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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DAS BENGALAS / António Mota
A CASA DAS BENGALAS / António Mota

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

 

O avô estava sentado na borda da cama daquele quarto acanhado e a cheirar a mofo. E não retirava o olhar do quadro que decorava a parede branca, golpeada aqui e ali pela negrura da humidade. Encaixilhado em grossa moldura, onde os bichos da madeira já pastavam, o quadro, com o vidro estalado, mostrava uma mulher rechonchudinha e quase sorridente, dona de duas formidáveis arrecadas penduradas cada uma em sua orelha pequenina. O cabelo muito esticado rematava num carrapito que mal se via e o resto do corpo, tirando os longos e finos dedos das mãos entrelaçadas sobre o peito, só se adivinhava, e disso era culpado o vestido, feito com muitos folhos e muitas rendas, que tudo cobria.

Da cozinha, minha mãe gritou:

- Vá tomar banho, meu pai.

E eu ali de pé, em frente do avô. E eu ali, de costas voltadas para os restos do sol daquela tarde de Outubro que entravam pela janela de guilhotina. E eu ali, de braços cruzados, a olhar para aquela cara lavrada de rugas e barba rala com mais de oito dias.

- Se deixasse crescer a barba, até lhe ficava bem.

O avô fez de conta que não ouviu. Aprendi com ele a arte da surdez. O velho ensinou-me que não é importante ouvir tudo, o que é preciso é saber escutar o que nos interessa. Foge de quem muito fala e tudo sabe, dizia ele.

Tenho pena de não ter registado todas as sentenças que ele trazia engatilhadas para disparar no momento certo.

As vezes o avô aborrecia-me com aquelas cantilenas.

Muitos são os que ouvem e poucos os que escutam.

- Uma vez deu-me na jerica que também havia de ter um bigode. Mas a Laurinda disse que não me ficava bem. Tive de o mandar cortar. Só manda quem pode. Chega-me os dentes.

A dentadura estava dentro de um copo verde, de plástico, meado de água, poisado em cima do tampo riscado da mesinha-de-cabeceira. Peguei nele e dei-o ao avô. Ele pescou os dentes com aqueles dedos muito grossos, com a pele grossa e gretada, e encaixou-os na boca depois de andarem lá dentro a dançar.

- Os dentes foram caros. Nem sei se valeu a pena comprá-los.

- Mas fazem-lhe jeito.

- As vezes não prestam. com eles encaixados aqui dentro não posso comer figos, que é afruita da minha paixão.

Afruita... Por que é que agora já ninguém diz fruita?

Nervos, paixões, modas, sapatos, ferraduras e juramentos duram até acabar.

- A Laurinda adaptou-se lindamente aos dentes. Coitada, pouco tempo se serviu deles. Estão aí dentro da gaveta, embrulhados num papel.

A Laurinda.

Sempre a Laurinda. Por tudo e por nada, a Laurinda.

Laurinda foi a mulher dele durante quarenta e oito anos. Foi-se embora no segundo dia de um Janeiro enregelado. Quando isso aconteceu, eu era pequeno, mas ainda me lembro dela: muito alta, magra, usava arrecadas e aventais floridos, muito compridos e com peitilho.

Os ovos estrelados que ela me dava tinham um sabor bem diferente dos que a minha mãe servia. Os ovos estrelados da minha avó levavam, mesmo no centro da gema, sal e uma colher bem cheia de açúcar. Um petisco.

Meses depois de a minha avó ter partido, o avô chamou-me à cozinha e disse-me que ttambém sabia estrelar ovos com açúcar.

- É fácil. Põe-se a sertã por cima do lume, deita-se para dentro um bocado de azeite, deixa-se ferver e depois parte-se o ovo e espera-se que frite. Queres ver?!

A gema esborrachou-se na sertã e o ovo deixou de ter graça.

 

Na porta entreaberta do quarto apareceu o rosto de minha mãe.

- Está pronto para o banho? O avô não respondeu.

- Tem de ser. Não quero que apareça lá a cheirar mal. É preciso que vá lavadinho e apresentável.

- Eu não cheiro mal! Ainda não mijo nas calças. E se mijasse, era fruita da época...

- Tem de cortar a barba, meu pai.

- Se as minhas vistas fossem mais firmes, já eu a tinha rapado. A minha navalha é muito boa, marca espanhola. O meu pai, que Deus o tenha em descanso, serviu-se dela a vida inteira e depois calhou-me na herança. Assim, trôpego das vistas, tenho de esperar pelo Vinagre, o barbeiro, lembras-te dele?

Antes aparecia cá todos os sábados, agora não sei o que é que se passa, só vem aqui quando lhe apetece. E olha que eu pago-lhe bem e sempre lhe dei um copinho de aguardente.

- Uma máquina de barbear era o ideal para o avô - disse eu.

- Que é isso?

- É uma máquina eléctrica que corta a barba.

É muito prática.

- E eu ia pôr electricidade na minha cara, não?! Para levar um choque e morrer como um passarinho?!...

Calei-me. Não valia a pena estar a contrariar o velho. Eu bem via que ele estava muito tenso.

- Tenho de lavar o rabo?! Se não lavar o traseiro, não me deixam entrar?

- Não é preciso estar com esses modos, meu pai. Passe um pano molhado pelo corpo todo e depois enxuga-se. Não custa nada.

O badalo do enorme sino da torre da igreja, ali perto, bateu quatro vezes.

- Quatro da tarde. Vou buscar a água, meu pai?

- Se tem que ser assim... Mas então é melhor cortar a barba em primeiro lugar. O Tião pode fazer isso.

Minha mãe olhou para mim.

Eu nunca tinha cortado a barba a ninguém. Engoli em seco. Meu pai é que podia fazer esse trabalho, sempre estava mais habituado. Mas sua excelência, depois do almoço, disse que ia ali e já vinha e ainda não voltara. O costume.

- Está bem, eu corto-lhe a barba. Mas não sei se fica bem.

- Eu ensino-te. Vai buscar as ferramentas ao armário.

A um canto da sala havia um armário na parede. Por baixo, o lavatório antigo, de ferro, pintado de azul, com o espelho rectangular, a bacia e o balde esmaltados, uma toalha e, ao lado, o jarro com água.

Abri uma das portas do armário e numa das prateleiras encontrei as tais ferramentas: dentro duma caixinha de folheta enferrujada estava a navalha de barba, embrulhada num pedacinho de jornal. Também lá havia um pincel muito gasto, uma malguinha esbotenada e ainda um pedacinho de tábua, com a forma de um estreito rectângulo, com lixa num lado e couro escurecido no outro.

- Como é que faço, avô?

- Molha o sabão que está na tigelinha e com o pincel faz muita espuma.

Assim fiz. O pincel ficou obeso de espuma branca.

- Agora vai buscar a toalha, põe-na à volta do meu pescoço e ensaboa-me a cara.

A cara do velho ficou testa de espuma.

- Agora é que é mais difícil, avô!...

- Não custa nada. Passa o fio da navalha pelo assentador.

Não entendi. Ele explicou-me que aquele pedacinho de madeira forrado a couro e lixa chamava-se assentador. Passei o gume pelo couro e aprendi a segurar a navalha. Depois comecei a cortar a barba do velho. Era tanto o medo de o golpear que o gume mal tocava na pele.

- Tens a mão levezinha! Arranja um bocado de papel e dá-mo para a minha mão.

Ia arrancar uma folha de um calendário de 1974 que tinha círculos feitos a lápis à volta dos dias em que começavam as fases da lua. Marcas do avô.

- Não estragues, não estragues. Esse calendário pode fazer jeito. Nunca se deve deitar o tempo fora.

- Estamos em 1994, avô. O calendário já tem vinte anos.

- Mas deixa-o estar. Eu quero que ele esteja aí. Cada doido com a sua mania.

O velho tinha razão. Nas paredes da sala, no quarto e na cozinha havia calendários desde 1950. Ao todo eram quarenta e quatro calendários, com as marcas do meu avô. O de 1980, além dos inevitáveis círculos à volta dos dias das fases da lua, tinha outro círculo a aprisionar o dia 28 de Fevereiro, quinta-feira: a data do meu nascimento.

Arranjei um bocado duma página dum jornal e pu-la na mão esquerda do avô. O velho ficou a segurar um papel que dizia

 

”Público”, segunda-feira, 22 de Novembro de 1993, ”FC Porto ganha em Alvalade (0-1), Benfica perde no Bonfim (5-2). E a vermelho: ”QUATRO NA FRENTE”.

 

Limpei o sabão e os pêlos no pedacinho do jornal e voltei a rapar a cara rugosa do avô. O mais difícil foi o corte do bigode e a barba do queixo.

Quando acabei o trabalho, doíam-me os olhos e o braço direito.

O avô passou as mãos pela cara barbeadíssima e os seus olhos azulíssimos, humedecidos, enfrentaram os meus.

- Os barbeiros sempre aprenderam na cara do cliente.

Ríamo-nos quando a minha mãe entrou no quarto com um balde cheio de água morna. Era ali que ele tinha de se despir e lavar. A casa do avô só tinha uma retrete de tábuas ao fundo do quintal, junto de uma cerejeira imensa, podre, onde os pica-paus escavavam afincadamente quando lhes dava vontade. A minha mãe dizia que era ”o elevador”; retrete era um nome feio. O avô chamava-lhe ”a secreta”.

Meti a navalha, convenientemente embrulhada em papel, na caixinha de folheta e preparava-me para a ir pôr, juntamente com a outra ferramenta, dentro do armário. Mas não o fiz. Porque o avô disse em voz baixa:

- Tião, agora a navalha é tua. Usa-a quando tiveres barba. E não a estragues, porque ainda pode servir para os teus filhos.

Pelo espelho do lavatório, vi que os olhos da minha mãe borbulhavam.

 

Na sala, além dos calendários nas paredes e do lavatório, havia uma mesa de castanho, seis cadeiras, uma cómoda com cinco gavetas sempre perras, uma arca muito florida e um guarda-fatos.

Minha mãe retirou de uma das gavetas da cómoda uma camisa que tinha sido de meu pai, uma camisola interior, meias, as ceroulas brancas, um lenço e uma camisola de lã, castanha, nova. Tudo aquilo tinha o mesmo cheiro das bolinhas de naftalina semeadas em todas as gavetas da cómoda.

Com a roupa posta num braço, minha mãe bateu à porta do quarto.

- Pai, tem aqui tudo o que precisa.

A mãe abriu um bocadinho a porta do quarto e depositou a roupa em cima de uma cadeira.

O tempo passava vagarosamente e eu já estava farto de estar sentado numa das cadeiras da sala, à espera que o avô acabasse de se lavar e vestir.

A minha mãe tinha-me dito:

- Tião, vamos arrumar o avô e eu quero pedir-te um favor: fica sempre à beira dele, nunca o abandones. É um pequeno sacrifício. Prometes, filho?

Quem é que podia dizer não a uma voz tão doce que assim pedia?

De resto, do que mais se falou nos últimos meses em casa foi do avô. A princípio, não liguei muita importância. As mães costumam transformar os pequenos problemas em grandes tragédias.

Ainda hoje, apesar da minha idade avançada, se me constipo, ainda sou tratado como um puto de sete anos: xarope para a tosse, termómetro, caldos de galinha, a língua constantemente a sair fora da boca e a dizer aaaaaa, para ver se a garganta não está infeccionada, xarope para não perder o apetite, litradas de sumo de laranja, vitamina C reforçada, colheres de mel e aspirinas.

E, já que estou em maré de fraquezas, aproveito para sugerir uma mista com muito queijo e fiambre, bem estaladiça e quentinha. Ah, como são belos os prazeres de uma constipação tratada por minha mãe!...

Foi por causa duma dessas famosas constipações que eu e a Flávia nos beijámos a sério pela primeira vez. Foi em Junho deste ano, exactamente no dia dezoito, sábado, que isso aconteceu. A Flávia, mais nova um ano que eu, é morena, baixinha, tem cabelos pretos e ondulados, olhos castanhos. Meu Deus, é tão bonita!

Nesse sábado, depois do almoço, estava eu em pijama, sentado no sofá, com o comando da televisão na mão, à procura de um programa de jeito, quando o telefone tocou. Minha mãe, atarefada a passar roupa a ferro porque ainda tinha de ir a casa da minha madrinha, atendeu.

- É a Flávia a perguntar por ti.

- Flávia?

- Ainda estás doentinho?

- Não.

- Podes sair de casa? Respondi que não sabia.

- Mas por que é que perguntas?

- Fica para outra vez.

Mas o que é que ficava para outra vez? É que lhe tinham emprestado uma cassete com um filme muito fixe e eu, se calhar, também gostava de rever.

- Que filme?

- ”Sozinho em casa”.

- Eu Vou ter aí.

Disse a minha mãe que me tinha esquecido de que era preciso fazer um trabalho de grupo e entregá-lo na segunda-feira.

- Sempre o mesmo despistado. Põe um boné na cabeça por causa do sol e daqui a três horas, no máximo, estás em casa, ouviste?

- Sim, mãe. Está bem, mãe.

Em vez do boné, pus gel no cabelo, vesti umas calças de ganga muito coçadas, uma camisa de ganga azul, calcei os ténis já um bocado gastos e corri para casa da Flávia, que ficava por trás da igreja velha de Aldoar. Cinco minutos depois, já a campainha tocava e a Flávia abria a porta e gritava:

- Mãe, está aqui o Tião.

A mãe da Flávia trabalhava na caixa número dezassete dum hipermercado de Vila Nova de Gaia.

- Olá, Tião.

Como estava atrasadíssima, não perguntou mais nada. O pai dela, o senhor Armindo, era colega do meu pai na polícia e, não se cansava de o dizer, portista dos pés à cabeça.

O irmão da Flávia, que ainda anda na escola primária, perguntou-me se queria ir com ele até ao parque dar uns toques na bola.

- Agora não, Raul. Quero ver o filme.

- E depois?

- Não posso prometer nada.

Sentei-me no sofá, junto da Flávia, o vídeo engoliu a cassete e o filme começou.

Dez minutos depois, ou nem isso, Raul esgueirou-se com a bola na mão.

- Já vi esse filme quatro vezes!

- Não venhas tarde! - gritou a Flávia.

A porta da entrada bateu com força e o filme continuou a rodar. Daí a nada, eu e a Flávia estávamos de mãos dadas, a rirmo-nos com as cenas malucas que o miúdo do filme fazia. Tínhamos as mãos suadíssimas e cada vez mais apertadas. A meio do filme, os nossos lábios uniram-se devagarinho.

Despertámos com o toque estúpido da campainha do telefone. Era a minha mãe a perguntar se o trabalho de grupo ainda estava demorado. Que não senhor, estávamos a passá-lo a limpo. Só mais dez minutinhos.

Lá tive de ir para casa. Tudo o que é bom acaba depressa, ensinara-me o avô.

- O gel põe-te o cabelo no ar - disse minha mãe, olhando ostensivamente para o relógio.

- Foi um trabalho difícil - justifiquei-me.

O meu corpo ainda estava muito quente. Meti-me na casa de banho, tranquei a porta, despi-me, saltei para a banheira e abri a torneira de água fria.

 

Minha mãe abriu a porta do guarda-fatos, retirou lá de dentro um fato preto e pô-lo com muito cuidado em cima da mesa.

Depois meteu a mão nos bolsos do casaco e das calças e retirou tudo o que lá havia. No bolso interior do casaco havia um pente de plástico castanho e uma carteira de couro muito coçada, um calendário de bolso do ano de mil novecentos e oitenta e cinco, a caderneta bancária e uma esferográfica.

Dos bolsos exteriores saiu uma navalha, um lenço vermelho muito bem dobradinho e um quarto de um pão que se desfazia em migalhas, embrulhado num guardanapo de papel. Num dos bolsos das calças havia um porta-moedas de cabedal escurecido, com a forma de meia-lua.

Na carteira havia um papel com o número de telefone da nossa casa, 02-61705503, o bilhete de identidade, o número de contribuinte, o cartão da Segurança Social, sete notas de cinco contos, três de dois e uma de quinhentos escudos. Também lá foi encontrada a fotografia da minha avó Laurinda, exactamente igual à que estava na moldura do quarto. Não vi quanto dinheiro havia no banco porque a minha mãe não deixou.

- Preciso de passar isto a ferro - suspirou minha mãe, depois de dar uma olhadela para o meu relógio de pulso.

O ferro que havia em casa do avô estava dentro da arca, embrulhado num saco plástico, e era daqueles muito antigos, que aquecem com brasas.

- Já estou pronto - gritou o avô, dentro do quarto.

Abri a porta e encontrei o velho sentado na cama, em ceroulas, sem as meias calçadas.

- Que calças é que Vou vestir?

Minha mãe foi ao guarda-fatos e trouxe umas calças azuis e um casaco, que tinham sido do meu pai.

- Essas não me servem.

- Servem muito bem.

- Não as visto.

- Não seja teimoso, meu pai. As calças ficam-lhe muito bem e estão praticamente novas.

- Veste-as tu.

- Mas por que é que embirra comigo?

- Essa porcaria não tem botões na braguilha. E o fecho custa muito a puxar.

- Não custa nada...

- Se eu te digo que custa, é porque custa. E eu, desde menino, sempre vesti calças com botões. Não é agora, ao fim de oitenta e um anos, que Vou mudar.

- Mas as calças que o pai tem estão muito coçadas.   Ficava a parecer melhor com estas.   O Aníbal deu-lhe pouco uso.

- Que as use o Aníbal... Só eu é que sei da minha vida, mais ninguém! Burro velho não toma emenda.

- Bem podia ter uma roupa melhor, meu pai! Tantas vezes lhe disse.

A culpa não é minha. Eu já tinha falado com o alfaiate para me fazer dois pares de calças, comprei o pano na feira e os forros, mas depois fiquei sem nada. Ele morreu como um passarinho, de repente, sem incomodar ninguém, e a canzoada que lá se juntou em casa a fazer as partilhas meteu tudo no mesmo saco. Ainda perguntei pelo meu pano à filha mais nova, que está lá para Lisboa, e ela respondeu-me com maus modos. O Quinzinho era tão boa pessoa... andou comigo na tropa. A morte daquele homem fez-me muita mossa cá por dentro.

Minha mãe, diplomática:

- O pai veste essas calças agora e, quando eu chegar ao Porto, arranjo-lhe dois pares com botões. Não me diga que não!

E eu:

- Estão ali aquelas pretas em cima da mesa, por que é que ele não as veste?

- Aquelas não, ainda tenho de as passar a ferro.

- Então passe.

Minha mãe enervou-se e gritou:

- Não tens nada que meter o nariz onde não és chamado, ouviste?

E eu, ofendido:

- Mas o que é que disse que está assim tão errado?

Minha mãe não respondeu. Foi para a cozinha catar os carvões amontoados ao lado da lareira para os meter dentro do ferro de engomar.

O avô, resignado, vestiu as calças e o casaco.

Calcei-lhe as meias e apertei-lhe os cordões das botas.

- Tião, vai buscar a minha carteira, que está no bolso do casaco preto, dentro do guarda-fatos.

Entreguei-lha.

- Fica para ti.

- Não quero, avô.

- Chiu! É para os teus vícios.

Na mão direita do velho estava a nota de quinhentos escudos.

Sorri e aceitei.

 

Quando eu era miúdo, gostava de passar férias em casa dos pais de minha mãe. Nesse tempo, o meu avô Henrique levantava-se cedíssimo, bebia um copinho de aguardente, comia uma fatia da broa que a minha avó cozia todas as semanas no forno de lenha que havia a um dos cantos da cozinha, pegava na enxada, na foicinha ou no cutelo e ia trabalhar para os campos.

Eu só acordava quando a minha avó Laurinda chamava pelas galinhas, para lhes encher o papo de milho e caçá-las pelas asas, e num instantinho enfiar o seu dedo mínimo da mão direita nas cloacas das bichas a ver se nesse dia iam pôr ovo. Se tal não acontecia, a avó desancava-as com impropérios, chamava-lhes lambonas e carochinhas.

- Por que é que chama carochinhas às galinhas?

- perguntava eu, espantado com as conversas da avó.

- As carochinhas passam a vida a enfeitar-se e não fazem nada. As galinhas têm de pôr ovos! Se se põem para aí a cantar e a encher o papo de milho, eu digo-lhes como é... faca no pescoço!

Só mais tarde é que me apercebi de que os bichos que havia em casa dos meus avós tinham sempre uma finalidade. As galinhas existiam para dar ovos, a velha cabra Malhada oferecia dois cabritos por ano e depois o leite, os dois porcos, a princípio tão rosadinhos, tão brincalhões e tão bonitos, comiam desalmadamente durante um ano, e de repente, num certo dia de Inverno, a casa dos meus avós ficava cheia de homens, que agarravam os bichos e um deles espetava-lhe uma faca no peito gordo e peludo; e o sangue caía a jorros para dentro de uma bacia. Mais tarde, via-os na cozinha, pendurados por cima da lareira, transformados em chouriças, alheiras, salpicões e presuntos.

Num certo cair de tarde, ainda eu andava na escola primária, depois de ter brincado com um miudito, o Carlitos, que depois foi viver para Lisboa, entrei em casa da avó com um cãozito que ele me dera. O bichinho, de pele castanha, com pouco tempo de vida, ia ao meu colo, e eu todo contente com o brinquedo. Pu-lo dentro de um caixote, avisei que era meu e que se chamava Pantunnha.

- Esta casa não tem caçadores - disse a avó.

- Não te ponhas a implicar - defendeu-me meu avô.

- Ele vai-se embora e eu é que tenho de tomar conta dele.

- Laurinda, deixa o moço em paz, ouviste?! A avó nunca discutia com o avô. Calava-se e

acabava sempre por fazer o que muito bem lhe apetecia.

- Burro velho não ganha emenda - dizia meu avô. E ela respondia:

- Se não fosse eu, há muito tempo que não havia telhado nesta casa.

Eu não percebia nada daquelas conversas.

O cãozito ficou a dormir dentro de um caixote à beira da minha cama, depois de ter lambido os restos do caldo verde.

Na manhã seguinte acordei sem caixote nem cão.

- Vó, onde está o Pantufinha?

- Não sei.

- Vô, onde está o Pantufinha?

- Pergunta à tua avó. Ela é que sabe o que fez.

- Vó, onde está o Pantufinha?

Ela fez de conta que não me ouvia, atarefada com as cloacas das galinhas.

- Vó, onde está o Pantufinha?

- Queres saber a verdade, queres?

- Quero.

- O cão morreu.

- Morreu?

- Morreu e já o enterrei no quintal. Desatei num choro sem fim.

Mais tarde, descontente por a sua Laurinda não ter vontade de o acompanhar a uma feira, ou a uma festa, já não me lembro muito bem, meu avô sentou-me sobre o seu colo e contou-me o que tinha acontecido. A avó, logo pelo amanhecer, fez um buraco no quintal e depois veio ao meu quarto buscar o caixote com o cão lá dentro e enterrou tudo.

- É assim a vida meu filho, para tudo se quer sorte. Até os cães precisam dela.

Nesse dia a avó descobriu na cozinha um alguidar de barro preto desfeito em cacos.

- Foi um gato vadio que fez este serviço. Tu não o viste, Tião?

- Vi, vi. Era muito goooordo!

 

O avô Henrique e a avó Laurinda tiveram dois filhos, o meu tio João e Sibilina, minha mãe.

Meu tio, depois de ter feito a tropa, emigrou para o Brasil. Foi ter com um irmão de meu avô que vivia no Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Todos os anos, no mês de Dezembro, escrevia duas cartas, uma endereçada a meus avós, outra a minha mãe, dizendo exactamente a mesma coisa: que tudo estava bem, graças a Deus, que tinha muitas saudades da terra onde nascera, que a vida lhe estava correndo bem, graças a Deus, que esse negócio da inflação era coisa ruim, que não tinha dólares suficientes para comprar as passagens para Portugal para a família toda, mas que estava batalhando, o mais importante era ter esperança em dias melhores, e com a graça de Deus, um dia, quem sabe, tudo seria diferente. Sua esposa Zélia, neta de italianos, e seus filhos Fábio e Sandra, estavam bem, graças a Deus, e mandavam muitos beijinhos e muito carinho e desejavam a todos muita saúde.

Quando a avó morreu, minha mãe enviou-lhe um telegrama, secretamente esperançada que ele se metesse sozinho num avião e aparecesse ao funeral. Ele respondeu que não tinha condições financeiras, que a vida dele infelizmente estava ruim, mas que ia rezar muito pela alma de sua querida mãezinha.

- Se calhar, vive lá como um miserável, naquelas favelas ou lá como é que aquilo se chama concluía meu pai sempre que em casa se falava do tio João, que eu apenas conhecia por uma fotografia poisada em cima da cómoda do quarto da minha mãe. Nessa fotografia via-se um homem alto, vestido com a farda da tropa, muito sisudo e grandes orelhas.

- Não fales do que não conheces! - doía-se minha mãe, dando assim um nó cego nessa conversa que lhe arrancava grandes suspiros.

Um dia, sete anos depois de minha avó ter morrido, a minha mãe serviu-nos de sobremesa o que ela considerava ser ”o bicudo problema do meu avô Henrique”:

- O meu pai já não tem idade para viver sozinho.

- O velho ainda está rijo! - disse meu pai.

- Não está. Já fez oitenta anos, precisa de quem cuide dele...

- E que queres que se faça?

- Não sei, não sei...

- Ele não se dá aqui! E eu desatei a rir.

- Que idade mais estúpida! - disse minha mãe.

Fiz de conta que não ouvi, e continuei a rir. E ria-me do seguinte: depois de muitas conversações, minha mãe conseguiu convencer meu avô a passar uns dias em nossa casa. A ideia era, sem lhe dizer claramente isso, habituá-lo muito devagarinho a viver connosco e deixar de vez a aldeia. O meu pai não se manifestava, mas eu bem percebia que a decisão não lhe agradava muito. Como não tinha coragem para dizer claramente o que pensava, num domingo de Verão, fomos buscá-lo a Torna-O-Rego, que é assim que se chama a aldeia onde meu avô mora.

Torna-O-Rego é uma terra pequenina, onde abundam as casas desabitadas e existe um fontanário, cinco lâmpadas públicas, o cemitério, uma rua apertada e cheia de curvas, uma igreja com três sinos, muitos quintais e campos, quase todos por cultivar.

Torna-O-Rego situa-se a razoável altitude e está cercada por todos os lados por uma enorme mancha de pinheiros e muitas placas a dizer que aquela zona é de caça reservada. Dizem que em Torna-O-Rego há cada vez mais javalis, mas eu ainda não tive a sorte de ver nenhum.

O avô deixou duas galinhas e uma gata branca e remelosa, com o rabo queimado, entregues aos cuidados da velha Custódia, sua comadre e vizinha mais chegada. Sentou-se no banco da frente do nosso carro, ao lado de meu pai. Eternamente vestida de preto, alta e magríssima, era a Custódia quem lhe lavava a roupa e limpava a casa, depois de a minha avó ter ido para o cemitério.

Olhei para o relógio: três da tarde. Se tudo corresse bem, daí a quatro horas estaríamos a entrar no Porto.

- Vá devagarinho, homem, temos tempo, temos tempo! - avisou o avô.

E o meu pai assim fez. O carro parecia uma lesma a andar, e o meu avô sempre com a mesma cantilena:

- Mais devagar... Meta travões, meta travões. Meu pai começou a fumar dentro do carro,

cigarro sobre cigarro, coisa que minha mãe detesta, mas desta vez ela não barafustou. E o avô, cinco quilómetros depois, ou nem isso, ordenou:

- Trave, trave!

- Que foi?

E o avô, num fiozinho de voz:

- Estou agoniado...

- Quer que eu pare?

- Quero.

O meu pai queria encostar mas não encontrava uma recta, eram só curvas e mais curvas.

- É muito perigoso, muito perigoso... Tião, abre a janela!

O avô pôs a cabeça fora da janela, atrapalhou-se com o cinto de segurança, atirou com o chapéu para o colo da minha mãe e não esperou que o cuidadoso condutor encostasse à berma duma recta que oferecesse segurança. Abriu a boca e vomitou durante imenso tempo. Pedacinhos de carne e arroz tingidos com vinho tinto ficaram colados na minha janela e o meu pai, abanando a cabeça, continuava a dizer:

- Eu já Vou parar, eu já Vou parar.

E teve mesmo de parar numa curva. Porque o avô gritou:

- Ai que perdi os dentes!

E lá tivemos de ir procurar a dentadura que, depois de muitas pesquisas, foi encontrada por minha mãe, junto da roda dianteira do carro.

Minha mãe foi ao porta-bagagens buscar um dos cinco garrafões atestados com a água de uma mina que meu avô tinha no quintal e que ela dizia ser muito melhor do que água mineral, encheu um copo e deu-o a meu avô. Minha mãe teve razão nessa altura: a água pôs o avô bem disposto e, pouco depois, dormia como uma criança de colo. Meu pai aproveitou para acelerar mais um pedacinho e, assim, eram as oito horas quando o carro entrou na garagem.

 

Três dias depois de estar a viver em nossa casa, meu avô declarou com grande solenidade:

- Pareço uma rolinha dentro duma gaiola... Minha mãe não gostou.

- Fala de barriga cheia, meu pai. Tomara muita gente ter a sua sorte. Vive aqui em melhores condições do que na casa da aldeia. Tem casa de banho, tem uma caminha sempre limpa, tem comida a horas certas, tem televisão, rádio, pode ler o jornal... Descanse, que já trabalhou muito.

E o avô:

- Entre nós não são precisas mentiras. Isto não me diz respeito. Passo o dia metido aqui dentro. Sou uma rolinha dentro duma gaiola. E não me -venhas com essa conversa da aldeia. A minha terra chama-se Torna-O-Rego, ouviste?

- Pode dar o seu passeiozínho, graças a Deus, que o prédio tem elevador.

- E tu achas que eu tenho paciência para me meter dentro daquele caixote? Se a traquitana avaria, fica ali dentro um pobre de Cristo com as calças na mão. Há modernices a mais neste mundo. São as modernices que vão fazer com que ele estoire e não há-de demorar muito tempo!

O nosso andar fica no quinto piso. O avô entrou no elevador apenas no dia em que lá chegou, talvez por ir cheio de sono e não se ter apercebido. E quando deu fé já era tarde. Depois, nunca mais lá quis entrar. E a única vez que saiu à rua, sujeitou-se a descer a interminável escadaria, com a luz a apagar-se de minuto a minuto. A minha mãe dizia-lhe:

- Vá até ao jardim, vá arejar um bocadinho, meu pai.

- Não me apetece... Por estas bandas não conheço ninguém.

Da televisão só gostava de ver o boletim meteorológico, tudo o resto fazia-o adormecer profundamente.

Quando saiu à rua, foi ver o mar. Num fim de tarde, meu pai meteu-o no carro, prometendo que conduziria muito devagarinho. Fomos até ao Castelo do Queijo e o avô, com aquele chapéu preto, de feltro, na cabeça, os sapatos grossos e roupas que já não se usavam há não sei quantos anos, destoava imenso no meio de toda aquela gente.

- Parecem lagartos ao sol! E não têm um pingo de vergonha na cara!... - disse o avô, visivelmente embaraçado com os corpos estendidos na praia.

O mar tinha ondas encapeladas e sobre elas havia gente que se divertia a fazer surf.

O avô tirou o casaco e, pouco depois, tivemos de correr pelo areal fora para conseguir apanhar o chapéu que voava como se fosse a pena de uma gaivota.

- Não há dúvidas, o mar é uma coisa linda! E os barcos são bem maiores do que eu pensava.

A noite, não houve jantar em casa. Como o meu pai tinha folga nesse dia, aproveitámos para levar o avô à Feira Popular. Lá fiz o frete de comer sardinhas assadas e broa de Avintes e um aguadíssimo caldo verde que não sabia a coisa nenhuma. Depois de comer seis sardinhas, o avô disse que queria ir para casa.

- São pândegas a mais para o meu entendimento.

E eu fiquei fulo. Queria dar uma voltinha na montanha russa, sentir calafrios no estômago, medo, vertigens, ouvir gritos e finalmente sentir os pés bem assentes na terra.

- O senhor há-de conhecer o Porto de cabo a rabo, e olhe que tem muito para ver! - disse meu pai quando íamos a caminho de casa, ainda nem onze horas eram.

- Muito obrigado, mas não se incomode comigo.

Minha mãe queria a todo o custo que o avô se habituasse a viver connosco. Ela era capaz de tudo para que isso acontecesse. Mesmo que eu ficasse sem o meu quarto, dado ao avô, que dormisse no sofá, o que não me agradava mesmo nada, mas tinha de ficar calado. Para que eu não abrisse a boca, ela negociou comigo a dádiva de uma viola quando viesse o Natal.

Depois de o avô começar com aquela cantilena da rolinha na gaiola, uma noite, depois de ele já roncar desalmadamente (e andava sempre a queixar-se que não conseguia dormir!...), dona Sibilina telefonou para casa da minha madrinha.

Paula, assim se chama a minha madrinha, foi a maior amiga de infância de minha mãe, lá em Torna-Ó-Rego.

Estava farto de saber essa história, contada mais de mil e cem vezes. A Paula era uma mocita muito pobre e nascera exactamente no mesmo dia, mês e ano de minha mãe. Paula tinha seis irmãos, cada irmão tinha um pai diferente, a miúda comia quando calhava, mas quando entrou na escola, mal vestida e descalça, espantou a professora com a sua inteligência:

- Ela apanhava tudo no ar. E em contas de cabeça não havia ninguém que se lhe chegasse aos calcanhares!

Como lia muito bem, com uma voz muito meiguinha, não tardou a fazer as leituras na missa de domingo. Toda a gente gostava muito dela. Um dia, a sala de aulas ia abaixo com tanto riso, depois de a Paula ter escrito que, quando fosse grande, queria ser enfermeira para tratar os doentinhos.

- Aquela risota deu-me um nó nas tripas. Não achei justo que se rissem da mocita. Que culpa é que ela tinha de ser pobre?

Depois de as aulas terem acabado, andei à pancada com as maiores, fartei-me de dar dentadelas e arrancar cabelos!

E a Paula gritava:

- Hei-de ser enfermeira, invejosas! Invejosas!

Pouco tempo depois de ter feito a quarta classe, foi servir para casa duma tal dona Madalena, que vivia no Porto.

Paula escrevia a minha mãe, nunca se queixava, dizia que estava sempre tudo bem com ela.

Dez anos depois, já ela tinha mudado de emprego uma série de vezes, escreveu a minha mãe a contar que era enfermeira e estava a trabalhar no hospital de Santo António. Depois, casou-se com um ourives. Muito magro, muito engravatadinho, com dois metros de altura, o meu padrinho Serafim tem uma loja na rua de Cedofeita, é sócio do Boavista e aos domingos de manhã tem sempre encontro marcado com os peixes do rio Douro que a maior parte das vezes fazem de conta que ele não existe.

- A tua madrinha é um exemplo, ouviste?! diz minha mãe, empolgadíssima. E termina, desconsolada:

- Só é pena não poder ter um filho...

 

Os resultados da consulta telefónica entre as comadres foram muito frutuosos. Mais tarde, pensando no que aconteceu, minha mãe lamuriava-se:

- Se nessa altura o telefone estivesse avariado, era uma graça divina!

E eu desatava a rir.

- Que idade mais estúpida, rapazinho!

Será. Mas que me dá vontade de rir ao lembrar-me de tudo o que se passou, não o posso negar.

Depois de ter posto o telefone em sossego, minha mãe, com os olhinhos a brilhar, disse-me que já sabia como havia de fazer para o teimosão do avô se ir habituando à ideia de ficar a viver num quinto andar que não lhe fizesse lembrar a gaiola das rolinhas.

Dois dias depois, se não erro nas contas, o projecto forjado pelas comadres foi posto em acção. A seguir ao almoço, minha mãe despachou sozinha a limpeza da cozinha, chamando-me molengão por eu não limpar os pratos e os talheres em grande velocidade. Eu não disse nada por perceber que ela estava a impacientar-se com qualquer assunto muito mais importante para ela que as aborrecidas tarefas da cozinha, bastava reparar como de minuto em minuto o seu olhar se dirigia em direcção ao relógio quadrado, branco, digital, pendurado na parede da cozinha, oferecido pelo meu padrinho Serafim.

Como o avô estava no meu quarto a descansar, fui para a sala, liguei a televisão e tirei-lhe o pio, bastando-me ler as legendas, farto de saber que, se houvesse som na sala, a minha mãe avançava sobre mim exigindo respeito pelo velho.

Já estava a ficar farto de tanto respeito! Afinal, de quem é que era aquela casa? De quem era o quarto onde meu avô roncava? Que culpa é que eu tinha de o nosso andar só ter dois quartos?

Já sei que não vale a pena falar abertamente sobre certos assuntos com os nossos velhotes. Eles acham que somos sempre criancinhas de fralda, de vez em quando começam a lembrar-se de quando nos nasceu o primeiro dente, riem babados com todo o nosso passado e esquecem que já temos os dentes todos, que usamos calças compridas, que às vezes já pomos gravata e que de certos assuntos, sabemos mais do que eles julgam.

Se eu começasse a falar, tinha de ouvir novamente a história de como foi difícil arranjar dinheiro para comprar aquela casa, que ainda agora estava a ser paga em prestações mensais. Que era muito bom se tivesse mais um quarto, mas na altura teve de ser assim, ponto final, e já era bem melhor do que a casa velha onde vivemos até nos mudarmos para o andar, que tinha um quintal e um galinheiro e ficava em Atães,   Gondomar,   terra natal   de   meu   padrinho Serafim. Nessa altura, eu tinha apenas sete anos, mas lembro-me muito bem da mudança, e do meu pai a rir e a percorrer todas as divisões que cheiravam a tinta e a verniz, com minha mãe ao colo, nessa altura bem mais magra. E ela, toda contente, só dizia, entre gritinhos:

- Que tolo! Que tolo!... Ai, não me deixes cair!

 

É essa imagem que eu retenho de meu pai. Quando ele diz que faz e que acontece, eu imagino a cena do colinho, aquele metro e oitenta a brincar como um puto de dez anos, e dá-me vontade de rir.

Quando a campainha da entrada do prédio tocou, minha mãe correu para o telefone:

- Podes subir, Paula.

A porta de nossa casa já estava escancarada quando o elevador parou. Atrás dela, baixinho, com as costas curvadas, de boné na mão, estava um senhor que eu nunca tinha visto.

- Então, Zezinho, como é que o senhor tem passado?

- Menos mal, menos mal, fosse sempre assim, fosse sempre assim. Este é o seu filhinho, ai como ele está crescido! O tempo passa, o tempo passa...

- Onde é que ele está? - perguntou a minha madrinha. Referia-se, obviamente, a meu avô, que nessa tarde estava a prolongar demasiado a sesta.

- Eu acordo-o - disse minha mãe.

E eu reparei que ela estava imensamente feliz. Parecia um passarito a saltitar. Mandou sentar o Zezinho, que mais tarde vim a saber que tinha sido companheiro de infância e juventude de meu avô. Andaram os dois no mesmo quartel, em Abrantes, depois casou-se e, como a vida não lhe corria bem em Torna~Ó-Rego, foi morar para o Porto e arranjou emprego numa fábrica de pneus. Agora, depois de reformado e viúvo, passava um mês em casa de cada filho e, como eram seis, o velho fartava-se de arejar.

Minha madrinha é que se tinha encarregado de ir buscar aquele presente ao meu avô.

Há muitos e muitos anos que eles não se viam, por isso foi tocante ver os seus olhares e depois um abraço muito apertado que parecia nunca mais ter fim.

- Há   tanto   tempo,   Henrique,   há   tanto tempo!...

- Há uns anitos largos que não te ponho a vista em cima, ó Zé...

- O tempo passa tão depressa!

- Quando a gente dá fé, está no fim da vida.

- E são tristes os fins. A minha Ana já partiu...

- E a Laurinda não esperou por mim.

- Agora ando a comer a sopa dos meus filhos...

- É a vida...

Para mudar o tom à conversa, minha mãe levou os velhotes para a cozinha, tirou do frigorífico uma garrafa de vinho e encheu dois copinhos.

E o Zezinho com o copo no ar:

- Aos velhos tempos, Henrique!

- À nossa saúde, Zé!

Daí a nada estavam a descer as escadas do prédio. Meu avô, com o chapéu preto na cabeça, o Zezinho com um boné de plástico que anunciava batatas fritas. Iam dar uma volta, conhecer mundo.

Depois de termos visto os velhotes a atravessar a praceta, meu avô muito aprumado e o outro, baixinho e com as costas curvadas, dona Sibilina pôs-se a sonhar:

- Ai, Paula, como eu gostava que o meu pai se adaptasse a viver connosco.

- com esta companhia pode ser que lhe custe menos.

- É que eu não o quero na aldeia. Aquilo cada vez está mais deserto, a casa não tem condições, o Aníbal também não pode estar a correr para lá. E então, quando há futebol, ninguém o arranca daqui.

Ali estiveram as duas em amena cavaqueira. Eu aproveitei para ir arejar.

À noitinha, encontrei a minha mãe muito aflita. É que o meu avô ainda não tinha aparecido.

- Não se preocupe. O pequenino vem cá trazê-lo - disse eu.

- Não sei. Tenho cá um pressentimento...

- Lá está a mãe com os seus pressentimentos... O meu pai chegou, não se jantou, à espera do avô, o tempo foi passando, e já passava das dez da noite quando minha mãe desatou num choro interminável:

- Ai que alguma desgraça lhes aconteceu. Ó Aníbal, vê lá o que é que podes fazer...

- Que é que queres que eu faça?

- Sei lá, telefona para os hospitais, para a polícia...

- Não digas disparates!

- Se calhar roubaram-no, ele trazia todo o dinheirinho na carteira...

- Que rico serviço...

- Era muito? - perguntei.

- Não tens nada com isso - respondeu dona Sibilina.

Tocou o telefone, e ela correu a atender. Era a minha madrinha a perguntar se o Zezinho estava em nossa casa.

Pouco depois, a minha alegre casinha ficou transformada num vale de lágrimas.

Sentada no sofá, minha mãe ia encharcando lenços de papel e chorava a sua triste sorte:

- Foi o Diabo que se meteu em casa. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ajudai-me!

Minha madrinha dentava a libra de ouro que trazia pendurada ao pescoço, presa pelo fio grosso, entrançado, oferta de meu padrinho Serafim, passeava, com os seus passinhos de enfermeira, da cozinha até à sala, da sala à casa de banho e murmurava:

- Acontece cada uma...

Uma mulher gorda e muito corada, com um bebé de colo que não parava de choramingar pela chupeta que lhe saía da boca desdentada, e que se apresentou como sendo a filha mais nova do Zezinho, de vez em quando, abria a boca e punha-se a gritar como uma sirena dos bombeiros:

- Meu rico paizinho! Meu rico paizinho!

- Acalme-se, acalme-se! - dizia meu pai, incomodadíssimo com aqueles gritos.

Engana-se quem pensa que a casa já tinha gente e barulho a mais, porque, meia hora depois ou nem isso, também apareceu o genro do Zezinho, que era taxista e, muito alarmado com o recado que a mulher lhe tinha deixado em cima da mesa da cozinha, disse logo que estarmos todos ali sentadinhos a chorar não era solução nenhuma, que o melhor era fazer qualquer coisa, e rapidamente.

- E qual é a sua ideia? - perguntou o senhor Aníbal, com voz de polícia.

- Sei lá...

- Pois...

- Podemos telefonar para os hospitais...

- Claro... Mas eles não estão lá, tenho a certeza!

- Porque é que diz isso?

- É a minha experiência, meu caro senhor. Sou polícia há muitos anos!

- Ficamos assim, aqui? Mas eu tenho de ir trabalhar! Tenho de prestar contas ao patrão...

- Claro! Pode ir descansado... Mais cedo ou mais tarde, o seu sogro aparece-lhe em casa.

- Só a nós é que nos havia de acontecer esta cena! Só faltavam três dias para ele se ir embora de nossa casa...

- Vá à sua vida. Eu trato de tudo.

É a gorda, outras vezes com a sirena ligada:

- Ó Bilinho, tu não nos abandones, ouviste? Ó Bilinho!...

O Bilinho ficou sem saber o que fazer. Depois teve uma ideia que agradou ao agente Aníbal:

- Vou ao meu táxi e comunico via rádio com os colegas. Pode ser que eles descubram. Como é que eu hei-de dizer?

- Diga que são dois velhos. Um é alto, traz um casaco preto... calças pretas... camisa branca... meias pretas de lã...

- Ó mãe - disse eu a suster o riso -, como é que os taxistas vão ver que as meias são de lã?!

- Cala-te! Diga que ele traz um chapéu preto na cabeça.

- Ó Lina, e o teu pai como é que anda vestido?

- Não sei, não sei... Quando saí de casa, ele ainda estava a dormir.

- Traz um boné amarelo na cabeça - ajudou minha mãe.

- Diga que um é alto e o outro baixinho acrescentei eu, divertidíssimo.

O Bilinho deixou-nos, depois de pôr à frente dos olhos uns óculos escuros com aros verdes.

Bilinho, o taxista detective, ia trabalhar na solução do enigma!

- Meu rico pai! - voltou a sirena.

- Tenha calma, tenha calma... - aconselhou o agente Aníbal, com a paciência gasta.

A mulher do Bilinho pôs o bebé no sofá e mudou-lhe a fralda, enquanto a senhora enfermeira Paula foi atender o telefone. Era o meu padrinho Serafim a querer saber novidades.

De repente, fui atacado por uma fome imensa. Meti-me na cozinha, abri uma lata de salsichas e uma lata de coca-cola, sentei-me à mesa e devorei

tudo num instante porque o meu estômago, pelos vistos, era insensível a dramas.

Estava a ser meia-noite quando a campainha da porta começou a tocar ininterruptamente.

- É o Bilinho! É o Bilinho! - gritou a filha do velho baixinho.

- Quem é? - perguntou minha mãe.

- Sou eu!

- Eu, quem?

- Abre a porta, rapariga!

- É o pai?!

- Sim, abre!

- Eu bem dizia... Sou burro velho! – disse meu pai, todo inchado.

Um quarto de hora depois, o meu avô e o Zezinho, muito amigos, muito abraçados, entraram em casa.

- Onde é que estiveram? - perguntou minha mãe, encenando uma voz grossa.

E o meu avô, ríspido:

- Não tenho que te dar satisfações. Esqueces-te de que sou teu pai?

- Está bem... mas onde é que se meteram para só chegarem a estas horas?

E o Zezinho, com a voz meio arrastada:

- Fomos ver uma quinta.

- Uma quinta?

- Pois. Uma quinta toda murada, com muitos luxos.

- Uma quinta? - voltou a perguntar o agente Aníbal.

- Sim, uma quinta. Terra de luxo! Mora lá o Quinzinho Ramos, não sei se conhece... Um rapaz do nosso tempo.

- Fomos visitá-lo - disse o avô. - O homem está rijo. Ofereceu-nos a janta, conversámos, bebemos uns copos. O filho dele veio agora cá trazer-nos.

- Eu não te dizia que ias gostar, Henrique?

- Valeu a pena. Lá não me importava eu de morar o resto da minha vida...

O agente Aníbal, de repente, ficou furioso.

- Não tenho paciência para estas pantominices - disse, antes de sair de casa, batendo a porta com força.

- Que é que lhe deu? - perguntou a enfermeira Paula.

Minha mãe ficou calada.

De vez em quando, meu pai costuma fazer estas cenas. Arremessa uma pequena frase como se fosse uma pedrada e depois sai de casa, batendo a porta. Volta mais tarde, manso como um cordeiro, e minha mãe não lhe diz nada, não lhe pergunta nada. Nessas alturas, usam-se muito poucas palavras em casa, dona Sibilina queixa-se com dores de cabeça, despeja o pó de uma carteirinha de Aspegic num copo com um pouco de água no fundo, bebe-o num instante, a ver se passa, faz uma careta e, se não passa, repete a dose. Se não fosse o Aspegic, não sei do que é que minha mãe havia de falar.

A minha madrinha, o velhote, sua filha e neto foram-se embora e, quando a casa ficou mais arejada, meu avô, que já se tinha metido no quarto, chamou por minha mãe. Queria saber quantos dias faltavam para regressar de vez a Torna-Ó-Rego.

- Descanse, meu pai, descanse.

- Estou farto de descanso. Quero ir para minha casa.

Pareceu-nos que o avô, pela forma como falava, tinha bebido uns copitos a mais.

- Está bem, meu pai?

- Estou!

- Veja lá se me suja a cama...

O avô ofendeu-se. E antes de pôr o lençol por cima da cabeça, arrotou e declarou com solenidade:

- Sempre me soube portar como um homem, ouviste? A tua mãe nunca teve a mínima queixa a dar de mim!

- Ela já não está cá para se queixar...

- Antes estivesse...

Minha mãe aqueceu no microondas a sopa guardada no frigorífico, mas só eu é que comi dela. Dona Sibilina fora atacada por uma horrível dor de cabeça. Bebeu um bocadinho de água misturada com o pó branco que saiu do pacotinho de Aspegic.

Estava a despir-me quando tocou a campainha da porta. Era o Bilinho, muito excitado, a querer saber novidades. Disse-lhe que já estava tudo resolvido, que podia ir dormir descansado.

Deitei-me e acho que adormeci num instantinho.

Não sei a que horas voltou o agente Aníbal.

Também nunca lhe perguntei, nem o que andou a fazer.

Pela boca morre o peixe e entre homem e mulher nunca metas a colher, assim dizia o avô.

Belos conselhos.

 

A partir daquela noite memorável, meu pai começou a ter um comportamento diferente. A toda a hora arranjava desculpas para não estar em casa, falava pouco e fazia de conta que o avô era uma sombra. O velhote percebeu muito depressa que o agente Aníbal não o queria sentado à sua mesa, nem estava interessado em ter sempre as mesmas conversas dum tempo que já não existia.

Minha mãe sofria em silêncio. Numa manhã, fui encontrá-la na cozinha com olheiras fundas e lágrimas a borbulhar.

- O que tem, mãe?

- Nada.

- Mas está a chorar.

- Não estou a chorar. Foram as cebolas que acabei de cortar para a salada.

- Ó mãe, eu já não sou uma criancinha... nem sou parvo. Fale comigo!

- Não tenho nada para contar.

- Ai tem, tem. Fale comigo!

- E que é que queres que eu te diga? Tu não vês o que se está a passar em nossa casa? O teu pai...

Calou-se.

- Fale, mãe!

- Não te quero virado contra o teu pai. Este assunto não te diz respeito.

- Eu acho que não tem razão. Claro que este assunto do avô também me diz respeito. Eu também estou a apanhar por tabela.

Minha mãe retorquiu, com a voz alterada, quase a gritar:

- Também estás contra o teu avô?

-Eu?

- Não foi o que tu disseste?!

- Eu não disse isso!

- Para bom entendedor, meia palavra basta! O que é que tu tens contra o teu avô?

- Ó mãe... assim não nos entendemos. Eu só queria dizer que compreendo que o avô esteja a

morar aqui connosco. Está certo! Mas também é verdade que eu deixei de ter privacidade.

- E o que queres dizer com isso da privacidade?

- Fiquei sem quarto! Já não tenho um canto para mim, tenho de esperar que toda a gente se deite para dormir na sala... Não é a mesma coisa, ou é?

- Se isso te consome tanto, podemos trocar. Eu e teu pai dormimos na sala e sua excelência no nosso quarto!

E eu, miseravelmente incompreendido:

- Não é nada disso! Não é nada disso, mãe! Dona   Sibilina   começou   a   chorar.   Depois magoou-me:

- Se fazes assim com o teu avô, o que será de mim quando for velha?...

Era impossível continuar aquela conversa. Apeteceu-me sair dali. Minha mãe apercebeu-se das minhas intenções e gritou:

- Não sais de casa. Queres fazer como o teu pai? Não é fugindo que se resolvem as coisas. Ficas aqui comigo e ouves tudo o que tenho para te dizer.

- Já conversámos tudo!

- Mentira! Ando muito magoada com tudo o que se está a passar. Até parece que eu é que sou a culpada de o meu pai ainda viver.

- Isso não é para mim, pois não?

- E! Também é para ti! Tu não queres o teu avô nesta casa. O que tu queres é vê-lo bem longe, muito longe. Eu não sou parva, ouviste? Só tenho a quarta classe antiga, posso não saber palavras caras, mas tenho sentimentos e percebo as coisas. Não me vires as costas, Tião!

Era melhor deixá-la falar. Que desabafasse, chorasse, gritasse, expulsasse tudo o que tinha engasgado durante aqueles dois dias de silêncio e hipocrisia, apaziguados com pacotes de Aspegic.

Esquecemo-nos de que o avô estava no quarto, a fazer que dormia um soninho descansado. Certamente ouviu tudo. As palavras caíram-lhe por cima da cabeça como se fossem pedradas.

Só nos apercebemos que isso tinha acontecido quando vimos o avô entrar na cozinha com o casaco vestido e o chapéu a enrodilhar-se nas mãos. com uma voz que eu não lhe conhecia, mas que imediatamente percebi ser a voz das resoluções inabaláveis, o velho Henrique declarou, quase silabando as palavras:

- Não sofras por minha causa, rapariga. Eu também não gosto de estar aqui, este não é o meu ninho. Chama um carro de aluguer que me leve imediatamente para Torna-Ó-Rego. Se nos despacharmos, ainda lá arribo antes de anoitecer. É um favor que me fazes, ouviste?!

Minha mãe conhecia bem o velho Henrique. Percebeu que ele estava a falar muito a sério, que era uma resolução amadurecida, definitiva, e, portanto, que não havia nada nem ninguém que o fizesse reconsiderar. Antes quebrar que torcer, era um dos seus ditos preferidos.

Minha mãe ficou sem fala e eu senti um grande braseiro no rosto onde já estavam a crescer algumas borbulhas, sintoma da barba que não tardaria a crescer como relva muito bem tratada.

- O pai não está bom dessa cabecinha!...

- Podes dizer tudo o que te apetecer. Chama-me maluco, pensa o que tu quiseres, mas podes ter a certeza de que hoje já não durmo aqui! Arranjas o carro, ou Vou eu à procura dele? Tenho comigo dinheiro que ainda dá para mandar cantar uma dúzia de cegos!

- Vou telefonar para o Aníbal.

- Não faças isso. Que eu saiba, o senhor meu genro ainda não manda em min. Telefona para um carro de aluguer, que eu pago a chamada.

- Não fale comigo dessa maneira, meu pai, porque eu não mereço.

- Eu sei, rapariga.

Minha mãe, de repente muito zangada:

- Ai é assim?! Então Vou já tratar de tudo! Não o quero aqui preso, era o que mais faltava! Mas não sai daqui sem almoçar, ou já não quer almoçar?

O velho não ligou grande importância às palavras de sua filha, pôs-me uma mão, que eu senti estar bastante trémula, em cima dos ombros e disse:

- Sebastião, nunca te esqueças do que te Vou dizer.

Sentou-se numa cadeira, entrelaçou as mãos sobre a toalha da mesa da cozinha, depois de se assoar com muitos vagares, e começou:

- Quando eu era mais novo do que tu, quando vinha o tempo dos ninhos, eu trepava às árvores e descobria passarada a rodos. Em minha casa comiam-se pássaros fritos todos os dias. Uma vez, encontrei no meio de umas trepinhas de carvalho um ninho de rola, que são uns ninhos muito mal feitos, aquilo são uns pauzitos, uns fiozecos, umas peninhas e já está o serviço feito. O ninho tinha dois ovos, e eu deixei-os lá estar. De vez em quando, passava pelo carvalho para ver o andamento daquilo. Nasceram as rolitas, cresceram-lhe as penas e eu, quando vi que elas iam começar a voar, trouxe-as para minha casa.

Arranjei umas tábuas velhas, fui buscar a rede de que precisava ao galinheiro do padre e lá martelei, como sabia, uma gaiola. Meti as rolas lá dentro e pus a gaiola em cima do telhado da minha casa. Eu pensava que os pais das rolas vinham lá dar-lhes a comida. Quando me apercebi de que isso não estava a acontecer fui ao telhado buscar a gaiola. Pus lá dentro água e a melhor comida que pude arranjar: minhocas, arroz, bocadinhos de carne, pedacinhos de fruta, e até metade de um rebuçado... E sabes o que aconteceu? Mesmo com todos aqueles paparicos, no dia seguinte, as rolinhas apareceram tesas como bacalhaus, com um formigueiro enorme à volta delas a comer os olhos das bichas. Dei as rolas ao gato, queimei a gaiola e jurei: rolinhas nas gaiolas nunca mais!

O avô calou-se e eu não achei piada nenhuma àquela conversa.

- Que é que quer dizer com isso, avô?

- Nada. Pensa o que tu quiseres. Mas não te esqueças desta história, ouviste? Guarda o que não presta que um dia te fará bom proveito.

Minha mãe parecia um daqueles barquinhos de papel que se deitam na água e nunca se sabe que rumo vão tomar. Da sala para o quarto, do quarto para o corredor, do corredor para a cozinha da cozinha para o telefone a dizer que era a mulher do agente Aníbal e que, se fosse possível, gostaria de falar com ele a correr e a dar suspiros muito prolongados, se calhar para ver se eles tinham o mérito de fazer com que o meu avô mudasse de ideias.

Depois do almoço, marmotas fritas e arroz de tomate, comida que sempre detestei, mas que o velhote adorava, o táxi apareceu. Nessa altura, tocou o telefone. Era meu pai a querer saber o que é que era assim tão importante para minha mãe estar a telefonar para o serviço. E ela contou. Mas, nessa altura, já o avô descia as escadas com uma leveza que muito me impressionou. Nas mãos levava dois sacos plásticos com as tralhas dele e a comida que a minha mãe lá metera sem ele dar conta, e na cabeça aquele chapéu preto que lhe dava uma personalidade que eu muito invejava. Ah, como eu gostava de usar assim um chapéu!

Minha mãe falou com o homem do táxi, ensinou-lhe o caminho, repetiu meia dúzia de vezes a mesma cantilena. O homem, um senhor barrigudo e careca, acenava com a cabeça: ”sim... pois... claro... eu sei... sim... esteja descansada, minha senhora... claro, eu compreendo.”

Minha mãe, muito firme, como se nada tivesse acontecido, despediu-se do avô; eu fiz o mesmo. Ele sentou-se no banco da frente, deixou que lhe apertassem o cinto e, muito decidido, ordenou:

- O senhor, então, faça favor de me levar a Torna-Ó-Rego, que eu pago o que fizer minga! Mas meta travões, ouviu, meta travões, que eu tenho cá por dentro uma máquina que não se dá com as velocidades.

O motorista acenou com a cabeça. Pelo que se ouviu, era homem de poucas conversas.

O táxi arrancou, minha mãe desapareceu para dentro do elevador e eu fiquei cá fora com uma estúpida vontade de me rir com aquela conversa do avô com o taxista, e um desejo de correr para junto de minha mãe e dizer-lhe qualquer coisa. Mas o que é que eu havia de dizer?

 

Não posso precisar se foram mais de duas semanas. Mas foram, disso não tenho dúvidas, dias muito pouco divertidos os que se passaram em minha casa depois de o avô se ter retirado de forma tão brusca. Nunca vi minha mãe tão abatida, nunca vi meu pai tão calado. O verbo falar não se conjugava naquela casa.

De Torna-Ó-Rego o avô mandara uma carta a dizer que estava bem, graças a Deus, mais o gato e as galinhas. Para me autoconfortar, eu punha-me a pensar nos ditados que ele me ensinara. Lembrei-me destes: tudo o que nasce há-de morrer; depois da tempestade vem a bonança; qualquer árvore ou dá tábuas ou casqueiros e muita serradura.

Uma noite, já dono do meu quarto e deitado na minha cama, estava com os olhos fechados, a deixar correr livremente a imaginação, que às tantas até parece que se transforma em realidade, e uma ideia começou a piscar ininterruptamente: por aquele andar, muito em breve o agente Aníbal ia-se embora de vez daquela casa. Pronto, lá ia eu ser mais um da colecção dos filhos dos divorciados!

Pus-me a imaginar a cena:

O agente Aníbal, depois de ter saído de casa, vinha ter comigo, se calhar levava-me até à Feira Popular e dizia-me de repente:

- Tião, meu filho, esta é que vai ser a minha mulher!

Mas que mulher! Alta, loira, de olhos verdes, com uns dedos muito compridos, unhas pintadas, pernas muito bem feitas, magra, elegantíssima, de saia curta, a cheirar a um perfume estranho que devia ter custado uma fortuna, ela olhava docemente para mim e dizia:

- Olá, querido!

E eu descobria, pelo sotaque, que era estrangeira.

Sem querer, eu era obrigado a reparar naqueles olhos verdes, tinha forçosamente de admirar

aquelas pernas tão altas, as coxas tão bem feitas, mesmo que não quisesse, eu tinha de ver aqueles lábios carnudos, pintados de roxo, que faziam lembrar, não sei porquê, uvas de mesa, daquelas que têm bagos enormes e duros, ai, e aspirava o estranho perfume que a envolvia e não conseguia abrir a boca.

Meu pai, de calções e camisola, com meias brancas e ténis caríssimos, óculos escuros e cabelo encharcado com gel, mesmo parecido com um artista de cinema, sorria, envaidecido. Depois de ter comprado pacotes de pipocas verdes, azuis e vermelhas, o agente Aníbal segredava na minha orelha esquerda:

- Gostas dela?

E eu dizia:

- Como é que conseguiu?

Ele respondia de olhos fechados:

- Tenho muitos anos de tarimba, meu filho! E eu, admirado:

- Que quer dizer com isso? Já anda com ela há muito tempo?

- Não,   não...   Conheci-a   na   praia   de Espinho, há um mês. A Marlene trabalha no casino, é dançarina.

- Que chique, senhor Aníbal!

Ele riu-se. E eu notei que tinha os dentes muito podres, muito sujos. Pensei: ”como é possível uma mulher tão bonita andar com este homem que nem os dentes sabe tratar?”.

Estava eu a digerir esta cena, admirado, e estava o meu pai a dar a mão à Marlene que calçava uns sapatos pretos de tacão muito alto e muito fino, quando, sobrepondo-se aos sons estridentes da Feira Popular, ouvi um grito conhecido:

- Tiãããããããããããããão!

Claro que aquela voz tão aguda tinha de pertencer a dona Sibilina.

Ai, como é que ela apareceu de repente, sem ninguém dar conta?

- Mãe?!..

- Quem é que pensavas que era?

- Como é que soube que eu estava aqui?

- Eu só tenho a quarta classe antiga, não sei dizer palavras difíceis, mas não sou parva, ouviste?!

Eu não tinha bem a certeza se aquelas palavras eram dirigidas a mim ou ao meu pai. Se calhar, era dose para repartir por dois.

O meu pai fez de conta que nunca tinha visto aquela senhora metida num roupão verde, coçado, com um lenço amarelo na cabeça e calçando chinelas de quarto, descambadas, horrorosas, cor-de-rosa, querendo imitar dois estúpidos coelhinhos.

- Quero que me ouças, Aníbal! E ele:

-Já ouvi tudo o que tinha a ouvir. Acabou-se! Agora é o divórcio e ponto final. -Ai é? -É!

- Então ficas a saber que o meu pai é uma pessoa que merece ser respeitada. Emprestou-nos dinheiro sem termos de pagar juros para comprarmos a casa e nunca te tratou mal, ouviste?

- Estou farto de ouvir isso! Estou farto de estar agradecido. E o dinheiro que ele emprestou só deu para comprar a mobília da sala, olha a grande coisa!

- Quem dá o que tem a mais não é obrigado. Abri os olhos e senti que tinha o coração a

bater com mais força. De repente, fiquei com sede.

Saltei da cama e, como não encontrei os chinelos, fui descalço em direcção à cozinha, para pegar na garrafa com água de dentro do frigorífico. Ia com muito cuidado para não acordar dona Sibilina e seu marido.

A meio do corredor, parei e sorri. Apercebi-me de que no quarto com a porta fechada se fazia amor.

A sede desapareceu e eu voltei para o meu quarto em bicos de pés, como se costuma dizer, atirei-me para cima da cama com o lençol enrodilhado à beira dos pés. Antes de adormecer, sonhei com a Flávia.

No dia seguinte, minha mãe anunciou com sininhos na voz:

- No próximo domingo, aproveitamos a folga do teu pai para irmos à aldeia ver como é que está o avô. Não andes a marcar coisas para esse dia, porque tu também vais.

 

Antes de chegarmos a Torna-Ó-Rego, estacionámos à beira de uma tasca chamada ”Cátispero”, tomámos café e comprámos pão, batatas fritas e dois frangos de churrasco. Minha mãe contava que houvesse tomates maduros no quintal do avô para fazer uma boa salada, e assim se resolvia o almoço. Era quase sempre essa a ementa quando íamos à aldeia.

com a comida embrulhada em papéis e plásticos, entrámos no velho Renault 5 a necessitar com urgência de uma pintura nova, e lá ouvimos novamente o desabafo de minha mãe.

- Também tenho direito a uma folguinha! E o meu pai gosta muito.

Também eu.

Quando chegámos a Torna-Ó-Rego, o domingo, quente e com céu muito azul, ia a meio da manhã. As galinhas ficaram alvoroçadas com a presença do carro e um velho cão perdigueiro, há muito tempo abandonado pelos caçadores da cidade, e posteriormente adoptado por toda a aldeia, veio farejar-me os pés, depois foi atrás de minha mãe, com o rabo a abanar. O bicho não era tolo, sabia que daí a pouco havia de se banquetear com os restos dos frangos.

Antes de entrarmos em casa do avô, que tinha um caminho semeado de pedras onde o carro não podia entrar, a velha Custódia cumprimentou meu pai, lambuzou-me a cara com dois beijos muito repenicados e fez o mesmo nas faces da minha mãe:

- Ainda bem que vieste, Sibilina. Assim, já me tiras o trabalho de te telefonar. O meu compadre não tem passado muito bem.

- O que aconteceu?

- Não sei. Depois que veio lá de tua casa, tem andado muito esquisito. Passa o dia metido em casa e   não   tem   comido   nada.   Eu   bem   lhe   digo: ”Compadre, olhe que arruina a sua saúde, coma, mesmo que não tenha apetite”. Ontem à noite, até lhe levei uma panelinha de canja duma galinha que já estava a ficar velha, mas ele não lhe fez muitas festas. Nem sei se a provou.

Minha mãe, alarmada:

- Está doente!?

- Não sei. Mas já não é o mesmo compadre que eu conheci toda a vida. Eu acho que lhe fez muito mal ter ido para o Porto.

Meu pai, com voz de agente Aníbal:

- Foi lá muito bem tratado.

- Oh, mas ninguém põe em dúvida que isso aconteceu! Sabe, se calhar, foi de enjoar. E as tripas, de tantas voltas que deram, ainda não voltaram ao sítio. Eu tenho ido a casa dele todos os dias, tenho-Ihe lavado a roupinha, pensado as galinhas, arrumado os ovos, a casa também não anda assim muito desarrumada. Hoje, ainda não tive tempo de ir lá. Venho agora do meu quintal...

- Muito obrigada, muito obrigada.

O velho cão não nos largou e só parou quando chegámos junto da casa do avô, que tinha duas portas e quatro janelas. Uma porta, que estava quase sempre fechada, dava entrada para a sala, a outra fazia o acesso para a cozinha.

Minha mãe bateu na porta da sala:

- Pai! Pai!

Ninguém respondeu. Olhei para o mostrador do meu relógio: onze horas e dezassete minutos.

- Senhor Henrique!   Senhor Henrique!   desta vez era meu pai, com voz de trombone.

- Já lá Vou! - ouvimos meu avô responder. Uma eternidade depois, a porta da cozinha

abriu-se e nós demos de caras com um velho em ceroulas, casaco velho sobre as costas, olheiras fundas, barba de muitos dias por cortar. O velho Henrique tremia e tinha um hálito horrível.

- Que lhe aconteceu, meu pai?

- Não sei. Não tenho dormido muito bem e, uma destas noites, deu-me uma pontada no peito. Mas agora já passou.

- Não tem comido nada...

- Tenho, tenho.

- A Custodinha já me esteve a informar de tudo.

- A minha comadre tem a língua comprida. É muito boa mulher, mas sempre teve esse defeito... Quem nasce torto, torto há-de morrer.

Uma panelinha de alumínio estava em cima do fogão. Minha mãe retirou-lhe o testo e nós vimos que estava completamente cheia.

- Está muito frio - disse o avô, encaminhando-se para a cama.

Minha mãe desatou a choramingar:

- Eu tinha um pressentimento, eu tinha um pressentimento... Parece que estava mesmo a adivinhar isto!

Quando acontecem coisas imprevistas, dona Sibilina repete essa conversa, por isso, eu e meu pai não lhe damos grande importância.

Meu avô meteu-se na cama e não deixou que meu pai fosse à procura do barbeiro para lhe cortar a barba e aparar o cabelo, disse que não conseguia engolir nada, que não tinha apetite, que estava muito bem, aquilo havia de passar.

- Por que não chamou um médico, meu pai? E ele respondeu que nunca na vida fora visto por um médico, nunca tomara um remédio comprado na farmácia, e não era agora que havia de mudar.

- Se tu me fizesses um chá de folhas de marmeleiro... mas não te esqueças de o deixar ferver durante cinco minutos. Eu acho que estou com uma grande constipação. com folhas de marmeleiro, isto passa.

O velho Henrique sabia de cor como fazer chás para curar praticamente todas as doenças. Dos muitos que ele, um dia, quis ensinar-me, agora só consigo recordar três que nunca experimentei:

Chá dentário: lavar a boca com água onde se ferveram folhas de hera - tira as dores de dentes;

Chá salvador: feito com pontas de silvas verdes - acaba com a diarreia;

Chá do tira a tosse: a tosse desaparece com um chazinho muito quente, muito bem fervido de folhas de alecrim!

Minha mãe não aceitou o pedido:

- O meu pai vai comer uma coxinha de frango assado. Comprámo-lo por sua causa.

Deitado na cama, o avô depenicou o frango, depois engasgou-se, tossiu uma data de tempo e, com estas confusões todas, ninguém se lembrou da salada e o frango soube a papel e plástico.

- O meu pai está muito doente - disse minha mãe, agarrada a uma asa de frango, prestes a ter uma crise de choro. - É melhor levá-lo à urgência do hospital.

- Ninguém o arranca daquela cama! À força, não sou eu que o levo! - protestou o agente Aníbal.

- Ele faz tudo o que lhe dissermos. Está tão fraquinho...

-Já vamos ver se isso é verdade... e temos que nos despachar!

 

- Tem de ser, meu pai, tem de ir ao médico. Aqui não se resolve nada!

O velho ouviu a filha e não disse nada.

Dona Sibilina ajudou-o a vestir-se, penteou-lhe o cabelo, pôs-lhe o chapéu na cabeça e, pouco depois, lá desceu a rua, muito devagarinho. Meu pai amparava-o, o cão velho farejava os sapatos do velho, minha mãe limpava as lágrimas em silêncio e a comadre Custódia, que entretanto aparecera a perguntar se ”precisávamos dos seus préstimos”, abanava a cabeça e fartava-se de repetir num tomde voz que me irritava:

- Pois é. Os fins são sempre muito tristes...

com uma paciência que eu já não via há muito tempo, meu pai conduziu o carro a uma velocidade de caracol e, mesmo assim, perguntava:

- Vamos bem?

O avô acenava com a cabeça que sim, que assim é que se devia conduzir um carro.

Uma hora depois de termos saído de Torna-O-O-Rego, estacionámos o carro à beira do hospital. Na urgência havia dez pessoas, esperando vez para serem consultadas. Pus-me a fazer contas: se cada pessoa demorasse um quarto de hora a ser atendida, isso significava uma espera de duas horas e meia. Pobre do velho, ali sentado naquele banco corrido, tanto tempo a tremer, caladinho, impotente. Pobre de mim!

Certamente meu pai fez as mesmas contas e foi-se embora, depois de ter cochichado que ia tomar um cafezinho e não demorava nada. Minha mãe acenou com a cabeça, ela e eu éramos suficientes para dar conta do recado.

Atrás do balcão estava uma moça de óculos redondos que perguntou o nome do velho, o nome dos pais dele, e eu fiquei a saber que se chamavam simplesmente Manuel Pinto e Maria Ana, que tinha nascido em Torna-Ó-Rego no dia vinte e oito de Fevereiro de mil novecentos e treze.

Sempre a olhar para o meu relógio, a ver como os segundos iam passando tão devagar, odiei aquela sala branca e duas mulheres que começaram a contar as doenças que tinham, o que os médicos disseram, as radiografias que fizeram, os remédios que tomavam, os efeitos secundários que fizeram, as consultas a que ainda tinham de ir, o dinheiro que gastavam, o que não podiam comer nem fazer.

Sempre com os olhos postos na porta que dava acesso ao consultório, contavam as cabeças e sabiam exactamente a ordem de entrada de cada

paciente, tricotavam camisolas e, como certamente já sabiam dos males de todos os que ali estavam, uma delas, baixota e gorda, perguntou a meu avô que doença é que ele tinha. E ele respondeu:

- Não tem nada a ver com a minha vida.

Grande confusão na sala. A baixota ofendeu-se. Que perguntou com educação, não merecia uma resposta daquelas, afinal quem ali estava não era por gosto, que perguntar não ofende...

O avô fez de conta que não era nada com ele. E eu vi-me aflito para segurar o riso.

Palavras leva-as o vento.

Afinal, as minhas previsões falharam. Os doentes eram atendidos muito mais depressa do que eu imaginara. Pouco depois de ter saído da sala para desentorpecer as pernas e de ver as faladoras a irem à vida, uma enfermeira muito bonita, muito jovem veio dizer, com voz de mel, que era a vez de Henrique Pinto.

Aleluia! Quem espera, desespera!

Minha mãe e eu ajudámos o avô a levantar-se. Muito devagarinho, com uma mão que tremia imenso, apoiada nos meus ombros, a outra nos ombros de minha mãe, o velho passou por um corredor e depois entrou num consultório onde havia uma grande secretária e a um canto uma balança. O médico era novo, tinha o cabelo encaracolado, a bata desabotoada, usava um enorme bigode pretíssimo que quase lhe escondia a boca, e estava muito atento a escrever num papel quando minha mãe perguntou:

- Dá licença, senhor doutor?

Em cima da secretária estava um relógio de pulso e o médico respondeu:

- Faça favor.

Meu avô sentou-se numa cadeira, mesmo à beira dele.

- Que é que temos agora, senhor... - olhou para a ficha que a enfermeira lhe pôs em cima da secretária - ... senhor Pinto?

- Nada, senhor doutor.

- Nada?

- São coisas da minha filha.

Minha mãe, atrapalhada:

- Ó senhor doutor, eu estou no Porto, vim cá

vê-lo e encontrei-o assim.

E o médico:

- Está bem. Ora vamos lá ver a nossa garganta, senhor Pinto. Abra a boca e diga ahhh...

O velho abriu a boca e mostrou uma língua muito comprida que parecia pintada de branco. com um foco de luz vindo de uma pequena lanterna, o médico pôs-se a espreitar para dentro da boca do meu avô.

- Muito bem, muito bem, senhor... senhor Pinto! Agora vamos medir as nossas tensões... Vamos lá tirar esse casaquinho...

Minha mãe   ajudou-o   nessa operação   que parecia nunca mais ter fim.

Quando o médico estava a dar à bomba do aparelho que media as tensões, meu avô, num fiozinho de voz, confessou:

- Senhor doutor, há um problema que eu, já que aqui estou, gostava de ver resolvido...

- Vamos dizer que problema é esse!

- Senhor doutor, custa-me muito a verter as águas, e cada vez é pior...

- Pois é... Já vamos ver isso... E nós temos apetite?

- Não senhor... Não há vontade para comer, e com tanta farturinha lá em casa.

- Pois é... E andamos a tomar alguns remédios, ou não?

- Só uni chazinho de erva cidreira quando a máquina está mais emperrada.

- Pois é...

Depois de muitas perguntas, de muita auscultação, o médico olhou para minha mãe e receitou:

- Minha senhora, vou-lhe dar uma novidade: aqui o senhor... Pinto vai ter de ficar um ou dois dias a ver se recupera, está bem?

- Vai ser internado, senhor doutor?

- E... é melhor arranjar-lhe aqui uma cama.

- Mas... o que é que ele tem?

- Minha senhora, o doente está muito debilitado, precisa de recuperar, é o que lhe posso dizer, não é verdade, senhor Pinto? Nós, agora, vamos para uma caminha descansar e dormir, porque nós já não dormimos há muito tempo, não nos temos alimentado e os anos vão passando, não é verdade? E é tudo!

- Ele vai estar muito tempo internado, senhor doutor?

- Acho que não. Se tudo correr bem, daqui a uns dias, temos aqui um atleta.

E o meu avô, atordoado:

- Ó senhor doutor, então eu Vou ficar aqui?!

- Claro. Ficamos cá os dois!

- Ó senhor doutor, mas eu tenho este problema de verter as águas...

- Isso vai melhorar, vamos ter calma, não é

senhor Pinto?

Minha mãe, de repente muito aflita:

- Ele não trouxe roupa para ficar aqui. Não

estava a contar...

- Vai-se buscar a casa e o problema fica resolvido, não é verdade?

 

Os candeeiros de iluminação pública de Torna-O-Rego tinham começado a dar sinal de vida, com nuvens de mosquitos à volta das lâmpadas, quando minha mãe, sentada numa cadeira junto da mesa da sala repleta de calendários, tomou a decisão de não voltar nesse dia para a nossa casa.

Meu pai não se opôs.

- E eu? - perguntei, com pouca vontade de ficar naquela terriola sem qualquer interesse. Torna~Ó-Rego tinha somente uma tasquita com uma televisão pendurada num canto da parede, uma máquina que tirava cafés quase frios, uma arca de gelados, outra de congelados, matraquilhos, um telefone público e um barulho insuportável, prateleiras e balcão forrado com fórmica azul. Meu pai é que gostava daquilo. Quando ia a Torna-O-Rego, chovesse ou fizesse sol, passava ali as tardes, sentado, a jogar cartas com os seus conterrâneos, discutindo lances mirabolantes de futebol protagonizados pelo clube dos dragões.

- Faz o que entenderes! O que resolveres está bem resolvido.

Demorei tempo a decidir. Se ali ficasse, ia passar uns dias desgraçados, sem nada que fazer, sem poder ver televisão, sem poder conversar com os meus amigos, sem poder telefonar à Flávia, sem poder ir até à praia, sem poder tomar banho de chuveiro, obrigado a frequentar, mesmo a contragosto, o ”elevador” do quintal. Mas, é claro, podia apanhar uma fartadela de ar puro, podia ouvir os passarinhos a chilrear, repiupiu, repiupiu, que romântico!

Se fosse para o Porto, quem é que havia de cozinhar para o meu pai? Quem é que havia de encher a pança do agente Aníbal, que tanto gostava de dizer que nem um ovo sabia estrelar?!...

De repente, lembrei-me do Zé Carlos, o meu melhor amigo, viciado em jogos de computador.

Ele tinha-me falado no campismo. Era uma ideia gira, sairmos de casa só nós os dois, eu só

precisava de levar dinheiro, as tralhas do campismo já ele as tinha, dadas pelo irmão, depois de se ter casado.

Falara nisso à minha mãe, assim muito por alto, a ver o que é que ela dizia. E ela respondera que esse era um assunto que precisava de ser muito bem estudado:

- Ainda és muito novo! - disse ela.

Fico podre quando me dizem que sou muito novo. Está certo, sou novo, mas já não sou uma criancinha. Acho que os velhos confundem tudo e não conseguem perceber como às vezes nos magoam tanto. Eles dizem ”Ah, no meu tempo...”, mas eu quero lá saber do tempo deles. Que culpa é que eu tenho de o tempo deles não ter sido igual ao nosso? Desconfio que mentem muito, mas não é por mal, é só para terem um pretexto para pregarem uma lição que parece nunca mais ter fim. Mas têm pouca imaginação, coitados, porque dizem sempre as mesmas coisas, passam a vida a repetir sempre as mesmas lengalengas.

- Se eu fosse com o pai, podia ir acampar com o Zé Carlos...

Meu pai começou aos gritos:

- Tu estarás bom da cabeça? Então há lá melhor campismo do que este? Tens aqui tudo, rapaz! Não precisas de gastar dinheiro e estás em segurança.

Calei-me. Para quê discutir com gente que não faz a mínima ideia de que o campismo é uma forma de aventura, de evasão, em que nós somos donos e senhores do tempo e da nossa vontade. Quem foi criado em terriolas como Torna-Ó-Rego como é que pode perceber coisas tão elementares?

Quando eu era mais pequeno, uma vez, meu pai chegou a casa e disse que um amigo lhe emprestara uma tenda de campismo. A minha mãe ficou muito calada e começou a dizer que tinha muito medo a cobras, e a privacidade era coisa de que não abdicava.

Mas, como não havia muito dinheiro, e muitos dos nossos amigos já tinham ido para campismo, a gente acabou por juntar as tralhas e lá fomos no Renault 5. Quando chegámos ao parque municipal da Figueira da Foz, estava a ser quase noite.

O meu pai, que até parecia mais rapazinho, com fato de treino, ténis e um chapéu de palha que tinha comprado nas festas do Senhor de Matosinhos, e que lhe dava um ar esquisito, saiu do carro e lá foi tratar das formalidades.

Entrámos no parque a cinco à hora, para não atropelar ninguém, e, depois de muitas voltas, conseguimos encontrar espaço entre três pinheiros.

Começámos a montar a tenda. Enfiámos aqueles ferrinhos todos, ligámos aquilo tudo, e não havia maneira de a tenda ficar pronta, porque já não se via muito bem e o meu pai tinha de ler num livrinho de apontamentos o esquema da montagem. Duas horas depois, estávamos a berrar uns com os outros porque a tenda não subia, não havia pedras para espetar os pregos no chão, o chão tinha formigas...

A minha mãe dizia que o melhor era a gente meter outra vez a tralha no carro e ir procurar quartos. E o pai respondia que estávamos em férias, aquilo não era nenhuma hora de ponta, tanto valia demorar uma como cinco horas, até era engraçado estar a aprender coisas novas. Isso era o que ele dizia, mas eu bem via que também estava com os nervos muito subidos.

O que valeu foi a ajuda de dois rapazes que vieram depois de nós, montaram a tenda deles, aqueceram a comida, jantaram e depois tiveram pena da nossa ignorância. Em dez minutos, a tenda ficou no ar, montada como devia ser. A minha mãe ficou mais calma, o meu pai sentou-se no chão, fumou o cigarro da paz e eu comecei a dizer que tinha fome.

A minha mãe disse que não sabia cozinhar sem bancas nem fogão, que aquilo era mais complicado do que parecia e que ela também estava em férias e quem quisesse que se arranjasse. E que o melhor era ir jantar fora. Mas, como estávamos todos cansados, resolvemos beber leite e comer pão com fiambre, coisas que tinham vindo de casa.

Demos uma volta pelo parque e vimos casas de campismo com frigorífico, máquina de lavar louça, mesas, cadeiras, vídeo, televisão, vasos com flores e gaiolas com pássaros. De tudo, o que eu queria era a televisão, por causa dos desenhos animados.

Depois da passeata, fomos dormir. E eu desatei a rir quando ouvi a minha mãe choramingar que tinha medo de abafar dentro ”daquela coisa”.

No dia seguinte, acordámos muito cedo. Eram oito horas e nós já estávamos fora da tenda, à espera de vez para ir à casa de banho. A minha mãe, de robe e pijama com a saquinha do sabonete e das outras tralhas da higiene dela, dava suspiros e fazia caretas.

O meu pai pôs-se a fazer café. Mas o fogãozinho estava torto e a cafeteira acabou por cair quando a água já estava a ferver.

Fomos para a praia e comemos pão com queijo e pão com fiambre, e iogurte e laranjas e bebemos duas garrafas de água daquelas grandalhonas. E eu e a minha mãe comprámos um gelado; o meu pai já tinha bebido umas cervejolas.

A tardinha, viemos outra vez para junto das tendas e começámos a fazer o jantar. Mas a minha mãe começou a dizer que também estava em férias, que não era escrava, ou toda a gente ajudava ou não havia comida para ninguém. O meu pai começou a fumar muito e depois discutiu com a mãe. Eu pensava que o culpado daquilo tudo era o campismo, o melhor era voltarmos para casa. E a minha mãe gritava:

- Antes quero passar três dias muito bem instalada numa pensão. E quando o dinheiro se acabar, vamos embora!

Fomos jantar a um restaurante e dormimos outra vez dentro da tenda. E, no dia seguinte, já estávamos a sair do parque com muito cuidado para não atropelar os vasos com flores que havia nas tendas das pessoas que tinham levado tudo o que tinham em casa para dentro do parque.

Eu gostei da experiência. Ainda hoje, passados tantos anos, quando minha mãe começa a recordar essa experiência, desata a rir e não é capaz de terminar a história.

Quem nasceu e cresceu em Torna-Ó-Rego nunca pode apreciar as virtudes do campismo.

- Então, vais ou ficas a fazer companhia à tua mãe? - perguntou o agente Aníbal.

É claro que estava mesmo a ver-se qual era a resposta que ele queria que eu desse:

- Fico aqui.

 

Meu pai deixou Torna-Ó-Rego tendo por companhia um saco de batatas e dois garrafões de vinho comodamente instalados na mala do carro, um caixote com ovos, outro com tomates, prometendo telefonar para o café todos os dias às oito da noite.

Jantei ovos estrelados, sardinhas de conserva, o resto do pão. Normalmente, eu dormia numa cama articulada que se armava na sala, mas, a partir dessa noite, fiquei na cama do avô, depois de a minha mãe ter mudado os lençóis e a fronha que cheiravam a mofo.

No quarto acanhado havia um cheiro esquisito, mesmo depois de a janela de guilhotina, que dava para o quintal, ter estado bastante tempo aberta.

Nessa noite, vi no ar dois morcegos, bichos que achei bastante repugnantes.

A cama era muito larga e eu adormeci embalado pelos grilos e cegarregas - foi assim que minha mãe disse que se chamavam - espalhados por todo o quintal.

No dia seguinte, acordei às onze e vinte e nove, e tive de esperar que as cuecas, as meias e a ”t-shirt” que a minha mãe lavara acabassem de secar.

Quando me levantei, a suspirar pelo duche impossível, vi a casa arrumadíssima. Para aquilo acontecer, foram precisas muitas horas de trabalho. Não sei a que horas é que minha mãe saiu da cama...

Já não me lembro do que foi o almoço, mas sei que comemos depressa para não perdermos a camioneta de carreira que passava na estrada alcatroada, quilómetro e meio distante de Torna-Ó-Rego. E só havia aquela, que passava entre a uma e meia da tarde e um quarto para as duas. Quem a perdesse só voltava a ter transporte às sete.

- Que terra tão atrasada - disse eu, a caminho da estrada, aflito com o sol a pino, que parecia querer derreter-me os miolos.

- Já foi bem pior! Quando eu era solteira, a camioneta só cá passava duas vezes, uma às sete da manhã, em direcção ao Porto, e outra ao regressar, às nove da noite. Nesse tempo, a gente gastava as solas dos sapatos na estrada, não é como agora.

Eram exactamente treze e cinquenta e um quando a camioneta se dignou aparecer. Como só trazia cinco passageiros, parecia ter o tamanho de um convento. Lá à frente, ia um velho que falava com o condutor em voz muito alta. Assim, toda a gente foi obrigada a saber que tinha um porco muito doente e que agora ”ia à farmácia mercar uma injecção para o bicho, a ver se ele deixava de se borrar a toda a hora”.

À minha frente, um bebé passou a viagem a rejeitar o bico do seio que sua mãe lhe oferecia, carinhosamente, atirando-lhe beijos.

Minha mãe olhou para mim, sorriu e segredou:

- Muito passa uma mãe para criar um filho! Tu foste muito mauzinho... Choravas horas seguidas e eu é que te aturava. Mas foste sempre muito limpinho... largaste as fraldas muito cedo.

Estranho:   sei de cor essa conversa ouvida milhares de vezes, mas sabe-me sempre bem escutá-la uma vez mais. Por que será que em certas ocasiões me apetece ser bem pequenino, ter os privilégios dos bebés e, maravilha das maravilhas, saltar outra vez para dentro da barriga da minha mãe? Pensamentos esquisitos que nunca se confessam a ninguém, é claro...

Antes de entrarmos no hospital, minha mãe e eu fomos a uma loja comprar roupa interior para o avô e um roupão muito grosso, cinzento.

- Parece mal não ter isto à beira da cama. Ai, e há tanto tempo que andava a dizer-lhe para comprar um!

Exactamente às quinze horas e trinta minutos, o magote de pessoas que havia junto da entrada do hospital desfez-se em breves instantes.

Passámos corredores, fizemos perguntas, apanhámos encontrões. Finalmente, numa enfermaria onde estavam seis camas, encontrámos o avô. Tinha a barba cortada e o braço esquerdo ligado a um tubo transparente que ia dar a uma garrafa que largava vagarosas gotinhas de soro.

- Então,   como   é   que   está? - perguntou

minha mãe.

- Fui muito bem tratado e já sinto a máquina a querer funcionar melhor. Tenho aqui muitos colegas. Aquele que está ali ao fundo é que passou mal a noite. Andou para aí a passear todo nu, parece que já não regula bem da cabeça. Então não te foste embora?

- Resolvi ficar.

- Fazes mal. Eu estou muito bem entregue!

- O médico veio vê-lo?

- Andaram por aí, hoje de manhã. E tu, meu filho, também cá ficaste?

- Que remédio! Ele tem obrigação de fazer companhia à mãe!

- Tens de me trazer a carteira. Eu quero dar quinhentos mil réis a uma enfermeira que anda aí. É muito simpática. E quando é que te vais embora?

- Ainda não resolvi.

- Vai para tua casa, que fazes lá muita falta, ouviste? Se calhar, tão cedo não me mandam embora. Agora estou entregue a esta bicharada, o que eu digo já não se escreve...

- Não diga asneiras. Trouxe-lhe este roupão para vestir quando se levantar.

- Para que é que foste gastar dinheiro? Não preciso disso para nada! Traz-me a carteira, ouviste?

Já não havia mais nada para dizer. Pus-me a observar toda aquela gente debruçada sobre as camas, em espalhafatoso palavreado, às vezes misturando gargalhadas estridentes. Na cama do canto esquerdo havia uma mulher nova que deixava correr as lágrimas e não tirava os olhos da perna que o seu marido já não tinha, perdida num acidente de motorizada. E eu olhava à socapa para o meu relógio e achava estranho que uma hora demorasse tanto tempo a passar ali dentro, obrigado a respirar aqueles cheiros esquisitos.

Quando apareceram umas primas de minha mãe que eu mal conhecia, aproveitei para me despedir do avô.

- Vai apanhar sol, que isto aqui não interessa a ninguém! - disse o avô, esboçando um sorriso.

O velho tinha a máquina avariada, por isso ali estava a consertá-la, é certo. Mas continuava o mesmo Henrique, cáustico, directo, inteligente.

Às vezes gostava de ter a coragem daquele velho de Torna-Ó-Rego.

 

Iamos todos os dias visitar o avô, minha mãe esquecia-se sempre da carteira e meu pai telefonava pontualmente às oito horas. Três dias depois da separação forçada, começou a dizer que fazíamos muita falta lá em casa, que se sentia muito só, muito abandonado.

Eu também já não suportava mais aquele ambiente. Torna-Ó-Rego era uma terriola onde só havia velhos, cães e gatos.

- No meu tempo, isto não era assim - relembrava minha mãe. E eu bem via que tinha saudades de quando era ”menina e moça”.

Um dia, passámos ao fundo da aldeia. Havia ali uns restos de pedras amontoadas e com um imenso silvedo a cercá-las.

- Sabes quem é que viveu aqui, Tião? A tua madrinha.

- A minha madrinha?

- Sim, a tua madrinha. Era uma casa muito pequenina, sem nenhuma divisão. A mãe da Paula chamava-se Francisca e era aqui que ela morava com os cinco filhos. A Paula, que era a mais velha, foi a primeira a sair daqui, os outros foram a seguir. De vez em quando, vinham cá ver a mãe e, quando ficou velha, não lhe faltaram com nada. Todos os filhos vinham visitar a mãe, só a Paula é que não. Mandava-lhe dinheiro dentro de envelopes que nunca trouxeram remetente.

Um dia, a Francisca estava no fontanário, a encher um regador de água e a falar com as mulheres que lavavam roupa no tanque, e de repente calou-se, caiu e nunca mais se levantou.

A Paula veio ao funeral, com o teu padrinho, o que espantou muita gente, mas ela não falou com ninguém.

Pouco tempo depois, a casa da Francisca ardeu completamente, o que muito espantou toda a gente que aqui morava. Como é que era possível arder uma casa que não estava habitada? Alguém lá tinha ido pôr o fogo, mas quem?

Nessa altura vivia cá um maluquinho, chamado Quinzinho das Furnas, que às vezes passava as noites a cantar aí por esses caminhos fora, tirando o sossego a quem dormia.

O Quinzinho, muito aflito e a dar saltos, gritava:

”Eu vi quem foi! Eu vi quem foi! Foi uma bruxa que tinha um lenço na cabeça. Corria como uma lebre, a danada! Ai o que ela corria!”

”Está calado, Quinzinho! Lá vens tu com a mania das bruxas...”

Ninguém ligou àquelas palavras, mas eu descobri logo quem era aquela mulher de lenço na cabeça.

- A minha madrinha?

- Claro. Quem é que havia de ser?

- Como é que tem a certeza?

- Foi muito fácil. Um dia, já tu andavas na escola, eu convidei os teus padrinhos a virem passar uns dias a Torna-O-Rego e eles disseram logo que não. E o Serafim descaiu-se: ”Já lá fui duas vezes e chegou”! Eu não disse mais nada e tu também não

vais abrir a boca, ouviste?

- Por que é que ela fez aquilo?

- Só ela é que sabe explicar...

Na lavandaria do hospital trabalhava uma senhora muito encorpada e muito simpática que me chamava parente. Parece que era minha prima em quarto grau, ou coisa parecida, mas eu nunca fui muito bom a desvendar árvores genealógicas.

Foi essa parente cujo nome já esqueci que telefonou para o café da aldeia para avisar que o avô ia deixar o hospital.

Minha mãe telefonou para a praça de táxis que havia à beira do hospital e pediu que trouxessem o velho para Torna-Ó-Rego.

- Até que enfim! - disse eu, deixando escapar um longo suspiro.

Até que enfim voltava o avô para a aldeia e eu ia regressar ao chuveiro de minha casa, às minhas roupas, à praia, aos meus amigos, à Flávia, a quem eu escrevera uma carta a contar os meus azares.

Mil razões tem o velho: minha casinha, meu lar, meu potinho pra mijar...

Depois de o avô ter regressado, o velho cão voltou a rondar a casa.

- Lembrei-me de ti, ouviste? - disse o avô. Quem mais se alegrou com a boa notícia foi

o agente Aníbal. Do outro lado da linha gritava:

- Vou já para aí!

- Espera até amanhã - disse minha mãe.

- Vou hoje! Vou hoje!

E veio. Apareceu pouco tempo depois, muito meigo, muito atencioso. Disse que só nessa manhã é que se tinha lembrado que eu andava há uma semana a vestir sempre a mesma roupa.

 

Começámos a ir mais vezes a Torna-O-Rego. O meu pai não dizia nada, não se queixava do preço das portagens das auto-estradas nem do motor do Renault que era um bocado sugador de água e gasolina.

E assim se estragaram as férias de um aluno médio que adora dormir até tarde, que gosta imenso de sonhar acordado e de escrever o que muito bem lhe apetece sem ter de dar satisfações a ninguém.

Depois de ter regressado do hospital, o avô fazia um grande esforço por se mostrar o mesmo de sempre. Mas não conseguia enganar ninguém, e muito menos a sua comadre Custódia, que de todas as vezes que aparecíamos em Torna-O-Rego contava em pormenor os passos do velho. Soubemos, por exemplo, que fez uma grande caminhada até ao cimo da serra, onde havia uma capelita branca, e só voltou à noite. O que lá foi fazer não o confessou a ninguém. Também soubemos que escrevera uma carta ao meu tio do Brasil, e que tinha dito que o que mais lhe custava era não poder estar mais tempo com o neto, que era parecidíssimo com ele. O neto era eu. Quando a minha mãe me contou isso, eu fiquei contente. Ser alto e ter muita barba era, segundo o velho, o que me esperava. Só era pena faltar muito tempo para que isso acontecesse.

- Aquela Custódia tem uma língua de trapo! O que ela diz não se escreve, ouviste? - dizia o avô a minha mãe.

- Ela é tão sua amiga, meu pai.

O avô fazia de conta que não ouvia. Então não era ele quem dizia que não é importante ouvir tudo, o que é preciso é saber escutar o que nos interessa?

E, de repente, quando estávamos na casa do Porto a jantar, o telefone tocou.

Disse meu pai:

- Vou lá eu, deve ser o tipo do carro. Levantou-se com muitas calmas. O carro ia ser pintado de azul à custa do subsídio de férias do agente Aníbal.

O telefone parou de tocar. Quando o meu pai pegou na metade da maçã que lhe faltava comer, o telefone voltou a atacar.

- Vou lá eu! - disse minha mãe, pulando da cadeira.

Tinha razão, era o avô que falava de Torna-Ó-Rego.

A conversa demorou pouquíssimo tempo. Devagar, muito devagarinho, dona Sibilina veio até junto de nós e, antes de se sentar, anunciou com um fiozinho de voz:

- A Custódia morreu.

Depois dessas palavras, tivemos de sobremesa lágrimas, soluços, silêncio e mais lágrimas.

- São coisas que acontecem, são coisas que acontecem...   -   fartava-se   meu   pai   de   repetir, atabalhoadamente. Depois esgueirou-se para o serviço. Minha mãe foi atacada por uma dor de cabeça, deitou-se na cama e fui eu que lhe levei ao quarto um copo de água com o Aspegic muito bem mexido.

- A Custódia era uma boa mulher. Ficou viúva muito cedo e sem filhos. Depois, casou-se pela segunda vez com o Avelino, que sabia tocar concertina; era negociante de milho e era muito gordo. O casamento durou meia dúzia de anos, ou nem isso, porque o Avelino morreu de repente com um ataque cardíaco. Foi a meio da missa do domingo que isso aconteceu. O padre Agostinho estava a pregar e de repente o Avelino caiu para o lado. Morreu como um passarinho.

- Depois ela casou-se outra vez? - perguntei eu, entusiasmado com a história.

- Não sejas parvo!

- Mas podia acontecer...

- Cala-te!

Tendo em conta as dores de cabeça de minha mãe, calei-me.

As histórias que os velhos contam, às vezes, têm piada. Se eu, mais tarde, resolver fazer uma telenovela, acho que já tenho uma bela poupança de casos que posso relatar. Acho que seria interessantíssima esta cena da Custódia a gritar no meio da igreja apinhada de gente em total silêncio:

”Meu gordinho, minha bola de berlim, porque é que caíste neste chão tão frio? Adeus, Avelininho... adeus, segundo amor da minha vida!”

E foi então que minha mãe perguntou, farta de saber que não havia resposta para uma questão aparentemente tão simples:

- E agora quem é que vai tratar do meu pai?

Meu pai ficou com a colher da sopa no ar e eu pus-me a olhar para as flores azuis do prato. Depois, lembrei-me das violetas que havia num canto do quintal do avô. Eram as suas flores preferidas porque, explicava ele, sem eu entender muito bem o que é que ele queria dizer com aquilo, ”as violetas avisam os homens que estamos aqui de passagem, mas isso não impede que cheiremos bem enquanto por cá caminharmos”.

Um dia, escrevi textualmente este pensamento num teste de português. Pelo esforço despendido, recebi de presente oito pontinhos de interrogação. Auto-confortei-me: não é toda a gente que se pode dar ao luxo de ter um avô que mora em Torna-Ó-Rego e diz coisas tão filosóficas. A stôra não pertencia, com toda a certeza, ao grupo minoritário dos que têm um avô parecido com o meu.

 

Depois da morte da Custódia, minha mãe não se cansava de insistir:

- Quem é que vai tratar do meu pai?

O agente Aníbal calava-se e eu não tinha nada que responder porque ainda sou menor, e isto de ser menor, às vezes, também dá jeito.

Qualquer moeda tem sempre duas faces, dizia o velho Henrique.

Um dia, os meus padrinhos vieram jantar a nossa casa arroz de cabidela, prato que eles e meu pai adoravam. Não sei onde estava a graça daquele arroz tão escuro, tão molhado, tão apimentado, feito quinzenalmente por minha mãe.

Como a moeda tem sempre duas faces, dona Sibilina e seu filho nunca participavam no festim. Ela contentava-se apenas com um prato de sopa e eu regalava-me com um bife, batatas fritas e um ovo estrelado.

Nessa noite, ficou traçado o caminho que meu avô teria de ser obrigado a seguir. A enfermeira Paula é que foi a autora da ideia e de todos os argumentos. Assim:

Ponto número um: o velho não podia estar a viver numa terra praticamente deserta e sem família nem conhecidos de sua confiança que ali estivessem por perto. Quem é que lhe ia lavar a roupa, limpar a casa, ver se ele se alimentava? Ninguém.

Ponto número dois: decididamente, ele seria um homem bastante infeliz se o obrigassem a vir para junto de nós porque a casa não tinha espaço suficiente para quatro pessoas, porque só havia dois quartos. E ele não podia sair para a rua porque corria o risco de ser atropelado, roubado e até perder-se.

Ponto número três: tendo em conta o que atrás foi referido, a única alternativa era pôr o meu avô a morar num lar de idosos.

- Não, não! Num lar, não... - disse minha mãe.

E a enfermeira Paula, muito serena:

- Então, se não for para um lar, onde é que o vais meter? Qual é a outra solução?

- Perto de Torna-Ó-Rego há um lar - informou o agente Aníbal. - É um edifício novo, bastante grande, nunca repararam? Tem muitas árvores à volta... Aquilo deve ser bom.

- Tu ias para lá? - desafiou minha mãe.

- Se não for nesse, há-de ser noutro, se eu chegar a ter idade para lá entrar... Quem é que tem tempo para tratar dos velhotes?

- Ele é meu pai... Eu podia tratar dele.

- Nem sempre estás em casa...

Minha mãe trabalha há muitos anos no hospital de Santo António, nas limpezas. Quando eu era mais no vinho, ia com ela e acabava sempre na cozinha a beber, por uma caneca de folha, café com leite e a comer torradinhas barradas com muita manteiga dadas pela velha e pequenina irmã Maria, que era lá cozinheira. Depois, eu cresci, a irmã Maria reformou-se e nunca mais soube nada dela.

- Quanto custará a estadia numa coisa daquelas? - perguntou o ourives Serafim depois de ter bebido o segundo copinho de bagaço natural, que era o nome que meu pai dava à aguardente que arranjava em Torna;-Ó-Rego e depois armazenava dentro dum pipinho de carvalho com cinco litros de capacidade.

- Amanhã já te digo - informou a enfermeira Paula.

- Eu não sei se o meu pai vai aceitar!

- Que remédio,   Sibilina,   que remédio! insistiu a minha madrinha.

- Não sei... Eu tenho de falar com ele... E ainda não tenlho coragem.

- Não há outra solução, Sibilina!

Depois de os meus padrinhos terem entrado no elevador, eu disse em voz alta:

- Meu filho, leva esta manta embora porque vais precisar dela mais tarde.

- Que é que estás para aí a dizer? - perguntou meu pai, aibespinhado.

E eu repeti:

- Meu filho, leva esta manta embora porque vais precisar dela mais tarde.

- Que é que te deu?

- Não deu nada. É o final de uma história que o avô me contou.

- Lá vens tu com as histórias do teu avô.

De súbito, minha mãe gritou com uma voz estridente, que quase me ia furando os tímpanos:

- Cala-te, Tião, cala-te!

- Mas eu disse alguma asneira? Nesta casa já não se pode falar de histórias antigas?!...

- Estás proibido de falar nessa manta, ouviste? Não quero que voltes a falar nisso. Não sejas insolente! Respeita-me!

- Por causa da porcaria de uma manta põe-se aí aos gritos...

- Tu bem sabes que não é de uma manta qualquer que estás para aí a falar...

- Meta-se no quarto - ordenou o agente Aníbal.

Lavei os dentes e meti-me na cama, meio arrependido com o que tinha dito. É claro que a dona Sibilina e seu adorado marido sabiam muitíssimo bem a história onde entrava uma simples manta.

 

O avô vestia simplesmente ceroulas azuis e uma camisola interior, amarela, com mangas compridas. Calçava umas botas velhas, levava o chapéu preto na cabeça, abraçava um imenso ramo de violetas e subia muito devagarinho por uma encosta que parecia nunca mais ter fim.

”Despache-se meu pai, que eu tenho de ir para o meu trabalho”, dizia minha mãe, empurrando-o com uma agressividade que me irritou.

”Mãe, deixe o velho em paz!”

”Já perdemos muito tempo!”

Sem se dar conta que as violetas iam caindo, agora uma, depois outra, sobre as pedras do caminho, o avô parou por uns breves instantes e disse:

”Olha, Tião, as violetas avisam os homens que estamos aqui de passagem, mas isso não impede que cheiremos bem enquanto por cá caminharmos”. O frio aumentava proporcionalmente às passadas dadas em frente.

Minha mãe, cada vez mais impaciente: ”Despache-se;   por que   é   que   se   demora tanto?”

De repente, milhares de morcegos começaram a voar por cima da cabeça do avô.

”Mãe, vamos voltar para trás.”

”Não pode ser, Tião. Não ouviste o que disse a tua madrinha?”

”Mãe, não é importante ouvir tudo, o que é preciso é saber escutar o que nos interessa”.

”Sei muito bem o que estou a fazer.”

Quando o velho já não tinha uma única violeta, apareceu à nossa frente um sítio estranho, povoado por esqueletos que saíam dos milhares de cavernas que por ali havia espalhadas e que se moviam com uma lentidão impressionante, trazendo sobre os ossos mantas negras, castanhas, cinzentas, algumas já esburacadas.

”Sente-se!”, ordenou minha mãe.

Meu avô sentou-se sobre um penedo que tinha a forma de uma poltrona.

”Tem aqui a sua manta, meu pai.” A tremer, enregelado, o velho olhou para a manta, depois levantou a cabeça devagarinho e acabou por fixar o olhar naquela quantidade impressionante de esqueletos ambulantes.

”Leva a manta embora, ouviste?”

”Não! O pai precisa dela. Já sabe que nunca mais volta para Torna-O-Rego. É aqui que vai morrer.”

”Eu sei, eu sei...”

”Então fique com a manta... Olhe que é uma manta nova.”

”Eu sei, eu sei...”

”Tião, põe o saco com os figos à beira do teu avô.”

”Porque é que trouxe figos? Então não sabe que o avô não come figos por causa da dentadura?...”

”Cala-te, Tião, cala-te!”

Rapariga... ”Diga, meu pai!”

”Leva a manta embora. Um dia, também hás-de ser velha e precisar dela.”

O avô levantou-se e começou a caminhar vagarosamente em direcção aos esqueletos ambulantes. E eu vi que, depois de cada passada dada com enorme dificuldade, o cabelo desprendia-se, caía sobre os ombros e depois voava.

Então eu comecei a gritar, angustiado: ”Avô, não se vá embora, não se vá embora.” Mas ele não me ouvia e continuava a caminhada.

”Avô! Avô!”

Acordei com todo o corpo coberto de suor e uma sede intensa.

Acendi a luz do candeeiro, saltei da cama e corri para a cozinha, à procura de água.

Quando lá cheguei, vi a minha mãe sentada numa cadeira, com os cotovelos apoiados na mesa.

Disse-me que não tinha sono.

Bebi dois copos de água e voltei para a cama. Não me pareceu ter interesse relatar-lhe que eu, ela, o avô e a história que ele me contara se tinham fundido num pesadelo que terminara instantes antes.

 

Depois de minha mãe ter telefonado para o lar de idosos que havia perto de Torna-Ó-Rego, ficámos a saber que meu avô podia lá entrar, sim senhor, mas teria de esperar por vaga e a lista era longa.

- Eu hei-de saber quem manda naquilo disse meu pai.

E soube.

E como quem tem amigos não morre na cadeia, o agente Aníbal, fazendo valer o seu prestígio, conhecimentos e amizades - foi exactamente assim que ele falou -, conseguiu que o nome do meu avô constasse à cabeça da lista dos pretendentes. Logo que vagasse uma cama, meu avô entrava. Agora era preciso aguardar pacientemente que houvesse um morto do sexo masculino.

Quando meu avô soube, pela voz de minha mãe, que o esperava um autêntico palácio, muito limpo, muito arranjado, com comida a horas, ficou calado a tarde inteira.

- Não diz nada, meu pai?

Ele fazia de conta que não ouvia...

- Não diz nada, meu pai? Depois resignou-se:

- O que queres que eu diga? Acho muito bem. Oxalá que o desgraçado que eu Vou substituir não se vá embora tão cedo...

Desta vez o avô enganou-se.

Duas semanas depois de ter havido esta conversa, meu pai apareceu em casa, espavorido. Tinham-lhe telefonado a avisar que a cama do lar já estava vaga. Que se despachasse.

Minha mãe começou a chorar baixinho. O caminho para Torna-Ó-Rego foi feito em total silêncio.

- Não morreu ninguém! - disse meu pai, incomodado com os barulhos do carro.

- Ele é meu pai - respondeu dona Sibilina. Encontrámos o avô no quintal, mal vestido, com a barba por fazer.

- Estou à vossa espera há muito tempo! Já sei que tenho no palácio um lugarzinho à minha espera desde ontem. Rei morto, rei posto! E siga a rusga!

- O senhor vai para lá de sua livre vontade, não é verdade? - disse meu pai.

- Claro que Vou. É melhor assim.

Depois suspirou fundo e disse muito baixinho:

- A Laurinda faz-me muita falta!

Tirou o lenço do bolso e começou a assoar-se.

Emocionei-me.

 

E agora ali estávamos a tratar da ida do avô para o lar. Meu pai, após o almoço de batatas cozidas e atum de conserva, disse que não estava ali a fazer nada e foi-se embora.

Como não havia tábua de engomar, dona Sibilina estendeu um cobertor sobre a mesa, por cima deste uma toalha de linho branco, que tirou de uma das gavetas da cómoda e que cheirava a naftalina, e depois passou a ferro o fato preto do avô, uma gravata também preta, um lenço e uma camisa branca.

Por baixo da cama havia uma caixa de cartão com um par de sapatos pretos, número 43, por estrear. Minha mãe retirou-os da caixa e meteu-os, juntamente com um par de meias também nunca usadas, dentro de uma saca de plástico que tinha estampado o nome do hipermercado onde a mãe da Flávia trabalhava, e pô-la em cima da mesa. Depois, tirou um cabide de madeira do guarda-fatos e pendurou lá as calças, depois a camisa, a gravata e o casaco, que continuava a cheirar a naftalina.

- Está bem, Tião?

- O quê?

- Esta roupa!

- E para que é preciso tanto trabalho se ele não vai vestir isso?

- Ó meu filho, vê se compreendes, esta é a roupa que o teu avô há-de levar vestida quando fechar os olhos para sempre.

- E é preciso estar a pensar já nisso. Que falta de gosto...

- É uma das regras do lar. Quem para lá vai viver leva a roupa da sua mortalha.

- Isso parece um filme de terror. Também se leva o caixão?

- Tião, meu filho, uma coisa são os sentimentos, outra, bem diferente, é a realidade. Pensa bem: se de repente morre um velho, enterra-se nu? Claro que não, é preciso vesti-lo. Acho muito bem que as pessoas a partir de certa idade escolham as roupas que querem levar para debaixo da terra. Não é por acaso que o teu avô comprou estes sapatos que nunca usou.

Engoli em seco. Nunca tinha pensado nisso.

- Está tudo arranjado? - perguntou meu pai, entrando na sala a feder a bagaço natural.

-Já vamos, já vamos!

Às quatro horas e trinta e dois minutos, começou a mudança. A primeira coisa que saiu de casa do avô Henrique foi o fato, a camisa e a gravata, protegidos por um grande plástico transparente que tinha pertencido à Lavandaria Branca de Neve limpeza a seco em 24 horas, pontualidade, honestidade, tradição de bem servir, que meu pai levou para o carro com muito cuidado e mil recomendações de minha mãe para que não o amarrotasse.

Eu carreguei uma mala que tinha lá dentro a roupa do avô - aquilo pesava que se fartava, mas eu fiz de conta que não - e a porcaria do saco de plástico onde estavam os sapatos e as meias.

Minha mãe levou o roupão e outro saco de plástico atestado de roupa.

Quando voltámos à sala, vimos que o avô retirava da parede os calendários e amontoava-os em cima da mesa.

- Que é que está a fazer? - perguntou minha mãe, admirada.

- Vou levar o tempo comigo.

- Oh, meu pai... isso não presta para nada!

- Cada maluco tem a sua mania! Eu quero levar o tempo comigo.

- Quem não o conhecer até pensa que perdeu o juizinho... Então vai levar essa porcaria para o lar?

- Vou. E na minha casa mando eu, ouviste? O tempo é meu, por isso posso levá-lo para onde muito bem quiser!

- Tem muita razão, senhor Henrique. Leve a papelada toda - disse meu pai.

- Eu ajudo, avô!

Os calendários foram metidos em três sacas plásticas e as paredes, assim despidas, de repente deixaram de ser as paredes da casa do meu avô de Torna-O-Rego.

- Vamos - disse minha mãe.

- Vamos, mas sou eu que fecho as portas. Vão andando, vão andando... Só demoro um bocadinho.

Vi o avô Henrique fechar a porta da sala e a da cozinha com muito cuidado, depois andou meia dúzia de passos, parou e pôs-se a olhar para a casa.

Quando virou costas, caminhou como se nada estivesse a acontecer. Vindo não sei donde, apareceu o cão preto.

O bicho lambeu as mãos do avô.

- Ó amigo, já sabes que também estás velho? E assim a vida, não há nada a fazer...

Só quando chegámos à beira do carro é que eu reparei que ele trazia na mão a velha moldura com o retrato de minha avó.

- Vamos embora, mas meta travões, ouviu? Temos muito tempo... Temos muito tempo...

O cão ficou a abanar o rabo, e eu não me lembro de ver o meu pai a conduzir o carro tão devagarinho.

 

Antes de chegarmos ao lar de idosos perto de Torna-Ó-Rego, as chapas do carro foram violentamente fustigadas por uma enorme quantidade de grosso e basto granizo que, assim de repente, começou a desabar sobre o carro, de vez em quando iluminado por raios e trovões.

- Isto não estava previsto no boletim meteorológico - disse meu pai, aflito com as escovas que limpavam deficientemente o vidro do carro, reduzindo-lhe a visibilidade.

- Se alguém mandasse no tempo, o mundo andava sempre em guerra - disse o avô.

- Essa é muito acertada - concordou meu pai. Dona   Sibilina   não   entrou   na   conversa.

Emudecera desde que entrara no carro. E eu bem via que ela fazia um grande esforço para suspirar o menos possível.

O sol voltara tão de repente como tinha desaparecido quando o carro parou em frente da imensa porta escancarada do lar, a toda a volta cercado por um sólido muro de betão.

Devagarinho, passámos por um breve caminho empedrado e estacionámos em frente duma porta de alumínio, toda envidraçada, que tinha uma placa a avisar que era ali que funcionava a secretaria.

Minha mãe foi a única que saiu do carro. Disse que ia falar com a directora, que não demorava.

Enquanto esperávamos, vi sete velhos derreados a apanhar as castanhas que caíam de um enorme castanheiro. Uma velha veio espreitar o nosso carro. Quando viu o meu avô, escancarou a boca num sorriso desdentado, e depois perguntou:

- O senhor também vem para aqui, para a Casa das Bengalas?

O avô fez de conta que não era nada com ele. E segredou:

- Esta deve ter um parafuso mal atarraxado! Não se liga, não se liga.

A velhota, baixota, desdentada, vestida de negro, não saiu dali:

- Eu conheço-o, mas já não sei o seu nome. Olhe que o senhor já uma vez andou a dançar comigo, mas isso já lá vai há tanto tempo. Vem para cá?

O avô exasperou-se:

- Ó senhora, vá à sua vidinha, vá!

- A minha vida agora é aqui. Já cá estou há seis anos! Eu sou a Carminha, viúva do Rodrigo dos Casais.

A directora do lar apareceu com minha mãe a seu lado. E eu fiquei surpreendido: sempre tinha imaginado tratar-se de uma velhota com óculos redondinhos na ponta do nariz e saiu na rifa uma senhora muito nova, muito elegante, com uma capa preta sobre as costas.

- Boa tarde - disse ela. E eu reparei que tinha os lábios discretamente pintados e uns belíssimos olhos castanhos.

- Como está, senhora doutora? - respondeu meu pai.

Meu avô levou a mão ao chapéu e não abriu a boca.

- Vamos entrar, senhor Henrique?

Saí e fui abrir a porta do lado do avô. Sem grandes pressas, o avô saiu do carro, rejeitou a ajuda do meu pai e caminhou sozinho, em direcção à porta envidraçada.

Eu com a mala e meus pais com as sacas seguimos a senhora doutora, que cheirava a um perfume que eu não conhecia, e os passos vagarosos de meu avô, com os olhos postos no chão de cortiça envernizada, o chapéu numa mão, a moldura na outra. Depois de termos atravessado um longo corredor, e visto uma grande sala com muitos velhos a dormir à volta de uma televisão com o som ligado no máximo, alguns de boca aberta, outros metidos em cadeiras de rodas, quatro a jogar cartas, a senhora doutora abriu uma porta cinzenta, onde estava escrito 32:

- Fica aqui!

O quarto era razoavelmente espaçoso, tinha duas camas, duas mesinhas-de-cabeceira, dois armários, duas cadeiras, duas pequenas mesas, uma janela por onde se viam muitas árvores com as folhas a cair e uma porta que dava para uma minúscula casa de banho.

- A sua cama é esta, do lado direito. O seu companheiro é o senhor Ildefonso. Tenho a certeza de que se vão dar bem.

O avô tinha-se encostado à parede branca do quarto e não tirava o olhar da janela. Meu pai parecia uma estátua.

- Quer   fazer   alguma   pergunta,   senhor Henrique?

E o avô:

- As andorinhas já se foram embora, só agora é que estou a reparar. O tempo passa depressa.

A senhora doutora sorriu e, antes de se ir embora, para que ficássemos ali um bocadinho só nós quatro, avisou:

- Quando tiver de fazer algum reparo é a mim que se deve dirigir. Peça para falar com a doutora Cristina Machado. Tem aí uma campainha que pode usar sempre que for necessário.

No quarto ficou um cheiro brevíssimo do perfume da directora e minha mãe arrumou cuidadosamente as roupas do avô no armário. Depois, abriu a cama para ver se os lençóis estavam lavados, cheirou-os e ficou contente.

O quarto 32 tinha um cheiro esquisito a desinfectante e o avô, indiferente às recomendações de dona Sibilina, que lhe ia dizendo onde devia pôr meias, ceroulas, camisas, lenços, camisolas, roupão, calças e casacos, continuava a olhar para as árvores com o retrato da minha avó colado ora na mão direita, ora na mão esquerda. De repente perguntou:

- O meu fato?

O avô tinha razão, o fato ainda estava no carro.

- Vai lá buscá-lo, Tião! - disse meu pai. Senti   que   alguma   coisa   não   estava   bem naquela história toda. O velho, encostado à parede, com os olhos postos nas árvores, sem abrir a boca, com o retrato da sua Laurinda na mão, obrigou-me a dizer:

- Não Vou!

- Quê?

- Não   Vou!... Tenho medo de amarrotar aquelas coisas ttodas... o pai é mais alto...

A porta abriu-se devagarinho e um velho, com um gorro na cabeça, fincado numa bengala, arrastou os pés para dentro do quarto.

- Boa tarde, meus senhores - disse, educadamente. Aproximou-se do meu avô e perguntou-lhe:

- Então agora calhou ao senhor? Como é que se chama?

- Henrique.

- Os meus pais baptizaram-me com o nome de Ildefonso. O senhor é o quinto!

- Não percebo...

- Eu estou a dizer que o senhor é o meu quinto companheiro de quarto. Pois é. Desde que cá estou, já .se deitaram quatro nessa cama. Mas todos eles já se foram embora, agora a terra está a comê-los.

- O que a terra dá a terra come - disse o avô.

- A minha cama fica do lado direito. Não a cedo a ninguém. Sabe, já estou habituado.

Meu pai apareceu com o plástico da Lavandaria Branca de Neve e minha mãe colocou-o, delicadamente, dentro do armário.

- Que horas são? - perguntou o morador do quarto 32, cama direita.

- Faltam quinze minutos para serem sete horas - disse eu.

- Obrigado. Então eu Vou andando para o refeitório. O jantarinho é servido às sete em ponto. Breve a campainha toca. A campainha toca sempre três vezes, que é por causa dos moucos e dos atrasados. Por causa deles, o pessoal às vezes só começa a jantar às sete e cinco ou até mais tarde. com licença, com licença...

Arrastando os pés metidos numas pantufas gastas, lá se foi o velho Ildefonso, tão preocupado com a hora do jantar.

Pouco depois, a campainha começou a retinir.

- Temos de ir - disse meu pai.

- Pois temos - concordou dona Sibilina. - O

pai alimente-se bem. Depois eu telefono, está bem? Não fica abandonado, ouviu?

- Ide com Deus!... Ide com Deus...

Apareceu uma funcionária metida numa bata azul a chamar o avô para o jantar.

O agente Aníbal despediu-se num instantinho e virou costas, eu beijei-lhe as faces com muita ternura e de repente senti um frio imenso, minha mãe entrou no carro minutos depois, com os olhos muito vermelhos. Disse que estava com uma tremenda dor de cabeça.

 

Quinze dias depois, fomos encontrar o inquilino do quarto 32, cama esquerda, a dormiscar em frente da televisão que havia na grande sala que também servia de refeitório. Uma dúzia de velhos fazia-lhe companhia na sonolência. Apesar de ser domingo, as visitas eram muito poucas.

- Então, avô? - disse eu, beijando-lhe o rosto escanhoado.

- Cá estamos.

- Que bela vida... - riu-se o agente Aníbal.

- Está a dar-se bem aqui, meu pai?

- Isto é melhor do que eu pensava. Come-se bem e há muito sossego. Trouxeste-me as calças com botões?

- Trouxe, pois!

- O colega do meu quarto não é flor que se cheire. Tem na ideia que Vou roubar o que é dele. Eu já lhe disse: ó amigo, você não é mais honrado que eu, ouviu? Tenho muita roupa, não preciso da sua. É que ele embirrou que eu andava com umas meias dele, e eu não gostei daquela conversa. Agora mal falo com ele... E ele tem mau dormir, tosse, ressona, atira-se da cama abaixo, toca a campainha, só quer tomar pastilhas, pastilhas... muito gosta de pastilhas! Tem um rádio e liga-o logo de madrugada. Depois aquela empregada mais fininha é de uma raça... manda-nos tomar banho, diz que é obrigatório! E eu digo-lhe: como é que eu sou obrigado a tomar banho se não me sujei? Não andei a fazer nenhuma lavoira, não andei a mexer em nada.

Isto aqui leva-se uma vida regalada, dormir e comer, comer e dormir, dormir e comer, comer e dormir, como é que a gente se suja? Mas não, temos de ir para dentro da banheira. Isso é que não está certo, fazer da gente crianças...

Está cá uma rapariga, a Madalena, que já não via há muitos anos. Ainda namorisquei com ela, mas ao tempo que isso vai. Agora anda para aí com uma fralda, até mete pena... Eu gostava de estar em minha casa, mas agora já não pode ser porque o ninho já está desfeito, pois é?

- O meu pai tem de se distrair, não pode passar a vida assim, sem fazer nada.

- As minhas sementeiras já estão todas feitas. Que é que eu hei-de fazer? Há aí parceiros que passam o dia a jogar cartas, mas eu nunca gostei de jogatinas. Eu gostava de estar em minha casa, mas agora já não pode ser... E os estudos do Tião, vão bem? Quando tu tirares um cursinho, conta com uma prenda valente, ouviste? Isto não é nenhuma prisão, podemos sair daqui durante o dia, voltamos antes da hora da comida, depois voltar a sair... Mas que é que a gente vai fazer lá fora? Noutro dia, o Nunes foi atropelado por uma motorizada e teve sorte, só uns arranhões na cara. Ele gosta de beber, é por isso que ele sai, e depois nós é que o aturamos... Agora está de castigo. Oito dias no quarto, para ver se ele ganha juízo. Pois. A senhora directora podia ser nossa neta, mas ela é que manda nisto tudo. Eu nunca lhe faltei ao respeito. E nunca gostei de andar a falar de ninguém... Mas esse tal Ildefonso bem precisava que eu o acusasse. Mas se ele fica de castigo no quarto, para mim ainda é pior...

De velho se torna a menino, eu que o diga, que já aqui vi muita coisa, muita coisa...

O avô continuou o longo monólogo, repetindo até à exaustão as mesmas queixas, as mesmas frases.

Meu pai, atento ao relógio que havia na parede da sala, lembrou-nos que o regulamento do lar dizia que as visitas terminavam às dezoito horas.

- Então até um dia destes - disse o agente Aníbal, muito videirinho. E eu:

- Onde pôs os calendários, avô?

- Estão dentro da mala. Eu precisava de pregos para os pendurar nas paredes,   mas   o   outro...   o Ildefonso disse que eu ia estragar uma casa que não era minha, que depois de mim outros para lá viriam e que isto e mais aquilo, e eu mandei-o àquela parte que a gente sabe e não diz para ser bem educado, e meti o tempo na mala. Ao menos a mala é minha. Nela não põe ele as mãos! É melhor estar sozinho que mal acompanhado, é um ditado bem certeiro.

- Temos de ir - disse minha mãe.

- Os visitantes desta casa têm sempre muita pressa... Ide à vossa vida que está a fazer-se tarde.

- O pai precisa de alguma coisa?

- Não, tenho aqui tudo! Quer dizer... eu gostava que o meu neto me fizesse um grande favor. Mas não é coisa urgente.

- O que é, avô?

- Quando viesses cá, passavas pelo meu quintal e... arrancavas uns pezinhos de violetas, tu sabes onde é que elas estão?

-Sei.

- Então passas por lá e arrancas as violetas. É que há aí fora um jardim e as violetas ficavam lá bem. Fazes-me esse favor, Tião?

- Não me custa nada, avô! Minha mãe sorriu.

Na próxima visita ao lar, hei-de levar-lhe todas as violetas do quintal. E quando estiver a arrancá-las certamente recordarei mais uma vez aquela frase bonita que o velho um dia me ensinou:

 

”As violetas avisam os homens que estamos aqui de passagem, mas isso não impede que cheiremos bem enquanto por cá caminharmos”.

 

                                                                                António Mota 

 

                      

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