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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DA PRAIA / Daphne Du Maurier
A CASA DA PRAIA / Daphne Du Maurier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Reparei primeiro na claridade da atmosfera, e depois no verde-vivo dos terrenos. Não havia suavidade em lado nenhum. As colinas distantes não se fundiam com o céu; destacavam-se como rochedos, tão próximas que quase podia tocá-las, com a sua proximidade a provocar-me o choque de surpresa e maravilha que uma criança sente ao espreitar pela primeira vez por um telescópio. Mais perto de mim, também cada objecto possuía essa dureza, ressaltando de um solo mais novo e áspero do que o que eu conhecia.
Esperara, se é que tinha esperado algo, outro tipo de transformação: uma tranquila sensação de bem-estar, a nebulosa intoxicação de um sonho, só névoa e indefinição à minha volta; não este tremendo impacte, uma realidade mais vívida do que tudo o que eu experimentara até então, adormecido ou acordado. Agora cada impressão era realçada, cada parte de mim singularmente desperta: visão, ouvido, olfacto, tudo de algum modo me fora reavivado.
Todas excepto o tacto: não conseguia sentir a terra por baixo dos pés. Magnus avisara-me. Dissera-me:
- Não sentirás o teu corpo entrar em contacto com os objectos inanimados. A caminhar, de pé, sentado, roçarás por eles, mas sem sentires nada. Não te preocupes. O próprio facto de te poderes mover sem qualquer sensação já constitui metade da maravilha.

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Eu tinha, é claro, tomado isso como uma piada, um dos seus muitos aliciantes para me levar a experimentar. Agora, verificava que ele falara verdade. Comecei a avançar e a sensação que tive foi divertida, porque sentia que me deslocava sem esforço, sem contactar com o solo.
Descia a colina em direcção ao mar, por aqueles campos de erva prateada e cortante, que rebrilhava sob a luz do Sol, porque o céu (que há pouco parecia baço aos meus olhos desacostumados), agora sem nuvens, tornara-se um deslumbrante e extático azul. Lembrei-me de que a maré estivera baixa, das faixas de areal plano à vista, fileira das barracas de praia, alinhada como a dentadura numa boca aberta, formando um pano de fundo sólido na dourada extensão de terreno. Agora desapareceram e, com elas, as filas de casas viradas para a estrada, as docas, todo o Par (chaminés, telhados, prédios) e os tentáculos distendidos de St. Austell, a envolverem a paisagem para além da baía. Nada restava a não ser erva e mato, e colinas altas distantes, que me pareciam tão próximas enquanto diante de mim o mar rolava pela baía, cobrindo toda a franja de areia como se uma onda tivesse varrido a região, engolindo-a num sorvo rapace. A noroest os penhascos desciam ao encontro do mar, que, cada vez mais estreito, formava um amplo estuário, que as águas penetravam e que seguia a curva do terreno, acabando por se perder de vista.
Quando alcancei a borda dos rochedos e olhei para baixo, para o sítio onde deveria passar a estrada, a estalagem, o café, os hospícios na base da colina de Polmea - dei-me conta de que também ali o mar varrera a terra, formando um riacho que cortava para leste, penetrando no vale. Estrada e casas tinham desaparecido, deixando apenas uma vala entre os terrenos que ladeavam o riacho. Aqui o canal era estreito, entre as margens de lodo e areia, pelo que a água da maré baixa de certeza que retirava, deixando uma faixa lodosa que poderia ser pa sada a vau, senão a pé seco, pelo menos a cavalo. Desci a colina e parei ao lado do riacho, procurando localizar em pensamento o curso exacto da estrada que conhecera, mas o antigo sentido de orientação já se me tinha di sipado: nada podia guiar-me, a não ser o próprio terreno, o vale e as colinas.
As águas do estreito canal corriam rápidas e azuis sobre a areia, deixando de ambos os lados restos de espuma.
Formavam-se bolhas que se expandiam e rebentavam, e todos os habituais detritos intemporais eram arrastados pela maré: tranças de algas marinhas pequenas, rebentos, resíduos de algum temporal de Outono. Eu sabia que se estava no pino do Verão, na minha actualidade por mais baço e carregado que estivesse o dia, mas tudo à minha volta era agora iluminado pela luz do Inverno que se aproximava, sem dúvida um princípio de tarde em que o Sol brilhante, já flamejando a oeste, iria pôr o céu escuro, da cor do sangue, antes da chegada das nuvens nocturnas.
Surgiram nadando os primeiros seres vivos: gaivotas a vogarem com a maré, pequenas chapinhadoras que roçavam a espuma da superfície da corrente, enquanto no alto da colina do lado oposto, claramente delineada contra o céu, uma junta de bois lavrava o seu caminho firme. Fechei os olhos, abrindo-os logo a seguir. A junta desaparecera por detrás da inclinação do campo onde labutava, mas o bando de gaivotas, guinchando ao levantar voo, indicou-me que tinham sido uma presença viva, não o resquício de um sonho.
Sorvi com avidez o ar frio, enchendo os pulmões.
Respirar já era uma alegria por si só possuindo qualidades mágicas que nunca sentira até então. Pensamento impossível de analisar; era impossível permitir que a razão se me espraiasse naquilo que estava a ver: nada existia neste novo mundo de percepção e delícia a não ser uma intensidade de sensações, para me servir de orientação.
Poderia ali ter permanecido para sempre em transe, contente por pairar entre terra e céu, longe de qualquer vida que conhecia ou quisesse conhecer, mas voltei nesse momento a cabeça e compreendi que não estava só. Os cascos do pónei não haviam produzido qualquer som, o animal devia ter-se deslocado como eu, pelo meio dos campos, e, agora que trotava sobre cascalho, o tilintar de pedra contra metal chegou-me aos ouvidos com um súbito choque e senti o odor da carne morna do pónei, suada e forte.
O instinto fez-me recuar, sobressaltado, porque o cavaleiro vinha direito a mim, sem consciência da minha presença. Fez deter o animal à borda de água e observou o mar, avaliando a maré. Agora, eu experimentava pela primeira vez não apenas excitação, mas também medo, porque quem ali estava não era nenhum fantasma, mas sim o vulto sólido, real, com o pé no estribo, a mão na rédea, numa proximidade demasiado perigosa para que me sentisse descansado. Não tive medo de ser atropelado pelo cavalo: o que me perturbou, numa súbita sensação de pânico, foi o próprio encontro, aquele elo de séculos entre o tempo dele e o meu. Afastou os olhos do mar e fitou-me. Estaria ele mesmo a ver-me, teria eu lido naqueles olhos fundos um sinal de reconhecimento? Sorriu, deu uma palmada no pescoço do pónei e depois, com um repentino toque do calcanhar no flanco do animal, incitou-o a atravessar a vau, directamente através do estreito canal, prosseguindo para o outro lado.
Não me tinha visto, não me poderia ver; vivia noutra época. Por que motivo então a repentina viragem na sela, a contorção para olhar por cima do ombro para o ponto onde eu me encontrava? Era um desafio: Segue-me se te atreveres! incitante, estranho. Avaliei a profundidade das águas e, embora tivessem chegado aos jarretes do pónei, mergulhei atrás dele sem me importar com molhar-me, dando-me conta, ao chegar ao outro lado, de que caminhara a seco, sem qualquer sensação.
O cavaleiro seguia colina acima, e eu atrás, por um caminho enlameado e muito íngreme, que virava de repente para a esquerda ao atingir o ponto mais alto. Era, recordei- me, satisfeito por tê-lo reconhecido, o mesmo percurso que a vereda tinha hoje - ainda naquela manhã a subira de carro. As semelhanças terminavam aí porque não se viam sebes a delimitar o caminho, como acontecia na minha época. Terras de cultivo à direita e à esquerda abertas aos ventos e áreas de matagal com maciços de tojo. Chegámos ao pé da junta de bois e consegui ver pela primeira vez o homem que os dirigia, uma pequena figura encapuzada curvada sobre um pesado arado de madeira. Ergueu uma das mãos em saudação ao meu cavaleiro, bradando qualquer coisa, com as gaivotas a gritarem e a pairarem-lhe sobre a cabeça.
Aquela saudação de homem para homem pareceu-me natural e a sensação de choque que me assolara ao ver pela primeira vez o cavaleiro junto do vau deu lugar ao espanto, e depois à aceitação. Lembrava-me da minha primeira viagem a França, quando criança, viajando em carruagem-cama durante a noite e pondo de manhã a cabeça fora da janela do comboio, a ver campos estranhos a passarem velozes por mim, vilas, cidades, vultos de trabalhadores da terra, dobrados como agora o homem que arava, e a pensar com um deslumbramento infantil: Estarão vivos como eu ou só a fingir? "
O pretexto para me sentir maravilhado era agora maior do que então. Olhei para o meu cavaleiro e para o pónei, aproximando-me tanto que os poderia tocar, cheirar. Ambos exalavam um odor tão pungente, que me parecia a própria essência da vida. Os fios de suor nos flancos do animal, a crina desgrenhada, a espuma na ponta do focinho. E aquele joelho largo na perna coberta por uma meia, o justilho de couro atado sobre a túnica, aqueles movimentos em cima da sela, as mãos nas rédeas, até mesmo aquele rosto, de queixo saliente e rosado, enquadrado pelo cabelo negro que lhe caía sobre as orelhas: aquilo era realidade, e a presença estranha.
Ansiava por estender a mão e pousá-la no flanco do pónei, mas recordei- me da advertência de Magnus:
- Se te encontrares com uma figura do passado, pelo amor de Deus, não lhe toques. Os objectos inanimados não se importam, mas, se tentares entrar em contacto com carne viva, o elo quebra-se e voltarás a ti com uma desagradável sacudidela. Eu já experimentei: sei como é.
O caminho atravessava as terras cultivadas e descia depois. Agora toda a paisagem alterada se espraiava diante dos meus olhos. A aldeia de Tywardreath, tal como a vira horas antes, sofrera uma modificação radical. As vivendas e casas, outrora dispostas em forma de serra, espalhando-se para norte e para oeste a partir da igreja, tinham desaparecido: agora existia aqui uma aldeola, construída peça a peça por uma criança, como a quinta com que eu costumava brincar no chão do meu quarto. Pequenas habitações cobertas de colmo, atarracadas, reunidas em torno de um prado extenso onde se viam porcos, gansos, frangos, dois ou três póneis mancos e a inevitável proliferação de cães. Fumo erguia-se daquelas humildes casas. não de alguma chaminé, mas sim de buracos no colmo. Depois, a graciosidade e a simetria substituíam-nas de novo porque, para além do amontoado de cabanas, ficava a igreja. Mas não aquela que eu conhecera horas antes. Esta era mais pequena e não tinha torre e, fazendo ao que parecia, parte dela, estendia-se uma baixa construção de pedra, o conjunto todo enquadrado por muro: também de pedra. No interior do recinto havia pomares jardins, edificações exteriores, um bosque de vegetação rasteira e, para além dele, o terreno inclinava-se na direcção dum vale acima do qual se distinguia o longo braço do mar.
Teria ali ficado a ver aquele panorama de tamanha beleza e simplicidade, mas o meu cavaleiro continuava em frente e senti-me compelido a segui-lo. A vereda descia para o prado e agora a vida da aldeia desenrolava-se à minha volta; havia mulheres junto do poço próximo do limite do prado, de longas saias puxadas para a cintura, cabeças cobertas por lenços que as tapavam até aos queixos de maneira a que nada se lhes visse a não ser os olhos e os narizes. A chegada do meu cavaleiro causou perturbação. Alguns cães começaram a ladrar, mais mulheres surgiram de dentro das habitações (que afinal, observadas de mais perto, não eram senão choupanas) e ouviram-se vozes por todo o prado, que, a despeito da rudeza das consoantes, soavam com o indisfarçável sotaque de Cornish.
O cavaleiro virou à esquerda, desmontando diante do recinto murado. Atirou as rédeas para um grampo que havia no chão e entrou pelo portão amplo reforçado com latão. Via-se uma escultura por cima do arco, mos trando a figura de um santo vestido com uma túnica, segurando na mão direita a cruz de Santo André. A minha educação católica, de há muito esquecida e até desdenhada, levou-me a benzer-me perante aquela porta e, enquanto o fazia, soou no interior uma sineta, tangendo uma corda tão profunda na minha memória que hesitei antes de entrar, receando que o antigo poder me fizesse regressar ao país da infância.
Foi desnecessária a inquietação. A cena que os meus olhos encontraram não era constituída por quadrangulares e tranquilos odores de santidade, silêncio gerado pela oração. O portão abria-se para um pátio enlameado, em torno do qual dois homens perseguiam um assustado rapaz, fustigando- lhe as coxas nuas com manguais. Ambos, a julgar pelas roupas e tonsuras, eram monges e o rapaz um noviço, de túnica puxada para cima da cintura para lhes tornar o desporto mais excitante.
O cavaleiro observou impassível a pantomima, mas, quando o rapaz acabou por cair, de hábito por cima das orelhas, com os membros magros e o traseiro nu expostos, gritou:
- Não o façam ainda sangrar. O prior gosta da carne de porco sem molho. O acompanhamento virá depois, quando o leitãozinho se mostrar difícil.
Entretanto, o sino continuava a chamar à oração, sem parecer afectar os desportistas que se encontravam no pátio.
O meu cavaleiro, aplaudido o seu gracejo, atravessou o pátio e entrou no edifício que se erguia diante de nós virando para um corredor que dava a impressão de separar a cozinha do refeitório, a julgar pelo cheiro a ranço só em parte atenuado pelo fumo de turfa que vinha da lareira. Ignorando o calor e os aromas da cozinha, que ficava à direita, e o conforto mais fresco do refeitório, os bancos nus, à esquerda, empurrou uma porta central e subiu um lanço de escadas até um andar superior, ond o corredor era interrompido por mais outra porta. Bateu e, sem aguardar resposta, entrou.
O compartimento, de tecto revestido a madeira e paredes de estuque, aparentava um certo conforto, mas esfregada e polida austeridade, uma vívida recordação da minha própria infância, primava totalmente pela ausência. Aquele conspurcado chão estava juncado de ossos deitados fora, meio roídos pelos cães, e a cama no canto mais afastado, com os seus cortinados bafientos, parecia servir como depósito geral para artigos estragados: um tapete de pele de ovelha, um par de sandálias, um queijo arredondado num prato de lata, uma cana de pesca e um galgo a coçar-se no meio daquilo tudo.
- Saudações, padre prior - cumprimentou o meu cavaleiro.
Algo assumiu a postura de sentado em cima da cama, incomodando o galgo, que saltou para o chão, e esse algo era um idoso monge de bochechas rosadas, sobressaltado no seu sono.
- Dei ordens para não ser incomodado - disse ele O meu cavaleiro encolheu os ombros.
- Nem sequer pelo Ofício? - perguntou, estendendo a mão para o cão, que se estendera a seu lado agitándo a cauda fanada.
O sarcasmo não teve resposta. O prior puxou para trás as roupas que o cobriam, dobrando os joelhos por baixo do corpo.
- Preciso de descansar - replicou -, necessito de todo o repouso que puder ter para estar em condições de receber o bispo. Ouviu as novidades?
- Há sempre boatos - respondeu o cavaleiro.
- Esta não foi boato. Sir John enviou-me ontem a mensagem. O bispo já partiu de Exeter e estará aqui na segunda-feira, esperando receber hospitalidade e abrigo para passar a noite, depois de deixar Launceston.
O cavaleiro sorriu.
- O bispo virá em muito boa altura. No dia de S. Martinho, com carne abatida de fresco para o seu jantar. Dormirá de barriga cheia, não tem motivo para se preocupar.
- Não tenho? - a voz petulante do prior atingiu um registo mais alto. - Pensas que consigo controlar a minha indisciplinada gente? Que impressão é que não irão provocar nesse bispo novato, decidido como está a limpar toda a diocese?
- Eles virão às boas se lhes prometer recompensas por bom comportamento. Mantenha-se nas boas graças de Sir John Carminowe, isso é que interessa.
O prior agitava-se irrequieto por baixo dos cobertores.
-Sir John não se deixa enganar com facilidade e tem um modo próprio de agir, com um pé em cada campo. Nosso patrono pode ele ser, mas não me apoiará se isso não convier aos seus objectivos.
O cavaleiro pegou num osso de entre os detritos e deu-o ao cão.
- Sir Henry, na sua qualidade de senhor da mansão, terá nesta ocasião precedência sobre Sir John - disse.
- Não vos deixará cair em desgraça, vestido com o burel de penitente. Garanto-lhe que se encontra neste momento de joelhos na capela.
O prior não achou piada.
- Como administrador do fidalgo, devia mostrar mais respeito por ele - observou, acrescentando depois pensativamente: - Henry de Champernoune é um homem com mais fé em Deus do que eu.
O cavaleiro riu-se.
- O espírito quer, mas... e a carne, padre prior? beliscou a orelha do galgo. - Será melhor não falarmos nela antes da visita do bispo. - Endireitou-se e dirigiu-se para a cama. - O barco francês está ancorado ao largo de Kylmerth. Lá permanecerá mais duas marés, para o caso de me querer entregar cartas para seguirem nele.
O eclesiástico atirou com os cobertores e saltou da cama.
- E por que razão, em nome do abençoado António, não mo disseste logo? - berrou, principiando a remexer entre a confusão de papéis sortidos que se encontrava na bancada a seu lado. Tinha triste aspecto ao mover-se, com pernas como fusos de roca, marcadas por veias varicosas e pés chatos singularmente porcos. - Não consigo encontrar nada no meio desta baralhada - queixou-se. - Por que é que as minhas papeladas nunca estão em ordem? Porque é que o irmão Jean nunca está presente quando necessito dele?
Pegou numa sineta de cima do banco e tocou-a, vociferando um protesto para o cavaleiro, que voltava a rir-se. Quase de imediato entrou um monge: a julgar pela sua pronta reacção, devia ter estado a escutar à porta. Era jovem e escuro, com um par de olhos notavelmente brilhantes.
- Ao seu serviço, padre - disse em francês e, antes de atravessar o quarto para se colocar ao lado do prior, trocou uma piscadela de olho com o cavaleiro.
- Anda daí, não te ponhas com brincadeiras - instou-o o prior, voltando-se para a bancada.
Quando o monge passava pelo cavaleiro, murmurou-lhe ao ouvido:
- Levar-lhe-ei mais tarde as cartas e instruí-lo-ei nas artes que deseja aprender.
O cavaleiro fez uma vénia de divertida anuência e encaminhou-se para a porta.
- Boa noite, padre prior. Não perca o seu sono por causa da visita do bispo.
-Boa noite, Roger, boa noite. Que Deus esteja consigo!
Ao sairmos os dois do compartimento, o cavaleiro cheirou o ar e fez uma careta. A porcaria do quarto do prior tinha agora um toque adicional, um aroma perfumado proveniente do hábito do monge francês.
Descemos as escadas, mas, antes de regressarmos pelo corredor, o cavaleiro fez uma pausa, abrindo depois uma porta e lançando para o interior uma olhadela. Essa porta dava para a capela e os monges que tinham estado a divertir-se à custa do noviço estavam agora a rezar. Ou, para se descrever a cena com mais exactidão, a executarem movimentos devocionais. Tinham os olhos baixos e os lábios a mexerem-se. Havia mais quatro presentes que eu não tinha visto no pátio e, desses, dois dormitavam nas cadeiras. O próprio noviço estava encolhido de joelhos, num pranto silencioso, mas amargo. A única figura com alguma dignidade era a de um homem de meia-idade, vestido com um longo manto, madeixas de cabelo grisalho a enquadrarem-lhe uma face graciosa. Tinha as mãos postas com reverência à frente do corpo e mantinha os olhos fixos no altar. Este, ao que pensei, devia ser Sir Henry de Champernoune, senhor da mansão e patrão do meu cavaleiro, cuja piedade o prior referira.
O cavaleiro fechou a porta e penetrou no corredor, saindo do edifício e atravessando o agora pátio vazio em direcção ao portão. O relvado estava deserto, porque as mulheres tinham deixado o poço, e viam-se nuvens no céu, numa indicação do morrer do dia. O cavaleiro montou o seu pónei e regressou pelo caminho que atravessava os campos de cultivo do planalto.
Não fazia a mínima ideia do tempo decorrido, na época dele ou na minha. Continuava sem qualquer sensação táctil e conseguia deslocar-me a seu lado sem esforço.
Descemos a vereda na direcção do vau, que ele agora cruzou sem molhar os jarretes do cavalo porque a maré tinha baixado, e começámos a subir pelos campos do outro lado.
Ao alcançarmos o topo da colina e quando os terrenos tomavam uma forma familiar, apercebi-me com crescente excitação e surpresa de que ele me estava a levar para casa, para Kilmarth, a habitação que Magnus me alugara para passar as férias de Verão, situada para além do pequeno bosque à nossa frente. Uns seis ou sete póneis pastavam por perto e, à vista do cavaleiro, um deles ergueu a cabeça e relinchou. Depois, como um só, fizeram uma pirueta, escoucearam a atmosfera e afastaram-se a galope. O homem continuou a cavalgar por uma clareira no bosque onde a vereda terminava e então surgiu-nos, logo abaixo de nós numa concavidade do terreno, uma casa construída em pedra, com cobertura de colmo, rodeada por um pátio profundamente escavado na lama. Chiqueiros e vacarias faziam parte do agregado habitacional e, pela única abertura na cobertura de colmo, en roscava-se um fumo azul. Reconheci apenas a concavidade no terreno onde se situava a casa.
O cavaleiro dirigiu-se para o pátio, desmontou e chamou. Um rapaz saiu do estábulo anexo à casa para tomar conta do pónei. Era mais novo, mais leve, mas possuía os mesmos olhos fundos e devia ser seu irmão. Levou o animal e o cavaleiro passou a porta aberta para dentro da casa, que parecia, à primeira vista, ser composta por um único compartimento. Seguindo logo atrás dele, eu pouco conseguia ver no meio da fumarada, à excepção das paredes feitas de uma mistura de barro e palha, a que chamavam argamassa, e do chão de terra batida, sem ao menos tapetes a cobri-lo.
Ao fundo, um escadote conduzia a um sobrado poucos pés acima do espaço comum e, erguendo os olhos, vi enxergões de palha estendidos nas tábuas. O fogo de turfa e tojo estava aceso num recesso da parede e um pote fervia por cima dele, pendente de barras de ferro fixadas ao chão de terra. Uma rapariga, com o cabelo liso a cair-lhe para os ombros, estava ajoelhada junto da lareira e, quando o cavaleiro a saudou, ergueu os olhos para ele e sorriu.
Quase lhe tocava os calcanhares e, de súbito, ele voltou-se, olhando-me de frente. Conseguia sentir-lhe a respiração na cara e, por instinto, estendi uma das mãos para o afastar. Experimentei uma súbita dor aguda nos nós dos dedos e vi que sangravam. Ao mesmo tempo, ouvi vidro a partir-se. Ele já não estava ali, nem a rapariga nem a lareira fumegante, porque tinha enfiado a mão direita através de uma das janelas da antiga cozinha da cave de Kilmarth e encontrava-me de pé no velho pátio escavado lá fora.
Cambaleei pela porta aberta da casa da caldeira, com vómitos violentos, não por ter visto sangue, mas porque fora tomado por uma náusea intolerável que me abalava da cabeça aos pés. De membros latejantes, encostei-me à parede de pedra da sala, com um fio de sangue no braço cortado a escorrer-me para o pulso.
Na biblioteca, lá em cima, o telefone pôs-se a tocar, soando insistente como uma convocação de um mundo perdido e indesejado. Deixei- o tocar.
Capitulo dois
A náusea levou uns bons dez minutos a passar. Estive sentado à espera sobre um monte de toros, na casa da caldeira. O pior foi a sensação de vertigem: não me atrevia a confiar na minha capacidade de me levantar. O corte na mão não era grave e depressa estanquei o sangue com o lenço. De onde estava sentado, conseguia ver a janela partida e os fragmentos de vidraça no pátio do outro lado. Mais tarde, talvez fosse capaz de reconstituir a cena, avaliar o ponto onde o meu cavaleiro tinha estado de pé, medir o espaço daquela habitação há muito desaparecida, na área onde agora se situavam o pátio e a cave: mas não para já. Agora estava exausto.
Imaginava a figura que teria feito se alguém me visse a caminhar pelos campos e a cruzar a estrada na base da colina, escalando a viela de Tywardreath. Que lá tinha estado, isso era certo. O estado dos meus sapatos, uma das pernas das calças rasgada e a camisa humedecida por suor frio: isso não eram consequências de um preguiçoso passeio pelos penhascos.
Quando a náusea e as vertigens acabaram por passar, subi muito devagarinho as escadas para o vestíbulo lá de cima. Fui ao compartimento onde Magnus guardava os oleados e botas juntamente com o resto das suas tralhas e observei-me no espelho que havia por cima do lavatório. Achei- me bastante normal. Um tanto branco por baixo do queixo, mais nada. Precisava de uma bebida forte mais do que de qualquer outra coisa. Lembrei-me então daquilo que Magnus me havia dito:
- Não toques em álcool durante pelo menos três horas depois de teres ingerido a droga e, mesmo então, tem cuidado.
Chá seria um pobre substituto, mas poderia ajudar-me e fui para a cozinha preparar uma chávena.
Esta cozinha tinha sido a sala de jantar da família nos tempos em que Magnus era pequeno; ele modificara-a há alguns anos. Enquanto aguardava que a chaleira fervesse, olhei pela janela para o pátio lá em baixo. Era um recinto pavimentado, rodeado por velhos muros incrustados de musgo. Magnus, numa explosão de entusiasmo que em tempos tivera, tentara transformar aquilo num telheiro, como lhe chamava, onde pudesse andar nu se uma vaga de calor alguma vez ocorresse. A mãe, segundo me contou, nunca aproveitara o recinto fechado, porque dava para aquilo que era então a cozinha.
Encarava-o agora com olhos diferentes. Impossível recapturar o que há tão pouco vira: aquele pátio enlameado, com a vacaria anexa e a vereda que conduzia ao bosque acima. Eu próprio a seguir o cavaleiro pelo meio das árvores. Teria tudo aquilo sido uma alucinação gerada pela maldita droga? Enquanto vagueava, de chávena na mão, pela biblioteca, o telefone começou de novo a tocar. Suspeitei que poderia ser Magnus, e era de facto. A sua voz, firme e decidida como sempre, deu-me mais alento do que a bebida que não tinha tomado, ou que a chávena de chá. Deixei-me cair numa cadeira e preparei- me para uma sessão.
- Há horas que te estou a telefonar - disse ele.
- Esqueceste-te que prometeste ligar para mim às três e meia?
- Não me tinha esquecido - respondi. - O facto é que estava ocupado com outra coisa.
- Foi o que pensei. E então?
O momento não era para graças. Bem gostaria de ser capaz de o deixar na dúvida. Essa ideia conferia-me uma agradável sensação de poder, mas de nada me servia, eu sabia que tinha de lhe contar.
- Deu resultado - informei. - Sucesso a cem por cento.
Apercebi-me, pelo silêncio na outra extremidade da linha, de que a informação fora inesperada de todo. Ele encarara a hipótese de um fracasso. A sua voz, quando falou, chegou-me aos ouvidos num tom mais baixo, como se estivesse a falar para si mesmo:
- Custa-me a acreditar - disse. - Que coisa mais esplêndida... - E depois, liderando como sempre a conversação. - Fizeste exactamente como te disse, seguiste as minhas instruções? Conta-me tudo do princípio... Espera aí, sentes-te bem?
- Sinto - respondi -, acho que sim, só que estou terrivelmente cansado, fiz um corte numa das mãos e quase vomitei na sala da caldeira.
- Pormenores de somenos interesse, meu caro rapaz, detalhes nada importantes. Verifica-se muitas vezes uma sensação de náusea a posteriori. Isso passa depressa. Continua.
A sua impaciência alimentava-me a excitação e desejei que se encontrasse no quarto ao lado e não a trezentas milhas de distância.
- Antes de mais nada - disse-lhe a brincar -, raras vezes vi coisa mais macabra do que aquilo a que chamas o teu laboratório. A câmara do Barba Azul seria melhor descrição para ele. Todos aqueles embriões em frascos e aquela nojenta cabeça de macaco...
-Espécimes em perfeito estado e extremamente valiosos - interrompeu-me -, mas não te desvies do assunto. Eu sei para que é que eles servem, tu não. Conta-me o que se passou.
Bebi um gole do chá, que arrefecia depressa e pousei a chávena.
- Encontrei a fila de garrafas - prossegui -, tudo dentro do armário fechado à chave: A, B, C. Verti exactamente três medidas da garrafa A para o tubo de ensaio e foi tudo. Engoli o preparado, voltei a guardar a garrafa e o tubo, fechei o armário à chave, fechei também o laboratório e aguardei que algo acontecesse. Bem, nada se passou.
Fiz uma pausa, para permitir que assimilasse a informação. Nenhum comentário da sua parte.
- Portanto - continuei -, saí para o jardim. Ainda sem efeitos. Tu disseste-me que o factor tempo variava, que poderiam passar três minutos, cinco, dez, antes que algo ocorresse. Esperava sentir-me tonto, ainda que não tivesses falado nisso em especial, mas, como nada parecia estar a passar-se, decidi ir dar uma volta. Por isso passei por cima do muro junto da estufa e saí para os campos, principiando a caminhar na direcção dos penhascos.
- Seu louco! - exclamou ele. - Eu disse-te para ficares dentro de casa, custasse o que custasse, durante a primeira experiência.
- Bem sei que disseste. Mas, sinceramente, não esperava que desse resultado. Planeava sentar-me se isso acontecesse e deixar-me levar por um sonho delicioso.
- Raios te partam! - voltou ele a vociferar. - Não é assim que as coisas acontecem.
- Agora já sei que não - redargui.
Descrevi-lhe então toda a experiência, a partir do momento em que a droga deu efeito até ao estilhaçar da vidraça, na cozinha da cave. Não me interrompeu, excepto para murmurar, quando fiz uma pausa para recuperar o fôlego e beber um gole de chá: Continua... continua.
Depois que terminei incluindo as consequências que sentira a seguir na casa da caldeira, fez-se completo silêncio e pensei que nos tinham cortado a ligação.
- Magnus - chamei -, ainda estás em linha? Chegou-me aos ouvidos a voz dele, clara e forte, repetindo as mesmas palavras de que se havia servido no início da nossa conversa telefónica.
- Que esplêndido! Que absolutamente esplêndido! Talvez... A verdade era que eu me encontrava esgotado de todo, exausto após ter-me submetido a todo o processo por duas vezes.
Principiou a falar depressa e eu conseguia imaginá-lo sentado à sua secretária em Londres, uma das mãos a empunhar o auscultador, a outra estendida para o bloco-notas e o lápis inevitáveis.
- Dás-te conta - perguntou - que isto foi a coisa mais importante que aconteceu desde que os rapazes da Química se apossaram do teonanacatl e do ololiuqui? Esses apenas empurram o cérebro em duas direcções; bastante caótico. Este é controlado, específico. Sabia que tinha dado com algo de tremenda potencialidade, mas não tinha a certeza, por só o ter experimentado em mim mesmo, de não se tratar de um alucinogénio. A ser assim, tu e eu teríamos de ter reacções físicas semelhantes: perda de tacto, maior intensidade visual, etc. mas não a mesma experiência de tempo alterado. Isto é que é importante. O factor tempo é muitíssimo excitante.
- Queres dizer que, quando o experimentaste em ti, também andaste para trás no tempo? Que viste o que eu vi?
- Exacto. Não o esperava mais do que tu. Não, isso não é verdade, porque uma experiência em que então estava a trabalhar indicava-o como possibilidade remota. Tem a ver com o ADN, enzimas catalisadoras, equilíbrio molecular e coisas similares, não te vou atirar com conversa complicada à cabeça, rapaz. Mas, o que mais me interessa de momento é que tu e eu passámos, segundo parece, por uma época idêntica no tempo. Século treze ou catorze, não te parece, a julgar pelo vestuário? Também eu vi o fulano a que chamas o teu cavaleiro... Roger, não foi como o prior lhe chamou?... a rapariga bastante desmazelada junto da lareira e alguém mais, um monge, o que sugere de imediato uma ligação com o priorado que em tempos pertencia a Tywardreath. O que interessa é o seguinte: será que a droga inverte algum processo químico nos sistemas de memória do cérebro, projectando-o para uma determinada situação termodinâmica que existiu no passado, de forma que as sensações se repetem noutro ponto do mesmo cérebro? Se o faz, será que a mistura regressa no tempo a esse momento em especial? Porque não a ontem, a cinco anos atrás, ou a cento e vinte? Pode suceder, e isso é o que me entusiasma, pode suceder que exista algum elo muito potente unindo quem toma a droga com a primeira imagem gravada no seu cérebro enquanto sob a influência do produto químico. Em ambos os casos, nós vimos o cavaleiro. A compulsão para o seguir foi particularmente intensa. Tu sentiste-a e eu também. Aquilo que ainda ignoro é por que motivo ele desempenha o papel de Virgílio para o nosso Dante, neste Inferno particular, mas o certo é que o faz, não há escapatória possível. Fiz a viagem", servindo-me da fraseologia usada pelos estudantes, uma quantidade de vezes e ele encontrava-se sempre presente. Verás que sucede a mesma coisa na tua próxima aventura. Assume sempre o comando.
A presunção de que eu iria continuar a fazer de cobaia para Magnus não me surpreendeu. Era típico da nossa amizade de muitos anos, tanto em Cambridge como depois. Ele dava o tom e eu dançava, durante só Deus sabia quantas desonrosas escapadas na nossa vida académica em conjunto e mais tarde, quando seguimos diferentes caminhos, ele a carreira de biofísico, a que se seguiu uma cátedra na Universidade de Londres, eu a rotina subjugante do escritório de um editor. O meu casamento com Vita, três anos antes, constituíra a primeira rotura entre nós, talvez salutar para ambos. A súbita oferta da sua casa para passar as férias de Verão, que eu aceitei muito grato, ocorrendo entre dois empregos (Vita
' A autora faz alusão ao célebre Inferno, do poeta italiano Dante em que este se passeia pelo Inferno, guiado pelo poeta clássico Virgílio. (N. do T. )
estava a pressionar-me para aceitar uma posição de direcção numa nova e florescente firma de editores de Nova Iorque administrada pelo irmão dela), parecia-me agora ter trazido cordelinhos amarrados. Os longos e preguiçosos dias (que lhe serviram de isca para me aliciar) passados estendido no jardim, ou a velejar na baía, começavam a assumir novo aspecto.
- Olha uma coisa, Magnus - disse-lhe -, eu hoje fiz isto por ti por me sentir curioso e também porque estava sozinho e se a droga dava efeito ou não era coisa que pouco me importava. Está absolutamente fora de questão continuar. Quando a Vita e as crianças chegarem, estarei amarrado a elas.
- E quando é que chegam?
- Os rapazes entram de férias dentro de mais ou menos uma semana. A Vita vem de Nova Iorque de avião para os ir buscar ao colégio e trazê-los para aqui.
- Muito bem. Poderás fazer muita coisa numa semana. Olha, tenho de desligar. Telefonar-te-ei amanhã à mesma hora. Adeus.
Tinha-se ido. Fiquei de auscultador na mão, com uma centena de perguntas para fazer e nada decidido. Que coisa tão diabólica e típica de Magnus! Nem sequer me tinha dito ainda se eu deveria esperar quaisquer efeitos colaterais do maldito fungo sintético misturado com células cerebrais de macaco, ou lá o que era o soluto que ele tinha extraído da sua fileira de repugnantes garrafas. As vertigens poderiam acometer-me de novo e as náuseas também. Poderia cegar de repente, ou enlouquecer, ou ambas as coisas. O Magnus e a sua experiência maluca que se lixassem...
Decidi subir as escadas para tomar um banho. Seria um alívio tirar a camisa suada, as calças rasgadas, tudo, e descontrair-me numa banheira cheia de água fumegante misturada com óleo de banho (o Magnus não era nada mesquinho nos seus gostos). A Vita havia de aprovar a suite que ele pusera à nossa disposição, a dele constituída por quarto de dormir, casa de banho, sala de vestir, tendo o quarto de dormir uma espantosa vista sobre a baía.
Estendi-me no banho, deixando a água correr até me chegar ao queixo a pensar na nossa última noite em Londres, quando a sua duvidosa experiência me havia sido proposta. Antes disso, limitara-se a sugerir que, se eu quisesse dispor de um lugar para onde ir durante as férias escolares dos rapazes, Kilmarth estava à disposição. Telefonara a Vita, para Nova Iorque, insistindo para que aceitássemos a oferta. Não entusiasmada de todo por, como muitas americanas, preferir zonas quentes e, em princípio, férias sob o céu do Mediterrâneo com um casino à mão, ela argumentou que na Cornualha estava sempre a chover, e seria a casa suficientemente quente, e as refeições? Tranquilizei-a sobre todos esses aspectos, até mesmo sobre a leiteira que vinha todas as manhãs da aldeia e acabou por concordar, sobretudo, ao que me pareceu por lhe ter explicado que havia uma máquina de lavar louça e um frigorífico enorme na cozinha há pouco modificada. Magnus mostrou-se muito divertido quando lhe contei.
- Três anos de casamento - disse-me - e a máquina de lavar louça significa mais para a vossa vida conjugal do que a cama de casal, que, pelo sim pelo não, vos estou a pôr à frente dos olhos. Avisei-te de que isso não iria durar para sempre. O casamento, quero dizer, não a cama.
Fugi ao assunto, algo melindroso, do meu matrimónio, que estava a atravessar um período de reacção após os primeiros impulsivos e apaixonados doze meses, devido em larga medida ao facto de eu querer permanecer em Inglaterra e Vita pretender instalar-me nos Estados Unidos. Em qualquer dos casos, nem o meu casamento nem o meu futuro diziam respeito a Magnus e ele passou a falar-me da casa, das diversas alterações que nela fizera desde que os pais haviam morrido (eu tinha lá estado várias vezes quando andávamos em Cambridge) e de como convertera a velha lavandaria da cave num laboratório, só pelo prazer, de forma a poder divertir-se com experiências sem qualquer relação com o seu trabalho em Londres.
Naquela última ocasião ele tinha preparado muito bem o terreno com um excelente jantar e eu encontrava-me sob o habitual fascínio da sua personalidade, quando de súbito me disse:
-Tive o que considero um sucesso num aspecto particular das minhas pesquisas. Um combinado de plantas e produtos químicos, resultando numa droga que tem extraordinários efeitos sobre o cérebro.
Os seus modos eram casuais, mas Magnus sempre se mostrou casual quando me fazia qualquer afirmação que para ele era importante.
- Pensava que todas as chamadas drogas duras têm esse efeito - retorqui. - As pessoas que as tomam mescalina, LSD ou seja lá que for, passam para um mundo de fantasia com exóticos atractivos e imaginam-se no paraíso.
Serviu-me mais brande.
- Não havia qualquer fantasia no mundo em que penetrei - afirmou-me. - Na verdade até era muito real.
Aquilo espevitou-me a curiosidade. Um mundo que não fosse o dos seus interesses egoístas teria de possuir especiais atractivos para o levarem a penetrar nele.
- Que género de mundo? - perguntei.
- O mundo do passado - respondeu.
Lembro-me de ter rido, enquanto protegia o balão do brande com a mão em concha.
- Referes-te ao mundo de todos os teus pecados?
Os feitos diabólicos de uma juventude dissipada?
- Não, não - abanava a cabeça com impaciência -, absolutamente nada de pessoal. Eu era um simples observador. Não, o facto era que... - interrompeu-se e encolheu os ombros. - Não te vou contar o que vi. Estragar-te-ia a experiência.
- Estragar-me a experiência?
- Sim. Quero que tu próprio experimentes a droga e verifiques se te produz os mesmos efeitos.
Abanei a cabeça, recusando.
- Oh, não - contrariei-o -, já não estamos em Cambridge. Há vinte anos atrás poderia ter engolido uma das tuas poções, arriscando-me a morrer. Agora já não.
- Não te estou a pedir que corras risco de vida - disse-me, ansioso. - Apenas que prescindas de vinte minutos, talvez uma hora, de uma tarde desocupada, antes que Vita e as crianças cheguem, tentando uma experiência em ti mesmo que poderá modificar todo o conceito que fazes do tempo, tal como hoje o conhecemos.
Não havia dúvida de que cada uma das suas palavras era a sério. Deixara de ser o irreverente Magnus dos tempos de Cambridge: era um professor de Biofísica, já famoso no seu campo particular e, embora eu pouco entendesse do seu trabalho, se é que entendia alguma coisa, compreendi que de facto tinha dado com qualquer droga notável de que eu desconhecia a verdadeira importância, mas não me estava a mentir sobre a avaliação que dela fizera.
- Porquê eu? - indaguei. - Porque não experimentas com os teus discípulos da Universidade de Lon dres e sob condições adequadas?
- Porque seria prematuro - respondeu-me - e porque não me sinto preparado para me arriscar a contar seja a quem for, nem sequer aos meus discípulos, como preferes chamar- lhes. Tu és o único a saber sequer que tenho seguido essa linha de raciocínio, que está bastante fora das minhas ocupações habituais. Tropecei nisto por acaso e tenho de descobrir mais pormenores acerca do assunto, antes que sinta alguma remota satisfação quanto às suas possibilidades. Tenciono trabalhar nisso quando em Setembro for para Kilmarth. Entretanto tu vais estar so zinho na casa. Poderias pelo menos experimentar uma única vez e informar-me sobre isso. Posso estar completamente enganado. Pode não exercer qualquer efeito sobre ti, a não ser pôr-te as mãos e os pés por algum tempo entorpecidos e o cérebro que possuis, meu caro, mais desperto do que agora está.
Claro que, no final, após mais outro cálice de brande me convenceu a alinhar. Forneceu-me detalhadas instruções sobre o laboratório, deu-me as respectivas chaves e as do armário onde guardava a droga, descrevendo-me o súbito efeito que ela poderia exercer (nada de estágios intermédios, mas uma transição directa de uma situação a outra) e disse qualquer coisa quanto aos efeitos posteriores, às possibilidades de eu sentir náuseas. Só quando lhe perguntei frontalmente o que teria possibilidades de ver é que se mostrou evasivo.
- Não - recusou -, isso poderia criar em ti uma predisposição inconsciente para veres o que eu próprio vi. Tens de fazer esta experiência de espírito aberto, sem ideias preconcebidas.
Poucos dias depois, saí de Londres e dirigi-me de carro para a Cornualha. A casa encontrava-se arejada e pronta (Magnus contratara Mrs. Collins, de Polkerris, a pequena aldeia que ficava acima de Kilmarth) e fui dar com os vasos cheios de flores, comida no frigorífico e as lareiras acesas na sala de música e na biblioteca, embora estivéssemos em meados de Julho. A própria Vita não poderia ter feito melhor. Passei os primeiros dias a desfrutar da tranquilidade do lugar e também do seu conforto, que, se bem me recordava, tinha sido escasso em tempos antigos, quando os deliciosos e algo excêntricos pais de Magnus mandavam. O pai, comandante Lane, era reformado da Marinha, com a paixão de velejar num iate de dez toneladas, onde enjoávamos a cada viagem. A mãe, criatura abstracta, indecisa, de grande encanto, que andava por ali com um enorme chapéu de aba larga, estivesse o tempo que estivesse, passava os seus tempos livres a cortar os botões mortos de rosas que criava com paixão, mas com singular falta de verdadeiro sucesso. Ria-me com eles e adorava-os e, quando morreram, num intervalo de doze meses um do outro, senti um desgosto comparável ao do próprio Magnus.
Tudo dava a impressão de se ter já passado há longo tempo. A casa estava bastante modificada e modernizada, ainda que, de algum modo, a presença avassaladora deles continuasse a pairar por ali, ou pelo menos assim pensei durante aqueles primeiros dias. Agora, após a experiência, já não me sentia tão seguro disso. A menos que, raras vezes tendo entrado na cave nas férias de outrora, eu não tivesse reparado que continham outras memórias.
Saí do banho e enxuguei-me, mudei de roupa, acendi um cigarro e desci as escadas para a sala de música, assim designada em vez do termo mais convencional de sala de estar", porque os pais de Magnus eram excelentes a tocar e cantar duetos. Perguntei a mim mesmo se ainda seria demasiado cedo para me servir da bebida de que tanto precisava. Seria melhor proceder com cautela do que arrepender-me, aguardaria mais uma hora.
Liguei o gira-discos e escolhi uma gravação ao acaso de cima do monte. O Concerto Brandeburguês n.o 3, de Bach, seria capaz de me restaurar a pose e equanimidade. Magnus devia ter misturado os seus discos da última vez que ali viera, no entanto, porque não foram os rigorosos compassos de Bach que me chegaram aos ouvidos, quando me estendi no sofá diante do fogo de toros, mas sim o insidioso e inquietante murmúrio de La Ller, de Debussy. Estranha escolha de Magnus quando lá estivera na Páscoa. Estava convencido que ele evitava os compositores românticos. Devia ter-me equivocado, a menos que as suas preferências se tivessem modificado com o decorrer dos anos. Ou não lhe teriam as suas incursões no desconhecido despertado o gosto por sons mais místicos, pela mágica evocação do mar a bater na praia? Teria ele visto o estuário a embrenhar-se terra a dentro, como eu vira naquela tarde? Contemplado os campos verdes e claros, a água azul a sondar o vale, os muros de pedra do priorado destacando-se contra o fun do de colinas. Ignorava-o, ele não mo dissera. Tanta coisa por perguntar durante aquela frustrada conversa telefónica. Tanta coisa por dizer.
Deixei o disco tocar até ao fim, mas, longe de me acalmar, exerceu o efeito oposto. A casa entrara num estranho silêncio agora que a música se calara e, com o subir e descer de La Nler ainda na cabeça, atravessei o vestíbulo para a biblioteca e espreitei o mar pela janela. Estava cinzento como ardósia, marcado nalguns pontos de negro pelo vento oeste, ainda que calmo, com reduzida ondulação. Diferente do mar azul e mais turbulento da tarde, que brilhara nesse outro mundo.
Existem em Kilmarth duas escadas que vão dar à cave. A primeira, que parte do vestíbulo, vai directamente até às adegas e à casa da caldeira e daí até à porta que dá para o pátio. O acesso à segunda é pela cozinha e depois pela entrada das traseiras, pela cozinha antiga, a copa, a despensa e a lavandaria, que Magnus convertera em laboratório.
Desci essa escadaria, rodei a chave na porta e penetrei de novo no laboratório. Nada tinha de clínico. A velha pia continuava em cima do chão em lajes de pedra, por baixo de uma pequena janela com grades. A seu lado ficava uma lareira aberta, com um forno, usado em dias de outrora para cozer pão, cortado na espessura da parede. No tecto, cheio de teias de aranha, viam-se ganchos enferrujados, donde em tempos antigos deviam pender carnes salgadas e presuntos.
Magnus havia enfileirado os seus curiosos espécimes ao longo de prateleiras de ardósia fixadas às paredes. Alguns eram esqueletos, mas outros permaneciam intactos, preservados em solutos químicos, de carnes pálidas. A maioria era difícil de distinguir. Tanto quanto eu sabia, poderiam até ser gatinhos em embrião, ou mesmo ratos. Os dois que reconhecia eram a cabeça do macaco, com o suave crânio em perfeito estado de conservação, parecido com a moleirinha calva de uma diminuta criança por nascer, olhos fechados e, junto a ele, uma segunda cabeça de macaco da qual o cérebro havia sido removido, jazendo agora conservado dentro de um frasco ali perto, acastanhado. Havia outros frascos e garrafas que continham fungos, plantas e ervas de formatos grotescos, com tentáculos estendidos e folhas encaracoladas.
Tinha-me rido dele ao telefone, chamando ao laboratório câmara do Barba Azul. Agora, enquanto voltava a observar aquilo tudo, com a recordação da minha tarde ainda viva no espírito, o pequeno compartimento parecia-me deter uma qualidade distinta. Fazia-me recordar não tanto o barbudo potentado da história de fadas oriental, como uma gravura há muito esquecida que me assustara em criança. Chamava-se O Alquimista. Uma figura quase despida, com uma tanga, via-se agachada junto dum forno protegido por uma parede, como aquele que ali havia na lavandaria, espevitando o fogo com sopros e, a seus pés, havia um monge encapuzado e um abade transportando uma cruz. Um quarto homem, com chapéu e capa medievais, apoiava-se num cajado, a conversar com eles. Também se viam garrafas sobre uma mesa e frascos abertos contendo cascas de ovo, cabelos e vermes parecidos com cordéis. No centro na sala, um tripé com um vaso redondo em cima e, dentro deste, um minúsculo lagarto com cabeça de dragão.
Por que motivo só agora, após uns quinhentos e trinta anos, a recordação daquela horrível gravura voltava para me apavorar? Saí dali, fechando à chave a porta do laboratório de Magnus e subi as escadas. Não podia esperar mais pela bebida de que tanto necessitava.
Capítulo três
Choveu no dia seguinte, uma daquelas chuvas miudinhas que acompanham o nevoeiro vindo do mar, a impedir qualquer divertimento fora de portas. Acordei sentindo-me perfeitamente normal, surpreendido por ter dormido tão bem, mas, ao afastar os cortinados e ver o estado do tempo, voltei de novo para a cama desapontado, perguntando a mim mesmo o que iria fazer no resto do dia.
Era este o clima da Cornualha sobre o qual Vita exprimira as suas dúvidas e eu estava mesmo a ver as queixas que não faria se aquilo sucedesse em plenas férias, com os meus enteados a olharem desanimados pela janela, restando-lhes apenas brincar às guerras dentro de casa ou aceitar, entre protestos, a nossa proposta de passeio pelo areal de Par. Vita pôr-se-ia a vaguear da sala de música para a biblioteca, mudando as posições dos móveis e dizendo como ela própria seria capaz de arranjar melhor os compartimentos se fossem seus e, quando se fartasse, telefonaria a um dos seus muitos amigos da Embaixada americana em Londres, dos que tencionavam partir para a Sardenha ou para a Grécia. Eu seria poupado mais um tempo a semelhantes manifestações de descontentamento e os dias que tinha à minha frente, molhados ou secos, seriam pelo menos de liberdade, pois dispunha de todo o tempo para fazer o que quisesse.
A obsequiosa Mrs. Collins trouxe-me o pequeno-almoço e o jornal da manhã, como teve pena de mim por causa do tempo, disse-me que o professor arranjava sempre muito com que se ocupar naquela salinha esquisita da cave e informou-me de que assaria para mim uma galinha da sua criação para o almoço. Eu não tinha quaisquer intenções de ir lá para baixo" e abri o jornal da manhã enquanto bebia o café. Mas o meu débil interesse pela página desportiva em breve se esgotou e a minha atenção regressou à tarefa muitíssimo absorvente de saber com precisão o que se passara na tarde anterior.
Ter-se-ia verificado alguma espécie de comunicação telepática entre Magnus e a minha pessoa? Já experimentáramos isso em Cambridge com cartas de jogar e com números, mas nunca dera resultado, excepto uma ou duas vezes, por pura coincidência. E, nesses dias, éramos mais íntimos do que agora. Não me ocorriam meios, telepáticos ou de natureza diversa, pelos quais Magnus e eu pudéssemos ter passado pela mesma experiência, separada por um intervalo de uns três meses (segundo parecia fora na Páscoa que ele próprio experimentara a droga), a menos que tal experiência tivesse ligação directa com acontecimentos prévios em Kilmarth. Uma parte do cérebro, sugerira-me Magnus, era susceptível de reversão, de condicionamento regressivo quando sob a influência de drogas, a um período anterior da respectiva história química. E, contudo, porquê aquele período específico? Teria o cavaleiro deixado um selo tão indelével implantado nas redondezas que qualquer época, anterior ou pos terior, fosse por ele apagada?
Reflecti sobre os tempos em que estivera em Kilmarth, quando estudante. A atmosfera era informal, género não-te-rales. Recordava-me de ter perguntado uma vez a Mrs. Lane se a casa não era assombrada. A minha pergunta era estranha, porque na verdade não existia nenhum ar de assombração por ali; fi-la apenas por a casa ser antiga.
- Deus do céu, não! - exclamou ela. - Nós estamos demasiado metidos connosco mesmos para encorajar fantasmas. Pobres deles, seriam capazes de mirrar de tédio por não conseguirem atrair as atenções.
- Porque é que faz a pergunta?
- Por nenhum motivo em especial - garanti-lhe, receoso de ter proferido uma inconveniência. - Apenas porque a maioria das casas antigas costumam ter um espectro.
- Bom, se existe algum em Kilmarth, nunca se deu a conhecer - afirmou ela. - A casa sempre nos pareceu muito feliz. Não há nada cuja história tenha especial interesse, sabe. Pertenceu a uma família chamada Baker, por volta de mil e seiscentos e qualquer coisa; foram os proprietários até os Raleighs reconstruírem o lugar, no século dezoito. Não sei nada sobre as suas origens, mas alguém nos disse que vinham do século catorze.
E foi tudo, mas hoje as observações dela acerca das origens no início do século catorze voltavam a ocorrer-me. Pensei nos compartimentos da cave e no pátio exterior, bem como na curiosa escolha feita por Magnus da velha lavandaria para laboratório. Sem dúvida que tinha tido as suas razões. Ficava bastante afastada da parte habitacional da casa e não seria ali perturbado por nenhuns visitantes, nem por Mrs. Collins.
Levantei-me bastante tarde e escrevi cartas na biblioteca, fiz justiça ao frango assado de Mrs. Collins e procurei manter os pensamentos concentrados no futuro e naquilo que iria decidir sobre a oferta de uma situação em Nova Iorque. Não me serviu de nada. Tudo me parecia remoto. Haveria tempo suficiente para discutirmos o assunto quando Vita chegasse.
Olhei pela janela da sala de música, observando Mrs. Collins a subir o caminho em direcção a sua casa. Continuava a chuviscar e tinha à minha frente uma longa e pouco convidativa tarde por passar. Não sei quando me ocorreu aquela ideia. Talvez a tivesse estado a alimentar inconscientemente desde que acordara. Queria provar que não se verificara nenhuma ligação telepática entre Magnus e eu próprio quando tomara a droga no dia anterior, no laboratório. Ele informara-me de que fora ali que fizera a sua primeira experiência e eu procedera da mesma maneira. Talvez algum tipo de processo mental tivesse estabelecido uma relação entre nós dois no momento em que eu engolira aquilo, influenciando assim o encadear das minhas ideias e aquilo que vira, ou imaginara ter visto, no decorrer da tarde. Se a droga fosse tomada noutro local, não naquele sinistro laboratório com as suas sugestivas parecenças com uma cela de alquimista, não poderia o efeito resultante ser diferente? Nunca o saberia se não experimentasse lá fora.
Havia um pequeno frasco de bolso no armário da copa, reparara nele na noite anterior, e fui então lá buscá-lo, lavando-o por baixo da torneira. Aquilo não me obrigava a nada, fosse como fosse. Desci depois as escadas para a cave e, sentindo- me como que de regresso a uma altura da minha infância em que surripiara uma barra de chocolate, meti a chave na porta do laboratório.
Foi-me simples não olhar para os espécimes metidos nos seus frascos e estender a mão para a fileira bem ordenada de garrafas rotuladas. Tal como na véspera, medi as gotas da garrafa A, mas desta vez vertendo-as para o frasco de bolso. Depois fechei à chave a porta do laboratório, atravessei o pátio na direcção dos estábulos e meti-me no carro.
Subi a rampa devagar, virei à esquerda para sair da vereda para a estrada principal e desci a colina de Polmear, com uma pausa ao chegar ao fundo, para contemplar a cena. Aqui, onde as albergarias e a pousada estavam agora, havia sido ontem a passagem a vau. A disposição do terreno não se alterara a despeito da moderna estrada, mas o vale onde as marés penetravam era hoje um pânta no. Tomei a viela que levava a Tywardreath, reflectindo, cheio de pressentimentos, que, se de facto tomara este mesmo caminho na véspera sob a influência da droga, poderia ter sido atropelado por um carro que passasse sem que eu o ouvisse.
Desci a íngreme e estreita vereda na direcção da aldeia e estacionei o carro um pouco acima da igreja. Ainda caía uma chuvinha miúda e ninguém se via por ali. Uma carrinha subiu a estrada principal para Par e desapareceu. Uma mulher saiu da mercearia e subiu a colina na mesma direcção. Ninguém mais se via. Saí do carro, abri os portões de ferro que davam para o adro da igreja e abriguei-me da chuva no respectivo pórtico. O adro em si era inclinado para sul, até terminar no muro que o delimitava e, para além dele, viam-se as edificações de uma quinta. Ontem, naquele outro mundo, não houvera quaisquer construções, apenas as águas azuis de um riacho a encherem o vale com a maré a subir e os prédios do priorado a cobrirem o espaço do actual adro da igreja.
Agora conhecia melhor o terreno. Se a droga produzisse efeito, poderia deixar o carro onde se encontrava e ir a pé para casa. Não havia ninguém por ali. Depois, como um mergulhador que se lançasse a uma piscina em pleno Árctico, peguei no frasco e engoli o respectivo conteúdo. No instante em que o fiz o pânico assolou-me. Esta segunda dose poderia exercer um efeito bem diferente. Pôr-me a dormir durante horas. Deveria permanecer onde me encontrava, ou meter-me no automóvel? O pórtico da igreja provocava-me claustrofobia, portanto saí dali e sentei-me sobre uma das pedras tumulares, não longe do caminho, mas escondida em relação à estrada. Se mantivesse uma imobilidade absoluta, talvez nada ocorresse. Principiei a rezar: Não permitas que nada me aconteça! Não deixes que a droga produza efeito "
Continuei ali sentado durante cerca de cinco minutos, demasiado apreensivo quanto aos possíveis efeitos da droga para me importar com a chuva. Ouvi então o relógio da igreja dar as três horas e consultei o meu relógio de pulso para verificar. Estava alguns minutos atrasado, portanto acertei-o e, quase de imediato, ouvi gritos na aldeia, ou talvez aplausos (uma curiosa mistura de uns e outros) e um som de rodas a chiar. Oh, meu Deus, que era aquilo agora, pensei, um circo em digressão a descer as ruas da aldeia? Teria de tirar o carro dali. Pus-me em pé e comecei a encaminhar-me para o portão da igreja, pelo adro. Nunca lá cheguei, porque o portão desaparecera e vi-me a olhar por uma janela arredondada que existia na parede de pedra em frente de um quadrilátero pavimentado com pedras delimitado por vedações de sarrafos.
O portão de entrada do quadrilátero estava aberto para trás e, para além dele, podia ver uma mole de pessoas reunidas no relvado: homens, mulheres, crianças. Eram elas que gritavam e ouvia-se o chiar das rodas duma enorme carroça coberta, puxada por cinco cavalos, o segundo dos quais era o chefe e os que vinham entre os varais traziam cavaleiros nas garupas. A canópia de madeira que tapava o carro estava pintada num tom rico de púrpura e ouro e, ao observá-la, as cortinas que escondiam a parte da frente do veículo foram corridas para o lado, fazendo com que aumentassem os gritos e aplausos vindos da multidão, quando a figura que surgiu na abertura ergueu as mãos numa bênção. Trazia um magnífico traje com paramentos eclesiásticos, lembrando-me que Roger e o prior referiram a visita iminente do bispo de Exeter e a apreensão que o último sentia por causa dela... sem dúvida com razão. Devia ali estar Sua Graça em pessoa.
Ouviu-se um súbito sussurrar e toda a gente se pôs de joelhos. A iluminação era ofuscante, perdera o sentido do tacto nos membros e nada parecia já importar. Não me ralava... a droga que actuasse sobre mim como entendesse; o meu único desejo era integrar-me no mundo que me rodeava.
Vi o bispo descer do veículo coberto e a multidão comprimir-se e avançar. Depois ele entrou no pátio através do portão, seguido pela comitiva. De uma porta do outro lado, vi adiantar-se o prior, à cabeça do seu rebanho de monges, e os portões de entrada encerraram-se para a multidão.
Olhei por cima do ombro e verifiquei que me encontrava de pé numa câmara abobadada, que mais de vinte pessoas enchiam à espera de serem apresentadas, a julgar pelos sussurros de expectativa que emitiam. Pelo vestuário, pertenciam à pequena nobreza e talvez por isso lhes era permitida a entrada no priorado.
- Repara bem - disse uma voz aos meus ouvidos -, ela não iria pintar a cara numa ocasião destas.
O meu cavaleiro, Roger, estava a meu lado, mas os seus comentários dirigiam-se a um companheiro, um homem mais ou menos da idade dele ou pouco mais velho, que pôs a mão diante da boca para abafar o riso.
- Com ou sem pintura, Sir John há-de apanhá-la - respondeu -, e que melhor momento do que a véspera de S. Martinho, com a sua dama metida na cama a oito milhas de distância, em Bockenod?
- É coisa que se podia arranjar - concordou o outro -, mas com alguns riscos, porque ela não poderá confiar na ausência de Sir Henry. É pouco provável que durma no priorado esta noite, já que o bispo ocupa a câmara dos hóspedes. Não, eles que esperem um pouco mais, pelo menos para aguçarem o apetite.
Os escândalos não se haviam modificado muito com o decorrer dos séculos e eu perguntava a mim mesmo por que razão é que aquela bisbilhotice me intrigava tanto agora, já que, se a ouvisse entre contemporâneos meus em qualquer reunião social, não me provocaria senão um bocejo. Talvez por estar a escutar à socapa no tempo e no interior de paredes monásticas, a tagarelice contivesse mais picante. Segui a direcção do olhar deles até um pequeno grupo reunido junto da porta, os poucos privilegiados, sem dúvida, a serem apresentados. Qual era o galante Sir John (o mesmo que gostava de ter um pé em cada campo, se bem me lembrava do comentário do prior) e qual a dama favorecida com a sua escolha, desprovida da sua pintura?
Viam-se quatro homens, três mulheres e dois jovens e o estilo dos penteados das senhoras tornava difícil distinguir-se-lhes as feições à distância, veladas como estavam por coifas e véus. Reconheci o senhor da mansão, Henry de Champernoune, o digno homem de idade que estivera na véspera a fazer as suas orações na capela. O traje era mais sóbrio do que o dos amigos, que usavam túnicas de variadas cores pendentes até às barrigas das pernas, com cintos descaídos muito baixo sobre as ancas, com bolsas e adagas ao meio. Todos tinham barbas e os cabelos encaracolados e frisados, o que deveria ser a moda da época.
Roger e o companheiro haviam-se juntado a um recém-chegado com vestes clericais e um rosário pendente do cinto. O nariz avermelhado e o discurso entaramelado sugeriam recente visita às adegas do prior.
- Qual é a ordem de precedência? - resmoneou.
- Como padre da paróquia e capelão de Sir Henry, de certeza que deveria fazer parte da comitiva dele.
Roger pôs-lhe uma das mãos num ombro, fazendo-o voltar-se para a janela.
- Sir Henry pode passar sem o seu hábito e Sua Graça o bispo também, a menos que pretenda pôr em risco a sua posição.
O recém-chegado protestou, cingindo-se, nervoso, à protecção da parede, depois deixou-se cair num banco a seu lado. Roger encolheu os ombros, virando-se para o companheiro.
- Surpreende-me que Otto Bodrugan se atreva a dar a cara - disse o amigo. - Ainda não se passaram dois anos desde que lutou por Lancaster e contra o rei. Diz-se que se encontrava em Londres quando a multidão arrastou pelas ruas o bispo de Stapledon.
- Mas não se encontrava - replicou Roger. - Estava cá em cima em Wallingford com muitas centenas de partidários da rainha.
- Não obstante, a sua posição é delicada - observou o outro. - Se eu fosse o bispo, não encararia com gentileza o homem que tem fama de ter aprovado o assassínio do meu predecessor.
- Sua Graça não dispõe de tempo para fazer política - retorquiu Roger. - Terá as mãos cheias com os assuntos da diocese. Causas passadas não lhe dizem respeito. Bodrugan está hoje aqui pelos domínios que partilha com Champernoune, por a sua irmã ser a consorte de Sir Henry. Também pelas suas obrigações para com SirJohn. Os duzentos marcos que pediu emprestados ainda estão por pagar.
Uma agitação junto da porta fê-los avançar para verem melhor, peixe miúdo que eram nas fileiras daquele cardume particular. O bispo entrou, com o prior i a seu lado, mais bem vestido e limpo do que quando se levantara da cama desfeita, com o galgo a coçar-se. Os
cavalheiros prestaram vassalagem, as senhoras fizeram vénias e o bispo estendeu a mão a cada um para lha beijarem, enquanto o prior, entusiasmado com o cerimonial, os apresentava. Não desempenhando papel algum no mundo deles, eu podia movimentar-me à minha vontade desde que não tocasse em ninguém e aproximei-me mais, curioso em descobrir quem eram os membros do grupo.
- Sir Henry de Champernoune, senhor da mansão de Tywardreath - murmurava o prior -, há pouco regressado de uma peregrinação a Compostela.
O cavaleiro idoso avançou um passo, inclinando-se até tocar com um joelho no chão, e senti-me mais uma vez impressionado com o seu ar de dignidade e graça cheios de humildade. Ao beijar a mão estendida, ergueu -se e virou-se para a mulher a seu lado.
- A minha esposa, Joanna, Vossa Graça - apresentou, e ela mergulhou para o chão, numa tentativa de igualar o marido em humildade, executando muito bem o gesto. Então era esta senhora que teria usado pintura no rosto, não fosse a visita do bispo! Achei que ela estava bastante bem para não precisar dela. O véu que lhe enquadrava as feições era adorno suficiente, realçando os encantos de qualquer mulher, linda ou singela. Não era uma coisa nem outra, mas não me surpreendeu que a sua fidelidade aos votos conjugais estivesse a ser posta em causa. Já tinha visto olhos como os dela em mulheres do meu tempo, cheios e sensuais: um aceno de uma cabeça masculina e entraria no jogo.
- O meu filho e herdeiro, William - continuou o marido, e um dos jovens avançou para prestar vassalagem.
- Sir Otto Bodrugan - prosseguiu Sir Henry - e a sua esposa, minha irmã Margaret.
Tratava-se, é claro, de um mundo muito fechado, ou não tinha o meu cavaleiro Roger dito que Otto Bodrugan era irmão de Joanna, a esposa de Champernoune, tendo portanto duplo parentesco com o senhor da mansão? Margaret era pequena e pálida, obviamente nervosa, porque tropeçou ao fazer a vénia a Sua Graça e teria caído se o marido não a amparasse. Gostei do aspecto de Bodrugan: havia nele certa bravata e constituiria, ao que me pareceu, um bom aliado num duelo ou numa escapada. Devia possuir também sentido de humor, porque em vez de corar ou se mostrar vexado com a gaffe da mulher, sorriu e tranquilizou-a. Os seus olhos, tão castanhos como os da irmã Joanna, eram menos proeminentes, mas pressenti que teria a sua quota-parte das qualidades que a irmã possuía.
Bodrugan apresentou por sua vez o filho mais velho, Henry, e depois recuou para dar lugar ao homem que se lhe seguia na fila. A ânsia deste em pôr-se à frente era evidente. Com vestes mais ricas do que as de Bodrugan ou Champernoune, ostentava um sorriso de autoconfiança nos lábios.
Dessa vez foi o prior quem fez as apresentações.
- O nosso amado e respeitado patrono, SirJohn Carminowe de Bockenod - anunciou ele -, sem o qual nós, neste priorado, nos teríamos visto em premências de dinheiro nestes tempos perturbados.
Aqui estava pois o tal cavaleiro com um pé em cada campo, uma senhora em recolhimento a oito milhas de distância, a outra presente naquela mesma câmara, mas ainda não metida na cama. Fiquei desapontado, porque esperara um indivíduo fanfarrão, de olho brilhante. Não o era, mas sim pequeno e atarracado, inchado como um pavão com a importância que a si mesmo atribuía. A dama Joanna não devia ser difícil de contentar.
- Vossa Graça - disse em tom pomposo -, sentimos uma profunda honra por vos ter entre nós - e curvou-se com tanta afectação para a mão que lhe era estendida que, fosse eu Otto Bodrugan, que lhe devia duzentos marcos, lhe teria dado um pontapé no traseiro para saldar a dívida.
O bispo, de olhar atento, alerta, nada perdia. Fazia-me lembrar um general a inspeccionar uma unidade e a tomar nota em pensamento sobre os respectivos oficiais: Champernoune estava ultrapassado, precisava de ser substituído; Bodrugan, galante em acção, mas insubordinado, a julgar pelo recente papel que desempenhara na rebelião contra o rei; Carminowe, ambicioso e demasiado zeloso... passível de causar problemas. Quanto ao prior, não seria um salpico de molho de carne que tinha no hábito? Poderia jurar que o bispo reparou nisso tal como eu e, mais tarde, os seus olhos deslocaram-se pelas cabeças da arraia-miúda, detendo-se na figura quase reclinada do padre da paróquia. Tive esperanças, para bem do cargo do prior, que a inspecção não prosseguisse pela cozinha do priorado ou, pior ainda, nos próprios aposentos dele.
SirJohn erguera-se da posição de ajoelhado e, por seu turno, fazia as apresentações.
- O meu irmão, Vossa Graça, Sir Oliver Carminowe, um dos comissários de Sua Majestade, e Isolda, sua esposa. - Acotovelou o irmão para que se adiantasse, o qual, a julgar pelo rosto corado e olhar enevoado, dava a impressão de ter passado as horas de espera na adega, acompanhado pelo padre da paróquia.
-Vossa Graça - disse ele, tendo o cuidado de não dobrar demasiado o joelho, com receio de tombar ao tentar endireitar-se. Tinha melhor aparência do que SirJohn, a despeito da bebida: mais alto, mais largo, com um ar indomável no formato do queixo, não devia ser pessoa para se deixar levar numa discussão.
- Seria aquela que eu escolhia se a fortuna me favorecesse.
O murmúrio soou-me muito próximo dos ouvidos. Roger, o cavaleiro, encontrava-se mais uma vez a meu lado; não se dirigia a mim, mas sim ao seu companheiro. Havia algo de sinistro na forma como me conduzia os pensamentos, sempre postado junto de mim quando menos eu aí o supunha. Tinha no entanto razão na sua escolha e perguntei-me se ela não estaria também consciente das suas atenções, porque, ao erguer-se da sua cortesia e do beija-mão ao bispo, fitou-nos.
Isolda, mulher de Sir Oliver Carminowe, não tinha véu a ocultar-lhe as feições, mas usava o cabelo dourado em tranças, formando anéis, com uma pequena tiara em jóias a segurar a mantilha que lhe cobria o alto da cabeça. Não trazia manto sobre o vestido como as outras mulheres e o próprio vestido não tinha a saia tão larga, era mais justo, de longas mangas apertadas cobrindo-lhe os pulsos. Talvez sendo mais jovem do que as companheiras, com não mais de vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade, a moda ocupasse mais espaço na sua vida. A ser assim, não me parecia consciente de tal facto, usando as suas roupas com uma graciosidade casual. Nunca tinha visto um rosto tão belo nem tão enfadado e varreu-nos com o olhar (ou melhor, fê-lo a Roger e ao seu companheiro) sem demonstrar o mais vago vestígio de interesse, apenas um leve trejeito da boca a denunciar, de seguida, um bocejo dissimulado.
É destino de cada homem, ao que suponho, ver numa altura ou noutra de relance um rosto na multidão e não o esquecer ou talvez, por sorte, vir a encontrá-lo mais tarde num restaurante, numa festa. Tais reencontros quebram muitas vezes o feitiço e levam ao desencanto. Isso não seria agora possível. Olhei através dos séculos para aquilo que Shakespeare designava por uma rapariga sem paralelo", que, ai de mim, nunca me olharia.
- Quanto tempo, gostava eu de saber - murmurou Roger -, se sentirá ela satisfeita dentro dos muros de Carminowe, a impedir que os seus pensamentos vagueiem?
Também eu gostaria de saber. Se tivesse vivido naquela época, teria pedido a demissão de administrador de Sir Henry Champernoune e iria oferecer os meus serviços a Sir Oliver e à sua dama.
-Já é muito bom para ela não ser obrigada a dar um herdeiro ao marido, por ter três enteados a preencher a lacuna - replicou o outro. - Pode aproveitar o tempo como quiser, pois deu à luz duas filhas, que Sir Oliver poderá trocar com lucros ao atingirem a idade do matrimónio.
E era esse o valor das mulheres de então. Bens disponíveis para compra, adquiridos e vendidos no mercado local ou, melhor, na mansão do fidalgo. Não admirava que, cumpridos os seus deveres, elas olhassem em volta à procura de consolo, arranjando um amante ou desempenhando papel activo no negócio das suas próprias filhas e filhos.
- Digo-te uma coisa - redarguiu Roger. - O Bodrugan anda de olho nela, mas, enquanto se sentir em obrigação para com Sir John, tem de ver bem onde põe os pés.
- Aposto cinco dinheiros em como ela é que não olhará para ele.
- Apostado. E se o fizer, serei eu a actuar como intermediário. Desempenho muitas vezes esse papel entre a minha dama e Sir John.
Estando eu sorrateiro, a escutar no tempo, o meu papel era passivo, sem intervenção nem responsabilidade. Podia deslocar-me no mundo deles sem ser visto, ciente de que, acontecesse o que acontecesse, nada poderia fazer para o impedir (comédia, tragédia ou farsa), enquanto na minha existência no século vinte tinha de assumir a minha quota-parte de empenhamento em moldar o meu futuro e o da minha família.
A recepção parecia estar terminada, mas a visita ainda não, porque uma sineta convocava todos para as vésperas e o grupo dividiu-se, os mais favorecidos dirigindo-se para a capela do priorado, os menos importantes para a igreja, que também fazia parte da capela, separadas por uma porta em arco provida de gradeamento que as dividia.
Achei que me poderia dispensar das vésperas, embora, se me colocasse junto das grades, pudesse observar Isolda, mas o meu inevitável guia, rodando o pescoço com a mesma ideia na cabeça, decidiu que já tinha estado inactivo tempo bastante, fazendo então sinal ao companheiro com um aceno de cabeça, abriu caminho para fora do priorado e atravessou o pátio na direcção do portão. Alguém o tinha escancarado outra vez e um ajuntamento de pessoas, irmãos leigos e servos, encontrava-se ali a rir, enquanto viam os criados do bispo esforçar-se por virar o desajeitado veículo para o pátio do priorado. As rodas estavam presas entre a estrada enlameada e o relvado da aldeia, mas isso não era, de forma alguma, o único divertimento digno de observação, porque o próprio relvado estava apinhado de homens, mulheres e crianças. Uma espécie de mercado parecia ter sido improvisado, porque haviam sido montados pequenos balcões e tendinhas, um indivíduo tocava tambor e outro fazia guinchar uma rabeca, enquanto um terceiro quase me estourou os ouvidos a tocar duas trompas tão compridas como ele mesmo, o que conseguia graças à destreza das mãos em percorrê-las a ambas ao mesmo tempo.
Segui Roger e o amigo pelo relvado. Faziam constantes pausas para cumprimentarem conhecidos e compreendi que aquilo não era nenhum festejo organizado em honra do bispo, mas sim o paraíso dos carniceiros, pois ovelhas e porcos abatidos havia pouco e ainda a pingar sangue pendiam dos postes de cada tenda. As habitações que rodeavam o relvado exibiam idênticas mercadorias. Cada dona de casa, de faca na mão, dedicava todo o seu esforço por arrancar a pele de uma ovelha, ou por cortar o pescoço a um porco, e um ou dois indivíduos, talvez de nível mais elevado na escala social feudal, brandiam cabeças de bois, com chifres largos a merecerem aplausos e risadas da multidão. Iam acendendo tochas à medida que a luz se desvanecia, realçando o aspecto demoníaco dos talhantes e estripadores, que se entregavam céleres e furiosos ao trabalho para completarem a tarefa antes do cair da noite e, como o entusiasmo crescia, o músico que tinha uma trompa em cada mão entrava e saía do meio da multidão, erguendo bem alto os seus instrumentos, para produzir ainda maior ruído.
- Se Deus quiser, hão-de ter as barrigas cheias neste Inverno - comentou Roger. Esquecera-me dele no meio de todo o tumulto que se verificava, mas continuava comigo.
- Parto do princípio de que contaste todos os animais? - indagou o amigo.
- Não só os contei como também os inspeccionei antes de serem mortos. Não que Sir Henry desse conta ou se importasse, se lhe faltassem cem cabeças de gado, mas a minha dama fá-lo-ia. Ele anda demasiado imerso nas suas orações para vigiar a bolsa ou os bens.
- Então quer dizer que ela confia em ti? O meu cavaleiro riu-se.
- Por minha fé! É obrigada a confiar, sabendo eu o que sei dos seus assuntos. Quanto mais se apoiar nos meus conselhos, mais sossegada dormirá à noite.
Virou a cabeça quando novos tumultos nos chegaram aos ouvidos, desta vez vindos dos estábulos do priorado, onde a carruagem do bispo acabara por ser arrumada, tomando o lugar de veículos mais pequenos, também dotados de canópias de madeira e protecções laterais, a exibir escudos de armas. Meias carroças, meias carruagens pareciam uma forma desconfortável de transportar senhoras de posição pela região campestre, mas era essa a sua finalidade óbvia, porque três delas emergiram das instalações das traseiras, chiando e rugindo a cada volta de rodas, para se enfileirarem à porta do priorado.
As vésperas estavam terminadas e os fiéis que a elas haviam comparecido saíam da igreja para se misturarem com a multidão no relvado. Roger voltou para o pátio, penetrando a seguir no próprio edifício do priorado, onde os convidados do prior estavam reunidos antes de partirem. Sir John Carminowe encontrava-se à frente de todos e a seu lado a esposa de Sir Henry, Joanna de Champernoune. Quando nos aproximávamos, murmurava-lhe ele ao ouvido:
- Estarás sozinha, se eu amanhã aparecer a cavalo?
- Talvez - respondeu ela. - Ou melhor, espera que eu te mande recado.
O homem inclinou-se para lhe beijar a mão, montando depois o cavalo que um moço de estrebaria segurava e partindo a meio galope. Joanna viu-o afastar-se, virando-se depois para o seu administrador.
- Sir Oliver e Lady Isolda ficarão esta noite connosco - informou-o. - Vê se consegues apressar-lhes a partida. E procura-me também Sir Henry. Gostava de me ir embora.
Permaneceu no limiar da porta, com um dos pés a bater com impaciência no chão e os cheios olhos castanhos decerto a divisarem qualquer esquema que mais tarde lhe servisse os propósitos pessoais. Sir John devia estar com pressa de desfrutar das suas doçuras. Roger entrou no priorado e eu segui-o. Vinham vozes do refeitório e, perguntando a um monge que estava por ali, foi informado de que Sir Oliver Carminowe estava a tomar um refresco com as outras pessoas do grupo, mas que a sua dama se encontrava ainda na capela.
Fez uma breve pausa, e seguiu para lá. Pensei a princípio que estivesse vazia. As velas do altar tinham sido apagadas e a iluminação era mortiça. Dois vultos se mantinham perto do gradeamento, um homem e uma mulher. Ao aproximarmo-nos, vi que se tratava de Otto Bodrugan e Isolda Carminowe. Estavam a conversar em voz baixa e não consegui ouvir o que diziam, mas o enfado desaparecera da face dela e o cansaço também, quando de súbito ergueu os olhos para o homem e sorriu.
Roger deu-me uma palmada no ombro.
- Está muito escuro para se ver. Quer que eu acenda as luzes?
Não era a sua voz. Ele tinha-se ido e os outros também. Encontrava-me na ala sul da igreja e um homem de colarinho romano por baixo do casaco de tweed postara-se a meu lado.
- Só agora é que o vi no adro - disse-me. - Parecia relutante em entrar para fugir à chuva. Bem, agora já o fez. Permita-me que lha mostre. Eu sou o vigário de Santo André. É um óptimo exemplar de igreja antiga e temos orgulho nela.
Pôs a mão num interruptor e acendeu todas as luzes. Consultei o meu relógio sem sentir qualquer náusea nem vertigem. Eram exactamente três e meia.
Capitulo quatro
Não se verificara qualquer transição perceptível. Passara num instante de um mundo para outro, sem os efeitos colaterais sentidos na véspera. A única dificuldade fora o reajustamento mental, que me exigira um nível quase intolerável de concentração. Felizmente o vigário precedeu-me pela ala acima, tagarelando enquanto caminhava e, se havia algo de estranho na expressão do meu rosto, foi tão bem-educado que não fez comentários.
- Durante o Verão costumamos ter um razoável número de visitantes - disse-me -, pessoas que estão em Par, ou que vêm de Fowey. Mas o senhor deve ser um entusiasta, para andar a passear no pátio debaixo de chuva.
Fiz um esforço supremo para me dominar.
- Na verdade - respondi, surpreendido por descobrir que pelo menos conseguia falar - não era precisamente a igreja nem as sepulturas que me estavam a interessar. Alguém me disse que houve aqui em tempos um priorado.
- Ah, sim, o priorado - redarguiu. - Já desapareceu há muito tempo, sem deixar vestígios infelizmente. Os edifícios ruíram todos após a dissolução dos mosteiros, em 1539. Há quem afirme que o local era no sítio onde agora se encontra Newhouse Farm, mesmo debaixo de nós no vale, e outros garantem que ocupou o actual lugar da própria igreja, a sul do pórtico, mas, de facto, ninguém tem a certeza.
Conduzira-me até ao transepto norte e mostrava-me a pedra tumular do último prior, que fora enterrado diante do altar em 1538, apontando-me o púlpito e alguns lugares reservados, tudo o que restava do cenário original. Nada do que observei deixava transparecer a mínima semelhança com a pequena igreja que tão recentememnte vira, com o gradeamento a separá-la da capela do priorado. Nem fui capaz, ali ao lado do vigário, de reconstruir de memória fosse o que fosse do antigo transepto ou de uma antiga ala.
- Tudo está modificado - comentei.
- Modificado? - repetiu ele, intrigado. - Oh, sem dúvida. A igreja conheceu uma importante restauração em 1880, talvez com pouco sucesso. Está desapontado?
- Não - garanti-lhe de modo apressado -, de maneira nenhuma. É só que... Bem, tal como estava a dizer, os meus interesses recuam aos tempos mais antigos, muito antes da dissolução dos mosteiros.
- Compreendo. - Sorriu-me, demonstrando a sua compreensão. - Muitas vezes perguntei a mim mesmo qual seria o aspecto disto tudo em épocas recuadas, com a proximidade do priorado. É um edifício francês, sabe, ligado à abadia beneditina de S. Sérgio e S. Baco, em Angers, e acredito que a maioria dos monges era francesa. Gostava de lhe poder dizer mais coisas sobre ela, mas só há poucos anos é que aqui estou e receio não ser nenhum historiador.
- Nem eu sou - disse-lhe, e retirámo-nos na direcção do pórtico.
- Sabe alguma coisa acerca dos senhores da mansão dos tempos antigos? - perguntei.
Ele fez uma pausa para apagar as luzes.
- Apenas o que li na História Paroquial - respondeu. - A mansão vem mencionada no historial como Ti zvardrai (A Casa na Praia) e pertenceu a uma grande família de Cardinham até a última herdeira, Isolda, a ter vendido aos Champernounes no decorrer do século treze, passando para outras mãos quando todos se finaram.
- Isolda?
- Sim, Isolda de Cardinham. Casou com alguém chamado William Ferrers, de Bere-in-Devon, mas receio não me recordar dos pormenores. Descobrirá mais coisas a
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esse respeito na biblioteca de St. Austell do que por mim. - Voltou a sorrir-se e passámos pela porta que dava para a igreja. - Está instalado nas vizinhanças ou apenas de passagem? - quis saber.
- Estou cá instalado. O professor Lane alugou-me a sua casa para todo o Verão.
- Kilmarth? Claro que a conheço, mas nunca lá entrei. Parece-me que o professor Lane não está lá muitas vezes e ele não frequenta a igreja.
- Pois não - anuí -, provavelmente não.
- Bem - disse ele ao separarmo-nos junto do portão -, se lhe apetecer cá vir, para a cerimónia ou apenas por passeio, terei muito prazer em que apareça.
Apertei-lhe a mão e subi a estrada para o sítio onde estacionara o carro. Ia a perguntar a mim mesmo se não teria sido demasiado grosseiro. Nem lhe tinha agradecido a atenção, nem me tinha apresentado. Sem dúvida que ele me considerava mais um visitante de Verão, mais aborrecido do que o habitual, e um excêntrico. Meti-me no automóvel, acendi um cigarro, e fiquei ali sentado a recompor ideias. O facto de não se ter verificado qualquer tipo de reacção física à droga constituía um espantoso alívio. Nem ponta de tonturas ou náuseas e os membros não me doíam como no dia anterior, nem sequer transpirava.
Baixei o vidro do carro, olhando pela rua acima, depois de novo para a igreja. Nada se ajustava. O relvado onde as pessoas há tão pouco tempo estavam reunidas devia ter coberto toda a área actual e também além dela, onde a moderna estrada virava pela colina acima. O pátio do priorado, onde a carruagem do bispo quase causou desgosto, devia ter ficado naquela concavidade abaixo da barbearia, junto do muro leste do adro da igreja e o próprio priorado, de acordo com uma teoria mencionada pelo vigário, teria enchido por completo o espaço que hoje em dia era ocupado pela área sul do adro. Fechei os olhos. Vi a entrada, o pátio quadrado, o longo edifício estreito formado pelas cozinhas e refeitório, o dormitório dos monges, a casa do capítulo onde ocorrera a recepção e a câmara do prior, por cima dela. Depois voltei a abri-los, mas as peças não se encaixavam e a torre da igreja desequilibrava o meu puzzle. Não valia a pena... nada se ajustava a não ser a disposição do terreno.
Atirei fora o cigarro, pus o carro em funcionamento e meti-me pela estrada para além da igreja. Acudiu-me uma curiosa sensação de elação enquanto descia a colina, ultrapassando a corrente do vale e prosseguindo ao longo das lojas dispersas de Par. Não haviam decorrido dez minutos desde que todo este conjunto havia estado debaixo de água, os declives do priorado erguendo- se acima do mar. Bancos de areia haviam delimitado a larga extensão do estuário, onde agora se situavam aquelas vivendas, casas e lojas não eram senão um canal azul, com a maré a correr. Travei junto à drogaria e comprei dentífrico, com a sensação de elação a aumentar enquanto a empregada fazia o embrulho. Parecia-me que ela não tinha substância, tal como a loja e as duas outras pessoas que ali se encontravam, e dei por mim a esboçar um sorriso furtivo e, por isso, com vontade de dizer: Nenhum de vocês existe. Tudo isto está debaixo de água. "
Saí da loja e vi que a chuva parara. A pesada mortalha que todo o dia havia pairado sobre a região interrompera-se enfim para revelar manchas de céu, quadrados de azul a alternarem com farripas de nuvens como fumo. Era demasiado cedo para regressar a casa. Demasiado cedo para telefonar a Magnus. Uma coisa tinha eu provado, pelo menos: desta vez não se verificara telepatia entre nós. Ele poderia ter tido alguma intuição quanto aos meus movimentos da tarde antecedente, mas não quanto aos de hoje. O laboratório de Kilmarth não era nenhum buraco mágico que conjurasse fantasmas, e o pórtico da Igreja de Santo André também não. Magnus devia ter razão na sua suposição de que se tratava de um processo químico reversível, em que a droga induzia aquela mudança. E as condições eram tais que os sentidos, reagindo à situação num efeito secundário, entravam em acção capturando o passado.
Eu não tinha despertado de um sonho nostálgico quando o vigário me batera no ombro, passara, sim, de uma realidade viva para outra. Poderia o tempo ser um complexo constituído por todas as dimensões, ontem, hoje e amanhã a avançarem, em concorrência e incessante repetição? Talvez só fosse precisa uma mudança de ingredientes, uma enzima diferente para revelar o futuro, mesmo sendo eu um velhadas em Nova Iorque, com os rapazes já crescidos e casados, e Vita já desaparecida. A ideia era desconcertante. Seria preferível preocupar-me com os Champernounes, os Carminowes e Isolda. Aí não se verificara nenhuma comunicação telepática: Magnus não falara em nenhum deles, mas o vigário sim e só depois de eu os ter visto ainda em vida.
Decidi então o que deveria fazer: iria de carro até St. Austell e veria se existia algum volume na biblioteca pública que me fornecesse provas da respectiva identidade.
A biblioteca estava instalada numa área acima do povoado. Estacionei o carro e entrei. A rapariga que estava na recepção era obsequiosa. Aconselhou-me a ir ao andar de cima, à colecção de referências, procurar listas de relações familiares num livro chamado As Visitações da Cornualha.
Tirei o pesado volume da prateleira e instalei-me a uma das mesas. A primeira vista de olhos ao índice alfabético foi desanimadora. Nada de Bodrugans nem de Champernounes. Nem nada de Carminowes. Nem de Cardinhams. Regressei mais uma vez ao princípio e então, com redobrado interesse, apercebi-me de que devia ter passado páginas da primeira vez, porque dei com os Carminowes de Carminowe. Passei os olhos pela página abaixo e ali estava Sir John, casado com uma tal Joanna (ele deve ter achado a similaridade de nomes da esposa e da amante muito confusa). Tinha tido um rebanho de filhos e um dos seus netos, Miles, herdara Boconnoc. Boconnoc... Bockenod... uma alteração de grafia, mas era este o meu Sir John, sem dúvida alguma.
Na página subsequente estava o seu irmão mais velho, Sir Oliver Carminowe. Tivera vários filhos da primeira mulher. Percorri a linha com o olhar, e situei Isolda, filha de um tal Reynold Ferrers de Bere-in-Devon, como sua segunda mulher, e abaixo, no fundo da página, as filhas: Joanna e Margaret. Tinha-a ali... não a herdeira de Devon referida pelo vigário, Isolda Cardinham, mas uma sua descendente.
Pus de lado o gordo volume e dei por mim a sorrir fatuamente para um homem de óculos que estava a ler o Daily Telegraph e que me passara a olhar com suspeita, ocultando em seguida a cara por detrás do jornal. A minha sem paralelo, não era uma figura da imaginação, nem o resultado dum processo telepático de pensamento, em prática entre Magnus e a minha pessoa. Ela vivera, ainda que as datas fossem imprecisas: não dizia ali quando é que ela nascera ou quando morrera.
Voltei a guardar o livro nas prateleiras e desci as escadas para sair do prédio, com a sensação de elação a aumentar, devido à descoberta que fizera. Carminowes, Champernounes, Bodrugans, todos mortos há seiscentos anos e contudo ainda vivos no meu outro período de tempo.
Afastei-me de carro de St. Austell, reflectindo no muito que conseguira numa única tarde, ao assistir a uma cerimónia num priorado há muito reduzido a ruínas, aliada à celebração da véspera de S. Martinho num relvado de aldeia. E tudo graças a uma poção qualquer preparada por Magnus, que não provocava efeitos colaterais nem ressaca, apenas uma sensação de bem-estar e delícia. Era tudo tão fácil como cair de um penhasco abaixo. Subi a colina de Polmear a uns bons sessenta à hora e só quando virei para a descida de Kilmarth, estacionei o carro e entrei na casa é que voltei a pensar nessa mesma comparação. Cair de um penhasco... Seria esse o efeito colateral? Essa sensação hilariante de que nada importava? Ontem as náuseas, as vertigens, porque eu infringira as regras. Hoje, passar de um mundo a outro sem esforço, sentindo-me todo satisfeito.
Subi as escadas para a biblioteca e liguei o número do apartamento de Magnus. Atendeu de imediato.
- Como foi? - quis saber.
- Que queres dizer com isso de como foi? Como foi o quê? Choveu todo o dia.
- Em Londres esteve bom tempo - replicou. - Mas deixa lá o estado do tempo. Como é que correu a segunda viagem?
A sua certeza de que eu fizera de novo a experiência irritou-me.
- Que é que te leva a pensar que eu tenha feito uma segunda viagem?
- É uma coisa que se faz sempre.
- Bem, por acaso até tens razão. Não tencionava fazê-la, mas pretendi provar uma coisa.
- E que é que querias provar?
- Que a experiência nada tinha a ver com qualquer comunicação telepática entre nós os dois.
- Isso poderia eu ter-te assegurado - disse-me.
- Talvez. Mas tínhamos ambos feito a primeira experiência na câmara do Barba Azul, o que poderia ter uma influência subconsciente.
- E então.
- E então eu verti umas gotas de poção para o teu frasco de bolso, desculpa por me pôr tão à vontade cá em casa, fui de automóvel até à igreja e engoli-as ali no pórtico.
O seu rosnido de satisfação aborreceu-me ainda mais.
- Que é que se passa? - perguntei. - Não me digas que fizeste a mesma coisa?
- Precisamente. Mas não no pórtico, meu rapaz, no adro da igreja, depois do anoitecer. O que interessa é o que viste.
Contei-lhe, acrescentando o encontro com o vigário, a visita à biblioteca pública e a ausência, ou pelo menos assim achava, de quaisquer efeitos colaterais. Ele escutou a minha narrativa sem me interromper, tal como fizera no dia anterior e, quando concluí, pediu-me para aguardar enquanto se servia de uma bebida, mas recordou-me que não procedesse da mesma maneira. A ideia do seu gim tónico acrescentou combustível à pequena chama da minha irritação.
- Acho que te saíste de tudo muito bem - disse- me ele - e parece que encontraste a flor do condado, o que é mais do que aquilo que eu alguma vez consegui, na outra época ou nesta.
- Quer dizer que não passaste pela mesma experiência?
- Muito pelo contrário. Para mim nada de casa do capítulo ou relvado da aldeia. Vi-me no dormitório dos monges, um género muito diferente de gado.
- Que é que se passou? - indaguei.
-Exactamente aquilo que poderias supor quando um bando de homens medievais franceses se encontra. Usa a tua imaginação.
Agora era a minha vez de resfolegar. A ideia do fastidioso Magnus a brincar aos espreitas no meio dessa multidão bolorenta devolveu-me o humor.
- Sabes o que me parece? - disse-lhe. - Acho que cada um descobre aquilo que merece. Eu encontrei Sua Graça o bispo e vi o condado, despertando em mim todo o apelo pretensioso de Stonyhurst, e tu presenciaste os desvios sexuais que a ti mesmo vens recusando nos últimos trinta anos.
- E como é que sabes que os tenho recusado?
- Não sei. Mas dou-te o benefício da dúvida no que diz respeito a bom comportamento.
- Obrigado pelo cumprimento. O que interessa é que nada disto pode ser atribuído a comunicação telepática entre nós os dois. Concordas?
- Concordo.
-Por conseguinte, nós vimos aquilo que vimos através de outro canal... o cavaleiro, esse tal Roger. Ele esteve na casa do capítulo e no relvado contigo e no dormitório comigo. É dele o cérebro que nos canaliza as in formações.
- Sim, mas porquê?
-Porquê? Não pensas que iremos descobrir isso num par de viagens, pois não? Tens de trabalhar no caso.
- Está tudo muito bem, mas é um bocado aborrecido estar a servir de sombra a esse tipo, ou ele a fazer-me de sombra a mim, de cada vez que eu me decidir a fazer a experiência. Não o considero lá muito simpático. Nem à senhora da mansão.
- A senhora da mansão? - Fez uma pausa de um momento, suponho que para reflectir. - Foi sem dúvida ela que vi durante a minha terceira viagem. De cabelo arruivado, olhos castanhos, uma boa cabra?
- Parece ela. Joanna Champernoune - anuí. Rimo-nos ambos, tomados pela loucura e pela fascinação de estarmos a discutir alguém que há séculos estava morta, como se a tivéssemos conhecido em qualquer festa do nosso tempo.
- Estava a discutir sobre terrenos pertencentes à mansão - contou-me ele. - Não segui a discussão. A propósito, reparaste que se apanha o sentido da conversação sem tradução consciente do francês medieval que eles parecem falar? Aí está de novo o elo entre o cérebro deles e os nossos. Se virmos as mesmas palavras na nossa frente, impressas em inglês, em normando-francês ou em cornualhês antigos, não devemos perceber uma só palavra.
- Tens razão - respondi. - Isso também já me ocorreu. Magnus...
- Sim?
- Continuo um pouco preocupado com os efeitos colaterais. Quero dizer que, graças a Deus, não tive hoje náuseas nem vertigens, mas pelo contrário uma tremenda sensação de elação e devo ter infringido várias vezes os limites de velocidade no regresso a casa.
Não respondeu de imediato e, quando o fez, o seu tom de voz era reservado.
- É uma das coisas - disse -, uma das razões pelas quais precisamos de testar a droga. Pode provocar habituação.
- Que queres dizer ao certo com poder provocar habituação?
- Isso mesmo que te estou a dizer. Não apenas a fascinação da experiência em si mesma, que ambos sabemos que nunca ninguém tentou, mas também a estimulação da parte do cérebro afectada. E eu avisei-te antecipadamente dos possíveis perigos físicos... ser-se atropelado e esse género de coisas. Deverás ter em conta que essa parte do cérebro se encontra desligada, quando estás sob a influência da droga. A área funcional continua a controlar os teus movimentos, da mesma forma que um indivíduo é capaz de conduzir com uma elevada percentagem de álcool no sangue e não sofrer nenhum acidente, mas o perigo encontra-se sempre presente e não parece existir um sistema de alarme entre uma parte do cérebro e a outra. Pode ser que haja. Ou pode ser que não. Tudo isso tenho agora de averiguar.
- Sim, estou a ver. - Senti-me como que vazio. A sensação de júbilo que havia experimentado enquanto guiava de regresso a casa decerto não era vulgar. - Será melhor eu ficar de fora - disse-lhe -, pôr-me de lado, a menos que as circunstâncias sejam de absoluta segurança.
Fez de novo uma pausa antes de responder.
- Isso é contigo - disse-me. - Deves julgar por ti mesmo. Mais alguma pergunta? Eu estava a jantar.
Mais perguntas... Uma dúzia, vinte. Mas precisava de reflectir em todas elas para quando ele telefonasse.
-Sim. Sabias, antes da tua primeira viagem, que Roger tinha vivido em tempos nesta casa?
- Com certeza que não - replicou. - A mãe costumava falar nos Bakers do século dezassete e nos Rashleighs, que se seguiram a eles. Não sabíamos nada sobre os seus predecessores, embora o meu pai afirmasse que os primórdios recuavam ao século catorze. Ignoro quem lho disse.
- Foi por isso que converteste a velha lavandaria na câmara do Barba Azul?
- Não, foi só porque me pareceu um local adequado e por o forno ser bastante engraçado. Retém o calor se se acender a lareira e posso conservar nele líquidos a elevada temperatura, enquanto estou a trabalhar noutra coisa qualquer. Uma atmosfera perfeita. Nada tem de si nistro. Não te ponhas a mexer por teres a ideia de que esta experiência é uma espécie de caça aos fantasmas, meu rapaz. Nós não estamos a conjurar espíritos das vastas profundezas.
- Pois não, isso compreendo eu - respondi.
- Para reduzir tudo às suas devidas proporções, se tu te sentares numa cadeira de braços a ver um velho filme qualquer da televisão, as personagens não saltam do ecrã para te assombrarem, ainda que muitos dos actores já estejam mortos. Não é assim tão diferente daquilo que estiveste a fazer esta tarde. O nosso Roger e os seus amigos viveram em tempos, mas estão hoje em dia muito genuinamente defuntos.
Percebi o que ele queria dizer, mas a situação não era tão simples como isso. As implicações iam muito mais longe e o impacte que provocavam também. A sensação não era tanto a de assistir ao mundo deles, mas, antes, de participar nele.
- Gostava de saber mais sobre o nosso guia - disse-lhe. - Atrevo-me a pensar que poderei desencantar os outros aqui, na biblioteca de St. Austell. Até já descobri os Carminowes, como te disse: John e o seu irmão Oliver e a mulher deste, Isolda, mas um administrador chamado Roger é um tiro no escuro e será pouco provável que figure em qualquer árvore genealógica.
- Talvez não, mas nunca se sabe. Um dos meus estudantes tem um amigo no Registo Civil e no Museu Britânico e eu tenho o esquema controlado. Não lhes disse a razão do meu interesse, apenas que pretendo obter uma lista dos contribuintes da paróquia de Tywardreath no século catorze. Ele deve ser capaz de ma des cobrir, suponho, na relação de impostos de 1327, que se deve aproximar muito do período que pretendemos. Se surgir alguma coisa, informar-te- ei. Tens notícias da Vita?
- Nenhumas.
- Foi pena não teres arranjado forma de lhe mandares os rapazes de avião para Nova Iorque.
- Era um diabo de uma despesa muito grande. Além disso, teria significado que eu também tinha de ir.
- Bem, mantém-nos todos ao largo o mais que puderes. Diz que há alguma coisa avariada nos esgotos... isso assustá-la-á.
- Nada assusta a Vita - garanti-lhe. - Era capaz de trazer cá algum especialista em canalizações da Embaixada americana.
- Bom, acelera antes de ela chegar. E agora que me lembro, estás a ver a amostra B, no laboratório ao lado da A que tens usado?
- Sim.
- Embala-a com cuidado e manda-ma. Quero testá-la.
- Quer dizer que vais experimentar aí em Londres?
- Não em mim, mas num saudável macaquinho. Ele não verá os seus antepassados medievais, mas pode ser que tenha vertigens. Adeus.
Magnus voltara a desligar-me o aparelho na cara, com os seus modos bruscos de costume, deixando-me numa inevitável sensação de fadiga. Era sempre assim quando nos encontrávamos e conversávamos, ou quando passávamos uma noitada juntos. Primeiro o estímulo, faíscas a voar por todo o lado e os momentos a passarem em acelerado; depois, de súbito, ia-se embora, a gritar por um táxi e a desaparecer durante semanas, enquanto eu me dirigia, desamparado, para o meu apartamento.
- E como vai o teu professor? - Perguntar-me-ia Vita no tom irónico e bastante trocista que usava sempre que eu passava uma noitada na companhia de Magnus, pondo uma certa ênfase na palavra teu", que nunca deixava de me cair mal.
- Como é costume - responder-lhe-ia eu. - Cheio de ideias malucas que eu acho divertidas.
- Ainda bem que te divertiste - seria a reacção, mas com um toque que implicava o contrário da satisfação. Ela dissera-me uma vez, após uma sessão bastante mais longa que o habitual, prolongada até cerca das duas da madrugada, que Magnus me esgotava e que, quando regressava para junto dela, parecia um balão furado.
Foi uma das nossas primeiras zangas e eu não sabia como haveria de lhe pôr termo. Ela andava à volta da sala de estar, dando murros em almofadas e esvaziando os cinzeiros que enchera, enquanto eu me quedava sentado no sofá, a olhá-la ofendido. Fomos para a cama sem falarmos, mas na manhã seguinte, para minha surpresa e alívio, comportou- se como se nada tivesse acontecido e brilhava positivamente de calor e encanto femininos. Magnus não voltou a ser referido, mas, em mente, tomei nota para não tornar a jantar com ele, a menos que ela tivesse qualquer encontro noutro lado.
Naquele dia não me senti como um balão rebentado quando ele desligou (a expressão era bastante ofensiva, agora que pensava nisso, sugerindo o fétido odor de alguém a explodir), mas apenas desnudado de estímulos e também um pouco desconfortável. Porque quereria ele de repente fazer um teste com o produto da garrafa marcada com um B? Pretenderia confirmar as descobertas no infeliz macaco, antes de me submeter a experiências a mim, o cobaia humano? Ainda restava suficiente soluto na garrafa A para eu prosseguir...
Fui bruscamente interrompido na minha corrente de raciocínio. Prosseguir, eu? Parecia-me a reacção de um alcoólico a preparar-se para apanhar uma bebedeira e recordei-me do que Magnus dissera a respeito das possibilidades de a droga provocar habituação. Talvez essa fosse mais uma razão para a experimentar num macaco. Tive a visão da criatura, de olhos lacrimejantes, a saltar pela jaula ansiando pela injecção seguinte.
Meti a mão no bolso à procura do frasco e limpei-o com bastante cuidado. Não o voltei no entanto a pôr na prateleira da dispensa, porque Mrs. Collins poderia ter a ideia de o guardar noutro sítio qualquer e então, se eu precisasse de me servir dele, teria de lhe perguntar onde estava, o que seria aborrecido. Era cedo de mais para cear, mas o tabuleiro que ela me deixara com presunto e salada, fruta e queijo estava tentador e decidi levá-lo para a sala de música e passar um longo serão junto da lareira.
Peguei num monte de discos ao acaso e empilhei-os sobre o prato do gira-discos. Mas, fosse qual fosse o som que enchia a sala, continuava a regressar ao cenário daquela tarde, à recepção na casa do capítulo do priorado, ao desmanche de carcaças no relvado da aldeia, ao músico encapuzado a vaguear com a sua dupla trompa pelo meio de crianças e cães que ladravam e, acima de tudo, àquela rapariga com o cabelo entrançado e preso com uma tiara preciosa que numa tarde de há seiscentos anos tão aborrecida tinha parecido até que, por qualquer observação que eu não escutara, dita por um homem doutros tempos, movera a cabeça e sorrira.
Capítulo cinco
Havia uma carta de Vita, remetida por via aérea, no meu tabuleiro do pequeno-almoço, na manhã seguinte. Fora escrita da casa do irmão em Long Island. O calor era tremendo, dizia-me ela, passavam todo o dia na piscina e Joe ia levar a família a Newport, no iate que alugara a meio da semana. Que pena não termos sabido mais cedo dos planos dele. Eu poderia ter ido de avião com os rapazes e passaríamos todos juntos as férias de Verão. Tal como as coisas estavam, era demasiado tarde para alterações. Só tinha esperanças de que a casa do professor constituísse uma boa escolha... e, a propósito, como era ela? Quereria eu que levasse bastante comida de Londres? Viria de avião de Nova Iorque na quarta- feira seguinte e esperava ter uma carta para ela no apartamento de Londres.
Quarta-feira era aquele mesmo dia. Ela deveria chegar ao aeroporto de Londres cerca das dez daquela noite e não encontraria nenhuma carta no apartamento, porque eu não a esperava senão no fim-de-semana seguinte.
A ideia de Vita chegar ao país dentro de algumas horas atingiu-me como um choque. Os dias de que eu pensara poder dispor só para mim, com completa liberdade para planear o que me apetecesse, seriam perturbados por chamadas telefónicas, pedidos, perguntas, toda a parafernália da vie en famille. Tinha de estar de algum modo preparado, antes que viesse a primeira chamada telefónica, com um dispositivo de retardamento, um es quema qualquer para a manter em Londres com os rapazes pelo menos alguns dias.
Magnus sugerira-me o pretexto dos esgotos. Poderia servir muito bem, mas o problema seria que, quando Vita por fim chegasse, era muito natural que começasse a fazer perguntas a Mrs. Collins sobre o assunto e esta olhá-la-ia cheia de surpresa e em branco. Os quartos não estavam prontos? Isso reflectir-se-ia sobre Mrs. Collins e estragaria as relações futuras entre as duas mulheres. Falha da electricidade? Mas isso não daria mais resultado do que os esgotos. Nem eu poderia fingir- me doente, porque fá-la-ia vir logo para me levar, embrulhado em cobertores, a um hospital de Londres. Ela suspeitava de qualquer cuidado médico que não fosse de alto nível. Bem, tinha de pensar em qualquer coisa, que mais não fosse em benefício de Magnus. Seria deixá-lo ficar mal se a experiência fosse levada a um fim abrupto após só duas tentativas bem sucedidas.
Estava-se na quarta-feira. Digamos que eu fazia uma experiência nesse mesmo dia, descansava na quinta, voltava a experimentar na sexta, parando no sábado, experi mentando no domingo e, se Vita se mostrasse irredutível quanto a vir na segunda-feira, teria então mesmo de ser. Aquele plano permitir-me-ia três viagens" (a terminologia do LSD adequava-se de modo perfeito) e, desde que nada corresse mal e eu escolhesse bem os meus momentos não cometendo nenhuma loucura, os efeitos colaterais seriam nulos, tal como no dia anterior, para além da sensação de júbilo que eu de imediato reconheceria e aceitaria como um aviso. Em qualquer dos casos, agora já não a sentia. A carta de Vita era sem dúvida a razão por que me achava um tanto ou quanto desapontado naquele dia.
Terminado o pequeno-almoço, disse a Mrs. Collins que a minha mulher chegaria naquele dia a Londres e viria provavelmente para ali com os rapazes na semana seguinte, na segunda ou terça-feira. Ela apresentou-me logo uma lista de artigos de mercearia e outras coisas de que iria necessitar. Isso deu-me oportunidade de ir de carro buscá-las a Par e, ao mesmo tempo, pensar no texto de uma carta que Vita receberia na manhã seguinte.
A primeira pessoa que vi na mercearia foi o vigário de Santo André, que atravessou a loja para me dar os bons-dias. Apresentei-me, com atraso, como sendo Richard Young e disse-lhe que seguira o seu conselho e tinha ido à biblioteca do condado, a St. Austell, depois de ter saído da igreja.
- O senhor deve ser um autêntico entusiasta - retorquiu sorrindo. - E encontrou o que pretendia?
- Em parte - repliquei. - A herdeira, Isolda de Cardinham, não figurava no registo genealógico, embora tivesse lá encontrado uma descendente dela, Isolda Carminowe, cujo pai era um tal Reynold Ferrers, de Bere-in- Devon.
- Reynold Ferrers faz-me soar uma campainha na cabeça - respondeu o vigário. - O filho, se não estou em erro, de Sir William Ferrers, que se casou com a herdeira. Por conseguinte, a sua Isolda devia ser a neta. Sei que a herdeira vendeu a mansão de Tywardreath a um dos Champernounes por cem libras em 1269, exactamente antes de ter casado com William Ferrers. Era uma bela soma nessa altura.
Fiz um rápido cálculo mental. A minha Isolda em princípio não deveria ter nascido antes de 1300. Não me tinha parecido ultrapassar os vinte e oito anos na recepção ao bispo, o que nos levava mais ou menos a 1328.
Segui o vigário pela loja, enquanto ele fazia as compras.
- Continuam a celebrar a véspera de S. Martinho em Tywardreath? - perguntei-lhe.
- Véspera de S. Martinho? - estranhou, parecendo confuso. Hesitava a escolher uns biscoitos. - Desculpe-me, não estou a percebê-lo. Era uma festa bem conhecida nos séculos anteriores à Reforma. Nós conservámos, naturalmente, o dia de Santo André e costumamos celebrar essa festa religiosa em meados de Junho.
- Lamento. Devo ter feito confusão de datas - murmurei. - A verdade é que a minha educação é católica e andei na escola em Stonyhurst, parecendo-me recordar que atribuíamos certa importância à véspera de S. Martinho...
- Tem toda a razão - interrompeu-me sorrindo -, 11 de Novembro, Dia do Armistício. Agora é que compreendo o seu interesse pelo priorado, uma vez que é católico.
- Não praticante - admiti -, mas o senhor está certo. Os velhos hábitos agarram-se a nós. Fazem alguma feira no relvado da aldeia?
- Receio bem que não - disse, com evidente curiosidade - e, tanto quanto sei, nunca existiu um relvado público em Tywardreath. Com licença...
Inclinou-se para receber as compras que tinha metido no cesto e o empregado voltou a sua atenção para mim. Consultei a lista que Mrs. Collins me tinha dado e o vigário, com os votos de uma bela manhã, seguiu o seu caminho. Fiquei a pensar se ele não me consideraria maluco ou apenas mais um dos amigos excêntricos do professor Lane. Esquecera-me que a véspera de S. Martinho era a 11 de Novembro. Uma estranha coincidência de datas. Abate de bois, porcos e carneiros e, no mundo dos nossos dias, a comemoração de um incontável número de caídos na batalha. Tinha de me lembrar de referir esse facto a Magnus.
Levei o meu fardo de mercearias, meti-as na mala do carro e conduzi para fora de Par, passando pela estrada da igreja de Tywardreath. Mas, em vez de estacionar à porta da barbearia como fizera no dia anterior, subi devagar a colina pelo centro da aldeia, tentando reconstruir mentalmente o tal relvado inexistente. Não serviu de nada. Havia casas à direita e à esquerda e, no topo da colina, a estrada ramificava-se para Fowey enquanto para a esquerda a tabuleta dizia: Treesmill". Algures do topo desta colina haviam descido ainda ontem o bispo e a sua comitiva e as carruagens cobertas dos Carminowes, Champernounes e Bodrugans, com as armas brasonadas aos lados. Sir John Carminowe devia ter tomado a ramificação para a direita (se é que existira) na direcção de Lostwithiel e dos seus domínios de Bockenod, onde a esposa o aguardava em confinamento. Hoje em dia Bockenod era Boconnoc, uma vasta propriedade a algumas milhas de Lostwithiel. Eu tinha passado por um dos portões da casa ao vir de Londres. Nesse caso, onde teria então o senhor da mansão a sua residência? A esposa, Joanna, dissera ao administrador, o meu cavaleiro Roger: Os Bodrugans serão nossos hóspedes esta noite. " Onde teria ficado a casa senhorial?
Parei o automóvel no cimo da colina e olhei à minha volta. Não existia nenhuma casa de tamanho razoável na própria Tywardreath; algumas das vivendas poderiam datar dos finais do século dezoito, mas nenhuma pertencia a período anterior. A razão dizia-me que era raro as casas senhoriais serem derrubadas, a não ser pelo fogo e que, ainda que fossem queimadas até aos alicerces ou as suas paredes ruíssem, o local seria destinado a outra finalidade dentro de poucos anos, erigindo-se no local alguma casa de quinta para serviço dos anteriores senhores da mansão. Algures, dentro de um raio de uma ou duas milhas do priorado e da igreja, os Champernounes deveriam ter construído a sua habitação, ou a mansão original tê-los-ia acolhido quando a primeira Isolda, a herdeira dos Cardinhams, vendeu aos outros os domínios senhoriais, em 1269. Algures, talvez descendo a bifurcação para o lado esquerdo, talvez no sítio onde a tabuleta dizia: Treesmill", a Joanna que estivera a bater o pé de impaciência por regressar a casa viajara na carruagem pintada ao sair da recepção no priorado, acompanhada pelo seu fidalgo de rosto entristecido, Sir Henry, e pelo filho William, seguidos pelo irmão, Otto Bodrugan, e a sua esposa, Margaret.
Consultei de relance o relógio. Passava das doze e Mrs. Collins deveria estar à espera para guardar os artigos de mercearia e preparar o almoço. Também tinha de escrever a Vita.
Devotei-me à carta depois do almoço. Levou-me mais ou menos uma hora a compô-la e nem sequer fiquei satisfeito com os resultados, mas teria de me contentar com ela:
Querida:
Não me tinha apercebido, até a tua carta me ter chegado às mãos esta manhã, que irias regressar hoje mesmo de avião, portanto não receberás esta carta antes de amanhã. Desculpa-me por ter feito confusão. O facto é que tem havido montes de coisas para fazer por cá, para preparar a casa para ti e os miúdos e tenho trabalhado com afinco desde que cheguei. Mrs. Collins, a empregada a dias de Magnus, tem sido maravilhosa, mas tu bem sabes como é a habitação de um solteirão e o próprio Magnus já cá não vem desde a Páscoa, por isso as coisas estavam um tanto embaralhadas. De igual modo, e isso constitui uma autêntica provação, o Magnus tinha-me pedido para lhe procurar uma quantidade de papeladas e outras coisas que tais (ele tem por cá no laboratório uma data de material cientifico no qual se não deve tocar) e tudo isso teve de ser posto em segurança. Pediu-me, como um favor pessoal, que cuidasse dele e não o posso deixar ficar mal porque, ao fim e ao cabo, estamos a dispor da casa sem aluguer e isto é uma espécie de retribuição. Devo libertar-me desta trapalhada lá para segunda feira, mas quero ter os próximos dias livres para tratar de tudo, bem como o fim-de-semana. A propósito, o tempo tem estado feio. Choveu sem cessar durante todo o dia de ontem, por isso não estás a perder nada, mas a gente da terra diz que vai melhorar para a semana.
Não te preocupes com a comida, a Mrs. C. tem tudo sob controlo e é uma óptima cozinheira, o que te vai livrar de preocupações. Seja como for, tenho a certeza de que conseguirás ocupar os rapazes até segunda feira. Deve haver museus e coisas que ainda não viram e hás-de querer encontrar-te com pessoas conhecidas. Sendo assim, sugiro-te, minha querida, que faças planos para a próxima semana e, por essa altura, não deverá haver problemas.
Ainda bem que passaste uma bela temporada com o Joe e afamilia dele. Sim... talvez em retrospectivapudesse ter sido uma óptima ideia ter ido de avião com os miúdos para Nova Iorque, mas é mais fácil dizerem-se essas coisas depois do facto consumado, Querida, o voo não te tenha cansado muito. Telefona-me logo que recebas esta carta.
Teu apaixonado, Dick.
Lia-a e reli-a duas vezes. Da segunda, pareceu-me melhor: soava a sincera. E eu tinha mesmo de tratar de umas coisas para o Magnus. Quando digo uma mentira, agrada-me baseá-la num facto verídico, porque apazigua não só a consciência como também um certo sentido de justiça. Pus um selo no sobrescrito e meti-o no bolso, lembrando-me depois que Magnus queria que mandasse para Londres a garrafa B. Remexi por ali, encontrando uma pequena caixa, papel e fio e dirigi-me ao laboratório. Comparei a garrafa com a A, mas dava a impressão de não existir diferença entre as duas. Continuava a trazer o frasco da véspera no bolso do casaco e foi-me simples medir uma segunda dose da A. Poderia servir-me da minha própria capacidade de julgamento sobre se e quando a tomaria.
Fechei então o laboratório à chave e subi as escadas, indo espreitar o estado do tempo pela janela da biblioteca. Não estava a chover e o céu clareara sobre o mar. Embalei com cuidado a garrafa de B, fui a Par para a registar e meter a carta para Vita na caixa, mais interessado em saber como reagiria o macaco na sua primeira viagem ao desconhecido do que em saber o que ela diria depois de a ler. Completada a minha missão, fui até Tywardreath e meti pela bifurcação da esquerda, para Treesmill.
A estrada estreita, com campos de ambos os lados, descia íngreme para um vale e, antes do declive final, desembocava numa ponte em lomba por baixo da qual passava a linha dos caminhos-de-ferro entre Par e Plymouth. Travei junto da ponte e ouvi o rugido da locomotiva diesel do expresso, que emergia de um túnel escondido à minha direita e, poucos momentos depois, o próprio comboio surgiu a chocalhar na linha, passou por baixo da ponte e descreveu uma curva através do vale em direcção a Par. Cenas dos tempos de estudante voltaram-me à memória. Magnus e eu sempre viéramos para ali de comboio e costumávamos pegar nas nossas malas no momento preciso em que ele saía do túnel entre Lostwithiel e Par. Nesses tempos, tinha-me apercebido da existência de campos inclinados à esquerda da carruagem e de um vale à direita, cheio de juncos e salgueiros atarracados. De súbito a composição entrava na estação, com a grande placa negra a anunciar em letras brancas Par - Mudança para Newquay" e estávamos chegados ao nosso destino.
Agora, observando o expresso a desaparecer para além da curva do vale, via o terreno sob outro ângulo e compreendia como o advento dos caminhos-de-ferro, há mais de uma centena de anos, devia ter alterado a inclinação dos campos, a respectiva linha literalmente escavada nos flancos da colina. Existiam outros elementos perturbadores da paz além dele. Minas manchavam o lado oposto do vale, nos sítios das terras altas onde floresceram as explorações de estanho e cobre há um século. Recordava-me de o comandante Lane nos ter contado uma vez ao jantar como centenas de homens haviam arranjado emprego nas minas da época vitoriana, como, quando chegou a recessão, deixaram chaminés e casas de máquinas ruir em decadência, e como os mineiros emigraram, ou procuraram trabalho na nova indústria da porcelana.
Naquela tarde, com o comboio fora de vista e o seu matraquear já inaudível, tudo ficou de novo em silêncio e nada se movia no vale, à excepção de umas quantas vacas, que pastavam os terrenos pantanosos na base da colina. Deixei o carro deslizar suavemente até ao fim da estrada, antes de ela subir a íngreme colina do outro lado do vale. Um indolente riacho que uma ponte baixa cruzava corria pela charneca na área onde pastavam as vacas e, acima da correnteza, à direita da estrada, viam-se velhas casas de quinta. Baixei a janela do automóvel e olhei em volta. Um cão saiu da quinta a correr e a ladrar, seguido por um homem que transportava um balde. Inclinei-me para fora da janela e perguntei-lhe se aquilo era Treesmill.
- É sim - respondeu. - Se continuar a direito chegará à estrada principal que vai de Lostwithiel a St. Blazey.
- Na verdade é o moinho que procuro.
- Nada resta dele - declarou. - Estes prédios aqui faziam parte da velha casa do moleiro e tudo o que resta do ribeiro é o que está a ver. A corrente foi desviada há anos atrás, antes dos meus tempos. Disseram- me que, antes de terem construído esta ponte, havia aqui um vau. A corrente passava a direito por esta estrada e a maior parte do vale encontrava-se debaixo de água.
- Sim - disse eu -, é muito possível.
Apontou para um chalé do outro lado da ponte.
- Ali costumava haver um pub, nos velhos temposinformou -, quando exploravam as minas em Lanescot e Carrogett. Nas noites de sábado enchia-se de mineiros, ao que me dizem. Hoje já são poucos os que sabem contar o que eram os velhos tempos.
- Tem conhecimento se existe uma quinta aqui no vale que possa ter sido uma mansão em tempos passados? - indaguei.
Reflectiu um momento antes de responder:
- Bem, há Trevenna, ali em cima por detrás de nós, na estrada para Stonybridge, mas nunca ouvi dizer que fosse antiga, e Trenadlyn para além dessa e, é claro, Tre verran, vale acima, mais perto do túnel do caminho-de-ferro. Essa é mesmo uma casa antiga, um belo lugar, construído há centenas de anos.
- Há quanto tempo? - inquiri, com crescente interesse.
Voltou a reflectir.
- Vi uma vez um artigo no jornal acerca de Treverran - disse-me. - Um cavalheiro qualquer de Oxford veio dar-lhe uma vista de olhos. Creio que foi em 1705 que ele afirmou ter sido construída.
O meu interesse decaiu. Casas Queen Anne, do tempo das minas de estanho e cobre, o pub do outro lado da estrada, tudo isso era vários séculos posterior ao meu tempo. Senti-me como um arqueólogo se deveria sentir ao descobrir uma antiga vila romana em vez de um acampamento da Idade do Bronze.
- Bom, muito obrigado - agradeci - e uns bons dias para si - e virei o carro para voltar a subir a colina. Se os Champernounes haviam descido aquela estrada em 1328, a correnteza perto do moinho teria impedido as carruagens de passar lá no fundo, a menos que em tempos uma ponte mais antiga do que a que eu vira a cruzasse. A meio da subida, virei por uma vereda lateral e acabei por avistar as três quintas que o homem referira. Procurei o mapa das estradas. Este estradão onde me encontrava iria juntar-se à estrada principal no topo da colina (o longo túnel devia passar muito por baixo dela, um belo feito de engenharia) e, de facto, a quinta à minha direita era Trevenna, aquela lá à frente Trenadlyn e a terceira, perto da linha dos caminhos-de-ferro, devia ser Treverran. E depois? Deveria ir cada vez a uma, bater à porta e perguntar: Importam-se que fique aqui sentado durante meia hora, que tome uma dose da droga em que sou viciado, só para ver o que acontece?
Os arqueólogos é que tinham as melhores hipóteses. Alguém para lhes financiar as escavações, companhia entusiástica e tudo sem correrem o risco de serem internados ao fim do dia num asilo para lunáticos. Inverti a marcha e conduzi de volta ao longo da estrada lateral, subindo a colina na direcção de Tywardreath. Um automóvel puxando uma caravana procurava penetrar na entrada para um chalé a meio da subida, bloqueando-me sem apelo a passagem. Travei quase na valeta, para permitir que o condutor prosseguisse a manobra. Gritou-me uma desculpa e acabou por conseguir estacionar tanto o carro como a caravana ao lado do chalé.
Saiu do veículo e encaminhou-se para mim, voltando a desculpar-se.
- Parece-me que agora já conseguirá passar - disse-me. - Lamento o atraso que lhe causei.
- Não faz mal - retorqui -, não estou com pressa. O senhor fez bem em tirar a caravana da estrada.
- Oh, bom, já estou habituado - replicou. - Vivo aqui e a caravana proporciona-nos mais espaço quando temos hóspedes no Verão.
Olhei de relance o nome que o portão exibia.
- Chapel Down. É um nome invulgar.
Ele sorriu-me.
- Foi o que pensámos ao construirmos o chalé - confessou. - Decidimos manter o nome do lote de terreno. Há séculos que se chama Chapel Down e os campos do outro lado da estrada são Chapel Park.
- Tem alguma coisa a ver com o antigo priorado? Ele não sabia.
- Havia aqui em tempos um par de vivendas - disse.
- Uma espécie de instalação metodista para reuniões, segundo creio. Mas o nome dos terrenos recua a tempos mais antigos.
A esposa saiu do chalé com dois miúdos e eu pus o carro em andamento.
- Caminho livre - bradou o homem e afastei-me da berma, para subir a colina até à curva da estrada que escondeu o chalé de vista. Encostei então à direita, num ponto onde havia um montão de pedras e madeira.
Tinha chegado ao cimo do monte e, para além dele, a estrada encurvava na direcção de Tywardreath, com as suas primeiras casas já à vista. Chapel Down... Chapel Park... Teria existido aqui em tempos idos uma capela há muito demolida, ou no local onde ficava o chalé do dono da caravana ou muito perto, onde uma casa moderna tinha a frontaria virada para a estrada?
Para além desta um portão dava para um campo e eu trepei-o, contornando o terreno e mantendo-me próximo da sebe até o solo inclinado me ocultar de vista. Aquele campo é que o dono da caravana afirmara chamar-se Chapel Park. Não aparentava características distintivas que eu conseguisse reconhecer. Vacas pastavam na extremidade oposta. Esgueirei-me pela sebe ao fundo e dei por mim no relvado acima do precipício, que dominava por algumas centenas de pés a linha dos caminhos-de-ferro, olhando directamente para o vale.
Acendi um cigarro e pus-me a contemplar o cenário. Nada de capelas à distância. Mas que vista! A quinta Treesmill ao longe, à minha direita, as outras quintas a seguir, todas abrigadas dos ventos dominantes e do mau tempo, logo abaixo do caminho-de-ferro e, adiante deles, o estranho panorama dos vales, sem padrão algum, a não ser uma tapeçaria de salgueirais, vidoeiros e amieiros. Sem dúvida um paraíso para as aves na Primavera e um bom lugar para os rapazes se esconderem dos olhares paternos... mas a rapaziada de hoje em dia já não ia aos ninhos, pelo menos os meus enteados não o faziam.
Sentei-me encostado à sebe para terminar meu cigarro e, então, dei- me conta da presença do frasco no bolso junto ao peito. Tirei-o e pus-me a olhar para ele. A forma era muito prática e perguntei-me se não teria pertencido ao pai de Magnus. Estava mesmo a calhar para um gole de rum nos seus velhos tempos de marinheiro, quando a brisa refrescava. Se ao menos a Vita não gostasse de voar e tivesse vindo por via marítima, dar- me-ia mais alguns dias... Um rumor lá em baixo fez-me baixar os olhos para o vale. Uma solitária locomotiva diesel percorria a linha sem a sua fileira de carruagens e fiquei a vê-la serpentear no caminho, uma gorda lesma de movimentos rápidos, acima dos salgueiros e dos vidoeiros, passando por baixo da ponte de Treesmill e desaparecendo por fim nos queixos abertos do túnel, a uma milha de distância. Desenrosquei a tampa do frasco e engoli-lhe o conteúdo.
Tudo bem, disse para mim mesmo, e depois? Estou danado e a Vita ainda vem a meio do Atlântico. Fechei os olhos.
Capitulo seis
Desta vez, sentado, imóvel, de costas contra a sebe e de olhos fechados, tentaria detectar o momento da transição. Nas ocasiões anteriores estava em andamento, na primeira pelos campos, na segunda no adro da igreja, quando a visão se me alterara. Agora de certeza que su cederia de outra maneira, porque me estava a concentrar no momento do impacte. A sensação de bem-estar viria como a de um fardo que me tirassem de cima, e com ela uma sensação de leveza, como se os sentidos se tivessem apagado no meu corpo. Hoje nada de pânico, nem de chuva desanimadora a cair. Até estava calor e o sol deveria estar a espreitar por entre as nuvens... Conseguia sentir um brilho por entre as pálpebras cerradas. Chupei uma derradeira vez a ponta do meu cigarro e atirei-o fora.
Se aquele entorpecente contentamento durasse muito mais, poderia adormecer. Até os pássaros se regozijavam com o sol; ouvia um melro a cantar algures na sebe atrás de mim e, coisa ainda mais deliciosa, um cuco chamou lá do vale, a princípio distante, depois ali mesmo à mão. Escutei-lhe o chamamento, som favorito, ligado na minha mente a toda a espécie de descuidadas vagabundagens da infância, trinta anos atrás. Chamou de novo, mesmo por cima da minha cabeça.
Abri os olhos e observei-o a executar o seu estranho voo incerto pelos céus, recordando-me de que estávamos em finais de Julho. Em Inglaterra, o breve Verão dos cucos cessava em Junho, ao mesmo tempo que o canto dos melros, e as prímulas que floresciam na encosta a meu lado deviam ter murchado em meados de Maio. Aquele calor e luminosidade pertenciam a outro mundo, a uma Primavera anterior. Acontecera, a despeito da minha concentração, num momento do tempo que o meu cérebro não registara. Todo o vivo colorido verde daquele cenário se espalhava à minha volta na encosta da colina em baixo e o vale, com o bordado de vidoeiros e salgueiros, jazia submerso sob um plano de água, que partia de um revoluteante estuário penetrando terra a dentro, bordejado por bancos de areia onde as águas se tornavam mais rasas. Pus- me em pé e reparei na forma como o rio se estreitava até se misturar com a corrente do moinho que se despenhava do outro lado de Treesmill, a casa da quinta alterada no respectivo formato, estreita, coberta de colmo, frente aos montes florestados de carvalhos com a folhagem jovem e tenra da Primavera.
Logo sob os meus pés, no sítio onde o campo se precipitava para o corte da linha dos caminhos-de- ferro, o terreno inclinava-se com maior suavidade e, a meio, um amplo caminho conduzia ao estuário, terminando num cais ao lado do qual estavam ancorados barcos já que o canal era aí mais profundo e formava um lago natural. Uma embarcação maior encontrava-se fundeada a meio da corrente, com as velas meio recolhidas. Conseguia ouvir as vozes dos homens a cantarem a bordo dela e, enquanto a contemplava, encostou-se- lhe ao casco um barco mais pequeno, para ir levar alguém a terra, e todas as vozes de repente se calaram quando o passageiro ergueu a mão a pedir silêncio. Olhava agora em volta vendo que a sebe desaparecera, a colina atrás de mim era um denso arvoredo, tal como as do lado oposto e, para a minha esquerda, onde tinha visto juncos e mato, um longo muro de pedra rodeava uma habitação. Via-lhe o topo do telhado por cima das árvores que a rodeavam. A vereda que vinha do cais ia directa à casa.
Aproximei-me mais, observando o homem lá em baixo a descer do bote para o cais, começando depois a escalar o caminho direito a mim. Nesse momento, o cuco voltou a chamar voando no alto e o homem ergueu os olhos para o observar, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego na subida, num acto tão comum, tão natural, que mo tornou simpático sem outro motivo além de o de estar vivo e de eu ser um fantasma no tempo. Um tempo, para além do mais, que não era constante, porque na véspera fora dia de S. Martinho e agora, a julgar pelo chamamento do cuco e pelas prímulas em flor, devíamos estar na Primavera.
O homem aproximou-se escalando a colina e, ao reconhecê-lo, embora a expressão do seu rosto fosse mais grave, mais solene do que no dia anterior, ocorreu-me a analogia de que aquelas caras eram como as cartas de um baralho muito manuseado, voltadas por um paciente jogador. Ainda que fossem variadas, continuavam mesmo assim a formar combinações que o jogador não podia adivinhar. Nem eles nem eu sabíamos como o jogo iria correr.
Quem subia a colina era Otto Bodrugan, seguido pelo filho Henry e, quando ergueu a mão numa saudação, tão instintivo foi esse gesto que também ergui a minha em resposta e até sorri, mas deveria já ter a noção da futilidade do meu gesto, porque pai e filho roçaram por mim em direcção ao portão de entrada da casa e Roger, o administrador, avançou para os cumprimentar. Devia ter estado ali a vê-los aproximarem-se, mas eu não o notara. Fora-se o ar festivo do dia anterior, o divertido sorriso de não-te-rales. Usava uma túnica negra, tal como Bodrugan e o filho, e os seus modos eram tão graves como os deles.
- Quais são as notícias? - perguntou Bodrugan. Roger abanou a cabeça.
- Está a afundar-se muito depressa - informou.
- Poucas esperanças lhe restam. Lady Joanna está lá dentro, bem como toda a família. Sir William Ferrers já veio de Bere, acompanhado por Lady Matilda. Sir Henry não está a sofrer, nós zelámos por isso... ou, para dizer melhor, foi o irmão Jean quem o fez, porque se tem mantido à cabeceira da cama dia e noite.
- E a causa?
- Nada senão fraqueza geral que o senhor já conhece e um súbito resfriamento com aquela última geada que tivemos. O espírito dele varia, falando de gravosas faltas e pedindo perdão. O padre da paróquia ouviu-o em confissão, mas, não contente com isso, implorou também a absolvição do irmão Jean e recebeu os últimos sacramentos.
Roger deslocou-se para o lado, a fim de permitir que Bodrugan e o filho passassem pelos portões e agora toda a extensão da edificação me surgia à vista, com as suas paredes de pedra, a cobertura de telhas, a frontaria voltada para um pátio, uma escadaria exterior conduzindo a uma câmara de nível mais elevado, degraus semelhantes aos que se usam na actualidade nos celeiros das casas de lavoura. Viam-se estábulos nas traseiras e, para além dos muros, o caminho serpenteava pelos montes em direcção a Tywardreath, com as casas cobertas a colmo dos servos que trabalhavam nos terrenos das cercanias espalhadas de ambos os lados.
Cães correram a ladrar pelo pátio quando nos aproximámos, agachando-se, de orelhas caídas, a uma ordem de Roger, e um lacaio assustado emergiu de uma esquina da casa para os enxotar. Bodrugan e o filho Henry cruzaram o limiar da porta, conduzindo-os Roger e eu servindo-lhes de sombra. Penetrámos num longo e estreito salão, estendendo-se a toda a largura da casa com pequenas janelas que davam para o pátio a leste e para o estuário a oeste. Havia uma lareira aberta ao fundo, onde a turfa empilhada mal fumegava e, a toda a largura da sala, uma mesa assente sobre um cavalete, com bancos a todo o comprimento. O átrio era sombrio, devido em parte às janelas pequenas e ao fumo que pairava na atmosfera, mas também por as paredes estarem pintadas a vermelho-escuro, dando ao conjunto um aspecto rico e pesado.
Viam-se três jovens escarranchados nos bancos, dois rapazes e uma rapariga, com atitudes deprimidas a sugerir mais a entorpecente desorientação do aproximar de uma morte do que genuíno desgosto. Reconheci no mais velho William Champernoune, que fora apresentado ao bispo. Foi o primeiro a levantar-se e a avançar para cumprimentar o tio e o primo, enquanto os outros dois jovens, após momentânea hesitação, lhe seguiam o exemplo. Otto Bodrugan baixou-se para os abraçar aos três e então, como as crianças costumam fazer à súbita entrada de adultos num momento de tensão, aproveitaram a oportunidade para se escaparem da sala, levando o primo Henry com eles.
Tinha agora vagar para observar os outros ocupantes da sala. Dois deles não os tinha ainda visto, um homem e uma mulher: ele com pouco cabelo, de barba, e a mulher, entroncada e com uma expressão viva que não pressagiava nada de bom para quem se lhe atravessasse no caminho. Estava já vestida de preto, preparada para a calamidade quando ela ocorresse, com a sua coifa branca a contrastar com as roupas escuras. Aquele devia ser Sir William Ferrers, que, segundo a informação de Roger, viera à pressa de Devon com a sua esposa, Matilda. O terceiro ocupante do compartimento, que estava sentado num tamborete, não me era estranho: tratava-se da minha dama, Isolda. Fizera questão de amenizar o luto vestindo-se de lilás, mas o prateado do vestido rebrilhava e uma fita da mesma cor, disposta com cuidado, afastava-lhe as tranças do rosto. O ambiente parecia ser tenso e Matilda Ferrers ostentava uma expressão de forte exasperação, que indicava problemas.
- Há muito que te esperávamos - foi a sua imediata censura ao recém- chegado Otto Bodrugan, quando este avançava para a sua cadeira. - Demora assim tantas horas a atravessar a baía de barco, ou atrasaste-te de propósito, para os teus homens se poderem entreter a pescar?
Beijou-lhe a mão, ignorando a censura, e trocou um olhar de relance com o homem que estava postado atrás da cadeira dela.
- Como estás, William? - perguntou. - Levou-me uma hora do ancoradouro até aqui, o que é bastante bom com este vento. Teria levado mais tempo a cavalo.
William concordou com um imperceptível encolher de ombros, habituado que estava ao temperamento da esposa.
- Foi o que pensei - murmurou. - Não poderias ter chegado mais cedo e, seja como for, nada podes fazer.
- Não pode fazer nada? - repetiu Matilda como um eco. - A não ser apoiar-nos a todos quando a ocasião chegar e juntar a sua voz à nossa. Tirar o monge francês da cabeceira da cama e esse pároco bêbedo da cozinha. Se não for capaz de usar a autoridade de irmão para persuadir Joanna a escutar a voz da razão, ninguém mais o poderá fazer.
Bodrugan virou-se para Isolda. Mal lhe tocou a mão num cumprimento, e ela nem ergueu sequer o olhar nem sorriu. O constrangimento entre os dois de certeza que era devido a precaução: uma única palavra de excesso de intimidade teria provocado comentários.
Novembro... Maio... Seis meses deviam ter passado no meu salto através do tempo desde a recepção no priorado, quando da visita do bispo.
- Onde está a Joanna? - perguntou Bodrugan.
- No quarto, lá em cima - informou William e só agora reparava nos ares de família que tinha com Isolda. Este era Sir William Ferrers, irmão dela, mas pelo menos uns dez, talvez quinze anos mais velho, de rosto exibindo rugas, com o pouco cabelo a ficar grisalho. - Tu já conheces o problema - continuava ele a dizer. - O Henry não quis ninguém junto dele a não ser o monge francês, Jean, e não aceitou qualquer tratamento a não ser das mãos dele, recusando o nosso cirurgião, que veio connosco de Devon e desfruta de grande reputação. Agora, como o tratamento falhou, entrou em coma e o fim está próximo, talvez dentro de poucas horas.
- Se esses são os seus desejos e não está a sofrer, que razão de queixa existe? - indagou Bodrugan.
- Porque está louco com a doença! - exclamou Matilda. - O Henry até exprimiu a vontade de ser enterrado na capela do priorado, o que deveríamos impedir a todo o custo. Todos nós temos conhecimento da repu tação do priorado, dos costumes dissolutos do prior, da falta de disciplina entre os monges. Semelhante lugar para sepultar uma pessoa da sua posição faria de nós uns imbecis aos olhos de todo o mundo.
- Qual mundo? - perguntou Bodrugan. - O teu mundo abarca toda a Inglaterra ou só o Devon?
Matilda ficou rubra, cor de sangue.
- Nós bem sabemos para que lado se virou a tua lealdade há sete anos atrás - observou -, para o apoio de uma rainha adúltera contra o filho, o rei por direito. Claro que tudo o que é francês tem a tua aprovação, desde as forças invasoras, se elas atravessarem o canal, até aos dissolutos monges que servem uma ordem estrangeira.
O marido, William, pousou-lhe uma mão no ombro, para a calar.
- Nada se lucra em reabrir velhas feridas - interpôs. - O papel do Otto nessa rebelião não nos diz respeito. Contudo... - olhou de relance para Bodrugana Matilda tem certa razão. Pode não cair bem a nível po lítico um Champernoune ser enterrado entre monges franceses. Seria bem mais adequado se o deixasses enterrar em Bodrugan, tendo em vista que Joanna detém grande parte dos lucros do teu senhorio como dote matrimonial. Ou então eu teria muita satisfação em que o fosse em Bere, onde se está agora a reconstruir a igreja. Ao fim e ao cabo o Henry é meu primo, o parentesco comigo é quase tão próximo como contigo.
- Oh, pelo amor de Deus - interrompeu-o Isolda impaciente -, deixa lá o Henry ser enterrado onde desejar. Teremos de nos comportar como carniceiros a barganharem sobre a carcaça de um carneiro, ainda antes de o animal ter sido abatido?
Era a primeira vez que lhe ouvia a voz. Exprimia-se em francês, como todos eles, com a mesma entonação anasalada, mas, talvez por ser mais nova do que os outros e a minha opinião ser parcial, achei a qualidade da sua linguagem mais musical, com um toque de clareza que a deles não possuía. Matilda rebentou logo a chorar, para consternação do marido, enquanto Bodrugan se encaminhava para a janela, pondo-se a olhar, mal humorado, o panorama exterior. Quanto a Isolda, que provocara aquela comoção toda, batia o pé com impaciência, exibindo no rosto uma expressão de desdém.
Olhei de relance para Roger, de pé a meu lado. Fazia um supremo esforço para disfarçar um sorriso. Depois avançou um passo numa atitude de respeito para com todos os presentes e comentou, sem ser para alguém em particular, mas suspeitando eu que ele procurava despertar as atenções de Isolda:
- Se desejarem, informarei a minha senhora da chegada de Sir Otto.
Ninguém lhe respondeu e ele, tomando o silêncio por aquiescência, fez uma vénia e retirou-se. Subiu as escadas para a câmara do andar de cima, e segui-o de perto como se um laço nos prendesse um ao outro. Entrou sem bater, empurrando para o lado os pesados reposteiros que mascaravam a entrada para o quarto, que tinha metade do tamanho do átrio debaixo, e era sobretudo ocupado por uma cama de dossel ao fundo. As pequenas janelas sem vidraças pouca luz forneciam, e pergaminho oleado cobria-lhes com firmeza as frinchas, enquanto as velas acesas pousadas na mesa de cavalete aos pés da cama projectavam monstruosas sombras nas paredes pintadas de ocre.
Havia três pessoas no compartimento, Joanna, um monge e o moribundo. Henry de Champernoune encontrava-se amparado na cama por um grande travesseiro que o inclinava para a frente, forçando-lhe o queixo contra o peito, e tinha um pano branco enrolado na cabeça, ao jeito de turbante, conferindo-lhe uma incongruente parecença com um xeque árabe. Tinha os olhos fechados e, a julgar pela palidez do rosto, estava prestes a morrer. O monge inclinara-se para mexer qualquer coisa que estava numa tijela pousada sobre a mesa de cavalete e ergueu a cabeça quando entrámos. Tratava-se do jovem de olhos brilhantes, que servira de secretário ao prior aquando da minha primeira visita ao priorado. Nada disse, mas continuou a mexer e Roger voltou-se para Joanna, que se encontrava sentada do outro lado do quarto. Conservava perfeita compostura, sem mostrar sinais de desgosto na face, e ocupava-se a entrelaçar fios de seda colorida sobre um bastidor, para formar determinado padrão.
- Estão lá todos? - perguntou, sem tirar os olhos do bastidor.
- Os que têm obrigação de estar - respondeu o administrador -, e já discutem uns com os outros. Lady Ferrers começou por ralhar com as crianças por falarem demasiado alto e estava agora a implicar com Sir Otto enquanto Lady Carminowe, a avaliar pelo ar, gostava era de se ver noutro sítio. Sir John ainda não chegou.
- Nem é provável que chegue - replicou ela. - Deixei isso à sua discrição. Se se mostrar prematuro nas condolências, poderão pensar que está a desempenhar o seu papel com excesso de zelo e a irmã, Lady Ferrers, será a primeira a levantar-lhe problemas.
- Já o está a fazer - aduziu o administrador.
- Bem sei. Quanto mais depressa tudo estiver terminado, melhor para todos.
Roger dirigiu-se para os pés da cama e baixou o olhar para o indefeso ocupante.
- Quanto faltará agora? - perguntou ao monge.
- Não despertará de novo. Podes tocar-lhe, se quiseres, que ele não te sentirá. Estamos apenas à espera que o coração pare de funcionar e então a minha senhora poderá anunciar-lhe a morte.
Roger afastou o olhar da cama, voltando-o para as pequenas tijelas sobre a mesa.
- O que lhe deste?
- O mesmo de sempre, mecónio, o suco de toda a planta, em partes iguais com meimendro, numa dose pequena.
Roger dirigiu-se a Joanna:
- Seria talvez preferível que eu levasse isto daqui, para que não haja discussões quanto ao tratamento. Lady Ferrers falou no cirurgião dela. Eles não se atreverão a ir contra os seus desejos, mas podem provocar aborrecimentos.
Joanna, ainda dedicando-se às suas meadas de seda, encolheu os ombros.
- Leva os ingredientes embora, se assim quiseres - disse-lhe -, embora já tenhamos deitado os líquidos no esgoto. Se consideras mais seguro, poderás remover os vasos, mas custa-me a crer que o irmão Jean tenha alguma coisa a temer. A discrição dele tem sido absoluta.
Sorriu-se para o jovem monge, que reagiu com um expressivo olhar de relance e eu perguntei-me se também ele, tal como o ausente Sir John, não teria beneficiado dos favores dela durante as semanas da doença do marido. Entre os dois, Roger e o monge, embrulharam as tijelas, metendo-as num saco e durante todo esse tempo eu continuava a ouvir o murmúrio de vozes lá em baixo no vestíbulo, sugerindo que Lady Ferrers recuperara da sua crise de choro e atacara de novo a todo o vapor.
- Como é que o meu irmão está a aceitar a situação? - quis Joanna saber.
- Não fez comentários quando Sir William insinuou que a capela Bodrugan seria preferível ao priorado para o enterro. Penso que será pouco provável ele interferir. Sir William propôs a sua igreja em Bere como alternativa.
- Com que finalidade?
- Para seu engrandecimento pessoal, talvez... quem sabe? Eu não a recomendaria. Logo que tenham o corpo de Sir Henry nas suas mãos, poderão meter-se onde não são chamados. Enquanto na capela do priorado...
- Tudo há-de correr bem. As vontades de Sir Henry serão observadas e nós ficaremos em paz. Encarrego-te de velar para que não haja problemas com os rendeiros, Roger. As pessoas não gostam lá muito do priorado.
- Não os haverá, se forem bem tratados no funeral - respondeu ele. - Uma promessa de redução de coimas na próxima sessão do tribunal e um perdão a todos os faltosos. Isso há-de contentá-los.
- Esperemos que sim. - Pôs de lado o bastidor e, erguendo-se da cadeira, dirigiu-se para a cama. - Estará ainda vivo? - inquiriu.
O monge tomou o pulso sem vida nas mãos, para lhe contar as pulsações; depois baixou a cabeça, para escutar o coração do paciente.
- Mal respira - respondeu. - Pode acender as velas, se o desejar, que a todo o momento a família será informada de que ele nos deixou.
Parecia que se estavam a referir a uma velha peça de mobiliário que deixara de ter utilidade, em vez de a um marido prestes a morrer. Joanna regressou à sua cadeira, tomou um pedaço de tecido negro e começou a enrolá-lo na cabeça e ombros. Depois pegou num espelho de prata que estava numa mesinha ali à mão.
- Achas que o use assim ou que cubra o rosto? perguntou ao administrador.
- Será mais adequado cobri-lo - respondeu ele - a menos que seja capaz de chorar em abundância.
- Desde o dia do meu casamento que não choro - retorquiu a mulher.
O monge Jean cruzou as mãos do moribundo sobre o peito e atou-lhe uma faixa de linho em torno do queixo. Recuou para observar a sua obra e, como toque final, meteu-lhe um crucifixo entre as mãos.
Entretanto, Roger estava a arrumar a mesa de cavalete.
- Quantas velas é que serão necessárias? - indagou.
- Cinco no dia do falecimento - esclareceu o monge -, em honra das cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tem uma colcha negra para a cama?
- Ali na arca - disse Joanna e, enquanto o monge e o administrador revestiam a cama com a coberta negra, ela contemplava no espelho a face, pela última vez antes de a cobrir com o véu.
- Se bem entendo - murmurou o monge -, causaria melhor impressão se a minha senhora se ajoelhasse ao lado da cama e eu me colocasse aos pés. Então, quando a família entrar no quarto, poderei recitar o Responso pelos Mortos. A não ser que prefira que seja o pároco a recitá-lo.
- Esse está bêbedo de mais para subir as escadas - afirmou Roger. - Se Lady Ferrers pusesse os olhos nele, seria o seu fim.
- Então deixa-o sossegado - decidiu Joanna - e tratemos nós de tudo. Roger, importas-te de ir lá abaixo chamá-los? Primeiro o William, já que é o herdeiro.
Ajoelhou-se ao lado da cama, de cabeça baixa de desgosto, mas ergueu-a antes que saíssemos do quarto, dizendo por cima do ombro ao administrador:
- O meu irmão, Sir Otto, gastou quase cinquenta marcos, em Bodrugan, quando o meu pai morreu, sem contar com o gado que foi abatido para o banquete fúnebre. Nós não podemos ficar por baixo. Não te poupes a despesas.
Roger afastou os reposteiros da porta e eu segui-o para os degraus lá fora. O contraste entre o dia luminoso no exterior e a atmosfera lúgubre do interior deve tê-lo afectado tanto quanto a mim, porque fez uma pausa ao cimo das escadas, baixando o olhar por cima dos muros circundantes para as águas do estuário, lá em baixo. As velas da embarcação de Bodrugan pendiam soltas para o convés, enquanto se mantinha ancorada e um i ndivíduo num barquinho andava de um lado para o outro à procura de peixe. Os jovens da casa haviam descido a colina para verem o barco do tio. Henry, fil ho de Bodrugan, estava a apontar qualquer coisa ao primo William e os cães saltavam à volta deles, outra vez a latir.
Apercebi-me nesse momento, mais do que até aí, de como era fantástica, até mesmo macabra, a minha presença entre eles sem ser visto, sem ter ainda nascido um vagabundo no tempo, testemunha de acontecimentos que haviam ocorrido séculos no passado, que não eram recordados nem se encontravam registados. E perguntava a mim mesmo como é que podia ser que, aqui de pé nos degraus, a observar ainda que estando invisível me podia sentir assim tão envolvido, tão perturbado, por aqueles amores e mortes. O homem que estivera moribundo poderia muito bem ter sido um parente da minha juventude perdida: até mesmo o meu pai, que tinha morrido na Primavera quando eu era mais ou menos da idade do jovem William que ali estava no campo. O telegrama enviado do Extremo Oriente (morrera a lutar contra os Japoneses) chegara no momento exacto em que a minha mãe e eu tínhamos acabado de almoçar, quando passávamos as férias da Páscoa num hotel de Gales. Ela subiu para o quarto e fechou a porta; eu fiquei ali pelo passeio junto do hotel, consciente da perda sofrida, mas incapaz de chorar, temendo o olhar de simpatia da rapariga da recepção, se fosse para dentro.
Roger, transportando o saco que continha as tigelas sujas de sucos de erva, desceu ao pátio e atravessou uma arcada ao fundo dele, que dava para uma estrebaria. Os servos que tratavam da lida da casa pareciam reunir-se ali, mas, à aproximação do administrador, interromperam a tagarelice e espalharam- se, todos menos um rapazito que eu vira no primeiro dia e que reconheci, pela sua parecença com o cavaleiro, como irmão de Roger. Este chamou-o para junto de si com um aceno de cabeça.
- Acabou-se - disse-lhe. - Vai já a cavalo ao priorado e informa o prior de que pode dar ordens para serem tocados os sinos. O trabalho cessará quando os homens ouvirem o toque e começarão a vir dos campos e a reunirem-se no relvado. Logo que tenhas transmitido o teu recado ao prior, volta directo para casa e coloca este embrulho na adega, depois espera que eu regresse. Tenho muito que fazer e posso não ir ainda esta noite.
O rapaz confirmou com um aceno de cabeça, desaparecendo nos estábulos. Roger atravessou mais uma vez a arcada que dava para o pátio. Otto Bodrugan estava de pé à entrada da casa. Roger hesitou um momento, depois dirigiu-se a ele.
- A minha senhora pede-lhe que vá ter com ela - disse - e com Sir William, Lady Ferrers e Lady Isolda. Eu vou chamar William e as crianças.
- Sir Henry está pior? - perguntou Bodrugan.
- Morreu, Sir Otto. Há menos de cinco minutos, sem recuperar a consciência, em paz, durante o sono.
- Lamento imenso - disse Bodrugan -, mas é preferível assim. Oro a Deus para que ambos possamos ir-nos tão em paz como ele, quando a nossa hora chegar, ainda que o não mereçamos. - Os dois homens benzeram-se. Fiz a mesma coisa automaticamente. - Vou dizer aos outros - continuou o homem. - Lady Ferrers pode ficar histérica que isso não interessa. Como está a minha irmã?
- Calma, Sir Otto.
- Já esperava.
Bodrugan fez uma pausa, antes de voltar a entrar na casa.
-Tens conhecimento de que, sendo William um menor - disse com modos hesitantes -, as suas terras serão confiscadas a favor do rei até que atinja a maioridade?
- Tenho, Sir Otto.
- A confiscação será pouco mais que uma formalidade, em circunstâncias comuns - prosseguiu Bodrugan. - Na minha qualidade de tio pelo casamento e, por conseguinte, guardião legal, eu deveria assumir os poderes de administrador das propriedades, com a supervisão real. Mas as circunstâncias não são comuns, devido ao papel que desempenhei na chamada rebelião. O administrador guardava discreto silêncio, de rosto inescrutável. - Por conseguinte, o confiscador nomeado pelo rei será alguém mais da sua estima... o seu primo Sir John Carminowe, com toda a probabilidade. Nessa eventualidade, não duvido de que ele tratará, com todos os cuidados, dos assuntos, em benefício da minha irmã.
A ironia na sua voz era indisfarçável.
Roger inclinou a cabeça sem replicar e Bodrugan entrou na casa. O lento sorriso de satisfação do administrador foi de imediato suprimido, quando os jovens Champernounes, juntamente com o primo Henry, entraram no pátio, a rir e a tagarelar, esquecidos por instantes da iminência da morte. Henry, o mais velho do grupo, foi o primeiro a ter a intuição do que devia ter acontecido. Ordenou silêncio ao par mais jovem e fez sinal a William para avançar. Vi a expressão no rosto do rapaz alterar-se do descuidado riso para a apreensão e adivinhei que o súbito medo lhe deveria ter dado a volta ao estômago.
- Foi o meu pai? - perguntou.
Roger acenou que sim.
- Leva o teu irmão e a tua irmã contigo e vai ter com a tua mãe. Lembra-te que és o mais velho. Ela precisará de ti para a apoiares nos próximos dias.
O rapaz agarrou-se ao braço do administrador.
- Ficarás connosco, não é verdade? E o meu tio Otto também?
- Veremos - respondeu Roger. - Mas tu agora é que és o chefe de família.
William fez um esforço supremo para se dominar. Virou-se para encarar o irmão mais novo e a irmã, dizendo:
- O nosso pai morreu. Por favor, venham comigo - e encaminhou-se para a casa, de cabeça erguida, mas muito pálido. As crianças, sobressaltadas, fizeram o que lhes mandavam, levando o primo Henry pela mão e eu, olhando a cara de Roger de relance, vi nele pela primeira vez algo parecido com compaixão, juntamente com orgulho; o rapaz, que ele devia conhecer desde que gatinhava, não o deixara ficar mal. Aguardou uns momentos, depois seguiu-os.
O salão parecia deserto. Uma tapeçaria pendente ao fundo, perto da lareira, havia sido puxada para o lado, mostrando uma pequena escadaria para o quarto do andar superior que Otto Bodrugan e os Ferrers deviam ter subido e as crianças também. Consegui ouvir o arrastar de pés lá em cima, depois fez-se silêncio, seguido pelo baixo murmurar da voz do monge: Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis'.
Eu disse que o átrio parecia deserto e assim era, à excepção da figura esguia vestida de lilás: Isolda era o único membro do grupo que não subira ao quarto. Ao vê-la, Roger fez uma pausa no limiar da porta, antes de se lhe dirigir com deferência.
' Em latim no original: Dá-lhes, Senhor, o eterno descanso e que a luz perpétua brilhe sobre eles. (N. do T. )
- Lady Carminowe, não deseja prestar homenagens com o resto da família? - perguntou-lhe.
Isolda não reparara nele de pé junto da entrada, mas virava agora a cabeça para o encarar de frente e havia tanta frieza nos seus olhos que, estando eu onde estava, ao lado do administrador, eles pareceram varrer- me com o mesmo desdém que a ele.
- Não é meu hábito fazer da morte um divertimento - replicou.
Se Roger ficou surpreendido não mostrou sinais disso, mas executou o mesmo gesto de deferência.
- Sir Henry agradecer-lhe-ia as suas orações - disse.
- Ele teve-as com regularidade durante muitos anos - redarguiu a mulher - e com crescente fervor no decorrer das derradeiras semanas.
O tom de voz dela tornou-se-me evidente e deve tê-lo sido ainda mais para o administrador.
- Sir Henry ficou indisposto desde que fez a peregrinação a Compostela - contrapôs. - Diz-se que Sir Ralph de Beaupré sofre também da mesma doença. É uma febre devastadora, não há cura para ela. Sir Henry cuidava tão pouco da sua pessoa que se tornava difícil tratá-lo. Posso assegurar-lhe que foi feito tudo o que era possível.
- Fui informada de que Sir Ralph de Beaupré está de posse de todas as suas faculdades, a despeito da febre
- retorquiu Isolda. - O meu primo, não. Não reconhecia nenhum de nós há mais dum mês e, no entanto, tinha a testa fresca, a temperatura não era alta.
- Não existem dois homens semelhantes na doença - respondeu Roger. - O que salva um pode fazer mal a outro. Foi por sua infelicidade que Sir Henry ficou com o juízo perturbado.
- Tudo isso agravado pelas poções que lhe foram ministradas - afirmou ela. - A minha avó, Isolda de Cardinham, possuía um tratado sobre ervas escrito por um sábio doutor que entrou nas Cruzadas e legou-mo a mim quando morreu, por eu ter o mesmo nome que ela. Não me são estranhas as sementes da papoila negra e da branca, da água de cicuta, da mandrágora e do sono que são passíveis de induzir.
Roger, sobressaltado, assumiu uma atitude de deferência, sem resposta imediata. Depois disse:
- Essas ervas são usadas por todos os boticários para aliviar as dores. O monge, Jean de Meral, foi treinado na casa-mãe de Angers e é um perito na especialidade. O próprio Sir Henry tinha nele implícita fé.
- Não duvido da fé de Sir Henry, nem da perícia do monge ou do seu zelo em empregar tal perícia, mas uma planta curativa pode ser maligna, se a respectiva dose for exagerada - replicou Isolda.
Apresentara o seu desafio e tinha consciência disso. Recordei-me da mesa de cavalete aos pés da cama e das malgas que haviam estado em cima dela, agora com cautela embrulhadas no saco e levadas dali.
- Esta casa está de luto - disse Roger - e assim continuará durante vários dias. Aconselho-a a falar desses assuntos com a minha senhora, não comigo. São coisas que não me dizem respeito.
- A mim também não - retorquiu ela. - Só falo por dedicação ao meu primo e porque não me enganam com facilidade. Bem te deves lembrar.
Uma das crianças principiou a chorar no andar superior e verificou-se uma súbita pausa no murmúrio de orações, sons de movimento e o ruído de passos pelas escadas abaixo. A filha dos donos da casa, que não devia ter mais que uns dez anos de idade, entrou a correr no salão e lançou-se nos braços de Isolda.
- Dizem que está morto - disse ela -, mas abriu os olhos e olhou para mim, só uma vez, antes de os tornar a fechar. Ninguém mais viu, estavam todos muito ocupados com as suas orações. Quereria ele dizer que devo segui-lo para a sepultura?
Isolda puxou para si a criança de forma protectora, olhando por cima do ombro dela para Roger e disse de repente:
- Se alguma coisa maléfica foi feita hoje ou ontem, tu serás responsabilizado como os outros, quando chegar a devida altura. Não neste mundo, onde as provas faltam, mas no outro, perante Deus.
Roger deu um passo em frente, ao que penso sob um impulso qualquer para fazer calar a criança, ou para lha tirar, e eu avancei para ele para o impedir, mas tropecei com o pé numa pedra solta. E logo não havia nada à minha volta senão montes de terra, outeiros relvados, maciços de arbustos e as raízes de uma árvore morta. Atrás de mim, uma grande escavação de forma circular como a de uma mina, cheia de sucata velha e telhas de lousa caídas. Apercebi-me da existência de um pé de carqueja murcho e vomitei com violência. À distância, conseguia ouvir o roncar de um motor a diesel a funcionar sob
mim, no vale.
Capí tulo sete
A mina era íngreme, escavada na encosta da colina, cheia de plantas de azevinho e heras, detritos de anos espalhados por entre a terra e as pedras. Uma pequena vereda, saindo da mina, ia dar a um poço de dimensões mais reduzidas, em seguida a outro e ainda a um terceiro, todos rodeados por taludes, valas e montículos de tufos de ervas. Via-se carqueja por todo o lado, mascarando a visão e, por causa das minhas vertigens, eu não conseguia ver, mas continuava a tropeçar nos taludes, com um único pensamento em mente: que precisava de sair daquela zona de destruição e encontrar o meu carro. Era imperativo encontrá-lo.
Agarrei-me a uma árvore torta e aí me mantive, para me firmar, vendo mais latas velhas a meus pés, uma armação de cama partida, um pneu e ainda mais tufos de heras e azevinho. As sensações haviam-me regressado aos membros, mas as tonturas aumentaram enquanto cambaleava pelo montão acima, as náuseas também e escorreguei para outra cova, ficando aí a arquejar de estômago pesado. Senti um enjoo violento, o que foi um alívio momentâneo, e levantei-me de novo para escalar mais outro monte. Via agora que me encontrava apenas a umas centenas de pés da sebe original junto da qual havia fumado o meu cigarro. Os montículos e as covas tinham estado escondidos nessa altura de mim por um valado íngreme e um portão partido. Baixei mais uma vez os olhos para o vale, vendo a extremidade traseira do comboio a desaparecer numa curva antes da estação de Par. Passei depois através de uma abertura na sebe e comecei a subir a colina pelos campos, para regressar ao automóvel.
Atingi a berma no preciso momento em que mais um violento ataque de náuseas me acometeu. Cambaleei porentre os montes de cimento e pranchas e vomitei de novo com violência, enquanto céu e terra se revolviam à minha volta. As vertigens que tinha tido no pátio no primeiro dia não tinham sido nada comparadas com isto e, enquanto me acocorava num monte de cimento à espera que me passassem, continuava a dizer a mim mesmo: Nunca mais... nunca mais... ", com todo o fervor e enfraquecida cólera de quem estava a recuperar de uma anestesia, numa revulsão sem controlo.
Antes de perder o conhecimento, tive vaga consciência da presença de outro carro junto à berma e, após o que me pareceu uma eternidade, quando as náuseas e vertigens me passaram e fiquei a tossir e a fungar, ouvi a porta do outro automóvel bater e compreendi que o dono se tinha aproximado e estava a olhar para mim.
-Já se sente bem? - perguntou-me.
- Sim - respondi -, acho que sim.
Ergui-me vacilante e ele estendeu-me uma mão para me apoiar. Tinha mais ou menos a minha idade, no princípio da casa dos quarenta, um rosto agradável e um aperto de mão muitíssimo forte.
- Tem as suas chaves?
- Chaves... - remexi no bolso à procura das chaves do carro. Cristo! E se eu as tivesse deixado cair na mina, ou no meio daqueles montículos... nunca mais as havia de encontrar. Estavam no bolso de cima, com o frasco. O alívio que senti foi tão tremendo que me senti de novo firme e caminhei até ao carro sem ajuda. Mais outro problema no entanto: não conseguia meter a chave na fechadura.
- Dê-ma, eu trato disso - disse o meu samaritano.
- É muito amável da sua parte. Peço-lhe desculpa - disse eu.
- Faz parte do meu dia de trabalho - respondeu-me. - Acontece que sou médico.
Senti o rosto contrair-se-me, depois esbocei um rápido sorriso, que pretendi desmotivador. A casual cortesia de um motorista de passagem era uma coisa; as atenções profissionais de um médico eram outra. Enquanto me olhava com interesse, perguntei-me o que estaria a pensar.
- O facto é que - disse eu - devo ter subido a colina um tanto depressa de mais. Senti-me estonteado ao chegar ao cimo e depois enjoado. Não era capaz de parar de vomitar.
- Oh, ainda bem, isso não é novidade. Suponho que a berma de uma estrada é um sítio tão bom como qualquer outro para uma pessoa vomitar. Ficaria surpreendido com o que se vê por aqui na estação turística.
Mas não se deixou enganar. Os seus olhos eram particularmente penetrantes. Gostaria de saber se ele estava a ver a forma do frasco, no bolso de cima do meu casaco.
- Tem de ir para longe? - perguntou-me.
- Não, mais ou menos um par de milhas, não mais que isso.
- Nesse caso - sugeriu -, não seria mais sensato se deixasse o carro aqui e me permitisse levá-lo a casa? Poderá sempre mandá-lo buscar depois.
- É muito amável da sua parte - disse-lhe -, mas garanto-lhe que me sinto perfeito agora. Foi uma dessas coisas passageiras.
- Hum... bastante violenta enquanto durou.
- Sinceramente, não há problema. Talvez fosse qualquer coisa que comi ao almoço e depois a escalada da colina...
- Olhe - interrompeu-me ele -, o senhor não é meu doente e eu não estou a procurar receitar-lhe nada. Apenas o estou a avisar de que pode ser perigoso para si conduzir.
- Sim - admiti -, é muito simpático da sua parte e estou-lhe muito agradecido pelo conselho. - O que importava era que ele poderia ter razão. Na véspera eu tinha conduzido até St. Austell e de regresso a casa com o maior à-vontade. Hoje poderia ser diferente. As vertigens poderiam acometer-me de novo. Ele deve ter reparado na minha hesitação, porque me disse:
- Se preferir segui-lo-ei, só para ver se está bem. Ser-me-ia difícil recusar; levá-lo-ia a ter mais suspeitas.
- É muito correcto da sua parte - respondi. - Eu só tenho de ir até ao cimo da colina de Polmear.
- Fica-me a caminho de casa - disse sorrindo. - Vivo em Fowey.
Entrei com enorme cautela no carro e afastei-me da berma da estrada. Seguiu-me de perto e eu disse para comigo que, se me enfiasse pela sebe dentro, estava bem arranjado. Mas naveguei pela estreita vereda sem qualquer dificuldade e soltei um suspiro de alívio ao desembocar na estrada principal, disparando pela colina de Polmear acima. Ao virar à direita para Kilmarth, pensei que me iria seguir até à casa, mas dirigiu-me um aceno de mão e prosseguiu pela estrada que ia para Fowey. Fosse como fosse, mostrava-se discreto. Talvez supusesse que estava instalado em Polkerris ou em alguma quinta das redondezas. Passei pelo portão e desci o caminho de acesso, meti o carro na garagem e entrei em casa. Depois vomitei de novo.
A primeira coisa que fiz ao recuperar, ainda sentindo-me bastante abalado, foi lavar o frasco de bolso. Desci então ao laboratório e meti-o na pia, para o encher de água. Era mais seguro ali do que na copa. Só ao subir as escadas mais outra vez e depois de me ter atirado para uma cadeira de braços, exausto, na sala de música, é que me recordei das malgas embrulhadas no saco. Tê-las-ia deixado no carro?
Ia para me levantar e descer à garagem para lhes dar uma olhadela, porque precisavam de ser lavadas ainda com mais cuidado do que o frasco e fechadas à chave, quando me apercebi, com uma súbita vaga de apreensão, como se algo tivesse sido vomitado pelo meu cérebro ao mesmo tempo que pelo meu estômago, que estivera prestes a confundir o presente com o passado. As malgas tinham sido entregues ao irmão de Roger, não a mim.
Fiquei sentado muito quieto, com o coração a cavalgar-me no peito. Da outra vez não se verificara confusão. Os dois mundos tinham-se mostrado distintos. Seria por as náuseas e as vertigens terem sido tão fortes que o passado e o presente se me tinham misturado na mente? Ou ter-me-ia enganado na contagem das gotas, ingerindo uma dose mais potente? Não havia forma de saber. Agarrei com força os braços do cadeirão. Esses eram sólidos, reais. Tudo em torno de mim o era. O percurso para casa, o médico, a cova cheia de sucatas e pedras esmigalhadas também eram reais. Não a casa sobranceira ao estuário, nem o monge, nem as malgas que estavam no saco... esses eram todos produtos da droga, uma droga que punha doente um cérebro são.
Comecei a sentir-me irritado, não tanto comigo mesmo, o porquinho-da- índia voluntário, como com Magnus. Ele estava pouco seguro das suas descobertas. Pretendia saber o que tinha feito. Não me admirava que me tivesse pedido para lhe enviar a garrafa B, para experimentar o conteúdo no macaco do seu laboratório. Ele suspeitava que algo estava errado e agora eu já lhe poderia dizer o que era. Nem júbilo, nem depressão, mas sim confusão de pensamentos. A fusão de dois mundos. Bem, já me bastava. Já tivera a minha quota-parte. Magnus que fizesse as suas experiências numa dúzia de macacos, mas não em mim. O telefone começou a tocar e, saindo em sobressalto da cadeira, atravessei a biblioteca para o atender. Raios partissem aqueles poderes telepáticos. Ele ia dizer-me que sabia onde eu tinha estado, que a casa sobranceira ao estuário era terreno familiar, que não havia motivos para me preocupar, que a segurança era total desde que eu não tocasse em ninguém. Se me sentia enjoado ou confuso, isso era um efeito colateral sem consequências. Acabaria por o ultrapassar.
Peguei no aparelho e alguém disse:
- Só um momento, por favor, tenho uma chamada para o senhor - e ouvi o estalido quando Magnus recebeu a ligação.
- Raios te partam e vai-te lixar! - vociferei. - É a última vez que me comporto como uma foca amestrada.
Verificou-se um pequeno arquejar no outro extremo da linha e depois uma gargalhada.
- Muito agradecida pelas tuas boas-vindas, querido. Era Vita. Fiquei estupefacto, de auscultador na mão. Faria a voz dela parte da confusão que se estabelecera?
- Querido? - repetiu. - Estás em linha? Algum problema?
- Não - retorqui -, nenhum, mas o que aconteceu? De onde é que me estás a falar?
- Do aeroporto de Londres - respondeu ela. - Tomei um voo que partia mais cedo, foi só isso. O Bill e a Diana vêm buscar-me e levam-me a jantar. Pensei que tu pudesses telefonar mais tarde para o apartamento e ficasses admirado por eu não atender. Desculpa se te apanhei de surpresa.
- Bem, apanhaste mesmo - redargui -, mas não tem importância. Como vais?
- Óptima - respondeu -, mesmo óptima. E tu? Quem pensaste que eu era quando atendeste? Não me pareceste lá muito satisfeito.
- Na verdade - admiti -, pensei que era o Magnus. Tive de fazer uma quantidade de coisas para ele... escrevi a contar-te tudo, numa carta que só receberás amanhã de manhã.
Ela soltou uma gargalhada. Conhecia-lhe o som, com aquela inflexão de Também pensei o mesmo... "
- Quer dizer que o teu professor te tem andado a fazer trabalhar - disse-me. - Isso não me surpreende. Que é que ele te obrigou a fazer que te transformou nu ma foca amestrada?
- Oh, coisas intermináveis, tratar de umas tralhas explicar-te-ei quando te vir. Quando é que os rapazes voltam?
- Amanhã - respondeu. - O comboio deles chega de manhã a horas horríveis. Pensei em metê-los logo no carro e ir para aí. Quanto tempo demorará a viagem?
- Espera - intervim -, a questão é essa. Eu não estou pronto para te receber. Disse-te isso na carta. Vem
depois do fim-de-semana.
Fez-se silêncio na outra extremidade da linha. Eu fizera soar a habitual sineta.
- Não estás pronto - repetiu ela. - Mas deves ter estado aí uns cinco dias? Pensei que ias contratar uma
mulher para ir cozinhar e fazer as limpezas, tratar das camas, etc. Deixou-nos ficar mal?
- Não, não é isso - garanti-lhe. - É de primeira qualidade, não podia ser melhor. Olha, querida, não te posso explicar pelo telefone, está tudo na minha carta
mas, para ser sincero, nós não te esperávamos senão lá para segunda- feira.
- Nós? - estranhou. - Não quererás dizer tu e o professor, pois não?
- Não, não... - sentia a irritação a crescer entre ambos. - Referia- me a Mrs. Collins e a mim. Ela só vem de manhã, tem de se deslocar de Polkerris de bicicleta, da aldeiazinha que fica no sopé da colina e as camas ainda não foram arejadas nem nada. Ficará numa tremenda atrapalhação se tudo não estiver absolutamente como deve ser e tu bem sabes como és, ganhas aversão ao lugar se não estiver tudo a brilhar.
- Que grande disparate - afirmou ela. - Estou plenamente preparada para um piquenique e os rapazes também. Poderemos levar comida connosco, se é isso que te está a preocupar. E cobertores também. Há roupa de cama que chegue?
- Montes de cobertores - respondi - e de comida. Oh, querida, não sejas obstrutiva. Se vieres já para cá não será conveniente e é a verdade nua e crua. Lamento muito.
- OK! - O acento tónico no tinha o tom típico de uma Vita a sofrer temporária derrota numa discussão, mas decidida a ganhar a batalha final. - É melhor comprares um avental e uma vassoura - acrescentou. - Direi ao Bill e à Diana que te transformaste em empregada doméstica e vais passar a noite de mãos e joelhos no chão. Eles vão adorar isso.
- Não é que eu não te queira ver, querida - comecei a dizer, mas o adeus" dela, ainda com a mesma inflexão, indicou-me que fizera o pior que poderia ter feito, que me desligara o telefone na cara e se dirigia agora para o restaurante do aeroporto, para encomendar um scotch com gelo e fumar três cigarros uns atrás dos outros antes de os amigos chegarem.
Bem, estava feito... E agora? A minha cólera contra o Magnus deflectira-se sobre Vita, mas como é que eu havia de saber que ela iria apanhar um avião mais cedo e telefonar-me inesperadamente? Qualquer pessoa na mesma situação seria apanhada em desequilíbrio. Mas esse é que era o busílis. A minha situação não era a de qualquer pessoa: era única. Há menos de uma hora tinha estado a viver noutro mundo, noutra época, ou tinha-o imaginado por efeito da droga.
Comecei a andar da biblioteca para a sala de música, atravessando o vestíbulo e regressando pelo mesmo caminho, como alguém que andasse a passear no convés de um navio, com a impressão de que já não me sentia seguro de nada. Nem de mim mesmo, de Magnus, de Vita, nem do mundo à minha volta, pois quem poderia dizer  onde me pertencia estar? Aqui nesta casa emprestada, no apartamento de Londres, no escritório que abandonara quando me demitira ou àquela habitação singularmente vívida e enlutada que eu enterrara sob séculos de cascalho? Por que razão, se estava decidido a não voltar a ver tal casa, tinha dissuadido Vita de vir para aqui no dia seguinte? As desculpas tinham-me surgido de imediato como uma acção reflexa. As náuseas e as vertigens haviam desaparecido. Tinham sido aceites. Poderiam voltar a acometer-me. Também as aceitaria nessa eventualidade. A droga era perigosa, as suas implicações e efeitos colaterais eram desconhecidos. Também isso eu aceitava. Amava Vita, mas não a queria junto de mim. Porquê?
Peguei mais uma vez no telefone e liguei para Magnus. Não atendeu. Também não obtive resposta para a questão que pusera a mim mesmo. Esse médico, de olhos inteligentes, poderia ter-ma dado. Que é que me teria dito? Que uma droga alucinatória pode pregar partidas curiosas ao inconsciente, provocando a supressão de toda uma vida da superfície da terra, sendo portanto melhor pô-la de lado? Uma resposta prática, mas que não me bastava. Não andar a deslocar-me pelo meio de fantasmas de infância. As pessoas que tinha visto não eram sombras do meu próprio passado. Roger, o administrador, não era o meu alter ego, nem Isolda a fantasia de um sonho, um podia-ter-sido. Ou eram-no?
Voltei a tentar ligar para Magnus dois ou três minutos depois, mas não atendeu e passei o resto do serão incapaz de me concentrar em jornais, livros, discos ou na televisão. Por fim, farto de mim mesmo e de todo aquele problema que parecia sem solução, deitei-me cedo e dormi, acordando para meu espanto na manhã seguinte com uma surpreendente disposição.
A primeira coisa que fiz foi telefonar para o meu apartamento e apanhei a Vita no exacto momento em que ia esperar os rapazes.
- Querida, desculpa a conversa de ontem... - principiei a dizer, mas não tive tempo para me alongar sobre o assunto porque ela me interrompeu, dizendo-me que já estava atrasada.
- Bom, quando é que te devo telefonar? - perguntei.
- Não te posso dar uma hora certa - respondeu.
- Tudo depende dos rapazes, do que quiserem fazer, de haver ou não uma data de coisas para comprar. Eles talvez precisem de jeans, calções de banho, não sei... Obrigado pela tua carta, a propósito. É evidente que o teu professor te mantém muito ocupado.
- Deixa lá o Magnus... Como correu ontem o teu jantar com o Bill e a Diana?
- Foi divertido. Muita má- língua. Agora tenho de ir, senão deixo os miúdos pendurados na estação de Waterloo.
- Dá-lhes uma abraço meu! - gritei, mas ela já tinha desligado. Oh, bom, parecera-me bastante satisfeita. A noite passada com os amigos e o repouso nocturno deviam tê-la feito mudar de ideias e a minha carta também contribuíra, já que dava a impressão de a ter aceite bem. Que alívio!... Agora podia descontrair-me mais uma vez... Mrs. Collins bateu à porta e entrou, com o meu pequeno-almoço num tabuleiro.
- A senhora está a mimar-me - disse-lhe eu. - Há uma hora que eu já devia estar fora da cama.
- O senhor está de férias - retorquiu. - Não há nada por estas bandas que o obrigue a sair da cama, pois não?
Reflecti nas suas palavras enquanto bebia o café. Uma observação reveladora. Nada que me obrigasse a levantar-me... Nada de saltar para o metro que vai de Kensington a Covent Garden, a familiar janela do escritório, a inevitável rotina, discussões sobre publicidade, casacos, novos autores, velhos autores. Tudo terminado graças à minha demissão. Nada que me obrigasse a levantar-me.
Mas Vita queria que tudo recomeçasse do outro lado do Atlântico. Correr para o metropolitano, acotovelar estranhos nos passeios, um edifício de escritórios com trinta andares de altura, a inevitável rotina, discussões sobre publicidade, casacos, novos autores, velhos autores. Algo que me obrigava a levantar da cama...
Vinham duas cartas no tabuleiro do pequeno-almoço. Uma era da minha mãe, de Shropshire, dizendo que a Cornualha devia ser maravilhosa e que me invejava por estar a apanhar tanto sol. A artrite voltara a piorar e o pobre do velho Dobsie estava a ficar muito surdo. (Dobsie era o meu padrasto e não era de admirar que estivesse surdo: tratava-se sem dúvida de um mecanismo de defesa, porque a minha mãe nunca parava para recuperar o fôlego. ) E etc. etc. a caligrafia dela em grandes volutas, a cobrir cerca de oito páginas. A consciência doeu-me por já não a ver há um ano, mas, para lhe fazer justiça, ela nunca me censurava, mostrara-se deliciada quando eu tinha casado com a Vita e recordava-se sempre dos miúdos no Natal, com o que eu considerava um exagerado presente monetário.
O outro sobrescrito era comprido e fino, contendo um par de documentos dactilografados e uma nota garatujada por Magnus.
Caro Dick:
O meu discípulo é um amigo de barba comprida que passa o tempo a pastar à volta do 8111 e do PRO e me apresentou o que remeto em anexo quando esta manhã me sentei à minha secretária. A cópia do registo de contribuintes é bastante informativa e a outra, que menciona o senhor da mansão, o teu Champernoune, também o é e os procedimentos para a remoção do respectivo corpo devem divertir-te.
Pensarei em ti esta tarde, perguntando-me se Virgilio não estará a levar Dante a perder-se. Lembra-te de que não deves tocar-lhe. A reacção poderá revelar-se cada vez mais desagradável. Mantém as distâncias e tudo correrá bem. Sugiro que te mantenhas dentro de casa durante a próxima viagem.
Teu amigo, Magnus. "
Voltei a minha atenção para os documentos anexos. O estudante que fizera as pesquisas tinha garatujado no alto do primeiro:
Do Bispo Grandisson, de Exeter. Original em latim. Desculpe-me a tradução. " Dizia:
Grandisson. AD 1329. Priorado de Tyardreath. John, etc. para os seus amados irmãos de uma ordem religiosa, os senhores, o prior e o Convento de Ty ardreath, saudações, etc. De acordo com as Leis dos Sa grados Cânones, saiba-se que fomos advertidos de que os fiéis, uma vez entregues para enterramento pela Santa Igreja, não podem ser exumados excepto segundo essas mesmas leis. Chegou ultimamente ao nosso conhecimento que o corpo de Lord Henry de Champernoune, cavaleiro, descansa num sepulcro da nossa igreja consagrada. Certos homens, contudo, com os olhos da alma voltados de forma mundana para as pompas transitórias desta vida, mais do que para o bem- estar da alma do referido cavaleiro e o cumprimento dos devidos ritos, estão a ocupar- se da exumação do dito corpo em circunstâncias não permitidas pelas nossas leis e tencionam removê-lo para outro local sem a nossa autorização. Razão pela qual, continuando estritamente a regozijar-nos convosco pela virtude da vossa obediência, vos ordenamos que, em resistência a semelhante atrevimento temerário, não deveis permitir a exumação do referido corpo ou a sua remoção para de qualquer outra forma dele cuidarem, enquanto não houvermos sido consultados e postos ao corrente das razões para tal exumação ou remoção, se é que existem algumas, para as examinarmos, discutirmos ou aprovarmos, ainda que queirais escapar-vos à retribuição divina ou à nossa. Circunstância em que nós, pela nossa parte, lançaremos uma inibição sobre todos e cada um dos nossos súbditos e não menos sobre outros por cuja acção aparentemente se espera a perpetração de um crime dessa natureza, de forma a que não possam, sob pena de excomunhão, proporcionar qualquer ajuda, conselho ou favor a semelhante exumação ou remoção do género em causa. Dado em Paignton a 27 de Agosto.
Magnus acrescentara-lhe uma nota de rodapé: Agrada-me o estilo directo do bispo Grandisson. Mas qual é o motivo disto tudo? Uma questiúncula de família, ou algo ainda mais sinistro que o próprio bispo ignorava? "
O segundo documento era uma lista de nomes, encabeçada por: Registo de Contribuintes, 1327, pároco de Tywardreath. Subsídio de um vigésimo de todos os bens móveis... lançado sobre todos os Comuns que possuam bens de dez xelins ou mais. " Seguiam-se quarenta nomes ao todo e o de Henry Champernoune à cabeça. Passei os olhos pelos restantes. O número vinte e três era Roger Kylmerth. Portanto não se tratava de alucinações: ele vivera de facto.
Capitulo oito
Depois de me vestir, fui à garagem buscar o automóvel e, contornando Tywardreath, tomei a estrada de Treesmill. Evitei de propósito o parque de estacionamento e desci a colina na direcção do vale, depois de o indivíduo da vivenda de Chapel Down, que estava a lavar a caravana, me acenar. O mesmo sucedeu quando parei o carro sob a ponte, perto de Treesmill. O agricultor da véspera levava as vacas para o outro lado da estrada e deteve-se para me falar.
- Ainda não descobriu a sua casa senhorial? - perguntou-me.
- Não sei bem - respondi. - Pensei dar mais uma olhadela por aí. Há um sítio curioso lá em cima, a meio dos campos cobertos de arbustos de tojo. Tem nome?
Não o conseguia avistar da ponte, mas apontei mais ou menos na direcção da mina onde na véspera (mas noutro século) seguira Roger até ao interior da casa onde jazia Sir Henry Champernoune.
-Refere-se a Gratten? - perguntou. - Não me parece que descubra alguma coisa aí em cima, excepto ardósia velha e cascalho. Óptimo lugar para se apanhar ardósia, ou pelo menos era-o. Agora é quase só lixo. Diz-se que, quando as casas de Tywardreath foram construídas, no século passado, levaram dali a maior parte das pedras e das telhas. Pode ser que seja verdade.
- E porquê Gratten? - quis eu saber.
-Não sei ao certo. O campo lavrado que ficou atrás chamava-se Gratten e faz parte da quinta de Mount Bennett. O nome tem qualquer coisa a ver com um incêndio, parece-me'. Existe uma vereda do outro lado da
' Gratten, palavra derivada de grate, que poderá significar de facto, em inglês, fogo, incêndio". (N. do T)
ponte de Stonybridge que o levará até lá. Mas não vai encontrar nada de interesse.
- Também suponho que não - respondi - excepto o panorama.
- É quase só comboios - riu-se o homem - e não tantos como isso nos tempos que vão correndo.
Estacionei o carro a meio caminho da subida, do outro lado do estradão, tal como ele me sugerira, depois atravessei os campos em direcção a Gratten. Os caminhos-de- ferro e o vale encontravam-se sob mim à direita, com o terreno a descer íngreme até uma elevada plataforma ao lado da via e depois a subir gradualmente para um matagal e um pântano. Na véspera, naquele outro mundo, havia um cais a meio caminho entre os dois e, no centro do arborizado vale, onde as árvores e arbustos eram mais cerrados, Otto Bodrugan havia ancorado o seu barco a meio canal, com as quilhas a cortarem a maré.
Passei pelo local onde existira a sebe junto da qual estivera sentado a fumar um cigarro. Depois atravessei o portão quebrado e vi-me mais uma vez no meio de outeiros e montículos. Hoje, sem vertigens nem náuseas, conseguia distinguir com maior clareza que aqueles acidentes de terreno não eram uma formação natural de terreno não nivelado, mas deviam ter sido paredes há séculos cobertas pela vegetação e que as covas que considerara, na minha tontura, poços de minas, não passavam de recintos fechados que, há muito tempo, haviam sido os compartimentos de uma casa.
As pessoas que tinham vindo buscar telhas e pedras para os seus chalés haviam-no feito por boas razões. Escavar o solo que decerto cobria as fundações de um prédio há tanto tempo desaparecido ter-lhes-ia fornecido a maior parte do material de que precisavam para uso pessoal e a cova que ficara atrás fazia parte dessas mesmas escavações. Hoje, terminada essa procura, a cova passara a ser um local para lançarem sucata inútil, ou latas rejeitadas, que enferrujavam ali com o tempo e as chuvas de Inverno.
A procura deles terminara, enquanto a minha estava a principiar, mas, tal como me avisara o agricultor lá de baixo, de Treesmill, não devia encontrar nada. Apenas sabia que ontem, nesse outro tempo, estivera de pé no salão abobadado que formava a ala central daquela mansão há tanto tempo enterrada, subira a escadaria exterior para a sala de cima, vira o dono da casa morrer. Agora já não havia pátio, paredes, salão, nem estrebaria nas traseiras; nada, a não ser encostas relvadas e uma pequena vereda enlameada a atravessá-las.
Existia uma área de terreno plano, suave e verde em frente ao lugar, que na época deveria ter feito parte do pátio, e sentei-me ali a olhar para o vale lá em baixo, tal como Bodrugan fizera pela pequena janela do salão. Tiwardrai, a mansão da praia... Pensei como o serpenteante canal devia ser azul quando a maré se retirava, séculos atrás, revelando planuras de areia de ambos os lados, ouro brunido pelo sol. Se o canal tinha profundidade suficiente, Bodrugan poderia ter levantado âncora e fazer-se ao mar mais tarde nessa noite; senão, teria regressado a bordo para dormir entre os seus homens e, ao romper do dia talvez saísse para o convés, para esticar as pernas e erguer o olhar para a casa enlutada.
Tinha metido no bolso os documentos que me haviam chegado às mãos pelo correio dessa manhã e tirei-os agora para fora, para voltar a lê-los.
As ordens do bispo Grandisson para o prior estavam datadas de Agosto de 1329. Sir Henry Champernoune tinha morrido em finais de Abril ou princípios de Maio. Os Ferrers encontravam-se sem dúvida por detrás da tentativa de remover o corpo do túmulo do priorado, sendo Matilda Ferrers a mais insistente. Gostaria de saber quem fizera chegar aos ouvidos do bispo o rumor, pondo assim em jogo o orgulho eclesiástico e assegurando-se de que o corpo escaparia a qualquer investigação. Sir John Carminowe, com todas as probabilidades, agindo com mão enluvada para com Joanna, que desde há muito conseguira sem dúvida nenhuma levar para a cama.
Voltei a minha atenção para o registo de contribuintes e voltei a dar uma vista de olhos à lista de nomes, pondo de parte os que correspondiam aos nomes de lugares marcados no mapa das estradas que trouxera do automóvel. Ric Trevynor, Ric Trewiryan, Ric Trenathelon, Julian Polpey, John Polorman, Geoffrey Lampetho... todos, com ligeiras variações de grafia, pertenciam a quintas marcadas no mapa que tinha a meu lado. Os homens que nesses tempos habitavam nelas, mortos há mais de seiscentos anos, haviam deixado os nomes para a posteridade. Apenas Henry Champernoune, senhor da mansão, não deixara mais do que um montão de destroços como legado para que eu, um intruso no tempo, neles tropeçasse. Todos mortos há aproximadamente setecentos anos, Roger Kylmerth e Isolda Carminowe entre eles. Planos, sonhos hoje sem interesse, tudo esquecido.
Pus-me em pé e procurei descobrir, por entre os montículos, o salão onde Isolda estivera na véspera sentada, acusando Roger de cumplicidade no crime. Nada se ajustava. A natureza obrara demasiado bem aqui na encosta da colina e lá em baixo, no vale, onde em tempos o estuário se espreguiçava. O mar retirara-se de terra, a relva cobrira os muros, os homens e mulheres que por ali haviam há muito caminhado olhando as águas azuis lá em baixo estavam transformados em pó.
Virei-me, refazendo desanimado os meus passos pelos campos, a razão a dizer-me que era o fim da aventura.
As emoções entravam no entanto em conflito com a razão, destruindo-me a paz de espírito e, para o melhor ou para o pior, considerava-me envolvido no caso. Não conseguia esquecer que me bastava dar a volta à chave daquele laboratório para que tudo acontecesse de novo. Talvez a decisão que, no início, fora posta perante o homem de comer ou não o fruto da Árvore do Conhecimento. Meti-me no carro e conduzi de regresso a Kilmarth.
Passei a tarde a escrever uma narrativa completa dos acontecimentos da véspera para Magnus e contei-lhe também que Vita se encontrava em Londres. Depois fui de automóvel até Fowey, para meter a carta no correio, e arranjei forma de alugar um barco para depois do fim-de-semana, quando Vita e os rapazes já tivessem chegado. Ela não desfrutaria as águas planas e calmas de Long Island, nem o luxo do iate alugado do irmão Joe, mas o meu gesto provar-lhe-ia a vontade em agradar-lhe e os rapazes haviam de gostar.
Nessa noite não telefonei a ninguém nem ninguém me telefonou, e por isso dormi mal, acordando ininterruptamente, a escutar o silêncio. Continuava a pensar em Roger Kylmerth, no seu quarto de dormir por cima da cozinha da original casa de lavoura e perguntando-me se o irmão teria lavado bem as malgas, seiscentos e quarenta anos atrás. Fê-lo sem dúvida, já que Henry Champernoune jazeu imperturbado na capela do priorado até esta transformar-se também em poeira.
Nada de pequeno-almoço na cama na manhã seguinte, porque me sentia demasiado inquieto. Estava a beber o meu café nos degraus exteriores da varanda da biblioteca quando o telefone tocou. Era Magnus.
- Como é que te estás a sentir? - perguntou-me de imediato.
- Esgotado. Dormi mal.
- Poderás tratar disso mais tarde. Poderás dormir toda a tarde no pátio. Estão vários colchões na casa da caldeira e eu invejo-te. Londres transpira sob uma vaga de calor.
- A Cornualha não - repliquei -, e o pátio provoca-zne claustrofobia. Recebeste a minha carta?
- Recebi - confirmou. - Por isso te telefono. Parabéns pela tua terceira viagem". Sabes, estou com muita vontade de me ausentar dentro de mais ou menos uma semana para me juntar a ti, e faremos uma boa viagem" juntos.
A minha primeira reacção foi de entusiasmo. A segunda foi quase tombar no chão.
- Isso está fora de questão. A Vita estará aqui com os miúdos.
- Podemos livrar-nos deles. Mandá-los para as Scillies, ou passar um dia inteiro a Land's End, a descascarem bananas. Isso proporcionar-nos-á tempo.
- Não me parece - retorqui. - Não me parece mesmo nada. - Ele não conhecia a Vita como devia ser. Estava mesmo a ver as complicações que iam surgir.
- Bem, isso não é urgente - disse-me -, mas podia ser bastante divertido. Além disso, eu gostava de dar uma olhadela a Isolda Carminowe.
O seu tom pretensioso fez-me bem aos nervos esfrangalhados. Até sorri.
- É a miúda do Bodrugan, não a nossa - lembrei-lhe.
- Sim, mas isso há quanto tempo? - indagou. - Nessas épocas eles estavam sempre a mudar de parceiras. Continuo sem perceber o que ela tem a ver com os outros.
- Parece que ela e Ferrers são primos dos Champernounes - esclareci.
- E o marido de Isolda, Oliver Carminowe, ontem ausente do leito de morte, é irmão de Matilda e de Sir
John?
- Segundo parece.
- Tenho de pôr tudo isso por escrito e mandar o meu escravo investigar mais pormenores. Olha que tive razão quando te afirmei que a Joanna era uma cabra. - Depois, mudando abruptamente de tom continuou: - Portanto estás agora convencido de que a droga funciona e aquilo que viste não foram alucinações?
- Quase - repliquei, com cautela.
- Quase? Então os documentos não provam isso, se mais nada te convence?
- Os documentos ajudam a prová-lo - contrapus -, mas não te esqueças que os leste antes de mim. Portanto subsiste ainda a possibilidade de estares sob qualquer espécie de influência telepática. Seja como for, como vai o macaco?
- O macaco - fez uma pausa momentânea - morreu.
-Já é bastante...
- Oh, não te preocupes... não foi da droga. Matei-o de propósito. Preciso de trabalhar nas células cerebrais dele. Vai levar-me algum tempo, por isso não fiques impaciente.
- Não estou minimamente impaciente - retorqui -, apenas desanimado sobre a forma como estás a pôr em risco o meu cérebro.
- O teu cérebro é diferente - afirmou. - Ainda conseguirás aguentar a punição mais um pouco. Além disso, pensa em Isolda. Um antídoto tão esplêndido para a Vita. Poderás até descobrir que...
Interrompi-o de forma abrupta. Sabia exactamente o que iria dizer.
- Deixa em paz a minha vida amorosa - verberei.
- Não te diz respeito.
- Ia só sugerir-te, meu rapaz, que a deslocação entre dois mundos pode actuar como estimulante. Acontece todos os dias, sem drogas, quando um homem tem uma amante do outro lado da esquina e uma esposa em casa... A propósito, essa tua descoberta foi de primordial importância, isso do terreno plano na cova de Treesmill. Vou pôr os meus amigos arqueólogos a escavar no local, quando tu e eu terminarmos com tudo.
Ocorreu-me, enquanto ele falava, como as nossas atitudes perante a experimentação diferiam. Ele comportava-se como um cientista, nada emocional, não se importando na realidade se destruía alguém no processo, desde que a tentativa obtivesse sucesso. Enquanto eu estava já apanhado pela trama da história: as pessoas que para ele eram fantoches de uma era perdida, para mim estavam vivas. Tive uma súbita visão dessa casa há muito enterrada, reconstruída em blocos de cimento, com entradas pagas a dois xelins, parque de estacionamento em Chapel Down.
- Quer dizer que o Roger nunca te levou lá? - perguntei.
- Ao vale de Treesmill? Não - respondeu ele. - Saí de Kilmarth apenas uma vez e isso só para ir ao priorado, tal como já te contei. Preferi permanecer nos meus próprios terrenos. Contar-te-ei tudo sobre isso quando aí for. Vou a Cambridge passar o fim-de-semana, mas recorda-te de que dispões de todo o dia de sábado e domingo para fazeres o que quiseres. Aumenta um pouco a dose... não te há-de fazer mal.
Desligou antes que lhe pudesse perguntar o número do telefone, para o caso de lhe querer falar durante o fim-de-semana. Mal pousara o auscultador quando o aparelho voltou a tocar. Desta vez era Vita.
- Estiveste ocupado uma data de tempo - disse ela.
- Suponho que tenha sido com o teu professor?
- Na verdade era - anuí.
- A encher-te de tarefas para o fim-de-semana? Não te esgotes, querido. - A acidez era, pois, o tom dominante naquela manhã. Ela que a descarregasse sobre os miúdos, não era comigo.
- Que é que estás a planear para hoje? - indaguei, ignorando a sua observação anterior.
- Bem, os rapazes vão nadar no clube do Bill. Tem de ser. Aqui em Londres estamos sob uma vaga de calor. Como é que está o tempo aí?
- Carregado - respondi-lhe, sem olhar para a janela. - Um centro de baixas pressões a atravessar o Atlântico, que atingirá a Cornualha pela meia-noite.
- Parece-me delicioso. Espero que a tua Mrs. Collins tenha começado a arejar as camas.
- Tudo sob controlo - garanti-lhe - e eu aluguei um barco à vela para a semana que vem, bastante grande, com um rapaz a tomar conta. Os moços vão adorá-lo.
- E a mamã?
- A mamã também o vai adorar, se tomar bastantes comprimidos para o enjoo. Também há aqui uma praia a seguir aos recifes, apenas a um par de campos de distância de nós. E nem um touro à vista.
- Querido - a acidez transformara-se em açúcar ou, pelo menos, abrandara - acho que tu estás afinal ansioso pela nossa chegada.
- Claro que estou - afirmei. - Porque é que havias de pensar de outro modo?
- Nunca sei o que hei-de pensar quando o teu professor esteve a dar-te volta à cabeça. Gera-se uma espécie de cortina entre nós sempre que ele está por perto... Cá estão os miúdos - continuou a dizer mudando o tom de voz. - Querem cumprimentar-te.
As vozes dos meus enteados, tal como o aspecto, eram idênticas, ainda que Teddy tivesse doze anos e Micky dez. Dizia-se que se pareciam com o pai, morto num acidente de aviação poucos anos antes de eu ter conhecido Vita. A julgar pela fotografia que traziam com eles, era verdade. Os três tinham uma típica cabeça teutónica, cabelo cortado curto como muitos jovens americanos. Olhos azuis, inocentes, implantados em ampla face. Eram uns belos miúdos. Mas eu poderia muito bem ter passado sem eles.
- Olá, Dick - disseram, um após outro.
- Olá - repeti eu, palavra tão estranha na minha língua, como se estivesse a falar tongalês'.
- Como é que vão vocês dois?
- Vamos óptimos - responderam.
Verificou-se uma longa pausa. Não conseguiam pen sar em mais nada para me dizer. Nem eu a eles.
- Estou ansioso por vos ver por cá para a semana. Ouvi uma data de sussurros e depois Vita regressou à linha de novo.
- Eles estão doidos por ir nadar. Tenho de desligar. Cuida de ti, querido, e não exageres com o balde e a vassoura.
Fui sentar-me no pequeno mirante que a mãe de Magnus mandara erigir há anos, contemplando o outro lado da baía. Era um sítio agradável, pacífico, abrigado de todos os ventos excepto da brisa de sudoeste. Imaginava-me a passar bastante tempo ali durante as férias, em que mais não fosse para escapar a jogos de bola com os rapazes. De certeza que eles haviam de trazer bastões de críquete e uma bola, que se iriam pôr a bater sem parar por cima do muro para o campo ao lado.
- É a tua vez de a ir buscar!
- Não, não é, é a tua!
Nessa altura a voz de Vita a gritar por detrás dos arbustos de hidrângeas.
- Vamos, vamos, se vocês se vão pôr a discutir, acaba-se de todo com o críquete e estou mesmo a falar a sério - e um último apelo para mim: - Faz qualquer coisa, querido, tu és o único homem adulto.
Mas, pelo menos hoje ali no mirante, a olhar para a baía enquanto um raio de sol tocava o horizonte, havia paz em Kylmerth. Kylmerth... Pronunciara a palavra
' Os miúdos empregaram a palavra bi para cumprimentar o padrasto, palavra que este raramente usava, por se tratar de gíria americana. (N. do T. )
em pensamento com a pronúncia original e sem pensar. A confusão de pensamentos estaria a tornar-se num hábito? Demasiado fatigado para introspecções, voltei a levantar-me e pus-me a vaguear sem objectivo pelos terrenos, aparando as sebes com uma velha foicinha que encontrara na casa da caldeira. Magnus tivera razão quando falara nos colchões. Havia lá três, dos que se enchem com uma bomba. Poria mãos à obra durante a tarde, se tivesse energias.
- Perdeu o apetite? - perguntou Mrs. Collins depois de eu ter almoçado e pedido o café.
- Desculpe - respondi -, não é da qualidade dos seus cozinhados. É que estou sem grande fome.
- Deu-me a impressão de que estava fatigado. É do tempo. Está quase a virar.
Não era do tempo. Era da minha incapacidade de sossegar, uma espécie de irrequietude que me obrigava à acção física, ainda que fútil. Atravessei os campos em direcção ao mar, mas não me pareceu diferente de quando o vi do mirante, raso e acinzentado, e tive depois a maçada de subir a colina de novo. O dia arrastava-se. Escrevi uma carta a minha mãe, descrevendo a casa em maçadores pormenores só para encher páginas, recordando-me das missivas que era obrigado a enviar- lhe do colégio: Este período fico noutro dormitório. Somos quinze. " Por fim, física e mentalmente exausto, subi as escadas às sete e meia, atirei-me todo vestido para cima da cama e, em poucos minutos, estava a dormir.
Foi a chuva que me acordou. Nada de especial, só um martelar na janela aberta, com a cortina a ser soprada para dentro. Estava bastante escuro. Acendi as luzes; eram quatro e meia. Dormira umas boas nove horas. A minha exaustão desaparecera e sentia-me esfomeado por não ter ceado.
Ali estavam as vantagens de se viver só: poder comer e dormir como e quando me apetecesse. Desci as escadas para a cozinha, arranjei salsichas, ovos e bacon e preparei uma chaleira. Sentia-me de todo apto a iniciar um novo dia, mas que poderia fazer às cinco horas daquela cinzenta e jubilosa madrugada? Uma e apenas uma coisa. Depois usaria o fim- de-semana para recuperar, se é que necessitasse de recuperação...
Desci as escadas das traseiras que davam para a cave, acendendo todas as luzes e assobiando. Era um ambiente muito melhor com elas acesas, muito mais alegre. Até mesmo o laboratório perdera o seu ar de câmara de alquimista e medir as gotas para o frasco foi tão simples como lavar os dentes.
- Vá lá, Roger - disse - mostra-te. Vamos a uma conversinha a dois.
Sentei-me na beira da pia e aguardei. Muito tempo. O facto é que nada estava a acontecer. Continuei a fitar os embriões metidos nos frascos, à medida que a ilumi nação aumentava no exterior da janela de barras. Devo ter ali estado sentado durante cerca de meia hora. Que tremendo desapontamento! Depois recordei-me que Magnus me sugerira que aumentasse a dose. Peguei no conta-gotas, deixei cair, com grande cautela, mais duas ou três gotas na língua e engoli-as. Seria imaginação ou tinham desta vez um sabor diferente... amargo, um pouco acre?
Fechei à chave a porta do laboratório atrás de mim e desci o corredor que dava para a antiga cozinha. Desliguei as luzes porque já estava a clarear, com a aurora a descer sobre o pátio exterior. Depois ouvi ranger a porta das traseiras (tinha o costume de raspar na laje de pedra por baixo dela) e escancarou-se, produzindo uma súbita corrente de ar. Ouviu-se o som de passos e uma voz de homem.
- Meu Deus! - pensei. - Mrs. Collins apareceu cedo.
Ela tinha dito qualquer coisa sobre o marido vir aparar a relva.
O homem empurrou a porta, arrastando um rapazito atrás de si, e não se tratava do marido de Mrs. Collins mas sim de Roger Kylmerth, seguido por outros cinco homens que traziam tochas e já não se via nenhuma luz da aurora a nascer no pátio, apenas a escuridão da noite.
Capitulo nove
Tinha estado encostado ao armário da velha cozinha, mas agora já não havia nenhum armário atrás de mim apenas a parede de pedra, e a própria cozinha transformara-se na zona habitacional da casa original, com a pedra da lareira numa das extremidades e o escadote que dava para o quarto de dormir ao lado. A rapariga que vira ajoelhada junto ao fogo no primeiro dia desceu o escadote a correr, ao som dos passos dos homens e, ao vê-la Roger gritou:
- Vai-te embora daqui! O que temos para dizer e fazer não é da tua conta!
Ela hesitou e o rapaz, o irmão, também se encontrava presente, a espreitar por cima do seu ombro.
- Fora daqui! - voltou a berrar Roger. - Fora daqui os dois!
Recuaram outra vez pela escada acima, mas, do sítio onde eu estava, podia vê-los ali agachados, fora de vista do grupo de homens que entrou na cozinha atrás do administrador.
Roger pousou a sua lanterna num banco, iluminando a cozinha, e pude reconhecer o rapaz que ele segurava: tratava-se do jovem noviço que vira da primeira vez no priorado, o moço que tinha sido forçado a correr à volta da estrebaria para os seus colegas monges se divertirem e que, mais tarde, chorara durante as orações na capela.
- Eu faço-o falar - afirmou Roger -, já que vocês
não conseguem. Provar um cheirinho de purgatório há-de soltar-lhe a língua.
Enrolou devagar as mangas para cima, levando o seu
tempo, de olhos sempre postos no noviço e o rapaz afastou-se do banco, procurando abrigo entre os outros homens, que o empurraram para a frente a rir. Estava mais alto desde que o vira pela última vez, mas, sem dúvida nenhuma, era o mesmo rapazito com um ar de terror no olhar a sugerir que o duro tratamento que agora receava não seria brincadeira nenhuma.
Roger agarrou-o pelo hábito e fê-lo ajoelhar-se diante do banco.
- Conta-nos o que sabes - ordenou -, senão cha musco-te o cabelo que tens na cabeça.
- Eu não sei nada - choramingava o noviço. - Juro pela Mãe de Deus...
- Nada de blasfémias - bradou Roger - ou ainda te pego fogo ao hábito. Andas a brincar aos espiões há tempo que chegue e eu quero saber a verdade.
Empunhou a tocha e aproximou-a a uma polegada de distância da cabeça do rapaz. Este encolheu-se mais e principiou a gritar. Roger bateu-lhe na boca.
- Vamos lá, atira isso cá para fora - mandou.
A rapariga e o irmão arregalavam os olhos ao cimo do escadote, fascinados, e os cinco homens aproximaram-se do banco, um deles tocando a orelha do moço com a faca.
- Queres que o pele, para lhe fazer correr o sangue - sugeriu -, depois chamuscas-lhe a cachola quando a carne estiver a nu?
O noviço ergueu as mãos implorando piedade.
- Eu conto-vos tudo o que sei - gritou -, mas não é nada, nada... só o que ouvi Mestre Bloyou, emissário do bispo, dizer ao prior.
Roger afastou a tocha e voltou a pousá-la no banco.
- E que disse ele?
O aterrorizado noviço olhou primeiro de relance para Roger e depois para os seus companheiros.
- Que o bispo estava descontente com a conduta de alguns dos irmãos, sobretudo o irmão Jean. Que ele, com outros, age contra a vontade do prior e esbanja os bens do mosteiro numa vida dissoluta. Que constituem um escândalo para toda a ordem e um pernicioso exemplo para muitos outros fora dela. E que o bispo não pode continuar a fechar os olhos a tal situação e atribuiu a
Mestre Bloyou plenos poderes para fazer cumprir a lei canónica, com a ajuda de Sir John Carminowe.
Fez uma pausa para recuperar o fôlego, procurando divisar segurança nos rostos deles e um dos homens, o que não empunhava a faca, afastou-se do grupo.
- Pela Fé! Isso é verdade - resmungou - e quem somos nós para o negar? Sabemos muito bem que o priorado e tudo o que está lá dentro são um escândalo completo. Se os monges franceses regressassem a onde pertencem, ver-nos-íamos muito bem livres deles.
Um murmúrio de concordância ergueu-se dos outros e o homem da faca, um indivíduo monstruoso, perdeu interesse no noviço, virando-se para Roger.
- O Trefrengy tem razão - disse em tom soturno. - Faz sentido que nós, homens do vale deste lado de Tywardreath, temos muito a ganhar se o priorado for encerrado. Poderíamos reclamar o usufruto das terras que o rodeiam das quais eles vivem à larga, em vez de estarmos a ser pressionados para apascentar o nosso gado no meio dos canaviais.
Roger cruzou os braços, repelindo o ainda apavorado noviço com um dos pés.
-Quem é que está a falar em fechar as portas do priorado? - rugiu. - Não o bispo de Exeter, esse só fala pela diocese e só pode recomendar ao prior que discipline os seus monges, mas nada mais. O rei está acima dele, como vocês sabem muito bem e cada um de nós rendeiros sob as ordens dos Champernounes, temos recebido tratamento justo e benefícios do priorado em troca dos nossos produtos. Mais do que isso. Nenhum de vocês se coibiu de negociar com os barcos franceses que lançam âncora na baía. Algum de vós não tem as adegas cheias graças a eles?
Ninguém lhe respondeu. O noviço, julgando-se a salvo, começou a arrastar-se para longe, mas Roger agarrou-o outra vez e segurou-o.
- Mais devagar - disse -, ainda não acabei contigo. Que mais disse Mestre Bloyou ao prior?
- Só o que eu já contei - balbuciou o rapaz.
- Nada sobre a própria segurança do domínio? Roger esboçou o gesto para pegar na tocha que estava sobre o banco e o noviço, a tremer, ergueu as mãos em autodefesa.
- Falou de boatos surgidos no Norte - gaguejou -, que ainda há problemas entre o rei e sua mãe, a rainha Isabel, que podem dar em luta aberta não demora muito. A ser assim, ele perguntou quem no oeste seria mais leal ao jovem rei e quem se poria do lado da rainha e do amante, Mortimer.
- Também pensava isso - disse Roger. - Agora rasteja ali para um canto e fica de boca calada. Se deixares escapar nem que seja uma única palavra disto fora destas paredes, arranco-te a língua.
Virou-se para os cinco homens, que arregalavam para ele os olhos, inseguros, tendo-os esta última informação chocado e feito calar.
- Bem? - perguntou Roger. - Que acham disto? Estão todos mudos?
O que se chamava Trefrengy abanou a cabeça.
- Isso não é da nossa conta - declarou. - O rei pode andar às turras com a mãe, se lhe apetecer. Isso não nos diz respeito.
- Achas que não? - indagou Roger. - E se a rainha e Mortimer continuarem a deter o poder nas suas próprias mãos? Sei de pessoas por estes lados que prefeririam isso e seriam recompensadas por se porem ao lado da rainha quando se travasse uma batalha. Sim e que pagariam bem a outros para fazerem o mesmo.
- Não o jovem Champernoune - afirmou o homem da faca. - Esse não tem idade suficiente e está  amarrado pelas fitas do avental da mãe. Quanto a ti, Roger, tu nunca te arriscas a uma rebelião contra uma cabeça coroada... pelo menos enquanto estiveres na tua posição.
Os outros juntaram-se a ele num riso aberto, mas o administrador, fitando um de cada vez, permaneceu impávido.
- A vitória é certa se a acção for rápida e o poder assumido de um dia para o outro - afirmou. - Se são essas as intenções da rainha e de Mortimer, estaremos todos do lado dos vencedores, se nos portarmos bem para com os amigos deles. Pode até haver alguma divisão de senhorios, quem sabe? E, em vez de teres de apascentar o teu gado entre canaviais, Geoffrey Lampetho, poderás tirar vantagem das colinas lá em cima.
O homem da faca encolheu os ombros.
- É fácil de dizer - comentou -, mas quem são esses tais amigos, tão prontos a fazer promessas? Não conheço nenhum.
- Sir Otto Bodrugan é um deles - garantiu baixinho Roger.
Ergueu-se um murmúrio entre os homens, o nome de Bodrugan foi repetido e Henry Trefrengy, que se pronunciara contra os monges franceses, abanou mais uma vez a cabeça.
- Ele é bom homem, não há melhor - disse -, mas, da última vez que se revoltou contra a coroa, em 1322, perdeu e foi multado em mil marcos por castigo.
- Mas foi recompensado quatro anos depois, quando a rainha o fez governador da ilha de Lundy - retorquiu Roger. - Os terrenos de Lundy dão boa ancoragem para barcos que tragam armas e homens, e podem estar ali em segurança até serem necessários no território. O Bodrugan não é nenhum tolo. Haverá algo mais fácil para ele, detentor de terras na Cornualha e no Devon e governador de Lundy por recompensa, do que levantar os homens e embarcações de que a rainha precisa?
O argumento, suave e persuasivo, pareceu exercer impacte sobretudo em Lampetho.
- Se tivermos algum proveito com isso, desejar- lhe-ei muita sorte - declarou - e juntar-me-ei a ele quando a acção começar. Mas não atravessarei o Tamar seja por quem for, Bodrugan ou qualquer outro, e podes dizer-lhe isso mesmo.
- Diz-lho tu em pessoa - retorquiu Roger. - O barco dele está lá em baixo e sabe que o espero aqui. Garanto-vos, amigos, que a rainha Isabel lhe mostrará a sua gratidão e aos outros que saibam para que lado se hão-de virar.
Dirigiu-se para o escadote.
- Anda cá abaixo, Robbie - ordenou. - Leva uma luz até ao campo, para veres se Sir Otto já vem a caminho - e, virando-se para os restantes: - cá por mim estou pronto a lutar por ele, mesmo que vocês não estejam.
O irmão desceu as escadas e, pegando numa das to chas, correu para o pátio da cozinha.
Henry Trefrengy, mais cauteloso do que os compa nheiros, coçava o queixo.
- Que é que ganhas com isso, Roger, por te pores do lado de Bodrugan? A tua senhora Joanna juntará forças com o irmão contra o rei?
- A minha senhora não está metida nisto - replicou Roger, seco. - Encontra-se longe de casa, na sua outra propriedade de Trelawn, com os filhos e a esposa de Bodrugan e respectiva família. Nenhum deles tem conhecimento do que se encontra em jogo.
- Ela não te há-de agradecer quando souber - observou Trefrengy -, nem Sir John Carminowe. É do conhecimento comum que eles só esperam que a mulher de Sir John morra para se poderem casar.
- A esposa de Sir John é saudável e continuará sem dúvida a sê-lo - respondeu Roger - e, quando a rainha fizer Bodrugan guardião do castelo de Restormel e vigilante de todas as terras do ducado, a minha senhora poderá perder o interesse em Sir John e encarar o irmão com mais afeição do que agora lhe demonstra. Não tenho dúvidas de que serei recompensado por Bodrugan e perdoado por ela. - Sorriu-se e coçou a orelha.
- Por minha fé! - exclamou Lampetho. - Todos sabemos que esboças os planos que te são favoráveis. Seja quem for o vencedor, encontrar-te-á a seu lado. Bodrugan ou Sir John no castelo de Restormel e lá estarás junto da ponte levadiça, com uma bolsa bem cheia.
- Não o nego - admitiu Roger, continuando a sorrir. - Se tivesses a mesma capacidade para pensar, farias a mesma coisa.
Passos soaram no pátio, ele dirigiu-se à porta e abriu. Otto Bodrugan encontrava-se no limiar, seguido do jovem Robbie.
- Entre, sir, e seja bem-vindo. Somos todos amigos - saudou o administrador e Bodrugan assim fez, lançando em torno de si um olhar vivo, surpreendido ao que me pareceu por ver um tão reduzido grupo de homens, que, embaraçados pela sua súbita chegada, recuaram até à parede. Tinha a túnica fechada até ao pescoço, com um justilho acolchoado de couro por cima, cinturão com bolsa e adaga e uma capa de viagem, orlada a pele, pendia-lhe dos ombros. Fazia contraste com os ou tros homens, nas suas túnicas tricotadas em casa e nos seus capotes e tornava-se óbvio, a julgar pelo seu ar de confiança, que estava habituado a comandar homens.
-Fico muito satisfeito por vos ver - disse de imediato, adiantando-se na direcção de cada um deles.
- Henry Trefrengy, não é? E Martin Penhelek. John Beddyng, a ti também te conheço... o teu tio cavalgou para norte comigo em 22. Aos outros ainda não tinha encontrado.
- Geoffrey Lampetho, sir, e o seu irmão Philip apresentou Roger. - Cultivam o vale junto dos terrenos de Julian Polpey, depois das terras do priorado.
- Então o Julian não se encontra presente?
- Está à nossa espera em Polpey.
O olhar de Bodrugan caiu sobre o noviço, ainda acocorado ao lado do banco.
- Que é que está esse monge a fazer aqui, entre vocês?
-Trouxe-nos uma informação, sir - respondeu Roger. - Surgiram alguns problemas no priorado, uma questão de disciplina entre os irmãos, que não nos diz respeito, mas perturbante ao ponto de o bispo ter há pouco enviado Mestre Bloyou de Exeter, para saber mais do caso.
- Henry Bloyou? Um amigo íntimo de Sir John Carminowe e de Sir William Ferrers. Ainda está no priorado?
O noviço, ansioso por agradar, tocou no joelho de Bodrugan.
- Não, sir, já partiu. Saiu ontem para Exeter, mas prometeu regressar em breve.
- Bem, põe-te em pé, rapaz, nenhum mal te acontecerá. - Voltou-se de novo para o administrador. - Estiveste a meter-lhe medo?
- Não lhe toquei num só cabelo - protestou Ro ger. - Ele só tem medo que o prior possa vir a saber da sua presença aqui, a despeito da minha promessa em contrário.
Roger fez sinal a Robbie para levar o noviço para o andar superior e desapareceram os dois pelas escadas acima, o noviço com tanta pressa como um cão que tivesse levado um pontapé. Depois de terem desaparecido
 Bodrugan, de pé diante da lareira de mãos no cinto, olhava com atenção cada um dos homens.
- Ignoro o que o Roger vos tem estado a contar a respeito das nossas possibilidades - declarou -, mas posso prometer-vos uma vida melhor quando o rei estiver sob custódia. - Nenhum deles respondeu. - O Roger informou-vos de que a maior parte da região se declarará a favor da rainha Isabel dentro de alguns dias? - inquiriu.
Henry Trefrengy, que dava a impressão de ser o porta-voz, atreveu-se a responder:
- Informou-nos, sim - afirmou -, mas com poucos pormenores.
- É uma questão de tempo - replicou Bodrugan.
- O Parlamento está agora reunido em Nottingham e foi planeado deter o rei, com todos os cuidados em relação à sua segurança, é claro, até ele ter a maioridade. Entretanto, a rainha Isabel continuará como regente, com Mortimer a auxiliá-la. Ele pode não gozar de popularidade junto de todos, mas é um homem forte e capaz e muito bom amigo de muitos dos naturais da Cornualha. Sinto orgulho em me contar entre eles.
Novo silêncio. Depois Geoffrey Lampetho avançou.
- Que quer que façamos? - perguntou.
- Venham para norte comigo, se assim o desejarem - esclareceu Bodrugan -, mas, se não quiserem, e Deus sabe que não vos posso obrigar, então prometam-me que jurarão fidelidade à rainha Isabel, quando vierem notícias de Nottingham de que o rei foi detido.
- É justo - observou Roger. - Pela minha parte eu digo que sim e com muito gosto cavalgarei convosco.
- Eu também - disse outro, o que se chamava Penhelek.
- Também eu - gritou o terceiro, John Beddyng. Apenas os irmãos Lampetho e Trefrengy estavam relutantes.
-Juraremos fidelidade quando chegar o momento próprio - declarou Geoffrey Lampetho -, mas fá-lo-emos na nossa terra, não do outro lado do Tamar.
- Também acho justo - disse Bodrugan. - Se o rei dispusesse de poderes para isso, estaríamos em guerra com a França dentro de dez anos, a lutar do outro lado do canal. Apoiando agora a rainha, daremos um golpe a favor da paz. Tenho a promessa de pelo menos cem homens das minhas próprias terras, de Bodrugan, Tregrehan e mais para oeste e também do Devon. Vamos ver o que decide Julian Polpey?
Todo o grupo se deslocou para a porta.
- A maré está a cobrir o vau - informou Roger.
- Teremos de atravessar o vale por Trefrengy e Lampetho. Tenho um pónei para si, senhor. Robbie! - Chamou o irmão do quarto de cima. - Tens o pónei selado para Sir Otto? E o meu também? Apressa-te, então... E, enquanto o rapaz descia o escadote, sussurrou-lhe ao ouvido: - O irmão Jean há-de mandar buscar o noviço mais tarde. Guarda-o até essa altura. Quanto a mim, não te posso dizer quando volto.
Vimo-nos no pátio da estrebaria, uma barafunda de póneis e homens, e eu sabia que também tinha de ir, porque Roger estava a montar o seu pónei e, para onde quer que ele se deslocasse, eu era compelido a segui-lo. As nuvens corriam pelos céus, o vento soprava e chegava-me aos ouvidos o ruído dos cascos dos animais e o tinido dos arreios. Nunca antes, nem no meu mundo nem em ocasiões anteriores em que vagueara pelo outro, tivera semelhante sensação de unidade. Eu era um deles e ignoravam-no. Pertencia àquele grupo e eles não o sabiam. Isto, acho eu, era a essência do que aquilo significava para mim. Estar ligado a eles, ainda que livre; estar sozinho e contudo na sua companhia; ter nascido na minha própria época e, no entanto, viver incógnito na deles.
Cavalgaram pela pequena mata que bordejava Kil- marth e, no topo da colina, em vez de seguirem a via da estrada moderna que eu conhecia, cortaram a cumeada mergulhando depois por um caminho íngreme na direcção do vale. A vereda era difícil, obrigava os póneis a tropeçar de vez em quando, e serpenteante. A descida dava a impressão de ser quase tão abrupta como a face dos penhascos, mas, desencarnado como eu me sentia, não era bom juiz sobre a altura ou a profundidade e os meus únicos guias eram os homens que seguiam nos póneis. A seguir vi o brilho de água no meio da escuridão e acabámos por cruzar o fundo do vale até darmos com uma ponte de madeira atravessando uma corrente, pela qual os animais passaram a seco em fila indiana, e o caminho para a esquerda, seguindo o curso de água até o próprio riacho se alargar, para constituir um ribeiro que se abria à distância antes de desembocar no mar. Sabia que devia estar do outro lado do vale perto de Polmear, mas, sentindo-me um estranho naquele mundo e por ser de noite, a avaliação da distância era-me impossível. Limitava-me a seguir os póneis, de olhos firmes fixos em Roger e Bodrugan.
O caminho levou-nos para além das casas de lavoura, onde os irmãos Lampetho desmontaram, com o mais velho, Geoffrey, a gritar que os seguiriam depois. Prosseguimos pela vereda, a subir para terras mais elevadas, mas sempre junto ao riacho. Viam-se mais quintas lá à frente, acima das dunas arenosas, onde o rio se encontrava com o mar. Mesmo às escuras, eu conseguia divisar o brilho branco das ondas que se quebravam ao longe, correndo depois para a praia. Alguém veio ao nosso encontro, surgiram cães a ladrar e tochas e vimo-nos no pátio dos estábulos, semelhante ao de Kilmarth, com outras edificações a rodeá-lo. Quando os homens desmontaram dos póneis, a porta da casa principal foi aberta e reconheci o homem que se adiantou para nos saudar. Tratava-se do companheiro de Roger no dia da recepção ao bispo, no priorado, o mesmo que depois passeou com ele pelo relvado da aldeia.
Roger, o primeiro a desmontar, foi também o pri meiro a chegar junto do amigo e, mesmo à mortiça luz projectada pela lanterna que havia na porta da casa, consegui distinguir-lhe a mudança de expressão, quando, apressado, o homem lhe murmurou ao ouvido, apontando para o outro lado das casas de lavoura.
Bodrugan também reparou porque, ao saltar do seu pónei, bradou:
- Qual é o problema, Julian? Mudaste de opinião desde a última vez que falei contigo?
Roger voltou-se depressa.
- Más notícias, sir. Só para os seus ouvidos. Bodrugan hesitou por um momento, depois disse de súbito:
- Como queiras - e estendeu a mão ao dono da casa. - Eu tinha esperanças - disse - de que juntássemos armas e homens em Polpey, Julian. Tenho o barco ancorado por baixo de Kylmerth. Deves tê-lo visto. Há vários homens a bordo prontos para desembarcar.
Julian Polpey abanou a cabeça.
- Lamento, Sir Otto, mas eles não serão necessários, nem também o senhor. Chegaram notícias, há dez minutos atrás, de que todo o esquema foi derrotado ainda antes de tomar a sua forma definitiva. Um mensageiro muito especial trouxe as novidades em pessoa, em prejuízo, se me permite dizê-lo, da sua própria segurança.
Ouvi por cima do ombro Roger a dizer aos homens que montassem os seus póneis e regressassem a Lampetho, onde ele iria juntar-se-lhes depois. Então, entregando as rédeas do seu pónei ao criado que aguardava, reuniu-se a Polpey e Bodrugan, que passavam para além das edificações exteriores, para o outro lado da casa.
- Trata-se de Lady Carminowe! - comunicou Bodrugan a Roger, desvanecida a sua alegre confiança, de rosto tenso com a ansiedade. - Foi ela quem trouxe as más notícias.
- Lady Carminowe? - exclamou Roger incrédulo e depois, numa súbita compreensão e baixando a voz:
- Refere-se a Lady Isolda?
- Ela vai a caminho de Carminowe - esclareceu o outro -, e, adivinhando os meus movimentos, interrompeu aqui em Polpey a sua jornada.
Chegámos ao outro lado da casa, que estava voltado para a viela que conduzia a Tywardreath. Um veículo coberto encontrava-se parado junto do portão, semelhante às carruagens que eu vira no priorado na véspera de S. Martinho, só que este era mais pequeno, puxado apenas por dois cavalos.
Quando nos aproximávamos, a cortina foi afastada para o lado da pequena janela e Isolda inclinou-se para fora, o escuro capuz que lhe cobria a cabeça a cair-lhe para os ombros.
- Graças a Deus que cheguei a tempo - disse. - Vim directa de Bockenod. Tanto John como Oliver estão lá e pensam que me encontro a meio caminho de Carminowe, para me juntar às minhas filhas. Aconteceu o pior à tua causa, o que eu receava. Vieram notícias, antes da minha chegada, de que a rainha e Mortimer foram detidos no castelo de Nottingham e se encontram prisioneiros. O rei assumiu pleno comando e Mortimer deverá ser levado para Londres, para julgamento. Eis o fim, Otto, de todos os teus sonhos.
Roger trocou um olhar com Julian Polpey e, tal como este último, retirou-se por discrição para as sombras e eu reparei no conflito que se lhe revelava nas feições. Adivinhei o que estaria a pensar. A ambição perdera-o e apoiara uma causa perdida. Restava-lhe agora insistir com Bodrugan para que regressasse ao barco, desconvocar os homens, e apressar a viagem de Isolda, enquanto, depois de explicar este volta-face a Lampetho, Trefrengy e aos outros o melhor que pudesse, se reinstalaria como o administrador de confiança de Joanna Champernoune.
- Arriscaste-te a ser descoberta ao vires aqui - dizia Bodrugan para Isolda. Nada no seu rosto denunciava o que tinha perdido.
- Se assim procedi - replicou ela -, tu bem sabes qual foi a razão.
Vi-os fitarem-se. Éramos as únicas testemunhas, Roger e eu. Bodrugan inclinou-se para lhe beijar a mão e, ao fazê-lo, ouvi um som de rodas vindo da viela e pensei: Veio tarde de mais para o avisar, afinal. Oliver, o marido, e Sir John seguiram-na.
Admirei-me por nenhum dos dois ter ouvido o ruído e vi então que já não se encontravam comigo. A carruagem desaparecera e o carro do correio de Par vinha a subir a viela, parando ao lado do portão.
Era de manhã. Encontrava-me de pé no caminho de acesso a uma pequena casa, do outro lado do vale em relação à colina de Polmear. Tentei esconder-me nos arbustos que bordejavam a vereda, mas o carteiro já saíra do carro e estava a abrir o portão. O olhar que me lançou combinava reconhecimento com estranheza e eu segui a direcção dos seus olhos até às minhas pernas. Estava ensopado da barriga até aos pés: devia ter passado a vau tanto o riacho como o pantanal. Os meus sapatos chapinhavam em água e tanto as calças como as pernas tinham rasgões. Esbocei um sorriso de dor.
Ele parecia embaraçado.
- Você está uma porcaria autêntica - disse-me.
- É o cavalheiro que está alojado em Kilmarth, não é?
- Sou.
- Bem, aqui é Polpey, a casa de Mr. Graham. Mas duvido que já estejam a pé. Ainda são só sete horas. Tencionava ir visitar Mr. Graham?
- Deus do céu, não! Levantei-me cedo, fui dar um passeio e, não sei como, perdi-me.
Era uma mentira evidente e soava como tal. Ele pareceu aceitá-la, no entanto.
- Tenho de entregar estas cartas e depois subirei a colina na direcção da sua casa - disse-me. - Quer entrar para a carrinha? Poupar-lhe-á uma caminhada.
- Muito obrigado - redargui. - Ficar-lhe-ei muito grato.
Desapareceu pelo caminho de acesso abaixo e eu entrei para a carrinha. Consultei o relógio. O homem tinha razão, passavam cinco minutos das sete da manhã. Mrs. Collins não deveria chegar pelo menos durante mais outra hora e meia e eu disporia de muito tempo para tomar um banho e mudar de roupa.
Procurei recordar onde tinha estado. Devia ter atravessado a estrada principal no topo da colina, descendo-a depois pelo meio dos campos, através de terrenos pantanosos no fundo do vale. Nem sequer soubera antes que esta casa se chamava Polpey.
Nada de náuseas, no entanto, graças a Deus, nem vertigens. Enquanto estava ali sentado à espera que ele regressasse, apercebi-me de que o resto da minha pessoa também estava encharcada: casaco, cabeça, porque estivera a chover... estivera decerto a chover quando saíra de Kilmarth, há quase hora e meia atrás. Perguntei a mim mesmo se deveria acrescentar alguma coisa à história que contara ao carteiro, ou deixá-la assim. Seria preferível não dizer mais nada...
Voltou da casa e subiu para a carrinha.
- Não está lá grande manhã para passeios. Tem estado a chover com força desde a meia-noite.
Recordei-me então de que tinha sido de facto a chuva que me acordara, sacudindo a cortina da janela do meu quarto.
- Eu não me importo com a chuva - disse-lhe. - Em Londres não costumo fazer exercício.
- Sucede-me a mesma coisa - concordou, jovial -, a conduzir esta carrinha. Mas preferia estar enfiado na cama com este tempo, em vez de ter de passear pelos pântanos. Ainda assim, pronto, a vida não prestava para nada se fôssemos todos iguais.
Parou no Ship Inn ao fundo da colina e num dos chalés próximos e, enquanto a carrinha corria pela estrada acima, olhei para a esquerda por cima do ombro, na direcção do vale, mas a alta sebe escondia-o de vista. Só Deus sabia que pantanosa charneca e que charcos eu não tinha atravessado. Os meus sapatos escorriam água para o tapete da carrinha.
Saímos da estrada principal e virámos à direita, tomando o caminho que descia até Kilmarth.
- O senhor não é o único pássaro madrugador observou ele quando a curva em frente à casa ficou à vista. - Ou foi Mrs. Collins que já veio de Polkerris, ou então tem visitas.
Vi a grande mala aberta do Buick cheia de bagagens. A buzina soava sem parar e as duas crianças, com gabardinas por cima das cabeças para se abrigarem da chuva, corriam pelos degraus acima e atravessavam o jardim da frontaria da casa.
O choque de não querer acreditar transformou-se na embaraçosa certeza do iminente destino.
- Não é a Mrs. Collins - disse eu ao homem. - É a minha mulher e a família. Devem ter vindo de carro de Londres durante a noite.
Capítulo dez
Não havia hipóteses de passar de carro para a entrada da garagem. O carteiro, a sorrir, parou o veículo e abriu a porta para eu sair e, fosse como fosse, os miúdos já me tinham visto e acenavam.
- Muito obrigado pela boleia - disse-lhe eu -, mas passava bem sem esta recepção. - E peguei na carta que ele me estendia, avançando ao encontro do meu destino.
- Olá, Dick - gritaram os rapazes, correndo pelos degraus abaixo. - Fartámo-nos de tocar, mas não conseguíamos que nos ouvisses. A mamã está furiosa contigo.
- E eu com ela - disse-lhes. - Não vos esperava.
- Era uma surpresa - esclareceu Teddy. - A mamã achou que teria mais piada. O Micky dormiu na parte detrás do carro, mas eu não. Vim a ler o mapa.
O toque da buzina tinha parado. Vita emergiu do Buick, imaculada como sempre, usando precisamente a roupa conveniente para Piping Rock, em Long Island. Tinha novo penteado, com mais ondas ou algo como isso; ficava-lhe bem, mas fazia-lhe a cara mais cheia.
O ataque é a melhor defesa, reflecti. Vamos a isto.
- Bem, pelo amor de Deus! - exclamei. - Podias ter-me avisado.
- Os rapazes não me deixavam em paz - disse ela.
- Atira-lhes com as culpas.
Beijámo-nos, depois recuámos, olhando-nos um ao outro com atenção, como dois pugilistas a treinarem-se, antes de um ataque simulado.
- Há quanto tempo é que estás aqui? - perguntei.
- Cerca de meia hora - respondeu. - Demos a volta toda à casa, mas não conseguimos entrar. Os rapazes até experimentaram atirar-te terra às janelas depois de terem tocado à campainha. Que aconteceu? Estás encharcado até aos ossos.
- Levantei-me muito cedo e fui dar um passeio.
- O quê, com esta chuva toda? Deves estar maluco. Olha, tens as calças rasgadas e um grande golpe no casaco.
Agarrou-me no braço e os rapazes juntaram-se à minha volta, a bocejar. Vita começou a rir.
- Onde raio é que foste para te pores num estado desses? - quis saber.
Sacudi-a e libertei-me.
- Olha, será melhor descarregarmos o carro. Não vale a pena ficarmos aqui... a porta da frente está fechada. Salta para o carro e dá a volta para as traseiras.
Abri caminho com os rapazes e ela seguiu-me no veículo. Ao atingirmos a entrada das traseiras, recordei-me de que também estava fechada pela parte de dentro... eu saíra da casa pelo pátio.
- Esperem aí - disse-lhes -, vou abrir a porta - e, com os rapazes a seguirem-me de perto, dei a volta para o pátio. A porta da casa da caldeira estava escancarada: devia ter passado por ela ao seguir Roger e o resto dos conspiradores. Continuei a recomendar-me mentalmente para me manter calmo, para não me confundir, se a confusão se gerasse no meu espírito, ser-me-ia fatal.
- Que velharia mais engraçada de lugar! Para que é que serve? - inquiriu Micky.
- Para se estar sentado - respondi - e tomar banhos de sol. Quando há sol.
- Se eu fosse o professor Lane, transformava- o numa piscina - interveio Teddy.
Trotaram atrás de mim para dentro de casa, atravessando a antiga cozinha na direcção da porta das traseiras. Abri-a e dei com Vita, impaciente, à minha espera no exterior.
- Sai da chuva enquanto os rapazes e eu trazemos as malas.
- Mostra-nos primeiro a casa - pediu ela em tom de lamento. - A bagagem pode esperar. Quero ver tudo. Não me digas que isto aqui é que é a cozinha?
- Claro que não - redargui. - É só uma antiga cozinha de cave. Não nos servimos desta.
O pior é que eu nunca tinha tido intenções de lhes mostrar a casa sob este ângulo. Era a forma mais errada de o fazer. Se tivessem chegado na segunda-feira, teria estado à espera deles nos degraus do alpendre, com as cortinas abertas, as janelas também, tudo preparado. Os rapazes, excitados, estavam já a galopar pelas escadas acima.
- Qual é o nosso quarto? - gritavam. - Onde é que vamos dormir?
Oh, meu Deus, dá-me paciência. Virei-me para Vita, que me observava com um sorriso.
- Desculpa, querida - disse-lhe -, mas para ser sincero.
- Para ser sincero o quê? Estou tão entusiasmada como eles. Porque é que te estás para aí a preocupar?
Na verdade, porquê! Pensei, de uma forma de todo inconsequente, quão mais bem organizado aquilo estaria se Roger Kylmerth, na sua qualidade de administrador, estivesse a mostrar a Isolda Carminowe os aposentos duma mansão.
- Nada - disse-lhe -, anda daí...
A primeira coisa que notou ao chegarmos à moderna cozinha do primeiro piso foram os restos da minha ceia em cima da mesa. Pedaços de ovos estrelados e salsichas, a frigideira por lavar a um canto, a luz eléctrica ainda acesa.
- Ó céus! - exclamou. - Tomaste um pequeno-almoço de faca e garfo antes de saíres para passear? Essa em ti é nova!
- Estava com fome - respondi. - Não ligues à confusão, Mrs. Collins limpará tudo isso. Anda aqui à parte da frente.
Apressei-me a avançar diante dela para a sala de música, correndo cortinas, abrindo portadas de janelas e depois atravessei o vestíbulo para a diminuta sala de jantar e para a biblioteca que ficava a seguir. A pièce de  resistance, a vista a partir da janela das traseiras, estava bloqueada pela chuva miudinha.
- Parece diferente num dia bom.
- É encantadora - afirmou Vita. - Nunca pensei que o professor tivesse tão bom gosto. Ainda ficaria melhor com o divã encostado à parede e almofadas no banquinho da janela, mas muda-se com facilidade.
- Bem, isto completa a visita ao primeiro piso - disse eu. - Anda lá acima.
Sentia-me como se fosse um agente de propriedades procurando empurrar uma casa difícil de arrendar, enquanto os rapazes já corriam à frente pelas escadas acima, gritando dum quarto para o outro, Vita e eu a segui-los. Tudo se modificara já, o silêncio e a paz tinham desaparecido. Dali em diante seria apenas aquilo, o assalto a qualquer coisa que eu partilhara, tal como estava, em segredo, não apenas com Magnus e os seus pais falecidos no passado imediato, mas também com Roger Kylmerth, morto há seiscentos anos.
Terminou a volta ao andar superior, depois principiou o esforço e a transpiração do descarregar as bagagens e já eram quase oito e meia quando acabámos o trabalho e Mrs. Collins chegou de bicicleta para tomar conta da situação, saudando Vita e os miúdos, numa genuína delícia. Desapareceram todos na cozinha. Eu subi as escadas e pus a água a correr para o banho, cheio de vontade de me estender e me afogar.
Devia ter passado uma meia hora quando Vita entrou no quarto.
- Bom, dêmos graças a Deus por a termos - disse-me. - Não precisarei de mexer uma palha, ela é muitíssimo eficiente. E deve ter pelo menos uns sessenta anos. Posso ficar descansada.
- Que queres dizer com ficares descansada? - berrei da casa de banho.
- Fiquei a imaginar qualquer coisinha jovem e leviana quando tu tentaste impedir-me de vir para cá - respondeu. Entrou na casa de banho quando me estava a enxugar com a toalha. - Não confio nem um cisco no teu professor, mas, pelo menos a este respeito, fiquei satisfeita. Agora que já estás limpo podes beijar-me outra vez e depois pôr-me um banho a correr. Venho a conduzir há sete horas e sinto-me morta para o mundo.
Também eu me sentia, mas noutro sentido. Estava morto para o seu mundo. Podia deslocar-me por ali no meio dele, como um autómato, meio a ouvir enquanto ela arrancava as roupas do corpo e as atirava para cima da cama, punha um penteador, espalhava as suas loções e cremes pelo toucador, tagarelando sempre sobre a viagem, o dia em Londres, os acontecimentos em Nova Iorque, os negócios do irmão, uma dúzia de coisas que formavam o seu padrão de vida, a nossa vida; mas nada daquilo me dizia respeito. Era para mim como estar a ouvir música de fundo na rádio. O que queria era recapturar a noite anterior e a escuridão, o vento a soprar pelo vale abaixo, o som do mar a quebrar-se na praia, abaixo da quinta de Polpey e a expressão dos olhos de Isolda ao olhar para fora da carruagem pintada.
E se de facto se fundirem, não será antes do Outono e, seja como for, isso não afectará o teu posto de trabalho.
- Pois não.
As minhas respostas quando a sua voz subia ou descia de tom eram automáticas e ela voltou-se, áspera, o rosto transformado numa máscara de creme por baixo do turbante que sempre usava no banho e disse-me:
- Não estiveste a escutar uma só palavra daquilo que eu disse!
A alteração do seu tom de voz fez-me prestar-lhe atenção.
- Escutei, sim - garanti-lhe.
- Então o que foi? De que é que tenho estado a falar? - desafiou-me.
Eu tinha começado a tirar as minhas coisas do guarda-fato do quarto, a fim de ela o poder usar.
- Estavas a dizer qualquer coisa sobre a companhia do Joe - redargui -, uma espécie de fusão. Desculpa, querida, saio-te do caminho dentro de um minuto.
Tirou-me da mão o cabide com um fato de flanela, o melhor que eu tinha, e lançou-o ao chão.
- Não quero que tu me saias do caminho - disse, a voz a erguer-se-lhe até um tom agudo que eu receava.
- Quero-te aqui presente neste mesmo momento, a dar-me toda a tua atenção, em vez de te deixares ficar para aí como um manequim de alfaiate. Que raio é que tens? Era como se eu estivesse a falar para qualquer outra pessoa no mundo.
E tinha tanta razão!... Eu sabia que não valia a pena contra-atacar: tinha de me vergar e deixar a sua vaga de irritação perfeitamente justificável passar-me por cima da cabeça.
- Querida - disse, sentando-me na cama e puxando-a para o meu lado -, não vamos começar mal o dia. Estás cansada, eu também. Se principiarmos a discutir, esgotar-nos-emos e estragaremos o dia aos rapazes. Se me mostro vago e desatento, deves atribuir isso à exaustão. Dei aquele passeio sob a chuva porque não conseguia dormir e, em vez de me recompor, parece que me atirou abaixo.
- De todas as coisas idiotas que se podem fazer... Tu já devias saber... E afinal porque não conseguias dormir?
- Deixa lá, deixa lá, deixa lá!
Levantei-me da cama, peguei em braçadas de roupas e levei-as para o quarto de vestir, fechando a porta com um pontapé. Ela não me seguiu. Ouvi-a fechar as torneiras e meter-se na banheira, fazendo chapinhar a água até transbordar.
A manhã arrastou-se. Vita não apareceu. Abri com toda a delicadeza a porta do quarto exactamente antes da uma hora e vi-a a dormir na cama, voltei então a fechá-la e almocei lá em baixo, sozinho com os miúdos. Eles ta garelavam, perfeitamente satisfeitos com um sim" ou um não da minha parte, como sempre pouco exigentes quando Vita não se encontrava presente. Continuava a chover sem descanso e não se punha a questão de jogar críquete ou ir à praia, portanto levei-os de carro a Fowey e deixei-os à vontade para comprarem gelados, pastilhas de hortelã- pimenta, revistas de co-boys e puzzles.
A chuva parou cerca das quatro, dando lugar a um céu sem brilho, um sol mortiço, mas isso bastava para os rapazes, que correram para Town Quay a exigirem uma saída para o mar. Tudo o que me fosse possível para lhes agradar e adiar o momento do regresso; por isso aluguei um barquinho propulsionado por um pequeno motor fora de borda e percorremos o porto num alarido, os miúdos a apanharem os detritos que passavam a flutuar enquanto baloiçávamos por ali, todos encharcados até aos ossos.
Chegámos a casa cerca das seis horas e as crianças apressaram-se a sentar-se à enorme mesa posta para o chá, que a previdente Mrs. Collins lhes preparara. Deambulei até à biblioteca, para me servir de um uísque forte
apenas para lá ir encontrar uma Vita revigorada, sorridente, com a mobília toda arredada, o mau humor matinal, graças a Deus, uma coisa já do passado.
- Sabes, querido - disse-me ela -, penso que vou gostar disto aqui. Já está a tomar um aspecto caseiro. Deixei-me tombar num cadeirão de braços, de copo na mão, olhando-a com as pálpebras semicerradas a remexer a sala, rearranjando as denodadas iniciativas tomadas por Mrs. Collins em relação às hidrângeas. A minha estratégia seria aplaudir tudo daí em diante ou, quando a ocasião exigisse silêncio, permanecer mudo, enfrentando cada momento à medida que fosse ocorrendo.
Ia no meu segundo uísque e estava desprevenido, quando os rapazes dispararam pela biblioteca dentro.
- Ó Dick - gritava Teddy -, que é esta coisa horrível?
Tinha na mão o embrião de macaco metido no frasco. Pus-me em pé dum salto.
- Cristo - exclamei. - Que raio é que vocês têm
 andado a fazer?
Arranquei-lhe o frasco da mão e dirigi-me para a
porta. Recordava-me apenas de que, quando saíra do laboratório às primeiras horas da manhã, após ter tomado
a segunda dose, não tinha metido a chave no bolso, deixando-a na fechadura.
- Não estivemos a fazer nada - retorquiu Teddy
ofendido -, estivemos só a ver os compartimentos vazios lá de baixo. - Virou-se para Vita. - Há uma salinha sombria cheia de frascos, exactamente como os do laboratório lá da escola. Vem ver, mamã, depressa... há
mais outra coisa num dos frascos, parecida com um gatinho morto...
Pus-me fora de biblioteca numa fracção de segundo, correndo pelas escadas abaixo na direcção da cave. A porta do laboratório estava escancarada e as luzes acesas. Lancei um rápido olhar em volta. Nada fora tocado, à excepção do frasco que continha o macaco. Apaguei a luz e saí
para o corredor, fechando a porta atrás de mim e metendo a chave no bolso. Quando o estava a fazer, apareceram os miúdos a correr pela cozinha velha, com Vita nos seus calcanhares. Parecia preocupada.
- Que foi que eles fizeram? - perguntou. - Partiram alguma coisa?
- Felizmente, não - respondi. - A culpa foi minha por ter deixado a porta aberta.
Ela espreitava-me do corredor, por cima do ombro.
- Afinal que é que está aí dentro? - quis saber.
- Esse objecto que o Teddy levou lá para cima pareceu-me fantasmagórico de todo.
- Lamento ter de lembrar - retorqui - que por acaso esta casa pertence a um professor de Biofísica e que ele se serve daquele pequeno compartimento ali atrás como laboratório. Se voltar a apanhar algum dos miúdos perto daquela sala, haverá um assassínio nesta casa!
Recuaram num murmúrio e Vita virou-se para mim:
- E eu tenho de te dizer - declarou - que acho muito estranho da parte do professor ter aqui uma sala como aquela, com toda a espécie de objectos científicos, sem se certificar de que está fechada à chave como deve ser.
- Não comeces... - contrapus. - Sou responsável perante Magnus e posso garantir-te que não voltará a suceder. Se ao menos tu tivesses vindo só na próxima semana em vez de apareceres hoje de manhã a uma hora impossível, quando ninguém te esperava, nunca teria acontecido nada.
Arregalou para mim os olhos, sobressaltada.
- Ora, tu estás a tremer! - observou. - Qualquer pessoa seria capaz de pensar que há lá dentro explosivos.
- E talvez haja - declarei. - Seja como for, tenhamos esperanças de que estes miúdos aprenderam a lição.
Desliguei as luzes da cave e subi as escadas. Estava a tremer, o que não era para admirar. Um pesadelo de possibilidades atravessava-me o espírito. Eles poderiam ter aberto as garrafas que continham a droga, poderiam ter vertido o conteúdo para copos, ou até esvaziado as garrafas para a pia. Nunca mais deveria deixar aquela chave fora de vista. Continuava a tocar-lhe dentro do bolso. Talvez pudesse mandar fazer uma reprodução e guardar as duas; seria mais seguro. Entrei na sala de música e deixei-me lá ficar, sem olhar para nada, com a ponta do dedo enfiada na argola da chave.
Vita subira as escadas, para o quarto. Acabei por ouvir o indiscreto clique da campainha do telefone no vestíbulo. Significava que estava a ligar pela extensão do andar superior. Fui lavar as mãos ao lavatório de baixo e depois meti-me na biblioteca. Continuava a ouvir Vita a falar no quarto, lá em cima. Escutar conversas telefónicas não é hábito que eu tenha, mas agora um furtivo instinto fez-me pegar no aparelho da biblioteca.
por isso não sei o que hei-de fazer - estava Vita a dizer. - Nunca o tinha ouvido falar com tanta rispidez aos rapazes. Ficaram muito assustados. Não me parece que ele esteja muito bem. Com os olhos muito cavados. Diz que tem dormido mal.
- Que rica temporada vais passar aí - foi a resposta. Reconheci o sotaque: era da sua amiga Diana. - Um marido à solta é um marido à caça, já to tinha dito. Passei por essa experiência com o Bill.
- Oh, o Bill - exclamou Vita em resposta. - Todos sabemos muito bem que se pode estar descansado quando o Bill não está à vista. Bem, não sei... Esperemos que o tempo se ponha bom e possamos sair bastante.
Acho que ele alugou um barco.
- Isso já me parece muito saudável.
-Sim... Tenhamos esperanças de que o professor
não tenha metido o Dick nalguma complicação. Não confio nesse homem. Nunca confiei e nunca o farei.
E sei que ele não gosta de mim.
- Sou muito capaz de adivinhar por que motivo disse rindo Diana.
- Oh, não sejas idiota. Pode ser que seja desses, mas o Dick não é. Muito pelo contrário.
- Talvez seja a atracção dele pelo professor - sugeriu Diana.
Pousei davagarinho o auscultador. O problema com as mulheres era possuírem mentalidades de uma só pista e, à sua visão estreita, tudo o que fosse macho, um homem, um cão, um peixe ou um verme, tinha um único objectivo na vida: a monótona copulação. Às vezes, até perguntava a mim mesmo se pensavam noutra coisa qualquer.
Vita e a amiga Diana continuaram na conversa durante pelo menos mais quinze minutos e, quando ela desceu as escadas, fortificada por conselhos femininos, não fez qualquer referência à minha cena na cave, mas, entoando uma canção alegre e envergando um avental de bizarro desenho (que parecia ter maçãs e serpentes por todo o lado), lançou- se à tarefa de nos cozinhar bifes para a ceia, com montes de manteiga e salsa picada.
- Todos cedo para a cama - anunciou aos rapazes, que, de olhos baixos e silenciosos, bocejavam enquanto comiam a refeição. A jornada de sete horas no carro e a passeata pelo porto estavam a cobrar-lhes o tributo. Depois da ceia, instalou-se no sofá da biblioteca e pôs-se a remendar as calças que eu tinha rasgado lá no vale. Sentei-me à secretária de Magnus, murmurando qualquer coisa acerca de contas por pagar, mas na realidade passando mais uma vez os olhos pelo registo dos contribuintes da paróquia, de 1327. Julian Polpey figurava nela, bem como Henry Trefrengy e Geoffrey Lampetho. Os nomes nada haviam significado para mim quando os lera pela primeira vez na lista, mas deviam ter-me ficado inconscientemente registados na mente. Essas figuras podiam ainda ser fantasmas que eu seguira pelo vale, passando pelas quintas que ainda hoje ostentavam os respectivos nomes.
Reparei numa carta por abrir pousada sobre a secretária. Era a que o carteiro me havia entregado naquela manhã. Na perturbação que a chegada da família me provocara, deixara-a ali pousada. Não era senão uma pequena mensagem dactilografada do estudante que fizera as investigações em Londres.
O professor Lane achou que o senhor gostaria de ter conhecimento desta nota sobre Sir John Carminowe, dizia ela. Era o segundo filho de Sir Roger Carminowe, de Carminowe. Alistado como militar em 1323. Feito cavaleiro em 1324. Convocado para o Grande Conselho de Westminster. Nomeado guardião dos castelos de Tremerton e Restormel em 27 de Abril de 1331 e,
a 12 de Outubro do mesmo ano, guardião das florestas, parques, bosques e viveiros, etc. do rei e das coutadas de caça reais no condado da Cornualha, tendo de responder anualmente pelos lucros auferidos com a pastorícia e forragem dentro das ditas florestas, parques e bosques, por intermédio do administrador para eles nomeado e dos caseiros sob as suas ordens.
O estudante escrevera entre parêntesis: Copiado do Calendário de Rendimentos, 5. " ano, Eduardo III. " Acrescentara uma nota mais abaixo: 24 de Outubro. Registo de Patentes para o mesmo ano (1331) menciona uma licença em nome de Joanna, esposa de Henry de Champernoune, tenente-chefe, para casar com quem quisesse, devedor de fidelidade ao rei. Pagou uma coima de 10 marcos. "
Portanto... Sir John obtivera aquilo que desejava e Otto Bodrugan perdera, enquanto Joanna, antecipando-se à morte da esposa de Sir John, tinha uma licença de casamento preparada, guardada em qualquer gaveta recôndita. Arquivei o papel que continha o registo de contribuintes e, levantando-me da secretária, dirigi-me às prateleiras de livros, onde me recordava de ter visto numerosos volumes da Enciclopédia Britânica herdada do comandante Lane. Tirei o volume 8 e procurei Eduardo III.
Vita estendera-se no sofá a bocejar, soltando repetidos suspiros, uns a seguir aos outros em rápida sucessão.
- Bem, não sei o que queres fazer, mas eu vou para a cama.
- Não demoro - disse-lhe eu.
- Ainda em árduo labor para o teu professor? indagou. - Leva esse volume para a luz, senão arruínas os olhos.
Não lhe respondi.
Eduardo III (1312-1377), rei de Inglaterra, filho mais velho de Eduardo II e Isabel de França, nasceu em Windsor a 13 de Novembro de 1312... a 13 de Janeiro de 1327, o Parlamento reconheceu-o como rei e foi coroado a 29 do mesmo mês. Durante os quatro anos seguintes, Isabel e o seu amante Mortimer governaram em seu nome, ainda que o tutor nominal dele fosse Henry, conde de Lancaster. No Verão de 1327, tomou parte numa campanha abortada contra os Escoceses e casou com Filipa de Iorque, a 24 de Janeiro de 1328. A 15 de Junho de 1330 nasceu o seu filho mais velho, Eduardo, o Príncipe Negro."
Nada sobre rebeliões. Mas havia uma pista.
Pouco depois, Eduardo fez uma tentativa bem sucedida para se furtar à degradante dependência de sua mãe e de Mortimer. Em Outubro de 1330, entrou no castelo de Nottingham durante a noite por uma passagem subterrânea e fez Mortimer prisioneiro. A 29 de Novembro, a execução do favorito em Tyburn completou a emancipação do jovem rei. Eduardo estendeu um véu discreto sobre as relações de sua mãe com Mortimer e passou a tratá-la com todo o respeito. Não existe verdade nas histórias referindo que, daí em diante, ele a manteve em honroso confinamento, mas a influência política dela estava terminada."
A de Bodrugan também, bem como as suas posses na Cornualha. Sir John, um bom homem do rei, apenas um ano depois nomeado guardião de Tremerton e Restormel, assumira o comando juntamente com Roger, jogando pelo seguro, impondo silêncio aos seus amigos do vale, esquecida que estava aquela noite de Outubro. Gostaria de saber o que sucedera após aquela reunião na quinta de Polpey, na ocasião em que Isolda tanto se arriscara para avisar o seu amante: se Bodrugan, matutando no que podia ter sido, regressara às suas propriedades a pensar no seu amor e se ela, quando o marido, Oliver, se encontrava ausente, não se ia encontrar talvez com o amante em segredo. Tinha estado ao lado de ambos há menos de vinte e quatro horas. Há seiscentos anos...
Voltei a pôr o volume na prateleira, apaguei as luzes e subi as escadas. Vita já estava metida na cama, as cortinas corridas para que, quando se sentasse no leito, pudesse olhar pela janela na direcção do mar.
- Este quarto é um paraíso - comentou. - Imagina como não será com lua cheia. Querido, vou adorar estar aqui, garanto-te, e é tão maravilhoso estarmos de novo os dois juntos.
Parei por um momento junto da janela, a contemplar o outro lado da baía. Roger, do seu quarto de dormir por cima da cozinha original, tivera a mesma sombria extensão de mar e céu por companhia e, quando me virei para a cama, recordei-me duma observação divertida feita na véspera por Magnus ao telefone: Eu ia só sugerir, meu caro rapaz, que a deslocação entre dois mundos pode ser estimulante. " Isso não correspondia à verdade... de facto, muito pelo contrário.
Capitulo onze
Sendo o dia seguinte domingo, Vita anunciou ao pequeno-almoço as suas intenções de levar os rapazes à igreja. Fazia isso de tempos a tempos durante as férias. Podiam passar duas ou três semanas sem os deveres devocionais serem mencionados sequer e depois, de súbito, sem qualquer motivo e em princípio quando tinham uma outra ocupação agradável, entrava-lhes no quarto, dizendo:
- Vamos lá, têm cinco minutos para se prepararem.
- Prepararmo-nos? Para quê? - perguntavam eles erguendo os olhos do aeroplano que estavam a montar ou de qualquer outra coisa que lhes estivesse de momento a tomar a atenção.
- Para a igreja, é claro - respondia ela, desandando outra vez do quarto, surda aos brados de protesto. Eu era sempre excluído. A pretexto da minha educação católica, ficava na cama até tarde a ler os jornais de domingo. Naquele dia, a despeito da brilhante luz do sol que nos inundava o quarto de dormir quando despertei e do radioso sorriso de Mrs. Collins ao trazer-nos o tabuleiro com torradas e café, Vita parecia preocupada e afirmou que tinha tido uma péssima noite. Senti-me logo culpado, tendo eu próprio dormido como um cepo e reflecti em como o facto de uma pessoa ter dormido bem ou mal constituía na verdade o grande teste do relacionamento matrimonial. Se um dos membros do casal passava péssimas horas nocturnas, o outro era de imediato culpado e, no dia seguinte, seria em consequência mantido de lado.
Naquele domingo em especial não haveria excepção à regra e, quando os miúdos entraram no quarto para nos dar os bons-dias, vestidos com jeans e T-shirts, ela explodiu de imediato.
- Tirem já essas coisas e vistam os fatos de flanela.
Esqueceram-se que hoje é domingo? Nós vamos à igreja.
-Oh, mamã... Não!
Admito que me pus do lado deles. O sol a brilhar, o céu azul, o mar para além dos campos. Só deviam ter uma ideia na cabeça, descerem lá abaixo e irem nadar.
- Nada de discussões - disse ela saindo da cama.
- Toca a andar e a fazer o que eu disse. - Virou-se para mim. - Parto do princípio de que existe uma igreja nas vizinhanças e tu podes pelo menos levar-nos lá de carro, não?
- Tens uma grande variedade de igrejas - retorqui - seja em Fowey, seja em Tywardreath. Seria mais simples levar-te a Tywardreath. - Ao pronunciar essa
palavra sorri, porque o próprio nome tinha um significado especial, mas não apenas para mim, e continuei casualmente a dizer: - Na realidade até é bastante interessante do ponto de vista histórico. Existia lá um priorado, no sítio onde hoje fica a igreja.
- Ouviste isso, Teddy? - disse Vita. - Havia um priorado no sítio onde hoje vamos à igreja. Andas sempre a dizer que gostas de História. Mexe-te, então.
Poucas vezes eu vira semelhante par de figuras tão mal humoradas. Ombros descaídos, bocas na mesma.
- Depois levo-vos a nadar - gritei-lhes, ao saírem do quarto.
Vesti-me para ir levar o grupo a Tywardreath. O serviço da manhã duraria pelo menos uma hora e eu podia deixá-los junto da igreja, estacionar o carro acima de Treesmill e atravessar os campos até Gratten. Ignorava
quando teria outra oportunidade de voltar a visitar o local e a cova, com os bancos de relva que a rodeavam, detinha uma fascinação compulsiva.
 Enquanto transportava Vita e os relutantes rapazes
vestidos com os seus fatos de domingo pela colina de
Polmear abaixo, lancei uma olhadela para a direita na direcção de Polpey, perguntando-me o que aconteceria se, em vez do carteiro, os actuais proprietários me houvessem descoberto metido no meio dos arbustos, ou, pior ainda, o que poderia muito bem ter acontecido se Julian Polpey tivesse levado os seus visitantes e Roger para o interior da casa. Seria eu encontrado a tentar penetrar nos compartimentos do andar de baixo? Achei piada à ideia e soltei uma sonora gargalhada.
- Que é que tem tanta piada? - perguntou Vita.
- A vida que eu levo - respondi. - Conduzir-vos a todos à igreja no dia de hoje e dar ontem uma passeata matutina. Estão a ver o pântano ali em baixo? Foi onde me molhei tanto.
- Não me surpreende - redarguiu ela. - Que lugar mais estranho para um passeio. Que é que achaste que ias lá encontrar?
- Encontrar? - ecoei. - Oh, sei lá. Talvez uma donzela enfastiada. Nunca se sabe a sorte que se pode ter.
Disparei pela viela acima para Tywardreath, exultante, e, só pelo facto de ela desconhecer a verdade, uma ridícula sensação de prazer me inundava, como dantes, ao ludibriar a minha mãe. Era um instinto básico, fundamental em todos os machos. Os rapazes também o possuíam, razão pela qual eu os apoiava nas suas pequenas prevaricações que Vita desaprovava, como petiscar entre refeições, conversar na cama depois das luzes apagadas.
Deixei-os junto do portão da igreja, os miúdos ainda com caras de pau.
- Que é que vais fazer enquanto estivermos na igreja? - quis Vita saber.
- Dar uma volta por aí - respondi.
Encolheu os ombros e atravessou o portão para o adro da igreja. Eu conhecia aquele gesto: indicava que a minha descontracção matinal não condizia com a disposição dela. Esperava que as matinas lhe proporcionassem algum consolo.
Conduzi para Treesmill, estacionei o automóvel e começei a atravessar os campos na direcção de Gratten. A manhã estava soberba. A luz quente do sol enchia o vale. Uma cotovia cantava lá no alto, pondo todo o coração na sua canção. Bem gostava de ter trazido sanduíches e dispor de todo o dia à minha frente, em vez de apenas uma hora roubada à rotina.
Não penetrei na concavidade, cheia de latas velhas, mas estendi-me a todo o comprimento num relvado dentro de uma das covas mais pequenas, interrogando-me sobre o aspecto que aquele lugar teria à noite, com o céu cheio de estrelas, ou melhor, sobre o aspecto que teria tido em tempos, quando a água enchia o vale lá em baixo. A cena de Lorenzo com Jessica ocorreu-me ao espírito:
Em semelhante noite,
Troilo escalou ao que julgo os muros de Tróia, E suspirou, de espírito voltado para as tendas gregas, Onde Créssidas estava nessa noite deitado... "
Em semelhante noite
Esteve Dido com um bastão na mão
Nas bravias margens do mar, acenando ao seu amor, Para que regressasse a Cartago.
Em semelhante noite,
Medeia apanhou as ervas encantadas
Que renegariam o velho Aeson...
Não me sentia inclinado para as ervas encantadas. O que importava era que, enquanto Vita e os miúdos tinham estado a aprontar-se para ir à igreja, eu descera ao laboratório e medira quatro doses para o frasco. Tinha-o no meu bolso. Só Deus sabia quando voltaria a dispôr de nova oportunidade...
Aconteceu muito depressa. Mas não era de noite, era  de dia e um dia de Verão, embora ao fim da tarde, a julgar pela banda ocidental do céu que conseguia divisar através da janela do átrio. Eu estava encostado a um banco, ao fundo, com vista para a entrada do pátio e os muros que o rodeavam. Reconheci-a logo: encontrava-me na mansão senhorial. Duas crianças brincavam no pátio, raparigas talvez com idades entre os oito e os dez anos, era difícil de dizer, com aqueles vestidos justos ao corpo e de saias até aos tornozelos, mas os longos cabelos dourados que lhes caíam pelas costas abaixo e as pequenas feições vivas eram tão parecidas que as transformavam em edições miniatura da mãe. Ninguém a não ser Isolda poderia ter produzido semelhante par e eu recordava-me de Roger ter dito ao seu companheiro Julian Polpey, na recepção ao bispo, que ela tinha enteados da primeira mulher do marido, mas apenas duas filhinhas suas.
Estavam a jogar uma espécie de xadrez sobre as lajes, num quadrado marcado para elas, com peças como paulitos espalhadas por ali e, ao movê-las, agudas discussões rebentavam entre as duas para saber quem devia jogar. A mais nova estendeu a mão para pegar num paulito de madeira e escondê-lo na saia, o que provocou gritos, palmadas e cabelos puxados. Roger surgiu de súbito no pátio vindo do salão de onde as estivera a vigiar e meteu-se-lhes no meio, pondo-se de cócoras e agarrando cada uma pela mão.
- Sabem o que acontece quando duas mulherzinhas começam a discutir? - perguntou-lhes. - As línguas delas ficam negras e enrolam-se-lhes para dentro das gargantas, fazendo-as sufocar. Uma vez sucedeu isso à minha irmã e ela podia ter morrido se eu não lha tivesse puxado para trás, a tempo. Abram as vossas bocas.
As crianças, atrapalhadas, abriram as boquitas projectando as línguas para fora. Roger tocou em cada uma delas com a ponta dum dedo e sacudiu-as.
- Rezem a Deus para que isto dê resultado -  recomendou-lhes -, mas olhem que pode não durar, a não ser que refreiem os vossos temperamentos. Pronto, fechem as bocas e abram-nas só para tomarem a vossa próxima refeição, ou deixarem as palavras voar. Joanna, tu és a mais velha, devias ensinar à Margaret boas maneiras e não esconder um peão debaixo da saia. - Tirou o paulito de dentro do vestido da miúda e pousou-o nas lajes. - Vá lá - prosseguiu. - Eu vou tomar conta do jogo.
Endireitou-se, postando-se de pernas afastadas e deixou que movessem as peças em torno dele, o que a princípio fizeram com alguma hesitação, depois com grande confiança e bem depressa com risadas de delícia enquanto se balançavam para um e para outro lado, desastradas, derrubando as peças, para que tudo tivesse outra vez de ser endireitado com a ajuda de Roger. Uma mulher, a ama ao que supus, acabou por chamá-las de uma outra porta a seguir ao salão e levantaram as peças e entregaram-nas com toda a solenidade a Roger, que as aceitou, prometendo jogar de novo no dia seguinte, enquanto
piscava o olho à ama, aconselhando-a a examinar mais tarde as línguas das duas e informá-lo se apresentassem
sinais de estarem a enegrecer.
Pousou as peças perto da entrada e entrou no salão enquanto as crianças desapareciam para as traseiras com a ama. E, pela primeira vez, deu-me a impressão de deixar transparecer qualidades humanas. As suas funções de administrador, calculista, frio, com certeza corrupto, tinham por um instante sido banidas e com elas a ironia, a cruel indiferença que eu associava a todas as suas acções até então.
Ficou no salão a escutar. Não estava lá ninguém a
não ser nós dois e, olhando em volta, sentiu que o lugar
tinha de algum modo mudado desde o dia de Maio em que Sir Henry Champernoune morrera. A casa deixara de ter o ar de permanente ocupação, e mais parecia que os donos só a ocupavam de vez em quando, deixando-a vazia durante as ausências. Não se ouviam cães a ladrar, sinais de criados, a não ser da ama das crianças e ocorreu-me de súbito que a própria dona da casa, Joanna Champernoune, devia estar ausente com os filhos e uma filha, talvez na outra mansão de Trelawn, da qual o administrador falara a Lampetho e Trefrengy na cozinha de Kilmarth na noite da abortada rebelião. Roger devia estar encarregado da casa e as filhas de Isolda, com a respectiva ama, estariam ali de passagem no percurso entre uma casa e outra.
Ele dirigiu-se à janela através da qual penetrava o sol do fim da tarde, espreitando para fora. Quase de imediato, encostou-se à parede, como se preferisse não ser visto por alguém que estivesse no exterior. Intrigado, também, ousei aproximar-me da janela, adivinhando de imediato a razão daquela manobra. Por baixo, num banco, duas pessoas sentadas, Isolda e Otto Bodrugan, dispunham da privacidade que o ângulo da parede proporcionava a quem aí se sentasse, a menos que espiassem da janela.
A relva por baixo do banco recobria um muro pouco alto, para além do qual os campos desciam até ao rio, onde o barco de Bodrugan se encontrava ancorado. Conseguia avistar-lhe a ponta do mastro, mas não o convés. A maré estava vasa, o canal estreito e, de ambos os lados da faixa de água azul, viam-se baixios arenosos, apinhados de todas as espécies de aves marítimas, mergulhando e flutuando nas poças que a maré formara ao retirar-se. Bodrugan tinha as mãos de Isolda nas suas, observando-lhe as pontas dos dedos e, numa espécie de jogo amoroso, mordendo cada uma delas, ou melhor, fingindo mordê-las e fazendo caretas ao mesmo tempo, como se elas lhe soubessem mal.
Mantive-me junto da janela a observá-los, numa estranha perturbação, não por estar a espiá-los, tal como o administrador, mas por de algum modo pressentir que o relacionamento entre eles, ainda que apaixonado noutras ocasiões, era naquele momento inocente, sem luxúria e absolutamente abençoado, como eu próprio nunca
conheceria. Então ele largou-lhe de repente as mãos,
deixando-lhas cair no colo.
- Deixa-me ficar mais uma noite e não dormir a
bordo - pediu. - De qualquer modo a maré não me
será favorável e poderei ter problemas em acostar, se me
fizer ao mar.
- Se escolheres a altura adequada, não terás - replicou ela. - Quanto mais tempo aqui permaneceres,
mais perigoso será para nós dois. Tu bem sabes como os
rumores se espalham. Só o facto de cá vires já foi uma
loucura, sendo o teu barco tão conhecido.
- Não tem importância - declarou ele. - Venho
com frequência à baía e a este rio, em negócios, ou só
pelo prazer de vir pescar por aqui e até Chapel Point.
Foi um puro acaso que te trouxe aqui na mesma altura.
- Isso é que não foi - contrariou ela - e tu sabe-lo muito bem. O administrador entregou-me a tua carta
a pedir-me que aqui estivesse.
- O Roger é um mensageiro de confiança - respondeu Bodrugan. - A minha mulher e as crianças encontram-se em Trelawn, tal como a minha irmã Joanna.
Valia a pena correr o risco.
- Sim, valia a pena só uma vez, mas não duas noites
sucessivas. E eu não confio no administrador tanto como tu e conheces as minhas razões.
 - A morte do Henry, é isso? - Franziu o sobrolho. - Continuo a achar que o teu julgamento é injusto
nesse caso. O Henry estava moribundo. Todos o sabíamos. Se as tais poções o fizeram adormecer mais depressa, sem dores e com o conhecimento da Joanna, porque
é que havemos de estar a matar as nossas cabeças?
- Foi tudo muito fácil - contrapôs ela - e intencional. Lamento, Otto, mas não consigo perdoar à Joanna,  ainda que ela seja tua irmã. Quanto ao administrador, sem dúvida que ela lhe pagou bem, tal como ao seu cúmplice monge.
Olhei de relance para Roger. Não se movera do seu sítio na sombra da janela, mas conseguia ouvi-los tão bem como eu e, a julgar pela expressão que tinha nos olhos, não estava a gostar do que ela dizia.
- Em relação ao monge, ainda se encontra no priorado e cada dia tem mais influência. O prior é um boneco nas mãos dele e o seu rebanho obedece ao irmão Jean, que vai e vem como lhe apetece.
- Se é assim - disse Bodrugan -, é caso que não me diz respeito.
- Poderá vir a dizer-te - retorquiu ela -, se a Margaret começar a ter tanta fé nos seus conhecimentos de herbanário como a Joanna. Sabes se ele tem ultimamente tratado da tua família?
- Não me consta - respondeu. - Tenho estado em Lundy, como sabes, e a Margaret acha tanto a ilha como Bodrugan demasiado expostos, preferindo Trelawn. - Ergueu-se do banco e principiou a passear para cima e para baixo no caminho relvado em frente a ela. Os actos de amor tinham terminado, cedendo mais uma vez o lugar aos problemas da vida doméstica. Tinham toda a minha simpatia. - A Margaret é demasiado Champernoune, como o pobre do Henry - comentou ele. - Um padre ou um monge seriam capazes de a convencer à abstinência ou à oração perpétuas, se assim o desejassem. Terei de observar isso.
Isolda levantou-se do banco e, colocando-se junto de Bodrugan, ergueu para ele o olhar pondo-lhe as mãos nos ombros. Poderia tê-los tocado a ambos se me tivesse debruçado da janela. Como eram pequenos, polegadas abaixo da idade adulta naquele dia e, contudo, ele era alto e de constituição robusta, com uma bela cabeça e um sorriso bastante agradável e ela de figura delicada, como uma pastorinha de porcelana, pouco mais alta que as filhas. Abraçaram-se, beijaram-se e mais uma vez senti
aquela estranha perturbação, uma sensação de perda, de
total diferença em relação ao que eu próprio podia viver
no meu tempo, observara dois seres apaixonados por
uma janela... intenso envolvimento e intensa compaixão,
também. Sim, era esse o termo, compaixão. E não tinha
forma de explicar a minha sensação de participação em
tudo o que faziam, a menos que fosse por esse passo
atrás, do meu tempo para o deles. Sentia-os vulneráveis
 e decerto mais condenados a morrer do que eu, sabendo
na realidade que ambos eram poeira há mais de seis séculos.
- Preocupa-te também com a Joanna - aconselhou
Isolda. - Ela não se encontra mais perto de se casar
com o John do que há dois anos e por isso se tem modificado para pior. Pode até tratar da mulher dele como
tratou do marido.
- Não se atreveria a uma coisa dessas, nem o John asseverou Bodrugan.
- Seria capaz de se atrever ao que quer que fosse
que servisse os seus interesses. Até fazer-te mal a ti também, se te meteres no seu caminho. Só tem uma ideia
em mente, ver o John, o marido, guardião de Rescormel
e xerife da Cornualha, reinando sobre tudo o que a Coroa possui em terras, na sua qualidade de Lady Carminowe.
- Se isso vier a suceder, não o poderei impedir - protestou ele.
- Como irmão dela, poderás sempre tentar - insistiu Isolda - e, pelo menos, evitar que esse tal monge
ande atrás dela com aqueles venenos.
- A Joanna foi sempre persistente - replicou a
amante. - Sempre fez o que lhe apetecia. Não poderei
estar sempre a vigiar. Mas posso dizer uma palavra ao Roger.
- Ao administrador? Anda tão feito com o monge como ela - disse Isolda com desdém. - Aviso-te de novo, não confies nele, Otto. Nem no que lhe diz respeito a ela, nem aos nossos assuntos. Guarda segredo sobre os nossos encontros, por enquanto, porque assim lhe apraz.
Mais uma vez olhei de relance para Roger e reparei na sombra que lhe descera sobre o rosto. Gostaria que alguém o chamasse do salão, para que deixasse de escutar. Aquilo iria pô-lo contra ela, ao ouvir tão claramente expressos os seus defeitos e com semelhante desprazer.
- Esteve do meu lado no passado Outubro e voltará a estar - afirmou Bodrugan.
- Fê-lo nessa ocasião por achar que tinha muito a ganhar - replicou Isolda. - Agora pouco podes fazer por ele, por que motivo haveria de se arriscar a perder a sua posição? Uma só palavra a Joanna e desta a John, dele a Oliver e estaremos perdidos.
- O Oliver está em Londres.
-Hoje em Londres, talvez. Mas a maldade viaja com qualquer vento que sopre. Amanhã, estará em Bere ou em Bockenod. No dia seguinte, em Tregest ou Carminowe. O Oliver não se importa que eu esteja morta ou viva, tem mulheres onde quer que vá, mas o seu orgulho nunca suportaria uma esposa infiel. Isso sei eu muito bem.
Uma nuvem surgira entre eles e de igual modo no céu, pairando sobre os montes para além do vale. Todo o brilho do dia de Verão se fora. A inocência dissipara-se e, com ela, a serenidade do mundo deles. A minha também. Separados por séculos, eu partilhava de certa forma a culpa dos dois.
- Que horas são? - perguntou a mulher.
- Cerca das seis, a julgar pelo Sol - respondeu ele. - E isso importa?
- As crianças já devem estar com a Alice - disse Isolda. - Podem aparecer a correr para virem ter comigo e não te devem ver aqui.
- O Roger também está com elas - retorquiu Bo drugan -, velará para que nos deixem em paz.
- Mesmo assim, tenho de lhes ir dar as boas-noites, senão nunca mais montam os póneis.
Começou a andar pelo relvado e, entretanto, o admi nistrador também deslizou do canto escuro e atravessou o salão. Fui atrás, intrigado. Elas não poderiam ficar afinal naquela casa, mas sim noutro sítio qualquer, talvez em Bockenod. Mas o Boconnoc que eu conhecia seria um longo percurso de pónei para as crianças, já ao fim da tarde. Mal teriam tempo de lá chegar antes do pôr do Sol.
Atravessámos o salão a caminho do pátio que ficava para além dele e ultrapassámos a arcada na direcção dos estábulos. Robbie, o irmão de Roger, encontrava-se aí selando os póneis, ajudando as rapariguinhas a montar, rindo-se e brincando com a ama que, instalada no alto do seu corcel, sentia alguma dificuldade em mantê-lo quieto.
- Ele vai sossegado se levar duas como tu no dorso - bradou Roger. - O Robbie irá contigo para não arrefeceres. À frente ou atrás, conforme prefiras. Para ele tanto faz, não é, Robbie?
A ama, uma rapariga do campo de flamejantes bo chechas, soltou uma risadinha de delícia, protestando que iria muito bem sozinha e ouviram-se mais gargalhadas, logo silenciadas por um erguer de sobrancelhas de Roger, quando Isolda entrou nos estábulos. Afastou-se para o lado de cabeça baixa, numa atitude de deferência.
- As crianças irão bastante seguras com o Robbie disse -, mas poderei escoltá-las se assim o preferir.
- E prefiro mesmo - cortou ela. - Muito obrigada. Ele inclinou-se numa vénia e a mulher atravessou o pátio para junto das miúdas, já montadas, dominando os respectivos póneis com o maior à-vontade.
- Ficarei cá por enquanto - disse-lhes a mãe, beijando uma de cada vez - e regressarei mais tarde. Nada de chicotear os póneis na estrada para os fazer andar mais depressa, lembrem-se. E façam o que a Alice vos mandar.
- Faremos o que ele nos mandar - retorquiu a mais nova, apontando o seu pequeno chicote para Roger -, senão torce- nos as línguas, para ver se elas ficam pretas.
- Disso não duvido - respondeu Isolda -, desse ou de qualquer outro método de vos obrigar a calar.
O administrador ficou algo confuso, mas ela não o estava a olhar e avançou, agarrando nas rédeas das crianças com ambas as mãos e começando a conduzir os póneis para a arcada, fazendo sinal a Robbie para proceder da mesma forma com a montada da ama. Isolda acompanhou-nos até à entrada do portão e vi-me dividido entre a compulsão e o desejo. Compulsão para seguir o pequeno grupo liderado por Roger, desejo de olhar para Isolda, que ficara sozinha a acenar às filhas, sem saber que me encontrava a seu lado.
Sabia que a não deveria tocar. Sabia que, se o fizesse, não exerceria sobre ela mais efeito do que uma corrente de ar (nem sequer isso, porque nunca existira no seu mundo, nem poderia existir, já que ela estava viva e eu era um fantasma sem forma nem consistência). Se proporcionasse a mim mesmo o súbito e inútil prazer de lhe roçar a mão pela face, não se verificaria qualquer contacto, ela dissolver-se-ia num instante e eu ficaria a sofrer todas as agonias da vertigem, da náusea e dos inevitáveis remorsos. Felizmente fui poupado a semelhante dilema. Acenou mais uma vez com a mão, olhando-me nos olhos, depois virou-se e atravessou o pátio de regresso à casa.
Segui o grupo pelos campos. Isolda e Bodrugan ficariam a sós durante mais algumas horas. Talvez fizessem
amor. Tinha esperanças, com uma espécie de compreensão desesperada, de que o fizessem. Tinha o pressentimento de que o tempo deles estava a acabar-se e para
mim também.
O caminho descia para o vau, onde a correnteza vinda do moinho vinha encontrar-se com a água salgada do
riacho ao atravessar o vale. Agora, com a maré baixa,
podia-se passar o riacho, e quando as crianças o atingiram, Roger largou-lhes as rédeas e, com uma palmada
nos quartos traseiros de cada pónei, enviou-os a galopar
espadanando água, fazendo as miúdas gritarem deliciadas. Fez o mesmo ao terceiro animal, que transportava
Robbie e a ama, e fê-lo soltar um relincho que deve ter
sido ouvido dum lado ao outro do vale. O ferreiro da
outra margem da corrente (com o fogo a refulgir, a bigorna a seu lado e um par de cavalos à espera de serem
ferrados) saiu da sua choupana a sorrir e, tirando um fogo
das mãos do ajudante que estava perto, apontou-o à
ama, de maneira que o sopro lhe apanhasse as saias, já
borrifadas pela corrente.
- Tira o espeto rubro do fogo para ver se a aquecemos - gritou-lhe Roger e o ferreiro fingiu brandir uma barra de ferro, com faíscas a voarem em todas as direcções, enquanto Robbie, meio estrangulado pela histérica
ama e dobrado pelo riso, enfiava os calcanhares nos lados do animal, fazendo-o saltar ainda mais. O espectáculo fez sair do moinho o moleiro e o ajudante, do outro lado da corrente. Vi que lá estavam monges e que se
encontrava uma carreta no pátio ao lado da casa, segura
por outros dois, que a enchiam de grão. Fizeram uma
pausa, sorrindo tal como o ferreiro, e um deles levou as
duas mãos à boca, piando na imitação de uma coruja,
enquanto o companheiro fazia esvoaçar os braços acima
da cabeça como se fossem asas.
- Escolhe, Alice - gritava Roger. - Fogo e vento do Rob Rosgof ali da forja, ou queres que ali os irmãos te amarrem à nora pela roupa?
- A nora, a nora - gritavam as miúdas do outro lado do vau, acreditando na sua excitação que Alice ia ser mergulhada na água. Então, de súbito, tão depressa como tinha começado, a brincadeira terminou. Roger passou a corrente a vau, com água pelo meio das coxas e, voltando a agarrar os póneis das crianças, tomou a vereda do lado direito para subir o vale, com Robbie e a ama a segui-lo de muito perto.
Estava a preparar-me para o seguir até ao outro lado do vau, quando um dos monges que trabalhavam no pátio do moinho soltou mais um grito (pelo menos pareceu-me ter sido o monge) e virei-me para ver o que ele quereria, mas, em vez dele, vi um pequeno carro com um irado motorista ao volante, a travar de repente atrás de mim.
- Porque é que não compra um aparelho para surdos? - berrou o homem, contornando-me e quase mergulhando no fosso.
Fiquei a piscar os olhos após a passagem do automóvel e as pessoas que seguiam no assento da retaguarda, três lado a lado, preparadas para um passeio de domingo, fitaram-me surpreendidas pela vidraça.
O tempo pregara-me a sua partida demasiado depressa, demasiado de repente. Não havia nenhum curso de água, nenhum charco, nenhuma forja com o ferreiro à porta. Encontrava-me de pé no meio da estrada de Treesmill, ao fundo do vale.
Encostei-me à ponte baixa que atravessava o pântano. Tinha sido por pouco. Poderia ter projectado todo o grupo no fosso e a mim também. Não lhes podia apresentar desculpas, porque o carro já tinha desaparecido pela colina fronteira acima. Fiquei sentado durante um pedaço, à espera de qualquer reacção, mas não ocorreu nenhuma. Tinha o coração a bater bastante mais depressa do que o habitual, mas era natural devido ao choque do aparecimento do carro. Fora uma sorte ter escapado. A culpa não tinha sido do condutor, mas minha.
Principiei a caminhar pela colina acima na direcção do ponto onde estacionara o meu automóvel e sentei-me ao volante durante mais algum tempo, receoso da confusão. Não devia aparecer na igreja a menos que tivesse o espírito perfeitamente claro. A imagem de Roger a escoltar as crianças nos póneis pela vereda adiante e através do vale ainda estava vívida, mas reconhecia-a por aquilo que era, uma parte do outro mundo já desvanecido. A casa sobranceira aos bancos de areia transformara-se na cova de Gratten, coberta por relva, vazia à excepção dos arbustos de carqueja e das latas. Bodrugan e Isolda já não estavam a fazer amor. A realidade actual estava de novo comigo.
Consultei o relógio e arregalei os olhos, sem querer acreditar no que via. Os ponteiros diziam que era uma e meia. As matinas em St. André já deviam ter terminado há uma hora e meia, talvez mais.
Encaminhei-me para o carro, sentindo-me culpado. A droga enganara-me, distorcendo o tempo de forma incrível. Não podia ter permanecido na casa mais de meia hora, no máximo, acrescentando talvez uns dez minutos a seguir Roger e as miúdas para o vau. Todo o episódio decorrera depressa e eu nada fizera senão escutar à janela, observar as raparigas a montarem os seus póneis e a afastarem-se. Ao conduzir colina acima, sentia-me mais incomodado quanto à acção da droga do que quanto à perspectiva de encarar Vita com mais uma desculpa falaciosa, a de me ter perdido no caminho. Porquê a diferença de tempo, perguntava-me? Recordei-me então de que, quando penetrava no passado, nunca consultava o relógio, nunca sentira o impulso de o fazer. Por conseguinte, não havia forma de saber como é que o tempo decorria: o sol deles não era o meu, nem o seu céu o era também. Não tinha forma de verificar, nenhuma possibilidade de medir o tempo-limite da acção da droga. Como sempre, quando as coisas corriam mal, eu culpava Magnus. Ele devia ter-me avisado.
Travei em frente à igreja, mas claro que ninguém lá estava. Vita devia ter esperado com os rapazes, a espumar de raiva, depois pedira boleia a alguém, ou então arranj ara um táxi.
Dirigi-me para Kilmarth, tentando pensar numa desculpa melhor do que ter-me perdido no caminho e o meu relógio ter parado. Gasolina. Poderia dizer que tinha ficado sem gasolina? Um furo. E que tal um furo? Oh, raios, pensei...
Desci o caminho de acesso e travei em frente à casa, atravessando depois o portão para subir os degraus e penetrar no vestíbulo. A porta da sala de jantar encontrava-se fechada. Mrs. Collins, de rosto ansioso, emergiu do corredor que dava para a cozinha.
- Parece-me que já terminaram - disse ela em tom apologético -, mas eu guardei o seu quente. Não se desperdiçará. Teve uma avaria?
- Sim - respondi com gratidão.
Abri a porta da sala de jantar. Os rapazes estavam a afastar-se, mas Vita continuava sentada à mesa, a beber café.
- Raios partam aquele maldito carro... - comecei a dizer e os rapazes voltaram-se, de olhos arregalados, sem saberem se haviam de se rir ou pôr-se a mexer. Teddy mostrou um tacto inesperado e, com uma olhadela na direcção de Micky, deixaram os dois apressadamente a sala, o mais velho levando o tabuleiro com os pratos.
- Querida - prossegui -, lamento imenso. Por nada deste mundo quereria que isto me acontecesse. Não fazes uma ideia...
- Faço uma ideia bastante boa - interrompeu ela.
- Receio é que te tenhamos estragado o domingo.
Estava a desperdiçar energia comigo. Hesitei, perguntando-me se deveria continuar ou não com a minha brilhante história de ter tido uma avaria na estrada.
- O vigário foi muitíssimo amável - prosseguiu ela. - O filho dele trouxe-nos de automóvel. E, ao chegarmos, Mrs. Collins deu-me isto. - Apontou para um telegrama ao lado do prato. - Chegou precisamente depois de termos saído para a igreja, segundo me disse. Pensando que fosse importante, abri-o. É do teu professor, claro.
Entregou-me o telegrama. Fora transmitido de Cambridge.
Boa viagem este fim-de-semana, dizia. Espero tua rapariga apareça. Pensarei em ti. Saudações. Magnus.
Li-o duas vezes, depois olhei para Vita, mas ela já se virara para a biblioteca, soprando nuvens de fumo de cigarro por cima do ombro, enquanto Mrs. Collins entrava na sala de jantar, para me trazer um enorme prato de rosbife quente.
Capitulo doze
Nem que Magnus tivesse tido intenção de me atirar de propósito um tijolo, ele poderia ter sido mais oportuno, mas absolvi-o. Pensava que a Vita se encontrasse em Londres e que eu estivesse sozinho. Não obstante, o fraseado tinha sido, no mínimo, inoportuno. Catastrófico seria uma palavra mais adequada. Deve ter provocado a Vita a visão instantânea da minha pessoa a esgueirar-se, sorrateira, com estojo de barbear e escova de dentes, para me encontrar com uma miúda qualquer nas ilhas Scilly. Era difícil provar a minha inocência. Segui-a para a biblioteca.
- Escuta uma coisa - disse-lhe com firmeza, fechando as portas de dobrar que havia entre os dois compartimentos, para o caso de Mrs. Collins me poder ouvir -, esse telegrama é uma piada, uma brincadeirinha parva da parte do Magnus. Não sejas idiota em levá-lo a sério.
Ela voltou-se e encarou-me, numa postura clássica de esposa ultrajada, de mão na anca, a outra brandindo em ângulo o cigarro, olhos semicerrados num rosto gelado.
- Não estou interessada no professor e nas suas piadinhas - comunicou-me. - Tu partilhas tantas com ele mantendo-me de fora que já ultrapassei a fase de me ralar com isso. Se esse telegrama era uma piada, boa sorte para vocês os dois. Repito que lamento ter-te estragado o fim-de-semana. Agora será melhor ires comer o teu almoço antes que arrefeça.
Pegou num jornal de domingo e fingiu lê-lo. Arranquei-lho das mãos.
- Oh, não, tu não vais fazer isso - disse-lhe -, vais mas é prestar-me atenção. - Tirei-lhe o cigarro e esmaguei-o no cinzeiro. Depois agarrei-a pelos dois pulsos e fi-la voltar-se para mim.
- Sabes muitíssimo bem que o Magnus é o meu mais antigo amigo - continuei a dizer. - E, o que é mais, emprestou-nos esta casa de graça, contratando Mrs. Collins para nós. Em troca eu tenho estado a fazer-lhe umas pesquisas relacionadas com o seu trabalho. O telegrama foi apenas a forma de me desejar boa sorte.
As minhas palavras não lhe causaram qualquer impressão. O rosto dela continuou rígido.
- Tu não és cientista - objectou. - Que espécie de pesquisas poderás estar a fazer? E onde é que ias?
Larguei-lhe os pulsos e suspirei, como uma pessoa cuja paciência depressa se esgota frente a uma voluntariosa criança que a não compreende.
- Não ia a lado nenhum - insisti, pondo ênfase no lado nenhum". - Tinha planeado vagamente dar uma volta de carro ao longo da costa e visitar um ou dois locais em que por acaso ele está interessado.
- Que coisa tão plausível! - Comentou. - Não percebo como é que o professor não monta aqui mesmo uma escola domiciliar, contigo como seu assistente-chefe. Porque é que não lhe sugeres isso? Eu estaria por cá, é claro, mas mostrar-me-ia poucas vezes. É provável que ele gostasse que os rapazes também cá ficassem.
- Oh, pelo amor de Deus - disse-lhe, abrindo a porta que dava para a sala de jantar -, estás a comportar-te como uma esposa das anedotas que conheço. A coisa mais simples que tens a fazer é telefonar ao Magnus logo pela manhã e dizer-lhe que vais requerer o divórcio, por suspeitares que eu me encontrei com alguma ordinária em Land's End. Ele vai partir a cabeça a chorar.
Entrei na sala de jantar e sentei-me à mesa. O molho começava a congelar, mas não importava. Enchi uma caneca de cerveja, para empurrar o bife e duas garfadas de vegetais, antes de me atirar à tarte de maçã. Mrs. Collins, demonstrando grande tacto e sem falar, trouxe-me café e pousou-o na placa de servir pratos quentes, depois desapareceu. Os rapazes, sem saberem o que fazer, andavam aos pontapés à gravilha do caminho em frente à casa. Levantei- me da mesa e chamei-os através da janela.
- Depois levo-vos a nadar - gritei. Os olhos deles iluminaram-se de modo evidente e subiram a correr os degraus do alpendre. - Mais tarde - insisti em dizer.
- Deixem-me primeiro tomar o café e ir ver o que a Vita quer fazer. - Os queixos descaíram-lhes. A mamã era capaz de ser uma empata e lançar água fria naqueles planos. - Não se preocupem, prometo que vos levo.
Depois entrei na biblioteca. Vita estava estendida no sofá, de olhos fechados. Ajoelhei-me a seu lado.
- Pára de seres mal-intencionada - pedi-lhe. - Só existe uma rapariga neste mundo que me interessa e tu sabe-lo muito bem. Não te levo lá para cima para to provar, porque prometi aos rapazes que os levava a nadar e não queres estragar-lhes o dia, pois não?
Abriu um dos olhos.
-Tu é que já conseguiste estragar-me o meuafirmou.
-Bolas! - vociferei. - E o meu fim-de-semana com essa tal garota? Queres que te diga o que tinha planeado fazer com ela? Um espectáculo de strip-tease em Newquay. Agora cala-te lá. - Beijei-a de novo com vigor. A sua reacção foi negligente, mas não me afastou.
- Gostava de te conseguir compreender - disse-me.
- Graças a Deus que não compreendes - retorqui.
- Os maridos odeiam as esposas que os compreendem. Só gera a monotonia. Anda nadar. Há uma praia completamente vazia para além das rochas. Está um calor de abrasar e não vai chover.
Abriu os olhos.
- Que é que estiveste de verdade a fazer esta manhã, enquanto estávamos na igreja? - perguntou.
- A vaguear numa lixeira - respondi -, a menos de uma milha da aldeia. O local está relacionado com o antigo priorado e o Magnus e eu estamos por acaso interessados nele. Depois não consegui pôr o carro a andar, por o ter enfiado desastradamente num fosso.
- Para mim essa de o teu professor ser historiador, ao mesmo tempo que cientista é nova - comentou ela.
- Mas é bom, não achas? Já faz certa diferença de todos esses embriões metidos em frascos. Fui eu quem o incitou a isso.
- Tu incita-lo seja ao que for - observou -, por isso é que ele se serve de ti.
- Sou adaptável por natureza, sempre o fui. Vá lá, esses rapazes estão em pulgas por sair. Vai pôr-te bela num biquini, mas veste qualquer coisa por cima, senão ainda espantas as vacas.
- Vacas? - quase guinchou ao dizê-lo. - Não entro em nenhum campo que tenha vacas. Não, muito obrigado.
- São mansas - garanti-lhe -, alimentadas com determinada espécie de erva para não conseguirem passar da marcha lenta. A Cornualha é famosa por essas vacas.
Creio que ela me acreditou. Se acreditou na minha história acerca da lixeira, isso já era outra coisa. De momento mostrava-se pacificada. Era melhor deixar morrer o assunto.
Passámos uma longa e preguiçosa tarde na praia. Todos nadámos e depois, enquanto os rapazes chapinhavam em poças de água à caça de inexistentes camarões, Vita e eu estendemo-nos ao comprido numa faixa de areia amarela, fazendo-a escorrer por entre os dedos. Reinava a paz,
- De vez em quando pensas no futuro? - pergun tou ela, de repente.
- No futuro? - estranhei. Na verdade eu estava era a olhar para o outro lado da baía, perguntando-me se naquela noite Bodrugan teria conseguido atravessá-la com maré rasa, depois de ele e Isolda se terem despedido. Falara em Chapel Point. Nos velhos tempos, o comandante Lane levara-nos a velejar pela baía, de Fowey
a Mevagissey, e apontara-nos Chapel Point destacando-se do lado do porto, antes de se penetrar em Mevagisor sey. A casa de Bodrugan devia ter sido edificada ali à
mão. Talvez o nome persistisse. Poderia verificar no mapa das estradas se ainda lá figurava.
- Sim - respondi a Vita -, já tenho pensado. Se
amanhã estiver bom tempo, iremos andar de barco à vela. Tu não corres riscos de enjoar, com um mar tão calmo como o de hoje. Atravessaremos a baía a direito e
lançaremos âncora ao largo daquela ponta de terreno
além. Levamos almoço e descemos a terra.
- Muito agradável - concordou ela -, mas eu não
estava a referir-me ao futuro imediato. Falava do futuro
a longo prazo.
- Ah, isso - redargui. - Não, querida, para ser
franco não penso. Tanta coisa a fazer para me instalar
aqui... Não sejamos prematuros.
- Está tudo muito bem, mas o Joe não pode ficar à
espera para sempre. Parece-me que ele estava a contar
receber notícias tuas bastante depressa.
- Bem sei. Mas preciso de ter a certeza absoluta.
Para ti é óptimo, trata-se do teu país. Mas não é o meu.
Arrancar raízes não me será fácil.
-Já as arrancaste ao largares esse teu emprego de
 Londres.
 Tinha razão, para todos os efeitos práticos.
- Terás de fazer qualquer coisa - prosseguiu -,
seja na Inglaterra, seja nos Estados Unidos. E recusar a
oferta do Joe quando ninguém te ofereceu nada de semelhante neste país, parece-me uma loucura completa.
Confesso que sou parcial - acrescentou, pondo a mão
na minha -, e tu havias de adorar instalares-te lá. Mas
só se te apetecer.
Não apetecia, e esse é que era o ponto crucial. Nem
queria um emprego semelhante numa agência literária ou num editor, como em Londres. Era o fim da picada: o fim temporário de determinado momento no tempo, no meu tempo. E não conseguia planear com antecipação, pelo menos por enquanto.
- Não continues agora a insistir sobre isso, querida - pedi-lhe. - Aceitemos cada momento como ele se nos depara. Hoje, amanhã... em breve pensarei de forma construtiva em tudo isso, prometo-te.
Ela suspirou e largou a minha mão, procurando um cigarro no bolso do seu roupão de atoalhado.
- Seja como dizes - anuiu, com uma inflexão na palavra dizes" que denunciava as suas origens nas costas do Atlântico Ocidental. - Mas não me atribuas as culpas se o Joe te deixar pendurado.
Os rapazes vinham a correr pela praia, com vários troféus para nos mostrarem: estrelas-do-mar, mexilhões e um enorme caranguejo há muito morto, que cheirava mal a valer. A hora da verdade passara. Já era tempo de juntarmos as nossas coisas e encetar a subida pela colina acima, de regresso a Kilmarth. Tomando a retaguarda, olhei por cima do ombro para o outro lado da baía. A costa via-se claramente definida e as casas brancas à beira de Chapel Point, a umas oito milhas de distância, estavam iluminadas pelo sol vindo de oeste.
Em semelhante noite, Otto, constou-me, escalou os muros de Bodrugan, E exalou a sua alma num suspiro, voltado para o arroio de Treesmill
Onde Isolda estava nessa noite deitada...
Mas estaria? Claro que devia ter seguido mais tarde as filhas, depois de Otto ter partido de barco. Mas para onde? Bockenod, onde o irmão do marido, o auto-importante Sir John, vivia? Demasiado. Faltava qualquer coisa. Ela falara noutro nome. Treg qualquer-coisa. Tinha de procurar no mapa. O problema era que todos os nomes das outras quintas da Cornualha começavam por Tre. Não tinha sido Trevenna, Treverran nem Trenadlyn. Então onde é que Isolda e as filhas tinham encostado as cabeças nessa noite?
- Não estou a ver-me a fazer isto muitas vezes - queixou-se Vita. - Ó céus, que colina esta! Parece as encostas de esqui no Vermont. Deixa-me apoiar ao teu braço.
O facto é que tinham atravessado o charco de água abaixo do moinho e tinham tomado uma vereda para a direita. Depois deixara de as ver por causa daquele automóvel que me saltara para cima. Podiam ter seguido em qualquer direcção. E Roger ia a pé. Quando a maré subisse, o vau ficaria coberto por completo. Procurei recordar-me se havia barco junto da forja do ferreiro para o trazer de volta.
- Depois de todo este exercício e ar livre, devo conseguir dormir esta noite - disse Vita.
- Sim - repliquei.
Tinha existido um barco. Em terra seca na margem do riacho. Na maré alta devia servir para transportar passageiros de e para a forja e Treesmill.
- Não te podias ralar menos com que noite vou eu passar ou se neste mesmo momento te caio morta aos pés, pois não?
Parei e fitei-a.
- Desculpa, querida - disse-lhe -, claro que me importo. - Por que motivo havia ela de voltar de repente àquele assunto da noite sem dormir?
-Estavas a milhas de distância em pensamento... consigo sempre aperceber-me disso - insistiu.
- No máximo a quatro milhas - repliquei. - Se queres mesmo saber, estava a pensar em duas miúdas que vi esta manhã a passear de pónei. Gostava de saber onde é que elas iam.
- Póneis? - Continuávamos a caminhar, Vita um peso morto pendurado no meu braço. - Bem, é a coisa mais sensata em que poderias pensar - disse-me. - Os rapazes adoram montar. Talvez os póneis sejam para alugar, não?
- Tenho dúvidas. Suponho que pertencem a alguma quinta.
- Bem, pode-se perguntar. Miúdas bonitas?
- Encantadoras. Duas rapariguinhas, acompanhadas por uma mulher jovem que devia ser a ama e por dois homens.
- Todos montados em póneis?
- Um deles ia a pé, com as rédeas das miúdas na mão.
- Então devem pertencer a uma escola de equitação - aventou ela. - Trata de descobrir. Representaria bastante para os rapazes fazerem outra coisa que não nadar ou velejar.
- Pois é - concordei.
Que jeito daria poder convocar Roger do passado, mandá-lo selar dois dos póneis de Kilmarth para Teddy e Micky e depois deixá-los galopar pelas dunas de Par com o Robbie! Roger entender-se-ia muitíssimo bem com a Vita. Qualquer dos caprichos dela seria prontamente satisfeito. Suco de meimendro preparado pelo irmão Jean do priorado para lhe proporcionar uma noite de repouso e, se falhasse... sorri.
- Onde é que está a piada?
- Não é piada nenhuma. - Apontei para as dedaleiras de cor desmaiada, uma massa púrpura que projectava altos caules por entre a sebe que rodeava os cercados para além de Kilmarth. - Se tiveres um ataque cardíaco não há problema. A digitalina é extraída das dedaleiras. É só dizeres, que eu ponho-me a esmagar-lhes as sementes.
- Muito obrigada. Não há dúvida que o laboratório do teu professor está cheio delas, e de outras sementes venenosas e só Deus sabe que mais misturas sinistras,
Como ela tinha razão! Era no entanto um erro deixá-la insistir no Magnus.
- Cá estamos nós - atalhei. - É só entrar por aquele portão e estaremos no jardim. Vou preparar-te uma bebida grande e fresca e para os miúdos também. Depois tratarei da ceia. Muito rosbife frio e salada.
Que a jovialidade prevalecesse. Recordações da minha manhã mal passada desvanecer-se-iam na insistência em agradar. Um marido atencioso, um padrasto sorridente; era só manter essa atitude até irmos para a cama e depois disso.
Tal como as coisas correram, o depois disso" resolveu-se por si mesmo. A natação, a longa ascensão e o soporífero ar da Cornualha fizeram o seu papel. Vita, bocejando diante de uma peça da televisão, já estava na cama às dez horas e depressa adormeceu quando deslizei sorrateiro para o lado dela, uma hora mais tarde. O dia seguinte estaria óptimo, a julgar pelo aspecto do céu e poderíamos velejar até Chapel Point. Bodrugan continuava a existir. Descobrira-o depois do jantar no mapa das estradas.
Soprava uma brisa apenas suficiente para nos tirar do porto de Fowey. O nosso timoneiro, Tom, um indivíduo robusto e de sorriso pronto, ocupou-se das velas, ajudado ou atrapalhado pelos rapazes, enquanto eu me instalava ao leme. Só sabia o suficiente daquilo para não pôr o barco contra o vento e com as velas frouxas, mas nem Vita nem os rapazes percebiam nada de vela e ficaram bem impressionados, como convinha, com o meu ar de eficiência. Depressa tínhamos linhas de pesca pendentes à popa, os miúdos a puxá-las com gritos de entusiasmo logo que sentiam o mais pequeno abanão provocado pelo jogar da maré ou por algum pedaço de ervas daninhas, enquanto Vita se mantinha deitada a meu lado. Os seus jeans transformavam-se nela própria, tal como a camisola escarlate (como todas as americanas, possuía uma figura espantosa).
- Isto é o paraíso - comentou, chegando-se para
mais perto e encostando-me a cabeça ao ombro. - Foi
muito inteligente da tua parte arranjares este barco. Uma
vez sem exemplo, dou-te nota máxima. As águas não
podiam estar mais calmas.
O problema foi que não se conservaram assim por
muito tempo. Recordava-me de que, em tempos antigos,
depois de se passar a bóia de Cannis e o Cabeço de Gribbin, um vento de oeste se juntava com força esmagadora
à corrente, para aumentar a velocidade da embarcação
(sempre uma alegria para timoneiros como o comandante Lane, que punham o coração naquilo), mas levando o
barco a balançar de tal forma que um passageiro sentado
a sotavento se via a poucas polegadas da água do mar.
Neste caso, o passageiro era a Vita.
- Não seria preferível dizeres ao homem do leme
para mudar de rumo? - perguntou ela, em tom nervoso, assim que a embarcação fez três vénias como um cavalo de balanço (por minha culpa, já que estávamos a
navegar à orça) e depois agarrando-se com firmeza ao
gradeamento encharcado.
- Nem um poucochinho - respondi cheio de alegria. - Rasteja por baixo do portaló e vai sentar-te do outro lado.
Ela pôs-se em pé com dificuldade, batendo com toda
a força com a cabeça no portaló. Ao levantar-me para a
ajudar a desprender uma corda do tornozelo, o que me
fez tirar os olhos do leme, apanhámos uma pequena vaga por cima da proa, que nos encharcou a todos, incluindo a mim.
- Uma gota de água salgada não faz mal a ninguém - gritei, mas os miúdos, agarrados ao gradeamento de barlavento, não se sentiam assim tão certos disso e, com a mãe, mergulharam para o abrigo da pequena cabina,
que, por falta de altura, os obrigou a agacharem-se como corcundas no reduzido compartimento, onde subiam e desciam a cada cabriola da tão viva embarcação.
- Bela brisa fresca - disse o nosso timoneiro Tom, sorrindo com toda a cara. - Estaremos em Mevagissey em muito pouco tempo.
Mostrei-lhe os dentes, imitando-lhe a confiança, mas as três caras pálidas que se ergueram para mim de dentro da cabina não mostravam nenhum entusiasmo e fiquei com a impressão de que nenhum deles partilhava a opinião do timoneiro acerca da brisa.
Ofereceu-me um cigarro, o que após três fumaças se revelou um erro e atirei-o pela borda fora quando o homem não estava a olhar, enquanto ele tratava de acender um cachimbo particularmente tóxico. Uma parte do fumo abriu caminho lá para baixo para a cabina, onde circulou em anéis.
- A senhora era capaz de sentir menos o balanço se se sentasse - sugeriu Tom -, e os moços também.
Olhei para eles. O barco progredia agora bastante a direito, mas, encurralados na cabina escura, sentiam cada movimento e um ominoso esgar estava a surgir na cara de Micky. Vita, de olhos arregalados, parecia hipnotizada pelo oleado de Tom, que estava pendurado num cabide junto da porta da cabina, balançando para a frente e para trás com os movimentos da embarcação, como se fosse um homem enforcado.
Tom e eu trocámos olhares, tomados por uma súbita compreensão de oficiais do mesmo ofício e, enquanto ele se encarregava do timão e batia o cachimbo para o esvaziar, eu meti a minha família na casa do leme, onde Vita e o filho mais novo se sentiram de imediato enjoados. Teddy sobreviveu, possivelmente por conservar a cabeça virada para o lado.
- Em breve estaremos por baixo das pastagens de Black Head - informou Tom. - Aí já não sentirão os movimentos.
Os seus toques no leme eram como magia. Ou talvez fosse por pura sorte. O movimento de baloiço transformou-se num suave embalar, as faces brancas perderam a palidez, os dentes pararam de se entrechocar e os pastéis preparados por Mrs. Collins foram arrancados dos guardanapos e atacados por todos nós, até mesmo Vita, com a ferocidade de corvos ávidos de carne putrefacta. Passámos por Mevagissey e acabámos por ancorar do lado ocidental de Chapel Point. Não se verificava um único tremor no mar ou no céu e o sol estava ardente.
- Que coisa mais extraordinária! - comentou Vita, que agora tirara a camisola, metendo-a por baixo da cabeça como se fosse um travesseiro. - Mal o Tom se encarregou do leme, o barco passou a quase não se mover e o vento caiu.
- Na verdade não foi assim - retorqui. - Nós estávamos a aproximar-nos de terra, foi o que aconteceu.
- O que eu sei - insistiu ela - é que ele é que irá governar o barco no regresso a casa.
Tom estava a ajudar os miúdos a meterem-se no bote. Iam de calções de banho e toalhas debaixo dos braços. O timoneiro levava linhas de pesca iscadas com minhocas.
- Se quiser ficar a bordo com a senhora, eu vigiarei para que não aconteça mal nenhum aos moços - ofereceu-se ele. - Esta praia é bastante segura para se tomar banho.
Não queria ficar a bordo com a senhora. O que desejava era escalar a encosta até lá acima aos campos, para procurar Bodrugan.
Vita pôs-se em pé e, tirando os óculos escuros, olhou em volta. Estava-se a meia maré e a praia parecia tentadora, mas reparei deliciado que nela se via meia dúzia de vacas, por ali a vaguear sem destino, sujando as areias de forma inevitável.
- Eu fico a bordo - decidiu Vita com firmeza - e, se me apetecer nadar, lanço-me do barco.
Bocejei, o que constituía a minha reacção instintiva quando me sentia culpado de qualquer coisa.
- Vou a terra estender as pernas - declarei. - Seja como for, é demasiado cedo para nadar, logo a seguir a um almoço abundante.
- Faz como quiseres - redarguiu a minha mulher.
- Aqui está-se muitíssimo bem. Aquelas casinhas brancas lá na ponta são encantadoras. Parece que estamos na Itália.
Deixei-a a pensar isso e meti-me no bote com os restantes.
- Largue-me ali, naquele recanto à esquerda - pedi a Tom.
- Que é que vais fazer? - quis saber Teddy.
- Caminhar - respondi com firmeza.
- Podemos ficar no bote a pescar peixe-cabra?
- Claro que podem. É uma óptima ideia - anuí. Saltei para terra para o meio das vacas, livre de sobrecargas. Os rapazes também ficaram satisfeitos por se verem livres de mim. Detive-me um momento a vê-los afastar-se. Vita acenou-me com uma lânguida mão, da embarcação ancorada. Depois virei-me e iniciei a escalada da colina.
A vereda corria paralela a um curso de água e encurvava para lá de um chalé ao lado direito, ficando de repente fora de vista do mar. O caminho continuava colina acima, levando a um portão por entre velhos muros e, do lado esquerdo, via-se aquilo que pareciam ser as ruínas de um moinho. Aventurei-me a ultrapassar o portão, ficando a quinta Bodrugan à minha volta, um grande lago à esquerda, que devia ter alimentado a correnteza para o moinho e para a direita a graciosa casa de lavoura em ardósia dos dias de hoje, construída em princípios do século dezoito, talvez, curiosamente parecida com a Kilmarth de Magnus e, a seu lado e para além, grandes estábulos de paredes de pedra datados de época anterior, que decerto deviam ter sido erigidos contra a casa de Otto no século catorze. Duas crianças brincavam sob as janelas da casa de lavoura, mas não repararam em mim e aventurei-me a continuar, atravessando a ampla área onde as vacas estavam a pastar, para penetrar, no outro lado, no celeiro de tecto alto.
Servia agora de tulha e devia ter sido usado com essa finalidade durante séculos, mas talvez ali existisse há seiscentos anos uma sala de jantar, bem como outros compartimentos, enquanto o longo e baixo celeiro do outro lado do caminho devia ter sido a capela. O conjunto era vasto, de longe muito maior do que o espaço coberto por aqueles montículos e declives que em tempos haviam formado o lar dos Champernounes abaixo de Gratten. Compreendia agora por que motivo Joanna, nascida e criada neste mesmo lugar de Bodrugan, tinha achado a casa acima de Treesmill um pobre substituto, quando se casara com Henry Champernoune.
Saí dos celeiros, segui os baixos muros de pedra que rodeavam toda a quinta e depois, dirigindo-me para as colinas na outra encosta, fiquei de novo com o mar à vista. Aqui, no topo das terras altas, havia um montículo que em tempos devia ter sido um torreão ou um posto avançado, dominando a baía e eu perguntei a mim mesmo quantas vezes não teria Otto cavalgado para ali de sua casa, para ver além do Cabeço Negro os penhascos muito longínquos que desciam em degraus para a baía de Tywardreath e o ventoso estuário com os seus braços estreitos, o primeiro dirigindo-se para o vale de Lampe- tho, o segundo para os muros do priorado, o terceiro para Treesmill e Champernoune. Teria avistado tudo isso num dia claro, talvez até mesmo a corcovada residência de Kylmerth e a pequena mata a seguir.
Teria sido uma boa ocasião para dispor do frasco dentro do bolso e ver Otto inclinado da torre redonda do seu bastião, tendo abaixo dele a abrigada cova onde os rapazes estavam hoje a pescar, o seu navio ancorado, pronto para levantar ferro. Ou recuar ainda mais no tempo e vê-lo afastar-se a cavalo para se juntar à primeira rebelião contra Eduardo II, em 1322, mais jovem e entusiástico, acabando por ser multado em mil marcos quando essa rebelião falhou. Campeão de causas perdidas, em busca do fruto proibido. Quantas vezes, perguntei-me, não se teria ele escapulido pela baía, deixando a esposa de ar mortiço, Margaret, irmã de Henry Champernoune, segura e confortável no interior da casa Bodrugan ou, onde quer que se situasse, numa das outras propriedades de Trelawn, sobre as quais os Champernounes pareciam ter também direitos?
Desci de novo para a praia, cheio de calor e de um estranho cansaço. Era curioso, mas parecia-me agora mais difícil encarar a família, sem ter engolido a droga e sem me ter deslocado a outro mundo, do que tinha sido quando de facto fizera a viagem no tempo. Sentia-me frustrado, de energias esgotadas e cheio de uma curiosa sensação de apreensão. A imaginação não me bastava: sentia a falta da experiência ao vivo que me tinha sido negada e poderia ter possuído se tivesse tomado umas gotas daquele frasco fechado em segurança na antiga lavandaria de Kilmarth. Poderia ter testemunhado cenas, naquela antiga casa no alto dos rochedos, ou junto da própria quinta, que agora nunca viria a conhecer, e a minha frustração era absoluta.
As vacas haviam desaparecido da praia. Os rapazes tinham voltado para a embarcação ancorada e estavam sentados na casa do leme, a tomar chá, com os calções de banho pendurados no mastro, a secar. Vita encontrava-se de pé à proa, a tirar fotografias. Um grupo satisfeito, toda a gente feliz, excepto eu, estranhamente...
Tinha os meus calções de banho vestidos por baixo das calças e, tirando as roupas, meti-me na água. Achei-a fria após a caminhada, com algas a flutuarem-lhe à superfície como madeixas do cabelo da afogada Ofélia. Virei-me de costas para contemplar o céu, ainda imbuído daquela estranha sensação de desapontamento, quase condenação. Custar-me-ia um tremendo esforço corresponder às saudações da família, juntar-me à tagarelice geral, sorrir e brincar.
Tom tinha-me visto e estava a trazer o bote para a praia, para vir buscar as minhas roupas. Nadei para o barco e consegui de algum modo trepar para bordo, com a ajuda da ponta de uma corda e das mãos prestimosas de Vita e dos rapazes.
- Olha, três peixes - gritou Micky. - A mamã diz que os vai cozinhar para o jantar. E encontrámos uma data de conchas.
Vita adiantou-se com os restos do chá numa chávena térmica.
- Pareces estourado - disse-me. - Foste até muito longe?
- Não - respondi -, só atravessei os campos. Em tempos houve lá uma espécie de castelo, mas já não resta nada dele.
- Devias ter ficado a bordo - observou. - O banho foi divinal. Toma, esfrega-te com esta toalha, estás a tremer. Oxalá não apanhes uma constipação. Foi um erro mergulhares em águas frias a transpirar.
Micky meteu-me um donut húmido na mão, que me soube a algodão, e engoli o chá morno. Depois Tom veio para bordo com as minhas roupas e não faltou muito para que levantássemos âncora e nos afastássemos, indo ele ao leme. Pus mais uma camisola e fui sentar-me à proa, onde Vita acabou por me ir fazer companhia.
As pequenas ondas a meio da baía fizeram-na ir de novo para a casa do leme, para se embrulhar no oleado do Tom, e eu fiquei a olhar em frente, na direcção da paisagem de Kilmarth, enquadrada pela sua cintura de árvores. Nos velhos tempos, navegando mais perto da costa, Bodrugan teria desfrutado de melhor vista ao comandar a sua embarcação através do estuário que então cobria os areais de Par e Roger, se o estivesse a observar dos campos, ter-lhe-ia feito sinal que tudo ia bem. Gostaria de saber quem se sentiria mais ansioso, se Bodrugan enquanto contornava o íngreme cabeço para o canal, sabendo que Isolda o esperava naquela casa vazia por detrás dos baixos muros de pedra, ou se seria ela ao avistar o mastro grande e ver a vela escura a adejar. Agora, com o Sol a sotavento, ultrapassámos a bóia de Cannis e, rumando a Fowey, penetrámos no porto para grande entusiasmo dos miúdos, porque um grande navio de convés branco como porcelana e escoltado por dois rebocadores, vinha precisamente a sair.
- Podemos vir cá outra vez amanhã? - clamaram eles, enquanto eu pagava a Tom e lhe agradecia pela passeata à vela.
- Veremos - respondi, utilizando a inevitável fórmula dos adultos que tanto enfurecia os mais novos. Ver o quê, poderiam eles ter perguntado? Se a disposição é boa e se há harmonia no mundo dos adultos? O sucesso ou o insucesso do dia deles dependeria do estado das relações entre a mãe e eu.
O meu problema imediato ao regressarmos a Kilmarth era telefonar a Magnus antes que ele me telefonasse a mim, o que deveria fazer, agora que o fim-de-semana terminara. Deambulei, furtivo, pela biblioteca à espera de um bom momento e depois entraram os miúdos e ligaram a televisão, por isso tive de subir as escadas para o quarto. Vita estava lá em baixo, na cozinha, a tratar do jantar: era agora ou nunca. Disquei o número e ele atendeu-me de imediato.
- Olha - disse-lhe depressa. - Não posso falar muito. Aconteceu o pior. A Vita e os miúdos chegaram inesperadamente no sábado de manhã. Quase me apanhavam em flagrante delito. Estás a compreender-me?
E o teu telegrama foi uma calamidade idêntica. A Vita abriu-o. Desde então a situação tem sido delicada, isto para não dizer pior.
- Oh, rapaz... - exclamou Magnus, no tom duma tia idosa confrontada com um pequeno problema familiar.
- Dizer só isso é pouco, por cá vai o bom e o bonito - explodi -, é o fim da picada no que diz respeito a fazer mais viagens. Estás a perceber, não estás?
- Mantém a calma, rapaz, mantém a calma. Dizes que ela te apanhou durante a viagem?
- Não, estava a regressar. Às sete da manhã. Não me volto a meter nisso.
- E valeu a pena? - quis ele saber.
- Não sei o que achas que vale a pena - retorqui.
- Teve a ver com uma quase rebelião contra a Coroa. Otto Bodrugan encontrava-se presente, bem como o Roger, é claro. Contar-te-ei tudo por escrito amanhã e também a viagem de domingo.
- Portanto, quer dizer que voltaste a arriscar, apesar da presença da família? Que esplêndido!
- Só porque eles foram à igreja e pude esgueirar-me para o Gratten. Verifica-se um problema de temporização, Magnus. Não sou capaz de o explicar. A viagem pa receu-me durar meia hora a quarenta minutos no máximo, mas, na actualidade, estive ausente" cerca de duas horas e meia.
- Quanto é que usaste?
-O mesmo que na noite de sexta-feira... umas quantas gotas mais do que nas primeiras duas ou três viagens.
- Sim, estou a ver.
Manteve-se em silêncio por um minuto, reflectindo no que lhe tinha dito.
- E então? - perguntei. - O que é que isso significa?
- Não tenho a certeza - declarou. - Terei de me concentrar sobre esse aspecto. Não te preocupes, nesta fase não há-de ser nada de sério. Como é que te sentes?
- Bem... de saúde do ponto de vista físico, estivemos a velejar todo o dia. Mas é um raio de uma tensão, Magnus.
- Verei como corre a semana e depois tentarei ir até aí abaixo. Deverei ter aqui os resultados do laboratório dentro de uns dias e poderemos nessa altura discuti-los. Entretanto, tem cuidado com as viagens.
- Magnus...
Tinha desligado, paciência. Pareceu-me ter ouvido Vita a subir as escadas. Num certo sentido senti-me desta vez aliviado com a ideia de o ir ver, ainda que isso significasse problemas com ela. Magnus havia de exibir o seu habitual encanto, suavizando-a e então a responsabilidade seria toda sua, não minha. Além disso sentia-me preocupado com a droga. Aquela sensação de depressão, de mau agouro, poderia ser um efeito colateral.
Observei-me no espelho da casa de banho. Tinha qualquer coisa estranha no olho direito, parecia-me congestionado e via-se-lhe um traço vermelho a cruzar a zona branca. Talvez um vaso sanguíneo rebentado, o que não era nada, mas não me recordava de tal coisa já me ter acontecido. Tinha esperanças de que a Vita não reparasse.
O jantar correu bem, os miúdos a tagarelar muito felizes acerca do dia que tinham passado e a apreciarem os peixes que tinham apanhado (na minha opinião uma das espécies piscícolas menos saborosas, mas não lhes estraguei o entusiasmo). Precisamente quando estávamos a levantar a mesa, tocou o telefone.
- Eu atendo - disse logo Vita -, pode ser que seja para mim.
Pelo menos nesse caso não seria o Magnus. Os rapazes carregaram a máquina de lavar louça e puseram-na a funcionar antes que ela regressasse à cozinha. Tinha um ar que já lhe conhecia. Mais determinado do que desafiador.
- Eram o Bill e a Diana - anunciou.
- Ah, sim?
Os rapazes desapareceram na direcção da biblioteca, para verem televisão. Servi café para nós dois.
- Vêm de avião de Exeter para Dublin - informou a minha mulher. - Encontram-se em Exeter neste momento. - Depois, antes que pudesse dar-lhe qualquer resposta adequada, disse-me com muita pressa. - Estão loucos por ver a casa, portanto sugeri-lhes que adiassem o voo deles por quarenta e oito horas e viessem aqui abaixo almoçar connosco amanhã, e passassem cá a noite. Até saltaram de alegria com a ideia.
Pousei a chávena de café sem lhe ter tocado e recostei-me na cadeira de cozinha.
- Oh, meu Deus! - exclamei.
Capítulo treze
Existem poucos momentos de tensão mais intoleráveis na vida do que esperar por hóspedes não desejados. Nada mais disse em protesto após o meu grunhido inicial de desespero, mas passámos as horas até ir para a cama em compartimentos diferentes. Vita na biblioteca a ver televisão com os miúdos, eu na sala de música, a escutar Sibelius.
Agora, na manhã seguinte, Vita estava sentada no terraço, como ela gostava de lhe chamar, do lado de fora da varanda da sala de música, à escuta do som da buzina deles, enquanto eu passeava para cima e para baixo no interior, com o meu primeiro gin tónico na mão, de olhos postos no relógio, a reflectir no que seria pior: se estar a antecipar o momento temido do aparecimento de um carro a descer a ladeira, se o rebuliço da instalação deles ali, casacos espalhados pelas cadeiras, máquinas fotográficas a dar estalidos, vozes agudas e faladoras, o cheiro do inevitável charuto de Bill. A segunda hipótese talvez fosse preferível, o calor da batalha em vez do soar da trombeta.
- Lá vêm eles - berraram os rapazes disparando pelas escadas abaixo e eu atravessei as portas da varanda, como alguém que se dispõe a enfrentar tiros de morteiro.
Vita mostrou-se magnificente na sua posição de anfitriã: Kilmarth transformou-se de imediato numa qualquer embaixada americana do ultramar, faltando-lhe apenas um mastro com as estrelas e as riscas. Comida preparada pela prestável e triunfante Mrs. Collins ornamentava a mesa da sala de jantar. As bebidas corriam, fumo de cigarros enchia o ar. Almoçámos às duas e levantámo-nos da mesa às três e meia. Os rapazes, aplacados com a promessa de irem nadar mais tarde, desapareceram para irem jogar críquete no pomar. As mulheres, disfarçadas com os regulamentares óculos escuros, levaram redes para longe, para uma sessão de má-língua. Bill e eu instalámo-nos no pátio, com intenções, ao que eu esperava, de dormir uma soneca, mas o sono foi intermitente: tal como todos os diplomatas, ele gostava de ouvir a sua própria voz. Entrou decidido pela política mundial dentro, depois na política mais doméstica e a seguir, com elaborada despreocupação e, sob recomendações óbvias de Diana, abordou os meus planos futuros.
- Ouvi dizer que vais ser sócio do Joe - disse-me.
- Isso é maravilhoso!
- Ainda não está assente - repliquei. - Há muitos pormenores para serem discutidos.
- Oh, é claro - concordou. - Isso poderás tu de cidir num abrir e fechar de olhos, mas que bela oportunidade! A firma dele anda actualmente na crista da onda e não vais lamentar a tua decisão. Sobretudo porque creio que não tens na verdade nada a perder deste lado do mar. Nenhuns laços em particular. - Não lhe respondi. Estava decidido a não me deixar enredar numa discussão prolongada. - Claro que a Vita era capaz de se fixar em qualquer lado - continuou ele. - Ela tem garra. E, com um apartamento em Nova Iorque e casa de férias no campo, para os fins-de-semana, vocês vão levar uma bela vida juntos, com muitas oportunidades para viajar.
Resmunguei e puxei um velho panamá que pertencera ao comandante Lane para cima do olho direito, o tal que estava raiado de sangue. E que tinha até agora passado desapercebido a Vita.
- Não penses que me estou a querer meter nisso disse ele, baixando a voz -, mas bem sabes como as mulheres falam. A Vita tem andado preocupada contigo. Contou à Diana que te tens mostrado frio em relação à ideia de irem para os Estados Unidos e que ela não consegue perceber porquê. As mulheres pensam sempre o
pior. - Lançou-se então numa longa e, a meu ver, exagerada história acerca de uma rapariga que conhecera em Madrid quando a Diana se encontrava com os pais dela nas Bahamas. - Não tinha mais de dezanove anoscontou. - Andava maluco por ela. Mas claro que ambos sabíamos que aquilo não poderia durar. Ela tinha um emprego na embaixada de lá e a Diana deveria vir para Londres logo que terminassem as férias. Estava tão louco por essa miúda que tive vontade de cortar o pescoço quando nos despedimos. Contudo, sobrevivi e ela também, e desde essa altura que não a vejo.
Acendi um cigarro, para servir de contraponto às nuvens que ele soltava do charuto.
- Se estás convencido que eu tenho uma miúda ali ao dobrar da esquina, não podias estar mais enganado.
- Bem, óptimo - disse ele-, mesmo óptimo. Não te culparia se tivesses, desde que o ocultasses da Vita. Verificou-se uma longa pausa, enquanto ele procurava, ao que suponho, pensar em outra táctica, mas deve ter decidido que a discrição era a melhor política, porque continuou abruptamente a falar:
- Esses moços não disseram qualquer coisa sobre quererem ir nadar?
Fomos à procura das esposas. A conversa parecia prosseguir a todo o vapor. Diana era uma dessas loiras demasiado maduras, de quem se diz serem muitíssimo divertidas numa festa e umas tigresas em casa. Não tinha quaisquer desejos de a experimentar sob nenhum desses aspectos. Vita dizia-me que era a mais leal das suas amigas e eu acreditava-a. A conversa cessou assim que aparecemos e Diana meteu a segunda velocidade, hábito invariável que ela tinha quando se aproximava companhia masculina.
- Estás muito bronzeado, Dick. Fica-te bem. O Bill põe-se vermelho como uma lagosta ao primeiro toque do sol.
- É do ar do mar - esclareci. - Não é um bron zeado sintético como o teu.
Ela tinha um frasco de bronzeador a seu lado, com o qual tinha estado a untar as pernas, brancas como lírios.
- Vamos à praia nadar - disse Bill. - Põe-te em pé, cara de lua cheia, far-te-á perder um bocado dessa gordura supérflua.
Seguiu-se a usual troca de palavras, diálogo de pessoas casadas face aos seus semelhantes. Os amantes nunca necessitavam daquilo, pensei; o seu jogo era em silêncio e, em consequência, mais delicioso.
Transportando toalhas e máscaras de mergulhar, percorremos o longo caminho até à praia. A maré estava vasa e, para penetrar na água, quem tencionasse nadar teria de abrir caminho por entre algas e placas de rocha desniveladas. Era uma experiência nova para os nossos hóspedes, mas aceitaram-na bem, espadanando por ali como golfinhos em águas rasas, comprovando a minha máxima favorita que diz que é sempre mais fácil entreter pessoas, ainda que involuntariamente, fora de portas.
A noite que se aproximava seria o autêntico teste de hospitalidade e assim sucedeu. Bill tinha trazido a sua própria garrafa de bourbon (uma oferta) e eu fui ao frigorífico buscar gelo para que o pudesse beber on the rocks. O vinho encorpado que tínhamos bebido ao jantar, com o bourbon, fez uma mistura demasiado rica e, com a máquina de lavar a ronronar na cozinha, cambaleámos para a sala de música a seguir à refeição, em bastante mau estado. Não precisava de me preocupar como olho raiado de sangue. Os do Bill davam a impressão de terem sido picados por abelhas, enquanto as nossas mu lheres exibiam o tom corado das empregadas de bar mal afamados para marujos.
 Dirigi-me ao gira-discos e pus um monte deles no
 prato. A selecção não interessava, uma vez que o som se
destinava a manter o grupo em silêncio. Vita em geral
 bebia com moderação, mas, com um copinho a mais,
causava-me embaraço. A voz subia-Lhe para um tom estridente ou, em alternativa, descia para um aveludado de
seda. Naquele dia a doçura destinava-se ao Bill, que, nada contrariado, se balançava a seu lado num dos sofás,
enquanto Diana, dando uma palmada no lugar vazio que
havia a seu lado no outro, me puxou para ele com um
sorriso pleno de
significado. Apercebi-me com desprazer que aquelas manobras
tinham sido combinadas com antecedência pelas duas
mulheres e que estávamos destinados a uma dessas pavorosas noites de troca de parceiros, não com intenções de
se chegar às últimas consequências, mas numa preliminar
tentativa, como o erguer do pano antes de uma peça em
dois actos. Nada me poderia aborrecer mais. A única
coisa que desejava era ir para a cama e, por amor de
Deus, ficar sozinho.
- Fala comigo, Dick - disse-me Diana, tão perto
que tive de pôr a cabeça de lado, como o boneco de um
ventríloquo. - Quero saber tudo sobre esse teu brilhante professor Lane.
- Uma narrativa pormenorizada da sua obra? - perguntei. - Saiu um artigo muito informativo sobre ela no
the Jornal de Bioquimica, há uns anos atrás. Talvez até tenha
um exemplar no apartamento de Londres. Devias lê-lo
um destes dias.
- Não sejas idiota. Sabes muito bem que eu não entenderia uma única palavra. O que quero saber é o género de homem que ele é. Quais são os seus passatempos,
quem são os seus amigos?
Passatempos... reflecti na palavra. Evocava a visão de
um indivíduo antiquado e de espírito ausente, à caça
de borboletas.
- Não me parece que ele tenha passatempos - disse-Lhe -, para além do seu trabalho. Gosta de música, em particular música religiosa, canto gregoriano e cantochão.
- É isso que vocês os dois têm em comum, o gosto pela música?
- Começou dessa forma. Aconteceu termo-nos encontrado uma noite na mesma igreja no King's College durante uma cerimónia de Natal.
Na realidade nós não tínhamos ido lá para ouvir música de Natal, mas sim para observarmos um determinado menino do coro, que tinha uma auréola de cabelo dourado fazendo-o parecer-se com Samuel em criança. Mas, ainda que o nosso encontro tivesse sido casual, fora o primeiro de muitos. Não que as minhas preferências se inclinassem para meninos de coro, mas a combinação da completa inocência com o Adeste Fidelis' com um halo de caracóis era esteticamente tão agradável para os nossos vinte anos de idade que nos sentimos, devido a ela, extasiados durante vários dias.
- O Teddy disse-me que há um compartimento fechado à chave na cave cá de casa, cheio de cabeças de macacos - prosseguiu ela. - Que deliciosamente arrepiante!
- Uma única cabeça de macaco, para ser exacto repliquei -, e um certo número de outros espécimes metidos em frascos. Muitíssimo tóxicos e que não devem ser manuseados.
- Estás a ouvir isto, Bill? - indagou Vita no sofá oposto. Reparei, com aversão, que ele pusera o braço em torno dela e que a minha mulher encostara a cabeça no ombro do nosso amigo. - Esta casa está construída sobre dinamite. Um movimento em falso e vamos pelos ares fora.
' Adeste Fidelis (Erguei-vos Fiéis): canto natalício da liturgia (N. do T. )
- Qualquer movimento? - inquiriu Bill, com um
ofensivo piscar de olhos para mim. - E que sucede se
nos aproximarmos mais um bocadinho? Se a dinamite
nos mandar aos dois para o andar de cima, cá por mim
está tudo bem, mas será melhor pedir primeiro autorização ao Dick.
 - Esse fica aqui muito quietinho - disse Diana - e,
se a cabeça de macaco explodir mesmo, vocês os dois
podem ir pelos ares, que nós cairemos lá para baixo.
Dessa forma todos nos sentiremos felizes, mas em mundos diferentes. Não é assim, Dick?
- Oh, em absoluto - concordei. - E, em qualquer
dos casos, eu já estou farto deste mundo em particular.
Portanto, se vocês os três se quiserem amontoar como
um só móvel, avancem e divirtam-se. Resta um quarto
de garrafa de bourbon e é todo vosso. Eu vou para a
cama.
Pus-me em pé e saí da sala. Agora já desfizera o
quarteto que se iria automaticamente desfazer e eles três
ficariam ali sentados cerca de uma hora mais a discutirem com solenidade as várias facetas do meu carácter,
como eu me modificara ou não me modificara, o que
poderiam fazer comigo, que é que o futuro me reservava.
Despi-me, meti a cabeça debaixo de água fria, corri
as cortinas da janela, saltei para a cama e caí de imediato no sono.
Foi a lua que me despertou. Penetrava por uma frincha entre os cortinados que Vita havia fechado, projec tando-me um fio de luz na almofada. Ela encontrava-se
estendida no seu lado da cama, a ressonar, coisa que era
raro fazer, e tinha a boca aberta. Devia ter sido o último
quarto de bourbon. Olhei de relance o meu relógio:
eram três e meia. Saí da cama, atravessei o quarto e enfiei uns jeans e uma camisola.
Parei ao cimo das escadas, a escutar à porta do quarto
de hóspedes. Nem um som. Silêncio também ao longo do corredor que dava para o quarto dos miúdos. Desci as escadas, percorri o corredor até às traseiras e à cave, e dirigi-me ao laboratório. Estava perfeitamente sóbrio, calmo e controlado, nem exaltado nem deprimido. Nunca me sentira tão normal na vida. Tinha decidido fazer uma viagem... e pronto. Servi quatro doses para o frasco de bolso, tirei o carro da garagem, descendo a encosta da colina para o vale de Treesmill, estacionei o veículo e encaminhei-me para o Gratten. A Lua estava brilhante e, quando empalidecesse a oeste do céu, a aurora chegaria. Se o tempo me pregasse uma partida e a viagem durasse até à hora do pequeno- almoço, que importava? Regressaria quando estivesse em condições de regressar. E a Vita mais os seus amigos que aguentassem.
Em semelhante noite... um encontro com quem? O mundo de hoje dormia e o meu mundo ainda não tinha despertado, pelo menos por enquanto, antes de a droga se apoderar de mim. Tywardreath era uma aldeia fantasma quando a contornei, mas, no meu tempo secreto, eu sabia que atravessava o relvado e o priorado erguia-se conspícuo, ainda que solitário, por detrás de muros de pedra. Percorri devagar a estrada de Treesmill, quando o luar inundava o vale e refulgia no metal das persianas cinzentas da quinta do outro lado. Estacionei o carro próximo do fosso e saltei por cima do portão para o campo. Depois abri caminho para a cova que sabia ser o sítio do salão original e, na escuridão, junto dum tronco de árvore situado no meio dum quadrado de luar, engoli o conteúdo do frasco. Nada sucedeu ao princípio, excepto um zumbido que me soava nos ouvi dos e não tinha sentido até então. Encostei-me à elevação do terreno e aguardei.
Alguma coisa se moveu, talvez um coelho e o zumbido aumentou. Um pedaço de ferro corroído estalou atrás de mim e tombou. O zumbido energizou-se e passou a pertencer ao próprio mundo que me rodeava, transformando-se o som interno num matraquear na estrutura do grande salão e no rugir do vento lá fora. A chuva caía a cântaros dum céu cinzento, acertando oblíqua nos painéis de vidro e, avançando, espreitei para o exterior e vi as águas no estuário lá em baixo turbulentas e altas, vagas encrespadas a correrem com a maré. Todas as árvores das encostas do outro lado se curvavam em sintonia, as folhas outonais a soltarem-se com a força da ventania e um bando de estorninhos que voava para norte formou uma clamorosa massa e depois desapareceu. Eu não estava só. Roger encontrava-se a meu lado, também a espreitar para o riacho, de rosto preocupado e, quando uma rajada de vento mais forte matraqueou a janela, fechou-lhe com mais firmeza o caixilho, abanando a cabeça e murmurando: Deus queira que ele não se aventure a vir cá com um tempo destes! "
Olhei em volta, vendo que um reposteiro fora instalado a meio do salão, dividindo-o em duas partes, e escutei vozes que vinham do outro lado. Segui Roger, que atravessou o salão e correu o reposteiro. Pensei por um momento que o tempo me tinha pregado mais outra partida, transportando-me para uma época do passado que já havia testemunhado, porque se via um leito de estrado encostado a uma parede, onde alguém jazia, Joanna Champernoune sentada a seus pés e o monge Jean de pé perto do travesseiro. Mas, ao aproximar-me mais, notei que o homem doente não era o seu marido, mas sim o homónimo dele, Henry Bodrugan, o filho mais velho de Otto e sobrinho de Joanna e que, um pouco afastado e de lenço a cobrir-lhe a boca, estava presente Sir John Carminowe. O jovem, evidentemente com elevada temperatura, insistia em tentar levantar-se chamando pelo pai, enquanto o monge lhe enxugava o suor da fronte e procurava acalmá-lo e voltar a deitá-lo no travesseiro.
- É impossível deixá-lo aqui, com os criados em Trelawn e sem alguém que cuide dele - disse Joanna.
- E ainda que tentássemos levá-lo para lá, não seria possível antes do anoitecer com semelhante temporal. Enquanto o poderíamos ter sob o nosso tecto em Bockenod, dentro de uma hora.
- Não me atrevo a correr esse risco - declarou Sir John. - Se se verificar que é varíola como o monge receia que seja, ninguém da minha família a teve ainda. Não há outra solução que não seja deixá-lo aqui, aos cuidados do Roger.
Olhou com apreensão para o administrador, por cima do lenço e eu pensei que triste figura não estava ele a fazer perante Joanna, mostrando tanto medo de apanhar ele próprio a doença. Longe estava o pavão seguro de si que eu vira na recepção ao bispo. Aumentara de peso e o cabelo começara a ficar-lhe grisalho. Roger, respeitoso como sempre perante os seus amos, inclinou a cabeça, mas reparei-lhe num brilho de desdém nos olhos baixos.
- Terei muito gosto em fazer tudo o que a minha senhora ordenar - disse. - Já tive varíola em criança, o meu pai morreu dela. O sobrinho da minha senhora é jovem e forte, há-de recuperar. E nem sequer temos ainda a certeza de ser essa doença. Muitos febrões principiam da mesma maneira. Pode ser que, dentro de vinte e quatro horas, volte a ser de novo a mesma pessoa.
Joanna ergueu-se da cadeira e aproximou-se da cama. Continuava a usar touca de viúva e recordei-me da nota garatujada pelo estudante sobre o Registo Público de Patentes, datado de Outubro de 1331: Licença para Joanna esposa do falecido Henry de Champernoune casar com quem queira e que preste vassalagem ao rei. " Se Sir John continuava a gozar das suas preferências, então o casamento ainda não tinha tido lugar...
- Apenas podemos ter esperanças - disse ela devagar -, mas sou da opinião do monge. Também já tive varíola. Igualmente na infância e Otto tal como eu. Se fosse possível mandar uma mensagem a Bodrugan, o próprio Otto o viria buscar para o levar para casa. - Virou-se para Roger. - Como está a maré? - perguntou.
- O vau encontra-se coberto?
- Há já mais de uma hora estava coberto, minha senhora - respondeu - e a maré continua alta. Não há possibilidade de se atravessar o curso de água antes de a maré baixar, senão eu já teria ido a cavalo até Bodrugan, para informar Sir Otto.
- Então não há nada a fazer senão deixar o Henry aos teus cuidados - concluiu ela -, apesar da falta de criados nesta casa. - Dirigiu-se a Sir John: - Irei ter contigo a Bockenod e seguirei para Trelawn ao nascer do dia, para avisar a Margaret. Ela é que deveria encontrar-se à cabeceira do filho.
O monge, a despeito da sua preocupação pelo jovem Henry, tinha escutado cada palavra.
- Há outro caminho que poderemos seguir, minha senhora - interveio. - O quarto de hóspedes do priorado está vago e nem eu nem os meus irmãos receamos a varíola. Henry Bodrugan ficaria melhor sob o nosso tecto do que aqui e poderia encarregar-me pessoalmente de o vigiar dia e noite.
Vi a expressão de alívio que acudiu ao rosto de Sir John e também ao de Joanna. Acontecesse o que acontecesse, ficariam livres de responsabilidades.
- Devíamos ter tomado essa decisão mais cedo - disse ela -, assim já há horas que poderíamos estar todos a caminho, antes desta tempestade. Que achas, John? Não te parece que não temos outro remédio?
-Dá-me a impressão que sim - redarguiu ele apressado -, isto é, se o administrador puder tomar providências para a deslocação para o priorado. Não nos atrevemos a levá-lo na nossa carruagem, com receio de contágio.
- Contágio de quem? - riu-se Joanna. - Referes-te a ti mesmo? De certeza que poderás ir a cavalo como escolta, com o lenço por cima da cara, como agora o tens. Vamos, já estamos muito atrasados.
Tomada a decisão, ela não teve mais qualquer pensamento para o sobrinho, dirigindo-se à porta do grande salão escoltada por Sir John, que a escancarou, apenas para recuar diante da força da ventania.
- Farias muito melhor se viajasses confortável a meu lado - observou com ironia a mulher -, apesar do estado desse rapaz, em vez de suportares o vento nas costas quando atingirmos as terras altas.
- Não receio por mim mesmo - começou ele a contrapor e depois, vendo o administrador muito próximo de si, acrescentou: - Como sabes, a minha mulher tem uma saúde delicada e os meus filhos também. O risco seria demasiado grande.
- Demasiado grande de facto, Sir John. O senhor só demonstra ser prudente.
Prudência uma ova, pensei eu, e Roger também, a julgar pela sua expressão e pela de Joanna.
A pesada carruagem encontrava-se estacionada do lado de fora do portão exterior e, atravessando o pátio sob o vento fustigante, escoltámos a viúva enquanto Sir John montava a cavalo. Depois voltámos mais uma vez ao salão. O monge estava a empilhar cobertores por cima do semiconsciente Henry.
- Estão prontos e à espera - informou Roger. - Entre os dois, poderemos transportar o colchão. Agora que estamos a sós, que esperanças tens de ele recuperar?
O monge encolheu os ombros.
- Como tu mesmo já disseste, é jovem e forte, mas já vi fracalhotes sobreviverem e fortalhaços morrerem. Ele que fique no priorado sob os meus cuidados; tratarei de experimentar certos remédios.
- Tem cuidado com o que fazes neste caso - acon selhou Roger. - Se falhares, terás de responder perante o pai dele e, nessas circunstâncias, nem o próprio prior te protegerá.
O monge sorriu.
- Segundo me parece, Sir Otto Bodrugan terá dificuldade em se proteger a si mesmo - respondeu. - Sabias que Sir Oliver Carminowe ficou em Bockenod ontem à noite e partiu à alvorada, sem dizer a nenhum dos seus servos o destino que ia tomar? Se cavalgou em segredo ao longo da costa, só pode ter sido para uma única coisa: procurar o amante da mulher e destruí-lo.
- Ele que experimente - zombou Roger. - O Bodrugan é melhor esgrimista.
De novo o monge encolheu os ombros.
- Talvez - admitiu -, mas Oliver Carminowe serve-se de outros processos quando defronta os seus inimigos na Escócia. Não daria grande coisa pelas hipóteses de Bodrugan, se for apanhado numa emboscada.
O administrador fez-lhe sinal para se calar, uma vez que o jovem Henry abrira os olhos.
- Onde está o meu pai? - perguntou ele. - Para onde me vão levar?
- O seu pai está em casa, senhor - respondeu Roger. - Vamos mandá-lo chamar e virá pela manhã. Esta noite deverá descansar no priorado, ao cuidado do irmão Jean. Depois, se se sentir mais forte e o seu pai assim o decidir, poderá ser levado ou para Bodrugan ou para Trelawn.
O jovem olhou de um para o outro, desorientado.
- Não desejo ficar no priorado - declarou. - Preferia ir para casa esta noite.
- Não é possível, senhor - contrariou Roger com gentileza. - Sopra uma grande ventania e os cavalos não poderão ir muito longe. A minha senhora está à sua espera na carruagem e conduzi-lo-á ao priorado. Estará lá em segurança na cama do quarto de hóspedes dentro de meia hora.
Transportaram-no sobre o colchão ainda em protestos débeis, atravessando o salão e o pátio na direcção do veículo que os aguardava e estenderam-no aos pés da tia. Depois o monge subiu para a carruagem, postando-se a seu lado. Joanna olhou para o administrador pela janela aberta. O véu voara-lhe do rosto e reparei como as suas feições se haviam tornado rudes, desde que a vira pela última vez. Tinha a boca frouxa e viam-se-lhe bolsas sob os olhos cheios.
Inclinou-se para a janela, a fim de que o sobrinho a não pudesse ouvir.
- Tem havido boatos - disse baixinho - sobre possíveis problemas entre Sir Oliver e o meu irmão. Não te sei dizer se Sir Oliver se encontra ou não nas redondezas. Mas essa é uma das razões por que pretendo estar longe daqui e muito depressa.
- Como queira, minha senhora - respondeu o administrador.
- Nem Sir John nem eu pretendemos envolver-nos nessa disputa - continuou ela a dizer. - A questão não nos diz respeito. Se chegarem a vias de facto, o meu irmão pode muito bem tomar conta de si. As instruções estritas que te dou são para que não tomes partido por nenhum, mas que te ocupes única e exclusivamente dos meus interesses. Compreendido?
- Perfeitamente, minha senhora.
Ela fez um curto aceno de cabeça, voltando depois a sua atenção para o jovem Henry, a seus pés. Roger fez sinal ao cocheiro e o pesado veículo iniciou o percurso pela estrada enlameada acima na direcção do priorado, seguido por Sir John a cavalo, com um lacaio, ambos os cavaleiros muito inclinados nas selas, fustigados pelo vento e pela chuva. Logo que atingiram o topo da elevação de terreno e desapareceram, Roger encaminhou-se, rápido, para a arcada, penetrando no estábulo e chamando por Robbie. O irmão surgiu de imediato, conduzindo um pónei, a madeixa de cabelo desgrenhado a cair-lhe sobre a cara.
- Cavalga como o demónio até Tregest - ordenou-lhe Roger - e avisa Lady Isolda para se manter dentro de casa. Bodrugan devia ter vindo para aqui de barco esta noite, mas nunca se aventurará com esta ventania. Quer Sir Oliver esteja com ela ou não (do que eu duvido) é preciso que receba impreterivelmente o meu recado.
O rapaz saltou para o dorso do pónei e partiu, cortando pelo meio dos campos na direcção leste, do nosso lado do vale, e recordei-me de Roger ter dito que o vau estava impassável por causa das marés. Teria de atravessar o riacho mais alto, vale acima, se é que o lugar chamado Tregest ficava na outra margem. O nome não me fazia lembrar nada. Sabia que não figurava nenhum Tregest nos mapas da minha época.
Roger abriu caminho pelo pátio e entrou no portão da parede que dava para a encosta sobranceira ao riacho. Nesse ponto, a força do vento quase o arrancava do chão, mas prosseguiu pela colina abaixo até ao rio, sob a forte chuvada, tomando a vereda que conduzia às docas ao fundo. Ostentava uma expressão ansiosa, até mesmo desvairada, bastante diversa do seu habitual ar de contenção e, enquanto caminhava, ou melhor, enquanto corria, olhava sempre a boca do rio no ponto em que este penetrava no amplo estuário de Par. A sensação de mau agouro, que me assolara quando regressara da minha expedição ao outro lado da baía, estava de novo comigo e pareceu-me que com ele também, colhendo a impressão de que partilhávamos ambos um laço comum constituído por ansiedade e medo.
Ficámos algo abrigados ao atingirmos o cais, por causa da colina que se erguia atrás de nós, mas o rio estava em torvelinho, com ondas curtas e íngremes transportando nas respectivas cristas toda a espécie de detritos do Outono, ramos flutuantes, troncos e algas que, ao serem arrastados na direcção do cais ou ao passarem a meio do canal, eram sobrevoados por uma multidão de gaivotas gritantes, esforçando-se, de asas estendidas, por aguentar o vento.
Devemos ter visto a embarcação ao mesmo tempo, ambos de olhos virados para o mar, mas não se tratava da garbosa nave que eu admirara ancorada numa tarde de Verão. Hesitava como se estivesse embriagada, de mastro partido, as vergas pendentes a meio do convés e as velas envolvendo-as como mortalhas. Também devia ter perdido o leme, porque estava sem controlo, à mercê tanto do vento como da corrente, que a impeliam para a frente, mas de lado, a proa voltada para os bancos de areia onde as vagas se quebravam mais curtas. Não conseguia ver quantas pessoas se encontravam a bordo, mas eram pelo menos três e estavam a esforçar-se por lançar do convés um barquinho, que foi apanhado na baralhada do velame e das vergas caídas. Roger pôs as mãos em concha à volta da boca e gritou, mas eles não o conseguiram ouvir por causa do vento. Saltou para a muralha do cais e agitou os braços e um dos que se encontravam a bordo (deve ter sido Otto Bodrugan) viu-o e correspondeu-lhe aos acenos, apontando para a praia oposta.
- Deste lado do canal - gritava Roger -, deste lado do canal -, mas a sua voz perdia-se no vendaval. Eles não o estavam a ouvir, porque insistiam em lançar o bote ao mar.
Sem dúvida que Bodrugan conhecia o canal muito bem e, se conseguissem lançar à água a embarcação mais pequena, poucas dificuldades teriam em chegar a terra, apesar das ondas curtas que se quebravam nos bancos de areia de ambos os lados. Não era como em mar aberto, perigoso com rochedos e ainda que o rio fosse mais largo no ponto onde vogavam, o barco apenas poderia, na pior das hipóteses, encalhar e fazê-los aguardar a maré rasa.
Depois vi o motivo dos receios de Roger e porque é que ele tentava atrair as atenções de Bodrugan e dos seus marinheiros para o cais. Uma linha de cavaleiros progredia na colina do outro lado, talvez uma dúzia deles em fila indiana. Por causa dos contornos do terreno, os homens que se encontravam a bordo não davam pela presença dos outros, já que os maciços de árvores os ocultavam à vista do barco.
Roger continuava a gritar e a acenar, mas os da embarcação tomaram aquilo como encorajamento para que fossem bem sucedidos no lançamento do bote e retribuíram da mesma maneira. Então, enquanto a nave vogava canal acima, conseguiram baixar o bote por cima da borda, saltando todos três para dentro dele um momento depois. Tinham uma amarra presa à proa do barco maior e ao casco do mais pequeno e, enquanto dois dos homens se agarravam aos remos e faziam força na direcção da praia, o terceiro, Bodrugan, agachou-se segurando com firmeza a amarra, numa tentativa de virar a embarcação na mesma direcção que eles.
Estavam demasiado concentrados na sua tarefa para prestarem mais atenção a Roger e, à medida que se aproximavam devagar da praia do lado oposto, vi os cavaleiros da colina desmontarem junto da cintura de árvores. Aproveitando a cobertura, rastejaram encosta abaixo na direcção do ribeiro, onde a terra mergulhava de súbito para a borda de água, formando uma faixa de areia. Roger gritou pela última vez, acenando com os braços em desespero e, esquecendo-me do meu estatuto de fantasma, fiz o mesmo, sem som, um aliado mais destituído de poderes do que qualquer espectador num jogo de futebol a aplaudir a equipa que estivesse a perder e, à medida que o barquinho se aproximava mais da praia, também os seus inimigos o faziam, enquadrados pela cintura de árvores e cada vez mais perto da faixa de areia.
De repente, a amarra partiu-se enquanto o barco maior corria a encalhar-se e Bodrugan, vacilante, tombou em cima dos seus homens, fazendo balançar o bote e projectando todos três para a água. Já se encontravam tão perto da margem oposta que o rio não tinha grande profundidade no ponto onde mergulharam e Bodrugan foi o primeiro a pôr-se em pé, com água pelo peito, enquanto os outros flutuavam a seu lado. Otto correspondeu ao aviso final de Roger com um grito de triunfo.
Foi o último que soltou. O bando de homens caiu sobre ele e os companheiros, antes que tivessem tempo de virar as cabeças ou defenderem-se, uma dúzia contra três e, antes que a forte chuvada que se abatia sobre todos mais intensa que nunca os ocultasse da minha vista, vi com repulsa que, em vez de arrastarem as suas vítimas para a faixa de areia para acabarem com elas pela espada ou pelo punhal, as estavam a mergulhar de cara para baixo nas águas. Um já estava imóvel, o outro debatia-se, mas foram precisos oito homens para segurar Bodrugan. Roger principiou a correr ao longo da margem do rio na direcção do moinho, praguejando, arquejando, e eu sabia que seria inútil, que estávamos a correr em vão porque, muito antes que pudéssemos obter ajuda, tudo estaria terminado.
Atingimos o vau abaixo do moinho e, como já antes ele dissera a Joanna, as águas corriam naquele ponto rápidas e muito fundas, quase alcançando a própria porta da forja. Mais uma vez Roger levou as mãos à boca.
- Rob Rosgof - bradou -, Rob Rosgof - e a apavorada figura do ferreiro surgiu à porta, com a mulher a seu lado.
Roger apontou a parte de baixo da correnteza, mas o homem gesticulou com ambas as mãos numa negativa, abanando a cabeça, apontando depois com o polegar para a colina sobranceira, sugerindo aquele jogo sem palavras que soubera da emboscada e nada podia fazer. Arrastou a mulher consigo para dentro da forja e trancou a porta:
Roger virou-se em desespero para o moinho e os três
monges que lá vira no domingo de manhã quando as filhas de Isolda atravessaram o vau vieram ao encontro
dele no pátio.
 Bodrugan e os seus homens foram arrastados para
a praia - gritava-lhes Roger. - O barco deles encalhou
e esperava-os uma emboscada para os destruir. Estão
mortos, todos três, contra uma dúzia de homens bem
armados.
Não sei dizer o que se lhe notava com maior clareza
no rosto, se a cólera, se a pena, se a incapacidade para os
auxiliar.
- Onde está Lady Champernoune? - perguntou
um dos monges. - E Sir John Carminowe? Vimos a
carruagem lá em casa toda a tarde.
 - O sobrinho dela, filho de Bodrugan, está doente - respondeu Roger. - Levaram-no para o priorado e eles
mesmos encontram-se agora a caminho de Bockenod.
Mandei o Robbie a Tregest para avisar as pessoas da casa
e rezo a Deus para que nenhuma se arrisque a avançar,
senão estará a sua vida em perigo.
Ficámos ali, abaixo do pátio do moinho, hesitando
em ir e sempre esforçando-nos por ver o que se passava
do lado do rio, onde as margens se encurvavam acima
do curso de água, escondendo o barco naufragado e a
cena do assassínio na faixa arenosa.
 - Quem comandava a emboscada? - perguntou o
monge. - Bodrugan teve em tempos inimigos, mas isso
há muito pertencia ao passado, com o rei agora firme no
trono.
- Sir Oliver Carminowe, quem havia de ser? - retorquiu Roger. - Lutaram por facções opostas na rebelião
de 22e hoje ele cometeu assassínio por outras causas.
Nenhum som a não ser o do vento e o redemoinho
do ribeiro, ao correr por entre as margens estreitas, as
gaivotas a pairar à superfície aos gritos. Então um dos
monges apontou para a curva da corrente e bradou:
- Lançaram o bote, estão a subir a corrente! Não se tratava de um bote, pelo menos não de uma embarcação inteira, mas do que parecia à distância ser parte das pranchas arrancadas a um casco à deriva, pela corrente, rodando devagar ao vogar nas águas. Vinha alguma coisa amarrada às pranchas que de vez em quando balançava na superfície, desaparecendo depois, apenas para reaparecer de novo. Roger fitou os monges, eu olhei para ele e, de comum acordo, descemos a correr pela margem do ribeiro para o local onde o torvelinho levava a madeira flutuante e a espuma, as pranchas sempre para cima e para baixo com a força da maré e o ob jecto que estava amarrado a elas a erguer-se também. Depois ouviram-se gritos na margem oposta e cavaleiros surgiram de entre o arvoredo, com o chefe à frente. Desceram a estrada a galope na direcção da forja e a gritaria cessou quando se detiveram a olhar em silêncio.
Mergulhámos no rio para arrastar os madeiros para terra, os monges connosco e, enquanto o fazíamos, o chefe dos cavaleiros bradou:
- É um presente de aniversário para a minha mulher, Roger Kylmerth. Trata de que ela o receba com os meus cumprimentos e, quando se fartar dele, diz-lhe que a espero em Carminowe.
Desatou a rir e os seus homens com ele. Depois viraram as montadas para cima, subindo a encosta e afastando-se.
Roger e o primeiro monge trouxeram a madeira para a praia. Os outros benzeram-se e começaram a rezar, um deles deixou-se cair de joelhos à beira de água. Não havia em Bodrugan nenhuma facada, nenhum sinal de violência. Corria-lhe água da boca e tinha os olhos abertos. Haviam-no afogado antes de o prenderem às tábuas.
Roger desatou os pedaços de amarra e tomou-o nos braços com a água a escorrer-lhe do cabelo, levando-o para o moinho.
-Deus Misericordioso! - exclamou. - Como é
que lhe vou dizer?
Não foi necessário. Ao virarmos para o moinho,
avistámos os póneis, Robbie e Isolda, de cabelo solto
pelos ombros abaixo, molhado e corredio, a capa a esvoaçar atrás de si como uma nuvem. Robbie viu de relance o que se tinha passado e ergueu uma das mãos para agarrar as rédeas e virar o pónei para outro lado, mas
num momento já ela tinha desmontado e corria pela coho lina abaixo na nossa direcção.
- Oh, meu amor - bradava -, oh, não... oh, não...
oh, não... - a voz dela, que fora de início clara e forte,
arrastou-se até se tornar num simples gemido.
Roger pousara o seu fardo por terra, correu para a
mulher, e eu fui atrás. Quando lhe agarrámos as mãos
estendidas, escorregou-nos, caiu e, em vez de a apanhar
pela capa, vi-me a remexer em fardos de palha empilhada
contra uma choupana de chapa ondulada, do outro
 lado da estrada em relação à quinta de Treesmill.
Capi tulo catorze
Mantive-me ali quieto, à espera que me passassem as náuseas e as vertigens. Sabia que teria de suportá-las e quanto mais imóvel me conservasse mais depressa passariam. Já havia luz e tive o bom senso de consultar o relógio. Eram cinco e vinte. Se concedesse a mim mesmo um quarto de hora sem me mover tudo correria bem. Ainda que as pessoas da quinta Treesmill já se estivessem a mexer, não seria provável que alguém viesse à cabana do outro lado da estrada, que ficava junto aos muros de um pomar do vale, a poucas jardas de distância da
corrente, do que restava do riacho tumultuoso.
Tinha o coração a bater com força, mas acalmou-se-me pouco a pouco e as receadas vertigens não foram tão más como na ocasião anterior em que tinha vindo a mim no Gratten e encontrado o médico no parque de
estacionamento do topo da colina.
Cinco minutos, dez, quinze... levantei-me depois com esforço e, saindo do pomar, encaminhei-me muito devagar pela colina acima. Até ao momento tudo bem. Entrei para o carro e fiquei sentado durante mais cinco
minutos, pondo depois o motor a funcionar e dirigindo-me com idênticos cuidados para Kilmarth. Tinha muito tempo para guardar o automóvel e fechar o frasco à chave no laboratório; a seguir, a coisa mais sensata a fazer seria ir direito para a cama, para tentar descansar um pouco.
Não havia mais nada a fazer, disse a mim mesmo.
Roger levaria Isolda de regresso a Tregest, fosse onde fosse, e o corpo do pobre Bodrugan ficaria em segurança aos cuidados daqueles monges. Alguém teria de ir dar a
novidade a Joanna, em Bockenod. Roger encarregar-se-ia disso, tinha a certeza. Sentia agora certa consideração, afecto até por ele, pela tão óbvia emoção perante a desanimadora morte de Bodrugan e por termos os dois partilhado o horror que dela resultou. Estivera certo ao
sentir aquele mau agouro na praia abaixo de Chapel Point, antes de velejar de regresso a Fowey com Vita e os rapazes. Vita e os rapazes...
Entrei na garagem no preciso momento em que me lembrei deles e, com tal lembrança, veio uma completa
compreensão. Conduzira para casa num mundo, com o meu cérebro ainda em outro. Conduzira de volta a casa, com uma parte do meu cérebro de todo sensibilizada para o facto de ter o volante entre as mãos e pertencer à época actual, enquanto o resto de mim continuava no passado, acreditando que Roger ia a caminho de Tregest com Isolda.
Comecei a suar por todo o lado. Mantive-me sentado imóvel no carro, de mãos trementes. Não devia voltar a acontecer. Tinha de me agarrar à minha própria existência. Os ponteiros estavam exactamente em cima das seis da manhã. Vita e os miúdos, tal como esses nossos malditos hóspedes, estavam todos a dormir lá em cima, e Roger, Isolda e Bodrugan já se encontravam mortos há mais de seis séculos. Eu encontrava-me na minha época...
Entrei pela porta das traseiras e guardei o frasco. Já o dia estava claro por aquela altura, mas a casa continuava em silêncio. Deslizei pelas escadas acima e entrei na cozinha, ligando a cafeteira eléctrica para preparar uma chávena de chá. O chá era a resposta, uma chávena a ferver. O ronronar da cafeteira era um estranho reconforto e sentei-me à mesa, a recordar de súbito quanto tínhamos bebido na noite passada. A cozinha ainda cheirava à lagosta que tínhamos comido, por isso levantei-me e fui abrir a janela.
Ia a meio da segunda chávena quando ouvi um rangido nas escadas e estava para correr para a cave e continuar
quando a porta se abriu e Bill entrou no compartimento. Vinha com um sorriso tímido.
- Olá - cumprimentou. - Dois espíritos com um único pensamento. Acordei, pensei ter ouvido um carro e senti de repente a mais tremenda sede. É chá que estás a beber?
- É. - Respondi. - Toma uma chávena. A Diana está acordada?
- Não - replicou - e, se conheço a minha mulher, também não será provável que acorde tão cedo depois duma patuscada. Apanhámos todos uma grande pedrada, não te parece? Olha lá, nada de ressentimentos, hem?
- Não, nenhum - garanti-lhe.
Servi-lhe uma chávena de chá e ele sentou-se à mesa. Parecia em mau estado e o pijama que trazia vestido, rosa- lívido, não lhe condizia com a cor de pele.
- Estás vestido - observou. - Já estás a pé há muito tempo?
- Sim - anuí. - Saí, na verdade... não conseguia dormir.
- Então foi mesmo o teu carro que ouvi a descer a estrada?
- Deve ter sido.
O chá estava a fazer-me bem, mas também a pôr-me a suar. Sentia a transpiração a correr-me pela cara.
- Pareces um bocado em baixo - comentou ele em tom crítico. - Sentes-te bem?
Tirei o lenço do bolso do casaco e enxuguei a testa. O coração começara-me de novo a galopar. Devia ter algo a ver com o chá.
- Na realidade - disse devagar, conseguindo ouvir-me a mim mesmo a articular as palavras com dificuldade, como se o chá tivesse sido uma forte dose de álcool que por instantes me houvesse feito perder o equilíbrio.
- Assisti a um crime horrível, sem que me vissem. Não consigo esquecê-lo.
Pousou a chávena e arregalou os olhos.
- Que diabo... - principiou a dizer.
- Achei que necessitava de apanhar ar - disse- lhe, falando muito depressa -, portanto peguei no carro e fui até um lugar que conheço, a cerca de três milhas daqui, perto do estuário, e vi um barco encalhar. Estourou por completo com a pancada e o tipo que vinha a bordo com a sua tripulação teve de se meter num bote. Dirigiam-se para a outra margem muito direitinhos quando aconteceu essa coisa horrenda... - Servi-me de outra chávena de chá, apesar de ter as mãos a tremer. - Esses crápulas, esses malditos patifes que estavam na outra margem... o tipo do bote não teve quaisquer hipóteses. Não o anavalharam nem nada, meteram-Lhe a cabeça à força debaixo de água e afogaram-no.
- Meu Deus! - exclamou Bill. - Meu Deus, que coisa terrível! Tens a certeza disso?
- Claro que tenho - garanti. - Vi o pobre diabo afogar-se... - Levantei-me da mesa e comecei a passear para um lado e para o outro na cozinha.
- Bom, que é que vais fazer? - perguntou ele. - Não seria melhor telefonares à Polícia?
- À Polícia? - repeti. - Isto não é trabalho para eles. No filho desse tal tipo é que estou a pensar. Está doente e alguém terá de lhe dar a notícia, bem como aos restantes parentes.
- Mas, bom Deus, Dick, é teu dever informar a Polícia! Estou a ver que não te queres envolver, mas trata-se de um homicídio, não é? E dizes tu que conheces o tipo que foi afogado e o filho dele?
Arregalei os olhos para Bill. Depois afastei a chávena de chá. Tinha acontecido, oh, doce Cristo, tinha acontecido! A confusão. A mistura entre mundos... Corria-me suor por todo o corpo.
- Não - disse-lhe eu -, não o conhecia pessoalmente. Vi-o por aí, tem um iate do outro lado da baía, ouvi umas pessoas falarem na família dele. Tens razão, eu não quero ver-me envolvido nisso. E, seja como for,
não fui a única testemunha. Havia outro fulano a ver e observou tudo. Tenho a certeza absoluta de que ele informará a Polícia... na verdade até é provável que já o tenha feito.
- Falaste com ele? - quis Bill saber.
- Não - respondi -, não, ele não me viu.
- Bem, não sei - disse Bill. - Continuo a pensar que devias telefonar à Polícia. Queres que o faça por ti?
- Não, de maneira nenhuma. E, Bill, nem uma palavra sobre isto à Diana ou à Vita. Jura-mo.
Pareceu muito perturbado.
- Compreendo-te. Iria ser um incómodo tremendo. Meu Deus, deves ter apanhado cá um choque!
- Sinto-me bem - garanti -, sinto-me bem. - Voltei a sentar-me à mesa da cozinha.
- Toma mais um pouco de chá - sugeriu.
- Não, eu não quero nada.
- Isso só o que digo sempre, Dick. O número de crimes está em firme subida em todos os países civilizados. As autoridades pura e simplesmente não conseguem ter mão na situação. Quero dizer, quem é que iria pensar que sucederia uma coisa dessas aqui, num lugar fora do mapa, na Cornualha? Um grupo de marginais, foi o que tu disseste? Fazes ideia de onde vieram? Seria gente daqui?
Abanei a cabeça.
- Não - disse eu -, não me pareceu. Não faço ideia de quem eram.
- E tens a certeza absoluta de que esse tal fulano viu e será capaz de informar a Polícia?
- Tenho, vi-o a correr. Ia directo para a quinta mais próxima. Devem ter lá telefone.
- Só espero que tenhas razão.
Ficámos sentados em silêncio por um momento. Ele continuava a suspirar, sacudindo a cabeça.
- Que experiência para ti. Que raio de experiência horrível!
Meti as mãos nos bolsos, para ele não ver que estavam a tremer.
- Olha, Bill - disse-lhe -, acho que vou lá para cima estender-me um bocado. Não quero que a Vita saiba que saí. Ou a Diana. Quero que tudo isto seja segredo absoluto entre nós os dois. Não podemos fazer nada. Procura esquecer tudo.
- OK - concordou -, não digo nada. Mas não me esquecerei do que contaste. E vou ver se ouço alguma coisa nos noticiários. A propósito, teremos de partir depois do pequeno-almoço, para apanharmos o avião em Exeter. Importas-te?
- Claro que não - respondi. - Só tenho pena de te ter estragado a manhã.
- Meu caro Dick, eu é que tenho pena de ti. Sim, eu devia ir lá para cima e tentar dormir um bocado. E olha uma coisa, não te incomodes em levantar-te para te despedires de nós. Podes muito bem alegar que estás de ressaca. - Sorriu e estendeu-me a mão. - Adorámos o dia de ontem e mil agradecimentos por tudo. Só espero que nada mais surja a estragar-vos as férias. Escrever-te-ei da Irlanda.
- Obrigado, Bill - disse eu -, muito obrigado. Subi as escadas, despi-me no quarto de vestir e depois vomitei violentamente durante uns cinco minutos no lavatório. O barulho deve ter despertado Vita, porque a ouvi chamar do quarto de dormir.
- És tu? - perguntava. - Que é que se passa?
- Todo aquele tinto encorpado com o bourbon por cima - respondi. - Desculpa, mal me posso ter em pé. Vou estender-me aqui no divã. Ainda é bastante cedo... umas seis e meia.
Fechei a porta do quarto de vestir e atirei-me para cima do divã. Regressara ao mundo de hoje, mas só Deus sabia quanto tempo me conservaria assim. Uma coisa era certa. Logo que o Bill e a Diana partissem, teria de telefonar ao Magnus.
O subconsciente é uma coisa curiosa. Estava numa profunda perturbação devida a toda aquela confusão de pensamentos que quase me levou a confessar ao Bill a verdade sobre a experiência; mas uns cinco minutos depois de me ter estendido no divã, estava a dormir e a sonhar; não, o que era estranho, com Bodrugan e a sua horrorosa sorte, mas com uma partida de críquete em Stonyhurst, durante a qual um dos membros da equipa foi atingido na cabeça por uma bolada e morreu de hemorragia do cérebro vinte e quatro horas mais tarde. Já não pensava em tal incidente pelo menos há vinte e cinco anos.
Ao despertar, logo a seguir ao soar das nove horas, senti uma lucidez perfeita e a cabeça clara, sem contar com um diabo de uma ressaca típica e o olho direito mais raiado de sangue do que nunca. Tomei banho e fiz a barba, ouvindo a agitação dos nossos hóspedes no quarto ao lado. Aguardei até os ouvir descer as escadas e depois liguei para Magnus. Não tive sorte. Não se encontrava no seu apartamento. Portanto deixei uma mensagem à secretária, na Universidade, dizendo que precisava de falar com ele mais do que ele comigo. Depois enfiei a cabeça pela janela do quarto de vestir que dava para o pátio e pedi ao Teddy para me trazer uma chávena de café. Apareceria no vestíbulo para desejar boa viagem aos nossos hóspedes cinco minutos antes da sua partida e nem um segundo mais cedo.
- Que é que tens no olho? Caíste ao chão, ou qualquer coisa assim? - perguntou o meu enteado mais velho quando me trouxe o café.
- Não - respondi. - Acho que foi uma rajada de vento, na segunda-feira.
- De qualquer modo levantaste-te cedo - observou. - Ouvi-te a conversar com o Bill na cozinha.
- Estava a fazer chá - expliquei. - Ambos bebemos de mais ao jantar.
- Talvez fosse o que te pôs o olho todo às riscas e não o ar do mar - disse ele, parecendo-se tanto com a mãe em alturas de maior perspicácia que eu virei a cara para o lado, lembrando-me depois que o seu quarto ficava por cima da cozinha e que era possível que tivesse ouvido a nossa conversa.
- Afinal de que é que nós estávamos a falar? - perguntei-lhe antes que saísse do quarto de vestir.
- Como é que eu poderia saber? - replicou. - Achas que levantei as tábuas do sobrado para escutar?
Ele não, reflecti, mas a mãe era capaz de o fazer, se se desse conta de que estava a travar-se uma discussão entre o marido e o hóspede, às seis da manhã.
Acabei de me vestir, bebi o café e apareci no cimo das escadas na hora exacta para ajudar o Bill a levar as malas para baixo. Cumprimentou-me com ar interrogativo e de conspiração (as mulheres encontravam-se lá em baixo no vestíbulo) e murmurou:
- Dormiste alguma coisa?
- Sim, sim - respondi -, estou óptimo. - Vi-o a observar-me o olho. - Já sei. Não há explicação. Deve ter sido do bourbon. A propósito - acrescentei -, o Teddy ouviu-nos a conversar esta manhã.
- Bem sei - declarou -, ouvi-o contar à Vita. Tudo bem. Não te preocupes. - Deu-me uma palmada no ombro e descemos as escadas.
- Deus do Céu! - exclamou Vita. - Que é que fizeste ao olho?
- Alergia a bourbon, combinado com mariscos. Esclareci. - Há pessoas a quem isso sucede.
As duas mulheres fizeram questão de me examinar, sugerindo alternativas à penicilina.
- Não pode ter sido do bourbon - afirmou Diana. - Não quero ser intrometida, mas reparei ontem logo que chegámos. E disse para mim mesma: Que diabo
terá o Dick feito ao olho?
- Não me falaste nisso? - acusou Vita.
Era de mais. Pus uma mão nos ombros de cada um
deles e empurrei-os em direcção ao alpendre.
- Nenhum de vocês está em condições de ganhar
um prémio de beleza esta manhã - disse-lhes -, e não
foi o bourbon que me acordou de madrugada, mas sim a
Vita a ressonar. Portanto, calem a boca.
Tivemos de nos instalar nos degraus, para a inevitável sessão de fotografias de Bill e só cerca das dez e meia
é que eles arrancaram por fim. Mais uma vez o seu aperto de mão me pareceu o de um conspirador.
- Oxalá tenhamos bom tempo como este na Irlanda - disse. - Vou ler os jornais e ouvir os noticiários,
para saber o que se passa por cá na Cornualha. - Fitou-me, com aceno imperceptível. Queria dizer que ia
pôr olhos e ouvidos alerta a qualquer referência a um
crime infame.
- Manda-nos postais - pediu Vita. - Bem gostava
de ir convosco.
- Estás sempre a tempo - disse eu -, quando te
fartares de estar aqui.
Talvez não fosse a observação mais entusiástica que
eu poderia ter feito e, assim que acabámos de acenar e
nos virámos para casa, Vita adoptou um ar abstracto.
- Acredito mesmo que ficavas satisfeito se eu e os
miúdos tivéssemos ido com eles. Então disporias disto
tudo só para ti.
- Não digas disparates.
- Bem, tu deste a entender muito claramente o que
pensavas na noite passada, voando logo para a cama, assim que terminou o jantar.
- Voei para a cama, como tu dizes, porque me chateou ver-te embalada nos braços do Bill e a Diana à espera de fazer o mesmo comigo. Pura e simplesmente, não sirvo para essas brincadeiras e já devias sabê-lo.
- Brincadeiras! - riu-se ela. - Que grande disparate! Bill e Diana são os meus mais velhos amigos. Onde é que está o teu tão gabado senso de humor britânico?
- Não sintonizado com o teu - retorqui. - Tenho um sentido muito mais grosseiro de diversão. Se te puxasse um tapete debaixo dos pés e tu escorregasses, ficarias histérico de riso.
Voltámos para dentro de casa e, nesse preciso momento, o telefone tocou. Entrei na biblioteca para o atender e Vita seguiu-me. Receava que fosse Magnus e era mesmo.
- Sim? - disse-lhe em tom reservado.
- Recebi o teu recado - respondeu-me ele -, mas tenho um dia muito cheio. A ocasião é má?
- Pois é - disse eu.
- Quer dizer que a Vita está aí na sala?
- Sim.
- Estou a compreender. Podes responder só sim ou não. Aconteceu alguma coisa?
- Bem, tivemos visitas. Chegaram ontem e acabam de partir.
Vita estava a acender um cigarro.
- Se é o teu professor, e não me ocorre quem mais poderia ser, dá-lhe os meus cumprimentos.
- Fá-lo-ei. A Vita manda-te cumprimentos - co muniquei a Magnus.
- Retribui-lhos. Pergunta-lhe se haveria inconveniente em que eu fosse aí passar o fim-de-semana, e chegasse na sexta-feira à tarde.
O coração deu-me um salto. Se foi de entusiasmo ou antes pelo contrário, não sei dizer. Em qualquer dos casos, foi de alívio. Ele encarregar-se-ia de tudo.
- O Magnus quer saber se pode vir para cá na
sexta-feira, passar o fim-de-semana - perguntei à minha
mulher.
- Claro - concordou. - Afinal a casa é dele. Sentir-te-ás mais satisfeito passando o tempo com o teu
amigo do que te mostraste com os meus.
- A Vita diz que pois claro" - repeti a Magnus.
- Esplêndido. Informar-te-ei depois sobre a chegada do comboio. Quanto à tua chamada urgente, relaciona-se com o outro mundo?
- Sim.
- Fizeste uma viagem?
- Sim.
- Com maus resultados?
Fiz uma pausa breve, olhando Vita de relance. Não
fazia qualquer menção de sair da sala.
- Na verdade sinto-me bastante mal - informei.
- Foi qualquer coisa que comi ou bebi e me caiu mal.
Tive um enjoo violento e ando com um olho curiosamente raiado de sangue. Deve ter sido de ter bebido
bourbon com lagosta.
- Isso combinado com o facto de teres uma viagem... és capaz de ter razão - retorquiu. - E à confusão?
-Também. Custava-me até a pensar direito ao
acordar.
- Estou a ver. Alguém reparou?
Lancei outra olhadela a Vita.
- Bem, estávamos todos bastante animados ontem à
noite - disse -, por isso os machos do grupo acordaram cedo. Passei por um pesadelo muito vívido e contei-o
ao amigo da Vita, o Bill, esta manhã, diante de uma chávena de chá.
- Até que ponto é que lhe contaste?
- Acerca do pesadelo? Só isso. Era bastante real, sabes como são os pesadelos. Pareceu-me ver alguém ser
agarrado por uns criminosos e ser afogado.
- Foi muito bem feito - comentou Vita. - E está mais de acordo com as duas vezes que te serviste de lagosta do que com o bourbon.
- Foi um dos nossos amigos? - quis Magnus saber.
- Foi - respondi. - Lembras-te daquele tipo que tinha um barco, aqui há uns anos, lá para Chapel Point, e que costumava ir velejar para os lados de Par? Bem, o pesadelo passou-se com ele. Sonhei que o barco dele perdeu os mastros durante uma tempestade e que, quando conseguiu atingir a costa, foi assassinado por um marido ciumento que pensava que ele andava atrás da mulher.
Vita soltou uma gargalhada.
- Se queres a minha opinião - interveio -, um sonho desse género significa consciência intranquila. Pensaste que eu me estava a fazer com o Bill e o teu pesadelo vívido vem daí. Dá cá, deixa-me falar com o teu professor. - Atravessou a sala e tirou-me o auscultador das mãos. - Como estás, Magnus? - com uma voz plena de calculoso encanto. - Terei muito prazer em te ver por cá no próximo fim-de-semana. Talvez consigas pôr o Dick com melhor disposição. Anda muito mal humorado. - Sorriu, de olhos postos em mim. - Que é que ele tem no olho? - repetiu. - Não faço a menor ideia. Está com ar de quem perdeu uma competição de luta livre. Sim, claro que farei o que puder para o manter sossegado até tu cá vires, mas ele é muito teimoso. Oh, a propósito, talvez tu me possas informar. Os meus filhos adoram montar a cavalo e o Dick diz que viu umas miúdas a divertirem-se muito nuns póneis no domingo de manhã, enquanto estávamos na igreja. Gostava de saber se existem por aí alguns estábulos de aluguer de cavalos do outro lado da aldeia, lá para os lados de... como é que lhe chamam?... de Tywardreath. Não sabes? Bom, deixa lá, a Mrs. Collins diz-me. O quê? Aguenta aí, vou perguntar-lhe... - Virou-se para mim. - Ele pergunta
se as miúdas eram as filhas dum tipo chamado Oliver
Carminowe e da mulher dele? Velhos amigos seus.
- Sim - anuí. - Tenho quase a certeza de que
eram. Mas Ignoro onde vivem.
Voltou-se de novo para o telefone.
- O Dick pensa que sim, embora eu não esteja a ver
como é que ele poderia saber, se não falou com elas. Oh
bom, se a mãe delas é atraente talvez já a tenha visto por
aí e é capaz de ser por esse motivo que sabe quem as raparigas são. - Fez-me uma careta. - Sim, faz isso acrescentou -, se conseguires entrar em contacto com
eles durante o próximo fim-de-semana, poderemos convidá-los para virem tomar umas bebidas e o Dick terá
oportunidade de lhes ser apresentado. Até sexta-feira
então.
Devolveu-me o auscultador. Magnus estava a rir-se
às gargalhadas na outra extremidade da linha.
- Que história é essa de entrares em contacto com
os Carminowes? - indaguei.
- Saí-me dessa bastante bem, não te parece? - contrapôs. - Seja como for, era isso mesmo que tinha tenções de fazer, se nos conseguirmos livrar da Vita e dos rapazes. Entretanto, vou pôr o meu moço aqui de Londres à cata do Bodrugan. Quer dizer que ele teve um
triste fim e isso te incomoda?
- Sim.
- O Roger estava presente, claro! Meteu-se nisso
- Não.
 - Folgo em sabê-lo. Olha, Dick, isto é importante.
Nem mais uma viagem até nos encontrarmos. Não ime porta quão intensa seja a tentação. Terás de a suportar.
De acordo?
- De acordo.
- Tal como já te disse, terei os primeiros resultados
do laboratório quando me encontrar contigo. Entretanto: abstenção. Agora tenho de desligar. Tem cuidado contigo.
- Vou tentar - prometi. - Adeus. Era como cortar o elo de ligação entre os dois mundos.
- Anima-te, querido - disse Vita. - Menos de três dias e ele cá estará. Não achas maravilhoso? E agora que tal irmos lá acima à casa de banho, fazer qualquer coisa a esse olho?
Mais tarde, já com o olho lavado e Vita na cozinha para dizer a Mrs. Collins que Magnus viria no fim-de-semana e, sem dúvida, para discutirem os gostos gastronómicos dele, peguei no mapa das estradas, para dar mais uma olhadela à procura de Tregest. Não figurava. Tresmill aparecia marcada, como eu já sabia, bem como Treverran, Trenadlyn, Trevenna (as três últimas figurando na relação de contribuintes), mas era tudo. Talvez Magnus descobrisse a resposta, por intermédio do seu estudante de Londres.
Vita acabou por voltar para a biblioteca.
-Perguntei a Mrs. Collins pelos Carminowes disse-me -, mas nunca ouvira falar deles. São amigos muito chegados do Magnus?
Sobressaltei-me ao ouvi-la proferir o nome deles. Sabia que tinha de ser cauteloso, senão a confusão poderia voltar de novo.
- Creio que os perdeu de vista - repliquei. - Du vido que os tenha visto desde há algum tempo. Ele não vem cá com muita frequência.
-Não figuram na lista telefónica... eu procurei. Que faz esse Oliver Carminowe?
- Que faz? - repeti. - Na verdade não sei. Parece-me que ele pertencia ao exército. Tem um cargo governamental qualquer. Terás de perguntar ao Magnus,
- E a mulher é muito bonita?
- Bom, era - concedi. - Nunca falei com ela, - Mas já a viste desde que vieste para cá?
- Apenas à distância - respondi. - Ela não me reconheceria.
- Andava por aí nos velhos tempos, quando tu costumavas vir para cá em estudante?
- Talvez sim - admiti -, mas nunca me encontrei com ela ou com o marido. Pouco sei sobre eles.
- Mas sabias o suficiente para teres reconhecido as filhas quando as viste no outro dia.
Senti-me atado de pés e mãos.
- Querida - disse-lhe -, o que se passa? O Magnus refere ocasionalmente nomes de amigos e conhecidos e os Carminowes encontram-se neles. E tudo o que te posso dizer. O Oliver Carminowe tinha sido casado anteriormente e a Isolda é a sua segunda mulher. Têm duas filhas. Satisfeita?
- Isolda? - observou. - Que nome mais romântico!
- Não mais do que Vita - retorqui. - Não a poderemos deixar em paz?
- É engraçado - insistiu ela -, que Mrs. Collins nunca tenha ouvido falar neles. Ela é uma grande fonte de informações sobre assuntos locais. Mas, seja como for, há uns estábulos perfeitos lá em cima na estrada, em Menabilly Barton, segundo me contou, portanto vou até lá ver se arranjo qualquer coisa.
- Ainda bem - disse eu. - E porque não tratas já do assunto?
Fitou-me por um momento, depois virou-me as costas e saiu da sala. Tirei sub-repticiamente o meu lenço de assoar do bolso para enxugar o suor da testa, outra vez a transpirar. Era uma sorte os Carminowes estarem extintos, senão ela havia de os descobrir fosse em que ponto da Terra fosse, para convidar para almoçar no domingo seguinte um espantado descendente da família.
Dois, quase três dias a aguentar até Magnus vir em meu auxílio. Era difícil desmobilizar Vita, uma vez despertado o seu interesse, e também era típico do seu malicioso sentido de humor ele ter referido aquele nome.
A quarta-feira continuou sem incidentes e, graças aos céus, não voltei a fazer confusões. Era um alívio tão grande estarmos sem os nossos hóspedes que pouco mais interessava. Os rapazes foram montar e divertiram-se e, ainda que Vita estivesse a sofrer um certo anticlímax e a normal reacção a uma ressaca, teve o bom senso de não falar no assunto, nem fez mais nenhum comentário ao serão da noite anterior. Fomos para a cama cedo e dormimos como cepos, para despertarmos na quinta-feira com um dia de chuva ininterrupta. Isso não me incomodou, mas Vita e os rapazes mostraram-se desapontados, por terem planeado outro passeio de barco.
- Só espero que não venhamos a ter um fim-de- semana molhado - disse ela. - Que diabo é que poderei fazer com os miúdos se assim for? Não hás-de querê-los a passear pela casa todo o dia, com o professor por cá.
- Não te preocupes com o Magnus - tranquili zei-a. - É capaz de vir cheio de sugestões para eles e também para nós. Em qualquer dos casos, talvez tenhamos trabalho para fazer.
- Que género de trabalho? De certeza que não se irão fechar à chave naquele estranho compartimento da cave, pois não?
Estava perto da verdade, mais do que imaginava.
- Não sei ao certo - foi a vaga resposta que encontrei. - Ele tem uma quantidade de papelada separada e pode querer dar-Lhe uma vista de olhos com a minha ajuda. Pesquisas históricas, etc. Já te falei no novo passatempo que arranjou.
- Bem, o Teddy talvez esteja interessado nisso e eu também - aventou. - Pode ser divertido irmos fazer um piquenique a um local histórico qualquer. Que tal Tintagel? Mrs. Collins diz que toda a gente devia ir ver Tintagel.
- Não é precisamente o género de região que interesse ao Magnus e, seja como for, estará cheio de turistas - contrapus. - Veremos o que ele quer fazer quando cá chegar.
Perguntava a mim mesmo como diabo nos iríamos ver livres deles, no caso de o Magnus ter vontade de ir visitar Gratten. De qualquer das formas, o problema seria dele e não meu.
A quinta-feira arrastou-se e um lúgubre passeio pelos
areais de Par pouco fez para aligeirar o dia. Magnus tinha dito para aguentar firme, e, lá para a noite, já eu
percebia o que me tinha querido dizer. Aguentar era o
termo adequado e no sentido físico. Raras vezes, ou
nunca, eu me tinha visto acometido por essa comum
aflição da raça humana que é a transpiração. Na escola,
sim, após um exercício violento, mas não ao ponto a que
chegavam alguns dos meus colegas. Agora, após qualquer esforço de somenos importância, ou mesmo depois
de ter apenas estado sentado imóvel, suava por todos os
poros, uma transpiração com um peculiar aroma ácido,
ao ponto de desejar com fervor que ninguém dela desse
conta a não ser eu próprio.
A primeira vez que isso sucedeu, depois do passeio
pelos areais de Par, pensei que fosse apenas devido ao
exercício que fizera e fui tomar um banho antes de jantar, mas, durante a noite, quando Vita e os rapazes estavam a ver televisão e eu confortavelmente sentado na saala de música a escutar discos, recomeçou. Uma sensação
pegajosa de súbito arrepio frio, depois o suor a brotar- -me da fronte, pescoço, sovacos, tronco, demorando-se
talvez uns cinco minutos antes de passar, mas deixando-me a camisa a pingar quando a crise terminou. Risível
como os enjoos no mar, quando acontecem a outra pessoa que não a nós mesmos, esse efeito colateral que era
ver outra óbvia reacção à droga mergulhou-me em súbito
pânico. Desliguei o gira-discos e subi as escadas, para
me lavar e mudar de roupa pela segunda vez, perguntando-me que diabo se iria passar se eu sofresse nova crise
mais tarde, quando estivesse na cama com a Vita.
A apreensão nervosa não contribuiu para que tivesse uma noite tranquila e Vita encontrava-se com disposição conversacional, que lhe durou todo o tempo que levou a despir-se e continuou até estarmos estendidos lado a lado. Eu não me poderia sentir mais nervoso nem que fosse um noivo na primeira noite da lua-de-mel e dei por mim a retroceder para o meu lado da cama, soltando prodigiosos bocejos, como sinal dessa excessiva fadiga que me assolara. Apagámos as luzes das mesas-de-cabeceira e devotei-me a uma espécie de representação consistindo numa respiração pesada, à beira do sono, que pode ter ou não iludido a Vita, mas, após uma ou duas tentativas para deslizar para mais perto, que ignorei, virou-se para o seu lado da cama e em breve estava a dormir.
Fiquei ali estendido, acordado, a pensar no inferno que iria descrever a Magnus quando ele chegasse. Náuseas, vertigens, confusão, um olho raiado de sangue e agora suor ácido e tudo isso para quê? Um momento no tempo, há muito ocorrido, que não tivera consequências no presente, que não servira nenhum propósito na vida dele ou na minha e apresentaria tantos benefícios para o mundo no qual vivíamos como um álbum de recortes cheio de recordações esquecidas, jazendo inútil numa empoeirada gaveta. Assim raciocinei até depois da meia-noite, mas o bom senso tem o costume de se dissipar quando o demónio da insónia nos toma a altas horas da noite e, enquanto ali estava estendido a contar primeiro as duas horas, em seguida as três no mostrador iluminado do relógio ao lado da cama, recordei-me de como tinha caminhado por esse outro mundo com a liberdade de quem sonha, mas com percepção da vigília. O Roger não tinha sido nenhum instantâneo pouco nítido no álbum do tempo e, mesmo agora, nesta quarta dimensão em que eu tropeçara sem querer por vontade de Magnus, ele vivia e deslocava-se, comia e dormia, sob mim naquela casa de Kylmerth, continuando a viver o seu agora", lado a lado com o meu imediato presente, numa fusão de ambos.
Serei eu o guardião do meu irmão? O grito de protesto de Caim para Deus assumia de repente novo significado a meus olhos, enquanto observava os ponteiros do relógio a encaminharem-se para as três e dez. Roger era o meu guardião, eu o dele. Não existia passado, presente nem futuro. Tudo o que é vivo faz parte de um conjunto. Encontramo-nos todos ligados uns aos outros através do tempo e da eternidade e, uma vez abertos os nossos sentidos, como os meus o haviam sido pela droga, a uma nova compreensão desse mundo e do meu, a fusão teria de ocorrer, não haveria separação, não ocorreria a morte... Seria esse em última análise o significado da experiência: de certeza absoluta que a deslocação no tempo destruía a morte. Era o que Magnus ainda não entendera. Para ele, a droga libertava no cérebro a complexa mistura que permitia que se saboreasse o passado. Para mim provava que o passado continuava vivo, que todos participávamos nele, todos éramos suas testemunhas. Eu era Roger, era Bodrugan, era Caim. E, assim, era eu mesmo de modo mais verdadeiro.
Sentia-me à beira de uma tremenda descoberta quando adormeci.
Capítulo Quinze
Só acordei às dez horas e, então, Vita encontrava-se de pé junto da cama, com o tabuleiro do pequeno-almoço cheio de torradas e café.
- Olá - saudei. - Devo ter dormido de mais.
- Sim - anuiu ela e depois, fitando-me com ar crítico: - Estás bem?
Sentei-me na cama e peguei no tabuleiro.
- Perfeitamente - respondi. - Porquê?
- Estiveste irrequieto toda a noite, transpirando bastante. Olha, o casaco do teu pijama está muito húmido.
E estava mesmo, despi-o.
- Que coisa extraordinária - observei. - Por favor, dá-me uma toalha.
Trouxe-me uma da casa de banho e esfreguei-me com ela antes de estender a mão para o café.
- Foi devido àquele exercício todo na praia de Par com os rapazes - esclareci eu.
- Não pensei nisso - replicou a minha mulher, fitando-me intrigada - e afinal tu tomaste um banho a seguir. Nunca te vi suar assim depois de fazeres exercício.
- Bem, isso são coisas que acontecem - declarei.
- É uma característica do meu grupo etário. A menopausa masculina, talvez a suceder-me pela primeira vez.
- Espero bem que não. Que coisa mais desagradável. Dirigiu-se para o toucador e contemplou-se ao espelho, como se aí pudesse encontrar resposta ao problema.
- É curioso - prosseguiu -, mas a Diana e eu reparámos que nem pareces tu, a despeito de todo esse bronzeado por teres andado a velejar. - Girou de repente sobre si mesma, encarando-me. - Tens de confessar que não te sentes a cem por cento - continuou a
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dizer. - Não sei o que é, querido, mas preocupa-me. Andas mal humorado, distraído, como se tivesses qualquer coisa na ideia durante todo o tempo. Depois há esse esquisito olho raiado de sangue...
- Oh, pelo amor de Deus - interrompi-a -, deixa-te disso, está bem? Confesso que fiquei aborrecido com a presença do Bill e da Diana e peço-te desculpa. Todos bebemos de mais e foi só isso. Será preciso escalpelizarmos cada momento?
- Lá estás tu outra vez - disse. - Sempre a jogar à defesa. Espero que a chegada do teu professor te ponha melhor.
- E porá - repliquei -, desde que essa inquisição sobre o nosso comportamento não continue durante todo o fim-de-semana.
Riu-se, ou melhor, a boca dela contorceu-se naquele formato que as bocas das esposas costumam assumir quando pretendem inflingir uma ferida nos maridos.
- Não teria a presunção de me atrever a fazer um inquérito ao professor. O seu estado de saúde e o seu comportamento não me dizem respeito, mas os teus dizem. Sucede que sou tua mulher e te amo.
Saiu do quarto e desceu as escadas. E é isto um bom começo de dia, pensei enquanto barrava de manteiga o meu pedaço de torrada... A Vita ofendida, eu cheio de suores frios e o Magnus prestes a chegar a qualquer altura da tarde.
Havia um postal no tabuleiro do pequeno-almoço que tinha à minha frente; na verdade, escondido pela grelha das torradas. Tive suspeitas de que a Vita o tivesse ocultado de propósito. Dizia que ele apanharia em Londres o comboio, das 4. 30, chegando a St. AusteO cerca das dez. Era um alívio. Significava que a Vita e os miúdos poderiam ir para a cama ou, em último caso, ficarem a pé pela cortesia de cumprimentarem o recém-chegado e que depois Magnus e eu poderíamos conversar confortavelmente a sós. Animado, pus-me a pé, tomei banho e vesti-me, decidido a melhorar a minha disposição matinal e a humilhar-me perante Vita e os filhos.
- O Magnus só chega às dez - gritei para baixo -, portanto não haverá problemas com a comida. Ele deve jantar no comboio. Que é que o pessoal quer fazer?
- Ir andar de barco à vela - gritaram os rapazes, que andavam pelo vestíbulo com a falta de ocupação típica das crianças que não são capazes de organizar o seu dia.
- Não há vento - retorqui com um rápido olhar pela janela.
- Então aluga um barco a motor - sugeriu Vita, emergindo da cozinha.
Decidi agradar-lhes a todos e partimos para Fowey com um piquenique, e a navegação a cargo do nosso timoneiro Tom, desta vez não à vela, mas sim num antigo salva-vidas transformado por ele próprio graças a um honesto e matraqueante motor, que avançava com dificuldade a uns cinco nós e nem um centímetro mais depressa. Rumámos a leste para fora do porto e ancorámos ao largo da baía de Lanlivet, onde comemos, nadámos e descansámos, todos felizes. Meia dúzia de cavalas apanhadas na viagem de regresso a casa proporcionaram a Teddy e Micky adicionais delícias e uma sopa que foi incluída nos planos culinários de Vita para a refeição da noite. A expedição tivera um indescritível sucesso.
- Oh, diz que podemos voltar amanhã - imploravam os rapazes, mas Vita, olhando de esguelha para mim, disse-lhes que tudo dependeria do professor. Vi-lhes os queixos descaírem e acho que os ânimos também. Haveria algo mais aborrecido do que suportarem esse enfadonho amigo do padrasto que o instinto lhes dizia não ser do agrado da mãe?
- Poderão ir com o Tom - concedi - se o Magnus e eu tivermos outros planos. - Fosse como fosse, pensei, seria uma escapatória, não os deixaria ir sós, ainda que a cargo do Tom.
Chegámos a Kilmarth pelas sete horas, e Vita dirigiu-se logo para a cozinha, para tratar das cavalas, enquanto eu ia tomar banho e mudar de roupa. Só próximo das dez para as oito é que desci as escadas para a sala de jantar, e vi o papel escrito com a letra de Mrs. Collins, no lugar onde eu me costumava sentar. Dizia: Mandaram pelo telefone um telegrama do professor Lane, a dizer que vem de Londres no comboio das 2. 30. Chega a St. Austell às 7. 30. "
O céus! O Magnus devia estar a bater os calcanhares na estação de St. Austell havia uns vinte minutos... disparei para a cozinha.
- Crise - anunciei, gritando. - Olha para isto! Só agora é que o vi. O Magnus apanhou mais cedo comboio. Porque raio é que não me telefonou? Que confusão dos diabos!
Vita, furiosa, olhou para as cavalas meio fritas.
- Quer dizer que vem jantar? Deus do céu, eu não lhe posso dar isto! É preciso dizer-se que mostra muito pouca consideração para connosco. De certeza...
- Claro que o Magnus come as cavalas - berrei já a meio caminho das escadas das traseiras. - Até é provável que se atire a elas. E também temos queijo e fruta. Porque resmungas?
Corri para o carro, meio de acordo com aquela reacção à alteração da hora da chegada, consciente de que poderíamos muito bem ter ido passar o dia fora. Ele demonstrara pouca consideração para com os seus anfitriões. Mas o Magnus era assim. Um comboio mais cedo fora-lhe mais conveniente e apanhara-o. Se eu chegasse atrasado ao seu encontro, iria tomar, com toda a probabilidade, um táxi e passaria por mim na estrada com um descontraído aceno de mão.
A má sorte perseguiu-me com obstinação até St. Austell. Um imbecil qualquer enfiara o carro na valeta e uma longa fila de veículos esperava por poder passar. Era um quarto para as nove quando travei junto da estação de St. Austell. Nem sinais do Magnus e não poderia culpá-lo. A plataforma estava vazia e tudo parecia fechado. Descobri por fim um carregador, do outro lado da estação. Tinha um ar abstracto e informou-me que o comboio das sete e trinta chegara a horas.
- Não é isso que me interessa - repliquei. - O que me interessa é que eu vinha encontrar-me com alguém que deve ter vindo nele e não está cá.
- Bem, senhor - disse com um sorriso -, deve ter-se cansado de esperar e tomado um táxi.
- Se o fizesse, teria telefonado, ou deixado recado ao funcionário da bilheteira. Você estava aqui quando o comboio chegou?
- Não - respondeu. - A bilheteira há-de abrir de novo para o próximo comboio, que deve ser às dez menos um quarto.
- Isso não me ajuda - disse-lhe, exasperado. O coitado não tinha culpa.
- Vamos fazer o seguinte - disse-me -, vou abrir a porta para ver se o seu amigo deixou algum recado.
Regressámos à estação e, laboriosamente, ou pelo menos assim me pareceu, meteu a chave na fechadura e abriu a porta da bilheteira. Entrei atrás dele. A primeira coisa em que reparei foi numa mala encostada à parede, com as iniciais M. A. L.
- É aquilo. Aquela mala. Mas por que motivo teria ido embora?
O carregador dirigiu-se à secretária e pegou num papel.
- Mala com as iniciais M. A. L. entregue pelo revisor do comboio das sete e trinta - leu - para ser confiada a um senhor chamado Richard Young. O senhor é Mr. Young?
- Sou - retorqui -, mas onde é que está o professor Lane?
O carregador analisou o papel.
- Proprietário da mala, o professor Lane, deu recado ao guarda de que tinha mudado de ideias e decidira sair em Par e vir a pé. Disse ao guarda que Mr. Young haveria de compreender. - Entregou-me o papel e eu mesmo o li.
- Não percebo - observei, mais exasperado que nunca. - Não sabia que os comboios vindos de Londres agora paravam em Par.
- E não param - confirmou o carregador. - Param em Bodmin Road e quem quiser ir para Par muda de composição e apanha ligação. É o que o seu amigo deve ter feito.
- Que raio de ideia! - exclamei.
O homem riu-se.
- Bem, está uma bela noite para uma passeata declarou - e cada qual tem os seus gostos.
Agradeci-lhe o incómodo e regressei ao carro, atirando com a mala de mão para o assento da retaguarda. Porque haveria o Magnus de meter na cabeça alterar o combinado era coisa que não percebia. Naquela altura já devia estar em Kilmarth, sentado a cear cavalas, rindo-se daquilo tudo com Vita e com os miúdos. Voltei para casa a uma velocidade arrepiante e cheguei às nove e meia, irritado e furioso. Vita, de túnica comprida sem mangas, maquilhada de fresco, surgiu da sala de música quando eu subia as escadas.
- Que foi que vos aconteceu? - perguntou, deixando desvanecer-se o seu sorriso de anfitriã ao ver que me encontrava sozinho. Onde está ele?
- Queres dizer que ainda não apareceu? - gritei.
- Aparecer? - repetiu desorientada. - Claro que não apareceu. Tu foste esperar o comboio, não foste?
- Oh, meu Jesus! Que diabo se estará a passar?
Olha - disse-lhe em voz fatigada -, o Magnus não se encontrava em St. Austell, só a mala dele. Deixou um recado ao revisor do comboio das 7. 30, dizendo que iria sair em Par e viria a pé para cá. Não me perguntes porquê. Uma das malditas ideias tolas que ele tem. Mas já deveria cá estar a estas horas.
Entrei na sala de música e servi-me de uma bebida. Vita seguiu-me, os rapazes correram para o carro, para irem buscar a mala.
- Esta agora! - exclamava ela. - Esperava mais consideração do teu professor, devo dizer-te. Primeiro a mudança de comboio, depois mudanças nas ligações e, por fim, não se rala em aparecer. Espero que tenha encontrado um táxi em Par e que tenha ido jantar a qualquer lado.
- Talvez fosse isso - concordei -, mas por que motivo não telefona?
- Ele é teu amigo, querido, não meu. Tu é que deves conhecê-lo. Bom, não vou esperar mais, estou cheia de fome.
A cavala por fritar foi posta de lado para o pequeno-almoço do Magnus (embora eu estivesse bastante certo de que ele havia de preferir sumo de laranja e café simples) e Vita e eu sentámo-nos para comer à pressa uma fatia de empada que ela se recordou de ter trazido de Londres e metido no fundo do frigorífico. Entretanto Teddy telefonava, ou tentava telefonar, para a estação de Par, sem resultado. Não atenderam.
- Sabes uma coisa - comentou ele -, o professor é capaz de ter sido raptado por qualquer organização em busca de documentos secretos.
- Muito provável - corroborei. - Dou-lhe mais meia hora e depois telefono à Scotland Yard.
- Ou então teve um ataque cardíaco - sugeriu Micky -, exausto de subir a colina de Polmear. Mrs. Collins disse-me que o avô dela morreu nessa subida há trinta anos, por ter perdido o autocarro.
Pus de lado o prato e engoli a última gota de uísque.
- Estás outra vez a transpirar, querido! - observou Vita. - Não posso dizer que te atribua as culpas. Mas não te parece que seria boa ideia se fosses lá acima mudar de camisa?
Aceitei a sugestão e saí da sala de jantar, fazendo uma pausa ao cimo das escadas, para espreitar para o quarto de hóspedes. Porque demónio não tinha o Magnus telefonado a dizer o que estava a fazer ou, pelo menos, porque não entregara ao revisor um bilhete escrito, em vez de um recado verbal que talvez tivesse sido mal transmitido? Corri os reposteiros e acendi a luz da mesa-de-cabeceira, o que tornou o quarto mais aconchegado. A mala dele estava sobre uma cadeira aos pés da cama e mexi nas fechaduras. Para minha surpresa, abriram-se.
Magnus, ao contrário de mim, era um metódico arrumador de malas. Pijamas azul-celestes e um roupão repousavam sob uma camada de papel poroso, tendo ao lado uns chinelos de quarto em couro metidos no seu saco de celofane. Um par de fatos, uma muda de roupa interior. Bem, não estávamos em nenhum hotel ou numa casa luxuosa; ele que desmanchasse a mala. A única coisa que se esperaria dum anfitrião para com o seu hóspede (ou seria ao contrário? ) era pousar o pijama sobre a almofada e estender o roupão nas costas duma cadeira.
Tirei ambas as coisas da mala e vi logo por baixo um longo sobrescrito de cor amarelada, com as seguintes palavras dactilografadas:
Otto Bodrugan. Inquérito Judicial. 10 de Outubro de 1331. Eduardo III.
O estudante devia ter lançado de novo mãos ao trabalho. Sentei-me na beira da cama e abri o sobrescrito, Era a cópia de um documento com os nomes de várias mansões e terrenos pertencendo a Otto Bodrugan na altura em que morreu. A mansão de Bodrugan era uma delas, mas, segundo parecia, ele pagava renda a Joanna, viúva de Henry de Campo Arnulphi" (que devia querer dizer Champernoune). Seguia-se-lhe um parágrafo: Henry, seu filho, com mais de vinte e um anos de idade, foi o herdeiro que lhe sucedeu, morrendo três semanas após a morte do seu pai presuntivo, pelo que não tomou posse da herança supracitada, nem soube da morte do pai. William, filho do referido Otto e irmão do dito Henry, com vinte anos de idade na data da festa de St. Giles, é o seu herdeiro seguinte. "
Era uma estranha sensação estar ali sentado na cama, a ler uma coisa de que já tinha conhecimento. Os monges haviam feito o melhor que podiam (ou talvez o pior) pelo jovem Henry, no priorado, e nunca lhe fora comunicada a morte do pai.
Havia outra longa lista de propriedades que Henry, se tivesse sobrevivido, teria herdado de Otto e depois mais uma nota, extraída do Registo de Patentes:
10 de Outubro. Westminster, 1331. Ordem ao confiscador deste lado do Trent para tomar ao cuidado do rei os terrenos de que o falecido Otto de Bodrugan era usufrutuário. "
O estudante escrevinhara ao fundo da página PTO" e, voltando-a, descobri mais meia página presa a ela, também extraída do Registo de Patentes e datada de Windsor, a 14 de Novembro de 1331:
Ordem ao confiscador deste lado do Trent para tomar ao cuidado do rei os terrenos de que era usufrutuário o falecido John de Carminowe. A mesma ordem no tocante aos terrenos de Henry, filho de Otto de Bodrugan. "
Portanto Sir John devia ter sido alvo do contágio que tanto receara e morrera de seguida, perdendo Joanna a hipótese de um segundo marido...
Esqueci-me do presente, esqueci-me da baralhada na estação e deixei-me ficar ali sentado no quarto de hóspedes, a reflectir sobre o outro mundo, imaginando qual teria sido o conselho, se algum houvera, que Roger dera à desapontada Joanna Champernoune. A morte dos dois Bodrugan, ficando como sucessor o sobrinho dela e um menor, deviam ter-lhe dado todas as esperanças de maiores poderes sobre as terras de Bodrugan e, precisamente quando tais poderes estavam quase ao seu alcance, o destino mudara e o guardião dos castelos de Restormel e Tremerton fora-se também. Quase tive pena dela. E de Sir John, que, homem sem sorte, levara em vão o lenço à boca. Quem assumiria as suas funções de guardião de castelos, bosques e parques no condado da Cornualha? Não o seu irmão Oliver, esperava eu, o maldito assassino...
- Que é que vais fazer? - perguntou Vita lá em baixo.
Fazer? Que é que eu poderia fazer? Oliver fugira a cavalo com o seu bando de malfeitores, deixando Roger a cuidar de Isolda. Continuava sem saber o que acontecera a Isolda...
Ouvi a Vita subir as escadas e pus, por instinto, os papéis outra vez no sobrescrito, metendo-os no bolso e fechando a mala de mão. Tinha de regressar ao presente, Não era altura de me deixar confundir.
- Estava só a tirar o pijama e o roupão do Magnus - disse quando entrou no quarto. - Deve vir estourado quando aparecer.
- E porque não lhe pões também o banho a correr? - contrapôs. - E preparas um tabuleiro para o chazinho da madrugada? Não reparei que te tivesses mostrado um anfitrião tão atencioso para com o Bill e a Diana.
 Ignorei-lhe o sarcasmo e dirigi-me para o meu quarto de vestir. Chegou-me aos ouvidos o murmúrio da televisão vindo da biblioteca.
- Está na hora de os miúdos irem para a cama - disse sem convicção.
 - Prometi-lhes que poderiam esperar pelo professor - redarguiu Vita -, mas acho que tens de facto
 razão, não deve valer a pena aguentarem mais. Não te
 parece que devias pegar no carro e ir a Par? Ele pode
estar metido em algum pub, a cegar os olhos para o mundo.
- O Magnus não é do género de andar metido em
pubs.
- Então muito bem, é capaz de ter encontrado velhos amigos e ter ido jantar com eles.
- Muito improvável. E seria bastante grosseiro se
não telefonasse - repliquei. Descemos ambos as escadas, entrámos no vestíbulo e eu acrescentei: - Seja
 como for, não tem amigos cá na terra, tanto quanto eu saiba.
 Vita soltou um gritinho súbito.
 - Já sei - exclamou. - Encontrou os Carminowes! Eles não têm telefone. Deve ter ido a casa deles em
Par e deram-lhe de jantar.
 Fitei-a, com o cérebro confuso. De que diabo estaria
 ela a falar? E, de repente, percebi. De repente a mensagem do guarda tornou-se-me clara e plena de significado: O dono da mala, professor Lane, deixou recado ao
 revisor, dizendo que tinha mudado de ideias e decidido
 sair em Par, continuando a pé a partir daí. Disse que
Mr. Young compreenderia.
Magnus tomara a ligação local de Bodmin Road para
 Par, porque esta atravessaria mais devagar o vale de Treesmill do que o comboio expresso. Ele sabia, pela minha
 descrição, que só precisaria de olhar para a esquerda e
para cima após ter passado a quinta Treesmill, para avistar o Gratten. Então, como havia ainda luz na altura em que o comboio chegou a Par, era capaz de ter subido a estrada de Tywardreath, cortando através dos campos para inspeccionar o local.
- Meu Deus! - exclamei. - Que palerma que tenho estado a ser! Nunca me passou pela cabeça... Claro que é isso.
- Queres dizer que ele foi ver os Carminowes? perguntou Vita.
Suponho que foi por eu estar cansado. Por estar excitado. Talvez por me sentir aliviado. Todas as três coisas e não fui capaz de me ralar a reflectir numa explica ção ou numa mentira diferente. A resposta mais natural surgiu-me simplesmente na ponta da língua.
- Sim - repliquei. Corri pelas escadas abaixo e atravessei o pátio da frente em direcção ao carro.
- Mas tu não sabes onde eles vivem! - gritou Vita. Não lhe respondi. Acenei-lhe com a mão, saltei para a viatura e, num instante, voava pelo caminho e saía para a estrada.
Estava bastante escuro, apenas com uma lua pálida que não ajudava nada, mas atalhei pela viela que contornava a aldeia sem encontrar ninguém pelo caminho e es tacionei na berma da estrada, próximo da casa chamada Hill Crest. Se o Magnus desse com o carro antes de eu o encontrar a ele, havia de o reconhecer e esperaria por mim. Custou-me a atravessar os campos para o Gratten, tropeçando nos altos e baixos, e gritei por ele quando já não me podiam ouvir da casa, mas não me deu qualquer resposta. Pesquisei bastante o local, mas não havia sinais do meu amigo. Desci pelo caminho para o vale e até à quinta Treesmill, mas também não se encontrava aí. Subi depois a estrada pela colina acima, regressando para junto do carro. Estava como eu o deixara: vazio. Conduzi de volta à aldeia e contornei a pé o adro da igreja. Os ponteiros do relógio indicavam onze e meia; procurava o Magnus há mais de uma hora.
Dirigi-me à cabina telefónica próxima do barbeiro e liguei para Kilmarth. Vita atendeu de imediato.
- Tiveste sorte? - indagou.
O coração deu-me um pulo. Tivera esperanças de que ele já houvesse aparecido em casa.
- Não, nem sinais dele!
- E os Carminowes? Descobriste onde moram?
- Não - respondi -, não descobri. Acho que vamos mal por esse caminho. Foi uma estupidez da minha parte. Na verdade não faço a mínima ideia onde vivem.
- Bem, alguém deve saber - insistiu ela. - Porque é que não perguntas à Polícia?
- Não - retorqui -, não serviria de nada. Olha, vou descer até à estação e depois regressarei devagarinho para casa. Nada mais posso fazer.
Mas a estação de Par dava a impressão de já ter encerrado para toda a noite e, embora tivesse dado duas voltas à terra, não se viam sinais de Magnus.
Comecei a rezar: Ó meu Deus, faz com que eu o veja a subir a colina de Polmear! " Imaginava-o precisamente, os faróis a apanharem-no ao lado da estrada, o alto e angular vulto com o seu passo cadenciado, eu buzinava para que parasse, dizendo-lhe: Que raio de... "
Mas ele não estava lá. Nem ninguém. Virei para Kilmarth, subindo com lentidão os degraus que davam para a casa. Vita estava à minha espera no alpendre. Parecia preocupada.
- Deve ter-lhe acontecido alguma coisa - disse.
- Parece que devias mesmo telefonar à Polícia. Passei junto dela e subi as escadas.
- Vou desfazer-lhe a mala - anunciei. - Pode ter deixado algum recado. Não sei...
Tirei-lhe as roupas, pendurei-as no guarda-fatos e levei a máquina de barbear para a casa de banho. Continuava a dizer a mim mesmo que, a qualquer momento, ouviria um carro a descer o caminho de acesso, um táxi,
e que Magnus saltaria dele a rir-se, fazendo com que a Vita me gritasse para o alto das escadas: Cá está ele, já chegou "
Não havia bilhete nenhum. Procurei em todos os bolsos. Nada. Voltei-me então para o roupão, que já tinha tirado da mala. A mão fechou-se-me sobre algo redondo no bolso esquerdo e tirei o objecto para fora. Era um pequeno frasco, que reconheci logo. Tinha um rótulo: B. Tratava-se daquele que lhe remetera pelo correio na semana anterior e encontrava-se vazio.
Capitulo dezasseis
Fui ao meu quarto de vestir buscar a minha mala
e meti o frasco num dos bolsos, com os documentos sobre
Bodrugan, fechei-a à chave e desci para junto da Vita.
- Encontraste alguma coisa? - perguntou-me.
Abanei negativamente a cabeça. Ela foi atrás de mim
para a sala de música e serviu-me um uísque.
- Será melhor tomares também um - sugeri.
- Não me apetece - respondeu. Sentou-se no sofá
e acendeu um cigarro. - Estou quase certa de que deveríamos telefonar à Polícia.
- Porque o Magnus meteu na cabeça que havia de
se pôr a vagabundear pela região? - indaguei. - Disparate, ele sabe o que está a fazer. Deve conhecer cada polegada do distrito milhas em redor.
O relógio da sala de jantar deu a meia-noite. Se Magnus tinha saído do comboio em Par, devia estar a caminhar há quatro horas e meia...
- Vai tu para a cama - sugeri. - Pareces exausta.
Eu fico aqui para o caso de ele chegar. Posso estender-me no sofá, se me apetecer. Depois, logo que esteja dia
claro, se estiver acordado e ele não houver chegado ainda, sairei com o carro para fazer mais outra busca.
Era mesmo verdade, ela tinha um ar abatido: não me
estava a tentar ver livre da minha mulher. Pôs-se em pé
insegura e cambaleou em direcção à porta. Depois olhou
para mim por cima do ombro.
- Há qualquer coisa estranha no meio disto tudo disse-me devagar. - Tenho o pressentimento de que sabes mais do que aquilo que dizes. - Não tinha resposta
a dar-lhe. - Bem, procura dormir um bocado - continuou a dizer. - Algo me diz que vais precisar.
Ouvi a porta do quarto de dormir fechar-se e estendi-me no sofá com as mãos por detrás da cabeça, tentando reflectir. Existiam apenas duas soluções possíveis. A primeira, como eu pensara a princípio, ou era que Magnus tinha decidido procurar o sítio de Gratten, ou se perdera no caminho ou torcera um tornozelo, e decidira aguardar onde se encontrava até ser dia. Ou então a segunda hipótese... que era a que eu mais receava: Magnus fizera uma viagem". Vertera o conteúdo do frasco em qualquer recipiente que pudesse levar no bolso do casaco e saíra do comboio em Par, encaminhando-se para o Gratten, para a igreja, para qualquer parte do distrito, engolindo aí a droga e ficando à espera... à espera de que ela desse efeito... Logo que isso sucedesse, deixaria de ser responsável pelos seus actos. Se o tempo o tivesse arrastado para esse outro mundo que ambos conhecíamos, não era forçoso que testemunhasse o mesmo que eu, o cenário poderia ser diferente, o ponto do tempo anterior ou posterior, mas a penalidade por tocar em alguém, como ele bem sabia, seria a mesma para ambos: náuseas, vertigens, confusão. Magnus não tinha, que eu soubesse, tocado na droga durante pelo menos três ou quatro meses. Ele, o inventor, não estava preparado e poderia não ter o estofo necessário para a aguentar como eu, a cobaia.
Fechei os olhos, procurando visualizá-lo a sair da estação, subindo a colina e atravessando os campos para o Gratten, a engolir a droga, rindo-se para consigo. Ganhei um ponto ao Dick! " A seguir, o salto para trás no tempo e o estuário lá em baixo, os muros da casa acima de si, Roger ali à mão... para o levar aonde? A que estranho encontro nos montes ou junto da praia? Em que mês, em que ano? Iria ele ver, tal como eu, o baloiçante barco sem mastros penetrar no riacho, os cavaleiros a cavalgar na colina oposta? Veria Bodrugan ser afogado! Sendo assim, os seus actos poderiam não ser os mesmos que eu executara. Conhecendo-lhe o gosto para o dramatismo, era capaz de afirmar que ele se atiraria ao rio de cabeça, nadando para a margem oposta... e depois deixaria de existir aí um rio, apenas o vale ensopado, o mato, o pântano, as árvores. Magnus podia estar agora caído nesse sítio, nessa impassável terra perdida, a gritar por auxílio sem que ninguém o ouvisse. Nada podia fazer. Pelo menos até ao romper do dia.
Dormi mesmo passado um bocado, despertando com um estremeção de um sonho distorcido que logo se dissipou, para voltar de novo a cair no sono. Um sono mais profundo que me deve ter ocorrido com os primeiros alvores, porque me recordava de ter olhado para o relógio às cinco e meia da manhã, dizendo para mim mesmo que mais uns vinte minutos não fariam mal nenhum e depois, ao abrir de novo os olhos, já eram sete e dez.
Fiz uma chávena de chá, arrastei-me em seguida pelas escadas acima, lavei-me e barbeei-me. Vita estava já acordada. Nem sequer me fez perguntas. Sabia que Magnus não tinha chegado.
- Vou à estação de Par - disse-lhe eu. - Eles são capazes de saber se o Magnus entregou lá o bilhete à saída. Depois procurarei reconstituir-lhe os movimentos a partir daí. Alguém deve tê-lo visto.
- Seria bastante mais simples - insistiu ela - se tu te dirigisses à Polícia.
- E irei ter com eles - afirmei -, se ninguém me puder dizer nada na estação.
- Se tu não fores - gritou quando eu saía do quarto -, eu própria telefono.
Na estação, fiquei em branco: um fulano que andava por ali informou-me que a bilheteira não abriria senão daí a meia hora. Passei esse tempo caminhando até à ponte, atravessando depois a linha de caminho-de-ferro e dando uma vista de olhos ao vale. Em tempos tudo aquilo tinha sido um amplo estuário; o barco de Bodrugan, desmastreado pela ventania, devia ter vogado para além daquele sítio, arrastado pelo vento e pelas marés, à procura de abrigo rio acima e encontrando em vez disso a morte. Hoje, meio pântano coberto de canaviais, meio charneca com matagais, era ainda fácil traçar o curso do rio original a partir do próprio vale ventoso. Um homem, doente ou ferido, poderia jazer no meio daquelas frondosas e apertadas árvores durante dias, semanas, sem ninguém dar por ele. Até mesmo o terreno pantanoso onde a estação se situava, a grande extensão de solo plano entre Par e a vizinha St. Blazey, continuava a ser em parte terreno baldio; mesmo aí, existiam grandes veredas por onde ninguém circulava. À excepção, talvez, de qualquer viajante no tempo cujo espírito tivesse subido para o convés de um barco em águas azuis, enquanto o seu corpo cambaleava por entre o mato e as valas.
Regressei à estação, para encontrar a bilheteira já aberta e, pela primeira vez, provas de Magnus ter ali chegado. O funcionário não só recebera o bilhete como se recordava do seu portador. Alto, disse-me, já meio grisalho, sem chapéu, usando um casaco desportivo e calças escuras, com um sorriso simpático e uma bengala na mão. Não, o funcionário não tinha visto em que direcção ele seguira após sair da estação.
Meti-me no carro e conduzi até meio da encosta, no ponto onde um caminho de pé feito se dirigia para a esquerda. Magnus poderia tê-lo tomado e fiz o mesmo, seguindo a corta-mato para o Gratten. Estava um tempo morno e húmido, prenunciando um dia de calor. O agricultor a quem os terrenos pertenciam tinha aberto algures um portão depois da noite anterior, porque se viam vacas a vaguear pelas encostas, por entre o tojo e os aterros, seguindo-me curiosas até à entrada da própria depressão no solo.
Revistei com atenção cada recanto, cada fosso, mas sem encontrar nada. Olhei para o vale lá em baixo, para o lado da linha de caminho- de-ferro, na direcção das vastas massas de arvoredo e arbustos que cobriam o espaço
que em tempos fora o leito de um rio. Pareciam o entrançado de uma tapeçaria colorida por fios de seda delineando a ouro cada mancha verde. Se Magnus se encontrasse ali, ninguém mais o conseguiria alguma vez descobrir a não ser cães pisteiros.
Dei-me então conta de que deveria fazer uma coisa que já poderia ter empreendido antes ou que deveria ter feito na noite passada. Tinha de contactar a Polícia. Tinha de lá ir como qualquer outra pessoa se tivesse um convidado que já devia ter aparecido doze horas antes, embora o seu bilhete tivesse sido entregue na estação de caminho-de-ferro na devida altura.
Lembrava-me de que existia uma esquadra de Polícia em Tywardreath e refiz o caminho a custo, para me meter no carro e me dirigir a ela. Sentia-me contraído, culpado, como todas as pessoas que tinham tido a sorte de nunca se terem visto envolvidas com a Polícia, para além de infracções de trânsito de somenos importância e a minha história, tal como a contei ao sargento, soava-me acanhada, algo irresponsável.
- Quero dar parte do desaparecimento de uma pessoa - anunciei, tendo instantaneamente a visão de um cartaz com a face de um criminoso acossado a olhar para mim e a palavra PROCURADO" em enormes letras por baixo. Dominei-me e contei a história exacta de tudo o que se passara no dia anterior.
O sargento foi muito prestável, compreensivo e muitíssimo bem educado.
- Nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente o professor Lane - disse-me -, mas já todos ouvimos falar nele, é claro. O senhor deve ter passado uma noite de ansiedade.
- É verdade - confirmei.
- Não fomos informados de nenhum acidente - declarou -, mas é claro que vou confirmar junto de Liskeard e St. Austell. Quer tomar uma chávena de chá, Mr. Young?
Aceitei muito agradecido a oferta, enquanto ele tratava do telefone. Tinha a sensação doentia na boca do estômago que experimentam as pessoas que se vêem obrigadas a esperar no exterior dum banco de hospital, durante uma operação de emergência a alguém que amam. O caso escapara-se-me das mãos. Nada podia fazer. O sargento acabou por voltar para junto de mim.
- Não há informação de nenhum acidente. - Comunicou-me. - Estão a alertar os carros-patrulhas do distrito e as outras esquadras de Polícia. Acho que o melhor que o senhor pode fazer é regressar a Kilmarth e esperar até ter notícias nossas. Pode suceder que o professor Lane tenha torcido um pé e passado a noite numa das quintas, mas eles quase todos têm telefone nos dias de hoje e é estranho que não tenha ligado para vos informar. Há algum precedente de perdas de memória?
- Não - respondi -, nunca. E estava de muito boa saúde quando jantei com ele em Londres, há poucas semanas.
- Bom, não se preocupe demasiado, senhor - aconselhou-me -, é capaz de no fim de contas haver alguma explicação muito simples.
Regressei ao carro ainda com a tal sensação doentia e desci até à igreja. Conseguia ouvir o órgão, deviam estar num ensaio do coro. Fui sentar-me sobre um dos túmulos, próximo do muro sobranceiro ao pomar, aquele que em tempos pertencera ao priorado. No ponto onde me encontrava sentado devia ter sido o dormitório dos monges, que dava para sul, acima do riacho do priorado e ali à beira ficava o quarto de hóspedes onde o jovem Henry Bodrugan morrera de varíola. Nessa outra época, podia estar ainda moribundo. Nesse outro tempo, o monge Jean poderia estar a misturar alguma poção diabólica que arrumasse com o assunto, passando em seguida palavra a Roger, para ele levar as notícias à mãe e à tia, Joanna Champernoune. Más novas à minha volta, no outro mundo e no meu. Roger, o monge, o jovem Bodrugan, Magnus: éramos todos elos numa cadeia interligada, presos uns aos outros através dos séculos.
Em semelhante noite, Medeia juntou as ervas encantadas Que renovaram o velho Aéson.
Magnus podia ter-se sentado ali e tomado a droga. Podia ter-se dirigido a qualquer dos lugares onde eu havia estado. Conduzi para a quinta onde Julian Polpey vivera há seis séculos e onde o carteiro me encontrara uma semana atrás, percorrendo o caminho rural na direcção de Lampetho. Se eu o tinha atravessado para o pântano, à noite (o meu corpo no presente, o meu cérebro no passado), Magnus também o podia ter feito. Até mesmo agora, sem águas nem marés a encherem a enseada, apenas pantanais e canaviais, a vereda era-me familiar como o cenário de um sonho esquecido. Contudo, o caminho terminava no interior do pântano e eu não conseguia ver forma de avançar, meios de atravessar o vale para o outro lado. Só Deus sabia como é que eu o tinha feito nessa outra noite, seguindo num mundo do passado Otto e os outros conspiradores. Refiz o percurso para além da quinta Lampetho e um velhote saiu de uma das casas, chamando o cão que corria a ladrar na minha direcção. Perguntou-me se me tinha perdido, respondi-lhe que não e pedi desculpa por ter ali entrado.
- Por acaso não viu uma pessoa a seguir nesta direcção, ontem à noite? - indaguei. - Um homem alto, de cabelo grisalho, que levava uma bengala?
Ele abanou a cabeça.
- Não aparecem por cá muitos visitantes - declarou. - Esse caminho não leva a parte nenhuma, só a esta quinta. Os visitantes ficam sobretudo na praia de Par.
Agradeci-lhe e voltei para o automóvel. No entanto não estava convencido. Ele podia ter permanecido dentro de casa entre as oito e as nove e Magnus podia estar estendido no pântano, para além da quinta... Mas com certeza que alguém o devia ter visto! Os efeitos da droga, se é que a tomara, já lhe teriam passado horas antes; se a tomara às oito e meia, ou às nove, teria voltado a si pelas dez, onze, ou meia-noite.
Havia um carro parado junto de casa quando lá cheguei e, ao entrar no vestíbulo, ouvi Vita dizer:
- Cá está o meu marido.
Encontrava-se na sala de música com um oficial da Polícia e um guarda.
-Receio não termos notícias concretas para si, Mr. Young - disse o inspector -, apenas uma ligeira pista que nos poderá conduzir a algo. Um homem que condizia com a descrição do professor Lane foi visto na noite passada, entre as nove e as nove e meia, a caminhar ao longo da viela de Stonybridge, acima de Treesmill e para além da quinta Trenadlyn.
- A quinta Trenadlyn? - repeti e devo ter revelado surpresa no rosto, porque ele perguntou de imediato:
- Então conhece-a?
- Conheço - anuí -, fica muito mais acima do vale do que Treesmill, é aquela pequena quinta na própria vereda.
- Isso mesmo. Faz alguma ideia das razões para o professor Lane ir a dirigir-se naquela direcção em particular, Mr. Young?
- Não - declarei com hesitação. - Não... Nada havia que o pudesse levar para esses lados. Eu teria esperado que ele fosse visto mais abaixo no vale, mais próximo mo de Treesmill.
- Bom - retorquiu o inspector -, as informações de que dispomos são de que um cavalheiro foi visto passar por Trenadlyn, entre as nove e as nove e meia.
Mrs. Richards, esposa de Mr. Richards, que é o proprietário da quinta, viu-o da janela, mas o irmão, que explora a quinta de Great Treverran, mais acima na mesma vereda, não viu ninguém. Se o professor Lane se dirigia a Kilmarth, parece-me uma grande volta, mesmo para alguém que queria fazer exercício após ter vindo sentado num comboio.
- Sim, concordo consigo, inspector - proferi hesitante -, o professor Lane interessa-se muito por locais históricos e pode ter sido essa a razão para a sua caminhada. Acho que andava à procura de uma velha mansão que acredita ter aqui existido em tempos. Mas não pode ter sido em nenhuma das quintas que o senhor mencionou, senão teria batido à porta de uma delas.
Sabia agora o motivo de Magnus (e devia ter sido mesmo ele, a julgar pela descrição feita pela mulher) ter passado por Trenadlyn, percorrendo a vereda de Stonybridge. Era o caminho que Isolda tomara a cavalo com Robbie, quando os dois tinham vindo ao riacho de Treesmill para se lhes deparar Bodrugan assassinado, afogado. Seria a única via para a desconhecida Tregest, quando o vau que atravessava Treesmill estava impassável, por causa das correntes ou da maré alta. Magnus, ao passar pela quinta Trenadlyn, estava a caminhar no tempo. Poderia estar a seguir Roger e também Isolda.
Vita, sem se conseguir conter, virou-se num impulso para mim
- Querido, todo esse assunto histórico está ultrapassado. Por favor não te zangues comigo por me intrometer, mas sinto que é essencial. - Voltou-se para o inspector. - Tenho a certeza absoluta, e o meu marido também a tinha ontem à noite, de que o professor iria visitar uns velhos amigos dele, umas pessoas chamadas Carminowe. O nome de Oliver Carminowe não vem na lista telefónica, mas vive algures no distrito onde o professor foi visto pela última vez. Torna-se- me bastante  óbvio que ia visitá-los e, quanto mais depressa alguém entrar em contacto com eles, tanto melhor.
Fez-se um silêncio momentâneo após a sua explosão. Em seguida o inspector olhou-me de relance. A sua expressão modificara-se de preocupação para surpresa, até mesmo desaprovação.
- É verdade, Mr. Young? O senhor não disse nada quanto à possibilidade de o professor Lane ir visitar uns amigos.
Senti a minha boca contorcer-se num sorriso amarelo.
- Não, inspector - confirmei -, claro que não. Não fazia sentido o professor ir de visita fosse a quem fosse. Receio que a minha mulher tenha sido gozada pelo telefone pelo professor, e eu muito estupidamente nada fiz para pôr os pontos nos is, apoiando em vez disso a piada. Não existem semelhantes pessoas chamadas Carmi nowes. Pura e simplesmente não existem.
- Não existem? - ecoou Vita. - Mas tu viste as filhas deles a montarem póneis no domingo de manhã, duas rapariguinhas com a respectiva ama, segundo me afirmaste.
- Bem sei que o afirmei - concedi -, mas apenas posso repetir-te que estava a brincar contigo.
Arregalou para mim os olhos, sem acreditar. Pela sua expressão eu poderia concluir que pensava que eu estava a mentir para nos safar, a Magnus e a mim mesmo, de uma situação melindrosa. Depois encolheu os ombros, lançando uma rápida olhadela ao inspector, e acendeu um cigarro.
- Que brincadeira mais parva! - afirmou e acrescentou logo a seguir: - Peço-Lhe desculpa, inspector,
- Não precisa, Mrs. Young - contrapôs ele num tom bastante mais sério, ao que me pareceu, do que o anterior. - Todos somos gozados de vez em quando; sobretudo quando pertencemos a uma corporação policial.
- Voltou-se de novo para mim. - Tem a certeza absoluta quanto a isso, Mr. Young? Não sabe de ninguém que o professor Lane possa ter ido visitar logo à chegada à estação de Par?
- Absolutamente ninguém - garanti. - Tanto quanto eu saiba, somos os únicos amigos que ele tem aqui e estava de facto a caminho, para passar o fim-de-semana connosco. Esta casa pertence-lhe, como sabe. Emprestou-no-la para as férias de Verão. Muito sinceramente, inspector, não estava de facto preocupado com o professor Lane até hoje de manhã. Ele conhece bem o distrito, porque esta casa já pertencia ao pai, o comandante Lane, antes de lhe pertencer a ele. Tinha a certeza de que ele não poderia perder-se e iria aparecer com qualquer explicação plausível quanto ao lugar onde passara a noite.
- Estou a ver - disse o inspector.
Ninguém disse nada por momentos e fiquei com a impressão de que o homem duvidava da minha história, tal como Vita, e que ambos pensavam que Magnus se dedicara a qualquer actividade duvidosa e eu lhe estava a dar cobertura. O que, diga- se de passagem, até era verdade.
- Percebo agora - intervim - que deveria ter entrado em contacto convosco ontem à noite. O professor Lane deve ter torcido um pé, talvez gritasse por socorro e ninguém o ouvisse. Não deve ter havido muito trânsito por esse caminho lateral após o escurecer.
- Pois não - concordou o inspector -, mas as pessoas de Trenadlyn e Treverran ter-se-ão levantado cedo esta manhã e tê-lo-iam ouvido então se lhe tivesse sucedido alguma coisa no caminho. O mais provável é que se tenha encaminhado para a estrada principal, tendo então podido seguir em qualquer das direcções, ou para Lostwithiel, ou de regresso a Fowey.
- O nome de Tregest não lhe recorda nada? - inquiri.
-Tregest? - Reflectiu por um instante e depois abanou a cabeça. - Não, não me parece. É o nome de algum lugar?
- Creio que houve em tempos uma quinta com esse nome, algures no distrito. O professor Lane podia estar a tentar descobri-la, em relação com as suas pesquisas históricas. - Depois tive de repente outra ideia. - Trelawn - disse, onde fica exactamente Trelawn?
- Trelawn? - repetiu o inspector, surpreendido.
- Trata-se de uma propriedade a poucas milhas de Looe. Deve ser a umas dezoito milhas ou mais deste sítio. O professor Lane de certeza que não se iria meter a caminho desse sítio às nove da noite, pois não?
- De facto - concordei -, claro que não. Estava só a procurar recordar-me de velhas casas de interesse histórico.
- Sim mas, querido - interrompeu-me Vita -, como o inspector diz, seria difícil o Magnus começar à procura de uma coisa dessas, que fica a milhas de distância, sem nos telefonar primeiro. É isso que não sou capaz de entender, por que motivo é que ele não nos telefonou.
- Não o fez, Mrs. Young -, afirmou o inspector -, porque, segundo parece, pensou que Mr. Young saberia para onde se estava a dirigir.
- Sim - anuí -, e o facto é que eu não sabia. Nem agora sei. Deus permitisse que o soubesse.
O telefone soou, sobressaltando-nos inesperadamente como se fosse um eco de todos os nossos pensamentos.
- Eu atendo - disse Vita, que se encontrava mais perto da porta.
Atravessou o vestíbulo na direcção da biblioteca e nós ficámos na sala de música, sem dizer nada, a escutar-lhe a voz.
- Sim - dizia -, ele está aqui. Vou chamá- lo.
Regressou à sala, dizendo ao inspector que a chamada era para ele. Aguardámos durante uns três ou quatro
minutos que nos pareceram intermináveis, enquanto ele
respondia por monossílabos, em voz abafada. Consultei
o relógio. Marcava precisamente meio-dia e meia hora.
Não me dera conta de que já fosse tão tarde. Ao regressar, ele olhou-me nos olhos e vi, pela apreensão que ostentava no rosto, que alguma coisa se tinha passado.
- Lamento muito, Mr. Young - declarou -, mas receio que tenha más notícias.
- Sim - repliquei -, conte-me tudo.
Uma pessoa nunca se encontra preparada. Acredita-se sempre, em momentos de aguda tensão, que as coisas
correrão bem e que, mesmo naquela altura, com Magnus
já desaparecido há tanto tempo, ouviríamos com certeza
dizer que alguém o tinha encontrado com perda de memória e o tinha levado para o hospital.
Vita veio colocar-se a meu lado, e deu-me a mão.
- Era uma mensagem transmitida pela esquadra de
Polícia de Liskeard - informou o inspector. - Foi
comunicado por uma das nossas patrulhas que encontrou o corpo de um homem parecido com o professor
Lane próximo da linha dos caminhos-de-ferro, precisamente deste lado do tunel de Treverran. Parece ter recebido uma pancada na cabeça, dada por uma composição
de passagem, sem que o maquinista ou o revisor tenham
visto. Parece que conseguiu arrastar-se para uma pequena barraca logo acima da linha que não é usada e depois
desmaiou. Dá a impressão de já estar morto há algumas horas.
Continuei ali de pé, fixando o inspector. O choque é
um estado muito peculiar, uma emoção entontecedora.
Era como se a própria vida se tivesse retirado de mim,
deixando-me uma concha vazia, tal como Magnus era
agora. Apenas tinha consciência de Vita me estar a segurar na mão.
- Compreendo - respondi, mas era a minha voz que o dizia. - Que quer que eu faça?
- Estão neste momento a caminho da casa mortuária de Fowey, Mr. Young - informou. - Detesto incomodá-lo neste momento, mas acho que o melhor seria levarmo-lo lá de imediato para identificar o cadáver. Gostaria de pensar, em vosso benefício, seu e de Mrs. Young, que não se trata do professor Lane, mas, dadas as circunstâncias, não lhes posso dar grandes esperanças.
- Pois não - concordei -, é claro que não pode. Larguei a mão de Vita e encaminhei-me para a porta, saindo da casa para a quente luz do sol. Uns escuteiros estavam a montar tendas no campo, além da colina de Kilmarth. Ouvia-os gritar e rir, martelando as espias no solo.
Capitulo dezassete
A morgue era um pequeno prédio de tijolos vermelhos, não longe da estação de Fowey. Não estava lá ninguém quando chegámos: o segundo carro-patrulha ainda
vinha a caminho. Ao sairmos do automóvel, o inspector
olhou-me por um instante e depois disse:
- Poderá verificar-se alguma demora, Mr. Young.
Gostava de lhe oferecer uma chávena de café e uma sanduíche no bar ali acima da estrada.
- Muito obrigado, mas eu estou bem.
- Não quero insistir - continuou ele -, mas seria
de facto sensato. O senhor iria sentir-se melhor.
Cedi e permiti-lhe que me levasse ao café, onde cada
um de nós tomou uma chávena de café e eu comi também uma sanduíche de presunto. Enquanto ali estávamos sentados, reflecti nos tempos passados em que, ainda alunos universitários, Magnus e eu tínhamos vindo de
comboio até Par para ficarmos com os pais dele em Kilmarth. O matraquear na escuridão e os ecos no túnel e,
de súbito, a bem acolhida saída para a luz, com campos
verdes de ambos os lados. Magnus devia ter feito essa
viagem em todas as férias do seu tempo de estudante.
Agora encontrara a morte junto da entrada desse mesmo túnel.
Não fazia sentido para ninguém. Nem para a Polícia,
nem para os seus muitos amigos, nem para ninguém a
não ser eu. Iriam perguntar-me por que motivo um homem da sua inteligência tinha andado a vaguear próximo
de uma linha de caminhos-de-ferro numa tarde de Verão
ao anoitecer e teria de responder que não sabia. Mas sabia mesmo. Magnus caminhava numa época em que não
existia nenhuma via férrea. Deslocava-se numa era em
que a encosta da colina eram pastagens silvestres, até
mesmo matagal. Não existia nenhuma boca de túnel a
abrir-se no declive nesse outro mundo, nenhuns carris metálicos, nenhuma ferrovia, apenas os relvados nus e, talvez, um homem cavalgando um pónei, que o conduzia a...
- Sim? - perguntei.
O inspector estava a indagar se o professor Lane ti nha quaisquer parentes.
- Lamento muito - retorqui -, não ouvi bem o que disse. Não, o comandante e Mrs. Lane há muitos anos que morreram e não tinham mais filhos. Nunca o ouvi referir primos ou fosse quem fosse.
Devia haver algures um advogado que tratava dos seus assuntos, um banco que lhe geria as finanças. Agora que pensava nisso, nem sequer sabia o nome da secretária dele. O nosso relacionamento próximo, íntimo, não se reportava aos assuntos do dia-a-dia, às comuns preocupações. Devia existir alguém para além de mim que soubesse dessas coisas.
O polícia uniformizado acabou por vir dizer ao inspector que o segundo carro-patrulha tinha chegado e a ambulância também, o que nos levou a regressar à morgue. O agente murmurou qualquer coisa que não consegui distinguir e o inspector virou-se para mim.
- O Dr. Powell, de Fowey, estava por acaso na esquadra da Polícia de Tywardreath quando recebemos a mensagem da nossa patrulha - disse- me -, e acedeu a fazer o exame preliminar do corpo. Depois a execução da autópsia será com o patologista do Ministério Público.
- Sim - proferi. Autópsia... inquérito... toda a parafernália da lei.
Entrei na morgue. A primeira pessoa que vi foi o médico com quem me encontrara no parque de estacionamento e que me estivera a ver recuperar do ataque de vertigens há mais de dez dias atrás. Reparei no instantâneo reconhecimento nos seus olhos, mas não se abriu quando o inspector nos apresentou.
- Lamento tudo isto - disse e depois, de forma
abrupta: - se nunca viu alguém que tenha sido muito
ferido num acidente, muito menos um amigo, olhe que
não é coisa agradável de se ver. Este homem levou uma
grande pancada na cabeça.
Levou-me junto da maca que estava sobre a longa
mesa. Era mesmo Magnus, mas tinha um aspecto diferente, algo mais pequeno. Via-se uma espécie de cavidade empoçada em sangue acima do seu olho direito.
Tinha sangue seco no casaco rasgado e também outro
rasgão numa perna das calças.
- Sim - comuniquei -, é o professor Lane.
Virei as costas, porque o próprio Magnus não se encontrava ali. Continuava a caminhar pelos campos acima
do vale de Treesmill, ou a olhar em torno de si muito
maravilhado, num outro mundo ainda por descobrir.
- Se lhe serve de alguma consolação - disse o médico -, ele não deve ter vivido muito tempo depois de
receber semelhante pancada. Só Deus sabe como é que
conseguiu arrastar-se umas jardas até à cabana... não devia estar consciente dos seus movimentos, terá realmente
morrido poucos momentos depois.
Nada me serviria de consolação, mas agradeci-lhe na mesma.
-Quer o senhor dizer que ele não deve ter ficado
ali estendido a perguntar-se porque é que não aparecia
ninguém?
- Não - respondeu o homem -, não é possível.
Mas tenho a certeza de que o inspector lhe fornecerá
completos detalhes, logo que tenhamos conhecimento da
inteira extensão dos ferimentos.
Havia uma bengala pousada na extremidade da mesa.
O sargento apontou-a ao inspector.
- A bengala encontrava-se a meio da descida do
talude, senhor - informou -, a curta distância da barraca.
O inspector lançou-me um olhar de inquisição e eu acenei com a cabeça.
- Sim - confirmei -, é uma das muitas que ele possuía. O pai dele coleccionava bengalas. Há cerca de uma dúzia no apartamento de Londres.
- Acho que o melhor que temos agora a fazer é levá-lo já de volta a Kilmarth, Mr. Young - disse o inspector. - Terá todas as informações, é claro. Compreenderá que terá de ser convocado para o inquérito, a fim de prestar completo depoimento.
- Com certeza - anuí. Perguntava-me o que acon teceria ao corpo de Magnus depois da autópsia. Gostaria de saber se ali iria ficar durante todo o fim-de-semana. Não que isso tivesse importância. Não que fosse o que fosse tivesse importância.
Ao apertar-me a mão, o inspector afirmou que talvez apareceriam na segunda-feira para me fazerem mais umas perguntas, para o caso de eu poder acrescentar algo às minhas declarações iniciais.
- Está a ver, Mr. Young, pode ter-se verificado um caso de amnésia, ou até mesmo de suicídio.
- Amnésia - repeti. - Isso é perda de memória, não é? Muitíssimo improvável. E suicídio com certeza que não. O professor seria o último homem do mundo a fazer semelhante coisa e não tinha motivos para tal. Estava ansioso pelo fim-de-semana e bastante entusiasmado, quando falei com ele pelo telefone.
- Com certeza - retorquiu o inspector. - Bom, é exactamente o género de declaração que o delegado do Ministério Público quererá ouvi-lo prestar.
O polícia deixou-me em casa e eu atravessei muito devagarinho o jardim, subindo depois as escadas. Servi-me de um triplo uísque e atirei-me para cima do divã do quarto de vestir. Devo ter adormecido por curto período pouco depois, porque ao despertar estava-se ao fim da tarde ou princípio da noite e Vita encontrava-se sentada na cadeira próxima, com um livro nas mãos, um resto de sol a penetrar pela janela de oeste, a que dava para o pátio.
- Que horas são? - quis eu saber.
- Cerca de seis e meia - respondeu, vindo sentar-se na cama a meu lado.
- Achei preferível deixar-te descansar - continuou ela a dizer. - O médico com quem te encontraste na casa mortuária telefonou durante a tarde, perguntando se te encontravas bem e informei-o de que estavas a dormir. Disse que te deixasse continuar o máximo de tempo possível, que era o melhor que te poderia acontecer. Pôs a mão dela na minha, o que achei reconfortante como se de novo fosse uma criança.
- Que é que fizeste aos rapazes? - perguntei-lhe.
- A casa parece muito silenciosa.
- Mrs. Collins foi maravilhosa - respondeu. - Levou-os para Polkerris a passar o dia com ela. O marido ia levá-los a pescar depois do almoço e trá-los-á de volta cerca das sete. Devem estar a chegar a casa a todo o momento.
Fiquei calado por um momento e depois disse-lhe:
- Isto não deve estragar-lhes as férias, o Magnus teria detestado tal coisa.
- Não te rales com eles ou comigo - replicou. - Podemos bem cuidar de nós mesmos. O que me preocupa é o choque que o sucedido constituiu para ti.
Senti-me agradecido por ela não insistir no assunto, por não querer repassar de novo todo o caso: porque é que tinha sucedido, o que é que Magnus andara a fazer, porque é que não tinha reparado no comboio a aproximar-se, por que motivo o não vira o maquinista? Seria uma conversa que não nos levaria a lado nenhum.
- Tenho de fazer um telefonema. As pessoas da Universidade precisam de ser informadas.
- O simpático inspector encarregou-se de tudo informou Vita. - Voltou cá outra vez, quase a seguir a tu teres subido as escadas. Pediu para ver a mala do Magnus. Disse-lhe que a desmanchaste ontem à noite e não tinhas encontrado lá nada. Nem ele encontrou. Deixou as roupas penduradas no armário.
Lembrei-me do frasco que se encontrava na minha mala e dos papéis referentes a Bodrugan.
- Que mais queria ele?
- Nada. Disse apenas que deixássemos tudo com eles e que entraria em contacto connosco na segunda-feira.
Estendi os braços e puxei-a para mim.
- Obrigado por tudo, querida - disse-lhe. - Tu és um grande conforto. Ainda nem consigo pensar a direito.
- Nem tentes - sussurrou-me. - Gostava que houvesse mais coisas que pudesse dizer-te, ou fazer-te.
Ouvimos os miúdos a conversar no quarto. Deviam ter penetrado pela porta das traseiras.
- Vou tratar deles - anunciou Vita -, devem estar com vontade de jantar. Queres que te traga o teu para aqui?
- Não, eu vou descer. Terei de os encarar, mais cedo ou mais tarde.
Continuei ali estendido durante um bocado, observando o resto do sol a filtrar-se pelo meio das árvores.
Depois tomei um banho e mudei de roupa. Apesar do choque sofrido e do torvelinho em que andara todo o dia, o meu olho raiado de sangue voltara ao normal. Poderia ter sido coincidência, sem ligação com a droga. Em qualquer dos casos, era algo que eu agora nunca viria a saber.
Vita estava a servir o jantar aos miúdos na cozinha. Conseguia ouvir o que estavam a dizer enquanto deambulava pelo vestíbulo, recompondo-me antes de aparecer.
- Bem, aposto o que quiseres que foi uma jogada suja - a voz bastante alta e nasalada de Teddy chegava-me clara através da porta aberta da cozinha. - Faz sentido que o professor tenha tido com ele uma informação
científica secreta qualquer, talvez relacionada com a guerra
 biológica, e que tenha combinado um encontro junto do
 túnel, sendo o homem com quem se ia encontrar um esepião, que lhe deu uma pancada na cabeça. A Polícia daqui não irá pensar em tal coisa e terão de confiar o caso
 aos serviços secretos.
- Não sejas idiota, Teddy - interveio Vita com severidade. - Esse género de boatos assustadores alastram
depressa. Seria tremendo incómodo para o Dick ouvir
dizer isso. Espero que não tenhas sugerido semelhante
coisa a Mrs. Collins.
- Foi ela quem pensou nisso primeiro - intrometeu-se Micky. - Disse que nunca se sabe hoje em dia
 em que é que os cientistas andam metidos e que o professor podia andar à procura de algum lugar para um local de pesquisas secreto, lá em cima em Treesmill.
Aquela conversa teve o efeito instantâneo de me recompor. Pensei em como Magnus a teria adorado, como
se teria divertido com ela, encorajando cada exagero.
Tossi alto e entrei na cozinha, ouvindo ainda a Vita dizer: Chiu... " quando eu passei pela porta.
Os rapazes ergueram os olhos, as caritas assumindo
expressões de tímido desconforto, como as crianças costumam fazer de repente, ao verem-se confrontadas com
 aquilo que receiam ser um adulto mergulhado em dor.
- Olá - cumprimentei. - Tiveram um bom dia?
- Não foi mau - resmoneou Teddy, pondo-se vermelho. - Fomos à pesca.
- Apanharam alguma coisa?
-Uns badejos. A mamã está agora a cozinhá-los.
- Bem, se me deixarem algum, eu ponho-me na bicha. Tomei uma chávena de café e comi uma sanduíche em Fowey e foi tudo no dia todo.
Deviam estar à espera de que eu me postasse de cabeça
baixa e ombros trementes, porque se animaram de modo
visível ao verem-me atacar um grande moscardo que estava na janela com o mata-moscas, dizendo: Apanhei-o! com enorme alívio, enquanto o esborrachava. Mais tarde, quando já estávamos a comer, disse-lhes:
- Pode ser que eu para a semana venha a estar um tanto ocupado, porque vai ter de haver um inquérito relacionado com o Magnus e várias outras coisas para resolver, mas tratarei de que possam sair com o Tom num dos seus barcos para irem até Fowey, a motor ou à vela, como gostarem mais.
- Oh, muito obrigado - exclamou Teddy, e Micky, apercebendo-se de que o tema Magnus deixara de constituir um tabu, fez uma pausa, com a boca cheia de peixe e inquiriu muito animado:
- A história da vida do professor vai passar esta noite na televisão?
- Não me parece - repliquei. - Não é nenhum cantor moderno nem nenhum político.
- Azar! - comentou ele. - Mesmo assim, será melhor vermos.
Não houve nada, para grande desapontamento de ambos os rapazes e secretamente, ao que suspeitei, também da Vita, mas para meu considerável alívio. Eu sabia que os dias que se seguiriam proporcionariam mais do que o suficiente em matéria de publicidade logo que a imprensa tivesse conhecimento da história e assim sucedeu. O telfone principiou a tocar logo de manhãzinha, embora fosse domingo, e tanto eu como a Vita passámos a maior parte do dia a atendê-lo. Acabámos por o deixar fora do suporte e instalámo-nos no pátio, onde os repórteres, se viessem tocar à campainha da porta da frente, nunca descobririam.
Na manhã seguinte ela levou os rapazes para Par, às compras, deixando-me com o meu correio, que ainda não tinha aberto. As poucas cartas que recebera nada tinham a ver com o acidente. Peguei depois na última do pequeno monte e vi, com uma viva punhalada no coração, que me estava endereçada a lápis, com a marca dos correios de Exeter, e a caligrafia do Magnus. Rasguei-lhe o envelope.
Caro Dick
 Estou a escrever esta carta no comboio e talvez fique
ilegível. Se encontrar uma caixa de correio à mão na estação de Exeter, metê-la-ei lá. Não será indispensável eu
escrever-te esta carta e, quando a receberes, na manhã de
sábado, já teremos tido, assim espero, uma tumultuosa
noite juntos e muitas mais se lhe hão-de seguir, mas escrevo-te como medida de segurança, para o caso de me
finar na carruagem por pura exuberância mental. As minhas descobertas até à data são bastante conclusivas
quanto ao facto de termos entre as mãos algo de primordial importância sobre o cérebro. Em poucas palavras e
em linguagem de leigos, a química do interior das células
cerebrais relacionadas com a memória, tudo o que fizemos desde a infância, é reprodutível, recuperável (à falta
 de melhor terminologia) nessas mesmas células, cujo
exacto conteúdo depende da nossa constituição hereditária, do legado dos pais, avós, remotos ancestrais, recuando até tempos primitivos. O facto de eu ser um génio e tu um zé-ninguém depende tão-só das mensagens que
nos foram transmitidas a partir de tais células e depois
distribuídas através das outras diversas células e por todo o nosso corpo, mas, para além de todas essas variadas
características, as células sobre as quais em particular te-
te nho estado a trabalhar (a que chamarei a caixa da memória") armazenam não apenas as nossas memórias pessoais
como também os hábitos do padrão cerebral herdado. Tais
hábitos, se libertados ao nível da consciência, possibilitar-nos-iam ver, ouvir, tornarmo-nos cognoscentes das
coisas ocorridas no passado, não porque um antepassado
em particular testemunhou determinada cena, mas porque, mediante o uso de um intermediário, neste caso  uma droga, o padrão cerebral herdado e mais antigo assume o poder e se torna dominante. As implicações inerentes do ponto de vista de um historiador não me dizem respeito, mas, do ponto de vista biológico, os usos potenciais do até aqui intocado cérebro ancestral são de enorme interesse e abrem-nos imensuráveis possibilidades.
Quanto à droga em si, é verdade, é perigosa e pode até tornar-se letal se tomada em excesso e, se cair nas mãos de pessoas sem escrúpulos, pode mesmo provocar mais devastações no nosso mundo já perturbado. Portanto, meu caro rapaz, se alguma coisa me acontecer, destrói aquilo que restar na câmara do Barba Azul. O meu pessoal, que, no entanto, nada sabe das implicações da minha descoberta porque tenho estado a trabalhar sozinho nesta área, possui instruções similares aqui em Londres e poder-se-á implicitamente confiar nele. Quanto a ti, se não te voltar a ver, esquece todo este assunto. Se nos encontrarmos esta noite tal como combinámos, se formos dar um passeio juntos e fizermos, talvez, uma viagem", como espero, tenciono dar uma olhadela de mais perto, se tiver essa sorte, à bela Isolda, que, a julgar pelas provas incluídas no documento que está na parte de cima da minha mala de mão, parece ter perdido o seu amante exactamente como tu disseste e deve encontrar-se em extrema necessidade de ser consolada. Que Roger Kylmerth lhe possa ou não fornecer consolo, descobri-lo-emos ao mesmo tempo. Não tenho tempo de te dizer mais coisas, estamos a travar em Exeter, A bientôt, neste mundo, no outro, ou no futuro.
Mag nus "
Se não tivéssemos ido velejar na sexta-feira, eu teria recebido a tempo o recado telefónico sobre o comboio anterior... Se me tivesse dirigido logo para o Gratten depois da estação de St. Austell em vez de regressar a casa...
Demasiados ses" e nenhum deles funcional. Até mesmo
esta carta, agora recebida como se fosse uma mensagem
dos mortos, ter-me-ia chegado às mãos no sábado de
manhã em vez de hoje, segunda-feira. Não que isso houvesse adiantado alguma coisa. Nem sequer dizia nada
quanto às autênticas intenções do Magnus. Mesmo na
altura em que a metera no correio poderia não ter ainda
decidido o que iria fazer. A carta não era mais do que
uma medida de segurança, tal como dizia, para o caso de
qualquer coisa correr mal. Li-a de novo de ponta a ponta uma vez, duas vezes, depois cheguei-lhe o isqueiro e queimei-a.
Desci à cave e atravessei a velha cozinha para o laboratório. Não entrava nele desde o princípio da manhã de
quarta- feira, após ter regressado do Gratten, quando Bill
descera as escadas e me viera encontrar a fazer chá na
cozinha. As fileiras de frascos e garrafas, a cabeça do
macaco, os gatinhos em embrião e os fungos, já não
constituíam para mim qualquer ameaça, nem o haviam
constituído desde a primeira experiência. Agora, desaparecera a sua magia para nunca mais voltar, ostentavam
aspecto de abandono, como bonecos e adereços do
saque de truques de um conjurado. Nenhuma varinha de
condão traria à vida aqueles objectos, nenhuma mão
obstinada deles extrairia qualquer sumo, lhes apanharia
os ossos ou os poria a fermentar num qualquer alambique borbulhante.
Peguei nos frascos que continham os vários líquidos
e despejei- os para a pia. Depois lavei-os e voltei a guardá-los nas prateleiras. Quem os visse diria terem sido
usados para conservas de frutas ou compotas. Não exibiam marcas que os distinguissem, apenas rótulos que
arranquei e meti no bolso. Depois fui buscar um velho
saco que me recordava de ter visto na casa da caldeira
e tratei de destapar os restantes frascos e garrafas que  continham os embriões e a cabeça de macaco. Meti-os a todos no saco, tendo primeiro despejado na pia os líquidos que os preservavam, tomando o cuidado de não lhes tocar com as mãos. Fiz a mesma coisa com os diversos fungos, metendo-os também no saco. Restaram apenas duas pequenas garrafas, a marcada com a letra A, contendo os restos da droga que eu próprio estivera a usar até ao presente, e a garrafa C, intocada. A que estivera marcada com a letra B fora por mim remetida a Magnus e encontrava-se vazia na minha mala, lá em cima. Não despejei o conteúdo das duas na pia. Meti-as nos bolsos. Depois fui à porta e escutei. Mrs. Collins movia-se entre a cozinha e a copa, ouvia-lhe o rádio a tocar.
Pus o saco ao ombro e fechei à chave a porta do laboratório. Saí então pela porta das traseiras e subi ao jardim da cozinha por detrás dos estábulos, metendo pelos bosques sobranceiros aos terrenos. Fui até ao ponto onde o mato rasteiro era mais espesso: loureiros que se esforçavam por crescer, rododendros que há anos não floresciam, ramos partidos de árvores mortas, espinheiros, urtigas, as folhas derrubadas por sucessivas ventanias outonais. Peguei num dos ramos caídos e escavei a terra húmida e negra, esvaziando o saco para dentro dela, esmagando a cabeça de macaco com uma pedra, de maneira a que deixasse de ostentar qualquer parecença com um ser vivo, apenas fragmentos, somente polpa e os embriões em pedaços por entre esses fragmentos, irreconhecíveis como as entranhas em fio que são atiradas a uma gaivota após ter-se estripado um peixe. Cobri-os e ao saco com folhas apodrecidas há anos, com a terra acastanhada e um monte de urtigas, ocorrendo-me à mente aquela frase: Cinzas às cinzas, pó ao pó" e, em certo sentido, era como se estivesse a enterrar o Magnus e toda a sua obra ao mesmo tempo.
Regressei à casa pela cave e subi as escadas laterais para a frente, evitando assim Mrs. Collins, mas ela deve ter- me ouvido a entrar no vestíbulo, porque chamou:
- É o senhor, Mr. Young?
- Sou - respondi.
- Andei à sua procura por todo o lado... não o consegui encontrar. O inspector de Liskeard estava ao telefone.
- Estava no jardim - disse-lhe. - Eu telefono-lhe.
Subi as escadas para o quarto de vestir e meti os frascos A e C na minha mala de mão, juntamente com a
garrafa vazia, fechei-a mais uma vez à chave, meti-a
no meu chaveiro, lavei as mãos e desci outra vez as escadas na direcção da biblioteca. Depois liguei para a esquadra da Polícia de St. Austell.
- Desculpe, inspector - disse-lhe quando surgiu
na linha -, estava no jardim quando o senhor me telefonou.
- Não faz mal, Mr. Young - respondeu ele. - Achei
que gostaria de saber as novidades que temos até ao momento. Bom, fizemos alguns progressos. Foi um comboio de mercadorias que causou o acidente, facto que
me parece estabelecido de modo claro. Passou pelo túnel
de Treverran subindo a linha mais ou menos aos dez minutos para as dez. O maquinista não viu ninguém perto
da via ao aproximar-se do túnel, mas esses comboios são
por vezes de considerável comprimento e este em particular não trazia qualquer vigilante à retaguarda, pelo
que, logo que a máquina entrou no túnel, ninguém restava para observar se alguém surgisse na linha e fosse
apanhado de passagem por um dos vagões.
- Pois não - concordei -, agradeço-lhe a atenção.
E que pensa que aconteceu?
- Bem, Mr. Young, tudo indica isso. Dá a impressão de que o professor Lane deve ter prosseguido pelo
caminho para além da quinta de Trenadlyn, mas, antes de ter atingido a estrada principal, virou para um campo a que chamam Higher Gum, bastante acima de Treverran, atravessando-o em diagonal na direcção da linha de caminho-de-ferro. É possível, passando por cima do arame e escalando um talude, chegar à linha, mas ninguém poderia deixar de reparar no comboio de mercadorias. Estava escuro, é claro, mas existe um sinal precisamente à saída do túnel e um comboio de mercadorias está longe de ser silencioso, para além do aviso sonoro do motor diesel, que constitui um procedimento de rotina antes da entrada no túnel.
Sim, mas há seis séculos não havia sinais, nem arames, nem linhas, nem avisos sonoros a soarem no ar...
- Quer o senhor dizer - perguntei-lhe - que uma pessoa teria de ser cega e surda-muda para não dar conta de que vinha um comboio a subir o vale, ainda que estivesse a alguma distância?
- Bem, é isso, Mr. Young. Claro que é possível uma pessoa parar ao lado da linha quando um comboio está a passar, há muito espaço de ambos os lados das vias duplas e dá a impressão de que foi isso que fez o professor Lane. Encontrámos marcas no terreno, no ponto em que escorregou e pelo talude acima, por onde se arrastou até à barraca.
Reflecti um momento e depois perguntei-lhe:
- Inspector, seria possível eu próprio ir lá ver o exacto local onde tudo se passou?
- Na verdade, Mr. Young, era o que lhe ia sugerir, mas não tinha a certeza do que pensaria da minha proposta. Poderia ser útil, não só para si como também para nós.
- Nesse caso estou à disposição para lá ir quando o
senhor quiser.
- Digamos às onze e meia, à porta da esquadra da Polícia de Tywardreath?
Já eram onze horas. Estava a tirar o carro da garagem em marcha-atrás quando Vita desceu o caminho de acesso no Buick com os rapazes. Saltaram para fora do carro, com cestos cheios de provisões.
- Onde é que vais? - indagou ela.
- O inspector quer que eu vá ver o sítio perto do
túnel onde encontraram o Magnus - respondi. - Eles
acham que sabem o que foi que provocou tudo: um
comboio de mercadorias que passou por lá cerca dos dez
minutos para as dez. O maquinista já deveria encontrar-se dentro do túnel quando o Magnus caminhou ou escorregou contra um dos vagões da retaguarda.
- Corram - disse Vita aos rapazes que se haviam
deixado ficar por ali. - Levem essas coisas a Mrs. Collins - e, quando já se encontravam a distância em que
não nos podiam ouvir: - Mas por que motivo haveria o
Magnus de estar na linha? Não faz mesmo sentido nenhum. Sabes o que é que as pessoas vão comentar? Ouvi-o numa das lojas e fiquei assustada... Que deve ter sido suicídio.
- Disparate completo -
-Bem, eu sei disso... Mas quando uma pessoa é
muito conhecida e se verifica um acidente, surgem sempre boatos desses. E os cientistas são considerados, ao
fim e ao cabo, pessoas esquisitas, casos extremos.
- Também nós todos - disse eu -, ex-publicistas,
 polícias, toda a gente. Não esperes por mim para almoçar, não sei quando volto.
O inspector conduziu-me ao local que me descrevera
pelo telefone, na vereda acima da quinta Treverran. De
caminho, contou-me que haviam entrado em contacto
com o chefe da equipa de trabalho de Magnus, que fora
incapaz de lançar qualquer luz sobre o desastre.
- Ele ficou muito preocupado, naturalmente - prosseguiu o inspector. - Sabia que o professor Lane tencionava passar o fim-de-semana consigo e que estava ansioso
por isso. Concordou consigo ao declarar que o professor se encontrava de perfeita saúde e excelente disposi ção. A propósito, deu-me a impressão de que não se
encontrava ao corrente do interesse dele por locais históricos, mas concordou em que poderia talvez tratar-se de um passatempo pessoal.
Tomámos a estrada para Treesmill, saindo de Tywardreath e virando à direita na direcção de Stonybridge, para além de Trenadlyn e Treverran, detendo-nos perto do topo do caminho e estacionando ao lado de um portão que dava para um campo.
- O que é difícil de entender - observou o ins pector - é por que motivo, se a quinta Treverran era um local que interessava o professor Lane, ele não apareceu lá em vez de atravessar estes campos longe da quinta.
Lancei um rápido olhar em torno de mim. Treverran ficava à esquerda, acima do vale, mas numa concavidade, com o comboio a passar-lhe em plano superior e, para além da linha, os terrenos inclinavam-se de novo para baixo. Séculos antes, os contornos da terra deveriam ter sido os mesmos, mas uma larga corrente de água teria corrido através do vale, inferior à quinta Treverran, mais do que uma corrente, um rio que inundava no meio do Outono as terras baixas, antes de penetrar nas águas do riacho de Treesmill.
- Ainda corre por ali um riacho? - perguntei, apontando para a base do vale.
- Ainda? - repetiu o inspector, intrigado. - Existe uma vala ao fundo da colina, para além da linha de caminho-de-ferro. Se quiser, poderá chamar-lhe um riacho, bastante preguiçoso, e os terrenos são pantanosos.
Descemos o campo. A linha estava já à vista e, precisamente à nossa direita, via-se a ominosa boca do túnel.
- Deve ter existido aqui em tempos uma estrada que descia para o vale e um vau atravessando a correnteza para o outro lado - observei eu.
- É possível - concordou o inspector. - Hoje não
se vêem no entanto grandes sinais deles.
Magnus pretendia atravessar o riacho a vau. Estava
a seguir alguém que ia a cavalo e pretendia atravessar a
corrente a vau. Por conseguinte deslocava-se com rapidez. E não tinha sido numa tarde de Verão, ao crepúsculo numa noite clara; mas sim no Outono e o vento soprava, a chuva vinha em rajadas das colinas...
Descemos o campo até ao talude dos caminhos-de-ferro próximo do túnel. A curta distância para a esquerda
havia um passadiço em forma de arcada por baixo da linha, dando acesso de um campo a outro. Encontravam-se aí algumas cabeças de gado sob a arcada, abrigando-se das moscas.
- Está a ver - disse o inspector -, o agricultor não
tem necessidade de atravessar a linha para alcançar o
campo do outro lado. Pode passar pela arcada que ali há,
onde se encontra esse gado.
- Sim - concordei -, mas o professor pode não
ter reparado nela se ia a subir os campos. Seria para ele
caminho mais directo atravessar a via.
- O quê, escalar o talude, passar através dos arames
e descer para a beira da linha? - estranhou ele. - E tudo isso às escuras? Eu cá gostaria de experimentar...
Na verdade foi o que fizemos logo a seguir, em plena
luz do dia. Ele avançou à frente, eu segui-o e, uma vez
por baixo dos arames, apontou para a barraca que não
era usada, coberta de trepadeiras, a poucas jardas mais
acima do talude, mesmo na direcção da via.
- O matagal está pisado neste ponto, porque estivemos cá ontem - esclareceu -, mas a pista do professor
Láne era bastante visível no sítio por onde se arrastou
para se afastar da linha e subir para a barraca; semiconsciente como se encontrava, demonstrou uma força quase
sobre-humana e uma tremenda coragem.
Qual o mundo que rodeava Magnus, o actual ou o passado? O comboio de mercadorias teria matraqueado para o túnel sem ser observado, enquanto ele descia pelo talude na direcção da via? Com a máquina já no interior do túnel, teria ele tentado atravessar a linha que, na sua perspectiva, continuava a ser um prado relvado inclinando-se para o ribeiro lá em baixo, sendo assim apanhado pelo vagão oscilante? Num mundo ou no outro, tinha sido un coup de grâce'. Nem sequer chegara a saber o que o tinha atingido. O instinto de sobrevivência levara-o a arrastar-se na direcção da barraca e depois, graças a Deus, viera o misericordioso oblívio, não o súbito isolamento, o conhecimento da morte iminente.
Ficámos ali a olhar para a barraca vazia e o inspector mostrou-me o ponto do solo onde Magnus morrera. O lugar era impessoal, sem atmosfera, como uma casa de ferramentas esquecida, há muito sem jardineiro.
- Há anos que não era usada - disse-me. - As equipas de trabalhadores da linha serviam-se dela para preparar o chá e comer os seus farnéis. Hoje servem-se de outra mais abaixo e bem poucas vezes.
Voltámos-lhe as costas, refazendo os nossos passos ao longo do talude coberto de mato, em direcção aos arames bambos por onde tínhamos passado. Olhei para as colinas do outro lado, algumas das quais com espessa arborização. Havia uma quinta para a esquerda, com um edifício mais acima e ao longe, para norte, outro aglomerado de prédios. Perguntei os nomes. A quinta chamava-se Colwith e a casa mais pequena a seu lado tinha sido em tempos uma escola. A terceira, quase fora de vista, era mais uma quinta, Strickstenton.
- Neste ponto, encontramo-nos nos limites de três paróquias - esclareceu o inspector. - Tywardreath, St. Sampsons or Golant e Lanlivery. Mr. Kendall, de Pelen,
' Em francês no original: Um golpe de misericórdia. (N. do T)
é um grande proprietário de terras das redondezas. Aí está uma bela mansão antiga para si, Pelyn, mesmo a descer a estrada a caminho de Lostwithiel. Há séculos
que pertence à mesma família.
- Quantos séculos?
- Bem, Mr. Young, eu não sou nenhum especialista
nessas coisas. Talvez uns quatro.
Pelyn não poderia ser Tregest. Nenhum dos nomes que ele referira se ajustava a Tregest. Algures por ali, no entanto, ao alcance de pessoa a pé, Magnus tinha seguido Roger ao lar de Oliver Carminowe, quer fosse à sua
mansão ou à casa da quinta.
- Inspector - disse eu -, mesmo agora, apesar de tudo o que me mostrou, acredito que o professor Lane tinha intenções de encontrar o curso de água principal
algures no vale e atravessá-lo para o outro lado.
- Com que objectivo, Mr. Young? - Fitou-me, sem simpatia, mas com franca curiosidade, procurando
perceber o meu ponto de vista.
- Quando se é mordido pelo bichinho do passado - esclareci -, quer se seja um historiador, um arqueólogo ou mesmo um mero observador, é como uma febre no sangue, nunca se fica satisfeito enquanto não se resolve o problema que se nos depara. Acredito que o professor Lane tinha um objectivo em mente e por isso é que decidiu sair do comboio em Par em vez de em St. Austell.
Estava decidido a subir a pé este vale, por qualquer razão que talvez nunca descobriremos, e apesar da linha
do caminho-de-ferro.
- E pôs-se ali, com o comboio a passar, enfiando-se-lhe depois na retaguarda?
- Inspector, isso não sei. A sua audição era boa, a visão também, ele adorava a vida. Não caminhou deliberadamente contra a parte detrás da composição.
- Espero que consiga convencer o delegado do Ministério Público, Mr. Young, para bem do professor Lane. A mim já quase me convenceu o senhor.
- Quase? - estranhei.
- Eu sou um polícia, Mr. Young, e falta uma peça algures neste puzzle. Mas concordo consigo, talvez nunca a haveremos de encontrar.
Refizemos o percurso pelo longo campo acima, na direcção do portão ao cimo da colina. Enquanto regressávamos de automóvel, perguntei-lhe se faria alguma ideia de quanto tempo demoraria o inquérito.
- Isso não lhe posso dizer com precisão - respondeu. - Muitos factores estão envolvidos. O delegado do Ministério Público fará o melhor que puder para apressar o assunto, mas pode demorar dez dias a uma quinzena, sobretudo se ele insistir na presença de um júri, dadas as circunstâncias invulgares da morte. A propósito, o patologista da região está de férias e o delegado pediu ao Dr. Powell para fazer a autópsia, pois já tinha examinado o cadáver. Ele concordou. Teremos ainda hoje o relatório.
Pensei nas inúmeras vezes em que o Magnus dissecara animais, pássaros, plantas, demonstrando no seu trabalho uma fria indiferença que eu admirava. Sugerira-me uma vez que o visse remover os órgãos dum porco recém-abatido. Mantive-me presente por cinco minutos e depois o estômago revirou-se-me. Se alguém tinha de dissecar o Magnus agora, ainda bem que era o Dr. Powell.
Chegámos à esquadra de Polícia no preciso momento em que um agente descia os degraus. Disse qualquer coisa ao inspector, que se virou para mim.
- Já terminámos o exame às roupas do professor Lane e aos seus pertences - informou este último. - Estamos preparados para Lhos confiar, se quiser aceitar essa responsabilidade.
- Com certeza - repliquei. - Duvido que alguém mais os venha a reclamar. Espero ter notícias do advogado dele, seja ele quem for.
O agente regressou poucos minutos depois com um
embrulho em papel castanho. A carteira vinha em separado, pousada no cimo, bem como um folheto que ele
devia ter comprado para ler no comboio, Experiências
de Um Irlandês, por Somerville e Ross. Não conseguia imaginar alguma coisa menos conducente a um
transtorno cerebral ou a uma tentativa de suicídio.
- Espero - disse ao inspector - que tenha anotado o título do folheto, em benefício do delegado.
Garantiu-me com gravidade que já o fizera. Eu sabia que não deveria abrir o embrulho de papel, mas
sentia-me satisfeito por ter em meu poder a carteira e a bengala.
Conduzi de volta a casa sentindo-me fatigado, desanimado, não me tendo aproximado sequer de uma
conclusão. Antes de sair da estrada principal, detive-me no topo da colina de Polmear, para deixar passar
um carro. Reconheci o condutor: era o Dr. Powell.
Travou na berma da estrada, junto do relvado e eu fiz
o mesmo. Depois ele saiu do veículo e aproximou-se-me
da janela.
- Olá - cumprimentou. - Como se sente?
- Muito bem - respondi. - Acabo de vir do túnel
de Treverran, com o inspector.
- Ah, sim - disse ele. - Contou-lhe que fui eu quem fez a autópsia?
- Contou.
- O meu relatório é dirigido ao delegado do Ministério Público - prosseguiu - e tomará dele conhecimento na devida altura. Mas, oficiosamente, talvez
queira saber que foi a pancada na cabeça que matou o
professor Lane, provocando-lhe extensiva hemorragia no
cérebro. Também exibia outros ferimentos, devidos à
queda. Não tenho qualquer dúvida de que deve ter embatido num dos vagões do comboio de mercadorias.
- Muito obrigado - disse-lhe. - É muita gentileza
da sua parte informar-me pessoalmente.
-Bem, o senhor era amigo dele e o interessado mais directo. Apenas mais uma coisa. Tive de mandar para análise o conteúdo do estômago. Uma questão de rotina, na verdade. Só para satisfazer o delegado e o júri quanto ao pormenor de ele não se encontrar naquele momento cheio de uísque ou qualquer outra coisa.
- Sim, pois claro.
- Ora bem, é praticamente tudo. Vê-lo-ei depois no tribunal.
Voltou para o carro e eu desci devagarinho o caminho para Kilmarth. O Magnus bebia moderadamente a meio do dia. Seria possível que tivesse tomado um gin tónico no comboio. Talvez uma chávena de chá durante a tarde. Isso, supunha eu, revelar-se-ia na análise. E que mais?
Fui encontrar Vita e os rapazes já a almoçar. Tinha havido uma série de telefonemas durante toda a manhã, incluindo um do advogado do Magnus, um indivíduo chamado Dench, e do Bill e da Diana, que tinham sabido na Irlanda as novidades dadas pelo rádio.
- Isto nunca mais vai acabar - comentou Vita.
- O inspector disse-te alguma coisa sobre o inquérito?
- Teremos de esperar uns dez ou quinze dias - informei-a.
- Não serão grandes férias para nós - suspirou. Os rapazes saíram da sala para irem buscar o prato seguinte e ela virou-se para mim de rosto ansioso. - Não comentei nada na frente deles - disse-me
em voz baixa -, mas o Bill ficou horrorizado com as notícias, não só por ter sido uma tão grande tragédia,
mas porque se perguntou se não existiria algo de tenebroso por detrás. Não foi específico, mas disse que tu perceberias ao que se estava a referir.
Pousei a faca e o garfo.
- O Bill disse uma coisa dessas?
- Mostrou-se bastante misterioso - respondeu ela -, mas é verdade que lhe falaste num bando de malfeitores das vizinhanças que andam por aí a atacar pessoas? Ele mostrou-se esperançado em que tivesses informado a Polícia a esse respeito.
Só me faltava aquilo: os esforços canhestros e deslocados do Bill para ajudar a meterem-nos a todos em sarilhos.
- Ele é doido - proferi. - Nunca lhe contei semelhante coisa.
- Oh - exclamou Vita -, oh, ainda bem... e depois acrescentou, de rosto ainda perturbado: - Espero que tenhas mesmo contado tudo o que sabes ao inspector.
Os rapazes voltaram à sala de jantar e terminámos a refeição em silêncio. Em seguida peguei no embrulho de papel, na carteira e na bengala, levando-os para o quarto de hóspedes. Davam-me de algum modo a impressão de pertencerem a esse compartimento, juntamente com o resto das coisas penduradas no guarda-fatos. Eu próprio usaria a bengala; tratava-se da última coisa que o Magnus tivera nas mãos.
Recordei-me da colecção que havia no apartamento dele. Incluía uma bengala-pistola, uma bengala-espadim, uma bengala com um óculo na extremidade e outra com uma cabeça de pássaro na pega. Em comparação esta era mais simples, com o habitual castão em prata no alto e as iniciais gravadas do comandante Lane. Fora ele o gerador da mania familiar por bengalas e eu recordava-me vagamente de me ter mostrado aquele exemplar em particular, há muito tempo numa ocasião em que estivera em Kilmarth. Continha um dispositivo qualquer, esquecera-me do que era, mas, carregando no castão para baixo soltava-se uma mola. Experimentei: nada sucedeu. Experimentei de novo e depois torci o castão, fazendo algo dar um estalido. Desenrosquei a pega, que se me soltou nas mãos revelando um diminuto contentor forrado a prata, apenas suficiente para comportar meio copinho de alguma bebida alcoólica, ou qualquer outro líquido. Fora enxugado, talvez por um pedaço de pano lançado fora ou enterrado quando Magnus iniciara o seu derradeiro passeio, mas eu sabia agora, com certeza absoluta, o que contivera.
Capitulo dezoito
O advogado, Herbert Dench, telefonou de novo durante a tarde exprimindo grande choque pela morte súbita do seu cliente. Informei-o de que o inquérito não seria provavelmente iniciado nos próximos dez ou quinze dias e sugeri que deixasse comigo as disposições a tomar em relação ao funeral, comparecendo na manhã da cremação. Concordou com isso para meu grande alívio, porque ele dava a impressão de ser aquilo que Vita designava por colarinho engomado" e, se tivéssemos sorte, teria o tacto de se ir embora no comboio da tarde, o que queria dizer que não teríamos de o aturar durante mais que um par de horas, mais ou menos.
- Não lhe estaria a roubar tempo, Mr. Youngdisse ele - se não fosse por respeito para com o falecido professor Lane, dadas as infelizes circunstâncias da sua morte e ainda pelo facto de o senhor ser beneficiário do testamento dele.
- Oh - exclamei, mais do que espantado -, não tinha conhecimento... - e senti esperanças de que se tratasse das bengalas.
- É algo que eu preferia não discutir pelo telefone - acrescentou o homem.
Foi só depois de ter pousado o auscultador que me dei conta de me encontrar em posição um tanto melindrosa, vivendo na casa do Magnus sem pagar renda e apenas por um acordo verbal. Poderia ser intenção do advogado expulsar-nos no mais curto espaço de tempo possível, talvez logo a seguir ao inquérito. Aquela ideia sobressaltou-me. Iria ele fazer mesmo semelhante coisa? Oferecer-me-ia para pagar renda, é claro, mas o homem poderia levantar quaisquer objecções, dizendo que a casa tinha de ser fechada ou entregue a agentes para ser vendida. Senti-me deprimido e bastante abalado, com a perspectiva de uma súbita mudança a piorar ainda mais a situação.
Passei o resto da tarde ao telefone, tomando disposições quanto ao funeral, após ter confirmado junto da Polícia que tudo se encontrava em ordem para poder avançar com ele e acabei por retribuir o telefonema do advogado, para lhe comunicar o que combinara. Nada daquilo parecia ter a ver com o Magnus. O que fizera o cangalheiro, o que entretanto tinha sucedido ao seu corpo, toda a parafernália relacionada com a morte antes de ele ser confiado às chamas não dizia respeito ao homem que tinha sido o meu amigo. Era como se se tivesse tornado parte desse mundo separado que eu conhecia, o de Roger, de Isolda.
Vita entrou na biblioteca quando estava a acabar de telefonar. Encontrava-me sentado à secretária do Magnus junto da janela, a contemplar o mar.
- Querido - disse-me ela -, tenho estado a pensar numa coisa - e veio postar-se atrás de mim, pousando-me as mãos nos ombros. - Quando o inquérito terminar, não achas que será preferível irmo-nos embora? Seria bastante difícil para nós continuarmos aqui, uma tristeza para ti e, de certa forma, o interesse esvaiu-se, não é?
- Qual interesse? - perguntei.
- Bem, ter-nos emprestado a casa, agora que Mag nus está morto. Não consigo evitar sentir-me intrusa e não temos de facto quaisquer direitos a continuar por cá. De certeza que seria bastante mais sensato se passássemos o resto das férias noutro lado, não achas? Estamos ainda no princípio de Agosto. O Bill disse-me pelo telefone como a Irlanda é amorosa. Descobriram um delicioso hotel em Connemara, um antigo castelo ou coisa parecida, com uma reserva de pesca.
- Aposto que sim - concedi. - Vinte guinéus por noite e cheio de compatriotas teus.
- Não sejas injusto! Ele só estava a procurar ser prestável. Considerou certo que tu quererias sair daqui.
- Bem, mas não quero - declarei. - A menos que o advogado corra connosco e isso é uma coisa diferente.
Disse-lhe que a cremação estava marcada para quinta-feira e que Dench compareceria, bem como, possivelmente, alguns colegas de Magnus. A perspectiva de ter convidados para o almoço ou para o jantar, ou até mesmo para passarem a noite, afastou-lhe as ideias da sugestão de irmos para a Irlanda, mas, como acabou por se verificar, fomos poupados ao pior de tudo, porque Dench e o assistente principal de Magnus, John Willis, preferiram vir juntos durante a noite de quarta- feira, assistirem à cremação, aceitarem o nosso convite para almoçar e regressarem a Londres no comboio da noite. Os rapazes foram fazer uma expedição de pesca durante todo o dia de quarta-feira, aos cuidados do obsequioso Tom.
Poucas recordações guardei da cerimónia da cremação, para além de ter pensado que o Magnus seria capaz de ter concebido um método mais simples de dispor do corpo por meio de produtos químicos, em vez de pelo fogo. Os nossos companheiros de luto, Herbert Dench e John Willis, eram muitíssimo diferentes do que imaginara. O advogado era grande, caloroso, nada pomposo, comeu um enorme almoço e regalou-nos, enquanto consumia o almoço fúnebre, com histórias sobre viúvas hindus que cometem sati nas piras funerárias dos maridos. Nascera na Índia e jurava que presenciara semelhante sacrifício quando ainda era bebé de colo.
John Willis parecia-se com um ratinho, de olhos vivos por detrás de óculos de aros de osso, e não ficava deslocado atrás da grade de um balcão de banco. Não conseguia visualizá-lo ao lado de Magnus, medicando macacos vivos ou dissecando-lhes as células do cérebro. Mal disse palavra. Não que isso significasse qualquer coisa, já que o advogado falou por todos nós.
Terminado o almoço, dirigimo-nos à biblioteca e Herbert Dench inclinou-se para a sua pasta de documentos para uma formal leitura do testamento, no qual aparentemente figurava John Willis, tal como eu. Vita ia para se retirar, com muito tacto, mas o advogado disse-lhe que ficasse.
- Não tem necessidade disso, Mrs. Young - proferiu, jovial. - É muito curto e vai direito ao que importa.
E tinha razão. Para além do fraseado legal, Magnus deixara todos os valores financeiros que possuía na altura da morte à sua Universidade, destinados a pesquisas na área da Biofísica. O apartamento de Londres e os seus haveres pessoais deveriam ser vendidos, revertendo o produto para a mesma causa, com excepção da sua biblioteca, que era legada a John Willis, em gratidão pelos
dez anos de colaboração profissional e amizade pessoal. Kilmarth, com todo o respectivo conteúdo, deixava-ma a mim para meu uso pessoal ou para dela dispor como desejasse, em memória de anos de amizade datada dos tempos de estudantes universitários e por causa de os anteriores ocupantes da mesma casa o terem com certeza assim desejado. E era tudo.
- Parto do princípio - afirmou o advogado a sorrir - que, por anteriores ocupantes, ele se estivesse a referir aos seus pais, o comandante e Mrs. Lane, que suponho que conhecia, não?
- Sim - confirmei atrapalhado -, sim, era muito amigo dos dois.
- Bom, aqui têm. É uma casa deliciosa. Espero que se venham a sentir felizes aqui.
Olhei para a Vita. Estava a acender um cigarro, sua usual defesa em momentos de choque súbito.
- Que... que coisa mais generosa da parte do professor - observou. - Nem sei mesmo o que hei-de di zer. Claro que depende do Dick ficar com ela ou não; Os nossos planos para o futuro estão de momento em vias de modificação.
Houve um momento de incómodo silêncio, enquanto Herbert olhava para cada um de nós dois.
- Naturalmente - comentou -, os senhores terão bastante que discutir sobre o assunto. Claro que têm a
noção de que a casa e o respectivo conteúdo terão de ser avaliados para efeitos de homologação testamentária. A propósito, gostaria de ser eu a tratar disso, se não for demasiado incómodo.
- Ora, com certeza.
Levantámo-nos todos e Vita disse:
- O professor possuía um laboratório na cave, um lugar quase alarmante... pelo menos era assim que os meus miúdos o consideravam. Acho que as coisas que lá se encontram não deveriam ser juntas à casa, mas sim devolvidas ao seu laboratório de Londres, não Lhes parece? Talvez Mr. Willis saiba o que são.
O seu rosto era todo inocência, mas fiquei com a im pressão de que a sua referência ao laboratório fora deliberada e que pretendia tomar conhecimento do que lá existia.
- Um laboratório? - indagou o advogado. - O professor costumava vir para cá trabalhar? - Dirigia-se a Willis.
O pequeno cara-de-rato pestanejou por detrás dos óculos de aros de osso.
- Duvido muito - disse desconfiado - e, se o fazia, seria coisa de reduzida importância científica, sem qualquer relação com o seu trabalho de Londres. Pode ter feito algumas experiências, só para se divertir em algum dia de chuva... de certeza nada mais, senão ter-me-ia falado nisso.
Bom homem. Se é que sabia de alguma coisa, não se iria comprometer. Senti que Vita estava prestes a dizer que eu lhe contara que o conteúdo do laboratório era de inestimável valor, portanto sugeri que deveríamos ir inspeccionar o recinto antes de visitarmos o resto da casa.
- Venha - disse a Willis -, o senhor é que é o perito. O compartimento era uma antiga lavandaria nos tempos do comandante Lane e Magnus guardava lá uma quantidade de frascos e vidros.
Olhou-me, mas sem dizer nada. Todos nos encaminhámos para a cave e eu abri a porta.
- Cá têm - disse-lhes. - Nada muito excitante. Só uma quantidade de frascos velhos, tal como lhes disse. O rosto de Vita era de cuidadosa observação ao olhar em torno de si. Espanto, descrença e depois um
rápido olhar de interrogação na minha direcção. Nenhuma cabeça de macaco, nenhuns embriões de gatinhos, apenas fileiras de frascos vazios. Teve a inteligência suprema de se manter em silêncio.
- Bom, bom - disse o advogado -, o avaliador é capaz de atribuir um valor de seis pence por unidade aos frascos. Que acha, Willis?
O biofísico arriscou um sorriso.
- Diria que a mãe do professor Lane é capaz de se ter servido disto aqui para guardar compotas, nos velhos tempos.
- Um fumeiro", não é assim que Lhe chamam? comentou rindo-se o advogado. - Onde as senhoras faziam conservas para todo o ano. Olhe para os ganchos no tecto! Talvez pendurassem também carnes. Grandes peças de presunto. Bem, Mrs. Young, isto pertence ao seu departamento, não ao do seu marido. Recomendo-lhe uma máquina eléctrica de lavar ali ao canto, para poupar na conta da lavandaria. Dispendiosa de instalar, mas paga-se a si mesma em poucos anos, uma vez que se tenha gente nova na família.
Voltou-se ainda a rir para o corredor e nós seguimo-lo. Fechei a porta atrás de mim. Willis, que vinha atrás, baixou- se para apanhar qualquer coisa do chão de pedra. Era o rótulo de um dos frascos. Deu-mo sem uma palavra e eu meti-o no bolso. Depois subimos as escadas para vermos o resto da casa, com Herbert Dench a fazer a notável sugestão de que, se quiséssemos transformar a propriedade num investimento, poderíamos dividi-la em pequenas suites para visitantes de Verão, conservando para nosso próprio uso a do quarto de dormir com vista para o mar. Continuava ainda a enaltecer a ideia junto de Vita enquanto deambulávamos pelo jardim. Vi Willis consultar o relógio.
- Já devem estar fartos de nós - declarou. - Eu tinha dito a Dench que poderíamos passar pela Esquadra Divisional de Liskeard, para respondermos a quaisquer perguntas que a Polícia pudesse querer fazer-nos. Se telefonasse a pedir um táxi, poderíamos ir já para lá e jantar em Liskeard mais tarde, antes de apanharmos o comboio da noite.
- Levo-os lá de carro - ofereci-me. - Espere, há uma coisa que lhe quero mostrar. - Subi as escadas e, poucos minutos depois, regressei com a bengala. - Isto encontrava-se perto do corpo do Magnus. Pertence a uma colecção que existe no apartamento de Londres. Acha que me deixarão ficar com ela?
- Com certeza - garantiu Willis -, e com as outras também. A propósito, fiquei bastante satisfeito por o senhor ter recebido esta casa e espero que não se livre dela.
- Não tenciono fazê-lo.
Vita e Dench continuavam a alguma distância no terraço.
- Parece-me - disse-me baixinho Willis - que faríamos melhor em contar mais ou menos a mesma história no inquérito. Magnus era um entusiasta dos passeios
a pé e querer fazer algum exercício após uma viagem de comboio era típico dele.
- Sim - concordei.
- A propósito, um jovem estudante amigo meu tem andado a investigar material histórico para o Magnus, no Museu Britânico e na Conservatória dos Registos Públicos. Quer que prossiga?
Hesitei.
- Pode ser útil. Sim... se ele descobrir alguma coisa,
peça-lhe que ma remeta para aqui.
- Assim farei.
Reparei pela primeira vez na sua expressão de perda,
de vazio, por detrás dos óculos de aros de osso.
- Que planos pessoais tem?
- Continuarei na mesma linha, ao que suponho afirmou. - Procurando prosseguir com o trabalho do
Magnus. Mas será difícil. Na sua qualidade de chefe e de
colega, ele é insubstituível. Talvez já se tenha apercebido disso.
- Pois já.
Os outros aproximaram-se e nada mais foi dito entre
Willis e eu. Depois de uma chávena de chá que nenhum
de nós queria, mas que Vita insistiu em servir-nos, Willis sugeriu que partíssemos para Liskeard. Percebia agora
por que motivo Magnus o havia escolhido como membro principal do seu pessoal. Para além da competência
profissional, lealdade e discrição eram qualidades que se
Lhe notavam por detrás do aspecto de ratinho.
Logo que nos vimos no carro, Dench perguntou se
seria possível descrevermos uma parte do percurso que
Magnus tomara na sexta-feira à noite. Conduzi-os ao
longo de Stonybridge, passando por Treverran e subindo
na direcção do portão próximo ao topo da colina e
apontando através dos campos para o túnel lá em baixo.
- Incrível - murmurou Dench -, absolutamente
incrível. E àquelas horas também devia estar escuro.
Não me agrada isto, sabe?
- Que quer dizer com isso? - indaguei.
- Bem, se para mim não faz sentido, para o delegado do Ministério Público também não fará, nem para o
júri. Irão enxergar algo por detrás de tudo isto.
- Que género de coisas?
- Uma espécie de compulsão para alcançar esse túnel. E, uma vez chegado lá, já sabemos o que sucedeu.
- Não concordo - interveio Willis. - Tal como diz, estava escuro àquelas horas, ou quase. O túnel não se distinguiria daqui, nem a linha. Creio que ele tinha a ideia de descer ao vale, talvez para dar uma olhadela àquela casa de lavoura do outro lado e, ao chegar ao final do campo, o viaduto da linha interferiu-lhe com a visão. Escalou o talude para descobrir a disposição do terreno e o comboio apanhou-o.
- É possível. Mas que coisa mais extraordinária!
- Extraordinária aos olhos da lei - afirmou Willis -, mas não aos do professor Lane. Era um explorador em todos os sentidos do termo.
Depois de os ter deixado na esquadra, regressei a casa. A casa... a palavra apresentava para mim um novo significado. Agora era a minha casa. Pertencia-me, tal como pertencera a Magnus. A tensão que me dominara durante o dia principiava a dissipar-se e o peso da depressão também. Magnus estava morto; nunca mais o voltaria a ver, a ouvir a sua voz, a desfrutar da sua companhia ou a ter consciência da sua presença na minha vida, mas o elo entre nós nunca seria interrompido, por a casa que fora a dele ser agora minha. Então não iria perdê-lo. Então não ficaria só.
Passei pela entrada de Boconnoc que em tempos antigos fora chamada Bockenod, antes de descer a colina para Lostwithiel e pensei no pobre Sir John Carminowe, já contagiado pela temida varíola, a cavalgar ao lado da desconfortável carruagem de Joanna Champernoune naquela ventosa noite de Outubro de 1331, para vir a morrer um mês mais tarde, tendo desfrutado da sua posição como guardião dos castelos de Restormel e Tremerton por escassos sete meses. Do outro lado de Lostwithiel tomei a estrada para Treesmill, a fim de ter uma vista mais de perto das quintas situadas do lado oposto do vale em relação à via férrea. Strickstenton ficava do lado
esquerdo da estreita via e, a julgar pela rápida olhadela
que lhe lancei do automóvel, era bastante antiga e aquilo
que um turista descreveria como pitoresco, As pastagens que lhe pertenciam inclinavam-se para baixo até um bosque.
Depois de me encontrar fora de vista da casa, saí do
carro e observei a via férrea, do outro lado do vale. Avistava-se distintamente o túnel e, no momento em que o
olhava, um comboio emergiu dele como uma cobra serpenteante, de cabeça amarelada, maldosa, abrindo o seu
caminho para além da quinta de Treverran e desaparecendo depois na parte mais baixa do vale. O comboio de
mercadorias que tinha matado Magnus surgira da direcção oposta, escalando os terrenos inclinados e sumindo-se no túnel, um réptil a procurar abrigo no subsolo enquanto Magnus, que não o vira nem ouvira, se arrastava
moribundo para a choupana que lhe ficava sobranceira.
Desci a contorcida vereda, reparando na existência à minha esquerda do desvio que, segundo julgava, conduzia
para lá da quinta Colwith até ao fundo do vale e ao que
restava do rio original. Em determinada época, antes de
a via férrea cortar os terrenos, devia ter existido ali um
caminho que ia de Great Treverran para o outro lado do
vale até à sua vizinha mais pequena, Little Treverran. As
duas quintas juntas deviam ter constituído a Tregest dos
Carminowes.
Continuei a descer até Treesmill e subi então a colina
para a cabina telefónica de Tywardreath. Liguei para o
número de Kilmarth e foi Vita quem atendeu.
- Querida - disse-lhe eu -, parece-me de má educação deixar o Dench e o Willis sozinhos em Liskeard,
por isso pensei esperar por lá até eles estarem despachados da Polícia e depois jantar com os dois.
- Ah, muito bem - concedeu ela. - Se tem de ser:
Mas não venhas tarde. Não é preciso esperares pelo comboio.
- É provável que não - concordei. - Tudo depende do que houver para discutir.
- Com certeza. Fico à tua espera.
Desliguei e voltei para o carro. Em seguida regressei a Treesmill e subi a serpenteante vereda, descrevendo desta vez a curva para Colwith. O caminho prosseguia para além da quinta, tal como eu pensara, tornando-se mais íngreme e terminando, por fim, num pequeno charco ao fundo da colina. Para a esquerda, do outro lado dum cercado para o gado, via- se a estreita entrada de Little Treverran. As casas em si encontravam-se fora de vista, mas havia uma tabuleta com letras que diziam: W. P. Kelly. Carpinteiro. "
Arrisquei-me a cruzar o charco e estacionei o carro fora de vista a partir do caminho, no campo ao lado, próximo de uma fileira de árvores e somente a umas centenas de jardas da linha do caminho-de-ferro.
Consultei o relógio. Passava um pouco das cinco. Abri a mala do automóvel e tirei dela a bengala que tinha guardado com a garrafa marcada A no quarto de vestir, antes de a mostrar a John Willis na biblioteca.

Capitulo dezanove
Estava a nevar. Os macios flocos caíam-me sobre a cabeça e mãos e o mundo à minha volta ficara de súbito branco, nada da luxuriante relva verde de Verão, nenhuma fileira de árvores, mas sim a neve a tombar com firmeza, ocultando-me as colinas. Não se viam quaisquer casas de lavoura à minha volta... nada a não ser o rio escuro a uns vinte pés de onde me encontrava e a neve, que se amontoara em ambas as margens, para escorregar para as águas à medida que os montículos ruíam com o peso, revelando a terra enlameada que ficava por baixo. Estava um frio mordente; não as rápidas e cortantes rajadas que varrem as terras altas, mas o gelo húmido de um vale onde o sol de Inverno não penetrava, nem os ventos sopravam. O silêncio era mortal, porque o rio ondulava ali perto sem produzir ruído e os enfezados salgueiros e amieiros que cresciam nas margens pareciam bonecos, com os seus braços estendidos, grotescos e informes devido aos fardos de neve que lhes pendiam dos membros. E sempre os flocos a caírem macios, descendo de um céu pálido que se fundia ao longe com as terras brancas.
O meu espírito, de costume claro depois de tomar a droga, estava estupidificado, desorientado. Esperara presenciar algo parecido com o dia de Outono de que me recordava da ocasião anterior em que Bodrugan fora afogado e Roger carregara o corpo a escorrer água na direcção de Isolda. Agora encontrava-me sozinho sem um guia; somente o rio a meus pés me dizia que estava no vale.
Segui o curso da corrente, hesitando como um cego, sabendo por instinto que, se mantivesse o rio à minha esquerda era porque me estava a deslocar para norte e a faixa de água estreitaria algures, as suas margens se aproximariam e encontraria uma ponte ou um vau que me levasse
ao outro lado. Nunca me tinha sentido tão indefeso e perdido. O tempo neste outro mundo tinha sido até então avaliado pela altura do Sol nos céus ou, como quando atravessara o vale de Lampetho à noite, pelas estrelas lá no alto. Mas agora, neste silêncio e sob a neve que tombava, não dispunha de meios para calcular se era
de manhã ou de tarde. Estava perdido, não no presente, com familiares marcos quilométricos à mão e a tranquilizante presença do meu carro, mas sim no passado.
Um primeiro som interrompeu o silêncio, um espadanar no rio lá adiante e, movendo-se com rapidez, vi uma lontra mergulhar da outra margem, pondo-se a nadar corrente acima. Um cão seguiu-a e depois um segundo e de pronto havia uma meia dúzia deles a latirem e a gritarem à beira rio, movendo-se e projectando água, à caça da lontra. Alguém soltou um berro, seguido por outro, e um grupo de homens apareceu a correr pelo meio da neve que caía na direcção do rio, a gritarem, a rirem-se, encorajando os cães. Reparei que provinham de um renque de árvores mesmo perto de mim, no ponto onde o curso de água se encurvava. Dois deles deslizaram com dificuldade pelo talude abaixo na direcção da água, batendo-a com os seus cajados, e um terceiro, empunhando um
longo chicote, fê-lo estalar no ar atingindo a orelha a um dos cães que continuava agachado na margem e obriganìdo-o a mergulhar atrás dos seus companheiros.
Aproximei-me mais para os observar e vi que o rio
se estreitava a cerca de cem jardas de distância, enquanto
para a esquerda, à entrada de um maciço de árvores, o terreno baixava e a corrente formava um lençol de água
como um lago em miniatura, com uma película de gelo à superfície.
De algum modo os homens e os cães, entre todos, conduziram a acossada lontra para o pequeno canal
que alimentava o lago e num momento estavam sobre ela,
os cães a latir, os homens a desferirem pancadas com os
cajados. Os animais debateram-se quando o gelo rachou, a superfície da água tingiu-se de vermelho e o sangue salpicou a película branca que cobria a escura corrente, enquanto a lontra, apanhada por fortes mandíbulas, era arrastada do buraco que demandara e rasgada em pedaços num ponto em que o gelo se mostrava mais firme.
O lago parecia ter pouca profundidade para os homens, que incitavam e chamavam os cães avançando sobre ele sem se importarem com a fenda que se propagava com rapidez de um lado ao outro da camada de gelo. À frente deles ia o do chicote comprido, que se destacava dos companheiros pela altura e roupas que envergava: uma sobrecasaca almofadada abotoada até à garganta e um alto barrete de pele de castor com o formato de cone, na cabeça.
- Ponham-nos em segurança - berrava - na margem do outro lado. Antes queria perder-vos a vocês todos do que a um só destes animais - e, curvando-se abruptamente no meio dos cães que ladravam, ergueu o que restava da lontra e atirou-a para a outra margem, para cima da neve amontoada. Os cães, aliviados da presa, agitaram-se escorregando no gelo para a irem recuperar onde agora jazia, enquanto os homens, menos ágeis que os animais e tolhidos pelas roupas que usavam, chafurdavam e esparrinhavam no gelo que se quebrava, gritando, praguejando, com os justilhos e os capuzes empapados de branco pelos flocos da neve que caía.
A cena era brutal, mas também macabra, já que o homem do barrete cónico, assim que viu os seus cães de caça a salvo, voltou a sua atenção, rindo, para os companheiros de infortúnio. Ainda que ele próprio estivesse encharcado até às coxas, trazia pelo menos botas a proteger-lhe os pés, enquanto os servos, como eu supunha que fossem, haviam alguns deles perdido os sapatos quando o gelo se partira e andavam a remexê-lo com mãos geladas, em busca deles. O amo, ainda a rir- se, regressou à margem e, tirando por um momento o chapéu cónico, sacudiu os flocos de neve antes de o voltar a pôr. Reconheci-lhe a face rude e a longa queixada, ainda que se encontrasse a uns vinte pés de distância. Tratava-se de Oliver Carminowe.
Fixou em mim o olhar e, embora a razão me dissesse que não me podia ver e eu não fazia parte do seu mundo, a forma como ali permanecia imóvel, de cabeça virada na minha direcção e sem prestar atenção aos servos que resmungavam, deu-me uma estranha sensação de desconforto, quase de pavor.
- Se queres falar, aproxima-te e diz-me o que queres - bradou. O choque do que pensava ter acabado de descobrir fez-me avançar para a margem do lago e depois, com alívio, vi Roger de pé a meu lado, para me servir como de costume de porta-voz e cobertura. Ignorava há quanto tempo ele estava ali. Devia ter caminhado atrás de mim ao longo da margem do rio.
- Saudações para si, Sir Oliver! - bradou ele. - As correntes subiram à altura dos ombros acima de Treesmill e também do seu lado do vale, assim me disse no barco a viúva de Rob Rosgof. Eu só queria saber como o senhor se encontrava e também Lady Isolda.
- Estamos bastante bem - respondeu o outro -, com bastante comida para aguentar um assédio de várias semanas, que Deus nos defenda disso! Pode ser que o vento mude dentro de um ou dois dias e nos traga chuva. Então, se a estrada não ficar inundada, partiremos para Carminowe. Quanto à minha senhora, mantém-se nos seus aposentos metade do dia, de mau humor, e pouca companhia me faz. - Falava, com desdém, sempre observando Roger; que se aproximava da margem do rio. - Se vai ou não comigo para Carminowe é com ela - continuou. - As minhas filhas obedecem à minha vontade, ainda que ela o não faça. A Joanna foi já prometida a John de Ardeva e, embora seja ainda uma criança, esmera-se e atavia-se diante do espelho como se fosse já uma noiva de catorze anos, amadurecida para o seu robusto marido. Podes contar isto à avó dela, Lady Champernoune, com os meus respeitos. Pode ter que lhe desejar felicidades não faltarão muitos anos. - Desatou às gargalhadas e depois, apontando para os cães de caça que esgaravatavam por entre as árvores, disse: - Se não receias atravessar o rio a vau num ponto onde a placa de gelo se foi abaixo, arranjar-te-ei uma garra de lontra, para presenteares Lady Champernoune com os meus cumprimentos. Pode ser que a faça recordar-se do seu irmão Otto, encharcado e cheio de sangue, e ela poderá pendurá-la nas paredes de Trelawn em memória do seu nome. A outra garra será oferecida à minha senhora com idêntica finalidade, a não ser que os cães a tenham engolido.
Virou as costas e encaminhou-se para as árvores chamando pelos cães, enquanto Roger, subindo a margem do rio a meu lado, atingiu uma grosseira ponte feita de troncos atados, tornados escorregadios pela neve que caía e mergulhando parcialmente nas águas. Oliver Carminowe e os seus servos ficaram a vê-lo pôr os pés na apodrecida ponte e, quando ela cedeu sob o seu peso fazendo-o escorregar e cair e encharcar-se até às coxas, rugiram em uníssono, esperando vê-lo voltar-se e agarrar-se à margem. Mas o administrador seguiu em frente com dificuldade, a água quase até à cintura, e atingiu o outro lado, seguindo-lhe eu a pista a seco. Encaminhou-se para junto do matagal onde Carminowe se encontrava de chicote na mão e disse:
- Levarei a garra da lontra, se ma confiar. Pensei que ia receber uma chicotada na cara e acreditei que estivesse à espera disso mesmo, mas Carminowe, a sorrir, de chicote erguido, fê-lo abater-se em vez disso no meio dos cães, obrigando-os a afastar-se do dilacerado corpo da lontra. Sacou a faca do cinto e cortou as duas garras que restavam.
- Tens mais estômago do que o meu administrador de Carminowe - afirmou. - Respeito-te por isso mesmo, se não por qualquer outra razão. Toma, leva a garra e pendura-a na tua cozinha de Kylmerth, entre os potes de prata e as travessas que de certeza roubaste do priorado. Mas primeiro sobe a colina connosco e apresenta os teus respeitos pessoalmente a Lady Carminowe. Ela é capaz
de preferir de vez em quando a companhia de um homem à do esquilo domesticado com que ocupa os seus dias.
Roger aceitou a garra, meteu-a na bolsa sem dizer nada e penetrámos no matagal, principiando a abrir caminho por entre as árvores pejadas de neve, caminhando com firmeza colina acima sem que eu fizesse a mínima ideia se seguíamos para a direita ou para a esquerda, perdido todo o meu sentido de direcção, sabendo apenas que o rio nos ficava atrás e a neve continuava a tombar.
Uma vereda delineada por altos montes de neve de ambos os lados conduzia a uma casa construída em pedra, no confortável aconchego da colina e, enquanto os servos de Carminowe ainda se debatiam atrás de nós, ele mesmo abriu a porta à nossa frente com um pontapé para penetrarmos num salão quadrado, sendo de imediato
saudados pelos cães domésticos que rastejaram para ele e pelas duas crianças, Joanna e Margaret, que vira da últi ma vez a cavalgarem os póneis durante a travessia do vau de Treesmill, numa tarde de Verão. Uma terceira, algo mais velha que as outras, com cerca de dezasseis anos de idade, que parti do princípio ser filha do primeiro casamento de Carminowe, mantinha-se sorridente junto da pedra da lareira, não o tendo beijado, mas fazendo sim um trejeito de lábios com petulante graça, ao ver que não se encontrava sozinho.
 - A preceptora, Sybell, que procura ensinar às minhas filhas melhores maneiras do que a mãe delas Lhes ensina - apresentou Carminowe.
O administrador curvou-se numa vénia e voltou-se para as duas miúdas que, após terem beijado o pai, lhe davam as boas- vindas. A mais velha, Joanna, tinha crescido e apresentava já sinais de orgulho de si própria a despontar, tal como seu pai havia afirmado, corando e afastando o cabelo longo de cima dos olhos enquanto soltava uma risadinha, mas a mais nova, a quem ainda faltavam alguns anos antes de se encontrar madura para o mercado matrimonial, estendeu a mãozinha para Roger e deu-lhe uma palmadinha no joelho.
- Prometeste-me um novo pónei da última vez que nos encontrámos - disse - e um chicote como o do teu irmão Robbie. Não ligo a homens que não cumprem a sua palavra.
- O pónei está à tua espera e o chicote também - respondeu Roger com ar sério -, se a Alice te levar ao outro lado do vale quando a neve derreter.
- A Alice foi-se embora - replicou a criança. - Agora é ela que cuida de nós - e apontou com um dedo desdenhoso para a preceptora Sybell -, e ela é demasiado vaidosa para montar na garupa atrás de ti ou do Robbie.
Parecia-se de tal modo com a mãe ao falar que a adorei só por isso e Roger também se devia ter dado conta da parecença, porque sorriu e lhe afagou o cabelo, mas o pai, irritado, disse com rispidez à miúda para ter tento na língua, senão iria para a cama sem cear.
- Anda cá, seca-te ao lume - mandou com brusquidão, pontapeando os cães para os afastar da frente -, e tu, Joanna, avisa a tua mãe de que o administrador atravessou o vale vindo de Tywardreath, trazendo um recado da sua senhora, se ela o quiser receber.
Tirou da casaca a outra garra da lontra e fê-la balançar na frente de Sybell.
- Achas que a ofereça à Isolda, ou queres usá-la tu para te aqueceres? - Brincou. - Em breve secará, ficando fofa e macia para a meteres dentro da tua túnica, a coisa mais parecida com uma mão de homem nas noites frias.
Ela soltou uma risadinha aguda e afectada, recuando enquanto o homem a perseguia a rir-se e vi, pela expressão dos olhos de Roger, que percebera o tipo de relacionamento existente entre o guardião e a preceptora. A neve poderia persistir por dias e semanas nos montes. Pouco incentivado estava agora o amo a regressar aos seus domínios de Carminowe.
- A minha mãe vai receber-te, Roger - anunciou Joanna, regressando ao salão, e atravessámos uma passagem que dava para um quarto.
Isolda encontrava-se de pé junto da janela, vendo a neve a cair enquanto um pequeno esquilo vermelho, com um sininho pendurado ao pescoço, estava sentado a seus pés sobre os quartos traseiros, arranhando-lhe o vestido. Quando entrámos, ela voltou-se e fitou-nos e, embora aos meus olhos parciais me tivesse parecido tão bela como sempre, apercebi-me com um choque de que estava muito mais magra, pálida e que uma madeixa branca se Lhe via na frente da cabeleira dourada.
- Fico muito contente por te ver, Roger - disse,
- Nos últimos tempos poucos têm sido os contactos entre as pessoas das nossas casas e é raro encontrarmo-nos em Tregest nos dias que vão correndo, como sabes muito bem. Como vai a minha prima? Tens alguma mensagem dela?
A sua voz, que eu recordava clara e dura, quase desafiadora, tornara-se chã, sem expressão no tom. Então, compreendendo que Roger lhe queria falar em privado, disse à filha Joanna que os deixasse a sós.
- Não trago qualquer mensagem, minha senhora afirmou Roger em voz baixa. - Os seus familiares estão em Trelawn, ou pelo menos estavam da última vez que recebi notícias deles. Vim por respeito para com a senhora, já que a viúva de Bob Rosgof me informou que se encontrava aqui e não muito bem.
 - Estou tão bem quanto alguma vez virei a estar - respondeu ela - e, quer seja aqui ou em Carminowe, os
 dias correm sempre na mesma.
- Isso é pessimismo, minha senhora - comentou
Roger. - Em tempos, tinha mais ânimo.
- Em tempos, é verdade - replicou -, mas nesses
 tempos eu era mais nova... Ia e vinha como me apetecia
porque Sir Oliver ficava com mais frequência em Westminster. Agora, por despeito por não ter obtido a posição de Sir John como guardião das florestas e parques
reais da Cornualha, como esperava, passa os seus dias
entretido com mulheres. A actual favorita é pouco mais
do que uma criança. Viste a Sybell?
- Vi, sim, minha senhora.
- É verdade que ela é preceptora. No caso de eu morrer seria uma situação muito conveniente para ambos, porque poderia desposá-la e instalá-la em Carminowe com toda a legalidade.
Baixou-se para pegar ao colo o esquilinho que se encontrava a seus pés e, sorrindo pela primeira vez desde
que entráramos no diminuto compartimento mobilado
como a cela de uma freira, disse:
- Este é agora o meu confidente. Come nozes da minha mão e olha-me sempre com sabedoria nos seus olhos
 brilhantes. - Depois, falando mais uma vez a sério, acrescentou: - Sou mantida prisioneira, sabes, tanto aqui como quando estamos em Carminowe. Impedem-me de enviar notícias a meu irmão, Sir William Ferrers, em Bere,
a quem a mulher diz que enlouqueci e que sou portanto
perigosa. Todos acreditam nisso. Doente de corpo de
 facto tenho estado e sofrendo dores, mas, até ao presente, isso não me fez enlouquecer.
 Roger aproximou-se da porta em silêncio, abriu-a e
escutou. Ouviam-se ainda gargalhadas no salão: a garra
 de lontra continuava a ser motivo de diversão. Voltou a fechar a porta.
- Não sei se Sir William acredita ou não - disse -, mas tem-se falado na sua doença e já desde há meses. Foi por isso que cá vim, minha senhora, para provar a mim mesmo que se trata de uma mentira e agora já sei que assim é.
Isolda, com o esquilo ao colo, parecia a sua filhinha Margaret ao fixar o olhar no administrador, avaliando a confiança que ele lhe poderia merecer.
- Em tempos não gostava de ti - declarou. - Tinhas um ar muito astuto, a olhar à tua volta em teu próprio proveito e, porque te convinha mais servir uma mulher em vez de um homem, deixaste que o meu primo Sir Henry Champernoune morresse.
- Minha senhora - redarguiu Roger -, ele estava mortalmente enfermo. Teria de qualquer das formas morrido dentro de poucas semanas.
- Talvez, mas a forma como se foi indicou uma pressa indevida. Ensinou-me uma coisa: que tivesse cuidado com as poções preparadas por um certo monge francês. Sir Oli ver tentará ver-se livre de mim por outros processos, uma adaga espetada ou o estrangulamento. Não esperará que a natureza me ponha fim à vida. - Deixou cair o esquilo no chão e, deslocando-se para junto da janela, olhou mais uma vez para o exterior, contemplando a neve que tombava ainda. - Antes que ele o faça - disse -, preferirei sair lá para fora e deixar-me morrer. Com a terra coberta como hoje está, depressa cairia gelada. Que achas, Roger? Levas-me às costas dentro de um saco até à borda do penhasco? Ficar-te-ia muito agradecida.
Dissera aquilo a gracejar, ainda que de forma algo distorcida, mas ele, atravessando o quarto para se colocar a seu lado, fitou a palidez do céu e franziu os lábios como se fosse assobiar.
- Posso fazê-lo, minha senhora - afirmou -, se tiver coragem para tanto.
- Se eu tiver coragem e tu tiveres meios - contrapôs ela.
Encararam-se, uma ideia tomando de repente corpo no espírito de ambos e ela disse, de forma brusca:
- Se me fosse embora daqui para casa de meu irmão em Bere, Sir Oliver não ousaria seguir-me porque nunca seria capaz de comprovar as suas mentiras quanto à minha doença mental. Mas, com este tempo, as estradas devem estar impraticáveis. Não seria capaz de alcançar Devon.
- Para já, não - disse ele -, mas logo que as estradas estejam em condições, conseguiremos.
- Onde é que me esconderias? - quis ela saber. - Ele só precisa de atravessar o vale para revistar os domínios de Champernoune acima de Treesmill.
- Que o faça - retorquiu Roger. - Encontrará a mansão encerrada e vazia, estando a minha senhora em Trelawn. Existem outros esconderijos, se se dispuser a confiar em mim.
- Tais como?
- A minha própria casa, Kylmerth. O Robbie está lá e a minha irmã Bess também. Não passa de uma quinta rústica, mas a senhora será lá bem recebida até que o tempo melhore.
Isolda nada disse por um momento e eu podia ver, pela expressão dos seus olhos, que ainda conservava ténues dúvidas sobre a integridade do administrador.
- É uma questão de escolha - acabou ela por dizer. - Permanecer aqui prisioneira, à mercê da disposição do meu marido, a quem tanto custa esperar para se ver livre de uma esposa que constitui uma duradoura censura ao seu comportamento e também um estorvo, ou então confiar-me à tua hospitalidade, que poderás recusar-me quando assim o decidires.
- Não tomarei tal decisão - retorquiu ele -, nem a hospitalidade será recusada, até a minha senhora assim o pretender.
Isolda voltou a olhar mais uma vez para a neve que
caía no exterior e para o céu que escurecia devagar, prenunciando não somente que o tempo iria piorar, como também a aproximação da noite, com todas as eventualidades de uma noite de Inverno.
- Estou pronta - afirmou e, escancarando uma arca encostada à parede, tirou dela uma capa com capuz, uma túnica de lã e um par de sapatos de couro que decerto nunca tinham servido fora de portas, excepto dentro de uma cobertura, quando montava a cavalo à amazona.
- A minha filha Joanna, que agora é maior do que eu, desceu desta janela há uma semana - disse ela -, depois de uma aposta com a Margaret, que afirmava que ela era gorda de mais. Eu na verdade sou bastante delgada. Que achas? Ainda pensas que me falta a coragem?
- Nunca lhe faltou, minha senhora - respondeu o administrador -, apenas o incentivo para a levar a tomar uma iniciativa. Conhece o bosque que fica por detrás dos pastos?
- Tenho obrigação de conhecer. Cavalguei por ele quase todos os dias, quando era livre para o fazer.
- Nesse caso feche a sua porta à chave depois de eu ter saído, desça pela janela e encaminhe-se para lá. Eu velarei para que o caminho esteja livre e toda a gente dentro de casa, e explico a Sir Oliver que a senhora me mandou embora e deseja estar só.
- E as miúdas? Joanna deve estar a imitar a Sybell, como tem feito no decorrer destas últimas semanas, mas a Margaret... - fez uma pausa, a coragem a faltar-Lhe.
- Se a perder, nada mais me restará.
- Apenas a sua vontade de viver - afirmou ele. - Se a conservar, conservará tudo. E as suas filhas também,
- Vai depressa - mandou a mulher -, antes que eu mude de ideias.
Ao sairmos do quarto ouvi-a fechar a porta à chave e, olhando para Roger, perguntei-me se ele saberia o que
tinha feito ao incitá-la a arriscar a vida e o futuro numa fuga que de certeza iria falhar. A casa pusera-se silenciosa. Caminhámos ao longo do corredor que dava para o salão, indo encontrá-lo vazio à excepção das duas crianças e dos cães. Joanna fazia piruetas diante do espelho, o longo cabelo penteado em tranças, com uma fita pelo meio delas que estivera pouco antes na cabeça de Sybell, enquanto Margaret se encontrava encavalitada num banco, com o chapéu cónico do pai na cabeça e o seu longo chicote numa das mãos. Olhou com severidade para Roger ao vê-lo entrar.
- Vê lá agora - disse-lhe -, vejo-me obrigada a fazer de conta com um banco em vez de um cavalo e arreios emprestados ao jeito de equipamento. Não te voltarei a recordar a falta de cumprimento das tuas promessas, meu aio.
- Nem eu precisarei que o faças - retorquiu ele.
- Eu sei quais são os meus deveres. Onde está o teu pai?
- Lá em cima - respondeu a criança. - Cortou o dedo ao aparar a garra da lontra e a Sybell está a tratar dele.
- Não te agradecerá que o incomodes - interveio Joanna. - Gosta de dormir antes de jantar e a Sybell canta para ele. Fá-lo cair no sono mais depressa e acorda com mais apetite. Ou pelo menos é o que diz.
- Não duvido - replicou Roger. - Nessas circunstâncias, agradeçam por favor em meu nome a Sir Oliver e dêem-lhe as minhas boas-noites. A vossa mãe está fatigada e não deseja ver ninguém. Talvez não se importem de o informar?
- Fá-lo-ei eu - anuiu Joanna -, se me lembrar.
- Eu digo-lhe - prometeu Margaret -, e também o irei acordar, se não descer pelas seis horas. Ontem à noite jantámos às sete e não posso esperar até tão tarde.
Roger desejou-lhes boas-noites a ambas e, abrindo a porta do salão, saiu para o exterior, fechando-a suavemente atrás de si. Sorrateiro, deu a volta para as traseiras da casa e escutou. Vinham sons da cozinha, mas as janelas e portas estavam bem fechadas e as portadas corridas. Os cães latiam nas casas das traseiras. Estaria escuro dentro de meia hora ou até mais cedo. O bosque abaixo dos campos já se mostrava sombrio, envolto na neve, e as colinas do outro lado apresentavam-se difusas e nuas sob o céu cinzento. As pegadas que deixáramos ao subir para a casa quase haviam sido apagadas pela neve recente, mas, ao lado, viam-se novas marcas muito próximas, como as produzidas por uma criança que, correndo para encontrar abrigo, o houvesse feito em pontas de pés, como uma bailarina. Roger cobriu-as com os seus próprios passos longos, remexendo o terreno, pontapeando a neve à sua frente enquanto caminhava depressa pela colina abaixo na direcção do bosque. E agora, se alguém se aventurasse no exterior antes do anoitecer, nada avistaria a não ser os rastos por ele mesmo deixados e que, mesmo assim, estariam apagados dentro de menos de uma hora.
Ela esperava-nos junto à entrada do bosque, com o seu esquilo de estimação e de capa apertada em torno do corpo e capuz puxado para o queixo. Mas o longo vestido, que tentara apertar para cima sob a capa cintada, voltara a escorregar-lhe até aos tornozelos e pendia-lhe à volta dos pés como uma sanefa encharcada. Sorria, como o faria sua filha Margaret se se tivesse metido também numa aventura, com a promessa de um pónei no final, em vez do sombrio desconhecido.
- Vesti a minha camisa de noite ao travesseiro disse ela -, e puxei-lhe os cobertores por cima. Pode ser que os engane durante um pedaço no caso de arrombarem a porta.
- Dê-me a sua mão - pediu Roger. - Não se preocupe com as saias e deixe-as arrastar. A Bess arranjar-lhe-á roupas quentes lá em casa.
Ela riu-se e meteu a mão na dele e, quando o fez, eu senti-me como se também a tivesse metido na minha e ambos estivéssemos a avançar, arrastando-a pela neve; como se ele já não fosse um administrador ao serviço de outra mulher e eu um fantasma de um mundo posterior, mas ambos homens que partilhassem um propósito e um amor igualmente comuns que nenhum de nós, no tempo dele ou no meu, alguma vez se atreveria a confessar.
Ao atingirmos o rio e a ponte apodrecida que jazia meio quebrada no meio da corrente, ele disse-lhe:
- Terá de confiar mais uma vez em mim e permitir que a leve ao colo, como faria a uma das suas filhas.
- Mas, se me deixares cair - observou ela -, não me agarrarei à tua cabeça como a Margaret faria.
Roger soltou uma gargalhada e transportou-a em segurança para o outro lado, encharcando-se mais uma vez quase até à cintura. Continuámos a avançar pela pequena fileira de amortalhadas e enfezadas árvores, o silêncio em torno de nós já não ominoso como tinha sido quando caminháramos sozinhos, mas sim penetrado por uma espécie de magia e também uma estranha excitação.
- A neve deve estar mais espessa no vale à volta de Treverran - informou ele - e, se o Ric Treverran nos avistar, pode não conseguir calar a boca. Terá forças para atravessar o espaço aberto e trepar a colina até à vereda lá do alto? O Robbie aguarda-me aí com os póneis. Decidiremos com qual dos dois desejará montar à garupa. Eu sou o mais cauteloso.
- Nesse caso escolherei o Robbie - anunciou ela.
- Esta noite disse adeus às cautelas e para sempre. Voltámos à esquerda e principiámos a escalar a colina a seguir ao vale, deixando o rio para trás, e os meus companheiros, com neve até aos joelhos a cada passo que davam, progredindo laboriosa e lentamente.
- Espere - disse Roger, largando-lhe a mão -, pode a neve deslizar antes de chegarmos ao caminho - e  mergulhou em frente, varrendo-a para os lados com ambas as mãos de maneira que, por um momento, enquanto avançava isolado para terras mais elevadas, fiquei sozinho com ela e pude por um breve instante fixar-lhe a pequena, pálida e resoluta face por baixo do capuz.
- Corre tudo bem - chamou ele. - A neve aqui é mais firme. Vou buscá-la.
Vi-o voltar-se e avançar, meio a escorregar pela encosta na direcção da mulher, e pareceu-me de súbito que dois homens se moviam ali, não um só, ambos a estenderem as mãos para se apoiar na subida. Devia ser o Robbie, tendo ouvido a voz do irmão, que descera da vereda sobranceira.
O instinto avisou-me de que não deveria mover- me, não deveria subir, mas sim deixá-la adiantar-se sozinha para Lhes agarrar as mãos estendidas. Afastou-se de mim e perdi-a de vista, tal como a Roger e também ao terceiro vulto sombrio, numa repentina queda de neve que os ocultou a todos. Fiquei ali a tremer, os arames entre mim e a linha, e não era a neve que branqueava as colinas fronteiras e o alto talude, mas sim as lonas cinzentas pendentes dos vagões do comboio de mercadorias, que estrondeava arrastando-se pesadamente pelo túnel.
Capitulo vinte
A autopreservação é um instinto comum a todos os seres vivos, ligado talvez a esse outro cérebro mais velho que Magnus afirmara fazer parte da nossa herança natural. Claro que, no meu caso, fora o instinto que transmitira o sinal de perigo; senão teria morrido como ele morrera e pelos mesmos motivos. Recordo-me de ter cambaleado às cegas para longe do talude da linha de caminho-de-ferro, buscando a protecção do passadiço onde o gado se abrigara, e de ter ouvido o trovão por cima da cabeça quando os vagões percorreram a linha na direcção do vale. Atravessei depois uma vedação, encon trando-me num campo ao lado de Little Treverran, lar do carpinteiro, e continuei até alcançar o campo onde deixara o automóvel.
Não tive náuseas nem vertigens: o instinto para despertar" poupara-me e salvara-me a vida, mas sentei-me encolhido atrás do volante, ainda todo a tremer, perguntando-me se, no caso de Magnus e eu nos termos aventurado juntos naquela noite de sexta-feira, se teria verificado aquilo que os repórteres gostam de designar por dupla tragédia. Ou teríamos sobrevivido os dois? Agora era impossível prová-lo. A oportunidade de vaguearmos os dois noutra época perdera-se para sempre. Uma coisa sabia eu que nunca ninguém viria a saber: o motivo por que ele morrera. Estendera a mão para auxiliar Isolda a caminhar na neve. Se o instinto o tivesse advertido para o não fazer, tê-lo-ia ignorado, ao contrário de mim, e demonstrara portanto maior coragem.
Passava das sete e meia quando pus o carro em marcha e, ao atravessar o charco continuava a ignorar até onde fora durante aquela excursão ao outro mundo, ou qual das quintas ou dos sítios antigos era afinal Tregest. De algum modo, isso já não importava. Isolda escapara e, nessa noite de Inverno de 1332, ou talvez 33, ou mesmo mais tarde, dirigira-se a Kilmarth. Ainda poderia descobrir se lá chegara ou não. Não de momento, nem amanhã, mas um dia... O meu objectivo imediato deveria ser conservar as forças e o estado de vigilância mental para o inquérito e, acima de tudo, acautelar-me com os efeitos colaterais da droga. Não me ajudaria aparecer em tribunal com os olhos raiados de sangue e suores inexplicáveis, sobretudo com o olhar experiente do Dr. Powell assestado sobre mim.
Não me apetecia comer e, ao chegar a casa cerca das oito e meia, depois de estacionar o carro ao cimo da colina para passar o tempo, gritei a Vita que tínhamos todos jantado mais cedo no hotel de Liskeard e estava morto de sono, desejando ir para a cama. Ela e os rapazes estavam a jantar na cozinha e fui direito para o andar superior sem os perturbar, guardando a bengala no armário do quarto de vestir. Sabia agora, no autêntico sentido da palavra, o que era levar aquilo a que se chamava uma vida dupla, Abengala, as garrafas fechadas na mala eram como chaves do apartamento de uma mulher, para serem usadas quando se me oferecesse uma oportunidade, mas, ainda mais tentador que isso e também mais insidioso, era o secreto conhecimento de que essa mesma mulher poderia encontrar-se sob o meu próprio tecto naquele preciso momento, naquela noite, mas no seu tempo.
Estendi-me na cama, de mãos por detrás da cabeça, a imaginar como Robbie e a sua irmã de cabelo desgrenhado chamada Bess teriam recebido a visitante. Primeiro, roupas quentes para Isolda e comida diante da lareira fumarenta, os jovens de boca calada na presença dela; Roger a desempenhar o papel de anfitrião. Depois, subia para a cama por aquele escadote acima até um dos colchões cheios de palha, ouvindo o gado a mover-se e escoucear nos estábulos por baixo dela. O sono depressa viria por causa da exaustão, mas era mais provável que tardasse devido à estranheza de tudo aquilo que a rodeava e por estar a pensar nas filhas, perguntando-se se alguma vez as voltaria a ver.
Fechei os olhos, procurando visualizar aquela escura e fria alcova. Correspondia, sem dúvida, ao pequeno quarto de dormir por cima da cave, usado noutros tempos pela infeliz cozinheira de Mrs. Lane e hoje em dia cheio de malas postas de parte e caixas de cartão. Como estaria Roger tão perto, na cozinha lá de baixo! Como era inatingível, tanto como agora!
- Querido.
Era Vita que se inclinava sobre mim. A fantasia e aconfusão combinaram-se, fizeram-na parecer outra e quando a puxei para baixo, para o meu lado, não era a mulher viva e legítima esposa que eu abraçava, mas sim o fantasma daquela que buscava e sabia, na realidade e no presente, nunca me poder corresponder. Quando por fim abri os olhos (porque devo ter ficado tonto durante um bocado), ela estava sentada no banquinho diante do toucador, a pôr creme na cara.
- Bem - disse-me sorridente e olhando-me pelo espelho -, se é essa a forma de celebrares a tua herança desta casa, sou totalmente a favor.
A toalha que tinha enrolada à volta da cabeça ao jeito de turbante e a máscara de creme conferiam-lhe o aspecto de um palhaço e senti-me de súbito revoltado com aquele mundo de bonecos em que me encontrava, sem desejar fazer parte dele, nem agora, nem amanhã, nem em nenhuma altura. Senti vontade de vomitar. Saí da cama e anunciei:
- Vou dormir no quarto de vestir.
Ela arregalou os olhos para mim, como buracos na máscara.
- Que diabo é que se passou? - indagou. - Que foi que eu fiz?
- Não fizeste nada - respondi. - Apenas quero dormir sozinho.
Atravessei a casa de banho na direcção do quarto de vestir e ela seguiu-me, a estúpida camisa de noite que usava na cama a esvoaçar-lhe à volta dos joelhos, condi zendo grotescamente com o turbante. Ocorreu-me então pela primeira vez que o verniz das unhas das mãos dela as fazia parecer com garras.
- Não acredito nada que tenhas estado com esses homens - disse-me. - Deixaste-os em Liskeard e estiveste a beber num pub qualquer. Foi isso, não foi?
- Não - retorqui.
- Alguma coisa mesmo assim se passou. Tu esti veste noutro sítio qualquer, não me estás a contar a verdade. Tudo o que dizes e fazes é uma grande mentira. Mentiste ao advogado a respeito do laboratório e a esse Willis, mentiste à Polícia acerca da forma como morreu o professor. Pelo amor de Deus, que é que está por detrás disso tudo? Fizeram algum pacto secreto entre os dois, em que ele se mataria e tu soubeste sempre disso?
Pus-lhe as mãos nos ombros e comecei a empurrá- la para fora do quarto.
- Eu não estive a beber. Não havia nenhum pacto suicida. O Magnus foi por acidente de encontro a um comboio de mercadorias que ia a entrar num túnel. Estive junto dessa linha há uma hora atrás e quase ia fazendo o mesmo. Essa é a verdade e, se a não quiseres aceitar, será uma pena. Não te posso obrigar. - Cambaleou contra a porta da casa de banho e, ao virar-se para me fitar, vi-lle no rosto uma nova expressão, não de cólera mas sim espanto e também desprazer.
- Tu foste pôr-te lá - perguntou -, no sítio ond ele morreu? Foste lá de propósito, à espera de ver aparecer um comboio que te poderia também ter morto?
- Sim.
- Então vou dizer-te o que penso. Penso que isso
não é saudável, é mórbido, louco e o pior foi tu seres
 capaz de, após semelhante experiência, vires para aqui
e fazer amor comigo. Isso é que não vou esquecer nem
 perdoar. Portanto, pelo amor de Deus, faz o favor de
 dormir no quarto de vestir. É preferível.
Bateu com a porta da casa de banho e apercebi-me
então de que não se tratava de mais uma atitude de mau
génio, por impulso, mas de algo fundamental, brotando-lhe do íntimo dos sentimentos, sob o efeito de um choque desmedido. Compreendi-a, até lhe dei crédito por
isso e fui dilacerado por uma estranha e desarticulada
piedade, mas nada podia dizer nem fazer.
Encontrámo-nos na manhã seguinte, não como marido e mulher à beira de mais outra desavença matrimonial, mas como estranhos que, pela força das circunstâncias, se haviam visto obrigados a partilhar um tecto em
comum: vestirem-se, comerem, deambularem de compartimento em compartimento, fazerem planos para aquele
dia, trocar brincadeiras com os miúdos, gerados pelo
corpo dela e não pelo meu, tornando assim a divisão
mais completa. Senti a profunda infelicidade dela, tive
consciência de cada suspiro, cada passo arrastado, cada
fatigada inflexão de voz e os rapazes, conscientes como
animaizinhos da mudança de atmosfera, vigiavam-nos a
ambos com olhos surpresos.
 - É verdade - indagou Teddy com um olhar matreiro, ao apanhar-me sozinho - que o professor te deixou a casa a ti?
-É, sim. Inesperadamente, mas foi uma grande
atenção da parte dele.
- Quer dizer que viremos para aqui nas férias?
- Não sei, tudo depende da Vita - respondi.
Ele começou a mexericar em coisas que estavam sobre as mesas, pegando nelas e voltando a pousá-las, depois a pontapear sem objectivo as costas das cadeiras.
- Não me parece que a mamã goste disto - comentou.
- E tu? - perguntei.
-Não está mal - disse encolhendo os ombros. Ontem, por causa da pescaria e do genial Tom: entusiasmo. Hoje, com a disposição estranha dos adultos: apatia e insegurança. Por minha culpa, é claro. Tudo o que se passava naquela casa era por minha culpa. Mas não lho podia dizer, nem pedir-lhe desculpas.
- Não te preocupes - disse-lhe. - Tudo se resolverá. Vocês irão talvez passar o Natal a Nova Iorque.
- Nós... Que bestial! - exclamou, correndo para o terraço a gritar por Micky, que se encontrava lá fora.
- O Dick disse que poderemos passar as próximas férias em casa!
O júbilo que o seu jovem irmão ecoou resumiu a atitude conjunta dos dois para com a Cornualha, a Inglaterra, a Europa, sem dúvida também para com o seu padrasto.
Atravessámos mal ou bem o fim-de-semana, embora o tempo não tivesse estado bom, tornando tudo mais difícil e, enquanto os rapazes se divertiam na cave com uma espécie de jogo com raquetes (ouvia as bolas baterem contra as paredes lá em baixo) e Vita escrevia uma carta de dez páginas a Bill e Diana para a Irlanda, passei em revista todos os livros de Magnus, desde as histórias marítimas dos tempos do comandante Lane até às suas preferências mais pessoais, tocando em cada um deles com possessivo orgulho. O terceiro volume da Históré Paroquial do Condado da Cornualha (de a N, não havendo sinais dos outros volumes) estava enfiado por detrás da História dos Fazedores de Ventos e tirei-o para fora para passar os olhos pelo índice de paróquias. Figurava nele Lanlivery e, no capítulo que lhe era dedicado; o castelo de Restormel figurava em lugar de honra. Para azar de Sir John, os seus sete meses de funções como guardião não eram referidos. Ia recolocar o livro no lugar, com a intenção de o ler por completo noutra ocasião, quando uma linha no alto da página me chamou a atenção:
A mansão de Steckstenton ou Strickstenton, na origem chamada Tregesteynton, pertenceu de início aos Carminowes de Boconnoc, tendo passado deles para os Courtenays e, eventualmente, para os representantes da família Pitt. A propriedade de Strickstenton pertence ao Sr. N. Kendall.
Tregesteynton... os Carminowes de Boconnoc. Tinha
- enfim descoberto, mas demasiado tarde. Se o tivesse sabido há dez dias atrás, se ambos tivéssemos sabido,
Magnus poderia ter atravessado o vale mais abaixo, em
Treesmill, e não teria morrido. Quanto à mansão senhorial original, situara-se sem dúvida por baixo da actual casa de lavoura; ora eu, ao atravessar aí o tempo na última quinta-feira à noite, devia ter sido visto pelos actuais
proprietários.
Strickstenton... Tregesteynton. Uma coisa era certa:
ser-me-ia possível referir esse nome em tribunal, no caso
de ser interrogado a tal respeito pelo delegado do Ministério Público.
A data do inquérito foi fixada para sexta-feira de manhã (mais cedo do que eu esperara). Dench e Willis fariam como da outra vez: viajariam de comboio durante
a noite e regressariam depois de tudo terminado. Estava
a congratular-me enquanto me barbeava, no dia do inequérito, por não ter sofrido quaisquer efeitos colaterais
derivados das drogas: nada de suores, nem olhos raiados
de sangue e, a despeito do distanciamento de Vita, tinha
passado em paz os derradeiros dias, quando de súbito,
sem motivo, a navalha me caiu da mão para a bacia do
lavatório. Tentei pegar nela e os meus dedos não se
coordenaram; estavam entorpecidos, com uma espécie de cãibras. Não tinha sensações nem dores... apenas não funcionavam. Disse a mim mesmo que era dos nervos, devido à provação que se aproximava e contudo ao pequeno-almoço, quando estendi a mão sem reflectir para uma chávena de café, ela escorregou-me, derramou-se e partiu-se no tabuleiro.
Estávamos a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar para chegarmos a tempo ao inquérito e Vita encontrava-se sentada à minha frente.
- Desculpa - disse eu. - Que coisa mais desastrada eu havia de fazer.
Arregalou os olhos para a minha mão, que começara a tremer, parecendo que os estremecimentos me iam do pulso ao cotovelo. Não os conseguia controlar. Enfiei a mão no bolso do casaco e mantive-a encostada ao corpo, para aliviar o tremor.
- Que é que tens? - perguntou ela. - A tua mão estava a tremer.
- São cãibras - afirmei. - Devo ter-me deitado sobre ela durante a noite.
- Bem, então sopra-Lhe, ou outra coisa qualquer aconselhou-me. - Estica os dedos para restabeleceres a circulação.
Começou a enxugar o tabuleiro e serviu-me outra chávena de café. Bebi-a servindo-me da mão esquerda, mas o apetite fugira-me. Gostaria de saber como é que iria conduzir o automóvel, com uma das mãos a tremer, ou inutilizada. Tinha dito a Vita que preferia comparecer sozinho ao inquérito, porque não havia qualquer razão para ela ir comigo, mas, ao aproximar-se o momento de partir, a minha mão continuava inutilizada, ainda que os tremores houvessem cessado.
- Olha, parece-me que terás de me levar a St. Austell - pedi. - A minha mão direita continua com esta cãibra infernal.
A calorosa simpatia que ela exibiria uma semana antes não se revelava agora.
- Claro que te levo - replicou -, mas isso de teres tido de repente uma cãibra é bastante esquisito, não te parece? Nunca as tinhas tido. Será melhor conservares a mão metida no bolso, senão o delegado é capaz de pensar que estiveste a beber.
Não era comentário que pudesse contribuir para me pôr à vontade e o próprio facto de ter de me sentar no lugar do passageiro, instalado ao lado de Vita enquanto ela conduzia, em vez de eu mesmo me encontrar ao volante, prejudicou algo o meu auto-respeito. Sentia-me incapacitado, frustrado e principiava a perder o fio às respostas ao delegado que ensaiara com tanto cuidado.
Ao chegarmos a White Hart e depois de nos encontrarmos com Dench e Willis, Vita pediu, sem que fosse necessário, desculpa pela sua presença, anunciando:
- O Dick está incapacitado de guiar. Tive de lhe servir de motorista - e todo o maldito caso foi então explicado. Pouco tempo houve para tagarelices e encaminhei-me com os outros para o edifício onde deveria decorrer o inquérito, enquanto o delegado do Ministério Público, sem dúvida um indivíduo bastante pacato na sua vida privada, assumia a meus olhos o aspecto de juiz de tribunal criminal, e o júri parecia decididamente composto por pessoas prontas a considerar culpado qualquer prisioneiro.
Iniciaram-se os procedimentos com a apresentação das provas policiais quanto à descoberta do corpo. Foram bastante objectivos, mas, enquanto ouvia a história, pensava como era estranho que ouvidos alheios a tivessem de ouvir e como sugeria que alguém, durante uma perca temporária da razão, tinha sido impelido para a sua própria destruição. Foi então chamado a depor o Dr. Powell. Leu a declaração naquela voz clara e displicente que de repente me fez lembrar as dos jovens padres a divertirem-se em Stonyhurst.
- Tratava-se do corpo bem conservado de um ho mem com cerca de quarenta e cinco anos de idade. Quando a princípio o examinei, à uma da tarde de sábado, 3 de Agosto, a morte ocorrera há mais ou menos catorze horas. A autópsia, executada no dia seguinte, mostrou ferimentos e lesões superficiais no braço e ombro e extensiva laceração do lado direito do couro cabeludo. Por baixo havia uma fractura deprimida da região parietal direita do crânio, acompanhada por laceração do cérebro e hemorragia proveniente da artéria meníngica média do lado direito. O estômago continha cerca de um quartilho de alimentos e fluido misturados, os quais, após subsequente análise, revelaram não incluir nada de anormal, nem álcool. Amostras de sangue examinadas também eram normais e o coração, pulmões, fígado e rins também estavam todos normais e saudáveis. Na minha opinião, a morte deveu-se a hemorragia cerebral em consequência de pancada fortemente contundente na cabeça.
Descontraí-me no lugar, durante um instante liberto da tensão, perguntando-me se John Willis faria o mesmo, ou se nunca tivera motivos para preocupações.
O delegado perguntou então ao Dr. Powell se os ferimentos no cérebro eram consistentes com aquilo que se poderia esperar no caso de o falecido ter entrado em contacto violento com um veículo de passagem, a saber, o vagão de um comboio de mercadorias.
- Sim, em definitivo - foi a resposta. - Ponto de alguma importância é que a morte não foi instantânea. Ele dispôs de forças suficientes para se arrastar algumas jardas para dentro da barraca. O golpe na cabeça bastou para lhe provocar severa concussão, mas a morte por hemorragia em si veio talvez cinco a dez minutos depois.
- Muito obrigado, Dr. Powell - disse o delegado e ouvi-o chamar pelo meu nome. Pus-me em pé, perguntando-me se o facto de a minha mão direita estar metida no bolso me não daria um aspecto demasiado informal, ou se na realidade alguém reparara.
- Mr. Young - disse-me o delegado. - Tenho aqui o seu depoimento e proponho-me lê-lo ao júri. Interrompa-me, se houver qualquer coisa que pretenda corrigir.
A declaração, tal como ele a leu, fazia-me parecer insensível, como se tivesse estado mais preocupado em perder o jantar do que com a segurança do meu convidado. O júri ficaria com a impressão de eu ser um indolente, daqueles que passam as horas da noite com uma almofada por detrás da cabeça e uma garrafa de uísque ao lado do cotovelo.
- Mr. Young - proferiu o delegado, depois de ter terminado a leitura -, não lhe ocorreu contactar a Polícia na sexta-feira à noite. Por que motivo?
- Achei desnecessário - repliquei. - Continuava com esperanças de que o professor Lane aparecesse.
-Não ficou surpreendido por ele ter saído do comboio em Par e ter dado uma caminhada, em vez de se vir encontrar consigo em St. Austell, como fora combinado?
- Fiquei surpreendido, sim, mas fazia parte da sua maneira de ser. Se tivesse algum objectivo em vista, iria até ao fim. Tempo e pontualidade nada significavam para ele nessas ocasiões.
- E qual pensa que fosse o objectivo específico do professor Lane na noite em questão? - quis ele saber.
-Bem, ele tinha-se interessado pelas referências históricas do distrito e pelas localizações de casas senhoriais. Tínhamos planeado fazer uma visita a algumas delas no decorrer do fim-de-semana. Ao ver que não aparecia, parti do princípio de que devia ter decidido dar um passeio até algum local em particular, do qual não me houvesse falado. Desde que prestei o meu depoimento à Polícia, creio ter localizado o sítio que tinha em vista.
Pensara que aquilo iria provocar um movimento de interesse entre os membros do júri, mas permaneceram imóveis.
- Talvez não se importe de nos falar dele - sugeriu o delegado.
- Sim, com certeza - anuí, com a confiança a regressar-me e abençoando interiormente a História Paroquial. - Acredito agora, o que não sucedia na altura, que ele estava a procurar localizar a antiga mansão de Strickstenton, na paróquia de Lanlivery. Essa mansão pertenceu em tempos a uma família chamada Courtenay
- era conveniente não mencionar os Carminowes, por causa da Vita -, que também era proprietária de Treverran. O caminho mais rápido entre essas duas casas, em linha recta, seria atravessar o vale acima da actual quinta de Treverran e caminhar pelo bosque na direcção de Strickstenton.
O delegado mandou vir um mapa da região, que examinou com atenção.
- Estou a ver o que quer dizer, Mr. Young - declarou. - Mas suponho que existe uma passagem por baixo da via, que o professor Lane podia ter tomado em vez de atravessar a própria linha.
- Sim - anuí -, só que ele não tinha mapa. Podia não ter conhecimento da sua existência.
- Portanto cortou pela linha, a despeito do facto de estar àquela hora bastante escuro e vir um comboio de mercadorias a subir o vale?
- Não creio que a escuridão o tivesse preocupado. E é óbvio que não ouviu o comboio... ia muito concentrado nas suas pesquisas.
- Tão concentrado, Mr. Young, que passou deliberadamente por cima do arame e desceu o talude íngreme no momento em que o comboio vinha a passar?
- Não creio que tenha descido o talude. Escorregou e caiu. Não se esqueça de que nessa altura estava a nevar.
Levei um momento ou dois a recuperar, sentindo o suor brotar-me na testa.
- Desculpe - continuei. - Fiz confusão. O facto é que o professor Lane se interessava bastante pelas condições climatéricas no decorrer da Idade Média. A sua teoria era que os invernos eram muito mais duros nesses tempos do que são agora. Antes de a via do caminho-de-ferro ter sido aberta através da encosta da colina sobranceira ao vale de Treesmill, o terreno devia inclinar-se sempre até ao fundo e os nevões deviam ter aí particular incidência, tornando a comunicação entre Treverran e Strickstenton impossível. Acredito, mais do ponto de vista científico do que do histórico, que ele pensava tanto nisso, na inclinação geral do terreno que o rodeava e em como teria sido afectado pela queda de neve, que se esqueceu de tudo o mais.
Os rostos incrédulos continuavam a fitar-me e reparei num homem que acotovelava o seu companheiro do lado, querendo dizer que ou eu era um perfeito lunático, ou tinha-o sido o professor Lane.
- Muito obrigado, Mr. Young, é tudo - disse o delegado e sentei-me, vertendo suor e com um tremor a disparar-me pelo braço abaixo, do cotovelo para o pulso.
Ele chamou então John Willis, que declarou que o seu falecido colega se encontrava da melhor saúde e boa disposição quando o vira antes do fim-de-semana, que se dedicava a trabalhos de grande importância para o país, sobre os quais não tinha a liberdade de se pronunciar, mas que, era óbvio, não tinham qualquer relação com a sua visita à Cornualha, de natureza privada e decorrendo de um passatempo pessoal, sobretudo de natureza histórica.
- Devo acrescentar - disse - que estou inteiramente de acordo com a teoria de Mr. Young sobre a forma como o professor Lane encontrou a morte. Não sou antiquário nem historiador, mas é certo que o professor Lane tinha as suas teorias sobre a extensão dos nevões em séculos anteriores... - e prosseguiu durante cerca de três minutos, lançando-se num calão tão incompreensível e acima da minha capacidade de compreensão e da de todos os presentes, que o próprio Magnus não poderia tê-lo ultrapassado, se após um estrondoso jantar, se dispusesse à imitação, do género de material publicado nos mais obscuros jornais científicos.
- Muito obrigado, Mr. Willis - murmurou o delegado quando ele terminou. - É muito interessante. Todos agradecemos essas informações.
Os depoimentos estavam concluídos. O delegado do Ministério Público, fazendo uma súmula do caso, declarou que, embora as circunstâncias fossem invulgares, não via motivos para supor que o professor Lane se tivesse de propósito encaminhado para a linha quando o comboio se aproximara. O veredicto foi morte acidental, com a recomendação de que os Caminhos de Ferro Britânicos, Região Oeste, fariam bem em levar a cabo uma inspecção mais cuidadosa aos fios e sinais de alarme ao longo da linha.
Estava tudo terminado. Herbert Dench, ao sairmos do edifício, virou-se para mim com um sorriso e disse-me;
- Muito satisfatório para toda a gente envolvida no caso. Sugiro que comemoremos o acontecimento em White Hart. Não me importo de confessar que receava um veredicto muito diferente e penso que era o que po deríamos ter tido, se não fosse o senhor e o depoimento do Willis quanto às extraordinárias preocupações do professor Lane com as condições climatéricas no Inverno.
Recordo-me de ouvir falar num caso semelhante ocorrido nos Himalaias... - e continuou a contar-nos, enquanto nos encaminhávamos para o hotel, a história dum cientista que tinha vivido durante três semanas a uma altitude fenomenal e em condições aterrorizadoras, para estudar os efeitos atmosféricos sobre determinadas bactérias. Não vi qual era a ligação com as presentes circunstâncias, mas fiquei satisfeito e, ao chegarmos ao nosso destino, fui direito ao bar e embebedei-me silenciosa e inofensivamente. Ninguém reparou e, o que foi melhor, o meu tremor na mão cessou de imediato. Talvez, ao fim e ao cabo, tivesse sido dos nervos.
- Bom, não devemos impedi-lo de desfrutar da sua deliciosa casa nova - disse o advogado, após termos consumido um breve mas jubiloso almoço. - O Willis e eu podemos ir a pé até à estação.
Ao encaminharmo-nos para a porta do hotel, disse ao Willis:
- Nunca lhe poderei agradecer o suficiente pelo seu depoimento. Foi aquilo a que o Magnus teria chamado uma representação notável.
- Exerceu o seu impacte - admitiu ele -, embora o senhor me tivesse abalado bastante. Não vinha preparado para isso da neve. Mesmo assim, serviu para provar uma coisa que o meu chefe estava sempre a dizer: os leigos aceitam tudo, se lhes for posto perante os olhos de forma suficientemente autoritária. - Piscou-me o olho por detrás dos óculos e acrescentou baixinho: - Limpou como devia ser todos os frascos de compota, ao que suponho? Nada que tivesse restado lhe poderá causar a si ou seja a quem for qualquer problema?
- Enterrados - esclareci -, por baixo de lixo com anos de existência.
Hesitou, como se fosse para dizer outra coisa, mas o advogado e Vita estavam à nossa espera junto da entrada do hotel e perdeu-se a oportunidade. Feitas as despedidas e apertadas as mãos, dispersámos todos. Enquanto nos dirigíamos para o parque de estacionamento, Vita observou, de um tom muito próprio de uma esposa:
- Reparei que a tua mão melhorou logo que entraste no bar. Seja como for, eu já tinha intenções de conduzir.
- E ainda bem - disse eu, servindo-me da curiosa fraseologia do país dela e, puxando o chapéu para cima dos olhos ao entrar no carro, preparei-me para dormitar. A consciência aguilhoava-me, no entanto. Mentira ao Willis. As garrafas A e B estavam vazias, isso era verdade, mas o conteúdo da garrafa C continuava intacto e guardado na mala que eu tinha no quarto de vestir.
Capitulo vinte e um
Os efeitos do convívio no White Hart dissiparam-se passadas algumas horas, deixando-me com uma truculenta disposição de espírito e decidido a comportar-me como chefe do meu próprio lar. O inquérito estava terminado e, apesar do meu passo em falso em relação à neve, ou talvez por causa dele, o bom nome de Magnus permanecia intocado. A Polícia mostrara-se satisfeita, o interesse local iria agora desvanecer-se e nada mais havia que eu pudesse recear, à excepção das interferências da minha própria esposa. Teria de resolvê-las e depressa. Os rapazes haviam partido para um passeio a cavalo e não se encontravam em casa. Fui procurar a Vita, e acabei por encontrá-la de fita métrica na mão, de pé no patamar junto do quarto dos miúdos.
- Sabes uma coisa - disse-me ela -, esse advogado tinha inteira razão. Poderias meter meia dúzia de pequenos apartamentos dentro desta casa... Ainda mais, se usasses também a cave. Podíamos pedir o dinheiro emprestado ao Joe. - Voltou a puxar a fita métrica para a caixinha com um estalido e sorriu. - Tens melhor ideia? Oprofessor não te deixou dinheiro que nos permita manter a sua casa e tu não tens emprego, a menos que
atravesses o oceano e o Joe to der. Portanto... Que tal tomares uma atitude realista só para variar?
Virei-me e desci as escadas para a sala de música. Esperava que ela me seguisse e assim fez. Coloquei-me diante da lareira, o tradicional local sacrossanto do dono da casa, desde tempos imemoriais, e disse-lhe:
- Vê se percebes. Esta casa é minha e o que farei com ela é problema meu. Não quero as tuas sugestões, nem as dos advogados, dos amigos, ou seja de quem for. Tenciono viver aqui e, se tu não quiseres cá ficar comigo, terás de tomar as tuas próprias disposições nesse sentido.
Ela acendeu um cigarro e soprou uma grande fumaça para o ar. Pusera-se muito branca.
- Isso é uma declaração de intenções? Um ultimato?
- Chama-lhe como te agradar - retorqui. - É a afirmação de um facto. O Magnus deixou-me esta casa e proponho-me organizar cá a minha vida, tal como para ti e para os miúdos, se a quiserem compartilhar. Não posso ser mais claro.
- Queres dizer que desististe da ideia de aceitar a posição de director que o Joe te ofereceu em Nova Iorque?
- Nunca tive essa intenção. A ideia era tua.
- E como é que pensas que vais viver?
- Não faço a menor ideia - declarei -, e, de momento, nem me ralo com isso. Depois de ter trabalhado numa firma de publicidade durante mais de vinte anos, sei alguma coisa desse jogo e até posso tornar-me escritor. Poderia principiar por escrever a história desta casa.
- Deus do Céu! - Riu-se ela, apagando no cinzeiro o cigarro acabado de acender. - Bem, poderá manter-te pelo menos ocupado. E entretanto que é que havia de fazer de mim? Entrar para a sociedade local de costura de qualquer coisa?
- Poderias fazer como as outras esposas: adaptares-te.
- Querido, quando consenti em casar contigo e viver na Inglaterra, tu tinhas um emprego bastante válido em Londres. Desfizeste-te dele sem qualquer motivo e agora queres instalar-te aqui no fim de coisa nenhuma, onde não conhecemos ninguém, a centenas de milhas de todos os teus amigos. Isso não me serve.
Tínhamos atingido um impasse e não me agradava ser tratado por querido no meio de uma discussão e não a meio de um abraço. Fosse como fosse, a situação aborrecia- me. Dissera o que tinha a dizer e discutir não conduzia a lado nenhum. Além disso estava com um intenso desejo de subir as escadas para o quarto de vestir e examinar a garrafa C. Se bem me lembrava, parecera-me um pouco diferente das garrafas A e B. Talvez a devesse ter entregue a Willis para a analisar nos macacos do seu laboratório, mas, se o tivesse tomado por confidente, ele poderia nunca mais ma devolver.
- Porque é que não pegas na tua fita métrica - sugeri - e pensas numas ideias brilhantes para cortinados e carpetes, para mandares ao Bill e à Diana, na Irlanda, as tuas opiniões?
Não era minha intenção ser sarcástico. Dentro do razoável, ela poderia modificar o que lhe apetecesse, nas mobílias e nos gostos de solteirão do Magnus. Redecorar compartimentos era uma das suas ocupações favoritas: mantinha-a satisfeita durante horas.
Os meus esforços para a apaziguar redundaram num fracasso. Os olhos dela faiscaram e retorquiu:
-Tu bem sabes que eu seria capaz de viver em qualquer sítio, se ao menos estivesse certa de que ainda me amavas.
Sou capaz de aguentar a cólera em qualquer altura e acho justo retribuir golpe por golpe. Não a infelicidade, não as lágrimas. Estendi os braços, nos quais ela se acoitou, agarrando-se a mim à procura de conforto, como uma criancinha magoada.
- Mudaste tanto nestas últimas semanas - observou. - Quase nem te reconheço.
- Eu não mudei - redargui. - Amo-te. Claro que te amo.
A verdade é a coisa mais dura de se pôr perante as outras pessoas e perante nós mesmos também. Eu amava mesmo a Vita, pelos momentos compartilhados meses e anos, por todos aqueles altos e baixos da vida de casados que podem revelar-se preciosos, exasperantes, monótonos e caros. Aprendera a aceitar-lhe os defeitos e ela os meus. Demasiadas vezes, quando discutíamos, os insultos proferidos não eram intencionais. Com frequência, acostumados à companhia um do outro, deixáramos por dizer as palavras mais doces. O problema era que alguma zona íntima permanecera intocada, jazendo dormente à espera que a despertassem. Não podia partilhar com ela nem com ninguém os segredos do meu perigoso mundo novo. Com Magnus podia... mas ele era um homem e estava morto. A Vita não era como Medeia, com
quem eu poderia juntar as ervas encantadas.
- Querida - disse-lhe eu -, tenta aturar-me. Estou numa fase de transição, não num momento de separação. Apenas não consigo encarar o futuro. É como estar numa faixa de praia com a maré a subir, à espera de dar um mergulho. Não sou capaz de te explicar.
- Darei qualquer mergulho que tu queiras dar, se me levares contigo - respondeu ela.
- Bem sei, bem sei...
Enxugou os olhos, assoou o nariz, as feições temporariamente alteradas e um pouco comoventes, fazendo-me sentir ainda mais inútil.
- Que horas são? Tenho de ir buscar os rapazes - disse-me.
- Não, iremos os dois - repliquei, satisfeito por ter uma desculpa para prolongar a entente', para me justificar não apenas a seus olhos como também aos meus. A boa disposição impôs-se; a atmosfera, que tinha estado tão
pesada de ressentimento e amargura indizíveis, aclarou-se e ficámos quase normais de novo. Nessa noite, voltei do meu auto-exílio no quarto de vestir (não sem pena), mas achei que seria uma atitude de boa educação. Além disso o sofá- cama era duro.
O tempo estava óptimo e o fim-de-semana passou-se em passeios à vela, natação, piqueniques com os miúdos e, enquanto retomava o meu papel de marido, padrasto,
' Em francês no original: acordo, conciliação". (N. do T. )
chefe de família, planeava em segredo a semana que se avizinhava. Precisava de um dia só para mim. A própria Vita, com toda a inocência, forneceu-me essa oportunidade.
- Sabias que Mrs. Collins tem uma filha em Bude? perguntou-me na segunda-feira de manhã. - Prometi-lhe que a levaríamos lá um dos dias desta semana, para a deixarmos na companhia da filha, e que a iríamos buscar depois à tarde. Que achas? Os rapazes estão ansiosos por irem e eu também.
Fingi desmobilizá-la da ideia.
- Há uma tremenda quantidade de trânsito - respondi. - As estradas estarão apinhadas. E Bude cheia de turistas.
- Não importa - afirmou Vita. - Poderemos partir de manhã cedo e são só cerca de cinquenta milhas.
Assumi o ar de um chefe de família muito pressionado com uma quantidade de trabalho entre mãos e sem tempo para descansar.
- Se não te importares, gostava que me deixasses de fora disso. Bude numa tarde de Agosto não corresponde exactamente à minha ideia de vida agradável.
- OK... OK... Divertir-nos-emos mais sem ti. Combinámos para quarta-feira. Não deveria aparecer nenhum fornecedor nesse dia, por isso convinha-me. Se partissem às dez e meia e fossem buscar Mrs. Collins pelas cinco, estariam em casa o mais tardar às sete.
A quarta-feira amanheceu óptima, por sorte, e vi-os partir no Buick pouco depois das dez e meia, sabendo que tinha pelo menos oito horas à minha frente, para experiências e também recuperação. Subi ao quarto de vestir e tirei a garrafa da mala. Era o mesmo produto ou parecia ser, mas exibia um sedimento acastanhado no fundo, semelhante ao de xarope para a tosse, posto de parte após o Inverno e esquecido até voltar outra vez o tempo frio. Tirei-lhe a rolha e cheirei o conteúdo: não tinha mais cor nem cheiro do que água cediça... na verdade até menos. Verti quatro doses para a tampa da bengala e depois decidi enroscá-la para usar mais tarde, servindo-me de outra dose na proveta que continuava na prateleira da antiga lavandaria com os outros frascos.
Era uma sensação curiosa a de estar ali mais uma vez, sabendo que a cave que me rodeava bem como toda a casa por cima de mim se encontravam vazias dos seus actuais ocupantes, Vita e os rapazes, enquanto, aguardando nas trevas, estavam talvez os personagens do meu mundo secreto.
Depois de engolida a dose, fui sentar-me na antiga cozinha, expectante e alerta, como um frequentador de teatros que se tivesse acabado de instalar na sua cadeira antes de o pano subir, aguardando com ansiedade o terceiro acto da peça.
Neste caso, ou os actores estavam em greve ou a gerência estava em falta, porque o pano do meu teatro privativo nunca se ergueu, permanecendo a cena imutável. Fiquei ali sentado na cave durante uma hora e nada se passou. Saí para o pátio, pensando que o ar puro provocasse a mutação, mas o tempo manteve-se de forma obstinada na quarta-feira de manhã, meados de Agosto. Seria a mesma coisa se eu tivesse bebido um gole de água da torneira da velha cozinha, tendo em conta os efeitos exercidos pela garrafa sobre a minha mente e o meu estômago.
Regressei ao laboratório às doze horas e verti mais umas gotas para a proveta. Aquilo já uma vez dera resultado, sem quaisquer efeitos doentios.
Voltei para o pátio e mantive-me lá até depois da uma hora, mas sem que nada se passasse ainda, portanto subi as escadas e comi qualquer coisa ao jeito de almoço. Aquilo devia querer dizer que o conteúdo da garrafa perdera força, ou que Magnus de alguma forma se equivocara quanto aos ingredientes e ela não tinha qualquer valor;
A ser assim, fizera a minha última viagem. O pano erguera-se na minha jornada de travessia sob o nevão da corrente de Treesmill, apenas para cair junto do túnel dos caminhos-de-ferro, ao fechar do terceiro acto. Chegara ao fim do caminho.
Tal percepção era tão devastadora que fiquei desorientado. Não só perdera Magnus, como também o outro mundo. Estava ali, à minha volta, mas fora do meu alcance. As pessoas desse mundo viajariam sem mim no tempo e eu teria de seguir o meu rumo, preenchendo só Deus sabia que monótono dia-a-dia. O elo entre os séculos quebrara-se.
Desci mais uma vez à cave, saindo para o pátio a pensar que o pisar as lajes e o tocar nos muros alguma força me haveriam de proporcionar, que a cara de Roger me olharia da porta que dava para a casa da caldeira, ou então que Robbie emergiria dos estábulos por baixo da sobreloja, conduzindo o seu pónei. Sabia que deviam encontrar-se ali e não os conseguia ver. Nem Isolda, à espera que a neve derretesse. A casa estava habitada não pelos mortos, mas sim pelos vivos e era eu quem vagueava, incansável, por ela, era eu o fantasma.
Aquele impulso para ver, para escutar, para me deslocar no meio deles tornava-se intolerável de tão intenso. Era como se o meu cérebro houvesse sido iluminado por um clarão tremendo. Não conseguia descansar. Não era capaz de me dedicar a qualquer banal tarefa na casa ou no jardim. Todo o dia resultara em pura perda e aquilo que havia prometido serem horas de magia estava a decorrer de modo inútil.
Tirei o carro para fora e conduzi até Tywardreath, a visão da sólida igreja paroquial a troçar da minha disposição de espírito. Ela não tinha o direito de ali estar na sua forma actual. Sentia vontade de a varrer de lá, deixando apenas a ala sul e a capela do priorado, com os seus muros a delimitarem o adro da igreja. Indiferente, conduzi o automóvel até ao estacionamento no alto da colina depois do desvio para Treesmill e parei a pensar que, se descesse a pé a estrada e atravessasse os campos até Gratten, a recordação do que em tempos vira me preencheria o vácuo.
Detive-me junto do carro, tirei um cigarro do maço, mas, ainda ele não me tocara os lábios, quando um arrepio me abalou da cabeça aos pés, como se tivesse pisado um fio eléctrico nu. Não se verificou uma transição serena do presente para o passado, mas sim uma sensação de dor, com relâmpagos diante dos olhos e trovões nos ouvidos. É isto", pensei. Vou morrer. " Depois os relâmpagos dissiparam-se, o trovão morreu ao longe e ali estava uma massa de gente enchendo o cimo da colina onde me encontrava, acotovelando-se e comprimindo-se na direcção de um edifício do outro lado da estrada. Mais pessoas vinham de Tywardreath, homens, mulheres, crianças, alguns a caminhar, outros a correr. A casa era o fulcro, de formato irregular, com janelas chumbadas e aquilo que parecia ser uma pequena capela a seu lado. Vira uma vez a gente da aldeia, na véspera de S. Martinho, mas tinha-a observado do interior dos muros do priorado. Agora não se viam barracas nem músicos ambulantes, nem animais abatidos. A atmosfera estava seca e fria, as bermas cheias de neve congelada que se pusera acinzentada e dura por ali ter jazido durante semanas. Pequenos charcos na estrada haviam-se transformado em crateras geladas e as terras lavradas, para além dos fossos, apresentavam-se negras da geada. Homens, mulheres e crianças vestiam abafos e capuzes contra o frio, com as feições aguçadas como bicos de aves e a disposição, segundo pressenti, não era alegre nem festiva, mas de algum modo rapace, a multidão a contemplar um espectáculo que poderia vir a ser triste. Aproximei-me mais da casa, vendo uma pequena carruagem parada junto da entrada da capela, com servos junto às cabeças dos cavalos. Reconheci o brasão dos Champernounes e os seus lacaios, enquanto o próprio Roger se conservava no pórtico da capela, de braços cruzados.
A porta do edifício principal estava fechada, mas abriu-se no momento em que a olhei e um homem, mais bem vestido do que os que enchiam a estrada, emergiu com um companheiro. Conhecia-os a ambos, porque os vira da última vez na noite em que Otto Bodrugan os instara a juntarem-se à sua rebelião contra o rei: tratava-se de Julian Polpey e Henry Trefrengy. Afastaram-se da entrada e abriram caminho por entre a multidão, fazendo uma pausa perto do sítio onde me encontrava.
- Que Deus me preserve do despeito de uma mulher - proferiu Polpey. - O Roger aguentou o barco durante dez anos e agora é despedido sem qualquer motivo, sendo o cargo entregue ao Phil Hornwynk...
- O jovem William há-de dar-lho de novo quando tiver idade para isso - contrapôs Trefrengy. - Esse tem o sentido de justiça e correcção do pai. Mas a mim já me cheirava a essa mudança nos últimos doze meses ou mais. A verdade nua e crua é que lhe falta não só um marido como também um homem e que o Roger já tem a barriga cheia e deixou de lhe servir.
- Há-de achar outra pessoa a quem dedicar lealdade. O último a falar, Geoffrey Lampetho, do vale, abrira caminho aos empurrões através da multidão para se lhes juntar.
- Correm boatos de que tem uma mulher debaixo do seu telhado. Tu, que és vizinho dele, devias saber disso, Trefrengy.
- Não sei de nada - respondeu com secura o outro. - O Roger tem as ideias dele, eu tenho as minhas. Em tempos difíceis como os que vão correndo, não daria qualquer cristão abrigo a um estranho que visse na estrada?
Lampetho riu-se, e tocou-o com o cotovelo.
- Muito bem dito, mas não o podes negar - comentou ele. - Por que outro motivo teria Lady Champernoune vindo de Trelawn, apesar do estado dos caminhos, senão por lhe ter cheirado a ela? Eu já cá tinha chegado à casa dos tributos antes de ti, para pagar os meus impostos, e ela sentou-se na sala interior enquanto o Hornwynk cobrava as rendas. Nem todas as pinturas do mundo lhe poderiam esconder o ar sombrio do rosto: despedir o Roger das suas funções não irá ser o fim de tudo. Entretanto vai haver diversões de outro género para a populaça. Vais ficar para os veres divertirem-se?
Julian Polpey abanou a cabeça, desagradado.
- Eu, não - respondeu. - Por que motivo nós, de Tywardreath, havemos de nos forçar a aceitar um costume que faz de nós bárbaros? Lady Champernoune deve estar mal da cabeça para pensar semelhante coisa. Eu cá vou para casa.
Voltou-lhes as costas e desapareceu na multidão, que era agora densa não só no topo da colina, onde se situavam a casa e a capela, como também até meio da descida para Treesmill. Todos ostentavam o mesmo ar de expectativa nas caras, meio ressentidos, meio ansiosos e Geoffrey Lampetho, fazendo-o notar ao companheiro, voltou a rir-se.
- Doente da cabeça talvez, mas limpa-lhe a cons ciência ter outra viúva como bode espiatório e adoça-nos a Quaresma a nós. Não há nada de que uma multidão goste mais do que testemunhar uma penitência pública.
Virou a cabeça, tal como os restantes, na direcção do vale e Henry Trefrengy passou pelos lacaios dos Champernounes, adiantando-se para a entrada da capela onde se conservava Roger, e eu segui-o de perto.
- Lamento o que sucedeu - disse ele. - Não há gratidão, não há recompensa. Dez anos da tua vida des perdiçados, acabando em nada.
- Não foram desperdiçados - cortou Roger. - O Gam atinge em Junho a idade legal e casará. A mãe perderá a influência que tem e o monge também. Sabias que o bispo de Exeter acabou por o expulsar e terá de regressar à abadia de Angers, para onde já deveria ter ido há um ano
- Que Deus seja louvado! - exclamou Trefrengy.
- O priorado até cheira mal só por causa dele e a paróquia também. Olha para as pessoas lá adiante...
Roger espreitou por cima da cabeça de Trefrengy para a multidão que se dividia.
- Posso ter sido duro na minha qualidade de administrador, mas transformar a viúva do Rob Rosgof numa diversão é mais do que o meu estômago poderia suportar - afirmou. - Opus-me a isso, o que constituiu mais outra razão para o meu despedimento. O monge é o responsável por tudo isto, para satisfazer a vaidade e a luxúria da minha senhora.
A entrada da capela escureceu e a pequena e esguia figura de Jean de Méral surgiu no limiar da porta. Pousou uma das mãos no ombro de Roger.
- Tu em tempos não costumavas ser tão escrupuloso - disse-lhe. - Já te esqueceste daquelas noites passadas nas adegas do priorado e também nas tuas? Não te ensinei só Filosofia nessas ocasiões, meu amigo.
- Tira a mão de cima de mim - rosnou Roger com secura. - Separei-me de ti e da tua irmandade quando deixaste morrer o jovem Henry Bodrugan sob o tecto do priorado, podendo tê-lo salvado.
O monge sorriu-se.
- E agora, para mostrares a tua simpatia para com o falecido, albergas uma esposa adúltera sob o teu próprio tecto? Somos todos uns hipócritas, meu amigo. Aviso-te de que a minha senhora conhece a identidade da tua viajante e é em parte por causa dela que se encontra aqui em Tywardreath. Tem determinadas propostas a apresentar a Lady Isolda, logo que for resolvido este caso da viúva do Rosgof.
- Um caso que, se Deus quiser, será desenterrado dos registos da mansão em anos que hão-de vir e atirado
à tua cara, para tua última vergonha - observou Trefrengy.
- Estás a esquecer-te - murmurou o monge - que sou uma ave migrante e que, dentro de poucos dias, terei batido as asas para França.
Verificou-se súbito burburinho na multidão e apareceu um homem à porta da casa anexa, a que Lampetho chamara casa dos tributos". Robusto, de rosto jovial, trazia um papel na mão. A seu lado, envolta numa capa da cabeça aos pés, encontrava-se Joanna Champernoune.
O homem, que conclui ser o novo administrador Hornwynk, adiantou-se para se dirigir à multidão, desenrolando o documento que tinha na mão.
- Boas gentes de Tywardreath - proclamou -, quer sejam homens livres, rendeiros ordinários ou servos, todos aqueles que pagam rendas à mansão assim o fizeram hoje aqui na casa dos tributos. E, uma vez que a mansão de Tywardreath foi em tempos propriedade de Lady Isolda Cardinham, de Cardinham, que a vendeu ao avô do nosso falecido senhor, foi decidido introduzir aqui uma prática estabelecida na mansão de Cardinham desde a Conquista. - Deteve-se por um momento, para causar maior impressão sobre os ouvintes com as suas palavras.
- Sendo tal prática - continuou - que qualquer viúva de um rendeiro ordinário que detenha terras vindas do falecido marido e se tenha desviado da via da castidade seja privada das suas terras ou sofra as devidas penalidades para que as possa recuperar, perante o senhor da mansão e o seu administrador. Hoje, diante de Lady Joanna Champernoune, representando o senhor da mansão, William, que é de menor idade, e perante eu mesmo, Philip Hornwynk, administrador, Mary, viúva de Robert Rosgof, deverá sofrer tal punição, se é que deseja recuperar as suas terras.
Ergueu-se um murmúrio da multidão, uma estranha mistura de excitação e curiosidade e um súbito som de gritos veio da estrada que dava para Treesmill.
- Ela nunca será capaz de os encarar - afirmou Trefrengy. - A Mary Rosgof tem um filho em casa que preferirá perder dez vezes a quinta a ver a mãe sujeita a semelhante vergonha.
- Estás enganado - interveio o monge. - Ele sabe que a humilhação resultará em seu proveito dentro de seis meses, quando ela parir um filho bastardo e os puder pôr aos dois fora da porta, ficando ele com as terras.
- Então quer dizer que o convenceste - disse Roger - e que também lhe deves ter enchido a bolsa.
A gritaria e os choros aumentaram e, enquanto as pessoas se comprimiam, vi uma procissão subir a colina vinda de Treesmill, avançando com dificuldade na nossa direcção em passo de corrida. Dois rapazotes corriam à frente brandindo chicotes e atrás deles vinham cinco homens, escoltando o que à primeira vista me pareceu ser um pequeno pónei das charnecas, com uma mulher montada. Aproximaram-se e os risos entre os espectadores transformaram-se em apupos à medida que a mulher vacilava em cima do seu corcel, e ter-se-ia despenhado dele, não fosse um dos homens que a escoltavam tê-la apoiado, agitando uma forquilha na outra mão. Não vinha de forma alguma montada num pónei, mas sim num grande carneiro negro, de cornos ornamentados com panos negros, e dois indivíduos que lhe tinham posto um cabresto sobre a cabeça guiavam-no de forma a que, sobressaltado e aterrorizado com a multidão que o rodeava, se agachasse e encolhesse, procurando expulsar a passageira que levava às costas. A mulher vinha vestida de negro a condizer com a montada, de um véu preto a cobrir-lhe o rosto, e mãos atadas à frente do corpo com correias de couro. Via-lhe os dedos enclavinhados na espessa lã negra do pescoço do carneiro.
A procissão avançava serpenteando e aos tropeções na direcção da casa dos tributos e, quando acabou por se deter diante de Hornwynk e Joanna, com os homens da escolta a sacudirem o cabresto, o que empunhava a forquilha arrancou o véu da mulher para Lhe pôr as feições a descoberto. Não devia ter mais de uns trinta e cinco anos, olhos tomados pelo terror, tal como o carneiro que a suportava, cabelo escuro grosseiramente aparado à tesoura projectando-se-lhe da cabeça como colmo segado. Os apupos foram silenciados quando a mulher, a tremer, inclinou a cabeça perante Joanna.
-Mary Rosgof, confessas a tua falta? - bradou Hornwynk.
- Sim, com toda a humildade - respondeu ela em voz baixa.
- Fala mais alto, para que todos te ouçam e diz qual foi a sua natureza - gritou ele.
A desditosa mulher, de rosto pálido a enrubescer-lhe, ergueu a cabeça e encarou Joanna.
- Deitei-me com outro homem, antes de terem passado seis meses sobre a morte do meu marido, malbaratando assim as terras que recebera a favor do meu filho. Imploro indulgência à minha senhora e ao tribunal da mansão, rogando a restituição das minhas terras e confessando a minha incontinência. Se der à luz uma criança bastarda, o meu filho tomará posse das terras e fará de mim aquilo que entender.
Joanna chamou o novo administrador para seu lado com um sinal e ele inclinou-se enquanto a senhora lhe sussurrava qualquer coisa ao ouvido. Depois virou-se mais uma vez e dirigiu-se à penitente.
- A minha graciosa senhora não pode perdoar a tua falta, que é considerada de natureza aberrante por toda a gente, mas, uma vez que tu própria a confessaste perante o tribunal da mansão e os fiéis desta paróquia, ela voltará a garantir o teu arrendamento das terras.
A mulher inclinou a cabeça e murmurou a sua gratidão, depois perguntou, com olhos inundados, se haveria mais alguma penitência que devesse cumprir.
- Sim - retorquiu o administrador. - Desce do carneiro que te transportou para tua vergonha, dirige-te aqui à capela de rastos sobre os joelhos e confessa o teu pecado perante o altar. O irmão Jean ouvirá a tua confissão.
Os dois homens que seguravam o carneiro puxaram a mulher de cima do dorso do animal, forçando-a a ajoelhar e, enquanto se arrastava ao longo do caminho de acesso na direcção da capela, embaraçada pelas saias, ergueu-se um clamor da multidão que a observava, como se aquela degradação total pudesse de alguma forma apaziguar-lhe o sentido da vergonha. O monge aguardou até ela ter rastejado a seus pés, depois voltou-se para o interior da capela, para onde a mulher o seguiu. A escolta libertou o carneiro a um sinal de Hornwynk, e o bicho correu aterrorizado pelo meio da multidão, fazendo-os afastar-se para ambos os lados e rebentar numa grande risota histérica, enquanto o enxotavam de regresso pela estrada que conduzia a Treesmill, atirando-lhe bolas de neve, paus, tudo o que conseguiam encontrar. Com a súbita libertação da tensão, toda a gente se pôs a rir, a dizer piadas, a correr, tomados por uma disposição festiva, naquele intervalo entre o Inverno e a Quaresma, que estava no seu preciso começo. Em breve todos tinham dispersado e nenhum ficou frente à casa dos tributos, à excepção da própria Joanna, do administrador Hornwynk, Roger e Trefrengy, de pé a um lado.
- Assim seja - disse Joanna. - Diz aos meus servos que estou pronta a partir. Não há mais nada que me retenha aqui em Tywardreath, salvo determinado assunto do qual tratarei a caminho de casa.
O administrador desceu o caminho de acesso para preparar a partida, os servos abriram com prontidão a porta da carruagem e Joanna, fazendo uma pausa, olhou para Roger.
- O povo ficou satisfeito, mesmo que tu não tivesses ficado - disse-lhe. - E, de futuro, pagarão mais prontos as suas rendas. O costume tem os seus méritos e inspira receio, podendo muito bem vir a estender-se a outros domínios.
- Que Deus o não permita! - replicou Roger. Geoffrey Lampetho tivera razão quanto à pintura da cara dela, ou talvez fosse a atmosfera da casa dos tributos. Corria-lhe agora em riachos por ambas as faces, que se lhe haviam transformado numa pasta. Parecia ter envelhecido desde que a vira da última vez, há uns bons dez anos. O esplendor desaparecera-lhe dos olhos castanhos, tornando-os duros como ágata.
Estendia agora uma das mãos, tocando no braço de Roger.
- Vem daí - ordenou -, nós conhecemo- nos um ao outro há demasiado tempo para estarmos com mentiras e subterfúgios. Tenho um recado para Lady Isolda, da parte do irmão, Sir William Ferrers, que prometi dar-lhe eu própria. Se me fechares agora a tua porta, poderei mandar chamar cinquenta homens para a arrombarem.
- E outros cinquenta entre este lugar e Fowey para os apoiarem - retorquiu Roger. - Mas a minha senhora poderá seguir-me até Kylmerth, se assim o desejar, e solicitar uma entrevista. Ignoro se lhe será ou não concedida.
Joanna sorriu-se.
- Sê-lo-á - garantiu - sê-lo-á. - E, tomando as saias nas mãos, caminhou até à carruagem, seguida pelo monge.
Em tempos, teria sido Roger a auxiliá- la a subir os degraus para dentro do veículo; hoje era o novo adm nistrador, Hornwynk, corado de orgulho e fazendo vénia profunda, enquanto Roger, cruzando um pouco por detrás da capela, onde tinha o pónei amarrado, saltou para o costado deste e, pontapeando-lhe os flancos com os calcanhares, cavalgou para a estrada. A vacilante carruagem rugia atrás de si, com Joanna e o monge lá dentro e os poucos vassalos que ainda restavam no topo da colina voltaram-se para verem passar pela estrada gelada abaixo, na direcção do relvado da aldeia e dos muros do priorado. Soou um sino no priorado e o veículo começou a afastar-se de mim, Roger também, fazendo-me principiar a correr, receoso de os perder a ambos. O meu coração desatou então a bater com força, senti um som nos ouvidos e vi a carruagem deter-se. As janelas foram baixadas e a própria Joanna espreitou por elas, acenando-me com uma das mãos. Cambaleei sem fôlego na direcção da janela, o ruído nos ouvidos a transformar-se num rugido. Depois cessou por completo e vi-me a vacilar, o relógio da Igreja de St. André a bater as sete horas e o Buick parado na estrada à minha frente, com Vita a fazer-me sinal da janela e as caras surpreendidas dos rapazes e de Mrs. Collins a espreitarem para fora.
Capitulo vinte e dois
Estavam a falar todos ao mesmo tempo e os miúdos riam-se. Ouvi o Micky dizer: Vimos-te a correr pela colina abaixo, tinhas um ar tão engraçado... " e Teddy juntou-se-lhe nas risadas, dizendo: A mamã fez-te sinal e chamou-te, mas tu a princípio não ouviste, parecias estar a olhar para outro lado. "
Vita olhava-me de olhos arregalados através da janela do condutor.
- Será melhor entrares - convidou -, mal te podes ter em pé - e Mrs. Collins, de rosto corado e excitado, abriu-me a porta do outro lado. Obedeci como um autómato, esquecendo que o meu carro se encontrava estacionado junto da estrada, e comprimi-me ao lado de Mrs. Collins, enquanto continuávamos ao longo da vereda que contornava a aldeia, seguindo para Polmear.
- Ainda bem que viemos por este caminho - disse Vita. - Mrs. Collins disse que era mais rápido do que irmos por St. Blazey e Par.
Não conseguia recordar-me onde haviam estado ou o que tinham ido fazer e, embora me tivesse parado o zumbido nos ouvidos, tinha o coração a martelar e as vertigens não tardariam.
- Bude foi óptimo - disse Teddy. - Andámos a fazer surf, mas a mamã não nos deixou ir para o largo. E o oceano rolava muito, ondas enormes, muito melhor do que aqui. Devias ter ido connosco.
Bude, era isso. Tinham ido passar o dia em Bude, deixando-me sozinho em casa. Mas que andava eu a fazer a deambular por Tywardreath? A medida que passávamos pelas habitações de Polmear e enquanto olhava na direcção de Polpey e do vale de Lampetho, recordei-me de como Julian Polpey não quisera esperar pelo odioso espectáculo em frente à casa dos tributos, tendo-se retirado para casa e de como Geoffrey Lampetho fora um dos que se haviam mantido entre a multidão que apedrejara o carneiro.
Estava tudo terminado, acabado. Já não estava a acontecer. Mrs. Collins dizia qualquer coisa a Vita acerca de a deixar ao cimo da colina de Polkerris e no que reparei a seguir foi ela ter desaparecido e Vita ter travado o carro junto de Kilmarth.
- Corram lá para dentro - ordenou com rispidez aos rapazes. - Guardem os calções de banho no armário e ponham a mesa para o jantar - e, depois de eles terem desaparecido pelos degraus acima no interior da casa, virou-se para mim e indagou: - És capaz de subir as escadas?
- Subir para onde? - Continuava tonto e não a conseguia compreender.
- Subir os degraus - explicou ela. - Estavas a abanar quando chegámos à tua beira. Senti-me bastante mal diante de Mrs. Collins e dos miúdos. O que bebeste?
- Beber? - repeti. - Não bebi uma gota.
- Oh, pelo amor de Deus - exclamou -, não comeces com mentiras. Foi um dia longo e sinto-me cansada. Anda daí, eu ajudo-te a chegar a casa.
Talvez fosse aquela a resposta. Talvez fosse preferível pensar que eu tinha estado num pub. Saí do carro e ela tinha mesmo razão... continuava a vacilar e fiquei muito satisfeito por a ter ali para me dar o braço e me manter direito ao atravessar o jardim em direcção a casa.
- Eu ponho-me bom - disse-lhe. - Vou sentar- me na biblioteca para melhorar.
- Era melhor ires direito para a cama - contrariou. Os rapazes nunca te viram assim. São capazes de reparar.
- Não quero ir para a cama. Vou sentar-me na  biblioteca com a porta fechada. Eles não têm necessidade de lá entrar.
- Oh, está bem, se insistes em ser tão obstinado...
Encolheu os ombros, exasperada. - Dir-Lhes-ei que comemos na cozinha. Pelo amor de Deus, não venhas para a nossa beira... levo-te depois alguma coisa.
Ouvi-a atravessar o vestíbulo dirigindo-se à cozinha e bater com a porta. Deixei-me cair numa cadeira da biblioteca e fechei os olhos. Uma letargia estranha ia-me invadindo, sentia vontade de dormir. A Vita tinha razão, devia ter-me metido na cama, mas nem sequer tinha energias para me levantar da cadeira. Se me mantivesse imóvel, na calma e no silêncio, a sensação de exaustão, de estar esgotado, acabaria por passar. Pouca sorte para os miúdos, se queriam ver algum programa na televisão, mas havia de os compensar no dia seguinte levando-os avelejar a Chapel Point. Também teria de compensar a Vita. Aquele incidente havia de nos juntar de novo, a seiva da reconciliação teria de principiar a correr de novo.
Despertei com uma sacudidela súbita, para encontrar o compartimento às escuras. Olhei de relance para o relógio e eram já quase nove e meia. Tinha dormido duas horas. Sentia-me absolutamente normal e também esfomeado. Atravessei a sala de jantar e o vestíbulo, ouvindo o som do gira-discos na sala de música, mas a porta estava fechada. Deviam ter acabado de comer há séculos, porque as luzes da cozinha encontravam-se apagadas. Remexi o frigorífico para procurar ovos e bacon para fritar e tinha acabado de pôr a frigideira em cima do fogão quando ouvi alguém a movimentar-se na cave. Fui ao cimo das escadas das traseiras e chamei, pensando que fosse um dos rapazes, que me poderia informar sobre a disposição da Vita. Ninguém respondeu.
- Teddy? - gritei. - Micky?
As passadas eram muito claras, atravessando a antiga cozinha e dirigindo-se em seguida para a casa da caldeira. Desci as escadas e procurei o interruptor da luz, mas não estava no lugar. Não o conseguia encontrar e tive de me dirigir para a velha cozinha agarrado às paredes. Quem quer que se encontrasse na minha frente passara da casa da caldeira para o pátio, porque o ouvia a movimentar-se por ali e a tirar água do poço que havia no canto mais próximo, coberto e sem nunca ser usado. Agora ouviam-se mais passos, mas não provenientes do pátio: estes vinham das escadas e, virando-me, vi que elas tinham desaparecido e as passadas soavam no escadote que dava para a sobreloja. Já não estava escuro, mas sim o cinzento lúgubre de uma tarde de Inverno e vinha uma mulher a descer o escadote, trazendo um castiçal na mão. Recomeçou o zumbido nos meus ouvidos, um estrondo como o de um trovão e a droga estava outra vez a produzir efeito sem que eu tivesse renovado a dose. Não o desejava naquele momento, estava com medo, porque aquilo significava que passado e presente se estavam a fundir e Vita e os miúdos encontravam-se comigo, no meu tempo, na parte da frente da casa.
A mulher roçou por mim, abrigando a chama do castiçal da corrente de ar. Era Isolda. Achatei-me contra a parede retendo o fôlego, porque de certeza que ela se dissolveria se eu me movesse um pouco que fosse e aquilo que estava a ver era produto da minha imaginação, um resíduo do que se tinha passado nessa mesma tarde. Pousou a vela num banco, acendendo outra que se lhe encontrava ao lado e principiou a entoar baixinho uma bizarra melopeia doce, enquanto eu continuava a ouvir o distante soar do aparelho na sala de música do rés-do-chão da casa.
- Robbie - chamou baixinho. - Robbie, estás aí! O rapaz veio do pátio e entrou pela porta de arco baixo, pousando o seu balde de água no chão da cozinha.
- Continua tudo gelado? - perguntou ela.
- Sim e continuará até que tenha passado a lua cheia. Terá de cá ficar ainda uns dias, se for capaz de nos aturar.
- Aturar-vos? - sorriu. - É mais rejubilar-me por estar convosco e de muito boa vontade. Bem gostava que as minhas filhas tivessem tão boas maneiras como tu e a Bess e que dessem tanta atenção àquilo que lhes digo como vocês dão ao que vos diz o vosso irmão Roger.
- Se o fazemos é por respeito para com a senhora - respondeu o rapaz. - Ouvimos-lhe palavras duras e levámos com o cinto antes de vir para cá. - Riu-se, sacudindo o espesso cabelo de cima dos olhos e, pegando no balde, despejou a água para um cântaro que se encontrava em cima da mesa de cavalete. - Mas comemos bem - acrescentou. - Carne todos os dias, em vez de peixe salgado. E o porco que ontem matei teria ficado no estábulo até terminar a Quaresma, se a senhora não nos tivesse dado a graça de se sentar à nossa mesa. A Bess e eu gostaríamos que ficasse para sempre a viver connosco e não nos deixasse quando o tempo melhorar.
- Ah, estou a perceber - disse Isolda, divertida.
- Não é por mim mesma que me querem cá, mas por causa dessa maneira de viver.
O moço franziu o sobrolho, hesitando sobre o significado das palavras, depois o rosto iluminou-se-Lhe e voltou a sorrir.
- Ná, isso não é verdade - redarguiu. - Tínhamos receio, quando chegou, que viesse fazer de grande senhora e não lhe conseguíssemos agradar. Mas agora já não é assim, a senhora é como um de nós. A Bess adora-a e eu também. Quanto ao Roger, Deus bem sabe os louvores que lhe tem cantado nestes últimos dois anos ou mais.
Corou, numa súbita confusão, como se tivesse falado de mais e ela estendeu uma das mãos, tocando-lhe no braço.
- Meu caro Robbie - disse-lhe com gentileza - também gosto de ti e da Bess e do caloroso acolhimento que vocês me têm dispensado nestas últimas semanas. Nunca o esquecerei.
O som de passos fez-me erguer a cabeça para a sobreloja sobranceira, mas era só a rapariga a descer o escadote, decerto mais limpa do que da última vez que a tinha visto, o longo cabelo penteado e suave, a cara bem esfregada.
- Estou a ouvir o Roger cavalgar pelo bosque anunciou. - Trata do pónei quando ele chegar, Robbie, enquanto eu ponho a mesa.
O rapaz saiu para o pátio e a irmã meteu turfa e carqueja na lareira. Esta faiscou e pegou fogo, projectando longas línguas de chama contra a parede enfumarada e, enquanto Bess olhava por cima do ombro sorrindo para Isolda, dei-me conta de como ali tinham passado noites agradáveis aqueles quatro, durante a época de nevões, sentados à mesa de cavalete, com as velas no meio dos pratos de estanho.
- Cá está o vosso irmão - disse Isolda, indo pos tar-se junto da porta aberta enquanto ele penetrava no pátio, saltando do pónei e atirando as rédeas a Robbie. Ainda não estava escuro e o recinto, bastante mais amplo do que aquele que eu conhecia, estendia-se até ao muro sobranceiro aos campos, de forma que podia ver através do portão aberto os terrenos que se inclinavam para o mar além dele e a vasta extensão da baía. A lama que havia no pátio estava congelada, o ar vívido e frio, e os arbustos do bosque destacavam-se negros e nus contra o céu. Robbie conduziu o animal para o estábulo ao lado da vacaria e Roger atravessou o pátio na direcção de Isolda.
- Trazes más notícias - disse-lhe esta. - Apercebo-me disso pela tua cara.
- A minha senhora sabe que está aqui - informou
Roger. - Vem a caminho para a ver, com um recado do
seu irmão. Se o desejar, posso fazer a carruagem dar
meia volta no topo da colina. Os servos dela não nos
põem qualquer dificuldade, a mim e ao Robbie.
- Não põem dificuldade agora, talvez, mas mais tarde ela poderá fazer-vos mal, ao Robbie e à Bess, a todo
 este lugar. Não deixaria suceder tal coisa por nada deste
mundo.
- E eu preferia arrasar esta casa a causar-lhe sofrimento - afirmou ele.
Mantinha-se ali de pé a olhá-la e apercebi-me de que
haviam alcançado uma fase do seu relacionamento, por
meio da proximidade e simpatia no decorrer dos derradeiros dias, em que o amor dele não podia já ser disfarçado nem contido, devendo antes arder e elevar-se aos
céus... ou então arrefecer.
- Eu sei que sim, Roger - replicou ela -, mas
qualquer sofrimento que possa ainda vir ao meu encontro é coisa que posso suportar sozinha. Se trouxe a desonra a duas casas, à do meu marido e à de Otto Bodrugan, o que sem dúvida será dito a meu respeito durante
anos, não envergonharei a tua.
- Desonra? - Abriu os braços e olhou em torno de
si para os muros baixos que delimitavam o pátio, a estreita estrebaria coberta a colmo onde os póneis e as vacas estavam albergados. - Esta quinta era do meu pai e
será do Robbie quando eu morrer e, se a senhora apenas
 se tivesse alojado por uma única noite em vez de quinze,
já a teria honrado o bastante para a memória perdurar
através dos séculos.
Ela deve ter-lhe sentido na voz a profundidade dos
sentimentos e talvez também a paixão, porque lhe passou pelo rosto uma súbita sombra, uma fadiga, como que provocada por uma voz interior que murmurava: Até aqui sim, mas não mais longe. " Aproximando-se do portão aberto, pousou a mão sobre ele e olhou pelos campos fora, até à baía.
- Quinze noites - repetiu - e em cada uma delas desde que estou convosco, e também em cada dia, tenho estado aqui de pé a olhar para Chapel Point do outro lado do mar, a recordar-me do navio que deveria estar ali ancorado abaixo de Bodrugan e que esta foi a baía para onde se dirigiu, vindo ao meu encontro no rio de Treesmill. Parte de mim morreu com ele, Roger, no dia em que o afogaram e penso que tu sabes isso.
Gostaria de saber qual teria sido o sonho de Roger e se, como os outros, ele imaginara de algum modo que as vidas de ambos se haveriam de fundir. Não pelo casamento, nem mesmo como amantes, mas numa espécie de dolente intimidade, intuitiva e tácita, que nunca alguém mais havia de partilhar. Que o tivesse imaginado ou não, tal sonho estava desfeito: ao pronunciar o nome de Bodrugan naquele tom, ela tornara-o claro.
- Sim - admitiu Roger. - Sempre o soube. Se lhe dei motivos para pensar de outra forma, perdoe-me.
Inclinou a cabeça e pôs-se a escutar. Ela fez a mesma coisa e, de além do sombrio bosque que dominava a quinta, veio o som de vozes e o martelar de cascos. Depois os vultos de três servos dos Champernounes emergiram de entre as árvores nuas.
- Roger Kylmerth! - Bradou um deles. - O teu caminho é demasiado difícil para se trazer a carruagem até tua casa e a minha senhora espera-te na colina.
- Então ela que se deixe lá ficar, ou que venha a pé com a vossa ajuda. A nós tanto nos faz.
Os homens hesitaram por um momento conferenciando sob as árvores e Isolda, a um sinal de Roger, voltou-se depressa e atravessou o pátio na direcção da casa, Roger assobiou e Robbie saiu dos estábulos.
- Lady Champernoune está lá em cima com alguns dos seus lacaios - disse-lhe baixinho o irmão.
- É capaz de ter mandado chamar outros no percurso de Tywardreath para aqui e podemos estar metidos em sarilhos. Mantém- te ao alcance da voz até que precise de ti.
Robbie acenou e regressou para os estábulos. Estava cada vez mais escuro e também mais frio, as árvores do bosque destacavam-se mais nítidas no céu. Acabei por distinguir as luzes das primeiras tochas na crista da colina. Joanna vinha a descer com três dos seus homens e o monge. Avançavam com lentidão e em silêncio, o manto escuro da mulher e o hábito do monge a misturarem-se como se fossem um só e, de pé junto de Roger, a observar-lhes a caminhada, parecia-me que o grupo tinha algo de sinistro. As figuras encapuzadas davam a impressão de estar a atravessar em procissão um adro de igreja, na direcção de uma sepultura que as aguardasse.
Ao atingirem o portão aberto, Joanna fez uma pausa olhando em volta, depois disse para Roger:
- Em dez anos que serviste a minha casa, nunca deves ter pensado em me receberes neste lugar.
- Não, minha senhora - replicou ele -, nunca pediu refúgio aqui, nem sequer o desejou. Sempre a esperou o conforto, sob este tecto que é seu.
A ironia não a afectou ou, se o fez, ela ignorou-a e Roger abriu caminho na direcção da casa.
- Onde devem esperar os meus servos? - perguntou Joanna. - Tem a cortesia de os conduzires para a tua cozinha.
- Nós mesmos vivemos na cozinha - informou-a Roger - e Lady Carminowe recebê-la-á aí. Os seus homens acharão a estrebaria bem quente, no meio das vacas ou dos póneis, como preferirem.
Afastou-se para o lado, para a deixar passar com o monge e seguiu-os. Quando ela atravessou o limiar da porta, reparei que a mesa de cavalete havia sido puxada para junto da lareira, com as velas de sebo em cima, e que Isolda se encontrava sentada sozinha à cabeceira da mesa. Bess devia ter ido para o quarto de cima.
Joanna passou os olhos em redor, incomodada ao que penso por se encontrar em semelhante ambiente. Só Deus sabe o que ela esperava... talvez maior tentativa para obter conforto, com mobiliário pilhado da sua casa senhorial abandonada.
- Com que então... - acabou por dizer - é este o teu refúgio e bastante aconchegado, sem dúvida, para uma noite de Inverno, apesar do cheiro a animais do outro lado do pátio. Como vais, Isolda?
- Muito bem, como vês - respondeu esta. - Tenho vivido aqui melhor e sido alvo de maiores gentilezas nestas duas semanas, do que nos muitos meses e anos passados em Tregesteynton ou Carminowe.
- Não duvido - admitiu Joanna. - O contraste sempre estimulou os apetites desgastados. Tu tiveste em tempos um fraco pelo castelo de Bodrugan, mas se o Otto tivesse sobrevivido havias de te cansar dele como te fartaste das outras propriedades e dos outros, incluindo o teu marido. Bem, esta é uma rica recompensa. Diz-me, os dois irmãos partilham-te aqui mesmo em frente à lareira?
Ouvi Roger reter a respiração e avançar, como que para se colocar entre as duas mulheres, mas Isolda, com o pequeno rosto pálido a rebrilhar à luz das velas, limitou- se a sorrir.
- Por enquanto não - retorquiu. - O mais velho é demasiado orgulhoso, o mais novo demasiado tímido. Os meus protestos de afecto caem em orelhas surdas. Que queres de mim, Joanna? Trouxeste-me recado do William? Se é assim, fala claramente e acaba depressa.
O monge, que continuava de pé junto da porta,  tirou uma carta de dentro do hábito para a entregar a Joanna, mas ela mandou-o afastar-se com um aceno de mão.
- Lê-a a Lady Carminowe - mandou. - Não tenho qualquer desejo de esforçar os olhos com esta luz mortiça. E tu podes deixar-nos a sós - acrescentou dirigindo-se a Roger. - Os assuntos de família deixaram de te dizer respeito. Já te meteste demasiado neles quando eras meu administrador.
- Esta casa pertence-lhe e ele tem o direito de estar aqui - interveio Isolda. - Além disso, é meu amigo e prefiro que esteja presente.
Joanna encolheu os ombros e sentou-se na outra ponta da mesa, frente a Isolda.
- Se Lady Carminowe me permitir - disse o monge com suavidade -, lerei esta carta do seu irmão, Sir William Ferrers, que chegou a Trelawn há alguns dias, pensando ele que o seu mensageiro iria encontrá-la aí com Lady Champernoune. Diz assim:
Muito querida irmã:
As notícias da tua fuga de Tregesteynton apenas nos chegaram aqui a Bere na passada semana, por causa do mau tempo e do estado das estradas. Fiquei muito incomodado, quer com o teu acto quer com a tua grande imprudência. Deves saber que, ao abandonares o teu marido e filhas, estás a prescindir do afecto dele e delas e, tenho de te dizer, também do meu. Se Oliver, por uma questão de caridade cristã, te quer receber de novo em Carminowe, é coisa que não sei, mas duvido, por ele recear a tua perniciosa influência sobre as suas filhas e, pela parte que me toca, não te poderei oferecer protecção aqui em Bere, porque Matilda, como irmã do Oliver, tem demasiado amor a seu irmão para proporcionar hospitalidade à esposa que fugiu dele. Na verdade ela está tão magoada desde que soube que tu lhe fugiste que não suportaria a tua presença entre nós, com os nossos cinco filhos. Ao que me parece, por conseguinte, apenas existe um caminho para tu seguires e é procurares refúgio na irmandade de Cornworthy, cá em Devon, cuja prioresa é minha conhecida, e permaneceres aqui em reclusão até que o Oliver ou outro qualquer membro da família te queira receber. Estou confiante em que a nossa parente Joanna permitirá que os seus servos te escoltem a Cornworthy.
Adeus no poder de Cristo,
Teu desgostoso irmão, WILLIAM FERRERS. "
O monge dobrou a carta e passou-a a Isolda por cima da mesa.
- Poderá ver pessoalmente, minha senhora - murmurou -, que a carta foi escrita com a própria caligrafia de Sir William Ferrers e tem a sua assinatura. Não há qualquer falsificação.
Ela mal o olhou.
- Tens toda a razão - preferiu -, não se trata de uma falsificação.
Joana sorriu.
- Se o William soubesse que te encontras aqui e não em Trelawn, duvido que te tivesse escrito de forma tão generosa, nem a prioresa de Cornworthy te quereria abrir as portas do seu convento. Contudo podes contar comigo para guardar segredo e proporcionar-te escolta até Devon. Dois dias sob o meu tecto para se fazerem os necessários preparativos, uma mudança de vestuário que vejo estares a precisar de fazer e poderás meter-te à estrada. - Recostou-se na cadeira, com um ar de triunfo no rosto. - Disseram-me que o clima de Cornworthy é suave - acrescentou. - As freiras de lá vivem até avançada idade.
- Nesse caso abriguemo-nos as duas por detrás dos muros de um convento - replicou Isolda. - As viúvas, quando os seus filhos se casam, como vai fazer o teu William no próximo ano, deverão procurar novo abrigo, com as esposas que fogem aos maridos. Seremos irmãs no infortúnio.
Orgulhosa e desafiadora, encarava Joana a toda a extensão da mesa de cavalete e os castiçais, projectando sombras sobre a parede, distorciam os vultos das duas, transformando Joanna, com a capa de capuz e o véu de viúva, numa espécie de monstruoso caranguejo.
- Estás a esquecer-te - disse ela, brincando com os inúmeros anéis, mudando-os dum dedo para outro - que eu tenho uma licença para voltar a casar e o posso fazer quando decidir escolher novo marido entre numerosos pretendentes. Tu continuas ligada ao Oliver e, o que é mais, caíste em desgraça. Existe outro caminho que te está aberto para além do convento de Cornworthy, se o preferires, e que será permaneceres aqui como amásia daquele que em tempos foi meu administrador, mas advirto-te de que a paróquia te poderá tratar como hoje foi feito à minha rendeira de Tywardreath, obrigando-te a cavalgares o dorso de um carneiro negro para fazer penitência na capela da mansão.
Rebentou de riso e, voltando-se para o monge que se mantinha por detrás da sua cadeira, disse:
- Que me diz, frère Jean? Poderíamos fazer montar um deles num carneiro e o outro numa ovelha, obrigando-os a trotar aos dois, ou confiscar as terras de Kylmerth.
Eu sabia que aquilo tinha de acontecer e aconteceu mesmo. Roger agarrou no monge e atirou-o contra a parede. Depois, inclinando-se para Joanna, obrigou-a a pôr-se em pé.
- Insulte-me a mim, se lhe agradar, não a Lady Carminowe - bradou. - Esta casa é minha e vai ter de sair.
- Assim farei - replicou a mulher -, logo que ela tenha feito a sua escolha. Tenho apenas três lacaios na tua vacaria, mas deve estar um grande grupo à minha espera junto da carruagem, lá na colina, bastante desejosos de se fazerem pagar por antigas humilhações.
- Então mande-os chamar - retorquiu Roger, soltando-a. - O Robbie e eu somos capazes de defender a nossa casa contra todos os seus rendeiros em conjunto, contra toda a paróquia.
A sua voz, erguendo-se em cólera, penetrara no quarto de dormir de cima e Bess surgiu a correr pelo escadote abaixo, pálida e ansiosa, para tomar lugar ao lado do banco de Isolda.
- Quem é esta? - indagou Joanna. - Uma terceira para o rebanho? Quantas outras desmazeladas albergas na tua casa?
- A Bess é irmã de Roger e portanto também minha irmã - respondeu Isolda, pondo o braço em torno da assustada rapariga. - E agora, Joanna, chama os teus lacaios, a fim de que este lar se veja livre de ti. Deus bem sabe que já te aturámos tempo de mais os insultos.
- Aturámos? - inquiriu a outra. - Então contas-te a ti mesma como um deles?
- Sim, enquanto receber a sua hospitalidade - disse Isolda.
- Quer dizer que não tencionas ir comigo para Trelawn?
Isolda hesitou, olhando primeiro para Roger, em seguida para Bess. Mas, antes que pudesse responder, o monge saiu das sombras da parede e pôs-se ao lado deles.
- Há uma terceira hipótese para Lady Carminowe murmurou. - Eu vou partir de Fowey de barco dentro de vinte e quatro horas, para a minha casa-mãe de S. Sérgio e S. Bacchus, em Angers. Se ela e a rapariga quiserem acompanhar-me para França, sei que lhes poderia arranjar lá asilo. Ninguém as molestaria e estariam livres de todas as perseguições. A sua própria existência seria mesmo esquecida logo que se encontrassem em França e Lady Carminowe disporia de liberdade para recomeçar vida nova, em condições mais agradáveis do que por detrás dos muros de um convento.
A proposta era tão obviamente ardilosa, com o intuito de afastar Bess e Isolda dos cuidados de Roger e tê-las aos seus para delas dispor como bem entendesse, que tive esperanças de que mesmo a patrona dele se lhe opusesse. Em vez disso, ela sorriu e encolheu os ombros.
- Palavra de honra, frère Jean, que estás a demonstrar autênticos sentimentos cristãos! - comentou. - Que dizes, Isolda? Agora já tens três alternativas: reclusão em Cornworthy, vida de pega em Kylmerth ou a protecção de um monge beneditino do outro lado do mar. Eu sei muito bem qual escolheria.
Olhou em volta, como fizera ao entrar na casa e, deslocando-se pelo compartimento, tocou nas paredes manchadas pelo fumo, examinando em seguida os dedos, limpando-os com o lencinho e, por fim, fez uma pausa junto do escadote que dava para a sobreloja, com um dos pés num degrau.
- Um enxergão entre quatro e cheio de piolhos? perguntou. - Se fores para Devon ou para França, agradeço-te que primeiro molhes com vinagre o teu vestido.
Comecei a sentir o zumbido nos ouvidos e depois o trovão. Os vultos principiaram a desvanecer-se. Todos menos o de Joanna, ali de pé junto do escadote. Arregaláva para mim os olhos muito abertos e eu deixei de me ralar com o que iria suceder a seguir. Só tinha vontade de lhe pôr as mãos ao pescoço e sacudi-la até que desaparecesse, tal como os outros. Atravessei o compartimento e postei-me a seu lado, mas ela não se desvaneceu.
Principiou a gritar enquanto eu a sacudia para a frente e para trás, de mãos em volta do seu pescoço rechonchudo e branco.
- Raios te partam! - Gritava eu. - Raios te partam... raios te partam... - e os gritos ecoavam à minha volta e também acima de mim. Soltei-a, erguendo os olhos, para ver os rapazes acocorados ali no patamar ao cimo das escadas e Vita caída contra o corrimão a meu lado, fitando-me de face muito branca, aterrorizada, mãos na garganta.
- Oh, meu Deus! - Exclamei. - Vita... querida... Oh, meu Deus...
Tombei para a frente sobre o corrimão junto dela, vomitando, tomado pelas incontroláveis e amaldiçoadas vertigens, enquanto ela se arrastava pelas escadas acima, para se sentir segura junto dos rapazes, e gritaram todos outra vez.
Capítulo vinte e três
Não podia fazer nada. Fiquei estendido nas escadas, agarrado ao corrimão, de braços e pernas grotescamente abertos, com as paredes e o tecto às voltas acima da cabeça. Se fechasse os olhos as vertigens aumentavam, raios de luz dourada a apunhalarem a escuridão. A gritaria terminou por fim. Os rapazes estavam a chorar e pude ouvir-lhes o choro a desvanecer-se ao longe quando correram para a cozinha lá em cima batendo com as portas.
Cego pelas tonturas e náuseas, comecei a rastejar pelas escadas acima e, ao chegar ao topo, pus-me em pé, vacilante, às apalpadelas da cozinha para o vestíbulo. As luzes estavam acesas, as portas abertas. Vita e os miúdos deviam ter fugido para o quarto de dormir, fechando-se à chave. Cambaleei para o vestíbulo e estendi a mão para o telefone, chão e tecto a unirem-se numa só mancha. Fiquei ali sentado a segurar o auscultador na mão, até o chão se ter fixado e a lista telefónica, em vez de não passar de uma baralhada de pontos negros, ter formado palavras. Encontrei por fim o número do Dr. Powell, marquei-o e, quando surgiu na linha, a tensão dentro de mim desfez-se, sentindo o suor a correr-me pelo rosto.
- Daqui Richard Young, de Kilmarth - disse-lhe.
- Recorda-se? O amigo do professor Lane?
- Oh, sim. - Pareceu-me surpreendido. Ao fim e ao cabo eu não era um dos seus pacientes e devia ser para ele apenas uma face entre centenas de veraneantes.
- Aconteceu-me uma coisa muito horrível - informei. - Tive uma espécie de black-out e depois tentei estrangular a minha mulher. Posso tê-la ferido, não sei.
' O termo blac,-out é traduzível por escuridão, extinção da luz, Usa-se para designar uma condição psicológica em que o paciente nada recorda de determinado período da sua vida. (N. do T)
Tinha a voz calma, sem emoções, ainda que o coração continuasse a bater com força e a compreensão do que se tinha passado fosse agora nítida e forte. Não havia confusão. Nenhuma fusão entre dois mundos.
-Ela está inconsciente? - perguntou o médico.
- Não - respondi -, não, creio que não está. Foi lá para cima, com os rapazes. Devem ter-se fechado à chave no quarto de dormir. Estou a telefonar-lhe do vestíbulo cá de baixo.
Ficou em silêncio e, por um terrível momento, tive medo que me fosse dizer que aquilo não lhe dizia respeito e seria preferível ligar para a Polícia. Depois:
- Muito bem, vou já para aí - prometeu, desligando. Pousei o aparelho e enxuguei o suor da cara. As vertigens tinham diminuído e conseguia já sentar-me sem vaci lar. Subi devagar as escadas e atravessei o quarto de vestir na direcção da casa de banho. Estava fechada à chave.
- Querida - chamei -, não te assustes, está tudo bem. Acabei de telefonar para o médico. Ele vem já para cá. Fica aí com os rapazes até ouvires o carro dele. - Ela não me respondeu e voltei a chamar mais alto: - Vita! - gritei -, Teddy, Micky, não tenham medo, o médico vem aí. Vai-se resolver tudo.
Voltei a descer as escadas e abri a porta da frente, deixando-me ficar à espera nos degraus. Estava uma bela noite, o céu refulgia de estrelas. Não se ouvia qualquer som. Os campistas do terreno do outro lado de Polkerris deviam ter-se ido embora. Consultei o relógio. Faltavam vinte minutos para as onze. A seguir ouvi o som do carro do médico a descer a estrada principal vindo de Fowey e comecei de novo a suar, não de medo, mas sim de alívio. Virou para a vereda de acesso e parou no espaço diante da casa. Atravessei o jardim ao encontro dele.
- Graças a Deus que veio - disse-lhe.
Entrámos os dois na casa e apontei-lhe as escadas.
- Primeiro quarto ao cimo, à direita. É o meu quarto de vestir, mas ela fechou-se na casa de banho que fica a seguir. Diga-lhes quem é. Esperarei por si aqui em baixo.
Correu pelas escadas acima, subindo os degraus dois a dois e fiquei a imaginar que o silêncio lá de cima poderia querer dizer que a Vita estava a morrer, que se encontrava estendida na cama e os rapazes encolhidos a seu lado, demasiado aterrorizados para se moverem. Fui para a sala de música e sentei-me, perguntando a mim mesmo o que aconteceria se o médico viesse anunciar-me que a Vita tinha morrido. Estava tudo a acontecer. E era tudo verdade.
Esteve muito tempo no andar superior, acabando eu por ouvir o som de mobília a ser arrastada. Deviam ter levado o divã-cama para o quarto de dormir pela casa de banho e pude ouvir o médico a falar e Teddy também. Gostaria de saber que raio estavam a fazer. Fui escutar ao fundo das escadas, mas tinham ido outra vez para o quarto de dormir, fechando a porta. Voltei a sentar-me à espera na sala de música.
Ele desceu depois de o relógio do vestíbulo ter batido as onze.
- Tudo sob controlo - disse-me. - Nada de pânicos. A sua mulher encontra-se bem e os seus enteados também. E agora quanto a si?
Tentei pôr-me em pé, mas ele empurrou-me de novo para o cadeirão.
- Feri-a? - quis saber.
- Ligeiras escoriações no pescoço, nada mais - esclareceu. - Amanhã é capaz de ficar um tanto azulado mas não se verá, se puser um lenço de pescoço.
- Ela contou-lhe o que se passou?
- E se me contasse você?
- Preferia ouvir primeiro a versão dela - declarei. Ele tirou um cigarro do maço e acendeu-o.
- Bom - respondeu -, segundo entendi você não quis jantar, por motivos que saberá melhor do que eu, e ela passou aqui a noite com os miúdos, enquanto você ia para a biblioteca. Decidiram então ir para a cama e descobriu que você tinha ido para a cozinha e ligado as luzes. Havia bacon já torrado no fogão, que continuava aceso, mas sem que ninguém se encontrasse presente. Portanto desceu à cave. Parece que você estava lá de pé perto da antiga cozinha, segundo me contou, à espera que ela descesse as escadas e, logo que a viu, foi direito ao fundo das escadas e começou a insultá- la, pondo-Lhe depois as mãos ao pescoço e tentando estrangulá-la.
- Foi isso mesmo - asseverei.
Olhou-me com atenção. Talvez estivesse à espera que eu negasse.
- A sua mulher insiste que você estava bêbedo e não sabia o que estava a fazer - disse -, mas foi uma experiência bastante desagradável para todos e ela e aqueles miúdos estão perdidos de medo. O que é mais, segundo pude compreender, você não é do género de beber.
- Pois não - declarei -, não sou. E também não estava bêbedo.
Por um momento não me respondeu. Depois aproxi mou-se e colocou-se na minha frente, tirando uma espécie de lanterna da mala e servindo-se dela para me examinar os olhos. A seguir tomou-me o pulso.
- Que é que anda a tomar? - perguntou-me abrup tamente.
- O quê?
- Sim, que droga anda a tomar? Diga-me tudo, para eu saber como o hei-de tratar.
- O problema é esse - respondi. - Eu não sei.
- É alguma coisa que o professor Lane lhe tenha
dado?
- É.
Sentou-se no braço do sofá, ao lado do meu cadeirão.
- Por via oral, ou por meio de injecção?
- Por via oral.
- Ele andava a tratá-lo de alguma coisa específica?
- Não me andava a tratar de nada. Trata-se de uma experiência. Uma coisa que de livre vontade me ofereci para fazer. Nunca tinha tomado drogas na minha vida, antes de ter vindo para aqui.
Continuou a observar-me com olhos argutos e eu concluí que nada havia a fazer senão contar-lhe tudo.
- O professor Lane estava sob a acção da mesma droga no momento em que foi contra aquele comboio de mercadorias? - perguntou.
- Estava.
Levantou-se do sofá e principiou a caminhar de um lado para o outro da sala, remexendo nas coisas que se encontravam sobre as mesas, pegando nelas e voltando a pousá-las, como o próprio Magnus costumava fazer quando estava prestes a tomar uma decisão.
- Devia interná-lo num hospital, para observaçãoacabou por dizer.
- Não - recusei -, pelo amor de Deus! Ergui-me do cadeirão. - Olhe, eu tenho material suficiente num frasco que está lá em cima. É todo o que resta. Um frasco. Ele disse-me que destruísse tudo o que aqui encontrasse no laboratório e fi- lo... está tudo enterrado no bosque, a seguir ao jardim. Apenas fiquei com aquele frasco e tomei hoje algum do seu conteúdo. Deve ser algo diferente, mais forte, não sei, mas leve-o, analise-o, o que quiser. De certeza que compreende que, após o que aqui se passou esta noite, eu não seria capaz de voltar a tocar nesse material, não compreende? Por Cristo! Eu podia ter morto a minha mulher!
- Bem sei - disse ele. - Por isso mesmo é que devia ir para o hospital.
Ele não sabia. Não entendia. Como é que poderia entender?
- Olhe, eu não vi a Vita, a minha mulher, de pé ao fundo das escadas. Não foi ela quem quis estrangular. Era outra mulher.
- Qual mulher? - perguntou.
- Uma mulher chamada Joanna - respondi. - Viveu há seiscentos anos. Estava ali em baixo, na antiga cozinha da quinta e os outros também lá estavam. Isolda Carminowe, o monge Jean de Méral e o homem a quem a quinta pertencia e que fora o antigo administrador, Roger Kylmerth.
Estendeu a mão e agarrou-me o braço.
- Muito bem - aconselhou. - Aguente-se, estou a segui-lo. Tomou a droga e depois foi lá para baixo, tendo visto essas pessoas na cave?
- Sim - anuí -, mas não só ali. Já os tinha visto também em Tywardreath, na velha casa senhorial abaixo de Gratten e também no priorado. É isso que faz a droga. Leva uma pessoa para o passado, directamente para outro mundo.
Ouvia a minha própria voz erguer-se de excitação e ele mantinha-me o braço agarrado com firmeza.
- Não me acredita? - insisti. - Como é que há- de poder acreditar-me? Mas juro-lhe que os vi, ouvi-os falar, observei-os a deslocarem-se; até vi um homem, o amante de Isolda, Otto Bodrugan, a ser assassinado lá em baixo no riacho de Treesmill.
- Acredito-o na verdade - declarou o médico. - E se agora fôssemos lá acima os dois e você me entregasse o que resta no frasco?
Conduzi-o pelas escadas acima para o quarto de vestir e tirei o frasco da mala que tinha fechada à chave. Não o examinou, limitou-se a metê-lo na sua maleta.
- Agora vou dizer-lhe o que farei. Vou dar-lhe um sedativo bastante forte, que o porá a dormir até amanhã de manhã. Existe mais algum quarto além deste, onde possa dormir?
- Sim - respondi. - Há o quarto de hóspedes, aqui ao fundo do patamar.
- Óptimo - concordou. - Pegue num pijama e vamos para lá.
Entrámos os dois no quarto de hóspedes e eu despi-me e meti-me na cama, sentindo-me de repente humilde e submisso, como uma criança irresponsável.
- Farei tudo o que me mandar - garanti ao médico. - Ponha-me já a dormir, se quiser, de forma que nunca mais volte a acordar.
- Não farei tal coisa - respondeu, sorrindo-se pela primeira vez. - Quando amanhã abrir os olhos, serei talvez a primeira pessoa que verá.
- Nesse caso não me vai levar para o hospital?
- É provável que não. Falaremos nisso amanhã. Estava a tirar uma seringa da maleta.
- Não me importo com aquilo que possa contar à minha mulher, desde que não lhe fale na droga. Deixe-a continuar a pensar que eu estava louco de bêbedo. Seja o que for, mas que ela não saiba da droga. Não gostava do Magnus, do professor Lane e, se souber disso, ainda gostará menos da sua memória.
- Atrevo-me a concordar consigo - anuiu, desinfectando-me o braço com álcool antes de espetar a agulha - e não poderá culpá-la por isso.
- O facto é que ela tinha ciúmes. Há muitos anos que nos conhecíamos um ao outro, ele e eu. Andámos juntos em Cambridge. Eu costumava vir para cá nos velhos tempos e o Magnus era quem parecia mandar. Estávamos sempre juntos, interessávamo-nos pelas mesmas coisas, ríamo-nos das mesmas piadas, Magnus e eu... Magnus e eu...
A profundidade de um abismo ou o longo sono doce da morte, tanto me fazia. Cinco horas, cinco meses, cinco anos... na realidade, segundo fui depois informado foram cinco dias. O médico dava a impressão de se encontrar sempre ali quando eu abria os olhos, dando-me outra picada, ou então sentando-se aos pés da cama, de pernas a balançar, enquanto eu falava. Por vezes aparecia a Vita à porta com um sorriso incerto, desaparecendo depois. Ela e Mrs. Collins, entre as duas, deviam ter-me feito a cama, ter-me lavado, alimentado... ainda que eu não tivesse qualquer recordação de nada. As memórias desses dias haviam-se-me apagado. Posso ter praguejado, delirado, rasgado as roupas da cama, ou apenas dormido. Tanto quanto sei, dormi e também falei. Não com Mrs. Collins, mas com o médico. Não faço ideia quantas sessões tivemos nos intervalos das injecções, nem sequer o que disse ao certo, mas suponho que cuspi tudo, como se costuma dizer, do princípio ao fim, com a consequência de que, em meados da semana seguinte, quando já tinha regressado mais ou menos ao meu estado normal e me encontrava sentado num cadeirão no andar superior, em vez de estendido na cama, o meu corpo e a minha mente se sentirem não apenas repousados como também purgados de todo.
Foi o que lhe comuniquei ao tomar o café que Vita trouxera e ele riu-se, afirmando que uma limpeza bem feita nunca tinha prejudicado ninguém e que era surpreendente a quantidade de coisas que as pessoas fechavam nos seus sótãos e caves, das quais já se haviam esquecido e que seria bastante melhor trazerem à luz do dia.
- Repare que purgar o espírito lhe é mais fácil do que a outros, por causa dos seus antecedentes católicos.
Arregalei os olhos.
- Como é que sabia que eu sou católico? - indaguei,
- Veio tudo à superfície durante a lavagem - respondeu-me.
Senti-me estranhamente chocado. Imaginara que Lhe tinha contado tudo, desde o princípio ao fim, acerca da experiência com a droga e que lhe tinha descrito em pormenor os acontecimentos do outro mundo. O facto de ter nascido e sido criado como católico não tinha nenhuma relação com tudo isso.
- Sou um mau católico - declarei. - Custou-me a esperar para me ver livre de Stonyhurst e há anos que não vou à missa. Quanto à confissão...
- Bem sei - redarguiu ele -, está tudo no sótão ou na cave. Juntamente com o facto de não gostar de monges, padrastos, viúvas que voltam a casar e outras pequenas coisas dentro da mesma linha.
Servi-me de outra chávena de café e uma para ele também, pondo-lhe açúcar de mais e mexendo-a furiosamente.
- Olhe - verberei -, está a dizer disparates. Nunca dediquei um pensamento que fosse aos monges, viúvas ou padrastos, com excepção do meu, na minha actual vida de todos os dias. O facto de essas pessoas existirem no século catorze e de ser capaz de as ver é inteiramente devido à droga.
- Pois é - concordou - inteiramente devido à droga. - E fez uma coisa abrupta: pôs-se em pé e começou a percorrer a sala. - Esse frasco que me deu, fiz com ele aquilo que você deveria ter feito logo após o inquérito. Enviei-o para o assistente principal do Lane, John Willis, com um curto recado dizendo que você tinha tido problemas por causa dele e pedindo-lhe um relatório o mais breve possível. Teve a bondade de me telefonar logo que recebeu a minha carta.
- E depois?
- Bom, o senhor é um homem cheio de sorte por ainda estar vivo e aqui nesta casa e não num asilo para alienados. O produto que havia nesse frasco continha talvez o mais potente alucinogéneo que alguma vez foi descoberto, bem como outras substâncias sobre as quais ainda não tem a certeza. O professor Lane parecia trabalhar nisso sozinho: nunca confiou por inteiro no Willis.
Um homem de sorte por estar vivo, talvez. Com sorte por não me encontrar num manicómio, concordava eu. Mas muito disso já eu afirmara a mim mesmo logo que iniciara a experiência.
- O que está a procurar dizer-me é que tudo aquilo que vi foi resultado de alucinações, desenterradas dos sombrios escaninhos do meu próprio subconsciente?
- Não, não é isso - retorquiu. - Penso que o pro fessor Lane deu com alguma coisa que se poderia revelar de extraordinário significado no tratamento do cérebro e que ele se serviu de si como cobaia, por saber que você faria o que ele mandasse e por ser um indivíduo muitíssimo sugestionável. - Aproximou-se da mesa e terminou a sua chávena de café. - A propósito, tudo o que me contou é tão confidencial como se o tivesse atirado cá para fora durante uma confissão. Tive uma discordância inicial com a sua esposa, para o conservar aqui em vez de o mandar de ambulância para uma clínica qualquer de primeira classe, em Harley Street, que o teria enfiado logo numa casa de repouso para alienados por um período de seis meses. Creio que ela agora já confia em mim.
- O que lhe contou?
- Disse-lhe que você esteve à beira de um esgotamento nervoso e sofria de stress e choque retardado, devido à súbita morte do professor Lane. O que, terá de concordar, é muitíssimo verdade.
Levantei-me da cadeira com enorme cautela e enca minhei-me para a janela. Os campistas tinham-se ido embora do terreno do outro lado do caminho e o gado andava lá a pastar mais uma vez. Conseguia escutar os nossos rapazes a jogarem críquete junto do pomar.
- Pode chamar-lhe o que quiser - proferi devagar - sugestão, esgotamento nervoso. Consciência católica, tudo, mas permanece o facto de eu ter estado nesse outro mundo, de o ter visto, de o conhecer. Era cruel, duro e muitas vezes sangrento, tal como as pessoas que nele habitavam, à excepção de Isolda e, ultimamente Roger, mas, meu Deus, continha um fascínio que me faz falta no meu mundo de hoje.
Veio colocar-se a meu lado junto da janela. Ofereceu-me um cigarro e ambos nos pusemos a fumar por um instante silenciosos.
- O outro mundo - acabou ele por dizer. - Suponho que é uma coisa que todos temos dentro de nós, nas nossas variadas formas. Você, o professor Lane, a sua esposa, eu mesmo e vemo-lo de forma diferente se fizermos todos a experiência ao mesmo tempo... o que Deus permita não venha a suceder! - Sorriu-se e atirou o cigarro pela janela aberta. - Tenho o pressentimento de que a minha mulher encararia mal a Isolda, se eu me pusesse a vaguear pelo vale de Treesmill à procura dela. O que não quer dizer que não o tenha já feito no decorrer dos anos, mas sou demasiado terra-a-terra para voltar atrás seis séculos, na esperança de a poder encontrar.
- A minha Isolda está viva - declarei com teimosia -, consultei árvores genealógicas de facto existentes e documentos históricos que o provam. Estão todos vivos. Tenho documentos ali na biblioteca que não mentem.
- Claro que ela viveu - concordou o médico -, e, o que é mais, teve duas rapariguinhas chamadas Joanna e Margaret, de quem você me falou. As miúdas são por vezes mais fascinantes que os rapazinhos e o meu amigo tem um par de enteados.
- Que diabo quer isso dizer?
- Nada - respondeu ele -, apenas um comentário. O mundo que trazemos dentro de nós produz por vezes respostas. Uma válvula de escape. Uma fuga à realidade. Você não queria viver nem em Londres, nem em Nova Iorque. O século catorze constituiu um excitante e de algum modo arrepiante antídoto a ambas as situações. O problema é que sonhar acordado, como sucede com as drogas alucinogéneas, provoca habituação; quanto mais se lhes cede mais profundo se torna o mergulho e, tal como já lhe disse, acaba-se num manicómio.
Tive a impressão de que tudo o que dissera conduzia a qualquer coisa, a qualquer proposta prática que eu poderia agarrar: arranjar um emprego, sentar-me num gabinete, dormir com a Vita, gerar filhos, aguardar satisfeito a meia-idade, para então poder criar cactos numa estufa.
- Que é que quer que eu faça? - perguntei. - Vá lá, atire isso cá para fora.
Virou as costas à janela e encarou-me.
- Sinceramente, o que vai fazer não é da minha conta - declarou. - O problema não é meu. Como conselheiro e padre confessor durante mais de uma semana, ficaria muito satisfeito em o ver por aí nos anos que se hão-de seguir. E teria o maior prazer em lhe receitar os usuais antibióticos sempre que apanhasse uma gripe. Mas quanto ao futuro imediato, sugiro-Lhe que saia desta casa o mais depressa possível, antes que sinta outro impulso para fazer uma visita à cave.
Inspirei fundo.
- Era o que eu pensava - disse-lhe. - Esteve a conversar com a Vita.
- Claro que estive a conversar com a sua esposa - admitiu -, e, para além de umas quantas subtilezas femininas, é uma mulher muito sensata. Quando lhe falo em deixar esta casa, não quero dizer para sempre. Mas, pelo menos durante as próximas semanas, seria preferível estar longe. Terá de reconhecer essa necessidade.
Reconhecia-a mesmo, mas, como um rato encurralado, esforçava-me por sobreviver e ganhar tempo.
- Muito bem - disse-lhe. - Para onde sugere que vamos? Temos os miúdos connosco.
- Bem, não são eles que o preocupam, pois não?
- Não... não, mas sou muito amigo dos dois.
- É indiferente para onde vá, desde que esteja fora do alcance de Roger Kylmerth.
- O meu alter ego? - inquiri. - Ele e eu não somos mesmo nada parecidos, o senhor bem sabe.
 - Os alter ego nunca o são - confirmou. - O meu
é um poeta de cabelos compridos, que desmaia à vista de
sangue. Tem-me acompanhado com obstinação desde
que saí da faculdade.
Soltei uma gargalhada contra vontade. Ele fazia tudo
parecer tão simples.
- Gostava que tivesse conhecido o Magnus. De forma curiosa, o senhor faz-me lembrá-lo.
- E eu gostava de o ter conhecido. Falando a sério,
no entanto, aquilo que lhe disse sobre afastar-se daqui é
mesmo a minha opinião. A sua esposa sugeriu a Irlanda.
Boa região para passeios a pé, pesca, potes de ouro enterrados sob os montes...
- Sim - anuí - e dois compatriotas dela que andam por lá a fazer turismo nos melhores hotéis.
- Falou neles - confessou o médico -, mas creio
que se foram embora... fartaram-se do clima e voaram
para a solarenta Espanha. Portanto isso não o deverá
preocupar. Achei a Irlanda uma boa ideia, porque significa apenas uma viagem de três horas até Exeter e de lá
poderá seguir de avião. Alugue um carro do outro lado e
ponha-se a caminho.
Ele e Vita tinham organizado tudo. Senti-me apanhado numa armadilha, não via maneira de sair dela. Tinha
de fazer boa cara e admitir a minha derrota.
- E se eu recusar? - indaguei. - Se voltar para a
cama e puxar os lençóis para cima da cabeça?
- Mandarei vir uma ambulância e transporto-o para
o hospital. Pensei que a Irlanda fosse melhor ideia, mas
é consigo.
Cinco minutos mais tarde tinha ido embora e ouvi o
carro dele rugir pelo caminho acima. A sensação de anticlimax era absoluta: a purga tinha sido boa. E eu continuava a não saber quanto lhe contara. Sem dúvida uma baralhada de tudo o que tinha pensado ou feito desde os três anos de idade e, tal como todos os médicos com inclinação para a psicanálise, juntara todos os pedacinhos e definira-me como a habitual espécie de fraude com tendências homossexuais, que sofria de nascença de complexo maternal, de complexo relacionado com o padrasto, de aversão à cópula com a própria esposa anteriormente viúva e de desejo reprimido de se pôr a mexer com uma loira que nunca existira senão em imaginação.
Tudo se ajustava, claro. O priorado era Stonyhurst, o irmão Jean era aquele bastardo aveludado que me tinha ensinado História, Joanna era a minha mãe e a pobre Vita também entrava na peça, tal como Otto Bodrugan, o garboso e alegre aventureiro que eu na realidade ansiava por ser. O facto de todos eles terem vivido e isso poder ser provado não impressionava o Dr. Powell. Era uma pena que não tivesse experimentado ele próprio a droga, em vez de ter enviado o frasco marcado a John Willis. Nessas circunstâncias, seria capaz de ter reflectido melhor.
Bem, estava tudo terminado. Tinha de aceitar o diagnóstico dele tal como os seus planos para as minhas férias. Deus sabia que era o mínimo que eu poderia fazer depois de quase ter morto a Vita.
Curioso que ele não houvesse dito nada quanto a efeitos colaterais, ou acção retardada. Talvez tivesse trocado impressões com o John Willis e este lhe tivesse dado o OK. Mas nesse caso o Willis ignorava aquilo do olho raiado de sangue, os suores, as náuseas e as vertigens. Ninguém sabia, ainda que Powell pudesse tê-lo adivinhado, sobretudo depois do nosso primeiro encontro. Fosse como fosse, sentia- me agora bastante normal. Demasiado normal, para falar a verdade. Como um rapazinho castigado com pancada, que tivesse prometido modificar-se.
Abri a porta e chamei por Vita. Ela subiu logo as escadas a correr e dei-me conta, com certa sensação de vergonha e culpa, daquilo por que devia ter passado no decorrer da última semana. Tinha o rosto exangue e perdera peso. O cabelo, de costume impecável, estava puxado para trás, preso numa trança feita à pressa e deixava transparecer um ar tenso e infeliz nos olhos, que nunca lhe vira antes.
- Anunciou-me que tinhas concordado em afastares-te - disse-me ela. - Foi ideia dele, não minha, garanto-te. Eu apenas quero fazer o que for melhor para ti.
- Bem sei. E ele tem toda a razão.
- Então não ficaste zangado? Estava com receio de que te aborrecesses.
Veio sentar-se a meu lado sobre a cama e eu pus o braço em volta dela.
- Tens de me prometer - disse-Lhe - esquecer tudo o que nos aconteceu até agora. Bem sei que isso é quase impossível, mas peço-te mesmo assim.
- Estiveste doente. Eu sei porquê, o doutor explicou-me tudo. - Respondeu ela. - Também explicou aos miúdos e eles compreenderam. Nenhum de nós te culpa por nada, querido. Só queremos que te ponhas bom e sejas feliz.
- Eles não estão com medo de mim?
- Deus do Céu! Não. Mostraram muita sensatez em relação a tudo. Têm sido os dois tão bons e tão prestáveis, sobretudo o Teddy. São-te tão devotados, querido, não creio que te tenhas apercebido disso.
- Oh, sim, apercebi-me - garanti. - O que ainda é pior. Mas deixemos isso agora. Quando partimos?
Ela hesitou.
- O Dr. Powell disse-me que estarias em condições de viajar lá para sexta-feira e que fosse à frente para tratar dos bilhetes.
Sexta-feira... depois de amanhã.
- OK - concordei -, se foi o que ele disse. Acho que será melhor eu andar um pouco por aí, para me pôr em forma. Separar umas coisas para meter nas malas.
-Desde que não exageres. Mandarei o Teddy cá acima para te ajudar.
Deixou-me com a maior parte do correio da semana e, quando estava a passar os olhos por ele atirando uma boa parte para o cesto dos papéis, Teddy surgiu à porta.
- A mamã disse que tu eras capaz de querer ajuda para fazer as malas - proferiu com timidez.
- Claro que quero, meu rapaz. Ouvi dizer que tens sido tu o chefe de família na última semana e que te tens portado muito bem.
Corou de satisfação.
- Oh, não sei. Não tenho feito grande coisa. Atendi o telefone umas quantas vezes. Ligou para cá ontem um homem, perguntando se estavas melhor e enviando-te cumprimentos. Um tal Mr. Willis. Deixou o seu número, para o caso de lhe quereres telefonar. E deixou outro número também. Tomei nota dos dois.
Trouxe-me uma agenda de capa negra e brilhante, rasgando dela uma página. Reconheci o primeiro número: era o do laboratório de Magnus, mas o outro é que me intrigou.
- Este segundo número é da casa dele, ou não to disse? - perguntei.
- Sim, disse-me. É de um indivíduo chamado Da vies, que trabalha no Museu Britânico. Pensou que poderias gostar de entrar em contacto com Mr. Davies antes de partirmos para férias.
Meti a página rasgada no bolso e fui com Teddy para o quarto de vestir. O divã desaparecera e compreendi o que tinha significado o som de arrastamento na noite em que o médico viera: a cama fora removida para o quarto duplo e colocada sob a janela.
- O Micky e eu temos dormido aqui com a mamã esclareceu Teddy. - Ela precisava de companhia.
Era uma maneira delicada de falar da protecção de
que ela necessitava. Deixei-o no quarto de vestir a tirar
coisas do guarda-fatos e peguei no telefone ao lado da
cama.
A voz que me respondeu, precisa e bastante reservada da, garantiu-me que o proprietário daquele número era Davies.
- Chamo-me Richard Young
um amigo do falecido professor Lane. Creio que já ouviu falar em mim.
- Sim, na verdade já ouvi, espero que se sinta melhor. Soube pelo John Willis que o senhor esteve doente.
- É verdade. Nada de sério. Mas vou sair daqui e
suponho que você também irá partir, portanto lembrei-me que pudesse ter alguma coisa para mim.
- Infelizmente nada de especial, receio. Se me desculpar por um momento irei buscar os meus apontamentos e ler-lhos-ei.
Aguardei enquanto ele pousava o auscultador. Tinha
o desconfortável pressentimento de que estava a fazer
batota e que o Dr. Powell teria desaprovado.
- Está, Mr. Young?
- Sim, estou em linha.
- Espero que não fique desapontado. Trata-se apenas de extractos dos anais do bispo Grandisson de Exeter, um datado de 1334, o segundo de 1335. O primeiro
está relacionado com o priorado de Tywardreath e o segundo com Oliver Carminowe. O primeiro é uma carta
do bispo de Exeter para o abade da casa-irmã de Angers,
a e diz o seguinte:
John, etc. bispo de Exeter, envia saudações com o pensamento na bondade do Senhor. Considerando que estamos a expulsar do nosso rebanho a ovelha doente que se tem mergulhado na desordem, a fim de que pelo menos não contagie as nossas outras ovelhas saudáveis (no caso vertente o irmão Jean, chamado Méral, um monge do vosso mosteiro agora vivendo no priorado de Tywardreath, na nossa diocese, que é dirigido por um prior da Ordem de S. Benedito), por causa do seu pecaminoso abandono de toda a vergonha e comportamento decente, a despeito de com frequência ter sido admoestado com delicadeza... e por ele, como me envergonho de afirmar (já para não referir as suas notórias ofensas), não obstante se ter cada vez mais endurecido na sua maldade... tomámos, por conseguinte, com todo o zelo e reverência pela vossa ordem e por vós mesmo, disposições no sentido de o enviarmos de regresso a vós, a fim de ser submetido à disciplina do mosteiro, pelo seu maléfico comportamento. Que o próprio Deus vos mantenha de saúde por muitos anos e no comando do vosso rebanho. "
Aclarou a garganta.
- O original está em latim, compreende. Isto é uma tradução minha. Não consegui impedir-me de pensar, enquanto a executava, como o fraseado havia de agradar ao professor Lane.
- Sim - concordei -, agradar-lhe-ia.
Voltou a pigarrear.
- O segundo documento é muito curto e pode não lhe interessar. Diz apenas que, a 21 de Abril de 1335, o bispo Grandisson recebeu Sir Oliver Carminowe e a esposa, Sybell, que tinham contraído matrimónio clandestino, sem banhos nem licença. Confessaram que tinham errado por ignorância. O bispo relaxou as penalidades que lhes haviam sido impostas e confirmou o matrimónio, que parece ter tido lugar em data prévia, não declarada, na capela privativa de Sir Oliver, em Carminowe, na paróquia de Mawgan-in-Meneage. Foram tomadas medidas contra o padre que os casara. É tudo.
- O documento diz o que sucedeu à esposa anterior, Isolda?
- Não. Presumo que morrera, talvez pouco antes, e que este outro casamento foi feito de forma clandestina por ter ocorrido tão curto prazo após a sua morte. Talvez Sybell estivesse grávida e tivesse parecido necessária uma cerimónia privada para lhe salvar a reputação. Lamento, Mr. Young, mas não consegui descobrir mais nada.
- Não se preocupe - disse-lhe. - O que me contou é de muito valor. Desejo-lhe boas férias.
- Muito obrigado. O mesmo para si.
Pousei o auscultador. Teddy estava a chamar-me do quarto de vestir.
- Dick?
- Sim?
Veio da casa de banho com a bengala de Magnus nas mãos.
- Queres levar isto contigo? - perguntou. - É comprida de mais para caber na tua mala de viagem.
Não via a bengala desde que lhe metera dentro o líquido incolor do frasco C, há quase uma semana. Esquecera-me dela.
- Se não a quiseres - disse Teddy -, volto a pô-la no armário onde a encontrei.
- Não - decidi. - Dá-ma. Quero levá-la. Ele fingiu apontar na minha direcção, a sorrir, empunhando-a como se fosse uma lança, depois lançou-a devagar pelo ar. Agarrei-a com força.
Capítulo vinte e quatro
Sentámo-nos no átrio do aeroporto de Exeter, à espera da chamada para o nosso voo. A descolagem seria às doze e trinta. O Buick ficara estacionado por detrás do aeroporto até ao nosso regresso, fosse ele quando fosse. Arranjei sanduíches para todos nós e, enquanto as comíamos, fui lançando uma vista de olhos aos nossos companheiros de viagem. Havia naquele dia voos para as ilhas do canal, tal como para Dublin, e o átrio voltado para a pista estava cheio de gente. Via-se grande número de padres de volta de qualquer missão, um grupo de estudantes, grupos familiares idênticos ao nosso e o habitual sortido de veraneantes. Havia também um divertido sexteto que, a julgar pela conversa ia a caminho de, ou vinha de, um tumultuoso casamento.
- Tenho esperanças - observou Vita - de não nos virmos a encontrar ao lado desse grupo no avião.
Os rapazes já se contorciam de riso, porque um dos
membros do grupo tinha posto um nariz e um bigode
que estavam sempre a enfiar no seu copo de Guinness, para dele emergirem cobertos de espuma.
- O que temos de fazer é pormo-nos em pé num salto logo que for chamado o nosso voo, de maneira a colocarmo-nos mesmo à frente, bem afastados deles.
- Se esse homem do nariz falso tentar sentar-se a meu lado, sou capaz de gritar - garantiu Vita.
O comentário dela animou ainda mais os rapazes e eu congratulei-me por ter encomendado generosas doses de sidra para eles e brande com soda, nossa bebida de férias, para Vita e para mim mesmo, por ser isso mais que o grupo vindo do casamento, que punha os rapazes às gargalhadas, levando a mãe a pestanejar enquanto se mirava na caixinha do pó-de- arroz. Mantive-me de olho atento sobre o aparelho que se encontrava no runway', até ver que já estava carregado. Estavam a afastar os camiões de transporte de bagagens e uma hospedeira atravessava a placa na direcção da nossa porta.
- Raios! - exclamei. - Eu bem sabia que tinha sido um erro emborcar tanto café e brande. Olha, querida, tenho de ir a correr à casa de banho dos homens. Se chamarem para o voo, avança e arranja lugares à frente, como te recomendei. Se for apanhado no meio da multidão, hei-de arranjar um lugar atrás e trocaremos de lugares depois da descolagem. Desde que vocês os três estejam juntos, tudo bem. Toma, leva os vossos cartões de embarque, que eu fico com o meu, pelo sim pelo não.
- Oh, Dick, francamente - exclamou ela. - Já lá podias ter ido. É mesmo teu!
- Desculpa - redargui -, a natureza impõe- se... Afastei-me depressa pelo átrio ao ver a hospedeira entrar pela porta e aguardei no interior das casas de banho. Ouvi o número do voo ser chamado pelo altifalante e, passados uns minutos, já depois de ter saído de lá outra vez, o nosso grupo estava a encaminhar-se com a hospedeira na direcção do avião, Vita e os miúdos metidos na carrinha de transporte de passageiros. Desapareceram no aparelho enquanto os observava, seguidos pelos estudantes e pelos padres. Era agora ou nunca. Saí depressa
pela porta principal do edifício do aeroporto, dirigindo-me para o carro que se encontrava no parque. Dentro dum momento tinha já o Buick a funcionar e saía pela estrada. Encostei depois à berma pondo-me à escuta. Conseguia ouvir o som dos motores antes de o avião se dirigir para o ponto de descolagem, o que devia querer dizer que toda a gente se encontrava a bordo. Se os motores
' Runay é um termo técnico da aviação que designa o espaço onde os aviões aguardam autorização para se dirigirem à pista de descolagem, à qual está ligado pelo taxi-wray. (N. do T. )
fossem desligados, isso quereria dizer que o meu plano tinha ido por água abaixo.
Eram doze e trinta e cinco precisas.
Ouvi a seguir os motores aumentarem de ruído e, dentro de poucos minutos, com o coração numa inacreditável batida, vi a faixa prateada da aeronave acelerar ao
longo da pista e descolar, ganhando altitude, achatando-se, e de seguida no meio das nuvens, desaparecendo
do meu campo de visão, e eu ali sentado ao volante do
Buick, dono de mim.
Deveriam tocar em terra em Dublin à uma e cinquenta. Sabia exactamente o que a Vita iria fazer. Ligaria
do aeroporto para o Dr. Powell, em Fowey, procurando
lá encontrá-lo. Ele seria capaz de ter saído porque se estava
a meio do dia. Assim mo dissera quando lhe tinha telefonado após o pequeno-almoço para me despedir. Afirmara que, se estivesse bom tempo, levaria a família para
a costa norte
para fazerem surf e que iria pensar em
nós, pedindo-me se lhe mandava um postal da Irlanda
daqueles que dizem: Gostava que estivesse aqui connosco. "
Principiei a cantar, enquanto virava para a estrada
principal com o ponteiro a alcançar as setenta milhas.
Devia ser assim que se sentia um criminoso logo depois
de ter roubado um banco e fugido com a massa numa
carrinha também roubada. Era uma pena que não dispusesse de todo o dia para gozar despreocupado, talvez para ir a Bere procurar Sir William Ferrers e sua esposa
Matilda. Descobrira-lhe a localização no mapa, ficava logo do outro lado de Tamar, em Devon, e gostaria de saber se a casa deles ainda se mantinha de pé. Talvez não,
a não ser que se tivesse transformado numa quinta tal
como
Carminowe. Também localizara Carmimowe no
mapa na mesma altura, quando Teddy se encontrava no
quarto de vestir a fazer-me a mala, e descobrira de igual
modo a referência que lhe era feita no velho volume da história paroquial que me havia indicado Tregesteynton. Carminowe ficava em Mawgen-in-Meneage, próximo de Loe Pool, e o escrevente afirmava que a antiga mansão e a capela haviam caído em ruínas durante o reinado de James I, juntamente com o velho cemitério.
Tomei a estrada para Launceston, depois de ter saído de Okehampton, por ser mais rápido do que por onde viéramos e pus-me a cantar em voz alta enquanto atravessava de Devon para a Cornualha, rumando a Bodmin como um pombo-correio de regresso a casa, porque mesmo que Vita me batesse em velocidade e estivesse agora a aterrar em Dublin, me encontrava livre de perseguições. Ela já não me poderia alcançar. Era a minha derradeira viagem, o meu voo final e, o que quer que me sucedesse no processo, não a poderia magoar a ela nem aos rapazes, já que estariam a salvo em solo irlandês.
Em semelhante noite,
Colocou-se Dido com um bastão na mão, Nas margens do mar selvagem, a acenar ao seu amor Para que regressasse de novo a Cartago.
O problema era que o amante de Isolda tinha morrido em Treesmill, junto da praia, e eu duvidava que a ameaça dos muros do convento ou os insultos de Joanna, ou se quer a promessa do monge de uma passagem segura para um duvidoso refúgio em Angers, a tivessem acabado por fazer virar-se para o lado de Roger. O futuro era sombrio há seiscentos anos atrás para as esposas que deixavam os maridos, sobretudo quando estes andavam de olho numa terceira noiva. Teria sido muito conveniente para Oliver Carminowe e também para a família Ferrers, se Isolda houvesse pura e simplesmente desaparecido, o que era muito capaz de suceder se se tivesse confiado aos cuidados de Joanna, mas permanecer sob o tecto de Roger seria, na melhor das hipóteses, uma medida pro visória e não poderia ter durado muito tempo.
Enquanto conduzia na direcção do pântano de Bodmin, rejubilando por cada milha me aproximar mais de casa, a minha alegria era temperada pela consciência de que não somente esta deveria ser a minha derradeira viagem ao outro mundo, como também, ao iniciá-la, não tinha capacidade de escolha quanto à data ou à estação do ano. O degelo podia ter chegado e os nevões estarem já terminados, com o pino do Verão a substituí-los, tendo a própria Isolda optado e podendo encontrar-se a murchar por detrás dos muros daquele convento algures em Devon, fora, nesse caso, da vida de Roger e da minha também. Perguntava-me se, no caso de Magnus estar vivo, ele poderia ter aperfeiçoado o factor tempo, deixando dessa forma o despertar do presente para o passado à escolha do participante, de forma que hoje, por meio de uma alteração infinitesimal da dose, eu pudesse evocar à minha escolha aqueles personagens da cave no ponto em que os havia deixado da última vez. Nunca, nas poucas semanas que durara a experiência, tinha acontecido assim. Sempre se verificara um salto no tempo. A carruagem de Joanna poderia já não estar à espera no topo da colina sobranceira a Kylmerth. Roger, Isolda e Bess teriam saído da famosa cozinha. Aquela única dose que havia no castão da bengala poderia garantir-me nova viagem pelo meu mundo, mas não o que lá poderia encontrar.
O sinal de stop fez-me virar com uma sacudidela para a estrada principal Lostwithiel-St. Blazey. Conduzira as últimas vinte milhas como um autómato e recordara-me do desvio que me levaria para além de Tregesteynton e para o vale de Treesmill. Desci-o com um estranho sentimento de nostalgia e, ao passar pela actual casa de lavoura de Strickstenton, vendo um collie' preto e branco saltar como um dardo para a estrada, a ladrar, pensei
' Collie: raça de cães muito utilizada para guardar residências. (N. do T)
na pequena Margaret, filha mais nova de Isolda, que desejara ter um chicote como o de Robbie, e em Joanna, a mais velha, ataviando-se em frente ao espelho enquanto o seu pai perseguia lá em cima Sybell, com a garra de lontra na mão.
Penetrei no vale e tão intensa era a minha identificação com o passado que me esquecera por instantes de que o rio já lá não estava, procurando, então, a casa de Rosgof do lado do vau em frente ao moinho. Mas claro que lá não existia nenhum rio nem nenhum vau, apenas a estrada que virava para a esquerda e umas quantas vacas a pastar nos terrenos pantanosos.
Gostaria de estar a guiar o Triumph, porque o Buick era demasiado grande e conspícuo. Num súbito impulso, estacionei junto da ponte abaixo do moinho e, caminhando um pouco pela vereda acima, passei sobre o portão para o campo que ia até Gratten. Sabia que precisava de me deter ali mais uma vez entre os montículos de terra antes de voltar para casa porque, uma vez regressado a Kilmarth, o meu futuro seria incerto. A última experiência poderia meter-me em qualquer sarilho imprevisto. Queria transportar na mente a imagem do vale de Treesmill com o aspecto actual, sob o sol de fins de Agosto, deixando a imaginação e as recordações fazer o resto, trazerem-me de volta o rio serpenteante e o riacho, o cais de ancoragem abaixo da casa há muito desaparecida. Tinham andado a fazer as colheitas em Chapel Park, por detrás de Gratten, mas aqui, do outro lado da vedação,
era só relva e as vacas andavam a pastar. Atingi os primeiros arbustos de tojo, trepando para o alto do talude que rodeava o local e baixando depois os olhos para o avental de relva que em tempos fora um pátio sob a janela do salão, onde Isolda e Bodrugan se haviam sentado de mãos dadas.
Estava lá estendido um homem, a fumar um cigarro, com o casaco enrolado por baixo da cabeça ao jeito de
travesseiro. Olhei-o com dureza sem querer acreditar
pensando que a culpa e a má consciência deviam ter-me
conjurado a sua imagem no ar, mas não estava enganado.
O homem que ali estava estendido era muito real, era o
Dr. Powell.
Mantive-me ali por um momento a observá-lo, depois, de propósito, sem malícia, mas com total determinação, desatarraxei a parte de cima da bengala de
Magnus e tirei dela o pequeno copo. Engoli a minha última dose e recoloquei de novo a medida dentro da bengala. Depois encaminhei-me para o outeiro, onde me
juntei a ele.
- Pensava - disse-Lhe - que o senhor tinha ido fazer surf para a costa norte?
Sentou-se num instante e eu senti, pela primeira vez
desde que o conhecia, a imensa satisfação de o ter apanhado desprevenido e em desvantagem.
Recuperou depressa, o ar de espanto dando lugar a
um sorriso cativante.
- Mudei de ideias - respondeu com toda a calma - e deixei ir a família sem mim. Você parece ter feito a
mesma coisa.
- Quer então dizer que a Vita acabou por me vencer. Não perdeu muito tempo - retorqui.
- Que é que a sua esposa tem a ver com isto?
- Bem, ela deve ter-lhe telefonado de Dublin, não
foi?
- Não.
Era agora a minha vez de parecer espantado e arregalar os olhos.
- Então que raio é que está aqui a fazer à minha espera?
- Não o estava a esperar. Em vez de ir romper a rebentação do Atlântico, decidi explorar o seu território. Um palpite que aparentemente foi bom. Você poderá agora mostrar-me a área.
O ânimo principiou a desvanecer-se-me, a autoconfiança a abandonar-me. Ele dava a impressão de estar a jogar o meu jogo e a sair-se bem.
- Olhe - disse-lhe -, não quer saber o que se passou no aeroporto?
- Nem por isso - replicou. - O avião descolou, isso sei eu porque telefonei de Exeter e verifiquei. Não souberam dizer-me se você ia ou não nele, mas sabia que, se não tivesse ido, havia de regressar a Kilmarth e, se lá aparecesse para tomar uma chávena de chá, o iria encontrar na cave. Entretanto, uma curiosidade ardente fez-me ficar por aqui uma meia hora.
A sua atitude ultra-segura enfureceu-me, mas estava ainda mais irritado comigo mesmo. Se tivesse seguido pela outra estrada, se não tivesse vindo pelo vale de Treesmill, permitindo que um momentâneo sentimentalismo me tomasse, já teria voltado em segurança a Kilmarth, dispondo de pelo menos meia hora ou mais antes de ser possuído.
- Muito bem - disse-lhe -, já sei que preguei uma partida suja à Vita e aos miúdos e que ela estará talvez a tentar telefonar-lhe do aeroporto de Dublin neste preciso momento, sem obter resposta. O que me surpreende é que me tenha deixado partir, consciente do que poderia vir a acontecer. É quase tanto culpa sua como minha.
- Oh, concordo com isso - respondeu. - Sou também culpado e ambos nos desculparemos quando a atendermos ao telefone. Mas queria dar-lhe uma oportunidade só para ver se você era capaz de se aguentar, em vez de me guiar pelas normas.
- E que é que elas dizem?
- Interna o teu toxicómano logo que ele se sinta bem e devidamente sob controlo.
Observei-o pensativo, apoiando-me à bengala de Magnus.
- O senhor sabe muito bem que lhe entreguei o frasco e que era o último. E deve ter passado à casa uma revista bastante cuidadosa enquanto estive de cama no andar de cima durante toda a semana passada.
- Pois passei - confirmou - e voltei a revistá-la hoje mesmo. Disse a Mrs. Collins que andava à procura de um tesouro escondido e acho que ela me acreditou. Você é um fulano muito desconfiado, não é?
- Sou. E não encontrou nada, porque nada havia lá.
- Bom, poderá considerar-se com muita sorte por não haver. Tenho no meu bolso o relatório final do Willis.
- Que é que ele diz?
- Só que a droga contém uma substância de alguma toxicidade, que poderia afectar seriamente o sistema nervoso central, levando a uma possível paralisia. Não é preciso ser mais detalhado.
- Mostre-mo.
Abanou a cabeça e de repente já ali não estava, havia paredes a toda a minha volta e vi-me de pé no salão da casa senhorial dos Champernounes, observando a chuva através da janela. O pânico tomou-me, porque não era aquilo que deveria ter sucedido, pelo menos de momento. Contava vir a encontrar-me em casa, por detrás das minhas quatro paredes, com o Roger a actuar como meu guia habitual e meu protector. Ele não se encontrava presente e o salão estava vazio, tendo sido modificado desde a última vez que eu lá estivera. Parecia conter mais mobiliário, mais coisas penduradas e o cortinado que mascarava a porta para a escadaria estava corrido para o lado. Alguém gritava no quarto de dormir lá em cima e eu conseguia ouvir o som de passos pesados a percorrerem o soalho. Voltei a olhar pela janela, vendo pela chuva que tombava que devíamos estar no Outono, porque o maciço de árvores do outro lado da colina, onde Oliver Carminowe estivera escondido com os seus homens, emboscados à espera de Bodrugan, apresentava um tom castanho-dourado como nessa altura. Só que hoje o vento não soprava, para projectar no solo as folhas das árvores. Os chuviscos insistentes faziam-nas pender tristes e uma neblina pairava sobre Lanescot e a boca do rio. Os gritos transformaram-se numa gargalhada aguda e uma taça e uma bolinha vieram a rolar pelas escadas abaixo, uma atrás da outra, até ao chão do salão, continuando a bola a rolar para debaixo da mesa. Ouvi uma voz de homem bradar com ansiedade: Tem cuidado por onde andas, Elizabeth! ", enquanto alguém ainda às gargalhadas desceu as escadas aos saltinhos à procura do brinquedo. Deteve-se por um momento, de mãos entrelaçadas à frente do corpo, o longo vestido a arrastar, uma absurda touca posta às três pancadas sobre o cabelo ruivo. A sua semelhança com Joanna Champernoune era surpreendente, parecendo- me depois trágica, porque me encontrava na presença de uma rapariga idiota, com cerca de doze anos de idade, boca cheia e olhos implantados muito alto na cabeça. Acenou rindo-se, depois pegou na taça e na bola, começando a atirá-las ao ar e gritando de delícia. De súbito, cansada da brincadeira, atirou-as para o lado e principiou a girar em círculos até ficar tonta, caindo para o chão onde ficou sentada imóvel, fitando os sapatos.
A voz de homem voltou a chamar do andar de cima: Elizabeth... Elizabeth" e a rapariga pôs-se desajeitadamente em pé, a sorrir e a fitar o tecto. Passos desceram devagar as escadas e o homem surgiu, vestido com uma longa túnica solta até aos tornozelos e um barrete de dormir. Pensei por um momento que voltara atrás no tempo e estava na presença de Henry Champernoune, fraco e pálido na derradeira fase da sua doença, mas tratava-se do filho William, adolescente quando o vira pela última vez, esforçando-se por assumir o seu lugar de chefe de família no momento em que Roger trouxera a notícia da morte do pai. Parecia ter agora trinta e cinco anos ou mesmo mais e apercebi-me, com um choque de desapontamento, que o tempo se me adiantara pelo menos uns doze anos e que todos os meses e anos intermédios se encontravam enterrados num passado que eu nunca conheceria. O gelado Inverno de 1335 nada significava para este William, que era então menor e ainda não estava casado. Era agora dono da sua própria casa, ainda que lutasse ao que parecia contra a doença, também apanhado na inevitável rede de alguma deficiência familiar.
- Vem daí, filha, vem daí, meu amor - disse ele com suavidade, estendendo os braços. Mas ela meteu um dedo na boca para o chupar, sacudindo os ombros e depois, com repentina mudança de ideias, mergulhou para o chão e apanhou a taça e a bola para lhas dar.
- Eu atiro-as ao ar para tu veres lá em cima, mas não aqui em baixo - prometeu o pai. - A Katie também tem estado doente e não devo deixá-la sozinha.
- Não lhe dou o meu brinquedo, não quero que fique com ele - exclamou Elizabeth, abanando a cabeça para cima e para baixo e estendendo a mão, a tentar tirar-lhe de novo os objectos.
- O quê? Não deixas a tua irmã brincar com eles, quando foi ela quem tos deu? Não deve ser a minha Lizzie que está a falar de certeza absoluta! A Lizzie voou pela chaminé acima e foi uma menina má que tomou o lugar dela.
Deu um estalo com a língua em reprovação e, ao ouvir esse som, a boca cheia da miúda descaiu-lhe, os olhos encheram- se-Lhe de lágrimas e pôs os braços em volta do pai, num pranto amargo e agarrando-se-lhe à túnica.
- Vá lá, vá lá - tranquilizou-a ele. - O pai não estava a falar a sério, o pai gosta da Lizzie, mas ela não deve fazê-lo zangar, ele continua fraco e doente e a pobre Katie também. Vamos lá para cima, para ela nos poder ver da cama e, quando tu atirares a bola bem alto, pode ser que melhore e até que sorria.
Pegou na mão da miúda e conduziu-a para as escadas. Nesse instante, entrou alguém pela porta da cozinha. William ouviu-lhe os passos e virou-se.
- Verifica se todas as portas estão fechadas antes de te ires embora - ordenou -, diz aos criados para as conservarem assim e não as abrirem a ninguém. Deus bem sabe como detesto ter de dar tal ordem, mas não me atrevo a proceder de outra forma. As pessoas contaminadas pela doença esperam pela escuridão para virem bater às portas dos outros.
- Bem sei. Há muitas em Tywardreath e a morte tem-se espalhado por causa disso.
Não tinha dúvidas quanto a quem falava no limiar da porta aberta. Tratava-se de Robbie, um Robbie mais alto e mais robusto do que o rapazote que eu conhecera e que apresentava agora barba no queixo como a do seu irmão.
- Então tem cuidado ao subires a estrada - recomendou William. - Os mesmos pobres dementes e vadios que por aí andam poderão tentar atacar- te, pensando que, como vais a cavalo, possuis alguma mágica qualidade de saúde que a eles foi negada.
- Irei com cautela, Sir William, não tenha medo. Se não fosse por causa do Roger, não o abandonaria à noite. Já se passaram cinco dias desde a última vez que fui a casa e ele está lá sozinho.
- Eu sei, eu sei. Que Deus vos guarde a ambos e vele por todos nós esta noite.
Levou a filha pelas escadas acima, para o quarto do andar superior e eu segui Robbie até à cozinha. Três criados estavam aí sentados com ar abatido junto do fogo, um deles de olhos fechados e a cabeça apoiada na parede. Robbie transmitiu-Lhe o recado de Sir William e
ele repetiu:
- Que Deus esteja connosco - sem sequer abrir os olhos.
Robbie fechou a porta atrás de si e encaminhou-se para os estábulos. O seu pónei estava amarrado à baia no interior da estrebaria. Montou e começou a subir devagar a colina, por entre a chuva miudinha, passando pelas pequenas casas da propriedade que ladeavam o caminho enlameado. Todas as portas se encontravam firmemente cerradas e saía fumo pelos telhados de apenas duas delas, parecendo as restantes desertas. Alcançámos a crista da colina e Robbie, em vez de voltar à direita na estrada que seguia para a aldeia, fez uma pausa junto da casa dos tributos à esquerda e, desmontando, amarrou o pónei ao portão e percorreu o caminho de acesso para a capela. Abriu a porta e entrou, comigo a segui-lo. A capela era pequena, com pouco mais de vinte pés de comprimento e quinze de largura, uma única janela voltada a leste por detrás do altar. Robbie, fazendo o sinal da Cruz, ajoelhou-se diante do altar e curvou a cabeça em oração. Via-se uma inscrição em latim por baixo da janela, que eu consegui ler:
Matilda Champernoune construiu esta capela em memória de seu marido, William Champernoune, que morreu em 1304.
Uma laje diante da grade do altar estava gravada com as suas iniciais e a data da sua morte, que não consegui decifrar. Pedra semelhante à esquerda ostentava as iniciais H. C. Não se viam janelas de vidro fumado, nem efígies ou túmulos construídos contra as paredes: aquilo era um oratório, uma capela memorial.
Depois de Robbie se erguer da posição de joelhos e se ter virado, vi outra lápide diante dos degraus do altar-mor. As letras nela inscritas diziam I. C. e a data era 1335. Segui Robbie para a chuva lá fora e descemos para a aldeia, lembrando-me apenas de um único nome que se ajustava àquelas letras e que não era Champernoune.
Só havia desolação em meu redor, aqui junto da casa dos tributos e também na aldeia. Nem pessoas no relvado, nem animais, nem cães a ladrar. As portas das diminutas habitações encostadas umas às outras em torno do relvado estavam encerradas, como as da própria mansão. Uma única cabra, que parecia meio esfomeada e com as costelas protuberantes no corpo magro, estava presa por uma cadeia perto do poço, tasquinhando a erva escassa.
Escalámos a vereda da colina na direcção do priorado e, olhando para baixo, pude ver que não havia sinais de vida por detrás dos muros. Nenhum fumo saía das insta lações dos monges, nem da casa do capítulo. Tudo aquilo parecia abandonado e as maçãs maduras haviam sido deixadas nas árvores do pomar sem serem colhidas. Quando passámos pelos campos lavrados das terras altas, vi que o solo não tinha sido lavrado e uma parte do milho nem sequer fora apanhada, jazendo a apodrecer no chão como se um ciclone nocturno a houvesse varrido e derrubado. Ao chegarmos às pastagens das encostas mais baixas, o gado do priorado, vagueando à solta, veio balir atrás de nós em desespero, como se na esperança de que Robbie, montado no seu pónei, o viesse reconduzir para casa.
Atravessámos com facilidade o vau, porque a maré estava a baixar com rapidez e os bancos de areia se encontravam a descoberto, planos e de um castanho-sujo sob a chuva. Um fino fio de fumo subia do telhado de Julian Polpey (pelo menos esse devia ter sobrevivido à calamidade), mas a casa de Geoffrey Lampetho, no vale, dava a impressão de se encontrar tão nua e deserta como as da aldeia. Aquele mundo não era o que eu conhecera, o que acabara por amar com ansiedade por causa do seu mágico contraste entre amor e ódio, a sua distanciação de uma pesada monotonia. Este apresentava, na sua árida desolação, semelhanças com as mais horríveis características de uma paisagem do século vinte após um cataclismo, sugerindo total abandono da esperança, o gosto amargo deixado por um desastre atómico.
Robbie subiu a colina acima do vau, atravessando o bosque de enfezadas árvores até ao muro que rodeava o pátio de Kylmerth. Não se via fumo a brotar em volutas da chaminé. Saltou do pónei, deixando-o à solta para se dirigir à estrebaria e, correndo pelo pátio, escancarou a porta.
- Roger! - ouvi-o bradar, repetindo mais uma vez: - Roger!
A cozinha estava vazia, a turfa já não fumegava sobre a pedra da lareira. Restos de comida jaziam intocados sobre a mesa de cavalete e, quando Robbie trepou o escadote para o quarto de dormir da sobreloja, reparei num rato a correr pelo chão, que logo desapareceu.
Talvez não se encontrasse ninguém na sobreloja, porque Robbie desceu num instante o escadote e abriu a porta que dava acesso à vacaria, revelando ao mesmo tempo uma estreita passagem que terminava numa arrecadação e adega. Fendas nas paredes espessas permitiam que fios de luz penetrassem nas sombras, constituindo também a única fonte de ar. O pouco que circulava não chegava para limpar a atmosfera da doce humidade que nela prevalecia devido às maçãs a apodrecerem em fileiras junto da parede. Um caldeirão de ferro, pouco firme nas suas três pernas e enferrujado por falta de uso, estava num canto, tendo a seu lado canjirões, jarros, uma forquilha de três dentes, um par de foles. Aquela arrecadação era uma estranha escolha para um homem doente instalar o seu leito. Devia ter arrastado o enxergão desde a sobreloja onde costumava dormir, para o colocar ao lado da frincha na parede e depois a fraqueza ou a falta de vontade haviam-no obrigado a ficar ali estendido dias e noites até àquele momento.
- Roger... - sussurrava Robbie. - Roger! O irmão abriu os olhos. Nem o reconheci. Tinha o cabelo branco, os olhos fundos, o rosto magro e chupado. Sob o matagal alvo que era a sua barba, a carne estava descolorida, ferida, apresentando inchaços despigmentados atrás das orelhas. Murmurou qualquer coisa, água,
pareceu-me que era, e Robbie ergueu-se de junto dele e
correu para a cozinha, mas eu fui ajoelhar-me a seu lado,
baixando os olhos para o homem que da última vez vira
confiante e forte.
Robbie regressou com uma caneca de água e, rodeando o irmão com os braços, ajudou-o a beber. Mas
Roger engasgou-se após dois goles e deixou-se cair de
novo para trás sobre a enxerga, a arquejar.
- Não há remédio - disse. - O inchaço está a
alastrar para a garganta e a bloquear-me a respiração. Só
humedecer os lábios já é conforto bastante.
 - Há quanto tempo estás aí deitado? - perguntou
Robbie.
- Não sei dizer. Quatro dias e quatro noites, talvez.
Não muito depois de tu te ires embora, percebi que estava apanhado e trouxe a cama para a adega, para tu poderes dormir sossegado lá em cima quando voltasses.
Como está Sir William?
- Melhor, graças a Deus, e a jovem Katherine também. A Elizabeth continua a escapar ao contágio, bem
como os criados. Mais de sessenta pessoas morreram já
esta semana em Tywardreath. O priorado está fechado,
como sabes. O prior e os irmãos foram para Minster.
- Não é grande perda - murmurou Roger. - Podemos passar sem eles. Foste à capela?
- Fui e disse a oração do costume.
Humedeceu mais uma vez os lábios com água e, duma forma rude mas terna, procurou massajar-lhe os inchaços por detrás das orelhas.
- Já te disse que não há remédio - afirmou Roger. - É o fim. Não quero nenhum pároco a absolver-me, nem vala comum no meio dos outros. Enterra-me à
borda do penhasco, Robbie, onde os meus ossos possam
sentir o cheiro do mar.
- Irei a Polpey buscar a Bess - disse o irmão. - Ela e eu juntos poderemos cuidar de ti.
- Não - ordenou Roger -, ela agora tem os filhos para cuidar e também o Julian. Ouve a minha confissão, Robbie. Tenho uma coisa a pesar-me na consciência nestes últimos treze anos.
Esforçou-se por se sentar direito, mas não teve forças para o fazer e Robbie, de lágrimas a correrem-lhe pelas faces, afastou o cabelo grisalho de cima dos olhos do irmão.
- Se diz respeito a ti e a Lady Carminowe, não é preciso dizeres-mo, Roger - declarou. - A Bess e eu sabíamos que tu a amavas e ainda a amas. E nós também. Não é pecado para nenhum de nós.
- Não é pecado amar, mas é pecado matar - disse Roger.
- Matar?
Robbie, ajoelhando ao lado do irmão, baixou para ele os olhos, confuso, abanando depois a cabeça.
- Estás a delirar, Roger - disse baixinho. - Todos sabemos como é que ela morreu. Há semanas que estava doente antes de vir para cá e ocultou-nos isso. Depois, quando tentaram levá-la daqui à força, prometeu que iria dentro duma semana e deixaram-na ficar.
- E teria ido, se eu não o evitasse.
- Como foi que evitaste tal coisa? Ela morreu antes de ter decorrido essa semana, aqui, no quarto lá de cima, nos braços da Bess e nos teus.
- Morreu porque eu não a deixei sofrer dores - afirmou Roger. - Morreu porque, se tivesse cumprido o que prometera, deslocando-se para Trelawn e daí para Devon, esperá-la-iam semanas de agonia, até talvez meses, a mesma agonia que a nossa mãe conheceu e suportou quando éramos novos. Por isso permiti que nos deixasse durante o sono, sem saber o que eu tinha feito e deixando-vos a ti e à Bess na mesma ignorância.
Estendeu as mãos, procurando Robbie e agarrando-o com firmeza.
- Nunca te admiraste, Robbie, por eu nos velhos tempos ficar no priorado até tarde da noite, ou trazer de vez em quando aqui à adega o Méral? Que seria que eu andava a fazer?
- Eu sabia que os navios franceses traziam mercadoria - respondeu Robbie - e que tu a encaminhavas para o priorado. Vinho e outras coisas que o prior queria. E os monges viviam muito bem por causa disso.
- Também me ensinaram os seus segredos - esclareceu o irmão. - Como fazer os homens sonhar e conjurar visões, em vez de rezar. Como buscar o paraíso na Terra, um paraíso que só durava algumas horas. Como fazer com que as pessoas morressem. Foi só depois que o jovem Bodrugan pereceu aos cuidados de Méral que me fartei de tal jogo, deixando de tomar parte nele. Mas aprendera-lhe bem os segredos e portanto fiz deles uso quando chegou a ocasião. Dei-lhe a ela uma coisa para aliviar as dores e fazê-la dormir. Foi assassínio, Robbie, e um pecado mortal. Ninguém sabe disto a não seres tu.
O esforço de ter falado esgotou-o de todas as forças e Robbie, de súbito perdido e assustado em presença da morte, largou-lhe a mão, percorrendo cambaleante e às cegas a passagem para a cozinha, à procura ao que supus de mais cobertores para agasalhar o irmão. Continuei ali ajoelhado na adega e Roger abriu os olhos pela última vez, arregalando-os na minha direcção. Creio que estava a pedir a absolvição, mas não estava lá ninguém do seu tempo para lha conceder e perguntei a mim mesmo se teria sido por causa disso que ele viajou através dos séculos. Tal como Robbie, sentia-me incapacitado e seis séculos atrasado.
- Avança, alma cristã, sai deste mundo, em nome de Deus Pai Todo Poderoso que te criou; em nome de Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que sofreu por ti; em nome do Espírito Santo, que te santificou...
Não conseguia recordar-me do resto e também não importava, porque ele já se fora. Penetrava luz pelas frinchas da janela fechada da antiga lavandaria e eu encontrava-me ajoelhado no chão de pedra do laboratório, entre as garrafas e frascos vazios. Não tinha náuseas, nem vertigens, nem zumbido nos ouvidos. Apenas um grande silêncio e a sensação de paz.
Ergui a cabeça, vendo o médico de pé junto da parede, a observar-me.
- Está tudo terminado - disse-Lhe. - O Roger morreu, libertou-se. Acabou tudo.
Ele estendeu a mão para o meu braço. Conduziu-me para fora do compartimento e pelas escadas acima, atravessando a parte da frente da casa e penetrando na biblioteca. Sentámo-nos juntos no banquinho da janela, a contemplar o mar do outro lado.
- Conte-me - pediu ele.
- Não sabe como foi?
Pensara, ao vê-lo no laboratório, que devia ter compartilhado a experiência comigo, depois compreendi que era impossível.
- Esperei junto de si naquele sítio - disse-me -, depois avancei consigo pela colina acima, seguindo-o com o carro. Parou por um momento num campo sobranceiro a Tywardreath, perto do ponto onde se juntam as duas estradas, a seguir atravessou a aldeia e continuou ao longo da vereda lateral, para Polmear e para aqui. Caminhava muito normalmente, um tanto depressa, talvez, mais do que eu seria capaz. Virou para a direita através do bosque e eu desci o caminho de acesso. Sabia que o encontraria lá em baixo.
Levantei-me do banquinho da janela e dirigi-me à estante, de onde tirei um dos volumes da Enciclopédia Britânica.
- De que é que anda à procura? - indagou. Voltei as páginas, até encontrar a referência que procurava.
 dat a morte negra - disse-lhe -1348. Treze anos depois da morte de Isolda. - Voltei a colocar o livro na estante.
- Peste bubónica - observou o médico. - Endémica no Extremo Oriente... houve uma quantidade de casos no Vietname.
- Houve? Bem, acabei de ver o que ela provocou em Tywardreath há seiscentos anos.
Regressei ao banquinho da janela e peguei na ben gala.
- Deve ter perguntado a si mesmo como é que con segui fazer esta última viagem" - disse-lhe. - Foi assim. - Desatarraxei o topo da bengala e mostrei-lhe o pequeno copinho. Pegou nele e voltou-o de fundo para cima. Estava vazio.
- Lamento muito, mas, quando o vi ali sentado junto de Gratten, percebi que tinha de o fazer. Era a minha última oportunidade. E ainda bem que o fiz, porque está tudo terminado, acabado. Não haverá mais tentações. Nem mais desejos de andar à solta pelo outro mundo. Já lhe disse que o Roger se libertou e eu também.
Não me respondeu. Continuava a fitar o copinho vazio.
- Agora, antes que faça uma ligação para Dublin a perguntar se a Vita está no aeroporto, e se me dissesse que mais se encontrava escrito nesse tal relatório que o John Willis lhe enviou?
Pegou na bengala e recolocou nela o copinho, atarraxando o topo e devolvendo-ma.
- Queimei-o - respondeu - com a chama do meu isqueiro, quando você estava de joelhos na cave a dizer aquela oração para os mortos. Pareceu-me de certo modo o momento adequado e preferi destruí-lo em vez de guardá-lo nos arquivos do meu consultório.
- Isso não é resposta - contestei.
- É tudo o que ficará a saber - replicou.
O telefone principiou a tocar no átrio. Perguntei a mim mesmo quantas mais vezes já o não teria feito.
- Deve ser a Vita - disse. - Começa a contagem regressiva. Eu devia pôr-me outra vez de joelhos. Acha que lhe diga que fiquei fechado na casa de banho dos homens e que irei ter com ela amanhã?
- Seria mais sensato - respondeu ele devagarinho
- se lhe prometesse ir ter com ela mais tarde, talvez daqui a umas semanas.
- Mas isso é absurdo - retorqui franzindo o sobrolho. - Não há nada que me prenda aqui. Já lhe disse que está tudo terminado e que me libertei.
Não replicou. Ficou apenas ali sentado, a olhar para mim.
O telefone continuava a tocar e atravessei a sala para o atender, mas aconteceu-me uma coisa estúpida quando peguei no aparelho. Não o consegui segurar como devia ser: sentia os dedos e a palma da mão entorpecidos e escorregou-me, tombando no chão.

 

 

                                                                  Daphne Du Maurier

 

 

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