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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DAS BRUXAS / H. P. Lovecraft
A CASA DAS BRUXAS / H. P. Lovecraft

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Sou forçado a falar, uma vez que homens de ciência recusaram-se a seguir meu conselho, sem saberem por quê. É muito a contragosto que descrevo as razões pelas quais me oponho a essa pretendida invasão da Antártica — que há de ser acompanhada de generalizada caça a fósseis e indiscriminada perfuração e descongelamento das antigas calotas glaciais. E reluto tanto mais quanto talvez minha advertência caia em ouvidos moucos.
É inevitável que se ponham em dúvida os fatos reais, tal como devo revelá-los. No entanto, se eu calasse o que pode parecer bizarro e inacreditável, nada restaria. As fotografias até aqui escamoteadas, tanto ordinárias quanto aéreas, contarão em meu favor, porquanto são funestamente vívidas e convincentes. Ainda assim, serão postas em dúvida devido ao elevado grau a que se pode levar uma hábil contrafação.
Os desenhos a tinta serão, naturalmente, objeto de zombaria, serão tachados de embustes grosseiros, não obstante uma singularidade de técnica que deveria causar perplexidade aos conhecedores de arte.
Ao cabo, terei de confiar na judiciosidade e na reputação dos poucos próceres científicos que têm, por um lado, suficiente independência intelectual para avaliar minhas informações com base em seus próprios méritos, medonhamente concludentes, ou à luz de certos ciclos míticos primevos e extremamente enigmáticos; e, por outro lado, influência bastante para impedir que os meios científicos em geral se aventurem a qualquer programa temerário ou exageradamente ambicioso na região daquelas montanhas de loucura. É lamentável que homens relativamente obscuros, como eu e meus colegas, ligados apenas a uma pequena universidade, tenhamos poucas possibilidade de causar impressão duradoura no que tange a assuntos de natureza extravagantemente demente ou em alto grau polêmica.

 

 


 

 


Labora ademais contra nós o fato de não sermos, em sentido rigoroso, especialistas nos campos em que se situam basicamente as revelações que farei. Na qualidade de geólogo, meu intuito ao dirigir a Expedição da Universidade Miskatonic consistia inteiramente em coletar amostras de rochas e de solo, a grande profundidade, em várias partes do continente antártico, auxiliado pela extraordinária perfuratriz projetada pelo professor Frank H. Pabodie, de nosso departamento de engenharia. Eu não nutria nenhum desejo de ser pioneiro em qualquer campo senão esse, mas alimentava a esperança de que o emprego desse novo dispositivo
mecânico em pontos diversos de caminhos previamente explorados trouxesse a luz materiais de um tipo até então inalcançáveis pelos métodos convencionais de coleta.
O equipamento de perfuração de Pabodie, como o público já teve ocasião de tomar conhecimento por nossos relatórios, representou um avanço sui-generis e radical, por sua leveza, facilidade de transporte
e capacidade de combinar o princípio da broca artesiana comum com o princípio da pequena broca circular para rochas, de maneira a furar rapidamente camadas de dureza variável. Cabeçote de aço, hastes articuladas,
motor a gasolina, torre retrátil de madeira, instrumental para dinamitação, fiação, trado para remoção de detritos e tubulação em seções para brocas de 12,5 centímetros de diâmetro, que chegavam a trabalhar
a 300 metros de profundidade — tudo isso, mais os acessórios indispensáveis, não representava peso proibitivo para ser puxado por três trenós de sete cães. Isso era possibilitado pela notável liga de alumínio
de que eram feitas, na maioria, as partes metálicas. Quatro grandes aeroplanos Dornier, projetados especialmente para operar nas tremendas altitudes a que seria necessário voar sobre o planalto antártico
e equipados com dispositivos adicionais para aquecimento de combustível e ignição rápida de motores, também projetados por Pabodie, podiam transportar toda a nossa expedição, de uma base na orla da grande
barreira de gelo a vários pontos no interior; a partir de tais pontos, um número suficiente de cães atenderia às nossas necessidades.
Tencionávamos explorar uma área tão grande quanto fosse possível em uma única estação antártica — ou mais longamente, se absolutamente necessário — operando sobretudo nas cordilheiras e no planalto ao
sul do mar de Ross; eram regiões já exploradas, em graus vários, por Shackleton, Amundsen, Scott e Byrd. Com frequentes mudanças de acampamentos, feitos por aeroplano e que envolviam distâncias suficientemente
grandes para terem significado geológico, esperávamos desenterrar um volume de material sem precedentes — principalmente nas camadas Pré-Cambrianas, das quais uma gama tão reduzida de espécimes antárticos
haviam sido anteriormente coletados. Desejávamos ainda obter a maior variedade possível de rochas fossilíferas superiores, uma vez que a história biológica antiga daquele reino inóspito de gelo e de morte
tem importância máxima para o conhecimento do passado da Terra. É notório que o continente antártico foi outrora temperado e mesmo tropical, com flora e fauna exuberantes, de que sobrevivem apenas os liquens,
a fauna marinha, aracnídeos e pinguins, no limite setentrional. E contávamos ainda expandir esses dados, tanto em variedade quanto em precisão e pormenores. Quando um simples furo revelasse indícios fossilíferos,
ampliaríamos a abertura mediante o uso de explosivos, a fim de obtermos amostras de dimensões e condição adequadas.
Nossos furos, de profundidades variadas, segundo o que prometiam o solo ou as rochas superiores, restringir-se-iam a superfícies terrestres expostas ou quase expostas — sendo que tais superfícies seriam
inevitavelmente encostas ou cristas, uma vez que aos níveis mais baixos superpunham-se camadas de gelo compacto com dois ou três quilômetros de espessura. Não podíamos perder tempo perfurando qualquer
volume considerável de mera glaciação, muito embora Pabodie houvesse imaginado um plano para enterrar eletrodos de cobre em feixes densos de perfurações e degelar áreas limitadas de gelo com a corrente
de um dínamo a gasolina. É esse o plano (que não podíamos pôr em prática numa expedição como a nossa, salvo a título de experiência) que a iminente Expedição Starkweather-Moore propõe-se a seguir, a despeito
das advertências que tenho feito desde nosso regresso da Antártica.
O público tomou conhecimento da Expedição Miskatonic através de nossos frequentes informes por rádio para o Arkham Advertiser e para a Associated Press, bem como através de artigos posteriores, meus e
de Pabodie. A expedição compunha-se de quatro pessoas da Universidade: Pabodie; Lake, do departamento de biologia; Atwood, do departamento de física, e que é também meteorologista; e eu, que representava
o setor de geologia e a quem cabia a chefia nominal. Havia ainda dezesseis assistentes: sete estudantes de graduação da universidade e nove mecânicos hábeis. Desses dezesseis, doze eram pilotos aeronáuticos
habilitados; todos, com exceção de dois, eram competentes operadores de rádio. Oito deles conheciam a navegação com bússola e sextante, tal como Pabodie, Atwood e eu. Além disso, naturalmente, nossos dois
navios — ex-baleeiros de madeira, reforçados para operar nos golos e equipados com máquinas a vapor auxiliares — tinham tripulação completa.
A Fundação Nathaniel Derby Pickman, com a ajuda de algumas contribuições especiais, financiou a expedição; por conseguinte, nossos preparativos foram extremamente rigorosos, em que pese a ausência de grande
publicidade. Cães, trenós, máquinas, materiais para acampamento e partes desmontadas de nossos cinco aviões foram entregues em Boston, onde os navios foram carregados. Estávamos equipados à perfeição para
nossos objetivos específicos, e em todas as questões concernentes a suprimentos, nutrição, transporte e montagem de acampamentos tiramos proveito do exemplo magnífico de muitos predecessores recentes,
excepcionalmente brilhantes. Foi o número invulgar e a fama desses predecessores que tornaram nossa própria expedição — malgrado sua magnitude — tão pouco notada pelo mundo em geral.
Como relataram os jornais, zarpamos do porto de Boston a 2 de setembro de 1930, seguindo placidamente pela costa e atravessando o canal do Panamá. Paramos em Samoa e em Hobart, na Tasmânia, sendo que nessa
última escala embarcamos os suprimentos finais. Nenhum dos integrantes de nosso grupo já estivera anteriormente nas regiões polares, motivo pelo qual dependíamos grandemente de nossos capitães — J.B. Douglas,
que comandava o brigue Arkam e que acumulava a função de comandante do grupo marítimo, e Georg Thorfinnssen, que comandava a barca Miskatonic. Ambos tinham larga experiência na pesca da baleia em águas
antárticas.
À proporção que deixávamos para trás o mundo habitado, o sol caía cada vez mais ao norte e permanecia cada vez mais acima do horizonte a cada dia. Mais ou menos na altura dos 62° de latitude sul avistamos
os primeiros icebergs — semelhantes a mesetas e com lados verticais — e pouco antes de atingirmos o círculo austral, que cruzamos a 20 de outubro, com cerimônias apropriadamente singulares, fomos consideravelmente
molestados por campos de gelo flutuantes. A queda da temperatura me incomodava sobremaneira após nossa longa viagem através dos trópicos, mas eu tentava preparar-me para os rigores piores que viriam. Em
muitas ocasiões os curiosos efeitos atmosféricos me encantaram enormemente; havia entre eles uma miragem acentuadamente vívida — a primeira que eu via — nas quais os gelos distantes tornavam-se as muralhas
de inimagináveis castelos cósmicos.
Avançando em meio aos gelos, que felizmente não eram nem extensos nem muito espessos, voltamos a atingir águas abertas a 67° de latitude sul, 175° de longitude leste. Na manhã de 26 de outubro surgiu uma
intensa cintilação em terra, ao sul, e antes do meio-dia todos nos sentimos invadidos de emoção ao contemplar uma imensa e altaneira cordilheira, coberta de neve, que cobria toda a vista. Havíamos encontrado,
enfim, um sinal do grande continente desconhecido e seu mundo críptico de morte congelada. Aqueles picos eram, obviamente, a serra do Almirantado, descoberta por Ross, e cabia-nos agora dobrar o cabo Adare
e seguir pela costa leste da Terra de Vitória até o local onde havíamos planejado instalar nossa base, na margem do estreito McMurdo, ao pé do vulcão Erebo, na latitude 77° 9’ sul.
A última etapa da viagem foi animada e de molde a despertar a imaginação. Grandes picos ermos e misteriosos avultavam constantemente a oeste, enquanto o baixo sol do meio-dia, ao norte, ou o sol ainda
mais baixo da meia-noite, que quase tocava o horizonte, derramava seus raios avermelhados sobre a neve alva, o gelo e os cursos d’água azulados, e ainda sobre fragmentos negros de afloramentos de granito
em encostas. Os cumes desolados eram batidos por rajadas violentas e intermitentes do terrível vento antártico; suas cadências por vezes encerravam vagas sugestões de flauteados selvagens e quase conscientes,
com notas que abrangiam um vasto registro e que, por algum motivo mnemônico subconsciente, pareciam-me inquie-tantes e até mesmo obscuramente fantásticos. Alguma coisa na cena recordava-me as estranhas
e perturbadoras pinturas asiáticas de Nicholas Roerich, bem como as descrições ainda mais estranhas e mais perturbadoras do famigerado planalto de Leng, que ocorrem no horripilante Necronomicon do árabe
louco, Abdul al-Hazred. Arrependi-me, mais tarde, de ter examinado esse livro monstruoso na biblioteca da universidade.
A 7 de novembro, depois de havermos perdido temporariamente a visão da cordilheira a oeste, passamos pela ilha Franklin. E no dia seguinte divisamos os cones dos montes Erebo e do Terror, na ilha Ross,
mais adiante, antes da longa linha dos montes Parry. Estendia-se agora, em direção a leste, a linha baixa e branca da grande barreira glacial, elevando-se perpendicularmente até uma altura de 60 metros,
como os penhascos rochosos de Quebec, e assinalando o término da navegação rumo ao sul. À tarde entramos no estreito de McMurdo e nos afastamos da costa, a sotavento do fumegante monte Erebo. O pico, coberto
de escórias vulcânicas, elevava-se a pouco mais de 3.800m, silhuetado contra o céu oriental como uma gravura japonesa do sagrado Fujiyama, enquanto mais além erguia-se o vulto branco e fantasmático do
monte Terror, com 3.270m de altura, hoje um vulcão extinto.
Fumarolas irrompiam intermitentemente do Erebo, e um dos estudantes — um jovem brilhante, de nome Danforth — chamou a atenção para o que parecia ser lava na encosta nevosa, observando que aquela montanha,
descoberta em 1840, fora indubitavelmente a fonte da metáfora de Poe, quando sete anos mais tarde ele escreveu:
... as lavas que, incessantes, rolam
Em correntes sulfurosas e descem no Yaanek
Nos confins derradeiros do pólo...
Que gemem ao rolarem pelo monte Yaanek
Nos domínios do boreal pólo.
Danforth era ávido leitor de obras estranhas, e já nos havia falado largamente de Poe. Eu próprio estava interessado, por causa do cenário antártico da única história longa de Poe — aquele trabalho perturbador
e enigmático que tem o título de Arthur Gordon Pym, Na margem inóspita, bem como na altaneira barreira glacial no fundo, miríades de grotescos pinguins gritavam e batiam as nadadeiras, ao passo que na
água via-se grande número de gordas focas, nadando ou descansando sobre grandes pedaços de gelo flutuante.
Utilizando pequenos botes, efetuamos um desembarque difícil na ilha de Ross, pouco depois da meia-noite, na madrugada do dia nove, arrastando um cabo de cada navio e preparando-nos para desembarcar suprimentos,
através de um sistema de bóias deslizantes. Ao pisarmos pela primeira vez o solo antártico, nossas sensações eram pungentes e complexas, muito embora as expedições de Scott e de Shacketon já nos houvessem
precedido naquele ponto específico. Nosso acampamento na praia gelada, ao pé do vulcão, era apenas temporário, uma vez que o quartel-general continuava a bordo do Arkham. Desembarcamos toda nossa maquinaria
de perfuração, cães, trenós, barracas, víveres, tanques de gasolina, o equipamento experimental para derreter o gelo, os aparelhos fotográficos, tanto os convencionais como os aéreos, peças para os aeroplanos
e outros acessórios, inclusive três pequenos transmissores-receptores portáteis de rádio — além dos instalados nos aviões —, capazes de entrar em contato com o equipamento mais possante do Arkham de qualquer
parte da Antártica que desejássemos visitar. O rádio do navio, capaz de falar para todo o mundo, deveria transmitir informes para a poderosa estação do Arkham Advertiser, em Kingsport Head, Massachusetts.
Esperávamos poder completar nossa missão num único verão antártico; todavia, caso isso fosse de todo impossível, passaríamos o inverno no Arkham, fazendo com que a barca Miskatonic seguisse para norte,
antes que o gelo se tornasse impenetrável, para buscar suprimentos para outro verão.
Não há porque repetir aqui o que os jornais já publicaram sobre o início de nossos trabalhos: nossa escalada do monte Erebo; nossas exitosas perfurações minerais em vários pontos da ilha Ross e a notável
rapidez com que o dispositivo de Pabodie as efetuou; nossa experiência preliminar com o pequeno equipamento de degelamento; nossa perigosa ascensão pela grande barreira, com trenós e suprimentos; e a montagem
final dos cinco enormes aeroplanos no acampamento que montamos no alto da barreira. A higidez de nosso grupo terrestre — vinte homens e cinquenta e cinco cães alasqueanos de trenós — era extraordinária,
ainda que, naturalmente, até então não houvéssemos encontrado temperaturas verdadeiramente destrutivas ou tempestades. Durante a maior parte do tempo, o termômetro variava de -16°C a -6,5°C ou -4°C, e
nossa experiência com os invernos da Nova Inglaterra havia-nos habituado a rigores desse nível. O acampamento sobre a barreira era semipermanente e destinava-se a servir de depósito de gasolina, víveres,
dinamite e outros materiais.
De nossos aviões, somente quatro eram necessários para transportar o material de exploração propriamente dito; o quinto ficava, com um piloto e dois homens dos navios, no depósito, para que pudéssemos
ser resgatados no caso de todos nossos aviões de exploração se perderem. Mais tarde, quando não estivéssemos usando todos os outros aviões para o transporte de equipamento, empregaríamos um ou dois num
serviço de transporte entre esse depósito e outra base permanente no grande planalto, entre 950 e 1.120 quilômetros ao sul, além da geleira Beardmore. A despeito dos relatos quase unânimes que dão conta
de ventos aterrorizantes e de tempestades que se despenham do planalto, tomamos a decisão de dispensar as bases intermediárias, correndo riscos no interesse da economia e da provável eficiência.
Os serviços telegráficos já deram conta do vôo empolgante, sem escalas e durante quatro horas, de nosso esquadrão a 21 de novembro, sobre a grandiosa planície gelada, com vastos picos elevando-se a oeste,
e dos silêncios insondáveis que reverberavam com o ruído de nossos motores. O vento era um incômodo apenas moderado e nossos radiogoniômetros ajudaram-nos a transpor o único nevoeiro opaco com que nos
defrontamos. Quando a imensa elevação avultou à nossa frente, entre as latitudes 83° e 84°, soubemos que havíamos chegado à geleira Beardmore, o maior vale gelado do mundo e que o mar congelado estava
agora cedendo lugar a uma costa sombria e montanhosa. Por fim estávamos verdadeiramente penetrando no mundo branco do pólo, morto há eras e eras. No momento mesmo em que percebemos isso, avistamos o cume
do monte Nansen bem longe, a leste, projetando-se a sua altitude de quase 4.600m.
O estabelecimento bem-sucedido da base sul, acima da geleira na latitude 86° 7’, longitude leste 174º 23’, assim como as perfurações e as explosões, fenomenalmente rápidas e eficientes, realizadas em vários
pontos alcançados por nossas excursões em trenó e breves vôos em aeroplano, já pertencem à história; o mesmo se diga da árdua, porém triunfante, escalada do monte Nansen por Pabodie e dois dos estudantes
— Gedney e Carroll — entre 13 e l5 de dezembro. Estávamos a aproximadamente 2.600m sobre o nível do mar, e quando perfurações experimentais revelaram solo firme a apenas 3,5m sob a neve e o gelo em certos
sítios, fizemos uso considerável do pequeno dispositivo de degelamento e abrimos furos e explodimos cargas de dinamite em vários locais em que nenhum explorador antes de nós havia sequer pensado em colher
amostras minerais. Os granitos Pré-Cambrianos e os arenitos assim coletados confirmaram nossa convicção de que aquele planalto era homogêneo (a maior parte do continente ficava a oeste) mas um pouco diferente
das partes que se estendiam, em direção a leste, abaixo da América do Sul — o que julgamos então constituir um continente menor, separado do maior por uma junção congelada dos mares de Ross e Weddell,
ainda que posteriormente Byrd tenha mostrado ser essa hipótese falsa.
Em alguns arenitos, dinamitados e cinzelados depois que perfurações lhes revelaram a natureza, encontramos marcas e fragmentos fósseis interessantíssimos. Eram principalmente fetos, algas marinhas, trilobitas,
crinóides e moluscos como lingulas e gastrópodes — todos os quais pareciam ter importância crítica para a história antiga da região. Havia ainda uma estranha marca estriada, triangular, com mais ou menos
um palmo e meio na largura maior, que Lake montou a partir de três fragmentos de ardósia trazidos de um furo de grande profundidade, aberto a dinamite. Tais fragmentos provinham de um ponto a oeste, perto
da cordilheira da Rainha Alexandra; e Lake, biólogo que era, deu mostras de achar as curiosas marcas invulgarmente singulares e intrigantes, ainda que, para meus olhos de geólogo, não parecessem diferentes
de alguns efeitos de encrespação que são relativamente comuns em rochas sedimentares. Como a ardósia não é mais que uma formação metamórfica na qual é comprimida um estrato sedimentar, e como a própria
pressão produz estranhos efeitos de distorção em quaisquer marcas que já existam, não vi motivo para admirar tanto a depressão estriada.
A 6 de janeiro de 1931, Lake, Pabodie, Daniels, todos os seis estudantes, quatro mecânicos e eu sobrevoamos o pólo sul em dois dos grandes aviões, sendo uma vez forçados a descer por um súbito vendaval,
que, por felicidade, não se transformou numa típica tempestade. Como informaram os jornais esse foi um típico vôo de reconhecimento, entre vários; durante outros tentamos discernir novos acidentes topográficos
em áreas não alcançadas por exploradores anteriores. Nossos primeiros vôos foram desapontadores com relação a este último ponto, ainda que nos hajam propiciado alguns exemplos magníficos de miragens fantásticas
e ilusórias das regiões polares, das quais nossa viagem por mar já havia proporcionado alguns breves indícios. Montanhas distantes flutuavam no céu como cidades encantadas e com frequência todo aquele
mundo branco se dissolvia numa terra dourada, argentina e escarlate de sonhos lunsanianos* e de aventurosa expectativa sob a luz espectral do baixo sol da meia-noite.
* Referência a Edward John Moreton Drax Plunkett, 18° barão Dunsany (1878-1957), dramaturgo e contista irlandês, cujas obras, a seu tempo muito populares, mesclavam força imaginativa com engenhosidade
intelectual, criando um verossímil mundo de fantasia. (N. do T.)
Nos dias nublados tínhamos grande dificuldade para voar devido à tendência do céu e da terra, envoltos num único manto de neve, fundirem-se num místico vazio opalescente sem nenhum horizonte visível que
marcasse a junção entre ambos.
Por fim decidimos levar a cabo nosso plano original de voar cerca de oitocentos quilômetros em direção a leste, com todos os quatro aviões de exploração e instalar uma nova sub-base num ponto que ficaria
provavelmente na menor divisão continental, como erroneamente conjecturávamos que fosse. As amostras geológicas ali obtidas seriam úteis para fins de comparação. Nossa saúde até então permanecia excelente,
e o sumo de limas compensava bem a constante dieta de alimentos enlatados e salgados; por outro lado, as temperaturas, geralmente acima dos 17° negativos, nos permitia viver sem as peles mais grossas.
Estávamos em meio ao verão e com pressa e cuidado talvez pudéssemos concluir o trabalho em março e evitar uma tediosa hibernação durante a longa noite antártica. Várias tempestades violentas haviam-se
abatido sobre nós, vindas de oeste, mas havíamos deixado de sofrer danos graças à habilidade com que Atwood havia construído rudimentares abrigos para os aviões e quebra-ventos com pesados blocos de neve,
e reforçado as principais construções do acampamento com neve. Nossa sorte e eficiência tinham sido, com efeito, quase notáveis.
O mundo exterior conhecia, naturalmente, nosso programa e era ainda informado da estranha e obstinada insistência de Lake quanto a uma viagem de exploração em direção a oeste (ou, mais exatamente, noroeste),
antes de nossa transferência final para a nova base. Ao que parece, ele havia meditado muito, e com ousadia alarmantemente radical, sobre aquela marca triangular estriada na ardósia; tinha visto nelas
certas contradições de natureza e de período geológico que lhe haviam aguçado a curiosidade ao extremo e que o haviam deixado ansioso por abrir novos furos e realizar explosões adicionais na formação ocidental
à qual os fragmentos desenterrados obviamente pertenciam. Curiosamente, ele se achava persuadido de que as marcas representavam pegadas de um organismo grande, desconhecido e radicalmente inclassificável,
de evolução bastante avançada, não obstante o fato de a rocha da qual os fragmentos tinham sido extraídos ser de tal modo antiga — Cambriana senão Pré-Cambriana — que desde logo se podia negar a existência
na época não só de uma etapa biologicamente avançada de vida, como, na verdade, de qualquer vida acima do estádio unicelular ou, no máximo, trilobítico. Aqueles fragmentos, com suas estranhas marcas, teriam
entre quinhentos milhões e um bilhão de anos.
II
A imaginação popular, presumo, reagiu ativamente a nossas informações a respeito do início da excursão de Lake rumo a noroeste, em regiões jamais pisadas por seres humanos ou sequer vislumbradas pela imaginação
do homem, muito embora não fizéssemos menção de suas esperanças loucas de revolucionar toda a biologia e a geologia. A jornada preliminar de Lake, entre 11 e 18 de janeiro, na companhia de Pabodie e de
outros cinco homens — empanada pela perda de dois cães num tombo, ao atravessarem uma das grandes cristas no gelo — havia produzido uma quantidade cada vez maior da ardósia arqueana; e até mesmo eu fiquei
interessado pela singular profusão de evidentes marcas fósseis naquela camada inacreditavelmente antiga. Tais marcas, no entanto, eram de formas vivas do maior primitivismo, não envolvendo grande paradoxo,
salvo o de que qualquer forma viva ocorresse em rochas tão indubitavelmente Pré-Cambrianas quanto aquelas pareciam ser. Por conseguinte, eu ainda não lograva perceber o sentido do desejo de Lake no sentido
de uma interrupção em nosso programa, delineado com vistas a poupar tempo — uma interrupção que exigiria o uso de todos os quatro aviões, muitos homens e a totalidade da maquinaria de nossa expedição.
Não vetei, por fim, o plano, ainda que tomasse a decisão de não acompanhar o grupo que rumaria para noroeste, apesar de Lake haver insistido em que eu lhe desse assessoria geológica. Durante a ausência
deles, eu permaneceria com Pabodie e cinco homens na base, e prepararia os planos finais exigidos pela mudança para leste. Como preparativo para essa transferência, um dos aviões já havia começado a retirar
do estreito de McMurdo uma boa quantidade de gasolina. Mas isso poderia esperar algum tempo. Mantive comigo um trenó e nove cães, uma vez que convinha ter à disposição um meio de transporte num mundo inteiramente
desabitado e vazio.
A subexpedição de Lake ao ignoto, como todos recordarão, enviava seus próprios boletins pelos transmissores de ondas curtas instalados nos aviões. Tais transmissões eram simultaneamente captadas por nossa
aparelhagem na base meridional e pelo Arkham, no estreito McMurdo, de onde eram passadas ao mundo em comprimentos de onda de até 50 metros. A partida se deu às 4 horas da manhã de 22 de janeiro; e a primeira
mensagem que recebemos chegou duas horas depois. Nela Lake falava de haver pousado e iniciado uma pequena operação de degelo e perfuração, num ponto a cerca de 480km de nós. Seis horas depois, uma segunda
mensagem, muito excitada, dava conta da abertura e alargamento de um furo raso, culminando na descoberta de fragmentos de ardósia com várias marcas, aproximadamente iguais à que havia causado a perplexidade
original.
Três horas depois, um breve boletim anunciou o reinicio do vôo, em meio a uma ventania brutal; e quando despachei uma mensagem em que protestava contra riscos desnecessários, Lake respondeu laconicamente,
dizendo que suas novas amostras faziam com que qualquer risco valesse a pena. Percebi que sua excitação havia chegado ao limite do motim e que eu nada podia fazer para impedir que ele pusesse em risco
o sucesso de toda a expedição. No entanto, aturdia a imaginação pensar que ele estivesse mergulhando cada vez mais fundo naquela traiçoeira e sinistra imensidão branca, de tempestades e mistérios desconhecidos,
que se estendia por cerca de 2.300 quilômetros em direção ao litoral, em parte conhecido, em parte pressentido, das Terras da Rainha Mary e de Knox.
Então, dentro de mais ou menos uma hora e meia, chegou aquela mensagem duplamente empolgada, transmitida em vôo, do avião de Lake, e que quase modificou meus sentimentos e me fez desejar ter acompanhado
o grupo:
“22h05min. Em vôo. Depois da tempestade, vimos cordilheira à frente, maior que qualquer outra conhecida. Talvez igual ao Himalaia, abrindo margem para altitude do planalto. Latitude provável, 76° 5’ longitude
113° 10’. Estende-se para direita e esquerda até onde se pode ver. Suspeitas, de dois cones fumegantes. Todos os picos negros e sem neve. O vendaval que sopra sobre eles impede a navegação.
Depois disso, Pabodie, os homens e eu não nos afastamos do receptor, prendendo a respiração. Pensar naquela titânica muralha montanhosa, a 1.100 quilômetros de distância, inflamava nosso mais profundo
sentido de aventura; e nos rejubilávamos com o fato de que ela tivesse sido descoberta por nossa expedição, ainda que não nós próprios, pessoalmente. Daí a meia hora Lake chamou-nos outra vez:
“Avião de Moulton obrigado a aterrissar nos contrafortes do planalto, mas ninguém se feriu e talvez possa ser consertado. Vou transferir o essencial para os outros três, para o regresso ou novas excursões,
se necessárias, mas no momento não há necessidade de viagens em aviões pesados. As montanhas superam toda a imaginação. Vou fazer um reconhecimento no avião de Carroll, sem nenhum peso.
“Não podem imaginar nada semelhante. Os picos mais altos devem ter mais de 10.500m. O Everest não conta mais. Atwood vai calcular as alturas com o teodolito enquanto Carroll e eu subimos. Provavelmente
houve engano com relação aos cones, pois as formações parecem estratificadas. Talvez ardósia Pré-Cambriana com outras camadas, misturadas. Efeitos curiosos no horizonte — seções regulares de cubos suspensas
dos picos mais alto. Tudo maravilhoso, na luz vermelho-dourada do sol baixo. Como terra misteriosa num sonho ou limiar de mundo proibido de maravilhas nunca vistas. Gostaria que estivesse aqui para estudar.”
Ainda que, tecnicamente, fosse hora de estarmos dormindo, nenhum de nós, que escutávamos, pensou em recolher-se. Quase a mesma coisa devia estar ocorrendo no estreito McMurdo, onde o depósito de suprimentos
e o Arkham estavam também captando as mensagens, pois o capitão Douglas emitiu uma mensagem dando os parabéns a todos pela importante descoberta; Sherman, o responsável pelo depósito, também expressou
seu júbilo. Sentíamos, naturalmente, o acidente com o aeroplano, mas esperávamos que pudesse ser reparado facilmente.
Então, às 11 da noite, chegou outra mensagem de Lake:
“Estou com Carroll sobre os contrafortes mais altos. Não nos atrevemos a tentar os picos realmente altos com este tempo, mas faremos isto depois. A subida foi muito difícil e o vôo é perigoso a esta altitude,
mas vale a pena. A grande cordilheira é bastante maciça, por isso nada vemos do outro lado. Os cumes maiores excedem o Himalaia, são muito esquisitos. As montanhas parecem ardósia Pré-Cambriana, com sinais
claros de muitas outras camadas soerguidas. Enganei-me quanto a vulcanismo. Estende-se mais, nas duas direções, do que podemos ver. Nenhuma neve acima de 6.500m.
“Formações singulares nas encostas das montanhas mais elevadas. Grandes blocos baixos e quadrados, com lados exatamente verticais, e linhas retangulares de muralhas baixas e verticais, como os velhos castelos
asiáticos, suspensos em montanhas íngremes, nas pinturas de Roerich. Imponentes a distância. Voamos perto de algumas e Carroll achou que eram formadas de partes menores separadas, mas provavelmente isso
é imaginação. Maioria das arestas corroídas e arredondadas, como se expostas a tempestades e mudanças climáticas durante milhões de anos.
“Algumas partes, sobretudo as superiores, parecem de rochas mais claras que quaisquer camadas visíveis nas encostas propriamente ditas, e portanto de evidente origem cristalina. Exames a menor distância
mostram muitas bocas de cavernas, algumas de contornos bastante regulares, quadrados ou semicirculares. Você deve vir investigar. Creio ter visto muralha bem no alto de um pico. A altura parece cerca de
9.000 a 10.500m. Estou a 6.500m, num frio diabólico e cortante. O vento asso via através de desfiladeiros, entrando e saindo de cavernas, mas nenhum perigo real para o vôo até agora.”
Daí em diante, a cada meia hora, Lake manteve uma saraivada de comentários, e exprimiu sua intenção de escalar a pé alguns picos. Respondi que iria juntar-me a ele assim que ele pudesse mandar um avião
e que Pabodie e eu definiríamos o melhor plano de utilização da gasolina — onde e como concentrarmos nosso suprimento, em vista da alteração do caráter da expedição. Evidentemente, os trabalhos de perfuração
de Lake, bem como suas atividades aeronáuticas, exigiriam uma grande quantidade de combustível para a nova base que ele planejava montar no sopé das montanhas; e era possível que a viagem para leste acabasse
não sendo realizada naquela estação. Com relação a essa previsão, chamei o capitão Douglas e lhe pedi que retirasse o máximo possível de combustível dos navios e que o levasse para o alto da barreira,
usando os poucos cães que havíamos deixado lá. O que realmente pensávamos em fazer era estabelecer uma rota direta, através da região desconhecida, entre Lake e o estreito McMurdo.
Lake chamou-me mais tarde para dizer que havia decidido instalar o acampamento no local onde o avião de Moulton fora obrigado a descer e onde o trabalho de reparo já estava em curso. A cobertura de gelo
era muito fina, o solo escuro aparecia aqui e ali, e ele realizaria algumas perfurações e explosões ali mesmo antes de fazer qualquer viagem de trenó ou escaladas a pé. Falou da inefável majestade do cenário
e sobre suas sensações por se ver ao abrigo de vastos e silenciosos pináculos, que se arremessavam para o alto como uma muralha que alcançasse o céu na borda do mundo. Utilizando o teodolito, Atwood havia
calculado que os picos mais elevados ascendiam a uma altura de 9.000 a 10.200 metros. A natureza do terreno, descalvado pelo vento, claramente preocupava Lake, pois atestava a ocorrência ocasional de vendavais
prodigiosos, mais violentos que todos quantos já havíamos encontrado. Seu acampamento situava-se, a cerca de oito quilômetros do ponto onde os contrafortes mais altos se elevavam abruptamente. Eu podia
quase detectar um tom de alarme subconsciente em suas palavras — transmitidas através de um vazio glacial de 1.100 quilômetros — enquanto ele recomendava que explorássemos aquela região estranha e nova
tão depressa quanto possível. Ele estava então para descansar, após um dia de trabalho sem paralelo — em termos de rapidez, exaustão e resultados.
Pela manhã conversei pelo rádio, ao mesmo tempo, com Lake e o capitão Douglas. Ficou acertado que um dos aviões de Lake viria à minha base para buscar Pabodie, os cinco homens e a mim próprio, bem como
todo o combustível que pudesse carregar. A decisão quanto ao restante do combustível, a depender de nossa resolução quanto à viagem para leste, poderia ficar para depois, uma vez que por ora Lake dispunha
do suficiente para aquecimento e para as perfurações. Mais adiante a velha base a sul teria de ser reabastecida, mas se protelássemos a viagem para leste não teríamos de usá-la senão no verão seguinte,
e nesse ínterim Lake deveria mandar um avião explorar uma rota direta entre a nova cordilheira e o estreito McMurdo.
Pabodie e eu nos preparamos para fechar a base, por um período curto ou longo, como fosse o caso. Se invernássemos na Antártica, provavelmente iríamos de avião diretamente da base de Lake para o Arkham,
sem voltarmos àquele ponto. Algumas de nossas barracas cônicas já tinham sido reforçadas com blocos de neve endurecida, mas decidimos então completar o trabalho de construção de uma vila permanente. Devido
ao generosíssimo suprimento de barracas, Lake tinha consigo tantas quantas sua base necessitaria, mesmo após nossa chegada. Informei pelo rádio que Pabodie e eu estaríamos prontos para a viagem rumo a
noroeste depois de um dia de trabalho e uma noite de repouso.
Nossa labuta, no entanto, reduziu-se consideravelmente após as quatro horas da tarde, pois por volta disso Lake começou a enviar mensagens extraordinárias e excitadíssimas. Seu dia de trabalho havia principiado
de modo pouco promissor, uma vez que o reconhecimento aéreo das superfícies de rochas quase afloradas revelou absoluta ausência das camadas arqueanas e primevas que ele estava procurando e que constituíam
parte tão substancial dos colossais picos que se erguiam a uma distância tantalizante do acampamento. Na maioria, as rochas avistadas eram, aparentemente, renitos jurássicos e comanchianos, bem como xistos
permianos e triássicos; vez por outra surgia um reluzente afloramento negro que sugeria um carvão duro e ardósico. Isso de certa forma desalentou Lake, cujos planos diziam respeito a desenterrar amostras
que teriam mais 500 milhões de anos que essas. Ficou-lhe claro que a fim de recuperar o veio de ardósia arqueana na qual ele havia localizado as marcas tão curiosas, teria de empreender uma longa jornada
desde aqueles contrafortes até as encostas íngremes das próprias montanhas gigantescas.
Ele resolvera, não obstante, efetuar algumas perfurações no local, como parte do programa geral da expedição. Por isso, montou o equipamento e destacou cinco homens para operá-lo, enquanto os demais terminavam
de montar o acampamento e reparar o avião danificado. A rocha visível mais macia — um arenito a cerca de 1,5 km do acampamento — havia sido escolhida para a primeira amostragem; e a perfuratriz fazia excelente
progresso sem muitas explosões suplementares. Foi mais ou menos três horas depois, após a primeira dinamitação realmente forte da operação, que se ouviram os gritos da turma de perfuração; e foi também
então que o jovem Gedney, que atuava como supervisor do trabalho, entrou correndo no acampamento trazendo as notícias espantosas.
Haviam dado com uma caverna. No começo da perfuração, o arenito tinha dado lugar a um veio de calcário comanchiano onde abundavam minúsculos fósseis — cefalópodes, corais, echini, spirifera —, além de
indícios ocasionais de esponjas silicosas e ossos de vertebrados marinhos — sendo estes últimos provavelmente teleósteos, tubarões e ganóides. Por si só, isso já era bastante significativo, por proporcionar
os primeiros vertebrados fósseis que a expedição havia coletado. No entanto, quando logo depois a broca penetrou mais fundo na camada e deu sinal de estar operando no vazio, espalhou-se entre os escavadores
uma redobrada excitação. Uma explosão de força considerável havia exposto o segredo subterrâneo; e agora, através de uma abertura denteada com cerca de metro e meio de largura e noventa centímetros de
espessura, escancarava-se diante dos pesquisadores um buraco na delgada camada calcária, aberto havia mais de cinquenta milhões de anos pelo escoamento das áreas superficiais de um extinto mundo tropical.
A camada oca não teria mais de dois metros ou dois metros e meio de profundidade, mas se estendia indefinidamente em todas as direções e dela emanava uma fresca e leve corrente de ar que levava a crer
que a cavernosidade fazia parte de um amplo sistema subterrâneo. Tanto o teto como o piso apresentavam abundância de grandes estalagmites e estalactites, algumas das quais se encontravam formando colunas.
Contudo, o que de mais importante havia ali era o vasto depósito de conchas e ossos, que em certos lugares quase obstruíam a passagem. Transportada, pelas águas, de desconhecidas selvas de fetos arbóreos
e fungos mesozóicos, bem como de florestas Terciárias de cicadáceas, palmáceas e primitivas angiospermas, aquela mixórdia óssea continha mais representantes de animais do Cretáceo, do Eoceno e outras épocas
do que o maior paleontologista poderia contar ou classificar durante um ano. Moluscos, crustáceos de carapaça, peixes, anfíbios, répteis, aves e primitivos mamíferos — grandes e pequenos, conhecidos e
desconhecidos. Não era de admirar que Gedney voltasse correndo para o acampamento aos gritos, nem também que todos deixassem o trabalho e se precipitassem em meio ao frio cortante para o ponto em que a
alta torre de perfuração assinalava um recém-descoberto acesso a segredos do interior do planeta e de eras imemoriais.
Depois que Lake satisfez sua impetuosa curiosidade inicial, garatujou uma mensagem em sua caderneta e fez com que o jovem Moulton corresse ao acampamento a fim de transmiti-la pelo rádio. Foi essa a primeira
notícia que tive da descoberta, dando conta da identificação de conchas, ossos de ganóides e placodermos, tudo isso antiquíssimo, de resquícios de labirintodontos e tecodontes, fragmentos de crânios de
grandes mosassauros, vértebras e placas de couraça de dinossauros, dentes e ossos de asas de pterodátilos, restos de arqueopterix, dentes de tubarões miocênicos, crânios de aves primitivas, além de outros
ossos de mamíferos arcaicos como paleópteros, xifodontes, eohippis, oreodontes, e titanotérios. Não havia ali nada recente como um mastodonte, elefante, camelo verdadeiro, veado ou bovino; daí ter Lake
concluído que os últimos depósitos haviam ocorrido durante o Oligoceno, e que a camada oca havia permanecido em seu estado presente — seco, morto e inacessível — durante pelo menos trinta milhões de anos.
Por outro lado, a predominância de formas de vida muito primitivas era singularíssima. Ainda que a formação calcária fosse, a julgar pela intrusão de típicos fósseis como ventriculites, inequivocamente
comanchiana (não havia nenhuma possibilidade de serem anteriores), os fragmentos livres no espaço oco incluíam uma surpreendente proporção de organismos até então considerados característicos de períodos
muito mais recuados — até mesmo peixes, moluscos e corais rudimentares de épocas remotas como o Siluriano ou o Ordoviciano. A inferência inevitável era de que naquela parte do mundo houvera um notável
e inusitado grau de continuidade entre a vida de 300 milhões de anos atrás e a de apenas 30 milhões de anos passados. Não havia, naturalmente, nenhuma possibilidade de se estimar até quando essa continuidade
se estendera além do Oligoceno, quando a caverna tinha sido fechada. De qualquer forma, o advento dos terríveis gelos do Pleistoceno, há cerca de quinhentos mil anos — um simples ontem, em comparação com
a idade daquela cavidade — devia ter dado fim a todas as formas primevas que naquele local haviam logrado sobreviver.
Lake não se satisfez com sua primeira mensagem, e escreveu e despachou outro boletim para o acampamento, antes que Moulton voltasse. Depois disso Moulton permaneceu junto ao rádio de um dos aviões, transmitindo-me
— e também para o Arkham, para que dali as mensagens alcançassem o mundo — os frequentes adendos que Lake lhe enviava por uma série de mensageiros. Quem acompanhou os jornais há de recordar a comoção causada
entre os homens de ciência pelos boletins daquela tarde — os boletins que levaram, depois de tantos anos, à organização da própria Expedição Starkweather-Moore, que anseio tanto dissuadir de seus propósitos.
Creio ser conveniente transcrever as mensagens literalmente, tal como Lake as enviou e como Mctighe, o operador de nossa base, as traduziu das notas taquigráficas:
“Fowler faz descoberta da maior importância em fragmentos de arenitos e calcários após explosões. Várias impressões estriadas triangulares, diferentes, como as da ardósia arqueana, provando que sua fonte
sobreviveu de mais de 600 milhões de anos atrás até os tempos comanchianos sem mais que alterações morfológicas moderadas e sem diminuição do tamanho médio, sendo as impressões comanchianas aparentemente
mais primitivas ou decadentes do que as mais antigas. Salientar a importância da descoberta pela imprensa. Significará para a biologia o que Einstein significou para a matemática e a física. Complementa
meu trabalho anterior e amplia as conclusões.
“Parece indicar, como eu suspeitava, que a terra conheceu todo um ciclo ou ciclos de vida orgânica antes do conhecido, que começa com células arqueozóicas. Evoluiu e se especializou há não menos de um
bilhão de anos, quando o planeta era jovem e até pouco antes inabitável por qualquer forma de vida de estrutura protoplásmica normal. Resta saber quando, onde e como ocorreu o desenvolvimento.”
* * *
“Mais tarde. Examinando certos fragmentos ósseos de grandes sáurios terrestres e marinhos e de mamíferos primitivos, encontro singulares contusões ou lesões não imputáveis a qualquer animal predador ou
carnívoro de qualquer período. Dois tipos: furos retos, penetrantes, e incisões aparentemente cortantes. Um ou dois casos de ossos partidos sem denteamento. Não muitos espécimes afetados. Vou mandar buscar
lanternas elétricas no acampamento. Vou ampliar a área subterrânea de exploração, quebrando as estalactites.”
* * *
“Mais tarde ainda. Localizamos um curioso fragmento de esteatita com cerca de 15 centímetros de largura e 4 centímetros de espessura, inteiramente diferente de qualquer formação local visível — esverdeada,
mas sem nada que possa indicar seu período. Lisura e regularidade curiosas. Tem forma de estrela de cinco pontas, com ápices quebrados, e sinais de outra clivagem em ângulos voltados para o interior e
no centro da superfície. Depressão pequena e lisa no meio da superfície. Desperta muita curiosidade com relação à origem e desgaste. Provavelmente produzido pela ação hidráulica. Carroll, com a lupa, julga
poder ver marcas adicionais de importância geológica. Grupos de pontinhos minúsculos formando desenhos regulares. Os cães se tornam intranquilos enquanto trabalhamos e parecem odiar essa esteatita. Precisamos
verificar se ela tem algum cheiro especial. Volto a me comunicar quando Mills voltar com a luz e começarmos no subterrâneo.”
* * *
“22h15min. Descoberta importante. Trabalhando lá embaixo a partir das 21h45min com luz, Orrendorf e Watkins encontraram monstruoso fóssil em forma de barril, de natureza inteiramente desconhecida; provavelmente
vegetal, salvo se for espécime de radiado marinho desconhecido que cresceu exageradamente. Tecidos evidentemente preservados por sais minerais. Duro como couro, mas em certos pontos conserva espantosa
flexibilidade. Marcas de partes quebradas nas extremidades e em torno dos lados. Um metro e noventa de ponta a ponta, um metro de diâmetro central, reduzindo-se a 30 centímetros em cada extremidade. Parece
um barril com cinco rugas salientes em lugar de aduelas. Fraturas laterais, como que de hastes delgadas, no equador, no meio dessas rugas. Em sulcos entre as rugas, há apêndices curiosos — cristas ou asas
que se dobram e desdobram como leques. Todos severamente lesados menos um, que tem uma envergadura de cerca de dois metros. A disposição lembra certos monstros de mitos antigos, principalmente os fabulosos
Seres Antigos do Necronomicon.
“As asas parecem membranosas, estendidas numa estrutura de tubulação glandular. Minúsculos orifícios visíveis na tubulação da ponta das asas. Extremidades do corpo murchas, não dando indicação do interior
ou do que se quebrou ali. Vamos dissecar quando voltarmos ao acampamento. Não chego a conclusão quanto a ser vegetal ou animal. Muitas características são obviamente de um primitivismo quase inacreditável.
Coloquei todo o pessoal quebrando estalactites e procurando outros espécimes. Encontrados outros ossos lesados, mas terão de esperar. Problemas com os cães. Não suportam o novo espécime e provavelmente
o dilacerariam se não os mantivéssemos afastados.”
* * *
“23h30min. Atenção, Dyer, Pabodie, Douglas. Questão de máxima — eu diria transcendental — importância. O Arkham deve comunicar-se com a Estação de Kingsport Head imediatamente. Foi o estranho ser arqueano
em forma de barril que deixou as Impressões nas rochas. Millis, Boudrau e Fowler descobriram um grupo de outros treze num ponto a 12 metros da abertura do subterrâneo. Misturados com fragmentos de esteatita
curiosamente arredondados, menores que o localizado anteriormente — com forma de estrela, mas sem sinal de fratura, exceto em algumas pontas.
“Entre os espécimes orgânicos, oito aparentemente perfeitos, com todos os apêndices. Trouxeram todos para a superfície, levando os cães para longe. Não suportam as coisas. Prestem atenção na descrição
e repitam, para garantir exatidão. Os jornais devem receber informações corretas.
“Os objetos têm dois metros e quarenta de ponta a ponta. Torso em forma de barril, com um metro e oitenta, um metro de diâmetro central, trinta centímetros de diâmetro nas extremidades. Cinza-escuros,
flexíveis e infinitamente duros. Asas membranosas de dois metros e dez, da mesma cor, encontradas dobradas, nascendo de sulcos entre as rugas. Estrutura das asas tubular ou glandular, de um cinza mais
claro, com orifício nas extremidades das asas. Quando abertas, as asas apresentam serrilhamento nas bordas. Em torno do equador, cada qual no ápice central de cada uma das cinco rugas verticais semelhantes
a aduelas, ficam cinco sistemas de braços ou tentáculos flexíveis e cinza-claros, encontrados comprimidos fortemente contra torso mas capazes de se estender a um comprimento total de quase um metro. Semelhante
a braços de crinóide primitivo. Os pedúnculos, com oito centímetros de diâmetro, subdividem-se após 25 centímetros em cinco subpedúnculos, cada um dos quais subdividem-se depois de 30 centímetros em pequenos
tentáculos ou gavinhas cônicas, dando a cada pedúnculo um total de 25 tentáculos.
“No alto do torso, pescoço curto e bulboso de um cinzento mais claro, com insinuações de guelras ou coisa semelhante; sustenta o que seria uma cabeça, em forma de estrela-do-mar amarelada, coberta por
cílios de oito centímetros e várias cores prismáticas.
“Cabeça grossa e fofa, com cerca de 60 centímetros de ponta a ponta, com tubos amarelados e flexíveis, de oito centímetros, projetando-se de cada ponta; ao fim de cada tubo há uma expansão esférica, coberta
por uma membrana amarelada retrátil, que, quando enrolada, deixa ver um globo vítreo, com íris vermelha, evidentemente um olho.
“Cinco tubos avermelhados, ligeiramente mais longos, partem dos ângulos internos da cabeça estrelada c terminam em protuberâncias em forma de saco, da mesma cor, os quais, sob pressão, abrem-se para orifícios
campaniformes com cinco centímetros de diâmetro máximo e recobertos com projeções agudas e brancas, que lembram dentes — provavelmente bocas. Todos estes tubos, cílios e pontas da cabeça estrelada foram
encontrados comprimidos fortemente para baixo; os tubos e as pontas pendem sobre o pescoço bulboso e o torso. Flexibilidade surpreendente, apesar da enorme dureza.
“Na parte inferior do torso existem contrapartidas grosseiras mas de funcionamento dessemelhante da cabeça. Um pseudopescoço cinza-claro e bulboso, sem insinuações de guelras, sustenta uma formação estrelada
de cinco pontas, esverdeada.
“Braços duros e musculosos, com um metro e vinte, cônicos, com 17,5 centímetros na base e cerca de sete centímetros na extremidade. A cada extremidade prende-se pequena terminação de um triângulo esverdeado
e membranoso, com cinco nervuras, medindo 20 centímetros de comprimento e 15 centímetros de largura na ponta externa. Foi pseudópodo ou nadadeira que deixou marcas em rochas com idades que variam de um
bilhão a 50 ou 60 milhões de anos.
“De ângulos internos da formação estreliforme prometam-se tubos avermelhados de 60 centímetros de comprimento, cônicos, com oito centímetros de diâmetro na base e dois e meio na extremidade. Orifícios
nas extremidades. Todas essas partes infinitamente duras e coriáceas, porém extremamente flexíveis. Braços de metro e vinte, com nadadeiras indubitavelmente utilizadas para alguma espécie de locomoção,
marinha ou terrestre. Quando movimentados, dão impressão de exagerada muscularidade. Todas essas projeções encontradas fortemente dobradas sobre o pseudopescoço e fim do torso, correspondendo a projeções
na outra extremidade.
“Não podem ser ainda classificados com certeza no reino vegetal ou animal, mas os índices apontam para o animal. Provavelmente representam evolução incrivelmente avançada de radiados, sem perda de certas
características primitivas. Inequívocas semelhanças com equinodermos, apesar de indícios contraditórios localizados.
“A estrutura alar é um enigma, em vista do provável habitat marinho, mas podem ser usadas para locomoção aquática. A simetria é curiosamente vegetal, lembrando a essencial estrutura vertical do vegetal,
e não a horizontal do animal. A época de evolução fabulosamente recuada, precedendo até mesmo os mais simples protozoários arqueanos conhecidos, impede qualquer conjectura quanto a origem.
“Os espécimes completos apresentam tal similitude com certas criaturas de mitos antigos que se torna inevitável a hipótese de terem existido, no passado, fora da Antártida. Dyer e Pabodie leram o Necronomicon
e viram quadros de Clark Ashton Smith baseados no texto, pelo que hão de compreender quando me refiro a Seres Antigos, que teriam criado toda a vida terrestre, por zombaria ou engano. Os estudiosos sempre
julgaram que tais concepções se formaram a partir do tratamento imaginativo mórbido de antiquíssimos radiados tropicais. Lembram também seres pré-históricos folclóricos de que trata Wilmarth — cultos de
Cthulhu etc.
“Abre-se vasto campo de estudo. Os depósitos datam provavelmente do fim do Cretáceo ou princípio do Eoceno, a julgar por amostras associadas. Enormes estalagmites depositadas sobre eles. A dissecação é
trabalhosa, mas a dureza impediu dano. Miraculoso o estado de preservação, devido evidentemente à ação dos calcários. Não foram encontrados outros até agora, mas retomaremos o trabalho mais tarde. O problema
agora será transportar quatorze gigantescos espécimes para o acampamento sem utilizar os cães, que latem furiosamente e não poderão chegar perto deles.
“Com nove homens — três vão ficar para cuidar dos cães — deveremos manobrar os trenós bem, embora o vento esteja forte. É preciso estabelecer comunicação aérea com o estreito McMurdo e começar a transportar
material. Mas tenho de dissecar um desses seres antes de poder descansar. Gostaria de ter um verdadeiro laboratório aqui. Convém Dyer se autoflagelar por haver tentado impedir minha viagem rumo a noroeste.
Primeiro, as maiores montanhas do mundo, e depois isso. Se este não é o ponto alto da expedição, não sei qual será. Estamos feitos para a ciência. Parabéns, Pabodie, pela perfuratriz que abriu a caverna.
Por favor, Arkham, repita a descrição.”
As sensações de Pabodie e minhas ao recebermos esse relatório foram quase indescritíveis; tampouco nossos companheiros ficaram muito atrás em seu entusiasmo. McTighe, que havia apressadamente traduzido
alguns pontos mais importantes à medida que saíam do receptor, transcrevo toda a mensagem a partir de sua versão taquigráfica, assim que o operador de Lake encerrou a transmissão. Todos perceberam o significado
momentoso da descoberta, e enviei congratulações a Lake assim que o operador do Arkham acabou de repetir as partes descritivas, como solicitado. E meu exemplo foi seguido por Sherman, de sua estação no
depósito de suprimentos do estreito McMurdo, assim como pelo Capitão Douglas, do Arkham. Mais tarde, como chefe da expedição, acrescentei algumas observações que deveriam ser transmitidas do Arkham para
todo o mundo. Naturalmente, era absurdo pensar em repouso em meio a tanta comoção; e meu único desejo era chegar ao acampamento de Lake assim que possível. Fiquei decepcionado quando ele avisou que um
intenso vendaval tornava impossível o transporte aéreo.
No entanto, dentro de hora e meia voltou a crescer o interesse, banindo o desapontamento. Através de novas mensagens, Lake falava do transporte inteiramente bem-sucedido dos quatorze grandes espécimes
para o acampamento. Tinha sido difícil, pois as coisas eram surpreendentemente pesadas. No entanto, nove homens haviam conseguido vencer o desafio. Agora alguns integrantes do grupo estavam construindo
apressadamente um curral, com blocos de neve, a uma distância segura do acampamento, ao qual os cães poderiam ser levados para maior facilidade de alimentação. Os espécimes tinham sido colocados sobre
a neve dura, menos um, no qual Lake fazia grosseiras tentativas de dissecação.
Tal dissecação parecia constituir tarefa mais dificultosa do que o previsto, pois, apesar do calor proporcionado por um fogão a gasolina na recém-montada barraca que fazia as vezes de laboratório, os tecidos
enganosamente flexíveis do espécime escolhido — forte e intacto — não perderam nada de sua dureza mais que coriácea. Lake não imaginava meio de fazer as incisões necessárias sem usar de violência suficientemente
destrutiva para perturbar todas as sutilezas estruturais que estava procurando. Dispunha, na verdade, de outros sete espécimes perfeitos; mas era um número muito pequeno para que fossem usados sem cautela,
a menos que a caverna viesse a proporcionar mais tarde uma quantidade ilimitada. Por conseguinte, ele removeu o espécime e trouxe um outro que, ainda que apresentasse restos das configurações estreliformes
em ambas as extremidades, achava-se bastante esmagado e parcialmente danificado ao longo de um dos sulcos do enorme tronco.
Os resultados, incontinenti transmitidos pelo rádio, causaram realmente perplexidade e espanto. Não era possível delicadeza ou precisão com instrumentos que mal conseguiam cortar os tecidos anômalos, mas
o pouco que se conseguiu deixou-nos a todos aturdidos. A biologia teria de ser radicalmente revista, pois aquele ser não era produto de nenhum desenvolvimento celular que a ciência conheça. Não houvera
praticamente nenhuma substituição mineral e apesar da idade, de talvez quarenta milhões de anos, os órgãos internos estavam íntegros. A qualidade coriácea, infungível e quase indestrutível era um atributo
inerente da organização da criatura e pertencia a algum ciclo paleo-arcaico de evolução invertebrada inteiramente fora de nossas faculdades especulativas. A princípio tudo quanto Lake encontrou era seco,
mas à medida que a barraca aquecida produzia seu efeito degelante encontrou-se umidade orgânica, de odor acre e fétido no lado não lesionado da coisa. Não se tratava de sangue, e sim de um fluido denso
e verde-escuro que aparentemente atendia à mesma finalidade. Quando Lake chegou a esse estágio, já todos os 37 cães tinham sido conduzidos ao curral ainda inconcluso perto do acampamento, mas mesmo àquela
distância puseram-se a latir loucamente e a demonstrar inquietude, devido ao cheiro penetrante.
Longe de ajudar na classificação do estranho ente, aquele arremedo de dissecação só serviu para aprofundar o mistério. Todos os palpites com relação a seus membros externos tinham sido corretos, e com
base nisso não havia como evitar considerar aquele ser um animal; no entanto, a inspeção interna produziu tantos indícios de vegetalidade que Lake ficou inapelavelmente perdido. A criatura tinha digestão
e circulação e eliminava detritos orgânicos pelos tubos avermelhados de sua base estreliforme. Superficialmente, poder-se-ia dizer que o aparelho respiratório lidava com oxigênio, e não com dióxido de
carbono; e havia curiosas evidências de câmaras de armazenamento de ar; e métodos de transferir a respiração plenamente desenvolvidos — guelras e poros. Tratava-se claramente de um anfíbio, provavelmente
adaptado a longos períodos de hibernação sem ar. Parecia existir órgãos vocais, ligados ao principal sistema respiratório, mas apresentavam anomalias que desafiavam solução imediata. Fala articulada, no
sentido de emissão de sílabas, parecia ser quase inimaginável, mas notas musicais flauteadas, cobrindo um amplo registro, eram altamente prováveis. O sistema muscular era quase prematuramente desenvolvido.
O sistema nervoso mostrava tal complexidade e desenvolvimento que Lake sentiu-se estupefato. Ainda que excessivamente primitivo e arcaico em certos aspectos, aquele ente possuía um conjunto de centros
ganglionares, bem como conectivos, que atestavam extremos de desenvolvimento especializado. O cérebro, de cinco lobos, era surpreendentemente evoluído e havia indícios de um equipamento sensorial, em parte
atendidos pelos cílios rijos da cabeça, envolvendo fatores estranhos a qualquer outro organismo terrestre. Teria provavelmente mais de cinco sentidos, pelo que seus hábitos não podiam ser previstos com
base em qualquer analogia existente. Devia ter sido, pensava Lake, uma criatura de aguda sensibilidade e funções sutilmente diferenciadas em seu mundo primal — muito assemelhada às formigas e abelhas de
hoje. Reproduzia-se como os criptógamos vegetais, especialmente as pteridófitas, e possuía câmaras de espórios nas extremidades das asas, câmaras que evidentemente se desenvolviam a partir de um talo ou
pró-talo.
No entanto, atribuir-lhe um nome nesse estágio era simples tolice. Parecia um radiado, mas era obviamente algo mais. Era em parte vegetal, mas apresentava três quartos dos traços essenciais da estrutura
animal. Que era de origem marinha, sua configuração simétrica e alguns outros atributos indicavam claramente; entretanto, não havia como apontar com certeza o limite de suas ulteriores adaptações. As asas,
afinal, encerravam uma persistente insinuação de vôo. O processo mediante o qual ele havia sofrido sua evolução tremendamente complexa, numa Terra recém nascida e em tempo para deixar pegadas em rochas
arqueanas, era de tal modo incogitável que levou Lake a fantasiosamente recordar os mitos primais sobre os “Grandes e Antigos” que se tinham originado das estrelas e tramado a vida terrestre como facécia
ou por equívoco; e também as histórias delirantes sobre seres cósmicos que habitavam montes, narradas por um folclorista do departamento de Língua e Literatura da Universidade Miskatonic.
Naturalmente, Lake levou em conta a possibilidade de as impressões Pré-Cambrianas terem sido feitas por um ancestral menos evoluído dos espécimes descobertos na caverna, mas logo rejeitou essa teoria simplista,
ao considerar as avançadas características estruturais dos fósseis mais antigos. A rigor, as configurações posteriores revelavam antes decadência que evolução superior. O tamanho dos pseudópodos havia
diminuído e toda a morfologia parecia mais grosseira e simplificada. Ademais, os nervos e órgãos recém-examinados levavam a crer que tivesse havido um retrocesso em relação a formas ainda mais complexas.
Lake constatara, com surpresa, grande número de partes atrofiadas e vestigiais. De modo geral, pouco se poderia considerar como solucionado; e assim Lake recorreu à mitologia, em busca de um nome provisório
— e jocosamente passou a se referir às suas descobertas como “Os Antigos”.
Por volta das 2h30min da manhã ele decidiu adiar o restante do trabalho e descansar um pouco. Cobriu o organismo dissecado com um oleado, saiu da barraca-laboratório e estudou os espécimes intactos com
renovado interesse. O incessante sol antártico havia começado a tornar um pouco mais flexível os tecidos, de modo que as pontas da cabeça e os tubos de dois ou três mostravam sinais de amolecimento. Lake,
porém, não acreditou que houvesse perigo de decomposição imediata na temperatura reinante. Não obstante, juntou todos os espécimes não dissecados e jogou sobre eles uma barraca de reserva, para que não
fossem atingidos diretamente pelos raios.
Passava das quatro quando Lake finalmente preparou-se para se recolher e aconselhou a todos nós que aproveitássemos o período de descanso que seu grupo tiraria quando as paredes dos abrigos estivessem
um pouco mais altas. Conversou um pouco com Pabodie, amistosamente, pelo rádio, e repetiu os elogios às brocas realmente maravilhosas que o haviam ajudado a fazer sua descoberta. Atwood enviou saudações
e louvores. Também troquei com Lake palavras elogiosas, admitindo que ele tivera razão quanto à viagem rumo a oeste, e todos concordamos em entrar em contato, pelo rádio, às dez da manhã. Se a ventania
houvesse então cessado, Lake mandaria um avião para buscar-nos em nossa base. Pouco antes de me retirar, despachei uma mensagem final ao solares. Isso ajudaria também a impedir que o possível cheiro que
exalassem chegasse aos cães, cuja intranquilidade hostil estava-se tornando um problema real, mesmo a distância apreciável em que se encontravam e atrás das paredes de neve cada vez mais altas que um maior
número de homens apressava-se a levantar em torno do espaço que lhes fora destinado. Lake teve de prender os cantos da lona da barraca com pesados blocos de gelo, a fim de mantê-la no lugar sob a crescente
ventania, pois as titânicas montanhas pareciam na iminência de produzir vendavais realmente portentosos. Renasciam as apreensões anteriores quanto a repentinos ventos antárticos, e sob supervisão de Atwood
tornaram-se precauções para escorar com neve as barracas, o cercado novo dos cães e os rudimentares abrigos dos aeroplanos, do lado que dava para as montanhas. Tais abrigos, iniciados com blocos de neve
endurecida em momentos de folga, não eram altos como deveriam ser; e por fim Lake desviou todos os homens de outros misteres para trabalharem neles.
Arkham com instruções para que não fossem demasiado entusiásticos ao transmitirem as notícias do dia para o mundo exterior, uma vez que os pormenores pareciam por demais radicais, podendo provocar uma
onda de incredulidade, até serem mais bem substanciados.
III
Nenhum de nós, quero crer, dormiu muito profundamente naquela manhã. Tanto a excitação causada pela descoberta de Lake quanto a fúria crescente dos ventos laboravam contra isso. Tão violento era o vendaval,
mesmo onde estávamos, que não podíamos deixar de imaginar o quanto estaria pior no acampamento de Lake, diretamente sob os descomunais picos desconhecidos que o geravam. Às dez horas McTighe já estava
desperto e tentou falar com Lake pelo rádio, como combinado, porém algum problema de eletricidade no ar convulsionado, a oeste, parecia impedir as comunicações. Ainda assim, estabelecemos contato com o
Arkham e Douglas me disse que também ele tentara em vão falar com Lake. Não estivera a par da ventania, pois o ar no estreito McMurdo estava tranquilo, a despeito de sua violência inaudita no local onde
estávamos.
Durante o dia todos postamo-nos, ansiosos, junto ao rádio e tentamos falar com Lake a intervalos, mas invariavelmente sem qualquer êxito. Por volta do meio-dia, chegou de oeste um verdadeiro tufão, fazendo
com que temêssemos pela segurança de nosso acampamento. Por fim, porém, amainou, com apenas uma breve recidiva às duas da tarde. Depois das três horas o vento quase cessou por completo, e redobramos nossos
esforços para contatar Lake. Refletindo que ele dispunha de quatro aviões, cada qual provido de um excelente equipamento de rádio em ondas curtas, não conseguíamos imaginar qualquer acidente comum capaz
de pôr fora de ação todos os equipamentos de rádio de uma só vez. Não obstante, o silêncio pétreo persistiu, e quando pensávamos na força delirante com que o vento devia ter soprado onde ele estava, não
havia como fugir às mais horrendas conjecturas.
Às seis da tarde nossos temores haviam-se tornado intensos e definidos, e após uma consulta pelo rádio a Douglas e Thorfinnssen, decidi tomar medidas no sentido de uma investigação. O quinto avião, que
havíamos deixado no depósito de suprimentos do estreito McMurdo, com Sherman e dois marinheiros, encontrava-se em bom estado e pronto para uso imediato, e era de crer que a emergência justamente para a
qual ele havia sido poupado havia ocorrido. Falei com Sherman pelo rádio e dei-lhe instruções para que viesse ter comigo na base do sul, com o avião e os dois marinheiros, o mais depressa possível, uma
vez que as condições meteorológicas pareciam altamente favoráveis. Discutimos então a questão dos integrantes do grupo de investigação e concluímos que deveríamos usar todos os homens. Juntamente com os
trenós e os cães que eu havia conservado comigo. Mesmo uma carga tão grande não estaria além da capacidade de um dos enormes aviões construídos por encomenda para o transporte de maquinaria pesada. De
vez em quando eu tentava ainda entrar em contato com Lake através do rádio, mas em vão.
Sherman, com os marujos Gunnarsson e Larsen, decolou às 19h30min. Por várias vezes durante o vôo comunicaram-se conosco, relatando que a viagem transcorria sem problemas. Chegaram à nossa base à meia-noite,
e imediatamente todos os presentes começaram a debater o que deveria ser feito a seguir. Era arriscado sobrevoar o continente antártico num único avião, sem qualquer apoio de terra, mas ninguém recuou
em relação àquilo que parecia ser a necessidade mais óbvia. Às duas da manhã iniciamos um breve período de descanso, após alguns embarques preliminares no avião, e às quatro horas já estávamos novamente
de pé, para terminar o carregamento e os demais preparativos.
Às 7h15min da manhã do dia 25 de janeiro começamos o vôo rumo a noroeste, com McTighe no comando do aparelho. Levávamos dez homens, sete cães, um trenó, um carregamento de combustível e víveres, além de
outros materiais, inclusive o rádio do avião. O céu estava claro, quase não havia ventos e a temperatura mostrava-se relativamente branda. Com tudo isso, prevíamos pouquíssimos problemas para chegarmos
à latitude e longitude designadas por Lake como sendo a de seu acampamento. O que nos causava apreensão era o que poderíamos encontrar — ou não encontrar — ao fim da viagem, pois a única resposta a todos
os chamados dirigidos 10 acampamento continuava a ser o silêncio.
Cada incidente daquele vôo de quatro horas e meio está gravado a fogo em minha memória, em virtude de sua posição crucial em minha vida. Ele marcou para mim a perda, na idade de 54 anos, de toda aquela
paz e equilíbrio que a mente normal possui, através de sua concepção habitual do que seja a natureza e as leis naturais. Daí em diante, todos nós dez — mas sobretudo, acima de todos os demais, o estudante
Danforth e eu — haveríamos de defrontar-nos com um mundo horrivelmente amplificado de horrores absconsos que nada pode obliterar de nossas emoções, e que nos absteríamos de repartir com a humanidade em
geral, se pudéssemos. Os jornais publicaram os boletins que enviamos em voo, dando conta de nossa jornada sem escalas, de nossas duas batalhas com ventos traiçoeiros, de nossa visão rápida da superfície
quebrada onde Lake abrira uma perfuração no meio da viagem, três dias antes, e da visão de um grupo daqueles estranhos cilindros de neve, como que felpudos, que segundo Amundsen e Byrd, eram tangidos pelo
vento pelas léguas do planalto gelado. Chegou um ponto, porém, em que nossas sensações não podiam ser descritas por quaisquer palavras que a imprensa pudesse compreender, e ainda um momento mais tardio
em que na verdade tivemos de adotar uma norma de rigorosa censura.
O marinheiro Larsen foi o primeiro a avistar a linha quebrada de cones e pináculos fantasmagóricos e seus gritos trouxeram todos às janelas do avião. Apesar da velocidade com que viajávamos, foi com muita
lentidão que aumentaram de dimensão, e daí concluímos que deveriam estar a uma distância imensa e que só eram visíveis devido à sua altura descomunal. Pouco a pouco, todavia, subiram medonhamente no céu,
a oeste, possibilitando-nos divisar cumes desnudos, inóspitos e enegrecidos, bem como captar a curiosa sensação de fantasia que inspiravam, iluminados pelo avermelhado clarão antártico contra o fundo sugestivo
de iridescente nuvens glaciais. Havia em todo aquele espetáculo uma insinuação persistente e penetrante de prodigioso segredo e revelações abissais. Era como se aquelas nítidas agulhas de pesadelo assinalassem
as colunas de um portal assustador que levasse a domínios proibidos de sonho e a abismos ignotos de tempo, de espaço e de ultradimensionalidade. Eu não conseguia evitar a sensação de que eram coisas maléficas
— montanhas de loucura cujas encostas mais distantes guardavam amaldiçoadas voragens infinitas. Aquele fundo de nuvens, escachoante e semiluminoso, comportava insinuações inefáveis de um vago e etéreo
além, algo que superava as concepções terrestres de espaço e que, tetricamente, trazia à mente tudo quanto aquele mundo austral, inexplorado e virgem, tinha de ermo, apartado, desolado e morto havia eras
e eras.
Foi o jovem Danforth quem nos chamou a atenção para as curiosas regularidades dos picos mais elevados como que fragmentos pendentes de cubos perfeitos, mencionados por Lake em suas mensagens, e que, de
fato, justificavam comparação com lembranças oníricas de ruínas de templos vetustos, sobre enevoados cumes asiáticos, que Roerich havia transposto de maneira tão sutil e estranha para suas telas. Havia,
com efeito, naquele continente irreal de montanhoso mistério algo que não podia deixar de recordar Roerich. Eu o sentira em outubro, quando pela primeira vez avistei a Terra de Vitória, e o sentia novamente
agora, redobrado. Sentia, ademais, outra onda de inquietante percepção de míticas similitudes arqueanas; pressentia o quanto aquele sítio letal se aproximava do famigerado planalto de Leng que aparece
em escritos de antanho. Os mitologistas têm situado o planalto de Leng na Ásia Central; mas a memória rácica do homem — ou de seus predecessores — é antiga e é bem possível que certos contos tenham provindo
de terras, montanhas e templos de horror mais antigos que a Ásia e mais antigos que qualquer mundo humano de que tenhamos conhecimento. Alguns místicos ousados têm feitos insinuações a respeito de uma
origem pré-pleistocênica para os fragmentários Manuscritos Pnakóticos, dando ainda a entender que os devotos de Tsathoggua eram tão alheios à humanidade quanto o próprio Tsathoggua. Leng, qualquer que
fosse sua localização no tempo e no espaço, não era uma região que eu quisesse visitar ou ao menos dela me aproximar, e tampouco me agradava a proximidade de um mundo que algum tempo havia gerado monstruosidades
ambíguas e arqueanas como as que Lake havia mencionado pouco antes. Naquele momento, arrependi-me por ter um dia me disposto a ler o abominável Necronomicon ou conversado tanto na universidade com o folclorista
Wilmarth, desagradavelmente erudito.
Esse estado de espírito sem dúvida serviu para agravar minha reação à miragem estapafúrdia que se abateu sobre nós desde o zênite cada vez mais opalescente, à medida em que nos aproximávamos das montanhas
e começávamos a distinguir as ondulações cumulativas dos contrafortes. Eu vira dezenas de miragens polares durante as semanas anteriores, algumas tão insólitas e fantasticamente vívidas quanto a presente.
No entanto, aquela apresentava uma qualidade inteiramente nova e obscura de ameaçador simbolismo, e estremeci diante do labirinto escachoante de fabulosas muralhas, torres e minaretes que emergiam, colossais,
dos agitados vapores gélidos sobre nossas cabeças.
O efeito era o de uma cidade ciclópica, de uma arquitetura desconhecida pelo homem ou pela imaginação humana, com vastos aglomerados de cantaria negra como a noite e que materializava monstruosas inversões
das leis geométricas. Havia cones truncados, por vezes escalonados ou canelados, encimados por altas torres cilíndricas, aqui e ali ampliadas bulbosamente e muitas vezes coroadas com séries de discos superpostos
e delgados; e estranhas construções salientes, que lembravam mesas e sugeriam pilha de inumeráveis lajes retangulares, placas circulares ou estrelas de cinco pontas, cada uma das quais imbricava sobre
a inferior. Havia cones e pirâmides compósitas, isoladas ou encimando cilindros, cubos ou cones e pirâmides truncados mais chatos, assim como, vez por outra, cúspides em curiosos grupos de cinco. Todas
essas estruturas febricitantes pareciam reunidas por pontos tubulares, que iam de uma a outra, a várias alturas estonteantes; aliás, a escala implícita do conjunto era aterrorizante e opressiva por seu
puro gigantismo. Esse tipo geral de miragem não era diferente de algumas das formas mais delirantes observadas e desenhadas pelo baleeiro ártico Scoresby em 1820, mas naquele momento e naquele lugar, com
aqueles trevosos e desconhecidos picos montanhosos elevando-se titanicamente à frente, com aquela anômala descoberta de um mundo primevo em nossas mentes e com a mortalha de um provável desastre envolvendo
a maior parte de nossa expedição, todos nós parecíamos ver naquela fantasia atmosférica uma nódoa de malignidade latente e de augúrio infinitamente funesto.
Alegrei-me quando a miragem começou a se dissolver, ainda que no processo os diversos cones e torreões de pesadelo assumissem formas distorcidas e temporárias de repulsão ainda mais acentuada. Quando toda
a miragem se desfez numa agitada opalescência, começamos a olhar novamente para leste e percebemos que nossa viagem não estava longe do fim. As desconhecidas montanhas à nossa frente erguiam-se aterradoramente,
como uma assustadora muralha de gigantes e suas curiosas regularidades apareciam com assombrosa nitidez, mesmo sem binóculos. Estávamos agora sobre os primitivos contrafortes e podíamos avistar, entre
a neve, o gelo e as áreas nuas do planalto principal, dois pontos mais escuros que supusemos ser o acampamento de Lake e a área perfurada. Os contrafortes mais altos subiam ao céu a uma distância de oito
a dez quilômetros dali, formando uma cordilheira quase separada da linha terrificante de picos mais que himalaicos além deles. Por fim, Popes (o estudante que havia substituído McTighe no assento do piloto)
começou a descer na direção da área mais escura à esquerda, cujo tamanho indicava que fosse o acampamento. Nesse instante, McTighe despachou a última mensagem não censurada que o mundo haveria de receber
de nossa expedição.
Todos, naturalmente, leram os boletins breves e insatisfatórios do restante de nossa estada na Antártica. Algumas horas depois do pouso enviamos um relato cauteloso a respeito da tragédia que encontramos
e relutantemente anunciamos a dizimação de todo o grupo de Lake pelo vendaval mortífero do dia anterior ou da noite que o precedera. Onze mortos e o jovem Gedney desaparecido. As pessoas desculparam nossa
nebulosa falta de pormenores atribuindo-a ao choque causado pelo infausto acontecimento e acreditaram quando explicamos que a força inaudita do vento havia deixado os onze corpos sem condições de serem
transportados para fora dali. Na verdade, sinto-me lisonjeado pelo fato de que mesmo em meio à angústia, à completa consternação e ao horror transfixante, praticamente não faltamos à verdade quanto a qualquer
ponto específico. O significado tremendo jaz no que não nos atrevemos a dizer; naquilo que ainda agora eu não diria não fosse a necessidade de advertir outras pessoas quanto a horrores inomináveis.
É verdade que o vento havia produzido medonha destruição. É extremamente duvidoso que os integrantes do grupo poderiam ter-lhe sobrevivido, mesmo sem a outra coisa. A tempestade, com sua fúria de partículas
de gelo vergastantes, devia ter sido mais forte que qualquer outra já enfrentada por nossa expedição. Um dos abrigos para os aviões — todos, ao que parece, tinham ficado em condições lastimáveis — estava
quase pulverizado e a torre no sítio da perfuração, distante dali, tinha sido inteiramente despedaçada. O metal exposto dos aviões e a maquinaria de perfuração havia ficado brilhante pelo atrito do gelo
e duas das pequenas barracas tinham sido jogadas ao chão, apesar do escoramento com blocos de neve. As superfícies de madeira espalhadas pela área achavam-se furadas e sem a camada de pintura, e todos
os sinais de trilhas na neve haviam sido completa mente apagados. É verdade também que não encontramos um único dos biológicos arqueanos em condições de ser retirado dali intacto. Colhemos algumas amostras
minerais de uma enorme pilha desabada, entre os quais vários dos fragmentos de esteatita esverdeada cuja forma geral, com cinco pontas, e cujos apagados desenhos de pontos agrupados causaram tantas comparações
dúbias, e ainda alguns ossos fósseis, entre os quais estavam os mais típicos dos espécimes curiosamente furados.
Nenhum dos cães havia sobrevivido e o cercado que fora apressadamente construído para eles perto do acampamento achava-se quase totalmente destruído. O vento poderia ter sido o causador disso, ainda que
uma abertura maior do lado que dava para o acampamento, e que não era batido diretamente pelo vento, indicasse que os próprios animais, tomados de frenesi, tinham saltado para fora do curral ou mesmo arrebentado-o.
Todos os três trenós tinham desaparecido, e procuramos explicar que o vento poderia tê-los empurrado para o desconhecido. A perfuratriz e o equipamento de degelar, na área de perfuração, estavam demasiado
danificados para justificar reparos, de modo que usamos os destroços para tapar aquela porta sutilmente perturbadora para o passado, que Lake havia aberto a dinamite. Da mesma forma deixamos no acampamento
os dois aviões mais estragados, já que entre os sobreviventes só havia quatro pilotos realmente habilitados — Sherman, Danforth, McTighe e Ropes, sendo que Danforth se encontrava sem condições nervosas
para navegar. Trouxemos de volta todos os livros, equipamentos científicos e outros materiais que pudemos encontrar, ainda que grande parte deles estivessem inexplicavelmente espalhados. As barracas de
reserva e as peles ou haviam desaparecido ou estavam em péssimo estado.
Eram aproximadamente quatro horas da tarde, depois que largos vôos nos haviam obrigado a dar Gedney como perdido, quando transmitimos nossa primeira mensagem reservada ao Arkham, para ser retransmitida
ao mundo. E creio que agimos bem ao dar-lhe a redação mais calma e neutra que conseguimos. O máximo que dissemos a respeito de agitação dizia respeito a nossos cães, cuja frenética intranquilidade perto
dos espécimes era de ser esperada, devido aos relatos do pobre Lake. Não nos referimos, quero crer, ao fato de demonstrarem a mesmas intranquilidade ao farejarem as estranhas esteatitas esverdeadas e alguns
outros objetos na área conturbada — objetos entre os quais incluíam-se instrumentos científicos, aeroplanos e maquinaria, tanto no acampamento como no local da perfuração, cujas peças tinham sido soltas,
mudadas de lugar ou de outra forma atingidas por ventos que deviam ter demonstrado singular curiosidade e espírito inquisitivo.
Com relação aos quatorze espécimes biológicos, fomos justificadamente vagos. Dissemos que os únicos que havíamos descoberto estavam danificados, mas que sobrava deles o suficiente para mostrar que a descrição
de Lake tinha sido inteiramente fiel e precisa. Foi difícil manter nossas emoções pessoais fora disso — e não mencionamos números nem narramos exatamente como encontramos os que realmente pudemos achar.
Havíamos, a essa altura, concordado em não transmitir coisa alguma que pudesse insinuar insanidade por parte dos homens de Lake e por certo parecia demência encontrar seis monstruosidades imperfeitas cuidadosamente
sepultadas em posição ereta, em tumbas de neve de 2,70m, com montículos de cinco pontas sobre os quais tinham sido feitos desenhos de pontos exatamente iguais aos que se viam nas estranhas esteatitas esverdeadas,
enterradas em tempos Mesozóicos ou Terciários. Os oito espécimes perfeitos mencionados por Lake pareciam ter sido completamente espalhados pelo vento.
Tivemos cuidado, outrossim, com a paz de espírito geral do público; daí Danforth e eu termos falado tão pouco a respeito daquela assustadora excursão pelas montanhas no dia seguinte. Foi o fato de que
somente um avião aliviado de todo peso desnecessário era capaz de sobrevoar uma cordilheira de tal altura que, misericordiosamente, limitou aquela missão de reconhecimento a nós dois. Ao voltarmos, à uma
da manhã, Danforth estava à beira da histeria, mas manteve um controle admirável. Não foi preciso muita persuasão para ele prometer que não mostraria os desenhos e outras coisas que havíamos trazido nos
bolsos, nem dizer coisa alguma aos outros além do que havíamos concordado em transmitir ao mundo, bem como esconder nossos filmes para revelação posterior. Por isso, essa parte, da história que ora narro
será tão nova para Pabodie, McTighe, Ropes, Sherman e os demais quanto será para o mundo em geral. Na verdade, Danforth é mais reservado do que eu — pois viu, ou julga ter visto, uma coisa que não dirá
nem a mim.
Como todos sabem, nosso relato incluiu uma descrição de uma difícil ascensão — uma confirmação da opinião de Lake segundo a qual os grandes picos são de ardósia arqueana e outras camadas esmagadas, de
indescritível antiguidade, inalteradas pelo menos desde meados do período comancheano; um comentário convencional sobre a regularidade das formações suspensas, em forma de cubos ou muralhas; uma opinião
de que as bocas das cavernas indicam veios calcários dissolvidos; uma conjectura de que certas encostas e desfiladeiros permitiriam que toda a cordilheira fosse escalada e explorada por montanhistas experientes;
e uma observação de que o misterioso lado posterior oculta um altíssimo e imenso superplanalto, tão antigo e inalterado quanto as próprias montanhas — com 6.000 metros de altitude, grotescas formações
rochosas que se projetam através de uma fina camada glacial e que desce paulatinamente em contrafortes mais baixos, entre a superfície do planalto geral e os precipícios dos picos mais altos.
Esse conjunto de dados é em todos os sentidos verdadeiro e é inteiramente corroborado pelos homens que estavam no acampamento. Atribuímos nossa ausência durante dezesseis horas — tempo mais alongado do
que exigiriam as atividades que relatamos (voar, pousar, reconhecer o terreno e coletar rochas) — a um prolongado período fictício de condições meteorológicas adversas e nos referimos, sem mentir, ao fato
de havermos aterrissado nos contrafortes mais distantes. Por felicidade, nossa narrativa pareceu suficientemente realista e prosaica para que os outros não se sentissem tentados a repetir o vôo. Houvesse
alguém tentado fazê-lo, eu teria usado toda minha força dissuasória para impedi-lo — e não sei o que Danforth teria feito. Enquanto estivemos fora, Pabodie, Sherman, Ropes, McTighe e Williamson haviam
trabalhado afanosamente nos dois aviões de Lake em melhor estado, preparando-os para serem usados novamente, a despeito da destruição inteiramente sem sentido de seus mecanismos operacionais.
Resolvemos que na manhã seguinte carregaríamos todos os aviões e que partiríamos para a base assim que possível. Ainda que indireta, era essa a rota mais segura para voltarmos ao estreito McMurdo, porquanto
um vôo direto sobre trechos inteiramente inexplorados do continente gelado implicaria perigos adicionais. Novas explorações não seriam de maneira alguma viáveis, em vista da trágica dizimação de nosso
grupo e da ruína de nosso equipamento de perfuração. As dúvidas e os horrores que nos cercavam — aquilo que não revelamos — faziam com que nosso único desejo fosse fugir daquele mundo austral de desolação
e silenciosa demência tão depressa quanto pudéssemos.
Como sabe o público, nosso retorno ao mundo se fez sem novos desastres. Todos os aviões chegaram à velha base na noite do dia seguinte, 27 de janeiro, após um rápido vôo sem escalas. E no dia 28 alcançamos
o estreito McMurdo em duas etapas, sendo que a única pausa, bastante breve, foi ocasionada por um defeito no leme de um avião, devido à fúria do vento sobre a plataforma gelada, depois de havermos deixado
o grande planalto. Dentro de mais cinco dias, o Arkham e o Miskatonic, levando a bordo todos os homens e equipamentos, se afastavam do campo de gelo e avançavam pelo mar de Ross com as zombeteiras montanhas
da Terra de Vitória alteando-se a oeste, contra um agitado céu antártico, e transformando os uivos do vento em silvos musicais que abarcavam um amplo registro e gelavam-me o sangue nas veias. Menos de
uma quinzena depois, havíamos deixado atrás de nós os últimos sinais de terras polares e dávamos graças aos céus por estarmos longe de um sítio assombrado e maldito onde a vida e a morte, o espaço e o
tempo, celebraram tenebrosas e ímpias alianças nas épocas desconhecidas em que a matéria começava a se contorcer e nadar na mal resfriada crosta do planeta.
Desde nosso regresso temos todos trabalhado constantemente no sentido de desestimular a exploração antártica e temos mantido entre nós próprios certas dúvidas e conjecturas num espírito de esplêndida união
e fidelidade. Nem mesmo o jovem Danforth, com seu colapso nervoso, titubeou ou deu com a língua nos dentes para os médicos — como efeito, como já ficou dito, há uma coisa que ele julga que somente ele
viu e a qual não conta nem mesmo a mim, muito embora eu creia que seu estado psicológico havia de melhorar se ele consentisse em repartir o segredo. Isso poderia explicar e aliviar muita coisa, ainda que,
talvez, o que ele viu não fosse mais que a consequência ilusória de um choque prévio. Essa é a impressão que me fica depois daqueles momentos irresponsáveis, raros, em que Danforth me sussurra frases desconexas
— frases que ele repudia com veemência assim que volta a se controlar.
Será com dificuldade que evitaremos que outros se aventurem no grande continente branco, e alguns de nossos esforços poderão até prejudicar-nos a causa, ao atrair uma atenção inquisitiva. Poderíamos saber
desde o começo que a curiosidade humana é infinda e que os resultados que anunciamos seriam suficientes para servir de empecilho a que outros se embrenhassem na mesma busca imemorial do desconhecido. Os
relatos que Lake fez daquelas monstruosidades biológicas haviam despertado o máximo interesse de naturalistas e paleontologistas, muito embora tivéssemos a sensatez de não exibir as partes separadas que
havíamos tirado dos espécimes sepultados ou as fotografias daqueles espécimes, tal como os encontramos. Também nos abstivemos de mostrar as peças mais enigmáticas dentre os ossos lesionados e as esteatitas
esverdeadas. Por outro lado. Danforth e eu tivemos o cuidado de proteger ciosamente as fotografias que tiramos e os desenhos que esboçamos sobre o planalto do outro lado da cordilheira, bem como as coisas
corroídas que limpamos, estudamos — tomados de terror — e trouxemos conosco nos bolsos.
Agora, porém, está sendo organizada a expedição Starkweather-Moore, com um cuidado em tudo superior ao de nosso grupo. Se não forem dissuadidos, hão de alcançar o âmago da Antártica e promover operações
de degelo e de perfuração, até trazerem à superfície aquilo que sabemos ser capaz de dar fim ao mundo. Por isso, tenho de romper finalmente todas as reticências — falando até mesmo sobre aquela coisa suprema
e inominável que se esconde além das montanhas da loucura.
IV
É com enorme hesitação e repugnância que permito a meu espírito retornar ao acampamento de Lake e ao que realmente encontramos ali — e àquela outra coisa além das montanhas da loucura. A cada instante
sou tentado a deixar de lado os pormenores e permitir que insinuações tomem o lugar dos verdadeiros fatos e das inelutáveis deduções. Espero já ter dito o suficiente para deixar-me deslizar rapidamente
sobre o restante — ou seja, sobre o horror reinante no acampamento. Já falei do terreno devastado pelo vento, dos abrigos destruídos, da maquinaria dispersa, da inquietação de nossos cães, do desaparecimento
dos trenós e outros equipamentos, da morte dos homens e dos cães, da ausência de Gedney e dos seis espécimes biológicos desvairadamente sepultados, com a textura insolitamente intacta, apesar de todas
suas lesões estruturais — falei de tudo isso ainda quando estava naquele mundo morto há quarenta milhões de anos. Não me recordo se narrei que ao procurarmos os cães, verificamos que faltava um. Não pensamos
muito nisso senão mais tarde — na verdade, somente Danforth e eu dedicamos alguma atenção ao assunto.
Os fatos principais que tenho omitido relacionam-se aos corpos, e a certas minúcias sutis que podem ou não emprestar uma espécie de explicação hórrida e inacreditável ao aparente caos. Na ocasião, tentei
manter as mentes dos homens afastadas dessas minúcias, pois era muito mais simples — mais normal — atribuir tudo a um acesso de demência por parte de alguns dos membros do grupo de Lake. Pelo aspecto do
que víamos, aquele demoníaco vento das montanhas devia ter sido suficiente para levar qualquer homem à loucura naquele centro de todo mistério e desolação do mundo.
A anormalidade máxima, naturalmente, era o estado dos corpos — tanto dos homens como dos animais. Haviam estado, todos, envolvidos em algum tipo de terrível conflito e se encontravam despedaçados e mutilados
de vários modos diabólicos e ao todo inexplicáveis. Até onde podíamos julgar, a morte ocorrera, em cada caso, por estrangulamento ou laceração. Os cães haviam evidentemente iniciado a confusão, pois o
estado de seu cercado mal construído atestava que havia sido arrebentado à força, e por dentro. O cercado tinha sido construído a certa distância do acampamento por causa da aversão dos animais por aqueles
infernais organismos arqueanos, mas a precaução parecia ter sido vã. Quando deixados a sós naquele vento monstruoso, por trás de débeis paredes de altura insuficiente, deviam ter entrado em pânico — ou
por causa do próprio vento, ou devido a um odor sutil e crescente emitido pelos espécimes tétricos.
Entretanto, não importa o que aconteceu, foi algo terrível e violento. Talvez eu deva pôr de lado todo escrúpulo e dizer finalmente o que aconteceu — ainda que com uma categoria declaração de opinião,
baseada nas observações de primeira mão e nas mais cuidadosas deduções, minhas e de Danforth, de que o então desaparecido Gedney não foi de modo algum responsável pelos horrores abomináveis que encontramos.
Já disse que os corpos estavam horrivelmente mutilados. Devo agora acrescentar que alguns apresentavam incisões e subtrações, feitas do modo mais curioso, cruel e inumano que se possa imaginar. Não diferia
o estado dos cães e dos homens: todos os corpos mais saudáveis, de mais corpulência, quadrúpedes ou bípedes, tinham tido suas massas de tecido mais sólidas cortadas e removidas, como que por um hábil carniceiro;
e em torno das mutilações havia um estranho derrame de sal — tirados dos despedaçados baús de víveres nos aviões — que provocavam as mais horrendas associações. A coisa havia ocorrido em um dos improvisados
hangares do qual o avião tinha sido retirado, e mais tarde os ventos haviam apagado todas as marcas que poderiam ter proporcionado alguma teoria plausível. Os pedaços dispersos de roupas, arrancadas violentamente
dos homens dilacerados, não ofereciam quaisquer pistas. É inútil aludir à nossa impressão de termos visto leves pegadas na neve, num canto protegido do cercado em ruínas, pois essa impressão não dizia
respeito absolutamente a pegadas humanas, mas estava claramente influenciada por todas as referências às marcas nos fósseis que o pobre Lake havia feito durante as semanas precedentes. Era preciso ter
cuidado com a imaginação perto daquelas colossais montanhas de pavor.
Como já relatei, verificamos por fim que Gedney e um cão haviam desaparecido. Quando chegamos àquele terrível abrigo, tínhamos dado pela falta de dois cães e de dois homens. Mas a barraca de dissecção,
relativamente intacta, na qual entramos depois de investigarmos os monstruosos túmulos, tinha algo a revelar. Não estava como Lake a deixara, pois as partes cobertas da monstruosidade primal tinham sido
removidas da mesa improvisada. Com efeito, já havíamos percebido que uma das seis coisas imperfeitas e estranhamente enterradas que encontráramos — aquela que apresentava o vestígio de um cheiro peculiarmente
odioso — devia constituir os fragmentos reunidos da entidade que Lake havia tentado analisar. Sobre a mesa do laboratório e em torno dela estavam espalhadas outras coisas e não foi preciso muito tempo
para adivinharmos que aquelas coisas eram as partes dissecadas, com cuidado mas sem habilidade, de um homem e de um cão. Quero poupar os sentimentos dos sobreviventes omitindo qualquer menção à identidade
desse homem. Os instrumentos anatômicos de Lake tinham sumido, mas havia sinais de que tinham sido cuidadosamente levados. O fogão a gasolina também havia desaparecido, ainda que em torno de seu lugar
encontrássemos um curioso acúmulo de fósforos. Enterramos as partes humanas ao lado dos outros dez homens; e as partes caninas juntamente com os demais 35 cães. No que dizia respeito às estranhas manchas
na mesa do laboratório, assim como ao monte de livros ilustrados manuseados com rudeza e que estavam dispersos ali por perto, estávamos espantados demais para lhes dar atenção.
Isso constituía o pior do horror encontrado no acampamento, mas havia outras coisas igualmente enigmáticas. Era impossível conjecturar de maneira sã a respeito do desaparecimento de Gedney, do cão, dos
oito espécimes biológicos intactos, dos três trenós e de certos instrumentos, livros técnicos e científicos ilustrados, materiais de escrita, lanternas elétricas e pilhas, alimentos e combustíveis, fogão
de aquecimento, barracas de reserva, agasalhos de pele e outras coisas; da mesma forma, não havia explicação imaginável para as manchas borradas de tinta em alguns pedaços de papel e para os sinais de
experimentação por estranhos em torno dos aviões e de todos demais dispositivos mecânicos, tanto no acampamento como no local da perfuração. Os cães pareciam detestar aquela maquinaria singularmente dispersa.
Havia, ainda mais, a mixórdia na despensa, o desaparecimento de certos víveres e a pilha desarmoniosamente cômica de latas, abertas da maneira mais inverossímil e nos lugares mais improváveis. A profusão
de fósforos espalhados — intactos, quebrados ou consumidos — representava outro pequeno enigma, da mesma forma que as duas ou três lonas de barracas e agasalhos de peles que encontramos jogados a esmo
com cortes estranhos, causados, ao que podíamos imaginar, por desajeitados esforços para adaptações inimagináveis. Os maltratos dispensados aos corpos humanos e caninos, bem como a doida sepultura dada
aos espécimes arqueanos danificados pareciam fazer parte da mesma loucura desintegradora. Pensando justamente na possibilidade de vir a ocorrer a situação atual, fotografamos cuidadosamente todos os principais
indícios de desordem delirante do acampamento; e usaremos essas imagens para reforçar nossas súplicas para que seja sustada a partida da proposta Expedição Starkweather-Moore.
A primeira coisa que fizemos após a descoberta dos corpos no abrigo dos aviões foi fotografar e abrir a fileira dos túmulos loucos com os montículos de neve de cinco pontas. Não pudemos deixar de observar
a semelhança entre aqueles montículos monstruosos, com seus aglomerados de pontos agrupados, e a descrição que o pobre Lake havia feito das estranhas esteatitas esverdeadas. E quando topamos com algumas
das próprias esteatitas na grande pilha de minerais achamos a semelhança realmente bastante acentuada. Toda a formação geral, é preciso deixar claro, parecia lembrar de modo abominável a cabeça estreliforme
das entidades arqueanas; e concordamos quanto ao fato de que a sugestão devia ter aluado fortemente nos espíritos sensibilizados do grupo exausto de Lake.
Isto porque loucura — centrando-nos em Gedney como o único agente sobrevivente possível — foi a explicação adorada espontaneamente por todos, até onde alguém manifestava opinião em voz alta; no entanto,
não serei ingênuo a ponto de negar que cada um de nós nutriu conjecturas desvairadas que a sanidade de espírito proibia formular completamente. À tarde, Sherman, Pabodie e McTighe realizaram uma fatigante
exploração aérea por todo o território circundante, vigiando o horizonte com binóculos, à procura de Gedney e de várias coisas desaparecidas; contudo, nada encontraram. O grupo informou que a portentosa
barreira de montanhas estendia-se interminavelmente, tanto para a direita como para a esquerda, sem qualquer diminuição de altura ou estrutura essencial. Em alguns picos, todavia, as regulares formações
de cubos e muralhas eram mais claras e nítidas, apresentando semelhanças duplamente fantásticas com as ruínas montanhosas asiáticas, pintadas por Roerich. A distribuição de crípticas bocas de cavernas
nos cumes negros e despidos de neve parecia aproximadamente a mesma até onde tinham podido acompanhar a cordilheira.
A despeito de todos os horrores que se nos deparavam, sobravam-nos suficiente zelo científico e espírito de aventura para tecermos conjecturas a respeito da região desconhecida que se estendia além daquelas
montanhas misteriosas. Tal como dissemos em nossas cautelosas mensagens, descansamos à meia-noite, após nosso dia de terror e dilema — mas não sem antes traçarmos um plano grosseiro para um ou mais vôos,
numa altitude suficiente para transpor as montanhas, e num avião aliviado de todo peso e equipado com câmara fotográfica aérea e equipamento de geologia, a partir da manhã seguinte. Ficou decidido que
eu e Danforth tentaríamos primeiro, e acordamos às sete da manhã pretendendo sair cedo. Contudo, ventos fortes — mencionados em nosso breve despacho para o mundo exterior — retardaram nossa partida até
quase as nove horas.
Já repeti a história neutra que narramos aos homens no acampamento — e que transmitimos para o exterior — após nosso retorno, dezesseis horas depois. Agora, cabe-me o terrível dever de ampliar esse relato,
preenchendo os vazios piedosos com insinuações do que realmente vimos naquele oculto mundo transmontano — insinuações das revelações que finalmente conduziram Danforth a um colapso nervoso. Gostaria de
que ele pudesse acrescentar uma palavra realmente franca sobre aquilo que julga que somente ele viu — e que foi talvez a última gota que o colocou onde ele se encontra atualmente. Mas ele se nega peremptoriamente
a isso. Tudo quanto posso fazer é repetir seus posteriores sussurros desconexos a respeito do que o levou a gritar enquanto o avião se arremessava de volta através do ventoso desfiladeiro, após aquele
choque tangível e real que compartilhei. Isto constituirá minha última palavra. Se os sinais claros de horrores antigos e sobreviventes naquilo que eu revelar não bastarem para impedir que outros se intrometam
no seio da Antártica — ou pelos menos de espionar muito abaixo da superfície daquele ermo inigualável de segredos proibidos e de desolação imemorialmente amaldiçoada — a responsabilidade por males indizíveis
e talvez incomensuráveis não será minha.
Estudando os apontamentos feitos por Pabodie em seu vôo vespertino e utilizando um sextante, Danforth e eu havíamos calculado que o passo mais baixo existente na cordilheira ficava um pouco à nossa direita,
à vista do acampamento e a aproximadamente 7.000 ou 7.500 metros acima do nível do mar. Foi na direção desse ponto, pois, que partimos no avião aliviado de todo peso desnecessário, em nossa viagem de descobrimento.
O acampamento propriamente dito, situado em contrafortes que irrompiam de um alto planalto continental, estava a cerca de 3.600m de altitude. Por conseguinte, a ascensão necessária não era tão grande quanto
podia parecer. Não obstante, tínhamos perfeita consciência do ar rarefeito e do frio intenso à medida que subíamos; isto porque, por causa das condições de visibilidade, tínhamos de deixar as janelas da
cabine abertas. Vestíamos, naturalmente, nossos agasalhos mais pesados.
Ao nos aproximarmos dos picos amedrontadores, sombrios e sinistros acima da linha de neve, riscada de fendas e de geleiras intersticiais, observávamos com clareza cada vez maior as formações curiosamente
regulares que pendiam das encostas; e mais uma vez nos lembramos das estranhas pinturas asiáticas de Nicholas Roerich. Os antigos e erodidos estratos rochosos corroboravam plenamente as descrições de Lake
e provavam que aqueles pináculos se alcandoravam exatamente da mesma maneira desde uma data surpreendentemente recuada na história do mundo — talvez mais de 50 milhões de anos. Quão mais altos teriam sido
um dia, era inútil tentar conjecturar; mas tudo em torno daquela região estranha apontava para obscuras influências atmosféricas desfavoráveis à mudança e calculadas para retardar os habituais processos
climáticos de desintegração de rochas.
Contudo, era o emaranhado de cubos regulares, parapeitos e entradas de cavernas que mais nos fascinava e perturbava. Estudei-os com binóculos e tirei fotografias, enquanto Danforth pilotava; e às vezes
eu tomava-lhe o lugar nos controles — muito embora meu conhecimento de aviação fosse puramente amadorístico — a fim de que ele pudesse usar os binóculos. Podíamos constatar sem dificuldade que grande parte
do material constitutivo daquelas formações era um quartzito arqueano mais para claro, diferente de qualquer formação visível em amplas áreas da superfície geral; e que a regularidade de tais formações
era extremada e fantástica, num grau que o pobre Lake mal insinuara.
Como ele havia dito, suas arestas estavam carcomidas e arredondadas por eras e eras de violento desgaste climatérico; entretanto, sua solidez antinatural e seu material resistentíssimo haviam-nas salvo
de obliteração. Muitas partes, principalmente as que se achavam mais próximas das encostas, pareciam ser de substância idêntica à da superfície rochosa adjacente. Tudo aquilo se assemelhava às ruínas de
Macchu Picchu, nos Andes ou às muralhas antigas de Kish, tal como escavadas pela Expedição de Campo do Museu de Oxford em 1929; e tanto Danforth como eu tínhamos, vez por outra, aquela impressão de blocos
ciclópicos separados que Lake havia atribuído ao seu companheiro de vôo, Carroll. Explicar tais coisas naquele local estava francamente acima de minhas forças, e senti-me inusitadamente humilde como geólogo.
As formações ígneas têm, por vezes, estranhas regularidades — como a famosa Estrada dos Gigantes, na Irlanda — mas aquela cordilheira estupenda, a despeito da suspeita original de Lake, que julgara vislumbrar
cones fumegantes, era acima de tudo não-vulcânica em sua estrutura ostensiva.
As curiosas bossas de cavernas, perto das quais as singulares formações pareciam mais abundantes, apresentavam outro enigma, posto que menor, devido à regularidade de contornos. Eram, como Lake dissera
em seu boletim, muitas vezes aproximadamente quadradas ou semicirculares — como se as aberturas naturais tivessem ganho simetria por ação de mãos mágicas. Seu grande número de sua ampla distribuição eram
notáveis e indicavam que toda a região tinha uma rede de túneis dissolvidos em estratos calcários. Nunca conseguíamos ver muito a fundo no interior das cavernas, mas foi-nos possível constatar que aparentemente
eram livres de estalactites e estalagmites. Do lado de fora, as partes das encostas adjacentes às aberturas pareciam invariavelmente lisas e regulares; Danforth quis crer que as pequenas fendas e raias
causadas pela erosão do tempo tendiam para desenhos inusitados. Tomado que estava pelos horrores e singularidades encontrados no acampamento, ele insinuou que tais desenhos assemelhavam-se vagamente aos
estranhos agrupamentos de pontos espargidos pelas esteatitas esverdeadas primais, duplicados de maneira tão tétrica nos loucos montículos sobre as seis monstruosidades enterradas.
Gradualmente havíamos passado a sobrevoar os contrafortes mais altos e nos dirigíamos na direção do passo relativamente baixo que havíamos escolhido. À medida que avançávamos, olhávamos de vez em quando
para a neve e o gelo da rota terrestre, imaginando se nos teria sido possível tentar a exploração com o equipamento mais simples do passado. Para certa surpresa nossa, constatamos que o terreno era longe
de difícil, como de hábito; e que apesar das fendas e outros pontos mais trabalhosos, não seria provável que impedissem o avanço dos trenós de um Scott, um Shackleton ou um Amundsen. Algumas das geleiras
pareciam conduzir a desfiladeiros desnudados pelo vento, com uma singular continuidade, e ao chegarmos ao passo que havíamos escolhido, verificamos que ele não constituía exceção.
Nossa sensação de tensa expectativa ao nos prepararmos para contornar a crista e contemplar um mundo virgem não pode de modo algum ser descrito com palavras, muito embora nada nos autorizasse a crer que
as regiões além da cordilheira fossem em essência diferentes das que já tínhamos visto e atravessado. O toque de maligno mistério que existia naquelas montanhas colossais e no verdadeiro mar que era o
céu opalescente, vislumbrado entre seus cumes, era uma questão altamente sutil e rarefeita, que não podia ser explicada com meras frases. Ao invés disso, era algo de um vago simbolismo psicológico e de
associação estética — uma coisa que ia de mistura com poesia e pintura exótica, com mitos arcaicos ocultos em tomos misteriosos e defensos. Até mesmo a força do vento encerrava um veio de consciente malignidade;
e por um segundo pareceu que o som heterogêneo incluía um esdrúxulo assovio ou silvo musical, que cobria várias oitavas, enquanto o vendaval ribombava pelas onipresentes e ressoantes bocas de cavernas.
Havia um tom nebuloso de repugnância reminiscente nesse som, tão complexo e indefinível quanto todas as demais impressões de malefício.
Estávamos agora, após uma lenta ascensão, a uma altitude de 7.070 metros, segundo o aneróide; e com isso havíamos deixado a região das neves definitivamente distante. Ali no alto havia apenas encostas
escuras, de rochedos nus, e ali começavam a surgir as geleiras sulcadas — às quais a presença daqueles estranhíssimos cubos, parapeitos e silvantes bocas de caverna acrescentava um augúrio de antinatural,
de fantástico e de onírico. Contemplando a linha dos altos picos, julguei divisar aquele que tinha sido mencionado pelo pobre Lake, encimado de maneira exala por uma muralha. Parecia estar meio perdido
numa insólita névoa antártica. Quiçá fora essa névoa a responsável pela ideia de vulcanismo, que no início ocorrera a Lake. O passo surdia diretamente sob nós, liso e ventoso entre seus portais acidentados
e malignamente sobranceiros.
Além dele estendia-se um céu agitado por vapores em torvelinho e iluminado pelo baixo sol polar — o céu daquele misterioso domínio distante, jamais tocado, sentíamos, por olhos humanos. Mais alguns metros
de altitude e contemplaríamos esse domínio. Impossibilitados de falar senão em gritos, por força do vento uivante e sibilante que invadia o desfiladeiro e se somava ao ronco dos motores, Danforth e eu
trocávamos olhares eloquentes. E foi então que, havendo galgado esses poucos metros, realmente lançamos o olhar sobre a barreira colossal e contemplamos os segredos ignorados de um mundo antigo e inteiramente
alienígena.
V
Acredito que tenhamos, ambos, gritado simultaneamente, com uma mistura de pasmo, assombro, terror e incredulidade, ao finalmente transpormos o passo e ver o que jazia além; não críamos em nossos próprios
sentidos. Era forçoso, naturalmente, que abrigássemos alguma teoria natural nos recessos de nossas mentes, uma teoria que viesse a proteger nossas faculdades no momento. É provável que tenhamos pensado
em coisas como as pedras grotescamente erodidas do Jardim dos Deuses, no Colorado, ou nas rochas do deserto do Arizona, simétricas e fantasticamente esculpidas pela erosão eólia. Talvez tenhamos até relembrado
uma miragem como a que tínhamos visto de manhã anterior, quando pela primeira vez nos aproximamos daquelas montanhas de loucura. Era preciso termos algumas lembranças normais como essas a que recorrer
enquanto nossos olhos corriam por aquele planalto ilimitado e marcado de tempestades e lobrigavam o labirinto quase interminável de massas pétreas — colossais, regulares e de geométrica eurritmia — que
arrojavam suas cristas carcomidas e desgastadas por sobre um lençol glacial que não teria mais de doze ou quinze metros em seus pontos de maior espessura e que ocasionalmente era obviamente mais delgado.
O efeito da visão monstruosa era indescritível, pois parecia fora de dúvida que em sua origem atuara alguma diabólica violação da lei natural. Ali, num altiplano infernalmente antigo, a nada menos de 6.000
metros de altitude, e num meio climático vedado à vida desde uma era pré-humana a não menos de quinhentos mil anos, estenda-se quase até o limite da visão um entrelaçamento ordeiro de pedras que só o desespero
da legítima defesa mental poderia deixar de imputar a uma causa consciente e artificial. Havíamos descartado anteriormente, para todos os efeitos de cogitação séria, qualquer teoria de que os cubos e muralhas
das encostas não tivessem origem natural. Como seria de outra forma, se o próprio homem mal poderia ser diferenciado dos grandes macacos à época em que aquela região sucumbira ao presente reino ininterrupto
de morte glacial?
No entanto, agora a razão parecia irrefutavelmente abalada, pois aquele emaranhado ciclópico de blocos aplainados, recurvados e dispostos em ângulos possuía características que invalidavam todo e qualquer
refúgio seguro. Era, com inescapável clareza, a cidade blasfema da miragem, numa realidade crua, objetiva e inelutável. Aquele prodígio maldito tivera, afinal, um fundamento material — uma camada horizontal
de poeira de gelo pairara, suspensa, na atmosfera superior e aquela chocante sobrevivência de pedra havia projetado sua imagem para o outro lado das montanhas, obedecendo às leis simples da reflexão. O
fantasma, naturalmente, chegara a nós distorcido e exagerado, exibindo, ademais, coisas que a fonte real não continha. Agora, porém, vendo-lhe a fonte real, nós a julgávamos ainda mais tétrica e ameaçadora
que sua imagem distante.
Somente a magnitude incrível e inumana daquelas vastas torres; e muralhas de pedra havia salvo tal coisa absurda de completa aniquilação durante as centenas de milhares, talvez milhões, de anos em que
ela havia estado ali, exposta aos vendavais de um planalto nu. “Corona Mundi... Teto do Mundo...” Toda espécie de frases fantásticas nos assomavam aos lábios enquanto lançávamos a vista, estupefatos, para
o espetáculo implausível. Pensei outra vez nos horrendos mitos primais que com tamanha persistência haviam rondado minha mente desde o primeiro instante em que eu vira aquele extinto mundo antártico...
e também no demoníaco planalto de Leng, no Mi-Go — o Abominável Homem das Neves do Himalaia —, nos Manuscritos Pnakóticos de pré-humanas implicações, o culto de Cthulhu, no Necronomicon, nas lendas hiperbóreas
do informe Tsathoggua e nos seres cósmicos, pior que informes, associados e essa semi-entidade.
Por quilômetros e quilômetros sem fim, em todas as direções, a coisa se estendia com pouquíssimo esmorecimento. De fato, seguindo-a com os olhos pela base dos baixos e graduais contrafortes que a separavam
da borda da cordilheira propriamente dita, chegamos à conclusão de que não éramos capazes de perceber nenhum esmorecimento, exceção feita à interrupção à esquerda do passo pelo qual tínhamos chegado. Tínhamos
tão somente alcançado, ao acaso, uma parte limitada de algo que possuía extensão incalculável. Os contrafortes eram pontilhados mais esparsamente com grotescas estruturas de pedra, que ligavam a cidade
de terror aos cubos e muralhas já familiares e que, evidentemente, constituíam seus postos avançados nas montanhas. Estes últimos, assim como as estranhas bocas de cavernas, eram tão numerosos do lado
posterior da cordilheira quanto do anterior.
O absurdo labirinto de pedra consistia, em sua maior parte, em muralhas que variavam de três a 45 metros de altura, e com espessura entre dois a cinco metros. Compunha-se sobretudo de blocos descomunais
de ardósia, xisto e arenito primordiais — blocos que em muitos casos chegavam a ter l,5 x 2 x 4 metros —, ainda que em vários lugares parecesse talhado numa camada sólida e desigual de ardósia pré-cambriana.
Os edifícios não tinham de modo algum as mesmas dimensões, existindo inumeráveis arranjos que pareciam favos de mel de enorme extensão, assim como estruturas separadas menores. A forma geral dessas coisas
tendia ao cônico, ao piramidal, ao escalonado; contudo, não eram raros cilindros perfeitos, cubos exatos, aglomerados de cubos e outras formas retangulares, bem como um punhado de edifícios angulosos cuja
planta em cinco pontas lembrava vagamente fortificações modernas. Os construtores haviam usado, com constância e correção, o princípio do arco, e provavelmente teriam existido cúpulas quando do apogeu
da cidade.
Todo aquele emaranhado acha-se monstruosamente erodido e a superfície glacial da qual as torres se projetavam estava recoberta de blocos caídos e de escombros imemoriais. Onde a glaciação era transparente
podíamos ver as partes inferiores das pilhas gigantescas, e notávamos as pontes de pedra, preservadas pelo gelo, que ligaram as diversas torres a várias distâncias sobre o chão. Nas paredes expostas podíamos
detectar marcas de outras pontes, mais altas, do mesmo tipo, agora desabadas. Uma inspeção mais próxima revelou janelas incontáveis, bem amplas. Algumas estavam fechadas com folhas de um material petrificado
que originariamente fora madeira, embora na maioria estivessem escancaradas de maneira sinistra e ameaçadora. Muitas das ruínas, naturalmente, haviam perdido os tetos e tinham as partes superiores irregulares,
posto que arredondadas pelo vento. Outras, porém, de feitio mais acentuadamente cônico ou piramidal, ou protegidas por estruturas adjacentes mais altas, exibiam contornos intactos, a despeito do desgaste
e da erosão onipresente. Usando o binóculo, quase podíamos distinguir o que parecia ser decorações escultóricas em faixas horizontais — e que incluíam aqueles curiosos agrupa-mentos de pontos cuja presença
nas esteatitas antigas agora assumiam um significado muitíssimo mais vasto.
Em muitos sítios os edifícios eram uma ruína completa e o lençol de gelo achava-se profundamente rasgado, por várias causas geológicas. Em outros lugares a cantaria encontrava-se desgastada até o nível
da glaciação. Via-se um corte largo, que se estendia ao interior do planalto até uma fissura nos contrafortes, a aproximadamente dois quilômetros do passo que havíamos transposto, inteiramente destituído
de construções. Representava provavelmente, concluímos, o leito de algum caudaloso rio que durante o Terciário — milhões de anos antes — corria pela cidade e se arremessava em algum prodigioso abismo subterrâneo
da grande cordilheira. Tratava-se, decerto, de uma região de cavernas, golfãos e segredos subterrâneos vedados ao conhecimento humano.
Fazendo um retrospecto de nossas sensações e recordando nossa estupefação ao contemplarmos aqueles resquícios monstruosos de eras imemoriais que julgávamos pré-humanas, só me cabe admirar que tenhamos
preservado qualquer coisa, semelhante a equilíbrio. Sabíamos, naturalmente, que alguma coisa — a cronologia, a teoria científica ou nossa própria consciência — achava-se dolorosamente errada. No entanto,
conservávamos estabilidade suficiente para controlar o avião, observar várias coisas minudentemente e tirar uma cuidadosa série de fotografias que talvez ainda venham a servir bem tanto a nós quanto ao
mundo. Em meu caso, entranhados hábitos científicos podem ter ajudado; pois acima de tudo, o espanto e a sensação de ameaça que ali senti deram azo a uma intensa curiosidade no sentido de descobrir mais
a respeito daquele segredo do passado — saber que espécie de seres havia construído e habitado aquele lugar inestimavelmente gigantesco, determinar qual relação poderia ter tido tal singular concentração
de vida com o mundo geral de seu tempo ou de outros tempos.
Isso porque aquele lugar não podia ser uma cidade comum. Devia ter constituído o núcleo e o centro primordiais de algum capítulo arcaico e inacreditável da história do mundo, cujas ramificações externas,
só baçamente relembrado nos mais obscuros e distorcidos mitos, haviam-se desvanecido inteiramente em meio ao caos de convulsões terráqueas, muito antes que qualquer raça humana que conhecemos houvesse
ascendido um grau acima dos símios. O que se esparramava ali era uma megalópole paleoarcaica em comparação à qual sítios legendários como a Atlântida e a Lemúria, Commoriom e Uzuldaroum, ou Olathoë, na
Terra de Lomar, são coisas recentes, de hoje — nem mesmo de ontem; uma megalópole parelha com blasfêmias pré-humanas, das quais só se fala em sussurros, como Valusia, R’lyeh, Ib da Terra de Mnar e a Cidade
Inominada da Arábia Deserta. Enquanto voávamos sobre aquele labirinto de torres titânicas, minha imaginação por vezes tomava os freios nos dentes e per vagava sem rumo por reinos de fantásticas associações
— chegando mesmo a tecer vínculos entre aqueles mundos perdidos e alguns de meus próprios sonhos mais delirantes concernentes ao horror encontrado no acampamento.
No interesse de decolarmos com menos peso, o tanque de combustível do avião tinha sido enchido só parcialmente; daí termos de levar a cabo nossa exploração com cautela. Ainda assim, no entanto, cobrimos
uma extensão de terreno — ou antes, de ar — verdadeiramente desprezível. Parecia não haver limites para a cordilheira ou para a extensão da hedionda cidade pétrea que perlongava seus contrafortes. Oitenta
quilômetros em ambas as direções não revelaram qualquer modificação de monta no labirinto de rochas e cantaria que se agarrava como um cadáver nos gelos eternos. Havia, não obstante, certas diversificações
altamente interessantes; assim eram, por exemplo, os entalhes no canhão pelo qual aquele rio caudaloso havia outrora despenhado pelos contrafortes e se escoado por seu sumidouro na grande cordilheira.
Os promontórios nas entradas da corrente tinham sido esculpidos em escarpas, formando colunas ciclópicas; e havia alguma coisa nos desenhos rugosos e em forma de barril que incitava em Danforth e em mim
vagas, odiosas e confusas associações.
Demos também com diversos espaços abertos, em forma de estrela, evidentemente praças públicas, e notamos várias ondulações no terreno. Onde se elevava um monte íngreme, este geralmente se apresentava oco,
formando alguma espécie de edificação escarrapachada; havia, porém, pelo menos duas exceções. Dentre elas, uma estava demasiado carcomida para se saber o que existira na crista saliente, ao passo que a
outra ainda exibia um fantástico monumento cônico, esculpido na rocha viva e que semelhava grosseiramente coisas como o conhecido Túmulo da Cobra, no antigo vale de Petra.
Saindo das montanhas em direção ao interior do continente, pudemos constatar que a cidade não era de largura infinita, muito embora sua extensão, ao longo dos contrafortes, parecesse infindável. Depois
de aproximadamente 50 quilômetros os grotescos edifícios de pedra começavam a rarear, e com mais 15 quilômetros chegamos a um ermo ininterrupto, praticamente sem sinais de artifícios conscientes. Além
da cidade, o curso do rio parecia marcado por uma linha larga e deprimida, ao passo que o terreno adquiria um caráter acidentado um tanto mais acentuado, dando mostras de tornar-se um pouco mais elevado
à medida que se estendia rumo ao oeste brumoso.
Até então não havíamos feito nenhum pouso; no entanto, abandonar o planalto sem sequer uma tentativa de examinar de perto algumas daquelas estruturas monstruosas teria sido inconcebível. Por conseguinte,
decidimos encontrar uma área plana nos contrafortes, próxima a nossa garganta navegável, para ali aterrissarmos e nos prepararmos para uma breve exploração a pé. Embora essas suaves encostas estivessem
em parte cobertas por escombros, voando a baixa altitude logo descobrimos vários pontos onde seria possível pousar. Escolhendo o mais próximo ao desfiladeiro, uma vez que depois teríamos de alçar vôo para
transpor a cordilheira e voltar ao acampamento, por volta das 12h30min logramos aterrissar numa área plana e de neve endurecida, totalmente destruída de obstáculos e bem adaptada a uma posterior decolagem.
Não nos pareceu necessário proteger o avião com uma barragem de neve, por tempo tão curto e visto que não havia ventos fortes. Assim, verificamos apenas se os patins de pouso estavam escorados com segurança
e se as partes vitais do motor achavam-se protegidas contra o frio. Para nossa jornada a pé, deixamos no avião os agasalhos de pele mais pesados e levamos conosco pouca coisa: uma bússola de bolso, a câmara
manual, provisões, leves, uma boa quantidade de blocos de anotações e de papel, martelo e cinzel de geólogo, bolsas de coleta de amostras, um rolo de corda de alpinismo e possantes lanternas elétricas,
com pilhas extras. Tal equipamento fora trazido no avião na expectativa de que pudéssemos efetuar um pouso, tirar fotografias no chão, fazer desenhos e esboços topográficos, assim como coletar amostras
de rochas em alguma encosta nua, afloramento ou caverna na montanha. Por sorte, tínhamos um suprimento extra de papel que podíamos rasgar, colocar numa bolsa sobressalente e utilizar para assinalar nosso
percurso em qualquer labirinto em que pudéssemos entrar. Esse suprimento de papel tinha sido trazido para o caso de localizarmos algum sistema de cavernas em que o ar estivesse suficientemente calmo para
permitir esse método rápido e fácil de marcar caminho, ao invés do método usual de gravar marcas em rochas.
Descendo cuidadosamente a encosta pela neve encrostada em direção ao estupendo labirinto de pedra que se agigantava contra o opalescente céu ocidental, éramos empolgados por uma sensação de prodígios iminentes
quase tão intensa quanto a que havíamos sentido ao nos aproximarmos do inexplorado passo nas montanhas, quatro horas antes. Na verdade, por força de ver aquelas edificações, já estávamos familiarizados
com o incrível segredo oculto pelos picos; no entanto, a perspectiva de verdadeiramente penetrar naquela cidade, edificada por seres conscientes havia talvez milhões de anos — antes que qualquer raça conhecida
de homens pudesse ter existido —, era aterradora por suas implicações de anormalidade cósmica. Embora a rarefação do ar naquela altitude assombrosa tornasse a movimentação mais difícil que de costume,
tanto Danforth quanto eu sentiamo-nos muito bem, à altura de quase qualquer tarefa que se nos deparasse. Foi preciso apenas alguns passos para nos levar a uma ruína informe, arrasada ao nível da neve,
ao passo que cerca de cinquenta ou setenta metros adiante havia uma muralha imensa, sem teto, ainda intacta em seu delineamento gigantesco de cinco pontas e que se erguia a uma altura irregular de pouco
mais de três metros em média. Caminhamos em sua direção; e quando por fim pudemos tocar-lhe os desgastados blocos ciclópicos, sentimos havermos estabelecido uma ligação sem precedentes e quase blasfema
com eras esquecidas, normalmente vedados à nossa espécie.
Esse baluarte, em forma de estrela e com aproximadamente 90 metros de ponta a ponta, fora construído com blocos de arenito jurássico de dimensões irregulares — média l,80m por 2,50m. Havia uma fileira
de seteiras ou janelas com cerca de l,20m de largura e 1,50m de altura, espacejadas com grande simetria ao longo das pontas da estrela e em seus ângulos interiores, e com a parte inferior a cerca de l,20m
da superfície de gelo. Olhando por essas aberturas, pudemos ver que a parede não teria menos de 1,50m de espessura, que no interior não subsistiam quaisquer divisões e que restavam vestígios de entalhes
ou baixos-relevos em frisas nas paredes interiores — fatos que, na realidade, já tínhamos quase percebido anteriormente, ao passarmos em baixa altitude por aquela bastida e outras semelhantes. Ainda que
originariamente devessem existir partes mais baixa, todos os traços delas estavam agora inteiramente escondidas pela profunda camada de gelo e de neve naquele local.
Entramos de gatinhas por uma das janelas e em vão tentamos decifrar os desenhos murais quase apagados, porém não tentamos perturbar o piso de gelo. Nossos vôos de reconhecimento haviam mostrado que muitos
edifícios na cidade propriamente dita estavam menos entulhados de gelo e talvez pudéssemos encontrar interiores inteiramente limpos, pelos quais poderíamos chegar aos verdadeiros pavimentos térreos, se
entrássemos cm edificações que ainda conservassem teto. Antes de deixarmos o baluarte fotografamo-lo cuidadosamente e estudamos sua obra de cantaria, não revestida, com total desnorteamento. Manifestamos
desejo de que Pabodie estivesse conosco, pois seus conhecimentos de engenharia poderiam ter-nos ajudado a imaginar como aqueles blocos titânicos tinham sido manejados na época inacreditavelmente remota
em que a cidade e suas cercanias haviam sido edificadas.
A caminhada de quase um quilômetro encosta abaixo, até a cidade propriamente dita, com o vento uivando selvaticamente nos picos às nossas costas, foi algo cujos pormenores, mesmo os mais ínfimos, hão de
ficar para todo sempre gravados em minha memória. Somente em pesadelos fantásticos poderiam quaisquer seres humanos, salvo Danforth e eu, conceber tais efeitos ópticos. Entre nós e os vapores em revolução
a oeste jazia aquele entrelaçamento monstruoso de escuras torres de pedra, cujas formas outrées e incríveis voltavam a nos aturdir a cada novo ângulo de visão. Era uma miragem em pedra sólida, e não fossem
as fotografias ainda hoje eu duvidaria que tal coisa pudesse existir. O tipo geral de cantaria era idêntico ao do baluarte que tínhamos examinado pouco antes, mas as configurações urbanas superavam qualquer
descrição.
Mesmo as fotografias ilustram apenas uma ou duas fases de sua variedade infinda, sua solidez sobrenatural, seu exotismo radialmente alienígena. Havia formas geométricas para as quais um Euclides dificilmente
encontraria nome — cones de todos graus de irregularidade e truncamento, plataformas de toda espécie de desproporção, hastes com estranhos alargamentos bulbosos, colunas quebradas em grupos curiosos, arranjos
em cinco pontas ou cinco rugas de louca grotesqueria. Ao nos aproximarmos conseguimos enxergar através de certas partes transparentes do lençol de gelo e detectar algumas das pontes tubulares de pedra
que interligavam as estruturas dementes a várias alturas. Quanto a arruamentos, parecia-nos não existirem, e o único espaço aberto situava-se a aproximadamente 1,5 quilômetro à esquerda, onde o antigo
rio sem dúvida havia atravessado a cidade, em direção às montanhas.
Com auxílio dos binóculos, constatamos que as faixas externas e horizontais de esculturas quase obliteradas e os agrupamentos de pontos eram comuníssimos e quase podíamos visualizar que aspecto teria tido
outrora a cidade — muito embora a maioria dos telhados e as coroas das torres tivessem necessariamente desabado. De geral, a cidade fora um emaranhado complexo de aléias e caminhos tortuosos, sempre como
canhões profundos, sendo alguns pouco mais que túneis, à conta das obras de cantaria em balanço e das pontes em arco. Agora, esparramada sob nós, ela avultava como uma fantasia de sonho que tinha como
fundo a névoa a oeste, através de cuja extremidade setentrional o baixo e avermelhado sol antártico do começo da tarde se esforçava por penetrar. E quando, por um instante, esse sol encontrava uma obstrução
mais densa e fazia mergulhar o cenário numa sombra efêmera, o efeito era de uma ameaça sutil que jamais poderei ter esperança de pintar com palavras. Até mesmo os uivos e sibilos suaves do vento nas gargantas
profundas da cordilheira às nossas costas ganhavam um tom mais desvairado de deliberada malignidade. A última etapa de nossa descida até a cidade foi invulgarmente íngreme e abrupta; um afloramento rochoso
no ponto em que o declive se alterava levou-nos a pensar que no passado existira ali uma esplanada artificial. Sob o gelo, acreditávamos, deveria haver um lance de degraus ou coisa equivalente.
Quando finalmente mergulhamos na cidade propriamente dita, tropeçando em escombros e nos sobressaltando por causa da proximidade opressiva e da altura acachapante dos onipresentes destroços e das paredes
esburacadas, nossas sensações mais uma vez chegaram a tal intensidade que assombra-me o grau de autocontrole que conservamos. Danforth estava francamente com os nervos à flor da pele e pôs-se a tecer algumas
especulações ofensivamente irrelevantes a respeito do horror que havíamos encontrado no acampamento — especulações contra as quais eu mais me ressentia por não poder deixar de compartilhar, certas conclusões
a que éramos forçados por muitos aspectos daquela sobrevivência mórbida da antiguidade de pesadelo. Tais especulações atuaram também sobre a imaginação de Danforth. Digo isto porque em certo ponto — onde
uma aléia cheia de escombros infletia numa esquina — ele insistiu em que via no chão leves vestígios de marcas de que não gostava; por outro lado, em outros locais ele se detinha para escutar um som sutil
e imaginário, proveniente de algum ponto indefinido — um abafado sibilo musical, dizia ele, em nada diferente daquele que o vento arrancava às cavernas, mas de alguma forma perturbadoramente distinto.
O incessante motivo de cinco pontas da arquitetura circundante e dos poucos arabescos murais discerníveis tinham um efeito vagamente sinistro a que não nos podíamos furtar e nos propiciava algo como que
uma terrível certeza subconsciente com relação às entidades primais que haviam erguido aquele lugar sacrílego e nele habitado.
Não obstante, nossas almas científicas e aventureiras não estavam inteiramente mortas e mecanicamente levávamos avante nosso programa de obter amostras de todos os diferentes tipos de rochas representados
na cantaria. Desejávamos colher um conjunto bastante completo deles, a fim de melhor inferir a idade do lugar. Nada nas grandes paredes externas parecia datar de depois dos períodos Jurássico e Comancheano,
nem qualquer pedaço de pedra de todo aquele local era mais recente que a era Pliocênica. Tínhamos cabal certeza de estarmos a caminhar em meio a uma morte que já reinava havia pelo menos quinhentos mil
anos e, com toda probabilidade, ainda mais tempo.
À medida que avançávamos por aquele dédalo de crepúsculo penumbroso, parávamos diante de todas as aberturas para estudar interiores e investigar possibilidades de acesso. Algumas estavam além de nosso
alcance, ao passo que outras levavam apenas a ruínas obstruídas pelo gelo, tão vazias quanto o baluarte da montanha. Uma delas, ainda que espaçosa e promissora, dava para um abismo aparentemente sem fundo,
sem qualquer meio visível de descida. Vez por outra tínhamos oportunidade de estudar a madeira petrificada de um postigo ainda meio intacto, e impressionava-nos a fabulosa antiguidade implícita nas fibras
ainda perceptíveis. Aquelas janelas tinham vindo de gimnospermas e coníferas mesozóicas — principalmente cicadáceas cretáceas — e de palmáceas e angiospermas antigos de clara origem Terciária. Nada categoricamente
posterior ao Plioceno podia ser visto. Aqueles postigos — cujas arestas revelavam a presença antiga de dobradiças estranhas e desde muito desaparecidas — haviam sido instalados das maneiras mais variadas;
alguns ficavam do lado externo, outros do lado interno dos largos vãos. Pareciam ter ficado presos em seus lugares, sobrevivendo assim à oxidação de suas dobras antigas, provavelmente metálicas.
Após algum tempo chegamos diante de uma fileira de janelas — nas saliências de um colossal cone de cinco cantos, com ápice intacto — que conduziam a um salão vasto e bem conservado, com piso de pedra;
no entanto, eram altas demais para que descêssemos sem ajuda de corda. Tínhamos efetivamente um rolo de corda conosco, mas não queríamos ter o trabalho de realizar aquela descida de seis metros a menos
que fôssemos obrigados a tal — principalmente naquela atmosfera rarefeita onde o músculo cardíaco era forçado a grande trabalho. Aquela sala enorme seria decerto um salão de reunião, e nossas lanternas
revelavam esculturas majestosas dispostas em torno das paredes, em largas faixas horizontais, separadas por frisas igualmente largas de arabescos convencionais. Tomamos nota cuidadosamente daquele lugar,
tencionando entrar ali, a menos que encontrássemos um interior de acesso mais fácil.
Por fim, entretanto, encontramos exatamente a abertura que desejávamos, uma arcada com cerca de l,80m de largura e três metros de altura, que marcava a antiga extremidade de uma ponte suspensa que havia
passado por cima de uma aléia, a cerca de l,50m sobre o atual nível do gelo. Essas arcadas, naturalmente, ficavam em linhas com pavimentos superiores, e neste caso ainda subsistia um dos pavimentos. O
edifício a que assim se tinha acesso era uma série de plataformas retangulares à nossa esquerda, dando para oeste. O que ficava do outro lado da aléia, e na qual se abria a outra arcada, era um cilindro
decrépito, sem janelas e com uma curiosa protuberância a cerca de três metros acima da abertura. O interior estava escuro e a arcada parecia abrir-se para um báratro de vazio ilimitado.
Uma pilha de escombros fazia com que o acesso ao vasto edifício da esquadra fosse ainda mais facilitado; ainda assim, por um momento hesitamos antes de tirarmos proveito da oportunidade por que tanto havíamos
ansiado. Muito embora não nos houvéssemos aventurado a entrar naquele labirinto de arcaico mistério, era preciso renovada força de vontade para nos dispormos a realmente penetrar no interior de um edifício
completo e supérstite de um fabuloso mundo antigo cuja natureza a cada instante tornava-se-nos mais horrendamente clara. Por fim, entretanto, decidimo-nos e subimos pelo monte de escombros e chegamos ao
vão hiante. O chão adiante era feito de grandes lajes de ardósia e parecia formar o desaguadouro de um longo e alto corredor de paredes esculpidas.
Observando as muitas arcadas que partiam daquele salão e percebendo a provável complexidade do ninho de aposentos que haveria ali, resolvemos dar início a nosso sistema de marcação de caminho. Até ali
nossa bússola, juntamente com olhares frequentes para a vasta cordilheira, entrevista em meio às torres, tinha sido suficiente para impedir que nos perdêssemos; de agora em diante, contudo, era preciso
um adjutório artificial. Por conseguinte, rasgamos nossos papéis extras em tiras de tamanho adequado, que colocamos numa bolsa a ser transportada por Danforth, e nos preparamos para usá-las com tanta economia
quanto permitisse a segurança. Tal método provavelmente evitaria que nos perdêssemos, porquanto não parecia haver fortes correntes de ar no interior da edificação. No caso de soprarem ventos, ou se nosso
suprimento de papel chegasse ao fim, podíamos, naturalmente, recorrer ao método mais seguro, ainda que mais trabalhoso e lento, de tirar lascas na cantaria.
Era impossível conjecturar, sem tentativa real, qual a extensão do território que havíamos aberto. As frequentes conexões entre os diferentes edifícios tornava provável que passássemos de um para outro,
por pontes sob o gelo, exceto se isso fosse impedido por desabamentos locais e desastres geológicos, uma vez que parecia haver no interior das construções pouquíssima formação glacial. Quase todas as áreas
de gelo transparente haviam mostrado que as janelas soterradas estavam fortemente fechadas, como se a cidade tivesse permanecido naquele estado uniforme até ter-se criado o lençol glacial que viria cristalizar
a parte inferior da urbe para todo sempre. Com efeito, tinha-se a curiosa impressão de que o lugar fora voluntariamente fechado e evacuado em alguma era vaga e antiga, ao invés de sacudido por qualquer
calamidade súbita ou mesmo por uma gradual decadência. Porventura o advento do gelo fora previsto e uma população desconhecida abandonara em massa o lugar para buscar um abrigo menos condenado. As precisas
condições fisiográficas que cercaram a formação do lençol glacial naquele ponto teriam de esperar solução posterior. Não havia ocorrido, com toda certeza, uma hecatombe repentina. Talvez a pressão de neves
acumuladas tivesse sido seu causador, ou, quem sabe, uma cheia do rio ou o estouro de alguma antiga represa glacial na cordilheira houvessem contribuído para criar a situação especial que agora se observava.
A imaginação era capaz de conceber quase tudo com àquele lugar.
VI
Seria enfadonho um relato minucioso e consecutivo de nossas deambulações no interior daquele favo cavernoso e arcaico de cantaria primal — aquela cova monstruosa de segredos antigos onde agora, pela primeira
vez depois de milênios sem conta, ecoavam passos humanos. E sobretudo porque grande parte da angústia e da revelação hediondas provieram de um mero estudo das onipresentes entalhaduras murais. As fotografias
que tiramos dessas obras de talhas, à luz de lanternas, em muito corroborarão a verdade do que estamos agora desvelando, e é lamentável que não tivéssemos conosco maior quantidade de filme. Depois que
todos nossos filmes foram consumidos, passamos a fazer grosseiros esboços de certos elementos mais destacados.
O edifício em que entramos era de grande dimensão e apuro, proporcionando-nos uma ideia sugestiva da arquitetura daquele nefando passado geológico. As divisões internas eram menos imponentes que as paredes
externas, mas nos pavimentos inferiores estavam preservadas com perfeição. Uma complexidade labiríntica, envolvendo diferenças de nível entre os pisos de curiosa irregularidade, caracterizava a planta;
e decerto nos teríamos perdido de imediato não fosse a trilha de papéis rasgados que íamos deixando. Decidimos explorar antes de mais nada as decrépitas partes superiores, pelo que subimos por aquele dédalo,
percorrendo uma distância de aproximadamente 30 metros, até o ponto em que a camada mais alta de câmaras se abria, nevosa e ruinosamente, para o céu polar. A ascensão se fez pelas rampas ou planos inclinados
de pedra, íngremes e raiadas transversalmente, que por toda parte faziam as vezes de escadas. Os cômodos que encontramos eram de todas as formas e proporções imagináveis, variando de estrelas de cinco
pontas a triângulos e cubos perfeitos. Poderíamos asseverar com certa segurança que as dimensões médias de tais cômodos eram em geral de nove metros de lado, com cerca de seis metros de altura, embora
existissem muitos aposentos maiores. Após examinarmos com todo rigor as áreas superiores e o nível glacial, descemos, andar por andar, para a parte soterrada. Ali vimos, com efeito, que estávamos num contínuo
labirinto de câmaras interligadas e de passagens, as quais provavelmente levavam a áreas ilimitadas fora daquele edifício específico. A imponência e o gigantismo ciclópico de tudo quanto nos rodeava tornaram-se
curiosamente opressivos; e havia algo como que uma inumanidade vaga mas profunda em todos os contornos, dimensões, decorações e nuances daquela arquitetura blasfemamente arcaica. Logo percebemos, pelo
que os entalhes revelavam, que aquela cidade monstruosa tinha milhões de anos.
Não sabemos ainda explicar os princípios de engenharia empregados no balanceamento e no ajuste anômalos das vastas massas rochosas, embora fosse claro o constante recurso ao princípio do arco. Os cômodos
que visitamos achavam-se inteiramente despidos de qualquer coisa como mobília ou pertences móveis, uma circunstância que reforçou nossa convicção de que a cidade tinha sido abandonada deliberadamente.
O principal elemento decorativo era o sistema quase universal de esculturas murais, que tendiam a correr em contínuas faixas horizontais de quase um metro de largura, dispostas do piso ao teto e em alternância
com faixas, de igual largura, de arabescos geométricos. Havia exceções a essa regra, porém sua predominância era esmagadora. Com frequência, todavia, uma série de cártulas lisas, com grupos de pontos em
configurações singulares, era embutida numa das faixas de arabescos.
A técnica, logo verificamos, era amadurecida, requintada; e evoluíra, do ponto de vista estético, ao mais alto grau de apuro civilizado, embora permanecesse de todo estranha, em qualquer pormenor, a qualquer
tradição artística conhecida da raça humana. Em delicadeza de lavor, nenhuma escultura que eu já tenha visto poderia fazer-lhe sombra. Os mais insignificantes detalhes de uma flora rica ou da vida animal
eram traduzidos com atordoante vivacidade, a despeito da escala majestosa das entalhaduras; de outra parte, os desenhos convencionais eram primores de esmerado entrelaçamento. Os arabescos faziam uso sapiente
de princípio matemáticos e compunham-se de curvas e ângulos obscuramente simétricos, de base cinco. As faixas pictóricas seguiam uma tradição altamente formalizada e envolvia um tratamento peculiar da
perspectiva, mas possuíam uma força artística que nos causava emoção profunda, não obstante o abismo interveniente de imensos períodos geológicos. O método construtivo baseava-se numa singular justaposição
da seção transversal com a silhueta bidimensional e incorporava uma psicologia analítica mais avançada que a de todas as raças conhecidas da antiguidade. Será inútil tentar comparar essa arte com qualquer
uma das representadas em nossos museus. Quem examinar nossas fotografias provavelmente há de encontrar analogias com certas concepções grotescas dos mais extremados futuristas.
O risco dos arabescos consistia sempre em linhas deprimidas, cuja profundidade em paredes intactas variava de dois a quatro dedos. Quando surgiam cártulas com agrupamentos de pontos — evidentemente inscrições
numa língua e num alfabeto primordiais e desconhecidos — a depressão na superfície lisa teria, talvez, três dedos de fundo; a dos pontos, talvez um dedo mais. As faixas pictóricas eram em alto-relevo,
ficando o fundo deprimido cerca de 5 centímetros em relação à superfície da parede. Em uma que outra amostra, podia-se detectar resíduos de pintura, se bem que, na maioria das frisas, eras e eras sem conta
haviam desintegrado e feito desaparecer quaisquer pigmentos que lhe pudessem ter sido aplicados. Quanto mais se estudava a técnica magnífica, mais se admirava as obras. Sob o rígido convencionalismo, percebia-se
a observação minuciosa e precisa, bem como a perícia gráfica dos artistas; e, na verdade, as próprias convenções atendiam à simbolização e à acentuação da essência real ou da diferenciação vital de todo
objeto representado. Sentíamos, ademais, que a par dessas excelências perceptíveis havia outras que se situavam além do alcance de nossa percepção. Aqui e ali, certos toques faziam vagas alusões a símbolos
e estímulos latentes que um outro lastro mental e emocional, bem como um aparelho sensório mais completo ou diferente, poderia ter tornado de profundo e pungente significado para nós.
A temática das esculturas provinha obviamente da vida da época desaparecida de sua criação e continha grande proporção de relatos históricos. Foi essa extrema preocupação da raça primal em registrar sua
história — uma circunstância casual que, por coincidência, atuou miraculosamente em nosso favor — que deu às entalhaduras uma tão formidável carga informativa e que nos levou a atribuir prioridade máxima
a fotografá-las e transcrevê-las. Em certas salas, o arranjo dominante era diversificado pela presença de mapas, cartas celestes e outros desenhos científicos em grande escala — sendo que tais coisas davam
uma ingênua e significativa corroboração ao que já havíamos inferido das frisas pictóricas. Ao me referir por alto ao que o todo revelava, só me resta esperar que minha narrativa não venha a suscitar,
por parte dos que crêem em mim, uma curiosidade maior do que a justificada pela sã cautela. Seria trágico que alguém fosse atraído àquele reino de morte e horror pela própria advertência destinada a desencorajar
novas visitas.
Essas paredes esculpidas eram interrompidas por janelas altas e imponentes portais de quase quatro metros, que vez por outra retinham as bandeiras de madeira petrificada, elaboradamente entalhadas. Todas
as ferragens metálicas haviam desaparecido desde muito, mas algumas portas permaneciam no lugar e tinham de ser abertas à força enquanto progredíamos de câmara em câmara. Caixilhos de janelas, com curiosas
vidraças transparentes — na maioria elípticas — subsistiam aqui e ali, ainda que em quantidade pouco considerável. Havia ainda, com frequência, nichos de alentadas dimensões, em geral vazios, mas ocasionalmente
exibindo algum objeto fantástico, esculpido em esteatita verde. Tais objetos ou estavam quebrados ou haviam sido considerados demasiado inferiores para serem removidos. Outras aberturas estavam indubitavelmente
ligadas a desaparecidas instalações mecânicas — para aquecimento, iluminação ou quejandos — de uma natureza indicada em vários dos entalhes. Os tetos em geral eram planos, mas às vezes tinham sido decorados
com a esteatita verde ou outros tipos de azulejos, agora quase todos soltos. Os pisos eram também revestidos com tais azulejos, posto que predominassem pedras lisas.
Como já ficou dito, todo mobiliário e outros pertences haviam sido removidos. No entanto, as esculturas davam ideia clara dos objetos estranhos que outrora haviam guarnecido aqueles aposentos tumulares
e ressonantes. Acima do lençol glacial, os pisos estavam em geral atulhados de detritos, destroços e escombros, porém mais embaixo essa situação se agravava. Em alguns dos aposentos e corredores inferiores
havia pouco mais que poeira areenta ou incrustações antigas, ao passo que algumas poucas áreas ofereciam uma impressão sinistra de varredura recente. Naturalmente, onde haviam ocorrido fraturas ou desabamentos,
os pavimentos inferiores estavam tão atulhados de destroços quanto os superiores. Um pátio central — como as que víramos do ar em outras estruturas — impedia que as regiões inferiores mergulhassem em trevas
totais. Por isso, raramente tivemos de utilizar as lanternas elétricas nas salas superiores, salvo quando examinando pormenores de esculturas. Sob a calota glacial, no entanto, a penumbra aumentava e em
muitos pontos do emaranhado andar térreo quase reinava o negrume absoluto.
Para que se forme uma ideia ao menos rudimentar de nossos pensamentos e sensações enquanto invadíamos aquele dédalo silencioso de cantaria inumana, é mister correlacionar um caos inapelavelmente atordoante
de humores, lembranças e impressões fugitivas. Bastavam a estupefaciente antiguidade e a desolação letal do lugar para esmagar quase qualquer pessoa sensível, mas a esses elementos somava-se o recente
e inexplicado horror que se nos deparara no acampamento, assim como as revelações logo impostas pelas portentosas esculturas murais que nos cercavam. No momento em que nos vimos diante de um trecho intacto
do alto-relevo, que não permitia qualquer ambiguidade de interpretação, foi bastante um exame breve para que nos inteirássemos da hedionda verdade — uma verdade que só com ingenuidade Danforth e eu poderíamos
alegar não havermos suspeitado independentemente antes, muito embora tivéssemos tomado todo cuidado para nem sequer aludir a ela. Daquele momento em diante já não podíamos nutrir qualquer dúvida clemente
quanto à natureza dos seres que haviam edificado e habitado aquela tétrica cidade, morta havia milhões de anos, quando os ancestrais do homem eram primitivos mamíferos arcaicos e enormes dinossauros vagueavam
pelas estepes tropicais da Europa e da Ásia.
Havíamos até então nos apegado a uma alternativa desesperada e insistido — cada qual consigo mesmo — que a onipresença do motivo de cinco pontas representava tão-somente alguma exaltação cultural ou religiosa
do objeto natural arqueano que tão patentemente incorporava a ideia das cinco pontas — da mesma forma como os motivos decorativos da Creta minoana exaltavam o touro sagrado, os do Egito o escaravelho,
os de Roma o lobo e a águia, e os de várias tribos selvagens algum animal totêmico. No entanto, esse único refúgio era-nos agora roubado e nos víamos forçados a encarar definitivamente a percepção enlouquecedora
que o leitor destas páginas sem dúvida há de ter adivinhado há muito. Mal consigo me persuadir a registrar com todas letras essa verdade, ainda agora; mas talvez isso não seja necessário.
Os seres que haviam habitado aquela arquitetura assustadora ao tempo dos dinossauros não eram, com efeito, dinossauros, mas algo muito pior. Os dinossauros eram criaturas novas e quase destituídas de cérebro...
mas os construtores da cidade eram sábios e antigos e haviam deixado certos sinais em rochas já então assentadas havia perto de um bilhão de anos... rochas assentadas antes que a verdadeira vida na Terra
tivesse avançado além do estádio de grupos plásticos de células... rochas assentadas antes que a verdadeira vida da Terra sequer existisse, em qualquer forma. Eram eles os criadores é, os escravizadores
daquela vida e, acima de toda duvidados fundamentos dos demoníacos mitos antigos aos quais coisas como os Manuscritos Pnakóticos e o Necronomicon fazem veladas alusões. Eram os “Antigos” que haviam descido
das estrelas quando a Terra era Jovem — os seres cuja substância uma evolução desnaturada moldara e cujos poderes não haviam sido gerados neste planeta. E pensar que ainda na véspera Danforth e eu havíamos
verdadeiramente contemplado fragmentos de sua substância milenariamente fossilizada... e que o pobre Lake e seu grupo haviam visto seus contornos completos...
É-me impossível, naturalmente, relatar na ordem adequada os estádios mediante os quais concatenamos aquilo que sabemos daquele monstruoso capítulo da vida pré-humana. Passado o choque inicial da revelação
inescapável, tivemos de fazer uma pausa para nos recompormos e já eram três da tarde quando começamos o programa de pesquisa sistemática. As esculturas do edifício em que entramos datavam de uma época
relativamente tardia — talvez dois milhões de anos passados, segundo indicavam características geológicas, biológicas e astronômicas, e representavam uma arte que poderia ser dita decadente em comparação
à dos exemplos que encontramos em edifícios mais antigos, depois de atravessarmos pontes sob o lençol glacial. Um desses edifícios, talhado na rocha viva, parecia remontar a quarenta ou, possivelmente,
até cinquenta milhões de anos — ao Eoceno inferior ou ao Cretáceo superior — e continha alto-relevos de uma mestria inigualada por qualquer outra, com uma única exceção, que tenhamos encontrado. Aquela
era, concordamos mais tarde, o mais antigo exemplo de arquitetura habitacional por que passamos.
Não fora a corroboração daquelas fotografias que logo serão divulgadas, eu me absteria de dizer o que encontrei e inferi, para não ser confinado como demente. Naturalmente, as partes infinitamente antigas
da narrativa em retalhos — representando a vida pré-terrestre dos seres estrelicéfalos em outros planetas, em outras galáxias e em outros universos — podem ser prontamente interpretadas como a mitologia
fantástica daqueles próprios seres. No entanto, tais partes por vezes envolviam desenhos e diagramas tão fantasticamente aproximados das mais recentes descobertas da matemática e da astrofísica que quase
não sei o que pensar. Que outros avaliem quando virem as fotografias que publicarei.
Decerto, isoladamente nenhum dos conjuntos de entalhaduras que encontramos narrava mais que uma fração de qualquer história conexa, nem tampouco começamos, naqueles momentos, a tomar ciência das diversas
etapas da história em sua ordem certa. Algumas daquelas salas colossais constituíam unidades independentes no que se referia à sua decoração, ao passo que, em outros casos, uma crônica contínua se desenrolava
por uma série de câmaras e corredores. Os melhores mapas e diagramas situavam-se nas paredes de um abismo horripilante que ficava abaixo até mesmo do antigo nível do solo — uma caverna com, talvez, 60
metros de lado e 18 metros de altura, e que quase indubitavelmente fora alguma espécie de centro educacional. Havia muitas repetições exasperantes do mesmo material em salas e edifícios diferentes, dado
que certos capítulos da experiência e certos sumários ou fases da história rácica evidentemente tinham gozado do favor de diferentes decoradores ou moradores. Às vezes, no entanto, variantes do mesmo tema
mostravam-se úteis para dirimir dúvidas e preencher lacunas.
Admira-me ainda que tenhamos deduzido tanto no pouco tempo à nossa disposição. Naturalmente, mesmo agora só conhecemos os delineamentos mais gerais — e grande parte deles foi obtido posteriormente, pelo
estudo das fotografias e esboços que fizemos. É possível que a causa imediata do atual colapso de Danforth tenha sido esses estudos posteriores — o reviver de memórias e vagas impressões, que se somou
à sensibilidade geral do moço e àquele vislumbre final de horror indizível, cuja essência ele não revela sequer a mim. Contudo, assim tinha de ser, porquanto não poderíamos lançar nossa admoestação, de
maneira eficaz, sem as informações mais plenas possíveis — e lançar essa admoestação é uma necessidade inelutável. Certas influências remanescentes naquele desconhecido mundo antártico de tempo desordenado
e de leis naturais invertidas tornam imperativo que novas explorações sejam desestimuladas.
VII
A história completa, tal como decifrada até o presente, aparecerá mais adiante num boletim oficial da Universidade Miskatonic. Limitar-me-ei aqui a esboçar somente os aspectos mais notáveis de modo informe
e divagante. Mito ou não, as esculturas falavam do advento daqueles seres estrelicéfalos, caídos do espaço cósmico, à Terra nascente e sem vida — o advento deles e de muitas outras entidades alienígenas
que, em certas épocas, empenham-se em explorações espaciais. Pareciam capazes de transpor o éter interestelar com suas vastas asas membranosas — confirmando assim, singularmente, alguns curiosos relatos
folclóricos que há muito tempo me foram contados por um colega dado a antigualhas. Tinham vivido sob o mar por longo tempo, construindo cidades fantásticas e travando lutas formidáveis com adversários
inomináveis, batalhas nas quais faziam emprego de artifícios complicados, baseados em desconhecidos princípios de energia. Evidentemente, o conhecimento científico e mecânico de que dispunham ultrapassava
de longe o do homem moderno, muito embora só recorressem às suas formas mais difundidas e elaboradas quando obrigados a tanto. Algumas esculturas davam a entender que haviam passado, por um etapa de vida
mecanizada em outros planetas, mas que tinham retrocedido por julgarem seus efeitos emocionalmente insatisfatórios. A dureza sobrenatural de seus corpos e a simplicidade de suas necessidades naturais tornavam-nos
peculiarmente aptos a levarem uma vida de excelente qualidade sem os frutos mais especializados da manufatura artificial e até mesmo sem vestuário, salvo para proteção ocasional contra os elementos.
Foi sob o mar, primeiramente em busca de alimento e mais tarde com outros propósitos, que haviam criado a vida terrestre, utilizando as substâncias disponíveis segundo métodos desde muito conhecidos. As
experiências mais elaboradas sucederam-se ao aniquilamento de vários inimigos cósmicos. Haviam feito o mesmo em outros planetas, produzindo não só os alimentos necessários como também certas massas protoplásmicas
multicelulares capazes de transformar seus tecidos em toda espécie de órgãos temporários, sob efeito de hipnose, com o que eles produziam os escravos ideais para executarem o trabalho pesado da comunidade.
Eram a essas massas viscosas que sem dúvida aludia Abdul al-Hazred no nefando Necronomicon — aquilo a que ele chamava “Shoggoths” —, ainda que nem mesmo aquele árabe louco dissesse que existiam na Terra,
salvo nos sonhos daqueles que mascavam uma determinada erva alcalóide. Depois que, aqui neste planeta, os Antigos estrelicéfalos sintetizaram seus alimentos simples e produziram uma boa quantidade de Shaggoths,
permitiram que outros grupos celulares se transformassem em outras formas de vida animal e vegetal, para diversos propósitos, extirpando todas aquelas cuja presença se tornasse incômoda.
Com ajuda dos Shoggoths, cujas expansões podiam ser levadas a erguer pesos prodigiosos, as pequenas e baixas cidades submarinas transformaram-se em vastos e imponentes labirintos de pedra, análogos aos
que ulteriormente desenvolveram-se em terra. Na verdade, os Antigos, altamente adaptáveis, tinham vivido em terra em outras partes do universo e provavelmente conservavam muitas tradições de construção
terrestre. Enquanto estudávamos a arquitetura de todas aquelas arcaicas, cidades esculpidas, inclusive daquela cujos corredores imemoriais percorríamos naquele momento, impressionava-nos uma curiosa coincidência
que ainda não tentamos explicar nem a nós próprios. Os topos dos edifícios, que na cidade real em que nos encontrávamos haviam-se convertido, naturalmente, em ruínas havia muitas eras, eram mostrados claramente
nos alto relevos, onde se viam vastas aglomerações de flechas finas como agulhas, delicados remates em certos ápices cônicos e piramidais, assim como fileiras de finos discos horizontais, superpostos,
coroando fustes cilíndricos, Era exatamente isso que havíamos visto naquela miragem monstruosa e portentosa, projetada por uma cidade morta na qual tais elementos estavam ausentes havia milhares e dezenas
de milhares de anos, e que se agigantara diante de nossos olhos ignaros do outro lado das desconhecidas montanhas da loucura enquanto nos aproximávamos do fatídico acampamento do pobre Lake.
Sobre a vida dos Antigos, tanto sob o mar quanto depois que parte deles migraram para terra, poder-se-ia escrever volumes inteiros. Os que habitavam águas rasas haviam mantido o uso pleno dos olhos, nas
extremidades de seus cinco principais tentáculos cefálicos, e haviam praticado as artes da escultura e da escrita de maneira bastante convencional, sendo a escrita realizada com um estilo, sobre superfícies
de cera à prova d’água. Os que viviam nas regiões pelágicas, ainda que utilizassem um curioso organismo fosforescente para fornecer luz, logravam visão por intermédio de obscuros sentidos especiais que
atuavam através dos cílios prismáticos das cabeças — sentidos esses que, em emergências tornavam todos os Antigos em parte independentes de luz. As formas de escultura e escrita haviam-se modificado curiosamente
com a descida, incorporando certos processos de revestimento, aparentemente químicos — sem dúvida para garantir a fosforescência —, que os altos-relevos não elucidavam para nós. Os seres moviam-se no mar,
em parte nadando (com ajuda dos braços crinóides laterais) e em parte contorcendo-se com a fileira inferior de tentáculos, que continham os pseudópodos. Por vezes logravam saltos bem longos, fazendo uso
de dois ou mais conjuntos auxiliar de asas dobráveis. Em terra, usavam os pseudópodos, mas ocasionalmente voavam a grandes altitudes ou cobriam enormes distâncias com as asas. Os muitos tentáculos finos
em que os braços crinóides se subdividiam eram infinitamente delicados, flexíveis, robustos e possuíam precisa coordenação neuromuscular, o que assegurava perfeita habilidade e destreza em todas as operações
manuais, inclusive as artísticas.
A dureza daqueles seres era quase inacreditável. Até mesmo a tremenda pressão dos abismos oceânicos parecia impotente para vulnerá-los. Parecia que pouquíssimos chegavam a morrer, exceto por violência,
e seus locais fúnebres eram muito reduzidos. O fato de cobrirem seus mortos, que sepultavam em posição vertical, com montículos de cinco pontas, com inscrições, provocou em Danforth e em mim pensamentos
que obrigaram a uma nova pausa para recuperação, depois que as esculturas o revelaram. Os seres multiplicavam-se por meio de espórios — como pteridófitos vegetais, tal como suspeitara Lake — mas, devido
à sua prodigiosa dureza e sua longevidade, e à consequente falta de necessidade de reposição, não incentivavam o desenvolvimento em grande escala de progênie, exceto quando tinham novas regiões a colonizar.
Os jovens amadureciam rapidamente e recebiam uma educação evidentemente além de qualquer padrão que possamos imaginar. A vida intelectual e estética era altamente desenvolvida, tendo produzido um conjunto
extremamente duradouro de costumes e instituições que descreverei com mais vagar na monografia que está para sair. Variavam ligeiramente do mar para a terra, mas seus fundamentos e aspectos essenciais
eram os mesmos.
Conquanto fossem capazes, como os vegetais, de se nutrirem de substâncias inorgânicas, davam clara preferência à alimentação orgânica, principalmente animal. No mar, comiam organismos marinhos sem cozer,
porém em terra coziam suas vitualhas. Praticavam a caça e criavam rebanhos, abatendo os animais com armas aguçadas — e era essa a origem das curiosas marcas em ossos fósseis que nossa expedição havia observado.
Resistiam notavelmente a todas as temperaturas ordinárias, e em seu estado natural, sem vestimentas, eram capazes de viver em águas cujas temperaturas chegavam à do congelamento. Não obstante, ao aproximar-se
a grande glaciação do Pleistoceno — há quase um milhão de anos —, os habitantes da terra tiveram de recorrer a medidas especiais, inclusive aquecimento artificial, até que, finalmente, o frio mortal parece
tê-los empurrado de volta ao mar. Para seus vôos pré-históricos pelo espaço cósmico, dizia a lenda, absorviam certas substâncias químicas e tornavam-se quase independentes de alimentação, respiração ou
condições de temperatura. No entanto, à época do grande frio haviam perdido o conhecimento do método. De qualquer forma, não poderiam ter prolongado o estado artificial indefinidamente, sem dano.
Por não se acasalarem e por serem de estrutura semivegetal, os Antigos careciam de qualquer base biológica para a fase familiar de vida mamífera, mas, ao que parece, organizavam grandes comunidades “familiares”,
segundo o princípio de utilização ideal do espaço e — como deduzimos pelas ocupações representadas nas frisas e nas diversões dos co-habitantes — de associação mental compatível. Ao mobiliarem seus aposentos,
colocavam tudo no centro dos cômodos imensos, deixando as paredes livres para tratamento decorativo. A iluminação, no caso dos terrícolas, era realizada por um dispositivo de natureza provavelmente eletroquímica.
Tanto em terra quanto sob as águas, usavam mesas curiosas, cadeiras e sofás semelhantes a bastidores cilíndricos — pois repousavam e dormiam em posição ereta, com os tentáculos dobrados —, além de armações
para as tábuas de superfícies pontilhadas que constituíam seus livros.
A estrutura de governo era evidentemente complexa e provavelmente socialista, embora as esculturas que vimos não permitissem certeza quanto a essas questões. Havia um amplo comércio, local e entre diferentes
cidades, e certas fichas pequenas e chatas, de cinco pontas e com inscrições, cumpriam a função de moeda. E provável que as menores das várias esteatitas esverdeadas encontradas por nossa expedição constituíssem
peças dessa moeda. Embora a cultura fosse sobretudo urbana, havia alguma agricultura e era disseminada a atividade criatória. Praticavam também a mineração e um certo volume de manufatura. As viagens eram
frequentíssimas, mas a migração permanente parecia relativamente rara, exceto quando dos vastos movimentos colonizadores através dos quais a raça se expandia. Para transporte pessoal não usavam nenhum
artifício mecânico, uma vez que, na terra, no ar ou na água, os Antigos pareciam ser capazes de lograr extraordinárias velocidades. As cargas, entretanto, eram puxadas por bestas de tiro — Shoggoths sob
o mar e uma curiosa variedade de vertebrados primitivo no período posterior de vida terrestre.
Tais vertebrados, assim como uma infinitude de outras formas de vida — animais e vegetais, marinhos, terrestres e aéreas — eram produtos de evolução fortuita que atuava sobre células fabricadas pelos Antigos,
mas às quais não davam eles maior atenção. Tinham-lhes sido permitido desenvolver-se à vontade, pois não haviam entrado em conflito com os seres dominantes. As formas incômodas, naturalmente, eram exterminadas
por via mecânica. Interessou-nos ver, em algumas das últimas e mais decadentes esculturas, um trôpego e primitivo mamífero, usado às vezes como alimento e às vezes como bufão divertido pelos terrícolas,
e cujas prefigurações simiescas e humanas eram inconfundíveis. Na construção das cidades terrestres, os colossais blocos de pedra eram geralmente erguidos por pterodáctilos de asas imensas, criaturas de
uma espécie até aqui desconhecida para a paleontologia.
A persistência com que os Antigos sobreviveram a várias alterações geológicas e a convulsões da crosta terrestre raiava o milagre. Conquanto poucas (ou nenhuma) de suas primeiras cidades não houvessem,
ao que entendemos, sobrevindo além da era arqueana, não houve qualquer solução de continuidade na civilização daqueles seres ou na transmissão de seus anais. O local onde tinham chegado originariamente
ao planeta era o oceano Antártico, e não é provável que esse advento se tenha dado muito depois que a matéria formadora da Lua foi arrancada ao vizinho Pacífico Sul. Segundo um dos mapas escultóricos,
todo o globo estava então submergido pelas águas, e à medida que transcorriam os éons, as cidades de pedra se dispersavam, afastando-se cada vez mais da Antártida. Outro mapa mostra uma grande porção de
terra seca em torno do pólo sul, onde é evidente que alguns daqueles seres fundaram núcleos experimentais, ainda que seus centros principais fossem transferidos para o mais próximo leito marinho. Mapas
posteriores, que mostram a massa terrestre com fissuras e em translação, lançando certas partes separadas em direção ao norte, coonestam de modo notável as teorias de translação dos continentes, propostas
em dará recente por Taylor, Wegener e Joly.
Com o soerguimento de novas terras no Pacífico Sul, tiveram início episódios de tremendo significado. Algumas cidades marinhas foram irremediavelmente despedaçadas, mas no entanto não foi essa sua pior
desdita. Uma outra raça — uma raça terrestre de seres em forma de polvo e que provavelmente corresponde à fabulosa raça pré-humana de Cthulhu — logo começou a se insinuar na Terra, vindo do infinito cósmico,
e precipitou uma guerra monstruosa que por algum tempo impeliu totalmente os Antigos de volta ao mar, o que representou golpe terrível, em vista dos crescentes núcleos terrestres, Posteriormente fez-se
a paz e as novas terras foram dadas à raça de Cthulhu, ao passo que os Antigos comandavam o mar e as terras mais velhas. Fundaram-se novas cidades em terra, as maiores na Antártica, pois aquela região,
a primeira que haviam pisado, era sagrada. A partir de então, tal como antes, a Antártida permaneceu como centro da civilização dos Antigos e todas as cidades ali erigidas pela geração de Cthulhu foram
aniquiladas. De repente, então, as terras do Pacífico imergiram novamente, levando consigo, para o fundo do mar, a horrífica cidade pétrea de R’lyeh e todos os polvos cósmicos, de modo que os Antigos voltaram
a reinar, soberanos, no planeta. Restou-lhes único temor nebuloso, com relação ao qual não gostavam de falar. Numa era mais tardia suas cidades pontilharam todas as terras e as águas do globo, donde a
recomendação, em minha monografia vindoura, de que algum arqueólogo realize perfurações sistemáticas, com o equipamento projetado por Pabodie, em certas regiões vastamente separadas.
No decurso das eras, persistiu a tendência de trocarem as águas pelas terras, movimento encorajado pelo surgimento de nossas massas terrestres, embora o oceano nunca tivesse ficado inteiramente abandonado.
Outra causa para o fluxo em direção à terra foi a nova dificuldade para geração e controle dos Shoggoths, de que dependia a vida normal no mar. Com o passar do tempo, como confessavam tristemente as esculturas,
a arte de produzir vida nova a partir da matéria inorgânica se perdera, de modo que os Antigos tinham de depender do modelamento de formas já existentes. Em terra os grandes répteis tinham-se mostrado
bastante maleáveis; mas os Shoggoths do mar, que se reproduziam por fissão e haviam adquirido um perigoso grau de inteligência acidental, representaram durante algum tempo um problema grave.
Sempre haviam sido controlados através das sugestões hipnóticas dos Antigos, moldando sua dura plasticidade, de forma a criar vários membros e órgãos temporários de grande utilidade. Agora, porém, seus
poderes metamorfoseantes às vezes eram exercidos de maneira independente e segundo diversas fórmulas imitativas implantadas por sugestão passada. Haviam, ao que parece, desenvolvido um cérebro semi-estável
cuja volição separada e ocasionalmente obstinada ecoava a vontade dos Antigos sem obedecê-la sempre. As imagens esculpidas desses Shoggoths encheram-nos, a Denforth e a mim, de horror e asco. Eram entidades
normalmente amorfas, compostas de uma geléia gosmenta que se assemelhava a uma aglutinação de bolhas, e cada um deles tinha em média, quando em forma esférica, cerca de quatro metros e meio de diâmetro.
Possuíam, contudo, forma e volume em constante transformação — arrojando apêndices temporários ou formando órgãos para visão, audição e fala, numa imitação de seus senhores, quer espontaneamente, quer
seguindo sugestões.
Parecem ter-se tornado peculiarmente intratáveis por volta de meados da era Permiana, há talvez 150 milhões de anos, quando uma verdadeira guerra lhes foi movida pelos Antigos marinhos, com o fito de novamente
subjugá-los. As imagens dessa guerra, bem como das vitimas dos Shoggoths — caracteristicamente decapitavam-nas e deixavam seus corpos recobertos de limo —, revelavam uma qualidade maravilhosamente alarmante,
a despeito do abismo interveniente de eras sem conta. Os Antigos empregavam contra as entidades rebeladas curiosas armas de desagregação molecular e atômica, e por fim haviam logrado um triunfo cabal.
A partir de então as esculturas mostravam um período em que os Shoggoths foram amansados e dominados por Antigos armados, tal como os cavalos selvagens do oeste americano eram amansados por cowboys. Ainda
que, durante a revolta, os Shoggoths houvessem demonstrado capacidade de viverem fora da água, essa transição não foi estimulada, uma vez que sua utilidade em terra dificilmente compensaria a dificuldade
de controlá-los.
Durante a Era Jurássica, os Antigos haviam enfrentado uma nova adversidade, na forma de uma outra invasão do espaço galáctico, dessa vez de criaturas semifundosas, semicrustáceas — sem dúvida as mesmas
que figuravam em certas lendas do norte, contadas aos sussurros, e retidas na região do Himalaia como os Mi-Go ou Abomináveis Homens das Neves. Para combater esses seres, os Antigos tentaram, pela primeira
vez desde sua chegada à Terra, retornar ao éter planetário; no entanto, apesar de todos os preparativos preliminares, verificaram que já não lhes era possível deixar a atmosfera terrena. Qualquer que fosse
o antigo segredo da viagem interestelar, a raça havia perdido inteiramente. Por fim os Mi-Go expulsaram os Antigos de todas as terras setentrionais, embora fossem impotentes para perturbar os que habitavam
o mar. Pouco a pouco, começava o lento recuo da raça para seu original habitat antártico.
Foi curioso observar nas cenas de batalha que tanto a progênie de Cthulhu quanto os Mi-Go parecem ter-se constituído de uma matéria bem mais diferente da que conhecemos do que a substância que compunha
os Antigos. Eram capazes de passar por transformações e reintegrações impossíveis para seus adversários, pelo que parecem ter provindo de báratros ainda mais remotos do espaço cósmico. Apesar de sua dureza
anormal e das peculiares propriedades vitais, os Antigos eram rigorosamente materiais, e sua origem primeira deveria situar-se no continuum conhecido de espaço-tempo, ao passo que as fontes primordiais
dos outros seres só podem ser objeto de conjecturas, com o fôlego suspenso. Tudo isso, naturalmente, supondo-se que os predicados não terrestres e as anomalias atribuídos aos inimigos invasores não sejam
pura mitologia. É concebível que os Antigos inventassem todo um referenciamento cósmico para explicarem suas derrotas ocasionais, uma vez que o interesse histórico c o orgulho constituíam, obviamente,
o principal elemento psicológico da raça. É significativo que suas crônicas deixassem de fazer menção a muitas raças avançadas e poderosas cujas culturas requintadas e cujas cidades majestosas figuram
persistentemente em certas lendas obscuras.
A transformação do planeta no decorrer de longas eras geológicas aparecia com notável vivacidade em muitos dos mapas e cenas esculpidos. Em alguns casos, a ciência corrente terá de passar por uma revisão,
ao passo que em outros suas audazes conclusões estão magnificamente confirmadas. Como já observei, a hipótese de Taylor, Wegener e Toly de que todos os continentes são fragmentos de uma original massa
terrestre antártica, fendida pela força centrífuga, após o que as várias porções deslizaram sobre uma superfície inferior tecnicamente viscosa — uma hipótese sugerida, entre outras coisas, pelos contornos
complementares da África e da América do Sul e pela maneira como as grandes cadeias de montanhas se apresentam com fortes dobramentos — recebe notável apoio dessa fonte fantástica.
Mapas que representavam patentemente o mundo do Cardonífero, há cem milhões de anos ou mais, exibiam acentuadas fissuras e fossas destinadas a mais tarde separar a África dos reinos outrora contínuos da
Europa (então a Valúsia das lendas remotas), Ásia, Américas e Antártida. Outras cartas — e sobretudo uma relacionada com a fundação, há 50 milhões de anos, da vasta cidade morta que nos rodeava — mostravam
todos os atuais continentes bem diferenciados. E no mais recente que pudemos analisar, que dataria da Era Pliocênica, via-se com toda clareza o mundo quase em seu estado atual, apesar da ligação do Alasca
com a Sibéria, da América do Norte com a Europa, através da Groenlândia, e da América do Sul com o continente antártico através da Terra de Graham. No mapa do Carbonífero, todo o globo — tanto os leitos
oceânicos quanto as massas terrestres — mostravam símbolos das vastas cidades de pedra dos Antigos; nas cartas posteriores, entretanto, a recessão gradual em direção à Antártica tornava-se manifesta. O
mapa final do Plioceno não mostrava quaisquer cidades terrestres, salvo no continente antártico e na extremidade da América do Sul, nem quaisquer cidades oceânicas ao norte do paralelo 50 de latitude sul.
O interesse pelo mundo setentrional, excetuado um estudo das linhas de costa realizado provavelmente durante longos vôos de exploração utilizando aquelas asas membranosas, havia evidentemente caído a zero
entre os Antigos.
A destruição das cidades, causada pelo sublevamento orográfico, pelo despedaçamento centrífugo dos continentes, pelas convulsões sísmicas na terra e no leito marinho, e por outras causas naturais, era
objeto de constante registro; e era curioso observar como as reposições se faziam cada vez mais raras com a passagem das eras. A vasta megalópole morta que se esparramava em torno de nós parecia ser o
último centro geral da raça, tendo sido construída no princípio do Cretáceo, depois que uma titânica deformação terrestre obliterou uma predecessora ainda mais vasta, não muito distante. Era de crer que
aquela região geral fosse, dentre todos, o local mais sagrado, onde os primeiros Antigos se teriam instalado no leito de um mar primevo. Na nova cidade — muitos aspectos da qual podíamos reconhecer nas
esculturas, mas que se espraiava por nada menos de 160 quilômetros, junto da cordilheira, em ambas as direções, estendendo-se além dos limites mais distantes de nosso levantamento aéreo — eram conservadas,
ao que constava, certas pedras sagradas que tinham feito parte da primeira cidade marinha, e que emergiu à luz do dia passadas longas épocas, no curso do desmoronamento geral das camadas geológicas.
VIII
Era natural que Danforth e eu estudássemos com interesse especial e uma sensação de reverência particularmente pessoal tudo quanto dizia respeito à área imediata em que nos encontrávamos. Havia, naturalmente,
rica abundância daquele material local. E no emaranhado nível térreo da cidade tivemos a sorte de encontrar uma casa de data muito tardia, cujas paredes, conquanto um pouco danificadas por uma fratura
próxima, continham esculturas de decadentes que levavam a história da região muito além do período do mapa Plioceno do qual derivamos nosso último vislumbre geral do mundo pré-humano. Aquele foi o último
lugar que examinamos em minúcia, pois o que descobrimos deu-nos um novo objetivo imediato.
Decerto estávamos em um dos mais estranhos, sobrenaturais e lúgubres dentre todos os recantos do planeta. Das terras existentes, era ela, infinitamente, a mais antiga. Cresceu em nós a convicção de que
aquele sítio hórrido devia ser, com efeito, o legendário planalto de Leng, que até mesmo o louco autor do Necronomicon relutava em descrever. A grande cordilheira era tremendamente longa — começava como
uma serra modesta na Terra de Luitpold, na costa do mar de Weddell, e atravessava praticamente todo o continente. Sua parte realmente alta estendia-se num arco pujante desde 82° S, 60° E até 70° S, 115°
E, com o lado côncavo voltado para nosso acampamento e sua extremidade mais próxima do mar na região daquela longa costa congelada cujos montes foram entrevistos por Wilkes e Mawson no círculo antártico.
No entanto, exageros da natureza ainda mais monstruosos pareciam inquietantemente próximos. Já disse que esses picos são mais altos que os do Himalaia, mas as esculturas me impedem dizer que sejam os mais
elevados do globo. Essa honra lúgubre está sem dúvida reservada a uma coisa que metade das esculturas hesitava em sequer registrar, ao passo que outras lhe faziam alusão com óbvia repugnância e trepidação.
Ao que parece, havia uma parte da terra antiga — a primeira parte que emergiu das águas depois que a Terra projetou de si a Lua e os Antigos chegaram das estrelas — que passara a ser evitada, por ser considerada
vaga e inominavelmente maléfica. As cidades ali construídas haviam ruído prematuramente e tinham-se visto abandonadas de repente. Depois, quando a primeira grande deformação da Terra havia convulsionado
a região, na era comancheana, uma assustadora linha de picos se lançara subitamente em direção ao céu, em meio aos mais hórrido fragor e caos — e a Terra ganhou suas mais grandiosas e mais terríveis montanhas.
A estar correta a escala das entalhaduras, essas coisas nefandas deveriam ter muito mais de 12.000 metros de altitude — dimensões radicalmente mais vastas que as das chocantes montanhas de loucura que
havíamos transposto. Estendiam-se, era de crer, desde 77° S 70° E até 70° S 100° E — a menos de 500 quilômetros da cidade morta, de modo que, em não havendo aquela bruma vaga e opalescente, teríamos entrevisto
seus terríveis cumes a oeste. A extremidade norte dessa cadeia portentosa devia ser igualmente visível da longa costa do círculo antártico, na Terra da Rainha Mary.
Alguns dos Antigos, nos tempos da decadência, haviam dirigido estranhas preces àquelas montanhas — mas jamais algum deles se aproximou delas ou se atreveu a descobrir o que havia do outro lado. Olhos mortais
jamais as tinham contemplado, e enquanto eu estudava as emoções traduzidas nos entalhes, rezava para que isso nunca acontecesse. Há montes protetores ao longo da costa além delas — a Terra da Rainha Mary
e a do Imperador Guilherme — e dou graças aos céus por homem algum ter sido capaz de ali desembarcar e escalar tais montes. Já não sou tão cético com relação aos velhos contos e lendas como antes, nem
me rio mais da ideia do escultor pré-humano de que o raio fazia uma pausa significativa, de vez em quando, em cada um dos cumes silenciosos e de que um brilho inexplicado fulgia em um daqueles pináculos
horrorosos durante todo o transcurso da longa noite polar. Talvez haja um significado muito real e muito monstruoso nos velhos murmúrios Pnakóticos sobre Kadath, o habitante do Ermo Gélido.
Entretanto, as áreas mais adjacentes não eram de modo algum menos estranhas, ainda que menos impronun-ciavelmente amaldiçoadas. Logo depois da fundação da cidade, a grande cordilheira transformou-se em
sede dos principais templos e muitas esculturas mostravam quantas torres grotescas e fantásticas se elevavam aos céus nos pontos onde agora só víamos os cubos e baluartes, curiosamente suspensos. No decorrer
das eras, as cavernas haviam sido trabalhadas e anexadas aos templos. Com o avanço de épocas ainda mais tardias, todos os veios calcários foram escavados por águas superficiais, de modo que as montanhas,
os contrafortes e as planícies abaixo deles eram uma verdadeira rede de cavernas e galerias interligadas. Muitas esculturas expressivas referiam-se a explorações a grandes profundidades e à descoberta
final do trevoso mar Estígio que se ocultava nas entranhas da Terra.
Esse vasto abismo tenebroso fora indubitavelmente escavado pelo grande rio que descia das horríveis e exiciais montanhas de oeste e que outrora descrevera uma curva na base da cordilheira dos Antigos,
seguindo depois por ela, indo desaguar no oceano Índico, entre a Terra de Budd e a de Totten, no litoral descrito por Wilkes. Palmo a palmo, o rio erodira a base calcária da montanha na curva, até que,
por fim, suas correntes alcançaram as cavernas das águas superficiais e somaram forças com elas, escavando um abismo ainda mais profundo. Finalmente toda a caudal despejou-se nos montes vazios, deixando
seco o velho leito, por onde ela seguia rumo à foz. Grande parte da cidade morta, como a víamos agora, havia sido construída sobre aquele antigo leito fluvial. Compreendendo o que tinha acontecido, e exercendo
seu senso artístico sempre extremado, os Antigos haviam esculpido e transformado em colunas de rica ornamentação os promontórios dos contrafortes onde a grande caudal começava sua descida para o negrume
eterno.
Esse rio, outrora atravessado por vintenas de nobres pontes de pedra era, seguramente, aquele cujo curso extinto tínhamos visto em nosso levantamento aéreo. Sua posição em diversas esculturas da cidade
nos orientou em relação ao cenário, tal como se apresentara em vários estágios da história imemorial e desde muito cessada da região, de modo que pudemos esboçar um mapa apressado mas cuidadoso dos elementos
mais importantes — praças, edifícios notáveis e coisas semelhantes — que norteasse futuras explorações. Logo podíamos reconstruir na fantasia toda aquela cidade estupenda, tal como era há um milhão, dez
milhões ou cinquenta milhões de anos atrás, pois as esculturas nos informavam com exatidão qual fora o aspecto dos edifícios, montanhas, praças, subúrbios, da paisagem e da luxuriante vegetação Terciária.
Certamente teria sido de uma beleza maravilhosa e mística, e ao pensar nela eu quase me esquecia da pegajosa sensação de opressão sinistra que a idade sobrenatural, a imponência, o silêncio, o vazio e
o crepúsculo glacial daquela cidade haviam infundido em meu espírito. No entanto, de acordo com certas esculturas, os próprios habitantes da cidade haviam conhecido o poder do terror opressivo, pois havia
uma cena recorrente, soturna, em que os Antigos mostravam clara repugnância por um certo objeto — que nunca aparecia na cena — encontrado no grande rio; percebia-se que ele fora trazido pelas águas, através
de florestas de cicadáceas, cheias de lianas c cipós, desde aquelas macabras montanhas do oeste.
Não foi senão natural casa de construção serôdia a que já me referi, onde havia as esculturas decadentes, que obtivemos uma indicação da calamidade final que levara à evacuação da cidade. Sem dúvida devia
haver muitas esculturas da mesma época alhures, mesmo considerando-se o afrouxamento das energias e aspirações em um período tenso e incerto; na verdade, logo depois chegamos mesmo a encontrar certos indícios
da existência de outras. Pretendíamos procurá-las mais tarde; no entanto, como já disse, as condições imediatas ditaram outro objetivo para o momento. Haveria, por certo, um limite — pois depois de toda
esperança de uma longa ocupação futura do lugar ter parecido entre os Antigos, não poderia deixar de ter ocorrido uma completa cessação de decoração mural. O golpe final, naturalmente, foi o advento do
grande frio que em certo instante assolou a maior parte do mundo, e que jamais abandonou os fatídicos pólos — o grande frio que, na outra extremidade do planeta, deu cabo das legendárias terras de Lomar
e Hiperbórea.
Seria difícil dizer, em termos de data exata, quando começou essa tendência na Antártica. Atualmente situamos o início dos períodos glaciais gerais a aproximidade quinhentos mil anos do presente, mas nos
pólos o flagelo terrível deve ter principiado muito mais cedo. Todas as estimativas quantitativas são em parte conjecturais, mas é de todo provável que as esculturas decadentes tenham sido feitas há bastante
menos de um milhão de anos, e que o abandono final da cidade estivesse terminado bem antes da instalação convencional do Pleistoceno — há quinhentos mil anos — tal como se calcula em termos da superfície
total da Terra.
Nas esculturas decadentes havia sinais de uma vegetação mais rala em outros lugares e de uma redução da vida na parte que cabia aos Antigos. Apareciam equipamentos de aquecimento nas casas e viajantes
eram representados com agasalhos protetores no inverno. Vimos então uma série de cártulas — a disposição em faixas contínuas era frequentemente interrompida nessas entalhaduras mais tardias — que mostravam
uma migração crescente para os refúgios mais próximos de mais calor. Alguns fugiam para cidades submarinas, ao largo da costa distante, outros se metiam pelas redes de cavernas calcárias nos montes ocos,
descendo até o vizinho abismo negro de águas subterrâneas.
Por fim, parece que foi o abismo vizinho que se tornou alvo do principal movimento colonizador. Em parte isso se deveu, sem dúvida, ao tradicional caráter sagrado daquela região especial, mas o fato pode
ter sido determinado de forma mais categórica pela possibilidade de manterem em uso os grandes templos escavados nas montanhas e de reterem a vasta cidade terrestre como local de veraneio e como base de
comunicação com várias minas. A ligação entre o velho e o novo local de residência foi facilitada por vários declives e por melhorias nas rotas de comunicação, entre as quais cabe citar a abertura de numerosos
túneis diretos desde a antiga metrópole até o abismo negro — túneis muito íngremes, cujas bocas desenhamos cuidadosamente, obedecendo a nossas estimativas mais judiciosas, no mapa-guia que estávamos compilando.
Era óbvio que pelo menos dois desses túneis ficavam a uma distância viável do ponto onde estávamos — ambos na borda montanhosa da cidade, o primeiro a cerca de 400 metros dali, na direção do antigo leito
fluvial, o segundo a talvez o dobro dessa distância, na direção oposta.
O abismo, parecia, apresentava áreas de terra seca em certos lugares, mas os Antigos construíram sua cidade sob a água, sem dúvida em virtude da maior garantia oferecida de calor uniforme. A profundidade
do mar oculto parecia ter sido muito grande, de modo que o calor interno da Terra podia assegurar sua habitabilidade por um período indefinido. Os seres parecem não ter tido qualquer dificuldade em se
adaptarem à vida em tempo parcial (e, mais tarde, naturalmente, todo o tempo) sob a água, porquanto jamais haviam deixado que seus sistemas de guelras se atrofiassem. Muitas esculturas mostravam que sempre
tinham visitado, com frequência, seus parentes submarinos alhures e que habitualmente se banhavam no fundo do grande rio. A escuridão do interior da Terra poderia, da mesma forma, não representar empecilho
a uma raça acostumada às longas noites antárticas.
Por decadente que, sem dúvida, fosse seu estilo, essas esculturas tardias tornavam-se verdadeiramente épicas ao narrarem a construção da nova cidade no mar subterrâneo. Os Antigos haviam-se lançado à tarefa
cientificamente — extraindo rochas insolúveis do seio das montanhas esburacadas e empregando especialistas da cidade submarina mais próxima para executarem a construção segundo os melhores métodos. Tais
trabalhadores haviam trazido tudo quando era necessário para o novo empreendimento — tecidos de Shoggoths a partir dos quais gerar levantadores de pedras e, depois, bestas de carga para a cidade subterrânea,
bem como outras matérias protoplásmicas a serem metamorfoseadas em organismos fosforescentes para fins de iluminação.
Por fim, ergueu-se uma majestosa metrópole no fundo daquele mar estígio, com arquitetura muito semelhante à da cidade que ficava acima dela, e o trabalho mostrava relativamente pouca decadência devido
à previsão matemática inerente às operações de construção. Os Shoggoths recém-gerados vieram a adquirir dimensões enormes e singular inteligência; e, segundo as representações escultóricas, recebiam e
executavam ordens com maravilhosa rapidez. Pareciam conversar com os Antigos arremedando-lhes a voz — uma espécie de silvo musical que cobria várias oitavas, a crer na correção da dissecação feita pelo
pobre Lake —, e trabalhar agora mais obedecendo a ordens faladas do que a sugestões hipnóticas como no passado. Eram, no entanto, mantidos sob admirável controle. Os organismos fosforescentes forneciam
luz com grande eficiência, e sem dúvida compensavam a perda das familiares auroras polares da noite terrestre.
Mantinha-se a prática da arte e da decoração, ainda que, naturalmente, com certa decadência.
Ao que parece os próprios Antigos se davam conta dessa degeneração, e em muitos casos anteciparam a política de Constantino, o Grande, transplantando excelentes esculturas antigas da cidade terrestre,
da mesma forma que o imperador, numa fase semelhante de declínio, privou a Grécia e a Ásia de suas melhores obras de arte para dar à nova capital bizantina esplendor maior do que seu próprio povo podia
criar. Se a transferência de blocos esculpidos não foi mais ampla isso se deveu sem dúvida ao fato de que, no início, a cidade não foi inteiramente abandonada. Quando se deu finalmente o abandono total
— o que decerto deve ter ocorrido antes que o Pleistoceno polar avançasse muito —, os Antigos talvez já se contentassem com sua arte decadente ou haviam deixado de reconhecer o mérito superior das esculturas
mais velhas. Fosse como fosse, as ruínas silentes que nos rodeavam não haviam sofrido decerto qualquer desnudamento escultóricos em grande escala, muito embora todas as melhores estátuas em redondo, como
outros objetos móveis, tivessem sido removidas.
As cártulas decadentes que relatavam essa história eram, como já disse, as mais recentes que pudemos encontrar em nossa limitada exploração. Deixaram-nos uma imagem dos Antigos em constantes idas e vindas,
entre a cidade terrestre no verão e a cidade do mar subterrâneo no inverno, e às vezes mercadejando com as cidades marinhas da costa antártica. A essa altura, já deviam ter reconhecido a condenação inevitável
da cidade terrestre, pois as esculturas exibiam muitos sinais dos avanços malignos do frio. A vegetação estava em declínio e as terríveis neves do inverno já não se derretiam completamente, mesmo em pleno
verão. Quase todos os sáurios já tinham morrido, e tampouco os mamíferos suportavam bem as novas condições. Para manterem a atividade a céu aberto os Antigos tinham sido forçados a adaptar alguns dos Shoggoths,
amorfos e curiosamente resistentes ao frio, à vida terrestre, coisa que no passado tinham relutado em fazer. O grande rio já não abrigava qualquer vida e as camadas superiores do mar tinham perdido quase
todos seus habitantes, exceto as focas e baleias. Todas as aves tinham emigrado, sendo a única exceção os grandes e grotescos pinguins.
Quanto ao que acontecera mais tarde, só podíamos conjecturar. Por quanto tempo sobrevivera a nova cidade subterrânea? Ainda estaria lá, um cadáver de pedra mergulhado em trevas perpétuas? Teriam as águas
subterrâneas congelado enfim? Qual teria sido o destino das cidades oceânicas? Teriam alguns dos Antigos se transferido para o norte, antes do avanço da calota glacial? A geologia atual não revela qualquer
vestígio de sua presença. Porventura àquela época os abomináveis Mi-Go ainda representavam ameaça no mundo da superfície? Podia-se ter certeza quanto ao que podia ou não subsistir, mesmo hoje, nos abismos
escuros e insondáveis das águas mais profundas da Terra? Aquelas cidades tinham sido capazes, aparentemente, de suportar qualquer pressão... e vez por outra marujos haviam tirado do mar objetos curiosíssimos.
E por acaso a teoria das orcas explicou realmente as selvagens e misteriosas cicatrizes observadas em focas antárticas, há uma geração, por Borchgrevingk?
Os espécimes localizados pelo pobre Lake não entravam nessas cogitações, pois o sítio geológico em que haviam sido encontrados mostrava que tinham vivido numa época muito recuada da história da cidade
terrestre. A julgar por esse sítio, certamente não teriam menos de trinta milhões de anos, e concluímos que ao tempo de sua vida nem a cidade subterrânea, nem a própria caverna em que ela fora construída,
ainda existiam. Eles teriam recordado um cenário mais antigo, com a virente vegetação Terciária por toda parte, uma cidade terrestre mais jovem, empenhada na produção artística, e um imenso rio que corria
para o norte, margeando a base da pujante cordilheira, em direção a um longínquo oceano tropical.
No entanto, não conseguíamos deixar de pensar nesses espécimes — principalmente nos oito, intactos, que haviam desaparecido do acampamento de Lake, medonhamente devastado. Havia algo de anormal em tudo
aquilo — as coesas estranhas que havíamos tentado tão arduamente atribuir à demência de alguém... aqueles túmulos horripilantes... a quantidade e a natureza do material sumido ... Gedney... a dureza fantástica
daquelas monstruosidades arcaicas e as estranhas características biológicas que as esculturas mostravam que a raça possuíra... Danforth e eu tínhamos visto muitas coisas nas últimas horas e estávamos dispostos
a acreditar em vários segredos espantosos e inacreditáveis de natureza primal, sobre os quais nos calaríamos para sempre.
IX
Já ficou dito que nosso estudo das esculturas decadentes acarretou uma modificação em nosso objetivo imediato. Tal objetivo, naturalmente, tinha relação com as avenidas escavadas na rocha e que demandavam
o negro mundo subterrâneo, cuja existência ignorávamos antes, mas que agora estávamos ansiosos por descobrir e visitar. Pela escala das entalhaduras deduzimos que uma caminhada íngreme de aproximadamente
1,5 quilômetros por qualquer um dos túneis nos levaria à beira dos penhascos estonteantes e trevosos sobre o grande abismo, cujas veredas laterais, melhoradas pelos Antigos, conduziam a praia rochosa do
oculto e tenebroso oceano. Parecia impossível resistir à tentação de contemplar esse golfão fabuloso, em sua crua realidade, depois de termos tomado conhecimento dele; no entanto, compreendíamos que teríamos
de começar a pesquisa imediatamente, se desejávamos realmente incluí-la em nossa exploração presente.
Eram agora 20 horas e não dispúnhamos de pilhas sobressalentes em quantidade que permitisse deixarmos as lanternas acesas indefinidamente. Tínhamos feito tantos exames e cópias sob o nível glacial que
as lanternas tinham sido usadas quase continuamente durante pelo menos cinco horas. Obviamente o suprimento só daria para mais quatro horas, ainda que, mantendo uma lanterna apagada, exceto quando fosse
preciso iluminar locais difíceis ou de especial interesse, talvez pudéssemos conseguir uma margem segura além desse tempo. De nada valeria descermos, sem luz, aquelas catacumbas ciclópicas, de modo que
para podermos ir até o abismo tínhamos de renunciar a todo o trabalho de deciframento dos murais. Pretendíamos, naturalmente, visitar novamente aquele lugar durante dias ou mesmo semanas, para realizar
estudos intensivos e levantamento fotográfico. A curiosidade já suplantara o horror, porém no momento era forçoso apressarmo-nos.
Nosso suprimento de papéis para marcar o caminho estava longe de ser ilimitado e relutávamos a sacrificar blocos de reserva ou as cadernetas de esboços a fim de aumentá-lo, mas terminamos por abrir mão
de um grande bloco. Se acontecesse o pior, sempre poderíamos recorrer ao método das lascas nas pedras, e naturalmente seria possível, mesmo no caso de realmente nos perdermos, voltarmos à luz do dia por
um ou outro caminho, desde que tivéssemos tempo suficiente para experiências e tentativas. Assim, pois, finalmente seguimos, ansiosos, na direção do túnel mais próximo.
Segundo os entalhes com base nos quais havíamos feito nosso mapa, a procurada boca do túnel não podia estar muito além de 400 metros do local onde nos encontrávamos. O espaço de permeio mostrava edifícios
de aspecto sólido que com toda certeza ainda poderiam ser atravessados no nível subglacial. A abertura propriamente dita ficaria no subsolo — no ângulo mais próximo dos contrafortes — de uma vasta estrutura
com cinco pontas, de natureza evidentemente pública e talvez cerimonial.
Recapitulando o vôo de reconhecimento das ruínas, não nos lembrávamos de ter visto nenhuma estrutura semelhante a essa, pelo que concluímos que suas partes mais altas tinham sido severamente danificadas,
ou que o edifício fora completamente destruído numa fratura glacial que havíamos observado. Dado esse caso, provavelmente constataríamos que o túnel estava obstruído, de modo que teríamos de tentar o outro
— o que ficava a cerca de 1,5 quilômetro dali, mais para norte. O leito fluvial intermediário impedia que tentássemos qualquer outro dos túneis do sul naquela excursão. Na verdade, se ambos estivessem
obstruídos, era de duvidar que nossas pilhas justificassem uma tentativa com relação a um terceiro, do lado norte — a cerca de l, 5 km de nossa segunda opção.
Enquanto avançávamos pelo escuro labirinto, com a ajuda do mapa e da bússola — atravessando aposentos e corredores em todos os estádios de ruína e de preservação, subindo por rampas que atravessavam andares
superiores e pontes e depois voltando a descer, encontrando portais obstruídos e pilhas de escombros, correndo de vez em quando ao longo de trechos magnificamente reservados e fantasticamente imaculados,
seguindo por caminhos falsos e refazendo o percurso (em tais casos retirando os marcadores de papel que tínhamos deixado), e vez por outra dando com um poço de ventilação, pelo qual a luz do dia se derramava
ou se filtrava — enquanto avançávamos éramos repetidamente tantalizados pelas paredes decoradas que encontrávamos. Muitas deveriam conter relatos de imensa importância histórica, e somente a perspectiva
de visitas posteriores fez com que nos conformássemos com a necessidade de não nos determos para examiná-las. Na verdade, já éramos obrigados, de vez em quando, a nos retardar a acender a segunda lanterna.
Se dispuséssemos de mais filme, na certa faríamos breves pausas para fotografar alguns baixos-relevos, mas a lenta cópia a mão estava claramente fora de cogitação.
Mais uma vez chego a um ponto em que se faz muito forte a tentação de hesitar, ou de insinuar antes que afirmar. É necessário, entretanto, revelar o restante a fim, de justificar minha atitude, a de procurar
desestimular novas explorações. Havíamos seguido o caminho tortuoso até bem perto do local onde deveria situar-se a abertura do túnel — tendo atravessado uma ponte, na altura do segundo pavimento, que
nos levou ao que parecia ser claramente a extremidade de uma parede em ponta, e descido a um corredor em ruínas onde abundavam esculturas tardias, de ornamentação decadente e com fins aparentemente ritualísticos
—, quando, pouco antes das 20h30min, as narinas jovens e alertas de Danforth nos proporcionaram o primeiro sinal de alguma coisa anormal. Se tivéssemos um cão conosco, imagino que ele nos teria advertido
primeiro. De começo não saberíamos dizer ao certo o que havia de errado com o ar, antes cristalino, mas depois de alguns segundos, nossa memória reagiu com bastante nitidez. Tentarei dizer o que era claramente,
seu titubear. Havia um odor... e aquele odor era vaga, sutil e inequivocamente afim do que nos nauseara ao abrirmos o túmulo demente daquele horror que o pobre Lake havia dissecado.
A revelação, naturalmente, não foi tão nítida naquele momento como parece agora, expressada em palavras. Havia várias explanações concebíveis, e trocamos uma longa série de sussurros indecisos. O mais
importante foi que não batemos em retirada sem levar avante a investigação. Tendo chegado tão longe, não haveríamos de desistir, salvo diante de desastre iminente. De qualquer forma, aquilo de que devíamos
ter suspeitado era absolutamente fantástico demais para que acreditássemos. Tais coisas não aconteciam em qualquer mundo normal. Provavelmente foi o puro instinto irracional que nos levou a reduzir a luz
de nossa única lanterna — já não nos tentava mais esculturas decadentes e sinistras que nos olhavam de esguelha, ameaçadoramente, das paredes opressivas —, com o que reduzimos nosso avanço a um caminhar
cauteloso na ponta dos pés, pelo chão cada vez mais atulhado de escombros e pelas pilhas de destroços.
Os olhos de Danforth, tanto quanto seu nariz, eram melhores que os meus, pois foi também ele quem primeiro notou o aspecto singular dos escombros depois de havermos passado por muitos arcos semi-obstruídos
que levava a câmaras e corredores no andar térreo. O aspecto não era de modo algum o que deveria ser após incontáveis milênios de abandono, e quando, cuidadosamente, aumentamos a luz, percebemos que uma
espécie de espaço aberto parecia revelar pegadas recentes. A natureza irregular dos escombros impedia quaisquer marcas claras, porém nos lugares mais limpos havia sutis indícios de que objetos pesados
tivessem sido arrastados. Num dado momento, julgamos perceber um leve sinal de raias paralelas, como as deixadas por trenós. Isso nos fez fazer nova pausa.
Foi durante essa pausa que captamos — simultaneamente, dessa vez — o outro odor à frente. Paradoxalmente, era um odor a um só tempo menos e mais assustador. Menos assustador, de um ponto de vista intrínseco,
porém infinitamente espantoso naquele local e nas circunstâncias conhecidas... a menos, naturalmente, que Gedney... pois era o cheiro familiaríssimo de petróleo... de gasolina.
Qual terá sido, depois disso, a motivação que nos levou a prosseguir a investigação é coisa que deixarei aos psicólogos. Sabíamos agora que alguma extensão terrível dos horrores do acampamento teria chegado
até aquele tenebroso cemitério das eras, e assim não podíamos duvidar mais da existência de condições abomináveis — presentes ou pelo menos recentes — logo adiante. Por fim, no entanto, permitimos que
a pura curiosidade... ou a ansiedade... ou o auto-hipnotismo... ou vagas ideias de responsabilidade por Gedney... ou o que fosse... nos impelisse para a frente. Danforth voltou a se referir, num murmúrio,
à pegada que ele julgava ter visto na esquina do beco, nas ruínas lá em cima, e aos suaves silvos musicais... potencialmente de significado atroz, em vista do relatório feito por Lake quando da dissecção,
apesar de sua clara semelhança com os ecos nas bocas das cavernas dos picos ventosos... silvos esses que Danforth acreditava ter escutado pouco depois, e que viriam dos abismos subterrâneos. Eu, por minha
vez, murmurei frases sobre o estado em que ficara o acampamento... sobre o que havia desaparecido e como a loucura de um sobrevivente solitário poderia ter concebido o inconcebível... um percurso desabalado
pelas montanhas monstruosas e uma descida pelas estranhas daquela arquitetura desconhecida, primeva...
Contudo, não tínhamos como persuadir um ao outro, ou mesmo a nós próprios, de qualquer coisa de definido. Havíamos apagado todas as luzes enquanto nos detivemos ali, imóveis, e notamos vagamente que um
vestígio da luz externa, que chegava de uma longa distância, impedia que o negror fosse absoluto. Havendo começado a nos mover para diante, automaticamente, guiávamo-nos por clarões ocasionais de nossa
lanterna. Os escombros mexidos engendravam uma impressão que não conseguíamos afastar, e o cheiro de gasolina se tornava mais forte. Uma quantidade de ruínas cada vez maior obstava o caminho, até que logo
depois percebemos que em breve não seria mais possível qualquer avanço. Tivéramos toda razão quanto à nossa conjectura pessimista sobre aquela fratura, quando vista do ar. Nossa procura do túnel estava
fadada à inutilidade, e não poderíamos sequer chegar ao subsolo em que se abria a boca do abismo.
Iluminando as paredes grotescamente esculpidas do corredor em que nos achávamos, vimos várias portas em diversos estados de obstrução; e de uma delas chegava com especial intensidade — submergindo de todo
a outra insinuação de odor — o cheiro de gasolina. Prestando maior atenção, constatamos que os escombros naquela abertura específica tinham sido, sem dúvida alguma, remexidos recentemente. Qualquer que
fosse o horror que ocultavam, passamos a crer que a explicação era agora patente. Não acredito que alguém se admire de havermos esperado um tempo apreciável antes de nos atrevermos a qualquer outro movimento.
No entanto, quando nos ousamos a transpor aquele arco negro, nossa primeira sensação foi de desapontamento. Naquela cripta esculpida — um cubo perfeito, com lados de aproximadamente seis metros — não havia
nenhum objeto de dimensões instantaneamente discerníveis; assim sendo, procuramos por instinto, porém, os olhos de lince de Danforth lobrigaram um ponto em que os detritos do chão haviam sido afastados
e acendemos nossas duas lanternas, de modo a que produzissem máxima iluminação. Muito embora o que vimos fosse na verdade simples e desimportante, ainda assim reluto em declarar o que foi, por causa do
que aquilo implicava. Aos escombros tinha sido dada uma certa arrumação e sobre eles jaziam vários objetos, espalhados descuidadamente; fora derramada uma considerável quantidade de gasolina e isso acontecera
há pouco tempo, pois o cheiro ainda era forte, mesmo naquela altitude do planalto. Em outras palavras, aquilo não era senão uma espécie de acampamento — um acampamento feito por seres inquisitivos e que,
tal como nós, tinham sido obrigados a recua ao encontrarem, inesperadamente, bloqueado o caminho para o abismo.
Vou ser claro. Todos os objetos dispersos provinham, no que dizia respeito à sua substância, do acampamento de Lake; e consistiam em latas, abertas de um modo tão singular quanto as que tínhamos visto
naquele lugar devastado, muitos fósforos usados, três livros ilustrados, manchados com nódoas curiosas, uma garrafa vazia de tinta ainda na embalagem de papelão, uma caneta-tinteiro quebrada, fragmentos
singularmente picotados de peles e de lonas de barraca, uma bateria elétrica usada, com o folheto de instruções, um livreto que acompanhava o tipo de aquecedor de barracas que usávamos, e um punhado de
papéis amassados. Tudo isso já era bastante desagradável, mas quando endireitamos os papéis e olhamos o que lia via neles, sentimos que havíamos dado com o pior. Havíamos encontrado no acampamento certas
folhas com manchas inexplicáveis, que poderiam ter preparado nosso espírito; no entanto, o efeito daquilo que víamos nas abóbadas pré-humanas de uma cidade de pesadelo era quase insuportável.
No caso de ter perdido a razão, Gedney poderia ter traçado os grupos de pontos, imitando os encontrados nas esteatitas esverdeadas, da mesma forma como podia ter feito também os pontos naqueles dementes
túmulos de cinco pontas; e era de imaginar que ele tivesse confeccionado esboços grosseiros e apressados — de variada exatidão ou falta de exatidão — que delineavam as cercanias da cidade e traçavam o
caminho desde um lugar representado como um círculo, fora de nossa rota anterior (um lugar que identificamos com uma grande torre cilíndrica nos relevos e como um enorme buraco circular entrevisto em nosso
levantamento aéreo), até a presente estrutura em cinco pontas e a boca de túnel que ali ficava.
Ele poderia, repito, ter preparado esses esboços, que víamos à nossa frente, pois obviamente tinham sido compilados, tal como o nosso, com base em esculturas tardias situadas em alguma parte do labirinto
glacial, embora não fossem as mesmas que tínhamos visto e utilizado. Entretanto, uma coisa aquele jovem sem qualquer formação artística jamais poderia ter feito: executar aqueles esboços com uma técnica
estranha e segura, talvez superior, apesar da pressa e da desatenção, a qualquer um dos relevos decadentes dos quais tinham sido copiados — a técnica característica e inequívoca dos próprios Antigos no
apogeu da cidade morta.
Haverá quem diga que Danforth e eu estávamos inteiramente loucos se não saímos dali correndo depois disso, uma vez que nossas conclusões eram agora, apesar de absurdas, inabaláveis e de uma natureza que
não preciso sequer mencionar aos que leram meu relato até aqui. Talvez estivéssemos mesmo loucos... Já não disse que aqueles picos horríveis eram as montanhas da loucura? Todavia, creio poder detectar
algo da mesma ordem — posto que em forma menos extrema — nos homens que perseguem feras mortíferas nas selvas da África, para fotografá-las ou estudar-lhes os hábitos. Conquanto semi-paralisados de terror,
crepitava dentro de nós uma chamazinha de pasmo e curiosidade que por fim veio a triunfar.
Naturalmente não pretendíamos defrontar-nos com aquilo — ou aqueles — que havia estado ali, mas percebíamos que já deviam ter ido embora. Àquela altura Já teriam encontrado a entrada vizinha para o abismo
c nela teriam entrado... teriam chegado aos fragmentos trevosos do passado que os esperavam no precipício máximo... o precipício supremo que nunca tinham visto. Ou, se também aquela entrada estivesse bloqueada,
teriam seguido para norte, em busca de outra. Eram, lembrávamos, em parte independentes de luz.
Recordando aquele momento, não sei dizer ao certo qual a forma precisa que tomaram nossas novas emoções... qual terá sido exatamente a mudança de objetivo imediato que tanto aguçou nossa sensação de expectativa.
Decerto não tínhamos intenção de nos defrontarmos com o que temíamos... e, no entanto, não nego que talvez tivéssemos uma vontade secreta e inconsciente de espreitar certas coisas, de algum seguro ponto
de observação. Provavelmente não tínhamos renunciado à ânsia de vislumbrar o abismo em si, embora entre nós e essa meta se interpusesse agora um novo objetivo, na forma do grande local circular representado
nos esboços amassados que tínhamos encontrado. Nós o havíamos reconhecido incontinenti como uma monstruosa torre cilíndrica que aparecia nas esculturas mais antigas, mas que do alto se mostrava apenas
como uma prodigiosa abertura redonda. Alguma coisa na imponência de sua representação, mesmo naqueles diagramas apressados, nos fez pensar que seus níveis subglaciais deviam ainda constituir algo de transcendental
importância. Talvez abrigasse maravilhas arquitetônicas que ainda não tivermos encontrado. Era, por certo, de idade inacreditável, a julgar pelas esculturas em que aparecia — contava-se, na verdade, entre
as primeiras coisas construídas na cidade. Seus relevos, se ainda subsistiam, não podiam deixar de ter suprema significação. Ademais, aquele local talvez constituísse uma boa ligação com o ar livre — um
caminho mais curto do que aquele que tínhamos cuidadosamente marcado; e seria, provavelmente, a rota pela qual aqueles outros tinham descido.
De qualquer forma, o que fizemos foi estudar os espantosos esboços — que confirmavam à perfeição o nosso — e retroceder, pelo caminho indicado, até o local circular: o caminho que nossos inomináveis predecessores
tinham percorrido duas vezes antes de nós. A outra entrada próxima para o abismo estaria além daquele local. É escusado descrever nossa jornada, no decurso da qual continuamos a deixar parcimoniosas marcas
de papel, pois sua natureza foi em tudo semelhante à daquela pela qual havíamos chegado ao beco sem saída. A única diferença era que aquele caminho tendia a seguir mais pelo andar térreo e até descer a
corredores subterrâneos. De vez em quando divisávamos certas marcas inquietadoras nos escombros e no pó; e depois de havermos deixado para trás o cheiro de gasolina, mais uma vez tomamos ligeira consciência,
intermitentemente, daquele odor mais hediondo e mais persistente. Depois que o caminho se afastou de nossa rota prévia, vez por outra iluminávamos rapidamente as paredes, observando as esculturas quase
onipresentes; com efeito, pareciam ter sido um importante meio expressivo para os Antigos.
Mais ou menos às 21h30min, atravessando um corredor longo e abobadado, cujo piso cada vez mais gelado parecia um pouco abaixo do nível do solo e cujo teto tornava-se cada vez mais baixo à medida que avançávamos,
começamos a ver luz forte adiante e pudemos desligar a lanterna. Parecia que estávamos chegando ao vasto local circular e que a distância que nos separava do ar livre não podia ser muito grande. O corredor
terminava num arco surpreendentemente baixo para aquelas ruínas megalíticas, mas através dele, mesmo antes de sairmos do corredor, podíamos ver muita coisa. Depois do arco estendia-se um prodigioso espaço
circular — não teria menos de 60 metros de diâmetro — atulhado de destroços e contendo muitos arcos obstruídos, alinhados com o que estávamos para atravessar. Os espaços disponíveis das paredes apresentavam
esculturas que formavam uma faixa espiralada de proporções grandiosas; e exibiam, apesar do desgaste motivado pelas intempéries, um esplendor artístico muito além de tudo quanto já havíamos encontrado.
O piso estava muito coberto de gelo, e calculamos que o solo verdadeiro situava-se a uma profundidade consideravelmente maior.
Entretanto, o que mais se destacava ali era a titânica rampa de pedra que, esquivando-se às arcadas através de uma curva pronunciada, subia em espiral pela estupenda parede cilíndrica como uma contrapartida
interior daquelas que outrora subiam pelo lado de fora das monstruosas torres ou zigurates da antiga Babilônia. O que nos impedira de perceber do ar aquela passagem, fazendo-nos procurar outro caminho
para o nível subglacial, fora a velocidade do vôo e a perspectiva, que confundira a descida com a parede interna da torre. Talvez Pabodie pudesse-nos dizer que espécie de artifício de engenharia a mantinha
no lugar, mas a Danforth e a mim só era dado maravilhar-nos. Avistávamos colossais modiIhões e pilares de pedra aqui e ali, mas o que víamos nos parecia inadequado à função cumprida. A coisa mostrava um
excelente estado de conservação até o atual topo da torre, fato notável em vista da exposição às intempéries, e seu abrigo contribuíra em muito para proteger as fantásticas e perturbadoras esculturas cósmicas
nas paredes.
Ao sairmos para a aterradora semiclaridade daquele monstruoso fundo cilíndrico — com 50 milhões de anos, sem dúvida a estrutura mais antiga dentre todas aquelas antigualhas primais — percebemos que os
lados, cortados por rampas, alteavam-se a uma altura vertiginosa, não inferior a vinte metros. Isto, nossa exploração aérea revelava, significava uma glaciação externa de aproximadamente doze metros, já
que o buraco escancarado que tínhamos visto ao avião ficava no topo de uma pilha de escombros de aproximadamente seis metros, um tanto protegida até três quartos de sua circunferência pelas imponentes
muralhas curvas de uma linha de ruínas mais altas. De acordo com os relevos, a torre original se ergueram centro de uma imensa praça circular e tinha, talvez, 150 ou 180 metros de altura, com camadas de
discos horizontais perto do topo e uma fileira de cúspides finas como agulhas ao longo da borda superior. A maior parte da alvenaria ruíra obviamente para o lado de fora, e não para dentro; caso tivesse
acontecido o contrário, a rampa poderia ter sido destruída e todo o interior ficaria obstruído. Ainda assim, a rampa revelava um desgaste lamentável, ao passo que a quantidade de escombros era tal que
todas as arcadas no fundo pareciam cobertas.
Foi preciso apenas um instante para concluirmos que era aquele, de fato, o caminho pelo qual aqueles outros haviam descido e que seria, outrossim, o caminho lógico para nossa própria subida, apesar da
longa trilha de papel que havíamos deixado alhures. A boca da torre não ficava mais distante dos contrafortes e de nosso avião do que o grande edifício escalonado em que havíamos entrado, e qualquer exploração
subglacial adicional que realizássemos naquela excursão se daria naquela região geral. Estranhamente, ainda estávamos pensando em possíveis excursões futuras — mesmo depois de tudo quanto havíamos visto
e adivinhado. Foi então que, enquanto seguíamos cautelosamente sobre os destroços que recobriam o largo espaço, vimos algo que por algum tempo afastou de nossas mentes tudo mais.
O que vimos foram os três trenós desaparecidos do acampamento de Lake, bem arrumados naquele ângulo mais distante do curso mais baixo da rampa, que até agora nos estivera oculto à visão. Lá estavam eles,
um tanto danificados por terem sido arrastados por longos trechos de cantaria, sem neve e escombros, ou transportados por espaços simplesmente intransponíveis. Estavam carregados e amarrados com cuidado,
e continham coisas bastante familiares: o aquecedor a gasolina, latas de combustível, caixas de instrumentos, latas de mantimentos, oleados que obviamente envolviam livros e outros que ocultavam conteúdos
menos óbvios — tudo aquilo integrante do equipamento de Lake.
Depois do que havíamos encontrado naquela outra câmara, estávamos de certa forma preparados para aquilo. O choque verdadeiramente grande se deu quando nos aproximamos e desfizemos as amarras de uma trouxa
de oleado cujos contornos haviam excitado nossa curiosidade. Ao que parece, outros, além de Lake, tinham-se interessado em coletar espécimes típicos; havia dois ali, congelados, muito bem preservados,
com algumas contusões em torno dos pescoços suturadas com esparadrapo, e embrulhados com cuidado para evitar maiores danos. Eram os corpos do jovem Gedney e do cão desaparecido.
X
Muitas pessoas provavelmente nos julgarão insensíveis, além de loucos, por pensarmos sobre o túnel do lado norte e sobre o abismo tão pouco tempo depois de nossa horrenda descoberta, e não estou disposto
a dizer que teríamos revivido imediatamente tais ideias se não fosse uma circunstância específica com a qual nos confrontamos reposto o oleado sobre o pobre Gedney e estávamos imóveis, numa espécie de
mudo aturdimento, quando os sons finalmente atingiram nossa consciência — os primeiros sons que ouvíamos desde que havíamos saído do ar livre, onde o vento da montanha gemia baixinho, precipitando-se de
altitudes demoníacas. Por mais conhecidos que fossem, a presença deles naquele mundo de morte era mais inesperada e enervante do que quaisquer sons grotescos ou fabulosos poderiam ter sido, uma vez que
novamente perturbavam todas nossas concepções de harmonia cósmica.
Tivessem aqueles sons qualquer vestígio dos estranhos silvos musicais que o laudo da dissecção de Lake nos havia levado a esperar naqueles seres — e que, na verdade, nossa imaginação exausta vinha escutando
em todos os uivos de ventos que ouvíamos desde a visão horrífica do acampamento —, eles teriam como que uma congruência infernal com a região silente que nos rodeava. Uma voz de outras eras fica bem num
cemitério de outras eras. Sucedeu, porém, que o ruído fez em pedaços toda nossa aceitação tácita do centro da Antártida como um ermo completa e inapelavelmente destituído de qualquer resíduo de vida normal.
O que escutamos não foi a nota fantasiosa de qualquer blasfêmia sepulta da terra prístina, de cuja dureza superna um sol polar, quase extinto, houvesse extraído uma resposta monstruosa. Na realidade, foi
algo tão zombeteiramente normal e com o qual estávamos de tal forma familiarizados, desde a travessia marítima ao largo da Terra de Vitória e desde os dias em que havíamos acampado no estreito McMurdo,
que nos sobressaltamos ao imaginá-lo ali, onde tais coisas não podiam existir. Para ser sucinto, foi simplesmente o guincho gutural de um pinguim.
O som abafado vinha de desvãos subglaciais quase postos ao corredor pelo qual tínhamos chegado ali — regiões manifestamente na direção daquele outro túnel que levava ao vasto abismo. A presença de uma
ave aquática viva naquela direção — num mundo cuja superfície não conhecia qualquer vida desde eras sem fim — só justificava uma conclusão. Por conseguinte, nosso primeiro pensamento foi o de verificar
a realidade objetiva do som. Na verdade, ele se repetia e, de vez em quando, parecia provir de mais de uma garganta. Buscando-lhe a fonte, entramos por uma arcada da qual muitos escombros tinham sido afastados,
e recomeçamos a marcar o caminho com papéis — tirados, com curiosa repugnância, de uma das trouxas de oleado que estavam nos trenós — quando deixamos para trás a luz do dia.
À proporção que o piso coberto de gelo cedia lugar a uma confusão de detritos, pudemos observar claramente curiosas marcas de objetos arrastados; e num dado momento Danforth descobriu uma pegada nítida
cuja descrição seria de todo supérflua. O rumo indicado pelos gritos dos pinguins era bem aquele que nosso mapa e a bússola prescreviam como sendo, aproximadamente, o da boca do túnel mais a norte, e alegramo-nos
ao constatar que parecia estar aberta uma passagem, sem ponte, no andar térreo e no pavimento subterrâneo. Segundo o mapa, o túnel deveria começar na parte inferior de uma grande estrutura piramidal que
achávamos estar em excelente estado de conservação, a julgar por vagas lembranças de nossa exploração aérea. A lanterna mostrava a habitual profusão de relevos ao longo do caminho, mas não nos detivemos
para examiná-los.
De súbito, uma volumosa forma branca alteou-se diante de nós, e acendemos a segunda lanterna. É estranho pensar até que ponto aquela nova investigação havia desviado nossa atenção dos primeiros medos do
que pudesse estar oculto nas proximidades. Aqueles outros seres, depois de deixarem seus despojos no grande espaço circular, deviam ter planejado voltar, após sua expedição exploratória na direção do abismo
ou em seu interior. No entanto, havíamos posto de lado toda cautela com relação a eles, como se não existissem. Aquele objeto branco, gigante, teria nada menos de 1,80m de altura, mas, ao que parece, percebemos
de imediato que não se tratava de um daqueles seres. Estes eram maiores e mais escuros; e, segundo as esculturas, moviam-se em terra com rapidez e segurança, a despeito da estranheza de seu aparelho tentacular,
de origem marinha. Todavia, seria falso dizer que aquela coisa branca não nos fez gelar o sangue nas veias. Na verdade, por um instante fomos tomados de um temor primitivo quase mais intenso que o pior
de nossos fundados medos com relação àqueles outros seres. Seguiu-se então um instante de anticlímax, quando o vulto branco entrou por uma arcada lateral, à nossa esquerda, para se unir a outros dois,
de sua espécie, que o haviam chamado com guinchos guturais. Pois tratava-se tão-somente de um pinguim, ainda que de uma espécie gigantesca e desconhecida, maior que o mais desenvolvido dentre os chamados
pinguins-reais, e que combinava, de maneira monstruosa, albinismo e quase total ausência de olhos.
Depois de seguirmos o avejão pela arcada e dirigirmos os fachos das duas lanternas para o trio indiferente, vimos que eram todos albinos cegos, da mesma espécie desconhecida e gigantesca. Pelo tamanho,
lembravam-nos alguns dos pinguins arcaicos representados nas esculturas dos Antigos, e não foi preciso muito tempo para concluirmos que descendiam da mesma cepa e que tinham sobrevivido, sem dúvida, por
se retirarem para alguma região subterrânea mais quente cujo negrume eterno havia-lhe destruído a pigmentação e lhes atrofiado os olhos, que se reduziam a meras fendas inúteis. Nem por um momento duvidamos
que vivam atualmente no vasto abismo que procurávamos; e essa comprovação de que o golfão permanecia quente e habitável encheu-nos das mais curiosas fantasias, sutilmente perturbadoras.
Imaginamos, também, o que teria levado aquelas três aves a abandonarem seu habitat habitual. O estado e o silêncio da grande cidade morta deixavam claro que em nenhum tempo ela fora uma colônia sazonal
costumeira, ao passo que a patente indiferença do trio à nossa presença fazia parecer estranho que a passagem de um grupo dos outros seres os tivesse assustado. Seria possível que os tais outros houvessem
assumido alguma atitude agressiva ou tentado aumentar seu suprimento de carne? Duvidávamos de que o odor picante a que os cães haviam demonstrado aversão pudesse provocar igual antipatia naqueles pinguins,
uma vez que seus ancestrais haviam obviamente coexistido em perfeita harmonia com os Antigos — um relacionamento amistoso que deveria ter sobrevivido no abismo, enquanto restassem quaisquer representantes
dos Antigos. Lamentando, num novo assomo daquele velho espírito da ciência pura, não podermos fotografar aquelas criaturas anômalas, logo as deixamos com seus guinchos e seguimos rumo ao abismo, que agora
sabíamos com certeza estar aberto, e cuja direção exata as pegadas dos pinguins indicavam.
Logo depois, uma descida íngreme por um corredor longo, baixo, sem portas e peculiarmente destituído de esculturas levou-nos a crer que estávamos por fim chegando à abertura do túnel. Tínhamos passado
por mais dois pinguins e ouvíamos outros um pouco adiante. O corredor terminou então num prodigioso espaço aberto, que nos fez arfar involuntariamente. Era um hemisfério invertido perfeito, obviamente
escavado muito a fundo na terra; teria nada menos de 30 metros de diâmetro e l5 metros de altura, com arcadas baixas que se abriam por toda a circunferência, menos em um ponto. E esse ponto escancarava-se
cavernosamente, com uma abertura negra e arqueada que quebrava a simetria da abóbada, elevando-se a uma altura de quase 15 metros. Era aquela a boca do grande abismo.
Naquele imenso hemisfério, cujo teto côncavo exibia esculturas expressivas, mas decadentes, figurando o céu primordial, gingavam alguns pinguins albinos — estranhos àquele lugar, mas indiferentes e cegos.
O túnel negro abria-se para o infinito num declive acentuado, com a abertura ornamentada com jambas e lintéis de grotesco lavor. Tivemos a impressão de que daquela caverna provinha uma lufada de ar um
pouco mais quente e até mesmo uma suspeita de vapor. Que espécie de entidades vivas, além de pinguins, poderiam ocultar aquele vazio infinito e os favos contíguos, na terra e nas montanhas? E conjeturamos
também se o vestígio de fumarolas nos copos das montanhas, que de início o pobre Late havia suspeitado, bem como a bruma singular que nós próprios havíamos percebido em torno do pico encimado por baluartes,
não poderiam ser causados pela emissão de algum vapor como aquele, um vapor que brotasse das regiões ignotas do seio da terra e percorresse canais tortuosos.
Entrando no túnel, notamos que, pelo menos de começo, ele teria cerca de 4,5 metros de cada lado, e que as paredes, o piso e o teto compunham-se da habitual cantaria megalítica. As paredes eram decoradas
com cártulas esparsas de desenho convencional, em estilo tardio e decadente; e toda a obra de engenharia e as entalhaduras achavam-se em maravilhoso estado de conservação. O chão estava muito limpo e havia
apenas uma leve camada de pó, com pegadas de pinguins, que saíam, e dos outros seres, que entravam. Quanto mais avançávamos, mais aumentava a temperatura; daí a pouco vimo-nos desabotoando os pesados agasalhos.
Ficamos a imaginar se não haveria verdadeiramente manifestações ígneas lá embaixo e se as águas do mar trevoso não seriam quentes. Percorrida uma pequena distância, a cantaria cedeu lugar à rocha viva,
embora o túnel mantivesse as mesmas proporções e apresentasse o mesmo aspecto de regularidade. De vez em quando, o declive tornava-se tão forte que tinham sido abertos sulcos transversais no piso. Por
várias vezes observamos as bocas de pequenas galerias laterais, não registradas em nossos diagramas; nenhuma delas oferecia perigo de complicar nosso retorno e todas nos pareciam possíveis refúgios para
o caso de encontrarmos indesejadas entidades de regresso do abismo. O cheiro abominável daquelas criaturas era agora bastante nítido. Sem dúvida, embrenharmo-nos por aquele túnel nas condições conhecidas
era de uma tolice suicida, mas a atração do desconhecido é mais acentuada em certas pessoas do que se imagina. Na verdade, fora essa espécie de atração que nos levara, de início, àqueles inóspitos paramos
antárticos. Enquanto caminhávamos, víamos vários pinguins e imaginávamos a distância que ainda restava a percorrer. As esculturas nos haviam levado a esperar uma descida de aproximadamente 1,5 quilômetro
até o abismo, porém nossas deambulações anteriores haviam mostrado que não podíamos confiar nelas às cegas em questões de escala.
Passados cerca de quinhentos metros, aquele cheiro nauseabundo ganhou muita força e passamos a vigiar com todo cuidado as várias aberturas laterais por que passávamos. Não havia nenhum vapor visível, como
na entrada, mas sem dúvida isso se devia à ausência, ali, de um ar mais fresco e contrastante. A temperatura estava aumentando depressa e não ficamos surpresos ao darmos com uma pilha de materiais que
nos eram horrorosamente familiares. Compunha-se de peles e lonas de barracas tiradas do acampamento de Lake, mas não paramos para analisar os rasgões estranhíssimos que tinham sido feitos no tecido. Pouco
além desse ponto, observamos um positivo aumento no tamanho e no número das galerias laterais e concluímos que havíamos chegado à região densamente esburacada sob os contrafortes mais altos. O odor nauseante
mesclava-se agora, curiosamente, com um outro cheiro, em nada menos repulsivo, mas cuja natureza não sabíamos identificar, embora pensássemos em organismos em putrefação e, talvez, desconhecidos fungos
subterrâneos. Seguiu-se então um surpreendente alargamento do túnel, para o qual os relevos não nos haviam preparado — uma caverna elíptica, de aspecto natural, mais larga e mais alta, com piso plano,
com cerca de 25 metros de comprimento e 15 de largura, e com muitas passagens laterais, imensas, que conduziam aos secretos negrumes.
Ainda que aquela caverna tivesse aspecto natural, uma inspeção com as duas lanternas indicou que fora formada pela destruição artificial de várias paredes entre favos adjacentes. Tinha os lados ásperos
e o teto, abobadado, mostrava-se tomado de estalactites. No entanto, o piso, em rocha viva, havia sido alisado e estava livre de quaisquer escombros, detritos ou, possivelmente, até poeira, num grau positivamente
anormal. Com exceção do caminho pelo qual viéramos, o mesmo se podia dizer dos pisos de todas as grandes galerias que dele saíam; e essa circunstância era de tal modo singular que causava perplexidade.
O estranho fedor que se havia somado ao odor repugnante era ali tremendamente cáustico, a ponto de obliterar qualquer vestígio do outro. Havia alguma coisa naquele lugar, com seu chão polido e quase reluzente,
que se nos afigurava mais enigmático e horrível, ainda que indefinidamente, que qualquer outra das circunstâncias monstruosas que já tínhamos encontrado.
A regularidade do caminho que ficava imediatamente à frente, assim como a maior proporção dos detritos de pinguins ali depositados, impediam qualquer confusão quanto ao rumo correto em meio àquela pletora
de bocas de caverna, todas igualmente grandes. Mesmo assim, decidamos retomar a marcação com papéis, para o caso de surgir alguma dificuldade, pois, naturalmente, não podíamos esperar que dali em diante
houvesse pegadas na poeira. Ao recomeçarmos a caminhada, jogamos um facho de luz sobre as paredes do túnel... e nos detivemos, assombrados, diante da modificação radicalíssima sofrida pelos relevos naquela
porção do caminho. Percebíamos, é claro, a grande decadência da escultura dos Antigos à época da abertura do túnel e havíamos, de fato, observado a qualidade inferior dos arabescos nos trechos por que
havíamos passado. Agora, porém, naquele trecho mais profundo, além da caverna, notava-se uma diferença repentina que se furtava a qualquer explicação — tanto quanto em natureza básica, havia também uma
diferença de qualidade, e que envolvia tão profunda e calamitosa degradação artística que nada no ritmo de declínio até então observado levaria alguém a esperá-la.
Aquela obra degenerada era grosseira, bruta e inteiramente sem esmero quanto aos pormenores. A depressão dos altos-relevos era de uma profundidade exagerada e as faixas seguiam a mesma linha geral das
cártulas esparsas dos trechos anteriores; no entanto, a altura dos relevos não chegava ao nível da superfície geral. Danforth aventou a hipótese de tratar-se de um segundo entalhamento — uma espécie de
palimpsesto executado após a obliteração de um desenho anterior. Era de natureza inteiramente decorativa e convencional e consistia em espirais e ângulos grosseiros que obedeciam, aproximadamente, à tradição
matemática de base cinco dos Antigos; no entanto, mais lembrava uma paródia do que a perpetuação de tal tradição. Não conseguíamos afastar da mente a ideia de que algum elemento, sutil mas profundamente
alienígena, havia sido acrescentado ao senso estético subjacente à técnica — um elemento exótico, conjecturava Danforth, que era responsável pela penosa substituição. Aquela arte era semelhante, e ao mesmo
tempo incomodamente dessemelhante, à que tínhamos passado a reconhecer como sendo a dos Antigos; e me acorriam ao espírito, com persistência, coisas híbricas como as deselegantes esculturas de Palmira,
talhadas à romana. Outros haviam recentemente observado aquela faixa de esculturas; isso era indicado pela presença de uma pilha usada de lanterna, no chão, diante de uma das cártulas mais características.
Como não podíamos perder tempo, retomamos o caminho após um exame superficial, embora lançássemos com frequência fachos de luz pelas paredes, para ver se surgiam novas alterações decorativas. Não constatamos
nada nesse sentido, ainda que em certos pontos as esculturas se mostrassem esparsas, devido às numerosas entradas de túneis laterais, que tinham os pisos limpos. Víamos e ouvíamos cada vez menos pinguins,
mas Julgamos ter captado uma vaga suspeita de um coro deles, infinitamente distante, nas profundezas da terra. O novo e inexplicável odor era abominavelmente intenso e mal conseguíamos detectar qualquer
resquício daquele outro cheiro inominável. Baforadas de vapor visível, à nossa frente, anunciavam crescentes contrastes de temperatura e a relativa proximidade dos tenebrosos penhascos marinhos do grande
abismo. Então, inesperadamente, avistamos certas obstruções no pavimento polido — obstruções que, decididamente, não eram pinguins — e acendemos a segunda lanterna, depois de nos certificarmos que os objetos
estavam imóveis.
XI
Mais uma vez chego a um ponto em que me é difícil prosseguir. Seria de esperar que neste ponto eu já estivesse empedernido. No entanto, há experiências e contingências que ferem fundo demais para que se
curem as cicatrizes e que deixam tamanha sensibilidade que a memória reacende todo o horror original. Como eu disse, vimos à nossa frente certas obstruções no chão luzidio; e talvez convenha aduzir que
nossas narinas foram quase simultaneamente assaltadas por uma curiosíssima intensificação do estranho fedor geral, agora claramente mesclado com o ranço inominável daqueles outros seres que por ali tinham
passado antes. A luz da segunda lanterna não deixava dúvida quanto à natureza das obstruções e só nos atrevemos a continuar porque podíamos ver, mesmo a distância, que estavam tão incapacitados a nos fazer
mal quanto os seis espécimes similares que haviam sido desenterrados dos monstruosos túmulos decorados com pentáculos no acampamento do pobre Lake.
Com efeito, estavam tão incompletos quanto a maioria daqueles que havíamos exumado — ainda que fosse claro, a julgar pela poça densa e verde-escura que se juntava em torno deles, que sua desinteireza era
infinitamente mais recente. Parecia haver apenas quatro deles, ao passo que os boletins de Lake levavam a crer que pelo menos oito formavam o grupo que nos haviam precedido. Encontrá-los naquele estado
era algo de todo inesperado, e ficamos a imaginar que espécie de conflitos monstruosos ocorrera ali embaixo, nas trevas.
Quando atacados em conjunto, os pinguins revidam selvagemente com os bicos e nossos ouvidos garantiam agora a existência de uma colônia deles, mais adiante. Teriam aqueles seres perturbado o lugar e provocado
mortífera represália? As obstruções não corroboravam essa ideia, pois o ataque de bicos de pinguins contra os tecidos tenazes que Lake havia dissecado de forma alguma podia explicar as lesões generalizadas
que começávamos a perceber enquanto caminhávamos. Além disso, as gigantescas aves cegas tinham dado sanais de serem singularmente pacíficas.
Houvera, então, uma luta entre aqueles seres, e seriam os quatro ausentes os responsáveis? Nesse caso, onde estavam? Estariam porventura próximos, podendo constituir uma ameaça iminente a nós? Vigiávamos
ansiosamente as passagens laterais, com seus pisos lisos, enquanto prosseguíamos com vagar e franca relutância. Qualquer que tivesse sido o conflito, fora ele evidentemente que assustara os pinguins, levando-os
a se afastarem dali, o que não lhes era típico. Portanto, a luta devia ter-se iniciado perto daquela colônia cujos sons ouvíamos debilmente e que se situava no abismo incalculável à frente, porquanto não
havia sinal de que as aves normalmente vivessem ali. Talvez, refletimos, tivesse ocorrido uma medonha luta, acompanhada de fuga, com os contendores mais fracos procurando retroceder para as galerias ocultas,
onde os perseguidores acabaram com eles. Podíamos visualizar a peleja demoníaca, entre entidades indizivelmente monstruosas, rebentando no abismo negro, com grandes bandos de pinguins fonéticos guinchando
e correndo em debandada.
Digo que nos aproximamos daquelas obstruções esparramadas e incompletas com vagar e relutância. Quisera Deus que não houvéssemos nos aproximado em absoluto, que houvéssemos dado às de vila-diogo, fugindo
daquele túnel tétrico de pisos lisos e gosmentos, no qual os murais degenerados arremedavam e ironizavam aquilo que haviam suplantado... Oxalá houvéssemos batido em retirada antes de vermos o que vimos
e antes que nosso espírito fosse cauterizado por algo que jamais há de nos permitir respirar com tranquilidade novamente!
Nossas duas lanternas estavam voltadas para os objetos prostrados, de sorte que logo percebemos o fator dominante em sua desinteireza. Mutilados, comprimidos, torcidos e vazados como estivessem, todos
tinham em comum a decapitação radical. De cada um deles havia sido arrancada a cabeça estreliforme e tentaculada; e ao nos aproximarmos verificamos que o processo de remoção mais lembrava alguma sucção
infernal do que qualquer forma ordinária de mutilação. O fétido icor verde-escuro formava uma poça crescente; mas seu mau-cheiro era semi-eclipsado pelo fedor mais novo e mais estranho, ali mais pungente
que em qualquer outro lugar de nossa rota. Só quando chegamos bastante perto das obstruções esparramadas foi que pudemos relacionar aquele segundo e inexplicável fedor a uma fonte imediata — e no instante
em que isso aconteceu, Danforth, recordando certas esculturas muito vívidas da história dos Antigos na Era Permiana, há 150 milhões de anos, emitiu um grito torturado que ecoou histericamente por aquele
corredor abobadado e arcaico, de relevos repulsivos.
Por pouco eu próprio não lhe fiz coro, pois também vira aquelas esculturas primais e havia admirado, com calafrios, o modo como o artista desconhecido havia sugerido aquela camada medonha de limo encontrada
em certos Antigos mutilados e prostrados — aqueles que os horripilantes Shoggoths haviam, caracteristicamente, sugado e decapitado hediondamente na grande guerra de ressubjugação. Eram esculturas infames,
de pesadelo, mesmo quando narravam atos passados havia éons e éons; pois os Shoggoths e suas obras não deveriam ser vistos por seres humanos ou representados por quaisquer criaturas. O louco autor do Necronomicon
havia nervosamente tentado jurar que jamais um deles era gerado neste planeta e que somente em sonhos induzidos por estupefacientes alguns insanos haviam-nos concebido. Protoplasmas amorfos, capazes de
imitar e refletir todas as formas de órgãos e processos... aglutinações pegajentas de células borbu-lhantes... elásticos esferóides de cinco metros, infinitamente plásticos e dúcteis... escravos da sugestão,
construtores de cidades... cada vez mais arrogantes, cada vez mais inteligentes, mais e mais ambiciosos, mais e mais miméticos! Deus Todo-Poderoso! Que loucura fizera com que mesmo aqueles blasfemos Antigos
ousassem utilizar e engendrar tais coisas?
E agora, no momento em que Danforth e eu vimos o lodo negro, de uma cintilação recente e espelhante iridescência, que se aderia densamente aos corpos degolados e exalava aquele horrendo fedor, novo e desconhecido,
cuja causa só uma imaginação desvairada poderia fantasiar... aquele limo que aderia aos corpos e brilhava com menos intensidade numa parte lisa da parede execravelmente esculpida numa série de pontos agrupados...
naquele momento compreendemos de maneira suprema o que é um terror cósmico. Não era medo daqueles quatro seres desaparecidos... pois tínhamos bons motivos para suspeitar que não voltariam a fazer qualquer
mal. Infelizes! Afinal, não eram representantes de uma raça intrinsecamente torpe e perversa. Eram os homens de outra era e de outra ordem de existência. A natureza havia-lhes pregado uma peça diabólica
— como fará a outros que a loucura, a insensibilidade ou a crueldade humana venham ao futuro exumar naquele ermo polar horridamente morto ou adormecido — e assim terminaria para eles a trágica volta ao
lar. Não tinham sido sequer selvagens... pois, na verdade, o que tinham feito? Aquele horrível despertar no frio de uma época desconhecida... talvez um ataque dos quadrúpedes peludos, que latiam com frenesi,
e uma defesa atônita contra eles e contra os igualmente frenéticos símios brancos com estranhos envoltórios e equipamentos... Pobre Lake, pobre Gedney.... e pobres Antigos! Cientistas até o fim... o que
haviam feito que não faríamos em seu lugar? Deus, que inteligência, que persistência! Com que denodo haviam enfrentado o inacreditável, da mesma forma como aqueles parentes e ancestrais esculpidos haviam
enfrentado coisas só um pouco menos inacreditáveis! Radiados, vegetais, monstruosidades, progênie das estrelas... não importa o que tivessem sido, eram homens!
Haviam atravessado os cumes nevados, em cujas encostas pontilhadas de templos tinham outrora prestado culto, e vagueado entre os fetos arbóreos. Haviam encontrado a cidade morta entregue à sua maldição
e, tal como nós, haviam lido a história esculpida de seus últimos dias. Haviam tentado alcançar seus irmãos vivos em profundezas de terrível negrume, que jamais haviam contemplado... e o que tinham achado?
Tudo isso passou como um relâmpago por nossos pensamentos enquanto desviávamos o olhar daqueles vultos decapitados e cobertos de lodo e o dirigíamos para as horríveis esculturas em palimpsesto e para os
infernais grupos de pontos, feitos com limo fresco, na parede ao lado delas... enquanto olhávamos e entendíamos o que devia ter triunfado e sobrevivido lá embaixo, na ciclópica cidade aquática daquele
abismo trevoso e orlado de pinguins, de onde naquele instante mesmo uma sinistra névoa ondulante havia começado a eructar palidamente, como que em resposta ao grito histérico de Danforth.
O choque causado pela compreensão do que significavam aquele limo monstruoso e a decapitação havia-nos petrificado, transformando-nos em estátuas mudas e imóveis, e só por conversas posteriores foi que
pudemos definir cabalmente nossos pensamentos naquele momento. Nossa impressão foi de que nos detivemos ali por milênios, mas na verdade não pode ter sido por mais de dez ou quinze segundos. Aquela névoa
odienta e pálida ondulava-se em nossa direção como que verdadeiramente impulsionada por algum vulto, mais remoto, que avançasse... e escutamos então um som que abalou grande parte do que tínhamos acabado
de decidir e, ao assim fazer, rompeu o encantamento e nos possibilitou sair em louca disparada, entre pinguins confusos e guinchantes, retrocedendo por nossa trilha de volta à cidade, passando por megalíticos
corredores enterrados no gelo até o grande círculo aberto, subindo aquela arcaica rampa espiralada numa arremetida frenética e automática em busca do sadio ar livre e da luz do dia.
O novo som, como declarei, abalou muito do que havíamos decidido, pois era aquilo que a dissecção feita pelo pobre Lake nos levava a atribuir aos que tínhamos julgado mortos. Era, disse-me Danforth mais
tarde, exatamente o que ele havia captado em forma infinitamente abafada quando estávamos naquele ponto além da esquina do beco acima do nível glacial. E por certo mostrava uma malsã semelhança com as
sibilações que ambos tínhamos escutado em torno das altas cavernas das montanhas. Ainda que ao risco de parecer pueril, acrescentarei uma coisa mais, ao menos por causa da maneira surpreendente como as
impressões de Danforth coincidiram com as minhas. Foram, naturalmente, as mesmas leituras que nos predispuseram à mesma interpretação, ainda que Danforth tenha aludido a ideias estranhas relativas a fontes
insuspeitadas e interditas a que Poe talvez tenha tido acesso ao redigir seu Arthur Gordon Pym, há um século. Todos hão de lembrar que naquele conto fantástico há uma palavra de significado desconhecido,
porém terrível e prodigioso, ligada à Antártida e gritada eternamente pelas gigantescas aves, espectralmente nevosas, do interior daquela maligna região. “Tekeli-li! Tekeli-li!” Isso, admito, foi precisamente
o que julgamos escutar naquele súbito som que precedia a bruma branca que avançava — aquele insidioso silvo musical, que cobria várias oitavas.
Já corríamos à toda antes que as três notas ou sílabas tivessem sido emitidas, embora soubéssemos que a rapidez dos Antigos possibilitaria a qualquer sobrevivente do massacre, despertado pelo grito de
Danforth, a nos capturar instantaneamente, se realmente quisesse fazê-lo. Nutríamos, todavia, vaga esperança de que uma conduta plácida e uma demonstração de razão levassem tal ser a nos poupar, ao menos
por curiosidade científica, se fôssemos apanhados. Afinal de contas, se tal criatura nada tinha a temer, não teria qualquer motivo para nos fazer mal. Sendo inútil, nas circunstâncias, procurarmos nos
esconder, usamos a lanterna para ver o que se passava às nossas costas, ainda correndo, e constatamos que a névoa estava minguando. Haveríamos de ver, finalmente, um espécime vivo e intacto daqueles seres?
Mais uma vez escutamos aquele insidioso sibilo musical — “Tekeli-li! Tekeli-li!”
Então, notando que na verdade estávamos aumentando a distância que nos separava de nosso perseguidor, ocorreu-nos que talvez a entidade estivesse ferida. Contudo, não iríamos correr nenhum risco, pois
era óbvio que ela estava-se aproximando em resposta ao grito de Danforth, e não por fugir de qualquer outra entidade. A reação tinha sido por demais imediata para permitir dúvida. Quanto ao paradeiro daquele
pesadelo menos concebível e menos mencionável — aquela montanha fétida de protoplasma que emitia lodo, cuja raça havia conquistado o abismo e enviado pioneiros terrestres para re-esculpir os caminhos pelos
quais se contorcia —, não podíamos formar nenhuma conjectura; e só ao custo de uma dor genuína abandonamos aquele Antigo provavelmente mutilado — talvez um sobrevivente solitário — ao perigo de recaptura
e de um destino impronunciável.
Graças a Deus não diminuímos nossa corrida. A névoa ondulante havia-se adensado de novo e era impelida com crescente velocidade, enquanto os pinguins desgarrados às nossas costas guinchavam, gritavam e
mostravam sinais de um pânico realmente surpreendente em vista de sua perplexidade relativamente pequena ao passarmos por eles. Mais uma vez sobreveio aquele silvo sinistro e em várias oitavas — “Tekeli-li!
Tekeli-li!” Havíamos incorrido em erro. A coisa não estava ferida, mas havia simplesmente feito uma pausa ao dar com os corpos dos camaradas abatidos e a informal inscrição feita a lodo sobre eles. Jamais
poderíamos saber o que dizia a mensagem demoníaca... mas aquelas tumbas no acampamento de Lake haviam mostrado quanta importância os seres atribuíam a seus mortos. Nossa lanterna, prodigamente usada, revelava
à frente a imensa caverna aberta, para a qual convergiam vários caminhos, e agradou-nos deixar para trás aquelas mórbidas esculturas em palimpsesto, quase sentidas mesmo quando praticamente não eram vistas.
Outro pensamento inspirado pelo aparecimento da caverna foi a possibilidade de despistarmos nosso perseguidor naquele assombroso foco de grandes galerias. Havia vários dos pinguins albinos e cegos no espaço
aberto e parecia claro que o medo que sentiam diante da aproximação da entidade era extremo, levando-os ao desvario. Se naquele ponto diminuíssemos a luz da lanterna ao mínimo indispensável para prosseguirmos
na fuga, mantendo-a apontada rigorosamente à frente, era possível que os assustados movimentos gingantes das aves imensas, em meio à névoa, abafasse nossos passos, encobrisse nosso verdadeiro rumo e de
alguma forma criasse uma pista falsa. Em meio ao nevoeiro espiralante e em revolução, daquele ponto em diante, o piso cheio de escombros do túnel principal, tão diferente dos demais caminhos morbidamente
polidos, dificilmente apareceria com grande clareza; nem mesmo, até onde podíamos imaginar, para aqueles sentidos especiais que, em emergências, tornavam os Antigos em parte, ainda que imperfeitamente,
independentes da luz. Na verdade, nós próprios de certa forma temíamos que, na pressa, nos perdêssemos. Havíamos, naturalmente, decidido seguir em linha reta, na direção da cidade morta, uma vez que as
consequências de nos perdermos naquele meandro de passagens desconhecidas dos contrafortes seriam inimagináveis.
O fato de havermos sobrevivido e chegado ao ar livre é prova bastante de que a coisa realmente enveredou por uma galeria errada, ao passo que, providencialmente, seguimos pela correta. Sozinhos, os pinguins
não nos poderiam ter salvo, mas em combinação com a névoa parecem tê-lo conseguido. Somente um destino benigno mantiveram os vapores ondulantes suficientemente densos no momento certo, pois estavam sempre
virando de um lado para outro e ameaçando desaparecerem. Com efeito, dissiparam-se por um segundo, pouco antes de emergirmos do túnel nauseantemente reesculpido e entrarmos na caverna; com isso, na verdade
tivemos um primeiro e único vislumbre da entidade que se aproximava, quando lançamos para trás um último e desesperado olhar, repleto de temor, antes de reduzirmos a luz e nos misturarmos aos pinguins,
na esperança de nos esquivarmos à perseguição. Se o destino que nos protegeu foi benigno, aquele que nos proporcionou entrever a entidade foi infinitamente oposto — pois àquele relâmpago de semivisão podemos
atribuir pelo menos metade do horror que desde então ronda nossas vidas.
A motivação precisa de novamente olharmos para trás terá sido, talvez, o mero instinto imemorial que leva o perseguido a avaliar a natureza e o rumo do perseguidor; ou quiçá foi uma tentativa automática
de responder a uma pergunta subconsciente levantada por um de nossos sentidos. No meio de nossa fuga, com todas as faculdades concentradas no problema de escapar, não estávamos em condições de observar
e analisar pormenores; no entanto, mesmo assim nossas latentes células cerebrais devem ter-se surpreendido com a mensagem que lhes era levada por nossas narinas. Mais tarde compreendemos o que era — que
o afastamento do fétido revestimento de limo daquelas obstruções decapitadas e a simultânea aproximação da entidade perseguidora não haviam trazido a troca de fedores que a lógica determinava. Na vizinhança
dos seres prostrados, aquele novo fedor, inexplicável, predominara com força; mas àquela altura ele já deveria ter dado lugar ao abominável mau-cheiro associado com aqueles seres. Isso não acontecera...
pois, ao contrário, o odor mais novo e menos tolerável mantinha-se praticamente o mesmo, ganhado até uma peçonhenta insistência a cada segundo.
Por isso olhamos para trás ao mesmo tempo, por assim dizer, muito embora, sem dúvida, o movimento inicial de um de nós tenha provocado o mesmo ato por parte do outro. Ao fazê-lo, dirigimos as duas lanternas,
com toda sua intensidade luminosa, para a névoa momentaneamente rala, fosse por pura ansiedade primitiva de vermos tudo que pudéssemos ou, num esforço menos primitivo, mas igualmente inconsciente, de ofuscar
a entidade antes de quase apagarmos as luzes e nos metermos entre os pinguins no centro labiríntico à frente. Ato infeliz! Nem o próprio Orfeu, nem a mulher de Lot pagaram mais caro por um olhar sobre
o ombro. E mais uma vez sobreveio aquele silvo chocante, enregelante... “Tekeli-li! Tekeli-li”
Convém ser franco, mesmo que eu não ouse ser de todo direto, e dizer o que vimos, muito embora no momento achássemos que não era uma coisa que pudéssemos admitir, mesmo um para o outro. As palavras que
chegam ao leitor não logram sequer sugerir a bestialidade da visão. Ela paralisou nossa consciência tão completamente que admiro nos haver restado bom senso para reduzirmos a luz das lanternas, tal como
planejado, e entrarmos pelo túnel certo, rumo à cidade morta. Só o instinto nos deve ter levado adiante... talvez melhor do que a razão poderia fazer. No entanto, se foi isso que nos salvou, pagamos alto
preço; decerto sobrou-nos muito pouca razão.
Danforth estava totalmente fora de si e a primeira coisa que me recordo do resto do percurso foi ouvi-lo entoar, como se houvera perdido o juízo, uma fórmula histérica na qual apenas eu, em toda a humanidade,
poderia encontrar alguma coisa além de insana irrelevância. Ela reverberava, em ecos esganiçados, entre os guinchos dos pinguins; reverberava entre as abóbadas à nossa frente e — graças a Deus — pelas
abóbadas agora vazias atrás. Ele não pode tê-la começado imediatamente, pois dessarte não estaríamos vivos e correndo cegamente. Estremeço ao pensar o que uma mínima diferença em suas reações nervosas
poderia ter acarretado.
“South Station Under... Washington Under... Park Street Under... Kendall... Central... Harvard...” O infeliz estava a enunciar as conhecidas estações do túnel Boston-Cambridge, que corria sob nosso pacífico
solo nativo, a milhares de milhas dali, na Nova Inglaterra, mas para mim o ritual não tinha irrelevância nem traduzia saudades do lar. Transmitia apenas horror, porque eu sabia, com absoluta certeza, qual
nefanda analogia o havia sugerido. Havíamos esperado, ao olharmos para trás, avistar uma terrível e inacreditável entidade semovente, se as névoas estivessem bastante ralas; daquela entidade tínhamos formado
uma ideia clara. O que realmente vimos — pois as névoas estavam malignamente ralas — foi algo inteiramente diferente e incomensuravelmente mais hediondo e repulsivo. Era a encarnação completa e objetiva
da “coisa que não devia existir” do romancista fantástico; e sua mais próxima analogia compreensível é um vasto e veloz trem de metro, tal como é visto de uma plataforma de estação — a grande frente negra
avultando colossalmente a uma infinita distância subterrânea, constelada de estranhas luzes coloridas e preenchendo um túnel prodigioso tal como um pistão enche um cilindro.
Entretanto, não estávamos numa plataforma de estação. Estávamos nos trilhos à sua frente, enquanto a coluna plástica de pesadelo, feita de uma iridescência negra e fétida escorria para a frente, através
de seu sínus de 4,5 metros, ganhando uma ímpia velocidade e impelindo uma nuvem espiralante e novamente espessa do pálido vapor do abismo. Era uma coisa terrível, inacreditável, mais vasta do que qualquer
trem subterrâneo — um montão informe de bolhas protoplásmicas, ligeiramente luminosa e com miríades de olhos temporários, que se formavam e se desfaziam como pústulas de luz esverdeada em sua fachada que
enchia o túnel e investia contra nós, esmagando os frenéticos pinguins e deslizando sobre o piso reluzente que ele e os de sua espécie haviam deixado horrendamente livre de qualquer grão de pó. E ao mesmo
tempo emitia aquele brado medonho, zombeteiro — “Tekeli-li! Tekeli-li!” — e por fim nos lembramos de que os demoníacos Shoggoths — aos quais os Antigos, exclusivamente, haviam dado vida, pensamentos e
configurações físicas plásticas, e que não tinham outra linguagem senão aquela que os grupos de pontos expressavam — não tinham igualmente outra voz senão os sons de seus desaparecidos senhores, que imitavam.
XII
Danforth e eu temos lembranças de sairmos para o grande hemisfério esculpido e de refazermos o caminho que havíamos percorrido através dos ciclópicos aposentos e corredores da cidade morta; no entanto,
são puramente fragmentos de sonhos, não compreendem nenhuma memória de volição, pormenores ou esforço físico. Era como se boiássemos em um mundo ou dimensão nebulosa, sem tempo, causação ou orientação.
A luz acinzentada do vasto espaço circular nos acalmou um pouco; entretanto, não nos aproximamos daqueles trenós escondidos nem olhamos de novo para o pobre Gedney e para o cão. Descansam num estranho
e titânico mausoléu, e rezo para que o fim deste planeta os encontre ainda em paz.
Foi enquanto nos esfalfávamos pela colossal rampa em espiral que sentimos pela primeira vez a fadiga terrível e a falta de fôlego que nossa corrida, no ar rarefeito do planalto, havia produzido. No entanto,
nem mesmo o medo do colapso nos faria parar antes de chegarmos ao reino exterior, normal, de sol e céu. Houve algo de vagamente apropriado em nossa despedida daquelas eras soterradas; enquanto dávamos
voltas, ofegantes, subindo o cilindro de 20 metros de cantaria primeva, vislumbramos a nosso lado um contínuo cortejo de esculturas heróicas, na técnica primitiva e ainda não decadente da raça extinta
— um adeus dos Antigos, gravados havia 50 milhões de anos.
Saindo finalmente da rampa, aos trambolhões, encontramo-nos sobre uma enorme pilha de rochas caídas, com as paredes curvas de uma edificação mais alta erguendo-se na direção de oeste e os picos altaneiros
das grandes montanhas surgindo além das estruturas mais danificadas, no lado leste. O baixo sol antártico da meia-noite assomava, avermelhado, no horizonte meridional, através de aberturas nas ruínas denteadas,
e a idade e o silêncio terríveis da cidade de pesadelo pareciam ainda mais gritantes em contraste com coisas relativamente conhecidas e habituais como os elementos da paisagem polar. O céu era uma massa
agitada e opalescente de tênues vapores glaciais e o frio gelava-nos as estranhas. Descansando no chão as sacolas a que nos havíamos agarrado por instinto durante a fuga desesperada, tornamos a abotoar
nossos agasalhos pesados para a descida dificultosa pela pilha de escombros e a caminhada pelo imemorial labirinto de pedra até os contrafortes, onde esperava nosso avião. Sobre aquilo que nos havia posto
em fuga desabalada da escuridão dos abismos secretos e arcaicos da terra, nem uma palavra dissemos.
Em menos de um quarto de hora havíamos localizado o aclive íngreme para os contrafortes — a provável esplanada antiga — e podíamos ver o vulto escuro do grande aeroplano entre as ruínas esparsas da encosta.
Ao transpormos a metade do caminho, paramos para um breve repouso e nos voltamos para ver de novo o emaranhado fantástico de inacreditáveis formas de pedra, mais uma vez silhuetadas misticamente contra
o céu do oeste desconhecido. Percebemos então que o céu daquele lado havia perdido a nebulosidade da manhã; os inquietos vapores glaciais haviam-se transferido para o zênite, onde seus contornos zombeteiros
pareciam prestes a assumir algum desenho extravagante, que temiam tornar inteiramente definido ou concludente.
Revela-se agora no horizonte branquíssimo, por trás da cidade grotesca, uma linha fosca e misteriosa de pináculos violetas, cujas alturas aguçadas agigantavam-se, como em sonho, contra o róseo do céu ocidental.
Na direção dessa orla tremeluzente subia o planalto antigo, que o curso deprimido do rio desaparecido atravessava como uma fita irregular de sombra. Por um instante admiramos, boquiabertos, a beleza cósmica
e sobrenatural da cena, mas a seguir um vago horror começou a se instalar em nossas almas. Pois aquela longínqua linha violácea não podia ser senão as terríveis montanhas da terra interdita — os mais altos
picos terrestres, o foco do mal na Terra; refúgios de horrores inomináveis e segredos arqueanos; evitadas e cultuadas por aqueles que temiam esculpir na pedra o que elas significavam; não conhecidas por
qualquer criatura viva da terra, mas visitadas pelos raios sinistros e origem de fachos estranhos que brincavam mas planícies na noite polar — indubitavelmente o arquétipo desconhecido daquele temido Kadath
do Ermo Gélido, além da execrável Terra de Leng, a que as lendas primais fazem alusões evasivas.
A crermos na exatidão dos mapas e desenhos esculpidos da cidade pré-humana, aquelas crípticas montanhas violetas não podiam estar a muito menos de 500 quilômetros de distância; no entanto, seus delineamentos
foscos e misteriosos apareciam nitidamente acima daquela borda remota e nevosa, como o contorno serrilhado de um monstruoso planeta alienígena na iminência de nascer num céu pouco habitual. A altitude
daquelas montanhas, portanto, deveriam evadir-se a qualquer comparação — levava-as a tênues camadas atmosféricas povoadas apenas por fantasmas gasosos, sobre os quais intimoratos aeronautas mal conseguiram
emitir uma referência em sussurro, após quedas inexplicáveis. Olhando-as, eu pensava nervosamente em certas alusões, esculpidas, a coisas que o grande rio desaparecido havia transportado para a cidade,
depois de arrastá-las de suas encostas malditas — e imaginava o quanto de bom senso e o quanto de loucura teriam formado os medos daqueles Antigos, que as haviam esculpido com tamanha reticência. Lembrei
que a extremidade setentrional daqueles colossos deviam chegar perto da costa na Terra da Rainha Mary, onde naquele exato momento a expedição de Sir Douglas Mawson estava trabalhando, a cerca de 1.600
quilômetros de onde nos encontrávamos. E orei para que os fados aziagos não propiciassem a Sir Douglas e a seus homens um vislumbre do que talvez se escondesse por trás da protetora cordilheira litorânea.
Tais ideias davam uma medida de meu estado de fadiga no momento — e Danforth parecia estar em situação ainda pior.
Entretanto, bem antes de passarmos pela grande ruína em forma de estrela e chegarmos a nosso avião, nossos temores haviam-se transferido para a cordilheira menor, mas também descomunal, que voltaríamos
logo a transpor. A partir daqueles contrafortes, as encostas negras e pontilhadas de ruínas se erguiam nítida e hediondamente contra o leste, mais uma vez nos recordando aquelas estranhas pinturas asiáticas
de Nicholas Roerich. E quando pensávamos nas assustadoras entidades informes que poderiam ter levado sua substância fétida e contorcente até mesmo aos mais elevados pináculos ocos, não podíamos encarar
sem pânico a perspectiva de mais uma vez passar por perto daquelas sugestivas bocas de cavernas, voltadas para o céu, onde o vento arrancava sons semelhantes a um hórrido silvo musical. Para agravar as
coisas, avistamos sinais claros de névoa em torno de diversos cumes — os mesmos que o pobre Lake devia ter visto quando cometeu o erro inicial, pensando em vulcanismo — e lembramos, com calafrios, daquela
névoa aparentada de que tínhamos acabado de escapar; dela e do abismo blasfemo, horrorífico, de onde provinham tais vapores.
Tudo estava bem no avião e desajeitadamente vestimos os pesados casacos de vôo. Danforth ligou o motor sem problemas e fizemos uma decolagem tranquila sobre a cidade de pesadelo. Abaixo de nós, a ciclópica
arquitetura primal se esparramava tal como da primeira vez que a tínhamos visto, e começamos a ganhar altura e dar voltas, experimentando o vento para atravessarmos o passo. A um nível muito alto devia
estar ocorrendo grande turbulência, pois as nuvens de poeira glacial no zênite faziam toda sorte de coisas fantásticas; mas a 7.200 metros, a altitude de que necessitávamos para atravessar a garganta,
a navegação não apresentava grandes óbices. Ao chegarmos perto dos picos, o estranho sibilo do vento tornou-se manifesto e pude ver as mãos de Danforth tremendo nos controles. Embora eu não passasse de
amador, pensei naquele momento que talvez eu estivesse em melhores condições que ele para efetuar a perigosa passagem entre os pináculos; e quando fiz menção de mudar de lugar e assumir suas tarefas, ele
não protestou. Tentei mobilizar toda minha perícia e fitei o setor de céu avermelhado entre as paredes do desfiladeiro — recusando-me resolutamente a atentar para as rajadas de vapor que vinham dos cumes
e desejando haver selado os ouvidos com cera, tal como os marujos de Ulisses na costa da Sereia, a fim de afastar da consciência aqueles silvos inquietantes.
Danforth, no entanto, liberado da função de piloto e tomado de uma crise nervosa, não conseguia acalmar-se. Eu o sentia virando-se de um lado para outro, enquanto ele olhava para a cidade terrível, que
ia ficando para trás; procurava com o olhar os picos cheios de cavernas e cubos, à frente; contemplava o mar pálido de contrafortes nevados e pontilhados de baluartes, dos lados; e se detinha no céu fervilhante,
grotescamente nublado, no alto. Foi nesse momento, enquanto eu tentava transpor o desfiladeiro em segurança, que seu berro enlouquecido nos levou à beira do desastre, ao destruir o precário auto controle
que eu exercia sobre mim, e fazendo-me por um instante tatear sem objetivo certo nas maneies. Um segundo depois, minha resolução levou a melhor e concluímos a travessia com segurança. Entretanto, temo
que Danforth nunca mais volte a ser o mesmo.
Já disse que Danforth recusou-se a me dizer qual foi o horror final que o fez gritar como demente — um horror que, infelizmente tenho certeza, está na origem de seu atual colapso nervoso.
Conversamos por instantes, aos gritos, vencendo o silvo do vento e o ronco do motor, ao chegarmos ao lado seguro da cordilheira e começarmos a descer lentamente na direção do acampamento, mas essas frases
tinham mais a ver com as promessas de segredo que tínhamos feito ao nos prepararmos para deixar a cidade de pesadelo. Certas coisas, havíamos concordado, não cabiam ser discutidas levianamente pelas pessoas
— e eu não falaria delas agora não fora a necessidade de impedir a partida da expedição Starkweather-Moore, e de outras, a todo transe. É absolutamente necessário, para a paz e a segurança da humanidade,
que alguns dos confins escuros e mortos da Terra e alguns de seus desvãos desconhecidos sejam deixados em paz — para que anormalidades adormecidas não despertem, para que pesadelos blasfemamente sobreviventes
não deixem seus covis negros e busquem novas e maiores conquistas.
Tudo quanto Danforth algum dia insinuou foi que o horror final era uma miragem. Não era, diz ele, alguma coisa relacionada com os cubos e as cavernas daquelas ressoantes, vaporosas e esburacadas montanhas
de loucura que transpusemos; mas um único vislumbre fantástico, demoníaco, entre as agitadas nuvens do zênite, do que jazia por trás daquelas outras montanhas, violáceas que os Antigos haviam evitado e
temido. É bastante provável que a coisa não passasse de pura ilusão, nascida das tensões a que havíamos sido submetidos, e da miragem real, embora não reconhecida, da morta cidade transmontana, experimentada
perto do acampamento de Late na véspera. No entanto, foi tão real que ela ainda persegue Danforth.
Em algumas raras ocasiões, ele já murmurou coisas desconexas e irresponsáveis sobre “o poço negro”, “a borda esculpida”, "os proto-Soggoths”, “os sólidos compactos com cinco dimensões”, “o cilindro inominável”,
“o Pharos antigo”, “Yog-Sothoth”, “a geléia branca primal”, “a cor que caiu do espaço”, “as asas”, “os olhos na escuridão”, “a escada para a Lua”, “o original, o eterno, o imorredouro” e outras extravagâncias;
mas quando ele está em pleno domínio de si repudia tudo isso, que imputa ao fato de haver feito leituras curiosas e macabras em seus anos de formação. Sabe-se, com efeito, que Danforth é um dos poucos
que se atreveram a ler de fio a pavio o exemplar, meio comido por bichos, do Necronomicon, guardado a sete chaves na biblioteca da universidade.
Ao atravessarmos a cordilheira, o céu estava decerto vaporoso e muito agitado; e embora eu não tenha visto o zênite, bem posso imaginar que os torvelinhos de poeira de gelo possam ter assumido formas estranhas.
Sabendo até que ponto cenas distantes podem ser vividamente refletidas, refratadas e ampliadas por tais camadas de nuvens inquietas, digo que a imaginação poderia ter facilmente proporcionando o resto...
e, naturalmente, Danforth não fez alusão a esses horrores específicos senão depois que sua memória teve tempo de buscá-los em leituras antigas. Ele jamais poderia ter visto tanto em um único olhar instantâneo.
Naquele momento, seus gritos se limitaram à repetição de uma palavra única, louca, cuja fonte era óbvia: “Tekeli-li! Tekeli-li!”
A Casa Abandonada
Até mesmo dos horrores supremos raramente a ironia está ausente. Às vezes ela participa diretamente da composição dos acontecimentos; outras vezes só se refere à posição fortuita desses acontecimentos
entre pessoas e lugares. O último caso é ilustrado, de maneira esplêndida, por um episódio ocorrido na antiga cidade de Providence, onde, nos últimos anos da década de 1840 Edgard Allan Poe costumava se
hospedar com frequência, durante a malograda corte que fez a Sra. Whitman, a talentosa poetisa. Em geral Poe ficava na Mansion House, em Benefit Street — hoje rebatizada como Pousada Golden Ball, cujo
teto abrigou Washington, Jefferson e Lafayette —, e seu passeio predileto consista em caminhar na direção do norte, pela mesma rua, até a residência da Sra. Whitman e o cemitério da igreja de São João,
numa colina próxima. As lápides do século XVIII exerciam sobre ele um fascínio peculiar.
Ora, a ironia está em que, nesse passeio tantas vezes repetido, o maior mestre do terrível e do fantástico em todo o mundo era obrigado a passar por uma certa casa do lado leste da rua; era uma construção
antiquada e caindo aos pedaços, pendurada numa ladeira que subia bruscamente, com um enorme quintal abandonado, que datava do tempo em que a região era quase desabitada. Ao que parece, ele nunca escreveu
ou falou sobre ela, nem há qualquer indicação de que algum dia a tenha notado. No entanto, para duas pessoas possuidoras de determinadas informações, aquela casa iguala ou supera, em horror, a mais delirante
fantasia do gênio que tão amiúde passava por ela inadvertidamente, e se ergue, olhando de soslaio para os passantes, símbolo de tudo quanto é indizivelmente tétrico.
A casa pertencia (e, aliás, pertence ainda) àquela espécie destinada a atrair a atenção dos curiosos. Construída em estilo rural, ou semi-rural, obedecia ao risco médio do estilo colonial da Nova Inglaterra
— o teto pontiagudo que indicava prosperidade, com dois andares e sótão sem água-furtada, o portal georgiano e o interior de lambris, ditado pelo gosto da época. Dava para o sul, com uma empena chegando
às janelas inferiores na colina de leste, e a outra exposta para os alicerces, na direção da rua. Sua construção, que datava de mais de século e meio, havia acompanhado o aclive e o endireitamento da rua
naquele local; isto porque a Benefit Street — de início denominada Back Street — dispunha-se como uma viela que serpenteava entre os túmulos dos primeiros colonizadores e só fora retificada quando a remoção
dos restos mortais para o Cemitério do Norte tornou-lhe decentemente possível cortar os velhos jazigos de família.
No passado, a parede de oeste se erguia a partir de um relvado íngreme, a cerca de seis metros da rua. Entretanto, a alargamento desta, mais ou menos ao tempo, da Revolução, amputou a maior parte do espaço
interveniente, expondo as fundações, de modo que foi necessário edificar um muro de tijolos, dando ao alto porão um alinhamento com a rua, ficando a porta e duas janelas sobre o solo, perto da nova linha
de servidão pública. Quando foi construída a calçada, há um século, removeu-se o que restava do espaço interveniente. E em seus passeios Poe deve ter visto apenas uma parede vertical de sujos tijolos cinzentos,
rentes à calçada e encimada, a uma altura de três metros, pela casa propriamente dita, de antiquados enxaméis.
O terreno da casa, lembrando uma fazenda, estendia-se colina acima, chegando quase a Wheaton Street. O espaço ao sul da casa, limítrofe com a Benefit Street, ficava naturalmente muito acima do nível da
calçada, formando um terraço limitado por uma alta murada da pedra úmida e musgosa, interrompida por um íngreme lance de degraus estreitos que levavam, entre paredes altas como canyons, à área superior
de relva mirrada, úmidas paredes de tijolos e jardins desmazelados, cujas derribadas urnas de cimento, enferrujadas chaleiras caídas de tripés de varas nodosas e objetos semelhantes adornavam a porta da
frente, castigada pelo tempo, com sua clarabóia quebrada, suas apodrecidas colunas jônicas e seu carunchoso frontão triangular.
O que ouvi na juventude a respeito da casa abandonada foi somente que as pessoas morriam ali em quantidade alarmante. Foi por isso, disseram-me, que os primeiros proprietários haviam-se mudado, cerca de
vinte anos depois de a terem construído. A casa era evidentemente insalubre, talvez por causa da umidade e dos fungos do porão, do cheiro doentio, das correntes de ar nos corredores ou da qualidade da
água do poço. Tais características eram bastante más e eram tudo quanto gozava de crédito entre as pessoas que eu conhecia. Só os apontamentos de meu tio, o Dr. Elihu Whipple, revelaram-me por fim as conjecturas
mais sinistras e mais vagas que alimentavam as crenças de velhos empregados e de pessoas mais humildes, conjecturas que nunca chegaram multo longe e que foram em grande parte esquecidas quando Providence
cresceu e se converteu em metrópole moderna, com uma sempre renovada população.
O fato é que a casa nunca foi considerada pela parte respeitável da comunidade como sendo "mal-assombrada" em qualquer sentido real. Não havia histórias de correntes arrastadas, lufadas de ar frio, luzes
que se apagavam ou rostos que assomavam em janelas. Às vezes os mais exagerados diziam que a casa "dava azar", mas não passavam disso. O que era realmente Incontestável era que um número assustador de
pessoas morria ali; ou, mais exatamente, haviam morrido ali, uma vez que, depois de certos episódios peculiares, havia mais de sessenta anos, o prédio tinha ficado abandonado, por pura impossibilidade
de alugá-lo. Essas pessoas não tinham sido, de modo algum, abatidas subitamente por alguma causa única. Ao invés disso, era como se sua vitalidade fosse insidiosamente solapada, de modo que cada qual falecia
mais cedo, em virtude de qualquer tendência à debilidade que lhe fosse natural. E aqueles que não morriam exibiam, em grau variado, um tipo de anemia ou consumição, e às vezes um declínio das faculdades
mentais, que depunham contra a salubridade da moradia. As casas vizinhas, convêm acrescentar, pareciam inteiramente isentas desse atributo nocivo.
Isso era tudo que eu sabia antes que minhas insistentes indagações levassem meu tio a me mostrar os apontamentos que finalmente nos conduziu a nossa medonha investigação. Em minha meninice a casa abandonada
já estava vazia, com suas terríveis árvores secas e retorcidas, seu mato crescido e estranhamente pálido, suas ervas absurdamente malformadas no quintal alto nunca visitado por pássaros. Os meninos, eu
entre eles, costumávamos invadir a casa, e ainda me lembro de meu terror infantil provocado não só pela estranheza mórbida dessa vegetação sinistra, como também pela atmosfera e o odor mefítico da casa
dilapidaria, por cuja porta, sem tranca, costumávamos entrar à procura de calafrios. Quase todas as janelas, de pequeninas vidraças, estavam quebradas e um clima sombrio de desolação pairava em tomo dos
lambris precários, das venezianas destroçadas, do papel de parede solto, do reboco, das escadas rangentes e dos restos de mobília desmantelada. A poeira e as telas de aranhas acrescentavam seu toque de
medo, e valente era a criança que voluntariamente subia a escada do sótão, um vasto espaço encaibrado, Iluminado apenas por pequenas janelas sujas nas empenas, tomado pelos restos empilhados de baús, cadeiras
e rocas que anos infinitos de abandono haviam amortalhado e decorado com telas de aranha, dando-lhes formas monstruosas e infernais.
No entanto, o sótão não era a parte mais terrível da casa. Era o porão único que, por algum motivo, mais repulsa nos causava, multo embora ficasse inteiramente acima do solo, do lado da rua, separado da
calçada movimentada apenas por uma porta delgada e por uma parede de tijolos com janelas. Não sabíamos se mais desejávamos inspecioná-lo, tomados de fascinação espectral, ou evitá-lo, por amor às nossas
almas e a nosso juízo. Para começar, o mau-cheiro da casa era mais intenso ali; além disso, tínhamos aversão pelos fungos brancos que de vez em quando brotavam do chão de terra dura durante as chuvas de
verão. Tais fungos, grotescamente semelhantes à vegetação do quintal lá fora, tinham contornos verdadeiramente horríveis; eram execráveis paródias de chapéus-de-cobra e monótropas, diferentes de tudo quanto
já tínhamos visto. Apodreciam rapidamente e em certo estágio tomavam-se ligeiramente fosforescentes, pelo que transeuntes noturnos às vezes faziam referência a fogueiras de bruxas por trás das vidraças
quebradas das janelas, que exalavam fedor nauseabundo.
Jamais — nem em nossas mais animadas noites de Halloween — visitávamos aquele porão à noite, mas em algumas de nossas visitas diurnas podíamos detectar a fosforescência, principalmente quando o dia era
escuro e úmido. Havia ainda uma coisa mais sutil, que multas vezes supúnhamos detectar — uma coisa estranhíssima que era, entretanto, no máximo sugestiva. Refiro-me a uma espécie de desenho esbranquiçado
no chão sujo — um depósito vago e cambiante de bolor ou mofo, que às vezes acreditávamos ver no melo dos fungos esparsos perto da imensa lareira da cozinha do porão. Às vezes tínhamos a Impressão de que
aquele trecho mostrava uma fantástica semelhança com uma figura humana dobrada em dois, ainda que em geral não houvesse essa identificação e muitas vezes não existisse nenhum depósito esbranquiçado. Numa
certa tarde chuvosa em que essa ilusão pareceu fenomenalmente forte e em que, além disso, imaginei ter entrevisto uma espécie de exalação rala, amarelada e tremeluzente subindo do desenho nitroso na direção
à boca da lareira, falei com meu tio a respeito. Ele sorriu, mas era como se seu sorriso estivesse matizado por reminiscências. Mais tarde vim a saber que uma impressão semelhante fazia parte de algumas
das fantasiosas histórias antigas da gente comum — uma impressão que também aludia a formas fantasmais e lupinas assumidas pela fumaça da grande chaminé e a contornos singulares tomadas por algumas das
sinuosas raízes que, passando pelas pedras soltas das fundações, acabavam entrando no porão.
II
Só quando me fiz adulto foi que meu tio me deu a ler os apontamentos que ele havia coligido com relação à casa abandonada. O Dr. Whipple era um médico conservador da velha guarda, e apesar de todo seu
interesse pelo lugar não estava disposto a Incentivar o interesse dos jovens pelo ocultismo. Sua opinião pessoal, que postulava simplesmente um prédio e uma localização de acentuados predicados insalubres,
nada tinha a ver com anormalidade; no entanto, ele sabia que se o pitoresco do caso era capaz de despertar seu próprio interesse, haveria de provocar toda sorte de medonhas associações Imaginativas no
espírito de uma criança.
O médico era celibatário. Um cavalheiro de cabeça branca, de barba raspada, e com reputação local de historiador, que havia frequentemente terçado lanças com controversos guardiões da tradição, como Sidney
S. Rider e Thomas W. Bicknell. Vivia com um criado numa casa georgiana com aldrava e degraus com cantoneiras de ferro, equilibrada lugubremente na subida íngreme da North Court Street, ao lado do antigo
tribunal onde seu avô — um primo daquele famoso corsário, o Capitão Whipple, que incendiou a escuna armada Gaspee, de Sua Majestade, em 1772 — havia votado a 4 de maio de 1776 pela independência da colônia
de Rhode Island. A seu redor, na biblioteca úmida, de lambris brancos e bolorentos, rebordo de lareira esculpido e janelas de vidraças pequenas, cobertas de hera, estavam as relíquias e as lembranças de
sua família antiga, entre as quais havia numerosas alusões dúbias à casa abandonada da Benefit Street. Aquele sítio maléfico não fica longe, pois a Benefit Street corre bem sobre o tribunal, pela encosta
da colina que constituiu o primeiro núcleo da cidade.
Quando, por fim, minha insistência e meu amadurecimento levaram meu tio a me franquear a história que eu buscava, vi-me diante de uma crônica estranhíssima. Embora parte dela fosse tortuosa e maçantemente
genealógica, corria por todo o relato um fio contínuo de horror melancólico e tenaz, de malignidade sobrenatural, que me impressionaram ainda mais que ao bom doutor. Episódios separados se concatenavam
de modo fantástico e pormenores na aparência irrelevantes encerravam minas de hediondas possibilidades. Cresceu em mim uma nova e ardente curiosidade, comparada à qual minha curiosidade infantil era débil
e rudimentar. As primeiras revelações conduziram a uma pesquisa exaustiva e, finalmente, àquela investigação assustadora que se mostrou tão desastrosa para mim e os meus. Porque finalmente meu tio insistiu
em participar da busca que eu havia iniciado, e depois de uma certa noite naquela casa não saiu dela comigo. Sinto-me só sem aquela alma gentil cujos longos anos só conheceram a honra, a virtude, o bom
gosto, a benevolência e o saber. Fiz erguer em sua memória um monumento de mármore no cemitério da Igreja de São João — o lugar que Poe tanto amou —, a alameda oculta de salgueiros gigantes na colina,
onde túmulos e lápides se amontoam placidamente entre o vulto venerável da Igreja e as casas e os muros da Benefit Street.
A história da casa, que se desvelou num emaranhado de datas, nada revelava de sinistro quanto à sua construção ou quanto à família próspera e honrada que a construiu. No entanto, desde o início evidenciou-se
uma mácula de calamidade, que logo ganhou pressago significado. A crônica que meu tio compilara com tamanho cuidado começava com a edificação da estrutura, em 1763, e seguia o tema com uma invulgar cópia
de minúcias. A casa abandonada, ao que parece, foi habitada primeiramente por William Harris e sua esposa, Rhoby Dexter, juntamente com seus filhos — Elkanah, nascida em 1755; Abigail, nascida em 1757.
William Jr., nascido em 1759; e Ruth, nascida em 1761. Harris era um abastado comerciante e lobo-do-mar, que se ocupava do comércio com as Índias Ocidentais, ligado à firma de Obadiah Brown e sobrinhos.
Após a morte de Brown em 1761, a nova firma de Nicholas Brown & Co. fê-lo capitão do brigue Prudence, de 120 toneladas, construído em Providence, possibilitando-lhe assim construir a residência com que
ele sonhara desde o casamento.
O local por ele escolhido — um trecho recentemente retificado da nova e elegante Back Street, que seguia pela encosta da colina sobre a congestionada parte da cidade que era chamada de Cheapside — nada
deixava a desejar e a casa fez justiça à sua localização. Era melhor que recursos moderados poderiam custear e Harris apressou-se a mudar para ali antes do nascimento de um quinto filho. A criança, um
menino, nasceu em dezembro; entretanto, nasceu morto. Aliás, criança alguma nasceria com vida naquela casa durante um século e meio.
No mês de abril seguinte, as crianças caíram doentes e Abigail e Ruth morreram antes de findar o mês. O Dr. Lob Ives diagnosticou a enfermidade como sendo alguma febre Infantil, conquanto outros declarassem
que ela mais se assemelhava a uma consumição. De qualquer modo, parecia ser contagiosa, pois Hannah Bowen, uma criada, morreu acometida do mesmo mal em junho. Eli Lideason, o outro criado, queixava-se
constantemente de fraqueza e teria regressado para a fazenda do pai em Rehoboth não fosse a súbita paixão por Mehitabel Pierce, que fora contratada em lugar de Hannah. Eli morreu no ano seguinte, na verdade
um ano triste, pois assinalou a morte do próprio William Harris, que sucumbira ao clima da Martinica, onde sua profissão o mantivera durante períodos consideráveis na década anterior.
A viúva nunca se recobrou do choque causado pelo passamento do marido, e a morte de seu primogênito, Elkanah, dois anos depois, representou o golpe final para seu juízo. Em 1768 ela caiu vitima de uma
forma branda de insanidade, ficando daí em diante confinada à parte superior da casa. Mercy Dexter, sua irmã mais velha, solteira, mudou-se para lá a fim de cuidar da família. Mercy era uma mulher simples
e ossuda, de grande vigor, mas sua saúde declinou visivelmente desde que se mudou para a casa. Era extremamente devotada à sua infeliz irmã e nutria afeto especial por seu único sobrinho sobrevivente,
William, que de criança robusta se transformara num rapazinho enfermiço e magro. Foi nesse ano que morreu a criada Mehitabel e que o outro serviçal, Preserved Smith, saiu sem explicação coerente, mas levando
algumas histórias absurda e a queixa de que não gostava do cheiro da casa. Durante algum tempo Mercy não conseguiu quem a auxiliasse, pois as sete mortes e o caso de loucura, tudo isso num espaço de cinco
anos, haviam começado a atear, como fogueira, os boatos que viriam a tornar-se tão fantásticos. Por fim, entretanto, ela arranjou novos criados, fora da cidade — Ann White, uma mulher rabugenta daquela
parte de North Kingstown que hoje constitui a cidade de Exeter, e um eficiente bostoniano de nome Zenas Low.
Foi Ann White quem primeiro deu forma definida ao sinistro falatório. Mercy devia ter pensado melhor antes de contratar alguém da região de Nooseneck Hill, pois aquele lugar atrasado era, como ainda é,
fonte das mais desagradáveis superstições. Ainda em 1892 uma comunidade de Exeter exumou um cadáver e ritualisticamente queimou-lhe o coração, a fim de conjurar supostas aparições tidas como danosas à
saúde e à paz públicas, e pode-se imaginar qual fosse o espírito dessa gente em 1768. A língua de Ann mostrava-se perniciosamente ativa e dentro de alguns meses Mercy a demitiu, substituindo-a por uma
fiel e amável virago de Newport, Maria Robbins.
Entrementes, a infeliz Rhoby Harris manifestava, em sua loucura, os sonhos e fantasias mais delirantes. Às vezes seus gritos se tornavam insuportáveis e, por longos períodos, ela vociferava horrores que
obrigavam a que o filho fosse morar temporariamente com o primo, Peleg Harris, no Caminho Presbiteriano, perto do novo edifício do colégio. O rapaz parecia melhorar de saúde após essas visitas, e fosse
Mercy tão sensata quanto bem-intencionada, ela o deixaria morar em caráter permanente com Peleg. A tradição hesita em dizer exatamente o que a Sra. Harris bradava em suas crises de violência; ou melhor,
os relatos são de tal modo extravagantes que se desmentem pelo puro absurdo. Decerto parecerá absurdo dizer que uma mulher que aprendera apenas os rudimentos do francês gritasse durante horas num rude
dialeto daquela língua, ou que essa mesma pessoa, que vivia sozinha e protegida, se queixasse com desvario de uma coisa que a vigiava e a mordia. Em 1772 morreu o criado Zenas e quando a Sra. Harris ouviu
a notícia gargalhou com um prazer chocante, inteiramente fora de seu feitio. No ano seguinte ela própria morreu e foi sepultada ao lado do marido no Cemitério do Norte.
Ao rebentar a guerra com a Grã-Bretanha, em 1775, William Harris, a despeito de seus tenros dezesseis anos e de sua débil constituição, logrou alistar-se no Exército de Observação, sob o comando do general
Greene; e a partir de então não deixaram de melhorar sua saúde e seu prestígio. Em 1780, servindo como capitão das forças de Rhode Island em Nova Jersey, sob o comando do coronel Angell, ele se casou com
Phebe Hetfield, de Elizabethtown, levando-a para Providence ao dar baixa com honras no ano seguinte.
O retorno do Jovem soldado não foi aureolado de total felicidade. A casa, é verdade, estava ainda em bom estado, e a rua fora alargada e tivera seu nome mudado, de Back Street para Benefit Street. No entanto,
a compleição outrora robusta de Mercy Dexter havia sofrido um curioso e prostram-te alquebramento, de modo que ela era agora uma figura derreada e patética, de voz cava e palidez desconcertante — atributos
partilhados em grau singular pela única criada que restava, Maria. No outono de 1782 Phebe Harris deu à luz uma filha natimorta e no dia 15 do mês de maio seguinte, Mercy Dexter despediu-se de uma vida
útil, austera e virtuosa.
Por fim convencido da natureza radicalmente insalubre de seu domicílio, William Harris tomou medidas para deixá-lo e fechá-lo para sempre. Tomando aposentos temporários para si e sua mulher na recém-inaugurada
Pousada Golden Bali, ele providenciou a construção de uma nova casa, melhor, na Westminster Street, na parte da cidade que se desenvolvia do outro lado da Ponte Grande. Ali, em 1785, nasceu-lhe um filho,
Dutee; e ali a família residiu até que as invasões do comércio fizeram com que atravessassem outra vez o rio e novamente transpusessem a colina, instalando-se na Angell Street, no bairro residencial mais
novo de East Side, onde em 1876 o falecido Archer Harris construiu sua suntuosa, mas medonha mansão, em estilo francês. Tanto William como Phebe sucumbiram à epidemia de febre amarela de 1797, porém Dutee
foi criado pelo primo Rathbone Harris, filho de Peleg.
Rathbone era homem de espírito prático e alugou; a casa de Benefit Street, a despeito do desejo de William de mantê-la vazia. Considerava obrigação sua aproveitar ao máximo todas as propriedades de seu
tutelado e não se preocupava com as mortes e as moléstias, que causavam tantas mudanças de moradores, ou com a crescente aversão que em geral era votada a casa. É provável que ele tenha sentido apenas
contrariedade quando, em 1804, o conselho municipal determinou-lhe que fumigasse a casa com enxofre, alcatrão e cânfora, devido às polêmicas mortes de quatro pessoas, presumivelmente causadas pela epidemia
de febre amarela, que já então esmorecia. Diziam que a casa tinha um cheiro pestilento.
O próprio Dutee pouco pensava na casa, pois ao crescer tomou-se corsário e serviu com distinção no Vigilant, sob o comando do Capitão Cahoone, na guerra de 1812. Voltou Ileso, casou-se em 1814 e tornou-se
pai naquela memorável noite de 23 de setembro de 1815, quando um vendaval fez com que as águas da baía cobrissem meia cidade e empurrou pela Westminster Street uma chalupa alta, cujos mastros quase bateram
nas janelas dos Harris, numa afirmação simbólica de que o menino, Welcome, era filho de marinheiro.
Welcome não sobreviveu ao pai, mas viveu o bastante para morrer com glória em Fredericksburg, no ano de 1862. Nem ele nem o filho Archer viam na casa abandonada outra coisa senão uma maçada, quase impossível
de alugar, talvez devido ao bolor e ao cheiro doentio de velhice desleixada. Com efeito, ela nunca foi alugada após uma série de mortes que culminaram em 1861 e que a agitação da guerra tendeu a lançar
no esquecimento. Carrington Harris, o último da linhagem masculina, só sabia dela como um foco de lendas, abandonado e com seu toque de pitoresco, até eu lhe contar minha experiência. Ele tivera a intenção
de demoli-la e construir no terreno um edifício de apartamentos, porém depois de meu relato decidiu deixá-la como estava, instalar encanamento e alugá-la. Até hoje não tem tido dificuldades para conseguir
locatários. O horror havia desaparecido.
III
Bem se pode imaginar como os anais dos Harris me impressionaram. Naquela crônica continua, parecia-me espreitar um malefício persistente, os fatos mais antinaturais que já me tinham sido dado conhecer.
Essa impressão foi confirmada pela coletânea de dados menos sistemáticos, coletados por meu tio — lendas transcritas de conversas de criados, recortes de jornais, cópias de atestados de óbito firmados
por colegas médicos etc. Não há possibilidade de eu divulgar todo esse material, uma vez que meu tio era um incansável colecionador de antigualhas e se interessava profundamente pela casa abandonada. No
entanto, poderei fazer referência a vários tópicos dominantes, que atraem a atenção devido ao fato de aparecerem em muitas fontes diversas. Por exemplo, em seu disse-que-disse, os criados eram quase unânimes
em atribuírem ao porão fungoso e mau-cheiroso da casa uma vasta supremacia no tocante à influência maléfica. Havia criadas (principalmente Ann White) que não usavam a cozinha do porão e pelo menos três
histórias bem definidas se referiam aos estranhos contornos quase humanos ou diabólicos assumidos pelas raízes ou manchas de bolor naquela área. Essas últimas narrativas interessaram-me profundamente,
em virtude do que eu mesmo tinha visto na meninice, mas ficou-me a impressão de que o alcance de cada caso havia sido em grande parte obscurecido por acréscimos provenientes do folclore local.
Com suas superstições de Exeter, fora Ann White quem propalara a história mais fantástica e ao mesmo tempo mais consistente. Afirmava ela que debaixo da casa deva estar enterrado um daqueles vampiros —
os mortos que conservam sua forma corporal e se nutrem do sangue ou do hálito dos vivos — cujas hediondas legiões soltam à noite seus vultos ou espíritos rapinantes. Para se destruir um vampiro, dizem
as comadres, é preciso exuma-lo e queimar seu coração, ou pelo menos atravessar com uma estaca aquele órgão; e a insistência obstinada de Ann no sentido de que se desse uma busca sob o porão desempenhara
papel importante em sua demissão.
Suas histórias, no entanto, gozavam de ampla aceitação, tanto mais porque, com efeito, a casa situava-se em terras utilizadas no passado para sepultamentos. Para mim o interesse despertado por essas histórias
baseava-se menos nessa circunstância do que na maneira peculiarmente apropriada como coincidiam com algumas outras coisas — a queixa do criado Preserved Smith, ao deixar o emprego, de que alguma coisa
havia "sugado sua respiração” de noite (Preserved precedera Ann e nunca tinha ouvido falar dela); os atestados de óbito de vitimas da febre em 1804, firmados pelo Dr. Chad Hopkins, segundo os quais todas
as quatro pessoas falecidas estavam inexplicavelmente sem sangue; e as passagens obscuras dos delírios da pobre Rhoby Harris, nas quais ela se queixava dos dentes afiados de uma presença de olhos vítreos,
semivisível.
Por mais livre de infundadas superstições que eu seja, essas coisas provocavam em mim uma sensação singular, intensificada por dois recortes de jornal, bastante separados pelo tempo, que diziam respeito
a mortes ocorridas na casa abandonada. Um deles era o Providence Gazette and Country-Journal, de 12 de abril de 1815, o outro do Daily Transcript and Chronicle, de 27 de outubro de 1845. Ambos pormenorizavam
uma circunstância espantosamente sinistra, cuja duplicação era extraordinária. Ao que parece, em ambos os casos os mortos (em 1815, uma delicada anciã chamada Stanford; em 1845 um mestre-escola de meia-idade,
de nome Eleazar Durfee) ficaram horrivelmente transfigurados; com os olhos vidrados, teriam tentado morder a garganta do médico assistente. Ainda mais enigmático, porém, foi o episódio final, que pôs fim
às tentativas de alugar a casa — uma série de mortes por anemia, precedida por loucura progressiva durante a qual os pacientes astuciosamente atentavam contra a vida dos parentes, mediante incisões no
pescoço ou nos pulsos.
Isso foi em 1860 e 1861, pouco depois de meu tio haver começado a clinicar. E antes de partir para a frente de luta ele havia escutado muita coisa da boca de colegas mais velhos. O fato realmente inexplicável
era a maneira como as vítimas — pessoas ignorantes, pois a casa malcheirosa, que todos mais evitavam, não mais podia ser alugada a outra classe de gente — balbuciavam maldições em francês, língua que não
poderiam de modo algum ter estudado. Aquilo fazia lembrar a infeliz Rhoby Harris, quase um século antes, e tanto impressionou meu tio que ele começou a coletar informações históricas sobre a casa, depois
de escutar, algum tempo após sua volta da guerra, o primeiro relato em primeira mão dos Drs. Chase e Whitmarsh. Na verdade, eu percebia que meu tio havia refletido longamente sobre a questão e que se comprazia
com meu próprio interesse — um interesse receptivo e compassivo que lhe permitia discutir comigo assuntos que para outras pessoas só constituiriam motivos de risota. Sua fantasia não fora tão longe quanto
a minha, mas ele acreditava que o lugar era rico de potencialidades Imaginativas e digno de nota como inspiração no campo do grotesco e do macabro.
De minha parte, eu estava dispostos a encarar o assunto com a máxima seriedade e comecei imediatamente a não só analisar os dados existentes como a acumular outros novos, tanto quanto possível. Conversei
com o idoso Archer Harris, então proprietário da casa, multas vezes antes de sua morte em 1916; e obtive, tanto dele quanto de sua irmã solteira Alice, ainda viva, uma corroboração autêntica de todos os
dados de família que meu tio havia coligido. Quando, entretanto, lhes perguntei que ligação a casa poderia ter com a França ou com a língua francesa, eles se confessaram tão francamente perplexos e ignorantes
quanto eu. Archer de nada sabia e tudo quanto Miss Harris pôde dizer foi que talvez uma velha alusão por seu avô, Dutee Harris, pudesse esclarecer alguma coisa. O velho marinheiro, que sobrevivera à morte
do filho Welcome em batalha por dois anos, não conhecera pessoalmente a lenda, mas lembrava-se de que sua primeira ama, a velha Maria Robbins, parecia sombriamente ciente de alguma coisa que poderia ter
emprestado funesto significado aos delírios de Rhoby Harris em francês, que ela tantas vezes escutara durante os últimos dias daquela desgraçada mulher. Maria havia morado na casa abandonada desde 1769
até a mudança da família em 1783 e tinha visto Mercy Dexter morrer. De certa feita ele insinuara ao menino Dutee que houvera uma circunstância peculiar nos últimos momentos de Mercy, mas ele logo se esquecera
de tudo aquilo, salvo que tinha sido algo de singular. A neta, ademais, lembrava-se até mesmo disso com dificuldade. Ela e o irmão não estavam tão interessados na casa quanto o filho de Archer, Carrington,
o atual proprietário, com quem conversei depois de minha experiência.
Havendo obtido da família Harris toda informação que ela podia proporcionar, voltei a atenção para os antigos registros e anais da cidade, com ardor mais ferrenho do que meu tio demonstrara ocasionalmente
no mesmo mister. O que eu desejava era uma história completa do lugar, desde o inicio de sua ocupação, em 1636 ou mesmo antes, se fosse possível desencavar alguma lenda dos índios Narragansett capaz de
fornecer informações. Descobri, de saída, que o terreno tinha feito parte da longa faixa concedida originariamente a John Throckmorton; era uma dentre várias faixas semelhantes que começavam na Town Street,
à beira do rio, e que subiam pela colina até uma linha que corresponde hoje, grosso modo, a Hope Street. Mais tarde, naturalmente, a terra de Throckmorton tinha sido multo subdividida; e eu me apliquei
com afinco em estudar aquela parte que seria posteriormente atravessada pela Back ou Benefit Street. Ela fora, dizia com efeito um boato, o cemitério dos Throckmorton. Entretanto, examinando mais detidamente
os registros, dei-me conta de que os túmulos tinham sido todos transferidos para o Cemitério do Norte na Pawtucket West Road.
Foi então que de repente — e de maneira inteiramente fortuita, pois o documento não integrava o corpo principal da investigação e poderia ter facilmente passado despercebido — dei com uma coisa que suscitou
em mim o mais vivo entusiasmo, por se ajustar à maravilha aos aspectos mais curiosos do mistério. Tratava-se do assentamento da cessão, em 1697, de uma jeira de terra a um certo Etienne Roulet e sua mulher.
Por fim havia aparecido o elemento francês — Isso e um outro elemento mais profundo de horror que o nome evocava nos recessos mais sombrios de minhas leituras fantásticas e heterogêneas — e pus-me a estudar
febrilmente a planta da área, tal como ela fora antes do atalhamento e da parcial retificação da Back Street entre 1747 e 1758. Descobri o que de certa forma esperava: onde ficava hoje a casa abandonada
os Roulets haviam feito seu cemitério, por trás de um chalé com sótão. Não existia qualquer registro de transferência de túmulos daquele sítio. O documento, na verdade, terminava de modo assaz confuso
e fui obrigado a vasculhar tanto a Sociedade Histórica de Rhode Island quanto a Biblioteca Shepley antes de conseguir descobrir uma porta que o nome Etienne Roulet pudesse destrancar. Por fim, descobri
uma coisa: uma coisa de significado tão vago, mas monstruoso, que me dispus incontinenti a examinar o porão da casa abandonada com redobrado e excitado rigor.
Os Roulets, ao que parecia, tinham chegado em 1696 de East Greenwich, na margem ocidental da baía de Narragansett — Eram huguenotes de Caude e haviam encontrado muita oposição antes que os conselheiros
municipais os autorizassem a se estabelecer na cidade. A impopularidade os perseguira em East Greenwich, para onde tinham ido em 1686, após a revogação do Edito de Nantes, e dizia-se que a causa da antipatia
ia além de meros preconceitos racionais e nacionais ou dos litígios de terras que contrapunham outros franceses aos ingleses, em rivalidades que nem o governador Andros podia solucionar. Contudo, seu ardoroso
protestantismo — ardoroso demais. Havia quem murmurasse — e sua evidente aflição ao serem praticamente expulsos da vila haviam-lhe propiciado um refúgio; e o corpulento Etienne Roulet, menos dado à agricultura
que à leitura de livros estranhos e à confecção de estranhos diagramas ganhou um cargo de escriturário no armazém do cais de Pardon Tillinghast, no extremo sul da Town Street. Entretanto, ocorrera uma
briga mais tarde — talvez quarenta anos depois, após a morte do velho Roulet — e ninguém parecia ter tido notícias da família depois disso.
Durante um século ou mais, parecia, os Roulets tinham sido bastante lembrados e discutidos frequentemente, como vívidos incidentes na vida pacata de um porto de Nova Inglaterra. O filho de Etienne, Paul,
um sujeito arrogante cujo comportamento imprevisível provavelmente provocara a briga que havia dado fim à família, constituía, particularmente, fonte de especulações. E muito embora Providence jamais houvesse
compartilhado do pavor que seus vizinhos puritanos tinham da feitiçaria, as comadres comentavam livremente que as orações de Paul não eram pronunciadas nos momentos adequados, nem se dirigiam à entidade
apropriada. Tudo isso, indubitavelmente, havia constituído a base da lenda conhecida pela velha Maria Robbins. Que relação ela teria com os delírios em francês de Rhoby Harris e de outros habitantes da
casa abandonada, só a imaginação ou descobertas futuras poderiam determinar. Eu ficava a imaginar quantas, dentre as muitas pessoas que haviam conhecido as lendas, tinham consciência daquele elo adicional
com o sobrenatural que leituras mais amplas haviam-me proporcionado; aquele dado agourento dos anais do horror mórbido que se refere à criatura Jacques Roulet, de Caude, que em 1598 foi condenado à morte
por satanismo, sendo posteriormente salvo da fogueira pelo parlamento de Paris e confinado num hospício. Ele havia sido encontrado numa floresta, coberto de sangue e tiras de carne, pouco depois da morte
e do despedaçamento de um menino por um par de lobos. Um dos animais fora visto fugindo incólume. Decerto tratava-se de uma interessante história a ser contada ao pé da lareira, uma história de sugestivo
significado quanto ao protagonista e ao local. No entanto, cheguei à conclusão de que em geral o povo de Providence decerto não teria tomado conhecimento dela. Conhecessem-na, a coincidência de nomes teria
provocado alguma ação drástica e assustada... Na verdade, não era crível que alguma alusão a ela, à boca pequena, tivesse precipitado o distúrbio final que havia feito os Roulets desaparecerem da cidade?
Eu agora visitava o lugar sinistro com mais frequência; estudava a vegetação raquítica do jardim, examinava todas as paredes do prédio e me detinha em cada palmo do chão de terra do porão. Por fim, com
a permissão de Carrington Harris, mandei fazer uma chave para a porta do porão que dava diretamente para a Benefit Street, por preferir dispor de um acesso mais imediato ao mundo exterior do que o proporcionado
pelas escadas escuras, o salão do andar térreo e a porta da frente. Ali, onde a morbidez se ocultava mais densamente, eu procurava e investigava durante longas tardes em que a luz do sol penetrava pela
porta, coberta de telas de aranha, acima do nível da rua, e que me colocava a pequeníssima distância da plácida calçada, na rua. Meus esforços não foram recompensados por nada de novo — somente o mesmo
bolor deprimente e leves impressões de odores perniciosos e de contornos nitrosos no chão — e imagino que muitos transeuntes tenham-me olhado com curiosidade através das vidraças quebradas.
Por fim, atendendo a uma sugestão de meu tio, resolvi visitar o lugar de noite; e numa meia-noite tempestuosa corri o facho de uma lanterna elétrica pelo chão mofado, com suas formas bizarras e seus fungos
distorcidos, semifosforescentes. O lugar me havia deprimido curiosamente aquela noite e eu me sentia quase preparado quando vi — ou julguei ver — em melo aos depósitos esbranquiçados a definição particularmente
nítida do "vulto dobrado" de que eu suspeitara na infância. Sua clareza era assombrosa e sem precedentes — e enquanto eu olhava julgava rever a emanação rala, amarelenta e tremeluzente que me sobressaltara
naquela tarde de chuva havia tantos anos.
A exalação subia sobre a mancha antropomórfica de bolor junto da lareira, um vapor sutil, doentio, quase luminoso que, ao pairar tremulamente na umidade, parecia assumir vagas e chocantes sugestões de
forma, desfazendo-se gradualmente num estiolamento nebuloso ou se transferindo para o negrume da enorme chaminé, deixando atrás de si um intenso fedor. Era algo verdadeiramente horrendo, sobretudo devido
ao que eu sabia a respeito do lugar. Recusando-me a fugir, eu o vigiava esmaecer — e enquanto vigiava eu sentia que aquela coisa estava também a me vigiar, cobiçosa, com olhos mais imagináveis que visíveis.
Quando falei a respeito disso a meu tio, ele se interessou vivamente e depois de uma hora tensa de reflexão, chegou a uma decisão definida e drástica. Ponderando na mente a importância da questão e o significado
de nossa relação com ela, ele insistiu em que nós dois experimentássemos — e, se possível, destruíssemos — o horror da casa mediante uma ou várias noites de vigília agressiva naquele porão bolorento e
invadido de fungos.
IV
Numa quarta-feira, 25 de junho de 1919, após devidamente notificarmos Carrington Harris (mas sem fazermos referência ao que esperávamos encontrar), meu tio e eu levamos para a casa abandonada duas cadeiras
de armar e um catre dobrável de acampamento, juntamente com alguns mecanismos científicos de maior peso e complexidade. Colocamos essas coisas no porão durante o dia, vedando as janelas com papel e planejando
voltar à noite para nossa primeira vigília. Havíamos aferrolhado a porta entre o porão e o andar térreo; e como possuíamos uma chave da porta externa, podíamos deixar ali nosso dispendioso e delicado aparelhamento
— que havíamos obtido em segredo e a elevado preço — tantos dias quantos fossem necessários. Era nossa intenção ficarmos de atalaia, juntos, até altas horas e depois vigiarmos até de madrugada, um de cada
vez, em turnos de duas horas. Enquanto um de nós estivesse de alerta, o outro repousaria no catre.
O espírito de liderança natural com que meu tio obteve os instrumentos, nos laboratórios da Universidade Brown e no armeiro da Cranston Street, e com que instintivamente assumiu a direção de nosso empreendimento
representou um maravilhoso comentário sobre a vitalidade e a resistência potenciais daquele homem de 81 anos. Elihu Whipple vivera segundo as leis higiênicas que pregava como médico, e não fosse o que
sucedeu mais tarde ele ainda hoje estaria aqui, em pleno vigor. Só duas pessoas suspeitam do que aconteceu — Carrington Harris e eu. Tive de contar a Harris porque ele era o proprietário da casa e merecia
saber o que havia saído de lá. Acresce que o havíamos avisado com antecedência a respeito de nossa investigação; e depois do desaparecimento de meu avô achei que ele me compreenderia e me ajudaria em algumas
explicações públicas, de necessidade vital. Carrington ficou multo pálido, mas concordou em me auxiliar e decidiu que agora poderia alugar a casa com segurança.
Dizer que não estávamos nervosos naquela noite chuvosa da vigília seria um exagero a um só tempo grosseiro e ridículo. Não éramos, como já disse, de maneira alguma infantilmente supersticiosos, mas o estudo
científico e a reflexão nos haviam ensinado que o universo conhecido de três dimensões abarca uma fração ínfima de todo o cosmos de substância e energia. Naquela casa, um grande número de indícios, proveniente
de numerosas fontes autênticas, apontava para a existência tenaz de certas forças de grande poder e, no que tange ao ponto de vista humano, excepcional malignidade. Declarar que verdadeiramente acreditávamos
em vampiros ou lobisomens seria uma assertiva levianamente genérica. Mais correto seria dizer que não estávamos dispostos a negar a possibilidade de certas modificações desconhecidas e ainda não classificadas
de força vital e matéria atenuada. Tais modificações se dariam com certa raridade no espaço tridimensional devido à ligação mais estreita desse espaço com outras unidades espaciais, mas ocorreriam suficientemente
perto da fronteira de nosso espaço para nos proporcionar manifestações ocasionais que, por falta de um adequado ponto de observação, talvez nunca possamos vir a compreender.
Em suma, julgávamos, meu tio e eu, que um conjunto Incontroverso de fatos apontavam para alguma influência persistente na casa abandonada. Essa influência podia ser atribuída a um ou outro dos rudes colonos
franceses de dois séculos passados e ainda atuava através de leis desconhecidas de movimento atômico e eletrônico. O registro da história da família de Roulet parecia comprovar que ela possuíra uma afinidade
anormal com círculos externos de entidade — domínios sombrios pelos quais a gente normal sente apenas repulsa e terror. Não seria de imaginar, então, que as rixas daqueles anos remotos da década de 1730
houvessem acionado algumas forças cinéticas no cérebro mórbido de um ou mais deles — principalmente no do sinistro Paul Roulet — que obscuramente haviam sobrevivido aos corpos assassinados e haviam continuado
a atuar em algum espaço multidimensional segundo as linhas originais de força determinadas por um ódio desvairado contra a comunidade invasora?
Tal fato não constituía decerto uma impossibilidade física ou bioquímica à luz de uma nova ciência que inclui as teorias da relatividade e da ação intra-atômica. Podia-se facilmente imaginar um núcleo
alienígena de substância ou energia, Informe ou não, conservado vivo por melo de subtrações imperceptíveis ou imateriais da força vital ou dos tecidos e fluidos corporais de outros seres vivos, mais palpavelmente
vivos, nos quais ele penetra e com cuja trama às vezes se funde completamente. Ele poderia ser ativamente hostil ou poderia obedecer tão-somente às cegas motivações da autoconservação. Em todo caso, tal
monstro seria necessariamente, em nossa ordem de coisas, uma anomalia e uma intrusão, cuja extirpação constitui dever primacial de todo homem que não seja inimigo da vida, da saúde e da sanidade do mundo.
O que nos desconcertava era nossa inteira ignorância quanto ao aspecto que teria a coisa. Nenhuma pessoa sã jamais a vira; poucas a haviam sentido de maneira definida. Poderia ser energia pura — uma forma
etérea e fora da esfera da substância — ou poderia ser parcialmente material; alguma massa desconhecida à equívoca de plasticidade, capaz de metamorfosear-se à vontade em aproximações nebulosas do estados
sólido, líquido ou gasoso, ou mesmo em estados tenuemente instáveis. A mancha entropomórfica de bolor no chão, a forma do vapor amarelado e a curvatura das raízes de árvores de algumas histórias antigas,
tudo isso atestava pelo menos uma conexão remota e reminiscente com a forma humana. No entanto, até que ponto essa similitude poderia ser representativa ou permanente, ninguém era capaz de afirmar com
qualquer grau de segurança.
Havíamos imaginado duas armas com que travarmos combate: um tubo de Crookes, de grande dimensão e especialmente adaptado, operado por poderosos acumuladores e munido de telas e refletores, para o caso
de a coisa se mostrar intangível e somente vulnerável a radiações vigorosamente destrutivas; e um par de lança-chamas militares, do tipo usado na Guerra Mundial, para o caso de ela ser parcialmente material
e suscetível de destruição mecânica. Tal como os supersticiosos campônios de Exeter, estávamos dispostos a queimar o coração da entidade, se existisse algum coração a ser queimado. Dispusemos todo esse
mecanismo agressivo no porão, em posições cuidadosamente calculadas com relação ao catre e às cadeiras e também ao ponto diante da lareira em que o bolor havia assumido formas estranhas. Aquela mancha
sugestiva, a propósito, mal era visível quando instalamos os móveis e os instrumentos e ao voltarmos naquela noite para a vigília. Por um instante, quase duvidei de já tê-la visto na forma mais delineada...
mas então lembrei-me das lendas.
Nossa vigília no porão teve início as dez da noite, hora de verão, e à medida que se desenrolava não víamos perspectiva de vir a ser frutífera. O brilho débil dos postes de iluminação pública, batidos
pela chuva, e a ligeira fosforescência dos execráveis fungos deixavam entrever a pedra úmida das paredes, das quais haviam desaparecido todos os vestígios de caiação; o chão de terra dura, molhado, fétido
e manchado de mofo, com seus fungos obscenos; os restos apodrecidos do que havia sido bancos, cadeiras e mesas, assim como outras peças de mobília mais despedaçados; as tábuas pesadas e os caibros robustos
do piso do andar térreo; a decrépita porta de tábuas que se abria para desvãos e quartos, sob outras partes da cama; a esboroada escada de pedra, com seu arruinado corrimão de madeira; e a grosseira e
cavernosa lareira de tijolos enegrecidos, onde enferrujados fragmentos de ferro revelavam a presença, no passado, de ganchos, cães de lareira, espeto, suporte de chaleira e um guarda-fogo para o caldeirão
de cozer — todas essas coisas mais nosso catre e as cadeiras rudimentares, bem como o pesado e deletério Instrumentar que havíamos trazido.
Tal como em minhas próprias explorações prévias, havíamos deixado destrancada a porta que dava para a rua, de modo que tivéssemos à disposição uma direta e prática rota de fuga, no caso de surgirem manifestações
contra as quais estivéssemos inermes. Imaginávamos que nossa contínua presença noturna invocaria qualquer entidade maligna que ali se ocultasse; e ocorrendo Isso, poderíamos dar-lhe fim com uma ou outra
de nossas armas, tão logo a houvéssemos reconhecido e observado suficientemente. Não tínhamos nenhuma ideia do tempo necessário para Invocar e extinguir a coisa; ocorria-nos, outrossim, que nossa aventura
estava longe de segura, pois ninguém poderia dizer que força teria a entidade. No entanto, considerávamos que o risco valia a pena e nos atiramos a ele sozinhos e sem titubeio, conscientes de que buscar
adjutório externo só nos exporia ao ridículo e talvez subvertesse todo nosso propósito. Tal era nosso estado de espírito enquanto conversávamos, bem adentrada a noite, até que a crescente sonolência de
meu tio me fez lembrar-lhe que devia deitar-se para seu descanso de duas horas.
Algo semelhante ao medo me enregelou enquanto fiquei ali, de madrugada e sozinho. Digo sozinho porque quem vela o sono de alguém na realidade está sozinho. Talvez mais a sós do que pode perceber. Meu tio
ressonava pesadamente, sendo suas profundas inalações e exalações acompanhadas pela chuva lá fora e pontudas por outro som, enervante e distante, de águas que pingavam — pois se a casa era repulsivamente
úmida mesmo em tempo seco, debaixo daquela tempestade parecia nada menos que um pântano. Eu estudava a alvenaria solta e antiga das paredes, à luz dos fungos e dos ralos débeis que penetravam da rua, através
das janelas entesadas; e em dado momento, quando a atmosfera nociva do lugar estava para me nausear, abri a porta e olhei para um lado e outro da rua, regulando meus olhos com coisas familiares e as narinas
com o ar saudável. Nada ocorrera ainda que me recompensasse a vigília; e eu bocejava repetidamente, com a fadiga sobrepujando a apreensão.
O sono agitado de meu tio chamou-me então a atenção. Ele se havia virado inquietamente no catre várias vezes na segunda metade da primeira hora, mas agora respirava com invulgar regularidade, emitindo
de vez em quando um suspiro que tinha muitas características de um gemido abafado. Dirigi para ele a luz de minha lanterna elétrica e encontrei seu rosto voltado de lado. Levantando-me e passando para
o outro lado do catre, acendi novamente a luz para verificar se ele demonstrava algum sinal de dor. O que vi deixou-me surpreendentemente nervoso, em vista de sua aparente trivialidade. Deve ter sido tão-somente
a associação de uma circunstância singular com a natureza sinistra de nossa localização e de nossa missão, pois decerto a circunstância, em si mesma, nada tinha de assustadora ou antinatural. Ocorria apenas
que a expressão facial de meu tio, perturbada sem dúvida pelos sonhos estranhos que nossa situação induzia, trazia considerável agitação e não parecia de maneira alguma característica dele. Sua expressão
habitual era de calma bondosa e cortês, ao passo que agora emoções variegadas pareciam lutar dentro dele. Creio, de modo geral, que terá sido sobretudo essa variedade que mais me perturbou. Enquanto arfava
e se mexia, com crescente agitação e com olhos que começavam agora a se abrir, meu tio parecia ser não um, porém vários homens e deixava a impressão de uma curiosa alienação de si mesmo.
Imediatamente ele se pôs a resmungar, e não gostei do jeito de sua boca e de seus dentes enquanto ele falava. De início as palavras eram indistintas, mas logo — com um violento sobressalto — reconheci
nelas alguma coisa que me encheu de gélido terror até lembrar a extensão da educação de meu tio e as intermináveis traduções que ele havia feito de artigos antropológicos e folclóricos da Revue des Deux
Mondes. Pois o venerável Elihu Whipple estava resmungando em francês e as poucas frases que eu conseguia distinguir relacionavam-se aos mais sinistros mitos que ele já vertera da famosa revista parisiense.
De repente, bagas de suor começaram a se formar na testa do homem adormecido e ele sentou-se de um salto, melo desperto. A algaravia em francês transformou-se num grito em inglês e a voz roufenha bradou,
excitada, "Minha respiração, minha respiração!" Ele despertou então inteiramente e, voltando a expressão facial ao estado normal, agarrou-me e começou a relatar um sonho cujo significado maior eu só podia
conjecturar com uma espécie de pasmado terror.
Disse ele que havia passado, como que flutuando, de uma série de imagens oníricas bastante convencionais a uma cena cuja estranheza não podia ser relacionada a nada do que ele algum dia lera. Era deste
mundo, e ao mesmo tempo não — uma irreal confusão geométrica da qual se podiam ver elementos de coisas familiares nas mais raras e perturbadoras combinações. Havia uma insinuação de imagens curiosamente
desordenadas, superpostas umas às outras; um arranjo em que os dados essenciais, de tempo e de espaço, pareciam dissolvidos e misturados do modo mais ilógico. Nesse vórtice caleidoscópico de imagens fantasmais
havia ocasionalmente instantâneos, se é válido utilizar a analogia fotográfica, de singular clareza, mas inexplicável heterogeneidade.
Em certo momento meu tio acreditou jazer numa cova aberta, descuidadamente escavada, com uma multidão de rostos coléricos, emoldurados por grenhas c chapéus de três bicos, que o olhavam de má catadura.
Depois achou estar no interior de uma casa — uma casa antiga, aparentemente, mas os pormenores e os habitantes se modificavam constantemente, e ele jamais podia estar seguro quanto aos rostos ou ao mobiliário,
ou mesmo quanto ao próprio cómodo, uma vez que as portas e as janelas pareciam num estado de fluxo tão intenso quanto os objetos presumivelmente mais móveis. Era esquisito — fantasticamente — e meu tio
falou quase com humildade, como se de certa forma não esperasse que eu lhe desse crédito, quando declarou que dentre os rostos estranhos muitos apresentavam inconfundivelmente os traços da família Harris.
E durante todo o tempo havia uma sensação pessoal de asfixia, como se alguma presença difusa se houvesse espalhado por seu corpo e tentasse apossar-se de seus processos vitais. Estremeci ao pensar nesses
processos vitais, fatigado como estavam por oitenta e um anos de funcionamento continuo, em conflito com forças desconhecidas das quais a organização mais jovem e mais robusta bem poderia ter medo; dai
a um instante, porém, refleti que sonhos são sonhos e nada mais e que aquelas visões inconfortáveis poderiam ser, no máximo, apenas a reação de meu tio às investigações e às expectativas que ultimamente
vinham excluindo tudo mais de nossos espíritos.
Também a conversa logo ajudou a dissipar minha sensação de singularidade. Daí a pouco eu próprio cedi aos bocejos e concluí que chegara minha vez de dormir. Meu tio parecia agora completamente desperto
e acolheu bem seu período de vigília, muito embora o pesadelo o houvesse despertado muito antes de terminado seu tempo de repouso. Adormeci rapidamente e vi-me de imediato perseguido por sonhos muitíssimo
perturbadores. Eu sentia, em minhas visões, uma solidão cósmica e abissal, com hostilidade assomando de todos os lados e se abatendo sobre a prisão em que eu me achava confinado. Eu parecia amarrado e
amordaçado, agoniado pelos gritos ressoantes de multidões distantes, sedentas de meu sangue. Vi o rosto de meu tio, com associações menos agradáveis do que em horas de vigília, e recordo minhas inúteis
tentativas e esforços para gritar. Não foi um sono agradável e nem por um segundo lamentei o grito retumbante que dilacerou as barreiras do sonho e me arremessou numa vigília vívida e sobressaltada, na
qual todos os objetos diante de meus olhos adquiriram uma clareza e uma realidade supranatural.
V
Eu estivera deitado com o rosto voltado para o outro lado da cadeira de meu tio, de modo que ao despertar assim subitamente só vi a porta da rua, a janela do lado norte e a parede, o chão e o teto que
davam para o lado norte do porão, tudo isso fotografado com mórbida nitidez em meu cérebro, sob uma luz mais fulgurante do que o brilho dos fungos ou a iluminação baça dos postes da rua. Não se tratava
de uma luz forte ou mesmo medianamente forte. No entanto, ela projetava a sombra de meu corpo e do catre no chão e possuía uma força amarelada e penetrante que traía coisas mais potentes que luminosidade.
Percebi isto com clareza malsã, a despeito do fato de dois outros sentidos meus estarem sendo violentamente agredidos: em meus ouvidos ecoavam as reverberações daquele grito chocante, enquanto meu nariz
se revoltava diante da catinga que reinava no lugar. Minha mente, tão alerta quanto meus sentidos, identificou a gravidade insólita da situação e quase automaticamente me pus de pé, num pulo, e me virei
para pegar os instrumentos de destruição que havíamos deixado apontados para a mancha bolorenta diante da lareira. Ao me virar, eu temia o que estava prestes a ver, pois o grito tivera a voz de meu tio
e eu ignorava contra que ameaça eu estaria de defender a ele e a mim mesmo.
No entanto, afinal a visão foi pior do que eu havia temido. Há horrores que ultrapassam o horrível, e aquilo era um daqueles núcleos de pavor onírico que o universo separa para com ele fulminar alguns
desgraçados. Do chão de terra, coberto de fungos, evolava-se uma vaporosa luz cadavérica, amarela e doentia, que borbulhava e ondulava, alcançando uma altura gigantesca, com contornos vagos, semi-humanos
e semimonstruosos, através dos quais eu podia avistar a chaminé e a lareira mais além. Era todo olhos — lupinos e escarnecedores — e a cabeça rugosa, como de inseto, dissolvia-se no alo e se transformava
numa esgarçada fumarola de névoa que se contorcia putridamente e finalmente desaparecia pela chaminé. Digo que avistei a coisa, mas foi somente num retrospecto consciente que cheguei a traçar de modo definido
sua demoníaca aproximação a uma forma. No momento aquilo se me afigurou apenas como uma revolta nuvem opacamente fosforescente de repugnância fungosa, que revoluteava e que dissolvia, numa asquerosa plasticidade,
o único objeto em que toda minha atenção se concentrava. Esse objeto era meu tio — o venerando Elilhu Whipple, que com uma fisionomia pretejante e decomposição me olhava malevolamente e engrolava frases
incompreensíveis, estendendo garras gotejantes para me despedaçar, na fúria que aquele horror havia ocasionado.
Foi um senso de rotina que me salvou do enlouquecimento. Eu me exercitara para o momento crucial e o treino cego me valeu. Percebendo que a entidade borbulhante não possuía substância alcançável pela matéria
ou peia química material, e esquecendo por isso o lança-chamas que se encontrava à minha esquerda, liguei a corrente do tubo de Crookes e assestei contra aquela cena de blasfêmia imortal as mais intensas
radiações que a arte humana é capaz de produzir a partir dos espaços e dos fluidos da natureza. Houve uma bruma azulada e um alvoroço frenético, e a fosforescência amarelada se fez mais opaca. Contudo,
vi que a opacidade era apenas questão de contraste e que as ondas da máquina não exerciam absolutamente nenhum efeito.
Foi então que, em meio daquele espetáculo diabólico, vi um novo horror que levou gritos a meus lábios e me fez sair aos tropeções na direção da porta destravada que dava para a rua sossegada, sem atentar
aos horrores anormais que eu pudesse estar trazendo ao mundo ou aos pensamentos e Juízos humanos que eu provocasse em relação a mim. Naquela mescla baça de azul e amarelo, o vulto de meu tio havia começado
a passar por uma liquefação nauseante cuja essência foge a qualquer descrição e na qual desenrolavam-se-lhe no rosto mudanças de identidade que só a demência é capaz de conceber. Ele era a um só tempo
um diabo e uma multidão, um ossuário e um préstito. Iluminado pelos raios misturados e instáveis, aquele rosto gelatinoso assumia uma dezena... uma vintena... uma centena de fisionomias; gargalhava ao
derrear-se no chão, num corpo que derretia como sebo, à imagem caricata de legiões ao mesmo tempo estranhas e conhecidas.
Vi os traços da família Harris, de adultos e crianças, masculinos e femininos, e outras fisionomias velhas e jovens, rudes e refinadas, familiares e desconhecidas. Por um segundo fulgiu ali uma contrafação
degradada de uma miniatura da infeliz Rhoby Harris que eu tinha visto no Museu da Escola de Desenho, e em outro instante julguei captar a imagem ossuda de Mercy Decter, que eu conhecera através de uma
pintura na casa de Carrington Harris. Tudo aquilo era indescritivelmente pavoroso; já perto do fim, quando uma curiosa mistura de semblantes de criada e de bebê cintilaram perto do chão fungoso, onde se
espalhava uma poça de graxa esverdeada, foi como se os semblantes cambiantes lutassem entre si e se esforçassem por formar contornos semelhantes aos do rosto bondoso de meu tio. Apraz-me pensar que ele
existiu naquele momento e que tentou despedir-se de mim. Tenho a impressão de haver soluçado um adeus em minha própria garganta ressecada, enquanto me precipitava para a rua, com um fiapo de graxa a me
seguir pela porta até a calçada encharcada.
O resto é nebuloso, horrendo. Não havia vivalma na rua molhada, nem existia no mundo uma só pessoa a quem eu ousasse narrar o acontecido. Saí caminhando a esmo em direção ao sul, passando por College Hill
e pelo Ateneu, desci a Hopkins Street e atravessei a ponte para a zona comercial, onde edifícios altos pareciam proteger-me como as coisas materiais modernas protegem o mundo de portentos antigos e malsãos.
Depois a aurora acinzentada apontou a leste, silhuetando a colina arcaica e suas torres veneráveis, chamando-me ao local onde meu trabalho terrível ainda estava por terminar. E por fim voltei caminhando,
molhado, sem chapéu e aturdido na luz matutina, e entrei naquela porta vitanda na Benefit Street que eu havia deixado entreaberta e que ainda balouçava cripticamente à plena vista dos antigos moradores,
a quem eu não ousava falar.
A graxa sumira, pois o chão bolorento era poroso. E diante da lareira não restava vestígio do vulto dobrado em dois. Vi o catre, as cadeiras, os instrumentos, o chapéu que eu tinha esquecido e o chapéu
de palha amarelada de meu tio. Preponderava o atordoamento, e eu mal distinguia o que era sonho e o que era realidade. Depois a razão predominou e percebi que havia assistido a coisas mais tétricas do
que as que havia sonhado. Sentando-me, procurei adivinhar, até onde a sanidade me permitia, exatamente o que havia acontecido, e como eu poderia dar cabo do horror, se realmente ele tivesse sido real.
Não parecia ter sido matéria, nem éter, nem qualquer coisa concebível pela humana razão. Que seria, pois, senão alguma exótica emanação, algum vapor vampiresco como aqueles que, afirmam os aldeões de Exeter,
pairam sobre certos cemitérios? Ali, eu sentia, estava minha pista, e mais uma vez desci os olhos para o chão diante da lareira onde o bolor e o mofo haviam assumido estranhas formas. Daí a dez minutos
eu me decidira e, pegando o chapéu, fui à minha casa, onde banhei-me, comi e encomendei pelo telefone uma picareta, uma pá, uma máscara militar contra gases e seis garrafões de ácido sulfúrico, que deveriam
ser entregues na manhã seguinte na porta do porão da casa abandonada na Benefit Street. Depois disso, procurei conciliar o sono; não conseguindo dormir, passei as horas lendo e compondo versos tolos, para
distrair o espírito.
Às onze horas da manhã, comecei a cavar. Fazia sol e isso me agradava. Ainda estava só, porque por mais que temesse o horror desconhecido que procurava, eu mais receava contar a alguém o que havia acontecido.
Mais tarde, só contei a Harris por pura necessidade e porque ele havia escutado histórias estranhas da boca de anciãos, o que não o predispunha a acreditar em tudo aquilo. Enquanto eu revirava a terra
negra e malcheirosa diante da lareira, com minha pá fazendo escorrer uma viscosa sânie amarela dos fungos brancos que ela decepava, estremecia ao pensar no que poderia vir a exumar. Alguns segredos da
terra não são bons para a humanidade, e aquele parecia ser um deles.
Minha mão tremia perceptivelmente, mas eu prosseguia, e depois de algum tempo meti-me na grande cova que havia cavado. Ao se aprofundar o buraco, que teria quase dois metros de lado, o fedor aumentou e
já não me restava qualquer dúvida de que estava na iminência de estabelecer contato com a coisa demoníaca cujas emanações haviam atormentado a casa durante século e meio. Eu ficava a imaginar como seria
— qual sua forma e sua substância, que tamanho poderia ter adquirido depois de longas eras de absorção de vidas. Por fim saí do buraco e dispersei a terra amontoada; dispus os garrafões de ácido em dois
lados da cova, de modo que quando necessário eu os pudesse despejar pela abertura em rápida sucessão. A partir daí, comecei a lançar terra só para dois lados, trabalhando mais devagar e colocando a máscara
contra gases quando o mau cheiro aumentou. Eu me sentia quase fora de mim pela proximidade de alguma coisa de inominável no fundo da cova.
De repente, minha pá bateu em algo mais macio que terra. Sobressalte-me e fiz um movimento como que para pular fora do buraco, no qual eu já me encontrava afundado até o pescoço. Voltou-me então a coragem
e tirei mais um pouco de terra, valendo-me da luz da lanterna elétrica que eu trouxera. A superfície que eu havia exposto era viscosa e vítrea — uma espécie de geléia congelada semipútrida, com impressões
de translucidez. Tirei mais alguma terra e constatei que a coisa tinha forma. Havia uma rachadura no ponto em que parte da substância se achava dobrada. A área exposta era imensa e aproximadamente cilíndrica,
como uma gigantesca chaminé de fogão, macia e branco-azulada, dobrada em dois, tendo sua parte maior mais de meio metro de diâmetro. Continuei a tirar terra e então, de repente, saltei fora do buraco e
me afastei daquela coisa repelente. Destampei com frenesi os garrafões e verti seu conteúdo corrosivo, um a um, naquela cova cemiterial e sobre aquela anormalidade inimaginável cujo cotovelo eu tinha visto.
O cegante torvelinho de vapor amarelo-esverdeado que irrompeu tempestuosamente daquela cova, no momento em que saíram os jorros de ácido, jamais se apagará de minha memória. Em toda colina as pessoas ainda
falam do dia amarelo, quando exalações virulentas e hórridas se ergueram dos detritos da fábrica, que eram lançados no rio Providence, mas bem sei o quanto estão enganados quanto à fonte daqueles vapores.
Falam também do medonho rugido que brotou ao mesmo tempo de algum encanamento de água ou de gás sob a terra — mas também nisso eu os corrigiria se a tanto me atrevesse. Foi algo indizivelmente chocante
e não sei como sobrevivi à experiência. Cheguei mesmo a desfalecer depois de despejar o quarto garrafão, o que fiz depois que as emanações começaram a penetrar em minha máscara; quando recobrei os sentidos,
porém, constatei que a cova não mais emitia vapores.
Esvaziei os dois garrafões restantes sem resultados notáveis, e depois de certo tempo Julguei seguro voltar a tapar o buraco com terra. Caía o crepúsculo quando terminei o trabalho, mas o medo desaparecera
daquele lugar. A umidade era menos fétida e todos os estranhos fungos haviam fenecido, transformando-se numa espécie de pó inofensivo que cobria o chão como cinzas. Um dos mais terríveis segredos da terra
havia perecido para todo sempre; e se existe mesmo um inferno, ele havia recebido enfim a alma danada de uma coisa ímpia. E enquanto eu socava a última pazada de terra bolorenta, verti a primeira de muitas
lágrimas com que tenho rendido atributo sincero à memória de meu tio amado.
Na primavera seguinte, não nasceu grama pálida nem ervas estranhas no jardim da casa abandonada, e pouco tempo depois Carrington Harris alugou-a. Ainda hoje ela é espectral, mas sua estranheza me fascina
e por certo verei somar-se a meu alívio uma saudade singular quando ela for demolida para dar lugar a uma loja espaventosa ou a um vulgar edifício de apartamentos. As velhas árvores estéreis do quintal
Já começaram a produzir pequenas maçãs doces, e no ano passado os pássaros fizeram ninhos em seus galhos retorcidos.
Os Sonhos da Casa da Bruxa
Eram os sonhos que provocavam a febre ou a febre que causava os sonhos? Walter Gilman não sabia. Por trás de tudo espreitava o horror sombrio e pestilencial da cidade antiga, bem como da mansarda bolorenta
e ímpia em que ele escrevia, estudava e lutava com números e fórmulas, quando não estava se virando de um lado para outro na precária cama de ferro. Seus ouvidos estavam-se tornando sensíveis num grau
sobrenatural e intolerável, e desde muito ele havia parado o relógio barato que ficava no consolo da lareira e cujo tique-taque viera a lhe parecer ribombos de artilharia. À noite, o bulício sutil da cidade
negra lá fora, a correria sinistra dos ratos nas divisórias carunchosas e o estalar de caibros ocultos da casa centenária bastavam-lhe para lhe dar uma impressão de ruidoso pandemônio. A escuridão estava
sempre cheia de sons inexplicáveis; no entanto, ele às vezes tremia de medo de que os barulhos que ele escutava cessassem, permitindo-lhe ouvir outros sons mais leves que, suspeitava Gilman, escondiam-se
por trás deles.
Ele se encontrava na imutável cidade de Arkham, onde abundam as lendas e onde os inumeráveis telhados de mansarda oscilam e se arqueiam sobre sótãos onde as feiticeiras se escondiam dos soldados do rei
nos tempos antigos e medonhos da província. E nenhum lugar naquela cidade estava mais impregnado de lembranças macabras do que a água-furtada em que ele se refugiava — pois foi naquela casa e naquele quarto
que se refugiara igualmente a velha Keziah Mason, cuja fuga da prisão de Salem ninguém jamais pôde explicar. Isso foi em 1692 — o carcereiro enlouquecera e balbuciava coisa sobre um animalzinho peludo
e de dentes brancos que havia saído correndo da cela de Keziah, e nem mesmo Cotton Mather pôde explicar as curvas e ângulos desenhados nas paredes de pedras cinzentas com um fluido vermelho e pegajento.
Talvez Gilman não devesse estudar tanto. O cálculo não-euclidiano e a física quântica são suficientes para fatigar qualquer cérebro; mas quando alguém mistura essas disciplinas com o folclore e tenta definir
um estranho fundo de realidade multidimensional por trás das alusões vampirescas dos contos góticos e dos tartamudeios delirantes ao pé da lareira, dificilmente pode esperar ficar livre de tensão mental.
Gilman era de Haverhill, mas foi só depois de se matricular na universidade de Arkam que começou a ligar seu estudo da matemática com as lendas fantásticas de antanho. Alguma coisa no ar da cidade venerável
atuou de maneira obscura em sua imaginação. Os professores da Miskatonic tinham instado com ele para que moderasse o ritmo e haviam até, por seu próprio alvitre, reduzido-lhe o curso. Além disso, tinha
impedido que ele consultasse os equívocos tomos antigos de segredos interditos que eram mantidos a sete chaves num cofre da biblioteca da universidade. No entanto, todas essas precauções foram tardias,
de modo que Gilman travou alguns contatos terríveis com o pavoroso Necronomicon, de Abdul al-Hazred, com o fragmentário Livro de Eibon e com o censurado Unausspre-cblichen Kulten, de von Junzt, que lhe
forneceu dados a serem correlacionados com suas fórmulas abstratas e aplicados às propriedades do espaço e ao vínculo entre as dimensões conhecidas e as desconhecidas.
Ele sabia que seu quarto ficava na antiga Casa das Bruxas — fora por isso mesmo, aliás, que ele o tomara. Havia muita coisa nos registros do Condado de Essex sobre o julgamento de Keziah Mason; e o que
ela admitira sob pressão diante da comissão especial para julgamentos criminais havia fascinado Gilman sobremaneira. Ela falara ao juiz Hathorne a respeito de linha e curvas que podiam apontar para direções
que conduziam, através dos limites do espaço, a outros espaços desconhecidos, e havia dado a entender que tais linhas e curvas eram empregadas com frequência em certas reuniões, à meia-noite, no vale sombrio
da pedra branca além de Meadow Hill e na ilha desabitada do rio. Havia falado também sobre o Negro, sobre o juramento que ela havia proferido e sobre seu novo nome secreto, Nahab. Depois ela havia desenhado
aquelas coisas nas paredes de sua cela e desaparecido.
Gilman acreditava em coisas estranhas a respeito de Keziah e havia sentido uma emoção singular ao saber que sua moradia, ainda estava de pé após mais de duzentos e trinta e cinco anos. Ao tomar conhecimento
dos murmúrios que corriam por Arkham — sobre a presença persistente de Keziah na casa velha e nas ruas estreitas, sobre as marcas irregulares de dentes humanos deixadas em certas pessoas adormecidas naquela
e em outras casas, sobre os gritos de criança escutados nas proximidades do dia da primavera e no dia de Todos os Santos, sobre o fedor, frequentemente observado no sótão da casa velha logo depois dessas
datas significativas, e sobre o animalzinho peludo e de dentes afiados que assombrava a edificação bolorenta e a cidade e que farejava as pessoas curiosamente nas horas negras que antecedem a aurora ele
decidiu morar naquele lugar a qualquer custo. Foi fácil obter um quarto, pois a casa era malvista, difícil de alugar e desde muito se transformara em cortiço. Gilman não saberia dizer o que esperava encontrar
ali, mas sabia que desejava estar no prédio em que alguma circunstância dera, mais ou menos subitamente, a uma mulher medíocre do século XVII, uma percepção de profundezas matemáticas que talvez se situem
além das mais modernas pesquisas de um Planck, um Heisenberg, um Einstein ou um de Sitter.
Gilman pôs-se a examinar as paredes de madeira e gesso, à procura de sinais de desenhos crípticos em todos os pontos acessíveis onde o papel havia-se soltado, e dentro de uma semana conseguiu obter para
si o quarto da água-furtada de leste, onde constatava que Keziah havia praticado seus bruxedos. O cômodo estivera sempre vazio, pois nunca alguém se dispusera a permanecer ali por muito tempo, e o senhorio
polonês passara a temer alugá-lo. No entanto, nada aconteceu a Gilman até ser acometido pela febre. Nenhuma Keziah espectral se esgueirou pelos escuros corredores e aposentos, nenhum animalzinho peludo
se insinuou em seu lúgubre ninho-de-águia para farejá-lo e nenhum indício dos encantamentos da feiticeira recompensou-lhe as buscas constantes. Às vezes ele fazia passeios pelos labirintos penumbrosos
de becos mofados e sem calçamento, onde assustadoras casas pardas, de idade desconhecida, derreavam-se, balouçavam e olhavam de esguelha, zombeteiramente, através de janelinhas de pequenas vidraças. Ali,
ele sabia, coisas estranhas haviam ocorrido outrora e havia uma leve indicação, sob a superfície, de que nem tudo daquele passado monstruoso — ao menos nos becos mais escuros, mais estreitos e mais sinuosos
— devia ter perecido completamente. Gilman remava também duas vezes por semana à malsinada ilha do rio e copiava os ângulos singulares descritos pelas fileiras de pedras cinzentas, eretas e cobertas de
musgo, cuja origem era tão obscura e imemorial.
O quarto de Gilman era de bom tamanho, mas tinha uma forma estranhamente irregular. A parede norte inclinava-se perceptivelmente para dentro, ao passo que o teto baixo se inclinava ligeiramente na mesma
direção. Com exceção de um evidente buraco de rato e de sinais de outros, lacrados, não havia qualquer acesso — ou qualquer indício de um antigo caminho de acesso — ao espaço que deveria ter existido entre
a parede oblíqua e a parede externa, vertical, do lado norte da casa, ainda que de fora se visse o lugar onde uma janela havia sido fechada com tábuas em data remotíssima. O sótão sobre o teto — que decerto
tinha o piso inclinado — era também inacessível. Quando Gilman subiu por uma escada até a água-furtada sobre o restante do sótão, plana e coberta de teias de aranha, encontrou vestígios de uma antiquíssima
abertura que fora fortemente fechada com tábuas, presas com as robustas cavilhas de madeira comuns na carpintaria colonial. Não houve esforço de persuasão, entretanto, que induzisse o teimoso senhorio
a deixar que ele investigasse qualquer um desses dois espaços fechados.
Com o passar do tempo, cresceu o interesse de Gilman pela parede e pelo teto irregulares de seu quarto, pois ele começou a ver nos ângulos estranhos um significado matemático que parecia proporcionar vagas
deixas com relação à sua finalidade. A velha Keziah, refletia, ele, podia ter tido excelentes motivos para viver num quarto com ângulos peculiares. Não era através de determinados ângulos que ela alegava
ter atravessado as fronteiras do mundo especial que conhecemos? Aos poucos, o interesse de Gilman desviou-se dos vazios insondados que ficavam além das superfícies inclinadas, por quanto parecia-lhe agora
que o propósito daquelas superfícies dizia respeito ao lado em que ele se encontrava.
A meningite e os sonhos começaram no princípio de fevereiro. Já desde algum tempo, aparentemente, os ângulos curiosos do quarto de Gilman vinham exercendo sobre ele um efeito estranho, quase hipnótico;
e à medida que avançava o gélido inverno, ele se vira fitando com atenção cada vez maior o canto em que o teto, inclinado para baixo, se encontrava com a parede, inclinada para dentro. Mais ou menos nesse
período, sua incapacidade de concentrar-se nos estudos formais o preocupou seriamente, tornando-se muito intensas suas apreensões com os exames de meio de ano. Não o incomodava menos, porém, sua exagerada
sensibilidade auditiva. A vida havia-se transformado numa cacofonia insistente e quase insuportável, e ele vivia sob aquela impressão constante e aterrorizadora de outros sons — nascidos, talvez, de regiões
além da vida — que fremiam no limiar da audibilidade. No que se referia a ruídos concretos, os piores eram os de ratos, nas paredes antigas. Às vezes suas arranhaduras pareciam não só furtivas, como deliberadas.
Quando vinham do outro lado da parede norte, a inclinada, misturavam-se com uma espécie de chocalhada seca; e quando provinham do sótão sobre o teto oblíquo, fechado havia um século, Gilman sempre se retesava,
como se à espera de algum horror que apenas esperava o momento propício para descer e tragá-lo inteiramente.
Os sonhos situavam-se completamente fora dos limites da sanidade mental e Gilman acreditava que fossem o resultado de seus estudos de matemática e de folclore. Estivera refletindo excessivamente sobre
as vagas regiões que suas fórmulas lhe informavam jazer além das três dimensões que conhecemos, e sobre a possibilidade de que a velha Kezian Mason — guiada por alguma influência que ia além de qualquer
conjectura — houvesse verdadeiramente descoberto a passagem para tais regiões. Os amarelados livros oficiais que continham seu depoimento e os de seus acusadores referiam-se a coisas inacreditavelmente
além da experiência humana, e as descrições do veloz animalzinho peludo que lhe servia de companhia eram dolorosamente realistas, a despeito de seus pormenores absurdos.
Esse bicho — não era maior que um rato de bom tamanho e estranhamente as pessoas do lugar chamavam-no "Parducho” — parecia ter sido o fruto de um extraordinário caso de ilusão coletiva, pois em 1692 nada
menos de onze pessoas haviam afirmado tê-lo entrevisto. Havia também boatos, recentes, com um volume de concordância ao mesmo tempo enigmático e desconcertante. Diziam às testemunhas que ele tinha pêlos
longos e forma de rato, mas que seu rosto, barbudo e de dentes afiados, era horrivelmente humano, ao passo que suas patas assemelhavam-se a minúscula mãos humanas. Servia de mensageiro entre a velha Keziah
e o diabo e alimentava-se do sangue da feiticeira, que ele sugava como um vampiro. Sua voz era uma espécie de horrendo riso abafado, e ele era capaz de falar todas as línguas. Dentre todas as fantásticas
monstruosidades dos sonhos de Gilman, nada o enchia de maior pânico e náusea do que esse blasfemo e pequenino híbrido, cuja imagem dardejava através de sua visão numa forma mil vezes mais odiosa que qualquer
coisa que, quando desperto, seu espírito houvesse deduzido das registros antigos e dos murmúrios modernos.
Os sonhos de Gilman consistiam principalmente em mergulhos em abismos ilimitados de crepúsculos inexplicavelmente coloridos e sons desnorteantemente desordenados. Abismos cujas propriedades materiais e
gravitacionais, e cuja relação com seu próprio ser ele não podia sequer conceber. Não caminhava ou subia, não voava ou nadava, não rastejava ou se contorcia; seu modo de locomover-se era sempre em parte
voluntário, em parte involuntário. Tampouco podia avaliar bem seu próprio estado físico, pois a visão dos braços, pernas e tronco parecia estar sempre prejudicada por algum singular desarranjo de perspectiva;
contudo, sentia que sua organização física e suas faculdades estavam de alguma forma transmutadas maravilhosamente e obliquamente projetadas — embora não sem uma certa relação grotesca com suas proporções
e propriedades normais.
Os abismos não eram de modo algum vazios, mas congestionavam-se de massas indescritivelmente angulosas de uma substância de coloração esquisita, algumas das quais pareciam orgânicas, enquanto outras mostravam
indícios de serem inorgânicas. Alguns dos objetos orgânicos tendiam a evocar memórias vagas nos recessos de sua mente, embora ele não conseguisse formar nenhuma ideia consciente do que escarnecedoramente
figuravam e sugeriam. Em sonhos posteriores ele começou a distinguir categorias separadas em que os objetos orgânicos pareciam dividir-se e que pareciam envolver, em cada caso, uma modalidade de conduta
ou motivação básica radicalmente diferente. Dentre tais categorias, somente uma lhe parecia incluir objetos ligeiramente menos ilógicos e irrelevantes em seus movimentos do que os que integravam as outras
categorias.
Todos os objetivos — os orgânicos tanto quanto os inorgânicos — fugiam totalmente a qualquer descrição ou mesmo compreensão. Às vezes Gilman comparava a matéria inorgânica a prismas, labirintos, conglomerados
de cubos e planos, edifícios ciclópicos; e as coisas orgânicas se lhe afiguravam, variamente, como grupos de bolhas, polvos, centopéias, ídolos hindus vivos e complexos arabescos que houvessem adquirido
uma espécie de animação ofídica. Tudo quanto via era indizivelmente ameaçador e horrendo; e a cada vez que uma das entidades orgânicas parecia, devido a seus movimentos, estar a observá-lo, apossava-se
dele um medo terrível e agitado que em geral o fazia acordar sobressaltado. Tanto como não sabia como ele próprio se movia, também era incapaz de dizer como as entidades orgânicas o faziam. Com o tempo,
ele veio a notar um mistério adicional — a tendência de certas entidades para aparecerem repentinamente no espaço vazio ou para desaparecerem inteiramente, com a mesma subitaneidade. A balbúrdia estridente
e atroadora que impregnava os abismos esquivava-se a qualquer análise relativa a altura, timbre ou ritmo, mas parecia ser sincrônica, com vagas modificações visuais, em todos os objetos indefinidos, tanto
orgânicos quanto inorgânicos. Gilman vivia uma constante sensação de receio de que ela viesse a ganhar algum insuportável grau de intensidade durante uma ou outra de suas obscuras flutuações de inevitabilidade
inexorável.
Todavia, não era nesses turbilhões de completa alienação que ele avistava o Parducho. Aquele animálculo chocante ficava reservado para certos sonhos mais leves e mais nítidos, que tomavam conta dele pouco
antes de mergulhar nas profundezas mais abissais do sono. Gilman ficava deitado no escuro, tentando manter-se acordado, e um brilho débil e tremulante parecia bruxelear em torno do quarto secular, mostrando,
numa névoa violeta, a convergência de planos angulados que se haviam apoderado insidiosamente de seu espírito. O animalzinho horrendo parecia saltar do buraco do canto do cômodo e correr a passinhos miúdos
pelo assoalho bambo e de tábuas largas, com uma expressão de maléfica expectativa em seu minúsculo rosto, humano e barbudo. Misericordiosamente, porém, esse sonho sempre se dissolvia antes que o animal
se aproximasse dele o bastante para focinhá-lo. Tinha dentes infernalmente longos, afiados e caninos. Todos os dias Gilman tentava vedar o buraco, mas a cada noite os verdadeiros inquilinos das paredes
roíam a obstrução, qualquer que fosse ela. De certa feita ele fez com que o senhorio o fechasse com uma folha de lata, pregada, mas na noite seguinte os ratos abriram um buraco novo, e no processo empurraram
ou arrastaram para o interior do quarto um curioso fragmento de osso.
Gilman não levou ao conhecimento do médico que estava com febre, pois sabia que não seria aprovado nos exames se recebesse ordem de recolher-se à enfermaria do colégio, numa época em que necessitava de
todos os momentos para estudar. Acabou ficando reprovado em Cálculo IV e em Psicologia Geral Avançada, embora lhe restasse a esperança de compensar o tempo perdido antes de terminado o período letivo.
Em março o novo elemento entrou em seus sonhos preliminares mais leves e a forma ignóbil do Parducho passou a ser acompanhada pelo borrão nebuloso que veio a se assemelhar cada vez mais a uma anciã recurvada.
Esse acréscimo o perturbou mais do que ele sabia explicar, mas por fim Gilman concluiu que se tratava de uma velhota com quem ele realmente se encontrara duas vezes no sombrio dédalo de becos perto dos
cais abandonados. Em mais ocasiões, o olhar sardônico, maligno e aparentemente imotivado da megera quase lhe provocara calafrios — principalmente da primeira vez, quando um rato enorme, que passou correndo
pela entrada escura de um beco próximo, lhe lembrara irracionalínente o Parducho. Agora, refletia Gilman, aqueles temores nervosos estavam-se refletindo em seus sonhos desordenados.
Que o efeito da casa velha era nocivo ele não podia negar, porém vestígios de seu anterior interesse mórbido ainda o prendiam ali. Gilman argumentava que a febre era a única responsável por suas fantasias
noturnas e que quando a enfermidade abrandasse ele estaria livre das visões monstruosas. No entanto, essas visões eram de uma clareza e de uma persuasão absorventes, e sempre que ele despertava conservava
uma vaga sensação de haver passado por muito mais coisas do que se lembrava. Tinha a horrível certeza de que em sonhos não recordados havia conversado com o Perducho e com a velha, e que eles procuravam
convencer a ir a algum lugar em sua companhia, quando conheceria um terceiro ser de maior força.
Por volta de fins de março Gilman começou a acelerar seus estudos de matemática, embora as outras disciplinas o aborrecessem cada vez mais. Estava adquirindo uma facilidade intuitiva para solucionar equações
riemannianas e espantava o professor Upham com sua compreensão de problemas relativos à quarta dimensão e a outras questões, as quais deixavam o restante da turma em apuros. Certa tarde deu-se uma discussão
sobre possíveis curvaturas aberrantes no espaço e sobre pontos teóricos de aproximação ou mesmo contato entre nossa parte do cosmos e várias outras regiões, tão distantes quanto às estrelas mais remotas
ou os próprios abismos transgaláticos — ou até mesmo tão fabulosamente apartados quanto as unidades cósmicas, de concepção puramente ideal, além de todo o continuum de espaço-tempo einsteiniano. A maneira
como Gilman abordou o tema admirou a todas, muito embora algumas de suas ilustrações hipotéticas causassem um aumento dos comentários já abundantes a respeito de sua excentricidade nervosa e solitária.
O que fez os estudantes balançarem a cabeça foi sua sóbria teoria de que um homem poderia — dispondo de conhecimentos matemáticos que, infelizmente, superavam toda possibilidade de aquisição humana — saltar
deliberadamente da Terra para qualquer outro corpo celeste situado em um dentre uma infinidade de pontos específicos no cosmos.
Tal transferência, dizia ele, compreenderia apenas duas etapas. Primeiro, uma saída da esfera tridimensional que conhecemos; segundo, uma volta à esfera tridimensional em outro ponto, talvez a uma distância
infinita. Que isso poderia ser feito sem perda de vida era em muitos casos concebível. Qualquer ser de qualquer parte do espaço tridimensional poderia, provavelmente, sobreviver na quarta dimensão. E sua
sobrevivência na segunda etapa dependeria de qual parte exótica do espaço tridimensional esse ser escolhesse para sua reentrada. Os habitantes de certos planetas talvez fossem capazes de viver em outros
— até mesmo em planetas pertencentes a outras galáxias ou a fases dimensionais semelhantes de outros contínuos de espaço-tempo — ainda que, naturalmente, devessem existir vastos números de corpos ou zonas
de espaço mutuamente inabitáveis, ainda que matematicamente justapostos.
Era ainda possível que os habitantes de um dado reino dimensional pudessem sobreviver à entrada em muitos reinos desconhecidos e incompreensíveis de dimensões adicionais ou indefinidamente multiplicadas
— estivessem eles dentro ou fora do dado continuum espaço-tempo — e que a recíproca também fosse verdadeira. Isso era questão de especulação, muito embora quase se pudesse afirmar com certeza que o tipo
de mutação envolvido numa passagem de qualquer plano dimensional para o plano superior seguinte não destruiria a integridade biológica, tal como a entendemos. Gilman não soube explicar cabalmente os motivos
dessa sua última suposição, mas sua falta de clareza quanto a esse ponto foi mais que compensada por sua precisão em outros aspectos mais complexos. O professor Upham apreciou sobretudo a demonstração
que ele fez da afinidade da matemática superior cora certas fases do conhecimento mágico, transmitido através das eras, desde uma remotíssima antiguidade — humana ou pré-humana — cujo conhecimento do cosmos
e de suas leis era maior que o nosso.
Mais ou menos a primeiro de abril, Gilman sentiu-se seriamente preocupado, pois sua febrícula não acabava. Afligia-o também o que alguns companheiros de moradia comentavam a respeito de seu sonambulismo.
Ao que parecia, ele se ausentava com frequência da cama e os rangidos em seu assoalho eram motivo de queixas do homem que ocupava o quarto de baixo. Essa pessoa falou também que ouvia de noite o som de
pés calçados, mas Gilman tinha certeza de que o homem devia estar enganado quanto a isso, uma vez que seus sapatos e outras peças de vestuário estavam sempre em seus lugares exatos pela manhã. Uma pessoa
podia sentir toda espécie de ilusões auditivas naquela mórbida casa velha — pois não ocorria que o próprio Gilman, mesmo de dia, tinha agora a impressão de que outros barulhos, além das arranhaduras de
ratos, vinham dos vazios negros que ficavam além da parede inclinada e sobre o teto oblíquo? Seus ouvidos patologicamente sensíveis começaram a buscar passadas leves no sótão imemorialmente lacrado, e
às vezes a ilusão de escutá-las era agonizantemente realista.
Contudo, ele sabia que realmente tinha-se tornado sonâmbulo, pois por duas vezes, de noite, seu quarto tinha sido encontrado vazio, ainda que com todas as roupas no lugar. Quanto a isso, ele fora certificado
por Frank Elwood, o único colega seu cuja pobreza o obrigava a residir naquele casarão sórdido e malvisto. Estudando até altas horas, Elwood havia subido em busca de ajuda na solução de uma equação diferencial
e não havia encontrado Gilman. Tinha sido um tanto impertinente por abrir a porta, destrancada, depois que suas batidas não obtiveram resposta, mas precisava muito da ajuda e julgara que o companheiro
não se incomodaria por ser acordado. Em nenhuma das duas ocasiões, porém, Gilman estava lá; e quando Elwood lhe narrou o sucedido, ficou a imaginar por onde poderia ter perambulado, descalço e vestindo
apenas roupa de dormir. Decidiu investigar a questão, no caso de continuar a haver informações de sonambulismo, e pensou em espalhar farinha pelo chão do corredor, a fim de ver aonde seus passos o levavam.
A porta era a única saída imaginável, pois do lado de fora da janela estreita não havia onde ele pudesse manter-se de pé.
Com o passar dos dias, os ouvidos aguçadíssimos de Gilman passaram a irritar-se com as orações lamuriantes de um consertador de teares supersticioso, chamado Joe Mazurewicz, que ocupava um quarto no andar
térreo. Mazurewicz havia contado histórias longas e desconexas sobre o fantasma da velha Keziah e sobre o animalzinho peludo e focinhador, e havia dito que às vezes essas coisas o incomodavam tanto que
só seu crucifixo de prata — que lhe fora presenteado, com esse fim, pelo padre Iwanicki, da igreja de S. Estanislau — lhe proporcionava alívio. Agora estava rezando devido à aproximação do Sabá das Bruxas.
Na noite de Valpúrgis, as mais tenebrosas malignidades do inferno erravam pela terra e todos os escravos de Satã se congraçavam para inomináveis ritos e cerimônias. Essa era sempre uma época ruim em Arkham,
conquanto a gente mais endinheirada, da avenida Miskatonic e das ruas Alta e Saltonstall, simulassem nada saber a respeito. Haveria atos perversos, e uma ou duas crianças provavelmente desapareceriam.
Joe sabia dessas coisas, pois na velha terrinha sua avó tinha ouvido histórias da boca de sua própria avó. Era bom rezar e desfiar o rosário nessa época. Fazia três meses que nem Keziah nem o Parducho
se aproximavam do quarto de Joe, do quarto de Paul Choynski ou de qualquer outro lugar... e um afastamento tão prolongado nunca augurava boa coisa. Deviam estar tramando alguma.
Gilman foi ao consultório do médico no dia 16 e ficou surpreso ao saber que sua temperatura não estava tão elevada quanto ele havia temido. O facultativo interrogou-o penetrantemente e recomendou-lhe que
procurasse um especialista em doenças nervosas. Refletindo sobre o assunto, Gilman ficou satisfeito por não haver consultado o médico do colégio, que era ainda mais inquisitivo. O Velho Waldron, que já
lhe havia reduzido as atividades no passado, tê-lo-ia obrigado a repousar — coisa impossível agora, quando ele estava tão perto de obter resultados grandiosos em suas equações. Decerto ele estava próximo
à fronteira entre o universo conhecido e a quarta dimensão, e quem poderia dizer até onde ele haveria de chegar?
No entanto, mesmo enquanto pensava nessas coisas, indagava-se quanto à origem de sua estranha confiança. Toda aquela perigosa sensação de iminência viria das fórmulas nas laudas que ele cobria dia após
dia? Os passos macios, furtivos e imaginários no sótão fechado eram enervantes. E havia também agora uma crescente sensação de que alguém estava constantemente a persuadi-lo a fazer algo de terrível, algo
que ele não podia fazer. E o sonambulismo? Aonde ele ia às vezes de noite? E o que seria aquela leve impressão de som que de vez em quando parecia escorrer através da confusão de sons identificáveis, mesmo
à plena luz do dia e quando ele estava inteiramente desperto? Seu ritmo não correspondia a coisa alguma do mundo, a menos que pertencesse à cadência de um ou dois repugnantes cânticos do sabá, e às vezes
Gilman temia que ele correspondesse a certos atributos dos vagos uivos ou rugidos daqueles abismos de sonhos inteiramente esdrúxulos.
Entrementes, esses sonhos vinham-se tornando atrozes. Na fase preliminar, mais leve, a megera, tinha agora uma demoníaca nitidez e Gilman sabia que era a mesma que o havia assustado nos cortiços. As costas
curvas, o nariz comprido e o queixo encarquilhado eram inconfundíveis, e seus andrajos marrons eram exatamente semelhantes aos que ele recordava. A expressão de seu rosto era de horrenda malevolência e
de exultação; ao despertar, ele se lembrava de uma voz áspera que persuadia e ameaçava. Ele deveria encontrar-se com o Negro e acompanhá-lo até o trono de Azathoth, no centro do caos supremo. Era isso
que ele dizia. Ele deveria assinar o livro de Azathoth com seu próprio sangue e adotar um novo nome secreto, já que suas pesquisas independentes tinham ido tão longe. O que o impedia de ir com ela, com
o Parducho e o outro ao trono do Caos, onde as flautas delgadas estridulam desatentamente, era o fato de ter visto o nome "Azathoth” no Necronomicon e saber que ele representava uma malignidade primal
de horror indescritível.
A velha sempre aparecia como que por encanto no canto em que a inclinação para baixo se encontrava com a inclinação para dentro. Parecia cristalizar-se num ponto mais próximo ao teto que ao assoalho, e
a cada noite ela estava um pouco mais próxima e mais nítida, antes que o sonho mudasse. Também o Parducho se mostrava cada vez mais perto e suas presas branco-amareladas luziam asquerosamente naquela violácea
fosforescência sobrenatural. Seu esganiçado e abominável riso abafado doía cada vez mais na cabeça de Gilman, que de manhã se lembrava que o animalzinho havia pronunciado as palavras “Azathoth” e “Nyarlathotep”.
Nos sonhos mais profundos, tudo estava agora igualmente mais nítido, e Gilman percebia que os abismos crepusculares que o rodeavam eram os da quarta dimensão. Aquelas entidades orgânicas, cujos movimentos
pareciam menos irrelevantes e imotivados, eram, provavelmente, projeções de criaturas de nosso próprio planeta, inclusive seres humanos. O que as outras entidades seriam em sua própria esfera ou esferas
dimensionais, Gilman sequer ousava cogitar. Duas das entidades semoventes — um amontoado relativamente grande de bolhas iridescentes, que formavam um esferóide achatado, e um poliedro bem menor de cores
desconhecidas e ângulos que se alteravam rapidamente — pareciam observá-lo e segui-lo, enquanto ele mudava de posição entre titânicos prismas, labirintos, aglomerados de cubos, planos e superposições que
lembravam edifícios; e durante todo o tempo, os vagos uivos e rugidos tornavam-se cada vez mais sonoros, como que se aproximando de um clímax monstruoso de intensidade inteiramente insuportável.
Na noite de 19 para 20 de abril, deu-se o fato novo. Gilman movia-se semi-involuntariamente nos abismos crepusculares, com a massa borbulhante e o pequeno poliedro movendo-se à sua frente, quando notou
os ângulos singularmente regulares formados pelas arestas de alguns gigantescos aglomerados de prismas. Daí a um segundo, havia saído do abismo e se achava de pé, tremulamente, sobre uma encosta rochosa,
banhada por uma intensa e difusa luz verde. Estava descalço e com roupa de dormir, e quando tentou caminhar percebeu que mal conseguia erguer os pés. Um vapor rodopiante ocultava tudo à vista, salvo o
local em que ele se encontrava, e Gilman evitou pensar nos sons que poderiam brotar daquele vapor.
Foi então que viu os dois vultos que rastejavam afanosamente em sua direção — a velha e o animálculo peludo. A megera pôs-se de joelhos com esforço e cruzou os braços de maneira estranha, enquanto o Parducho
apontava numa determinada direção com uma pata dianteira horrivelmente antropóide, que erguia com evidente dificuldade. Levado por um impulso que não partiu dele, Gilman arrastou-se para a frente, seguindo
um rumo definido pelo ângulo dos braços da velha e pela pata da pequena monstruosidade, e antes que houvesse dado três passos estava de volta aos abismos crepusculares. Formas geométricas turbilhonavam
à sua volta, e ele começou a cair, tonta e interminavelmente. Por fim, despertou em sua cama, na mansarda loucamente angulosa do medonho casarão.
Sentiu-se imprestável naquela manhã, e não compareceu a nenhuma de suas aulas. Alguma atração desconhecida puxava-lhe os olhos para Uma direção aparentemente irrelevante, pois ele não podia evitar olhar
para um certo ponto no chão. À medida que o dia avançava, o foco de seus olhos, que nada viam, mudou de posição e por volta do meio-dia ele havia superado o impulso de olhar para o vazio. Mais ou menos
às duas horas ele saiu para almoçar e enquanto percorria os becos estreitos da cidade, viu-se dobrando sempre na direção sudeste. Só com esforço conseguiu deter-se num bar da rua da Igreja, e depois da
refeição sentiu ainda com mais vigor a atração desconhecida.
Ele teria mesmo de consultar um especialista de nervos — talvez houvesse uma ligação com seu sonambulismo — mas até lá poderia ao menos tentar romper sozinho o encantamento mórbido. Sem dúvida ainda era
capaz de afastar-se, caminhando, daquela atração; assim, juntando forças, ele se arrastou deliberadamente na direção norte, pela rua da Tropa. Ao chegar à ponte sobre o rio Miskatonic, suava frio e agarrou-se
ao corrimão de ferro enquanto fitava a ilha mal-afamada, cujas linhas regulares de esteias antigas avultavam sombriamente ao sol da tarde.
Teve então um sobressalto, pois havia naquela ilha desolada uma figura viva, claramente visível. Um segundo olhar lhe mostrou que se tratava decerto da ·.estranha velha cujo aspecto sinistro se esgueirara
tão desastrosamente para seus sonhos. As ervas altas junto dela estavam-se mexendo também como se outro ser viva rastejasse perto do chão. Quando a velha começou a se virar em sua direção, ele fugiu precipitadamente
da ponte, buscando abrigo nos becos labitínticos dos cais. Apesar da distância a que ficava a ilha, ele sentia que um mal monstruoso e invencível poderia fluir do olhar sardônico daquela figura recurvada.
Persistia a atração na direção sudeste e só com enorme força de vontade Gilman logrou se arrastar para a casa Velha e subir as escadas rangentes. Durante horas, ficou sentado, Sem nada fazer, Com o olhar
se dirigindo aos poucos pára: oeste. Mais ou menos às seis da tarde, seus ouvidos aguçados captaram as preces lamentosas de Joe Mazurewicz, dois andares embaixo, e tomado de desespero ele pegou o chapéu
e desceu para ás ruas douradas pelo poente, deixando que a atração, que vinha agora diretamente do sul, o levasse aonde bem entendesse. Uma hora depois, a noite o encontrou nos campos abertos depois dó
ribeirão do Enforcado, com as tremeluzentes estrelas da primavera fulgindo à sua frente. O impulso de andar estava-se transmudando aos poucos num impulso para saltar misticamente no espaço, e de repente
ele compreendeu onde ficava a origem da força que o atraia.
Ficava no céu. Um ponto definido entre as estrelas o chamava. Era, aparentemente, um ponto entre Hidra e Argo Navis, e Gilman percebeu que fora atraído para ali desde o momento em que acordara de manha.
De manhã aquele ponto estivera sob seus pés, mas agora colocava-se mais ou menos ao sul, embora deslizasse para o oeste. Qual seria o significado desse fato novo? Estaria ele enlouquecendo? Quanto tempo
duraria aquilo? Juntando novamente todas as suas forças, Gilman virou-se e obrigou-se a voltar na direção da sinistra casa velha.
Mazurewicz estava à sua espera na porta e parecia ao mesmo tempo ansioso e relutante para sussurrar alguma nova superstição. Era sobre a luz das bruxas. Joe tinha saído na noite anterior para comemorar
o Dia dos Patriotas e voltara pára casa depois da meia-noite. Olhando a casa pelo lado de fora, jurara de início que a janela de Gilman estivesse às escuras, mas depois notara o débil fulgor violáceo do
lado de dentro. Ele desejava avisar ao cavalheiro a respeito daquela luminescência, pois não havia em Arkham quem não soubesse tratar-se da luz das bruxas, de Keziah, que aparecia perto do Parducho e do
fantasma da própria megera. Não havia mencionado isso antes, mas agora era obrigado a falar a respeito, pois aquilo significava que Keziah e seu companheiro de dentes longos estavam perseguindo o jovem
cavalheiro. Às vezes, ele, Paul Choynski e Dombrowski, o senhorio, julgavam ver aquela luz saindo pelas fendas do sótão fechado sobre o quarto do jovem cavalheiro, mas haviam combinado que nada diriam
sobre o assunto. Contudo, seria melhor o cavalheiro ocupar outro quarto e obter um crucifixo junto a algum virtuoso sacerdote, como o padre Iwanicki.
Enquanto o homem arengava, Gilman sentiu um pânico inominável apertar-lhe a garganta. Sabia que Joe deveria estar um tanto embriagado ao voltar para casa na véspera; no entanto, a referência a uma luz
violácea na janela da mansarda tinha Um significado aterrador. Era um fulgor daquele tipo que sempre brincava em torno da velha e da coisinha peluda naqueles sonhos mais leves e mais nítidos que preludiavam
o mergulho em abismos ignotos, e a ideia de que uma outra pessoa, desperta, era capaz de ver a cintilação onírica era algo que abalava toda sua estrutura psíquica. Entretanto, onde o sujeito fora buscar
aquela ideia? Haveria ele próprio falado enquanto caminhava pela casa, dormindo? Não, disse Joe, isso não havia acontecido; mas ele devia cuidar disso. Talvez Frank Elwood lhe pudesse dizer alguma coisa,
embora ele detestasse perguntar a respeito.
Febre... sonhos loucos... sonambulismo... ilusões acústicas... uma atração para um ponto no espaço... e agora uma suspeita de estar a falar dormindo! Ele tinha de parar de estudar, consultar um especialista
em nervos, tratar de sua saúde. Quando subiu para o segundo andar, deteve-se à porta de Elwood, mas percebeu que o rapaz havia saído. Relutante, continuou a subir para sua mansarda e sentou-se no escuro.
Seu olhar ainda era atraído em direção ao sul, mas Gilman viu-se também apurando os ouvidos em busca de algum som no sótão em cima e quase imaginando que uma maligna luz violeta se filtrava através de
uma frincha infinitesimal no teto baixo e inclinado.
Naquela noite, quando Gilman dormiu, a luz violeta desceu sobre ele com uma intensidade sem precedentes, enquanto a velha bruxa e o animal peludo, chegando mais perto do que nunca, escarneciam dele com
guinchos inumanos e gestos demoníacos. Agradou-lhe afundar nos abismos crepusculares vagamente ribombantes, ainda que a perseguição daquele iridescente amontoado de bolhas e daquele pequeno poliedro caleidoscópico
fosse ameaçadora e irritante. Sucedeu então a mudança, quando vastos planos convergentes de uma substância de aspecto viscoso pareceu engolfá-lo — uma mudança que terminou num clarão de delírio e num fulgor
de luz desconhecida e exótica, no qual o amarelo, encarnado e o anil achavam-se louca e indissoluvelmente mesclados.
Ele estava meio deitado numa esplanada elevada, delimitada por um balaústre fantástico, sobre uma selva sem fim de picos extraterrestres, incríveis planos equilibrados, cúpulas, minaretes, discos horizontais
suspensos sobre pináculos, e inúmeras formas de desvario ainda maior — algumas de pedra, outras de metal — que fugiam maravilhosamente em meio ao clarão quase calcinante de um céu policrômico. Levantando
o olhar, ele viu três estupendos discos de chamas, cada qual tonalidade diferente e a. uma diferente altura sobre um horizonte curvo, infinitamente distante, de montanhas baixas. Atrás dele, camadas de
terraços mais altos se alteavam, até onde alcançava sua vista. A cidade lá embaixo estendia-se até o limite da visão e Gilman esperava que nenhum som viesse dali.
O espaço onde ele se punha agora de pé era pavimentado com uma pedra polida e com muitos veios, de impossível identificação, e os ladrilhos tinham ângulos extravagantes que lhe pareciam menos assimétricos
do que baseados em alguma simetria extraterrestre cujas leis ele não conseguia compreender. A balaustrada chegava à‘ altura do peito, e era de um lavor fantasticamente delicado, ao passo que no corrimão
se dispunham á pequenos intervalos, estatuetas de desenho grotesco e execução requintada. Tanto elas como todo o balaústre pareciam feitos do mesmo tipo de metal reluzente, cuja cor não podia ser percebida
no caos de fulgores mesclados, e Cuja natureza desafia qualquer conjectura. Representavam um objeto em forma de barril, com rugosidades, dotado de finos braços horizontais que se irradiavam de um anel
central com bulbos verticais, projetados da cabeça e da base do barril. Cada um desses bulbos era o núcleo de um sistema de cinco braços longos, chatos que se afilavam triangularmente, dispostos em torno
dele como as pontas de uma estrela-do-mar quase horizontais, mas curvando-se ligeiramente ao se afastarem do barril central. A base do bulbo inferior era fundida ao longo corrimão, com um ponto de contato
tão delicado que várias estatuetas haviam-se quebrado e faltavam. Tinham cerca de doze centímetros de altura, ao passo que os braços lhes davam um diâmetro máximo de aproximadamente oito centímetros.
Quando Gilman se levantou, sentiu os ladrilhos quentes sob os pés descalços... Estava inteiramente sozinho e seu primeiro ato consistiu em caminhar até a balaustrada e olhar atordoadamente para a cidade
infindável, ciclópiça, quase 600 metros lá embaixo. Teve a impressão de que uma confusão rítmica de débeis flauteados musicais, que cobriam um amplo registro tonal, surgia das ruas estreitas, e sentiu
vontade de poder discernir os habitantes daquele lugar. A vista o tonteou por Um momento e ele teria caído ao chão se não se agarrasse instintivamente à balaustrada lustrosa. Sua mão direita caiu sobre
uma das estatuetas e o toque pareceu firmá-lo um pouco. Entretanto, a pressão foi excessiva para a delicadeza exótica do metal, e a figura soltou-se do balaústre. Ainda meio aturdido, ele continuou a agarrá-lo,
enquanto outra mão se fechava num espaço vazio do corrimão liso.
Agora, porém, seus ouvidos sensíveis captaram alguma coisa às suas costas e ele olhou para trás. Quase em silêncio, mas aparentemente sem receio, cinco figuras aproximavam-se dele; duas delas eram a velha
sinistra e o animalzinho de dentes afiados e peludo. Foram as outras três que o fizeram perder os sentidos — pois eram entidades vivas, com cerca de 1,80 metro de altura, exatamente iguais às estatuetas
da balaustrada, e que se locomoviam mediante contorções do conjunto inferior de braços estrelados.
Gilman acordou em sua cama, ensopado de suor frio e com uma sensação de formigamento no rosto, nas mãos e nos pés. Pondo-se de pé num salto, lavou-se e vestiu-se com fúria frenética, como se lhe fosse
necessário sair daquela casa o mais depressa possível. Não sabia aonde desejava ir, mas percebeu que mais uma vez teria de sacrificar suas aulas. A atração singular para aquele ponto no céu entre Hidra
e Argo havia cessado, mas seu lugar fora tomado por outra, ainda mais poderosa. Agora ele sentia que tinha de seguir rumo ao norte. Temia atravessar a ponte de onde se descortinava a ilha desolada no Miskatonic,
de modo que ele se dirigiu à ponte da avenida Peabody. Tropeçou várias vezes, pois tinha os olhos e os ouvidos fixados num ponto extremamente alto no céu azul sem nuvens.
Depois de mais ou menos uma hora, Gilman conseguiu controlar-se um pouco e constatou que estava muito longe da cidade. Em torno de si estendia-se o vazio dos pântanos salgados, ao passo que a estrada estreita
à sua frente levava a Innsmouth, aquela cidade antiga e meio abandonada que a gente de Arkham relutava curiosamente em visitar. Muito embora a atração exercida pelo norte não houvesse abrandado, ele resistia
a ela tal como havia resistido à outra atração, e finalmente verificou que podia quase compensar uma com a outra. Caminhando de volta à cidade e tomando um pouco de café numa taberna, arrastou-se para
a biblioteca pública e folheou a esmo revistas de variedades. Em dado momento encontrou-se com alguns amigos, que comentaram que ele parecia muito queimado de sol, mas não lhes falou da caminhada. Às três
horas ele fez uma refeição ligeira num restaurante, observando que a atração havia ou diminuído ou se dividido. Depois disso, matou um pouco de tempo numa sessão de cinema, assistindo ao filme tolo várias
vezes, sem lhe prestar qualquer atenção.
Mais ou menos às nove da noite ele se deixou levar para casa e entrou no casarão. Joe Mazurewicz estava a entoar preces ininteligíveis e Gilman apressou-se a subir para sua própria mansarda, sem parar
para ver se Elwood estava em seu quarto. Foi quando acendeu a lâmpada que sobreveio o choque. Viu instantaneamente que havia uma coisa sobre a mesa que não estava ali antes, e um segundo olhar não deixou
margem para dúvidas. Deitada de lado, pois não podia manter-se de pé por si mesma, estava a exótica estatueta que ele havia quebrado na balaustrada fantástica de seu sonho monstruoso. Não faltava nenhum
detalhe. O centro enrugado, em forma de barril, os braços finos e radiados, os bulbos em cada extremidade, os braços estrelados, ligeiramente encurvados, que brotavam daqueles bulbos — estava tudo ali.
À luz elétrica, a cor parecia uma espécie de cinza iridescente, veiado de verde; e Gilman podia ver, em meio ao horror e à perplexidade, que um dos bulbos terminava numa fratura serrilhada, correspondente
a seu ponto de contato com o corrimão do sonho.
Só sua tendência para a estupefação impediu-o de gritar. Aquela fusão de sonho e de realidade era insuportável. Ainda atônito, ele agarrou a estatueta e desceu as escadas aos tropeções até os aposentos
de Dombrowski, o senhorio. As rezas lamurientas do supersticioso consertador de teares ainda ressoavam pelos corredores bolorentos, mas Gilman agora não se incomodava com elas. O senhorio estava em casa
e o saudou prazerosamente. Não, nunca tinha visto aquela coisa antes, nem sabia de coisa alguma a seu respeito. Mas sua mulher havia dito que encontrara uma coisa curiosa de lata numa das camas ao arrumar
os quartos ao meio-dia, e talvez fosse aquilo. Dombrowski a chamou e ela entrou na sala. Sim, era aquilo mesmo. Ela havia encontrado a estatueta na cama do moço — do lado próximo à parede. A figura lhe
parecera muito esquisita, mas naturalmente o moço tinha muitas coisas estranhas em seu quarto — livros, antiguidades, imagens e desenhos em papéis. Ela não sabia de nada a respeito daquela coisa.
Gilman voltou para seu quarto, num estado de tumulto mental, convencido de que ou ainda sonhava ou seu sonambulismo havia chegado à extremos inacreditáveis, fazendo-o depredar lugares desconhecidos. Onde
ele havia conseguido aquela coisa absurda? Não se lembrava de tê-la visto era nenhum museu de Arkham. Mas aquilo tinha vindo de algum lugar; o fato de ver a estatueta, no momento em que se apoderara dela
no sono, devia ter causado a estranha imagem onírica do terraço com balaustrada. No dia seguinte ele haveria de fazer algumas investigações muito cautelosas... e talvez fosse procurar o especialista em
nervos.
Até lá, ele procuraria cuidar de seu sonambulismo. Enquanto subia a escada e atravessava o corredor que levava à mansarda, ele espalhou pelo chão um pouco de farinha que havia tomado de empréstimo ao senhorio
— admitindo francamente qual era a finalidade. Havia parado na porta de Elwood, mas estava tudo escuro lá dentro do quarto. Depois de entrar em seu quarto, colocou a estatueta na mesa e deitou-se, tomado
de completa exaustão mental e física, sem sequer despir-se. Julgou escutar um som leve de arranhaduras que vinha do sótão fechado em cima, mas estava esgotado demais para prestar atenção até nisso. A enigmática
atração pelo norte tornava a crescer, embora parecesse provir agora de um ponto mais baixo no céu.
Em meio à ofuscante luz violeta do sonho, a velha e o animal peludo e de longas presas surgiram de novo e com maior nitidez que em qualquer ocasião anterior. Dessa vez chegaram a tocá-lo efetivamente,
e Gilman sentiu as garras encarquilhadas da megera. Foi arrancado da cama e levado ao espaço vazio; por um instante ele ouviu um rugido rítmico e viu o crepúsculo amorfo dos vagos abismos escachoando em
torno de si. No entanto, esse momento foi muito fugaz, pois daí a um momento ele se encontrava num cômodo pobre, sem janelas, com vigamento grosseiro e tábuas que formavam um vértice pouco acima de sua
cabeça é com um curioso piso inclinado. No chão havia caixas baixas contendo livros de todo grau de antiguidade e desintegração, e no centro havia uma mesa e uma cadeira, ambas aparentemente presas ao
lugar. Em cima das caixas dispunham-se objetos pequenos, de forma e natureza desconhecidas, e na flamejante luz violeta Gilman teve a impressão de ver uma réplica da imagem que o deixara tão horrivelmente
perplexo. A esquerda, o assoalho desaparecia abruptamente, deixando um buraco negro triangular pelo qual, depois de uma chocalhada seca e rápida, surgiu daí a pouco a odiosa criatura peluda, de dentes
amarelos e rosto humano e barbudo.
A megera, ainda rindo malignamente, continuava a agarrá-lo, e do outro lado da mesa havia uma figura que ele nunca vira antes — um homem alto e magro, de cor negra, mas sem o menor sinal de traços negróides;
sem nenhum fio de cabelo ou barba, usava como único traje um manto informe de pesado tecido negro. Gilman não lhe via os pés, por causa da mesa e da cadeira, mas ele devia estar calçado, pois havia um
estalido a cada vez que ele mudava de posição. O homem não falava nem exibia qualquer expressão nos traços fisionômicos regulares. Apontou simplesmente para um livro de dimensões prodigiosas que estava
aberto sobre a mesa, enquanto a velha metia uma gigantesca pena cinzenta de ganso na mão direita de Gilman. Pairava sobre tudo um manto de medo, enlouquecedor e o clímax foi atingido quando o animalzinho
peludo subiu pela roupa de Gilman até seus ombros e desceu por seu braço esquerdo, mordendo-o finalmente com força um pouco abaixo do pulso. No instante em que o sangue jorrou da ferida, Gilman desfaleceu.
Acordou na manha do dia 22 sentindo dor no pulso esquerdo e viu que o punho da camisa estava manchado de sangue seco. Suas lembranças estavam muito confusas, mas a cena com o negro no cômodo desconhecido
se destacava vividamente. Os ratos deviam tê-lo mordido enquanto ele dormia, dando ensejo ao clímax do sonho assustador. Abrindo a porta, ele viu que a farinha no corredor só mostrava as pegadas do sujeito
rústico que ocupava um cômodo na outra extremidade da mansarda. Então, ele não tivera uma crise de sonambulismo. Mas era preciso tomar uma providência contra aqueles ratos. Conversaria a respeito com o
senhorio. Mais uma vez ele tentou calafetar o buraco na base da parede inclinada, metendo nele uma vela que parecia do tamanho apropriado. Seus ouvidos doíam horrivelmente, como que rasgados pelos ecos
residuais do barulho terrível escutado em seus pesadelos.
Enquanto se banhava e mudava de roupa, ele tentou lembrar-se do que havia sonhado depois da cena no cômodo iluminado de violeta, porém nada de definido cristalizou-se em sua mente. Aquela cena devia ter
correspondido ao sótão fechado em cima, que havia começado a atacar sua imaginação de forma tão violenta, mas as impressões posteriores eram débeis e brumosas. Havia impressões dos abismos vagos e crepusculares
e de abismos ainda mais vastos e mais negros além deles — abismos de que estavam ausentes quaisquer impressões estáveis. Havia sido levado até lá pelo amontoado de bolhas e pelo pequeno poliedro que sempre
se esquivava a ele; mas essas coisas, tal como ele próprio, haviam-se transformado em fiapos de névoa naquele báratro de supremo negrume. Uma outra coisa seguia na frente — um fiapo maior, que de vez em
quando se condensava em aproximações indefinidas de forma — e Gilman imaginava que o avanço deles não se fizera em linha reta, mas sim ao longo das curvas e espirais exóticas de algum vórtice etéreo que
obedecia a leis desconhecidas pela física e pela matemática de qualquer universo concebível. Por fim houvera uma impressão de sombras vastas e saltadoras, de uma pulsação monstruosa e semi-sonora, bem
como do silvo leve e monótono de uma flauta invisível... mas isso foi tudo. Gilman concluiu que havia tirado essa última ideia do que havia lido no Necronomicon a respeito de Azathoth, uma entidade destituída
de mente, que governa o tempo e o espaço de seu trono negro no centro do Caos.
Depois de lavado o sangue, a ferida no pulso mostrou-se minúscula e Gilman admirou a localização das duas pequeninas marcas. Ocorreu-lhe que não havia qualquer sinal de sangue no lençol em que ele estivera
deitado, o que era muito curioso em vista da quantidade na pele e no punho da camisa. Estivera ele caminhando dormindo pelo quarto ou o rato o mordera enquanto ele estava sentado numa cadeira ou imobilizado
em alguma posição menos racional? Gilman procurou pingos castanhos por todos os cantos, mas nada encontrou. Seria conveniente, pensou, espalhar farinha dentro do quarto, tanto como do lado de fora da porta
— ainda que, naturalmente, não fosse preciso mais provas de seu sonambulismo. Ele sabia que realmente caminhava... e o que havia a fazer agora era acabar com isso. Devia pedir ajuda a Frank Elwood. Naquela
manhã, as estranhas atrações do espaço pareciam reduzidas, conquanto substituídas por uma outra sensação, ainda mais inexplicável. Era um impulso vago e insistente para afastar-se dali, voando, mas tratava-se
de um impulso que não encerrava a menor insinuação quanto à direção específica que deveria tomar seu vôo. Ao segurar a estranha estatueta que estava sobre a mesa, ele teve a impressão de que a atração
mais antiga, em direção ao norte, se fez ligeiramente mais intensa, mas ainda assim era inteiramente suplantada pelo apelo mais recente e mais enigmático.
Gilman levou a imagem até o quarto de Elwood, procurando resistir aos lamentos do consertador de teares, que subiam do andar térreo. Elwood estava em casa, graças aos céus, e parecia estar-se levantando.
Havia tempo para conversarem um pouco antes do desjejum é das aulas. Por isso, Gilman fez um relato apressado de seus sonhos e temores recentes. Seu companheiro mostrou-se acessível e concordou que era
preciso fazer alguma coisa. Ficou chocado com o aspecto emaciado e desmazelado do amigo e notou a queimadura de sol, estranha e de aspecto anormal, que outras pessoas haviam observado na semana anterior.
No entanto, não havia muita coisa que ele pudesse dizer. Não tinha visto Gilman em nenhum passeio sonambúlico, nem fazia qualquer ideia sobre a natureza da curiosa estatueta. Entretanto, tinha escutado
o franco-canadense que morava bem debaixo de Gilman conversar com Mazurewicz certa noite. Contavam um ao outro o quanto detestavam a aproximação da noite de Valpúrgis, para a qual faltavam agora somente
alguns dias; e estavam trocando comentários compassivos sobre o infeliz rapaz. Desrochers, o sujeito que ocupava o cômodo abaixo do de Gilmarí, havia-se referido a passos noturnos, de pés calçados e descalçados,
e à luz violácea que ele tinha visto certa noite, quando subira as escadas, transido de medo, para espiar pelo buraco da fechadura do quarto de Gilman. Não se atrevera a olhar, disse a Mazurewicz, depois
de haver entrevisto aquela luz através das frinchas em torno da porta. Houvera também conversas abafadas... e quando ele começou a descrevê-las, sua voz caíra para um sussurro inaudível.
Elwood não podia imaginar o que havia levado aquelas pessoas supersticiosas a trocarem mexericos, mas supunha que a imaginação delas tivesse sido despertada, por um lado pelos hábitos notívagos e pelo
sonambulismo de Gilman, e, por outro lado, pela aproximação da noite dê Valpúrgis, tradicionalmente temida. Que Gilman falava ao dormir era patente; e fora, evidentemente, a partir do dia em que Desrochers
começara a encostar o ouvido na fechadura de Gilman que se espalhara a ideia da luz violeta. Aquelas pessoas simples punham-se logo a imaginar que tinham visto qualquer anormalidade de que tivesse ouvido
falar. Quanto a um plano de ação, seria melhor que Gilman se transferisse para o quarto de Elwood e evitasse dormir sozinho. Caso estivesse acordado, Elwood o despertaria sempre que ele começasse a falar
ou caminhar dormindo. Além disso, ele deveria procurar o especialista, o quanto antes. Enquanto isso, levariam a estatueta aos vários museus e a certos professores, procurando identificação e afirmando
que haviam-na encontrado num depósito público de lixo. E mais uma coisa: Dombrowski deveria cuidar de envenenar aqueles ratos nas paredes.
Fortalecido pelo apoio de Elwood, Gilman assistiu às aulas naquele dia. Atrações estranhas ainda se faziam sentir sobre ele, mas agora o moço conseguia vencê-las com considerável êxito. Durante um intervalo
ele mostrou a curiosa imagem a vários professores, todos os quais se mostraram imensamente interessados, embora nenhum pudesse prestar qualquer esclarecimento sobre sua origem ou natureza. Naquela noite
ele dormiu num sofá que Elwood pedira ao senhorio para levar ao quarto do segundo andar, e pela primeira vez em várias semanas não teve os sonhos ínquietantes. Mas a febrícula ainda persistia e as lamúrias
do consertador de teares era uma influência enervante.
Nos dias seguintes, Gilman desfrutou de imunidade quase perfeita a manifestações mórbidas. Não mostrava, disse Elwood, qualquer inclinação a falar ou levantar-se durante ó sono; e o senhorio estava espalhando
raticida por toda parte. O único elemento perturbador eram as conversas entre os estrangeiros supersticiosos, cujas imaginações haviam disparado. Mazurewicz estava sempre tentando fazer com que ele obtivesse
um crucifixo e por fim lhe impingiu um, que disse ter sido abençoado pelo bom padre Iwanicki. Também Desrochers tinha algo a dizer; na verdade, insistia em que passos cautelosos haviam ressoado no quarto,
agora vazio, que ficava sobre o dele, na primeira e segunda noite que Gilman dali se ausentou. Paul Choynski julgava ter escutado sons nos corredores e nas escadas, de noite, e declarou que alguém tentara
abrir sua própria porta de mansinho, ao passo que a Sra. Dombrowski jurava que tinha visto o Parducho pela primeira vez desde o Dia de Todos os Santos. No entanto, esses relatos ingênuos pouco significavam
e Gilman deixou o crucifixo barato de metal pendurado num puxador da cômoda de Elwood.
Durante três dias Gilman e Elwood vasculharam os museus locais, numa tentativa de identificar a estranha estatueta, mas não tiveram êxito. Por toda parte, entretanto, o interesse era intenso, pois o total
exotismo da peça constituía um tremendo desafio à curiosidade científica. Um dos pequenos braços radiados foi quebrado, e submetido a análise química. O professor Ellery encontrou platina, ferro e telúrio,
na liga desconhecida; mas a esses metais misturavam-se pelo menos três outros elementos de elevado peso atômico cuja química era de classificação absolutamente impossível. Não correspondiam a qualquer
elemento conhecido, nem preenchiam os lugares vazios reservados para elementos prováveis no sistema periódico. O mistério continua sem resolução até hoje, embora a estatueta esteja incluída no acervo do
museu da Universidade Miskatonic.
Na manhã de 27 de abril apareceu um novo buraco de rato no quarto de Elwood, mas Dombrowski fechou-o com uma folha de lata durante o dia. O veneno não estava tendo muito efeito, pois as arranhaduras e
as corridas nas paredes continuavam quase inalteradas.
Elwood demorou a chegar naquela noite e Gilman esperou por ele. Não desejava dormir sozinho no quarto, principalmente porque acreditava ter entrevisto, ao cair da noite, a velha repelente cuja imagem se
transferira tão horrivelmente para seus sonhos. Ficou a imaginar quem seria ela e o que estivera perto dela, batendo a lata num monte de lixo na entrada de um pátio sórdido. A megera dera mostras de notá-lo
e de olhá-lo malevolamente de esguelha... ainda que, talvez, isso fosse apenas fruto de sua imaginação.
No dia seguinte os dois moços sentiam-se cansadíssimos e perceberam que dormiriam como pedras quando caísse a noite. Antes de se recolherem discutiram sonolentamente os estudos matemáticos que haviam absorvido
Gilman de modo tão completo e, possivelmente, nocivo, tecendo conjecturas sobre a ligação com a magia e o folclore antigos, que parecia tão sombriamente provável. Falaram da velha Keziah Mason, e Elwood
concordou que Gilman tinha bons motivos científicos para julgar que ela poderia ter dado com informações estranhas e importantes. Os cultos esotéricos a que aquelas feiticeiras pertenciam frequentemente
conservavam e transmitiam segredos surpreendentes de eras antigas e esquecidas; não era nada impossível que Keziah houvesse verdadeiramente dominado a arte de atravessar as portas dimensionais. A tradição
salienta a inutilidade de barreiras materiais para deter os movimentos de uma bruxa, e quem poderá dizer o que está por trás das velhas histórias sobre bruxas que voam pelo céu noturno em cabos de vassouras?
Ainda estava por provar se um estudioso moderno seria capaz de obter poderes semelhantes apenas pelo estudo da matemática. O bom sucesso nessa empresa, aduzia Gilman, poderia conduzir a situações perigosas
e impensáveis, pois quem podia prever as condições reinantes numa dimensão adjacente porém normalmente inacessível? Por outro lado, as possibilidades pitorescas eram enormes. O tempo poderia não existir
em determinadas faixas do espaço, e ao entrar e permanecer em tal faixa uma pessoa poderia preservar a vida e a idade indefinidamente, sem jamais sofrer deterioração orgânica, salvo em quantidades mínimas,
por ocasião de visitas ao próprio plano ou a planos similares. Poder-se-ia, por exemplo, passar para uma dimensão intemporal e emergir em algum período remoto da história do mundo tão jovem quanto antes.
Se alguém já conseguira fazer isso, não se podia conjecturar com qualquer grau de segurança. As lendas antigas são brumosas e ambíguas, e nos tempos históricos todas as tentativas de atravessar abismos
proibidos parecem complicadas por alianças estranhas e terríveis com seres e mensageiros do exterior. Havia a figura imemorial do enviado ou mensageiro de potências ocultas e supernas — o “Negro” dos bruxedos
e o “Nyarlahotep” do Necronomicon. Havia ainda o problema insolúvel dos mensageiros é intermediários menores — os semi-animais ou os híbridos singulares que as lendas descrevem como companheiros das bruxas.
No momento em Elwood e Gilman se recolheram, sonolentos demais para prosseguirem a discussão, ouviram Joe Mazurewicz entrar cambaleando em casa, meio ébrio, e estremeceram ante o desvio desesperado de
suas preces lamuriantes.
Naquela noite Gilman voltou a ver a luz violácea. Escutara no sonho o som de arranhaduras e roeduras nas paredes e julgara que alguém mexia desajeitadamente na tranca da porta, Depois viu a velha e o animalzinho
peludo avançarem em sua direção pelo assoalho atapetado. O rosto da megera estava iluminado por uma exultação sobre-humanas e o monstrinho de dentes amarelos ria, zombeteiro, enquanto apontava para o vulto
de Elwood, profundamente adormecido no outro sofá do quarto. Um medo paralisante sufocou todas as tentativas de Gilman para gritar. Tal como já acontecera anteriormente, a megera agarrou Gilman pelo ombro,
arrancando-o do leito e carregando-o para o espaço vazio. Mais uma vez a infinitude de abismos uivantes passou por ele como num clarão, mas daí a um instante ele julgou encontrar-se numa ruela escura,
lamacenta e desconhecida, de odores fétidos, com as paredes carcomidas de casas antigas alteando-se de todos os lados.
Mais à frente estava o negro de manto que ele havia visto no espaço montanhoso do outro sonho, enquanto a uma distância menor a velha acenava e careteava imperiosamente. O Parducho se esfregava com uma
espécie de carinho afetuoso em torno, dos tornozelos do negro. À direita havia uma porta escura, aberta, para a qual o negro apontou — em silêncio. A megera saiu na direção dessa porta, arrastando Gilman
pelas mangas do pijama. Havia escadarias malcheirosas que rangiam ominosamente, e nas quais a velha parecia irradiar uma débil luz violeta, Chegaram por fim a uma porta que saía de um patamar. A megera
mexeu na tranca e abriu a porta, fazendo um gesto para que Gilman esperasse, e desapareceu na abertura negra.
Os ouvidos sensíveis do moço captaram um medonho grito estrangulado e daí a pouco a megera saiu do cômodo trazendo uma coisa pequena e inerte, que atirou ao rapaz adormecido como se lhe ordenasse que a
carregasse. A visão daquele ser e a expressão em seu rosto quebraram o encantamento. Ainda aturdido demais para gritar, ele se precipitou pela escada repugnante e foi sair na ruela lamacenta, só parando
ao ser agarrado e sufocado pelo negro que o esperava. Ao perder a consciência, escutou o riso abafado da monstruosidade de dentes afiados e aspecto de rato.
Na manhã do dia 29, Gilman acordou num turbilhão de pavor. No instante mesmo em que abriu os olhos percebeu que havia alguma coisa terrivelmente errada, pois ele estava de volta à sua velha mansarda de
parede e teto inclinados, deitado de costas na cama agora revolta. Sua garganta doía inexplicavelmente e no momento em que forcejou para sentar-se, notou que os pés e as bainhas das calças do pijama estavam
sujos de lama endurecida. Por ora suas lembranças eram irremediavelmente nebulosas, mas ele sabia ao menos que devia ter tido uma nova crise de sonambulismo. Elwood havia dormido profundamente demais para
ouvi-lo e detê-lo. Havia no chão confusas marcas de pés enlameados, mas, curiosamente, não chegavam até a porta. Quanto mais Gilman as olhava, mais estranhas elas lhe pareciam, pois além daquelas que ele
reconhecia como suas, havia outras, menores, quase arredondadas, como que deixadas pelas pernas de uma cadeira grande ou de uma mesa, muito embora na maioria estivessem divididas em duas metades, Havia
também singulares pegadas de rato, que saíam de um novo buraco na parede e voltavam para ele, O espanto e o medo da demência tomaram conta de Gilman quando ele cambaleou até a porta e observou que não
havia marcas de lama do lado de fora. Quanto mais ele se lembrava do sonho hediondo, mais aterrorizado se sentia, e seu desespero aumentou quando Joe Mazurewicz começou sua litania lutuosa, dois andares
abaixo dele.
Descendo ao quarto de Elwood não conseguia imaginar o que poderia ter acontecido. Era de todo impossível dizer onde Gilman poderia ter estado, como havia voltado para o quarto sem deixar marcas no corredor,
e como as pegadas enlameadas, parecidas com marcas de pernas de móveis, tinham-se misturado com as dele próprio na mansarda. Além disso, havia aquelas marcas lívidas em seu pescoço, como se ele houvesse
tentado estrangular a si mesmo. Gilman levou as mãos ao pescoço, mas verificou que nem aproximadamente os dedos combinavam com os sinais. Enquanto conversavam, Desrochers veio contar que tinha ouvido um
fragor terrível no quarto de cima, de madrugada. Não, não houvera ninguém nas escadas depois da meia-noite, ainda que pouco antes disso ele houvesse escutado passos macios na mansarda e passos cautelosos
que desciam a escada. Aquela época do ano, acrescentou, era péssima em Arkham. Era melhor o moço usar o crucifixo que Mazurewicz lhe dera. Mesmo de dia não havia segurança, pois depois do nascer do sol
haviam percebido sons estranhos na casa... sobretudo um choro leve de criança, rapidamente abafado.
Gilman assistiu mecanicamente às aulas naquela manhã, mas se sentia inteiramente impossibilitado de prestar atenção aos estudos. Uma medonha sensação de apreensão e expectativa havia tomado conta de seu
ser, e ele parecia estar à espera de algum golpe aniquilador. Ao meio-dia almoçou no restaurante da universidade, pegando um jornal que estava na cadeira ao lado, enquanto esperava a sobremesa. No entanto,
nunca veio a comer essa sobremesa, pois havia na primeira página uma nota que o deixou atônito, de olhos esbugalhados. Tudo que pôde fazer foi pagar a conta e voltar, cambaleando, até o quarto de Elwood.
Na noite anterior ocorrera um estranho sequestro no caminho de Orne, e o filho de dois anos de uma empregada de lavanderia, meio apalermada, de nome Anastasia Wolejko, havia desaparecido sem deixar rastros.
A mãe, ao que parece, vinha receando que isso acontecesse desde algum tempo, mas os motivos que ela citava para seu medo eram de tal modo grotescos que ninguém a levava a sério. Dizia ela ter visto o Parducho
de vez em quando por ali, desde o começo de março, e entendeu pelas caretas e risos do monstro que o pequeno Ladislas deveria estar marcado para ser sacrificado no horripilante sabá das bruxas, na noite
de Valpúrgis. Havia pedido a uma vizinha, Mary Czanek, que dormisse no quarto e tentasse proteger a criança, mas Mary não se atrevera a tal. Anastasia não podia contar à polícia, pois os agentes da lei
nunca acreditavam nessas coisas. Desde que ela se entendia por gente haviam desaparecido crianças daquela maneira, todos os anos. E seu amásio, Pete Stowacki, não a ajudava, pois desejava livrar-se da
criança.
Mas o que fez Gilman suar frio foi o relato de uma dupla de notívagos que haviam passado pela entrada do caminho pouco depois da meia-noite. Admitiam que haviam bebido, más ambos juravam ter visto um trio,
vestido, de maneira absurda, entrando na betesga sombria. Diziam ser eles um imenso negro de manto, uma velhinha em farrapos e um rapaz branco com roupa de dormir. A velha puxava o rapaz, enquanto um rato
domesticado trançava entre as pernas do negro na lama escura.
Gilman passou toda a tarde sentado, em estupor, e foi assim que Elwood — que entrementes vira os jornais e formara terríveis conjecturas a partir deles — o encontrou ao chegar a casa. Dessa vez nenhum
dos dois podia duvidar que alguma coisa medonhamente séria estava a se fechar em torno deles. Entre os fantasmas do pesadelo e as realidades do mundo objetivo cristalizava-se uma relação monstruosa e inimaginável,
e apenas uma vigilância estupenda seria capaz de impedir desdobramentos ainda mais funestos. Gilman deveria procurar um especialista mais cedo ou mais tarde, porém não agora que todos os jornais se ocupavam
largamente daquela história do sequestro.
O que havia realmente acontecido era enlouquece- doramente obscuro, e por um momento Gilman e Elwood trocaram, aos murmúrios, as teorias mais loucas. Haveria Gilman, inconscientemente, logrado mais êxito
do que supunha em seus estudos do espaço e de suas dimensões? Teria ele verazmente saído de nossa esfera para pontos impressentidos e inimagináveis? Aonde — supondo-se que tivesse ido a algum lugar — fora
ele ter naquelas noites de demoníaca alienação? Os estentóreos abismos crepus- culares... a encosta verde... o terraço calcinante... as atrações das estrelas... o supremo turbilhão negro... o homem negro...
a viela lamacenta e as escadas... a bruxa e o horror peludo e de dentes afiados... o aglomerado de bolhas e o pequeno poliedro... a estranha queimadura solar... a ferida no pulso... a estatueta inexplicada...
os pés enlameados... as marcas na garganta... as histórias e os terrores dos estrangeiros supersticiosos... o que significaria tudo isso? Até que ponto as leis da sanidade se aplicavam a tal caso?
Não foi possível a nenhum dos dois conciliar o sono aquela noite, mas no dia seguinte ambos faltaram às aulas e cochilaram. Era o dia 30 de abril e com o crepúsculo viria o momento do sabá infernal que
todos os estrangeiros e os velhos supersticiosos temiam. Mazurewicz chegou às seis horas e disse que as pessoas na fábrica comentavam em sussurros que as orgias de Valpúrgis seriam realizadas na ravina
sombria que ficava depois de Meadow Hill e onde a velha pedra branca se ergue num local estranhamente despido de qualquer vegetação. Algumas pessoas tinham chegado a avisar a polícia, aconselhando-a a
procurar ali a criança desaparecida, mas na verdade não acreditavam que fossem tomadas providências. Joe insistiu em que o moço atormentado usasse o crucifixo niquelado; para agradar ao homem, Gilman colocou-o
no pescoço, do lado de dentro da camisa.
Os dois rapazes permaneceram acordados até tarde da noite, embalados pelas orações; do consertador de teares no andar de baixo. Gilman apurava os ouvidos enquanto cabeceava de sono, com a audição sobrenaturalmente
aguçada buscando, aparentemente, algum murmúrio sutil e horrível por sobre os sons da casa antiga. Ocorriam-lhe lembranças nefandas de coisas lidas no Necronomicon e no Livro Negro, e dentro em pouco ele
se viu movendo o corpo ao ritmo que se dizia originarem-se das cerimônias mais tétricas do sabá e que queriam provindo de fora do espaço e do tempo que conhecemos.
Em breve ele compreendeu o que estava procurando ouvir — o cântico infernal dos celebrantes no longínquo vale negro. Como sabia ele tanto a respeito daquilo que estavam aguardando? Como sabia ele o momento
em que Nahab e seu acólito deveriam comparecer com a vasilha transbordante, que se seguiriam ao galo e ao bode pretos? Gilman percebeu que Elwood havia caído no sono e tentou acordá-lo com um grito. Alguma
coisa, porém, lhe comprimia a garganta. Não era senhor de si. Haveria ele, afinal, assinado o livro do negro?
Foi então que seus ouvidos febris e anormais captaram as notas distantes, trazidas pelo vento. Vinham por sobre quilômetros de campos, colinas e becos, mas ainda assim ele as reconhecia. As fogueiras deviam
estar acesas, os dançarinos na certa iniciavam seus bailes. Como podia deixar de ir lá? O que o teria aprisionado como que numa teia? A matemática... o folclore... a casa... a velha Keziah... o Parducho...
e agora ele percebia que havia um novo buraco de rato na parede, junto de seu leito. Sobre o canto distante e sobre as preces mais próximas de Joe Mazurewicz, ele escutou um novo som... arranhaduras furtivas
e deliberadas nas paredes. Ah, oxalá as luzes elétricas não se apagassem. Viu então o pequeno rosto barbado e de dentes afiados assomar no buraco... O rosto pequeno e amaldiçoado que, finalmente ele percebia,
mostrava uma chocante e zombeteira semelhança com o da velha Keziah... e ele escutou também o som da porta que se abria.
Os tonitruantes abismos crepusculares passaram por ele como num clarão, e Gilman se viu impotente, carregado pelo iridescente amontoado de bolhas. À frente deles corria o pequeno poliedro caleidoscópico
e em todo o vazio escachoante dava-se uma intensificação e uma aceleração do vago desenho tonal que parecia prenunciar algum clímax impronunciável e insuportável. Ele parecia saber o que estava por vir...
a explosão monstruosa dos ritmos do sabá de Valpúrgis, em cujo timbre cósmico estariam concentradas todas as ebulições primais e supremas de espaço e de tempo, que jazem por trás das esferas comprimidas
de matérias e que por vezes irrompem em reverberações medidas que penetram debilmente em toda camada de ser e dão horrendo significado, em todos os mundos, a certos períodos temidos.
Tudo isso, porém, desapareceu num segundo. Ele se encontrava novamente no aposento exíguo, de assoalho inclinado, iluminado pela luz violácea, com as caixas baixas de livros antigos, a mesa e a cadeira,
os objetos estranhos e a abertura triangular de um lado. Sobre a mesa havia um vulto muito pequeno — uma criança de colo, nua e inconsciente — enquanto que do outro via-se a velha aterradora, com uma faca
reluzente e de cabo grotesco na mão direita e um vaso metálico de proporções estranhas, desenhos curiosos e delicados cabos laterais na esquerda. Entoava uma roufenha cantinela ritual numa língua que Gilman
não compreendia, mas que parecia algo mencionado reservadamente no Necronomicon.
Quando a cena se tornou mais nítida ele viu a megera curvar-se para a frente e depor o vaso vazio sobre a mesa. Incapaz de controlar suas próprias emoções, ele estendeu os braços e pegou-o com as duas
mãos, notando sua relativa leveza. No mesmo instante, o vulto repelente do Parducho subiu pela borda do buraco negro e triangular à sua esquerda. A velha fez então um gesto para que ele segurasse o vaso
numa certa posição, enquanto ela erguia a faca grotesca e enorme sobre a pequenina vítima o mais alto que a mão direita podia alcançar. O animalzinho peludo e de dentes afiados começou a resmungar uma
continuação do ritual desconhecido, enquanto a bruxa grasnava respostas abomináveis. Gilman sentiu uma torturante e pungente repulsa perpassar sua paralisia mental e emocional, e a leve vasilha de metal
tremeu em suas mãos. Um instante depois o movimento descendente da faca quebrou o encantamento de todo e ele deixou cair o recipiente com um sonoro clangor de sinos, enquanto suas mãos projetavam-se freneticamente
para adiante a fim de sustar o ato hediondo.
Num abrir e fechar de olhos ele havia dado a volta para o outro lado da mesa, pelo assoalho inclinado, e arrancado à faca das garras da megera, jogando-a, com estrépito, pela borda do estreito buraco triangular.
No instante seguinte, porém, as coisas estavam invertidas, pois aquelas garras assassinas haviam-se fechado com força em torno de sua garganta, enquanto o rosto engelhado se contorcia de fúria insana.
Gilman sentiu a corrente do crucifixo barato ferir-lhe o pescoço, e em seu perigo imaginou como a visão do objeto propriamente dito afetaria a maléfica criatura. A força da bruxa era verdadeiramente sobre-humana,
mas enquanto ela continuava a asfixiá-lo ele conseguiu meter a mão na camisa e tirou para fora o símbolo de metal, quebrando à corrente.
À vista do crucifixo, a feiticeira pareceu tomada de pânico, e seu aperto afrouxou o suficiente para dar a Gilman uma oportunidade de livrar-se inteiramente. Afastou as garras de aço de seu pescoço e teria
arrastado a bruxa pela borda do buraco se as garras não houvessem ganho força nova e se fechado novamente. Dessa vez ele resolveu responder na mesma moeda e suas próprias mãos atiraram-se à garganta da
criatura. Antes que ela percebesse o que ele fazia, Gilman já havia enlaçado o pescoço da megera com a corrente do crucifixo e daí a um momento retesara-o o suficiente para cortar o fôlego da velha. Durante
os estertores da bruxa, Gilman sentiu alguma coisa morder seu tornozelo e viu que o Parducho acorrera em auxílio da ama. Com um chute violento fez o monstrinho cair pelo buraco negro e ouviu-o lamuriar-se
em algum local distante.
Gilman não sabia se havia matado a feiticeira, mas deixou-a caída no chão, no lugar onde ela caíra. Então, ao virar-se, viu sobre a mesa uma coisa que quase partiu o último fio de sua razão. O Parducho,
resoluto e com quatro minúsculas mãos de demoníaca destreza, estivera ocupado enquanto a bruxa o estrangulava, e os esforços de Gilman tinham sido vãos. O que ele impedira que a faca fizesse no peito inocente,
as presas amarelas da blasfêmia peluda tinham feito a um pulso — e o vaso antes caído no chão se mostrava cheio, ao lado do corpinho sem vida.
Em seu delírio, Gilman ouviu o infernal cântico do sabá, chegando de uma distância infinita, e sabia que o negro estaria lá. Lembranças confusas misturavam-se com sua matemática, e ele acreditava que seu
subconsciente guardava os ângulos de que ele necessitava para orientar-se em sua volta ao mundo normal, pela primeira vez sozinho e sem ajuda. Tinha certeza de que se encontrava no sótão imemorialmente
fechado sobre seu próprio quarto, mas duvidava muito de que pudesse escapar através do assoalho inclinado. Além disso, porventura Uma fuga de um sótão de sonhos não o levaria meramente a uma casa de sonhos
— uma projeção anormal do verdadeiro lugar que ele procurava? Gilman estava inteiramente às tontas com a relação entre sonho e realidade em todas suas experiências.
A passagem através dos vagos abismos seria horripilante, pois o ritmo da noite de Valpúrgis estaria vibrando, e por fim ele teria de escutar aquela pulsação cósmica, até então velada, que temia mortalmente.
Já agora ele podia detectar uma sacudidura abafada e monstruosa cujo ritmo ele pressentia perfeitamente. Chegando o momento do sabá, aquela vibração crescia e alcançava os mundos a fim de chamar os iniciados
para ritos nefandos. Metade dos cânticos do sabá seguia aquela pulsação que nenhum ouvido de mortal podia suportar em sua velada plenitude espacial. Gilman imaginava também se podia confiar que seus instintos
o devolvessem à parte certa do espaço. Como podia ter certeza de que não iria ter naquela encosta iluminada de verde num planeta distante, na esplanada ladrilhada sobre a cidade de monstros ten- taculados
além da galáxia ou nos espiralados vórtices negros daquele vácuo supremo do Caos, onde reina Azathoth, o sultão-demônio sem mente?
Pouco antes de lançar-se de mergulho, a luz violeta se apagou, deixando-o num completo negrume. Isso deve ter assinalado a morte da bruxa — a velha Keziah — Nahab. E, misturado ao cântico distante do sabá
e com as lamúrias do Parducho no abismo, Gilman acreditou ouvir um outro lamento, ainda mais desvairado, que vinha de profundezas desconhecidas. Joe Mazurewicz... as preces contra o Caos Rastejante transformando-se
agora num uivo inexplicavelmente triunfante... mundos de sardônica realidade colidindo com torvelinhos de sonhos febricitantes... Iã! Shub-Niggurath! O Bode de Mil Filhos...
Encontraram Gilman no chão de sua velha mansarda angulosa muito antes de romper a madrugada, pois o grito terrível havia despertado imediatamente Desrochers, Choynski e Mazurewicz, e havia sacudido até
mesmo Elwood, que dormia profundamente em sua cadeira. Ele estava vivo, com os olhos muito abertos, mas parecia inconsciente. Havia em sua garganta marcas de mãos assassinas e em seu tornozelo esquerdo
via-se uma repulsiva mordida de rato. Suas roupas estavam muito amarrotadas, e o crucifixo de Joe desaparecera. Elwood tremia, temeroso de imaginar que nova forma teria tomado o sonambulismo do amigo.
Mazurewicz parecia semi- aturdido, devido a um "sinal" que, segundo ele, recebera em resposta às suas rezas, e persignou-se freneticamente quando ouviram o guincho e a lamúria de um rato na parede inclinada.
Depois de acomodarem Gilman em seu sofá no quarto de Elwood, mandaram buscar o Dr. Malkowski, um médico que não daria com a língua nos dentes a respeito de pormenores embaraçosos, e ele aplicou em Gilman
duas injeções hipodérmicas que o fizeram mergulhar numa sonolência mais natural. Durante o dia o paciente recuperou a consciência de vez em quando, e narrou a Elwood, desconexamente, seu novo sonho. Foi
um processo doloroso e logo de saída pôs a nu um fato novo e desconcertante.
Gilman, cujos ouvidos haviam ultimamente apresentado uma sensibilidade anormal, estava agora surdo como uma porta. Chamado novamente à toda pressa, o Dr. Malkowski disse a Elwood que ambos os tímpanos
estavam rompidos, como que em decorrência do impacto de um som estupendo, de intensidade superior à concepção ou à tolerância humanas. O que o bom médico não podia informar era como tal som poderia ter
sido escutado nas últimas horas sem despertar todo o vale do Miskatonic.
Elwood escreveu parte de seu colóquio em papel, de modo que se manteve um nível de comunicação relativamente fácil. Nenhum dos dois era capaz de perceber um sentido no episódio, e decidiram que o melhor
a fazer seria pensarem o menos possível naquilo. No entanto, ambos concordaram que deveriam deixar aquela casa antiga e amaldiçoada o mais depressa que lhes fosse possível. Os vespertinos falaram de um
ataque da polícia a alguns curiosos notívagos numa ravina que ficava além de Meadow Hill, pouco antes da madrugada, e mencionaram que a pedra branca era objeto de antigas- superstições. Ninguém havia sido
detido, mas entre os fugitivos fora visto um enorme negro. Numa outra coluna, um jornal informava que não se sabia do paradeiro do pequeno Ladislas Wolejko.
O horror dos horrores aconteceu naquela mesma noite. Elwood nunca o esquecerá, e ele foi obrigado a abandonar o colégio pelo resto do período letivo, devido a um colapso nervoso. Julgara ter ouvido o barulho
de ratos na parede durante toda a noite, mas não lhe deu maior atenção. Mais tarde, bem depois de ele e Gilman se haverem recolhido, começou o uivo atroz. Elwood saltou da cama, acendeu as luzes e correu
para o sofá onde dormia o amigo. Gilman estava emitindo sons de natureza verdadeiramente inumana, como se afligido por um tormento indescritível. Contorcia-se sob as cobertas, e em seus cobertores começava
a surgir uma grande mancha vermelha.
Elwood não ousou tocar nele, mas aos poucos os gritos e as contorções diminuíram. A essa altura, Dombrowski, Choynskí, Desrochers, Mazurewicz e o outro inquilino do andar superior acotovelavam-se à porta,
e o senhorio já pedira à sua mulher que telefonasse para o Dr. Malkowski. Todos gritaram quando um animal, semelhante a um rato colossal, saltou dos lençóis ensanguentados e atravessou o assoalho correndo,
entrando por um buraco recém-aberto na parede. Quando o médico chegou e começou a afastar aquelas cobertas rubras, Walter Gilman estava morto.
Seria absurdo fazermos algo mais que conjecturar sobre o que matou Gilman. Seu corpo estava praticamente atravessado por um túnel — alguma coisa lhe devorara o coração. Dombrowski, tomado de nervosismo
pelo fracasso de seus esforços para matar os ratos, deixou de lado qualquer preocupação com seu contrato de locação e dentro de uma semana havia-se mudado com todos os antigos inquilinos para uma casa
lúgubre, porém menos antiga, na rua das Castanheiras. Durante algum tempo, o mais difícil foi fazer Joe Mazurewicz calar-se, pois o supersticioso consertador de teares nunca permanecia sóbrio e não cessava
de resmungar lamúrias a respeito de coisas terríveis e espectrais.
Ao que consta, naquela última noite, a mais medonha, Joe havia-se abaixado para examinar as escarlates pegadas de rato que iam desde o sofá de Gilmn até o buraco na parede. Sobre o tapete eram muito indistintas,
mas havia um pedaço de assoalho nu entre a borda do tapete e o rodapé. Naquele lugar, Mazurewicz havia encontrado uma coisa monstruosa... ou julgou encontrá-la, pois ninguém mais foi capaz de concordar
inteiramente com ele, a despeito da inegável singularidade das marcas. As impressões deixadas no assoalho eram, indubitavelmente, muito diferentes das pegadas comuns de um rato, mas nem mesmo Choynski
e Desrochers se dispuseram a admitir que se assemelhavam às marcas de quatro minúsculas mãos humanas.
A casa nunca mais foi alugada. Assim que Dombrowski mudou-se, começou a cair sobre ela a mortalha da desolação final, pois as pessoas a evitavam, tanto por causa de sua velha reputação quanto devido ao
novo odor fétido. Talvez o raticida espalhado pelo ex-senhorio houvesse exercido efeito afinal, pois pouco tempo depois de sua mudança, a casa transformou-se num incômodo público. As autoridades sanitárias
determinaram que o mau-cheiro provinha dos espaços fechados que ficavam em cima e ao lado da mansarda de leste e concordaram que o número de ratos mortos devia ser enorme. Decidiram, contudo, que não valia
a pena abrirem e desinfetarem aqueles espaços fechados havia um século, pois o fedor em breve desapareceria e a cidade não incentivava elevados padrões de saneamento. Na verdade, sempre se falara na cidade
a respeito de fedores inexplicados no alto da Casa das Bruxas, logo depois da noite de Valpúrgis e do Dia de Todos os Santos. Os vizinhos mostraram-se complacentes com a inércia mas, não obstante, o fedor
passou a representar mais um motivo de má vontade com a casa. Por fim, o casarão foi condenado pelo inspetor habitacional.
Os sonhos de Gilman e os elementos que o compunham jamais foram explicados. Elwood, cujas ideias a respeito de todo o episódio são às vezes quase enlouquecedoras, voltou aos estudos no outono seguinte
e formou-se em junho. Ao regressar à cidade, verificou que o falatório a respeito de ocultismos havia diminuído bastante, e o fato é que — a despeito de certos relatos de risos fantasmagóricos no casarão
abandonado que perduraram quase quanto ele próprio — ninguém se referiu a nova aparições da Velha Keziah ou do Parducho desde a morte de Gilman. De certa forma, foi bom que Elwood não estivesse em Arkham
no fim daquele ano, quando certos acontecimentos renovaram repentinamente o disse-me-disse sobre horrores ancestrais. É claro que mais tarde ele ouviu falar do assunto e veio a sofrer indizíveis tormentos,
acarretados por suas negras e perplexas conjecturas; ainda assim, pior teria sido estar na cidade ou ser testemunha de novas visões.
Em março de 1931, um vendaval destruiu o telhado e a grande chaminé da abandonada Casa das Bruxas, fazendo com que um caos de tijolos, ripas enegrecidas e musgosas, e tábuas e vigas podres caídas na água-furtada
e quebrasse o assoalho. Todo o andar do sótão ficou atulhado de escombros, mas ninguém se deu ao trabalho de examinar aquilo, diante da inevitável demolição da estrutura decrépita. O último ato da história
deu-se no mês de dezembro seguinte, quando o antigo quarto de Gilman foi limpado por operários relutantes é apreensivos e o falatório começou.
Em meio aos destroços que tinham caído através do antigo forro inclinado havia várias coisas que fizeram os trabalhadores chamar a polícia. Mais tarde esta, por sua vez, chamou o legista e diversos professores
da universidade. Havia ossos, muito esmagados e lascados, mas claramente identificáveis como humanos, cuja data manifestamente moderna conflitava enigmaticamente como o período remoto em que seu único
esconderijo possível, o baixo sótão de assoalho inclinado, teria sido vedado a todo acesso humano. O legista concluiu que alguns pertenciam a uma criança pequena, enquanto outros (que haviam sido encontrados
de mistura com trapos de um apodrecido tecido marrom) seriam de uma mulher de pequeno porte e muito idosa. Uma triagem cuidadosa dos destroços revelou também muitos pequenos ossos de ratos esmagados pelo
desabamento, assim como ossos mais antigos de ratos roídos por pequenas presas de uma maneira que nunca deixou de gerar controvérsia e reflexões.
Entre outros objetos ali encontrados havia fragmentos estraçalhados de muitos livros e papéis, juntamente com uma poeira amarelada deixada pela desintegração total de livros e papéis ainda mais antigos.
Todos, sem exceção, pareciam tratar de magia negra em suas formas mais requintadas e horrendas; e a data evidentemente recente de alguns deles constitui um mistério tão insolúvel quanto o dos ossos humanos
recentes. Mistério maior ainda é a absoluta homogeneidade da caligrafia ininteligível e arcaica encontrada numa grande variedade de papéis cujo estado e cujas marcas-d’agua indicam diferenças de idade
de pelo menos cento e cinquenta a duzentos anos. Para alguns, entretanto, o maior mistério é a variedade de objetos inteiramente inexplicáveis — objetos cujas formas, materiais, estilos e finalidade desafiam
qualquer conjectura —, que foram encontrados entre os destroços em vários graus de danificação. Uma dessas coisas, que agitou profundamente diversos professores da universidade, é uma monstruosidade muito
danificada que se assemelha claramente à estranha estatueta que Gilman doou ao museu da universidade. A única diferença é que ela é grande, esculpida em uma curiosa pedra azulada, e não em metal, e está
engastada num pedestal de ângulos singulares, com hieróglifos indecifráveis.
Arqueólogos e antropólogos tentam ainda deslindar os desenhos extravagantes gravados num vaso esmagado, de metal leve, cuja parte interna mostrava suspeitas manchas castanhas quando foi encontrado. Estrangeiros
e comadres crédulas falam também sem parar sobre o moderno crucifixo niquelado, com a corrente partida, que estava entre os escombros e que foi tremulamente identificado por Joe Mazurewicz como sendo o
mesmo que ele dera ao infeliz Gilman muitos anos antes. Há quem creia que esse crucifixo tenha sido levado para o sótão fechado por ratos, ao passo que para outros ele deveria estar no chão, em algum canto
do velho quarto de Gilman, na época. Ainda outros, entre os quais o próprio Joe, defendem teorias absurdas e fantásticas demais para serem levadas a sério.
Quando a parede inclinada do quarto de Gilman foi demolida, constatou-se que o espaço triangular, outrora fechado, entre aquela divisória e a parede norte da casa continha muito menos destroços, mesmo
em proporção a seu tamanho, que o próprio quarto. No entanto, ele continha uma horrível camada de materiais mais antigos que horrorizou os trabalhadores. Em suma, o chão era um verdadeiro depósito de ossos
de crianças pequenas — alguns bastante recentes, outros remontando, em gradações infinitas, a um período tão remoto que estavam quase pulverizados. Sobre essa espessa camada de ossos descansava uma faca
de bom tamanho, de óbvia antiguidade, e com decoração grotesca, rica e exótica.
No meio dessas coisas, metido entre uma tábua caída e um aglomerado de tijolos de cimento da chaminé em ruínas, estava um objeto destinado a causar mais perplexidade, pânico e medos supersticiosos em Arkham
que qualquer outra coisa descoberta naquele casarão maldito. Era o esqueleto parcialmente esmagado de um enorme rato, cujas anormalidades ainda constitui assunto de debates e fonte de singular reticência
entre os membros do departamento de anatomia comparada da universidade Miskatonic. O público tomou conhecimento de pouquíssimas coisas a respeito desse esqueleto, porém os operários que o acharam ainda
falam em sussurros medrosos sobre os pêlos longos e castanhos com os quais ele ficou associado.
Os ossos de suas pequeninas patas, dizem, implicam características preênseis que são mais de um macaquinho que de um rato, enquanto que o minúsculo crânio, dotado de cruéis presas amarelas, representa
uma anomalia inigualada; visto de certos ângulos, lembra uma paródia, monstruosamente degradada, de um pequeno crânio humano. Os operários persignaram-se ao darem com essa blasfêmia, porém mais tarde acenderam
velas na igreja de S. Estanislau, gratos pela certeza de que nunca mais voltariam a ouvir certos risos estridentes e espectrais.
O Depoimento de Randolph Carter
Repito-vos, cavalheiros, que vosso interrogatório é inútil. Detende-me aqui para sempre, se quiserdes; prendei-me ou executai-me se tendes necessidade de uma vítima para propiciar a ilusão a que chamais
justiça. Não posso porém, dizer mais do que já disse. Contei-vos, com toda a sinceridade, tudo de que me lembro. Nada foi distorcido ou escamoteado, e se alguma coisa permanecer vaga, é apenas devido à
nuvem escura que caiu sobre meu espírito — essa nuvem e a natureza nebulosa dos horrores que a fizeram abater-se sobre mim.
Digo mais uma vez: não sei do que foi feito de Harley Warren, embora pense — quase rezo para isso — que ele está em oblívio pacífico, se é que existe, em algum lugar, coisa tão bem aventurada. É verdade
que por cinco anos fui seu melhor amigo e que, em parte compartilhei de suas terríveis pesquisas sobre o desconhecido. Não negarei, conquanto minha memória esteja insegura e vaga, que essa vossa testemunha
nos possa ter visto juntos, na estrada de Gainsville, caminhando na direção do Pântano do Cipreste Grande às onze e meia daquela noite tenebrosa. Que levávamos lanternas elétricas, pás e um curioso rolo
de fio, a que se prendiam certos instrumentos, eu mesmo me disponho a afirmar, pois todas essas coisas desempenharam um papel importante naquela cena hedionda que continua gravada à fogo em minha memória
abalada. Mas com relação ao que se seguiu e ao motivo pelo qual fui encontrado sozinho e aturdido na margem do pântano, na manhã seguinte, devo insistir em que nada sei, salvo o que já vos narrei repetidamente.
Dizei-me que nada existe no pântano ou em suas proximidades que pudesse constituir o cenário daquele episódio aterrador. Respondo que que eu nada sabia além do que vi. Visão ou pesadelo, pode ter sido
— e visão ou pesadelo espero desesperadamente que tenha sido — mas, no entanto, é tudo o quanto minha mente retém do que ocorreu naquelas horas chocantes depois que saímos da vista dos homens. E por que
Harley Warren não voltou, somente ele ou seu espectro — ou alguma coisa inominável que não sei descrever — poderão dizer.
Como já tive ocasião de afirmar, eu conhecia bem, e de certa forma dividia, os estudos fantásticos de Harley Warren. De sua vasta coleção de livros estranhos e raros sobre temas interditos, li todos os
escritos nas línguas que domino, contudo esses são poucos em comparação aos escritos em idiomas que desconheço. Na maioria, acredito, são em árabe; e o compêndio de demoníaca inspiração que acarretou a
tragédia — o livro que levava no bolso ao abandonar o mundo — estava escrito em caracteres que jamais vi em parte alguma. Warren jamais se dispôs a me dizer o que havia naquele livro. Quanto à natureza
de nossos estudos… precisarei repetir ainda uma vez que já não conservo deles plena compreensão? Parece-me até misericordioso que seja assim, pois eram estudos terríveis, que eu levava a cabo mais por
relutante fascinação que por inclinação verdadeira. Warren sempre me dominou e às vezes eu o temia. Lembro-me como estremeci ante sua expressão facial na noite anterior ao fato hediondo, enquanto ele falava
sem cessar de sua teoria — por que certos cadáveres nunca se decompõem mas permanecem Íntegros em suas tumbas por mil anos. No entanto, já não o temo mais, pois suspeito que ele conheceu horrores além
do meu alcance. Agora temo por ele.
Mais uma vez repito: não tenho nenhuma lembrança clara de nosso intuito naquela noite. Decerto teria muito a ver com o livro que Warren levava consigo — aquele livro antigo, num alfabeto indecifrável e
que lhe chegara da índia um mês antes — mas juro que não sei o que esperávamos encontrar. Vossa testemunha declara que nos viu às onze e meia na estrada de Gainsville, seguindo na direção do Pântano do
Cipreste Grande. É provável que isso seja verdade, mas não me lembro com nitidez. A imagem cauterizada em minha alma é apenas de uma cena, e deve ter sido bem depois da meia noite, pois via-se uma pálida
lua crescente no céu vaporoso.
O lugar era um cemitério antigo. Tão antigo que eu me sobressaltava ante os inúmeros indícios de anos imemoriais. Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e curiosas ervas rasteiras,
envolvido por um vago fedor que minha fantasia ociosa associava absurdamente a pedras putrefatas. Por toda parte havia sinais de abandono e decrepitude e eu parecia perseguido pela ideia de Warren: ele
e eu éramos as primeiras criaturas vivas a invadir um silêncio letal de séculos. Sobre a borda do vale, uma lua crescente, lânguida e enlanguescente, espreitava através dos vapores repulsivos que pareciam
emanar de catacumbas ignotas, e seus raios débeis e bruxuleantes faziam-me discernir um aglomerado repelente de lápides, urnas, cenotáfios e mausoléus, todos esboroantes, cobertos de musgo e manchados
de umidade, e em parte ocultos pela luxuriância obscena da vegetação insalubre.
A primeira impressão vivida que tenho de minha própria presença nessa necrópole terrível refere-se ao ato de deter-me com Warren diante de um certo sepulcro semi- obliterado e de arrojar em seu interior
certos fardos que, aparentemente estivéramos carregando. Notei então que trazia comigo uma lanterna elétrica e duas pás, ao passo que meu companheiro portava uma lanterna semelhante e um aparelho telefônico
portátil. Não se disse qualquer palavra, pois o local e a missão pareciam-nos conhecidos. E sem delongas tomamos das pás e começamos a afastar as ervas, a grama e a terra da cova rasa e arcaica. Após expormos
toda a sua superfície, que consistia em três imensas lajes de granito, recuamos alguns passos para examinar o ossuário. Warren parecia estar fazendo alguns cálculos mentais. Depois voltou ao sepulcro e,
usando a pá como alavanca, tentou erguer a laje que ficava mais próxima de uma ruína de pedra e que pode ter sido outrora um monumento. Não conseguindo seu intento, fez um gesto para que eu o auxiliasse.
Por fim, nossos esforços combinados fizeram com que a pedra se soltasse. Levantamo-la e a arredamos do lugar.
Com a remoção da laje, ficou à vista uma abertura negra, da qual irrompeu um efluxo de gases miasmáticos, tão nauseantes que saltamos para trás, tomados de horror. Após um intervalo, entretanto, aproximamo-nos
novamente da cova e achamos as exalações menos intoleráveis. Nossas lanternas revelaram o alto de um lance de degraus, dos quais gotejava um licor repugnante e que eram delimitados por paredes úmidas recobertas
de bolor. E agora, pela primeira vez minha memória registra emissão de palavras. Warran falava-me longamente, em sua cálida voz de tenor, uma voz singularmente incólume ao ambiente lúgubre.
“Peço perdão por pedir-te que permaneças na superfície”, disse ele, “mas seria criminoso permitir que alguém de nervos tão frágeis descesse até lá. Não podes imaginar, mesmo pelo que leste e pelo que eu
te disse, as coisas que terei de ver e de fazer. Trata-se de um trabalho diabólico, Carter, e duvido que algum homem que não tenha a sensibilidade empedernida pudesse ver aquelas coisas e voltar vivo e
são. Não é desejo ofender-te e Deus sabe o quanto eu gostaria de levar-te comigo. Mas de certa forma a responsabilidade é minha e eu não seria capaz de arrastar um feixe de nervos como tu à morte ou à
loucura quase certa. Digo-te, não podes imaginar o que seja realmente a coisa! Mas prometo manter-te informado de cada passo meu pelo telefone — vês que disponho de fio suficiente para chegar ao centro
da terra e voltar!”
Ainda ressoam em minha memória essas palavras, pronunciadas tranquilamente. E ainda me recordo de meus protestos. Eu parecia desesperadamente ansioso por acompanhar meu amigo para aquelas profundezas sepulcrais,
mas ele se mostrava de uma obstinação inflexível. A certo momento, ameaçou abandonar a expedição caso eu insistisse. A ameaça tinha peso, pois só ele possuía a chave do que procurávamos. De tudo isso ainda
me lembro, muito embora já não saiba que espécie de coisa buscávamos. Depois de haver obtido minha relutante aquiescência a seu plano, Warren pegou o rolo de fio e ajustou seus instrumentos. A um gesto
seu, peguei um destes e sentei-me numa lápide vetusta e descolorida, junto da abertura recém-exposta. Depois ele apertou-me a mão, sobraçou o rolo de fio e desapareceu naquele indescritível ossuário.
Durante um minuto ainda percebi o brilho da lanterna e escutei o roçagar do fio, enquanto Warren o estendia pelo chão; mas o brilho da luz sumiu repentinamente, como se ele houvesse dobrado uma esquina
na escada de pedra e quase ao mesmo tempo o som cessou igualmente. Eu estava só, porém ligado às profundezas desconhecidas por aqueles cordéis mágicos cuja superfície isolada verdejava sobre os raios esforçados
do exangue quarto-crescente.
A cada momento eu consultava o relógio, à luz da lanterna elétrica e, tomado de ansiedade febril, procurava ouvir alguma coisa no receptor do telefone. Entretanto, durante mais de um quarto de hora nada
ouvi. Então o instrumento emitiu um estalido e eu chamei meu amigo com voz tensa. Por apreensivo que me sentisse, eu não estava preparado entretanto para as palavras que subiram daquela cova hedionda,
em tons mais alarmados e hesitantes do que eu já havia escutado de Harley Warren. Ele, que se despedira de mim com tamanha calma havia pouco, agora me chamava lá de baixo num sussurro titubeante, mais
pressago que um grito sonoríssimo:
“Meu Deus! Se pudesse ver o que estou vendo!”
Não pude Responder. Mudo, só fiz esperar. Ouvi novamente as palavras agitadas:
Carter, é terrível… monstruoso… inacreditável!”
Dessa vez a voz não me faltou e despejei no aparelho um jorro de indagações excitadas. Aterrorizado, não cessava de repetir: ”Warren, o que foi? O que foi?”
Mais uma vez escutei a voz de meu amigo, ainda repassada de medo e agora aparentemente impregnada de desespero:
“Não posso dizer-te, Carter! É demasiado incrível… não ouso contar… nenhum homem poderia saber e sobreviver… Santo Deus! Jamais sonhei com isso!”
Voltou o silêncio, apenas quebrado pela torrente de perguntas sobressaltadas que eu fazia. Ouvi então novamente a voz de Warren, num tom de delirante consternação:
“Carter! Pelo amor de Deus, repõe a Laje no lugar e sai disso se puderes! Deixa tudo mais e corre… é tua última oportunidade! Faz o que eu digo e não peça explicações!”
Eu escutava, mas só conseguia repetir minhas perguntas frenéticas. Em meu redor estavam as tumbas, a escuridão e as sombras; abaixo de mim, algum perigo que sobrepujava o alcance da imaginação humana.
Mas meu amigo corria mais perigo que eu e sobre meu medo passou um vago ressentimento de que ele me julgasse capaz de abandoná-lo em tal situação. Novos estalidos e após uma pausa, ouvi o grito angustiado
de Carter:
“Te manda! Pelo amor de Deus, põe a laje no lugar e te manda, Carter!”
Alguma coisa na gíria juvenil de meu companheiro, evidentemente transtornado, liberou minhas faculdades. Formei e gritei uma resolução, “Warren, aguenta! Vou descer!” No entanto, diante dessa proposta
o tom de meu interlocutor transformou-se num grito de completo desespero:
“Não! Não compreendes! É tarde demais… e por minha própria culpa. Põe a laje no lugar e corre… não há mais nada que tu ou outra pessoa possa fazer!”
Seu tom de voz mudou novamente, adquirindo dessa vez mais suavidade, como que traduzindo resignação sem esperança. Contudo, para mim ele permanecia tenso de ansiedade.
“Depressa… antes que seja tarde demais!”
Tentei não lhe dar ouvidos. Tentei quebrar a paralisia que me detinha e cumprir minhas promessa de descer para ajudá-lo. Seu próximo murmúrio, todavia, ainda me encontrou inerte, preso de puro horror.
“Carter… corre! Não adianta… tens de ir… antes um que dois… a laje…”
Uma pausa, mais estalidos, e depois a voz débil de Warren:
“Quase acabado agora… não dificultes ainda mais… cobre esses degraus malditos e foge para salvar a vida… estás perdendo tempo… adeus, Carter… não voltarei a ver-te.”
Nesse ponto, o murmúrio de Warren converteu-se em grito, um grito que aos poucos se transmudou em uivo, carregado de todo o horror das eras…
“Malditas coisas infernais… legiões… meu Deus! Te manda! Te manda! TE MANDA!”
“Depois disso, caiu o silêncio. Ignoro por quantos éons permaneci sentado ali, estupefato. Sussurrando, murmurando, gritando, berrando naquele telefone. Vezes sem conta, no transcurso daqueles éons, sussurrei,
murmurei, chamei, gritei e berrei “Warrren! Warren; Responde… estás aí?
Foi então que sobreveio o cúmulo do horror… a coisa inacreditável, inimaginável, quase impronunciável. Já disse que foi como se passassem éons depois de Warren emitir sua derradeira advertência desesperada,
e que apenas meus gritos quebravam agora o silêncio horrífico. Contudo depois de algum tempo houve um novo estalido no telefone e eu apurei os ouvidos. Mais uma vez chamei: “Warren estás aí?, e como resposta
ouvi aquilo que lançou essa nuvem sobre minha alma. Não tento, senhores, explicar aquilo… aquela voz… nem posso abalançar-me a descrevê-la em minúcia, uma vez que as palavras iniciais roubaram minha consciência
e criaram um vazio mental que se estende ao momento em que despertei no Hospital. Direi que a voz era profunda? Cava? Gelatinosa? Remota? Sobrenatural? Inumana? Desencarnada? Que direi? Ela marcou o fim
de minha experiência e é o fim de minha história. Eu a escutei, e de nada mais tomei conhecimento… escutei-a enquanto permanecia sentado, petrificado naquele cemitério desconhecido do vale, em meio às
pedras carcomidas e aos túmulos em ruínas, junto à vegetação pútrida e aos vapores miasmáticos… escutei-a subindo das profundezas mais absconsas daquele maldito sepulcro aberto, enquanto assistia à dança
de sombras amorfas, necrófagas, à luz mortiça de uma lua exangue.
E o que ela disse foi:
“Idiota, Warren está MORTO!”

 

 

                                                                  H. P. Lovecraft

 

 

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