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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA ATREIDES - P2 / B. Herbert e K. J. Anderson
A CASA ATREIDES - P2 / B. Herbert e K. J. Anderson

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Só Deus pode criar seres vivos e conscientes.

Bíblia Católica Laranja

 

Na Sala de Partos número um do complexo do Wallach IX, uma menina recém-nascida chorava sobre uma mesa. Uma filha com a estirpe genética do barão Vladimir Harkonnen. O cheiro de sangue e desinfetante impregnava o ar, envolto no rangido de roupas limpas e esterilizadas. Globos luminosos projetavam sua luz forte, que se refletia nas toscas paredes de pedra e nas superfícies metálicas polidas. Muitas filhas tinham nascido aqui, muitas novas irmãs.

Com mais emoção do que as Bene Gesserit costumavam exibir, as reverendas madres de hábito escuro examinaram a menina com seus instrumentos, e falaram dela com preocupação. Uma irmã extraiu uma amostra de sangue com uma hipoagulha, enquanto outra raspava uma zona de pele com uma cureta. Ninguém erguia a voz. Tom de pele estranho, bioquímica pobre, raquítica...

 

 

 

 

 

Gaius Helen Mohiam, empapada em suor, tentava recuperar o controle sobre seu corpo mal-tratado. Embora sua aparência dissimulasse sua idade real, parecia muito velha para ter filhos. O parto a havia enfraquecido muito, mais que os oito anteriores. Agora se sentia velha e acabada.

Duas acolitas correram para sua cama e a empurraram até um lado do portal arqueado. Uma delas pôs um pano úmido sobre sua testa , e a outra aproximou uma esponja molhada de seus lábios, para espremer algumas gotas de líquido em sua boca seca. Mohiam já tinha feito sua parte, a Irmandade se encarregaria do resto. Embora desconhecesse os planos traçados para a menina, sabia que sua filha tinha que sobreviver.

Na mesa de inspeção, mesmo antes de secar o sangue e o muco em sua pele, viraram o bebê e o apoiaram contra a superfície do escaner embutido na parede. A menina, aterrorizada, gritou, e sua voz ficava mais fraca a cada momento.

Sensores eletrônicos enviaram os biorresultados para uma unidade central, que mostrava uma coluna de dados no monitor, dados que foram analisados pelas peritas Bene Gesserit. As reverendas madres estudaram os resultados, e os compararam com uma segunda coluna que mostrava as cifras ideais.

— Esta disparidade é muito surpreendente — disse Anirul em voz baixa, com os olhos totalmente abertos em seu rosto de cerva. A decepção da jovem mãe Kwisatz pendia sobre seus ombros como um peso sólido.

— E muito inesperada — disse a madre superiora Harishka.

Seus olhos de pássaro brilhavam entre as rugas em seu rosto. junto com os tabus que impediam às Bene Gesserit de utilizar meios artificiais de fertilização em seus programas de reprodução, outros tabus as proibiam de inspecionar ou manipular fetos no útero. A anciã meneou a cabeça com amargura e olhou de esguelha para Mohiam, que ainda continuava sua recuperação sobre a mesa próxima à porta.

— Os dados genéticos são corretos, mas esta... menina não. Cometemos um engano.

Anirul se inclinou sobre a menina para examiná-la com atenção. O bebê tinha uma palidez doentia e ossos faciais disformes, assim como um ombro deslocado ou malformado. Demorariam mais em localizar outras deficiências, talvez crônicas.

E se supõe que tem que ela deva ser a avó do Kwisatz Haderach? A fraqueza não gera força.

Anirul queimava os miolos tentando decidir o que tinha saído errado. As projeções dos registros de reprodução tinham sido precisas, e conforme a informação da Outra Memória. Embora gerada por Vladimir Harkonnen, a menina não era o que se esperava. O raquítico bebê não podia ser o próximo passo no caminho genético que devia culminar, tão somente duas gerações mais tarde, no Santo Graal do programa de reprodução das Bene Gesserit, seu superser.

— Podia existir algum erro no índice genético? — perguntou a madre superiora, ao mesmo tempo que desviava os olhos do bebê —. Ou se trata de uma aberração?

— A genética nunca é segura, madre superiora — disse Anirul, enquanto se afastava alguns passados do bebê. Sua confiança, esfumou-se, mas procurou não se desculpar. Passou uma mão nervosa sobre seu curto cabelo vermelho —. As projeções estão corretas. Temo que, desta vez, a linhagem não colaborou.

A madre superiora olhou para as doutoras, para as outras irmãs. Todo comentário e todo movimento seria registrado e armazenado nos arquivos de Wallach IX, assim como na Outra Memória, para que as gerações posteriores os examinassem.

— Está sugerindo que voltemos a tentar com o barão? Não foi um sujeito muito colaborador.

Anirul apenas sorriu. Que forma mais suave de se expressar.

— Nossas projeções nos proporcionam a probabilidade mais alta. Tem que ser o barão Harkonnen, e tem que ser Mohiam. Milhares de anos de cuidadosa seleção conduziram a este ponto. Temos outras opções, mas nenhuma tão boa como esta... assim devemos tentar de novo. — Tentou falar com ar filosófico —. Já ocorreram outros equívocos antes, madre superiora. Não podemos permitir que uma falha signifique o final de todo o programa.

— É obvio que não — replicou Harishka —. Temos que contatar outra vez o barão. Envie nossa melhor e mais persuasiva representante enquanto Mohiam se recupera.

Anirul olhou para a menina deitada na mesa. Esgotada, guardava silêncio, flexionando as mãozinhas e esperneando. Nem sequer podia chorar durante muito tempo. Material de reprodução

Mohiam fez um esforço para levantar-se e olhou com os olhos brilhantes para a recém-nascida. Reparou imediatamente na deformidade, na fraqueza. Gemeu e se deixou cair sobre os lençóis.

A madre superiora Harishka foi consolá-la.

— Necessitamos da sua força agora, irmã, não seu desespero. Terá outra chance com o barão.

Cruzou os braços sobre o peito, e saiu com uma revoada do hábito da sala de partos, seguida por suas assessoras.

 

Em seus aposentos na fortaleza Harkonnen, o barão se admirava nu em frente ao espelho, algo que fazia com freqüência. Havia muitos espelhos em sua extensa asa de apartamentos, e muita luz, de modo que desfrutava constantemente da perfeição de formas que a Natureza lhe concedera. Era magro e musculoso, com um bom tom de pele, sobretudo quando seus amantes a esfregavam com ungüentos perfumados. Passou os dedos sobre seu abdômen liso. Magnífico.

Não era de estranhar que as bruxas tivessem pedido que procriasse com elas pela segunda vez. Afinal, sua beleza era extraordinária. Com seus programas de reprodução, era natural que desejassem os melhores genes. O primeiro filho que gerado com aquela reverenda madre devia ser tão perfeito que desejavam outro. Embora a perspectiva não o agradasse, imaginou se na verdade era tão horrível.

Desejava saber se sua origem encaixava nos projetos a longo prazo daquelas mulheres tortuosas e reservadas. Tinham múltiplos programas de reprodução, e ao que pareci só uma Bene Gesserit era capaz de entendê-los. Podiam utilizá-lo para seu proveito, ou mantinham a intenção secreta de voltar sua filha contra ele mais adiante? Tivera a cautela de não gerar nenhum herdeiro bastardo, afim de evitar disputas dinásticas, embora de qualquer modo dava no mesmo. Mas o que ganhava ele com tudo isto? Nem sequer Peter de Vries tinha conseguido oferecer alguma explicação.

— Não nos deu sua resposta, barão — disse a irmã Margot Rashino Zea. Sua nudez não parecia incomodá-la.

Olhou pelo espelho para a bela irmã de cabelo loiro. Acreditavam que sua beleza, seu corpo bem feito, sua aparência esplêndida, poderiam tentá-lo? Preferiria copular com ela que com a outra? Nenhuma das perspectivas o atraía.

Margot, como representante da Irmandade, acabava de falar da necessidade» de copular pela segunda vez com a bruxa Mohiam. Nem sequer tinha passado um ano. Que desfaçatez daquelas criaturas! Ao menos, Margot oferecia palavras elegantes e distintas, em vez das exigências brutais que Mohiam lhe tinha espetado naquela longínqua noite. Ao menos, desta vez as bruxas tinham enviado uma porta-voz melhor.

Recusou cobrir sua nudez em frente a formosa mulher, sobretudo depois de escutar o pedido. Nu, exibiu-se diante dela, mas fingiu não perceber. Tenho certeza que esta beleza adoraria deitar-se com alguém como eu.

— Mohiam era muito vulgar para meu gosto — disse quando se virou para a emissária da Irmandade —.Diga-me, bruxa, meu primogênito foi uma filha, tal como me prometeu?

— Faria alguma diferença para você?

Os olhos verdes de Margot continuavam cravados nos seus, mas adivinhou que desejava contemplar seu corpo, seus músculos e sua pele dourada.

— Eu não disse isso, estúpida, mas sou de linhagem nobre e fiz uma pergunta. Responda ou morra.

— As Bene Gesserit não temem à morte, barão — disse Margot em tom sereno. Sua calma o irritava e intrigava ao mesmo tempo —. Sim, seu primogênito foi uma menina, barão —continuou —. As Bene Gesserit podem influir nestas coisas. Um filho varão não teria servido de nada.

— Entendo. Por que voltaram?

— Não estou autorizada a revelar nada mais.

— Considero o segundo pedido das Bene Gesserit profundamente ofensivo. Disse à Irmandade que não voltasse a me incomodar. Poderia matá-la por me desafiar. Estou em meu planeta e em minha fortaleza.

— Recorrer à violência não seria prudente. — Um tom firme, tingido de ameaça. Como podia ser tão forte e monstruosa, com aquele corpo adorável?

— Da última vez ameaçaram revelar minhas supostas reservas de especiaria. Imaginaram algo novo, ou vão utilizar a mesma chantagem de antes?

— Se desejarmos, as Bene Gesserit sempre podem encontrar novas ameaças, barão, embora as provas de seus relatórios fraudulentos sobre a produção de especiaria bastariam para desatar a fúria do imperador.

O barão arqueou uma sobrancelha e agarrou um manto negro do respaldo de uma cadeira.

— Sei de boa fonte que várias Grandes Casas possuem suas próprias reservas de melange. Alguns dizem que até o imperador Elrood não desdenha essa prática.

— Ultimamente o imperador não goza de boa saúde nem de bom humor. Pelo visto, está muito preocupado com IX.

O barão Harkonnen meditou por alguns instantes. Seus espiões na corte imperial de Kaitain lhe tinham informado que o velho Elrood se mostrava cada vez mais instável e colérico, com sintomas de paranóia. Sua mente divagava e sua saúde piorava, e isto o tornava mais maldoso que nunca, como demonstrava a destruição da Casa Vernius.

— O que acha que sou? — perguntou o barão —. Um touro reprodutor salusano?

Não tinha nada a temer, porque as bruxas já não possuíam provas suficientes contra ele. Tinha espalhado suas reservas de especiaria em esconderijos perdidos nas montanhas isoladas do Lankiveil, e ordenado a destruição de todas as provas que existiam em Arrakis. A operação foi executada com grande perícia, sob o comando de um ex-auditor da CHOAM empregado a seu serviço. O barão sorriu. Ex-empregado, de fato, já que De Vries se encarregara dele.

Aquelas Bene Gesserit podiam ameaçar o quanto quisessem, mas precisavam de prova. A certeza lhe proporcionava um novo poder, uma nova forma de lhes opor resistência.

A bruxa olhando-o. Sentiu vontade de apertar a bela garganta de Margot e sossegá-la para sempre. Mas isso não solucionaria seu problema, mesmo que sobrevivesse ao treinamento faria que não esquecessem.

— Se insiste, me envie sua irmã geradora. Estarei preparado para ela.

Sabia muito bem o que ia fazer. Seu Mentat Piter De Vries, e talvez seu sobrinho Rabban, ficariam muito satisfeitos em ajudá-lo.

— Muito bem. A reverenda mãe Gaius Helen Mohiam partirá cá dentro de quinze dias.

Dito isto, Margot saiu. Seu resplandecente cabelo loiro e sua pele leitosa pareciam muito radiantes para ser manchados pelo hábito da Irmandade.

O barão chamou De Vries. Tinham que trabalhar.

 

Sem um objetivo, a vida não vale nada. Às vezes, o objetivo se transforma na vida do homem, uma paixão devastadora. Mas quando se alcança o objetivo, o que acontece? Oh, pobre homem, o que acontece então?

Diário pessoal de lady Helena Atreides

 

Depois dos duros anos de infância passados em Giedi Prime, o jovem Duncan Idaho considerou o exuberante planeta de Caladan um paraíso. Tinha aterrissado sem plano algum em uma cidade que se encontrava na parte do planeta oposta ao castelo de Caladan. O amigo de Janess, o imediato Renno, livrou-se do menino, abandonando-o nas ruas do espaçoporto.

Sem se importar com ele, a tripulação desembarcou seu carregamento de produtos recicláveis e resíduos industriais, e depois embarcou um carregamento de arroz pundi em bolsas feitas de fibras de grão. Renno retornara ao Cruzeiro em órbita sem se despedir, sem lhe oferecer conselhos nem lhe desejar boa sorte.

Duncan não podia queixar-se: ao menos tinha escapado dos Harkonnen. Só o que devia fazer agora era encontrar o duque Atreides.

O menino, abandonado entre desconhecidos em um mundo desconhecido viu que a nave subia para o céu nublado. Caladan era um planeta de aromas intensos e atrativos, com o ar impregnado de umidade e salitre, do aroma de pescado e a fragrância de flores silvestres. Nunca tinha conhecido algo semelhante quando vivia em Giedi Prime.

No moderado sul, as colinas eram altas, cobertas de erva verde e jardins terraplanados, esculpidos nas ladeiras como degraus construídos por um bêbado. Grupos de agricultores trabalhavam sob o sol amarelado, pobres mas felizes. Vestidos com roupas velhas, transportavam ao mercado as frutas e verduras frescas sobre plataformas antigravitacionais.

Enquanto Duncan olhava com olhos famintos para os agricultores que passavam, um bondoso ancião lhe deu um pequeno melão paradan, e o menino o comeu com voracidade. Entre seus dedos escorreu o suco doce. Era o manjar mais delicioso que jamais tinha provado.

Ao ver a energia e desespero do menino, o agricultor lhe perguntou se quereria trabalhar nos campos de arroz durante alguns dias. O ancião não lhe ofereceu nenhum pagamento, somente um lugar onde dormir e um pouco de comida. Duncan aceitou de bom grado.

No caminho, o menino contou ao ancião a história de suas batalhas contra os Harkonnen, a detenção e assassinato de seus pais, sua escolha para a caçada de Rabban, sua fuga do planeta.

— Agora devo me apresentar ao duque Atreides — terminou Duncan —. Mas não sei onde ele está e nem como encontrá-lo.

O velho agricultor escutou com atenção e assentiu com gravidade. Os caladanos conheciam as lendas que rodeavam seu lendário duque, tinham testemunhado sua mais arriscada tourada como comemoração da partida de seu filho Leto para IX. O povo honrava seu líder, e lhes parecia razoável que qualquer cidadão pudesse lhe pedir uma audiência.

— Vou explicar onde o duque vive — disse o ancião —. O marido de minha irmã tem um mapa de todo o planeta. O que não sei é como chegará ali. Está muito longe.

— Sou jovem e forte. Vou conseguir.

O agricultor assentiu e o conduziu até os campos de arroz.

 

Duncan se hospedou quatro dias com a família do ancião, e trabalhou mergulhado até a cintura em campos de arroz. Vadeou a água, abriu canais e semeou sementes no barro. Aprendeu as canções e cânticos dos plantadores de arroz pundi.

Uma tarde, observadores postados nos ramos inferiores das árvores golpearam suas frigideiras, em sinal de alarme. Momentos depois, ondulações nas águas turvas anunciaram a aproximação de um banco de peixes pantera, habitantes dos pântanos que nadavam em busca de presas. Podiam esfolar um homem em segundos.

Duncan subiu no tronco de uma árvore para unir-se a outros agricultores, tomados pelo pânico. Ficou em um ramo baixo, e afastou para um lado o saco de sementes enquanto contemplava os ondulações que se aproximavam. Sob a água viu seres de enormes, providos de numerosas presas e grandes escamas. Vários dos peixes deram voltas ao redor do tronco onde Duncan tinha procurado refúgio.

Alguns animais se elevaram sobre seus braços cobertos de escamas, braços rudimentares com aletas frontais que se transformaram em garras desajeitadas. Os peixes carnívoros se impulsionavam para cima, grandes e mortíferos, procurando alcançar o menino que se mantinha a poucos centímetros fora de seu alcance. Duncan subiu para um ramo mais alto. Os peixes pantera mergulharam de novo e desapareceram entre os campos de arroz.

No dia seguinte, Duncan tomou a frugal refeição que a família do agricultor tinha preparado e partiu em direção à costa, onde encontrou trabalho como manipulador de redes em um navio de pesca que fundeava nos mares do sul. Por fim, o navio o conduziu ao continente onde estava o castelo de Caladan.

Trabalhou durante semanas com as redes, estripou pescado e comeu até saciar-se na cozinha. O cozinheiro utilizava muitas especiarias desconhecidas para Duncan, pimentas e mostardas de Caladan que subiam ao nariz e aos olhos. Todos riam de seus problemas, e lhe disseram que não seria um homem até que fosse capaz de comer pescado condimentado daquela maneira. Ante sua surpresa, o jovem Duncan aceitou o desafio, e não demorou para pedir a comida mais temperada. Ao fim de pouco tempo, suportava as comidas picantes mais que qualquer outro membro da tripulação. Os pescadores pararam zombar dele e começaram a elogiá-lo.

Antes que a viagem acabasse, o grumete do beliche do lado calculou sua idade em nove anos e seis semanas.

— Sinto-me muito mais velho — respondeu Duncan.

Não tinha esperado demorar tanto tempo para chegar a seu destino, mas sua vida tinha melhorado, apesar do exaustivo trabalho que realizava. sentia-se a salvo, mais livre que nunca. Os homens da tripulação eram sua nova família.

Abaixo dos céus carregados, o navio atracou por fim no porto, e Duncan se despediu do mar. Não pediu pagamento algum, nem se despediu do capitão. Apenas partiu. A travessia do oceano tinha sido apenas um passo em sua viagem. Nem em um só momento se desviou de seu objetivo principal de apresentar-se ao velho duque. Não se aproveitou de ninguém e trabalhou até a extenuação em troca da hospitalidade recebida.

Em uma ocasião, um marinheiro de outro navio tentou sodomizá-lo em uma ruela do porto, mas Duncan o repeliu com músculos de aço e reflexos velozes como o raio. O agressor fugiu, derrotado pela força selvagem do menino.

Duncan pediu carona e foi recolhido por veículos terrestres e carros, e penetrou sem pagar em trens e ornitópteros de carga. Atravessou o continente em direção ao oeste, em direção ao castelo de Caladan, cada vez mais próximo à medida que os meses transcorriam.

Durante as freqüentes chuvas, refugiava-se sob as árvores, mas mesmo molhado e faminto não se sentia tão mal, porque recordava a terrível noite passada no Posto do Guarda Florestal. Depois disso, estava seguro de sobreviver a estes pequenos infortúnios.

Às vezes puxava conversa com outros viajantes e escutava histórias sobre seu popular duque, fragmentos da história dos Atreides. Em Giedi Prime ninguém falava desses assuntos. A pessoas guardavam suas opiniões e não ofereciam a menor informação. Aqui, entretanto, os habitantes falavam sem rodeios de sua situação. Uma tarde em que viajava com três atores, Duncan chegou à surpreendente conclusão de que o povo do Caladan amava seu líder.

Em compensação, em relação aos Harkonnen só tinha ouvido histórias espantosas. Conhecia o medo do povo e as brutais conseqüências de qualquer resistência, real ou imaginária. Neste planeta, não obstante, o povo respeitava mais que temia seu líder. Contaram a Duncan que o velho duque passeava com a única companhia de um guarda de honra pelos povoados e mercados, visitava as pessoas sem medo de que o atacassem.

Nem o barão Harkonnen nem Glossu Rabban teriam ousado realizar tamanha façanha.

Possivelmente eu vou gostar deste duque, pensou Duncan uma noite, encolhido sob uma manta emprestada por um dos atores.

Por fim, depois de meses de viagem, chegou ao povoado situado ao pé do promontório sobre o qual se erguia o castelo de Caladan. O magnífico edifício se erguia como uma sentinela vigiando o mar sereno. Em seu interior vivia o duque Paulus Atreides, que já se transformara em uma figura lendária para o garoto.

O frio da manhã fez Duncan estremecer e respirar fundo. A névoa se elevava sobre a costa, e transformava o sol nascente em uma bola de intensa cor laranja. Abandonou o povoado e iniciou a longa subida para o castelo, seu ponto de destino.

Enquanto andava, fez o que pôde para adquirir uma aparência apresentável: sacudiu o pó da roupa e meteu sua camisa enrugada para dentro das calças. Sentia-se confiante, apesar de seu aspecto, porque o duque o aceitaria ou o expulsaria. De qualquer jeito, Duncan Idaho sobreviveria.

Quando chegou às portas do grande pátio, os guardas o impediram de entrar, convencidos de que era um mendigo.

— Não sou um pedinte — disse Duncan orgulhoso —. Vim do outro limite da galáxia para ver o duque e lhe contar minha história.

Os guardas romperam em gargalhadas.

— Nós lhe traremos algumas sobras da cozinha, mas nada mais.

— Seria muito amável de sua parte, senhores — admitiu Duncan, enquanto seu estômago grunhia de fome —, mas não vim para isso. Façam o favor de enviar uma mensagem ao castelo. — Tentou recordar a frase que um dos cantores ambulantes tinha lhe ensinado—. Diga que Duncan Idaho solicita uma audiência com o duque Paulus Atreides.

Os guardas voltaram a rir, mas o menino percebeu certo respeito reticente em sua expressão. Alguém se foi e voltou com ovos esquentados para Duncan, que os devorou, lambeu os dedos e se sentou no chão para esperar. Passaram-se horas.

Os guardas olhavam para ele e sacudiam a cabeça. Alguém lhe perguntou se carregava armas, ou dinheiro, ao que Duncan respondeu que não. Enquanto uma constante fila de peticionários entravam e saíam, os guardas conversavam entre si. Duncan os ouviu falar de uma revolta ocorrida em IX, e da preocupação do duque com a Casa Vernius, sobretudo porque o imperador tinha oferecido uma recompensa por Dominic e Shando Vernius. Ao que parecia Leto, o filho do duque, tinha escapado de IX com dois refugiados reais. O castelo estava muito alvoroçado.

Duncan continuou esperando.

O sol desapareceu atrás do horizonte do grande mar. O moço passou a noite encolhido em uma esquina do pátio, e quando na manhã seguinte houve a troca da guarda, repetiu sua história e solicitou audiência. Desta vez contou que tinha escapado de um planeta Harkonnen e que desejava oferecer seus serviços à Casa Atreides. O nome Harkonnen chamou a atenção dos guardas, que o revistaram em busca de armas uma vez mais.

Na primeira hora da tarde, depois de ter sido revistado e sondado, primeiro por um escâner eletrônico que localizava dispositivos letais ocultos e depois por um detector de venenos, Duncan foi conduzido ao interior do castelo, um antigo edifício de pedra cujos corredores e salas estavam adornados com ricas tapeçarias, recoberto por uma pátina de história e elegância decadente. As pranchas de madeira rangiam sob seus pés.

Ao chegar a uma ampla arcada de pedra, dois guardas o obrigaram a passar através de escâneres mais sofisticados, que tampouco revelaram nada suspeito. Era um menino, sem nada a ocultar. Finalmente indicaram a Duncan que entrasse em uma ampla sala de tetos abobadados, sustentados por vigas escuras e pesadas.

O velho duque examinou seu visitante. Paulus, um homem forte e com aparência de urso, barba cheia e brilhantes olhos verdes, estava sentado em uma poltrona de madeira, não em um trono luxuoso. Era um lugar onde se sentia confortável durante horas enquanto cuidava dos assuntos de Estado. O respaldo, acima da cabeça do patriarca, tinha uma cabeça esculpida de falcão.

A seu lado se sentava seu filho Leto, pele olivácea, magro e com aspecto de cansaço, como se ainda não tivesse se recuperado de sua odisséia. Duncan olhou para os olhos cinzas de Leto, e pensou que os dois tinham muito que contar, muito que compartilhar.

— Temos aqui um menino muito insistente, Leto — disse o velho duque ao seu filho.

— A julgar por seu aspecto, deseja algo diferente de todos os peticionários que escutamos hoje. — Leto arqueou as sobrancelhas. Era apenas cinco ou seis anos mais velho que Duncan mas dava a impressão de que ambos tinham sido lançados pela força na maturidade —. Não parece faminto.

A expressão de Paulus se suavizou quando se inclinou para frente em sua poltrona.

— Desde quando está esperando, garoto?

— Oh, isso não importa, meu senhor duque — respondeu Duncan, confiando em utilizar as palavras adequadas —. Agora estou aqui. — coçou o queixo, nervoso.

O velho duque lançou um olhar mal-humorado para o guarda que tinha escoltado o menino.

— Deram de comer a este jovem?

— Deram-me muitas coisas, senhor. Obrigado. E também dormi muito bem em seu pátio confortável.

— No pátio? — Olhou para o guarda de novo, desta vez com o sobrecenho franzido —. Para que veio até aqui, jovenzinho? Veio de algum povoado de pescadores?

— Não, meu senhor. Venho de Giedi Prime.

As mãos dos guardas se esticaram sobre suas espadas. O duque e seu filho trocaram um olhar de incredulidade.

— Nesse caso, é melhor nos contar sua história — disse Paulus, e seu rosto escureceu quando Duncan o fez sem omitir detalhes.

Os olhos do duque se arregalaram. Viu a expressão de inocência do menino e olhou para seu filho, convencido de que o relato não era fictício. Leto assentiu. Nenhum menino de nove anos podia inventar uma história semelhante.

— E assim cheguei aqui, senhor — terminou Duncan —, para vê-lo.

— Em que cidade de Caladan aterrissou? — perguntou o duque — Descreva-a.

Duncan não recordava seu nome, mas explicou o que tinha visto, e o velho duque admitiu que devia vir do outro extremo do planeta.

— Disseram-me que viesse vê-lo, meu senhor, e lhe pedisse trabalho. Odeio os Harkonnen, senhor, e juraria lealdade à Casa Atreides se pudesse ficar aqui.

— Acredito nele, pai — disse Leto em voz baixa, enquanto estudava os olhos verde-azulados do menino —. Ou se trata de uma lição que tenta me ensinar?

Paulus se reclinou na poltrona, com as mãos enlaçadas sobre o regaço, e seu peito sofreu espasmos. Duncan percebeu que estava reprimindo uma risada. Quando o velho duque já não pôde mais conter-se, riu a plenos pulmões e deu palmadas nos joelhos.

— Garoto, admiro o que fez. Um jovem com bolas tão grandes tem que entrar forçosamente a meu serviço!

— Obrigado, senhor — disse Duncan.

— Estou seguro de que lhe encontraremos algum trabalho, pai — disse Leto com um sorriso. Considerava aquele valente e teimoso menino um bom presságio, comparado com tudo o que tinha visto nos últimos tempos.

O velho duque se levantou de sua poltrona e chamou os criados. Ordenou que déssemos ao menino roupas novas, banho e comida.

— Pensando bem — disse, ao mesmo tempo em que levantava uma mão —, preparem um banquete. Meu filho e eu desejamos compartilhar a mesa com o jovem maese Idaho.

Entraram em um salão adjacente, onde apressados garçons corriam para preparar tudo. Um criado escovou o cabelo escuro e encaracolado do menino, e passou um aspirador sobre suas roupas empoeiradas. Paulus Atreides ocupou a cabeceira da mesa, com Duncan a sua direita e Leto a sua esquerda.

— Tenho uma idéia, garoto. Se foi capaz de lutar com esses monstruosos Harkonnen, acha que pode com um simples touro salusano?

— Claro, senhor — disse Duncan. Tinha ouvido falar dos grandes espetáculos do duque —. Se desejar que eu toureie, farei-o com muito prazer.

— Tourear? Não é isso o que tenho em mente. — O duque se reclinou em sua cadeira com um amplo sorriso e olhou para Leto.

— Acho que encontramos um emprego para você aqui no castelo de Caladan, jovem — disse Leto —. Trabalhará nos estábulos, sob o comando do chefe de quadras Yresk. Irá ajudará-lo a cuidar dos touros do meu pai. Os alimentará e se puder os escovará. Eu faço isso. Vou apresentá-lo ao chefe de quadras. — Olhou para seu pai —. Lembra-se que me deixava acariciar os touros quando tinha a idade de Duncan?

— Oh, este menino fará algo mais que acariciar essas bestas — disse o velho duque. Arqueou uma sobrancelha grisalha quando chegaram à mesa bandejas de apetitosos manjares. Observou a expressão ávida de Duncan —. E se fizer um bom trabalho nos estábulos — acrescentou —, possivelmente eu lhe reserve tarefas mais interessantes.

 

A história foi poucas vezes clemente com aqueles que têm que ser castigados. Os castigos das Bene Gesserit são inesquecíveis.

Máxima Bene Gesserit

 

Uma nova delegação Bene Gesserit, que acompanhava Gaius Helen Mohiam, chegou a Giedi Prime. Mohiam, que acabava de dar a luz à filha disforme do barão Harkonnen, encontrou-se pela segunda vez na fortaleza do barão no intervalo de um ano.

Desta vez chegou durante o dia, embora a capa de nuvens e as colunas de fumaça que se elevavam das fábricas carentes de filtros dotassem o céu de uma aparência doentia, que apagava até o último raio de sol.

A lançadeira da reverenda mãe pousou no mesmo espaçoporto, com a mesma solicitação de serviços especiais. Mas nesta ocasião o barão jurou que as coisas seriam muito diferentes.

Um regimento de soldados saiu ao encontro da lançadeira, em número mais que suficiente para intimidar às bruxas.

O burseg Kryubi, antigo piloto em Arrakis e agora responsável por segurança da Casa Harkonnen, plantou-se em frente a rampa de desembarque, dois passos a frente de seus soldados. Todos estavam uniformizados de azul, cor reservada para as recepções oficiais.

Mohiam apareceu no alto da rampa, envolta em seu hábito e flanqueada por acompanhantes, guardas pessoais e outras irmãs. Franziu o sobrecenho com desdém ao ver o burseg e seus homens.

— Que significa esta recepção? Onde está o barão?

O burseg Kryubi olhou para ela.

— Não tente utilizar a Voz manipuladora comigo, ou acontecerá uma reação desagradável por parte de meus homens. Recebi ordens, só você poderá ver o barão. Nem guardas, nem serventes, nem acompanhantes. — Apontou para as pessoas que aguardavam atrás dela —. Ninguém mais poderá entrar.

— Ridículo — replicou Mohiam —. Exijo cortesia diplomática oficial. Todo meu séquito tem que ser recebido com o respeito que merece.

Kryubi não se alterou. “Sei muito bem o que a bruxa deseja — havia dito o barão —. Se acredita que pode vir aqui toda vez que tiver vontade, está muito enganada”, fosse qual fosse o significado dessas palavras.

O burseg olhou para ela sem pestanejar.

— Pedido negado. — Os castigos do barão a assustavam mais que as artes daquela mulher —. Está livre para partir se as condições não o satisfizerem.

Mohiam soprou e desceu pela rampa depois de dirigir um olhar fugaz para seus acompanhantes.

— Apesar de todas as suas perversões, o barão se mostra muito dissimulado — ironizou mais para os ouvidos dos Harkonnen que para os seus —. Sobretudo no que se refere a questões de sexualidade.

A referência intrigou Kryubi, que não tinha sido informado da situação, mas decidiu que era melhor desconhecer certas coisas.

— Diga-me, burseg — disse a bruxa com tom irritado —, como saberia se utilizo a Voz em você?

— Um soldado nunca revela suas defesas.

— Entendo. — O tom da mulher era sensual.

Kryubi não se sentiu impressionado, mas se perguntou se seu blefe tinha funcionado.

Aquele estúpido soldado ignorava, mas Mohiam era uma Reveladora da Verdade, capaz de reconhecer matizes de falsidade e mentira. Permitiu que o presunçoso burseg a conduzisse por um túnel até o interior da fortaleza. Uma vez lá dentro, a reverenda madre adotou seu melhor porte de confiança altiva e caminhou com afetada indiferença. Entretanto, todos os seus sentidos se intensificaram para captar a menor anomalia. O barão despertava seus maiores receios. Sabia que estava tramando algo.

O barão Harkonnen, que passeava de um lado para outro do Grande Salão, olhou ao redor com olhos reluzentes. O salão era amplo e frio, e a luz que os globos luminosos alojados nas esquinas e no teto projetavam, muito brilhante. Enquanto caminhava com suas botas negras bicudas, seus passos ressoavam, de forma que o salão parecia vazio. Um bom lugar para uma emboscada.

Embora a parte residencial da fortaleza parecesse abandonada, o barão tinha postado guardas e visicoms eletrônicos em diversos nichos. Sabia que não poderia enganar à puta Bene Gesserit durante muito tempo, mas pouco importava. Embora descobrisse que a observavam, talvez isso impedisse que utilizasse truques insidiosos. A precaução podia lhe proporcionar alguns segundos de vantagem.

Como desta vez não pensava em perder o controle, o barão desejava que sua gente contemplasse a cena. Proporcionaria-lhes um bom espetáculo, algo de que falariam nos quartéis e naves durante os anos vindouros. Melhor ainda, poria as bruxas em seu lugar. Chantagear a mim!

Piter De Vries deslizou atrás dele, com tanto silêncio e discriçao que assustou o barão.

— Não faça isso, Piter!

— Trouxe o que pediu, barão. — O retorcido Mentat estendeu a mão e lhe mostrou dois pequenos transmissores de ruído branco —. Introduza em seus canais auditivos. Foram desenhados para distorcer qualquer Voz que ela tente utilizar. Ouvirá a conversa normal, mas os aparelhos desmodularão qualquer som indesejável e impedirão que chegue a seus ouvidos.

O barão emitiu um profundo suspiro e flexionou os músculos. Os preparativos tinham que ser perfeitos.

— Cuide da sua parte, Peter. Eu sei o que faço.

Aproximou-se de um pequeno nicho, pegou uma garrafa de conhaque kirano e bebeu. Depois de sentir o ardor do líquido em seu peito, secou a boca e o gargalo da garrafa.

O barão já tinha bebido mais álcool do que o habitual, talvez mais do que o prudente, considerando o mau momento que o esperava. De Vries, consciente da angústia de seu amo, observou-o com ar reprovador. O barão enrugou a testa e tomou outro gole, só para chateá-lo.

O Mentat revoou ao seu redor, desfrutando antecipadamente de seu plano conjunto, ansioso por participar.

— Talvez, barão, a bruxa tenha retornado porque seu primeiro encontro lhe proporcionou grande prazer. — Soltou uma risadinha —. Acha que ela o deseja?

O barão olhou carrancudo para ele uma vez mais, com tal intensidade que o Mentat temeu ter ido muito longe, mas a lábia de De Vries sempre o salvava de reprimendas.

— Esta é a melhor projeção que meu Mentat pode me oferecer? Pense, maldito seja! Por que as Bene Gesserit querem outro filho meu? Tentam aprofundar a ferida para que as odeie ainda mais? — Bufou e se perguntou se aquela teoria era plausível.

Possivelmente necessitavam de duas filhas por algum motivo, Ou talvez algo tivesse saido errado com a primeira... Os grossos lábios do barão se curvaram em um sorriso desdenhoso. Esta víbora será a última, sem dúvida.

Já não haviam provas que as Bene Gesserit pudessem utilizar para chantageá-lo. As montanhas de Lankíveil ocultavam agora o maior tesouro de melange Harkonnen, debaixo do nariz de Abulurd. O idiota não tinha a menor ideia de que o utilizavam para encobrir as atividades secretas do barão. Entretanto, apesar de ser brando e tolo, Abulurd ainda era um Harkonnen. Mesmo que descobrisse, não se atreveria a revelá-lo peli temor de destruir as propriedades da família. Abulurd reverenciava muito a memória de seu pai.

O barão se afastou do conhaque kirana, e o sabor doce e abrasador se tornou amargo em sua garganta. Cobria-se com um largo pijama marrom e negro, apertado na cintura. Sobre o lado esquerdo do peito se destacava o emblema da Casa Harkonnen, um grifo azul pálido. Usava manga curta para exibir seus bíceps. O curto cabelo vermelho revolto para lhe conferir um aspecto sedutor.

Olhou fixamente para De Vries. O Mentat tomou um gole de uma garrafinha de suco de safo.

— Estamos prontos, barão? A mulher espera lá fora.

— Sim. — Se reclinou em sua cadeira. As calças de seda eram folgadas, e os olhos agudos da reverenda mãe não detectariam o vulto de nenhuma arma... de nenhuma arma previsível. Sorriu —. Faça-a entrar.

Quando Mohiam entrou no salão principal da fortaleza, o burseg Kryubi e seus soldados fecharam a porta atrás dela e ficaram lá fora. Os fechos se fecharam com um clique. A mulher ficou em guarda de imediato, e percebeu que o barão tinha preparado todos os detalhes do seu encontro.

Os dois estavam sozinhos em uma larga sala, austera e fria, banhada por uma luz cegante. Toda a fortaleza transmitia a impressão de esquinas quadradas e dureza sem rachaduras que tanto agradava os Harkonnen. A estadia era mais uma sala de conferências industrial que o salão de um suntuoso palácio.

— Saudações uma vez mais, barão Harkonnen — disse Mohiam com um sorriso que impunha cortesia ao seu desprezo —. Vejo que antecipou nosso encontro. Talvez estivesse ansioso? — olhou para os dedos —. É possível que desta vez lhe proporcione um pouco mais de prazer.

— Talvez.

A resposta não agradou Mohiam. Qual era o jogo? Mohiam olhou ao redor, percebeu as correntes de ar, esquadrinhou as sombras e tentou escutar o batimento do coração de alguma pessoa escondida. Havia alguém mais... mas onde? Pensavam em assassiná-la? Ousariam? Controlou seu pulso para evitar que se acelerasse.

O barão tinha em mente algo mais que uma simples colaboração. Jamais esperara uma vitória fácil, sobretudo na segunda vez. Os chefes de algumas Casa Menores podiam ser esmagados ou manipulados (a Bene Gesserit sabia fazê-lo muito bem), mas esse não, era o chefe da Casa Harkonnen.

Escrutinou os olhos tenebrosos do barão, utilizou suas habilidades de Reveladora da verdade, mas foi incapaz de descobrir seus planos. Mohiam sentiu uma pontada de medo. Até onde os Harkonnen se atreveriam a ir? O barão não podia opor-se às exigências da Irmandade, em virtude da informação que a Bene Gesserit possuía. Correria o risco de incorrer na ira imperial? Ou o risco de ser castigado pela Bene Gesserit? Não era um risco pequeno.

Em outro momento ela teria gostado de seguir o jogo, porque era um adversário poderoso, tanto física como mentalmente. Era escorregadio, e podia torcer e dobrar com mais facilidade que romper. Mas agora, o barão era apenas um reprodutor a seu serviço, porque a Irmandade necessitava de seus genes. Mohiam ignorava por que, ou a importância desta filha, mas se retornasse a Wallach IX sem ter completado sua missão, receberia uma severa reprimenda de suas superioras.

Decidiu não perder mais tempo. Convocou os talentos da Voz absoluta que as Bene Gesserit lhe tinham ensinado, manipulações de tom e registro ao qual nenhum ser humano sem treinamento podia resistir, e disse:

— Colabore comigo. — Era uma ordem que devia ser obedecida.

O barão se limitou a sorrir. Não se moveu, mas seus olhos se desviaram. Mohiam ficou tão estupefata pela ineficácia da Voz que compreendeu, muito tarde, que o barão lhe tinha armado uma armadilha.

Piter De Vries saiu disparado de um nicho oculto. A irmã se virou, disposta a defender-se, mas o Mentat se moveu com a mesma rapidez de uma Bene Gesserit.

O barão contemplou a cena, satisfeito.

De Vries segurava uma arma tosca mas eficaz em suas mãos. O demodulador neurônico se comportou como um brutal atordoante de alta potência. Lançou uma descarga antes que a mulher pudesse se mover. As ondas crepitantes explodiram contra ela e cortaram o controle de sua mente e músculos.

Mohiam cambaleou sacudida por violentos espasmos, cada centímetro de sua pele devorado por formigas imaginárias.

Um efeito delicioso, pensou o barão enquanto observava.

A mulher caiu sobre o chão de pedra polida, com os braços e pernas abertos, como se um pé gigantesco a tivesse derrubado. Sua cabeça golpeou os ladrilhos, e seus ouvidos zumbiram em conseqüência do impacto. Seus olhos se cravaram no teto abobadado, sem piscar. Estava incapaz de se mover, apesar do controle muscular pranabindu.

Por fim, o gesto zombeteiro do barão se abateu sobre ela. Impulsos nervosos sacudiram seus braços e pernas. Sentiu uma umidade morna, e compreendeu que sua bexiga se afrouxara. Um fio de saliva escorreu por sua bochecha até a base da orelha.

— Bem, bem, bruxa — disse o barão —, o atordoante não lhe causará danos irreversíveis. De fato, recuperará o controle corporal dentro de vinte minutos. Tempo suficiente para nos divertirmos.

Caminhou ao seu redor, sorridente.

Ergueu a voz. para que os fonocaptores eletrônicos transmitissem suas palavras aos observadores ocultos.

— Conheço o material fraudulento que reuniram contra a Casa Harkonnen, e meus advogados estão preparados para rebater as acusações em qualquer tribunal do Império. Ameaçaram utilizá-lo se não lhes concedesse outra filha, mas se trata de uma ameaça inofensiva de bruxas inofensivas.

Fez uma pausa e sorriu, como se acabasse de ocorrer-lhe uma idéia.

— De qualquer modo, não me importo em conceder-lhe a segunda filha que desejam. Estou falando sério. Mas entenda bem, bruxa, e transmita minha mensagem a sua Irmandade: não podem pretender dobrar o barão Vladimir Harkonnen aos seus caprichos sem sofrer as conseqüências.

O barão reprimiu seu asco e rasgou a saia da mulher. O que o repugnava era sua forma, carente dos músculos masculinos que tanto admirava.

— Ora, ora, parece que ocorreu um pequeno acidente — disse ao ver o tecido molhado de urina.

De Vries se colocou atrás dela, e a observou com seu rosto largo e lânguido. Mohiam viu os lábios manchados de vermelho e o brilho demente dos olhos do Mentat. O barão separou suas pernas e esfregou seu membro.

Não viu o que estava fazendo, nem tampouco desejava isso.

Embriagado pelo êxito do seu plano, não teve dificuldades em alcançar a ereção. Estimulado pelo conhaque, olhou para a mulher e pensou que acabara de sentenciar a velha bruxa ao mais brutal dos poços de escravos dos Harkonnen. Esta mulher, que se imaginava tão importante e poderosa, estava agora a sua mercê... a sua completa mercê!

Violá-la lhe proporcionou um prazer indescritível. Era a primeira vez que gozava com uma mulher, embora fosse pouco mais que um pedaço de carne flácida.

Durante aqueles breves momentos Mohiam jazeu imóvel, furiosa e impotente. Sentia cada movimento, cada roçar, cada investida dolorosa, mas ainda não tinha recuperado o controle de seus músculos. Seus olhos estavam abertos.

Em vez de esbanjar suas energias, a reverenda mãe se concentrou em sua bioquímica e a alterou. O efeito do atordoante não tinha sido completo. Uma coisa eram os músculos, e a química interna de seu corpo outra muito diferente. O barão Vladimir Harkonnen se arrependeria disto.

Antes de empreender a viagem tinha manipulado sua ovulação afim de alcançar o pico de sua fertilidade nesta hora exata. Mesmo com a violação, nada a impediria de conceber uma nova filha com o esperma do barão. Isto era o mais importante.

Tecnicamente, não necessitava de nada mais daquele canalha, mas a reverenda mãe Gaius Helen Mohiam tinha a intenção de lhe dar algo em troca, uma vingança lenta que não jamais esqueceria.

Ninguém esquecia um castigo das Bene Gesserit.

Mesmo paralisada, Mohiam era uma reverenda mãe totalmente treinada. Seu corpo possuía armas que estavam ao seu dispor mesmo naquele momento, apesar da sua aparência indefesa.

Graças às funções sensíveis de seus corpos, as Bene Gesserit podiam criar antídotos para os venenos introduzidos em seus sistemas. Eram capazes de neutralizar as enfermidades mais espantosas assim como destruir os piores vírus patogênicos... ou conservá-los latentes em seus corpos como recurso para utilizar mais adiante. Mohiam levava em seu interior alguns deles, e podia ativá-los mediante o controle de sua bioquímica.

O barão, estendido sobre ela, grunhia como um animal, com a mandíbula tensa e um sorriso zombeteiro no rosto. Gotas de suor pegajoso molhavam seu rosto avermelhado. Mohiam olhou para ele. Seus olhos se encontraram, e o barão investiu com ímpeto renovado.

Foi naquele momento que Mohiam escolheu uma enfermidade em especial, uma vingança muito gradual, uma desordem neurológica que destruiria o belo corpo do seu adversário. Era evidente que o barão obtinha um grande prazer de seu físico, do qual estava muito orgulhoso. Mohiam poderia tê-lo contagiado um sem número de enfermidades fatais e supurantes, mas esta aflição seria um golpe muito mais doloroso para ele, e de progressão muito mais lenta. O barão deveria enfrentar sua aparência dia após dia, cada vez mais obeso e fraco. Seus músculos degenerariam, seu metabolismo enlouqueceria. Em poucos anos nem sequer poderia caminhar sem ajuda.

Não custou nada fazê-lo, mas os efeitos se prolongariam até o fim de seus dias. Mohiam imaginou o barão tão obeso que nem sequer poderia se manter em pé sem ajuda, padecendo dores terríveis.

Uma vez finalizado o ato, convencido de que tinha dado uma lição na bruxa, o barão se levantou.

— Piter, me traga uma toalha para me secar dos líquidos desta bruxa.

O Mentat saiu rapidamente da sala, ao mesmo tempo em que soltava um risinho. As portas se abriram de novo. Guardas uniformizados entraram para contemplar como Mohiam recuperava o controle de seus músculos, pouco a pouco.

O barão dedicou à reverenda mãe um sorriso cruel.

— Diga às Bene Gesserit que não voltem a me incomodar com suas intrigas genéticas.

Mohiam se apoiou sobre um braço, recolheu suas roupas rasgadas e ficou em pé com uma coordenação quase absoluta. ERgueu seu queixo com orgulho mas não pôde dissimular sua humilhação. E o barão não pôde ocultar seu prazer ao percebe-la.

Ele acredita que ganhou, pensou a reverenda mãe. Isso logo veremos.

Mohiam, satisfeita da inevitabilidade de sua vingança terrível, saiu da fortaleza Harkonnen. O burseg do barão a acompanhou parte do caminho, e depois deixou que retornasse sem escolta até a lançadeira, como um cão fustigado. Havia guardas em posição de sentido ao pé da rampa.

Mohiam se acalmou enquanto se aproximava da nave, e ao final se permitiu um leve sorriso. Apesar do acontecido, agora tinha em seu útero outra filha Harkonnen. E isso era tudo que as Bene Gesserit desejavam ...

Como as coisas eram simples quando nosso Messias não era mais que um sonho.

 

Stilgar, naib do sietch Tabr

 

Para Pardot Kynes a vida nunca voltaria a ser igual desde que tinha sido aceito no sietch.

O dia de seu casamento com Frieth se aproximava, o que exigia dedicar horas aos preparativos e a meditação, e a aprender os rituais matrimoniais Fremen, em especial o ahal, a cerimônia onde uma mulher escolhia seu marido. Não havia dúvida de que Frieth tinha sido a instigadora da relação. Muitos outros assuntos distraíam Kynes, mas ele sabia que não podia cometer erros em um assunto tão delicado.

Para os líderes do sietch se tratava de uma grande ocasião, mais espetacular que qualquer casamento Fremen. Nunca um forasteiro se casara com uma de suas mulheres, embora o naib Heinar tivesse ouvido falar de tais eventos ocasionais em outros sietch.

Depois que Uliet se auto-imolara, tinha corrido pelo sietch (e sem dúvida entre as outras comunidades Fremen o rumor de que Uliet tinha recebido uma visão verdadeira de Deus, que tinha dirigido seus atos. O caolho Heinar, assim como os anciões do sietch. Jerath, Avalanche e Garnah, sentiam-se mortificados por ter questionado as palavras apaixonadas do planetólogo.

Embora Heinar oferecesse sua renuncia como naib, depois de inclinar-se perante o homem que agora considerava um profeta vindo de além das estrelas, Kynes não se interessava em transformar-se em líder do sietch. Tinha muito trabalho a fazer, obrigações em uma escala muito maior que a política local. Convinha a seus propósitos que o deixassem em paz para concentrar-se em seus planos de terraformação e no estudo dos dados recolhidos, graças aos instrumentos distribuídos por todo o deserto. Precisava compreender a grande extensão arenosa e suas sutilezas, antes de saber como mudar a situação para melhor.

Os Fremen obedeciam com convicção as sugestões de Kynes, por mais absurdas que parecessem. Agora acreditavam em tudo o que dizia. Não obstante, Kynes estava tão preocupado que não reparava em sua devoção. Se o planetólogo dizia que era preciso tomar determinadas medidas, os Fremen percorriam o deserto, estabeleciam pontos de recolhimento em regiões longínquas, voltavam a abrir os postos de análise botânicas abandonadas há tempos imemoriais pelo Império. Alguns ajudantes devotos chegaram a viajar aos territórios proibidos do sul, utilizando um meio de transporte que não revelaram a Kynes.

Durante aquelas primeiras semanas frenéticas de recolhimento de informação, dois Fremen se perderam, embora Kynes nunca soubesse. Deleitava-se com as informações que chegavam. Era mais do que tinha sonhado durante os anos de trabalho solitário como planetólogo imperial. encontrava-se em um paraíso científico.

No dia anterior ao seu casamento redigiu seu primeiro relatório desde que se unira ao sietch, como culminação de semanas de trabalho. Um mensageiro Fremen o entregou em Arrakeen, de onde foi transmitido ao imperador. O trabalho de Kynes com os Fremen ameaçava provocar um conflito de interesses, mas devia conservar as aparências. Em nenhum ponto do relatório falava, nem sequer de leve, a respeito de sua nova relação com o povo do deserto. Kaitain nunca devia suspeitar que se convertera em um nativo.

Em sua mente, Arrakis já não existia. O planeta era, e sempre seria, Dune. Depois de viver no sietch, só o imaginava com seu nome Fremen. Quanto mais descobria, mais intuía que aquele planeta seco e árido continha mais segredos do que o imperador imaginava.

Dune era um depósito de tesouros à espera de ser aberto.

Stilgar tinha se recuperado completamente de sua ferida, e insistiu em ajudar Kynes nas tarefas mais tediosas. O jovem Fremen afirmou que era a única forma de aliviar a pesada carga de água que recaía sobre seu clã. O planetólogo não acreditava que existisse tal obrigação, mas se inclinou sob a pressão do sietch como um salgueiro sob o vento. Os Fremen não passariam ignorariam ou perdoariam algo semelhante.

Ofereceram-lhe como esposa a irmã solteira de Stilgar. Quase sem que o planetólogo se desse conta, era como se a moça o tivesse adotado. Remendava suas roupas, oferecia-lhe comida antes que ele reparasse que estava faminto. Suas mãos eram velozes, uma viva inteligência iluminava seus olhos azuis, e lhe tinha economizado muitos passos em falso, mesmo antes que pudesse reagir. Tinha considerado seus cuidados como pouco mais que gratidão por ter salvo a vida de seu irmão, e a tinha aceito sem interesse.

Kynes nunca tinha pensado em casamento, era um homem muito solitário, muito absorto em seu trabalho. Entretanto, depois de ter sido aceito na comunidade, começou a reparar que os Fremen se ofendiam com muita facilidade. Kynes não se atreveu a recusar a proposta. Também compreendeu que, tendo em conta as numerosas restrições políticas dos Harkonnen contra os Fremen, talvez seu casamento com Frieth aplainaria o caminho para futuros pesquisadores.

Em conseqüência, quando as duas luas cheias se elevaram ao céu, Pardot Kynes se reuniu com outros Fremen para celebrar o ritual do matrimônio. Antes que a noite terminasse seria um homem casado. Usava agora uma fina barba, a primeira de sua vida. Parecia-lhe que Frieth gostava, embora não estivesse acostumada a expressar suas opiniões.

Precedida pelo caolho Heinar, assim como pela sayyadina do sietch (uma líder religiosa muito parecida com a reverenda madre), a comitiva nupcial desceu das montanhas, depois de uma longa e cautelosa travessia, até as areias semeadas de dunas. As luas banhavam a paisagem com um brilho nacarado.

Enquanto observava as dunas sinuosas, Kynes pensou pela primeira vez que lhe recordavam as suaves e sensuais curva de uma mulher. Possivelmente pensei mais no casamento do que suspeitava.

Caminharam em fila indiana sobre as dunas, subiram pela parte exposta ao vento, e depois riscaram um caminho sobre o cume. Vigias do sietch se deslocaram à pontos estratégicos para observar sinais de vermes ou a aproximação de naves espiãs Harkonnen. Kynes se sentia seguro com essas precauções. Agora era um deles, e sabia que os Fremen dariam a vida por ele.

Olhou para a encantadora moça Fremen banhada pela luz da lua, com seu longo cabelo e seus olhos azuis concentrados nele, que o analisavam ou talvez simplesmente o amavam. Vestia a capa negra indicadora de que era uma mulher prometida.

Durante horas, outras esposas Fremen tinham trançado o cabelo de Frieth com seus anéis metálicos de água, junto com os pertencentes ao seu futuro marido, afim de simbolizar a comunhão de seus bens. Muitos meses antes, o sietch tomara todas as provisões do veículo terrestre de Kynes, e guardado a água contida nelas em seus principais armazéns. Uma vez que o aceitaram entre eles, recebeu um pagamento em água por sua contribuição, e Kynes ingressou na comunidade como um homem relativamente rico.

Enquanto Frieth olhava para seu prometido, Kynes percebeu pela primeira vez como ela era formosa e desejável, e depois se repreendeu por não ter observado isso antes. As mulheres solteiras Fremen correram sobre o campo de dunas, com o cabelo ondeando na brisa noturna. Kynes as contemplou iniciar o cântico e a dança matrimonial tradicionais.

Os membros do sietch apenas tinham lhe dado explicações sobre seus costumes, a procedência de seus rituais ou seu significado. Para os Fremen tudo era simples. No longínquo passado se desenvolveram formas de vida por pura necessidade, durante as peregrinações dos Zensunni de planeta em planeta, e nos séculos seguintes os costumes não tinham mudado. Ninguém se preocupava em questionar. Por que Kynes ia fazer isso? Além disso, se na verdade era um profeta, deveria assimilar tais coisas por pura intuição.

Não era muito difícil compreender o costume de rodear com anéis de água as tranças de uma mulher prometida, enquanto que as filhas solteiras usavam o cabelo solto. O grupo de mulheres solteiras revoava sobre a areia com os pés nus, como se flutuassem no ar. Algumas eram muito jovens, mas outras já tinham chegado à idade de casamento. As bailarinas davam voltas e voltas e seus cabelos se agitava em todas as direções, como halos ao redor de suas cabeças.

O símbolo de uma tormenta de areia pensou. Redemoinhos Coriolis. Graças a seus estudos, sabia que tais ventos podiam superar os oitocentos quilômetros por hora. Impulsionavam as partículas de pó e areia com força suficiente para esfolar um homem e deixá-lo nos ossos.

Kynes, preocupado de repente, ergueu a vista. Comprovou, aliviado, que o céu da noite estava espaçoso e repleto de estrelas. Uma neblina de pó se elevaria como precursora de qualquer tormenta. Os observadores Fremen perceberiam mudanças de tempo com antecipação suficiente para tomar as precauções necessárias.

As jovens continuavam dançando e cantando. Kynes se colocou atrás de sua futura esposa, mas olhou para as luas gêmeas, pensou nos efeitos que causavam nas marés, em como as sutis variações da gravidade teriam afetado à geologia e clima daquele planeta. Talvez as ressonâncias do núcleo lhe revelassem mais do que precisava saber...

Nos meses vindouros desejava coletar muitas amostras da capa de gelo do pólo norte. Mediante a medição dos estratos e da análise dos conteúdos isotópicos, Kynes conseguiria traçar uma história climática precisa de Arrakis. Poderia delinear os ciclos de aquecimento e fusão, assim como os antigos mapas de precipitação, e utilizaria toda informação para descobrir onde tinha ido parar toda a água.

Até o momento, a aridez do planeta era absurda. Era possível que as reservas de água de um planeta ficassem ocultas em rocha sepultadas sob a areia, na mesma casca planetária? Um impacto astronômico? Explosões vulcânicas? Nenhuma das opções lhe parecia muito viável.

A complicada dança matrimonial acabou, e o naib avançou com a velha Sayyadina. A mulher Santa olhou para o casal e cravou a vista em Kynes, com olhos tão escuros que, à luz da lua, pareciam as órbitas predadoras de um corvo: o azul absoluto do vício de especiaria.

Depois de comer mantimentos Fremen durante meses, enriquecidos com melange, Kynes tinha se examinado num espelho certa manhã e observado que o branco de seus olhos começava a adquirir um tintura azul. Aquilo o surpreendeu.

De qualquer modos, sentia-se mais vivo, com a mente mais ágil e o corpo cheio de energia. Em parte podia ser conseqüência do entusiasmo por suas investigações, mas sabia que a especiaria estava relacionada com isso.

A especiaria se encontrava em toda parte: no ar, nos mantimentos, na roupa, nas argamassas das paredes, nos tapetes. A melange estava entrelaçada com a vida do sietch tanto quanto a água.

Naquele dia, Turok, que cada manhã o guiava em suas explorações, tinha reparado nos olhos de Kynes, no novo tom azul.

— Está se transformando em um dos nossos, planetólogo. Chamamos esse azul de Olhos do Ibad. Agora está integrado a Dune. Nosso planeta o mudou para sempre.

Kynes tinha sorrido vacilante, com certa apreensão.

— Que assim seja — disse.

E agora estava a ponto de casar-se: outra mudança importante.

A misteriosa Sayyadina, de pé a frente dele, pronunciou uma série de palavras em chakobsa, um idioma que Kynes não entendia, mas deu as respostas que tinha memorizado. Os anciões do sietch o tinham preparado com supremo cuidado. Talvez algum dia compreendesse os rituais que o rodeavam, o idioma antigo, as misteriosas tradições. Por agora só podia formular hipóteses.

Continuou preocupado durante o resto da cerimônia, enquanto pensava na análise que realizaria em zonas arenosas e rochosas do planeta, enquanto sonhava com as novas estações experimentais que construiria, e nos jardins experimentais que plantaria. Tinha grandes planos em mente, e toda a mão de obra necessária. Custaria um imenso esforço despertar o planeta novamente, mas agora os Fremen partilhavam seu sonho, e Pardot Kynes sabia que era possível.

Sorriu, e Frieth olhou para ele, sorridente também, embora seus pensamentos devessem ser muito diferentes dos seus. Quase alheio às atividades que aconteciam ao redor, e sem prestar atenção à sua importância, Kynes se viu casado ao estilo Fremen quase antes de compreender como isso acontecera.

Os poderosos constroem castelos, e atrás dos seus muros escondem suas dúvidas e temores.

 

Máxima Bene Gesserit

A névoa matutina arrastava o cheiro de iodo desde o mar. Geralmente, Paulus Atreides a considerava plácida e revigorizante, mas naquele dia lhe pareceu muito inquietante.

O velho duque estava em um dos balcões, respirando ar puro. Amava este planeta, em especial suas manhãs. O silêncio lhe proporcionava mais energia que uma boa noite de sono.

Mesmo em tempos tão turbulentos como estes.

Envolveu-se em um grosso manto adornado com lã verde de Canidar. Sua esposa parou atrás dele, respirando com lentidão, como fazia sempre que discutiam. Como Paulus não protestou, aproximou-se e se acotovelou junto a ele para contemplar seu mundo. Tinha os olhos cansados e parecia ofendida. O duque a abraçou e ela se apertou contra ele, mas depois tentou prosseguir a discussão. Insistiu que a Casa Atreides corria um grave perigo por culpa do que ele tinha feito.

Até seus ouvidos chegaram gritos e gargalhadas afogadas vindas do pátio. O duque observou satisfeito que seu filho Leto já tinha iniciado seus exercícios de treinamento com o príncipe exilado de IX. Ambos usavam escudos corporais que zumbiam e cintilavam sob a luz alaranjada do amanhecer. Brandiam facas atordoantes sem corte na mão esquerda e espadas de treinamento na mão direita.

Durante as semanas transcorridas desde sua chegada a Caladan, Rhombur tinha recuperado completamente. O exercício e o ar puro tinham melhorado sua saúde, seu tônus muscular e sua tez. Não obstante, o coração e o estado de ânimo do jovem musculoso demorariam muito mais para sarar. Ainda parecia aturdido com os terríveis acontecimentos que tinha vivido.

Os dois se moveram em círculos e entrechocaram as espadas para calcular a rapidez com que podiam mover as armas sem que os campos protetores as desviassem. Desafiavam e atacavam de súbito e as folhas ricocheteavam nos campos reluzentes.

— Muito gasto de energia para esta horas — comentou Helena enquanto esfregava os olhos avermelhados. Um comentário prudente, que não poderia suscitar nenhum protesto. Deu um passo mais —. Rhombur até perdeu peso.

O velho duque olhou para ela e reparou suas delicadas feições, afiadas pela idade, nas poucas mechas grisalhas de seu cabelo escuro.

— É a melhor hora para treinar. Ensinei isso a Leto quando ele era um menino.

Ouviu o tinido de uma bóia indicadora de recifes e o barulho dos remos de uma barco de pesca, feito de vime com casco impermeável. Na distância viu as luzes de uma rede de pescaria que atravessava os bancos de névoa enquanto recolhia algas.

— Sim, os meninos estão se exercitando — disse Helena —, mas viu Kailea sentada ali? Por que acha que se levantou tão cedo?

O tom da pergunta o fez pensar duas vezes.

O duque baixou a vista e reparou na bela filha da Casa Vernius. Kailea estava ajeitada em um banco de coral, sob o sol, enquanto comia languidamente de uma bandeja de frutas. Tinha seu exemplar encapado da Bíblia Católica Laranja ao lado (presente de Helena), mas não o lia.

Paulus coçou a barba.

— Essa menina sempre se levanta tão cedo? Suspeito que ainda não se adaptou aos dias caladanos.

Helena observou como Leto atacava com fúria o escudo de Rhombur e conseguia deslizar sua faca atordoante pelo escudo, de modo que o príncipe ixiano recebeu uma leve descarrega elétrica. Rhombur soltou um uivo e riu enquanto retrocedia. Leto ergueu sua espada de treinamento como se tivesse marcado um ponto. Olhou fugazmente para Kailea, e tocou sua frente com a ponta da espada em saudação.

— Não viu a forma como seu filho olha para ela, Paulus? — A voz de Helena era severa e desaprovadora.

— Não, não tinha visto.

O velho duque passou a vista de seu filho para moça uma vez mais. Para ele, Kailea, a filha de Dominic Vernius, era apenas uma menina. Ele a vira pela última vez quando ela era uma garotinha. Talvez sua mente preguiçosa não tivesse percebido como ela tinha chegado a maturidade tão rapidamente. Nem Leto.

— Os hormônios do menino estão chegando ao auge — disse —. Conversarei com Thufir. Encontraremos garotas apropriadas para ele.

— Como suas amantes? — Helena afastou a vista do seu marido com expressão ofendida.

— Não tem nada de errado. — Rogou que não voltasse a tocar no assunto —. Desde que não se torne nada sério.

Como qualquer senhor do Império, Paulus tinha seus devaneios. Seu matrimônio com Helena, uma das filhas da Casa Richese, tinha ocorrido por motivos estritamente políticos, depois de muitas considerações e negociações. Esforçou-se todo o possível, e a amara por algum tempo, o que o surpreendera. Mas depois Helena se afastou dele, cada vez mais absorta na religião e em seus sonhos perdidos, arrancada da realidade.

Com muita discrição, Paulus havia retornado a suas amantes, que tratava como um cavalheiro mas com cuidado para não gerar bastardos. Nunca falava disso, mas Helena sabia. Sempre soubera. E tinha que viver com essa realidade.

— Desde que não se chegue a nada sério? — Helena se inclinou sobre o corrimão para ver melhor a moça —. Temo que Leto sente algo por essa garota. Acho que está apaixonando por ela. Eu lhe disse que não o enviasse a IX.

— Não é amor — disse Paulus, que fingiu prestar atenção aos movimentos da luta com espada e escudo. Os meninos possuíam mais energia que destreza. Era necessário melhorar sua técnica. O guarda Harkonnen mais desajeitado poderia acabar com eles rapidamente.

— Tem certeza? — perguntou Helena —. Estamos lidando com coisas muito importantes, Leto é o herdeiro da Casa Atreides, o filho de um duque. Tem que agir com cautela e escolher seus objetivos românticos com prudência. Consultar-nos, negociar as condições, conseguir o máximo que puder...

— Sei — murmurou Paulus.

— Muito bem — respondeu sua mulher com tom seco e frio —. Talvez uma de suas protegidas não seja uma idéia tão ruim, depois de tudo. Ao menos o afastará de Kailea.

Abaixo, a jovem comia uma fruta com parcimônia, admirando Leto, e riu ao ver uma manobra extravagante do rapaz. Rhombur contra-atacou, os escudos se entrechocaram e soltaram faíscas. Quando Leto se virou para lhe dar um sorriso, Kailea cravou a vista em sua bandeja com altivez fingida.

Helena reconheceu os movimentos da dança do galanteio, tão complicada como qualquer duelo com espada.

— Vê como se olham?

O velho duque sacudiu a cabeça com pesar.

— Em outra época a filha da Casa Vernius me teria parecido uma excelente esposa para Leto.

Sentia-se triste por seu amigo Dominic Vernius ter se tornado um fora da lei por um decreto imperial. O imperador Elrood, como se tivesse perdido a razão, declarara Vernius não só renegado e exilado, mas também traidor. Nem o conde Dominic nem lady Shando entraram em contato com Caladan, mas Paulus esperava que continuassem com vida. Ambos tinham se transformado em presas para os caçadores de recompensas.

A Casa Atreides correra um grande risco ao dar proteção aos dois jovens. Dominic Vernius tinha cobrado favores prestados às Casas do Landsraad, que tinham confirmado os jovens exilados em sua situação protegida, desde que não aspirassem recuperar o antigo título de sua Casa.

— Jamais concordaria com um matrimônio entre nosso filho e... ela — disse Helena —. Enquanto você se divertia com touradas e desfiles, eu não perdi o contato com a realidade. Há anos que a Casa Vernius caiu em desgraça. Eu lhe disse isso, mas você não me ouviu.

— Ai, Helena — disse Paulus —, sua herança richesiana a impede de olhar para IX com imparcialidade. Vernius sempre foi rival de sua família, e os derrotaram totalmente nas guerras comerciais.

Apesar de suas desavenças, tentava lhe conceder o devido respeito a uma dama de uma Grande Casa.

— Está claro que a ira de Deus caiu sobre IX— disse sua mulher —. Não pode negar isso. Devia se desfazer de Rhombur e Kailea. Envie-os para longe, ou os mate... Faria-lhes um favor.

O duque Paulus se irritou. Sabia que sua mulher voltaria ao assunto cedo ou mais tarde.

— Helena! Vigie suas palavras. — Olhou para ela com incrédulo —. É uma sugestão ultrajante, até mesmo partindo de você.

— Por que? Sua Casa provocou sua própria destruição quando violou as normas da Grande Revolução. A Casa Vernius desafiou a Deus com sua arrogância. Qualquer um é capaz de vê-lo. Eu o avisei antes que Leto partisse de IX. — Segurou a beira do seu manto, tremulo de indignação, enquanto tentava formular uma súplica razoável —. Por acaso a humanidade não aprendeu a lição? Pense nos horrores que padecemos, a escravidão, a exterminação quase total. Nunca mais podemos que nos afastar do caminho correto. IX tentava ressuscitar as máquinas pensantes. Não criará uma máquina a...

— Não preciso que me cite versículos — interrompeu o duque. Quando Helena usava sua mentalidade rígida e fanática, nenhuma refutação podia atravessar suas muralhas.

— Escute-me — rogou ela —. Eu lhe ensinarei as passagens do Livro...

— Dominic Vernius era meu amigo, Helena — disse Paulus—. E a Casa Atreides defende seus amigos. Rhombur e Kailea são meus convidados no castelo de Caladan, e não falarei mais disso com você.

Embora Helena saísse do dormitório, Paulus sabia que em outro momento tentaria convencê-lo de novo. Suspirou.

Agarrou o corrimão e olhou para o pátio, onde os garotos continuavam seus exercícios. Era uma espécie de rixa, em que Leto e Rhombur riam e corriam esbanjando suas energias.

Apesar de seu fanatismo, Helena acertara em alguns aspectos. Era o tipo de brecha que seus inimigos tradicionais, os Harkonnen, utilizariam para tentar destruir a Casa Atreides. Se a Casa Vernius tinha violado os preceitos da Jihad Butleriana, a Casa Atreides seria considerada culpada por cumplicidade.

Mas a sorte estava lançada, e Paulus aceitaria o desafio. De qualquer modo, se encarregaria de tomar precauções para que nada terrível acontecesse a seu filho.

Os rapazes continuavam combatendo, o velho duque sabia que Rhombur desejava aniquilar os inimigos que tinham expulso sua família de seu lar ancestral. Para isso, ambos os jovens necessitavam se treinamento, não só a brutal instrução no uso de armas pessoais, mas também nas habilidades requeridas para guiar homens e nas abstrações do governo em grande escala.

O duque sorriu sem humor, pois sabia o que tinha que fazer. Rhombur e Kailea tinham sido postos sob sua tutela. Tinha prometido que velaria por sua segurança, pelo juramento de sangue que o irmanava a Dominic Vernius. Devia lhes proporcionar todas as possibilidades.

Enviou Leto e Rhombur ao seu Professor de Assassinos, Thufir Hawat.

O Mentat guerreiro parecia uma coluna de ferro enquanto contemplava seus dois novos tutelados. Aguardavam de pé sobre um escarpado situado a alguns quilômetros ao norte do castelo de Caladan. O vento se chocava contra as rochas e subia a grande velocidade, agitando a erva. Gaivotas cinzas voavam em círculos sobre suas cabeças, gritando e procurando petiscos sobre a praia rochosa. Ciprestes anões se curvavam, inclinados pela constante brisa do oceano.

Leto não sabia quem era Thufir Hawat. O robusto Mentat tinha treinado o jovem duque Paulus. Sua pele era grossa, por ter sido exposta aos ambientes mais cruéis de muitos planetas durante antigas campanhas Atreides, do calor mais infernal ao frio mais abrasante, passando por tormentas aterradoras e rigores dos grandes espaços abertos.

Thufir Hawat cruzou os braços sobre seu peitilho. Seus olhos pareciam armas, seu silêncio um incentivo.

Leto estava ao lado de seu amigo, inquieto. Seus dedos estavam tão gelados que desejou ter ficado no castelo. Quando vamos começar o treinamento? Rhombur e ele se olharam, impacientes, à espera.

— Olhem para mim! — ordenou Hawat —. Eu poderia estripá-los no instante em que trocaram esse olhar pretensioso.

Deu um passo ameaçador em direção aos dois.

Leto e Rhombur usavam roupas cômodas mas de aspecto majestoso. A brisa sacudia suas capas. A de Leto era de uma seda merh esmeralda brilhante, debruada de negro, enquanto que a do príncipe de lX exibia os tons púrpura e cobre da Casa Vernius.

Depois de um longo silêncio, Hawat ergueu o queixo, preparado para começar.

— Antes de mais nada, tirem essas capas ridículas.

Leto levou a mão ao fecho na garganta, mas Rhombur vacilou. Naquela fração de segundo, Hawat desembainhou sua espada curta e cortou o diminuto cordão, a poucos milímetros da jugular do príncipe. O vento arrebatou a capa púrpura e a lançou pelo escarpado. O objeto caiu como um cometa até pousar nas águas turbulentas.

— Ei! — exclamou Rhombur —. Por que...

Hawat desprezou seus protestos.

— Vocês vieram aqui para aprender o manejo das armas. Por que se vestiram como se fossem para um baile do Landsraad ou para um banquete imperial? — O Mentat bufou, e depois cuspiu na direção do vento —. Lutar é um trabalho sujo, e a menos que tentem ocultar as armas nessas capas, usá-las é uma estupidez. É como sair vestindo seu próprio sudário.

Leto ainda segurava a capa verde em suas mãos. Hawat agarrou a ponta do tecido e ao mesmo tempo imobilizou a mão direita de Leto. Puxou com força e golpeou com o pé o tornozelo do jovem, que caiu sobre o chão rochoso.

Leto ofegou para recuperar o fôlego. Rhombur riu do seu amigo.

Hawat lançou a capa ao ar para que fosse se reunir com a de Rhombur no mar.

— Qualquer coisa pode transformar-se em uma arma — disse —. Carregam espadas, e facas. Além disso, têm escudos. Entretanto, deveriam carregar oculto um bom sortimento de brinquedos: agulhas, campos atordoantes, pontas envenenadas. Enquanto seu inimigo presta atenção na arma visível — Hawat pegou uma espada de treinamento e estocou o ar —, podem utilizá-la como isca para atacar com algo ainda mais mortífero.

Leto se levantou , ao mesmo tempo em que sacudia o pó da roupa.

— Mas, senhor, não é nobre utilizar armas ocultas. Isso não vai contra as normas de...

Hawat estalou os dedos em frente ao rosto de Leto.

— Não me fale das regras do assassinato. — A pele curtida do Mentat avermelhou ainda mais, como se mal pudesse conter sua ira —. Qual é sua intenção, se pavonear em frente as damas ou eliminar seu inimigo? Isto não é um jogo.

Virou-se para Rhombur e olhou-o tão fixamente que o jovem retrocedeu um passo.

— Correm rumores de que há uma recompensa imperial por sua cabeça, príncipe, se abandonar o refúgio de Caladan. É o filho exilado da Casa Vernius. Sua vida não é a de um cidadão comum. Não sabe quando sofrerá o golpe mortal, assim deve estar preparado em todo momento. As intrigas cortesãs e a política possuem suas próprias normas, mas em certas ocasiões nem todos os jogadores respeitam as regras.

Rhombur engoliu em seco.

Hawat se voltou para o Leto.

— Rapaz, sua vida corre perigo também, como herdeiro da Casa Atreides. Todas as Grandes Casa têm que estar em alerta constante contra o assassinato.

Leto cravou a vista no instrutor.

— Compreendo, Thufir, e quero aprender. — Olhou para Rhombur —. Queremos aprender.

— Começamos sempre por algum lugar — disse o instrutor —. Tem que haver tocos desajeitados trabalhando para outras famílias do Landsraad, mas vocês, meus filhos, têm que se transformar em exemplos. Não só aprenderão a lutar com escudo e faca, nas artes sutis do assassinato, e também nas artimanhas da política e governo. Devem aprender a se defender tanto na retórica, como dos golpes físicos. — O Mentat ergueu os ombros e ficou firme —. Eu lhes ensinarei isso.

Conectou seu escudo corporal. Brandia uma faca em uma mão e uma espada larga na outra.

Leto conectou instintivamente o escudo de seu cinturão, e o campo Holtzman brilhou a sua frente. Rhombur se esforçou para imitá-lo, no instante em que o Mentat fingia atacar e se continha no segundo último.

Hawat passou as armas de uma mão para a outra, numa demonstração de que podia matar com qualquer uma delas.

— Sejam cautelosos. Talvez algum dia sua vida dependa disso.

 

Qualquer caminho que limite futuras possibilidades pode transformar-se em uma armadilha mortal. Os humanos não abrem caminho através de um labirinto. Esquadrinham um imenso horizonte repleto de oportunidades únicas.

Manual da Corporação Espacial

 

A Junção era um planeta austero, com paisagens monótonas e total controle climático, afim de eliminar inconveniências incomodas. Um lugar prático, escolhido como sede da Corporação Espacial por sua localização estratégica mais que por suas paisagens.

Aqui, os aspirantes aprendiam a transformarem-se em Navegantes.

Bosques renascidos cobriam milhões de hectares, mas se limitavam a boj e carvalhos anões. Cresciam em abundância certas hortaliças da Velha Terra, cultivadas pelos nativos (batatas, pimentões, berinjelas, tomates e diversas ervas), mas tendiam a ser alcalóides, e eram comestíveis somente depois de um cuidadoso processamento.

Depois de seu exame, aturdido pelas novas perspectivas que a melange oferecia, D'murr Pilru fora levado até ali sem poder despedir-se de seu irmão gêmeo nem de seus pais. A princípio ficou triste, mas as exigências do treinamento lhe proporcionaram tantos prodígios que esqueceu todo o resto. Descobriu que podia concentrar-se nas coisas muito melhor, e esquecer com mas facilidade.

Os edifícios da Junção (enormes formas avultadas com protuberâncias redondas e angulares) tinham o desenho normal da Corporação, muito parecidos com a embaixada de IX: práticos ao extremo e enormes. Cada edifício contava com um escudo com a insígnia do infinito. As infra-estruturas mecânicas eram de procedência ixiana e richesiana, instaladas séculos antes e ainda em funcionamento.

A Corporação Espacial preferia ambientes que não interferissem em suas importantes tarefas. Para um Navegante, qualquer distração significava um perigo em potencial. Cada estudante da Corporação aprendia a lição muito rapidamente, como o jovem aspirante D'murr: longe de casa e absorto em seus estudos, evitava qualquer preocupação com os problemas de seu antigo planeta.

No meio de um campo de erva negra, estava imerso em seu contêiner de gás de melange. Meio nadava meio rastejava, enquanto seu corpo continuava mudando e seus sistemas físicos se alteravam para adaptar-se ao bombardeio de especiaria. Tinham começado a crescer membranas entre os dedos de suas mãos e pés. Seu corpo estava mais largo e flácido que antes, e ia adotando forma de peixe. Ninguém tinha explicado o alcance das inevitáveis mudanças, e não fez perguntas. Não importava. Era tal a quantidade de universo aberto para ele, que considerava modesto o preço a pagar.

Os olhos de D'murr tinham diminuído e perdido as pestanas. Também tinha desenvolvido cataratas. Não necessitava mais deles para ver, já que tinha outros olhos, os da visão interna. O universo se desdobrava para ele. No processo experimentava a sensação de estar deixando algo para trás, e não se incomodava.

Através da neblina, D'murr via o campo de erva negra coberto com fileiras de aspirantes em seus contêineres, navegantes que se preparavam. Uma vida por contêiner. Os contêineres expeliam gases de melange filtrados, que redemoinhavam ao redor de ajudantes humanóides protegidos com máscaras, que esperavam para mover os contêineres quando ordenassem.

O Instrutor Chefe, um Timoneiro Navegante chamado Grodin, flutuava no interior de um contêiner negro içado sobre uma plataforma. Os aprendizes o viam mais com a mente que com os olhos. Grodin acabava de chegar da dobra espacial com um aspirante, cujo contêiner estava ao lado do dele, conectados por um tubo flexível para que seus gases se misturassem.

D'murr já tinha realizado vôos curtos em três ocasiões. Consideravam-lhe um dos melhores aspirantes. Assim que aprendesse a viajar pela dobra espacial sozinho, receberia o título de Piloto, o Navegante de patente mais inferior, mas muito superior ao que tinha sido quando era um simples ser humano.

As viagens pela dobra espacial do Timoneiro Grodin eram lendárias explorações através de incompreensíveis nós dimensionais. A voz do Instrutor Chefe surgia de um alto-falante situado dentro do contêiner de D'murr, e utilizava uma linguagem superior. Descreveu uma ocasião em que tinha transportado seres similares a dinossauros em um antiquado Cruzeiro. Ignorava que os monstros podiam esticar o pescoço até distâncias incríveis. Enquanto o Cruzeiro se encontrava em vôo, um desses seres abrira caminho, devorando tudo a sua frente, até a câmara de navegação, de modo que sua cara apareceu em frente ao contêiner de Grodin, que olhou para ele com os olhos arregalados...

Está-se muito bem aqui, pensou D'murr enquanto ouvia a história. Inalou uma profunda baforada de melange. Os humanos, devido a seus sentidos embotados, comparavam aquele aroma penetrante com a canela mais potente, mas a melange era muito mais que isso, imensamente mais complexa.

D'murr já não precisava preocupar-se com os assuntos mundanos dos seres humanos, seres corriqueiros, limitados e imprevisíveis: maquinações políticas, superpopulação, quantas vidas brilhavam e se apagavam em apenas um instante, como faíscas de uma fogueira. Sua vida anterior não era mais que uma lembrança vaga e difusa, sem nomes nem rostos concretos. Via imagens, mas as ignorava. Nunca poderia voltar para o passado.

Em vez de terminar o relato sobre o ser em forma de dinossauro, o Timoneiro Grodin mudou de assunto e falou sobre os aspectos técnicos do que o aspirante selecionado tinha conseguido em sua viagem interestelar, e como tinham utilizado matemática de alto nível e mudanças dimensionais para escrutinar o futuro, assim como o monstro de pescoço comprido tinha examinado seu contêiner.

— Um Navegante tem que fazer muito mais que observar — disse pelo alto-falante a voz estranha de Grodin —. Um Navegante utiliza o que vê para guiar naves espaciais através do vazio. O fato de não aplicar certos princípios básicos pode conduzir à destruição do Cruzeiro e de todos que transporta.

Antes que um dos novos adeptos, como D'murr, chegasse a Piloto, deviam aprender a dominar determinadas crises, como um espaço dobrado em parte, sem presciência, um ataque de alergia da especiaria, geradores Holtzman defeituosos, e até mesmo sabotagem deliberada.

D'murr tentou imaginar como teriam padecido alguns de seus desafortunados predecessores. Contra a crença popular, os Navegantes utilizavam sua limitada presciência para escolher rotas seguras de navegação. Uma nave podia atravessar o vazio sem seu guia, mas esse perigoso jogo de adivinhações conduzia de maneira inevitável ao desastre. Um Navegante da Corporação não garantia uma viagem segura, mas as probabilidades aumentavam de maneira substancial. Havia problemas quando imprevistos.

Estavam treinando D'murr até o limite dos conhecimentos da Corporação, o que não incluía todas as eventualidades. O universo e seus habitantes se achavam em uma estado de mudança constante. Todas as antigas escolas sabiam, incluindo a Bene Gesserit e os Mentats. Os sobreviventes aprendiam a adaptar-se à mudança, a esperar o inesperado.

No limite de sua consciência, seu contêiner de melange começou a deslocar-se sobre seu campo suspensor e se alinhou atrás dos contêineres de outros aspirantes. Ouviu um ajudante de instrutor recitar passagens do Manual da Corporação Espacial. Mecanismos de circulação do gás zumbiam ao seu redor. Cada detalhe parecia nítido, definido, importante. Jamais havia se sentido tão vivo!

Inalou a melange e notou que suas preocupações começavam a dissipar-se. Seus pensamentos recuperaram a harmonia e deslizaram suavemente pelos caminhos neurais do seu cérebro.

— D'murr... D'murr, irmão...

O nome redemoinhou com o gás, como um sussurro no universo, um nome que não utilizava mais, agora que tinham lhe atribuído um número de navegação da Corporação. Os nomes se associavam com a individualidade. Os nomes impunham limitações e idéias preconcebidas, relações familiares e histórias passadas, impunham a antítese do que significava ser um Navegante. Um homem da Corporação se fundia com o cosmos e via rotas seguras através das curvas do destino, visões prescientes que permitiam guiar matéria de um lugar a outro, como peças de xadrez em um tabuleiro cósmico.

— Está me ouvindo, D'murr? D'murr?

A voz vinha do alto-falante situado dentro do seu contêiner, mas também de uma enorme distancia. Percebeu algo familiar no seu tom. Tinha esquecido tantas coisas? D'murr. Quase tinha apagado esse nome da mente.

O cérebro de D'murr efetuou conexões que cada vez considerava menos importantes, e sua boca flácida formou palavras gorjeantes.

— Sim, estou ouvindo.

Empurrado pelo ajudante, o contêiner de D'murr deslizou por um caminho pavimentado em direção ao enorme edifício bulboso onde viviam os Navegantes. Ninguém parecia ouvir a voz.

— Sou eu, C'tair — continuou a transmissão —. Seu irmão. Está ouvindo? Esta porcaria funcionou por fim. Como está?

— C'tair?

O Navegante em treinamento sentiu que sua mente rastejava para os restos de seu preguiçoso estado pré-Corporação. Tentava ser humano de novo, mesmo que por um instante. Era importante?

O processo era penoso e limitado, como um homem diante de anteparas, mas a informação era precisa: sim, seu irmão gêmeo. C'tair Pilru. Humano. Recebeu imagens fugazes do seu pai vestido de embaixador, de sua mãe com o uniforme do Banco da Corporação, de seu irmão quando brincavam e exploravam juntos. Aquelas imagens tinham sido expulsas de seus pensamentos, como quase tudo que pertencia àquele reino... mas não por completo.

— Sim — disse D'murr —. Eu o conheço. Lembro-me.

Em IX, refugiado no cubículo onde utilizava seu aparelho de transmissão improvisado, C'tair falava curvado, com medo de ser descoberto, mas valia o risco. Lágrimas corriam sobre seu rosto, e engoliu em seco. Os Tleilaxu e os subóides continuavam a jogar suas redes, destruindo qualquer resíduo de tecnologia desconhecida que encontravam.

— Eles o separaram de mim na câmara de exames da Corporação — sussurrou C'tair —. Não me deixaram vê-lo nem dizer adeus. Agora compreendo que você teve sorte, D'murr, pensando no que aconteceu em IX. Vê-lo agora partiria seu coração. — Respirou fundo —. Nossa cidade foi destruída pouco depois de termos sido separados pela Corporação. Morreram centenas de milhares de pessoas. O poder passou para as mãos dos Bene Tleilax.

D'murr fez uma pausa para adaptar-se à comunicação limitada de pessoa a pessoa.

— Guiei um Cruzeiro através da dobra espacial, irmão. Eu vejo a galáxia com minha mente, vejo matemática. — Suas palavras indolentes conseguiram formar frases —. Agora sei por que... Se... Ai, sua conexão me faz sentir dor. Como é possível, C'tair?

— Esta comunicação lhe faz mal? — C'tair se afastou do transmissor e conteve o fôlego, com medo de ser ouvido pelos microfones Tleilaxu —. Sinto muito, D'murr. Possivelmente deveria...

— Não é importante. A dor oscila, como uma enxaqueca... embora de maneira diferente. Percorre minha mente e a abandona. — A voz de D'murr parecia longínqua e etérea —. Que tipo de transmissão é esta? Que aparelho está utilizando?

— Você não me ouviu, D'murr? IX foi destruído. Nosso planeta, nossa cidade, é um campo de concentração. Nossa mãe morreu em uma explosão. Não pude salvá-la. Estive escondido aqui, perto de pessoas e corro um grande perigo por causa desta transmissão. Nosso pai está exilado, não sei onde... em Kaitain, acredito. A Casa Vernius se declarou renegada. Estou preso aqui!

D'murr continuou concentrado no que considerava a questão mais importante.

— Comunicação direta através da dobra espacial? Impossível. Explique-me.

— Explicar? — repetiu D'murr.

Surpreso pela falta de preocupação de seu gêmeo com as notícias horrendas, C'tair decidiu seguir a corrente. Afinal, D'murr tinha sofrido mudanças mentais radicais, e ninguém podia culpá-lo por seu estado atual. C'tair nunca entenderia o que seu gêmeo tinha padecido. Ele tinha fracassado nos exames da Corporação. comportara-se com excessivo temor e rigidez. Do contrário, agora também seria um Navegante.

Conteve o fôlego, ouviu um rangido no passadiço que corria por cima de seu cabeça, passos que se afastavam. Vozes sussurrantes. Depois o silêncio voltou e pôde continuar a conversa.

— Explique — repetiu D'murr.

C'tair falou com seu irmão do aparelho que havia criado.

— Lembra-se de Davee Rogo, o velho inventor que nos convidava a ir ao seu laboratório para nos ensinar as coisas em que trabalhava?

— Aleijado... muletas suspensoras. Muito decrépito para andar.

— Sim, falava freqüentemente de comunicação por meio de ondas de energia de neutrinos, uma rede de varinhas envoltas em cristais de silicato.

— Ai... Dor outra vez.

— Está sofrendo! — C'tair olhou ao redor, consciente do perigo que estava correndo —. Não me estenderei muito mais.

D'murr queria saber mais.

— Continue a explicação. Tenho que saber como é este aparelho.

— Um dia, durante os distúrbios, quando sentia necessidade de falar com você, recordei fragmentos das conversas. Acreditei ver, entre os escombros de um edifício ruído, uma imagem imprecisa de Rogo. Foi como uma visão. Falava com aquela voz velha e quebrada, e me disse o que devia fazer, que peças necessitava e como juntá-las. Deu-me as idéias que necessitava.

— Interessante.

A voz do Navegante era monótona e indiferente.

A falta de emoção e compaixão de seu irmão inquietou C'tair. Tentou formular perguntas sobre as experiências de D'murr na Corporação Espacial, mas seu irmão não teve paciência e respondeu que não podia divulgar os segredos da Corporação, nem mesmo para seu irmão. Tinha viajado através da dobra espacial, e era incrível. Não podia revelar nada mais.

— Quando poderemos voltar a falar? — perguntou C'tair. Notou o aparelho perigosamente quente, como se estivesse a ponto de explodir. Teria que desconectá-lo muito em breve. D'murr emitiu um grunhido de dor, mas não deu uma resposta concreta.

Apesar de saber do mal-estar de seu irmão, C'tair experimentava a necessidade humana de dizer adeus, embora não fosse assim no caso de D'murr.

— Até logo, então. Sinto sua falta.

Enquanto pronunciava aquelas palavras contidas a tanto tempo, notou um aplacamento de sua dor, uma sensação curiosa, pois não estava seguro de que seu irmão o compreendesse como antes.

C'tair cortou a comunicação, sentindo-se culpado. Depois ficou sentado um momento em silêncio, afligido por emoções contraditórias: alegria por ter falado com seu irmão, e tristeza pelas reações ambivalentes de D'murr. Até que ponto seu irmão tinha mudado?

D'murr deveria lamentar a morte de sua mãe e os trágicos acontecimentos em IX. O estado de ânimo de um Navegante da Corporação afetava toda a humanidade. Não deveria ser um Navegante mais sensível, mais propenso a defender a humanidade?

Em vez disso, parecia que o jovem tinha cortado todos os laços e queimado todas as pontes. D'murr representava a filosofia da Corporação, ou estava tão absorto em suas novas capacidades que se transformara em megalomaníaco? Era necessário que se comportasse daquela maneira? D'murr eliminara todo contato com a humanidade? Não havia forma de saber.

C'tair experimentava a sensação de ter perdido seu irmão pela segunda vez.

Desconectou os contatos da máquina de bioneutrinos que durante um momento tinha expandido seus poderes mentais, amplificado seus pensamentos e permitido que se comunicasse com a longínqua Junção. Marcado de repente, voltou para seu esconderijo e tombou no estreito beliche. Com os olhos fechados, imaginou o mundo que se estendia além de suas pálpebras, e se perguntou como o veria seu gêmeo. Sua mente zumbia com um estranho resíduo do contato, seqüela da expansão mental.

D'murr parecia falar submerso em água, através de filtros de compreensão. C'tair começou a desentranhar significados subjacentes, sutilezas e engenhosidades. Durante toda a noite, no isolamento de sua habitação oculta, pensamentos encadeados percorreram sua mente, afligiram-no como uma possessão demoníaca. O contato tinha ativado algo em seu cérebro, uma reação assombrosa.

Não saiu de seu refúgio durante dias, absorto em suas lembranças, e utilizou o aparelho para concentrar seu pensamento até extremos de lucidez obsessiva. Hora depois de hora, a conversa reproduzida tornava-se mais clara, as palavras e os duplos significados se revelavam como as pétalas de uma flor, como se atravessasse as dobras espaciais em mente e memória. Os matizes da conversa com D'murr adquiriam maior transparência, significados que C'tair não tinha captado a princípio. O que só lhe proporcionou um indício do que seu irmão tinha se tornado.

Achou isso emocionante. E aterrador.

Por fim, quando recuperou a consciência vários dias depois, viu esparramados ao seu redor os pacotes de comida e bebida. A habitação fedia. Olhou-se num espelho e se surpreendeu por ver que uma barba tinha crescido em seu rosto. Seus olhos estavam injetados e o cabelo desgrenhado. C'tair mal se reconheceu.

Se Kailea Vernius o visse agora, retrocederia tomada de horror ou desprezo, e o enviaria para trabalhar nos níveis inferiores mais imundos, com os subóides. Não obstante, por algum processo ignorado, depois da tragédia de IX e da violação de sua bela cidade subterrânea, seu amor infantil pela filha do conde lhe parecia irrelevante. De todos os sacrifícios que C'tair tinha feito, aquele era o mais insignificante.

E tinha certeza que outros ainda maiores o aguardavam.

Antes de se lavar ou de arrumar o esconderijo, iniciou os preparativos para chamar seu irmão novamente.

 

As percepções regem o universo.

Máxima Bene Gesserit

 

Uma lançadeira robô controlada abandonou o Cruzeiro que girava em órbita no sistema de Laoujin e desceu até a superfície de Wallach IX, ao mesmo tempo em que transmitia os códigos de segurança corretos que desativariam as defesas primárias da Irmandade. O lar das Bene Gesserit era mais uma etapa em sua longa rota entre as estrelas do Império.

Gaius Helen Mohiam, cujo espesso cabelo começava a ficar grisalho , e cujo corpo começava a trair sua idade, pensou que era estupendo voltar para casa depois de meses dedicada a outras tarefas, cada uma delas um fio na imensa tapeçaria das Bene Gesserit. Nenhuma irmã compreendia a configuração em sua totalidade, o entrelaçado de acontecimentos e pessoas, mas Mohiam cumpria sua parte.

A Irmandade a tinha chamado de volta, devido a gravidez avançada, para que permanecesse na Escola Materna até o momento de dar a luz. Só a mãe Kwisatz Anirul conhecia seu verdadeiro valor para o programa de reprodução, a forma de que tudo dependia da menina que crescia em seu corpo. Mohiam, por sua vez, sabia que a menina era importante, mas mesmo as vozes da Outra Memória, a que sempre podia convocar para que lhe oferecer uma cacofonia de conselhos, guardava um silêncio deliberado sobre o tema.

Ela era a única passageira da lançadeira. Os fabricantes richesianos do robô piloto, que trabalhavam sob o espectro da Jihad, superaram-se para arranjar um aparelho de aspecto extravagante, coberto de rebites, que nem emulava à mente humana nem parecia humano, nem sequer era sofisticado.

O robô piloto transportava passageiros e materiais de uma nave para a superfície de um planeta, para retornar de novo à nave mãe dentro de uma cadeia de atividades bem programada. Suas funções incluíam flexibilidade suficiente apenas para seguir os mapas de tráfico aéreo ou as condições meteorológicas adversas. O robô piloto conduzia a lançadeira em uma seqüência rotineira: do Cruzeiro ao planeta, do planeta ao Cruzeiro...

Mohiam, sentada perto de uma janelas da lançadeira, refletia sobre a sua deliciosa vingança sobre o barão. Já tinham passado vários meses e não havia dúvida de que o homem não tinha a menor suspeita, mas uma Bene Gesserit podia esperar muito tempo. Com os anos, com seu adorado corpo enfraquecido e tomado pela doença, um Vladimir Harkonnen totalmente derrotado podia mesmo nutrir a idéia de suicídio.

Talvez a ação de Mohiam tivesse sido impulsiva, mas era justa, perante o que o barão tinha feito. A madre superiora Harishka não permitiria que a Casa Harkonnen ficasse impune, e Mohiam acreditava que sua iniciativa fora cruelmente adequada. Economizaria tempo e problemas para a Irmandade.

Enquanto a nave mergulhava na capa de nuvens, Mohiam imaginou se sua nova filha seria perfeita, por que o barão não lhes serviria mais de nada. Caso contrário, a Irmandade sempre possuía outras opções e planos. Tinham diversos programas de reprodução.

Mohiam era do tipo que se considerava ótimo para certo programa genético misterioso. Conhecia os nomes de algumas candidatas, mas não de todas, e também sabia que a Irmandade não desejava gravidezes simultâneas no programa, pois temia que tal circunstância prejudicasse o índice de emparelhamentos. Não obstante, Mohiam se perguntava por que tinha sido escolhida de novo, depois de seu primeiro fracasso. Suas superioras não tinham explicado, e sabia que não devia perguntar. Além disso, as Vozes da Outra Memória também guardavam segredo.

Os detalhes importam?, perguntou-se. Carrego a víbora exigida em meu útero. Um parto perfeito elevaria o prestígio de Mohiam, poderia levá-la a ser escolhida madre superiora pelas superintendentes, quando fosse muito mais velha, dependendo da importância desta filha.

Pressentia que a menina seria muito importante.

Sentiu uma repentina mudança de movimento na lançadeira robô tripulada. Olhou pela janela estreita e viu que o horizonte de Wallach IX variava, enquanto o aparelho dava voltas e descia desgovernado. O campo de segurança que rodeava seu assento emitiu um brilho amarelado, desconhecido e desconcertante. Os sons mecânicos, até então apenas um zumbido suave, aumentaram para um volume ensurdecedor.

As luzes do módulo de controle piscaram. Os movimentos do robô eram erráticos e inseguros. Mohiam tinha sido preparada para enfrentar qualquer crise, e sua mente trabalhou com rapidez. Sabia que nestas lançadeiras aconteciam avarias ocasionais, ínfimas de um ponto de vista estatístico mas exacerbadas pela falta de pilotos com capacidade de pensamento e reação. Quando um problema se apresentava, e Mohiam se era protagonista de um, as probabilidades de terminar em desastre eram altas.

A lançadeira caiu em descontrolada entre as nuvens. O robô piloto efetuou os mesmos movimentos circulares, incapaz de tentar algo novo. O motor emitiu um estertor estranho e emudeceu.

Não pode ser, pensou Mohiam. Agora não, grávida desta menina. Sentia em suas vísceras que, se conseguisse sobreviver, sua filha seria perfeita, a menina que a Irmandade tanto necessitava.

Mas lapsos de a pensamentos assaltaram, e começou a tremer. Os Navegantes da Corporação, assim como o do Cruzeiro em órbita sobre sua cabeça, utilizavam complexos cálculos dimensionais, afim de ver o futuro e poder conduzir a nave sã e salva através dos perigosos vazios da dobra espacial. A Corporação Espacial teria descoberto o segredo do programa Bene Gesserit e o temia?

Enquanto a lançadeira se precipitava para o desastre, um desfile de possibilidades passou pela mente de Mohiam. O campo de segurança que a rodeava se expandiu e adotou um tom mais amarelado. Mohiam enlaçou as mãos sobre seu útero para protegê-lo e experimentou um desesperado desejo de viver e de que sua filha não nascida visse a luz sem problema. Seus pensamentos transcendiam as preocupações domésticas de uma mãe e uma filha.

Perguntou-se se suas suspeitas estariam erradas E se uma força que nem ela nem as outras irmãs eram capazes de imaginar era a causadora disto? Com seu programa de reprodução as Bene Gesserit estavam brincando de Deus? Existia um verdadeiro Deus, apesar do cinismo e do cepticismo da Irmandade à respeito da religião?

Seria uma brincadeira muito cruel.

As deformidades de sua primeira filha, e agora a morte iminente deste feto e de Mohiam... Tudo apontava para um significado oculto, mas quem, ou o que, estava por trás deste acidente?

As Bene Gesserit não acreditavam em acidentes nem em coincidências.

— Não devo temer — rezou com os olhos fechados —. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que conduz à destruição total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe sobre e através de mim. E quando tiver passado, observarei seu caminho com o olho interior. Onde o medo passou, não haverá nada. Só eu restarei.

Era a Litania Contra o Medo, criada em tempos remotos por uma irmã Bene Gesserit e transmitida de geração em geração.

Mohiam respirou fundo e notou que os tremores diminuíam.

A lançadeira se estabilizou momentaneamente, com a janela virada para o planeta. O motor chispou de novo. Viu que a massa continental se aproximava a grande velocidade, e revelou o extenso complexo da Escola Materna, uma cidade labiríntica de edifícios de estuque branco e telhados cor Siena.

Iriam se chocar contra o edifício principal, com um potente explosivo a bordo? Uma colisão destruiria o coração da Irmandade.

Mohiam não conseguiu se liberar do campo de segurança, apesar de seus esforços. A lançadeira mudou de direção e a terra desapareceu de sua vista. A janela se inclinou para cima e revelou o sol branco-azulado, na beira da atmosfera.

Então, o campo de segurança perdeu seu tom amarelado, e Mohiam compreendeu que a lançadeira se estabilizara. O motor funcionava de novo. Na parte dianteira do compartimento, o robô piloto se movia com aparente eficiência, como se nada tivesse acontecido. Pelo visto, um de seus programas de emergência tinha funcionado.

Quando a lançadeira pousou com suavidade diante da grande praça, Mohiam exalou um longo suspiro de alívio. Correu para a porta, desejosa de alcançar a segurança do edifício mais próximo, mas logo se acalmou e saiu com serenidade. Uma reverenda madre tinha que manter as aparências.

Quando deslizou rampa abaixo, irmãs e acompanhantes a rodearam para protegê-la. A madre superiora ordenou que a lançadeira fosse submetida a um rigoroso exame, em busca de provas de sabotagem ou para confirmar uma simples avaria. Não obstante, uma repentina transmissão do Cruzeiro o impediu.

A reverenda madre Anirul Sadow Tonkin esperava Mohiam, transbordante de orgulho, com um aspecto muito juvenil graças a seu rosto de cerva e o cabelo brônzeo curto. Mohiam nunca compreendera a importância de Anirul, embora até a madre superiora lhe mostrasse deferência. As duas mulheres se saudaram com um movimento de cabeça.

Rodeada das outras irmãs, Mohiam foi escoltada até um edifício. Um numeroso contingente de guardas armados cuidaria de sua segurança. Cuidariam dela e vigiariam até que desse a luz.

— As viagens acabaram para você, Mohiam — disse a madre superiora Harishka —. Ficará aqui até sua filha nascer.

 

Aqueles de coração fraco, sejam fortes e não temam. Aqui está seu Deus que virá para vingá-los. Virá e os salvará dos adoradores de máquinas.

Bíblia Católica Laranja

 

Na ala das concubinas do palácio imperial, máquinas de massagem batiam e amassavam a pele, e aplicavam óleos perfumados em todo o glorioso contorno das mulheres do imperador. Sofisticados engenhos de manutenção física extraíam a celulite, melhoravam o tônus muscular, alisavam abdomens e papadas, e suavizavam a pele com diminutas injeções. Todos os detalhes deviam adaptar-se às preferências de Elrood, embora não parecesse mais muito interessado. Até a mais velha das quatro mulheres, a setuagenária Grera Cary, conservava a aparência de uma mulher com a metade de sua idade, graças em parte a freqüentes libações de especiaria.

A luz da aurora se tingia de âmbar ao filtrar-se pelas grossas janelas de plaz blindado. Quando a massagem de Grera terminou, a máquina a envolveu em uma toalha de khartan morna e cobriu seu rosto com um pano refrescante, empapado em eucalipto e zimbro. A cama da concubina se transformou em uma poltrona sensiforme, que se amoldou perfeitamente a seu corpo.

Um equipamento de manicure desceu do teto, e Grera sussurrou suas meditações diárias enquanto cortavam, poliam e pintavam de verde intenso as unhas dos pés. A máquina voltou para seu compartimento do teto, a mulher se levantou e deixou cair a toalha. Um campo elétrico passou sobre seu rosto, braços e pernas, e eliminou os pêlos quase invisíveis.

Perfeita. Até mesmo para o imperador.

Do contingente atual de concubinas, só Grera era bastante velha para se lembrar de Shando, um brinquedo que tinha abandonado o serviço imperial para casar-se com um herói de guerra e levar uma vida normal. Elrood não tinha dado muita atenção a Shando quando estava entre suas numerosas mulheres, mas depois que ela partiu tinha esquecido as demais e lamentado sua perda. Durante os anos posteriores, muitas de suas concubinas favoritas eram parecidas com Shando.

Enquanto observava as outras concubinas submeterem-se a procedimentos similares de cuidados corporais, Grera Cary pensou que as coisas tinham mudado muito para o harém do imperador. Menos de um ano antes, estas mulheres se reuniam em poucas ocasiões, pois Elrood estava quase sempre com alguma delas, cumprindo o que ele chamava de seus deveres imperiais. Uma das concubinas, natural de Eleccan, tinha batizado o velho fauno com um apelido que perdurou. Fornicário, uma referência a suas proezas e apetites sexuais. As mulheres só o usavam entre si, em tom de brincadeira.

— Alguma de vocês viu o Fornicário? — perguntou a mais alta das duas concubinas de menor idade, do outro extremo da sala.

Grera trocou um sorriso com ela, e as mulheres riram como colegiais.

— Temo que nosso carvalho imperial se transformou em salgueiro chorão.

O ancião quase não ia a ala das concubinas. Embora passasse tanto tempo na cama como antes, era por um motivo muito diferente. Sua saúde se deteriorara com grande rapidez, e sua libido já tinha morrido. Só faltava sua mente.

De repente, as mulheres emudeceram, e se viraram alarmadas para a entrada principal da ala das concubinas. O príncipe herdeiro Shaddam entrou sem se anunciar, seguido de seu onipresente acompanhante Hasimir Fenring, a quem chamavam o Furão por sua cara estreita e queixo fino. As mulheres cobriram sua nudez rapidamente e ficaram imóveis em sinal de respeito.

— Qual é a piada, hummmm? — perguntou Fenring —. Ouvi risadas.

— As garotas estavam brincando — disse Grera. Como era a mais velha, estava acostumada a falar em nome de todas.

Havia rumores que aquele homem de pouca estatura matara a punhaladas duas de suas amantes, e Grera acreditava, devido a seu porte escorregadio. Graças a seus muitos anos de experiência, aprendera a reconhecer um homem capaz de crueldades sem conta. Dizia-se que a genitálias de Fenring era estéril e disformes embora sexualmente funcionais. Nunca tinha se deitado com ele, nem o desejava.

Fenring a estudou com seus olhos grandes e desalmados e depois se aproximou das duas loiras novas. O príncipe herdeiro ficou perto da porta que dava para o solarium. Shaddam, magro e ruivo, usava um uniforme cinza Sardaukar debruado de prata e ouro. Grera sabia que o herdeiro imperial gostava de brincar de soldado.

— Peço-lhe que me conte a piada — insistiu Fenring. Falou com a loira menor, uma adolescente um pouco mais baixa que ele. Seus olhos recordavam os de Shando —. O príncipe Shaddam e eu temos muito senso de humor.

— Era uma conversa privada — respondeu Grera ao mesmo tempo em que avançava com um gesto protetor —. Coisas pessoais.

— Ela não sabe falar? — respondeu Fenring, e cravou os olhos em Grera. Usava um manto negro debruado em ouro e muitos anéis nas mãos —. Se for escolhida para entreter o imperador Padishah, tenho certeza que saberá contar uma piada, hummmm?

— Grera já disse — insistiu a loira —. Coisas de garotas. Não vale a pena repetir.

Fenring agarrou um extremo da toalha que envolvia seu corpo curvilíneo. Surpresa e temor surgiram no rosto da moça. Fenring puxou a toalha e deixou um dos seus seios descoberto.

— Chega de tolices, Fenring — disse Grera, irritada —. Somos concubinas reais. Só o imperador pode nos tocar.

— Que sorte ele têm.

Fenring olhou para Shaddam. O príncipe herdeiro assentiu.

— O que ela diz é verdade, Hasimir. Se quiser, cederei uma de minhas concubinas.

— Mas não lhe fiz mal, meu amigo. Só estava ajustando sua toalha. — Soltou-a, e a moça voltou a cobrir-se —. E o imperador tem... hummmm, utilizado seus serviços com freqüência nos últimos tempos? Ouvimos dizer que uma de suas partes já morreu.

Fenring olhou para Grera Cary, mais alta que o Furão.

Grera olhou para o príncipe herdeiro em busca de apoio e proteção, mas não os encontrou. Os olhos frios do homem se desviaram dela. Por um momento, a mulher se perguntou como o herdeiro imperial seria na cama, se possuiria os dotes sexuais de seu pai. Duvidava disso. A julgar por seu aspecto frígido, até mesmo o velho prostrado em seu leito de morte seria melhor amante.

— Anciã, você virá comigo, e continuaremos falando de piadas — ordenou Fenring —. Pode até ser que troquemos algumas. Posso ser um homem muito divertido.

— Agora, senhor? — Apontou para a toalha khartan.

Os olhos chamejantes de Fenring se entreabriram ominosamente.

— Uma pessoa na minha posição não tem tempo para esperar que uma mulher se vista. É claro que agora! — Agarrou uma ponta da toalha e a puxou. Grera o seguiu, esforçando-se por manter a toalha ao redor do seu corpo —. Por aqui. Venha, venha.

Enquanto Shaddam os seguia, divertido, Fenring puxou-a para a porta.

— O imperador se saberá disto! — protestou a mulher.

— Fale mais alto, porque a cada dia ele está mais surdo. — Fenring lhe dedicou um sorriso diabólico —. Que vai dizer? Há dias em que nem sequer se lembra do seu nome. Não vai se incomodar com uma harpia como você.

Seu tom provocou um calafrio na espinha dorsal de Grera. As outras concubinas viram, confusas e indefesas, que sua grande representante era tirada sem cerimônias para o corredor.

Àquelas horas da manhã não se viam membros da corte, só guardas Sardaukar em posição de sentido. E com o príncipe coroado Shaddam presente, os guardas não viam nada. Grera olhou para eles, mas no caso poderia ser invisível.

Como parecia que sua voz nervosa irritava Fenring, Grera decidiu que o mais prudente seria guardar silêncio. O Furão se comportava de uma maneira estranha, mas como concubina imperial não devia temer nada dele. O furtivo homem não ousaria cometer a estupidez de lhe fazer mal.

Olhou para trás e descobriu que Shaddam tinha desaparecido por algum passadiço. assim, estava sozinha com aquele homem malvado.

Fenring atravessou uma barreira de segurança e empurrou Grera para o interior de uma habitação. Caiu sobre um chão de mármolplaz branco e negro. Tratava-se de uma estadia ampla, com uma chaminé de pedra e cimento que dominava uma das paredes, destinada em outro tempo como quarto de convidados, mas agora desprovida de móveis. Cheirava a pintura fresca e a abandono.

A porta se fechou. Shaddam ainda não tinha aparecido. O que aquele homenzinho queria?

Fenring extraiu de seu manto um ovalóide com jóias verdes incrustadas. Depois de apertar um botão no lado, apareceu uma longa folha verde, que cintilou à luz da estadia.

— Não a trouxe aqui para interrogá-la, harpia — disse suavemente. Ergueu a arma —. De fato, vou provar isto. Nunca gostei de algumas prostitutas do imperador.

O assassinato não era novidade para Fenring, e matava com as mãos com tanta freqüência como tramava acidentes ou pagava assassinos de aluguel. Algumas vezes gostava de derramar sangue, em outras preferia sutilezas e blefes. Quando era mais jovem, logo que completou dezenove anos, saiu do palácio imperial de noite e matou aleatoriamente a dois funcionários só para provar a si mesmo que era capaz. Ainda tentava manter-se em forma.

Fenring sempre soubera que possuía a vontade de ferro necessária para assassinar, mas se surpreendia com o prazer que sentia. Matar Fafnir, o príncipe herdeiro anterior, fora seu maior triunfo, até agora. Assim que o velho Elrood morresse por fim, teria outro motivo de orgulho. Não posso aspirar nada mais alto.

Mas precisava estar atualizado sobre as novas técnicas e inventos. Quem sabia quando poderiam lhe ser úteis. Além disso, aquela neuronavalha era tão intrigante... Grera arregalou os olhos para a brilhante folha verde.

— O imperador me ama! Não pode...

— Ele a ama? Com uma concubina de três no quarto? Passa mais tempo chorando por culpa de sua amada Shando. Elrood está tão senil que nem sequer perceberá seu desaparecimento, e as outras concubinas se alegrarão por serem promovidas.

Antes que Grera pudesse escapar, Fenring saltou sobre ela e a prendeu.

— Ninguém vai chorar sua perda, Grera Cary.

Ergueu a folha verde e, com um brilho malévolo nos olhos, apunhalou-a repetidas vezes no torso recém hidratado e massageado. A toalha de khartan caiu ao chão.

A concubina gritou de dor, voltou a gritar, sofreu espasmos e estremecimentos e por fim emudeceu. Nem feridas nem sangue, só uma agonia imaginária. Toda a dor, mas nenhuma marca incriminatória. Podia existir uma melhor forma de matar?

Enquanto o prazer ofuscava seu cérebro, Fenring se ajoelhou junto à concubina, examinou seu corpo bem formado, caído sobre a toalha. Bom tom de pele, músculos firmes, distendidos por causa da morte. Custava acreditar que aquela mulher fosse tão velha como afirmava. Seria necessário um montão de melange e muito exercício. Procurou o pulso de Grera, mas não o encontrou. Decepcionante, em certo sentido.

Não havia sangue em seu corpo nem na folha verde, nem feridas profundas, mas a matara a punhaladas. Ao menos assim ela tinha pensado.

Uma arma interessante, o neuropunhal. Era a primeira vez que o utilizava. Fenring gostava de provar as ferramentas de sua profissão, porque não queria que uma crise o surpreendesse.

Chamado Ponta por seu inventor richesiano, era uma das poucas inovações recentes daquele aborrecido planeta que Fenring considerava positivas. A folha verde imaginária deslizou em sua bainha com um estalo muito realista. A vítima não só tinha pensado que a estavam apunhalando, mas também sentira por meio de uma intensa estimulação dos neurônios! experimentara uma agressão bastante violenta para matá-la. Em certo sentido, tinha sido a mente de Grera que a matara. E agora não havia sinais em sua pele.

Nessas ocasiões, o sangue verdadeiro acrescentava um toque estimulante a uma experiência já por si emocionante, mas limpá-lo era bastante incomodo.

Reconheceu ruídos familiares atrás de si: uma porta que se abria e um campo de segurança desativado. virou-se e viu Shaddam, que o observava.

— Isso era necessário, Hasimir? Que desperdício... De qualquer modos, tinha sido útil por mais tempo que o normal.

— Creio que a pobrezinha sofreu um enfarte. — Fenring extraiu de uma dobra de seu manto outra Ponta, esta adornada com rubis e de folha vermelha —. Deveria testar esta também — disse —. Seu pai está agüentando mais do que imaginávamos, e isto acabaria com ele num abrir e fechar de olhos. Não encontrariam nenhuma marca no seu corpo. Por que esperar que o n´kee faça seu trabalho?

Sorriu.

Shaddam meneou a cabeça, como se algo tivesse lhe ocorrido. Olhou ao redor, estremeceu e tentou aparentar severidade.

— Esperaremos o que for necessário. Concordamos em não dar passos bruscos.

Fenring odiava o príncipe quando tentava pensar muito.

— Hummmm? Pensei que estava ansioso! Tomou decisões comerciais terríveis, esbanja o dinheiro dos Corrino sem pensar. — Seus grandes olhos cintilaram —. Quanto mais se conservar neste estado, mais a história o lembrará como um governante patético.

— Não posso lhe infligir mais danos — disse Shaddam —. Temo as conseqüências.

Hasimir Fenring fez uma reverência.

— Como quiser, meu príncipe.

Saíram da habitação, deixando o cadáver da Grera à mercê de quem o encontrasse. Não era a primeira vez que Fenring se comportava com tanto descaramento, mas as outras concubinas não ousariam desafiá-lo. Seria uma advertência para elas, e brigariam entre si para tomar o lugar da favorita do velho impotente, aproveitando a situação.

Quando o imperador descobrisse, nem mesmo se lembraria do nome de Grera Cary.

 

O homem não é mais que um calhau arrojado num lago. E como não é mais que um calhau, suas obras não podem ser superiores a ele.

Aforismo Zensunni

 

Leto e Rhombur treinavam por muitas horas a cada dia, no estilo Atreides. Entregavam-se à rotina com todo seu entusiasmo e determinação. O corpulento príncipe ixiano recuperou seu vigor, perdeu um pouco de peso e endureceu seus músculos.

Os dois jovens se entendiam muito bem e formavam uma boa dupla de treinamento. Como confiavam um no outro, Leto e Rhombur não se preocupavam com limites, certos de que nada ruim aconteceria.

Embora treinassem com vigor, o velho duque confiava em transformar o príncipe exilado em algo mais que um guerreiro competente. Também queria que o filho de seu amigo fosse feliz e se sentisse em casa. Paulus podia apenas imaginar os horrores que os pais renegados de Rhombur sofreriam nos limites da galáxia.

Thufir Hawat permitia que os dois jovens lutassem com imprudência e abandono, para que polissem suas habilidades. Leto não demorou para notar melhora, tanto nele como no herdeiro dos restos da Casa Vernius.

Seguindo os conselhos do Professor de Assassinos a respeito das armas da cultura e diplomacia, tanto como da esgrima, Rhombur se interessou pela música. Testou vários instrumentos antes de decidir-se pelos tons tranqüilizadores mas complicados do baliset de nove cordas. Apoiado contra um muro do castelo, interpretava canções singelas, melodias que tocava de ouvido, lembranças de sua infância, ou agradáveis toadas que ele mesmo compunha.

Freqüentemente, sua irmã Kailea o escutava tocar enquanto estudava suas lições de história e religião, dedicação tradicional das jovens nobres. Helena Atreides a ajudava em seus estudos à pedido do duque Paulus. Kailea estudava com perseverança, resignada com sua situação de prisioneira política no castelo de Caladan, mas também tentava imaginar um futuro melhor.

Leto sabia que o ressentimento de sua mãe sobrevivia sob as águas serenas de sua aparência. Helena era uma professora severa com Kailea, mas a jovem respondia com determinação.

Uma noite, Leto subiu para a habitação da torre depois que seus pais se retiraram. Queria pedir ao seu pai que o deixasse pilotar um veleiro para percorrer a costa. Entretanto, quando se aproximou da porta dos aposentos ducais, ouviu o duque e Helena discutindo violentamente.

— Você tentou encontrar um novo lar para esse par? — Pelo tom de sua mãe, Leto adivinhou a quem se referia —. Não tenho dúvida de que uma Casa Menor os acolheria se pagasse um generoso suborno.

— Não tenho intenção de enviar esses meninos para lugar nenhum, e você já sabe. São nossos convidados e aqui se encontram a salvo dos odiosos Tleilaxu. — Sua voz se transformou em um grunhido —. Não entendo por que Elrood não envia seus Sardaukar para expulsar esses insetos das cavernas de IX.

— Apesar de suas qualidades desagradáveis — disse Helena com a voz crispada —, os Tleilaxu devolverão as fábricas de lx ao caminho correto, e obedecerão as normas impostas pela Jihad Butleriana.

Paulus bufou de exasperação, mas Leto sabia que sua mãe falava muito sério, e isso o aterrou ainda mais. Sua voz adquiriu um tom mais fervoroso quando tentou convencer seu marido.

— Não consegue entender que tudo estava escrito? Nunca deveria ter enviado Leto a IX. Ele foi corrompido por seus costumes, suas idéias, sua completa ignorância das leis de Deus. Ainda bem que a conquista de IX o trouxe de volta. Não cometa o mesmo erro.

— Erro? Estou encantado com tudo que nosso filho aprendeu. Algum dia será um duque estupendo. Pare de se preocupar. Não sente pena pelos pobres Rhombur e Kailea?

— Por culpa de seu orgulho, o povo de IX violou a lei, e o pagou caro. Deveria sentir pena deles? Não acredito.

Paulus deu um murro em um móvel e Leto ouviu o grito de uma cadeira empurrada para um lado.

— Devo acreditar que conhece tão bem o funcionamento interno de IX para emitir tais julgamentos? Ou chegou a essa conclusão apoiando-se no que quer escutar, sem se preocupar com a absoluta falta de provas? — O duque riu, e seu tom se suavizou —. Além disso, parece que está trabalhando bastante bem com a jovem Kailea. Gosta da sua companhia. Como pode dizer essas coisas da moça, e depois fingir amabilidade com ela?

Helena respondeu em tom razoável:

— Os meninos não podem evitar ser o que são, Paulus. Não pediram para nascer ali nem crescer ali, expostos a ensinos perversos. Acha que leram a Bíblia Católica Laranja alguma vez? Não é culpa dela. São o que são, e não posso odiá-los por isso.

— Então o que...

Ela respondeu com tanta veemência, que Leto deu um passo atrás, surpreso.

— Foi você que tomou uma decisão, Paulus. A decisão errada e isso vai custar muito caro, para você e para sua Casa também.

— Não havia outra alternativa, Helena. Por minha honra e por minha palavra, não havia outra alternativa.

— Mas foi você quem tomou a decisão, apesar das minhas advertências e conselhos. Só você. — Sua voz transmitia uma frieza aterradora —. Tem que viver com as conseqüências, e as enfrentar.

— Oh, acalme-se e vá dormir, Helena.

Leto, perturbado, partiu em silêncio, sem esperar que apagassem as luzes.

No dia seguinte, uma manhã calma e ensolarada, Leto e Rhombur apareceram em uma janela e admiraram os moles construídos na base do promontório. O oceano se estendia como uma pradaria verde-azulada que se curvava no horizonte longínquo.

— Um dia perfeito — disse Leto, ao compreender como seu amigo sentia saudades da cidade subterrânea de Vernii, e que talvez estivesse cansado de tanta intempérie —. Acho que chegou o momento de te mostrar Caladan.

Os dois desceram a estreita escada do escarpado e evitaram o musgo escorregadio e as incrustações brancas de espuma salgada.

O duque tinha várias embarcações amarradas no mole, e Leto escolheu seu favorita, uma lancha a motor branca de uns quinze metros de comprimento. Seu casco, largo e reluzente, tinha uma espaçosa cabine na proa e aposentos para dormir abaixo, aos quais se acessava através de uma escada em espiral. Na popa da cabine havia duas cobertas, no meio do navio e na popa, com áreas de carga abaixo. Era uma embarcação excelente para pescar ou navegar. Módulos auxiliares guardados em terra podiam ser instalados para mudar as funções da embarcação: aumentar o espaço da cabine ou transformar as áreas de carga em camarotes adicionais.

Os criados prepararam a comida, enquanto três marinheiros checaram todos os sistemas de bordo, em preparação para a travessia. Rhombur percebeu que Leto tratava aquela gente como amigos.

— A perna da sua mulher está melhor, Jerrik Terminoy o telhado da sua casa, Dom?

Enquanto Rhombur contemplava os preparativos com curiosidade e emoção, Leto lhe afagou o ombro.

— Lembra da sua coleção de rochas? Você e eu vamos mergulhar para colher gemas coralinas.

Aquelas pedras preciosas, que se eram encontradas nos recifes de coral, eram muito populares em Caladan, mas de manejo perigoso. Dizia-se que as gemas coralinas continham seres vivos microscópicos, que faziam dançar e brilhar seus fogos internos. Devido ao perigo e ao seu valor, as gemas não eram muito cobiçadas para a exportação, tendo em conta a alternativa mais rentável das pedras soo do Buzzell mas, mesmo assim eram encantadoras.

Leto queria dar uma de presente para Kailea. Devido a riqueza da Casa Atreides, podia se permitir o luxo de comprar para a irmã de Rhombur tesouros de muito maior valor se assim desejasse, mas o presente seria mais significativo se ele o conseguisse por seus próprios meios. De qualquer modo, ela agradeceria.

Quando os preparativos terminaram, Rhombur e ele subiram na embarcação de vime. Enquanto os marinheiros soltavam amarras, um deles perguntou:

— Consegue pilotá-la sozinho, meu senhor?

Leto riu.

— Jerrik, sabe que faz anos que piloto estes barcos. O mar está calmo e levamos a bordo um comunicador. De qualquer modo, obrigado. Não se preocupe, não iremos muito longe, só até os recifes.

Rhombur tentou ajudar, seguindo as indicações de Leto. Nunca tinha subido em um navio exposto ao ar livre. Os motores os conduziram para longe dos escarpados, até sair a mar aberto. A luz do sol cintilava sobre a superfície frisada da água.

O príncipe de IX se acotovelou na proa, enquanto Leto manipulava os controles. Rhombur, sorridente, saboreava a experiência da água, vento e sol. Aspirou uma profunda baforada de ar.

— Sinto-me tão só e livre aqui.

Rhombur viu massas flutuantes de algas marinhas e frutas redondas parecidas com cabaças.

— Melões paradan — explicou Leto —. Se quiser um, pegue-o. Não desperdice a oportunidade, embora para mim sejam muito salgados.

Ao longe, a estibordo, um bando de golfinhos nadava com seus troncos peludos. Tratava-se de peixes grandes mas inofensivos, que derivavam com as correntes oceânicas e cantavam para si, como se chorassem.

Leto pilotou a lancha durante uma hora, consultando mapas e planos por satélite, em direção a um grupo de recifes. Entregou binóculos para Rhombur e indicou uma mancha de espuma. Negras cristas rochosas isoladas se sobressaíam entre as ondas, como o lombo de um monstro adormecido.

— Esse é o recife — disse Leto —. Lançaremos âncora a meio quilômetro para não correr riscos. Depois mergulharemos. — Abriu um compartimento e tirou uma bolsa e uma pequena faca em forma de espátula para cada um —. As gemas coralinas não crescem a muita profundidade. Mergulharemos sem garrafas de oxigênio. — Bateu nas costas de Rhombur —. Já passou da hora de começar a pagar a hospedagem.

— Já faço o bastante evitando que, er, você se meta em confusões — replicou Rhombur.

Uma vez lançada a âncora, Leto indicou uma sonda que mapeava os contornos dos recifes.

— Olhe isto — disse, e se afastou para que seu amigo observasse a tela —. Está vendo essas rachaduras e pequenas covas? Ali encontraremos as gemas coralinas.

Rhombur assentiu.

— Cada uma está incrustada em uma casca, uma espécie de crosta orgânica que lhe cresce ao redor. Não parece muito atraente até ser aberta e mostre as pérolas mais belas de toda a criação, parecem lágrimas fundidas de estrela. Tem que conservá-las sempre em água, porque o ar as oxida imediatamente e se transformam em bombas incendiárias.

— Ah — disse Rhombur, sem saber o que aquilo significava, mas seu orgulho o impediu de perguntar. Prendeu o cinturão, com a faca e uma pequena lanterna.

— Vou lhe mostrar como fazer quando descermos — disse Leto —. Quanto tempo você aguenta sem respirar?

— O mesmo que você — disse o príncipe de IX —, naturalmente.

Leto tirou a camisa e as calças, enquanto Rhombur se apressava a imitá-lo. Os dois jovens mergulharam ao mesmo tempo. Leto mergulhou na água morna, até sentir a pressão ao redor do crânio.

O recife formava uma intrincada paisagem submarina. Borlas de coral oscilavam a mercê das suaves correntes, e as diminutas bocas de suas folhas absorviam fragmentos de plâncton. Peixes multicoloridos entravam e saíam pelos buracos do coral.

Rhombur apontou para uma longa enguia purpúrea, que passava agitando uma cauda engalanada com as cores do arco íris. O ixiano tinha um aspecto cômico com as bochechas inchadas, tentando conter o ar.

Leto avançava paralelo à barreira coralina, esquadrinhando as rachaduras com sua lanterna. Quando seus pulmões começaram a doer, chegou por fim a uma protuberância descolorida e fez gestos a Rhombur, que se aproximou. Entretanto, enquanto tirava a faca para desprender a gema coralina, Rhombur agitou os braços e subiu na maior rapidez possível, a ponto de afogar-se.

Leto continuou sob a água, embora seu coração martelasse. Por fim, soltou o nódulo, que devia conter uma gema de tamanho médio e nadou para a superfície, com os pulmões a ponto de explodir. Encontrou Rhombur, ofegante, obstinado na beira da massa coralina.

— Encontrei uma — disse Leto —. Olhe.

Segurou sob a água e a golpeou com a faca até que esta se partiu. Em seu interior, um ovóide disforme projetava uma luz perlífera. Minúsculas manchinhas brilhantes circulavam como areia fundida no interior da massa transparente.

— Maravilhosa — disse Rhombur.

Leto saiu e subiu à coberta, baixou um balde até a água, encheu-o e deixou cair a gema dentro, antes de que secasse em suas mãos.

— Agora você precisa encontrar a sua.

O príncipe assentiu, com o cabelo loiro colado à cabeça por culpa das algas, respirou várias vezes e voltou a mergulhar. Leto o seguiu.

Ao fim de uma hora tinham recolhido meio balde de belas gemas.

— Boa pesca — disse Leto, agachado na coberta ao lado de Rhombur que, fascinado pelo tesouro, mergulhou as mãos no balde —. Você gosta?

Rhombur grunhiu. Um prazer infantil brilhava em seus olhos.

— Estou com fome — disse Leto —. vou preparar as bolsas alimentícias.

— Eu também estou esfomeado. Er, precisa de ajuda?

Leto se levantou e ergueu seu nariz aquilino com ar altivo.

— Senhor, sou o herdeiro do ducado, e um longo histórico a minhas costas testemunha minha capacidade para preparar uma bolsa alimentícia.

Encaminhou-se à cozinha, enquanto Rhombur classificava as gemas, parecendo um menino brincando com bolinhas de vidro.

Algumas eram esféricas, outras disformes e picadas. Rhombur se perguntou por que algumas possuíam brilho interior, enquanto outras pareciam apagadas em comparação. Deixou as três maiores sobre a coberta do meio e viu a luz do sol brilhar sobre elas, uma pálida sombra comparada com o brilho preso em seu interior. Observou suas diferenças e se perguntou o que fariam com aquele tesouro.

Sentia falta de sua coleção de gemas e cristais, ágatas e geodas de IX. Aventurou-se em covas, túneis e poços para encontrá-las. Dessa forma tinha aprendido muita geologia... mas os Tleilaxu tinham expulsado a ele e sua família do planeta. Viu-se obrigado a abandonar tudo. Rhombur decidiu que, se alguma vez voltasse a ver sua mãe, poderia lhe dar um maravilhoso presente.

Leto apareceu na porta da cozinha.

— A comida está pronta. Venha comer antes que esfrie.

Rhombur foi sentar se à pequena mesa, enquanto Leto servia duas terrinas fumegantes de sopa de ostras caladana, regada com vinho dos vinhedos da Casa Atreides.

— Minha avó inventou esta receita. É uma de minhas favoritas.

— Não está nada mal. Embora você a tenha feito. — Rhombur bebeu da terrina e lambeu os lábios —. Estou contente por, er, minha irmã não tet vindo — disse, tentando dissimular o tom zombeteiro —. Com certeza teria vindo com vestido de gala e não poderia nadar conosco.

— Certamente — respondeu Leto, pouco convencido —. Tem razão.

Era evidente para todos que Kailea e ele flertavam, embora Rhombur compreendesse que, devido aos aspectos políticos, um romance entre eles seria imprudente no melhor dos casos, e perigoso no pior.

O sol brilhava sobre a coberta, esquentava as pranchas de madeira, secava a água salpicada... e expunha as frágeis gemas coralinas ao ar oxidante. De súbito, e em uníssono, as três gemas maiores explodiram em labaredas incandescentes.

Leto ficou em pé de um salto, derrubando sua terrina de sopa. Chamas alaranjadas e azuis se ergueram e atearam fogo à coberta, incluído o bote salva-vidas. Uma das gemas coralinas explodiu e lançou fragmentos incandescentes em todas direções.

Ao fim de alguns segundos, duas gemas mais furaram a coberta e caíram na área de carga, onde devoraram as caixas. Alguma delas fez explodir o depósito de combustível de reserva, enquanto a segunda perfurava o fundo para apagar-se na água. O casco de vime, embora tratado com um produto químico anticombustão, não suportaria esse calor.

Leto e Rhombur saíram da cozinha e gritaram sem saber o que fazer.

— Fogo! Temos que apagar o fogo!

— São as gemas coralinas! — Leto procurou algo que servisse para extinguir as chamas —. Depreendem muito calor e não se apagam com facilidade.

A embarcação oscilou quando algo explodiu na adega. O bote salva-vidas estava rodeado de chamas.

— Poderíamos afundar — disse Leto —, e estamos muito longe da costa.

Agarrou um extintor e espalhou o conteúdo sobre as chamas.

Tiraram mangueiras e bombas de água de um compartimento e molharam o navio com água marinha, mas a área de carga já estava inundada. Uma fumaça negra e gordurosa surgia pelas rachaduras da coberta superior. Um assobio de alarme indicou que estava entrando muita água.

— Estamos afundando! — gritou Rhombur enquanto lia os instrumentos. Tossiu por causa da fumaça acre.

Leto lhe jogou um colete salva-vidas e prendeu outro ao redor da cintura.

— Está vendo o comunicador. Envia nossa posição e um SOS. Sabe como funciona?

Rhombur assentiu, enquanto Leto utilizava outro extintor químico, sem o menor êxito. Rhombur e ele ficariam presos ali. Tinham que chegar à terra.

Recordou os sermões do seu pai: Quando se encontrar em meio de uma crise, preocupe-se primeiro com o que possa solucionar. Depois, quando tiver esgotado todas as possibilidades, dedique-se aos aspectos mais difíceis.

Rhombur gritava pelo comunicador e repetia a chamada de socorro. Leto ignorou o incêndio. O navio estava afundando e logo estaria submerso. Olhou para bombordo e viu água espumante ao redor do recife. precipitou-se para a cabine.

Antes que o fogo chegasse aos motores de popa, colocou a embarcação em movimento, utilizou o cortador de emergência para partir a âncora e se lançou para o recife. A embarcação em chamas parecia com um cometa na água.

— O que está fazendo? — gritou Rhombur — Para onde vamos?

— Para o recife! Tentarei encalhar para não nos afundar. Depois apagaremos o fogo.

— Vai bater o barco contra o recife? Isso é uma loucura!

— Prefere afundar aqui?

Para sublinhar suas palavras, outro pequeno depósito de combustível explodiu, e toda a coberta estremeceu.

Rhombur se agarrou à mesa escorada da cozinha para conservar o equilíbrio.

— Como quiser.

— Recebeu resposta pelo comunicador?

— Não. Espero, er, que tenham ouvido.

Leto disse que continuasse tentando, coisa que Rhombur fez, mas em vão.

As ondas se encrespavam ao seu redor, até o corrimão da ponte. Fumaça negra se erguia para o céu. O fogo chegou ao compartimento de máquinas. A embarcação afundou um pouco mais. Leto forçou as máquinas, sempre em direção as rochas. Ignorava se ia ganhar a aposta.

Como se fossem impulsionadas por um demônio, ergueu-se espuma a frente deles, ameaçando formar uma barreira, mas Leto não mudou o rumo.

— Aguente!

No último momento, o fogo tomou os motores. O navio continuou avançando por inércia e se chocou contra o recife denteado. Leto e Rhombur caíram ao chão. Rhombur recebeu um golpe na cabeça e se levantou, aturdido. Sangrava de um corte na testa, muito perto da velha ferida recebida durante a fuga de IX.

— Vamos! Pela amurada! — Leto gritou.

Agarrou seu amigo e o tirou da cabine aos empurrões. Extraiu do compartimento dianteiro mangueiras e bombas de água portáteis, que atirou para as águas espumantes.

— Afunde a ponta desta mangueira na maior profundidade possível. Tente não se cortar no recife.

Rhombur subiu para o corrimão, seguido por Leto, que tentou conservar o equilíbrio. O navio estava imobilizado, assim no momento afogar-se estava descartado. Só tinham que se preocupar com o desconforto.

As bombas entraram em ação, e os dois rapazes utilizaram suas mangueiras. Uma espessa cortina de água caiu sobre as chamas. Rhombur secou o sangue que o cegava e continuou trabalhando. Molharam a embarcação com incontáveis correntes, até que por fim as chamas começaram a retroceder.

Rhombur tinha um aspecto patético e maltrapilho, mas Leto experimentava um estranho júbilo.

— Animo, Rhombur. Pense que em IX tivemos que escapar de uma revolução que quase destruiu o planeta. Em comparação, este pequeno contratempo parece uma brincadeira, não é?

— Er, de acordo — disse Rhombur num tom lúgubre —. Fazia séculos que não me divertia tanto.

Os dois se sentaram mergulhados até a cintura em água, enquanto continuavam utilizando as mangueiras. A fumaça se erguia para o céu espaçoso de Caladan como um sinal de auxílio.

Não demoraram a ouvir o longínquo rugido de motores potentes, e momentos depois apareceu à vista uma embarcação de alta velocidade, provida de asas e quilha dupla, capaz de alcançar grandes velocidades sobre a água. Aproximou-se, a um distância prudente das rochas. Na coberta de proa, Thufir Hawat meneava a cabeça em sinal de desaprovação, olhando para Leto.

 

Entre as responsabilidades do governo está a necessidade de castigar... mas só quando a vitima assim exige.

Príncipe Raphael Corrino, Discursos sobre liderança em um império galáctico, 12.º edição

 

A mulher, com o cabelo desgrenhado, as roupas rasgadas e inadequadas para o deserto, corria pela areia procurando um meio de escapar.

Janeas Milam olhou para o alto e piscou para conter as lágrimas que escorriam de seus olhos. Quando viu a sombra da plataforma suspensora onde o barão Harkonnen e seu sobrinho Rabban estavam, apertou o passo. Seus pés afundaram na areia e perdeu o equilíbrio. Cambaleou para a extensão aberta, mais tórrida, mais seca, mais letal.

O martelo de areia enterrado a sotavento de uma duna próxima, vibrava, pulsava... chamava.

Tentou encontrar um refúgio de rochas, cavernas frescas, até mesmo a sombra de um penhasco. Ao menos queria morrer sem que a vissem, para que não pudessem rir dela. Mas os Harkonnen a tinham lançado em meio de muitas dunas.

Da plataforma suspensora, o barão e seu sobrinho observavam os esforços da mulher, uma diminuta figura humana na areia. Os observadores estavam vestidos com trajes destiladores, com as máscaras baixadas.

Tinham retornado a Arrakis vindo de Giedi Prime umas semanas antes, e Janess tinha chegado na nave prisão do dia anterior. A princípio, o barão havia pensado em executar a traidora em Barony, mas Rabban queria que ela sofresse perante seus olhos, nas areias calcinadas, como castigo por ter ajudado Duncan Idaho a escapar.

— Parece insignificante ali embaixo, não é? — comentou o barão, sem interesse. Às vezes seu sobrinho tinha idéias esplêndidas, embora carecesse da concentração necessária para colocá-las em prática. — Isto é muito mais satisfatório que uma simples decapitação, e benéfico para os vermes. Comida para eles.

Rabban emitiu um som gutural.

— Isso não deve demorar. Estes martelos de areia sempre atraem algum verme.

O barão estava erguido em toda sua estatura sobre a plataforma, sentindo o calor do sol e o suor em sua pele. Seu corpo doía, uma sensação que experimentava fazia vários meses. Impulsionou a plataforma para frente, para poder ver melhor à vítima.

— Esse menino se transformou em um Atreides — murmurou —, pelo que me disseram. Trabalha com os touros salusanos do duque.

— Se voltar a vê-lo, é homem morto. — Rabban secou o suor de sua testa torrada pelo sol —. A ele e a qualquer Atreides que pegar.

— Você age como um boi, Rabban. — O barão apertou o ombro forte do seu sobrinho —. Mas não gaste energias com coisas insignificantes. Nosso verdadeiro inimigo é a Casa Atreides, não um simples menino de quadras. Uma menino de quadras... hummm...

Janess escorregou de bruços pela encosta de uma duna e ficou em pé de novo. O barão riu.

— Nunca conseguirá se afastar do batedor a tempo — comentou.

As vibrações ressonantes continuavam pulsando clandestinamente, como o longínquo tamborilar de uma canção de morte.

— Aqui faz muito calor — grunhiu Rabban —. Podia ter trazido um dossel.

Levou o tubo do traje destilador a boca e tomou um pouco de água.

— Eu gosto de suar. Faz bem para a saúde, limpa os venenos do sistema.

Rabban se remexeu, inquieto. Quando se cansou de contemplar os esforços inúteis da mulher, olhou para a distância em busca do monstro.

— O que aconteceu com o planetólogo que o imperador nos enviou? Uma vez o levei para caçar vermes.

— Kynes? Quem sabe. — O barão bufou —. Está sempre no deserto, vem a Carthag para enviar relatórios quando lhe dá vontade, e depois desaparece outra vez. Faz tempo que não sei nada dele.

— E se sofrer algum mal? Não poderíamos nos colocar em confusões por perdê-lo de vista?

— Duvido muito. A mente de Elrood já não é o que era. — O barão emitiu uma risada depreciativa —. Claro que a mente do imperador não era grande coisa nem em seu melhor momento.

A mulher de cabelo escuro, coberta agora por uma capa de pó, continuava correndo entre as dunas. Caiu e voltou a levantar-se, sem querer se render.

— Isto me aborrece — se queixou Rabban —. Ficar aqui olhando não é nada emocionante.

— Alguns castigos são fáceis — observou o barão —, mas fácil nem sempre é suficiente. Liquidar essa mulher não serve para apagar a mancha que deixou na honra da Casa Harkonnen... com a ajuda da Casa Atreides.

— Pois façamos algo mais — propôs Rabban com um sorriso de orelha a orelha —. Aos Atreides.

O barão sentia o calor em seu rosto descoberto e o silêncio ensurdecedor do deserto. Quando sorriu, a pele de suas bochechas pareceu que ia se rachar.

— Talvez o façamos.

— O que, tio?

— Talvez tenha chegado o momento de nos desfazer do velho duque. Basta de espinhos em nosso flanco.

Rabban gorjeou de impaciência.

Com uma calma estudada para enervar seu sobrinho, o barão focou seus binóculos e varreu a distância com diferentes aumentos. Confiava em localizar o verme, antes dos ornitópteros. Por fim, sentiu os tremores que se aproximavam. Seu pulso se sincronizou com o batedor: tump... tump... turnp...

Um montículo móvel se destacou no horizonte, uma crista de areia como se um peixe monstruoso nadasse abaixo da superfície. No ar imóvel e silencioso, o barão captou o som áspero e abrasivo da besta. Agarrou o cotovelo de Rabban e apontou.

A unidade de comunicação chiou no ouvido de Rabban, e uma voz filtrada falou em voz tão alta que o barão ouviu as palavras. Rabban deu um golpe no aparelho.

— Já sabemos! Nós o vimos.

O barão continuou suas meditações enquanto o verme se aproximava como uma locomotiva.

— Fiz contato com... certos indivíduos em Caladan, sabe? O velho duque é uma pessoa apegada a seus hábitos. E os hábitos podem ser perigosos. — Sorriu e entreabriu os olhos para protegê-los do brilho —. Já enviamos alguns agentes, e tenho um plano.

Janess virou-se e correu, tomada pelo pânico. Tinha visto o verme.

O montículo chegou ao batedor. Como se uma onda gigantesca engolisse um mole, o batedor desapareceu em uma imensa boca coberta de dentes de cristal.

— Mova a plataforma — ordenou o barão —. Siga-a!

Rabban manipulou os controles e se ergueu sobre o deserto para ter luma vista melhor.

O verme mudou de direção, para seguir as vibrações dos passos da mulher. A areia se ondulou de novo quando o gigante mergulhou abaixo dela e se lançou como um tubarão em busca de uma nova presa.

Janess se deixou cair no alto de uma duna, tremula. Procurou não fazer o menor ruído. A areia escorregou a seu redor. Conteve o fôlego.

O monstro parou. Janess rezou em silêncio, morta de terror.

Rabban conduziu a plataforma até situar-se acima da mulher, Janess olhou para os Harkonnen, com a mandíbula tensa, os olhos penetrantes como adagas, sentindo-se como um animal encurralado.

O barão Harkonnen agarrou uma garrafa de licor de especiaria, esvaziada durante a longa espera da execução. Ergueu a garrafa de cristal marrom como se fosse brindar, sorridente.

O verme esperava, alerta ao menor movimento.

O barão jogou a garrafa para a mulher. O cristal deu voltas no ar e se chocou com a areia a poucos metros dos pés de Janess.

O verme se precipitou para ela.

Janess correu colina abaixo, enquanto proferia maldições contra os Harkonnen, seguida por uma pequena avalanche de areia, mas a terra se abriu abaixo ela.

A boca do verme se abriu, uma caverna de dentes cintilantes sob a luz do sol, para engolir Janess e tudo que a rodeava. Uma nuvem de pó se levantou quando a gigantesca criatura se enterrou na areia, como uma baleia sob o mar.

Rabban tocou sua unidade de comunicação e perguntou se a nave de rastreamento tinha gravado holos de alta resolução.

— Nem sequer vi seu sangue, não a ouvi gritar. — Parecia decepcionado.

— Pode estrangular um dos meus criados, se isso o consolar — ofereceu o barão —. Mas só porque estou de bom humor.

Contemplou as dunas pela plataforma, consciente do perigo e da morte escondidos abaixo delas. Desejou que seu velho rival, o duque Paulus Atreides, estivesse no lugar da mulher. Teria utilizado todas as holocâmaras disponíveis, para desfrutar de todos os ângulos e saborear a experiência uma e outra vez, como fazia o verme.

Tanto faz, pensou o barão. Tenho pensado em algo igualmente interessante para o velho.

 

Diga a verdade. Sempre é mais fácil, e com freqüência é o argumento mais poderoso.

Axioma Bene Gesserit

 

Duncan ldaho olhou para o monstruoso touro salusano através dos barrotes que criavam um campo de força ativado em sua jaula. Seus olhos de menino se cravaram nos multifacetados do feroz animal. Tinha um lombo negro coberto de escamas, múltiplos chifres e dois cérebros que tinham um só pensamento: destruir tudo que se movesse.

Fazia semanas que o menino trabalhava nos estábulos, e se esforçava ao máximo nas tarefas mais desprezíveis. Dava de comer e beber aos touros, cuidava deles e limpava suas jaulas enquanto os animais eram retidos atrás barreiras de força.

Gostava do seu trabalho, apesar de outros o considerarem degradante. Duncan não achava isso. Considerava mais que suficiente seu pagamento de liberdade e felicidade. Devido à generosidade de seu benfeitor, o duque Paulus Atreides, amava-o de todo coração.

Duncan comia bem, dispunha de uma habitação confortável e roupa limpa. Embora ninguém exigisse, trabalhava até deixar a pele. Sempre havia momentos para relaxar, e ele e outros empregados tinham um ginásio e uma sala de pulverização. Também podia ir banhar-se no mar, e um homem cordial dos moles o levava para pescar de vez em quando.

O velho duque tinha cinco touros para suas touradas. Duncan tentara aproximar-se dos animais, tentava domá-los com subornos de erva verde e fruta fresca, mas um exasperado Yresk, o responsável pelos estábulos, tinha-o pilhado com as mãos na massa.

— O velho duque os quer para suas touradas. Acha que os prefere mansos? — Seus olhos inchados se dilataram de raiva Tinha aceito o menino obedecendo as ordens do duque, mas a contra gosto, e não lhe dispensava nenhum trato especial —. Quer que ataquem, não que ronronem na arena.

Duncan baixara os olhos. Sempre obediente, não voltou a tentar amansar os touros.

Tinha visto hologravações das touradas do duque, assim como das tarefas de outros famosos matadores. Embora a morte de seus magníficos tutelados o entristecesse, a valentia e segurança do duque Atreides o assombrava.

A última tourada celebrada em Caladan acontecera em homenagem à partida de Leto Atreides para outro planeta. Agora, depois de muitos meses, haveria outra, pois o velho duque tinha anunciado homenagearia seus convidados de IX, que tinham se instalado em Caladan como exilados. Exilados. Em certo sentido, Duncan também o era...

Embora seu dormitório estivesse em um edifício anexo comunal, onde viviam muitos trabalhadores do castelo, Duncan passava a noite às vezes nos estábulos, para ouvir os sons que os animais produziam. Tinha suportado circunstâncias muito piores em sua vida. Os estábulos eram confortáveis, e gostava de ficar a sós com os animais.

Sempre que dormia ali ouvia os movimentos dos touros em seus sonhos. Adaptava-se a seus estados de ânimo e instintos. Não obstante, há dias notava um nervosismo crescente nos animais, como se soubessem que sua antiga nêmeses, o velho duque, pensava em realizar outra tourada.

De pé em frente as jaulas, Duncan observou marcas recentes, onde os touros salusanos tinham arremetido para libertar-se ou atacar inimigos imaginários.

Não era normal. Duncan sabia. Tinha passado tanto tempo estudando os touros que acreditava compreender seus instintos. Conhecia suas reações, sabia como provocá-los e acalmá-los, mas aquele comportamento era incomum.

Quando comentou isso com Yresk, o homem pareceu alarmar-se. Coçou seu escasso cabelo branco mas logo sua expressão mudou. Cravou seus olhos desconfiados em Duncan.

— Escute, esses touros não tem nada. Se eu não o conhecesse bem, pensaria que é outro Harkonnen disposto a criar problemas. Continue com suas tarefas.

— Harkonnen! Eu os odeio.

— Você viveu com eles, rato de estábulo. Os Atreides aprenderam a viver sempre vigilantes. — Deu uma cotovelada em Duncan —. Já terminou suas tarefas, ou quer que te arranje mais?

Yresk tinha vindo de Richese muitos anos antes, de modo que não era um verdadeiro Atreides. Mesmo assim, Duncan não quis contradizê-lo, mas continuou tentando.

— Fui um escravo. Tentaram me caçar como se fosse um animal.

Yresk franziu suas espessas sobrancelhas. Devido a seu corpo gorducho e seu cabelo arrepiado e desgrenhado parecia um espantalho.

— A velha inimizade entre as Casas ainda perdura, mesmo entre as pessoas humildes. Como sei que não quer me enganar?

— Não falei sobre os touros por esse motivo, senhor — disse Duncan —. Estou preocupado, isso é tudo. Não sei nada sobre inimizades entre Casas.

Yresk riu.

— As rixas entre os Harkonnen e os Atreides são milenares. Não sabe nada a respeito da Batalha de Corrin, a grande traição, a Ponte de Hrethgir? Que um covarde antepassado Harkonnen quase frustrou a vitória dos humanos sobre as odiadas mentes mecânicas? Corrin foi nosso último baluarte, e teríamos perecido se um Atreides não nos tivesse salvado.

— Nunca aprendi sobre a história — admitiu Duncan —. Tinha bastante trabalho em encontrar comida.

Por trás das dobras de pele enrugada, os olhos do administrador eram grandes e expressivos, como se tentasse fingir que era um homem velho e afável.

— Bem, bem, a Casa Atreides e a Casa Harkonnen foram aliadas em outro tempo, amigas até, mas tudo acabou com aquela traição. A inimizade perdurou, e você, rapaz, veio de Giedi Prime. Do planeta natal dos Harkonnen. — Yresk encolheu seus ombros ossudos —. Não espera que confiemos em você, não é? Agradeça pela confiança que o velho duque depositou em você.

— Mas eu não tive nada que ver com a Batalha de Corrin — protestou Duncan, que não entendia nada —. O que tem isso a ver com os touros? Aconteceu há muitos séculos.

— Não tenho tempo para mais conversa. — Yresk pegou uma pá de esterco que estava pendurada na parede —. À partir de agora, guarde suas suspeitas para si.

Embora Duncan se esforçasse e fizesse o possível para ganhar seu sustento, sua procedência de um planeta dominado pelos Harkonnen não deixava de lhe causar problemas. Outras meninos de quadra, não só Yresk, tratavam-no como se fosse um espião... embora Duncan ignorasse o que Rabban poderia esperar de um infiltrado de nove anos. Entretanto, nunca havia se sentido tão ofendido com isso.

— Está acontecendo algo com os touros, senhor — insistiu —. É necessário que o duque saiba antes da tourada.

Yresk riu de novo.

— Quando necessitar do conselho de um menino para cumprir meu trabalho pedirei, jovem Idaho.

O responsável pelos estábulos partiu, e Duncan voltou a observar os ferozes touros salusanos, que lhe devolveram o olhar com seus olhos facetados.

Algo terrível estava acontecendo. Sabia disso, mas ninguém o ouvia.

 

Se contemplarmos do ponto de vista adequado, as imperfeições podem ser muito valiosas. As Grandes Escolas, com sua busca incessante da perfeição, consideram difícil de compreender este postulado, basta demonstrar que nada no universo é infeliz.

Das filosofias da Velha Terra, um dos manuscritos recuperados

 

Na escuridão do dormitório isolado e protegido que tinha recebido no complexo da Escola Materna, Mohiam se levantou na cama e apalpou seu ventre volumoso. Sentiu a pele tensa e esticada, sem a flexibilidade da juventude. Sua camisola estava empapada de suor e o pesadelo continuava gravado em sua mente. Visões de sangue e chamas palpitavam no fundo de sua cabeça.

Tinha sido um presságio, uma mensagem... uma aterradora premonição que nenhuma Bene Gesserit podia ignorar.

Perguntou-se quanta melange sua enfermeira teria lhe administrado, se teria interagido com outros medicamentos. Ainda sentia o sabor amargo de canela e gengibre em seu paladar. Quanta especiaria uma mulher grávida podia tomar? Mohiam estremeceu. Por mais que tentasse racionalizar seu terror, não podia ignorar a importância da mensagem.

Sonhos... pesadelos... predições... Terríveis acontecimentos que sacudiriam o Império durante milênios. Um futuro que devia ser abortado! Não se atrevia a desprezar o aviso, mas o teria interpretado da maneira correta?

A reverenda madre Gaius Helen Mohiam era um simples calhau no início de uma avalanche.

A Irmandade sabia o que estava fazendo? Sabia algo sobre o bebê que crescia em seu interior, que nasceria dentro de um mês? O núcleo da visão se concentrou em sua filha. Algo importante, algo terrível... As reverendas madres não tinham contado tudo, e agora até as irmãs da Outra Memória estavam assustadas.

Lá fora estava chovendo e as velhas paredes de gesso gotejavam umidade. Embora radiadores de uma precisão absoluta mantivessem sua habitação a uma temperatura confortável, o calor caseiro procedia das brasas de um fogo que ardia em frente a sua cama, um anacronismo ineficaz, mas o aroma de lenha e o brilho amarelo alaranjado dos carvões inspirava uma espécie de complacência primitiva.

As fogueiras da destruição, as chamas de um inferno que se propagavam de um planeta a outro através da galáxia. Jihad! Jihad! Esse seria o destino da humanidade se os planos da Bene Gesserit para sua filha falhassem.

Mohiam se acalmou e fez uma verificação rápida de seus sistemas corporais. Nenhuma emergência, tudo funcionava normalmente, todas as leituras bioquímicas eram ótimas.

Tinha sido somente um pesadelo... ou algo mais?

Mais racionalização. Sabia que não devia desculpar-se, mas atender aos ensinos da premonição. A Outra Memória sabia a verdade.

As irmãs submetiam Mohiam a uma estrita observação. Uma luz púrpura no canto da habitação estava conectada a um visicom de visão noturna, com monitores no outro extremo que informavam à reverenda madre Anirul Sadow Tonkin, a jovem parecia possuir mais importância do que lhe dava sua idade. No sonho de Mohiam, as Vozes da Outra Memória tinham insinuado o papel de Anirul no projeto. O pesadelo tinha soltado suas língua, tinha transformado suas lembranças reticentes em explicações veladas.

Kwisatz Haderach. O caminho mais curto. O messias e superser das Bene Gesserit, desejado e esperado durante tanto tempo.

A Irmandade contava com numerosos programas de reprodução, desenhados a partir de diversas características da humanidade. Muitos careciam de importância, alguns eram meras falácias ou diversões. Nenhum possuía a transcendência do programa do Kwisatz Haderach.

No princípio do projeto, que remontava a cem gerações, as reverendas madres que conheciam seus mistérios tinham jurado guardar silêncio, inclusive na Outra Memória, exceto para revelar todos os detalhes a irmãs muito especiais de cada geração.

Anirul era uma delas, a mãe Kwisatz. Sabia tudo sobre o programa. Por isso até a madre superiora lhe dá atenção!

Nem sequer Mohiam tinha recebido informação a respeito, apesar de a menina que crescia em seu útero se encontrar a apenas três passos da culminação do programa. A esta altura, o verdadeiro plano genético já era uma realidade. O futuro dependeria dessa menina. Sua primeira filha, a defeituosa, tinha sido um passo em falso, um equívoco. E qualquer equívoco podia desencadear o terrível futuro que vira em seu sonho.

O pesadelo de Mohiam lhe mostrara o destino da humanidade se o plano tomasse um caminho errado. A premonição tinha sido como um presente, e face à dificuldade da decisão, não podia desprezá-la. Não se atrevia.

Anirul conhece meus pensamentos, o terrível ato predito em meu sonho? É uma advertência, uma promessa, ou uma ordem?

Pensamentos... A Outra Memória... Uma multidão de memórias ancestrais que lhe ofereciam conselhos, temores, advertências. Já não podiam silenciar seus conhecimentos sobre o Kwisatz Haderach, como sempre tinham feito. Agora Mohiam podia convocá-las, e vinham discretamente, individualmente ou em multidão. Podia pedir seu assessoramento coletivo, mas não queria fazê-lo. Já tinham lhe revelado o suficiente para despertá-la com um grito nos lábios.

Não devemos permitir equívocos.

Mohiam devia tomar uma decisão sem ajuda externa, escolher seu próprio caminho e determinar a melhor maneira de eliminar o destino espantoso e sangrento que vira no sonho.

Levantou-se da cama e se encaminhou cansada até a habitação contigua, para a creche onde cuidavam dos bebês. Seu ventre inchado dificultava seus movimentos. Mohiam se perguntou se as espiãs da Irmandade estariam vigiando.

Já dentro da creche, detectou a respiração irregular de sua primeira filha Harkonnen, de nove meses de idade. Em seu útero, sua segunda filha esperneou e se agitou. Ela a estaria incentivando? O bebê teria desencadeado a premonição?

A Irmandade necessitava de uma criança perfeita, forte e saudável. As crias defeituosas eram irrelevantes. Em qualquer outra circunstância, a Bene Gesserit teria encontrado uma utilidade para aquele ser aleijado, mas Mohiam compreendera seu papel fundamental no programa Kwisatz Haderach, e também o que aconteceria se o programa se desviasse por um caminho errado.

O sonho estava vivo em sua mente, como um holoesquema. Tinha que obedecê-lo sem pensar, simples assim. Faça-o. O consumo contínuo de melange desencadeava, às vezes, visões prescientes, e Mohiam não tinha a menor duvida a respeito do que vira. A visão era tão clara como um cristal, milhões de pessoas assassinadas, o Império caído, a Bene Gesserit quase destruída, a galáxia arrasada por outra Jihad. Tudo isso ocorreria se o plano saísse errado. O que importava uma vida não desejada ante a possibilidade de tais ameaças?

Sua primeira filha do barão Harkonnen se interpunha no caminho, significava um perigo. Podia interferir na progressão correta da escada genética. Mohiam devia eliminar todas as possibilidades do engano acontecer, do contrário suas mãos se manchariam com o sangue de milhões de pessoas.

Minha própria filha?

Recordou-se que na realidade não lhe pertencia. Era um produto do índice de reprodução da Bene Gesserit, e propriedade de todas as irmãs que se comprometeram (sabendo ou não) com o programa de reprodução global. Tinha dado a luz outras filhas para a Irmandade, mas só duas podiam ser portadoras de uma combinação de genes tão perigosa.

Duas. Mas só podia haver uma. Do contrário, o perigo seria muito grande.

Esta menina nunca se adaptaria ao plano mestre. A Irmandade já a descartara. Talvez algum dia a menina fosse educada como criada ou cozinheira da Escola Materna, mas nunca chegaria a nada importante. De qualquer forma, Anirul mal se aproximara e percebeu que ela recebia poucos cuidados das outras irmãs.

Eu a amo, pensou Mohiam, e se repreendeu por aquele arrebatamento de emoção. Era preciso tomar decisões difíceis e pagar certos preços. Uma fria onda de lembranças procedentes da visão a invadiu, e reafirmou sua determinação.

Massageou com suavidade o pescoço e a têmpora da menina, mas logo retirou as mãos. Uma Bene Gesserit não sentia nem demonstrava amor, nem romântico nem familiar. Eram sentimentos considerados perigosos e impróprios.

Mohiam culpou uma vez mais as mudanças químicas em seu corpo de grávida, e tentou analisar seus sentimentos, reconciliá-los com os ensinos recebidos durante toda sua vida. Se não queria a menina porque o amor estava proibido... por que não... Engoliu em seco, incapaz de traduzir em palavras a ideia terrível. E se amava a menina, contra todos os ditados, era mais um motivo para agir como devia.

Elimine a tentação.

Sentia amor pela menina ou só compaixão? Não queria comentar aqueles pensamentos com nenhuma irmã. Sentia vergonha de experimentá-los, mas não pelo que ia fazer.

Haja com rapidez. Acabe com isso de uma vez!

O futuro exigia que Mohiam agisse daquela maneira. Se não agisse incentivada pelo presságio, planetas inteiros morreriam. Um imenso destino aguardava sua nova filha, e para assegurar esse destino devia sacrificar a outra.

Mas Mohiam hesitava, como se a grande carga maternal a impedisse.

Acariciou a garganta da menina. Pele cálida, respiração lenta e regular. Nas sombras, Mohiam não podia ver os ossos faciais disformes e o ombro fundo. A pele era pálida. A menina parecia tão frágil... remexeu-se e choramingou. — Mohiam sentiu a respiração morna do bebê contra sua mão. Fechou o punho e lutou para recuperar o controle de suas emoções.

— Não devo temer — sussurrou —. O medo é o assassino da mente... — Mas estava tremendo.

Viu outro visicom pela extremidade do olho, ele projetava um brilho púrpura na escuridão da creche. Interpôs o corpo entre a câmara e a menina, dando as costas aos monitores. Concentrou sua atenção no futuro, não no que estava fazendo. Em certas ocasiões, até uma reverenda madre tinha consciência...

Mohiam fez o que o sonho lhe ordenara, e apertou um travesseiro contra o rosto da menina, até que os sons e movimentos cessaram.

Uma vez concluída a missão, ainda tremula, alisou os lençóis sobre o pequeno corpo, apoiou a cabeça da menina sobre o travesseiro e cobriu seus braços e o ombro disforme com uma manta. De repente se sentiu muito velha. Muito mais do que era.

Pronto, Mohiam apoiou a palma da mão sobre seu ventre inchado. Você não pode nos falhar, filha.

 

Quem governa assume uma responsabilidade irrevogável para com os governados. É um administrador. Em certas ocasiões, isso exige um ato desinteressado de amor que pode ser divertido só para os governados.

Duque Paulus Atreides

 

No elegante camarote da praça de touros reservado à Casa Atreides, Leto escolheu um assento almofadado de verde, ao lado de Rhombur e Kailea. Lady Helena Atreides, pouco aficionada a tais exibições públicas, ainda não tinha chegado. Para a ocasião, Kailea Vernius estava vestida com sedas e cintas, véus coloridos e um voluptuoso vestido especialmente confeccionado para ela. Leto pensou que estava arrebatadora.

Os céus carregados não ameaçavam chuva, mas a temperatura era fresca e o ar úmido. Mesmo naquela altura podia sentir o cheiro de pó e sangue seca na arena, os corpos apertados do povo, a pedra das colunas e bancos.

Paulus Atreides dedicara a tourada aos filhos exilados da Casa Vernius, acontecimento anunciado a todo Caladan mediante a rede de mensageiros. Tourearia em sua honra, simbolizando de certa maneira sua repulsa contra a conquista ilegal de IX.

Ao lado de Leto, Rhombur se inclinou, ansioso, com seu queixo quadrado apoiado nas mãos e a vista cravada na arena. Tinham cortado e penteado seu cabelo loiro, mas mesmo assim parecia desgrenhado. Esperaram o passeio com impaciência e certa preocupação com a segurança do duque.

Bandeiras coloridas ondeavam no ar, além dos estandartes com o falcão Atreides no camarote real. Nesta ocasião, o chefe da Casa Atreides não ocupava seu assento, pois ia ser o protagonista da festa.

Os gritos dos espectadores retumbavam na praça. A multidão aclamava e aplaudia. Uma orquestra tocava balisets, flautas de osso e instrumentos de sopro, música animada que aumentava a excitação da multidão.

Leto passeou a vista enquanto escutava a música e o bulício dos espectadores. Perguntou-se qual seria a causa do atraso da sua mãe. A multidão não demoraria a notar sua ausência.

Por fim, rodeada de suas damas, lady Helena chegou. Caminhava orgulhosa, a cabeça erguida, mas sua expressão era sombria. As damas a deixaram à porta do camarote e voltaram para seus assentos do nível inferior.

Helena, sem dirigir palavra a seu filho nem saudar seus convidados, tomou assento na alta cadeira esculpida junto à de seu marido. Tinha ido à capela uma hora antes para encomendar-se ao seu Deus. Era tradicional que o matador dedicasse certo tempo à meditação religiosa antes da corrida, mas o duque Paulus preferia verificar seu equipamento e exercitar-se.

— Fui rezar por seu pai, para que se salve de sua estupidez — murmurou para Leto —. Rezei por todos nós. Alguém tem que fazê-lo.

— Estou seguro de que ele agradecerá — sorriu Leto, não muito convencido.

A mulher meneou a cabeça, suspirou e olhou para a arena quando pelos alto-falantes que rodeavam a praça soou uma banda de trompetistas.

As meninos de quadra, vestidos com elegância incomum, hasteavam bandeiras e pendões de cores vivas enquanto corriam através da arena. Momentos depois, o duque Paulus apareceu montado sobre um corcel branco, uma entrada majestosa que realizava cada vez melhor. Plumas verdes adornavam o arreio do animal, e as cintas de seu jaez flutuavam ao redor das mãos e braços do seu cavaleiro.

O duque vestia um deslumbrante traje magenta e negro com lantejoulas, uma bandagem cor esmeralda brilhante e a montera típica de matador, adornada com emblemas Atreides que indicavam o número de touros que tinha matado. As calças e mangas largas ocultavam o arranjo do seu escudo corporal protetor. Uma capa púrpura caía de seus ombros.

Leto procurou Duncan Idaho, que com tanto atrevimento tinha conseguido entrar a serviço do duque. Deveria ter participado do passeio, mas Leto não o viu.

O corcel branco galopou em círculo, enquanto o duque levantava sua mão enluvada para saudar seus súditos. Deteve-se em frente ao camarote e fez uma reverência para sua esposa, que estava sentada muito rígida. Como era de esperar, agitou uma flor vermelha e soprou um beijo. A multidão prorrompeu em vivas, talvez imaginando impossíveis histórias românticas entre o duque e sua dama.

Rhombur se inclinou em sua cadeira incômoda e disse a Leto:

— Nunca tinha visto nada semelhante. Morro, er, de impaciência.

Nos estábulos, atrás dos barrotes do campo de força, o touro salusano emitiu um bramido e carregou contra a parede. A madeira se estilhaçou e as travas de ferro reforçados chiaram.

Duncan retrocedeu aterrorizado. Os olhos do animal eram de um vermelho acobreado, parecia que em suas órbitas ardiam brasas. O aspecto do touro era raivoso e malvado, o pesadelo de um menino transformado em realidade.

O menino estava vestido com sedas merh brancas e verdes que o duque tinha dado aos meninos de quadra para festejar o acontecimento. Duncan nunca tinha usado, nem sequer meio usado, objetos tão elegantes, e se sentia incomodado com elas nos estábulos sujos. Mas ainda estava mais inquieto com outra coisa.

Os criados o tinham esfregado, cortado seu cabelo e limpo suas unhas. Sentia a pele em carne viva por causa das fricções. Tecido branco rodeava seus punhos, por cima de suas mãos calosas. Ao trabalhar nos estábulos, seu aspecto imaculado não duraria muito.

A uma distância prudente do touro, Duncan endireitou a roupa. Contemplou a besta enquanto bufava, chutava o chão e atacava uma vez mais a parede da jaula. Duncan meneou a cabeça, alarmado.

Virou-se e viu Yresk. O responsável pelos estábulos apontou para o feroz touro salusano.

— Parece que está ansioso por enfrentar nosso duque.

— Algo está errado, senhor — insistiu Duncan —. Nunca vi este animal tão furioso.

Yresk arqueou suas sobrancelhas cheias e coçou o cabelo grisalho.

— Quer dizer em todos os seus anos de experiência? Já lhe disse que parasse de se preocupar.

O sarcasmo irritou Duncan.

— Será que não percebe, senhor?

— Os touros salusanos são criados para serem ferozes, rato de estábulo. O duque sabe o que se faz. — Yresk cruzou seus braços de espantalho sobre o peito, mas não se aproximou da jaula —. Além disso, quanto mais nervoso estiver, melhor lutará, e nosso duque gosta de oferecer um bom espetáculo. O povo adora.

Para sublinhar as palavras de Yresk, o touro se precipitou contra o campo de força, ao mesmo tempo em que emitia um profundo bramido. O animal se cortara na cabeça e lombo por causa de sua obstinação em arremeter contra tudo o que aparecia a sua frente.

— Deveríamos escolher outro touro, não esse Yresk.

— Besteira — respondeu o homem, cada vez mais impaciente —. O veterinário dos estábulos os examinou. Você deveria estar se preparando para o passeio, em vez de causar problemas aqui. Vá agora mesmo, se não quiser se atrasar.

— Só quero evitar problemas, senhor — insistiu Duncan —. Eu mesmo irei falar com o duque. Possivelmente ele me escute.

— Não fará nada disso, rato de estábulo. — Yresk se moveu com a velocidade de uma enguia e o agarrou pelas lapelas do traje —. Já tive bastante paciência contigo, mas não posso permitir que estrague a tourada. Não vê toda essa gente?

Duncan se remexeu e pediu auxílio, mas os outros meninos já se agrupavam em frente as portas para o desfile ao redor da arena. A banda emitiu uma nota ensurdecedora e a multidão gritou de impaciência.

Yresk o jogou no interior de um estábulo vazio, e depois ativou o campo de força. Duncan caiu sobre um montão de esterco pisoteado.

— Pode assistir o espetáculo daí — disse Yresk com semblante triste —. Eu devia imaginar que um simpatizante dos Harkonnen como você me causaria problemas.

— Mas eu odeio os Harkonnen!

Duncan se levantou, tremulo de raiva. Sua roupa de seda totalmente suja. Lançou-se contra os barrotes, igual ao touro, mas não tinha a menor chance de escapar.

Yresk sacudiu a roupa para estar apresentável e se encaminhou para a entrada. Antes de sair olhou para Duncan.

— O único motivo de estar aqui, rato de estábulo, é que o duque gostou de você. Mas eu dirigi estábulos durante mais de vinte anos, e sei muito bem o que faço.

Na jaula contígua a de Duncan, o touro salusano jogava faíscas como uma caldeira a ponto de explodir.

 

O duque se erguia no centro do arena. Deu media volta lentamente e absorveu energia do entusiasmo da multidão. Dirigiu a seus admiradores um sorriso radiante, transbordante de confiança. A resposta foi um rugido de aprovação. Quanto seu povo amava as diversões!

Paulus conectou seu escudo corporal parcialmente. Teria que agir com cautela. Em uma mão segurava a muleta[1], que utilizaria para distrair o animal. Tinha ao seu dispor banderilhas[2] com pontas de seta impregnadas em veneno para utilizar caso necessário. Aproximaria-se do animal e as cravaria no seu lombo. Injetariam um neuroveneno que enfraqueceria pouco a pouco o touro até que lhe desse o golpe de graça.

Paulus tinha toureado dúzias de vezes, sobretudo como comemoração das principais festividades de Caladan. mostrava-se em plena forma diante da multidão e gostava de exibir suas habilidades e valentia. Era sua forma de agradecer a devoção de seus súditos. Na aparência, cada vez que se enfrentava um daqueles animais raivosos alcançava a plenitude de suas faculdades físicas. Confiava que Rhombur e Kailea apreciassem e se sentissem em casa.

Só uma vez, quando era muito mais jovem, Paulus havia se sentido ameaçado. Um touro preguiçoso o incitara a desconectar o escudo, mas logo se converteu em um torvelinho de chifres e cascos. Esses animais mutantes não só eram violentos, mas também contavam com a inteligência de dois cérebros, e Paulus tinha cometido o engano de esquecer isso. O touro tinha aberto seu flanco com uma chifrada. Paulus tinha caído na areia e teria morrido destroçado se seu companheiro não fosse o jovem Thufir Hawat.

Ao ver o perigo, o Mentat se lançara contra o animal. O feroz touro tinha infligido uma longa ferida na perna de Hawat, que lhe deixou uma cicatriz permanente. A cicatriz se transformou num aviso de sua intensa devoção ao duque.

Agora, sob o céu nublado e rodeado de seus súditos, o duque saudou e respirou fundo. Uma banda indicou que a corrida ia começar.

A Casa Atreides não era a família mais poderosa do Landsraad, nem a mais rica. Mesmo assim, Caladan proporcionava muitos recursos: os campos de arroz pundi, os abundantes peixes dos mares, a colheita de algas marinhas, todos os frutos e produtos das terras cultiváveis, instrumentos musicais feitos à mão e talhas de osso confeccionados pelos povos aborígenes do sul. Em anos recentes tinha aumentado a demanda por tapeçarias das irmãs em Isolamento, um grupo religioso confinado nas colinas terraplanadas deste continente. Em conjunto, Caladan proporcionava tudo que seu povo podia desejar, e Paulus sabia que a fortuna de sua família estava assegurada. Agradava-lhe muito saber que um dia deixaria tudo isso a Leto.

O touro mutante carregou.

— Ei, touro!

O duque riu e fez uma finta com a muleta. Um dos chifres se moveu com lentidão suficiente para atravessar o campo Holtzman, e o duque saltou para um lado, de modo que o corno apenas roçou sua armadura.

O público emitiu uma exclamação afogada ao ver como o corno tinha passado perto de seu amado líder. A besta se deteve e chutou a areia. Paulus sustentou a muleta com uma mão e agarrou uma banderilha.

Deu uma olhada no camarote ducal e levou a ponta da banderilha à testa em sinal de saudação. Leto e o príncipe Rhombur ficaram em pé, mas Helena continuou sentada, com expressão preocupada e as mãos enlaçadas sobre o regaço.

O touro virou-se e voltou a orientar-se. Geralmente, os touros salusanos ficavam aturdidos depois de errar seu alvo, mas aquele não. Paulus compreendeu que seu rival possuía mais energia, vista e fúria que todos os anteriores. De qualquer modo sorriu. Derrotar aquele inimigo poderoso proporcionaria seu melhor momento e um tributo apropriado para os exilados ixianos.

O duque efetuou alguns quantos passes mais, sempre longe do alcance dos chifres, afim de agradar os espectadores emocionados. O escudo parcial brilhava a seu redor.

Quando quase tinha transcorrido uma hora, e perceber que o touro não se cansava e continuava obcecado em matá-lo, o duque decidiu que tinha chegado o momento de encerrar a tourada. Utilizaria seu escudo, um truque que um dos melhores matadores do Império lhe ensinara.

Na próxima vez que o touro atacou, seus chifres ricochetearam no escudo pessoal do duque, e a colisão desorientou o animal.

Paulus cravou uma banderilha no lombo da besta. O sangue jorrou da ferida. O duque soltou a banderilha. Em teoria, o veneno começaria a agir imediatamente e queimaria os neurotransmissores do duplo cérebro do animal.

A multidão prorrompeu em vivas e o touro rugiu de dor, cambaleante quando suas patas pareceram ceder. O duque pensou que era efeito do veneno mas, para sua surpresa, o touro salusano ficou em pé uma vez mais e se lançou sobre Paulus que se esquivou mas, o animal conseguiu prender a muleta entre seus múltiplos chifres e a despedaçou.

O duque entreabriu os olhos ia ser mais difícil que o esperado. O público soltou um grito de consternação e se viu forçado a lhe dedicar um valente sorriso. Sim, as tarefas difíceis são as melhores, e o povo de Caladan recordaria esta tourada durante muito tempo.

Paulus ergueu sua segunda banderilha, fendeu o ar como se fosse um florete e se virou para o touro. Tinha perdido a muleta, de modo que o principal objetivo da fúria do animal seria seu corpo. Sua única arma era a banderilha, e sua única proteção era o escudo parcial.

Viu que os guardas, inclusive Thufir Hawat, levantavam-se preparados para ajudar. O duque levantou uma mão para detê-lo. Devia fazê-lo sem ajuda. Não ia permitir que uma turba de soldados fossem resgatá-lo quando as coisas ficavam ruins.

O touro chutou o chão e olhou-o com seus olhos multifacetados, e o duque percebeu um brilho de compreensão neles. O animal sabia muito bem quem ele era, e queria matá-lo. Claro que Paulus tinha intenções semelhantes.

O touro carregou a grande velocidade. Paulus se perguntou porque a neurotoxina ainda não o afetara. Como é possível? Eu mesmo impregnei as banderilhas em veneno. Mas era mesmo veneno?

Enquanto se perguntava se estava sendo vítima de uma sabotagem, ergueu a banderilha para receber o touro, que espumava pelo nariz e boca.

Quando se encontravam a poucos metros de distância, a besta se desviou para a direita. O duque brandiu a banderilha, mas o animal o atacou de uma direção diferente. Desta vez, a banderilha alcançou uma protuberância da pele mas não se afundou, sim caiu sobre a areia.

Por um momento Paulus ficou desarmado. Retrocedeu e recuperou a banderilha. Quando deu as costas ao touro, ouviu que ele se detinha e voltava à carga, mas a uma velocidade tão impossível que lhe veio em cima em um instante, com os chifres dispostos.

Paulus saltou para um lado mas o touro passou a cabeça por seu escudo parcial. Seus chifres, compridos e curvos, afundaram-se nas costas do duque, romperam suas costelas e penetraram em seus pulmões e coração.

O touro emitiu um mugido de triunfo. Para horror da multidão, levantou o duque Paulus e o sacudiu. A areia se tingiu de sangue. O duque se agitou como um boneco empalado nos chifres.

O público guardou um silêncio de morte.

Thufir Hawat e os guardas saltaram para a arena e seus fuzis laser transformaram o touro em um montão de carne chamuscada. Fragmentos de seu corpo voaram em todas as direções. A cabeça decapitada, mas intacta, caiu sobre a areia com um ruído surdo.

O corpo do duque descreveu piruetas no ar e aterrissou na areia pisoteada.

No camarote ducal, Rhombur soltou um grito de incredulidade. Kailea rompeu a chorar. Lady Helena afundou o queixo no peito e soluçou.

Leto ficou em pé, pálido como um morto. Abriu e fechou a boca, mas não encontrou palavras para descrever suas emoções. Esteve a ponto de saltar à arena, mas compreendeu que seria inútil. Não podia fazer nada por seu pai.

O duque Paulus Atreides, aquele magnífico governante, tinha morrido.

Uivos ensurdecedores surgiram dos degraus. Leto sentiu que as vibrações faziam vibrar o camarote ducal. Não podia afastar os olhos de seu pai, destroçado e ensangüentado sobre a areia, e sabia que aquela visão de pesadelo o perseguiria até o fim de seus dias.

Thufir Hawat estava de pé junto ao duque, mas nem sequer um Mentat podia fazer algo.

A voz serena de sua mãe se ergueu sobre o clamor da multidão, e Leto ouviu suas palavras com clareza, como punções de gelo.

— Leto, meu filho — disse —. Você agora é o duque Atreides.

 

Princípio da vacina antimáquinas; todo engenho tecnológico contém as ferramentas de seu contrário, e por fim de sua própria destruição.

Gian Kana, Czar das Patentes Imperiais

 

Os invasores não demoraram para provocar mudanças permanentes nas prósperas cidades subterrâneas. Muitos ixianos inocentes morreram e muitos desapareceram, enquanto C'tair esperava que alguém o descobrisse e matasse.

Durante suas breves escapadas, C'tair descobriu que Vernii, a antiga capital de IX, tinha sido rebatizada como Hilacia pelos Tleilaxu. Os fanáticos usurpadores tinham chegado ao extremo de mudar os registros imperiais para chamar o nono planeta do sistema Alkaurops como Xuttuh em lugar de IX.

C'tair desejava estrangular o primeiro Tleilaxu que encontrasse mas decidiu conceber um plano mais sutil.

Os Bene Tleilax estavam destroçando a cidade, para transformá-la em um inferno.

Detestava as mudanças, a ousadia dos Tleilaxu. Além disso, a julgar pelo que via, os Sardaukar imperiais tinham colaborado na abominação.

No momento, C'tair não podia fazer nada a respeito. Tinha que aguardar o momento apropriado. Estava sozinho. Seu pai se exilara em Kaitain e temia retornar, sua mãe tinha sido assassinada e a Corporação se apropriara de seu irmão gêmeo. Só ele permanecia em IX, como um rato, escondido nas paredes.

Mas até os ratos podiam causar danos consideráveis.

Ao longo dos meses, C'tair aprendeu a passar desapercebido, apenas mais um acovardado e insignificante cidadão. Mantinha os olhos baixos, as mãos sujas, a roupa e o cabelo desalinhados. Ninguém podia imaginar que era o filho do ex-embaixador em Kaitain, que tinha servido fielmente à Casa Vernius, coisa que ainda faria se descobrisse uma maneira. Tinha passeado com inteira liberdade pelo Grand Palais, tinha escoltado a filha do conde. Atos semelhantes, se fossem descobertos, significariam sua sentença de morte.

Sobretudo, não podia permitir que os invasores, inimigos dos avanços tecnológicos, descobrissem seu esconderijo e os aparelhos que ocultava. Talvez constituíssem a última esperança de IX.

Em seus percursos pelas grutas da cidade, C'tair viu que tinham arrancado sinais, rebatizado ruas e bairros, e os anões (todos homens, nenhuma mulher) tinham ocupado todos os centros de pesquisa para adaptá-los a suas operações secretas e nefastas. As ruas, passarelas e instalações estavam guardadas por diligentes Sardaukar disfarçados, ou pelos Dançarinos Faciais invasores.

Pouco depois de consolidar sua vitória, os Tleilaxu tinham aparecido em público para falar aos subóides rebeldes a descarregar sua ira sobre objetivos cuidadosamente selecionados. C'tair tinha visto os operários agruparem-se ao redor da instalação que tinha fabricado os novos meks de combate autodidatas.

— A Casa Vernius foi a responsável por este desastre! — gritou um carismático agitador subóide —. Ressuscitaram as máquinas pensantes. Destruam este lugar!

Enquanto os ixianos sobreviventes contemplavam horrorizados a cena, os subóides destruíram as janelas de plaz e jogaram bombas térmicas contra a pequena fábrica. Cheios de ardor religioso, uivaram e jogaram pedras.

Um Mestre Tleilaxu, em pé sobre uma plataforma elevada, lançou ordens através de alto-falantes e amplificadores.

— Somos seus novos senhores, e nos encarregaremos de que as fábricas de IX se adaptem às normas da Grande Convenção. — As chamas continuavam crepitando, e alguns subóides lançaram vivas, mas a maioria dava a impressão de não estar escutando —. Temos que reparar estes danos o quanto antes e devolver este planeta a seu funcionamento normal, com melhores condições para os subóides, é claro.

C'tair viu o edifício em chamas e se sentiu desolado.

— Por conseguinte, toda a tecnologia ixiana será controlada por uma junta religiosa, afim de velar por sua idoneidade. Toda tecnologia questionável será erradicada. Ninguém lhes pedirá que ponham em perigo suas almas trabalhando em máquinas heréticas.

Mais aplausos, mais plaz destroçado, alguns gritos.

O preço da conquista seria enorme para os Tleilaxu, mesmo com apoio imperial. Como IX era um dos motores econômicos mais poderosos do Império, os novos governantes não podiam permitir que as cadeias de produção diminuíram seu ritmo. Os Tleilaxu, como exemplo de suas boas intenções, destruiriam alguns produtos duvidosos, como os meks autodidatas, mas C'tair duvidava que desprezassem os aparelhos ixianos mais produtivos.

Graças as promessas dos novos senhores, os subóides tinham voltado para o trabalho, para o qual tinham sido criados, mas desta vez seguindo só ordens dos Tleilaxu. C'tair compreendeu que muito em breve as fábricas voltariam a vomitar mercadorias, e toneladas de Solaris encheriam as arcas dos Bene Tleilax como recompensa por sua cara aventura militar.

Não obstante, o segredo e as medidas de segurança impostas por gerações da Casa Vernius se tornariam seu contrário. IX sempre estivera envolto em mistério, de modo que quem sentiria a diferença? Assim que os clientes se sentissem satisfeitos com as exportações, ninguém se importaria com a política interna de IX. Todos esqueceriam o acontecido. A tragédia seria apagada.

Os Tleilaxu deviam contar com isso, pensou C'tair. Todo o planeta de IX (nunca se referia a ele como Xuttuh) estava isolado do Império e era considerado um enigma, assim como durante séculos os planetas natais dos Bene Tleilax estiveram.

Os novos senhores proibiram as viagens a outros planetas e impuseram o toque de recolher. Os Dançarinos Faciais localizaram os “traidores” em esconderijos muito parecidos com os de C'tair, e os executaram sumariamente. A repressão prosseguia, mas C'tair jurou que não desistiria do seu objetivo. Aquele era seu planeta, e lutaria por sua liberdade com as armas que tivesse a seu alcance.

Não disse a ninguém seu nome, procurou passar desapercebido, mas escutava, absorvia todos os rumores, ao mesmo tempo em que imaginava planos. Como não sabia em quem confiar, acreditava que todos que o rodeavam eram informantes, fossem Dançarinos Faciais ou simples renegados. Às vezes era fácil reconhecer um informante por suas perguntas diretas: “Onde você trabalha? Onde vive? O que está fazendo nesta rua?”

Mas outros não eram tão fáceis de detectar, como a anciã com quem tinha iniciado uma conversa. Só queria perguntar a direção de uma obra para onde tinha sido designado. A mulher não o sondara mas tinha tentado parecer inofensiva... como um menino com uma granada no bolso.

— Uma interessante seleção de palavras — disse, mas C'tair nem sequer recordava sua frase —. E seu acento... Por acaso é da nobreza ixiana?

Dirigiu um olhar significativo para os edifícios estalactite calcinados do teto.

C'tair tinha gaguejado uma resposta.

— Não, mas trabalhei como criado toda mim vida, e talvez seus costumes repugnantes me contagiaram. Rogo que me desculpe.

Partiu rapidamente depois de fazer uma reverência, sem esperar que ela lhe explicasse como chegar ao local que tinha perguntado.

Sua reação tinha sido desajeitada, até mesmo prejudicial para suas intenções, de modo que se livrou das roupas que tinha levado e não voltou a passar por aquela rua estreita. Depois procurou mudar a forma de falar. Sempre que podia, evitava conversar com desconhecidos. Sentia-se incomodado com o fato de muitos ixianos oportunistas terem entregue sua lealdade aos novos senhores e renegado a Casa Vernius em menos de um ano.

Nos primeiros dias de confusão posteriores à conquista, C'tair tinha procurado fragmentos tecnológicos abandonados, com os quais construíra o transceptor transdimensional de Davee Rogo. Ao fim de pouco tempo, a tecnologia mais primitiva tinha sido confiscada e declarada ilegal. C'tair roubou tudo que pôde. Acreditava que valia a pena correr esse risco.

Sua luta poderia continuar durante anos, talvez décadas.

Pensou na infância compartilhada com D'murr e o inventor aleijado, Davee Rogo, que dedicara sua amizade aos dois meninos. Em seu laboratório privado, oculto em uma nervura de carvão da casca superior, o velho Rogo tinha ensinado aos jovens muitos princípios interessantes, assim como alguns de seus protótipos. O inventor ria, com olhos cintilantes, quando animava os meninos a montar e desmontar alguns de seus inventos. C'tair aprendera muitas coisas sob a tutela do aleijado.

C'tair lembrou da falta de interesse que seu irmão Navegante mostrara quando lhe falara da visão que tivera entre os escombros. Talvez o fantasma de Rogo não tivesse retornado dentre os mortos para lhe dar instruções. Nunca tinha visto uma aparição semelhante, mas a experiência, fora uma mensagem sobrenatural ou uma alucinação, tinha-lhe permitido realizar uma ação muito humana: comunicar-se com seu irmão gêmeo, manter o vínculo fraterno embora D'murr estivesse imerso nos mistérios da Corporação.

C'tair, encurralado em seus diversos esconderijos, tinha que viver de uma forma errática, e entrava em contato com a mente de seu irmão sempre que era possível usando o transceptor. Seguiu com orgulho e emoção as primeiras viagens de D'murr pela dobra espacial, como piloto aprendiz e em sua própria nave da Corporação. Depois, há poucos dias, tinham concedido autorização para a primeira missão comercial de D'murr, ele pilotaria um transporte colonial sem tripulação que dobraria o vazio a grande distância do Império.

Se seu trabalho para a Corporação continuasse se destacando, o Navegante Cadete D'murr Pilru seria promovido, transportaria mercadorias e pessoas entre os principais planetas das Casas Maiores, e talvez pelas cobiçadas rotas de Kaitain. transformaria-se em um Navegante, e talvez chegasse a Timoneiro...

Mas o aparelho de comunicações apresentava problemas constantes. Os cristais de silicato tinham que ser fatiados com um cortador a laser e montados com precisão. Só funcionavam por poucos minutos antes de desintegrar-se por causa da tensão. Rachaduras finas como cabelos os inutilizavam. C'tair tinha utilizado o artefato em quatro ocasiões para contatar seu irmão, e a cada vez teve que cortar e montar novos cristais depois da comunicação.

C'tair estabeleceu contatos cautelosos com grupos do mercado negro, que lhe forneciam o que necessitava. Os cristais de silicato contrabandeados tinham a aprovação, gravada a laser, da Junta de Supervisão Religiosa. Os grupos do mercado negro tinham descoberto formas de falsificar as marcas de aprovação, e as gravavam em todas as partes, frustrando assim os esforços das forças de ocupação.

De qualquer modo, tratava com os vendedores o mínimo possível, para diminuir as probabilidades de ser capturado, coisa que, por outro lado, limitava o número de vezes que podia falar com seu irmão.

C'tair esperava atrás de uma barreira com outras pessoas inquietas e suarentas, que se recusavam a reconhecer-se. Olhou para os estaleiros, onde o esqueleto do Cruzeiro inacabado descansava. No alto, fragmentos do ciclo projetado continuavam às escuras e avariados, e os Tleilaxu não pareciam inclinados a repará-lo.

Câmeras e alto-falantes leves flutuavam sobre a multidão, que esperava um anúncio e mais instruções. Ninguém queria perguntar, ninguém queria escutar.

— Este Cruzeiro é de um desenho Vernius não autorizado. — Os alto-falantes flutuantes transmitiram uma voz assexuada que ressoou contra as paredes de rocha —, e não respeita as normas da Junta de Supervisão Religiosa. Seus senhores Tleilaxu vão recuperar o desenho anterior, e esta nave tem que ser desmontada imediatamente.

Sussurros de frustração se ergueram da multidão.

— É preciso recuperar as matérias primas e formar novas equipes de trabalhadores. A construção recomeçará dentro de cinco dias.

A mente de C'tair deu voltas, enquanto organizadores vestidos com mantos marrom passeavam entre a multidão e formavam as equipes. Como filho de um embaixador tinha acesso a informação não disponível para outros jovens de sua idade. Sabia que o Cruzeiro antigo tinha uma capacidade de carga muito menor e funcionava com menos eficácia. Que objeção religiosa podia haver contra o aumento dos lucros? O que os Tleilaxu ganhavam com um transporte espacial menos eficaz?

Então recordou uma história que seu pai tinha lhe contado em épocas mais felizes, sobre como o velho imperador Elrood tinha ficado insatisfeito com a inovação, pois reduzia seus lucros com impostos. As peças começavam a se encaixar. A Casa Corrino tinha enviado tropas Sardaukar camufladas para manter subjugada à população ixiana, e C'tair compreendeu que ao adotar o desenho dos Cruzeiros os Tleilaxu pretendiam agradecer ao imperador pelo apoio militar.

Engrenagens dentro de engrenagens dentro de engrenagens...

Sentiu-se desolado, um motivo insignificante e corriqueiro tinha provocado a perda de milhares de vidas, a destruição das gloriosas tradições de IX, a derrocada de uma nobre família e a erradicação de uma forma de vida planetária. Estava furioso com todos os implicados, inclusive com o conde Vernius, que deveria ter previsto tudo isso e tomado cuidados para não criar inimigos poderosos.

A ordem de começar a trabalhar foi transmitida pelo sistema de megafonia, e C'tair foi atribuído a uma das equipes de subóides encarregadas de desmontar a nave inacabada e recuperar suas peças. Esforçou-se por manter o rosto inexpressivo. Agarrou um laser para cortar componentes e secou o suor da testa. Sentia vontade de usar o laser contra os Tleilaxu. Outras equipes foram empilhando as vigas mestras e as pranchas metálicas, para serem usadas no novo projeto.

C'tair recordou uma época melhor e mais ordenada, quando estava com Kailea e D'murr na coberta de observação superior. Parecia ter transcorrido uma eternidade desde então. Tinham visto um Navegante partir da gruta no último Cruzeiro construído. Talvez fosse a última nave com essas características, a menos que C'tair pudesse derrotar os invasores.

A magnífica nave foi desmontada pouco a pouco. Os ruídos ensurdecedores e os aromas químicos eram horríveis. Os subóides sempre trabalhavam assim? Nesse caso, começava a compreender por que se rebelaram. O que não acreditava era que a violência tivesse sido incitada pelos próprios trabalhadores.

Fora instigada pelo próprio imperador Elrood, afim de destruir a Casa Vernius e esmagar o progresso? C'tair ignorava como e onde os Bene Tleilax se encaixavam naquela rede de intrigas. De todas as raças, era a mais odiada da galáxia conhecida. Não havia dúvidas de que Elrood poderia ordenar a qualquer Grande Casa que continuasse os trabalhos em IX sem prejudicar a economia do Império. Que mais o imperador Padishah tinha tramado com aqueles fanáticos religiosos? Por que sujava as mãos com eles?

C'tair, enojado, notou outras mudanças na gruta, instalações modificadas, enquanto continuava trabalhando no desmantelamento do Cruzeiro. Os novos senhores Tleilaxu eram seres inquietos que corriam de um lado para outro com movimentos furtivos, montavam operações clandestinas nos edifícios maiores de IX, fechavam antigas instalações, quebravam janelas, erguiam cercas atordoantes e campos minados. Protegem seus segredos sujos.

C'tair achava que sua missão era descobrir todos aqueles segredos, utilizando os meios que fossem necessários, por mais tempo que levasse. Os Tleilaxu deviam sucumbir...

 

Pergunta definitiva: por que existe a vida? A resposta: pelo puro prazer de viver.

Anônimo, de suposta origem Zenzunni

 

Duas reverendas mães estavam falando no alto de um montículo desprovido de árvores. Atrás das nuvens, o pálido sol, Laoujin, projetava as longas sombras de seus hábitos negros colina abaixo. Ao longo dos séculos, um número indeterminável de reverendas mães tinham escolhido o mesmo ponto, sob o mesmo sol, para discutir temas graves relacionados com sua época.

Se as duas mulheres o desejassem, podiam revisitar aquelas crises do passado mediante a Outra Memória. A reverenda madre Anirul Sadow Tonkin realizava essas viagens mentais com maior freqüência que as demais. Cada circunstância significava um ínfimo passo adiante no longo e tortuoso caminho. Durante o último ano deixara crescer o cabelo castanho acobreado, e agora seus cachos caiam até o queixo.

Estavam construindo um edifício de cimento branco. Como abelhas, as operárias, cada uma com uma reprodução exata em sua mente, dirigiam a pesado equipamento que colocava em seu lugar os módulos do teto. Para os poucos observadores externos, Wallach IX, com suas bibliotecas e escolas Bene Gesserit, sempre parecia igual, mas a Irmandade vivia uma constante adaptação para a sobrevivência.

— Trabalham muito devagar. Já deveriam ter terminado — disse Anirul enquanto massageava a testa. Sofria de enxaquecas crônicas há um tempo. Agora que Mohiam estava a ponto de dar a luz, as responsabilidades de Anirul como Mãe Kwisatz eram tremendas —. Percebe como faltam poucos dias para o nascimento?

— Não culpe ninguém além de você mesma, Anirul. Ordenou que ela não fosse para uma sala de partos normal — a madre superiora Hanshka disse com severidade —. Todas as irmãs conhecem a importância do acontecimento. Muitas suspeitam que não se trata de apenas mais uma menina, que não se perderá na teia dos nossos programas de reprodução. Algumas até falaram em Kwisatz Haderach.

Anirul colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— É inevitável. Todas as irmãs conhecem nosso sonho, mas poucas suspeitam de como ele está perto de transformar-se em realidade. — recolheu as saias e sentou-se sobre a erva. Apontou a construção, de onde vinham ruídos de carpintaria — Mohiam dará a luz dentro de uma semana, madre superiora, e ainda não temos o telhado.

— Elas terminarão em tempo, Anirul. Acalme-se. Todos se esforçam ao máximo para cumprir suas ordens.

Anirul reagiu como se a tivessem esbofeteado, mas dissimulou o fato. A reverenda madre me considera uma garota incontrolável e impetuosa. Talvez tinha sido muito insistente com as instruções para a instalação, e as vezes a madre superiora olhava para ela com certo ressentimento. Estará com ciúmes porque a Outra Memória me escolheu para dirigir um programa tão ambicioso? Sente-se ofendida pelo alcance de meus conhecimentos?

— Não sou tão jovem como me trata — disse Anirul, sabendo de que era um erro. Poucas Bene Gesserit levavam o peso da história como ela. Poucas conheciam todas as maquinações, todos os passados do programa do Kwisatz Haderach, todos os fracassos e êxitos durante milênios, todas as alterações do plano durante mais de noventa gerações —. Possuo os conhecimentos necessários para triunfar.

A madre superiora olhou para ela com o cenho franzido.

— Pois tenha mais fé em nossa Mohiam. Já entregou nove filhas à Irmandade. Confio que controle o momento exato que escolher para dar a luz, mesmo que atrase o parto se for necessário. — Alguns cabelos frágeis escaparam de sua toca e bateram sobre a bochecha da anciã —. Seu papel nisto é muito mais importante que qualquer pavilhão de partos.

Anirul não se intimidou pelo tom de reprimenda.

— É verdade, e não vamos enfrentar outro fracasso, como o último.

Nem mesmo uma reverenda madre podia dominar todas as facetas do desenvolvimento embrionário. Podia adaptar seu metabolismo através de seus processos internos, mas não o metabolismo da criança. Escolher o sexo do bebê exigia uma correção da química da mãe, consistente para escolher o óvulo e esperma necessários. Mas assim que o zigoto começava a crescer no útero, o feto se tornava independente e iniciava um processo de separação da mãe.

— Imagino que esta menina será fundamental — disse Anirul —, um ponto crítico.

Ouviu-se um impacto estrondoso, e Anirul fez uma careta. Uma das seções do telhado tinha caído no interior do edifício e as operárias se apressaram a corrigir o erro.

A madre superiora proferiu uma blasfêmia.

Graças a hercúleos esforços, o pavilhão de partos foi terminado a tempo, enquanto a Madre Kwisatz. Anirul passeava de um lado para outro. Apenas umas horas antes do parto, operárias e robôs deram os últimos toques à construção. Transportaram e conectaram equipamentos médicos. Globos de luz, camas, mantas... até um reconfortante fogo na arcaica chaminé que Mohiam tinha pedido.

Enquanto Anirul e Harishka inspecionavam a obra que ainda cheirava a pó e materiais de construção, detiveram-se para contemplar a ruidosa entrada de uma maca motorizada que transportava uma Gaius Helen Mohiam a ponto de dar a luz. Estava consciente e já começava a experimentar contrações. As reverendas madres e enfermeiras uniformizadas de branco a acompanhavam, e todas cacarejavam como galinhas.

— Foi por pouco, madre superiora — disse Anirul —. Eu não gosto que surjam tensões adicionais em uma tarefa já por si complexa.

— Estou de acordo — disse Harishka —. As irmãs serão repreendidas por sua letargia. Claro que se seus planos tivessem sido menos ambiciosos...

Anirul, ignorou a madre superiora, tomou nota dos adornos e decoração do quarto, com suas incrustações de pérola e marfim e as talhas de madeira. Talvez devia ter ordenado que se concentrassem mais na funcionalidade que na extravagância...

Harishka cruzou seus braços sobre o peito.

— O desenho desta nova instalação é similar ao anterior. Era realmente necessário?

— Não se parece em nada — replicou Anirul. Seu rosto avermelhou, e eliminou o tom defensivo de suas palavras —. A antiga sala de partos já não servia para nada.

A madre superiora desenhou um sorriso condescendente. Compreendia a necessidade de um edifício descontaminado, sem lembranças antigas nem fantasmas.

— Anirul, graças a nossa Missionária Protetora manipulamos as superstições dos povos atrasados... mas se supõe que as irmãs não são supersticiosas.

Anirul aceitou o comentário com bom humor.

— Asseguro-lhe, madre superiora, que tal conjectura é ridícula.

Os olhos cor avelã da anciã cintilaram.

— Segundo outras irmãs, você pensava que a sala de partos antiga estava amaldiçoada, e que isso provocou as deformidades na menina... e sua morte misteriosa.

— Não é o momento mais adequado para falar disto, madre superiora.

Examinou os preparativos frenéticos: Mohiam deitada na cama de parto, as irmãs fazendo provisão de toalhas quentes, líquidos e almofadinhas. Os monitores da incubadora piscavam na parede. Parteiras de primeira classe se moviam de um lado para outro, tomando precauções para o caso de surgirem complicações imprevistas.

Mohiam parecia serena, concentrada em sua importante tarefa, mas Anirul observou seu aspecto envelhecido, como se tivesse perdido os últimos vestígios de juventude.

Harishka apoiou uma mão robusta sobre o braço de Anirul, em um desdobramento surpreendente de intimidade.

— Todas carregamos nossas superstições primitivas, mas temos que dominá-las. De momento, não se preocupe com outra coisa que não seja esta menina. A Irmandade necessita de uma filha sã, depositária de um futuro poderoso.

O pessoal médico testou os equipamentos e tomou posições ao redor de Mohiam, que inalou profundamente. Suas bochechas estavam avermelhadas por causa do cansaço. Duas parteiras a colocaram na postura de parto ancestral. Mohiam começou a cantarolar para si, e uma careta de dor apareceu em seu rosto quando as contrações aconteceram com maior velocidade.

Anirul pensou no que a madre superiora acabava de lhe dizer. Em segredo, um mês atrás Anirul tinha consultado um mestre de Feng Shui sobre o antigo pavilhão de partos. Era um homem enrugado de aparência terráquea, e praticava uma antiquísima filosofia Zensunni segundo a qual a arquitetura, a disposição dos móveis e a potência da cor e luz se combinavam para aumentar o bem-estar dos habitantes de uma casa ou instalação. O homenzinho assentiu, afirmou que a antiga instalação não estava harmonizada e ensinou a Anirul o que devia fazer.

Agora, enquanto observava a luz abundante que banhava a cama de Mohiam, vinda de janelas e clarabóias, em vez de globos de luz artificial, Anirul afirmou para si que não tinha sido supersticiosa. O Feng Shui ensinava a harmonizar-se com a natureza e a ter consciência do próprio entorno, uma filosofia que, em último caso, parecia muito com a maneira Bene Gesserit.

Aproximou-se da cama de Mohiam e olhou para a paciente. Anirul confiava que o ancião tivesse razão. Esta filha era sua última chance.

Ocorreu muito depressa, assim que Mohiam se concentrou.

O choro de um bebê invadiu a habitação, e Anirul levantou uma menina perfeita, para que a madre superiora a visse. Até as vozes da Outra Memória se elevaram em um grito de vitória. Todos sorriam, satisfeitos pelo nascimento tão desejado. A menina esperneava e agitava os bracinhos.

As irmãs envolveram mãe e filha em toalhas e deram a Mohiam um grande copo de suco para restaurar seus fluidos corporais. Anirul lhe mostrou a menina. Com a respiração ainda entrecortada devido aos esforços, Mohiam a pegou, olhou para ela e depois se permitiu um sorriso de orgulho.

— Ela deve se chamar Jessica, que significa “saúde” — anunciou Mohiam. Quando as outras irmãs se afastaram, Mohiam olhou para Anirul e Harishka, que estava a seu lado. Disse em um sussurro quase inaudível —: Sei que esta menina é um elemento fundamental do programa Kwisatz Haderach. As vozes da Outra Memória confirmaram. Tive uma visão, e sei que nos espera um futuro horrível se fracassarmos.

Anirul e a madre superiora trocaram um olhar de inquietação. Harishka respondeu em voz baixa, e olhou de soslaio como se esperasse que a revelação espontânea debilitasse o controle da Mãe Kwisatz sobre o programa.

— Tem que guardar segredo. Sua filha será a avó do Kwisatz Haderach.

— Eu suspeitava. — Mohiam se deixou cair sobre os travesseiros e meditou sobre a responsabilidade daquela revelação —. Tão logo...

Ouviram-se aplausos e vivas diante do edifício, pois a notícia tinha se espalhado como um rastro de pólvora. As galerias situadas sobre as seções da biblioteca e as salas de discussão se encheram de acompanhantes e mestras, que festejavam o evento, embora só um punhado conhecesse o verdadeiro significado da menina no programa de reprodução.

Gaius Helen Mohiam entregou a menina às parteiras, para evitar qualquer tipo de vínculo maternal proibido pela Bene Gesserit. Embora mantivesse a compostura, sentia-se exausta, esgotada até os ossos. Jessica era a décima filha que dava à Irmandade, e esperava que seus deveres nesse sentido tivessem terminado para sempre. Olhou para a reverenda madre Anirul Sadow Tonkin. Não podia fazer nada melhor que o que acabava de fazer. Jessica... Seu futuro.

Na verdade sou afortunada por participar deste acontecimento, pensou Anirul enquanto olhava para a esgotada mãe. Era-lhe estranho que, dentre todas as irmãs que tinham trabalhado por este objetivo durante milhares de anos, dentre todas as que agora observavam ansiosas na Outra Memória, fora ela a encarregada de fiscalizar o nascimento de Jessica. A própria Anirul guiaria a menina durante seus anos de aprendizagem até a transcendental união sexual a que estava destinada, afim de impulsionar o programa de reprodução até o penúltimo degrau.

A menina, envolta em uma manta, tinha parado de chorar por fim e jazia pacificamente na protetora calidez de seu berço.

Anirul olhou pelo plaz protetor e tentou imaginar o aspecto de Jessica quando fosse adulta. Recriou o rosto longo e magro do bebê, e visualizou uma dama alta de grande beleza, com as feições nobres de seu pai, o barão Harkonnen, lábios grossos e pele suave. O barão nunca conheceria sua filha nem saberia seu nome, pois este seria um dos segredos mais zelosamente guardados da Irmandade.

Um dia, quando Jessica fosse maior, receberia a ordem de gerar uma filha, e esta menina seria apresentada ao filho de Abulurd Harkonnen, o meio-irmão menor do barão. Naquele momento, Abulurd e sua esposa só tinham um filho, Kabban, mas Anirul tinha posto em marcha um meio de sugerir que tivessem mais. Isto aumentaria as probabilidades de que um varão sobrevivesse até alcançar a maturidade. Também melhoraria a seleção genética, assim como as probabilidades de um acoplamento sexual positivo.

Anirul contemplava um imenso quebra-cabeças onde cada uma das peças era um acontecimento diferente dentro do incrível programa de reprodução das Bene Gesserit. Agora só faltava encaixar alguns poucos componentes, e o Kwisatz Haderach se transformaria em realidade, o homem todo-poderoso que saltaria os abismos do espaço e do tempo, a ferramenta definitiva da Bene Gesserit.

Anirul se perguntou, como em tantas ocasiões anteriores, se um homem semelhante poderia fazer as Bene Gesserit recuperarem o verdadeiro ardor religioso, como o fanatismo da família Butler. E se outros o reverenciassem como a um Deus?

Imagine, pensou. As Bene Gesserit, que utilizavam a religião para manipular, seduzidas por seu próprio líder messiânico. Duvidava que isso fosse acontecer.

A reverenda madre Anirul foi juntar-se à celebração com as outras irmãs.

 

O método mais seguro de guardar um segredo é convencer as pessoas de que todos sabem.

Antiga sabedoria Fremen

 

— Você conseguiu muitas coisas, Umma Kynes — disse o caolho Heinar.

Os dois homens estavam sentados sobre um promontório rochoso que dominava o sietch. O naib o tratava de igual para igual, usava até mesmo um respeito exagerado. Kynes tinha parado de discutir com as gentes do deserto a cada vez que o chamavam Umma, que queria dizer “profeta”.

Heinar e ele contemplavam o ocaso acobreado, que se esparramava sobre as dunas do Grande Erg. Ao longe, uma neblina imprecisa pendia sobre o horizonte, os últimos restos da tormenta de areia do dia anterior.

Potentes ventos tinham varrido as dunas, aplanado sua superfície e voltado a perfilar a paisagem. Kynes se apoiou contra a rocha e bebeu sua taça de café de especiaria picante.

Quando viu que seu marido se dispunha a sair do sietch, uma grávida Frieth se deslocara atrás dos dois homens. Um trabalhado serviço de café descansava entre ambos sobre uma pedra Lisa. Frieth preparara o café junto com uma seleção dos pasteizinhos crocantes que Kynes tanto gostava. Quando se lembrou de lhe agradecer por sua amabilidade, Frieth já tinha desaparecido como uma sombra na caverna.

Depois de uma longa pausa, Kynes concordou com o comentário do naib.

— Sim, consegui muitas coisas, mas ainda há muito por fazer.

Pensou nos complicados planos necessários para realizar seu sonho de um Dune renascido, um nome que logo seria conhecido no Império.

O Império. Quase nunca pensava no velho imperador. Suas próprias prioridades, a ênfase de sua vida, tinham mudado de uma forma radical. Kynes nunca poderia voltar a ser um simples planetólogo imperial, sobretudo depois de viver com o povo do deserto.

Heinar segurou a mão do seu amigo.

— Dizem que o ocaso é um momento adequado para a reflexão e análise. Falemos do que conseguimos, e não permitamos que o abismo vazio do deserto nos sobressalte. Está neste planeta a pouco mais de um ano, mas já encontrou uma nova tribo e uma nova esposa. — Heinar sorriu —. E logo terá seu primeiro filho, talvez um varão.

Kynes lhe devolveu o sorriso com expressão ofegante. Faltava muito pouco para que Frieth desse a luz. De algum jeito, surpreendia-se com o fato dela ter ficado grávida, porque se ausentava com muita freqüência. Ainda não estava seguro de como reagiria diante de seu iminente papel de pai. Nunca tinha pensado nisso.

Entretanto, o nascimento encaixava-se perfeitamente com o plano que desenvolvera para este planeta surpreendente. Seu filho, que seria o líder dos Fremen depois que ele morresse continuaria seus esforços. O plano mestre se prolongaria durante séculos.

Como planetólogo, tinha que pensar a longo prazo, coisa que os Fremen não faziam, embora, tendo em conta seu passado longo e tortuoso, deveriam estar acostumados a isso. O povo do deserto contava com uma história oral que remontava a milhares de anos. No sietch se contavam histórias que descreviam suas intermináveis peregrinações de planeta em planeta, um povo escravizado e açoitado, até que por fim decidiram fundar um lar onde ninguém suportava viver.

Os costumes Fremen eram conservadores, tinham mudado pouco de geração em geração, e este povo não estava habituado a pensar em termos de progresso. Como davam por certo que seu entorno era inalterável, transformaram-se em seus prisioneiros, quando deveriam ser seus senhores.

Kynes confiava em mudar tudo isso. Tinha delineado seu grande plano, incluindo cronogramas para plantar árvores e acumular água, pedras angulares de cada avanço sucessivo. Dune seria resgatado do deserto, hectare por hectare.

Suas patrulhas exploravam a superfície, colhiam amostras do Grande Bled, amostras geológicas do Pequeno Erg e da Planície Funeral, mas muitos fatores de terraformação continuavam sendo variáveis desconhecidas.

A cada dia encaixavam algumas peças. Quando expressou o desejo de contar com mapas mais detalhados da superfície do planeta, ficou estupefato ao descobrir que os Fremen tinham planos topográficos detalhados, inclusive estudos sobre o clima.

— Por que não me foram enviados antes? — perguntou —. Era o planetólogo imperial, e os mapas cartográficos efetuados por satélite eram do mais imprecisos.

O velho Heinar sorrira e piscado o seu único olho.

— Pagamos um suborno generoso à Corporação Espacial para impedir que nos observem com muita atenção. O custo é alto, mas os Fremen são livres e os Harkonnen continuam na pobreza, junto com o resto do Império.

Kynes ficou atônito, mas lhe agradou saber que contava com a informação geográfica que necessitava. Enviou imediatamente comerciantes para que chegassem a um acordo com os contrabandistas e obtiveram sementes modificadas geneticamente de plantas do deserto resistentes. Tinha que desenhar e construir todo um ecossistema a partir de nada.

Durante as assembléias do conselho, os Fremen perguntaram a seu profeta qual seria o próximo passo, quanto duraria o processo, quando Dune se transformaria em um lugar verde e exuberante. Kynes tinha examinado seus cálculos. Como um professor quando responde à pergunta absurda de um menino, Kynes dera de ombros e respondido:

— Demorará entre trezentos e quinhentos anos. Talvez demore um pouco mais.

Alguns Fremen emitiram gemidos de desespero, enquanto o resto escutava com estoicismo o Umma, para depois começar a satisfazer seus pedidos. Entre trezentos e quinhentos anos. Não viveriam para vê-lo. Os Fremen tinham que mudar seus hábitos.

Como se tivesse recebido uma visão de Deus, Uliet tinha se sacrificado por aquele homem. Desde aquele momento, os Fremen se convenceram da inspiração divina de Kynes. Só tinha que apontar o dedo, e os Fremen do sietch obedeciam.

Outra pessoa teria abusado daquela posição de poder, mas Pardot Kynes se limitou a continuar trabalhando. Imaginava o futuro em termos de eras e planetas, não de indivíduos ou territórios.

Agora, enquanto o sol desaparecia por trás das areias em uma sinfonia de cor, Kynes tomou seu café de especiaria e passou o braço pela barba. Apesar do que Heinar havia dito, considerava difícil refletir com paciência sobre o último ano... As exigências dos séculos vindouros lhe pareciam muito mais importantes.

— Heinar, quantos Fremen existe? — perguntou com a vista cravada na distância. Tinha ouvido histórias a respeito de outros sietch, tinha visto os Fremen isolados em cidades e povoados Harkonnen, mas pareciam fantasmas de uma espécie em vias de extinção —, Quantos há em todo o planeta?

— Quer que contemos nossos números, Umma Kynes? — perguntou Heinar, não com incredulidade mas para esclarecer uma ordem.

— Preciso saber a extensão da população para projetar nossas atividades de terraformação. Tenho que saber quantos trabalhadores temos disponíveis.

Heinar se levantou.

— Assim se fará. Contaremos nossos sietchs e a seus habitantes. Enviarei cavaleiros da areia e ciélagos distrans a todas as comunidades, e logo terá os números.

— Obrigado.

Kynes pegou sua taça, mas antes que pudesse recolher os pires, Frieth saiu correndo da cova e recolheu todas as peças do serviço de café. A gravidez não tinha diminuído sua velocidade.

O primeiro censo Fremen, pensou Kynes. Uma ocasião histórica.

 

Stilgar, com expressão ofegante, apresentou-se nos aposentos de Kynes na manhã seguinte.

— Estamos fazendo as malas para sua longa viajem, Umma Kynes. Muito ao sul. Temos que lhe ensinar coisas importantes.

Desde que tinha se recuperado da ferida, Stilgar se convertera em um dos seguidores mais devotos de Kynes. Parecia que sua relação com o planetólogo, seu cunhado, aumentava seu prestígio social. Em qualquer caso, Stilgar não trabalhava em benefício próprio, mas para o de todos os Fremen.

— Quanto tempo durará a viagem? — perguntou Kynes —. Para onde vamos?

O jovem sorriu de orelha a orelha.

— É uma surpresa! Deve ver com seus próprios olhos, do contrário não acreditaria. Considere um presente.

Kynes, curioso, olhou para seu canto de trabalho. Levaria suas notas para documentar a viagem.

— Mas quanto durará?

— Vinte batedores — respondeu Stilgar na terminologia do deserto profundo, e depois gritou por cima do ombro enquanto saía —: Muito para o sul!

Frieth, a esposa de Kynes, a quem faltava muito pouco para dar a luz, dedicava longas horas trabalhando nos teares e nos bancos de reparo de trajes destiladores. Kynes terminou o café da manhã, sentado a seu lado, embora falassem pouco entre si. Frieth se limitava a olhar, e Kynes pensava que ela não entendia nada.

Ao que parecia, as mulheres Fremen viviam em seu mundo particular, possuíam seu próprio lugar na sociedade daqueles moradores do deserto, sem nenhuma relação com a interação que Kynes tinha presenciado no Império. Não obstante, dizia-se que as mulheres Fremen eram as combatentes mais implacáveis no campo de batalha, e que se um inimigo ferido ficasse a sua mercê mais valia matar-se no ato.

Por outro lado, existia o mistério das Sayyadinas, as mulheres santas do sietch. Até o momento, Kynes só tinha visto uma, vestida com um longo hábito negro como as Bene Gesserit, e nenhum Fremen parecia gostar de falar delas. Diferentes mundos, diferentes mistérios.

Kynes pensava que algum dia seria interessante compilar um estudo sociológico sobre como reagiam e se adaptavam as diferentes culturas a ambientes extremos. Perguntava-se como as cruéis realidades de um planeta afetariam os instintos naturais e os relacionamentos tradicionais dos sexos. Mas já tinha bastante trabalho. Além disso, não era um sociólogo mas um planetólogo.

Kynes finalizou o café da manhã e beijou sua mulher. Afagou seu ventre volumoso.

— Stilgar diz que devo acompanhá-lo em uma viagem. Voltarei o mais rápido possível.

— Quanto tempo demorará? — perguntou Frieth, pensando no nascimento iminente do menino. A que parecia, obcecado com sua visão de longo prazo dos acontecimentos para o planeta, Kynes não tinha tomado nota da data do parto, e não o incluíra em seus planos.

— Vinte batedores — disse, embora ignorasse o que significava aquela distância.

Frieth arqueou as sobrancelhas em sinal de surpresa. Depois baixou a vista e começou a limpar a mesa.

— Até a viagem mais longa transcorre rapidamente quando o coração está contente. — Seu tom traía certa decepção —. Esperarei sua volta, meu marido. — Vacilou —. Escolha um bom verme.

Kynes não sabia a que se referia.

Momentos depois, Stilgar e dezoito jovens, com a indumentária típica do deserto, guiaram Kynes por tortuosos passadiços até sair para o enorme mar oriental de areia. Kynes sentiu uma pontada de preocupação. A extensão árida parecia imensa e perigosa. Alegrava-se por não estar sozinho.

— Cruzaremos o Equador e seguiremos para o sul, Umma Kynes, até as terras de outros Fremen, onde ocultamos nossos projetos secretos. Logo verá.

Os olhos de Kynes se arregalaram. Tinha ouvido relatos terríveis e arrepiantes sobre as desabitadas regiões do sul. Cravou a vista na distância, enquanto Stilgar checava o traje destilador do planetólogo, apertava os fechos e ajustava os filtros até ficar satisfeito.

— Mas como viajaremos?

Kynes sabia que o sietch tinha seu próprio ornitóptero, que na realidade era um simples transportador, sem capacidade para carregar tanta gente.

— Iremos montados, Umma Kynes. — Indicou com uma sacudida de cabeça para o jovem que tinha transportado Stilgar, depois de ser ferido, no carro terrestre de Kynes —. Hoje, Ommun se transformará em nosso cavaleiro de areia. É um grande acontecimento para nosso povo.

— Tenho certeza disso — disse Kynes, picado pela curiosidade.

Os Fremen avançaram em fila indiana. Sob os mantos usavam trajes destiladores, e calçavam botas temag para o deserto. Seus olhos de um azul anil olhavam de um passado muito remoto.

Uma figura escura se adiantou ao grupo e correu sobre a crista de uma duna. Agarrou uma estaca larga e a afundou na areia, manipulou os controles, e Kynes ouviu o tump retumbante de uma vibração repetida.

Kynes já tinha escutado aquele som durante a caçada de vermes de Glossu Rabban.

— Ele tenta atrair um verme?

Stilgar assentiu.

— Se Deus quiser.

Ommun, ajoelhado na areia, extraiu um pacote de ferramentas envolto em tecido. Selecionou-as e as separou com supremo cuidado. Longos ganchos de ferro de ferro, pontas afiadas e cilindros de corda.

— O que ele está fazendo? — perguntou Kynes.

O batedor continuava seu ritmo regular. Os Fremen, carregados com mochilas e provisões, esperavam.

— Venha. Precisamos estar preparados para a chegada do Shai-Hulud.

Stilgar indicou ao planetólogo que o seguisse, enquanto tomavam posições. Os Fremen sussurraram entre si.

Ao pouco, Kynes percebeu o que só tinha experimentado uma vez, o vaio inesquecível, o rugido veloz de um verme de areia que se aproximava, atraído inexoravelmente pela vibração do batedor.

Ommun se agachou sobre a duna, segurando os ganchos e as pontas. Grossos rolos de corda pendiam de sua cintura. Mantinha uma imobilidade absoluta. Seus companheiros esperavam sobre uma duna próxima.

— Ali! Consegue ver? — disse Stilgar, incapaz de conter a emoção. Apontou para o sul, onde a areia ondulava como se uma nave de guerra subterrânea se dirigisse em linha reta para o batedor.

Kynes não sabia o que estava acontecendo. Ommun tentaria lutar com a grande besta! Era uma espécie de cerimônia ou sacrifício pela sua longa viajem através do deserto?

— Prepare-se — disse Stilgar, e apertou o braço de Kynes —. Nós o ajudaremos em tudo que pudermos.

Antes que o planetólogo pudesse fazer outra pergunta, um enorme vórtice de areia se formou ao redor do batedor. Ommun se retesou, preparado para saltar.

Então, a enorme boca do verme de areia emergiu das profundezas e engoliu o batedor. O enorme lombo do animal surgiu do deserto.

Ommun correu atrás do verme e saltou sobre seu lombo arqueado e com os ganchos de ferro se içou sobre um de seus segmentos.

Kynes contemplava a cena estupefato, incapaz de organizar seus pensamentos ou compreender o que aquele jovem ousado estava fazendo. Isto não pode estar acontecendo, pensou. É impossível.

Ommun fincou um de seus ganchos na fenda que separava dois segmentos e depois puxou com força, separando os bem protegidos anéis e deixando a descoberto a pele abaixo.

O verme se retorceu, mas Ommun subiu e plantou outro gancho, de forma que o verme se viu obrigado a emergir mais do subsolo. No ponto mais elevado do lombo, atrás de sua cabeça, o jovem Fremen cravou uma estaca e deixou cair as longas cordas, para que pendessem pelos lados. Ergueu-se orgulhoso sobre o verme e indicou aos outros que se aproximassem.

Os Fremen lançaram vivas e correram para o verme, junto com Kynes, que fazia o possível para não perder o equilíbrio. Três jovens escalaram as cordas e cravaram mais ganchos de ferro para impedir que o verme mergulhasse. O enorme animal começou a avançar, confuso, como se não entendesse o que estavam fazendo aqueles seres molestos.

Enquanto os Fremen corriam, jogavam as provisões para o alto. As mochilas foram subidas para o lombo do verme com mais cordas. Os primeiros cavaleiros montaram uma estrutura o mais rápido possível. Açulado por Stilgar, um perplexo Kynes corria junto ao verme descomunal. O planetólogo sentiu o calor de fricção que surgia de debaixo do animal, e tentou de imaginar que improváveis fogos químicos formavam um forno nas vísceras do verme.

— Vamos, Umma Kynes! — gritou Stilgar ao mesmo tempo que lhe ajudava a introduzir os pés nos laços das cordas. Kynes subiu desajeitadamente, e suas botas encontraram apoio na pele áspera do verme. Subiu e subiu. A energia interna do Shai-Hulud o fazia perder o fôlego, mas Stilgar o ajudou a reunir-se com os outros Fremen, agrupados atrás da cabeça do verme.

Tinham improvisado uma tosca plataforma com um assento, um palanquim. Outros Fremen seguravam as cordas para conter o animal, como se fosse um cervo furioso. Kynes, agradecido, deixou-se cair no assento e cruzou os braços. Experimentava uma desconcertante sensação, como se fosse cair de um momento para outro e quebrar a cabeça. O movimento ondulante do verme revirou seu estômago.

— Geralmente, estes assentos se reservam para nossas Sayyadinas — explicou Stilgar —. Mas sabemos que ainda é incapaz de montar no Shai-Hulud, de modo que este será um lugar de honra para nosso profeta. Não há do que envergonhar-se.

Kynes assentiu e olhou para frente. Outros Fremen felicitaram Ommun, que tinha coroado com êxito aquele importante rito de iniciação. Agora, era um respeitável cavaleiro da areia, um verdadeiro homem no sietch.

Ommun puxou as cordas e os ganchos de ferro para guiar o verme.

— Haioyoh!

A enorme criatura acelerou o passo em direção ao sul...

 

Kynes viajou durante todo o dia, enquanto o vento açoitava seu rosto e o sol se refletia na areia. Não tinha forma de calcular a velocidade do verme, mas sabia que devia ser impressionante.

Percebeu o aroma de correntes de oxigênio e pedra queimada que o verme deixava ao passado. Dada a escassez de vegetação em Dune, o planetólogo compreendeu que os vermes deviam gerar grande parte do oxigênio atmosférico.

Era tudo que podia fazer, hospedado em seu palanquim. Não podia tirar suas notas e cadernos, que guardava na mochila pendurada nas costas. Que magnífico relatório resultaria daquele lance, embora soubesse que jamais poderia enviar tal informação ao imperador. Só os Fremen conheciam este segredo, e assim continuaria. Estamos montados em um verme! Agora tinha outras obrigações, lealdades novas e mais importantes.

Séculos antes, o Império tinha convocado centros de análise biológicas em pontos estratégicos da superfície do Dune, mas essas instalações não funcionavam mais. Kynes as havia reaberto e utilizado algumas forças imperiais destinadas ao planeta para manter as aparências. A maioria de centros estavam ocupados por seus próprios Fremen. Assombrava-lhe a facilidade dos irmãos do sietch para infiltrar-se no sistema, descobrir coisas e usar a tecnologia. Era uma raça que se adaptava maravilhosamente, e adaptar-se era a única forma de sobrevivência em um lugar como Dune.

Sob a direção de Kynes, os operários Fremen desmontavam o equipamento das estações biológicas isoladas, voltavam com as peças necessárias para os sietch e enchiam formulários para informar a perda ou deterioração dos materiais. O Império, ignorante do que acontecia, substituía os instrumentos perdidos por outros novos, e os encarregados das estações podiam continuar seu trabalho.

Depois de horas de rápida viagem através da Grande Extensão, o enorme verme começou a mostrar-se remisso, muito fatigado, e Ommun custou para controlá-lo. O verme parecia querer enterrar-se no chão, embora isso exporia sua pele sensível às areias escaldantes.

Por fim, Ommun o obrigou a parar. Os homens do deserto saltaram para o chão, enquanto Kynes descia pouco a pouco. Ommun jogou as mochilas e desmontou, deixando que o verme, muito cansado para atacá-los, afundasse-se na areia. Os Fremen tiraram os ganchos de ferro para que o verme, seu Shai-Hulud, pudesse recuperar-se.

Os homens correram para uma linha de rochas, onde havia covas e refúgio, assim como um pequeno sietch que lhes deu as boas-vindas e a promessa de comida e conversa para a noite. Rumores sobre o propósito do planetólogo se espalharam por todos os lugares secretos de Dune, e o líder do sietch lhes disse que era uma grande honra receber ao Umma Kynes.

No dia seguinte, o grupo retomou a marcha no lombo de outro verme, e depois de outro. Kynes, pouco a pouco, começou a compreender o que significava uma viagem de vinte batedores.

O vento era fresco a areia brilhante, e os Fremen desfrutavam muito com seu grande aventura. Kynes ia sentado em seu palanquim como um imperador, sem deixar de contemplar a paisagem. Para ele as dunas eram um espetáculo fascinante.

Um mês antes, perto do sietch de Heinar, Kynes tinha saído em seu pequeno ornitóptero imperial para explorar sem rumo fixo. Uma pequena tormenta o desviara de seu curso. Recuperou o controle, face às fortes rajadas de vento, mas ficou atônito ao olhar para o ponto em que a tormenta tinha deixado descoberto uma depressão plaina e branca: uma salina.

Kynes tinha visto salinas em outros planetas, mas nunca em Dune. A formação geológica se assemelhava com um ovóide branco que refletia o sol, e apontava as fronteiras do que, milhares de anos antes, tinha sido um mar aberto. Emocionou-se ao pensar que, no passado, aquela salina talvez tinha sido um grande oceano interior.

Kynes aterrissara para examinar o pó. Ajoelhou-se e afundou os dedos na superfície branca. Lambeu um dedo para confirmar suas suspeitas. Sal amargo. Agora não havia mais dúvida de que em outros tempos havia extensões de água mas, por algum motivo, tinham desaparecido.

À medida que vários vermes os transportavam até cruzar a linha do Equador e entravam no hemisfério sul do planeta, Kynes viu muitas outras coisas que recordavam suas descobertas: depressões deslumbrantes que talvez eram os restos de antigos lagos. Mencionou isto a seus guias Fremen, mas só explicaram sua existência mediante mitos e lendas carentes de rigor científico. Seus companheiros de viagem pareciam mais interessados em destino.

Por fim, depois de dias longos e exaustivos, abandonaram o último verme e entraram nas paisagens rochosas das regiões mais austrais de Dune, perto do círculo antártico, aonde os enormes Shai-Hulud se negavam a viajar. Embora alguns mercadores de água tivessem explorado as calotas polares do norte, as latitudes mais baixas continuavam quase desabitadas, envoltas no mistério. Ninguém até lá, exceto estes Fremen.

Cada vez mais entusiasmado, o grupo caminhou durante um dia sobre cascalho, até que Kynes viu o fim o que seus companheiros desejam tanto lhe mostrar. Ali, os Fremen tinham criado um imenso tesouro.

Não longe da diminuta calota polar, em uma região onde se dizia que o clima era muito frio e inóspito para a vida, os Fremen de vários sietch tinham montado um acampamento secreto. Seguindo o leito de um riacho, entraram em um canyon escarpado. O solo era composto de pedras arredondadas pela água que tinha passado por ali milênios antes. O ar era frio, mas mais quente do que o planetólogo supunha no círculo antártico.

De um penhasco abrupto, onde o gelo e o vento frio que soprava na cúpula davam lugar a um ar mais suave no fundo, escorria água pelas rachaduras da rocha que, quando chegava a estação, corria pelo leito do riacho que tinham seguido para chegar àquele ponto. Os Fremen tinham instalado cristais e amplificadores nas paredes do penhasco para esquentar o ar e derreter o gelo do chão. E ali, no chão rochoso, plantas tinham crescido.

Kynes ficou sem fala. Era seu sonho, diante de seus próprios olhos!

Perguntou-se se a fonte poderia vir de águas termais, mas ao tocá-la percebeu que era muito fria. Provou-a, e descobriu que não era sulfurosa, mas fresca, a melhor que tinha bebido desde que chegara a Dune. Água pura, não reciclada mil vezes com filtros e trajes destiladores.

— Aqui está nosso segredo, Umma Kynes — disse Stilgar —. Nós fizemos isso em menos de um ano.

Moitas de erva robusta cresciam espalhadas pelo leito do riacho, girassóis do deserto de um amarelo brilhante, e até mesmo as trepadeiras de uma aboboreira. Mas o mais assombroso eram as fileiras de palmeiras jovens, que se aferravam à vida, absorviam a umidade que se filtrava entre as rachaduras da rocha e subia de um nível freático enterrado sob o chão do canyon.

— Palmeiras! — exclamou —. Vocês já começaram.

— Sim, Umma — assentiu Stilgar —. Aqui se vê o futuro de Dune. Tal como nos prometeu, pode ser feito. Fremens de todo o planeta já começaram a tarefa de dispersar erva nas ladeiras favorecidas pelo vento das dunas.

Kynes resplandecia. Eles tinham acreditado, apesar de tudo! Aquela erva dispersa desdobraria suas raízes, armazenaria água e estabilizaria as dunas. Com equipamento roubado das estações de análise biológicas, os Fremen poderiam continuar o trabalho de criar ralos, eruer armadilhas de vento e descobrir novas formas de apoderar-se de cada gota de água transportada pelo vento...

O grupo permaneceu no canyon por vários dias, e o que viu ali aturdiu Kynes. Fremen de outros sietch apareciam a intervalos regulares. O lugar parecia um novo ponto de encontro do povo escondido. Chegaram emissários para contemplar com reverência as palmeiras e as plantas que cresciam ao ar livre, para aspirar o tênue aroma de umidade que se desprendia das rochas.

Uma noite chegou um cavaleiro de areia com suas ferramentas, em busca do Umma Kynes. O recém-chegado, sem fôlego, baixou os olhos respeitosamente.

— Seguindo suas ordens, a contagem terminou — anunciou —. recebemos informação de todos os sietch e agora sabemos quantos Fremen há.

— Estupendo — disse Kynes sorridente —. Necessito de um número aproximado para planejar nosso trabalho.

Esperou. O jovem ergueu a vista e olhou-o nos olhos.

— O número de sietch supera os quinhentos.

Kynes suspirou. Muito mais do que esperava!

— E os Fremen que vivem em Dune são, aproximadamente, dez milhões. Necessita das cifras exatas, Umma Kynes?

Kynes soltou uma exclamação afogada. Incrível! Os cálculos imperiais e os informes dos Harkonnen diziam que não passavam de algumas centenas de milhares, um milhão no máximo.

— Dez milhões! — Abraçou o mensageiro estupefato, jubiloso. — Com este exército de operários poderemos remodelar todo o planeta.

O mensageiro sorriu e retrocedeu com uma reverência, para agradecer a honra que o planetólogo lhe concedera.

— E há mais notícias, Umma Kynes — disse o jovem —. Me ordenaram lhe comunicar que sua esposa Frieth deu a luz a um menino forte e são, que sem dúvida será algum dia o orgulho do sietch.

Kynes emitiu outra exclamação de júbilo. Era pai! Olhou para Ommun, Stilgar e outros membros de sua expedição. Os Fremen ergueram as mãos e o encheram de felicitações. Não permitira que a idéia revoasse em sua mente até agora, mas sentiu que uma onda de orgulho se impunha para sua surpresa.

Enquanto pensava em sua felicidade, Kynes olhou para as palmeiras, a erva e as plantas, e depois para o fragmento de céu azul emoldurado entre as paredes do canyon. Frieth lhe dera um filho!

— Agora, os Fremen são dez milhões um — disse.

 

O ódio é um sentimento tão perigoso quanto o amor. A capacidade de experimentar um significa a capacidade de experimentar seu contrário.

Instruções tutelares para a Irmandade,

Arquivos Bene Gesserit, Wallach IX

 

Os dois sóis mortiços do sistema binário do Kuentsing brilhavam nos céus sombrios de Bela Tegeuse. O mais próximo, vermelho como sangue, tingia de púrpura o ciclo do entardecer, enquanto o primário, branco como o gelo, muito longínquo para proporcionar calor ou luz em excesso, pendia como um buraco iluminado no crepúsculo. Um planeta pouco atraente e com a superfície árida, não figurava nas principais rotas espaciais da Corporação e poucos Cruzeiros faziam escala ali.

Naquele lugar tétrico, a senhora fiscalizava suas hortas e se recordava que era seu lar provisório. Mesmo depois de passado quase um ano, ainda se sentia uma estranha.

Olhou para seus empregados. Usando um nome falso tinha utilizado parte de seus bens restantes para comprar uma pequena propriedade, com a esperança de viver ali até poder se reunir com os outros. Desde sua desesperada fuga não os tinha visto nem recebera notícias, e tampouco tinha baixado a guarda por um instante.

Elrood ainda estava vivo, e os caçadores continuavam à espreita.

Globos luminosos banhavam os campos de luz, alimentando as fileiras de plantas e frutas exóticas que seriam disputadas pelos funcionários ricos.

Mais à frente dos campos cultivados, a vegetação nativa de Bela Tegeuse era robusta e áspera, muito pouco promissora. A luz solar de Kuentsing não era suficiente para facilitar a fotossíntese das delicadas plantas da senhora.

Sentiu o frio que agredia seu rosto. Sua pele sensível, que em outros tempos tinha acariciado um imperador, estava agora rachada e esfolada devido à dureza dos elementos. Mas jurara que seria forte, se adaptaria e resistiria. Seria mais fácil se pudesse informar aos seus filhos que estava viva. Ansiava por vê-los, mas não se atrevia a entrar em contato, pelo perigo que existia para ela e para os que a tinham acompanhado na fuga.

Maquinaria de coleta estralava ao longo das filas de cultivos e colhia os frutos. Os globos luminosos estendiam sombras similares a seres furtivos que percorriam os campos. Alguns dos trabalhadores contratados cantavam enquanto colhiam produtos muito frágeis para a coleta mecânica. Cestas vazias preparadas para o mercado esperavam no centro de recolhimento.

Só alguns de seus criados mais fiéis a seguiram nesta nova vida. Não queria deixar cabos soltos, ninguém que pudesse informar aos espiões imperiais, e tampouco queria pôr em perigo seus fiéis companheiros de exílio.

Só ousava falar com extrema cautela com seus poucos vizinhos. Só conversas furtivas, olhares fugazes e sorrisos. Em qualquer parte podia haver agentes ou visicoms.

A senhora, graças a uma série de documentos de identidade falsificados, transformou-se em uma mulher respeitável chamada Lizett, uma viúva cujo marido fictício (comerciante local e funcionário de baixa patente na CHOAM) tinha-lhe deixado recursos econômicos suficientes para administrar a propriedade.

Toda sua existência tinha mudado: acabaram-se as atividades frívolas na corte, a música, os banquetes, as recepções, seu cargo na Landsraad, até as tediosas reuniões do Conselho. Vivia o dia, sentindo saudades dos velhos tempos, sem outro remédio além de aceitar aquela nova vida da melhor maneira possível.

O pior era a possibilidade de não voltar a ver seus filhos.

Como um general que passa suas tropas em revista, a senhora passeou entre os cultivos e examinou os frutos espinhosos de cor vermelha que pendiam das trepadeiras. Esforçou-se por memorizar os nomes dos produtos exóticos que cultivava. O importante era mostrar uma fachada convincente e poder manter conversas corriqueiras sem levantar suspeitas.

Sempre que saía de sua casa usava um belo colar de manufatura ixiana, um hologerador camuflado. Cobria seu rosto com um campo que deformava suas belas feições, suavizava as maçãs do seu rosto, alargava seu queixo delicado, alterava a cor de seus olhos. Sentia-se a salvo... até certo ponto.

Viu uma chuva de estrelas cadentes perto do horizonte. Na distância brilhavam as luzes das fazendas e de uma aldeia, mas isto era muito diferente. Foguetes? Transporte ou lançadeiras?

Bela Tegeuse não era um planeta populoso. Seus recursos eram escassos, assim como escuro e sangrento seu legado histórico. Muito tempo atrás tinha albergado colônias de escravos, povos valentes e rebeldes que proporcionavam escravos para outros planetas. Ela também se sentia prisioneira, mas ao menos estava viva e sabia que sua família estava a salvo.

“Aconteça o que acontecer, nunca baixe a guarda, meu amor — seu marido dissera antes que se separassem —. Nunca.”

Neste constante estado de alerta, a dama observou as luzes de alerta de três ornitópteros que se aproximavam do longínquo espaçoporto. Tinham acionado seus faróis de busca, embora esta fosse a melhor luz do dia que Bela Tegeuse podia oferecer, no zênite do entardecer duplo.

Sentiu medo, mas continuou imóvel, envolta em uma capa azul. Preferia as cores de sua Casa, mas não se atrevia a guardar esses objetos em seu roupeiro.

Uma voz chamou da casa.

— Madame Lizett! Alguém se aproxima, e se nega a responder nossas saudações!

Voltou-se e viu a figura de ombros estreitos de Omer, um de seus criados dos velhos tempos, um homem que a acompanhara porque não lhe ocorreu nada melhor a fazer. Não havia alternativa mais importante e satisfatória, Omer tinha lhe assegurado, e ela agradecia por sua devoção.

A senhora teve a idéia de fugir dos ornitópteros, mas a desprezou. Se os intrusos eram quem temia, não tinha nenhuma chance de escapar. E se não fossem, não devia temer nada.

Os ornitópteros chegaram com o barulho de motores. Aterrissaram sobre seus campos cultivados, derrubaram os globos luminosos e esmagaram a colheita.

Quando as portas dos três aparelhos se abriram e os soldados saíram, soube que estava condenada.

Como se estivesse em um sonho, pensou em um momento mais feliz, a chegada de outros soldados. Tinha acontecido durante sua juventude na corte imperial, quando a sensação embriagadora de ser uma cortesã real começava a desaparecer. O imperador tinha passado muito tempo com ela durante uma temporada, mas depois seu interesse se dissipou e preferiu outras concubinas, como era de esperar. Mas não havia se sentido repudiada, porque Elrood continuou lhe proporcionando sustento e proteção.

Entretanto um dia, depois que a rebelião de Ecaz foi esmagada, assistira um desfile vitorioso de soldados imperiais pelas ruas de Kaitain. As bandeiras eram brilhantes, os uniformes perfeitos e imaculados, os homens galhardos. À cabeça da coluna, vislumbrou pela primeira vez seu futuro marido, um guerreiro orgulhoso com ombros largos e sorriso amplo. Até à distância, sua presença a deslumbrara, e sentiu que sua paixão despertava de novo, e nesse momento o considerou o maior de todos os soldados que retornavam...

Os soldados acabavam de chegar a Bela Tegeuse eram muito diferentes, muito mais aterradores, com o uniforme cinza e negro dos Sardaukar.

Um burseg se adiantou e mostrou a insígnia de sua patente. Com um gesto brusco indicou a seus homens que tomassem posições.

A senhora se aferrou à impostura, com apenas um fio de esperança, e se adiantou para recebê-lo com o queixo erguido.

— Sou madame Lizett, a proprietária deste imóvel. — Sua voz adotou um tom de dureza quando desviou a vista para as colheitas esmagadas —. Vocês ou seus superiores repararão todos os danos causados por sua estupidez?

— Cale a boca! — ladrou um soldado, ao mesmo tempo em que apontava seu fuzil laser.

Idiota, pensou a dama. Poderia usar um escudo. Nesse caso, se o soldado tivesse disparado, aquela parte da Bela Tegeuse teria desaparecido por obra de uma explosão atômica.

O comandante burseg ergueu a mão para deter o soldado, e a senhora compreendeu a farsa: um soldado fanfarrão e descontrolado para intimidá-la, e um oficial firme para fazê-la colaborar. O soldado bom e o soldado mau.

— Estamos aqui cumprindo ordens imperiais — disse o burseg —. Estamos investigando o paradeiro dos traidores sobreviventes de certa Casa renegada, apelamos ao direito de conquista e exigimos sua colaboração.

— Desconheço os aspectos legais — disse a senhora —, mas não sei nada de renegados. Só apenas uma viúva que tenta levar adiante uma modesta fazenda. Permita que meus advogados conversem com você. Fico satisfeita em colaborar no que puder, mas temo que se decepcionarão.

— Isso é mentira — grunhiu o soldado fanfarrão.

Os empregados tinham parado suas atividades, petrificados. O burseg avançou e se plantou a frente da mulher, que não se alterou. O homem estudou seu rosto e franziu o sobrecenho. A senhora sabia que sua aparência camuflada não coincidia com a que o homem esperava encontrar. Sustentou seu olhar sem pestanejar.

De repente o homem arrancou o colar ixiano, fazendo desaparecer seu disfarce.

— Eu prefiro assim — disse o burseg —. Então não sabe nada de renegados, não é? — Soltou uma gargalhada desdenhosa.

Fulminou-o com o olhar. Mais soldados Sardaukar saíram dos três ornitópteros e tomaram posições ao redor. Alguns se dirigiram ao interior da casa, enquanto outros revistavam o celeiro, o silo solar e outros edifícios adjacentes. Será que suspeitavam que escondia todo um exército? Segundo seu estilo de vida habitual, parecia que logo mal poderia permitir-se roupa nova e comida quente.

Outro Sardaukar de rosto sombrio a agarrou pelo braço. Ela tentou escapar, mas o homem lhe subiu a manga da capa e a roçou com uma pequena cureta. A senhora soltou uma exclamação, pensando que o soldado a envenenara, mas o Sardaukar se limitou a analisar a amostra de sangue que colhera.

— Identidade confirmada, senhor — anunciou para seu comandante —. Lady Shando Vernius de IX.

Os soldados retrocederam, mas Shando não se moveu. Sabia o que a esperava.

Durante mais de um ano, o velho imperador se comportara de uma maneira cada vez mais irracional. Sua mente e seu corpo se deterioravam. Elrood sofria de mais delírios de grandeza que de costume e acumulava mais ódio do que um corpo podia conter, mas continuava a ser o imperador, e seus decretos eram cumpridos ao pé da letra.

Só o que temia era que a torturassem para lhe arrancar informação sobre o paradeiro de Dominic, o que desconhecia. Talvez se limitassem a terminar a tarefa.

Omer saiu por uma porta lateral da casa, gritando. Brandia uma tosca arma de caça que encontrara em um armário. Que idiota, pensou. Valente, dedicado e leal, mas totalmente idiota.

— Minha senhora! — gritou Omer —. Deixem-na em paz!

Alguns Sardaukar apontaram para os outros trabalhadores, mas a maioria não desviou seus fuzis dela. Olhou para o céu e pensou em seu amado esposo e seus filhos queridos, e esperou que não encontrassem um final similar. Mesmo nesse momento admitiu que, se pudesse escolher, faria tudo igual outra vez. Não lamentava a perda de prestígio e riquezas que abandonar a corte real lhe trouxera. Shando conhecera um amor que poucos membros da nobreza chegavam experimentavam.

Pobre Roody, pensou com uma pontada de pena. Você nunca compreendeu esse tipo de amor. Como de costume, Dominic estava certo. Visualizou-o mentalmente tal como o conhecera pela primeira vez: um jovem e belo soldado que retornava vitorioso da batalha.

Shando ergueu uma mão para tocar a visão do rosto de Dominic pela última vez...

Então os Sardaukar abriram fogo.

 

Devo governar com unhas e dentes, como um falcão entre aves menores.

Duque Paulus Atreides, declaração Atreides

 

Duque Leto Atreides: Regente do planeta Caladan, membro do Landsraad, chefe de uma Grande Casa... Esses títulos não significavam nada para ele. Seu pai tinha morrido.

Leto se sentia pequeno. Derrotado e confuso, não estava preparado para a carga que tinham recaído sobre ele, de uma forma tão cruel, com apenas quinze anos. Sentado na poltrona desconfortável e muito grande, onde o afável velho duque concedia audiências, Leto se sentia deslocado, um impostor.

Não estou preparado para ser duque!

Tinha decretado sete dias de luto oficial, durante os quais pretendia entender os assuntos mais difíceis como chefe da Casa Atreides. Até receber as condolências das demais Grandes Casa era muito para ele, sobretudo a carta oficial do imperador Elrood IX, escrita sem dúvida por seu chambelán mas assinada pela mão tremula do ancião. “Um grande homem do povo tombou — dizia a nota do imperador —. Receba minhas mais sinceras condolências e preces por seu futuro.”

Por alguma razão, Leto interpretou aquelas linhas como uma ameaça. Algo sinistro no torcido da assinatura, talvez, ou na eleição das palavras. Leto tinha queimado a mensagem na chaminé de seus aposentos privados.

O mais importante para ele foi receber as demonstrações de dor do povo de Caladan: flores, cestas de pescado, bandeiras bordadas, poemas e canções escritas por aspirantes a bardos, desenhos e pinturas que mostravam o velho duque em toda sua glória, vitorioso na arena.

Em privado, quando ninguém podia ser testemunha de sua fraqueza, Leto chorava. Sabia como o povo amava o duque Paulus, e recordava a sensação de poder que o invadiu no dia que seu pai e ele ergueram a cabeça de um touro na arena. Naquele momento desejou ser duque, rodeado de amor e lealdade.

Agora desejava qualquer outro destino, menos esse.

Lady Helena se fechou em seus aposentos, ignorando todos os criados que tentavam atendê-la. Leto nunca tinha percebido muito amor ou afeto entre seus pais, e neste momento ignorava se a dor de sua mãe era sincera ou fingida. Só recebia seus sacerdotes pessoais e conselheiros espirituais. Helena se aferrava aos sutis significados que extraía dos versículos da Bíblia Católica Laranja.

Leto sabia que precisava sair daquela confusão. Tinha que tirar forças de fraqueza e entregar-se à tarefa de governar Caladan. O duque Paulus teria zombado da tristeza de Leto, e o teria repreendido por não assumir imediatamente as obrigações de sua nova vida. “Chora em privado, rapaz —haveria dito —, mas nunca exiba nenhum sinal de fraqueza por parte da Casa Atreides.” O jovem jurou esforçar-se ao máximo. Seria o primeiro dos muitos sacrifícios que seu novo cargo exigiria.

O príncipe Rhombur se aproximou de Leto, que continuava sentado no trono da sala de audiências vazia. Leto tinha a vista cravada na parede em frente, onde havia um retrato de seu pai vestido como matador. Rhombur apertou o ombro de seu amigo.

— Você comeu, Leto? Precisa conservar as energias.

Leto respirou fundo e se virou para seu camarada de IX, cujo rosto largo refletia preocupação.

— Não. Quer tomar o café da manhã comigo?

Levantou-se com movimentos rígidos da poltrona incômoda. Tinha chegado o momento de enfrentar seus deveres.

Thufir Hawat os acompanhou durante um café da manhã que se estendeu durante horas, enquanto traçavam planos e estratégias para o novo regime. Quando se fez uma pausa na conversa, o Mentat inclinou a cabeça e cravou a vista nos olhos de Leto.

— Embora não o tenha expressado com palavras, meu duque, prometo-lhe minha inteira lealdade e renovo meu compromisso com a Casa Atreides. Farei tudo que estiver ao meu alcance para ajudá-lo e aconselhá-lo. — Sua expressão endureceu —. Mas têm que compreender que suas decisões serão suas e só suas. Meus conselhos podem ser contrários à opinião do príncipe Rhombur ou de sua mãe, ou de outros conselheiros. Nesses casos, você decidirá. É o duque. É a Casa Atreides.

Leto estremeceu e sentiu a responsabilidade que recaía sobre seus ombros como um Cruzeiro da Corporação a ponto de cair.

— Tenho consciência disso, Thufir, e necessitarei de toda a ajuda possível.

Endireitou-se na cadeira e bebeu a calda de açúcar de uma terrina de pudim de arroz pundi quente, preparado por um chef que conhecia suas preferências desde que era menino. Já não parecia igual. Suas papilas gustativas pareciam adormecidas.

— Como vai a investigação sobre a morte de meu pai? Foi um acidente, tal como parece, ou foi preparada?

O Mentat franziu o sobrecenho.

— Não me atrevo a afirmar nada, meu duque, mas temo que foi um assassinato. As provas apontam para um plano tortuoso.

— Como? — exclamou Rhombur. Seu rosto se enrijeceu —. Quem atentou contra o duque? Como?

Não sentia afeto apenas por Leto, mas também pelo patriarca Atreides que concedera asilo a ele e sua irmã. Um sentimento visceral sussurrou a Rhombur que talvez tivessem castigado Paulus por sua bondade para com os exilados de IX.

— Eu sou o duque, Rhombur — disse Leto —. Acalme-se. Eu me encarregarei disso.

Leto quase ouviu as engrenagens que zumbiam dentro da complexa mente do Mentat.

— As análises químicas dos tecidos musculares do touro mostraram leves rastros de duas drogas — disse Hawat.

— Pensei que examinavam as bestas antes de cada corrida.

Leto entreabriu os olhos e por um momento não conseguiu afastar lembranças de sua infância, quando ia aos estábulos para olhar os enormes animais, e o responsável, Yresk, tinha-lhe deixado dar de comer aos touros, para horror das meninos de quadras.

— Nosso veterinário é cúmplice do complô?

— Antes da tourada foram feitas as análise costumeiras. — Thufir apertou seus lábios manchados de vermelho e enquanto controlava seus pensamentos e meditava sua resposta —. Infelizmente, não se analisou o que era pertinente. O touro foi enfurecido durante dias com um poderoso estimulante que se acumulou em seu corpo, administrado lenta e incessantemente.

— Isso não devia ser suficiente — replicou Leto —. Meu pai era um bom matador. O melhor.

O Mentat sacudiu a cabeça.

— Também administraram ao touro um agente neutralizador, um agente químico que rebateu a neurotoxina contida nas banderilhas do duque e, ao mesmo tempo, liberou o estimulante. O animal se transformou em uma máquina de matar ainda mais poderosa, justo quando o duque começava a sentir os efeitos do cansaço.

Leto foi às nuvens. Levantou-se da mesa e olhou para o onipresente detector de venenos. Passeou de um lado para outro e deixou que o pudim de arroz esfriasse. Depois deu meia volta e falou em tom crispado, recordando as técnicas de liderança que tinha aprendido.

— Mentat, me faça uma projeção primária. Quem fez isto?

Thufir entrou em modo Mentat. Um jorro de dados passou pelo computador em seu crânio, um cérebro humano que simulava as capacidades dos antigos e odiados inimigos da humanidade.

— A possibilidade mais provável: um ataque pessoal de um inimigo político da Casa Atreides. Tendo em conta o momento, suspeito que castigaram o velho duque por seu apoio à Casa Vernius.

— Exatamente o que eu suspeitava — murmurou Rhombur. O filho de Dominic Vernius parecia já um adulto, endurecido e curtido. Desde sua chegada a Caladan tinha amadurecido, fortalecido seus músculos. Seus olhos tinham adquirido um brilho desumano.

— Mas nenhuma Casa nos declarou inimizade — respondeu Leto —. O antigo rito da vingança exige requisitos e formalidades, não é assim, Thufir?

— Não podemos confiar que lodos os inimigos do velho duque tenham respeitado essas formalidades — disse Hawat —. Temos que agir com muita cautela.

Rhombur avermelhou de ira e pensou em sua família, expulsa de IX.

— Há quem manipule as formalidades para satisfazer suas necessidades.

— Possibilidade secundaria — respondeu o Mentat — O objetivo pôde ser o duque Paulus em pessoa, não a Casa Atreides, o resultado de uma pequena vingança ou ressentimento pessoal. O culpado pôde ser um peticionário local descontentes com uma decisão do duque. Mesmo este assassinato tendo conseqüências galáticas, pode ser que a causa tenha sido algo corriqueiro, embora pareça irônico.

Leto meneou a cabeça.

— Não posso acreditar nisso. O povo amava meu pai. Nenhum de seus súditos teria se rebelado contra ele.

Hawat não se alterou.

— Meu duque, não subestime o poder do amor e da lealdade, e não subestime o poder do ódio pessoal.

— Er, qual é a possibilidade mais segura? — perguntou Rhombur.

Hawat olhou para seu duque.

— Um ataque para enfraquecer a Casa Atreides. A morte do patriarca o deixa, meu senhor, em uma posição vulnerável. Ainda é jovem e inexperiente.

Leto respirou fundo mas conteve sua ira.

— Seus inimigos considerarão a Casa Atreides instável, e talvez iniciarão uma manobra contra nós. Pode ser que seus aliados o considerem um problema, e o apóiem com... limitado entusiasmo. É um momento muito perigoso.

— Os Harkonnen? — perguntou Leto.

Hawat deu de ombros.

— É possível. Ou algum de seus aliados.

Leto apertou as têmporas e respirou fundo de novo viu que Rhombur o observava inquieto.

— Continue suas investigações, Thufir — disse —. Como conhece as drogas injetadas no touro salusano, sugiro que concentre seus interrogatórios nos estábulos.

O menino de quadras Duncan Idaho se erguia frente a seu novo duque. Fez uma reverência orgulhosa, disposto a jurar lealdade de novo. Tinha sido banhado, embora continuasse usando as roupas próprias de seu ofício e tivesse o cabelo desgrenhado.

Mal era capaz de conter sua raiva. Tinha certeza que a morte do duque Paulus poderia ser evitada se alguém o tivesse ouvido. Sua dor era imensa, e sentia a dúvida de que não se esforçara o bastante. Deveria ter insistido mais, ou falado com alguém mais além do responsável pelos estábulos? Perguntou-se se devia revelar seus esforços, mas se calou.

Leto Atreides, muito pequeno para o grande trono, entreabriu seus olhos cinzas e olhou para Duncan.

— Garoto, lembra-se quando veio a esta casa. — Seu rosto parecia mais magro e muito mais velho que quando o vira pela primeira vez —. Foi logo depois que escapei de IX com Rhombur e Kailea.

Os dois refugiados também estavam sentados no salão do trono, junto com Thufir Hawat e um contingente de guardas. Duncan desviou a vista para eles e depois voltou a atenção para o jovem duque.

— Contaram-me histórias sobre sua fuga dos Harkonnen, Duncan Idaho — continuou Leto —, e sobre as torturas e encarceramento que sofreu. Meu pai confiou em você quando lhe concedeu um emprego no castelo de Caladan. Sabe que não fazia isso com freqüência?

Duncan assentiu.

— Sim, meu senhor. — Sentiu que seu rosto avermelhava, devido à culpa que sentia por ter falhado com seu benfeitor —. Sim, eu sei.

— Mas alguém drogou os touros salusanos antes da última corrida de meu pai, e você foi um dos encarregados de cuidar dos animais. Por que não o vi no passeio quando todos os outros desfilaram ao redor da arena? Lembro que o procurei com o olhar. — Sua voz tomou um tom muito mais penetrante— . Duncan Idaho, você foi enviado aqui, todo inocência e indignação, como assassino camuflado a serviço dos Harkonnen?

Duncan retrocedeu, consternado.

— De maneira nenhuma, meu senhor! — exclamou —. Tentei avisar a todo mundo. Sabia que algo acontecia com os touros. Eu disse várias vezes ao mestre Yresk, o chefe dos estábulos, mas ele não fez nada. riu de mim. Discuti com ele. Por isso não estava no passeio. Pretendia avisar o velho duque, mas o chefe dos estábulos me prendeu em um deles durante a corrida. — As lágrimas foram a seus olhos —. Todos os belos objetos que seu pai me deu se sujaram. Nem sequer o vi cair na arena.

Leto, surpreso, ergueu-se no trono. Olhou para Hawat.

— Vou averiguar, meu senhor — disse o Mentat.

Leto estudou o menino. Duncan Idaho não demonstrava temor, apenas profunda tristeza. Leto acreditou ler franqueza e devoção em seu rosto jovem. O refugiado de nove anos parecia muito satisfeito em trabalhar no castelo de Caladan, apesar de seu emprego humilde de menino de quadras.

Leto Atreides não tinha muitos anos de experiência na arte de julgar as pessoas e sopesar o coração dos homens, mas intuía que podia confiar naquele menino abnegado. Duncan era teimoso, inteligente e impetuoso, mas não um traidor.

Haja com cautela, duque Leto, disse a si mesmo. O Império utiliza muitas artimanhas, e esta poderia ser uma delas. Pensou no velho chefe de estábulos. Yresk servia a Caladan desde o matrimônio de conveniência dos pais de Leto... Era possível que semelhante plano tivesse permanecido em latente durante tantos anos? Supôs que sim. As implicações lhe produziram calafrios.

Lady Helena, sem escolta, entrou na sala de audiências furtivamente. Havia profundas olheiras sob seus olhos. sentou-se ao lado de Leto, no trono reservado para as ocasiões em que tomava assento junto a seu marido. A mulher, com as costas eretas e em silêncio, examinou o menino que se erguia a frente de ambos.

Momentos depois, o chefe dos estábulos Yresk foi introduzido no salão pelos guardas. Seu cabelo branco estava revolto, e seus olhos inchados pareciam dilatados e inseguros. Quando Thufir Hawat terminou de resumir a história que Duncan Idaho contara, o responsável pelos estábulos riu e seus ombros ossudos se afundaram com alívio exagerado.

— Depois de todos os anos que o servi, vai acreditar neste rato de estábulo, neste Harkonnen? — Virou os olhos em sinal de aborrecimento —. Por favor, meu senhor!

Exageradamente dramático, pensou Leto. Hawat também percebeu.

Yresk levou um dedo aos lábios, como se lhe acabasse de ocorrer uma possibilidade.

— Agora que mencionou, meu senhor, é muito possível que o menino tenha envenenado o touro. Não podia vigiá-lo o tempo todo.

— Isso é mentira! — gritou Duncan —. Queria avisar o duque, mas você me prendeu em um estábulo. Por que não fez nada? Eu avisei várias vezes, e agora o duque está morto.

Hawat escutava com olhos distantes, os lábios manchados de vermelho depois de ter tomado um gole de suco de safo. Leto percebeu que tinha entrado em modo Mentat para analisar todos os dados que recordava sobre os acontecimentos relacionados com o jovem Duncan e com Yresk.

— Então? — perguntou Leto ao chefe dos estábulos. Obrigou-se a não pensar nos bons momentos passados com aquele homem gorducho, que sempre cheirava a suor e esterco.

— Pode ser que esse rato de estábulo tenha choramingado um pouco, meu senhor, mas porque tinha medo dos touros. Não posso suspender uma tourada porque um chorão se assusta com os animais. — Bufou depreciativamente —. Cuidei deste cachorrinho, dei-lhe todas as oportunidades...

— Mas o ignorou quando avisou sobre os touros, e agora meu pai está morto — disse Leto. Observou que, de repente Yresk parecia assustado —. Por que fez isso?

— Projeção possível — anunciou Hawat —. Por meio de lady Helena, Yresk trabalhou para a Casa Richese toda sua vida. Richese manteve laços com os Harkonnen no passado, assim como uma relação de inimizade com IX. Possivelmente não tenha consciência de sua participação em um plano global, ele...

— Como? Isto é absurdo! — insistiu Yresk. Coçou seu cabelo branco —. Não tenho nada com os Harkonnen.

Desviou a vista para lady Helena, mas ela se negou a olhar para ele.

— Não interrompa meu Mentat — advertiu Leto.

Thufir Hawat olhou para lady Helena, que o contemplava com expressão gélida. O Mentat cravou a vista em seu filho.

— Resumo: o matrimônio de Paulus Atreides com Helena, da Casa Richese, foi perigoso, mesmo em seu momento. O Landsraad o considerou uma forma de enfraquecer os laços entre os Richese e os Harkonnen, no entanto o conde Libam Richese aceitou o matrimônio como uma última tentativa de salvar parte da fortuna familiar, em um tempo em que estava perdendo Arrakis. Quanto à Casa Atreides, o duque Paulus recebeu um posto de diretor da CHOAM e se transformou em membro do Conselho com direito a voto, algo que esta família não teria obtido de outra forma. Quando o cortejo nupcial chegou aqui com lady Helena, possivelmente nem todos os membros juraram inteira lealdade a Casa Atreides. Pôde estabelecer-se algum tipo de contato entre agentes Harkonnen e o chefe de estábulos Yresk, sem o conhecimento de lady Helena, é obvio.

— Isso são conjeturas infundadas, mesmo para um Mentat — replicou Yresk.

Leto observou que procurava apoio em algum dos pressente, com exceção de Helena, cujos olhos parecia evitá-lo agora.

Leto olhou para sua mãe, sentada em silêncio a seu lado e se fixou na tensão em sua mandíbula. Um calafrio percorreu sua espinha dorsal. Através da porta fechada de seu dormitório, Leto tinha ouvido suas palavras relativas à política do seu pai. “Foi você que tomou a decisão, Paulus. A decisão errada.” As palavras ressoaram na mente de Leto. “Isso custará caro, para você a para sua Casa também.”

— Er, ninguém vigia um chefe de estábulos, Leto — disse Rhombur em voz baixa.

Mas Leto continuou observando sua mãe. Yresk tinha chegado a Caladan com o cortejo nupcial de sua mãe. Teria recorrido a ele? Que tipo de vínculo mantinha com aquele homem?

Sua garganta secou quando todas as peças se encaixaram em sua mente e alcançou uma certeza que devia ser similar a do Mentat. Ela era a responsável! Lady Helena Atreides tinha colocado o mecanismo em movimento. Talvez contara com alguma ajuda externa, possivelmente dos Harkonnen, e Yresk fora encarregado de por o plano em prática.

Mas era ela quem tinha tomado a decisão de castigar Paulus. Sabia no fundo de sua alma. Com um filho de quinze anos, agora controlaria Caladan e tomaria as decisões que julgasse mais pertinentes.

“Leto, meu filho, você agora é o duque Atreides.” Essas tinham sido as suas palavras, poucos minutos depois que seu marido morrera. Uma curiosa reação para uma mulher afligida pela dor.

— Rogo que não acredite nisso — disse Yresk retorcendo as mãos —. Eu nunca trairia a Casa que sirvo, meu senhor. — Apontou para Duncan —. E este rato de estábulo é um Harkonnen. Chegou de Giedi Prime não faz muito tempo.

Lady Helena estava sentada muito rígida, e quando por fim falou, olhou desafiante para seu filho:

— Você conhece Yresk desde que era um menino, Leto. Por acaso acusa um membro do meu séquito? Não seja ridículo.

— Ainda não acusei ninguém, mãe — disse ele com cautela —. Só estamos discutindo este ponto.

Como chefe da Casa Atreides, devia se esforçar por se distanciar de sua infância, de quando era um menino ansioso que perguntava ao chefe de estábulos se podia ver os touros. Yresk tinha lhe ensinado a domesticar animais, montar em cavalos velhos, fazer nós e prender um arnês. Mas aquele menino de olhos admirados era agora o novo duque da Casa Atreides.

— Temos que estudar as provas antes de extrair conclusões.

O rosto de Yresk refletiu sentimentos desencontrados, e de repente, Leto teve medo do que podia dizer. Encurralado e temeroso por sua vida, implicaria Helena? Os guardas escutavam com atenção. Kailea observava e assimilava cada detalhe. Não havia dúvida de que outras pessoas escutariam e repetiriam o que fosse dito na sala. O escândalo sacudiria Caladan, e talvez o próprio Landsraad.

Mesmo se sua mãe tivesse tramado o acidente na tourada, mesmo se Yresk tivesse seguido ordens, subornado ou chantageado, Leto não queria que o homem confessasse em público. Necessitava da verdade, mas em particular. Se corresse a notícia de que lady Helena era a instigadora da morte do velho duque, a Casa Atreides se rasgaria. Sua própria autoridade seria prejudicada, e não haveria outra opção senão deixar cair todo o peso da justiça sobre sua própria mãe.

Estremeceu ao pensar na obra sobre Agamenon e na maldição de Atreo, que tinha açoitado sua família desde os primórdios da história. Respirou fundo, consciente de que devia ser forte.

“Faça o que for necessário, rapaz — havia dito seu pai —. Sempre que tomar decisões justas, ninguém o questionará.” Mas qual era a decisão justa agora?

Helena se levantou e falou com Leto em um frio tom maternal.

— A morte do meu marido não foi uma traição, mas um castigo de Deus. — Apontou para Rhombur e Kailea, que pareciam estupefatos —. Meu amado duque foi castigado por sua amizade com a Casa Vernius, por permitir que estes meninos vivessem no castelo. Sua família violou os mandamentos, e mesmo assim Paulus os recebeu com os braços abertos. Meu marido foi vítima de seu orgulho, não de um insignificante chefe de estábulos. É simples assim.

— Já ouvi o suficiente, mãe — disse Leto.

Helena lhe dirigiu um olhar de indignação, como se ainda fosse um menino.

— Não terminei que falar. Ser duque significa mais do que imagina...

Leto procurou conservar a calma em sua voz e em sua compostura.

— Eu sou o duque, mãe, e você guardará silêncio, do contrário ordenarei aos guardas que a retirem da sala e a encerrem sob chave em uma de suas torres.

Helena empalideceu e seus olhos se moveram de um lado a outro enquanto tentava dissimular sua surpresa. Não conseguia acreditar que seu filho tivesse falado daquela maneira, mas preferiu não insistir. Como de costume, esforçou-se por manter as aparências. Tinha visto uma expressão similar no velho duque, e não ousou desencadear a tormenta.

— Leto, rapaz — disse Yresk, embora fosse mais sábio guardar silêncio —, você não pode acreditar neste rato de estábulo...

Leto olhou para o homem, tão parecido com um espantalho, e comparou seu comportamento com o de Duncan. O rosto de Yresk estava coberto de suor.

— Concedo-lhe mais crédito — disse Leto —. E não volte a me chamar de rapaz.

Hawat se adiantou.

— Poderíamos obter mais informação através de um interrogatório. Eu interrogarei pessoalmente o chefe de estábulos.

— Será melhor em privado, Thufir — disse Leto —. Com você a sós.

Fechou os olhos por um breve momento e engoliu em seco. Sabia que mais tarde teria que enviar uma mensagem a Hawat para que o chefe de estábulos não sobrevivesse ao interrogatório, por temor do que pudesse revelar. O quase imperceptível assentimento do Mentat informou a Leto que tinha compreendido a insinuação. Toda informação que Hawat extraísse do chefe de estábulos devia ser um segredo entre o duque e ele.

Yresk uivou quando os guardas agarraram seus braços, mas Hawat lhe tampou a boca com a mão.

Então, como se tivesse sido calculado para ocorrer no momento de maior confusão, os guardas abriram as portas principais do salão para dar passagem a um homem uniformizado. Entrou com passo decidido, o olhar cravado em Leto. Sua placa de identificação eletrônica revelava que era um Mensageiro oficial, recém desembarcado de um transporte no espaçoporto de Baía City. Leto ficou tenso, consciente de que aquele homem não podia trazer boas notícias.

— Meu senhor, sou portador de terríveis novas.

As palavras do Mensageiro produziram um arrepiou em todos os presentes. Os guardas continuavam segurando Yresk, e Hawat indicou com um gesto que o tirassem antes dali.

O mensageiro avançou para o trono e ficou imóvel, e depois respirou fundo para preparar-se. Como conhecia a situação de Caladan, com o novo duque e os ixianos exilados, escolheu suas palavras com cautela.

— É meu triste dever informar que lady Shando, marcada como renegada e traidora pelo imperador Elrood IX, foi localizada e, obedecendo ao decreto imperial, executada por tropas Sardaukar em Bela Tegeuse. Todos os membros de seu séquito também foram justiçados.

Rhombur se deixou cair sobre o degrau de mármore contiguo ao trono real. Kailea, que tinha contemplado a cena em silêncio, rompeu a chorar. apoiou-se contra uma parede e golpeou uma coluna de pedra com seu punho frágil até sangrar.

Helena olhou para seu filho com tristeza e assentiu.

— Está vendo, Leto? Outro castigo. Eu tinha razão. Os ixianos e seus cúmplices estão condenados.

Leto lhe dirigiu um olhar de ódio e se virou para os guardas.

— Acompanhem minha mãe a seus aposentos, e ordenem a seus criados que preparem malas para uma longa viajem. — Controlou o tremor na sua voz —. Acredito que a tensão dos últimos dias exige que seja levada para um lugar tranqüilo, muito longe daqui.

 

Em circunstâncias adversas tudo ser se teansforma em outra coisa, que evolui ou degenera. O que nos faz humanos é saber o que fomos em outro tempo, e recordar, esperemos, a forma de realizar a mudança.

Embaixador C’ammar Tilru, Mensagens em defesa de IX

 

O sistema de alarme silencioso de seu esconderijo despertou uma vez mais. C'tair, coberto de suor por causa dos seus pesadelos recorrentes, levantou-se, preparado para lutar contra os inimigos que o assediavam.

Mas os Bene Tleilax ainda não tinham descoberto seu refúgio secreto, embora estivessem perto graças a seus malditos sensores. Seu cubículo a prova de transmissões estava equipado com um monitor interno automático que funcionaria sem problemas durante séculos, mas os fanáticos utilizavam aparelhos localizadores de tecnologia para detectar o funcionamento de máquinas proibidas. cedo ou tarde o apanhariam.

Agiu com silenciosa eficácia e desconectou tudo: luzes, ventilação e calefação. Depois se sentou na escuridão sufocante, à espera. Não ouviu nada, exceto sua própria respiração. Ninguém forçou a porta camuflada.

Depois de um longo momento se movimentou.

Os sensores aleatórios danificariam seriamente a capacidade de seu escudo para ocultar a ele e seus componentes tecnológicos. C'tair sabia que devia roubar um desses artefatos. Se pudesse analisar o modo de funcionamento da tecnologia Tleilaxu, montaria um sistema que rebatesse seus efeitos.

Quase todas as manhãs, os corredores e salas públicas do antigo Grand Palais (agora um edifício de escritórios governamentais Tleilaxu) estavam vazios. C'tair saiu de um poço de ventilação oculto em um armazém próximo ao corredor principal. Dali havia pouca distância até um elevador que saía do edifício, atravessava outros edifícios estalactite e descia aos níveis inferiores. Nada o impedia de manter as aparências e seguir com a vida, mas suas probabilidades aumentariam se pudesse neutralizar os sensores de alta tecnologia.

O investigador podia continuar nesta instalação, ou talvez tivesse mudado para um nível diferente. C'tair saiu e esquadrinhou o corredor. Já tinha descoberto todos os segredos dessa parte do edifício.

Embora carregasse uma pistola atordoante e um fuzil laser, temia que as redes sensoras dos Tleilaxu as detectassem. Então, patrulhas especiais sairiam em sua busca. Por isso empunhava uma faca afiada. Seria eficaz e silencioso. A melhor opção.

Por fim, avistou um Tleilaxu calvo e de rosto magro que se aproximava pelo corredor. Segurava com ambas as mãos uma pequena tela e estava tão absorto em suas leituras que não reparou em C'tair, até este se precipitar sobre ele com a faca.

C'tair quis expressar seu ódio aos gritos, mas se limitou a rugir. A boca do Tleilaxu desenhou um pequen “O”, que deixou a mostra dentes diminutos como pérolas. Antes que pudesse gritar, C'tair lhe cortou a garganta.

O homem caiu sobre uma poça de sangue, mas C'tair se apoderou do exploratório antes que tocasse o chão. Contemplou-o com cobiça, indiferente às convulsões do homem que sangrava sobre as lajes reluzentes do que tinha sido o Grand Palais da Casa Vernius.

C'tair não sentiu o menor remorso. Já tinha cometido numerosos delitos, pelos quais seria executado se os fanáticos o capturassem. Que importava mais um enquanto sua consciência estivesse tranqüila? Quantas pessoas os Tleilaxu tinham aniquilado? Quanta história e cultura ixianas sua conquista tinha destruído? Quanta sangue tinham derramado?

C'tair arrastou o cadáver até o poço de acesso que conduzia ao seu esconderijo e depois limpou o sangue derramado. Esgotado, deteve-se um momento quando um fragmento de sua vida anterior passou por sua mente. Olhou para suas mãos ensangüentadas e se perguntou o que pensaria a doce e delicada Kailea se o visse agora. Cada vez que iam visitá-la, C'tair e seu irmão se vestiam impecavelmente.

Dedicou um breve instante a lamentar aquilo que os Tleilaxu o obrigaram a se transformar, e depois se perguntou se Kailea também tinha mudado, que provas atrozes teria padecido. Reparou que ignorava se ainda estava viva.

Mas não sobreviveria muito mais se não apagasse os rastros do crime e desaparecesse em seu esconderijo.

O investigador Tleilaxu pesava muito para seu tamanho, o que sugeria uma estrutura óssea compacta. Jogou o cadáver de pele cinzenta em um coletor de entropia nula. O sol se elevaria no céu muito antes que o corpo começasse a se decompor.

Depois de se lavar e trocar de roupa, C'tair começou a trabalhar na tarefa mais imediata. Transportou o equipamento roubado para seu banco de trabalho. Os comandos do aparelho eram rudimentares: um botão negro e uma tela que identificava máquinas e sinais tecnológicos. Havia marcas em linguagem codificada Tleilaxu, que decifrou sem problemas pronunciando as palavras em frente a um decodificador que tinha levado para seu esconderijo no início da rebelião.

Compreender as complexidades do aparelho Tleilaxu tomou bastante tempo. C'tair teve que trabalhar com muito cuidado, devido à provável existência de um sistema anti manipulação capaz de fundir as peças internas. Não se atreveu a abri-lo com uma ferramenta. Teria que utilizar métodos mais sutis.

Desejou uma vez mais que o espírito do velho Rogo reaparecesse e o aconselhasse. C'tair se sentia muito sozinho naquela habitação secreta, e em várias ocasiões teve que reprimir a tentação de deixar-se levar pela auto compaixão, Extraiu forças da certeza de que estava fazendo algo muito importante. O futuro de lX podia depender das batalhas furtivas que conseguisse ganhar. E para proteger seu refúgio, C'tair precisava desentranhar o mistério do maldito exploratório Tleilaxu...

Por fim, depois de dias de frustração, utilizou uma sonda com a esperança de criar um esquema do interior do exploratório. Para sua surpresa, ouviu um clique. Deixou o aparelho sobre a mesa de trabalho e o examinou com cautela. Uma juntura se abriu de um lado. Fez pressão em ambos os lados e o exploratório se abriu sem explodir ou fundir-se. Não só descobriu as entranhas do aparelho, mas também um holoprojetor ativado através de uma cavilha que reproduzia no ar uma imagem do Guia do Usuário, um homem holográfico que explicava satisfeito tudo que precisava saber sobre o exploratório.

O Guia do Usuário não se preocupava que alguém roubasse a tecnologia do aparelho, pois dependia de um estranho e caro espelho richesiano que nenhum estrangeiro tinha conseguido duplicar. Construídos a base de minerais e polímeros desconhecidos, acreditava-se que tais cristais continham prismas geodómicos entrelaçados com outros prismas.

Enquanto C'tair examinava o exploratório, admirou sua construção e pela primeira vez suspeitou que Richese estava comprometido no complô contra IX. O ódio era profundo, e os richesianos colaborariam de bom grado na destruição de seus principais rivais...

C'tair devia utilizar seu conhecimento intuitivo, as peças dos componentes e o cristal richesiano para construir um artefato que neutralizasse o exploratório. Depois de repetidas perguntas o fastidiosamente solícito Guia, começou a pensar em uma solução...

A reunião noturna com os contrabandistas do mercado negro tinha destruído seus nervos, com muitos olhares por cima do ombro, mas o que outra coisa podia fazer? Só aqueles comerciantes ilegais podiam procurar os escassos componentes que precisava para seu neutralizador de exploratórios.

Por fim, depois de acabar suas compras, retornou ao silencioso edifício nas alturas, e usou um cartão de confundir identificações biométricas para enganar o posto de entrada e se fazer passar por um técnico Tleilaxu. Enquanto subia no elevador até o antigo Grand Palais, em direção a seu esconderijo, C'tair pensou nos numerosos desenhos que tinha deixado sobre seu banco de trabalho. Estava ansioso por retomar seu trabalho.

Quando saiu para o corredor, viu que errara o andar. Em vez de portas sem janelas e salas de armazenamento, aquele piso possuía numerosos escritórios de plaz transparente. Luzes noturnas alaranjadas brilhavam. Em portas e janelas escritos em idioma Tleilaxu havia letreiros detestáveis.

Deteve-se e examinou o local. Não tinha entrado muito nas capas de rocha. Em outro tempo, pensou, aquelas habitações tinham sido salas de conferências, escritórios de embaixadas, salas de reuniões para os membros da corte do conde Vernius. Agora seu aspecto era meramente funcional.

Antes que pudesse voltar, C'tair ouviu algo a sua esquerda, um ruído de passos, e deslizou para o elevador para voltar para seu andar. Muito tarde. Tinha sido visto.

— Você, desconhecido! — gritou um homem em galach com acento ixiano —. Aproxime-se para que eu possa vê-li.

Devia ser um dos colaboracionistas, um renegado ixiano que tinha vendido sua alma ao inimigo, as custas de seu próprio povo.

C'tair manuseou seu cartão de confundir identidades, e tremeu ao ouvir as pesadas botas que se aproximavam. Passou o cartão pelo leitor do elevador. Ouviram-se mais vozes. Temia que disparassem a qualquer momento.

Depois de um instante interminável o elevador se abriu, mas ao entrar C'tair deixou cair a bolsa com as peças recém compradas. Não tinha tempo para recuperá-las.

Blasfemou e marcou o andar correto, com um sussurro severo e autoritário. A porta se fechou bem a tempo, e as vozes desapareceram. Receava que os guardas avariassem o elevador ou chamassem os Sardaukar, de modo que precisava fugir rapidamente. O trajeto até seu andar pareceu ser eterno.

A porta se abriu, e C'tair olhou cauteloso para a direita e esquerda. Nada. Voltou a entrar no elevador e o programou para que parasse nos próximos quatro pisos, e depois o enviou vazio para as alturas.

Segundos mais tarde parou, suado, em frente a porta do seu refúgio, agradecido por ter se salvado, mas irritado consigo mesmo por seu descuido. Tinha perdido os preciosos componentes, e também tinha dado aos Tleilaxu uma pista dos seus propósitos.

Agora iriam procurá-lo.

 

Durante um tempo, todos vivemos à sombra de nossos predecessores. Não obstante, nós que decidimos o destino dos planetas chegamos a um momento em que não nos transformamos em sombras, mas em luz.

Príncipe Raphael Corrino.

Discursos sobre a liderança

 

Como membro oficial do Conselho Federado das Grandes e Menores Casa, o duque Leto Atreides embarcou em um Cruzeiro e viajou para Kaitain para participar da nova assembléia do Landsraad. Vestido pela primeira vez com seu manto oficial extra-planetário, recuperara-se o suficiente da morte de seu pai para fazer sua primeira aparição em público.

Depois que Leto tomou a decisão de ir, Thufir Hawat e outros peritos em protocolo se fecharam com ele nas salas de conferências do castelo para lhe dar um treinamento rápido de diplomacia. Os conselheiros o rodeavam como professores severos e insistiam que para ser um bom governante devia compreender e analisar todos os fatores sociais, econômicos e políticos em jogo. A luz áspera dos globos banhava a habitação de pedra, no entanto a brisa marinha entrava pela janela, acompanhada pelo retumbar das ondas e os gritos das gaivotas. Leto prestava atenção às aulas.

O novo duque tinha insistido que Rhombur se sentasse a seu lado durante as sessões.

— Um dia precisará saber sobre estas coisas, quando sua Casa for restaurada — disse. Alguns conselheiros tinham aceitado com cuidadoso ceticismo, mas não o contrariaram.

Quando partiu do espaçoporto de Baía City, acompanhado só por Thufir Hawat como escolta e confidente, os conselheiros o advertiram a controlar seu caráter impulsivo.

Leto tinha apertado a capa ao redor dos ombros.

— Compreendo — disse —, mas meu sentido da honra me obriga a cumprir meu dever, — a antiga tradição garantia a Leto o direito de aparecer ante o fórum do Landsraad e apresentar uma solicitação. Uma solicitação de justiça. Como novo duque, ia com intenções ocultas, e suficiente ira e ingenuidade juvenil para acreditar no triunfo face às advertências dos seus conselheiros. Entretanto, recordou com tristeza as poucas vezes que seu pai tinha apresentado petições ao Landsraad. Paulus sempre tinha voltado para casa vermelho de ira, expressando desprezo para a irritante burocracia.

Mas Leto começava de zero e com esperanças impolutas.

Sob os eternos céus ensolarados de Kaitain, o enorme Salão de Oratória do Landsraad se erguia, desmesurado e imponente, como o pico mais alto na cordilheira de edifícios legislativos e escritórios governamentais que rodeavam um terreno elipsoidal. O Salão tinha sido construído graças a contribuições de todas as Casas, e cada família nobre tentou superar a outras em magnificência. Os representantes da CHOAM tinham colaborado na arrecadação de fundos ao longo do Império, e só graças a uma ordem especial de um imperador anterior, Hassik Corrino III, executaram-se os planos exorbitantes de construção do Landsraad, para que não fizesse sombra ao palácio imperial.

Depois do holocausto nuclear de Salusa Secundus e a mudança da sede imperial, todos tinham esperado estabelecer uma otimista nova ordem. Hassik III desejara demonstrar que, face à quase total destruição da Casa Corrino, o Império e seus assuntos continuariam funcionando em um nível mais dinâmico que nunca.

Bandeiras das Grandes Casa ondeavam como um arco íris de escamas de dragão ao longo das muralhas exteriores do Salão do Landsraad. Leto tentou localizar a insígnia verde e negra da Casa Atreides, e por conseguiu. Em troca, as cores púrpura e cobre da Casa Vernius tinham sido retirados e queimados em público.

Thufir Hawat não deixava o jovem duque sozinho em nenhum momento. Leto sentia falta da presença de seu amigo Rhombur, mas ainda não era prudente que o jovem exilado abandonasse o refúgio de Caladan. Dominic Vernius ainda não tinha dado sinais de vida, nem mesmo depois de receber a notícia da morte de Shando. Leto sabia que estaria chorando a perda, e preparando a vingança...

Em qualquer caso, Leto deveria se expor sem ajuda. Seu pai não teria esperado menos dele. Sob o brilhante sol de Kaitain, ergueu os ombros, pensou na história familiar e em todo o acontecido dos obscuros dias de Atreo. Avançou pelas ruas pavimentadas e não se permitiu sentir-se inferior ante a grandeza do Landsraad.

Quando entraram no Salão de Oratória em companhia dos representantes de outras famílias, Leto viu as cores da Casa Harkonnen, com o símbolo do grifo branco. Com apenas um olhar para as bandeiras, recordou os nomes das outras famílias: as Casas Richese, Teranos, Mutelli, Ecaz, Dyvetz e Canidar. No centro de todas as bandeiras pendia a insígnia, muito maior, da Casa Corrino, em escarlate e ouro com o símbolo central do leão.

A fanfarra que anunciou sua entrada e a de outros representantes foi ensurdecedora. Enquanto os homens e algumas poucas mulheres entravam, um pregoeiro anunciava o nome e posição de cada pessoa. Leto só viu alguns nobres de verdade. A maioria dos presentes eram embaixadores, líderes políticos ou aduladores pagos.

Embora possuísse um título real, Leto não se sentia poderoso ou importante. Afinal, o que era um duque de uma Casa de categoria média, comparado com o primeiro-ministro de uma família rica? Embora controlasse a economia e a população de Caladan, assim como as outras posses dos Atreides, muitas Grandes Casas possuíam mais riquezas e planetas. Por um momento se imaginou como um peixinho nadando entre tubarões, mas afastou esses pensamentos temendo que diminuíssem sua confiança. O velho duque nunca se permitiria o luxo de sentir-se pequeno.

Já no enorme Salão, perguntou-se onde encontraria os assentos ocupados em outro tempo pela Casa Vernius. Só lhe proporcionava uma pequena satisfação saber que, apesar de seu controle sobre IX, jamais se permitiria aos Bene Tleilax tal honra. O Landsraad nunca permitiria que os desprezados representantes dos Tleilaxu entrassem naquele clube tão exclusivo. Geralmente, Leto não teria aceito esses consolos, mas neste caso fez uma exceção.

Quando o Conselho se iniciou, entre intermináveis formalidades, acomodou-se em um assento negro e marrom situado a um lado, similar ao dos dignitários das outras Casas. Hawat o acompanhou, e Leto contemplou o ritual, ansioso por aprender e preparado para intervir, mas devia esperar que o chamassem.

Os chefes das famílias reais não podiam perder tempo com tais assembléias, e enquanto se falava e discutia sobre temas corriqueiros, Leto não demorou para compreender por quê. Pouco ficava claro dos discursos intermináveis sobre detalhes protocolares ou a lei imperial.

Entretanto, Leto pensava em dar tratamento oficial àquela assembléia. Quando o painel luminoso indicou que tinha chegado sua vez de falar, o jovem cruzou a enorme extensão e subiu a um palanque central. Tentou não aparentar sua idade adolescente, recordou a imponente presença de seu pai e os vivas que o saudavam na arena, quando levantava uma cabeça de touro.

Leto contemplou as caras aborrecidas e respirou fundo. Os amplificadores transmitiriam suas palavras aos ouvintes dispostos a escutar. Além disso, seriam gravadas como documentário. Seria um discurso crucial para ele. Quase nenhuma daquelas pessoas tinha a menor ideia a respeito de sua personalidade, e poucos conheciam seu nome. Leto compreendeu que formariam uma impressão dele a partir de suas palavras, e sentiu sobre seus ombros um peso ainda maior.

Esperou até estar seguro de ter captado a atenção de todos os presentes, embora duvidasse que, depois de tantas horas de reunião, alguém tivesse energia para concentrar-se em algo novo.

— Muitos dos senhores foram amigos e aliados de meu pai Paulus Atreides — começou —, que acaba de ser traiçoeiramente assassinado. — Desviou a vista de maneira visível para os assentos reservados à Casa Harkonnen. Não sabia os nomes nem o título dos dois homens que representavam à Casa inimiga.

Sua insinuação ficou muito clara, embora não lançasse acusações concretas nem apresentasse provas. O chefe de quadras Yresk, que não tinha sobrevivido ao interrogatório, tal como Leto tinha solicitado, confirmara a cumplicidade de Helena, mas não pôde dar mais detalhes sobre os conspiradores. As palavras do novo duque Atreides ganharam a atenção dos aborrecidos membros da câmara.

Os Harkonnen sussurraram entre si e lançaram olhares nervosos e irritados para o estrado. Leto se virou para o núcleo central de representantes.

Bem diante dele, no assento da Casa Mucelli, reconheceu o velho conde Flambert, um ancião cuja memória se eclipsara muitos anos atrás. Estava acompanhado de um ex-candidato a Mentat de cabelo loiro, que fazia as vezes de gravador portátil do conde. A única missão do frustrado aspirante a Mentat era recordar coisas para o ancião Flambert. Embora jamais tivesse finalizado seu treinamento como computador humano, o fracassado Mentat servia adequadamente às necessidades do conde senil.

A voz de Leto chegou a toda a assembléia, tão clara e concisa como o tangido dos sinos em uma fria manhã de Caladan.

— Na porta do imperador há um letreiro que diz: “A lei é a ciência definitiva.” Por isso vim até aqui em nome de uma antiga Grande Casa, que já não pode expressar-se por si mesma. A Casa Vernius era uma fiel aliada de mim família.

Vários assistentes sopraram. Outros se remexeram, inquietos. Já tinham escutado muitas coisas sobre Vernius.

O jovem Atreides continuou, impertérrito.

— O conde Dominic Vernius e sua família foram obrigados a declarar-se renegados depois da conquista ilegal de IX pelos Bene Tleilax, uma raça que todos os aqui presentes consideram depravada e repugnante, não merecedora de estar representada nesta augusta assembléia. Quando a Casa Vernius pediu ajuda e apoio contra a rebelião, todos se esconderam nas sombras. — Leto teve a cautela de não acusar explicitamente ao imperador Elrood, embora soubesse quem tinha incentivado as hostilidades.

Um murmúrio se ergueu no Salão do Landsraad, acompanhado por expressões de confusão e indignação. Leto compreendeu que agora o viam como um jovem arrivista, um rebelde descarado que desconhecia a verdadeira ordem das coisas no seio do Império. Tinha tido a infeliz ideia de colocar sob a luz, assuntos muito desagradáveis.

— Todos consideravam Dominic Vernius um homem honrado, digno de confiança. Todos comercializavam com IX. Quantos dos senhores chamamos o conde Dominic de amigo?

Passeou um rápido olhar ao redor, mas voltou a falar antes que alguém reunisse coragem para levantar a mão.

— Embora eu não seja membro da família Vernius, os invasores Tleilaxu ameaçaram minha vida. Escapei graças a meu pai. O conde Vernius e sua esposa também fugiram, abandonando todas as suas posses, e muito recentemente lady Shando Vernius foi assassinada, depois de ser acossada como um animal. — Sentiu dor e ira, mas respirou fundo e prosseguiu —: Saibam, todos os que me ouvem, que guardo sérias reservas pelos Bene Tleilax e seus recentes atos ultrajantes. Eles tem que ser levados à justiça. A Casa Atreides não é aliada do governo ilegal de IX. Como se atrevem a rebatizar o planeta como Xuttuh? O Império é civilizado ou estamos mergulhados na barbárie? — Aguardou. O pulso ressoava em sua cabeça —. Se o Landsraad ignorar esta tragédia incrível, é porque não percebe que pode acontecer o mesmo a qualquer um de nós.

Um representante da Casa Harkonnen falou com brutal franqueza.

— A Casa Vernius se declarou renegada. Em cumprimento da antiga lei, os Sardaukar do imperador e os caçadores de recompensas tinham direito a perseguir e eliminar a esposa do renegado. Vá com cuidado, filhotinho de duque. Só lhes concedemos direito a dar asilo aos seus filhos movidos pela bondade de nossos corações. Nada exigia isso.

Leto acreditava que os Harkonnen estavam enganados, mas não queria discutir um ponto legal, sobretudo sem o assessoramento do Thufir.

— De maneira que qualquer Casa pode ser perseguida e seus membros assassinados pelos Sardaukar? Se um poder aniquila uma Grande Casa do Landsraad, os senhores se limitarão a tapar os olhos e esperar não ser os próximos?

— O imperador não age por capricho! — gritou alguém, e obteve eco em algumas vozes isoladas.

Leto compreendeu que aquela demonstração de patriotismo e lealdade era uma provável conseqüência da saúde declinante de Elrood. Fazia meses que o ancião não governava, deitado em seu leito e quase agonizante. Cruzou os braços.

— Pode ser que eu seja jovem, mas não sou cego. Reflitam sobre isto, membros do Landsraad, com suas alianças flutuantes e falsas lealdades. Que garantia podem oferecer mutuamente, se suas promessas são levadas pelo vento? — Então, repetiu as palavras com que seu pai o recebera quando desceu da nave de resgate —: A Casa Atreides valoriza a lealdade e a honra acima da política.

Levantou uma mão, e sua voz adquiriu autoridade e energia.

— Quero que se lembrem da Casa Vernius. Pode acontecer o mesmo a qualquer um dos senhores, e assim será se não forem cautelosos. Em quem podem depositar sua lealdade, se cada Casa se voltar contra a outra a menor oportunidade?

Viu que suas palavras impressionavam alguns representantes, mas no fundo de seu coração sabia que, se solicitasse uma votação para retirar o preço de sangue sobre a Casa Vernius, poucos o apoiariam. Leto respirou fundo. Deu meia volta, mas acrescentou por cima do ombro:

— Talvez todos devessem pensar em sua situação particular. Perguntem-se: em quem posso confiar realmente?

Encaminhou-se para o arco de entrada da câmara do Conselho do Landsraad. Não houve aplausos... mas tampouco vaias. Só um silêncio tenso, e suspeitou que havia tocado um ponto sensível de alguns membros. Ou possivelmente seria apenas puro otimismo? O duque Leto Atreides tinha muito que aprender sobre assuntos de estado, como sem dúvida lhe diria Hawat durante a viagem de volta, mas jurou que jamais seria como os lacaios impostores daquela câmara. Até o fim de seus dias seria sincero e leal. Com o tempo, outros perceberiam, inclusive possivelmente seus inimigos.

Thufir Hawat se reuniu com ele nos portais, e ambos saíram do enorme Salão de Oratória enquanto o Landsraad continuava a assembléia sem eles.

 

A História demonstra que o avanço da tecnologia não é uma curva ascendente contínua. Há períodos estáveis, aumentos repentinos e retrocessos.

Tecnologia do Império, 502.” edição

 

Enquanto duas figuras sombrias observavam, o doutor Yungar passou um exploratório Suk sobre o ancião, que jazia com o rosto macilento em sua cama coberto com volumosas mantas, lençóis bordados e tecidos transparentes. O diagnosticador zumbia.

Ele nunca mais precisará de suas concubinas, pensou Shaddam.

— O imperador morreu — anunciou Yungar, enquanto jogava seu longo cabelo grisalho sobre o ombro.

— Ao menos agora descansa em paz — disse Shaddam em voz baixa e rouca, embora um calafrio supersticioso percorresse sua espinha dorsal. Elrood teria descoberto, no final, quem era o responsável pela sua morte? Pouco antes de expirar, os olhos reptilianos do velho se cravaram em seu filho. O príncipe herdeiro, com um nó no estômago, recordou aquele terrível dia em que o imperador tinha descoberto a cumplicidade de Shaddam no assassinato de Fafnir, seu filho mais velho... e a risada afogada do velho quando tinha descoberto que seu filho menor tinha misturado anticoncepcionais na comida de sua própria mãe, Fala, para que não concebesse outro filho que rivalizasse com ele.

Elrood teria suspeitado? Tinha amaldiçoado seu filho antes de expirar?

Bem, agora era muito tarde para que mudar de opinião. O velho regente tinha morrido, afinal, e Shaddam fora o responsável. Não, ele não. Fenring. Caso necessário, seria o bode expiatório. Um príncipe herdeiro jamais admitiria qualquer culpa.

Logo deixaria de ser príncipe herdeiro. Seria imperador, por fim. Imperador Padishah do Universo Conhecido. Era necessário, não obstante, que dissimulasse seu entusiasmo. Teria que esperar até depois da coroação oficial.

— Era de esperar, é obvio — disse Hasimir Fenring a seu lado, com sua enorme cabeça encurvada e o queixo apoiado no peito —. Há tempo que o pobre homem estava degenerando, hummmm.

O médico Suk fechou o instrumento e o guardou no bolso do manto. Tinham ordenado que todos saíssem dos aposentos: as concubinas, os guardas, até mesmo o chambelán Hesban.

— Entretanto, há algo estranho neste caso — disse Yungar —. Há dias que me sinto inquieto... Não é somente porque um ancião tenha falecido por causas naturais. Temos que ser muito cautelosos com nossa análise, já que se trata do imperador...

— Tratava-se do imperador — corrigiu Shaddam.

— Foi isso que quis dizer.

O médico Suk passou uma mão pela tatuagem em forma de diamante em sua testa. Shaddam se perguntou se estava aborrecido porque não ia mais receber os suculentos honorários por seus cuidados.

— Meu bom doutor, o imperador Elrood era velho e sofria grandes tensões. — Fenring se inclinou e tocou a testa fria do velho, que recordava a Shaddam uma rocha coberta de pergaminho, como se o estivesse benzendo —. Nós testemunhamos as visíveis mudanças em sua saúde e capacidade mental há, digamos, dois anos. Seria melhor que não fossem feitas insinuações e suspeitas infundadas, que só serviriam para prejudicar a estabilidade do Império, sobre tudo em tempos difíceis, hummmm? O imperador Padishah Elrood IX tinha mais de cento e cinqüenta anos de idade, e foi protagonista de um dos reinados mais longos na história dos Corrino. Deixemos assim.

Shaddam pigarreou.

— Que outra coisa poderia ser, doutor? A segurança que rodeava meu pai é impenetrável, há guardas e detectores de venenos por toda parte. Ninguém pôde atentar contra ele.

Yungar passeou seu olhar inquieto entre o príncipe herdeiro e o homem escondido atrás dele.

— Identidade, motivo e oportunidade. Essas são as perguntas, e embora não seja detetive, estou seguro de que um Mentat poderia responder às três. Reunirei meus dados e os submeterei a uma junta de revisão. É apenas uma formalidade, mas tem que ser feita.

— Quem faria isso a meu pai? — perguntou Shaddam, ao mesmo tempo em que se aproximava mais. A rudeza do doutor o irritava, mas aquele Suk já demonstrara sua natureza pomposa. Parecia que o morto os observava de seu leito, acusando-os com seus dedos curvados.

— Primeiro precisarei reunir mais provas, senhor.

— Provas? De que tipo?

Acalmou-se. Sua testa se cobriu de suor, e passou uma mão por seu cabelo avermelhado impolutamente penteado. Talvez estava exagerando a situação.

Fenring parecia muito sereno e se deslocou para o outro lado da cama, perto dos restos da última cerveja de especiaria que o imperador tinha tomado.

O doutor sussurrou a Shaddam:

— Como Suk leal é meu dever avisá-lo, príncipe Shaddam, de que talvez também corra perigo. Certas forças, conforme relatórios que vi, não querem que a Casa Corrino continue no poder.

— Desde quando a Escola Suk obtém relatórios a respeito de alianças e intrigas imperiais? — perguntou Fenring, que tinha se aproximado silenciosamente. Não tinha ouvido as palavras concretas, mas há anos tinha aprendido a valiosa arte de ler os lábios. Ajudava muito em suas atividades de espionagem. Tinha tentado ensinar o truque a Shaddam, mas este ainda não tinha dominado o dom.

— Temos nossas fontes — disse o médico Suk —. Infelizmente, tais contatos são necessários mesmo para uma escola como a nossa, dedicada a cura. — Shaddam sorriu com ironia, recordando a insistência do medico em que pagassem todos os seus honorários antes de ver o paciente —. Vivemos tempos perigosos.

— Suspeitam de alguém em particular? — perguntou Shaddam, seguindo o olhar do médico. Talvez pudessem culpar o chambelán Hesban. Preparar provas falsas, espalhar rumores.

— Em sua posição, seria prudente suspeitar de todos, senhor. Eu gostaria de fazer uma autópsia no imperador Elrood. Com a ajuda de um colega da Escola Interior, analisaremos cada órgão, cada tecido, cada célula... só para ter certeza.

Shaddam franziu o sobrecenho.

— Parece-me uma terrível falta de respeito com meu pai. Horrorizava-o pensar em... cirurgia. Melhor deixá-lo descansar em paz. Temos que preparar imediatamente os funerais de Estado. E minha cerimônia de coroação.

— Ao contrário — insistiu Yungar —, demonstraremos respeito para com sua memória se tentamos descobrir o que ocorreu. Talvez alguém implantou algo em seu corpo, quando seu comportamento começou a mudar, algo que causou uma morte lenta. Um médico Suk seria capaz de detectar os sinais mais sutis, mesmo depois de dois anos.

— Só de pensar em autópsia fico doente — disse Shaddam —. Sou o herdeiro do Império, e proíbo isso.

Olhou para o cadáver, e os pelos dos seus braços se arrepiaram, como se o fantasma do velho flutuasse sobre sua cabeça. Lançou um olhar de preocupação para as sombras da extinta chaminé.

Tinha esperado experimentar júbilo quando seu pai por fim lhe cedesse o Trono do Leão Dourado, mas agora, consciente de que seu chaumurky tinha sido o causador de sua morte, a pele de Shaddam se arrepiou.

— Segundo a lei imperial, poderia insistir oficialmente nisso, senhor — explicou o médico Suk com voz pausada —. E devo fazê-lo, para seu próprio bem. Vejo que não tem experiência no terreno das intrigas, já que cresceu protegido na corte. Considera-me um estúpido, mas lhe asseguro que não estou enganado. Sinto isso nas vísceras.

— Possivelmente o bom doutor esteja certo — disse Tenring.

— Como pode...? — Shaddam percebeu um brilho peculiar nos olhos de Fenring e olhou para o médico —. Tenho que consultar meu conselheiro.

— É claro.

Os dois homens se retiraram para a porta.

— Você está louco? — sussurrou Shaddam, quando Fenring e ele estavam a uma distância prudente.

— Siga a corrente, por enquanto. Depois, por culpa de algum... — Fenring sorriu e escolheu a palavra precisa — mal-entendido, o velho Elrood será incinerado antes que possam abri-lo.

— Entendo — disse Shaddam, e se voltou para Yungar —. Chame seu colega e façam o que for necessário. Meu pai será transportado à enfermaria.

— Levará um dia para que o outro médico chegue — disse o Suk —. Preciso que o cadáver seja congelado.

Shaddam sorriu.

— Assim se fará.

— Nesse caso me despeço, senhor.

O médico fez uma reverência e partiu rapidamente. Seu longo rábico grisalho, rodeado com um aro de prata, pendia-lhe sobre as costas.

Quando ficaram sozinhos, Fenring disse com um sorriso torcido:

— Era isso ou matar o bastardo, e não devíamos correr esse risco.

Uma hora depois, devido a uma desafortunada cadeia de mal-entendidos, o imperador Elrood IX foi reduzido a cinzas no crematório imperial, e seus restos se perderam. Um servo e dois médicos da corte pagaram com sua vida pelo engano.

 

Minha memória e a história são as duas caras da mesma moeda. Entretanto, com o tempo a história inclina-se a apresentar uma opinião favorável dos acontecimentos, no entanto a memória está condenada a preservar os piores aspectos.

Lady Helena Atreides, diário pessoal

 

Pai, eu não estava preparado.

As marés noturnas de Caladan eram violentas e a chuva impulsionada pelo vento tamborilava sobre as janelas da torre do castelo. Outro tipo de tormenta se desencadeava no interior do duque Leto: a preocupação pelo futuro de sua Casa.

Tinha fugido desta tarefa durante muito tempo... durante meses, de fato. Aquela noite não desejava outra coisa senão sentar-se em uma habitação aquecida por um bom fogo, em companhia de Rhombur e Kailea. Em vez disso, tinha decidido examinar por fim alguns objetos pessoais do velho duque.

As coisas do seu pai estavam guardadas em arcas alinhadas contra uma parede. Os criados tinham alimentado o fogo com grossos troncos, e uma jarra de vinho quente impregnava a habitação com o aroma especiado de terrameg e um pouco da cara melange. Quatro globos luminosos proporcionavam luz suficiente.

Kailea tinha encontrado uma capa de pele em um armário, e se envolveu com ela para aquecer-se, mas a dotava de um aspecto impressionante. Devido as mudanças radicais ocorridas em sua vida, a filha de Vernius era uma sobrevivente nata. Parecia que, por pura força de vontade, Kailea modificava para melhor tudo que a rodeava.

Graças aos inconvenientes políticos derivados de qualquer romance com a família renegada, o duque Leto, regente agora de uma Grande Casa, sentia-se cada vez mais atraído por ela, mas recordava o conselho número um de seu pai: “Nunca se case por amor, ou trará a ruína para nossa Casa.” Paulus Atreides tinha lançado aquela máxima em seu filho tantas vezes como qualquer outra diretriz sobre liderança. Leto sabia que nunca poderia desobedecer a ordem do velho duque. Estava muito arraigada em seu ser.

Mas se sentia atraído por Kailea, embora até o momento não tivesse reunido coragem para expressar seus sentimentos. Acreditava que ela sabia. Kailea possuía uma mente forte e lógica. Lia-o com seus olhos esmeralda, na curva de sua boca felina, nos olhares furtivos que lhe dirigia.

Com permissão de Leto, Rhombur recostou outras arcas em busca de lembranças de guerra que falassem da amizade entre Paulus Atreides e Dominic Vernius. Tirou um xale grande bordado e o desdobrou.

— O que é isto? Nunca vi seu pai usando isso.

Leto examinou o desenho e viu o que era: o falcão da Casa Atreides abraçando a lâmpada richesiana do conhecimento.

— Acho que é a capa que usou no casamento.

— Ah — disse Rhombur —. Perdão.

Dobrou a capa e voltou a guardá-la na arca.

Leto meneou a cabeça e respirou fundo. Sabia que ia encontrar muitas lembranças que o comoveriam, mas devia superá-las.

— Meu pai não escolheu morrer, Rhombur. Minha mãe tomou decisões por sua conta e risco. Poderia ter sido uma valiosa conselheira para mim. Em outras circunstâncias, teria agradecido sua ajuda e diretrizes, mas agora... — Suspirou e olhou com amargura para Kailea —. Como disse, tomou decisões por sua conta e risco.

Só Leto e o Mentat sabiam a verdade sobre a cumplicidade de Helena no assassinato, e era um segredo que Leto havia jurado levar para a tumba. Como o chefe de estábulos tinha morrido durante o interrogatório, Leto tinha as mãos manchadas de sangre pela primeira — mas última — vez. Nem mesmo Rhombur e Kailea suspeitavam de nada.

Tinha enviado sua mãe para longe do castelo de Caladan com dois de seus criados, escolhidos por ele. Para seu “descanso e bem-estar”, lady Helena tinha sido conduzida a este continente, onde viveria em condições primitivas com as irmãs do Isolamento, uma retrógrada comunidade religiosa. Helena, com altivez mas sem pedir explicações ao seu filho, tinha aceito o castigo. Embora dissimulasse, Leto chorava a perda de sua mãe, e o assombrava ter ficado sem pais em questão de poucos meses. Entretanto, Helena tinha cometido o ato de traição mais aberrante contra sua própria família e sua própria Casa, e Leto nunca poderia perdoá-la nem vê-la de novo. Matá-la estava descartado, a idéia apenas tinha cruzado sua mente. Afinal, era sua mãe. Além disso, perdê-la de vista também era uma questão prática, porque tinha poucas posses para administrar, e o bem-estar dos cidadãos de Caladan era prioritário. Era preciso que se dedicasse a governar.

Rhombur extraiu de outra arca um velho baralho de cartas feitas à mão e algumas relíquias do velho duque, que incluíam honras militares, uma faca sem fio e uma pequena bandeira manchada de sangue. Leto descobriu conchas marinhas, um lenço colorido, um poema de amor anônimo, uma mecha de cabelo castanho avermelhado (não era a cor de Helena), uma mecha de cabelo loiro e braceletes esmaltados desenhados para uma mulher.

Sabia que seu pai tivera amantes, embora Paulus nunca tivesse levado nenhuma ao castelo de Caladan como concubina oficial. Limitou-se a se divertir, e não havia dúvida de que tinha obsequiado suas mulheres com jóias, tecidos ou doces.

Leto fechou a tampa da arca. O duque Paulus tinha direito a suas lembranças, seu passado e seus segredos. Nenhuma daquelas lembranças tinha diminuído a riqueza da Casa Atreides. Precisava ocupar-se da política e dos negócios. Thufir Hawat, outros conselheiros da corte e até o príncipe Rhombur estavam fazendo o possível por guiá-lo, mas Leto se sentia como um recém-nascido que devia aprender tudo a partir de zero.

Kailea serviu uma caneca de vinho quente e a estendeu para Leto, e depois serviu outras duas para ela e seu irmão. O duque bebeu com ar pensativo, saboreando o líquido especiado. O calor impregnou seus ossos e ele sorriu.

Kailea contemplou a curiosa parafernália e ajustou uma mecha de cabelo atrás da orelha. Leto observou que seu lábio inferior tremia.

— O que aconteceu, Kailea?

A jovem respirou fundo e olhou para seu irmão, e depois para Leto.

— Nunca poderei revisar as coisas de minha mãe. Nem as do Grand Palais, nem as poucas que levaram quando fugimos.

Rhombur abraçou sua irmã, mas ela continuou olhando para Leto.

— Minha mãe guardava presentes do próprio imperador, tesouros que ele lhe deu quando abandonou seu serviço. Tinha tantas lembranças, tantas histórias para me contar, mas eu não a escutava...

— Não pense assim — disse Rhombur, tentando consolá-la —. Criaremos nossas próprias lembranças.

— E faremos que outros nos recordem — disse Kailea com voz quebradiça.

Leto, comovido e cansado, acariciou o selo ducal que carregava no dedo. Ainda o sentia como um peso estranho, mas sabia que nunca voltaria a tirá-lo, até que em um futuro longínquo o entregasse a seu filho para que continuasse a tradição da Casa Atreides.

A chuva aumentou contra os muros e janelas do velho castelo de pedra, enquanto o mar chocava ondas espumantes contra os escarpados. Leto se sentia muito pequeno, comparado com a imensidão de Caladan. Embora a noite fosse inóspita, quando o duque trocou sorrisos com Kailea e Rhombur, sentiu-se confortável e satisfeito em sua casa.

Leto soube da morte do imperador enquanto três criados tentavam pendurar a cabeça do touro salusano na sala de jantar. Os criados utilizavam cordas e polias para erguer o monstruoso troféu até um ponto da parede sem adornos.

Um sombrio Thufir Hawat observava a cena, com as mãos enlaçadas às costas. O Mentat tocou com ar ausente a longa cicatriz em sua perna, uma lembrança do dia em que salvou um Paulus muito mais jovem de outro touro raivoso. Desta vez, entretanto, não tinha agido com rapidez suficiente...

Kailea estremeceu quando olhou para o animal.

— Será difícil comer nesta sala, com essa coisa nos olhando. Ainda vejo o sangue em seus chifres.

Leto contemplou o touro com olhar apreciativo.

— Eu o entendo como um aviso de que nunca podemos que baixar a guarda. Até um animal obtuso, graças à intervenção de conspiradores humanos, pode aniquilar o líder de uma Grande Casa do Landsraad. — Sentiu um arrepiou —. Pense nisso, Kailea.

— Não é um pensamento muito consolador — murmurou, com os olhos brilhantes de lágrimas. Piscou para contê-las e voltou para suas atividades.

Com uma pasta de cristal riduliano a frente dela sobre a mesa, concentrou suas energias em estudar as contas da casa. Aplicou o que tinha aprendido no Escritório Orbital de IX e analisou os ganhos das posses Atreides para determinar como se distribuíam o trabalho e a produtividade pelos continentes e mares de Caladan. Leto e ela tinham falado do assunto em profundidade, apesar da sua juventude. Kailea Vernius era muito hábil para os negócios, descobriu Leto com prazer.

— Ser duque não consiste só em esgrima e força — Thufir Hawat havia dito em certa ocasião, muito antes das calamidades recentes —. A administração das pequenas coisas é uma batalha frequentemente mais difícil.

Por algum motivo, aquelas palavras ficaram gravadas na mente de Leto, e agora estava descobrindo sua sabedoria implícita...

O mensageiro imperial, recém desembarcado de um Cruzeiro da Corporação, entrou na sala vestido com as cores escarlate e dourada imperiais.

— Solicito uma audiência com o duque Leto Atreides — disse.

Leto. Rhombur e Kailea ficaram petrificados, ao recordar a horrível noticia que tinham recebido da última vez que um arauto entrara na sala de audiências. Leto rezou para que não tivesse acontecido nada ao fugitivo Dominic Vernius em sua fuga. Aquele mensageiro oficial usava as cores da Casa Corrino, e parecia que repetira a mensagem dúzias de vezes.

— É meu dever anunciar a todos os membros das Grandes e Pequenas Casa do Landsraad que o imperador Padishah Elrood IX morreu, depois de uma longa enfermidade no ano cento e trinta e oito de seu reinado. Que a história recorde com afeto sua regência, e que sua alma encontre a paz eterna.

Leto ficou estupefato. Um dos criados quase deixou cair a cabeça do touro salusano, mas Hawat gritou para que o homem se concentrasse no trabalho.

O imperador tinha reinado pela duração normal de duas vidas. Elrood vivia em Kaitain, rodeado de guardas, protegido de toda ameaça, escravo da especiaria geriátrica. Leto jamais tinha pensado que fosse morrer algum dia, embora durante os dois últimos anos tivesse ouvido rumores a respeito da crescente fraqueza de Elrood.

Leto se virou para o mensageiro.

— Rogo que transmita nossas condolências ao príncipe herdeiro Shaddam. Quando se celebrará o funeral de Estado? A Casa Atreides assistirá, é obvio.

— Não será necessário — respondeu o mensageiro —. A pedido do trono, só haverá uma pequena cerimônia para os familiares próximos.

— Entendo.

— Entretanto, Shaddam Corrino, que logo será coroado imperador Padishah do Universo Conhecido, Shaddam IV, solicita sua presença e seu juramento de lealdade na cerimônia de posse do Trono do Leão Dourado. Estão realizando os últimos preparativos para a coroação.

Leto deu um olhar fugaz para Thufir Hawat.

— Assim será — respondeu.

O mensageiro continuou.

— Depois de definido o protocolo e o calendário oficial, Caladan será informado.

Fez uma reverência, passou a capa púrpura e dourada ao redor de seus braços e deu meia volta. Saiu do salão, em direção a um veículo que o transportaria ao espaçoporto para seguir viagem ao próximo planeta imperial, onde repetiria a mensagem.

— Bem, er... uma boa notícia — disse Rhombur com amargura. Seu rosto estava pálido, mas decidido —. Se não fosse pelos ciúmes e a intervenção do imperador, minha família poderia superar a crise de IX. O Landsraad teria enviado ajuda.

— Elrood não queria que superássemos a crise — disse Kailea, ao mesmo tempo que levantava a vista dos registros de contas —. Só lamento que minha mãe não tenha vivido para escutar esta notícia.

Os lábios de Leto se curvaram em um sorriso de prudente otimismo.

— Isto nos proporciona uma oportunidade inesperada. Pensem bem. Elrood era o único que tinha uma rixa pessoal contra a Casa Vernius. Sua mãe e ele compartilharam um passado doloroso, e todos sabemos que esse é o verdadeiro motivo de sua negativa de retirar o preço de sangue por sua família. Era algo pessoal.

Hawat olhou para Leto. Escutava em silêncio, a espera do que seu novo duque ia sugerir.

— Tentei falar com o Conselho do Landsraad — disse Leto —, mas são uma turma de inúteis que não querem se comprometer. Não farão nada para nos ajudar. Mas meu primo Shaddam... — passou a língua pelo lábio inferior —. Só o vi três vezes, mas minha avó materna também era filha de Elrood. Posso mencionar laços de sangue. Quando Shaddam for coroado novo imperador, solicitarei que os anistie. Quando a Casa Atreides jurar lealdade, pedirei que recorde a grande historia da Casa Vernius.

— Por que acha que ele concordará? — perguntou Kailea —. O que ganha com isso?

— Seria um ato de justiça — disse Rhombur.

Sua irmã olhou para ele como se tivesse perdido o juízo.

— Fará isso para estabelecer o tom do seu reinado — disse Leto —. Qualquer novo imperador deseja forjar uma imagem, demonstrar que é diferente de seu predecessor, que não foi influenciado pelos velhos costumes. Possivelmente Shaddam seja propenso ao perdão. Dizem que não se entendia com seu pai, e não tenho dúvida de que vai querer afirmar sua própria personalidade depois de mais de cem anos sob o reinado de Elrood.

Kailea se jogou nos braços de Leto e o abraçou desajeitadamente.

— Seria maravilhoso recuperar nossa liberdade, Leto, e as posses familiares. Talvez possamos fazer algo por salvar IX.

— Não pode perder a esperança, Kailea — disse Rhombur com cauteloso otimismo —. Se puder imaginar, possivelmente aconteça.

— Não devemos ter medo de pedir — disse Leto.

— De acordo — disse Rhombur —. Se alguém puder conseguir, esse é você, meu amigo.

Leto, inflamado pelo otimismo e determinação, começou a desenvolver um plano para sua viagem oficial a IX.

— Faremos algo que não esperarão — disse —. Rhombur e eu apareceremos juntos na coroação.

Viu o olhar alarmado do Mentat

— É perigoso levar o filho de Vernius, meu senhor.

— Por isso não o esperarão.

 

Do que sentidos precisamos, que somos incapazes de ver e ouvir do outro mundo que nos rodeia?

Bíblia Católica Laranja

 

Alguns consideravam bela a aridez rochosa do Posto de Guarda Florestal, uma maravilha da natureza, mas o barão Vladimir Harkonnen não gostava de ficar longe de edifícios fechados, ângulos retos, metal e plástico. O ar lhe parecia viciado e desagradável sem as emanações da indústria, dos lubrificantes e da maquinaria. Muito inquietante, muito hostil.

Não obstante, o barão conhecia a importância do seu destino, e se distraía contemplando o desconforto, ainda maior, do seu Mentat. Piter De Vries, com um manto sujo e o cabelo revolto, esforçava-se por continuar ereto. Apesar de seu mente funcionar como uma máquina poderosa, seu corpo era esquelético e fraco.

— Tudo aqui é tão primitivo, meu barão, tão sujo e frio — disse De Vries com olhos arregalados —. Tem certeza de que temos que nos afastar tanto? Não existe outra alternativa?

— Algumas pessoas pagam muito para visitar lugares como este — respondeu o barão —. Eles os chamam de reservas naturais.

— Piter, feche o bico e não se atrase — disse Rabban.

Subiam uma ladeira em direção a um muro de arenito coberto de gelo e rodeado de covas.

O Mentat franziu o sobrecenho e respondeu com sua língua afiada.

— Este não é o lugar onde aquele menino fez você e seus caçadores de idiotas, Rabban?

O sobrinho do barão se virou e cravou o olhar no Mentat.

— Da próxima vez eu caçarei você se não conter a língua.

— O prezado Mentat do seu tio? — respondeu De Vries em tom indiferente —. Onde iria encontrar um substituto?

— Tem razão — admitiu o barão com uma risada.

Rabban resmungou algo para si mesmo.

Previamente, os guardas e peritos em caça do barão tinham vasculhado a isolada reserva de caça, uma medida de segurança para que os três homens pudessem ir sozinhos, sem seu séquito habitual. Rabban, armado com uma pistola maula e um rifle de calor, insistia que podia dar conta de todos os cães selvagens e outros predadores que os atacassem. O barão não tinha tanta confiança no sobrinho, sobretudo considerando que um menino tinha demonstrado ser mais esperto que ele, mas ao menos ali estavam a salvo de olhares indiscretos.

Ao chegar ao alto do montículo, os três descansaram por um instante, e logo subiram outra costa. Rabban abria a marcha, e foi afastando galhos até que chegaram a uma extensão de arenito. Uma rachadura de pouca profundidade desenhava um espaço negro entre a pedra e o chão.

— É aqui — disse Rabban —. Sigam-me.

O barão se ajoelhou e dirigiu um anel de luz para a abertura da cova.

— Siga-me, Piter.

— Não sou um espeleólogo — respondeu o Mentat —. Além disso estou cansado.

— Não está em boa forma — replicou o barão, enquanto respirava fundo para sentir seus músculos —. Precisa fazer mais exercício.

— O senhor não me comprou para isso, barão.

— Comprei-o para que fizesse tudo o que eu quisesse.

Agachou-se e passou pela abertura. O diminuto mas poderoso raio de luz sondou as trevas.

Embora o barão tentasse manter seu corpo em perfeito estado, tinha sofrido inesperadas dores e fraquezas durante todo o ano anterior. Ninguém tinha recebido (ou possivelmente ninguém tinha ousado fazer comentários) que também tinha começado a engordar, apesar de não ter mudado a dieta. Sua pele parecia mais lustrosa e fofa. Tinha considerado a possibilidade de expor o problema a algum medico, até mesmo a um Suk, apesar dos custos exorbitantes da consulta. Pelo visto, a vida era uma cadeia incessante de problemas.

— Esse lugar cheira a urina de urso — se queixou De Vries enquanto passava pelo oco.

— Como sabe como cheira a urina de urso? — perguntou Rabban, e empurrou o Mentat para abrir caminho.

— Senti o seu cheiro. Não pode existir um animal selvagem mais fétido que você.

Os três se ergueram no interior e o barão acendeu um pequeno globo luminoso, que flutuou para o alto e iluminou o fundo da cova.. Era um lugar inóspito e coberto de musgo e pó, sem sinais de ter sido habitado por seres humanos.

— Uma estupenda projeção mimética, não? — disse o barão —. O melhor que nosso povo já fez.

Estendeu uma mão coberta de anéis e a imagem na parede se tornou imprecisa.

Rabban localizou um pequeno saliente na parede e o apertou. Toda a parede se abriu, e revelou um túnel de acesso.

— Um esconderijo muito especial — disse o barão.

Acenderam-se as luzes de um passadiço que conduzia ao coração do penhasco. Uma vez lá dentro, fecharam a suas costas a projeção da parede falsa, De Vries olhou ao redor, assombrado.

— Guardou este segredo até de mim, barão?

— Rabban descobriu esta cova durante uma de suas caçadas. Fizemos... algumas modificações utilizando uma nova tecnologia, uma técnica prodigiosa. Acredito que compreenderá as possibilidades assim que lhe explicar tudo.

— Um esconderijo muito inteligente — admitiu o Mentat —. Nunca sobram preocupações em relação aos espiões.

O barão ergueu a mão para o teto e gritou a pleno pulmão:

— Que o maldito príncipe herdeiro Shaddam seja jogado na latrina! Não, melhor, nas cavernas do império mais profundas, incrustadas de excrementos e abrasadas pela lava.

A exclamação surpreendeu o próprio De Vries, e o barão riu.

— Aqui, Piter, como em nenhum outro lugar de Giedi Prime, os espiões não me preocupam.

Guiou-os até a câmara principal.

— Nós três poderíamos nos esconder aqui e resistir até mesmo a um ataque de engenhos atômicos. Ninguém nos encontraria. Os contêineres de entropia nula contam com uma quantidade infinita de provisões e armas. Aqui depositei tudo que é vital para a Casa Harkonnen, desde registros genealógicos até documentos econômicos, passando pelo material reservado para as chantagens. Todos os detalhes desagradáveis e fascinantes que acumulamos sobre as outras Casa.

Rabban se sentou em uma mesa polida e apertou um botão de um painel. De repente, as paredes se tornaram transparentes e mostraram vários cadáveres distorcidos sob uma luz amarelada, vinte e um no total, cjue pendiam entre folhas de plástico, em exposição.

— Esta é a equipe de construção — disse Rabban —. É nosso... monumento especial em sua memória.

— Bastante faraônico — brincou o barão.

Os cadáveres estavam descoloridos e inchados, os rostos deformados em caretas macabras. Sua expressão misturava mais tristeza resignada que terror pela morte iminente. Qualquer um que construísse uma câmara secreta para os Harkonnen devia estar consciente de estar condenado desde o primeiro momento.

— Será um espetáculo desagradável quando começarem a apodrecer — disse o barão —, mas com o tempo se transformarão em esqueletos esplêndidos.

Nas outras paredes foram gravados grifos azuis Harkonnen, assim como imagens pornográficas de humanos copulando, de bestialismo, desenhos sugestivos de um relógio mecânico que teria ofendido a maioria de observadores. Rabban soltou uma risita, enquanto parte masculinas e femininas interagiam seguindo um ritmo eterno e contínuo.

De Vries passeou a vista ao redor, analisou os detalhes e os aplicou a sua projeção Mentat.

O barão sorriu.

— A câmara está rodeada por uma projeção protetora que torna um objeto invisível para as longitudes de onda. Nenhum exploratório pode detectar este lugar usando visão, som, calor ou tato. Nós o chamamos de não-campo. Pense nisso. Estamos em um lugar que não existe para o resto do universo. É o lugar perfeito para conversarmos sobre nossos... deliciosos planos.

— Nunca tinha ouvido falar de um campo semelhante — disse De Vries —. Quem o inventou?

— Possivelmente você se lembra do pesquisador de Richese que veio nos visitar.

— Chobyn? — perguntou o Mentat, e depois respondeu a sua própria pergunta —. Sim, esse era o nome.

— Ele veio a nós em segredo, com uma técnica revolucionária desenvolvida pelos ríchesianos. É uma tecnologia nova e perigosa, mas nosso amigo Chon entreviu as possibilidades. Foi inteligente o bastante para oferecê-la à Casa Harkonnen em troca de uma remuneração generosa.

— Que pagamos sem reclamar — acrescentou Rabban.

— Valia até o último solari — continuou o barão. Tamborilou com os dedos sobre a mesa —. Aqui nem uma alma pode nos ouvir, nem mesmo um Navegante da Corporação com sua maldita presciência. Chobyn está trabalhando para nós em algo ainda melhor.

Rabban, impaciente, sentou-se em um dos assentos.

— Deixe de rodeios.

De Vries se sentou à mesa com os olhos brilhantes, enquanto suas capacidades Mentat analisavam as implicações de uma tecnologia invisível, sua possível utilização.

O barão passeou a vista de seu sobrinho para o Mentat. Que grande contraste entre este par, que representam os extremos do espectro intelectual. Tanto Rabban como De Vries necessitavam de supervisão constante, o primeiro devido a sua pouca inteligência e temperamento ruim, e o segundo porque seu brilhantismo podia ser igualmente perigoso.

Apesar de suas deficiências evidentes, Rabban era o único Harkonnen que podia suceder ao barão. Abulurd não era qualificado, certamente. Além daquelas duas filhas bastardas que a Bene Gesserit lhe tinha imposto, o barão não tinha filhos. portanto, devia treinar seu sobrinho no uso e abuso apropriados do poder, e morreria satisfeito se soubesse que a Casa Harkonnen continuaria como sempre.

Ainda seria melhor se os Atreides fossem destruídos,..

Talvez Rabban devesse ter dois Mentats que o guiassem. Devido a sua natureza feroz, o governo de Rabban seria especialmente brutal, em uma escala jamais vista em Giedi Prime, apesar do longo histórico de torturas e maus-tratos aos escravos Harkonnen.

O barão adotou uma expressão sombria.

— Calem-se e me escutem, os dois. Piter, quero que utilize suas capacidades de Mentat a cem por cem.

De Vries extraiu um frasco de suco de safo de um bolso interior. Tomou um gole e apertou os lábios de uma forma que o barão considerou repulsiva.

— Meus espiões me trouxeram uma informação muito preocupante — disse o barão —. Está relacionada com IX e com alguns planos que o imperador concebeu antes de morrer. — Seus dedos se agitaram ao ritmo das abominações que passavam por sua cabeça —. Este plano tem sérias implicações para a fortuna de nossa família. Nem sequer a CHOAM e a Corporação possuem essa informação.

Rabban grunhiu. De Vries se ergueu muito rígido, à espera de mais dados.

— Parece que o imperador e os Tleilaxu estabeleceram uma espécie de aliança para realizar experimentos blasfemos e ilegais.

— A merda e os vermes são primos irmãos — disse Rabban.

O barão riu da analogia.

— Soube que nosso amado imperador foi o instigador da queda de IX. Obrigou a Casa Vernius a declarar-se renegada e ajudou os Tleilaxu a iniciarem pesquisas e adaptarem seus métodos às instalações ixianas.

— A que pesquisas se refere, meu barão? — perguntou o Mentat.

O barão deixou cair sua bomba:

— Procuram um método biológico de sintetizar a melange. Acreditam que podem produzir especiaria artificial, e assim eliminarão Arrakis, ou seja a nós, dos canais de distribuição.

Rabban bufou.

— Impossível. Ninguém pode conseguir isso.

Mas a mente de De Vries dava voltas enquanto as peças da informação iam se encaixando.

— Eu não subestimaria os Tleilaxu, sobretudo combinados com as instalações e a tecnologia de IX. Terão tudo que necessitarem.

Rabban se levantou.

— Se o imperador for capaz de fabricar melange, que será de nossas posses? O que será de todas as reservas de especiaria que acumulamos durante anos?

— Se a nova especiaria for semelhante e eficaz, a fortuna dos Harkonnen, apoiada na especiaria, vai se evaporar — explicou De Vries sem se alterar —. Da noite para o dia, como se diz.

— Exato, Piter! — O barão descarregou seu punho coberto de anéis sobre a mesa —. Colher especiaria em Arrakis é muito caro. Se o imperador contar com suas próprias reservas de melange, o mercado virá abaixo e a Casa Corrino controlará o resto: um novo monopólio, exclusivo do imperador.

— A CHOAM não fará nenhuma objeção — disse Rabban com surpreendente perspicácia.

— Nesse caso teremos que passar esta informação à Corporação Espacial — sugeriu De Vries —. Temos que revelar as manobras do imperador, e conseguir que Shaddam suspenda suas pesquisas. Nem a CHOAM nem a Corporação vão querer perder seus investimentos na produção de especiaria.

— E se o novo imperador chegar a um acordo com eles, Piter? — perguntou o barão —. A Casa Corrino possui parte da CHOAM. Shaddam deseja iniciar seu reinado com um gesto espetacular. E se a CHOAM o convencer a lhes conceder acesso a especiaria sintética com um desconto extraordinário, em troca de sua colaboração? Para a Corporação seria interessante ter um fornecimento mais barato e de confiança. Poderiam abandonar Arrakis, se for muito difícil.

— Então, só nós ficaremos com o rabo ao ar — grunhiu Rabban —. Todos pisotearão a Casa Harkonnen.

O Mentat falou com os olhos semicerrados.

— Nem sequer poderíamos apresentar uma queixa oficial às Casas do Landsraad. A notícia de um substituto da especiaria enlouqueceria as famílias federadas. As alianças políticas mudaram recentemente, e certo número de Casas veriam com bons olhos o fim de nosso monopólio. Se o preço da melange cair, não perderiam o sono. Os únicos que sairiam perdendo seriam os que investiram em reservas secretas e ilegais de especiaria, ou os que investiram nas operações de coleta de especiaria em Arrakis.

— Em outras palavras, de novo nós, e alguns de nossos mais firmes aliados — disse o barão.

— As Bene Gesserit, e seu amor entre elas, não se importariam de conseguir fornecimentos a preço menor.

O barão fulminou seu sobrinho com o olhar. Rabban deu uma risadinha.

— Que podemos fazer?

De Vries respondeu sem consultar o barão.

— A Casa Harkonnen terá que enfrentar sozinha o problema. Não podemos esperar ajuda de ninguém.

— Lembre-se que nós somos um quase feudo de Arrakis — disse o barão —. Foi concedido com a permissão tácita da CHOAM e do imperador. Agora é como se estivéssemos em um gancho onde nos penduraram para secar. Temos que ser muito cautelosos.

— Precisamos de poderio militar para combater tantos inimigos — disse Rabban.

— Temos que ser sutis — disse De Vries.

— Sutileza? — O barão arqueou as sobrancelhas —. De acordo, eu adoro provar coisas novas.

— Temos que interromper essas pesquisas Tleilaxu em IX — disse De Vries —, ou melhor ainda, destruí-las. Sugiro que a Casa Harkonnen liquide diversos bens, acumule uma reserva em metal e extraia os maiores benefícios de nossa produção atual de especiaria, porque pode desaparecer a qualquer momento.

O barão olhou para Rabban.

— Temos que espremê-la ao máximo. Ah, e direi ao idiota de seu pai que aumente a colheita de peles de baleia em Lankiveil. Temos que encher as arcas. As batalhas iminentes podem consumir muito dos nossos recursos.

O Mentat secou uma gota vermelha dos lábios.

— Temos que fazer tudo isto no mais absoluto segredo. A CHOAM vigia nossas atividades econômicas, e detectaria qualquer manobra incomum. Não devemos permitir que a CHOAM e a Corporação se aliem ao nosso novo imperador contra a Casa Harkonnen.

— Temos que fazer o Império continuar dependendo de nós — disse o barão.

Rabban enrugou a testa, enquanto tentava abrir caminho desajeitadamente entre o labirinto de implicações.

— Mas se os Tleilaxu estão entrincheirados em IX, como vamos interromper estas investigações sem revelar sua verdadeira natureza, sem denunciar nossa implicação e fazer todos os nossos inimigos nos atacar?

De Vries contemplou as imagens sexuais das paredes. Os corpos podres pendiam nos expositores como espiões espectrais. Sua mente não parava de analisar dados.

— Alguém tem que lutar por nós, preferivelmente sem que saiba — disse por fim.

— Quem? — perguntou Rabban.

— Para isso trouxe Piter — disse o barão —. Necessitamos de sugestões.

— Projeção primária — disse De Vries —. A Casa Atreides.  

Rabban ficou boquiaberto.

— Os Atreides nunca lutariam por nós!

— O velho duque morreu — replicou o Mentat —, a Casa Atreides se encontra em uma situação instável. Leto, o sucessor de Paulus, é um jovenzinho impetuoso. Não tem amigos no Landsraad, e recentemente fez um discurso bastante embaraçoso no Conselho. Voltou para casa humilhado.

O barão esperou, impaciente por saber as idéias de seu Mentat.

— Segundo ponto: a Casa Vernius, firme aliada dos Atreides, foi expulsa de IX pelos Tleilaxu. Dominic Vernius é um fugitivo da lei e se oferece uma recompensa por sua cabeça, enquanto Shando Vernius foi executada recentemente, devido a sua condição de renegada. A Casa Atreides acolheu os dois filhos de Vernius. São muito unidos às vítimas dos Tleilaxu.

De Vries ergueu um dedo para relacionar os pontos.

— Agora, o impulsivo Leto é amigo íntimo do príncipe exilado de IX. O duque Leto culpa os Tleilaxu pela queda de IX, pela morte de Shando e pela situação de sua família. A Casa Atreides antepõe a lealdade e a honra à política, Leto disse isso ao Landsraad. Talvez considere que seja seu dever ajudar Rhombur Vernius a reconquistar IX. Quem melhor para agir em nosso favor?

O barão sorriu.

— Assim... iniciar uma guerra entre a Casa Atreides e os Tleilaxu! Dessa forma, a Casa Atreides e a pesquisa sobre a especiaria sintética serão destruídas.

Para Rabban era difícil imaginar tudo aquilo. A julgar pela expressão concentrada de seu rosto, o barão compreendeu que seu sobrinho se esforçava ao máximo por pensar e não perder os detalhes do plano. O Mentat assentiu.

— Se agirmos com cautela, poderíamos obter isso de tal forma que a Casa Harkonnen fique completamente à margem das hostilidades. Conseguiremos nosso objetivo sem sujar as mãos.

— Brilhante, Piter! Me alegro de não ter mandado executá-lo todas as vezes em que me irritou muito.

— E eu também — disse De Vries. O barão abriu uma câmara de entropia nula e extraiu uma garrafa de conhaque kirana.

— Temos que brindar. — Sorriu com astúcia —. Porque acabo de compreender quando e como faremos isso.

Seus dois ouvintes não podiam estar mais atentos.

— O novo duque está afligido pela complexidade da administração das suas posses. Assistirá à coroação de Shaddam IV, é obvio. Nenhuma Grande Casa ousaria ofender o novo imperador Padishah desprezando-o no seu dia mais glorioso.

De Vries captou a idéia imediatamente.

— Quando o duque Leto vir à coroação... será nossa oportunidade de dar o golpe.

— Em Kaitain? — perguntou Rabban.

— Um pouco mais interessante que isso, suspeito — disse De Vries.

O barão bebeu um gole do conhaque antigo.

— Será uma vingança deliciosa. Leto nem sequer imaginará, não saberá de onde vieram os tiros.

Os olhos de Rabban se iluminaram.

— Faremos ele se retorcer, tio!

O barão estendeu uma taça para seu sobrinho e outra para o Mentat. Rabban tomou seu conhaque de um só gole, enquanto De Vries se limitou a contemplá-lo, como se estivesse realizando uma análise química visual.

— Sim, Rabban, ele se retorcerá e retorcerá, até que uma grande onda imperial o esmague.

 

Só um Tleilaxu pode pôr o pé no Bandalomg, a cidade Santa dos Bene Tleilax, pois seu chão sagrado está fanaticamente guardado por Deus.

Diplomada no Império, uma publicação do Laminem

 

O edifício, que ainda mostrava sinais do incêndio, outrora tinha sido uma fábrica de meks de combate ixiano, uma das sacrílegas indústrias que desafiavam os mandamentos da Jihad Butleriana. Mas não mais. Hidar Fen Ajidica contemplou as idas e vindas de contêineres e ajudantes, satisfeito por ver que o lugar fora purificado e dedicado a um bom uso.

Depois da vitória Tleilaxu, a instalação tinha sido esvaziada de sua venenosa maquinaria e abençoado por Mestres com hábito, para ser utilizada para os elevados propósitos dos Bene Tleilax. Apesar do apoio do velho imperador Elrood, já falecido, Ajidica nunca tinha considerado aquele projeto como pertencente ao Império. Os Tleilaxu não agiam em benefício de ninguém além deles e de seu Deus. Tinham seus próprios propósitos, que nunca seriam compreendidos por estrangeiros corruptos.

— A estratégia Tleilaxu sempre é tecida em uma rede de estratégias, onde qualquer uma delas pode ser a verdadeira estratégia — entoou o axioma de seu povo —. A magia de nosso Deus é nossa salvação.

Cada contêiner de axlotl guardava os ingredientes de um experimento diferente, e cada um representava uma alternativa à solução do problema da melange artificial. Nenhum estrangeiro jamais tinha visto um contêiner de axlotl, e nenhum compreendia sua verdadeira função. Para produzir a preciosa melange, Ajidica sabia que seria preciso utilizar métodos inquietantes. Se as Casas descobrissem ficariam horrorizadas, mas Deus os protegia, repetiu em sua alma secreta. Produziriam a especiaria em quantidades maciças.

Ao compreender a complexidade do projeto, o Mestre Pesquisador tinha chamado peritos tecnológicos de Tleilax, homens sábios com pontos de vista muito divergentes sobre a forma de alcançar o objetivo. Naquele momento inicial do processo precisava considerar todas as opções, estudar todas as provas para introduzir pistas diretamente no DNA das moléculas orgânicas, que os Tleilaxu chamavam de A Linguagem de Deus.

Todos os peritos tecnológicos concordaram que a especiaria artificial devia crescer como uma substância orgânica em um contêiner de axlotl, porque os contêineres eram fontes sagradas de vida e energia. Os Mestres Pesquisadores tinham criado incontáveis programas com resultados assombrosos, desde baceres a clones passando por gholas... embora tivessem produzido muitos fracassos.

Estes recipientes exóticos constituíam a descoberta Tleilaxu mais sagrada, e nem sequer o príncipe herdeiro Shaddam, seus conselheiros e os Sardaukar conheciam seu funcionamento. Tão secreto e em segurança em IX, agora Xuttah, tinha sido uma exigência contida no pacto com o imperador Elrood. O velho tinha concordado com ironia depreciativa. Devia ter suposto que se apoderaria daqueles segredos quando quisesse.

Muita gente mantinha tais hipóteses ridículas a respeito dos Tleilaxu. Ajidica estava acostumado a ser menosprezado pelos idiotas.

Só um Mestre Tleilaxu ou um Pesquisador Tleilaxu de pura cepa podiam acessar este conhecimento. Ajidica aspirou o aroma de produtos químicos fétidos, o desagradável fedor úmido que era uma conseqüência inevitável do funcionamento dos contêineres. Aromas naturais. Sinto a presença de meu Deus, pensou, formando as palavras em islarfliyat, o antiquísimo idioma que nunca se falava em voz alta fora dos kehls, os conselhos secretos de sua raça. Deus é misericordioso. Só ele pode me guiar.

Um globo luminoso flutuava a frente de seus olhos, piscavam com um brilho vermelho... longo, longo, curto, pausa... longo, curto, o vermelho vira azul... cinco rápidas piscadas e volta ao vermelho. O emissário do príncipe herdeiro estava ansioso por vê-lo. Hidar Fen Ajidica sabia que não devia fazer Hasimir Fenring esperar. Apesar de não possuir nenhum título de nobreza, o impaciente Fenring era o amigo mais íntimo do herdeiro imperial, e Fenring compreendia as manipulações do poder pessoal melhor que a maioria de líderes do Landsraad. Ajidica sentia certo respeito pelo homem.

Ajidica se voltou, resignado, e atravessou sem problemas uma zona de identificação que teria sido mortal para qualquer um que não tivesse a permissão pertinente. Nem sequer o príncipe herdeiro poderia cruzá-la sem perigo. Ajidica sorriu ao pensar na superioridade de seu povo. Os ixianos utilizavam máquinas e campos de força por motivos de segurança, como os desajeitados e desumanos subóides tinham descoberto... provocando espantosas detonações e danos colaterais. Os Tleilaxu, por sua vez, usavam agentes biológicos liberados mediante engenhosas interações, toxinas e gases nervosos que acabavam com os infiéis powindah assim que punham o pé onde não deviam.

Na zona de espera, um sorridente Hasimir Fenring saudou Ajidica quando saiu da zona de identificação. De alguns ângulos, o homem de queixo pequeno parecia uma doninha, e de outros um coelho, inofensivo na aparência mas na realidade muito perigoso. Os dois se encontraram no que tinha sido um vestíbulo ixiano, conectado por uma intrincada rede de elevadores de plaz transparente. Aquele assassino imperial tinha uma cabeça a mais de altura em relação ao Mestre Pesquisador.

— Ah, meu querido Ajidica — ronronou Fenring —, seus experimentos vão bem, hummmm? O príncipe herdeiro Shaddam deseja receber as últimas notícias, agora que vai iniciar a obra de seu Império.

— Estamos fazendo bons progressos, senhor. Nosso imperador não coroado recebeu meu presente, suponho.

— Sim, muito bonito, e lhe envia seus agradecimentos. — Fenring desenhou um sorriso tenso ao pensar no obséquio: um hermazorro de pele chapeada, capaz de autorreplicar-se, um peculiar brinquedo vivo que não servia absolutamente para nada —. De onde tirou um ser tão interessante?

— Somos adeptos das forças da vida, senhor.

Os olhos, pensou Ajidica. Vigie seus olhos. Revelam sentimentos perigosos. Malévolos, neste momento.

— Então vocês gostam de brincar de Deus?

— Só há um Deus Todo-poderoso — replicou Ajidica com indignação controlada —. Não me ocorreria ocupar seu lugar.

— Claro que não. — Os olhos de Fenring se entreabriram —. Nosso novo imperador lhe envia sua gratidão, mas salienta que teria preferido outro presente: uma amostra de especiaria artificial.

— Estamos trabalhando com esforço no problema, senhor, mas já dissemos ao imperador Elrood desde o primeiro momento que demoraríamos muitos anos, talvez décadas, para desenvolver um produto final. Até o momento, quase todo nosso trabalho se concentrou em consolidar nosso controle sobre Xuttah e adaptar as instalações existentes.

— Não realizaram progressos tangíveis, então? — O desprezo de Fenring era tão extremo que não pôde ser dissimulado.

— Temos muitos sinais promissores.

— Bem, posso comunicar a Shaddam a data em que receberá seu presente? Gostaria que fosse antes de sua coroação, dentro de seis semanas.

— Acredito que não será possível senhor. Recebemos uma provisão de melange como catalisador faz menos de um Mês Normal.

— Fornecemos especiaria suficiente para comprar vários planetas.

— É claro, é claro, e trabalhamos com a maior celeridade possível, mas é preciso alimentar e modificar os contêineres de axlotl, provavelmente durante várias gerações. Shaddam precisa ser paciente.

Fenring estudou o diminuto Tleilaxu, suspeitando que tentava enganá-lo.

— Paciente? Lembre-se, Ajidica, que um imperador não tem paciência ilimitada.

O anão não gostava daquele predador imperial.

Algo nos olhos enormes e nas palavras de Fenring transmitia uma ameaça latente, mesmo quando falava de temas corriqueiros. Não se engane. Este indivíduo será o novo homem forte do imperador... que me assassinará se eu fracassar.

Ajidica aspirou fundo, mas bocejou para não demonstrar temor. Quando falou, o fez com absoluta serenidade.

— Quando Deus desejar nosso êxito, ele acontecerá. Agimos segundo seus planos, não os nossos, nem os do príncipe Shaddam. Assim é o costume do universo.

Um brilho perigoso cruzou os olhos de Fenring.

— Compreende a importância disto? Não só para o futuro da Casa Corrino e para a economia do Império... mas também para sua sobrevivência pessoal.

— Certamente. — Ajidica não reagiu à ameaça —. Meu povo aprendeu o valor da espera. Uma maçã colhida muito cedo pode estar verde e azeda, mas se esperar que amadureça, ela será vermelha e deliciosa. Quando estiver aperfeiçoada, a especiaria artificial alterará toda a estrutura de poder do Império. Não é possível criar essa substância da noite para o dia.

Fenring se irritou.

— Somos pacientes, mas isto não pode continuar.

— Se desejarem — disse Ajidica com expressão de generosidade —, podemos fixar reuniões periódicas para mostrar nossos trabalhos e seus progressos. Não obstante, tais distrações serviriam apenas para atrapalhar nossas pesquisas, nossa análise de substâncias e nossas disposições.

— Não, prossiga — grunhiu Fenring.

Tenho o bastardo onde queria, pensou Ajidica, e não ele não gosta disso. Mesmo assim, tinha a impressão de que esse assassino o mataria sem vacilar. Mesmo agora, sob a férrea vigilância das câmeras de segurança, não havia dúvida de que Fenring portava armas ocultas na roupa, pele e cabelo.

Atentará contra mim assim que não necessitar mais dos meus serviços, quando Shaddam pensar que tem tudo o que deseja.

Hidar Fen Ajidica também tinha suas armas ocultas. Tinha desenhado planos de contingência para lutar com os estrangeiros mais perigosos, afim de assegurar o controle dos Tleilaxu a qualquer momento.

É muito possível que nossos laboratórios descubram um substituto para a especiaria, pensou, mas nenhum powindah descobrirá jamais como se faz.

 

Nosso programa adquirirá a condição de fenômeno natural, a vida de um planeta é um imenso tecido, com as fibras entrelaçadas firmemente. A princípio, as mudanças na vegetação e na fauna serão determinadas pelas forças físicas que manipularmos. Quando se estabilizarem, nossas mudanças se transformarão em influências controladoras, e também teremos que cuidar delas. Não esqueçam que só precisamos controlar três por cento da superfície de energia, e só três por cento, para derrubar toda a estrutura em nosso sistema auto-suficiente.

Pardot Kynets, Os sonhos de Arrakis

 

Quando seu filho Liet completou um ano e meio, Pardot Kynes e sua esposa fizeram uma viagem ao coração do deserto. Vestiram seu filho com um traje destilador feito sob medida, para proteger sua pele do sol e do calor.

Agradava sobremaneira a Kynes dedicar tempo a sua família, ensinar os adiantamentos na transformação de Dune. Toda sua vida dependia de que compartilhassem seus sonhos.

Seus três amigos, Stilgar, Turok e Ommun, tinham insistido em acompanhá-los para os proteger, mas Kynes os dispensou.

— Passei mais tempo sozinho em locais desolados do que qualquer de vocês viverá. Uma viagem de alguns dias com minha família não representa nenhum problema. — Fez um gesto tranqüilizador com as mãos —. Além disso, não os carreguei com trabalho suficiente, ou querem ainda mais?

— Se tiver mais — disse Stilgar —, nós o faremos com supremo prazer.

— Basta que... se mantenham ocupados — disse Kynes, perplexo, e depois partiu a pé com Frieth e o jovem Liet.

O menino estava montado em um dos três kulons, um asno do deserto domesticado introduzido em Dune por contrabandistas e prospectores.

O preço em água do animal era elevado, apesar da sua adaptação inata a um ambiente árido e hostil. Os Fremen tinham desenvolvido um traje destilador modificado de quatro patas para a besta, que recolhia toda a umidade que o animal exsudava. Não obstante, o traje dificultava os movimentos do animal (para não falar de seu aspecto ridículo), e Kynes decidiu desprezar essas medidas extremas, o que exigia contar com água extra para a viagem, que o animal carregava no lombo em litrojons.

Quando ainda não tinha amanhecido, o alto e barbudo Kynes guiou seu pequeno grupo por um trilha serpenteante que só um Fremen teria chamado de caminho. Seus olhos, assim como os de Frieth, eram do azul do Ibad. O asno do deserto subia mansamente pelo penhasco inclinado. Kynes não se importava de andar. Tinha feito isso durante quase toda sua vida, quando estudava a ecologia de Salusa Secundus e Bela Tegeuse. Seus músculos eram fortes e firmes. Além disso, quando andava a pé podia concentrar mais sua vista nos calhaus e grãos de areia que pisava, ao invés das montanhas longínquas ou do sol abrasador.

Frieth, querendo agradar seu marido, desviava sua atenção cada vez que Kynes apontava para uma formação rochosa, estudava a composição de um pedaço de chão ou examinava fendas protegidas, aptas para plantar vegetação no futuro. Depois de um momento de incerteza, também lhe mostrou coisas.

— A maior virtude de um Fremen reside em sua capacidade de observação — disse como se citasse um velho provérbio —. Quanto mais observamos, mais aprendemos. Esse conhecimento nos proporciona poder, sobretudo se os outros são cegos.

— Interessante.

Kynes sabia muito pouco sobre a vida anterior de sua esposa. Estivera muito ocupado para perguntar detalhes sobre sua infância e suas paixões, mas ela não parecia ofendida por sua concentração quase exclusiva no projeto de terraformação. Na cultura Fremen, os maridos e as esposas viviam em mundos diferentes, ligados por poucas pontes, estreitas e frágeis.

Entretanto, Kynes sabia que as mulheres Fremen tinham fama de ferozes guerreiras, implacáveis no campo de batalha e mais temidas que os soldados imperiais no combate corpo a corpo. Até o momento não tinha visto aquela veia de ferocidade em Frieth, e esperava não vê-la jamais. Seria tão formidável antagonista como amiga.

De repente, uma pequena amostra de vegetação chamou sua atenção. Parou o kulon e se ajoelhou para inspecionar a diminuta planta verde que crescia em um oco sombreado, onde o pó e a areia se acumularam. Reconheceu o espécime como uma planta estranha, e sacudiu o pó de suas folhas cerúleas.

— Olhe, Frieth — disse como um professor, com os olhos brilhantes —. Maravilhosamente resistente.

Frieth assentiu.

— Arrancamos essas raízes em épocas de necessidade. Diz-se que apenas um tubérculo pode proporcionar meio litro de água, suficiente para que uma pessoa sobreviva vários dias.

Kynes se perguntou quanto a irmã de Stilgar sabia sobre o deserto. Até esse momento não lhe tinha revelado nada. Era culpa dele, disse para si mesmo, por não lhe dar a devida atenção.

O kulon, ansioso por comer as folhas frescas da planta, baixou o focinho para o chão, mas Kynes o afastou.

— Esta planta é muito importante para que a coma.

Explorou o terreno em busca de outros tubérculos, mas não viu nenhum. Pelo que tinha aprendido, sabia que aquelas plantas eram nativas de Dune, sobreviventes do cataclismo que secara ou encerrara a umidade do planeta.

Os viajantes fizeram uma pequena parada para alimentar seu filho. Enquanto Frieth montava uma sombrinha flutuante sobre um saliente, Kynes relembrou o trabalho dos meses recentes e os grandes progressos que seu povo e ele tinham realizado no início do projeto, que demoraria séculos para frutificar.

Em épocas longínquas Dune tinha sido uma estação de análise botânica, um posto avançado onde se plantaram algumas mostras séculos atrás, nos dias da expansão imperial. Isto aconteceu antes que descobrissem as propriedades prescientes e geriátricas da melange. Quando o planeta era um deserto sem utilidade prática. As estações botânicas tinham sido abandonadas, assim como toda forma de vida animal e vegetal.

Muitas espécies tinham sobrevivido e sofrido transformações, ao mesmo tempo em que demonstravam uma resistência e adaptabilidade notáveis: espadas mutantes, cactos e outros tipos de vegetação próprias de terrenos áridos. Kynes já tinha estabelecido um acordo com os contrabandistas para que trouxessem carregamentos das sementes e embriões mais promissores. Em seguida, equipes de Fremen tinham espalhado pelas areias as preciosas sementes, cada uma das quais era germe de vida, um grão no futuro de Dune.

Um mercador de água tinha informado Kynes da morte do imperador Elrood IX, o que lhe tinha recordado sua audiência em Kaitain, quando o governante o encarregara de investigar a ecologia de Arrakis. O planetólogo devia todo seu futuro a esse único encontro. Tinha contraído uma dívida de gratidão com Elrood, mas duvidava que o velho imperador se lembrasse dele durante o último ano.

Depois de receber a notícia surpreendente, Kynes tinha pensado em deslocar-se até Arrakeen, embarcar em um Cruzeiro e assistir os funerais de Estado, mas decidiu que se sentiria completamente deslocado. Agora era um habitante do deserto, alheio às complexidades da política imperial. Além disso, Pardot Kynes estava dedicado a uma tarefa muito mais importante.

Muito ao sul, longe dos espiões Harkonnen, os Fremen tinham plantado erva resistente em ladeiras expostas ao vento, para que se enraizassem de frente para os ventos do oeste predominantes. Uma vez estabilizadas, cresceram e cresceram, os Fremen transportaram a erva e chegaram a construir sifs gigantescos que formavam uma barreira sinuosa de muitos quilômetros, e alguns deles alcançavam uma altura de centenas de metros. Absorto em seus pensamentos, Kynes ouviu sua esposa se remexer sob a sombrinha flutuante. Falava com doçura com o pequeno Liet, enquanto este mamava através de uma dobra do traje destilador.

Kynes refletiu sobre a segunda fase do processo de transformação ecológica, durante a qual sua equipe plantaria plantas mais resistentes, acrescentaria fertilizantes químicos processados, construiria armadilhas de vento e precipitadores de orvalho. Mais adiante com cuidado para não violentar a nova e frágil ecologia, acrescentariam plantas mais profundas, que incluiriam amaranto, cinzento, retama negra e tamarisco anão, seguidas por espécies familiares do deserto como saguaro e cactos. O calendário se estendia até o horizonte, décadas e séculos no futuro.

Nas zonas habitadas do norte de Dune, os Fremen deviam contentar-se com pequenas plantas e colheitas ocultas. A numerosa população Fremen conhecia o segredo da terraformação, dedicava seu sangue e suor coletivos, conseguiam ocultar dos olhos curiosos seu tarefa monumental e o sonho que a acompanhava.

Kynes tinha a paciência de contemplar a lenta metamorfose. Os Fremen tinham depositado uma grande fé em seu Umma. Sua confiança inquebrantável nos sonhos de um só homem, e a colaboração que dedicavam a suas difíceis exigências, enterneciam o coração de Kynes, mas estava decidido a lhes oferecer algo mais que sermões e promessas vazias. Os Fremen mereciam ver um brilho radiante de esperança.

Havia outros que conheciam a Depressão de Gelo, é obvio, mas queria ser o primeiro a mostrá-la a sua esposa Frieth e a seu filho Liet.

— Vou levá-los para ver algo incrível — disse Kynes, enquanto sua mulher desmontava o mini acampamento —, Quero lhe mostrar como Dune pode ser. Então compreenderá por que trabalho tanto.

— Já compreendo, meu marido. — Frieth sorriu e fechou a tampa de sua mochila —. Não tem segredos para mim.

Olhou para ele com uma confiança estranha, e Kynes compreendeu que não era preciso explicar seus sonhos aos Fremen. A nenhum Fremen.

Quando avistou a trilha abrupta e difícil que os aguardava, Frieth decidiu levar a menino nos braços, em vez de carregá-lo sobre o kulon.

Kynes, absorto de novo em seus pensamentos, começou a falar em voz alta com Frieth, como se fosse seu mais devoto estudante.

— O que os analfabetos ecológicos não entendem de um ecossistema é que não é um sistema.

Agarrou-se a uma rocha da muralha montanhosa e se impulsionou para frente. Não se virou para observar as dificuldades do kulon para avançar. Seus cascos tropeçaram em uma rocha solta, mas continuaram adiante.

O pequeno Liet chorou brevemente nos braços de sua mãe, que continuou escutando seu marido.

— Um sistema mantém certa estabilidade variável, suscetível de ser destruída por um só passo em falso. O menor equívoco provoca a destruição total. Um sistema ecológico flui de um ponto a outro, mas se algo obstrui esse fluxo, a ordem vem abaixo. Uma pessoa inexperiente poderia não ver o desastre iminente até que fosse muito tarde.

Os Fremen já tinham introduzido insetos e animais escavadores, afim de que oxigenar o solo. Raposas, ratos cangurus, e animais maiores como lebres do deserto e ratos de areia, junto com seus predadores correspondentes, o falcão do deserto e o lobo anão, escorpiões, centopéias e aranhas, e até mesmo o morcego do deserto e vespas, todos interrelacionados na rede da vida.

Ignorava se Frieth compreendia o que dizia, ou se estava interessada. Com seu silêncio, dava a entender que concordava totalmente. Por um momento, desejou que sua esposa discutisse com ele, mas Pardot Kynes era seu marido e os Fremen o consideravam um profeta. Suas crenças eram muito fortes para questionar o que dizia.

Kynes respirou fundo através de seus filtros nasais e continuou escalando a ladeira da montanha. Se não chegassem à boca da caverna antes do meio-dia, o sol os abrasaria. Teriam que procurar refúgio e não chegariam à Depressão de Gelo até o dia seguinte. Kynes, ansioso por mostrar-lhes seu tesouro ecológico, acelerou o passo.

As rochas se elevavam a frente deles e a sua direita como a espinha dorsal de um lagarto faminto, projetando sombras e afogando sons. O kulon trotava incansável, farejava o chão em busca de algo para comer. Frieth, que carregava o menino sem queixar-se, deteve-se de repente. Seus olhos azuis se dilataram e olharam de um lado para outro. Inclinou a cabeça para escutar.

Kynes, cansado, sentindo calor e impaciente por alcançar seu destino, caminhou cinco metros mais sem reparar em que sua esposa havia parado.

— Marido! — sussurrou ela com a vista cravada na barreira montanhosa.

— O que foi? — perguntou Kynes, e piscou.

Um ornitóptero blindado apareceu pelo outro lado da muralha montanhosa. Tinha distintivos Harkonnen.

Frieth estreitou o bebê contra seu seio e correu em busca de refúgio.

— Marido! Por aqui! — Introduziu o menino em uma pequena fenda rochosa e correu para Kynes antes que este conseguisse reagir —. Harkonnen! Temos que nos esconder!

Agarrou-o pela manga do traje destilador.

O ornitóptero, com capacidade para dois homens, descreveu círculos perto da parede rochosa. Kynes compreendeu que eles os tinham visto. Atacar os Fremen solitários e caçá-los com total impunidade constituía uma diversão para as tropas Harkonnen.

Surgiram armas do focinho chato do aparelho. A porta lateral de plaz se abriu, e um sorridente Harkonnen uniformizado apontou seu fuzil laser. Tinha espaço suficiente para escolher seu alvo e apontar com calma.

Foi quando sua mulher passou junto ao asno do deserto, emitiu um grito aterrador e açoitou os quartos traseiros do animal. Assustada a besta empinou e correu trilha acima.

Frieth deu meia volta e desceu o penhasco a toda pressa, concentrada. Kynes se esforçou por segui-la. Caíram rolando pela ladeira, em busca de alguma sombra. Kynes não podia acreditar que tivesse deixado Liet sozinho, até compreender que seu filho estava muito melhor protegido que eles dois. O bebê, a salvo entre as sombras, tinha guardado um silêncio instintivo e não se movia.

Sentia-se desajeitado e exposto, mas Frieth, ao que parecia, sabia o que deviam fazer. Crescera como uma Fremen, e sabia fundir-se com o deserto.

O ornitóptero passou sobre eles e se dirigiu para o kulon apavorado. Frieth devia saber que os Harkonnen eliminariam primeiro o animal. O atirador mostrou pela porta seu rosto sorridente e torrado pelo sol. Disparou um raio branco-alaranjado quase invisível, que transformou o asno do deserto em partes de carne fumegante, vários dos quais rodaram pela penhasco, a cabeça e as patas dianteiras caíram, chamuscadas, sobre a trilha.

Depois, os disparos se concentraram na parede rochosa, e fragmentos de pedra saíram em todas direções. Kynes e Frieth correram em ziguezague, até se esconderem atrás de um saliente de lava rochosa, na qual ricochetearam os disparos. Kynes sentiu o aroma de ozônio e pedra chamuscada.

O ornitóptero se aproximou mais. O atirador apontou sua própria arma, sem permitir ao piloto que utilizasse as armas do aparelho.

Nesse momento as tropas que protegiam Kynes abriram fogo.

Muito perto da cova, e de almenas camufladas na muralha rochosa, canhoneiros Fremen dispararam contra o casco blindado do ornitóptero. Raios laser brilhantes cegaram a porta da cabine. Um defensor invisível utilizou um lança-foguetes antiquado, apoiando-o sobre o ombro, para disparar pequenos explosivos obtidos dos contrabandistas. O projétil alcançou a parte inferior do aparelho, que oscilou no ar.

O atirador caiu no vazio e se chocou contra as rochas, seguido de seu fuzil laser.

Frieth estava agachada contra a parede do penhasco, abraçada a Kynes e assombrada pela inesperada aparição dos Fremen. Kynes imaginava que teria que enfrentar os atacantes com as mãos nuas, mas por sorte não tinha sido necessário.

Enquanto o ornitóptero dava voltas no ar, os Fremen abriram fogo contra suas partes mais fracas. O ar cheirava a fogo e metal queimado. O piloto tentou estabilizar o aparelho, envolto em uma nuvem de fumaça negra, mas o ornitóptero se precipitou para o chão.

Chocou-se contra a parede do penhasco, partiu-se e continuou descendo na vertical. As asas articuladas continuaram batendo em vão, como músculos involuntários, até que o aparelho se desfez contra o chão.

— Que eu saiba, não há nenhum sietch por aqui — disse Frieth, sem fôlego e confusa —. Quem são estas pessoas? A que tribo pertencem?

— São soldados sob minhas ordens.

Observou que o piloto tinha sobrevivido à colisão. Parte da coberta se abriu, e o ferido se arrastou para fora, com um braço inerte. Ao fim de poucos momentos, soldados Fremen com uniforme de camuflagem saíram das rochas e se precipitaram para os restos do aparelho.

O piloto tentou retornar à duvidosa segurança do ornitóptero, mas dois Fremen o retiveram. Produziu-se o brilho branco-azulado de um crys, e o piloto morreu no ato. Mestres de água (manipuladores de corpos consagrados) levaram o cadáver para recuperar sua água. Kynes sabia que toda umidade ou produtos químicos fertilizantes extraídos daquele corpo seriam dedicados ao projeto da Depressão de Gelo, em vez de enriquecer uma única unidade familiar.

— O que pode haver tão importante aqui em cima? — perguntou Frieth —. O que você está fazendo, marido?

Kynes lhe dedicou um sorriso radiante.

— Você já vai descobrir. Queria que fosse nossa primeira visitante.

Frieth correu para tirar o menino de seu refúgio. Ergueu-o e verificou se não estava ferido. O pequeno Liet nem sequer chorava.

— É um verdadeiro Fremen — disse a mulher com orgulho, e o aproximou de Kynes.

Equipes de homens começavam a desmantelar o ornitóptero, e a retirar o metal, os motores e as provisões. Os Fremen mais jovens escalavam a perigosa parede do precipício para recuperar o fuzil laser.

Kynes e sua esposa passaram junto aos restos do kulon. Kynes exalou um suspiro de tristeza.

— Comeremos carne por fim. Não é algo freqüente, assim celebraremos na cova.

Os Fremen se esmeravam em eliminar os rastros da colisão. Arrastaram os pesados componentes até túneis ocultos, camuflaram as marcas deixadas nas rochas e até alisaram a areia. Embora Kynes convivesse há muito tempo com aquela gente, sua eficácia ainda o assombrava.

Ficou à frente da comitiva e conduziu Frieth até a abertura protegida. Passava do meio-dia e o sol queimava, com sua linha de fogo amarelo a crista trincada das montanhas. O aroma de umidade e o frio que surgia da cova eram vivificantes.

Kynes tirou os filtros e aspirou uma profunda baforada de ar. Indicou a sua mulher que o imitasse. Ela sorriu assombrada quando esquadrinhou as sombras.

— Cheiro a água, esposo.

Ele a agarrou pelo braço.

— Venha comigo. Isto é algo que quero que veja.

Quando dobraram uma esquina angulosa, cujo propósito era impedir a perda de luz e evaporação da gruta, Kynes apontou com um gesto empolado para o Éden que tinha criado na Depressão de Gelo.

Globos luminosos amarelos flutuavam no teto. O ar estava impregnado de umidade, enriquecido com as fragrâncias de flores, arbustos e árvores. O doce rumor da água corrente chegava de estreitos canais. Brotos magenta e alaranjados explodiam em maciços de flores que pareciam plantados aleatoriamente.

Sistemas de irrigação vertiam gotículas de água em depósitos repletos de algas, ao mesmo tempo em que ventiladores agitavam o ar para manter constante o nível de umidade. A gruta fervia de vida com manchas de cor, mariposas, traças e abelhas, embriagadas pelo tesouro de pólen e néctar que as rodeava.

Frieth soltou uma leve exclamação, e por um momento Kynes vislumbrou o que ocultava a máscara de porcelana do seu rosto, e viu muito mais do que tinha percebido até então.

— Isto é o paraíso, meu amor!

Um colibri revoou a frente dela, mas se afastou em seguida. Os jardineiros Fremen cuidavam das plantas sem dissimular sua euforia.

— Um dia, jardins como este florescerão ao longo de Dune, ao ar livre. Isto é apenas uma vitrine de exposição, com colheitas, plantas, água, árvores frutíferas, flores decorativas, erva verde. É um símbolo para todos os Fremen, a mensagem da minha visão. Quando virem isto, compreenderão o que podem obter.

Escorria umidade pelas paredes da caverna, acariciando a rocha ressecada que só tinha conhecido sede durante incontáveis eras.

— Nem sequer eu tinha compreendido completamente... até agora — disse Frieth.

— Compreende agora que vale a pena lutar, até mesmo morrer, por isso?

Kynes passeou pela cova, aspirando a fragrância das folhas e das flores. Viu uma árvore de onde pendiam frutos similares a laranjas amadurecidas. Agarrou um, grande e dourado. Nenhum dos trabalhadores pôs em dúvida seu direito a comê-lo.

— Um portygul — disse —, um dos frutos de que falei no sietch da Muralha Vermelha.

Entregou-o a Frieth como um presente, e ela o sustentou em suas mãos bronzeadas com reverência, pois era o maior tesouro que lhe tinham dado.

Kynes fez um gesto que abrangia toda a gruta.

— Lembre de tudo isto, minha esposa. Todos os Fremen têm que ver. Dune, nosso Dune, pode ser assim dentro de poucos séculos.

 

Até os inocentes carregam culpa a sua maneira. Ninguém vive sem pagar de uma forma ou outra.

Lady Helena Atreides, diário pessoal

 

Assim que recebeu a notícia da primeira coroação imperial em quase século e médio, a Casa Atreides começou a trabalhar nos preparativos. Da alvorada ao anoitecer, os criados do castelo de Caladan foram do guarda-roupa ao armazém, afim de reunir os objetos de vestir, jóias e presentes necessários para a viagem à corte imperial.

Nesse ínterim, Leto vagava por seus aposentos, tentava dar consistência a seu plano e decidir a melhor forma de obter a anistia para Rhombur e Kailea. O novo imperador, Shaddam, tem que atender minhas súplicas.

Seus conselheiros de protocolo tinham discutido durante horas sobre as cores adequadas das capas, braceletes e mantos de seda merh, se as jóias deviam ser chamativas ou discretas, caras gemas importadas de Ecaz ou mais simples. Por fim, devido a memorável ocasião compartilhada com Rhombur, Leto insistiu em levar uma pequena gema coralina que flutuasse em uma esfera transparente cheia de água.

Kailea tinha muita vontade de visitar o palácio imperial, onde sua mãe tinha prestado seus serviços, era o sonho de toda sua vida. Leto percebia o desejo em seus olhos verdes, a esperança em seu rosto, mas não teve outra alternativa senão proibir-lhe. Rhombur tinha que fazer parte do séquito para defender a causa de sua família, mas se fracassassem o herdeiro de Vernius poderia ser executado por abandonar seu refúgio. A vida de Kailea também correria perigo.

Não obstante, se sua missão tivesse êxito, Leto jurou a Kailea que a levaria a capital do planeta, em férias como nunca tinha sonhado.

Na hora silenciosa que precede ao amanhecer, Leto passeava por sua habitação, ouvindo o rangido das velhas vigas. Era o som confortável do lar. Quantas vezes outros duques tinham feito o mesmo enquanto meditavam sobre questões de Estado? Não tinha dúvida de que o duque Paulus percorrera aquele chão várias vezes, preocupado com as revoltas dos primitivos no moderado sul, ou com as exigências do imperador para que esmagasse rebeliões em outros planetas. Naqueles tempos, Paulus Atreides tinha manchado de sangue sua espada pela primeira vez e se transformara em companheiro de armas de Dominic Vernius.

Durante toda sua vida, o velho duque tinha servido ao Império com talento e sutileza, soubera quando ser implacável e quando ser indulgente. Utilizara a dedicação, a ética e a estabilidade econômica para moldar uma população devotamente fiel e orgulhosa da Casa Atreides.

Como Leto poderia estar a sua altura?

Sua voz ressoou na habitação.

— Pai, você me legou uma carga muito pesada.

Respirou fundo e deixou de compadecer-se, irritado. Faria tudo que estivesse em suas mãos por Caladan e pela memória do velho duque.

Em manhãs mais tranqüilas, Rhombur e ele teriam descido ao pátio de práticas para exercitar-se com facas e escudos sob o olhar vigilante de Thufir Hawat. Hoje, entretanto, Leto esperava descansar um pouco mais, esperança que não se materializou. Tinha dormido mau, atormentado pelo peso de decisões que precisava tomar. O mar se chocava contra o penhasco, águas turbulentas que refletiam o estado de ânimo de Leto.

Envolveu-se em uma capa forrada de pele de baleia importada, prendeu o cinturão e desceu descalço a escada que conduzia ao grande salão. Percebeu o aroma de café amargo, e o tênue aroma da melange que acrescentaria em sua taça. Leto sorriu, consciente de que o cozinheiro insistiria que o jovem duque recebesse uma injeção adicional de energia.

Ouviu ruídos na cozinha, pois estavam enchendo as unidades de preparação de comida, dispondo o café da manhã e atiçando as antiquadas chaminés. O velho duque sempre tinha preferido fogo de verdade em algumas estadias, e Leto tinha continuado a tradição.

Quando atravessou descalço a Sala das Espadas, a caminho do salão de banquetes, topou com um personagem inesperado.

Duncan Idaho, o jovem menino de quadras, tinha pego uma espada cerimoniosa de Paulus, longa e muito trabalhada, de seu armeiro. Segurava-a com a ponta apoiada contra o chão de lajes. Embora a espada fosse quase do seu tamanho, Duncan segurava o pomo com decisão.

O menino virou-se, sobressaltado ao ser descoberto. Leto ia lhe perguntar que fazia ali, só e sem permissão, mas viu os olhos arregalados de Duncan, e as lágrimas que sulcavam seu rosto.

O menino, envergonhado mas cheio de orgulho, se ergueu em toda sua estatura.

— Sinto muito, meu senhor duque. — Sua voz expressava um profundo pesar. Contemplou a espada e depois o retrato de Paulus Atreides na parede do fundo da sala de jantar. O patriarca olhava do quadro com invencível determinação. Estava vestido de matador, como se nada no universo pudesse desviá-lo de seu propósito —. Sinto muita falta dele — disse Duncan.

Leto sentiu um nó na garganta e se aproximou do menino.

Paulus tinha deixado sua marca em muitas vidas. Até neste menino que trabalhava com os touros, um menino normal — que mesmo assim tinha conseguido enganar os caçadores Harkonnen e fugir de Giedi Prime —, sentia a perda como uma ferida mortal.

Não sou o único que ainda chora a morte de meu pai, compreendeu Leto. Apertou o ombro de Duncan, em um silêncio mais eloqüente que uma longa conversa.

Duncan se apoiou na espada como se fosse uma muleta. Sua pele ruborizada recuperou o tom normal, e respirou fundo.

— Vim... vim lhe fazer uma pergunta, meu senhor, antes que parta para Kaitain.

Ouviu-se o tinido de panelas ao longe, e movimentos apressados dos criados. Alguém não demoraria para subir aos aposentos de Leto com a bandeja do café da manhã. Encontrariam seu quarto vazio.

— Pergunte — disse.

— É sobre os touros, senhor. Agora que Yresk morreu, eu cuido deles todos os dias, eu e outros meninos de quadra... mas o que vai fazer com eles? Toureará como seu pai?

— Não! — exclamou Leto, sentindo um calafrio de medo —. Não — repetiu com mais calma —. Acredito que não. Os dias de touradas em Caladan terminaram.

— Então o que eu vou fazer, meu senhor? Tenho que continuar cuidando dos animais?

Leto conteve uma gargalhada. Na sua idade, aquele menino deveria estar brincando, levando alguns recados, e com a cabeça cheia de fantasias sobre as grandes aventura que o aguardavam na vida. Mas nos olhos de Duncan viu uma pessoa muito mais velha que sua idade biológica.

— Escapou da cidade prisão dos Harkonnen, não é?

Duncan assentiu e mordeu o lábio inferior.

— Lutou contra eles em sua reserva florestal quando só tinha oito anos de idade. Matou vários, e se lembro bem, arrancou um artefato que tinham implantado em seu ombro e fez uma armadilha para os caçadores Harkonnen. Humilhou muito mesmo a Glossu Rabban.

Duncan assentiu de novo, sem orgulho, só confirmando os fatos.

— E atravessou o Império e chegou a Caladan, o lugar que considerava seu destino. Nem a distância de vários continentes o impediu de chegar a nossa porta.

— Tudo isso é certo, meu duque.

Leto apontou a espada cerimonial.

— Meu pai utilizava essa espada para exercitar-se. Por enquanto é muito grande para você, mas talvez com um pouco de instrução se transforme em um bom guerreiro. Um duque sempre precisa guardas e protetores de confiança. — umedeceu os lábios —. Acha que está capacitado para isso?

Os olhos verde-azulados do menino brilharam. Sorriu.

— Vai me enviar para a escola de armas de Ginaz, para que possa chegar a ser um mestre espadachim?

— Ei, ei! — Leto soltou uma súbita gargalhada que o surpreendeu, porque se parecia muito com a de seu pai — Não nos precipitemos, Duncan Idaho. Vamos forçá-lo até o limite de suas possibilidades, e depois veremos se merece tal recompensa.

Duncan assentiu com solenidade.

— Eu a merecerei.

Leto chamou os criados com um gesto. Tomaria o café da manhã com o menino e continuariam conversando.

— Pode contar comigo, meu duque.

Leto aspirou profundamente. Quem dera possuísse a confiança inquebrantável daquele menino.

— Sim, Duncan, acredito em você.

 

Parece que as inovações possuem vida e consciência próprias. Dadas as condições ideais, uma idéia radicalmente nova, uma mudança paradigmática, pode aparecer em muitas mentes simultaneamente. Ou pode permanecer oculta nos pensamentos de um homem durante anos, décadas, séculos... até que ocorre o mesmo a outra pessoa. Quantas descobertas brilhantes morrem sem ter nascido, ou permanecem adormecidas, sem que o Império as aceite?

Defensor do Povo de Richese.

Impugnação contra o Landsraad, o verdadeiro domínio do intelecto: Propriedade privada ou riquezas para a galáxia.

 

O transporte subterrâneo depositou seus dois passageiros nas profundezas da fortaleza Harkonnen e, com programada precisão, impulsionou-os por uma via de acesso.

A cápsula, com o barão e Glossu Rabban, precipitou-se para o caos de Harko City, uma mancha fumegante na paisagem onde os edifícios se aglutinavam. Que o barão soubesse, não existia mapa detalhado do subsolo da cidade, pois continuava crescendo como um cogumelo. Não estava muito seguro de onde iam.

Enquanto conspirava contra os Atreides, havia insistido que Piter De Vries encontrasse um espaço amplo para um laboratório e uma fábrica secretos. O Mentat tinha conseguido, e o barão não fez mais perguntas. O transporte, enviado por De Vries, conduzia-os a essa instalação.

— Quero conhecer todo o plano, tio — disse Rabban, que se remexia inquieto ao seu lado —. Diga o que vamos fazer.

No cubículo dianteiro, um piloto surdo-mudo conduzia o aparelho. O barão não prestava atenção aos edifícios escuros que deixavam para trás nem nos gases de escapamento e resíduos que as fábricas emitiam. Giedi Prime produzia produtos suficientes para autoabastecer-se, e recebia somas modestas procedentes do comércio de peles de baleia em Lankiveil e das minas de alguns asteróides. Entretanto, os autênticos benefícios da Casa Harkonnen, que diminuíam todos os outros, provinham da exploração da especiaria em Arrakis.

— O plano, Rabban, é simples — respondeu por fim —, e tenho a intenção de lhe oferecer um papel fundamental nele. Se for capaz de executá-lo.

Os olhos do seu sobrinho se iluminaram e seus lábios grossos se torceram num sorriso. De maneira surpreendente, soube guardar silêncio e esperar que o barão continuasse. Talvez, com o tempo aprenda...

— Se tivermos êxito, Rabban, nossa fortuna aumentará de uma forma drástica. Ainda melhor, obteremos satisfação pessoal ao saber que arruinamos por fim com a Casa Atreides, depois de tantos séculos de feudo.

Rabban esfregou as mãos, mas os olhos negros do barão se endureceram quando continuou.

— Se fracassar, me encarregarei de que seja levado a Lankiveil, onde receberá a instrução que seu pai pretende lhe dar, junto com canções e poemas sobre o amor fraternal.

Rabban sorriu.

— Não fracassarei, tio.

O veículo chegou a um laboratório blindado e protegido com medidas de alta segurança, e o surdo-mudo indicou por gestos que saíssem do veículo. O barão não teria sido capaz de voltar a fortaleza Harkonnen nem que sua vida dependesse disso.

— O que é este lugar? — perguntou Rabban.

— Um centro de pesquisa — disse o barão, e indicou que seguisse adiante —. Aqui estamos preparando uma surpresa desagradável.

Rabban se adiantou, ansioso por ver a instalação. O lugar cheirava a solda e residuais, fusíveis queimados e suor. Piter De Vries saiu para recebê-los, com um sorriso em seus lábios manchados. Seu passo afetado e seus movimentos sinuosos lhe davam a aparência de um lagarto.

— Faz semanas que está aqui, Piter. É melhor que tenha algo bom para nos mostrar. Eu lhe disse que não desperdiçasse o tempo.

— Não precisa se preocupar, meu barão — respondeu o Mentat, e indicou que entrassem na zona principal do laboratório —. Chobyn, nosso melhor pesquisador, superou a si mesmo.

— Pois eu pensava que os richesianos eram melhores em imitações que em inovações verdadeiras — disse Rabban.

— Sempre há exceções — respondeu o barão —. Vamos ver o que Piter quer nos mostrar.

O que De Vries tinha prometido enchia quase toda a câmara: uma nave de guerra Harkonnen modificada, de cento e quarenta metros de diâmetro. Esbelta e polida, tinha sido utilizada com êxito em batalhas convencionais para golpear duro e fugir a toda velocidade. Agora tinha sido reconvertida seguindo as especificações de Chobyn, com os estabilizadores verticais reduzidos, o motor substituído e uma seção da cabine de tropa eliminada para abrir espaço para a tecnologia necessária. Todos os registros de sua existência tinham desaparecido dos arquivos Harkonnen. Piter De Vries era um perito em manipulações semelhantes.

Um homem gorducho, calvo e com uma cavanhaque cinzento saiu do compartimento de motores da nave de combate, manchado de graxa e lubrificantes.

— Meu barão, senhor, fico feliz que tenha vindo ver o que construí para o senhor. — Chobyn guardou uma ferramenta no bolso do macacão —. Esta instalação está terminada. Meu não-campo funcionará perfeitamente. Sincronizei-o com a maquinaria desta nave.

Rabban golpeou com os nódulos o casco, perto da cabine do piloto.

— Por que é tão grande? Cabe de sobra um carro terrestre blindado. Como vamos trabalhar em segredo com isto?

Chobyn arqueou as sobrancelhas, sem reconhecer o homem corpulento.

— O senhor é..?

— É Rabban, meu sobrinho — disse o barão —. fez uma pergunta interessante. Pedi uma nave menor e discreta.

— É o menor que pude conseguir — respondeu Chobyn bufando —. Cento e quarenta metros é a menor capa de invisibilidade que um gerador de não acampo pode projetar. As dificuldades são... incríveis. Eu...

O pesquisador pigarreou, impaciente.

— Deve aprender a superar idéias preconcebidas, senhor. A compreender o que temos aqui. A invisibilidade compensa com folga qualquer diminuição na capacidade de manobra. — Enrugou o sobrecenho de novo —. Qual o problema do tamanho, se ninguém pode vê-lo? Esta nave de ataque cabe amplamente na área de carga de uma fragata.

— Assim será, Chobyn — disse o barão —. Se funcionar.

De Vries passeava junto ao flanco da nave.

— Se ninguém souber da existência da nave, Rabban, não correrá nenhum perigo. Imagine o caos que pode criar! Será um assassino fantasma.

— Oh, sim! — de repente, Rabban compreendeu —. Eu?

Chobyn fechou uma escotilha de acesso atrás dos motores.

— Tudo é simples e funcional. A nave estará pronta amanhã, quando partirem para a coroação do imperador Padishah.

— Eu a testei, barão — disse De Vries.

— Excelente — disse o barão — demonstrou ser muito valioso, Chobyn.

— Eu vou pilotar isso? — perguntou Rabban outra vez, como se ainda não acreditasse na idéia. Sua voz se quebrou de entusiasmo. O barão Harkonnen assentiu. Seu sobrinho, apesar das suas deficiências, era ao menos um piloto e atirador excelente, além de ser o herdeiro do barão.

O inventor sorriu.

— Acredito que tomei a decisão correta quando fui ao senhor diretamente, barão. A Casa Harkonnen compreendeu imediatamente as possibilidades da minha descoberta.

— Quando o imperador souber, pedirá uma não nave para ele — disse Rabban —. Até é possível que envie os Sardaukar para roubá-la.

— Tomaremos medidas para que Shaddam não descubra por enquanto — respondeu Piter De Vries enquanto esfregava as mãos.

— Você deve ser um homem brilhante, Chobyn — disse o barão —. Inventar isto!

— De fato, limitei-me a adaptar um campo Holtzman para nossos fins. Há séculos, a matemática de Holtzman foi desenvolvida para campos e motores que dobravam o espaço. Eu só me limitei a levar os princípios alguns passos adiante.

— E agora espera se transformar em um homem mais rico do que jamais sonhou, não é? — murmurou o barão.

— Mereço isso, não acha, senhor? Olhe o que criei para o senhor. Se tivesse ficado em Richese e seguido os canais oficiais, teria que enfrentar anos de legalismos, autenticação de títulos e pesquisas de patente, depois do que meu governo teria ficado com a maior parte dos lucros derivados de meu invento, para não falar dos plagiadores que tentariam me roubar ao descobrir o que eu estava fazendo. Um ajuste sem importância aqui, outro ali, e aparece alguém com uma patente diferente, que em essência é a mesma.

— Assim guardou o segredo até vir a nós? — perguntou Rabban —. Ninguém mais conhece esta tecnologia?

— Exato. Possuem os únicos geradores de não-campo do universo.

Chobyn cruzou os braços sobre seu macacão manchado.

— Possivelmente por enquanto — disse o barão —, mas os ixianos eram muito hábeis, e os Tleilaxu também são. Cedo ou tarde alguém conseguirá um artefato como este, se já não o tiverem.

Rabban se aproximou mais do richesiano desprevenido.

— Sei a que se refere, barão — disse Chobyn com um dar de ombros —. Não sou um homem ambicioso, mas eu gostaria de obter algum lucro do meu invento.

— É um homem prudente — disse o barão, e dirigiu um fugaz mas significativo sorriso para seu sobrinho robusto —. E merece uma boa recompensa.

— É sábio guardar o segredo sobre coisas importantes — respondeu Rabban.

Colocou-se atrás do inventor, que se sentia muito lisonjeado pelos elogios. Rabban agiu rápido. Enlaçou o pescoço de Chobyn com o braço musculoso e depois apertou como uma prensa. O inventor ofegou mas não emitiu o menor som. O rosto de Rabban avermelhou por causa do esforço, mas não retirou o braço até que ouviu o agradável rangido da coluna vertebral ao partir-se.

— Todos temos que ser cautelosos com nossos segredos, Chobyn — murmurou o barão, sorridente —. Você não foi.

Chobyn desabou como um boneco. A força hercúlea de Rabban o impedira de soltar um grito final ou uma blasfêmia gutural.

— Isso foi prudente, meu barão? — Perguntou De Vries —. Não deveríamos ter testado a nave primeiro, para nos assegurar de que somos capazes de reproduzir a tecnologia?

— Por que? Não confia em nosso inventor, o finado Chobyn?

— Funciona — disse Rabban —. Além disso, estava vigiado por visicons, e temos os planos detalhados e as hologravações que fez durante o processo de construção.

— Já cuidei dos operários — disse o Mentat —. Não haverá vazamentos.

Rabban sorriu com ansiedade.

— Reservou algum para mim?

De Vries deu de ombros.

— Bem, eu já me diverti, mas não sou um porco. Deixei alguns. — Indicou uma fileira de portas sólidas começando pela direita. Há cinco em macas, drogados. Divirta-se.

O Mentat deu uns tapinhas no ombro do corpulento Harkonnen.

Rabban avançou um par de passos para a porta, mas depois vacilou e olhou para o seu tio, que ainda não tinha lhe dado permissão para partir. O barão estava observando De Vries.

O Mentat pervertido enrugou o cenho.

— Somos os primeiros a ter uma não nave, barão. Com a vantagem da surpresa, ninguém suspeitará de nossas intenções.

— Minhas intenções — corrigiu o barão.

O Mentat assentiu e depois utilizou um transmissor manual para falar com vários trabalhadores do laboratório.

— Limpem este lixo e levem a nave à fragata antes da decolagem de amanhã.

— Quero que confisque todas as notas e registros tecnológicos — ordenou o barão quando o Mentat apagou o comunicador.

— Sim, meu senhor — disse De Vries —. Cuidarei disso pessoalmente.

— Pode ir — disse o barão ao seu impaciente sobrinho —. Uma ou duas horas de relaxamento lhe farão bem para concentrar sua mente no trabalho que nos espera.

 

Demonstram habilidades sutis e muito eficazes nas artes relacionadas da observação e coleta de dados. A informação é seu produto comercial.

Relatório imperial sobre as Bene Gesserit, utilizado com propósitos pedagógicos

 

— Isto impressiona de verdade — disse a irmã Margot Rashino Zea, enquanto olhava para os imponentes edifícios que se erguiam a cada lado do enorme ovalóide que formava a praça compartilhada pelo Império e o Landsraad —. Um espetáculo para todos os sentidos.

Depois de longos anos no nublado e bucólico Wallach IX, tanta beleza feria seus olhos.

Uma névoa refrescante se erguia da fonte situada no centro da praça, uma extraordinária composição artística que media cem metros de altura. A fonte, construída em forma de nebulosa, estava cheia de planetas e outros corpos celestes que projetavam jorros perfumados em miríades de cores. Finos esguichos criavam cachos irisados que dançavam no ar silencioso.

— Ah, sim, vejo que nunca esteve em Kaitain — disse o príncipe herdeiro Shaddam, que caminhava junto à adorável Bene Gesserit loira.

Guardas Sardaukar seguiam a uma distância prudente, convencidos de que estavam perto o bastante para impedir que algo ocorresse ao herdeiro imperial. Margot reprimiu um sorriso, satisfeita por perceber como as pessoas alheias à Irmandade a subestimavam.

— Eu já o tinha visto antes, senhor, mas a familiaridade não diminui minha admiração pela magnífica capital do Império.

Margot, vestida com um novo hábito negro que ondulava quando se movia, ia flanqueada por Shaddam e Hasimir Fenring. Não escondia seu longo cabelo dourado, seu rosto fresco, sua beleza. As pessoas costumavam esperar que as Bene Gesserit fossem velhas bruxas cobertas com túnicas escuras, mas muitas, como Margot Rashino Zea, eram muito atraentes. Graças a uma exata liberação de seus feromonas e a flertes seletivos podia utilizar sua sexualidade como uma arma. Mas aqui não, ainda não. A Irmandade tinha outros planos para o futuro imperador.

Margot era quase da mesma altura que Shaddam, e muito mais alta que Fenring. Atrás deles, fora do alcance dos ouvidos, seguia-os um séquito de três reverendas madres, mulheres que tinham sido investigadas e registradas pelo próprio Fenring. O príncipe herdeiro ignorava seu papel naquele encontro, mas Margot ia explicar-lhe os motivos.

— Deveria ver estes jardins de noite — disse Shaddam —. A água parece uma chuva de meteoros.

— Ah, sim — disse Margot com um leve sorriso. Seus olhos verde-acinzentados cintilaram —. É meu lugar favorito a noite. Vim duas vezes desde minha chegada... enquanto esperava esta entrevista privada, senhor.

Embora tentasse manter uma conversa corriqueira com a representante da poderosa Bene Gesserit, Shaddam se sentia inquieto. Todos queriam algo, todos tinham intenções ocultas, e todos os grupos pensavam que ele lhes devia favores ou que possuíam elementos suficientes de extorsão para modificar suas opiniões. Fenring já se ocupara de alguns desses parasitas, mas chegariam mais.

Sua inquietação atual estava menos relacionada com a irmã Margot que com suas preocupações pela crescente desconfiança e agitação que reinava nas Grandes Casas. Mesmo sem uma autópsia dos Suks, vários membros importantes do Landsraad tinham suscitado perguntas incômodas sobre a misteriosa morte do imperador. As alianças estavam mudando. Impostos e contribuições de vários planetas ricos se atrasaram, sem causa justificada. E os Tleilaxu afirmavam que demorariam anos para produzir a prometida especiaria sintética.

Shaddam e seu conselho interno voltariam a falar do início da crise nessa manhã, continuação das reuniões que se encadearam durante toda a semana. A duração do reinado de Elrood tinha forçado uma estabilidade (quando não um entancamento) ao longo do Império. Ninguém se recordava de como realizar uma troca ordenada de poderes.

Em muitos planetas as forças militares tinham sido aumentadas e colocadas em estado de alerta. Os Sardaukar de Shaddam não eram exceção. Os espiões estavam mais ocupados que nunca, em todos os frontes. Em alguns momentos se perguntava se impor um novo destino ao leal chambelán Aken Hesban (confinado em um diminuto escritório de paredes de pedra situado nas vísceras de uma mina asteróide) não havia sido um erro, mas o chamaria imediatamente se a situação piorasse.

Mas fará frio em Arrakis antes que isso aconteça.

A inquietação de Shaddam o tornava assustadiço, até mesmo supersticioso. Seu condenado pai morrera, enviado aos infernos descritos na Bíblia Católica Laranja, mas ainda sentia o sangue invisível em suas mãos.

Antes de sair do palácio para reunir-se com a irmã Margot, Shaddam tinha pego uma capa qualquer, para esquentar os ombros de um frio imaginário. A capa dourada pendia no guarda-roupa, junto com muitos outros objetos que nunca tinha usado. Só agora recordou que era uma das favoritas de seu pai.

Ao perceber isso, sua pele se arrepiou. O fino tecido lhe produzia comichões e o fazia tremer. Sentia que a fina corrente de ouro rodeava seu pescoço como um nó.

Ridículo, pensou. Os espíritos dos mortos não ocupavam objetos inanimados, não podiam lhe fazer mal. Uma Bene Gesserit seria capaz de perceber seu mal-estar, e não podia permitir que aquela mulher acumulasse tanto poder sobre ele.

— Eu gosto dessas obras de arte — disse Margot. Apontou um andaime fixo na fachada do Salão da Oratória do Landsraad, onde um grupo de pintores trabalhavam em um mural que mostravam cenas de belezas naturais e avanços tecnológicos de todas as partes do Império —. Acredito que seu bisavô, Vutier Corrino II, foi em grande parte responsável.

— Ah, sim... Vutier foi um grande mecenas das artes — disse Shaddam com certa dificuldade. Resistiu ao impulso de tirar a capa e jogá-la no chão, e jurou que a partir daquele momento só usaria os objetos que lhe pertencessem —. Disse que um espetáculo sem calidez ou criatividade não significava nada.

— Acredito que deveria ir direto ao assunto, irmã — sugeriu Fenring ao observar o desconforto de seu amigo, embora não imaginasse a causa —. O tempo do príncipe herdeiro é muito valioso. Aconteceu muita agitação depois da morte do imperador.

Shaddam e Fenring tinham assassinado Elrood IX.

O fato nunca poderia ser apagado e, segundo os rumores, não tinham escapado das suspeitas. Havia possibilidades de uma guerra entre o Landsraad e a Casa Corrino, a menos que o príncipe herdeiro consolidasse sua posição, e logo.

Margot insistira tanto na importância de certo assunto, para o qual tinha utilizado toda a sigilosa influência da Bene Gesserit, que lhe tinham concedido audiência ao fim de pouco tempo. O único período disponível era durante os passeios matutinos de Shaddam, hora que reservava para a reflexão pessoal (“para chorar por seu pai morto”, segundo os rumores que Fenring espalhara pela corte).

Margot dedicou um deslumbrante sorriso e um movimento de seu cabelo cor mel ao homem com cara de doninha. Seus olhos verdes o estudaram.

— Sabe muito bem o que quero falar com seu amigo, Hasimir — disse, empregando um tom familiar que assombrou o herdeiro imperial —. Não o preparou?

Fenring sacudiu a cabeça e Shaddam viu que se enfraquecia na presença da mulher. O mortífero homem não era o mesmo. Fazia vários dias que a delegação da Bene Gesserit tinha chegado, e Margot Rashino Zea tinha passado muito tempo com Fenring, ambos mergulhados em profundas discussões. Shaddam inclinou a cabeça e intuiu certo afeto, ou ao menos respeito mútuo, entre os dois. Impossível!

— Hummmm, pensei que você expressaria isso melhor que eu, irmã — disse Fenring —. Senhor, a encantadora Margot trouxe uma proposta interessante. Acredito que deveria escutá-la.

A Bene Gesserit olhou para Shaddam de uma forma estranha. Percebeu meu desconforto? Perguntou-se apavorado. Conhece os motivos de meu estado de ânimo?

O suspiro da fonte afogou suas palavras. Margot agarrou as mãos de Shaddam. Seu tato era suave e quente. O futuro imperador cravou a vista em seus olhos sensuais e sentiu que recuperava a energia.

— Deve ter uma esposa, senhor — disse ela. — E a Bene Gesserit pode lhe proporcionar a melhor candidata para o senhor e para a Casa Corrino.

Shaddam, sobressaltado, olhou para seu amigo e retirou as mãos com brutalidade. Fenring sorriu, inquieto.

— Logo será coroado imperador — continuou Margot —. A Irmandade pode ajudá-lo a consolidar seu poder, mais que com aliança com apenas uma Grande Casa do Landsraad. Quando vivo, seu pai estabelecera alianças matrimoniais com as famílias Mutelli, Hagal e Ecaz, assim como com sua mãe, da Hassika V. Entretanto, nestes tempos difíceis acreditamos que será mais benéfico para o senhor aliar-se com o poder e os recursos da Irmandade Bene Gesserit. — Falava com firmeza e tom convincente.

Shaddam reparou que o séquito de irmãs se deteve e olhava para ele. Os Sardaukar continuavam vigilantes mas imóveis, como estátuas. Olhou para o rosto perfeito de Margot, seu cabelo dourado, sua presença hipnótica.

Surpreendeu-se quando de repente ela apontou o dedo.

— Está vendo a mulher do centro? A de cabelo brônzeo?

Ao perceber o gesto, uma reverenda madre se adiantou. Shaddam forçou a vista e a achou bastante atraente. Não tão adorável como Margot, infelizmente, mas parecia jovem e fresca.

— Chama-se Anirul, uma Bene Gesserit de Fila Escondida.

— O que significa isso?

— Só um de nosso títulos, senhor, muito comum na Irmandade. Não significa nada fora da ordem e é irrelevante para seu trabalho de imperador. — Margot fez uma pausa —. Só precisa saber que Anirul é uma de nossas melhores irmãs. Nós a oferecemos em matrimônio.

Shaddam ficou boquiaberto.

— Como?

— As Bene Gesserit são muito influentes, como já sabe. Podemos resolver suas dificuldades atuais com o Landsraad. Isso o deixaria com as mãos livres para se dedicar a seu trabalho de imperador e assegurar um lugar na história. Alguns de seus avós o fizeram, e com resultados positivos. — Entreabriu seus olhos verdes —. Conhecemos os problemas que enfrenta, senhor.

— Sim, sim, eu sei.

Shaddam olhou para Fenring, como se o homem com cara de doninha pudesse lhe dar explicações. Depois indicou a Anirul que avançasse. Os guardas olharam inquietos, sem saber se deviam acompanhá-la.

O olhar de Margot se tornou mais intenso.

— O senhor agora é o homem mais poderoso do universo, mas o poder político está equilibrado entre o senhor, o Conselho do Landsraad, e as poderosas forças da Corporação Espacial e da Bene Gesserit. Seu matrimônio com uma das irmãs seria... mutuamente benéfico.

— Além disso, senhor — acrescentou Fenring, com os olhos maiores que de costume —, uma aliança com outra Grande Casa criaria certos... problemas. Sua união com uma família poderia ofender outra. Não queremos provocar outra rebelião.

Embora estivesse surpreso, a sugestão não desagradou Shaddam. Um dos adágios de seu pai sobre a liderança indicava que um governante devia ouvir seus instintos. A capa enfeitiçada pendia sobre seus ombros como um peso. Talvez os poderes da Irmandade pudessem afugentar qualquer força infiltrada no objeto e no palácio.

— Essa Anirul parece muito atraente.

Shaddam observou a mulher quando avançou e parou a frente dele, com os olhos baixos.

— Então, considerará nossa proposta, senhor? — perguntou Margot, e deu um respeitoso passo para trás, à espera da decisão.

— Considerá-la? — Shaddam sorriu —. Já fiz isso. Em minha posição tenho que tomar decisões rápidas. — Olhou para Fenring com os olhos entreabertos —. Não concorda, Hasimir?

— Hummmm, isso depende de se escolhe um novo objeto ou uma esposa.

— Sábio conselho na aparência — disse Shaddam —, mas falto de engenho, diria eu. Está claro que é amigo da irmã Margot, e você arrumou este encontro sabendo muito bem o pedido que ela apresentaria. Portanto, devo supor que está de acordo com a teoria da Bene Gesserit.

Fenring fez uma reverência.

— A decisão é sua, senhor, independentemente de minha opinião ou meus sentimentos para com esta bela mulher que tenho ao meu lado.

— Muito bem. Minha resposta é... sim. — A reverenda madre Anirul nem sequer sorriu —. Acha que tomei a decisão correta, Hasimir?

Fenring, pouco acostumado a ser pilhado em falta, pigarreou.

— É uma bela dama, senhor, e não tenho dúvidas que será uma esposa soberba. Por outro lado, a Bene Gesserit seria um aliado excelente, sobretudo nestes difíceis tempos de transição.

O príncipe herdeiro riu.

— Parece um de nossos diplomatas. Diga sim ou não, sem subterfúgios.

— Sim, majestade. Ou seja, digo sim, sem vacilar. Anirul é uma dama de esplêndida educação e disposição... um pouco jovem, mas provida de uma grande sabedoria. — Fenring olhou para Margot —. Tenho certeza que ela é fértil.

— Os herdeiros reais fluirão de sua virilha — respondeu Margot.

— Bela imagem! — exclamou Shaddam com uma gargalhada estentórea —. Tragam-na para que possa conhecê-la.

Margot levantou a mão, e Anirul se aproximou do príncipe herdeiro. As outras Bene Gesserit emitiram murmúrios de satisfação.

Shaddam examinou a mulher e observou que sua futura esposa possuía um rosto delicado. Reparou em diminutas rugas ao redor dos olhos de corsa, embora o olhar fosse juvenil e os movimentos ágeis. Continuava com a cabeça baixa. Olhou um momento para o príncipe herdeiro, como se estivesse acanhada, e desviou a vista.

— O senhor tomou uma das decisões mais importantes de sua vida, — disse Margot —. Seu reinado se iniciará sobre uma base firme.

— Isto é motivo de celebração, com toda a pompa e esplendor de que o Império for capaz — disse Shaddam —. De fato, anunciarei que o matrimônio acontecerá no mesmo dia de minha coroação.

Fenring sorriu.

— Será o maior espetáculo da história do Império.

Shaddam e Anirul trocaram um sorriso e pela primeira vez tocaram suas mãos.

 

Quando o centro da tormenta não se move, é que está em seu caminho.

Antiga sabedoria Fremem

 

A fragata Atreides partiu do espaçoporto de Baía City com um carregamento de estandartes, roupas finas, jóias e presentes destinados à coroação do imperador. O duque Leto queria contribuir de maneira visível à magnificência da cerimônia imperial.

— É uma boa tática — disse Thufir Hawat com o semblante sombrio —. Shaddam sempre gostou do luxo que seu cargo traz. Quanto melhor vestido for e mais presentes lhe oferecer, mais impressionado ficará... e portanto se sentirá mais inclinado a satisfazer seu pedido.

— Pelo visto, valoriza mais a forma que a substância — murmurou Leto —. Mas as aparências enganam, e não me atrevo a subestimá-lo.

Kailea tinha posto seu vestido azul celeste e lilás para se despedir, mas ficaria no castelo, sem que ninguém visse seu belo adorno. Leto sabia quanto ela ansiava ir à corte imperial, mas se negou a mudar de opinião. O velho Paulus também tinha lhe ensinado as virtudes da teimosia.

Rhombur surgiu vestido com calças, uma camisa de seda sintética merh e um ondeante manto púrpura e cobre, as cores da Casa Vernius. ergueu-se orgulhoso, enquanto Kailea soltava uma exclamação ao ver a valentia de seu irmão, que exibia a herança familiar. Parecia muito mais adulto, musculoso e bronzeado.

— Alguns poderiam considerar isso como arrogância, meu duque — disse Hawat, e apontou a vestimenta de Rhombur.

— Tudo é um jogo, Thufir. Temos que recuperar a grandeza que se perdeu quando os Tleilaxu obrigaram esta nobre família a declarar-se renegada. Temos que demonstrar a falta de perspicácia da decisão de Elrood. Temos que ajudar Shaddam a compreender que a Casa Vernius poderia ser um grande aliado do trono imperial. Afinal — apontou para o orgulhoso Rhombur —, prefeririam ter como aliado este homem ou os Tleilaxu?

O Mestre de Assassinos lhe recompensou com um leve e contido sorriso.

— Eu não diria isso na cara de Shaddam.

— Diremos sem palavras — replicou Leto.

— Você será um duque formidável, meu senhor — disse Hawat.

Saíram para a pista de aterrissagem, onde o habitual complemento de soldados Atreides, dobrado em número para a ocasião, tinha terminado de subir à fragata que os conduziria ao Cruzeiro que aguardava.

Kailea deu um abraço formal em Leto. Seu vestido colorido rangeu com os movimentos, e Leto apertou a bochecha contra um pente dourado em seu cabelo acobreado escuro. Sentiu a tensão nos braços de Kailea, e intuiu que ambos desejavam fundir-se em um abraço muito mais apaixonado.

Depois, com lágrimas nos olhos, a filha de Dominic e Shando Vernius abraçou seu irmão.

— Tome cuidado, Rhombur. Isto é muito perigoso.

— Talvez seja a única maneira de limpar o nome de nossa família — respondeu ele —. Temos que nos entregar à misericórdia de Shaddam. Possivelmente seja diferente de seu pai. Não ganhará nada mantendo a sentença contra nós, e tem muito a perder, sobretudo considerando a agitação que percorre o Império. Necessita do apoio de todos os seus amigos.

Sorriu e produziu um elegante redemoinho com a capa púrpura e cobre.

— Os Bene Tleilax arruinarão IX — observou Kailea —. Não têm nem idéia de como realizar negócios em escala planetária.

Leto, Rhombur e Hawat seriam os representantes de Caladan. Insolentes, talvez, e impertinentes em demasia... ou tomariam sua atitude como uma demonstração de serenidade e confiança? Leto confiava neste último.

Como duque, sabia que desafiar abertamente a política imperial era imprudente, mas seu coração o impulsionava a jogar se as apostas eram altas, em especial quando tinha a razão do seu lado. Isso também tinha sido ensinado pelo velho duque.

Seu pai lhe ensinara que um blefe executado com coragem costumava dar melhores resultados que um plano conservador e sem imaginação. Por que não este? Faria o velho duque algo similar, ou teria escolhido um método mais seguro, aconselhado por sua esposa? Leto ignorava, mas se alegrava de que agora ninguém se interporia em seu caminho, sobretudo a severa e inflexível lady Helena. Quando decidisse casar-se, sua esposa não se pareceria em nada com ela.

Tinha enviado um Mensageiro oficial ao convento das irmãs do Isolamento, para informar sua mãe que Rhombur e ele iriam a Kaitain. Não explicou seu plano nem comentou os perigos, mas queria que estivesse preparada para o pior. Como não havia mais herdeiros, lady Helena se transformaria na regente da Casa Atreides se as coisas saíssem erradas, se Leto fosse executado ou morresse em um “acidente”. Embora soubesse que ela planejara a morte de seu pai, não havia outra alternativa. Era uma questão de necessidade.

Carregaram para a bordo as últimas peças da bagagem e depois de alguns segundos a fragata sulcou os céus cinzentos de Caladan. Esta viagem seria diferente dos anteriores. Dela dependia o futuro da linhagem de Rhombur... e talvez o seu.

Tendo em conta toda a pompa cerimonial, Leto teria sorte se lhe concedessem uma audiência quatro dias depois da coroação. Nesse momento, ele e Rhombur apresentariam o pedido oficial a Shaddam, explicariam o caso e se entregariam a sua mercê.

Nos primeiros dias do novo regime, o novo imperador Padishah arriscaria-se a turvar as festividades com a confirmação de uma sentença de morte? Muitas Casas ainda viam presságios em cada ação, e havia rumores que Shaddam era tão supersticioso como qualquer outro. Este presságio seria muito claro. Com sua decisão, Shaddam estabeleceria o aspecto de seu reinado. Desejaria começar negando justiça? Leto esperava que não.

A fragata ducal ocupou o lugar designado na enorme e lotada área de carga do Cruzeiro. Lançadeiras cheias de passageiros manobravam com cautela para ocupar seu lugar, junto com transportes e naves de carga que guardavam os produtos comerciais de Caladan: arroz pundi, medicamentos extraídos de algas marinhas, tapeçarias e pescado congelado. Naves particulares ainda estavam carregando mercadorias. A enorme nave da Corporação ia de planeta em planeta em sua rota indireta para Kaitan, e a área de carga estava abarrotada de naves vindas de outros planetas do Império, que iam assistir à coroação.

Enquanto esperavam, Thufir Hawat olhou para o cronômetro montado em uma parede da fragata.

— Ainda faltam três horas antes que o Cruzeiro esteja preparado para a partida. Sugiro que utilizemos esse tempo para treiná-los, meu senhor.

— Você sempre sugere isso, Thufir — disse Rhombur.

— Porque são jovens e necessitam de muita instrução — replicou o Mentat.

A luxuosa fragata de Leto contava com tantas diversões, que seu séquito e ele podiam esquecer que estavam fora do planeta, mas já relaxara o bastante, e o nervosismo lhe injetava uma nervosa energia que precisava descarregar.

— Tem algo em mente, Thufir? O que se pode fazer aqui?

Os olhos do Mestre de Assassinos se iluminaram.

— No espaço há muitas coisas que um duque e um príncipe — apontou para Rhombur — podem aprender.

Uma nave de combate sem asas, do tamanho de um ornitóptero, saiu da fragata e se afastou do Cruzeiro. Leto dirigia os controles, Rhombur estava no assento do co-piloto. Leto recordou por um instante sua breve tentativa de exercitar-se na nave orbital ixiana. Quase um desastre.

Hawat, atrás de ambos os jovens, sustentava um protetor móvel contra colisões. Com seu arnês de segurança parecia um pilar de sabedoria, e olhava com expressão severa para seus dois tutelados. Um painel de emergência flutuava a frente de Hawat.

— Esta nave é diferente de um bote no mar, jovens senhores — disse Hawat —. Ao contrário das naves maiores, aqui temos gravidade zero, com todas as vantagens e restrições que isso trás. Ambos praticaram com as simulações, mas agora estão a ponto de fazê-lo no espaço real.

— Eu serei o primeiro a disparar — disse Rhombur. Era o acordo ao qual tinham chegado.

— E eu piloto — acrescentou Leto —, mas trocaremos de lugar dentro de meia hora.

— Não é provável, senhor duque — disse Hawat —, que encontre uma situação que exija um combate, mas...

— Sim, sim, sempre devo estar preparado — interrompeu Leto —. Se me ensinou algo, Thufir, é isso.

— Primeiro têm que aprender a manobrar.

Hawat fez Leto descrever uma série de curvas e arcos pronunciados. mantinham-se a distância do enorme Cruzeiro, mas perto o bastante para que constituísse um verdadeiro obstáculo àquela velocidade. Em certo momento, Leto reagiu com muita rapidez e lançou a nave em uma incontrolada queda em espiral, que solucionou ajustando os motores de reação em direção contrária como freios.

— Reação e contra-reação — disse Hawat —. Quando você e Rhombur sofreram aquele acidente de navio em Caladan, puderam encalhar em um recife para evitar que a situação piorasse. Aqui, entretanto, não existe rede de segurança. Se perderem o controle, não se recuperarão até tomar as contramedidas necessárias. Poderiam cair e se desintegrar na atmosfera ou, já no espaço, se precipitar no vazio.

— Er, hoje não faremos nada disso — disse Rhombur. Olhou para seu amigo —. Gostaria de praticar um pouco de tiro ao alvo, Leto, se puder manter estável este traste por alguns minutos.

— Sem problema.

Hawat se agachou entre os dois jovens.

— Trouxe alvos de treino. Rhombur, tente destruir tantos quantos puder. Pode utilizar as armas que desejar. Raios laser, explosivos convencionais ou projéteis de multifase. Mas antes, meu senhor — apertou o ombro de Leto —, vamos para o outro lado do planeta, onde não corremos o risco de acertar o Cruzeiro se os disparos de Rhombur falharem.

Leto deu uma risada e voou sobre as nuvens de Caladan em direção à face escura do planeta. Lá embaixo, brilhavam fileiras de luzes das cidades que acompanhavam as costas longínquas. Atrás dele, o brilho do sol de Caladan formava um halo contra o eclipse escuro do planeta.

Hawat lançou uma dúzia de globos brilhantes aleatoriamente. Rhombur segurou o controle de armas, uma alavanca provida de painéis multicoloridos, e disparou em todas as direções. Quase todos os projéteis erraram, embora volatilizasse um globo com um jorro do canhão multifase. Mas tinha sido uma casualidade, e Rhombur não se orgulhou disso.

— Paciência e autodomínio, príncipe — disse Hawat —. Deve utilizar cada disparo como se fosse o último. Não despreze sua importância. Quando tiver aprendido a acertar o alvo, poderá ser mais liberal com as munições.

Leto perseguiu os globos, enquanto Rhombur disparava. Quando conseguiu eliminar por fim todos os alvos, Leto e ele trocaram de posições e continuaram praticando as manobras.

Duas horas transcorreram em um abrir e fechar de olhos, e por fim o Mentat ordenou que retornassem ao Cruzeiro da Corporação, afim de acomodarem-se antes que o Navegante dobrasse o espaço e guiasse a nave para Kaitain.

Leto, acomodado em sua poltrona coroada com o símbolo do falcão, contemplou pela janela as numerosas naves que enchiam a área do Cruzeiro. Bebeu um gole de vinho quente, que o fez lembrar Kailea e a noite em que tinham examinado as posses do velho duque. Desejava interlúdios plácidos e companhia carinhosa, embora soubesse que passaria muito tempo antes que sua vida serenasse de novo.

— As naves estão muito juntas — disse —. Isso me deixa nervoso.

Dois transportes Tleilaxu estavam perto da fragata Atreides. Do outro lado dos transportes, uma fragata Harkonnen estava no lugar que a Corporação lhe tinha atribuído.

— Não há nada com que se preocupar, meu duque — disse Hawat —. Segundo as regras da guerra ditadas pela Grande Convenção, ninguém pode disparar uma arma dentro de um Cruzeiro. Qualquer Casa que violasse essa norma não voltaria a ter acesso a nenhuma nave da Corporação. Ninguém correria esse risco.

— Nossos escudos estão conectados, para o caso de precisarmos? — perguntou Leto.

— Infernos carmesins, nada de escudos, Leto! — disse Rhombur, e depois riu —. Você devia ter aprendido algo mais sobre os Cruzeiros em IX... ou passava todo o tempo olhando para minha irmã?

Leto avermelhou.

— A bordo de um Cruzeiro — explicou Rhombur — os escudos interferem com o sistema de propulsão Holtzman, e impedem que o espaço se dobre. Um escudo ativo interrompe o transe de navegação de um Navegante. Morreríamos no espaço.

— Também está proibido por nosso contrato de transporte com a Corporação — acrescentou Hawat, como se esse motivo legal tivesse mais peso.

— De modo que estamos aqui desprotegidos, nus e confiantes — grunhiu Leto, que continuava olhando para a nave Harkonnen.

— Consegue me fazer lembrar quantas pessoas me desejam ver morto — disse Rhombur com uma careta.

— Todas as naves que estão dentro deste Cruzeiro são igualmente vulneráveis, príncipe — disse Hawat —, mas o maior perigo o aguarda em Kaitain. No momento, eu penso em descansar um pouco. A bordo de nossa fragata estamos a salvo.

Leto olhou para o longínquo teto do Cruzeiro. Em uma minúscula câmara de navegação, um Navegante, em um contêiner de gás de especiaria alaranjado, controlava a gigantesca nave.

Apesar das garantias de Hawat, Leto continuou nervoso. Ao seu lado, Rhombur também se remexia, mas se esforçava por dissimular seu nervosismo. O jovem duque exalou um suspiro e se reclinou no assento, com a intenção de acalmar seus nervos e preparar-se para a crise política que ia desencadear em Kaitain.

 

As tormentas geram tormentas. A raiva gera raiva. A vingança gera vingança. As guerras geram guerras.

Aforismo Bene Gesserit

 

As escotilhas do casco externo do Cruzeiro estavam seladas, as aberturas fechadas, e a nave preparada para partir. O Navegante não demoraria para cair em transe, e a viagem se iniciaria. O próximo e último destino da rota seria Kaitain, onde representantes das Grandes e Pequenas Casa do Landsraad tinham começado a chegar para assistir a coroação do imperador Padishah Shaddam IV.

O Navegante afastou o gigantesco Cruzeiro do poço gravitacional de Caladan e saiu para o espaço, preparado para ligar os enormes motores Holtzman que o transportariam de salto em salto através da dobra espacial.

Os passageiros das fragatas alojadas na área de carga não sentiram movimento algum, nem vibrações de motores, nem mudança de posição, nem som. As naves apinhadas continuavam em seus espaços isolados como tabuletas de dados no complexo de uma biblioteca. Todas as Casas seguiam as mesmas normas, e depositavam sua fé na capacidade de um único ser mutante para encontrar uma rota segura.

Como ovelhas em um matadouro, pensou Rabban, enquanto subia em sua nave invisível.

Poderia ter volatilizado uma dúzia de fragatas em um abrir e fechar de olhos. Liberado seus instintos. Rabban teria sentido muito prazer com essa matança, a jubilante sensação da violência mais extravagante...

Mas esse não era o plano, ao menos por hora.

Seu tio tinha desenvolvido um estratagema de extrema delicadeza. “Preste atenção e aprenda”, havia dito. Bom conselho, admitiu Rabban. Estava descobrindo os benefícios da sutileza e o prazer da vingança saboreada durante longo tempo.

Isso não significava que Rabban renunciasse aos métodos mais ásperos de violência, nos quais era um especialista. Ao contrário, acrescentaria os métodos do barão a seu repertório homicida. Seria uma pessoa muito capacitada quando herdasse a liderança da Casa Harkonnen.

Em certo momento, as escotilhas da fragata Harkonnen se abriram, e o campo de contenção diminuiu o suficiente para permitir que a esbelta nave de guerra de Rabban descesse ao vazio hermético da área de carga do Cruzeiro.

Antes que alguém pudesse ver a nave, manipulou os controles como Piter De Vries tinha ensinado e conectou o não acampo. Não percebeu a menor diferença, não viu nenhuma mudança nas imagens transmitidas por seus monitores. Mas agora era um fantasma assassino: invisível, invencível.

Para qualquer observador, e para os sensores externos, todos os sinais eletromagnéticos que incidissem no não-campo ricocheteariam e transformariam a nave em um lugar vazio. Os motores da nave de ataque, mais silenciosos que um sussurro, não emitiam sons ou vibrações detectáveis.

Ninguém suspeitaria de nada. Ninguém seria capaz de imaginar uma nave invisível.

Rabban ativou os controles de manobra e afastou em silêncio o mortífero aparelho da fragata Harkonnen, em direção ao veículo Atreides. A nave de Rabban era muito grande para seu gosto, pouco manejável e excessivamente volumosa para deslocar-se rapidamente, mas sua invisibilidade e silêncio absoluto faziam a diferença.

Seus dedos grossos manipularam os painéis de controle, e experimentou uma mescla de alegria, poder, glória e satisfação. Logo, uma nave cheia de asquerosos e sujos Tleilaxu seria destruída. Centenas de passageiros morreriam.

Antes, Rabban sempre utilizara sua posição na Casa Harkonnen para conseguir o que desejava sem que ninguém contestasse, para manipular e matar os poucos desventurados que se interpunham em seu caminho. Claro que fazia isso apenas para se divertir. Agora estava realizando uma função vital, um ato do qual dependia o futuro da Casa Harkonnen. O barão o escolhera para esta missão, e jurou que o faria bem. Não queria ser enviado de volta para seu pai.

Rabban manobrou a nave com suavidade, sem pressa. Tinha toda a viagem transe espacial para desencadear uma guerra.

Rodeado pelo não campo, sentia-se como um franco-atirador. Claro que este era um tipo de operação diferente, que exigia mais sofisticação que aniquilar vermes de areia em Arrakis, mais delicadeza que caçar crianças na reserva florestal dos Harkonnen. Neste caso, seu troféu seria uma mudança na política imperial. Talvez pendurasse os troféus de maior poder e fortuna para a Casa Harkonnen em sua parede, dissecados e montados. A nave invisível se aproximou da fragata Atreides. Quase podia tocá-la.

Rabban conectou seus silenciosos sistemas de armas e verificou se todos os seus projéteis de multifase estivessem preparados. Dadas as circunstâncias, a manipulação seria manual. A queima roupa era impossível errar.

Rabban girou sua nave e apontou os canhões para dois transportes Tleilaxu que, graças a um generoso suborno pago pelos Harkonnen à Corporação, estavam estacionados junto à fragata Atreides.

Vindos de Tleilax Sete, não havia dúvida de que as naves carregavam produtos genéticos, a especialidade dos Bene Tleilax. Cada nave estaria sob comando de Mestres Tleilaxu, com uma tripulação de Dançarinos Faciais, seus servos metamorfos. A carga seria carne de bacer, enxertos animais, ou alguns daqueles abomináveis gholas, clones cultivados a partir de seres humanos mortos e alimentados em contêineres de axlotl, para que famílias aflitas pudessem ver de novo seus entes queridos falecidos. Tais produtos eram muito caros, por isso os Tleilaxu eram riquíssimos, apesar de jamais lhes ser concedido a patente de Grande Casa.

Isto era perfeito! Enquanto todo o Landsraad escutava, o jovem duque Leto Atreides tinha jurado vingança contra os Tleilaxu por todas as maldades cometidas contra a Casa Vernius. Leto não fez rodeios. Todos sabiam o quanto odiava os ocupantes daqueles transportes Tleilaxu.

O renegado Rhombur Vernius estava a bordo da fragata Atreides, outra pessoa que seria apanhada na rede Harkonnen, outra vítima da iminente e sangrenta guerra entre os Atreides e os Tleilaxu.

O Landsraad acusaria Leto de ter perdido a cabeça, induzido a cometer atos ofensivos por seus amigos ixianos exilados, e pela inconsolável dor causada pela morte de seu pai. Pobre Leto, um jovem tão pouco preparado para lidar com as pressões a que era submetido...

Rabban sabia muito bem a que conclusão o Landsraad e o Império chegariam, porque seu tio e, De Vries o Mentat pervertido lhe tinham explicado detalhadamente.

Rabban se colocou a frente da fragata Atreides, invisível e protegido pelo anonimato. Apontou para as naves Tleilaxu. Com um sorriso em seus lábios grossos, estendeu a mão para os controles.

E abriu fogo.

 

Tio Holtzman foi um dos inventores ixianos mais férteis da história. Costumava cair em transes criativos e se fechava durante meses para trabalhar sem interrupções. Às vezes, quando saía, podia ser hospitalizado, e sua prudência e bem-estar sempre eram preocupantes, Holtzman morreu jovem, pouco mais de trinta anos normais, mas os resultados de seus esforços mudaram a galáxia para sempre.

Cápsulas biográficas, um videolivro imperial

 

Quando Rabban partiu na fragata Harkonnen, orgulhoso de sua missão, o barão se sentou em uma cadeira de observação e contemplou a imensa área de carga do Cruzeiro. O Navegante já tinha ligado os motores e enviado a gigantesca nave através da dobra espacial. As naves menores estavam alinhadas, ignorantes do desastre que se abateria sobre elas...

Embora soubesse para onde olhar, não conseguia ver a nave invisível, é óbvio. O barão consultou seu cronômetro e soube que a hora se aproximava. Contemplou a fragata Atreides, silenciosa e arrogante em seu ancoradouro, e cravou a vista na nave Tleilaxu. Repicou com os dedos sobre o braço da cadeira, olhou e esperou.

Passaram-se longos minutos.

Enquanto planejava o ataque, o barão Harkonnen planejara que Rabban utilizasse um canhão laser para atacar às naves Tleilaxu, mas Chobyn, o desenhista richesiano da nave experimental, tinha deixado uma advertência em suas notas. O novo não campo estava relacionado de alguma forma com o Efeito Holtzman primitivo, que dotava os alicerces para os escudos. Até as crianças sabiam que, quando o raio de um canhão laser acertava um escudo, a explosão resultante era semelhante a uma detonação atômica.

O barão não queria correr esse risco, mas como tinha eliminado o inventor richesiano, não podia lhe fazer mais nenhuma pergunta. Talvez devesse ter pensado nisso antes.

Bem, não importava. Não eram necessários canhões laser para infligir danos às naves Tleilaxu, pois as naves transportadas pelos Cruzeiros não podiam ativar seus escudos. Os projéteis de multifase (os projéteis de artilharia de alta potência recomendados pela Grande Convenção para diminuir os danos colaterais) encarregariam-se do trabalho. Esses projéteis penetravam na fuselagem de uma nave e destruíam seu interior com uma detonação controlada, depois da qual, as explosões das duas fases seguintes extinguiam os incêndios e salvavam os restos da fuselagem. Seu sobrinho não compreenderia os detalhes técnicos do ataque. Rabban só sabia apontar e disparar. Era tudo que precisava saber.

Por fim, o barão viu uma diminuta explosão de fogo amarelo e branco, e dois mortíferos projéteis de multifase saíram disparados, como se tivessem sido lançados da parte dianteira da fragata Atreides. Os projéteis, parecendo fragmentos de chamas viscosas, acertaram o alvo. Os transportes Tleilaxu bambolearam e um brilho vermelho iluminou seu interior.

Oh, como o barão desejava que outras naves tivessem presenciado a cena!

Um impacto direto incinerou o casco de uma nave em questão de segundos. O outro projétil alcançou a seção de cauda da segunda nave Tleilaxu, e a inutilizou sem matar ninguém. Isso daria as vítimas uma excelente oportunidade de responder ao fogo dos agressores Atreides. Então começaria a escalada.

— Bem! — sorriu o barão, como se falasse com a frenética tripulação Tleilaxu —. Vocês já sabem o que devem fazer. Sigam seu instinto.

Depois de disparar, a nave de Rabban se afastou entre duas fragatas estacionadas.

Por uma freqüência de emergência, ouviu a nave Tleilaxu transmitindo mensagens de socorro.

— Transportes Bene Tleilax atacados pela fragata Atreides! Violação da lei da Corporação! Solicitamos ajuda imediata!

Nesse momento, o Cruzeiro se encontrava no vazio, em trânsito entre duas dimensões. Não podiam revidar nem receber intervenção da lei até que saíssem da dobra espacial e chegassem a Kaitain. Mas então já seria muito tarde.

Rabban confiava que aconteceria algo mais que uma simples briga de bar. Seus amigos e ele iam com freqüência a bares dos povoados próximos a Giedi Prime. Armavam confusão, quebravam algumas cabeças e iam embora.

Uma tela do painel de controle mostrou um gráfico da imensa área de carga, onde pontos cinzentos representavam cada nave. Os pontos fixaram laranjas quando as naves de várias Grandes Casas ligaram suas armas, preparadas para defender-se na iminente guerra total.

Rabban, que se sentia como um camundongo invisível no chão de uma sala de baile abarrotada, guiou sua não-nave por trás de um cargueiro Harkonnen, para que ninguém visse que este abria uma escotilha e deixava entrar um assassino invisível.

Já a salvo dentro da nave, Raban desligou o não campo, e a nave se tornou visível em frente a tripulação Harkonnen. Abriu a escotilha e saltou para a plataforma, enquanto secava o suor da testa. Seus olhos brilhavam de entusiasmo.

— As outras naves já começaram a disparar?

Soaram buzinas. Vozes em pânico eram ouvidas pelo sistema de comunicações, como metralha de uma pistola maula. Vozes frenéticas que falavam em galach imperial e códigos de batalha ressoaram pelos comunicadores do Cruzeiro.

— Os Atreides declararam guerra aos Tleilaxu! Dispararam!

Rabban gritou à tripulação:

— Ativem as armas! Vigiem que ninguém dispare em nós! Esses Atreides são uns canalhas! — Soltou uma risada baixa.

Uma grua depositou a pequena nave entre duas paredes falsas. Alguns painéis se fecharam, e nem sequer os sensores da Corporação poderiam detectar a nave. De qualquer modo, ninguém procuraria a nave, já que não existiam veículos voadores invisíveis.

— Defenda-se! — gritou outro piloto pelo sistema de comunicação.

A seguir se ouviu uma mensagem Tleilaxu.

— Anunciamos que temos a intenção de responder à agressão. Estamos em nosso direito. Não houve provocação... aconteceu uma flagrante violação das normas da Corporação.

Outra voz, rouca e profunda:

— Mas não se vêem armas na fragata Atreides. Pode ser que não tenham sido eles os agressores.

— Isso é um truque! — gritou o Tleilaxu —. Uma de nossas naves foi destruída e a outra sofreu avarias graves. Não viram com seus próprios olhos? A Casa Atreides tem que pagar caro por sua ousadia.

Perfeito, pensou Rabban, admirado com o plano do seu tio. A partir desse momento crucial podiam ocorrer várias coisas, mas o plano continuaria funcionando. Todos sabiam que o duque Leto era impetuoso, e acreditavam que tinha cometido um ato covarde. Com sorte, sua nave seria destruída em um ataque de represália, e o sobrenome Atreides afundaria na infâmia graças a ação traiçoeira de Leto.

Ou podia ser o início de uma longa e sangrenta inimizade entre a Casa Atreides e os Tleilaxu.

Em qualquer caso, o jovem duque não escaparia.

 

Na ponte de comando da fragata Atreides, Leto fez um esforço para acalmar-se. Como sabia que sua nave não tinha disparado, demorou alguns momentos para compreender as acusações.

— Os disparos aconteceram muito perto, meu duque — disse Hawat —, pouco abaixo de nossa proa.

— Então não foi um acidente? — respondeu Leto, abatido. A nave Tleilaxu destruída ainda emitia um brilho alaranjado, enquanto o piloto da outra nave não parava de vociferar.

— Infernos carmesins! Alguém disparou contra os Bene Tleilax — disse Rhombur, enquanto olhava por uma janela de plaz —. E já era hora, se quer saber minha opinião.

Leto ouviu a cacofonia da rádio, incluindo as chamadas de auxílio dos Tleilaxu. A princípio se perguntou se devia oferecer ajuda as naves danificadas, mas o piloto Tleilaxu começou a acusar os Atreides e a pedir seu sangue.

Observou o casco danificado da nave Tleilaxu destruída, e viu que os canhões de seu companheiro ferido giravam para ele.

— Thufir! O que ele está fazendo?

O comunicador revelou uma furiosa discussão entre os Tleilaxu e quem se negava a acreditar na culpa dos Atreides. Pouco a pouco, mais vozes foram se somando à dos Tleilaxu. Alguns afirmavam ter visto a nave Atreides disparar. Isso estava gerando uma situação perigosa.

— Infernos carmesins, acreditam que você fez isso, Leto — disse Rhombur.

Hawat já se precipitara para o painel de armas.

— Os Tleilaxu estão preparados para contra-atacar, meu duque.

Leto abriu um canal do sistema de comunicações. Em questão de segundos, seus pensamentos se aceleraram e comprimiram de um modo que o assombrou porque não era um Mentat. Era como um sonho, em que tudo se comprime, a incrível sucessão de imagens que conforme contavam, passava pela mente de uma pessoa às portas da morte. Um pensamento muito negativo. Tinha que encontrar uma solução

— Atenção! — gritou ao microfone —. Aqui fala o duque Leto Atreides. Não disparamos nas naves Tleilaxu. Nego todas essas acusações.

Sabia que não acreditariam e que não poderia evitar uma explosão de hostilidades que poderia dar lugar a uma guerra total. E então soube o que devia fazer.

Rostos do passado desfilaram por sua mente, e se aferrou a uma lembrança de seu avô paterno, Kean Atreides, que olhava-o com ansiedade, com um rosto sulcado de rugas que parecia um mapa das experiências de sua vida. Seus bondosos olhos cinzentos, iguais aos seus, refletiam uma força que seus inimigos costumavam ignorar, para azar eles.

Oxalá possa ser tão forte como meus antepassados...

— Não dispare — disse ao piloto Tleilaxu, com a esperança de que os outros capitães o escutassem.

Outra imagem se formou em sua mente: seu pai, o velho duque, com os olhos verdes e a mesma expressão, mas em um rosto que tinha a idade de Leto, adolescente. Mais imagens desfilaram em um segundo: seus tios e primos richesianos, os leais criados, servos, membros do governo e militares. Todos exibiam a mesma expressão, como se fossem um organismo múltiplo, e o estudavam de diferentes perspectivas, à espera de tomar uma decisão sobre ele. Não viu amor, aprovação nem falta de respeito em seus rostos, apenas a mais absoluta indiferença, como se na verdade tivesse cometido um ato vil e já não existisse.

Apareceu fugazmente o rosto depreciativo de sua mãe.

Não confie em ninguém, pensou.

Foi tomado por uma sensação de desalento, e logo a seguir de absoluta solidão. No mais profundo de seu ser, Leto viu seus próprios olhos cinzas, que o observavam inexpressivamente. Fazia frio ali, e estremeceu.

A liderança é uma tarefa solitária.

A dinastia Atreides desapareceria com ele naquele momento, ou geraria filhos cujas vozes se juntariam as de todos os Atreides desde os dias dos antigos gregos? Tentou ouvir seus filhos na cacofonia, mas não sentiu sua presença.

Os olhos acusadores não vacilaram.

Leto pensou: O governo é uma sociedade protetora. O povo está sob sua responsabilidade, prosperará ou morrerá segundo as decisões que eu tomar.

As imagens e os sons desapareceram, e sua mente se transformou em um lugar escuro e silencioso.

Sua viagem mental tinha durado um segundo, e agora Leto sabia exatamente o que devia fazer, sem pensar nas conseqüências.

— Ative os escudos! — gritou.

 

Rabban, que olhava para uma tela de observação situada no interior da inocente fragata Harkonnen, ficou surpreso pelo que viu. Subiu correndo de uma coberta para a seguinte, até que se plantou, congestionado e sem fôlego, diante de seu tio. Antes que o indignado mas tímido piloto Tleilaxu pudesse abrir fogo, um escudo começou a brilhar ao redor da nave Atreides.

Mas os escudos eram proibidos pelo contrato de transporte da Corporação, porque interrompiam o transe do Navegante e desorganizavam o campo da dobra espacial. Os enormes geradores Holtzman do Cruzeiro não funcionariam bem com a interferência. Tanto Rabban como o barão praguejaram.

O Cruzeiro vibrou quando saiu da dobra espacial.

 

Na câmara de navegação situada no alto do recinto de carga, o veterano Navegante sentiu que seu transe se dissolvia. Suas ondas cerebrais se paralisaram.

Os motores Holtzman grunhiram, e a dobra espacial ondeou a seu redor, perdeu estabilidade. Algo falhara na nave. O Navegante girou em seu contêiner de melange. Seus pés e mãos se agitaram, e pressentiu a escuridão que o envolvia.

A imensa nave se desviou de sua rota e saiu catapultada para o universo real.

Enquanto Rhombur caía ao chão atapetado da fragata, Leto agarrou um amparo para não perder o equilíbrio. Murmurou uma prece silenciosa. Sua tripulação e ele só podiam torcer para que o Cruzeiro não emergisse dentro de um sol.

Thufir Hawat, como uma árvore ao lado de Leto, conseguiu manter o equilíbrio por pura força de vontade. O professor Mentat estava em transe, atravessando escuras regiões de lógica e análise. Leto não estava seguro de que suas projeções pudessem lhes ser úteis naquele momento. Talvez as conseqüências de um desastre como resultado de ativar um escudo dentro de um Cruzeiro eram tão complicadas que exigiam camadas e camadas de análise.

— Primeira projeção — anunciou Hawat por fim. Umedeceu seus lábios —. Expulsos da dobra espacial, as probabilidades de colidir contra um corpo celeste estão em uma entre...

A fragata sofreu uma sacudida, e algo golpeou a coberta. A comoção afogou as palavras de Hawat, e o homem voltou a mergulhar no reino secreto de seu transe Mentat.

Rhombur ficou em pé e ajustou os auriculares sobre seu cabelo loiro despenteado.

— Ativar escudos em um Cruzeiro em movimento? É tão errado como, er, alguém disparar contra os Tleilaxu. — Olhou para seu amigo com os olhos arregalados —. Parece um dia apropriado para cometer loucuras.

Leto se inclinou sobre um painel de instrumentos e realizou alguns ajustes.

— Não tive opção — disse —. Agora compreendo. Alguém tentou nos culpar pelo ataque aos Tleilaxu, um incidente que poderia desencadear uma guerra entre as facções do Landsraad. Imagino todos os antigos feudos entrando em jogo, estratégias de batalhas planejadas aqui mesmo, no Cruzeiro. — secou a testa. Havia sentido a intuição em suas vísceras, como algo deduzido por um Mentat —. Tive que parar tudo, Rhombur, antes que as hostilidades explodissem.

O movimento errático do Cruzeiro cessou por fim. Os ruídos de fundo emudeceram.

Hawat saiu por fim do transe.

— Têm razão, meu duque. Quase todas as Casas têm um representante a bordo deste Cruzeiro, para assistir à coroação e o casamento do imperador. As estratégias bélicas planejadas aqui teriam se estendido ao coração do Império, se conselhos de guerra seriam reunidos e alianças entre planetas e exércitos seriam feitas. De forma inevitável, teriam surgido mais facções, como ramos de um Jacarandá. Desde a morte de Elrood as alianças estão mudando, ao mesmo tempo em que as Casas procuram novas oportunidades.

O rosto de Leto avermelhou. Seu coração martelava.

— Há paióis de pólvora espalhados ao longo do Império, e um deles se encontra nesta área de carga. Preferiria ver todos os ocupantes do Cruzeiro mortos, porque isso não seria nada comparado com a alternativa. Conflagrações em todos os cantos do universo. Milhões de mortos.

— Caímos numa armadilha? — perguntou Rhombur.

— Se a guerra explodir aqui, ninguém se importará se nós dispararmos ou não. Temos que cortar as hostilidades pela raiz, e depois haverá tempo para descobrir as respostas. — Leto agarrou um microfone e falou com voz firme e autoritária —. O duque Leto Atreides chama o Navegante da Corporação. Responda, por favor.

A linha crepitou e uma voz ondulante respondeu, forte e distorcida, como se o Navegante fosse incapaz de recordar como falar com simples humanos.

— Todos poderíamos ter morrido, Atreides. — Pronunciou o nome da Casa de uma forma que recordou a Leto a palavra “traidor” —. Estamos em um setor desconhecido. Dobra espacial dissolvida. Escudos impedem transe de navegação. Baixe os escudos imediatamente.

— Não posso fazer isso — respondeu Leto.

Pelo comunicador ouviu que chegavam mensagens à câmara de navegação, acusações e exigências iradas das naves que viajavam a bordo.

O Navegante voltou a falar.

— Atreides tem que desconectar os escudos. Obedeça as leis e normas da Corporação.

— Negativo. — Leto continuava firme, mas sua tez tinha empalidecido e sua expressão mal ocultava seu horror —. Não acredito que possa nos tirar daqui enquanto meus escudos estiverem ativados, de modo que ficaremos aqui, em qualquer lugar que seja, até que aceite meu... pedido.

— Depois de destruir uma nave Tleilaxu e ativar seus escudos têm a desfaçatez de fazer uma solicitação! — gritou uma voz com sotaque Tleilaxu.

— Atreides impertinente. — Era a voz do Navegante, que soava como se estivesse submerso em água.

Seguiram-se mais comunicações, que o Navegante silenciou com brutalidade.

— Faça seu pedido, Atreides.

Leto passeou a vista pelos olhares inquisitivos de seus amigos, e depois falou pelo sistema de comunicação,

— Primeiro, asseguro-lhe que nós não disparamos contra os Tleilaxu, e nossa intenção é provar isso. Se baixarmos nossos escudos, a Corporação tem que garantir a segurança de minha nave, da minha tripulação, e transferir a jurisdição deste assunto ao Landsraad

— Ao Landsraad? A nave se encontra sob jurisdição da Corporação Espacial.

— São obrigados pela honra — disse Leto —, como os membros do Landsraad, como eu mesmo. No Landsraad existe um procedimento legal conhecido como Julgamento de Confisco.

— Meu senhor! — protestou Hawat —. Não pode sacrificar a Casa Atreides, todos seus séculos de tradição...

Leto desligou o microfone e apoiou uma mão no ombro do Mentat.

— Se milhões de seres tiverem que morrer para conservar o feudo, Caladan não valerá esse preço. — Thufir Hawat baixou a vista em sinal de aquiescência —. Além disso, sabemos que nós não disparamos. Um Mentat de sua categoria não teria muito trabalho para prová-lo.

Leto voltou a ligar o microfone.

— Me submeterei ao Julgamento de Confisco, mas todas as hostilidades têm que cessar imediatamente. Não haverá revanche, ou me negarei a desativar meus escudos, e este Cruzeiro permanecerá aqui, no meio do nada.

Leto pensou em blefar: ameaçar disparar os canhões laser contra seus próprios escudos para provocar a temida explosão atômica que pulverizaria o Cruzeiro. Em vez disso, decidiu mostrar-se razoável.

— Do que serve prolongar a discussão? Rendi-me, e me entregarei ao Landsraad em Kaitain para ser submetido ao Julgamento de Confisco. Estou tentando apenas impedir uma guerra em grande escala por culpa de uma conclusão errada. Nós não atacamos ninguém. Estamos dispostos a enfrentar as acusações e as conseqüências, caso nos declarem culpados.

A linha continuou muda, e depois voltou a vida com um rangido.

— A Corporação Espacial aceita as condições. Garanto a segurança da nave Atreides e sua tripulação.

— Nesse caso, escute isto — disse Leto —. Sob as normas do Julgamento de Confisco, eu, duque Leto Atreides, renunciarei a todos os meus direitos e me porei a mercê do tribunal. Nenhum outro membro de minha Casa poderá ser detido ou submetido a procedimento legal. Reconhece a jurisdição do Landsraad nesta matéria?

— Sim — respondeu o Navegante com tom mais firme, mais acostumado a falar agora.

Por fim, ainda nervoso, Leto desativou os escudos da fragata e se jogou em sua poltrona, tremulo. As outras naves desconectaram suas armas, embora a ira de suas tripulações ainda não tivesse acabado.

Agora começaria a verdadeira batalha.

 

Na longa história de nossa Casa, a desgraça nos perseguiu incansavelmente, como se fôssemos sua presa. Quase poderia acreditar na maldição de Atreo, que remonta à antiga Grécia da Velha Terra.

Duque Paulus Atreides.

De um discurso a seus generais.

 

No passeio ladeado por prismas do palácio imperial, a prometida do príncipe herdeiro, Anirul, e sua acompanhante, Margot Rashino Zea, cruzaram com três jovens moças da corte imperial. A cidade se estendia até o horizonte, e grandes obras enchiam as ruas e edifícios, preparativos para a espetacular cerimônia de coroação e as posteriores bodas do imperador.

O trio de cortesãs conversava animadamente, mas mal podiam mover-se com seus pesados vestidos, plumas ornamentais reluzentes e pesadas jóias. Não obstante, emudeceram quando as Bene Gesserit vestidas de negro se aproximaram.

— Um momento, Margot. — Anirul parou em frente as três jovens com penteado complicado e as espetou, com apenas um pingo de Voz —: Não percam seu tempo com fofocas. Façam algo produtivo, para variar. Esperam-nos muitos preparativos antes que todos os representantes cheguem.

Os olhos de uma mulher, uma beldade de cabelo escuro, acenderam-se de ira por um instante, mas depois pensou melhor. Seu rosto adquiriu uma expressão conciliadora.

— Têm razão, senhora — disse, e sem mais conduziu suas acompanhantes para uma ampla arcada de rocha de lava salusana que levava aos aposentos dos embaixadores.

Margot trocou um olhar com a Madre Kwisatz.

— Mas por caso as fofocas não são comuns nas cortes imperiais, Anirul? — brincou —. Não é sua principal ocupação? Eu diria que essas damas estavam realizando sua tarefa de uma maneira admirável.

Anirul olhou carrancuda para ela, e pareceu mais velha do que sua aparência sugeria.

— Deveria ter lhes dado instruções específicas. Essas mulheres são meros adornos, como as fontes. Não têm a menor ideia de como ser produtivas.

Depois de anos vivendo em Wallach IX, e de descobrir através da Outra Memória a magnitude das realizações das Bene Gesserit ao longo da história imperial, considerava preciosas as vidas humanas, cada uma como uma faísca diminuta na fogueira da eternidade. Mas essas cortesãs não aspiravam outra coisa além de ser petiscos apetitosos para os homens poderosos.

Na realidade, Anirul não possuía jurisdição sobre essas mulheres, nem sequer como futura esposa do príncipe herdeiro. Margot apoiou uma mão delicada em seu braço.

— Tem que ser menos impulsiva, Anirul. A madre superiora reconhece seu talento e aptidões, mas diz que tem que se controlar. Todas as formas de vida que prosperam se adaptam a seu ambiente. Agora está na corte imperial, e tem que se adaptar ao seu novo ambiente. As Bene Gesserit têm que trabalhar como se fossem invisíveis.

Anirul sorriu com ironia.

— Sempre considerei minha franqueza uma de minhas principais qualidades. A madre superiora Harishka sabe. Permite-me falar de temas polêmicos e aprender coisas que, de outra forma, não teria aprendido.

— Se os outros forem capazes de escutar.

Margot arqueou suas sobrancelhas pálidas.

Anirul continuou passeando, com a cabeça erguida como uma imperatriz. Pedras preciosas brilhavam na diadema que cobria seu cabelo brônzeo. Sabia que as cortesãs cochichavam sobre ela, perguntavam-se que missão secreta tinha levado a corte às Bene Gesserit, que feitiços tinham usado para seduzir Shaddam. Ai, se soubessem. Suas fofocas e especulações só serviriam para potencializar o atração de Anirul.

— Parece que nós também temos coisas para cochicharmos — disse.

— É obvio. A filha de Mohiam?

— E além disso o problema dos Atreides.

Quando chegaram a um jardim, Anirul aspirou o aroma de um sebe de rosas safira. A doce fragrância despertou seus sentidos. Margot e ela se sentaram em um banco, do qual podiam ver todas as pessoas que se aproximavam, embora falassem aos sussurros, para o caso de haver espiões nos arredores.

— O que os Atreides têm com a filha de Mohiam?

A irmã Margot, uma das agentes mais eficazes da Bene Gesserit, conhecia certos detalhes sobre a próxima fase do programa do Kwisatz Haderach, e a própria Mohiam também tinha sido informada.

— Pense a longo prazo, Margot, pense nos mapas genéticos, na cadeia de gerações que acompanhamos. O duque Leto Atreides está preso, seu título e sua vida estão em perigo. Pode ser que pareça um nobre insignificante de uma Grande Casa pouco importante, mas pense no desastre que essa situação poderia significar para nós.

Margot respirou fundo quando as peças do quebra-cabeças encaixaram em sua mente.

— O duque Leto? Quer dizer que necessitamos dele para... — Não pôde pronunciar o mais secreto dos nomes: Kwisatz Haderach.

— Na próxima geração temos que contar com genes Atreides — disse Anirul, repetindo as palavras das agitadas vozes que falavam em sua cabeça —. As pessoas tem medo de apoiar Leto neste assunto, e todos sabemos por quê. Pode ser que alguns magistrados simpatizem com sua causa por razões políticas, mas ninguém acredita na inocência de Leto. Por que cometeu essa estupidez? É incompreensível.

Margot meneou a cabeça com tristeza.

— Embora Shaddam tenha expressado em público sua neutralidade, em particular fala contra a Casa Atreides. Não acredita na inocência de Leto — disse Anirul —. Embora pode ser que o assunto não seja tão simples. Talvez o príncipe herdeiro esteja relacionado de algum modo com os Tleilaxu, algo que não revelou a ninguém. Acha isso possível?

— Hasimir não me disse nada. — Margot se deu conta de que tinha utilizado o nome, e sorriu para sua companheira —. Ele compartilha alguns segredos comigo. Com o tempo, seu homem também os compartilhará com você.

Anirul pensou em Shaddam e em Fenring, que nunca paravam de conspirar.

— Então estão tramando algo. Juntos. Talvez o destino de Leto faça parte de seu plano?

— Talvez.

Anirul se inclinou no banco de pedra para estar mais protegida pela sebe de rosas.

— Margot, nossos homens querem que a Casa Atreides caia por algum motivo... mas a Irmandade tem que conseguir a linhagem de Leto para finalizarmos nosso programa. Nisso depositamos nossas esperanças, e o trabalho de séculos depende disso.

Margot Rashino Zea, que não entendia tudo, olhou para Anirul com seus olhos verdes.

— Nossa necessidade de um herdeiro Atreides não depende de sua consideração de Grande Casa.

— Não? — Anirul explicou com paciência seus piores temores —. O duque Leto não tem irmãos nem irmãs. Se seu estratagema fracassar e no Julgamento de Confisco o condenarem, poderia suicidar-se. É um jovem muito orgulhoso, e seria um golpe terrível depois da morte de seu pai.

Margot entreabriu os olhos, cética.

— Leto parece muito forte. Com seu caráter, continuará lutando, aconteça o que acontecer.

Alguns pássaros voaram sobre suas cabeças, e seus cânticos pareciam cristais ao quebrar-se. Anirul os seguiu com o olhar.

— E se um Tleilaxu vingativo o assassinar, mesmo que o imperador o perdoe? E se um Harkonnen aproveitar a oportunidade para provocar um “acidente”? Leto Atreides não pode se permitir o luxo de perder a proteção da sua posição nobre. Precisamos que continue vivo, e preferivelmente em posição de poder.

— Sei o que quer dizer, Anirul.

— Terá que proteger este jovem duque a todo custo, e para começar temos que proteger o nível social de sua Grande Casa. Não pode ser condenado.

— Tem que haver uma forma — disse Margot com um sorriso tenso —. Até Hasimir poderia aplaudir minha idéia, se descobrisse, apesar da sua oposição instintiva. Claro que não lhe diremos nenhuma palavra, e tampouco a Shaddam, mas deixará todos os jogadores na mais absoluta confusão.

Anirul aguardou em silêncio, mas seus olhos brilhavam de curiosidade. Margot se aproximou mais da sua companheira.

— Utilizaremos nossa suspeita da conexão Tleilaxu para um retorcido estratagema dentro de outro estratagema. A questão é: poderemos fazer isso sem prejudicar Shaddam ou a Casa Corrino?

Anirul ficou rígida.

— Meu futuro marido e o Trono do Leão Dourado são elementos secundários em nosso programa de reprodução.

— Tem razão, é obvio — assentiu Margot, como se estivesse surpreza com sua indiscrição —. Como devemos agir?

— Começaremos enviando uma mensagem a Leto.

 

A verdade é um camaleão.

Aforismo Zensunni

 

Na segunda manhã do confinamento de Leto na prisão do Landsraad em Kaitain, um funcionário chegou para que assinasse documentos importantes, o pedido oficial de um Julgamento de Confisco e a entrega oficial de todas as propriedades da Casa Atreides. Era o momento da verdade para Leto, o momento em que devia ratificar o perigoso roteiro que escolhera.

Embora não houvesse dúvida de que era uma prisão, a cela contava com duas habitações, um sofá confortável, uma mesa de Jacarandá de Ecaz, um leitor de videolivros e outros complementos de qualidade similar. Tais cortesias lhe tinham sido concedidas por sua posição no Landsraad. Nenhum líder de uma Grande Casa jamais seria tratado como um delinquente comum, ao menos até que perdesse tudo como resultado do processo ou se declarasse renegado como a Casa Vernius. Leto sabia que talvez nunca voltasse a desfrutar desses luxos, a menos que pudesse provar sua inocência.

Sua cela tinha calefação, comida abundante e saborosa, uma cama confortável, onde acabara adormecendo enquanto preparava suas alegações. Tinha poucas esperanças de resolver o problema com facilidade e rapidez. O Mensageiro só podia trazer mais problemas.

O funcionário, um tecnocrata do Landsraad, usava um uniforme marrom do Landsraad, com galões chapeados. Dirigiu-se a Leto como monsieur Atreides, sem o título de duque, como se os documentos do confisco já tivessem sido processados. Leto preferiu não notar aquela falha de protocolo, embora continuasse sendo oficialmente duque até que se assinassem os papéis e a sentença estivesse selada com o polegar dos magistrados do tribunal. Em todos os séculos do Império, o Julgamento de Confisco só tinha sido invocado em três ocasiões. Em dois dos casos, o acusado perdera, e as Casas em litígio se arruinaram.

Leto esperava superar a situação. Não podia permitir que a Casa Atreides caísse em desgraça menos de um ano depois da morte de seu pai. Isso lhe garantiria um posto nos anais do Landsraad como o mais incompetente líder de uma Casa na história do Império.

Leto, trajando seu uniforme negro e vermelho dos Atreides, sentou-se a uma mesa de plaz azul. Thufir Hawat, em sua condição de conselheiro Mentat, sentou-se ao seu lado. Juntos, examinaram o dossiê. Como na maioria de assuntos oficiais do Império, as declarações das testemunhas e os documentos do julgamento estavam gravados em folhas microdelgadas de papel de cristal riduliano, registros permanentes que durariam milhares de anos.

Quando as tocava, cada folha se iluminava para permitir o exame do texto. O velho Mentat gravava cada página na memória. Mais tarde, assimilaria tudo até o último detalhe. Os documentos explicavam com precisão o que ocorreria durante os preparativos e o julgamento. Cada página tinha as marcas de identificação de diversos funcionários do tribunal, incluídas as dos advogados de Leto.

Como parte do procedimento, tinham liberado e permitido a volta a Caladan da tripulação da fragata Atreides, embora muitos seguidores leais ficassem em Kaitain para oferecer seu apoio silencioso. Qualquer culpa individual ou coletiva tinha sido assumida por seu comandante, o duque Atreides. Além disso, garantia-se a segurança dos filhos de Vernius, com independência da categoria da Casa. Mesmo que o julgamento tivesse o pior resultado, Leto podia consolar-se com sua pequena vitória. Seus amigos continuariam a salvo.

Segundo as condições do confisco, que nem sequer sua mãe podia revogar de seu retiro com as irmãs do Isolamento, o duque Leto entregava todas as posses da família (incluídas as armas atômicas e a administração do planeta Caladan à administração do Conselho do Landsraad, enquanto se preparava para ser julgado por seus iguais.

Um julgamento que podia voltar-se contra ele.

Não obstante, ganhasse ou perdesse, Leto sabia que evitara uma conflagração em escala galáctica e salvo milhões de vidas. Agira corretamente, sem pensar nas conseqüências que recairiam sobre ele. O velho duque Paulus teria feito o mesmo em tais circunstâncias.

— Sim, Thufir, tudo isto é correto — disse Leto quando voltou a última página de cristal riduliano. Tirou o anel com o selo ducal, desprendeu o falcão vermelho de seu uniforme e entregou os objetos ao tecnocrata. Teve a sensação de ser desmembrado.

Se perdesse, as posses de Caladan ficariam a mercê do Landsraad, e os habitantes do planeta se tornariam meros espectadores de latrocínio. Tinha sido despojado de tudo, e seu futuro e sua fortuna depositados no limbo. Talvez entreguem Caladan aos Harkonnen, pensou desesperado, só para nos humilhar,

O tecnocrata lhe entregou uma magna pluma. Leto apertou seu dedo indicador contra o diminuto artefato de tinta e assinou os documentos de cristal. Sentiu um tênue chiado de eletricidade estática na folha, ou talvez fosse obra de seu nervosismo. O tecnocrata acrescentou seu sinal de identificação como testemunha. Hawat o imitou com reticência.

Quando o tecnocrata partiu, Leto anunciou:

— Agora sou um plebeu, sem título nem feudo.

— Só até nossa vitória — disse Hawat —, independentemente do resultado, sempre será meu duque — acrescentou com um leve tremor na voz.

O Mentat passeou pela cela como uma pantera dos pântanos cativa. Deteve-se, de costas para uma janela que dava para uma imensa dependência do palácio imperial. O sol da manhã mantinha o rosto de Hawat na sombra.

— Estudei as provas oficiais, os dados recolhidos pelos exploratórios no hangar do Cruzeiro e as declarações das testemunhas. Concordo com seus advogados, a situação é muito ruim, meu senhor. Temos que começar com a presunção de que não instigou este ato, e trabalharemos a partir daí.

Leto suspirou.

— Thufir, se você não acredita em mim, não teremos a menor chance no tribunal.

— Tenho certeza da sua inocência. Bem, existem diversas possibilidades, que enumerarei em ordem de probabilidade crescente. Primeiro, embora se trate de uma possibilidade muito remota, a destruição da nave Tleilaxu pode ter sido acidental.

— Necessitamos de algo melhor, Thufir. Ninguém acreditará nisso.

— Bem, talvez os Tleilaxu tenham destruído sua própria nave para implicá-lo. Sabemos que dão pouco valor a vida. Talvez a tripulação e passageiros fossem apenas gholas, bens descartáveis. Podem cultivar outras duplicadas em seus tanques de axlotl.

Hawat juntou os dedos das mãos.

— Infelizmente, o problema reside na falta de motivo. Os Tleilaxu criariam um plano tão tortuoso só para se vingar por ter dado proteção aos filhos da Casa Vernius? O que ganhariam com isso?

— Lembre-se, Thufir, que manifestei uma clara hostilidade contra eles no Salão do Landsraad. Pode ser que também me considerem seu inimigo.

— Sim, mas não me parece provocação suficiente, meu duque. Não, isto é algo mais importante, o suficiente para que o autor corresse o risco de provocar uma guerra em grande escala. — Fez uma pausa —. Sou incapaz de adivinhar o que os Tleilaxu ganhariam com a destruição da Casa Atreides. No máximo, é um inimigo sem importância para eles.

Leto se concentrou, mas se o Mentat era incapaz de descobrir uma cadeia associativa, ainda menos seria um simples duque.

— De acordo. Qual é a outra possibilidade?

— Sabotagem ixiana. Um ixiano renegado que queria atentar contra os Tleilaxu. Uma tentativa desajeitada de ajudar o exilado Dominic Vernius. Também é possível que o próprio Vernius esteja comprometido, embora não se saiba nada dele desde que se declarou renegado.

— Sabotagem? Como?

— É difícil saber. A destruição do interior da nave Tleilaxu sugere um projétil de multifase. As análises dos resíduos químicos confirmam.

Leto se reclinou em sua cadeira.

— Mas como? Quem poderia disparar este projétil? Não podemos esquecer que as testemunhas afirmam ter visto projéteis lançados de nossa fragata. Essa zona do hangar estava vazia. Você e eu estávamos olhando. A nossa era a única nave próxima.

— As poucas respostas que posso proporcionar são muito improváveis, meu duque. Uma nave de ataque pequena poderia ter disparado esse projétil, mas é impossível ocultar um veículo com essas características. Até um indivíduo provido de um aparelho de respiração teria sido detectado no hangar, e isso sem citarmos um lança mísseis manual. Além disso, durante a viagem na dobra espacial ninguém poderia sair das naves.

— Não sou um Mentat, Thufir, mas isto cheira a Harkonnen — murmurou Leto, enquanto desenhava círculos com o dedo sobre a mesa de plaz azul. Tinha que pensar, tinha que ser forte.

Hawat lhe ofereceu uma análise concisa.

— Quando algo execrável ocorre, três caminhos principais conduzem invariavelmente ao culpado: dinheiro, poder ou vingança. Este incidente foi uma cilada, e seu objetivo era destruir a Casa Atreides, e pode ser que esteja relacionado com a conspiração que matou seu pai.

Leto exalou um profundo suspiro.

— Nossa família gozou de alguns anos de tranqüilidade sob o comando de Dmitri Harkonnen e seu filho Abulurd, que nos deixaram viver em paz. Agora temo que a velha inimizade tenha ressuscitado. Pelo que me disseram, o barão está ansioso.

O Mentat sorriu sombriamente.

— Exatamente o que eu pensava, meu senhor. Mas me desconcerta o método usado, com tantas naves como testemunhas. Demonstrar esta conjectura no tribunal não será fácil.

Apareceu um guarda em frente a porta provida de barrotes de energia e entrou com um pequeno pacote. Sem pronunciar palavra nem olhar para Leto, deixou-o na mesa e saiu.

Hawat passou um scanner sobre o pacote suspeito.

— Um cubo de mensagem — disse.

O Mentat indicou a Leto que se afastasse, abriu o pacote e revelou um objeto escuro. Não encontrou marcas do remetente, mas parecia importante.

Leto pegou o cubo, que brilhou depois que reconheceu a digital do seu polegar. Desfilaram palavras ante seu rosto, sincronizadas com os movimentos de seus olhos, duas frases que continham uma informação surpreendente: “O príncipe herdeiro Shaddam, assim como seu pai antes dele, mantém uma aliança secreta e ilegal com os Bene Tleilax. Esta informação pode ser muito valiosa para sua defesa, se tiver coragem de utilizá-la.

— Thufir! Olhe isto.

Mas as palavras se dissolveram antes que o Mentat pudesse ler. A seguir o cubo se autodestruiu em sua palma. Não tinha nem idéia de quem podia ter enviado semelhante revelação. É possível que tivesse aliados secretos em Kaitain?

Inquieto de repente, quase paranóico, Leto empregou o código Atreides, a linguagem secreta que o duque Paulus tinha ensinado a poucos membros de sua corte. O rosto aquilino do jovem se escureceu quando revelou o que tinha lido e perguntou quem podia tê-lo enviado.

O Mentat refletiu e respondeu com seus próprios sinais.

Os Tleilaxu não são famosos por suas proezas militares, mas esta relação explicaria sua vitória fácil sobre os ixianos e sua tecnologia de defesa. É possível que os Sardaukar tenham controlado em segredo a população. — E acrescentou —: Shaddam está metido nisto, e não quer que se saiba.

Os dedos de Leto perguntaram:

— Mas o que isso tem a ver com o ataque ao hangar do Cruzeiro? Não vejo relação.

Hawat umedeceu seus lábios manchados e falou num sussurro.

— Possivelmente não existe, mas tanto faz, se pudermos utilizar essa informação quando estivermos na pior situação. Proponho-lhe um blefe, meu duque. Um blefe espetacular e desesperado.

 

Em um Julgamento de Confisco, as normas habituais referentes às provas não se aplicam. Não é obrigatório revelar as provas à parte contrária nem aos magistrados antes do julgamento. Isto coloca a pessoa que possui informação secreta em uma posição de poder privilegiada, diretamente proporcional ao perigo extremo que corre.

Regra sobre as provas de Rogam, 3º edição

 

Quando o príncipe herdeiro Shaddam leu o inesperado cubo de mensagem de Leto Atreides, uma onda de raiva tornou seu rosto púrpura.

“Senhor, a minha defesa inclui a revelação de todos os dados referentes a sua relação com os Tleilaxu.”

— Impossível! Como ele terá descoberto?

Shaddam gritou uma obscenidade e lançou o cubo contra a parede. Fenring correu para recolher os fragmentos, ansioso por ler a mensagem. Shaddam o fulminou com a vista, como se tudo fosse culpa do seu conselheiro.

Era noite e ambos tinham abandonado o palácio para ir ao apartamento de cobertura privado de Fenring e desfrutar de alguns momentos de quietude. Shaddam passeou pela peça espaçosa, seguido por Fenring. Embora ainda não tivesse sido coroado, Shaddam sentou-se em uma enorme poltrona do balcão como se ela fosse um trono. O príncipe herdeiro olhou para seu Mentat.

— Bem, Hasimir, como acha que meu primo soube de nosso acordo com os Tleilaxu? Que provas possui?

— Hummmm, pode ser que seja um blefe...

— Tal hipótese não pode ser mera coincidência. Não vamos considerar um blefe, mesmo que seja. Não podemos correr o risco de a verdade ser revelada no tribunal — grunhiu Shaddam —. Não aprovo o Julgamento de Confisco, nunca aprovei. Ele rouba a responsabilidade da partilha dos bens de uma Grande Casa pelo trono imperial, de mim. Acredito que é um modelo lamentável.

— Mas não se pode fazer nada a respeito, Shaddam. É uma lei que remonta aos tempos butlerianos, quando a Casa Corrino foi escolhida para governar as ações da humanidade. Console-se por saber que, em tantos milhares de anos, esta é a quarta vez que é invocada. Parece que o ato desesperado de apostar tudo em uma carta não é muito popular.

Fenring se deteve na borda do balcão e olhou para as estrelas. Baixou a voz até transformá-la em um sussurro detestável.

— Talvez eu devesse visitar Leto Atreides em sua cela, hummmm? Para descobrir exatamente o que sabe e como descobriu. É a solução mais óbvia para nosso pequeno dilema.

Shaddam se reclinou na cadeira, mas era muito dura para suas costas.

— O duque não dirá nada. Tem muito a perder. Talvez esteja blefando, mas não tenho dúvidas de que cumprirá sua ameaça.

Os enormes olhos do Mentat se obscureceram.

— Quando faço perguntas, Shaddam, obtenho respostas. — Fenring apertou os punhos —. Já deveria saber disso, depois de tudo o que fiz por você.

— O Mentat Thufir Hawat não o deixará sozinho nem que eu insista, e é um adversário formidável. É chamado de o Mestre de Assassinos.

— Esse também é meu talento, Shaddam. Imaginaremos uma forma de separá-los. Ordene, e eu me encarregarei de que se cumpra.

Estava ansioso pela perspectiva de matar, e a provocação aumentava seu prazer. Os olhos de Fenring brilhavam, mas Shaddam o dissuadiu.

— Se for tão preparado como parece, Hasimir, terá tomado todo tipo de precauções. Assim que Leto se sentir ameaçado, revelará o que sabe, e quem sabe de quais medidas de segurança se rodeou, sobretudo se planejou isto desde o começo.

“... de todos os dados sobre sua relação com os Tleilaxu ...”

Uma brisa fria cruzou o balcão, mas Shaddam não entrou.

— Se nosso projeto for descoberto, as Grandes Casas poderiam proibir meu acesso ao trono, e uma força de ataque do Landsraad seria lançada contra IX.

— Agora se chama Xuttah, Shaddam — murmurou Fenring.

— Ou isso.

O príncipe herdeiro passou uma mão pelo cabelo avermelhado penteado com brilhantina. A mensagem direta do prisioneiro Atreides o impressionara mais que a destruição de cem planetas. Imaginou se a notícia teria preocupado o velho Elrood. Mais que a maciça revolta no setor de Ecaz, no início de seu reinado?

Observe e aprenda.

Cale-se, velho abutre!

Shaddam franziu o sobrecenho.

— Pense, Hasimir. Parece muito evidente. Existe alguma possibilidade de Leto não ter destruído as naves Tleilaxu?

Fenring passou um dedo pelo seu queixo bicudo.

— Duvido, Shaddam. A nave Atreides estava ali, tal como as testemunhas confirmaram. As armas tinham sido disparadas, e Leto não dissimulava sua raiva contra os Bene Tleilax. Lembra do seu discurso ao Landsraad? Ele é culpado. Ninguém poderia acreditar no contrário.

— Acredito que até um pirralho de dezesseis anos poderia ser mais sutil. por que solicitou um Julgamento de Confisco? — Shaddam detestava não compreender as pessoas e seus atos —. Um perigo ridículo.

Fenring demorou alguns segundos antes de deixar cair sua idéia como se fosse uma bomba.

— Porque Leto sabia desde o primeiro momento que lhe enviaria essa mensagem?

Apontou para os fragmentos do cubo. Tinha que sublinhar o óbvio, porque Shaddam permitia com freqüência que a raiva paralisasse sua mente. Apressou-se a continuar.

— Talvez esteja pensando o contrário, Shaddam. Pode ser que Leto atacou os Tleilaxu consciente de que poderia utilizar o incidente como pretexto para solicitar um Julgamento de Confisco, um foro público onde revelaria tudo o que sabe sobre nós. Todo o Império estará escutando.

— Mas por que, por que? — Shaddam estudou suas unhas bem manicuradas, vermelho de confusão —. O que tem contra mim? Sou seu primo!

Fenring suspirou.

— Leto Atreides é muito amigo do príncipe exilado de IX. Se descobriu nossa participação no golpe de estado, e a pesquisa que os Tleilaxu fazem sobre a especiaria sintética, não seriam motivos suficientes? Herdou um profundo e equivocado sentido de honra do seu pai. Pense nisto: Leto assumiu a missão de castigar os Bene Tleilax. Mas se permitirmos que seja julgado pelo Landsraad, é possível que revele nossa implicação para nos arrastar em sua queda. Simples assim, hummmm? Ele cometeu o crime, sabendo que o protegeríamos... para nos proteger. De qualquer forma, terá nos castigado. Ao menos deixou uma porta aberta.

— Ah, sim. Mas isso é...

— Chantagem. Shaddam?

O príncipe herdeiro respirou fundo.

— Maldito seja! — levantou-se, por fim com aspecto imperial —. Maldito seja! Se estiver certo, Hasimir, não teremos outro remédio senão ajudar.

 

A lei escrita do Império não pode mudar, independente da Grande Casa que detenha o poder ou de que imperador se sente no Trono do Leão Dourado, os documentos da Constituição imperial estão estabelecidos há milhares de anos. Isto não quer dizer que cada regime seja legalmente idêntico. As variações emanam de sutilezas de interpretação e de lacunas jurídicas microscópicas, que chegam a ser bastante amplas para deixar passar um Cruzeiro.

Lei do Império: comentários e impugnações

 

Leto estava deitado em sua cela. Sentia a morna carícia de um mecanismo de massagem que trabalhava os músculos tensos do seu pescoço e costas. Ainda não sabia o que ia fazer.

Até o momento não tinha recebido nenhuma resposta do príncipe herdeiro, e estava convencido de que seu blefe não funcionaria. De qualquer forma, confiar na mensagem secreta tinha sido um tiro às cegas, pois Leto não tinha nem idéia do que significava. Hora após hora, seu Mentat e ele discutiam os méritos do seu caso e a necessidade de confiar em suas aptidões.

Encontrava-se rodeado de artigos pessoais e comodidades para enfrentar as longas horas de ansiedade, contemplação e aborrecimento: videolivros, roupa de qualidade, instrumentos de escrita, até mensageiros que esperavam a frente da sua cela para levar cubos de mensagem pessoais a quem desejasse. Todos sabiam o que estava em risco naquele julgamento, e nem todos em Kaitain queriam que Leto ganhasse.

De um ponto de vista técnico, devido aos procedimentos legais em que se envolvera, já não possuía bens pessoais. De qualquer modo, agradecia seu uso. Os videolivros e a roupa proporcionavam uma sensação de estabilidade, um vínculo com o que ele considerava sua vida anterior. Desde o misterioso ataque no interior do Cruzeiro, sua vida mergulhara no caos.

Todo o futuro de Leto, o destino de sua Casa e suas posses em Caladan dependiam do Julgamento de Confisco. Tudo ou nada. Se fracassasse, sua Grande Casa se encontraria em uma situação ainda pior que a da renegada família Vernius. A Casa Atreides não existiria.

Nesse caso, ao menos não terei que me preocupar em negociar um casamento de conveniência para estabelecer melhores contatos com o Landsraad, pensou com ironia. Exalou um profundo suspiro, pensou em Kailea e em seus sonhos de um futuro que nunca se tornariam realidade. Se lhe tirassem seus títulos e posses, Leto Atreides poderia escolhê-la como esposa sem pensar em dinastias nem em política... mas ela o desejaria se não fosse duque, com seus sonhos de Kaitain e da corte imperial?

“Não sei como, mas sempre descubro algo positivo em qualquer contrariedade”, havia dito Rhombur. um pouco do otimismo do seu amigo não faria mal neste momento.

Thufir Hawat, sentado em frente ao escritório de plaz azul, passava as holopáginas projetadas, uma compilação das possíveis provas que utilizariam contra Leto, assim como uma análise da lei do Landsraad. Esta informação incluía as conclusões provisórias dos advogados de Leto e as projeções Mentat de Hawat.

O caso se apoiava em provas circunstanciais, mas de muito peso, começando com o discurso de Leto ao Conselho do Landsraad. Tinha um motivo evidente, e já tinha declarado a guerra verbal contra os Tleilaxu.

— Tudo aponta para minha culpa, não é? — perguntou Leto. Levantou-se na cama oscilante, e a máquina de massagem parou imediatamente.

Hawat assentiu.

— Com muita perfeição, meu senhor. E as provas cada vez são piores. Os canhões de uma de nossas naves de combate foram examinados durante a investigação, e descobriram que tinham sido disparados. Um resultado muito negativo, e que se soma as outras provas.

— Thufir, sabemos que os projéteis foram disparados. Assim declaramos desde o princípio. Rhombur e eu saímos para praticar antes que o Cruzeiro dobrasse o espaço. Todos os membros da nossa tripulação são testemunhas.

— Os magistrados podem não acreditar. A explicação é muito conveniente, como se fosse um álibi planejado. Pensarão que praticamos afim de explicar as análise das armas, porque sabíamos que íamos disparar contra os Tleilaxu. Um truque muito simples.

— Sempre foram peritos em detalhes retorcidos — disse Leto com um sorriso —. Examinam tudo repetidas vezes, analisam cada aspecto, efetuam cálculos e projeções.

— Isso é justamente o que necessitamos agora, meu duque.

— Não esqueça que temos a verdade de nosso lado, Thufir, e que é uma aliada poderosa. Nos apresentaremos ao tribunal de nossos iguais com a cabeça erguida, e contaremos o acontecido e, sobretudo, o que não aconteceu. Têm que acreditar, ou os séculos de honra e honradez Atreides não significarão nada.

— Oxalá possuísse sua energia e seu otimismo — respondeu Hawat —. Demonstra uma firmeza e serenidade notáveis. — Uma expressão agridoce apareceu no rosto do Mentat —. Seu pai o ensinou bem. Estaria orgulhoso de você. — Apagou o holoprojetor, e as páginas das provas desapareceram no ar sufocante da prisão —. Até o momento, entre os magistrados e membros do júri do Landsraad com direito a voto, contamos com alguns que sem dúvida o declararão inocente, graças a alianças do passado.

Leto sorriu, mas notou o nervosismo do seu Mentat. Levantou-se da cama e, coberto com uma bata azul, passeou descalço pela habitação. Sentiu frio e subiu a temperatura da cela.

— Muita gente acreditará depois de que ouvirem minha declaração e visto as provas.

Hawat olhou para ele como se fosse outra vez um menino.

— Contamos com a vantagem de a maioria de seus aliados votarem a favor de sua inocência só porque desprezam a praga Tleilaxu. Independente de sua opinião sobre o caso, você tem sangue nobre, é membro de uma família respeitada do Landsraad. É um deles, e não o destruirão para compensar os Bene Tleilax. Várias Casas nos deram seu apoio por respeito ao seu pai. Ao menos um magistrado ficou impressionado pela coragem de sua primeira aparição no Conselho do Landsraad, alguns meses atrás.

— Mas todo mundo acredita que cometi um ato terrível. — Leto franziu o sobrecenho —. Esses outros motivos são uma piada.

— Eles não o conhecem, é pouco mais que um menino com fama de insolente e impulsivo. Por hora, meu duque, o que tem que nos preocupar é o veredito, não os motivos. Se triunfar, terá muitos anos para consolidar sua reputação.

— E se perder, nada mais importará.

Hawat assentiu com solenidade e se ergueu como um monólito.

— Não existem regras fixas para um Julgamento de Confisco. É um foro livre, sem formalidades sobre as provas ou os procedimentos, um contêiner sem contenção. Sem os mecanismos normais, não temos que revelar a corte as provas que apresentaremos, mas tampouco os demais devem fazê-lo. Não saberemos as mentiras que nossos inimigos contarão, ou se falsificaram provas instrumentais. Não veremos as supostas provas que os Tleilaxu possuem, nem conheceremos os testemunhos das testemunhas. Dirão muitas coisas desagradáveis a respeito da Casa Atreides. Precisa estar preparado.

Leto ergueu a vista quando ouviu um ruído, e viu um guarda desconectar o campo de confinamento para dar passagem a Rhombur. O príncipe ixiano vestia uma camisa branca com a hélice de Vernius no pescoço. Tinha o rosto congestionado devido à sessão que acabava de terminar no ginásio, e o cabelo molhado da ducha. O anel de opafogo cintilava em sua mão direita.

Leto pensou nas semelhanças entre sua situação e a do seu amigo, as duas Casas tomadas pela desordem, quase aniquiladas. Rhombur, que tinha recebido a proteção provisória do tribunal, ia vê-lo todo dia à mesma hora.

— Terminou seus exercícios? — perguntou Leto com forçado tom risonho, apesar do pessimismo de Hawat.

— Hoje quebrei a máquina de treinamento físico — respondeu Rhombur sorrindo —. Deve ter sido construída por uma dessas Casas Menores de má fama. Controle de qualidade inexistente. Nada igual a qualidade ixiana.

Leto riu quando Rhombur e ele entrelaçaram as pontas dos dedos no semi aperto de mãos do Império.

Rhombur coçou seu cabelo loiro molhado.

— O exercício me ajuda a pensar. Estes dias está difícil me concentrar em algo. Er, minha irmã lhe enviou seu apoio através de um Mensageiro recém-chegado de Caladan. Achei que você gostaria de saber. Talvez o anime.

Sua expressão se tornou séria, revelando a tensão de sua longa odisséia, os sinais sutis de dor e maturidade forçada que um rapaz de dezesseis anos não deveria ter padecido, Leto sabia que seu amigo estava preocupado com seu destino e o de sua irmã, caso a Casa Atreides perdesse o julgamento. Duas grandes e nobres famílias destruídas em um lapso de tempo insolitamente curto. Talvez Rhombur e Kailea fossem procurar seu pai renegado...

— Thufir e eu estávamos falando dos méritos do nosso caso — disse Leto —. Ou da falta de méritos, como diz ele.

— Eu não disse isso, meu duque — protestou Hawat.

— Bem, trago boas notícias — anunciou Rhombur —. A Bene Gesserit deseja contribuir com Reveladoras da Verdade no julgamento. Essas reverendas madres podem descobrir que está mentindo.

— Excelente — disse Leto. — Isto acabará com o problema em um instante. Assim que eu falar, poderão verificar que digo a verdade. Pode ser tão simples?

— Geralmente o testemunho de uma Reveladora da Verdade seria inadmissível — advertiu Hawat —, mas é possível que neste caso se abra uma exceção, embora eu duvide. As bruxas guardam intenções secretas, e os jurisconsultos afirmam que, por conseqüência, são subornáveis, o que invalida seu testemunho.

Leto piscou, surpreso.

— Subornáveis? Não conhecem muitas reverendas madres. — Refletiu a respeito e considerou várias possibilidades —. Mas intenções secretas? Por que a Bene Gesserit faria esse oferecimento? O que ganham com minha inocência ou minha culpa?

— Vá com cuidado, meu duque — advertiu Hawat.

— Vale a pena tentar — disse Rhombur —. Mesmo que não seja aceito, o testemunho de uma Reveladora da Verdade daria mais peso à versão dos acontecimentos de Leto. As Reveladoras da Verdade poderiam examinar a você e a todos os que o rodeavam, incluídos eu, Hawat, a tripulação da fragata e os criados de Caladan. Sabemos que suas histórias coincidirão. Demonstrarão nossa inocência sem sombra de dúvida. — Sorriu —. Estaremos de volta a Caladan antes que perceba.

Hawat não parecia muito convencido.

— Quem entrou em contato, príncipe? Que irmã da Bene Gesserit lhe comunicou este generoso oferecimento? O que pediu em troca?

— Não pediu, er, nada — respondeu Rhombur.

— Ainda não, talvez — disse Hawat —, mas essas bruxas pensam a longo prazo.

O príncipe ixiano coçou a testa.

— Ela se chama Margot. Faz parte do séquito de lady Anirul, e suponho que veio para assistir ao casamento imperial.

Leto teve uma idéia.

— Uma Bene Gesserit vai casar se com o imperador. Será isto obra de Shaddam, em resposta a nossa mensagem?

— As Bene Gesserit não são garotas dos recados — disse Hawat —. Sua independência é lendária. Fizeram esta oferta porque quiseram, porque lhes beneficia de alguma forma.

— Não perguntei por que — disse Rhombur —, mas pense nisto: seu oferecimento só poderia nos beneficiar se Leto for inocente.

— Eu sou!

Hawat sorriu para Rhombur.

— Certamente a Bene Gesserit sabe que Leto não está mentindo, do contrario não fariam essa sugestão.

Perguntou-se o que as irmãs sabiam, e o que esperavam conseguir.

— A menos que queiram me pôr a prova — sugeriu Leto —. Se aceitar sua Reveladora da Verdade, saberão que não estou mentindo. Se eu recusar, se convencerão de que escondo algo.

Hawat olhou por uma janela da cela.

— Lembrem-se que estamos ansiosos por um julgamento que é uma casca vazia. Existem queixas contra as Bene Gesserit, e contra seus métodos estranhos e misteriosos. As Reveladoras da Verdade podem trair seu juramento e mentir, por um propósito mais importante. Bruxaria, feitiçaria... Talvez não devêssemos aceitar sua ajuda.

— Acha que é um truque? — perguntou Leto.

— Sempre suspeito de tudo — disse o Mentat. Seus olhos cintilaram —. É algo inato em mim. Pode ser que essas bruxas sejam mensageiras do Império. Que alianças estão ocultando?

 

O pior tipo de alianças são aquelas que nos enfraquecem. Pior ainda é quando o imperador não reconhece tal aliança pelo que ela é.

Príncipe Raphael Corrino, Discursos sobre a liderança.

 

O príncipe herdeiro Shaddam não fez nada para que o representante dos Tleilaxu se sentisse confortável ou acolhido no palácio. Shaddam detestava estar na mesma habitação que ele, mas a reunião era necessária. Sardaukar armados até os dentes escoltaram Hidar Fen Ajidica por um passadiço, vários corredores de manutenção, escadas semi ocultas e uma sucessão de portas com barrotes.

Shaddam tinha escolhido a habitação mais privada, uma câmara tão secreta que não aparecia nos planos do edifício. Muito tempo antes, poucos anos depois da morte do príncipe herdeiro Fafnir, Hasimir Fenring tinha descoberto a estadia durante suas explorações. Pelo visto, a habitação secreta tinha sido utilizada por Elrood nos primeiros tempos de seu interminável reinado, quando tinha tomado concubinas extra-oficiais, além das reconhecidas oficialmente.

Havia uma só mesa na gélida habitação. As paredes e o chão cheiravam a mofo. As mantas e lençóis da estreita cama colada a parede se reduzira a fibras e penugem. Um vetusto buquê de flores, agora petrificado em folhas e caules enegrecidos, adornava o canto em que o tinham abandonado décadas atrás. O lugar transmitia a impressão desejada, embora Shaddam soubesse que os Bene Tleilax não fossem famosos por prestar atenção às sutilezas.

Do outro lado da mesa, Hidar Fen Ajidica, trajando suas roupas marrons, enlaçou as mãos cinzentas sobre a superfície de madeira. Piscou e olhou para Shaddam.

— Mandou me chamar, senhor? Interrompi minhas pesquisas seguindo suas ordens.

Shaddam agarrou uma bandeja de carne de bacer gelatinosa que um dos guardas tinha levado, pois não tivera tempo para comer. Saboreou o molho de cogumelos com manteiga, e depois empurrou o prato para Ajidica.

O pequeno homem se recusou a tocar na comida. Shaddam franziu o sobrecenho.

— Vocês fabricam a carne de bacer. Não consomem seus próprios produtos culinários?

Ajidica negou com a cabeça.

— Embora nós sejamos os criadores desses seres, não os consumimos. Peço que me perdoe, senhor. Falemos do que é importante. Estou ansioso por retornar a Xuttah e aos meus laboratórios.

Shaddam soprou e decidiu ir direto ao assunto. Esfregou as têmporas, onde sua permanente dor de cabeça ameaçava piorar.

— Devo lhe fazer um pedido... Não, uma exigência, em minha qualidade de imperador.

— Perdoe-me, senhor príncipe — interrompeu-o Ajidica —, mas ainda não foi coroado.

Os guardas ficaram tensos. Os olhos de Shaddam se arregalaram.

— Há algum homem mais poderoso que eu em todo o Império?

— Não, meu senhor. Foi apenas uma precisão semântica.

Shaddam se inclinou sobre a mesa como um predador, tão perto que sentiu os desagradáveis aromas do outro homem.

— Escute, Hidar Fen Ajidica, seu povo tem que retirar as acusações contra Leto. Não quero que este caso chegue aos tribunais. — reclinou-se de novo, pegou outro pedaço de carne e continuou com a boca cheia —. Retire suas acusações e eu lhes darei uma recompensa. E o assunto será encerrado.

A solução era simples e hábil. Como o Tleilaxu não respondeu imediatamente, Shaddam tentou ser magnânimo.

— Depois de falar com meus conselheiros, decidi que os Tleilaxu devem ser compensados por suas perdas. — Fez uma careta —. Só as perdas reais. Os gholas não contam.

— Entendo, senhor, mas lamento dizer que pede algo impossível — respondeu Ajidica —. Não podemos esquecer este crime cometido contra o povo Tleilaxu e sua honra.

Shaddam quase engasgou com o pedaço de carne.

— “Tleilaxu” e “honra” são palavras que não combinam.

Ajidica o ignorou.

— Entretanto, todo o Landsraad soube deste horrível acontecimento. Se retirarmos as acusações, a Casa Atreides sairá totalmente impune. — A ponta de seu nariz tremeu —. Sem dúvida o senhor é um grande estadista e sabe que não podemos voltar atrás.

Shaddam estava furioso. Sua dor de cabeça estava piorando.

— Não estou pedindo. Estou ordenando.

O homem refletiu por alguns segundos, e seus olhos escuros cintilaram.

— Posso perguntar por que o destino de Leto Atreides é tão importante para o senhor? O duque representa uma Casa pouco importante. Por que não o joga aos lobos e no concede um desagravo?

Shaddam emitiu um grunhido.

— Porque Leto sabe de suas pesquisas sobre a especiaria artificial em IX.

De repente as feições inexpressivas da Ajidica se alarmaram.

— Impossível! Mantivemos a segurança mais rigorosa.

— Então por que ele me enviou uma mensagem dizendo o contrário? — respondeu Shaddam, a ponto de levantar-se de seu assento —. Leto utiliza este conhecimento para me chantagear. Se for declarado culpado no julgamento revelará o que sabe e nossa cumplicidade. O Landsraad se rebelará contra mim. Pense nisso: meu pai, com minha ajuda, permitiu que uma Grande Casa do Landsraad fosse destruída. Algo sem precedentes! E não só por uma Casa rival, mas por seu povo, os Tleilaxu.

O pesquisador pareceu ofender-se, mas não replicou.

Shaddam grunhiu, mas se recordou que devia guardar as aparências.

— Se descobrirem que fiz tudo isto afim de ter uma fonte privada de especiaria artificial, deixando sem benefícios o Landsraad, a Bene Gesserit e à Corporação, meu reinado não durará uma semana.

— Estamos em um beco sem saída, senhor.

— Não, não estamos! — explodiu Shaddam —. O piloto da nave Tleilaxu sobrevivente é sua testemunha chave, obriguem-no a mudar seu testemunho. Talvez não tenha visto com tanta clareza como pensou a princípio. Serão bem recompensados, com recursos procedentes de minhas arcas e da Casa Atreides.

— Não é suficiente, senhor — disse Ajidica, com uma irritante expressão impassível —. Os Atreides têm que ser humilhados por suas ações. Têm que ser humilhados em público. Têm que pagar.

O imperador olhou com desprezo para o pesquisador Tleilaxu.

— Quer que envie mais Sardaukar a IX? Estou certo de que algumas legiões vigiariam muito de perto suas atividades.

Ajidica continuou imperturbável.

O olhar do Shaddam se endureceu.

— Mês após mês esperei, e ainda não me deu o que preciso. Agora diz que pode demorar décadas. Nenhum de nós durará tanto se Leto revelar o que fizemos.

O príncipe herdeiro afastou a bandeja. Embora a preparação do prato fosse perfeita, apenas o saboreara porque sua mente estava em outra parte, embotada pela dor de cabeça. Por que era tão difícil ser imperador?

— Faça o que quiser, senhor — disse Ajidica —. Leto Atreides não será perdoado, e tem que ser castigado.

Shaddam enrugou o nariz e se despediu do homenzinho. A partir do momento em que fosse coroado imperador do Universo Conhecido, teria muitas outras coisas que fazer, coisas importantes.

Oxalá pudesse livrar-se daquela maldita dor de cabeça.

 

O pior tipo de proteção é a confiança. A melhor defesa é a suspeita.

Hasimir Fenring

 

Thufir Hawat e Rhombur Vernius podiam entrar e sair da cela a vontade, Leto tinha jurado por sua honra — e em parte por sua própria segurança — não abandoná-la, O Mentat e o príncipe ixiano saíam com freqüência para discutir os detalhes das declarações com diversos membros da tripulação da fragata Atreides e com qualquer um que pudesse ajudar sua causa.

Nesses intervalos, Leto se sentava em seu escritório. Embora o velho Mentat o advertisse para que nunca desse as costas à porta, Leto pensava que não corria perigo naquela cela de alta segurança.

Desfrutou de alguns momentos de silêncio e concentração, enquanto examinava as numerosas projeções das provas que lhe tinham preparado. Mesmo que guardas Sardaukar o escoltassem, teria se mostrado reticente a passear pelo palácio imperial, sabendo que a sombra da acusação pendia sobre ele. Não demoraria para comparecer ante seus iguais e proclamar sua inocência.

Ouviu um ruído no campo de confinamento da cela, a suas costas, mas não voltou a vista. Terminou suas notas sobre a destruição da primeira nave Tleilaxu e adicionou um detalhe técnico que não tinha considerado antes.

— Thufir? — perguntou Leto —. esqueceu algo?

Olhou para trás.

Um alto guarda do Landsraad se erguia com seu uniforme e uma expressão estranha em seu rosto largo. Sua pele parecia pastosa, como grafite. Leto percebeu uma peculiar estupidez em seus movimentos. Um inquietante tom cinzento na pele das mãos, mas não do rosto...

Leto deslizou a mão por baixo da mesa e empunhou a faca que Hawat tinha levado às escondidas. Não tinha sido difícil para o guerreiro Mentat. Leto não mudou sua postura nem sua expressão afável.

Todas as lições que o Mentat lhe ensinara afloraram em seus músculos, despertos e preparados. Sabia que algo estava acontecendo, e que sua vida corria perigo.

De repente, o homem se livrou do uniforme, e quando este caiu, o mesmo aconteceu com seu rosto inexpressivo. Uma máscara! Também se desprenderam as mãos e os braços.

Leto saltou para um lado e se refugiou atrás da mesa. Agachado, segurou a faca e considerou suas chances.

O corpo do guarda se partiu pela cintura, revelando um par de anões Tleilaxu de rosto flexível. Um saltou dos ombros do outro. Ambos vestidos com roupas negras que marcavam todos os músculos.

Os assassinos Tleilaxu começaram a rodeá-lo. Seus olhos diminutos brilhavam. Algo refulgia em suas mãos: quatro armas, sem dúvida letais. Um deles se lançou sobre Leto.

— Morra, demônio powindah — gritou.

Leto pensou em refugiar-se sob a escrivaninha ou a mesa auxiliar, mas decidiu que se matasse um anão as chances se igualariam. Sem vacilar, lançou a faca e cortou a jugular do atacante.

Um dardo prateado passou assobiando junto a orelha de Leto, que se lançou para trás da mesinha auxiliar, que continuava projetando imagens por cima da escrivaninha. Um segundo dardo se cravou na parede, junto a sua cabeça.

Então ouviu o zumbido de um fuzil laser. Um raio de luz púrpura atravessou a habitação e o segundo Tleilaxu caiu fulminado. Seu rosto se fundiu, abrasado pelo raio. Um cheiro de carne queimada impregnou o ar.

— Quebraram nossa segurança — ouviu o capitão dizer, seu inesperado salvador.

— Eu não chamaria isso de segurança — replicou Hawat.

— Cortaram a garganta deste com uma faca — disse um dos guardas.

— De onde saiu essa faca? — O capitão ajudou Leto a levantar —. Eles o feriram, senhor?

Leto olhou para seu Mentat, mas deixou que Hawat respondesse.

— Tendo em conta suas eficazes medidas de segurança, senhor — ironizou Hawat —, como poderia alguém introduzir uma arma aqui?

— Lutei com um dos atacantes — explicou Leto — e o matei com sua própria arma. — Seus olhos cinzentos piscaram. Seu corpo tremia por causa da adrenalina —. Imagino que os Bene Tleilax não querem esperar pelo resultado do julgamento.

— Infernos carmesins! — exclamou Rhombur ao entrar e ver aquela ofensa —. Sem dúvida isto não beneficiará os Tleilaxu no julgamento. Se estavam tão seguros de ganhar, por que quiseram fazer justiça com suas próprias mãos?

O capitão da guarda se voltou para seus homens e ordenou que tirassem os corpos.

— Os assassinos dispararam dois dardos — disse Leto, e apontou os pontos onde eles se cravaram.

— Tomem cuidado quando os manipularem — advertiu Hawat —. É possível que estejam envenenados.

Quando Leto, Rhombur e Hawat ficaram a sós, o Mentat introduziu uma pistola maula na gaveta inferior do escritório.

— Para o caso de novo ataque — disse —. Da próxima vez uma faca não será suficiente.

 

Visto da órbita, o planeta IX é pacifico e antigo, mas sob sua superfície são desenvolvidos projetos imensos e executadas grandes obras. Desta forma, nosso planeta é uma metáfora do Império,

Dominic Vernius, As explorações secretas de IX.

 

Hasimir Fenring estendeu a Shaddam alguns documentos escritos na linguagem secreta que o príncipe herdeiro e ele tinham inventado durante sua infância. Podiam estar seguros de que seus segredos não seriam descobertos. Shaddam se sentou no trono da sala de audiências, e a luz interior do dossel de cristal Hagal projetou seu brilho, como uma água marinha iluminada pelo fogo.

Fenring fervia de energia suficiente para os dois.

— São os dossiês das Grandes Casas do Landsraad que assistirão ao Julgamento de Confisco. — Seus grandes olhos pareciam buracos negros no labirinto de sua mente —. consegui descobrir algo vergonhoso e ilegal em todas elas. Em resumo, contamos com meios suficientes de persuasão.

Shaddam se inclinou no trono, como se estivesse surpreso. Seus olhos, avermelhados devido à insônia, cintilaram de ira.

Fenring já o vira a beira do pânico em ocasiões anteriores, quando tinham acordado a morte de seu irmão, Fafnir.

— Acalme-se, Shaddam, hummmm? — sussurrou —. Já cuidei de tudo.

— Maldito seja, Hasimir! Se alguém desconfiar de nossas tentativas de suborno, a ruína cairá sobre a Casa Corrino. Não podemos permitir que ninguém descubra nossa implicação neste plano! — Shaddam meneou a cabeça, como se o Império já estivesse ruindo —. Perguntarão por que nos preocupamos tanto em salvar um duque insignificante.

Fenring sorriu para transmitir confiança ao príncipe.

— O Landsraad é composto de Grandes Casas, muitas das quais são nossas aliadas, Shaddam. Algumas insinuações entre os nobres, um pouco de melange gratuita, alguns subornos e ameaças...

— Sempre segui suas sugestões, talvez com muita freqüência. Mas não demorarei para ser o imperador de um milhão de planetas, e terei que pensar sem ajuda. E pretendo fazer isso agora mesmo.

— Os imperadores têm conselheiros, Shaddam. Sempre. — Fenring compreendeu que devia ser mais cauteloso. Algo tinha inquietado Shaddam, algo recente. O que ele sabe que eu não sei?

— Por uma vez, não utilizarei seus métodos, Hasimir — respondeu Shaddam —. Encontraremos outra forma.

Fenring, intrigado, ficou ao lado do príncipe herdeiro, como um igual. Entretanto, por algum motivo, Shaddam tinha mudado. Que tinha acontecido? Desde meninos não tinham mamado do mesmo peito, quando a mãe de Hasimir tinha sido a ama de leite de Shaddam? Quando adolescentes, não tinham recebido instrução juntos? Quando maiores não tinham tramado planos e conspirações juntos? Por que agora se negava a escutar seus conselhos?                                                                                                                                                                                        Fenring se aproximou do ouvido do príncipe herdeiro. Procurou parecer contrito.

— Peço que me perdoe, senhor, mas, hummmm... Tinha certeza que aprovaria, e as notas foram entregues aos representantes apropriados, notas em que se solicita seu apoio ao imperador quando chegar o momento de votar no julgamento.

— Sua ousadia chegou até esse ponto? Sem me consultar antes? — Shaddam avermelhou de indignação —. Pensou que me deixaria arrastar, planejasse o que planejasse?

Shaddam tinha se enfurecido. Que mais o incomodava? Fenring se agastou um passo do trono.

— Por favor, senhor. Está exagerando, perdendo a perspectiva.

— Ao contrário, acredito que estou ganhando perspectiva. — Suas narinas se dilataram —. Acha que sou um idiota, não é, Hasimir? Desde que éramos crianças sempre me explicou as coisas. Sempre pensou mais depressa que eu, sempre foi mais inteligente, mais desumano, ou ao menos aparentava isso. Entretanto, acredite ou não, posso me encarregar de qualquer situação sem sua ajuda.

— Nunca duvidei de sua inteligência, meu amigo. Graças a sua posição na Casa Corrino, seu futuro sempre esteve garantido, mas eu tive que lutar dia após dia para consolidar o meu. Quero ser seu porta-voz e seu confidente.

Shaddam se inclinou em seu trono.

— Ah, sim. Pensei que você era o cérebro atrás do trono e que eu sua marionete.

— Marionete? É claro que não

Fenring se afastou outro passo. Shaddam era muito instável, e Fenring não sabia o que estava acontecendo. Ele sabe de algo que eu ignoro. Shaddam nunca tinha questionado os atos de seu amigo, nem se interessava pelos detalhes dos subornos e da violência.

— Hummmm... Sempre pensei na melhor forma de ajudá-lo a ser um grande governante.

Shaddam ficou em pé e olhou para o homem com cara de doninha que se erguia a um metro do trono. Fenring decidiu não retroceder nem um passo mais. O que ele sabe? Que notícia lhe deram?

— Nunca faria nada para prejudicá-lo, velho amigo. Faz muito tempo que, hummmm, nos conhecemos. — levou a mão ao coração, ao estilo do Império —. Sei como pensa e o conheço... sem limitações, hummmm? De fato é muito brilhante. O problema é que demora a tomar decisões difíceis, embora necessárias.

Shaddam se aproximou e lhe disse:

— Tenho que tomar uma decisão difícil, Hasimir, e depende do resultado de suas maquinações.

Fenring esperou, temeroso das idéias mau aconselhadas que o príncipe herdeiro pudesse ter, mas não se atreveu a discutir.

— Saiba disto: não vou perdoar sua conduta deplorável. Se esta cadeia de subornos se voltar contra nós, minha mão não vacilará quando assinar sua sentença de morte por traição.

Fenring empalideceu, e sua expressão estupefata satisfez o príncipe. Tendo em conta o volúvel ânimo de seu amigo, Fenring tinha certeza de que seria capaz de assinar a ordem. Apertou as mandíbulas e decidiu pôr fim àquela loucura.

— O que disse a respeito de nossa amizade é certo, Shaddam. — Mediu suas palavras —. Mas eu teria sido um louco de não ter tomado certas precauções para revelar sua implicação em certas... hummmm, como posso dizer... aventuras. Se algo me ocorrer, tudo virá à luz: a causa da morte de seu pai, as atividades relacionadas com a especiaria artificial em IX, até o assassinato de Fafnir quando éramos adolescente. Se eu não tivesse envenenado seu irmão, agora ele estaria sentado no trono. Você e eu estamos juntos. Progredimos... ou caímos.

Shaddam não pareceu surpreso.

— Ah, sim. Muito previsível, Hasimir. Sempre me avisou que não se deve ser previsível.

Fenring teve o cuidado de parecer envergonhado. Guardou silêncio.

— Foi você que me enredou em um plano que ninguém sabe se algum dia obteremos algo tangível. — Os olhos de Shaddam cintilaram —. Especiaria sintética, nada menos! Oxalá nunca tivesse me envolvido com os Tleilaxu. E agora posso sofrer as desagradáveis conseqüências desta conspiração. Veja onde seu plano nos levou?

— Hummmm, não discutirei com você, Shaddam. Mas conhece os riscos do projeto, e os enormes lucros potenciais. Precisa ter paciência.

— Paciência? Neste momento vejo apenas duas possibilidades — sentou-se de novo no trono —. Como você disse, ou serei coroado, e você e eu chegaremos ao topo, ou cairemos juntos, para o exílio ou a morte. — Suspirou —. Assim, corremos um perigo mortal, tudo por culpa de sua maldita conspiração da especiaria.

Fenring recorreu a sua última e desesperada idéia, enquanto seus grandes olhos se moviam de um lado para outro em busca de uma escapatória.

— Você recebeu uma notícia ruim, senhor. Me diga o que aconteceu.

No palácio imperial aconteciam poucas coisas sem que Fenring fossse informado imediatamente.

Shaddam cruzou as mãos. Fenring se inclinou para frente, com os olhos atentos. O príncipe herdeiro suspirou, resignado.

— Os Tleilaxu enviaram dois assassinos para matar Leto em sua cela.

Fenring se sobressaltou e perguntou se a notícia era boa ou ruim.

— Conseguiram?

— Não, não. Nosso jovem duque se defendeu com êxito. Mas isto me causa uma grande preocupação.

Fenring se encolheu, surpreso com a notícia.

— Mas isso é uma loucura. Pensei que já tinha falado com nosso contato Tleilaxu e ordenado que...

— Eu o fiz — interrompeu Shaddam —, mas ao que parece você não é o único que se zomba de minhas ordens. Ou Ajidica ignorou minhas instruções, ou não controla mais os seus.

Fenring grunhiu, aliviado por ter desviado a ira do príncipe.

— Temos que responder com firmeza. Faça Hidar Fen Ajidica saber que deve obedecer as ordens do imperador rapidamente, ou o castigo será implacável.

Shaddam olhou para ele mostrando cautela, já não tão franco e cordial como antes.

— Você sabe muito bem o que deve fazer, Hasimir.

Fenring aproveitou a oportunidade de congraçar-se com o príncipe.

— Sempre sei, senhor. — E se afastou pela sala de audiências.

Shaddam passeou em frente ao trono, afim de se acalmar e ordenar os pensamentos. Quando Fenring chegou à arcada, de repente o príncipe gritou:

— Nossas diferenças não acabam aqui, Hasimir. As coisas mudarão depois que eu for coroado.

— Sim, senhor. Deve fazer... hummmm, o que considera apropriado.

Fenring fez uma reverência e abandonou a sala, contente por sair com vida.

 

Quando é preciso realizar determinadas ações, sempre existem alternativas. O importante é cumprir a missão.

Conde Hasimir Fenring, Embaixador em Arrakis.

 

O piloto Tleilaxu que tinha sobrevivido ao ataque dentro do Cruzeiro era uma testemunha material do julgamento, e portanto se viu obrigado a permanecer em Kaitain. Não era um prisioneiro, e se ocupavam de suas necessidades, embora ninguém procurasse sua companhia. Os Bene Tleilax nem sequer tinham revelado seu nome. O homem queria voltar ao trabalho, voltar para a nave.

Entretanto, devido ao grande número de convidados que chegavam para assistir à cerimônia de coroação e ao casamento imperial, era difícil de acomodá-lo. Os encarregados de protocolo de Shaddam, secretamente satisfeitos, só puderam lhe oferecer uma pequena e austera habitação.

O piloto não pareceu se importar, o que irritou os encarregados de protocolo. Não se queixou de nada enquanto esperava para dar seu testemunho a justiça e condenar assim o abominável Leto Atreides.

As noites de Kaitain eram perfeitas, claras e cheias de estrelas e luas. A escuridão nunca era total, mas atenuada por sucessivas auroras. Mesmo assim, quase toda a capital dormia durante certas horas.

Hasimir Fenring se introduziu com facilidade na habitação do Tleilaxu. movia-se silenciosamente e não utilizava iluminação alguma. Estava acostumado com a noite: ela era sua amiga.

Fenring nunca tinha visto um Tleilaxu adormecido, mas quando se aproximou da cama, descobriu que o piloto estava desperto, completamente acordado. O homem de pele cinza olhou para ele na escuridão como se pudesse ver melhor ainda que o assassino de Shaddam.

— Tenho uma pistola maula apontada para seu peito — disse o Tleilaxu —. Quem é você? Veio me matar?

— Hummmm, não. — Fenring se recuperou imediatamente —. Sou Hasimir Fenring, companheiro inseparável do príncipe herdeiro Shaddam, e trago uma mensagem e um pedido.

— Quais são? — perguntou o piloto.

— O príncipe herdeiro Shaddam lhe pede que reconsidere os detalhes do seu testemunho, hummmm? Deseja que a paz reine entre as Casas do Landsraad, e não quer que uma sombra assim caia sobre a Casa Atreides, cujos membros serviram aos imperadores Padishah desde a época de nossa Grande Revolução.

— Besteira — replicou o Tleilaxu —. Leto Atreides disparou contra nossas naves, destruiu uma e danificou a minha. Há centenas de mortos. provocou a pior tormenta política dos últimos tempos.

— Claro, claro! — disse Fenring —. E vocês podem impedir que se propague mais, hummmm? Shaddam deseja começar seu reinado com paz e prosperidade. É incapaz de pensar em termos mais amplos?

— Só penso em meu povo, e na punição para o homem que acabou com eles. Todo mundo sabe que o Atreides é culpado. Ele tem que pagar por seus atos. Só então nos sentiremos vingados. — Sorriu com seus lábios magros. A pistola não se desviou nem um milímetro. Fenring compreendeu por que aquele homem havia alcançado a patente de piloto. Estava claro que tinha coragem suficiente —. Depois, Shaddam terá um reinado tão tranqüilo quanto desejar.

— Isso me entristece — disse Fenring em tom de decepção —. Transmitirei sua resposta ao príncipe herdeiro.

Cruzou os braços e fez uma reverência de despedida, ao mesmo tempo em que estendia as palmas para frente. O movimento disparou duas pistolas maula presas em seus punhos, e dois dardos mortíferos se cravaram na garganta do piloto.

O Tleilaxu apertou instintivamente o gatilho da pistola, mas Fenring se esquivou agilmente das setas que se cravaram na parede e vibraram por alguns segundos. O ocupante da habitação ao lado esmurrou a parede para exigir silêncio.

Fenring estudou sua obra. Todas as provas se encontravam na habitação, e os Bene Tleilax compreenderiam o significado daquilo: depois da revoltante tentativa de assassinato de Leto Atreides, desobedecendo as ordens de Shaddam, Hidar Fen Ajidica tinha que tomar cuidado.

Os Tleilaxu se orgulhavam de sua capacidade para guardar segredos. Não havia dúvida de que eliminariam discretamente o nome do piloto da lista de testemunhas, e não voltariam a mencioná-lo. E desse modo suas alegações teriam menos peso.

Não obstante, Fenring confiava que este assassinato não aumentasse ainda mais o desejo de vingança do homenzinho. Como reagiria Hidar Fen Ajidica?

Fenring saiu da habitação e se fundiu com as sombras. Deixou o corpo, para o caso de os Bene Tleilax desejarem ressuscitá-lo como ghola. Afinal, devia ter sido um bom piloto.

 

Ao tramar qualquer ato de vingança, é conveniente saborear os preparativos e todos os seus momentos, pois acontece com freqüência que a forma de execução é muito diferente da pensada a princípio.

Hasimir Fenring.

Despacho de Arrakis.

 

O barão Vladimir Harkonnen não podia sentir-se mais satisfeito com o rumo que os acontecimentos tinham tomado. Teria ficado ainda mais satisfeito se o resto do Império pudesse apreciar as deliciosas complexidades do seu plano, mas jamais poderia revelá-las.

Por ser uma Casa importante, os atuais administradores da produção de especiaria em Arrakis, os Harkonnen foram alojados em luxuosas habitações de uma asa isolada do palácio. Já tinham recebido os passes para a coroação e casamento.

Entretanto, antes de toda a pompa e cerimônia, o barão teria o triste dever de presenciar o terrível julgamento de Leto Atreides. Agitou os dedos sobre sua perna e umedeceu os lábios grossos. Ai, a carga da nobreza.

Estava sentado em uma macia poltrona anil, e embalava uma esfera em seu regaço. No interior da bola transparente brilhavam holoimagens de jogos artificiais e exibições luminosas, prévias dos festejos que Kaitain viveria dentro de alguns dias. Em um canto da estadia, uma chaminé musical emitia notas suaves e calmantes. Nos últimos tempos se sentia cansado com freqüência, notava o corpo fraco e tremulo.

— Quero que abandone o planeta — disse o barão a Glossu Rabban sem parar de olhar para a esfera de cristal —. Não o quero aqui durante o julgamento e coroação.

O homem de ombros largos se irritou. Cortara o cabelo muito curto, sem elegância, para sua aparição em público, e usava um colete de pele almofadado que lhe dava ainda mais aspecto de barril.

— Por quê? Fiz tudo o que me pediu, e nossos planos foram coroados de êxito. Por que me manda embora agora?

— Porque não o quero aqui — disse o barão —. Não posso permitir que alguém o veja e pense que teve algo a ver com a situação do pobre Leto. Seu aspecto é muito... maligno.

O sobrinho do barão franziu o sobrecenho, ainda desafiador.

— Mas quero olhar nos olhos dele quando ouvir sua sentença.

— Por isso deve partir. Não entende? Isso o delatará.

Rabban grunhiu e se rendeu.

— Posso assistir à execução, ao menos? — Parecia a ponto de chorar.

— Depende de quando ela acontecer. — O barão olhou para os dedos cheios de anéis e repicou com eles sobre a suave superfície da esfera. — Não se preocupe, garantirei que o acontecimento seja gravado para seu prazer.

O barão se levantou da poltrona com esforço e rodeou o cinturão de sua bata. Suspirou e passeou pela habitação descalço. Viu a banheira trabalhada, com seus complicados controles de massagem e temperatura. Como seu corpo continuava atormentado por dores misteriosas, decidiu tomar um longo e sibarítico banho.

Rabban, ainda aborrecido, continuou imóvel na soleira dos opulentos aposentos do barão.

— O que devo fazer, tio?

— Pegue o primeiro Cruzeiro disponível. Quero que vá para Arrakis e vigie a produção de especiaria. Que os lucros não parem de aumentar. — Sorriu e moveu os dedos para se despedir do seu sobrinho —. Não faça essa cara. Divirta-se caçando alguns Fremen. Já fez sua parte nesta conspiração, e muito bem, por certo. — Sua voz soou consoladora —. Mas temos que ser cautelosos. Sobretudo agora. Preste atenção ao que faço e trate de aprender disso.

Rabban assentiu e partiu. Sozinho por fim, o barão começou a pensar na forma de localizar algum jovenzinho de pele suave que o atendesse no banheiro. Queria estar completamente relaxado e preparado para o dia seguinte.

Amanhã não teria nada melhor que fazer além de observar e saborear o acontecimento, quando o jovem Leto se encontrasse apanhado em mais armadilhas do que podia imaginar.

Logo a Casa Atreides deixaria de existir.

 

O que é mais importante, a forma que a justiça adota ou o resultado? Por mais que o tribunal diseccione as provas, os alicerces da verdade permanecem incólumes. Infelizmente para muitos acusados, com freqüência só a vítima e o perpetrador conhecem a verdade genuína. Todos os outros têm que tomar sua própria decisão.

Lei do Landsraad, condições e análises.

 

Na manhã do julgamento. Leto Atreides se distraiu escolhendo seu traje. Outros, na mesma situação, teriam usado seus objetos mais caros, camisas de seda mehr, colares e pulseiras, junto com capas forradas de pele de baleia e elegantes chapéus adornados com plumas e lantejoulas.

Em vez disso, Leto se decidiu por calças simples, uma camisa de riscas azuis e brancas e uma boina de pescador, a vestimenta simples que deveria usar se fosse condenado. De seu cinturão pendia uma bolsa com iscas de pesca e a bainha vazia de uma faca. Um plebeu comum, que seria. Com esta atitude, Leto proclamava ao Landsraad que sobreviveria, qualquer que fosse o resultado do julgamento. As coisas simples lhe bastariam.

Seguindo o exemplo de seu pai, sempre havia tentado tratar bem a seus leais, até o extremo de muitos soldados e criados o considerarem um dos seus, um camarada. Agora, enquanto se vestia, começou a pensar em si mesmo como um homem simples, e descobriu que a sensação não o desagradava. Fazia que compreendesse o tremendo peso da responsabilidade que recaía sobre seus ombros desde a morte do velho duque.

Ser um humilde pescador significaria um alívio em certo sentido. Já não teria que se preocupar com conspirações, alianças instáveis e traições. Pena que Kailea nunca aceitaria ser mulher de um pescador.

Além disso, não posso decepcionar meu povo.

Em uma breve carta enviada de Caladan, sua mãe tinha expressado seu desacordo com o Julgamento de Confisco. Para ela, a perda de posição social relacionada com a destruição da Casa Atreides seria um golpe mortal, embora agora (de forma transitiva, imaginava ela) vivesse com austeridade entre as irmãs do Isolamento.

Devido à decadência da Casa Richese, Helena tinha contraído matrimônio com um membro da Casa Atreides, afim de equilibrar a cambaleante fortuna de sua família depois que o imperador Elrood retirara o semifeudo de Arrakis e o concedera aos Harkonnen.

Como dote de Helena, a Casa Atreides tinha recebido poder político, uma diretoria na CHOAM e o direito a voto no Landsraad. Mas o duque Paulus nunca tinha proporcionado a sua mulher a fabulosa fortuna que ela desejava, e Leto sabia que sua mãe ainda abrigava esperanças de recuperar as glórias passadas de sua família. Tudo isto seria impossível para ela se Leto perdesse o julgamento.

Depois de receber a citação de comparecimento no meio da amanhã, Leto se encontrou com seus assessores legais no corredor: duas brilhantes advogadas elaccanas, Clere Ruim e Liruda Viol, famosas por seus sucessos. Tinham sido recomendadas pelo embaixador ixiano no exílio, Cammar Pilru, e Thufir Hawat as interrogara minuciosamente.

As advogadas usavam trajes escuros e se ateriam aos formalismos legais, embora neste julgamento Leto sabia que tudo dependia dele. Precisava de provas concretas a seu favor.

Clere Ruim entregou uma fina folha de cristal riduliano, que continha uma breve declaração.

— Perdoe-me, lorde Leto. Isto acaba de chegar faz alguns momentos.

Leto, assustado, leu as palavras. A seu lado, os ombros de Hawat se nublaram, como se tivesse adivinhado o conteúdo do documento. Rhombur se aproximou para tentar ler as gravuras do cristal.

— O que é, Leto? Deixe vê-lo.

— O tribunal decidiu que nenhuma Reveladora da Verdade Bene Gesserit pode falar em meu nome. Tal testemunho não será considerado.

Rhombur explodiu de indignação.

— Infernos carmesins! Mas se tudo é plausível em um Julgamento de Confisco! Não podem fazer isso.

A outra advogada elaccana meneou a cabeça, inexpressiva.

— Adotaram a postura de que as demais leis imperiais atuam em seu contrário. Numerosas normas proíbem expressamente o testemunho das Reveladoras da Verdade. Talvez os requisitos das provas sejam flexíveis em um procedimento como este, os magistrados decidiram que essa flexibilidade não as inclui.

— Assim... adeus Reveladoras da Verdade. — Rhombur franziu o sobrecenho —. Era nossa maior esperança.

Leto ergueu a cabeça.

— Nesse caso teremos que fazê-lo sem ajuda. — Olhou para seu amigo —. Venha, quase sempre é você o que me transmite otimismo.

— Um elemento positivo — atravessou Bruda Viol — é que os Tleilaxu eliminaram o piloto sobrevivente da lista de testemunhas. Não deram explicações.

Leto exalou um suspiro de alívio, mas Hawat disse:

— Mesmo assim restam muitos testemunhos acusadores, meu duque.

A seguir se dirigiram para a lotada sala do tribunal do Landsraad. A advogada Ruim se sentou no final da longa mesa da defesa, diante do alto estrado dos magistrados. Sussurrou algo ao ouvido de Leto, mas este estava lendo os nomes dos magistrados designados: sete duques, barões, condes e senhores escolhidos aleatoriamente entre as Grandes e Pequenas Casa do Landsraad.

Esses homens decidiriam sua sorte.

Como os Tleilaxu não pertenciam a nenhuma Casa real e tinham sido expulsos do Landsraad depois da queda de IX, não estavam representados. Nos dias anteriores ao julgamento, indignados dignitários Bene Tleilax tinham exigido justiça nos pátios do palácio, mas depois do atentado contra a vida de Leto, guardas Sardaukar os tinham dispersado.

Os magistrados entraram solenemente na sala. Tomaram assento no estrado curvo de madeira maciça que se abatia sobre a mesa da defesa. As bandeiras e emblemas de suas Casas pendiam atrás de cada cadeira.

Leto, que tinha sido informado por suas advogadas e Hawat, reconheceram a todos. Dois magistrados, o barão Terkillian Irma de Anbus IV e lorde Bain Ou'Garce de Hagal, tinham sido fiéis aliados econômicos da Casa Atreides. Um, o duque Pard Vidal de Ecaz, era um inimigo jurado do velho duque e aliado dos Harkonnen. Outro, o conde Antón Recheie, tinha fama de aceitar subornos, o que o transformava em presa fácil dos Harkonnen.

Empate, pensou Leto. Os outros três magistrados podiam decidir-se por qualquer dos lados, mas sentiu o cheiro da traição no ar. Viu-o nas expressões dos magistrados, na forma em que evitavam olhá-lo nos olhos. Já se decidiram me condenar, perguntou-se.

— Temos más notícias, duque Leto — disse Bruda Viol. Seu rosto era quadrado e severo, desprovido de paixão, como se tivesse visto tantas injustiças que nada a impressionava —. Acabamos de descobrir que um dos três magistrados indecisos. Rincon de Casa Fazcel, perdeu uma imensa fortuna nas mãos de IX em uma guerra comercial relacionada com as minas dos asteróides do sistema Klytemn. Há cinco anos os conselheiros de Rincon o impediram de declarar uma guerra feudal contra Dominic Vernius.

A outra advogada assentiu e baixou a voz.

— Chegou a nossos ouvidos o rumor de que Rincon considera sua queda a única oportunidade de apropriar-se de IX, agora que a Casa Vernius se declarou renegada.

Um fio de suor frio correu pelas costas de Leto.

— Este julgamento tem alguma relação com o que ocorreu realmente no Cruzeiro? — ironizou amargurado.

Tanto Bruda Viol como Clere Ruim olharam para ele desconcertadas.

— Três a dois, meu duque — disse Hawat —. Portanto, temos que ganhar nos dois juízes indecisos e não perder nenhum dos poucos apoios que conseguimos.

— Tudo sairá bem — disse Rhombur.

A sala do tribunal, blindada e sem janelas, tinha sido em outros tempos chancelaria ducal durante as obras de construção de Kaitain. Seu teto gótico abobadado estava adornado com afrescos de tema militar e os emblemas e escudos das Grandes Casas. Leto se concentrou no falcão vermelho dos Atreides. Embora tentasse conservar a calma, uma terrível sensação de perda o invadiu, um desejo do que nunca voltaria a existir. Em pouco tempo tinha perdido tudo que seu pai deixara, e a Casa Atreides se encontrava a beira da ruína.

Quando sentiu que as lágrimas brotavam em seus olhos, amaldiçoou-se por sua fraqueza momentânea. Nem tudo estava perdido. Ainda podia ganhar. Ganharia! Apertou os lábios e rechaçou a onda de desespero. O Landsraad estava observando-o e tinha que ser forte o bastante para enfrentar tudo que o esperava. Não podia entregar-se ao desespero, nem a nenhuma outra emoção.

Os observadores enchiam a sala e discutiam exaltados. Duas mesas flanqueavam a mesa da defesa. Seus acusadores sentaram-se à mesa da esquerda: representantes designados pelos Tleilaxu, talvez patrocinados pelos Harkonnen e outros inimigos dos Atreides. O odiado barão e seu séquito se acomodaram na tribuna dos espectadores. Na outra mesa se sentavam os aliados e amigos dos Atreides. Leto saudou cada um com um sorriso de confiança.

Mas seus pensamentos não eram tão audazes, pois devia admitir que seu caso tinha poucas chances de sucesso. Os fiscais apresentariam a prova das armas disparadas da nave Atreides, dúzias de testemunhas neutras convencidas de que os disparos não podiam ter vindo de outra nave. Até sem o testemunho do piloto Tleilaxu, bastaria o de outros observadores. O testemunho de seus companheiros e da tripulação não seria suficiente, nem o dos numerosos amigos da família que atestariam sua firmeza moral.

— Talvez a proscrição das Reveladoras da Verdade nos permita para uma apelação — sugeriu Clere , mas isso não consolou Leto.

De repente, por um corredor lateral, os Tleilaxu chegaram com seus Mentats pervertidos. Chegaram com a mínima pompa, mas com o estrépito de um veículo com aspecto diabólico. Rodava sobre rodas engripadas, acompanhado do ruído de engrenagens. Fez-se silêncio na sala e os espectadores esticaram o pescoço para contemplar o engenho mais aterrador que tinham visto em sua vida.

Com certeza fazem isso de propósito, pensou Leto, para me deixar mais nervoso.

Os Tleilaxu passaram com seu veículo detestável diante da mesa da defesa e olharam para Leto com olhos escuros e ferozes. O público começou a murmurar. Continuando, o cortejo Tleilaxu se deteve sob o estrado dos juízes.

— O que significa isso? — exclamou um dos magistrados, o barão Terkillian, e se inclinou para frente com o sobrecenho franzido.

O líder dos Tleilaxu dirigiu um olhar de ódio a Leto e se voltou para o magistrado.

— Excelências, nos anais da jurisprudência imperial os Julgamentos de Confisco são escassos, mas a lei é inequívoca: “Se a defesa do acusado é desprezada, este perderá todas as suas posses, sem exceção.” Todas.

— Sei. — Terkillian Irmã continuava áspero —. Que relação tem isso com este artefato?

O porta-voz Tleilaxu respirou fundo.

— Pretendemos reclamar não só as posses da Casa Atreides, mas também a pessoa do odioso criminoso Leto Atreides, incluído suas células e seu material genético.

O público soltou um murmúrio de surpresa, e os ajudantes Tleilaxu manipularam os controles da máquina. Folhas de serra começaram a girar, e arcos elétricos saltaram de uma agulha longa a outra. Aquele artefato era atroz e exagerado, sem dúvida de propósito.

— Com este engenho sangraremos o duque Leto Atreides nesta sala, até a última gota. Nós o esfolaremos, e arrancaremos seus olhos para usá-los em nossas análises e experimentos. Todas as suas células serão nossas, para os propósitos que decidirmos. — Inspirou pelo nariz —. Estamos em nosso direito!

Leto permaneceu imóvel, com um esforço desesperado por ocultar sua angústia. Um suor frio desceu por suas costas. Queria que seus advogados dissessem algo, mas guardaram silêncio.

— Talvez o acusado descubra alguma vantagem em seu destino — sugeriu o Tleilaxu com um sorriso perverso —, já que não tem herdeiro: com suas células temos a opção de ressuscitá-lo como um ghola.

Para obedecer todas as suas ordens, pensou Leto, horrorizado.

Rhombur lançou um olhar desafiante aos Tleilaxu da mesa da defesa, enquanto Hawat continuava sentado a seu lado como uma estátua. As duas advogadas tomavam notas.

— Acabemos com esta palhaçada — trovejou lorde Bain Ou'Garee —. Decidiremos esta questão mais tarde. Comecemos o julgamento. Quero escutar o que o Atreides tem a dizer em sua defesa.

Leto compreendeu que estava perdido, mas procurou não demonstrar. Todos os presentes na sala sabiam que odiava os Tleilaxu e conheciam seu apoio à família ixiana exilada. Podia chamar testemunhas que atestassem sua retidão moral, mas ninguém o conhecia realmente. Era jovem e inexperiente, empurrado pela tragédia ao papel de duque. A única vez que os membros do Landsraad tinham visto Leto fora quando tinha falado ao Conselho dando mostras de seu temperamento impetuoso.

Saltaram faíscas da máquina de dissecação dos Tleilaxu, como uma besta faminta e impaciente. Leto teve certeza que não haveria apelação.

Antes que chamassem a primeira testemunha, as enormes portas de latão esculpidas se abriram de súbito e golpearam as paredes. Um murmúrio percorreu a sala e Leto ouviu o ressoar de botas com saltos de metal sobre o chão de marmorita.

Voltou a cabeça e viu o príncipe herdeiro Shaddam, vestido com peles púrpuras e douradas, em vez de seu habitual uniforme Sardaukar. Seguido por uma escolta de elite, o futuro imperador avançou decidido e prendeu a atenção de todos. Quatro homens armados até os dentes escrutinaram o público, preparados para usar a violência ante qualquer manifestação.

Um Julgamento de Confisco já era bastante insólito no tribunal do Landsraad, mas a aparição do futuro imperador Padishah não tinha precedentes.

Shaddam passou junho a Leto sem olhar para ele. Os Sardaukar tomaram posições atrás da mesa da defesa, o que aumentou a inquietação de Leto.

O rosto de Shaddam era impenetrável, e seu lábio superior se agitava levemente. Era impossível saber suas intenções. A mensagem o ofendera?, perguntou-se Leto. Ou pensa em aceitar meu blefe? Vai me esmagar diante de todo o Landsraad? Quem me defenderia se o fizesse?

Shaddam chegou em frente ao estrado e ergueu a vista.

— Antes que o julgamento comece — anunciou —, quero fazer uma declaração. O tribunal me permite?

Embora Leto não confiasse em seu primo longínquo, teve que admitir que o porte de Shaddam era majestoso e elegante. Pela primeira vez viu aquele homem como uma verdadeira presença por direito próprio, não só a sombra de seu pai, o velho Elrood. A coroação de Shaddam seria celebrada dentro de dois dias, seguida de suas bodas com Anirul, acontecimentos que talvez Leto não viveria para ver. A poderosa Bene Gesserit tinha dado seu apoio ao iminente reinado de Shaddam, e todas as Grandes e Pequenas Casas queriam estar a seu lado.

Sente-se ameaçado por mim?, pensou.

O presidente do tribunal assentiu efusivamente.

— Senhor, seu interesse no caso nos honra. É obvio que este tribunal o escutará. — Leto conhecia só os dados históricos sobre aquele magistrado, o barão Lareira Olin, do planeta Risp Vil, rico em titânio —. Rogo que fale.

— Com a permissão da corte — disse Shaddam —, eu gostaria que meu primo Leto Atreides se colocasse a meu lado. Preciso comentar sobre estas acusações maliciosas e espero evitar que o tribunal desperdice o valioso tempo dos seus membros.

Leto, estupefato, olhou para Hawat. O que está havendo? “Primo”? Da maneira como dissera, soou como uma palavra carinhosa... mas ele e eu nunca fomos amigos. Leto era o simples neto de uma das esposas de Elrood, a segunda, nem sequer da mãe de Shaddam, A árvore genealógica Corrino se estendia entre as Casas do Landsraad. Qualquer relação consangüínea significaria pouco para Shaddam.

O magistrado assentiu. As advogadas de Leto estavam perplexas, sem saber como reagir. Leto ficou em pé com cautela e avançou para o príncipe herdeiro com os joelhos trêmulos. Deteve-se a um passo dele. Embora tivessem peso e traços faciais similares, estavam vestidos de forma muito diferente, exemplificando os dois extremos sociais. Com sua tosca indumentária de pescador, Leto se sentiu como uma bolinha de pó em meio de um furacão.

Fez uma reverência, mas Shaddam salvou o abismo entre ambos, apoiando uma mão no ombro de Leto. O imaculado manto do príncipe herdeiro se derramou como uma cascata sobre o braço do jovem Atreides.

— Falo do coração da Casa Corrino, o sangue dos imperadores Padishah — começou Shaddam —, com as vozes solidárias de todos os meus antepassados que se relacionaram com a Casa Atreides. O pai deste homem, o duque Paulus Atreides, lutou corajosamente pela causa imperial contra os rebeldes de Ecaz. Nem na batalha nem assediada pelos maiores perigos a Casa Atreides cometeu, que eu saiba, a menor traição nem ato desonroso, até remontar a seu heroísmo e sacrifício na ponte do Hrethgir, durante a Jihad Butleriana. Jamais foram assassinos covardes. Eu os desafio a provarem o contrário.

Entreabriu os olhos, e os magistrados afastaram a vista, incômodos.

Shaddam passeou a vista de magistrado em magistrado.

— Quem dos senhores, conhecedores das histórias de suas Casas, pode dizer o mesmo? Quem exibiu a mesma lealdade, a mesma honra sem mácula? Poucos de nós, para falar a verdade, podemos nos comparar com a Casa Atreides. — Fez uma pausa significativa, só interrompida por uma aguda descarga de estática procedente da ameaçadora máquina de dissecação Tleilaxu —. E por isso estamos aqui hoje, não é assim, cavaleiros? Pela verdade e pela honra.

Alguns magistrados assentiram, porque era o que se esperava deles, mas pareciam perplexos. Os líderes imperiais nunca apareciam nos tribunais do Landsraad. Por que Shaddam se envolvia em um assunto de relativa importância?

Ele leu minha mensagem!, compreendeu Leto. E esta é sua resposta.

De qualquer modo, esperava que alguma armadilha aparecesse de um momento para outro. Não entendia em que se colocara, mas a intenção de Shaddam não podia ser unicamente de resgatá-lo. De todas as Grandes Casas do Landsraad, a do Corrino era a mais tortuosa.

— A Casa Atreides sempre seguiu o caminho reto — continuou Shaddam, e ergueu um pouco mais sua voz majestosa —. Sempre! O jovem Atreides foi educado neste código ético familiar, e se viu obrigado a ocupar seu cargo antes do tempo devido a morte absurda de seu nobre pai.

Shaddam avançou um passo.

— Na minha opinião, é impossível que este homem disparasse contra as naves Tleilaxu. Tal ato seria contrário às crenças e princípios da Casa Atreides. As provas que demonstrem o contrário devem ser falsas. Minhas Reveladoras da Verdade me confirmaram isso depois de falar com Leto e suas testemunhas.

Ele está mentindo, pensou Leto. Eu não falei com nenhuma Reveladora da Verdade!

— Mas, alteza real — disse o magistrado Prad Vidal, com o sobrecenho franzido —, os canhões de sua nave mostravam sinais de ter sido disparados, está insinuando que as naves Tleilaxu sofreram danos por causa de um acidente? Uma loucura! Coincidência?

Shaddam deu de ombros.

— Pelo que me diz respeito, o duque Leto explicou suas circunstâncias plenamente. Eu também voei em uma nave de combate para praticar. O resto da investigação não é concludente. Talvez tenha sido um acidente, sim, não provocado pelos Atreides. Pode ter sido causado por uma falha mecânica.

— Nas duas naves Tleilaxu? — perguntou Vidal.

Leto ficou sem fala. Shaddam estava a ponto de iniciar seu reinado. Se o imperador utilizava sua influência a favor de Leto, que representante iria contrariar a coroa? As repercussões podiam ser graves e duradouras.

Tudo é uma questão de política, jogos do poder do Landsraad, troca de favores, pensou Leto, e se esforçou por oferecer uma aparência serena. Nada disto tem relação com a verdade. Agora que o príncipe herdeiro tinha deixado clara sua postura, qualquer magistrado que votasse para condenar Leto desafiaria de forma aberta o novo imperador. Nem sequer os inimigos da Casa Atreides ousariam correr o risco.

— Quem sabe? — respondeu Shaddam, com um gesto que equivalia a desprezar a questão por ser irrelevante —. Talvez restos da primeira explosão acidental alcançaram à outra nave.

Ninguém engoliu essa explicação nem por um momento, mas o príncipe herdeiro lhes oferecia uma saída, uma plataforma sobre a qual pousar.

Os magistrados conferenciaram em voz baixa entre eles. Alguns admitiram que o raciocínio de Shaddam era plausível, mas Vidal não estava entre eles. O suor molhava sua testa.

Leto viu que o porta-voz Tleilaxu meneava a cabeça, manifestando em silêncio sua frustração. Parecia um menino aborrecido.

O príncipe herdeiro continuou.

— Estou aqui, por meu direito e dever de comandante supremo, para interceder por meu primo, o duque Leto Atreides. Solicito que anulem este julgamento e lhe devolvam seus títulos e propriedades. Se atenderem este... pedido, prometo enviar uma delegação de diplomatas imperiais para convencer os Tleilaxu a esquecerem o assunto e não se vingar dos Atreides em nenhum sentido.

Shaddam olhou fixamente para os Tleilaxu, e Leto teve a impressão de que o imperador também tinha o anão contra as cordas. Ao ver que Shaddam apoiava a Casa Atreides, sua arrogância ruiu.

— E se os querelantes não concordarem? — perguntou Vidal.

Shaddam sorriu.

— Oh, eles concordarão. Estou disposto a abrir as arcas imperiais para oferecer uma compensação generosa pelo que sem dúvida foi um desgraçado acidente. É meu dever manter a paz e a estabilidade do Império. Não posso permitir que esta inimizade destrua o que meu querido pai forjou durante seu longo reinado.

Leto captou o olhar de Shaddam e detectou um brilho de medo sob sua pátina de fanfarronice. Shaddam o advertiu com um gesto que se mantivesse em silêncio, o que avivou ainda mais a curiosidade do duque pelos alarmes que seu blefe tinha disparado.

Em conseqüência, calou, mas Shaddam o deixaria viver depois disso, sem saber que provas possuía contra ele?

Depois de um breve conciliábulo entre seus colegas, o barão Lareira Olin pigarreou e anunciou:

— Este tribunal decide que todas as provas contra Leto Atreides são circunstanciais. Tendo em conta dúvidas tão extremas, não existem motivos suficientes para realizar um julgamento de conseqüências tão graves, sobretudo a luz do testemunho do príncipe herdeiro Shaddam. Portanto, declaramos Leto Atreides inocente e lhe devolvemos seu título e suas propriedades.

Leto, assombrado, recebeu a felicitação do futuro imperador, e depois foi rodeado por seus amigos e partidários. Todos estavam encantados, mas apesar de sua juventude Leto não era ingênuo: sabia que muitos estavam contentes apenas pela derrota dos Tleilaxu.

Os assistentes prorromperam em vivas e aplausos, com exceção de uns poucos que guardaram silêncio. Leto se fixou neles, com a segurança de que Thufir Hawat fazia o mesmo.

— Leto, tenho que fazer algo mais — disse Shaddam, interrompendo o clamor.

E a seguir extraiu de sua manga uma faca com o punho cravejada de jóias, de uma cor verde-azulada translúcida, como quartzo de Hagal do trono imperial. Shaddam se aproximou do Leto com rapidez e todos emudeceram. Thufir Hawat ficou em pé de um salto, muito tarde.

Então, com um sorriso, Shaddam deslizou a faca na bainha vazia de Leto.

— Receba meus parabéns, primo — disse —. Receba esta faca em reconhecimento aos serviços que me prestou.

 

Fazemos o que é preciso. Malditas sejam a amizade e a lealdade. Fazemos o que é preciso!

Diário pessoal de Lady Helena Atreides.

 

Hasimir Fenring meditava em seus aposentos privados, perplexo. Como Shaddam pode me fazer isto?

A cápsula de mensagem com o selo oficial imperial, o leão de cera da Casa Corrino, jazia aberta sobre a cama. Tinha quebrado em pedaços o decreto de Shaddam, mas não antes de memorizar cada palavra.

Um novo destino. Um castigo? Uma promoção?

“Hasimir Fenring, em reconhecimento a seus infatigáveis serviços ao Império e ao trono do imperador Padishah, destino-o pela presente a um cargo recém criado como Observador Imperial em Arrakis. Devido a importância vital deste planeta para a economia imperial, contará com todos os recursos necessários para executar sua missão. Blá, blá, blá.

Como pode? Que forma estúpida de desperdiçar o talento do Mentat. Que vingança mesquinha enviá-lo a um poço de areia, cheio de vermes e gentinha. Estava irado e desejava comentar o assunto com a fascinante Margot Rashino Zea, em que confiava mais do que o aconselhável. Afinal, era uma bruxa Bene Gesserit ...

Devido à importância vital do planeta! Soprou, aborrecido, e depois se dedicou a quebrar tudo que estava ao alcance de suas mãos. Sabia que Shaddam o castigara em um arrebatamento de indignação. O novo cargo era um insulto para um homem com as aptidões de Fenring, e o expulsava do centro do poder imperial. Precisava estar aqui, em Kaitain, no olho do furacão da política, não perdido em um esquecido canto do espaço.

Mas ninguém podia questionar ou descumprir o decreto de Shaddam. Fenring tinha trinta dias para apresentar-se naquele planeta árido. Perguntou-se se retornaria algum dia.

Todas as pessoas estão contidas em um só indivíduo, assim como toda a eternidade em um momento, e todo o universo em um grão de areia.

 

Aforismo Fremen.

 

O dia da coroação e bodas de Shaddam IV chegara, um ambiente festivo reinava em todos os planetas do Império. Multidões jubilosas se dedicavam a beber, dançar, assistir a espetáculos esportivos e exibições de fogos artificiais. O velho Elrood tinha reinado durante tanto tempo, que poucos recordavam a última vez que um novo imperador tinha sido coroado.

Em Kaitain, a capital, as multidões se amontoavam ao longo das magníficas avenidas, junto ao caminho que seguiria a comitiva imperial. Era um dia ensolarado, como de costume, e os vendedores estavam esgotando suas reservas de lembranças, objetos comemorativos e refrescos.

Bandeiras da Casa Corrino ondeavam na brisa. Para a ocasião, todos vestiam as cores escarlate e ouro. Guardas Sardaukar custodiavam o caminho, embelezados com objetos de brocado dourado sobre seus uniformes cinza e negro. Imóveis como estátuas, sustentavam seus rifles laser, indiferentes à fanfarra e o bulício da multidão, preparados para reagir com presteza mortífera ante a menor insinuação de ameaça à presença imperial.

Quando o príncipe herdeiro e lady Anirul passaram em uma limusine puxada por seis leões dourados de Harmonthep, milhares de gargantas prorromperam em vivas. Os animais, cujas crinas magníficas se agitavam com a brisa suave, foram engalanados com jóias.

O aspecto de Anirul era suntuoso. Saudou e sorriu. Tinha renunciado a seu hábito Bene Gesserit e usava uma cascata de babados, pulseiras e colares de pérolas. O sol se refletia nos prismas e jóias incrustados em seu diadema. A seu lado, Shaddam parecia um verdadeiro imperador, com seu cabelo avermelhado e um uniforme transbordante de galões e medalhas.

Como o matrimônio do príncipe herdeiro não fazia presumir o menor favoritismo para nenhuma Casa, o Landsraad tinha aceito Anirul como consorte imperial, embora muitos tivessem questionado suas origens misteriosas e sua filiação à Bene Gesserit. Depois da morte de Elrood, seguida pela coroação e bodas, o Império estava imerso em muitas mudanças. Shaddam confiava em aproveitar-se dessas circunstâncias.

Com expressão paternal, jogou Solaris e pacotes de pó de gemas para a multidão, conforme a tradição imperial. O povo o amava. Estava rodeado de riqueza. Com um estalo de seus dedos, podia condenar à aniquilação planetas inteiros. Assim era como tinha imaginado a tarefa de imperador.

Os trompetistas emitiram sons jubilosos.

— Não vai se sentar comigo, Hasimir? — perguntou a loira esbelta, ao mesmo tempo em que lhe dirigia um sorriso coquete durante a recepção anterior a coroação.

Fenring não soube se Margot Rashino Zea havia impostado uma voz sensual ou era a sua própria. O Mentat segurava uma bandeja de canapés exóticos. Detectores de venenos flutuavam como mariposas sobre os convidados. A recepção se prolongaria durante horas e os convidados poderiam tomar quantos aperitivos desejassem.

A irmã Margot Rashino Zea era mais alta que Fenring, e se aproximava muito dele quando falava. Seu vestido coral e negro realçava a deliciosa perfeição de seu corpo e rosto. Usava um colar de pérolas caladano e um broche incrustado de ouro e pedras preciosas. Sua pele recordava leite mesclado com mel.

Ao seu redor, no vestíbulo da galeria do Grande Teatro, nobres de ambos os sexos vestidos com elegância conversavam e bebiam excelentes vinhos em taças. O cristal tilintava quando as taças em brindes repetidos se chocavam. Ao fim de uma hora, os reunidos seriam testemunhas do duplo acontecimento que seria celebrado no cenário principal: a coroação do imperador Padishah Shaddam Corrino IV e seu enlace matrimonial com lady Anirul Sadow Tonkin, da Bene Gesserit.

Fenring assentiu com a cabeça e dedicou uma reverência a sua acompanhante.

— Seria uma honra para mim me sentar a seu lado, adorável Margot.

Sentaram-se no banco. Margot inspecionou os canapés que ele tinha escolhido e pegou um.

Era uma festa alegre, pensou Fenring, sem os murmúrios de descontentamento que tanto tinham envenenado o palácio durante os últimos meses. Estava satisfeito com seus esforços neste sentido. Cimentara as alianças chave, e as Casas Federadas já não falavam em rebelar-se contra Shaddam. As Bene Gesserit tinham dado apoio público à estirpe dos Corrino, e não havia dúvida que as bruxas continuavam com suas maquinações secretas em outras Grandes Casas. Fenring considerava curioso que muitos nobres que se mostraram suspeitos e contrários a ele já não se contassem entre os vivos, mais curioso ainda porque ele não era o responsável.

O julgamento de Leto Atreides tinha terminado graças à intervenção do imperador, e os únicos que não tinham ficado satisfeitos com o veredicto eram os Bene Tleilax. Shaddam e ele os sossegariam muito em breve. O grande mistério que intrigava Fenring era que ninguém parecia saber com exatidão o que tinha ocorrido a bordo do Cruzeiro da Corporação.

Quanto mais observava e considerava a estranha cadeia de acontecimentos, mais começava a acreditar na possibilidade de que alguém tivesse criado uma cilada para o jovem Leto... mas quem e como? Nenhuma Casa se gabou disso, e como todos, quase sem exceção, tinha acreditado na culpa do Atreides, nem sequer as línguas mais violentas tinham espalhado rumores.

Fenring desejava saber o que tinha ocorrido, mesmo que fosse para acrescentar o método a seu próprio repertório. Não obstante, em seu novo destino em Arrakis teria poucas chances de desvendar o segredo.

Antes de continuar sua agradável conversa com Margot, ouviu os gritos da multidão reunida no exterior e o ressoar de trompetes.

— Shaddam e o séquito imperial estão a ponto de chegar — disse ela ao mesmo tempo em que movia sua cabeleira loira —. É melhor ocuparmos nossos assentos.

Fenring sabia que a carruagem do príncipe estava a ponto de entrar nos terrenos do teatro e dos edifícios governamentais. Tentou dissimular sua decepção.

— Mas você estará na seção reservada às Bene Gesserit, querida. — Olhou para ela com olhos cintilantes, enquanto molhava uma parte do faisão de Kaitain em uma terrina de molho de ameixas —. Você gostaria que eu vestisse um de seus hábitos e fingisse ser membro da Irmandade? — Engoliu a carne, saboreando-a, ela faria aquilo para estar a seu lado, hummmm? Ela lhe deu alguns leves golpes no peito. — Não podem dizer que você não é o que aparenta, Hasimir Fenring.

Ele entreabriu seus enormes olhos.

— O que quer dizer?

— Quem vai dizer que você e eu temos muito em comum. — Apoiou um de seus generosos seios contra o braço de Hasimir—. Possivelmente seja conveniente formalizarmos esta aliança que estamos criando.

Fenring passeou a vista em redor, para ver se alguém estava escutando. Os espiões o aborreciam. Depois se aproximou mais dela e disse com voz inexpressiva:

— Nunca quis me casar. Sou um eunuco genético, incapaz de gerar filhos.

— Isso significa que deveremos fazer certos sacrifícios, cada um a sua maneira, mas isso não me preocupa sabe? — Arqueou suas sobrancelhas douradas —. Além disso, imagino que conhece outras maneiras de agradar uma mulher. Eu, de minha parte, fui preparada para todas as eventualidades.

Um sorriso cruel cruzou o rosto de Fenring.

— Ah, sim? Hummmm. Minha querida Margot, tenho a impressão de que está submetendo a minha consideração um acordo comercial.

— E você, Hasimir, parece um homem muito mais prático que romântico. Acredito que formamos um bom casal. Os dois somos peritos em reconhecer planos complexos, meadas emaranhadas que relacionam ações na aparência independentes.

— Os resultados devem ser mortíferos, não é?

Ela estendeu seu guardanapo para secar um pouco de molho no canto da boca de Fenring.

— Precisa de alguém que cuide de você.

Fenring estudou a refinada forma com que elevava o queixo, a perfeição e precisão de sua linguagem, que tanto contrastava com suas vacilações e dificuldades ocasionais. Entretanto, percebeu o brilho dos segredos ocultos atrás daquelas pupilas deliciosas... muitos segredos. Poderia dedicar anos para desvendar aqueles segredos, desfrutando de cada um.

Fenring se recordou que aquelas bruxas eram muito inteligentes. Não empreendiam ações individuais. As aparências sempre enganavam.

— Você e sua Irmandade têm em mente um propósito muito mais importante, minha querida Margot. Sei algumas coisas sobre a Bene Gesserit. São um organismo coletivo.

— Informei ao organismo de meus desejos.

— Informou, ou pediu permissão? Ou foi enviada para me seduzir?

A primeira dama da Casa Venene passou com um par de cãezinhos pelados. Seu vestido dourado era tão volumoso que alguns convidados tiveram que afastar-se para deixá-la passar. A mulher andava com a vista cravada à frente, como se tivesse medo de perder o equilíbrio.

Margot a contemplou e depois se voltou para Fenring.

— Existem indubitáveis vantagens para todos nós, e a madre superiora Harishka já me deu sua bênção. Conseguiria uma valiosa relação com a Irmandade, embora eu não vá revelar todos os nossos segredos.

Deu-lhe uma cotovelada de brincadeira, e Fenring esteve a ponto de deixar cair a bandeja.

— Hummmm — disse enquanto olhava para sua figura perfeita —. E eu sou a chave do poder de Shaddam. Sou a pessoa em que ele mais confia.

Margot arqueou as sobrancelhas, pensativa.

— Por isso o mandou para Arrakis? Porque é seu confidente? Me disseram que a nova missão não o agrada muito.

— Como descobriu? — Franziu o sobrecenho e experimentou a incômoda sensação de que pisava em terreno falso —. Fui comunicado há apenas dois dias.

— Hasimir Fenring, tem que aprender a utilizar todas as circunstâncias em seu favor. Arrakis é a chave da melange, e a especiaria expande o universo. Nosso novo imperador talvez pense que o destinou a outra missão, mas na realidade lhe confiou algo de vital importância. Pense; Observador Imperial em Arrakis.

— Sim, e o barão Harkonnen não ficará satisfeito. Suspeito que esteve ocultando pequenos detalhes desde o princípio.

A mulher o recompensou com um sorriso cálido.

— Ninguém pode ocultar-lhe tais coisas, querido. E tampouco a mim.

Fenring lhe devolveu o sorriso.

— Nesse caso, podemos aliviar os dias de exílio revelando nossos segredos.

Margot passou seus dedos finos e longos pela manga de Fenring.

— Arrakis é um lugar muito difícil para viver, mas... Conseguiria suportá-lo em minha companhia?

Fenring adotou cautela, como de costume. Embora a multidão estivesse infestada de vestidos extravagantes e plumagens exóticas, Margot era a mulher mais bela de toda a sala.

— Talvez, mas o que me atrai ali? É um lugar horrível, em todos os sentidos.

— Minhas irmãs o descrevem como um planeta cheio de antigos mistérios, e minha estadia nele aumentaria meu prestígio entre a Bene Gesserit. Poderia significar um passo importante em minha preparação para me transformar em reverenda madre. Pense: vermes de areia, Fremen, especiaria. Poderia ser muito interessante desvendar seus mistérios juntos. Sua companhia me estimula, Hasimir.

— Refletirei sobre sua... proposta.

Sentia-se atraído para ela tanto física como emocionalmente... sentimentos muito fastidiosos. Quando os tinha experimentado no passado, quisera rechaçar a atração, desfazer-se dela. Mas Margot Rashino Zea era diferente, ou ao menos parecia. O tempo diria.

Fenring ouvira rumores sobre os programas de reprodução da Bene Gesserit, mas devido a sua deformidade congênita, a Irmandade não devia cobiçar sua linha genética. Tinha que haver algo mais. Era evidente que os motivos de Margot transcendiam seus sentimentos pessoais, se é que sentia algo por ele. Devia ter intuído oportunidades nele, tanto para ela como para as irmãs.

Mas Margot também lhe oferecia algo, uma nova forma de chegar ao poder. Até agora, sua única vantagem tinha sido Shaddam, seu companheiro de infância. Entretanto, a situação tinha mudado já que o príncipe se comportava de uma forma estranha. Shaddam havia sobrevalorizado suas próprias aptidões, tentado tomar decisões sozinho e pensar por si mesmo. Uma forma de agir imprudente e perigosa, e ao que parecia ainda não se dera conta disso.

Dadas as circunstâncias, Fenring necessitava de novos contatos em centros de poder. Como as Bene Gesserit.

Quando a limusine imperial parou na entrada, os convidados começaram a entrar no Grande Teatro. Fenring deixou a bandeja sobre uma mesa auxiliar e Margot agarrou seu braço.

— Senta comigo? — disse.

— Sim. — Fenring lhe piscou um olho —. E talvez faça algo mais que isso.

Margot sorriu, e ele pensou que, se algum dia fosse necessário, seria muito difícil matar essa mulher.

Cada Grande Casa tinha recebido uma dúzia de convites para o acontecimento que teria lugar no Grande Teatro, enquanto o resto da população do Império o veria retransmitido. Todo o universo falaria dos detalhes da magnífica cerimônia durante a década seguinte, tal como Shaddam desejava.

 

Como representante da Casa Atreides, o duque Leto se sentou com seu séquito nos assentos de plaz negro da segunda fila, nível principal. O querido primo do imperador tinha mantido as aparências desde que o julgamento tinha finalizado, mas não acreditava que aquela fingida amizade perdurasse depois de sua volta a Caladan, a menos que Shaddam tentasse lhe devolvesse o favor. Cuidado com o que compra, havia dito o velho duque, porque pode haver um preço oculto.

Thufir Hawat estava sentado à direita de Leto, e um orgulhoso e efusivo Rhombur Vernius a sua esquerda. Do outro lado de Rhombur se sentava sua irmã Kailea, que tinha se juntado à delegação depois da desistência de Leto. Tinha ido apressada a Kaitain para assistir à coroação e dar apoio ao seu irmão. Seus olhos esmeralda brilhavam de entusiasmo e lançava exclamações de admiração ao ver tantas maravilhas. O coração de Leto se inflamava ao ver sua alegria, sentimento que não tinha mostrado desde a fuga de IX.

Rhombur Vernius exibia cores púrpura e cobre, no entanto Kailea se decidiu por cobrir seus ombros com uma capa Atreides adornada com o emblema do falcão vermelho, assim como Leto. Kailea segurou seu braço e deixou que a acompanhasse ao seu assento.

— Escolhi estas cores por respeito ao anfitrião que nos concedeu asilo — disse com doçura —, e para celebrar a recuperação da Casa Atreides.

Beijou-o na bochecha.

Como a questão da sentença de morte sobre a Casa Vernius ainda pendia sobre o horizonte como uma nuvem de tormenta, os descendentes assistiram a festividade por sua conta e risco. Entretanto, dado o ambiente festivo, Thufir Hawat deduziu que estariam a salvo, desde que não prolongassem sua estadia. Quando disse isso a Leto, ele riu.

— Thufir, Mentats sempre dão garantias?

Mas Hawat considerou seu comentário divertido.

Embora nesse momento Kaitain fosse um dos lugares mais seguros do universo, Leto duvidava que Dominic Vernius aparecesse. Mesmo agora, depois da morte do vingativo Elrood, o pai de Rhombur não tinha ousado sair de seu esconderijo, nem tampouco enviara alguma mensagem.

Ao fundo do amplo teatro, tanto na platéia como nos anfiteatros, sentavam-se representantes de Casas Menores e das diversas facções, entre elas a CHOAM, a Corporação Espacial, os Mentats, os médicos Suk e outras bases de poder espalhadas entre um milhão de planetas. A Casa Harkonnen se isolou em um camarote. O barão, acompanhado do seu sobrinho Rabban, não olhou em nenhum momento em direção aos Atreides.

— As cores, os sons, os perfumes, tudo me aturde — disse Kailea, e respirando fundo se aproximou mais de Leto —. Nunca tinha visto nada igual, nem em IX nem em Caladan.

— Ninguém no Império tinha visto algo semelhante nos últimos cento e quarenta anos — respondeu Leto.

Na primeira fila, bem diante dos Atreides, sentou-se um grupo da Bene Gesserit vestidas com hábitos negros idênticos, inclusive a murcha madre superiora Harishka. A um lado da fila montava guarda um contingente dos Sardaukar, com uniformes cerimoniais.

A delegação Bene Gesserit saudou a reverenda madre Anirul, a futura imperatriz, quando passou junto ao grupo, acompanhada de uma numerosa guarda de honra e suas damas de companhia. Rhombur procurou com o olhar a loira atraente que tinha entregado o misterioso cubo de mensagem, e a descobriu sentada com Hasimir Fenring.

No teatro se respirava uma atmosfera de espera. Por fim, fez-se o silêncio.

Shaddam, vestido com o uniforme oficial de comandante em chefe dos Sardaukar, adornado com galões chapeados e o emblema do Leão Dourado da Casa Corrino, avançou pelo corredor sobre um tapete de veludo e damasco. Seu cabelo escuro brilhava. Os membros da corte o seguiam, vestidos em escarlate e ouro.

Fechava a comitiva o Supremo Sacerdote de Dur, que tinha coroado todos os imperadores desde a queda das máquinas pensantes. Face a obrigação de avalizar a coroação, o Supremo Sacerdote pulverizou com orgulho o pó vermelho sagrado de Dur a direita e a esquerda.

Ao ver o passo majestoso e o imaculado uniforme de Shaddam, Leto recordou o dia em que o príncipe herdeiro tinha percorrido outro corredor para testemunhar em sua defesa, vistoso com as sedas e jóias próprias de um imperador. Agora tinha mais aparência militar, de comandante em chefe de todas as forças imperiais.

— Uma evidente manobra política — murmurou Hawat no ouvido de Leto —. Percebe? Shaddam está dando a entender aos Sardaukar que se considera um deles, que são importantes para seu reinado.

Leto assentiu, pois conhecia bem aquela prática. Como seu pai antes dele, o jovem duque confraternizava com seus homens, comia com eles e assistia suas rotinas diárias para demonstrar que nunca pediria a suas tropas o que ele não fosse capaz de fazer.

— Me parece mais cena que conteúdo — disse Rhombur.

— A tarefa de governar um império sempre deixa uma fresta para as exibições — disse Kailea.

Leto recordou com dor a afeição do velho duque pelas touradas e outros espetáculos.

Shaddam se deleitava em seu esplendor, banhado em glória. Fez uma reverência quando passou em frente a futura esposa e o contingente da Bene Gesserit. Antes se celebraria a coroação. Shaddam se deteve no lugar previsto e se voltou para o Supremo Sacerdote de Dur, que sustentava a coroa imperial sobre uma almofada dourada.

Uma ampla cortina se abriu atrás do príncipe herdeiro para descobrir o estrado imperial, que tinha sido transportado até ali. O maciço trono imperial tinha sido esculpido em uma única peça de quartzo verde azulado, a maior jóia de sua classe jamais descoberta, que remontava aos tempos do imperador Hassik III. Projetores ocultos lançavam lasers sintonizados para as profundidades do bloco de cristal, que refratava uma coroa de arco íris. O público conteve o fôlego ao contemplar a beleza do trono.

Não há dúvida que os cerimoniais cumprem uma importante função na vida do Império, pensou Leto. Exercem uma influência aglutinadora, convencem as pessoas de que fazem parte de algo significativo.

Essas cerimônias cimentavam a impressão de que era a Humanidade, e não o Caos, quem governava o universo. Até um imperador ególatra como Shaddam podia fazer o bem, pensou Leto... e desejou isso com ardor.

O príncipe herdeiro subiu solene para o estrado real e se sentou no trono, com a vista cravada a frente, o Supremo Sacerdote se colocou atrás dele e elevou a coroa sobre sua cabeça.

— Jura fidelidade ao Sacro Império, príncipe herdeiro Shaddam Raphael Corrino IV?

A voz do sacerdote se ouviu em todo o teatro, amplificada por alto-falantes de alta fidelidade. Essas mesmas palavras foram transmitidas a todo o planeta de Kaitain e a todo o universo.

— Sim — respondeu Shaddam com voz retumbante.

O Supremo Sacerdote depositou o símbolo do seu poder sobre a cabeça do príncipe, transformando-o em supremo monarca de pleno direito.

— Entrego o novo imperador Padishah Shaddam IV — disse aos dignitários —. Que seu reino brilhe como as estrelas!

— Que seu reino brilhe como as estrelas! — o público fez coro com entusiasmo.

Quando Shaddam se levantou do trono com a coroa cintilante na cabeça, o fez como imperador do Universo Conhecido. As milhares de pessoas reunidas no teatro o aplaudiram e aclamaram. Passeou a vista pelo público, que era um microcosmos de tudo quanto governava, e seu olhar se pousou na doce Anirul, imóvel ao pé do estrado com sua guarda de honra e damas de companhia. O imperador estendeu uma mão para indicar que se reunisse com ele.

Harishka, a madre superiora da Bene Gesserit, conduziu Anirul até Shaddam. As mulheres se moviam como se deslizassem, como se Shaddam fosse um ímã que as atraía até sua presença. Depois, a anciã Harishka voltou para seu assento com as outras Bene Gesserit.

O sacerdote dirigiu umas palavras ao casal, enquanto o novo imperador deslizava dois anéis de diamantes no dedo anelar de Anirul, e a seguir uma aliança de pedras soo vermelhas que tinha pertencido a sua avó paterna.

Quando foram declarados marido e mulher, o Supremo Sacerdote de Dur os apresentou a assembléia. Hasimir Fenring se inclinou para Margot.

— Subimos e vemos se o Supremo Sacerdote é capaz de improvisar outra cerimônia rápida?

Margot soltou uma risadinha e lhe deu uma cotovelada.

Naquela noite, os festejos na capital alcançaram um ponto alto de adrenalina, feromonas e música. O casal real assistiu um banquete, seguido de um grande baile, e depois de uma orgia culinária, comparada com a qual o banquete não tinha sido mais que um aperitivo. Quando os recém casados partiram para o palácio imperial, os nobres jogaram rosas de seda mehr e os seguiram.

Por fim, o imperador Shaddam IV e lady Anirul se retiraram para seu leito matrimonial. No corredor, nobres e damas ébrios tocavam sinos de cristal e outros instrumentos, interpretando a tradicional serenata nupcial que augurava fertilidade à união.

Este tipo de celebrações não tinha mudado muito durante milênios, e remontavam aos dias pré-butlerianos, até as raízes do Império. Mais de mil valiosos presentes foram dispostos sobre a grama do jardim. As oferendas seriam recolhidas pelos criados e distribuídas posteriormente entre o povo, e as festividades se prolongariam durante uma semana.

Quando todas as celebrações terminassem, Shaddam poderia dedicar-se por fim a arte de governar seu Império.

 

No final, o lendário acontecimento chamado “Golpe de Leto” cimentou a imensa popularidade do duque Atreides. Projetou-se como um resplandecente farol de honra sobre um mar galáctico de escuridão. Para muitos membros do Landsraad, a sinceridade e a ingenuidade de Leto se transformaram em um símbolo de honra que envergonhou muitas Casas, de maneira que mudaram seu comportamento... ao menos durante um breve tempo, depois do qual se impuseram uma vez mais as antigas pautas familiares.

 

Origens da Casa Atreides:

Sementes do futuro no Império Galáctico, por Bronso de IX.

 

Furioso com o fracasso de sua conspiração, o barão Harkonnen percorria de um lado para outro os corredores de sua fortaleza em Giedi Prime. Ordenou a seus ajudantes que lhe trouxessem um anão para o torturar. Precisava dominar alguém, esmagá-lo por completo.

Quando Yh'imm, um dos responsáveis pelas diversões do barão, queixou-se de que não era digno dele castigar um homem apoiando-se só em seu tamanho, o barão ordenou que amputassem as pernas de Yh'imm na altura do joelho. Dessa maneira não haveria necessidade de procurar um anão.

Enquanto Yh'imm era levado entre uivos e súplicas até a sala de cirurgia Harkonnen, o barão pediu a seu sobrinho e a De Vries que se reunissem com ele em seu estúdio para uma conversa de vital importância.

O barão, que os esperava atrás de uma mesa cheia de papéis e informes de cristal riduliano, trovejou para si:

— Malditos sejam os Atreides, do jovem duque até seus bastardos antepassados! Oxalá todos tivessem morrido na batalha de Corrin. — Virou-se quando De Vries entrou no estúdio, e quase perdeu o equilíbrio devido a seu desajeitado controle muscular. Agarrou-se a beira da mesa para não cair —. Como Leto conseguiu sobreviver ao julgamento? Não tinha provas, carecia de defesa. Não tem nem ideia do que na verdade ocorreu.

Os rugidos do barão chegaram até os corredores. Rabban vinha correndo.

— Maldito seja Shaddam por interferir! Acredita que por ser imperador tem direito a tomar partido? O que vai ganhar com isso?

Tanto Rabban como De Vries vacilaram na entrada do estúdio, sem o menor desejo de ser vítimas da fúria do barão. O Mentat fechou os olhos e massageou as sobrancelhas, enquanto tentava pensar no que dizer ou fazer. Rabban se aproximou de um nicho, serviu-se uma taça de conhaque kirano e o engoliu de um gole.

O barão se afastou da mesa e passeou com grandes passos, com estranhos movimentos, como se lhe custasse manter o equilíbrio. Devido a seu recente aumento de peso, as roupas necessitavam de suspensórios.

— Deveria explodir uma guerra onde eu recolheria os restos depois da carnificina. Mas esse maldito Atreides impediu. Ao insistir que ocorresse esse Julgamento de Confisco, malditos sejam os antigos ritos, e por seu desejo de sacrificar-se por seus amigos e tripulantes, Leto Atreides ganhou o favor do Landsraad. Sua popularidade é imensa.

Piter De Vries pigarreou.

— Talvez, meu barão, tenha sido um erro atacar os Tleilaxu. Ninguém quer os Tleilaxu por perto. Foi difícil provocar uma sensação de indignação geral. Nunca pensamos que este assunto acabaria em um julgamento.

— Nós não cometemos erros! — grunhiu Rabban em defesa do seu tio —. Se importa com sua vida, Piter?

De Vries não respondeu, mas tampouco demonstrou o menor temor, era um formidável lutador e possuía truques e experiência para acabar com o fanfarrão do Rabban se acabassem em uma luta corpo a corpo.

O barão olhou para seu sobrinho, decepcionado. Parece incapaz de captar algo oculto sob uma fina capa de sutileza.

Rabban fulminou o Mentat com o olhar.

— O duque Leto é apenas o impetuoso governante de uma Família sem importância. A Casa Atreides consegue seus ganhos vendendo arroz pundi!

— O fato é, Rabban — respondeu com suavidade o Mentat pervertido, com voz de serpente —, que pelo visto caiu nas graças dos membros do Landsraad. Admiram o que conseguiu. Nós o transformamos em herói.

Rabban se serviu de outra taça.

— O conselho do Landsraad se tornou altruísta? — soprou o barão. — Isso é ainda mais inconcebível que o fato de Leto ganhar.

Ouviram-se sons detestáveis das salas de cirurgia, gritos de agonia que ressoaram pelos corredores até o estúdio do barão. Os globos de luz piscaram mas mantiveram seu nível de iluminação.

O barão olhou para De Vries e apontou com a mão em direção às salas de cirurgia.

— É melhor se encarregar disto, Piter. Quero que esse idiota sobreviva à cirurgia... ao menos até que me canse de torturá-lo.

— Sim, meu barão — disse o Mentat, e se dirigiu para as salas de cirurgia.

Os gritos se tornaram agudos, o barão ouviu o som de cortadores laser e uma serra.

O barão pensou em seu brinquedo novo e no que faria a Yh'imm enquanto o efeito dos sedativos começasse a diminuir. Era possível que os médicos tivessem realizado a tarefa sem usar sedativos? Talvez.

Extasiado, Rabban fechou os olhos para escutar. Se pudesse escolher, teria preferido caçar o homem na reserva de Giedi Prime, mas o barão pensava que isso representaria muitos problemas, correr, rastrear e checar rochas cobertas de neve. Além disso, fazia um tempo que sentia dores intensas nos membros, seus músculos se enfraqueceram e seu corpo estava perdendo a forma...

O barão inventaria suas diversões. Assim que tivessem cauterizado os cotos de Yh'imm, fingiria que era o duque Atreides em pessoa. Seria muito divertido.

O barão recuperou a calma e pensou que era absurdo aborrecer-se tanto pelo fracasso de um plano. Durante incontáveis gerações os Harkonnen tinham tecido armadilhas para seus inimigos mortais, mas era difícil acabar com os Atreides, sobretudo quando se viam encurralados. A inimizade remontava até a Grande Revolução, a traição e as acusações de covardia. Após isso os Harkonnen sempre tinham odiado os Atreides, e vice-versa.

E assim seria sempre.

Ainda temos Arrakis disse o barão. Ainda controlamos a produção de melange, embora estejamos sob a férula da CHOAM e o olho vigilante do imperador Padishah.

Sorriu para Rabban, que lhe correspondeu maquinalmente.

O barão agitou um punho no ar.

— Enquanto controlarmos Arrakis, controlaremos nossa fortuna. — Apoiou a mão no ombro almofadado de seu sobrinho —. Arrancaremos especiaria das areias até que Arrakis não seja mais que um casca oca!

 

O universo contém fontes de energia não utilizadas e, portanto, inimagináveis. Elas estão diante dos nossos olhos, mas não as vemos. Estão em nossas mentes, mas não pensamos nelas. Mas eu sim!

Tio Holtzman, Conferência completas.

 

No planeta Junção, pertencente a Corporação Espacial, aquele que tinha sido D'murr Pilru foi conduzido ao tribunal dos Navegantes. Não lhe explicaram o motivo, e apesar de toda sua intuição e compreensão do universo, não conseguiu imaginar o que queriam dele.

Não estava acompanhado de nenhum outro novato, nenhum dos novos pilotos que tinham aprendido o funcionamento da dobra espacial com ele. Em um extenso terreno de raquítica erva negra, os contêineres herméticos cheios de especiaria do alto tribunal estavam dispostos em um semicírculo sobre lajes, onde ainda se podiam ver os sinais de milhares de convocações anteriores.

O contêiner de D'murr, menor, achava-se diante deles, solitário no centro do semicírculo. Como sua vida de Navegante era relativamente recente, pois ainda era um piloto de patente inferior, conservava quase toda sua forma humana dentro do contêiner. Os membros do tribunal, todos Timoneiros, exibiam cabeças enormes e olhos alterados de uma forma monstruosa, que esquadrinhavam através da neblina alaranjada e canela.

Algum dia serei como eles, pensou D'murr. Em outro tempo teria se encolhido de horror. Agora o aceitava como algo inevitável. Pensou em todas as revelações que o aguardavam.

O tribunal da Corporação falou com sua concisa linguagem matemática, pensamentos e palavras comunicadas por meio do tecido do espaço, muito mais eficaz que qualquer conversa humana. Grodin, o Instrutor Chefe, atuava como porta-voz.

— Você foi vigiado — disse Grodin.

Seguindo um procedimento estabelecido há muito tempo, os Instrutores da Corporação colocavam aparelhos de hologravação nas câmaras de navegação de todos os Cruzeiros e em todos os contêineres de treinamento dos aspirantes a Piloto. Aleatoriamente, as gravações eram recuperadas dos transportes e das naves de carga, e enviadas a Junção.

— Todas as provas são estudadas detalhadamente.

D'murr sabia que os empregados do Banco da Corporação e seus sócios comerciais da CHOAM deviam assegurar-se de que se cumprissem as normas de navegação e que respeitassem os dispositivos de segurança. Parecia-lhe correto.

— A Corporação está perplexa com as transmissões não autorizadas que foram dirigidas a sua câmara de navegação.

O aparelho de comunicações de seu irmão! D'murr se remexeu em seu contêiner, compreendendo todas as implicações e os castigos que deveria enfrentar. Talvez se transformasse em um daqueles patéticos Navegantes fracassados, atrofiados e desumanos, o preço físico pago, mas sem nenhum benefício. Não obstante, D'murr sabia que suas aptidões eram muito apreciadas. Talvez os Timoneiros o perdoassem...

— Estamos curiosos — disse Grodin.

D'murr lhes contou tudo, até o último detalhe. Tentou recordar o que C'tair havia dito, e informou as condições no interior do isolado IX, a decisão dos Tleilax de voltar aos desenhos dos Cruzeiros mais primitivos. Tal decisão os inquietava, mas o tribunal estava mais interessado no Funcionamento do transcepun Rogo.

— Nunca tivemos transmissões instantâneas pela dobra espacial — disse Grodin. Durante séculos, todas as mensagens foram transportadas por mensageiros, em forma física, em uma nave física que atravessava o universo com mais rapidez que qualquer outro método de transmissão —. Podemos aproveitar esta inovação?

D'murr compreendeu as possibilidades militares e econômicas do engenho, se se demonstrasse viável. Se bem que não conhecia todos os detalhes técnicos, seu irmão tinha inventado um sistema que intrigava sobremaneira à Corporação Espacial. Ela o queria.

Um membro do tribunal sugeriu a possibilidade de utilizar um Navegante com a mente potencializada em cada um dos extremos, em vez de um simples ser humano como C'tair Pilru. Outro disse que possivelmente o vínculo era mais mental que tecnológico, uma conexão potencializada pela antiga intimidade dos gêmeos e a similitude de suas ondas cerebrais.

Talvez, entre os numerosos Pilotos, Navegantes e Timoneiros, a Corporação poderia encontrar outros com conexões mentais similares, embora não fosse provável. Entretanto, apesar do custo e das dificuldades, este método de comunicação era um serviço que devia ser testado, para depois oferecê-lo ao imperador em troca de uma grande soma.

— Você pode conservar sua patente de Piloto — disse Grodin, e deu por terminado o interrogatório.

 

Depois de sua volta triunfal de Kaitain, o duque Leto Atreides e Rhombur Vernius tinham esperado durante semanas pela resposta do novo imperador ao pedido de audiência. Leto estava preparado para abordar uma lançadeira e viajar ao palácio imperial assim que um correio chegasse com a confirmação. Tinha jurado que não faria menção a seu blefe, decidido a não tocar no tema da conexão entre os Corrino e os Tleilaxu, mas Shaddam IV devia estar curioso.

Se passasse outra semana sem receber resposta, Leto iria a Kaitain por iniciativa própria.

Aproveitando aquele momento de popularidade crescente, Leto desejava expor os assuntos da anistia e as reparações à Casa Vernius. Acreditava que seria uma boa oportunidade para resolver a situação de uma forma positiva, mas à medida que os dias transcorriam, viu que a oportunidade escorria como areia entre seus dedos. Até o otimista Rhombur se mostrava frustrado e nervoso, enquanto Kailea ia se resignando a suas poucas opções.

Por fim, mediante um comunicado normal irradiado por um mensageiro humano, o imperador sugeria, pois quase não dispunha de tempo para reunir-se com seu primo, que utilizassem um método que acabava de ser oferecido pela Corporação Espacial, um procedimento instantâneo chamado Cofradnet. Implicava na conexão mental entre dois Navegantes da Corporação situados em sistemas estelares diferentes. Um Cruzeiro em órbita ao redor de Caladan e outro sobre Kaitain podiam, em teoria, facilitar uma conversa entre o duque Leto Atreides e o imperador Shaddam IV.

— Ao menos poderei lhe expor meus pedidos — disse Leto, embora jamais tivesse ouvido falar daquele método de comunicação. Shaddam parecia disposto a utilizá-lo, possivelmente porque desta forma ninguém seria testemunha de sua entrevista com Leto Atreides.

Os olhos esmeralda de Kailea se iluminaram, e nem sequer se importou com a cabeça de touro pendurada na sala de jantar. Foi colocar um vestido com as cores de Vernius, embora não fosse provável que a vissem durante a transmissão. Rhombur se apresentou na hora combinada, acompanhado por Thufir Hawat. Leto ordenou aos criados e guardas que saíssem da estadia.

O Cruzeiro que havia trazido o Mensageiro continuava em órbita geoestacionária sobre Caladan. Outro esperava sobre Kaitain. Os sofisticados Timoneiros da Corporação a bordo de cada nave, separados por uma distância imensa, utilizariam um misterioso procedimento que lhes permitiria expandir suas mentes através do vazio e acoplar pensamentos para criar uma conexão. A Corporação tinha testado com centenas de Navegantes, antes de encontrar dois capazes de estabelecer uma comunicação direta, mediante telepatia, presciência alimentada pela melange ou algum outro método ainda indeterminado.

Leto respirou fundo, incomodado por não ter mais tempo para ensaiar seu discurso, mas já tinha esperado muito. Não se atrevia a solicitar um adiamento...

Shaddam falou de um magnífico jardim botânico do palácio imperial rodeado de sebes. Usava um microfone no queixo, que transmitia suas palavras aos alto-falantes da câmara de navegação do Cruzeiro que sobrevoava seu planeta.

— Está me ouvindo, Leto Atreides? Aqui faz uma manhã ensolarada, e acabo de retornar de meu passeio matinal.

Tomou um gole de suco açucarado.

Quando as palavras do imperador chegaram à câmara de navegação da nave em órbita ao redor de Kaitain, o Timoneiro do Cruzeiro de Caladan experimentou em sua mente um eco do que seu colega tinha ouvido e interrompeu a comunicação para repetir as palavras do imperador no cintilante globo alto-falante que flutuava dentro de seu compartimento cheio de especiaria. Leto ouviu as palavras em seu próprio sistema de megafonia, distorcidas e sob volume, sem matizes emocionais De qualquer modo, eram as palavras do imperador.

— Sempre preferi o sol das manhãs de Caladan, primo — respondeu Leto, com a intenção de iniciar a conversa em termos cordiais —. Você deveria visitar nosso humilde planeta.

O Navegante de Caladan estava conectado de novo com seu colega, e as palavras de Leto se ouviram na outra nave e depois foram transmitidas a Kaitain.

— Este novo sistema de comunicações é maravilhoso — disse Shaddam, sem responder à sugestão de Leto. Entretanto, aparentava desfrutar com o Cofradnet, como se fosse um brinquedo novo —. Muito mais veloz que os mensageiros humanos, embora suponha que o preço será proibitivo. Ah, sim. Aqui está mais um monopólio da Corporação. Espero que não cobrem muito pelas mensagens urgentes.

Leto se perguntou se aquelas palavras foram dirigidas a ele ou aos espiões da Corporação.

Shaddam tossiu, som que não se repetiram no processo de tradução.

— Há muitos assuntos importantes nos planetas imperiais, e pouco tempo para analisá-los. Quase não disponho de ocasiões para cultivar amizades como a sua, primo. Do que deseja me falar?

Leto respirou fundo e seu rosto aquilino se endureceu.

— Grande imperador Shaddam, suplico-lhes que conceda anistia à Casa Vernius e a restitua ao lugar que lhe corresponde por direito no Landsraad. O planeta IX é vital para a economia, e não pode continuar nas mãos dos Tleilaxu. Já destruíram fábricas importantes e diminuíram a produção de materiais vitais para a segurança do Império. — E, como se se referisse a seu blefe, acrescentou —: Ambos sabemos o que está acontecendo na realidade, mesmo neste momento.

— Não posso falar desses assuntos através de intermediários — se apressou a responder Shaddam.

Os olhos de Leto se dilataram ao compreender o possível equívoco de Shaddam.

— Está insinuando que a Corporação é indigna de nossa confiança, senhor? Transporta exércitos para o Império e as Grandes Casas. Descobre planos de batalha antes que aconteçam. Cofradnet é mais segura que uma conversa cara a cara na sala de audiências imperial.

— Mas ainda não examinamos os detalhes desse assunto — protestou Shaddam, na defensiva.

Tinha sido testemunha da crescente popularidade e influência de Leto Atreides. Teria aquele arrivista contatos que chegavam até a Corporação Espacial? Passeou o olhar por seus jardins vazios e desejou que Fenring estivesse a seu lado, mas o homem com cara de doninha estava preparando sua viagem para Arrakis. Possivelmente foi um erro salvar Leto, pensou.

Leto defendeu com palavras precisas e concisas o caso dos ixianos, e assegurou que a Casa Vernius nunca fabricara tecnologia proibida. Apesar das suas promessas, os Tleilaxu não tinham apresentado provas ao corpo governante do Landsraad, e tinham posto mãos à obra devido a sua cobiça pelas riquezas de IX. Graças a conversas sustentadas com Rhombur, Leto proporcionou cifras aproximadas sobre o valor do feudo e os danos ocasionados pelos Tleilaxu.

— Isso me parece excessivo — disse Shaddam, com muita precipitação —. Os informes dos Bene Tleilax indicam cifras muito inferiores.

Ele esteve ali, pensou Leto.

— A explicação é evidente, senhor. Fizeram-no para minimizar a eventual indenização que teriam que pagar.

Leto prosseguiu, comentou os cálculos estimados de vidas ixianas perdidas, e falou do preço de sangue que Elrood havia oferecido pela morte de lady Shando. Depois, com voz tremula de emoção, fez algumas conjecturas sobre a desesperada fuga do conde Vernius, que continuava escondido em algum mundo longínquo e desconhecido.

Durante uma pausa na conversa. Shaddam irritou-se. Perguntou-se quanto sabia aquele descarado Leto sobre o assunto dos Tleilaxu. Tinha misturado insinuações, mas era um blefe? Como novo imperador precisava agir com celeridade para controlar a situação, mas não podia permitir que a Casa Vernius retornasse a seu lar ancestral. A pesquisa sobre a especiaria sintética era essencial. A família Vernius era uma vítima inocente (a Shaddam era indiferente o orgulho ferido ou o desejo de vingança de seu pai), mas não podia perdoar àquela gente, como se não tivesse acontecido nada.

Por fim, o imperador pigarreou e falou.

— O máximo que podemos oferecer é uma anistia limitada. Como Rhombur e Kailea se encontram sob sua tutela, Leto, garanto-lhes proteção e perdão totais. A partir de hoje não haverá recompensa por suas cabeças. Ficam absolvidos de qualquer maldade que tenham cometido. Dou-lhe minha palavra.

Leto viu uma expressão de júbilo incrédulo nos rostos de seus amigos.

— Obrigado, senhor — disse —, mas o que decide sobre a restituição da fortuna familiar?

— Nada de restituições! — respondeu Shaddam com um tom muito mais severo que o homem da Corporação conseguiu imitar —. A Casa Vernius não recuperará sua posição em Xuttah, antes IX. Ah, sim. Os Bene Tleilax me apresentaram abundante e concludente documentação, e sua veracidade me satisfez. Por razões de segurança imperial não posso divulgar os detalhes. Você já testou bastante a minha paciência.

— Qualquer prova cuja análise se nega carece de validade, senhor — replicou Leto, irritado —. Deveria apresentar-se ante um tribunal.

— E quanto a meu pai e a outros sobreviventes da Casa Vernius — perguntou Rhombur pelo microfone que Leto estava utilizando —, serão anistiados, seja qual for seu paradeiro? Meu pai não fez mal a ninguém.

A resposta de Shaddam, dirigida a Leto, foi veloz e aguda, como a mordida de uma serpente venenosa.

— Fui indulgente com você, primo, mas aviso que não deve abusar da sua sorte. Se não estivesse favoravelmente inclinado por você, nunca teria me rebaixado a atestar em seu favor, nem teria lhe concedido esta audiência, nem privilégios para seus amigos. Anistia para os dois, isso é tudo.

Leto se enfureceu ao ouvir aquelas palavras duras, mas manteve a compostura. Estava claro que não podia pressionar mais Shaddam.

— Sugiro que aceite estas condições enquanto estou disposto a concedê-las — disse Shaddam —. A qualquer momento podem ser apresentadas mais provas contra a Casa Vernius, e me veria obrigado a julgar com menor benevolência.

Leto conferenciou com Rhombur e Kailea, longe do microfone. Os jovens aceitaram a contra gosto.

— Ao menos conseguimos uma pequena vitória, Leto — disse Kailea com sua doce voz —. Nos garantiram a vida, e gozaremos de nossa liberdade pessoal, já que não de nossa herança. Além disso, viver aqui com você não é tão terrível. Como Rhombur costuma dizer, as coisas sempre podem melhorar.

Rhombur apoiou uma mão no ombro de sua irmã.

— Se isso basta para Kailea, basta para mim também.

— Trato feito — disse Shaddam. A aceitação tinha sido transmitida pelos intermediários da Corporação. — Os documentos oficiais serão preparados. — Então suas palavras se transformaram em facas —: Espero não voltar a ouvir falar deste assunto.

O imperador cortou com brutalidade a comunicação e os dois Navegantes interromperam seu contato mental. Leto abraçou Rhombur e Kailea, sabendo que por fim estavam a salvo.

 

Só os imprudentes deixam testemunhas.

Hasimir Fenring.

 

— Vou sentir falta de Kaitain — disse Fenring com tom sombrio.

Ao final do dia devia apresentar-se em Arrakis como Observador Imperial de Shaddam. Exilado no deserto, pensou com amargura. Mas Margot o ajudara a compreender as oportunidades de que disporia. Havia a possibilidade do imperador ter em mente algo mais que um simples castigo? Conseguiria levantar-se a uma posição de poder?

Fenring tinha crescido ao lado de Shaddam. Ambos eram duas décadas mais jovens que Fafnir, o teórico herdeiro do Trono do Leão Dourado. Com um príncipe herdeiro e um montão de filhas de suas diversas esposas, Elrood não tinha esperado muito do segundo príncipe, e por sugestão de sua mãe, uma Bene Gesserit, tinha permitido que Fenring assistisse as aulas com ele.

Com os anos, Fenring tinha se transformado em um “coordenador”, uma pessoa que realizava tarefas necessárias para seu amigo Shaddam, por mais desagradáveis que fossem, incluindo o assassinato de Fafnir. Ambos compartilhavam muitos segredos, muitos para separarem-se agora sem graves repercussões... e os dois sabiam.

Shaddam está em dívida comigo, maldito seja! Quando o imperador encontrar tempo para refletir, compreenderia que não podia se permitir o luxo de ter Fenring como inimigo, nem sequer como servidor imperial reticente. Shaddam não demoraria em chamá-lo de volta. Era só uma questão de tempo.

De alguma forma, descobriria uma forma de fortalecer todas as circunstâncias a seu favor. Lady Margot, com quem se casara em uma cerimônia simples três dias antes, se encarregou dos demais criados. Ditou ordens sem cessar para que os preparativos da viagem se acelerassem. Como irmã Bene Gesserit, tinha poucas necessidades e não tinha gostos extravagantes, mas como era consciente da importância das aparências, enviou uma nave a Arrakis carregada de roupas e enfeites para seu marido. Eles se instalariam em uma residência privada, longe de Carthag, o centro de poder dos Harkonnen. Esta demonstração de independência e luxo acentuaria o poder de Shaddam e de seus olhos sempre vigilantes ante os governantes e funcionários Harkonnen.

Fenring, sorridente, observava Margot enquanto finalizava os preparativos. Era como uma corrente de cores alegres e cabelo, sorrisos alentadores e palavras severas para os que trabalhavam muito devagar. Uma mulher magnífica! Sua nova esposa e ele guardavam segredos fascinantes, e o processo de mútuo descobrimento seria extremamente prazeroso.

Ao anoitecer partiriam para o planeta deserto, que os nativos chamavam de Dune.

Mais tarde, Fenring se sentou em frente ao console de jogos, à espera de que o imperador Padishah Shaddam IV efetuasse o próximo movimento. Encontravam-se sozinhos em uma habitação de paredes de plaz situada no alto de um pináculo do palácio. Ao longe se ouvia o zumbido de ornitópteros.

Fenring cantarolava para si, embora soubesse que Shaddam odiava aquele costume. Por fim, o imperador deslizou uma varinha através do escudo brilhante à velocidade precisa, nem muito depressa nem muito devagar. A varinha ativou um disco giratório interior, e a bola negra que havia no centro do globo flutuou no ar. Shaddam liberou a varinha, e a bola caiu no receptáculo de número 9.

— Esteve praticando, senhor, hummmm? — disse Fenring —. Por caso um imperador não tem tarefas mais importantes? De qualquer modo, deve se esforçar mais se quiser me vencer.

O imperador contemplou a varinha que acabava de utilizar, como se lhe tivesse falhado.

— Quer trocar de varinha, senhor? — ofereceu Fenring em tom zombeteiro —. Essa não funciona bem?

Shaddam meneou a cabeça.

— Fico com esta, Hasimir. Será nossa última partida durante um tempo. — Respirou fundo —. Já lhe disse que posso dirigir as coisas sozinho. Mas isso não significa que não valorize seus serviços.

— É obvio, senhor. Por isso me enviou para um poço de pó habitado por vermes de areia e bárbaros fedorentos. — Olhou para Shaddam com frieza —. Acredito que é um grave equívoco, alteza. Nestes primeiros dias de seu reinado, necessita de conselhos bons e objetivos. Não pode enfrentar sozinho todas as tarefas, e em quem pode confiar mais que em mim?

— A verdade é que dirigi a crise de Leto Atreides bastante bem. Eu sozinho evitei o desastre.

— Admito que o resultado foi positivo, mas ainda não sabemos o que sabe sobre nós e os Tleilaxu. — Não queria aparentar muita preocupação. — Hummmm. Talvez esteja certo, mas se tiver solucionado o problema, me permita uma pergunta. Se não foi Leto, quem disparou contra as naves Tleilaxu? E como?

— Estou refletindo sobre isso.

Os grandes olhos de Fenring cintilaram.

— Leto é muito popular neste momento, e talvez um dia seja uma ameaça para seu trono. Tanto importa se provocou a crise ou não, o duque Atreides a transformou em uma vitória inegável para ele e a honra de sua Casa. Superou um obstáculo infranqueável com absoluta elegância. Os membros do Landsraad percebem estas coisas.

— Isso sim, é verdade, é verdade... mas não há nada com se que preocupar.

— Não estou tão seguro, senhor. Talvez o descontentamento entre as Casas não se dissipou ainda, face ao que nos fez acreditar.

— Temos a Bene Gesserit do nosso lado, graças a minha esposa.

Fenring bufou.

— Com a qual se casou por minha sugestão, senhor. O fato das bruxas dizerem uma coisa, não significa que seja verdade. O que acontecerá se a aliança não bastar?

— Que quer dizer?

Shaddam indicou com impaciência a Fenring que era sua vez de jogar.

— Pense em como o duque Leto é imprevisível. Talvez esteja em segredo fazendo alianças militares para atacar Kaitain. Sua popularidade se traduz em mais poder, e não há dúvida de que é ambicioso. Os líderes das Grandes Casa estão ansiosos por falar com ele. Você, em troca, carece desse apoio popular.

— Tenho meus Sardaukar.

Rugas de dúvida se desenharam no rosto do Mentat.

— Tenha certeza que não estão infiltrados entre as legiões, vou estar em Arrakis, e essas coisas me preocupam. Acredito quando diz que pode dirigir a situação sem ajuda. Só lhes dou meu melhor conselho, como sempre fiz, senhor.

— Agradeço por isso, Hasimir, mas não posso acreditar que meu primo Leto provocou a crise do Cruzeiro com o fim de alcançar este objetivo em particular. Era uma ação muito desajeitada e perigosa. Não podia saber que eu interviria a seu favor.

— Sabia que faria algo assim se descobrisse que possuía informação secreta.

Shaddam meneou a cabeça.

— Não. As chances de fracassar eram enormes. Esteve a ponto de perder todas as posses de sua família.

Fenring estendeu um dedo longo.

— Mas pense na glória que colheu. Pense no que aconteceu. Duvido que planejasse desta maneira, mas agora Leto é um herói. Seu povo o ama, todos os nobres o admiram e os Tleilaxu passaram por idiotas. Sugiro, senhor, já que insiste em fazê-lo sozinho, que vigie de perto as ambições da Casa Atreides.

— Obrigado por seu conselho, Hasimir — disse Shaddam enquanto estudava o console —. Ah, por certo, não lhe disse que vou... promovê-lo?

Fenring bufou.

— Eu não chamaria de promoção o fato de ser enviado a Arrakis. “Observador Imperial” não soa muito impressionante, não é?

Shaddam sorriu e ergueu o queixo em um gesto muito imperial. Imaginava que iria provocar essa reação.

— Ah, sim... mas que tal se for conde Fenring?

O Mentat ficou estupefato.

— Vai me nomear... conde?

Shaddam assentiu.

— Conde Hasimir Fenring, Observador Imperial em Arrakis. A fortuna de sua família aumentará, meu amigo. Tenho a intenção de estabelecê-lo no Landsraad.

— Com um diretório da CHOAM, como incentivo?

Shaddam riu.

— Tudo a seu tempo, Hasimir.

— Suponho que isso transforme Margot em condessa, não?

Seus grandes olhos brilharam quando Shaddam assentiu. Tentou dissimular seu prazer, mas o imperador o leu em seu rosto.

— E agora contarei por que esta missão é tão importante, para você e para o Império. Lembra-se de um homem chamado Pardot Kynes, o planetólogo que meu pai enviou a Arrakis alguns anos atrás?

— É claro.

— Bem, nos últimos tempos não nos foi de grande ajuda. Alguns relatórios erráticos, incompletos e, ao que parece, censurados. Um de meus espiões me informou que Kynes se misturou com os Fremen, que talvez tenha cruzado a linha divisória e agora seja um deles, um nativo.

Fenring arqueou as sobrancelhas.

— Um servidor imperial misturado com essa raça repugnante e primitiva?

— Espero que não, mas eu gostaria que descobrisse a verdade. Em essência, nomeio-o meu Czar da Especiaria Imperial, que fiscalizará em segredo as operações da melange em Arrakis assim como os progressos de nossos experimentos em Xuttah. Viajará entre esses planetas e o palácio imperial. Transmitirá só mensagens codificadas, e só a mim.

Quando Fenring assimilou a magnitude da missão e suas repercussões, experimentou um imenso júbilo. Sim, agora compreendia as possibilidades. Precisava contar a Margot. Com sua mente Bene Gesserit, adivinharia sem dúvida as vantagens adicionais.

— Isso é alentador, senhor. Uma tarefa digna de meus talentos peculiares. Hummmm, acredito que isso será divertido.

Fenring se concentrou no jogo, ativou o disco giratório interior e guiou a bola flutuante. Caiu no receptáculo do número 8. Meneou a cabeça.

— Uma pena — disse Shaddam e, com um movimento, deixou cair a bola final no número 10 e ganhou a partida.

 

O progresso e o lucro requerem um investimento substancial em pessoal, equipamentos e recursos. Entretanto, o recurso que quase sempre se ignora, mas que proporciona os maiores rendimentos, é a investimento em tempo.

Dominic Vernius, As operações secretas de IX.

 

Não restava nada a perder. Não restava nada absolutamente.

O conde renegado e herói de guerra conhecido em outro tempo como Dominic Vernius tinha morrido, apagado dos registros e expulso do seio do Império. Mas o homem continuava vivendo sob diferentes aparências. Era uma pessoa que nunca se rendia.

No passado, Dominic tinha lutado pela glória do seu imperador. Em tempos de guerra tinha matado milhares de inimigos com naves de combate e fuzis laser manuais. Também tinha cheirado o sangue das vítimas quando utilizava espadas, ou suas mãos nuas. Lutava com todas as forças, trabalhava com todas as forças e amava com todas as forças.

E o pagamento pelo investimento de toda sua vida era a desonra, o desterro, a morte de sua esposa, a desgraça de seus filhos.

Apesar de tudo, Dominic era um sobrevivente, um homem com um objetivo. Sabia que devia esperar o momento adequado.

Embora o desalmado Elrood tivesse morrido, Dominic não o perdoara. O poder do trono imperial tinha sido o causador de tantas desgraças e tanta dor. Nem sequer o novo imperador traria uma melhora...

Tinha observado Caladan de longe. Rhombur e Kailea se encontravam a salvo. Seu refúgio era intocável até sem a presença carismática do velho duque. Tinha chorado a morte de seu amigo Paulus Atreides, mas não se atreveu a assistir seu funeral, nem a enviar mensagens codificadas para Leto, o jovem herdeiro.

Entretanto, havia sentido a tentação de apresentar-se em Kaitain durante o Julgamento de Confisco. Rhombur tinha abandonado Caladan e ido a corte imperial para apoiar seu amigo, apesar do risco de ser detido e executado. Se as coisas tivessem saído erradas, Dominic teria ido a corte para sacrificar-se por seu filho.

Mas não tinha sido necessário. Leto tinha sido eximido de toda culpa e posto em liberdade, e, com ele, também Rhombur e Kailea. Como tinha ocorrido? Dominic não conseguia entender. Shaddam em pessoa tinha salvado Leto. Shaddam Corrino IV, filho do desprezível imperador Elrood que destruíra a Casa Vernius, tinha fechado o caso como impulsionado por um capricho. Dominic suspeitava que o veredicto implicava subornos e extorsões, mas era incapaz de imaginar o que teria utilizado um duque inexperiente de dezesseis anos para chantagear o imperador do Universo Conhecido.

Não obstante, Dominic tinha decidido correr um risco. Cego pela dor, vestiu-se com trapos, tingiu sua pele de um tom avermelhado e viajou sozinho a Bela Tegeuse. Antes de prosseguir sua tarefa, devia ver o lugar onde sua esposa tinha sido assassinada pelos Sardaukar de Elrood.

Utilizou veículos de ar e de terra para explorar o planeta em segredo, sem atrever-se a fazer perguntas, embora muitos informes proporcionassem pistas sobre o ponto onde se cometera o massacre. Por fim, encontrou um lugar onde as colheitas tinham sido arrasadas e o terreno semeado de sal para que nunca mais voltasse a crescer nada. Tinham incendiado uma casa até os alicerces, que cobriram depois com cimento sintético. Não viu nenhuma tumba, mas sentiu a presença de Shando.

Meu amor esteve aqui, pensou.

Sob os dois sóis mortiços, Dominic se ajoelhou sobre a terra arrasada e chorou até perder a noção do tempo. Quando se esvaziou de lágrimas, uma imensa solidão tomou seu coração.

Agora estava preparado para dar o próximo passo.

E assim, Dominic Vernius viajou até os planetas mais afastados do Império e reuniu um punhado de leais que tinham escapado de IX, homens que preferiram acompanhá-lo, sem se importar com seu objetivo, que viver monotonamente em planetas agrícolas.

Entrou em contato com companheiros de armas que tinham lutado com ele durante a rebelião de Ecaz, gente a que devia a vida uma dúzia de vezes. Procurar esses homens trazia um grande perigo, mas Dominic confiava em seus antigos camaradas. devido a generosa recompensa que se oferecia por sua cabeça, sabia que nenhum deles o trairia.

Dominic esperava que o novo imperador Padishah Shaddam IV não percebesse os sutis movimentos e desaparecimentos de homens que tinham lutado sob o comando de Vernius quando Shaddam era apenas um adolescente e nem sequer o herdeiro oficial do trono, quando o príncipe herdeiro Fafnir era o primeiro na linha sucessória.

Tinham transcorrido muitos anos, tempo suficiente para que a maioria daqueles veteranos se sentassem para falar dos dias de glória, convencidos de que a guerra e o derramamento de sangue tinham sido mais emocionantes e gloriosos do que eram na realidade. Cerca de um terço não quis unir-se a sua causa, mas outros aceitaram e esperaram ordens.

Quando Shando se escondeu, tinha apagado todos os registros, mudado seu nome, utilizado créditos sem registro para adquirir uma pequena propriedade no mundo tenebroso de Bela Tegeuse. Seu único erro fora subestimar a persistência dos Sardaukar.

Dominic não cometeria o mesmo erro. Para alcançar seu objetivo, iria para um lugar onde ninguém pudesse vê-lo, um lugar de onde pudesse acossar o Landsraad e transformar-se em um espinho para o imperador.

Era a única arma que restava.

Preparado para iniciar seu verdadeiro trabalho, Dominic Vernius se sentou no comando de uma nave de contrabandistas tripulada por uma dúzia de homens leais. Os camaradas tinham reunido dinheiro e equipamento para ajudá-lo a dar um golpe mortal pela glória, honra, e talvez pela vingança.

Depois foi procurar a reserva de armas atômicas da família Vernius, armas proibidas mas que todas as Grandes Casas do Landsraad possuíam. Proibidas pela Grande Convenção, as armas atômicas ixianas tinham sido conservadas em segredo durante gerações, armazenadas na face escura de um pequeno satélite do quinto planeta do sistema Alkaurops. Os repugnantes Tleilaxu não sabiam nada a respeito.

Agora, a nave de Dominic estava carregada com armas suficientes para aniquilar um planeta.

“A vingança está nas mãos do Senhor”, afirmava a Bíblia Católica Laranja. Depois de todo seu sofrimento, Dominic não se sentia muito religioso, nem lhe importavam os detalhes da lei. Era um renegado, fora do alcance do sistema legal.

Imaginava como o maior contrabandista da história, oculto onde ninguém poderia localizar mas capaz de infligir graves prejuízos econômicos a todas as Casas que haviam traído e negado ajuda.

Com aquelas armas atômicas, deixaria sua marca na história.

Dominic utilizou um escudo para passar despercebido pela antiquada rede de satélites meteorológicos mantida pela Corporação, e levou sua nave e seu carregamento atômico a uma região polar desabitada do planeta deserto Arrakis. Um forte vento frio açoitou os uniformes puídos dos seus homens quando pisaram naquela terra desolada. Arrakis. Sua nova base de operações.

Passaria muito tempo antes que se voltasse a ouvir falar de Dominic Vernius. Mas quando estivesse preparado, todo o Império se recordaria dele.

 

Quatro coisas são as escoras de um planeta: os ensinos dos sábios, a justiça dos grandes, as orações dos virtuosos e a coragem dos valentes. Mas todas estas coisas não valem nada sem um governante que conheça a arte de governar.

Príncipe Raphah Corrino, Discursos sobre liderança galáctica.

 

Leto descia sozinho até a borda, ziguezagueando a trilha íngreme no escarpado e a escada que levava aos antigos moles que se elevavam sob o castelo de Caladan.

O sol do meio-dia se filtrava através de capas de nuvens e arrancava brilhos das plácidas águas que se estendiam até o horizonte. Leto se deteve sobre o escarpado de pedra negra e protegeu os olhos para olhar os bosques de algas marinhas, os barcos de pesca com suas tripulações e a linha dos recifes, que esboçavam uma topografia agreste sobre o mar.

Caladan: seu planeta; abundante em mares e selvas, terra cultivável e recursos naturais. Tinha pertencido à Casa Atreides durante vinte e seis gerações. Agora pertencia a ele.

Amava este lugar, o aroma do ar, o sal do oceano, o cheiro de algas e pescado. O povo sempre tinha trabalhado duro para seu duque, e Leto tentava fazer tudo por ele. Se tivesse perdido o Julgamento de Confisco, o que teria sido dos bons cidadãos de Caladan? Teriam observado alguma diferença se estas posses tivessem sido entregues ao governo de, digamos, a Casa Teranos, a Casa Mutelli ou qualquer outro membro respeitável do Landsraad? Talvez sim... talvez não.

Em qualquer caso, Leto não podia imaginar outro lugar para viver, porque aquela era a sede dos Atreides. Mesmo que lhe tivessem tirado tudo, teria retornado a Caladan para viver perto do mar.

Embora Leto soubesse ser inocente, ainda não compreendia o que tinha acontecido às naves dos Tleilaxu dentro do Cruzeiro. Precisava de provas para demonstrar que ele não tinha realizado os disparos que quase desencadearam uma guerra total. Ao contrário, tinha motivos de sobra, e por isso as outras Casas se mostraram reticentes a intervir em sua defesa, fossem aliadas ou não. Nesse caso teriam posto em perigo sua parte do butim se as posses dos Atreides tivessem sido confiscadas e divididas. Não obstante, durante aqueles dias, muitas Casas tinham expressado em silêncio sua aprovação pela maneira como Leto tinha protegido sua tripulação e seus amigos.

E então, milagrosamente, o imperador Shaddam o salvara.

Durante o vôo desde Kaitain, Leto conversara longamente com Thufir Hawat, mas nem o jovem duque nem o guerreiro Mentat tinham conseguido imaginar os motivos de Shaddam para socorrer os Atreides, ou por que tivera tanto medo do blefe de Leto. Embora fosse um rapaz ainda inexperiente, Leto aprendera a não confiar em uma explicação de puro altruísmo, face ao que Shaddam havia dito ao tribunal. Uma coisa era segura: o imperador ocultava algo. Algo que implicava os Tleilaxu.

A pedido de Leto, Hawat tinha enviado espiões Atreides a muitos planetas, com a esperança de coletar mais informação, mas o imperador, advertido pela mensagem misteriosa e provocadora de Leto, seria mais cuidadoso que nunca.

No conjunto do Império, a Casa Atreides ainda não era muito poderosa e não exercia influência sobre a família Corrino, nem tinha motivos para procurar sua proteção. Os laços de sangue não bastavam. Embora Leto fosse primo de Shaddam, muitos membros do Landsraad podiam remontar sua linhagem, mesmo que parcial, até os Corrino, sobretudo se voltassem até os dias da Grande Revolução.

E onde se encaixavam as Bene Gesserit? Eram aliadas de Leto, ou inimigas? Por que tinham ajudado? E quem tinha enviado a informação sobre a implicação de Shaddam? Leto suspeitara da existência de inimigos ocultos, mas não de aliados tão discretos. Mas o mais enigmático era quem tinha destruído as naves Tleilaxu.

Afastou-se dos escarpados e atravessou uma colina suave até chegar aos moles silenciosos. Todos os navios tinham zarpado, exceto um pequeno bote e um iate, em cuja bandeira descolorida ondeava o falcão dos Atreides.

O falcão estivera a beira da extinção.

Leto se sentou no final do mole principal, escutou o rumor das ondas e os grasnidos das gaivotas cinzentas. Sentiu o aroma do sal e pescado, e do ar fresco. Recordou a ocasião em que Rhombur e ele tinham ido recolher gemas coralinas, o incêndio acidental e o percalço quase mortal que tinham sofrido naqueles recifes longínquos. Nada importante, comparado com o ocorrido mais tarde.

Viu um caranguejo de rocha grudado a um pilar do mole, mas depois desapareceu nas águas verde azuladas.

— Está contente de ser duque, ou preferiria ser um simples pescador? — A voz do principe Rhombur soou alegre e bem humorada.

Leto se voltou, e sentiu o calor das pranchas banhadas pelo sol no fundilho das calças. Rhombur e Thufir Hawat caminhavam para ele. Leto sabia que o Mestre de Assassinos o repreenderia por dar as costas à praia, pois o rugido do oceano esconderia o ruído de alguém que se aproximasse furtivamente.

— Possivelmente as duas coisas — disse Leto, enquanto ficava em pé e sacudia a roupa —. O que for melhor para entender meu povo.

— “Compreender seu povo pavimenta o caminho que conduz à compreensão da liderança” — Thufir Hawat recitou a velha máxima Atreides —. Espero que estivesse meditando sobre a arte de governar, pois nos espera muito trabalho, agora que tudo voltou ao normal.

Leto suspirou.

— Normal? Creio que não. Alguém tentou desencadear uma guerra com os Tleilaxu e de passagem culpar minha família. O imperador tem medo do que imagina que eu sei. A Casa Vernius continua renegada, e Rhombur e Kailea estão exilados, embora ao menos tenham sido perdoados. Para ajudar, meu bom nome não foi inocentado. Muita gente pensa ainda que eu ataquei essas naves. — Pegou um calhau e o jogou na água —. Se isto significar uma vitória para a Casa Atreides, Thufir, é agridoce, no máximo.

— Talvez — disse Rhombur, de pé junto ao bote —. Mas isso é sempre melhor que uma derrota.

O velho Mentat assentiu, e o sol ardente se refletiu em sua pele enrugada.

— Comportou-se com um verdadeiro porte de honra e nobreza, meu duque, e a Casa Atreides ganhou o respeito de quase todo o Império. Isto é uma vitória que não deve ser menosprezada.

Leto ergueu a vista para as altas toras do castelo de Caladan, que se erguiam sobre o escarpado. Seu castelo, seu lar.

Pensou nas antigas tradições de sua Grande Casa, e em como se apoiaria nelas. Devido a seu cargo, era um eixo ao redor do qual giravam milhões de vidas. A vida de um simples pescador teria sido mais fácil e aprazível, mas não para ele. Sempre seria o duque Leto Atreides. Tinha seu sobrenome, seu título, seus amigos. E a vida era agradável.

— Venham, jovens senhores — disse Thufir Hawat —. É hora de outra lição.

Leto e Rhombur, muito animados, seguiram o Mestre de Assassinos de volta ao castelo.

 

Durante mais de uma década correram rumores de que eu escreveria outra novela ambientada no universo de Dune, uma seqüência do sexto livro da série. Casa Capitular de Dune. Tinha publicado certo número de novelas de ficção científica, mas não estava seguro de querer embarcar em algo tão grande e ameaçador. Afinal, Dune é uma obra magna, uma das novelas mais complexas e intrincadas jamais escritas. Versão atualizada do mito do tesouro do dragão, Dune relata a história de gigantescos vermes de areia que guardam o prezado tesouro da melange, a especiaria geriátrica. É uma pérola magnífica, com camadas de brilho sob a superfície que chegam até o núcleo.

Quando aconteceu a morte prematura de meu pai, em 1986, estava começando a pensar em uma novela que tinha o título provisório de Dune 7, um projeto que tinha vendido a Berkley Books, mas sobre o qual não existiam notas ou rascunhos conhecidos. Meu pai e eu tínhamos falado em termos gerais a respeito de colaborar em uma novela de Dune algum dia, mas não tínhamos fixado data, nem estabelecido detalhes específicos nem diretrizes. Seria depois que terminasse Dune 7 e outros projetos.

Nos anos posteriores pensei na série inacabada do meu falecido pai, sobretudo depois de concluir um projeto que me custou cinco anos, Dreamer Of Dune, uma biografia deste homem complexo e enigmático, uma biografia que me exigiu analisar os origens e temas da série Dune. depois de muitas reflexões, pareceu-me que seria fascinante escrever um livro sobre os acontecimentos que ele havia descrito de uma forma tão tentadora no Apêndice de Dune, uma nova novela onde eu retrocederia dez mil anos no tempo, até a época da Jihad Butleriana, a lendária Grande Revolução contra as máquinas pensantes. Tinha sido um período mítico de um universo mítico, um período onde se formaram quase todas as Grandes Escolas, incluídas a Bene Gesserit, Mentats e os Mestres Espadachins.

Depois de conhecer meu interesse, escritores famosos me abordaram com ofertas de colaboração, mas ao dar voltas às idéias junto com eles não vi como o projeto pudesse progredir. Eram excelentes escritores, mas em contato com eles não sentia a sinergia necessária para uma tarefa tão monumental. Dediquei-me a outros projetos e deixei de lado o maior. Ademais, ao mesmo tempo que meu pai tinha deixado muitos cabos soltos estimulantes no quinto e sexto livro da série, tinha escrito um epílogo para Casa Capitular de Dune que constituía uma maravilhosa dedicatória a minha falecida mãe, Beverly Herbert, sua esposa durante quase quatro décadas. Tinham formado uma equipe onde ela corrigia o trabalho dele e agia como caixa de ressonância de sua corrente de idéias. Uma vez os dois falecidos, parecia a conclusão certa abandonar o projeto.

O problema era que um indivíduo chamado Ed Kramer não parava de me perseguir. Editor de êxito e patrocinador de convenções de ficção científica e fantasia, queria recolher uma antologia de relatos breves ambientados no universo de Dune, escritos por autores conhecidos. Convenceu-me de que seria um projeto interessante e significativo, e falamos de editá-lo. Não concluímos todos os detalhes, já que o projeto apresentava numerosas complexidades, tanto legais como artísticas. Enquanto estávamos nisso, Ed me disse que tinha recebido uma carta do famoso autor Kevin J. Anderson, que tinha sido convidado a colaborar na antologia. Sugeriu o que ele chamou “uma conjectura aleatória”, e me perguntou pela possibilidade de trabalhar em uma novela longa, se possível uma continuação de Casa Capitular de Dune.

O entusiasmo de Kevin pelo universo de Dune transparecia em sua carta. De qualquer modo, posterguei a resposta durante um mês, pois não estava seguro. Apesar de seu demonstrado talento, eu duvidava. Era uma decisão muito importante. Eu queria me dedicar a fundo no projeto, e precisava participar para garantir a produção de uma novela fiel à série original, junto com O senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien e um punhado de outras obras, Dune se destacava como um dos maiores exercícios criativos de todos os tempos, e o maior exemplo da construção de um universo de ficção científica na história da literatura. Para proteger o legado de meu pai, devia escolher a pessoa adequada. Li tudo de Kevin que caiu em minhas mãos, e fiz mais averiguações sobre ele. Logo ficou claro que era um escritor brilhante, e sua reputação era impecável. Decidi conversar com ele por telefone.

Combinamos imediatamente, tanto no plano pessoal como no profissional. Além de me cair muito bem, sentia uma energia recíproca, um fluxo notável de idéias que beneficiaria a série. Depois de obter a aprovação de minha família, Kevin e eu decidimos escrever uma novela, não ambientada na época antiga, muito antes de Dune, mas centralizar nos acontecimentos ocorridos trinta ou quarenta anos antes do princípio de Dune, a história amorosa dos pais de Paul, o envio do planetólogo Pardot Kynes a Arrakis, os motivos da terrível e destruidora inimizade entre a Casa Atreides e a Casa Harkonnen, e muitos mais.

Antes de escrever um esboço detalhado, relemos os seis livros de Dune, e assumi a tarefa de redigir o Códice de Dune, uma enciclopédia de todos os personagens, lugares e maravilhas do universo de Dune. Era de vital importância determinar para onde meu pai levava a conclusão da série. Estava claro que se propunha a materializar algo transcendental em Dune 7, e tinha nos deixado um grande mistério. Não havia notas nem pistas, só minha lembrança de que ele utilizara um rotulador amarelo nos exemplares de bolso de Hereges De Dune e Casa Capitular de Dune pouco antes de sua morte, livros que ninguém conseguiu localizar depois do seu falecimento.

No início de maio de 1997, quando por fim conheci Kevin J. Anderson e sua esposa, a autora Rebecca Moesta, novas histórias floresceram em nossas mentes. Como em estado de transe, nós as esboçamos e gravamos em fita. A partir destas notas as cenas começaram a se desenvolver, mas ainda discutíamos sobre a reviravolta que meu pai pensava imprimir à série.

Nos dois últimos livros. Hereges de Dune e Casa Capitular de Dune, introduziu uma nova ameaça, as desprezadas Honoráveis Madres, que devastavam grande parte da galáxia. Ao final de Casa Capitular, os personagens se encontravam encurralados, totalmente derrotados... e depois o leitor descobria que mesmo as Honoráveis Madres fugiam de uma ameaça ainda mais misteriosa, um perigo que espreitava os protagonistas da história, quase todos eles reverendas madres da Bene Gesserit.

Duas semanas depois de nosso encontro, recebi uma chamada telefônica de um advogado que se encarregou de assuntos relacionados a meus pais. Informou-me que duas caixas de segurança pertencentes a Frank Herbert tinham aparecido em um banco do Scattle, caixas cuja existência desconhecíamos. Combinei uma entrevista com os diretores do banco, e as caixas de segurança foram abertas em um ambiente de grande emoção. Dentro havia papéis e disquetes antigos que incluíam notas amplas para um Dune 7 não publicado, a longamente esperada sequencia de Casa Capitular de Dune. Agora, Kevin e eu sabíamos qual era o objetivo da série e podíamos tecer os acontecimentos de nossa novela.

Nos dedicamos com renovado entusiasmo à tarefa de preparar uma proposta literária que pudesse ser apresentada aos editores. Naquele verão tinha planejado uma viagem a Europa, uma celebração de aniversário que minha esposa Jan e eu planejávamos há muito tempo. Levei meu computador portátil e uma impressora de pouco peso, e Kevin e eu trocamos pacotes por correio urgente durante todo o verão. Quando retornei no final do verão, tínhamos uma proposta de 141 páginas para uma trilogia, a maior que tínhamos visto em nossas vidas. Meu projeto de Dune tinha passado da metade, mas ainda me esperavam meses de intenso trabalho antes de terminá-lo.

Enquanto esperava a resposta de alguma editora, recordei as muitas sessões de escrita que tinha desfrutado com meu pai, e minhas primeiras novelas dos anos oitenta que ele tinha recebido com carinhosas e atentas sugestões para melhorar. Tudo o que aprendera com ele, e mais, seria necessário para o imenso projeto da novela.

 

Não conheci Frank Herbert em pessoa, mas o conhecia bem graças a seus livros. Li Dune quando tinha dez anos, e o reli diversas vezes ao longo dos anos. Depois, reli e gozei todas as sequências. O Imperador Deus de Dune, recém saído da imprensa, foi a primeira novela de capa dura que comprei em minha vida (acabava de entrar na universidade). Depois procurei todas as suas novelas: O cérebro verde, Hellstrom's Hive, A barreira Saniaroga, Os olhos do Heisenberg, Destination: Void, The Jesus Incident e mais e mais e mais.

Para mim, Frank Herbert era o ápice do que a ficção científica devia ser, ambiciosa, com proporções épica, bem investigada e tecida, tudo no mesmo livro. Outras novelas do gênero acertavam em um ou dois destes aspectos, mas Dune conseguiu totalmente. Quando tinha cinco anos, já tinha decidido que queria ser escritor. Quando tinha doze, sabia que queria escrever livros como os de Frank Herbert.

Durante meus anos universitários escrevi um punhado de relatos breves, e depois comecei minha primeira novela, Resurrection Inc., um relato complexo situado em um mundo futuro onde os mortos eram ressuscitados para servir os vivos. A novela estava infestada de comentários sociais, pinceladas religiosas, uma mistura de personagens e um argumento intrincado. Nessa época já tinha reunido méritos suficientes para ingressar na associação de Escritores de Ficção Científica Norte-americanos, e um dos principais benefícios foi encontrar ali o endereço de Frank Herbert. Prometeu-me que enviaria o primeiro exemplar assinado. A novela foi vendida quase imediatamente a Signet Books, mas Frank Herbert morreu antes de sua publicação.

Tinha lido com avidez os dois últimos livros de Dune, Hereges e Casa Capitular, nos quais Herbert tinha iniciado uma série de novos acontecimentos que alcançavam um clímax febril, destruía literalmente toda vida sobre o planeta Arrakis e deixava à humanidade ao beira da extinção. Aí abandonou a história por causa de sua morte. Sabia que seu filho Brian era também um escritor profissional com várias novelas de ficção científica em seu nome. Esperei, esperançoso, que Brian terminasse o rascunho de um manuscrito, ou ao menos descobrisse um esboço de seu pai. Algum dia, os fiéis leitores de Dune teriam uma solução para este desenlace incerto.

Enquanto isso, minha carreira de escritor florescia. Fui nomeado para o prêmio Bram Stoker e o prêmio Nébula. Estúdios de Hollywood compraram ou formularam opções por dois de meus thrillers. Enquanto continuava escrevendo novelas, encontrei um filão nas sequências de universos estabelecidos, como Star Wars e Arquivo X (ambos eu gostava). Aprendi a estudar as regras e os personagens, para contar minhas próprias histórias dentro dos limites e expectativas dos leitores.

Depois, na primavera de 1996, passei uma semana no Vale da Morte (Califórnia), que sempre foi um de meus lugares favoritos para escrever. Uma tarde fui de excursão a um canyon isolado e longínquo, absorto no argumento que ia ditando. Ao fim de uma hora descobri que tinha tomado o caminho errado, e tive que andar mais quilômetros do que os calculados para voltar ao meu carro. Durante aquele longo passeio, no meio do deserto, meus pensamentos giravam em torno de Dune.

Haviam se passado dez anos desde a morte de Frank Herbert, e já tinha decidido que Dune ia terminar de uma forma aberta. Ainda queria saber como se desenvolvia a história... mesmo que eu tivesse que escrevê-la.

Não conhecera Brian Herbert, nem sequer tinha motivos para supor que consideraria minha sugestão. Mas Dune era minha novela favorita de ficção científica, e não me ocorria um trabalho melhor. Decidi que perguntar não custava nada...

Esperamos que tenham desfrutado ao visitar o universo de Dune novamente através de nossos olhos. Foi uma imensa honra examinar milhares de páginas das notas originais de Frank Herbert, afim de recriar alguns dos ambientes que surgiram de sua investigação, sua imaginação e sua vida. Ainda considero Dune tão emocionante e estimulante como a primeira vez que a li, há muitos anos.

 

 

[1] A muleta é um pedaço de flanela vermelha que se usa como instrumento de engano para tourear no último terço da lide. Na parte superior coloca-se-lhe um pau, do qual ela fica suspensa, caindo simetricamente para ambos os lados, estando fixada na extremidade de fora por um espigão de ferro e na parte de dentro, junto ao toureiro, por um camarão. Juntamente com a espada, constitui aquilo a que se chamam aprestos para matar.

[2] Farpa com haste de madeira, com cerca de 70cm, e armada de um ferro, com arpão de uma só farpa com 4 cm de comprimento.

 

 

                                                                                                    Brian Herbert & Kevin J. Anderson

 

 

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