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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DA ÁGUIA - P2 / Ducan Sprot
A CASA DA ÁGUIA - P2 / Ducan Sprot

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                        Viver Para Sempre

 

A ascensão do Rei Ptolomeu ao trono foi marcada para o amanhecer, de modo que ele surgisse como o nascer do Sol, em sua glória, para o matraquear dos babuínos de Thot; e foi nesse grande dia, o primeiro dia do seu glorioso reinado, que ele assumiu todos os títulos dos Faraós do passado.

Ele era Hórus, o Jovem.

Era Senhor das Coroas.

Era Senhor do Mundo Inteiro.

Era o escolhido de Rá.

Era o Mais Querido de Amun.

Era Rei do Baixo e do Alto Egito.

Era o filho do Sol, o filho de Rá, Ptolomaios, Aquele que Viveria Para Sempre.

 

 

 

Para o povo do Egito, que não poderia jamais enrolar a língua com a dificuldade de pronunciar o som correspondente à palavra Ptolomaios, ele era Ptlumis, e proferiam essa corruptela do seu nome numa melodia ritmada, que ressoou por todo o primeiro dia do seu reinado. Iriam entoá-lo onde quer que ele estivesse pelo resto de sua vida, pois, acima de qualquer coisa, Ptolomeu era popular — tão popular que os sacerdotes do Egito ensinaram ao povo que, de fato, ele fora Faraó desde a morte de Alexandre, e que os seus anos de reinado deviam ser recontados de acordo com essa data.

Apesar de se tornar Hórus, o Jovem, Ptolomeu fazia 62 anos de idade naquele ano, e os cabelos, se tivessem deixado que crescessem, bem como o chumaço em seu queixo, estariam brancos.

Berenice, sua rainha, sua Grande Esposa Real, dela diziam que tinha 43 anos de idade, e era seu o nome a ser entoado e enaltecido em todo lugar, pois o nome de Eurídice, a esposa de segunda classe, não era mencionado em nenhum lugar, exceto para se dizer que ela não teria o título de Rainha, nem merecia o privilégio e as atenções de uma rainha, pois não passava de uma outra esposa, pouco mais do que uma concubina, a ser ignorada e esquecida.

Mesmo assim, o Príncipe Ptolomeu Keraunos era tido em todo o Egito como herdeiro do seu pai. Tinha 16 anos e seguia atrás do pai em toda procissão egípcia, usando a trança para o lado, como Hórus, que representava a sua juventude, e com o restante da cabeça raspada, como qualquer egípcio. Usava sandálias egípcias, uma tanga egípcia, um colar com o símbolo Falcão-e-Águia incrustado de pedras preciosas, e odiava tudo isso.

Keraunos desejava mais do que qualquer outra coisa ser Rei, embora acalentasse em seu coração a idéia de se tornar um rei grego, um rei macedônio, não um rei egípcio. Ah, sim!, pensava ele, hei de fechar todos os templos, vou expulsar desta terra todos os egípcios.

Como a família de Ptolomeu se sentia agora, que eram a realeza? Sentiam-se estranhos, e não sabiam exatamente como deviam se comportar, ou o que deviam ou não fazer, agora que haviam sido separados das crianças comuns.

O próprio Ptolomeu recorria com freqüência ao sumo sacerdote de Mênfis para saber Qual a touca? Que ornamento? Ou para saber se era dia para o nemes listrado ou algum outro. E se devia aparecer num determinado dia vestido como grego ou como egípcio. Porque lhe parecia agora que, qualquer que fosse a maneira como se vestisse, poderia estar desse modo ofendendo tanto aos gregos como aos egípcios, e havia vezes em que ele lançava as mãos para os céus, sem saber como proceder ou o que fazer.

Anemhor, seu amigo, como sempre, o tranqüilizava. Foi ele quem trouxe o rabo do touro que Ptolomeu devia usar, sempre, fixado às costas de seu cinturão, representando o seu poder. Foi quem ensinou a Ptolomeu a colocar a falsa barba do Faraó no queixo, a qual ele era obrigado a exibir onde quer que aparecesse em público. Foi quem explicou o significado do bracelete com pedrarias que acompanham o olho udjat, chamado o Olho de Hórus, o qual era feito de ouro puro e safiras.

O olho humano e sobrancelha, disse o sumo sacerdote, representam a piedade filial. Trata-se do mais poderoso amuleto contra todas as doenças e que pode mesmo trazer de volta o morto à vida. E enquanto ele prendia o bracelete ao pulso, Ptolomeu dava-se conta novamente do seu grande peso, do significado do bracelete do Faraó; o qual ele precisaria usar sempre, dia e noite.

Foi dessa maneira que Anemhor ajudou Ptolomeu a ser Rei do Egito. Providenciou para que, em muitas coisas, Ptolomeu dependesse exclusivamente do seu auxílio, para informações e explicações. Anemhor estava freqüentemente ao lado de Ptolomeu, escutando, observando, assegurando-se. Não havia nada que esse homem deixasse de enxergar: o sumo sacerdote era os olhos do Faraó e os ouvidos do Faraó.

O que quer que Ptolomeu fizesse no Egito, esse sumo sacerdote anotava em detalhes. Cada excursão rio acima e abaixo era registrada. Cada desjejum que ingerisse era detalhado no livro chamado Os Anais de Thot. Não havia absolutamente nada que Ptolomeu fizesse, ou tentasse fazer, de que esse sumo sacerdote não tomasse conhecimento. Nada ele omitiu no seu livro. Não se esqueceu de nada.

Para a Data da Coroação, Anemhor calculou o dia e a hora mais auspiciosos daquele ano, e era o décimo oitavo ano da satrapia de Ptolomeu.

Desde a noite de véspera, Ptolomeu tinha sido posto em jejum, e seus lábios já tinham adquirido aquele sereno e inalterável meio sorriso de Faraó. Sem dúvida, ficaria contente se pudesse eliminar aquele vazio no estômago a que não se submetia desde o deserto de Gedrosia, mas havia prometido fazer exclusivamente o que seu amigo lhe pedira. Tirou a comida dos pensamentos, apurando os ouvidos para escutar os cânticos entoados pela multidão de egípcios, que não pararam de gritar o seu nome durante toda a noite.

Antes do amanhecer, de acordo com as exigências da coroação, o sumo sacerdote de Ptah supervisionou pessoalmente a sucessão de banhos e purificações com óleo, e a remoção de todos os pêlos da sua cabeça e do seu corpo, desde as sobrancelhas até os pêlos pubianos, até que esse homem, que não era mais um sátrapa, ficasse sob a navalha dos sacerdotes, nu como um peru depenado — exceto pelos talismãs gregos que se recusava a retirar fosse para homem ou deus —, mas sim como o mais puro dos puros, o homem mais puro do Egito, com o natrão ardendo na ponta da língua, de modo puro tanto por dentro quanto por fora.

Com a cabeça pelada e os pés descalços, Ptolomeu não usava nenhuma outra roupa a não ser o saiote branco puro, o chendjyt, ou seja, a tanga do Faraó. Ele aspirava o ar. Ele expirava, lentamente, mais do que lentamente, e o estômago agitava-se como se habitado por traças, porque era um homem mortal no dia em que estava para virar o Hórus Vivo, o Falcão de Ouro, um deus caminhando sobre a Terra, um deus ainda em vida — e também porque estava faminto.

A procissão do Faraó deslocou-se para fora dos portões duplos da residência de Mênfis, com Ptolomeu sentado num trono portátil, ornamentado com leão e esfinge, e o trono estava sendo conduzido apoiado em traves, de modo que balançava de um lado para o outro nos ombros dos generais do seu exército. Era acompanhado, nesse percurso, pelos sacerdotes e escribas do Egito, milhares deles; por sua guarda de soldados, sua banda de trombetas, tambores e flautistas, e pelos portadores de leques de penas de avestruz de púrpura e ouro que protegiam a sua pele do sol abrasador; e a multidão pela qual passava não parava de entoar Ptlumis, Ptlumis, Ptlumis, numa só voz, e o ritmo da gritaria era como o ritmo das batidas do seu coração, e o seu coração batia rápido e forte.

Ainda que fosse grego, estava cercado por egípcios e não pôde avistar sequer um rosto grego naquele dia — exceto o rosto de sua esposa, que era carregada, bem alto, às suas costas — ali estava Berenice e esse era o seu dia de glória, como nenhum outro que jamais tivera.

Diante de Ptolomeu passava o sacerdote egípcio chamado Cantor, que conduzia os livros de Thot, o qual continha os hinos dos deuses, e todos os mandamentos relacionados à vida de um Faraó.

Atrás do Cantor passava o Horóscopos, o Sacerdote do Horóscopo, que conduzia a ampulheta e o ramo de palmeira, símbolos da astronomia, pois era o homem que tinha intimidade com os livros de astronomia de Thot, com estrelas e eclipses, e dava a última palavra sobre o nascer do Sol e da Lua.

Atrás do Horóscopos seguia o Hierogramateus, ou Escriba Sagrado, que usava penas na cabeça e carregava nas mãos materiais para escrever, pois esse era o homem cujo dever consistia em entender e explicar os hieróglifos, a escrita sagrada dos egípcios.

Atrás do Hierogramateus vinha o Stolistes, o sacerdote cujos deveres eram concernentes a sacrifícios e orações, procissões e dias santos. E depois havia uma grande procissão de sacerdotes, todos completamente calvos e vestidos de branco, calçando sandálias brancas, cujos títulos e funções foram ensinados a Ptolomeu, e que entretanto continuavam para ele absolutamente estranhos, mesmo depois de 18 anos de sua vida no Egito, e eram eles:

Os guardiões dos Portões do Grande Mar

Os Galactoforos, ou Carregadores de Leite

O Profeta da Serpente Ouraios

A Boca de Deus

O Homem de Anúbis

O Superior dos Divinos Vestuários

O Carregador de Crocodilos

O Chefe dos Cervejeiros de Min de Koptos

O Carregador de Cestas

O Tratador dos íbis

O Escriba do Selo Divino

O Escriba dos Memorandos

O Mestre da Necrópole

O Servo da Coroa Branca

O Servo da Coroa Vermelha

O Sacerdote das Crianças Mortas do Ápis

A Aia de Bastet, o Gato

O Guardião-em-Chefe do Falcão Sagrado

O Mestre dos Macacos

As Orelhas do Rei do Baixo Egito

Os Olhos do Rei do Alto Egito

O Mestre dos Segredos de Isis

Os Pastores das Vacas de Min de Koptos O Guardião das Concubinas Reais

O Guardião dos Cães Sagrados

O Sacerdote do Rio

O Profeta da Deusa Maat

O Guardião do Tesouro de Hórus de Behdet

O Servo da Deusa de Ouro

O Chefe de Rebanhos

O Controlador das Terras Reais

O Mestre das Serpentes Divinas...

Em verdade, se Thot fosse listar os títulos de todos esses sacerdotes, a relação encheria por completo todo o livro.

A frente de Ptolomeu caminhava o próprio Anemhor, o sumo sacerdote de Ptah, o Diretor de Todos os Trabalhos, que presidia todas as coisas sagradas e a grande cerimônia da coroação do Faraó, e, enquanto caminhava, queimava incenso adiante de Ptolomeu, para que a fumaça alcançasse as suas narinas, purificando também o seu coração e os pulmões.

Se ainda restasse a Ptolomeu pelo menos um pêlo na nuca, teria ficado eriçado, agora. Na situação em que estava, percebia o formigamento na pele, e que suas partes íntimas coçavam por conta da raspagem à navalha de bronze, mas sabia que não deveria se coçar. Mordeu o lábio para prender um espirro, que era o efeito do incenso no seu nariz; no entanto, se deu por vencido e espirrou três vezes, e para um grego isso significa boa sorte, as graças de Tykhe e a aprovação de Zeus.

Vinte e dois sacerdotes então carregaram à frente a grande imagem em ouro de Amun-Rá, o grande deus, sobre sua liteira de ouro, e atrás de Amun-Rá caminhavam mais milhares de sacerdotes com suas túnicas brancas e as cabeças raspadas reluzindo à luz solar.

À frente de Amun-Rá seguia o touro sagrado que era o protetor do Faraó em sua coroação, o próprio Ápis, levado por uma corrente, usando a sua coroa, o disco dourado brilhante do Sol, e protegido do sol por um dossel púrpura e dourado. Vez por outra, o Ápis entoava seu mugido, e sua voz ecoava através de Mênfis, e a multidão aplaudia, pois ele era a imagem viva de Ptah, da mesma forma que Ptolomeu, o Faraó, era a imagem viva de Hórus, o Falcão de Ouro.

É certo que Ptolomeu tinha visto alguma coisa dessa marcha da coroação anteriormente, em honra a Alexandre; porém não prestara muita atenção nos bárbaros, encontrando-se muito mais ansioso para aplacar a sua enorme sede. Agora, entretanto, tudo era diferente, e ele não mais se achava entre os bárbaros. O incenso elevava-se no ar, em nuvens de fumaça, e Ptolomeu via, sem enxergar, a multidão, e ouvia, sem escutar, o clamor do seu nome sendo gritado; o deus estava com ele, uma presença quase palpável, e, a despeito do calor, um calafrio percorria de cima a baixo sua espinha.

Quando Ptolomeu penetrou no Primeiro Pilono do Templo de Ptah, os sumos sacerdotes do Egito estavam com ele, e ninguém mais, pois a parte secreta da cerimônia desenrolava-se antes, e, enquanto caminhavam na sua direção, ele viu bandos de pássaros brancos voarem para o alto, liberados para os quatro cantos da Terra para proclamá-lo Faraó.

Três sacerdotes postavam-se de pé diante dele, usando as máscaras dos deuses: Anúbis, o deus-cão de focinho negro, Faraó do Mundo dos Mortos; o deus criador Aton, de face humana, a primeira e última fonte do poder faraônico, usando a Dupla Coroa do Egito e a barba falsa pregueada; Hórus, o deus-falcão, com bico curvo e sua coroa de penas altas, com seus olhos pretos fixos. Esses três conduziram Ptolomeu pelas mãos, sem lhe dirigir uma palavra sequer, até o Pylon, o Pátio Principal do Templo, e ali, naquele salão guarnecido de pilares, realizaram o primeiro ritual de entronização.

Ptolomeu entrou na piscina rasa e os deuses despejaram sobre ele, com ânforas de ouro, a água sagrada que carrega a vida divina, de modo que esse corpo, agora, transformava-se e era digno de se apresentar diante dos deuses.

As figuras mascaradas o conduziram a seguir ao Salão do Júbilo, onde havia fileiras de colunas gigantescas esculpidas como hastes de papiros, e foi lá que pôde contemplar o rosto de Nekhbet, a deusa-abutre, e Wadjet, a deusa-cobra, e também o rosto de Neith, Senhora do Arco e das Flechas, e Isis, a Senhora de Muitos Nomes, assim como as faces de Thot, o íbis, Três Vezes Grande — já que esses eram os principais deuses do Egito.

Eles pousaram suas mãos sobre Ptolomeu, assentindo com um gesto de suas cabeças, e lhe entregaram a imagem do Ankh, que é o símbolo da vida, e ele a tomou em suas mãos, e suas mãos tremiam.

Em palavras que ele não pôde compreender, prometeram-lhe que o seu reino deveria ser longo e glorioso, e que ele deveria desfrutar de tranqüilidade e de algumas vitórias sobre seus inimigos.

Isso porque para Ptolomeu, a partir de então, já não haveria Infortúnio.

Quando ele penetrou na Capela Sul, Wadjet, a deusa-serpente, abraçou Ptolomeu com seu capuz de cobra intumescido, e ele foi reconhecido como herdeiro do trono do Egito. Logo a seguir, Anemhor veio em sua direção, devagar, ereto, e esse idoso sacerdote ergueu uma por uma as seis coroas e as colocou sobre a cabeça deste que era O Escolhido de Amun, habilitando-o assim a carregar sobre os ombros suas tarefas e seus poderes, o fardo do Faraó.

Primeiro, a Dupla Coroa de Nekhbet e Wadjet, o abutre e a cobra, que era metade vermelha, metade branca, e a Coroa das Duas Terras, cujo nome era Pasekhemty, As Duas Coroas Poderosas, que os gregos chamavam de Pschent, e que eram compostas da Coroa do Sul, também chamada de Senhora dos Terrores, e da Coroa do Norte, a Senhora dos Encantamentos, e as duas coroas envergadas juntas formavam a Dupla Coroa que era chamada de Senhora do Poder, ou Senhora da Chama. A coroa foi colocada sobre a cabeça de Ptolomeu, o grego, o usurpador, e lhe deu a sensação de ser ao mesmo tempo pesada e leve. Quando o grande Osíris envergou essa coroa, ela gerou tanto calor que Osíris desfaleceu. Agora, chegada a sua vez, Ptolomeu sentiu o calor, e suas pernas falharam, enfraquecidas, e ele sentiu o poder da cobra que o protegeria para sempre — a cobra, cujos olhos sem pálpebras jamais se fechavam.

Anemhor colocou também na cabeça deste rei a Faixa de Seshed, e a Coroa Atef, de Rá, ornamentada de penas, e o Diadema das Duas Plumas. Ao final de tudo veio a Coroa Khepresh, a Coroa Azul da Guerra, feita de couro, aquela que Ptolomeu usaria com mais freqüência, seu elmo de guerra.

A seguir, a Ka, a Dupla Coroa Real, desceu sobre esse rei, envolta numa névoa de luz proveniente de Rá, o Deus-Sol, seu pai, e Ka tomou a forma de um falcão vivo.

Então, Anemhor ungiu Ptolomeu com óleos perfurmados, de modo que ele deixou esse recinto sagrado com um suor grudento sobre seu corpo, e a Coroa Azul da Guerra estava em sua cabeça, e a cauda do touro balançava do cinto às suas costas, e em seu punho esquerdo estava atado o bracelete de couro dos arqueiros, com as palavras, em hieróglifos: Possa Toda a Proteção desta Vida Estar com Ele. Na bainha de ouro de sua adaga estava inscrito: O Bom Deus, Possuidor de Braço Forte, PTOLOMAIOS, Aquele que Recebeu a Vida. E, em seu cinturão estava inscrito em hieróglifos: O Bom Deus PTOLOMAIOS, Aquele a quem Foi Dada a Vida Eterna, como BA.

Em seus pés, foram colocadas as sandálias do Faraó, e com elas calçadas ela atravessou a entrada do Terceiro Pylon, até o altar cortado de um sólido bloco de granito rosado de Siene, e ele se ajoelhou ali, de costas para o Deus Amun, e sentiu a mão do deus tocando sua nuca enquanto o deus confirmava sobre a sua cabeça a Kepresh, que lhe concedia o domínio de todo o circuito do sol.

Calafrios desceram por sua espinha dorsal e ele sentiu a majestade desse deus, Amun, o Vento Oculto, e o deus se fez real para ele.

A seguir, deram a Ptolomeu os cinco grandes nomes que os Escribas da Casa da Vida de Mênfis haviam escolhido para o Faraó, e esses nomes eram os seguintes: primeiro, seu Nome de Hórus, que o descrevia como um novo rei, e seu Nome de Hórus era Grande Em Seu Poder; o segundo era seu nome das Duas Senhoras, que expressava sua dupla natureza com a imagem do Abutre e da Cobra, Nekhbet e Wadjet, as deusas guardiãs do Egito, e seu nome das Duas Senhoras era Poderoso Conquistador, Virtuoso Soberano; o terceiro era seu nome de Hórus de Ouro, que era o princípio de uma vida boa e eterna, prevalecendo sobre todo o mal, e seu nome de Hórus de Ouro era Forte Soberano Sobre Toda a Terra; quarto, o seu nome do Trono, porque era ele a encarnação terrena da vitalidade e da energia dinâmica do Deus, e seu Nome do Trono era Setepenrameriamen — Bem-Amado de Rá, Escolhido de Amun, Rei do Alto e do Baixo Egito; quinto, seu nome Solar, seu nome de nascimento, que era, obviamente, Ptolomaios, precedido do augusto título de Filho do Sol — seu próprio nome, então, que ele escutava ao longe entoado pelo povo no lado de fora, já que ele estava bem no coração do Templo de Ptah.

Ptolomeu agarrou os dois cetros do grande deus Osíris, o heqat, ou báculo, de Rei do Sul, e o nekakha, ou mangual, de Rei do Norte, que eram feitos de alternadas faixas de ouro e safiras, e ambas as suas mãos tremiam quando os segurou.

Ptolomeu encaminhou-se, então, de volta para a ala central do Templo. Penetrou no Santuário da Barcaça do Sol. Passou pelo Salão das Oferendas. Entrou no mais sagrado dos sagrados de Ptah de Mênfis, Ptah da Bela Face. Pela primeira vez, executaria os sagrados ofícios, como o Sacerdote de Todos os Sacerdotes — de quem mesmo os sumos sacerdotes do Egito eram meros representantes — e isso ele precisava fazer sozinho, seguindo as ordens estritas de Anemhor.

Em primeiro lugar, acendeu a tocha e partiu o selo de argila sobre o altar. Fez deslizar para trás as pesadas trancas e lá ficou, imóvel, com seus globos oculares fixos nos globos oculares do reluzente deus de ouro, cuja estátua era incrustada de pedrarias da cabeça aos pés e cujo barrete justo era de vidro azul. Passou um longo tempo contemplando aqueles olhos negros e brilhantes, pensando em tudo e em nada, e a seguir se prostou diante do deus, em assombro e medo, e beijou a terra, e as lágrimas escorreram de seus olhos; e eram lágrimas de orgulho e de alívio. Mergulhou, então, seu dedo mínimo direito no ungüento e ungiu a Bela Face de Ptah com a matéria grudenta. A seguir, depositou os pratos com comida diante da estátua do deus. Selou as duplas portas do altar com argila. Deixou o altar caminhando de costas, varrendo suas pegadas com uma vassoura, para que a santidade dos domínios de Ptah se mantivesse inviolada, apagou a tocha e deixou o deus na escuridão.

Ptolomeu, e até mesmo este general Ptolomeu, que fora um Grande Chacinador, ficou trêmulo, nesse instante, do mesmo modo como tremia na primeira vez em que matou um homem.

A parte secreta da cerimônia de coroação estava concluída, e agora Ptolomeu poderia se mostrar ao seu povo. Os sacerdotes mascarados — o Cara de Cão, o Cara de íbis, o Cara de Falcão — executaram de novo, e dessa vez à luz do dia, a mesma cerimônia, toda ela, inteira.

E assim prosseguiu, hora após hora da cerimônia, até que Ptolomeu enfim deixou o templo pelo Grande Pilono, e apresentou-se na carruagem de ouro e eletro exclusiva do Faraó, e conduziu-a descendo de volta a via das procissões, onde comida e bebida vinham sendo distribuídas ao povo desde antes do alvorecer, e onde entoavam seus cânticos de louvação ao rei que restituiria ao Egito os seus dias de prosperidade. Ele fez tudo o que deveria ser feito, até mesmo a anistia de praxe concedida aos prisioneiros de todas as prisões. Mênfis não conhecia tanta alegria desde antes da chegada dos persas.

Quando esse Faraó apeou de sua carruagem e entrou na Residência, não era capaz de pronunciar uma só palavra. A despeito das instruções de Anemhor, pouco compreendera do significado dos intermináveis rituais. Desconhecia o que havia acabado de fazer. Tudo o que sabia era que os deuses do Egito pareciam ser deuses de grande poder, que puseram seu coração em rebuliço dentro do peito.

Ele era Ptolomeu, Aquele que Vive Para Sempre. Renascera, e quase chegava a acreditar nisso; mas, naquele exato instante, estava com muita fome. Depois do Banquete de Coroação, durante o qual não cessou, mesmo enquanto comia, de sorrir aquele misterioso sorriso tão sereno do Faraó, não conseguiu dormir. Era um Deus Vivente. Era o Filho do Sol. Era Hórus, o Falcão, feito em carne e osso. A luz dos céus habitava nele. Seus súditos o cultuariam e seus inimigos o temeriam. Ele era o que tudo sabia. Ele era a perfeição. Nada do que fizesse seria errado, nem então, nem nunca. Era tanto um deus quanto um ser mortal, tanto humano quanto divino, e quase sentia medo de ter feito o que fizera: sentia medo da hybris, medo de ter ofendido os deuses da Grécia, e medo do que aconteceria no futuro.

Ao mesmo tempo, regojizara-se por cada momento de sobressalto. Ptolomeu seria um bom Faraó, assim acreditava Anemhor — e Anemhor estava certo.

Do lado de fora da residência, o povo cantava:

Os tempos felizes começaram...

Um Senhor surgiu nas Duas Terras...

A Cheia será farta...

Os dias serão compridos...

O reino do bom Ptlumis é absoluto e inconstestável,

De acordo com os livros dos rituais...

Os egípcios entoariam essas canções em honra de quem quer que fosse entronizado Faraó, e fosse ele egípcio ou estrangeiro, pois esse era o costume. As crônicas dos profanos viam os acontecimentos sob uma ótica diferente. O Faraó era sufocado por ardis. Nenhum Faraó estava livre de intrigas, de complôs, de conspirações, de homens com facas à noite. Mas, por ora, parecia tanto a Ptolomeu quanto ao sumo sacerdote que o povo de Mênfis e todo o Egito continuava dançando e cantando até as horas mortas da madrugada.

No Alto e no Baixo Nilo, foram erguidas estátuas desse Ptolomeu, como Faraó, envergando a touca, nemes, e com a falsa barba plissada do faraó. A cobra e o abutre, seus protetores, postavam-se em sua testa. O corpo desse rei foi modelado com ombros largos, braços e peito musculoso, para expressar sua força sobre-humana. Em verdade, entretanto, Ptolomeu não possuía mais músculos do que qualquer homem comum, já que não praticava nenhum exercício físico no Egito. Na pedra, no entanto, foi imobilizado em eterna juventude, sorridente, com aquele mesmo tênue sorriso de todos os Faraós que o haviam precedido.

Nessas estátuas, Ptolomeu era mostrado com seu pé direito avançado. Parecia orgulhoso. Parecia um tanto satisfeito. Mas a verdade era que agora passaria os seus dias inteiros em sua cadeira de ouro, escutando petições. O trono em que se sentava tinha o formato de um cubo, com um descanso para o recosto das costas que atingia a altura de seus ombros, e acima do descanso estava Hórus, o deus falcão, guardando a cabeça de Ptolomeu com suas asas. Os pés do trono eram patas de leão. Os braços eram Nekhbet, o abutre, e Wadjet, a cobra, deusa com asas estendidas para a sua proteção, e o trono era duro de se sentar, nada macio, como a cadeira que ele ocupava como sátrapa.

Por alguns meses, Ptolomeu deliciou-se vestindo os trajes do Faraó, e praticamente esqueceu que existiam kblamys, khiton, himation, kausia, petasos, krepides, todos os seus trajes gregos — manto, túnica, manto pesado, elmo de sol de feltro, chapéu de viagem e botas de cadarços de soldado —, os quais despira no dia de sua coroação. Ao vê-lo, esse rei tinha toda a aparência do Faraó que de fato era. Ele caminhava como o Faraó. Sorria como o Faraó. Até mesmo ordenava que lhe servissem comida de Faraó, em vez de azeitonas gregas, queijo grego e pão grego, que foram o seu alimento até então. Havia dias em que ele não comia nada a não ser favas egípcias, tâmaras egípcias, tortas de pombos, bananas e leite de camela; e nem pensar em comer peixes, os quais, como um sacerdote do Egito, não deveria comer, e afirmava que nada deveria fazer que o distinguisse de seus súditos: De modo que eu até mesmo comece a pensar como um egípcio, dizia.

Nem todo mundo estava convencido da mudança dos hábitos de vida desse homem. Anemhor sabia que esse grego não seria capaz de deixar de comer peixe por muito tempo. Anemhor, amigo de Ptolomeu, às vezes refletia no mais profundo e secreto de seu íntimo: Uma vez grego, sempre grego... E a verdade era que, a despeito de seu sorriso, por trás de sua impenetrável reserva, esse sumo sacerdote ainda mantinha muito de sua desconfiança em relação a estrangeiros.

Havia vezes, momentos, em que Anemhor tinha de repetir para si mesmo que ele conhecia o futuro e que Ptolomeu e sua Casa, Ptolomeu e os gregos, afinal de contas, não durariam para sempre.

 

             A Grande Esposa Real

Foi Berenice, é claro, tia Berenice, e não Eurídice a quem coroaram Rainha em Mênfis, com a Coroa da Rainha de penas de avestruz e os dois grandes chifres de Hathor, a deusa-vaca, a Dourada, Senhora da Turquesa, e com o grande disco de prata da Lua. Não foi Eurídice, mas Berenice que recebeu os muitos títulos de Herdeira, Grande em Seu Palácio, Bela de Rosto, Adornada com as Duplas Plumas, Dotada de Favores, Senhora da Felicidade, a Grande Esposa Real, Senhora das Duas Terras, Aquela cuja Voz Deleita o Rei, sua Bem-Amada. Foi Berenice, cujo nome grego ficou sendo, em egípcio, Barenicat, e foi aclamando Berenice que gritaram nas ruas: que ela viva para todo o sempre! Da outra esposa de Ptolomeu, nada disseram e por ela não aclamaram. Nem sequer uma sílaba lhe dedicaram, já que Eurídice não era a Senhora da Felicidade, mas sim a Senhora da Infelicidade.

Berenice mudou da noite para o dia. Assumiu todos os paramentos de uma rainha como se assim tivesse nascido. Já há muito tinha escravos e aias. Tinha total liberdade nas grandes residências: os enormes labirintos inextrincáveis dos salões de audiências, pátios, colunatas, pavilhões, alas das crianças, cozinhas, despensas, aposentos privados, terraços e jardins com vista para o rio e a cidade de Mênfis, ou, em Alexandria, para a Grande Baía e o Grande Mar, mais além. Tudo era domínio de Berenice, já que ela supervisionava tudo, do preparo da ceia do Faraó aos servos que varriam os assoalhos e os cavalariços. Berenice recusava-se a ficar no ócio. Controlava a criadagem de ambas as residências, e fazia isso muito bem.

A despeito da mudança advinda de ter se tornado rainha, continuava também a velha Berenice de sempre. Continuava removendo a pele áspera de seu rosto com o velho remédio grego, óleo de rabanetes. Ainda fazia uso do tratamento para a pele que era a mistura de pernas de gafanhotos, formigas maceradas, urina de ratos e sangue de abutre, tudo isso amassado com sebo de cabra. Ela não abriu mão de seus hábitos cotidianos característicos de uma aristocrática grega, mas seu rosto exibia um novo brilho, que era, por sua vez, o reflexo de seu marido, o Filho do Sol, e cuidava de suas tarefas ostentando todas as jóias de uma rainha do Egito cujo peso pudesse suportar: ouro, cornalinas, calcedônias, esmeraldas, safiras, e todas as demais pedras de grande valor.

Berenice vestia os brancos trajes de bainha apertada, os quase transparentes vestidos das rainhas dos egípcios, e a coroa vermelha de deusa. Sobre sua cabeça, usava agora a Tiara do Abutre que nenhuma outra mulher no Egito poderia ostentar, com a cabeça e o bico do abutre pairando sobre a sua testa, as asas do abutre envolvendo suas orelhas, e a cauda do abutre balançando sobre sua nuca. Os lobos das orelhas de Berenice se alongaram por conta do grande peso dos brincos de ouro que insistia em usar. Vez por outra, tinha a oportunidade de exibir também a alta coroa de penas de rainha, e sua liteira era carregada pelas ruas de Mênfis sobre os ombros de homens fortes até o Templo de Ptah, onde ela agitaria seu sistro de ouro, o chocalho de Isis, a Senhora de Muitos Nomes; e o propósito de agitar esse chocalho era afastar a ira de Hathor, a deusa-vaca. E isso era de extrema importância para o Egito e, além do mais, enorme prazer para Berenice.

Sim, ela aprendeu os ritmos que imitavam as cobras, a hipnótica música das mulheres do templo que forçaria o olhar de Rá, o deus-sol, a se dirigir para o seu marido, o rei Ptolomeu, Aquele que Vive por Toda a Eternidade, Bem-Amado de Amun, Filho do Sol.

Pessoalmente, não nutria temor em relação ao Sol; nunca se resignara a viver na penumbra do gynaikeion, mas sempre fizera passeios, sendo carregada pela cidade, vendo o que precisava ser feito e o que não deveria ser feito, e levava suas opiniões a Ptolomeu, que por sua vez não ignorava o que ela lhe dizia, e prestava bastante atenção. De fato, Ptolomeu fazia quase tudo o que Berenice lhe pedia. Ora, Ptolomeu chegara mesmo a concordar com a exigência de Berenice no sentido de instalar, sob sua gestão, uma manufatura de perfumes, o que serviria ao útil propósito de aumentar a renda real. A fábrica de perfumes era muito refinada, e proporcionava a Berenice a justificativa perfeita para experimentar seus pós e óleos. Era também uma cobertura perfeita para que essa rainha fizesse experiências com todos os tipos de venenos. Venenos eram a sua especialidade. E Berenice, então, vivia ocupada, bastante ocupada.

Eurídice foi a esposa rejeitada, que permaneceu confinada no gynaikeion; por dias e dias, apenas sentada, sentada o tempo todo, levando aquela vida de tartaruga, sem nada para fazer. Havia dias em que Eurídice choraria lágrimas de desesperança que apenas uma esposa abandonada pode chorar. Havia dias em que realizaria o feitiço do despeito, destinado a privar sua rival de tudo o que ela conquistara, e sua magia era a mais rancorosa das que aprendera com a própria Berenice.

Nessa época, Eurídice guardava o mais melancólico silêncio, típico de uma mulher possuída por Dionísio, aquele olhar fixo de uma quase enlouquecida mênade. Havia vezes em que o olhar dela tornava-se selvagem, como se o horror da perda ou da desesperada situação em que se encontrava a estivesse impelindo para a loucura. Adotou então o hábito de enrolar as cobras domésticas de Alexandria, Agathos Daimon, que supostamente trariam boa sorte, nos seus cabelos emaranhados, e levava as cobras consigo para a cama, para ter sorte, para confortarem-na, e deixava que passeassem por sua pele morna e lambessem seus ouvidos. Permitia que as suas línguas agitadas tocassem até mesmo a sua própria língua, como continuava de algum modo desejando que Ptolomeu tocasse sua língua. Mas as serpentes lhe trouxeram pouca sorte. Pois a verdade é que Eurídice descuidava de sua aparência, raramente se lavava e parara de comer refeições regulares. Havia boas razões para que Ptolomeu raramente colocasse os pés, calçados em suas sandálias de ouro, nos aposentos de Eurídice.

Visto que, antes, fora Berenice que parecia desfigurada, magra demais, doentia, envelhecida demais para a sua idade, agora era a vez de Eurídice, e era como se as duas tivessem trocado de lugar: enquanto uma desabrochava, a outra decaía, e isso era algo que traria as mais profundas conseqüências sobre o Egito.

A todo lugar que ia, Ptolomeu levava consigo o dossel de madeira de acácia folheado a ouro, que poderia ser assentado ou retirado à vontade, sendo que o propósito disso era proteger o rei e a rainha, durante as cerimônias ao ar livre, do causticante sol do Egito. Agora, quando Ptolomeu viajava rio acima, era Berenice que o acompanhava e Eurídice era deixada para trás.

Uma vez ao ano, Ptolomeu e Berenice assumiriam os papéis de Zeus, Deus do Trovão e do Céu Brilhante, e Hera, sua irmã e esposa, e encenariam o drama grego chamado A Teogamia, o Casamento dos Deuses. O casamento de Zeus e sua esposa era famoso por suas brigas e turbulências, e no entanto, pelo que se acreditava, o casamento de Ptolomeu e Berenice era perfeito, tanto quanto a imaginação poderia conceber, e abençoado pela fortuna.

Ptolomeu jamais havia encenado Zeus e Hera com Eurídice: seu casamento com ela parecia agora bem longe da perfeição, e seus filhos com ela, igualmente, estavam longe de parecerem perfeitos, já que nunca paravam de brigar. De fato, Eurídice nunca havia se parecido muito a uma deusa para Ptolomeu, e sua esposa inferior estava sempre ausente da encenação da peça.

Mas o que seria de Eurídice? Isso a preocupava. Será que Ptolomeu a expulsaria da residência? Ela seria mandada embora? Como poderia impedir que isso acontecesse? Não sabia. Não sabia e roía as unhas de seus dedos até a raiz, de tanta preocupação a esse respeito.

Já Berenice, em verdade, não sentia raiva de sua sobrinha. De modo algum: Berenice tinha muitos motivos para ser grata a Eurídice. Berenice não tinha por que ter receio algum, porque já havia posto em prática o encantamento para neutralizar toda magia que lhe fosse hostil e estava imune a ataques. Berenice estava segura, nos braços do Faraó, nada poderia preocupá-la. No começo, só de fato, essas duas esposas conviveram pacificamente, mas era impossível que, em longo prazo, não entrassem em alguns conflitos. O tempo foi passando e elas começaram a brigar, inicialmente, por meio de palavras. Mais tempo transcorreu e Eurídice primeiro desferiu unhadas, depois, vez por outra, socos, e tudo porque o Faraó não tinha o bom senso de ter apenas uma esposa, mas sim duas, despejando todos os privilégios da monarquia em apenas uma delas e negando todos à outra.

Anemhor expressou suas preocupações quanto às tensas relações entre a tia e sua sobrinha, mas intimamente acreditava que era uma família com defeitos irreparáveis, muito dividida entre si. A família de Ptolomeu seria para sempre como a tripulação de remadores de uma galera. Para movê-la à frente, os remadores precisavam impulsionar todos ao mesmo tempo. Caso contrário, o navio rodopia em círculos e não avança. E a família de Ptolomeu não se movia com todos ao mesmo tempo: era um navio que inevitavelmente encalharia. De fato, já estava fazendo água, e condenado a naufragar.

Anemhor sabia de tudo isso. O naufrágio não aconteceria logo, mas não demoraria. Os mares à frente estavam turbulentos.

 

                   Pintas de Leopardo

Tanto em Alexandria como em Mênfis, o alvorecer era acompanhado do latido dos cães do palácio, o clamor das pombas e das galinhas, o matraquear dos macacos de Thot, em sua adoração a Rá. Mas, se Ptolomeu pensava que escaparia de Anemhor por viver em Alexandria, estava enganado, porque, na maioria das manhãs, onde quer que estivesse Ptolomeu, lá estaria também Anemhor, usando seu manto de pele de leopardo, como de hábito, em alguma missão de grande gravidade para o bem do Egito, ou transbordando de advertências sobre mais alguma coisa que Ptolomeu não estaria fazendo direito. Certamente, havia por um lado o prazer e o regozijo de ser o Faraó; mas, por outro, havia um lado escuro, o perigo de ser um rei e um homem de poder, o que significaria que haveria sempre aqueles que, por ele, só nutririam ressentimentos.

Certa vez, Anemhor apresentou-se e disse: Os fluidos corporais de um deus contêm toda a essência divina e o poder da criação.

Ptolomeu encarou-o, pensando: O que foi agora? O que vem por aí?

Quando ele cospe, prosseguiu Anemhor, quando urina, quando assoa seu nariz ou mesmo quando derrama lágrimas...

Ptolomeu franziu o cenho.

Os fluidos de um faraó precisam ser preservados para sempre, disse Anemhor, ou descartados com todo o zelo.

Ptolomeu ficou olhando para ele, intrigado.

No passado, disse Anemhor, houve faraós contra os quais se praticou encantamentos por meio de lascas de suas unhas dos pés, de fios de seus cabelos...

Ptolomeu coçou a cabeça que todos os dias era raspada bem rente, para que pudesse usar a Coroa Azul da Guerra.

Na história do Nome Secreto de Rá, disse Anemhor, a saliva do sol foi usada para envenená-lo...

Ptolomeu acomodou-se melhor em seu trono de ébano e marfim, perguntando-se se os dejetos de todos os Faraós seriam estocados em Mênfis, rotulados e arrumados sobre prateleiras numa ordem cronológica... Sem dúvida, Mênfis cheirava como se assim fosse... Dez milênios de excrementos de Faraós, guardados para a posteridade, para todo o sempre...

Se Ptolomeu não fosse o próprio Faraó, explodiria em gargalhadas com tal pensamento. Mas, agora, ele se perguntava... Deveria ignorar o sumo sacerdote e essa absurda exigência, e seus dejetos que fossem atirados, junto com os dejetos de todos os demais, no rio, que era a fonte de água de que bebiam todos os egípcios?

Mas não fez aquela pergunta. Aí estava um segredo cuja resposta não fazia questão de conhecer. Anemhor, já que era um artesão de maravilhas, que tomasse conta dos dejetos reais, se assim quisesse, até o dia em que se mostrariam, quem sabe, úteis...

Sim, Anemhor sabia que os excrementos de um inimigo eram um grande trunfo, a matéria-prima essencial para lançar feitiços contra um homem, e era necessário que se acautelassem quanto à possibilidade de serem utilizados contra esse Faraó.

Quando Anemhor se curvou e beijou a terra, e a pele de leopardo que ele costumava trajar saiu de sua posição, Ptolomeu se conteve para não rir diante de um assunto de tamanha seriedade. Mas Anemhor pensava apenas nas palavras sábias que diziam que os gregos, comparados aos egípcios, eram crianças: os gregos não sabiam de nada; os gregos nada entendiam. Anemhor sorriu, seu habitual meio sorriso, mas raramente se dava ao luxo de uma risada aberta. Um sacerdote do Egito não deveria rir com freqüência. O serviço dos deuses era austero demais para permitir risadas, e ele cruzou os braços, sob a pele de leopardo, e começou a tratar de seus outros assuntos, pensando e repensando.

Anemhor sempre voltava, e ainda antes de se completar um mês da coroação levou a Ptolomeu suas mais novas exigências.

A tradição, ele disse, ela nos diz que o Faraó deve presentear seus cortesãos egípcios com gansos, pombos, cisnes, patos, galinhas gordas. Vossa Majestade irá seguir esse costume?

Ptolomeu calculou as despesas. Em tudo, estava disposto a seguir a tradição, pois proceder de outro modo seria um convite à desordem, ao caos, ao desastre.

É o mais sábio a ser feito, Anemhor acrescentou.

E assim, é claro, Ptolomeu nem sequer opôs resistência e ordenou a distribuição de aves. Ordenou também que todas as sobras das mesas da residência fossem enviadas aos cortesãos, ou aos sacerdotes de Ka, para que fossem depositadas sobre a mesa de oferendas aos mortos.

Pensou então nas palavras de Periander, de Corinto: Preserve as leis antigas, mas o peixe fresco. Mudança, só para mudar, não eram boas. Tudo precisava continuar a ser feito como sempre fora no Egito. E ele de novo pensou em peixes, que já não deveria comer. O desejo tomou conta dele e, assim que Anemhor partiu de volta para Mênfis, Ptolomeu ordenou que fossem à agora e lhe trouxessem peixe, e ele se empanturrou de salmonetes, e sua abstenção em relação a peixes havia durado trinta dias. Mas Anemhor, ele pensou, nunca precisaria saber disso.

No segundo mês, Anemhor apresentou-se de novo, e com mais exigências, dizendo: O Faraó Ramsés ofertava sessenta gansos a todos os templos do Egito, e isso durante todos os dias de seu reinado...

Ptolomeu o encarou sem dizer nada.

Ramsés dava 1.820 gansos aos templos, todos os meses, disse Anemhor.

Ptolomeu só pensava no quanto isso lhe custaria.

Ramsés dava 21.935 gansos todos os anos, disse Anemhor.

Ptolomeu soergueu a pele onde antes havia suas sobrancelhas. São gansos demais, ele replicou.

De fato, são muitos gansos, disse o sumo sacerdote. Um total de 680.000 gansos para as divinas oferendas.

Os cantos da boca de Ptolomeu arriaram.

Todos os Faraós antes dele e desde então, disse Anemhor, fizeram o mesmo.

E mais uma vez Ptolomeu chegou à conclusão de que não haveria paz se ele não fizesse o mesmo, de maneira que sessenta gansos passaram a ser enviados aos templos, todos os dias, e assim seria por tantos anos quanto ele continuasse a reinar. E os criadores de gansos separavam mais ovos de ganso para chocar, criavam e engordavam mais gansos, e barcaças cheias de gansos navegavam rio acima e abaixo, com seus carregamentos de 1.827 gansos, todos os meses, como sempre havia acontecido; como vinham fazendo desde o tempo de Nakhthoreb.

Assim aconteceu que a Casa de Ptolomeu manteria as entregas de gansos por dez gerações.

Em Mênfis, o Horóscopus previu que o número de gansos a serem ofertados por Ptolomeu e seus descendentes seria de seis milhões, quatrocentos e noventa e cinco gansos, exatamente. Mas não contou a ninguém esse número, achando que ninguém acharia isso possível. Trezentos anos de Ptolomeus seria mais do que se poderia suportar. E o próprio Horóscopus duvidava que a sua previsão estivesse correta.

Em todos esses primeiros meses, a pergunta mais constante nos lábios de Ptolomeu era: Como ser um Faraó? Com freqüência, Anemhor mal havia retornado a Mênfis e Ptolomeu lhe enviaria alguma pergunta que significava que o sumo sacerdote deveria tomar a barcaça para o norte imediatamente. Mas Anemhor contribuía com sua sabedoria de boa vontade porque estava interessado em ajudar Ptolomeu de toda maneira que pudesse, já que um Faraó estável significava um Egito estável.

Cuidado com os súditos que não são ninguém, Anemhor o aconselhou, homens capazes de conspirar contra você, por suas costas.

Numa outra ocasião, ele disse: Não confie em um irmão, nem mesmo em Menelau, filho de Lagos.

Ptolomeu assentiu com a cabeça, já sabendo o que ele queria dizer. O inútil Menelau não receberia de volta seu comando.

Numa terceira oportunidade, Anemhor disse: Não tenha amigos. Não fique íntimo de ninguém; é algo sem valor.

Ptolomeu sabia que um rei não pode ter amigos. Via seus conselheiros, seus ministros, os seus escravos e os membros de sua família, mas estava aprendendo a não confiar em absolutamente ninguém. Aprendeu a estar sempre vigilante quanto a veneno, tendo seu próprio Provador de Alimentos, seu Progeustes, assim como ele fora o provador de Alexandre.

Mesmo a Grande Esposa Real não lhe merecia total confiança. Mesmo Berenice não deveria compartilhar de seus pensamentos mais secretos, porque de fato não era costume de um grego conversar muito com sua esposa, apesar de toda a utilidade que Berenice tinha com seu hábito de expressar livremente cada nova idéia que lhe ocorria. Assim, ele não lhe contava seus pensamentos. Quanto a Eurídice, raramente falava com ela.

Às vezes lhe passava de novo pela mente: Não se esforce para ser um deus... As coisas dos mortais adequam-se melhor à mortalidade, mas já havia ignorado tal advertência. Era tarde demais para voltar atrás. O que quer que fizesse agora, as Parcas fariam dele o que bem entendessem. E assim, encontrava alívio ao dizer para si mesmo; Um deus não necessita de amigos... Um deus basta a si mesmo...

Ele concentrava seus pensamentos em ser um bom rei. Fora escolhido, ungido pelos deuses para prosseguir com o trabalho deles, na Terra. Era O-que-Tudo-Sabe. Ele, a fonte de toda a vida. Controlava todas as coisas. Era o Filho do Sol.

Acreditava e não acreditava nisso, e quando despertava, à noite, suando por causa do calor, ou com seu ataque de calafrios, era porque sentia medo pelo que havia feito e não entendia coisa alguma do que fizera — não, absolutamente nada — e porque somente uma revolução ou a morte poderiam livrá-lo do fardo de seus deveres.

Ptolomeu nada podia fazer a não ser manter-se na estrada que iniciara a percorrer, e, olhem só, que estrada longa era essa, e tão cheia de obstáculos.

Assim, os ensinamentos de Anemhor deveriam prosseguir também, e Ptolomeu cada vez recaía em maior débito com esse homem, e cada vez mais se colocava sob seu controle.

A primeira obrigação do Faraó, disse Anemhor, é manter a comunicação com os deuses, de modo a garantir a vitória, a prosperidade, a ordem, a paz..

Ptolomeu fixava seus olhos naquela cabeça calva, na mosca pousada nela, flexionando as patas.

Ou seja, prosseguiu Anemhor, você deve proceder segundo os rituais. O ritual éa coisa mais importante... E tão absorvido estava em sua explanação que não parecia ter notado a mosca.

A integridade do Egito depende, continuou, das ações do Faraó. Se não fizer isto ou aquilo, a conseqüência será uma cheia escassa no Nilo, fome nas terras e revoltas no Alto Egito.

Era simples impedir o caos.

Logo depois dos rituais, disse Anemhor, o mais importante é oferecer Maat aos deuses. Somente o Faraó pode fazer tal coisa.

Ptolomeu conteve seu bocejo. Disse a Anemhor que estava entendendo: Sim, respondeu, Maat é retidão, determinação, lei, ordem. Maat é a ordem universal, o equilíbrio cósmico, a verdade... Mas ele ainda depositava mais fé em Tykhe, deusa da Boa Fortuna. Ele obtinha consolo em saber que o Faraó era protegido pelo falcão, Hórus, cujos dois olhos são o Sol e a Lua, cuja plumagem multicolorida é o céu estrelado, e ele então pensava nos dois portões de Alexandria, que eram chamados de Portal do Sol e Portal da Lua, como se toda Alexandria não fosse senão o reflexo terrestre do estado das coisas celestiais, assim como o Egito era um reflexo dos céus.

O falcão até então abria suas asas para proteger Ptolomeu, e assim tudo corria bem; o sumo sacerdote de Mênfis, seu maior amigo — talvez seu único amigo —, havia prometido que assim seria.

Desse modo começou a estranha vida de Ptolomeu. Os seis anões escravos que tomavam conta do corpo do Faraó o acompanharam a Alexandria, de maneira a permanecer executando sua exclusiva função, que era apresentar a Ptolomeu as vestimentas que usaria a cada dia, cortar as unhas, dar-lhes brilho, aprontá-lo para o banho, e secá-lo, depois.

Ptolomeu se acostumou a não fazer nada sozinho, mas ser servido da manhã à noite. Ele apreciaria, é claro, de tempos em tempos, secar suas próprias mãos, raspar ele mesmo suas costeletas e tomar banho sozinho; mas não havia como escapar a ser o Faraó. Tinha de ser o Faraó em tudo o que fazia, e não apenas um grego que estivesse fingindo ser o Faraó, interpretando o Faraó.

Ele era o deus, Aquele que Vive Para Sempre; ele precisava ser o deus.

Vez por outra, sentia ímpetos de urrar, atado à lentidão dos procedimentos de vestir-se e despir-se, e mesmo a sua ablução privada era feita por mãos estranhas. Fora o que escolhera. Não tinha motivos para reclamar. Fora aprisionado por sua própria vontade. Mesmo depois de sua morte, ainda seria o Faraó, que teria então voado para os céus nas asas de Thot, o íbis. Mesmo na Vida Depois da Morte, como uma das Estrelas Imperecíveis, não deixaria de ser o Faraó.

Toda vez que o sumo sacerdote de Ptah, ou o sumo sacerdote de Rá, de Heliópolis, ou o sumo sacerdote de Amun, de Tebas, vinham a Alexandria, traziam para Ptolomeu esfinges de pedra, obeliscos, estátuas de granito de faraós antigos, com os quais ornamentava-se a nova cidade. E tais presentes eram dados com o propósito deliberado de tornar a cidade grega tão egípcia quanto possível. Um presente não poderia ser recusado sem que isso representasse uma ofensa. Um presente significava que Ptolomeu teria de perguntar: O que pode lhe dar o Faraó, em retribuição?

E Anemhor, ou fosse qual fosse o sumo sacerdote em questão, poderia dizer Um novo templo em Letópolis, ou Reconstruir o Santuário de Licópolis, ou Mais oferendas para o deus em Filai. E Ptolomeu teria de aceitar.

Se dependesse dele, Ptolomeu preferiria uma cidade com nada, a não ser coisas gregas, mas a fileira de obeliscos egípcios logo cobriu toda a extensão da Via Canopus; estátuas colossais de Ramsés, Amennophis e Amenhotep ornamentavam o Grande Porto, e as ruas começaram a ganhar colunas em forma de lótus, assim como colunas dóricas e coríntias, e havia estátuas de Anúbis, o Cachorro, protetor contra todos os males, em cada esquina. Alexandria passaria a amar Anúbis, Faraó do Mundo dos Mortos.

Os presentes chegavam também no Ano-Novo, e nos aniversários do Faraó e de sua Ascensão, e também nos da Rainha, isso porque havia muitos e muitos dias para se dar algum presente. E havia presentes como amuletos de boa sorte, também, e estatuetas de Sekmet, a leoa, Ptah e Hórus, o Falcão, e ainda jóias, tão belas que faziam Berenice perder o fôlego de tanta admiração.

Ptolomeu, acreditando que o sumo sacerdote de Ptah fosse seu amigo, confessava-lhe mais e mais de seus pensamentos secretos, e indagava sua opinião sobre todas as suas dificuldades, e passou a contar com seu apoio mais do que contava com qualquer outro homem no Egito, mais do que com qualquer grego. Em verdade, Ptolomeu não teria resistido a trinta dias como Faraó sem a ajuda de Anemhor.

Conhecer os segredos do grego era justamente o que Anemhor mais queria. Isso porque um homem tem poder, muito poder, quando conhece todos os segredos de seus amigos.

Sob o controle desse sumo sacerdote, a egiptianização de Ptolomeu e de sua Casa tomou vigor, e tudo foi feito com tanta habilidade que eles quase não o perceberam. Certamente Ptolomeu não se esquecia de sua condição grega, nem abriu mão de seu modo de vida grego, nem parou de falar grego, já que nenhum conquistador se dá ao trabalho de aprender a língua de uma nação dominada. Mas Ptolomeu começou a adquirir hábitos egípcios — primeiro, de brincadeira, mas posteriormente com a maior seriedade.

O tempo foi passando e mesmo os gregos, que encaminhavam suas petições, começaram a copiar os hábitos nativos, quando tentavam conseguir uma audiência, ocultando seus rostos quando se viam na divina presença do Faraó, de modo a não ficarem cegos pela luz que lhe emanava do semblante. Isso porque, para os egípcios, Ptolomeu era Rá, o deus-Sol, e nenhum homem dele poderia se aproximar sem se proteger, porque se ousasse até mesmo olhar para o deus sem a sua permissão, seu coração se incendiaria dentro do corpo, ele todo arderia em chamas e morreria.

Quando se sentia o tremor do terremoto, Ptolomeu murmuraria para si mesmo: É o cadáver de Osíris se remexendo, e não falaria como gracejo, mas tocaria com os dedos o talismã contra terremotos que pendia do seu pescoço, assim como o pesado colar de Hórus, próprio do Faraó.

Ptolomeu se divertia rindo, às vezes, dos onipresentes deuses do Egito, que a tudo escutavam e viam, fosse o que fosse que os mortais fizessem ou dissessem. Divertia-os saber que o próprio Ptolomeu, como um deus, tinha 11 olhos e 77 ouvidos, e tão enigmáticas eram as informações que conseguiam extrair de Anemhor que Berenice, no final, acreditou conhecer tudo o que se podia a respeito dos deuses dele.

No princípio, tudo o que fosse egípcio fazia os gregos rirem até as lágrimas, mas Ptolomeu já não se ria.

Infeliz do filho que soltasse uma gargalhada durante a procissão do Sagrado Falcão, em Apolonópolis.

Infeliz do príncipe ou da princesa que desse uma risada disfarçada que fosse, durante os 29 dias de rituais funerários de Hesis, o Touro Sagrado de Heliópolis.

Infeliz do súdito que desviasse seu nariz grego, reagindo ao fedor de um íbis mal mumificado.

Ptolomeu começou a falar, e muito depressa, sem nenhum espanto, do Carneiro de Amun, o Macaco de Thot, o Crocodilo de Sobek, todas as encarnações da divindade. E isso não ocorreu muito antes de o próprio Ptolomeu começar a pensar que fosse muito natural que os deuses deveriam passear por Mênfis sobre suas quatro patas, ou que poderiam ser avistados pousados em todos os telhados.

Claro, Ptolomeu desejava aprender, e os deuses egípcios eram quase complexos demais para até mesmo os egípcios os entenderem, mas havia vezes em que agradava a Ptolomeu procurar o velho Anemhor e lhe dirigir uma pergunta que fazia o grande homem ter de se conformar a ficar com a boca aberta, sem nenhuma palavra em resposta — e obrigar Anemhor a confessar: Nenhum vivente tem a resposta a tal pergunta.

Isso, Ptolomeu acreditava, mantinha o sumo sacerdote em seu devido lugar. Fazia Anemhor compreender, Ptolomeu acreditava, quem era o seu amo.

No entanto, para Anemhor, nem sempre era uma questão de não saber, mas de nem sempre se dispor a revelar alguma coisa. Anemhor não esquecera as palavras de Platão, o grego, que, comparados aos egípcios, os gregos eram crianças.

E esses gregos, embora da boca para fora cuidassem de reverenciar Osíris e Hórus, no fundo mantinham seu modo grego de ver o mundo, sem ter muita consideração por deus algum, nem mesmo os deuses da Hélade.

Após sua coroação, Ptolomeu por vezes murmurava para Berenice, no meio da noite, quando os problemas egípcios o mantinham acordado: Os modos gregos são os melhores que existem.

E Berenice, é claro, concordava.

 

                   As Flechas de Eros

No ano da coroação de seu pai, Ptolomeu Keraunos, o Raio, atingiu a idade de 16 anos, despediu-se de sua infância e pendurou sua bola de couro e seus demais brinquedos no templo de Hermes, o das Sandálias Aladas, que ficava na Via Canopus, em Alexandria, como recordações de sua bem conduzida adolescência.

Tudo isso era correto, era o costume grego, mas o fato era que a adolescência de Keraunos não foi de modo algum bem conduzida, porque lhe fora permitido crescer sem limites e fazer tudo o que bem quisesse.

Quando os pêlos cresceram em volta do rhombos, já em sua juventude, e uma sombra escura brotou sobre o seu lábio superior, Ptolomeu Soter realizou a primeira das três celebrações da Anakleteria, ou Chegada da Idade, de seu filho legítimo mais velho, que estava designado, obviamente, a ser o seu herdeiro no trono do Egito.

Assim, o futuro de Keraunos estava assegurado, e o sumo sacerdote de Ptah buscava garanti-lo ainda mais, dando-lhe, em sua Chegada da Idade, o colar egípcio chamado Baraka, o Portador da Sorte, que ele usaria pelo resto de sua vida, tornando-o ainda mais o Afortunado Keraunos. Naquele ano, também Anemhor decidiu assumir a tarefa de lhe ensinar um pouco mais sobre os deuses do Egito, de modo que ele ao menos se tornasse capaz de reconhecer os nomes e os rostos de Anúbis, Hathor, Sobek, Ptah e saber um pouco mais a respeito dos atributos de cada um, o que deveria prepará-lo para exercer o posto que lhe estava reservado; e o Faraó concordou que aprender isso tudo seria bom para ele.

Anemhor, então, vinha a Alexandria e, vez por outra, se punha a conversar com Keraunos sobre Thot, sobre a Vida Após a Morte e sobre como, ao entrar no mundo seguinte, o coração do morto era pesado na Balança, em contraposição à pena de Maat, a deusa da Retidão e da Verdade.

Infelizmente, Keraunos não estava muito interessado em retidão ou em verdade, e tudo o que ele não queria era pensar sobre a sua morte. Fosse como fosse, o garoto fora levado a acreditar que, como o próximo rei Ptolomeu, viveria para sempre, e achava que não tinha necessidade de receber os ensinamentos de Anemhor.

O que Anemhor disse, no entanto, foi: Não pense que tudo será esquecido no Dia do Julgamento. Não deposite toda a sua confiança numa vida longa, porque os deuses vêem a vida como nada mais do que uma única hora.

Keraunos ria, desdenhosamente. Sabia que teria, pelo menos, setenta anos de vida.

Após sua morte, prosseguiu Anemhor, o homem continuará a existir, e todos os seus atos, bons e maus, serão empilhados junto a ele...

Keraunos brincava com o seu khiton entre os dedos, e tinha os olhos postos na porta do aposento onde estavam sentados.

O homem que chegar sem pecados diante dos juizes dos mortos, esse prosseguirá em liberdade, acompanhando os senhores da eternidade...

Keraunos ria-se, com o rosto coberto por sua manga. Essas eram, sem dúvida, crenças bárbaras. Quanto à eternidade, Keraunos só conseguia pensar no fedor da podridão que exalava das galerias dos íbis, em Mênfis, e entrava pelas janelas da residência real do seu pai, impregnando tudo. Em verdade, ele pensava que não havia nada a não ser decomposição, e disse: Não quero saber nada sobre Thot.

Então Anemhor citou trechos da sabedoria do Egito para Keraunos: O mal que acomete um tolo, sua barriga e seu falo é que o acarretam. Mas Keraunos riu-se disso também, e bastante alto, e debochou do ridículo do que lhe dizia Anemhor, e jurou fazer todo o possível para se manter longe desse sumo sacerdote.

Na sua entrevista seguinte com o rei Ptolomeu, Anemhor citou novamente a sabedoria do Egito: Melhor uma estátua de pedra do que um filho tolo, ele disse.

E mais: Um tolo numa casa é como uma refinada roupa na adega de vinhos.

E mais: O tolo que tem poder, tudo o que lhe acontecer só pode ser ruim.

Ptolomeu lançou um olhar duro sobre Anemhor e deixou de rir seu inesgotável sorriso de Faraó. Não era necessário que lhe dissessem de quem Anemhor estava falando, e por muitas horas o sorriso não retornou.

Anemhor empenhou-se ao máximo para instruir Keraunos sobre o caminho que deveria seguir, dizendo-lhe: Quando você vive como alguém que detém o poder, deve permitir que a ira em seu coração seja reduzida.

Mas Keraunos ficou olhando para ele como se não soubesse do que estava falando. A ira no coração de Ptolomeu Keraunos nunca se reduziria. Em tudo, ele viveria de acordo com o seu nome.

Anemhor perserverou com suas lições. Mas chegou o dia em que Keraunos berrou até mesmo com o sumo sacerdote de Ptah, o Mestre dos Segredos, exatamente como Anemhor previra, pois insistia em experimentar esse jovem, tendo já escutado o que diziam desse filho do rei: que tinha temperamento explosivo, que a ira impregnava seu cérebro.

O comportamento de Keraunos, portanto, não se aprimorou por conta dos ensinamentos de Anemhor, pelo contrário, tornara-se ainda pior. O garoto começou a percorrer a residência de Alexandria pendurando gatos de cabeça para baixo, pela cauda, e gostava de agitá-los no ar, algumas vezes com grande brutalidade, e ria uma estranha risada própria das hienas, muito parecida com a dos loucos.

Anemhor, quando soube disso, disse-lhe: O gato é cultuado por toda a extensão das Duas Terras. Se você maltratara criatura sagrada de Bastet, a deusa-gato, o povo do Egito também maltratará você. Isso porque, em verdade, se um egípcio visse o que Keraunos fazia, eclodiria uma revolução, e talvez até mesmo o fim da Casa de Ptolomeu, que mal havia se iniciado.

Anemhor disse: Se você matar um gato, o povo do Egito matará VOCÊ. Mas isso só fez Keraunos rir ainda mais, e ele continuou, sempre que podia, agitando gatos no ar, e também matava gatos porque precisava do sangue dos gatos para o encantamento que atormentaria os demais garotos condutores de carruagem nas corridas, permitindo-lhe vencê-las.

Anemhor balançava a cabeça. Era como se Keraunos tivesse decidido suplantar a todos em mau comportamento; como se estivesse resolvido a ser perverso em tudo o que fazia; como se estivesse tentando evitar a Moderação em todas as coisas dos gregos e se devotasse, em vez disso, ao excesso. E, em verdade, parecia nessa época a Anemhor como se Keraunos estivesse destinado a se transformar na mariposa que revoa em torno da chama, porque ninguém era capaz de controlá-lo; e parecia que ele também não tinha controle sobre si próprio e que a última pessoa a tentar controlar o filho era o seu próprio pai, que estava ocupado demais sendo o Faraó do Egito e, de qualquer modo, amava cegamente ao seu filho, porque era o seu herdeiro e tinha toda a aparência de um bom e feroz guerreiro, que jamais teria receio de beber uma taça de vinho não diluído. Esse tipo de filho seria sempre um orgulho para um pai macedônio.

E o Faraó era, em certo sentido, cego de fato, porque havia pedido para ter problemas quando denominara essa criança de Raio, que era um dos títulos do próprio Zeus. Tratava-se de mais um terrível gesto de orgulho, e esse pai devia saber o que estava fazendo quando dera a esse filho o nome de Keraunos.

A meia-irmã de Keraunos, Arsinoê Beta, a quem seu destino estava ligado, comportava-se exatamente como uma garota, o que era de fato. Ela chorava, e mostrava toda a brandura de uma mulher, dando inteira vazão aos seus sentimentos quando da morte de algum mascote — o papagaio escarla-te que treinara para falar algumas palavras em grego, ou seu cãozinho, tão pequeno, que vinha correndo quando ela o chamava, ou quando algum dos gatos do palácio, que ela adorava, era estrangulado por seu irmão, Keraunos.

Quando Arsinoê chorava, sua mãe, Berenice, a repreendia, dizendo: A maioria das mulheres é fraca, inútil, incapaz de defender a si mesma. A maioria das mulheres não é lutadora... Mas você, Arsinoè, você não pode se tornar como as outras mulheres. Deve se fazer dura. Deve ser forte. Deve mostrar ao mundo que uma mulher é tão boa quanto um homem...

E foi o que Arsinoè Beta fez. Ela se fez dura como ferro, como se tivesse garras.

Desde o começo, Arsinoè era capaz de conversar, sentindo-se à vontade, com os seus irmãos, sentar-se no mesmo aposento com eles e participar das brincadeiras mais rudes sem estar sob o olhar vigilante de sua ama, e já isso era bem diferente do hábito grego, segundo o qual as garotas são mantidas separadas dos garotos, mas assim foi feito segundo as ordens de Berenice. Foi Berenice que disse: Minha filha Arsinoè não será uma prisioneira no gynaikeion. Confiamos tê-la criado como uma boa filha. Ela não precisa ser vigiada noite e dia.

Não, Arsinoè Beta sentia-se plenamente à vontade fazendo o que bem entendesse, dentro dos limites da residência, fosse em Mênfis ou em Alexandria, e recebia o que queria, também, em termos de instrução, porque exigia que lhe ensinassem exatamente o que ensinavam aos garotos, tal como matemática e geometria, assim como tática e estratégia, e toda a arte e ciência da guerra, e ela se tornou muito vigorosa — muito mais do que as garotas gregas comuns. E, sim, era bom ser forte, era bom ter garras. Era uma boa coisa ser feita de ferro, até que um magneto passasse por perto e a atraísse. Porque era isso o que estava destinado a Arsinoè Beta.

Ela cresceu depressa, lia livros, e logo chegou o dia em que já não era mais uma criança, e o único pensamento de seu pai era que essa filha de Berenice era esperta como um homem; tão boa quanto um filho, se não melhor.

Ptolomeu acompanhava suas filhas com olhar duro enquanto iam crescendo, e fazia seus cálculos, pelo suave intumescimento de seus seios, que o momento em que deveria lhes arranjar um casamento estava chegando. Tinha os nomes de suas filhas anotados em um papiro, e andava para lá e para cá sobre o assoalho de mosaico pensando sobre que casamento lhe traria a melhor aliança.

No tempo devido, enviou embaixadores aos pais dos filhos que julgava poderem se tornar seus genros, todos munidos de uma lista de questões e encarregados de perguntar: Se o rei Ptolomeu sugerir isso e aquilo, Vossa Majestade concordaria com tal e tal...

Ptolomeu deu-se conta de que tinha seis filhas para tirar de suas mãos, listou seus nomes e perguntou o que poderia ser oferecido em troca de cada uma, à maneira dos tratados de paz e aliança para a guerra, e eram elas: Theoxena, Ptolemais e Lysandra, as três filhas com Eurídice; e ArsinoêBeta e Filotera, as duas filhas com Berenice; e Antígona, sua enteada.

A mais velha, Theoxena, estava já na idade de se casar... Já a mais nova, Filotera, ainda não começara a desabrochar, embora nunca fosse, assim pensava Ptolomeu, cedo para fazer planos.

No que concerne a um casamento, o que mais se destacava nos pensamentos do Faraó era a questão da aliança que deveria acompanhar o matrimônio, porque um casamento era antes de tudo uma questão política.

Em segundo lugar, vinha o dote, e quanto menos ele pudesse gastar, melhor, pois embora fosse agora um egípcio, era um egípcio apenas na superfície. Por dentro, era grego, sempre fora grego.

Em último lugar em ordem de importância vinham os sentimentos da filha, que faria o que lhe mandassem fazer ou levaria uma surra.

Nunca deveria ser desconsiderado que se casar com uma filha do rei Ptolomeu, mesmo uma filha ilegítima, deveria ser visto como a maior das honras para a família do noivo.

No tempo devido, Ptolomeu pôs por escrito tudo que pensava, colocando a lista de suas filhas ao lado da lista dos possíveis maridos, reis se possível, ou filhos de reis, tendo o grego como idioma, com países inteiros sob seu comando e controle:

Theoxena poderia se casar com Agathokles de Siracusa.

Antígona poderia se casar com Pirro, rei de Epeiros.

Lysandra poderia se casar com Alexandros, filho de Cassandro.

ArsinoêBeta poderia se casar com Lisímaco, rei da Trácia.

Ptolomais poderia se casar até mesmo com o grande inimigo de Ptolomeu, Demétrio Poliorketes, o Sitiador de Cidades, e assim produzir o melhor dos resultados: uma paz duradoura e o fim das guerras no mundo grego.

As filhas, quando souberam o que estava sendo planejado para elas, não ficaram contentes. Pensaram apenas em quanto seria odioso serem mandadas para longe, já que nenhuma delas queria outra coisa senão viver no Egito, e, no Egito, em nenhum lugar senão Alexandria, a mais bela cidade do mundo. Assim, as filhas ficaram um tanto aborrecidas, mas nada reclamaram, para evitar que fossem surradas por conta de seus comentários. Nenhuma dessas garotas sabia nada a respeito de seus projetados maridos, e foram deixadas no escuro a respeito do que estava por vir.

E quanto ao casamento desse seu filho, o herdeiro? O que o Faraó pensava a esse respeito? Se fosse se tornar o herdeiro do seu pai, Keraunos, segundo a tradição, não deveria se casar até herdar seu reino, de modo a conseguir a melhor das alianças e de modo que seus filhos já nascessem em berço real, como filhos de um rei. Mesmo assim, o casamento de Keraunos deveria ser planejado com antecedência, sob o risco de, quando a hora chegasse, não haver uma esposa apropriada disponível, e a melhor de todas as alianças então iria para as mãos de algum outro monarca.

Do jeito como as coisas aconteceram, entretanto, esse filho já estava abertamente desafiando seu pai, quando declarou que escolheria sua própria esposa, quando chegasse o momento, e não antes, e que seu pai não faria a escolha por ele.

Keraunos mostrava grande interesse por mulheres. Percorria os melhores bordéis de Alexandria, tinha mulheres na cidade, as mulheres que passavam a noite com ele, e havia lendas correndo sobre seus festins de tolerância, os quais faziam seu pai sorrir — pois, nesse aspecto, era bem filho de Ptolomeu.

Não, Keraunos não trazia muitas preocupações a Ptolomeu. Ele o queria um genuíno grego, um genuíno macedônio. Ser maluco por mulheres era normal, não era motivo de cuidado. Melhor do que ser maluco por garotos, como Alexandre. Keraunos, assim pensava Ptolomeu, cresceria. Keraunos iria ganhar juízo. Ele tinha fé em Keraunos, seu herdeiro, que demonstrava bastante interesse em argumentações, discussões, em se preparar para a guerra, e todos esses sinais eram auspiciosos. Ptolomeu queria que, acima de tudo, seu filho fosse um guerreiro. Não fora por isso que dera a ele o nome de Ptolomaios?

O que o rei Ptolomeu não sabia, entretanto, era que o Raio andava demonstrando grande interesse também no corpo de sua meia-irmã, a princesa Arsinoê Beta, que era apenas quatro anos mais nova do que ele, cujos seios ainda não haviam atingido a altura de três dedos, mas que continuavam a crescer decididamente, como marmelos ficando maduros para a colheita.

Quando seu pai envergou as Coroas do Egito, o povo começou a chamar essa Arsinoê Beta, e suas irmãs, de basilissa, princesas, e ela tinha então 11 ou 12 anos. Quando fez 14 anos, os escravos da residência e as aias do gynaikeion começaram a chamá-la pelo título de Kyria, a palavra grega para senhora.

Todos os olhos se voltavam para essa bela filha de Berenice, imaginando que grande rei receberia sua mão em casamento. E o próprio Ptolomeu continuava olhando-a com afeto e cuidado, vigiando o contínuo crescimento de seus seios, agora como dois pães crescendo no forno que era o Egito, porque quando os seios da garota atingissem a altura de três dedos, ela estaria madura para o casamento e se poderia firmar uma aliança.

Já Berenice, ela guardava essa filha, nessa época, com muito zelo, sabendo que o impulso da aphrodisia é muito forte em seu início, ciente da grande necessidade de manter uma garota grega intacta em sua virgindade.

Ptolomeu, então, vigiava, e Berenice vigiava, pensando no casamento político com um homem de alta linhagem e temperamento sereno, um homem de uma família satrapal, talvez, que se tivesse demonstrado digno do título de rei. Mas, se bem que pai e mãe vigiassem, não vigiavam com a atenção necessária. Não pareciam perceber que essa Arsinoê Beta passava tempo demais com seu meio-irmão, o príncipe Ptolomeu Keraunos. Não perceberam que algo impensável estava para acontecer bem debaixo do seu teto e de seus narizes.

Na aparência, as relações entre Ptolomeu Keraunos e Arsinoê Beta eram bastante inocentes. Eram crianças que brincavam juntas, trocando a cada dia e a cada hora os insultos que todo irmão e irmã trocam, brigando por causa de trivialidades como qual deles teria mais ervilhas em seu prato, ou quando um colocava aranhas na cama do outro. Aproveitavam uma turbulenta infância típica de crianças gregas, as vozes elevando-se, raivosas, do alvorecer ao pôr-do-sol e por qualquer motivo, fazendo sempre tempestades em copo d'água.

Havia vezes em que Berenice escutava uma gritaria furiosa, mas dava pouca importância a isso. Tributava tais discussões ao calor e ao fato de que todo grego ama brigas e disputas. E, não, não tomou nenhuma providência para afastar Arsinoê e Keraunos, sem jamais lhe ocorrer que o horror dos horrores poderia acontecer.

Essa princesa Arsinoê Beta continuou a crescer até se tornar uma fascinante jovem. Seus olhos reluziam. Seus cabelos louros, ela os usava bem compridos, de modo que, quando eclodisse a guerra, os cortasse, para serem tecidos como rijas cordas que disparariam as catapultas de seu pai e as máquinas de cerco, uma vez que estava determinada a tomar parte nas vitórias do Egito. Não esquecera o infortúnio de seu pai em Salamina, Chipre, e era, de fato, uma mulher afeita à guerra, já que lera todos os textos que pôde sobre tática, estratégia, navegação no mar e história da guerra. Havia mesmo muito pouca coisa que Arsinoê Beta não soubesse sobre os assuntos de guerra gregos, sobre os mercados militares no continente grego, onde um exército inteiro de soldados poderia ser contratado. Sabia quanto se devia pagar a cada homem e exatamente como lidar com os soldados de modo a garantir sua lealdade. Havia interrogado seu pai sobre as campanhas de Alexandre, e era bastante prezada por esse seu pai: sim, ela era um orgulho para ele, um grande orgulho.

Arsinoê Beta praticamente vivia para a guerra, e o seu maior propósito, quando tivesse a oportunidade, era ir para a batalha, ela própria, e lutar, como fizera Adéia-Eurídice, a rainha de Felipe Arrhidaios.

Nessa época, os olhos dessa garota de tantos talentos eram de um azul surpreendente, como se fossem safiras, e eram do mesmo azul que fazia os estranhos pensarem no Olho do Mal e alisarem seus talismãs de Boa Sorte quando se deparavam com eles, e pode mesmo ser que essa Arsinoê tivesse o Olho do Mal, ou tenha sido vítima dele, porque em verdade parecia que tudo o que fazia em sua vida era minado pela Má Sorte.

Esses seus olhos azuis, seja como for, vez por outra caíam sobre seu meio-irmão, Ptolomeu Keraunos, e captavam suas olhadelas, quando então se encaravam, fixamente, tentando ambos não desviar o olhar, como fazem todas as crianças. E ambos se empenhavam, com determinação, nesse jogo, e era como se algumas vezes não conseguissem mesmo escapar um do olhar do outro, como se estivessem grudados indissoluvelmente; como se tivessem sido alvejados pelas flechadas do menino Eros.

Sem dúvida, olhar fixamente nos olhos de outra pessoa é o que de mais perigoso se pode fazer, seja em que momento for, mas o efeito disso sobre Arsinoê e Keraunos foi impeli-los a se aproximarem um do outro, e a seguir a língua do Raio agitou-se, lambendo os lábios, e então ele enfiou a língua na boca dela, num momento em que ninguém os observava, e a língua dele sentiu a maciez, e os lábios dele sentiram o calor.

Esses primeiros beijos eram desprovidos de intensidade, breves, mas então essas crianças já crescidas ficaram não apenas grudadas por seus olhos, mas também por seus lábios, imitando o comportamento dos mais velhos, e Ptolomeu Keraunos nem sequer parava para recuperar o fôlego.

Arsinoê Beta disse: O que faz você, garoto-sátiro, enfiando as suas mãos por debaixo do meu peplos?

Keraunos não dava ouvido a nenhuma palavra de seus protestos, mas continuava fazendo o que queria. Porque você está tremendo?, disse ele, rindo. Como você é tímida.

PorPan, ela disse, estou quase desmaiando, tire as suas mãos de mim.

Mas Keraunos não a atendeu, não largou as carnes dela.

Não seria Arsinoê Beta tão maliciosa quanto o seu meio-irmão? No início, resistia a ele, sabendo que o que ele estava tentando fazer era proibido, e ela murmuraria: Nosso pai vai cortar seu nariz e suas orelhas com sua faca que não perdoa, e vai cortar fora até mesmo as suas partes privadas e dá-las para os cachorros comerem, ainda cruas, por conta do que você está tentando fazer.

Mas Keraunos meramente sorriu dos medos dela e nem tomou em consideração o que ela lhe dizia, e mais uma vez estava sobre ela, arfando, como um sátiro prensando uvas. Isso até Arsinoê, conseguindo afinal pensar no que estavam fazendo, livrar-se do abraço dele e fugir correndo do gynaikeion, com o rosto em brasa. E de modo algum ela estava o tempo todo sob a vigilância de sua ama. Seus pais achavam que não precisavam vigiá-la noite e dia, como se ela fosse capaz de cometer algum crime; confiavam nela e nem sonhavam que algum mal poderia lhe acontecer dentro das muralhas do palácio.

Então foi fácil os beijos de Keraunos se tornarem um hábito regular, quando quer que a encontrasse sozinha, e seus beijos eram ávidos, ardentes como carvões em brasa, e faziam Arsinoê Beta sentir-se como se os beijos dele incendiassem a ambos.

O que aconteceu, então? Teria de fato o menino Eros penetrado sem ser visto no palácio do Rei Ptolomeu procurando travessuras a praticar, como sempre, como um moscardo, picando o gado que pasta? Teria ele realmente vergado seu arco e sacado uma flecha de sua aljava? Teria atravessado a entrada, despercebido, agachado-se junto aos pés de Ptolomeu Keraunos, fixado o entalhe da flecha no centro da extensão da corda, puxado-a o mais que seus braços podiam e disparado-a em Arsinoê? E depois não teria ele fugido, rindo, deixando sua flecha cravada bem fundo no seio de Arsinoê Beta, agora pegando fogo? Só para deixar claro, todos esses eventos ocorreram. Arsinoê não podia mais evitar lançar espiadelas para o seu meio-irmão, vezes e vezes seguidas, e o fogo do amor varria o seu coração, e suas faces macias e rosadas passavam a pálidas, e ela já não sabia como lidar consigo mesma, de tão perturbada.

Sim, Arsinoê apaixonou-se por seu próprio irmão, e ele lhe deu todos os sinais de que estava igualmente apaixonado por ela.

Eros, assim dizem os gregos, está sempre à solta, e nenhum homem consegue escapar de suas flechas. Ah, sim! E nenhuma mulher também!

 

           Equilíbrio e Desequilíbrio

Até completar sete anos de idade, o mais novo dos filhos de Ptolomeu, Ptolomeu Mikros, viveu no gynaikeion com as mulheres, sendo bastante mimado. Quando ficava chateado, lhe eram dadas guloseimas doces, tais como tâmaras e figos, para comer. Quando se feria, era beijado até parar de berrar.

Quando já tinha idade bastante para saber quem fora Héracles, lhe ensinaram que Héracles nunca chorou e a conter as lágrimas.

Aprendeu também que o propósito de uma mulher é proporcionar prazer. Gostava dos perfumes da Síria que impregnavam os aposentos das mulheres e aspirava profundamente as fortes essências toda vez que era carregado através da porta dupla de cedro, passava pelos negros eunucos e penetrava na ala das mulheres, onde pássaros de plumagem escarlate provenientes da índia viviam empoleirados dentro de gaiolas de vime, e gritavam palavras em grego, já que alguns deles jamais foram ensinados a pronunciar outra coisa que não o nome Ptolomaios.

Aos sete anos, Ptolomeu Mikros foi tirado da guarda das mulheres, como acontece a todo garoto grego, e passou a viver no andron, a parte da residência reservada aos homens, onde dormia entre os homens, cercado de armaduras de bronze, dos reluzentes peitorais, das grevas e dos elmos de bronze ornados com penas negras de avestruz, num lugar, portanto, onde não se conversava sobre a arte de tecer tapeçarias, mas de fazer a guerra, onde não havia o odor dos perfumes sírios, apenas o do suor, o cheiro de bode de axilas. No início, Ptolomeu bem queria retornar àquela serenidade perfumada, às vestes farfalhantes, à repousante batida regular do tear, mas não lhe era permitido voltar para lá. O lugar das mulheres passou a ser proibido para ele, e o garoto que corresse em busca da proteção da mãe era debochado sem piedade. Agora, Mikros era governado pelo paidotribes, o garoto-instrutor, que o fazia correr e saltar, quer o desejasse ou não, e cuja tarefa era transformar meninos em guerreiros e heróis, para os campos de batalha.

Mikros, com oito anos, cresceu, e aos dez já possuía músculos peitorais bem definidos e as pronunciadas curvas ilíacas de um garoto grego comum, que arremessava pesos e disputava as corridas a pé com outros garotos, arremessava discos e dardos, e nunca era o último colocado nos torneios. Aos poucos, os aposentos das mulheres foram se apagando de seus pensamentos. Já nessa época, ele sonhava apenas com o dia em que se tornaria um ephebos, e poria em prática toda a teoria da guerra, e usaria sua espada curta não contra um saco cheio de palha, mas, ferozmente, contra os inimigos de seu pai numa guerra.

Entretanto, não era destino de Mikros tornar-se um grande soldado. Alguns homens poderiam acusar esse Ptolomeu de ser preguiçoso, de sua gloriosa e voluptuosa preguiça, e, quando cresceu mais ainda, se viu mais interessado nas artes da paz do que nas da guerra, bem como o pai.

Por vezes, Mikros via Berenice, sua mãe, mas isso, raramente, a não ser que ela própria o procurasse, talvez para lhe dar, por ocasião de seu aniversário, algum traje que ela mesma tecera, em lã púrpura e bainhas de fios de ouro. Berenice se mantinha afastada de Mikros porque era o que uma mãe grega tinha de fazer: porque era melhor para um filho crescer sob a influência de outros homens do que de uma mulher e imitar o seu pai, e não a sua mãe.

Mas essa mãe amava seu filho, esse Ptolomeu Mikros? Talvez amasse, talvez não. Como pode Thot saber tal coisa? Fosse como fosse, se existia qualquer afeto numa família grega, seria entre a mãe e sua filha, não entre a mãe e seu filho. Obviamente, um pai grego quase sempre ama os seus filhos, e o rei Ptolomeu não era diferente, nisso, dos demais. Sem dúvida, ele amava o Raio, que era praticamente uma cópia dele próprio. Mas, a verdade? O que era verdade? Era que ele amava Ptolomeu Mikros mais ainda, porque ele era o filho mais novo, porque era filho de seu grande amor por Berenice. E porque Mikros costumava subir por cima dele, embora Ptolomeu fosse o Faraó, e o fazia rir um pouco, enquanto os demais filhos agora se portavam segundo o cerimonial e, por algum motivo, tinham medo do seu pai e mantinham distância em relação a ele.

E, não, não era igualmente óbvio que Ptolomeu amasse suas filhas. Chegaria inevitavelmente o dia em que diria adeus a cada uma e as mandaria embora, para algum país estrangeiro, e as confiaria aos braços de algum homem que elas sequer teriam visto antes, que poderia, ou não, tratá-las com gentileza, com o propósito exclusivo de manter em bom termos uma aliança. E, certamente, essa não era a maneira como um pai egípcio procedia.

Ptolomeu, então, se esforçou para não ficar ligado demais a suas meninas, mas as manteve ao seu alcance, pensando na despesa que teria com seus dotes, pensando que eram a imagem de suas mães, pensando que, logo, estaria desejando intrometer seus dedos por dentro de seus peplos, e que a aphrodisia com a própria filha era uma afronta grotesca aos deuses da Hélade, e mesmo assim ele vigiava o crescimento de seus seios... tentava, sim, não olhar, não ser tentado; mas, a contragosto, não podia evitar ficar esperando que os seios delas tivessem três dedos de altura; não podia evitar pensar que os seios de suas filhas eram redondos, como maçãs vermelhas prontas para serem colhidas.

Não conhecia bem suas filhas. Não conversava com elas com freqüência, pois vivia esmagado sob o fardo dos negócios de Estado. Conhecia melhor a seus filhos.

A educação de Ptolomeu Mikros começou de verdade aos pés do grammatikos, o professor grego de letras, que ensinou a essa criança a segurar a pena vermelha e a ir do alfa ao ômega. E Mikros, bom garoto que era, aprendeu de cor as máximas dos sábios da Grécia, da Moderação em todas as coisas a Pensar no que se estava fazendo, antes de completar oito anos. Ele sabia de cor os nomes e as características de todos os deuses da Grécia, mas nenhum dos nomes dos dois mil deuses do Egito, não, não, nem mesmo o nome de Thot. Ele aprendeu a fazer vibrar a lira e a cantar porque, como lhe disse seu tutor, Sem a música, um homem é um completo bárbaro.

Mikros corria, então, quando precisava, e tinha os músculos desenvolvidos nos lugares necessários; mas, para dizer a verdade, não gostava de exercícios físicos. Com freqüência, reclamava Está quente demais para correr, e levava uma surra por dizer tal coisa. Mikros tinha a pele clara e se queimava com facilidade ao sol do Egito. Depois de algum tempo, recebeu licença para não mais se exercitar despido, no gymnasion, com os demais garotos, e depois de mais um tempo recebeu licença para não se exercitar de todo, e isso foi graças à influência de Berenice, sua mãe, que se intrometia em tudo. Infelizmente, era o destino desse garoto tornar-se gordo quando crescesse e, como era o filho de um rei, não teve problemas com isso, com o fato de ser um príncipe gordo, que comia tâmaras demais e doces em excesso.

Mikros, de toda a sua família, era quem mais via Arsinoê Beta, sua irmã de pai e mãe, e era com freqüência ela própria que assumia o papel de sua ama, porque já tinha oito ou nove anos quando ele nascera. Mikros preferia a companhia das mulheres. Quando alcançasse a condição de adulto, se cercaria de mulheres, deliciando-se com a carne delas — como o seu pai — e com as coisas que um homem deve fazer com uma mulher, e em verdade ele repelia o tipo de amor pelo qual os gregos são famosos, o amor de um homem por garotos, e de um homem por outro homem, isso por causa do fedor, como o dos bodes, do andron — de fato, ele o achava repulsivo.

Para Ptolomeu Mikros, então, havia três coisas apenas: comida (e para o Hades com Nada em excesso), mulheres (e para o Hades com os kinaidoi) e ócio. Mikros seria notório por sua preguiça, por ficar sem fazer nada. Estava destinado a ser um dos homens mais preguiçosos que já viveram.

E ainda assim seria famoso por sua riqueza, pela glória e por sua extravagância.

Mas tudo isso repousa no futuro. Muitos anos se passariam até que se iniciasse sua gloriosa preguiça, e nesse meio tempo ele teria de se exercitar com a sarissa, na falange, e montar junto com a cavalaria, e aprender geometria, e escrever poemas no estilo dos melhores poetas gregos. Embora tivesse aprendido muito, Mikros era imprestável para a matemática, imprestável para a teoria das artes da guerra, e, se aprendeu alguma coisa, foi que, por toda a sua vida, teria de depender de alguém para verificar a contabilidade, as finanças, os impostos, o balanço de pagamentos, os lucros e as perdas, e toda a parte financeira de se contratar um grande exército, porque, quando esse garoto olhava uma página coberta de números, sua cabeça parecia dar voltas e, quando pensava em somas e subtrações, os sinais matemáticos pareciam misturar-se formando uma massa negra.

Se Mikros aprendeu alguma coisa de importância, quando garoto, foi que sua irmã mais velha, Arsinoê Beta, possuía justamente as habilidades matemáticas e financeiras das quais ele carecia.

Embora não fosse precisar pensar em tais coisas nos próximos vinte anos ou mais, nunca esqueceu que sua irmã era muito melhor do que ele em contas. Arsinoê Beta era melhor até mesmo do que o Dioketes de seu pai, o Faraó, em identificar os equívocos no Recolhimento de Impostos de Todo o Egito, um documento de cem rolos de papiros. Mais notável ainda era essa garota ter o interesse de ler as páginas de cálculos, uma por uma, do começo ao fim do relatório.

Se Mikros possuía algum talento, era para as palavras, não para os números. Arsinoê Beta tinha talento para os números. Já Ptolomeu Keraunos, de todos os filhos do Faraó, era famoso, desde então, por não possuir talento algum, a não ser para matar. Keraunos era de fato muito bom em matar.

Quanto à meia-irmã dos dois, Lysandra, filha de Eurídice, era uma garota de tez clara e cresceu com um temperamento ameno. Não possuía a feroz determinação de Arsinoê Beta, nem a inteligência dela, nem a sua vontade ardente de ser tratada como um garoto.

Não, Lysandra não chamava atenções sobre si. Possuía os dotes femininos com as agulhas. Vivia feliz na penumbra do gynaikeion, e não pedia por mais nada, a não ser para, quando chegasse a hora, criar em paz as suas crianças e se tornar uma boa esposa grega de algum bom marido grego, quem quer que ele fosse. Lysandra, diferente de Arsinoê Beta, não ansiava por ser rainha de alguma terra estrangeira, ou de ter grande poder nas mãos. Era modesta, despretensiosa, como Eurídice, sua mãe, mas não tinha a tendência à loucura que impregnava a família de Cassandro. Lysandra apegava-se ao seu zeloso serviço aos deuses da Grécia, sempre fazendo oferendas apropriadas, preces apropriadas, sacrifícios apropriados. Na alma de Lysandra não havia espaço nem para excesso de amor nem de ódio. Também não comia nem em excesso, nem pouco demais, mas vivia no perfeito equilíbrio tão amado pelos gregos, enquanto, se Thot diz a verdade — e ele diz —, a vida de Arsinoê Beta era de total desequilíbrio; a vida de Keraunos era de total desequilíbrio e a vida de Eurídice era, igualmente, de total desequilíbrio.

O que Anemhor sabia, mas nem Ptolomeu Soter nem Lysandra sabiam, era que seria destino de Lysandra, seu inevitável destino, se casar duas vezes, e que ambos os seus casamentos redundariam em desastres, se não na mais terrível das tragédias gregas.

 

                     Aphrodisia

Já tendo beijado Arsinoê Beta, sua meia-irmã, Keraunos, é evidente, queria agora mais do que beijos, e na vasta residência de mármore de seu pai, sempre adormecida durante as tardes de calor e deserta quando as carruagens disputavam corridas no hipódromo, Keraunos e Arsinoê poderiam alegar alguma dor de cabeça ou desarranjo intestinal e ficar em casa. Não era incomum que os filhos de Ptolomeu fossem encontrados arfando nas adegas, por baixo da residência, por conta do intenso calor do Egito, e lá embaixo uma coisa levou a outra, até que Arsinoê Beta, uma garota virgem e casta, deitou-se com seu meio-irmão, às escondidas, e cometeram o que, para os gregos, era o crime dos crimes.

E Thot? Ele dá de ombros. Para os egípcios, um incesto como esse não é um grande horror, nada de extraordinário, mas sim, entre as famílias dos Faraós, algo corriqueiro. No entanto, é certo que os gregos pensavam muito diferente a esse respeito, pois tal atitude significava atrair a ira dos deuses da Grécia, de todos eles, de Apolo a Zeus, e além disso problemas, muitos problemas.

Então, o que aconteceu? Lá estavam eles, na grande adega onde o vinho era estocado, milhares de ânforas de vinho, e Keraunos fincou suas unhas na carne de sua irmã, em volta da cintura dela, e disse que cortaria suas orelhas se ela não fizesse o que ele queria. E Arsinoê Beta, de fato, não teve escolha senão obedecer a esse maluco, porque ele iria mesmo, isso ela sabia, fazer o que ameaçara, e a faca dele já lhe pressionava a garganta, como se além de tudo ele fosse matá-la. Mas ele a beijou, então, pressionando com força seus lábios, embora este fosse um ato inocente, pois para os gregos um beijo não é sinal de amor. Molhado, ela pensou, repulsivo, ela pensou, e isso a machucou, e lhe ocorreu também que o seu irmão cheirava a vinho.

Mas a seguir ele enfiou o seu rhombos nas partes privadas dela, e começou a se sacudir sobre ela, com o suor escorrendo dele, e ofegava como um cachorro, o tempo todo, e no final gritou, sem se importar com quem pudesse escutar, e arriou sobre o corpo dela, e eles descansavam no chão, na sujeira, e suas roupas ficaram sujas, e havia sangue, e tudo estava pegajoso.

Não quer dizer nada, ele sussurrou, nada, mas não a estava olhando nos olhos, e sorriu apenas com a boca.

Contanto que nós dois concordemos que não significa nada, ela disse. Entretanto, sabia que significava alguma coisa. Ter aphrodisia com o irmão não era um ato sem significado, e ela sabia em seu íntimo que os deuses não teriam deixado de tê-los visto, ali, mesmo que fosse na hora depois do almoço, quando se sabia que todos os deuses estariam adormecidos, à exceção de Pan.

Mas entre todos os deuses gregos, Pan era o mais perigoso e, se algum deus os estivesse vigiando, seria Pan, o de pés de bode, que era justamente mais perigoso depois do almoço, a hora mais quente do dia.

Não conte a ninguém, ele murmurou, apertando a sua garganta, não diga uma palavra sobre isso, sibilou, espremendo os seus seios rijos com as duas mãos, fincando as unhas em sua carne, tanto que a machucou. Jure que você não vai contar a ninguém, ele disse.

Eu juro, ela respondeu, por Zeus e por todos os deuses, eu juro.

E ele a soltou, mas lhe fez cócegas antes para que ela risse um pouco.

Juro pelo túmulo de nossa avó, sussurrou Keraunos, que não tive a intenção de lhe fazer mal...

No entanto, o que lhe passou pela mente foi que ele era tão mentiroso quanto um cretense, porque sabia que ele lhe causaria, e de propósito, todas as dificuldades que pudesse, e que ele, sem dúvida nenhuma, adorava sentir ódio. E a verdade, fosse como fosse, era que nenhuma dessas crianças havia conhecido suas avós, nem sabia se elas estavam em seus túmulos ou não. A família dos Ptolomeu não tinha ancestrais, já que Ptolomeu Soter havia apagado inteiramente o seu passado, com a mesma determinação com que Berenice, sua esposa, havia apagado o dela. E aqui estavam eles, numa nova terra e iniciando uma vida inteiramente nova, e tudo começando ali, como um tablete de cera que é raspado para ser reutilizado.

Não, nada significava coisa alguma para os membros dessa família, à exceção do momento presente, hoje, agora, a sensação do instante fugaz, e tirar disso todo o prazer possível. Daí, essa aphrodisia com sua própria irmã, a despeito das severas proibições dos gregos quanto a esse ato, a despeito de ele saber que esse seria, à exceção de matar a própria mãe, o pior crime que um grego poderia cometer.

Keraunos, no entanto, não sabia o significado de fazer algo errado, e ele se gabou do que fizera para seus amigos, dizendo que era simples, que era fácil, que de fato não havia nada de errado em ter feito o que fez; que o que sua irmã tinha entre as pernas não passava de um buraco. Quando os companheiros de Keraunos sugeriram que uma aphrodisia com sua meia-irmã seria uma afronta aos deuses da Grécia, um comportamento extremamente insensato para um grego se permitir, Keraunos riu como uma hiena.

Os deuses fazem isso, ele disse. Os persas também. Os pássaros também. É verdade, não há nada de errado em ter aphrodisia com sua própria irmã. E ele mentiu afirmando que, fosse como fosse, ela também queria fazê-lo, que ela lhe suplicara para que ele o fizesse, e ele se gabou dizendo: Não há nenhuma mulher em toda Alexandria mais ardente do que a minha irmã, como se ele pensasse em alugá-la a seus amigos para aquele mesmo propósito e fazer dela uma prostituta ordinária.

Os amigos de Keraunos sorriram, mas não sorriram junto com ele. Afinal de contas, naquela idade, ele mostrava mais interesse em mulheres do que qualquer dos demais garotos da cidade, que tinham tempo apenas para outros garotos. A atmosfera elétrica do gymnasion, onde os garotos corriam nus, lutavam nus e apuravam seus corpos bronzeados até alcançar a perfeição grega, até parecerem, em verdade, nada menos do que as esculturas do famoso Praxiteles, como jovens deuses, e se apaixonavam pela beleza máscula uns dos outros — nada disso atraía muito Ptolomeu Keraunos, cujo pai se assegurara de que esse filho não seria criado para ser um kinaidos, mas deveria apreciar as mulheres, tirar prazer dos seios fartos das mulheres, tão intumescidos como melões maduros, e do figo maduro que toda mulher esconde entre as pernas. Ptolomeu Soter ensinou a Keraunos o que deveria fazer com uma mulher assim que ele cresceu o bastante para fazer aquilo que um homem deve fazer. Soter queria que Keraunos fosse um homem — não um meio-homem como Alexandre e Hefaiston. Assim, em certo sentido, o que aconteceu foi culpa inteiramente de Ptolomeu Soter.

Claro, havia precisado de algum encorajamento, mas agora o que estava fazendo? Estava semeando sua selvagem semente não apenas no interior da residência de seu pai, mas também nos limites de sua própria família, na cama de sua própria irmã, e em verdade não se importava nem um pouco com as conseqüências, e isso porque não se importava com coisa alguma.

Ah, sim! Tudo era parte da lição que ele aprendera com o seu pai, a lição da Escola Cirenaica de Filosofia, que sustentava que um homem deve viver para o prazer do momento que corre e deixar que o passado e o futuro se resolvam sozinhos.

O que importa, diria Keraunos, é o hoje, o agora. E assim ecoavam palavras do seu pai, porque o filho era exatamente igual ao pai.


Thot? Thot não é um seguidor da Escola Cirenaica. Thot acredita que o passado tem grande importância. Não se pode deixar o passado para trás. Não se pode esquecer o passado. E o próprio Ptolomeu Soter, embora negasse o passado e dissesse que o passado estava esquecido, acabado — ele mentia, como bom grego que era, porque, em verdade, não esquecera. Poderia querer esquecer, mas não conseguia. Ninguém poderia ter passado pelo que Ptolomeu Soter passara e esquecer tudo. De modo algum: esse homem lembrava cada momento, em mínimos detalhes. Thot fala: Ah, sim! De fato! Para o egípcio, o passado é supremo. A educação nos hieróglifos leva o sacerdote para um mundo há muito esquecido, cujo conhecimento herdado é a palavra final. O sacerdote que preza as escrituras vive numa terra de sombras. Isso porque o mundo do presente não tem significado vital. Ele vive no passado. Ele é sempre alguém perdido no ontem.

Essa nobilíssima princesa, Arsinoê Beta, aprendeu depressa como abrir as pernas, tal qual uma prostituta, e como envolver as costas do seu irmão com suas pernas nuas e apertá-las, naquilo que os gregos chamam de amphiplix. E, em toda a sua vida, Arsinoê Beta conheceria apenas mais um amor que foi tão poderoso, ou pelo menos próximo, do que esse que sentiu então por seu meio-irmão. Ela se deliciava na carne quente de Ptolomeu, o Raio, e sobre as conseqüências de seu ato proibido estavam ambos desavisados.

Arsinoê Beta, certamente, fora alertada sobre o que deveria e o que não deveria fazer, no que concerne a aphrodisia. Sua ama a alertou com a história do Cavalo e da Moça, porque tal era a advertência que toda ama deve dar a toda menina de que tome conta, para assegurar-se de que ela se preserve como uma parthenos. E, sim, a história que contou foi sobre uma menina que perdeu sua virgindade antes da época de se casar e foi encerrada numa casa com um cavalo, em algum lugar remoto, de modo a ninguém poder escutar os seus gritos, e daí por diante esquecida.

O que acontece com uma menina, numa situação dessas? Arsinoê perguntou.

Ora, a ama respondeu, o cavalo fica tão faminto que a come viva.

E Arsinoê Beta, que acima de todas as coisas era muito esperta, deu uma risada alta e disse: mas como poderia um cavalo devorar uma garota? Um cavalo não come carne, somente grama.

E a ama lhe deu uma bofetada, e ainda lhe bateu com sua sandália, e a perseguiu por todo o gynaikeion, com a menina fugindo berrando, por conta de sua esperteza.

Arsinoê, no entanto, preocupava-se com o que aconteceria com eles, se fossem descobertos, e tinha bons motivos para se preocupar. Ela encenava, às vezes, alguma briga com seu irmão, que começou agora a se esgueirar pelos corredores e salões da residência, procurando por ela, mas, na maioria das vezes, ela era sua parceira, de boa vontade, arranjando modos de escapar do gynaikeion para encontrá-lo sorrateiramente.

Na primeira vez que Keraunos ousou subir aos telhados da residência para penetrar no gynaikeion pela janela de sua irmã e tapou com sua mão quente a boca dela para impedi-la de gritar, Arsinoê, de fato, tentou resistir, porque ele a tinha pegado de surpresa, mas, depois disso, nem sequer se incomodava de cerrar suas janelas, para evitar que entrasse, de maneira que ele vinha a ela fosse qual fosse a hora da noite que desejasse, e os guardas do palácio, se chegaram a ver Keraunos, faziam apenas piscar para ele, porque esse garoto era amigo de todos os soldados: enfim, ele era Ptolomeu Keraunos, o maravilhoso garoto que se tornaria Faraó, e fazia o que bem entendesse, e tinha uma espécie de crença de que vivia uma existência encantada e que seria afortunado para sempre.

Arsinoê Beta compreendia que não seria capaz de impedir Keraunos de fazer o que ele fazia, mesmo que quisesse, e em verdade ansiava para que seu irmão voltasse a visitá-la.

Ptolomeu Keraunos — ele não sentia culpa pelo que fazia? É evidente que sabia que a aphrodisia com sua irmã era proibida. É claro que sabia que se tratava de algo impensável, uma brutal afronta contra os deuses da Hélade. Mas não, não se perturbava nem um pouco com isso. Fora criado para não temer tanto assim os deuses. Fora criado para não temer coisa alguma. E era assim que Keraunos deveria se tornar um guerreiro tão grandioso, um Faraó do Egito tão poderoso: não tinha absolutamente medo de nada, não tinha medo de nenhum homem ou deus, nem de nada no mundo.

Além do mais, Keraunos conhecia o bastante da mitologia grega para ver que o que fazia com Arsinoê Beta não era em nada diferente do que Zeus, o grande deus, fizera com sua irmã, Hera; e ainda por cima era o que os reis antigos do Egito faziam — chegavam mesmo a se casar com suas próprias irmãs. O que, então, havia de errado em seus atos? Nada. Era assim que, se ainda lhe restasse alguma dúvida, ele justificava suas ações diante de si mesmo.

Talvez Arsinoêhesitasse diante dos argumentos de seu irmão, mas, ao mesmo tempo, ficava apavorada com a possibilidade de ser apanhada, e mesmo aterrorizada, acreditando que o pai deles os mataria no ato.

Mas a aphrodisia continuava e continuava, e isso durou meses, e ArsinoêBeta era mesmo capaz de ficar acordada, a noite inteira, deitada, esperando que a sombra de seu irmão se projetasse sobre a sua cama. Quando dormia, tinha terríveis pesadelos, nos quais era devorada viva por um cavalo que não comia grama mas carne, e o rosto do cavalo era o rosto do seu irmão, com os cascos do cavalo esmagando seu corpo, na escuridão.

Quando via Keraunos, no dia seguinte, silvaria contra ele e lhe mostraria os arranhões em seus seios, ou as marcas vermelhas em seu pescoço, e dizia algumas palavras como: Minha mãe vai baterem você como se você fosse um polypus por causa do que fez comigo.

Keraunos riria muito, e arranhava a pele dela de novo com suas unhas.

Quando ArsinoêBeta vomitou todo o seu desjejum, certa manhã, no assoalho do gynaikeion, ficou claro para sua ama que ação deveria ser tomada.

Primeiro, obrigou Arsinoêa comer apenas tâmaras egípcias. O resultado foi um violento desarranjo intestinal.

Em segundo lugar, a obrigou a tomar banhos quentes. O resultado foi que o chão do gynaikeion ficou alagado.

Em terceiro lugar, obrigou-a a ingerir grandes goles de vinho de heléboro, mas o resultado disso foi apenas uma bebedeira.

Em quarto, fez Arsinoêcomer alho, depois uvas egípcias, depois excremento de abutre; mas nenhum desses remédios da ama, fossem gregos ou egípcios, interrompeu o inchamento de sua barriga.

Então, a ama fugiu do palácio, porque, em verdade, havia falhado na sua obrigação de tomar conta da garota e tinha conhecimento do que andava acontecendo — isso porque como poderia um garoto subir ao telhado do gynaikeion e sair antes do amanhecer por meses a fio sem que a ama, que tudo via, que tudo sabia, descobrisse?

A barriga de Arsinoê crescia cada vez mais, e apesar de se obrigar a ficar pulando, se agachando e se erguendo, no mesmo lugar, isso redundou em nada mais do que mau humor até que não conseguiu mais esconder sua silhueta de suas irmãs, nem de Berenice, sua mãe, e foi forçada a contar a verdade: o filho de Eurídice, Ptolomeu Keraunos, havia tirado sua parthena contra sua vontade e a engravidara, e ela vinha comendo terra e havia tentado interromper a gravidez comendo excrementos de crocodilo.

A reação de Berenice foi gritar e berrar. Ela avançou sobre essa sua filha e a golpeou em suas pernas e braços com as mãos, com seu leque de madeira de acácia folheada a ouro, e também com os punhos cerrados, e então chutou e socou Arsinoê Beta até que a menina estivesse coberta de equimoses negras e azuladas, e a gritaria de Berenice, rainha do Egito que fosse, ecoou por toda a residência, enquanto ela arrastava a chorosa Arsinoê Beta até diante de seu pai, o Faraó.

Quando a garota viu Ptolomeu Keraunos, pai de seu bebê, evitando se aproximar, tentando ocultar-se, Arsinoê gritou para ele: Avie-se e venha já para cá, porque minha mãe descobriu o que você fez e jurou que vai usar suas bolas como brincos.

Keraunos já sabia que alguma coisa estava errada porque sonhara o sonho de estar comendo a parte polpuda do seu traseiro, e isso era mau, muito mau, porque significava o completo reverso do que teria sido até então o modo de vida de um homem.

Keraunos, então, preparou-se para o pior.

Ptolomeu andava para um lado e para o outro, sobre o mosaico de golfinhos, pensando: Zeus e Hera fizeram o mesmo. Com certeza, os persas e até mesmo os egípcios também. O que, então, havia de tão errado na aphrodisia de um homem com sua irmã? O que foi, afinal, ele se perguntou, que o deixou tão zangado e fez sua mulher gritar daquele jeito?

A resposta é que um incesto não é certo. É o ato que, acima de todos os demais, não deve ser cometido por quem seja um genuíno grego. Na Grécia, costumavam dizer que uma criança gerada de tal união nasceria com uma cauda de porco, e Ptolomeu não desejava de modo algum tamanha desgraça como um neto com cauda de porco. Tampouco queria suas filhas gregas comendo excremento de abutre, fosse por que motivo fosse. Não, sua raiva foi inteiramente justificável.

Ptolomeu Keraunos foi deixado aguardando fora dos aposentos do Faraó, por horas e horas, enquanto ele terminava seu banho, passava as instruções para o seu Doiketes e punha seu selo em pilhas de papiros. Ptolomeu Soter sabia que o seu filho não seria capaz de suportar uma manhã que fosse das obrigações de um Faraó, para não falar de passar o resto da vida escutando petições. Fez Karaunos esperar de propósito, até o final de seu dia de trabalho, e a essa altura o garoto já estava pingando de suor, no limite de sua paciência, prestes a verter lágrimas de ódio, já que os soldados tinham ordens de não o deixar ir embora e assim ele precisou ficar de pé diante da porta, com sede e sem comer coisa alguma, esperando e esperando, vendo a distância seu pai, que o ignorava.

Quando afinal Ptolomeu chamou Keraunos para junto de si, seus olhos falseavam e suas mandíbulas estavam cerradas, e quase lhe foi impossível pôr os olhos sobre esse garoto, de tanta contrariedade. Mas Keraunos, então, fingiu indiferença, desviando os olhos para o assoalho decorado com estonteantes figuras de tritões e criaturas do mar, e para o teto abaulado, feito de cedro e ouro, para as sandálias de ouro do seu pai, e já quase esperava que seu pai mandasse que o surrassem nas solas dos pés, castigo reservado para os infelizes escravos, e que era tão temido porque a vítima poderia se tornar incapaz de andar de novo.

Sua Majestade estava nessa ocasião como Sek, a deusa-leoa, em seus momentos de raiva. Ptolomeu Soter quase brilhava de tanta raiva, e em seu íntimo tinha vontade de bater nesse seu filho e derrubá-lo no chão, pela vergonha que ele trouxera para a casa de seu pai.

Não seria a primeira vez que Keraunos escutaria seu pai berrar, mas dessa vez escutá-lo fez o coração do garoto bater como de um antílope, e Ptolomeu Keraunos, que não sentia medo de nada, tremeu um pouco. Ficou imóvel diante do seu pai, cerrando e abrindo os punhos, com o suor escorrendo das suas costas de modo que seu kíton estava colado à pele.

Acusado desse crime, Keraunos exibiu seus dentes frontais, os que eram usados para sorrir sarcasticamente, e riu na cara de seu pai, o que fez Ptolomeu gritar ainda mais alto. Os olhos de Sua Majestade faiscavam como os da pantera do sul prestes a saltar sobre sua presa. Diga a verdade, ele falou, você fez o que me disseram que fez?

E como Keraunos não respondeu coisa alguma, Ptolomeu fez um gesto com a mão e os guardas introduziram nos aposentos de Sua Majestade vinte testemunhas que juraram, uma depois da outra, terem escutado e visto o príncipe Ptolomeu Keraunos fazer o que ele dizia que não fizera, em lugares e horas em que pensava que ninguém o estava vendo.

Keraunos mordeu a língua com força, e assim não se desgraçou caindo no choro, mas disse apenas: Juro o juramento mais solene que jamais fui para a cama dela e nunca me deitei com ela da maneira como os seres humanos fazem, entre um homem e uma mulher.

Sua Majestade disse: Zeus resseca o coração do orgulhoso. E disse ainda: seu inimigo é você mesmo. Como uma lâmina afiada e de dois gumes, a maldição do seu pai vai eliminá-lo desta terra.

Somente então ocorreu a Keraunos que um pai grego pode expulsar o filho de sua casa, mas não deserdá-lo, a menos que ele seja culpado de um crime como o incesto ou o assassinato de um irmão. Keraunos se esqueceu do que poderia advir para si mesmo. Não pensou que a maldição desse pai poderia cair sobre ele. Acreditava que nada do que fizesse poderia ser errado.

Já no final, balbuciou uma parte da verdade:

Fiquei cego, ele disse. Escutei apenas a persuasão do meu coração.

A culpa não é toda minha, acrescentou. Arsinoè e eu ficávamos constantemente sozinhos... Todo mundo precisa se divertir... Quando todos iam às corridas, inventávamos alguma desculpa...

O rosto de Sua Majestade escureceu-se. Não via nenhuma esperança para esse filho — em verdade o seu destino seria pior do que o da pele da raposa.

O que faria Sua Majestade com esse filho? Ele pronunciou então uma única palavra: Ataxia, indisciplina, e Ptolomeu Keraunos foi levado embora para ser surrado com bastões.

Mas o que deveria fazer depois? Deveria cortar o nariz e as orelhas dele e mandá-lo, como prisioneiro, para Rhinokolura? Deveria mandar que tornassem Keraunos um eunuco por esse crime? Deveria expulsar o filho do Egito, de uma vez por todas? Ou deveria ser clemente e perdoá-lo?

Sua Majestade pensou em dizer: Embora você seja meu filho, devemos daqui para a frente tratá-lo como um inimigo. Mas não conseguiu se obrigar a pronunciar essas palavras.

Pensou em dizer: Se eu visse esse garoto morto e levado para o Hades, diria que o meu coração não se comovia com a sua desgraça. Mas, em verdade, ele amava esse filho, que era o seu herdeiro, e não tinha coragem de banilo da corte, esse garoto que deveria sucedê-lo como Faraó.

Ptolomeu Soter se preocupava com muitas coisas, mas acima de tudo se preocupava com as Fúrias, e disse a Berenice: As Fúrias vão se instalar em minha Casa para sempre. Cantarão sobre o frenesi que se iniciou aqui, despejando maldições sobre o garoto que profanou o leito de sua irmã. E embora Berenice desdenhasse tais pensamentos, ambos sabiam que era verdade, e Thot sabia disso também.

Não, não havia como perdoar; tampouco como reconciliar. Keraunos era culpado, culpado de um ato absolutamente desonroso. O garoto havia plantado sementes de um grande infortúnio para toda a sua família.

Mas, ao mesmo tempo, pensava Ptolomeu Soter: O que diz a Ilíada de Homero? Não deves ter um coração incapaz de perdoar.

Pensamento de Thot: não é da natureza do grego perdoar ninguém por coisa alguma. Um grego prefere sempre a vingança.

Quando os guardas do palácio trouxeram Keraunos de volta, depois de ter recebido sua surra, ele estava num estado lamentável, mas mantinha-se desafiante.

A qualidade exigida por um rei, proferiu Sua Majestade, é ataraxia — serenidade, equilíbrio.

Keraunos cuspiu no chão. Não possuía serenidade. Não sabia o significado de equilíbrio. E não sentia peso algum na consciência pelo que havia feito a sua irmã. Não se sentia culpado. Não ensaiou nenhum pedido de desculpas.

E assim, finalmente, Sua Majestade ordenou a tradicional punição grega, e Keraunos foi despido de suas vestes. Rasparam seus cabelos, de modo a que ficasse parecendo um escravo, e ele ficou com vergonha de mostrar seu rosto em público por um mês inteiro.

Quando queimaram seus pêlos pubianos com uma tocha em chamas, Keraunos, que jamais chorara, começou a urrar. Proferiu terríveis maldições. Debateu-se. Ficou com o rosto em brasa, mas mãos fortes o mantiveram no chão.

Quando enfiaram um rabanete no ânus desse garoto, ele gritou, porque os rabanetes são bastante grandes no Egito, e ele proferiu a mais terrível maldição que conhecia contra o rei, e a maldição elevou-se no ar, e estava feito o mal, porque não há retorno para uma maldição do filho contra o seu pai.

Sua Majestade esperava que Keraunos houvesse aprendido uma lição. A maldição, preferiu não escutá-la, pensando que tudo que esse rapaz dizia era carregado pelo vento.

Mas o que faria com Keraunos? Não o obrigou a embarcar num navio para alguma terra estrangeira. Não, Keraunos apenas causaria problemas para o Egito, do exterior. Seria melhor mantê-lo sob suas vistas. E assim, por enquanto, Sua Majestade confinou o seu filho à residência, e deixou que as coisas ficassem como estavam. Era cedo, ainda, ele pensou, cedo demais para decidir-se sobre a sucessão ao trono.

Já Anemhor, sumo sacerdote de Mênfis, disse a Ptolomeu Keraunos: Tendes sorte por continuardes vivo.

E dessa vez Keraunos não riu dele.

Quando a rainha Berenice descobriu toda a história sobre o que sua filha Arsinoê Beta havia feito, começou a correr aos gritos por seus aposentos particulares, cortou os cabelos e suas vestes, como se alguém houvesse morrido.

Se minha filha não é mais uma parthenos, ela lamuriou-se berrando, quem vai querer se casar com ela? Pois, além de toda a sua dor, não tinha a menor idéia do que faria com a deflorada Arsinoê Beta.

Pela tradição, disse o rei Ptolomeu a sua filha, você deveria ser vendida como escrava, seus cabelos raspados e sua testa marcada com a marca de sua grande desgraça...

E Arsinoê Beta chorou, porque fora criada acreditando que viveria como rainha de algum país estrangeiro.

O ideal, seu pai lhe disse, é que uma garota que tem a aphrodisia antes de se casar seja executada...

E Arsinoê chorou mais ainda, porque tinha esperança de viver mais do que seus 15 anos de até então.

Os dois cônjuges num casamento grego, disse seu pai, devem ser imaculados...

Mas agora Arsinoê tinha uma mácula. Ela seria não uma parthenos, mas uma pseudoparthenos, a simulação de uma virgem, e ela chorou pela perda do que não poderia ser recuperado.

Já Berenice disparou contra a sua filha: Que poderoso e nobre príncipe vai querer você agora?

Que homem, ela disse, vai levar você, agora que perdeu o maior tesouro que uma garota pode ter? E Berenice gritou: O que você estava pensando que iria acontecer quando deixou que o seu irmão fizesse isso?

Arsinoê ficou parada de pé, diante de seus pais, com sua cabeça abaixada, e em seu desespero pensou no que Keraunos havia lhe sugerido: Diga a ele que foi o deus que meteu em você...

E bem que ela tentou, no início, dizer que foi engravidada por meios divinos, e não humanos. Ensaiou descrever a aparição de um deus em seus aposentos, durante a sesta, o forte bater de suas asas, o hálito adocicado que saía de sua boca. Mas seu pai torceu o nariz diante de tantos absurdos e, quando viu aquela expressão no rosto dele, ela não pôde dizer mais nada.

Tudo isso é tolice, disse seu pai. Odeio mais do que o Hades uma garota que oculta algo em sua mente e fala outra coisa.

Então, Arsinoê chorou de novo, e disse, Juro pelas ninfas do lago que jamais pedi ao meu irmão para fazer o que ele fez... Juro pelas águas do Estígio, e era o mais poderoso e inviolável juramento que uma garota poderia proferir, e Ptolomeu teve ímpetos de ser clemente em relação à filha, porque ela era apenas uma garota muito jovem, e ele acreditava que o principal culpado fora Ptolomeu Keraunos.

Berenice sustentou que não seria direito mandar executar essa filha, fosse qual fosse o crime que ela houvesse cometido, e sugeriu que o maior entre todos os castigos que se adequaria a esse crime seria o do Cavalo e a Moça.

Assim que Berenice expressou seus pensamentos, Arsinoê Beta chorou mais uma vez e ajoelhou de mãos postas diante do pai, suplicando.

Sim, de fato, Ptolomeu disse, o único procedimento que devemos adotar é encenar você numa casa com um cavalo, sem nenhuma comida, até que o cavalo a devore. É só isso que você merece.

Arsinoê começou a berrar. Culpou Keraunos e disse que ele ameaçara matá-la se ela contasse a alguém. Jurou que não era culpada de nenhum crime. Alegou que tudo fora por iniciativa de Keraunos, que ele a violentara enquanto ela estava dormindo, que tapara sua boca com a mão e que ela não pôde gritar. E assim, Arsinoê Beta tentava salvar a própria pele.

Já no final, o rei Ptolomeu teve pena de sua filha e disse: Para evitar um vexame público, não devemos recorrer a qualquer das punições prescritas por lei. Talvez, devamos expulsar você do Egito, mandá-la para Lysimakheia, no Helesponto. Quem sabe Lisímaco possa ser convencido a tomá-la por esposa?

Quem é Lisímaco?, perguntou Arsinoê, como se já não soubesse.

É o rei da Trácia, respondeu Ptolomeu.

E assim, Arsinoê Beta escapou da morte pela primeira vez, porque seu pai não teve coragem para matá-la.

A vingança está nas mãos dos deuses, ele disse. Eles podem, ou não, tratála com generosidade.

Já que uma humilhação pública seria impensável, Arsinoê Beta, em vez disso, sofreu uma humilhação na sua privacidade. Isso porque, então, não sabia ainda que um casamento com o rei Lisímaco da Trácia já seria em si uma punição e tanto. Ela teria a sua lição e seria quase a parte mais dura de sua punição jamais poder pôr os olhos em Alexandria novamente, mas permanecer no exílio.

Para que esse casamento pudesse ser celebrado, os cirurgiões gregos do rei Ptolomeu trouxeram um objeto de bronze chamado ambleterion, cujo propósito era esmagar a criança ainda não nascida dentro do ventre de sua mãe. A seguir, arrancaram do corpo dela, por meio de ganchos e cordas, uma criatura disforme, e os gritos dessa garota foram abafados pelas servas, batendo panelas de cozinha e cantando o mais alto que conseguiam. Quando isso já estava feito, as amas começaram a trabalhar sobre o corpo de Arsinoê Beta, de modo a lhe conferir de novo uma parthenos.

Alguns chegaram a pensar que essa Arsinoê Beta fez por merecer tudo aquilo que lhe estava por acontecer, mas apenas os horoscopistas e o sumo sacerdote de Ptah sabiam a verdade a esse respeito: que no futuro dessa princesa nada havia senão infortúnios e que, não, os deuses não seriam generosos com ela.

Ptolomeu Soter enviou mensagem para Lisímaco, propondo-lhe o casamento que planejava para Arsinoê Beta. Com isso afugentou os problemas que pairavam sobre sua família e pôde se preocupar com a guerra na Síria.

 

                       Moderação

A grande cautela de Ptolomeu Soter em assuntos militares, segundo alguns, o privou da grandiosidade como general. Acusavam-no de nunca ter feito nenhum esforço para recuperar a ilha de Chipre. Acusaram-no também de jamais ter se importado em desafiar a maestria de Demétrio Poliorketes no mar, porque, quando Demétrio navegou com a sua frota de Rodes para águas gregas, o que fez Ptolomeu então? Nada, nada, até que a sua aliança com Cassandro, Lisímaco e Seleuco o fez pensar que talvez conseguisse reocupar a Palestina e até mesmo a Síria.

Ptolomeu não fez praticamente nada, nos três anos que se seguiram ao Cerco de Rodes, a não ser regozijar-se com seu título de Soter e se tornar um Faraó. Para Ptolomeu bastava ser Faraó. Não desejava nada além da sobrevivência da dinastia após a sua morte.

Não, Ptolomeu estava farto de guerras, cansado de correr riscos, e sempre se chocava com a estúpida perda de vidas da guerra. Queria apenas ser deixado em paz, agora, envelhecer sem ter de olhar a face da morte antes que chegasse a sua hora. Declarava que já havia matado homens o bastante e sentia-se exaurido por tantos pesadelos.

Assim, Ptolomeu dedicou um galo de ouro maciço a Ares, deus da Guerra, e pendurou a sua espada e seu escudo no Templo de Ares, na Via Canopus, e anunciou que estava se aposentando das batalhas, já que estava com 65 anos de idade.

Mais de uma vez Ptolomeu chamara a si mesmo simplesmente de O Macedônio, de preferência a rei do Egito. Era o estilo grego mais apropriado, mas demonstrava — ou não? — que ele não apreciava bazófias desnecessárias. Bazófia não era coisa de grego. Muito mais característico era o culto à modéstia, que não atrairia sobre um homem o ciúme dos deuses.

Mesmo assim, havia quem desdenhasse a maneira como o rei recuava, sempre que podia, mesmo depois de uma vitória, alegando que seus recuos provavam nada além de falta de confiança em sua própria habilidade. Mas não se tratava de recuos de um covarde, porque Ptolomeu não era covarde.

Moderação em todas as coisas, dizia Ptolomeu. Nada em excesso, e especialmente sem matanças.

Assim, na maioria das vezes o louvavam por sua sabedoria.

A despeito de sua tendência para recuar, a espada de Ptolomeu não permaneceu pendurada no Templo de Ares por muito tempo. Já no intervalo de dois anos, desde o cerco de Rodes, três dos outros Sucessores — Cassandro, Lisímaco e Seleuco — o haviam convencido a unir-se a eles numa campanha para destruir o poder de Antígonos Caolho para sempre, e Ptolomeu viu-se de novo empunhando sua espada.

Então, Cassandro rechaçou Demétrio, e Lisímaco serviu-se como quis da maior parte da Jônia. Nesse meio tempo, Ptolomeu penetrou com suas tropas na Palestina e retomou as cidades da Coele-Síria, uma em seguida à outra, e armou cerco contra Sidon.

Se Ptolomeu houvesse perdido o seu apetite para a guerra, o que aconteceu a seguir devolveu-o, já que teve a precaução de invadir a cidade de Hierosolima no dia de Sabbath dos hebreus, quando as leis proibiam qualquer hebreu de pegar na sua espada e lutar, mesmo que fosse para se defender, nesse que era o mais sagrado dos dias, já que a guerra era trabalho; e assim, Ptolomeu, que não tinha a necessidade de se submeter a tal lei, tomou Hierosolima para si, e entre muitas risadas e comemorações porque os hebreus não podiam fazer mais do que ficar imóveis e observar, boquiabertos diante da ousadia desse grego.

Tal circunstância, tão maravilhosa para Ptolomeu, embora não tão maravilhosa para a população de Hierosolima, capacitou os sábios gregos a destacar a lição aprendida: Nunca recorrer a superstições e sonhos a não ser quando todos os conselhos humanos tiverem falhado.

Ptolomeu deportou vasto número de prisioneiros de guerra para o Egito e, quando impôs a evacuação de Hierosolima, foi previdente o bastante para demolir as muralhas, de modo que o Caolho não pudesse usá-la como reduto.

Enquanto Ptolomeu ainda estava acampado em Sidon, escutou alguns rumores vagos dando conta de que o Caolho havia derrotado Lisímaco e Seleuco numa grande batalha, e não viu razão para deixar de acreditar nisso porque sabia que o Caolho estava a caminho da Síria.

O que fez, então, Ptolomeu? Assinou um armistício de quatro meses com o bom povo de Sidon, garantiu a ocupação das cidades que havia capturado com guarnições e retirou-se para Mênfis com suas tropas.

Assim que retornou ao Egito, soube que os rumores sobre a tal batalha eram falsos, que não houvera batalha nenhuma e que seus aliados não haviam sido derrotados. Ptolomeu, assim, havia perdido a sua grande oportunidade de estender as fronteiras do império egípcio em direção ao Norte porque, quando os seus aliados fizeram os arranjos finais para a batalha que estava por vir, a Batalha de Ipsos, sequer se preocuparam em saber a opinião de Ptolomeu a esse respeito, porque já tinham o seu caráter como imprestável e inconfiável, por ter rompido os termos da aliança ao retornar cedo demais para casa.

A Grande Batalha de Ipsos, na Frígia, aconteceu no quinto ano do reinado de Ptolomeu, quando Antígonos Caolho — então com 81 anos, cabelos brancos, curvado pela idade, com deficiência de visão e dificuldades para escutar —, pessoalmente, avançou para a luta, tendo seu filho, Demétrio Poliorketes consigo, contra a coalizão de quatro reis: Seleuco, Lisímaco, Cassandro e Ptolomeu, excetuando-se que Ptolomeu, como se comentou, não teve a preocupação de retornar para a guerra.

Essa batalha ficou conhecida como a Batalha dos Reis, e havia oitenta mil soldados e dez mil cavalarianos em cada lado, de modo que as tropas se eqüivaliam. Nessa luta, o próprio Caolho foi ferido por dardos, lanças e pedras, e morreu no campo de batalha, de modo que Demétrio o sucedeu no trono, fugindo pelo mar em direção a Chipre, que ainda controlava.

Ptolomeu não tomou parte nessa batalha, mas, como aqueles que não eram seus amigos gostavam de dizer, escondeu-se no Egito, aguardando apenas para tirar vantagem dos seus resultados. Foi também cuidadoso o bastante para fortificar-se, prevenindo-se contra o ameaçador avanço de Seleuco, valendo-se para tanto do estreitamento de seus laços de amizade com Lisímaco, da Trácia, e pondo em prática seus planos de compor um tratado de paz com esse rei, que seria selado por meio do casamento dele com Arsinoè Beta.

Embora Lisímaco, na época, estivesse muito feliz, casado com a esposa persa chamada Amastris, Ptolomeu sugeriu que seria mais vantajoso para ele tirar a esposa do caminho e se casar com Arsinoè Beta, que era, disse ele, sua filha mais velha com Berenice, uma jovem muito bela de ainda 15 anos, pronta para o casamento, e ele recomendava encarecidamente seus adoráveis seios, rosados, cheios, como dois suculentos pêssegos.

Depois de algum tempo, chegou a resposta de Lisímaco, e foi sim.

Arsinoè Beta foi, assim, entregue por propósitos políticos e, sob esse extraordinariamente conveniente arranjo de negócios, ela seria mantida a distância da perversão de seu meio-irmão.

Nesse meio tempo, outro assim chamado aliado de Ptolomeu, Seleuco, tomou a iniciativa de se aproximar de Demétrio Poliorketes, o qual, embora sendo um fugitivo sem reino, tinha total controle sobre o Grande Mar, incluindo Chipre e muitas das ilhas menores, e a maior parte da costa da Kilikia.

Portanto, Ptolomeu teve de sair em busca de novos amigos, e chegou ao ponto de escrever uma carta até mesmo ao presunçoso Agathokles, tirano de Siracusa, na Sicília, oferecendo-lhe a mão da princesa Theoxena, filha de Eurídice, em troca de mais uma aliança de paz.

Agathokles de Siracusa era um homem frio, que procurava uma jovem esposa atraente, o que era exatamente o que Ptolomeu lhe oferecia, enfatizando o caráter dócil de Theoxena; assim, Agathokles também disse sim à proposta de Ptolomeu.

E, sim, Ptolomeu esfregou as mãos e sorriu um largo sorriso, isso porque estava conseguindo o que queria.

No acordo firmado antes da Batalha de Ipsos, o território da Coele-Síria foi demarcado e reservado para Ptolomeu, no caso de vitória. No entanto, os reis que efetivamente lutaram em Ipsos agora achavam que, como Ptolomeu não se deu ao trabalho de mostrar a cara no campo de batalha, não tinha direito a recompensa alguma, e assim Seleuco e Lisímaco anexaram toda a Coele-Síria ao Império de Seleuco.

Ptolomeu, como era de se esperar, recusou-se a reconhecer o novo arranjo, protestando que a Coele-Síria era sua por direito, alegando que fora ludibriado pelo maldoso boato e que não era sua culpa não ter se apresentado no campo de batalha. Mas Seleuco recusou-se a cumprir o acordo original, considerando-o invalidado, e recusou-se também a ter qualquer relacionamento com Ptolomeu, que supostamente seria seu amigo, portanto tornando-se seu inimigo.

Longe de afastá-lo da guerra, então, esse agravo despertou em Ptolomeu um novo vigor, e ele deu ordens para que suas tropas marchassem uma quarta vez sobre a Coele-Síria. Quando Seleuco chegou com seu exército à CoeleSíria, pretendendo tomar posse do território, descobriu que Ptolomeu já a havia tomado para si e que a tinha sob seu inteiro controle.

E assim prosseguia. Ptolomeu jurou de novo e de novo que não tomaria parte nunca mais em nenhuma guerra contra os reis, seus rivais, que estava absolutamente farto de guerras e do desperdício das perdas que a guerra acarretava, privando-o da possibilidade de viver sob seu próprio teto, e que seus generais se encarregariam das guerras, dali para a frente. Daí ofertou mais um galo de ouro maciço e pendurou sua armadura de bronze pela quinta e última vez no Templo de Ares e enviou mensageiros ao Oráculo de ZeusAmon, na Líbia, dizendo que desejava saber o que o futuro lhe reservava, e que tinha esperanças de parar de combater, pondo um fim definitivo em todas as guerras.

Mas o Oráculo de Zeus-Amon enviou como resposta a Ptolomeu a verdade, como sempre fizera e sempre faria, prevendo que a disputa sobre quem era o senhor da Síria e quem reinaria sobre a Síria assolaria a Casa de Ptolomeu e a Casa de Seleuco por muitas e muitas gerações. E, de fato, o pronunciamento final de Zeus-Amon sobre essa matéria, embora ninguém lhe desse crédito, foi que o mundo guerrearia pelo controle da Síria, da Palestina, da Coele-Síria e do Líbano e pelo de todos os países desse recanto do planeta para sempre.

No final da Guerra da Síria, e antes do início de uma nova Guerra da Síria, Ptolomeu acolheu cerca de trinta mil colonos hebreus no Egito: comerciantes, agricultores, horticultores, artesãos, pedreiros, construtores de navios, homens com capacitações de que ele necessitava em Alexandria, onde havia muito espaço ainda para construções — isso porque, segundo Aristóteles, esse era um estado de coisas que não deveria perdurar numa cidade.

Os hebreus de Alexandria receberam a promessa de terem seu próprio bairro na cidade, chamado Delta, no setor noroeste, bem próximo à residência real. Foram tratados com tolerância e encorajados a manter seus próprios costumes e a cultuar seu deus na maneira tradicional, em suas próprias sinagogas.

E, sim, os hebreus ficaram satisfeitos, excetuando por demonstrarem sua desaprovação quanto às estátuas das ruas, estátuas gregas, do rei Ptolomeu, de Alexandre e de outros heróis — em parte porque qualquer imagem santa era proibida em sua religião, mas em parte também porque se sentiam aviltados pela nudez do estilo grego. Havia noites em que, acobertados pela escuridão, as estátuas eram vestidas com roupas de baixo de linho, por pessoas que se mantinham anônimas, mas que, segundo se acreditava, seriam hebreus. E assim continuou essa história, até que foi combinado que não haveria estátuas nuas divinizadas no bairro do Delta, respeitando-se a suscetibilidade dos hebreus, que afinal se declararam completamente satisfeitos.

Ptolomeu disse aos colonos que era amigo deles, diferentemente do Faraó antigo que perseguira os hebreus em seu retorno à Palestina, e assim todos concordaram em permanecer no Egito, onde seriam muito úteis ao rei Ptolomeu fazendo empréstimo de suas vastas reservas de dinheiro.

Com o tempo, os hebreus esqueceriam até mesmo o idioma hebreu, adotando o grego. Comerciavam milho e construíam navios, e ajudavam Ptolomeu a financiar seus projetos de construção de templos e de obras públicas, tal como o canal que ligaria o Grande Mar ao Mar Vermelho.

Não demorou muito até que os hebreus se declarassem felizes por encarar Ptolomeu como um amigo.

E Ptolomeu disse, como sempre dizia: Queremos que todos sejam felizes. Deixa-nos felizes que vocês estejam felizes de viver conosco no Egito.

Foi este o primeiro, e talvez o único, momento de genuína felicidade em toda a história da Alexandria. Todo o resto seriam disputas, sordidez, apelidos insultuosos e, então, os anos se verteram em séculos, e haveria tumultos e revoltas, e derramamento de sangue pelas ruas, assim como no interior do palácio.

Alexandria começou bem, mas se desenvolveria mal sempre. Na raiz de tudo estava a família dos Ptolomeus, sobre a qual muitos comentavam a mesma coisa.

Mas não por enquanto. No início, tudo era muito promissor, e todos os membros da Casa de Ptolomeu sorriam, ou fingiam sorrir — a não ser, talvez, Eurídice. E, nessa época, ninguém era mais feliz do que o próprio Ptolomeu; a despeito de não conseguir dormir, a despeito das moscas que picavam sua carne, a despeito da tensão entre os gregos e os egípcios, ele assim mesmo dizia que era feliz.

No mesmo ano da Batalha de Ipsos, como se, embora feliz que certamente estivesse, Ptolomeu não tivesse problemas o bastante, o Touro Sagrado, Ápis, cria da Vaca Ta-nt-Aset II, morreu de velhice, deixando todo o Egito de luto. Rio acima e rio abaixo, as mulheres cobriam-se de lama, socavam os próprios seios e gritavam seus lamentos. Em Mênfis, o sumo sacerdote preocupava-se, e muito, com o problema de como arranjar dinheiro para custear o elaborado ritual de embalsamamento do touro, e dirigiu-se a Ptolomeu, sugerindo-lhe enfaticamente que era costume que o Faraó desse uma contribuição generosa para as despesas do funeral.

Ptolomeu encarou duramente Anemhor. Quanto?, perguntou.

Anemhor ficou em silêncio por instantes, olhos fixos no assoalho.

Mil dracmas?, perguntou Ptolomeu.

Anemhor sacudiu a cabeça.

Mil e quinhentas?, perguntou Ptolomeu.

Anemhor não respondeu.

Duas mil dracmas?, perguntou Ptolomeu incrédulo.

Mas Anemhor disse: Dracmas, não, Majestade. Talentos.

E Ptolomeu perguntou: Dois talentos?, o que eqüivalia a doze mil dracmas — uma soma impossível, ele pensou.

O rosto de Anemhor assumiu uma expressão desalentada. Mais, ele disse, muito, muito mais. Muitos, muitos talentos.

Cinco talentos?, indagou Ptolomeu, mas sem esperanças, sabendo que não desejaria doar nem mesmo a soma que primeiro sugerira.

Mas Anemhor apenas balançou a cabeça.

E assim prosseguiu até que os dois chegaram à quantia de cinqüenta talentos, e Ptolomeu foi acometido de uma sensação de colapso no fundo de suas entranhas, porque sentiu como se seu tesouro estivesse sendo assaltado. Mas, a seguir, sorriu, porque amava o Ápis e denominou os cinqüenta talentos de um empréstimo, de modo que Anemhor não fosse pensar que se tratasse de um direito, mas meramente uma concessão.

Mesmo assim, a rapidez com que Ptolomeu providenciou os fundos foi vista como uma boa coisa, como era a sua intenção: poderiam acontecer, então, futuras concessões, futuros empréstimos, futuras doações, e outros favores, por parte desse rei. Ele não havia agido como os persas, que mostraram tal desprezo em relação ao Ápis que chegaram a assassiná-lo. De modo algum, Ptolomeu era amigo do Ápis. Rezava apenas para que o novo touro não morresse ainda jovem.

A mumificação do Ápis foi realizada, com suas patas dianteiras imobilizadas, saindo para fora, à sua frente, e seus longos chifres folheados a ouro destacando-se das bandagens, e eles transportaram o Ápis sobre uma grande carroça até a câmara mortuária dos touros sagrados, na margem oeste do rio, na fronteira com o deserto da Líbia, enquanto todo o Egito chorava e se lamentava, e os funerais do Ápis duravam 29 dias.

A seguir, procedeu-se à meticulosa busca do novo Ápis, que deveria substituir o antigo. No alto e no baixo rio, meses e meses de buscas, até que o bezerro negro com as marcas corretas na testa fosse encontrado, e havia ao todo 29 sinais de identificação do Ápis, que era cria da Vaca Ta-nt-Merwer, e Anemhor, o sumo sacerdote de Ptah, instalou o touro em seu estábulo, no recinto de Prah, em Mênfis, e o coroou com a Coroa de Ápis, assim como havia coroado o próprio Ptolomeu como Faraó, e os horoscopistas previram que o reino de Ápis duraria 22 anos, e que o rei Ptolomeu não morreria antes dele.

Isso espantou Ptolomeu que calculou então que viveria, se fosse verdade, até quase a idade inaudita de 88 anos.

Ptolomeu não morreria jovem, já que os horoscopistas estão sempre certos.

 

                     A Aliança com a Trácia

Cinco anos haviam se passado, desde que Ptolomeu recebera as coroas, quando então confirmou a sua grande aliança com o rei Lisímaco da Trácia, o companheiro que havia servido junto com ele, sob o comando de Alexandre, e que fora, primeiro, seu amigo, depois seu inimigo, e que agora voltava a ser amigo.

Lisímaco agora, com entusiasmo, concordava em se desfazer de sua atual esposa, sua segunda esposa, Amastris, com quem havia se casado apenas um ano antes, para trazer para o seu leito, no lugar dela, Arsinoê Beta, a jovem filha de 16 anos de seu aliado nos mares, a deleitável, a mais linda de todas e mais efetivamente esperta das moças, essa Arsinoê Beta, restaurada depois da aphrodisia com seu meio-irmão, episódio o qual, naturalmente, Lisímaco desconhecia.

Sim, os embaixadores viajaram intensamente entre Alexandria e Lysimakheia, no Helesponto, louvando os longos cabelos louros da garota, tão dourados quanto o sol, quanto o próprio ouro, que eram sua grande glória, e por fim Ptolomeu jurou por Zeus, Hélio e todos os demais deuses gregos que cumpriria esse acordo. Jurou que os amigos de Lisímaco seriam seus amigos e que os inimigos de Lisímaco seriam seus inimigos, e jurou ainda: Que meus negócios prosperem, se eu cumprir este juramento, e que o contrário ocorra, se eu o trair. E Lisímaco fez o mesmo juramento.

O juramento seria tornado permanente e imperativo pela entrega de Arsinoê Beta, cujas grandes virtudes Ptolomeu insistia em proclamar, como todo grego típico, a despeito da verdade, e tudo com o fim de conseguir tirála de sua casa e selar o acordo o mais brevemente possível. Acontecia que tudo o que ele disse sobre essa garota, incluindo sua beleza e inteligência, era verdade.

Ptolomeu não contou à sua filha, no entanto, coisa alguma sobre o quanto seu marido era velho, e nenhuma informação pessoal a respeito dele, fosse qual fosse, mas lhe passou apenas as informações políticas, e todo pensamento sobre a possibilidade de ela gostar ou não desse homem, ou se o acharia uma companhia prazerosa, ou se ele teria uma bela aparência e se teria uma conversa agradável era irrelevante. Só o que importava era a aliança e o fato de Lisímaco ser um rei e isso também, até então, era o que importava para Arsinoê Beta.

Não, ela não estava se casando por amor. De modo algum: estava se casando pela estabilidade do Egito e de seu império, e pela paz, naqueles tempos tão difíceis. Seu casamento não concernia a amor, mas a conceber um filho legítimo. Fosse como fosse, tudo o que dizia respeito a amor era loucura, e casar por amor nada mais era do que procurar problemas. Nenhuma mulher grega tinha expectativa de receber afeto. Era mais provável que recebesse tapas e surras de seu marido do que beijos. Tal é, seja o que for que se pense disso, o costume entre os gregos, que se deliciam em dizer que não são bárbaros; e são bastante diferentes dos homens egípcios, no convívio com suas esposas.

Quando chegou o dia feliz de Ptolomeu Soter despachar sua filha, a família ficou reunida a noite inteira para as despedidas, o que era um costume grego, comeram tordos assados, azeitonas e moussaka e beberam vinhos finos de Mareotis, tentando reter o tempo. E a celebração foi um pouco menor do que o habitual, em função do episódio com Keraunos, que Ptolomeu agora tentava fingir que jamais acontecera, e foi um bom exemplo de sua habilidade de esquecer o passado e pensar apenas no agora, no momento presente. Ptolomeu, afinal, derramou uma ou duas lágrimas ao abraçar sua garota, porque esse era o costume, e, em verdade, não se sentia entristecido por estar se livrando dessa filha que quase trouxera a ruína para a sua Casa. Não; e em troca de se separar dela, teria a coisa que mais desejava em todo o mundo: paz, e um ininterrupto suprimento de artigos de luxo do Helesponto, tal como peixe salgado, ervilhas de Bizâncio, tapetes de púrpura, garotas de olhos oblíquos... uma interminável lista de delícias da Trácia.

Por seu lado, Arsinoê Beta encarou com alguma indiferença ser remetida para a Trácia como um pacote de tâmaras, demonstrando não se importar muito com o que fosse lhe acontecer. Não havia esquecido que seu casamento era uma punição — embora não entendesse o que essa punição representaria para a sua vida, já que partir para a Trácia, como rainha, parecia-lhe mais como uma maravilhosa recompensa, e, no final, ela acabaria se casando com alguém, não importando o que tivesse feito de errado.

Berenice teve o cuidado em martelar nos ouvidos de ArsinoêBeta que ela deveria concordar com todos os desejos de seu marido, e com tudo o que lhe pedisse e dissesse. Marido nenhum vai se dar bem com uma esposa que não queira o que ele queira.

Berenice a alertou para ter boa vontade com tudo, não importando quais fossem seus desejos íntimos, e insistiu para buscar ser indispensável, senão Lisímaco a mandaria de volta para casa, marcada para sempre como uma garota que fracassara em dar ao marido prazer na cama.

E enfatizou o exemplo de Amastris, a anterior esposa de Lisímaco, que logo fora substituída quando se mostrou insatisfatória.

ArsinoêBeta sorriu seu melhor sorriso de ferro. Aprendera tudo o que deveria ser aprendido sobre aphrodisia com seu próprio irmão, e pensou nos dois suando contra a cabeceira da cama de madeira folheada a ouro, sob as cortinas contra insetos feitas de velhas redes de pesca, que era só o que os gregos conheciam como eficaz para se livrarem de picadas, e então sentiu uma pontada pela perda do passado; no entanto, as lições que aprendeu nas mãos de seu irmão não seriam, afinal, desperdiçadas.

Por essa ocasião, ArsinoêBeta estava pronta. A restauração de sua parthenos perdida não estava além das habilidades de suas amas, que lhe confeccionaram um novo hímen de borracha, proveniente da Terra de Punt, e que produzia um som em nada desagradável, quando tocado pelos dedos, como se fosse algum instrumento musical bárbaro.

ArsinoêBeta tomou o navio para a Trácia acompanhada de duas amas e de seu inacreditavelmente vasto dote de artigos valiosos, mais generoso do que qualquer grego jamais concedera à sua filha, ou assim se dizia: escravos, ébano, marfim, jóias, especiarias, ungüentos e, é claro, barras de ouro, pepitas de ouro, assim como ouro em forma de moedas, sacos e mais sacos de octodracmas e decadracmas, todas tendo gravadas a efígie invulnerável ao tempo de seu pai. Ela levou também seu médico particular, Dion, um eunuco instruído que desempenharia as funções de seu apokrisarios, um secretário, assim como daria seus sábios conselhos sobre assuntos femininos, gravidez, parto e alimentos apropriados para crianças. Mais importante ainda, Dion auxiliaria Arsinoê a fugir da Trácia se e quando tudo despencasse por lá, já que em Lysimakheia, como na maioria das cidades da época, tudo eram incertezas e nenhum homem poderia prever quando mesmo um rei tão poderoso quanto Lisímaco poderia ser derrubado de seu trono por revolucionários, ou por algum usurpador, ou por alguma tribo selvagem da Trácia, ou por uma invasão de bárbaros das ilhas do norte, ou se, apenas um mês depois, poderia ser envenenado por algum membro de sua própria e tão querida família.

A última coisa que Arsinoê Beta fez no Egito foi dedicar suas bonecas de cerâmica com membros móveis ao templo de Artêmis, situado na Via Canopus, e ela chorou ao se despedir de sua infância, mas proferiu preces adicionais para Artêmis, Aquela que Maneja os Arcos e as Flechas do Poder, para obter um acréscimo em forças para lidar com as dificuldades que estivessem por vir.

A entrega das bonecas marcava o final da infância de Arsinoê Beta, e também o final de sua feminilidade. Excetuando a desagradável necessidade de gerar filhos e herdeiros, sua vida agora seria devotada aos assuntos masculinos: guerra e governo, à negociação de alianças, ao equilíbrio do poder na Europa e na Ásia, e à manutenção do poder, fosse pelo derramamento de sangue, ou tramando o desaparecimento de parentes nas horas mortas da noite, ou o assassinato a sangue frio e à luz do dia. E, que fique bem claro, Arsinoê Beta executaria todas essas funções melhor do que qualquer homem, e seu pai, o rei Ptolomeu, teria orgulho dela.

Ao mesmo tempo, sendo muito parecida aos homens, Arsinoê Beta tinha a necessidade de se comportar como a mulher que era, e colocou em sua bagagem sua maquiagem de rosto, seus óleos para manter a pele macia, sua pletora de véus coloridos e de vestidos, suas sandálias de ouro e a tapeçaria que jamais faria. A caixa de jóias de Arsinoê Beta, princesa do Egito, estava repleta de magníficos braceletes egípcios, tornozeleiras, anéis com guirlandas e escaravelhos, todos de ouro e incrustados com as mais preciosas pedrarias, e, no fundo da caixa, por debaixo das jóias, sua adaga de bronze, com um cabo de ouro, incrustada de esmeraldas, rubis, turquesas e cornalinas, o presente de despedida de sua mãe, Berenice, que lhe disse: nunca se sabe quando se fará uso dela.

No entanto, o mais importante item de sua bagagem era a substância semelhante a terra, um pó acinzentado, embrulhado em tecido oleoso e bem amarrado com corda de papiro, e que era veneno — um veneno poderoso o bastante para eliminar metade de um exército.

Para o caso de alguma necessidade, disse Berenice, que sabia tudo que se precisava saber sobre venenos e sobre ardis para administrá-los, já que esse pó também foi presente de Berenice.

E Arsinoê Beta bem teria necessidade de usá-lo.

Antes de subir a bordo do trieres, Berenice lhe deu o último de seus mais sábios conselhos, que foi fugir da Trácia, no caso de uma revolta — quando então a esposa de um rei não deve pensar em outra coisa senão em salvar a própria pele — e disse ainda: O segredo de um casamento bem-sucedido é que a esposa esteja pronta para aceitar sem questionamento as regras impostas por seu marido, sem dar importância aos seus defeitos e qualidades.

Arsinoê assentiu de cabeça, demonstrando que entendera, embora tivesse idéias próprias quanto a esse assunto.

Uma esposa, prosseguiu Berenice, não tem sentimentos próprios... Irá se adaptar aos estados de espírito de seu marido... Não rirá quando ele estiver de mau humor, nem ficará com uma expressão chateada quando ele estiver sorrindo.

Arsinoê disse que se esforçaria ao máximo para tanto, embora fosse haver poucos motivos para riso em Lysimakheia.

O casamento, acrescentou Berenice, tem como único propósito... gerar herdeiros para o trono. E no entanto ela desconsiderava o fato de Lisímaco já ter seu herdeiro, embora Arsinoê possuísse idéias próprias a esse respeito também.

Impossibilitada de comparecer ao casamento da princesa Arsinoê Beta, sua família entoou a Canção do Corvo, típica dos gregos, no cais de Alexandria, para que Arsinoê agradasse a Lisímaco e fosse fiel a ele enquanto vivessem.

Mas, em verdade, a mente de Arsinoê Beta era como a de um homem, e ela sabia que nenhum homem jamais amou e tampouco foi fiel por muito tempo.

No último momento, ela já não queria pôr os pés no navio de aparência tão frágil e fazer a viagem para a Trácia, por ter escutado relatos sobre a ocorrência de terremotos por lá. Mas seu pai prometeu fazer preces adicionais a Poseidon, Senhor dos Terremotos. Arsinoê Beta lançou, então, um último e demorado olhar para o seu meio-irmão, o Raio, que estava ali próximo, de cara amarrada. Ela amava e odiava Keraunos, ambos os sentimentos em igual medida, e não sabia se o veria de novo. Mas Keraunos sabia, havia consultado o Oráculo e lhe foi dito: Menino, esta não será a última vez que você verá essa sua irmã.

Quanto ao velho Anemhor, tudo o que disse à princesa foi: Aqueles que bebem da água do Rio retornarão para bebê-la de novo — como se soubesse que Arsinoê Beta estava predestinada a retornar. Isso porque, sim, ela sempre bebera da água do Nilo, e de nenhuma outra.

Ptolomeu Soter fez então a oferenda de praxe, sacrificando um touro negro aos deuses dos Mares, e as trombetas ressoaram, e o trieres se pôs em movimento, os remos subindo e descendo em perfeita ordem como asas de uma enorme gaivota; os remadores entoaram canções do mar e o faziam em uma só voz, para manter o ritmo, e Arsinoê Beta não olhou para trás, mas fixou seu olhar à frente, pensando na Trácia, pensando e pensando...

Ela havia ingerido o remédio do lagarto verde contra os enjôos do mar, e o das cinzas de caramujos, com semente de urtiga e mel, que lhe prometiam uma viagem sem distúrbios, mas seu rosto ficou inteiramente esverdeado antes mesmo de passarem pelos penhascos que ficavam na boca da Grande Baía de Alexandria.

Não estando acostumada a navegar, como a maioria das mulheres gregas, e com medo de se afogar, Arsinoê Beta murmurava preces a Poseidon, o deus dos Mares Furiosos, para ter uma travessia tranqüila, e pensava em por que estava fazendo aquilo; não era algo apenas em seu benefício — aliás, não era por ela, de modo algum —, mas pelo bem e pela glória do Egito, pela paz e porque era o desejo e a vontade de seu pai.

A família ficou observando o trieres tomar velocidade mar afora, tão leve e ligeiro que nem mesmo o falcão, o dos ágeis rodopies, a mais rápida criatura alada, poderia acompanhá-lo, e até que a embarcação se tornou um ponto negro no horizonte, quando então Ptolomeu e Berenice emitiram um suspiro de alívio pelo final feliz de um começo difícil. Mas acabou acontecendo que essa não seria a última notícia que se escutaria no Egito sobre essa nobre princesa, que foi comparada, em temperamento, a Sekmet, a deusa-leoa. Em verdade, essa Arsinoê possuía uma língua tão afiada e um coração tão rijo que seus pais não estavam totalmente insatisfeitos por vê-la pelas costas.

Agitando seu khausia em despedida à sua irmã estava Ptolomeu Mikros, seu irmão mais novo, então com nove anos de idade. Arsinoè Beta tinha quase idade o bastante para ser a mãe do menino, e foi sobre esse menino que ela derramou os sentimentos maternais que possuía, tratando-o como uma de suas bonecas de cerâmica, vestindo-o e despindo-o, dando-lhe ordens e obrigando-o a fazer tudo o que ela mandasse. De fato, bastava Arsinoè Beta estalar os dedos que Mikros pulava.

Enquanto Mikros acenava com o seu capuz, usou-o para enxugar a lágrima que escorreu por sua bochecha. Quase amara essa sua irmã, sua irmã por parte de pai e mãe, sua irmã mais velha, e não podia imaginar, naquela época, que era seu destino casar-se com ela.

Quando Ptolomeu Mikros revisse Arsinoè Beta, estaria com 29 anos e casado com outra mulher; Arsinoè Beta estaria próxima dos quarenta anos e com a sua vida em ruínas. Mas, mesmo depois de tanto tempo, Mikros ainda quase a amaria, por ter sido a única pessoa em toda a sua vida que haveria sido bondosa para com ele.

Mas teria também bons motivos para odiá-la.

Já Ptolomeu Soter jamais poria os olhos de novo em Arsinoè Beta, e no seu íntimo sabia disso. Por muito tempo, sua voz forte ficaria embargada, e seus olhos, umedecidos de lágrimas, e seriam talvez lágrimas de arrependimento porque não chegara a conhecer essa sua filha bem o bastante.

Se Arsinoè Beta tivesse o poder de prever o futuro, talvez ficasse mais satisfeita com o castigo do Cavalo e da Moça, em vez de pegar aquele navio e se tornar a rainha da Trácia. Isso porque Thot diz a verdade quando anuncia que, em certo sentido, sua sorte será pior, muito pior, do que se tivesse sido devorada viva por um cavalo faminto.

Se as lágrimas escorreram pelas macias faces de Arsinoè Beta quando ela deixou o Egito, não foi pela perda do convívio com a sua família, nem por estar tendo a sua última visão da ilustre e mais ilustre de todas as cidades, Alexandria. Não: ela chorava, em verdade, por achar que jamais veria de novo seu meio-irmão, Ptolomeu Keraunos, o irmão que havia amado mais do que se ama um irmão e odiara mais do que se odeia um inimigo. E foi só então que sentiu um pouco de pena de si mesma.

As últimas palavras que murmurou para Keraunos, cujo rosto não lhe haviam permitido ver desde o episódio do rabanete, foram: Não escreverei... Nunca nos veremos de novo.

E tinha certeza disso, tanto quanto de qualquer outra coisa, mas aconteceu que estava errada. Ela fitaria outra vez aqueles olhos escuros e reluzentes de Ptolomeu, o Raio.

Keraunos tinha apenas 19 anos quando da partida de sua irmã, e ele lhe pareceu, naquele dia, mais do que nunca semelhante aos deuses.

Quinze, vinte anos se passariam antes que o visse outra vez, mas nem Keraunos nem o Egito haviam visto pela última vez Arsinoê Beta, embora, naquele momento, se esforçasse ao máximo para esquecer-se de ambos, para esquecer o passado, para, enfim, usufruir da sensação do fluir do instante, assim como seu pai, observando os golfinhos que apostavam corrida com o seu tríeres sobre o reluzente oceano.

 

                     Mikros, o Pacífico

Mais ou menos na mesma época em que sua filha pegou o navio para a Trácia, o rei Ptolomeu designou o famoso Strato de Lampsacos como tutor de seu filho mais novo, Ptolomeu Mikros.

Strato era autor de inúmeros livros, inclusive o interessante Sobre a realeza, o importante Sobre a justiça, e o útil Sobre os sonhos, além do essencial Sobre a criação de animais. Suas obras sobre física e cosmologia lhe granjearam o apelido de O Físico, e sua grande teoria afirmava que toda a vida, todas as coisas viventes, poderiam ser explicadas por causas naturais; que as coisas viventes nada tinham a ver nem com os deuses da Grécia nem com nenhum outro.

Thot, é claro, conhece melhor tal assunto, mas foi esse Strato que proporcionou a Mikros sua curiosidade científica: isso porque Mikros demonstraria, durante toda a sua vida, uma grande paixão pelo conhecimento científico e por projetos de engenharia. Mais do que qualquer outra coisa, ele gostava do que era novo, do que era diferente, e gostava de pensar que era um desbravador de caminhos.

Ao passo que ia se desenvolvendo a disposição escolástica de Mikros, simetricamente diminuía seu interesse em assuntos militares. Seu pai era um homem rude, endurecido pelo treinamento militar; mas Mikros seria uma pessoa suave. A despeito do seu nome, jamais seria um guerreiro.

Quem seria o responsável por se criar esse garoto sem dedicação à guerra e sem desejo, igualmente, de ampliar as fronteiras do Egito, cujo grande prazer era sentar numa cadeira e ficar lendo um livro?

Alguns dizem que fora a mãe dele, Berenice, que dedicava os seus dias, agora, a sua manufatura de perfumes, às sedas provenientes da ilha de Kos, às jóias e a organizar pródigos entretenimentos teatrais, ou exóticas e dispendiosas excursões para percorrer a Via Canopus.

Outros diziam que Strato de Lampsacos, o tutor, seria o culpado. Strato, que tornara o seu aluno tão civilizado a ponto de levá-lo a perder o ímpeto macedônio para combater seus inimigos, por isso Mikros preferia ficar em sua casa, pensando em assuntos científicos: sobre o desenho de mosaicos, sobre a Teoria do Prazer, desperdiçando os seus dias em conversas sobre idéias, como se pretendesse se tornar um segundo Aristóteles, em vez de um segundo Alexandre; e para que servia tudo isso, afinal de contas?

Para os macedônios, um homem que não fosse de ação, um herdeiro sem vocação para a guerra, era um desastre. O único herdeiro possível para o Egito era o herdeiro de direito, o filho mais velho de Ptolomeu Soter: Ptolomeu, o Raio, um garoto que, ao menos, tinha a coragem de pegar a sua espada e lutar pelo seu país.

Mas Mikros... Mikros não queria combater nem ao menos as baratas gigantes alaranjadas que infestavam a residência. Ficava nervoso só de pensar em esmagar aranhas e moscas, Tinha medo de encontrar cobras em sua cama — e com boa razão, porque era o seu irmão mais velho, Ptolomeu Keraunos, que as colocava ali.

O rei Ptolomeu insistiu com a educação do seu filho mais novo, e havia rumores de que ele tinha pago a fenomenal soma de oitenta talentos a Strato para tê-lo como tutor de Mikros em ciência e matemática, mesmo Mikros não sendo muito bom em números. A educação desse garoto custou, então, exatamente, o equivalente ao soldo anual de 1.972 soldados de infantaria, ou a décima parte do Farol. Thot jura que é verdade.

Ptolomeu garantia que Strato era o homem mais inteligente do mundo, e que valia cada uma dessas dracmas, e, pelo que veio a acontecer, Thot pode revelar que os oitenta talentos foram um dinheiro muito bem gasto, o melhor investimento que Ptolomeu Soter poderia ter feito em benefício do futuro de sua dinastia.

Isso porque Mikros era inteligente — tão inteligente quanto a sua irmã de pai e mãe, Arsinoê Beta, e aqueles que gostavam de sussurrar palpites sobre o futuro já sussurravam que Ptolomeu Mikros era o futuro, o novo recomeço. Algumas pessoas na corte do rei Ptolomeu até mesmo sussurravam que um jovem como Ptolomeu Keraunos não traria nenhum bem ao Egito, porque estava um tanto atrasado em seu aprendizado, isso se não fosse mesmo um tanto estúpido, como a sua mãe, Eurídice.

De fato, os filhos de Eurídice não iam muito bem, e a próxima de suas crianças a começar a ir mal foi Theoxena.

Na mesma época em que Arsinoê Beta foi mandada para a Trácia, Ptolomeu Soter entregou Theoxena, filha de Eurídice, em casamento a Agathokles, o tirano de Siracusa.

Agathokles fora um garoto de origem humilde, mas espantosamente bonito, filho de um oleiro, e que enriquecera vendendo o próprio corpo, permitindo a qualquer homem que desfrutasse de sua luxúria segundo os hábitos dos gregos. Mas quando atingiu a maturidade, deixou perplexos os seus clientes, trocando seus negócios com homens por mulheres, e ficou mais rico ainda estabelecendo-se como pirata, pilhando todos os navios que atravessassem o Grande Mar.

Se Ptolomeu tinha conhecimento disso — e como poderia não ter? —, nunca disse uma palavra a esse respeito a Theoxena, a quem se contaram apenas as histórias de Agathokles, o Herói, e de sua arrasadora vitória sobre os cartagineses. O tenebroso passado de Agathokles estava encerrado e superado: ele era agora um homem de poder, muitíssimo respeitado por suas habilidades militares, e chamava a si mesmo de Rei da Sicília.

Theoxena estava agora com 15 anos, madura o bastante para o casamento, embora não tivesse seios como dois grande melões, mas, de fato, um busto plano, e tinha muita vontade de fazer algo melhor com os seus dias do que tecer cenários de Alexandria em fios de ouro e de púrpura.

Ptolomeu contara tantas coisas sobre Agathokles, um homem que na realidade não conhecera pessoalmente, e tanto sobre a Sicília, um lugar que, na realidade, ele jamais visitara, e tanto também sobre a cidadela de Euryalos, em Siracusa, onde ela viveria, e sobre as áridas ilhas com seu incessante alarido de grilos, que Theoxena quase ansiava por partir de vez do Egito.

Tanto quanto para encorajar Theoxena, seu pai esforçou-se também para lhe dar seus mais sábios conselhos e para lhe transmitir suas mais solenes advertências sobre sua nova vida, na Sicília, o novo mundo que era rico, jovem, generoso.

Sófocles diz, ele falou, que o silêncio valoriza uma mulher. Ele tinha em mente o fato de Agathokles ser aficcionado por garotos e de essa sua filha, por vezes, ter dificuldades de parar de falar.

Conversar, disse Ptolomeu, é para os homens. Uma esposa deve se manter em seus aposentos e viver para seus trabalhos, o tear e o fuso.

E, se Theoxena havia pensado em dizer adeus à tapeçaria, estava equivocada, mas prometeu: Vou ficar tão silenciosa como uma pedra.

Ptolomeu lhe disse tudo o que ela deveria saber; tudo para proceder da melhor maneira — à exceção do fato de que esse seu marido era, agora, um homem velho, de 61 anos: porque sabia que, se Theoxena soubesse disso, imediatamente se recusaria a ir para a Sicília.

Quando chegou o dia que seria o último de Theoxena no Egito, sua família atravessou a noite acordada, comendo tâmaras e azeitonas e tordos assados, e bebendo os capitosos vinhos de Mareotis, e jogaram a água da clepsidra fora, tentando reter o tempo. Bem cedo, na manhã seguinte, Theoxena ingeriu o remédio à base de lagarto verde, contra enjôo no mar, e subiu a bordo do trieres que no porão transportava seu espantoso dote, sendo que todas as decadracmas dela tinham a efígie benigna de seu pai, o BASILEUS PTOLOMAIOS, que a havia negociado.

A despeito do lagarto verde, Theoxena ficou muito enjoada a bordo, e pôs os pés em terra, na Sicília, com o rosto algo esverdeado e com seu manto de viagem ainda com manchas de vômito. Quando ela pousou os olhos sobre o rosto do homem que seria o seu marido, ficou chocada ao constatar que ele parecia ainda mais velho que seu pai, mas recordou as palavras de Ptolomeu sobre o que deveria fazer, e que o seu casamento era em prol do bem maior do Egito e pela paz no mundo grego. Ela sabia que não deveria falar em olaria, tampouco sobre belos garotos, e se esforçar para manter a boca fechada, vezes e vezes, porque olaria e garotos, os dois grandes segredos de Agathokles, eram, de fato, as duas únicas coisas sobre as quais desejava saber. Sabia apenas que deveria lubrificar o rhombos de Agathokles na noite de núpcias. E que de modo algum deveria montá-lo como a um cavalo, mulher por cima, e que não deveria de modo algum executar o amphiplix, não importando o quanto ele lhe pedisse por isso, e que não deveria em absoluto olhar para fora de nenhuma janela, porque somente as prostitutas executam o amphiplix, e somente prostitutas olham pelas janelas, e Theoxena não seria uma prostituta, mas uma esposa e uma rainha.

É claro, Theoxena sabia como fazer do seu casamento o sucesso que o casamento de sua mãe Eurídice não fora. E foi Berenice, sua tia-avó, quem lhe transmitira as mais rigorosas instruções e os mais inflexíveis avisos, num momento em que Eurídice não poderia escutá-las.

Berenice contou a Theoxena que Siracusa estava a apenas seis ou sete dias de navio, com bom vento, e que, se tudo desse errado com ela, na Sicília, sempre poderia retornar para casa. Disse-lhe como deveria executar a sua fuga de Agathokles, se as coisas se mostrassem amargas demais entre os dois, e lhe disse que não desse muita importância aos seus modos, mas chegasse mesmo a enfrentar Agathokles com seus punhos, se necessário. Ela não deveria tolerar ser maltratada. Nunca deveria se esquecer de que era uma filha da Casa de Ptolomeu, a filha de um rei.

Sob todas as pedras, disse Berenice, acautele-se para que não haja escorpiões.

O que deixaram de contar a Theoxena? Disseram muito pouco sobre a natureza política desse seu casamento, que não passava de uma propina ou uma recompensa para Agathokles em retribuição por ter ajudado Ptolomeu a reconquistar o controle do território de Cirene, depois do quase desastre da Revolta de Ofelas, cerca de cinco anos antes, assim como para assegurar o suprimento de milho.

Antes de deixar Alexandria, Theoxena teve a sensatez de consultar os oráculos para descobrir qual seria o seu futuro. Enviou perguntas ao deus Zeus-Amon, na Líbia, e até mesmo ao grande Oráculo de Dodona, na Thesprotia, mas ficou surpresa ao receber de todos a mesma profecia: que esse seu casamento duraria 12 anos e nem mais um dia.

Theoxena tinha esperanças de encontrar um marido com quem viveria para sempre, mas não ficou de todo abatida. Doze anos, ela pensou, pode ser mais do que suficiente, se ela viesse a detestar esse Agathokles — bem, ela teria apenas vinte e oito anos, quando seu casamento terminasse, e ainda haveria tempo para um novo marido, para mais filhos, uma vida nova — se esse casamento de 12 anos não tivesse um término por causa de sua morte. Theoxena disse a si mesma para parar de pensar no futuro, para seguir o exemplo de Ptolomeu Soter, seu pai, e viver para o presente, para o instante, sem se preocupar com coisa alguma.

Em seu íntimo, Ptolomeu pensou que seria uma sorte se Theoxena conseguisse que o seu casamento durasse 12 dias, quanto mais 12 anos, dado o gosto de Agathokles por garotos sicilianos ardentes, com nádegas lisas, mas desejava a sua filha todas as bênçãos de Tykhe, a deusa da Boa Fortuna, e não quis preocupar Theoxena contando-lhe que Agathokles era famoso não apenas por sua vitória sobre Cartago, mas por seu péssimo temperamento, sua crueldade pervertida e por sua brutalidade, quando se embebedava. Mas efetivamente informou Theoxena de tudo que dizia respeito a milho, porque seria a mais importante tarefa de Theoxena garantir o suprimento de milho proveniente da Sicília. Uma filha não era um desastre. Uma filha, acima de todas as coisas, era um patrimônio valioso.

E assim Theoxena partiu, para nunca mais ser vista no Egito, ou assim acreditava então a sua família: porque 12 anos é um casamento curto, e os oráculos sobre o seu futuro tinham de estar enganados.

Na Sicília, Theoxena apreciou as azeitonas, os limões e as laranjas que eram enviados para ela das encostas férteis do Etna. Ela calculou que a famosa montanha fumegante, de exatamente 2.274 cúbitos de altura, era 24 vezes maior do que a Grande Pirâmide de Mênfis, e a impressionou ver que tinham o mesmo formato.

No princípio, ela se preocupava com a possibilidade de a montanha cuspir seu fogo para os céus, mas os siracusianos asseguraram-lhe que isso não aconteceria, e que o Etna não tivera uma irupção sequer nos últimos cem anos, e que era bastante seguro viver à sua sombra.

Theoxena se acostumou com os cabelos prateados e com o rosto profundamente enrugado de seu marido. Ela era a terceira esposa do Tirano, e ele já tinha o seu filho e herdeiro, mas, como o próprio Agathokles disse, a terceira vez é a vez da sorte. Esse marido nunca teve uma discussão áspera com sua nova esposa, e o mau temperamento não chegou jamais a se mostrar. Agathokles havia muito deixara de levar garotos para o seu leito, ou assim se dizia. Sua embriaguez constante era um mito. Ele só tinha olhos para a sua princesa Theoxena, a linda filha do rei Ptolomeu, e, para grande surpresa de todos em Alexandria, Theoxena escreveu contando que estava completamente apaixonada por seu marido de 61 anos, e justamente porque ele se parecia exatamente como seu pai e ela sabia muito bem como deveria tratá-lo.

O início do casamento de Theoxena, apesar dos tão notórios maus presságios, se mostrava assim um grande êxito.

 

                     O Enteado

Quando o ligeiro tríeres de Arsinoê Beta aportou em Lysimakheia, a multidão reunida para saudá-la prorrompeu em cânticos e aplausos, já que essa garota seria a sua rainha, e ela atraiu todos os olhares para o seu rosto, porque se recusou a exibir-se com véu, como seria o costume grego, determinada a, desde o início, fazer o que bem entendesse.

Arsinoê correu o olhar pela fila de oficiais, procurando por alguém que se parecesse com um rei e pudesse ser seu futuro marido, e seus olhos recaíram primeiro e de imediato sobre um jovem de cerca de 19 anos, que estava trajando as vestes de uma cerimônia de casamento, um khiton branco, e tinha uma coroa de folhas de carvalho de ouro em sua cabeça, e os membros bronzeados do sol; um jovem que pareceu a Arsinoê Beta mais bonito do que seu irmão Keraunos, e pensou que esse deveria ser o rei Lisímaco a quem fora enviada para se casar: imediatamente foi atravessada pelas flechas de ouro do Menino Eros e apaixonou-se por ele.

Eros, no entanto, apreciava lograr as pessoas, e foi o Dioketes, o primeiro-ministro de Lisímaco, que conduziu Arsinoê Beta pelo braço até outro homem, que estava de pé próximo ao primeiro, também vestido com trajes todos brancos, envergando uma guirlanda de flores carmim e emplastrado de mirra, o qual se apresentou como Lisímaco da Trácia, e estendeu sua mão, para que ela a apertasse, no dexiosis dos gregos. Mas a mão de Arsinoê Beta não se moveu para tomar a mão desse homem. Nem seu rosto abriu-se num sorriso. Nem o seu coração saltou, porque o rosto de Lisímaco era entalhado de rugas e coberto de cicatrizes de suas batalhas, e ele tinha uma comprida barba branca, e cabelos brancos — era um velho — e o pensamento que ocorreu a Arsinoê Beta foi que ela fora enganada e que essa seria, de fato, a punição pela aphrodisia com o seu irmão.

Não, Ptolomeu, seu pai, não lhe dissera uma palavra sequer a respeito da idade ou da aparência de seu marido. Ptolomeu Soter era um grego, ardiloso como todo grego, e sabia que se contasse a Arsinoê Beta que Lisímaco era um velho, com mais de sessenta anos, e com cicatrizes por todo o corpo, e que ele era irascível, notório por sua crueldade, com idade bastante para ser avô dela, sua filha faria um escândalo sobre ter de ir para a Trácia e mesmo se recusaria a ir, e a aliança de Ptolomeu estaria perdida.

Arsinoê Beta estremeceu ligeiramente; então quando se recompôs um pouco, perguntou ao Dioketes quem era o belo jovem com as folhas de carvalho de ouro na cabeça; e veio a resposta, a terrível resposta, que se tratava do príncipe Agathokles, filho do rei, herdeiro do trono da Trácia.

Calafrios percorreram a espinha de Arsinoê Beta, ao descobrir qual seria o primeiro dos muitos horrores que vivenciaria na Trácia, já que aquele jovem por quem com toda certeza acabara de se apaixonar era o homem que, embora mais velho do que ela, não seria seu marido, mas seu enteado.

O que fez Arsinoê Beta? O que poderia qualquer garota fazer, sob tais circunstâncias, senão tomar a mão ainda estendida pelo velho para o dexiosis, e fechá-la na sua? E, sim, achou a mão dele fria, enrugada, calosa como a carne de um lagarto egípcio mas forçou-se a proferir palavras gentis em retribuição às suas boas-vindas. E apesar de ter tentado recolher a mão para tomá-la de volta, por conta do asco de tocar nesse homem velho, Lisímaco reteve-a e não a soltou porque a verdade foi que, embora grego, velho, louco, esse rei havia acabado de se apaixonar pela beleza dessa garota, e isso tão logo seus olhos se postaram em seu rosto, já que Eros andava trabalhando bastante naquele dia.

Quando afinal Lisímaco soltou-a, Arsinoê Beta foi apresentada a Agathokles, o filho do rei, e segurou a mão dele para o dexiosis, como fora ensinada, e a mão que ela agora segurava era quente, lisa, viva, tão quente quanto até mesmo as mãos de seu irmão Keraunos, e os calafrios percorreram de novo a sua espinha no que ela apertou essa mão; ela cravou seus olhos naqueles olhos reluzentes, azuis como safiras—ela ficou parada, sem conseguir desviar os olhos, e seu rosto ficou em brasa, e não sabia mais onde se meter de tanta confusão.

Mas lembrou-se das palavras de Berenice bem a tempo e decidiu-se a fazer o melhor do que dispunha, até porque, sendo realista, não tinha como mudar nada, já que a aliança e a paz estavam assinadas e eram irrevogáveis, e ela, Arsinoê Beta, era como a poderosa e rija cola que iria mantê-la inteira.

O casamento de Arsinoê Beta com Lisímaco aconteceu naquele mesmo dia. Foram sacrificadas centenas de touros negros com chifres folheados a ouro, uma oferenda muito pródiga a todos os deuses da Grécia, mais pródiga do que qualquer coisa que já tivesse visto no Egito.

Arsinoê Beta teve a forte sensação de que ela mesma era um dos sacrifícios. Sentia-se como se grande parte dela houvesse morrido; como se o seu próprio sangue tivesse sido derramado no altar, como se o seu próprio pescoço tivesse sido cortado pelo machado, como se fosse ela a mugir, e não os touros assassinados; e sentiu que suas pernas falhavam, como se fosse desmaiar. Em tais condições, Arsinoê Beta não poderia dançar, e quando os cortesãos de Lisímaco pediram aos berros que ela se levantasse e se movimentasse ao ritmo da lira e da harpa, ela se recusou.

Ferimos nosso tornozelo, quando apeamos do trieres, disse ela, e ficou mancando por um dia ou dois, depois, até se esquecer das palavras que havia pronunciado.

Infelizmente, durante todas as cerimônias que a uniram a esse idoso rei, ao longo do dia, ela não conseguiu desviar os olhos da pele dourada do jovem Agathokles, que era apenas dois ou três anos mais velho do que ela e não tinha, ainda por cima, assim lhe disseram, uma esposa, nem estava prometido em casamento, e o coração de ferro de Arsinoê Beta, agora derretido e branco de tão quente, bateu mais forte e mais alto por esse seu novo amor que, mais uma vez, era tanto proibido quanto impossível.

Por toda a viagem até a Trácia, Arsinoê Beta não conseguiu parar de pensar em seu irmão, a despeito das palavras que Berenice lhe dissera, na despedida, insistindo que ela deveria esquecê-lo: Não permita que ele pese sobre a tua alma, ela dissera. Não pense demais nele, ela tinha dito, como se talvez entendesse o que Arsinoê estava sentindo. Mas, enquanto esteve no mar, em seu íntimo acreditava que jamais poderia deixar de amar Keraunos.

Agora, entretanto, uma vez na Trácia, já o esquecera, e seu coração batia então numa batida estranha que ela não sentira nem sequer nos braços do irmão.

Que infelicidade! Thot balança a cabeça e chora por essas crianças, por que, de fato, a semente de uma mortal tragédia, para essa Arsinoê Beta, já estava plantada, e a semente cresceria. A semente jamais pararia de crescer.

Quando Arsinoê Beta se recolheu à sua câmara nupcial, naquela noite, tendo sido cantada a Canção do Corvo e da Andorinha e concluído o Epitalâmio, e os convidados do casamento haviam se fartado de tanto lançar sobre ela duras nozes e figos verdes que lhe causaram equimoses na pele, e quando ficou pela primeira vez a sós com o rei, seu marido, ela então começou a conhecer o seu caráter.

Lisímaco era um macedônio de Pella, um companheiro de armas de seu pai, um ex-guarda-costas de Alexandre. Tinha sido bastante bonito quando jovem, mas toda sua beleza se fora. Falava em voz alta, passional, e era um homem com grande voracidade para bebida, comida e aphrodisia. Era bastante gentil, mas não parava mais de espremer a carne de Arsinoê. Em verdade, Arsinoê Beta se viu bastante satisfeita com esse seu marido em todas as coisas, a não ser naquela que mais importava: o fato de ele ser um homem idoso; para ela, o prazer não advinha de homens velhos, mas de jovens, e apesar de Lisímaco receber honras divinas, não se parecia com um deus, quando se olhava para ele.

Lisímaco entediou Arsinoê com as mesmas histórias sobre Alexandre que seu pai costumava lhe contar, apenas exagerando-as um pouco menos. No entanto, o consolo de Arsinoê era a riqueza de seu marido, porque ele tinha toda a Trácia como província sua, e era o senhor de todas as terras da Ásia que ficavam ao norte das Montanhas Tauros. Ela pensava no grande poder dele, em sua riqueza, e realmente não tinha alternativa a não ser suportar esse homem velho, se conseguisse, pelo bem da aliança com o Egito.

Quanto à sua reputação de sovina, desde o início do casamento Lisímaco demonstrou o amor que tinha por sua mulher, cumulando-a de presentes era ouro e pedrarias.

Ela tinha temor em relação a esse homem velho, tão forte, que, assim se dizia, enfiara seu punho pela goela de um leão e arrancara a língua do animal. Decidiu-se a fazer o papel da esposa dedicada dali para a frente. Tomou o cuidado de não se indispor com ninguém, e dirigia preces três vezes ao dia a Afrodite, a Portadora da Felicidade Conjugal, para que ocorresse alguma mudança em sua situação, tal como a súbita morte de seu marido.

Embora a verdade fosse que Arsinoê Beta tivesse sido deflorada por seu próprio irmão, conseguira preservar a ilusão da sua virgindade, e disse a Lisímaco: Ninguém jamais me tocou... Sou ainda a parthenos que era em meu lar... E seu marido não percebeu nada de extraordinário acerca do seu hímen de borracha da Terra de Punt, e esse momento dela de ansiedade passou. Lisímaco era frio como um peixe, e despertava seu asco, porque Arsinoê não conseguia pensar em outra coisa que não no jeito de Ptolomeu Keraunos fazer aquelas coisas, e que o príncipe Agathokles poderia ser muito diferente do seu pai.

Pensou nas palavras de Ptolomeu: Não é a mais doce risada rir de nossos inimigos?

Agora, o inimigo do seu pai era o amigo de sua filha.

A filha de Lisímaco não se tornaria amiga de Arsinoê Beta. No palácio em Lysimakheia, Arsinoê Beta descobriu que precisaria compartilhar o gynaikeion com as demais mulheres de Lisímaco — incluindo outra Arsinoê, filha dele com a esposa falecida, Nikaia, e uma outra garota, que vivia sob a sombra de um mau horóscopo. Em relação a essas garotas, Arsinoê Beta deveria agora se comportar como madrasta, apesar de ser apenas sete ou oito anos mais velha. Tal estado de coisas não era o melhor dos começos. Existindo duas Arsinoè no mesmo gynaikeion, não era difícil se confundir uma com a outra. Não melhorava o relacionamento de ambas que as cartas de uma fossem abertas e lidas pela outra, de modo que a enteada lera as palavras meigas de seu pai, dirigidas à sua jovem esposa, e a madrasta lera as palavras meigas de metade dos jovens nobres da Trácia, que já buscavam obter a mão da jovem Arsinoè em casamento.

Pior do que isso foi que Lisímaco decidira pôr um fim nessa confusão dando à sua filha o nome de Arsinoè Alfa, sendo que Arsinoè, a filha de Ptolomeu, ficou como Arsinoè Beta. Isso de modo algum agradou a Arsinoè Beta, que julgava que cabia à esposa e rainha de Lisímaco ter a precedência sobre a filha do rei, e que era ela que merecia o título de Arsinoè Alfa.

Mas Lisímaco não quis escutar reclamações, sua palavra era lei, e Arsinoè Beta ela continuou, para o resto de sua vida, e de fato para todo o sempre.

Arsinoè Alfa já era então uma atraente, dócil e bela garota, tão bonita quanto o seu irmão, Agathokles, e se dizia sobre ela que, algum dia, sem dúvida se tornaria a esposa de algum monarca grego.

Ora, na Grécia, era costume antigo que uma madrasta nunca se desse bem com as suas enteadas; havia uma longa história de perversas e cruéis madrastas gregas, e já que essas duas Arsinoè iniciavam tão mal, tudo indicava que Arsinoè Beta iria manter a velha tradição de ser uma madrasta horrorosa.

Em verdade, Arsinoè Beta não concordava com Arsinoè Alfa em coisa alguma, e uma das razões de tal tensão era que precisavam compartilhar o gynaikeion; e já que Lisímaco, em sua imensa crueldade, mandou imediatamente de volta para o Egito as aias de Arsinoè Beta, ela precisava também compartilhar as aias com Arsinoè Alfa, cujos hábitos eram muito pouco familiares a ela, e que gostavam de ficar tagarelando num pesado dialeto trácio que Arsinoè Beta realmente não entendia.

Arsinoè Beta se ressentia bastante da presença de Arsinoè Alfa no setor feminino, julgando que a rainha da Trácia devesse ter espaçosos aposentos só para si, e não ser obrigada a compartilhar nada com ninguém, e além do mais porque precisava lidar com um bando de escravas trácias que também a aborreciam com seu dialeto trácio já mencionado, o que servia apenas para que Arsinoè Beta pensasse que estavam falando mal dela.

Por conta desses arranjos, as duas Arsinoê tiveram um péssimo início de relacionamento, e que só piorou, e não demoraram muitos dias para que a voz de Arsinoê Beta fosse ouvida, saindo pelas janelas do gynaikeion, alterada pela raiva, ou aos berros, e as palavras ofensivas voavam de seus lábios, e ela foi absolutamente deselegante com suas enteadas, chamando-as de Carade-Ibis e Cara-de-Hipopótamo, muito como se dirigia a Keraunos, seu irmão; e apesar de todas essas ofensas e brigas, que eram sobre nada senão trivialidades, a outra Arsinoê, Arsinoê Alfa, e a irmã dela, nunca pronunciaram uma ofensa sequer contra a sua madrasta, e por todo o tempo continuavam sorrindo e retrucavam com palavras gentis àquelas palavras iradas; não podiam entender por que Arsinoê Beta se aborrecia tanto com elas e com tudo o que faziam.

Arsinoê Alfa, afinal, chegou à conclusão de que sua madrasta meramente adorava procurar briga, e que essa garota deveria ter sido encarregada de alguma guerra, e se tornar Ministra da Guerra de toda a Trácia, já que nunca parava de falar sobre batalhas, e, em verdade, era a mulher mais agressiva e venenosa que já havia conhecido, que gostava de procurar falhas em tudo e se queixar de tudo.

Arsinoê Beta descobriu que a cidade que era a capital de seu marido não era o que ela havia sido levada a acreditar. Lysimakheia havia sido fundada oito anos antes, e não era de modo algum uma cidade tão esplendorosa quanto Alexandria, mas ainda em construção. As ruas eram precariamente pavimentadas, sem colunas gregas de espécie alguma, e cobertas de imundícies dos animais. Os templos de Apolo e de Zeus e de todos os demais deuses estavam construídos apenas pela metade, e sem telhados. Quanto ao assim chamado palácio de Lisímaco, as paredes não ostentavam as refinadas pinturas com cenas da Odisséia e da Ilíada, o chão não tinha mosaicos de golfinhos e tritões, e inúmeros de seus quartos estavam abertos para o céu, de modo que a água da chuva formava poças, e os pássaros, como pombos, corvos e outros, entravam pela casa, o que não era o melhor dos augúrios. O palácio de Lisímaco não era nada como a residência moderna e bem mobiliada que haviam prometido a Arsinoê Beta.

Ela expressou seu desagrado diante de tanta falta de conforto. Reclamou com Lisímaco até mesmo a respeito dos trácios, entre os quais suas escravas eram recrutadas, e que davam a aparência de serem um povo hostil e primitivo, que resistia à cultura grega. Lisímaco a ignorou.

Ocasionalmente, o tempo em Lysimakheia ficava frio, e uma chuvarada de brancas plumas despencava dos céus, fazendo as mulas escorregarem nas ruas. Arsinoêaprendeu, então, o que era o milagre da neve e o mistério do gelo, e reclamou contra o frio, o rigoroso frio, assim como costumava reclamar do abrasante calor do Egito. Mas Lisímaco riu-se dela, dizendo que mesmo um rei não tem poder sobre o clima.

Quando até mesmo a água no interior das ânforas do palácio solidificou-se, Arsinoêdeclarou-se convencida de que fora mandada para um país de bárbaros, e desejou que lhe permitissem voltar para casa, em Alexandria. Sentia sua vida na Trácia justamente como se tivesse sido encarcerada em algum lugar remoto, e esquecida. Ela tremia de frio, odiando a Trácia, odiando Lisímaco e toda a sua família, à exceção do belo Agathokles, mas acima de tudo odiando a si mesma, e rezava para os deuses da Hélade para ser tirada de um tormento que lhe parecia pior do que o do Hades.

Mas o que aconteceu foi que as preces de ArsinoêBeta não chegaram aos ouvidos dos deuses: ela precisou suportar o seu fardo, isso porque, quando enviou mensagem ao grande oráculo de Claros para perguntar o que ainda estava por vir, lhe foi dito que deveria habitar aquele lugar e agüentar. E agüentar foi o que ela fez.

Com o passar do tempo, ArsinoêBeta acabou se acostumando à Trácia e ao seu clima, e descobriu que seu marido gostava dela. Parou de reclamar e passou a ver tudo com outros olhos. Tudo o que estava errado, tudo o que a desagradava, tudo que estava inacabado, agora ela via como desafios, e decidiu-se a se empenhar ao máximo para acertar o que estava errado. Tomava cuidado para não entrar em confronto com o seu marido, e sim para cooperar com ele, servindo-lhe de firme apoio em todas as empreitadas, buscava atraí-lo para conversar com ela e escutar tudo o que lhe dizia em resposta, de modo que, num curto espaço de tempo, ele começou a valorizar a sua inteligência, a confiar em sua ajuda e a até mesmo em suas opiniões.

No final das contas, foi o que Berenice havia lhe dito que fizesse.

Movido pela gratidão de ter essa esposa, que não era uma persa e que não opunha resistência aos seus arroubos noturnos, Lisímaco começou a designar grandes somas em ouro para essa garota, para custear seu guarda-roupa e para satisfazer a sua súbita e insaciável exigência por jóias. Uma mulher formada para entender de negócios, ciente das glórias da matemática e que trilhava sem embaraços a estrada real da geometria rumo à perfeição, ArsinoêBeta resolveu fazer aquele homem idoso pagar por todos os favores que lhe proporcionava, desempenhando o papel da tigresa, e o apaixonado e velho Lisímaco fazia tudo o que ArsinoêBeta lhe ordenava até mesmo no que dizia respeito aos assuntos da Trácia, de modo que o rei começou a ficar sob o inteiro controle dela.

Isso porque Lisímaco admirava tanto os talentos de ArsinoêBeta que lhe deu permissão para estar presente até mesmo nos conselhos de Estado. Afinal de contas, ela estava habilitada a ler e a escrever, diferente das primeiras duas esposas de Lisímaco. Tinha olhos de falcão para números. Sabia exatamente que medidas deveriam ser tomadas para superar uma crise de escassez de alimentos, ou algum conflito que estourasse entre os escravos do palácio. Sabia como um exército deveria ser conduzido, e como acabar prontamente com uma revolta. Sabia tudo sobre a contratação de soldados nos mercados de mercenários do Peloponeso. Em verdade, nada havia que essa garota não soubesse acerca da manutenção de uma frota de ligeiros triereis.

A ArsinoêBeta, de fato, foi ensinada a arte da sobrevivência da esposa de um grande monarca, e ela não foi mandada de volta para casa, por suas reclamações, mas sobreviveu, de modo que os presentes do grato rei da Trácia não cessavam. Pelo contrário, e ela veio a entrar na posse de uma enorme fortuna, toda dela.

Berenice havia ensinado a essa filha todos os seus segredos, tão bem que ArsinoêBeta se tornou capaz de abrir caminho para uma posição de muitíssimo poder, da qual não seria desalojada com facilidade.

Acima de tudo o mais, Lisímaco confiava tanto nessa sua esposa que quando precisava viajar até os limites de seu reinado — buscando firmar alianças com outros reinos, talvez, ou quando precisava travar batalhas — não era nem mesmo o seu Dioketes que era deixado como responsável pelo Grande Sinete do Estado, tampouco os chefes de seus exércitos, nem mesmo o seu filho e herdeiro, o príncipe Agathokles, mas a própria rainha ArsinoêBeta.

Não, essa esposa não desapontou o seu marido em nada, nem uma vez sequer, nunca.

Por diversas causas, o rei Lisímaco havia sepultado 15 de seus filhos e filhas. Como Arsinoê Beta deu à luz três filhos saudáveis, no mesmo número de anos, e seguidos, ele se apressou a investi-la na posse de três feudos relativos a três poderosas cidades, como sinal de sua enorme satisfação.

Efesos, ela recebeu pelo nascimento de seu primeiro filho, a quem insistiu em não chamar por outro nome que não Ptolomaios, em homenagem ao seu pai. Lisímaco pessoalmente refizera o projeto dessa cidade, que passou a pertencer a Arsinoê, para fazer dela o que bem entendesse. Talvez, ele lhe sugeriu, ela quisesse usar os tributos anuais e os impostos auferidos dessas cidades para comprar sapatos novos. Mas Arsinoê riu, secamente. Ela preferiu guardar os tributos em seu tesouro. Tinha sapatos o bastante. Não estava interessada em comprar mais, e ela não pediu nada a não ser que a cidade tivesse seu nome mudado para Arsinoêia, em homenagem a si mesma, e o que ela pediu foi feito.

Éfesos-Arsinoêia estava construída sobre um pântano, e assim era sujeita a epidemias da doença dos calafrios, de modo que, se a verdade fosse dita, não foi para ela nenhum deleite imediato tornar-se dona dessa cidade. Quando a visitou, foi picada até quase ser feita em pedaços pelos mosquitos, e obrigada a dormir, embora sobre um sofá de ouro, sob a rede de um pescador, que era a única maneira conhecida de se manter longe os insetos.

No entanto, havia coisas que compensavam as picadas de insetos, e não seria a menos importante delas o fato de poder agora cunhar as moedas dessa cidade com a sua efígie aposta numa de suas faces, exibindo os olhos redondos da rainha e seu rosto alongado e sério em ouro — uma regalia que mesmo Berenice não teve, no Egito.

Na ágora de Arsinoê, uma grande estátua, maior do que seria o tamanho natural, contemplava, abaixo de si, os estabelecimentos dos açougueiros e peixeiros, do topo de uma coluna jônica folheada a ouro, e a própria estátua era de ouro, ouro sólido, reluzindo durante o dia, quando o sol decidisse brilhar sobre ela.

Lisímaco passou a sua esposa mais quatro cidades que, anteriormente, haviam pertencido a sua esposa Amastris: a própria cidade chamada Amastris, Tios, Heracleia Pontike e também a cidade de Cassandréia, no Khersonesos. Tais coisas serviam como compensação, em certa medida, por estar casada com um homem velho, com longos cabelos brancos, e havia momentos em que ela se esquecia de tudo quanto se referia a Alexandria, ao Egito e a Raio, que deixara para trás.

Dia após dia, entretanto, Arsinoê Beta despertava já sentindo o predominante cheiro de peixe vindo do Helesponto. Em quase todas as refeições, era apresentada a algum novo tipo de prato de peixe. Não havia outra vista, do palácio de Lisímaco, que não fosse a da vazia baía de Lysimakheia e do piscoso Helesponto, seus barcos de pesca e pescadores, e a ocasional possibilidade de assistir às manobras de treinamento executadas pela frota de seu marido. Não demorou muito até Arsinoê começar a odiar ver peixes.

Odiava também o cheiro de peixe, que impregnava seu marido, que se abraçava a ela, nas noites suarentas, aquele homem velho a quem o calor da juventude já havia abandonado; cujos olhos, no passado faiscantes, agora se fixavam nela com toda a fascinação de um peixe morto e frio.

Mesmo assim, como se para compensar suas desvantagens físicas, quase diariamente Lisímaco lhe dava presentes em ouro, sob a forma de anéis, colares e brincos, nos quais as figuras de Afrodite e Eros tinham lugar de honra, e Eros sempre empunhava o iunx, sua roda mágica, que era um talismã de amor representando o despertar do desejo: objetos que eram refinados trabalhos de artesanato, símbolos de seu amor por ela.

Em verdade, entretanto, Arsinoê Beta estava tão envolvida com as idéias e os negócios desse seu marido que não obtinha prazer das jóias de ouro, em si, mas apenas pensava em seu valor monetário, e os amealhava em seus aposentos particulares, pensando no dia em que poderia realizar seu desejo mais ardente, que era deixar a Trácia e seu marido com cheiro de peixe para sempre. Nem mesmo Eros pôde despertar o amor de Arsinoê por Lisímaco. De modo algum. Ela tinha amor apenas pelo filho dele, o belo Agathokles.

Ininterruptamente, os presentes de Lisímaco chegavam às suas mãos: leques de ouro, cetros de ouro, braceletes de ouro e tornozeleiras, com freqüência trazendo a figura de Ares, deus da Guerra, e de Atená, a deusa de Todos os Ofícios. Quase tudo o que essa garota possuía era feito de ouro. Todo presente que recebia era feito de ouro sólido, ou folheado a ouro, ou incrustado ou adornado com pedras preciosas, como se o seu marido fosse o próprio Midas.

Chegaria o dia em que Arsinoê Beta e toda a Casa de Ptolomeu estariam fartos de ouro, fartos de riquezas, exauridos pelos infindáveis excessos, mas não por enquanto.

Ouro: por ora, todo o ouro que Arsinoê obtinha não lhe bastava.

 

                       Rumores de Felicidade

Tendo se desincumbido de três de suas seis filhas, e aproveitando, praticamente, pela primeira vez, do conforto de uma paz ininterrupta como resultado de suas alianças, Ptolomeu voltou suas atenções para a arte da paz, e com grande zelo.

O que deveria fazer, agora que já não precisava se preocupar com a guerra?

Nessa época, instalou-se fortemente no coração de Ptolomeu uma grande idéia: fundar o grande Templo das Musas, o Mouseion, que seria o Palácio do Pensamento, um lugar fértil de novas idéias, que seria a contraparte grega da Casa da Vida dos egípcios, a qual integrava todos os templos egípcios.

Seria o próprio Ptolomeu um homem de grandes idéias? Não, não era. Se tivesse, efetivamente, sido discípulo do famoso Aristóteles, não teria absorvido dele nenhum grande amor pela filosofia. Ptolomeu não gostava de pensamentos abstratos. Gostava mais de pensar sobre fatos.

O seu único grande pensamento abstrato formulado até então fora acerca da glória conquistada em batalhas, algo que já alcançara. Ptolomeu tinha, é verdade, toda a glória pela qual qualquer homem poderia ansiar. Ainda assim, já tendo a sua glória, havia algo de que carecia a sua lista de realizações. Quem sabe, mantivesse seus pensamentos na Grécia, na Macedônia, na sua terra; mas para isso estaria no lugar errado agora. Quem sabe, ainda, fosse ter seu nome glorioso imortalizado, lembrado para sempre no Egito.

Uma solução seria fazer de Alexandria uma cidade mais grega do que a Grécia, e assim Ptolomeu encomendou mais colunas coríntias, mais teatros e templos gregos, e despachou pedidos para trazer mais imigrantes gregos, que viessem se estabelecer em sua cidade grega. Dobrou o número de navios gregos trazendo ânforas de vinhos gregos, azeitonas gregas e queijos gregos, da Macedônia para o Egito.

Enviou também inúmeros convites para sábios gregos, insistindo para que viessem morar em Alexandria: homens como Menander, Stilpon de Megara, Strato e Theophrastos — homens que poderiam formular novas e maravilhosas idéias gregas e tornar Alexandria famosa pela produção de conhecimento grego. Venham o mais breve possível, escreveu. Venham pensar para Ptolomeu e para o Egito... E ofereceu tantas e tantas dracmas a esses estudiosos gregos que eles acharam muito difícil ignorar seus convites.

Algumas pessoas insistiam, repito, que o Mouseion não fora idéia de Ptolomeu, mas do brilhante Demetrio de Faleron. No entanto, se não foi idéia dele, Ptolomeu a reivindicou como sua: uma fundação onde os estudiosos gregos cultivariam o conhecimento grego e a civilização grega, estudariam a poesia grega, a tragédia grega, a comédia grega — e tudo isso para grande glória do nome de Ptolomeu.

Primeiro, vinham os projetos para a construção do prédio, no estilo grego, com frontões triangulares e pátios, além das colunas gregas; e um passeio público, com assentos, onde os gregos pudessem travar conversas gregas, e um salão de refeições comunitário, onde os homens de conhecimento poderiam comer suas azeitonas gregas, seu queijo grego e também o típico pão grego, todo o tempo refletindo, pensando, sem serem perturbados pelo tráfego de carruagens e o zurro das mulas — e não haveria sequer uma esfinge ou uma coluna em forma de lótus à vista. Sim, seria um Palácio do Pensamento Criativo, ou das Argumentações Criativas. Porque, sem questionamentos quanto a isso, Ptolomeu achava que algo benéfico sempre surgiria, já que, se havia algo em que os gregos eram insuperáveis, era em discordâncias.

Alguns dos eruditos de Ptolomeu vieram para Alexandria por livre escolha. Outros, Ptolomeu adulou tanto que vieram por gratidão, por serem lembrados. Alguns, surrupiou das cortes de outros Sucessores, de Pergamon, da Macedônia, da Babilônia; e riu-se muito porque nenhum de seus rivais dispunha de algo para rivalizar com aquilo tão novo que ele havia inventado.

As cerimônias e os sacrifícios, tanto de animais quanto de seres humanos, em honra da fundação, estavam em pleno curso, e o Templo das Musas foi inaugurado e posto para funcionar. As idéias começaram a surgir, os eruditos recebiam hospedagem gratuita e generosas remunerações, além de toda independência para seu trabalho acadêmico (isso porque Ptolomeu não era um tirano), além de alimentação, e assentos de graça nos teatros. Tudo quanto fosse necessário foi proporcionado a esses homens de graça, porque um erudito não deve ter preocupações de natureza prática que desviem sua mente da formulação de novas idéias.

Ptolomeu expressou a sua satisfação, e tudo no Mouseion era maravilhoso, muito maravilhoso, e extremamente grego.

Então, sim, Thot pergunta: que idéias tiveram os eruditos de Ptolomeu, os mais sábios entre os sábios gregos, dedicando-se tão a fundo na sua produção profissional de idéias, com todas as despesas pagas, no Mouseion?

Depois de um mês, Ptolomeu enviou mensagem com essa pergunta, e, depois de algum tempo, deram-lhe uma resposta. Nenhuma idéia ainda. Nenhuma idéia significativa... Nenhuma idéia que mereça ser mencionada... Ptolomeu, assim lhe disseram, teria de esperar mais um pouco. Ptolomeu, assim lhe disseram, deveria ter muita paciência.

Nesse meio tempo, os eruditos discutiam a respeito da ordem dos assentos no salão de refeições, sobre quem deveria dispor de aposentos particulares, sobre quais entre eles deveriam falar menos e sobre a ordem na qual deveriam desfilar à frente de Sua Majestade.

Assim, enquanto as polêmicas prosseguiam, e mesmo intensificavam-se, em vez de se abrandarem, o Mouseion passou a ser chamado por alguns de Gaiola dos Galináceos, por causa dos altos cacarejos que brotavam dali, e porque as discussões faziam muito barulho — embora significassem muito pouco, porque se tratava da interminável contestação de um sábio contra o outro, chegando sempre a lugar nenhum.

A Grande Biblioteca de Alexandria e o Mouseion se tornariam, com o passar do tempo, belas instituições, famosas para todo o sempre, mas foram construídas para parecerem menores em comparação ao projeto realmente colossal de Ptolomeu, o Grande Farol de Alexandria.

Mas teria sido este também idéia de Ptolomeu? Talvez. Alguns assim pensavam. Outros juravam que somente um Alexandre poderia ter a idéia de construí-lo tão grande; que o próprio Alexandre foi quem percebeu que era necessário pôr um fim aos desastres em que navios eram esmagados contra as rochas ao entrar na Grande Enseada de Alexandria, e que isso se conseguiria com um grande farol.

Outros, mais uma vez, os bajuladores, atribuíram a primeira idéia do farol a Ptolomeu Soter, e outros, ainda, a Demétrio de Faleron, que idealizara, no mínimo, todo o restante do projeto.

Quem quer que tenha tido a idéia, nunca houve controvérsias sobre quem pagou pelo farol: foi Sostratos, filho de Dexifanes. E o nome de Sostratos apareceria em enormes letras deixadas numa de suas paredes — tão enormes que talvez a idéia do farol tenha sido do próprio Sostratos.

Sostratos de Knidos era um homem de grande riqueza e influência no Egito, oriundo de uma família que possuía carruagens de quatro cavalos — o que era algo pelo qual somente um homem muitíssimo rico poderia pagar. Havia ficado rico com a construção de navios, tanto de guerra quanto mercantes, que percorriam o Nilo. Havia ficado mais rico ainda com a corrida na construção de navios entre os Sucessores, na qual Ptolomeu procurava superar os seus vizinhos, visualizando embarcações cada vez maiores e melhores, que necessitavam de centenas e mesmo milhares de remadores para se locomover.

Os navios de Sostratos freqüentemente eram esmagados em colisões contra as rochas, na chegada a Alexandria, de modo que o próprio Sostratos foi quem obteve os maiores benefícios com a construção do farol. No mínimo, era quem tinha menos a perder com a construção do farol e quem mais tinha a lucrar com a sua existência. Acontecia que ele era também o proprietário do Banco de Alexandria, e assim encaixava-se perfeitamente bem que fosse ele a pagar do seu próprio bolso pelo farol.

É certo que Sostratos não estava muito desejoso de pagar por coisa alguma, já que, como todo homem rico, ficaria muito mais satisfeito em manter seu dinheiro em suas mãos; mas era o único homem no Egito, excetuando o próprio Ptolomeu, a possuir oitocentos talentos — ou quatro milhões e oitocentas mil dracmas, exatamente — o que os eruditos do Mouseion, mostrando sua utilidade pela primeira vez, calcularam como sendo o custo da gigantesca estrutura de três andares, que assomaria sobre a cidade e a enseada, e seria lembrada pelos homens como uma das Maravilhas do Mundo para sempre, enquanto o mundo não chegasse ao seu fim.

Sostratos esperava que Ptolomeu dissesse: o Egito vai pagar a construção. Pensou que o farol fosse financiado pelos lucros auferidos com o óleo de oliva, ou o lucro obtido com as Guerras Sírias, ou do monopólio de Ptolomeu da manufatura de papiros. Mas não, nisso foi frustrado. Viu-se obrigado a dar o farol como um presente a Ptolomeu, como sinal de sua estima pelo rei — uma homenagem a Sua Majestade — e ele jurou ter visto Ptolomeu rindo dele, por ter aceitado.

A despeito disso, Sostratos de Knidos ainda ficou com muitas dracmas sobrando. Sua recompensa foi, sem dúvida, ter se tornado famoso para sempre, já que a fama de um homem que empreende tal construção vale quase tanto quanto a de um Faraó.

No entanto, não foi bem essa a intenção de Sostratos, e sempre se disse que o choque da perda dos seus oitocentos talentos embranqueceu seus cabelos do dia para a noite, e sempre que seu olhar se desviava para a enseada, sentia-se mal só de pensar no custo daquilo.

O farol foi iniciado imediatamente, já que a grande vantagem de ser um rei e Faraó, além de um deus vivo, era que qualquer idéia de Ptolomeu começaria a ser executada quase no mesmo instante em que ele a formulava. Ginestho, ele disse, que seja feito... Foram assentadas fundações à prova de terremotos. Travou-se a guerra contra as ondas. As prisões do Egito foram esvaziadas e bandos de escravos, carpinteiros e pedreiros trabalhavam sob o sol, centenas e milhares deles. Alguns debochavam, prevendo que mesmo antes que a luz pudesse ser acesa, o farol desabaria no mar; mas adicionais sacrifícios humanos foram oferecidos, touros com chifres de ouro foram sacrificados, e a primeira pedra foi assentada pela própria mão de Ptolomeu.

O Heptastadion tornava-se, agora, uma constante procissão de mulas e de burros, carroças e comboios, cascalho, andaimes, argamassa e todos os materiais para o mais belo dos faróis. Logo, o primeiro pedreiro, como se esperava, despencou para a morte nas rochas, e Ptolomeu deu de ombros, dizendo: Tudo o que acontecer será por vontade dos deuses,

A despeito do número de trabalhadores, demorariam vinte anos ou mais até que o farol da ilha de Faros fosse terminado, e a grande luz pusesse um fim à escuridão noturna da cidade de Alexandria. Até mesmo Ptolomeu temia não viver o bastante para vê-la, mas sempre encorajava seus trabalhadores, dizendo: vai valer a pena esperar... e ele sorria, exibindo os dentes, usando então o seu sorriso antigo, que era o dobro do meio sorriso de um Faraó do Egito, como um sorriso grego, como se tivesse esquecido, por um instante, do seu fardo e das suas obrigações, e pensasse apenas como um grego pensaria, que estava fazendo uma coisa mais grandiosa do que qualquer homem já havia feito.

Mais ou menos nessa época, o rei Ptolomeu pôs seu sinete real para a aprovação das palestras públicas no Mouseion, e aconteceu que a maior platéia foi atraída por Hegesias, de Cirene, um filósofo da escola Cirenaica, cujo tema era Felicidade.

O boato que corria era que esse Heregias havia encontrado o Verdadeiro Segredo da Felicidade, ou que pelo menos iria revelar uma erudita descoberta sobre a Natureza da Felicidade, por meio da qual, talvez, a felicidade de toda Alexandria poderia ser alcançada. Mas Hegesias não era sequer um homem feliz e disse não saber nada sobre a Felicidade e que só poderia pensar em coisas infelizes para dizer. O resultado disso foi que ele ganhou o apelido de Melancólico Hegesias, no que pontificou que a felicidade é impossível. Disse que um homem sábio não deve nem sequer tentar ser feliz, mas apenas procurar afastar-se de contrariedades,

A felicidade não pode ser encontrada em lugar algum, ele disse, e menos do que em qualquer outro lugar na cidade de Alexandria. E todos aplaudiram ao escutar essas palavras, mostrando concordar com ele.

Na platéia, havia muitos rapazes com problemas amorosos, que dedicavam seu tempo a realizar encantamentos com excremento de crocodilos, segundo o costume dos egípcios, de modo a forçar alguma moça ou algum outro rapaz a aceitar seus avanços. Hegesias também foi escutado por homens que já não tinham esperanças de prosperar sob o governo do rei Ptolomeu, cujos níveis de taxação de impostos sobre todas as mercadorias eram tão altos que era quase impossível a qualquer um, à exceção de um homem como Sostratos, ficar rico.

Circulava, então, muita desolação pela cidade, mas não muito depois de Hegesias realizar sua palestra surgiu a primeira vítima da Felicidade: um jovem chamado Andronicos, que se atirou de seu tríeres na enseada de Eunostos, a Enseada do Feliz Retorno, deixando um bilhete em que escreveu: Somente um homem morto é feliz.

Mais mortes se seguiram. Alguns não despencaram, por acidente, mas sim se atiraram do primeiro andar do farol, esmagando seus crânios contra as rochas da ilha de Faros. Cadáveres foram encontrados nas praias a oeste e a leste de Alexandria, com seus rostos semidevorados pelos peixes. Outros entraram no Nilo com rochas amarradas em seus pescoços, tornando-se assim, segundo o pensamento egípcio, imediatamente, deuses.

Para os gregos, que detestavam a covardia acima de todas as outras coisas, o suicídio era a forma extrema de covardia. Um grego deve ser bravo, um guerreiro, não um covarde.

Mas Hegesias prosseguiu com tanto êxito seu curso de Melancolia Prática que, segundo dizem, fez decrescer o montante de felicidade no Egito inteiro. No que caminhava pela agora, davam-lhe encontrões, sibilavam contra ele, atiravam-lhe frutas podres, e passaram a chamá-lo de Hegesias Peisithanatos — o Insuflador da Morte.

No final das contas, já haviam ocorrido tantos suicídios que Ptolomeu encerrou as palestras de Hegesias e o baniu do Egito, em desgraça. Tentando restaurar o equilíbrio, Ptolomeu decretou novos dias festivos e saiu alardeando: Em verdade não há nada errado em ser feliz. Mas, ao mesmo tempo que dizia isso, Ptolomeu sabia, como todo grego, que não traz sorte ser feliz demais. Ser bem-sucedido significa provocar as Parcas, porque os deuses do Egito sempre ficam com ciúmes de um homem feliz e exitoso.

Isso, é claro, pressupõe que os deuses tenham algum significado, e havia homens em Alexandria que acreditavam que os deuses da Grécia não contassem para grande coisa. O principal desses era Theodoros, que ensinava que não existiam deuses, e que todo o panteão grego era uma farsa e um mito. A despeito de o nome desse homem significar Dádiva de Deus, Theodoros adotou, por sua própria conta, o nome de O Ateísta, e concordava com Strato de Lampsacos que tudo o que acontece tem uma causa física, e que nenhum deus não tem nada, seja o que for, com isso.

Theodoros, no entanto, não foi impedido de ensinar nem banido da Corte de Ptolomeu. Uma prova, talvez, de que mesmo Ptolomeu não se importasse muito com os deuses de sua própria terra.

Depois que Hegesias deixou a cidade, o surto de suicídios pelo menos diminuiu, e o nível de felicidade em Alexandria, se é que havia alguma, voltou ao normal.

Ptolomeu dizia que era feliz. E acreditava-se que houvera dito: Somos felizes. Nossa família é a mais feliz das famílias, e repetiu vezes sem conta essa afirmação, onde quer que estivesse, e com quem quer que conversasse. Queremos que todos sejam felizes, ele dizia. Não há razão para infelicidade, ele dizia. Tudo está caminhando para o melhor.

Mas o que de fato aconteceu foi que o futuro não reservava felicidade para a sua família, e sim mais e mais infelicidade dessa vez para Ptolomaís, a filha mais nova de Eurídice.

 

                         Costumes Gregos

Ptolomeu olhava pela Janela das Aparições em Mênfis, pensando no que deveria fazer durante esses anos de paz, e desejando que enfim a paz também se disseminasse no mundo grego; isso porque havia apenas uma facção que ainda o olhava com hostilidade, e era Demétrio Poliorketes, seu velho inimigo.

Como, pensava ele, poderia entrar num acordo de paz com Demétrio, cujo maior deleite era a guerra, e o prolongamento da guerra, e entrar em disputas pelo prazer de disputar?

Foi uma carta de Seleuco da Síria que lhe recordou seu antigo plano de maquinar o casamento entre uma das suas filhas com Demétrio; e acontecia que a única de suas filhas sobrando, já madura para o casamento, era Ptolemaís. Ptolomeu a observava longamente, pensando nos seus seios, que, por baixo de seu peplos, cresciam como dois redondos bolos de mel no forno que era a sua residência. Se uma aliança dessas puder ser firmada, Ora, pensava ele, haverá paz para sempre.

Então, Ptolomeu enviou seus embaixadores, com ordens para sugerir uma aliança de paz que se concretizaria por meio do casamento de Ptolemaís; e Demétrio, assim disseram, mostrou algum interesse, embora em nenhum momento tivesse parado de polir a armadura, durante toda a audiência. Quanto a PtolomaYs, ela deixou bem claro ao seu pai que ficaria muito feliz com tal arranjo, se isso acarretasse a paz e a glória maior do Egito, e, é claro, da Casa de Ptolomeu, pois tinha escutado falar muito em Demétrio; achava mesmo que o havia visto, certa vez, em ação. Assim, os papiros foram providenciados e despachados para que se colhessem as assinaturas, onde quer que Demétrio estivesse então acampado com suas máquinas de guerra, seus arremessadores de projéteis e catapultas, e sua mais nova Heliópolis, seus aríetes e suas miríades de soldados, e a aliança parecia bem encaminhada.

Por diversas razões, entretanto — e nem mesmo Thot sabe por quê — esse poderoso Demétrio, que se considerava quase igual aos deuses em sabedoria, declarou que não estava ainda pronto para se casar com Ptolomaís e — talvez porque tivesse já duas outras esposas e um filho já crescido, seu herdeiro, chamado Antígonos Gonatas, ou Rótula — conseguiu se eximir de marcar o dia, o mês, ou mesmo o ano no qual ele mais apreciaria que esse novo casamento fosse realizado.

Tinha batalhas a lutar, alegava, e providências a tomar; o fato era que, apesar de deter o controle, na época, do Grande Mar, não tinha nenhum reino em seu nome, e precisava conseguir para si algum reino antes de tomar mais uma esposa.

Para compensar o adiamento, e como demonstração de sua maior boa vontade, Demétrio enviou seu jovem companheiro Pirro, ex-rei de Epeiros, que ficava na Grécia continental, para Ptolomeu, como seu refém. O mais curioso acerca disso era que Pirro — cujo nome, bem adequado à surpreendente cor dos seus cabelos, significava Ruivo — fez enorme sucesso no Egito, já que era muito bonito, tinha boas maneiras, e era mais charmoso do que qualquer cortesão alexandrino. Ele tornou-se amigo não apenas de Mikros, mas também do extremamente odioso e temperamental Keraunos, que vagava pela corte de seu pai aguardando pelo que seria feito dele, uma vez que o seu pai não conseguia se resolver a mandá-lo partir.

Pirro era amigo de todos, e tornou-se até mesmo amigo pessoal de Ptolomeu Soter, que o admirava por seu bom temperamento e porque não se importava nem um pouco em ser derrotado nos dados e nos jogos de ossos, ou nos dardos, nem de fato em jogo nenhum, e também porque não tinha medo de fazer Ptolomeu rir; pelo contrário, apreciava fazer gracejos, já que possuía um atributo que era o mais raro entre os gregos: um apropriado senso de humor.

Pirro também caiu nas graças da rainha Berenice, que passou a vê-lo quase como mais um filho, e angariou tanta simpatia real que, quando se sugeriu que ele daria um marido bem adequado para a filha de Berenice, Antígona, a Rainha com grande generosidade consentiu e abençoou a união: e assim Pirro e Antígona ficaram compromissados.

Os termos e condições do contrato de casamento foram, é claro, que Pirro transferisse sua aliança de Demétrio para Ptolomeu, pois não havia a menor possibilidade de que Pirro se casasse com a enteada de Ptolomeu e continuasse a apoiar seu maior inimigo.

Assim, iniciou-se a aliança de Ptolomeu e Pirro, que foi declarado não mais um refém, mas recebeu de volta a sua liberdade, além de um dote de grande valor, de modo a poder manter Antígona com o estilo de vida condizente com o de uma esposa que fosse, em tudo menos no título, uma princesa do Egito.

Como o desenvolvimento dos acontecimentos, Antígona já seria mãe, e estaria havia dez anos em seu túmulo, antes que sua meia-irmã, Ptolomaís, chegasse sequer a conhecer o notoriamente ausente Demétrio Poliorketes.

Antígona casou-se, então, e foi por fim viver em Epeiros como rainha daquela terra, isso porque Pirro, no tempo devido, foi reempossado de seu reino — mas Ptolomaís não se casara com ninguém, tendo sido abandonada em seu lar em Alexandria, aguardando, aguardando, e dedicou os seus dias de espera à tecedura e à tapeçaria e a cerzir as peças de linho domésticas das quais iria necessitar como esposa de um marido real. Ela jurava que havia visto de relance esse belíssimo homem, uma vez apenas, anos antes, quando tinha dez anos de idade, e isso foi na Batalha Naval de Salamina, em Chipre; e, embora o tivesse visto apenas a distância, e houvesse muito nevoeiro baixo, e fogaréus ardendo sobre as águas, e fumaça, e o mar estivesse revolto, Demétrio lhe pareceu, Ptolomaís dizia, um homem dotado de tudo o que uma garota poderia desejar, em inteligência e boa aparência; o tipo de homem com quem uma garota como PtolomaYs sonhava. Mas embora o nome desse homem, agora, ocupasse todas as horas de sono de Ptolomaís, e estivesse em seus lábios do alvorecer ao pôr-do-sol, a ponto de todas as aias já estarem cansadas de escutá-la falar a respeito desse homem que ela desconhecia, Ptolomaís, em verdade, há muito esquecera como ele era.

Doze meses inteiros se passaram, durante os quais Ptolomaís não parou de sorrir; mas Demétrio não mandava buscar sua prometida, e embora ela mandasse indagar, duas vezes ao dia, pelos navios aportados na Grande Enseada, não havia navio algum com a bandeira de Demétrio, nem sequer notícia alguma sobre ele.

Nesse ínterim, Ptolomaís já havia reunido todos os seus pertences numa arca de viagem, preparada para o dia em que deveria pegar o navio que a levaria para a Grécia, onde se tornaria a esposa desse homem. Ptolomaís aguardou com paciência, e depois com impaciência. Mas quando, em desespero, mandou consultar o oráculo de Zeus-Amon na Líbia para saber por quanto mais deveria arrastar-se a sua espera, o Oráculo lhe respondeu com apenas uma única palavra: Anos.

De tempos em tempos chegava uma carta de Siracusa, na Sicília, repleta da felicidade conjugal de Theoxena e de seu marido, o Tirano. Agathokles, ela dizia, dava todas as demonstrações de amá-la com grande ternura, e Theoxena dizia que o adorava. A carreira de Agathokles como um kinaidos ordinário parecia ter se encerrado e, em dois anos, Theoxena pôde informar o nascimento de dois belos filhos, chamados Arkhagathos e Agatharkhos, que haveriam, assim ela pensava, de dividir o governo de Siracusa entre si, senão de toda a ilha da Sicília.

Alguns intuíram que o êxito do casamento de Theoxena se devia a ela ter tido, em Alexandria, uma educação de menino, já que não desperdiçara sua infância não fazendo nada mais do que costurar e tecer, mas, tivera, como todas as filhas de Soter, lições aos pés dos tutores de seus irmãos, aprendendo estratégia e tática, como defender uma cidade contra um cerco, enquanto os meninos bocejavam, esmagavam baratas alaranjadas e sonhavam com aphrodisia. O resultado foi que também Theoxena pensava de modo bastante semelhante ao de um homem. Sabia quase tudo o que se referia à guerra — sobre contratação de mercenários, alianças e a manufatura de armas e armaduras. Uma esposa como essa seria da maior utilidade para o Tirano de Siracusa, e talvez o seu conhecimento de assuntos militares fosse o responsável pela felicidade em seu casamento.

Sob o intenso calor da Sicília, Theoxena julgou mais confortável usar seus cabelos bem curtos, como os de um garoto. Ou então os deixaria crescer até ficarem bastante longos, quando então os cortaria, para que fossem transformados em rijas cordas que servissem para disparar as máquinas de guerra, e ao fazer isso daria um belo exemplo às mulheres de Siracusa, que passariam a imitá-la.

Theoxena não possuía curvas e carnes abundantes, como a maioria das mulheres gregas, porque comia como um passarinho, e era magra como um lebréu. Em suma, Theoxena era muito parecida com um garoto, e pode ser por isso que Agathokles gostava tanto dela, e a razão pela qual esse seu casamento era um estrondoso sucesso. Mas, ao mesmo tempo que satisfeita, Theoxena se preocupava; pois todos os oráculos consultados continuavam dizendo que o seu casamento não duraria mais do que 12 anos.

Theoxena recebera a mais meticulosa instrução em matemática, e assim calculou o exato número de dias e noites que lhe sobravam na Sicília: 4.380.

Ela entalhou esse número em marcas na parede de seus aposentos e riscava os dias e as noites à medida que passavam, vivendo somente para o momento, quando conseguia, de acordo com os princípios de seu real pai, mas sempre pensando em seu futuro — o qual estava fadado a ter um fim mais cedo do que o desejava. E, durante todo esse tempo, não disse uma só palavra a Agathokles, o Tirano, sobre o que o oráculo lhe revelara, porque senão ele a mandaria embora: pelo contrário, mentiu para ele que as marcas representavam apenas o cálculo dos dias pelo calendário do ano egípcio.

Foi seis anos após a Batalha de Ipsos que Ptolomeu reassumiu o controle sobre a ilha de Chipre, que ficara dez anos em poder de Antígonos Caolho, e esse evento trouxe grande alegria para Alexandria.

O acontecimento mais notável foi a derrota das forças do famoso Demétrio Poliorketes, filho do Caolho, na qual a defesa contra o rei Ptolomeu foi feita com grande energia pela brava Fila, esposa de Demétrio. Essa Fila era precisamente a filha do Velho Antipatros, de modo que se tratava também da irmã da primeira esposa de Ptolomeu, Eurídice, e sua própria cunhada, que foi afinal obrigada a erguer a bandeira branca da rendição em Salamina com sua própria mão.

Ptolomeu mais uma vez retribuiu o cortês tratamento de Demétrio, de dez anos antes, enviando Fila e seus filhos de volta para a sua terra, Pella, na Macedônia, carregada de presentes sob a forma dos mais refinados artigos egípcios, e isso a despeito de seus sentimentos ocultos, ou seja, que ele teria grande satisfação em cortar em tiras Demétrio e toda a sua família. Mas a generosidade de Ptolomeu prevaleceu. Não somos bárbaros, ele disse. Não vamos deceparas orelhas de homem algum, tampouco seus narizes, como fazem os bárbaros. Essas pessoas já foram nossas amigas... E talvez voltem a sê-lo... Afinal de contas, Fila é a irmã de nossa esposa...

Eurídice, em seu lar, em Alexandria, esforçou-se para não tomar partido de Fila, sua irmã, nem o de Demétrio, seu cunhado. Pelo contrário, Eurídice esforçou-se ao máximo para se manter alheia aos resultados da guerra em Chipre e a como seu marido se sairia por lá. Tampouco, em verdade, ela se importava muito que seu marido conquistasse Chipre ou não, e talvez esse fosse todo o problema com essa esposa: ela não se importava com nada, enquanto Berenice se interessava por tudo o que Ptolomeu se interessasse, e o apoiava em todos os momentos difíceis.

Ptolomeu sabia, em seu íntimo, quais eram os sentimentos de Eurídice, e qual lado estaria ela desejando que vencesse a guerra por Chipre. Era essa mais uma das razões pelas quais devia rejeitar essa esposa que, nos seus pensamentos mais secretos, rezava para que Zeus e todos os deuses da Hélade provocassem a derrota de seu próprio marido. E ele estava certo. Eurídice, de fato, queria que Ptolomeu conhecesse uma derrota, de modo que aprendesse uma lição por ter se casado com Berenice, sua tia, preterindo-a.

Na celebração do oitavo aniversário da Coroação de Ptolomeu Soter, realizou-se uma grande procissão de sacerdotes e um desfile do exército inteiro pelas ruas de Mênfis, com distribuição gratuita de pão e de booza para os nativos, e o entoar incessante de Ptlumis, Ptlumis, Ptlumis, pelas ruas, e já fazia dois anos que Ptolomaís aguardava que Demétrio Poliorketes mandasse buscá-la, enquanto este continuava tentando guerrear contra o pai dela.

Ptolomaís, por essa época, já não era uma garota nova, mas uma jovem mulher, com seus seios como dois melões maduros e com muito mais de três dedos de altura: mais do que madura, portanto, para o casamento, que não acontecia. Nos dias quentíssimos e abafados em Mênfis, ou nos dias frios e cinzentos de inverno, mas com mais freqüência quando as tempestades de areia varriam o Egito, como se fosse uma gigantesca manta amarela, algo próximo ao desespero dominou a filha de Ptolomeu, e as lágrimas escorreram por suas faces, e ela começou a uivar que Demétrio jamais mandaria buscála, que fora ludibriada, e que se ele não lhe providenciasse logo um casamento, iria enforcar-se com sua própria cinta, já que não suportaria esperar muito tempo mais.

As aias de Ptolomaís se empenharam ao máximo para consolá-la, e instaram Eurídice, sua mãe, a pedir a Berenice para pedir a Ptolomeu que mandasse seu mais ligeiro trieres a Demétrio, com o propósito de descobrir se suas intenções eram honradas. Por fim, a resposta chegou, ele desejava se casar com Ptolomaís, mas que ela aquiescesse em esperar mais um pouco, e perguntava a idade dela e pedia uma descrição de suas feições, como se tivesse esquecido tudo a respeito da moça.

Assim, Ptolomaís, a prometida, retornou à sua costura e à contagem dos dias desperdiçados de sua vida, e também começou a entalhar marcas na parede de seus aposentos privados, mantendo a contagem dos dias que esse Demétrio a faria esperar.

Com sua irmã Arsinoê Beta tendo partido para a Trácia, Ptolomeu Keraunos permaneceu no Egito nem propriamente deserdado, nem propriamente tendo recuperado a plena aprovação de seu pai, sendo que ficaram se observando mutuamente, como dois cães que houvessem tido uma briga, e sempre pensando se iriam se enfrentar novamente, e como se estivessem esperando para ver o que iria acontecer. Ptolomeu aguardava e vigiava, tentando descobrir se o caráter desse seu filho e herdeiro se tornava mais benigno ou se piorava.

Keraunos polia sua armadura e afiava sua espada, mas, à parte seus exercícios e treinamentos diários juntamente com os exércitos egípcios, na planície arenosa diante de Mênfis, ou suas excursões de montaria pelas praias de Alexandria, e, claro, seu treinamento físico no gymnasion, que mantinha seu corpo como uma estátua grega, não tinha qualquer outra ocupação. De fato, Ptolomeu Keraunos nada tinha para fazer a não ser esperar que o seu real pai morresse, de modo que ele pudesse substituí-lo no trono.

E será que o caráter de Keraunos melhorava? Não. Havia informações de inúmeros ultrajes, e o rei Ptolomeu os escutava sem comentar nada, apenas vigiando, esperando e vigiando. Chegar próximo das Pirâmides de Mênfis, depois de escurecer, era sempre um ato voluntarioso, que sem dúvida atrairia sobre o visitante a fúria dos Faraós mortos. Um homem com algum juízo evita os túmulos à noite, quando os espíritos dos mortos emergem à superfície para aproveitar o ar mais frio. Mas era divertimento e prazer de Ptolomeu Keraunos, o Raio, galopar com seu cavalo ao redor das Pirâmides já bem depois de escurecer, elevando o grito de guerra dos macedônios. E quando se cansava de galopar, detinha-se e invadia os túmulos dos sacerdotes de Mênfis, localizados sobre o platô do deserto, procurando objetos que pudesse roubar.

O sumo sacerdote de Mênfis advertiu-o para não fazer isso, mas Keraunos era um garoto que se deliciava em ignorar advertências. Ele profanaria os túmulos, se assim desejasse, caçando tesouros. Realmente, não gostava que lhe dissessem o que deveria fazer.

As palavras de Thot não são segredo: Qualquer um que viola um túmulo terá o seu pescoço quebrado como o pescoço de um pássaro.

Mesmo assim, e a despeito de todos os atos condenáveis praticados por Keraunos, ele ainda não havia perdido as graças de seu pai. Mesmo então, nada que esse garoto pedisse lhe era negado. A despeito de suas falhas, todos o estimavam, e mesmo o admiravam por conta de sua força física e por sua beleza. Mesmo para o seu pai, era quase como se nada do que Ptolomeu Keraunos fizesse pudesse estar errado. Ele ainda era destacado dos outros filhos do Soter como aquele que deveria ser o Faraó.

 

                       Amor e Loucura

Ptolomais, filha do rei Ptolomeu, celebrou seu aniversário de 25 anos sem um sorriso sequer, porque então já haveria ultrapassado, segundo seus cálculos, 1.460 dias desde que fora prometida a Demétrio, e ele ainda não a mandara buscar para se tornar sua esposa.

O desespero de Ptolomais crescia cada vez mais, como se isso fosse possível, e lhe ocorreu o pensamento de que, em sua idade, muitas mulheres já haviam dado à luz nove ou dez filhos e, havia muito, tinham descido para o Hades.

Ela passou a, diariamente, sacrificar um ganso a Afrodite, Portadora da Felicidade Conjugal, e isso de algum modo manteve as suas esperanças vivas. Fazia uso constante do remédio para manter a pele perfeita, feito com cebolas egípcias e nabos selvagens, de modo a garantir que, não importando o quanto fosse longa a sua espera por esse marido, ainda tivesse a aparência jovem, mesmo não sendo mais uma jovem. Também lhe ocorreu o pensamento de que seus cabelos embranqueceriam antes de se tornar esposa e mãe, e vez por outra atormentava-se tanto em sua ira que quebrava pratos atirando-os no assoalho de mosaicos.

Depois de quatro anos de casamento, pelos cálculos de Theoxena, ela ainda teria 2.920 dias de sobra para viver com o seu marido, e ainda então não sabia se era ela que estava fadada a morrer, ou seu Tirano, ou se apenas ele ficaria cansado dela, depois desses 12 anos, e se divorciaria. Mas Theoxena tinha juízo demais para perguntar a Agathokles se lhe agradava ou não, porque, caso ele dissesse não, ela precisaria partir da Sicília imediatamente.

O que fez, então, Theoxena? O que ela poderia fazer senão continuar riscando as marcas que contabilizavam os dias que lhe restavam, dia após dia, e tentar esquecer que o término do seu casamento já estava profetizado?

Theoxena esforçava-se ao máximo para viver do presente, para o agora, seguindo a filosofia de seu pai, e fingindo que o futuro não existia.

Se Ptolomais e Theoxena pareciam ter sobre suas cabeças todos os infortúnios do mundo, o que seria então de Arsinoê Beta, sua meia-irmã, na Trácia? Que notícias chegavam de Lysimakheia?

Vez por outra, Arsinoê Beta colocava o seu instrumento de escrita feito de junco sobre o papiro e escrevia para o Egito. Três vezes ela escreveu relatando o nascimento de um filho saudável; três vezes houve regozijo em Alexandria, pelo nascimento de um novo neto do rei Ptolomeu, e as notícias eram boas, mas a verdade, que jamais fora contada à família, no Egito, era que nem tudo corria bem com a vida de Arsinoê Beta.

Sim, todo o problema de Arsinoê Beta era Agathokles, o outro Agathokles, príncipe da Trácia. Arsinoê Beta ainda se sentia em fogo. Arsinoê Beta queimava de amor por Agathokles, e lançava melancólicos olhares e ardentes relances para esse jovem todos os dias, dia após dia.

Em seus momentos de ócio, sentada na penumbra do gynaikeion, Arsinoê Beta rabiscava sobre seu tablete de cera palavras como essas:

Eu amo Agathokles

Eu me fascino com Agathokles

Estou louca por Agathokles

Ela sentia como se estivesse queimando até virar cinzas de tanto amor por esse jovem, e mesmo assim não podia confidenciar nada a ninguém a esse respeito. Já Agathokles não tinha, nessa época, a menor idéia de que a sua madrasta alimentasse tais sentimentos por ele; mal trocava duas palavras com Arsinoê Beta, exceto para cumprimentá-la, quando se cruzavam nos corredores do palácio de seu pai.

Mas, agora, quando tinham a oportunidade de conversar, Arsinoê Beta passou a modular a sua voz da maneira mais insinuante, pensando em fazêlo conhecer quais eram os seus sentimentos em relação a esse homem que ela via como o seu amor. Mas, como reagia Agathokles? Parecia não perceber coisa alguma.

Agathokles, com seus cabelos louros e seus olhos azuis como safiras, sua carne rija e ombros largos, seu peito másculo, sua inacreditável beleza — tudo isso junto estava levando Arsinoê Beta à loucura, já que esse rapaz estava no auge de sua forma física e, de fato, sua pele dourada parecia se derreter sob o olhar ardente de sua madrasta, que ficava estonteada pelos atributos de beleza de seu corpo, pela meiguice e nobreza de seu caráter, pensando que olhar para ele era como olhar para os deuses, como se ele fosse um jovem Apolo.

Arsinoê Beta estava apaixonada. Mas o que deveria fazer a respeito? Ela sabia, sem nenhuma dúvida, que o parâmetro grego, fosse no que fosse, era o equilíbrio são; mas acontecia que perdera todo o seu equilíbrio. Amor era loucura, e Arsinoê Beta não estava em seu juízo perfeito, e a sua vida só iria piorar.

O que ela deveria fazer? A única solução para o seu problema era esquecer — tentar esquecer — Agathokles, mergulhando nos afazeres do Estado em vez dos afazeres do coração, porque era somente quando voltava os seus pensamentos para a guerra, para a defesa, para a construção de navios de guerra, para a contratação de mercenários, para as provisões dos exércitos da Trácia que conseguia obter uma pausa em seus pensamentos luxuriosos sobre seu enteado.

Mesmo assim, Arsinoê Beta não conseguia sufocar sua paixão, e seu suplício não terminava, e ela não sabia o que fazer quanto a isso. Essa que era a mais forte das mulheres sofria, apenas, em silêncio, e, em segredo, derramava torrentes de lágrimas femininas, e durante todo esse tempo, Agathokles, o Belo, de nada sabia sobre o que Arsinoê sentia por ele.

Sem dúvida, em Lysimakheia, no Helesponto, Arsinoê Beta desfrutava de tudo de melhor que poderia desejar. A única coisa de que essa rainha da Trácia se sentia privada era justamente o que não poderia ter: amor — um amor que lhe retribuísse sentimentos na mesma intensidade dos seus, e o amor de seu marido, o rei Lisímaco, que de fato amava essa mulher, nada tinha a ver com isso, já que ela não o amava nem podia amá-lo.

Ah, sim! Amor era tudo o que Arsinoê Beta desejava, e amor era a única coisa que jamais tivera.

Já fazia seis anos que Arsinoê Beta chegara à Trácia, onde agora era a mãe de três filhos, quando então Lisímaco enviou seu filho e herdeiro, Agathokles, para as terras do norte, com um exército e ordens para subjugar a feroz tribo chamada Getai, cujo líder era Dromikhaites, e que lutava suas batalhas completamente despido, a não ser por um colar de ouro, e com seus cabelos feitos na ponta como ferrões. Como típicos sátiros, diziam os gregos.

Agathokles tinha então 24 anos, e era essa a sua primeira campanha militar como único comandante das tropas. Seu exército desfilou pelas agora belamente pavimentadas ruas de Lysimakheia, ovacionado por todo o percurso pelo povo, que estava convencido de que obteria uma rápida vitória sobre os bárbaros. Arsinoê Beta assistiu a Agathokles partir em seu cavalo para a batalha, à frente de seus soldados, de sua janela, bem alta, e quando suas aias perguntaram qual era o problema, o que estava errado, lhes disse: Eu não estava chorando, era poeira nos meus olhos, a poeira levantada pelas botas dos soldados em marcha... Mas o pensamento que acometeu Arsinoê Beta foi: Quando verei Agathokles outra vez! E seu coração se oprimiu dentro do peito, como se fosse uma massa de chumbo contraindo-se.

Da região onde acontecia a guerra tudo que chegou foi um prolongado silêncio, a costumeira total falta de notícias, a costumeira falta de qualquer notícia da frente de batalha, e durante muitos dias de incerteza, Arsinoê Beta não comeu outra coisa senão as unhas, e arrancava fartos chumaços de seus famosos cabelos louros, e despertava berrando, nas horas mortas da noite, porque havia visto, em seus sonhos, abutres revoando em círculos sobre Agathokles.

Por fim, o arauto usual, coberto de sangue e bandagens, adentrou Lysimakheia vindo da direção do rio Istros, para o qual o exército de Agathokles supostamente havia rumado, e despejou as notícias de que o príncipe havia sido derrotado pelos bárbaros e feito prisioneiro pelo próprio Dromikhaites a quem recebera ordens de subjugar, e que havia um resgate de milhares de talentos a ser pago pela vida desse rapaz, o que eqüivalia a toda riqueza que se produzia no reino da Trácia pelo período de dez anos.

Arsinoê Beta, não tão máscula agora, correu para seus aposentos particulares e mordeu o travesseiro para abafar o perigoso barulho de seus soluços, pois acreditou que jamais veria Agathokles novamente.

Mas, embora tenha oferecido os mais pródigos sacrifícios aos deuses da Grécia e tenha feito tudo ao seu alcance para convencer Lisímaco a pagar o resgate, o avaro rei recusou-se a entregar um meio óbolo que fosse aos getai, e disse a sua mulher que seus sacrifícios eram tanto um desperdício de dinheiro quanto de tempo, pois os deuses da Grécia haviam perdido a utilidade havia anos.

Setecentos e trinta dias se passaram, durante os quais os getai enviaram mensagens cada vez mais exigentes, pedindo o pagamento, mas Lisímaco respondia que não havia meio de se levantar uma soma tão extraordinária e que a Trácia não tinha realmente como pagar pela libertação de Agathokles.

Se Arsinoê Beta tivesse sido capaz de resignar-se à perda de Agathokles, um dos seus próprios filhos poderia se tornar o rei da Trácia quando da morte de seu marido, e toda a história teria sido diferente, mas Arsinoê Beta não era capaz, então, de pensar em nada senão em Agathokles, e suplicou a Lisímaco para enviar o dinheiro, ou pelo menos uma parte, ou que pelo menos fizesse alguma coisa, fosse o que fosse, e berrava com ele, oferecendo-se para, reunindo tudo o que tinha, pagar um quarto do resgate ela própria, porque só de pensar em nunca mais ver Agathokles, que ficaria prisioneiro para sempre ou seria morto, era mais do que podia suportar, não obstante o seu coração de ferro.

Somente quando, depois de muitas brigas e obstinação, ela suspendeu os seus favores na cama, impedindo Lisímaco de se aproximar dela por trinta noites seguidas, ela finalmente o fez concordar em atacar pessoalmente os bárbaros, apesar de sua idade, e assim ele marchou atravessando o rio Istros com um enorme contingente, pretendendo dar aos getai urna lição que jamais esqueceriam.

Mas foram os getai que deram a Lisímaco uma lição, porque também o fizeram prisioneiro, de modo que ele agora compartilhava a mesma sorte do seu filho, tendo se tornado refém de Dromikhaites, um homem que Lisímaco desprezara e desdenhara no passado, julgando-o primitivo, feroz e totalmente privado das habilidades militares dos gregos, já que Dromithaikes era um homem que se vestia com peles de animais, e Lisímaco de modo algum o consideraria um adversário à altura.

Já em Lysimakheia, Arsinoê Beta tinha agora razões para berrar ainda mais, mas havia sido deixada sozinha, encarregada do reino de seu marido, de modo que pelo menos poderia fazer alguma coisa para resgatar a sua família. Mesmo assim, a situação era ruim, muito ruim, para Arsinoê Beta, pois o exército inteiro da Trácia fora capturado, juntamente com o seu rei.

Tudo em que Arsinoê Beta pensava era que uma tal seqüência de desastres não poderia ter acontecido se ela estivesse pessoalmente no campo de batalha. Ela despachou seus mensageiros, enviados, embaixadores, batedores e espiões. Fixou pregos de bronze nos mapas que mostravam onde seu marido e seu enteado poderiam estar sendo mantidos prisioneiros, e esteve prestes a se colocar ela própria na estrada, rumo ao norte, e Thot bem sabe que ela teria tido êxito em trazer de volta os prisioneiros, porque essa rainha era tão esperta quanto a raposa, aliás, tão matreira quanto uma raposa fêmea.

Então, o que aconteceu Os selvagens nus gritavam, exigindo que Lisímaco e seu filho fossem entregues a eles para receberem uma punição adequada — ou seja, a morte —, mas Dromikhaites surpreendeu a todos convidando pai e filho para um pródigo festim, e em vez de matá-los, os tratou com exagerada cortesia. E Dromikhaites disse que não, não deixaria que o velho Lisímaco tivesse o controle do território que desejava, nem então, nem nunca, e enviou esses dois prisioneiros de volta para Lysimakheia humilhados e parecendo dois idiotas.

A libertação do rei da Trácia foi aceita somente contra a promessa de Arsinoê Beta de pagar o resgate de Agathokles e de firmar uma aliança com osgetai, que seria sacramentada com o casamento do próprio Dromikhaiates com a filha mais nova de Lisímaco. Certamente, para uma filha do rei da Trácia, ser entregue em casamento a um bárbaro era uma terrível desonra para sua Casa, mas Lisímaco não pôde fazer nada a não ser concordar, e Arsinoê Beta ficou muito satisfeita de se livrar de uma das mulheres de Lisímaco, que apinhavam o gynaikeion e a perturbavam. Arsinoê Beta, que poderia, em outras circunstâncias, ter combatido a idéia de um casamento com um bárbaro, deu seu consentimento, instando seu próprio marido a concordar com todas as exigências, porque isso significaria ter de volta seu amado Agathokles, e poderia ficar contemplando o rosto dele.

Sim, na ausência de seu marido, que estava nas terras para além do rio Istros, foi Arsinoê Beta que tomou conta de todos os assuntos de Estado na Trácia. Então, enquanto ele era mantido prisioneiro entre os bárbaros, Arsinoê Beta provou pela primeira vez o gosto do poder e ela amou o poder, e não tinha intenções de largá-lo.

No tempo devido, Agathokles chegou num veículo à cidade de Lysimakheia, tendo o pai ao seu lado, trazendo presentes dos getai, e com nem ao menos um arranhão no corpo, mas com aparência, se isso fosse possível, ainda mais formosa do que antes. De modo que, quando Arsinoè Beta o viu a salvo, suas pernas falharam e ela desmaiou, e longe de o seu amor ter diminuído com o tempo de separação, só fez aumentar.

Acreditando que Agathokles fora salvo da morte certa pelas suas incessantes preces e sacrifícios dedicados aos deuses, Arsinoè Beta ofertou um par de orelhas de bronze, cada qual com seis cúbitos de altura, ao templo de Artêmis, filha de Apolo, por tê-la escutado.

Já Lisímaco, em seu retorno, parecia mais velho do que nunca; mas os presentes que deu à esposa por ter tomado conta do reino em sua ausência foram generosos, mais do que generosos, e todos em ouro, testemunhando mais uma vez a alta consideração que tinha por ela, assim como o seu amor por sua jovem esposa, o qual ela achava cada vez mais difícil de corresponder. De fato, Arsinoè não tinha sentimentos em relação ao seu marido que não fossem de repulsa.

Mas e quanto, então, à desafortunada filha de Lisímaco que precisou ser sacrificada aos bárbaros, em prol da paz? Ela teve de fazer a travessia do rio Istros, em cumprimento ao juramento de seu pai, o qual ele não ousava quebrar, pois sabia que, se deixasse de entregar essa garota, a tribo selvagem invadiria e anexaria a Trácia, e afinal dera sua palavra em relação a essa filha, que agora partia de seu lar rumo à fronteira norte da Trácia, e seu rosto jamais seria visto de novo na sociedade civilizada.

Para todos os efeitos e propósitos, essa filha estava morta, e seria um dos desaparecidos, cujo nome não voltaria a ser pronunciado de novo por sua família, mas a qual, por vezes, derramaria algumas lágrimas, na privacidade, por desconhecer que pavoroso destino lhe fora dado.

Já as lágrimas dessa garota logo secaram, e ela foi para os getai muito satisfeita, dizendo que viver com bárbaros seria melhor, e muito mais tranqüilo, do que passar o restante de sua vida sob o mesmo teto que uma cobra como Arsinoè Beta.

E foi assim que Arsinoè Beta se livrou de uma de suas enteadas, que foi tão meticulosamente esquecida depois desse episódio que a história da Trácia nem sequer registrou o seu nome.

 

                       A Sogra

A vida de Arsinoè Beta como rainha da Trácia não era, em verdade, privada de momentos prazerosos. Ela ganhava todas as jóias e todos os objetos de ouro que pedisse, riquezas inacreditáveis, tinha seus belos filhos, ainda tão novos, a quem amava como toda mãe grega ama seus filhos, ou seja, o bastante mas não em exagero.

O que mais perturbava o espírito de Arsinoè Beta era o que se referia a Agathokles, mas se contentava em, vez por outra, meramente pousar os olhos na pele desse homem, e isso era quase o bastante para, vez por outra, satisfazer o seu desejo.

Toda essa existência comum e mais ou menos pacífica de Arsinoè Beta estava, no entanto, prestes a mudar, e mudar para pior, porque se aproximava o dia em que a sua própria meia-irmã, a princesa Lysandra, filha de Ptolomeu com Eurídice, desceria de um ligeiro trieres, proveniente de Alexandria, e transformaria o seu amor fraternal em amargo ódio que traria o desastre e a total ruína para a Casa de Lisímaco.

Qual era a história dessa Lysandra? Mais ou menos na mesma época em que Arsinoè Beta casou-se com Lisímaco, essa garota havia se casado com Alexandros, filho de Cassandro, um garoto de cerca de 15 anos, que era também seu primo em primeiro grau. E, VEJAM! — Lysandra se casara com um jovem marido, e foi Arsinoè Beta que teve de se casar com um velho.

Esse Alexandros, no entanto, era um filho mais novo, que não tinha muitas esperanças de herdar o trono da Macedônia. Mas sua mãe, Thessalonike, uma das filhas de Felipe da Macedônia, era uma mulher que gostava de ter a sua palavra respeitada como se fosse lei, e quando Cassandro morreu, e seu filho, Rei Felipe, também, apenas quatro meses depois, Thessalonike insistiu para que seus dois filhos remanescentes dividissem o trono da Macedônia, já que não gostava do filho mais velho, Antipatros, que tinha na época 17 anos, enquanto Alexandros, o mais novo, era o seu predileto.


O primeiro pensamento de Ptolomeu fora que um rei ainda menino já era ruim o bastante; mas deixar dois garotos reinarem juntos eqüivalia a estar procurando encrenca, porque nunca conseguiriam chegar a um acordo em nenhum assunto. Careceriam da capacidade de previsão e do conhecimento militar de homens adultos, assim como lhes faltaria a sabedoria dos anos. Seriam um atrativo para usurpadores e para invasores estrangeiros, que se sentiriam com mais possibilidades de tirar proveito da confusão. Ptolomeu pensou que a guerra seria a decorrência inevitável, mas, ainda assim, sob esse novo arranjo, a princesa Lysandra, sua filha, seria rainha de metade da Macedônia, e essa era uma oportunidade de aliança que Ptolomeu não poderia deixar de tentar aproveitar.

Lysandra foi, então, mandada de navio para a Grécia e se casou com o jovem Alexandros, e, quanto aos reis meninos, todos os receios de Ptolomeu se comprovaram justificados. Concordaram, de início, em dividir a Macedônia pela metade, com Antipatros reinando sobre o Leste, e Alexandros sobre o Oeste. E como os vizinhos se deliciaram: afinal, cortar ao meio o reino foi visto como nada mais do que um convite a todo aquele que reivindicasse o trono para interferir nos assuntos macedônios. Lisímaco, Demétrio Poliorketes, Pirro de Epeiros — vizinhos próximos da Macedônia —, todos logo se entusiasmaram com a idéia de anexarem uma ampla fatia dos novos territórios e, é claro, como todos já haviam previsto, os dois garotos não conseguiam chegar a um acordo em coisa alguma, por mais trivial que fosse o assunto, e logo começaram a brigar seriamente, tornando-se assim um inimigo fácil de ser batido numa batalha.

O jovem Antipatros logo se cansou de sua mãe mandona, que não conseguia se conter e ficava interferindo em todos os assuntos de Estado, e ele a assassinou a sangue-frio, e então expulsou Alexandros de Pella, que era a capital desse seu irmão.

Alexandros, aterrorizado com a possibilidade de perder a sua metade da Macedônia, de uma hora para outra, entrou em pânico e mandou mensageiros tanto a Pirro quanto a Demétrio, pedindo urgente apoio militar. Pirro foi o primeiro a se apresentar e se serviu de uma vasta extensão de território em retribuição por seus serviços, conforme alegou, deixando de lado, nesse episódio, suas boas maneiras.

Demétrio chegou com um grande exército e suas máquinas de guerra de sempre, suas torres de cerco e milhares de setas de ferro para as suas catapultas, e todas elas com seu temível nome gravados nelas; mas ele assustou Alexandros com o seu poder e com sua fenomenal reputação militar, além dos lúgubres relatórios que lhe foram transmitidos, a respeito de as tropas de Demétrio terem pilhado, queimado e estuprado à vontade, em todo o seu percurso, até o quartel-general do garoto.

Alexandros era muito novo. Não tinha experiência na guerra; possuía pouca experiência na diplomacia, e muito afeto e amor por sua bela esposa, Lysandra, embora não escutasse, talvez, seus sábios conselhos, já que ela era uma mulher, e ele já tivesse dado ouvidos demais aos conselhos de sua mãe. Ele conheceu Demétrio, a quem recebeu como convidado de honra, na cidade de Dion, mas as primeiras palavras que lhe disse foram que ele não mais precisava da sua ajuda.

Demétrio não fez meia-volta e marchou para casa. Ele soubera de alguns boatos de que havia um complô para assassiná-lo durante o banquete de boasvindas oferecido por Alexandros, mas não fez outra coisa que não alinhar seus soldados junto às paredes do salão de banquetes, armados para uma luta. E isso sobressaltou Alexandros ainda mais porque os soldados de Demétrio eram em número superior aos seus.

O banquete transcorreu sem nenhum distúrbio, mas Demétrio mesmo assim não fez o que Alexandros queria, ou seja, não partiu. Na noite seguinte, Alexandros aceitou o gentil convite de Demétrio para um outro banquete e, no meio do festim, Demétrio subitamente levantou-se de seu sofá e deixou o aposento com passadas pesadas. Alexandros, perguntando-se qual seria o problema, seguiu-o. Mas quando Demétrio atravessou a porta, disse aos seus guarda-costas matem o homem que vem atrás de mim, e Alexandros foi morto prontamente e deixado caído na poça do seu próprio sangue.

Os gritos de Lysandra ecoaram por todo o acampamento de seu marido, mas, de algum modo, ela conseguiu escapar para a corte de seu pai, Ptolomeu, do Egito. Assim terminou o curto casamento de Lysandra, que agora era uma viúva em busca de um novo marido.

Lysandra já havia sido casada. Era como se estivesse morta e, em Alexandria, encontrou pouca solidariedade, já que uma filha casada não deveria retornar para a casa do seu pai em menos de um ano. Poucas pessoas derramaram lágrimas por Lysandra, de quem não se esperava também, em todo caso, que tivesse nenhum sentimento pessoal por seu marido. Tudo que se relacionava a arrancar seus cabelos, arranhar suas faces, lamentar-se aos berros e socar os próprios seios com seus punhos era meramente para cumprir os costumes gregos, e não significava coisa alguma; seus sentimentos pessoais não tinham nada a ver com isso.

Entretanto, Lysandra, contrariando o costume grego, havia amado Alexandros, e sentia-se agora como se o seu coração tivesse sido arrancado do peito pelas facas de açougueiros. Ao mesmo tempo, fora educada na escola das mulheres fortes, na qual uma garota não exibia seus sentimentos, mas sim deveria recolhê-los e manter-se tranqüila.

Quando Lysandra retomou sua tapeçaria do Farol de Alexandria, em púrpura e fio de ouro, seu pai enviou embaixadores para os homens que talvez apreciassem receber essa garota como esposa, mas acabou que o único marido de seu nível seria o príncipe Agathokles, o jovem filho do rei Lisímaco, da Trácia, que, por consenso, era o mais belo homem vivente.

Os papiros foram assinados; os termos, as condições e as cláusulas de reversão, pactuadas; e então Lysandra foi despachada para a Trácia, como um pacote de nozes, indo para Lysimakheia, no Helesponto, onde sua malfadada história conjugal deveria prosseguir seu terrível curso.

De fato, esse segundo casamento da princesa Lysandra estava destinado a terminar num desastre tão horrendo quanto o primeiro, senão pior, e todo o problema por trás disso era que ambas as meias-irmãs, Arsinoê Beta e Lysandra, terminavam assim, por meio desse novo arranjo, vivendo sob o mesmo teto, compartilhando o mesmo gynaikeion, casadas com dois maridos — um jovem, outro velho — que aconteciam de ser pai e filho.

Lysandra concordou, como tinha de concordar, em viajar para a Trácia, onde se tornaria a nora de sua própria jovem meia-irmã, e seria essa uma situação que qualquer homem que valesse duas dracmas poderia prever que acarretaria todos os problemas do mundo.

Como, em nome de Zeus, se permitiu que algo assim sucedesse? Os horoscopistas e os videntes de Alexandria, todos, balançaram as cabeças e transmitiram a Ptolomeu Soter os mais sombrios augúrios e avisos. Isso porque, no catálogo das decisões estúpidas, essa seria, sem dúvida, a mais estúpida de todas que qualquer pai poderia tomar em relação a uma filha, e talvez a mais estúpida que Ptolomeu já tomara em toda a sua vida. E Ptolomeu não ficou perturbado. Ele não mostrava a sua cara no gynaikeion havia anos, porque de fato não queria encontrar Eurídice. Nunca soube o quanto Lysandra e Arsinoê Beta se desentendiam. Nunca havia visto a leoa que Arsinoê Beta era, quando punha suas garras para fora. Ptolomeu, infelizmente, conhecia muito pouco suas filhas, e foi totalmente incapaz de prever o que iria acontecer. Afinal de contas, ele era um homem que gostava de viver para o momento, e nada mais. Pensara apenas em sua aliança, sua dupla aliança com Lisímaco, e no fato de que, quando o velho Lisímaco morresse, uma filha sua ainda seria a rainha da Trácia, e teria poder e influência sobre a Trácia. Ptolomeu Soter era um bom homem — bondoso, generoso, famoso por sua gentileza — mas, em verdade, não refletia muito sobre o futuro.

Quando a princesa Lysandra desceu do ligeiro trieres, em Lysimakheia, sua irmã mais nova, a rainha da Trácia, Arsinoê Beta, a envolveu com falsos sorrisos e lágrimas de crocodilo, e em seu íntimo pensava que o dia do casamento de Lysandra com Agathokles seria o pior de toda a sua vida.

Mas Arsinoê Beta — excetuando cometer um assassinato, o que mais poderia fazer? Estava impotente para impedir esse casamento, já que Lisímaco não perguntara a sua opinião sobre o assunto, que era privado, concernente ao seu lado da família. Seja como for, Lysandra daria a melhor das rainhas e tinha quase a mesma idade de Agathokles: o casamento era perfeito, e não viu razões para consultar Arsinoê Beta quanto a isso.

Assim, Lysandra foi apresentada ao rei Lisímaco, que seria o seu meiocunhado e seu sogro, e fez o dexiosis, apertando também a mão do príncipe Agathokles que seria o seu marido, além de encontrar também a sua bela irmã, Arsinoê Beta, assim como a princesa Arsinoê Alfa e os demais membros da família real da Trácia — notavelmente, os três agitados garotos que eram os filhos de Arsinoê Beta, o príncipe Ptolomaios, o príncipe Felipe e o príncipe Lisímaco Mikros, de quem já era meia-tia, e esses garotos, com idades agora de cerca de seis, cinco e quatro anos, curvaram-se numa reverência diante dela e sorriram, e todos lhe deram demonstrações plenas de serem uma família feliz — embora, Thot sabe, a verdade fosse justamente o contrário.

O casamento de Agathokles e Lysandra foi celebrado com grande pompa e ostentação, com desfiles, dança e cem touros sacrificados, e toda a população de Lysimakheia festejou pela madrugada adentro, já que Lysandra era a jovem que se tornaria a próxima rainha da Trácia.

Lysandra ficou deliciada ao descobrir que o seu novo marido era jovem, inacreditavelmente bonito, como também charmoso, gentil e generoso — de fato, o marido perfeito; e ambos foram alvejados imediatamente pelas setas do menino Eros, e, bem diferente da maioria dos demais maridos e esposas gregos, tornaram-se devotados um ao outro desde o começo.

Mas e quanto a Arsinoê Beta, a atual rainha? Ela não sorriu, tampouco exibiu os dentes. Seus olhos não se iluminaram, nem se regozijaram, nem ela se reuniu à dança no casamento. Arsinoê Beta não conseguiu fazer nada senão fechar a cara, de modo que Lisímaco lhe perguntou qual era o problema, e ela respondeu: não estou me sentindo muito bem... um pouco de dor...

Que infelicidade, pobre Arsinoê Beta — quem não pode encontrar por essa mulher, essa que é a mais infeliz das mulheres, alguma solidariedade? Isso porque se viu transformada na sogra de sua própria irmã mais velha. E, por algum tempo, as duas irmãs efetivamente se chamaram de Mãe e Filha, e riam um pouco da sua curiosa situação. Mas nem tudo andava bem no gynaikeion, onde a irmã mais nova e sogra Arsinoê Beta esperava de todo que sua irmã mais velha e nora, Lysandra, fizesse tudo o que ela lhe ordenaria, enquanto Lysandra achava que esse estado de coisas seria exatamente o oposto como havia sido em Alexandria, onde tentara sempre, embora nunca com êxito, mandar em Arsinoê Beta.

Na primeira oportunidade, Arsinoê Beta começou a dar ordens a Lysandra sobre tudo o que se relacionasse com os aposentos das mulheres — sobre a comida, as roupas de cama, onde ela poderia ou não deixar seus sapatos e tudo o mais — e assim estabeleceu-se imediatamente um tenso conflito entre as duas. De fato, houve tanta gritaria e berros que a outra Arsinoê, Arsinoê Alfa, vez por outra fugia correndo também, berrando, do gynaikeion, e ia procurar refúgio junto ao seu pai, chorando e se queixando que não suportaria conviver um minuto mais com duas irmãs egípcias.

Mas sobre o que brigavam essas duas irmãs? E por quê?

A raiz da tragédia, na Trácia, era que Arsinoê Beta amava em desespero o marido de Lysandra. Até então fora capaz de, mal ou bem, ocultar os seus sentimentos, mas agora, tendo a sua própria meia-irmã compartilhando os aposentos e o leito do belo Agathokles, e tendo de suportar ver sua irmã beijar os lábios desse homem, alisar sua pele bronzeada, por debaixo da túnica de Agathokles, e vê-la cravando seus olhos nos olhos azuis de Agathokles com amor, genuíno amor, e ver que o amor dela era correspondido, e pensar que aquela sua irmã teria o prazer e a satisfação de gerar os filhos de Agathokles — todas essas coisas se tornaram de repente mais do que Arsinoê Beta poderia agüentar, e ela em verdade acreditava que enlouqueceria de tanto desejo frustrado; ainda assim precisava manter silêncio sobre isso, e não podia contar a ninguém, porque não havia ninguém em Lysimakheia, nem mesmo as suas aias, a quem pudesse confessar seus mais íntimos pensamentos e seus segredos mais privados. Pelo contrário, tinha de fingir que o amor de Agathokles por Lysandra não significava coisa alguma para ela e que seria impossível se interessar menos pelo que acontecera.

Tudo isso se tornava dez mil vezes pior pelo fato de que Lisímaco, seu marido, envelhecia rapidamente: estava mais curvado, mais frágil, mais velho e mais mal-humorado do que nunca. E embora continuasse agraciando essa garota com todo o ouro e jóias da Trácia, nada disso compensava o fato de que ela deveria agora, do alvorecer ao entardecer, suportar o sorriso da sua irmã, seus olhos em fogo de tanto amor por Agathokles, enquanto ela, Arsinoê Beta, tinha de enfrentar seu horroroso casamento com um homem velho, de carnes gélidas, e dormir todas as noites sozinha em seu leito ou nos braços desse rei-peixe.

Foi por essas razões que uma terrível inveja e um terrível ódio desencadearam-se no palácio do rei Lisímaco da Trácia, e, para falar a verdade, nada, nada que se soube se compararia, em todo o mundo grego, desde as pavorosas histórias que contavam sobre Agamênon e Clitemnestra e o Cavalo dos Atreus. Não, a tragédia da Casa dos Ptolomeus seria mais funesta, muito mais funesta do que esta, com o sangue a correr fartamente por dez gerações.

Por alguns dias depois do casamento, Arsinoê Beta se retiraria mais cedo para os seus aposentos, onde poderia ser escutada uivando como a hiena, como o chacal do deserto, e certa noite ela chegou mesmo a destroçar a mobília de madeira folheada a ouro de seu quarto, além de espatifar no chão de mosaicos todas as valiosas baixelas de vidro, todos os vasos de cerâmica e, de fato, tudo o mais que conseguiu quebrar, deixando intacto apenas o que havia em sua arca de jóias, que eram objetos valiosos demais para serem destruídos.

Lidou dessa maneira com sua fúria, até ficar exausta; então se fez um prolongado silêncio em seus aposentos, durante o qual suas amas se recusaram a se aproximar dela, com medo de levarem mordidas. No entanto, Arsinoê Beta se acalmou. Recompôs-se, a raiva passou, voltou a ficar submersa em seu íntimo. Apareceu em público exibindo por todo o palácio suas sandálias de ouro e suas jóias de ouro exatamente como antes, e como se nada houvesse mudado, foi vista até mesmo sorrindo um sorriso irônico.

Lysandra prosperou na Trácia. Era saudável, plena de satisfação em sua vida, feliz no casamento, embora as estrelas que a governassem fossem muito ruins, e era melhor para Lysandra não saber disso.

Por outro lado, a boa saúde de Arsinoê Beta — insatisfeita, infeliz, desafortunada, mais do que todas as outras mulheres, com suas estrelas — não duraria muito tempo.

Quando os homens que pescavam no Helesponto fisgavam um estrujão, enfeitavam-se e a seus navios com guirlandas de flores, e marchavam em procissão, com esse que era o maior dos peixes, para o palácio; isso porque o estrujão, sagrado na Grécia, deveria ser trazido para a mesa real dessa maneira, precedido das flautas.

Arsinoê Beta juntava as mãos e aplaudia, como todos os demais, quando via esse enorme peixe; mas agora executava seus feitiços, os terríveis feitiços gregos que havia aprendido no colo de sua mãe, e orava a Artêmis para que uma espinha de peixe se alojasse na esbelta garganta de sua bela irmã e a fizesse morrer sufocada. Ela desejava fortemente que isso acontecesse.

Mas Lysandra, de algum modo, já adivinhara o que poderia acontecer entre ela e a irmã, sua venenosa irmã, e havia executado o feitiço que faz qualquer feitiço voltar-se contra aquele que o executa, de modo que o quer que Arsinoê Beta desejasse contra Lysandra se voltaria contra ela mesma.

De qualquer modo, era Lysandra quem mostrava todos os sinais de boa saúde e Arsinoê Beta quem adoecia com mais freqüência do que lhe era habitual, e isso lhe despertou suspeitas, e talvez tenha sido por causa de sua misteriosa enfermidade, de seus acessos diários de vômitos, de seus estranhos problemas com o funcionamento de seu estômago que essa mulher tenha se tornado uma verdadeira serpente para venenos.

Lisímaco presenteava sua esposa quase diariamente com jóias de ouro mas seu presente mais freqüente eram serpentes de ouro, e isso porque as serpentes eram o perfeito ornamento a se enroscar nos dedos das mulheres, em seus tornozelos e na metade do braço, e para as cintas que circundavam suas cinturas, de modo que o corpo de Arsinoê Beta, por acaso, estava freqüentemente ornado com uma ou outra serpente. Não era, de fato, um descabido atributo para essa mulher que costumava, quando se irritava, cuspir fogo como uma cobra egípcia; uma mulher que tinha, em verdade, como rainha, o poder de exterminar a respiração de um homem com apenas uma palavra, e até mesmo por um aceno de sua mão ornada de jóias.

Ela ainda não sabia disso, só para deixar claro, mas estava chegando o dia em que essa mulher, essa Arsinoê Beta, teria o prazer e a satisfação de usar uma serpente em sua testa.

 

                          Arsinoê Explode

No vigésimo ano de reinado do rei Ptolomeu Soter, a segunda etapa do grande Farol foi declarada concluída, com o término do andar octogonal que se assentava sobre a maciça base quadrada, toda feita de calcário numulítico, e que reluzia ao sol intensamente, como o próprio deus Sol, como o Rá dos egípcios.

Ptolomeu promoveu as adequadas celebrações, de modo que os deuses fossem apaziguados e não ficassem com inveja desse monumento; o sacrifício de cem cabeças de gado com chifres folheados a ouro, banquetes públicos em honra de Poseidon, Senhor do Mar Revolto, e de Zeus, Pai dos Deuses e dos Homens. Toda Alexandria ovacionou quando o próprio Ptolomeu concedeu pôr sua sandália de ouro nos degraus em espiral e galgá-los para entrar no Farol, de modo a poder verificar o andamento da obra e incentivar os trabalhadores, e também para apreciar a maravilhosa vista de sua capital. Ele olhou, viu e se maravilhou, tendo ficado plenamente satisfeito.

Ptolomeu congratulou-se: nenhum monarca jamais sonhara com algo tão grandioso antes, nem mesmo Alexandre. Nenhum homem jamais erguera um monumento que fosse tão útil.

Sem se gabar, escreveu de seu próprio punho as notícias sobre o Farol para suas filhas que viviam em terras estrangeiras, para que pudessem ter conhecimento disso e, sabendo, ficassem orgulhosas de seu pai e de Alexandria, sua cidade, a qual certamente nenhuma delas deveria jamais rever. E quando Theoxena, na Sicília, leu as palavras escritas pelo pai, escreveu de volta imediatamente, para elogiá-lo pela magnífica obra. Do mesmo modo fez Lysandra, a esposa de Agathokles. Mas Arsinoê Beta rabiscou todo o papiro do seu pai, já que não conseguia suportar ler nada a respeito da felicidade de sua família, deixada no seu lar, e jogou-o no braseiro, sem ler.

Para Arsinoê Beta, as dificuldades ainda não estavam terminadas. De fato, mal haviam começado.

Enquanto Lisímaco envelhecia mais e mais, era a sua esposa, perturbada pelos seus próprios problemas de saúde, quem passara a tomar as mais importantes decisões em relação à Trácia. Ninguém duvidava da capacidade de Arsinoê Beta, ou sequer questionava seu sábio julgamento, pois ela sempre mostrara estar correta.

A criação de seus três filhos, disso cuidou ela mesma, e apenas com relutância entregou a educação deles aos melhores instrutores gregos. De modo algum era privada de instintos maternais; e embora alguns homens pudessem reclamar de seu coração duro e frio, descobriu-se sendo calorosa em tudo o que dizia respeito a seus filhos, embora não calorosa demais. Ainda assim, em tudo o que concernia ao príncipe Agathokles, esse coração supostamente de ferro se dissolvia de pronto, e ela se tornava branca de tão quente de desejo por ele. O coração de ferro, o coração como uma pedra fria — era provavelmente um mito, uma dissimulação, uma maneira de obter para si mais poder e influência do que já tinha; isso porque, de fato, nesse mundo masculino da Trácia ela necessitava ser assim.

Por anos, Arsinoê Beta nada fizera em relação ao seu desejo por Agathokles, apenas acalentando-o, ou abafando-o, apavorada demais com o que poderia acontecer a ela se fosse descoberta. Mas, à medida que o tempo foi passando e passando, Arsinoê Beta mudou seu comportamento. Havia chegado à Trácia quando era uma garota de cerca de 15 anos. Tinha apenas 21 quando Lysandra chegou à corte; mas agora sua autoconfiança crescera.

Enquanto Lisímaco envelhecia, vinha com cada vez menos freqüência, à noite, para o leito de sua esposa, e assim ela ansiava mais do que nunca pelos abraços do jovem Agathokles, que era mais próximo a ela em idade.

Arsinoê Beta pensou muito, e por muito tempo. O que poderia fazer? Passaria a vida inteira sem ter feito nada em relação a esse grande amor? Enquanto ela própria ia ficando mais velha, começava a pensar que talvez Agathokles pudesse ser persuadido a corresponder a seus sentimentos, e esse pensamento tanto perturbava suas horas insones que chegou o tempo em que ela sentiu que, realmente, nada tinha a perder, pois, se não confessasse logo a Agathokles o que sentia por ele, sem dúvida morreria de tanto sofrer por seu amor impossível.

Também começou a raciocinar que, se Lisímaco morresse, Agathokles, como novo rei, bem podia mandá-la embora da Trácia. Ela temia que ele, sem hesitar, assassinasse seus três filhos, que representavam uma grande ameaça à sua estabilidade, como possíveis usurpadores do trono, e ela não os havia criado para serem dóceis, mas afoitos, duros, tão duros quanto ela mesma tentava ser: garotos que deveriam se tornar homens, grandes guerreiros, generais, senão reis de pleno direito. Compreendia que, se era para Agathokles fazer dela sua esposa e, seu filho mais velho, o seu herdeiro, precisava entrar em ação sem mais demora.

Primeiro, ela começou a se assegurar de cruzar com mais freqüência o caminho de Agathokles.

A seguir, começou a fazer sugestões impróprias, oferecendo-se para beijar Agathokles nos lábios e dizendo que ela gostaria muito de enfiar a língua na boca dele, pois já estava cansada de seu marido velho e de corpo frio.

Agathokles ficou surpreso, mas sorriu aquele seu sorriso devastador que fez Arsinoê Beta sentir-se quase desmaiando, como se não apenas o seu coração mas também as pernas estivessem se dissolvendo; porém ele respondeu que preferiria não beijá-la.

Quando Arsinoê Beta desrespeitou a si mesma a ponto de erguer a barra do seu peplos e mostrar a Agathokles sua bolha, como as mulheres de Mênfis, na recepção ao novo Touro Ápis, ele girou nos calcanhares e afastou-se sem dizer uma só palavra.

O comportamento da rainha Arsinoê era, então, muito semelhante ao de uma prostituta, e ela permanecia sendo a rainha da Trácia. Todas as suas maliciosas insinuações, no entanto, Agathokles rejeitou, da maneira mais polida, dizendo que não tinha a menor intenção de fazer de sua madrasta uma concubina.

Toda vez que Arsinoê Beta deitava os olhos no príncipe, sentia-se desmaiando e doente. À noite, ficaria deitada por horas, sem dormir, em seu leito marchetado de ouro, pensando em Agathokles e em sua pele dourada. E quando dormia, então, seus sonhos eram repletos de visões da pele nua de Agathokles, que a beijaria nos lábios, enfiaria a língua em sua boca e o seu rhombos em suas partes privadas, fazendo tudo aquilo que se recusava a fazer durante o dia.

Seus sonhos eram igualmente preenchidos pela figura de sua meia-irmã, Lysandra, que sempre estava morta, sendo carregada num ataúde para a sua pira funerária, e todas as vezes o rosto de Lysandra seria devorado pelas chamas. Então, Arsinoê via os ritos matrimoniais sendo celebrados para Agathokles e ela, ambos coroados com flores rubras, e enquanto atravessam, de mãos dadas, sorrindo, as grandes portas de cedro do palácio, os cidadãos de Lysimakheia lançavam sobre eles figos e nozes que cortavam como facas e eram pesadas como pedras, e sua carne ficava coberta de ferimentos, sangraria, e então ela despertava, chorando aos uivos.

Por sete anos, ou 84 meses, ou 2.555 dias e noites, Arsinoê Beta havia suspirado por esse jovem, seu enteado, seu cunhado, sem confessar-lhe que o amava. Agora, pelo menos, ela se empenharia ao máximo para trazê-lo ao seu leito alto para ter prazer com ela, enquanto durante todo esse tempo Agathokles estaria casado com sua irmã.

Mais ou menos nessa época, como se a história dessas duas casas já não fosse complicada o bastante, Ptolomeu Soter enfiou na cabeça tornar sua grande amizade e sua aliança com Lisímaco ainda mais forte, com um terceiro casamento, e ele enviou a proposta, por meio dos embaixadores de praxe, dizendo que seu filho mais novo, Ptolomeu Mikros, agora com dezenove ou vinte anos, apreciaria tomar a mão da filha de Lisímaco, Arsinoè, também chamada Arsinoê Alfa, para distingui-la de Arsinoê Beta, que era ainda, é claro, a rainha de Lisímaco.

A Arsinoè em questão era filha de Lisímaco de seu primeiro casamento, com Nikaia, e tinha agora cerca de 16 anos de idade, e era a elegante e bela irmã do belo Agathokles, estando ela madura para o casamento, com seus seios, como realçou seu pai, intumescidos como frutos do medronheiro, e grandes, de modo que se Ptolomeu Mikros fosse ao menos um pouco parecido com seu pai, ficaria mais do que satisfeito.

Reflexões de Thot: como resultado desse casamento, Arsinoê Beta se tornaria a sogra, ou a madrasta-sogra de seu irmão por parte de pai e de mãe, embora vivessem em diferentes cortes, em diferentes países e nunca pusessem os olhos um no outro; mas ninguém na Trácia ou no Egito levava isso em consideração, já que as famílias dos Sucessores, que haviam se nomeado reis, eram tão interligadas por laços conjugais, e tão enroscadas entre si que, no final das contas, nenhum outro que não Thot seria capaz de destrinchar as árvores genealógicas, e seria totalmente impossível, mesmo para o deus, distinguir todas as relações de parentesco entre eles.

No entanto, partindo para o Egito, a princesa Arsinoê Alfa teria arranjado a sua fuga da claustrofóbica atmosfera do gynaikeion, em Lysimakheia, e se livraria de precisar conviver, ano após ano, com o mau temperamento de Arsinoê Beta, sua madrasta. Assim, Arsinoê Alfa estava mais do que desejosa de se tornar a esposa de Ptolomeu Mikros. De fato, ela implorou ao seu pai para deixá-la ir viver no Egito, já que escutara da própria Arsinoê Beta que Mikros era, de fato, pessoa meiga, generosa, de bom temperamento, equilibrada, bonita, mais rico do que qualquer homem pudesse imaginar, e jovem... Arsinoè Beta, num momento de sinceridade, lhe confessara que se casar com um marido jovem como aquele era o sonho de toda mulher, e Arsinoê Alfa percebeu, então, que tormento deveria ser para a sua madrasta ser casada com um homem idoso como Lisímaco.

Arsinoè Alfa tomou uma embarcação para Alexandria, um ligeiro trieres, e se casou com a mais alta pompa e cerimônia, porque seu marido era filho do homem mais rico do mundo; já a outra Arsinoê, permaneceu, é claro, no outro lado do Grande Mar, e foi assim que cada nação obteve a sua Arsinoê, que manteria como refém, em garantia do bom comportamento da outra nação, e todas as partes ficaram satisfeitas com esse arranjo.

Arsinoê Alfa estava feliz por ter escapado de Arsinoê Beta.

Arsinoê Beta estava feliz porque havia se livrado da segunda das duas filhas de Lisímaco.

Lisímaco estava feliz porque tornara ainda mais sólida a sua aliança com o Egito.

Ptolomeu Soter estava feliz porque tinha em vista a geração seguinte da sua dinastia.

E Mikros estava feliz porque asseguraram que sua esposa tinha um belo rosto, temperamento brando, seios fartos e muita carne nos quadris — kallipygous, como Mikros gostava de dizer — e era de mulheres assim que ele gostava.

O único que não demonstrava prazer era Ptolomeu Keraunos, o filho legítimo mais velho do Faraó, que ainda não tinha esposa e que, embora já estivesse com 32 anos, ainda não tinha herdeiros de seu sangue que pudessem ser vistos como a terceira geração da Casa de Ptolomeu, já que o Raio nada havia inseminado senão bastardos nas prostitutas da cidade de Alexandria — alguns dos quais não tinham a pela branca, mas negros.

Sobre Arsinoê Alfa, os embaixadores relataram: De rosto, ela é como uma deusa, e Ptolomeu Mikros não ficou desapontado, já que tivera o cuidado de escrever a sua irmã e a fizera jurar por Zeus, Pan e Poseidon, todos juntos, que Arsinoê Alfa era de fato uma mulher tão bonita quanto a descreviam.

Juntamente com essa esposa para Mikros, chegou ao Egito, como parte do dote dela, um presente, uma demonstração de boa vontade da parte de Lisímaco para Ptolomeu Soter — enjaulado num engradado de madeira e preso com correntes de ferro, e que teve de ser transportado com o máximo cuidado. Quando o engradado foi aberto, por ordem de Ptolomeu Soter, o Faraó encontrou em seu interior um urso branco, destinado ao seu Jardim de Feras: uma criatura tão rara que, assim se supunha, seria o único exemplar de sua espécie em todo o mundo, presente mais do que apropriado para o rei do Egito.

Foi Ptolomeu Mikros, no entanto, que mais apreciou esse presente, já que dava enorme valor a todo animal extraordinário — fosse exótico, ou bizarro — e, por algum tempo, tomou o hábito de ir todos os dias visitar a fera, para escutar seus urros: prezava o urso branco, diga-se a verdade, quase tanto quanto prezava a própria esposa.

No começo do seu casamento, tudo corria bem, e a princesa Arsinoè Alfa, em um ano, já carregava um rebento. Ela passou os seus primeiros meses no Egito maravilhando-se com todas as novidades à sua volta, adorando o seu marido e aliviada de não ter mais Arsinoè Beta, sua madrasta, controlando a sua vida. Não se deixou perturbar pelo calor, nem pelas tempestades de areia, nem pelo farfalhar das palmeiras. Deu-se muito bem com Eurídice, e mesmo com Berenice, sua sogra, e vivia satisfeita no gynaikeion, com Eurídice, já que ela também se divertia em cuspir os caroços de azeitona pelas janelas na cabeça dos passantes, uma coisa que Arsinoè Beta jamais lhe permitiria, na Trácia.

Claro, Arsinoè Alfa também passou por um pouco de abandono, no Egito, mas em verdade nunca esperou nada muito diferente. De fato, apreciava ser deixada em paz, ser ignorada, já que havia sofrido em silêncio os maustratos e insultos de Arsinoè Beta por longos anos, e agora, graças a algum milagre dos deuses, conseguira escapar dela, por isso dizia: Na verdade, é como ter sido libertada da prisão. É evidente que ela não dizia tal coisa a Berenice, mãe de Arsinoè Beta, mas apenas a Eurídice, que ria sua louca risada toda vez que escutava isso.

Arsinoè Alfa se ocupava no Egito com as tarefas femininas: tapeçaria, tecelagem, costura. Não tendo tido o luxo de uma educação de homem, não passava suas horas ao lado do marido, dando-lhe conselhos sobre assuntos militares, que eram um mistério para ela. E a ela não foi propiciado o prazer de aprender o alpha beta, para que pudesse ler as mensagens que seu marido lhe enviava. Não teria utilidade para esse seu marido em nenhum aspecto senão na criação de seus filhos; mas Mikros não desejava nada mais dessa sua esposa: sentia-se feliz, e até mesmo mais do que feliz.

Enquanto isso, Arsinoè Alfa cultuava os deuses da Grécia, para ser agraciada com o melhor da Boa Fortuna, e para que desse à luz um saudável garoto, que também fosse afortunado, e que talvez tivesse até mesmo a fortuna de se tornar o rei do Egito.

Arsinoê Alfa conhecia, talvez melhor do que qualquer pessoa no Egito, o verdadeiro caráter de Arsinoê Beta. Teve de aturar aquela mulher por 4.380 dias, enfrentando a sua vontade férrea e seu mau temperamento, vivendo nos mesmos aposentos, no mesmo espaço que ela, e via a outra Arsinoê, seja dita a verdade, com o mesmo horror que lhe despertavam as serpentes.

Isso porque, para Arsinoê Alfa, Arsinoê Beta era a Rainha das Serpentes; por isso sentia-se feliz, muitíssimo feliz, de pensar que jamais teria de rever essa mulher.

 

                     A Gaiola de Pássaros

Depois de oito anos no perfeito casamento siciliano de Theoxena, ela calculava que lhe sobravam apenas 1.460 dias pela frente, embora não sentisse nenhum sinal de enfermidade, assim como não via nenhuma indicação de qualquer perturbação na pessoa de seu marido, o Tirano, que continuava afetuoso, generoso e satisfeito com tudo o que Theoxena fazia. Seus dois filhos tinham agora sete e seis anos, e Theoxena cuidou para que recebessem instrução e não desperdiçassem suas aulas de matemática, de modo que Arkhagathos e Agatharkos pudessem ser tiranos de valor caso ocupassem o lugar de seu pai.

Se tudo corria bem para Theoxena, a despeito de seu sombrio destino, o que era feito de Ptolomais, que a essa altura esperava já havia oito anos que Demétrio Poliorketes viesse buscá-la para se casar com ela, e que não tinha filhos para confortá-la na idade avançada? A essa altura, Ptolomais já havia confeccionado mais vestes para esse homem do que ele seria capaz de usar, até gastá-las, em todo o seu tempo de vida — túnicas com bainhas de fios de ouro, por exemplo, havia dúzias delas; e a moça agora trabalhava arduamente numa grande peça de tecido púrpura que seria um manto duplo para Demétrio.

De tempos em tempos, Ptolomais enviava esses artigos para Demétrio, como presentes, na esperança de lembrá-lo de sua existência e para fazê-lo pensar em suas obrigações para com ela; mas mesmo o manto púrpura, com os signos do Zodíaco, o Sol, a Lua e as estrelas, que exigiu seis anos de trabalho de costura, não fez com que Demétrio Poliorketes marcasse a data de seu casamento com Ptolomaís.

Nesse ínterim, Ptolomaís se ocupava tocando a lira, mas as músicas que tocava eram melancólicas, porque no fundo do seu coração temia que Demétrio jamais a chamasse para torná-la sua esposa e que ela estivesse fadada a ser solteira para sempre.

Ela enviou consultas a todos os oráculos do mundo grego, incluindo o Grande Oráculo de Zeus-Amon, na Líbia, mas todos lhe deram a mesma resposta: que seu futuro seria penoso, muito penoso, de fato, mas sem lhe revelar por quê.

Eurídice, a mãe de Ptolomaís, não estava mais feliz do que a sua filha. Havia tardes em que o calor de Mênfis era tão intenso, o ar tão parado, e tão forte era o odor que penetrava pelas janelas, vindo da nekrópolis, de babuínos e íbis mumificados, que Eurídice rasgava seu peplos e sua cinta e começava a correr nua pelo gynaikeion, gritando toda sorte de disparates a respeito de Ptolomeu, seu marido, a quem jamais via, e odiava com todo seu ser, porque não conseguia se refrescar e isso era culpa de Ptolomeu.

Nos melhores dias, Eurídice se contentava em bater portas e espatifar cerâmicas, atirando-as no assoalho de mosaico, sem nenhum motivo.

Havia dias em que gritava insultos contra os criados negros, que não entendiam sequer uma palavra de grego e achavam que ela estaria possuída por algum espírito do mal.

Eurídice vivia essa estranha e ociosa existência, sem ocupar seu tempo com nada de útil. Para que serve Eurídice, ela se perguntava, mas a resposta parecia ser que ela não servia para coisa alguma. Havia gerado crianças. Não sabia ler. Não sabia escrever cartas.

A paixão íntima de Eurídice era por Ptolomeu, o marido que nunca se aproximava dela, a quem ela pensava que amava, agora que o perdera.

Eurídice também gostaria de ser amada por seus filhos, mas gritava tanto com eles que se haviam cansado de seu mau gênio e achavam que ela estava maluca.

Mais do que qualquer outra coisa, ela desejava agora estar na Grécia — na Macedônia, em Pella. Dizia abertamente que, desde o início, jamais quisera vir para o Egito, e agora estava presa numa armadilha; que virara uma prisioneira, um pássaro engaiolado almejando ser posto em liberdade. Eurídice era prisioneira de seu marido. Sim, tudo de que precisava agora era ser posta em liberdade, viver a sua própria vida, do jeito que quisesse, já que tinha certeza de que Ptolomeu não necessitava mais dela.

Havia dias em que Eurídice era encontrada chorando. Mas, no fim, teve a idéia de solicitar a Ptolomeu permissão para deixar o Egito e estabelecer sua residência em alguma cidade da Jônia — talvez, Mileto —, onde o calor fosse mais suportável, onde não teria de temer cobras e escorpiões, onde poderia caminhar pelas ruas sem atrair a desaprovação de ninguém, onde poderia se debruçar nas janelas e olhar à vontade sem ser chamada de prostituta.

Quanto a Ptolomeu, era bem capaz de concordar em deixá-la partir já que, em verdade, não desejava mal à sua esposa e Eurídice não tinha utilidade nenhuma para ele no Egito.

Mas Eurídice tinha medo de fazer o pedido. Tinha medo do desconhecido. Tinha medo do futuro. E assim, por enquanto, Eurídice permaneceria onde estava e continuaria a suar abundantemente.

 

               As Mandíbulas do Tirano

Quando chegou o décimo primeiro aniversário do perfeito casamento de Theoxena, sabendo que tinha apenas 365 dias de felicidade sobrando, ela começou a entrar em pânico, dirigindo preces e fazendo sacrifícios para todos os deuses, o tempo todo sem saber o que aconteceria para dar um fim a sua existência feliz na Sicília.

Mas foi nesse décimo segundo ano que o idoso Tirano, seu marido, começou a sofrer dores nas mandíbulas e foi levado a consultar os seus médicos, homens em quem não confiava, por medo que lhe dessem algum veneno, embora, em verdade, Agathokles não confiasse em homem algum. Por isso, coube à própria Theoxena, sua esposa devotada, trazer para Agathokles os remédios que seu médico recomendava e misturá-los com suas próprias mãos, já que Agathokles não confiava em ninguém mais para tal tarefa, e foi ela também a provadora de seus medicamentos, para lhe dar garantias de que não haveria risco de envenenamento.

Depois de onze anos e um mês, quando tinha 330 dias sobrando, Theoxena convenceu Agathokles a experimentar o dentifrício de carne de baleia.

Depois de onze anos e dois meses, com trezentos dias restantes, ela o fez raspar suas gengivas com o ferrão de uma arraia que, assim se supunha, poderia ser benéfico.

Depois de onze anos e três meses, com 270 dias sobrando, ela trouxe rãs inteiras, para pendurar em seu queixo, como talismãs.

Quando Theoxena percebeu que o seu casamento já durava onze anos e seis meses e que lhe restavam apenas mais 180 dias, derramou aranhas esmagadas em óleo de rosas nos ouvidos de seu marido.

Nenhum desses medicamentos fez o menor efeito, e Agathokles queixava-se agora de uma dor terrível em seus maxilares, que rangiam quando os movimentava.

Ele buscou tratamentos cada vez mais desesperados, chegando mesmo a pernoitar durante um mês do Templo de Asclépios, deus da Saúde, na esperança de algum milagre; mas Asclépios não deu ouvidos ao Tirano de Siracusa.

Com somente sessenta dias sobrando, Theoxena derramou nos ouvidos de seu marido minhocas fervidas em óleo.

Com trinta dias restantes, já havia ministrado no Tirano todos os remédios conhecidos; mas a dor, como se isso ainda fosse possível, piorava cada vez mais. Agathokles não conseguia mais dormir por causa da dor e, no silêncio das horas mortas, seus gemidos poderiam ser escutados em todos os recantos da cidadela de Euryalos.

Quando Theoxena se via sozinha, chorava, porque sabia agora, e finalmente, o que iria acontecer, e porque não sabia mais o que fazer para ajudar seu marido. Quatorze dias antes do décimo segundo aniversário do seu casamento, os médicos de Agathokles abriram os braços e murmuraram que nada mais podia ser feito pelo Tirano de Siracusa, e que ele deveria morrer em breve.

Theoxena amara esse seu Tirano quase com loucura, esse cruel Agathokles, tão gentil com ela, mas cujo maior prazer sempre fora punir os homens com o extermínio de toda a sua prole, e que tanta satisfação tirara de ajustar contas com as cidades massacrando sua população inteira, incluindo as crianças. Theoxena amava a esse homem pelo que ele era para ela, e fechava os olhos ao seu lado negro, assim como fechava os olhos em relação aos garotos sicilianos que costumavam visitar os aposentos dele, garotos sensuais como Brotes, que faziam coisas com seu marido que nenhuma esposa poderia fazer, e nem mesmo sonhava em fazer — garotos cujos olhos faiscavam como estrelas, e cuja pele azeitonada era tão macia quanto um pêssego.

Theoxena dera a esse homem dois belos filhos, que não estavam, infelizmente, destinados a suceder o Tirano. Ela amava a Cidadela que era o seu lar. Havia apreciado a vida de esposa de um tirano, com jóias, ouro, toda sorte de pedrarias preciosas, escravos e servos enfim, todo o luxo que poderia almejar, com todos os seus desejos instantaneamente realizados.

Mas o filho mais velho e o neto de Agathokles já entravam em disputa para ver quem deveria sucedê-lo, e ambos reivindicavam seus direitos ao trono, como se o velho homem já estivesse morto.

Alguns supunham que Agathokles era vítima de um veneno de ação lenta; outros imaginavam que seu problema fosse um câncer na mandíbula. Fosse o que fosse, não encontrou alívio para a sua agonia, permanecendo prostrado, dia após dia, em seu leito marchetado a ouro, com panos enfiados entre seus dentes e gemendo.

Agathokles estava morrendo e sabia disso, mas não sabia o que seria de Siracusa depois que descesse ao Hades, e tinha os piores receios em relação a Theoxena e seus filhos e com o que aconteceria a eles em meio à conturbação que se seguiria à sua morte. Vivera pela matança indiscriminada, punindo a muitos pelo crime de apenas um, e granjeara muitos inimigos, dos quais a sua família, ele pensava, não poderia esperar piedade. Agathokles tinha certeza de que, no momento em que expirasse, Theoxena e seus filhos seriam passados a fio de espada.

Então tomou a decisão de enviar Theoxena com os filhos e todo o seu tesouro, o qual era mais magnificente do que qualquer outro (à exceção do tesouro de Ptolomeu), para a casa de seu pai, no Egito, onde estaria em segurança.

Theoxena continuava cuidando de Agathokles como antes e implorou para não ser separada do homem que amava. Afirmava que, ao se casar com ele, havia assumido não apenas a sua boa fortuna, mas também os infortúnios; e esperava, assim dizia, que quando a hora chegasse, realizaria com carinho os serviços de seu funeral, do modo que apenas uma esposa poderia realizar, e aos quais, tinha ela certeza, ninguém se daria ao trabalho, caso partisse.

Agathokles sabia, no entanto, que fosse qual fosse o homem que o sucedesse, se tornaria o mais rancoroso inimigo de sua esposa; por isso gritou com ela, brandiu seus punhos cerrados, atirou sobre ela tudo o que conseguiu agarrar em seu leito de morte — travesseiros, pratos, taças, sua bengala de ouro — dizendo que ela deveria escapar enquanto isso fosse possível.

Theoxena lamentava-se: O que vai ser do suprimento de milho do Egito, se eu for mandada embora?

Mas Agathokles respondeu apenas: Se você dá valor à sua vida, deve obedecer a meus desejos sem questionar.

Theoxena dirigiu a seguir preces a Atená, filha de Zeus, a fim de conseguir salvar Agathokles do Hades, mas a deusa não respondeu a suas preces, e assim Theoxena se preparou para embarcar.

Doze anos depois do dia em que a princesa Theoxena pôs pela primeira vez os olhos em Agathokles, o Tirano de Siracusa, seu casamento, como havia sido profetizado por todos os oráculos do mundo grego, chegou ao fim.

Ela deixou a ilha em meio a muitas lágrimas. Seus filhos choravam pelo pai moribundo, e o pai chorou pelos filhos exilados, que, mesmo no Egito, teriam um futuro totalmente incerto.

O trieres de Theoxena deixou a baía, com os remadores murmurando as canções que os faziam remar, todos ao mesmo tempo. Mais do que nunca, Theoxena não sabia o que deveria fazer, sem o marido que amava, e sentiu o seu coração se partir, dentro do peito, erguendo sua voz num lamento.

Não muito depois de Theoxena ter alcançado o seu lar, em Alexandria, chegaram as notícias da morte do Tirano de Siracusa, vítima, como foi dito, de gomphalgia, ou seja, dor de dentes, e a Sicília foi invadida por Cartago, tendo tudo por lá mergulhado em grande confusão.

Agathokles tinha 72 anos quando morreu; Theoxena, a viúva, que precisaria continuar vivendo, 28.

Sim, a princesa Theoxena havia partido de Alexandria 12 anos antes com o rumor das cometas, e ornada de guirlandas de rosas. Sabia que seu casamento poderia ser curto mas retornar ao seu pai, mesmo com seu dote tendo sido integralmente ressarcido, e muito aumentado — ainda era uma desgraça, e talvez a pior coisa que pode acontecer a qualquer mulher. O fracasso do seu casamento, sem dúvida, não foi culpa de Theoxena, mas ela se culpava, mesmo assim, e se insurgiu contra Tykhe, deusa da Fortuna, em particular. Ardilosa Tykhe, refletia ela, revoltada com a sua sorte, e ficou chorando por dias sem fim, a ponto de suas servas pensarem que ela havia enlouquecido, como a mãe.

O rei Ptolomeu deu as boas-vindas à sua filha em regresso à residência, mas recebê-la de volta, em verdade, não era nada conveniente. Pensava que nunca mais veria nem escutaria a voz de Theoxena, e não dispunha de um marido novo para casá-la outra vez. Era sempre mais difícil arranjar casamento para uma esposa de segunda mão do que para uma que não tivesse ainda se casado, mesmo sendo a filha de um rei; mesmo sendo uma moça de 28 anos.

Mas não: tudo havia mudado em Alexandria desde que Theoxena partira; isso porque, depois da exclusão da mãe dela do leito do Faraó, ele se comprazia em ignorar os filhos dela, tanto quanto podia.

Doze anos haviam se passado, e havia rostos novos na residência: mulheres que não conheciam a princesa Theoxena. Que tinham a gentileza de expressar a sua solidariedade por ela, mas para quem ela era uma estranha, uma recém-chegada com os hábitos diferentes desenvolvidos em sua vida como Tirana de Siracusa, que esperava que todos fizessem o que ela pedia prontamente, tendo ainda desenvolvido um paladar por alimentos estranhos e exóticos; além do mais, ninguém entendia toda a sua tristeza por conta da perda de um marido tão idoso — um homem com uma reputação tão extravagante — e por tudo isso começaram a pensar que Theoxena era mais do que simplesmente um pouco louca.

A pergunta, então, estava nos lábios de todos: O que vai ser de Theoxena? Que homem se casará com Theoxena? E havia, além disso, o problema do que fazer com dois garotos numa família que já tinha homens demais, para intranqüilidade geral, e todos eles pensando na sucessão ao trono do Egito; todos eles atentos para o momento em que Ptolomeu Soter morresse, sabendo que o herdeiro do Faraó, quem quer que fosse, seria obrigado a passar pelo fio da espada todos os seus parentes homens, porque essa é a única maneira de um herdeiro de qualquer trono sobreviver: era uma questão de assassinar ou ser assassinado.

Assim era o encantador costume entre os gregos.

Por ora, então, Theoxena se sentia insegura, e sua posição, tanto quanto o seu futuro, eram incertos, e Ptolomeu não tinha idéia do que fazer com ela.

Fosse como fosse, ele não poderia fazer nada até que as lágrimas de Theoxena secassem, e, por enquanto, Theoxena só queria saber de chorar.

 

       As Quatro Mil, Setecentas e Quarenta e Cinco Noites

Longe de ter garantido seu tratado de paz com Demétrio Poliorketes, no décimo sétimo ano de seu reinado e aos 79 anos de idade, Ptolomeu Soter mais uma vez foi empurrado para a Guerra com seu futuro genro. Foi nesse mesmo ano que Ptolomeu e seus aliados, o velho Seleuco da Síria, e o velho Lisímaco, da Trácia, lançaram uma expedição contra a Ásia, e foi uma campanha maciça, maior do que qualquer outra empreendida desde os tempos de Alexandre.

Enquanto as frotas se preparavam para se lançar ao mar, esses três reis firmaram uma aliança contra Demétrio e enviaram mensageiros ao exilado Pirro, em Epeiros, que almejava reaver o império antigamente governado por seu pai, instando-o então a atacar a Macedônia como uma manobra-chamariz, de modo que Demétrio fosse obrigado a lutar em diversas frentes simultâneas e isso antes que estivesse preparado para enfrentar fosse quem fosse — porque, embora Demétrio houvesse instalado as quilhas de quinhentos dos mais modernos navios de guerra, nenhuma dessas embarcações fora ainda posta na água.

Mesmo assim, mais à frente naquele ano, Demétrio lançou ao mar seu hekkaidekeres, ou dezesseis, uma embarcação gigante, da qual se gabava de ser o maior navio impulsionado a remo jamais construído.

Ptolomeu então navegou pessoalmente até a Grécia, comandando a sua frota, e levou consigo a maior parte de sua família: Ptolomeu Keraunos, com

32 anos, Ptolomeu Mikros, com vinte, e que entrava no serviço ativo pela primeira vez, e até mesmo Berenice e as meninas que ainda moravam com eles, todos foram para a Grécia, assim como os netos, seguindo o ensinamento de Platão de que seria benéfico para as crianças conhecerem a guerra. A guerra, para esta família, era um assunto doméstico. E Ptolomeu até mesmo brincava, dizendo que a guerra era o seu negócio familiar, principalmente agora que ia combater o homem que seria o seu genro, e que, na época, estava casado com Fila, irmã de Eurídice, esposa de Ptolomeu.

Assim, pergunta Thot: O que aconteceu? Lisímaco invadiu a Macedônia, cruzando a fronteira com a Trácia; Pirro invadiu a Macedônia, cruzando a fronteira com Epeiros, e ambos os exércitos devastaram o interior daquela terra, incendiando campos e mais campos cultivados com trigo maduro, ao longo de sua marcha, de modo que todas as habitações ficaram em chamas, e uma imensa nuvem de fumaça negra pairava sobre toda a região. A Macedônia, de uma ponta à outra, ardia em chamas.

Alarmado, Demétrio deixou seu filho de 31 anos, Antígonos Gonatas, ou o Rótula, encarregado da Grécia e se apressou a marchar contra Lisímaco para libertar a Macedônia. Já a caminho, um mensageiro lhe trouxe a notícia de que Pirro havia tomado a cidade de Verróia, e saber desse grande desastre foi algo que se espalhou pelas hostes macedônias com um efeito tão devastador que, sem exceção, todos os soldados se arriaram sentados no chão, com a cabeça nas mãos, e choraram. Quando se recompuseram um pouco, começaram a entoar canções de revolta contra Demétrio, seu comandante, de modo que ele perdeu totalmente o controle de seu exército, já que seus homens se recusaram a permanecer com ele por mais uma hora que fosse, deram meiavolta e declararam que estavam voltando para os seus lares, desertando, todos, para o acampamento de Lisímaco.

Demétrio percebeu que suas tropas já não tinham necessidade de seus serviços. O que fez, então? Não se deixou abater. Simplesmente descartou seu diadema real, suas vestes reais — o manto de púrpura e fios de ouro, trabalho de PtolomaYs, assim como as botas de feltro púrpura — e vestiu um manto simples, de tecido grosseiro cinzento, com botas de laço, como um soldado comum. A seguir, passou lama no rosto e fugiu do acampamento militar, deixando para trás todos os paramentos de rei, como se fosse um ator que, depois de desempenhar o papel de rei, tirasse seu figurino, uma vez terminada a representação.

Para Demétrio, de fato, a representação estava quase terminada.

Ele refugiou-se na cidade de Cassandréia, na região de Khersonesos, na Trácia, não distante de Pella, onde sua esposa, Fila, filha de Antipatros e irmã de Eurídice, viu-se incapaz de suportar a idéia de seu famoso marido reduzido à condição de um cidadão comum, de ele não ser mais um rei, um herói, nem um deus, e ela própria, lamentavelmente, não mais uma rainha e então ingeriu veneno e morreu em horríveis convulsões, vomitando seus intestinos, do modo mais repulsivo.

E Demétrio? Demétrio deu de ombros. Tinha assuntos mais urgentes para tratar do que cuidar de ritos funerários. Havia muitas outras mulheres no mundo. A maioria dos gregos tinha pouco afeto por suas esposas. Talvez, agora, pensou ele, pudesse se casar com a três vezes rica Ptolomais, filha de Ptolomeu. Para todos os efeitos, anunciou que estava farto de batalhas destinadas apenas a aumentar o seu poder e incrementar o seu luxuoso modo de vida, e aderiu ao acampamento de seu inimigo, Pirro, aquele mesmo Ruivo, cuja esposa era, é claro, Antígona, filha da rainha Berenice, do Egito.

Não muito depois disso, Demétrio Poliorketes surgiu na cidade de Mileto. Precisava de uma esposa, precisava de um reino e de dinheiro, e talvez lhe conviesse, agora, assim pensou, firmar a paz com Ptolomeu e selá-la por meio do casamento com sua filha. Sim Demétrio deitou seu instrumento de escrita feito de junco no papiro e marcou a data do casamento, encerrando assim o noivado de Ptolomais, que foi o mais longo noivado da história do mundo.

Ptolomais agora estava com 32 anos. Havia passado a maior parte de seus

4.745 dias de noivado ornando a maior tapeçaria em que qualquer pessoa já havia posto os olhos, em Alexandria, — um mosaico da vida e das aventuras de Demétrio, o Sitiador de Cidades —, deixando fora apenas a sua derrota, ou infortúnio, nas mãos do pai dela, Ptolomeu, e o infortúnio de Ptolomeu nas mãos de Demétrio, em Salamina, na ilha de Chipre; e esse seria o seu presente de casamento para seu marido, esse tão adiado marido.

Ptolomais esperara muitos e muitos dias, e quando os papiros foram lidos para ele, por seu pai, pulou de alegria e perdeu o controle, começando a gritar. Quando se recompôs, Ptolomais mandou consultar, como se tornara seu hábito freqüente, o oráculo de Zeus-Amon, na Líbia, para descobrir se o seu futuro ainda seria muito ruim. Ficando aliviada ao receber como resposta que seria a mais feliz das mulheres e mãe do mais belo dos filhos que já vivera, Ptolomais foi vista sorrindo, e essa era a primeira vez que sorria em 13 anos.

Ptolomais saiu pela residência sorrindo, a despeito do fato de esse seu marido ser um rei sem reino, que perdera a maior parte de tudo o que possuía, e de lhe restar pouco mais do que um teto sobre sua cabeça, e a despeito do fato de estar imobilizado em Mileto sem sequer meios para ir de navio para Alexandria. Fosse como fosse, não iria para lá, temendo que Ptolomeu voltasse atrás em sua palavra, de modo que Ptolomais deveria enfrentar a travessia do Grande Mar para se casar, assim como as suas outras irmãs.

Mas Ptolomais não se importava com nenhuma dessas desvantagens. Ela tinha sua própria fortuna. Tinha o substancial dote de uma filha do rei Ptolomeu. Era rica em escravos, em jóias, em decadracmas, uma das mulheres mais ricas do mundo, e iria para qualquer lugar se fosse para se casar com Demétrio.

Infelizmente, o que o Oráculo de Zeus-Amon não havia lhe dito era que estava fadada a ser a mulher mais feliz do mundo por somente um mês. E Ptolomais, que alcançara a questionável honra de estabelecer o recorde do mais longo noivado de todos os tempos, estava igualmente fadada a obter (por pouco tempo, pelo menos) o recorde do mais curto casamento.

Todos diziam que Ptolomaís havia sido paciente acima de qualquer padrão razoável. Uma mulher de menos tempera teria abandonado suas esperanças e pedido para se casar com outro homem. Mas Ptolomaís, por todo esse tempo, vinha dizendo: Demétrio Poliorketes é o único homem com que irei me casar.

Pelo menos, por fim, essa criança crescida pôde dedicar suas bonecas de cerâmica com membros móveis, presos por fios, ao templo de Artêmis, na Via Canopus, junto com seu guarda-roupa de peploi comido pelas traças. Finalmente, deixou para trás sua infância há muito terminada. Finalmente, pôde erguer a cabeça e, pela primeira vez desde que podia ser lembrada, passou um dia inteiro sem derramar lágrimas.

Eurídice e PtolomaYs, no tempo devido, seguiram para Mileto, onde a mãe encomendou milhares de rosas cor-de-rosa e milhares de brancos narcisos para os rituais de casamento, porque Ptolomaís, apesar de tudo, era a filha de um rei, e não poderia se casar sem o apropriado espetáculo de extravagância.

Quando Demétrio Poliorketes finalmente se dignou a aparecer, e Ptolomaís ergueu a mão direita na dexiosis dos gregos, ela lhe disse: Aqui estão, de fato, 4.745 narcisos brancos e 4.745 rosas cor-de-rosa — um narciso e uma rosa para cada dia desperdiçado e cada noite solitária da minha espera por você...

E Demétrio, atormentado pelo odor das flores, teve a cortesia de dizer que sentia muito pelo que lhe causara, por tê-la feito infeliz durante aqueles 13 anos; mas Ptolomaís disse que o perdoava e que mesmo assim valera a pena esperar.

Isso porque estava satisfeita em constatar que seu marido continuava jovem, e que ele não tinha ainda nem cinqüenta anos. Ela ficou aliviada por descobrir que o seu casamento terminaria por acontecer, no final das contas, depois de esse homem ter perseguido tantas e tantas outras mulheres e, para compensar o tempo perdido, estava satisfeita em saber que ficaria grávida na noite de núpcias já que tinha receado, e muito, que fosse tarde demais para gerar uma criança.

O Sitiador tinha 37 anos quando do seu noivado, e tinha os cabelos da cor das chamas mais pálidas e seu corpo era notoriamente parecido com a estátua de Hermes, esculpida por Praxíteles, tão belo que homens e mulheres o seguiriam pelas ruas. Agora suas têmporas estavam ficando grisalhas. Seu rosto ganhara muitos sulcos por conta de preocupações, e sua pele exibia vividas cicatrizes de muitas batalhas, mas apenas na frente, pois ele era um homem que jamais, em toda a sua vida, voltou as costas para um inimigo; ele era bravo — bravo como Háracles, bravo como Aquiles —, e a multidão de gregos que o acompanhava agora era apenas um pouco menor do que a que o havia acompanhado durante os seus anos de grande fama.

Já Ptolomais guardava pouca semelhança com a garota de 19 anos que havia sido descrita para Demétrio pelos embaixadores do pai, 13 anos antes. Sua alegria havia praticamente se esgotado durante a interminável espera. Antigamente, louvada por sua serenidade, Ptolomais era mais propensa agora a demonstrar mau humor, e havia dias mais agitados em que ela transparecia um pouco da loucura de Eurídice, sua mãe. No entanto, agora começaria sua vida como esposa.

Demétrio e Ptolomais, de fato, regozijaram-se com apenas trinta dias da vida conjugal. A certa manhã, o marido disse que precisava voltar ao trabalho, a suas intermináveis guerras, por sua urgência absoluta em recuperar, se fosse capaz, o reino da Macedônia, que lhe pertencia por direito, e alimentar a sua insaciável sede pelo derramamento de sangue humano. Assim que ele a deixou, as lágrimas retornaram aos olhos de Ptolomais, ela não sabia quando, ou se, esse seu perfeitíssimo marido retornaria. Mas manteve a cabeça erguida. Não roeu as unhas dos dedos, e seu ventre cresceu decididamente com o filho e herdeiro do Sitiador de Cidades.

Nove meses após o casamento — oito meses dos quais ela passou em sua costumeira solidão — Ptolomais pariu o filho que seria famoso para todo o sempre com o nome de Demétrio Ho Kalos — Belo Demétrio, o mais belo homem que já viveu. Mas era, infelizmente, destino desse garoto ter o mais desafortunado dos fins, e seu início de vida não foi tampouco bom, já que jamais pôs os olhos no homem que era o seu pai.

O exército de Demétrio Poliorketes contava então com onze mil soldados de infantaria e um número indeterminado de soldados, e era realmente notável que esse homem conseguisse encetar seu ressurgimento do nada, e mais uma vez tomar parte no grande drama dos episódios públicos. Mas, embora se empenhasse, como sempre fez, ao máximo, Demétrio foi pego numa cilada na Kilikia, 12 meses depois, tendo sido forçado a se render ao velho Seleuco, o rei da Síria.

Seleuco, assim disseram, encarcerou Demétrio numa jaula de vime, como se ele fosse uma fera selvagem e, embora lhe permitisse vez por outra sair para caçar, sob forte vigilância, também lhe permitiu beber todo o vinho que queria. Em verdade, Seleuco fornecia a seu prisioneiro tanto vinho e lhe proporcionava tão generosa hospitalidade que em dois anos o Sitiador de Cidades, ainda em sua jaula, e já rugindo, de fato, como um animal, morreu de tanto beber.

Demétrio tinha então 55 anos. Seus restos mortais foram enviados de volta para o filho destruído pela dor Antígonos Gonatas, o Rótula, que lhe rendeu as maiores homenagens, em termos de ritos funerários, já que esse seu pai foi de fato grande entre os grandes e a perda da sua vida foi um golpe terrível para a Macedônia.

Ptolomais havia esperado, talvez, tempo demais por esse seu marido, mas agora, tendo se casado com ele, se viu esperando um pouco mais. Nenhuma notícia fora enviada da Khersonesos-Síria sobre seu marido ou seu estado de saúde ou a possibilidade de libertá-lo do cativeiro. Nenhuma notícia sobre Demétrio chegou a Ptolemais, até lhe avisarem que ele havia morrido.

Quando contaram a Ptolomais, ela rasgou as roupas, golpeou os seios com seus punhos, besuntou o corpo com a lama negra de Mileto e derramou poeira e cinzas sobre a cabeça; e uivava, em seu lamento, como deve fazer toda esposa grega. No entanto, diferentemente do luto de tantas mulheres gregas (um luto fingido, já que jamais haviam conhecido as Flechas de Eros, o Menino), a dor de Ptolomais era genuína, já que seu amor era genuíno e os represados sentimentos de 13 anos de espera por esse homem transbordaram de vez; então ela enfureceu-se, irou-se, berrou, quebrou a mobília, e não sabia o que fazer de si, ou o que deveria fazer, mas pensou que também deveria, então, morrer.

Suas aias a abraçavam, às lágrimas, dizendo: Não o deixe penetrar fundo demais em sua alma... Não pense demais nele...

Mas Ptolomais não podia senão pensar e pensar sobre esse homem, por quem passara quase a metade da sua vida esperando. Sentiu como se o seu coração tivesse sido arrancado do peito, e as lágrimas não cessaram de correr por quarenta dias, como se agora fosse quebrar o recorde não apenas do mais longo noivado e do mais curto casamento, mas também do maior número de dias de pranto ininterrupto.

As aias, temendo por sua sanidade, lhe diziam: Vamos encontrar um novo marido para você, mas Ptolomais balançava a cabeça. Não queria nenhum outro homem senão Poliorketes. Jamais houvera outro homem em seus pensamentos e não havia espaço neles para mais ninguém. Não, as maneiras calmas e serenas, a pele quente e rija do Sitiador nunca poderiam ser substituídas.

Decerto, chegavam inúmeros pedidos de casamento para Ptolomais, mas ela descartou todos os pretendentes, dizendo que já havia tido o bastante dos caprichos masculinos. Vestiu então o peplos negro de uma mulher velha, embora tivesse apenas 35 ou 36 anos.

Em verdade, Ptolomais estava mais do que satisfeita com o fantasma de Demétrio Poliorketes, que agora aparecia em seu quarto nas horas mortas da noite.

Nenhuma outra mulher jamais viu essa assombração, mas Ptolomais sempre jurou que seu falecido marido tinha o hábito de se sentar na extremidade da cama, com seus cabelos desfeitos, suas roupas manchadas de sangue e rasgadas e seu corpo tão magro que todos os seus ossos transpareciam, exalando um forte cheiro de bebida.

Quando as aias que a serviam escutavam Ptolomais falando de seu fantasma, um calafrio percorria suas espinhas, e ofereciam mais e mais preces aos deuses da Hélade, além de pedirem aos médicos para conversarem com ela. No entanto, Ptolomais insistia, dizendo que Demétrio gostava de beijála, como sempre fizera, enfiando a língua em sua boca, e que ele fazia todas as outras coisas que os homens apreciavam tanto fazer.

O grande peso do corpo de Demétrio pressionando o seu era prova mais do que suficiente de que ela dizia a verdade, e tinha ainda os ferimentos e os hematomas de um púrpura lívido, deixado pelas mordidas dele em seu pescoço. Além do mais, era um fato bem conhecido que qualquer grego que morresse antes de sua hora predeterminada voltaria para assombrar os vivos até que atingisse, pelo menos, a idade em que geralmente os homens morriam.

Ptolomais, então, tinha esperanças de usufruir de mais cerca de vinte anos de visitações noturnas desse seu fantasma Sete mil e trezentas noites, como dizia e ela ficou satisfeita de constatar que o número de noites em que desfrutaria da companhia do morto era maior do que o número de noites pelas quais tivera de esperar por ele, vivo.

Durante o dia, Ptolomais irrompia em estranhos surtos de gritos. À noite, entretanto, os olhos de Ptolomais reluziam com um estranho brilho, e ela estava, sim, vivenciando certa felicidade, já que tinha esse seu fantasma só para si e tinha a certeza de que um fantasma era algo que ninguém nem nada no mundo, nem mesmo a Morte, nem o próprio Hades, poderiam lhe arrebatar, e que ela teria Demétrio Poliorketes para si, para todo o sempre.

Ptolomais, assim, vivia com amigos de seu falecido marido, em Mileto, e instou Eurídice, a mãe, para empreender a viagem e vir visitá-la e Eurídice fez várias vezes essa viagem, ida e volta, entre o Egito e Jônia, passando com a sua filha temporadas cada vez mais longas, e proporcionava certo alívio à Casa de Ptolomeu, no Egito, que ela fizesse isso.

Ptolomais tinha o seu fantasma, que ficava junto a ela, e nada mais a não ser o seu filho, seu único filho, Demétrio Calos. Pelo que se sabe, esse rapaz foi criado em Pella, na corte de Antígonos Caolho, onde recebeu a educação própria de um príncipe da Macedônia. De modo que, assim Thot presume, quando Ptolomais terminou por perder de vez e completamente sua sanidade (e como poderia ser diferente?), o garoto foi retirado dos seus cuidados e do seu controle pelos parentes e amigos do pai.

Uma mãe, sem dúvida, tem pouca serventia no mundo grego sem o seu marido. Qualquer que tenha sido o destino de Ptolomais depois disso ninguém poderia dizer com certeza. Sim, o mundo estava repleto, naqueles dias, de histórias que não tinham um final; de pessoas que se contavam entre os Desaparecidos. Ptolomais, princesa do Egito, que por algum tempo se chamou de Basilissa, ou seja, ex-rainha da Macedônia, era uma dessas.

Assim Ptolomais seria lembrada apenas como a mãe do mais belo homem do mundo, cuja trajetória não seria esquecida. Talvez tivesse verificado que, afinal de contas, fora lembrada, o que era talvez um consolo por ter tido a vida totalmente arruinada.

 

                               Belo Coração

Thot agora pergunta: Não havia, entre todos os casamentos dos filhos de Ptolomeu Soter, um único caso de felicidade, parecida à felicidade dos egípcios? E a resposta é Sim, havia, no que toca ao casamento de Ptolomeu Mikros com Arsinoê Alfa, que era um casamento feliz, muito feliz.

Mikros havia se casado com sua mulher sem jamais tê-la visto, baseado nas descrições dos embaixadores de seu pai e no juramento de sua irmã, mas também em obediência às ordens de seu pai, porque é assim que os gregos procediam em tais assuntos: simplesmente não era o caso de o filho escolher por conta própria uma esposa, assim como não acontecia com qualquer filho grego. Mas tudo corria bem para esse marido e sua esposa. Não importava se faltava a Arsinoê Alfa a inteligência de Arsinoê Beta — que podia administrar guerras, lidar com exércitos de soldados e conhecia a resposta para todo e qualquer problema — fosse assunto externo ou doméstico. Não, Arsinoê Beta estava a estádios de distância, casada com um outro homem e, no que concernia a Ptolomeu Mikros, era como se estivesse morta.

De forma alguma: Mikros não pensava em Arsinoê Beta em nenhum momento do ano, a não ser quando escutava, de tempos em tempos, os relatos de sua esposa sobre o estranho comportamento dela na Trácia. Sua irmã não escrevia cartas para o Egito. Não perturbava minimamente a Ptolomeu Mikros.

Com poucos meses de casamento, a princesa Arsinoê Alfa começou a arredondar seu ventre, onde crescia uma criança, e ocorria-lhe o pensamento de que esse seu filho poderia, algum dia, vir a se tornar o Faraó do Egito já que Ptolomeu Keraunos, ao que tudo indicava, havia perdido a preferência de seu pai, e porque logo percebeu que o rei Ptolomeu conversava com freqüência com Mikros, trocando idéias sobre os livros da Grande Biblioteca e sobre como manter os escorpiões distantes dos rolos de pergaminho, assim como sobre o grande Mouseion, e como impedir as pequenas serpentes de se enfiarem entre as roupas de cama dos eruditos, e sobre o Grande Farol e (a despeito do desinteresse de Mikros), sobre o exército, a frota de navios de guerra, ao passo que jamais conversava com Keraunos sobre nenhuma dessas coisas, e raramente entabulava algum diálogo cordial com Keraunos.

Arsinoê Alfa foi se tornando mais e mais pesada. Evitava olhar para qualquer coisa feia, acreditando que onde quer que pusesse os olhos, isso poderia afetar o caráter de sua criança. Não se mostrava hostil quanto às coisas do Egito, e quando o sumo sacerdote de Ptah lhe trouxe um largo colar de múltiplas voltas de contas, com três cabeças de Hórus, Arsinoê teve satisfação em usá-lo.

O nascimento da criança de Arsinoê Alfa ocorreu à maneira egípcia, com a mãe ajoelhada sobre dois grande tijolos numa tenda improvisada, feita de folhagens, instalada no telhado da residência em Mênfis, e era a primeira vez que esse tipo de evento era arranjado de maneira diferente dos costumes gregos, porque essa criança era neta, em linha direta, do Faraó.

Os egípcios diziam que havia três tipos de nascimentos. O normal, chamado hotep. O difícil, chamado bened. O totalmente extraordinário, com muito sofrimentos e gritos, e perturbado por muitos problemas, que chamavam de wedef. O parto de Arsinoê Alfa foi do tipo wedef, como se esse príncipe não desejasse ver a luz do dia. Mas a parteira apressou o parto, queimando resina de terebintina junto ao ventre da mãe, e as mulheres massagearam seu abdome com pó de açafrão dissolvido em cerveja, e depois com pó de mármore dissolvido em vinagre, tudo para diminuir suas dores.

A criança de Arsinoê, foi, é claro, um filho, já que seus pais haviam adotado todas as apropriadas medidas para tanto, desde amarrar o testículo esquerdo de Ptolomeu Mikros até a ingestão de grandes doses de excremento de falcão dissolvido em hidromel e Arsinoê tinha a pena do abutre sob seus pés, sempre que se deitava em seu leito.

Esse que era o mais ilustre dos seus filhos seria o primeiro Ptolomeu a nascer desde que Ptolomeu Soter assumira as Coroas do Egito, e talvez tenha sido por essa razão que o velho Anemhor teve grande cuidado em traçar, com suas próprias mãos, o horóscopo desse garoto, uma vez que o dia do seu nascimento deveria determinar inteiramente o seu destino e todos os dias do seu futuro.

O velho Anemhor explicou como essas coisas funcionavam: Um garoto nascido no Nono dia de Phaophi, ele disse, deve viver até a velhice...

Um garoto nascido no vigésimo-terceiro dia de Phaophi, ele disse, será devorado pelos crocodilos...

Um garoto nascido no vigésimo segundo dia de Thot, ele disse, não sobreviverá... E por aí em diante.

Mas aconteceu que esse garoto nasceu no mais afortunado dos dias. O velho Anemhor certificou-se disso, contando de trás para frente os dias, e dizendo aos pais em que dias deveriam ou não deveriam ter sua aphrodisia.

Chamaram-no, é claro, Ptolomaios — Ptolomeu. Desde esse início, o velho Anemhor fez certas exigências que jamais fizera. Insistiu, por exemplo, para que a placenta e as membranas fetais fossem preservadas, dizendo: É o irmão gêmeo do recém-nascido, que deve acompanhá-lo por toda a sua vida, como um fantasma.

Ptolomeu Mikros, o pai, fechou a cara e exclamou: Repulsivo, como faria qualquer grego.

O velho Anemhor pareceu não notar, e prosseguiu: O Ka é um descendente dos remanescentes do nascimento.

Mikros pareceu mais contente, pois sabia o que era o Ka, o Duplo que todo homem possuía, o Duplo Espírito.

O destino dos remanescentes desse nascimento, disse Anemhor, afetará o futuro da criança. Se forem destruídos, seu futuro também será prejudicado. Portanto, devemos preservá-los com o maior cuidado.

Assim, envolveram esses remanescentes em tecidos e o que veio a acontecer é que essa coisa sanguinolenta seria carregada à frente desse novo Ptolomaios, sobre um pedestal, e o acompanharia a todo lugar que ele fosse pelo resto da sua vida.

Mikros aquiesceu às curiosas exigências do velho Anemhor. Em seu íntimo, pensava: Que coisa obscena! E privadamente reclamou para o rei Ptolomeu. Somos helenos, ele resmungou, não egípcios... Certamente não se praticam esse imundos rituais na Hélade.

O Faraó deu de ombros e sorriu seu meio sorriso. Somos todos egípcios agora, ele disse. Quando estiver no meio de macacos — faça como os macacos, e exibiu seus dentes num sorriso, como se fosse uma piada.

O costume grego mandava queimar numa pira os remanescentes do nascimento, e observar meticulosamente os estalidos produzidos enquanto queimavam, porque isso habilitaria os pais a preverem o futuro dessa criança. Mas os gregos no Egito não eram mais completamente gregos, a situação deles não era completamente normal, e a partir desse nascimento, os Ptolomeus adotariam muitos procedimentos em obediência aos costumes egípcios.

De tempos em tempos, Mikros expressaria seus temores ao seu pai, pelo que havia feito, contrariando os costumes gregos, e afirmava que sentia medo, muito medo, de ferir a tradição. No entanto, o rei Ptolomeu, como sempre, tranqüilizava Mikros. Tudo vai correr bem, ele dizia, tudo caminha da melhor forma, e sorria, e punha o seu braço sobre os ombros do jovem, para encorajá-lo.

Assim, a família de Ptolomeu Soter penetrava um pouco mais na escuridão, numa estrada que desconheciam, e não havia caminho de volta. Aos poucos, iam queimando as pontes e só podiam ir em frente.

Esse novo Ptolomeu, que seria chamado de Ptolomeu Euergetes, não sofreu o mesmo destino de seu tio, o Raio, já que sua ama jurou por Zeus e Poseidon que amamentaria esse príncipe do seu próprio puro e descontaminado leite. Ela jurou por Zeus e Poseidon que tomaria os apropriados cuidados consigo mesma e com a criança deixada ao seu encargo. Ela jurou jamais causar-lhe dano por ingerir vinho nem booza. Transmitiria o seu bom caráter à criança, juntamente com seu leite, e o amamentaria por seis anos, segundo o costume dos egípcios.

A seguir, quando o trabalho desse Agathon Gala, o Bom Leite, estivesse concluído, Ptolomeu seria amamentado pelas deusas do Egito: por Sekmet, a Leoa, por Hathor, a Vaca de Ouro, e por Isis, a Senhora dos Muitos Nomes. Ele ingeriria não somente o leite das deusas, mas também sua divindade.

Tudo correria muito bem para esse novo Ptolomeu, o filho de Ptolomeu Mikros, neto do Hórus Vivo, Ptolomeu Soter. Os deuses zelariam por ele, e ele seria chamado de o Benfeitor, Aquele que Proporciona Boas Coisas ao Egito.

Ptolomeu Mikros e Arsinoê Alfa realizaram as apropriadas celebrações gregas pelo nascimento de seu filho e o futuro da Casa de Ptolomeu parecia perfeitamente promissor, repleto de bênçãos, como lhes disse o sumo sacerdote.

Isso porque os horoscopistas previram que esse filho viveria 63 anos, quatro meses e três dias. De fato, todos os oráculos que esses gregos consultavam e todos os augúrios prediziam a perfeição e um glorioso futuro.

Mas, Thot, que tudo conhece, sabe que mesmo um casamento perfeito como o de Mikros e Arsinoè Alfa pode estar fadado a terminar prematuramente em tragédia.

Já os egípcios, estes têm melhor sorte.

No décimo quinto ano do reinado de Ptolomeu Soter, o neto do velho Anemhor, Padibastet, também chamado Nesisty, e também Esisout, como Eskedi, seu pai, casou-se em Mênfis, e o nome de sua esposa era Nefersobek, que os gregos, em sua teimosia, chamavam de Nephersouchos, sendo que seu nome significava Belo é o Crocodilo.

Nefersobek era da cidade que os gregos chamavam de Crocodilópolis; isso porque seu pai era o sumo sacerdote de Sobek, o deus crocodilo. E Nefersobek foi criada desde pequena para honrar e cultuar os crocodilos que viviam no Lago Sagrado de sua cidade. Ela havia, com suas próprias mãos, adornado as orelhas e os tornozelos das feras sagradas com braceletes e brincos de ouro, e com freqüência assistia à alimentação dos crocodilos, a quem se dava carne de porco e os mais finos vinhos do Egito, reunindo-se ao culto dessa criatura que encarnava o deus.

A despeito de viver tão próxima à Face do Terror, o caráter de Nefersobek não se tornou agressivo. Seu temperamento não era perverso como o dos crocodilos. De modo algum: ela tinha o mais meigo dos temperamentos. Era a mais linda das mulheres e, no templo de Ptah, em Mênfis, deliciava-se conduzindo os tocadores de sistro, o sagrado chocalho que afugentava todos os maus espíritos, que é a mais importante parte do ritual de Ptah, o da Bela Face.

Nefersobek, em verdade, sorria do alvorecer ao crepúsculo, e seu marido, Padibastet, sorria ao contemplá-la. E o amor de um pelo outro era considerado o mais doce de Mênfis.

Seguiu-se então que no décimo sexto ano do rei Ptolomeu, no terceiro dia do terceiro mês de Peret, o terceiro mês da estação da Emergência, nasceu uma criança que foi chamada de Novo Anemhor, ou Anemhor II, o primogênito de Padibastete Nefersobek.

Embora Padibastet fosse, por essa época, um jovem sacerdote de vinte anos de idade, encarregado do posto menos importante de Profeta do Santuário de Ramsés II, no templo de Ptah, estava destinado a ocupar um dia o posto então exercido por seu avô, o velho Anemhor, tornando-se sumo sacerdote.

Thot diz: esse garoto nasceu para se tornar o Grande Chefe do Martelo, e desde o dia de seu nascimento foi criado para ter um lugar entre os Puros, treinado para o seu alto posto, ensinado para amar a todos os deuses do Egito, porém, acima de todos, a Ptah, o Deus Criador.

O avô, o velho Anemhor, que já tinha mais de oitenta anos, traçou o horóscopo dessa criança com suas próprias mãos, de modo a descobrir o número de dias de sua vida sobre a terra, e ficou satisfeito em saber, antes que o dia de sua partida para o ocidente chegasse, que esse seu neto viveria 72 anos, um mês e vinte dias.

A dinastia dos sumos sacerdotes de Ptah de Mênfis estava então assegurada para o futuro, assim como o da Casa de Ptolomeu. De fato, as previsões dos horoscopistas para ambas essas Casas eram que durariam o mesmo tempo e que terminariam no mesmo dia.

Mas, por enquanto, que ambas as Casas pudessem ter um fim era impensável.

O jovem Anemhor seria o pai de três filhos. Seria o Senhor dos Segredos do Lugar secreto, com seus dias plenos de paz, sem a perturbação de quaisquer horrores. Esse garoto nascera mais ou menos na mesma época que o novo Ptolomeu, o primogênito de Ptolomeu Mikros e Arsinoê Alfa, que seria o Ptolomeu Euergetes. Conheceriam-se um ao outro desde a infância, o grego e o egípcio, e nunca haveria hostilidade entre ambos, seriam amigos. Seus pais conheceriam uns aos outros e se respeitariam. Juntos, realizariam grandes coisas para Ptah e para o Egito.

O velho Anemhor, se sabia qual seria o número de dias de sua vida (e sabia), e o nome do dia no qual a sua vida na terra terminaria — será que tal conhecimento perturbava o seu coração? Não. Isso porque os egípcios vêem a morte como nada mais do que uma mudança de residência. Ele entende a morte com serenidade não com medo, como acontece com os gregos.

E será que Anemhor se dava ao trabalho de contar os dias que faltavam para a sua partida para o Ocidente? Não. Tudo estava nas mãos dos deuses. A morte em verdade não perturba o povo egípcio: eles se preparam para a morte no inteiro decorrer de suas vidas. Os egípcios sentem alegria ao encarar a morte — Anúbis, Senhor do Outro Mundo, deus da casa da embalsamação, é seu amigo de confiança e o guia na Outra Vida.

O novo Ptolomeu, amarraram-no com bandagens, segundo o costume dos gregos. Ao novo Anemhor, não amarraram, isso porque os egípcios não amarram seus filhos, como se já estivessem mortos, achando que os membros de uma criança devem crescer livremente. E, assim como Eskedi, o avô disse: Vai haver muito tempo para bandagens depois...

Ptolomeu Mikros ensinaria ao seu filho que um autêntico grego deve aprender a mentir para viver. Já Padibastet ensinou ao jovem Anemhor que um egípcio sempre diz a verdade, e seu treinamento no conhecimento começou assim que ele se tornou capaz da compreensão, porque seu pai costumava ler para o filho, no Livro da Sabedoria:

Seja pequeno em ira, grande no coração, e então seu coração será belo. Mesmo antes disso, praticamente as primeiras palavras que esse garoto escutou na vida foram palavras de sabedoria:

Que bem faz alguém se vestir com elegância Se ele tenta ludibriar deus?

E também:

Faiança disfarçada em ouro,

O dia chegará que se transformará em chumbo.

Padibastet ensinaria ao jovem Anemhor, esse filho que se tornaria o sumo sacerdote de Ptah — se o deus o permitisse —, exatamente como seus ancestrais que haviam sido sumos sacerdotes antes dele as virtudes do autocontrole, da moderação, da gentileza, da generosidade, da justiça e da devoção à verdade. E essas virtudes deveriam ser praticadas em relação a todos os homens, todas as mulheres. Padibastet não ensinou ao seu filho valores marciais. Não, nada disso. Padibastet não presenteou seu filho com uma espada de madeira, já que o seu filho não seria um guerreiro, como Ptolomeu — como os Ptolomeus —, mas um homem cuja vida estaria devotada à paz.

A instrução sacerdotal desse garoto se iniciaria antes que ele completasse cinco anos de idade. Aprenderia sobre todos os deuses. Aprenderia a arte da profecia. Aprenderia as artes da magia e da medicina.

Padibastet era o Mestre dos Segredos. Ele já sabia tudo o que acontecera no passado, tudo o que deveria acontecer no futuro. Sabia ler os pensamentos de um homem, mesmo daquele que não lhe dissesse coisa alguma. Sabia o que um homem faria, mesmo aquele que nem chegasse a abrir boca. Um homem como esse seria o mais poderoso amigo para o rei Ptolomeu, para o seu filho e para o seu neto. E o novo filho seria criado para ser uma cópia perfeita de seu pai, assim como o seu pai era uma cópia do pai dele, de modo que pudesse envergar a pele de leopardo, substituindo Padibastet quando esse se fosse para o Campo dos Juncos, para o ventre do Ocidente.

A família do sumo sacerdote acumulava quatro gerações, agora, desde que Ptolomeu chegara ao Egito: o velho Anemhor, Eskedi, Padibastet e o jovem Anemhor — que adorava sorrir e soltar gargalhadas. Seus membros nunca disparavam palavras de ira uns contra os outros. Sobre o ódio, nada sabiam.

E os gregos? Continuavam dando a seus filhos o nome de Ptolomaios, ou seja, Guerreiro. E continuavam discutindo, disputando, lutando. Os gregos eram fiéis aos seus nomes. Mas qual era a verdade? Não seriam os gregos felizes? Acreditavam que os gregos fossem melhores do que os egípcios, que o modo de vida grego fosse muito melhor do que o egípcio. Mas a verdade era que o Egito era mais antigo; a sofisticação dos gregos era, na melhor das hipóteses, recente e, no fundo, eram pouco mais do que selvagens, ainda dando a seus filhos o nome de Ptolomaios —, como se vissem grande virtude em lutar pelo gosto da luta.

Padibastet ensinou ao seu filho a ser bastante diferente: O homem ideal é um homem de paz.

No décimo sétimo ano, terceiro mês do verão, décimo segundo dia do Senhor das Duas Terras, Ptolomeu, Senhor dos Diademas, Que-A-Ele-Seja-Concedida-Vida-Eterna-Como-Rá, o rumor de lamentos e de gemidos elevou-se da casa do sumo sacerdote de Ptah, pois aconteceu que Anemhor partiu para os Céus, para descansar na Casa da Embalsamação, sob os encargos de Anúbis, que ele mumifique seu corpo.

Os filhos e netos, a nora e a nora-neta choraram pelo homem idoso, e os gemidos de sua viúva assomaram sobre todos os demais na vizinhança do falecido. Ela esmurrou os seios. Rasgou seu rosto com as unhas. Ninguém jamais esqueceria a dor da esposa de Anemhor, diante da perda do marido que tanto amava.

O corpo de Anemhor foi embalsamado de acordo com a tradição, remo-vendo-se o cérebro através de suas narinas com um gancho. Retiraram as entranhas, realizando a incisão de praxe em sua parede estomacal. Mergulharam o corpo desse homem num banho de natrão, pelos usuais setenta dias e noites. E durante todo esse tempo, os gemidos e o pranto dessa família prosseguiram.

Nesse ínterim, foram feitos três féretros antropóides de cedro, que seriam colocados um dentro do outro, pintados de dourado sobre preto, com as cenas da embalsamação dos mortos, e Anúbis, o deus de cabeça de chacal da embalsamação, e imagens de Thot, que é Três Vezes Grande, e da Pesagem do Coração, que aconteceria na Outra Vida.

Envolveram os restos do velho Anemhor em muitos e muitos cúbitos de faixas de linho, e por sob essas faixas esse grande homem usava as cápsulas de ouro tradicionais, cobrindo as pontas de seus dedos da mão. Usava também cápsulas de ouro sólido cobrindo as pontas dos dedos dos seus pés. Todo o crânio do sacerdote foi folheado a ouro, diretamente sobre a pele, de modo que seu rosto brilhava como ouro, como a pele dos deuses. Assim, o velho Anemhor tornou-se um só com o deus Osíris, e foi chamado, segundo o costume, de Osíris Anemhor, e deixado pronto para a sua viagem até o Mundo dos Mortos.

A esposa do velho Anemhor, que também ocupava o alto posto de Esposa de Ptah, viu com o olho de sua mente o seu marido atravessando os salões escuros da Vida Após a Morte. Ela assistiu à pesagem do coração dele contra a Pena de Maat, a Pena da Verdade, e soube assim que seu coração demonstrou ser leve na balança tão leve como a Pena. Em seus sonhos, viu Osíris, o grande deus, sentado em seu trono de ouro maciço, com o grande deus Anúbis a seu lado esquerdo e o grande deus Thot a seu lado direito, segurando o instrumento de escrita feito de junco, pronto para escrever, enquanto Anúbis fazia seu discurso ao visitante. Escutou então Anemhor declarar que não havia feito mal a nenhum homem, que não cometera nenhum crime, que não oprimira os pobres, que não fizera nada que não deveria ter feito durante toda a sua vida. Ela sabia que Anemhor fora um bom homem, determinado a buscar sempre servir a deus. Não, não havia encantamento que o velho Anemhor não pudesse entoar de cor e invocá-los em seu auxílio para preservá-lo dos terrores da Vida Após a Morte. O velho Anemhor nada tinha a temer.

A esposa viu o marido atravessar as chamas, penetrando no Campo dos Juncos, no Campo das Oferendas, no Campo dos Gafanhotos, e nada disso o feriu, mas ele caminhou sem empecilhos, sorrindo. Ela o viu transformado em um único com as Estrelas Imperecíveis, desfrutando de sua vida de bênçãos nos céus, e chorou, porque não tornaria a vê-lo, mas ao mesmo tempo estava feliz por ele.

Para o falecido Velho Anemhor, eles entoaram o encantamento que assegurava que o escriba dispusesse de todo o seu material de escrita no mundo seguinte: sua tigela de água, seus blocos redondos de tinta seca, um vermelho, o outro negro, e seu instrumento de escrita de junco. Isso porque se um escriba dispuser desses objetos, no mundo seguinte, conhecerá todos os segredos mágicos contidos nos escritos de Thot.

Entre os joelhos inertes de Anemhor, não colocaram o papiro que alguns chamam de O livro da ressurreição para a luz do dia, e que outros vulgarmente chamam de O livro dos mortos, mas sim um rolo de papiro em branco de noventa cúbitos de comprimento, de modo que o velho Anemhor pudesse continuar escrevendo na Vida Após a Morte, e por toda a eternidade, por milhões e milhões de anos.

O velho Anemhor não procedera de modo abertamente hostil aos gregos — especialmente em relação a Ptolomeu Soter —, mas nunca se mostrara totalmente amistoso. Manteve reservas, uma certa cautela sobre o que dizia a esse Faraó que não era um egípcio. Claro, havia cooperação entre ambos, já que o velho Anemhor enxergava muitas qualidades nesse homem, e Ptolomeu sabia muito bem que mesmo ele não tinha o poder de destituir o velho Anemhor de seu posto, mas que todo sumo sacerdote deveria permanecer sendo sumo sacerdote enquanto vivesse, carregando o cetro kherep até o dia em que tombasse morto.

O velho Anemhor sentia bastante orgulho de seus ancestrais: de pai para filho, haviam sido todos sumos sacerdotes desde os dias de Hatshepsut, muito antes até mesmo da era dos raméssidas. Havia mostrado a Ptolomeu suas estátuas de madeira no grande templo de Ptah, uma longa fileira delas os Grandes Senhores do Martelo, e todos com o mesmo misterioso sorriso do homem que conhece todos os segredos dos Céus, da Terra e do Mundo dos Mortos. Todos foram Mestres dos Segredos do Lugar Secreto, todos com suas cabeças raspadas totalmente à exceção da mecha lateral dos sumos sacerdotes de Ptah, e todos com a perna esquerda à frente — 48 gerações, cobrindo 960 anos.

E, sim, Ptolomeu se assombrara com toda essa extensão de tempo, perdera a fala. Agora, entretanto, o velho Anemhor se fora, e Ptolomeu precisava encontrar o sacerdote de Ptah capaz de substituir esse grande homem, de grande sabedoria: algum membro da ordem que trabalharia com ele em tudo e que não tivesse a tendência a se opor a ele. Aconteceu que Ptolomeu escolheu como novo sumo sacerdote de Ptah um outro Anemhor, que também atendia pelo nome de Nesisty, e também Esisout, mas, com mais freqüência, pelo de Eskedi, e que era o filho do Anemhor que havia partido, isso porque, embora não fosse um direito, por tradição, o filho do morto deveria ser indicado para o posto do seu pai, e Ptolomeu percebeu que Eskedi trabalharia com ele em tudo; que não havia reservas, não havia desconfianças; que Eskedi era o melhor homem para se tornar o Grande Chefe do Martelo.

Assim foi que Eskedi, aos 35 anos, foi conduzido a Sua Majestade, e ele curvou-se sete vezes e se prostrou de corpo inteiro no assoalho, beijando o chão junto aos pés de Sua Majestade, e então se tornou o Primeiro Profeta de Ptah, o Primeiro Servo do deus, e Sua Majestade ergueu-o e pronunciou as palavras que deveriam ser ditas em tal ocasião:

Daqui para a frente sois o sumo sacerdote de Ptah... Os tesouros dele e os celeiros dele estarão sob vosso selo... Sois o Cabeça desse Templo, todos os servos estarão sob vossa autoridade...

E Sua Majestade presenteou Eskedi com os dois anéis de ouro e o cetro de electro que era o cetro kherep de seu posto, e ele se tornou ao mesmo tempo Chefe da Dupla Casa da Prata e do Ouro, Chefe do Duplo Celeiro, Chefe dos Ofícios, Chefe de Todos os Negócios de Mênfis e Grande Senhor do Martelo.

Mensagens reais foram espalhadas por todo o Egito, deixando saber que a Casa de Ptah fora confiada a Eskedi, filho do velho Anemhor, assim como todos os seus bens e pessoas.

Eskedi louvou Ptah, o da Bela Face, o grande deus, o deus que possuía a capacidade de até mesmo fazer o Tempo voltar atrás.

Thot diz: O temperamento desse egípcio é sereno. É meigo. Ele ama sua esposa, Neferrenpet. E sua esposa o ama também.

Eskedi, ele tem um imenso coração. Sua ira é pequena. Ele é belo de coração.

 

             A Boca que Despeja Fogo

Assim aconteceu que Eskedi, o filho, passou a auxiliar Ptolomeu, substituindo o velho Anemhor, seu pai, vestindo o manto de pele de leopardo, com suas pintas, característico de seu augusto-posto. Eskedi não presenteava os gregos com crocodilos. De modo algum. Trouxe, sim, o melhor dos gatos de Bubastis. Trouxe os mais ligeiros dos cães de caça, para caçadas nos desertos. Trouxe macacos, dizendo: Belo é um macaco entre crianças. E era Eskedi, agora, quem dava a Ptolomeu sábios conselhos. Foi Eskedi quem herdou a tarefa de instruir Keraunos sobre os assuntos egípcios, dos quais Keraunos não queria escutar nem uma palavra sequer.

Desde a coroação do seu pai, Ptolomeu Keraunos fora tido como herdeiro do trono e do reino de Ptolomeu Soter. Para Keraunos, e somente para ele, entre todos os filhos de Ptolomeu, Eskedi revelou alguns dos Segredos do Egito, embora, de fato, ele realmente não quisesse saber de coisa alguma que se referisse ao Egito.

Quando Eskedi explicou a Keraunos o significado de Thot e do Oito de Hermópolis, ou seja, a Companhia das Oito Deidades do Caos, esse jovem teve a ousadia de bocejar.

E quando Eskedi lhe perguntou: Por quê, lhe suplico, não escutais, Keraunos replicou: Sou grego. Os deuses do Egito nada significam para mim.

Exatamente: Ptolomeus Keraunos rejeitou, de princípio, qualquer coisa que não fosse grega. Não estava interessado em saber nada sobre Anúbis, o cão, que é o Faraó do Mundo dos Mortos, ou sobre Hórus, o Falcão de Ouro, ou sobre Osíris e o absurdo de se voar para os céus e se tornar um único com as Estrelas Imperecíveis, depois da morte. Keraunos era um grego e professava ódio a tudo o que fosse estrangeiro, inclusive a populações estrangeiras.

Dava-se o mesmo, entretanto, com a educação grega de Keraunos, já que ele mostrava pouco interesse também pelos deuses gregos. Não apreciava ler livros gregos, nem, de fato, livro nenhum — nem mesmo Homero; nem mesmo a Ilíada, em que abundam guerras e matanças. Não, Keraunos estava apenas interessado em lutar, nas diferentes maneiras de se matar um homem; em armas e treinos com espada. Não lhe interessava ler sobre táticas, nem estratégias. Julgava ter pouca necessidade de geografia, ou de matemática, ou de geometria. Quanto à lira, dizia que a música era para os kinadoi.

Keraunos vivia, em verdade, muito ao acaso, bastante semelhante a um bárbaro. Em nada diferente de um bárbaro, nem dos animais, já que não era guiado pela razão.

Um tal homem, refletiu Eskedi, não será capaz de carregar o fardo de ser o Faraó do Egito.

Não, Keraunos não se assemelhava nem um pouco à imagem de Hórus Vivo. Parecia cada vez mais a imagem de Seth Vivo, o Inimigo da Luz, a encarnação da desordem.

Ptolomeu Keraunos fora criado, no entanto, para acreditar que, não importando o que fizesse, seria o rei, sucedendo o seu pai, e era esse seu direito como filho legítimo mais velho de Ptolomeu Soter, e era isso o que o fazia prosseguir pensando que poderia fazer o que bem entendesse. Não surpreendeu a ninguém, portanto, que, quando a promessa de torná-lo rei foi posta em dúvida e começou a tomar corpo o pensamento de que Keraunos poderia não ser o homem certo para se tornar rei, o rumor tenha se alastrado com rapidez.

Eskedi dedicava muitos de seus dias a meditar sobre o problema da sucessão e da disputa entre os deuses Hórus e Seth, entre a Luz e a Escuridão, o Bem e o Mal, que parecia se reproduzir nos dois filhos de Ptolomeu Soter, candidatos ao trono. Parecia a Eskedi quase como se esses dois revivessem a antiga disputa; quase como se o mito tivesse servido de modelo para a História — quase, ele pensou, como se alguma criatura de grande poder mágico houvesse feito esse arranjo deliberadamente.

Se Ptolomeu Mikros triunfasse sobre Ptolomeu Keraunos, seu meio-irmão, seria a vitória da razão. Mas se Keraunos se tornasse o Faraó, sem dúvida, o Mal e a Desordem seriam coroados juntamente com ele. Seria o começo do reinado de Seth, o Eterno Criador de Tumultos, prevalecendo sobre o trono de Osíris, algo que não deveria de modo algum acontecer. De fato, ninguém poderia entregar a Keraunos, sequer, o comando de um trieres, muito menos de um reino.

Para Eskedi, a escolha entre os dois herdeiros parecia muito simples. Estava claro para ele quem seria o melhor Faraó — quem era o kalokagathos, o perfeito cavaleiro dos gregos.

Mas como persuadir Ptolomeu Soter a escolher o filho certo, o mais adequado Faraó para o Egito?

Quando Ptolomeu Soter começou realmente a envelhecer, e até mesmo a pegar no sono durante as audiências em que precisava ouvir petições de seus súditos, embaralhando as palavras nos rituais do templo, encontrando dificuldade em prestar atenção, por um período prolongado, a qualquer coisa que lhe dissessem, seus conselheiros, em particular os conselheiros egípcios, insistiram que ele decidisse quem seria o seu herdeiro.

Qual seria o melhor procedimento a ser tomado? Ele não conseguia se resolver. Assim, perguntou a opinião de outros, e no dia em que deveria decidir, havia três lados envolvidos numa querela de perguntas e respostas sobre o seu herdeiro: Eskedi, sumo sacerdote de Ptah e os demais sumos sacerdotes do Egito; Demétrio de Faleron, conselheiro de Ptolomeu para assuntos gregos, e Berenice, a Grande Esposa real do Faraó.

Defendendo Keraunos, o mais enfático apoi veio de Demétrio de Faleron, que se esforçou para fazer prevalecer o filho de Eurídice ao citar Aristóteles: Todo garoto não é às vezes maldoso, às vezes bom pois acreditava que os erros cometidos por Keraunos eram nada senão tropeços infantis.

Mas, contra isso, disse Eskedi: Keraunos não é mais uma criança, mas um homem adulto. Já teve todas as oportunidades de mostrar o seu valor. E ele não é perverso apenas vez por outra, é perverso o tempo todo.

Sem dúvida, o velho Anemhor preferia Keraunos mas Eskedi, seu filho, tinha Mikros em melhor conta, o qual, mesmo sendo a cria mais nova, o menor da prole, não era um louco como Keraunos.

Eskedi até mesmo murmurou para o Faraó: Existe o homem cruel que é sereno como o crocodilo na água, e ele se referia a Keraunos. Disse ainda: Maior é o clamor do homem sereno do que o do forte.

E Eskedi até mesmo disse ao pai desse homem: Ptolomeu Keraunos tem a Boca-que-despeja-fogo. É como um homem que queima por dentro. Faz o que bem entende, assim ele é, e nada faz daquilo que o desagrada. Não tem senso do que é certo nem apropriado. Não tem noção de dever...

E Ptolomeu Soter assentiu de cabeça, porque tudo o que Eskedi dizia era verdade.

Eskedi prosseguiu: Quais são as qualidades necessárias a um Faraó? Ele precisa do talento para atrair afeto. Precisa do talento para transmitir energia. Mas Keraunos não atrai afeto. Jamais conquistará o coração de ninguém. O Faraó necessita de carisma. É Grande na Brandura. Keraunos não tem carisma, ele não é brando, mas amargo.

Em verdade, disse Eskedi, o Faraó precisa ter o seu lado severo. Precisa aterrorizar qualquer homem que se opõe a sua vontade. O Faraó precisa esmagar cabeças. O temor ao Faraó deve se espalhar por toda a terra, de modo que ninguém se atreva a desafiá-lo. Keraunos é assim, mas ele possui apenas as más qualidades de um Faraó.

Para Eskedi, Keraunos era o voluntarioso tão desprezado pelos homens sábios do Egito. Era como puraustes, a mariposa que se deixa queimar na chama de uma vela, assim ele oprimia o coração desse jovem sumo sacerdote.

Eskedi foi ainda mais incisivo ao dizer: O homem-de-boca-que-despeja-fogo é como um lobo jovem numa fazenda. Ele bloqueia a luz do sol. E disse ainda: O barco dos gananciosos pára na lama, enquanto a barcaça do homem silencioso navega ao vento.

Ptolomeu refletiu profundamente. Mikros, certamente, havia se acostumado à ociosidade, mas também à vida erudita. Havia alcançado a arrepsia, o equilíbrio do espírito. Mas não era um guerreiro, era pacífico. Era sagaz, dotado de muito bom senso, como o seu pai, enquanto Keraunos, em verdade, era justamente o oposto.

Mikros havia sido criado na sombra, porque sua pele clara se queimava com facilidade ao sol. Havia crescido muito mole, diferente de Keraunos, que era um homem enrijecido. Mas Keraunos era enrijecido demais, e um homem assim traria grande dano ao Egito.

Soter impacientava-se com Mikros, que mal tinha escutado sequer uma trombeta do inimigo, muito menos erguera sua espada em batalha mas havia tempo de sobra, pensou ele. Mikros ainda era jovem. Incomodava a Soter que Mikros fosse tão avesso à violência, que tivesse tão pouco do espírito de um guerreiro; no entanto, os egípcios detestavam a guerra. Queriam um Faraó que preferisse a paz.

Ptolomeu pensou nos tratados sobre a realeza que Demétrio de Faleron o obrigara a ler, e disse: Um bom homem é mais forte do que si mesmo. É capaz de controlar seu apetite para a comida e a bebida, para o sono e para a aphrodisia. Entretanto, Keraunos não controla seus desejos. É um homem descontrolado.

E disse: Um rei precisa ser um honrado senhor de seus prazeres, não um vergonhoso escravo deles.

Ptolomeu escutou por longo tempo o que tanto Demétrio de Faleron e Eskedi, o sumo sacerdote, disseram, mas as últimas palavras de Eskedi foram aquelas que se instalaram em sua mente e retornaram à noite, quando ele tentou conciliar o sono: Não inicie um fogo se não puder extinguir-lhe as chamas; não desencadeie uma seqüência de acontecimentos que você não será capaz de deter.

E não conseguiu pensar em mais nada, a noite toda, a não ser no fato de que Ptolomeu Keraunos era, por natureza, maluco por guerras, um homem do tipo condenado por Aristóteles como subumano.

Quanto às opiniões das esposas de Ptolomeu sobre a sucessão, a de Eurídice — ausente em Mileto, fazendo companhia à filha — não foi ouvida, a não ser por intermédio de Demétrio, mas ela não apoiaria ninguém mais a não ser seu próprio filho, e reservadamente expressava seu horror quanto à possibilidade de Ptolomeu sequer pensar em escolher qualquer outro.

Berenice, é claro, preferia Ptolomeu Mikros, já que era sua mãe, e sabia íntimo o que aconteceria se o rei Ptolomeu morresse e Keraunos o substituísse no trono: sim, Keraunos mandaria assassinar Berenice e seu filho, Mikros, e confessou seus receios a seu marido, que sabia que Mikros faria a mesma coisa com Eurídice, assim como com Keraunos, se se tornasse rei. Ele sabia que, o que quer que acontecesse, um de seus filhos — de sua carne e sangue — estava fadado a morrer.

Quanto aos demais filhos — esses que nem sequer foram cogitados como herdeiros —, morreriam todos, também. Não havia ele próprio criado Keraunos para pensar desse modo — para entender o assassinato de parentes como a única maneira de um rei sobreviver?

O que, então, deveria fazer Soter Não iria escolher como seu herdeiro o filho da mulher que amava, a rainha Berenice, e banir a louca Eurídice para sempre, juntamente com seu louco filho, Keraunos?

No final, foi uma escolha fácil: entre Ptolomeu Keraunos, com seu mau temperamento e seus cabelos escuros, aquele cujos olhos eram muito próximos um do outro, e a graça e os talentos de Ptolomeu Mikros, um Apolo com o cabelo da cor da manteiga, um jovem que tinha toda semelhança com seu pai. A escolha era, sim, entre a brutalidade e a inteligência, entre o vício e a virtude. De fato, não havia a possibilidade de o Egito ser governado por um homem brutal como Ptolomeu, o Raio.

E como Soter justificaria tal decisão? Certamente, a melhor das razões era que um rei deveria seguir o exemplo dos deuses, e, assim, ele citou Cronos, o último a nascer de Ouranides, e Zeus, o mais jovem dos crônidas, e indicou assim Ptolomeu Mikros, o mais novo de seus filhos legítimos.

O que possui mais realeza, ele disse, e mais divindade, é o sangue que corre nas veias do último que nasce, numa prole... Portanto, concluiu: Mikros deverá nos suceder, Mikros deve ser o co-soberano.

A luta pela sucessão, para se dizer a verdade, foi travada e ganha no gyenaikeion, entre duas mulheres que se enfrentavam pelo título de Mãe do Rei. Tanto Berenice quanto Eurídice tinham tudo a perder, incluindo suas vidas. Se Mikros, filho de Berenice, se tornasse rei, ela seria a Grande Vaca Real que Habita o Nekher, a Grande Mãe Real, e seus dias de glória prosseguiriam. Mas se o filho de Eurídice, Keraunos, se tornasse rei, seria morta, e era impensável para o Rei Ptolomeu que sua amada Berenice não se tornasse Rainha-Viúva depois que ele descesse para o Hades, ou para onde quer que o Faraó do Egito fosse, na Vida Após a Morte dos egípcios.

Assim foi que, no lugar de seu filho legítimo mais velho, seu herdeiro por direito, Ptolomeu Soter acabou escolhendo seu filho predileto, filho de sua esposa predileta, apesar de esse filho não ter um corpo esbelto, não ser um guerreiro, e não ter, de modo algum, sido educado para se tornar um rei, ou um Faraó, ou um deus vivo.

Muitos dos gregos pensaram que Ptolomeu Soter estaria contrariando o seu bom senso ao fazer isso, porque Ptolomeu Keraunos era belo, popular, másculo, enquanto, em verdade, Ptolomeus Mikros não era nada disso, e o exército de Soter não ficou muito satisfeito de saber quem seria o seu novo comandante supremo. Isso porque era Keraunos a quem eles admiravam, era Keraunos quem saía todas as manhãs conduzindo seu carro, com eles, enquanto Mikros permanecia na cama, dormindo até tarde. Ptolomeu Mikros nunca se exercitou com a falange.

Berenice — o que ela estaria pensando, então? Será que acreditava que governaria por intermédio de seu filho? Talvez. Apesar de todo o seu ouro, jóias e esplendor, ela era dura, uma mulher enrijecida, que apreciava ostentar o abutre — que era repulsivo para qualquer grego — sobre sua cabeça; e que se obrigara a não se deter diante de nada para conseguir tudo o que queria. E agora, havia conseguido: Berenice possuía tudo.

Era chegado, então, o momento do grande triunfo de Berenice, a avassaladora vitória de Berenice e, quando se viu sozinha, nos seus aposentos particulares, naquela noite, Berenice dançou, Berenice gargalhou, Berenice cantou, porque o futuro pertencia a Berenice — todo ele — e sobre essa crucial decisão de Ptolomeu, Eurídice, sua esposa rejeitada, ainda em Mileto, na Jônia, nada sabia.

 

                   Unhas de bronze

Quando Ptolomeu Keraunos viu a si mesmo, em sonhos, tendo aphrodisia com um porco, soube que o pior estava para acontecer, já que tal sonho significava que o homem seria privado de suas posses.

Ao mesmo tempo, deu risadas, já que buscar significados no reino dos sonhos era tão absurdo quanto acreditar nos deuses.

Entretanto, na manhã seguinte, o rei Ptolomeu convocou Keraunos e lhe comunicou o que havia decidido sobre sua sucessão. E Soter acrescentou: Quanto mais cedo você partir, melhor. Apresse-se e vá.

Keraunos, paralisado, ficou olhando para o seu pai como se não conseguisse acreditar em suas palavras. Tentou, então, chamar Soter de Patridion, papai, como se estivesse suplicando a ele, dizendo-lhe, Sou o mais velho dos seus filhos... Como se fosse capaz de fazer o Soter mudar de idéia. Mas a decisão de Soter estava tomada, e ele não a mudaria.

Vá para o porto, disse Soter, o trieres está esperando para levá-lo embora...

Quando percebeu que até mesmo Keraunos estava prestes a chorar, disse: Não piore as coisas, e colocou o braço sobre os ombros de Keraunos, fitando-o bem nos olhos, e acrescentou: Assim que eu morrer... Mikros se tornará seu inimigo.

Mikros já é meu inimigo, replicou Keraunos.

Quando eu estiver morto, disse Soter, seu irmão vai com toda certeza tentar matá-lo. E Keraunos viu as lágrimas nos olhos do seu pai, isso porque Soter não odiava esse seu filho, por mais desencaminhado que ele fosse, mas sim o amava.

Que ele tente, disse Keraunos, e soltou uma risada desesperada, como alguém que sabe que perdeu tudo.

Para onde devo irí, indagou Keraunos. Como vou viver fora do Egito E seu pai lhe explicou que receberia uma dotação em dinheiro enquanto se mantivesse distante das Duas Terras.

No entanto, Keraunos não desejava deixar Alexandria, e ainda julgava que era ele quem deveria ser o herdeiro de seu pai. Assim, pediu por algumas horas para reunir seus pertences, mas, em vez de fazer isso, galopou pela cidade, naquela tarde, durante a sesta, tentando sublevar seus amigos, e todos os que o apoiavam, até mesmo o exército egípcio, e assim provocar uma revolta, de modo que seu irmão, Mikros, e até mesmo o rei, seu pai, fossem assassinados naquele mesmo dia.

Foi Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, que se apressou a levar palavras de urgência ao rei Ptolomeu, sobre aquele seu filho, dizendo: Agora que ele sabe qual será seu destino, mostra-se com a verdadeira aparência que tem. Ele agita sua cauda como o jovem crocodilo. Ele arma seu bote. Seus lábios podem ser suaves, mas sua língua é amarga. O fogo queima em seu ventre... E Eskedi instou Ptolomeu a obrigar Keraunos a entrar imediatamente no trieres, antes que conseguisse sua vingança contra o irmão mais novo — aquele mesmo Mikros, o qual, em se tratando de uma luta, não teria agilidade para se defender, e que seria, sem dúvida, derrubado, derrotado e morto.

Quando avistou Mikros a distância, Keraunos berrou para ele: Vou matar você, ainda esta tarde, e o chamou de skubalon, imundo, e coisas piores, e quando se aproximou, foi preciso que seus amigos o detivessem pelo braço, por medo de que, de fato, investisse contra o seu irmão.

O exército de Ptolomeu Soter provou, entretanto, sua lealdade ao rei, e os soldados, com satisfação, levaram esse filho para o pai, amarrado e acorrentado como um prisioneiro de guerra.

Ptolomeu disse novamente a Keraunos que já não havia lugar para ele na cidade, e que o trieres o aguardava no porto privado, para levá-lo embora, e que ele seria um tolo, senão até mesmo um homem morto, se tentasse retornar.

A portas fechadas nos aposentos de seu pai, Keraunos deu vazão à sua fúria. O Faraó o escutou, por alguns instantes, mas poucas de suas palavras faziam qualquer sentido e, quando Soter bateu palmas, os guarda-costas carregaram-no embora, com Keraunos debatendo-se e gritando insultos contra o seu pai, mesmo nesse momento.

Do terraço mais alto de seu palácio, Ptolomeu assistiu ao grande navio levantar âncoras, e seus duzentos remadores erguerem e abaixarem os remos, ao mesmo tempo, como asas de um gigantesco abutre, e ficou observando até que a vela fosse mais nada senão um ponto negro no horizonte. Somente então uma lágrima escorreu dos olhos desse rei, lamentando-se por esse filho que o desapontara em todos os aspectos; o filho que, sem dúvida, ainda causaria muitos problemas, mas a quem ele não teve coragem de mandar executar, já que não havia cometido crime algum, a não ser a aphrodisia com sua irmã.

Também no trieres estavam Melagros e Argaios, os outros filhos de Eurídice, que seguiam com seu irmão para a Trácia, buscando seu destino. Isso porque estava claro que nenhum dos filhos de Ptolomeu com aquela mulher estava em segurança, já que colocava em risco a estabilidade de Mikros.

Ptolomeu enxugou a lágrima, aborrecido, e retornou para os negócios do Egito: petições, decretos, prostagmata, o suprimento de milho, as perspectivas da interminável guerra com a Síria e a Casa de Seleuco, e afastou a lembrança de Ptolomeu Keraunos do seu coração, assim como o escriba apaga um erro do seu papiro. Para os filhos que permaneceram em Alexandria, disse: Deveis encarar Ptolomeu Keraunos como se não o conhecessem, e ninguém falou no nome do Raio, naquela residência, outra vez.

Keraunos nunca bebera da água do Nilo, já que via os nativos despejando seus dejetos no rio. Não, Keraunos nunca bebeu nada senão vinho não diluído, no Egito, e jamais retornaria. Keraunos perdeu seus privilégios, e com ele caiu em desgraça seu grande aliado, Demétrio de Faleron, que havia defendido Keraunos tão ardorosamente que, em relação a ele, nada poderia ser como antes. O que aconteceu com este que era o mais sábio dos homens ninguém pode afirmar, exceto que há uma história, que circulou na época, segundo a qual ele teria viajado rio acima, encarregado de alguma missão, ou pensando, talvez, em escapar em segurança através do deserto de Coptos, ou pelo Mar Vermelho, e dali chegar à índia, mas que teria pegado no sono debaixo de uma palmeira, na hora mais quente do dia, e então fora picado por uma serpente.

De fato, essa desafortunada morte de Demétrio de Faleron foi imortalizada num poema por um de seus colegas eruditos do Mouseion:

Uma ASPIDE com muito veneno

Que não deveria ser incomodada,

Faiscando não a luz

Mas a negra morte

De seus olhos

Matou o sábio Demétrio.

Talvez não seja um poema muito bom, mas foi tudo o que restou dele, fora suas grandes idéias. E é o quanto coube à sabedoria, não mais, ao conselho sábio, à inteligência das palavras, já que nada disso salvou o famoso Demétrio de Faleron de ser lançado no Hades, como todos os demais, e bem mais cedo do que ele pretendia.

Logo que Ptolomeu conseguiu se livrar de seu filho Keraunos, e Demétrio de Faleron tão convenientemente partiu rio acima, quem deveria aparecer de novo em Alexandria, senão Eurídice, que instalou residência outra vez no palácio do homem com quem era legalmente casada, conforme seu direito.

O que vai ser de Eurídice, Berenice perguntou ao Faraó.

Talvez ela aprecie voltar para Mileto, e ficar lá para sempre, ele respondeu. Eurídice pode fazer o que bem entender. Ela não é uma prisioneira, aqui, ele disse, e abriu os braços, e soou quase como se não lhe importasse o que sua esposa faria, já que tinha assuntos mais importantes com que se preocupar.

Mas, consigo mesma, Berenice calculava que essa sua sobrinha provavelmente tramaria algo por suas costas, tentando levantar apoios para que o seu filho recuperasse o trono. E, certamente, sabia que Eurídice era bem capaz de arranjar para que Mikros fosse apunhalado, ou envenenado, e também a própria Berenice, se isso pudesse possibilitar a Keraunos se tornar rei, no final. Em verdade, Eurídice era conhecida como uma pessoa perigosa para ficar perambulando pelo palácio, e tão preocupada ficou Berenice sobre o que essa sua sobrinha poderia fazer, que deu ordens para que fosse mantida sob vigilância o tempo inteiro, exigindo um relatório diário sobre com quem Eurídice conversara.

A despeito dos guardas plantados do lado de fora de seus aposentos, Berenice passou a trancar sua porta tanto de dia como à noite, para impedir que Eurídice e seus agentes pudessem entrar sem serem notados. Esta situação não podia se estender por muito tempo.

Quando Keraunos foi mandado embora, Demétrio de Faleron deixara para Eurídice, a ser entregue quando ela retornasse de Mileto, uma mensagem de advertência, para ficar alerta para punhais, venenos, infelizes acidentes em escadarias; como resultado, Eurídice, em sua volta ao Egito, ficou tão temerosa de ser assassinada que ordenava a sua aia de maior confiança que provasse tudo o que ela comia.

Nesse meio tempo, o que Eurídice fazia, de fato? Em seu banheiro, enfiou cravos de bronze numa imagem de seu sobrinho, o príncipe Ptolomeu Mikros, feita de restos de sabão e vela de cera: um em cada olho, um em cada ouvido, um em cada narina e mais um entre as pernas — e cravos, efetivamente por todo o corpo de Mikros. Pôs para flutuar a imagem de Mikros em sua banheira, e a manteve sob a água, para depois escondê-la por detrás de uma laje solta no assoalho do seu banheiro.

Ao saber que Mikros pegara uma gripe, pressentiu seu êxito, mas na verdade só conseguiu fazê-lo espirrar, e um espirro, como todo grego sabe, nada mais é do que um sinal de Boa Sorte, um sinal de Zeus, e Mikros não obsequiou Eurídice partindo desta vida.

Eurídice chegou mesmo a abandonar a magia grega pela magia egípcia, aprendida apenas sumariamente com suas aias. Ela esfregou incenso nas mãos. Enxa-guou a boca com natrão. Balbuciou as sagradas palavras de Rá numa língua que não compreendia, para forçar o deus a lhe conceder o que ela queria: a morte de Ptolomeu Mikros e a indicação de seu filho, Ptolomeu Keraunos, como herdeiro do Egito, em seu lugar. Mas, a despeito de Eurídice se banhar sete vezes ao dia por três dias seguidos, e de pintar a imagem de Maat em sua língua com tinta verde, sua magia não surtiu efeito, já que as palavras que pronunciara não faziam sentido. A magia, para Eurídice, havia parado de funcionar tempos atrás.

Mikros ficou de fato surpreso por ser nomeado herdeiro de seu pai, já que não havia sido criado para se ver como o futuro rei do Egito. No entanto, intimamente, Mikros sorriu. Achava que Keraunos recebeu o que merecia: nada. Considerava Keraunos um idiota nato, irremediável, um tolo completo, incapaz de controlar o seu próprio rhombos.

Mikros, decreto, não tivera instrução suplementar em economia e matemática, muito menos as lições de estratégia e tática que seu irmão recebera. De modo algum. Fora sempre Keraunos que usufruíra do kudos, todo sinal de predileção, enquanto Mikros fora sempre deixado por sua própria conta e em menor importância, um garoto cujo futuro poderia ser governar Chipre, ou Epistates, na Líbia, mas não se tornar um rei, muito menos um deus vivo.

Mas um dia após Keraunos ser mandado embora para sempre, Ptolomeu Mikros já compartilhava do trono de seu pai, o Faraó. E isso não era novidade, mas uma prática comum entre os Faraós de antigamente, pois assegurava que, quando o rei morresse, não haveria dúvida sobre quem o sucederia, assim, o banho de sangue, que era sempre uma possibilidade, mesmo no Egito, quando da ascensão de um novo rei, não ocorreria. Tudo, então, estaria bem. O rei Ptolomeu poderia desfrutar de sua velhice sem preocupações, Ptolomeu Mikros se preocuparia em seu lugar.

Não muito depois desses episódios, Ptolomeu Soter embarcou pela última vez em seu octoforos, para uma obrigação ritual, que seria ungir com o dedo mindinho de sua mão direita a estátua cravejada de jóias de Ptah, com incenso, e, quando retornou à residência, lhe foi informado que os aposentos de Eurídice no gynaikeion estavam vazios e desertos. Tão espantado ficou, que galgou as escadarias para verificar com os próprios olhos se o que lhe diziam era verdade. E, sim, encontrou todos os aposentos vazios, totalmente despojados dos objetos de ouro e já não se ouvia ali o alarido das mulheres, nem as batidas do tear, mas apenas o plapt plapt plapt dos pés descalços dos anões, fugindo dele, descendo os corredores, e a risada aguda dos anões, então, à distância, e depois o silêncio.

Ptolomeu pisou, é claro, no skubalon, o excremento, que foi deixado sobre o mosaico do assoalho, como se para lhe dizer o que ela pensava de sua realeza, de sua falta de sinceridade, de seu casamento real; e então proferiu maldições, mas sabia que ao expulsar o Raio e permitir que sua mãe partisse estava apenas fazendo o que era melhor.

Alguns relataram que Eurídice fugira de navio para Biblos, na Fenícia; outros, que se juntara a uma caravana de camelos a qual seguira pela estrada de Hórus, passando por Gaza, Tiros e Sidon, e pegando a rota mais comprida para Mileto, já que em verdade ela tinha medo de viajar por mar; ou que, sem nenhuma escolta, tinha retornado a Mileto, indo diretamente para lá, arriscando-se a atrair a atenção de piratas.

Seja como for, todas as histórias concordam que Eurídice retornou a Mileto e lá viveu até que veio o dia em que teve de baixar para o Hades.

Ptolomeu Soter pensava apenas em sua bela Berenice, sua rainha, a Senhora da Felicidade, Ela Cuja Voz Delicia aos Reis Escutar, a Afortunada Berenice, e o que teria sido dela se ele permitisse que Keraunos continuasse como seu sucessor. Sim, ele bem podia prever que Keraunos assassinaria sua madrasta, no momento em que ele deixasse de respirar. E Berenice não merecia, acreditava Ptolomeu, um destino tão cruel.

Sim, é fato, o mais forte de todos os motivos por que ele escolhera Ptolomeu Mikros era que se tratava do filho de Berenice, a do Rosto Belo, sua Grande Esposa Real, sua bem-amada — a única que ele amava.

Eurídice, uma mulher ainda em seus 48 anos, e que não tinha perdido seus encantos, poderia muito bem ter se casado novamente, em Mileto, já que existiam muitos homens, por lá, que a abordaram com generosas ofertas. Não faltava riqueza a Eurídice, em seu próprio nome, como filha do velho Antipatros, sátrapa da Macedônia. Entretanto, seus pretendentes não eram príncipes — nem ao menos soberanos de reinos menores — e ela recusou a todos.

Se as minhas tetas, ela declarou, ainda pudessem ornamentar, então talvez eu ainda subisse a um novo leito nupcial sem tremer... mas a idade deixou mil rugas em minha pele... Eros não tem por que ter pressa de voar em minha direção com sua dádiva de sofrimento.

O primeiro marido de Eurídice já havia dado suficientes mostras de sua ingratidão. Ela verdadeiramente não tinha a intenção de arcar com novos fardos.

Eurídice depositava sua esperança nas garotas pobres de Mileto, e lhes concedia um dote para que pudessem se tornar esposas, em vez de prostitutas, e para que tivessem a sua independência. As esperanças da própria Eurídice haviam resultado em nada. Talvez, ela disse, o casamento de alguma outra mulher possa ter êxito onde o meu fracassou.

Na Trácia, o rei Lisímaco deu as boas-vindas a Keraunos, o meio-irmão de sua esposa, sobre cuja duvidosa reputação ele não sabia coisa alguma. Mas Arsinoè Beta recusou-se a se encontrar com o Raio. Alegou dores de estômago e simulou estar confinada à cama no gynaikeion, um lugar no qual Keraunos não poderia pôr os pés. Mas a verdade era que ela não queria ver o rosto dele.

Lisímaco acabou escutando a história de Keraunos, que lhe disse que seu pai, da maneira mais injusta, o havia banido do reino que era seu por direito.

Lisímaco ficou gostando de Keraunos e transmitiu a ele o recado de Arsinoê Beta.

Conte essa história a minha irmã, pediu Keraunos. Peça a minha irmã soldados e dinheiro. Implore a ela que tome meu partido.

Arsinoê Beta, então, deu ao seu irmão mercenários e muitos talentos de ouro para fazê-lo ir embora. Comunicavam-se apenas por mensagens escritas, mas por fim Keraunos cansou-se, como sempre, de esperar e seguiu seu caminho.

E o que fez Arsinoè Beta, essa que era a mais poderosa, a mais rica das mulheres, cujo marido fazia tudo o que ela lhe pedia? Ela deu ao seu irmão tudo o que ele lhe pediu: mais e mais dinheiro, mais e mais soldados, pois acreditava que seu irmão mais velho merecia ser o Faraó do Egito.

Foi então que um pensamento atravessou a mente de Ptolomeu Keraunos, e foi que se ele se casasse com sua irmã, essa Arsinoê Beta, poderia com a ajuda dela assassinar Lisímaco e se tornar o rei da Trácia; poderia, com a ajuda dela, até mesmo depor o seu meio-irmão, no Egito, assim que Ptolomeu Soter morresse, e se tornar então rei do Egito porque, como ele mesmo disse, o velho não viveria por muito tempo.

Alguns dias depois, tendo se fartado da Trácia e de peixes, Ptolomeu Keraunos apareceu na entrada da casa de sua mãe, em Mileto, em armas e sorrindo. Eurídice demorou demais a avaliar a prudência de deixá-lo atravessar a porta, porque em verdade ela tinha medo dele e do seu temperamento violento, e porque ter convivido com esse homem fora como viver com uma tempestade de relâmpagos debaixo do mesmo teto.

Mas Keraunos não exibiu sua violência para a mãe, nem para sua irmã viúva, Ptolomais, e sim ofereceu a sua proteção e guardas para a casa já que essas mulheres eram a esposa e a filha de um rei e como ele havia agora organizado o seu próprio exército de mercenários, pago pela fortuna de Arsinoê Beta, sua irmã, e como havia assumido seu comando, sua posição de direito, conduziu a mãe até a porta da rua, para lhe mostrar suas tropas de milhares de soldados perfilados em silêncio, do lado de fora, todos ostentando seu emblema púrpura, e quando Keraunos ergueu seu braço, todos gritaram o seu nome e emitiram o grito de batalha e se espalharam, cobrindo toda a distância que Eurídice era capaz de enxergar, e todos os homens estavam munidos de espadas e escudos para a campanha que faria de Keraunos o rei do Egito.

Agora, seu pai e toda a Casa dos Ptolomeus veriam do que Ptolomeu Keraunos, o Raio, era capaz; agora, veriam as grandes vitórias que poderia conquistar; agora, seu pai veria o herdeiro que havia rejeitado.

Eurídice perdeu o fôlego ao ver o exército de Keraunos, e ele lhe jurou, então, que faria de si próprio o rei, mesmo que isso significasse que, no enfrentamento entre os dois, tivesse de matar seu pai; mas quando fizesse isso, ela, Eurídice, seria a mãe do Faraó, a Grande Mãe Real, e a seguir soltou a risada da hiena, tão típica dele; e Eurídice a seguir fez algo que jamais fizera até então — ela o abraçou e cobriu seu pescoço de beijos.

 

                           O Farol

No Egito, haveria paz, por algum tempo, até, talvez, Ptolomeu Keraunos conseguir a façanha de atravessar o Grande Mar e encetar o ataque contra a sua terra natal. Mas, por enquanto, os soldados estavam ociosos, e as obras que prosseguiam na ilha de Faros receberam a ajuda de soldados da infantaria, que não tinham outra utilidade, trabalhando então em Faros, com o propósito de terminar esse formidável monumento antes que Ptolomeu Soter fosse para o seu túmulo sem acender pessoalmente a extremidade do grande farol, e visse a conclusão daquilo que iniciara.

O Grande Farol já projetava sua comprida sombra, e essa sombra crescia cada vez mais, e Ptolomeu costumava ficar parado na Janela das Aparições, da qual distribuía, vez por outra, o Ouro do Mérito, ou, no Ano-Novo, presentes para os seus ministros de Estado, cortesãos, seus principais aliados, seus aliados secundários — e observava o farol, como costumava dizer, crescendo.

Havia vezes em que mandava embora a fila de pessoas com petições, algumas das quais estavam paradas em suas enormes escadarias fazia meses, uma fila interminável, que não parecia diminuir nunca, e dizendo apenas a palavra que nenhum grego deve dizer jamais: Amanhã. A razão disso era o seu desejo de ir até Faros, apressar os trabalhadores verificar o andamento das obras e contemplar de novo a vista da ilustre e mais ilustre das cidades, Alexandria, e se um homem poderia, ou não, enxergar até mesmo as Grandes Pirâmides de Mênfis do topo do Farol.

Ptolomeu galgava as escadarias internas pelas quais, dia e noite, uma procissão de mulas passaria carregando o combustível que alimentaria a grande chama, e pela qual, no momento, uma procissão de mulas passava carregando blocos de pedra, e andaimes, e todo o material necessário para o término do terceiro e mais alto andar.

O Farol estava praticamente terminado. Nas oficinas de metal da cidade, já existiam protótipos da Grande Estátua de Posêidon, que seria posicionada no topo, e as grandes letras de chumbo que formavam o nome de SOSTRATOS DE KNIDOS, sem o qual o Farol não existiria, e que seria, no tempo devido, afixada na lateral do segundo andar, ou andar octogonal, com a promessa de que as letras deveriam ficar de frente para a terra, e não para o mar, contanto que Sostratos entregasse o restante dos oitocentos talentos, que foi o custo da construção do Farol.

Ptolomeu não se cansava de olhar, e tudo o que via lhe agradava. Apenas tinha a esperança, e para tanto dirigia as suas preces, de que os deuses não o levassem antes do dia glorioso em que Alexandria cessaria de viver na escuridão, já que lhe haviam assegurado que a visão de Alexandria iluminada à noite seria a mais estonteante que o mundo já teria visto.

Alexandria estava preparada para ser a maior, a mais famosa, a mais afortunada das cidades de todos os tempos. Atenas não seria nada comparada a ela, Pergamon seria pouco mais do que um vilarejo. A tão gabada Seleukeia-in-Pieria — bem, fora feita de tijolos de argila, pouco superior às cidades dos egípcios.

 

               A Noiva de Hades

Durante todos esses anos, atravessando a crise da sucessão do trono e os problemas com Ptolomeu, o Raio, a filha mais nova de Ptolomeu Soter, Filotera, permaneceu no Egito, solteira.

Toda vez que uma de suas irmãs ou meia-irmãs se casava, era tarefa obrigatória de Filotera, como a mais nova, arrumar o leito nupcial, um costume grego que agregava santidade ao casamento. Mas já que nenhuma de suas irmãs se casara em casa, Filotera nunca havia precisado executar essa sua obrigação. Em verdade, essa garota nunca estivera presente na cerimônia de casamento de ninguém, exceto de Mikros com Arsinoê Alfa, e assim parecia-lhe algumas vezes que o casamento era algo proibido.

Quanto ao seu próprio casamento, era coisa com que Filotera nunca sonhara e, quando perguntada, respondeu que seu único desejo era se tornar uma sacerdotisa virgem de Artêmis.

Tudo aconteceu, é claro, como designado pelas Parcas, em seu nascimento, e era destino de Filotera não conhecer nenhum homem, nem mesmo o seu irmão, Ptolomeu Keraunos, e nunca deveria vivenciar um parto.

Filotera havia escutado por todo o palácio os gritos das mulheres que davam à luz suas crianças. Haviam-lhe contado a que uma mulher tinha de se submeter para se tornar mãe, e ela não desejava sofrer tais tormentos.

De tempos em tempos, suas irmãs escreviam cartas para ela da Trácia, de Siracusa e de Chipre, dizendo-lhe coisas como Não se case. Nunca. O casamento é aterrorizante. É loucura. Assim, Filotera firmou sua repulsa em relação à idéia de matrimônio.

Quando Ptolomeu, seu pai, a alertou de que uma mulher que se recusava a se casar estaria condenada a carregar vasos com rachaduras, no Mundo dos Mortos, Filotera lhe respondeu que não se importava com isso. Disse que preferiria carregar água, desse modo, já que não gostava de homens e não tinha vontade de dar à luz crianças.

E quando o rei Ptolomeu lhe disse: É o maior dos infortúnios, morrer sem jamais ter casado, ela elevou a voz para proferir sua última palavra sobre o assunto:

Prefiro ser colocada três vezes na falange de seu exército, durante batalhas, a dar à luz uma única vez.

Ptolomeu ameaçou chicoteá-la, por desobedecê-lo, mas ela replicou que um mês de chicotadas não a fariam mudar de idéia, e assim Ptolomeu desistiu de convencê-la.

Sem experiência de vida, e insensível, assim parecia, aos assaltos de Eros, o menino, Filotera nunca seria a jovem esposa amadurecida para o casamento com homem algum neste mundo.

Mas Filotera, sempre na condição de anerastia, ignorante do amor, e sem ser amada também, era mais feliz do que suas outras irmãs, e talvez mais feliz do que qualquer outro membro da sua família.

Como Esposa do Deus Ptah, um posto que era atribuído, com freqüência, à filha do Faraó, e como uma sacerdotisa de Ptah, ela estaria de fato impedida de se casar, obrigada a permanecer virgem, e adotaria a filha do próximo rei como sua herdeira ao posto.

E, sim, era pensamento de Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, que permitir a essa garota grega tal indicação seria muito bom para as relações entre os gregos e os egípcios, e aproximaria ainda mais ambas as nações.

A princesa Filotera passaria o resto dos seus dias indo do Templo do deus egípcio ao templo da deusa grega, como sacerdotisa de ambos. Dedicaria a sua vida a chocalhar o sistro para os deuses do Egito, de modo a afugentar maus espíritos. Ela vestiria e pele com pintas do leopardo, característica de uma sacerdotisa do Egito.

Filotera não seria a noiva de nenhum homem vivente. Estava fadada a ser noiva apenas de Hades, no Mundo Subterrâneo, mas ela não levava uma vida vazia. De modo algum. Filotera sorria mais do que qualquer outro membro da sua Casa.

Sobre a sua irmã, Theoxena, fora dito que, depois de seu retorno da Sicília e a morte de seu amado Tirano, nunca mais sorriu. Theoxena começou a andar durante o sono, vagando pelos corredores labirínticos da residência, noite após noite, até que sua família, temendo que ela despencasse do parapeito do terraço e encontrasse a morte no pavimento do Grande Porto, centenas de cúbitos abaixo, começou a amarrar seus membros à cama, logo que o sol se punha.

Depois, Theoxena não parecia nem sequer saber onde se encontrava, mas balbuciava, durante o dia, alguma coisa qualquer sobre Siracusa, e quando começou a sair da residência, durante a sesta, e foi encontrada, certa vez, já a meio caminho da descida da Via Canopus, em estado de completa confusão — e se relatou que havia exibido sua bolba de modo indecente no agora —, começaram a amarrar Theoxena também durante o dia.

Certamente, cuidavam de Theoxena o melhor que podiam, e Filotera lhe trazia comida, quando não estava ocupada nos templos, mas realmente não havia mistério no que Theoxena se tornara: ela enlouqueceu, pois era, afinal de contas, filha da sua mãe, e assim viveu o resto de sua existência encerrada em algum aposento oculto e remoto.

Evidentemente, a prisão da louca Theoxena ficava numa parte retirada da residência, de modo que os visitantes não escutassem seus uivos e jamais descobrissem o mais triste segredo da Casa de Ptolomeu. Theoxena teve tudo que poderia ter desejado, e suas tapeçarias deleitavam as mulheres pobres de Alexandria, para as quais eram distribuídas, porque não se podia mais confiar à ex-tirana uma agulha, e ela precisava costurar com seus dedos e dentes.

Os dois filhos de Theoxena eram netos do rei Ptolomeu e não poderiam senão receber a melhor educação grega. Na idade de 11 anos, o garoto mais velho, Arkhagathos, foi admitido no gymnasia da mais ilustre das cidades, começando então a desenvolver rijos músculos e habilidade no manejo de armas típicas de um guerreiro grego. Teve a apropriada instrução em tática e estratégia, geometria e matemática. Exercitava-se com a falange e saía a cavalo com as tropas, quando chegou o momento propício. Era um garoto que, se tudo corresse bem para ele, poderia ter lutado nos exércitos do Egito, ao lado de seus primos da Casa dos Ptolomeus; ou então ter desempenhado o papel de strategos nas vitórias sobre os inimigos das Duas Terras.

Com 18 anos, Arkhagathos foi iniciado como um ephebos e prestou o juramento de lealdade ao seu rei Ptolomeu. Por toda a sua trajetória, seus progressos eram supervisionados e aprovados pelo próprio Ptolomeu, que admirava esse filho de Theoxena — e pelos oficiais gregos da corte.

No entanto, todos esses que observavam Arkhagathos não se preocupavam senão com uma coisa: o sangue da poderosa Berenice não corria nas veias desse jovem; ele era o neto de desafeta Eurídice, filho da louca Theoxena; e a sua linhagem era a mesma de Agathokles de Siracusa, de moral tão duvidosa; e nem tudo correria bem tanto para esse garoto quanto para o seu irmão, porque seus dias estavam contados, assim como os de Theoxena.

A única coisa certa era que aos filhos da princesa Theoxena não seria permitido viver por muito tempo, já que, quanto mais envelhecia Ptolomeu, mas perigosa se tornava a existência desses seus netos, cujos nomes estavam quase no topo da lista de Relações Conturbadas.

Mikros também observava Arklagathos e Agartharkhos, é óbvio, porque seria Mikros quem bem poderia encontrar alguma utilidade para eles, de modo que não ameaçassem sua posição, ou riscá-los definitivamente da Lista das Conturbações, os dois juntos.

 

                     Carne de Rouxinol

Ptolomeu, o velho Ptolomeu, envelhecia cada vez mais. Havia nomeado seu herdeiro e, depois disso, o fato é que Mikros pensou que seu pai faria o que qualquer homem que tivesse feito tudo o que poderia fazer no mundo — e bem além disso — faria, ou seja, simplesmente morrer para que ele, Mikros, se tornasse o novo Faraó. Mas Ptolomeu Soter não morria, e continuava a viver como se fosse viver para sempre.

Os gregos, em sua maioria, acham que se um homem dura até os seus setenta anos já fez muito, mais do que muito. Viver além dos setenta anos significaria atrair espanto, como se tivesse sido esquecido pelos deuses e sido abençoado com a imortalidade — e Ptolomeu agora estava com mais de oitenta.

Ptolomeu Soter — suas pernas agora se ressentiam do seu peso, haviam ficado lentas, e mais lentas ainda ficariam. Seu lábio inferior tremia, e sua mão igualmente trêmula espalhava a comida ao tentar alcançar a boca. Esse homem idoso estava ressecado, tostado pelo sol do Egito, seu rosto parecia uma casca de noz.

Reunido com o Dioiketes, seu Primeiro Ministro, debatendo-se com problemas em relação à paz, aos gregos, aos egípcios, aos sacerdotes, Ptolomeu agora caía num sono profundo, durante o dia, roncando mesmo sentado em seu trono de ouro, e isso vinha acontecendo com tanta freqüência que o Dioketes foi conversar com Eskedi, e os dois combinaram fazer o que pudessem para aliviar o homem idoso do fardo de seu posto, começando então a transferir o peso para Mikros.

Velhice, dizia Ptolomeu, sua voz falhando, é como palha, não vale coisa nenhuma! Então, ele ria um pouco, mas percebiam que ele já estava prestes a morrer, e tomavam todas as providências de que foram capazes. Só que Ptolomeu continuava a viver.

Mês a mês, Mikros tomava mais e maior controle dos negócios de governo. Seu pai fazia o trabalho que lhe era possível, tarefas que ele mesmo escolhia. E Mikros tinha o cuidado de não dar nenhuma espécie de ordem direta ao seu venerado pai. Ptolomeu, como sempre, expressava suas opiniões sobre os negócios egípcios, mas, agora, assim como as opiniões das mulheres e das crianças, tudo o que dizia era, dissimuladamente, ignorado.

Já Mikros dava muitas ordens, e tomava muitas providências, sobre as quais nenhuma palavra era dita a seu pai, com esse seu filho já fazendo o que bem entendia, mesmo antes de se tornar o único soberano.

O velho Ptolomeu passava acordado, agora, a maior parte da noite, pensando no passado, tentando esquecer, tentando não lembrar, e os médicos lhe serviam de alimento carne de rouxinol, para ajudá-lo a dormir.

Ele ia mastigando cestas e cestas de rouxinóis, e dormia, ou pelo menos tentava dormir, com a cabeça sobre um travesseiro de penas de rouxinol, embora reclamasse que aquilo era inútil. Posteriormente, acabou por desistir de tentar dormir, e se sentava sob a luz tênue de candeeiro de óleo kiki, registrando sobre um papiro, com sua própria mão, algo de sua história. Mesmo assim, nunca ultrapassou a travessia do Helesponto, no início da campanha da Ásia, mas ficava sentado, pensando, mastigando o instrumento de junco próprio para escrever.

Havia noites em que sonhava com uma águia pousada sobre a sua cabeça, as garras da ave escavando seu crânio, e o sonho o perturbava tanto que terminava por acordar.

Preocupado sobre o que poderia significar um sonho tão estranho, consultava, como de hábito, o oniroscopista, o intérprete grego dos sonhos, que sabia que sonhar com a águia significava a morte daquele que sonhava. Mas não se atrevia a contar tal coisa ao Faraó. Não, disse-lhe que a águia significava vida, prosperidade, saúde, e Ptolomeu ficava aliviado, e dormia um pouco melhor, apesar de continuar sonhando com águias.

Como sempre, ele estava cercado por sua multidão de mulheres, mulheres mais jovens do que Berenice, sua esposa, que exercitavam seu rhombos a cada três dias, às tardes, mesmo nos seus 82 anos de idade.

No entanto, Ptolomeu dizia a si mesmo Do que vale ser um Faraó, se ele não pode satisfazer todos os seus desejos?

E tomou o hábito de mastigar sementes de mostarda com pimenta e xarope para prover a tumescência, sendo que a pimenta o fazia espirrar, o que para um grego nunca seria coisa alguma senão o melhor dos augúrios.

Portanto, por vezes, Ptolomeu conhecia a mais completa paz, em sua mente.

Mesmo assim, a morte espreitava, sempre próxima, aguardando a hora de levá-lo. Um guarda do palácio que tinha toda a aparência de quem ainda prestaria mais trinta anos de bons serviços tombou morto, em seu posto. Uma das lavadeiras do palácio, que havia parido dez crianças e parecia ainda apta a parir mais dez, caiu morta em sua bacia. No Egito, a maioria das mães não sobrevivia ao parto. A maioria das crianças morria ainda muito pequenas. Até mesmo uma princesa grega estava sujeita a morrer no primor de seus 25 anos.

Quando Ptolomeu atingiu a idade de 83 anos, foi a justificativa para uma grande celebração, e houve um desfile de tropas, marchando e a cavalo, e crianças cantando ao longo da Via Canopus, e grandes corridas no hipódromo, e toda a população de Alexandria banqueteou-se e bebeu em excesso por três dias, à custa de Ptolomeu. Parecia que aquele rei jamais subiria para as estrelas ou para o seu túmulo no Ocidente.

Ele vai viver até os cento e vinte anos, entoavam em Mênfis, como os etíopes, e não era simples delicadeza.

Ptolomeu sentia-se sempre cansado, pensando na rejeição de Aquiles à velhice sem fama, preferindo uma morte prematura com glória. Ptolomeu tinha a velhice e a glória, e ele havia sobrevivido às guerras e às dificuldades de sua juventude como se graças a um milagre concedido pelos deuses. É melhor, pensava agora, morrer jovem em batalha do que ter de suportar a morte em vida da velhice.

Por vezes recordava Sibila, que havia pedido para ter vida eterna, mas se esquecera de pedir eterna juventude, e sabia então o que Sibila havia sofrido.

E havia vezes em que pensava em Sófocles: Nunca ter vivido é melhor.

E por vezes pensava também em Alexandre, que partira envolto numa aura de glória, quarenta anos antes, e nesses momentos se perdia no passado.

Ia com mais freqüência agora visitar o corpo, junto ao cruzamento das avenidas da capital, e servia, com mais solenidade, as libações de leite, mel e vinho não diluído, em honra ao seu amigo morto, contemplando o seu rosto de cera, que ao mesmo tempo era e não era de Alexandre, e chorava pela vida há tanto tempo interrompida de seu general. Conversava com o cadáver, assim relatavam os guardas, embora nunca conseguisse nenhuma palavra dele — e a Alexandre confidenciou seus problemas, todos os segredos que remoía, e até o último detalhe acerca da Casa de Ptolomeu, agradáveis e desagradáveis. Sim, o Egito estava em boas mãos, ele disse, tudo ia correr bem... Havia dias, no entanto, que descarregaria seu rancor contra o homem morto, pela estupidez que ele demonstrara, em deixá-los todos por sua própria conta. Teriam necessitado de Alexandre vivo, não que os deixasse enfiados numa confusão que levou meio século para ser desfeita.

Havia dias em que Ptolomeu jurava por Zeus e Pan, os dois juntos, que as pálpebras de Alexandre estremeciam, que seu lábio superior se retorcia, como se estivesse prestes a dizer algumas palavras, embora tivesse certeza de que as pálpebras de Alexandre estivessem cerzidas e que seus lábios estavam selados tão apertados, com fios de papiro, que o homem não conseguiria revirar os olhos nem pronunciar palavra alguma, caso de fato acordasse, e que ele apenas imaginara ter visto tais coisas.

Alexandre, o Grande Alexandre, estava morto, e embora o prostagma ainda estivesse registrado nos livros oficiais — e ninguém, sob pena de ser surrado nas solas dos pés, deveria falar desse homem como se ele estivesse morto, porque não estava morto, apenas adormecido, e viveria, em verdade, para todo o sempre —, Ptolomeu sabia agora e enfim, que Alexandre, filho de Felipe, jamais, nem por força de magia grega, tampouco de encantamentos egípcios, nem dos desejos e esperanças ou das preces intermináveis dirigidas aos obscuros deuses egípcios (cujos nomes os gregos não eram capazes de sequer pronunciar), nem de preces a todo o panteão de deuses da Hélade (que, fosse como fosse, não existiam mesmo, a não ser na imaginação dos homens), e não apenas no tempo que ainda durasse a vida de Ptolomeu ou de qualquer dos Sucessores, nem até o final dos tempos e a derradeira parada da História, enfim, que ele nunca mais voltaria a respirar.

 

                           O Bico do Abutre

E Berenice? O que era feito da rainha? Ainda não recordava nada, pois desejava esquecer o passado, tão decididamente quanto Ptolomeu não o poderia esquecer. Essa que era a mais dura das mulheres duras — ela não tinha sonhos atormentados por carnificinas e águias. Berenice sonhava apenas com a glória, e dormia sonoramente, já que não tinha fardos de negócios de Estado para carregar. De modo algum: Berenice não tinha necessidade de carne de rouxinóis, nem mesmo uma pequena porção.

Nesses seus últimos anos de vida como rainha, seu filho, Magas, de Cirene, cunhou enormes quantidades de octodracmas gravadas com a efígie de sua adorada mãe. Berenice não foi retratada como uma jovem deusa, mas como uma mulher idosa, com nariz alongado, adunco e pontudo, não muito diferente do bico do abutre que, como rainha do Egito, ela usava com tanta freqüência na cabeça.

Nas moedas, tinha aparência entediada, e seus cabelos — cuidadosamente arranjados, com cachos estritos e perfeitos — não pareciam senão uma cesta de vime despencando pelo lado da cabeça. Em todos os seus anos como rainha, essa mulher não se ocupou de preparar sequer uma refeição. Vez por outra, talvez, ficara andando de um lado para o outro sobre o assoalho de mosaico, quando o estalido de suas sandálias de ouro era a única coisa a se ouvir no gynaikeion. Berenice era a rainha, e era o seu dever de rainha não fazer coisa alguma, a não ser viver como uma deusa viva, o símbolo vivo do poder aterrorizante. E Berenice era aterrorizante.

Na sua velhice, houve dias em que Berenice rezava para que a morte viesse depressa, mas nem Anúbis nem Hades a visitaram, já que o dia marcado pelas Parcas como o seu último ainda não havia chegado. Ela prosseguia vivendo, e os cantos de sua boca pareciam permanentemente encurvados para baixo.

Teria o artista feito o bico de abutre em Berenice de propósito, ou apenas teria entalhado o que vira?

Sim, sem dúvida, o nariz dela era exatamente igual ao bico do abutre. E, sim, essa mulher era plenamente capaz de rasgar a carne, tão capaz como o resto da sua família e como o abutre. Mostrava a mesma confiança de seu marido de que sua dinastia duraria para sempre. E, como o abutre, vigiava, para se assegurar que isso aconteceria; e assim só fazia esperar.

Quanto ao restante da família, havia apenas um membro ainda em Alexandria, da mesma geração de Ptolomeu Soter, pois somente um parente fora mantido próximo: tio Menelau, o irmão mais novo de Ptolomeu Soter, o irmão inútil que vivia no Egito por não ter mais para onde ir.

Menelau tinha quase oitenta anos, e não era mais capaz de controlar o fluxo de saliva que escorria de sua boca, mas insistia em oferecer ao seu irmão seus bons conselhos sobre assuntos de Estado.

Com certeza, Menelau merecia pouca consideração. Estivera presente na fundação da cidade, e estabelecera sua residência no palácio, com seu séquito de escravos, suas sinecuras e obrigações cerimoniais. Menelau nunca seria um deus, e nenhum homem que havia perdido uma ilha seria um herói. Não, ele merecia alguma consideração, mas não muita, e Ptolomeu jamais o perdoara, mesmo já tendo recuperado Chipre, e isso porque um grego, mesmo um grego famoso por sua generosidade e gentileza, simplesmente jamais perdoa ninguém por coisa alguma.

Já Ptolomeu Mikros, ele não levava os bons conselhos de Tio Menelau a sério. Prestava ao homem idoso a deferência devida à sua idade, mas, na privacidade, dizia: Tio Menelau é um velho babão. Menelau não conquistara nada em sua longa vida em termos de honrarias, a não ser ter de acompanhar a procissão do Culto ao Divino Alexandre, carregando a cesta de vime — o único encargo de que era capaz de cuidar, alguns diziam, porque tudo que os sacerdotes de Alexandre deveriam fazer era segurar a cesta durante a procissão; e mesmo assim Menelau sempre a deixava cair.

Realmente, Menelau era quase uma desgraça tanto para a Casa de Ptolomeu quanto Keraunos. Desse modo, Mikros se perguntava: Deveria se livrar de Menelau na noite de sangue que se seguiria à sua ascensão? Ou deveria deixar o velho babão morrer de velhice? De fato, Mikros não conseguia pensar no seu tio como uma ameaça à sua segurança. E ainda assim, ninguém nunca sabe quem pode estar envolvido numa conspiração até ser tarde demais.

Sim, seria bastante simples ordenar que o velho ficasse confinado à prisão em seus aposentos, e espalhar a notícia de que ele não estava bem de saúde.

Logo chegaria o dia em que seria providenciado o desaparecimento de Menelau. Então, Mikros anunciaria que ele havia se sufocado com uma espinha de peixe, e decretaria três dias de luto público, além das libações de leite, mel e vinho não diluído, que ele próprio realizaria no túmulo.

Tão inofensivo durante a vida, Menelau não causaria problemas depois dela, e isso porque havia vivido mais anos do que tinha direito, e tal tipo de homem não retornaria, com certeza, para assombrar ninguém.

Havia noites em que Mikros dedicava-se a tais reflexões, mas Mikros era de fato um príncipe honrado, um kalokagathos, se jamais houve um homem de total pureza de alma, e expelia essas idéias de seu coração, desgostoso, e erguia seus braços, em preces aos deuses da Grécia, pedindo perdão.

 

             O Sonho de Estar Comendo Estrelas

Quando foram lhe comunicar que uma idosa mulher estava nos portões do palácio pedindo para ver Ptolomeu, filho de Lagos — uma mulher com os membros retorcidos por causa da lepra, uma mulher com cabelos brancos, quase curvada ao meio, praticamente incapaz de andar — Ptolomeu perguntou quais tinham sido as suas palavras:

Digam a Ptolomeu que fui a famosa Thaís, ela dissera. Mas ele balançou a cabeça, dizendo: Todas dizem isso: mas não é possível que todas sejam Thaís... Então, recusou-se a vê-la. Dêem a ela um pedaço de pão, ele ordenou.

Como sempre, a estranha mulher nos portões perturbou-o, e o fez começar a pensar novamente no passado que ele preferiria esquecer, mas não podia evitar de recordar. Thaís — onde estaria, ele se perguntava, com o brilho dourado de sua famosa beleza? Onde estaria agora o seu cenho desdenhoso, seu espírito orgulhoso, seu pescoço delgado, os preciosos adornos de ouro em seus altivos tornozelos? Agora, com certeza, seus cabelos devem estar desarrumados e desfeitos, e apenas trapos devem cobrir seus pés. Ela deve, ele pensou, ser agora apenas como a mulher nos portões, quase tão velha quanto ele próprio, e pobre. Esse era o fim das prostitutas. Se, é claro, ainda estivesse viva.

Olhou para fora de sua alta janela, e seus olhos cruzaram-se com os olhos daquela mulher, olhando para cima, esperando, e ele sabia que tanto era quanto não era, nem podia ser ela, e voltou-se bruscamente, fazendo a cauda de touro, sempre pendurada entre as suas pernas, chicotear com violência. A areia soprada do deserto encheu seus olhos de lágrimas.

Mesmo assim, mandou para ela uma bolsa com octodracmas — moedas com a sua efígie gravada nelas, e seu título de Basileu, e seu nome, Ptolomaios. Acima de todas as coisas, era o pensamento em Thaís, a perda de Thaís e o que teria sido feito dela, a primeira mulher que amara, que o mantinha acordado à noite.

Ptolomeu passava as noites acordado, como, assim dizia ele, uma mula presa num espinheiro, e isso uma noite após a outra, pensando não no hoje, mas no ontem, contrariando assim todos os seus princípios filosóficos. Quando se queixava, seus médicos aumentavam as doses de carne de rouxinol contra a insônia, de modo que, agora, ele caía no sono durante as audiências com embaixadores estrangeiros, ou durante as sessões do Conselho de Estado, o que levou Eskedi a sugerir que talvez lhe fosse conveniente delegar todas as responsabilidades de governo a Ptolomeu Mikros.

Mas Ptolomeu se recusava. Ainda não, ele dizia.

Ptolomeu dormia cada vez menos, e quando efetivamente conciliava o sono, despertava gritando Alalalalai — e ao amanhecer, seu rosto com freqüência estava molhado de lágrimas, porque era a hora em que se sepultavam os mortos, e ele pensava nos seus amigos no Hades.

Percebendo o idoso homem tão perturbado, Eskedi sugeriu: Deixem que ele ponha por escrito as suas memórias. Que escreva suas reflexões num papiro. Deixem que esqueça por rememorar.

E foi assim que Ptolomeu retomou sua história de Alexandre, a qual havia, de fato, tentado escrever ao longo de todos esses quarenta anos. Por algumas horas todos os dias, e com freqüência nas horas mortas da noite, ele tomaria na mão seu instrumento de escrita feito de junco e se sentaria para escrever.

A insônia melhorou, mas apenas um pouco, e Eskedi perguntou à rainha Berenice e a Mikros, seu filho, o que poderia trazer paz ao seu coração perturbado. A esposa pensou a respeito, o filho pensou a respeito, e responderam que a única coisa de que o velho Ptolomeu poderia estar sentindo falta era a companhia de seus velhos camaradas; ele poderia estar sofrendo da solidão do poder.

Assim, a rainha, o príncipe e o sumo sacerdote, juntos, perguntaram ao velho homem o que mais poderia agradá-lo, e a conclusão a que chegaram foi que gostaria de voltar a ser uma pessoa comum.

De fato, tudo foi arranjado como se a idéia tivesse partido do próprio Ptolomeu: ele apreciaria mais do que tudo exercitar-se de novo com suas tropas, envergar de novo a sua sarissa e se tornar parte de novo da grande falange de infantaria.

Até mesmo Berenice, que anteriormente poderia ter rido de tal idéia, e debochado dela, disse: Deixem que volte a ser um soldado comum, se é o que ele mais deseja, porque isso significaria que seu filho, Ptolomeu Mikros, passaria a ostentar todos os paramentos do Faraó. Significaria que esse Mikros seria o rei, em tudo a não ser no nome, e esse seria o início do grande triunfo da viúva macedônia.

Uma co-regência servia para manter sólida a autoridade do Faraó no momento mais perigoso, a sucessão entre dois reis. Mas não era novidade nenhuma. De modo algum. Era, sim, o costume antigo, no Egito, assentar o filho no trono, junto ao pai, e o Faraó Ammenemes iniciou essa prática, ou, como alguns diziam, teria sido Piopi I, centenas de anos antes, quando aquele Faraó teria dito Que ele seja coroado rei, para que eu assista à sua glória enquanto ainda estou vivo, e convocou os camareiros reais para colocarem a coroa sobre sua cabeça.

Eskedi, sumo sacerdote de Ptha, tomou todas as providências. Não se tratava de alguma novidade inventada pelos gregos, que, em verdade, não se intrometiam nesses altos assuntos — ou pelo menos ainda não.

Chegou o dia, então, em que Ptolomeu Mikros apresentou-se usando a Dupla Coroa, chamada a Grande Coroa, e com a serpente Ouraios sobre a sua testa, e, para todos os efeitos, assumiu a imagem do Rei do Egito; e Ptolomeu Soter deixava de envergar a coroa khepresh o dia inteiro, já que estava aposentado como Faraó, e Berenice quase morreu de satisfação ao ver seu filho, seu próprio filho, transformado em rei e num deus vivo.

Assim, Ptolomeu Soter alistou-se novamente, e dessa vez em sua própria guarda palaciana, e retornou aos exercícios com a falange, todas as manhãs, antes que o calor do dia se intensificasse demais. Ele empunhou de novo sua sarissa, a lança dos macedônios, lado a lado com os jovens. Descia marchando a Via Canopus, no desfile dos veteranos de Alexandre, e ficava apenas um pouco fora do passo. Até mesmo juntou-se à clássica exibição de marchas e contramarchas, o silencioso espetáculo do poder macedônio, que tanto impressionava os bárbaros nas fronteiras da Trácia, quando ele próprio era um jovem. Cantou, ainda, o Paian a Apolo, e todos as canções gregas de guerra, assim como as canções de marcha, e até mesmo nas adegas de Alexandria, com os veteranos, e voltava para casa, subindo a Via Canopus, já de madrugada, com os outros homens, berrando Alalalalai, e sorria o seu antigo sorriso, não mais o meio sorriso dos Faraós.

Não, Ptolomeu nunca desejara ser um strategos. Nunca almejara os altos comandos, que foram jogados sobre ele. Agora, reencontrava a satisfação de beber com seus companheiros de armas e o benefício que lhe trazia conversar sobre os velhos tempos.

E, não, ninguém pensou mal dele por causa disso. Pelo contrário, era a maior honra que ele podia prestar ao soldado comum, sem o qual nenhuma batalha, nem da história grega nem da egípcia, teria sido vencida.

Mais do que tudo, embora pudesse ser impensável que o Faraó perambulasse pelas ruas e se tornasse de novo um cidadão, com sua vida privada, era o que Ptolomeu fazia agora em Alexandria — e os gregos o amaram ainda mais por conta disso.

Ptolomeu passeava a pé pelos jardins de sua grande residência branca. Passava horas e horas contemplando o Grande Mar, o mar cinzento, do qual se elevava o farol. Conversaria com os pescadores de atum, junto ao Porto de Eunostos, a Enseada do Feliz Regresso. Buscava a companhia dos velhos soldados, com os quais marchara atravessando o Parapomisos, o Kush do Indo e o terrível deserto de Gedrosia, e contavam uns aos outros suas histórias, e riam, e derramavam lágrimas, e recordavam os mortos, e Ptolomeu enfiava suas tetadracmas de prata nas mãos deles, e as moedas tinham cunhadas sua testa saltada, seu queixo saliente, seus cabelos encaracolados revoltos, e seu nome: PTOLOMAIOS.

A todo lugar que ia Ptolomeu, o fragor dos aplausos o seguia. No agora, os comerciantes gregos se prostravam diante dele na poeira dourada e socavam o solo com seus punhos, até que Ptolomeu deixasse claro que tal reverência não era necessária, não agora que, na prática, ele não era mais rei do Alto e do Baixo Egito.

Ptolomeu vivera para além do seu tempo. Um a um, seus contemporâneos haviam falecido e ele viveu mais do que todos, à exceção de Menelau, seu irmão. Aguardava agora para que Hades o viesse buscar, com a esperança de renascer em seu túmulo no Ocidente, na expectativa da jornada que o tornaria um único com as Imperecíveis Estrelas. Estava fazendo as suas despedidas.

Quando marchar tornou-se difícil, por causa de sua enfermidade, Ptolomeu, o da Vida Eterna, passaria seus dias na residência, vendo ninguém a não ser fantasmas, olhando todas as manhãs pela janela, em direção a ilha de Faros, pensando Quase terminado, e contemplando a glória de sua Grande Enseada, observando os navios indo e voltando, os remos erguendo-se e abaixando-se em perfeita ordem, como asas de uma águia.

As tardes, as passava escrevendo, ou tentando escrever, mas continuava completamente acordado até bem depois da meia-noite, vagando pelos corredores, pensando, pensando.

Certa vez, consultou o oráculo de Homero para descobrir quantos dias ainda lhe sobravam e só obteve como resposta palavras que pareciam se aplicar mais a Keraunos, o herdeiro em desgraça: Assenhore-se de sua desmensurada paixão. Você não deve ter um coração que não saiba perdoar.

Mas os gregos nada sabiam sobre o perdão. Um grego é sempre propenso à vingança. E não, ele não perdoaria a Keraunos por sua estupidez, por seu descontrole, por ter procedido como um verdadeiro bárbaro. Acima de tudo, não conseguia perdoar a apbrodisia com a própria irmã, como se tal ato não pudesse acarretar funestas conseqüências para a Casa de Ptolomeu nas gerações futuras.

Havia vezes em que Ptolomeu enraivecia-se sobre esses assuntos; havia vezes em que mastigava rouxinóis; havia vezes em que dormia, e outras era que não dormia. Mas ele dormiria o longo sono, o sono de bronze, assim pensava, muito em breve.

Nos dias em que viver parecia quase tão problemático quando morrer, Ptolomeu pensava que bem poderia voar para as estrelas num rodamoinho e não se importar em absoluto com isso. Mas ainda não era para acontecer: ainda não alvorecera o dia marcado pelas Parcas — as Três Irmãs, Klotho, Lakhesis e Atropos — para o término da vida de Ptolomeu.

A Morte, a qual esse mesmo Ptolomeu havia instado para que se apressasse tantas e tantas vezes — enquanto cortava em pedaços seus inimigos no campo de batalha e, como Rei do Egito, com o poder de enviar um homem para o Hades com uma única palavra —, a Morte ainda demoraria a chegar para Ptolomeu.

Ele teria tempo de sobra para escrever suas memórias, sua História de Alexandre; teria tempo, ainda, para registrar tudo o que era capaz de recordar, a despeito do tremor de sua mão. E quando o sezão, a febre dos pântanos, abatia-se sobre ele — porque era ainda uma ocorrência regular, freqüente —, tremia tanto que ninguém, além dele mesmo, poderia ler as palavras que rabiscava no papiro: A velhice tem sido bem cruel para comigo...

O tempo passou e passou mais ainda, e Ptolomeu sonhou que formigas aladas penetravam em seus ouvidos, e sabia que tal sonho significava perigosas viagens.

Sonhou que estava comendo estrelas e sabia que, enquanto comer estrelas significava Boa Sorte para os astrônomos, para os demais homens significava morte.

Quando mais uma vez sonhou com a águia pousada sobre a sua cabeça, Ptolomeu de novo consultou os onirioscopistas, e dessa vez lhe disseram a verdade.

A águia pousada sobre a cabeça de um homem, disse o intérprete dos sonhos, significa a morte do sonhador, porque a águia mata tudo o que consegue prender em suas garras.

Assim, Ptolomeu começou a se preparar para a sua última jornada, a curta viagem no Barco de Caronte, atravessando o Rio Estígio, até o Hades. No caso de não despertar, começou a tentar se habituar, para ver como se sentia, a ter um óbolo debaixo da língua, quando se recolhia ao leito, já que essa era a moeda a ser paga ao barqueiro; então se perguntava se um homem morto, sem ser essa sua vontade, seria capaz de engolir a moeda.

E é o quanto deveria ser dito sobre os modos gregos de morrer. Mas ele sabia de cor, agora, as corretas palavras do poder dos egípcios, e as sussurrava quando se deitava em seu leito, com os olhos fechados, sorvendo o que poderia ser o seu último fôlego: os capítulos relevantes de O livro da ressurreição para a luz do dia:

- Eu sou o Ontem; Eu conheço o Hoje..

Quem, então, é este? Ontem é Osíris... Hoje é Rá...

Primeiro o velho Anemhor, e depois Eskedi, haviam cuidado para que Ptolomeu fosse devidamente instruído. Não assumiria nenhum risco em relação à Vida depois da Morte; queria o melhor de todos os Outros Mundos, tanto o grego quanto o egípcio, mas se recusava a se comprometer sobre qual tipo de rito funerário desejava, de modo que — quando o fim chegou —, poderiam, quem sabe, lhe dar ambos os funerais, ou ao menos decidir por ele, porque, certamente esse homem que não era completamente grego nem completamente egípcio, e não conseguiria se resolver a esse respeito.

Havia dias em que Eskedi vinha conversar com ele, mas ele acenava, recusando-se a aceitar o ritual egípcio.

Somos gregos, ele dizia, não egípcios... E viu o horror no rosto moreno de Eskedi porque, para o sumo sacerdote de Ptah, sepultar um Faraó de acordo com os costumes egípcios — o cérebro extraído por meio de um gancho pelas narinas, o corpo mergulhado por setenta dias em natrão seco, as solas dos pés removidas e substituídas por ouro, os olhos substituídos por duas cebolas brancas, as cápsulas de ouro para os dedos, milhares de cúbitos de faixas, e sobre o rosto uma máscara de ouro — era o mais monumental momento de sua carreira sacerdotal, de sua vida inteira, e a própria razão de sua existência.

Eskedi respirou fundo, pacientemente. Ajeitou seu manto de pele de leopardo, sentou-se junto a Ptolomeu, e recomeçou a ministrar a lição de todas as lições, mais uma vez, a Instrução para a Conduta na Vida depois da Morte.

Ele explicou que todo o Capítulo 125 do Livro da ressurreição para luz do dia fora escrito por Thot para purificar Ptolomeu de seus pecados; e disse ainda que o capítulo fora escrito por ele num papiro, e que este deveria ser colocado entre os joelhos de Ptolomeu, dentro do sarcófago marchetado de ouro.

Mas tudo o que Ptolomeu disse foi: Você nos havia dito que nada que o Faraó fizesse seria pecado... como se quisesse debochar do sumo sacerdote de Ptah.

Diante disso, Eskedi tornou-se mais enfático em sua fala, repetindo insistentemente para Ptolomeu que o papiro era um Guia indispensável para a descida ao Mundo Subterrâneo; que Ptolomeu não deveria acreditar que pudesse chegar lá sem esse documento e que, sem o embalsamamento, à maneira dos egípcios, seu Ka não iria nem poderia sobreviver, e nesse caso Ptolomeu não se tornaria o Ptolomeu da Vida Eterna, mas seria um homem morto, na Vida Após a Morte.

Mas Ptolomeu, em sua incompleta compreensão, estava satisfeito. Defrontar-se-ia com o desconhecido com compostura. Sentia-se plenamente preparado para comparecer à Pesagem do seu Coração na Balança. Fora levado a entender Thot, o íbis, que registra a Sentença dos Deuses, como seu amigo particular. Então, ele disse que, fosse como fosse, ainda não iria morrer, pois não estava pronto para tanto, e sentou-se com a agilidade de um homem com a metade da sua idade, balançou as pernas sobre a borda do leito de ouro, fez um gesto com a mão para dispensar o sumo sacerdote com suas pintas de leopardo, e foi escrever mais um capítulo de sua grande História.

Não, Ptolomeu não estava pronto para ir ao encontro Daquele das Largas Passadas, ao Devorador de Sombras, ao Estraçalhador de Ossos, ao Sorvedor do Sangue, ao Arauto dos Combates, ou a nenhum outro dos demônios que veria na Vida Após a Morte. E ainda não precisava, não ainda, do Guia do morto para a Vida após a Morte.

Ptolomeu, o da Vida Eterna, queria viver um pouco mais.

 

                 O Nariz Úmido de Anúbis

Já sua família via as coisas de um jeito diferente; achava que ele não poderia durar muitos dias mais, e que o homem morto seria o mensageiro deles, enviado ao Mundo Subterrâneo, e se ocupavam em escrever cartas aos mortos, seguindo o curioso costume grego, cartas as quais queimariam na fogueira funerária, assim como o derradeiro estafeta ao mundo invisível, convictos de que Ptolomeu não poderia ter outro último tributo que não fosse grego.

As filhas ensaiavam as mensagens que sussurrariam no momento de seu último beijo, no ouvido do falecido, que era como pensavam fazer contato com os que haviam morrido antes dele.

Berenice deixou prontas mensagens para seu parente Antipatros (Uma rainha, ela escreveu, uma deusa...), e uma mensagem para Felipe, seu primeiro marido (Riquezas inacreditáveis...) e Theoxena decorou as palavras que diria para Agathokles de Siracusa (Infeliz, mas logo me juntarei a você...).

O costume era novidade para eles. Ainda não haviam lidado com um morto. Não tinham experiência alguma com a morte. Nessa família, os parentes não morriam, simplesmente desapareciam. Thaís havia sumido. Seus avós, era como se jamais tivessem existido. Ninguém que esses filhos e netos conheciam havia morrido, até então, tampouco tivera um funeral. Era como se na corte do rei Ptolomeu, a morte, à exceção da morte do Touro Sagrado, não existisse.

Mas esse estado de coisas estava para mudar.

O próprio Ptolomeu orava a Apolo-Febo, pedindo uma travessia pacífica; para não ser queimado vivo, em sua pira, mas quando estivesse propriamente morto. Com tais coisas, todos os gregos se preocupavam, mas, agora, quando a incerteza da morte se acercava dele, achou que os deuses da Grécia existiam, afinal de contas, e isso foi um conforto para ele nas suas últimas horas.

Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, vinha freqüentemente conversar com ele, e observava esse idoso rei, sua pele enrugando-se como uma casca de noz, seus membros pesados, seus olhos já nublados pela idade, e dizia: Veja, agora, Vossa Majestade — Vida, Saúde e Força para ele! — envelheceu. Vossos ossos são como prata. Vossos membros são como ouro. Vossos cabelos são como safiras...

E ele dizia: Não devais perecer; vossos membros não devem ser destruídos. Vós não devais ser apagado para todo o sempre. Devei viver!

E Ptolomeu lhe era grato.

Ele tomou providências para a sua morte, segundo os costumes gregos. Tomou o banho ritual. Deixou em dia seus negócios. Proferiu a prece para Hestia, Deusa da Família, e a prece por sua segura travessia do Estígio. E pronunciou suas últimas palavras para seus funcionários de Estado, seus ministros, seus generais e almirantes, para os seus amigos e toda a sua família — aos membros dela que ainda estavam no Egito —, que se postaram junto ao leito de Ptolomeu, juntaram as mãos e disseram: Até breve, Ptolomaios, até a Casa de Hades!

Então, ordenou que todos saíssem de seus aposentos, para que ninguém assistisse ao momento de sua passagem. Mas a família recusou-se a arredarse dali, acreditando que, em sua morte, a alma do homem se eleva a um plano mais alto de consciência do qual ele é capaz de predizer o futuro. Assim, o moribundo Pátroclos havia profetizado a morte de Heitor; e assim o moribundo Heitor profetizara a morte de Aquiles.

Todos os gregos esperavam que o discurso de um homem moribundo fosse memorável, e queriam escutar o que Ptolomeu diria. Queriam saber, acima de tudo, o que seria da Casa de Ptolomeu, no Egito, sem ele, e desses gregos exilados em terra estrangeira. Tinham todos eles o ardente desejo de saber o que os aguardava.

O herdeiro, príncipe Ptolomeu Mikros, debruçou-se sobre o seu pai e cravou os olhos em seus olhos fixos, sabendo que, enquanto conseguisse enxergar alguma imagem refletida nas pupilas do homem idoso, ele continuaria vivo. Mas a verdade é que todo herdeiro de um trono quer que seu pai morra.

Junto à cama, ficou sentada a velha rainha, Berenice, com a bainha de seu peplos enfiada na boca para abafar os soluços.

Um homem amado pelo coração de Zeus, ela murmurou, vale por muitos exércitos.

Berenice receberia o último sopro de vida de Ptolomeu, como era sua obrigação. Cessaria, então, de ser a Grande Esposa Real e se tornaria a nova Mãe do Rei, com o pesado título de Grande Vaca Branca que Habita o Nekher. Considerava indizível ao extremo para Berenice, Bem-Amada do Abutre, que sorria sob a Tiara do Abutre, tomar a forma de uma vaca, um animal sagrado para os egípcios, mas repulsivo para qualquer grego, uma criatura que se deliciava em viver em meio à própria imundície, e era inacreditavelmente estúpida.

Mas a vida de Berenice mudaria pouco. Ela nunca deixaria de se entediar ao ver ouro, que dizia agora ser como skubalon, como dejetos. Nunca deixaria de se entediar com o refinamento, de se entediar com a realeza, de ser carregada para toda parte em sua liteira folheada de electro, quando, de fato, preferiria andar, e se entediava acima de tudo com sua vida de tanto fingimento.

Com freqüência ocorria a Berenice que ela apreciaria voltar a lavar suas roupas sobre as pedras, como uma das mulheres nativas que ela observava de suas altas janelas, uma ocupação útil que, no passado, ela achara muito satisfatória.

Foi na estação em que os cachorros enlouqueciam que chegou para o rei Ptolomeu Soter o dia fadado a ser o da Tesoura da Fortuna, quando o fio de sua vida deveria ser cortado, e era um dia quente.

Ptolomeu estava deitado, respirando com dificuldade, como um peixe sobre a margem enlameada, e ainda usava no pescoço, nos pulsos e nos braços os talismãs gregos que usara durante toda a sua vida e jurara jamais retirar, e que estavam agora fechados em cápsulas de couro e de ouro, porque havia pouco restando deles, a não ser poeira. E ele não cessava, mesmo nesse dia que era o seu último dia de vida, de acariciar com os dedos o amuleto phallos que lhe proporcionara a melhor das sortes.

Já para o final da manhã, Mikros tomou a mão do seu pai, de modo que seu coração não se oprimisse com o medo. Quando Ptolomeu ficou em silêncio, tiveram esperanças de que estivesse morto, e Mikros pressionou dois dedos em seu pulso, procurando a batida do coração, ou a ausência desta; mas o pulso de seu pai batia, célere, como se formigas estivessem correndo por debaixo da pele.

Na Hora de Perfumar a Boca, com o Sol no seu ápice, abanaram o homem velho com leques de folhas de palmeira, e ele se moveu para esconder o rosto, pensando em permitir seu espírito deixá-lo e embarcar na barca de Caronte, e ele pareceu cair outra vez num sono do qual não se desperta. Mas os dedos de Mikros ainda sentiam formigas correndo em seu pulso.

Tantas e tantas vezes acreditaram que ele os deixara. Tantas e tantas vezes executaram o infalível teste para a morte, que era o toque do dedo no globo ocular, e quando por fim não houve resposta, quando o dedo do príncipe Mikros afundou, Berenice cerrou os olhos do homem morto, alinhoulhe as pernas e reuniu fôlego para os seus gemidos.

Mas Mikros franziu o cenho. Formigas..., murmurou, e Berenice suspirou profundamente, e lentamente arrastaram-se para fora do aposento e o deixaram — em verdade, um tanto exasperados por ele não morrer de vez, por mantê-los na expectativa —, e providenciaram alimento: azeitonas, pão mergulhado em mel e vinho não diluído, que era o desjejum dos gregos.

Primeiramente, a meia dúzia de escravos anões que deixaram com Ptolomeu pensaram que ele estivesse apenas descansando. Pensavam que estivesse somente dormindo, embora seu peito não se movesse e não houvesse mais respiração.

Não o perturbem, disseram. Não o toquem. E naquele momento esse Faraó estava, como Alexandre, nem completamente vivo nem completamente morto.

Uma mosca-varejeira pousou no restolho de seus cabelos, no crânio, e lá ficou, flexionando as patas, preparando-se para o banquete.

Um dos anões escravos que cuidava do Guarda-Roupa Real, então, enfiou seus negros pés descalços nas sandálias do Faraó e ensaiou alguns passos, pelo assoalho de mosaico, exibindo seus alvos dentes para os companheiros.

Uma segunda mosca-varejeira pousou sobre a cabeça de Ptolomeu, e uma escura nuvem de moscas egípcias passou, ligeira, pelas persianas fechadas da Janela das Aparições, onde ele havia mostrado seu sorridente rosto pela última vez.

Um segundo anão escravo, o qual cuidava dos insígnias, pegou o báculo e o mangual de ouro com safiras e os segurou cruzados sobre o peito, emitindo a sua risada estridente: no intervalo entre dois reinados até mesmo um anão escravo pode se tornar rei; e os dentes alvos dele brilharam em seu rosto escuro como a noite.

Numa outra parte da residência, uma outra nuvem de moscas conseguiu encontrar uma entrada e dispare, voando, seguindo o odor acre-doce da morte.

Um por um, os objetos pessoais do rei foram sendo tirados da mesa junto à sua cama, feita de ébano, marfim e ouro — o afugentador de moscas de ouro, o bracelete de ouro do Olho de Hórus, a cauda do touro que ficou enfiada entre suas nádegas pelos últimos 22 anos — e foram adornar o corpo de seus servos. As risadas agudas e altas escapavam dos lábios escuros dos anões escravos, e eles continuaram sendo reis por mais alguns instantes.

Ptolomeu não se moveu. Um pouco de líquido escuro escorreu de sua boca e pingou sobre o assoalho de mosaicos. Agora, uma total imobilidade reinava, e os escravos pareciam ter prendido a respiração, aguardando por quem poderia fazer o que eles não poderiam: encerrar uma velha era e iniciar a nova.

Posteriormente, todos juraram que a alma do velho saiu voando de sua boca fazendo o exato som de um pavão fugindo de seu abrigo, e reproduziram o piado da ave; mas, em verdade, Ptolomeu morreu silenciosamente e ninguém reparou quando isso aconteceu.

Apolo concedera a esse grego a maior das dádivas em seu poder: uma morte pacífica.

Quando a família real entrou, lentamente, de volta no aposento, espremeram o corpo de Ptolomeu com as mãos, para forçar a alma a abandoná-lo, segundo o costume dos egípcios, e Mikros juraria que enxergara a alma de seu pai sair voando dos lábios dele sob a forma de um corvo.

Tudo ficção. Todos sabem das mentiras que os gregos contam.

Verdade é que um homem moribundo sempre vê coisas, e Ptolomeu viu coisas, em seus últimos momentos, que nenhum homem lhe poderia explicar. À distância, ele avistou Anúbis, o Cabeça de Cão, caminhando em sua direção através de uma sucessão de câmaras contíguas, e era Eskedi, é claro, o sumo sacerdote de Ptah em Mênfis, usando a máscara do chacal, e ele era Anúbis, Faraó do Mundo Subterrâneo: Ptolomeu sabia que a visão da máscara do cão era sinal de que havia chegado a hora de sua morte.

Eskedi sabia, por sua vez, tudo sobre o horóscopo desse rei, e que chegara a hora de ele ir para os céus; para que ele se tornasse, finalmente, um único com as Estrelas Imperecíveis.

Para os sacerdotes do Egito, a passagem de um Faraó jamais os pega de surpresa. Desde o começo, sabem quanto anos, quantos meses e quantos dias viverá cada criança que nasce, já que a morte não é um acidente, mas parte do grande plano dos deuses, como tudo o mais na vida.

O Negro Anúbis tomou Ptolomeu pela mão, e a mão de Anúbis era esguia, negra, macia, peluda como a pata de um cachorro, e, para Ptolomeu, que tanto havia esperado, perguntando-se quantos dias lhe restavam, veio enfim a resposta, já que o úmido nariz de Anúbis agora se pressionava em seu ombro, impelindo-o para a frente. A pata de Anúbis, o Chacal, o Supervisor dos Segredos, o pôs para andar, e foi conduzindo Ptolomeu. Anúbis: o interior de suas orelhas e a coleira em torno de seu pescoço eram de ouro, e seus olhos eram brancos como calcita, com pupilas negras como larva cristalizada, delineados com ouro; suas sobrancelhas eram de ouro, e suas patas brilhavam como prata, apertando a carne da mão de Ptolomeu, ásperas, e as orelhas de Anúbis estavam eriçadas; e ele sabia que Anúbis era o deus, que Anúbis era real, por causa de seu rosnado gentil, e pelo fato de que a mão e o braço do cão eram quentes, quentes como carne vivente, e porque seu focinho estava molhado, e seu hálito de cachorro era quente sobre a nuca de Ptolomeu, e porque seu nariz molhado o impelia à frente.

Eskedi disse então à família que, Sim, o escaravelho egípcio voa na hora mais quente do dia, e por essa razão está associado ao deus-Sol, Rá.

Mikros, Berenice e os demais, agora, observavam Eskedi, com curiosidade, talvez compreendendo, talvez não.

O rei morto, prosseguiu Eskedi, voa agora como um pássaro, e pousará como o besouro sobre o trono vazio no barco celestial de Rá.

Quando o espírito de Ptolomeu deixou seu corpo, alçou vôo, com um piado selvagem, com um frenético bater de asas, como um pato nos pântanos de papiros, e aquele era verdadeiramente o Ka de Ptolomeu, como um pássaro de cabeça humana, e ficou revoando e revoando pelo quarto, como um pardal preso numa casa, sem conseguir encontrar a saída; e Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, o Mestre dos Segredos do Lugar Sagrado, escancarou as persianas da Janela das Aparições, para permitir que ele saísse, e foi assim que o espírito de Ptolomeu, o que Viveria Para Sempre, partiu.

 

               O Banquete Vermelho dos Mortos

Logo que constataram, sem nenhuma dúvida, que as formigas haviam parado de correr e que o último suspiro fora exalado, a rainha Berenice fez o que toda esposa de um grego falecido deve fazer, e tirou as suas jóias de ouro. Tirou os anéis de abutre de seus dedos, seus brincos de sereia, seu pesado colar de abutre feito de ouro e cravejado com todas as majestáticas e preciosas pedrarias, e suas manilhas de ouro dos tornozelos, e colocou para substituí-los os brincos negros, o colar de contas de azeviche, os braceletes de ébano lisos. Trocou seus trajes de linho branco por peplos pretos e calçou as sandálias pretas de luto.

Ela esfregou lama do Nilo em seu rosto, nas mãos e nos seios, e sentiu repulsa de tudo aquilo, da sujeira, e seu luto seria um falso luto, já que não sentia coisa alguma por esse homem morto, a despeito da história que contava que seu casamento fora por amor. Seu amor fora um amor morto, que esfriara havia muito e alguns diziam que jamais fora quente.

Berenice preparou-se para os lamentos em voz alta, e Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, escancarou as portas duplas de cedro e ouro, ornado com marfim da Terra de Punt, e proferiu as terríveis palavras para os guardas das portas: O Falcão alçou seu vôo para os céus... e o rei, seu filho, sentou-se, agora, no trono de Rá.

Fez-se um longo silêncio, então, com o plaft plaft plaft de pés descalços sobre o assoalho de mosaico, e eram os pés dos anões do palácio, em correria, e imediatamente começaram os gemidos, os assustadores uivos de Berenice, a viúva, ecoados e ampliados não apenas pelas mulheres nativas do Egito, mas também pelas mulheres de sangue grego, que emitiam uivos capazes de fazer os cabelos de qualquer homem se arrepiarem na nuca, e um calafrio percorrer as espinhas de todos eles, a despeito do calor; o pranto em voz alta das mulheres sempre ressoava, quando qualquer um morria, mas eram especialmente agudos na morte do Faraó.

Os lamentos atravessaram logo os pátios gregos, com suas colunas, e saíram pelos portões gregos, penetrando na cidade grega, rápidos como chamas na grama seca, desceram a Via Canopus e Via do Soma, ou corpo de Alexandre, adentrando o bairro nativo chamado Rhakotis, atravessando o Hepstadion e alcançando o Farol ainda não terminado, atravessando os Portões da Lua, e correndo pelo Canal de Canopus, subindo o rio até Mênfis; e então, rápido como uma epidemia, os lamentos voaram para o sul, até Heliópolis e Hermópolis, Hiercanópolis e Apolonópolis, para Philai e Siene, e até as fronteiras do Egito; e daí se alastraram, entrando pela Núbia e pela Terra de Punt, a terra das especiarias, carregando a notícia de que Ptolomaios, o grego, Ptlumis, rei Ptolomeu, Bem-Amado de Amon, O da Vida Eterna, estava morto, até parecer que todas as mulheres do Egito uivavam seus lamentos numa única voz.

A tragédia despencara sobre o Egito, e haveria caos nos Céus até que o novo Faraó, sucessor de Ptolomeu, fosse coroado; um breve reinado para o eterno Causador de Tumultos, Seth, que era a encarnação de todo o Mal, até o retorno de Osíris, e seu filho, o Hórus Vivo, na forma de um novo Ptolomeu, o Ptolomeu que seria chamado de Ptolomeu Philadelfos, o Dotado de Amor Fraternal, a quem, até o momento, todos conheciam como Mikros.

Mais alto do que o de todas as mulheres eram os gemidos da Rainha. Berenice uivava como uma loba, como o chacal do deserto. Ela uivava pelo marido morto e por ter sido deixada sem ele, e pela incerteza quanto ao seu futuro, e pelo derramamento de sangue de todos os parentes, que ela sabia que iria advir em breve; mas, acima de tudo, lamentava-se pelo começo do fim de seu tempo de glória no Egito, sabendo que já não duraria muito.

Longe, em Mileto, a auto-intitulada ex-rainha do Egito, Eurídice, despertou nas horas mortas da noite, ainda parcialmente submersa em sonhos que a haviam transportado de volta para a suntuosa vida no palácio em Alexandria, agora perdida, berrando e tremendo, apesar do calor.

Sim, Eurídice pressentiu o que acontecera, não precisando esperar pelas notícias, e ao alvorecer ela não vestiu o peplos branco e as jóias de ouro de uma mulher que era quase uma rainha, mas o peplos negro de luto pelo falecido.

Quanto a Ptolomeu Keraunos, o Raio, seu filho, o príncipe que, naquele dia, deveria ter se tornado o novo Faraó, que tinha então 36 anos de idade, quando o mensageiro o alcançou com a notícia de que seu pai, o rei, estava morto, não houve alteração na expressão de seu rosto rosado. Ele não disse palavra alguma, mas seus lábios se curvaram, como em escárnio, e ele cuspiu no chão. Apenas quando caiu a noite esse que era o mais duro dos homens cedeu aos seus sentimentos, e apenas sobre as cobertas de seu leito, onde nenhum homem poderia ver o seu rosto, talvez tenha chorado a morte de seu pai e pela perda de tudo o que possuíra.

De volta a Alexandria, as lamentações prosseguiram, incessantes, por setenta dias e noites, que eram a duração do processo de embalsamamento, até que o funeral do grande rei fosse realizado — uma abundância de lamentações, para um Faraó que não era sequer egípcio.

Na residência, todas as atividades foram interrompidas. Nenhuma tarefa nem trabalho eram executados. Nenhuma comida era preparada. Nada aconteceria na residência por setenta dias, senão os gritos incessantes das mulheres.

Pelo menos, a sucessão estava assegurada, e o rei Ptolomeu Soter, sem dúvida, morreu feliz, mas no caos que imediatamente se seguia à sua ascensão aos céus, a grande preocupação daqueles que permaneceram vivos era o que fazer com os seus restos mortais.

Thot também pergunta: O que fazer com ele, com esse rei grego que morreu num país distante? O procedimento grego normal seria colocar seu corpo em exposição, deitado numa carruagem, e permitir que os gregos passassem por ele em fila, para prestar seus últimos respeitos, como havia sido feito quando Alexandre morrera. Assim, vieram todos os soldados de seu exército e derramaram lágrimas por ele não estar mais vivo. Beijaram seus lábios ainda quentes e apertaram seus dedos quentes e enrijecidos, e todos sussurraram mensagens para os mortos nos espiralados orifícios que eram as suas orelhas.

Nesse ínterim, essa família grega discutia com os egípcios sobre as últimas vontades do falecido, as vozes se erguiam e se emudeciam, Mikros e Berenice, Filotera, Arsinoè Alfa, Eskedi, o sumo sacerdote de Heliópolis, de Hermópolis e de Tebas, todos adentrando a madrugada argumentando.

Mumificação, segundo o costume egípcio, não era o que Ptolomeu desejara. Ele vira centopéias invadindo as narinas do cadáver de Alexandre. Vira os besouros entrando e saindo dos ouvidos tamponados de Alexandre e não queria nada disso.

Queimem-me, dissera ele, pois não tenho nenhuma vontade de viver para sempre, como Alexandre. E os gregos juravam que fora o que ele dissera, repetidas vezes, até que Eskedi abriu os braços, as pintas de leopardo desceram aceleradamente os corredores do poder, e foi a primeira e última vez que o viram correr.

As servas lavaram o cadáver de Ptolomeu e o esfregaram com óleo de oliva, depois lhe vestiram uma túnica branca limpa e colocaram nele o seu manto púrpura, dando-lhe o tratamento dos heróis mortos de Homero, já que o mundo dos gregos, assim como o mundo dos egípcios, era um mundo no qual nada deveria mudar, onde tudo deveria ser feito, para sempre, de acordo com as tradições.

Enfeitaram-no com guirlandas de flores brancas e o deitaram sobre o seu esquife, deixando-o pronto para a jornada até a pira, ao modo grego. Por dois dias, a família velou-o, para se certificar, até a exaustão, de que o velho estava morto, atentos a qualquer mínima centelha de vida, evitando assim que o queimassem ainda vivo, e, sim, procurando algum sorriso. Isso porque, se o cadáver ostentasse um sorriso, isso significava que levaria logo consigo um outro membro da família. E de fato Ptolomeu sorria. Mesmo na morte, abriu aquele misterioso sorriso, o meio sorriso do Faraó. E apesar de todas os tapas que Berenice lhe deu, em suas faces gordas, o sorriso sardônico estava bem fixo nela, como se fosse feito de gesso egípcio, e não se desfazia, como se ele não estivesse pretendendo arrastar um deles, mas a todos, consigo; como se fosse necessário que ocorressem repetidas mortes, muitas e violentas mortes, algo inimaginável para qualquer homem.

E Thot sabe que assim seria.

No terceiro dia, antes do alvorecer, a procissão saiu pelos portões da residência, transportando o corpo até a praia a leste da cidade de Alexandria, onde, depois de anos recebendo ordens para permanecer em silêncio, as mulheres gregas poderiam ter voz.

A rainha Berenice, comandando a cerimônia, postou-se à cabeceira do ataúde e iniciou o klama, a canção de luto, erguendo sua voz em louvações a seu marido. Suas pernas estavam quase paralisadas, seus cabelos em desordem, e o seu véu, ela estendeu sobre os ombros, segurando cada ponta com uma mão, movendo-o para cima e para baixo no ritmo lento do réquiem.

Berenice golpeava os seios com os punhos. Fincou as unhas em suas faces e, ao final, não se ouvia dela nada senão guinchos estridentes, sem significado algum, e Filotera e Arsinoè Alfa entoaram a canção por ela.

Berenice arrancava chumaços de seus cabelos e os atirava sobre o ataúde, exatamente como Aquiles e os mirmidões haviam lançado seus cabelos sobre o ataúde de Pátroclos. Berenice cambaleava, como uma bêbada, seus cabelos despencando como uma mixórdia sobre suas faces, seu rosto todo cortado por fios de lágrimas e sangue, e profundas rugas que não mais desapareceriam.

As aias aristocratas, que conheciam Berenice mais do que qualquer outro, consideraram que ela exagerara em suas lamentações, que não estava sendo totalmente sincera em sua dor, e as línguas trabalharam bastante nos dias que se seguiram.

Quanto aos homens, Mikros, tio Menelau, os filhos bastardos de Soter, cujos nomes ninguém recordava, e Lagos e Leontiskos, filhos de Thaís, a qual ninguém mais mencionou — sentiam-se constrangidos, em meio a essa demonstração pública e descontrolada de sofrimento. Seus olhos estavam fixos no chão, pensando sobre a noite dos punhais que estava para chegar e remexendo com os pés a areia dourada.

E assim ele foi cremado numa muralha de chamas, e a fumaça cobriu seus rostos, fazendo-os lacrimejar.

Na ausência de Keraunos, cabia a Mikros reunir os ossos, depois da cremação, lavá-los em vinho límpido e envolvê-los em suaves tecidos púrpura bordados com fios de ouro pelas mulheres da Casa, para depois colocá-los numa apropriada larnax, ou caixa de ouro, segundo o costume dos gregos. Depositaram seus restos junto a Alexandre, no Grande Túmulo, ou Sema, na rua Kanopus, no cruzamento das principais avenidas da cidade.

Por todos os anos que se seguiram, ao longo de três séculos, a Casa de Ptolomeu celebraria o dia do aniversário do falecido Ptolomeu Soter, dirigindo-se em solene procissão ao Túmulo, realizando as devidas libações de leite, mel e vinho não diluído. Lá derramavam os líquidos, de acordo com suas obrigações religiosas, como se um homem já em seu túmulo pudesse usufruir de qualquer benefício por receber inúmeras ânforas cheias de vinho, guardadas entre as fendas das pedras de seu último lugar de repouso.

Posteriormente, houve controvérsias a respeito do Fundador dessa Casa, já que haviam esquecido não apenas quais haviam sido as disposições tomadas em relação ao primeiro Ptolomeu, mas até mesmo onde o haviam colocado. É certo que chegaria o dia em que já não saberiam se esse rei recebera um funeral de grego ou de Faraó, sendo que nesse caso teria sido depositado no triplo sarcófago de ouro sólido, envolvido em faixas, na morte, assim como as bandagens o haviam envolvido no nascimento, de modo que ele terminaria justamente como começara.

Ninguém jamais esqueceu, no entanto, o que aconteceu imediatamente depois do funeral de Ptolomeu Soter. De modo algum. Isso eles lembrariam para sempre, porque o grupo todo retornou ao túmulo, depois do número prescrito de dias, para comer a Thaunatousia, o Banquete dos Mortos, o festim fúnebre dos gregos, no qual toda a comida era vermelha, já que comiam, nessa ocasião tão triste, todos os alimentos que eram proibidos em qualquer outra refeição, empaturrando-se de tomates, amoras, morangos e salmonetes, camarões de água doce e do mar, lagostas, bacon, beterrabas, framboesas e arandos — fartando-se de pratos da cor do sangue.

Isso porque, na Grécia, vermelho é a cor da morte.

Thot diz: Em verdade, a família de Ptolomeu apreciou a Thanatousia, e mais do que qualquer outra refeição, e o Banquete Vermelho dos Mortos era algo esperado, com ansiedade pela família do falecido, algo para ser lembrado depois, de modo que alguns desses gregos chegariam até mesmo a rezar por uma nova morte na família para que pudessem outra vez ter a permissão de comer lagostas e morangos, com o suco vermelho escorrendo por seus queixos. E assim prosseguiu, sim, um ano depois do outro, uma geração depois da outra, pois que ocorria uma morte depois da outra, mortes e mais mortes, e outras mortes mais, no seio dessa família, e todas as vezes sucedia-se a mesma coisa: seus lábios e queixos ficavam vermelhos, e suas vestes gregas de linho branco ficavam manchadas de vermelho, como se fosse com sangue.

Isso porque na Casa de Ptolomeu a morte era um evento quase bem-vindo, não tanto a causa da dor e do luto, mas de um silencioso deleite.

E, de fato, a morte viria visitar os Ptolomeus com freqüência.

 

                 Causadores de Problemas

Quando haviam concluído os últimos ritos, restava a questão de o que fazer com os Causadores de Problemas, e no topo da lista das pessoas difíceis estava tio Menelau, irmão de Ptolomeu, que continuava salivando em abundância, em seus ricos aposentos, mas que teria de ser o primeiro suspeito, mesmo assim, de traição.

Por algumas horas, o novo Faraó, Ptolomeu Mikros, andou de um lado para o outro sobre o assoalho de mosaico, observando os golfinhos e tridentes e refletindo sobre o que deveria ser feito. Menelau poderia morrer num tempo suficientemente breve, de causas naturais. Na verdade, não representava nenhuma ameaça à segurança. Mas havia a questão dos seus filhos, de cujo nome ninguém, nos anos vindouros, se lembraria, e também os filhos desses filhos, e o problema era que os filhos e os netos não poderiam ser assassinados sem que se matasse também o avô.

Mikros — não era verdade que desprezava esse seu tio, o babão, cujo maior prazer era ficar sempre lhe dizendo o que deveria fazer? Esse homem, cujo auge da carreira militar fora a perda da ilha de Chipre?

Mikros perguntava-se se seria possível que tio Menelau sofresse algum acidente com suas lâminas de bronze.

Mas deveria, perguntava-se, apressar a partida de tio Menelau para a estrada que descia ao Hades?

Mas Mikros tinha seus receios. Era um rei dotado da mais extrema honra, que dizia sempre a verdade. Afastou seus pensamentos sombrios e enviou a Menelau uma cesta de figos, como gesto de boa-vontade.

Em Mênfis, corria a informação de que Menelau ainda vivia em seus velhos aposentos em Alexandria.

Em Alexandria, a notícia era que Menelau usufruía de uma bem merecida aposentadoria em Tebas, onde o clima era mais saudável, mais seco.

A deusa alada do Rumor espalhava, entretanto, diversas versões: Menelau havia fugido do Egito, dizia-se, assim que o rei falecera. O gentil, generoso Menelau, diziam, fora eliminado logo que seu sobrinho subiu ao trono, e com ele sua devotada esposa, seus filhos, educados desde a infância para se tornarem strategos do exército egípcio, e também seus netos, todos eles usurpadores, uma dinastia rival aguardando o momento de pôr as mãos no poder: a genuína encarnação dos Problemas.

Ptolomeu Soter havia alertado esse seu filho para fazer o que precisava fazer e prontamente. A Noite das Espadas Curtas, assim a chamou, quando um rei tem de cuidar da lista.

Mikros ainda escutava a voz do homem idoso, bem nítida e bem alta: Para garantir sua segurança, todos eles devem ser passados a espada.

E quando Mikros o encarou com perplexidade, ele foi ainda mais enfático: Se você não eliminar todos os seus parentes, você é que estará condenado, e Ptolomeu Mikros entrará na Casa de Hades com cinqüenta anos de antecipação.

Logo surgiu o comunicado oficial: tio Menelau havia comido figos verdes em demasia e engasgara-se, morrendo sufocado; aconteceu tudo por culpa de sua própria estupidez — embora, em verdade, o único crime desse que era o mais inofensivo dos homens (excetuando ter perdido a ilha de Chipre) fora ser irmão do rei.

Quanto à família de Menelau, houve rumores sobre disenteria, picadas de cobras, espinhas de peixe atravessadas na garganta: de uma febre fatal qualquer alastrando-se entre seus filhos e netos, resultando no triste falecimento de um depois do outro.

Contra-rumores, é claro, diziam que a febre fora o próprio Mikros. Mas não, Mikros era o Faraó, um homem de altíssima honra, que sabia como manter as mãos limpas, assim como a sua reputação.

Fosse qual fosse a verdade, nenhum membro da Casa de Menelau sobreviveu, e nenhuma lembrança foi deixada deles. Ficaram entre os desaparecidos, como se alguém houvesse lançado sobre eles o Feitiço da Invisibilidade.

A ligeira deusa dos Rumores espalhava também, aos cochichos, boatos que davam conta da morte de Argaios, meio-irmão de Mikros, filho de Eurídice. Diziam que Argaios fora executado por conspiração. E era justamente o que Eurídice mais temia: que a família recorreria à matança mútua, para se sentir em segurança. - Ptolomeu havia executado os apropriados rituais da purificação: derramou a taça com o sangue de um leitão sobre as mãos. Despejou toda uma taça de sangue de leitão sobre sua cabeça. É certo que ele jamais ergueu sua espada pessoalmente, mas, a despeito do aspecto meramente técnico relacionado à culpa pelo derramamento de sangue, apesar de não ser, de modo estrito, culpado de crime algum, mas apenas, se tanto, de tê-los encomendado, Ptolomeu Mikros sentia-se culpado, e essa culpa jamais o abandonaria.

Isso porque para os gregos, um assassinato em pensamento vale tanto quanto o ato de assassinar.

Ao fundar Alexandria, os gregos criavam uma cidade onde tudo era permitido; onde nada que um homem desejasse fazer seria proibido — o que significaria, talvez, tanto coisas ruins como boas que um homem pudesse fazer.

O crime de Argaios foi simplesmente existir. Sua conspiração consistiu em ser o irmão vivo do rei Ptolomeu e um filho da instável Eurídice; além disso, havia demorado demais em Alexandria, sem ter o que fazer ali.

Mesmo assim, foi esse mesmo Ptolomeu Mikros — esse Ptolomeu—que fundou a ilustre e a mais ilustre das cidades, no distrito do lago de Moeris, ao qual deu o nome de Filadélfia, ou seja, Amor Fraternal. Mikros, que não era um guerreiro, estava evoluindo bem.

O que fora feito, então, do resto da família? Eurídice permaneceu em Mileto, na Jônia, sob a proteção de seu filho, mais afeito à guerra, Ptolomeu Keraunos. Com ela, por fim, foram morar suas filhas viúvas, Theoxena e Ptolomais — Três mulheres loucas reunidas, diziam — já que não poderiam mais residir em segurança em Alexandria, nem manter seu luxo de antigamente, tampouco, de fato, sentir-se à vontade, em qualquer aspecto, temendo que alguém viesse lhes bater à porta depois do escurecer. Isso porque ocorreu a Mikros que até mesmo uma irmã poderia recorrer a venenos, a punhais; que mesmo uma irmã poderia encomendar um assassinato, se oferecesse dinheiro o bastante por isso, e ele imaginou que mesmo essas irmãs insanas de Ptolomeu Keraunos o estariam apoiando. E talvez estivesse certo.

Quanto aos dois jovens filhos de Theoxena, que haviam permanecido no Egito, o mais velho, Arkhagathos, casara-se com Stratonike, filha de Demétrio Poliorketes. Quando sua mãe retornou ao Egito, ele estava com dez anos de idade, um príncipe sem futuro; mas, ao completar 21 anos, foi indicado como Epistates, ou seja, governador, da Líbia, e isso com o propósito de tirá-lo de Alexandria, onde poderia criar problemas.

Arkhagathos foi, assim, enviado rio acima, onde, se não morresse vitimado por alguma febre, poderia, talvez, retornar algum dia e ser útil ao Faraó, seu tio, ou poderia ser assassinado com discrição, quando chegasse o momento para as disposições apropriadas, ou tão logo se relatasse que dera algum passo errado.

Arkhagathos por alguma razão começou a acreditar que poderia fazer o que bem entendesse e dedicou o seu tempo não apenas às suas obrigações, o que incluía a captura de elefantes de guerra para Ptolomeu Mikros, mas também aos prazeres da carne. Arkhagathos pensou que, na Líbia, ninguém o estivesse vigiando, mas, em verdade, ele era meticulosamente espionado pelos agentes de Ptolomeu, e todos os seus atos, bons e maus, eram comunicados à residência.

Além da referência à sua estada na Líbia, ninguém poderia dizer com certeza o que fora feito desse jovem, a não ser que ele deixara de ser mencionado nos arquivos justamente na época da coroação de Ptolomeu Mikros.

Reflexões de Thot: Em verdade, não é difícil adivinhar o que aconteceu a esse garoto.

Quanto ao irmão mais novo, Agatharkhos, sabe-se ainda menos, e ele deve ter sofrido sorte ainda pior, já que ninguém nem sequer recorda seu nome, quanto mais sua história, e isso é mau sinal, porque, para os egípcios pelo menos, se o nome de um homem não é lembrado, ele não terá existência na Vida Após a Morte.

E é tudo o que se pode dizer sobre a família de Theoxena, uma garota que iniciou sua vida adulta com grandes esperanças e a terminou em tragédia, sem marido, sem herdeiros e privada de sua felicidade; pois como uma tal mulher pode ser considerada feliz?

Com freqüência, Theoxena se poria a contar a história de seus dias na Sicília, a qualquer mulher que se dispusesse a escutá-la, dizendo: Tive um marido, muitos anos atrás... o mais corajoso e o melhor de nossa raça... um homem de coração de leão... Mas nunca conseguia terminá-la, porque começaria a chorar, e isso aconteceu não apenas uma vez, mas sempre, e as mulheres desconfiariam de que a verdade era que, mesmo o amando de tal maneira, e mesmo falando nele de tal maneira, esse seu Agathokles a teria tratado com a sua crueldade costumeira.

O que diz o grande Sólon: Não diga que um homem é feliz até que ele morra; no máximo, ele pode estar tendo sorte. E ele poderia ter acrescentado: o mesmo vale para as mulheres. Mas Theoxena não tinha nem mesmo sorte.

 

                         A Grande Vaca Branca

A esposa de Ptolomeu Mikros, Arsinoê Alfa, filha de Lisímaco, estava deliciada com a iminência de se tornar a rainha do Egito e de usar a Coroa de Jóias das Duas Terras, e se deliciava também com a adoração dirigida a ela, como a jovem esposa do Hórus Vivo, o Falcão de Ouro, Filho de Rá. Arsinoê Alfa— quase automaticamente passou a sorrir o sorriso da rainha do Egito, vago, misterioso sorriso, porque era, já por si mesma, em verdade, uma jovem vaga, cujos pensamentos também tendiam a serem vagos, e, certamente, não os pensamentos voltados para navios de guerra, geometria, ou como melhor comandar um exército de mercenários, e isso porque não a tinham educado para nada a não ser tecelagem, tapeçaria e costura e, para dizer a verdade, ela não era capaz sequer de ler do alfa ao delta. Arsinoê Alfa nada sabia de coisa alguma que fugisse aos afazeres domésticos. Mas nada disso importava para Ptolomeu Mikros, na época do seu casamento.

No entanto, Arsinoê Alfa se considerava bastante afortunada, e tinha tudo o que desejava. Estava cercada de aristocráticas aias, e o gynaikeion, em Alexandria, sempre ressoava com a conversa incessante e as risadas das jovens, que eram lindas de se olhar como deusas, e nada existia para estragar a alegria delas.

Arsinoè Alfa passava o seu tempo ora em Mênfis, ora em Alexandria, dependendo de onde estaria instalada a corte de seu marido. De fato, ela não via o marido todos os dias, mas sabia que os negócios de um rei são um fardo incessante. Havia aprendido de Arsinoè Beta, sua madrasta, como deveria uma rainha se comportar, e embora lhe faltando o interesse sobre assuntos militares que a outra Arsinoè tinha, estava ansiosa para se envolver nos assuntos egípcios, onde quer que pudesse ser útil, e entendia um pouco do que acontecia à sua volta. Assim, Arsinoè Alfa supervisionou uma frota de navios mercantes, que comerciava em seu nome, rio acima e abaixo, com cargas de grãos, bananas, azeitonas e ânforas cheias de óleo e vinho, e assegurou-se de que a frota mercante trouxesse lucros para o Tesouro do rei Ptolomeu Mikros.

Arsinoè Alfa dirigia também a manufatura real de perfumes e ungüentos, incentivando sempre a interminável busca por uma mistura que mantivesse a transpiração da mulher grega no mínimo e, ao mesmo tempo, afugentasse as moscas e evitasse picadas de insetos egípcios, que tanto apreciavam pousar sobre ela com a intenção de atacar sua carne.

O trabalho de Arsinoè Alfa, portanto, não era trabalho de homem, mas uma guerra contra as moscas; no entanto, seu propósito era sempre enriquecer os cofres do marido. Todos os seus empreendimentos visavam ao incremento da glória de Ptolomeu, já que ela era a Grande Esposa Real, e a Esposa do Rei não era mulher de ficar sentada o dia inteiro sem fazer nada. Arsinoè Alfa, assegurava Mikros, não seria uma outra Eurídice.

A rainha Arsinoè viajava com o rei Ptolomeu Mikros, quando o ritual do templo exigia a sua presença ao lado dele. Ela desenvolveu bastante a habilidade de chacoalhar o sistro. Na parte alta do Nilo, vestia seus trajes de Isis, a Grande Deusa, Grande em Mágica. Usava a touca de chifres de Hathor, sem reclamações, e o quase transparente vestido da deusa-viva, e até mesmo sorria o vago sorriso de rainha, e era feliz, mais do que feliz, com a sua nova vida. Em retribuição, Mikros sentia que nunca em sua vida fora tão feliz, e em seu íntimo achava que possivelmente — embora fosse uma loucura pensar isso — amasse essa sua esposa, essa bela rainha, que envergava a Tiara do Abutre com tanta graça. Arsinoè Alfa poderia ter vivido sua plácida existência no Egito pelo resto de seus dias, mas o que aconteceu foi que as Parcas decidiram outra coisa.

Thot sabe que, no horizonte, avizinhavam-se desse homem e de sua esposa problemas piores do que todos os que já haviam conhecido na vida, e a causa seria uma outra mulher, cujo nome também era Arsinoè — Arsinoè Beta, a outra Arsinoè, a mulher a quem Arsinoè Alfa pensou que jamais veria de novo. Mas, não, a felicidade de Arsinoè Alfa não duraria para sempre, mas estaria fadada a ser interrompida dramaticamente.

E quanto à velha rainha? O que fora feito de Berenice, a Rainha-Viúva, nascida cerca de setenta anos antes? Nesses dias, ela falava mais da beleza da Grécia, da Macedônia, sua terra natal, isso porque desejava, acima de todas as coisas, uma paz que durasse para sempre com a Macedônia, de modo que pudesse ir para sua terra e morrer em seu próprio país; e assim poderia morrer uma morte fria, em vez de morrer de calor no Egito que era, segundo dizia, nada mais do que um forno.

Mas Berenice sabia que jamais poderia retornar para a Grécia. Não, ela precisava ficar no Egito e se acabar de tanto transpirar.

No verão, providenciou para ser levada no harmamaxa para a praia ao sopé dos penhascos a leste da cidade de Alexandria, com seus netos, suas amas e o instrutor de natação, e se divertiam banhando-se no Grande Mar, já que a água do mar, supostamente, seria saudável.

É importante, dizia Berenice, saber nadar bem. E, a exemplo do seu falecido marido, ela pensava no curioso fato de Alexandre não saber nadar e parecer totalmente incapaz de aprender. Assim, tornou-se uma espécie de tradição de família que todo Ptolomeu aprendesse essa arte, e se orgulhasse de saber fazer algo que Alexandre fora incapaz de fazer, e aprender a patinhar como um cão, sobre a água, tão bem quanto Berenice.

Já a esperta Berenice, ela nadava muito bem; em seu traje de banho diáfano e sem formas marcadas, a Grande Vaca que Habita o Necker parecia nada mais do que um gigantesco monstro marinho. E, quando flutuava de costas, expeliria grandes jorros de água, bem como as baleias que às vezes surgia na Enseada de Eunostos, a Enseada dos Felizes Retornos.

Mas, Berenice, de fato, viveu muito mais do que seu marido, e era como se tivesse morrido porque, se continuasse viva, morreria de vergonha pelo que estava prestes a acontecer na Casa de Ptolomeu, sobre o que Thot irá falar mais abaixo. Não pare de seguir a história, leitor.

Por ocasião da morte da rainha Berenice — que se tornou Berenice Alfa, para distingui-la da rainha Berenice que viria a seguir—as lágrimas de seu filho Mikros seriam lágrimas de crocodilo. Em verdade, ele não se sentiu abalado pela morte dessa mulher, que havia se mantido distante dele por toda a sua vida.

Teria Berenice abandonado esse filho com a ama e lhe demonstrado ter pouco afeto por ele? Sim. Nem uma vez sequer, depois de ele atingir a idade dos sete anos, ela o abraçou ou cobriu sua cabeça de afetuosos beijos. Nem uma vez sequer disse a esse seu filho que o amava.

Por que isso? A rainha Berenice era boa em sorrir, boa em qualquer tipo de dissimulação, mas havia cerrado o seu coração contra as flechas de Eros, o Menino Impetuoso. Seu coração era duro como uma bota de couro, e ela jamais sentiu os arroubos do amor depois do fracasso de seu casamento com Felipe, o macedônio, e aprendera a fingir para obter tudo o que desejasse. Era uma questão de sobrevivência, de uma mulher fazendo tudo o que lhe fosse possível por si mesma e por seus filhos. E, sem dúvida, poucas mulheres na história do mundo fizeram isso tão bem quanto Berenice que, apesar de um nascimento sem brilho, terminou como rainha, deusa e a mais rica mulher vivente.

Mesmo assim, tinha orgulho de seu filho Mikros ter se tornado Faraó.

Alguns homens diziam que a frieza de ArsinoêBeta viera de Berenice, sua mãe — uma mulher linda, mas com o coração de pedra, já que sua vida havia sido estragada, arruinada, antes mesmo de ela vir para o Egito, por aquele Felipe cujo nome e destino teriam sido terríveis demais para serem sequer mencionados.

Para a sua irmã mais velha, ArsinoêBeta, rainha da Trácia, Mikros enviou uma mensagem, lacônica, ao jeito grego, já que nenhum deles desperdiçaria seis palavras que fossem, se pudessem empregar apenas três: Nossa mãe morreu.

Acontece que Arsinoê Beta já sabia. Ela havia despertado, durante a noite, com lágrimas escorrendo por suas faces sem nenhuma razão que pudesse lhe ocorrer, e sem nada a ver com o belo Agathokles. E, então vira a pálida figura da rainha Berenice de pé, junto ao pé de sua cama marchetada de ouro, o rosto como um raio, e quando foi perguntar mais tarde, fora justamente a hora de sua passagem.

Nos aposentos das mulheres havia sempre fortes laços de afeição. Se essa fria, feroz Arsinoê Beta verdadeiramente amara alguém da sua família, fora sua mãe, a quem tinha muito o que agradecer, já que Berenice lhe ensinara tudo o que sabia sobre mágica, encantamentos e poções contra todos os tipos de enfermidades, e também sobre venenos, e como se descartar de um homem que fosse, seja por que razão fosse, indesejado. Berenice era uma sobrevivente, e Arsinoê Beta devia a ela sua habilidade para sobreviver.

Cremaram a velha rainha vestida com seu mais refinado peplos púrpura e todas as jóias que possuía, como todas as nobres da Macedônia, exceto que havia jóias demais, todas de enorme esplendor, e eram jóias egípcias: colares de abutre, braceletes de serpentes, Olhos de Hórus, e mais colares e colares com genuínas pedras preciosas.

Ou, talvez, estivesse usando suas jóias até ser colocada sobre a pira e, antes que as chamas fossem acesas, generosamente as tivessem retirado, porque seriam tesouros valiosos demais para virarem fumaça, e Arsinoê Alfa as queria para si.

Com os ossos de Berenice, pelo menos, sepultaram duas ânforas cheias de óleo e a mesa das oferendas do festim funerário, segundo o costume grego, e toda a comida incluída: azeitonas gregas, pão para ceia, queijo de cabra, tâmaras e ânforas de vinho — os pratos simples macedônios. Foram providenciadas guirlandas de rosas e de narcisos, e as oferendas de incenso queimadas em seus ritos funerários foram mais volumosas do que todos os templos do Egito juntos poderiam usar no período de um ano. Se Berenice não era exatamente amada, ela, no mínimo, granjeara o respeito daqueles que deixou.

Assim, e seja como for, o segundo Rei Ptolomeu, tendo se livrado de todos os parentes seus que poderiam se insurgir e derrubá-lo do trono, ocupou-o em segurança, e apreciava o que havia feito, apreciava muito.

Tudo parecia agora correr bem no Egito, e esse novo Faraó estaria apto a começar seu reinado de paz, riqueza e glória. Vida! Prosperidade! Saúde! para Sua Majestade.

Nesse ínterim, nem tudo corria bem no palácio de Lisímaco da Trácia; havia problemas graves, e haveria ainda mais, e a causa deles era a rainha, Arsinoè Beta.

Pois, para Arsinoè Beta estariam reservados todos os problemas do mundo porque seu horóscopo havia muitos anos os profetizara terríveis problemas, e horrores tais que fariam seus cabelos se eriçarem como se fossem chifres.

 

                                             Arsinoè Beta

 

             O Belo Agathokles

Arsinoê Beta recebeu de Lisímaco a possessão de Efesos, e nessa cidade, exercendo seu direito, emitiu moedas — tetradracmas e octodracmas de ouro — com a sua efígie aposta numa das faces. Deu ordem para que tivesse aparência jovem, majestosa, com rosto redondo e usando véu — a epítome de uma rainha grega; uma mulher que, com 22 anos, havia alcançado tudo o que uma mulher deve alcançar, a não ser se tornar uma deusa em vida.

Fazendo o sol incidir sobre as moedas, era possível enxergar um sorriso em Arsinoê Beta. Mas a verdade era que, embora ela pudesse sorrir nas dracmas de Éfeso, raramente sorria pessoalmente, e ostentava sempre uma expressão solene, ou contrariada, já que era muito propensa à irritação.

Todas as cartas que Berenice enviava para suas filhas na Trácia terminavam com as mesmas palavras: Quanto ao resto, façam-nos um só favor, cuidem bem de sua saúde.

Lysandra de fato tomava cuidados, e isso não lhe trazia grandes benefícios, mas Arsinoê Beta ignorava o sábio conselho de sua mãe, e fazia tudo o que bem lhe agradasse, comendo alimentos que lhe fariam mal. Tênues dores de estômago a perturbavam, ocasionalmente, mas Arsinoê Beta não lhes dava atenção, e nada fazia para mudar seus hábitos de vida. Havia dias em que os problemas de estômago se tornavam tão graves que precisava ficar de cama, mas mesmo assim não mandava chamar os médicos de seu marido, homens que ela considerava pouco melhores do que feiticeiros e mágicos. Preferia medicar-se ela mesma, com medo de ser envenenada.

Certa ocasião em que Arsinoê Beta pediu ajuda ao seu médico particular, aquele mesmo Dion que fora mandado com ela para o Egito, ele percebeu o inchamento de sua barriga, o que o fez pensar que ela estivesse de novo grávida e que havia chegado a hora do parto. Insistiu para que ela fosse se sentar no banco real do parto. Mas, apesar de todos os seus gritos e de toda a força que fez, não expeliu nada além de uma rala e negra diarréia.

O que fez então Arsinoê Beta? Parou de se empanturrar de carnes assadas, e não comeu senão uvas por um mês para ficar magra e agradar mais aos olhos do príncipe Agathokles, mas, logo que voltou a comer, caiu doente de novo.

Certamente, na maior parte desse período, tudo o que a rainha defecou foram pelotas negras, como se fossem excrementos de cabras, assim como na maior parte desse período as dores e cólicas na barriga não a deixaram em paz.

Tal foi o início dos problemas físicos de Arsinoê Beta, que aliás não cessaram e, assim como seus problemas amorosos, pioraram ainda mais.

No decorrer dos meses e anos, os sentimentos de Arsinoê Beta em relação ao jovem Agathokles mudaram, de modo que, assim como o amava, começou também a odiá-lo um pouco, e em verdade ela mal percebia o que estava! fazendo, porque seu amor, como todo amor, era uma espécie de loucura e a cegava para qualquer bom senso ou razão.

Começou a se queixar a Lisímaco de que Agathokles, seu filho, estaria se dirigindo a ela com linguagem imprópria, e que a insultara, enfiando a mão por dentro do seu peplos, tentando agarrar seus seios.

Lisímaco achava difícil acreditar que seu filho, um rapaz de comportamento perfeito, fosse capaz de fazer tal coisa e, no momento, não tomou nenhuma atitude, deixando o rancor de Arsinoê crescer até que ela desejasse não somente ver Agathokles punido, mas expulso da Trácia, e tudo para impedir que essa sua beleza que se assemelhava à dos deuses continuasse atormentando-a dia e noite.

Agora, ela amava e odiava em igual medida, e ofereceu a Agathokles recompensas impensáveis se ele se dispusesse a, pelo menos, vir ao seu leito; se ele ao menos a segurasse em seus braços e a beijasse nos lábios. Mas Agathokles sempre balançaria a cabeça e, na privacidade, entre amigos, mencionava sua preocupação sobre a saúde mental de sua madrasta e sobre a compaixão que lhe causava o sofrimento dela. Não tinha noção do que ela contava ao seu pai e jamais sequer insinuara qualquer coisa a Lisímaco sobre o que Arsinoè Beta vinha tentando obrigá-lo a fazer, porque tinha a certeza de que esse rei certamente condenaria sua esposa à morte, ou no mínimo se divorciaria e a baniria, e esse garoto não desejava mal a sua madrasta. A verdade é que não havia malícia no coração do belo Agathokles, que era um dos mais virtuosos jovens que já viveram.

Thot diz: Como seria diferente a vida dessa mulher se ela tivesse se casado com o belo filho em vez de com o seu horroroso e velho pai. Mas o destino de Arsinoè Beta fora prescrito desde o início e ela não poderia mudá-lo, assim como ninguém mais é capaz de fazê-lo. Sim, pois o destino de Arsinoè Beta era árido, como se ela houvesse sido fadada a ser não uma mulher, mas uma serpente venenosa vestida nas roupas de uma mulher.

Que infelicidade! Vendo-se incapaz de convencer Agathokles a fazer o que queria dele, Arsinoè Beta tentou, então, a magia grega que havia aprendido de Berenice, sua mãe, e tudo fez com a intenção de forçá-lo a se apaixonar por ela, segui-la como um autômato ao seu leito, e lá executar, com seu rhombos, o que quer que ela ordenasse, tornando-se assim em tudo o seu escravo.

Claro que, vendo o rumo que o problema estava tomando, Agathokles havia muito tomado cuidadosas medidas preventivas, executando os contrafeitiços contra a magia de qualquer mulher que tentasse se apoderar de um homem contra a vontade dele. Agathokles se tornou invulnerável a qualquer encantamento, e Arsinoè Beta, obviamente, não tinha nenhum conhecimento disso.

Será que Lysandra, mulher de Agathokles, sabia dos sentimentos de sua meia-irmã? Certamente, no começo Lysandra sentira alguma compaixão por Arsinoè, casada com um velho — isso porque Lysandra já se casara com homens jovens por duas vezes —, e porque, quando ainda meninas, no Egito, nem sempre haviam se dado bem. Mas, aos poucos, a piedade de Lysandra se desfez, quando escutou de Agathokles que Arsinoè Beta estava se tornando um grande inconveniente para ele. Lysandra tinha alguma noção do que estava acontecendo, mas, fora assassinar a irmã — e ela jamais faria algo tão pavoroso —, estava impotente a não ser dizer a Arsinoè Beta para parar de tentar seduzir seu marido, para parar, porque era repulsivo, e lhe dizer que fosse o que fosse que ela pretendesse com ele, jamais teria, porque Agathokles já tinha uma esposa, e era ela, Lysandra.

Esse estado de coisas, mais do que insatisfatório, prosseguiu, prosseguiu e prosseguiu, e nenhuma das partes envolvidas fez nada para evitar que acontecesse — o que seria óbvio se tivessem refletido a respeito — o que iria acontecer.

Isso porque Arsinoè Beta agora pensava: Se Agathokles não pode ser meu, então não será de mais ninguém... E penetrou em seu coração a idéia de que precisava se livrar do homem que a atormentava, e que havia uma única maneira de consegui-lo. Agathokles poderia ter se tornado invulnerável aos seus encantamentos mágicos, mas não era, pensou ela, invulnerável a venenos. Agathokles ainda não era um dos imortais, e Arsinoè começou a pensar qual seria a melhor maneira de assassinar esse jovem, cujo único crime, sem dúvida, era ser mais belo do que qualquer outro homem na Trácia.

Thot balança a cabeça, de novo, e diz: Ora, então, deveria Arsinoè Beta ter o desejo de praticar um ato tão terrível? E sua resposta, evidentemente, é essa: Ela queria, acima de todas as coisas, ser a rainha da Trácia, rainha para sempre e sempre, e estava ciente de que o seu poder teria a extensão da vida do velho que era o seu marido, Lisímaco. Logo, sem a menor dúvida, chegaria a hora em que sua irmã, Lysandra, se tornaria a rainha, e ela, Arsinoè Beta, rainha de nada, mas apenas a madrasta de um novo rei, Agathokles, quando então, sem a menor hesitação, seria expulsa da Trácia, pois não conseguia acreditar que Agathokles suportaria viver sob o mesmo teto com ela, depois de tudo o que ela tentara fazer. Não, o mais provável seria que Agathokles mandasse matá-la assim que ascendesse ao trono, já que, aos seus olhos, ela seria apenas outra causadora de problemas.

Sim, se Arsinoè Beta conseguisse providenciar o assassinato de Agathokles, isso significaria que Lysandra jamais seria rainha da Trácia, em seu lugar. Significaria que Arsinoè Beta seria a regente, enquanto o seu filho, seu filho mais velho, Ptolomaios (de Telmessos), fosse menor de idade, e depois a Rainha-Viúva, porque, se Agathokles morresse, não haveria nenhum outro herdeiro para a Trácia a não ser o filho de Arsinoê Beta. Matar Agathokles, então, significava que Arsinoê Beta poderia reter o poder mesmo depois da morte de seu marido.

Então, certa noite, Arsinoê Beta ousou quebrar os selos do pacote de papiro que havia trazido do Egito e mantivera guardado em seus aposentos particulares, desde então, e que era parte dos presentes dados por Berenice, e cujo conteúdo era veneno o bastante para eliminar todo o exército da Trácia, e sobre o qual lhe disseram para explicar a Lisímaco, se algum dia o encontrasse, que se tratava de arsênico para matar moscas.

Quando pôs os olhos sobre o pacote, Arsinoê Beta sorriu e não parou mais de sorrir, porque já não se sentia indefesa nas mãos de seu destino, mas poderosa, possuindo o poder da vida e da morte — mais poderosa do que qualquer ser vivente. Assim foi que a idéia que principiou no coração de Arsinoê Beta como uma tênue semente começou a crescer, a lançar raízes, e a raiz principal de toda essa idéia era que o belo Agathokles iria morrer.

Mesmo assim, Arsinoê Beta tinha certeza, no fundo do seu frio ou ardente coração, que o que pretendia fazer era errado, e buscou decidir o que deveria fazer consultando os deuses, isso porque estava realmente lançada no maior dos desesperos em relação a Agathokles, a quem amava.

Ela derramou água do mar numa taça de ouro. Pingou azeite virgem sobre a superfície da água e, na escuridão dos seus aposentos, inclinou-se sobre o recipiente e expressou a pergunta, do fundo de seu coração, para a qual queria uma resposta. E, então, baixou sobre a taça a cabeça de um menino pequeno, que lhe deveria contar o que veria, um menino ainda puro, que não tivesse conhecido nenhuma mulher, e que era o seu próprio filho mais novo, Lisímaco Mikros, sobre cujo rhombos ainda não haviam nascido pêlos.

Havia dias em que as tentativas de Arsinoê Beta de predizer o futuro pela adivinhação da taça funcionavam com exagerada lentidão, e então ela queimaria um ovo de crocodilo sobre uma chama, para fazê-la funcionar mais depressa.

Havia vezes em que os deuses pareciam sem vontade de se manifestar para ela, quando então os forçava, misturando a bílis de um crocodilo com olíbano, sobre um braseiro.

Mas por fim, como todos os que se utilizavam de tais encantamentos, Arsinoê Beta ficou espantada ao receber a resposta que buscava, e seu sorriso, que tão raramente aparecia, se alargou.

E Lisímaco Mikros, o que ele viu? O que contou à sua mãe? Ele lhe contou o que achou que ela queria saber, e manteve segredo acerca do que viu na taça de água e que o fez gritar. Não, não queria contar a Arsinoê Beta o que viu, porque viu sangue, sangue esguinchando, sangue nas ruas, sangue nas paredes, e dois garotos mortos nos braços de sua mãe — e isso o apavorou.

 

                         O Que Lambe Sangue

Cerca de 18 anos depois de Arsinoê Beta deixar o Egito, a região em torno do Helesponto foi sacudida por um violento terremoto, e o maior dano foi sofrido pela cidade de Lysimakheia. Arsinoê sentiu os seus aposentos estremecerem, seu mobiliário de ouro deslizar pelo assoalho, e ela começou a berrar porque o Palácio de Lisímaco demonstrou não ser à prova de tremores de terra, e então a rainha ficou apavorada.

Os intérpretes dos augúrios disseram que o sinistro era um aviso mandado pelos Céus, uma amostra dos males que se abateriam sobre todo o mundo grego, e profetizaram a mais sombria ruína para Lisímaco, para a sua Casa e também para o seu reino.

Outros, mais serenamente, observaram que os terremotos não eram incomuns na região da Khersonesos-Trácia; que já houvera terremotos antes e que, sem dúvida, haveria terremotos depois, e que o terremoto era um fenômeno natural, sem nenhum significado, e muito menos uma prova da ira dos deuses gregos.

As profecias de tragédia, no entanto, estavam fadadas a se comprovarem corretas.

Não muito depois desse tremor de terra, o próprio Lisímaco começou a alimentar ódio por Agathokles, um ódio em tudo anormal, não apenas num pai, mas em qualquer ser humano, porque agora acreditava que havia alguma verdade nas histórias de Arsinoê Beta, e começou a se deixar tomar pelo pensamento de fazer o que Arsinoê queria que ele fizesse, que era lhe conceder a permissão para que ela se livrasse de Agathokles, seu próprio filho.

Tudo isso a despeito de já ter indicado Agathokles como seu herdeiro, e apesar do indubitável talento de Agathokles como soldado, ele que havia servido a Lisímaco em inúmeras batalhas; e quando tudo chegou ao seu termo, nenhum homem foi capaz de entender por que ele fizera o que fez, exceto indicando o fato de Agathokles ter ido longe demais ao dar a uma cidade o nome de Agathópolis, em homenagem a si mesmo, e de ter se deixado levar ao ponto de cunhar dracmas com sua própria efígie, usando o real diadema do soberano — algo que o próprio Lisímaco jamais fizera.

Talvez Agathokles não fosse, então, inocente de todo crime; era culpado de ter buscado afirmar alguma autoridade, e não seria, portanto, de todo desmerecedor da ira do seu pai, embora ninguém precisasse morrer por uma coisa tão pequena.

Quando tudo terminou para Lisímaco da Trácia, houve homens que disseram que o filho de Arsinoê Beta, Ptolomaios (de Telmessos), tivera algum envolvimento no fim de Agathokles. Ptolomaios tinha então 15 anos, estava quase na sua plenitude física, e era um belo garoto que seria bem capaz, e com isso teria tudo a ganhar, de compactuar com as conspirações de sua mãe, pois se o herdeiro da Trácia morresse, não haveria nenhum óbvio sucessor ao trono que não esse garoto.

De fato, esse jovem Ptolomaios tinha forte tendência a fazer tudo o que a sua mãe lhe ordenasse.

Mas que papel poderia um garoto, um mero garoto, desempenhar num assassinato? Teria feito seu amigo, Agathokles, ingerir uma dose fatal de veneno? Teria sido Ptolomaios aquele que destravou as portas, o garoto que deixara o assassino penetrar nos aposentos de Sua Alteza, o príncipe? Sem dúvida, Arsinoê Beta não macularia as suas finas mãos com um assassinato, mas empregaria alguém para executá-lo por ela. E por que, ela pensou, não deveria o seu filho Ptolomaios cometer pessoalmente o assassinato? E ela riu sua risada seca, já pensando em instruir o garoto sobre o que deveria fazer: torná-lo capaz de tomar os necessários cuidados para se proteger, de manipular os acasos em seu benefício. Sim, ela pensou, era chegado o momento de esse jovem se fazer útil — esse belo rapaz, esse especial amigo do belo Agathokles, que tinha, afinal de contas, livre acesso à pessoa dele, bem segundo os hábitos gregos, e que, fosse como fosse, já tinha o hábito de procurar Agathokles nas horas mortas da noite, sem que ninguém visse nisso nada de mais nem pensasse o pior de ambos ou sobre o que faziam.

Sim, pensou Arsinoê Beta, embora Agathokles tivesse tomado todas as medidas para se defender de feitiçaria e de mágica, chegando mesmo a pendurar o focinho de um lobo em seus aposentos, não haveria se protegido contra a traição de um amigo íntimo, um amigo em quem confiava.

Certamente, esse Ptolomaios não foi apenas o filho submisso de sua mãe no que concerne à sua posterior trajetória, quando mostraria ser um diligente e responsável Tirano de Telmessos. Por outro lado, como filho dessa mãe, filho dessa mulher dominadora, precisava fazer o que quer que ela lhe ordenasse, ou desfrutar da afiada lâmina de sua língua. E que garoto grego, afinal, poderia resistir à tentação de se tornar um rei, quando apenas um assassinato estivesse em seu caminho? Era o costume, entre os gregos, agarrar o poder fossem quais fossem os meios para obtê-lo. Mesmo que significasse matar seus próprios parentes; mesmo se significasse trair a mais sagrada confiança e a primeira regra da amizade.

Na última vez em que Arsinoê Beta tentou fazer com que Agathokles se deitasse em sua cama, ele lhe dissera: Ora, minha madrasta, você já deveria saber que eu prefiro garotos...

Mas Arsinoê sabia que o amor que Agathokles demonstrava por Lysandra, sua esposa, era genuíno, e que ele senão raramente havia demonstrado interesse por garotos bonitos, à exceção do filho dela — um interesse que ela, dissimuladamente, havia encorajado, em verdade, como meio de se aproximar de Agathokles e poder matá-lo. No entanto, sabia que ele não era um kinaidos a não ser ocasionalmente, e ela gargalhou na sua cara, sua risada privada de alegria, repleta de descrença, sabendo que ele apresentava apenas uma desculpa para que ela o deixasse em paz.

Seja como for, o que sem dúvida aconteceu foi que Eros bateu suas asas de ouro e voou para longe de Arsinoè Beta uma segunda vez, e não lhe restou mais nada a não ser o ódio por Agathokles. Ela chegou mesmo a ser ouvida dizendo: Não me importo minimamente com esse homem.

E foi assim que a paciência de Arsinoè Beta se dissolveu, e ela deu suas ordens, e tornou seus pensamentos em ações. Ela foi vista no Sétimo Daisios discutindo com o seu filho Ptolomaios, que falava como se de fato não desejasse fazer algo que sua mãe lhe pedira, de modo que ela elevou a voz, e as palavras ecoaram por todo o pátio do palácio: Creia-me, demasiada meiguice é o melhor caminho para a destruição.

Durante toda a noite do Oitava Daisios, Arsinoè Beta permaneceu acordada, às lágrimas, o espírito oprimido pelo terror do ato que estava prestes a praticar, e já sentia uma profunda tristeza pois havia ordenado a morte do homem que amava. Mas, na batalha entre o ódio e o amor, o ódio saiu-se vencedor naquela noite, pois seu último sentimento, antes do alvorecer, foi que Agathokles não poderia viver nem mais um dia, porque ela não suportava mais o martírio de sua tenebrosa beleza e sentia que, matando-o, poderia se libertar, por fim, do fardo de todos os seus problemas.

No entanto, sendo este o primeiro assassinato de Arsinoè Beta, ela não tinha noção do que lhe aconteceria, e menos ainda que, no que diz respeito a problemas, era apenas o começo.

Na manhã do Nono Daisios, o dia que havia marcado para ser o da morte de Agathokles, ainda restavam últimas dúvidas em Arsinoè Beta sobre se deveria ou não praticar aquele ato, e tentou se decidir recorrendo ao poder divinatório dos ossos, de modo que pudesse, talvez, dar paz ao seu atormentado coração e se certificar de que todos os augúrios lhe eram favoráveis.

A seu pedido, o sacerdote de Apolo ordenou que o cordeiro fosse levado para o altar, e o animal fazia muito barulho, debatendo-se para conseguir escapar dos braços do garoto que o carregava. Era um cordeiro com forte balido, mas não continuou a balir por muito tempo, já que os ritos gregos de praxe, nos sacrifícios, eram praticados com muita presteza, e o sangue jorrou na tigela, o cordeiro foi morto, e a carne extraída dos seus ossos.

O sacerdote de Apolo ergueu para o sol a omoplata, e entregou o osso ao vidente para o seu exame.

Se o osso fosse branco e os raios do sol o atravessassem, o significado seria extrema pobreza e infelicidade.

Se o osso apresentasse manchas negras em torno das bordas e uma única e pequena mancha escura no centro, seria o aviso de que ocorreria alguma tragédia.

Arsinoê Beta prendeu a respiração, quase impossibilitada de olhar, de tanta comoção, porque o sangue corria mais acelerado no seu corpo, pela expectativa de conhecer o futuro; mas prontamente recebeu a resposta à sua pergunta, e o osso tinha um brilho avermelhado em suas bordas, e também no centro, como tinha de ser, e os raios do sol brilharam através dele. Arsinoê sorriu então, um sorriso que não era da boca apenas, mas também dos olhos: significava que ela obteria o que desejava, fosse o que fosse.

Durante todo aquele dia, Arsinoê Beta cuidou de seus afazeres como se estivesse em meio a um sonho; seus membros tremiam. Tentou comer, mas esparramava a comida por causa do tremor de suas mãos. Tentou dormir a sesta, mas seu coração estava por demais acelerado. Estava agitada demais para fazer qualquer coisa que não fosse pensar no que estava prestes a acontecer.

Naquela noite, na hora de os candeeiros serem acendidos, Arsinoê Beta deu a ordem ao seu agente, o homem que talvez tenha sido ou não o seu filho, Ptolomaios — aquele que faria qualquer coisa que ela lhe mandasse, sem objetar — seu agente, em quem ela confiava — e ela pronunciou para ele uma única palavra, a palavra grega Ginestho, cuja tradução é Que seja feito!, ou Faça!

Muitas histórias foram contadas sobre o belo Agathokles da Trácia. Algumas diziam que Arsinoê Beta primeiramente tentou lhe dar o veneno que trouxera do Egito, mas que, tendo este passado 17 anos envolvido em papiro, havia perdido o seu poder, e não teve efeito sobre a saúde de Agathokles. Outros disseram que ela, efetivamente, lhe ofereceu veneno para comer, mas ele tinha o hábito de ingerir pequenas poções de arsênico, por anos, de modo a se tornar invulnerável a qualquer ação desse gênero, como aliás muitos príncipes faziam, naquela época de incertezas, sabendo muito bem que confiar em qualquer homem poderia lhes custar a vida.

Também foi dito que a própria Arsinoê tinha o hábito de ingerir pequenas poções de arsênico, pela mesma razão, e que essa seria a causa de seus acessos diários de vômito e do estarrecedor estado de sua saúde, nos últimos anos.

Seja como for, Arsinoê Beta escolheu uma noite quando Lisímaco e Lysandra se ausentaram do palácio para ir ao teatro, deu permissão às suas aias, escravas, servas e eunucos para ver a representação e ordens ao seu segundo filho para aplicar uma surra nos cães, de modo que o ruído do assassinato fosse abafado pelos latidos e que ninguém pudesse vir em socorro do condenado Agathokles, que permaneceu no palácio, usando-se contra ele o artifício de uma visita desse agente de Arsinoê Beta, que pode ou não ter sido o filho dela, Ptolomaios.

Alguns relatos então mencionam veneno; outros juram que os punhais entraram em ação. As histórias diferem nos detalhes, mas concordam num ponto, que é o assassinato do herdeiro do trono.

Ao ter a garganta seccionada, Agathokles guinchou como um porco, e seus guinchos pareciam ter se prolongado por horas, e o sangue escuro verteu-se de sua carne dourada, jorrando de muitos e muitos ferimentos, e inundou o chão de mosaicos e manchou o linho branco dos lençóis de sua cama de ouro. O corpo de Agathokles retorceu-se, revirou-se, debateu-se, e ele lutou, mesmo nu como estava, com seu atacante também nu, berrando, guinchando, gritando de raiva, e tudo estava escuro, muito escuro à sua volta, e ele não podia enxergar quem o atacava com uma adaga de bronze, mas sabia de quem se tratava. De fato, Agathokles conhecia o seu assassino, já que fora com satisfação que abrira a porta para ele. Que caíra na cama, num apertado abraço, com o homem que o matou. No fim, o corpo de Agathokles imobilizou-se, e a bruma da morte desceu sobre seus olhos, sendo que ele iniciava então a jornada que nenhum homem deseja, descendo para a Mansão de Hades, nas ocultas profundezas da terra.

Agathokles—Ah, sim! Foi o agente de Arsinoê Beta que decepou as extremidades desse que era o mais belo dos homens, que decepou, então, suas belas mãos, seus pés de pele lisa e acetinada, que o privou até mesmo de suas partes fundamentais e amarrou esses troféus sanguinolentos em torno do pescoço do homem morto e sob suas axilas, com cordão de papiro, para que ele carregasse o peso da culpa por seu próprio assassinato, de modo que o fantasma de Agathokles, seu ressentido fantasma, ficasse mutilado e portanto inofensivo. Foi esse agente de Arsinoê Beta que três vezes lambeu o sangue de Agathokles morto, e três vezes o cuspiu fora, como deve fazer todo assassino, e que limpou a sua adaga ensangüentada na cabeça de Agathokles, nos seus reluzentes cabelos louros e encaracolados, de modo a impedir o fantasma desse homem de segui-lo, para onde quer que ele fosse e para o resto de sua vida. E tenha esse agente sido ou não o filho de Arsinoê Beta, seu próprio filho, esse Ptolomaios naquela noite teve um espasmo de náusea e vomitou por tudo em volta, e derramou uma torrente de lágrimas que não cessou até o alvorecer, e qual outra razão disso se não que Ptolomaios fosse esse agente e tivesse acabado de matar justamente o homem que amava?

A despeito de todas as precauções, no entanto, a culpa pelo assassinato desabou pesadamente, e foi sobre a cabeça de Arsinoê Beta, não sobre seu filho. Ela havia matado o homem que amara tanto que chegara a odiar, e havia achado que matá-lo haveria de apagá-lo para sempre de seu íntimo. Mas, em verdade, já passara tantos dias e noites pensando nesse jovem que não havia maneiras de parar de pensar nele, agora que estava morto. De modo algum: tê-lo matado somente a fez pensar nele com ainda mais intensidade.

Quando Lysandra retornou para os seus aposentos, deixados às escuras, e escutou os cães latindo, pressentiu de imediato que alguma tragédia havia acontecido. Chamando aos gritos os escravos e pedindo luz, atravessou correndo os ambientes vazios, procurando por seu marido. Que infelicidade, haveria de ter pesadelos com essa noite medonha pelo resto de seus dias: com as paredes manchadas de sangue, o assoalho com sangue, seus lençóis rasgados e transformados numa pasta de sangue. Finalmente, chegou junto ao corpo de seu amo, uma retorcida mixórdia de membros, e lá estava ele, caído, com olhos frios e opacos, despido, e a lembrança de não ter estado ao seu lado quando ele exalara seu último suspiro atormentou Lysandra para sempre. Lysandra— seus gritos foram terríveis, diferentes das lamentações de pesar da maioria das mulheres gregas, porque havia amado esse seu marido tanto quanto Arsinoê Beta o amara, ou mais, e seu amor não era uma dissimulação, mas genuíno. Porque, sim, Eros teve muito, muito trabalho com as mulheres dessa família.

O primeiro pensamento de Lysandra foi que o assassinato teria sido obra de sua meia-irmã, já que ninguém mais no palácio poderia ter desejado que ocorresse um crime tão hediondo, a ponto de seu marido ter sido feito em pedaços, um homem que em toda a sua vida nunca pronunciara uma palavra raivosa. Assim, Lysandra enegreceu seu rosto, prontamente, e fugiu para o porto, disfarçada, e de algum modo conseguiu pegar um navio para a corte do rei Seleuco em Seleukheia, no norte da Síria, e tinha com ela suas crianças menores.

Com Lysandra, seguiu também Alexandros, filho de Lisímaco com sua concubina Odrisian, e os dois suplicaram a Seleuco que declarasse guerra a Lisímaco, como vingança contra o assassinato de Agathokles.

Arsinoê Beta? Ela riu sua risada mais aguda por ter conseguido realizar seus planos, e sua risada foi como a risada de uma mulher louca. Mas Arsinoê Beta não continuaria rindo por muito tempo.

Seu filho Ptolomaios? Sem dúvida, esse jovem estava coberto de um sangue espesso, que ele não poderia lavar. Sabe-se com certeza que tomou seis banhos seguidos naquela noite. Ele chorou e vomitou a noite inteira, e sua mãe anunciou que foi de pesar pela morte de seu tio Agathokles, a quem ele amava, o que era, em parte, a verdade. Ptolomaios recuperou-se. Depois de um ou dois dias começou a sorrir de novo. Os macedônios sempre dizem que o primeiro homem que se mata é o mais difícil. Não, não, Ptolomaios logo estaria sorrindo de novo: ele seria o próximo rei da Trácia.

Quanto a Arsinoê Beta, ela colocou sua adaga de bronze com a bainha de ouro, cravejada de pedras e ensangüentada, de volta no fundo de seu baú de jóias, e disse para o próximo assassinato.

 

                   O Sangue do Leitão

Assim que fitou os olhos inertes do cadáver de Agathokles, Arsinoê Beta desejou, de todo o coração, não ter feito o que fizera, e soube que jamais se livraria da imagem desse homem, caído sobre uma piscina de seu próprio sangue, seu lindo corpo mutilado e retorcido. Ela vomitou a última refeição que fizera quando viu o cadáver de Agathokles, e em verdade jamais conseguiria evitar vomitar tudo o que comesse, como se tivesse sido amaldiçoada a nunca mais conseguir segurar nada em seu estômago, o que seria, certamente, a pior das maldições que poderia cair sobre uma mulher ou sobre um homem.

Quando conseguia dormir — e não conseguia com freqüência —, era perturbada por pesadelos nos quais o falecido Agathokles a perseguia, sempre gotejando sangue, e tentava apertar as mãos em torno do pescoço dela, para esganá-la. Em suas horas de vigília, chegava a desejar jamais ter ordenado tal ato, e ainda assim, é claro, arrepender-se não adiantava nada; não havia nada no mundo que pudesse trazer o homem que matara de volta à vida, a não ser um milagre, mas era tarde demais para milagres.

O que de fato qualquer assassina poderia fazer, a não ser dirigir preces aos deuses da Grécia, suplicando perdão e misericórdia e um fim para o que parecia agora um sofrimento interminável? Mas as preces de Arsinoê Beta não tiveram resposta. Os deuses da Hélade não tomaram conhecimento de suas generosas ofertas e de seus sacrifícios diários, e ela jamais conheceria outro dia de paz para o resto de seus dias, já que o tormento prosseguiria até o dia em que ela também estivesse morta.

Com Agathokles morto, veio o problema imediato do que fazer com o corpo. Por um lado, o primeiro impulso de Arsinoê Beta foi entregar o cadáver aos cães e pássaros, para dele se fartarem, considerando que era tudo o que poderia merecer alguém que conspirara contra o pai e que desdenhara dos desejos de sua madrasta. Por outro lado, Lisímaco sentia que deveria cumprir suas obrigações paternas em relação a esse seu filho, não importando que crimes ele tivesse cometido, e disse à esposa que, não importando de que crimes Agathokles fosse culpado, precisava dar-lhe um sepultamento honrado, segundo os costumes gregos. Era, talvez, também desejo de Lisímaco fazer que sua esposa sofresse um pouco, pois havia sido idéia dela livrar-se de seu filho, e, em verdade, quando Lisímaco pôs seus olhos sobre o cadáver, não pôde evitar derramar lágrimas pelo que acontecera. A seguir, já tendo recuperado a razão, amaldiçoou-se por nada ter feito para impedir tal ato. E assim Lisímaco considerou que seria um bom procedimento dar a Agathokles um funeral com todos os ritos gregos.

Talvez seja mesmo melhor... Arsinoê murmurou, assustada só de pensar nesse funeral.

Mas que mulher, perguntou Lisímaco, vai conduzira lamentação pelo meu filho? Não será Nikaia, sua mãe, porque Nikaia está morta... Nem Lysandra, que fugiu... Nem Arsinoê Alfa, sua irmã, que está no Egito... Quem entoará o klama por Agathokles?, inquiriu, encarando Arsinoê Beta. E o cachorro dele rosnou para ela, então, como fazia havia vinte anos.

E Arsinoê permaneceu calada e imóvel, aterrorizada com o que ele lhe diria a seguir, e Lisímaco disse, de fato, exatamente aquilo que ela temia que ele dissesse: Sem dúvida, a tarefa de conduzira lamentação terá de ser desempenhada por você mesma.

E assim, de fato, a madrasta de Agathokles, a própria Arsinoê Beta, seria aquela a conduzir as lamentações, a mulher que iniciaria o pranto no funeral.

Mas como poderia Arsinoê Beta abrir as lamentações pelo homem que havia assassinado? E seu coração se revirava, no interior do peito, e o peso do que lhe estava reservado percorreu todo o seu corpo, dos pés à cabeça, só de pensar no que deveria fazer, pois jamais tinha imaginado que teria de chorar por esse homem que odiava, e teve medo de que as lágrimas não chegassem aos seus olhos, de tanto que enrijecera o coração contra esse homem.

Chegou o alvorecer do terceiro dia após o assassinato, o terrível dia em que o corpo precisaria ser cremado, e Arsinoê Beta não havia dormido um minuto sequer, mas ficara acordada, revirando-se no leito. Entretanto, no final, não foi uma coisa assim tão difícil para ela porque Arsinoê amava o belo Agathokles com um amor louco, que era amor genuíno, e um tal amor, um amor tão tremendo, tornou a lamentação fácil para ela, e o ódio desapareceu.

Na procissão até a pira funerária erguida para ele, até a praia, sentiu as pernas falharem, e sua cabeça girava, como se ela estivesse prestes a desmaiar, de tanta tensão, mas suas aias a ampararam, enquanto todas juntas entoavam as tristes canções, andando junto ao caixão no qual estava estendido o belo Agathokles, já tendo o seu cadáver sido lavado de todo o sangue, a não ser do que escorria de seu nariz e dos ouvidos, mas com o seu rosto lívido e gelado parecendo, se ainda possível, mais belo do que quando ele era vivo.

No início, Arsinoè sentiu como se a sua língua estivesse colada no céu da boca, como se a língua não a fosse obedecer, recusando-se a cantar uma nota sequer, mas então ela lançou um olhar sobre o rosto do morto e o gemido alto praticamente brotou de seus lábios, e pela primeira vez ela entoou uma canção sobre seu amor por Agathokles, sobre seu desesperado e impossível amor por ele, o qual jamais expressara em palavras, já que era um amor proibido, e, quando cantou, sua voz ressoou alta, aguda e bela na lamentação, como nada que ninguém ali junto dela houvesse escutado antes, num fluxo impossível de ser interrompido, e no começo tudo se encaixava muito bem, mas depois o significado das palavras se esvaneceu, de modo que Arsinoè entoou uma canção sem palavras, de pura dor, que foi mais bonita do que qualquer canção de lamentação que já se escutara: como a voz do rouxinol, até que a sua voz sumiu repentinamente, e a canção encerrou-se num murmúrio entrecortado de gemidos, um gralhar feito o de um corvo, e as aias a substituíram na canção e nos lamentos.

Por todo o tempo em que cantava, Arsinoè” Beta tocava a carne de bronze de Agathokles morto, pela primeira vez, sem censura, acariciando a pele macia e lisa de seus braços, cobertos de pêlos dourados, e correndo os dedos pelos seus cabelos louros como um campo de trigo maduro, e pousando as mãos sobre seu pescoço bronzeado, soluçando, dando-lhe cem beijos e derramando por ele uma torrente de lágrimas, isso porque pela primeira vez ela podia se comportar com Agathokles como se ele fosse seu amante, alguém que ela havia amado até a loucura, e ninguém saberia do quanto se sentia culpada, ninguém suspeitava do que estava escondendo, porque esse comportamento era o que se esperava e o que convinha à mulher que conduzia as lamentações no funeral de um homem.

E Ptolomaios de Telmessos? Ele não derramou lágrimas naquele dia. Já havia recuperado seu equilíbrio. Seria o rei daTrácia, sucedendo seu pai. Ficou lá, parado entre os demais homens, parecendo entristecido, remexendo a areia com os pés, olhos baixados para o chão, evitando os olhos da mãe.

Em verdade, o coração de ferro de Arsinoè Beta batia dentro do peito dela como se tivesse sido cortado em duas metades, e ela orava para que o impossível acontecesse — para que Agathokles se sentasse e sorrisse para ela, novamente vivo —, embora soubesse muito bem que ele era apenas um homem morto, e, por mais ardorosamente que alguém pudesse rezar aos deuses, na maioria das vezes o impossível não acontece.

E assim cremaram Agathokles da Trácia numa muralha de chamas e, quando a fogueira esfriou, Lisímaco obrigou a própria Arsinoè Beta a reunir os ossos, lavá-los em vinho doce e envolvê-los com tecidos púrpura macios, guardá-los dentro do larnax e carregá-los em suas próprias mãos para o túmulo e, durante todo o tempo, às suas costas, como se a vigiasse por sobre o ombro dela, Arsinoè sentia o fantasma de Agathokles, filho de Lisímaco, seguindo-a, acusando-a do ato que ela havia praticado.

Ela acreditava que a decepação das extremidades de um homem impediria seu espírito de aproximar-se dela, já que sabia que qualquer fantasma assombraria seu assassino por quanto teria durado a vida natural dele, o que a rainha calculara que seria algo em torno de cinqüenta anos, ou 18.250 dias e noites, exatamente, porque ele encontrara a morte quando tinha ainda em torno de 25 anos.

No entanto, o que aconteceu foi que o espírito de Agathokles perseguiria Arsinoè pelo resto da vida dela, e foi sua culpa que isso acontecesse e todos os que escutaram sua história, depois, concordaram que ela recebeu o castigo que merecia.

Quando as notícias sobre o príncipe Agathokles se tornaram públicas, os mais destacados cidadãos de Lysimakheia enviaram uma delegação para expressar seu pesar sincero pela morte de um general tão hábil, um príncipe tão bondoso, um homem tão bonito, que já não seria o rei deles.

Lisímaco retribuiu esse belo tributo permitindo-se massacrar aqueles que o haviam prestado, e correu a opinião de que ele era tão louco quanto a sua esposa.

O resultado desse infeliz banho de sangue foi que os sobreviventes e os oficiais do exército desertaram, todos eles, indo se reunir ao Rei Seleuco, da Síria, e instando-o a atacar o Rei Lisímaco, que era algo que já estava nas cogitações de Seleuco, por inveja da reputação de Lisímaco.

Ao mesmo tempo, Philatairos, o tesoureiro da fortuna de Lisímaco, chocado com o assassinato e tomado de suspeitas em relação a Arsinoè Beta, ocupou a cidade de Pergamon, em Kaiokos, e entregou-se, bem como o que restava do tesouro de Lisímaco, por meio de um arauto, a Seleuco.

Esse rei, então, marchou com suas tropas, invadindo a Kilikia e a Panfylia, e uma cidade após outra foram abrindo os seus portões para ele. No ano seguinte, Lisímaco não teve escolha senão contra-atacar, e a batalha que se seguiu seria o derradeiro embate entre Sucessores, os reis que haviam sido companheiros de armas de Alexandre.

Era agora a vez de Lysandra começar a conspirar. Sua irmã havia assassinado seu bem-amado marido, e ela não podia pensar senão em vingança.

Lysandra, certamente, mataria Arsinoè Beta, e a mataria, mais certamente ainda, com suas mãos nuas, se conseguisse se aproximar dela o bastante. No entanto, Arsinoè era esperta demais para permitir que algo assim acontecesse, e providenciara para receber proteção dia e noite de dúzias de seus mercenários.

Não, Lysandra teria sua vingança de um modo mais sutil. Acreditava que, se pudesse se vingar do assassinato, talvez Agathokles lhe aparecesse em sonhos, mas não mutilado nem coberto de sangue, e sim inteiro e sorridente, Assim, Lysandra executou contra a sua irmã todos os encantamentos gregos que conhecia, todos os encantamentos gregos para se apropriar da vida da vítima que foi capaz de recordar.

A princesa Lysandra não tornou a se casar, e recolheu-se ao gynaikeion em Seleukeia, na Pieria, onde dedicava seus dias a enfiar cravos em bonecos de cera da Arsinoè” Beta, e isso tornava mais fácil carregar o seu sofrimento.

Talvez tenha sido a magia de Lysandra que fez Arsinoè Beta ficar tão doente do estômago, e, certamente, a própria Arsinoè Beta estava convencida disso, tanto que, por seu lado, executou o contra-encantamento contra Lysandra, e ambas as irmãs usavam a magia aprendida de Berenice, a mais poderosa bruxa grega que se conheceu.

O final da história de Lysandra, ninguém no Egito chegou a conhecer, nem mesmo Thot, a não ser por supor que ela deve ter terminado por perder a sua sanidade, porque qual mulher passaria pelo que ela passou sem perdê-la? A última notícia chegada da Seleukeia sobre Lysandra foi que gastou toda as suas energias em sua fúria contra a irmã que antes amara. Depois, nada mais se soube sobre ela.

Quanto aos filhos pequenos de Lysandra e Agathokles, garotos de famílias reais sempre representariam uma ameaça à estabilidade, onde quer que estivessem, e se Seleuco poderia proteger os interesses de Lysandra enquanto vivesse, as coisas se modificariam após a sua morte.

Em questões tais como a sobrevivência de filhos homens de uma família real exilada, o mais sensato é pensar no pior.

A própria Arsinoê tomou todas as precauções, a despeito de haver meramente ordenado o assassinato. Ela seguiu os mesmos procedimentos estabelecidos por Zeus, que, ardentemente, sentia repulsa por se matar um homem, mas que teria satisfação em proteger uma assassina, se ela se arrependesse. E por isso Arsinoê se dedicou a executar os ritos pelos quais poderia ser perdoada se suplicasse por asilo no coração sagrado.

Ela tirou um filhote de porco ainda se amamentando de sua mãe, que deveria estar com as tetas ainda inchadas da amamentação.

Susteve o leitão, berrando e se debatendo, sob o seu braço esquerdo.

Cortou a garganta do leitão com uma faca.

Deixou o sangue se espalhar por suas mãos, e invocou Zeus, o Purificador, aquele que escuta com ouvidos solidários todas as preces dos assassinos.

E ela proferiu as preces a Zeus, na esperança de que ele obrigasse as inclementes Fúrias a deixá-la em paz e de que Zeus, mais uma vez, sorrisse para ela. Mas, mesmo tendo oferecido as preces apropriadas, ela acreditou que Zeus jamais sorrira para ela, e começou a pensar que ele jamais o faria.

Nesse assunto, talvez Arsinoê Beta estivesse certa, isso porque as Fúrias, essas três Filhas do Nilo, vestidas de negro, tendo serpentes como cabelos, cujo propósito é tirar vingança pelos que são culpados de derramamento de sangue, não a deixaram e jamais a deixariam em paz, e no que toca a essa questão, todo o cerimonial com o leitão foi uma sanguinolenta perda de tempo.

              

             Arsinoè, Dura Como Garras

Arsinoê Beta tentou voltar à sua vida normal, comportando-se como se nada houvesse acontecido, como se ela não tivesse cometido um assassinato e tampouco fosse, em qualquer sentido, responsável pela morte de um homem inocente: mas isso, é claro, se mostrou impossível para ela, e a vida de Arsinoê Beta nunca retornou ao seu normal, mas repleta de estranhos pensamentos e visualizações e de intrigantes acessos de lágrimas.

Quanto às suas relações com seu marido, o rei Lisímaco, correram murmúrios de que ele tinha plena ciência do que Arsinoê havia feito com Agathokles, já que as pessoas que moravam no palácio de Lysimakheia eram as mais espionadas entre todas as viventes. Mas diziam também que no final da sua vida Lisímaco nada mais tinha de seu, porque havia entregue suas últimas posses à sua mulher, a assassina: não apenas cidades e possessões, mas também suas riquezas em barras de ouro, pepitas e tudo o que tinha em dracmas e talentos.

A terrível Arsinoê Beta, assim diziam, subtraiu de seu idoso marido tudo o que pôde, reduzindo-o à condição de mendigo.

Ou pior, ou por causa disso, ou por causa dela, os amigos dele o abandonaram e se tornaram seus inimigos.

O fim de Lisímaco da Trácia logo chegou, embora ele não tenha morrido de idade ou decrepitude, mas em batalha, como resultado da guerra que agora eclodira contra Seleuco da Síria. Na gloriosa juventude, esses dois heróis haviam marchado junto com Alexandre. Agora eram homens velhos, com os cabelos prateados: Seleuco tinha 77 anos, e Lisímaco, 74, mas ambos ainda se sentiam imbuídos plenamente do ardor da juventude, ambos tinham a sua insaciável avidez pelo poder. Os dois juntos tinham nas mãos a maior parte do mundo grego, e ainda queriam mais.

Em Koroupedion, perto da cidade de Magnésia-no-Sipylos, na Lídia, os dois reis lançaram seus exércitos um contra o outro, em batalha, e esse era exatamente o lugar onde, de acordo com a tradição, fora realizado o banquete oferecido aos deuses por Tanatos, no qual Pélops fora feito em pedaços e colocado na sopa, e era isso que Seleuco ameaçava agora fazer com Lisímaco.

Embora dezenas de milhares de soldados se defrontassem, não era intenção desses reis que seus exércitos resolvessem a disputa, já que insistiram em travar, apenas os dois, um combate singular diante de suas tropas reunidas. Primeiro, espada contra espada, depois com a espada curta, depois as adagas, por último com as mãos nuas, eles golpearam e rasgaram um ao outro, trocando gritos, e ambos os exércitos, imóveis, guardavam silêncio, como se mantivessem presa a respiração, enquanto o destino de metade do mundo estava sendo decidido. Então, rugiram e entoaram cânticos, cada exército incentivando o seu líder, até que, ao final, somente um dos homens idosos permanecia de pé, e o rei que brandiu a sua espada no ar em resposta à saudação de suas tropas foi Seleuco, já que Lisímaco estava estirado sobre o solo, com a terra sob o seu corpo tornando-se escarlate.

Por alguma razão, o corpo desse rei não foi recolhido para que lhe fosse dado funeral — talvez porque seus homens tenham fugido —, e assim ficou onde caiu, por alguns dias, e contou-se a história de que Cauda-de-Fogo, o cão de Lisímaco, recusou-se a deixar o seu dono e permaneceu no campo de batalha, uivando, até morrer de fome, o único que o velou.

Quanto a Seleuco, ele comemorou muito e foi para a Macedônia, para reclamar para a Síria os despejos da vitória. No entanto, em sua satisfação, Seleuco perdeu a cautela, tornando-se falastrão, e chegou mesmo a dizer: Esta não é a conquista de um mortal, mas o presente dos deuses. Mas embora já idoso e sábio que fosse, desconhecia o futuro e que logo ele próprio se tornaria um exemplo da fragilidade da condição humana.

Quanto a Thot, que tudo sabe, Thot pergunta: Qual foi a verdade? E o que não foi verdade? Isso porque num diferente relato de Korupedion não há uma única palavra sobre um combate entre os dois reis, mas afirma-se que Lisímaco foi morto por Malacon, de Pontike-Heracléia, um soldado do exército de Seleuco, que o abateu com um escudo.

Ninguém, pelo menos, contradiz que Lisímaco tenha sido morto. Mas quem deveria sucedê-lo? Este desafortunado homem sepultou, vítimas de epidemia, sarampo, natimortos, paralisação das entranhas e outras causas de óbito, algo em torno de 15 de seus rebentos. Agathokles, seu filho e herdeiro, já estava morto. Agora, Lisímaco também morria, e era o fim do reinado da Casa de Lisímaco sobre a Trácia, e todos os seus sonhos de fundar uma dinastia que durasse para sempre foram carregados pelo vento.

Também foi dito que Ptolomeu Keraunos, o famoso Raio, que se encontrava lutando no exército de Lisímaco, foi feito prisioneiro em Korupedion, por Seleuco, que lhe demonstrou toda a gentileza, lembrando que o pai de Keraunos, Ptolomeu Soter, havia demonstrado grande generosidade em relação a ele, quando fora refém em Alexandria, anos antes. Assim, é claro, esses dois já se conheciam havia muito tempo, desde quando Keraunos não era mais do que um garoto.

Arsinoê Beta, a rainha, aguardou pelas notícias sobre o desfecho da Batalha de Korupedion, na cidade próxima de Efesos, ou Arsinoéia, a qual era possessão sua. Quando tomou conhecimento das notícias, e eram as piores possíveis — que seu marido estava morto e que os exércitos da Trácia haviam sido derrotados —, não derramou sequer uma lágrima. Não rasgou seu peplos, não exibiu seus seios nem bateu neles com os punhos, em sinal de dor. Não se lamentou aos uivos, nem executou os ritos funerários daquele homem que ela não amava, mas pôs em ação o plano que tinha para sua própria sobrevivência, já que para ela essa era a coisa mais importante.

Tudo estava terminado para Arsinoê Beta na Trácia, agora, e ela deveria pensar primeiro na própria segurança, já que, das tropas de Lisímaco, todos os homens haviam desertado, transferindo-se para o acampamento de Seleuco, e assim ela já não estava segura nem mesmo em sua própria cidade, mas temia que até ela fosse executada; e assim se pôs a trabalhar em sua fuga.

Não obstante as circunstâncias, para um grego, deixar de realizar os ritos funerários era o mais grave crime contra os deuses que poderia cometer qualquer homem ou mulher.

Thot pergunta: Seria Arsinoê Beta uma mulher a quem faltasse todo sentimento humano, exceto, talvez, a luxúria? Era o que pensavam alguns; alguns chegaram mesmo a expressar esse pensamento. Thot registrará o Julgamento dos Deuses, quando o coração dessa rainha for pesado na Balança contra a Pena de Maat, a Pena da Verdade. Não cabe aos humanos julgar os mortos.

Mas o que fez Arsinoê Beta? Quando Menekrates, o comandante selêucida, tomou Efesos e ordenou que essa rainha fosse caçada e passada no fio da espada, e quando as tropas atravessaram as ruas, na escuridão, procurando-a, e não havia nenhum ruído ressoando nessa cidade, a não ser o ruído de passos apressados e de botas dos soldados de Seleuco, Arsinoê não tinha muita escolha senão fugir o mais depressa que pôde. Pensou então nas prudentes palavras de Berenice, e vestiu uma de suas leais aias com as vestes púrpuras da realeza, e fez com que essa mulher trêmula se pusesse em sua cadeira em seu octoforos, sua liteira, e despachou esse veículo carregado por oito homens para o porto com ordens de correrem.

Arsinoê Beta então tomou fuligem do braseiro e passou no rosto, vestiu trajes rasgados e sujos de mendiga e, descalça, deslizou sorrateiramente pelas ruas já ocupadas pelas tropas sírias, que pilhavam e queimavam, e estupravam todas as mulheres em que podiam pôr as mãos, e o tempo todo caçando Arsinoê Beta; no entanto, nesse disfarce, ela conseguiu alcançar o porto de Éfeso, onde um de seus próprios navios estava ancorado, pronto para partir para a Macedônia.

De fato, era uma grande vantagem ser tão forte, tão enrijecida como essa Arsinoê Beta, que não pensou em nada senão em salvar a si mesma, à custa de sua aia, que, é claro, foi trucidada assim que foi vista, cortada em pedaços pelos homens de Seleuco. Arsinoê Beta — não era ela mais dura do que qualquer dureza, dura como ferro? Sim, era, e era uma boa coisa ser dura como ferro, até que um magneto como Agathokles passasse por perto, quando então Arsinoê Beta seria atraída. Já acontecera uma vez, duas, e aconteceria ainda uma terceira vez, isso porque os seus deuses ainda não haviam terminado de brincar com Arsinoê Beta.

Mas o que fez essa que era a mais dura das mulheres? Ela ainda possuía sua presença de espírito, no que dizia respeito à sua riqueza, e não havia perdido suas habilidades organizadoras, que lhe permitiram levar consigo os imensos tesouros que reunira na Trácia, e seus três filhos também: Ptolomaios, Felipe e Lisímaco, a quem chamavam Mikros, para distingui-lo do seu pai. Essa infeliz família, agora, pegava um navio em Cassandréia, outra das cidades que pertenciam à rainha, e se lançava na travessia do Mar Egeu, até a península Calcídica, a oeste, não muito longe de Pella, que era a mais rica cidade da Macedônia, um lugar onde o marido de Arsinoè era cultuado com honras de divindade, mesmo em vida. A posição de Cassandréia, num estreito istmo de terra, facilitava a sua defesa, e Arsinoè Beta planejava entrincheirarse nessa cidadela e lutar contra todos os seus inimigos.

Thot pergunta: Como poderia essa Arsinoè, uma mera mulher, conseguir tais coisas? Mas a resposta é que ela era uma mulher de grande riqueza e poder pessoais e era a filha do seu pai, uma autêntica herdeira de Ptolomeu Soter, e Thot insiste: era esperta como uma raposa fêmea. Sua riqueza significava que, para ela, contratar soldados mercenários, às dezenas de milhares, era tão fácil quanto comprar uma fôrma de pão. Ter um navio já pronto para empreender a sua fuga de Éfesos era meramente o tipo de cautela que essa rainha estava acostumada a tomar. Arsinoè Beta não apenas era plenamente capaz de tomar conta de si mesma quanto mais esperta do que todas as outras mulheres e do que a maioria dos homens, além de ser modelo e exemplo para todas as mulheres da Casa de Ptolomeu que se seguiram a ela. Isso porque aprendera com Berenice, sua mãe, como sobreviver, e a grande lição de sua mãe é que uma mulher nunca desiste de tentar, nunca perde as esperanças, nunca aceita a derrota, e sim prossegue sempre lutando.

Em verdade, essa mulher tinha o gume da faca que transforma um escravo em eunuco.

Acima de tudo, ocupava os pensamentos de Arsinoè Beta a questão do que fazer quanto ao reino da Trácia. O mais natural seria providenciar para que seu filho mais velho, Ptolomaios, fosse proclamado rei, e isso imediatamente, e fazer de si mesma regente, já que o garoto, com cerca de 17 anos de idade, era privado de toda a sabedoria e experiência necessária para ser o soberano, sem tutela, de uma nação em meio a uma crise tão grave.

Tornar-se regente significaria que Arsinoè Beta poderia manter-se no poder, mas, por ora, nada fez, coisa alguma, a não ser aguardar para ver o que aconteceria.

Thot pergunta: Qual a razão disso? E a resposta foi que, em verdade, nenhum grego faz coisa alguma sem primeiro descobrir qual é a vontade de seus deuses. Não, eles sequer saem pela porta de suas casas sem consultar os bons e maus augúrios dos deuses. Arsinoè Beta fez uma pausa, então, porque primeiro deveria pedir orientação aos oráculos. Executou então seus encantamentos divinatórios. Passou longas horas com Lisímaco, seu filho mais novo, obrigando-o a olhar dentro da tigela de água com óleo flutuando em sua superfície, para que ele lhe dissesse o que estava vendo em relação ao futuro. Interrogou seus videntes sobre o vôo dos pássaros e o aspecto das entranhas dos animais sacrificados. Mas, apesar de muitas tentativas, não conseguiu obter um sinal favorável para o que desejava fazer, e a verdade era que seus pensamentos continuavam perturbados pelo assassinato de Agathokles, cujo fantasma, sempre presente, acabava com o seu sono, e além disso ela era seguida, para qualquer lugar que fosse, pelas três mulheres vestidas de negro, cujos cabelos não eram cabelos, mas serpentes.

Embora fosse bastante forte, Arsinoê Beta não era um homem nem um strategos e não tinha a experiência prática da guerra, e embora pudesse estar presente, em sua montaria, nas batalhas, isso era bem diferente de ter milhares de soldados mercenários recebendo ordens de uma mera mulher. Não, ela via necessidade de um homem forte para reinar sobre a Trácia, um homem forte que pudesse, também, ser seu marido — e dessa vez ela própria o escolheria. Mas, no momento, não via nenhum homem com a força suficiente para agradá-la, e ao mesmo tempo que fosse jovem o bastante, porque, sem dúvida, já havia tido o quanto bastava de velhos.

No momento, Arsinoê Beta tentava garantir os tronos vagos da Trácia e da Macedônia para o seu filho, Ptolomaios. Mas, ao fazer isso, acabou por atrair a atenção do homem forte que era Ptolomeu Keraunos.

Assim, terminou que tudo para Arsinoê Beta redundou num enorme tumulto, como se um terremoto estivesse de novo sobre ela, com a mobília correndo o assoalho, inteiramente solta, e todos gritando, incluindo ela mesma, além da fumaça por toda a parte, e poeira, pedras, destroços — exceto que o terremoto não estremecia sua casa, nem seu palácio, mas sim a sua vida, agora caindo aos pedaços.

 

                           Keraunos Mata

O que então estivera fazendo Ptolomeu Keraunos, esse tempo todo, a não ser, talvez, tentando se tornar rei do Egito? Depois da Batalha de Korupedion, tornou-se prisioneiro de Seleuco, que sempre o tratou com bondade, franqueando-lhe todo o vinho que ele fosse capaz de beber, assim como comida e todas as melhores coisas que o filho de um falecido rei do Egito mereceria. Mas não aprisionou Keraunos numa jaula, como o desafortunado Demétrio Poliorketes. De modo algum: Keraunos era amigo de Seleuco, e não seu inimigo.

No entanto, Seleuco já não tinha rival nenhum para o supremo comando que pertencera a Alexandre, e toda a Ásia havia caído em suas mãos, com o que então ele pretendia relaxar e aproveitar suas realizações.

Para Ptolomeu Mikros, o novo Faraó do Egito, a situação parecia bastante grave, porque escutara que o seu meio-irmão Keraunos ainda habitava a corte de Seleuco e tudo indicava que Seleuco apoiaria Keraunos em sua reivindicação do trono do Egito. Assim, esse novo rei Ptolomeu começou o seu reino já temeroso de que a coroa em breve lhe fosse tomada.

Mikros, nessa época, não fazia nada a não ser aguardar para ver o que aconteceria a seguir — muito parecido com a postura que sua irmã de pai e mãe, Arsinoê Beta, adotara em Cassandréia. Mikros não havia tomado partido na Batalha de Korupedion, mostrando-se, a despeito de seu nome, mais avesso à guerra ainda, mas acompanhava os recentes desdobramentos do episódio com sobressalto. Passava as noites acordado, assim como acontecia ao seu pai, como se tivesse herdado a insônia de Soter, juntamente com o seu reino, mas se recusava a adotar a dieta de carne de rouxinol. Durante o dia, enviava consultas ao oráculo de Zeus-Amon, na Líbia, para descobrir do deus o que deveria fazer. Todos os seus sonhos eram submetidos à interpretação dos oniroscopistas. Passava horas buscando descobrir o que aconteceria no futuro, Mas Mikros sempre acabava por concluir que o mais fácil seria não fazer coisa alguma. Finalmente, no entanto, ele deu ordens para que o Egito se preparasse para repelir uma invasão e, quando pensou no quanto seu reinado no Egito havia sido curto, chorou, isso porque se havia uma certeza, nesses tempos incertos, era que as tropas de Seleuco e Keraunos, reunidas, poderiam derrotá-lo.

O rei Seleuco da Síria, no entanto, não sonhava em nada mais violento do que fazer sua jornada para a Macedônia, retornando à terra natal, de modo a poder desfrutar de uma aposentadoria pacífica. Ele de fato não pensava em se envolver em nenhuma outra guerra. Não tinha realmente o desejo de se dar ao trabalho de invadir o Egito, que, notoriamente, era uma empreitada difícil, perigosa e dispendiosa, como o descobriram Antígonos Caolho, Demétrio Poliorketes e Perdikkas. Seleuco não queria desperdiçar tanto de suas energias numa luta para que o destemperado, volátil e inconfiável Raio se tornasse o rei do Egito.

Seleuco havia observado Keraunos, quando garoto, no período em que passou meses aguardando ser restaurado como sátrapa da Babilônia, e conhecia Keraunos mais do que a maioria dos homens. Certamente, ele gostava de Keraunos, mas não confiava nele, e suas suspeitas eram justificadas. Seleuco percebeu, como todos os demais — à exceção de Demétrio de Faleron —, que Keraunos não seria um bom governante e que, se por acaso se tornasse rei, não ocasionaria senão problemas para todo mundo, porque, verdade seja dita, Keraunos nunca tinha noção do que fazia e nunca pensava no que estava fazendo, mas se comportava em todos os aspectos como um porco entre as rosas, investindo às cegas, causando estragos. Faltava a Keraunos toda e qualquer previdência, faltava-lhe imaginação.

Seleuco então mandou seus mais calorosos cumprimentos a Ptolomeu Mikros, no Egito, e expressou a opinião de que ele, Mikros, seria o melhor herdeiro para o Egito, e lhe comunicou que não iria lutar em apoio a Keraunos. De fato, ele escreveu, Keraunos é nosso amigo, mas Mikros é ainda mais amigo.

O velho Seleuco, então, cometeu o que talvez tenha sido o seu pior erro, o mais tolo de toda a sua vida, porque confidenciou a Ptolomeu Keraunos seus desejos íntimos.

Vamos retornar para a nossa terra natal, a Macedônia, disse Seleuco. Já somos velhos demais para lutar mais uma guerra, E percebeu o rosto de Keraunos se tornando muito semelhante a um trovão. Não temos forças restando para lutar em favor de um jovem, ele disse. Keraunos vai ter de lutar suas próprias batalhas.

O rosto do Raio expressou toda a sua amarga decepção, seguida por um espetáculo de berros, ali mesmo no palácio de Seleuco, com os quais Keraunos disse ao velho o que pensava dele, desse rei que era o soberano de toda a Ásia, senhor da metade do mundo e o maior entre todos os Sucessores de Alexandre (depois de Ptolomeu). Mas os gritos de Keraunos apenas serviram para confirmar a opinião de Seleuco. Você não tem modos que convenham a um monarca. E é por isso que você não é agora o rei do Egito, ele disse.

Os berros e insultos aumentaram de tom, até que Keraunos começou a enfiar o dedo no peito de Seleuco — o rei Seleuco —, e seus berros soavam como os de um lunático, e os guardas agarraram seus braços porque ele já respirava pesadamente, e o carregaram dali, fazendo-o andar de costas, antes que agredisse o rei Seleuco.

Trancado numa despensa, onde passou a noite isolado, Keraunos remoía, tinha acessos de fúria, mas, quando o deixaram sair, não providenciou sua partida da corte de Seleuco, e Seleuco não expulsou Keraunos, mas deixou esse louco vivendo sob o seu teto, como antes. A única diferença era que não se mencionava coisa alguma sobre o Egito.

Keraunos acalmou-se um pouco. Não levantava mais a voz. Não dava mostras de seu mau gênio em público. Mas começou a alimentar um profundo ódio pelo rei da Síria, demonstrando as mesmas violentas oscilações em suas emoções que a sua meia-irmã, Arsinoê Beta, havia sentido em relação ao belo Agathokles.

Agora era Keraunos que não conseguia conciliar o sono à noite, e permanecia acordado, irritado, resmungando para si mesmo, obcecado sobre como conseguiria reaver o trono do Egito, seu por direito, e se tornar um rei. Ele se ressentia, acima de tudo, do fato de Seleuco ter prometido ajudá-lo e empenhado solenemente a sua palavra, e chegou por fim à conclusão de que havia uma única coisa a ser feita a respeito da perfídia de Seleuco, sobre a traição de Seleuco em relação à sua causa, e foi assim que, com uma expressão impiedosa no rosto, seu coração decidiu que deveria matá-lo.

No verão do ano em que Ptolomeu Keraunos completava 38 anos, Seleuco atravessou o Helesponto, rumo à Europa, e Ptolomeu Keraunos ainda marchava ao seu lado, ainda se beneficiando da liberalidade com que lhe concedia vinho à vontade, e agora rindo e trocando gracejos com Seleuco, como se nada houvesse se interposto entre os dois e continuassem, portanto, amigos como sempre foram — dando toda a aparência de ser seu devotado aliado, como se houvesse esquecido a maneira infeliz como Seleuco o havia desapontado.

A maior parte da falange de Seleuco estava aquartelada na cidade que fora de Arsinoê, Lysimakheia. Não muito longe, na Khersonesos-Trácia, mas a alguma distância da rota militar, existia uma tosca pilha de rochas chamada Argos, cuja tradição dizia que era o altar erguido pelos famosos Argonautas, ou pelo hóspede de Agamênon, ou em memória dos mortos na Guerra de Tróia.

Fosse o que fosse, essa pilha de rochas era velha, e Seleuco, sempre curioso sobre a gloriosa história dos gregos, dirigiu seu cavalo para fora da estrada de modo a ver esse assim chamado altar dos Argonautas, e somente uns poucos de seus guarda-costas pessoais o acompanharam, um dos quais foi Ptolomeu Keraunos, que mantinha a posse de sua espada, e além disso envergava armamento completo, já que era o filho de um rei e amigo de Seleuco, a quem acompanhava para protegê-lo.

Quando Seleuco desmontou de seu cavalo e se curvou para examinar o antigo monumento, como também para escutar a história contada pelo guia local, Ptolomeu Keraunos estava bem próximo, junto ao rei, seu idoso benfeitor, seu amigo, e foi então que puxou a cabeça desse homem pelos cabelos, com sua mão esquerda, e vergou-a para trás, e com uma faca de caça em sua mão direita cortou a garganta desse rei de um ouvido ao outro.

O sangue de Seleuco jorrou fartamente, cobrindo os braços e o rosto de Keraunos, que ficou de pé junto à sua vítima, que se esvaía em grunhidos, como se fosse um animal selvagem, e Keraunos exibia seus dentes numa risada feroz, como se dissesse que qualquer um que ousasse vingar esse crime teria a mesma sorte.

Sim, Seleuco ficou caído no solo, e Keraunos atravessou-o várias vezes com a sua espada curta, seu kopis, para se assegurar de que o ancião estivesse morto, para se certificar de que ele não retornaria à vida para acusá-lo do crime; e suas sandálias ficaram mergulhadas na poça do sangue ainda vivo de Seleuco, embora Keraunos não se apercebesse disso.

Tendo executado esse assassinato que planejara havia tanto tempo, Keraunos arrebatou o diadema, a faixa de tecido branco que era o símbolo da realeza, da cabeça do homem idoso e a atou, mesmo ensangüentada como estava, em torno de sua própria cabeça. Então, saltou para a sela do seu cavalo e galopou de volta para o acampamento de Lysimakheia, com a guarda real escoltando-o, e ele emitia berros de alegria enquanto galopava, como se fosse um idiota, e fazia seu cavalo rodopiar, dançar e executar truques, pelo caminho, sem que o sorriso largo, bem aberto e forçado, jamais abandonasse seu rosto.

Keraunos fez soar o sino de alarme, no acampamento, reunindo as tropas e se dirigindo a elas aos gritos: O rei está morto... Seleuco não é mais o rei... E sugeriu que havia apenas um homem que poderia se tornar rei, e que seria ele mesmo.

O exército, tomado de surpresa, e temeroso a respeito do que Keraunos poderia fazer se demonstrasse que não desejava que ele se tornasse rei, e com medo de que ele pudesse até mesmo ordenar um massacre, não teve escolha senão se colocar sob suas ordens. Assim, os soldados prontamente o elegeram como rei da Macedônia pela usual exibição das mãos. Então, carregaram-no sobre os ombros por toda a volta do acampamento, saudando-o, como se não soubessem que haviam eleito um assassino; como se nada sentissem pela morte do velho Seleuco. Mas, em verdade, aqueles homens estavam fascinados por esse homem jovem e forte, que possuía mais fogo em si do que o idoso Seleuco, e eram, pelo menos a maioria deles, soldados mercenários, tão endurecidos pela guerra incessante que já não se importavam muito com quem fosse o rei, contanto que pagasse seus soldos. Seja como for, Keraunos, que bem sabia que tais homens trocariam de lado e jurariam fidelidade para sempre para qualquer que fosse o general que lhes oferecesse mais dinheiro, de imediato triplicou o soldo diário, de quatro óbolos para doze, e essa foi a primeira razão por que ergueram suas mãos e o aclamaram aos gritos.

Ptolomeu Keraunos, assim, tornou-se rei, e seu plano era invadir o Egito, com o exército de Seleuco seguindo suas ordens, e derrubar o seu meio-irmão, Ptolomeu Mikros, do trono, tornando-se rei do Egito, no lugar de Mikros. Porque, assim como sua meia-irmã Arsinoê Beta tinha um incontrolável desejo por se tornar rainha, também Ptolomeu ardia por se tornar rei, e era instado pelo ressentimento da injustiça que fora cometida contra ele, já que clamava que o Egito era seu por direito, como filho legítimo mais velho de seu pai.

Todos esses belos planos, no entanto, deram em nada, porque Antíocos, filho de Seleuco, se apressou a se apresentar para vingar o assassinato do seu pai logo que soube da notícia, e se Keraunos queria marchar para o Egito atravessando a Síria, bem, isso lhe seria impossível, porque precisaria cruzar o exato centro do ex-reino de Seleuco, onde a população inteira fervia de raiva, ansiosa para punir o assassino do seu rei, querendo mais do que tudo rasgar sua carne em pedaços e pendurá-lo ao sol para que os corvos vazassem seus olhos.

E, se Keraunos quisesse tomar uma outra rota para o Egito, e fosse por mar, bem, também não poderia fazer isso, porque precisaria atravessar a frota de Mikros, seu meio-irmão, que era o absoluto senhor dos mares. Além do mais, Keraunos não possuía navios de guerra, nem ao menos um único navio de carga, à sua disposição, nem um sequer.

O que, então, fez Keraunos? Se não podia pôr as suas mãos no Egito, por enquanto, agarraria em vez disso o trono da Trácia, que acontecia de estar vago no momento, por causa da morte de Lisímaco. Assim, virou o rosto na direção da Macedônia e tentou cunhar para si um trono europeu.

Não, ele não poderia ainda ser rei do Egito. Mas, nesse ínterim, seria rei de outro lugar. Ele, assim pensava, nascera para ser rei. Tinha de fato total ansiedade de se tornar rei de onde quer que fosse.

Seja como for, foi assim que terminou a vida de Seleuco Nicator, o Conquistador. Ele marchara com Alexandre. Fora Sátrapa da Babilônia. Fundou grandes cidades, como Antiokheia e Sekeukeia, no Tigre. Era, em verdade, o maior de todos os reis (excetuando-se Ptolomeu) entre os reis que sucederam a Alexandre.

De um lado, o mundo grego inteiro, como se poderia esperar, amaldiçoou Ptolomeu Keraunos por ter mandado para o Hades o homem que lhe havia concedido generosa hospitalidade num momento em que o jovem não dispunha sequer de um lar. E o mundo grego inteiro louvava Seleuco como um monarca de sentimentos religiosos e altíssimo nível. Por outro lado, não teria sido o assassinato de Seleuco uma vingança de Keraunos pela morte do marido de sua irmã, Demétrio Poliorketes, seu cunhado? Talvez, embora Keraunos e Poliorketes jamais tivessem se encontrado, a não ser uma única vez, na Batalha de Salamina, quando Poliorketes aprisionara toda a família de Ptolomeu.

Na ocasião em que Seleuco encontrou seu fim, havia três homens disputando a primazia sobre a Macedônia: o próprio Keraunos, Antígonos Gonatas, o Rótula, filho de Poliorketes, e Ptolomaios (de Telmessos), que navegara com sua mãe, Arsinoê Beta, para Cassandréia e que também almejava se tornar rei.

As histórias que chegaram ao Egito, trazidas pelos barcos de pescadores, confundiam-se sobre o desdobramento dos acontecimentos.

Primeiro, houve notícias sobre uma batalha naval entre o Raio e o Rótula, na qual o Rótula fora esmagado, mas que não poderiam ser verdadeiras já que o Raio não tinha navios de guerra.

Segundo, houve alguns boatos sobre um tratado de paz entre o Rótula e o Raio, que parecia pouco provável, porque era notório que Keraunos preferia a guerra à paz.

Terceiro, houve rumores sobre uma batalha em larga escala entre Keraunos e o jovem Ptolomaios, que supostamente recebera ajuda de um certo Monounios, um chefe ilírio.

E então espalhou-se uma história que contava que Keraunos havia se casado com sua meia-irmã, Arsinoê Beta, o que todos em Alexandria descartaram desdenhosamente como uma história impossível, porque tal coisa seria um insulto aos deuses da Grécia, uma afronta à natureza, e algo que nem mesmo Ptolomeu, o Raio, ousaria fazer.

Mas era exatamente isso o que planejava Keraunos, e a verdade era que esse homem não poderia ser mais indiferente à possibilidade de um casamento entre um irmão e uma irmã ofender a sensibilidade dos deuses da Grécia.

Não, Keraunos circulava dizendo muito abertamente: Vou fazer o que bem entender. Vou fazer o que mais me agradar. Ninguém pode dizer a Ptolomeu, o Raio, o que ele deve e o que ele não deve fazer, ninguém, seja mortal ou deus.

                         Carne de Irmã

Thot diz: Que sentimentos acalentava Keraunos? O que achava que estava fazendo, quando propôs casamento à sua meia-irmã?

Thot responde: No seu íntimo, pensava que estava ganhando, com ela, três filhos, os filhos de Lisímaco. Se pudesse adotar esses garotos, que passariam a ser seus filhos, eles não se voltariam, nem poderiam se voltar, contra ele, por respeito à sua condição, pelo menos nominalmente, de pai. E, não, não se oporiam a que Keraunos tomasse a Trácia para si.

O Raio escreveu então uma carta ao rei Ptolomeu Mikros, seu meioirmão, afirmando que estava deixando de lado sua raiva por haver perdido o Egito. Dava sua palavra que não mais tentaria se tornar rei do país, já que, de maneira mais honrada, segundo disse, ganhara, de Seleuco, o trono da Macedônia, que fora inimigo de seu pai.

Keraunos contou a Mikros que todos lhe diziam que ele era um ótimo Faraó, tentando com isso fazer as pazes entre ele e Mikros, já que temia que Mikros se juntasse às forças de Antígonos Gonatas, ou de Antíocos, filho de Seleuco. E Keraunos não tinha nenhuma necessidade de um terceiro inimigo.

Thot diz: Quais seriam os pensamentos de Ptolomeu Keraunos nesses dias de incerteza?

Pensava Keraunos: Chega de Seleuco, chega do passado... Keraunos é o futuro. E ele pensava em sua irmã, a assassina Arsinoê Beta, a viúva que estava imobilizada em sua cidadela, Cassandréia, com uma pilha de octodracmas de ouro, milhares e milhares de talentos, mais riqueza portanto do que ela saberia como gastar.

Keraunos, então, sempre uma pessoa para agir primeiro e pensar nas conseqüências depois, mandou a carta fatídica a sua irmã, dizendo, entre outras coisas:

Terei toda satisfação em torná-la a minha da Macedônia...

Terei muita satisfação em adotar seus pobres filhos sem pai, como se fossem meus...

Terei todo prazer do mundo em assegurar o Trono da Macedônia (após a minha morte) para o mais velho dos seus filhos, Príncipe Ptolomaios.

O que me diz sobre tudo isso?

Isso porque sabia muito bem que Arsinoè Beta não teria condições de recusar sua proposta.

Keraunos, então, como um novo Alexandre, levou suas torres de cerco e engenhos de guerra até as muralhas da cidade de sua irmã, sitiou Cassandréia com seu exército de soldados mercenários pagos com soldo triplo e se preparou para aguardar até que ela morresse de fome.

No entanto, em verdade Keraunos não tinha nem a paciência nem o gênio de Alexandre, e logo se fartou de ficar sentado esperando, dia após dia, sem fazer nada, até que a irmã se rendesse ou aceitasse sua proposta de casamento. A seguir, experimentou arremessar enormes rochas, areia fervente e peixes estragados com suas máquinas de guerra, mas não conseguiu desalojar a irmã, que lhe enviou uma mensagem, dizendo: Nunca nos renderemos, então é melhor você ir embora.

E ela também escreveu: Por que eu iria me casar com um irmão que arremessa rochas contra a minha cidade?

O primeiro pensamento que ocorreu a Arsinoè Beta foi, é claro, que todas as promessas que ele fizera na vida de nada valeram. Era como se ele fosse um papagaio da índia, capaz de falar algumas palavras em grego, mas sem saber o que dizia. Assim, ignorou as demais mensagens de Keraunos, e quando ele lhe mandou presentes, como brincos de ouro e jóias brilhantes, ela os devolveu.

Na sua tenda de couro, no acampamento improvisado, Keraunos agora ensaiava os encantamentos de amor e possessão que aprendera de seu tutor grego, de sua ama grega e de Eurídice, sua mãe. Pegou três peixes vivos e os pôs, enfileirados, numa grelha, sobre o fogo. Enquanto os peixes eram assados, sovou-os com dois pequenos gravetos e proferiu as palavras de poder: Assim como esses peixes se sufocam, que a moça que eu amo fique ofegante de desejo.

Quando os peixes estavam tostados até terem virado carvões, Keraunos pegou de um almofariz e pilão e moeu-os até que se tornassem um pó fino, o qual misturou numa poção e enviou para a sua irmã, em Cassandréia, numa garrafa lacrada, com uma mensagem dizendo: Beba, é o remédio mais recente contra dispepsia.

Mas Arsinoê estava cansada de saber o que Keraunos planejava fazer e recusou-se a tocar naquela mistura negra de peixe líquido. Era um encantamento que ela própria experimentara, sem resultados, com Agathokles. De fato, Arsinoê Beta era esperta demais para ser enganada de modo tão tolo. Já havia muito tempo se convencera de que qualquer presente que fosse para ser bebido deveria conter veneno.

Sim, ela suspeitava que Keraunos tinha a intenção de assassiná-la, desde o começo, e expressou a Dion, seu apokrisiarios, seus pensamentos íntimos, seu enorme desgosto com relação ao irmão.

No entanto, Keraunos não se afastava de Cassandréia. Deu sua palavra de honra de que dividiria a coroa da Macedônia com seus filhos, contra os quais, alegava, havia pego em armas não por desejar roubar-lhes o reino, mas porque queria lhes dar um pedaço dele, a cada um, como gesto de boa vontade.

Arsinoê soltou gargalhadas quando leu a mensagem. Jamais desconfiara que Keraunos fosse tão estúpido.

Keraunos intensificou sua tentativa de arrebatar o afeto de sua irmã. Disse-lhe que ela poderia enviar seus embaixadores, para receber seu juramento, se assim desejasse, e prometeu se comprometer em sua presença diante dos deuses da Grécia, fossem quais fossem as palavras que Arsinoê lhe exigisse.

Arsinoê deu novas gargalhadas, o que era uma ocorrência rara, mas também sentiu-se tentada.

Ao mesmo tempo, não confiava de modo algum em seu irmão, nem tampouco sabia qual seria o melhor procedimento a ser tomado. Tinha medo de que, se de fato enviasse seus embaixadores, fosse ludibriada por algum falso juramento: mas, se não enviasse ninguém, provocaria a ira de Keraunos e mais um ataque militar. Já havia presenciado a fúria de seu irmão, no passado. Testemunhara a sua crueldade, sabia do que ele era capaz, quando não conseguia o que queria. Estava bem ciente do fato de que Keraunos era plenamente capaz de arrasar Cassandréia, com ela e seus filhos dentro da cidade, e que ele morreria de rir ao ver a cidade incendiar-se, isso porque acima de tudo amava provocar a destruição.

No entanto, ela se perguntava se os seus três filhos não estariam mais bem protegidos por um pai forte como Keraunos, em relação aos demais reis que, sem dúvida, já se preparavam para invadir seu território. Começando a hesitar, ela enviou Dion, que era nada menos do que o amigo em quem mais confiava, em embaixada a Keraunos, para ver o que se poderia conseguir conversando com ele.

Ptolomeu Keraunos sorriu seu melhor sorriso, exibindo os dentes da frente, os dentes que forçam os lábios a se abrirem nos sorrisos, e era o sorriso de um homem prestes a conseguir o que queria. Recolheu, então, suas máquinas de guerra, os demolidores de muralhas, os aríetes, as bestas, seus arqueiros, vigias, espiões e os bandos que acompanhavam os acampamentos, e fez até mesmo as suas tropas recuarem, até saírem de vista da cidade de Cassandréia, ordenando-lhes que aguardassem futuras instruções.

No dia seguinte, conduziu o embaixador de sua irmã ao Templo de ZeusAmon, que se erguia no promontório de Pallene, um lugar tido em altíssima conta por todos os macedônios. Ele agarrou-se ao altar com ambas as mãos. Tocou as imagens do deus. E jurou — juramentos que ele próprio jamais havia proferido nem escutado, que pretendia se casar com sua meia-irmã em plena sinceridade de sentimentos. Prometeu que lhe concederia o tratamento e o título de Rainha da Macedônia, que não a desonraria tomando nenhuma outra esposa além dela enquanto vivesse. Jurou a seguir que não teria outras crianças, a não ser as crianças dela, que nunca mais teria relações com prostitutas, tocadoras de flauta, nem animais, e que jurava isso por todos os deuses da Hélade.

Era uma espantosa abjuração de tudo aquilo que qualquer pessoa que conhecesse Keraunos apostaria que ele jamais abandonaria, já que jamais demonstrou a mínima restrição a qualquer dessas coisas até então.

Ainda mais espantoso foi que, na época em que proferiu tal juramento, já não via a sua irmã havia vinte anos, a não ser acenando-lhe a distância, ou brandindo os punhos para ele, do alto das muralhas de sua cidade.

Como, então, pergunta Thot, isso pôde acontecer? E o que aconteceu a seguir? Teria Arsinoè de fato ficado louca devido ao seu amor por Agathokles e depois disso por causa do fantasma do morto? O que estaria acontecendo no íntimo de Arsinoè Beta para que fosse levada a praticar esse ato tolo que estava inclinada a praticar? Thot balança a cabeça, desconsolado, e não tem resposta.

Mas Ptolomeu Keraunos sabia como funcionava a cabeça de sua irmã e que a única coisa em que ela pensava era no que havia perdido: a sua condição de rainha, a glória de ser uma rainha, o título de rainha da Macedônia, especialmente se isso significasse também tornar-se algum dia a rainha do Egito. Isso porque Arsinoè Beta tinha a absoluta necessidade de ser rainha de algum lugar.

Durante a noite, quando o fantasma de Agathokles a mantinha acordada, Arsinoè Beta ficava deitada em sua cama remoendo o mais novo problema em sua vida: se ela deveria ou não se casar com o seu irmão.

Em seu íntimo, sabia que tal coisa seria uma ofensa contra os deuses da Grécia, assim como ser uma assassina, em pensamentos, também o era, e a sua voz interior lhe disse que ela não deveria nem sequer pensar nesse casamento, já que seria uma idiotice completa, a extrema e completa insanidade.

Mas havia também uma segunda voz em seu coração, lhe dizendo que se casar com Keraunos não era de fato uma coisa tão grave assim, nada como uma grande calamidade, como talvez estivesse imaginando.

Ela se virava e se remexia em seu leito a noite inteira, noite após noite, revirando também os pensamentos mais secretos e, quando já não suportava mais tanto tumulto dentro de si, mandou chamar seu secretário particular, Dion, e enviou-o, como de hábito, ao oráculo de Claros em Didyma, na Jônia, para pedir a opinião dos deuses.

E, claro, no devido tempo, ele retornou com a resposta que ela desejava: Casar com um irmão não é tão errado assim, e então Arsinoê Beta ficou repleta de alegria.

Quando finalmente se encontraram, em campo neutro, para uma conversa cara a cara, Arsinoê Beta ficou admirada, embora não o expressasse, pela exuberante saúde exibida por Keraunos. Ele estava tostado de sol. Mostrava-se ereto e musculoso. Embora já estivesse com 36 anos, parecia mal ter vinte. A habitual expressão mal-humorada havia desaparecido de seu rosto. Ele sorriu, fez piadas, e era bem o Keraunos de quem ela gostava, antes de ele ter crescido, antes que toda sua malevolência tivesse se desenvolvido. Olhálo, pensou ela, era como olhar para um deus, e se viu incapaz de desviar o olhar dele. E os olhos de Keraunos cruzaram com os dela, e se fixaram uns nos outros, como costumavam brincar de ficar se encarando, quando eram crianças, no Egito. É sempre perigoso cravar tão intensamente os olhos nos olhos de outra pessoa, mas, dessa vez, Arsinoê Beta não desviou o olhar, enrubescendo, mas sustentou-o, sem hesitar, pensando, Deuses de verdade não piscam, e se lembrando do que acontecera entre os dois no sofá de ouro, nas tardes quentes de suas adolescências, havia muito tempo agora, e o quanto ela amara esse seu irmão a despeito de toda a crueldade dele.

Arsinoê Beta acreditou, então, que as palavras juradas por seu irmão tinham de ser sinceras e que ele haveria, de fato, mudado de caráter.

E ainda por cima ele lhe fez súplicas, dizendo que precisava de seu conhecimento especializado em assuntos militares, sua habilidade em estratégia e tática. Disse que necessitava desesperadamente receber seus conselhos sobre tantos e tantos assuntos, e ela se sentiu envaidecida por suas palavras e por seus serviços estarem sendo requisitados por um macedônio, e isso começou a fazer seu coração balançar, isso e a belíssima aparência de Ptolomeu Keraunos, que despertaram de novo seus sentimentos femininos, e ela praticamente esqueceu a grave advertência de Berenice, sua mãe, que lhe disse: Nunca se permita apaixonar-se... Apaixonar-se nada mais é do que loucura,

Mas nunca deve ser esquecido que esse amor de Arsinoê Beta não era novo. Ela já havia experimentado esses mesmos sentimentos por Keraunos muito tempo atrás, e foi como se o seu amor estivesse adormecido por vinte anos, ou mais, e agora despertasse, como as brasas acinzentadas de uma fogueira, uma vez abanadas, que brotam para a vida novamente, com brilhantes chamas, e foi assim que Arsinoê Beta também incendiou-se, e foi novamente alvejada pela flecha dourada de Eros, e sentiu um bramido em seus ouvidos como se fosse uma muralha de chamas, e de novo ela queimava.

Quando Ptolomeu Keraunos se atreveu a beijar essa sua irmã, agora e outra vez, nos lábios, foi um beijo que durou tanto que a fez engasgar-se, sem ar. Foi um beijo tão intenso que a saliva de seu irmão escorreu para os seios dela; e tão violento que os dentes deles tiraram sangue dos lábios dela. Mas Arsinoê Beta mal notou tudo isso, esses maus presságios, isso porque Ptolomeu Keraunos era jovem, ele ainda era um jovem e estava queimando, incendiando-se, e era tão diferente do velho e gélido Lisímaco, e estava tão desejoso dela, diferente do falecido e lamentado Agathokles, e fazia inteiros vinte anos desde que Arsinoê Beta havia beijado um homem por quem tivesse qualquer sentimento. De fato, isso não acontecia desde que esse seu irmão a tinha beijado pela última vez, que fora também a última vez que havia experimentado uma tal paixão como a dele, o que fez a sua própria paixão retornar. Keraunos, efetivamente, fez o coração de ferro de Arsinoê Beta bater como um martelo, e ela não deu atenção às advertências, e o coração dela tanto se aqueceu que Arsinoê teve receio de que fosse se derreter.

Arsinoê Beta apaixonou-se, então, e ficou cega, mas o amor não havia cegado suas aias. Se Keraunos estava realmente apaixonado, isso seria apenas pouco menos do que loucura, e muitos costumavam dizer que Keraunos já era um doido completo. Assim, se ele estivesse duplamente louco, as coisas poderiam ficar muito ruins. E tinham medo pela própria Arsinoê Beta, que apenas uma vez havia demonstrado emoções tão intensas, com relação a Agathokles e com funestos resultados. E se ela, assim se perguntavam suas amas, estivesse cega a ponto de não conseguir enxergar o verdadeiro Keraunos, que seria incapaz de mudar seus hábitos brutalizados; que ainda era, apesar de toda a dissimulação, o mesmo porco-entre-as-rosas que sempre fora?

As mulheres expressaram seus receios: Não o deixe penetrar demais em sua alma; não o deixe ocupar demais os seus pensamentos. Mas Arsinoê já estava decidida. Acima de todas as coisas, ela desejava um novo marido. Havia dormido sozinha em seu leito, sem amor, por vinte anos, e vinte anos era tempo demais. Eros, o Menino, havia feito sua flecha penetrar profundamente no coração dela pela terceira vez. Ela lembrou ainda que a terceira vez era a vez da sorte, e nada mais via além de um futuro dourado à sua frente. E talvez Keraunos houvesse tomado precauções para que assim acontecesse, e lhe teria imposto a cegueira, conjurado o amor dela, executando algum encantamento secreto — Keraunos, cujo coração estava repleto de pensamentos malévolos, como sempre estivera, mas dos quais Arsinoè Beta nada suspeitava.

A cega Arsinoè disse, então, sim, e já começaram a tomar providências para o casamento, e designaram a data na qual ela se tornaria Rainha da Macedônia. Ela pediu apenas uma concessão, que era se casar diante de todo o exército da Macedônia, reunido, que seria a sua testemunha.

Dois dias antes do casamento, Keraunos enviou uma mensagem, rabiscada num papiro, com sua própria caligrafia desordenada:

Nada de fato será mais precioso para mim do que protegê-la pelo resto da sua vida. Guarde isso em seu coração — nenhuma dor deverá acometê-la, e todos os cuidados serão tomados por mim para que nenhum problema a perturbe. Se eu estiver jurando tudo isso com sinceridade, que minha vida se encaminhe bem, e se estiver jurando em falso, que as mulheres de minha Casa dêem à luz monstros.

Thot diz de novo: Não há quem minta como um grego, mas Arsinoè Beta acreditou que seu irmão não escrevia senão a verdade, e a chama do amor aquecera seu coração de metal, de modo que amor era a única coisa em que pensava. Mas Keraunos, de fato, mentia, e sua Casa, de fato, sofreria as conseqüências.

Quanto a Arsinoè Beta, ela se julgava feliz, mesmo sendo a sua felicidade algo próximo à loucura. Os cidadãos de Cassandréia estavam felizes, porque seria posto um fim, então, ao ataque de Ptolomeu, o Raio, à cidade. Mas nem todos se regozijaram com o casamento iminente, e menos feliz do que todos estava o filho mais velho de Arsinoè, o príncipe Ptolomaios, que tinha agora cerca de 18 anos de idade e que desconfiava que as intenções de seu tio fossem menos do que honradas, já que escutara muitas e muitas histórias a respeito dele, dos soldados mercenários.

Estou lhe avisando, minha mãe, ele disse, tudo isso terminará em traição.

- Você é louca de se casar com um homem como o tio Raio.

Arsinoê ria, sua risada tão rara. Não devemos receber ordens sobre o que fazer de nossos próprios filhos, disse ela. Você nem chegou ainda a conhecer o seu tio, o Raio, disse ela ainda, então, como pode julgar o caráter dele? E ela ignorou as palavras do seu filho, do mesmo modo como Keraunos ignorava todo e qualquer conselho, porque já estava decidida e não mudaria de opinião por nada.

Tudo vai correr muito bem, ela disse, e encomendou o banquete de casamento. Isso porque, sim, estava tão segura quanto ao seu futuro que se esquecera de que nenhum grego deve nem sequer pronunciar a palavra amanhã, por medo de provocar as Parcas. Arsinoê e Keraunos — eles seriam, sim, felizes, um deus e uma deusa, juntos, e seus filhos os sucederiam como deuses e deusas, e como ela já se via até mesmo como a nova Rainha do Egito, dobrou a oferta de um ganso ao dia em sacrifício a Afrodite, Aquela que Concede a Felicidade Conjugal, para que o que ela desejava acontecesse.

Em seus aposentos particulares, bem acima da cidade, Arsinoê discutia com o seu filho Ptolomaios todos os dias, dizendo-lhe que não fizesse aquela cara chateada, que não fosse tão desconfiado, e lhe prometia que tudo ficaria bem e que, além disso, seu casamento fora a maneira mais efetiva de encerrar o cerco a Cassandréia.

Mas, era isso o que Ptolomaios temia: que os propósitos do seu tio, o Raio, não fossem um casamento feliz, mas que ao matrimônio se sucedesse a violência, e tomou a decisão de fugir de Cassandréia, já temendo o pior, o inimaginavelmente pior; isso porque uma grande lição aprendera de seu pai, Lisímaco, e era que um rei não pode confiar em ninguém, nem mesmo na própria mãe, e certamente não num homem como Ptolomeu Keraunos, mesmos sendo seu parente. E que infelicidade, Thot diz, assim era de fato,

porque Keraunos era um parente que não merecia confiança.

Na noite de véspera desse casamento, Ptolomeu Keraunos dispensou seus auxiliares e sentou-se à mesa dobrável militar que ele costumava usar para examinar mapas da Macedônia (país sobre o qual não tinha grande conhecimento), e começou a confeccionar uma imagem em cera. Depois de algum tempo, a cera tomou forma, em suas mãos, e era a forma de uma mulher ajoelhada, com as mãos amarradas às costas. Enfiou então cravos de cobre na cera: um cravo no topo da cabeça, um cravo em cada orelha, um cravo em cada olho, um cravo em cada narina, um cravo na boca, um cravo em cada seio, um cravo na barriga, um cravo na bolba, um cravo no traseiro — treze cravos de cobre, e sorriu ao examinar o seu trabalho. Sobre um retalho de chumbo, rabiscou as palavras: Furo tais e quais partes de Arsinoè Beta para que ela não tenha pensamentos senão para mim, Ptolomeu.

Quando pensou no que planejava fazer nos próximos dias, riu a sua risada lunática, de hiena, e cacarejou como um galo, e pediu mais vinho, mais e mais vinho.

Na noite da véspera do seu casamento, naquela mesma noite, Keraunos dormiu profundamente e sonhou o melhor dos sonhos, que era o de estar comendo carne humana, e acontecia ainda de ser a carne da sua irmã, e não poderia esse sonho significar nada senão Boa Sorte.

Quando entrou na cidade de Pella, para se casar, Keraunos exibia seus dentes da frente, os que forçam o sorriso, e murmurava as canções de batalha da Macedônia, convencido de que esse seria um bom dia, um dia auspicioso, e entoou então o Paian de Vitória para Apolo, Senhor do Arco de Prata.

Por uma estrada diferente, Arsinoè Beta também encaminhou-se a Pella, na Macedônia, naquela manhã. Quando se avistou a cidade, sua escolta de servos foi interceptada por cavaleiros vindos de Pella, e eram mensageiros de seu irmão, trazendo presentes, e entre os presentes estava um leykythos de ouro com a imagem de Eros, segurando um jovem galo de briga, e esse Eros tinha o rosto do próprio Keraunos.

Ele mandou também uma cratera de ouro que mostrava um par de grifos, lutando, com os rostos de Ptolomeus Keraunos e Arsinoè Beta.

Presságios, talvez, do que estava por vir, mas Arsinoè Beta continuava cega. Havia perdido todo o seu senso de equilíbrio. Não tinha mais em mente a Moderação em todas as coisas. Esquecera-se até mesmo do Pense no Que Você Está Fazendo.

Com esses presentes, Ptolomeu Keraunos enviava uma última mensagem, prometendo-lhe: Enquanto eu estiver vivo e vendo a luz sobre a Terra, nenhum homem praticará violências contra você.

E, pela primeira vez, era verdade, já que ele pretendia praticar violências

contra outros.

 

                   O Casamento Sangrento

O sonho com afortunadas promessas que teve Ptolomeu Keraunos não foi, entretanto, o único da noite da véspera de seu casamento. Ele também teve sonhos perturbadores. Sem dúvida, sabia que o mais perigoso de todos os sonhos seria aquele em que a pessoa aparecia defecando na ágora, ou nas ruas, e mesmo em banheiros, e significavam, todos eles, a mesma coisa: a fúria dos deuses da Grécia, e o mais inapropriado dos comportamentos, e ainda uma perda extraordinária e que o sonhador seria objeto de ódio. Keraunos sabia de tudo isso, e mesmo assim se mostrou insensível aos avisos. Novamente, soltou sua risada de hiena. Os deuses que fizessem o que bem entendessem. Ele era Ptolomeu Keraunos, o Raio dos Raios, o próximo Faraó do Egito, o Para Sempre Vivo, e conseguiria o que queria sem a ajuda dos deuses, graças aos seus próprios esforços.

Assim era a terrível hybris, a mais do que presunçosa arrogância desse Ptolomeu, mas ele parecia desconhecer aquilo que todo grego sabe: que a soberba não passa sem punição, que a soberba não passa sem punição.

Já em relação a Arsinoê Beta, na noite anterior ao seu casamento, ela sonhou com fogo: tetos em fogo, sacadas em fogo, lintéis em fogo, todo um palácio em fogo. Mas o que isso significava? Significava a perda de propriedades e a morte de crianças. No entanto, pela manhã, Arsinoê deu uma risada, assim como Keraunos riu-se, e não pensou mais no assunto. De fato, ela achava ridículo e antiquado manter a crença de que todos os sonhos são mensagens urgentes dos deuses.

E tinha tanta certeza de que o que estava fazendo era certo que enviou uma última carta para o seu prometido: Arsinoè para seu Irmão, Keraunos, Saudações. Você deve saber que não consigo ver o Sol porque você está fora das minhas vistas e é o único Sol para mim.

Ptolomeu Keraunos, que já se via como o próximo Filho do Sol, riu sua risada de hiena, e por um longo tempo.

Para as cerimônias do seu casamento, esse noivo enfiou uma adaga com cabo negro em seu cinto. A noiva pôs a usual tesoura em seu sapato esquerdo, e o propósito desses objetos era cortar toda a má influência. Que infelicidade! Nem a faca nem a tesoura tiveram o menor efeito.

Arsinoè vestiu os trajes habituais de casamento, com o Nó de Héracles, que seu marido deveria desatar à noite. E no Anaklypteria, a Cerimônia de Retirada do Véu, quando a noiva deveria retirar seu véu de solteira, Ptolomeu Keraunos mal se deu ao trabalho de olhar para sua irmã. Em primeiro lugar, ela não era mais uma parthenos — e ele próprio cuidara disso. Era apenas a sua irmã, e ele já a vira antes. Sabia bem demais como ela era. Era magra — magra como os chacais famintos do deserto da Líbia — e seu coração era duro, como as rochas do deserto.

Nesse dia, entretanto, Arsinoè Beta estava mais generosa do que nunca, e deu de presente a esse seu irmão o traje de casamento da armadura de ouro, que é o que um principesco noivo deve envergar, e era uma armadura de pesado ouro maciço, o mais fino artesanato trácio.

Quando garoto, Keraunos sempre dava a Arsinoè Beta os usuais presentes em seu aniversário, mas eram todos detestáveis, escolhidos não para darlhe alegria, mas para aborrecê-la, e mesmo assim ela os amara: suas rãs, seus escorpiões, suas cobras. O que lhe deveria dar agora — agora que eram marido e mulher? Algo especial, ele pensou, mas algo também desagradável, já que essa mulher, em verdade, regozijava-se com coisas detestáveis.

Assim, depois de um bocado de trabalho para o agarrar, e um bocado de dificuldade para transportá-lo, e mais trabalho ainda para mantê-lo quieto durante os remates finais, ele lhe deu, como presente de casamento, um crocodilo, um jovem crocodilo do Rio Nilo, de um cúbito e meio de comprimento e usando em torno de seus tornozelos aros de ouro, como os egípcios, e brincos de ouro em suas orelhas, e ainda todo tipo de jóia preciosa do Egito, e todo tipo de gema preciosa, incrustada em sua armadura natural, de modo que, quando ele rastejava, brilhava ao sol — um crocodilo cravejado de jóias, preso a uma corrente também cravejada de jóias, como os crocodilos domesticados da infância deles, em Mênfis: um crocodilo que não oferecia a segurança de estar morto, mas que estava perigosamente vivo e era, assim calculou Keraunos, de todas as feras, a que mais se parecia a ela — brilhando, sim, mas muito, muito detestável e sempre propensa a matar.

Keraunos acreditava que Arsinoê estaria cega demais para enxergar o significado do presente, e ele estava certo. Apreciou, e muito, o crocodilo, e quando o viu guinchou de prazer, e abraçou o seu irmão, dando-lhe muitos beijos. E, em verdade, Pella nunca vira nada semelhante, nem o crocodilo nem um irmão e uma irmã se casando.

Esse casamento, então, foi celebrado com a maior magnificência, e com a dissimulação generalizada de júbilo, com música nas ruas, dança, tambores e trombetas, e procissões de crianças cantando, tudo testemunhado, como insistira Arsinoê, pelo exército inteiro da Macedônia, num total de 16.384 homens, exatamente.

Ao final, Keraunos prendeu o diadema em torno da cabeça de sua irmã e a saudou como Basilissa, Rainha, e a beijou em ambas as faces. O coração de Arsinoê Beta batia cada vez mais forte. Estava vestida de branco, com sapatos de casamento de feltro branco, usando grinaldas e a coroa de flores escarlates e perfumada com os mais caros perfumes da Síria; a tesoura aberta em seu sapato esquerdo a havia atormentado o dia inteiro.

Os noivos agiram como em todos os rituais gregos, sem esquecer os marmelos, sagrados para Afrodite, a Portadora da Felicidade Conjugal, que deveriam ser comidos, como parte do ritual; marmelos ocos recheados de mel e cozidos numa cobertura de massa que derretia na boca, e o mel escorria pelos queixos deles, e eles lambiam a mistura doce, trocando beijos nos lábios o tempo todo.

Em sua juventude, Keraunos sempre dizia: Cantar é para kinaidoi, mas, nesse banquete de casamento, foi persuadido a cantar, e cantou as canções de casamento da Macedônia, a Canção da Andorinha e a Canção do Corvo. Os convivas os aplaudiram e Keraunos sorriu um genuíno sorriso. Ele era, de fato, um bom cantor.

Naquela noite, do lado de fora do quarto nupcial, um coro de cantores cantou as canções típicas do himeneu, cujo propósito era abafar os gemidos de rouxinol que Arsinoê Beta emitia, enquanto seu casamento era consumado, assim como seus gritos, enquanto Keraunos torcia seus braços, fincava os dentes no seu pescoço, dava-lhe bofetadas, beliscões e a machucava, exatamente como havia feito quando eram pouco mais do que crianças, em Alexandria.

Em sua excitação, o coração de Arsinoê Beta batia com tanta força que ela chegava a poder escutá-lo, e foi justamente aí que se sentiu como se tivesse recuperado tudo o que tinha antes de ter ido embora, num navio, para a Trácia, e pensou que naquela noite estava sendo feliz e que jamais fora feliz em sua vida. Mas ArsinoêBeta não sabia que aquele seu casamento estava fadado a durar apenas um dia e meio.

O que ArsinoêBeta fez a seguir foi talvez o mais insensato ato que cometeu em toda a sua vida, isso porque disse a esse seu marido que tinha a intenção de lhe dar de presente de casamento a sua cidade de Cassandréia, e o convidou para visitá-la, de modo que ela pudesse lhe entregar as chaves da cidade, e combinou que, pela manhã, ela seguiria na frente de modo a deixar tudo preparado para recebê-lo.

Governar cidades, disse ela, não é trabalho para mulheres. O trabalho das mulheres é dar à luz herdeiros e criá-los. Isso porque tinha a intenção de ter filhos com esse seu meio-irmão.

Decretou então que o dia em que Keraunos entraria em Cassandréia seria um feriado público, e ordenou que todas as casas, todos os templos e todos os prédios públicos deveriam ser decorados com guirlandas de flores escarlates. Deu ordens para que cem touros tivessem seus chifres folheados a ouro, para o sacrifício, e que se proporcionasse à cidade inteira um banquete, à custa dela.

As flores, aos milhares, foram enviadas para Cassandréia, e Arsinoêesvaziou suas adegas para a festa, assim como forneceu todas as iguarias para um banquete que deveria ser de inigualável magnificência, incluindo os alimentos vermelhos, proibidos, que ela sabia que Keraunos tanto apreciava, e assim ignorou a crença infantil de que comer comidas vermelhas em qualquer banquete, a não ser em um banquete fúnebre, traria a pior das sortes. Sim, os cidadãos de Cassandréia se banquetearam nas ruas, e os escravos da cozinha dessa rainha passaram horas e horas surrando polvos nas rochas, para deixálos prontos para o grande dia da celebração.

Na madrugada desse dia fatídico, quando estava programado que Ptolomeu Keraunos faria sua entrada em Cassandréia, o outro Ptolomeu, a quem mais tarde chamariam de Ptolomaios de Telmessos, agora com 18 anos de idade, pegou o mais veloz cavalo dos estábulos de sua mãe e galopou em direção ao Ocidente, rumando para Ilíria, onde pensava em pedir asilo a Monounios, chefe de uma tribo de bárbaros que tinha o grego como língua — uma tribo à qual ele conhecera, alguns anos antes, tendo estado presente aos entretenimentos que lhes ofereceram durante uma missão comercial à Trácia, e aos quais ele tinha, corretamente, como amigos.

Quando as nuvens de poeira de todo o exército da Macedônia foram avistadas a distância, os outros filhos de Arsinoê Beta, Felipe, de 15 anos, e Lisímaco Mikros, de 13 — garotos notórios por sua beleza —, saíram em seus cavalos brancos dos portões da cidade de sua mãe, com uma pequena escolta de infantaria, numa procissão formal de boas-vindas ao tio Raio, que agora também era o padrasto de ambos.

O Raio ainda vestia o khiton branco, e ainda estava enfeitado com guirlandas de flores, mas envergava também sua couraça de ouro, seu elmo e as grevas de ouro, todos os quais recebera de presente de casamento de Arsinoê Beta, e embora a sua pele estivesse oleosa de tantos ungüentos, ele estava emplastrado também, dos pés à cabeça, com mirra, carregava consigo seu escudo folheado a ouro e sua espada com bainha de ouro, além da kopis, a espada curta. Ah, sim! A adaga ainda estava em seu cinto, como se pronta para a luta, e sussurrava, de modo que apenas ele próprio escutasse, as preces para Ares, deus da guerra, e seus olhos brilhavam de entusiasmo, pois de fato estava de muito bom humor.

Keraunos, que tão notoriamente não dava importância aos deuses de sua própria terra, proferia preces e, Thot bem o sabe, isso nada mais poderia significar senão graves problemas.

As primeiras palavras que proferiu foram: Mas não eram três garotos? — pois de imediato deu pela falta de Ptolomeu, o mais velho, o herdeiro.

Mas Felipe disse: Nosso irmão mais velho não está se sentindo bem. Comeu em excesso tâmaras ainda verdes... Isso porque não se atreveu a contar a Keraunos que, suspeitando de uma armadilha, Ptolomeu fugira.

O padrasto abraçou seus enteados e sobrinhos, que vestiam pequenas túnicas novas, e coroas de folhas de carvalho de ouro. Ele era um homem em quem jamais haviam posto os olhos, a não ser a distância, e jamais haviam lhe dirigido uma palavra sequer, mas esse homem agora lhes beijava as faces e os braços, e até mesmo os seus lábios, como se os conhecesse desde o dia em que nasceram. Keraunos abraçou, apertando bem forte, esses dois garotos, algo que ultrapassava bastante a efusão de afeto genuína, e persistiu em beijá-los por algum tempo, de modo que Arsinoê Beta, assistindo a tudo das ameias, ficou se perguntando o que ele estava pretendendo. Mas suas dúvidas foram meramente momentâneas, já que Atená havia dotado Keraunos, naquele dia, com um tal charme mágico que todos os olhos só tinham admiração em relação a esse rei, e ninguém estava mais fascinado por ele do que a própria Arsinoê Beta. Nunca Keraunos parecera tão bronzeado aos seus olhos, nem tão bonito, nem tão desejável, e ela ordenou que as portas de Cassandréia fossem escancaradas para que ele pudesse penetrar na cidade.

Keraunos avançou em seu cavalo, e seu exército marchou, seguindo-o, totalmente em armas, com peitorais, grevas, elmo, espada e escudo, todos eles, mas com ordens de parecerem pacíficos, de rir, exibindo os dentes, e o povo de Cassandréia os recebeu com aplausos, com ovações e assovios, e houve também toque de muitos tambores, muitas trombetas e flautas sendo assopradas, e Cassandréia enlouqueceu ao dar as boas-vindas ao novo marido de Arsinoê Beta.

No entanto, tão logo o extremo final da coluna de tropas passou pelos portões e se viu dentro das muralhas, Keraunos começou a brandir sua espada acima da cabeça, a berrar e a gritar ordens, e sua primeira ordem foi que os portões da cidade fossem fechados e as travas descidas, de modo que homem nenhum pudesse escapar, e que a cidadela de Cassandréia fosse tomada. Para Arsinoê Beta, que descera para lhe dar as boas-vindas, ele gritou: Num instante, seu sangue negro estará pingando da minha espada.

Houve uma balbúrdia tremenda entre a multidão, os sinos de alarme repicaram, mas era tarde demais, pois Cassandréia fora pega numa armadilha. Todos os homens ali estavam imbuídos do espírito de uma festa, e nenhum trazia sua espada ou tampouco qualquer proteção para o corpo. E, sim! A bebida havia começado a circular antes do amanhecer, já que Keraunos havia mandado para a cidade, de presente, mil ânforas do melhor vinho, calculando que assim não haveria homem em condições de defender-se.

O massacre de Cassandréia começou — sendo mortos todos, indiferentemente, homens, mulheres e crianças —, e havia sangue em todas as ruas, sangue escorrendo pelas ruas, e os mortos permaneceriam caídos onde haviam tombado, já que não havia quem lhes desse funeral.

Arsinoê Beta voltou-se e saiu correndo, como se pudesse se recolher à segurança, em seus aposentos particulares, e seus filhos estavam junto com ela, mas foram perseguidos por soldados destacados especialmente para tomar conta deles, e já nas escadarias esses garotos foram atravessados por muitas espadas, bem no colo de sua mãe, enquanto ela os amparava e abraçava, suplicando aos homens de Keraunos que fizessem o que tinham de fazer com ela, até mesmo matá-la, se é o que precisavam fazer, mas que poupassem a vida das crianças.

O sangue de Felipe e Lisímaco Mikros espalhou-se sobre os brancos trajes de casamento de sua mãe e sobre os sapatos de feltro branco, e ela gritou e se encolheu quando viu o sangue escuro jorrando dos muitos ferimentos dos garotos, e durante todo o tempo Ptolomeu Keraunos, seu irmão e marido, ficou à sua frente, assistindo, parado, sorrindo, brandindo a sua espada de ouro como se tencionasse matar também a sua irmã.

Arsinoê uivou contra ele, então, amaldiçoando-o: Homem nenhum será capaz de afastar os cães de seu cadáver. Nem mesmo a sua desonrada mãe se atreverá a colocá-lo num caixão e a chorar por você, e os cães e aves de rapina vão se banquetear em você, e não deixarão restar nada.

E ela gritou: Não vou descansar até fazer o Inferno desabar sobre você.

Mas Keraunos, em resposta, gritou contra ela as palavras do oráculo de Homero, que havia consultado naquela mesma manhã: Você não me matará, já que, sem dúvida, não estou sujeito ao Destino!

E Arsinoê berrou: Os abutres devorarão você... Os cães de patas ligeiras se alimentarão de você... E a maldição brotou de seus lábios e não poderia mais ser recolhida de volta. Por um longo momento, os olhos dela estiveram cheios de lágrimas e as palavras ficaram paralisadas em sua garganta. Os filhos morriam nos braços dela, mas Keraunos não assassinou a própria ArsinoêBeta porque era sua esposa, e até mesmo Keraunos temia se tornar um assassino da própria esposa, e até podia ser que Keraunos ainda retivesse alguns vestígios de afeição por sua irmã, e que se retraísse também diante do pensamento de se tornar um assassino da própria irmã. Em verdade, no entanto, talvez ArsinoêBeta devesse a sua vida ao medo da vingança do irmão dela, por parte de pai e de mãe, Ptolomeu Mikros, rei do Egito, o homem que, apesar de não o ter de todo desejado, viu-se sem dúvida na condição do homem mais poderoso sobre a Terra.

Keraunos queria que sua irmã sofresse, e ela sofreria mais se lhe fosse permitido viver. Matá-la meramente interromperia o seu sofrimento, e ele queria mais do que tudo puni-la por tê-lo traído, contando ao pai deles o segredo de sua proibida aphrodisia, e por ter quebrado o juramento de jamais pronunciar uma palavra sequer a esse respeito para qualquer homem. Porque, sim, era apenas por culpa de ArsinoêBeta ele ter sido privado dos seus direitos ao reino e ao próprio trono do Egito.

E agora tinha a sua vingança. Agora ela saberia o que era a fúria de um Ptolomeu. Agora pensaria duas vezes antes de colocar-se em seu caminho.

E foi assim que Keraunos permitiu a ArsinoêBeta, sua esposa e sua irmã, escapar, e foi assim também que terminou o casamento de um dia e meio.

Thot pergunta: o que fizeram os soldados mercenários, os famosos soldados mercenários de ArsinoêBeta? Não levantaram sequer uma espada para ajudá-la? Ora, não! Os soldados mercenários estavam ocupados demais, bebendo seu vinho e se preparando para jurar aliança a Ptolomeu Keraunos, de modo a salvar as suas peles. Não, homem nenhum em Cassandréia se apresentou para ajudar Arsinoê, na sua hora de tormento, e homem nenhum ergueu um dedo sequer contra Keraunos para impedir seus terríveis crimes.

Já Keraunos, ele tinha muito trabalho a fazer: restava ainda metade da população da cidade de sua irmã para ser passada a fio de espada. Havia um tesouro a ser pilhado, mulheres a serem estupradas, e todo o banquete de casamento, já pronto, para ser devorado, porque nada como um massacre para avivar o apetite de um louco. Keraunos, então, empanturrou-se o mais que pôde, e o suco proibido das frutas vermelhas escorreu por seu queixo, e ele riu, às gargalhadas, porque a festa de casamento de Arsinoè Beta havia se tornado em uma festa fúnebre.

Quando se exauriram de massacrar e de comer e beber, os homens de Keraunos dançaram as danças do casamento grego, e um Keraunos completamente despido atravessou correndo a cidade, que agora era sua, berrando e com uma gargalhada de lunático.

De algum modo, Arsinoè Beta alcançou o porto de Cassandréia e subiu a bordo de um dos seus rápidos triereis, sem sofrer nenhum ferimento, e suas amas a acompanharam, carregando nos braços arcas com jóias e dinheiro, uma procissão de mulheres chorosas subindo no navio, sendo que homem nenhum de Keraunos levantou a espada contra elas.

E o que foi feito do crocodilo cravejado de jóias, que foi seu presente de casamento? Certamente, ela não levou consigo a fera para o exílio. De modo algum. Uma tal criatura era preciosa demais para que Keraunos a liberasse, e passou a levar o crocodilo com ele, para todo lugar que fosse, como um talismã.

Das ameias da acrópole de Cassandréia, Ptolomeu Keraunos berrou para Arsinoè, então de partida: Que a sua viagem seja a pior possível, e foi, de fato, péssima, e como sempre ela sentiu náuseas no mar.

Que homem poderia sentir alguma solidariedade por uma mulher como Arsinoè Beta? Não teria sido, tudo o que lhe aconteceu, exatamente o que ela merecia? Isso porque, sem dúvida, as Fúrias, as mulheres com olhos injetados de sangue e cabelos de serpentes, tinham a intenção de segui-la para onde quer que ela fosse, e ela não teria como escapar das horrendas atenções que recebia das mulheres de garras e asas de bronze que revoariam sobre ela até o dia de sua morte.

Por fim, Arsinoè chegou, depois de uma travessia difícil pelos mares, à ilha de Samotrácia, a qual Lisímaco, seu falecido marido, havia usado como base naval, e onde ela esperava encontrar asilo e uma amistosa recepção.

Ela encaminhou-se, então, para o altar supremo de Zeus Xênios, protetor dos Suplicantes Estrangeiros, o famoso lugar de refúgio, onde nenhum inimigo poderia tocá-la, e rezou para que, com a ajuda dos deuses, seu único filho sobrevivente, Ptolomaios, conseguisse alcançar a idade adulta. Lá ficou ela, sentada, com um galho envolto em lã branca, junto às estátuas dos deuses, rezando as preces de súplicas:

Oh, Zeus, tenha pena de mim, antes que eu sucumba de vez ao meu sofrimento...

E Zeus, pelo menos dessa vez, teve pena de Arsinoè Beta, já que nenhuma mulher, por pior que tenha sido o seu crime, merece que seus filhos sejam mortos.

Na Samotrácia, como de hábito, Arsinoè Beta consultava o oráculo dizendo: Deus, Fortuna, Arsinoè pergunta a Apolo se lhe será propício ou não ir para Alexandria.

E a resposta de Apolo veio:

Não faça isso.

Ela permaneceu em Samotrácia, mas, depois de um tempo, fez nova consulta ao oráculo e perguntou: Deus, Fortuna, Ó Apolo, não seria melhor para mim partir para a Alexandria?

E a resposta veio:

Você deve continuar vivendo onde estava e aguardar.

Na terceira vez em que fez a pergunta ao oráculo, disse:

Pela Boa Fortuna. Arsinoè pergunta a Apolo... Será ou não melhor ir para a sua terra natal?

E, dessa vez, os deuses a deixaram partir.

Arsinoè Beta, sobre cujo coração sempre disseram que era quase tão duro quanto um quartzo, mostrava nessa ocasião da sua vida os mesmos sentimentos de qualquer outra mulher e mãe. Jurou que, se os seus desejos fossem atendidos, dedicaria um par de gigantescas orelhas de prata ao deus. Prometeu que, se pelo menos conseguisse escapar de Samotrácia, mandaria erguer o maior de todos os templos já vistos.

Ela esperou pacientemente a estação propícia para a navegação, mas o inverno foi rigoroso, com chuvas pesadas e muita neve. Dia após dia, ela os passava contemplando a montanha de granito de cujo topo Poseidon observara as planícies de Tróia.

Alimentava-se de carne de bode e de frutas secas, e já fazia o projeto da rotunda que seria chamada de Arsinoêion, em sua própria homenagem, que seria a sua oferenda de agradecimento por ter conseguido sair a salvo de Cassandréia, para encontrar algum refúgio seguro e para que algum dia pudesse vingar-se de seu irmão, Keraunos. O Arsenoêion seria o mais largo edifício circular já construído. E por quê? Porque tudo o que essa família construía tinha de ser o maior, o melhor, superior a qualquer coisa que qualquer outro já houvesse feito.

Sem dúvida, Arsinoè Beta pranteou suas perdas, e não havia como conseguir parar de chorar, e suas amas chegaram a temer que ela se ferisse, propositalmente, mas, no fundo de sua dor, havia sempre aquela mulher dura, que fora criada para jamais admitir a derrota.

Certa noite, por ocasião de seu maior desespero, invocou os deuses por meio de alguns dos seus encantamentos gregos secretos, para lhes fazer uma pergunta:

Vocês podem me jurar, solenemente, que jamais tramarão outra cilada contra mim?

Mas os deuses responderam que não, não haveria fim para as dificuldades que Arsinoè Beta enfrentaria e para os problemas que causaria. A família de Arsinoè Beta usufruiria de três séculos de turbulências, trezentos anos de logros perpetrados contra eles pelos deuses.

Assim, mais uma vez ela se dedicou a tentar mudar o seu próprio destino. Acreditava nos deuses quando lhe convinha, fazendo então as preces apropriadas e os sacrifícios requeridos e, quando não lhe convinha, não fazia nada disso. Com freqüência, se comportaria como se os deuses e as deusas da Grécia de todo não existissem, isso porque ela era, em muitos aspectos, justamente como seu irmão Keraunos, uma lei em si e para si mesma.

Já Ptolomeu Keraunos, ele sabia muito bem o que a sua irmã estaria fazendo em termos de magia, feitiços, interferências, conjurações diante de imagens de cera, e tomou o cuidado de adotar as corretas medidas retaliatórias, executando a mais poderosa magia que conhecia contra ela.

Alguém que tenha sido ruim para você, ele murmurou, a quem você precisa punir... tudo o que tem a fazer é escrever seu nome com tinta vermelha, algumas palavras do Livro das Palavras, então queimar o papiro. E, no que o papiro se queimar, ela tombará.

Ah, sim! Assim como Arsinoê Beta havia se incendiado de amor, ela também tombaria.

Por ora, embora a magia de Arsinoê Beta fosse, Thot bem o sabe, poderosa, acontecia que a magia de Keraunos era ainda mais forte — e tão poderosa que continuaria exercendo seus efeitos por anos e anos, depois da morte dele: uma magia” que, no devido tempo, acabaria por destruir essa sua irmã.

Ptolomeu Keraunos estava sentindo-se contente, muito contente, com o que fizera, e apreciava ainda mais, agora, estar ao seu alcance lançar mão sobre todos os territórios europeus de Lisímaco. Embora obtendo êxito, ele foi, pelo resto de sua breve vida, perseguido por dois rostos jovens e pálidos, com os cabelos da cor da palha, os quais via estando dormindo ou acordado, aonde quer que fosse; os quais ele avistava observando-o de todo carro ou carroça, e sentados diante a ele, à mesa, enquanto comia suas refeições, e marchando junto a ele, na falange de seu exército, e parados na entrada de sua tenda de couro de campanha, e não havia como afugentá-los.

Ptolomeu Keraunos sempre se riu diante das assim chamadas assombrações, já que de fato não acreditava em fantasmas — de modo algum. Mas começou a se tornar, por força disso, em seu cotidiano, mais irritadiço com seus generais, e passou a dormir pessimamente.

Aos seus inimigos, ele trucidava como se fossem bestas selvagens, e lhe dava o maior dos prazeres retalhar os mais jovens e belos soldados, aqueles com os cabelos claros e rostos como os de seus dois sobrinhos, Felipe e Lisímaco Mikros, dois rapazes que haviam morrido inocentes de qualquer crime.

Keraunos, pelo canto dos olhos, também via as Três Irmãs com asas e garras de bronze — Ah, sim! As Fúrias! —, cujo trabalho era atormentar aqueles que haviam ofendido os deuses da Hélade, mas Keraunos ria até mesmo das Fúrias, e investia cegamente à frente, o mesmo porco-entre-as-rosas que sempre fora, pisoteando tudo o que se interpunha em seu caminho.

Qualquer homem sensato perceberia que Keraunos teria uma morte violenta, cedo ou tarde. Todo homem enxergava isso, exceto o próprio Keraunos, que em verdade acreditava que vivia uma existência encantada, que tinha sorte, nascera com sorte, e não era sujeito às leis naturais que governam o comportamento dos seres humanos.

Tudo, entretanto, que acontecera a Keraunos estava predeterminado. Nada, em nenhum lugar do mundo, acontece por acaso. Tudo está sempre nas mãos dos deuses — Thot assim jura. E o que estava para acontecer a Keraunos incluía o derramamento de ainda mais sangue, dessa vez, seu próprio sangue.

 

                             Rato e Relâmpago

Não muito depois do massacre de Cassandréia, a maldição de Arsinoê Beta sobre Keraunos começou a surtir seus efeitos, sob a forma do exército dos keltoi, ou gauleses, que agora desciam do norte devastando todos os territórios que atravessavam, com o propósito de conquistar a Macedônia.

Ptolomeu Keraunos estava sentado havia dois anos, apenas, em seu trono, quando o avanço desses gauleses sobre Pella foi relatado — de fato, os bárbaros estavam a poucos dias de distância da cidade. Os reis dos territórios vizinhos escutaram as notícias com sobressalto, e enviaram seus embaixadores, prontamente, aos invasores, com sacos e sacos de tetradracmas e inúmeros presentes feitos de ouro e prata para tentar convencê-los a voltarem para sua terra. Somente Keraunos soube da iminência do ataque sem entrar em pânico. Saiu de Pella com seu exército, comandando-o pessoalmente com a maior satisfação, e com a intenção de, conforme declarou, dar uma olhada nesse novo inimigo. Assim, marchou com apenas uns poucos milhares de mal armados, mal treinados e mal exercitados soldados, como se pensasse que poderia lidar com uma invasão maciça com a mesma facilidade com que lidava com assassinatos.

Aconteceu então que os dardanianos tiveram a gentileza de mandar mensagens a Keraunos oferecendo vinte mil de seus soldados, se ele os aceitasse, como reforço, para ajudá-lo na luta contra os gauleses. Mas Keraunos soltou uivos e gargalhadas, e enviou mensagem de volta afirmando que seus homens eram filhos dos homens que haviam marchado com Alexandre e que seria o fim para a Macedônia se, tendo conquistado no passado toda a Ásia precisassem agora depender da ajuda de frágeis dardanianos — e isso para enfrentar bárbaros — para defender suas fronteiras. Isso porque esse povo era ainda tão selvagem que escavava tocas, por dentro das colinas, que lhes servia de habitação.

E assim Keraunos prosseguiu, sem reforço nem ajuda, os quais, em verdade, ele bem que precisava, e muito.

O chefe dos gauleses, chamado Bolgios (ou Belgius), cujo nome, por acaso, significava Relâmpago, enviou ao Raio seus embaixadores, com a generosa oferta de deixar seu território em troca de uma grande quantidade de ouro.

Keraunos riu-se da proposta de paz de Bolgius, e mandou um seu mensageiro, agora declarando que não entregaria a Belgius sequer um quarto de óbolo, e exigia que os gauleses lhe entregassem seus líderes, como reféns e garantia de seu bom comportamento.

Então, foi a vez de Bolgius soltar gargalhadas, e a seguir deu ordens a suas centenas de milhares de gauleses para invadirem como um enxame as planícies da Macedônia, onde Keraunos estava acampado, num estado de relativa desordem e confusão, com suas tendas armadas do jeito que os gregos sempre armam suas tendas, não em linhas estreitas, mas dispersas, e sem estarem suas tropas de modo algum prontas para um combate corpo a corpo.

Foi relatado por embaixadores que o rei da Dardânia haveria declarado que o famoso reino da Macedônia parecia prestes a cair por culpa da temeridade de um jovem, do mesmo modo como havia se erguido. Keraunos não lhe deu importância.

Embora Ptolomeu Keraunos não fosse mais um jovem, e tivesse agora mais de quarenta anos, ainda carregava as marcas da imaturidade — precipitação, imprudência, impulsividade — e tinha enfiado em sua cabeça que deveria lutar todas as suas batalhas sem ajuda de ninguém, sem um exército em plenas condições e confiando apenas em suas habilidades pessoais de combate. Infelizmente, Keraunos não pensou bem o bastante acerca de quantos homens necessitaria para derrotar as inumeráveis hordas de gauleses que agora formigavam pelas florestas, entoando em rosnados suas canções de guerra, preparando-se para pôr fogo e retalhar o exército de Ptolomeu, o Raio. Alexandre talvez conseguisse uma vitória, mesmo em tais circunstâncias, mas Keraunos, infelizmente, não era Alexandre.

Keraunos era de fato um homem de ação, mas vivia no e para o momento, como fizera seu pai antes dele. Não possuía a habilidade de pensar à frente e tanto o passado quanto o presente significavam muito pouco para ele. Sem dúvida, ele era muito bom em combate corpo-a-corpo, mas na verdade não tinha genialidade o bastante para ser um general, e apenas ocupara o comando supremo por um acidente de nascimento e, é claro, porque havia trucidado Seleuco. Anteriormente, tivera sempre um oficial veterano que lhe diria o que deveria fazer, mas Keraunos odiava tanto quanto o Hades receber conselhos de outro homem. Odiava ter de fazer o que lhe ordenavam, como qualquer criança incontrolável. E assim, não, ele teria de enfrentar o seu inimigo sozinho, fosse qual fosse o custo disso. Ele era um rei ansioso para exercitar seu absoluto poder de comando, como seu herói, Alexandre. Estava ansioso para dar ordens, e pessoalmente, e para receber todo o crédito pela vitória, mais tarde.

Pior do que tudo era que Keraunos não se dava conta de que, no fragor da luta corpo a corpo, não importando toda a sua coragem, um comandante não pode enxergar a batalha como um todo, e disse aos seus generais que não sabiam do que estavam falando. Achou que sabia tudo sobre a guerra, mas estava errado: a pessoa que deveria estar ao seu lado, auxiliando-o, seria a sua meia-irmã e esposa, Arsinoè Beta, que seria capaz, efetivamente, de conquistar uma retumbante vitória para o seu irmão. Mas Arsinoè Beta ainda estava na ilha de Samotrácia, e dificilmente se disporia a ajudar o seu irmão a esta altura dos acontecimentos.

Os gregos sempre gostavam de dizer que os gauleses são malucos, já que lhes falta todo o dike, ou correção nos procedimentos, e eram a própria encarnação dos procedimentos equivocados. Os gauleses eram conhecidos por comerem vivas quaisquer crianças de peito que caíssem em suas mãos, e notórios por sua selvageria, por estupros e mutilações, e por outros crimes de guerra hediondos, tanto contra homens quanto contra mulheres, e também por nunca se darem ao trabalho de enterrar seus mortos. Quando os líderes desses bárbaros eram cercados, sempre se recusavam a se entregar e preferiam matarse, o que, para os gregos, era uma vergonha mais grave do que qualquer outra o comportamento dos covardes. No entanto, os gauleses não eram covardes, já que lutavam sem se importar com os ferimentos que sofressem e mostravam uma bravura em batalha que espantava todos os homens que os viam lutar.

Os gauleses, então, eram privados de todo e qualquer comportamento civilizado, e nisso eram muito parecidos com Ptolomeu Keraunos.

Mas, antes de se recolher, à noite, Keraunos se divertia consultando o oráculo de Homero, para ver o que os deuses desejavam que ele fizesse, e o oráculo respondeu: Seu lunático, sente-se quieto e escute os conselhos dos outros.

Mas Keraunos não era capaz de ficar parado por um momento que fosse, e ele não tinha a intenção de tomar conselhos de um mero oráculo.

Na noite da véspera da batalha, Keraunos mal dormiu por conta de sua excitação, mas, quando adormeceu, afinal, sonhou estar comendo livros, um sonho que admitia uma única interpretação, que era: morte repentina. De fato, Keraunos sonhou que estava comendo o livro mais sanguinolento de todos, a Ilíada, de Homero, um rolo de papiro depois do outro, já que eram feitos de massa de pastelaria; mas ele nem sequer cogitou que isso teria qualquer coisa a ver com a sua própria morte.

Keraunos afastou o pensamento de sua mente. Em todas as batalhas, isso é certo, morrem muitos homens, mas ele acreditava que, pessoalmente, estava fadado a jamais morrer, e a se tornar um Faraó do Egito, Ptolomeu Ainobios, Aquele Que Viverá Para Sempre.

Naquela manhã, ele atou ao corpo os laços da armadura de ouro, que fora presenteada por sua irmã, e acariciou com os dedos, repetidas vezes, seu colar egípcio feito de talismãs mágicos, o Baraka, o Portador da Boa Sorte, pedindo uma grande vitória sobre os gauleses, e não se mostrava nem um pouco preocupado com a perspectiva de enfrentar o estrépito sombrio da guerra. Estava indo para a batalha coberto de ouro, como uma garota, pobre idiota, e mesmo isso não o salvaria de uma morte mesquinha.

Enquanto seus homens comiam o que poderia ser seu último desjejum, constituído de pão molhado no vinho não diluído e lingüiças, Keraunos gritava:

Comam bem nesse desjejum, porque esta noite cearemos com Hades, e ele soltou a sua gargalhada de hiena. Quando os homens se aprontaram para a batalha, ele gritou: Afiem bem as suas espadas, alimentem bem os seus cavalos de patas ligeiras, e verifiquem bem o estado de seus veículos, de modo que possamos suportar o julgamento do odioso Ares por todo o dia.

O que de fato aconteceu foi que o único grego que, naquela noite, ceou com Hades foi o próprio Ptolomeu. Esse homem que se achava dotado de sorte, que nascera com sorte, que teria sorte para sempre, mas a sorte de Ptolomeu Keraunos escapuliu dele, isso porque esse foi o dia marcado pelas Parcas para que ele morresse, seu termia hemera, e ele não sabia disso.

Quando os gauleses começaram a se movimentar, em meio à floresta, os amigos de Keraunos insistiram para que ele aguardasse por reforços gregos, que já estavam na estrada a caminho de Pella, tendo sido retidos por chuvas torrenciais. No entanto, Keraunos estava tão entregue, agora, ao seu desejo de esmagar os bárbaros que ignorou seus amigos, como de hábito, e ordenou o ataque.

Não apreciamos esperar, ele disse, e emitiu seu grito de batalha, oAlalalalai da Macedônia, que foi repetido por seus homens, como se dissessem que estavam prontos para lutar e ansiosos para iniciar a batalha.

Naquele dia, Keraunos seguiu o exemplo de Felipe, pai de Alexandre, que sempre bebia vinho antes de montar em seu cavalo e entrar na batalha. Ora, pensou Keraunos, por que deveria proceder de modo diferente? E ele ordenou que uma ração extra de vinho fosse dada a todos os soldados, e a seguir dobrou-a, e triplicou-a, ainda, por conta do triunfo que estava por vir.

As tropas de Keraunos examinaram as florestas onde os bárbaros nus se reuniram, aos milhares, entoando em ritmo perfeito as canções de gelar o sangue que aquecia seus espíritos para o horror da batalha — homens que usavam seus cabelos louros eriçados em espigões, e cujos corpos musculosos eram pintados de azul, dos pés à cabeça, e cujo canto de guerra era um uivo que provocava mais calafrios do que oAlalalalai que os homens de Keraunos já não berravam agora, pois estavam parcialmente embriagados e porque Keraunos havia se esquecido de lhes dar a ordem para tanto, e porque já estavam hipnotizados pelos rugidos dos bárbaros.

O bramido da karnyx, a trombeta de guerra dos bárbaros, iniciou-se, os berros cortantes dos chifres de combate, e os gauleses investiram contra os homens de Keraunos com toda a fúria passional e desprovida de razão das bestas selvagens. Abatiam com seus machados e cortavam com suas espadas, e nada do que fizeram naquele dia se adequou às regras apropriadas e às sagradas leis dos procedimentos de guerra gregos: não alinharam suas tropas, não deram um aviso leal de que iriam atacar, não atacavam de apenas uma direção, mas pareciam cair, sobre os gregos, de todos os lados, como um milhão de maribondos. Keraunos gritava de prazer, ao assistir ao combate, mas sua voz, suas ordens que soavam como latidos, eram abafadas pelo fragor da luta, e assim o sangue começou a respingar para todos os lados. E, sim, os veículos dos bárbaros corriam em círculo em volta dos soldados de Keraunos e, quando eles perdiam suas espadas, continuavam lutando com as mãos nuas e com os seus dentes.

Quanto a Ptolomeu Keraunos, há três diferentes versões que tradicionalmente são contadas sobre o que aconteceu com ele.

Na primeira, se conta que quando os homens da falange se arremessaram à frente, Keraunos teria sido derrubado de seu elefante, e os bárbaros fizeram o corpo em pedaços. Sua cabeça, assim se disse, foi separada do corpo, seus braços foram arrancados dos ombros, suas pernas, também arrancadas como se fossem as patas de uma mosca. Suas partes íntimas foram decepadas enfiadas entre os dentes dele.

Na segunda versão, Keraunos teria sofrido um ou dois ferimentos mais profundos e, tendo sido aprisionado, fora torturado, enquanto os gauleses disputavam entre si para ver quais entre eles tirariam prazer de seu belo corpo de uma maneira repulsiva demais para que Thot a relate. Depois, deceparam sua cabeça, enfiaram-na na ponta de um dardo grego e a carregaram em triunfo pelo campo de batalha, para aterrorizar as tropas macedônias que ao verem que não tinham mais rei, perderam a coragem, numa só voz emitiram um grande grunhido e fugiram.

A terceira versão sugere que nenhuma batalha corporal tenha ocorrido, mas que Ptolomeu Keraunos teria se confrontado, sozinho, com Bolgios, já que era um costume dos gauleses, quando haviam deixado tudo pronto para o combate, avançar um passo à frente das tropas, encarar o inimigo e desafiar o mais bravo entre eles para um combate singular.

E teria sido Keraunos, então, a gritar contra Bolgios: Como alguém desesperado por bebida, é assim meu desejo de lutar contra você, embora esse bárbaro que não falava grego não tivesse entendido uma palavra sequer.

Keraunos escutou a fala, que lhe era tão estranha, do bárbaro, e soltou uma risada. Achou engraçado que esses selvagens pudessem ter acreditado que seriam capazes de derrotar o poder dos macedônios, e aquele barulho que produziam — era realmente como o piado de andorinhas.

Enquanto Keraunos saltava de um lado para o outro, sem sair do lugar, aguardando, ansioso, pelo momento do combate, um de seus amigos segurou seu braço e lhe disse: Não é para uma dança que ele o está convidando, mas para uma luta até a morte.

Keraunos soltou outra gargalhada e deu um passo à frente. Nesse momento, ele já não estava completamente sóbrio. Mas quem senão Keraunos seria o mais bravo ali? Era, ele bem o sabia, o que Alexandre teria feito, e era a sua chance de provar que era tão bom quanto Alexandre, senão melhor. Tudo em que conseguiu pensar foi que seu meio-irmão, Ptolomeu Mikros, nunca ousaria fazer algo igual, e só isso já serviu como mais uma razão para Ptolomeu aceitar o combate dele, somente, contra Bolgios. No entanto, Mikros era um homem mais sensato.

O espadachim feroz, o poderoso criador de pânico, esse Raio, agora avançou com passos dançantes para enfrentar Bolgios, que era o homem mais alto que já se viu, e que lá estava, nu, a não ser pelo colar de ouro em volta do seu pescoço, com a sua espada de ferro e seu escudo de couro, tatuado em azul da cabeça aos pés, exibindo os mais rijos músculos em todo o corpo, e untado de gordura por todo o corpo também, mas não sujo de poeira, como os gregos estavam, de modo que Keraunos não tinha como agarrá-lo, pois tudo nele era escorregadio. Esse gigante era mais alto do que Keraunos, e rosnou contra ele, rindo-se de Keraunos e fazendo troça dele, de modo que ele se lançou contra o gaulês não com a cabeça fria, mas fervendo de ódio e berrando. E foi assim que o Raio entrou em luta contra o Relâmpago.

Ptolomeu Keraunos atacou com toda força, sim, mas pesava contra ele sua espada de ouro, seu escudo de ouro, seu peitoral de ouro, suas grevas de ouro, suas botas de couro de crocodilo, seu elmo de ouro, que ostentava no topo penas brancas de avestruz, que foram aliás a primeira coisa que Bolgios cortou.

Além disso, Keraunos tivera seu peso um pouco aumentado de tantos banquetes, e seus movimentos também estavam algo lentos; enquanto Bolgios dançava ao redor dele, muito leve sobre suas pernas nuas, sem grevas, nem botas de soldados, saltando no ar e derrubando Keraunos no chão vezes e vezes seguidas, com seus pontapés voadores. Então, firmou finalmente o pé sobre o peito de Keraunos e o feriu repetidamente, nos braços e no pescoço com sua espada, e por toda a duração do combate os gauleses rugiam seus cânticos de louvor aos poderosos feitos de seus ancestrais e a canção em que se gabavam de seus enormes êxitos e depreciavam seus inimigos, e o canto rítmico e ensurdecedor que vinha desses selvagens pintados tinha como propósito privar os gregos de seu orgulho, de sua coragem e ânimo, antes mesmo que ocorresse um único que fosse combate corpo-a-corpo — e foi o que aconteceu.

Esses bravos mercenários de Keraunos — a maioria deles não era plenamente fluente em grego, muito menos sabia de cor as letras das canções de guerras dos gregos. Não haviam sido treinados pelos seus comandantes para cantarem juntos, e assim não elevaram seus gritos e urros, em favor de seu comandante, para encorajá-lo, mas simplesmente permaneceram observando em silêncio. Não pode haver dúvidas sobre o que aconteceu: Bolgios atravessou a boca de Keraunos com o impiedoso bronze, e a lâmina de sua espada passou rente ao cérebro, por baixo, estilhaçando os brancos ossos. Os dentes foram arrancados e os olhos inundaram-se do sangue negro: então a boca alargada de Keraunos emitiu seu último grito de batalha lançando um jorro de sangue da boca e das narinas, e a bruma negra da morte o cobriu.

Quantas vezes Ptolomeu Keraunos despiu um inimigo morto de sua brilhante armadura? Quantas vezes decepou orelhas e dedos, cabeças e rhombo, carregando-os como troféus de guerra e rindo a sua risada de hiena? Muitas vezes. Agora, era vez do próprio Keraunos sofrer tais indignidades que tantas vezes impôs aos outros.

Os gauleses se apossaram da brilhante armadura de Keraunos e o deixaram nu e ensangüentado, no campo de batalha, privado de qualquer cerimonial de purificação, esperando a realização de seu destino. E, sim, qualquer que seja a verdade nessa versão, o final foi o mais desgraçado, já que os soldados do macedônio voltaram-lhe as costas e fugiram correndo. Alguns se salvaram, mas a maioria foi aprisionada, tratada vergonhosamente e vendida como escravos, ou mesmo cortada em pedaços pelas espadas inimigas.

Enquanto os chifres dos gauleses ainda ecoavam nas planícies, os bárbaros estupravam os mortos, homens e mulheres, soldados e acompanhantes do acampamento, indiferentemente. Violaram os que já estavam mortos. E então, pior ainda, cometeram sacrilégios contra os deuses da Hélade, arrasando e profanando os locais sagrados, altares e templos, não se furtando a nenhum ato insultuoso. Enquanto se retiravam para o norte, pilharam, destruíram e chacinaram, incendiando todos os prédios das fazendas e todos os campos de milho, de modo que a Macedônia ardeu em chamas de uma fronteira a outra e uma nuvem negra de fumaça pairou sobre aquelas terras por dias.

Era, de fato, um comportamento digno do grande Alexandre, que se permitira tais atos durante toda a sua campanha na Ásia. A variante dessa vez foi que os macedônios receberam o mesmo tratamento que costumavam ministrar.

E Thot diz: Quem vai dizer que não o mereceram?

E o que foi feito de Ptolomeu, o Raio, que lá ficou, caído, com a noite chegando, abandonado, sem sua armadura de ouro, sem sua brilhante túnica, e tendo sido até mesmo suas roupas de baixo roubadas dele?

Seus olhos se foram primeiro, levados pelos corvos, já que os olhos são sempre privilégio dos corvos. Então, as partes macias, carnudas, que sempre causaram problemas a Keraunos. O que sobrou dele, coube aos cães devoradores de carcaças e às aves de rapina, que estraçalham os cadáveres deixados pela guerra sem nenhuma pressa; e as caudas dos cães batiam sôfregas sobre o chão alagado de sangue, com o ar acima deles pesado com as asas dos abutres. Antes do pôr-do-sol seguinte, os ossos dispersados de Ptolomeu Keraunos, um rei filho de um rei, já haviam sido descarnados pelo banquete dos pássaros e dos cães, exatamente como fora profetizado pelos horóscopos.

Não se tratava de um jovem cabeça quente, embora não aparentasse mais de trinta anos e agisse, às vezes, como se tivesse vinte, morreu aos quarenta ou quarenta e um anos de idade.

Os gauleses alimentavam a estranha crença de que todas as virtudes de um inimigo morto em batalha habitavam o seu crânio e acreditavam, mais ainda, que a cabeça decepada continuasse a viver, muito depois do corpo no qual se prendia ter morrido.

E assim a cabeça de Keraunos não foi deixada no campo, porque os gauleses retornaram mais tarde e a recolheram, e a levaram para sua terra, com eles, enfiada na ponta de uma lança. Bolgios admirara muito a selvageria de seu oponente, a quem, a despeito de estar bêbado, ou então por causa disso lutara com o ânimo de um gaulês, e por isso deu-se ao trabalho de embalsamar a cabeça em óleo de cedro, que era o maior tributo que um gaulês poderia prestar a um inimigo.

Quando o embalsamamento estava terminado, Bolgios decorou a cabeça de Keraunos com ouro e a deixou numa arca, da qual a tirava, em ocasiões especiais, exibindo-a a visitantes, com muito orgulho, como um símbolo de sua proeza militar, e até o dia de sua morte recusou-se a desfazer-se dela, apesar de lhe terem oferecido o peso da cabeça em octodracmas de ouro.

Em algumas festividades gaulesas, Bolgios levaria consigo seu grande tesouro e a usaria como taça para servir libações aos seus deuses. Havia vezes em que ele colocaria a cabeça sobre um pilar e, derramando um pouco de água em sua boca, faria a cabeça pronunciar algumas palavras, embora em grego, uma língua que o bárbaro, por definição, não teria condições de compreender.

Derramando vinho não diluído na boca de Keraunos, às vezes, fazia-o mexer um pouco seus lábios escurecidos, e até mesmo cantar alguns versos para os gauleses da Canção da Andorinha dos Gregos. Sob certa iluminação, via-se os olhos artificiais de Keraunos, feitos de valiosas gemas, colocados para que substituíssem os olhos devorados pelos corvos, como se soltassem chispas, ou um brilho próximo da alegria.

A cabeça de Keraunos, então — imunda, barba por fazer, desfigurada, emplastrada de sangue ressecado —, cantaria, assim como cantara a cabeça decepada de Orfeu, chegando a fazer as árvores e rochas se moverem.

Havia noites em que a cabeça de Keraunos poderia ser obrigada a emitir um lamento, ou a responder questões simples, ou a dar conselhos sobre toda questão importante. Mas o mais importante de tudo era que, a cabeça, enquanto permanecesse sob a posse dos gauleses, fertilizaria suas lavouras e repeliria qualquer invasão dos macedônios.

Ptolomeu Keraunos, então, viveria para sempre, mas não exatamente segundo as suas expectativas; do mesmo modo que o seu meio-irmão, rei Ptolomeu Mikros, o novo Faraó do Egito viveria para sempre.

Essa última relíquia do Raio, no entanto, terminou como um legado de família entre os bárbaros, que prezavam a sua coragem, em verdade, mais do que seu próprio povo. Já que Keraunos era tão parecido a um bárbaro, não era, afinal de contas, um fim despropositado em relação a ele.

Alguns homens viram a morte do Raio como uma desforra dos deuses da Grécia contra o assassinato de seus dois sobrinhos, cujo sangue clamava por vingança; outros entenderam que se tratava apenas do efeito de uma maldição, ou da magia de sua meia-irmã, Arsinoê Beta. Outros, recordaram as palavras de Heródoto: Não há ninguém que não tenha a infelicidade como um ingrediente de seu destino.

E o que aconteceu ao famoso crocodilo cravejado de pedrarias? Quando Keraunos foi morto, os gauleses se serviram não apenas da armadura do Raio, mas também do seu amigo encouraçado. As pedrarias, fizeram-nas saltar da pele do animal com suas facas de caça. Extraíram o ouro escamoso e o transformaram em calções. A carne, eles a arrancaram, aos nacos, já que estavam com fome.

Leitor, eles o comeram.

Assim, afinal, terminou Ptolomeu Keraunos, o famoso Raio, o garoto nascido para se tornar comida de cães.

 

               Fantasmas Gregos

Quem, então, comeu o pudim de ervilha, o prato fúnebre, pelo falecido Ptolomeu Keraunos? Ninguém. Quem, então, empanturrou-se no Banquete Vermelho que Keraunos tanto apreciava, a ponto de se tornar um aficionado da morte? Ninguém.

E quanto a Arsinoê Beta, essa meia-irmã e por breve tempo sua esposa? O que sentiu ao se inteirar das notícias sobre a morte do seu irmão? Nada. Nem alegria nem tristeza, apenas o costumeiro entorpecimento que sente uma mãe que teve dois de seus filhos assassinados em seu colo, e não pode esquecer nem a cena nem eles. Arsinoê Beta não sentiu nada.

Assim mesmo, é crença dos gregos que o fantasma de um homem que morre antes do tempo irá vagar e disseminar o mal até que decorram os anos que a sua vida normalmente despenderia. Assim, o fantasma de Ptolomeus Keraunos estava fadado a perambular por cerca de trinta anos, ou seja, por todo o restante dos anos de Arsinoê Beta sobre a Terra; e a verdade é que esse fantasma surgiu para ela, é claro, de modo que ela não conheceu um dia sequer sem estar assombrada pelo meio-irmão, com sua pele acinzentada e as surradas roupas cinza próprias dos fantasmas gregos, e não se passou um dia ou noite na vida de Arsinoê Beta sem que ele irrompesse em seus aposentos, como um centauro, como fazia quando jovem, e ele se debruçaria, nu e atrevido, sobre o tronco dela, e agarraria suas duas orelhas e lhe daria o beijo kuthra, o beijo de alças, e colocaria suas mãos sobre os seios dela, e os apertaria com força, de modo que suas unhas a feririam, e ele morderia o queixo dela, e tanto, que ela gritaria, e ela não saberia se era de dor ou de prazer.

Em seu sono, ela gritaria para esse irmão: Que os cães de patas ligeiras se alimentem de seu cadáver! Mas o fantasma ensangüentado a montava, indiferente, e não a deixava em paz. Ainda muito nova, ela havia dirigido preces aos deuses da Grécia para que Keraunos ficasse ao seu lado para sempre. Pelo menos essa prece fora atendida.

Tampouco Arsinoê Beta conheceu uma única noite livre do fantasma do belo Agathokles, que surgia para ela, ensangüentado e belo na morte, sem as mãos nem os pés nem outras partes do corpo, a acusá-la de ser a maior responsável pelo seu assassinato.

Tampouco, é claro, Arsinoê Beta conheceu um dia ou uma noite sem que visse também os fantasmas de seus dois filhos assassinados, os príncipes Felipe e Lisímaco Mikros, que a seguiram na travessia do Grande Mar até Samotrácia, e ela era assombrada até mesmo pelos gritos deles, por suas vozes adolescentes, nem agudas nem graves, mas algo guturais, roucas, já começando a se transformar na voz de um adulto. Dia e noite via a imagem de seus jovens membros bronzeados por conta dos exercícios no gymnasion grego, manchados do próprio sangue. Via os seus rostos tão jovens, meio surpresa, meio horrorizada, e vivia de novo o assassinato deles em seus sonhos, como se tivesse sido culpada também desse ato.

Pelo resto de seus dias, Arsinoè Beta acordaria, no meio da noite, gritando, pingando de suor, muito antes da hora de despertar, e quem se surpreende com isso? Claro, se havia quatro fantasmas na vida dessa mulher, de modo que, à noite, seu quarto estava bastante povoado.

Reflexões de Thot: Arsinoè Beta, sem dúvida, ela havia previsto seu futuro — uma vida inteira de noites insones, o interminável horror de ficar contemplando seu passado. Alguns homens ainda encontram dentro de si alguma piedade por essa mulher, tão dura, que vivera para assistir à morte de seus filhos. Mas a maioria dos gregos daria de ombros: era o destino dela. Tudo o que aconteceu foi vontade dos deuses. E Arsinoè Beta, se quisesse mudar seu destino — bem, era inteligente o bastante para tanto. Teria a sabedoria necessária para prever o que iria lhe acontecer.

Era sem dúvida o destino de Arsinoè Beta, de um lado, usufruir da glória, da riqueza, do poder; e, por outro, os deuses da Grécia, sempre tão invejosos, não se puderam convencer a lhe permitir ter tudo: e a coisa mais importante que lhe negaram foi a felicidade.

Ninguém portanto deveria sentir-se surpreso pelo fato de essa rainha ser uma rainha enferma, e ninguém precisaria buscar demais pela verdadeira causa de sua interminável enfermidade; era, seguramente, vingança dos deuses, a desforra dos deuses, e somente a morte talvez lhe trouxesse a felicidade de liberá-la desse tormento.

No momento, seu único consolo consistia no fato de o quinto fantasma, o do velho Lisímaco, por enquanto não vir assombrá-la, já que esse homem havia vivido os anos que lhe cabiam e não precisaria mais vagar.

Mas Arsinoè Beta, embora fisicamente debilitada, tinha grande determinação, muita inteligência, e nenhum de seus infortúnios a fez sequer pensar em tirar a própria vida. Ela era forte demais para isso, e ainda causaria muitos problemas nos nove anos que lhe restavam na Terra, até que chegasse o dia fixado pelas Parcas para ser o dia de sua morte.

Naquele ano em que correu o primeiro veloz rumor da chegada dos gauleses, Terceiro Ano do rei Ptolomeu Mikros, com Eskedi como sumo sacerdote de Ptah, em Mênfis, ocorreu a morte do Ápis, o Touro Sagrado de Ptah, cria da vaca chamada Ta-nt-Merwer, aos 22 anos de idade.

Eskedi e Neferrenpt choraram, e todo o Egito baixou a cabeça, mantendo-a encostada nos joelhos, lamentando a morte do Ápis. O novo rei Ptolomeu tomou imediatas providências para custear as despesas com o funeral e, no tempo devido, os 29 dias de ritos funerários foram cumpridos, e o touro mumificado e enfaixado, carregado sobre o carro prescrito para o platô deserto a oeste de Mênfis, e enterrado na necrópole dos touros Ápis, em meio à cerimônia mais magnífica que se poderia imaginar.

Eskedi chorou. Neferrenpet chorou. Padibastet e Nefersobek choraram. Khonsouiou, irmão de Padibastet, também chorou. Todo o trabalho, no Alto e no Baixo Egito, foi interrompido enquanto se realizavam os funerais.

Essa tristíssima perda foi interpretada como um prenúncio de que alguma desgraça estaria por acontecer, e as notícias da morte de Ptolomeu, o Raio, para muitos gregos do Egito o Faraó por direito, chegaram a Alexandria pouco depois.

No entanto, houve mais pranto no Egito, uma cerimônia mais pródiga e um ritual mais esplendoroso, e mais sofrimento oprimindo os corações, mesmo entre os gregos, pela morte do Ápis do que, em todo o mundo grego, pela morte de Ptolomeu Keraunos.

Na realidade, quando a notícia da morte de seu meio-irmão alcançou Ptolomeu Mikros, no Egito, ele se permitiu, por um momento, esquecer a dignidade de seu alto posto, removeu o khepresh da cabeça, e até mesmo o elmo-coroa de couro azul, a coroa de Marte, e o atirou para cima, o mais alto que pôde, ali mesmo no Salão de Audiências, e diante de centenas e centenas de egípcios, e isso além de soltar um brado de satisfação.

Não existe tal coisa, disse ele a Arsinoê Alfa, como acaso: tudo é decidido pelos deuses.

E citou as palavras escritas por Heródoto, o historiador: A fortuna dos homens está numa roda, a qual, em suas voltas, não permite que um mesmo homem prospere permanentemente...

Com o fim da ameaça da invasão de Keraunos, o rei Ptolomeu Mikros poderia, sem dúvida, prosperar agora e voltar os seus pensamentos não para a guerra, mas para a glória do Egito, uma nação pacífica, desejosa de desenvolver seu comércio com as demais.

Após a morte de Ptolomeu Keraunos, seguiu-se uma grande incerteza na Macedônia, com muitos candidatos reivindicando a coroa, os quais permaneceram reis por apenas um curto período, antes de serem depostos.

O primeiro desses foi Meleagros, o quase esquecido filho de Ptolomeu Soter e irmão mais novo de Keraunos. Mas Meleagros não tinha exatamente o estofo de um rei. Havia vivido na sombra do Raio, sempre superado nas práticas de luta livre, boxe, em questões de entendimento e até mesmo ofuscado pela presença dominante do garoto que acreditava que seu destino era ser Filho do Sol, Filho de Rá. Meleagros, assim como Keraunos, nasceu para perder, e durou apenas sessenta dias como Rei da Macedônia, quando então foi descartado, considerado inadequado. Qual teria sido a sua história depois disso ninguém é capaz de contar.

Depois de Meleagros veio Antipatros, um sobrinho de Cassandro que reinou sobre a Macedônia por exatos 45 dias, e em conseqüência disso ganhou o apelido de Etesias, como os Ventos Etesianos, que sopram por 45 dias e cessam de repente. Nem Meleagros nem Etesias conseguiram oferecer uma apropriada resistência aos gauleses, a despeito do intenso treinamento das tropas de elite da Macedônia. Os gauleses então prosseguiram devastando e arrasando as terras gregas, e toda a Grécia lamentava-se.

Depois de Antipatros Etesias veio um general de Lisímaco, chamado Sóstenes, um homem sem sangue real, que se recusou a assumir o título de rei. Sóstenes reagrupou os remanescentes do exército e lançou-se à guerra, mantendo Bolgios ocupado, enquanto os arautos macedônios corriam atrás de Antígonos Gonatas, o Rótula, para lhe suplicar que voltasse para a Macedônia e assumisse o trono — embora para fazer isso tivesse, igualmente, de salvar a Macedônia do avanço dos gauleses.

Logo depois de Sóstenes, veio Ptolomaios, o filho sobrevivente de Lisímaco da Trácia e Arsinoê Beta, mas esse garoto de 19 anos não era páreo para as forças combinadas de Bogios e de todos os demais gauleses.

Sem dúvida, esse garoto estava fadado a se tornar rei, mas, evidentemente, a Fortuna não o destinara para o trono da Macedônia. Talvez, pensou ele, pudesse se tornar rei da Trácia.

Por fim, nomearam o famoso Pirro de Epeiros como rei, um homem de quem o mundo ouviria falar mais tarde. No total, esses cinco reis tão frágeis reinaram durante três anos sobre a Macedônia.

Falta relatar o que aconteceu a um personagem dessa história de Thot: O que foi feito de Eurídice, a mãe de Ptolomeu Keraunos? Isso porque esse rei havia instalado sua mãe em Cassandréia, durante o seu breve reinado na Macedônia, onde ela desfrutou, por fim e afinal, o título de Mãe do Rei, e sempre insistia que a chamassem de Basilissa. Mas não teria Eurídice pranteado a morte de Keraunos? Se o fez, não há registros a esse respeito. Mas que mãe não choraria se um filho morresse antes dela?

Sendo ainda uma mulher jovem, essa Eurídice poderia ter se casado com um novo marido, mas preferiu manter sua independência; ter toda a vida sob seu próprio controle.

A última notícia que se escutou de Eurídice foi que ela reinou em Cassandréia com o apoio de soldados mercenários, muitos dos quais haviam sido contratados por Arsinoê Beta. Eurídice, assim como o seu filho, preferia pagar pela lealdade de um homem — homens que a protegeriam, lutariam e matariam qualquer um, contanto que recebessem seu pagamento. Isso porque ela havia aprendido a grande lição que todo soberano deve aprender: ela não deveria confiar em ninguém.

Prosseguiu com as obras de assistência que havia iniciado no Egito, enviando bolsas de octodracmas de ouro para garotas pobres de Cassandréia e Mileto, como dotes, para que pudessem se casar, em vez de descerem na vida, reduzindo-se à condição de escravas ou de concubinas. Por tais atos de genejpsidade, Eurídice, talvez pela primeira vez em sua vida, era amada.

Quando chegasse sua hora, seria sepultada por mãos de estranhos, entre elas as das mulheres pobres que ajudara, e que retornavam ao túmulo todo aniversário de sua morte para servirem a apropriada libação de leite, mel e vinho não diluído, junto à sua sepultura.

Embora fosse notório em Miletos e Cassandréia quem era Eurídice, e o que ela fora, ninguém jamais a escutara pronunciar o nome do seu marido. Para essa mulher, Ptolomeu era um nome ao qual se deveriam dirigir maldições e execrações, e ser evitado como o de Hades. Ela sabia, do mesmo modo como muitos outros não sabiam, que a família de Ptolomeu e até mesmo o nome de Ptolomeu eram desafortunados, assim os horoscopistas lhe haviam revelado, e a Casa do belo marido que teve estava fadada a trezentos anos de má sorte.

Parte de Eurídice se regozijava por ter reconquistado a sua liberdade, e parte dela estava aliviada por ela e suas filhas não mais pertencerem à mais desafortunada família que já vivera.

Com Ptolomeu Keraunos morto, seu irmão Mikros sentiu-se enfim em segurança no Egito, pelo menos por ora. Dormia confortavelmente em sua cama marchetada de ouro, com pés de leão e cabeceiras de esfinges.

Mikros passou a devotar todo o seu tempo às artes da paz e a ampliar a glória de Alexandria, bem como de todo o Egito. Ignorando os perigos da hybrís, ele permitia-se se gabar de que seu reino era o mais glorioso de toda a história das Duas Terras. Em suas jactâncias, não estava, entretanto, muito longe da verdade.

Quanto à guerra, e às ameaças de guerra, ele realmente não tinha o que temer, mas isso, como Eskedi, sumo sacerdote de Ptah, afirmou, somente até a próxima vez.

 

                 Voltando Para Casa

Arsinoê Beta, após ter aguardado alguns meses na ilha de Samotrácia — por um tempo melhor e pela volta da estação das navegações, e depois pelo vento certo —, por fim, embarcou num tríeres com destino ao Egito e tomou o rumo de seu lar, com suas aias trácias, fazendo segredo de quem era, de quem fora, e acima de tudo sem comentar nada sobre os terríveis episódios ocorridos em Cassandréia.

Quando subiu a bordo do navio, seus amigos lhe disseram: Que os deuses lhe concedam a felicidade de retornar para casa, e ela ingeriu, como de hábito, o remédio à base de carne de lagarto verde contra enjôos no mar, e como de hábito o lagarto verde não lhe adiantou de nada, de modo que antes mesmo que as velas estivessem infladas, a nausiasis acometeu-a, e ela vomitou até as entranhas, debruçada nas amuradas, por todo o trajeto até Alexandria.

Quando essa ex-rainha viu-se segura na Enseada de Eunostos, a Enseada do Feliz Retorno, revelou afinal ao capitão a sua identidade: Sou Arsinoê, ela disse, irmã do rei Ptolomeu, e ordenou-lhe que enviasse uma mensagem ao seu irmão, pedindo-lhe que ele providenciasse para que ela fosse recebida. Mas o capitão riu na cara dela e não acreditou numa palavra sequer do que ela lhe dissera.

Nem tampouco o mestre do porto deu crédito à história de Arsinoê, já que, como ele declarou, as mulheres ali eram todas estrangeiras.

Nem também o chefe da guarda, nos portões da grande residência branca do Rei, à visão da qual, reluzente ao sol, seus frontões triangulares de mármore, pórticos e colunas coríntias trouxeram profundo alívio a Arsinoê. Mas, não, Arsinoê havia deixado a cidade ainda uma garota de 15 anos, 22 anos atrás, de modo que se espantou diante da grandiosidade do quase concluído Farol, assomando sobre o porto. Ninguém em todo o Egito pensou que voltaria a pôr os olhos no rosto dessa moça, e aqueles que conheciam bem o seu caráter apreciaram vê-la pelas costas, de modo que Arsinoê casada valia tanto quanto Arsinoê morta e esquecida.

Não seria surpresa nenhuma, portanto, que essa rainha não fosse reconhecida como uma princesa da Casa de Ptolomeu. Seupeplos estava rasgado e manchado de sangue. Seus cabelos, antes louros, estavam desgrenhados e o thoque dos acontecimentos em Cassandréia os tinham tornado grisalhos. Ainda tinha muito de suas riquezas, em jóias e ouro, escondidos em meio a sua bagagem, mas não tinha nenhum outro pertence pessoal que não o traje branco salpicado de sangue que vestia, e o qual havia se recusado a tirar desde o dia do assassinato de suas crianças, assim como o pacote de papiro contendo o veneno, que trouxera consigo, recusando-se a acreditar que tivesse perdido todo o seu poder, e sempre pensando que poderia precisar dele, nesse seu retorno ao lar.

Arsinoê havia planejado fazer um dramático retorno, mas havia chegado antes da notícia do que lhe sucedera, e embora as notícias da morte de Ptolomeu Keraunos houvessem atravessado ligeiras o Grande Mar, o destino de Arsinoê Beta fora conhecido apenas pelos mares turbulentos e pela deusa que se apressa a espalhar os rumores.

Quando o mestre do porto, finalmente, conduziu essa mulher até diante do seu irmão, todos os cães rosnaram e latiram contra ela, e por uma boa razão. O rei Ptolomeu somente a reconheceu pela voz, porque ela havia rasgado as faces com suas unhas e as marcas sangrentas permaneciam vividas, já que ela não pretendia esconder as cicatrizes de seu padecimento com cosméticos, para granjear a solidariedade de sua família. E, claro, já fazia vinte anos que Ptolomeu Mikros havia visto pela última vez essa sua irmã.

Não reconheci o seu rosto, ele disse, e isso porque não era a Arsinoê de faces como maçãs de quem ele se despedira, com a idade de nove anos.

Quando se encontrou com Filotera e Theoxena, abraçou-as às lágrimas e disse: Aviso a vocês que suas lágrimas se derramarão muito em breve, quando escutarem minha história, isso porque a lista de infortúnios que os deuses me atribuíram é muito longa.

E, quando terminou de contar, sua irmã, Filotera, lhe disse: Arsinoê, você já chorou demais. Chega desse sofrimento incontinente, que não tem propósito algum. E ela sugeriu que Arsinoê prestasse o sacrifício que todo viajante deve fazer, na chegada, e diante disso Arsinoê começou a lamentar-se, aos prantos: Minhas mãos não foram lavadas e sinto vergonha de servir o brilhante vinho a Zeus do jeito que estou. Além do mais, ninguém pode fazer preces suja de sangue e imundície.

Assim, aqueceram o cobre no fogo e aqueceram a água para o seu banho, a despeito do costume prescrever que as mulheres da Macedônia devem se banhar apenas em água fria.

Arsinoê Beta chorou tantas e tão amarguradas lágrimas que sua torrente de emoções femininas surpreendeu a sua família, que se lembrava de uma garota que, como Héracles, jamais chorava, e que a Arsinoê que partira do Egito era dura como uma corrente de cachorro, quase privada de emoções femininas.

Ela mudou muito, todos pensaram, mas se perguntaram também se não estaria chorando lágrimas como as do crocodilo, ao mesmo tempo que se esforçavam o mais que podiam para fazê-la sorrir, o que nunca seria, certamente, mesmo na melhor das ocasiões, uma coisa simples, e diziam então: Não deixe a morte oprimir o seu coração...

Quando já haviam banhado Arsinoê e vestido-a em roupas limpas, ela dedicou os sacrifícios a Zeus, Protetor dos Que Desembarcam, e a Apoio, Deus dos Felizes Desembarques, e sua alegria então foi verdadeira, porque, como dizem os gregos, não há visão mais doce para os olhos de uma mulher do que a da sua terra natal.

Logo a seguir, Arsinoê Beta encomendou uma receita para disfarçar seus cabelos grisalhos, feita de sangue de uma vaca amarela, gordura de uma cobra amarela e gemas de uma dúzia de ovos de canários, e assim ela conseguiu restaurar em seus cabelos quase a antiga e gloriosa cor dourada.

No ano do retorno de Arsinoê, seu irmão, o rei, reabriu o Grande Canal, que havia sido escavado por Dário, rei dos persas, e pelo Faraó Nekau, e além disso o último andar do Grande Farol de Alexandria foi concluído.

Arsinoê Beta fez tudo o que deveria fazer. Dedicou generosos e diários sacrifícios aos deuses da Grécia, a todos eles. Fez freqüentes consultas ao Oráculo do deus Zeus-Amon, no deserto da Líbia, para perguntar por que não conseguia realizar o seu maior desejo, que era se ver livre do horrível fantasma do belo Agathokles, que não ficara na Trácia, e sim a seguira até a Samotrácia, e agora ao Egito, e que ficava junto dela dia e noite, quer ela estivesse acordada ou dormindo.

Sim, ela chegara mesmo a ficar sob uma torrente de sangue de leitão por metade de uma manhã, mas Agathokles não a deixou em paz.

Havia noites em que Arsinoê Beta sentava-se em seu leito e começava a berrar. Tomou o hábito de se banhar diariamente mesmo na Grande Enseada de Alexandria, ou nas praias a leste e a Oeste, junto aos penhascos, e isso porque os banhos a faziam sentir-se limpa: tomar banho parecia fazer seus crimes menos graves, e o fardo do mal que praticara parecia menos pesado. Sempre entrava na água, com ela o ensangüentado fantasma do belo Agathokles, morto e nu, nadando como um cachorro junto a ela. Por fim, já não restava mais nada a fazer, a não ser aprender a conviver com esse fantasma, porque estava claro que Agathokles nunca iria embora.

Mas ela era forte. Decidiu que não enlouqueceria como Theoxena. E, por fim, começou a gostar de ter Agathokles seguindo-a pelo palácio. Entendeu que na verdade apreciava ter a companhia de Agathokles e de vê-lo ao pé de sua cama folheada a ouro. Por isso, nunca contou nada a Ptolomeu a esse respeito.

Agathokles, o Fantasma, mesmo na morte, tinha a aparência de um deus, e assim Arsinoê Beta começou a ver o fantasma como seu triunfo pessoal, já que, no final das contas, havia ganhado o que mais queria, que seria ter Agathokles para sempre ao seu lado.

Havia noites em que ela murmurava, enquanto dormia, quando conseguia dormir, Um fantasma é semelhante a um marido. E por ora era o marido que ela tinha. Na meia-luz antes do alvorecer, ou sob a luz fantàsmal que sempre fazia na hora em que ele fora assassinado, Arsinoê conseguia se convencer de que o fantasma de Agathokles lhe sorria, brevemente, e que os olhos dele brilhavam para ela, e seu amor pela assombração não era menor do que pelo homem vivo. Assim, como o fantasma não a abandonava, Arsinoè Beta, talvez pela segunda vez em sua vida foi uma mulher quase feliz.

A outra Arsinoê no Egito, Arsinoè Alfa, seguramente não estava nada feliz.

Thot pede: Tenha a bondade de pôr a sua imaginação para funcionar. Foi Arsinoê Beta que assassinou o adorado irmão dessa mulher, e agora Arsinoè, a assassina, a única mulher no mundo em quem Arsinoê Alfa desejaria jamais tornar a pôr os olhos, a não ser para dançar em seu funeral, retornava a Alexandria, e passava a viver na mesma residência e, a não ser que ela se opusesse, prestes a se instalar no mesmo gynaikeion que ela, para vigiá-la dia a dia, lhe dar ordens em tudo e tornar sua vida infeliz outra vez.

O que faria Arsinoè Alfa? Não se empenharia ao máximo para se livrar dessa odiada madrasta, que chegara, como um abutre doméstico, assentando seu ninho num palácio do qual já se despedira?

E quanto a Arsinoè Beta? Não tentaria matar Arsinoè Alfa, antes que Arsinoê Alfa tentasse matá-la, por vingança pelo assassinado de Agathokles, seu irmão?

Arsinoè Beta — ela praticaria agora o mais hediondo ato em relação a Arsinoê Alfa, e ela era de fato uma cobra, uma autêntica cobra no que diz respeito à perfídia e ao veneno, e era quase como já se estivesse enroscando e preparando o bote, armando-se para cuspir seu veneno mais uma vez, como a cobra egípcia, mas calculando bem o tempo, aguardando o momento certo, esperando.

Quanto a Ptolomeu Mikros, o que faria ele acerca das duas Arsinoê, que de alguma maneira teriam de conviver em paz sob o seu teto? Mikros sempre achou que o mais fácil era não fazer coisa alguma e, no momento, achando que essas mulheres acabariam resolvendo suas diferenças e que os problemas entre elas não eram seus problemas, resolveu que também não faria nada, agora.

Quando Arsinoê Beta já tivera os dias que precisava para se acostumar com sua nova vida, no Egito, Mikros chamou-a para uma conversa a sós, em seus aposentos particulares, e a inquiriu sobre os boatos que havia escutado.

No entanto, Arsinoê Beta franziu o cenho e estendeu as mãos. Olhe, ela disse, minhas mãos estão limpas. Não tomei parte nesse crime.

Em seus sonhos, Mikros havia visto essas mesmas mãos de sua irmã cobertas de sangue e, em seu íntimo, sabia que essa era a verdade.

Questionou-a, então, acerca da morte de Agathokles uma segunda vez, e ela o olhou bem nos olhos,

Não matei Agathokles, disse ela, o que era verdade, já que havia apenas ordenado o ato e, tecnicamente, não era culpada de nenhum crime.

Não sou uma assassina, ela afirmou. Amava Agathokles como meu enteado...

Mikros se perguntou se ela não seria uma mentirosa nata, como Keraunos.

Quando cartas histéricas de Lysandra chegaram, da Síria, acusando Arsinoê Beta de medonhos crimes, Mikros teve a certeza de que Arsinoê Beta mentira. E, quando as cartas pararam, ele não soube mais o que pensar.

Mesmo assim, Mikros não tinha a intenção de mandar Arsinoê Beta embora de novo. A irmã já vinha se mostrando útil demais para que ele a dispensasse agora. Não, ele desejava poder consultar suas opiniões sobre política externa e sobre todos os detalhes dos assuntos domésticos, já que ela imediatamente provara ser a mais inteligente das mulheres. Mikros sabia que, fosse o que fosse que perguntasse à sua irmã, ela teria uma resposta; e sabia igualmente que o que quer que perguntasse à sua esposa, ela não saberia responder. Nesse ínterim, Mikros iria, assim planejava, procurar um novo marido para a sua irmã, de modo que, talvez, sua esposa, Arsinoê Alfa, fosse deixada em paz.

Mas enquanto ia lhe pedindo seus bons conselhos, sabia muito bem que essa sua irmã assassina bem poderia matá-lo, enquanto ele dormia, assim como matara Agathokles, e assim a manteve sob vigilância, e sugeriu-lhe que ela apreciaria usar os trajes quase transparentes das princesas egípcias, de modo que tivesse sempre a certeza de que ela não ocultava uma faca por baixo das roupas, e, é claro, ela regozijou-se com isso.

No entanto, Arsinoê Beta não pensava em matar o seu irmão. Era da mulher dele que ela pretendia se livrar. Pelo contrário, interessava a Arsinoê Beta fazer tudo ao seu alcance para manter o irmão vivo.

Quando Mikros lhe perguntou o que fora feito de Lysandra, ela olhou para ele como se não soubesse de quem ele estava falando. Então, abriu os braços, sem resposta, e balançou a cabeça. Afirmou não ter conhecimento sobre o destino dessa mulher que tomara dela o homem com que ela deveria ter se casado. Arsinoê Beta realmente se importava pouco com a sorte de Lysandra, a irmã que ela viera a abominar.

Embora Mikros tivesse despachado mensageiros, batedores e espiões para descobrir o que fora feito de Lysandra, sua amada meia-irmã, nunca mais se teve notícias dela.

Mikros conhecia muito bem Arsinoê Beta, embora não tivesse convivido com ela por metade de sua vida. Certamente uma parte dele amava essa irmã, de fato e verdadeiramente amava essa sua irmã por parte de pai e mãe. Do mesmo modo que uma outra parte dele a detestava. E agora ele jurava solenemente que, jamais em sua vida, confiaria em Arsinoê Beta, já que tê-la de volta como membro da família era muito semelhante a ter uma cobra venenosa vivendo debaixo do mesmo teto.

Quais teriam sido, então, os pensamentos de Arsinoê Beta, essa mulher tão ardilosa, tão poderosa, mais rica do que qualquer pessoa poderia imaginar, e que não conseguia refrear-se de continuar matando membros de sua própria família? Quais teriam sido seus pensamentos, enquanto vomitava, pendurada na amurada do trieres, em sua viagem para sua terra, proveniente da Samotrácia?

Ela viera pensando: Se eu conseguir chegar em meu lar e até o meu irmão, o rei do Egito, ele irá se casar comigo; vou forçá-lo a fazer isso.

E o fato de que Ptolomeu Mikros, Faraó do Egito, fosse seu irmão por parte de pai e de mãe e já fosse casado com uma esposa, aliás, que era uma outra Arsinoê, Arsinoê Alfa, filha de Lisímaco e irmã do homem cujo assassinato ela própria havia providenciado, não era absolutamente relevante. Nem tampouco seria um problema a lembrança de que a outra Arsinoê estaria vivendo no gynaikeion, já que Arsinoê Beta havia posto na cabeça que iria se livrar de Arsinoê Alfa também, assim que pudesse arranjar isso, porque não haveria maneira de viver de novo com essa mulher encerrada no mesmo gynaikeion, não depois do que acontecera, porque uma delas certamente mataria a outra, e também porque Arsinoê Alfa tinha exatamente o mesmo rosto que o belo Agathokles.

Sim, Arsinoê Beta, em toda a sua vida, fizera sempre o que bem entendera, e nada iria mudar. Então, o que ela queria agora? Queria o poder do Egito e haveria de obtê-lo.

Quando Mikros a inquiriu novamente acerca de Lysandra, e sobre o que acontecera na Trácia, Arsinoê Beta disparou contra ele: O que lhe importa o que aconteceu com Lysandra? Ela era meramente sua meia-irmã, filha daquela louca, Eurídice. E tudo o que ela queria era que ele parasse com suas perguntas.

Mikros esticou o lábio inferior para fora, como se não estivesse de fato refletindo sobre o que estava fazendo.

E Arsinoê prosseguiu: Não é verdade que você está feliz de se ver livre dessa mulher que, se estivesse aqui, no Egito, só lhe causaria problemas?

Mikros soergueria as sobrancelhas, se não tivessem sido raspadas e pinçadas fora de modo a torná-lo puro, no templo dos egípcios, o mais puro dos puros.

Mas o que aconteceu a Lysandra?, perguntou Mikros. E ele desejava sinceramente saber, mesmo que fosse apenas por curiosidade, se Lysandra estava morta ou viva. Em verdade, ele gostava muito de Lysandra, a quem, sem dúvida, vira muito pouco, mas a quem não achava tão impregnada de veneno quanto Arsinoê Beta.

O que você fez com Lysandra?, gritou, pressentindo que restava ainda mais traição a ser revelada. Foi a primeira vez que gritou com essa irmã. E também a última.

Assim, Arsinoê Beta mudou de assunto.

Você promoveu Jogos Fúnebres em honra de nosso pai?, lhe perguntou ela, com toda a inocência, como se aquilo houvesse simplesmente lhe ocorrido naquele momento e ela não tivesse planejado a noite inteira lhe fazer essa pergunta.

Mikros abriu a boca para falar, mas as palavras não brotaram.

Arsinoê o examinava, se perguntando se esse seu irmão não seria tão inútil como Menelau, tio de ambos.

Mikros abriu os braços e balbuciou: Eu...não... Não houve como... Como poderíamos ter... Não houve uma oportunidade para... Eu não sabia...

Arsinoê Beta cravou os olhos nele: Você realizou ou não os jogos em homenagem a Ptolomeu Soter?

Não, respondeu ele, não realizamos. E ele cruzou os braços. Então, tirou o khepres, a Coroa de Guerra, e coçou seu crânio do qual haviam sido removidos todos os cabelos.

Havia ameaça de guerra, ele disse. Temíamos uma invasão, por parte de Keraunos e Seleuco... E não tínhamos certeza quanto ao procedimento apropriado...

E, de fato, jamais haviam sido promovidos Jogos Funerários em honra a qualquer membro dessa família.

Arsinoê Beta soltou sua gargalhada enregelante, afiada, como se pensasse que esse seu irmão era tão idiota quanto o famoso Felipe Arrhidaios. Bem, ela disse, vamos realizar esses Jogos agora. E já que você não tem a mínima idéia de como organizar Jogos, eu mesma vou cuidar disso.

Vez por outra, os Jogos Funerários lhe vinham à mente, e ela visualizava a corrida com a tocha, e uma corrida de revezamento, à noite, usando tochas como bastões, e foi então que Arsinoê Beta teve a sua grande idéia.

Ora, temos de acender o Farol, também, na mesma noite... Os jogos funerários poderão ocorrer nas horas do dia, e o Farol seria aceso, à noite, como homenagem a Ptolomeu, nosso pai, que não viveu para assistir a esse grande momento.

Mikros resistiu um pouco à idéia, dizendo que o Farol ainda não estava terminado; a grande estátua de bronze de Poseidon, que deveria ser posicionada de pé, no cume do Farol, ainda não havia sido feita... embora não visse nenhuma boa razão para que o Farol não fosse aceso de vez, já que o terceiro andar, o mais alto, já estava praticamente pronto.

E assim Arsinoê Beta tomou a seu cargo, pela primeira vez, uma tarefa que, em verdade, seria de seu irmão, o Faraó.

Arsinoê Beta, que tinha a capacidade de conjurar exércitos de milhares de soldados mercenários, tinha também bastante capacidade para organizar uma parada pelas ruas e então deu ordens para que o exército inteiro de Ptolomeu Mikros estivesse pronto para marchar, com armamento completo, e sem que faltasse nenhum homem. Ela emitiu o prostagtna paia todos os sacerdotes nativos do Egito, convocando-os a estarem presentes no dia marcado e preparados também para desfilar.

Claro que os problemas estomacais de Arsinoê Beta desapareceram durante todo o período em que esteve ocupada com o grande desfile. Ela organizou a lista de atletas, encomendou aos comerciantes vinho e azeitonas, estoques de peixe e de carne bovina e todas as iguarias gregas imagináveis, já que planejava que Alexandria se banqueteasse a noite inteira à custa do irmão.

Convocou corredores para as corridas a pé e para as corridas com armadura, assim como para as intermináveis corridas a cavalo, e o vencedor do maior número de corridas teria a honra de acender a fogueira do altar sacrificial, onde cem touros seriam imolados, todos dedicados a Zeus.

Arsinoê Beta programou corridas de veículos no hipódromo, corridas de asnos, de camelos, de avestruzes, e mais e mais e mais corridas, e toda Alexandria praticava corridas, ou antes do alvorecer ou depois do crepúsculo, nas partes mais frias do dia.

Já de há muito Alexandria vinha mandando seus melhores atletas na travessia ao Grande Mar para a Grécia, até Olímpia, para competirem nos Jogos Olímpicos realizados lá. Arsinoê Beta também enviou convites a todos os atletas do mundo de fala grega, para que viessem ao Egito e disputassem os mais grandiosos prêmios que já haviam sido oferecidos, desde o início dos Jogos, para celebrar a admissão do próprio Ptolomeu Soter no Olimpo. Os jogos seriam chamados de Ptolomaieia, e deveriam rivalizar com os Jogos Olímpicos realizados na Grécia, mas seriam melhores, com prêmios mais valiosos e todos os detalhes projetados em grande escala, sendo que absolutamente tudo foi trabalho de Arsinoê Beta, que parecia ter mão para conduzir qualquer assunto ou trabalho, e que era mais inteligente do que um milhão de deusas.

No grande dia da celebração, Arsinoê Beta usava as listas alongadas pintadas, típicas das egípcias, no canto externo de seus olhos, porque desejava agora ser uma mulher do Egito, tanto quanto uma mulher dos macedônios, ou uma mulher grega; sim, era seu desejo, agora, ser amada por todos no Egito.

E como se tornaria amada? Ora, sorrindo, em vez de fechar o rosto. Ora, participando pessoalmente da corrida de avestruzes, algo que mulher nenhuma, muito menos a irmã do Faraó, jamais fizera. Ora, disputando também a corrida de camelos. Ora, inscrevendo suas bigas na corrida de bigas e, contrariando os costumes egípcios, conduzindo pessoalmente a sua biga e, contrariando as expectativas de todos os homens, vencendo. E, ora, atirando sacos cheios de decadracmas de ouro para as multidões, aonde quer que fosse. É certo que os fantasmas continuavam acompanhando essa mulher, mas, bem como Ptolomeu Keraunos, ela nada temia. Arsinoê Beta estava mudando. Empenhava-se ao máximo por viver o hoje, o momento presente, como seu falecido grandioso pai, Ptolomeu Soter, e esquecer o seu terrível, horroroso passado. Além disso, tentava ser gentil, agradável, meiga, amistosa, o que, por Zeus e por Pan e todos os deuses da Grécia, ela nunca fora antes.

E por quê? Porque almejava o poder no Egito.

Assim, os Jogos Funerários chamados Ptolemaieia se tornaram grandes jogos, e foram realizados todos naquele dia, e foram muito semelhantes aos jogos que eram realizados por toda a parte, Leitor, e você pode imaginar por sua própria conta os jogos, inteiramente à sua vontade, contanto que visualize jogos mais grandiosos e mais maravilhosos que todos os realizados até então e jamais equiparados depois. O mais importante foi o que aconteceu ao anoitecer; isso porque, ao anoitecer, o desfile de tochas das tropas, dezenas de milhares de soldados, seguidos de centenas e centenas de sacerdotes egípcios, além das crianças cantando, dirigiu-se, em marcha, da área do palácio, no leste, percorrendo a seguir a grande avenida de desfiles que era a Via Canopus, atravessando então o Heptastadio e a enseada, até o miraculoso Farol, a Oeste, e todos os soldados, todos os sacerdotes e todas as crianças sustentavam tochas, e todos os soldados, todos os sacerdotes e todas as crianças cantavam, de modo que Alexandria reluzia e cantava de uma ponta a outra. Grupos de música tocavam trompas, cometas, gaitas, tambores, e toda Alexandria se alinhava nas ruas para assistir à passagem do desfile, e era a primeira vez que a larga avenida era usada com esse propósito. Todos os alexandrinos cantavam louvores ao rei Ptolomeu e a Ptolomeu Soter, seu pai, e cantavam também louvores a Arsinoê Beta, que havia organizado toda aquela festa. Arsinoê Alfa, a rainha, ficou o tempo todo inerte e boquiaberta, apenas assistindo ao espetáculo, quase incapaz de acreditar no que estava vendo, e Arsinoê Alfa nada fizera para ajudar, a não ser pingar de suor, sob sua coroa, e tentar parecer linda.

O próprio Ptolomeu Mikros galgou as escadas internas do Farol, com sua esposa, Arsinoê Alfa ao lado, e essa sua esposa pendurou-se nele, já que tremia só de pensar de estar subindo mais alto do que já subira até então. Foi reservado para a intrépida e maravilhosa Arsinoê Beta montar na grua hidráulica e subir até o topo do Farol dentro da grande cesta de vime, como uma serpente numa cesta, que era içada pelo mecanismo e que seria usado para carregar o combustível até o topo, onde ascenderia a chama do Farol e onde tudo já estava pronto, esperando a primeira centelha.

Jamais em sua vida Arsinoê Beta havia estado numa altura tal, e mesmo assim não demonstrava sinal algum de medo. Não tinha medo de voar. Não se deixou perturbar pelo pensamento de que, se aquelas fortes cordas se partissem, despencaria para a morte, a centenas de cúbitos abaixo dela. Lá se foi ela em sua cesta, com a língua entrando e saindo da boca, como uma língua de fogo, como a língua de uma serpente, e seu rosto de serpente sorria, e lá estava ela acenando para seus amedrontados parentes, que iam galgando, trêmulos, as escadas, e ela chegou ao topo antes deles, sorrindo como ninguém que a conhecesse jamais a tinha visto sorrir antes.

Já Mikros, ele não apreciava muito as alturas. Sua cabeça estava zonza. As palmas das mãos, suadas, e sua túnica mais suada do que o normal, e todos os andares das escadas pareciam escorregadios, aos seus pés, e era como se seus joelhos tivessem se dissolvido. Não se deu ao trabalho de contemplar muito longamente o grande espetáculo da sua cidade, Alexandria, estendendo-se diante de seus olhos. Não se deu ao trabalho de olhar para baixo, com medo de cair. E quando seu Dioiketes fez um comentário qualquer sobre Sostrato de Knidos, que tornou o Farol possível — e que estava ali junto à grande luz para vê-la ser acendida, Mikros não disse nada, nem sequer uma palavra, com medo de que sua voz saísse trêmula.

Claro que não seria Sostratos a acender a luz, mas Ptolomeu Mikros, o rei, o Faraó. No entanto, em verdade, quanto a Mikros, suas mãos tremiam tanto, e quando Sostratos graciosamente lhe ofereceu a delgada vela cerimonial, Mikros a olhou como se não soubesse o que deveria fazer, de tanto medo de estar a toda aquela altura, nos céus.

Já Arsinoê Beta estava praticamente dançando no interior do confinado espaço no topo do terceiro e mais alto andar do Farol, e dançava de excitação e de alegria e, apesar de todos os relatos anteriores sobre seu caráter frio, em nenhum momento ela parou de sorrir. E, não, Ptolomeu Mikros não acendeu a luz, porque então Arsinoê Beta arrebatou a vela das mãos de Sostratos e adiantou-se para pôr fogo à mecha.

Claro, ela gritou: Para trás, todos! Era Arsinoê Beta tomando a frente de tudo.

Assim, o combustível subiu com um rugido tão alto, célere e abrupto que os cabelos de todos ali se arrepiaram; era o som mais potente, mais feroz que se poderia imaginar; e a família real sentiu aquela muralha de chamas chegando a eles, e era exatamente como a muralha de chamas que se ergue quando se acende a pira funerária de um defunto, mas ali havia dez, vinte vezes o barulho e a força das piras, já que o Farol seria — e tinha de ser, de fato — a maior de todas as luzes que já se vira no mundo.

Claro que a família real do Egito — Ptolomeu Mikros, Rainha Arsinoê Alfa, Arsinoê Beta e os príncipes infantes Ptolomeu e Lisímaco — tiveram a sorte de escapar apenas com suas sobrancelhas chamuscadas — aqueles que tinham sobrancelhas para serem chamuscadas. Mas o Farol foi aceso, e o poderoso rugido prosseguiu acima de suas cabeças, e as chamas tinham dúzias de cúbitos de altura, a maior luz de farol já acesa, que além do mais era refletida e ampliada pelos enormes espelhos feitos de bronze polido, e o resultado foi que a Casa de Ptolomeu bateu em retirada, fugindo do calor e do brilho ofuscante, descendo, com passos trêmulos, as escadas, e Arsinoè Beta desceu do mesmo jeito que subiu, na cesta, e chegou ao solo antes de todos eles e não tremeu nem um pouco, mantendo-se tranqüila como uma serpente prestes a dar o seu bote.

Depois de um tempo, aqueles que ficaram no topo do Farol perceberam um outro rugido, que não vinha de lugar algum acima de suas cabeças, mas de baixo, da superfície, do solo, e era, sim, o potente rugido de toda a população de Alexandria, reunida ali, para assistir à mágica. Toda Alexandria berrava e assobiava, deleitada, porque a cidade se iluminara, estava tão brilhante como o dia, e ninguém jamais vira algo semelhante.

Melhor ainda, melhor do que tudo, nenhum navio, depois daquela noite, se despedaçou nos rochedos salientes da entrada da Grande Enseada, de modo que a maior de todas as realizações de Ptolomeu Soter — o Salvador, Salvador dos Marinheiros no Mar, Salvador de Alexandria, Salvador do Egito, fundador de sua Casa, o venerado e mais poderoso de todos os ancestrais — estava concluída, seu Farol fora terminado, assim como o primeiro dos Livros de Thot, o Quadragésimo Terceiro Livro de Thot, está concluído.

Estimado Leitor, Discípulo-de-Thot, há mais, muito mais. Seja paciente. Thot não terminou seus escritos.

Por enquanto, é suficiente dizer que o Grande Farol de Alexandria não deixaria de iluminar a mais ilustre de todas as cidades, Alexandria, pelas noites dos próximos mil anos. Isso Thot promete!

ASSIM TERMINA, bem e em paz.

Para o espírito do Escriba do Tesouro Fibis,

do Tesouro do Faraó — Vida! Prosperidade! Saúde!

Copiado pelo Escriba Spotous, filho de Osoroeris,

Profeta de Amon-Rá, Profeta de Min-Amun, Profeta de Khonsu-Thot, Sacerdote de Primeira Classe,

dono deste papiro.

QUALQUER HOMEM QUE FALAR MAL DESTE LIVRO TERÁ Thot COMO SEU INIMIGO.

 

                                                                                Ducan Sprot  

 

 

                      

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