Leonor de-pressa pôs termo à sua estupefacção:
- Inútil continuar a mentir. Sei que conspiráveis com Coelho, e que tínheis decidido condenar à morte um gentil-homem que as leis mais elementares da hospitalidade
vos ordenavam imperiosamente de proteger!
- Não sei que maquinação.
- Mais uma vez vos digo. basta de palavras inúteis! Alguém, em quem deposito absoluta confiança, surpreendeu os vossos propósitos, os vossos planos, e é justamente
a essa feliz circunstância que os dois homens que desejáveis matar, puderam fazer-vos cair com os vossos cúmplices na rede que vós próprios tínheis diabòlicamente
preparado!
- Essa pessoa mentiu-vos. Quem é ela?
- Ei-la!
A capitã voltava-se e designava com um dedo Isabel que aparecia neste momento.
- Vamos, fala, explica-te!
A aia não se fez esperar para relatar em que circunstâncias descobrira o perigo que ameaçava os dois franceses. Por três vezes Rui tentou interrompê-la, mas o miserável
teve que desistir sob os clamores de indignação da equipagem.
Os três marinheiros que tinham participado na tentativa frustrada, conservavam-se numa prudente reserva, apenas respondendo às preguntas por vagos monossílabos.-
Dir-se-ia que queriam poupar Rui. Contudo, temendo ser linchados pelos companheiros, resignaram-se, com vontade ou sem ela, a confessar. Contaram como Rui e Coelho
os tinham subornado: - trinta cruzados a cada um para que eles os ajudassem a desfazer-se de dAmblayves e Bignache.
Desta vez, o lugar-tenente não ousou protestar; o testemunho dos três cúmplices era esmagador.
Via o olhar reprovador dos marinheiros e soldados da caravela azul convergir sobre ele. Já se ouviam exclamações ameaçadoras e vingadoras, quando a voz sonora de
Bignache atroou:
- Ah! patife! Ah! celerado! Apanhei-te esta vez.
Savínio apareceu, trazendo Coelho à sua frente, a tremer como varas verdes. Tinha segurado o miserável pela gola, e aplicava-lhe de vez em quando vigorosos pontapés!
- Calculem que este maroto tinha-se ido esconder no porão, explicou então, empurrando o miserável que foi estatelar-se aos pés da capitã. Encontrei-o encolhido por
detrás dum canhão. Foi preciso encostar-lhe a ponta do meu punhal à garganta para o convencer a prestar-nos esclarecimentos absolutamente indispensáveis!
Coelho estava hediondo, o medo fazia-o tremer e bater os dentes.
- Piedade! gemeu ele ajoelhando-se aos pés de Leonor. Eu não tenho culpa. Não fui eu.
E para se desculpar, o miserável não hesitou em acusar Rui da Mota. Incapaz de se dominar por mais tempo, o lugar-tenente soltou-se dos dois marinheiros que o seguravam
e precipitou-se sobre o seu antigo cúmplice. Durante alguns instantes, apertou-lhe a garganta e sacudiu-o com insistência:
- Traste! Bandido!
Coelho, quási sufocado, esforçava-se, em vão, por escapar ao seu agressor. Este encarniçava-se contra ele, cada vez com mais força, e certamente tê-lo-ia feito dizer
adeus à vida, se os assistentes não acudissem apressadamente. Agarrado e arrebatado por sólidos pulsos, o lugar-tenente foi dominado, mas o seu antagonista encontrava-se
em estado lastimoso. O rosto e o nariz em sangue, as vestes rasgadas, os cabelos desgrenhados, jazia na tolda.
Impassível, Leonor tinha assistido à cena. Agora, um pesado silêncio invadia a ponte. Impacientes, os marinheiros interrogavam a sua capitã com o olhar; sabiam que
ela ia pronunciar o julgamento.
Em primeiro lugar, a "Amazona dos Mares" dirigiu-se aos três marinheiros que esperavam sob guarda:
- Poderia aplicar a lei de Talião. Manuel, Joaquim e Gabriel, fazendo-vos cúmplices dum criminoso, arriscaveis-vos a ser enforcados na verga maior.
Gritos de morte acompanharam estas palavras, mas elevando a mão acima da cabeça, Leonor acalmou os assistentes que não teriam hesitado a proceder a uma execução imediata.
- Ponham os três a ferros, comandou ela. Já não são dignos de navegar sob as minhas ordens a bordo da caravela azul! Logo que cheguemos a Goa, serão desapiedadamente
desembarcados!
Em alguns instantes, o trio foi conduzido às escotilhas; agora, somente Rui, de pé, a cabeça baixa, e Coelho que se rojava lamentavelmente pela ponte esfregando
a cabeça e o rosto dolorido, se conservavam em presença de Leonor.
- Quando vos confiei o segundo comando da caravela, Rui, declarou com uma voz vibrante, esperava que respeitaríeis, em todas as circunstâncias, o espírito de cavalheirismo
e que nunca vos conduziríeis como um corsário. A pessoa dum hóspede devia ser-vos sagrada. Faltando ao vosso dever
e alimentando propósitos criminosos, conduziste-vos como o último dos cobardes!
O português empertigou-se sob o ultraje; parecia que a sua interlocutora o tinha chicoteado em pleno rosto.
- Peço licença, protestou. Em tudo isto não sou eu o culpado, mas vós!
Rui da Mota endireitava-se agora, ameaçador, furioso. As feições contraídas pela raiva, manifestavam o ódio tanto tempo reprimido, e antes mesmo que a sua prima
lhe pudesse dar qualquer resposta, prosseguiu:
- Se eu não estivesse perdido de ciúmes e não vos tivesse amado apaixonadamente, jamais teria pensado um só momento em me desembaraçar desses malditos estranjeiros.
Mas, ai de mim! desde que eles estão a bordo do São Jorge, já não sois a mesma. Eu, que ainda acarinhava a esperança.
A voz sentenciosa da rapariga veio interromper desta vez o miserável:
- Permiti que vos recorde que nunca vos dei esperanças no que quer que fosse. Por várias vezes me falastes do vosso desejo de me fazer vossa esposa; de-pressa vos
dissuadi. Não devieis por isso acarinhar nenhuma idea, alimentar nenhum ódio, nenhuma ambição! Mas o ciúme cegava-vos.
- Está bem, é verdade, tenho ciúmes! Ciúmes porque fui suplantado por um intruso que o diabo pôs no nosso caminho. Acautelai-vos, Leonor. com estes dois franceses,
a desgraça instalou-se a bordo da caravela azul.
- Uma vez por todas, Rui, proíbo-vos de caluniar assim o meu noivo .
- Vosso noivo?
Rui da Mota, ouvindo esta novidade, foi tocado de súbita ira; de facto, era sabedor das relações cada vez mais íntimas que a sua prima mantinha com o gentil-homem
gascão, mas jamais tinha podido supor que Leonor tomasse tão rapidamente uma decisão de tal modo grave. Contudo, conseguiu conter-se e dirigindo um sorriso a João,
sorriso que mais parecia uma careta:
- Os meus parabéns! Conseguistes um golpe de mestre, sr. conde.
Mas Leonor calou-o com um gesto:
- Não temos tempo a perder! É preciso acabar com isto! Estais actualmente perante nós como acusado, Rui da Mota. Agistes como um criminoso! Deveis expiar!
- Gosto de ver como sois severa para com um primo e indulgente para com um estranjeiro.
O miserável tinha reconquistado toda a sua calma; a fronte altiva, esforçava-se por desafiar a sua interlocutora, e impor-se aos assistentes, mas a "Amazona dos
Mares" replicou vigorosamente:
- Quando a honra se encontra em causa, Leonor Rodrigues não se deixa arrastar por nenhuma consideração de família ou amizade! Faltastes cobardemente às leis da hospitalidade,
e sabeis qual é o nosso código!
- Bem o sei! O culpado deve ser abandonado sobre uma jangada com armas e algumas provisões. E depois. à graça de Deus!
- É justamente essa condenação que vou pronunciar contra vós, Rui! Não deveis demorar-vos nem mais uma hora a bordo da caravela azul!
Um murmúrio aprovador acolheu esta sentença; a-pesar-de sentirem uma certa antipatia pelos estrangeiros,
os marinheiros do São Jorge abominavam unanimemente o atentado de que Rui era culpado. Conheciam as leis e as determinações que tinham aceitado embarcando sob o
comando da capitã; todos, do último dos marinheiros ao primeiro dos oficiais, deviam-se submeter a elas cegamente.
- Aceito com prazer o vosso veredicto, formosa prima, declarou o lugar-tenente. vou deixar a caravela azul mas, sem dúvida, me encontrarei em excelente companhia,
porque Coelho e os meus três auxiliares não deixarão, evidentemente, de partilhar a mesma sorte de que eu.
Coelho que se tinha encolhido a alguns passos dali, endireitou-se bruscamente; um vivo medo contraía as suas feições, só de pensar que poderia encontrar-se de novo
em face do lugar-tenente, que havia pouco tinha tentado estrangulá-lo. Contudo, tranquilizou-se quando ouviu Leonor declarar:
- Não preciso ouvir o vosso alvitre I Partireis só, Rui! Estes quatro homens apenas são comparsas. Até à nossa chegada a Goa, ficarão a ferros, no porão. Em seguida
serão enforcados. Preparai-vos. A sentença está dada!
Apenas a capitã acabava de pronunciar estas palavras, que alguns protestos se elevaram:
- Merece a morte! disse uma voz. Ele quis matar.
- Não teria hesitado a condenar implacàvelmente Rui da Mota ao castigo aplicado aos criminosos, a ser enforcado na grande verga, se ele chegasse a executar o seu
crime. Fomos bastante felizes em tê-lo descoberto antes disso, por conseguinte devemos obedecer às leis da caravela azul! Que aquele que faltou às leis da honra
seja considerado como maldito e como cobarde!
Aclamações acolheram estas palavras, pronunciadas pela "Amazona dos Mares" com uma voz vibrante. O lugar-tenente, impassível agora, passeava um olhar desdenhoso
sobre os homens que tinham sido seus companheiros de armas e navegação; esboçou em seguida um gesto de resignação, mordeu os lábios e voltando-se para Leonor, disse:
- O vosso apaixonado triunfa, bela prima, mas tomai cuidado! Peçam ambos a Deus para nunca mais me encontrar no caminho. Se hoje sois inflexível, amanhã saberei
mostrar-me implacável!
As pupilas do português brilhavam como fogo, emquanto se exprimia assim. Tudo na sua atitude e na sua fisionomia transparecia raiva, e um ardente desejo de vingança;
contudo, a capitã não parecia impressionada pelas ameaças proferidas por essa voz cortante; interrompendo bruscamente a conversa, interpelou alguns marinheiros e
o carpinteiro de bordo e ordenou-lhes que preparassem imediatamente a jangada, sobre a qual o condenado devia ser abandonado.
- E tu também, toma cuidado, se tornarmos a encontrar-nos!
Rui da Mota dirigia-se agora a Coelho, mas o homem de preto, pouco desejoso de ficar ao seu alcance, tratou de afastar-se o mais de-pressa possível. Alguns minutos
mais tarde, encontrava-se a ferros no porão com os três marinheiros.
João dAmblayves e Bignache tinham assistido, sem procurar intervir, ao julgamento que tinha condenado o seu agressor.
Um pouco afastados, viram em seguida os homens da caravela azul deitar ao mar a jangada construída apressadamente. Deixaram a Rui a sua espada e um saco com provisões; depois,
afastando os marinheiros que lhe estendiam as mãos para o ajudar, o lugar-tenente escalou a pavezada e deixou-se escorregar ao longo da corda que pendia na quilha.
Em alguns instantes atingiu a frágil jangada.
- Se eu estivesse no lugar da capitã, sr. conde, disse Bignache, inclinando-se ao ouvido do patrão, não deixaria este miserável andar assim à toa. A terra já não
está muito longe e em algumas horas conseguirá abordá-la. E tudo me leva a crer que se vingará de semelhante revez! Ouviremos ainda falar dele!
- Não podemos influir sobre a decisão tomada. Apenas somos uns estranjeiros a bordo do São Jorge.
- Sem dúvida, sr. conde, objectou o bravo rapaz, pensativo, mas quando se encontra uma serpente, esmaga-se-lhe a cabeça para a tornar para sempre inofensiva. Receio
que a indulgência usada neste momento para com este patife, nos provoque a breve trecho os piores dissabores.
João dAmblayves não respondeu e foi encostar-se à amurada. No meio do maior silêncio a equipagem assistia à partida do condenado. Em pé na jangada, Rui tinha solto
a amarra que o prendia à caravela azul; munido dum remo que manejava vigorosamente, afastava-se cada vez mais sobre as ondas calmas, sem enviar um só olhar aos seus
antigos companheiros.
Durante um longo momento, ao luar, os dois gascões puderam distinguir a silhueta da jangada que se destacava sobre as ondas brilhantes; depois, reduzindo-se a um
ponto negro, cada vez mais distante, perdeu-se para os lados de oeste.
CAPITULO VII
Goa, cidade de sonho
- Terra!
A palavra mágica, gritada pelo vigia, tinha bem de-pressa feito esquecer o trágico incidente que se tinha produzido no decurso da noite. Todos os marinheiros se
dirigiam agora para a ponte; observavam, presos duma profunda satisfação, a linha azulada que se recortava no horizonte.
Encostado à lanterna da popa, João dAmblayves não cessava também de contemplar estas costas misteriosas e desconhecidas. Há quantos meses esperava este momento!
Da terra desconhecida chegavam-lhe agora enebriantes perfumes. Centenas de pássaros voavam no céu puro, soltando pequenos gritos agudos, como se quisessem anunciar
aos viajantes a proximidade do continente.
Alternadamente, à medida que a caravela azul se aproximava e torneava a costa a distância suficiente para não encalhar nos rochedos que se estendiam por vezes paralelos
ao litoral, os cenários de sonho sucediam-se; aqui, a margem desaparecia sob uma vegetação luxuriante; maciços de palmeiras
destacavam-se no azul safira do céu; além, cabanas de pescadores alinhavam-se pelas praias arenosas onde secavam as redes estendidas. Um saudável cheiro a maresia
impregnava por vezes a atmosfera; grupos de crianças nuas corriam agitando os braços.
A aparição da caravela azul parecia ter provocado entre os indígenas uma viva agitação; nos seus barcos ligeiros, os índios apressavam-se a alcançar a costa.
E João, que não deixava de admirar a aparição desta índia desejada há tanto tempo, esperava impacientemente o momento do desembarque. Por várias vezes tinha preguntado
a Leonor se Goa já estava próxima e quando ancoraria o São Jorge.
O rapaz breve obteve satisfação. Goa apareceu primeiro, ligeiramente esfumada pela bruma, rodeada de torres, erguidas sobre uma ilha formada pelo confluente de dois
pequenos riachos; a recente conquista de Afonso de Albuquerque, resplandecia num semi-círculo de verdura, iluminada pelos raios dum sol deslumbrante.
- Goa dourada!exclamavam os marinheiros agitando alegremente os barretes de lã azul, felizes só por pensar que já poderiam, emfim, tomar contacto com a terra e esquecer
nesta cidade encantadora as semanas perigosas e monótonas de navegação.
- Goa dourada! O coração de João batia precipitadamente, emquanto a caravela azul se aproximava cada vez mais do porto, com todas as velas içadas. O gentil-homem
gascão pensava em que esta cidade abrigaria, sem dúvida, a sua felicidade. Ali, dentro de alguns dias, conduziria a "Amazona dos Mares" ao altar. O sacerdote pronunciaria
as palavras sacramentais que os uniriam para sempre; o olhar de João demorava-se disfarçadamente na sua companheira, que de porta-voz na mão) comandava a manobra, animando
os marinheiros.
O São Jorge tinha afrouxado sensivelmente o andamento; ia entrar agora no estreito canal, o único que permitia o acesso ao porto, e que defendia a barra. A navegação
neste local tornava-se extremamente perigosa; felizmente o velho José conhecia admiravelmente estas paragens e a caravela, bem governada, depressa passou o forte
de Fraguim e o forte de Barda, que na terra e no continente protegiam com as suas imponentes construções a entrada na cidade.
Então, sob o olhar maravilhado de João, destacou-se uma imensa floresta de naus. Navios de todas as espécies estavam ancorados; galeões e caravelas de Portugal misturavam-se
cOm embarcações vindas da China longínqua, e caturs estavam amarrados aos pés dos mais modestos barcos de pesca.
A capitã, interrompendo alguns minutos a direcção das manobras, aproximou-se do seu noivo. Estendendo o braço, designou-lhe os grandes navios junto aos quais passava
agora o São Jorge:
- Eis a frota que conquistou Goa maravilhosa, declarou ela.
O francês admirava as caravelas, todas elas armadas de possante artilharia. As cruzes vermelhas singravam nas velas dum branco resplandecente; e entre estas embarcações
que eram aproximadamente umas doze, balançando_se lentamente perto do cais, havia uma que lhe despertava particularmente a atenção, verdadeira fortaleza flutuante.
dominando todas as outras pela sua formidável estatura.
Sem dúvida, Leonor adivinhara o interesse que tinha despertado este barco no seu companheiro; por isso apressou-se a explicar:
É a Flor do Mar, comandada por Afonso
de Albuquerque. Ostenta grande estandarte do rei de Portugal.
- Sem dúvida o capitão-general Afonso de Albuquerque encontra-se a bordo? interrogou João.
Leonor sacudiu negativamente a cabeça.
- Afonso de Albuquerque instalou-se no palácio do emir de Goa, desde a conquista da cidade. É aí que em breve o iremos visitar; estou convencida que deve esperar
o meu regresso com impaciência !
A capitã teve que interromper a sua conversa para voltar apressadamente ao seu posto de comando, e João, a quem Bignache se tinha vindo juntar, teve que se resignar
a observar o movimento do porto. Uma multidão ululante acotovelava-se no cais. A chegada do São Jorge parecia ter provocado uma extraordinária afluência. Marinheiros
com o inevitável barrete frígio; soldados e oficiais com gorros emplumados ou capacetes reflectindo os raios deslumbrantes do sol. A maior parte desta gente agitava
alegremente os braços. Conheciam a reputação da caravela azul, e alguns tinham amigos ou família a bordo, por isso queriam acolhê-los calorosamente ao desembarcar.
João e Bignache não se cansavam de contemplar toda essa multidão animada; índios passavam e acotovelavam-se, com turbantes de todas as cores, alguns sumptuosamente
vestidos, cobertos de jóias magníficas, altivos e solenes; outros, cobertos somente de panos que lhe envolviam as ancas; mercadores, a maior parte chineses, tinham
estabelecido as suas tendas próximo ao cais e esforçavam-se com grandes gestos por despertar a atenção dos portugueses que passavam em grupos, e que apenas dispensavam uma atenção
assaz medíocre aos objectos e estranhos víveres expostos.
Os dois gascões abriam os olhos maravilhados. Como este cenário lhes parecia diferente do dos portos africanos por onde tinham feito escala, antes do naufrágio do
Aquilon! A atmosfera estava impregnada de perfumes; aos da maresia, misturavam-se os do sândalo e do musgo. E cada vez mais distintos chegavam-lhes os gritos e exclamações
de toda esta gente que se interpelava em vinte idiomas diferentes, emquanto pequenos macacos cinzentos saltavam e brincavam nas palmeiras, fazendo uma gimnástica das mais complicadas.
- Preparem-se, vamos desembarcar!
A voz clara da capitã veio, emfim, arrancar os dois companheiros à sua contemplação. A caravela azul tinha-se colocado entre duas naus; sobre a ponte os marinheiros
preparavam-se para deitar a âncora e lançar ao mar a chalupa, decorada de estofos e tapeçarias azues, que devia transportar para terra firme a "Amazona dos Mares"
e os dois franceses.
Contudo, antes de desembarcar, a rapariga deu a Diogo, o oficial que substituía a bordo da caravela Rui da Mota, ordem para libertar Coelho e os três companheiros
que tinham sido postos a ferros na noite anterior. Os quatro homens deviam ser desembarcados e despedidos definitivamente.
Uma vez tomada esta decisão, Leonor ágil como um esquilo, deixou-se escorregar para a chalupa que esperava encostada ao São Jorge; em poucos instantes João, Bignache
e Isabel imitaram o seu exemplo,
e de-pressa a embarcação, sob o impulso de seis vigorosos remadores, alcançou o cais.
Apenas Leonor pôs pé em terra, aclamações a acolheram de todas as partes; centenas de portugueses acotovelavam-se à sua volta, agitando os barretes e capacetes.
Todos conheciam desde há muito tempo a "Amazona dos Mares"; por isso, manifestavam ruidosamente a sua satisfação de a tornar a ver, depois de tão longa ausência.
João e Bignache tiveram que intervir com os seis marinheiros da chalupa para desembaraçar a capitã, meia asfixiada pelos seus admiradores; soldados molestavam-na
quási, e com preguntas e olhares curiosos seguiam os dois gascões. Queriam saber evidentemente onde a rapariga teria encontrado estes desconhecidos.
Por fim um violento rumor se produziu entre os grupos. Uma voz rude dominando os murmúrios, gritava:
- Todos para trás. Lugar ao capitão-general!
Estas poucas palavras de-pressa agiram como uma autêntica fórmula mágica. Os mais obstinados afastaram-se para deixar passar um pequeno grupo de oficiais vestidos
com gibões resplandecentes, couraças e cotas magníficas.
Então, precedido de três soldados armados de alabardas, apareceu Afonso de Albuquerque. O rosto moreno, emoldurado duma barba escura, bastante forte, o conquistador
de Goa avançava, trazendo na cabeça um capacete onde ondulava uma magnífica pluma. Sobre o gibão de veludo negro, adornado de ricas passadeiras de prata, pendia-lhe
uma cadeia de ouro maciço, sustentando a
Cruz da Ordem de Cristo com que o tinha contemplado o seu soberano.
O capitão-general tinha sido prevenido a toda a pressa da chegada da caravela azul; por isso se apressou a correr ao encontro de Leonor, cujas façanhas ele desde
há muito conhecia.
Galantemente, Afonso de Albuquerque inclinou-se perante a heroína, aflorando com os lábios a pequenina mão que ela lhe estendia; depois, emquanto os seus oficiais
e os seus guardas se enfileiravam respeitosamente à sua volta, contendo dificilmente a multidão de curiosos, interrogou a recém-chegada sobre a expedição que acabava
de efectuar pelo Oceano Índico, a bordo do São Jorge.
- Vejo que trazeis novos companheiros, declarou por fim, designando os dois gascões, que esperavam com deferência, a dois passos da capitã.
- O sr. João dAmblayves é meu noivo, respondeu a rapariga voltando-se sorridente para o gentil-homem. Decidimos casar em Goa.
- Como! Vós estais noiva? E de um estranjeiro? Porque esse senhor é francês, sem dúvida? !
A fisionomia do capitão-general exprimia neste momento uma intensa surpresa. Não podia esperar esta decisão da virgem guerreira, que sempre tinha manifestado um
tão profundo amor pela independência!
- Se alguém me tivesse dito que a "Amazona dos Mares" tinha vencido uma frota inteira de corsários e capturado dez piratas, ter-me-ia espantado menos de que esta
novidade, disse ele por fim. Mas vosso primo Rui da Mota? Que faz ele? Ainda não o vi. Mais de-pressa teria pensado que vós.
Rui da Mota violou as leis da honra, cortou a capitã com uma voz seca. Já não o conheço dora-avante!
Afonso de Albuquerque não insistiu; contudo, profundamente intrigado, inclinou-se para Leonor e pediu-lhe para o acompanhar com os seus amigos e o seu séquito, ao
seu palácio. Ali ela poderia contar mais à vontade as suas aventuras e as razões que a levaram a separar-se do seu lugar-tenente.
Um quarto de hora mais tarde, João, que apenas tinha trocado com o capitão-general uma ligeira saudação, transpunha as portas do palácio do emir onde Albuquerque
se tinha instalado após a tomada da cidade pelos navios portugueses. Depois de atravessar um vasto vestíbulo, que se prolongava numa longa galeria ladeada de colunas
de mármore finamente trabalhado com embutidos de arabescos, chegaram a uma grande sala onde o conquistador se reunia em conselho com os seus principais oficiais.
Durante alguns instantes, o gentil-homem imobilizou-se no limiar da porta, deslumbrado com todas as riquezas que se estendiam neste momento a seus olhos; magníficos
tapetes de Bukara cobriam o chão; ao centro encontrava-se um pequenino lago onde cantava um jacto de água. À volta, pelas paredes, havia imensos trofeus conquistados
por Albuquerque; estandartes esburacados e multicores, capturados no decurso de abordagens e assaltos; panóplias de armas maravilhosas; capacetes e couraças de ouro
incrustadas de pedraria dum valor incalculável; despojos de rajás que se tinham imprudentemente ligado à política do Samorim de Calicut, tentando em vão estorvar
a política dos conquistadores portugueses.
Mas João não pôde demorar-se mais na contemplação
destas maravilhas. Albuquerque fazia-lhe sinal para se instalar numa cadeira próxima. Obedeceu então ao convite, tendo-se Leonor sentado à sua direita. Quanto a
Bignache e Isabel, ficaram respeitosamente em pé, junto da tapeçaria de púrpura que dissimulava a porta de madeira de cedro, felizes por aproveitar esta ocasião
de se encontrar de novo juntos.
Por duas vezes o capitão-general bateu as mãos; três escravos índios que esperavam ao fundo da sala trouxeram então refrescos; e Albuquerque tendo-se instalado por
sua vez numa poltrona forrada de veludo franjado de ouro, disposta sob um docel ao fundo da sala, semelhante a um trono, encimada pelos dois pavilhões entre-cruzados
do capitão-general e do rei de Portugal, a conversa começou. Leonor explicou como, depois de ter destruído no Oceano Índico três embarcações tripuladas por piratas
malaios e índios, e a bordo das quais tinham conquistado rica presa, recolhera a bordo os dois náufragos do Aquilon.
Emquanto a "Amazona dos Mares" prosseguia na sua descrição, Afonso de Albuquerque observava com atenção João dAmblayves. A decisão tomada pela capitã parecia torná-lo
profundamente perplexo; sem alimentar nenhuma inimizade particular pelos franceses, via neles contudo uns intrusos. Desde que Vasco da Gama tinha completado a sua
maravilhosa viagem, os navegadores portugueses consideravam como país conquistado todas as costas banhadas pelo Oceano Índico, afastando os marinheiros de Dieppe
ou outros quaisquer que se aventurassem a negociar com os países do Oriente.
E eis que a capitã da caravela azul, terror dos piratas e guerreiros do Samorim, se tinha apaixonado
por este gascão! Eis que Rui da Mota, que ele supunha até aqui um homem de honra, se tinha conduzido como o último dos aventureiros, como um covarde e um assassino!
Contudo, o rosto de Albuquerque serenava cada vez mais, à medida que Leonor o punha ao corrente de tudo; o capitão-general falava dificilmente o francês, por isso
a rapariga servia-lhe de intérprete; sem parecer ressentido pelo acolhimento bastante reservado que primeiro lhe tinha feito o conquistador português, João dAmblayves,
explicou por sua vez em que circunstâncias se tinha resolvido a embarcar com destino a estes longínquos países; não era certamente para tomar posse de novas terras
em nome do seu rei e do seu país; somente o seu amor pela aventura o tinha atirado para estas índias misteriosas. -E esforçando-se por alcançar estas costas distantes,
ele tinha, sem querer, conquistado o coração da "Amazona dos Mares".
Uma hora mais tarde o capitão-general e o gentil-homem gascão eram os melhores amigos do mundo.
João tinha conquistado a simpatia do seu interlocutor, pela firme afoiteza, pela franqueza e, sobretudo, pelo entusiasmo. Ele desejava também afrontar os guerreiros
do Samorim, que desencadeavam sem cessar combates encarniçados às tropas do rei de Cochim, aliado fiel de Portugal. Frequentes vezes Albuquerque teve de intervir
para fazer pender a balança, em favor do seu amigo índio e vencer mais uma vez o soberano de Calicut, hostil aos conquistadores estranjeiros.
E o gascão evocou os combates épicos em que tomara parte durante as guerras de Itália; levantando
a manga do seu gibão, mostrou duas cicatrizes recebidas quando enfrentava, espada na mão, escudo no braço, os temíveis mercenários suíços. Fielmente, Leonor traduzia
a sua narração. Interessado, Albuquerque fazia repetir certos episódios; o ardor que animava o gascão agradava-lhe infinitamente, e inclinando-se para Leonor, murmurou-lhe
esboçando um ligeiro sorriso:
- Compreendo que a "Amazona dos Mares" tenha sido seduzida pela franqueza e coragem deste valente companheiro. Felicito-a pela sua escolha e gostarei muito de assistir
ao casamento, que será consagrado pelo irmão São José, meu capelão. Depois espero que os fanáticos do Samorim farão melhor em desistir. com dois chefes do vosso
valor, a caravela azul fará de novo falar dela.
E a conversa prosseguiu infinitamente cordeal; o gascão absorvia com delícia as bebidas geladas que lhe fazia servir o capitão-general. Já a noite caía quando ele
se decidiu, com Leonor, a voltar para o São Jorge. Antes de se separar dos noivos, Albuquerque convidou-os a assistir, no dia seguinte, à recepção ao embaixador
do Samorim, Mirza Sahib, que devia chegar a Goa para conferenciar com o conquistador português. Leonor e dAmblayves aceitaram o convite e deixaram o palácio seguidos
pelos criados.
CAPITULO VIII
O enviado do Samorim
Goa tinha posto, nessa manhã, seus trajes de festa; uma multidão agitada cruzava-se nas ruas e pelo porto; cachos humanos marinhavam pelas palmeiras e acotovelavam-se
pelos terrassos das casas baixas: amedrontados, grandes bandos de pombos passavam no céu azul, misturando-se às gaivotas. Estas, ziguezagueavam em desatino, sobre
a floresta que vinha debruçar-se docemente ao longo do cais.
As caravelas e as naves portuguesas tinham arvorado o grande estandarte. Flâmulas de todas as cores agitavam-se alegremente ao vento ligeiro, que soprava do largo.
Também o sol participava nesta festa, dispensando sem conta os seus raios sobre a multidão de turbantes multicores, que se espalhava à volta do forte de Prangim
e de Barda.
E eis que clamores ensurdecedores se fizeram ouvir. As embarcações que compunham a frota de Mirza Sahib, o enviado extraordinário do Samorim de Calicut a Afonso
de Albuquerque, apareciam no horizonte, e admiravelmente pilotadas,
dispunham-se a transpor a perigosa barra que dificultava a entrada no porto.
A bordo das naves e caravelas a animação também era grande. Os marinheiros seguiam atentamente a marcha dos navios que navegavam cada vez mais perto. Contudo, alguns
artilheiros estavam prudentemente perto dos canhões e colubrinas. Os guerreiros de Calicut não rejeitariam a hipótese duma traição; uma manha de guerra para se introduzir
no porto de Goa era sempre uma possibilidade.
Contudo, Leonor e João dAmblayves não se demoraram a bordo do São Jorge. Apressaram-se logo a responder ao convite do capitão-general. Agora misturavam-se ao cortejo,
que com Albuquerque à frente, devia ir ao encontro da embaixada do soberano de Calicut.
Surdas detonações, vindas tanto dos fortes como de bordo das caravelas, anunciavam aos portugueses que a frota composta por seis navios ricamente decorados e adornados,
acabava de transpor a barra e se aventurava no canal. O primeiro, a bordo do qual o embaixador tomara lugar, encontrava-sa revestido dos mais preciosos estofos;
guerreiros, vestidos com cotas de malha e armaduras ricamente cinzeladas, alinhavam-se ali; escravos agitavam grandes leques de plumas de avestruz acima do muito
poderoso Sahib, sentado sobre um tapete de valor incalculável.
O dignatário indiano tinha, neste momento, a imobilidade hierática duma estátua; o seu olhar vagueava com indiferença sobre a cidade soalheira e regorgitante de
pessoas; os seus dedos, queimados pelo sol, estavam cobertos de anéis; um magnífico colar de pérolas caía-lhe sobre o peito;
no turbante de seda branca, encimado por um longo penacho branco, um diamante do tamanho dum ovo de pomba, admiravelmente talhado, faiscava mil fogos. De quando
em quando, o seu braço direito movia-se ligeiramente e a sua mão vinha acariciar o punho do sabre de lâmina recurvada, que trazia à cintura, todo incrustado de pedrarias.
À volta das almofadas franjadas de ouro, em que se recostava o altivo embaixador, perfumadores, cuidadosamente vigiados por escravos, fumegavam incenso.
Mirza Sahib teve que se arrancar da sua imobilidade, quando o navio veio encostar ao molhe. Os servidores que o acompanhavam vieram ajudá-lo apressadamente; guerreiros
abriam alas, e duzentos soldados portugueses erguiam alabardas, espadas e outras armas, cujas lâminas brilhavam alegremente ao sol.
A populaça inclinava-se ante a passagem do enviado do Samorim; olhares incidiam, curiosos e respeitosos, sobre o dignatário que continuava a avançar ao longo do
cais coberto de tapetes, sobre os quais milhares de pétalas de rosas punham pequenas manchas claras. O serviço de ordem dificilmente continha esta enorme avalanche
humana que, ansiosa de cada lado da paragem, ameaçava a todo o momento juntar-se ao desfile do cortejo.
Mirza Sahib marchava agora com um passo majestoso e lento, as pálpebras meias fechadas, precedido de doze archeiros índios, de capacete ligeiramente recurvado, aljavas
cheias de flechas, que avançavam também lentamente, os olhos fulgindo sob a vizeira dos capacetes, e ostentando no braço direito escudos soberbamente decorados.
Atrás do embaixador, um gigantesco escravo
negro levava um guarda-sol púrpura franjado de ouro; depois vinha todo um grupo de servidores, pesadamente carregados com presentes destinados ao capitão-general
de Portugal; aos caixotes contendo os mais raros perfumes, sucediam-se magníficas peles de tigre e leopardo, jóias e armas ricamente cinzeladas, uma sela de couro
vermelho adamascado e estofos de um valor apreciável, os quais arrancavam gritos de admiração ao povo.
De-repente os grupos apertados da populaça, recuaram; o som das trompas fazia-se bruscamente ouvir, anunciando a chegada de Afonso de Albuquerque que acabava de
deixar o seu palácio de Goa, para ir ao encontro do enviado extraordinário do Samorim, até aqui o seu mais implacável inimigo.
Em pouco tempo, sob o olhar extasiado dos indígenas, um segundo cortejo apareceu, que podia rivalizar com o primeiro. Precedido de arautos, que faziam soar trompas,
Albuquerque avançava, revestido da sua esplêndida armadura, montado num cavalo persa ricamente arreado, que lhe tinha sido oferecido pelo seu aliado, o rei de Cochim.
Alguns passos à sua frente, um religioso levava a bandeira da Ordem de Cristo, cuja imagem sagrada ondulava docemente por cima de milhares de cabeças.
Um martelar rítmico de passos dominou em seguida os murmúrios e as exclamações de admiração do povo. Os oficiais portugueses aproximavam-se imediatamente seguidos
de um par que atraía todos os olhares. E daqui e dali partiam aclamações cada vez mais fortes:
- Viva Leonor Rodrigues!
- Viva a "Amazona dos Mares"!
- Glória à capitã da caravela azul!
A rapariga, que avançava ao lado de João, respondia, sorrindo, às aclamações dos seus compatriotas que abriam alas, e que aproveitavam esta ocasião para lhe manifestar
ruidosamente a sua admiração. O gascão admirava-se da popularidade que gozava sua noiva; e como tudo era novo neste país que ele desejava conhecer há tanto tempo!
No seu rosto transparecia o mais completo contentamento; jamais ele se sentira tão feliz. Não ia dentro de pouco tempo desposar aquela que amava? Goa era o local
sonhado para tornar Leonor sua esposa muito querida, a companheira com quem poderia continuar heróicas expedições pelo oceano, a bordo da caravela azul, que tinha
visto florir o seu idílio.
João dAmblayves marchava com um passo certo; a multidão frenética parecia-lhe dansar em torno uma sarabanda fantástica, tanto o deslumbrava a ostentação deste cenário,
digno de rivalizar com os das Mil e uma noites.
E o cortejo de Albuquerque continuava a desfilar, os soldados com lanças ou alabardas aos ombros; fechando o cortejo, cerca de cem cavaleiros, revestidos de esplêndidas
couraças.
Ovações estalaram de todos os lados quando Albuquerque chegou próximo do embaixador. Este, fazendo parar bruscamente o seu fogoso corcel, avançou ao seu encontro,
e inclinando-se profundamente perante o conquistador, levou a sua mão direita aos lábios, à testa e ao peito, saudação usada entre os índios para assegurar a pureza
e a honestidade das suas intenções.
Um intérprete acompanhava Albuquerque. O português acolheu amavelmente o enviado de Calicut; manifestou-lhe a esperança de que boas relações, sempre desejadas, se
estabelecessem a
breve trecho e que o Samorim se decidisse, emfim, a acabar com os ataques contra o rei de Cochim. fiel aliado dos portugueses; Mirza Sahib respondeu então que faria
tudo que estivesse ao seu alcance para assegurar a paz que lhe era tão preciosa; o seu senhor tinha, de resto, mandado para o capitão-general, ricos presentes, como
prova da sua ardente amizade.
Emquanto o dignatário se exprimia com uma voz lenta, um pouco cantante, Afonso de Albuquerque retinha vigorosamente o cavalo persa, que impaciente escarvava o solo.
Desde que o conquistador tinha vindo para estas paragens fazer respeitar a autoridade do seu soberano e a bandeira do seu país, sabia evidentemente até que ponto
devia acreditar nos protestos de amizade do seu poderoso vizinho. Havia longos meses que a situação era bastante complicada. Não havia semana em que as tropas do
Samorim não atacassem as do rei de Cochim. Os caturs e os tripulantes das embarcações de Calicut atacavam brutalmente as populações pacíficas do litoral, massacrando
e pilhando impiedosamente, levando consigo mulheres e crianças, que mais tarde eram vendidas como escravas nos mercados de Calicut, depois enviadas para a Pérsia
e Arábia. Regiões inteiras tinham sido incendiadas e ensanguentadas, em despeito das promessas formais feitas pelo Samorim.
Político subtil, Afonso de Albuquerque compreendia que esta visita e estes presentes, eram pretexto, sobretudo, para saber o número de navios que constituíam a frota
portuguesa em Goa. O Samorim sabia pelos seus espiões que o capitão-general dispunha de forças navais e militares particularmente importantes, por isso se tinha
preocupado
em fazer-lhe esquecer certas descortezias, que já tinham incitado Albuquerque a bombardear Calicut, e submeter a cidade a um fechado cerco. Pouco tinha faltado nessa
época para que o Samorim caísse nas mãos do seu valoroso inimigo. Contudo, uma vez partidas as caravelas portuguesas, o soberano tinha recomeçado as suas perfídias
e os seus ataques. Seria ele desta vez sincero e estaria lealmente decidido a respeitar a paz? . O conquistador duvidava, mas sentia-se mais que nunca resolvido
a mostrar todo o seu poder, ao olhar do embaixador extraordinário.
A despeito da impassibilidade que tinha observado, Mirza Sahib não tinha deixado de se sentir profundamente impressionado pela ostentação das forças portuguesas.
Jamais pudera pensar que Albuquerque, instalado há tão pouco tempo nesta Goa tomada por ele de assalto, tivesse podido organizar-lhe a defesa com uma tal maestria
e rapidez; pela sua atitude calma e corajosa, o conquistador tinha provocado a simpatia e admiração dos habitantes, que viam na presença dos portugueses a melhor
guarda contra as nefastas ambições dum vizinho demasiado ávido e sanguinário.
O capitão-general mandou buscar um magnífico cavalo branco; com um gesto, indicou ao embaixador que lhe fazia presente dele, e que podia montar para o acompanhar
ao palácio.
Durante alguns instantes, o dignatário admirou e afagou o soberbo animal que lhe era oferecido, depois obedecendo ao convite de Albuquerque, e ajudado por um dos
seus escravos, saltou para a sela; os dois cortejos logo se confundiram e tomaram o caminho do palácio, emquanto numerosos
soldados abriam alas e estandartes se inclinavam à sua passagem.
Mirza Sahib galopava ao lado de Albuquerque, quando de-repente um ligeiro estremecimento perpassou no seu rosto. O seu olhar acabava de pousar na "Amazona dos Mares",
que avançava um pouco atrás, trocando algumas palavras com os oficiais e respondendo às aclamações que partiam agora para ela, dos grupos compactos e barulhentos
da multidão.
- Quem é esta mulher? interrogou inclinando-se para o capitão-general. A tua favorita, sem dúvida?
Albuquerque não pôde deixar de sorrir quando o seu intérprete, que o seguia a passos rápidos, lhe repetiu a pregunta do seu hóspede.
- Esta mulher não é a minha favorita. respondeu ele. É Leonor Rodrigues, a "Amazona dos Mares", capitã da caravela azul!
Parecia que estas palavras tinham despertado profundo interesse no dignatário. Um clarão logo iluminou o seu olhar. Sem dúvida também conhecia a reputação desta
virgem guerreira que tantas vezes tinha enfrentado as embarcações do seu soberano. Por mais três vezes ele se voltou sobre a sela para a olhar com insistência.
Leonor não tinha percebido a impressão que provocara no embaixador; continuava a avançar ao lado do seu noivo e dos oficiais do capitão-general, que se tinham aproximado.
A "Amazona dos Mares" enternecia-se com as ovações que lhe dispensava toda a multidão, emquanto o soar das trompas e o rufar espaçado dos tambores, ressoavam com
pequenos intervalos, à passagem do cortejo.
Afonso de Albuquerque e o seu hóspede alcançaram, emfim, a vasta escadaria de mármore que conduzia ao palácio. Tapeçarias multicores estavam estendidas ao longo
do terraço; tapetes cobriam o solo; flores das mais belas e mais odoríferas tinham sido lançadas com profusão à passagem de Mirza Sahib.
Obedecendo ao convite de Albuquerque, o enviado do Samorim saltou lestamente para terra. Sacudindo a poeira que embranquecia os seus trajos bordados a ouro, lançou
um olhar à sua volta, mas a poeira era tão intensa que não reparou na capitã da caravela azul, que ele tão vivamente desejava tornar a ver.
De novo o som das trompas retiniu pelos degraus do palácio. Mirza Sahib não se demorou mais e começou a subir as escadas, à direita de Albuquerque, que avançava
majestoso, apoiando a sua manopla sobre os copos da sua espada.
O som agudo dos pífaros e o doce acorde das violas, acolheram o embaixador quando penetrou no interior do esplêndido albergue. Contudo, uma sombra lhe passou pelo
rosto quando viu pelas paredes da sala, onde seria dado o festim em sua honra, os inúmeros trofeus conquistados. Albuquerque tinha procurado visivelmente impressionar
o seu hóspede com a vista destes despojos, conquistados de arma na mão pelos portugueses aos seus temíveis adversários. Mas o embaixador de-pressa retomou a sua
serenidade, e esforçou-se por inspirar toda a confiança ao capitão-general, que o tinha sentado à sua direita. Servos e soldados trouxeram, em seguida, as iguarias
e bebidas, e a refeição começou na vasta sala repleta, onde se encontravam cerca de trezentos convivas. Ao som de música, as bailadeiras
vieram executar algumas danças que Mirza Sahib admirava e aplaudia, não se fartando de honrar e gabar um certo vinho do Porto, que Albuquerque tinha trazido até
às índias a bordo da sua Flor do Mar.
No decurso desta refeição, que precedia as negociações e as festas em honra do embaixador extraordinário, festas que deviam prolongar-se durante alguns dias, Leonor
não foi a menos festejada e João dAmblayves pôde então tomar contacto com os oficiais e capitães das caravelas, que o felicitavam de ter conquistado o coração da
valente e formosa "Amazona dos Mares".
CAPITULO IX
Através da selva
- Então, Manuel ? .
- Vi o lugar-tenente, como vejo agora vocês os dois.
- São e salvo? .
- Ileso! Conseguiu abordar a menos de cinco léguas de Goa, próximo de Mapuça.
- E ele falou-te?
- Por Santiago, juro que me prometeu cem bons cruzados a dividir com vocês dois, se o ajudássemos a tirar desforra, e a raptar a sua prima!
Joaquim e Gabriel soltaram um pequeno assobio e trocaram uma olhadela embaraçada.
- Raptar a capitã, é muito bonito de dizer, rosnou Gabriel, mas quando se tratar de fazê-lo, será certamente mais difícil! Lembrem-se da pouca sorte que tivemos
a bordo do São Jorge. Não se esqueçam também de que esse maldito francês não larga a sua noiva um só momento. O patife tem o diabo no corpo e é espadachim de primeira!
Falando francamente, não tenho nenhum desejo de travar conhecimento com a sua espada.
Manuel, que acabava de descer do cavalo, deitou ao seu camarada um olhar de desprezo.
- Então, tanto pior! Teremos que nos resignar a viver como párias! Há cinco dias que estamos em Goa, cinco dias que fomos despedidos vergonhosamente pela capitã,
nós e Coelho. Não sei o que é feito desse maldito, mas o que é certo é que não conseguimos encontrar nenhum emprego a bordo das naves e caravelas ancoradas no porto.
Os marinheiros do São Jorge falaram de mais; em toda a parte se sabe que fomos cúmplices do lugar-tenente; fogem de nós como da peste. Portanto, não temos que hesitar;
os poucos cruzados que nos restavam, permitiram-nos comprar três cavalos e algumas provisões. Como a profissão de marinheiros nos fica dora-avante interdita, far-nos-emos
salteadores. É possível que se tire daí algum proveito. Eis porque eu não me cansarei de lhes recomendar que aceitemos a proposta que nos faz D. Rui!
- Serviu-nos de muito escutar o D. Rui! rosnou Joaquim coçando a cabeça, embaraçado.
- Talvez! Mas actualmente não temos por onde escolher. D. Rui é generoso. Saberá reconhecer os serviços que lhe temos prestado. Em vez de teimarmos em viver como
judeus errantes, devíamo-nos aliar a ele.
Depois, como Joaquim e Gabriel pareciam ainda bastante cépticos, Manuel insistiu:
- Compreendia, se vocês temessem nova tentativa a bordo da caravela azul; parecem esquecer que, se a capitã é a autoridade toda poderosa a bordo do São Jorge, não
goza nenhuma importância na selva.
- Bem compreendo, cortou Joaquim, mas pensas
que a capitã será tão parva que se deixe cair numa armadilha?
- D. Rui, que nos espera na estrada de Mapuça, expôs-me o seu plano. Parece-me reunir desta vez tudo o que é preciso para triunfar. Sabem que há cinco dias que Goa
está em festa. O capitão-general multiplica as recepções em honra do enviado do Samorim de Calicut. Já me informei: sei que a capitã só casará com o francês dentro
de alguns dias; sei também que eles todos os dias se afastam da cidade para se aventurar ambos em plena floresta. Nestas condições, nada mais fácil de que fazer-lhes
uma embuscada. Atacado pelas costas, o francês de-pressa será suprimido e nós nada teremos a recear. Só nos restará raptar a pombinha e conduzi-la delicadamente,
e a galope, ao seu gentil primo, bastante impaciente de a tornar a ver e tirar dela uma retumbante desforra!
As declarações de Manuel pareciam pouco a pouco dissipar os escrúpulos dos seus camaradas; estiraçados à sombra das palmeiras, olhavam as muralhas da cidade próxima
e o mar azul que vinha morrer a pouca distância sobre o areal.
- Contudo, Coelho. objectou Gabriel.
- Não temos que nos preocupar com Coelho! interrompeu bruscamente Manuel. Nem sequer sabemos onde pára esse palerma. De resto, D. Rui não lhe tem muita amizade desde
que o homem de negro o denunciou na ponte; fomos previdentes, tratando-o com uma certa reserva! Mas basta de conversas! Não podemos ficar mais tempo na incerteza;
é preciso agir! vou fazer o possível por vigiar os pombinhos; quando eles se aventurarem Para fora da cidade, poremos o nosso plano em execução e de-pressa alcançaremos,
através da plateia,
o lugar em que nos espera o nosso antigo lugar-tenente!
Joaquim e Gabriel de-pressa se associaram ao projecto do seu companheiro; a sua inquietação dissipou-se quando Manuel lhes assegurava que Rui da Mota, depois de
se salvar na sua jangada, tinha conseguido entender-se com os malaios duma embarcação. Tudo estava preparado para a partida. Nestas condições, o rapto de Leonor
apresentava probabilidades de execução. Não havia a temer perseguições. Antes de se ter descoberto em Goa a desaparição da capitã, já o barco estaria longe.
- Podes contar connosco, declarou por fim Gabriel. Mas o que fazemos agora? Voltamos para Goa?
- Não sejam burros! respondeu Manuel. Vocês esperam-me aqui com os cavalos; pela minha parte, ocupar-me-ei de vigiar os dois apaixonados. Quando eles se decidirem
a efectuar um novo passeio, fora da cidade, nós agiremos nessa mesma altura! Esperem simplesmente a minha volta e, sobretudo, não se impacientem.
- Mas tu não tens medo que o capitão-general.
Manuel não deixou Joaquim acabar a frase:
- D. Afonso de Albuquerque está demasiado ocupado em convencer o embaixador do Samorim, para perder tempo a vigiar a capitã e o seu noivo. E depois, a maior parte
da guarnição está encarregada do serviço da ordem. Acreditem que nunca mais encontraremos uma ocasião tão favorável! Mas já falamos bastante e não temos tempo a perder. Repito-lhes que quando o momento for propício, apressar-me-ei em vir avisá-los. Emquanto
esperam, repousem tranquilamente e confiem inabalàvelmente no futuro.
O português não se demorou mais ao pé dos seus cúmplices; deixando-os à sombra das palmeiras, olhando pelos três cavalos, dirigiu-se para a cidade, perdendo-se entre
os numerosos grupos que encontrava à porta do norte.
Emquanto se desenrolava esta inquietante cena, Leonor e João, longe de suspeitar da traição que se tramava contra eles, preparavam-se para sair. Albuquerque tinha
posto dois cavalos à sua disposição; assim, os dois noivos ausentavam-se frequentemente pelas imediações de Goa, deixando o capitão-general e os seus oficiais a
presidir às festas e revistas de tropas que se sucediam sem tréguas.
Nessa tarde, o tempo estava esplêndido. Nem uma nuvem no céu, que o sol incendiava implacàvelmente com os seus raios. Bignache esperava, segurando os dois cavalos
pelas rédeas, ao fundo da escadaria, quando viu o seu amo aparecer com a noiva e descer as escadas; apressou-se a levar-lhes os cavalos, e, quando os dois noivos
já seguravam, as rédeas, disse:
- Sr. conde, não me autorizais a seguir-vos hoje?
O gentil-homem pareceu surpreendido por este pedido do seu criado:
- Mas, Bignache, que eu me lembre, tu não costumas acompanhar-nos! de resto tens mais em que te ocupar, e, segundo me parece, costumas aproveitar a nossa ausência
para te entreteres em galantes conversas com a tua amiga Isabel. Não estará ela esperando-te, para ouvir as tuas frases, gentis?
Savínio calou-se durante alguns instantes e depois, passando a mão pela sua barba ruiva:
- Ah! sim! Isabel está sempre pronta para me ouvir. Mas não é isso que me preocupa. É que. não estou sossegado!
- Vai para o diabo! Tens comichão nos ouvidos?
- Justamente, sr. conde. E depois passam-me tantas ideas pela cabeça. A floresta não é muito segura, e nestes últimos tempos, por causa das festas, os soldados nem
têm tempo de patrulhar os arredores. Seria mais prudente ficar no palácio!
João sacudiu desdenhosamente os ombros; depois, estendendo a mão, apertou entre o polegar e o indicador a ponta da orelha do seu interlocutor:
- Então, sr. Bignache! volta a ser medroso? É muito vil, para um galanteador da sua espécie!
- Ai! gemeu o bravo rapaz. Fazeis-me mal, sr. conde!
- Está bem! estás perdoado, mas não te abandones a esses pensamentos absurdos. Se alguém um dia pensasse em atacar-nos, teríamos alguns argumentos para o dissuadir
desse intento!
Pronunciando estas palavras, o gascão acariciava o punho da sua espada; depois interrompendo-se bruscamente, voltou-se para Leonor, que assistia, divertida, a esta
breve conversa.
- Vamos! Ainda temos quatro horas diante de nós!
Estendendo galantemente a mão à capitã, João ajudou-a a montar e ele próprio saltou para o cavalo persa que Albuquerque tinha posto amavelmente à sua disposição;
por fim, voltando-se pela
última vez para Bignache, fez-lhe um amigável sinal com a mão e disse:
- Não vos inquieteis, sr. Bignache; estaremos de volta antes do pôr do sol. Podeis entreter-vos com a vossa dona, pássaro agoirento.
Savínio não insistiu e contentou-se em ver afastarem-se a trote e perderem-se entre a multidão os dois noivos; na fronte do fiel criado havia uma ruga e parecia
que sinistros pressentimentos o assaltavam. Continuava preocupado com a partida do patrão: contudo, arrancando-se às suas apreensões, esboçou um gesto vago e dirigiu-se para o palácio.
Emquanto Bignache ia adormecer a inquietação que o pungia ao pé de Isabel, João e Leonor cavalgavam despreocupadamente através da cidade. Várias vezes tiveram que
abrandar a marcha dos cavalos, tão considerável era a afluência nas ruas, magnificamente ornamentadas.
Afonso de Albuquerque devia nesse dia passar revista às tropas em presença de Mirza Sahib, que parecia, nesta estadia prolongada, haver esquecido completamente as
guerras sangrentas que tinham oposto o seu soberano aos portugueses. O capitão-general comulava-o de atenções e fazia-o compreender todas as vantagens que traria
o respeito ao tratado de amizade, cujo objectivo era concluir e evitar incursões bélicas no território amigo do rei de Cochim.
Nessa tarde, os enamorados não se preocupavam com política ou diplomacia. Esqueciam as suas recentes aventuras, para só pensar na sua felicidade. Amavam-se e o seu
idílio decorria no cenário grandioso de Goa e seus arredores. Iam para longe, murmurar e repetir ainda palavras ternas,
essas palavras que, sempre as mesmas, lhes pareciam novas cada vez que eram ditas.
João e a companheira de-pressa se afastaram da cidade em festa, onde retinia já o som das trompas e o rufar lento e irregular do tambor; tiveram que se desviar um
pouco para evitar os destacamentos que se encontravam próximos do porto, de armas ou alabardas ao ombro. Uma multidão de indígenas comprimia-se à passagem dos guerreiros
portugueses que marchavam com um passo igual, satisfeitos do interesse e simpatia que despertavam na população.
Os dois jovens dirigiam-se para a porta do norte, quando de-repente Leonor se voltou para o companheiro:
- Pareceu-me surpreender Manuel, há uns instantes,
- Manuel? interrogou João.
- Um dos três marinheiros cúmplices de Rui, que te quiseram matar!
- É, verdade! Esse incidente tinha-me passado completamente. Desde que estamos em Goa, vivo num contínuo encantamento. Só a ti vejo! Mas sem dúvida que esse bandido
será enforcado com os seus acólitos.
- Suponho que sim, respondeu a capitã, que este encontro parecera tornar pensativa.
Voltando-se na sela, tentou em vão divisar de novo o marinheiro. Tinha desaparecido por entre a multidão.
A rapariga de-pressa interrompeu as suas reflexões; aproximavam-se da porta do norte e via as duas torres gigantescas, que defendiam a cidade, recortar-se no azul
do céu; numerosos pombos esvoaçavam à sua volta. Alguns soldados do corpo
da guarda, esperavam, sentados em pedras ou apoiados às suas lanças. De-pressa reconheceram a "Amazona dos Mares", e o sargento que os comandava, afastou-se respeitosamente
para a deixar passar com o noivo.
Agora, a selva atraía os dois jovens; à sua esquerda estendia-se a superfície azulada do mar, que as vagas abriam em canais paralelos; contudo, pouco desejosos de
alcançar a margem, seguiram resolutamente em direcção à floresta que começava a algumas centenas de passos, suficientemente desempedida para se poder atravessar.
Durante um curto momento, seguiram pelos caminhos cuidadosamente tratados, onde andavam em liberdade alguns zebus, e esvoaçavam pombos e corvos; depois chegaram
a um atalho no qual se embrenharam.
Alguns minutos ainda, mantiveram um longo silêncio, contentando-se em lançar algumas olhadelas à sua volta. Toda esta zona parecia abandonada pelos homens; inúmeros
macacos se perseguiam nos ramos das árvores numa interminável e inacreditável gimnástica.
João estava encantado com a natureza tropical; esta maravilhosa região da índia não lhe tinha causado decepção; emquanto segurava o cavalo persa com mão firme, aspirava
os perfumes odoríferos que se expandiam à sua volta. Parecia que os cheiros mais inebriantes se desprendiam das moitas floridas que se tornavam cada vez mais numerosas
e inextricáveis, à medida que eles se embrenhavam ao acaso. Orquídeas estranhas floriam, com as pétalas bizarramente recortadas e enroladas, cipós estendiam as suas
flores vermelhas semelhantes a nódoas de sangue. Suspensos nos ramos das árvores, papagaios
e periquitos, conversavam numa palração ensurdecedora, interrompida, às vezes, por um inesperado rasto cinzento. A pouca distância, afugentado pelo martelar das
patas do cavalo, um pássaro-lira esvoaçava com estrépito, e o cavaleiro dificilmente continha os cavalos amedrontados.
Agora, o caminho alargava-se bastante para deixar passar os dois enamorados. O gascão, desprendendo o olhar deslumbrado do cenário esplêndido, demorava-o agora sobre
o rosto enérgico da sua vizinha. A sua mão estendia-se e apertava a da rapariga, enluvada de cinzento.
Tudo à volta de Leonor e João parecia celebrar o amor; periquitos, com o peito cor de jade, trocavam longas carícias com os seus bicos de coral; pássaros chilreavam
e rolas saltitavam pelas ramagens. Centenas de borboletas multicores adejavam aqui e ali, pousando de flor em flor. Aos harmoniosos acordes dos pássaros, misturava-se
o zumbir estrídulo dos insectos. A floresta vivia, e os infinitamente pequenos agitavam-se buliçosos, nas altas ervas aloiradas pelo sol.
- Leonor! Minha querida!
O gascão tinha parado o seu cavalo, inclinando-se ligeiramente na sela, e enlaçara ternamente a sua companheira, que também tinha feito parar o seu corcel branco.
Durante alguns instantes os seus lábios juntaram-se; esqueciam tudo o que os rodeava, quando de-repente Leonor se afastou, ofegante.
- O que é que se passa? interrogou o francês surpreendido.
- Não sei. Pareceu-me ouvir um ruído na erva, perto de nós .
- É sem dúvida algum animal. Os javalis são numerosos nestas paragens. Mesmo os tigres.
A "Amazona dos Mares" não pôde reprimir um estremecimento ao ouvir nomear o terrível felino, rei da floresta; contudo, de-pressa sossegou ao constatar que o silêncio
voltava de novo a reinar; somente os corvos grasnavam numa árvore próxima; abutres espreitavam no alto das magnólias e estendiam curiosamente o pescoço em direcção
aos dois cavaleiros. Em toda a volta cáctus gigantes em profusão, cipós floridos, rotins e fetos arborescentes.
Tranquilizados, Leonor e João continuaram o seu passeio. Tinham andado uma centena de passos, quando, a pouca distância deles, divisaram uma cabeça coberta com um
turbante que se deslocava através das ervas altas, parecendo dirigir-se na sua direcção.
João levara a mão à sua espada, pronto a toda a eventualidade; mas logo se tranquilizou quando verificou que o recém-chegado era um desses fakirs mendigos que existiam
em grande número nestas regiões da índia, como ele tinha tanta vez encontrado em Goa. "
O homem aproximava-se, encostado a um pau nodoso; farrapos enxovalhados cobriam-lhe o corpo duma magreza assustadora, cheio de moscas; trazia um pano imundo à volta
dos rins. Contudo, o que mais intrigou Leonor, foi o olhar cortante que iluminara o seu rosto ossudo e enrugado.
A capitã tinha parado o seu cavalo. Sentia um irresistível sentimento de piedade à vista deste miserável, que estava a dois passos dela, e que a fixava firmemente
como se quisesse adivinhar os seus mais secretos pensamentos. Levando a mão
à bolsa que lhe pendia à cintura, tirou uma moeda e depô-la na mão descarnada do fakir.
O índio pareceu admirado do gesto piedoso desta estranjeira; mas de-pressa reconquistou a sua calma imperturbável, e inclinando-se perante a sua bemfeitora levou
a mão direita à testa e aos lábios. Executando em seguida alguns gestos, fez sinal à rapariga para tirar a luva e estender-lhe a mão.
João, sempre desconfiado, ia opor-se, mas Leonor interrompeu-o com um gesto; depois, deliberadamente, tirou a luva e estendeu a mão ao índio, que estudou alguns
instantes a palma e as linhas que ali se desenhavam.
Durante alguns instantes, o trio conservou-se num impressionante silêncio; o gascão continuava disposto a socorrer a sua companheira se fosse preciso, mas compreendeu
que o homem era inofensivo. Largando a mão da amazona, estendeu o braço e agitou-o repetidas vezes. Parecia querer incitá-los a voltar para trás imediatamente.
- Toma cuidado! Ameaça-te um grande perigo, mensaíb! declarou em mau português.
A "Amazona dos Mares" levantou despreocupadamente os ombros; depois, fazendo sinal ao seu companheiro para retomar a cavalgada interrompida, afastou-se do fakir.
Este desviou-se para lhes dar passagem; o seu olhar tinha-se subitamente carregado. Imóvel, demorava-se observando pensativo os noivos. Parecia desejar segui-los,
mas de-pressa reconsiderou, e depois de ver desaparecer João e Leonor por detrás duma sebe de fetos gigantes, retomou o seu caminho, mais curvado ainda e afastou-se
através da floresta em direcção a Goa.
CAPITULO X
O rapto
João e a companheira tinham continuado a cavalgada sem dizer palavra durante uns instantes, mas o gascão de-pressa se decidiu a interrogar a sua companheira:
- O que é que te disse esse mendigo?
- Simplesmente que devia acautelar-me e que um grande perigo me ameaçava.
O rapaz esboçou primeiramente um gesto irónico; mas logo a sua fronte se enrugou. Lembrava-se de facto, das recomendações de Bignache e das apreensões que sentia
o bravo rapaz.
- E esta! Toda a gente tem hoje ideas negras! pensava ele. Pregunto a mim mesmo que perigo poderá pairar sobre as nossas cabeças?
O gascão interrompeu o monólogo íntimo. Leonor, acabava com efeito, de se voltar na sua sela, e estendendo o braço para a esquerda:
- Distingo agora, entre as árvores, o lagozinho de nenúfares, cuja vista tanto nos intrigou. Porque não deixamos os nossos cavalos aqui e vamos a pé até lá abaixo?
João concordou e instantes depois os dois apaixonados saltavam dos cavalos, que seguraram ao tronco de duas palmeiras próximas; emfim, apoiados no braço um do outro,
aventuraram-se resolutamente através da selva.
A capitã felicitou-se neste momento por ter vestido para este passeio trajos masculinos. As moitas mostravam-se por vezes impossíveis de transpor; espinhos e cipós
enrolavam-se perfidamente às suas botas ou apertavam-se-lhe aos tornozelos; João teve que desembainhar a espada para cortar as silvas que às vezes lhes barravam
o caminho.
Os jovens prosseguiam infatigavelmente no seu avanço, desejosos de alcançar o pequeno lago que entreviam, a despeito de todos os obstáculos. À volta deles, amedrontados,
fugiam colibris. Estes pequeninos seres, cobertos de plumas magníficas, onde se casavam harmoniosamente todas as cores do arco-íris, voaram loucamente antes de pousar
de novo sobre as magnólias ou sobre o topo dos fetos, que faziam balançar docemente.
E o tempo passava sem que os jovens se apercebessem. O espanto do gascão redobrou quando a sua companheira, tendo estendido a mão para colher uma folha, esta lhe
fugiu, indo refugiar-se num arbusto vizinho.
- Deus do céu! exclamou João. Que significa isto ? .
- Isto significa simplesmente, explicou a capitã, que poderíamos descobrir centenas de milhares destas singulares plantas à nossa volta. A natureza deu-lhes esta
constituição bizarra, que lhes permite fugir aos seus adversários e dissimular-se ao olhar mais atento. Olha para esta ramagem!
Falando assim, Leonor apontava de novo com um dedo para a ponta duma folha que parecia fixada contra os galhos duma magnólia. Então com profunda admiração o gascão
viu a minúscula folha desaparecer para ir pousar um pouco mais longe.
João, continuando a andar, manifestava a sua admiração à noiva. Mas, de-repente, Leonor soltou um grito agudo. A dois passos deles, as ervas afastavam-se ligeiramente,
deixando aparecer uma forma inquietante.
- Cuidado! Uma serpente!
Longe de obedecer ao conselho de prudência que lhe dava a companheira, o gascão avançava de espada na mão. No momento em que o reptil, levantando a cabeça hedionda,
se dispunha a morder um dos intrusos que invadia os seus domínios, João, com uma espadeirada, degolou-a. Depois, emquanto o horrendo animal se estorcia sangrando
a seus pés, puxou para si a capitã, que este súbito ataque parecia ter gelado de susto.
- Tranquiliza-te! Já não tens nada a temer!
Leonor soltou um suspiro de satisfação; conhecia efectivamente, há muito tempo, os terríveis efeitos da mordedura da serpente. Ao pensar no perigo de morte ao qual
escapara, graças à intervenção enérgica do seu corajoso companheiro, sentia um suor frio inundar-lhe as fontes.
- Aí tens o perigo de que falava o fakir! O homem é realmente adivinho. Mas agora já tudo acabou! Podemos continuar o nosso passeio sem ter a temer novo incidente!
A aventura de-pressa foi esquecida e os dois noivos apenas pensavam em desembaraçar-se dos cipós que se multiplicavam à sua volta, semelhantes a verdadeiros reptis.
- O tempo passa! objectou João ao cabo dum momento; será talvez melhor voltar para trás. Já não estaremos em Goa antes da noite!
Mas Leonor insistia. Queria alcançar o pequenino lago, que se distinguia cada vez mais próximo entre as silvas, qual espelho transparente onde inúmeros nenúfares
punham grandes manchas verdes. Tendo ela escolhido este local, enchia-se de amor próprio.
João continuava a atacar a vegetação, por vezes invencível, obstinadamente. O suor corria em grandes bagas ao longo do seu rosto; contudo, prosseguia no seu intento,
avançando sempre, espantando centenas de pássaros, para alegria da sua companheira.
O sol projectava, sem conta, os seus raios deslumbrantes. Os odoríferos perfumes que se evolavam das folhas em monte e das flores de todas as espécies, tornavam
a atmosfera terrivelmente pesada. João começava a sentir fortes dores de cabeça, quando felizmente, as últimas silvas que os separavam do lago, se afastaram diante
deles, cortadas pela fina lâmina da sua espada.
- Emf im, chegamos.
- E não perdemos nada por esperar, querido! João tinha metido a espada na bainha; agora apoiados amorosamente um ao outro, os enamorados admiravam o espectáculo
maravilhoso que se estendia aos seus olhos. Para além dos rosais e das ervas altas, um canavial ondulante protegia o acesso imediato ao lago; a vasta superfície
estendia-se tão límpida que se distinguiam perfeitamente os troncos e as folhas das plantas aquáticas, que se enrolavam em espirais sobre as ondas e que pareciam
servir de suporte aos nenúfares de flor branca
e às rosas espantosamente grandes, espaçando-se em intervalos regulares.
Por alguns momentos o gascão e a companheira sentiram-se de tal maneira maravilhados, que ficaram incapazes de proferir uma só palavra. O seu olhar extasiado não
se desprendia deste cenário. Centenas de patos bravos assustados com a sua vinda, esvoaçavam com estrépito. Um pouco adiante, um grupo enorme de ibis cor de rosa
e flamingos esperavam; grandes cegonhas, de pé, imóveis, sobre uma perna a maior parte, pareciam não partilhar o medo dos outros palmípedes que vinham pousar-se
a meio do lago, deixando atrás de si longos sulcos de espuma.
João apertou estreitamente contra si aquela que amava. A calma e serenidade que os rodeava não lhes fazia saudade da sociedade dos homens; felicitava-se por ter
ido até ao fim, a-pesar-do sol ir já declinando no horizonte. Bignache e Isabel estariam inquietos em Goa; que importava? Os seus amos voltariam ao palácio do capitão-general
à entrada da noite.
Depois de terem percorrido a margem do lago, e colhido numerosos frutos que João desfazia, rindo, contra os lábios de Leonor, os dois apaixonados sentaram-se. Sentiam-se
ambos perturbados pelos perfumes embriagadores das orquídeas. Parecia sempre a João, que continuava um sonho magnífico, tanto a realidade excedia os seus ideais.
- Leonor, minha querida.
Longamente o gascão estreitava a sua noiva. O seu olhar já não via as formas prateadas dos peixes que passavam furtivamente entre os troncos de nenúfares, nem uma
arvéola, que perto dele, vinha pôr a nota azulada da sua-esplêndida
plumagem sobre a verdura dos rosais, e sobre o amarelo arruivado das altas ervas já meias secas. Não, tudo o que ele via neste instante, eram os grandes olhos profundos
da capitã e os lábios rosados que ela lhe oferecia.
Como estavam agora longe, os combates, as abordagens, os heróicos duelos! Nem sequer se lembravam já da caravela azul, que esperava, docemente balouçada junto do
molhe de Goa. Pouco importavam as ameaças de Rui da Mota, as apreensões de Bignache e a inquietante predição do fakir. Só o amor, mestre soberano, impunha as suas
leis. A capitã deixava-se estreitar, feliz e desfalecida, nos braços do seu noivo.
Mas, se o gascão e a companheira não estivessem tão enlevados um no outro, não teriam deixado de surpreender, não muito longe do local em que se encontravam, vultos
suspeitos que se introduziam silenciosamente pelas ervas. Ter-se-iam apercebido que olhares ameaçadores convergiam sobre eles.
Manuel, que tinha prevenido os dois cúmplices da volta de Rui da Mota e das propostas que lhe tinha feito o antigo lugar-tenente do São Jorge, apressara-se, de pleno
acordo com Joaquim e Gabriel a pôr o seu plano em execução. Durante três horas tinha rondado o palácio, tentando surpreender os noivos quando estes se dispusessem
a efectuar o seu habitual passeio. Durante algum tempo, o patife teve de esperar que os dois jovens assistissem à manifestação militar organizada por Afonso de Albuquerque,
em honra de Mirza Sahib, mas a sua fisionomia iluminou-se quando viu Bignache aproximar-se e esperar junto à grande escadaria com os dois cavalos.
Desde então, Manuel não se demorou nem mais um minuto próximo da residência do capitão-general. Sabia, - pois já os tinha espiado três vezes que João e Leonor passavam
pela porta do norte para se embrenharem pela floresta, que parecia ter para eles particular atractivo; por isso o miserável de-pressa desapareceu pelas ruas.
O cúmplice de Rui da Mota ia sair da cidade, quando Leonor o viu. Manuel receou despertar desconfiança à rapariga, por isso sumiu-se o mais rápido que pôde. Dez
minutos depois, encontrava-se com os dois companheiros, que o esperavam com uma impaciência compreensível e de cuja volta começavam a desesperar.
- Em marcha! Os nossos pombinhos voaram!
Joaquim e Gabriel não pediram mais explicações; em alguns segundos montaram os seus cavalos e galoparam em direcção à floresta próxima.
Manuel facilmente encontrou a pista deixada pelos jovens; contudo, encarregou-se de temperar o ardor dos seus acólitos e aconselhou-os a avançar mais lentamente.
Correriam, de facto, o risco de ser surpreendidos, se se aventurassem a pouca distância daqueles que desejavam atacar pelas costas; às preguntas que lhe dirigiam
de tempos a tempos os seus camaradas, respondia-lhes:
- Tranquilizem-se! Não nos escaparão! Já os segui mais vezes nos seus amorosos passeios. Sei que andam sempre a cavalo. Apeiam-se, sem dúvida, para melhor poderem
beijocar-se e dizer galanteios mais à vontade!
E Manuel ria muito, segurando vigorosamente o seu corcel.
- Quem teria pensado isto da capitã! Ei-la apaixonada, como uma donzela que sai dum convento!
Que querem! Eu sempre disse que desconfiassem das águas quietas; o belo francês não teve senão que aparecer, e, zás! Foi de cabeça! Devem concordar que é humilhante
para o D. Rui, que aspira há tanto tempo à mão e ao coração da sua prima! Mas paciência! Agora pode estar descansado que a sua causa será admiravelmente defendida.
Os nossos apaixonados não terão mais ocasião, de hoje para o futuro, de murmurar palavras ternas. A capitã saberá para seu mal, que também nós, pobres labregos que
somos, podemos tirar implacável desforra. Não devemos esquecer que ela nos expulsou como cães da sua caravela!
Manuel interrompeu o seu monólogo para se certificar se se encontravam em boa pista. Os três velhacos avançavam agora em fila, usando sempre mil precauções para
não despertar suspeitas àqueles que procuravam e que lhes levavam pelo menos uns oitocentos passos de avanço.
Ao cabo dum momento, as sobrancelhas de Manuel franziram-se; a sua mão segurou a adaga que levava à cintura. O bandido e os companheiros - que tinham notado a sua
inquietação - julgavam que os namorados, considerando suficiente o seu passeio pela floresta, estivessem de volta, e as suas fisionomias exprimiram desilusão. Alguém
avançava de facto em sentido contrário, mas tratava-se apenas dum pobre diabo dum fakir, que caminhava coxeando, apoiado a um bordão.
O homem aproximava-se, parecendo experimentar desde o primeiro momento uma profunda desconfiança pelo trio; então, parando rapidamente o seu cavalo, Manuel interpelou-o
com voz rude:
- Eh, homem. Não encontraste dois estranjeiros, um cavaleiro e uma senhora?
O índio, que tinha parado, imobilizou-se imperturbável. Não devia ter compreendido a pregunta de Manuel, mas este, irritado pelo seu mutismo e pelo olhar que o fitava
com insistência, enviou-lhe um violento pontapé.
O desgraçado soltou uma exclamação de cólera e perdendo o equilíbrio foi estatelar-se no meio do chão. Então os três marotos, rindo cruelmente às gargalhadas, continuaram
o seu caminho. Sem dúvida o velho estava habituado a estes maus tratos, porque não pareceu surpreendido; levantou-se a custo, sacudiu a poeira que lhe cobria as
pernas esqueléticas e limpou com a mão enxovalhada um fio de sangue que lhe corria pelo ombro, provocado pela queda; depois, filósofo, acabrunhado sob o peso do
destino que não devia ser-lhe muitas vezes propício, retomou extenuado o caminho para Goa.
Manuel e os dois acólitos voltaram a seguir a pista. Andaram ainda mais um quarto de hora, começando a achar o tempo longo, quando Manuel, que continuava à dianteira,
soltou uma exclamação, de alegria; depois, estendendo a mão, designou aos seus companheiros os dois cavalos que os namorados tinham deixado a pouca distância, amarrados,
às palmeiras.
- Não lhes dizia eu que eles abandonavam os cavalos para prosseguir mais agradavelmente o seu colóquio!
O velhaco desceu rapidamente da sua montada; Joaquim e Gabriel imitaram o seu exemplo; abandonando alguns instantes os cúmplices, Manuel aproximou-se dos corcéis.
- Que fazes aí? interrogou Joaquim, intrigado.
- Tomo simplesmente uma pequena precaução. vou desamarrar os animais e mandá-los para.
o diabo. O francês e a capitã não poderão já escapar-nos, se acaso o tentassem fazer!
Quando os dois nós foram desatados, Manuel espantou os cavalos, que desapareceram na floresta; depois, tendo escondido um pouco mais adiante os seus próprios corcéis,
os patifes seguiram para o local onde se encontravam os dois jovens.
Leonor e João tinham deixado atrás de si visíveis traços da sua passagem; as silvas e os cipós jaziam numerosos, cortados pela espada do gascão; na sua caminhada
para o lago, os dois apaixonados não repararam na pista que iam traçando.
Contudo, arriscando-se assim, os três antigos marinheiros rivalizaram em prudência e evitavam fazer o menor ruído. Receavam, efectivamente, que os que desejavam
surpreender desconfiassem da perseguição; por isso avançavam lentamente, usando mil precauções, esperando a cada momento a aparição do francês e da capitã.
O trio logo se tranquilizou, quando atingiu as margens do lago. A pouca distância, distinguiam-se os vultos de Leonor e João; de costas voltadas, estendidos na relva,
ternamente enlaçados, pareciam não suspeitar do perigo próximo que os ameaçava.
Um sorriso sarcástico passou nos lábios de Manuel.
- Marcha tudo lindamente! Apanhá-los-emos desta vez! Venham os belos cruzados de D. Rui!
Durante algum tempo o português falou ainda com os seus cúmplices. Dirigiu-lhes prudentes recomendações e indicou como haviam de atacar o gascão por detrás, e abatê-lo
antes que ele se pudesse pôr na defensiva.
Aventurando-se então, trepando pelas ervas mais altas, os três patifes aproximaram-se, o coração batendo, parando por vezes para deitar uma furtiva olhadela àqueles
que desejavam atacar. João e Leonor prosseguiam no seu terno colóquio; tudo parecia favorecer os bandidos, que apenas se encontravam a alguns passos do par.
Emfim, Manuel, que se tinha munido dum pedaço de madeira, cacete improvisado encontrado no caminho, agitou por duas vezes o braço esquerdo, e fez aos seus acólitos
um sinal combinado. Antes que pudesse aperceber-se da presença dos três patifes, João dAmblayves desmaiava, sob um terrível golpe que Manuel, tendo conseguido chegar
ao pé dele sem ruído, lhe vibrara na nuca.
Leonor tinha-se voltado, com olhos desmesuradamente abertos pelo espanto, Manuel, Gabriel e Joaquim lançaram-se sobre ela. Uma luta terrível se travava agora; dominando
o pânico, a valente capitã tentava escapar aos punhos sólidos dos patifes, que se encarniçavam em reduzi-la à mais completa impotência.
- Socorro! Salva-me João!
Mas, pobre dele! O gascão não podia prestar o mínimo socorro àquela que amava; jazia agora inanimado, junto do lago, emquanto os três cúmplices prosseguiam no seu
ataque.
Aflitivamente, a capitã continuava a chamar, a gritar. Tempo perdido! À sua volta tudo estava deserto. Somente bandos de pássaros aquáticos, assustados pelos gritos
angustiosos da infeliz, deixavam os canaviais onde se abrigavam, voando para o centro do lago.
Em menos de três minutos Leonor viu-se incapaz de esboçar o menor movimento. Manuel e os
dois companheiros deitaram-na ao chão; em vão tentou morder-lhes e arranhá-los. Os miseráveis não largavam a presa.
- Vamos, amarrem-na de-pressa! disse Gabriel. Temos de partir!
Joaquim estendeu então uma longa corda, que tinha enrolada à cintura. Reunindo todas as suas forças num ímpeto desesperado, a rapariga tentou ainda escapar aos seus
ferozes agressores, mas teve de reconhecer-se vencida. Os três homens não tiveram dificuldade em manietá-la e ligá-la solidamente; depois, uma vez tomada esta indispensável
precaução, ataram fortemente contra a boca da infortunada rapariga uma mordaça, destinada a abafar os seus gritos. De-pressa Leonor, ofegante, se encontrou estendida
ao pé do corpo inerte do seu noivo.
Durante uns instantes os patifes descansaram, esgotados pela luta que acabavam de sustentar, enxugando com um lado da manga os rostos, luzentes de suor.
- Esta mulher é um verdadeiro demónio, gemeu Joaquim, designando aos companheiros as faces que a capitã tinha rasgado selvàticamente com as unhas.
- Pff! cortou Manuel, quem não se aventurou, não perdeu nem ganhou! Mas, basta de conversas. D. Rui espera-nos em Mapuça. Já deve estar inquieto. De-pressa! Já perdemos
bastante tempo! A cavalo.
Os três corsários, abandonando João, apressaram-se a erguer do chão a "Amazona dos Mares" que continuava a debater-se desesperadamente. Joaquim e Gabriel, que se
tinham encarregado da prisioneira, seguiram os passos de Manuel; o patife
avançava à frente, de adaga na mão, pronto a toda a eventualidade.
Contudo, o trio pôde alcançar, sem ser incomodado, o lugar onde deixaram os três cavalos. Manuel colocou Leonor atravessada no selim; depois uma vez soltos os animais,
montaram, e esporeando-os, lançaram-se a toda a brida em direcção ao Norte, para Mapuça, onde D. Rui da Mota esperava, no meio da maior ansiedade.
CAPÍTULO XI
Para o desconhecido
Depois de ter sustentado uma luta tão desesperada quanto inútil, Leonor, sem forças, imobilizou-se, desfalecida. Emquanto Gabriel e Joaquim a transportavam para
o cavalo, a infeliz tinha tentado, sem sucesso, reagir. O cenário da floresta que a rodeava, parecia-lhe dansar uma sarabanda fantástica. Incapaz de resistir por
mais tempo, desmaiou.
Uma briza ligeira que lhe batia no rosto veio, um pouco mais tarde, arrancá-la ao seu torpor. Admirada, entreabriu as pálpebras. O céu estrelado estendia-se sobre
ela, semelhante a um imenso véu azul, onde tivessem sido incrustadas safiras, esmeraldas ou rubis.
A rapariga quis erguer-se, mas um violento empurrão fê-la continuar estendida; verificou que tinha os braços e as pernas solidamente ligadas, e uma mordaça tapando-lhe
a boca. Inclinando-se para ela, via a figura dum cavaleiro feroz, que a transportava a galope pela floresta adormecida.
Este cavaleiro, de-pressa Leonor o reconheceu: era Manuel. Imediatamente, a agressão de que tinha sido vítima com o seu noivo, junto ao lago dos nenúfares, veio-lhe
à lembrança; recordou a luta encarniçada que sustentara contra os miseráveis que a tinham cobardemente atacado pelas costas. As suas feições contrairam-se dolorosamente
quando evocou a queda brusca do gascão, que tinha desfalecido antes de poder prestar-lhe qualquer auxílio.
A capitã quis de novo debater-se, tentar escapar ao seu agressor; apenas conseguiu ferir-se profundamente nos pulsos. As cordas penetravam-lhe fortemente na carne;
então aniquilada, imobilizou-se, deixando-se levar através da noite.
A poucos passos atrás de Manuel, Leonor podia reconhecer Joaquim e Gabriel que avançavam em fila, inclinados sobre os corcéis. Agora a rapariga preguntava a si mesma
que móbil teria levado os três homens a assaltá-la e a raptá-la. No meio da sua inquietação tinha ouvido pronunciar o nome de Rui da Mota, por isso tudo a levava
a crer que se tratava duma vingança; arrependia-se agora de não ter cedido aos marinheiros da caravela azul, que, irritados pela maldade dos seus três camaradas,
tinham pedido, no momento do julgamento, que os condenassem à morte e os enforcassem na verga do barco.
Contudo, a-pesar-de se sentir assim levada para o desconhecido, Leonor pouco se preocupava com o destino que lhe reservavam os bandidos. Todo o seu pensamento era
João, abandonado ao pé do lago, morto talvez! Ao lembrar-se de que aquele que amava tinha sido cobardemente assassinado, a prisioneira não podia reprimir um frémito
de pavor;
o seu coração crispava-se atrozmente. A intrépida capitã apenas era agora uma apaixonada e a energia de que tantas vezes tinha dado provas e que tão grande reputação
lhe trouxera, transformava-se num profundo desespero. Como ela se sacrificaria para salvar João! Uma lágrima caiu-lhe dos longos cílios, quando pensava no seu belo
sonho, talvez acabado para sempre.
Os três cavaleiros continuavam a galopar, no meio do maior silêncio; apenas o martelar regular das patas dos cavalos, vinha perturbar a impressionante quietude que
pairava na floresta. Perfumes de sândalo, de almíscar e de benjoim impregnavam a atmosfera; milhares de pirilampos rasgavam na noite sulcos luminosos e caprichosos;
entretanto, os bandidos não reparavam na maravilha feérica que os rodeava; seguiam rumo traçado, e por vezes furtivos estremecimentos nas silvas e nas ervas, indicavam
que algum animal fugia, amedrontado pela sua presença.
Por fim, ao cabo dum momento, Manuel parou o seu cavalo e fez sinal aos seus cúmplices para o imitarem. O patife procurava saber onde estava, examinando as estrelas.
Não devia estar já muito longe de Mapuça, porque a pouca distância distinguia entre as árvores a superfície brilhante do oceano.
O ex-marinheiro de-pressa se orientou, e de novo retomaram a cavalgada através da noite; os três cavalos, que já galopavam há muito tempo, começavam a dar sinais
de fadiga, quando Manuel soltou um grito de satisfação. A algumas centenas de passos, parecia-lhe avistar um clarão no meio da floresta.
Manuel fez abrandar o passo à montada; o seu
olhar perscrutava atentamente a escuridão, e reconhecia a pista que tinha seguido quando deixara Rui da Mota, para se encontrar em Goa com os companheiros.
- Então? preguntou Gabriel. Já chegamos?
- Estamosperto, contentou-se em responder o patife.
Ainda durante algum tempo o trio avançou a passo, contornando canteiros e maciços de fetos arborescentes; inumeráveis pirilampos brilhavam nas folhas; dir-se-ia
que as estrelas do firmamento se tivessem reflectido nas plantas! Porém, o olhar de Manuel continuava a fitar a clareira, que desde o princípio atraíra a sua atenção.
Sabia que se tratava de fogo, aceso em plena floresta; alguém acampava ali, e esse alguém só podia ser Rui da Mota.
A fisionomia do português logo se iluminou, quando distinguiu junto às chamas vacilantes do fogo, uma figura sentada; então não hesitou; levando dois dedos à boca,
imitou por três vezes, o piar da coruja.
O vulto imobilizou-se bruscamente; depois idêntico sinal se fez ouvir. Manuel não se tinha enganado. Tratava-se, de facto, do antigo lugar-tenente da caravela azul.
- Coragem, chegámos.
Manuel, tinha-se voltado para os seus companheiros; exclamações de contentamento de-pressa lhe responderam. Joaquim e Gabriel, estavam satisfeitos por terminar com
aquela cavalgada nocturna; esta aventura através da floresta povoada de perigos, inspirava-lhes as mais vivas apreensões; além disso, temiam ser surpreendidos por
algum destacamento às ordens do capitão-general.
Uma voz bem timbrada ergueu-se perto deles;
incapaz de esperar mais tempo, Rui acorria ao encontro dos seus cúmplices.
- És tu, Manuel?
- Somos nós, sr. D. Rui.
- Então? A capitã?
- Tranquilizai-vos. Tudo decorreu admiravelmente! Trouxemo-la!
- E o francês?
- Os abutres e os tigres da floresta devem, a esta hora, regalar-se com o seu cadáver. Deixámo-lo em estado lastimoso, a algumas léguas daqui. Dora-avante nada mais
tereis a temer da parte desse cão!
Emquanto os dois homens trocavam estas palavras, Leonor não pôde deixar de estremecer. A infeliz tinha logo reconhecido esta voz, e a sua inquietação tinha aumentado.
A verdade, aparecia-lhe terrível. Rui da Mota era quem tinha manobrado esta dupla agressão. Encontrava-se agora em poder do miserável.
E a capitã relembrava agora as palavras ameaçadoras que lhe tinha dirigido seu primo, quando deixara a caravela azul para se aventurar na jangada, para onde a justiça
de Leonor o tinha mandado. O destino, caprichoso, proporcionava-lhe uma bela desforra.
- Então, bela prima, certamente nunca imaginastes que nos tornaríamos a encontrar tão de-pressa!
A voz sarcástica de Rui da Mota veio interromper as tristes reflexões da capitã; afastando alguns arbustos que lhe impediam a passagem, o antigo lugar-tenente aproximou-se
e veio inclinar-se sobre a rapariga.
- Eis-vos em meu poder de hoje para o futuro,
bela prima. Ninguém poderá descobrir-vos para vos prestar socorro!
E como Rui lhe tirasse a mordaça, a rapariga exclamou, tremendo:
- Sois um canalha, Rui. Um assassino.
- Caspité! que palavras tão feias! Bem sabeis, Leonor, que não tenho culpa de vos amar. O amor é um tão grande crime, ou acaso supusestes que eu me declararia vencido,
para vos deixar prender loucamente a um homem que nem sequer é da vossa raça? Imagináveis, cega pela paixão, que tudo correria segundo os vossos caprichos, e que
Rui da Mota aceitaria resignado, tão humilhante desfeita? ! Que ilusão! E pouco me faltou para ser enforcado na verga.
Como Leonor continuasse num mutismo exprimindo desprezo, o ex-lugar-tenente do São Jorge prosseguiu:
- Tínheis tudo previsto, encantadora prima, e mesmo resolvido unir-vos pelo sagrado matrimónio, em Goa, ao vosso belo apaixonado, mas a Providência transtorna admiravelmente
as coisas. Ela quis que este valente Manuel, que em consequência do vosso tão severo rigor, se encontrava sem emprêgo, se pusesse à minha procura e me tivesse com
efeito encontrado a pouca distância do lugar onde eu acostara com a jangada que amavelmente pusestes à minha disposição. Nestas condições, já imaginais que não quis
perder uma tão boa ocasião de vos tornar a ver. Aborrecia-me ter de empregar grandes meios para alcançar os meus fins, mas deveis concordar que me era tão difícil
agir de outra maneira. Não tenho, de resto, de que me arrepender, desde que vos encontrais de hoje para o futuro à minha absoluta discrição!
- Creio bem que a vossa vitória não seja absoluta, protestou a rapariga com uma voz vibrante. Afonso de Albuquerque não deixará de me mandar procurar pelos seus
soldados, quando o meu desaparecimento for notado! Não escapareis desta vez ao castigo, Rui!
Um riso irónico respondeu às palavras de ameaça da capitã:
- Decididamente, prima, julgais-me bem tolo. Pareceis persuadida que vos fiz raptar para vos passear pela floresta! Erro profundo! Tomei todas as providências necessárias.
Olhai, lá em baixo, à vossa esquerda. Vedes o mar. E ancorado, a pouca distância, um barco. É a bordo deste barco, cuja tripulação malaia me assegurou o seu concurso,
que ides embarcar comigo!
Leonor tinha olhado na direcção que lhe designava o seu interlocutor; de-pressa distinguiu a embarcação que se balouçava calmamente sobre as ondas. Então, dirigindo-se
para o seu acampamento, Rui continuou sarcástico:
- Podeis facilmente compreender que não tenho nada a temer da parte de Afonso de Albuquerque, vosso poderoso amigo. De resto, Manuel soube dar-me todas as informações
precisas. Sei que o capitão-general se encontra neste momento bastante absorvido pelas grandiosas recepções que organiza em honra do enviado do Samorim de Calicut.
Estas festas, que fazem esquecer os amigos, dispersam por alguns dias os soldados de que ele necessitaria para efectuar as suas buscas; e, por conseguinte, tenho
o tempo necessário para me fazer ao largo e alcançar um país onde ninguém poderá vir libertar-vos. para Malaca!
A "Amazona dos Mares" não tentou protestar.
Compreendia agora que se encontrava à mais completa mercê do miserável. Rui triunfava. Um sorriso diabólico iluminava-lhe o rosto; emquanto Manuel e os companheiros
saltavam dos cavalos e os conduziam à rédea, Rui aproximava-se da clareira e designava algumas formas imóveis que estavam ali acocoradas.
- Eis os auxiliares malaios do meu excelente amigo, o mandarim Wu-Foug. Por um providencial acaso ancoraram o seu barco perto daqui, pouco antes da minha chegada.
Pude então negociar com eles à minha vontade. Por duas vezes já me encontrei em relações com Wu-Foug e pude prestar-lhe relevantes serviços; por isso ele me ofereceu
agora, na sua casa de Malaca, um refúgio dos mais seguros!
As feições de Leonor contrairam-se. Conhecia, de facto, a reputação deste chinês, traficante riquíssimo e sem escrúpulos, que fornecia armas de fogo e pólvora ao
Samorim e que se dedicava a um comércio dos mais equívocos. Frequentes vezes, Albuquerque se lastimara da maneira de proceder deste asiático, cujo oiro encorajava
por vezes a resistência dos inimigos de Portugal e cuja nefasta diplomacia contrariava a influência do capitão-general. Por duas vezes, Rui da Mota tinha sido enviado
como emissário junto a Wu-Foug. Foi sem dúvida nestas circunstâncias que os dois homens tinham encontrado, parlamentando, terreno de acordo, no sentido de operações
futuras e apenas pessoais. Agora, destituído do seu título, traidor aos seus, expulso da caravela azul, Rui da Mota aceitava abertamente o concurso dos auxiliares
malaios do chinês.
Os bandidos, que atingiam o número de vinte,
levantaram-se um após outro; os seus pequenos olhos rasgados em amêndoa, fixavam-se com uma expressão de visível crueldade sobre a prisioneira, que compreendeu em
seguida que não podia esperar nenhuma piedade da parte destes homens. Manuel, Joaquim e Gabriel, tampouco pareciam satisfeitos de se encontrar em semelhante companhia,
masRui de-pressa lhes fez passar as suas apreensões, gratificando-os com alguns bons cruzados.
- Bem entendido, que vocês me acompanham a Malaca, a casa de Wu-Foug, acrescentou o miserável.
Os três portugueses apressaram-se a aceitar; não tinham o menor empenho em ficar nesta região, onde buscas poderiam fazer-se dum momento para o outro e onde a sua
sorte se apresentava duvidosa.
- Vocês abandonam aí os cavalos e embarcarão em seguida, disse ao fim de alguns momentos o ex-lugar-tenente do São Jorge. Devemos fazer-nos ao largo o mais de-pressa
possível, a-fim-de evitar sermos alcançados pelas caravelas do capitão-general. Tranquilizem-se, pagar-lhes-ei o preço dos três animais.
com vontade ou sem ela, o trio teve de aceitar as propostas de Rui. Então, este último fez sinal aos malaios para transportar a cativa para a margem. Leonor deixou-se
levar, compreendendo que nenhuma resistência se tornava possível. Como um autómato, a infortunada caminhava, debatendo-se intimamente num desespero atroz. A lembrança
de João obsecava-a. Parecia-lhe que vivia um terrível pesadelo. Em alguns minutos alcançou uma embarcação, que depois de ser empurrada sobre a areia, deslizou pelas
ondas, encostando ao barco que devia servir de prisão.
Um quarto de hora depois, Rui da Mota e os seus acólitos embarcavam por sua vez. O navio afastou-se e singrou para o largo. O ex-lugar-tenente triunfava, tirando
sobre aquela que o tinha humilhado uma implacável desforra.
Contudo, o miserável, que tinha fechado solidamente Leonor no único camarote do barco, e que se felicitava com Manuel e os seus dois cúmplices do resultado da sua
manobra, ficaria menos satisfeito se tivesse visto a sombra dum homem que se introduzia rastejando na clareira onde ele acampara havia momentos. Um indivíduo, todo
vestido de negro, estava ali escondido; um indivíduo que, imóvel, emboscado, apurando ansiosamente o ouvido, tinha surpreendido as palavras que Rui trocara com a
sua prima e com os companheiros.
- Ah! Julgas triunfar, Rui da Mota, escarneceu o vagabundo nocturno. Paciência! Somos dois a jogar! Sei onde te encontrar dora-avante e veremos quem será o último
a rir!
O homem seguiu para a praia, onde vinham morrer lentamente as vagas. Durante alguns instantes o seu vulto destacou-se na superfície espelhante do oceano. Viu afastar-se
o barco; depois o seu punho crispado, estendeu-se em direcção deste; deu meia-volta bruscamente. O areal estendia-se diante dele quási rectilíneo; seguiu-o correndo,
depois ao fim dum momento, estafado, veio encostar-se a uma palmeira. Esta pausa não se prolongou; a pouca distância, dissimulado atrás do arvoredo, distinguiu o
cavalo que ali tinha deixado algumas horas antes. Retomando a sua marcha alcançou o animal em alguns instantes; depois, passando uma mão acariciadora sobre o seu
pêlo, murmurou:
- Vamos, amigo. De-pressa para Goa! Não temos tempo a perder!
Montando com ligeireza, o desconhecido afastou-se a galope cerrado, seguindo ao longo da praia. Em poucos minutos, era apenas um ponto negro que diminuía cada vez
mais, para de-pressa se perder nas trevas.
CAPITULO XII
Um velho conhecimento
- Não podemos esperar mais tempo. vou partir. Foram certamente vítimas de algum acidente!
Savínio Bignache mal disfarçava a sua inquietação. Ao lado de Isabel, que se esforçava em vão por acalmá-lo e fazê-lo ter paciência, agitava-se freneticamente. Desde
o cair da noite, o bravo rapaz não parava um segundo no mesmo sítio: ia inspeccionar à entrada do palácio, olhando em todas as direcções, mas nunca distinguia os
vultos familiares dos noivos.
- Eu bem tinha razão em dizer ao sr. conde para se acautelar, não cessava de dizer o infortunado criado. Se calhar foram atacados por algum tigre!
Pelas onze horas da noite, Bignache, farto de se entregar às piores suposições, decidiu-se a selar o cavalo e a partir à procura dos ausentes. O palácio estava em
festa; Afonso de Albuquerque dava o último festim em honra de Mirza Sahib, que devia deixar Goa no dia seguinte. Dizia-se que o capitão-
-general, depois de ter concluído um importante tratado com o enviado do Samorim, tinha feito o projecto de organizar uma expedição contra Malaca, mas a notícia
não estava confirmada ainda e Bignache, demasiado preocupado pela ausência prolongada dos noivos, não tinha prestado senão uma atenção medíocre a essa notícia.
Savínio preparara-se então para sair da cidade à procura do seu amo e da capitã, quando, no mesmo momento em que se dispunha a transpor a porta do norte, a sua atenção
foi atraída por um grupo de soldados que discutiam com animação; um deles tinha encontrado, alguns minutos antes, um magnífico cavalo persa, que chegara, completamente
arreado, à entrada da cidade.
- É curioso, exclamou um sargento examinando com atenção o pêlo do animal, traz a marca do capitão-general!
Bignache, profundamente intrigado, desceu imediatamente do seu cavalo e misturou-se à discussão:
- Mas é o cavalo que o capitão-general tinha amavelmente posto à disposição do meu infeliz patrão, declarou Bignache quando viu o animal. Eu bem tinha razão para
me afligir! Aconteceu-lhes alguma desgraça!
E o bravo rapaz utilizou algumas palavras em português, que tinha aprendido desde que estava em Goa, para convencer os soldados a acompanhá-lo. O sargento e cinco
dos seus homens consentiram em segui-lo. Dois minutos depois o pequeno grupo partia a cavalo, parando por vezes, para interrogar os índios que passavam.
Bignache começava a desesperar de encontrar a pista dos dois desaparecidos, quando o encontro com o fakir os veio pôr em bom caminho. Tratava-se
do velho que Leonor tinha gratificado com uma moeda de prata e que os três ex-marinheiros da caravela tinham em seguida maltratado; pelas poucas indicações que deu
o gascão não teve dificuldade em identificar aqueles que procurava. De novo se lançou através da floresta, levando atrás de si os seus companheiros.
Durante a maior parte da noite, o grupo prosseguiu nas suas investigações. Felizmente, encontraram o cavalo que Leonor montava e descobriram os vestígios que os
noivos e os seus agressores tinham deixado, quando se dirigiam para o lago.
- Não me engano, não cessava de repetir Bignache aos companheiros, caíram numa armadilha!
As apreensões do bravo rapaz confirmaram-se, quando distinguiu, a pouca distância, um corpo estendido e inerte:
- O sr. conde. exclamou aflito. É ele! Bem o reconheço!
Bignache veio ajoelhar-se ao pé do seu amo. Inclinando-se ansiosamente, colou o ouvido contra o seu peito:
- Deus seja louvado! Está vivo! suspirou por fim, emquanto que os soldados se apressavam a ajudá-lo.
João, que os três portugueses tinham suposto deixar morto junto do lago, apenas desmaiara sob o terrível golpe que Manuel lhe vibrara na nuca. Bignache, que soerguia
com cuidado a cabeça do infeliz, pôde verificar que um ligeiro fio de sangue corria ao longo da orelha esquerda. O gascão ligou as fontes do seu amo com um pano
embebido em aguardente que lhe estendia um dos soldados, e prodigalizou-lhe os primeiros socorros.
Após alguns esforços, conseguiu fazê-lo engulir algumas gotas da bebida reconfortante.
- Onde estou eu? Leonor.
O ferido entreabria agora os olhos e fixava com estranheza os homens que o rodeavam. Durante alguns momentos, passando a mão pela testa, imobilizou-se, atónito,
procurando juntar as ideas, depois a sua mão fechou-se sobre o pulso do criado:
- És tu, Bignache?
- Sim, sou eu! Dora-avante não tem nada a temer, o sr. conde. Mas quem o pôs neste estado? O sr. conde foi atacado?
Primeiramente, João pareceu não ouvir a pregunta que lhe fazia o seu criado:
- Mas ela? Leonor! Porque é que eu não a vejo?
Savínio encolheu os ombros, embaraçado:
- Não vimos ninguém, murmurou. O sr. conde estava só, estendido nas ervas, quando chegamos ao pé do lago.
A fisionomia do gascão contraira-se dolorosamente. Pouco a pouco, a memória voltava-lhe. Lembrava-se da longa cavalgada pela floresta, e da ida até ao lago. Parecia-lhe
ainda ouvir as ternas palavras murmuradas docemente por aquela que amava. Depois, bruscamente, fazia-se o vácuo no seu espírito. Não se lembrava de mais nada.
- É preciso encontrá-la a todo o custo. compreendes, Bignache?
- Faremos todo o possível, sr. conde, respondeu o criado; contudo, a acreditar em algumas indicações que nos foram dadas por um velho índio e pelas conclusões que
tirámos seguindo as pistas, fostes barbaramente atacados; os vossos agressores seriam provavelmente os mesmos que já uma vez
tinham tentado assassinar-vos, quando nos encontrávamos a bordo da caravela azul.
João tinha agora recuperado toda a sua lucidez; a-pesar-do aturdimento em que ainda se encontrava, queria partir e empreender uma busca, para encontrar a desaparecida
custasse o que custasse; foi preciso que Bignache acalmasse o seu ardor e lhe fizesse compreender que, no seu estado, deveria antes pensar em voltar para Goa o mais
breve possível.
- Mas eu não posso deixar Leonor em poder desses monstros! Quem sabe se neste mesmo momento não se preparam eles para a torturar?
E a imaginação delirante do infortunado, delineava as mais fantásticas suposições; contudo, de-pressa se conteve; as suas fracas forças traíam-no. Apenas balbuciava
palavras incompreensíveis. Bignache não esperou por mais, e fez sinal aos seus companheiros para se dirigirem imediatamente ao sítio onde haviam deixado os cavalos.
Os primeiros clarões da aurora despontavam no horizonte quando o grupo alcançou Goa, e depois o palácio, onde a desaparição da "Amazona dos Mares" causou extraordinária
sensação. Mirza Sahib acabava de embarcar e Afonso de Albuquerque supôs, por momentos, que a rapariga fosse raptada por ordem do embaixador do Samorim, e transportada
para bordo de algum dos navios que singravam agora para Calicut. Contudo, o capitão-general teve de abandonar esta hipótese. Depois de ter ordenado a vários oficiais
que partissem para uma busca, e depois destes, cruzando a floresta em todos os sentidos, numa extensão de seis léguas, nada encontrarem, Albuquerque pôs-se de novo
a estudar o seu projecto de invasão a Malaca, que
consistia em dispersar os piratas malaios, que aterrorizavam frequentemente as costas da índia, e os traficantes asiáticos que combatiam surdamente a penetração
estranjeira. Agora, que se sentia tranquilizado por algum tempo, no que respeitava às relações com o soberano de Calicut, o conquistador sonhava alcançar novos louros
e fazer flutuar ainda vitoriosamente, sobre as terras distantes desta índia maravilhosa, a bandeira do seu rei e do seu país.
João dAmblayves fora transportado para os aposentos que Albuquerque pusera à sua disposição desde a sua chegada a Goa; o capitão-general tinha-lhe enviado o seu
próprio médico, que o tratava com incomparável carinho. Mas a fraqueza do infeliz era tal, que ainda se conservou algumas horas inerte, aniquilado, incapaz de esboçar
o menor movimento. De tempos a tempos, vinha-lhe aos lábios um nome, sempre o mesmo: o da "Amazona dos Mares".
Bignache e Isabel demoraram-se longas horas à cabeceira do gascão. A aia dava livre curso ao seu desespero, e o bravo Savínio tentava consolá-la, sem, contudo, o
conseguir.
Ao meio da tarde, João, sentindo-se melhor, pediu para se levantar. Comeu, com apetite, alguns alimentos que lhe levou Bignache; o médico tinha-lhe cuidadosamente
ligado a cabeça ferida. Pedia sem descanso novas das buscas efectuadas para encontrar Leonor, mas os destacamentos enviados para a floresta por Albuquerque não tinham,
como se sabe, descoberto o seu paradeiro e voltavam ao palácio, desiludidos, um após outro.
O gascão começava a desesperar de encontrar a sua noiva, quando pelas três horas da tarde um cavaleiro todo coberto de poeira, chegou diante
do palácio. Subiu apressadamente a escadaria que conduzia à entrada e pediu para ser recebido com urgência por Afonso de Albuquerque. As informações que ele deu
foram, sem dúvida, da maior importância, porque o capitão-general mandou chamar imediatamente João dAmblayves.
Imagina-se, facilmente, como o gascão obedeceu rapidamente a este pedido! Apoiado contra o braço de Bignache, penetrou no gabinete de Albuquerque; uma exclamação
de espanto escapou-lhe quando viu diante da mesa onde se apoiava o conquistador, um indivíduo de rosto definhado que amassava embaraçado o seu chapéu entre os dedos,
não sabendo que atitude adoptar perante o gascão:
- Coelho! exclamou João. Que significa? Albuquerque de-pressa pôs o francês ao corrente :
- Este homem acaba de me dizer que sabe onde se encontra a capitã.
- Ah! compreendo! É um cúmplice! Vem sem dúvida reclamar-nos um resgate!
E o gascão, que conhecia o papel odioso que Coelho desempenhara a bordo da caravela azul, e as relações que mantivera com Rui e com os três marinheiros, precipitou-se
sobre o recém-chegado, e, agarrando-o pela gola, sacudia-o com força, quando o conquistador o susteve com um gesto:
- Deixai falar este homem! Estais enganado! Ele não vem como inimigo, mas sim como aliado!
- É perfeitamente exacto, sr. conde! afirmou Coelho. Estou aqui para vos prestar um serviço. Sei onde se encontra a infeliz capitã! Só eu poderei dizer-vos onde
ela se encontra!
Um clarão perpassou nas pupilas de João; segurando
por uma manga o ex-criado da capitã, interrogou-o avidamente:
- Se nos podes servir, esqueceremos tudo que fizeste contra nós no São Jorge. E serás bastamente recompensado!
O português pôs logo o seu interlocutor ao corrente :
- A capitã está agora no alto mar, a bordo
dum navio malaio!
- A bordo dum navio malaio? Mas quem. comanda esse navio? . Quem é que a fez raptar? .
- O seu ilustre primo, o sr. D. Rui da Mota!
- O miserável! Como pôde ele.
O gascão não acabou a frase; o seu olhar fixava-se agora em Coelho com uma expressão de infinita desconfiança:
- Mas Rui da Mota era teu amigo, e tu eras mesmo seu cúmplice e seu conselheiro. Porque mudaste tão rapidamente de partido?
- Porquê? respondeu o miserável. Simplesmente porque ao mesmo tempo me quero vingar e rehabilitar aos vossos olhos, sr. conde. Pouco faltou para que o patife me
matasse a bordo do São Jorge. Ele jurou suprimir-me se alguma vez mais me encontrasse no seu caminho, por isso tomei todas as precauções necessárias para não ter
mais o prazer de nos defrontarmos!
E Coelho explicou ao francês como pudera saber as intenções de Rui e ouvir exactamente para onde o miserável transportava a sua prisioneira. Depois de ter desembarcado
em Goa e ter sido vergonhosamente expulso pela capitã da caravela, Coelho tinha errado à procura de emprego. Tempo perdido! Não querendo arriscar-se a falar aos
três marinheiros, seus antigos cúmplices, o maroto preguntava
a si mesmo o que deveria fazer, quando, absolutamente ao acaso, espiando Manuel, pôde surpreender uma conversa bastante suspeita.
Então Coelho não hesitara; também queria ter o seu papel no drama que se tramava. Tendo arranjado um cavalo, com o pouco dinheiro que lhe restava, decidiu-se a vigiar
atentamente as idas e vindas de Manuel e dos seus dois acólitos.
E foi assim que, de longe, Coelho seguiu o bandido e se lançou sobre a sua pista através da floresta; facilmente descobriu Rui da Mota perto de Mapuça. com mil precauções,
o português aproximou-se do sítio em que o ex-lugar-tenente da caravela azul tinha acampado.
Desde então Coelho estava ao par de tudo. Tinha assistido às frequentes entrevistas de Rui e de Manuel.
- Devias ter-nos prevenido, disse Albuquerque, essa intervenção teria podido permitir-nos apanhar esse Rui da Mota.
- Como o poderia fazer, senhor! protestou Coelho. No momento em que me dispunha a voltar para o lugar em que tinha dissimulado a minha montada, chegou o navio; dois
bateis, tripulados por malaios, vieram ao encontro de Rui da Mota. Afastar-me das moitas, atrás das quais me tinha escondido, era talvez despertar suspeitas nos
selvagens. Os malditos têm o ouvido apurado e não deixariam de se aperceber da minha presença. Sabe Deus que sorte me reservariam! com vontade ou sem ela, tive que
me resignar a esperar até à partida de toda a quadrilha.
Coelho parecia sincero exprimindo-se assim; por isso o capitão-general não insistiu e deixou-o prosseguir na sua narrativa. João ouvia-o ofegante.
Soube como o ex-lugar-tenente esperava junto à fogueira a vinda de Manuel e dos dois cúmplices; os seus punhos cerraram-se raivosamente, quando o português contou
a chegada dos três cavaleiros com a prisioneira, fortemente amarrada. O rosto contraído, o gascão compreendia o terrível perigo que corria nesse momento aquela que
amava. Contudo, um clarão iluminou o seu olhar, quando Coelho acrescentou:
- Sei que o navio se fez ao largo e que se dirige actualmente para Malaca.
- Disseste Malaca? Tens a certeza de que
te não enganaste?
- Por Santiago meu patrono, que bem o ouvi,
juro-o!
- Mas então, talvez ainda não esteja tudo perdido! Poderemos encontrá-la, libertá-la, arrancá-la às mãos desse cão!
E dirigindo-se agora a Albuquerque, João preguntou:
- Disseram-me que tínheis intenção de partir com a vossa frota para Malaca, é verdade?
O capitão-general meneou afirmativamente a
cabeça.
- É certo, dentro de três dias a minha frota far-se-á ao largo e singraremos até Malaca.
- Nessas condições, é preciso que eu parta convosco, Excelência! Concedei-me a graça de correr em socorro daquela que amo.
Albuquerque calou-se por momentos. Na sua frente o gascão esperava, impaciente.
- Podeis seguir-me livremente se isso vos agrada, declarou por fim o conquistador, esboçando um ligeiro sorriso; contudo, não posso levar-vos a bordo duma das minhas
caravelas.
- Porquê, Excelência? Bem sabeis que não disponho de nenhum navio.
- Far-vos-á o amor perder a cabeça, sr. conde? retorquiu Albuquerque. Esqueceis a existência da caravela azul ?
E como João continuasse esperando, embaraçado, o capitão-general explicou:
- Não podeis dora-avante ocupar senão um posto, sr. dAmblayves! O posto que ficou livre pela ausência da vossa infortunada noiva. Sei que toda a equipagem do São
Jorge arde em desejos de encontrar e vingar a sua capitã. Quem poderia ser mais digno de os comandar senão aquele que soube conquistar o coração da "Amazona dos
Mares"?
João não pôde impedir-se de exclamar estupefacto :
- Como! Permitis-me que eu assuma o comando da caravela azul, Excelência?
- Não somente vos permito, como vos ordeno!
A fisionomia do gascão iluminou-se. Esquecia tudo: a sua fadiga, o seu estado, para só pensar em salvar, custasse o que custasse, aquela que sabia em perigo.
- Como poderei agradecer-vos, Excelência?
- Nada tem que agradecer-me, sr. conde. Sabia que ninguém melhor que vós poderia estar à altura deste cargo.
- E quando partimos, Excelência?
- O mais cedo possível, dentro de dois ou três dias, talvez.
Uma sombra passou no olhar do rapaz.
- Dentro de dois ou três dias não será já demasiado tarde?
- Pensai bem que não podereis alcançar e
libertar a vossa noiva só com o auxílio da caravela azul. Mais vale esperar a partida da nossa frota; poderemos mais facilmente impor a nossa vontade aos nossos
adversários. Depois, uma expedição desta envergadura, exige um certo tempo. É preciso não nos aventurarmos à toa, isso equivalia a correr para um desastre!
João dAmblayves compreendia as razões bem justificadas do capitão-general; alguns minutos depois, tendo Albuquerque convocado todos os capitães das caravelas que
o deviam acompanhar, escutava atentamente as explicações e os planos que o conquistador expunha com uma voz firme:
- É-nos preciso tomar Malaca, declarava resolutamente Albuquerque. É ali que se encontra a chave do grande oceano oriental. Senhores de Malaca, poderemos apossar-nos
das terras das Molucas, as únicas ilhas que produzem o cravo da índia e a noz moscada. Dominaremos para sempre esta parte das índias, e as naves de Portugal poderão
cruzar sem medo os mares que nos cercam.
As pupilas do capitão-general brilhavam estranhamente, emquanto pronunciava estas palavras. Evocava a visão maravilhosa de Malaca, a opulenta, esta Península de
oiro que celebravam à porfia todas as lendas da antiguidade; mais que nunca se sentia resolvido a juntar este novo florão à sua coroa já tão rica de conquistas;
perto dele, inclinados sobre a sua mesa, os seus oficiais estudavam os mapas que ele tinha estendido diante de si e seguiam o itinerário que lhes apontava com a
mão, enumerando as escalas e citando os pontos de apoio que seria preciso assegurar antes de atacar Malaca.
Mas João não via as linhas traçadas no papel e não parecia compartilhar do mesmo entusiasmo;
as sobrancelhas franzidas, o coração contraído por uma atroz angústia, preguntava a si próprio se chegaria demasiado tarde e se o irreparável já estaria realizado
quando ele se encontrasse em presença de Leonor e de Rui da Mota. Ao prazer que lhe tinha provocado a oferta de Albuquerque, sucedia agora um atroz desespero. Pensava
que no mesmo momento em que os navegadores discutiam, Leonor estava sem defesa em poder do seu odioso raptor. Um pensamento, sempre o mesmo, se impunha, lancinante
ao seu espírito:
- Encontrá-la-ei? Não será demasiado tarde? Não ma entregará ele jamais?
CAPITULO XIII
A cativa
Emquanto todas estas disposições eram tomadas no palácio de Goa, em plena efervescência pela decisão de Albuquerque, Leonor despertava na estreita prisão onde o seu primo a tinha encerrado. Primeiramente aturdida, a infortunada arrancou-se ao entorpecimento que lhe paralisava os membros e o corpo. Rui tinha mandado tirar-lhe
a mordaça e as cordas que a amarravam, inutilmente; entretanto Leonor de-pressa se lembrou, pelos ferimentos que tinha nos pulsos, do rapto de que tinha sido vítima.
Dum salto, levantou-se da cama onde se encontrava estendida e veio bater à porta da sua prisão. Em vão a capitã se atirara com os ombros à sólida porta; o obstáculo
resistia aos seus esforços; Rui tinha tomado a precaução de a trancar com um forte pedaço de madeira.
Ainda durante um momento Leonor prosseguiu na sua tentativa, apenas conseguindo magoar-se cruelmente e ensanguentar as mãos. Então, aniquilada, sem forças, sem coragem, a rapariga
deixou-se cair sobre a cama e ficou alguns instantes imóvel, com a cabeça entre as mãos.
A "Amazona dos Mares" era valente e disso tinha dado provas frequentes vezes, mas nunca, mais que neste momento, ela tinha sido invadida por um tão violento desespero.
Lágrimas brotavam-lhe entre longos cílios e caíam-lhe ao longo das faces. O seu corpo estremecia, agitado de soluços. Frequentes vezes repetia o nome do seu bem
amado.
Contudo, quanto mais Leonor saía do seu torpor, mais se convencia que não devia dali para o futuro esperar por João. Sentia-se sucumbida e uma amargura indizível
apertava-lhe o coração. Pela primeira vez invadira-a um profundo desalento. Para quê lutar, se não o tornaria a ver!
E eis que prosseguindo na sua angustiante meditação, a prisioneira se imobilizou. A sua mão acabava de tocar na cintura. Verificava, não sem surpresa, que o punhal
que sempre a acompanhava, se encontrava ainda na bainha de couro. Sem dúvida os raptores, na sua precipitação, não tinham pensado em tirar-lho, quando a amarraram.
Um clarão iluminou o olhar de Leonor. Por mais desesperada que lhe parecesse a situação, conservava ainda o meio supremo senão de se defender, pelo menos de escapar
ao seu carrasco e juntar-se ao noivo na morte. Os seus dedos apertaram o punho da arma e uma ruga ligeira franziu-lhe a testa.
A capitã arrancou-se por fim aos seus pensamentos e levantando-se bruscamente, olhou à sua volta. A sua prisão era acanhada. Sobre uma táboa, antes que ela tivesse
despertado, alguém
tinha posto um prato cheio de arroz, frutos e um cântaro cheio de vinho de palma.
Porém, Leonor não se preocupava em reconfortar-se; queria saber onde se encontrava. POr uma pequena abertura à altura da sua cabeça, espreitou para fora.
O oceano interminável estendia-se aos seus olhos. Da prisão divisava a ponte do barco e a grande vela quadrangular que se agitava cheia de vento, recortando-se no
céu azul. Alguns malaios estavam estirados à sombra dos toldos, outros jogavam aos dados, sem proferir uma só palavra. Um pouco mais longe reconheceu Manuel, Gabriel
e Joaquim que conversavam um pouco à parte.
Contudo, a atenção da cativa foi ainda despertada por uma outra figura. Rui estava sentado perto dali, sobre um baú. com a cabeça ao vento e a camisa entreaberta,
o ex-lugar-tenente, parecia absorvido por uma profunda meditação.
Leonor cerrou os punhos. Por Deus! como ela odiava este miserável que tinha destruído a sua felicidade e de quem se encontrava cativa! Como se arrependia de o não
ter impiedosamente executado quando podia, segundo a sua vontade, decidir a sua sorte, em seguida à tentativa de assassinato a bordo da caravela azul! A sua demasiada
indulgência tinha-lhe trazido o desmoronamento das suas mais queridas esperanças e a morte do seu noivo.
Mais uma vez a mão da rapariga apertou o cabo do punhal. Pensava que poderia talvez matar o bandido, antes de morrer; contudo, baixou a cabeça, abatida. Que podia
ela contra todos estes homens? Nada! Sabia que todos os malaios obedeciam
a Rui. Não hesitariam em torturá-la à menor tentativa de agressão da sua parte.
Durante algum tempo a cativa passeou raivosamente de cá para lá, como uma leoa fechada numa jaula. Mais uma vez se arremessou de encontro à porta, mas sempre em
vão. Tornou a deitar-se. Tinha sede. Estendeu a mão e agarrando o recipiente que se encontrava cerca dela, bebeu alguns goles do conteúdo que lhe pareceu um pouco
ácido, mas que contudo a reconfortou.
Pouco a pouco, começou a reagir. Decidiu-se a comer um pouco de arroz e uma laranja. Quem sabe, talvez a Providência não a tivesse abandonado! Dum momento para o
outro poderia encontrar ocasião de se salvar; mais valia conservar todas as suas forças para estar apta a qualquer eventualidade. E algumas perspectivas, em que
não tinha pensado antes, deparavam-se ao seu espírito. Afonso de Albuquerque devia encontrar-se provavelmente ao corrente do seu desaparecimento. Conhecia suficientemente
o conquistador para saber que ele tudo faria para a encontrar, mas, ai! durante as horas que se seguiram ao seu rapto em plena floresta, Rui da Mota tinha podido
levar-lhe um avanço considerável. Tudo a levava a pensar que o navio se encontrava agora demasiado longe para ser apanhado.
E agora, uma pregunta lancinante se apresentou ao espírito da prisioneira: conduzi-la-iam de facto Para Malaca, como lhe tinha dito o seu raptor? O barco encontrava-se
agora em pleno oceano. Rui levaria a sua cativa para sítio onde não temesse ser descoberto pelo capitão-general ou pelos seus oficiais. E durante todo esse tempo
ela estaria à sua completa mercê.
Leonor não pôde conter um frémito de horror ao pensar que Rui podia dum momento para o outro entrar na sua prisão e impor-lhe odiosos desejos.
Por fim a capitã imobilizou-se, fatigada. Os minutos pareciam-lhe intermináveis. A todo o momento lhe vinha à idea o nome do seu noivo. Pronunciava-o soluçando.
Ninguém reconheceria nesta cativa, abatida e desalentada, a intrépida "Amazona dos Mares", que durante tanto tempo havia aterrorizado e vencido os piratas do Oceano
Índico.
Um ruído de passos, aproximando-se da sua prisão, tirou-a das suas angustiantes reflexões. Ofegante, levantou-se e apurou o ouvido. Alguém chegava. Parecia mesmo
que a tranca, que dificultava o acesso à sala, se desviava lentamente.
Um ligeiro ranger e a porta do cárcere improvisado girou nos gonzos. Um facho de luz invadia a cabine e obrigava a cativa, deslumbrada, a fechar os olhos; de-pressa
os tornou a abrir. Uma figura destacava-se a dois passos dela, figura que logo reconheceu:
- Vós, Rui?!
- Perfeitamente, sou eu, formosa prima. Ainda há pouco vos vim visitar, mas dormíeis tão descansadamente que não quis incomodar-vos. Verifico, com muito prazer,
que estais com muito melhor aspecto!
com uma voz doce, o ex-lugar-tenente da caravela azul, avançara de mão estendida, mas Leonor recuou, tremendo:
- Para trás! Sois um miserável! Um assassino !
Leonor estava de pé pronunciando estas palavras. O seu rosto exprimia uma profunda indignação
e o seu braço estendia-se em direcção à porta, mas o recém-chegado não parecia melindrado com o acolhimento que lhe era feito. Um ligeiro sorriso se lhe desenhou
nos lábios.
- Como estais nervosa esta manhã, Leonor! Mas podeis estar descansada que nada tendes a temer!
- Nada a temer! Ao pé dum monstro como vós!
Rui não parecia perturbado com as réplicas desconcertantes de sua prima.
- A raiva alucina-vos. Quando tiverdes reflectido um pouco, certamente vos mostrareis mais indulgente para comigo.
- Jamais esquecerei que assassinastes cobardemente o homem que eu amava!
Estas palavras implacáveis pareciam ter, desta vez, irritado Rui; as suas sobrancelhas carregaram-se e os seus punhos crisparam-se; no entanto, de-pressa se acalmou
e erguendo desdenhosamente os ombros, disse:
- Acaso imagináveis que vos deixaria continuar representando esta comédia, formosa prima? Sabíeis desde há muito como profundo era o meu amor por vós!
- Silêncio! Proíbo-vos de pronunciar essa palavra! Exprime um sentimento que jamais poderia existir entre nós!
- É o que veremos!
Rui tinha fechado bruscamente a porta atrás de si; agora, cruzando os braços, olhava a sua cativa com insolência.
- Quando vogávamos a bordo do São Jorge, éreis senhora absoluta da caravela. Tínheis direito
de vida e de morte sobre todos os vossos auxiliares. Agora, não é assim. Sou eu o senhor deste navio. É às minhas ordens que tem de obedecer. Expulsastes-me vergonhosamente;
de hoje para o futuro sois minha prisioneira!
E como a rapariga se conservasse num silêncio desprezativo, Rui insistiu:
- Já esperei tempo demasiado! Que paciência infatigável! Seguia-vos, ansiando por uma palavra amável que me pudesse dar esperança. Amava-vos ardentemente e amo-vos
ainda com loucura. Se me tivésseis manifestado o mínimo desejo, teria conquistado países para o satisfazer. Apenas tinha um sonho: fazer de vós minha esposa! Este
sonho, quiseste-lo implacàvelmente destruir! Então, segundo circunstâncias que eu qualifico de providenciais, as nossas posições mudaram; jánão sou o escravo que
rasteja suspirando na terra, apaixonado por uma estrela. Sou quem manda! Se tal fosse a minha vontade, seríeis minha amante já.
A capitã não pôde reprimir um estremecimento. Rui avançava para ela, fitando-a, as narinas frementes de desejo. Apertou-a pela cintura. A rapariga quis recuar, mas
Rui encostou-a contra a parede. Então arquejante, aproximou os lábios dos dela e procurou colá-los contra os seus. Leonor estendia os braços para se defender.
- Deixai-me! Para trás! Ordeno-vos! As palavras estrangularam-se na garganta da
cativa. Sentia o abraço apertá-la cada vez mais. A sua mão crispada lacerou a face de Rui. Um fio de sangue correu, mas o bandido nem sequer o sentia. Um sorriso
diabólico estampava-se-lhe no rosto. Pensava que a presa, palpitante, estava neste
momento à sua completa mercê. A paixão enlouquecia-o. De-repente, largou-a soltando um grito surdo. Leonor, durante a luta desesperada que sustentara contra o seu
raptor, tinha conseguido apoderar-se do punhal que trazia à cintura. No momento em que Rui a supunha à sua absoluta discrição, a lâmina golpeou-lhe cruelmente o
braço direito.
- Ah! víbora. Hás-de pagar-mas.
Rui dera um salto para trás, furtando-se a um novo golpe, que a sua prisioneira se dispunha a dar-lhe em pleno peito; depois, estendendo rapidamente o braço esquerdo,
agarrou-a por um pulso e torceu-o, esforçando-se por a fazer largar a arma.
Durante alguns segundos, Leonor ainda resistiu; porém, os dedos do seu antagonista apertavam-lhe a carne delicada. A dor era tal que por fim declarou-se vencida.
A sua mão entreabriu-se, abandonando a arma, que foi enterrar-se profundamente no chão. Então, com um brusco empurrão, Rui fê-la cair sobre a cama.
A rapariga viu-se perdida. Imaginava, na sua aflição, que o miserável aproveitaria esta circunstância para se precipitar contra ela e impor-lhe brutalmente a sua
vontade. Contudo, ele nada fez, indo encostar-se à parede. O sangue corria abundantemente do seu ferimento; parecendo acordar dum sonho mau, estava imóvel, ofegante,
o rosto luzindo de suor, os cabelos em desordem, as feições crispadas.
- Sabes morder, prima, rugiu ele, mas agora já não temo os teus assaltos. Meta-se-te bem na cabeça que hás-de ser minha.
com um pé Rui puxou a arma para si, e abaixando-se bruscamente apanhou-a. Depois limpou
as fontes humedecidas. No seu olhar lia-se uma crueldade indizível.
Leonor não se mexia, ofegante, nem despregava os olhos do seu temível vizinho. A sua tentativa frustrada punha-a dora-avante à completa mercê do miserável. Contudo,
encontrou forças para responder:
- Toma cuidado! Albuquerque me vingará. Se tocasses num só cabelo da minha cabeça, ele pedir-te-ia implacàvelmente contas.
O ex-lugar-tenente escarneceu e sacudiu desdenhosamente os ombros:
- Albuquerque! Não poderá certamente alcançar-me. Tem outras preocupações em Goa. De-resto, sabes para onde vamos? Para Malaca! Jamais as caravelas de Portugal me
irão procurar tão longe! Além disso, o capitão-general não sabe onde estás! Ignorava mesmo a minha presença nos arredores de Goa. Nestas condições, compreendes que
nada tenho a recear dele ou dos teus antigos companheiros!
E como a prisioneira, abatida, não respondesse, o miserável prosseguiu, esforçando-se por ligar o braço com a manga da camisa e estancar o sangue que jorrava com
abundância:
- Por agora, deixo-te em paz, linda prima. Deixo-te entregue às tuas reflexões. Só uma coisa me preocupa: alcançar um lugar seguro, o mais cedo possível. Mas persuada-te
de que, quando esta precaução for tomada, ninguém te poderá separar de mim. A bem ou a mal, serás minha! Este amor que não quiseste aceitar quando to oferecia, serás
obrigada a suportá-lo. Serás uma escrava, por não teres querido ser minha amante!
Rui demorava um olhar vencedor sobre a cativa, pronunciando estas palavras. Convencia-se realmente de que ninguém lhe poderia arrancar dora-avante. Por fim a sua
voz tornou-se menos imperiosa e mais terna:
- Deixo-te com as tuas meditações. disse ele. Tens ainda alguns dias de espera diante de ti. Não duvido que a razão triunfe da cólera e que procedas com melhores
sentimentos. Assim, tens tudo a ganhar e nada a perder!
Rui tinha pressa de pensar a sua ferida e parar a hemorragia; por isso, não se demorou mais na cabine. Saiu, fechando solidamente a porta atrás de si, e Leonor voltou
a encontrar-se só na sua prisão.
Durante quanto tempo ficou imóvel a infeliz sobre a cama para onde a tinha atirado Rui? Nem ela mesmo o sabia. Um tremendo desespero a esmagava. O miserável tinha
razão. Ela estava desde então à sua completa mercê. O imprudente gesto que tinha feito para se defender, tinha-a privado da única arma que lhe restava e da única
maneira de escapar à morte ou à sorte infame que lhe reservava o miserável.
Silenciosa e triste, a rapariga não resistiu mais à sua sorte. Por vezes os seus olhos enchiam-se de lágrimas, quando pensava em João dAmblayves, que julgava perdido
para sempre; não conseguia dissipar a sua mágua profunda, nem sequer evocando a gloriosa carreira que tinha seguido. Terminaria assim a sua existência em poder do
bandido que considerava agora como o último dos cobardes?
Emquanto a cativa, o coração atrozmente confrangido, continuava nas suas apreensões, o navio
prosseguia a sua rota. Rui da Mota, com o braço ligado, comandava, incitava sempre a equipagem malaia, receando ser apanhado; mas os barcos que cruzavam, indicava-lhe
que não havia por emquanto a temer a presença de nenhuma das caravelas de Albuquerque nestas paragens. A breve trecho, poderia alcançar Malaca e aí se abrigaria
com a sua presa.
CAPITULO XIV
Malaca, a voluptuosa
Rui da Mota tinha prometido uma boa recompensa aos malaios; assim estes rivalizavam de zelo. O navio, favorecido por uma boa briza, singrava para sudoeste. No entanto,
a serenidade que afectava cada vez mais o ex-lugar-tenente da caravela azul, não tardou a ser perigosamente perturbada. No decurso de três escalas que fizeram nas
ilhas de Nicobar, soube pela boca dos pescadores siameses e birmanos, que voltavam apressadamente do Ocidente, uma nova extremamente grave: o capitão-general e a
sua frota, tinham deixado Goa. Assegurava-se que se dirigiam a Malaca.
Primeiro, o miserável não acreditou. Sabia que Albuquerque tinha um vizinho turbulento, o Samorim de Calicut, cujas ambições o tinham forçado até aqui a ficar prudentemente
nas proximidades de Goa ou de Calicut, ameaçado sucessivamente pelas agressões do belicoso soberano. Contudo, teve de se convencer do que lhe diziam. A embaixada
de Mirza Sahib dera resultado. O conquistador português,
sentindo-se liberto dum perigo, organizava uma nova expedição que lhe abriria caminho para as ilhas das especiarias.
Então, Rui pensou em dirigir-se para outro lado, mas teve que manter os seus projectos. Conhecia Mahmoud, rajah de Malaca; além disso mantinha relações com o traficante
chinês Wu-Fong. Em qualquer outra parte seria o estranjeiro, o inimigo! Mais valia alcançar Malaca o mais breve possível, e prevenir o rajá do terrível perigo que
aMeaçava o seu território e a sua capital.
Sempre enclausurada na sua cabine, Leonor não dera pela mudança que se tinha produzido na atitude do seu raptor; a grande segurança que ele manifestava ao princípio,
transformava-se numa ansiedade cada vez maior, ansiedade que se mudaria em terror, se o miserável pudesse somente supor que João dAmblayves estava vivo e que, graças
às revelações de Coelho, o gascão e Afonso de Albuquerque sabiam exactamente a direcção que ele tinha tomado e o fim que se propunha atingir.
Manuel, Joaquim e Gabriel partilhavam da mesma inquietação do seu novo chefe. Estavam desejosos de terminar com esta longa travessia. Agrupados na popa do barco,
afastados dos malaios, passavam o tempo a jogar os dados ou em intermináveis discussões; mas o seu olhar dirigia-se frequentemente em direcção de leste.
Emfim, as costas de Malaca surgiram aos olhos dos tripulantes do navio. Durante dois dias, o barco seguiu ao longo da península, depois a cidade despontou, cortada
em duas por um rio que uma ponte encimava, protegida por uma forte e poderosa artilharia. Rui distinguia cada vez melhor a mesquita
e o palácio do rajah Mahmoud, a quem tencionava dirigir-se. Casas brancas desciam até ao porto, coalhado de navios de todas as espécies.
Do fundo da sua prisão, Leonor viu, com angústia, desenhar-se ao longe a linha azulada do horizonte. A infeliz pensava no triste destino que a esperava nessa terra
longínqua. Depois da dramática entrevista que tivera com seu primo, não o tornara a ver; somente o criado malaio vinha, duasvezes por dia, trazer-lhe uma refeição
na qual ela mal tocava; porém, a cativa pensava ouvir ainda as palavras de ameaça do seu ex-lugar-tenente ressoar-lhe aos ouvidos. Sabia que não tinha a esperar
dele a mínima misericórdia. De resto nunca se humilharia a implorar a piedade do miserável.
À medida que decorriam os dias, a rapariga tentava lutar contra o desalento que a invadia. Queria ter esperança a-pesar-de tudo. A Providência que tantas vezes a
tinha socorrido e que tantas vezes lhe tinha evitado a morte, salvá-la-ia talvez da deshonra e permitir-lhe-ia escapar ao seu raptor. Contudo, foi com melancolia
que sentiu o barco moderar o andamento cada vez mais.
Agora, com o olhar ennevoado de tristeza, Leonor contemplava o cenário cheio de sol de Malaca, a Voluptuosa. Tudo parecia regorgitar de alegria; um magnífico panorama
estendia-se diante dela. Esta cidade que ela não conhecia ainda, parecia engalanar-se dos seus mais esplendorosos encantos para a receber. Perfumes de flores e de
plantas penetravam na sua prisão. Inumeráveis gaivotas esvoaçavam caprichosamente à volta do barco.
Mas tudo isto não conseguia distrair a infeliz. Ela sabia que Malaca seria para ela uma cidade de
tortura e tristeza. Ali, Rui exigiria o que não tornara a pedir desde a sua primeira tentativa.
Um ruído de vozes veio chamar a cativa à realidade; Manuel e Joaquim aproximavam-se. Ao mesmo tempo um brusco estremecimento anunciava que o barco tinha parado.
Os malaios dirigiam o navio através das centenas de embarcações amarradas aos cais. Ágeis como gatos, executavam as últimas manobras sob a vigilância de Rui.
O ex-lugar-tenente da caravela azul ordenou aos dois marinheiros que vigiassem atentamente a prisioneira; depois dirigiu-se para o cais e desapareceu entre a multidão
agitada e misturada que se espalhava pelo porto.
A chegada do português tinha provocado grande sensação entre os pescadores e navegadores pertencentes às diferentes raças que povoavam o Extremo-Oriente. Chineses
que avançavam saltitando, calçados de feltro, fixavam nele os seus pequenos olhos oblíquos; malaios, tendo como única vestimenta, um pano em volta dos rins, e índios
de turbantes de cores bizarras, voltavam-se à sua passagem.
Sem parecer inquietar-se com a emoção que provocava, Rui, a cabeça coberta com um largo feltro emplumado, a mão sobre a espada, continuava avançando através das
ruas repletas de populaça, parecendo não a ver, nem dar pelo cheiro equívoco que se espalhava à sua volta, à medida que se aproximava do bairro chinês.
Era, com efeito, para este lado da cidade que o primo de Leonor se dirigia. Antes de ir ao palácio de Mahmoud, queria encontrar-se com Wu-Fong, o traficante chinês,
que lhe emprestaria alguns cruzados, mediante qualquer penhor e a quem se propunha confiar a guarda da sua cativa.
No entanto, Rui ficou desapontado quando chegou à morada do chinês. Um criado, todo vestido de negro, que se multiplicava em salamaleques, anunciou-lhe, com efeito,
que o ilustre Wu-Fong tinha partido havia já uma lua, com destino a Cantão, sua terra natal. Às preguntas que lhe fez o português, a respeito do regresso do amo,
o criado apenas respondeu com palavras evasivas.
O ex-lugar-tenente ficou durante um longo momento ao pé do chinês. Sentia-se terrivelmente perplexo. Wu-Fong era para ele o aliado mais seguro que lhe permitiria
instalar-se em Malaca. Parecia-lhe de mau agoiro esta partida precipitada do traficante que já estava estabelecido em Malaca havia bem uns trinta anos. Fora preciso
certamente que Wu-Fong previsse um grande perigo.
E Rui lembrava-se neste momento das alarmantes novas que soubera em Nicobar. Sem dúvida a notícia da vinda da frota de Afonso de Albuquerque tinha qualquer relação
com a partida precipitada do traficante. Wu-Fong possuía, mais ainda do que o rajah Mahumoud, numerosos espiões vindos de todos os países das índias. A aproximação
do perigo tinha-o incitado a ir respirar um pouco o ar da sua terra natal.
Despeitado, Rui da Mota decidiu voltar ao barco; emquanto avançava pelo porto, esforçava-se por surpreender alguma emoção nos rostos dos indígenas que cruzava. Muitos
mercadores tinham armado as suas tendas nas ruas e alguns deles interpelavam com insistência o estranjeiro. Pouco interessado, o português deitava um olhar distraído
às caçoletas de perfumes que, aqui e ali, combatiam com fiozinhos de fumo azulado o cheiro desagradável da maré e aos chineses que em vão lhe mostravam
jarras de porcelana e ventarolas artisticamente trabalhadas. Um pouco mais longe, um saltimbanco executava sobre uma tábua exercícios impressionantes aos olhos da
multidão silenciosa e maravilhada; e constantemente, sentados no chão, envoltos em miseráveis farrapos, Rui encontrava fakirs ou hipnotizadores de rostos enigmáticos,
como já tinha visto em Goa ou em Calicut.
Por vezes, o ex-lugar-tenente teve de abrir caminho com os cotovelos, por entre a multidão. Junto ao sítio em que o navio estava amarrado, rapazitos nus divertiam-se
em ir buscar debaixo de água algumas moedas que lhes atiravam generosamente os transeuntes. Alguns deles quiseram deter o português, mas ele logo os afastou. Via,
de facto, Gabriel que corria ao seu encontro.
O marinheiro leu sem dúvida a profunda decepção que se desenhava no rosto do seu amo, porque logo lhe preguntou:
- O que se passa, chefe?
- Simplesmente isto: Wu-Fong já não está em Malaca!
Gabriel não pôde reprimir uma praga. Sabia, desde a sua partida de Goa, que esperanças Rui da Mota tinha posto no traficante chinês, aliado precioso.
- E agora? arriscou ele. Que faremos?
- vou imediatamente pedir audiência ao rajah Mahmoud. Sem dúvida ignora que Albuquerque se aproxima, que já atravessou o golfo de Bengala, e que a sua numerosa frota
se dirige agora para Samatra, que ele se propõe atacar antes de Malaca.
Manuel e Joaquim acorreram por sua vez e vieram conversar com Rui. Os olhares desconfiados que lhes dirigiam frequentemente os indígenas, faziam-lhes
compreender que só lhes restava, naquela cidade, procurar um refúgio bem seguro. Por isso, era preciso ganhar a confiança do poderoso soberano e oferecer-lhe a sua
ajuda para se defender de Afonso de Albuquerque.
Tomando esta decisão, os quatro patifes nem sequer pensavam que, procedendo assim, traíam vergonhosamente a sua pátria e comprometiam a segurança daqueles que durante
tanto tempo tinham sido seus irmãos de armas.
- Gabriel e Joaquim, ordenou por fim o ex-lugar-tenente da São Jorge, vocês ficam a bordo. Eu vou com Manuel ao palácio de Mahmoud.
Um quarto de hora depois, Rui e o seu cúmplice dirigiam-se a passos apressados para o palácio do rajah, cerca da ponte e do rio; mas apenas chegaram à cidadela fortificada
que guardava a sumptuosa habitação, numerosas sentinelas se interpuseram de lanças na mão, impedindo-lhes a passagem.
Foi preciso que os dois portugueses, que conheciam algumas palavras indígenas, entrassem numa interminável discussão com os soldados, para lhes fazer compreender
que desejavam ser introduzidos o mais de-pressa possível, junto do seu soberano. Os guardas, que não sabiam que resolução tomar, chamaram dois oficiais, que logo
acorreram a ver o que se passava. À primeira vista, os visitantes inesperados pareceram provocar-lhes uma desconfiança profunda; mas Rui tanto insistiu que eles
se decidiram a avisar o seu senhor. Momentos depois, seguidos por uma dezena de índios, escudo no braço e lança ao ombro, os dois portugueses transpunham a escadaria
monumental que conduzia aos aposentos privados do rajah de Malaca.
Mahmoud estava indolentemente deitado num
divan, quando Rui e Manuel entraram no vasto salão ornamentado ao centro por um grande tanque forrado de mosaico, onde o rajah de ordinário se estirava. Fumando
o seu narguilé, o soberano demorava o seu olhar fendido em amêndoa nos recém-chegados. Um clarão brilhou nas suas pupilas quando viu Rui. Reconheceu o ex-lugar-tenente,
por o ter já recebido duas vezes como enviado dos conquistadores portugueses.
Um silêncio impressionante pesou por instantes, apenas se ouvindo o murmúrio cristalino do jacto de água que caía sem cessar no pequenino tanque. Mahmoud não parecia
mais tranquilo de que os seus guardas; a visita destes estranjeiros parecia-lhe suspeita e inesperada. Rui e Manuel inclinaram-se respeitosamente. Então o rajah
estendeu a mão carregada de anéis na direcção do intérprete, que os oficiais tinham mandado chamar a toda a pressa.
E a conversa de-pressa se estabeleceu:
- Vens sem dúvida propor-me algum ultimatum da parte do teu senhor, o capitão-general Albuquerque? interrogou o rajah sem abandonar a sua impassibilidade. Já o esperava.
O português deu-se pressa em desenganar o seu poderoso interlocutor.
- Não venho como adversário, rajah Mahmoud, mas como amigo!
- Singular amigo aquele que é auxiliar dum conquistador temível, que quere apossar-se dos meus bens e do meu reino!
E como Rui esboçasse um gesto de protesto, o soberano acrescentou:
- Sei o que digo! Neste momento o capitão-general dispõe-se a atacar-me com uma poderosa frota. E tu vens com palavras enganadoras nos
lábios. Sabes que poderia prender-te e entregar-te ao carrasco? Não poderia eu responder à insolente atitude do teu chefe, enviando-lhe as vossas cabeças num saco?
Rui da Mota fez uma careta ao ouvir estas palavras que Mahmoud acompanhou com um gesto significativo.
- Enganas-te, poderoso rajah, interrompeu ele. Não vim procurar-te para te fazer saber os desejos de Albuquerque, mas sim para te ajudar contra os seus ataques!
Esta declaração, pronunciada por Rui com uma voz firme, pareceu provocar uma intensa admiração em Mahmoud. De sobrolhos carregados, continuava a interrogar os seus
visitantes com o olhar, receando uma armadilha.
- Repito que vim aqui como teu aliado. Afonso de Albuquerque é dora-avante meu inimigo!
- Nessas condições, poderemos talvez entendermo-nos; mas antes, responde à minha pregunta: porque me procuraste?
- Vim a Malaca pedir-te protecção! Se me concederes hospitalidade e consentires em recolher no teu palácio uma cativa - uma cativa que me pertence - ficarei daí
em diante devotado à tua causa de corpo e alma!
- Uma cativa. Ah! Eis a razão. As mulheres fazem por vezes verdadeiros milagres!
Os olhos do rajah cintilavam maliciosamente. Compreendeu de-pressa, pela atitude embaraçada do português, que tinha acertado. Durante alguns momentos Rui que esperava
com viva impaciência, viu-o falar com o intérprete; a desconfiança que a Princípio mostrava o personagem, parecia completamente dissipada.
- Entendido, declarou por fim, dirigindo-se ao ?ex-lugar-tenente. Aceito o teu concurso e o dos teus companheiros. Quero crer que são sinceros e que as vossas intenções
para comigo partem de corações leais. A presença da vossa prisioneira, permite-me, de resto, conservar um penhor precioso se alguma vez resolvessem trair-me.
Uma sombra perpassou no olhar de Rui; os seus punhos crisparam-se. Preguntava a si mesmo neste instante se não teria vindo cair na boca do lobo e se Mahomoud não
lhe faria pagar bem caro a protecção que tinha vindo pedir-lhe; mas depressa conquistou a sua serenidade. Uma só imprudência poderia comprometer irrevogàvelmente os seus planos.
- Podes contar com a nossa fidelidade e com a nossa inteira dedicação!
- Está bem! Podem instalar-se no palácio com a vossa bela prisioneira.
O rajah acompanhou estas palavras com um sorriso insinuante; os dois portugueses sairam do palácio e alguns minutos mais tarde chegavam ao navio.
Leonor esperava, continuando fechada na cabine, sob a guarda de Joaquim e Gabriel. A infeliz estava atrozmente angustiada. Tinha visto Rui e o companheiro afastar-se
do porto; por isso não duvidava que se decidisse actualmente o seu destino. Contudo, afectava uma completa impassibilidade; nem um só músculo do seu rosto se contraiu
quando o seu primo apareceu no limiar da porta:
- Tens que nos seguir, disse o miserável com voz breve, e, sobretudo, não tentes procurar fugir-nos.
Nem uma palavra. A prisioneira mantinha-se
num silêncio desprezante. Como o seu raptor lhe fizesse sinal para sair, Leonor dirigiu-se para o convés do navio que balouçava, levemente amarrado ao molhe; Manuel
e Gabriel imediatamente a seguiram, levando-a para o porto. A seguir, desembarcaram Rui e Joaquim.
A "Amazona dos Mares" avançava com passo hesitante. A sua longa clausura tinha-a entorpecido; além disso, o vivíssimo fulgor do sol e o ruído da multidão variegada
que se comprimia no seu caminho e que a mirava curiosamente, estonteavam-na e perturbavam-na. Reagindo a-pesar-de tudo, caminhava como um autómato, embriagada por
toda essa luz e por todo esse perfume. Uma brisa ligeira, que vinha acariciar-lhe o rosto, arrancou-a um pouco a este torpor.
No entanto, ao cabo de alguns instantes a fraqueza da capitã era tal, que as pernas dobraram-se-lhe. Manuel amparou-a; mas como Rui avançava disposto a transportá-la
nos braços para o palácio, a rapariga recusou a ajuda com um gesto seco, e retomou a sua marcha, penosamente.
Leonor estava já sem forças quando, finalmente, chegaram à escadaria que conduzia ao palácio de Mahmoud; por isso, teve que aceitar a ajuda de Manuel e Gabriel,
que a sustinham pelos braços. O cenário luminoso que a rodeava, aturdia-a; parecia-lhe ver tudo dançar fantasticamente. Contudo, como seu primo a olhasse com uma
expressão apaixonada, a rapariga voltou-lhe resolutamente as costas e seguiu os guerreiros que o rajáh tinha enviado ao seu encontro.
Mahmoud continuava recostado no divan, fumando preguiçosamente o narguilé, quando os quatro portugueses e a sua cativa chegaram ao palácio.
Um clarão iluminou o seu olhar, quando viu Leonor que se encontrava a alguns passos dele.
- A tua cativa é formosa! declarou voltando-se para Rui. Compreendo que tenhas particular empenho em guardá-la!
O miserável não disse palavra. O sorriso cubiçoso que o seu hospedeiro deitava a Leonor, exasperava-o e inquietava-o ao mesmo tempo; mas teve bastante sangue frio
e diplomacia para ocultar estes sentimentos; com uma voz muito calma, respondeu:
- Se não tivesse muito empenho em conservá-la não teria afrontado tantos perigos para alcançar Malaca. Mas, basta de palavriado! Emquanto divagamos aqui, Albuquerque
não perde tempo. Os seus soldados já desembarcaram em Samatra. De um dia para o outro, poderás ver as velas dos seus galões despontar no horizonte!
Mahmoud enrugou a fronte e deixou de fitar a prisioneira; então Rui, que se tinha aproximado, continuou:
- Posso ajudar-te a expulsar os portugueses e a transtornar-lhes os planos. Conheço a sua maneira de atacar. Se quiseres deixar-me agir, afastarei o perigo que ameaça
a tua capital e obrigarei Albuquerque a fugir, vencido e humilhado, para Goa. Entender-nos-emos, desde que a minha capitã se encontra em lugar seguro no teu palácio!
A certeza que manifestava o miserável, exprimindo-se assim, pareceu impressionar favoravelmente o soberano. Dirigiu algumas palavras ao intérprete e aos guardas,
e momentos depois Leonor, escoltada, era conduzida para um pavilhão situado na ala esquerda do palácio, onde ficou prisioneira.
Rui e os soldados deixaram-na sozinha, tendo antes tomado todas as precauções para evitar qualquer tentativa de fuga.
Leonor sentou-se, sem dizer palavra, num divan coberto com lindas almofadas de seda. Os olhos perdidos no vago, o rosto taciturno, compreendia que já não podia esperar
clemência do seu raptor. Para se vingar Rui não tinha hesitado em trair abominàvelmente os seus. Preparava-se para combater Afonso de Albuquerque!
- Miserável! exclamou a rapariga.
Mas de-pressa a cativa se arrancou à sua prostração. As poucas palavras que o seu primo tinha trocado com Mahmoud, deram-lhe a saber a próxima chegada da frota portuguesa
a Malaca. Até ali, encerrada no barco, ignorava a situação. Somente a idea que o capitão-general podia dum momento para o outro atacar a cidade de Malaca, dava-lhe
uma esperança que não ousara acariciar até ali. Brilharam-lhe os olhos; depois levantando-se bruscamente, foi até à gelosia que protegia a janela próxima.
Através dos interstícios de madeira, delicadamente trabalhada, que protegia a abertura e tornava impossível qualquer tentativa de fuga, a reclusa pôde distinguir
a pouca distância a ponte e a mesquita; durante um momento ficou com a cabeça encostada contra a janela, expondo-a à brisa ligeira que penetrava através dos interstícios;
depois, desviando a vista do cenário do porto e da cidade, que podia contemplar da sua nova prisão, olhou longamente para o horizonte, onde talvez as caravelas de
Afonso de Albuquerque não tardassem a aparecer. E, sonhadora e quási confiante a "Amazona dos Mares" esperava.
CAPÍTULO XV
Uma idea de Bignache
Emquanto Leonor era conduzida a Malaca e encerrada no palácio de Mahmoud, Afonso de Albuquerque seguia metodicamente o plano que lhe permitiria obter o domínio do
caminho marítimo das especiarias. Majestosa, a frota que precedia a Flor do Mar, onde flutuava a bandeira do capitão-general, fendia as ondas e singrava para Malaca.
Desde que os portugueses tinham deixado Goa, já contavam gloriosas expedições no seu activo. Albuquerque tinha-se apoderado da cidade de Pedir, na ilha de Samatra,
depois da cidade vizinha de Paceu, cuja armada tinha sido desfeita e o rei morto, após vivo combate. Desde então a frota tinha caminho aberto até Malaca, e os poucos
barcos que tinham tentado opor-se à sua passagem, foram facilmente dispersados a tiro de arcabuzes e canhões. Imponentes, as galeras vogavam para novas e ricas conquistas.
No decurso de recentes combates, João dAmblayves tinha-se particularmente distinguido, tendo conseguido salvar, no meio duma batalha, o capitão-general,
atacado por uma dezena de guerreiros índios. A espada na mão, seguido pelo seu fiel Bignache que, electrizado pelo exemplo do mestre se multiplicava em prodígios
de valentia, o gascão tinha combatido como uma fera, e os seus feitos tinham-lhe valido a estima de todos aqueles que continuavam ainda a tratá-lo com certa reserva,
considerando-o como um estranjeiro.
No entanto, o amor ardente que João sentia pela aventura e pelo perigo, não lhe fazia esquecer o fim que queria atingir. Se tinha aceite, em Goa, o comando da caravela
azul, era menos para guerrear através destas índias maravilhosas que há tanto tempo exerciam sobre ele tão irresistível atracção, do que para encontrar aquela que
desejava ardentemente libertar; por isso, era com impaciência que via passar os dias. Queria encontrar-se já em Malaca. E à noite, quando tudo dormia a bordo do
São Jorge, o rapaz vinha encostar-se ao pé da lanterna da popa, no mesmo sítio onde tantas vezes se encontrara com Leonor em ternos colóquios. A sua imaginação fantasiava,
e sentia o coração comprimido por uma atroz angústia. Onde estaria ela agora? Sem dúvida à completa mercê de Rui da Mota!
O gentil-homem gascão tremia, pensando nos perigos que correria a capitã, em presença do miserável. Quantos dias se tinham passado desde o rapto! Êle tinha tido
mais de que tempo para obrigá-la a ser sua amante!
Mas João conhecia suficientemente Leonor para saber que ela não se submeteria de livre vontade aos caprichos e ao desejo do seu miserável primo. Preferiria cem vezes
a morte!
- Se nunca mais a tornar a ver, gemia cerrando
raivosamente os punhos, tirarei sobre esse cão implacável desforra! Não cessarei de o torturar emquanto o não vir ferozmente castigado.
Várias vezes o fiel Bignache se esforçava por tranquilizar o seu amo.
- Quem sabe, sr. conde! A "Amazona dos Mares" não é uma criança. Estou certo de que ela conseguirá escapar e que nós a encontraremos em breve sã e salva!
O gascão fez um gesto evasivo; complacente o criado acrescentou:
- Emfim, reflectindo bem, isso devia animar-vos, sr. conde. Podíeis muito bem ter sucumbido aos golpes desses canalhas. E depois, só o facto de que as revelações
de Coelho permitiram conhecer exactamente o sítio para onde foi conduzida vossa noiva, prova que a Providência não vos abandonou de todo. De resto, ardem-me as orelhas
e tenho fortes razões para pensar que haverá algo de novo dentro de pouco tempo!
Isabel, que também embarcara na caravela azul, não cessava de pensar na sua ama desaparecida; quanto aos marinheiros, tinham prometido solemnemente encontrar a todo
o custo a sua capitã e castigar impiedosamente o miserável que a tinha raptado.
Foi com entusiasmo que aclamaram João como chefe; já por várias vezes tinham tido ocasião de apreciar as qualidades e a bravura do francês. Seguiam-no como se seguissem
Leonor.
Quanto a Coelho, passava a maior parte do tempo passeando no convés, para trás e para diante. Depois de medir os prós e os contras, o ex-criado de Leonor decidira-se
a seguir João; a sua revelação tinha-lhe conseguido reconquistar
senão a estima e a confiança dos tripulantes da caravela azul, que sabiam que ele agira assim mais por medo que por outra coisa, pelo menos a sua indulgência.
Por fim, uma bela tarde, Malaca, a voluptuosa, apareceu aos olhos maravilhados dos marinheiros portugueses. Aclamações frenéticas fizeram-se ouvir; iluminada pelos
últimos raios do sol poente, a cidade parecia coberta por um manto de púrpura. O olhar extasiado dos navegadores demorava-se encantado pelas inumeráveis casas brancas
que se espalhavam pela verdura.
Afonso de Albuquerque, depois de ter conferenciado com os seus oficiais, deu ordem aos capitães das caravelas para parar. Uma pequena inspecção permitira-lhe certificar-se que Malaca se achava fortemente defendida; avisado a tempo, Mahmoud, graças ao apoio que lhe dava Rui da Mota, tinha fortificado solidamente a ponte. As torres estavam
defendidas por uma possante artilharia. Por isso o capitão-general preferiu esperar, antes de dar a ordem de desembarque e de assalto.
A atenção dos portugueses de-pressa convergiu para uma embarcação que se aproximava cada vez mais da Flor do Mar. Uma bandeira branca flutuava a bordo e alguns dos
soldados índios, que o tripulavam, agitavam os braços com insistência, indicando aos portugueses que queriam acostar.
- Um parlamentário. declarou Albuquerque. Deixem-no aproximar. Talvez venham dizer-nos que Malaca se quere render!
Alguns minutos depois o dignatário de Mahmoud chegava à tolda e era introduzido na cabine do capitão-general. Três oficiais e João que vieram a toda a pressa num
batel, escoltavam o enviado.
Depois de trocadas as habituais saudações, o recém-chegado declarou que Mahmoud, seu senhor, estava disposto a pagar um tributo aos portugueses e a deixá-los prosseguir
a sua viagem para as ilhas das Molucas. Mas Albuquerque recusou as tentadoras ofertas e persistiu no seu projecto de ocupar Malaca. A chave do caminho das ilhas
de especiarias encontrava-se ali; de resto, a mínima perfídia da parte do rajah podia conduzi-lo a um verdadeiro desastre. Como o gascão trocasse com ele um olhar
de inteligência, continuou:
- Malaca será nossa, diz isto ao teu senhor, e diz-lhe também que tem que nos entregar a cativa que lhe foi entregue e o traidor a quem ele tão amavelmente ofereceu
hospitalidade!
O enviado abriu os olhos espantados. Parecia de facto ignorar a presença de Leonor.
- De que cativa e de que traidor se trata?
- Sabe-lo tão bem como eu!
João dAmblayves, que não cessara de observar o emissário de Mahmoud, percebeu facilmente que ele mentia; contudo, o intermediário de-pressa reconquistou o seu sangue
frio, continuando a negar com insistência.
- Não sei o que queres dizer, respondeu insolentemente. De resto, se persistirem nos vossos projectos de ataque, Mahmoud saberá esmagar-vos com a sua possante artilharia
e com as inumeráveis tropas de que dispõe. Todos os teus navios serão destruídos antes que um só dos teus soldados tenha posto o pé no solo sagrado de Malaca!
- Basta de palavriado! interrompeu rudemente Albuquerque, que já falara bastante, e sem sucesso, com o dignatário. Diz ao teu senhor que, se não se
submeter amanhã até ao pôr do sol e se não me deixar ocupar Malaca, tomaremos a cidade à força, as casas serão incendiadas, o palácio destruído e todos os habitantes
mortos a espada!
A enérgica atitude do capitão-general pareceu impressionar profundamente o enviado de Mahmoud; o seu olhar ia de um a outro dos oficiais; esperava talvez encontrar
entre eles algum sinal de hesitação ou fraqueza, mas João e os companheiros mostravam-se tão firmemente resolutos como o seu chefe; por isso o parlamentário deixou
a Flor do Mar, levando somente consigo o ultimatum de Albuquerque.
Uma hora depois, João encontrava-se de volta à caravela azul. A Bignache, que se precipitara ao seu encontro e que lhe preguntava se sabia onde se encontrava actualmente
a "Amazona dos Mares", o rapaz respondeu meneando negativamente a cabeça.
- Este cão não quis dizer nada. Mas eu li nos seus olhos que ele mentia. Leonor está em Malaca!
Coelho tinha-se aproximado dos dois homens, dos quais se aproximara Isabel.
- Eu bem ouvi, quando o lugar-tenente se dispunha a alcançar o barco com a sua cativa. Era para Malaca que ele tencionava dirigir-se.
- Toma atenção, disse Bignache agarrando o homem de negro pelo cabeção. Se quiseste troçar connosco, corvo nojento, sofrerás as consequências!
- Pela minha eterna salvação, juro que só digo a verdade!
João ficou calado por um longo momento e, encostado ao convés, demorou o olhar pela cidade, já tão perto. Caíra a noite, mas ao luar os palacios
e as casas destacaram-se com uma alvura resplandecente. E emquanto passeava o olhar por todas estas fachadas, o rapaz preguntava-se se aquela que amava se encontraria
encerrada ali. Quem poderia saber? Neste mesmo momento, talvez, olhava ela, impotente, a frota portuguesa que esperava o sinal do seu chefe, antes de abrir fogo
sobre Malaca, a Voluptuosa.
- Ouvi, sr. conde, tive uma idea. Bignache foi o primeiro do grupo a romper o silêncio que pesava há um momento.
- Uma idea? Qual?
João inclinava-se com curiosidade sobre o bravo rapaz que se tinha aproximado.
- É simplesmente ir até lá verificar. É o único meio de nos certificarmos se a capitã se encontra realmente prisioneira em Malaca.
- É insensato! observou o gascão. Imaginas talvez que a cidade não está guardada? Examina estas muralhas! Não há um único ponto que não esteja cuidadosamente vigiado.
De resto, o capitão-general não atacará antes de amanhã ao cair da tarde.
- Mas, não se trata de atacar, sr. conde. Sabeis que sou de nascença bastante curioso. Acreditai: se um grupo grande não pode neste momento chegar até às muralhas
sem ser visto, dois ou três homens decididos conseguirão manhosamente introduzir-se no interior da cidade. Só por artes do diabo não se conseguiria em seguida chegar
ao palácio do rajáh e saber qualquer coisa!
João hesitava ainda em acreditar na possibilidade de semelhante tentativa:
- Esqueces que me foi confiado o comando da caravela azul e que não posso abandonar o meu posto.
- Mas não é ao sr. conde que eu tenciono pedir para me acompanhar. Irei eu favorecido pela noite e levarei dois homens da equipagem: Atar, homem de Ormuz e maravilhoso
nadador, cujas proesas já tivestes ocasião de apreciar, e Nadir, o pescador de Goa, que trouxestes por acaso para nos servir de guia em caso de necessidade. Conhece
admiravelmente Malaca e saberá conduzir-nos de olhos fechados!
E como João dAmblayves parecia ainda hesitante, Bignache insistiu:
- Oh, suplico-vos, sr, conde! Não deixeis perder esta oportunidade que se me oferece para vos provar a minha dedicação! Começo a aborrecer-me de estar com os braços
cruzados como um mandrião. Hei-de matar-me a repetir-vos que estou certo de conseguir o que quero? E depois, pensai bem nisto, é por ela! Acaso quereis ainda ficar
na incerteza?
O bravo rapaz soube encontrar palavras para decidir o seu amo.
Está bem, faze como quiseres! Mas repito
que é uma loucura!
- Tão certo como eu chamar-me Bignache, estarei de volta antes do romper do dia, e saberei se sim ou não a vossa noiva se encontra em Malaca!
O audacioso Savínio fez como o disse; alguns minutos depois voltava com dois homens, que esperavam, imóveis, sentados ao pé do mastro. Eram Atar e Nadir, os dois
companheiros que lhe pareciam indispensáveis para o êxito da sua tentativa.
- Estamos prontos, sr. conde, declarou. Em Poucas horas saberemos a verdade, prometo-vos!
E o trio deixou o São Jorge, mas não a bordo dum batel para não chamar a atenção dos numerosos guerreiros que estavam guardando as muralhas. Atar descobrira três
odres semelhantes aos que utilizavam os pescadores do golfo Pérsico; depois de os encher suficientemente de ar, escarranchou-se no primeiro e fez sinal ao gascão
e ao pescador para o imitarem.
com o coração apertado, João, Isabel e Coelho, e alguns dos marinheiros da caravela azul assistiam à partida dos três audaciosos; durante momentos, viram-nos cortar
as ondas e afastar-se em direcção à cidade adormecida, depois desapareceram simultaneamente nas trevas.
Bignache não se importava com os obstáculos que se ergueriam no seu caminho; sentia-se mais decidido que nunca a arriscar-se à aventura. Depois que lidava com os
navegadores, abandonara certa timidez que o isolava; a desaparição de Leonor, sobretudo, tinha desencadeado a sua indignação e tinha jurado fazer o possível para
contribuir para libertá-la.
Durante mais de vinte minutos o trio avançou. Grossas nuvens passavam agora no céu e a obscuridade quási completa que reinava favorecia a sua tentativa. Nadir ia
à cabeça do grupo; dirigiam-se, nadando, para o rio que esperavam subir até à ponte. Depois abordariam num ponto deserto.
Agora, os três audaciosos avançavam num profundo silêncio, à sombra das muralhas; de tempos a tempos ouviam os gritos das sentinelas que faziam , a guarda; por duas
vezes tiveram de dar uma grande volta para não serem surpreendidos; mas os esforços obstinados de Nadir de-pressa foram
recompensados. Conseguiram pôr pé em terra a menos de cem passos da ponte fortificada.
Primeiro, olhando ansiosamente à sua volta, Nadir certificou-se que as cercanias estavam desertas. O silêncio persistia e Nadir fez sinal aos companheiros para o
seguirem; depois de ter dissimulado os seus odres atrás de um tronco de árvore, deslizando pelo escuro os três audaciosos esforçaram-se por se introduzir em Malaca.
Atingiram o sítio onde se encontravam amarrados inúmeros barcos de pesca, misturaram-se aos indígenas que iam e vinham em despeito da hora avançada da noite. Erraram
ao acaso durante uma meia-hora; introduziram-se, por fim, no coração da cidade.
O pescador orientava-se admiravelmente e dirigia-se agora para a mesquita e para o palácio; esperava falar com os soldados que se encontravam nesta parte da cidade
e obter algumas informações relativas à prisioneira, quando, de-repente, Bignache, que avançava atrás de Nadir, soltou uma exclamação de surpresa.
- O que é? interrogou Atar.
O gascão estendendo a mão, designava três silhuetas que desciam a escadaria do palácio. A lua, que despontava entre as nuvens, iluminava os três vultos com os seus
raios brancos.
- Então não os reconheces ? . murmurou inclinando-se para o nadador. São Manuel, Joaquim e Gabriel!
Bignache tinha acertado. Tratava-se realmente do trio que deixara Goa tão precipitadamente para
se entregar à completa disposição de Rui da Mota.
Os olhos do gascão faiscaram. Este providencial encontro vinha demonstrar-lhe que não se aventurara
em vão. Se Manuel e os dois cúmplices estavam em Malaca, também deveria ali estar o ex-lugar-tenente e, por consequência, a capitã.
- De-pressa! É preciso não os perderrmos de vista!
Os três portugueses afastaram-se do palácio e embrenharam-se pelas ruas tortuosas da cidade. Bignache, seguido pelos dois companheiros, foram-lhe no encalço a suficiente
distância para não despertar suspeitas.
Manuel e os dois cúmplices pareciam não desconfiar, neste momento, da presença dos três audaciosos; caminhavam rapidamente, dirigindo-se, sem dúvida, para o seu
barco, onde deviam dormir. Quási atingiam o porto, quando Bignache, tocando no braço de Nadir, lhe fez sinal para parar, o mesmo fazendo a Atar, indo dissimular-se
apressadamente numa esquina próxima. Os três portugueses haviam-se voltado subitamente.
- Maldição, rosnou o gascão. Já nos viram! Contudo, Savínio logo se tranquilizou. Manuel
discutiu alguns minutos com os companheiros, depois Joaquim separou-se dos outros dois e voltou para trás correndo. Sem dúvida haviam esquecido alguma coisa.
Mas Bignache não perdeu tempo em suposições. Tivera uma idea. Como Joaquim se encontrava agora só, iria tentar com os dois companheiros apoderar-se dele e levá-lo
para bordo da caravela azul. Feito prisioneiro, o bandido daria, com certeza, todas as informações precisas quanto a Rui da Mota e ao sítio onde se encontrava actualmente
encarcerada a "Amazona dos Mares".
Em poucas palavras o gascão participou as suas
intenções aos camaradas; depois os três juntos,
avançando nas sombras, deram meia volta e lançaram-se
sobre a pista do português que acabava de
passar junto do lugar onde se encontravam escondidos e com passo rápido voltava ao palácio do rajáh, sem suspeitar do perigo cada vez maior que o ameaçava.
CAPITULO XVI
Joaquim em maus lençóis
Durante cinco minutos, Joaquim caminhava sem olhar para trás um só instante. A pouca distância, o gascão e os companheiros apressavam o passo. Estavam realmente
decididos a apanhar o português antes que ele saísse do labirinto das ruas e que se aproximasse do palácio, onde os guardas viriam em seu socorro ao menor grito;
então, depois de se certificar que ninguém se encontrava ali, Bignache deu o sinal de acção. Atar, que deslizava imediatamente atrás do bandido, agia com a destreza
duma pantera; antes que pudesse esboçar um gesto de defesa, Joaquim sentiu a garganta apertada com uma força invencível. Quis gritar; trabalho perdido! Bignache
precipitava-se sobre ele e tapava-lhe a boca com uma das mãos.
Instantes depois, Joaquim desmaiava atingido com um violento soco na nuca; em seguida, Nadir pô-lo aos ombros e o trio retomou apressadamente o caminho do rio.
Bignache estava mais que nunca decidido a não se demorar em Malaca. A captura do português,
que ele esperava fazer chegar indemne a bordo da caravela azul, parecia-lhe das mais preciosas; mas receava encontrar Manuel e Gabriel. O alarme podia dar-se dum
momento para o outro. Era preciso a todo o custo que a retirada não lhes fosse impedida.
Acelerando a marcha, os três homens atingiram por fim o rio. Nadir também caminhava de-pressa, não obstante o fardo que transportava aos ombros. Quando chegaram
ao sítio onde tinha escondido os odres, meteu-se à água, nadando com o braço direito e sustendo com o esquerdo o prisioneiro inanimado.
Imediatamente Bignache e Atar imitaram o companheiro; atrás deles desenhava-se a possante silhueta da ponte fortificada. Avançavam no meio da corrente somente com
a cabeça ao de cima da água, quando um inesperado raio da lua veio iluminá-los. Imediatamente se ouviram gritos, seguidos de numerosas detonações.
Os projécteis choviam à volta dos três fugitivos; os guerreiros de Mahmoud haviam-nos descoberto e crivavam-nos de tiros de clavinas e arcabuzes. Algumas flechas
vinham igualmente persegui-los. Contudo, impassíveis, os três homens continuavam a nadar vigorosamente. O estuário do rio alargava-se cada vez mais. Ainda algumas
braçadas e alcançariam o mar, a pouca distância da frota de Albuquerque, quando Bignache viu Atar mergulhar, aparecer depois à superfície e multiplicar-se em esforços
desesperados para se manter; o desgraçado fora atingido por um tiro de arcabuz entre as espáduas.
Em vão o gascão se apressou a socorrer o infeliz. Este, mortalmente ferido, fez-lhe sinal para se
afastar, designando-lhe as caravelas; depois, agitando o braço pela última vez, desapareceu nas águas.
Os projécteis continuavam chovendo à sua volta; então o gascão não insistiu. Nadou apressadamente, o coração confrangido pela angústia. Diante dele Nadir continuava
a avançar, segurando Joaquim inanimado.
Durante alguns minutos os homens continuaram a afastar-se, acossados pelos tiros dos guerreiros que guardavam a fortaleza; no entanto, foram bastante felizes, conseguindo
escapar aos tiros de arcabuzes e às flechas. Bignache, que sentia a morte rondá-lo por várias vezes no decurso desta dramática expedição, sentiu desdobrar-se a sua
energia quando distinguiu a silhueta familiar da caravela azul.
- Coragem! gritou a Nadir. Estamos salvos!
O bravo rapaz não se enganava. Os soldados do rajáh, compreendendo a inutilidade da sua perseguição, tinham desistido. Agora Bignache passava à frente do companheiro,
aproximava-se das caravelas portuguesas cada vez mais, e dirigia-se para o São Jorge.
- Olá! Sr. conde! gritou assim que as suas mãos se agarraram ao navio.
Algumas figuras rodearam-no ansiosamente à volta da pavez. Havia algumas horas que o trio se afastara, e que João dAmblayves esperava no meio da maior incerteza;
por isso foi o primeiro a responder ao seu fiel e corajoso criado; depois voltando-se para os marinheiros que acorriam numerosos:
- De-pressa! As amarras! Lancem as amarras! Ei-las!
Em pouco tempo o gascão e o companheiro foram içados para bordo da caravela; mas apenas os marinheiros os socorreram e ajudaram a alcançar o convés com o seu prisioneiro,
os dois deixaram-se cair, esgotados do esforço que acabavam de dispender. Todos se precipitaram à sua volta. Emquanto Bignache retomava fôlego, João inclinava-se
sobre ele interrogando-o ansiosamente:
- E Atar? O que é que lhe aconteceu?
- Morreu, sr. conde! suspirou Savínio. Uma arcabuzada desses malditos. Mas não perdemos o nosso tempo. Vede o belo peixe que pescamos!
E pronunciando estas palavras, Bignache designava Joaquim, que alguns acabavam de reconhecer.
- Saberemos por este maroto onde se encontra actualmente a capitã, sr. conde! prosseguia o bravo rapaz. É preciso não esquecer que ele também colaborou no rapto!
Coelho e Isabel estavam ali. O homemzinho parecia satisfeito com o resultado das pesquisas de Bignache, mas Savínio, saindo emfim do torpor que o tinha momentaneamente
vencido, afastou-o com um gesto brusco:
- Estou impaciente por fazer falar esse patife! De-pressa, é preciso reanimá-lo!
Joaquim jazia estendido no convés, com os olhos fechados; o soco que lhe tinha sido dado, aturdira-o por completo; João, munindo-se duma cabaça de aguardente que
lhe estendia um marinheiro, tentou reanimar o miserável. Ao clarão oscilante duma lanterna, os homens da caravela azul olhavam ansiosamente para o seu antigo camarada.
Também eles estavam vivamente interessados pela sorte da sua desditosa capitã, que tinham jurado libertar.
Sem consideração de espécie alguma, Bignache, que tinha vindo juntar-se ao seu amo, achando que o prisioneiro levava tempo demasiado a recobrar a sua lucidez, aplicou-lhe uma série de bofetadas; este remédio foi sem dúvida mais eficaz de que os precedentes, porque Joaquim abriu os olhos e olhou espantado à sua volta.
- O que é que se passou? gemeu ele, esfregando a nuca dorida.
- Tranquiliza-te. Estás entre conhecidos, escarneceu Coelho. Por Santiago juro que não esperavas tornar a ver-nos tão cedo.
O prisioneiro olhava pasmado para os que o redeavam mais de perto. Evidentemente que reconhecia todos, contudo julgava-se ludíbrio de um pesadelo.
- Não é possível! Estou a sonhar! balbuciou, passando as mãos pelos olhos como que para afastar a espantosa visão que se lhe deparava.
- Enganas-te, não estás a sonhar, interrompeu bruscamente Bignache. Estás bem acordado. Chegou o momento de ajustar as contas.
- De ajustar contas? .
Decididamente Joaquim a custo voltava à realidade. Estava em Malaca e acabava de sair do palácio do rajáh com os seus dois acólitos, quando reparou que se tinha
esquecido dos cruzados que Rui da Mota lhe tinha confiado para os malaios do barco. Em vão tentara lembrar-se do que se seguira. Parecia ter-se cavado um abismo
na sua memória.
- É inútil procurar lembrar-te, disse Bignache.
Foi, graças a mim e a Nadir que pudeste felizmente tornar a ver os teus antigos companheiros do São Jorge. Pensei que gostarias de te encontrar em nossa presença!
Deves ter tanta coisa para nos contar e particularmente ao sr. conde!
O rosto do miserável contraira-se. Compreendia agora a terrível situação em que se encontrava. O olhar dos dois gascões e dos seus companheiros fixavam-se sobre
ele implacáveis.
- Verdadeiramente, não sei o que quere dizer !
- Escusas de disfarçar. Sabes onde se encontra a capitã?
Bignache, inexorável, inclinava-se sobre o seu prisioneiro, que se sentia cada vez mais aflito. O seu medo recrudesceu quando Coelho se aproximou por sua vez, apontando-lhe
um dedo acusador:
- Ajudaste D. Rui a raptar a capitã. Eu bem sei, porque te vi!
E o homemzinho expôs mais uma vez em que circunstâncias tinha conseguido surpreender as sinistras intenções do ex-lugar-tenente e dos seus três cúmplices.
- Fizemos o juramento de encontrar a "Amazona dos Mares", interrompeu João dAmblayves. Oferecendo tão condescendente auxílio a Rui da Mota, arriscaste-te a um terrível
castigo.
- Que importa! Vocês nada saberão!
Joaquim, saindo da surpresa que lhe tinha provocado a vista dos seus antigos companheiros, tentava por reagir. Um sorriso mau contraía-lhe os lábios. Lia no olhar
de todos a angústia que sentiam pelo desaparecimento de Leonor.
- Vamos, insistiu Bignache. É inútil tentares resistir. Diz-nos onde Rui conduziu a capitã.
O interpelado sacudiu negativamente a cabeça:
- Não sei.
- Mentes! Bem o sabes. É preciso que nos digas.
- Não o direi!
- É o que vamos ver!
Durante alguns instantes, Savínio e o seu prisioneiro desafiaram-se com o olhar; depois, o gascão estendeu os braços; segurando o português pelo cabeção, sacudiu-o
violentamente.
- Pela última vez, decides-te ou não a falar? Nem uma palavra. Então Bignache voltou-se para Nadir que esperava imóvel ao pé dele:
- Aproxima-te, Nadir. Deves conhecer alguns argumentos bastante convincentes para obrigar este maroto a ser mais falador.
O pescador aproximara-se sem pronunciar uma palavra; desatou uma corda que estava atada à volta da sua cintura, depois, designando o prisioneiro aos seus vizinhos,
fez-lhes sinal para o segurarem.
Joaquim parecia indiferente a estes preparativos; continuava olhando insolentemente João e os companheiros; no entanto o sorriso que se desenhava na sua fisionomia
de-pressa se desvaneceu, quando Nadir lhe atou a corda à volta da cabeça.
- Onde está a capitã?
Como esta nova pregunta de Bignache tampouco obtivesse resposta, o pescador deu um brusco puxão à corda. As feições do miserável contrairam-se atrozmente. Escapou-lhe
um gemido. Parecia-lhe que lhe esmagavam a cabeça num torno;
mas ainda teve coragem para não proferir uma só palavra.
Então, Nadir prosseguiu na sua tarefa de carrasco, emquanto os marinheiros da caravela azul olhavam ansiosamente para o prisioneiro; introduziu um pedaço de madeira
entre a corda e a fronte do paciente, depois empregando todas as suas forças, torceu a corda. O suor caía em grossas gotas ao longo das frontes maguadas de Joaquim,
cujo rosto crispado exprimia um indizível terror. Ainda durante alguns instantes o miserável pareceu querer resistir, mas a horrível dor de-pressa dominou a sua
vontade. Um uivo que nada tinha de humano, saiu-lhe dos lábios.
- Então falarás desta vez? insistiu Bignache. com um sinal de cabeça, Joaquim fez compreender que se submetia. H
Nunca João sentira uma tão febril impaciência. O coração confrangido, preguntava a si mesmo que notícias lhe daria o patife. Leonor ainda estaria viva? A que destino
infame a teria condenado o seu raptor?
Contudo, João teve que esperar ainda alguns instantes para saber a verdade; os tratos que Nadír infligira a Joaquim tinham completamente abatido o miserável. Imobilizava-se
agora, ofegante, deitando à sua volta olhares de animal enjaulado. As veias da testa pareciam rebentar, e nas fontes tinha um risco ensanguentado feito pelas cordas.
- Falarás agora? Senão, recomeçaremos!
Esta ameaça de Bignache, pareceu vencer definitivamente a hesitação do português. Fez de novo um sinal de submissão; então João, ajoelhou-se junto dele, apertando-lhe
com força um braço:
- Onde está a capitã? insistiu.
- No palácio de Mahmoud! respondeu Joaquim num sopro.
- E Rui da Mota?
- Junto dela.
João não pôde reprimir um gesto de inquietação, mas sem dúvida o prisioneiro adivinhou o seu pensamento, porque disse com uma voz muito fraca:
- Tranquiliza-te. A capitã está indemne. O sr. D. Rui não tocou num só dos seus cabelos!
O rosto do gascão iluminou-se. Esta declaração do miserável, tirava-lhe um grande peso e vinha afastar todas as hipóteses inquietantes que formulara desde o desaparecimento
daquela que amava. Mas João de-pressa continuou o seu interrogatório.
- E Mahmoud? preguntou.
- Mahmoud nada tem que ver com a capitã. Prometeu ao sr. D. Rui que a guardaria no seu palácio. E é tudo!
Joaquim imobilizou-se durante alguns instantes, aniquilado pelo esforço que acabava de dispender; depois, interrompendo-se várias vezes, respondeu a todas as preguntas
que lhe fez João dAmblayves; foi assim que o rapaz soube exactamente em que parte do palácio se encontrava a sua noiva; soube igualmente que papel odioso tinha representado
Rui desde a chegada a Malaca. Forneceu ainda algumas indicações das mais preciosas com respeito às forças de que dispunha Mahmoud; forças importantes evidentemente,
mas a esperança da vitória das caravelas de Afonso de Albuquerque parecia manter-se sempre.
Por fim o prisioneiro interrompeu-se, já sem forças, e João ordenou que o conduzissem para o porão, onde foi posto a ferros; alguns queriam que o enforcassem na verga maior, mas o gascão fácilmente
fez compreender a Coelho e aos marinheiros que reclamavam em grandes gritos um implacável castigo, que o testemunho de Joaquim podia ser precioso para o futuro e
que convinha, pelo menos por agora, conceder-lhe vida.
Pouco a pouco o convés do São Jorge foi-se despovoando, somente ali ficando João dAmblayves debruçado à popa; o gascão olhava ansiosamente para Malaca a Voluptuosa,
e particularmente para o palácio de Mahmoud, cuja fachada branca podia distinguir à claridade pálida da lua. A opressão que o constrangia há tanto tempo tinha-se
dissipado inteiramente. Leonor vivia. Rui da Mota não lhe tinha tocado até aqui; contudo, o gentil-homem sentia-se invadido por uma terrível impaciência. Desejava
agora ardentemente tomar parte no ataque e precipitar-se através da cidade para libertar aquela que amava e cujo olhar, emquanto ele pensava assim, talvez se demorasse
nas silhuetas das caravelas de Albuquerque. A pouca distância, a Flor do Mar balouçava-se docemente sobre as águas e uma briza leve fazia ondular a sua bandeira.
O olhar do gascão iluminou-se por mais fortalecidas que parecessem as posições que defendiam Malaca e por maiores que se afirmassem as precauções tomadas por Mahmoud
para repelir o ataque da frota, João sentia-se mais certo de que nunca da vitória, esperando impacientemente a hora que lhe permitiria precipitar-se de espada na
mão em socorro da sua querida noiva.
CAPITULO XVII
Albuquerque ataca
Durante toda a manhã e toda a tarde um impressionante silêncio pairou sobre a frota portuguesa! As caravelas continuavam no mesmo lugar, com os canhões voltados
para as fortalezas omde não cessara de reinar uma animação febril. Mamoud, mais que nunca decidido a impedir o acesso de Malaca a Afonso de Albuquerque, tinha seguido
os conselhos de Rui. Numerosos destacamentos entrincheiravam-se; os torreões da ponte sòlidamente fortificada que defendia a entrada no porto pareciam particularmente
vigiados; mais de três mil índios e malaios estavam ali de sentinela para evitar qualquer tentativa da parte dos assaltantes.
A-pesar-do calor sufocante que fazia desde as primeiras horas da manhã, os defensores de Malaca multiplicavam-se; contudo, os habitantes ficavam receosamente em
casa e já não se via pelas ruas aquela afluência considerável de mercadores e de curiosos que se cruzavam perante as tendas de todas as espécies; os saltimbancos
chamavam em vão os habituais espectadores. Um verdadeiro temor
tinha-se apoderado do bairro vizinho do porto; apenas se ouvia, com breves intervalos, o martelar dos passos dos soldados que desfilavam de lanças ou arcabuzes ao
ombro, dirigindo-se aos postos que lhes haviam sido confiados para a defesa da cidade.
À volta do palácio de Mahmoud era grande a agitação e havia um constante vai-e-vem dos oficiais e dignatários. Nos estábulos dos elefantes, os domadores e criados
apressavam-se a aparelhar os paquidermes, que em número de sessenta iam tomar parte no combate. O rajáh estava realmente decidido a destruir os portugueses com um
poderoso exército, se chegassem a introduzir-se na cidade. Por duas vezes, ele tinha vindo inspeccionar os imponentes animais, em companhia de Rui e de alguns dos
seus oficiais.
Os elefantes esperavam, com a cabeça e as orelhas pintadas, cuidadosamente cobertos com arreios de guerra; emquanto escravos se ocupavam em dourar as suas formidáveis
defesas, outros ligavam solidamente às suas trombas gadanhas e alfanges; nos palanquins os archeiros, que deviam montar essas fortalezas humanas, ajeitavam os escudos
e preparavam as flechas que deveriam lançar no assalto contra o inimigo.
- Podemos estar tranquilos, não cessava de repetir Mahmoud a Rui, eles serão implacàvelmente derrotados.
E o rajáh contava complacentemente ao novo aliado as manhas que lhe tinham permitido vencer em várias guerras; mas o traidor parecia bastante céptico. Conhecia de
longa data a valentia e audácia dos soldados de Afonso de Albuquerque. Contudo esperava que a resistência encarniçada dos defensores
de Malaca, dez vezes mais numerosos, impediria aos assaltantes o acesso da cidade.
A bordo da Flor do Mar, o capitão-general tomava, por sua vez, as últimas disposições; os artilheiros preparavam activamente os canhões e morteiros, os soldados
lustravam os capacetes, os escudos e as couraças. Os conquistadores sentiam-se decididos a tomar de assalto esta cidade maravilhosa que se oferecia aos seus olhos
extasiados. Esperavam com impaciência o cair da tarde, receando que Mahmoud se resolvesse a transigir, tornando assim impossível o saque à cidade.
Mas o rajáh obstinava-se na sua decisão de resistir até ao fim; da ponte e do convés das caravelas, os portugueses podiam ver os guerreiros de Malaca agrupados nas
muralhas; numerosas, as bandeiras de Mahmoud agitavam-se ao vento. No porto os pescadores preparavam activamente os morteiros que deviam ser lançados contra os barcos
portugueses, quando estes tentassem abordar.
Por fim, a noite caiu sem que Mahmoud desse sinal de vida. A bordo da Flor do Mar Afonso de Albuquerque continuava dando ordens aos seus oficiais.
- Amanhã, às primeiras horas do dia, atacaremos, declarou o capitão-general. E o dia de Santiago, santo patrono dos exércitos de Portugal. Conceder-nos-á com certeza
a vitória!
E emquanto os oficiais se inclinavam, impacientes por começar o combate, o conquistador expunha o seu plano. Antes do raiar da aurora, os bateis carregados de soldados
alcançariam a margem e acampariam na proximidade das muralhas, apoiados pela artilharia dos navios que protegeria o movimento dos assaltantes.
com voz calma, Albuquerque indicava aos seus subordinados o que lhes cumpria fazer, sem esquecer o mais supérfluo detalhe; o plano da defesa de Malaca, estendido
a seus olhos, indicava-lhe a táctica a empregar. O ponto mais temível da defesa era certamente constituído pela ponte fortificada. Se esta caísse em seu poder, teriam
a cidade nas mãos; contudo, Albuquerque compreendia que um assalto a este lugar no primeiro dia de ataque, tinha poucas possibilidades de êxito. Os índios causariam
aos assaltantes sérias perdas; mais valia dar mais envergadura à acção e dispersar assim os esforços dos guerreiros de Mahmoud. Uns após outros os oficiais das caravelas
voltavam aos seus postos depois de terem recebido ordens. João dAmblayves devia atacar em companhia do valoroso capitão Fernão Peres de Andrade, que se tinha coberto
de glória no decurso de recentes campanhas de Afonso de Albuquerque. Desde que o gascão assumira o comando da caravela Azul, os dois homens começaram a estimar-se;
por isso o noivo de Leonor felicitava-se pela escolha do grande chefe.
imagine-se com que ardor, João, que voltara ao São Jorge após o conselho de guerra, esperou o fim da noite. No convés os marinheiros e soldados que deviam tomar
parte no desembarque, também manifestavam viva impaciência. Os olhos brilhavam-lhes; continuavam a aprontar as armas, dando frequentes olhadelas em direcção de Malaca,
a Voluptuosa, presa tão ardentemente desejada. Sabiam que a cidade de Mahmoud encerrava inúmeras riquezas; por isso, desprezando o perigo, todos estes apaixonados
de aventuras fantasiavam os belos tesoiros que poderiam conquistar.
O gascão demorava sobretudo o olhar na direcção
do palácio do rajáh. Sabia que era ali que se encontrava prisioneira aquela que ardentemente desejava libertar. Toda esta parte da cidade estava defendida por numerosas
trincheiras; os obstáculos iam certamente acumular-se perante os assaltantes; porém, nada poderia fazê-los recuar; uma irresistível vontade de vencer animava-o,
exaltava-o.
Queria encontrar a capitã, livrá-la da sorte infame
que lhe reservava o traidor e tirar do miserável
uma desforra feroz.
Uma voz conhecida veio arrancar o gentil-homem às suas absorventes reflexões:
- Encontrá-la-emos, sr. conde!
- Sim, encontrá-la-emos e libertá-la-emos, disso estou agora mais convencido do que nunca, meu bravo Bignache, respondeu João ao seu fiel criado que o observava
havia um momento, e que se decidira emfim a abordá-lo.
- Bem sabeis que quero combater junto de vós, para vos ajudar a libertá-la!
- Virás comigo, podes estar certo disso!
E como o excelente Savínio balbuciasse algumas palavras ininteligíveis, João estendeu os braços, apertou-o ao peito e trocou com este companheiro de horas boas e
más, um longo abraço.
- Sempre juntos, na vida e na morte! Sombras silenciosas passavam perto deles; eram
os homens da caravela que não tinham esquecido o solene juramento de encontrar e libertar a "Amazona dos Mares", a todo o custo. Todos eles estavam dispostos a sacrificar-lhe
a vida; por isso seguiam decididamente o gascão.
Os primeiros clarões ainda pálidos da aurora, despontaram emfim no horizonte. Ouviram-se algumas ordens; depois, no meio do maior silêncio, a bordo das caravelas
de Albuquerque os soldados Deslizaram pelos cabos que pendiam para os batéis; umas após outras as embarcações encheram-se; os remadores curvando-se sobre os remos,
dirigiram-se para terra.
Os primeiros batéis poderiam abordar sem ser inquietados, mas de-pressa retiniram gritos de alarme vindos das muralhas e dos destacamentos que defendiam Malaca.
As sentinelas índias e malaias tinham distinguido vultos suspeitos, os numerosos soldados que estavam no porto corriam aos seus postos. Sucediam-se as detonações.
A resposta não se fez esperar: choviam setas sobre os portugueses, abatendo alguns homens, mas os assaltantes pareciam não se intimidar e continuavam avançando e
seguindo à letra as indicações dos oficiais.
De-pressa, com desmedido arrojo, os soldados de Albuquerque alcançaram as primeiras posições dos defensores de Malaca. Tiros de arcabuz acolheram-nos, mas não diminuiram
o seu entusiasmo; com admirável ardor, avançavam contra as trincheiras que os adversários tinhan rodeado de morteiros.
Então, os primeiros raios de sol que apareciam no horizonte vieram iluminar um trágico espectáculo. A onda dos assaltantes erguia-se e vinha bater contra as muralhas.
Os gritos de: "Santiago!" enchiam o ar. A bordo das caravelas, os artilheiros protegiam o movimento dos assaltantes; a todo
o momento enormes projécteis vinham abrir brechas nas muralhas e provocar pânico entre os índios.
João fora dos primeiros a combater, assim como Andrade; espadas nas mãos, os dois corajosos companheiros avançavam contra o inimigo; soldados, munidos de escadas,
encostavam-nas às muralhas dando começo ao assalto. Breve se desenrolaram cenas de inacreditável selvageria, as lâminas chocavam violentamente contra os elmos e
os broqueis. uma chuva de dardos, partindo de todos os lados, ? atingiram indistintamente assaltantes e defensores. ? Por vezes as escadas, repelidas, despenhavam-se
arrastando para os fossos cachos humanos; porém, estes insucessos não desanimavam os portugueses, que retomavam o ataque com uma tenacidade sempre crescente. Algumas
dezenas de entre eles, tinham já conseguido introduzir-se nas trincheiras e avançavam pé ante pé, não obstante a encarniçada resistência que lhes era feita.
Fernão Peres de Andrade e João dAmblayves, eram admiráveis em bravura e desprezo pela morte. Agindo com um ardor infatigável, levavam atrás de si os soldados electrizados
pelo seu exemplo. Os olhos do gascão brilharam; sentia-se animado duma energia sobrehumana. Não era Leonor que constituía o prémio da sua vitória, Leonor que esperava,
ansiosa na sua prisão, que o combate terminasse, e que rezava com devoção para que vencessem os seus compatriotas?
No meio de nuvens de poeira, cada vez mais densas, os assaltantes batiam-se violentamente. Durante alguns minutos os índios de Mahmoud tentaram opor-lhes uma inacessível
barreira. Mas não tinham contado com a tenacidade dos seus heróicos adversários; se bem que fossem infinitamente menos numerosos, os portugueses venciam pouco a
pouco todas as resistências. Montões de corpos ensanguentados jaziam pelo solo; furiosas lutas corpo a corpo continuavam, emquanto os oficiais, obedecendo ao plano
do capitão-general, atacavam
a parte das muralhas mais afastadas da cidadela, a mesma em que Mahmoud tinha posto o menor número de soldados.
A batalha desenrolou-se ali. Em menos duma hora as muralhas foram transpostas depois duma luta furiosa. O rosto sujo de poeira, de suor e de sangue, João dAmblayves
continuava avançando, combatendo como um leão, fazendo redemoinhar a temível espada; em vão um verdadeiro colosso, oficial da guarda do rajáh, buscara impedir-lhe
o caminho. Resolutamente, o gascão e o índio lançaram-se um contra o outro. Durante um momento o duelo prosseguiu angustiante, brutal. O índio multiplicava-se em
esforços desesperados para triunfar do seu antagonista, mas este furtava-se habilmente a todos os seus ataques. Visivelmente cansado e ennervado, o colosso, esquecendo
toda a prudência, descobriu-se. João estendeu o braço com a rapidez dum relâmpago. O corpo trespassado de lado a lado, o colosso tombou, ferido de morte.
Esta proeza do gascão devia trazer resultados duma importância capita. Os guerreiros de Mahmoud, que até aqui se tinham conservado nos seus postos e que se esforçavam
corajosamente por impedir a entrada do inimigo, recuavam precipitadamente. Um vento de derrota soprou sobre as tropas agitadas dos defensores de Malaca, que viam
pairar sobre eles o espectro da desgraça.
Mahmoud, que esperava ansiosamente no interior do seu palácio os resultados da acção, de-pressa soube que os portugueses levavam a vantagem. Se o rajáh não enviasse
imediatamente numerosos reforços, a maior parte da cidade cairia em seu poder.
Durante alguns instantes Mahmoud discutiu com Rui. Este receava que os portugueses se apoderassem da zona mais forte da cidade, isto é, da zona do palácio e dos
baluartes, desde que estas fossem privadas dos necessários defensores; portanto, a necessidade de-pressa forçou os dois aliados a mandar algumas centenas de archeiros
para os pontos ameaçados.
Andrade, dAmblayves e os seus valentes companheiros, souberam aproveitar-se da desordem manifestada pelos seus adversários desmoralizados. Emquanto alguns grupos
de índios resistiam ainda e se deixavam massacrar, eles consolidavam as posições conquistadas e novos reforços lhes chegavam de bordo das caravelas. Albuquerque,
que seguia a acção de bordo da Flor do Mar, pôde verificar o sucesso deste primeiro assalto; por isso resolveu avançar mais.
Após breve pausa, os combatentes defrontaram-se de novo com raiva. Nas muralhas desmoronadas, os archeiros enviados por Mahmoud manobravam, vindo atingir com flechas
os assaltantes, causando-lhes grandes perdas; felizmente, graças às precauções tomadas, conseguiram recuperar todo o terreno perdido e repelir energicamente os seus
adversários. Os seus arcabuzes abateram um bom número de índios em menos duma hora; a despeito do calor, que se tornava cada vez mais sufocante" aguentaram valentemente
o choque e obrigaram os reforços, vencidos e amedrontados, a recuar precipitadamente em direcção ao rio.
Entusiásticos gritos de vitória se fizeram então ouvir. A cidade encontrava-se agora à mercê dos assaltantes; descendo das muralhas, que em tão
grande luta tinham conquistado, os portugueses precipitaram-se através das ruas.
João avançava correndo. Parecia que a vista do palácio, que se destacava a pouca distância, o fascinava. Uma flecha veio ferir-lhe um ombro; porém, ele não a sentiu;
manejando a sua espada com braço firme, avançava sempre, levando atrás de si um grupo, de homens da caravela azul e Bignache, que se tinha especialmente distinguido
desde o princípio da acção.
O excelente Savínio não era precisamente um herói guerreiro; outrora a prudência vencia nele a audácia; contudo, desde a desaparição da "Amazona dos Mares", parecia
ter-se tornado outro homem; sem dúvida que o amor próprio e a vontade de se prestigiar aos olhos da sua amada Isabel, não eram estranhos a esta transformação. Quem
teria reconhecido neste homem hirsuto, de rosto feroz, com o fato rasgado e sujo de sangue, cuja mão nervosa brandia infatigavelmente uma espada, o plácido criado
doutros tempos?
Os habitantes, aterrorizados pelos gritos e pelo ruído do combate, tinham-se escondido nas suas casas; por isso, quando os primeiros portugueses se aventuraram através
da cidade, foi em vão que tentaram arrombar as portas solidamente barricadas. Tiveram que renunciar aos seus projectos: as ordens dos oficiais eram formais. O saque
ficava momentaneamente proibido. Os assaltantes não deviam dispersar os seus esforços, poupando-se para o combate que teria que se dar na parte da cidade melhor
defendida e que não se alcançaria sem um grande cerco: o bairro do palácio e da ponte.
Quanto mais aumentava o ataque, mais os receios de Mahmoud, de Rui da Mota e dos principais
chefes indígenas redobravam. Feridos e fugitivos chegavam ao palácio em estado lamentável. Jamais teriam podido supor que um tão pequeno número de inimigos estivesse
tão solidamente organizado. Os baluartes, que eles julgavam inconquistáveis tinham sido tomados em pouco tempo.
A raiva cada vez maior que se apoderava do rajáh, era só comparável ao terror que sentia o seu miserável aliado.
Durante algum tempo, o ex-lugar-tenente da caravela azul conservara a convicção de que as muralhas de Malaca, a Voluptuosa, interpunham, entre ele e aqueles que
tinham jurado tirar dele terrível desforra, uma invencível barreira. Contudo, o ímpeto dos assaltantes destruiu as suas esperanças. Em vão se esforçava por animar
a energia dos chefes. A sua causa parecia comprometida irremediavelmente.
No entanto, se Rui prodigalizava sem cessar conselhos e incitamentos aos seus aliados, não tinha sequer pensado em enfrentar ele próprio os seus antigos companheiros
e precipitar-se no combate. A coragem fugira-lhe. Já por duas vezes os dignatários índios o tinham censurado por representar apenas um papel passivo, ao que ele
se apressara a responder que as suas funções de conselheiro o retinham junto do soberano.
- Tranquilizai-vos, não cessava de repetir. Se os portugueses conseguiram penetrar na cidade, não conseguirão jamais chegar até ao palácio!
Porém, Mahmoud parecia não partilhar do optimismo do traidor. Preocupado, via os incêndios propagarem-se dumas casas às outras. Espessas colunas de fumo elevavam-se para o céu; nas ruas da cidade, um terrível pânico tinha-se apoderado
duma parte da população. Todos aqueles que viviam a pouca distância do palácio, fugiam apressadamente, procurando refugiar-se nos vastos jardins do rajáh. Os guardas
dificilmente continham este mar de gente que irrompia sem cessar. Um cheiro acre a pólvora e a sangue empestava a atmosfera.
Então Mahmoud não se conteve; voltando-se para os oficiais que esperavam consternados junto dele, declarou:
-O lugar dum chefe não é aqui! O meu dever é pôr-me à cabeça dos nossos valentes defensores, reanimar a sua energia desfalecida e dar-lhes o exemplo de coragem.
De-pressa! Que preparem os elefantes!
Em vão Rui da Mota se esforçou por que o seu aliado abandonasse tal decisão:
- Reflecte! É uma loucura. Porque não se há-de ficar no palácio? Jamais os teus inimigos poderão transpor as suas portas!
- Os meus elefantes são invencíveis! respondeu arrogantemente Mahmoud. Os portugueses serão esmagados como vulgares insectos!
Depois, voltando-se para os outros dignatários, que esperavam ainda indecisos:
- Segui o vosso chefe e mostrai a esses malditos que sabeis vencer ou morrer!
Cinco minutos depois, o rajáh chegava aos enormes recintos onde se encontravam fechados os elefantes de guerra. Os sessenta paquidermes esperavam, alinhados imponentemente,
cobertos de xairéis multicores franjados de oiro. Os palanquins estavam guarnecidos de archeiros.
Durante momentos, Mahmoud olhou o grupo
com orgulho; depois, voltando-se para Rui que o tinha seguido:
- Destruirão todos quantos se atravessarem no seu caminho, declarou com altivez.
O traidor concordou com um sinal de cabeça; também ele acreditava no sucesso que provocaria a intervenção destas forças irresistíveis na batalha, contudo os sobrolhos
franziram-se-lhe ligeiramente quando ouviu a voz do intérprete, que o seguia como uma sombra, declarar-lhe da parte do seu soberano:
- Tu vais montar no meu elefante.
Muito contrariado, o ex-lugar-tenente de Leonor teve que resignar-se a aceitar a oferta do soberano. Alguns escravos aparelhavam um magnífico elefante branco, que
ultrapassava pela sua altura e dimensões todos os outros animais e encostavam uma escada pequena contra o corpo do animal ajoelhado.
Em pouco tempo Mahmoud, que se revestira da sua armadura de guerra e do seu elmo, disse a Rui que se instalasse logo atrás dele; depois, voltando-se para a fila
de escravos que esperavam no maior silêncio, agitou o braço direito por várias vezes.
Os guias desprenderam os animais das argolas que os prendiam. Depois, precedidos do enorme elefante branco que transportava o rajáh e Rui, os gigantes afastaram-se
a passos pesados para Malaca, onde as tropas de Albuquerque continuavam vitoriosamente a conquistar terreno, afugentando e destroçando os bandos desmoralizados dos
seus adversários.
CAPÍTULO XVIII
Em plena batalha
Rui fortemente balançado no seu palanquim, podia agora entrever os numerosos fugitivos, que se dirigiam apressadamente para o palácio. No rosto destes desgraçados,
mulheres, crianças, velhos, novos, lia-se uma angústia atroz; mas a multidão afastou-se silenciosa, quando o imponente cortejo apareceu. À vista de Mahmoud, alguns
ajoelharam, tocando a terra com o rosto. As fisionomias iluminavam-se. O desfile de elefantes de guerra faziam esperar vitória e a destruição definitiva desses estranjeiros,
que haviam ousado afrontar o soberano.
Agora, o traidor podia ver próximo da praça grande grupos de índios que recuavam precipitadamente; bárbaros gritos de guerra faziam-se ouvir, e Rui não pôde conter-se
e apertou raivosamente os punhos; distinguia, por entre as nuvens de fumo e de poeira, algumas figuras de portugueses que avançavam correndo, fazendo recuar à sua
frente os adversários aterrorizados. O miserável não se demorou por mais tempo na contemplação do trágico
cenário que surgia a seus olhos. Mahmoud acabava de se levantar no seu palanquim, e voltando-se para os guerreiros que o seguiam, agitava o sabre recurvado por cima
da sua cabeça.
Imediatamente se ouviu um clamor ensurdecedor. Os índios que conduziam os elefantes seguraram-nos pelos enormes dentes; abandonando a placidez que tinham mostrado
até aqui, os paquidermes investiram para a praça, soltando rugidos terrÍveis.
O solo tremia sob os passos dos gigantescos animais. Parecia verdadeiramente que queriam arrasar tudo à sua passagem. Os primeiros soldados portugueses, que se arriscaram
a avançar, recuaram precipitadamente e apressaram-se a alcançar, correndo, as ruelas estreitas que tinham abandonado.
Rui soltou um grito de vitória. Pensava agora que todos fugiriam perante o ataque dos animais guerreiros. O elefante que o transportava, conseguia apanhar com a
tromba um dos portugueses fugitivos; com uma força invencível, o animal lançou ao ar o desgraçado, que veio cair como um fantoche, indo espetar-se num dos seus formidáveis dentes.
Num ápice, a praça foi varrida, apenas restando alguns corpos estendidos e grande número de feridos, que gritavam e imploravam misericórdia; porém, o temível grupo
passou, esmagando todos. Dos palanquins os archeiros faziam chover setas sobre os adversários, aturdidos por tão brusca intervenção.
Mas eis que Rui da Mota ouviu uma voz enérgica dominar aquela desordem ensurdecedora. O seu rosto contraiu-se; não pôde conter uma exclamação de despeito ao reconhecer
a pouca distância uma figura há muito sua conhecida: a de João dAmblayves.
Durante alguns instantes, o traidor ficou petrificado, pensando ser joguete duma alucinação. O gascão tinha sido morto, os seus três cúmplices tinham-se desembaraçado
dele para sempre, tinham-no abatido junto ao lago dos nenúfares, ao mesmo tempo que se tinham apoderado da capitã. Mas Rui teve que se convencer de que não sonhava.
Tratava-se de facto do seu implacável inimigo, daquele que conseguira suplantá-lo e fazer-se amar pela "Amazona dos Mares".
O miserável não pôde seguir mais tempo João dAmblayves. Teve de agarrar-se com todas as forças ao rebordo do palanque para não ser precipitado do seu refúgio. Após
terem varrido a praça, os elefantes arremessavam-se uns contra os outros, furiosos, depois investiram em louca correria pelas ruas vizinhas.
Os gritos de triunfo que soltavam os índios de Mahmoud cessaram. Os portugueses, retomando alento, invadiam o interior das casas evacuadas pelos seus habitantes,
ou abrigados, nas esquinas, crivavam de tiros os seus adversários.
Andrade e dAmblayves continuavam sempre à cabeça dos assaltantes; logo que o primeiro movimento de pânico se esboçara à vista da impressionante caravana dos elefantes,
tinham-se esforçado Por animar e reunir os portugueses; agora os soldados podiam constatar que uma certa hesitação se Produzia no ataque dos elefantes; as ruas,
demasiado estreitas, não lhes permitiam conservar as posições tomadas de princípio; alguns dos animais, agitaram-se, voltando-se sobre si mesmos, não obstante os
gritos e esforços desesperados dos domadores e
archeiros indianos. Crivados de tiros de arcabuz estes caíam, dos palanques, outros deixavam-se escorregar para o chão, tentando fugir; porém, os portugueses faziam-lhes
guerra implacável e bárbarOS combates corpo a corpo travavam-se agora. Em breve, o entusiasmo guerreiro que manifestavam a princípio Mahmoud e os seus companheiros,
se transformou em atroz angústia; os elefantes que andavam ao acaso, achavam-se fechados em ruelas ou becos sem saída. Os terríveis animais, furiosos, arrasavam
tudo à sua volta, tornando-se ainda mais perigosos para quem os montavam do que para os portugueses; alguns enrolavam mesmo os seus domadores nas trombas, atirando-os
barbaramente contra o solo.
Agitando os braços, o rajáh animava os seus guerreiros; teve, contudo, que interromper-se para defender-se a si próprio. O elefante branco, isolado dos seus congéneres,
precipitou-se ao longo das ruas. Os portugueses afastaram-se prudentemente à sua passagem indo depois perfilar-se junto a Fernão Peres de Andrade, que se tinha armado
com uma lança conquistada durante o assalto. No meio daquela confusão cada vez maior, conseguiu deslizar até ao elefante e bruscamente enterrou-lhe a sua arma no
ventre.
O animal soltou um urro atroador; pouco faltou para que o português fosse esmagado sob o seu peso monstruoso; porém, Andrade deu agilmente um salto para trás, sem
dar importância a uma flecha que um malaio lhe enviava e que vinha atravessar-lhe uma manga. Refugiou-se momentaneamente no interior duma casa vizinha, onde se encontravam
já alguns dos seus homens.
Então na rua, que se enchia de clamores e de
gritos de morte, desenrolou-se o drama. Incapaz de suster por mais tempo o equilíbrio, Mahmoud caiu do palanquim. Rui multiplicava-se em esforços desesperados para
se agarrar ao frágil refúgio, mas o elefante branco caiu ensanguentado no solo, atirando ao mesmo tempo Rui para o chão.
A queda do enorme animal provocou entre os portugueses um movimento de profundo assombro. Louco de dor, o animal conseguira agarrar um soldado com a tromba, esmigalhando-lhe
o crânio contra a parede próxima. Os camaradas do infeliz fugiram espavoridos.
O rajáh e Rui aproveitaram a confusão provocada pelo paquiderme agonizante. Emquanto Andrade e dAmblayves esperavam prudentemente no seu refúgio, os dois aliados
apressaram-se a bater em retirada, correndo a toda a pressa.
- Maldição. Os tratantes fugiram-nos.
O gascão chegava neste momento ao terraço da casa onde se tinha refugiado. Facilmente reconhecera Rui da Mota; por isso, sem pensar no enorme perigo que corria,
deixou-se escorregar pela parede e meteu-se pelas ruas atravancadas de cadáveres, seguido de Bignache que agitava desesperadamente as mãos e suplicava-lhe que esperasse
um pouco.
Porém, João continuava surdo aos apelos do seu fiel criado. Tinha jurado tirar implacável vingança do raptor de Leonor. A cabeça descoberta, a espada na mão, começava
a atravessar a praça onde alguns elefantes ainda se debatiam.
Setas agudas passaram assobiando perto do gascão. Nada o detinha. Continuava a avançar correndo.
Mahmoud e Rui fugiam, cèleremente. O traidor percebera que João se lançava em sua perseguição; o medo multiplicava-lhe as forças. Fugia em direcção do palácio; quanto
a Mahmoud, as provas de energia que dera há pouco, transformavam-se agora em desânimo, depois da lamentável derrota dos seus elefantes. Quási metade dos soberbos
animais estavam perdidos; os outros corriam desordenadamente e os domadores dificilmente os sustinham. O grupo dos animais destruídos e dizimados, o rajáh apenas
conservava uma esperança: a de resistir firmemente ao ataque dos assaltantes, abrigado na cidadela fortificada.
Era, portanto, preciso alcançar esta linha de defesa; tudo à volta era uma enorme confusão entre os grupos de guerreiros; na sua precipitação Mahmoud, tinha perdido
o sabre; fugia, protegido apenas pela armadura, precedido de Rui, cujo pavor era cada vez maior.
João continuava a correr, de espada na mão. Esperava poder apanhar Rui da Mota e obrigá-lo a combater, quando uma dezena de oficiais de Mahmoud, vendo o grave perigo
que ameaçava o seu chefe e pensando que o gascão queria aprisionar o rajáh, intervieram e precipitaram-se contra o jovem
guerreiro.
- Atenção, sr. conde! gritou Bignache que se apercebera do novo perigo que corria o seu patrão.
João teve de interromper a perseguição. A sorte abandonava-o, o miserável escapava-se-lhe. O rosto contraído pela raiva, o rapaz resignou-se a fazer frente aos novos
agressores que se dispunham a rodeá-lo e vencê-lo pelo seu número. Felizmente
a intervenção de Andrade veio tirá-lo deste embaraço. O valente português, seguido por quatro dos seus companheiros, enfrentou o grupo de espada na mão; obrigou
assim os oficiais índios a recuar passo a passo, não sem ter perdido antes meia dúzia de homens.
- Santiago! Santiago!
Agora os portugueses reuniam-se e recomeçavam, a avançar para Malaca; a perda dos elefantes parecia ter mergulhado os fieis de Mahmoud na mais profunda consternação.
Os assaltantes apenas encontrariam dora-avante uma medíocre resistência. Corriam, agora, em direcção ao palácio e aos jardins, cuja verdura eles distinguiam já a
pouca distância, dominando os telhados das casas.
Em menos de meia hora, animados pelos primeiros sucessos, os valentes soldados de Albuquerque conquistaram a mesquita. Tudo cedia à sua coragem. Malaca parecia agora
a sua completa mercê, exceptuando a parte do palácio, vizinho do rio, onde os assaltantes deviam ainda encontrar um obstáculo de importância.
No entanto, João dAmblayves e o seu fiel Bignache não tinham procurado meter-se na refrega. Desde que Rui lhe tinha fugido, o gascão não sossegava. Aproveitando
a confusão que reinava e a intervenção dos índios, o traidor tinha podido fugir, e refugiar-se no palácio de Mahmoud.
Este palácio! Quantas vezes o tinha contemplado João de bordo da caravela azul! Era para ali que deviam convergir dora-avante todos os seus esforços; foi por isto
que após ter hesitado alguns momentos, ele se separou de Andrade e com Bignache se aventurou através duma rua deserta.
Impaciente por libertar Leonor, o rapaz acariciava
um audacioso projecto: porque não havia de aproveitar a confusão que reinava, para se introduzir, primeiro nos jardins de Mahmoud e depois arriscar-se até ao palácio?
Talvez conseguisse encontrar a prisioneira e o cobarde que lhe tinha
fugido!
Os dois homens apressaram o passo. A parte da cidade que eles percorriam, parecia estar deserta; somente cães e gatos surgiam por vezes no seu caminho, para de-pressa
fugirem, espavoridos!
- Acautelai-vos, sr. conde! não cessava de repetir Bignache, que teria certamente preferido encontrar-se ainda em plena batalha, e que temia a cada instante cair
numa emboscada.
Contudo, o bravo rapaz pôde certificar-se que não tinha nada a temer. João continuava a avançar em direcção dos jardins cujos terraços distinguia a menos de cem
passos.
com mil precauções, deslizando ao longo dos muros para não serem vistos pelas sentinelas que vigiavam estas paragens, os dois companheiros arriscaram-se, olhando
atentamente à sua volta. O silêncio persistia; somente lhes chegava aos ouvidos o ruído do renhido combate que se travava na direcção da mesquita e da ponte.
- Vai tudo bem. soprou João ao ouvido de Bignache. A atenção dos índios converge para o combate distante; podemos lindamente introduzir-nos no interior dos jardins.
No entanto, os dois homens tiveram que imobilizar-se. Tinham chegado às proximidades do muro maior. Uma exclamação de despeito escapou-lhe dos lábios, quando viram
o vulto dum guerreiro destacar-se ao longo do jardim.
- Maldição! Não poderemos passar! gemeu Savínio.
João levou bruscamente um dedo aos lábios, impondo-lhe silêncio. Durante alguns instantes ficaram ambos quietos, escondidos na esquina da casa mais próxima do jardim,
observando com atenção a sentinela. Esta esperava apoiada à sua lança e os recém-chegados puderam perceber que ela olhava frequentemente para a direita, sem dúvida
para saber o rumo que levava o combate.
Um sorriso furtivo perpassou nos lábios de João dAmblayves; inclinando-se ao ouvido de Bignache, disse-lhe algumas palavras; o seu estratagema devia ter agradado
ao criado, porque o rosto lhe resplandeceu.
As imediações continuavam desertas e João nãohesitou; deixando Bignache ao pé da casa, aventurou-se fora do esconderijo, e, aproveitando o momento em que a sentinela
olhava com insistência para a sua direita, avançou encostado ao muro.
Agora seria preciso que o soldado se debruçasse na balaustrada do terraço para surpreender João; este, evitando provocar o menor ruído, de-pressa se afastou uma
dezena de passos, emquanto Bignache, seguindo à letra as indicações do seu amo, começou a assobiar ligeiramente.
O índio levantou bruscamente a cabeça. Preguntava de facto a si mesmo, não sem surpresa, quem poderia assobiar assim tão perto. Voltandoligeiramente a cabeça, não
desconfiou do estratagema do manhoso gascão, que se esforçava por chamar a sua atenção, emquanto que o seu amo, agarrando-se aos numerosos buracos abertos no muro,
começava uma ascensão difícil.
Durante alguns minutos, Bignache continuou a
assobiar. Em vão a sentinela tentava descobrir o autor do enigmático sinal. O prudente Savínio não se mexia. Por sua vez, João prosseguia silenciosamente na sua
escalada, temendo a todo o momento que a intervenção de um novo intruso viesse inutilizar-lhe a tentativa.
Felizmente João conseguiu alcançar a balaustrada e equilibrar-se; depois, estendendo-se ao comprido, certificou-se que o soldado continuava de costas para ele; então
sem mais esperar, deslizou até ao sítio de onde o índio não tinha conseguido descobrir o misterioso homem do assobio.
Do seu esconderijo, Bignache vira o amo concluir a escalada; agora esforçava-se em vão por o descobrir; porém, os seus olhos brilharam quando distinguiu o vulto
de João surgir imediatamente atrás da sentinela. O índio, que estava inclinado, endireitou-se; porém, antes que ele tivesse podido pôr-se na defensiva, João lançava-se
sobre ele, atravessando-lhe o corpo com a espada. O homem tombou inerte; então, sem perda de tempo, o gascão debruçou-se e fez sinal ao companheiro para se lhe juntar
imediatamente. Bignache, correndo, alcançou o muro, depois escalando-o por sua vez, apressou-se a chegar ao pé do seu amo, que do alto da balaustrada lhe estendia
uma mão.
- De-pressa! Afastemo-nos. Pode chegar gente dum momento para o outro.
Os dois companheiros olharam rapidamente à sua volta. As árvores e maciços de magnólias impediam-lhes a vista do palácio. A pouca distância o barulho do combate,
provava a João e Bignache que os portugueses multiplicavam os esforços para triunfar da pertinaz resistência do inimigo.
- Está calor, lá em baixo! disse Bignache fazendo um sinal significativo com a cabeça.
João não respondeu; segurando o companheiro pela manga, levou-o para um souto próximo. Durante um momento avançaram na sombra, esperando a cada segundo a intervenção
de novos guardas, quando de-repente Bignache parou, e estendendo a mão direita à sua frente, gritou:
- Atenção! Olhai, sr. conde!
João apressou-se a olhar na direcção que lhe designava o seu vizinho. As árvores e os maciços tornavam-se cada vez mais raros e podiam agora distinguir os vastos
jardins, atravancados de gente e de veículos vários.
Dissimulando-se o melhor que puderam, os gascões quedaram-se em observação; de-pressa compreenderam que se tratava de habitantes da cidade. Os infelizes, fugindo
ao ataque português, tinham procurado refúgio no palácio do rajáh. Eram aos milhares, pertencendo a todas as raças da Ásia, agrupados na selva, numa pitoresca desordem.
Um silêncio absoluto pesava sobre esta gente, que de ouvido atento, escutava ansiosamente os ecos do combate, travado furiosamente à volta do palácio e da ponte
fortificada.
- Maldição! gemeu Bignache. Vamos ser surpreendidos.
- Ao contrário, vai tudo o melhor possível!
O bravo rapaz abria os olhos espantados, duvidando se o seu patrão não teria subitamente perdido o juízo; mas João de-pressa o tranquilizou:
- A presença de toda esta multidão permitirá introduzir-nos mais facilmente no palácio e afastar de nós todas as suspeitas que os guardas terão quando descobrirem o corpo do seu camarada!
- Não pensais bem, sr. conde! Não podemos aventurar-nos assim no meio de todos estes marotos! À primeira vista, reconheceriam em nós estranjeiros. Seria meter-nos
na boca do lobo!
- À noite, todos os gatos são pardos, meu bom Bignache!
- Então quereis esperar que caia a noite, sr. conde?
- É de facto a minha intenção.
E emquanto o fiel Savínio abanava a cabeça perplexo, o gentil-homem apressou-se a expor-lhe o seu plano: dissimular-se-iam o melhor possível atrás dos maciços de
palmeiras que ornavam o jardim, até ao cair da tarde, tentando escapar ao olhar investigador dos soldados de Mahmoud; depois, favorecidos pela obscuridade, deslizariam
por entre toda esta gente e aventurar-se-iam a alcançar o palácio que distinguiam agora à sua direita.
- Não temos que hesitar, concluiu João. Se tentássemos voltar para trás para nos juntarmos aos portugueses, estaríamos irremediavelmente perdidos! Mais vale ser
audacioso. De resto é preciso não esquecer que, se Afonso de Albuquerque veio para conquistar Malaca, nós apenas viemos para libertar a capitã. Ora esta encontra-se
presa no palácio; é, por conseguinte, o objectivo que temos de atingir a todo o custo.
- O palácio é grande, sr. conde! objectou Bignache. Embora o consigamos alcançar, quem nos diz que descobriremos exactamente o sítio onde está encerrada a capitã?
- Aconteça o que acontecer! Já não é ocasião para recuar. Terás tu medo?
- Medo, eu?
Savínio endireitou-se. As poucas palavras que o seu amo acabava de pronunciar dissiparam instantaneamente a sua hesitação. Não tinha ele prometido a Isabel, que
o esperava ansiosamente a bordo da caravela azul, secundar o melhor possível o seu amo, e ajudá-lo, ainda que perigosamente, a encontrar a sua noiva?
No entanto, os dois homens interromperam a conversa. João levou bruscamente um dedo aos lábios, impondo silêncio ao seu companheiro, que se dispunha mais uma vez
a afirmar-lhe toda a sua dedicação. A pouca distância atrás deles, precisamente no sítio em que o gascão surpreendera e matara a sentinela, ouvia-se agora um ruído
de vozes.
XIX
Próximo do fim
Estendendo-se, colando-se ao solo, sustando a respiração, João e Bignache imobilizaram-se, ofegantes. Por entre os maciços, ouviam-se estalidos de troncos, vozes,
um ruído de passos precipitados. Gente corria e falava perto dali.
Passaram-se alguns segundos, que pareceram intermináveis aos dois gascões. Do seu esconderijo, podiam divisar os recém-chegados. Tratava-se efectivamente de alguns
guardas, que efectuando uma ronda e vindo render o seu camarada que estava de sentinela, encontraram o cadáver; então embrenhando-se pelos jardins do palácio, procuravam
descobrir os culpados.
João e Bignache julgavam-se perdidos. Em tempo de paz, os soldados de Mahmoud facilmente conseguiriam prosseguir as pesquisas, descobri-los e prendê-los; porém,
a atitude dos recém-chegados era cada vez mais hesitante; aventurando-se através das árvores, voltavam-se frequentes vezes para o palácio, de ouvido à escuta, quando
se intensificava o ruído do combate. O perigo que ameaçava a última posição fortificada, parecia preocupá-los muito mais do que a morte da infeliz sentinela.
Mas eis que, de-repente, soaram trompas, bastante próximo dali. Os índios, alguns dos quais se encontravam já a uns vinte passos do esconderijo dos gascões, interromperam
subitamente as suas investigações, trocando entre si olhares inquietos; depois, obedecendo a um sinal dum deles, que parecia ser o chefe, voltaram para trás e dirigiram-se
correndo para o palácio.
- com mil diabos, senti o coração mais pequenino! suspirou João quando viu desaparecer o último guerreiro.
- Porque "desandariam" eles? interrogou Bignache.
- Provavelmente o rajáh mandou reunir urgentemente todos os seus guerreiros, para repelir mais energicamente os ataques dos assaltantes, e depois, quem sabe? Talvez
os nossos amigos tivessem efectuado sensíveis progressos e ameaçam neste momento penetrar no parque. Em todo o caso devemos-lhes um grande reconhecimento! Agora,
só nos resta esperar pela noite. A não ser que daqui até lá, o palácio seja tomado pelos assaltantes.
No entanto, as horas passaram sem que se produzisse a menor alteração. Os dois gascões continuavam prudentemente escondidos; o povo que se tinha refugiado nos jardins,
começava a dispersar-se; alguns vinham até perto do esconderijo; contudo os gascões foram bastante hábeis para se não deixar apanhar.
Cerca do porto, e em torno da ponte fortificada, o combate parecia ter diminuído de intensidade.
Os portugueses, após terem efectuado furiosos assaltos, desejavam descansar um pouco, e consolidar as posições, tão brilhantemente conquistadas. Em Malaca eram inúmeras
as casas incendiadas; um cheiro insuportável a queimado empestava a atmosfera; duas habitações vizinhas do palácio estavam em chamas; e o olhar angustiado dos fugitivos
convergia agora para o mar.
A paciência de João e de Bignache sujeitou-se então a uma rude prova; preguntavam a si mesmos, com ansiedade, qual seria exactamente a situação de Albuquerque emquanto
continuavam ali escondidos. A todo o momento, o gentil-homem pensava em Leonor. Rui, que ele tinha entrevisto no decorrer do combate, não recorreria às piores eventualidades,
vendo-se na eminência de ser apanhado e aprisionado pelos seus antigos companheiros? Por isso, os dois homens não dissimulavam a sua satisfação vendo cair rapidamente
a noite. Um silêncio profundo sucedeu ao barulho que não cessara durante a maior parte do dia. Por vezes, na direcção do mar, João distinguia os clarões sinistros
dos morteiros que os defensores de Malaca lançavam contra as caravelas imóveis de Afonso de Albuquerque; porém, estas tentativas repetidas não pareciam inquietar
o capitão-general. O cerco apertava-se
cada vez mais.
Quando João achou que já estava suficientemente escuro, decidiu-se a sair do seu esconderijo com Bignache; livremente, os dois homens dirigiram-se através dos jardins.
Extenuados, quási sem forças, os dois franceses avançavam agora cautelosamente sobre a relva, e ao abrigo dos maciços; por várias vezes, foram tropeçar em corpos
deitados de índios que os injuriavam, mas eles avançavam
sempre em direcção ao palácio, cuja fachada distinguiam cada vez mais perto, iluminada pelas chamas que devoravam um casinhoto próximo.
Durante cerca de meia hora, os dois companheiros prosseguiram na sua marcha, parando por vezes, ou dando grandes voltas, para evitar prudentemente a claridade provocada
pelas chamas, que permitiriam aos seus vizinhos reconhecer neles estranjeiros. Conseguiram apoderar-se de dois albornozes brancos que estavam sobre um carro, apressando-se
a vesti-los. Poderiam agora facilmente tomá-los por dois refugiados, se não fosse a sua atitude resoluta, e a pressa verdadeiramente anormal com que se dirigiam
para o palácio de Mahmoud.
Contudo, João e o seu companheiro, de-pressa tiveram de interromper a sua marcha; tinham chegado à proximidade do palácio; dissimulando-se na sombra, deixaram desfilar
numerosos destacamentos de archeiros que se dirigiam apressadamente para a cidadela. De novo se ouviam detonações, perturbando o silêncio que se prolongara por tanto
tempo. A artilharia das caravelas abria mais uma vez fogo contra a parte da cidade que continuava a resistir, e, sobretudo, contra a famosa ponte fortificada, vizinha
do palácio, do alto da qual os defensores tinham conseguido até aqui impedir aos portugueses o acesso do rio.
De novo, as imediações do palácio faziam lembrar um cortiço; oficiais e soldados iam e vinham, correndo e interpelando-se no meio duma desordem indescritível. Uma
agitação cada vez maior se apoderava de todos, índios e malaios, e João e Bignache podiam aventurar-se ali sem receio, tanto os
seus vizinhos pareciam unicamente preocupados com a nova ameaça de assalto.
Os dois gascões chegaram por fim a alguns passos da entrada do palácio; dispunham-se a misturar-se ao grupo que penetrava no vasto edifício, quando de-repente João
se voltou segurando Bignache por um braço; emquanto o bravo rapaz o interrogava ansiosamente com o olhar, João designava-lhe um homem que discutia animadamente com dois oficiais índios que pareciam não o compreender muito bem.
Savínio logo reconheceu no indivíduo que lhe designava o seu amo, Gabriel, um dos três portugueses que tinha participado no rapto da capitã.
João esboçou um sorriso. Há muito tempo que o rapaz preguntava a si próprio como poderia saber exactamente onde se encontraria encerrada a capitã. A chegada de Gabriel
ia permitir-lhe agir com mais certeza, e como Bignache se imobilizasse na sombra, junto dele, inclinou-se e disse-lhe ao ouvido:
- É preciso, a todo o custo, apoderarmo-nos deste patife!
Savínio teve um gesto evasivo. Parecia-lhe assaz perigoso atacar o maroto no meio dos índios seus aliados; contudo, os seus olhos brilharam quando viu Gabriel separar-se
dos companheiros e dirigir-se sozinho para a saída.
Os dois gascões, sempre enrolados nos albornozes, cingiram-se prudentemente contra a fachada. Gabriel aproximava-se, mas o patife parecia de tal maneira preocupado
que nem sequer notou a sua presença; então João não esperou: com mil precauções seguiu os passos do português. Quando o viu embrenhar-se na sombra de dois maciços
de palmeiras, lançou-se sobre ele com a agilidade duma pantera.
Gabriel não podia esperar semelhante ataque; antes que pudesse defender-se, perdia o equilíbrio e estatelava-se no chão. Quis gritar; porém Bignache acorria em auxílio
do amo. A sua mão apoiou-se brutalmente contra a boca do miserável. Minutos depois, a despeito dos esforços desesperados que fazia para se libertar dos abraços que
o paralizavam, Gabriel foi transportado para debaixo das árvores.
Os gascões souberam escolher o momento; ninguém deu pela agressão de que fora vítima o cúmplice de Rui da Mota; oficiais e soldados corriam ao combate, emquanto
os três, ocultos pelas trevas, escapavam a qualquer curiosidade intempestiva.
Gabriel ainda quis chamar, mas em vão; de-pressa sentiu a ponta duma espada que lhe encostavam à garganta, ao mesmo tempo que uma voz enérgica, lhe dizia:
- Um gesto ou uma palavra, e mato-te como a um cão!
- O francês!!!
O maroto imobilizou-se, gelado de pavor. Reconhecia agora o noivo da capitã e o seu fiel criado.
- Piedade, senhor! balbuciou. Eu não sou. João não lhe deixou acabar a frase:
- Não temos tempo a perder! Viemos aqui para libertar a capitã. Onde se encontra ela prisioneira ?
O português proferiu algumas palavras ininteligíveis; então João encostou com mais força a espada à garganta:
- Vamos, temos pressa! Fala ou morrerás! Gabriel, compreendeu que era inútil resistir. Um suor frio humedecia-lhe as fontes. Quis debater-se; o punho enérgico do gascão colou-o de novo ao chão.
- A capitã está no palácio... informou ele por
fim num lamento.
- Isso sabemos nós, cortou o gascão, mas em que sítio ? ... É preciso a todo o custo que nos conduzas... E não esqueças que te temos debaixo de olho. Se por infelicidade
pensasses em trair-nos, pagarias tudo com a vida!
- Conduzir-vos-ei, senhor! gemeu Gabriel, cujas mãos eram agitadas por um tremor.
- Vamos! levanta-te e passa à frente!
O português apressou-se a obedecer; sentia-se à completa mercê dos seus adversários. Bignache
tirava-lhe a espada.
- vou conduzir-vos, senhor. Mas prometeis
deixar-me vivo?
- Prometido.
Os três homens dirigiram-se de novo para o palácio: Gabriel avançava, afectando a mais completa impassibilidade; os dois gascões seguiam-no, dissimulando as espadas
sob os albornozes, prontos a matar o miserável se ele esboçasse a menor tentativa de fuga.
Prosseguindo na sua marcha, cruzavam-se com oficiais e soldados que se precipitavam ao combate; porém, a desordem era tal que ninguém se lembrava de os interpelar.
Gabriel era conhecido e a sua presença bastava para afastar toda a desconfiança; João e os companheiros puderam então penetrar, sem serem incomodados, no interior
do palácio.
Contudo, os três homens tiveram que recuar várias vezes, a-fim-de evitarem os projécteis que
caíam cada vez mais numerosos à sua volta; os artilheiros de Albuquerque pareciam dirigir-se principalmente à habitação de Mahmoud; flechas incendiadas tombavam
nos terraços e os soldados que corriam dificilmente apagavam os incêndios que se ateavam e que tinham já destruído inúmeras casas vizinhas.
A confusão estabelecida e o espesso fumo que se elevava, permitiu a João e aos companheiros atingir rapidamente a escadaria. Avançando atrás de Gabriel, que continuava
duma palidez assustadora, o rapaz sentia-se preso duma punjente emoção. Ia, emfim tornar a ver aquela que amava! O momento esperado com tanta impaciência, aproximava-se.
Apenas mais alguns instantes e seria introduzido pelo português junto daquela que ocupava todos os seus pensamentos e todo o seu coração.
O desabamento de parte da abóbada dum vestíbulo provocou um verdadeiro pânico; Gabriel quis aproveitar esta ocasião para fugir aos dois gascões; porém Bignache,
que o não perdia de vista, agarrou-o por uma manga:
- Vamos, conduz-nos!
Resignado, o patife obedeceu. Precipitadamente, escalou os degraus; dispunha-se a alcançar o andar superior, quando uma figura se ergueu diante dele. João, que avançava
imediatamente atrás do seu prisioneiro, reconheceu nela Manuel.
O cúmplice de Rui da Mota parecia esperar e espiar ao mesmo tempo; ao avistar os gascões, que não teve dificuldade em identificar, tentou voltar para trás; mas João
foi mais hábil e precipitou-se sobre ele de espada na mão.
O português armara-se também; um combate furioso travou-se então. Admirado de encontrar em tão estranhas circunstâncias o noivo da capitã, que ele julgava há muito
morto, Manuel defendia-se fortemente; mas João era um adversário temível. As duas lâminas entrechocaram-se furiosamente. O rosto luzente de suor, o patife tentava
desembaraçar-se do seu enérgico antagonista, mas o francês aparava energicamente os ataques; em pouco tempo Manuel, com o corpo atravessado de lado a lado, esvaía-se
em sangue, soltando um suspiro de agonia. Emquanto se desenrolava este tremendo combate, Gabriel conservava-se imóvel, encostado à parede, com os olhos espantados
pelo terror. Depois, como João lhe tivesse voltado as costas, um sorriso furtivo iluminou o rosto descomposto do miserável. Levou a mão à cinta; com a rapidez dum
relâmpago, apoderou-se dum punhal ali escondido e que os seus adversários não tinham sequer pensado em tirar.
João parecia estar perdido. Gabriel dispunha-se agora a cravar-lhe a lâmina entre as espáduas, no momento em que Manuel caíra, vencido. Porém, não terminou o seu
gesto assassino. Bignache, cuja atenção parecera durante um momento inteiramente absorvida pelas peripécias do duelo, tinha-se voltado bruscamente. O português ia
a baixar a mão. quando a sentiu agarrada com uma força invencível; torcendo-a subitamente, o fiel Savínio obrigou-o a largar a arma.
- O que é que se passa? interrogou João que, livre do seu adversário, voltava-se intrigado pelo barulho da luta travada entre Bignache e o prisioneiro.
O criado não teve tempo de responder. Uma explosão ensurdecedora fazia-se ouvir. Antes de ter podido compreender o que se passava, os três homens caíam no solo,
emquanto que uma parte da parede e do teto desabavam à sua volta, desfeitos por um morteiro, no meio de espessas nuvens de poeira. Ouviram-se gritos de terror vindos
de todos os lados.
Durante alguns instantes, João imobilizou-se aturdido, mas a sua hesitação pouco durou; Bignache já estava de pé, e estendia-lhe a mão.
- De-pressa, sr. conde! arquejou o bravo rapaz. Não devemos demorar-nos aqui!
Levantando-se, João verificou que um grande pedaço de céu estrelado aparecia agora por uma larga brecha feita pelo projéctil. A artilharia de Afonso de Albuquerque
continuava a bombardear violentamente o palácio.
- Mas Leonor! É preciso a todo o preço encontrar Leonor e salvá-la!
Pronunciando estas palavras, o gascão procurava encontrar Gabriel e obrigá-lo de novo a conduzi-lo à parte do palácio em que se encontrava a prisioneira.
João levantava-se agora dos escombros e sacudia a espessa camada de poeira que recobria o seu fato, quando Bignache que se tinha ajoelhado, encolheu lentamente os
ombros:
- Creio bem, sr. conde, que somos obrigados a contar só com o nosso próprio esforço. O miserável já tem a sua conta! Vede, uma trave ao cair esmagou-lhe o crânio!
O gascão de-pressa se certificou de que o patife cessara de viver; contudo, não se demorou junto do cadáver; gritos de terror erguiam-se à sua volta;
os projécteis incendiados, que os portugueses lançavam nesse momento para o palácio, tinham conseguido incendiar as vastas tapeçarias; as tentativas dos soldados
e dos escravos para evitar o sinistro resultavam infrutíferas. A barreira de fogo progredia cada vez mais, provocando um fumo intenso.
- Se ficamos aqui, disse Bignache ofegante, seremos torrados como ratos!
- Mas ela. Não posso resignar-me a abandoná-la!
No terror indescritível que os dominava, os habitantes do palácio, desejosos de assegurar a sua própria segurança, não prestavam a mínima atenção aos dois homens
que se precipitavam através do corredor, deitando à sua volta olhares angustiados. Mulheres veladas e criados passaram correndo. Evacuavam a toda a pressa o harém
do rajáh, ameaçado pelo incêndio; de resto, Mahmoud não esperara pela noite para se pôr em lugar seguro; achava-se agora junto à ponte fortificada, no meio das suas
tropas mais fiéis, tentando animar o melhor possível a sua resistência.
João e Bignache, meio sufocados, percorriam febrilmente as salas que se abriam agora diante deles. Traves comidas pelas chamas desabavam no meio duma chuva de centelhas;
por três vezes João quási teve a mesma sorte de Gabriel: no entanto, o perigo não o fazia recuar. Procurava, procurava ainda. Procurava sempre.
Agora os dois companheiros tinham chegado à extremidade do palácio; começavam a pensar que Leonor tivesse sido transferida para outro lado, quando de-repente o rapaz
parou, apurando ansiosamente o ouvido: dominando o crepitar do incêndio,
um grito cortante acabava de se ouvir, soltado por uma voz de mulher:
- É ela, exclamou João. Chama por socorro!
Bignache não teve tempo para responder. De espada na mão, o seu amo precipitou-se nos turbilhões de fumo para uma porta que acabava de distinguir na extremidade
do corredor. Então, sem demora, o fiel criado deitou a correr por sua vez. Em poucos instantes chegaram à porta.
XX
Frente a frente
Desde que Albuquerque desencadeara o ataque a Malaca, Leonor vivia em sobressalto. Longas horas se tinham já passado desde que o seu raptor a confiara à vigilância
de Mahmoud. Apenas vira dois criados dos malaios, que lhe tinham trazido as refeições; em vão tentava interrogá-los. Abatida, a infeliz resignou-se a tomar algum
alimento, a-fim-de recuperar as forças. Não obstante a situação angustiosa, continuava tendo esperança.
Por duas vezes tentara evadir-se, mas de-pressa verificou com profunda decepção que os seus guar das tinham tomado todas as precauções: a porta estava hermeticamente
fechada; além disso, uma sentinela vigiava do lado de fora das gelosias.
Facilmente se imagina a emoção que se apoderou da infortunada quando lhe chegaram os pri meiros rumores do combate. O coração pulsante. assistira, da janela da sua
prisão, à chegada da frota portuguesa; uma esperança indizível tinha-se apoderado de todo o seu ser, quando reconheceu
a Flor do Mar. Porém, a sua emoção redobrou quando avistou a caravela azul.
Reconhecendo o belo navio a bordo do qual tinha realizado tão gloriosas e aventurosas expedições, Leonor sentira-se aliviada dum grande peso. Emfim! Os seus intrépidos
companheiros de aventuras não a tinham esquecido. Porque, de-certo, também eles ali estavam.
Contudo, o olhar brilhante da rapariga em breve se tornou sombrio. Pensava que João não estava ali, pois a convicção de que ele tinha sucumbido na floresta não a
abandonara nunca mais. Além disso, facilmente compreendia a razão da vinda dos galeões portugueses a Malaca. Várias vezes, o capitão-general lhe comunicara o seu
projecto de conquista desta cidade, a-fim-de assegurar o caminho marítimo das ilhas das especiarias. Afonso de Albuquerque punha agora o seu plano em execução; mas
a sua presença não significava, evidentemente, que ele soubesse que a "Amazona dos Mares" estava prisioneira de Mahmoud e do traidor Rui da Mota.
E as horas passavam. com o coração angustiado, Leonor tinha visto os índios e malaios do rajáh preparar os morteiros para interromper a marcha das caravelas e introduzir
a desorganização entre os portugueses, mas, felizmente, estas tentativas eram rapidamente repelidas pelos hábeis navegadores.
Da sua prisão, igualmente a prisioneira verificara que os seus compatriotas ganhavam terreno. Assistira à partida dos batéis, e as detonações furiosas que depois
se tinham sucedido, indicaram-lhe que se lutava com furor junto às muralhas.
Leonor verificou que os portugueses eram apenas em número de novecentos, força pouco considerável
em compensação aos milhares de guerreiros que lhe opunha Mahmoud. Mas Albuquerque sabia escolher os seus homens.
Estes rudes soldados tinham feito, há muito tempo, o sacrifício das suas vidas e realizariam certamente prodígios de coragem para alcançar o objectivo que lhes designasse o chefe.
Ao fim da tarde, produziu-se uma certa calma; Leonor, que continuava só, preguntava a si própria, ansiosamente, se as tropas do capitão-general não teriam sofrido
uma cruel derrota. Tranquilizou-se, no entanto, quando recomeçou a batalha, a meio da noite. O tiroteio aumentava. Numerosos projécteis começavam a atingir o palácio.
Desprezando o perigo que poderia correr, a prisioneira juntava as mãos e erguia aos céus ferventes preces. Seria, emfim, libertada pelos soldados de Albuquerque?
Rui e o rajáh, seu aliado, não se apressariam a transportá-la para lugar seguro?
Desde que seu primo se aliara a Mahmoud, a capitã não mais tivera ocasião de o tornar a ver, para lhe cuspir o seu desprezo no rosto. Esperava, sem dúvida que passasse
o perigo, para executar os seus odiosos projectos; porém; a sua prolongada ausência não dissipava os receios da rapariga. Calculava facilmente que o traidor não
largaria a cubiçada presa; por sua vez, o rajáh tinha todo o interesse em conservar tão precioso penhor,
Uns ruídos surdos vieram arrancar a cativa às suas meditações. O crepitar dos arcabuzes parecia aproximar-se cada vez mais; na direcção da ponte e do rio levantavam-se
clarões sinistros. O cheiro a queimado tornava-se insuportável, indicando a Leonor que se ateara um incêndio perto da sua prisão.
Agora, fazia tão claro que parecia estar-se em pleno dia. As chamas iluminavam tudo à volta e a silhueta de Leonor desenhava-se gigantesca, na parede, quando de-repente
a rapariga deixou escapar uma exclamação de surpresa. Ao voltar-se, percebeu que já não estava só na sua prisão. Um homem erguia-se a dois passos dela, um homem
que aproveitara o momento em que ela olhava o mar com angústia, para se introduzir no seu refúgio.
- Rui! balbuciou a infeliz ao reconhecer o visitante inesperado.
- Perfeitamente, sou eu, prima. Já me fizestes esperar demasiado. Esta situação já não se pode prolongar!
A prisioneira encostara-se bruscamente à parede; uma expressão de profunda inquietação contraía agora as suas feições e o seu olhar fixava com desprezo o interlocutor.
Evidentemente, Rui da Mota já não apresentava aquela aparência de outrora. As vestes rasgadas, os cabelos em desordem, o rosto sujo de sangue, de poeira e de suor,
parecia voltar duma longa correria, ou de sustentar um longo combate. Na sua fisionomia lia-se uma expressão de ansiedade profunda.
De facto, o miserável dificilmente escapara ao castigo que lhe reservavam os seus adversários; depois de ter tomado parte no desfile dos elefantes de guerra e assistido
à derrota de Mahmoud e das suas tropas, tinha batido precipitadamente em retirada. Andrade e dAmblayves quási tinham conseguido apanhá-lo quando o perseguiam.
Mas o perigo parecia estar afastado por algumas horas, embora o traidor ainda estivesse sob a impressão de medo que lhe causava o aparecimento
do gascão, que ele supunha morto. Assim o temivel rival vivia ainda! E tomava parte activa na expedição de Albuquerque. ?
Rui da Mota rememorava as dramáticas peripécias da sua fuga, juntamente com as tropas desmoralizadas do rajáh. Nem um só momento tentara reanimar os soldados; só
o pensamento que " João o pudesse alcançar e forçá-lo a cruzar a sua espada com ele tinha paralisado as suas forças. Correra sem parar até ao palácio; em vão Mahmoud,
que efectuara uma retirada mais brilhante e provocara uma cerrada defesa dos portugueses, tinha tentado retê-lo; porém, um terror invencível apoderara-se do ex-lugar-tenente da caravela azul.
- Que vindes fazer aqui? . Dominando o melhor possível a inquietação que experimentava, a capitã levantou altivamente a cabeça e fez frente ao seu visitante.
- Bem sabeis que dora-avante nada de comum pode existir entre nós, prosseguiu, emquanto o seu interlocutor guardava silêncio. Sois um miserável, um assassino e um
traidor!
Rui da Mota ergueu os ombros com desdém.
- As vossas injúrias não me intimidam, bela
prima. Deveríeis mesmo ter para comigo uma
maior reserva. Acaso ignorais que estais à minha
completa mercê? .
- Imaginais talvez que me rebaixaria a implorar-vos.
- Nada imagino e não tenho tempo a perder
em discussões estéreis, replicou o traidor com voz seca. Lembrai-vos de que vim aqui para ordenar e não para apresentar desculpas!
- Muito bem, reconheço-vos agora! redarguiu
a prisioneira. Já não é o cavalheiro, mas o traidor que tenho à minha frente!
As feições do ex-lugar-tenente contrairam-se; de punhos cerrados, aproximou-se da cativa; porém, esta, sem parecer intimidada, continuava a fixá-lo altivamente.
- Não tenho medo de vós, Rui da Mota!
O visitante estava junto da rapariga; durante alguns instantes ficaram frente a frente, sem dizer palavra. As detonações sucediam-se cada vez mais, seguidas de desabamentos
e de gritos de pavor. Leonor continuava imperturbável; sentia o hálito do traidor que lhe bafejava o rosto, mas a firmeza do seu olhar conseguia pôr o miserável
em respeito.
Mas eis que bruscamente Rui estendeu um braço; antes que Leonor previsse o seu gesto, o maroto enlaçava-a e atraía-a brutalmente para si.
- Largai-me! Covarde! Miserável!
A capitã debatia-se furiosamente, e com os dedos de unhas aguçadas rasgava cruelmente o rosto do seu agressor; contudo, o patife parecia nada sentir. com os olhos
brilhando de desejo, parecia esmagá-la contra si.
- Amo-vos, Leonor. Durante dias e noites esperei, pensando como conseguir convencer-vos.
- Vós! Convencer-me! Perdeis a razão! Será preciso repetir-vos que vos considero o mais miserável dos seres? Sois um assassino, fizestes
matar cobardemente o homem que eu amava e ainda com as mãos sujas de sangue, vindes para mim com palavras de amor nos lábios!
Uma explosão mais violenta de que as precedentes veio interromper o veemente diálogo.
- Pouco me importam os vossos insultos, repito-vos,
insistiu o miserável com voz sonora. Sois minha e eu quero-vos!
- Acautelai-vos! O capitão-general vai tomar a cidade. Em poucas horas virá procurar-vos. Ele me vingará!
- Dentro de poucas horas, estarei morto de uma ou doutra maneira, Leonor, redarguiu o português. Mas antes, sereis minha amante!
- Nunca! Oh! sois o último dos miseráveis. Leonor debatia-se furiosamente, arranhando e
mordendo, mas Rui não a largava. Continuava apertando-a, ofegante, nos seus braços robustos, parecendo escarnecer do desespero e dos esforços desesperados da rapariga.
- Como sois bela, assim, Leonor. Há quanto
tempo esperava este momento!
Rui aproximava os lábios ávidos dos da capitã, quando esta num supremo esforço conseguiu morder-lhe uma mão. O patife, que não esperava este brusco ataque, julgando-a
já subjugada, soltou um grito de raiva, e a capitã, aproveitando este momento de desfalecimento, repeliu-o e conseguiu escapar-lhe.
- A maldita! Serás minha, a-pesar-de tudo!
Ao fugir, Leonor agarrara um escabelo que lançou às pernas de Rui. Este que se precipitava para ela, cambaleou e perdeu o equilíbrio. Aproveitando alguns instantes
que lhe eram concedidos, a rapariga atirou-se contra a porta, com todo o seu peso. Contudo, foi em vão que a desgraçada tentou fazer ceder o obstáculo. Rui tinha
fechado solidamente a porta quando entrara. Então, desesperada, o rosto reluzente de suor, os olhos faiscando de despeito, a rapariga viu o patife aproximar-se.
- Ouves, formosa prima, murmurou Rui estendendo
lentamente uma mão. Os teus bons amigos bombardeiam o palácio. Por toda a parte lavram incêndios e Mahmoud teve de fugir precipitadamente. Agora já não tenho ilusões,
sei que Albuquerque tomará Malaca, mas garanto-te que não nos encontrará vivos, nem um, nem outro!
E como a "Amazona dos Mares" não respondesse, o miserável que a julgava definitivamente à sua mercê, insistiu:
- Está tudo perdido! O palácio pode desmoronar-se de um momento para o outro. Sei que vou morrer, e antes disso serás minha!
O rosto do celerado crispou-se num sorriso diabólico ao falar assim. Leonor sentia as últimas esperanças abandoná-la. Então batendo com os punhos na porta, clamou
por socorro, em vão.
Rui da Mota ria às gargalhadas:
- Grita, linda prima, continua a gritar. Apenas um homem está atrás desta porta; é Manuel, o nosso amigo Manuel que nos guarda, para que nos deixem amar e morrer
em paz!
E emquanto Leonor gritava desesperadamente, o miserável estendeu a mão em direcção à gelosia, e designou as casas vizinhas que se desfaziam em chamas:
- Como é bela a nossa noite de núpcias e de morte! Ninguém virá perturbar-nos!
A capitã, aniquilada, sentia as pernas dobrarem-se; o ruído dos arcabuzes tornava-se mais forte lá fora. Os gritos de "Santiago", dados pelos portugueses, dominavam
por vezes o tumulto do combate e o crepitar do incêndio. A batalha travava-se raivosamente junto da ponte que os índios de Mahmoud defendiam com uma energia feroz.
Por fim, incapaz de se dominar mais tempo,
Leonor caiu, desamparada. Parecia-lhe que as paredes, iluminadas pelo clarão sinistro dos incêndios, andavam à roda, executando uma dança fantásticadepois, viu Rui
inclinar-se para ela e levantá-la nos braços. Desprezando o perigo que corria no palácio ameaçado de destruição, o ex-lugar-tenente dispunha-se a transportar a sua
presa para um divan que se encontrava na extremidade da casa, quando subitamente se ouviram furiosas pancadas na porta. Rui imobilizou-se durante alguns segundos,
hesitante, conservando o seu fardo vivo nos braços.
- És tu, Manuel? interrogou. Como única resposta, um empurrão irresistível abalou a porta; por duas vezes, novo ruído se ouviu, depois os gonzos saltaram. O miserável,
que se tinha voltado, não pôde reprimir uma exclamação de terror: uma figura enérgica desenhava-se no limiar, de espada na mão. Reconhecera no homem que acabava
de surgir duma maneira tão imprevista, o rival detestado e temido: João dAmblayves.
XXI
Últimos ataques
- É preciso acabar com isto a todo o custo. Antes de vinte-e-quatro horas Malaca tem de ser nossa!
Um murmúrio aprovador acolheu estas palavras, pronunciadas com voz firme por Afonso de Albuquerque. O capitão-general mandara chamar a toda a pressa os principais
oficiais à sua tenda, feita de velas de navios e armada logo que tinham desembarcado próximo do rio, e que lhe servia de posto de comando.
Após um breve intervalo, a batalha recomeçara. Senhor da maior parte das muralhas e da cidade, os assaltantes tinham tentado apoderar-se sem sucesso da ponte fortificada
e dos baluartes que circundavam o palácio. Mahmoud reunia à sua volta as suas melhores tropas, opondo aos conquistadores uma resistência desesperada.
Contudo, estes obstáculos, por mais terríveis que fossem, não amedrontavam os portugueses; a sua artilharia continuava a atingir furiosamente as posições inimigas;
os morteiros, as colubrinas e os canhões das caravelas, faziam chover projécteis sobre as posições índias ou malaias.
O cenário que apresentava agora Malaca era macabro: a mesquita, conquistada pouco tempo antes, desabava no meio de chamas; a maior parte do casario que rodeava o
palácio, consumia-se num, brazeiro. Clarões sinistros elevavam-se para o céu estrelado e reflectiam-se tragicamente nas ondas. Nas duas margens do rio defendidas
ainda solidamente pelos guerreiros de Mahmoud, os defensores de Malaca atiravam para a água brulotes e chalupas carregadas de alcatrão ou pez incendiado. Os terríveis
engenhos vogavam lentamente para o largo; debruçados ansiosamente sobre a amurada, os tripulantes das caravelas seguiam com o olhar os barcos incendiados que se
aproximavam cada vez mais dos seus galeões; numerosas embarcações portuguesas eram lançadas ao mar; os marinheiros, munidos de croques, esforçavam-se por desviar
as temíveis máquinas de guerra, conseguindo facilmente levar a cabo as suas manobras.
De vez em quando, ouvia-se uma surda explosão dominando o ruído do combate. Algum morteiro que explodia. Outros passavam inofensivos a algumas braçadas das caravelas,
indo afundar-se no rio. No entanto, as repetidas tentativas do rajáh para incendiar a sua frota, preocupavam o capitão-general. Tinha pressa de acabar o combate;
inclinado sobre a planta da cidade, expunha os seus projectos para esmagar definitivamente a resistência dos sitiados. Junto dele, atentos, os seus oficiais, entre
os quais se encontravam o intrépido Andrade e António de Abreu, que fora um dos principais animadores do ataque, ouviam atentamente as suas ordens.
- Quando a ponte for conquistada, seremos senhores de Malaca inteira, declarou Afonso de Albuquerque; contudo, não vos escondo que a posição dominante desta ponte
torna a sua conquista particularmente difícil; não a alcançaremos sem graves perdas!
Um breve silêncio seguiu estas palavras; todos pareciam pensativos. Custava-lhes desbaratar a vida dos seus homens; os efectivos de que dispunham eram de resto muito
pouco numerosos para que se pudessem expor ao massacre, sem sofrer grande desastre. Porém, a voz rude de António de Abreu de-pressa se fez ouvir:
- Capturamos vários barcos chineses no porto. Porque não armamos solidamente um deles? com uma boa artilharia poderia aproximar-se da ponte, e dominá-la com o seu
fogo.
Esta proposta pareceu interessar especialmente Afonso de Albuquerque; minutos depois, António de Abreu era encarregado de dirigir ele próprio a operação, que devia
ser executada com a maré alta para que o barco pudesse subir mais facilmente o rio e atingir o seu fim.
À volta do palácio o combate recomeçava com ardor; os portugueses tinham penetrado nos jardins, provocando um pânico indiscritível entre a multidão de refugiados;
o desvairo destes infelizes tornava a resistência particularmente difícil. Algumas centenas de guerreiros que defendiam aquela posição, eram arrastados pela onda
dos fugitivos. E por toda a parte lavravam incêndios, aumentando a confusão, já tão grande. O palácio tampouco fora poupado e uma longa coluna de fumo saía através
das janelas.
Afonso de Albuquerque soubera preparar a operação; os portugueses avançavam metodicamente instalando-se nos principais pontos estratégicos que lhes facilitavam a
posse da cidade. O cerco apertava-se cada vez mais à volta das posições ainda defendidas pelos guerreiros de Mahmoud.
Agora, os navios eram alvo de um verdadeiro temporal de projécteis; flechas incendiadas caíam em volta das caravelas, que os morteiros tinham até aqui poupado. Mahmoud,
rodeado dos seus dignatários, animava-os constantemente; contudo, o rajáh podia verificar, não sem angústia, que o moral dos seus soldados fora consideràvelmente
abalado pelos sucessivos e enérgicos ataques dos portugueses e, sobretudo, pelo incêndio do palácio.
- O nosso aliado? não cessava de preguntar aos oficiais que acabavam de o pôr ao corrente da situação. O que é que aconteceu ao nosso aliado? Em vão se esforçaram
por encontrar Rui da Mota; o miserável estava invisível; Mahmoud pensou então que o português tivesse sucumbido nos
primeiros ataques.
Tornando mais forte a resistência, o rajáh olhava frequentes vezes na direcção do seu magnífico palácio, actualmente pasto de chamas. com o coração comprimido, lamentava
amargamente não ter entrado em acordo com Albuquerque. Contudo, não se demorou nas suas meditações e avançou para os pontos mais ameaçados pelo avanço do inimigo.
As duas margens do rio apresentavam um espectáculo lamentável; por todos os lados jaziam mortos, feridos e moribundos; os efeitos da artilharia dos assaltantes deviam
ser terríveis; contudo os portugueses não tinham podido ainda vencer a resistência
pertinaz dos índios e dos seus aliados malaios; solidamente entrincheirados atrás das muralhas e sobre a ponte, esperavam e observavam atentamente os movimentos
do inimigo.
Durante algumas horas, no começo da noite, os defensores de Malaca tiveram um pouco de calma. Se o incêndio continuava devorando tudo à volta do palácio, parecia
que os soldados de Albuquerque tinham por momento abandonado toda a idea de se apoderar da principal posição do adversário; algumas chalupas que tinham tentado aproximar-se
e subir o curso do rio, foram acolhidas por uma chuva de flechas e quási foram obrigadas a fazer meia-volta.
Um profundo silêncio reinava agora. Os sitiados aproveitavam este facto para reparar alguns estragos causados pela artilharia inimiga; transportavam mortos e feridos;
o rajáh ia ele próprio aos entrincheiramentos, animando a resistência:
- Coragem! Hão-de se fartar! Hão-de fugir!
Dizendo estas palavras, Mahmoud designava aos seus oficiais as caravelas, tranquilas; numerosas casas e árvores escondiam-lhe o acampamento dos portugueses e o movimento
de tropas que ali se produzia; alguns dos malaios que ainda resistiram no interior dos jardins, tinham-se rapidamente refugiado nas trincheiras junto do porto, e
o povo que ali se encontrava, tinha tentado segui-los; porém, Mahmoud ordenara que os pusessem fora das linhas; centenas de pessoas ameaçadas entre dois fogos, viram-se obrigadas a ficar numa zona desvastada e constantemente varrida pela artilharia dos dois partidos.
Os defensores da ponte, que esperavam no maior silêncio, olharam com angústia na direcção do mar... com efeito, um vulto escuro desenhava-se à superfície das ondas
serenas; o dum barco chinês que, aproveitando a maré cheia, parecia dirigir-se para a ponte.
O navio breve apareceu, iluminado como em pleno dia pelos clarões sinistros dos incêndios; Mahmoud e os seus oficiais, que foram chamados a toda a pressa, puderam
verificar que o barco estava possantemente fortificado.
Desde logo os sitiados compreenderam quais eram as intenções dos seus temíveis adversários: tinham edificado este verdadeiro forte flutuante para mais facilmente
se apoderarem da ponte e esmagar os seus defensores sob uma saraivada de metralha... Lenta, mas seguramente, o barco avançava... Ainda não tinha ancorado, já os
archeiros do rajáh lhe enviavam flechas que se perdiam, inofensivas, no mar.
A bordo, António de Abreu seguia à letra as directrizes que lhe tinha dado Afonso de Albuquerque. .. Impassível sobre a ponte, estudava atentamente a posição inimiga,
que se distinguia visivelmente a cem braças apenas... Numerosas flechas vinham atravessar a vela maior e enterrar-se profundamente na quilha; porém o barco chinês
continuava a sua rota, silencioso, terrível... Parecia não haver ninguém a bordo.
No entanto, os soldados portugueses esperavam que a ordem de ataque fosse dada pelo seu chefe; estendidos ou deitados no convés, cuidadosamente protegidos, arcabuzes
ou escopetas nas mãos, olhavam ansiosamente através das seteiras a formidável ponte fortificada que se dispunham a atacar.
Agora os gritos de guerra partiam, cada vez mais numerosos, da ponte e das margens do rio; multiplicando os seus esforços, os defensores de Malaca construíam novos
brulotes que depois lançavam em direcção do navio; de-pressa se ouviram, fortes detonações, e grande número de artilheiros que se batiam nas margens do rio tombavam,
mortalmente atingidos pelos arcabuzes dos portugueses. Depois de esperar um momento, aguentando sem ripostar a chuva de flechas que tornava o barco numa verdadeira
floresta de dardos, de resto inofensivos pela sólida protecção da sua fortaleza flutuante, os portugueses comandados por António de Abreu, começavam a atacar energicamente.
Então, um dilúvio de ferro caiu no bairro que ainda se conservava em poder dos sitiados; morteiros, canhões e colubrinas habilmente dissimulados a bordo do barco,
abriram fogo e tomaram de enfiada a rua principal da cidade que conduzia ao porto; os destacamentos que se conservavam neste lugar, foram impiedosamennte desvastados;
novos incêndios se propagavam, cada vez mais próximos.
Em vão os índios dirigiam os tiros da sua artilharia para a fortaleza flutuante que, emfim, o dominava e fulminava mesmo junto das suas posições; os portugueses
prosseguiam no combate, causando-lhes sérias perdas; até aqui, ao abrigo das suas trincheiras, os altivos guerreiros de Mahmoud tinham conseguido aguentar os ataques
de Albuquerque; pensavam poder resistir até ao fim; porém, o novo estratagema, imaginado pelos seus teimosos adversários estragava-lhes os planos e semeava entre
eles a maior confusão; protegidos por cestos que eles tinham habilmente posto ao longo do convés,
e na ponte do barco chinês, os assaltantes podiam sem sofrer graves perdas, dominar os grupos dos adversários e dizimá-los facilmente.
Ressoaram gritos terríveis; a despeito dos esforços furiosos dos guerreiros do rajáh, e das explosões dos morteiros que os índios ainda tinham tentado atirar contra
o navio, o forte flutuante aproximava-se. Apenas estavam a algumas braçadas da ponte que os seus tripulantes se dispunham a abordar por meio de grande luta.
Impassíveis, de armas na mão, os portugueses estavam impacientes por se precipitar ao combate supremo que os tornaria definitivamente senhores de Malaca. Somente
os artilheiros se conservavam nos seus postos, desfazendo os baluartes da ponte, abatendo grupos inteiros, obrigando os destacamentos, que vinham socorrer os índios,
a bater precipitadamente em retirada.
António de Abreu esperava, estendido ao pé dos seus homens; no olhar resoluto brilhava-lhe uma chama estranha. Dentro de poucos minutos iria atacar, enfrentar a
morte, mas pouco lhe importava! Desde o princípio do cerco, combatia corajosamente nas zonas mais perigosas.
Neste trágico momento, sentia-se mais decidido de que nunca a levar a bom fim o plano arriscado, que ele próprio tinha proposto ao capitão-general. E o choque produziu-se,
inevitável. O barco viera de encontro ao porto. O abalo fora tão forte que os portugueses que se encontravam de pé perderam o equilíbrio e foram cair brutalmente
ao comprido; mas de-pressa se levantaram; a voz máscula do seu chefe gritava no meio do crepitar dos arcabuzes:
- Santiago! Prá frente!
Os portugueses levantaram-se como um só homem, sem se preocupar com a chuva de setas que à sua volta caía, e com os tiros de arcabuz dos seus adversários. Após alguns
momentos, de surpresa, os índios de Mahmoud reanimando-se, esforçaram-se por reagir e precipitar no rio estes verdadeiros demónios que saltavam por cima da pavezada
e da ponte e tentavam forçar as suas trincheiras.
Então houve uma terrível confusão. Pulando para fora dos abrigos, nos quais se mantinham prudentemente, António de Abreu e os seus valentes companheiros lançaram-se
ao ataque com uma fúria irresistível; em alguns instantes os guerreiros, que se agarravam obstinadamente à ponte, recuaram, atemorizados; a artilharia do barco chinês
aumentava o tumulto e provocava nas tropas desmoralizadas novas e importantes perdas.
- Pra cima desses cães!
Agora era em vão que Mahmoud se esforçava por encorajar os hesitantes e reanimar a coragem dos defensores de Malaca; António de Abreu e ?cerca de trinta dos seus
heróicos companheiros conseguiram penetrar nas suas posições; agora, de espada na mão, avançavam soltando bárbaros gritos ?de guerra.
Manejando as espadas, que brandiam com braço firme, os assaltantes acolheram bravamente os inimigos, que tentavam passar ao contra-ataque. As armas chocavam-se,
broqueis e escudos enfrentavam-se, lutas corpo a corpo recomeçavam, desapiedadamente; porém, os archeiros de Mahmoud, temendo atingir os camaradas que combatiam
misturados com os seus adversários, interrompiam prudentemente o ataque. Uma espessa nuvem de fumo
elevava-se sobre a ponte, enquanto que do barco chinês partiam, numerosos tiros de arcabuz, que ainda mais aumentavam o terror e o pânico.
A bordo das caravelas, as equipagens seguiam, ansiosamente o desenrolar da acção que deveria tornar os portugueses senhores de Malaca. Afonso de Albuquerque, querendo
sustentar activamente o assalto do seu intrépido auxiliar mandava abrir fogo a toda a artilharia, que desvastava impiedosamente os torreões da ponte, tornando a
situação dos sitiados cada vez mais difícil. As tropas eram obrigadas a aventurar-se em terreno descoberto, oferecendo assim alvos fáceis aos atiradores portugueses.
O capitão-general, que desde o começo seguira a acção, verificava com a maior satisfação que a operação se desenrolava em excelentes condições. As chamas elevavam-se
sobre a ponte onde a batalha continuava raivosamente; os portugueses avançavam protegidos pela artilharia do forte flutuante. Numa das margens do rio, a maior parte
das habitações tornavam-se pasto de chamas e o palácio de Mahmoud acabava de se consumir; as nuvens de fumo negro elevavam-se da cidade incendiada, obscurecendo
o céu estrelado. A briza ligeira que soprava do largo não conseguira temperar o calor sufocante. Um insuportável cheiro a queimado empestava a atmosfera. Pelas ruas,
os habitantes fugiam para todos os lados, espavoridos. Podia-se distinguir a caravana que formavam para lá do rio. Durante horas, tinham andado corridos dos jardins
e das casas onde julgavam encontrar um refúgio seguro; os projécteis dos assaltantes e dos defensores de Malaca tinham-lhes causado severas perdas, por isso se aglomeravam
na margem do rio, a
pouca distância onde os soldados de Albuquerque tinham efectuado o seu primeiro desembarque.
Contudo, o capitão-general não se preocupava com o lamentável êxodo deste rebanho humano. O seu olhar fixava-se com insistência no rio, cujas águas reflectiam tragicamente
o incêndio. António de Abreu continuava a combater com ardor, sempre recrudescente, sobre a ponte; desprezando o perigo que corria, o gentil-homem português conduzia
corajosamente os seus valentes companheiros; uma flecha atingira-o num ombro; pouco importava! Não cessava de esgrimir sobre a ponte atravancada de cadáveres. Um
acre cheiro de sangue, de fumo e de pólvora pairava na atmosfera; semelhantes a demónios, os portugueses arreavam as velas do barco chinês; e pouco a pouco - recuando
perante eles, o adversário perturbado e dizimado pela artilharia - os portugueses na esteira do seu estandarte glorioso, conseguiram conquistar a posição que iria
a breve trecho torná-los senhores de Malaca, a Voluptuosa.
XXII
O justiceiro
Rui da Mota imobilizara-se ao reconhecer João DAmblayves; depois, bruscamente, largando Leonor que sustinha nos braços no momento em que o gascão, ajudado por Bignache,
arrombava a porta, foi encostar-se à parede; passando a mão pela fronte húmida, o miserável preguntava a si próprio se não seria joguete duma alucinação.
Mas João avançava; parecendo não se importar com o português, precipitou-se para a rapariga, estendida no tapete; quanto a Bignache, colocava-se resolutamente em
frente da porta, de espada na mão, resolvido a impedir a fuga ao ex-lugar-tenente da caravela azul.
- Leonor! Emfim! Encontrei-te! O gascão erguia agora nos braços a capitã, cujos longos cabelos se tinham solto durante a luta que mantivera com seu primo. Leonor
abria os olhos e fixava-os no recém-chegado. Uma expressão de profunda surpresa desenhava-se-lhe no rosto.
- João! murmurou ela. Não é possível!
- Sim, sou eu, meu amor, tranquiliza-te! Nada
mais tens a temer de hoje para o futuro. Vim para te salvar.
Neste momento os dois jovens esqueceram tudo: a presença de Rui, aturdido pelo golpe teatral que acabava de se produzir no momento em que Leonor parecia à sua completa
disposição; os progressos do incêndio que se propagava através do palácio com uma rapidez inquietante - para só pensar na felicidade de se tornarem a ver sãos e
salvos. A rapariga tinha passado os braços à volta do pescoço de João. Aniquilada pela luta que sustentara contra o bandido não tinha sequer forças para falar.
Durante alguns instantes, Rui da Mota continuara imóvel, deitando em torno olhares de animal perseguido. A chegada do francês produzira nele uma profunda decepção,
misturada de terror. Contudo, a hesitação do ex-lugar-tenente não se prolongou; passado o primeiro momento de espanto e pensando no terrível perigo que corria, esboçou
uma prudente retirada em direcção à porta, quando ouviu uma voz gritar-lhe:
- Alto lá, sr. Rui da Mota! Por aqui não passa você!
Bignache erguia-se no caminho que o miserável se dispunha a transpor. De espada na mão, intimava-o a parar, e como o patife não obedecesse, o bravo rapaz cheio de
raiva, acrescentou:
- Mais devagar! Creio que o sr. conde tem. umas continhas a ajustar consigo.
João voltara-se ao ouvir o seu fiel criado exprimir-se deste modo. À vista de Rui, de-pressa voltou à realidade; depôs Leonor num divan próximo, depois, lentamente,
avançou para o português que, lívido, esperava de pé no meio da casa.
- Chegou o momento da justiça, sr. D. Rui!
Uma chama implacável brilhava agora nos olhos do gentil-homem. João aproximava-se, fixando o ex-lugar-tenente do São Jorge, cuja mão trémula apertava agora o punho
da espada.
Rui sentia a sua calma desvanecer-se; sabia que não podia esperar a mínima misericórdia da parte do gascão. Grossas gotas de suor caíam-lhe da testa escorrendo-lhe
pelo rosto pálido.
Durante um momento os dois homens ficaram frente a frente. Rui ia perdendo visivelmente a confiança em si mesmo. Um ruído surdo fê-lo estremecer. Uma trave incendiada
desabara no corredor próximo e um fumo mais espesso invadia o quarto em que se encontravam.
- O fogo. arquejou, tentando distrair a atenção do seu adversário. Não compreendeis que nos vai cortar a retirada! É preciso fugir.
Porém, João dAmblayves não fez caso:
- Pouco me importa o incêndio, Rui da Mota! Não deixarei este quarto sem primeiro saldar as nossas contas!
O português sentia-se agora perdido:
- Verdadeiramente, não compreendo o que quereis dizer, balbuciou. Ainda agora tentava socorrer Leònor, quando interviestes.
- É falso! Se João não aparecesse, o que vos disp unheis a fazer-me.
Leònor tinha-se levantado; atordoada e surpreendida primeiro, recobrava pouco a pouco a consciência da situação sem procurar compreender o seguimento das dramáticas
peripécias em que o seu noivo, que ela julgava morto por ordem do seu primo, conseguira chegar a Malaca e encontrar precisamente o lugar em que ela se encontrava
prisioneira.
As palavras do miserável tinham-na indignado; por isso, interviera, e o seu dedo ameaçador apontava a figura sinistra do infame Rui.
- É, inútil procurar desculpar-vos e mentir, Rui da Mota. Repito-vos que vamos saldar as nossas contas.
O português levantou a cabeça; as feições transtornadas, os dentes cerrados, abandonara a atitude humilhante que adoptara; compreendia que era inútil dora-avante
usar de astúcia perante o francês.
- Está bem! declarou com uma voz que se esforçava por tornar calma. Assassinai-me!!!
Um sorriso de desprezo perpassou no rosto de João.
- Ao que parece, Rui da Mota, tomais-me por um celerado da vossa espécie. Eu não sou daqueles que compro alguns miseráveis para fazer estrangular um rival sem defesa!
- Não compreendo o que insinuais! Se vos atacaram.
- Sim, bem sei, interrompeu o gascão. Ides acusar Manuel e os seus cúmplices! Essa precaução é inútil! Se a esses patifes pertencem graves responsabilidades no facto,
já tiveram implacável castigo. Manuel e Gabriel morreram há pouco; quanto a Joaquim encontra-se actualmente a bordo da caravela azul. As suas acusações contra vós
foram gravíssimas, assim como as do vosso antigo cúmplice Coelho, que surpreendeu, por um feliz acaso, certa conversa no momento em que vos disp unheis a embarcar
com a vossa cativa! Foi assim que eu soube que vos dirigíeis para Malaca, e que pude chegar até aqui, a bordo da caravela azul!
Leonor, palpitante, ouvia a breve narrativa do seu noivo, mas o seu olhar de-pressa se desviou dos
dois homens, que absorvidos na sua dramática discussão, pareciam esquecer a perigosa situação em que se debatiam.
- Cuidado! interrompeu. O incêndio começa a devorar esta parte do palácio!
Um fugitivo clarão iluminou os olhos do traidor. Pensou que esta observação de sua prima viesse distrair o gascão e dissuadi-lo dos seus projectos; porém de-pressa
compreendeu que as suas esperanças eram vãs.
- Temos que fugir, Leonor, e alcançar o acampamento do capitão-general. No entanto, antes disso, tenho de cumprir a minha obra de justiceiro !
E incitando com um gesto a capitã a recuar alguns passos, João voltou-se para Rui.
- Agora, nós, senhor. Não sou o assassino que julgais. Desde que temos contas a ajustar, vamos fazê-lo já, e de espada na mão!
Bignache e Leonor não puderam impedir-se de
protestar:
- Mais vale matar esse cão, sr. conde! exclamou Savínio. Cem vezes o mereceu já!
A "Amazona dos Mares" segurava agora o braço do noivo, tentando fazê-lo abandonar a sua decisão. Sabia Rui hábil espadachim e temia de novo pela vida daquele que
a tinha providencialmente socorrido; no entanto, o gascão continuava
inabalável.
- Afastai-vos! Não partirei antes. E o tempo voa! De resto, Bignache pode conduzir-te para lugar seguro, fora do palácio.
O fiel criado dispunha-se a obedecer, mas a rapariga recusou energicamente. Não deixaria a sua
antiga prisão, emquanto aquele que amava se encontrasse em perigo de morte.
- Já que assim o quisestes, basta de palavriado! Em guarda, sr. Rui da Mota!
O traidor não tinha esperado estas palavras para desembainhar a espada. Agora, a dois passos um do outro, os dois homens erguiam-se, prontos a combater até ao fim.
O dramático encontro dos dois implacáveis adversários era impressionante; um fumo acre invadia cada vez mais o quarto que as chamas iluminavam com o seu clarão vermelho.
Encostados contra a parede, Leonor e Bignache esperavam. O bravo Savínio conhecia há muito tempo a destreza do seu patrão no manejo da espada; por isso conservava-se
optimista quanto ao resultado deste combate; contudo, não se dava o mesmo com Leonor, que com o rosto pálido, o olhar inquieto, tremia pela vida de João, preguntando
ansiosamente a si própria se o não iria perder no mesmo momento em que a Providência acabava de os tornar a reunir.
Porém, o gascão parecia não ter a menor apreensão; desembainhara a espada, e os olhos brilhantes fixavam-se em Rui. Nem um músculo do seu rosto tremia. Ao contrário,
a fisionomia do português contraía-se horrivelmente, mal disfarçando os seus receios. A cólera e a inquietação faziam tremer-lhe a mão.
-Estais pronto, sr. D. Rui? O português nem sequer respondeu ao seu anta gonista. Avançou furiosamente, iniciando o combate; impassível, João aguentou os primeiros
assaltos. Por duas vezes Rui atacou. O francês ripostou
habilmente, afastou-se e aparou o golpe com mão de mestre.
Durante alguns instantes, o combate prolongou-se. Bignache e Leonor seguiam ansiosamente os dois adversários, que se defrontavam com uma energia feroz. A temperatura
era sufocante, o fumo metia-se pela garganta, e numerosos estrondos, seguidos de desabamentos que se sucediam agora no corredor vizinho, indicavam que toda a retirada
se tornava cada vez mais perigosa, cada vez menos segura; contudo parecia que os quatro ocupantes do quarto esqueciam momentaneamente o perigo que o incêndio os
fazia correr.
Durante alguns minutos, Rui da Mota empregou esforços sobrehumanos para derrotar o adversário, mas João repelia sempre os seus ataques com uma agilidade desconcertante,
que arrancava exclamações de admiração a Leonor; por sua vez Bignache encorajava com palavras o amo; no entanto, João parecia não se aperceber da presença da noiva
e do fiel criado; após ter frustrado a ofensiva do português, passava da defesa ao ataque; e agora era à vez de Rui se esquivar aos golpes que o adversário lhe enviava.
O ex-lugar-tenente da caravela azul sentia-se perdido. A cara reluzente de suor, os dentes cerrados, tentava desviar a terrível lâmina, mas os ataques de João tornavam-se
cada vez mais temíveis; extenuado, o traidor descobriu imprudentemente o peito. O gascão caiu a fundo sobre ele. Ouviu-se um grito atroz. com o corpo atravessado
de lado a lado, o miserável tombou, vencido. João dAmblayves tinha feito justiça.
Ainda durante alguns segundos, de espada na
mão, o vencedor contemplou o adversário que em
vão tentava reerguer-se. o miserável estava ferido
de morte. De novo lhe escapou um gemido, e
uma espuma de sangue lhe veio aos lábios.
-João! Meu amor!
A capitã não se contendo, corria para o seu
noivo; passava-lhe um braço à volta do pescoço,
?encostando amorosamente a cabeça ao seu ombro,
o rosto resplandecendo alegria.
Agora, soerguendo o corpo, as feições transtornadas pelo sofrimento, o português via por fim reunidos os dois seres a quem tanto se tinha esforçado por separar.
O amor triunfara do ódio. Esboçou um gesto de impotência. A vitória do rival
detestado constituía para ele o maior dos castigos.
O seu punho estendeu-se para os dois noivos, mas
de-pressa o corpo foi agitado por uma derradeira
convulsão. A morte completava a sua obra.
Bignache veio lembrar ao seu amo o terrível
perigo que corriam, se se demorassem mais um só
instante que fosse naquela casa.
Enormes chamas vinham lamber as paredes e,
como o gascão tentasse aproximar-se das gelosias,
teve que recuar.
-É impossível passar por ali, gritou João.
Temos de tentar a saída pelo corredor, a única que
nos é agora possível!
O gentil-homem não se demorou em explicações; erguendo nos braços robustos a capitã meio
desfalecida, avançou para a porta através das nuvens de fumo espesso que invadiam o palácio.
Pedaços de parede abatiam-se produzindo um estrondo ensurdecedor.
Alguns instantes, cegos e sufocados, João apertando
estreitamente a sua noiva contra o peito, avançou ao acaso, seguido de Bignache. Tentava alcançar a escadaria, junto da qual cruzara a sua espada pouco tempo antes
com Manuel. Orientando-se dificilmente, João tropeçou num corpo estendido. De-pressa reconheceu o cadáver de Gabriel.
- Pela direita! gritou ao companheiro. Creio que estamos em bom caminho!
Os dois homens tinham de saltar por cima dos destroços que impediam a passagem desde o desmoronamento da abóbada; com os cabelos e as vestes chamuscadas, João protegia
o melhor que podia Leonor, que se deixava transportar, incapaz de reagir ou fornecer aos seus libertadores a mínima indicação que os pudesse guiar no decurso desta
fuga.
O palácio de Mahmoud era agora um imenso brazeiro; por todos os lados caíam traves, desfazendo-se em centenas de faúlhas; os inúmeros tapetes e tapeçarias constituíam
presa fácil para as chamas; aqui e ali jaziam cadáveres de soldados ou de criados que não tinham podido fugir a tempo. Era preciso que João estivesse animado por
uma energia feroz para prosseguir a sua marcha, a despeito dos obstáculos que se erguiam à sua frente. O pensamento de que só ele poderia salvar Leonor da horrível
morte que a ameaçava, multiplicava-lhe a coragem. Soltou uma exclamação de júbilo quando conseguiu alcançar o alto da escadaria.
Ousadamente João começou a descê-la. As chamas à sua volta atingiam e devoravam as vastas passadeiras que cobriam os degraus. Contudo, avançava, apertando sempre
a noiva ao peito.
Mas eis que, de-repente, no momento em que João esperava alcançar o rés-do-chão do palácio, se ouviu uma formidável explosão. A escadaria, rodeada de chamas por
todos os lados, abateu. Emquanto o pobre Bignache, que ainda não se separara do seu amo, dava um pulo para trás soltando um grito de desespero, João dAmblayves desaparecia
no meio de milhões de faúlhas.
- Sr. conde! Sr. conde!
Aflicto, Bignache montava-se no corrimão, deixando-se escorregar até abaixo. Meio cego, esforçava-se por descobrir o seu amo; porém, o fumo tornara-se ainda mais
denso. Por duas vezes se lançou atrás do brazeiro e por duas vezes se viu obrigado a recuar.
- Meu Deus! Morreram, está tudo perdido!
O bravo rapaz já estava com as esperanças perdidas, quando de-repente se imobilizou; a menos de três passos distinguia duas formas estendidas no chão, junto aos
destroços de traves e pedaços de parede ainda em braza. -Sr. conde!
Arrebatadamente, esquecendo o perigo, Bigna??che precipitava-se. De-pressa se certificou que se tratava dos noivos. Na queda, o gascão batera i com a cabeça contra
o corrimão. Jazia inanimado; iLeonor, a quem o corpo de João amortecera o choque, levantava-se dificilmente.
Savínio apressou-se então a ajudar a capitã, e apenas esta se pôs de pé, meia inconsciente, o criado apontou-lhe o corpo de João.
- Ajudai-me! É preciso transportá-lo lá para fora!
Unindo as suas forças, e erguendo o ferido pelos joelhos e pelas axilas, Leonor e Bignache esforçavam-se por arrancar João ao brazeiro. Durante alguns instantes
hesitaram na direcção que deviam, tomar. O solo queimava sob os seus passos. Estavam presas num verdadeiro cerco de fogo.
Leonor torcia as mãos com desespero, e grossas lágrimas corriam-lhe pelas faces. Decididamente a fatalidade persistia em atormentá-los. Ela e o seu noivo estariam
destinados a sucumbir, mal libertos ainda das garras de Rui da Mota? A retirada para o jardim parecia-lhes impossível agora.
- Estamos perdidos, Bignache! Para que havemos de insistir?!
A rapariga olhava tristemente para o fiel criado, mas este fez-lhe sinal de erguer com ele o corpo do seu amo.
- A três passos, à nossa esquerda! arquejou. Parece-me distinguir um alçapão!
A capitã logo divisou a saída que lhe designava o seu companheiro. Onde conduziria ela? Aventurando-se por ali, não se iriam expor a ficar sepultados sob as ruínas
do palácio?
A "Amazona dos Mares" não teve tempo para reflectir. A única via de salvação era aquela. A atmosfera tornava-se irrespirável e o fogo propagava-se ao seu vestido;
com um gesto brusco, apagou a chama que devorava a sua saia, depois dirigiu-se correndo com Bignache para o alçapão, através do qual desapareceu.
- Atenção! Temos uma escada à nossa frente!
Savínio fechou solidamente o alçapão atrás de si; agora o fumo tornava-se menos espesso e mais
respirável. Leonor e o companheiro transportavam com dificuldade o corpo inerte de João. Eram obrigados a avançar nas mais densas trevas. -Não posso mais! suspirou
Leonor após alguns instantes.
- Coragem! São apenas mais alguns passos!
-Mas, sabes onde conduz esta escada? Parece-me interminável!
- Para algum subterrâneo, sem dúvida. Bignache não pôde concluir. A rapariga, esgotada, acabava de cair pesadamente ao pé do corpo do seu noivo.
-Minha senhora? O que tendes? A capitã tinha desmaiado; Savínio, então, deixando-a estendida nos degraus ao lado de João, resignou-se a aventurar-se só, a-fim-de
certificar-se se poderiam sair dali.
A temperatura fresca que reinava através do estreito corredor por onde ele avançava e uma certa humidade que ressumava das paredes, reanimaram-no, depois da atmosfera
irrespirável do palácio incendiado. Contudo, foi extremamente prudente ao começar a descida; ruídos surdos faziam-no estremecer e parar por vezes, anunciando-lhe
que o incêndio prosseguia nos seus estragos, furiosamente.
Bignache certificou-se primeiro da solidez do alçapão que se encontrava por cima da sua cabeça. Era necessário evitar a ameaça de ficarem sepultados sob os escombros
do palácio destruído. Quem poderia, de facto, procurar os três infelizes, ?refugiados neste subterrâneo?
Porém, Bignache não continuou na sua inspecção; parecera-lhe ouvir um gemido perto dali, a atlguns passos dele. Imobilizando-se e apurando o
ouvido, pôde convencer-se de que não se enganava. Os gemidos aumentavam agora.
Bignache franziu as sobrancelhas; um pouco inquieto, o bravo rapaz preguntava a si próprio que novo perigo o esperaria ainda; contudo, a sua hesitação não se prolongou;
munindo-se da sua espada, pronto a qualquer eventualidade, recomeçou a descer os degraus.
XXIII
Regresso à claridade
Quanto mais avançava, mais Bignache podia distinguir uma claridade confusa à sua frente; sentia mesmo um cheiro desagradável a queimado. Os gemidos e lamentações
aumentavam.
Por fim Savínio encontrou a solução deste enigma. Apenas acabara de descer alguns degraus, distinguiu um subterrâneo bastante vasto, iluminado por um respiradouro.
Uma luz confusa, que dificilmente penetrava através do espesso fumo que vinha do lado de fora, em consequência do incêndio da cidade, permitia distinguir algumas
figuras acocoradas ao fundo, encostadas umas contra as outras.
O recém-chegado esperava ter que sustentar um combate, mas de-pressa verificou que se tratava de algumas mulheres do harém do rajáh e de alguns escravos. Os desgraçados,
fugindo ao sinistro, tinham-se refugiado no subterrâneo. Tremiam de terror; quási não notaram a presença de Bignache, que mais tranquilizado, se aproximava agora.
O olhar do fiel criado abandonava o grupo para
se fixar num vasto tanque fixado no solo, à volta do qual os desgraçados se agrupavam; um pequeno fio de água corria, produzindo um murmúrio cristalino e ia perder-se
na cisterna quási cheia.
- Água! Água! Estamos salvos.
Incapaz de se conter por mais tempo, o gascão embainhou a espada e depois, afastando dois refugiados que se encontravam no seu caminho, inclinou-se e mergulhou com
alegria as duas mãos na límpida água. Durante alguns segundos, divertiu-se como uma criança ao contacto com o líquido fresco. Parecia-lhe delicioso. Imóveis, os
fugitivos olharam-no espantados.
Porém, Bignache de-pressa se interrompeu. Pensava nos noivos que deixara nas escadas, desmaiados; por isso, logo se levantou e subiu lentamente os degraus. Em poucos
minutos chegou ao local onde se encontravam Leonor e João. Ocupando-se primeiro da capitã, ergueu-a cuidadosamente nos braços e transportou-a para a cisterna; em
seguida fez o mesmo ao seu amo; depois, rasgando um bocado à sua camisa, molhou-a e refrescou o rosto do gascão.
Ao cabo de alguns instantes Leonor abriu os olhos, olhando com estupefacção à sua volta. Preguntava a si própria onde estaria; Bignache depressa a tranquilizou,
contando-lhe em que circunstâncias tinha descoberto este refúgio, cuja solidez lhes permitia esperar um pouco, sem temer o incêndio que acabava de devorar totalmente
o palácio de Mahmoud.
A rapariga e o gascão interromperam o seu diálogo para se ocupar de João. O infeliz respirava; contudo, a despeito de esforços encarniçados, os dois companheiros
não conseguiram fazê-lo recobrar
os sentidos; o choque que sofrera na queda fora demasiado violento.
A fisionomia da capitã tornou-se sombria; esquecia todos os perigos que acabava de correr para apenas pensar no estado em que se encontrava o noivo. Dominando a
sua extrema fraqueza, inclinava-se junto dele, prodigalizando-lhe os mais delicados cuidados.
- Ouve, meu amor. sou eu. Leonor.
Porém, o gascão não ouvia a voz daquela que tão corajosamente libertara. com os olhos fechados, a cabeça encostada aos joelhos de Bignache continuava imóvel; às
vezes, o barulho do incêndio e o ruído mais longínquo do combate espaçando-se um pouco, permitiam melhor ouvir a sua respiração vacilante.
A gente que se refugiara ali, continuava a observar os três com uma desconfiança misturada de espanto; mas os desabamentos surdos e o ruído das explosões que se
sucediam sem interrupção por cima das suas cabeças breve lhes ocuparam a sua atenção. De novo se encostavam uns aos outros, atemorizados; com os olhos muito abertos,
esperavam a todo o momento ficar esmagados sob as ruínas do palácio.
Mas algumas horas se passaram, sem que a receada catástrofe se produzisse. Parecia, ao contrário, que o sinistro diminuira de intensidade. No entanto, as detonações
dos morteiros e o estrondo dos canhoneios continuavam sempre, parecendo aproximar-se.
com o coração apertado por uma angústia atroz, Leonor e Bignache não abandonavam João. Molhavam-lhe o rosto frequentes vezes, sem contudo conseguir arrancá-lo à
sua imobilidade.
- Está tudo perdido, meu pobre Bignache! Ele vai morrer!
- Deus vela por nós. É preciso esperar ainda. esperar sempre! O sr. conde é vigoroso, e prodigalizando-lhe todos os cuidados que o seu estado requere, conseguiremos
reanimá-lo.
- Sem dúvida, mas como conseguiremos sair?
A rapariga meneava tristemente a cabeça. Pelo tumulto que se intensificava lá fora compreendia a impossibilidade de deixar o subterrâneo, sem correr o risco de ser
aprisionada ou massacrada.
Há quanto tempo tinham os infelizes procurado refúgio no fundo deste recinto, cheio de fumo e mergulhado em completa obscuridade? Não o sabiam; porém as horas pareciam-lhes
lentas como séculos; de tempos a tempos a capitã levava a mão em concha à cisterna e bebia com avidez. Os outros foragidos imitaram várias vezes o seu exemplo. Parecia,
de resto, terem abandonado a desconfiança que haviam manifestado a princípio.
Emquanto Leonor olhava angustiada para o seu noivo inconsciente, Bignache preguntava preocupadamente a si próprio qual seria a situação em Malaca. Quem teria a vantagem?
Os portugueses de Albuquerque ou os sitiados? Se fossem estes últimos, os três fugitivos não poderiam alimentar a mínima esperança. Rui da Mota já tinha expiado
o seu castigo, mas Mahmoud, -seu aliado, não lhes perdoaria, se os seus soldados viessem surpreendê-los naquele esconderijo.
O cheiro forte a fumo, que se introduzia ali pelo respiradouro, persistia, insuportável. A claridade incerta do dia, substituía o clarão do incêndio. O combate parecia
ter cessado quási subitamente.
Durante mais de uma hora, Bignache esperou ainda; o silêncio impressionante que sucedia ao tumulto, admirava-o e inquietava-o ao mesmo tempo: preguntas terríveis
vinham-lhe ao espírito: teriam os portugueses reembarcado nas caravelas, incapazes de dominar a resistência dos sitiados? Ou teriam ao contrário conseguido conquistar
Malaca?
Incapaz de continuar mais tempo reduzido às suas únicas conjecturas, o gascão afastou-se de Leonor, que continuava velando atentamente João dAmblayves; depois dirigindo-se
ao respiradouro, agarrou-se solidamente aos varões de ferro e ergueu-se até à abertura.
Bignache olhou para fora. Não via nada. Somente escombros ennegrecidos e ainda fumegantes surgiam a seus olhos. Alguns cadáveres jaziam a pouca distância. Nem um
só ser vivo! Nem sequer um guarda índio que lhe permitisse supor que a cidade continuava em poder do rajáh.
Cada vez mais desiludido, o gascão foi juntar-se à capitã.
- Então? interrogou esta. O que é que se passa?
Bignache levantou os ombros, furioso:
- É absolutamente preciso que eu saiba onde nos encontramos! respondeu.
Antes que a sua companheira tivesse tempo de o interrogar, o bravo rapaz dirigiu-se resolutamente para as escadas que lhes tinha permitido durante a noite o acesso
ao subterrâneo.
com mil precauções, Savínio de espada na mão, prosseguiu entre uma obscuridade quási absoluta; teve de parar. A sua cabeça batera brutalmente contra o alçapão que
fechara atrás de si algum tempo antes.
O gascão fez uma careta e soltou um grito de dor, mas de-pressa se refez, e após esfregar durante uns instantes a cabeça dorida, tentou vencer o obstáculo que lhe
barrava a passagem.
O bravo rapaz teve de empurrá-lo várias vezes, para conseguir os seus intentos. Pedaços de paredes e pedregulhos tinham caído dentro do alçapão quando ele por ali
passara; com repetidos empurrões conseguiu por fim abri-lo. Soltou um suspiro de satisfação.
Segurando a espada, Bignache saiu, emfim, do subterrâneo. Durante alguns instantes, deslumbrado pelos raios do sol fechou os olhos, mas de-pressa os habituou à claridade
e pôde então contemplar o cenário de desolação que o rodeava.
Do magnífico palácio de Mahmoud, apenas restavam paredes ennegrecidas e ruínas fumegantes. O fogo tinha devorado tudo, aqui e ali jaziam cadáveres carbonizados;
numerosos soldados e criados tinham sido surpreendidos e envolvidos pelas chamas, quando fugiam; asfixiados, tinham tido uma morte horrível.
Bignache interrompeu a sua macabra investigação; ouvia a pouca distância um ruído insólito. O gascão encostara-se a uma coluna que ficara de pé, pronto a vender
caro a sua vida em caso de ataque; porém, de-pressa verificou que o barulho era produzido por uma dezena de abutres, grandemente ocupados, a alguns passos dali,
a devorar um cadáver. As aves de rapina, perturbadas no seu sinistro festim, tinham ido pousar nos ramos duma magnólia, esperando a partida do intruso para recomeçar
o seu banquete.
Tranquilizado, Bignache continuou avançando e olhando com desconfiança à sua volta. A atmosfera
sufocava tanto era o fumo. O incêndio não acabara de todo; aqui acabavam de se consumir algumas das madeiras preciosas do palácio; ali, no jardim, os canteiros estavam
reduzidos a cinza. O silêncio continuava a pesar sobre as ruínas. O gascão impressionado por esta quietude e por este cenário de morte, preguntava a si mesmo quem
teria vencido, quando, subitamente, distinguiu à sua esquerda alguns vultos que se aproximavam, e pareciam dirigir-se para as ruínas. Desconfiado, Savínio escondeu-se
atrás dum pedaço de parede; encolhido, sustinha a respiração, observando atentamente os recém-chegados através duma fenda.
O rosto do bravo rapaz, que primeiro se crispara, logo serenou. Facilmente reconhecia os trajes que traziam os intrusos; a cabeça coberta com capacetes, armados
de arcabuzes, de lanças e de escudos, pertenciam, sem dúvida, ao pequeno exército de Afonso de Albuquerque.
Então Bignache não pôde conter a sua satisfação. A presença dos portugueses neste local, indicava-lhe claramente que eles tinham conseguido conquistar Malaca. A
batalha terminara com vantagens para eles; então, sem hesitar, aventurou-se para fora do seu esconderijo, dirigindo-se apressadamente para os recém-chegados.
- Olá. Amigos! Santiago.
Os soldados tinham parado, intrigados, ao ouvir o habitual grito de guerra português. De-pressa divisaram o gascão, que se aproximava brandindo a espada e fazendo
grandes gestos. Em pouco tempo chegou junto de um sargento e de dois homens que marchavam para a escadaria dos jardins do palácio, completamente destruído.
- Alto lá! Quem és tu?
Desde que navegara a bordo da caravela azul e que tinha conversado assiduamente com Isabel, o gascão falava sofrivelmente o português; por isso, deu-se pressa em
pôr os desconhecidos ao corrente do que se passava.
As explicações que lhes fornecia o bravo rapaz, pareciam não inspirar nenhuma confiança ao sargento, e aos soldados cada vez mais numerosos que se juntavam à sua
volta. Realmente o aspecto de Bignache não era tranquilizador. com o fato em farrapos, os cabelos desgrenhados, o rosto ennegrecido pelo fumo, agitava-se como um
diabo para convencer os recém-chegados.
- Mas, se vos repito que eu consegui, com o meu amo, libertar a "Amazona dos Mares"!
Os portugueses há muito que conheciam a reputação de Leonor e sabiam também que o comando da caravela azul fora confiado a João dAmblayves; por isso, a pouco e pouco
foram-se conhecendo.
- E onde está o teu amo e a capitã? interrogou o sargento, deitando uma olhadela desconfiada ao fiel criado.
- Não têm mais que seguir-me, respondeu Savínio. Conseguimos refugiar-nos num subterrâneo no decurso do incêndio, mas o meu amo está gravemente ferido. É absolutamente
indispensável tratá-lo o mais breve possível. Venham de-pressa, suplico, o menor atraso pode ser fatal!
- Toma cuidado! Se pensas atraiçoar-nos atravesso-te com a minha espada!
Esta ameaça proferida pelo português pareceu não impressionar o gascão:
- Tomai a minha espada, declarou estendendo a arma ao seu interlocutor. Isto vos provará que nada tendes a temer da minha parte.
Dez minutos depois, os portugueses puderam verificar que Bignache falava verdade. Conduzidos por ele, de-pressa chegaram às escadas que desciam para o subterrâneo.
Apenas o pequeno grupo apareceu no limiar, ouviram-se gritos de terror; as mulheres e os escravos que se haviam refugiado na cisterna, imaginaram que iam ser implacàvelmente
massacrados pelos soldados. Foi preciso Leonor intervir para os tranquilizar. Quando os refugiados ficaram mais sossegados, a rapariga levantou-se ajudada por Bignache,
e designando o seu noivo inerte:
- Suplico-vos, meus amigos, pediu com uma voz angustiada, transportem-no para o acampamento o mais de-pressa possível.
O sargento e os seus homens tinham reconhecido a "Amazona dos Mares"; por isso obedeceram-lhe com satisfação.
Deixando o grupo lacrimoso, os portugueses afastaram-se; dois soldados abrindo o cortejo, transportavam o ferido, logo seguidos de Bignache. Leonor, amparada pelo
sargento, dificilmente transpunha os degraus; a despeito da sua obstinação, tiveram também de ampará-la.
Meia hora depois, o grupo chegava ao acampamento português e dirigia-se para a tenda do capitão-general. Afonso de Albuquerque estava ocupado a conferenciar com
António de Abreu e Fernão Perez de Andrade, quando um dos oficiais lhe anunciou a volta da capitã.
Imediatamente Albuquerque foi ao encontro de Leonor. Até aqui, somente entregue ao seu desejo
de conquistar Malaca, quási não tinha pensado nela. A desaparição de João e de Bignache, fizeram-no supor que eles tivessem sucumbido nos primeiros ataques; por
isso o capitão-general deixou transparecer a sua satisfação quando viu a rapariga na sua tenda.
Em poucas palavras o sargento contara-lhe como tinha encontrado Bignache, mas Albuquerque interrompeu-o com um gesto. Via que Savínio ardia de desejos de o pôr ao
corrente de tudo ele próprio e de lhe falar directamente.
- O que é que se passa, meu valente? .
- Simplesmente, Excelência, o meu amo encontra-se em perigo de morte. Foi gravemente ferido. Se pudésseis mandar chamar o vosso médico.
Albuquerque imediatamente satisfez o desejo do gascão, e alguns minutos depois o físico examinava atentamente o ferido que o capitão-general mandara deitar no seu
próprio leito de campanha. Durante um momento, Leonor fitou com angústia o médico que observava cuidadosamente o gascão. Sentiu-se libertada duma terrível opressão
quando ele declarou que respondia pela vida de João dAmblayves, a-pesar-da gravidade do seu estado.
Então tranquilizada sobre a sorte daquele que amava, a capitã pôde responder às preguntas que lhe eram feitas; soube igualmente como Albuquerque e os seus soldados
tinham conseguido apoderar-se da cidade no meio de grande luta. Após encarniçado combate que se prolongara muitas horas, António de Abreu conquistara a ponte fortificada.
A artilharia do barco chinês tinha dizimado impiedosamente os defensores que, desmoralizados, tiveram de abandonar as suas posições.
Vencedores, mas esgotados pelos terríveis esforços que tiveram de empregar desde o princípio da acção, os portugueses, a quem se tinham juntado novos reforços enviados
a toda a pressa por Albuquerque, haviam passado o resto da noite na posição conquistada. No dia seguinte, desde as primeiras horas da manhã, quiseram ampliar as
suas conquistas; verificaram então, estupefactos, que os últimos defensores tinham evacuado a cidade favorecidos pelas trevas e tinham-se afastado para longe, conduzidos
por Mahmoud.
Loucos de alegria, felizes por terem terminado, emfim, a luta, os portugueses principiaram o saque. No mesmo momento em que o conquistador conversava com Leonor,
eles apossavam-se das riquezas inumeráveis da cidade. A sagacidade do capitão-general permitira-lhes vencer, com um mínimo de perdas; somente oitenta soldados tinham
sucumbido desde o começo do ataque até à tomada da ponte. As perdas sofridas pelos guerreiros do rajáh eram cem vezes mais numerosas. Este belo sucesso vinha afirmar
o poder dos portugueses nestas regiões, e logo que soube do seu triunfo Albuquerque quis provar ao seu exército que saberia consolidá-lo. Fernão Perez de Andrade
que tão brilhantemente tomara parte no ataque, provocando a admiração dos soldados pelo seu profundo desprezo pela morte e pelo seu ardor impetuoso, recebeu o título
de grande almirante dos Mares da China; quanto a António de Abreu, cuja intervenção se afirmara tão decisiva para a conquista da ponte fortificada, devia partir
imediatamente comandando uma parte da frota para tentar apoderar-se das famosas ilhas Molucas, reino das especiarias.
Leonor não se demorou mais ao pé do conquistador; após ter partilhado do seu frugal almoço, ordenou que transportassem João para bordo da caravela azul. Pouco tempo
depois, dirigia-se para o São Jorge, acompanhada de Bignache, onde a tripulação lhe demonstrou, pelas suas entusiásticas aclamações, como os alegrava tornar emfim
a ver aquela que tantas vezes os conduzira à aventura e à glória.
XXIV
A caravela do amor e da felicidade
- Leonor! Tu!
Erguendo-se dificilmente, João dAmblayves olhara longamente à sua volta, fitando com insistência uma figura bem sua conhecida e tantas vezes evocada, que esperava
imóvel, inclinada sobre ele.
A doce voz da capitã respondeu à pregunta que lhe fazia o noivo, que recuperava emfim os sentidos, após tanto tempo de completa inconsciência.
- Sim, sou eu, a tua Leonor! Estamos salvos! Nada nos poderá agora separar!
João sentiu então os lábios frescos da sua companheira pousar-lhe ao de leve na fronte. Aturdido, fechou os olhos, preguntando a si próprio se não seria joguete
dum sonho. Os ouvidos zumbiam-lhe ainda; a cabeça, cuidadosamente ligada, parecia que lhe pesava.
- Mas onde estou eu? preguntou com uma voz quási imperceptível.
- A bordo da caravela azul. No meu camarote!
- É verdade! Reconheço-o agora. Mas como é que.
- Nem mais uma palavra! O médico proibiu-o. Juntando o gesto à palavra, Leonor levava um dedo aos lábios, mas João ainda arriscou:
- O médico? Ah! Então eu estive doente!
- Muito doente! Durante três longos dias julguei que te perdia. Passei horas horríveis. Mas o pesadelo acabou; graças a Deus! Agora viverás.
- Junto de ti, para sempre ?
- Junto de mim para sempre!
Um sorriso iluminou o rosto do ferido. Depois, encostou-se às almofadas, fechou os olhos, procurando reunir ideas. Parecia-lhe, primeiro, que um grande vácuo se
tinha aberto na sua memória, mas pouco a pouco, ia evocando as dramáticas peripécias que se sucederam quando os portugueses iniciaram o ataque a Malaca, depois a
aventurosa expedição em companhia de Bignache e as aventuras movimentadas que lhe tinham permitido encontrar Leonor, prisioneira, e castigar impiedosamente o traidor
Rui da Mota.
- Ah! Compreendo. decidiu-se então a declarar. O incêndio. Eu fugia. Depois. um grande choque. Uma chuva de faúlhas. e mais nada!
- É preciso calma, insistia a rapariga, apertando longamente a mão do seu noivo, que ele estendia ao longo do leito.
- Estarei calmo. afirmou João. Mas o combate? Malaca?
- Malaca foi conquistada. Os vencedores apossaram-se de centenas de cruzados de oiro.
Toda a artilharia de Mahmoud foi capturada, trezentas peças, das quais o maior número são de ferro fundido.
- E agora ? .
- Agora? Vogamos com destino à nossa pátria. Afonso de Albuquerque e a sua Flor do Mar, precedem-nos com quatro caravelas e um barco chinês carregado de preciosidades.
Imagina o acolhimento triunfal que nos será feito em Goa, depois em Lisboa!
Um sorriso furtivo perpassou nos lábios de João dAmblayves. Pouco lhe importavam agora as preciosidades conquistadas. Leonor estava ali, junto dele, Leonor que ele
julgara perdida para sempre! O seu belo sonho de amor ia emfim poder realizar-se, agora que ele tinha cumprido o seu juramento de a libertar.
- Leonor, minha querida! Em breve estaremos casados. Serás a minha esposa, a minha mulher.
- Sonho ardentemente com esse belo dia! redarguiu a capitã. Os dias maus já se passaram. Agora podemos pensar um pouco em nós.
Os dois jovens teriam prosseguido ainda no seu
diálogo amoroso, senão ouvissem várias pancadas
na porta da cabine.
-O que há? Entre. disse a capitã cujo
rosto se carregara subitamente.
A porta abriu-se, dando passagem ao fiel Bignache. O bravo rapaz parecia profundamente perturbado.
- O que é que se passa? interrogou a "Amazona dos Mares". - Dois passageiros acabam de nos deixar, minha
senhora, respondeu o gascão, estafado pela corrida que fizera até à cabine.
- Dois passageiros? Explica-te.
- Oh! Tranquilizai-vos, minha senhora. Não são muito dignos de dó, nem. um nem outro, e a perda não foi grande!
E como Leonor esboçasse um gesto de impaciência, o recém-chegado apressou-se a pô-la ao corrente:
- Sabeis que desde a nossa partida de Malaca, Joaquim foi posto a ferros. Deviam-no julgar e decidir a sua sorte logo que chegássemos a Goa. A Providência decidiu
doutra maneira.
com a manga, Savínio enxugou o suor que lhe corria ao longo do rosto, depois continuou emquanto João se erguia apoiado aos cotovelos, fortemente intrigado.
- Certamente não ignorais que desde que nos fizemos ao largo, Joaquim tinha jurado vingar-se de Coelho, a quem tornava responsável dos seus infortúnios e dos seus
insucessos. Esta ave agoirenta, que sempre se vendera ao que mais oferecesse, divertia-se há um certo tempo para cá a visitá-lo frequentemente no porão, não lhe
poupando sarcasmos, nem zombarias. Foi assim que esta noite Joaquim, aproveitando o momento em que a sentinela se distraira um pouco, conseguiu evadir-se do porão.
"Onde o miserável conseguiu esconder-se durante algum tempo, não o sabemos. O caso é que andando Coelho a passear no convés de cá para lá, viu, haverá apenas uns
dez minutos, um vulto surgir por detrás dum montão de cordas e avançar rapidamente sobre ele. Era o nosso Joaquim. ?? Vendo-se perdido, o homem de negro quis chamar
por socorro, ou fugir, mas antes que ele pudesse ter dado um passo, o português caía-lhe em cima. Bignache interrompeu-se uns instantes para respirar fundo, parecendo
encantado por conseguir despertar o interesse dos noivos; depois, fazendo grandes gestos e explicando por mímica o combate de que tinha sido testemunha longínqua:
- Ah! Virgem Santa! A luta foi terrível. Coelho era ágil como uma enguia, e esgueirava-se para escapar ao seu agressor; porém Joaquim não o largava. tinha jurado
há muito tirar do antigo cúmplice uma vingança implacável. Em poucos minutos prostrou-o, meio estrangulado, na pavezada!
- Mas porque não foram em seu socorro? interrompeu a capitã.
- Esses dois velhacos nem sequer nos deram tempo. no momento em que eu intervinha com alguns marinheiros, eles mergulhavam ambos.
- Deitaram bateis ao mar?
- Era inútil, minha senhora. Levavam-nos grande avanço. Emquanto nos debruçávamos ansiosamente para seguir os movimentos dos dois patifes, que continuavam debatendo-se
desesperadamente sobre as ondas, vimos aparecer perto deles umas formas alongadas.
- Tubarões? .
- Exactamente. Num instante os enormes cetáceos se encarregaram de pôr de acordo os dois antagonistas, levando-os a um e a outro. Um grande rastro vermelho. E mais
nada.
Terminando a sua narrativa, Bignache declarava, em ar de oração fúnebre:
- A-pesar-de tudo, mais vale que fosse assim. Foi feita justiça! E evitam-se muitas complicações.
- No entanto, objectou a capitã, não esqueço que devo a Coelho ter sido tão rapidamente socorrida. Sem ele, vocês nunca saberiam que Rui me tinha conduzido a Malaca!
- Sem dúvida, mas permiti que vos faça observar que não contraístes nenhuma dívida para com esse maroto, que vos traiu tão facilmente como vos serviu, desde que
os seus interesses o exigiam. Logo que Coelho compreendeu que vosso primo não lhe perdoaria jamais ter sido ele quem o desmascarou, decidiu voltar a casaca e vingar-se
dele, denunciando-o. De resto, recebeu algumas centenas de cruzados que levou consigo ao mergulhar, e que os senhores tubarões vão talvez achar indigestos.
Savínio acompanhou estas declarações com uma gargalhada; depois, dando uma palmada sonora na coxa:
- E agora deixemos esse corvo agoirento juntar-se ao seu íntimo amigo Satanaz e falemos antes de vós, sr. conde. Podeis gabar-vos de nos ter pregado um belo susto!
- Há um pormenor que Bignache te oculta, declarou por sua vez a rapariga inclinando-se para o seu noivo, é que sem ele, estaríamos ambos mortos a esta hora; graças
à sua presença de espírito e à sua coragem, é que pudemos escapar à morte.
- A sr.a D. Leonor é muito indulgente, protestou o bravo rapaz. Ao proceder assim apenas cumpri o meu dever!
João estendeu a mão ao seu fiel criado e Bignache apressou-se a agarrá-la e apertá-la com efusão.
- Quem me diria outrora que te tornarias um
herói, tu, o prudentíssimo Bignache? disse ele sorrindo.
- Que quereis, sr. conde, respondeu o gascão coçando a cabeça embaraçado. Desde que uma mulher passou na minha vida. Então, foi preciso provar-lhe que Savínio Bignache
não era um poltrão. Um medroso.
E emquanto os jovens trocavam um olhar de inteligência, o bravo rapaz apressou-se a juntar:
É que. isso transforma-nos num homem,
num abrir e fechar de olhos, sr. conde! De resto, vós também deveis saber alguma coisa a esse respeito!
A despeito do seu estado de profunda depressão, João dAmblayves não pôde impedir-se de sorrir. Depois, ameaçando com um dedo o fiel criado:
- Vejamos, sr. Bignache, quererás tu dizer-nos que te ardem de novo as orelhas?
- Adivinhou inteiramente, sr. conde. Ardem-me as orelhas. É que. eu, tenho qualquer coisa de terrivelmente sério a comunicar-vos.
- É talvez a minha presença que te impede de dizer o que queres ao teu amo?! insinuou a capitã.
- Não, senhora, muito pelo contrário! protestou Bignache. A autorização da senhora D. Leonor é absolutamente indispensável.
Durante alguns segundos, o gascão pareceu hesitar, depois fazendo um grande esforço sobre si mesmo, falou:
- Eu e Isabel estamos de acordo, desde há um bocado.
Um clarão malicioso perpassou no olhar de Leonor.
- Ah! Vocês estão de acordo? Mas sobre que assunto ? .
- A respeito de nós dois.
- De vocês dois? .
- Sim, senhora! Mas como? Não vos tínheis apercebido já que nós tínhamos uma certa inclinação um pelo outro?
- Desconfiávamos um pouco, respondeu a capitã sorrindo.
- Já em Goa, nós tínhamos decidido casar; mas, para sermos mais correctos, esperávamos que a sr.a D. Leonor nos autorizasse.
- Pois bem, meu bravo Bignache, podes ir dizer à tua amada que a sr.a D. Leonor vos autoriza de todo o coração!
- Não teremos por isso que nos separar, arriscou de novo Savínio. Porque espero que o sr. conde em breve desposará a senhora.
- Efectivamente casaremos quando chegarmos a Goa, antes de partir para Lisboa; mas, bem entendido, que só aceitarei um marido completamente restabelecido.
- Farei tudo o que me for possível para satisfazer aquela que amo!
Bignache compreendeu que era ali demais; por isso inclinou-se precipitadamente e saiu para ir participar a boa nova a Isabel, que esperava no convés o resultado
do seu pedido.
João e Leonor tornaram a encontrar-se sós. Aniquilado pelos seus recentes esforços, o francês fechou os olhos, sentindo-se fatigado ainda. Imóvel, Leonor, sentada
à sua cabeceira, fitava-o com uns olhos onde se lia toda a profunda ternura que lhe consagrava. Agora a sua decisão estava tomada.
A "Amazona dos Mares" já tinha feito o seu dever. Consagrar-se-ia aos doces encantos do lar. O amor que sentia por João dominava a sua paixão pela aventura. Savínio
Bignache não fora o único a sofrer uma espantosa transformação; mas ao passo que o bravo rapaz se sentia animado por uma coragem até então desconhecida, Leonor sentia
a forte energia, que consagrara à sua reputação de heroína indomável, desvanecer-se pouco a pouco. Tornava-se mulher e despertavam nela sentimentos novos, ignorados
ainda quando os combates e longas expedições pelos mares absorviam todo o seu pensamento e todo o seu coração.
Durante um momento a rapariga abandonou-se às suas meditações; somente o leve ruído da respiração regular do ferido, vinha perturbar o silêncio que reinava na cabine.
João adormecera de novo.
Então, pela primeira vez, desde que ele fora transportado para o camarote, a capitã decidiu ausentar-se. com infinitas precauções para não despertar o adormecido,
levantou-se, entreabriu levemente a porta e deslizou para o lado de fora.
Uma briza ligeira acariciou-lhe o rosto quando chegou à tolda; com um breve golpe de vista, verificou que os marinheiros se conservavam nos seus postos; um ligeiro
sorriso aflorou-lhe aos lábios, quando distinguiu a pouca distância Bignache e Isabel, que tinham recomeçado o seu colóquio à sombra duma vela.
Então, lentamente, Leonor subiu a escada que conduzia à popa. O convés, desse lado, estava deserto. Veio então debruçar-se no seu lugar favorito, junto ao farolim,
e longamente contemplou o mar imenso.
A pouca distância, a Flor do Mar, de Afonso de Albuquerque avançava majestosa, com todas as velas içadas, logo seguida pelas outras caravelas e pelo barco chinês,
carregadas dos preciosos despojos que transportavam para Goa e para Lisboa. As cores do capitão-general e do rei de Portugal tremulavam altivamente nas bandeiras
ao vento.
A rapariga respirou a plenos pulmões a brisa salina; experimentava um indiscritível bem estar. A angústia que a dominava há tanto tempo dissipava-se emfim. João
viveria agora. Dentro de poucas semanas ficaria completamente restabelecido. E realizar-se-ia o belo sonho que eles tinham juntos sonhado. O heróico e movimentado
romance da "Amazona dos Mares" terminaria por um terno idílio.
Sem uma saudade, Leonor olhou o vasto mar, e o céu azul onde esvoaçavam gaivotas.
Durante alguns instantes pareceu interessar-se pelas evoluções de um cardume de peixes-voadores, depois veio encostar-se à amurada. À sua frente estendia-se a ponte
do São Jorge, que avançava imponente com todas as velas ornadas de enormes cruzes vermelhas.
Alguns marinheiros continuavam na sua faina; outros, um pouco mais longe, estavam sentados em círculo, jogando aos dados. Todos pareciam felizes por transportar
sã e salva a capitã, que tinham julgado perdida para sempre.
Uma sombra de melancolia passou pelo rosto de Leonor; lembrava-se de que lhe seria preciso deixar tudo aquilo a breve trecho. Mas de-pressa abandonou essas ideas
e animou com um gesto o velho António, sempre atento ao leme. Debruçou-se
outra vez para o vasto oceano, sentindo-se pequenina no meio de toda a sua imensidade; contente, porém, com o coração arfante e pulsante de alegria. E emquanto ele
se imobilizava, a caravela azul prosseguia a sua viagem sobre as ondas calmas, levando para o amor e para a felicidade aquela que tinha sido a intrépida e invencível
"Amazona dos Mares".
Albert Bonneau
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