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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Casa das Vestais / Steven Saylor
A Casa das Vestais / Steven Saylor

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Casa das Vestais

 

A Morte Anda de Máscara

Eco disse eu, estás a dizer-me que nunca viste uma peça de teatro?

Ele ergueu para mim os seus grandes olhos castanhos e abanou a cabeça.

Nunca te riste das discussões dos escravos de cozinha? Nunca desfaleceste ao ver a jovem heroína ser raptada por piratas? Nunca ficaste deliciado ao saber que o nosso herói é o herdeiro secreto de uma enorme fortuna?

Os olhos de Eco ficaram ainda maiores, e ele abanou a cabeça com mais vigor.

Então temos de tratar disso, hoje mesmo! disse eu. Estávamos nos Idos de Setembro, e dia mais belo de Outono não

tinham os deuses jamais concebido. O Sol quente brilhava sobre as ruas estreitas e as fontes gorgolejantes de Roma; subia do Tibre uma brisa ligeira, que refrescava as sete colinas; o céu era uma taça do mais puro azul, sem uma única nuvem. Estávamos no décimo segundo dos dezasseis dias reservados anualmente ao Festival Romano, a mais antiga festividade pública da cidade. Talvez o próprio Júpiter tivesse decretado um tempo tão perfeito, já que as festas eram em sua honra.

Para Eco, tinham sido uma orgia interminável de descobertas. Assistira à sua primeira corrida de carros de cavalos no Circo Máximo, observara os lutadores nas praças públicas, tinha comido a sua primeira salsicha de miolos de vitela com amêndoas, comprada a um vendedor ambulante. A corrida excitara-o, principalmente porque tinha achado que os cavalos eram lindíssimos; os pugilistas tinham-no entediado, porque já assistira a muitas rixas em público; e a salsicha não lhe tinha caído bem (ou talvez tivesse sido das maçãs verdes apimentadas com que se empanturrou depois).

Tinham passado quatro meses desde a altura em que eu salvara Eco de um bando de rapazes que o perseguiam com paus e troças numa viela da Subura. Conhecia um pouco da sua história: tínhamo-nos encontrado durante uma investigação de que Cícero me encarregara na Primavera anterior. Aparentemente, a sua mãe, viúva e desesperada, tinha decidido abandonar o jovem Eco à sua sorte. Que outra coisa podia eu fazer, senão levá-lo para minha casa?

Ele parecia-me extremamente inteligente, para um miúdo de dez anos. Sabia que tinha dez anos porque, sempre que lhe perguntavam, punha dez dedos no ar. Eco ouvia (e fazia, contas de somar) na perfeição, embora não falasse.

A princípio, a sua mudez era uma dificuldade enorme para nós dois. (Ele não tinha nascido mudo, ficara assim em consequência da mesma febre que roubara a vida a seu pai.) Eco é um imitador dotado, disso não há dúvida, mas há um limite para aquilo que os gestos conseguem transmitir. Alguém lhe tinha ensinado as letras, mas ele só sabia ler e escrever palavras muito simples. Eu próprio tinha começado a ensiná-lo, mas a tarefa era dificultada pela sua mudez.

O seu conhecimento prático das ruas de Roma era profundo, mas restrito. Conhecia as entradas das traseiras de todas as lojas da Subura, e os locais para onde os vendedores de peixe e carne da zona do Tibre despejavam os restos ao final do dia. Mas nunca tinha ido ao Fórum nem ao Circo Máximo, nunca tinha ouvido um político pronunciar um discurso (felizardo!), nem assistido a um espectáculo de teatro. Nesse Verão, eu passara muitas horas a mostrar-lhe a cidade, redescobrindo as suas maravilhas pelos olhos muito abertos de um rapazinho de dez anos.

E foi assim que, no décimo segundo dia do Festival Romano, ao ouvir um pregoeiro anunciar pelas ruas que o espectáculo da companhia de Quinto Róscio começaria dentro de uma hora, eu decidi que não podíamos perdê-lo.

Ah, a companhia de Róscio, o Comediante! disse eu. Os magistrados encarregados do festival não se pouparam a despesas. Hoje em dia, não há actor mais famoso que Quinto Róscio, nem grupo de teatro mais conhecido que o seu!
Descemos a Subura até ao Fórum, onde as multidões em festa se amontoavam nas praças ao ar livre. Tinha sido construído um teatro provisório entre o Templo de Júpiter e as Termas Senianas. Diante de um palco de madeira, erguido no estreito espaço que ficava entre as paredes de tijolo, haviam sido colocadas filas de assentos.

Um dia observei eu, um político populista há-de construir o primeiro teatro permanente de Roma. Imagina, um teatro a sério, ao estilo grego, robusto como um templo! Os moralistas antiquados vão ficar escandalizados odeiam o teatro porque veio da Grécia, e acham que as coisas gregas são decadentes e perigosas. Ah, chegámos cedo vamos conseguir bons lugares.

O arrumador conduziu-nos a um lugar na coxia, na quinta fila a contar do palco. Um cordão de tecido roxo separava as primeiras quatro filas, reservadas à classe senatorial. De vez em quando, o arrumador passava por nós, seguido de um magistrado de toga com os respectivos acompanhantes, e afastava a corda roxa para lhes dar passagem.

Enquanto o teatro se ia enchendo lentamente, eu chamava a atenção de Eco para os pormenores do palco. Diante da primeira fila, havia um pequeno espaço livre, a orquestra, onde tocariam os músicos; três degraus de cada lado conduziam ao palco propriamente dito. Atrás do palco, e encerrando-o de ambos os lados, havia um tabique de madeira, com uma porta dobrável a meio, e mais duas portas, uma para os bastidores do lado direito, outra para os bastidores do lado esquerdo. Era por elas que os actores entravam e saíam. De trás do palco, chegavam-nos os ruídos dos músicos a aquecer as flautas, tocando fragmentos de toadas conhecidas.

Gordiano!

Voltei-me e vi uma figura alta e esguia, debruçada sobre nós.

Estatílio! exclamei. Que gosto em ver-te.

Igualmente. Mas quem é este? Despenteou a cabeleira castanha de Eco com os dedos compridos.

É Eco disse eu.

Um sobrinho perdido?

Não é bem.

Ah, uma indiscrição do passado? Estatílio ergueu uma sobrancelha.
Também não. Corei. E, contudo, subitamente, pensei como me sentiria se dissesse: Sim, é o meu filho. Não era a primeira vez que me ocorria a hipótese de adoptar Eco legalmente e tratava de banir a ideia do pensamento com igual rapidez. Um homem como eu, que corre frequente risco de vida, não tem nada que se meter a ser pai; era o que eu dizia a mim próprio. Se realmente quisesse ter filhos, há muito que podia ter-me casado com uma mulher romana e fundado uma família. Mudei rapidamente de assunto.

Estatílio, onde está o teu fato e a tua máscara? Então não estás nos bastidores, a preparar-te? Eu conhecia Estatílio desde a infância; ele tinha-se tornado actor na juventude, juntando-se a sucessivas companhias, sempre em busca da formação que só os comediantes profissionais proporcionam. O grande Róscio tinha-o contratado um ano antes.

Oh, tenho muito tempo para me preparar.

E que tal é a vida na companhia do maior actor de Roma?

Maravilhosa, claro!

Franzi o sobrolho à entoação de falsa bravata que detectei na sua voz.

Ah, Gordiano, nunca consegui ter segredos para ti. Não, não é maravilhosa, é horrível! Róscio é um monstro! Brilhante, é certo, mas um animal! Se eu fosse escravo, tinha o corpo coberto de nódoas negras. Em vez disso, chicoteia-me com a língua. É um verdadeiro capataz! O homem é implacável, nunca está satisfeito. Faz com que um homem se sinta um verme. As galeras ou as minas não podiam ser piores. Terei culpa de já não ter idade para fazer papéis de heroínas, e de ainda não ter a voz adequada a papéis de velho avarento ou soldado fanfarrão? Ah, talvez Róscio tenha razão. Sou um inútil, sem talento nenhum, uma fonte de vergonha para toda a companhia.

Os actores são todos iguais murmurei a Eco. Precisam de mais mimo que um bebé. Depois respondi a Estatílio: Que disparate! Vi-te na Primavera, no Festival da Grande Mãe, quando Róscio encenou Os Dois Meneemos. Foste brilhante no papel dos gémeos.

Achaste mesmo?

Juro que sim. Ri-me tanto, que quase caía do assento. Ele animou-se um pouco, depois franziu o sobrolho.

Quem me dera que Róscio fosse da mesma opinião. Hoje, estava convencido de que ia fazer de Euclião, o velho sovina...
Ah, quer dizer que vamos ver A Comédia da Marmita?

Vão.

É uma das minhas peças preferidas, Eco. Deve ser mesmo a comédia mais divertida de Flauto. Grosseira, mas convincente...

 

Eu ia fazer Euclião disse Estatílio com alguma brusquidão, reorientando a conversa para si próprio, e esta manhã, de repente, Róscio explode numa fúria, e diz-me que eu interpretei o papel todo ao contrário, e que não está disposto a passar pela humilhação de me ver dar cabo dele diante de Roma inteira. Por isso, deu-me o papel de Megadoro, o vizinho do lado.

Outro papel excelente disse eu, tentando recordar-me do que se tratava.

Bah! E quem fica com o sumarento papel de Euclião? Aquele parasita do Panurgo um mero escravo, com o ritmo cómico de uma lesma! Subitamente, tornou-se rígido. Oh, não, o que é isto?

Segui a direcção do seu olhar até à coxia externa, onde o arrumador conduzia um homem corpulento, de barba, em direcção à parte da frente do teatro. Atrás dele, seguia um gigante louro com uma cicatriz a meio da cara: o guarda-costas do homem da barba; sei reconhecer um rufia da Subura contratado quando o vejo à minha frente. O arrumador conduziu-os até à extremidade da nossa bancada; eles avançaram, dirigindo-se aos lugares vagos ao lado de Eco.

Estatílio acocorou-se para se esconder, e gemeu baixinho:

Como se já não tivesse suficientes coisas com que me preocupar é Flávio, aquele tipo horrível que empresta dinheiro, com um dos seus rufias. O único homem de Roma mais monstruoso do que Róscio.

E quanto é que tu deves a esse Flávio? comecei eu a dizer, quando de repente uma voz proveniente dos bastidores se ergueu a rugir acima do som discordante das flautas.

Imbecil! Incompetente! Não me venhas dizer a esta hora que não te lembras do texto!

Róscio murmurou Estatílio, a berrar com Panurgo, presumo. O homem tem um feitio horrível.

A porta central do palco abriu-se, dando passagem a um homem baixo e entroncado, já com as vestes de cena, uma esplêndida capa de um sumptuoso tecido branco. A sua cara, carrancuda e cheia de rugas, era do género de encher de terror a alma de qualquer subordinado; e contudo, este era universalmente considerado o homem mais cómico de Roma. O seu lendário franzir de sobrancelhas tornava-lhe os olhos quase invisíveis; porém, quando se voltou para nós, tive a sensação de que nos tinham atirado um punhal, que me tinha passado a rasar a orelha, e atingido Estatílio no coração.

E tu? berrou. Onde é que tens estado? Imediatamente para os bastidores! Não, não te incomodes a dar a volta imediatamente para os bastidores! Dava ordens como se estivesse a falar com um cão.

Estatílio subiu a coxia a grande velocidade, saltou para o palco e desapareceu nos bastidores, fechando a porta atrás de si não sem antes lançar um olhar furtivo ao recém-chegado, que acabava de se sentar ao lado de Eco. Voltei-me e olhei para Flávio, o homem que emprestava dinheiro, que correspondeu à minha curiosidade de sobrolho franzido. Não parecia estar com disposição para assistir a uma comédia.

Pigarreei.

Hoje, vamos ver A Comédia da Marmita comentei simpaticamente, inclinando-me para os recém-chegados pela frente de Eco. Flávio teve um sobressalto e franziu as espessas sobrancelhas. É uma das melhores peças de Flauto, não te parece?

Flávio descerrou os lábios e espreitou na minha direcção com ar desconfiado. O guarda-costas louro olhou-me com uma expressão de supina estupidez.

Encolhi os ombros e desviei a minha atenção para outro lado.

Na praça atrás de nós, o pregoeiro fazia o derradeiro anúncio. Os lugares enchiam-se rapidamente. Os recém-chegados e os escravos amontoavam-se como podiam, encostando-se uns aos outros, em bicos de pés. Dois músicos entraram no palco e desceram para a orquestra, onde começaram a tocar as compridas flautas.

Ao soarem as notas do tema do sovina Euclião, a primeira indicação de que a peça estava prestes a começar, um murmúrio de reconhecimento percorreu a multidão. Entretanto, o arrumador e o pregoeiro subiam e desciam as coxias, mandando calar, em tom jocoso, os elementos mais ruidosos da multidão.

Por fim, o tema de abertura terminou. A porta central do palco foi aberta para trás com estrondo, dando entrada a Róscio, com a sumptuosa capa branca, a cabeça escondida por uma máscara de expressão grotesca e feliz. Os orifícios deixavam ver os seus olhos franzidos; a sua voz veludada inundou o teatro.

Caso não saibam quem sou, permitam-me que me apresente de forma resumida disse. Sou o Lar da Família desta casa de onde me viram sair. Há muitos anos que ocupo este cargo... E continuou a declamar o prólogo, apresentando a história ao público: que o pai de Eucliao tinha escondido um pote de ouro por baixo das tábuas do soalho, que Eucliao tinha uma filha que estava apaixonada pelo sobrinho do vizinho do lado, e só lhe faltava o dote para se casar e ser feliz, e que ele, o Lar da Família, tencionava conduzir o ganancioso Eucliao até ao pote de ouro, dando início aos acontecimentos.

Lancei um olhar de esguelha a Eco, que contemplava a figura mascarada com uma expressão extasiada, suspenso de todas as suas palavras. A seu lado, Flávio mantinha o mesmo ar insatisfeito. O guarda-costas louro estava sentado a seu lado, de boca aberta; de vez em quando, erguia a mão e coçava a cicatriz.

Dos bastidores, chegou um ruído abafado, indicador de uma certa agitação.

Ah disse Róscio, num sussurro teatral -, aí vem o velho Eucliao, a fazer um grande alarido, como de costume. Por esta altura, o velho sovina já deve ter localizado o pote de ouro, e quer contar a fortuna em segredo, por isso está a mandar embora a criada velha. Retirou-se discretamente pela porta da direita.

Da porta central emergiu uma figura com uma máscara de velho, vestida de amarelo-forte, a cor tradicional da ganância. Tratava-se de Panurgo, o actor-escravo, que desempenhava o apetecível papel do protagonista: o sovina Eucliao. Arrastava atrás de si outro actor, vestido de escrava doméstica, que empurrou para o meio do palco.

Sai daqui! gritou. Sai! Pelo Hades, fora daqui sua bisbiIhoteira, velho saco de ossos!

Estatílio não tivera razão ao falar depreciativamente sobre os dotes cómicos de Panurgo; à minha volta, já se ouviam gargalhadas roucas.

O que fiz eu? O quê? O quê? gritava o outro actor, cuja máscara, de uma careta feminina, estava coberta por uma horrenda peruca eriçada. O vestido esfarrapado chegava-lhe aos joelhos protuberantes. Por que estás a bater numa velha que já sofreu tanto?
Para te dar alguma coisa que te faça sofrer por muito tempo, eis por quê! E para te fazer sofrer tanto como eu, só de olhar para ti! Panurgo e o outro actor deram umas corridas pelo palco, para ruidoso divertimento do público. Eco dava saltos no seu lugar, batendo as palmas. O homem que emprestava dinheiro e o respectivo guarda-costas continuavam sentados de braços cruzados, impassíveis.

 

CRIADA Mas por que me expulsas da casa?

 

EUCLIÃO Por quê? Desde quando é que tenho de te dar explicações? Estás a pedir mais umas nódoas negras!

 

CRIADA Os deuses me vejam saltar de um penhasco se continuar a aguentar escravatura assim!

 

EUCLIÃO O que está ela a murmurar? Estou cheio de vontade de te furar os olhos, bruxa maldita!

 

Finalmente, a escrava desapareceu e o sovina voltou para casa, para contar o dinheiro. O palco foi ocupado pelo vizinho, Megadoro, e a respectiva irmã, Eunómia. Pela voz, pareceu-me que a irmã era representada pelo mesmo actor que tinha desempenhado o papel da escrava queixosa; não há dúvida de que se tinha especializado em personagens femininas. Achei que o meu amigo Estatílio representava bem o papel de Megadoro, mas não estava ao nível de Róscio, nem sequer do seu rival, Panurgo. O seu estilo cómico apenas suscitava umas gargalhadas polidas.

 

EUNÓMIA Querido irmão, pedi-te que saísses de casa para ter uma pequena conversa contigo sobre os teus assuntos privados. MEGADORO Que querida! És tão ponderada como bela. Beijo-te a mão.

 

EUNÓMIA O quê? Estás a falar com alguém atrás de mim? MEGADORO Claro que não. És a mulher mais bonita que eu conheço! EUNÓMIA Não sejas absurdo. Todas as mulheres são mais feias do que todas as outras, de uma maneira ou de outra. MEGADORO Mmm, claro; como queiras... EUNÓMIA Agora presta atenção. Querido irmão, gostava muito que te casasses...


MEGADORO Socorro! Morte! Ruína! EUNÓMIA Oh, cala-te lá!

 

Mesmo esta conversa, normalmente tão do agrado da multidão, apenas suscitou uns risos tépidos. A minha atenção desviou-se para o fato de Estatílio, de uma sumptuosa lã azul, bordada a amarelo, e para a sua máscara, de sobrancelhas absurdamente zombeteiras. Mau sinal, quando o fato de um comediante tem mais interesse do que o seu desempenho. O pobre Estatílio fora contratado para a mais respeitada troupe de actores de Roma, mas não brilhava entre eles. Não era de espantar que o exigente Róscio fosse tão intolerante com ele!

Até Eco começou a ficar impaciente. A seu lado, Flávio inclinou-se para sussurrar qualquer coisa ao ouvido do guarda-costas louro denegrindo o talento do actor que lhe devia dinheiro, pensei.

Por fim, a irmã saiu do palco; o sovina regressou, para conversar com o vizinho. A presença simultânea de ambos Estatílio e Panurgo, o seu rival em palco tornava a distância entre o talento de um e outro penosamente patente. No papel de Euclião, Panurgo era o centro das atenções, e não era apenas por as suas deixas serem melhores.

 

EUCLIÃO Com que então, pretendes casar com a minha filha.

 

Muito bem, mas é melhor ficares a saber que não tenho uma moeda de cobre que seja, para lhe dar como dote.

 

MEGADORO Não espero, sequer, meia moeda de cobre. A sua virtude e o seu bom nome são perfeitamente suficientes.

 

EUCLIÃO Quer dizer, não acabo propriamente de encontrar um, hmm, tesouro escondido em minha casa... digamos, um pote de ouro enterrado pelo meu avô, ou...

 

MEGADORO Claro que não, ridículo! Não digas mais nada. Quer dizer que me dás a tua filha?

 

EUCLIÃO De acordo. Mas o que é aquilo? Oh, não, estou arruinado!

 

MEGADORO Júpiter Todo-Poderoso, o que se passa?

 

EUCLIÃO Pareceu-me ouvir uma pá... Alguém a cavar...

 

MEGADORO Não te inquietes, mandei um escravo arrancar umas raízes no meu jardim. Acalma-te, bom vizinho...


Interiormente, gemi pelo meu amigo Estatílio mas, embora representasse sem qualquer expressão, ele tinha aprendido a seguir à risca as indicações de palco do mestre. Róscio era famoso, não só por embelezar as antigas comédias com fatos e máscaras coloridas, para deleite dos olhos, mas também por coreografar os movimentos dos actores. Estatílio e Panurgo nunca estavam parados no palco, como os actores das companhias inferiores. Andavam em círculos à volta um do outro, em permanente dança cómica, num remoinho de azul e amarelo.

Eco puxou-me pela manga. Encolhendo levemente o ombro, apontou para os homens sentados ao seu lado. Flávio estava outra vez a sussurrar ao ouvido do guarda-costas; o louro franzia o sobrolho, perplexo. Depois levantou-se e deslocou-se pesadamente em direcção à coxia. Eco levantou os pés, mas eu atrasei-me a fazer o mesmo, e o monstro pisou-me. Soltei um uivo. À minha volta, outras pessoas fizeram o mesmo, pensando que eu estava a apupar os actores. O gigante louro nem se lembrou de pedir desculpa.

Eco puxou-me pela manga.

Deixa lá, Eco disse eu. Temos de aprender a viver com a má criação no teatro.

Ele limitou-se a revirar os olhos e cruzou os braços, num gesto exasperado. Eu bem conhecia aquele gesto: se ele falasse!

No palco, os dois vizinhos concluíram os planos para o casamento de Megadoro com a filha de Euclião; abandonaram o palco ao som do toque estridente das flautas e do tinido dos címbalos, e o primeiro acto terminou.

Os tocadores de flauta introduziram novo tema. Momentos depois, entraram em palco outras duas personagens, os cozinheiros encarregados de preparar a festa do casamento, que eram dados a discussões. O público romano adora piadas sobre comida e gula, e quanto menos sofisticadas melhor. Enquanto eu gemia ao ouvir aquelas graças de péssimo gosto, Eco ria-se muito, emitindo um ruído rouco, que parecia o ladrar de um cão.

No meio de toda aquela alegria, o sangue gelou-se-me nas veias. Acima do riso, ouvi um grito.

Não era um grito de mulher, era de homem. Não era um grito de medo, era de dor.
Olhei para Eco, que me devolveu o olhar. Também tinha ouvido. Entre o público, mais ninguém parecia ter notado, mas os actores que estavam no palco deviam ter-se apercebido de qualquer coisa. Começaram a confundir as falas, voltando-se para a porta com ar indeciso, pisando-se um ao outro com uma inépcia que levava o público a rir-se cada vez mais.

Os cozinheiros terminaram a cena e desapareceram nos bastidores.

O palco ficou vazio. Houve uma pausa, que se foi prolongando cada vez mais. Dos bastidores, chegavam-nos ruídos estranhos, inexplicáveis passos confusos, o som de pessoas a arquejar, um grito alto. O público começou a murmurar e a remexer-se nos assentos, pouco à-vontade.

Finalmente, a porta da esquerda abriu-se e entrou em palco uma figura que trazia a máscara do sovina Euclião. Vestia de amarelo-vivo, como anteriormente, mas com outra capa. Lançou as mãos ao ar.

Desgraça! gritou. Eu senti um arrepio pela espinha acima.

Desgraça! gritou de novo. O casamento de uma filha é uma desgraça! Como pode um homem pagá-lo? Acabo de regressar do mercado, e não imaginam o preço a que está o carneiro um braço e uma perna por um braço e uma perna, é o que eles querem...

A personagem era o avarento Euclião, mas o actor deixara de ser Panurgo; era Róscio quem estava por trás da máscara. O público não parecia ter-se apercebido da substituição, ou pelo menos não se importava; começaram a rir-se quase imediatamente, perante o espectáculo de Euclião perturbado pela sua própria sovinice.

Róscio dizia as deixas impecavelmente, com o ritmo cómico que lhe provinha de ter desempenhado muitas vezes aquele papel, mas eu julguei detectar um estranho tremor na sua voz. Quando se voltou, e pude ver-lhe os olhos dentro da máscara, percebi que não os tinha franzidos, no gesto que o tornara famoso, mas abertos, muito abertos, de medo. Estaria Róscio, o actor, assustado com alguma coisa muito real

ou tratar-se-ia de Euclião, com medo de que os cozinheiros descobrissem o seu tesouro?

O que serão estes gritos que vêm da cozinha? exclamou ele.

Oh, não, andam à procura de uma panela maior onde pôr a galinha! Oh, o meu pote de ouro! Correu para os bastidores, quase tropeçando na capa amarela. Seguiu-se uma cacofonia de panelas a chocar umas com as outras.
A porta do meio foi aberta para trás. Um dos cozinheiros emergiu em palco, gritando em pânico:

Socorro! Socorro! Socorro!

Era a voz de Estatílio! Tornei-me rígido e fiz menção de me levantar, mas as palavras faziam parte da peça.

Aquilo é uma casa de doidos gritou ele, endireitando a máscara. Saltou do palco e correu em direcção ao público. O sovina Euclião endoideceu! Está a espancar-nos com potes e panelas! Cidadãos, acudam-nos! Rodopiou coxia acima, e parou ao meu lado. Debruçou-se e falou por entredentes, de forma a que apenas eu pudesse ouvi-lo.

Gordiano! Vem imediatamente aos bastidores!

Tive um sobressalto. Olhei para os olhos aflitos de Estatílio, escondidos atrás da máscara.

Aos bastidores! sussurrou ele. Vem depressa! Um punhal, sangue, Panurgo, assassínio!

Chegava-me aos ouvidos o som das flautas e das vozes dos actores a discutir uns com os outros, seguido pelo rugido abafado das gargalhadas do público, proveniente do outro lado do labirinto de biombos, toldos e plataformas. Nos bastidores, a companhia de Róscio corria de um lado para o outro, em pânico, mudando de fato, acertando as máscaras, murmurando deixas, implicando uns com os outros ou trocando palavras de encorajamento, e tentando por todos os meios comportar-se como se se tratasse apenas de mais uma representação agitada, e não houvesse um cadáver entre eles.

O corpo era do escravo Panurgo. Estava deitado de costas, num recanto reservado, na viela que passava por trás do Templo de Júpiter. Tratava-se de uma latrina pública, uma das muitas construídas em recantos discretos em todo o perímetro do Fórum. Protegida por duas paredes, com o chão inclinado na direcção de um buraco que despejava para a Cloaca Máxima. Aparentemente, Panurgo tinha vindo aliviar-se entre uma cena e outra. Agora, estava morto, com um punhal espetado a meio do peito. Acima do coração, um enorme círculo vermelho manchava-lhe o fato amarelo-forte. Um fio de sangue escorria lentamente pelos ladrilhos, em direcção ao esgoto.

Era mais velho do que eu pensava, quase tão velho como o seu senhor, com o cabelo grisalho e a testa coberta de rugas. Tinha a boca e os olhos muito abertos de espanto; na morte, os seus olhos verdes tinham um brilho embaciado, como esmeraldas em bruto.

Eco baixou os olhos para o corpo, e estendeu a mão para a minha. Estatílio chegou a correr. Vestia novamente de azul, e tinha nas mãos a máscara de Megadoro. O seu rosto estava cor de cinza.

Loucura sussurrou. Loucura absoluta.

Não deviam suspender a peça?

Róscio recusa-se. Um escravo não vale isso, afirma. E não se atreve a contar ao público. Imagina: um assassínio nos bastidores, no meio do nosso espectáculo, numa festa consagrada a Júpiter em pessoa, à sombra do templo do deus, que presságio! Que magistrado voltaria a contratar a companhia de Róscio? Não, o espectáculo continua embora tenhamos de pensar como preencher nove papéis com cinco actores, em vez de seis. Oh, deuses, e eu que nunca aprendi as deixas do sobrinho...

Estatílio! Era Róscio, de regresso do palco. Tirou a máscara de Euclião. A sua cara, contorcida de fúria, era quase tão grotesca como a dele. O que estás aqui a fazer, a resmungar dessa maneira? Para eu fazer Euclião, tu tens de fazer o sobrinho! Esfregou os olhos, depois deu uma palmada na testa. Mas não, é impossível Megadoro e o sobrinho têm de estar em palco ao mesmo tempo. Que desastre! Júpiter, porquê eu?

Os actores andavam em círculo uns à volta dos outros, como abelhas frenéticas. Os assistentes encarregados de os vestir andavam atrás deles, hesitantes, inúteis como um zangão. Tudo era caos na companhia de Quinto Róscio.

Baixei os olhos para o rosto pálido de Panurgo, a quem já nada daquilo preocupava. Na morte, os homens ficam todos parecidos uns com os outros, sejam escravos ou cidadãos, romanos ou gregos, génios ou imitadores.

Finalmente, a peça terminou. Megadoro, o velho solteirão, tinha escapado às garras do casamento; o sovina Euclião tinha perdido, e depois recuperado, o pote de ouro; o escravo honesto que lho devolvera tinha sido alforriado; os cozinheiros, que continuavam a discutir, tinham sido remunerados por Megadoro e mandados para casa; e os jovens amantes tinham sido alegremente prometidos um ao outro. De que forma tudo isto se realizou, tendo em conta as circunstâncias, não sei.
Algum milagre do teatro fez com que tudo terminasse em bem. A companhia reuniu-se em palco para receber aplausos retumbantes, regressando em seguida aos bastidores, onde a sua alegria foi imediatamente substituída pela sinistra realidade da morte.

Loucura disse Estatílio de novo, inclinando-se sobre o cadáver. Sabendo eu o que ele sentia pelo rival, não pude deixar de perguntar a mim próprio se, no fundo, não se sentiria feliz. Parecia genuinamente chocado, mas a verdade é que podia estar a representar.

E quem é este? ladrou Róscio, tirando a capa amarela que tinha vestido para representar o sovina.

Chamo-me Gordiano. Há quem me trate por Descobridor. Róscio ergueu uma sobrancelha e acenou com a cabeça.

Ah, sim, já ouvi falar de ti. Na Primavera passada o caso de Sexto Róscio; não tenho qualquer parentesco com ele, felizmente, ou se tenho é muito longínquo. Ficaste conhecido por ambos os lados desse caso.

Sabendo que o actor era íntimo do ditador Sula, que eu tinha ofendido grosseiramente, limitei-me a acenar com a cabeça.

O que estás aqui a fazer? perguntou Róscio.

Fui eu que o chamei respondeu Estatílio, em tom abatido.

Pedi-lhe que viesse aos bastidores. Foi a primeira coisa que me ocorreu.

Convidaste um estranho a intervir nesta tragédia, Estatílio? Idiota! Quem poderá impedi-lo de ir para o Fórum comunicar a notícia aos transeuntes? O escândalo será desastroso.

Garanto-te que sei ser muito discreto, se um cliente mo solicitar disse eu.

Oh, estou a ver disse Róscio, franzindo os olhos na minha direcção com ar astuto. Mas talvez não seja má ideia, desde que possas efectivamente servir para alguma coisa.

Acho que posso respondi modestamente, já a calcular o valor dos honorários. Afinal, Róscio era o actor mais bem pago do mundo. De acordo com os boatos que corriam, chegava a fazer meio milhão de sestércios por ano. Podia dar-se ao luxo de ser generoso.

Ele baixou os olhos para o cadáver e abanou a cabeça com amargura.

Um dos meus alunos mais promissores. Não era apenas um artista dotado, era um bem valioso. Mas por que havia alguém de matar um escravo? Panurgo não tinha vícios, não se metia em política, não tinha inimigos.

É raro o homem que não tem inimigos disse eu. Não consegui evitar olhar para Estatílio, mas desviei rapidamente os olhos.

Houve um burburinho entre os actores e os assistentes que se tinham reunido a observar. A multidão abriu-se para dar passagem a uma figura alta e cadavérica, com uma guedelha de cabelo ruivo.

Quereia! Onde estiveste? resmungou Róscio.

O recém-chegado olhou do fundo do seu comprido nariz, primeiro para o cadáver, depois para Róscio.

Vinha de carro da minha villa de Fidenas respondeu sobriamente. O eixo do carro partiu-se. Ao que parece, não perdi apenas a peça.

Gaio Fâmnio Quereia murmurou Estatílio ao meu ouvido. Era o proprietário original de Panurgo. Quando viu que o escravo tinha talento para a comédia, entregou-o a Róscio para que o treinasse, como co-proprietário.

Não parecem de muito boas relações sussurrei em resposta.

Têm andado a discutir a maneira de calcularem os lucros que retiram das exibições de Panurgo...

Então, Quinto Róscio fungou Quereia, levantando ainda mais o nariz, é assim que tomas conta da nossa propriedade comum? Má gestão, a meu ver. O escravo perdeu todo o seu valor. Vou mandar-te a conta da minha parte.

O quê? Achas que eu sou responsável por isto? Róscio semicerrou os olhos numa expressão de ferocidade.

O escravo estava por tua conta; agora está morto. Actores! Uns irresponsáveis. Quereia passou os dedos ossudos pela juba cor de laranja, e encolheu altivamente os ombros, antes de virar costas. Amanhã mando-te a minha conta disse, atravessando a multidão, para se ir juntar a uma comitiva de acompanhantes que estavam à sua espera na viela. Ou então vamos a tribunal.

Escandaloso! disse Róscio. Tu! Apontou-me um dedo pequeno e gordo. O caso é teu! Descobre quem fez isto, e porquê. Se tiver sido um escravo, ou um pobre, mando-o esfacelar. Se tiver sido um homem rico, processo-o por me ter destruído um bem valioso. Mais depressa vou até ao Hades do que dou a Quereia a satisfação de afirmar que isto aconteceu por minha culpa!

Aceitei o encargo com um circunspecto aceno de cabeça, e tentei não sorrir. Estava quase capaz de ouvir a chuva de prata brilhante a cair-me nas mãos. Depois, olhei para a cara contorcida de Panurgo, e senti o peso da gravidade da tarefa. Em Roma, é raro alguém procurar justiça para um escravo morto. Havia de descobrir o assassino, foi o meu voto silencioso, não por Róscio ou pela sua prata, mas para honrar a sombra de um artista cruelmente eliminado no auge da sua carreira.

Muito bem, Róscio. Vou precisar de fazer algumas perguntas. Não deixes sair nenhum elemento da companhia enquanto eu não tiver terminado. Antes de mais, gostava de falar contigo a sós. Talvez uma taça de vinho nos acalme aos dois...

Ao fim da tarde desse mesmo dia, estava eu sentado num banco, à sombra de uma oliveira, numa rua sossegada, não muito longe do Templo de Júpiter, com Eco a meu lado, estudando pensativamente o jogo das sombras geradas pelas folhas nas pedras da calçada.

Então, Eco, o que te parece? Ficámos a saber alguma coisa que valha a pena?

Ele abanou a cabeça com gravidade.

Avalias as coisas com demasiada rapidez ri-me eu. Pensa então: a última vez que vimos Panurgo com vida foi durante a cena com Estatílio, no final do primeiro acto. Depois, abandonaram ambos o palco; os flautistas tocaram um interlúdio, e a seguir entraram os cozinheiros, a discutir. Depois, ouviu-se um grito. Deve ter sido Panurgo, no momento em que foi apunhalado. Provocou agitação nos bastidores; Róscio foi ver o que se passava e descobriu o cadáver na latrina. A notícia espalhou-se rapidamente entre os elementos da companhia. Róscio pôs a máscara do morto, vestiu uma capa amarela, a coisa mais parecida com o fato de Panurgo, entretanto inutilizado pela mancha de sangue, a que conseguiu deitar a mão, e correu para o palco, para prosseguir com o espectáculo. Entretanto, Estatílio vestia um fato de cozinheiro, a fim de poder saltar para o meio do público e vir pedir-me ajuda.

”Portanto, sabemos pelo menos uma coisa: quer os actores que desempenhavam o papel de cozinheiros, quer os flautistas, estão inocentes, porque estavam em palco quando o assassínio ocorreu.
Eco fez uma careta, para mostrar que não estava impressionado.

Sim, admito que tudo isto é muito elementar, mas para construir uma parede temos de começar com um tijolo. Muito bem, quem estava nos bastidores no momento do crime, não pode apontar ninguém que diga onde se encontrava quando se ouviu o grito, e podia gostar de ver Panurgo morto?

Eco saltou do banco, preparado para entrar no jogo. Representou uma pantomima, mexendo os lábios atabalhoadamente e acenando com os braços a si próprio.

Eu sorri tristemente; aquele retrato pouco lisonjeiro só podia ser de Estatílio, o meu amigo palrador e autocentrado.

Sim, Estatílio é um dos principais suspeitos, por muito que eu lamente dizê-lo. Sabemos que tinha motivos para odiar Panurgo; enquanto o escravo estivesse vivo, os melhores papéis nunca seriam confiados a um homem com menos talento, como Estatílio. Também sabemos, depois de termos interrogado a companhia, que ninguém sabe onde estava Estatílio quando se ouviu o grito. Pode tratar-se de uma simples coincidência, dado o caos que parece reinar habitualmente nos bastidores durante a representação de uma peça. Estatílio afirma que estava ocupado a um canto, a ajustar o fato. Tem a seu favor o facto de ter parecido realmente chocado com a morte do escravo, mas podia estar apenas a fingir. Eu chamo-lhe amigo, mas conhecê-lo-ei efectivamente? parei por momentos, a reflectir. Quem mais, Eco?

Ele ergueu os ombros, franziu o sobrolho e olhou-me de esguelha.

Sim, Róscio também estava nos bastidores quando Panurgo gritou, e parece que ninguém se lembra de o ver nesse momento. Foi ele que encontrou o cadáver ou estaria presente quando o punhal se abateu sobre ele? Róscio é um homem violento; todos os actores dizem o mesmo. Ouvimo-lo gritar, irritado com alguém, antes de a peça começar lembras-te? ”Imbecil! Incompetente! Não te lembras do texto?” Os outros disseram-me que ele estava a gritar com Panurgo. Teria ficado tão desagradado com o desempenho do escravo no primeiro acto, que ficou furioso, perdeu a cabeça e o assassinou? Não parece nada provável; a mim pareceu-me que Panurgo ia bastante bem. E Róscio, tal como Estatílio, parecia genuinamente irritado com o assassínio. Mas a verdade é que Róscio é um actor de grande talento.
Eco levou as mãos às ancas, pôs o nariz no ar, e começou a pavonear-se com altivez.

Ah, Querela; ia agora falar dele. Afirma só ter chegado no final da peça, mas não pareceu nada espantado quando viu o cadáver. Parece quase excessivamente incapaz de se comover. Era o proprietário original do escravo. Em troca do cultivo dos talentos de Panurgo, Róscio adquiriu metade do seu valor, mas Quereia parecia profundamente insatisfeito com a combinação. Terá decidido que o escravo tinha mais valor para ele morto do que vivo? Quereia considera Róscio culpado pela perda, e tenciona coagi-lo a pagar metade do valor do escravo em prata. Num tribunal romano, com um advogado à altura, é muito provável que o consiga.

Encostei-me à oliveira, insatisfeito.

Apesar de tudo, gostaria que tivéssemos descoberto mais alguém com um motivo igualmente forte, e que tivesse tido oportunidade de cometer o acto. Mas parece que ninguém tinha má vontade contra Panurgo, e quase toda a gente consegue dizer onde esteve quando a vítima gritou.

”Claro que o assassino pode ser uma pessoa exterior à companhia; a latrina onde Panurgo foi apunhalado era acessível a qualquer pessoa que passasse pela viela atrás do templo. Mas Róscio afirma, e os outros confirmam, que Panurgo quase não tinha relações fora da companhia não jogava nem frequentava bordéis; não pedia dinheiro emprestado nem se metia com as mulheres dos outros homens. Estava totalmente absorvido pela sua arte; é o que toda a gente diz. E, mesmo que Panurgo tivesse ofendido alguém, o ofendido não iria certamente resolver o assunto com ele, mas com Róscio, que era o proprietário do escravo e o responsável legal por quaisquer delitos que ele cometesse.

Suspirei de frustração.

O punhal que lhe deixaram no coração era um punhal vulgar, sem quaisquer características distintivas. Não havia pegadas à volta do corpo. Não se encontraram vestígios de sangue em nenhum fato. Não houve testemunhas, pelo menos que nós saibamos. É uma complicação! A chuva de prata da minha imaginação estava a reduzir-se a um fiozinho; sem nada para apresentar, teria muita sorte se conseguisse que Róscio me pagasse os honorários correspondentes a um dia de trabalho.
Pior ainda, sentia a sombra do morto, Panurgo, a observar-me. Tinha prometido descobrir o seu assassino mas, aparentemente, fora uma promessa apressada.

Nessa noite, jantei no jardim decrépito do centro de minha casa. As lamparinas estavam baixas. Minúsculas traças prateadas esvoaçavam entre as colunas do peristilo. Das ruas da Subura, no sopé da colina, chegavam ocasionalmente até nós ruídos de pândegas distantes.

Betesda, o jantar estava requintado disse eu, recostando-me com a minha habitual graciosidade. Talvez pudesse ter sido actor, pensei.

Mas Betesda não se deixou enganar. Olhou-me de baixo das suas longas pestanas e sorriu com metade da boca. Passou uma mão pela massa abundante dos lustrosos cabelos pretos, encolheu os ombros com elegância e começou a levantar a mesa.

Enquanto ela se dirigia à cozinha, eu fiquei a observar o sinuoso movimento das suas ancas, no interior do vestido verde solto. Quando a comprara, há já muito tempo, no mercado de escravos de Alexandria, não tinha sido pelos seus dotes culinários. Esses dotes nunca tinham progredido, mas havia muitos outros campos em que ela estava para além da perfeição. Observei as compridas tranças pretas que lhe caíam, em cascata até à cintura; imaginei as traças prateadas perdidas naquelas tranças, como estrelas cintilantes no firmamento azul-preto do céu. Antes de Eco ter entrado na minha vida, Betesda e eu passávamos quase todas as noites juntos, só os dois, na solidão do jardim...

Fui acordado dos meus devaneios por uma mão que me puxou a bainha da túnica.

Sim, Eco, o que foi?

Eco, reclinado no canapé ao lado do meu, juntou os punhos e depois afastou-os, para cima e para baixo, como se estivesse a desenrolar um rolo de pergaminho.

Ah, a tua aula de leitura. Hoje não tivemos tempo para ela, pois não? Mas eu tenho os olhos fatigados, Eco, e tu também deves ter. E o espírito ocupado com outras coisas...

Ele franziu o sobrolho na minha direcção, num trejeito de desânimo fingido, até eu ceder.

Muito bem. Aproxima a lamparina. O que queres ler hoje?
Eco apontou para si próprio e abanou a cabeça, depois apontou para mim. Pôs as mãos em concha atrás das orelhas e fechou os olhos. Preferia (e, em segredo, eu também) que fosse eu a ler, usufruindo ele do luxo de se limitar a ouvir. Durante todo aquele Verão, em tardes preguiçosas e noites compridas, tínhamos passado muitas horas no jardim, ocupados nessa actividade. Eu lia a história de Aníbal, de Píson, e Eco, sentado a meus pés, entrevia elefantes por entre as nuvens; eu declamava a lenda das Sabinas e ele, deitado de costas, estudava a Lua. Ultimamente, andava a ler-lhe um velho e esfarrapado pergaminho de Platão, que fora um presente de Cícero. Eco percebia Grego, embora não conhecesse as letras, e seguia fascinado as subtilezas dos discursos do filósofo, embora houvesse ocasionalmente, nos seus grandes olhos castanhos, um reflexo de mágoa, perante a ideia de que nunca poderia ter a esperança de se envolver pessoalmente nesse género de debates.

Queres que continue a ler-te Platão? Dizem que ler filosofia depois do jantar ajuda à digestão.

Eco acenou com a cabeça e foi a correr buscar o rolo de pergaminho. Momentos depois, emergia das sombras do peristilo, transportando-o com todo o cuidado. De repente, parou e imobilizou-se como uma estátua, com uma estranha expressão no rosto.

Eco, o que foi? Por momentos, pensei que estivesse doente; a torta de peixe e os nabos com molho de cominhos cozinhados por Betesda não tinham nada que os distinguisse, mas também não eram tão maus que o fizessem adoecer. Ele olhava fixamente em frente sem nada ver, e não estava a ouvir-me.

Eco? Estás bem? Ele estava rígido, e tremia; uma expressão que podia ser de medo ou de êxtase atravessou-lhe o rosto. Depois, correu para mim, pôs-me o rolo de pergaminho debaixo do nariz e apontou freneticamente para ele.

Nunca conheci um rapaz tão ansioso por aprender ri-me eu, mas ele não estava a brincar. A sua expressão era profundamente séria. Mas, Eco, trata-se do volume de Platão que tenho andado a ler-te o Verão inteiro. Por que motivo estás subitamente tão excitado?

Eco recuou para representar a sua pantomima. Um punhal espetado no coração era obviamente uma referência a Panurgo, o homem morto.

Panurgo e Platão, não estou a ver a relação, Eco.
Eco mordeu os lábios e começou a andar às voltas, desesperado por se fazer entender. Por fim, correu para dentro de casa, e voltou a sair, trazendo na mão dois objectos, que largou no meu colo.

Eco, cuidado! Esta taça de vidro verde de Alexandria é preciosa. E por que foste buscar este bocado de telha encarnada? Deve ter caído do telhado...

Eco apontava, enfática e alternadamente, para os dois objectos, mas eu não percebia o que ele queria dizer.

Voltou a desaparecer, e regressou trazendo um estilete e a minha tabuinha de cera, onde escreveu as palavras encarnado e verde.

Sim, Eco, eu sei que o vaso é verde e a telha é encarnada. O sangue é encarnado... Eco abanou a cabeça e apontou para os seus olhos. Panurgo tinha olhos verdes... Vi-os na minha memória, já sem vida, a olhar o céu.

Eco bateu com o pé no chão e abanou a cabeça, para me dar a entender que não era nada daquilo. Pegou na taça e no fragmento de telha e começou a passá-los de mão e mão, como os malabaristas.

Eco, pára com isso! Já te disse que essa taça é preciosa!

Ele poisou-os descuidadamente e pegou outra vez no estilete. Apagou as palavras encarnado e verde, e escreveu azul. Pareceu-me que queria escrever outra palavra, mas não sabia soletrá-la. Mordiscou o estilete e abanou a cabeça.

Eco, tenho a impressão de que estás com febre. Não estás a dizer coisa com coisa.

Ele pegou no rolo de pergaminho e começou a desenrolá-lo, procurando desesperadamente qualquer coisa. Mesmo que o texto estivesse em Latim, teria sido uma tarefa muito complicada para ele decifrar as palavras e descobrir aquilo de que andava à procura, mas as letras eram gregas e totalmente desconhecidas para ele.

Atirou com o rolo de pergaminho e recomeçou a sua pantomima, mas estava excitado e desajeitado; eu não conseguia perceber os seus gestos. Encolhi os ombros e abanei a cabeça, exasperado, e de repente Eco começou a chorar de frustração. Voltou a pegar no rolo de pergaminho e apontou para os seus olhos. Estaria a pedir-me para ler, ou a apontar para as suas lágrimas? Mordi os lábios e voltei as palmas das mãos para cima, sentindo-me impotente para o ajudar.
Eco atirou-me o rolo de pergaminho para o colo e fugiu a chorar, emitindo um som que mais parecia um zurro rouco e abafado, e que me dilacerava o coração. Devia ter sido mais paciente, mas como é que ele queria que o compreendesse? Betesda emergiu da cozinha e olhou-me com uma expressão acusadora, depois seguiu o som do choro de Eco até ao quartinho onde ele dormia.

Eu baixei os olhos para o rolo de pergaminho que tinha no colo. Estava coberto por tantas palavras, que era difícil saber quais eram as que tinham suscitado uma ideia na memória de Eco, e o que teriam a ver com a morte de Panurgo. Encarnado, verde, azul lembrava-me vagamente de ter lido uma passagem em que Platão discorria sobre a natureza da luz e da cor, mas era-me muito difícil localizá-la, porque nem sequer tinha percebido bem o que ele queria dizer. Era um esquema de cones sobrepostos, projectados dos olhos para um objecto, ou de um objecto para os olhos, já não me lembrava qual das duas alternativas; seria disto que Eco se tinha recordado, e poderia ter algum sentido para ele?

Reli o pergaminho por alto, à procura da referência, mas não consegui encontrá-la. Começava a sentir os olhos cansados. A lamparina começou a cuspir. As letras gregas começaram a parecer-se muito umas com as outras. Normalmente, Betesda teria vindo buscar-me para me levar para a cama, mas aparentemente tinha optado por consolar Eco. Adormeci no canapé, sob as estrelas, a pensar numa capa amarela manchada de encarnado, e nuns olhos verdes sem vida que contemplavam um céu azul e vazio.

No dia seguinte, Eco estava doente, ou fingiu estar doente. Betesda informou-me solenemente de que ele não desejava levantar-se. Fui até à porta do quartinho dele e falei-lhe com suavidade, recordando-lhe que o Festival Romano prosseguia, e que hoje haveria uma exposição de animais selvagens no Circo Máximo, e outra peça, encenada por outra companhia. Ele virou-me as costas e tapou a cabeça com a coberta.

Se calhar devia castigá-lo murmurei baixinho, tentando pensar no que faria um pai romano normal.

Se calhar não devias murmurou Betesda, ao passar por mim. A superioridade dela deixou-me adequadamente humilhado.

Dei sozinho o meu passeio matinal pela primeira vez em muitos dias, percebi então, agudamente consciente de que Eco não seguia ao meu lado. A Subura pareceu-me muito aborrecida sem aqueles olhos de dez anos pelos quais a vira ultimamente. Só dispunha dos meus próprios olhos, que já a tinham visto um milhão de vezes.

Decidi comprar-lhe um presente; ou melhor, um presente para cada um, porque era sempre boa ideia aplacar Betesda quando ela se mostrava superior. Para Eco, comprei uma bola de couro encarnada, daquelas com que os rapazes jogam trígono, atirando-a uns aos outros com os cotovelos e os joelhos. Para Betesda, gostaria de comprar um véu azul-noite com traças prateadas, mas achei preferível optar por um de linho. Na rua dos mercadores de tecidos, entrei na loja de Ruso, um velho conhecido.

Pedi-lhe para me mostrar um véu azul-escuro. Como que por artes mágicas, ele apresentou-me exactamente aquilo que eu tinha imaginado, uma coisa de gaze que parecia feita de prata e teias de aranha azuis-pretas. Também era a mercadoria mais cara que ele tinha na loja. Censurei-o por me torturar com um luxo que estava para além das minhas possibilidades.

Ruso encolheu os ombros, de bom humor.

Nunca se sabe; podias ter estado a jogar aos dados e ter ganho uma fortuna com o Lance de Vénus. Toma estes, são mais baratos. Sorriu e colocou uma colecção de véus na minha frente.

Não disse eu, não vendo nada que me agradasse. Mudei de opinião.

Queres de um azul mais claro? Um azul-forte, cor do céu?

Não, não me parece...

Ah, espera, tenho aqui uma coisa para te mostrar. Félix... Félix! Vai-me buscar um daqueles véus novos que chegaram de Alexandria, os azuis-claros com bordados amarelos.

O jovem escravo mordeu nervosamente o lábio e pareceu encolher-se. Estranhei a sua atitude, porque sabia que Ruso era um homem comedido, e não um senhor cruel.

Vai lá, estás à espera de quê? Ruso voltou-se para mim e abanou a cabeça. Este escravo é pior do que inútil! Tenho a impressão de que não é muito esperto, diga o mercador o que disser. Sabe manter os livros em dia, mas aqui na loja, olha, voltou ao mesmo! Inacreditável! Félix, o que se passa contigo? Fazes isso para me irritar? Queres apanhar uma tareia? Estou farto de te aturar!
O escravo recuou, com ar confuso e desamparado. Trazia na mão um véu amarelo.

Está sempre a fazer isto! gemeu Ruso, levando as mãos à cabeça. Quer dar comigo em doido! Peço-lhe um azul e ele traz-me um amarelo! Peço-lhe um amarelo e ele traz-me um azul! Alguma vez ouviste falar de semelhante estupidez? Juro que te dou uma tareia, Félix! Correu atrás do pobre escravo, brandindo uma vara de medida.

Nessa altura, compreendi.

Tal como eu esperava, o meu amigo Estatílio não se encontrava no seu alojamento na Subura. Quando interroguei o senhorio, o velhote atirou-me o olhar astuto de um cúmplice encarregado de lançar os cães atrás de uma pista falsa, e disse-me que Estatílio tinha saído de Roma, que fora para o campo.

Ele não se encontrava em nenhum dos sítios onde poderia estar num dia de Festival Romano. Não fora servido em nenhuma taberna, nem admitido em nenhum bordel. Nem lhe passaria pela cabeça mostrar-se numa casa de jogos, pensei e depois percebi que devia ser exactamente aí que ele se encontrava.

Quando comecei à procura nos locais de jogo da Subura, não tive grande dificuldade em o encontrar. Descobri-o num compartimento cheio de gente do terceiro andar de um velho edifício, no meio de uma multidão de homens bem-vestidos, alguns dos quais de toga. Estatílio estava de joelhos, apoiado nos cotovelos, a agitar uma caixinha e a murmurar orações à Fortuna. Lançou os dados. A multidão aglomerou-se num círculo apertado, e depois recuou. Ouviram-se exclamações. O lance fora bom: III, III, III e VI o Lance de Remo.

Sim! Sim! gritava Estatílio, erguendo as mãos com as palmas voltadas para cima. Os outros entregaram-lhe as respectivas moedas.

Eu agarrei-o pelo colarinho da túnica e puxei-o para a entrada, enquanto ele guinchava estridentemente.

Julgava que já tinhas dívidas suficientes disse.

Pelo contrário! protestou ele, com um grande sorriso. Estava muito corado e tinha a testa coberta de suor, como se tivesse febre.

Quanto é que deves a Flávio, o homem que empresta dinheiro?

Cem mil sestércios.
Cem mil! O coração subiu-me até à boca.

Mas agora acabou-se. Percebes, vou poder pagar-lhe! Mostrou-me as moedas que tinha nas mãos. Tenho dois sacos cheios de prata no outro compartimento, o meu escravo está a vigiá-los... E, nem vais acreditar, uma escritura de uma casa no Monte Célio. Consegui libertar-me, estás a ver?

À custa da vida de outro homem. O sorriso dele tornou-se acanhado.

Quer dizer que percebeste. Mas quem poderia ter previsto semelhante tragédia? Eu não, podes ter a certeza. E, quando aconteceu, não fiquei satisfeito com a morte de Panurgo tu bem viste. Não o odiava propriamente. A minha inveja era puramente profissional. Mas, se as Parcas decidiram que antes ele do que eu, quem sou eu para contestá-las?

És um verme, Estatílio. Por que não disseste a Róscio que sabias? Por que não me disseste?

Mas o que é que eu sabia, na verdade? O pobre Panurgo podia ter sido morto por um desconhecido. Eu não assisti à cena.

Mas adivinhaste a verdade. Foi por isso que me chamaste aos bastidores, não foi? Tinhas medo de que o assassino regressasse, à tua procura. O que fui eu, o teu guarda-costas?

Talvez. Afinal, ele não regressou, pois não?

Estatílio, és um verme.

Já disseste isso. O sorriso desapareceu-lhe do rosto, como se ele tivesse tirado uma máscara. Soltou o colarinho da minha mão.

Escondeste-me a verdade disse eu. Mas por que a escondeste a Róscio?

O quê, querias que lhe contasse que tinha contraído uma dívida obscena ao jogo? E que o conhecido financeiro que me tinha emprestado o dinheiro ameaçava matar-me?

Talvez ele te tivesse emprestado o dinheiro para cancelares a dívida.

Nunca! Não conheces Róscio. Ele acha que eu estou cheio de sorte pelo simples facto de pertencer à companhia dele; acredita, não é do género de fazer empréstimos da ordem dos cem mil sestércios a um subalterno. E, se ele soubesse que Panurgo tinha sido morto por engano em vez de mim oh, Róscio teria ficado furioso! Um Panurgo vale dez
Estatílios, é o ponto de vista dele. Nessa altura, eu teria sido um homem morto, com Flávio a puxar-me de um lado e Róscio do outro. Tinham-me partido ao meio como a um osso de galinha! Recuou e endireitou a túnica. O sorriso vacilou e depois voltou-lhe aos lábios. Não vais contar a ninguém, pois não?

Estatílio, nunca paras de fazer teatro? Desviei os olhos para evitar deixar-me encantar por ele.

Então...?

O meu cliente é Róscio e não tu.

Mas eu sou teu amigo, Gordiano.

Fiz uma promessa a Panurgo.

- Panurgo não te ouviu.

Mas os deuses ouviram.

Não foi difícil descobrir Flávio umas perguntas aos ouvidos convenientes, umas moedas nas mãos adequadas. Soube que ele geria o seu negócio a partir de uma loja de vinhos situada num pórtico perto do Circo Flamínio, onde vendia produtos de fraca qualidade importados da sua Tarquínios natal. Porém, como era feriado, disseram-me os meus informadores, era mais provável que o encontrasse na casa de reputação duvidosa que ficava do outro lado da rua.

O sítio tinha o tecto baixo e o cheiro rançoso a vinho entornado e humanidade densamente acumulada. Avistei Flávio do outro lado do compartimento, no meio de um grupo de pares homens de negócios de meia-idade, com as maneiras bruscas de homens do campo, vestindo túnicas caras e capas de uma qualidade que contrastava fortemente com a rudeza dos seus proprietários.

Perto dele, encostado a uma parede (e com aspecto de quem tinha força suficiente para sustentá-la), avistei o rufia de Flávio. O gigante louro parecia bastante embriagado, ou então era excepcionalmente estúpido. Piscou lentamente os olhos quando me viu aproximar. Um brilho de reconhecimento iluminou-lhe os olhos turvos, desvanecendo-se logo a seguir.

Os dias do Festival são excelentes para beber disse eu, erguendo a minha taça de vinho. Ele olhou-me sem expressão por momentos, depois encolheu os ombros e acenou com a cabeça.
Diz-me prossegui, conheces alguma daquelas belezas espectaculares? Fiz um gesto de mão na direcção de um grupo de quatro mulheres, que passeavam indolentemente no canto mais afastado do compartimento, perto das escadas.

O gigante abanou a cabeça num gesto sombrio.

Nesse caso, hoje é o teu dia de sorte. Aproximei-me o suficiente para sentir o cheiro a vinho do seu hálito. Estive agora mesmo a falar com uma delas, que me disse que está ansiosa por te conhecer. Parece que gosta de homens de ombros largos e cabelo cor do sol. Disse-me que, para um homem como tu... murmurei-lhe ao ouvido.

O véu de luxúria que lhe cobriu o rosto deu-lhe uma expressão ainda mais estúpida. Semicerrou ebriamente os olhos.

Qual delas? perguntou-me num murmúrio rouco.

A do vestido azul respondi.

Ah... Ele acenou com a cabeça e arrotou, depois empurrou-me para o lado e dirigiu-se às escadas, a cambalear. Tal como eu esperava, ignorou a mulher de verde, bem como a que vestia de coral e a que estava de castanho. Mas poisou a mão aberta na coxa da mulher de amarelo, que se voltou e olhou para ele com uma expressão surpreendida, mas nem por isso menos amigável.

Tanto Quinto Róscio como Quereia, o sócio dele, ficaram impressionados com a minha inteligência expliquei a Betesda na noite desse dia. Não resisti ao gesto teatral de fazer girar no ar o saquinho de prata, poisando-o depois em cima da mesa, onde aterrou com um tinido de moedas. Talvez não seja um pote de ouro, mas é uma quantia suficientemente generosa para não termos de nos preocupar durante todo o Inverno.

Os olhos dela tornaram-se redondos e brilhantes como moedas. E ainda aumentaram mais quando lhe apresentei o véu que tinha comprado na loja de Ruso.

Oh! É feito de quê?

De traças e meia-noite respondi eu. De prata e teias de aranha. Ela inclinou a cabeça para trás e estendeu o véu translúcido sobre o pescoço e os braços nus. Eu pestanejei, engolindo em seco, e decidi que a compra tinha valido o preço.
Eco apareceu hesitante à porta do quarto, de onde me tinha visto entrar e ouvido contar apressadamente os eventos do dia. Parecia ter recuperado do acesso da véspera, mas estava com uma expressão sombria. Estendi-lhe a mão e ele aproximou-se cautelosamente. Pegou imediatamente na bola encarnada de couro, mas continuava a não sorrir.

Eu sei que é um pequeno presente. Mas trouxe-te outro maior...

Continuo a não compreender dizia Betesda. Disseste que o gigante louro era estúpido, mas como é que uma pessoa pode ser tão estúpida, que não distinga uma cor de outra?

Eco sabe respondi eu, sorrindo para ele com ar pesaroso. Ele percebeu tudo ontem à noite, e tentou dizer-me, mas não conseguiu. Lembrou-se de uma passagem de Platão que eu lhe tinha lido há uns meses, e de que já me tinha esquecido por completo. Acho que consigo voltar a localizá-la. Estendi a mão para o rolo de pergaminho, que continuava poisado em cima do meu canapé.

”Podemos observar” li em voz alta, ”que nem todos os homens percepcionam as mesmas cores. Embora sejam raros, alguns confundem o encarnado e o verde, e também há quem não consiga distinguir o amarelo do azul; outros ainda, parecem não ter a percepção dos diversos tons de verde.” E continua, apresentando uma explicação para isso, que eu não sou capaz de perceber.

Quer dizer que o guarda-costas não distinguia o azul do amarelo? disse Betesda. Mesmo assim...

Ontem, Flávio foi ao teatro com a intenção de cumprir a sua ameaça de matar Estatílio. Não é de espantar que tenha tido um sobressalto quando me inclinei na sua direcção e lhe disse: ”Hoje, vamos ver A Comédia da Marmita” por momentos, deve ter pensado que eu estava a falar do dinheiro que Estatílio lhe devia! Assistiu ao espectáculo tempo suficiente para perceber que Estatílio desempenhava o papel de Megadoro, vestido de azul; reconheceu-o pela voz, sem dúvida. Depois, mandou o assassino louro aos bastidores, sabendo que a viela por trás do Templo de Júpiter estaria virtualmente deserta, mandando-o esperar ali pelo actor da capa azul. Eco deve ter ouvido fragmentos das instruções, pelo menos a palavra azul. Logo nessa altura, apercebeu-se de que se passava qualquer coisa, e tentou dizer-me, mas a confusão era imensa, com o gigante a pisar-me e o público a rugir à nossa volta. Não foi, Eco?
Ele acenou com a cabeça, e bateu na palma da mão com o punho fechado da outra foi exactamente isso.

Infelizmente para o pobre Panurgo, que vestia de amarelo, para além de não distinguir as cores, o assassino era invulgarmente estúpido. Precisava de mais informações, para além da cor da capa, para ter a certeza de que matava o homem que devia, mas não se incomodou a pedi-las; ou, se as pediu, Flávio deve ter-lhe respondido com sarcasmos e mandado despachar-se, sem compreender a sua confusão. Apanhando Panurgo sozinho e vulnerável, na sua capa amarela, que para ele era azul, o assassino cumpriu a sua missão e estragou tudo.

Sabendo que Flávio estava entre o público e tencionava matá-lo, sabendo que Panurgo tinha sido apunhalado, e não vendo o assassino contratado no seu lugar, Estatílio adivinhou a verdade; não é de espantar que tivesse ficado tão abalado com a morte de Panurgo, sabendo que o visado era ele.

Quer dizer que foi morto outro escravo, e por engano! E não se faz nada comentou Betesda, sombriamente.

Não é bem assim. Panurgo era uma propriedade valiosa. A Lei permite aos seus proprietários processarem o responsável pela sua morte, exigindo-lhe o respectivo valor de mercado. Sei que tanto Róscio como Quereia exigiram a Flávio cem mil sestércios cada. Se Flávio contestar a acção e perder, a quantia duplica. Conhecendo a sua ganância, desconfio de que vai admitir tacitamente a sua culpa e pagar essa quantia.

Fraca justiça por um assassínio desprovido de sentido. Eu acenei com a cabeça.

E fraca recompensa pela destruição de tão grande talento. Mas tal é a justiça que a Lei romana permite, quando um cidadão mata um escravo.

Um silêncio pesado caiu sobre o jardim. Confirmada a sua intuição, Eco voltou as atenções para a bola de couro. Atirou-a ao ar, apanhou-a e acenou com a cabeça pensativamente, satisfeito com a forma como lhe cabia na mão.

Ah, Eco, estava a dizer-te que tenho outro presente para ti. Ele olhou-me, na expectativa. Está aqui. Dei uma palmadinha na saqueta de prata. Não vou ser eu a continuar a ensinar-te a ler e a escrever, à minha maneira hesitante. Vais ter um tutor, que virá todas as manhãs ensinar-te Grego e Latim. Será rigoroso, e tu vais sofrer, mas ficarás a ler e a escrever melhor do que eu. Um rapaz esperto como tu não merece menos do que isso.

O sorriso de Eco era radiante. Eu nunca tinha visto um rapaz atirar uma bola tão alto.

A história está quase terminada, à excepção de uma conclusão final.

Nessa noite, muito mais tarde, eu estava deitado ao lado de Betesda, de quem me separava apenas o véu de gaze com fios de prata. Por um momento fugidio, senti-me completamente satisfeito com a vida e o Universo. Nesse estado de descontracção profunda, murmurei aquilo em que estava a pensar, sem ter intenção de o fazer:

Se calhar, devia adoptar o rapaz...

Por que não? perguntou Betesda no seu habitual tom imperioso, embora estivesse meia a dormir. Que mais provas queres? Eco não podia ser mais teu filho se fosse carne da tua carne.

Tinha razão, claro.
A Lenda da Casa do Tesouro

Conta-me uma história, Betesda.

Era a noite mais quente do Verão mais quente de quantos me recordava de ter passado em Roma. Tinha levado a minha cama para o peristilo, instalando-a entre os teixos e as papoilas, por forma a poder usufruir de alguma brisa que por acaso percorresse o Monte Esquilino. Lá no alto, a Lua tinha desaparecido do céu coberto de estrelas. Mas o sono não chegava.

Betesda estava deitada na cama dela, ali perto. Podíamos ter-nos deitado juntos, mas estava demasiado calor para encostar a carne à carne. Ela suspirou.

Há uma hora, pediste-me que te cantasse uma canção, senhor. Uma hora antes, pediste-me que te lavasse os pés com um pano molhado.

Sim, e a canção era doce e o pano fresco. Mas ainda não consegui adormecer. Nem tu. Por isso, conta-me uma história.

Ela levou as costas da mão aos lábios e bocejou. O seu cabelo preto brilhou à luz das estrelas. A camisa de noite de linho colava-se-lhe como gaze fina às linhas flexíveis do corpo. Até a bocejar ela era bela uma escrava bela de mais para ser propriedade de um homem vulgar como tu, pensava eu muitas vezes. A Fortuna sorrira-me quando a encontrara naquele mercado de escravos de Alexandria, dez anos antes. Teria sido eu a escolher Betesda, ou ela a escolher-me a mim?

Por que não contas tu uma história? sugeriu Betesda. Adoras falar sobre o teu trabalho.

Agora queres que seja eu a adormecer-te. Ficas sempre entediada quando falo do meu trabalho.
Não é verdade protestou ela em voz sonolenta. Conta-me outra vez como ajudaste Cícero a resolver o problema da mulher de Arrécio. Ainda se fala muito disso no mercado, diz-se que Gordiano, o Descobridor, deve ser o homem mais inteligente de Roma, para ter descoberto a solução de um caso tão sórdido.

És uma intriguista, Betesda. Achas que consegues lisonjear-me o suficiente para fazer de mim o teu contador de histórias? És uma escrava, e eu estou a ordenar-te que me contes uma história!

Ela ignorou-me.

Então conta-me outra vez o caso de Sexto Róscio disse. Antes dele, o grande Cícero nunca tinha defendido um homem acusado de assassínio, e muito menos um homem acusado de assassinar o próprio pai. Não teria conseguido nada sem a ajuda de Gordiano, o Descobridor! Pensar que tudo aquilo terminaria contigo a matar um gigante que vinha a sair da Cloaca Máxima, enquanto Cícero pronunciava o seu discurso no Fórum!

Não gostava nada que fosses a minha biógrafa, Betesda. O homem não era propriamente um gigante, não fui propriamente eu quem o matou e, embora a coisa se tenha passado na latrina pública que fica por trás do Templo de Vénus, o gigante isto é, o homem não vinha a sair. E também não foi assim que o caso terminou!

Deixámo-nos estar deitados no escuro por longos momentos, a ouvir o canto dos grilos. Uma estrela cadente atravessou os céus, levando Betesda a murmurar uma encantação a um dos seus estranhos deuses-animais egípcios.

Fala-me do Egipto disse eu. Nunca falas de Alexandria. É uma cidade tão extraordinária. Tão antiga. Tão misteriosa.

Ah! Vocês, os Romanos, chamam antiga a qualquer coisa que tenha surgido antes do vosso Império. Alexandre e a sua cidade não eram sequer um sonho na mente de Osíris quando Khufu construiu a grande pirâmide. Mênfis e Tebas já eram antigas quando os Gregos partiram para a guerra com Tróia.

Por causa de uma mulher comentei eu.

O que mostra que não eram completamente estúpidos. Claro que foi uma idiotice pensarem que Helena estava escondida em Tróia, quando na realidade ela estava em Mênfis com o Rei Proteu.
O quê? Nunca tinha ouvido tal coisa!

No Egipto, toda a gente conhece essa história.

Mas isso implica que a destruição de Tróia foi absurda. E se assim é, dado que a raça romana foi fundada por Eneias, o guerreiro troiano que fugiu de Tróia, o destino de Roma assenta numa cruel piada dos deuses. Sugiro que guardes essa história para ti, Betesda, e não andes a divulgá-la pelo mercado.

Tarde de mais. Apesar da escuridão, consegui distinguir um sorriso perverso nos seus lábios.

Permanecemos em silêncio por momentos. Uma brisa suave agitou as rosas. Por fim, Betesda disse:

Sabes, os homens como tu não são os únicos capazes de resolver mistérios e enigmas.

Queres dizer que os deuses também sabem fazê-lo?

Não, que as mulheres também sabem fazê-lo.

Ai sim?

Sim. Ao pensar em Helena no Egipto, lembrei-me da história do Rei Rampsinito e da sua casa do tesouro, e de que tinha sido uma mulher a resolver o mistério da prata desaparecida. Mas calculo que já conheças a história, senhor, porque é muito famosa.

Do Rei Rampsi-quê? - perguntei eu.

Betesda fungou delicadamente. Por vezes, é difícil para ela viver num meio culturalmente tão atrasado como Roma. Sorri às estrelas e fechei os olhos.

Betesda, ordeno-te que me contes a história do Rei Rampsi-seja lá o que for e da sua casa do tesouro.

Muito bem, senhor. O Rei Rampsinito foi o sucessor do Rei Proteu (o anfitrião de Helena) e o antecessor do Rei Khufu.

Que construiu a Grande Pirâmide. Khufu deve ter sido um rei magnífico.

Um rei terrível, o homem mais odiado na longa história do Egipto.

Mas porquê?

Precisamente por ter construído a Grande Pirâmide. Para o povo, uma pirâmide significa trabalhos intermináveis e impostos terríveis, nada mais. A memória de Khufu é desprezada no Egipto; os Egípcios cospem quando dizem o nome dele. Os visitantes de Roma e da Grécia são os únicos que vêem uma coisa maravilhosa quando olham para a pirâmide. Um egípcio olha para a pirâmide e diz: ”Olha, aquela pedra deu cabo das costas do meu tetravô.” Ou então: ”Aquele pórtico levou o meu tetaratio à ruína.” Não, o povo gostava muito mais do Rei Rampsinito.

E que tal era esse Rampsinito?

Era muito rico. Nenhum rei de nenhum reinado teve metade das riquezas dele.

Nem Midas?

Nem Midas. O Rei Rampsinito tinha uma grande fortuna em pedras preciosas e ouro, mas o seu maior tesouro era a prata. Tinha salvas de prata e taças de prata, moedas de prata, espelhos e pulseiras e tijolos compactos de prata maciça e brilhante. A prata era tanta, que ele decidiu construir uma casa do tesouro só para ela.

”Por isso, contratou um homem para projectar e construir essa casa do tesouro, num pátio à saída do quarto dele, incorporando-a no muro que rodeava o palácio. O projecto demorou vários anos a completar: o muro teve de ser cavado, e as pedras maciças da casa do tesouro foram cortadas ao tamanho, polidas e colocadas no lugar. O arquitecto era um homem de sólida inteligência, mas saúde frágil e, embora fosse apenas de meia-idade, quase não viveu o suficiente para ver o seu projecto completado. Morreu no próprio dia em que o enorme tesouro em prata era transportado, peça a peça, para a câmara, cujas portas foram depois fechadas e seladas. Deixou viúva e dois filhos, que acabavam de chegar à idade adulta. O Rei Rampsinito chamou os filhos à sua presença e deu a cada um deles uma pulseira de prata, como penhor da sua gratidão ao pai de ambos.

Não foi assim um grande presente comentei eu.

Talvez não fosse. Dizem que o Rei Rampsinito era um homem prudente e absolutamente imparcial, nem mesquinho nem excessivamente generoso.

Está a fazer-me recordar Cícero. Betesda pigarreou, exigindo silêncio.

Uma vez por mês, o Rei mandava quebrar os selos e passava uma tarde na casa do tesouro, admirando os seus artigos de prata e contando as moedas. Passaram vários meses; o Nilo subiu e desceu, como acontece
todos os anos, e as colheitas foram abundantes. O povo era muito feliz. O Egipto vivia em paz.

”Mas o Rei começou a aperceber-se de um facto perturbador: faltavam algumas peças de prata ao seu tesouro. A princípio, pensou que era imaginação sua, porque não havia maneira de abrir as enormes portas sem quebrar os selos, e os selos só eram quebrados quando ele fazia as suas visitas oficiais. Mas, quando os servidores fizeram o inventário da prata, faltavam mesmo uma série de moedas e pequenos objectos.

”O Rei estava profundamente intrigado. Na visita seguinte, faltavam mais coisas, entre as quais um crocodilo de prata maciça do tamanho do antebraço de um homem, que era uma das peças que o Rei mais apreciava.

”O Rei ficou furioso, e mais intrigado do que nunca. Ocorreu-lhe então colocar armadilhas dentro da casa do tesouro, por forma a que quem andasse a rebuscar as moedas e os cofres acabasse por ser descoberto, ficando preso numa jaula de ferro. E assim fez.

”Claro que, na visita seguinte, descobriu que uma das armadilhas tinha sido despoletada. Porém, dentro da jaula, em vez de um ladrão desesperado e suplicante, encontrou um cadáver. Betesda fez uma pausa ameaçadora.

Naturalmente murmurei eu, olhando sonolento para as estrelas. O pobre ladrão morreu à fome, ou então apanhou um susto de morte quando a jaula lhe caiu em cima.

Talvez. Mas a verdade é que o cadáver não tinha cabeça!

O quê? pestanejei.

Não conseguiram encontrar a cabeça dele.

Que estranho.

Pois é. Betesda acenou gravemente com a cabeça.

E tinha desaparecido mais prata?

Tinha.

Nesse caso, ele devia estar acompanhado por outro ladrão deduzi eu.

Talvez disse Betesda astutamente. Mas o Rei Rampsinito não estava mais perto de resolver o mistério.

”Ocorreu-lhe então que talvez o infeliz ladrão tivesse parentes em Mênfis, caso em que eles gostariam de reaver o corpo, a fim de o purificarem e o enviarem para o outro Mundo. Não era de esperar, evidentemente,
que alguém se apresentasse a reclamar o corpo, pelo que o Rei decidiu expor o cadáver sem cabeça diante das muralhas do palácio. O acto foi anunciado como uma advertência aos ladrões de Mênfis, mas o verdadeiro objectivo era capturar alguém que soubesse alguma coisa acerca do estranho destino do ladrão. O Rei ordenou aos dois guardas em quem depositava maior confiança uns sujeitos grandes e barbudos, os mesmos que habitualmente protegiam os selos da casa do tesouro que vigiassem o cadáver dia e noite, e apanhassem qualquer pessoa que vissem a chorar ou a lamentar-se.

”Na manhã seguinte, logo que se levantou, o Rei Rampsinito correu para as muralhas do palácio, para espreitar lá do alto, porque o mistério da prata desaparecida passara a dominar os seus pensamentos, estivesse a dormir ou acordado. E que viu ele? Os dois guardas estavam profundamente adormecidos, cada um deles com metade da cara barbeada, e o cadáver sem cabeça tinha desaparecido!

”Rampsinito ordenou que os guardas fossem levados à sua presença. Tresandavam a vinho e estavam confusos, mas lembravam-se de ter visto passar um mercador ao pôr do Sol, puxando uma carroça cheia de odres de vinho. Um dos odres vazava mal. Os guardas pegaram num copo cada e foram apanhar um pouco do vinho que corria, dando graças pela sua sorte. O mercador tinha ficado indignado sem qualquer razão, porque os guardas não tinham culpa nenhuma de que o odre estivesse a entornar. Conseguiram acalmar o mercador com palavras tranquilizadoras, e ele parou um bocado junto à muralha do palácio, explicando-lhes que estava muito cansado e irritado porque tinha tido um longo dia de trabalho. Para compensar a sua falta de cortesia, ofereceu a cada guarda um copo do seu melhor vinho. Nenhum dos guardas se recordava do que se tinha passado depois, ou pelo menos era o que ambos afirmavam. Aquilo de que se lembravam a seguir era de ser madrugada, de o Rei Rampsinito estar a gritar com eles do alto do muro do palácio, de terem metade da cara barbeada e de o corpo sem cabeça ter desaparecido.

Betesda interrompi eu, assustando-me ligeiramente com o súbito salto de um grilo entre os teixos, espero que isto não seja uma daquelas histórias egípcias de terror, em que os cadáveres andam a passear sozinhos.
Ela estendeu a mão e fez uma suave dança com as unhas compridas no meu braço nu, arrepiando-me todo. Eu dei-lhe uma pancadinha nos dedos, para os afastar. Ela inclinou-se para trás, e soltou uma gargalhada baixa e gutural. Momentos depois, prosseguiu.

Quando lhes pediram que descrevessem o mercador de vinho, os guardas mostraram-se vagos. Um dizia que ele era jovem, o outro que era de meia-idade. Um dizia que ele tinha uma barba comprida, o outro insistia em que tinha apenas uma barba rala.

O vinho, ou o que havia nele, tinha-lhes embotado os sentidos comentei eu. Presumindo que estavam a dizer a verdade.

Fosse como fosse, Rampsinito mandou reunir todos os mercadores de vinho de Mênfis, e fê-los desfilar diante dos guardas.

E os guardas reconheceram o culpado?

Não reconheceram. O Rei Rampsinito não ficou a saber mais do que já sabia. Para piorar as coisas, os dois guardas adormecidos e com metade da cara barbeada tinham sido vistos de manhã por alguns mercadores, ao abrirem as lojas, e já corria pela cidade a notícia de que os guardas do Rei tinham sido cobertos de ridículo. Os boatos sobre o cadáver sem cabeça e os furtos ao tesouro espalharam-se, e não tardou que Mênfis inteira coscuvilhasse nas costas do Rei. O Rei Rampsinito estava muito incomodado.

Não é de espantar!

Tão incomodado, que ordenou que os guardas andassem com metade da cara por barbear durante um mês, para toda a gente ver.

E foi um castigo bastante suave.

Para aqueles tempos, em Mênfis, nem tanto. Ser visto com metade da cara por barbear era tão vergonhoso como um nobre romano ser visto no Fórum de toga e de sandálias, em vez de sapatos.

Impensável!

Mas a fortuna é uma espada de dois gumes, como vocês dizem, e o facto de esta coscuvilhice se ter divulgado acabou por ser bom para o Rei, porque chegou rapidamente aos ouvidos de uma jovem cortesã que vivia por cima de uma loja de tapetes, perto dos portões do palácio. Chamava-se Naia, e já estava a par dos murmúrios relativos ao mistério que se vivia no interior dos muros do palácio, porque tinha muitos clientes que faziam parte da corte. Meditando em tudo aquilo que tinha ouvido acerca do caso, e em tudo aquilo que sabia quanto à casa do tesouro e à maneira como tinha sido construída e era guardada, pareceu-lhe que conhecia a solução do mistério.

”Naia podia ter ido falar imediatamente com o Rei e apontado o dedo aos ladrões, mas não o fez por duas razões. Primeiro, não dispunha de provas; e segundo, como já te disse, o Rei não era famoso por dar recompensas generosas. Podia ter-se limitado a agradecer-lhe e a mandá-la embora com uma pulseira de prata! Por isso, quando foi falar com Rampsinito, disse-lhe apenas que tinha concebido um plano para resolver o mistério, e que a sua implementação levaria tempo e custaria dinheiro; se o esquema resultasse em nada, ela pagaria os prejuízos...

Péssima ideia! Eu exijo sempre honorários e dinheiro para as despesas, quer resolva o mistério, quer não.

- ... mas, se conseguisse identificar os ladrões e explicar como é que a prata tinha sido roubada, Rampsinito teria de lhe pagar tanta prata quanta a sua mula conseguisse carregar, e ainda conceder-lhe um desejo.

”A princípio, o Rei achou que o preço era excessivo; mas, quanto mais pensava no assunto, mais justo lhe parecia. Afinal, já lhe tinha desaparecido da Casa do Tesouro mais prata do que qualquer mula poderia carregar, e continuaria a desaparecer se o ladrão não fosse detido. E que género de desejo poderia uma cortesã expressar que o Rei de todo o Egipto não tivesse poder para lhe conceder com um simples gesto de mão? Além disso, não lhe parecia provável que uma jovem cortesã conseguisse resolver o mistério que tinha confundido o Rei e todos os seus conselheiros. Aceitou o contrato.

”Naia fez algumas investigações. Não tardou a descobrir o nome e o domicílio do homem de quem suspeitava. Mandou um criado vigiar-lhe todos os movimentos e avisá-la imediatamente quando o homem voltasse a passar por baixo da sua janela.

”Alguns dias depois, o criado entrou a correr no quarto dela, ofegante, e disse-lhe que fosse até à janela. Um jovem de roupas e sandálias novas observava uns tapetes dispendiosos em exposição à porta da loja do andar de baixo. Naia sentou-se à janela e mandou o criado levar uma mensagem ao homem.

Acusando-o de tudo? perguntei eu.
Claro que não. O criado disse ao jovem que a sua senhora o tinha observado da janela, percebera que se tratava de um homem de bom gosto e de meios, e desejava convidá-lo para sua casa. Quando o jovem ergueu os olhos, Naia estava à janela, numa posição tal, que poucos homens teriam resistido ao convite.

Essa Naia comentei eu começa a recordar-me outra egípcia que eu conheço...

Betesda ignorou-me.

O jovem subiu imediatamente ao quarto dela. O criado serviu-lhes vinho fresco e fruta, e depois sentou-se à porta, do lado de fora, a tocar flauta baixinho. Naia e o convidado conversaram durante algum tempo, e depressa se tornou evidente que o jovem a desejava ardentemente. Mas Naia insistiu em que começassem por jogar um jogo. Descontraído pelo calor, com a língua solta pelo vinho e pelo desejo, o jovem concordou. E o jogo era o seguinte: cada um deles revelaria ao outro dois segredos, a começar pelo jovem. Qual tinha sido o maior crime que cometera na sua vida? E qual fora a sua mais inteligente proeza?

”Ao ouvir estas perguntas, o jovem ficou suspenso, e uma sombra de tristeza atravessou-lhe o rosto, seguida de uma gargalhada. ”Não tenho dificuldade nenhuma em te responder” disse, ”mas não sei bem que resposta se adequa melhor a que pergunta. O maior crime que Já cometi foi cortar a cabeça ao meu irmão. E a minha mais inteligente proeza foi voltar a juntar o corpo à cabeça. Ou talvez tenha sido o inverso!” Sorriu com ar pesaroso e olhou para Naia com os olhos cheios de desejo. ”E tu?”, sussurrou.

”Naia suspirou. ”Tal como tu”, respondeu, ”não tenho bem a certeza de qual é a resposta mais adequada a cada pergunta. Acho que a minha maior proeza foi descobrir o ladrão que anda a roubar a Casa do Tesouro do Rei Rampsinito, e o meu maior crime será quando o entregar ao rei! Ou talvez seja o contrário...”

”O jovem teve um sobressalto, e percebeu tudo. Ergueu-se e correu para a janela, mas uma grande jaula de ferro, igual à que tinha apanhado o irmão, desceu do tecto sobre ele. Não podia fugir. Naia mandou o criado chamar os guardas do Rei.

””E agora”, disse, ”enquanto esperamos, talvez possas explicar-me aquilo que ainda não percebi na forma como assaltavas o tesouro do Rei.”
”A princípio, o jovem estava furioso, mas depois começou a chorar, apercebendo-se do destino que lhe estava reservado. A morte era o castigo mais suave que podia esperar. O mais provável era cortarem-lhe as mãos e os pés, obrigando-o a viver o resto da vida aleijado, e a pedir pelas ruas. ”Mas tu já deves saber tudo”, gemeu. ”Como conseguiste descobrir que era eu?”

”Naia encolheu os ombros. ”Por momentos, pensei que os dois guardas deviam estar conluiados, e que o cadáver sem cabeça era um terceiro cúmplice, morto por eles ao ser capturado, a fim de não poder denunciá-los. Mas os guardas estavam a par das armadilhas, portanto podiam tê-las evitado; e duvido de que algum homem de Mênfis se tivesse permitido aparecer com metade da cara por barbear na presença do Rei, ainda que fosse para disfarçar a própria culpa. Além disso, toda a gente afirma que as portas da casa do tesouro não podem ser abertas sem se quebrarem os selos. Por isso, o estratagema devia ser outro. E quem, senão o arquitecto, poderia tê-lo planeado? E quem poderia conhecer a entrada secreta, senão os dois filhos do arquitecto?”

””É verdade”, disse o jovem. ”O meu pai mostrou-no-la antes de morrer uma entrada secreta que se abre carregando numa pedra do muro do palácio, impossível de descobrir a não ser que se conheçam as medidas exactas. Dois homens, ou mesmo um só, podem abri-la com um simples empurrão, retirar da Casa do Tesouro tudo o que conseguirem transportar consigo, e voltar a selar a porta ao sair, de forma a que ninguém jamais a descubra. Eu disse ao meu irmão que estávamos a levar demasiado, e que o Rei ia perceber; mas o nosso pai tinha-nos dito que o Rei o prejudicara gravemente nos seus honorários e que, através daquele estratagema, teríamos sempre uma fonte estável de rendimento.”

””Mas depois o teu irmão foi apanhado na jaula de ferro”, disse Naia.

””Sim. Conseguia meter a cabeça de fora das barras, mas não conseguia sair. Suplicou-me que lhe cortasse a cabeça e a levasse comigo; de outra maneira, podiam reconhecê-lo, e toda a nossa família ficaria arruinada.”

””E tu fizeste o que ele te pediu. Deve ter sido terrível para ti! Foste muito corajoso! Mas eras bom irmão. Foste buscar o corpo, uniste-o à cabeça e enviaste-o para o outro Mundo.”
””Talvez não o tivesse feito, mas a minha mãe insistiu. Disfarcei-me e enganei os guardas, dando-lhes vinho drogado. Durante a noite, cortei o corpo do meu irmão aos bocados e meti-o na carroça, entre os odres de vinho. Antes de o levar embora, barbeei os guardas, para que o Rei não desconfiasse de que eles tinham conspirado comigo.”

”Naia olhou para a janela. ”E aí vêm os dois guardas, a correr pela praça fora.”

””Por favor”, pediu-lhe o jovem, espetando a cabeça para fora da jaula, ”corta-me a cabeça! Deixa-me partilhar o destino do meu irmão! De outra maneira, quem sabe que terríveis castigos me infligirá o Rei!”

”Naia pegou numa espada comprida e fingiu considerar essa hipótese. ”Não”, disse por fim, já os passos pesados dos guardas se ouviam nas escadas. ”Acho que vamos deixar a justiça seguir o seu curso.”

”E assim, o jovem foi levado à presença do Rei Rampsinito, juntamente com Naia, que ia reclamar a sua recompensa. A prata roubada foi encontrada num esconderijo, em casa do jovem, e reposta na Casa do Tesouro. A entrada secreta foi definitivamente selada, e Naia foi autorizada a carregar uma mula com tanta prata quanta o animal conseguisse transportar.

”Quanto ao destino do ladrão, Rampsinito anunciou que primeiro autorizaria os guardas desonrados a vingarem-se dele, e na manhã seguinte decidiria do castigo a aplicar-lhe: decapitá-lo ou cortar-lhe as mãos e os pés.

”Quando ele ia a sair da sala de audiências, Naia chamou-o. ”Lembras-te do resto do nosso contrato, grande Rei?”

”Rampsinito voltou-se para trás e olhou para ela, espantado.

””Disseste que me concederias um desejo”, recordou-lhe Naia.

””Ah, sim”, concordou o Rei, acenando com a cabeça. ”E que desejo é esse?

””Desejo que perdoes a este jovem e o libertes!”

”Rampsinito olhou-a irritado. O que ela pedia era impossível mas ele não tinha maneira de lho negar. Depois sorriu. ”Por que não?”, respondeu. ”O mistério está resolvido, a prata foi recuperada, a entrada secreta foi selada. Eu pensei que este ladrão era o homem mais inteligente do Egipto mas tu ainda és mais inteligente, Naia!”
O céu foi atravessado por outra estrela cadente. Os grilos cantaram. Eu estendi os braços e as pernas.

E calculo que se tenham casado um com o outro.

É o que diz a história. É natural que uma mulher tão inteligente como Naia se decidisse por um homem tão inteligente como o ladrão. Com a prata que ela tinha obtido e a esperteza de ambos, não tenho dúvidas de que foram muito felizes.

E o Rei Rampsinito?

A sua memória continua a ser reverenciada como último dos reis virtuosos, antes de Khufu ter iniciado uma longa dinastia de calamidades. Dizem que, depois de resolvido o mistério da prata desaparecida, ele desceu ao local a que os Gregos e os Romanos chamam Hades e jogou aos dados com Deméter. Ganhou um jogo e perdeu outro. Ao regressar, ela deu-lhe um guardanapo de ouro. E é por isso que os sacerdotes tapam os olhos com panos amarelos quando seguem os chacais até ao Templo de Deméter na noite do festival da Primavera...

Devo ter passado pelo sono, porque perdi o resto da história que Betesda começou a contar nesse momento. Quando acordei, ela estava calada, mas pelo ritmo da sua respiração percebi que ainda estava acordada.

Betesda sussurrei. Qual foi o teu maior crime? E a tua proeza mais inteligente?

Momentos depois, ela disse:

Acho que ainda não cometi nenhum deles. E os teus?

Chega aqui, que eu conto-tos ao ouvido.

A noite tinha refrescado. Do vale do Tibre, subia agora uma brisa suave e regular. Betesda levantou-se da sua cama e aproximou-se da minha. Eu encostei os lábios ao ouvido dela, mas não me pus a sussurrar segredos. Dedicámo-nos a outras coisas.

No dia seguinte, desci à rua dos ourives e comprei-lhe uma pulseira de prata uma recordação da noite em que ela me tinha contado a lenda do Rei Rampsinito e da sua Casa do Tesouro.
Um Testamento é uma Boa Maneira

Lúcio Cláudio era um nobre de dedos grossos, faces rechonchudas e nariz cor de cereja, cabeça vermelha, coberta por uma grinalda de cabelo ruivo ondulado e pouco abundante, e uma boquinha pequena, de lábios carnudos.

O nome Cláudio não o distinguia apenas como nobre, mas também como patrício, como membro daquele número reduzido de famílias antigas que tornaram Roma grandiosa (ou que, pelo menos, convenceram os restantes romanos disso). Nem todos os patrícios são ricos; até as melhores famílias podem degenerar ao longo dos séculos. Mas, pelo anel de ouro que Lúcio usava, e os outros anéis que faziam companhia a esse, um de prata e lápis-lazúli, outro de ouro branco com uma pedra de vidro verde sem mácula, suspeitei de que era efectivamente bastante rico. Os anéis eram complementados por um fio de ouro, de onde pendiam pedras de vidro, que reluziam no meio da floresta de pêlo ruivo que lhe cobria o peito carnudo. Vestia uma toga da mais requintada lã, e calçava sapatos de couro, elegantemente trabalhados.

Era a própria imagem do patrício abastado: não era belo, nem parecia especialmente inteligente, mas vestia-se e arranjava-se de forma impecável. Os seus olhos verdes cintilavam e os seus lábios carnudos não tinham dificuldade em formar um sorriso, que revelava um homem com uma personalidade naturalmente agradável. Rico, bem-nascido e com boa disposição, parecia-me o género de homem a quem o mundo não devia suscitar preocupações mas era óbvio que suscitava, pois de outra maneira não teria recorrido a mim.

Sentámo-nos no jardinzinho da minha casa do Monte Esquilino. Antigamente, um homem com o estatuto social de Lúcio nunca seria visto a entrar em casa de Gordiano, o Descobridor; mas nos últimos anos eu adquiri uma certa respeitabilidade. Acho que a mudança começou após o meu primeiro caso para o jovem advogado Cícero. Aparentemente, Cícero andava a dizer coisas simpáticas sobre mim aos seus colegas dos tribunais, contando-lhes que chegara a alojar-me em sua casa e que Gordiano, furão profissional e amigo de assassinos, até sabia usar uma taça e uma colher, e os lavabos domésticos, e até sabia qual era a diferença entre uns e outros.

Lúcio Cláudio encheu a cadeira que eu tinha puxado para ele até quase transbordar. Remexeu-se um pouco, nervosamente, brincou com os anéis, depois sorriu timidamente e ergueu a taça de vinho.

Mais um pouco! disse, com uma careta insinuante e atraente.

Com certeza. bati as palmas. Betesda! Mais vinho para o meu convidado. Traz do melhor, da garrafa verde de cerâmica.

Betesda, sentada de pernas cruzadas ao lado de um pilar, obedeceu meia amuada, levantando-se devagar e desaparecendo dentro de casa. Os seus movimentos tinham a graça de uma flor a desabrochar. Lúcio ficou a observá-la, e engoliu em seco.

Uma escrava muito bela sussurrou.

Obrigado, Lúcio Cláudio. Esperava que ele não propusesse comprar-ma, como fazem muitos dos meus clientes abastados. Mas esperei em vão.

Presumo que não consideras... começou ele.

Infelizmente, não, Lúcio Cláudio.

Mas eu ia dizer...

Preferia vender a minha costela extra.

Ah. ele acenou gravemente com a cabeça, depois franziu a testa carnuda. O que foi que disseste?

Oh, é uma expressão disparatada que Betesda costuma usar. De acordo com os antepassados do lado do pai dela, a primeira mulher foi feita a partir de uma costela retirada do primeiro homem, por um deus chamado Jeová. É por isso que alguns homens parecem ter uma costela a mais, que não está emparelhada com nenhuma do outro lado.

Ai sim? Lúcio tentou apalpar as costelas, mas tenho a impressão de que tinha carne a mais para conseguir chegar a elas.

Bebi um gole de vinho e sorri. Betesda tinha-me contado muitas vezes a história do primeiro homem e da primeira mulher hebraicos; sempre que a conta, eu agarro-me ao lado e finjo balir de dor, até ela começar a fazer beicinho e desatarmos os dois a rir. Parece-me uma história muito peculiar, mas não é mais estranha do que as histórias que a mãe dela, que era egípcia, lhe contava sobre deuses de cabeça de chacal e crocodilos que andavam de pé. Se for verdade, esse deus hebraico é digno de respeito. Nem Júpiter pode reclamar ter criado alguma coisa com metade do requinte de Betesda.

Já tinha despendido tempo suficiente a pôr o meu convidado à-vontade.

Diz-me, Lúcio Cláudio, o que te perturba?

Vais achar-me muito tolo... começou ele.

Não vou não garanti-lhe, pensando que provavelmente ia.

Bem, foi anteontem ou terá sido no dia anterior? Foi no dia a seguir aos Idos de Maio, disso tenho eu a certeza, em que dia foi...?

Julgo que foi anteontem disse eu. Betesda reapareceu e deixou-se ficar nas sombras do pórtico, à espera de um aceno de cabeça da minha parte. Eu abanei a cabeça, indicando-lhe que esperasse. Outro copo de vinho podia ajudar a soltar a língua de Lúcio, mas ele já estava suficientemente confuso. E o que foi que se passou anteontem?

Eu andava por aqui perto bem, não era exactamente aqui, no Monte Esquilino, andava pelo vale, na Subura...

A Subura é uma zona fascinante disse eu, tentando imaginar que atractivo poderiam aquelas ruas aparatosas ter para um homem que provavelmente vivia numa mansão no Monte Palatino. Casas de jogo, bordéis, tabernas e criminosos a contratar foi o que me ocorreu.

Compreendes prosseguiu ele, os meus dias são profundamente ociosos. Nunca tive interesse pela política nem pela finança, como outros membros da minha família; sinto-me inútil no Fórum. Tentei viver no campo, mas não sou grande agricultor; as vacas aborrecem-me. Também não gosto de ter de receber estranhos a jantar em minha casa, todos muito mais espertos do que eu, e eu obrigado a pensar em coisas que os divirtam é uma enorme maçada. Maço-me com grande facilidade, compreendes. Maço-me tanto, tanto.

- Sim? respondi eu, suprimindo um bocejo.

Por isso, passeio pela cidade. Vou ao Tarento ver os velhos aliviar as articulações nas correntes de água quente. Ao Campo de Marte ver os corredores de carros treinar os cavalos. Subo e desço o Tibre, vou aos mercados de peixe, aos mercados de gado e aos mercados de produtos estrangeiros. Gosto de observar as outras pessoas a trabalhar, delicio-me a vê-las tratar dos seus assuntos com determinação. Gosto de ver as mulheres a regatear os preços com os vendedores, de ouvir um construtor a discutir com os pedreiros, de reparar no facto de as mulheres fecharem as portadas dos bordéis quando sentem um grupo de gladiadores arruaceiros a descer a rua. Todas estas pessoas parecem tão vivas, tão cheias de objectivos, tão... tão o oposto de entediadas. Compreendes, Gordiano?

Acho que sim, Lúcio Cláudio.

Então deves compreender por que motivo adoro a Subura. Que bairro! Quase se sente o cheiro da paixão, do vício! Os edifícios cheios de gente, os odores desconhecidos, o espectáculo da humanidade! As ruelas estreitas e sinuosas, os becos escuros e húmidos, os sons provenientes das janelas dos andares superiores, de gente desconhecida a discutir, a rir, a fazer amor, a Subura é um local realmente misterioso e cheio de vitalidade!

A sordidez não é uma coisa assim tão misteriosa sugeri eu.

Ah, mas é insistiu Lúcio; e suponho que, para ele, era mesmo.

Fala-me da tua aventura de há dois dias, no dia a seguir aos Idos.

Com certeza. Mas pensei que tinhas mandado a rapariga trazer mais vinho.

Bati as palmas. Betesda saiu das sombras. A luz do Sol fez brilhar as suas longas tranças azul-pretas. Enquanto ela enchia a taça de Lúcio, ele parecia incapaz de erguer os olhos. Engoliu em seco, sorriu timidamente e acenou vigorosamente com a cabeça ao ser interrogado sobre a qualidade do meu melhor vinho, que não devia achar suficiente para o dar, sequer, aos seus escravos.

Depois prosseguiu

Naquela manhã, muito cedo, eu ia a descer uma das ruas laterais da Subura, a assobiar uma cançoneta, apercebendo-me de que a Primavera fizera brotar todo o género de florinhas e rebentos entre as lajes do pavimento. A beleza afirma-se até aqui, no meio de toda esta sordidez, pensei, e considerei a hipótese de escrever um poema, só que não sou grande coisa a escrever poemas...

Foi então que aconteceu qualquer coisa sugeri eu.

Oh, sim. Um homem gritou por mim de uma janela do segundo andar. ”Vem depressa, cidadão! Está um homem a morrer!”, disse-me ele. Eu hesitei. Afinal, podia estar a tentar atrair-me para o edifício para me roubar, ou pior, e eu nem sequer trazia um escravo comigo, para me proteger, gosto de sair sozinho, compreendes. Depois, apareceu outro homem à janela, e disse: ”Por favor, cidadão, precisamos da tua ajuda. O jovem está a morrer e fez um testamento precisa de sete cidadãos que o testemunhem e já temos seis. Não queres subir?”

”Bem, subi mesmo. Não é frequente precisarem de mim seja para o que for. Não podia recusar. O apartamento era um conjunto agradavelmente mobilado de compartimentos, nada miserável, e absolutamente nada ameaçador. Num deles, estava um homem deitado num canapé, embrulhado num cobertor, a gemer e a tremer. Outro homem mais velho cuidava dele, passando-lhe um pano húmido pela testa. Havia mais seis homens no quarto. Nenhum deles parecia conhecer os outros, aparentemente, tinham sido todos chamados da rua, um por um.

Para serem testemunhas do testamento do moribundo?

Sim. Ele chamava-se Asúvio, era da cidade de Larino. Estava em Roma a passar uns dias, quando fora afectado por uma doença terrível. Estava deitado na cama, alagado em suor e a tremer por causa da febre. A doença envelhecera-o terrivelmente segundo o amigo, não tinha ainda vinte anos, mas tinha o rosto macilento e coberto de rugas. Tinham chamado diversos médicos, mas nada haviam podido fazer. O jovem Asúvio receava morrer a qualquer momento. Não tendo feito testamento afinal, era muito jovem, pedira ao amigo que lhe trouxesse uma tabuinha de cera e um estilete. Não li o documento quando este circulou entre nós, claro, mas vi que tinha sido escrito por duas pessoas diferentes. Ele próprio devia ter escrito as primeiras linhas, numa letra hesitante e insegura; calculo que o amigo tenha terminado o documento a seu pedido. Eram necessárias sete testemunhas, de maneira que, para apressar as coisas, o homem mais velho limitou-se a pedir a cidadãos que fossem a passar na rua para subirem lá acima. Na nossa presença, o pobre rapaz escrevinhou o seu nome com o estilete e carimbou a cera com o próprio anel.

Depois, tu assinaste e selaste o documento?

Sim, eu e os outros. Depois, o homem mais velho agradeceu-nos e pediu-nos que nos fôssemos embora, para que o jovem Asúvio pudesse

esperar o seu fim repousando em silêncio. Não me custa admitir que chorava copiosamente ao descer para a rua, e não era o único. Deambulei pela Subura numa disposição melancólica, pensando no destino daquele jovem, na pobre família que deixara em Larino, e na forma como receberiam a notícia. Lembro-me de passar diante de um bordel situado no final do quarteirão, a pouco mais de cem passos do quarto do moribundo, e de me sentir impressionado pelo contraste, pela ironia que era haver tanto prazer e consolo por detrás daquelas paredes, quando apenas umas portas abaixo a boca de Plutão se abria para engolir um rapaz do campo moribundo. Lembro-me de pensar que belo poema tal ironia poderia inspirar...

Certamente que sim, nas mãos de um poeta de talento reconheci rapidamente. E chegaste a saber o que tinha acontecido ao rapaz?

Umas horas mais tarde, depois de passear pela cidade, sentindo-me um tanto perturbado, dei por mim na mesma rua, como se a mão invisível de um deus me tivesse conduzido até lá. Pouco passava do meio-dia. O senhorio disse-me que o jovem Asúvio tinha morrido pouco depois de eu me ter ido embora. O homem mais velho chamava-se Opiânico, e também era de Larino tinha chamado o senhorio ao quarto, a chorar e a lamentar-se, e mostrara-lhe o corpo envolvido num lençol. Mais tarde, o senhorio tinha visto Opiânico e outro homem de Larino transportarem o corpo pelas escadas abaixo e colocarem-no sobre uma carroça, para o levarem aos embalsamadores da Porta Esquilina. Lúcio suspirou. Passei a noite inteira às voltas na cama, a meditar na inconstância das Parcas e no modo como a Fortuna pode voltar as costas a um jovem que ainda agora começava a viver. Pus-me a pensar em todos os dias que tinha perdido, nas horas de tédio...

Antes que ele pudesse conceber mais um poema por nascer, eu acenei a Betesda, indicando-lhe que lhe enchesse a taça, e a minha também.

É uma história triste, Lúcio Cláudio, mas não invulgar. A vida na cidade é cheia de tragédias. Todos os dias morrem desconhecidos à nossa volta. Nós perseveramos.

Mas a questão é justamente essa o jovem Asúvio não morreu! Esta manhã, vi-o a passear pela Subura, sorrindo de felicidade. É verdade que ainda estava com um aspecto um tanto macilento, mas não há dúvida de que andava pelo seu pé.

Talvez te tenhas equivocado.

É impossível. Vinha com o homem mais velho, Opiânico. Chamei-os do outro lado da rua. Opiânico viu-me ou pelo menos penso que me viu, mas deu o braço ao jovem e viraram a esquina, desaparecendo ambos dentro de uma loja. Fui atrás deles, mas ia a passar uma carroça e o estúpido do condutor quase me atropelou. Quando finalmente entrei na loja, já lá não estavam. Devem tê-la atravessado e saído pela rua das traseiras; depois desapareceram.

Encostou-se na cadeira e bebeu um gole de vinho.

Sentei-me à sombra, ao lado da fonte pública, e tentei pensar no assunto; depois lembrei-me do teu nome. Julgo que foi Cícero quem me falou de ti, aquele jovem advogado que me fez uns trabalhos o ano passado. Não consigo imaginar quem mais poderá ajudar-me. O que dizes, Gordiano? Estarei louco? Ou será verdade que as sombras dos mortos circulam por este mundo em pleno dia?

A resposta a ambas as perguntas pode ser sim, Lúcio Cláudio, mas isso não explica o que se passou. Por aquilo que me disseste, penso que deve estar a preparar-se qualquer coisa bastante tortuosa e totalmente humana. Mas diz-me, o que te preocupa? Não conheces nenhum desses homens? Qual é o teu interesse neste mistério?

Não compreendes, Gordiano, depois de tudo o que te contei? Passo os meus dias num tédio ocioso, espreitando pelas janelas da vida das outras pessoas. Agora, aconteceu uma coisa que me interessou. Eu punha-me a investigar pessoalmente, só que o enorme volume do seu corpo estremeceu ligeiramente não sou propriamente corajoso...

Eu olhei de esguelha para as jóias brilhantes que ele trazia nos dedos e no pescoço.

Nesse caso, devo dizer-te que não sou propriamente barato.

E eu não sou propriamente pobre.

Lúcio insistiu em acompanhar-me, embora eu o tivesse avisado de que, se ele receava o tédio, era provável que as minhas investigações iniciais fossem mais martirizantes do que ele poderia suportar. Andar na Subura à procura de um par de desconhecidos de fora da cidade não era

bem a minha ideia de actividade excitante, mas Lúcio queria seguir todos os meus passos. Limitei-me a encolher os ombros e a permitir-lho; se lhe apetecia andar atrás de mim como um cachorro, o certo é que me pagava o suficiente para poder usufruir desse privilégio.

Comecei na casa onde o jovem tinha supostamente morrido, e onde Lúcio fora testemunha da assinatura do testamento. O senhorio nada mais tinha a dizer do que aquilo que já tinha comunicado a Lúcio até eu dar uma cotovelada ao meu cliente, indicando-lhe que agitasse a bolsa das moedas. Os tinidos musicais induziram o senhorio a cantar.

O homem mais velho, Opiânico, tinha arrendado um quarto durante mais de um mês. Ele e um círculo de amigos mais jovens de Larino eram muito dados ao deboche o senhorio deduzira esse facto do cheiro azedo a vinho entornado que provinha do quarto, das ruidosas festas de jogo que organizavam, e da regular parada de prostitutas do bordel do fundo da rua que os visitava.

E o rapaz mais jovem, Asúvio, aquele que morreu? - perguntei eu.

Sim, o que tem ele?

Era igualmente debochado? O senhorio encolheu os ombros.

Sabes como é estes jovens das cidades pequenas, especialmente os rapazes que têm algum dinheiro, vêm até Roma e querem viver um pouco.

É triste que, em vez disso, este tenha morrido.

Isso não teve nada a ver comigo protestou o senhorio. A minha casa é segura. O rapaz não foi assassinado num dos meus quartos. Adoeceu e morreu.

Pareceu-te especialmente frágil?

Nem pensar, mas o deboche pode arruinar a saúde de um homem.

Mas não num mês.

Quando a doença ataca, ataca mesmo; nem homem nem deus podem prolongar o tempo de um homem quando as Parcas calcularam a extensão da sua vida.

Palavras sábias concordei eu. Tirei algumas moedas da bolsa de Lúcio e coloquei-as na palma da mão estendida do homem.

O bordel do fundo da rua era uma das casas de entretenimento mais respeitáveis, ou seja, mais caras da Subura. Diversos escravos bem-vestidos circulavam à porta, à espera que os seus senhores saíssem. No interior, o pavimento do pequeno átrio era decorado com um mosaico a preto e branco, de Príapo perseguindo uma ninfa dos bosques. As paredes estavam cobertas de sumptuosas tapeçarias vermelhas e verdes.

A clientela também não era de má qualidade. Enquanto estávamos à espera do dono da casa, passou por nós um cliente a caminho da porta. Era, no mínimo, um magistrado inferior, a avaliar pelo seu anel de sinete de ouro, e parecia conhecer Lúcio, a quem lançou um olhar espantado.

Tu Lúcio Cláudio aqui, no Palácio de Príapo?

Sim, e então, Gaio Fábio?

Nunca me passou pela cabeça que tivesses um vestígio de luxúria no corpo!

Lúcio fungou, olhando para o tecto.

Acontece que vim tratar de um assunto importante, se não te importas.

Estou a ver. Mas claro. Não quero interromper-te! O homem reprimiu uma gargalhada, até sair da porta. Ouvi-o latir na rua.

Harrump! Ele que se ria e fale de mim nas minhas costas disse Lúcio. Vou compor um poema satírico para me vingar, tão fulminante e tão malévolo, que o palerma vai ficar de tal maneira flácido, que não conseguirá vir a este como foi que ele chamou a este sítio?

Palácio de Príapo soprou uma voz untuosamente amigável. De repente, o dono da casa estava ao nosso lado, apoiando os braços sobre os nossos ombros. E que prazeres posso eu oferecer a espécimes tão distintos da masculinidade romana? O homem sorriu com suavidade, primeiro a mim, depois a Lúcio, depois para as jóias que decoravam o pescoço e os dedos de Lúcio. Lambeu os lábios, avançou para o centro da sala, voltou-se e bateu as palmas. Uma fila de mulheres escassamente vestidas entrou em parada.

Na verdade disse eu apressadamente, fomos enviados por um amigo.

Oh?

Um cliente regular do teu estabelecimento nos últimos dias, segundo creio. Um jovem chamado Asúvio, que estava em Roma de passagem.

Pelo canto do olho, detectei um súbito movimento entre as raparigas. Uma delas, de cabelos cor de mel, tropeçou e estendeu as mãos para recuperar o equilíbrio. Voltou um par de olhos assustados na minha direcção.

Oh, sim, o belo jovem de Larino gorjeou o nosso anfitrião. Não o vemos há pelo menos um dia e meio começava a perguntar a mim próprio o que lhe teria acontecido!

Foi ele que nos enviou disse eu, pensando que, no final de tudo, talvez não fosse exactamente mentira. Mandou-nos buscar a sua rapariga favorita mas eu não me lembro do nome dela. Tu lembras-te, Lúcio?

Lúcio teve um sobressalto; piscou os olhos, que tinha fixos nas raparigas, e que ameaçavam saltar-lhe das órbitas.

Eu? Oh não, não me lembro de nada.

Uma expressão de avareza pura atravessou o rosto do nosso anfitrião.

A favorita dele? Ah, deixa-me pensar... sim, deve ser Merula, é definitivamente Merula! Voltou a bater as palmas, convocando uma escrava que levou um ouvido aos lábios do seu senhor, saindo depois a correr da sala. Momentos depois, chegou Merula, uma etíope estonteante, tão alta que tinha de inclinar a cabeça para passar pela porta. Tinha a pele da cor da meia-noite, e os seus olhos brilhavam como estrelas cadentes.

Lúcio mostrou-se visivelmente impressionado e levou a mão à bolsa, mas eu retive-lha. Ocorreu-me que o nosso anfitrião estava a oferecer-nos a sua propriedade mais dispendiosa, mas não necessariamente a que fora a preferida do jovem Asúvio.

Não, não disse eu, tenho a certeza de que me recordaria de um nome como Merula.

Ah, e também canta como um melro interrompeu o nosso anfitrião.

Apesar disso, julgo que ele nos mandou buscar aquela. Apontei para a loura cor de mel, que me respondeu com uns olhos azuis apreensivos.

A taberna do outro lado da rua era agradavelmente fresca e escura, e estava quase deserta. Colomba sentou-se com um ar pensativo, metida dentro da capa que Lúcio lançara sobre o seu vestido transparente.

Anteontem? franziu o sobrolho.

Sim, no dia a seguir aos Idos de Maio disse Lúcio, finalmente seguro da cronologia, e ansioso por ajudar.

E dizes que viste Asúvio no quarto dele, mortalmente doente?

Continuava de sobrolho franzido.

Assim parecia, quando esse tal Opiânico me chamou lá acima.

Lúcio apoiou-se num cotovelo, olhando arrebatadamente para ela e ignorando a própria taça de vinho. Percebia-se muito bem que não estava habituado a estar tão perto de raparigas bonitas.

E isso foi de manhã? perguntou Colomba.

Sim, bastante cedo.

Mas Asúvio estava comigo

Tens a certeza?

Tenho sim. Dormiu toda a noite comigo, no meu quarto do Palácio, e nessa manhã acordámos muito tarde. E, mesmo então, não saímos logo do quarto...

Ah, a juventude! suspirei eu. Ela corou levemente.

Comemos a refeição do meio-dia no quarto. Por isso, estás a ver, deves ter feito confusão, ou então...

Sim?

Bem, é uma coisa muito estranha. Alguns dos libertos de Asúvio passaram ontem pelo Palácio, à sua procura. Parecia que não sabiam dele. Mostravam-se bastante preocupados. Olhou para mim, subitamente desconfiada. Que interesse tens tu em Asúvio?

Não sei muito bem respondi eu sem mentir. Mas isso importa? Tirei uma moeda da bolsa de Lúcio e estendi-lha por cima da mesa. Colomba olhou-a friamente, depois poisou a mãozinha branca sobre ela.

Não gostava nada que tivesse acontecido alguma coisa a Asúvio

disse baixinho. Ele é um rapaz amoroso. Sabem, disse-me que tinha sido a sua primeira vez, quando fora ao Palácio, um mês antes.

E não foi difícil acreditar, com tanta atrapalhação, e tanta... Interrompeu-se com um sorriso melancólico, riu-se com tristeza, e voltou a suspirar. Não gostava nada que ele tivesse adoecido e morrido assim de repente.

Oh, mas não morreu! disse Lúcio. É por isso que nós estamos aqui; é isso que não compreendemos. Ainda esta manhã o vi, vivo e de boa saúde!

Mas então, como podes afirmar que estava mortalmente doente dois dias antes, e que o senhorio viu o corpo dele ser levado numa carroça? Colomba franziu o sobrolho. Digo-te que ele esteve comigo toda a manhã. Asúvio não estava doente; deves ter feito confusão.

Quer dizer que a última vez que o viste foi anteontem, no mesmo dia em que Lúcio Cláudio foi chamado para ser testemunha do testamento do rapaz observei eu. Diz-me uma coisa, Colomba, e isto pode ser muito importante: ele tinha o anel de sinete no dedo?

Ele não estava assim muito vestido disse ela com franqueza.

Colomba, isso não é resposta.

Bem, claro, ele anda sempre com o anel no dedo. Todos os cidadãos andam, não é verdade? Tenho a certeza de que o trazia no dedo naquela manhã.

Pareces muito segura. Certamente que ele não esteve a assinar documentos no teu quarto.

Ela olhou-me com frieza, e depois disse, muito devagar:

Por vezes, quando um homem e uma mulher vivem uma situação de intimidade, há motivos para se tornar notório que um deles tem um anel no dedo. Talvez por haver um certo desconforto... ou um pequeno obstáculo. Sim, estou certa de que ele tinha o anel no dedo.

Eu acenei com a cabeça, satisfeito.

Quando foi que ele te deixou?

Depois de comermos a refeição do meio-dia. Claro que, depois de termos comido... Digamos, duas horas depois do meio-dia. Os amigos de Larino vieram buscá-lo.

Não foram os libertos?

Não. Asúvio não gosta muito dos criados, diz ele que só servem para atrapalhar. Está sempre a mandá-los fazer recados inúteis, para os manter à distância. Diz que, quando regressarem a Larino, vão contar tudo o que se passou às irmãs dele.

E aos pais, presumo?

Infelizmente, Asúvio já não tem pais. A mãe e o pai morreram num incêndio há apenas um ano. Este último ano foi muito duro para ele, porque teve de assumir todos os deveres do pai à pressa, e depois de uma tragédia terrível como foi aquela. Tem uma quinta enorme, e uma série de escravos! É uma data de papeladas, e fazer as contas todas, para saber exactamente quanto vale. A ouvi-lo falar, dir-se-ia que um homem rico trabalha mais do que um pobre!

Pode muito bem parecer que assim é, a um jovem que preferia andar descalço e ser livre comentei eu.

Esta viagem a Roma eram as férias dele, depois de um ano de sofrimento e trabalhos. Foram os amigos que lhe sugeriram a viagem.

Ah, os mesmos amigos que vieram buscá-lo anteontem.

Sim, Opiânico, um velho mal-humorado, e um amigo mais jovem, Vulpino.

Vulpino? Que nome tão curioso. Tem focinho e cauda?

Oh, o nome verdadeiro dele é Marco Avílio, mas as raparigas do Palácio chamam-lhe Vulpino porque tem um carácter de raposa. Anda sempre a meter o nariz em tudo, parece que nunca diz toda a verdade, mesmo quando não retira vantagem nenhuma da mentira. Mas é encantador, e nada feio.

Conheço o género disse eu.

É uma espécie de irmão mais velho de Asúvio, uma vez que ele não tem irmãos trouxe-o à cidade, arranjou-lhe alojamento, mostrou-lhe como havia de se divertir.

Estou a ver. E há dois dias, quando iam a sair do Palácio de Príapo, Opiânico e a Raposa deram alguma pista do sítio onde tencionavam levar o jovem Asúvio?

Mais do que uma pista. Disseram que iam aos jardins.

Que jardins?

Ora, os da Porta Esquilina. Opiânico e Vulpino tinham dito a Asúvio que eram esplêndidos, com as fontes e as flores todas abertas Maio é o mês ideal para visitar os jardins. Asúvio estava ansioso. Há tantas coisas aqui na cidade que ele ainda não viu; passou grande parte do tempo, digamos assim, a usufruir prazeres domésticos. Colomba sorriu um pouco de esguelha. Quase não passou da Subura. Não me parece que tenha sequer descido até ao Fórum.

Ah, sim, é claro que um homem nascido em Larino não podia perder uma visita aos famosos jardins da Porta Esquilina.

Presumo que não, pela forma como Opiânico e Vulpino os descreveram, túneis frondosos de folhas, prados de flores e estátuas lindas. Quem me dera ir também vê-los, mas o senhor quase nunca me deixa sair de casa, excepto em trabalho. Querem acreditar que vivo em Roma há quase dois anos e nunca tinha ouvido falar desses jardins?

Acredito perfeitamente disse eu com gravidade.

Mas Asúvio disse-me que se fosse uma coisa tão especial como os amigos afirmavam, talvez me levasse lá, seria um presente seu. Animou-se um pouco. Eu suspirei.

Acompanhámo-la de volta ao Palácio de Príapo. O proprietário ficou surpreendido por vê-la regressar tão depressa, mas não se queixou do pagamento.

Lá fora, a rua escureceu por momentos, quando uma nuvem escondeu o Sol.

Seja qual for o relato conforme à verdade, o certo é que o jovem Asúvio não morreu na cama, anteontem disse eu. Ou estava com Colomba, vivo e de boa saúde, ou, se de facto estava deitado no seu apartamento, cheio de febre, recuperou e tu viste-o na rua esta manhã. Apesar de tudo, começo a recear pelo rapaz. Receio desesperadamente por ele.

Porquê? perguntou Lúcio.

Sabes tão bem como eu, Lúcio Cláudio, que não há jardim nenhum à saída da Porta Esquilina!

Atravessar a Porta Esquilina era passar da cidade dos vivos para a cidade dos mortos.

Do lado esquerdo da estrada fica a necrópole pública de Roma, onde as valas comuns dos escravos e os túmulos modestos dos pobres se amontoam perto uns dos outros. Há muito tempo, quando Roma era jovem, foram descobertas umas minas de cal nas cercanias. E assim, da mesma maneira que a cidade dos vivos foi crescendo à volta do Fórum e dos mercados, assim também a cidade dos mortos se desenvolveu em redor das minas de cal, dos crematórios e dos templos onde os cadáveres são purificados.

Do lado direito da estrada, ficam as lixeiras públicas, para onde os residentes da Subura e dos bairros circundantes lançam o lixo que produzem. Os poços de areia estão cobertos de todo o género de lixo pedaços de louça e peças de mobiliário partidas, restos de comida podre, peças de roupa de tal maneira sujas e rasgadas, que nem um pedinte poderia usá-las. Aqui e ali, os guardas acendem pequenas fogueiras para consumir o lixo, cobrindo em seguida as brasas com areia nova.

Fosse em que direcção fosse, o certo é que não há jardim nenhum à saída da Porta Esquilina, a não ser que se chame jardim às flores isoladas que nascem entre o lixo apodrecido das pilhas de entulho, ou às vinhas descarnadas que abrem caminho por entre os túmulos antigos e abandonados dos mortos esquecidos. Comecei a desconfiar de que Opiânico e o Raposa tinham um sentido de humor verdadeiramente cruel.

Um rápido olhar na direcção de Lúcio deu-me a entender que ele já não estava tão seguro quanto à sua decisão de me acompanhar nesta parte da minha investigação. A Subura e os respectivos vícios podiam parecer coloridos e exóticos, mas nem Lúcio era capaz de ver qualquer espécie de encanto na necrópole e no depósito de lixo. Franziu o nariz e enxotou um enxame de moscas que circulavam diante da sua cara, mas não voltou para trás.

Andámos do um lado para o outro da estrada, a interrogar as poucas pessoas que encontrámos sobre três desconhecidos que poderiam ter sido avistados naquele local dois dias antes um homem de certa idade, um jovem malandro com cara de raposa, e um rapaz vulgar. Aqueles que cuidavam dos mortos mandaram-nos embora, por não terem paciência para lidar com os vivos; os guardas das pilhas de lixo encolheram os ombros, abanando a cabeça.

Estávamos à beira dos poços de areia, observando uma paisagem que devia ser parecida com o Hades, se o Sol brilhasse sobre as brumas de fumo do Hades, atingindo os seus desperdícios em combustão lenta. Subitamente, ouvimos um assobio grave atrás de nós. Lúcio assustou-se. Eu levei imediatamente a mão ao punhal.

O autor do assobio era um velho encurvado, que arrastava os pés, e tinha estado a observar-nos de trás de uma pilha de lixo que ardia em fogo lento.

O que queres? perguntei eu, mantendo a mão junto ao punhal.

A massa informe de cabelo sujo e farrapos ainda mais sujos oscilou ligeiramente, e dois olhos leitosos voltaram-se para mim.

Ouvi dizer que andas à procura de alguém disse o homem por fim.

Talvez.

Nesse caso, talvez eu possa ajudar-te.

Fala sem rodeios.

Sei onde está o jovem!

De que jovem estás tu a falar?

A figura vergou-se e olhou para mim de esguelha e de baixo para cima.

Ouvi-te interrogar um dos trabalhadores ainda agora. Tu não me viste, mas eu vi-te, e ouvi-te. Ouvi-te perguntar pelos três homens que andaram por aqui há dois dias, o mais velho, o rapaz e o intermédio. E sei onde está o rapaz!

Mostra-nos.

A criatura estendeu uma mão, tão suja e tão gasta que parecia um cepo de madeira. Lúcio recuou, aterrado, mas levou a mão à bolsa. Eu suspendi-lhe o gesto.

Depois de nos mostrares disse.

A coisa assobiou na minha direcção. Bateu com os pés no chão e grunhiu. Por fim, voltou-se e indicou-nos que o seguíssemos com um gesto de mão.

Eu agarrei o braço de Lúcio e murmurei-lhe ao ouvido.

Não venhas. Esta criatura é bem capaz de nos atrair para uma armadilha. Olha para as jóias que trazes, a bolsa que tens na mão. Vai até aos crematórios, onde estarás a salvo. Eu vou com o homem.

Lúcio olhou para mim com os lábios apertados e os olhos muito abertos.

Gordiano, deves estar a brincar. Nem poder de homem nem de deus conseguirá impedir-me de ir ver o que este homem tem para nos mostrar!

A criatura cambaleava e tropeçava por entre as pilhas de lixo e os montes de areia suja. Fomos penetrando cada vez mais profundamente nos despejos. As pilhas de cinzas e lixo iam crescendo à nossa volta, ocultando-nos a visão da estrada. A criatura fez-nos contornar o flanco de uma pequena colina de areia. Fomos engolidos por um nevoeiro cor de laranja. À nossa volta, formou-se uma nuvem de fumo acre. Eu engasguei-me. Lúcio levou a mão à garganta e começou a tossir. O hálito quente de uma fogueira bateu-me no rosto.

Por entre a névoa, entrevi a silhueta do vagabundo contra a luz das chamas. Mexia a cabeça para cima e para baixo, e apontou para qualquer coisa no meio do fogo.

O que é? arquejei eu. Não estou a ver nada.

Lúcio teve um sobressalto. Apertou-me o braço e apontou. Ali, no meio daquele inferno, por entre a pilha indiscriminada de lixo incendiado, avistei os restos de um corpo humano.

O lixo em chamas foi derrubado pelo seu próprio peso, lançando ao ar uma chuva de fagulhas cor de laranja. Tapei a cara com a manga e pus um braço à volta dos ombros de Lúcio. Juntos, fugimos do calor e do fumo. O vadio correu atrás de nós, com o comprido braço castanho estendido, a palma da mão voltada para cima.

Não há nenhuma prova de que o corpo que o vagabundo nos mostrou seja o de Asúvio disse eu. Tanto quanto sabemos, podia muito bem ser outro vadio qualquer. Não há maneira de provarmos a verdade.

É esse o busílis da questão.

Tomei um longo gole de vinho. A noite tinha descido sobre Roma. Os grilos cantavam no meu jardim. Betesda estava sentada ali perto, por baixo do pórtico, ao lado de uma lamparina que emitia uma luz suave. Fingindo coser uma túnica rasgada, estava a ouvir cada palavra da nossa conversa. Lúcio Cláudio, sentado a meu lado, olhava fixamente para o reflexo da Lua na sua taça de vinho.

Diz-me, Gordiano, como explicas as discrepâncias entre aquilo que eu vi e a história que Colomba nos contou? O que terá realmente acontecido no dia a seguir aos Idos de Maio?

Parece-me que a sequência dos acontecimentos é clara.

Ainda assim...

Muito bem, eu contaria a história da seguinte maneira. Era uma vez um órfão abastado que vivia numa cidade chamada Larino e não sabia escolher os amigos. Dois desses amigos, um velho patife e um jovem predador, convenceram-no a ir a Roma passar umas férias. Instalaram-se os três num dos bairros menos afamados da cidade e dedicaram-se ao usufruto do género de vícios capazes de induzir um estupor de vulnerabilidade num provinciano ingénuo. Longe da vigilância das irmãs do rapaz, e das coscuvilhices da cidade de Larino, o Raposa e o velho Opiânico estavam à-vontade para levar a cabo o seu plano.

Certa manhã em que Asúvio ficara a namorar com a sua prostituta favorita, o Raposa fingiu ser o rapaz e deitou-se na cama dele, simulando uma doença mortal. Opiânico chamou uma série de desconhecidos da rua, a quem pediu que fossem testemunhas de um testamento pessoas que não conheciam Asúvio, não podendo por isso distingui-lo de Alexandre. Opiânico cometeu pelo menos um erro, mas conseguiu não sofrer as respectivas consequências.

Qual foi o erro?

Alguém deve ter perguntado a idade do moribundo. Sem pensar no que estava a dizer, Opiânico respondeu que ainda não tinha vinte anos; foste tu que me contaste. O que era verdade, se estivesse a falar de Asúvio. Mas era o Raposa quem estava deitado na cama, fingindo ser Asúvio, e presumo que o Raposa tenha bastante mais de vinte anos. Apesar disso, tu próprio atribuíste a discrepância à doença disseste que ele tinha um aspecto ”macilento e coberto de rugas”, como se a doença o tivesse envelhecido terrivelmente. As outras testemunhas devem ter pensado o mesmo. As pessoas dão-se a trabalhos inacreditáveis para fazer com que aquilo que têm diante dos olhos se conforme com o que lhes afirmaram ser a verdade.

Lúcio franziu o sobrolho.

Por que estaria o testamento escrito com duas letras diferentes?

Sim, lembro-me de teres mencionado esse facto. O Raposa começou a escrevê-lo, fingindo estar de tal maneira fraco, que não conseguia terminá-lo. Esse estratagema permitiu-lhe explicar o motivo pela qual a assinatura não era igual à de Asúvio qualquer pessoa ficaria convencida de que se tratava do rabisco de um moribundo.

Mas o Raposa passou o seu anel de sinete sobre a cera protestou Lúcio. Eu vi-o fazer isso. Não podia ser o anel de Asúvio, que estava com Colomba, e o tinha no dedo.

Já lá chego. Ora, depois de terem desempenhado o vosso papel de testemunhas, tu e os outros foram mandados embora do quarto.

Opiânico embrulhou o Raposa num lençol, arrancou uns cabelos e arranjou maneira de chorar um pouco, e depois chamou o senhorio.

Que viu um cadáver!

Que julgou ter visto um cadáver. Aquilo que ele viu foi um corpo dentro de um lençol. Pensou que Asúvio tinha morrido de uma doença repentina; por isso, não se preocupou em examinar o cadáver.

Mas depois viu dois homens levarem o corpo numa carroça.

Viu Opiânico e o Raposa, que tinha voltado a assumir a sua personalidade, transportarem qualquer coisa embrulhada num lençol um saco de milheto, tanto quanto sabemos.

Ah, e uma vez fora do alcance da vista, abandonaram a carroça e o milheto e foram buscar Asúvio ao bordel.

Sim, para irem dar o passeio ao ”jardim”, conforme tinham combinado. O vadio assistiu ao resto: arrastaram o rapaz, confuso com tudo aquilo, para um lugar recolhido, onde o Raposa o estrangulou até à morte, despiram-no e esconderam o cadáver no meio do lixo. Foi nessa altura que lhe roubaram o anel de sinete do dedo. Mais tarde, devem ter apagado o selo do Raposa, aplicando o verdadeiro selo de Asúvio ao testamento.

Isso é proibido por Lei disse Lúcio, sem grande convicção.

Pois é, pela lei de Cornélio, promulgada pelo nosso querido” Senado há pouco mais de três anos. Por que pensas que essa lei foi promulgada? Porque a falsificação de testamentos se tinha tornado tão vulgar como os senadores a tirarem macacos do nariz em público!

Quer dizer que o homem que eu vi na rua na companhia de Opiânico era efectivamente o mesmo de cujo testamento fui testemunha.

Era, mas foi sempre o Raposa, e não Asúvio. Lúcio acenou com a cabeça.

E assim, o plano ficou completo; o falso testamento vai certamente enganar as irmãs e os restantes parentes de Asúvio, e os caros amigos Opiânico e Marco Avílio mais conhecido como Raposa, e por boas razões herdam uma simpática fortuna.

Eu acenei com a cabeça.

Temos de fazer alguma coisa!

Sim, mas o quê? É certo que podias interpor um processo contra os culpados, e tentar provar que o testamento é fraudulento. Isso tomar-te-ia bastante tempo, e custar-te-ia muito dinheiro; se pensas que sofres de tédio, não queiras passar um mês ou dois a saltar de funcionário em funcionário, a preencher processos no Fórum. E, se Opiânico e o Raposa encontrarem um advogado com metade dos recursos de que eles próprios dispõem, o mais provável é que sejas expulso do tribunal à gargalhada.

Esquece o testamento fraudulento. Esses homens são culpados de homicídio a sangue-frio!

Mas achas que podes prová-lo, sem cadáver nem testemunhas fiáveis? Mesmo que conseguisses voltar a encontrá-lo, o nosso vadio não é o género de homem cujo testemunho impressione um júri romano.

Estás a dizer-me que não podemos fazer nada?

Estou a dizer-te que, se pretendes prosseguir, de quem tu precisas é de um advogado, e não de Gordiano, o Descobridor.

Dez dias depois, Lúcio Cláudio veio outra vez bater-me à porta.

Fiquei bastante surpreendido por voltar a vê-lo. Tendo-me colocado na pista do jovem Asúvio, e tendo-me seguido até ao fim da mesma, eu esperava que ele perdesse rapidamente o interesse pela história, regressando ao seu habitual tédio. Afinal, informou-me de que tinha andado a fazer certas investigações por sua conta.

Convidou-me a dar um passeio. Pelo caminho, não falou de nada de especial, mas eu reparei que estávamos a dirigir-nos para a rua onde a história tinha começado. Lúcio comentou que tinha sede. Entrámos na taberna em frente do Palácio de Príapo.

Tenho pensado muito naquilo que me disseste acerca da justiça romana, Gordiano. Tens razão; já não se pode confiar nos tribunais. Os advogados retorcem as palavras e as leis para conseguirem os seus objectivos, pervertem os sentimentos dos jurados, recorrem à intimidação ou ao suborno, puro e simples. Apesar disso, tem de valer a pena perseguir a justiça verdadeira. Continuo a pensar nas chamas, e a ter a visão do corpo daquele jovem, atirado para um poço de areia e transformado em cinzas. A propósito, Opiânico e o Raposa regressaram à cidade.

Oh? Tinham chegado a ir-se embora?

Voltaram para Larino naquele dia em que os vi, antes de ir falar contigo. Opiânico fez um grande alarido com o testamento de Asúvio, mostrando-o a quem o queria ver, depois entregou-o aos funcionários do Fórum de Larino. Foi o que me contaram os mensageiros que enviei a Larino.

Mensageiros?

Sim, decidi entrar em contacto com as irmãs de Asúvio. Um grupo de libertos dele chegou a Roma esta manhã.

Estou a ver. E Opiânico e o Raposa já cá estão.

Sim. Opiânico está em casa de uns amigos no Monte Aventino. Mas o Raposa está aqui mesmo em frente, no apartamento onde representaram aquela pequena comédia.

Voltei-me e olhei pela janela. Do local onde me encontrava sentado, conseguia avistar a porta do rés-do-chão do edifício e a janela que ficava por cima dela, da qual Lúcio fora chamado para ser testemunha do testamento. As portadas estavam fechadas.

Que bairro! comentou Lúcio. Há dias em que penso que podia acontecer quase tudo aqui na Subura. Inclinou o pescoço e olhou por cima do meu ombro. Vindo do alto da rua, chegou-me aos ouvidos o ruído de um grupo que se aproximava.

Eram vinte ou mais, armados de mocas e punhais. Reuniram-se diante do edifício e bateram à porta com as mocas. Como a porta não se abrisse, deitaram-na abaixo e entraram.

As portadas foram abertas para trás com violência. Apareceu uma cara à janela. Se o Raposa era efectivamente belo e encantador, como Colomba nos tinha dito, naquele momento era impossível percebê-lo. Os olhos saltavam-lhe das órbitas com o pânico, e estava sem pinga de sangue nas faces. Baixou-os para a rua e engoliu em seco, como se estivesse a reunir coragem para saltar. Hesitou de mais; várias mãos agarraram-no pelos ombros e puxaram-no para trás.

Momentos depois, era empurrado porta fora, a cambalear. O grupo rodeou-o, obrigando-o a subir a rua. Os vendedores e os ociosos dispersaram e desapareceram para dentro das casas. As janelas abriam-se, e rostos curiosos espreitavam para baixo.

Despacha-te disse Lúcio, engolindo o resto do vinho, se não perdemos o melhor. O Raposa foi expulso da toca, e os cães vão persegui-lo até ao Fórum.

Saímos a correr para a rua. Quando passámos pelo Palácio de Príapo, ergui os olhos. Colomba estava a uma janela, olhando para baixo, confusa e excitada. Lúcio acenou-lhe, lançando-lhe um enorme sorriso. Ela teve um sobressalto, mas também lhe sorriu. Ele pôs as mãos em concha e gritou:

Vem connosco! Vendo-a morder os lábios, hesitante, ele acenou com as duas mãos.

 

Colomba desapareceu da janela e, momentos depois, corria pela rua fora para se juntar a nós. O seu proprietário veio à porta, gesticulando e batendo com os pés. Lúcio voltou-se e acenou ao homem com a bolsa.

Os libertos de Asúvio rugiram durante todo o caminho até ao Fórum. O círculo exterior batia com as mocas nos muros e nas carroças que passavam; o círculo interior mantinha o Raposa bem cercado. Depois começaram a cantar:

Jus-tiça! Jus-tiça! Jus-tiça! - Quando chegámos ao Fórum, o Raposa estava com uma aparência realmente abatida.

O grupo de libertos empurrava o Raposa, obrigando-o a dar voltas e mais voltas, num círculo estonteante. Por fim, chegámos ao tribunal dos comissários, cuja tarefa mais negligenciada é manter a ordem nas ruas, e que por acaso também fazem investigações preliminares às acusações de crimes de violência. O comissário da Subura, Quinto Manílio, estava sentado numa sombra do pórtico a olhar preguiçosamente para uma pilha de pergaminhos, sem desconfiar do que ali vinha. Ergueu os olhos, alarmado, quando o Raposa se aproximou dele a cambalear. Os libertos, febrilmente excitados na sequência da parada pelas ruas, começaram a falar todos ao mesmo tempo, criando um rugido indecifrável.

Manílio franziu o sobrolho. Bateu com o punho fechado com toda a força em cima da mesa e ergueu a mão. Toda a gente se calou.

Até esse momento, ainda me pareceu que o Raposa levaria a melhor sobre os seus acusadores. Bastava-lhe afirmar os seus direitos de cidadão, e manter o silêncio. Mas os homens malévolos são muitas vezes uns cobardes, o coração mais endurecido pode ser assombrado pelo crime, e as raposas humanas costumam deixar-se apanhar nas armadilhas que elas próprias concebem.

O Raposa correu para o banco a chorar.

Sim! Sim, assassinei-o, é verdade! Opiânico obrigou-me! Sozinho, eu nunca teria concebido semelhante projecto. Foi Opiânico que teve a ideia de fazer o falso testamento e depois assassinar Asúv

Voltei-me e olhei espantado para Lúcio Cláudio, que tinha o mesmo aspecto de sempre os dedos gordos, as faces rechonchudas, o nariz rosado, mas já não me parecia minimamente ridículo ou desprovido de inteligência. Os seus olhos possuíam um estranho brilho. Na realidade, estava com um ar levemente assustador, e tremendamente seguro de si próprio, ou seja, estava com o ar daquilo que era, um nobre romano. O seu rosto estava iluminado por aquele sorriso que deve iluminar o rosto dos grandes poetas quando terminam um opus magnum.

O resto da história combina o bom e o mau.

Gostava de poder narrar que Opiânico e o Raposa receberam o que mereciam, mas infelizmente a justiça romana prevaleceu ou seja, o digno comissário Quinto Manílio mostrou que a sua dignidade não o impedia de aceitar um suborno de Opiânico; pelo menos é o que dizem os boatos no Fórum. Manílio começou por anunciar que acusaria o Raposa e Opiânico de homicídio; depois, subitamente, renunciou à acusação. Lúcio Cláudio ficou amargamente desiludido. Eu aconselhei-o a animar-se; de acordo com a minha experiência, malandros como Opiânico e o Raposa costumam acabar mal, embora possam fazer sofrer muitos outros antes disso.

Talvez não por coincidência, mais ou menos na mesma altura em que as acusações de homicídio foram suspensas, o testamento fraudulento desapareceu em Larino. As propriedades do falecido Asúvio foram, pois, divididas entre os seus parentes. Opiânico e o Raposa não beneficiaram com a morte dele.

O proprietário do Palácio de Príapo ficou furioso com Colomba por ter saído do estabelecimento sem autorização, e ameaçou castigá-la pondo-lhe carvões em brasa nos pés; ouvindo isso, Lúcio Cláudio ofereceu-se imediatamente para comprá-la. Não tenho a menor dúvida de que a rapariga é bem tratada na sua nova casa. Lúcio poderá não ser um jovem interminavelmente viril como Asúvio, mas isso não o impede de se comportar como qualquer jovem apaixonado.

Ultimamente, tenho visto Lúcio Cláudio no Fórum com frequência, na companhia de advogados razoavelmente honestos, como Cícero e Hortênsio. Um homem honesto no Fórum faz sempre falta a Roma. Ele contou-me que terminou há pouco tempo um livro de poemas de amor, e está a pensar em se candidatar às eleições. De vez em quando, dá jantares e passa algum tempo no campo, a vigiar a quinta e as vinhas. Como diziam os Etruscos, um testamento que não traz felicidade a alguém é um testamento malfeito. O infeliz Asúvio até pode não ter deixado testamento, mas julgo que, apesar disso, Lúcio Cláudio foi seu beneficiário.


Os Lémures

O escravo meteu-me na mão um pedaço de pergaminho:

”DE LÚCIO CLÁUDIO PARA O AMIGO GORDIANO, SAUDAÇÕES.

SE PUDERES ACOMPANHAR ESTE MENSAGEIRO NO SEU REGRESSO,

FICO-TE GRATO. ESTOU EM CASA DE UM AMIGO NO MONTE PALATINO; HÁ UM PROBLEMA QUE NECESSITA DA TUA ATENÇÃO. VEM SOZINHO NÃO TRAGAS O RAPAZ AS CIRCUNSTÂNCIAS PODEM ASSUSTÁ-LO.”

Lúcio não precisava de me ter aconselhado a não levar Eco, porque naquele momento o rapaz estava ocupado com o tutor. Tinham descoberto um recanto do jardim onde incidia o sol matutino, que os resguardava do frio do Outono, e de onde me chegava aos ouvidos o som da voz do velho, declamando a lição de Latim daquele dia, que Eco escrevia na tabuinha de cera.

Betesda! chamei, mas ela já estava atrás de mim, com a minha capa de lã nas mãos. Enquanto ma punha aos ombros, baixou os olhos para o recado que eu tinha na mão. Franziu o nariz. Betesda não sabe ler, pelo que olha a palavra escrita com desconfiança e desdém.

É de Lúcio Cláudio? perguntou, erguendo uma sobrancelha.

De facto, mas como...? Então apercebi-me de que ela devia ter reconhecido o mensageiro. É frequente os escravos repararem mais uns nos outros do que os respectivos senhores.

Calculo que ele queira que vás jogar com ele, ou provar uma colheita nova. Sacudiu a juba de cabelo preto de azeviche e fez um trejeito com os voluptuosos lábios.
Calculo que não; tem um trabalho para mim. O canto da boca tremeu-lhe num sorriso.

Nada que te diga respeito acrescentei rapidamente. Desde que eu tinha trazido Eco para minha casa e o tinha adoptado como filho, Betesda comportava-se cada vez menos como concubina e cada vez mais como esposa e mãe. Eu não estava certo de gostar da mudança; e ainda estava menos certo de ter alguma coisa a dizer sobre ela.

Um trabalho assustador acrescentei. Provavelmente perigoso. Mas ela já estava ocupada a fazer contas de cabeça, somando os meus honorários aos dinheiros da casa. Ao sair, ouvi-a cantarolar uma alegre canção egípcia da sua infância.

O dia estava fresco e luminoso. Folhas levadas pelo vento amontoavam-se à beira do caminho estreito e sinuoso que partia de minha casa, pelo Monte Esquilino abaixo, até à Subura. Havia no ar um forte odor a fumo, proveniente de cozinhas e braseiras. O mensageiro aconchegou melhor a capa verde-escura à volta dos ombros, para se resguardar do frio.

Vizinho! Cidadão! sussurrou uma voz por cima do muro, à minha direita. Ergui a cabeça e vi dois olhos espreitar lá do alto, encimados pela cúpula de uma cabeça calva e nodosa. Vizinho! sim, tu! Chamam-te Gordiano; não é verdade?

Ergui para ele uns olhos cautelosos.

Sim, o meu nome é Gordiano.

E chamam-te Descobridor, pois é? Eu acenei com a cabeça.

Resolves problemas. Desvendas mistérios. Respondes a enigmas.

Às vezes.

Então tens de me ajudar!

Talvez, cidadão. Mas não agora. Um amigo mandou-me buscar...

Não demora nada.

Apesar disso, estou a ficar com frio, aqui parado...

Então entra! Vou abrir-te a portinha do muro.

Não, talvez amanhã.

Não! Agora! Eles vêm esta noite, tenho a certeza ou mesmo esta tarde, quando as sombras se alongarem. Olha, estão a formar-se nuvens. Se o Sol perder o brilho, podem sair ao meio-dia, debaixo do céu escuro e carregado.
Eles? A quem te referes, cidadão?

Ele abriu muito os olhos, e baixou a voz até um murmúrio agudo, que mais parecia o som de um rato.

Aos lémures... guinchou.

O mensageiro de Lúcio Cláudio aconchegou-se mais dentro da capa. Eu próprio tive um súbito arrepio, mas foi apenas uma rajada de vento frio e seco que naquele momento descia o caminho que me fez estremecer; pelo menos foi o que disse a mim próprio.

Lémures repetiu o homem. Mortos inquietos!

As folhas agitaram-se, dançando debaixo dos meus pés. O dedo fino de uma nuvem obscureceu o Sol, reduzindo a sua luz quente e brilhante a um cinzento enublado.

Vingativos sussurrou o homem. Cheios de despeito. Despojados de qualquer remorso. Não são humanos, são espíritos desprovidos de calor e piedade, secos e quebradiços como fragmentos de osso, a quem já nada resta senão a maldade. Mortos, mas sem terem desaparecido deste mundo como deviam. A vingança é o seu único alimento. O único presente que oferecem é a loucura.

Por instantes, olhei fixamente para os olhos escuros e cavados do homem, depois desviei os meus.

Um amigo chamou-me disse-lhe, fazendo um aceno de cabeça ao escravo, para lhe indicar que avançasse.

Mas, vizinho, não podes abandonar-me. Fui soldado de Sula! Combati na guerra civil para salvar a República! Fui ferido se entrares, mostro-te. A minha perna esquerda não me serve para nada, coxeio e tenho de andar apoiado numa bengala. Enquanto tu és jovem, saudável e sem defeitos. Um jovem romano como tu deve-me algum respeito. Por favor, não tenho mais ninguém que me ajude!

Eu trabalho com os vivos, não com os mortos respondi obstinadamente.

Posso pagar-te, se é isso que queres. Sula deu quintas na Etrúria a todos os seus soldados. Eu vendi a minha nunca me agradou ser agricultor. Ainda me sobra alguma prata. Posso pagar-te bons honorários, se me ajudares.

E como é que eu posso ajudar-te? Se tens um problema com lémures, consulta um sacerdote ou um augure.
Já consultei, acredita! Todas as Primaveras, no mês de Maio, participo na procissão dos Lémures, para evitar os maus espíritos. Murmuro as encantações, lanço os feijões pretos por cima do ombro. Talvez resulte; os lémures nunca me assaltam na Primavera, e permanecem afastados durante o Verão. Mas, tão certo como as folhas amarelecerem e começarem a cair das árvores, vêm ter comigo no Outono. Vêm para me enlouquecer!

Cidadão, não posso...

Lançam-me um feitiço dentro da cabeça.

Cidadão! Tenho de me ir embora.

Por favor murmurou ele. Fui soldado, era corajoso, não tinha medo de nada. Matei muitos homens, combatendo ao lado de Sula, por Roma. Atravessei rios de sangue e vales de entranhas que me chegavam às coxas sem vacilar. Não temia ninguém. Mas agora... Fez uma careta de autodesprezo, tão pronunciada que eu virei a cara. Ajuda-me suplicou.

Talvez... quando voltar...

Ele fez um sorriso que inspirava piedade, como um homem condenado cuja pena foi adiada.

Sim sussurrou, quando voltares... Apressei-me a sair dali para fora.

Apesar de estar localizada no bairro mais elegante da cidade, a casa do Palatino apresentava, tal como as suas vizinhas, uma fachada bastante simples. À excepção dos dois pilares com a forma de cariátides que sustentavam o tecto, o único adorno do pórtico era uma coroa funerária de cipreste e abeto presa à porta.

O curto vestíbulo, flanqueado de ambos os lados pelas máscaras de cera dos nobres antepassados, ia dar a um modesto átrio. Havia um corpo deitado numa padiola de marfim. Dei um passo em frente e baixei os olhos para o cadáver. Vi um jovem com menos de trinta anos, sem nada de excepcional, à excepção da careta que lhe contorcia as feições. Normalmente, os artistas funerários conseguem suprimir os sinais de perturbação e sofrimento do rosto dos mortos, alisar testas franzidas e soltar maxilares apertados. Mas o rosto deste cadáver tinha-se tornado de tal maneira rígido, que lhes fora impossível suavizá-lo. A sua expressão não era de dor, nem de infelicidade, mas de medo.

Caiu disse uma voz conhecida atrás de mim. Voltei-me, e vi Lúcio Cláudio, que já fora meu cliente e agora era meu amigo. Corpulento como sempre, com as faces e o nariz de uma cor de cereja que nem a luz frouxa do átrio conseguia obscurecer.

Cumprimentámo-nos, e em seguida olhámos ambos para o cadáver.

Tito explicou-me Lúcio, o proprietário desta casa. Pelo menos foi-o nos últimos dois anos.

Morreu na sequência de uma queda?

Sim. Há uma galeria que percorre a ala oeste da casa, com uma varanda comprida que dá para uma encosta íngreme. Tito caiu da varanda há três noites. Partiu as costas.

E morreu imediatamente?

Não. Definhou toda a noite e sobreviveu até ao fim da tarde do dia seguinte. Antes de morrer, contou uma história curiosa. Claro, estava cheio de febre e de dores, apesar das doses de nepente que lhe deram... O considerável volume do corpo de Lúcio remexeu-se pouco à-vontade dentro da enorme capa preta; levou uma mão nervosa à cabeça e coçou a coroa de cabelo frisado cor de cobre. Diz-me, Gordiano, sabes alguma coisa sobre lémures?

Uma estranha expressão deve ter-me atravessado a cara, porque Lúcio franziu o sobrolho e enrugou a testa.

Disse alguma coisa inconveniente, Gordiano?

Não, nada. Mas é a. segunda vez que me falam de lémures hoje. Quando vinha para cá, um vizinho mas não vou aborrecer-te com a história. Parece que Roma inteira é assombrada por espíritos! Deve ser este tempo opressivo... este período melancólico... ou então é da indigestão, como dizia o meu pai...

Não foi uma indigestão que matou o meu marido. Nem um vento frio, uma chuva gelada ou uma imaginação nervosa.

Estas palavras foram pronunciadas por uma mulher alta e magra. Estava coberta da cabeça aos pés por uma estola de lã preta; à volta dos ombros, tinha um agasalho azul-escuro. Tinha o cabelo preto afastado da cara, preso com ganchos e pentes de prata. Os seus olhos eram de um azul-luminoso. Tinha um rosto jovem, mas já não era uma criança. Mantinha-se direita e rígida como uma Vestal, e falava no tom imperioso de uma patrícia.

Apresento-te Gordiano disse Lúcio, o homem de quem te falei. A mulher reconheceu a minha presença com um ligeiro aceno de cabeça. Esta prosseguiu ele é a minha jovem e querida amiga Cornélia. Pertence ao ramo sulano da família Cornélio.

Eu tive um ligeiro sobressalto.

Sim disse ela, sou parente do nosso recentemente falecido e profundamente saudoso ditador. Lúcio Cornélio Sula era meu primo. Éramos bastante chegados, apesar da diferença de idades. Estive com ele pouco antes da sua morte, na villa de Neápolis. Era um grande homem. Um homem generoso. O seu tom imperioso abrandara. Desviou o olhar para o cadáver que repousava na padiola. Agora, Tito morreu também. E eu estou sozinha. Indefesa...

Talvez fosse melhor retirarmo-nos para a biblioteca sugeriu Lúcio.

Sim disse Cornélia. Está frio aqui no átrio.

Desceu à nossa frente um curto corredor, até um pequeno compartimento. Cícero, que de vez em quando era meu cliente, não lhe teria chamado uma grande biblioteca era constituída por uma única estante, encostada a uma parede, onde se empilhavam rolos de pergaminho, mas teria aprovado a sua austeridade. As paredes estavam pintadas de vermelho-escuro e as cadeiras não tinham costas. Um escravo arranjou a braseira que havia no centro do compartimento, e foi-se embora.

O que sabe Gordiano? perguntou Cornélia a Lúcio.

Muito pouco. Só lhe expliquei que Tito tinha caído da varanda. Ela olhou para mim com uma intensidade quase assustadora.

O meu marido era um homem assombrado.

Assombrado por quem, ou por quê? Lúcio falou-me de lémures.

Não no plural, no singular disse ela. Era atormentado por um único lémure.

Era um espírito seu conhecido?

Sim. Um conhecimento da juventude; tinham estudado Direito juntos, no Fórum. Era o anterior proprietário desta casa. Chamava-se Fúrio.

Esse lémure apareceu ao teu marido mais de uma vez?

Começou no Verão passado. Tito avistava a coisa por momentos à beira da estrada ou a caminho da nossa villa do campo, do outro lado do Fórum, numa sombra do jardim. A princípio, não tinha a certeza do que era; voltava-se e tentava vê-lo melhor, mas descobria que se tinha ido embora. Depois, começou a vê-lo dentro de casa. Foi nessa altura que percebeu quem e o que era. Deixou de tentar aproximar-se dele; pelo contrário, fugia daquilo, a tremer de medo.

Tu também o viste? Ela tornou-se rígida.

A princípio não...

Tito viu-o, na noite em que caiu sussurrou Lúcio. Inclinou-se para diante e tomou a mão de Cornélia, mas ela afastou-o.

Nessa noite disse ela, Tito estava pensativo. Deixou-me na sala de estar e foi até à varanda, para andar um pouco e apanhar ar fresco. Depois, viu a coisa pelo menos foi o que disse mais tarde, em delírio. Aproximou-se dele, acenando. Chamou-o pelo nome. Tito fugiu até à extremidade da varanda. A coisa aproximou-se. Tito ficou louco de medo. E caiu.

A coisa empurrou-o? Ela encolheu os ombros.

Quer tenha caído ou sido empurrado, foi o medo da coisa que o matou. Sobreviveu à queda; resistiu toda a noite, e o dia seguinte. Chegou o lusco-fusco. Tito começou a suar e a tremer. O mais pequeno movimento era uma agonia para ele, mas nem por isso deixava de se revolver e agitar na cama, louco de pânico. Dizia que não aguentava voltar a ver o lémure. Finalmente, morreu. Compreendes? Preferiu morrer a voltar a confrontar-se com o lémure. Tu viste a cara dele. Não foi a dor que o matou. Foi o medo.

Eu puxei a capa para cobrir as mãos e encolhi os dedos dos pés. Parecia que a braseira não tinha qualquer efeito sobre o frio que dominava o compartimento.

Esse lémure disse, que descrição fazia dele o teu marido?

Não era difícil reconhecer a coisa. Era Fúrio, o anterior proprietário desta casa. Tinha a carne branca e cheia de pústulas, os dentes amarelos e partidos. O cabelo era como palha coberta de sangue e tinha sangue a toda a volta do pescoço. Cheirava horrivelmente... mas era Fúrio, sem sombra de dúvida. Só que...

Sim?

Só que parecia mais jovem do que Fúrio no final da vida. Parecia mais próximo da idade em que Tito e Fúrio se tinham conhecido no Fórum, nos dias da juventude de ambos.

E quando é que tu viste o lémure pela primeira vez?

Ontem à noite. Estava na varanda a pensar em Tito e na sua queda. Voltei-me e vi a coisa, mas foi apenas um instante. Fugi para dentro de casa... e ele chamou-me.

O que disse ele?

Quatro palavras: é a tua vez. Oh! Cornélia inspirou, profunda e avidamente. Embrulhou-se melhor no agasalho e olhou fixamente para o fogo.

Eu aproximei-me mais da braseira, abrindo as mãos sobre ela para as aquecer. Que dia tão estranho! murmurei. O que posso eu dizer-te, Cornélia, excepto o mesmo que disse a outra pessoa, que há bocado me contou uma história de lémures: por que me consultas, em vez de consultares um augure? Trata-se de mistérios sobre os quais sei muito pouco. Conta-me uma história sobre uma jóia desaparecida ou sobre um documento roubado; chama-me num caso de chantagem, mostra-me um cadáver, assassinado por um desconhecido. Nessas circunstâncias, talvez possa ajudar-te; sei bastante sobre esses assuntos. Mas não sei o que fazer para aplacar um lémure. Claro que acorrerei sempre que o meu amigo Lúcio Cláudio me chamar; mas começo a perguntar a mim próprio o que estou aqui a fazer.

Cornélia estudou os carvões incandescentes, e nada respondeu.

- Talvez sugeri estejas convencida de que este lémure não é lémure nenhum. De que é, na realidade, um homem vivo...

O importante não é aquilo de que eu estou ou deixo de estar convencida interrompeu ela. Vi nos seus olhos a mesma súplica e o mesmo desespero que tinha visto nos olhos do soldado. Nenhum sacerdote pode ajudar-me; não há protecção possível contra um lémure vingativo. E, contudo, talvez no fundo aquilo seja humano. É possível simular até esse ponto, não é?

Possível? Suponho que sim.

Quer dizer que conheces casos desses, de um homem que se disfarça de lémure?

Nunca tive experiência directa de nenhum...

Foi por isso que pedi a Lúcio que te chamasse. Se esta criatura for na realidade humana, e estiver viva, talvez possas salvar-me dela. Pelo contrário, se for o que parece, um lémure, então nada poderá salvar-me. Estou condenada. Arquejou e mordeu os nós dos dedos.

Mas se o que a coisa desejava era a morte do teu marido...

Não me ouviste? Contei-te o que ela me disse: é a tua vez. Foram as suas palavras! Cornélia estremeceu violentamente. Lúcio foi colocar-se a seu lado. Lentamente, ela foi-se acalmando.

Muito bem, Cornélia. Ajudar-te-ei se puder. Primeiro, vamos às perguntas. As respostas geram respostas. Estás em condições de falar?

Ela mordeu os lábios e acenou com a cabeça.

Dizes que a coisa tem a cara de Fúrio. O teu marido achava o mesmo?

O meu marido insistia nisso, uma vez e outra. Viu a coisa de muito perto, mais do que uma vez. Na noite em que caiu, a criatura aproximou-se o suficiente para ele conseguir cheirar-lhe o hálito fétido. Reconheceu-o sem qualquer dúvida.

E tu? Dizes que apenas o viste por instantes, ontem à noite, antes de fugires. Tens a certeza de que foi Fúrio quem viste na varanda?

Tenho! Bastaram-me uns instantes. A cara estava horrível sem cor, distorcida, com um sorriso hediondo, mas era Fúrio, não tenho dúvida nenhuma disso.

E, contudo, era mais jovem do que te recordas.

Sim. Parece-me que as faces, a boca... o que torna um rosto mais velho ou mais novo? Não sei, apenas posso dizer que, apesar de hedionda, a coisa se parecia com Fúrio quando este era mais jovem. Não era parecida com Fúrio quando ele morreu, há dois anos, mas com Fúrio quando era um jovem esguio e sem barba.

Estou a ver. Nesse caso, ocorrem-me três possibilidades. Poderia tratar-se realmente de Fúrio não do seu lémure, mas do homem. Tens a certeza de que ele morreu?

Tenho.

Não há qualquer dúvida sobre isso?

Não há dúvida nenhuma... Ela estremeceu e pareceu deixar qualquer coisa por dizer. Olhei para Lúcio, que desviou rapidamente o olhar.

Nesse caso, talvez Fúrio tenha um irmão? Um irmão gémeo?

Tinha um irmão, mas era muito mais velho. E morreu na guerra civil...

Oh?

Combatendo contra Sula.

Estou a ver. Nesse caso, talvez Fúrio tenha um filho, que é a própria imagem do pai?

Cornélia abanou a cabeça.

Teve apenas uma filha. Para além dela, só lhe sobreviveram a mulher e a mãe, e julgo que uma irmã.

E nesta altura, há sobreviventes? Cornélia desviou os olhos.

Disseram-me que foram todos viver para casa da mãe, no Monte Célio.

Portanto: Fúrio está seguramente morto, não tinha um irmão gémeo nem tem qualquer irmão vivo e não deixou nenhum filho. E contudo, quer tu, quer o teu marido afirmam que a coisa que assombrava o teu marido tinha a cara de Fúrio.

Cornélia suspirou, exasperada.

É inútil! Só te chamei porque estava desesperada. Cobriu os olhos com as mãos. Oh, tenho a cabeça a latejar. Daqui a nada, cai a noite e como é que eu vou aguentar? Vai-te embora, por favor, quero ficar sozinha.

Lúcio acompanhou-me até ao átrio.

O que te parece? perguntou-me.

Parece-me que Cornélia é uma mulher muito assustada, e que o marido dela era um homem assustado. Por que teria tanto medo deste lémure em concreto? Se o morto tinha sido seu amigo...

Era um conhecido, Gordiano, não era propriamente um amigo.

Há mais alguma coisa que eu devesse saber? Ele remexeu-se, pouco à-vontade.

Sabes que eu detesto coscuvilhices. E a verdade é que Cornélia não é tão venal como algumas pessoas pensam. Há nela um lado bom de que poucas pessoas se apercebem.

Era melhor contares-me tudo, Lúcio. Para bem de Cornélia. Ele apertou a pequena boca, franziu a testa carnuda e coçou a calva.

Bom, está bem murmurou, Como te disse, Cornélia e o marido vivem nesta casa há dois anos. Também foi há dois anos que Fúrio morreu.

E não se trata de uma coincidência?

Fúrio era o proprietário original desta casa. Tito e Cornélia adquiriram-na quando ele foi executado, pelos seus crimes contra Sula e contra o Estado.

Começo a compreender...

Talvez comeces. Fúrio e a família optaram pelo lado errado na guerra civil, eram inimigos políticos de Sula. Quando Sula obteve o poder absoluto e obrigou o Senado a nomeá-lo ditador, purgou a República dos seus inimigos. As proscrições...

Nomes afixados em listas no Fórum; sim, lembro-me perfeitamente.

Uma vez proscrito um homem, qualquer pessoa podia dar-lhe caça, e trazer a sua cabeça a Sula, recebendo uma recompensa em troca. Não preciso de te recordar o banho de sangue; tu assististe a ele; viste as cabeças espetadas em estacas à entrada do Senado.

E a cabeça de Fúrio era uma delas?

Era. Foi proscrito, preso e decapitado. Perguntaste se Cornélia tinha a certeza de que Fúrio tinha morrido. Tem, porque viu a sua cabeça espetada numa estaca, com o sangue a escorrer do pescoço. Entretanto, as suas propriedades foram confiscadas e levadas a leilão público...

Mas os leilões nem sempre eram públicos disse eu. Em geral, os amigos de Sula tinham a primeira opção nas melhores quintas e villas.

Os amigos e os parentes de Sula acrescentou Lúcio, estremecendo. Quando Fúrio foi apanhado e decapitado, Tito e Cornélia não hesitaram em contactar Sula imediatamente, e em se apoderar desta casa. Cornélia sempre a cobiçara; era estúpido não aproveitar a oportunidade de ficar com ela, ainda por cima a troco de quase nada. Baixou a voz. Consta que a única oferta foi a deles, e consistiu na incrível soma de mil sestércios!

O preço de um tapete egípcio de má qualidade disse eu. Belo negócio.

Se Cornélia tem algum defeito, é a avareza. A ganância é o grande vício dos nossos tempos.

Mas não é o único.

O que queres dizer com isso?

Diz-me, Lúcio, esse Fúrio era realmente um grande inimigo do nosso falecido e chorado ditador? Seria uma ameaça assim tão grande à segurança do Estado e à segurança pessoal de Sula, que fosse razoável colocá-lo nas listas de proscrições?

Não compreendo.

Houve quem fosse parar às listas por ser rico de mais; por possuir coisas que outras pessoas cobiçavam.

Lúcio franziu o sobrolho.

Gordiano, aquilo que te disse até agora já é suficientemente escandaloso, e peço-te que não o repitas. Não sei que outras inferências retirarás daqui, nem quero saber. Acho que é melhor pormos fim a esta conversa.

Por muito meu amigo que fosse, Lúcio tinha sangue patrício; os laços que ligam os ricos uns aos outros são de ouro, e são mais fortes do que o ferro.

No regresso, fui meditando na estranha e fatal obsessão de Tito e da mulher. Tinha-me esquecido por completo do soldado até que, ao aproximar-me de minha casa, o ouvi sibilar o meu nome por cima do muro do jardim de casa dele.

Descobridor! Disseste que virias ajudar-me no regresso e vieste mesmo. Entra! Desapareceu e, momentos depois, uma portinha de madeira metida no muro abriu-se para dentro. Parei e entrei; estava num jardim a céu aberto, rodeado por uma colunata. Um cheiro a queimado encheu-me as narinas. Um escravo de certa idade juntava folhas secas com um ancinho, formando pilhas à volta de uma pequena braseira instalada no centro do jardim.

O soldado sorriu-me de esguelha. Pareceu-me que não seria muito mais velho do que eu, apesar da calva e dos pêlos grisalhos que lhe eriçavam as sobrancelhas. Os círculos negros que tinha por baixo dos olhos mostravam que era um homem com uma necessidade desesperada de dormir. Passou por mim a coxear e puxou uma cadeira para eu me sentar.

Diz-me, vizinho, cresceste no campo? A sua voz quebrou ligeiramente, como se uma conversa amigável lhe exigisse um enorme esforço.

Não, nasci em Roma.

Ah, eu cresci perto de Arpino. Só me lembrei de perguntar porque te vi olhar para as folhas e a fogueira. Sei que as pessoas da cidade têm pavor dos incêndios e evitam o fogo, a não ser que seja para se aquecerem ou para cozinhar. Queimar folhas é um hábito do campo. É perigoso, mas eu tenho cuidado. O cheiro das folhas queimadas recorda-me a infância. E este jardim também.

Ergui os olhos para as árvores, que se avultavam, em silhuetas rígidas, contra o céu coberto de nuvens. Entre elas, havia ciprestes e teixos, ainda cobertos de uma camada verde-acinzentada de folhas emaranhadas. E, a um canto, uma arvorezinha estranhamente retorcida, que pouco mais era que um arbusto, rodeada por um tapete de folhas amarelas redondas. O velho escravo avançou lentamente para o arbusto e começou a arrastar as folhas, levando-as para junto das outras.

Vives nesta casa há muito tempo? perguntei.

Há três anos. Comprei-a com o dinheiro da venda da quinta que Sula me deu. Retirei-me antes de os combates terminarem. Estava aleijado de uma perna. Outro ferimento tinha-me inutilizado o braço da espada. De vez em quando, ainda me dói o ombro, especialmente nesta época do ano, quando começa a ficar frio. É uma época má, de uma maneira geral. Fez uma careta, não sei se de uma dor fantasma no ombro ou aos fantasmas que pressentia no ar.

Quando começaste a ver os lémures? perguntei. Já que o homem insistia em me ocupar o tempo, não valia a pena ser subtil.

Logo que vim viver para esta casa.

Talvez os lémures cá estivessem antes da tua chegada.

Não disse ele gravemente. Devem ter-me seguido até aqui.

Coxeou em direcção à braseira, inclinou-se com dificuldade, pegou numa mão-cheia de folhas e lançou-as ao fogo. Pomos pouco de cada vez comentou suavemente. Não podemos ser descuidados com uma fogueira no jardim. Além disso, prolonga o prazer. Um pouco hoje, mais um pouco amanhã. Queimar folhas recorda-me a infância.

Como é que sabes que te seguiram? Refiro-me aos lémures.

Porque os reconheço.

Quem eram?

Nunca soube os nomes deles. Olhava fixamente para o fogo.

Mas lembro-me da cara do etrusco quando a minha espada lhe abriu as entranhas e ele ergueu os olhos para mim, arquejando, sem conseguir acreditar. Lembro-me dos olhos injectados de sangue das sentinelas que surpreendemos certa noite, à entrada de Cápua. Tinham estado a beber, os idiotas; quando lhes espetámos as espadas na barriga, senti o odor do vinho por entre o fedor que de lá saía. Lembro-me do rapaz que matei num combate tão jovem e tão macio, que a minha espada lhe cortou o pescoço sem dificuldade nenhuma. A cabeça dele separou-se e voou para longe; um dos meus homens apanhou-a e atirou-ma, a rir-se. A cabeça caiu-me aos pés. Juro que os olhos do rapaz continuavam abertos, e que ele sabia o que estava a acontecer-lhe...

Inclinou-se, a gemer por causa do esforço, e pegou noutra mão cheia de folhas. As chamas purificam todas as coisas sussurrou.

As folhas queimadas cheiram a inocência.

Ficou a contemplar o fogo por longos momentos.

Vêm ter comigo nesta altura do ano. Os lémures, vêm vingar-se. Não podem fazer mal ao meu corpo; quando eram vivos podiam, mas só conseguiram aleijar-me. Fui eu que matei os seus corpos, fui eu que triunfei. Agora, querem enlouquecer-me. Lançaram um feitiço sobre mim. Enublaram-me o espírito e atraem-me para o abismo. Guincham e dançam dentro da minha cabeça, abrem a barriga sobre mim e enterram-me na sua carne putrefacta, desmembram-se e afogam-me num mar de sangue e entranhas. Até agora, sempre consegui libertar-me, mas a minha vontade vai-se tornando mais fraca de ano para ano. Um dia, eles atraem-me para o abismo, e eu nunca mais consigo sair de lá.

Tapou a cara.

Agora vai-te embora. Tenho vergonha de que me vejas assim. Quando voltares a ver-me, será mais terrível do que podes imaginar. Mas virás, quando te mandar chamar? Virás ver como eu estou? Um homem tão inteligente como tu talvez consiga fazer um acordo, mesmo que seja com os mortos.

Baixou os braços. Eu teria tido grande dificuldade em o reconhecer tinha os olhos vermelhos, as faces descarnadas, tremiam-lhe os lábios.

Jura-me que virás, Descobridor. Quanto mais não seja, para seres testemunha da minha destruição.

Não farei um juramento solene...

Então promete-me como homem, e deixa os deuses de fora disto. Peço-te que venhas quando eu te chamar.

Virei. Suspirei, perguntando a mim próprio se uma promessa feita a um louco me obrigaria.

O velho escravo levou-me até à porta, cacarejando e abanando a cabeça, preocupado.

Receio que o teu senhor esteja louco sussurrei eu. Esses lémures são um produto da imaginação dele.

Oh, não disse o velho escravo. Eu também os vi.

Tu?

Sim, e são tal como ele os descreve.

E os outros escravos?

Todos vimos os lémures.

Contemplei os olhos calmos e imperturbáveis do velho escravo durante um longo momento. Depois saí para o caminho e ele fechou a porta atrás de mim.

Uma verdadeira praga de lémures! disse eu nessa noite, ao jantar, reclinando-me no canapé. Roma foi tomada por eles!

Betesda, que pressentia o desconforto que havia por trás da minha ligeireza, inclinou a cabeça e ergueu uma sobrancelha, mas nada disse.

E aquela advertência disparatada que Lúcio Cláudio escreveu, no recado que me enviou esta manhã! ”Não tragas o rapaz as circunstâncias podem assustá-lo.” Ha! Não há nada mais atraente para um rapaz de doze anos, do que a possibilidade de ver um lémure genuíno!

Eco mastigou o pão que lhe enchia a boca, observando-me com os olhos muito abertos, sem saber bem se eu estaria a brincar ou a falar a sério.

Tudo isto me parece absurdo arriscou Betesda. Cruzou os braços com impaciência. Como era seu costume, já tinha comido na cozinha, e limitava-se a assistir ao nosso jantar. Qualquer egípcio, por muito estúpido que seja, sabe perfeitamente que os corpos dos mortos não podem sobreviver, a não ser que tenham sido cuidadosamente mumificados de acordo com os costumes antigos. Como é que o corpo de um morto pode andar a passear por Roma, assustando esse Tito a ponto de o levar a atirar-se de uma varanda? Especialmente um morto a quem cortaram a cabeça! É óbvio que foi um vivo que o empurrou da varanda abaixo. Ha! Estou capaz de apostar que foi a mulher!

Então e os medos do soldado? O escravo jura que toda a casa viu os lémures. E não foi apenas um, foi um bando deles.

Bah! O escravo está a mentir, para desculpar a fraqueza de espírito do seu senhor. É um escravo leal, como devem ser todos os escravos, mas não honesto.

Ainda assim, acho que, se o soldado me chamar, vou lá, para avaliar por mim próprio. E vale a pena investigar a questão do lémure do Monte Palatino, quanto mais não seja pelos simpáticos honorários que Cornélia me prometeu.

Betesda encolheu os ombros. Para mudar de assunto, voltei-me para Eco.

E, por falar em honorários escandalosos, o que foi que aquele ladrão do teu tutor te ensinou hoje?

Eco saltou do canapé e foi a correr buscar o estilete e a tabuinha de cera.

Betesda descruzou os braços.

Se vais continuar a investigar esses assuntos disse, e agora era ela quem falava alto, para disfarçar o próprio desconforto, acho que o teu amigo Lúcio Cláudio te deu um bom conselho. Não vale a pena andares com Eco atrás de ti. Ele tem de estudar as lições, e é preferível que fique em casa, onde estará a salvo, quer de homens maus, quer de espíritos malignos.

Eu acenei com a cabeça, porque tinha estado a pensar a mesma coisa.

Na manhã seguinte, passei discretamente diante da casa do soldado assombrado. Ele não me ouviu nem me chamou, embora devesse estar acordado e no jardim, porque o odor a folhas queimadas enchia os ares.

Tinha prometido a Lúcio e a Cornélia que voltaria à casa do Palatino, mas primeiro queria fazer outra visita.

Umas perguntas ao ouvido das pessoas indicadas, e umas moedas nas mãos das pessoas adequadas, bastaram-me para descobrir onde era a casa do Monte Célio onde vivia a mãe de Fúrio, e onde se tinham refugiado os sobreviventes dele, depois da sua proscrição, decapitação e privação de todos os bens. A casa era pequena e estreita, metida no meio de outras casas pequenas e estreitas, que podiam perfeitamente estar ali há mais cem anos; a rua tinha sobrevivido aos incêndios e à permanente reconstrução que altera continuamente o rosto da cidade, e parecia conduzir-me para o interior de uma Roma mais antiga e mais simples, onde ricos e pobres viviam lado-a-lado em modestos edifícios privados, antes de os ricos terem começado a exibir a sua abastança em moradias grandiosas e os pobres serem aglomerados em edifícios de vários andares.

Bati à porta, e veio abrir-me um verdadeiro gigante, um escravo pesadão, de peito largo, olhos vesgos e boca ameaçadora não era o escravo porteiro de uma família respeitável, era obviamente um guarda-costas. Recuei alguns passos para não ter de me esforçar a erguer os olhos para ele, e pedi para falar com o seu senhor.

Se viesses em missão honesta, saberias que nesta casa não há senhor grunhiu ele.

Claro repliquei eu. Expressei-me mal. Pretendia referir-me à tua senhora a mãe do falecido Fúrio.

Ele franziu o sobrolho.

Voltaste a expressar-te mal, desconhecido, ou ignoras que a velha senhora teve um ataque pouco depois da morte do filho? Ela e a filha vivem recolhidas e não recebem ninguém.

O que me terá passado pela cabeça? Queria referir-me à viúva de Fúrio, evidentemente...

Mas o escravo estava farto de mim, e bateu-me com a porta na cara. Ouvi uma gargalhada atrás de mim. Voltei-me e vi uma velha escrava a varrer o pórtico da casa do outro lado da rua.

Ter-te-ia sido mais fácil falar com o ditador Sula quando ele era vivo riu-se.

Eu sorri e encolhi os ombros.

Eles são sempre assim tão pouco acolhedores?

Com os desconhecidos, são. Não é de espantar uma casa cheia de mulheres, cujo único homem é um guarda-costas.

Desde que Fúrio foi executado que nenhum homem habita nesta casa...

Conhecia-lo? perguntou a escrava.

Não propriamente. Mas ouvi falar dele.

Foi horrível, aquilo que lhe fizeram. Ele não era inimigo de Sula; Fúrio não tinha estômago para a política nem para combates. Era um homem amável, não dava um pontapé a um cão que encontrasse deitado à porta de casa.

Mas o irmão pegou em armas contra Sula, e morreu a combater contra ele.

Isso foi o irmão, não foi Fúrio. Eu conheci-os ambos, de quando eram rapazes e viviam naquela casa com a mãe. Fúrio era uma criança pacífica e foi um homem ponderado. Era um filósofo, não era um combatente. Aquilo que lhe fizeram foi uma injustiça terrível considerarem-no inimigo do Estado, retirarem-lhe as propriedades, cortarem-lhe a... parou de varrer e pigarreou. Endureceu o maxilar. Quem és tu? Mais um malandro que vem atormentar as mulheres da família?

Nada disso.

Porque digo-te já que nunca conseguirás entrar e falar com a mãe ou a irmã. Desde a morte dele, e depois do ataque da velha, nunca mais saíram daquela casa. Talvez aches que é um luto muito prolongado, mas elas não tinham mais ninguém, para além de Fúrio. A viúva vai às compras com a pequena; continuam a vestir de preto. A morte dele foi um duro golpe para todas elas.

Nesse momento, a porta do outro lado da rua abriu-se, dando passagem a uma mulher loura, vestida de preto; a seu lado, estendendo a mão para a dela, uma rapariguinha de olhos tristes e caracóis pretos. O gigante fechou a porta e seguiu atrás delas; ao ver-me, franziu o sobrolho.

Vão ao mercado sussurrou a velha escrava. Costumam ir a esta hora da manhã. Ah, olha a pequenina, não é um encanto?, com um ar tão sério, mas tão bonita. Não é parecida com a mãe, não é tão clara; não, eu sempre disse que é a imagem da tia.

Da tia? Ou do pai?

Dele também, claro...

Falei com a velha mais uns momentos, depois corri atrás da viúva. Esperava conseguir falar com ela, mas o guarda-costas deixou muito claro que eu devia manter-me à distância. Recuei e segui-os em segredo, observando-a a fazer compras no mercado de carne.

Por fim, deixei-as e dirigi-me à casa do Palatino.

Lúcio e Cornélia acorreram ao átrio mesmo antes de o escravo anunciar a minha chegada. Tinham os rostos transformados pela preocupação e as insónias.

O lémure voltou a aparecer ontem à noite disse Lúcio.

A coisa esteve no meu quarto. Cornélia estava pálida. Acordei e vi-a de pé, ao lado da porta. Foi o cheiro que me despertou um fedor horrível! Tentei levantar-me, mas não consegui. Queria gritar, mas tinha a garganta paralisada a coisa lançou-me um feitiço. Voltou a dizer aquelas palavras: é a tua vez. Depois, desapareceu no corredor.

Foste atrás dela?

Ela olhou para mim como se eu fosse louco.

E depois, fui eu que vi a coisa disse Lúcio. Estava no quarto ao fundo do corredor. Ouvi passos e chamei, pensando que se tratava de Cornélia. Não ouvi resposta, e os passos tornaram-se mais velozes. Saltei da cama e saí para o corredor...

E viste-a?

Só por instantes. Chamei-a; a coisa fez uma pausa, voltou-se e desapareceu nas sombras. Tê-la-ia seguido a sério, Gordiano, juro que sim, mas nesse momento Cornélia chamou por mim. Voltei-me e corri para o quarto dela.

Quer dizer que a coisa fugiu e ninguém foi atrás dela. Abafei uma praga.

Receio que sim disse Lúcio, estremecendo. Mas, quando a coisa se voltou e olhou para mim, no corredor, incidiu-lhe no rosto um raio de luar.

Quer dizer que olhaste bem para ela?

Olhei. Gordiano, eu não conheci Fúrio muito bem, mas conhecia-o o suficiente para o reconhecer se o visse do outro lado da rua, ou no Fórum. E esta criatura apesar dos dentes partidos e dos tumores na carne, não há dúvida de que o demónio tinha a cara de Fúrio!

Subitamente, Cornélia arquejou e cambaleou. Lúcio amparou-a e chamou a pedir ajuda. Algumas das mulheres da casa acompanharam-na ao quarto.

Tito estava na mesma antes de cair suspirou Lúcio, abanando a cabeça. Desmaiava e tinha ataques, ficava tonto e arquejante. Dizem que estas aflições são provocadas por lémures invejosos.

Talvez disse eu. Ou por uma consciência culposa. Gostava de saber se o lémure terá deixado outras manifestações. Mostra-me onde foi que viste a coisa.

Lúcio conduziu-me ao longo do corredor.

Foi ali disse, apontando para um local uns passos adiante da porta do seu quarto. À noite, há um raio de luz que incide ali mesmo; à volta, fica tudo escuro.

Aproximei-me do local, olhei em volta e cheirei o ar. Lúcio cheirou-o igualmente.

O cheiro a putrefacção murmurou. O lémure deixou aquele odor fétido.

Cheira de facto mal disse eu, mas não é a cadáver apodrecido. Olha! Uma pegada!

Um pouco mais à frente, tinham sido deixadas nos ladrilhos duas leves manchas castanhas em forma de sandálias. À luz forte da manhã, via-se uma fila de marcas da mesma cor, em ambas as direcções.

A coisa parou aqui, como disseste; depois começou a correr, deixando estas impressões pouco nítidas. Pergunto a mim próprio o que levará um lémure a correr em bicos de pés. E o que serão estas manchas deixadas pelas pegadas?

Ajoelhei-me e observei com atenção. Lúcio, abandonando a sua dignidade patrícia, pôs-se de gatas a meu lado. Franziu o nariz.

O cheiro a putrefacção! repetiu.

Não é a putrefacção contrariei eu. É um vulgar cheiro a excremento. Anda, vamos ver onde conduzem as pegadas.

Seguimo-las pelo corredor abaixo e virámos a esquina; as pegadas terminavam diante de uma porta fechada.

Isto vai dar ao exterior? perguntei eu.

Não disse Lúcio, que de repente voltara a ser um patrício, e fizera uma expressão de desconforto. Esta porta dá para os lavabos domésticos.

Que interessante. Abri a porta e entrei. Como seria de esperar numa casa governada por uma mulher como Cornélia, os móveis eram luxuosos e o compartimento estava impecável, à excepção de umas pegadas reveladoras no chão de calcário. Havia janelas no alto das paredes, protegidas com grades de ferro. Um assento de mármore encimava o orifício. Espreitei lá para dentro e estudei a canalização de chumbo do esgoto.

Da encosta do Monte Palatino até à Cloaca Máxima, e daí até ao Tibre comentou Lúcio. Os patrícios têm de ser recatados no que às funções corporais diz respeito, mas sentem-se justificadamente orgulhosos das canalizações romanas.

Não tem, nem de longe, largura suficiente para deixar passar um homem disse eu.

Que ideia horrível!

Apesar disso... Mandei chamar um escravo, que conseguiu arranjar-me um formão.

O que estás a fazer, Gordiano? Cuidado, essas lajes são de calcário da melhor qualidade! Pára de raspar os cantos.

E se for para descobrir isto. meti o formão por baixo de uma das lajes e levantei-a.

Lúcio recuou e arquejou, depois inclinou-se para diante e espreitou para dentro da escuridão.

Um túnel sussurrou.

Parece que sim.

Alguém tem de descer por aí abaixo! disse Lúcio. Olhou para mim e ergueu uma sobrancelha.

Nem que Cornélia me pagasse o dobro!

Não estava a sugerir que fosses tu, Gordiano. Ergueu os olhos para o jovem escravo que tinha ido buscar o formão. O rapaz parecia suficientemente esguio e flexível. Quando viu o que Lúcio pretendia dele, recuou assustado e olhou para mim com ar suplicante.

Não, Lúcio Cláudio disse eu, não é necessário ninguém correr esse risco; pelo menos por enquanto. Quem sabe o que o rapaz poderia encontrar se não lémures e monstros, armadilhas ou escorpiões, ou dar uma queda e morrer. Primeiro, temos de tentar determinar onde fica a saída do túnel. Talvez não seja muito complicado, se ele seguir o curso lógico da canalização.

E seguia mesmo. Da varanda do lado ocidental da casa, era fácil perceber o caminho que os canos enterrados percorriam, encosta abaixo, até ao vale que ficava entre o Palatino e o Capitolino, onde se iam juntar à Cloaca Máxima debaixo da terra. No sopé da colina, directamente por baixo da casa, numa região coberta de lixo situada ao lado de armazéns e celeiros, avistei um matagal. Mesmo despojados de folhas, os arbustos eram de tal maneira espessos, que não era possível ver para dentro deles.

Lúcio insistiu em me acompanhar, embora a sua figura volumosa e o seu vestuário caro não fossem os mais adequados para descer uma colina íngreme. Chegámos finalmente ao sopé da colina, abrimos caminho para o interior do matagal, espreitando por baixo de ramos e afastando galhos do caminho.

Finalmente, chegámos ao coração da mata, onde a nossa perseverança foi recompensada. Escondida atrás dos ramos densos e emaranhados de um cipreste, encontrámos a saída do túnel. O orifício era pouco elaborado, forrado com argamassa e tijolos partidos. Tinha apenas tamanho suficiente para deixar passar um homem, mas o mau cheiro que provinha lá de dentro bastava para manter afastados vagabundos e crianças curiosas.

À noite, semelhante local, escondido atrás de armazéns e barracas, seria perfeitamente solitário e reservado. Um homem ou um lémure, já agora podia perfeitamente entrar e sair sem ninguém o ver.

Frio queixou-se Lúcio, frio, húmido e escuro. Faria muito mais sentido ter passado a noite lá em casa, no quente e seco. Podíamos ficar deitados à espera, e apanhar o malandro quando ele emergisse da passagem secreta. Não percebo por que motivo temos de estar aqui agachados, no escuro e ao frio, à espera sabe-se lá de quê, sobressaltados de medo de cada vez que uma rajada de vento assobia por entre o matagal.

Não precisavas de ter vindo, Lúcio Cláudio. Não te pedi que o fizesses.

Cornélia teria pensado que eu era um cobarde, se não o fizesse resmungou ele.

E que importância tem a opinião de Cornélia? lancei eu, e depois mordi a língua. O frio e a humidade tinham-nos enervado aos dois. Caía uma chuvinha ligeira, que obscurecia a Lua, mergulhando o matagal numa escuridão ainda maior. Estávamos escondidos entre os espinheiros desde pouco depois do cair da noite. Eu tinha avisado Lúcio de que era provável que a vigília fosse longa e desconfortável, e possivelmente fútil, mas ele insistira em me acompanhar. Tinha proposto contratar uns quantos rufias como escolta mas, se as minhas suspeitas fossem correctas, não precisaríamos deles; e eu não desejava que estivessem presentes mais testemunhas do que as necessárias.

Uma lufada de vento gelado açoitou-me por baixo da capa, enviando-me um arrepio pela espinha acima. Os dentes de Lúcio começaram a bater. Eu estava cada vez mais maldisposto. E se estivesse enganado? E se a coisa de que estávamos à espera não fosse humana, mas fosse outra coisa qualquer...?

Estalou um galho, depois vários galhos. Qualquer coisa tinha entrado no matagal e avançava em direcção a nós.

Deve ser um exército inteiro! sussurrou Lúcio, agarrando-se ao meu braço.

Não sussurrei eu em resposta. Se eu tiver razão, são apenas duas pessoas.

Duas formas móveis, obscurecidas pelo emaranhado de ramos e pela escuridão profunda, aproximaram-se de nós, virando em seguida para junto do cipreste que escondia a entrada do túnel.

Momentos depois, ouvi uma voz de homem praguejar.

Alguém bloqueou a entrada! Reconheci a voz do gigante que guardava a casa do Monte Célio.

Talvez o túnel se tenha desmoronado. Quando ouviu a segunda voz, Lúcio apertou-me o braço, não de medo, mas de surpresa.

Não disse eu em voz alta, o túnel foi propositadamente bloqueado, para que não possam voltar a usá-lo.

Houve um momento de silêncio, seguido pelo ruído de dois corpos agitando-se por entre o matagal.

Não se mexam! disse eu. Para vosso próprio bem, não se mexam e oiçam-me!

A agitação cessou, e voltou a fazer-se silêncio, à excepção do som de respirações pesadas e murmúrios confusos.

Sei quem são disse eu. E sei por que estão aqui. Não tenho qualquer interesse em lhes fazer mal, mas tenho de falar convosco. Estás disposta a falar comigo, Fúria?

Fúria! sussurrou Lúcio. A chuvinha tinha parado, e o luar iluminava-lhe o rosto confuso.

Fez-se um longo silêncio, seguido de mais sussurros o gigante estava a tentar dissuadir a sua senhora. Finalmente, ela disse em voz alta:

Quem és tu?

Chamo-me Gordiano. Tu não me conheces, mas eu sei que tu e a tua família sofreram muito, Fúria. Foram objecto de uma grande injustiça. Talvez a vossa vingança de Tito e Cornélia seja agradável aos deuses não serei eu a julgar-vos. Mas foram descobertos, e chegou o momento de pôr fim a esta farsa. Vou avançar em direcção a vós. Não estamos armados. Diz ao teu escravo que não queremos fazer mal nenhum, e que fazer-nos mal em nada te aproveitará.

Avancei lentamente em direcção ao cipreste, que era uma mancha preta, enorme e emaranhada, no meio da escuridão geral. Ao lado dele, estavam duas formas, uma alta e a outra baixa.

Com um gesto, Fúria ordenou ao escravo que não se mexesse, depois avançou para nós. Um raio de luar iluminou-lhe o rosto. Lúcio engasgou-se e recuou. Embora eu estivesse prevenido, a visão não deixou de suscitar em mim um arrepio que me percorreu o corpo todo.

Enfrentei o que me pareceu ser um jovem metido dentro de uma capa esfarrapada. Tinha o cabelo curto manchado de sangue, e mais sangue à volta do pescoço, como se este tivesse sido cortado e novamente ligado ao corpo. Tinha os olhos escuros e fundos, a pele pálida como a morte, ponteada de tumores horríveis, os lábios secos e cheios de rachas. Quando falou, a voz doce e suave de Fúria apresentava um estranho contraste com a sua horrenda aparência.

Descobriste-me disse ela.

Descobri.

És o homem que esta manhã foi bater à porta de casa de minha mãe?

Sou.

Quem me atraiçoou? Não pode ter sido Cleto sussurrou, lançando um olhar ao guarda-costas.

Ninguém te atraiçoou. Descobrimos o túnel esta tarde.

Ah! O meu irmão mandou-o construir durante os piores anos da guerra civil, para o caso de termos de fugir, se houvesse alguma crise repentina. Claro que, quando o monstro se tornou ditador, não havia maneira de fugir, fosse para onde fosse.

O teu irmão era realmente inimigo de Sula?

- Não de forma activa; mas havia quem estivesse ansioso por pintá-lo dessa maneira aqueles que cobiçavam tudo o que ele possuía.

Fúrio foi proscrito sem razão nenhuma?

Sem nenhuma razão, para além da ganância da cadela! A voz dela era dura e amarga. Lancei um olhar a Lúcio, que se mantinha curiosamente silencioso perante semelhante ataque ao carácter de Cornélia.

Tito foi o primeiro a ser perseguido...

Só para que Cornélia soubesse o que a esperava. Tito era um fraco, um zé-ninguém, fácil de assustar. Pergunta a Cornélia; ela sempre conseguiu intimidá-lo, obrigando-o a fazer tudo o que ela queria, mesmo que isso implicasse destruir um homem inocente. Foi Cornélia quem convenceu o seu querido primo Sula a introduzir o nome do meu irmão nas listas de proscritos, apenas para ficar com a nossa casa. Porque todos os homens da nossa linhagem morreram, porque Fúrio era o último, pensou que a calúnia não seria vingada.

Mas agora chega, Fúria. Tens de te contentar com aquilo que já fizeste.

Não!

Vida por vida disse eu. Tito por Fúrio.

Não, ruína por ruína! A morte de Tito não nos devolverá a nossa casa, a nossa fortuna, o nosso bom nome.

Nem a morte de Cornélia o fará. Se prosseguires, serás apanhada com certeza. Deves contentar-te com meia vingança, e esquecer o resto.

Quer dizer que tencionas contar-lhe? Agora que me apanhaste? Eu hesitei.

Primeiro, diz-me a verdade Fúria: empurraste Tito da varanda abaixo?

Ela olhou para mim com firmeza; o luar fazia com que os seus olhos brilhassem como fragmentos de ónix.

Tito saltou da varanda. Saltou porque pensou que tinha visto o lémure do meu irmão, e não conseguiu suportar a sua própria maldade e a sua culpa.

Eu inclinei a cabeça.

Vai-te embora sussurrei. Leva o teu escravo e vai-te embora, volta para junto da tua mãe, da tua sobrinha e da viúva do teu irmão. Não regresses, nunca mais.

Ergui os olhos e vi as lágrimas correrem-lhe pelas faces abaixo. Era uma perspectiva estranha, um lémure a chorar. Ela chamou o escravo e afastaram-se os dois pelo matagal fora.

Subimos a colina em silêncio. Os dentes de Lúcio tinham parado de bater, e ele começou a arfar. À entrada da casa de Cornélia, eu disse-lhe:

Lúcio, não podes contar a Cornélia.

Mas então como...

Vamos dizer-lhe que encontrámos o túnel, mas que ninguém apareceu; que, de momento, o perseguidor foi afastado, mas que poderá regressar, e que nesse caso ela poderá defender-se. Sim, deixemo-la pensar que a ameaça desconhecida continua pendente, conspirando para destruí-la.

Mas certamente que ela merece...

Ela merece aquilo que Fúria tinha reservado para ela. Sabias que Cornélia tinha colocado o nome de Fúrio nas listas, apenas para ficar com a casa dele?

Eu... Lúcio mordeu o lábio. Desconfiei dessa possibilidade. Mas, Gordiano, ela não foi a única a fazer tal coisa. Toda a gente fazia o mesmo.

Nem toda a gente. Tu não fizeste, Lúcio.

Pois não disse ele, acenando timidamente com a cabeça. Mas Cornélia vai responsabilizar-te por não teres capturado o impostor. Vai recusar-se a pagar-te os honorários por inteiro.

Pouco me importam os honorários.

Eu compenso-te da diferença disse Lúcio. Poisei a mão no ombro dele.

Qual é a coisa mais rara do que um camelo na Gália? perguntei. Lúcio franziu a testa. Um homem honesto em Roma! Ri-me e apertei-lhe o ombro.

Lúcio sacudiu o elogio com um encolher de ombros e o seu habitual ar mortificado.

Ainda não compreendo como é que sabias a identidade do impostor.

Já te disse que esta manhã fui fazer uma visita à casa do Monte Célio. Aquilo que não te disse foi o que uma velha escrava da casa em frente me revelou: que Fúrio tinha uma irmã, e que a irmã era extraordinariamente parecida com ele tão parecida que, com as suas feições suaves e femininas, podia passar por uma versão mais jovem de Fúrio.

Mas aquele aspecto horrível...

É uma ilusão. Quando segui a viúva de Fúrio até ao mercado, vi-a comprar uma quantidade considerável de sangue de vitela. Também adquiriu um ramo de bagas de zimbro, que encarregou a filhinha de transportar.

Bagas?

As úlceras que Fúria tinha na cara, eram bagas de zimbro cortadas ao meio. O sangue era para lhe pintar o cabelo e cobrir o pescoço. Quanto ao resto da sua aparência, a sinistra maquilhagem e aquele vestuário tenebroso, não é difícil adivinhar o engenho de uma casa de mulheres, unidas num mesmo objectivo. Fúria está fechada há vários meses, o que explica a palidez quase sobrenatural do seu rosto e o facto de ter podido cortar o cabelo sem ninguém reparar.

Abanei a cabeça.

Uma mulher notável. Pergunto a mim próprio por que motivo nunca se terá casado. Calculo que o tumulto da guerra civil lhe terá destruído quaisquer planos que pudesse ter, e a morte dos irmãos condenou-a para sempre. A miséria é como um seixo atirado a um tanque; cria uma onda que se expande sem parar.

Nessa noite, voltei para casa esgotado e melancólico. Há dias em que contactamos excessivamente com a maldade do mundo, e só um sono prolongado na reclusão segura de nossa casa pode devolver-nos o gosto pela vida. Pensei em Betesda e em Eco, e tentei afastar do pensamento o rosto de Fúria. A última coisa que me ocupava o espírito era o soldado assombrado, e a respectiva legião de lémures.

Passei pelo muro do jardim dele, chegou-me às narinas o cheiro a folhas queimadas que já se me tornara familiar, mas só pensei no assunto ao ouvir a porta de madeira abrir-se atrás de mim e a voz do velho criado a chamar-me.

Descobridor! Graças aos deuses regressaste finalmente! sussurrou em voz rouca. Parecia tomado por uma doença singular porque, embora a porta tivesse altura suficiente para ele se manter direito, estava estranhamente curvado. Os seus olhos tinham um brilho apagado e tremia-lhe o queixo. O senhor mandou mensageiros a tua casa disseram-lhes que tinhas saído, mas podias regressar a qualquer momento. Mas quando os lémures chegam, o tempo pára. Por favor, entra! Salva o senhor salva-nos a todos!

Do interior do muro, chegou-me o som de gemidos, não de um homem, mas de muitos homens. Ouvi uma mulher guinchar, e o som de objectos pesados a serem deitados ao chão. Que loucura estaria a passar-se dentro de casa do soldado?

Por favor, ajuda-nos! Os lémures, os lémures! O velho escravo fez uma tal careta de horror, que eu comecei a recuar. Meti a mão dentro da túnica e apalpei o punhal. Mas que vantagem me daria um punhal, se tivesse de lutar contra mortos?

Atravessei a portinha. O coração batia-me no peito como um martelo.

O ar do jardim estava húmido e cheio de fumo; depois da chuvinha, descera sobre as colinas de Roma um frio húmido, que cobrira a cidade como um manto, impedindo que o fumo das lareiras domésticas se dispersasse pelos ares, e tornando a atmosfera espessa e estagnada. Inspirei uma lufada de ar amargo e comecei a tossir.

O soldado saiu de casa a correr. Tropeçou, caiu e cambaleou para diante de joelhos, envolvendo-me a cintura com os braços e olhando para mim com terror abjecto.

Ali! Apontou para dentro de casa. Eles perseguem-me! Deuses, tende misericórdia o rapaz sem cabeça, o soldado com a barriga aberta, os outros todos!

Eu espreitei para a escuridão enublada, mas nada vi, à excepção de uma pequena espiral de fumo. De repente, senti-me tonto. Era de não ter comido nada o dia todo, pensei; devia ter sido menos orgulhoso e aceitado o convite de Cornélia para tomar uma refeição. Depois, a espiral de fumo começou a expandir-se e a mudar de forma diante dos meus olhos. Uma face emergiu da escuridão cerrada um rosto de rapaz, retorcido de agonia.

Olha! gritou o soldado. Estás a ver o pobre miúdo com a cabeça nas mãos, como Perseu segurando a cabeça da Górgona? Estás a vê-lo a olhar-me, a acusar-me?

Na verdade, comecei a ver, por entre a escuridão e o fumo, exactamente aquilo que o infeliz descrevia, um rapaz sem cabeça em traje de batalha, agarrando a própria cabeça pelos cabelos e erguendo-a ao alto. Abri a boca de espanto. Atrás do rapaz, começaram a emergir outras formas primeiro poucos, depois muitos, depois uma legião de fantasmas cobertos de sangue e contorcendo-se no ar como vermes.

Era um espectáculo aterrador. Queria fugir, mas estava preso ao chão. O soldado continuava agarrado aos meus joelhos. O velho escravo começou a chorar e a babar-se. Do interior da casa, chegou até mim o som da perturbação dos outros, gemendo e chorando em voz alta.

Não os ouves? gritava o soldado. São os lémures, a guinchar como harpias! A enorme massa de corpos que se elevava no ar começou a gemer e a lamentar-se Roma inteira devia ouvi-los!

Tal como um homem a afogar-se, a mente perturbada agarra-se seja ao que for para se salvar. Uma palha flutua, mas não suporta o peso de um homem que se agita violentamente; uma prancha de madeira pode adiar-lhe o destino, mas o melhor de tudo é uma rocha firme no meio de um mar revoltoso. Desta maneira, a minha mente agarrava-se fosse ao que fosse que pudesse preservá-la de horror tão devastador e inexplicável. O tempo tinha parado, como dissera o velho escravo, e nesse momento interminavelmente atenuado passou-me pela cabeça uma torrente de imagens, recordações, planos e ideias. Agarrava-me a palhas. A loucura empurrava-me para diante, como uma corrente invisível em águas turvas. Estava a afundar-me até que, subitamente, encontrei uma verdade sólida a que me agarrar.

O arbusto! sussurrei. O arbusto em chamas, o arbusto que fala!

Pensando que eu tinha detectado qualquer coisa no interior da massa de lémures que se contorciam, o soldado agarrou-se a mim a tremer.

Qual arbusto? Ah, sim, também estou a vê-lo...

Não, o arbusto do teu jardim! Aquela árvore estranha e retorcida no meio dos teixos, com folhas amarelas a toda a volta. As folhas foram misturadas com as outras... foram queimadas com as outras na fogueira... o fumo anda pelos ares...

Empurrei o soldado, fi-lo passar pela portinhola de madeira, e sair para a estrada. Voltei para trás, trouxe o velho escravo, e depois fui buscar os outros, um por um. Eles acotovelavam-se nas lajes da rua, a tremer, confusos, de olhos muito abertos de terror e vermelhos de sangue.

Não há lémures nenhuns! sussurrei roucamente, porque a garganta me doía por causa do fumo embora continuasse a ver os lémures por cima do muro, cacarejando e passeando as entranhas pelo ar.

Os escravos guincharam e abraçaram-se uns aos outros. O soldado tapou a cara com as mãos.

À medida que os escravos se foram acalmando, fui-os levando, em grupos, para minha casa, onde se juntaram, assustados mas a salvo.

Betesda ficou perplexa e irritada com aquela súbita invasão de desconhecidos semiloucos, mas Eco estava deliciado com a oportunidade de ficar acordado até de madrugada em circunstâncias tão invulgares. Foi uma noite comprida e fria, marcada por ataques de pânico e orgias de pacificação mútua, enquanto esperávamos que a sanidade voltasse.

Chegou a primeira luz da madrugada, trazendo consigo um orvalho frio que era um tónico para os sentidos, ainda confusos pela falta de sono e envenenados pelo fumo. A minha cabeça estalava, com uma ressaca muito pior do que qualquer outra resultante do vinho. Um raio da luz pálida do Sol foi como um punhal nos meus olhos, mas deixei de ter visões de lémures e de ouvir os horrendos gemidos.

O soldado, com ar descomposto e aturdido, suplicou-me que lhe explicasse o que se tinha passado.

A verdade ocorreu-me de repente disse-lhe. O teu ritual de queima anual de folhas, e a visita anual dos lémures... o fumo que enchia o teu jardim, e a praga de espíritos... eram coisas que estavam relacionadas umas com as outras. Aquela árvore estranha e retorcida que tens no jardim não é nativa de Roma, nem sequer de Itália. Não faço ideia como veio aqui parar, mas desconfio de que as sementes vieram do Oriente, onde as plantas que induzem visões não são invulgares. Há a planta-cobra da Etiópia, cujo suco provoca visões tão horríveis, que leva as pessoas ao suicídio; os homens acusados de sacrilégio são forçados a bebê-lo, como pena. A planta brilho-do-rio, que cresce nas margens do Indo, é famosa por suscitar delírios e visões estranhas. Mas eu desconfio de que a árvore que tens no teu jardim é um espécime de um arbusto raro que se encontra nas montanhas rochosas a leste do Egipto; Betesda costuma contar uma história sobre ela.

Que história? perguntou Betesda.

Não te lembras aquela história que o teu pai hebraico te contava, sobre o seu antepassado Moisés, que encontrou um arbusto que falava com ele quando ardia. As folhas do teu arbusto não se limitam a falar, vizinho, também suscitam visões poderosas.

Mas por que foi que eu vi o que vi?

Viste aquilo que mais receavas, os espíritos vingativos daqueles que mataste quando lutavas ao lado de Sula.

Mas os escravos viam o mesmo que eu! E tu também!

Nós vimos aquilo que tu sugeriste, da mesma maneira que tu começaste a ver um arbusto a arder quando eu te disse essas palavras.

Ele abanou a cabeça.

Nunca tinha sido tão forte. A noite passada foi mais terrível do que nunca!

Provavelmente porque, no passado, só queimavas algumas folhas amarelas de cada vez, e o vento frio levava a maior parte do fumo para longe; as visões afectaram alguns, mas não todos, os membros de tua casa, e em graus diversos. Mas a noite passada, por acaso, queimaste muitas folhas amarelas ao mesmo tempo. O fumo encheu o jardim e espalhou-se para dentro de casa. Todos os que o respiraram ficaram embriagados e tomados por uma loucura temporária. Quando fugimos àquele fumo, a loucura passou, como uma febre.

Quer dizer que os lémures nunca existiram?

Julgo que não.

E se eu arrancar aquele maldito arbusto e o lançar ao Tibre. não voltarei a ver lémures?

Talvez não. Embora possas continuar a vê-los nos teus pesadelos, pensei.

Ou seja, foi exactamente como eu te disse comentou Betesda nessa tarde, poisando-me um pano húmido sobre a testa. Ainda sentia clarões de dor atingirem-me as têmporas de vez em quando, e sempre que fechava os olhos avultavam-se no escuro visões alarmantes.

Como tu me disseste? Que disparate! respondi eu. Tu achavas que Tito tinha sido empurrado da varanda e que tinha sido a mulher, Cornélia!

Foi levado a saltar por uma mulher disfarçada de lémure é quase a mesma coisa insistiu ela.

E afirmaste que o velho escravo do soldado estava a mentir quando disse que também tinha visto os lémures, quando estava a dizer a verdade.

Aquilo que eu disse foi que os mortos não podem andar a passear por aí, a não ser que tenham sido adequadamente mumificados, e tinha toda a razão. E era eu que te tinha falado do arbusto que fala quando arde, lembras-te? Sem isso, nunca terias resolvido o caso.

Está bem admiti, decidindo que era impossível vencer a discussão.

Essa estranha ideia romana dos lémures que assombram os vivos é completamente absurda prosseguiu ela.

Sobre isso já não tenho tanta certeza.

Mas viste a verdade com os teus olhos! Provaste com a tua própria inteligência, não num, mas em dois casos, que aquilo que toda a gente pensava serem lémures não eram lémures nenhuns, mas um simulacro vingativo num caso, e fumo intoxicante no outro e, no fundo de ambos os casos, uma consciência culpada!

O problema não é esse, Betesda.

O que queres dizer com isso?

Os lémures existem talvez não enquanto visões perceptíveis pelos sentidos, mas de outra maneira. Os mortos têm o poder de espalhar a infelicidade entre os vivos. O espírito de um homem pode sobreviver e provocar estragos inconcebíveis do lado de cá do túmulo. Quanto mais poderoso for um homem, mais duradouro é o seu legado. Estremeci não em consequência das tétricas visões que tinha tido no jardim do soldado, mas da verdade nua e crua, que era infinitamente mais terrível. Roma é uma cidade assombrada. O lémure do ditador Sula assombra-nos a todos. Ele pode estar morto, mas não desapareceu. A sua maldade permanece, trazendo o desespero e o sofrimento a amigos e inimigos.

Betesda não tinha resposta para isto. Fechei os olhos e deixei de ver monstros, mas dormi um sono sem sonhos até à manhã do dia seguinte.

O Jovem César e os Piratas

É um prazer encontrar-te, Gordiano! Mas diz-me, já ouviste a história que circula no Fórum acerca de Júlio César, o jovem sobrinho de Mário?

Tinha sido interpelado pelo meu amigo Lúcio Cláudio nos degraus das Termas Senianas. Eu ia a entrar e, aparentemente, ele vinha a sair.

Se estás a referir-te àquele episódio em que o jovem e belo César desempenhou o papel de Rainha do Rei Nicomedes quando estava na Bitínia, sim, já ouvi julgo aliás que foste tu que ma contaste, mais do que uma vez, e sempre com detalhes cada vez mais gráficos.

Não, não, esse mexerico já passou à história. Estou a falar do episódio dos piratas, que mete resgates, vinganças crucifixões!

Olhei para ele sem reacção.

Lúcio riu-se, o que fez com que os seus dois queixos se fundissem num só. As suas faces rechonchudas estavam rosadas do calor dos banhos e ainda tinha os caracóis ruivos humedecidos. O brilho dos seus olhos tinha aquela alegria especial de quem é o primeiro a comunicar uma bisbilhotice especialmente sumarenta.

Confessei-lhe que me tinha despertado a curiosidade. Contudo, como parecia que Lúcio ia a sair das termas, enquanto eu acabava de chegar, e como eu estava ansioso por um banho quente, dado o frio intenso que o ar de Primavera guardava ainda infelizmente, a história teria de esperar.

O quê, e deixar que seja outra pessoa a contar-ta, baralhando os pormenores todos? Não me parece, Gordiano. Não, eu vou contigo. Com um gesto, indicou aos seus acompanhantes que fizessem meia volta. O costureiro, o barbeiro, o manicuro, o massagista e os guarda-costas, todos eles se mostraram um tanto confusos, mas condescenderam em seguir-nos, entrando de novo nas termas atrás de nós.

O que foi uma sorte para mim, porque estava mesmo a precisar de um pouco de mimo. Betesda cortava-me o cabelo na perfeição e, enquanto massagista, tinha um toque de ouro, mas Lúcio Cláudio era suficientemente abastado para poder comprar o melhor que havia em servidores para o corpo. Ter ocasionalmente acesso aos serviços dos escravos de um homem rico tem que se lhe diga. Enquanto as minhas unhas das mãos e dos pés eram cuidadosamente cortadas, limadas e polidas, o meu cabelo profissionalmente aparado, e a minha barba rapada sem dor, Lúcio fazia sucessivas tentativas para começar a contar a sua história, e eu mantinha-o à distância, desejoso de ser tratado da cabeça aos pés.

Só durante a segunda visita à piscina de água quente lhe permiti verdadeiramente começar. Por entre nuvens de vapor, com as cabeças de ambos a boiar como ilhotas no meio do nevoeiro, ele relatou a sua história náutica.

Como sabes, Gordiano, nos últimos anos o problema da pirataria tem-se tornado cada vez mais grave.

A culpa é de Sula, de Mário e da guerra civil disse eu. As guerras geram refugiados, e os refugiados transformam-se em bandidos e piratas.

Sim, bem, seja qual for o motivo, os resultados estão à vista. Navios capturados, cidades saqueadas, cidadãos romanos feitos reféns.

Enquanto o Senado hesita, como de costume.

O que podem eles fazer? Queres que atribuam um comando naval especial a um general louco pelo poder, para ele usar as forças que lhe dermos para atacar os rivais políticos e suscitar outra guerra civil?

Abanei a cabeça.

Apanhados entre senhores da guerra e salteadores, com o Senado romano encarregado de orientar os nossos destinos às vezes, desespero da República.

Como qualquer homem racional concordou Lúcio. Partilhámos um momento de contemplação silenciosa da crise do Estado romano, e depois ele voltou à sua história, cheio de entusiasmo.

Seja como for, quando te digo que os piratas se tornaram tão atrevidos que chegam a raptar cidadãos romanos, não estou a referir-me a um simples mercador, que tenham apanhado por acaso num navio mercante. Falo de cidadãos distintos, de nobres romanos que até os piratas mais ignorantes deviam saber que não podem molestar. Refiro-me ao jovem Júlio César em pessoa.

Quando foi que isso aconteceu?

No princípio do Inverno. César tinha passado o Verão na ilha de Rodes, a estudar retórica com Apolónio Moio. Estava destinado ao cargo de adido do governador da Cilicia, mas demorou-se em Rodes o mais que pôde, só partindo mesmo no fim da temporada de navegação. À saída da ilha de Farmacusa, o navio onde seguia foi perseguido e capturado por piratas. César foi feito prisioneiro, com toda a sua comitiva!

Lúcio ergueu uma sobrancelha, criando um curioso padrão de rugas na sua testa carnuda.

Não te esqueças de que César tem apenas vinte e dois anos, o que permite explicar que tenha sido tão irreflectidamente temerário. Por outro lado, a sua beleza, a sua riqueza e as suas relações quase sempre lhe permitiram obter tudo aquilo que deseja. Imagina-o nas garras de piratas cilicianos, a gente mais sedenta de sangue que há no mundo. Encolhe-se ao ouvir as suas ameaças? Baixa a cabeça? Mostra-se humilde e submisso? Longe disso. Exactamente o contrário! Insulta os seus captores desde o princípio. Eles contam-lhe que tencionam pedir um resgate de meio milhão de sestércios. César ri-se na cara deles! Em troca de um cativo como ele, seriam doidos se não pedissem pelo menos um milhão e eles pedem!

Interessante observei eu. Atribuindo à sua vida um valor superior, forçou os piratas a fazer o mesmo. Calculo que até piratas sedentos de sangue tenham tendência para cuidar melhor de um refém de um milhão de sestércios do que de outro que apenas valha metade.

Achas, pois, que a jogada é uma prova da inteligência de César? Os seus inimigos atribuem-na a pura e simples vaidade. Mas eu admiro o que ele fez a seguir, que foi conseguir a libertação de quase todos os elementos do seu grupo. Os seus numerosos secretários e colaboradores foram soltos, porque César insistiu em que o resgate de um milhão de sestércios teria de ser obtido em várias fontes e em diversos sítios, o que exigiria que toda a sua comitiva se empenhasse nessa tarefa. Apenas manteve consigo dois escravos ou seja, o mínimo absoluto para prover ao conforto de um nobre e o seu médico pessoal, de quem não pode prescindir, devido aos seus ataques de epilepsia.

”Bem, dizem que César passou quase quarenta dias nas garras dos piratas, e viveu o cativeiro como se se tratasse de umas férias. Se lhe apetecesse fazer uma sesta e os piratas estivessem a fazer barulho, mandava um dos escravos dizer-lhes que se calassem! Quando os piratas se envolviam em exercícios e jogos, César juntava-se a eles, e quase sempre levava-lhes a melhor, tratando-os como se fossem, não tanto seus captores, como seus guardiões. Para preencher o tempo livre, escrevia discursos e compunha versos, como tinha aprendido a fazer com Apolónio Moio, e quando terminava uma obra mandava os piratas sentarem-se em silêncio a ouvi-lo. Se o interrompessem ou fizessem observações críticas, chamava-lhes bárbaros e iletrados. Dizia a brincar que ia mandá-los açoitar, como se fossem crianças malcomportadas, e chegava mesmo a dizer que os mandaria crucificar por terem insultado a dignidade de um patrício romano.

E os piratas aturavam essas insolências?

Parece que adoravam! César exercia uma espécie de fascínio sobre eles, pela simples força da sua vontade. Quanto mais os insultava, mais encantados eles ficavam.

Por fim, o resgate chegou e César foi libertado. Dirigiu-se imediatamente a Mileto, apoderou-se de alguns navios e partiu para a ilha onde os piratas estavam instalados. Apanhou-os de surpresa, capturou a maioria, e não só recuperou o dinheiro do resgate, como se apropriou do tesouro dos piratas, reclamando-o como despojos de batalha. Quando viu que o governador local hesitava quanto ao destino a dar aos piratas, tentando divisar algum processo legal de se apoderar do saque, César encarregou-se do castigo. Enquanto fora seu prisioneiro, gabara-se muitas vezes de que os veria crucificados, e eles tinham-se rido, pensando que a ameaça não passava de bravata juvenil mas o último a rir foi César, ao vê-los nus pregados a cruzes. ”Os homens hão-de aprender a levar-me a sério”, comentou.

Eu estremeci, apesar do calor do banho.

Ouviste esta história no Fórum, Lúcio?

Sim, toda a gente fala disto. César vem a caminho de Roma e a história das suas façanhas precede-o.

É mesmo o género de historieta moral que os Romanos adoram! resmunguei. Não há dúvida de que o jovem e ambicioso patrício tenciona fazer carreira na política. É o ideal para ele ganhar fama entre os eleitores.

Bem, César precisa de qualquer coisa que lhe permita recuperar a sua dignidade, depois de ter prescindido dela diante do Rei Nicomedes comentou Lúcio com uma expressão lúbrica.

Sim, aos olhos da multidão nada faz aumentar a dignidade de um romano como pregar outro homem a uma cruz disse eu sombriamente.

E nada diminui tanto a sua dignidade como pregarem-se nele, mesmo que seja um rei observou Lúcio.

Esta água está a ficar quente de mais; torna-me irritável. Acho que me calhava bem usar os serviços do teu massagista, Lúcio Cláudio.

A história de César e dos piratas tornou-se imensamente popular. Ao longo dos meses seguintes, enquanto a Primavera ia aquecendo e se ia transformando em Verão, foi repetida por muitas línguas em muitas variantes, em tabernas e nas esquinas das ruas, por filósofos no Fórum e por acrobatas à entrada do Circo Máximo. Era um exemplo claro do descontrolo que o problema da pirataria tinha assumido, diziam as pessoas, acenando gravemente com a cabeça, mas o que realmente as impressionava era que um jovem patrício impertinente tivesse encantado uma equipagem de piratas sedentos de sangue com a sua arrogância, e acabasse por lhes infligir toda a medida da justiça romana.

Num sufocante dia de Verão do mês de Sextílio, fui chamado a casa de um patrício de nome Quinto Fábio.

A casa ficava situada no Monte Aventino. A estrutura parecia antiga, mas estava impecavelmente conservada um sinal de que os seus proprietários prosperavam naquele local há várias gerações. No átrio, alinhavam-se as efígies de cera dos antepassados domésticos; os Fábios remontam à fundação da República.

Fui conduzido a um compartimento que dava para o pátio central, onde os meus anfitriões me esperavam. Quinto Fábio era um homem de meia-idade, de maxilar austero e têmporas grisalhas. A mulher, Valéria, tinha cabelos cor de avelã, olhos azuis, e era extraordinariamente bela.

Estavam sentados em cadeiras sem costas, cada um deles atendido por um escravo com um leque. Trouxeram-me uma cadeira, juntamente com um escravo para me abanar.

De uma maneira geral, tenho verificado que quanto mais elevado é o lugar que um cliente ocupa na escala social, mais demora a dizer-me o que pretende. Mas Quinto Fábio não perdeu tempo a mostrar-me um documento.

O que te parece? perguntou, enquanto um quarto escravo me entregava um fragmento de papiro.

Sabes ler, não sabes? perguntou Valéria, num tom mais ansioso do que insultuoso.

Sei, sei se não me apressarem respondi eu, pensando em prolongar o tempo posto à minha disposição para estudar a carta (porque se tratava de uma carta) e perceber o que quereria o casal de mim. O papiro estava manchado de água e rasgado nas pontas, e tinha sido dobrado várias vezes, em vez de enrolado. A escrita era infantil mas decidida, com floreados gratuitos em algumas letras.

 

AO PAI E À MÃE QUERIDÍSSIMOS, POR ESTA ALTURA, OS MEUS AMIGOS JÁ VOS DEVEM TER INFORMADO DE QUE FUI RAPTADO. FOI UMA TOLICE DA MINHA PARTE IR NADAR SOZINHO PERDOEM-ME! SEI QUE DEVEM ESTAR DOENTES DE MEDO E DE DOR, MAS NÃO SE AFLIJAM DEMASIADO; SÓ PERDI ALGUM PESO, E OS MEUS CAPTORES NÃO SÃO EXCESSIVAMENTE CRUÉIS.

ESCREVO-VOS PARA VOS TRANSMITIR AS SUAS EXIGÊNCIAS. DIZEM QUE QUEREM 100.000 SESTÉRCIOS. DEVEM ENTREGÁ-LOS A UM HOMEM, NA MANHÃ DOS IDOS DE SEXTILIS, NUMA TABERNA DE ÓSTIA CHAMADA PEIXE VOADOR

 O VOSSO REPRESENTANTE DEVE VESTIR UMA TÚNICA VERMELHA

PELA PRONÚNCIA E AS MANEIRAS POUCO DELICADAS, CALCULO QUE ESTES PIRATAS SEJAM SILICIANOS. É POSSÍVEL QUE ALGUNS SAIBAM LER (EMBORA Eu DUVIDE), DE MANEIRA QUE NÃO POSSO SER TOTALMENTE CLARO. MAS SAIBAM QUE NÃO ESTOU A PASSAR PIOR DO QUE SERIA DE ESPERAR

EM BREVE VOLTAREMOS A REUNIR-NOS! É ESSA A FERVOROSA ORAÇÃO DO VOSSO DEDICADO FILHO, ESPÚRIO


Enquanto meditava na nota, vi pelo canto do olho que Quinto Fábio martelava com os dedos no braço da cadeira. A mulher agitava-se e dava pancadinhas nos lábios com as compridas unhas.

Calculo comentei por fim que queiram que eu vá resgatar o rapaz.

Oh sim! disse Valéria, inclinando-se para diante e fitando-me com um olhar perturbado.

Já não é um rapaz observou Quinto Fábio, num tom de voz surpreendentemente duro. Tem dezassete anos. Há mais de um ano que tomou a toga da masculinidade.

Aceitas o encargo? perguntou Valéria. Eu fingi estudar a carta.

Por que não enviam alguém de vossa casa? Um secretário de confiança, talvez?

Quinto Fábio perscrutou-me.

Disseram-me que és bastante inteligente. Que descobres coisas.

Não é preciso ser muito inteligente para entregar um resgate.

Quem sabe que contingências inesperadas poderão surgir? Disseram-me que posso confiar no teu juízo... e na tua discrição.

Pobre Espúrio! disse Valéria em voz pouco segura.

Leste a carta. Deves ter percebido que está a ser maltratado.

Ele não dá grande importância às suas tribulações disse eu.

É natural! Se conhecesses o meu filho, se soubesses como é alegre por natureza, perceberias quão desesperada deve ser a situação para ele referir, sequer, o sofrimento em que se encontra. Se ele diz que perdeu algum peso, deve andar a morrer de fome. O que lhe servirão homens como estes cabeças de peixe e pão bolorento? Se ele afirma que os monstros não são ”excessivamente cruéis”, imagina a crueldade que não terão! Quando penso na provação por que está a passar oh, quase não consigo suportar a ideia! Abafou um soluço.

Onde e quando foi ele raptado?

Foi no mês passado respondeu Quinto Fábio.

Há vinte e dois dias disse Valéria, fungando. - Vinte e dois dias e noites que têm sido intermináveis!

Estava em Baias com uns amigos explicou Quinto Fábio. Temos uma villa de praia sobre a areia, e uma casa de cidade do outro lado da baía de Neápolis. Espúrio e os amigos arranjaram um barquinho e foram velejar por entre os barcos de pescadores. Estava calor. Espúrio decidiu dar um mergulho. Os amigos ficaram no barco.

Espúrio nada muito bem disse Valéria, com o orgulho a equilibrar-lhe o tremor da voz.

Quinto Fábio encolheu os ombros.

O meu filho nada melhor do que faz outras coisas. Os amigos ficaram a vê-lo fazer um circuito, nadando de um barco de pescadores para o seguinte. Viram-no rir e conversar com os pescadores.

Espúrio é muito sociável explicou a mãe.

Foi nadando cada vez para mais longe prosseguiu Quinto Fábio, até os amigos o perderem de vista durante algum tempo, e começarem a preocupar-se. Depois, um deles viu Espúrio a bordo daquilo que todos pensaram tratar-se de um barco de pesca, embora fosse maior do que os restantes. Demoraram algum tempo a perceber que o barco tinha içado a vela e estava a afastar-se. Os rapazes tentaram segui-lo no barquito, mas nenhum deles era particularmente hábil a velejar. Antes de se aperceberem do que se estava a passar, o outro barco tinha desaparecido, com Espúrio dentro dele. Por fim, os rapazes regressaram à villa de Baias. Todos achavam que Espúrio voltaria para casa, mais cedo ou mais tarde, mas não voltou. Passaram vários dias sem receberem notícias.

Imagina a nossa preocupação! disse Valéria. Enviámos mensagens frenéticas ao nosso caseiro da villa. Ele investigou junto dos pescadores a toda a volta da baía, tentando descobrir alguém que conhecesse e pudesse identificar os homens que tinham levado Espúrio com eles, mas as investigações não conduziram a parte nenhuma.

Quinto Fábio resfolegou.

Os pescadores à volta de Neápolis bem, se já lá foste, conheces o género. São descendentes dos antigos colonizadores gregos, nunca abandonaram os costumes gregos. Alguns deles nem sequer falam Latim! Quanto aos seus hábitos e vícios pessoais, quanto menos se disser, melhor. Não se pode esperar que semelhantes pessoas colaborem na procura de um jovem patrício romano raptado por piratas.

Pelo contrário, parece-me natural que os pescadores sejam inimigos naturais dos piratas, quaisquer que sejam os seus preconceitos pessoais contra a classe patrícia.

Seja como for, o meu homem em Baias não conseguiu descobrir nada disse Quinto Fábio. Só soubemos exactamente o que tinha acontecido a Espúrio há uns dias, quando recebemos esta carta dele.

Voltei a olhar para a carta.

O vosso filho diz que os piratas são silicianos. A mim parece-me bastante improvável.

Porquê? perguntou Valéria. Toda a gente diz que eles são o povo mais sedento de sangue do mundo. Ouve-se dizer que fazem ataques ao longo de toda a costa, desde a Ásia até África e à Espanha.

É verdade, mas aqui, na costa de Itália? E nas águas de Baias?

Concordo que é uma informação chocante disse Quinto Fábio. Mas seria de esperar, com o problema da pirataria a piorar cada vez mais, e o Senado sem fazer nada.

Apertei os lábios.

E não te parece estranho que estes piratas queiram que o resgate seja levado para Óstia, mesmo à saída de Roma? É muito perto da cidade!

Que importância têm esses pormenores? disse Valéria, à beira das lágrimas. Que importa que tenhamos de ir até aos Pilares de Hércules, ou a poucos passos do Fórum? Temos de ir onde eles quiserem, para recuperarmos Espúrio são e salvo.

Eu acenei com a cabeça.

E o valor do resgate? Os Idos são daqui a dois dias. Cem mil sestércios são dez mil moedas de ouro. Podem dispor dessa quantia?

Quinto Fábio resfolegou.

O dinheiro não constitui problema. A quantia é quase insultuosa. Embora às vezes pergunte a mim próprio se o rapaz valerá tanto acrescentou entredentes.

Valéria olhou para ele.

Vou fingir que não te ouvi dizer semelhante coisa, Quinto. Ainda mais na presença de um desconhecido! Olhou para mim e desviou rapidamente os olhos.

Quinto Fábio ignorou-a.

Bem, Gordiano, aceitas o encargo?

Eu olhei fixamente para a carta, sentindo-me pouco à-vontade. Quinto Fábio reagiu à minha hesitação.

Se é uma questão de honorários, garanto-te que posso ser generoso.

Os honorários são sempre uma questão importante reconheci, embora soubesse que, considerando o tremendo vazio dos meus cofres domésticos e o estado de espírito dos meus credores, não estava em posição de recusar. Querem que aja sozinho?

Claro. Tenciono, naturalmente, mandar-te acompanhar por um grupo de homens armados...

Ergui uma mão.

Tal como eu receava. Não, Quinto Fábio, de modo nenhum. Se tens a fantasia de recuperar o teu filho por meio do uso da força, insisto em que esqueças essa possibilidade. Em nome da segurança do rapaz, e da minha própria segurança, não posso permiti-lo.

Gordiano, eu vou mandar homens armados para Óstia.

Muito bem, nesse caso irão sem mim.

Ele inspirou profundamente, e olhou-me com uma expressão carregada.

Então, o que queres que eu faça? Depois de pagares o resgate de o meu filho ser libertado, não haverá uma força que capture esses piratas?

Quer dizer que tencionas capturá-los?

É uma das coisas que os homens armados podem fazer. Mordi o lábio e abanei a cabeça.

Já me tinham avisado de que tu discutias tudo resmungou ele. Muito bem, considera o seguinte: se obtiveres a libertação do meu filho, e a seguir os meus homens conseguirem recuperar o resgate, recompensar-te-ei com um vigésimo do que eles recuperarem, para além dos teus honorários.

O chocalhar das moedas era música suave dentro da minha imaginação. Pigarrei e fiz uns cálculos mentais. Um vigésimo de cem mil sestércios eram cinco mil sestércios, ou quinhentas moedas de ouro. Disse o número em voz alta, para ter a certeza de que não havia engano. Quinto Fábio acenou lentamente com a cabeça.

Com quinhentas moedas de ouro, podia pagar as minhas dívidas, arranjar o telhado de minha casa, comprar um escravo que me servisse de guarda-costas (uma necessidade de que já prescindira durante demasiado tempo), e ainda me restaria algum dinheiro.

Por outro lado, nada aquilo me cheirava bem. Por fim, decidi que podia apertar o nariz em troca de uns honorários generosos, a somar à perspectiva de quinhentas moedas de ouro.

Antes de sair de casa, perguntei se tinham uma imagem do rapaz que eu pudesse ver. Quinto Fábio retirou-se, deixando-me na companhia de sua mulher. Valéria limpou os olhos e conseguiu fazer um débil sorriso, enquanto me conduzia a outro compartimento.

O ano passado, quando estávamos a passar férias em Baias, uma artista chamada laia fez-nos um retrato de família. Sorriu, obviamente orgulhosa das semelhanças. O retrato de grupo fora feito em cera encáustica sobre madeira. Quinto Fábio estava à esquerda, com uma expressão sisuda. À direita, Valéria sorria docemente. Entre os dois, figurava um jovem muito bonito, de cabelo cor de avelã e uns olhos azuis cheios de vivacidade, inequivocamente filho dela. O retrato dava-lhe pelos ombros, mas percebia-se que tinha vestida a toga da masculinidade.

O retrato foi feito para celebrar a entrada do teu filho na idade adulta?

Foi.

É quase tão belo como a mãe disse eu, fazendo esta declaração em tom factual, e não como um cumprimento.

As pessoas costumam reparar na semelhança.

Julgo que tem qualquer coisa do pai na zona da boca. Ela abanou a cabeça.

Espúrio e o meu marido não têm qualquer parentesco.

Não?

O meu primeiro marido morreu na guerra civil. Quando se casou comigo, Quinto adoptou Espúrio, fazendo dele seu herdeiro.

Quer dizer que Espúrio é seu enteado. Há mais filhos na família?

Só Espúrio. Quinto queria mais filhos, mas nunca aconteceu. Encolheu os ombros, pouco à-vontade. Mas ama Espúrio como se fosse seu, tenho a certeza disso, embora nem sempre o demonstre.

É verdade que têm tido as suas divergências, mas não há pai e filho que não as tenham. Estavam sempre a discutir por causa do dinheiro! Espúrio é muito extravagante, tenho de o reconhecer, e os Fábios são famosos pela sua contenção. Mas as palavras severas que ouviste o meu marido pronunciar há bocado não lhes prestes atenção. Esta provação horrível pôs-nos os nervos em franja aos dois.

Valéria voltou as costas ao retrato do filho e sorriu tristemente, com os lábios a tremer.

Meu pequeno César! sussurrou.

César?

Oh, sabes a quem me refiro ao sobrinho de Mário, aquele que foi capturado pelos piratas no Inverno passado e depois libertado. Oh, Espúrio adorava essa história! O jovem César tornou-se o seu ídolo. Sempre que o via no Fórum, chegava a casa ofegante, a dizer: ”mãe, sabes quem vi hoje?” Eu ria-me, sabendo que, pela excitação dele, só podia ter sido César. Tremeram-lhe os lábios. E agora, parece uma partida dos deuses, Espúrio é capturado por piratas! Por isso, chamo-lhe meu pequeno César, porque sei que deve estar a ser muito corajoso, e rezo para que nada lhe aconteça.

No dia seguinte, parti para Óstia, na companhia da força armada que Quinto Fábio tinha contratado e equipado para a ocasião. O grupo era composto por veteranos do exército e gladiadores libertos, homens desprovidos de perspectivas de futuro e dispostos a matar e a correr o risco de serem mortos em troca de um soldo modesto. Éramos cinquenta ao todo; descemos o Tibre amontoados num barco pequeno. Os homens remavam por turnos, cantando velhas canções militares e gabando-se das suas façanhas nos campos de batalha e nas arenas. A acreditar nas suas gabarolices, ao todo, tinham morto o equivalente a sete cidades do tamanho de Roma.

O chefe era um antigo centurião de Sula chamado Marco, com uma cicatriz horrenda que lhe atravessava a face direita até ao queixo, passando-lhe pelos dois lábios. Talvez lhe custasse falar por causa da ferida, porque não podia ser mais silencioso. Quando tentei descobrir que género de ordens lhe tinha dado Quinto Fábio, Marco deixou imediatamente claro que não me revelaria nem mais nem menos do que entendesse, e que de momento isso era nada.

Eu era um estranho para estes homens. Desviavam os olhos quando eu passava. Sempre que conseguia começar a conversar com um deles, o homem descobria qualquer coisa importante para fazer, e eu dava por mim a falar para o boneco.

Mas houve um deles que gostou de mim. Chamava-se Belbo. Até certo ponto, também era ostracizado pelos outros, porque não era livre, era um escravo pertencente a Quinto Fábio; fora enviado juntamente com os restantes devido à sua enorme força e estatura. Um proprietário anterior tinha-o treinado para gladiador, mas Quinto Fábio destinara-o ao trabalho nos estábulos. Belbo tinha um cabelo que parecia palha, e os pêlos do queixo e do peito eram uma combinação de amarelo e vermelho. Era, de longe, o maior da companhia. Os outros diziam, a brincar, que era melhor ele não se pôr a andar muito depressa de um lado para o outro do barco, porque ainda nos fazia afundar a todos.

Eu não estava à espera de que ele me fornecesse grandes informações, mas depressa descobri que Belbo sabia mais do que eu pensava. Confirmou-me que o jovem Espúrio não mantinha as melhores relações com o padrasto.

Sempre houve uma certa má vontade entre eles. A senhora adora o rapaz, e o rapaz adora a mãe, mas o senhor tem dificuldade em lidar com ele. O que é estranho, porque em muitos aspectos o rapaz é mais parecido com o padrasto, embora seja adoptado.

A sério? Ele é igualzinho à mãe.

Sim, e a voz também é parecida, e os movimentos do corpo, mas isso é tudo uma espécie de máscara, se queres a minha opinião, como o Sol quente a brilhar numa superfície de água fria. Por baixo, é implacável como o padrasto, e igualmente voluntarioso. Pergunta a qualquer escravo que tenha cometido o erro de lhe desagradar.

Talvez seja esse o problema entre eles sugeri. Serem excessivamente parecidos, e competirem pelas atenções da mesma mulher.

Chegámos a Óstia, onde o barco foi atracado a um pequeno molhe que ressaltava do Tibre. Mais adiante, na extremidade das docas, avistava-se o mar. As gaivotas voavam em círculos no alto do céu. O cheiro a água salgada perfumava a brisa. Os homens mais fortes descarregaram as arcas que continham as dez mil moedas de ouro e carregaram-nas numa carroça, que foi transportada até um armazém, situado nas docas. Cerca de metade dos homens ficaram a guardá-lo.

Eu estava à espera de que os restantes se dirigissem à taberna mais próxima, mas Marco manteve a ordem e obrigou-os a ficar no barco. A comemoração seria feita no dia seguinte, depois do resgate e do que dele resultasse.

Quinto Fábio.

Ele acenou com a cabeça, estudou-me por momentos, enquanto eu o estudava a ele. O cabelo preto e comprido e a barba hirsuta enquadravam um rosto esguio, habituado ao sol e ao vento. Havia uma sugestão de turbulência nos seus grandes olhos verdes. Não tinha cicatrizes visíveis, nem na cara, nem nos membros bronzeados pelo sol, como seria de esperar num pirata endurecido pelas batalhas. Nem tinha a aparência de crueldade desesperada habitual nesses homens.

Chamo-me Gordiano disse eu. E tu, como queres que te chame?

Ele pareceu surpreendido com o facto de eu lhe perguntar o nome, mas acabou por responder:

Cléon, num tom que sugeria que preferia ter dado um nome falso, mas não lhe tinha ocorrido nenhum. Era um nome grego, tal como as suas feições.

Olhei para ele, hesitante.

Estamos aqui com o mesmo objectivo, não estamos?

Para o resgate disse ele, baixando a voz. Onde está?

Onde está o rapaz?

Está perfeitamente seguro.

Tenho de me certificar disso. Ele acenou com a cabeça.

Posso levar-te junto dele, se quiseres.

Quero.

Segue-me.

Saímos da taberna e atravessámos o porto, depois entrámos numa rua estreita, ladeada por duas filas de armazéns. Cléon andava depressa e começou a virar abruptamente em todos os cruzamentos, mudando de direcção, e por vezes voltando a percorrer os mesmos passos. Eu estava à espera de chocar com Belbo a qualquer momento, mas ele não se avistava em lado nenhum. Ou tinha uma prática inesperada em perseguições secretas, ou então tínhamo-lo deixado para trás.

Aproximámo-nos de uma carroça, cuja plataforma estava coberta com um pesado pano de vela de barco. Olhando em volta com ar nervoso, Cléon puxou-me na direcção da carroça e indicou-me que rastejasse para baixo do pano. O condutor da carroça mandou andar os cavalos.

Do sítio onde me encontrava, não conseguia ver fosse o que fosse. A carroça deu tantas voltas, que eu lhes perdi o conto, e acabei por desistir de tentar perceber para onde nos dirigíamos.

A carroça acabou por parar. Ouvi chiar umas dobradiças. A carroça avançou mais um pouco. Ouvi fechar umas portas. Mesmo antes de o pano ser empurrado para trás, percebi, pelo cheiro a palha e a estrume, que devíamos estar dentro de um estábulo. Também me cheirava a maresia; não estávamos muito longe da costa. Sentei-me e olhei em volta. O espaço era alto, iluminado por um ou outro raio de sol, que entrava pelos buracos dos nós da madeira das paredes. Olhei para o condutor, que desviou o rosto.

Cléon apertou-me o braço.

Querias ver o rapaz.

Desci da carroça e fui atrás dele. Parámos diante de uma das divisórias da estrebaria. Ao sentir-nos aproximar, uma figura que vestia uma túnica escura ergueu-se da palha. Apesar da obscuridade, reconheci o rapaz do retrato. Em carne e osso, o jovem Espúrio ainda era mais parecido com Valéria, mas ela tinha a pele leitosa, enquanto a dele estava bronzeada pelo sol, o que fazia com que os seus olhos e dentes brilhassem como alabastro; além disso, a mãe do rapaz tinha uma expressão melancólica, enquanto Espúrio se mostrava sarcasticamente divertido. No retrato, exibia alguma gordura infantil, que bem podia desaparecer; agora, estava mais magro, e ficava-lhe bem. Quanto aos sofrimentos por que teria passado, não tinha propriamente a expressão devastada de um jovem que tivesse sido torturado. Parecia mais um rapaz que tinha passado umas férias prolongadas. Contudo, a sua atitude era perfeitamente pragmática, negocial.

Por que demoraram tanto tempo? lançou.

Cléon olhou para ele com ar acanhado e encolheu os ombros. Se o rapaz tencionara imitar a bravata de César, talvez tivesse conseguido. Espúrio olhou para mim cepticamente.

Quem és tu?

Chamo-me Gordiano. O teu pai enviou-me para te resgatar.

Ele também veio? Eu hesitei.

Não respondi por fim, acenando com a cabeça cautelosamente na direcção do pirata, e tentando comunicar a Espúrio que, na presença dos seus captores, era melhor não discutirmos mais pormenores do que os necessários.

Trouxeste o resgate?

Está guardado. Primeiro, queria ver como estavas.

Óptimo. Muito bem, entrega o dinheiro a estes bárbaros e tira-me daqui. Estou mais do que farto de lidar com gentalha. Estou ansioso por regressar a Roma, para poder ter uma conversa com interesse, já para não falar de uma refeição decente! Cruzou os braços. Vá lá, vamos a isto! Estamos rodeados de piratas, embora não os vejas; não duvides de que teriam todo o gosto em nos matar, se tivessem uma boa desculpa. São umas bestas sedentas de sangue! Já viste que estou vivo e de boa saúde. Quando obtiverem o resgate, eles deixam-me partir. Por isso, ponham-se a andar. Despachem-se!

Voltei a subir para a carroça. Cléon tapou-me com o pano. Ouvi abrir a porta do estábulo. A carroça começou a rolar. Andámos outra vez às voltas, até o veículo parar. Cléon puxou o pano para trás. Eu esfreguei os olhos, incomodado com o súbito brilho do dia, e saltei para a rua. Tínhamos voltado ao ponto de partida, à beira-mar, mas agora a curta distância do Peixe Voador.

Enquanto nos dirigíamos à taberna, o meu coração deu um salto no peito, ao ver Belbo no local preciso onde o avistara pela última vez encostado ao alpendre em frente à taberna, com a boca ligeiramente aberta e os olhos fechados! Seria possível que ele nem sequer nos tivesse seguido, e tivesse passado todo o episódio ali a dormitar em pé?

Vou deixar-te disse Cléon. Onde posso ir buscar o resgate? Descrevi-lhe a localização do armazém junto ao Tibre. Ele levaria a carroça e alguns homens. Depois de carregado o ouro, eu iria com eles, sozinho, e quando eles estivessem longe e em segurança entregariam Espúrio à minha guarda.

Que garantias me dás de que o rapaz será libertado? Ou, já agora, que eu serei libertado?

O que nós queremos é o resgate, não te queremos a ti, nem queremos... o rapaz. A sua voz teve uma quebra estranha. Então dentro de uma hora! Voltou-se e desapareceu por entre a multidão.

Eu esperei um momento, depois voltei-me, com a intenção de me dirigir a Belbo e, no mínimo, encher-lhe as canelas de pontapés. Mas colidi com um objecto enorme e imóvel o próprio Belbo. Cambaleei para trás, mas Belbo apanhou-me e endireitou-me, como se eu fosse uma criança.

Pensei que estavas a dormir! disse eu. Ele riu-se.

Sou bastante bom a fingir de morto, não sou? Esse truque já uma vez me salvou, na arena. O outro gladiador pensou que eu tinha desmaiado de medo. O imbecil apoiou-me o pé no peito e sorriu para o patrono quando deu por ela, tinha a cara na areia e a minha espada encostada à garganta!

Fascinante! Mas afinal seguiste-nos ou não? Belbo inclinou a cabeça.

Segui. Mas perdi-vos rapidamente de vista.

Pelo menos viste-me entrar na carroça?

Não.

Bolas de Numa! Então não sabemos onde é que eles esconderam o rapaz. Não podemos fazer mais nada, para além de esperar que Cléon vá buscar o resgate. Contemplei o mar agitado e as gaivotas que voavam em círculos por cima das nossas cabeças. Diz-me uma coisa, Belbo, por que será que as circunstâncias deste rapto me parecem tão estranhas?

Parecem?

Cheira-me a esturro.

Bem, estamos ao pé de uma cozinha comentou Belbo. Eu bati as palmas.

Um raio de luz desceu dos céus e perfurou o nevoeiro! Ele ergueu os olhos para o céu limpo e franziu a testa.

Quero com isto dizer, Belbo, que de repente percebi a verdade... julgo eu. Mas continuava a ter um pressentimento muito, muito desagradável relativamente a toda a situação.

Compreendes? É absolutamente essencial que nem tu nem os teus homens façam qualquer tentativa para seguir a carroça quando eles embarcarem o ouro.

O centurião Marco olhou-me com cepticismo.

E tu com ele! O que te impede a ti de fugir com esses piratas e com o ouro?

Quinto Fábio confiou-me a tarefa do resgate. Isso deve bastar-te.

E também me deu determinadas instruções. Marco cruzou os braços musculados, cobertos de pêlos pretos e prateados.

Ouve, Marco, julgo conhecer as intenções destes homens. Se eu tiver razão, o rapaz não corre qualquer risco...

Marco resfolegou.

Ah! Honra entre piratas!

Não corre qualquer risco prossegui, desde que procedamos exactamente como eles pretendem. E, se eu tiver razão, poderás recuperar o resgate com toda a facilidade, mas depois. Se tentares seguir-nos, ou frustrar a transacção enquanto ela estiver a decorrer, serás tu a pôr em risco a vida do rapaz, e a minha própria vida.

Marco mastigou em seco e franziu o nariz.

Se não fizeres o que te peço prossegui, e acontecer alguma coisa ao rapaz, pensa como reagirá Quinto Fábio. Então? Cléon e os seus homens estão a chegar a qualquer momento. O que dizes?

Marco resmungou o que eu tomei por uma expressão de aquiescência, e depois voltou-se, ao sentir um dos seus gladiadores trotar em direcção a nós.

Quatro homens e uma carroça, senhor, dirigem-se para aqui! Marco ergueu o braço. Os seus homens desapareceram nas sombras do armazém. Eu senti uma pancadinha no ombro.

E eu? perguntou Belbo. Queres que volte a tentar seguir-vos, como esta manhã?

Eu abanei a cabeça e olhei nervosamente para a porta aberta do armazém.

Mas vais correr perigo disse Belbo. Um homem precisa de um guarda-costas. Faz com que os piratas nos levem aos dois.

Silêncio, Belbo! Vai esconder-te com os outros. Já! Empurrei-o com as duas mãos, apercebendo-me de que provavelmente teria melhor sorte se tentasse empurrar um teixo. Por fim, ele cedeu e afastou-se, arrastando-se pesadamente, com ar infeliz.

Momentos depois, Cléon apareceu à porta, seguido pela carroça e o respectivo condutor, e mais dois jovens. Tal como Cléon, pareceram-me gregos.

Mostrei-lhes onde estavam as arcas com o ouro, e abri a tampa de cada uma delas, à vez. Mesmo na obscuridade, o brilho das moedas pareceu entontecê-lo. Riu-se e mostrou-se ligeiramente embaraçado.

Tanto! Tinha tentando imaginar como seria, mas não consegui. Não parava de tentar imaginar dez mil moedas de ouro...

Abanou a cabeça como que para limpar a mente, e pôs-se ao trabalho juntamente com os companheiros, carregando as pesadas arcas na carroça. Era de esperar que um grupo de piratas sedentos de sangue dançasse uma giga para exprimir a sua alegria perante tão rico saque, mas eles cumpriram a sua tarefa com expressões sombrias, quase rabugentas.

Terminado o trabalho, Cléon limpou um fio de suor que lhe escorria da testa e apontou para a plataforma da carroça, para um espaço comprido e estreito, entre os baús.

Chega para te deitares, julgo eu. Olhou inquieto para as sombras do armazém, e ergueu a voz. E volto a dizê-lo: é melhor que não sejamos seguidos. Se acontecer alguma coisa que nos suscite desconfianças, seja o que for, não serei responsável pelas consequências. Compreendido? Lançou a questão para o vazio, tanto quanto para mim.

Compreendido respondi eu. Enquanto trepava para a carroça, agarrei-lhe no braço para me equilibrar, e disse-lhe ao ouvido, de forma a que os outros não pudessem ouvir-nos: Cléon, vocês nunca fariam mal ao rapaz, pois não?

Ele lançou-me um estranho olhar suplicante, como um homem longamente incompreendido que de repente encontra um ouvinte solidário. Depois endureceu a expressão e engoliu em seco.

Não lhe acontecerá mal nenhum, desde que tudo corra como deve ser disse em voz rouca. Instalei-me no espaço entre os baús. A plataforma da carroça foi coberta com o pano de vela. A carroça pôs-se em movimento, avançando lentamente sob a pesada carga.

A partir daqui, pensei, não há razão nenhuma para o que quer que seja correr mal, relativamente ao resgate. Marco tinha concordado em não nos seguir. Cléon estava na posse do ouro. Em breve eu teria Espúrio comigo. Mesmo que a minha suposição acerca do rapto fosse incorrecta,não haveria nenhuma razão para os captores fazerem mal ao rapaz, ou a mim; a nossa morte em nada lhes  serviria.

Talvez tenha sido da escuridão apertada e sufocante, mas a verdade é que os meus pensamentos começaram a girar num vazio terrível. Eu tinha tomado os resmungos de Marco como concordância em adiar a perseguição, mas teria tido razão para o fazer? Naquele preciso momento, os homens dele podiam estar a seguir-nos, mostrando-se desajeitadamente, alertando os vigilantes, fazendo-os entrar em pânico. Alguém podia dar o alerta, haveria um assalto à carroça, o cruzar e tinir de espadas! Uma lâmina rasgaria o pano de vela, direitinha ao meu coração...

A fantasia pareceu-me tão real, que eu tive um sobressalto, como se tivesse acordado de um pesadelo. Mas tinha os olhos bem abertos.

Inspirei profundamente, para me acalmar, mas percebi que os meus pensamentos giravam ainda com mais velocidade e menos controlo. E se eu me tivesse enganado por completo na minha avaliação de Cléon? E se os seus olhos verdes e cheios de sentimento e o seu comportamento indeciso fossem uma fraude bem construída, um disfarce deliberado para um assassino endurecido? O belo e petulante rapaz que eu tinha visto esta manhã podia já estar morto, a sua bravata eliminada de um golpe. A carroça regressaria ao estábulo onde o tinham assassinado e, logo que os piratas percebessem que ninguém os havia seguido, arrastavam-me para o chão, metiam-me uma mordaça na boca, amarravam-me e transportavam-me para o barco deles, rindo-se com vozes roufenhas e dançando a giga que tinham omitido quando carregavam o saque. Piratas silicianos, os mais cruéis de todos! Levavam-me para alto mar, dando-me pontapés e gritando comigo, e eu amordaçado. À luz do luar, pegavam fogo às minhas roupas, e usavam o meu corpo como tocha e, quando estivessem fartos de me ouvir berrar, lançavam-me borda fora. Quase conseguia sentir o fedor da minha própria carne queimada, ouvir o silvo das chamas expirando quando as águas se abrissem em alto-mar, para voltarem a fechar-se sobre mim, saborear o ferrão do sal na pele. O que restaria de mim depois de ter servido de jantar aos peixes?

Naquele espaço apertado, consegui limpar o suor que me perlava a testa a uma ponta da túnica vermelha. Estas fantasias mórbidas eram um disparate, disse a mim próprio. Tinha de confiar no meu próprio discernimento, e o meu discernimento estabelecem que Cléon não era o tipo de homem capaz de assassinar fosse quem fosse, pelo menos a sangue-frio. Nem Roseto, o actor, seria capaz de representar semelhante inocência. Era de facto um estranho género de pirata!

Depois, fui tomado por um novo medo, mais aterrador do que todos os outros. Belbo tinha-me dito que Quinto Fábio queria que os piratas fossem mortos. Não podemos matar o rapaz, evidentemente mas tratar-se-ia apenas de uma inferência sua? Não se podia esperar que ele estivesse a par de todas as ordens secretas que o seu senhor tivesse dado a Marco. Espúrio não era filho natural deste; Quinto Fábio falava dele com desprezo. E se, na realidade, ele quisesse ver o enteado morto? Tinha enviado o resgate, é certo, mas dificilmente poderia ter-se recusado a fazê-lo, quanto mais não fosse para aplacar Valéria e salvar a face em público. Mas se o destino do rapaz era ser assassinado pelos piratas, ou se se pudesse fazer com que parecesse que era isso que tinha acontecido...

Até era possível que o próprio Quinto Fábio tivesse mandado raptar o enteado era uma forma inteligente de se ver livre de Espúrio sem chamar a atenção sobre si próprio. Era uma ideia monstruosa, mas eu conhecia homens suficientemente tortuosos para conceberem semelhante esquema. Mas, se assim era, por que motivo teria contratado os meus serviços? Talvez para demonstrar a sua conscienciosa preocupação, pedindo a colaboração de um estranho. Para provar a Valéria e ao resto do mundo que estava efectivamente interessado em resgatar o enteado. Caso em que o seu plano para se livrar de Espúrio teria, lamentavelmente, de incluir a morte do Descobridor, contratado para organizar o tragicamente fracassado resgate...

Parecia que a viagem nunca mais acabava. A estrada tornou-se mais rochosa e mais irregular. A carroça balançava e matraqueava. De repente, as minhas extravagantes fantasias de traição e morte empalideceram face ao perigo iminente de ser esmagado se um dos pesados baús tombasse sobre mim. Por Hércules, a plataforma da carroça estava quente! Quando as rodas se imobilizaram, a minha túnica estava tão ensopada como eu se tivesse acabado de sair do mar.

O pano de vela foi puxado para trás. Uma brisa salgada gelou-me.

Esperava que tivéssemos regressado ao estábulo onde tinha visto Espúrio. Mas não, estávamos numa tira de praia, no sopé de umas colinas baixas, algures à saída da cidade. A pequena enseada era delimitada por blocos de pedra em ambas as extremidades. Um barquinho de transporte repousava nos bancos de areia. Em águas mais profundas, estava ancorada uma embarcação de maiores dimensões. Saltei da carroça, feliz por voltar a respirar ar puro.

Cléon e os três companheiros começaram imediatamente a transferir os baús da carroça para o barquinho de transporte.

São incrivelmente pesados! - resmungou um deles. Não vamos conseguir transportá-los todos numa só viagem. Vamos ter de fazer pelo menos duas...

Onde está o rapaz? perguntei, agarrando Cléon por um braço.

Estou aqui.

Voltei-me e vi Espúrio, que abandonava um abrigo de rochas, na extremidade da pequena praia. Na hora mais quente do dia, tinha despido a túnica, e apenas trazia vestida uma tanga. Habitualmente não vestia mais nada, se é que andava vestido de todo; o seu tronco esguio e modelado e os seus membros compridos estavam profunda e uniformemente bronzeados pelo sol.

Olhei para Cléon. Tinha as sobrancelhas unidas, como se tivesse picado um dedo. Olhou para o rapaz e engoliu em seco.

Já não era sem tempo! Espúrio cruzou os braços e olhou para mim. A petulância tornava-o ainda mais belo.

Talvez fosse boa ideia vestires a túnica sugeri, para nos irmos embora. Se me disseres em que direcção fica Óstia, Cléon, nós vamos andando. A não ser que tenciones deixar-nos a carroça?

Cléon manteve o silêncio. Espúrio aproximou-se de nós e chamou-me à parte.

Alguém seguiu a carroça? murmurou.

Julgo que não.

Tens a certeza?

Não posso ter a certeza absoluta. Olhei de esguelha para Cléon, que não parecia estar a ouvir. O pequeno barco de transporte dirigia-se ao barco maior com o primeiro carregamento, afundado na água sob o peso do ouro.

Bem, o pai mandou uma tropa de guardas armados, ou não? Responde! Espúrio falava comigo como se eu fosse um escravo.

Jovem disse eu severamente, neste momento, o meu dever é para com a tua mãe e o teu pai...

Padrasto! Espúrio franziu o nariz e cuspiu a palavra como se fosse uma expletiva.

O meu encargo é levar-te para casa com vida. Até estarmos em Óstia, sãos e salvos, mantém-te calado.

Ele ficou chocado, e silencioso por momentos, depois lançou-me um olhar fulminante.

Muito bem, seja como for disse, levantando a voz, estes sujeitos não vão certamente libertar-me enquanto não tiverem carregado o ouro todo no barco. Pois não, Cléon?

O quê? Ah, pois disse Cléon. A brisa marítima agitava-lhe o cabelo comprido. Ele pestanejou para deixar correr as lágrimas que tinha acumulado nos olhos, como se o sal lhos tivesse ferido.

Espúrio agarrou-me no braço e afastou-se um pouco mais.

Ouve bem grunhiu, aquele miserável do meu pai mandou uma força armada, ou não? Ou mandou-te só a ti?

Já te pedi que te calasses...

E eu ordeno-te que me respondas. A não ser que queiras que faça um relatório muito pouco satisfatório de ti aos meus pais.

Por que motivo insistiria Espúrio em saber? E porquê neste momento? Parecia-me que as minhas suspeitas relativamente ao rapto estavam a confirmar-se.

Se não houvesse nenhuma força armada, Espúrio poderia perfeitamente continuar com os seus chamados raptores, quanto mais não fosse para evitar afastar-se do ouro, ou da parte dele que lhe cabia. Talvez conseguisse convencer o pai a enviar um segundo resgate. Mas, se houvesse uma força armada preparada para intervir, seria preferível para ele ser ”salvo” por mim, permitindo aos pescadores pois certamente que estes gregos napolitanos eram tudo menos piratas fugirem imediatamente, levando o ouro consigo.

Suponhamos que há uma força armada disse eu. Nesse caso, era melhor os teus amigos irem-se embora sem tardar. Suponhamos que eles conseguem fugir. Nesse caso, como vais tu obter a tua parte do ouro?

Espúrio lançou-me um olhar desprovido de expressão, seguido de um sorriso de tal maneira encantador, que eu estive muito perto de compreender por que motivo Cléon estava tão desesperadamente enfeitiçado pelo rapaz.

Como calculas, eu sei onde eles vivem. Não se atreverão a enganar-me. Eu podia sempre denunciá-los, e fazer com que fossem todos crucificados. Hão-de guardar a minha parte até eu vir buscá-la.

Que género de acordo fizeste com eles? Nove décimos do ouro para ti e um décimo para eles?

Ele sorriu, como se tivesse sido apanhado a fazer uma coisa malvada, mas inteligente.

Na realidade, não fui tão generoso.

Como foi que descobriste estes ”piratas”?

Mergulhei na baía de Neápolis e nadei de barco em barco, até encontrar uma tripulação que se adequasse ao que eu pretendia. Não tardei a perceber que Cléon faria fosse o que fosse por mim.

Quer dizer que a ideia desta aventura foi exclusivamente tua?

Claro! Achas que um pescador semi-imbecil era capaz de conceber semelhante plano? Estes sujeitos nasceram para serem mandados. São como peixes na minha rede. Adoram-me pelo menos Cléon e por que não?

Eu franzi o sobrolho.

Enquanto tu andavas a brincar ao sol, nu, a divertir-te, de férias na companhia dos teus admiradores, a tua mãe estava louca de preocupação. Isso não significa nada para ti?

Ele cruzou os braços e olhou-me com ar irritado.

Um pouco de preocupação não lhe fará mal nenhum. De qualquer maneira, a culpa é dela. Podia ter obrigado o velho sovina a dar-me mais algum dinheiro se tivesse tido a coragem de lhe fazer frente. Mas não teve, por isso vi-me obrigado a engendrar este plano para conseguir que o pai largasse uma pontinha daquilo que, de qualquer maneira, me pertence por direito.

E estes pescadores? Puseste-os todos em perigo, um perigo terrível.

Eles conhecem os riscos. Também sabem quanto poderão lucrar.

E Cléon? Olhei por cima do ombro e apanhei-o a contemplar Espúrio com olhos de corça. O pobre sujeito está desolado. O que foi que fizeste para ele estar assim?

Nada que envergonhasse o pai, se é isso que pretendes dizer. Nada que o próprio pai não faça igualmente, de tempos a tempos, com os escravos mais bonitos. Sei qual é o meu lugar e que atitudes se adequam a um homem com a minha posição; nós temos prazer, não o damos. Não somos como César, que fez de esposa do Rei Nicomedes! Vénus pregou uma partida ao pobre Cléon, fazendo com que ele se apaixonasse por mim. Serviu os meus propósitos, mas não terei qualquer dificuldade em me ver livre dele. As suas atenções enfastiam-me. Prefiro ser servido por um escravo a ser perseguido por um amante; dos escravos, podemos livrar-nos com toda a facilidade, basta estalar os dedos.

Cléon sairá magoado de tudo isto. Pode mesmo ser morto, se alguma coisa correr mal.

Espúrio ergueu as sobrancelhas e olhou para além de mim, para as colinas baixas.

Quer dizer que há mesmo uma guarda armada...

Foi um plano estúpido, Espúrio. Achaste mesmo que ia resultar?

Vai resultar!

Não vai, não. Infelizmente para ti, jovem, eu tenho interesse pessoal, não só em te salvar, mas em recuperar o resgate. Uma parte daquele ouro será minha.

Foi um erro desafiá-lo directamente. Ele podia ter-se oferecido para me comprar o meu silêncio, mas Espúrio era ainda mais sovina do que o padrasto. Acenou a Cléon, que veio a correr.

O ouro já foi todo carregado?

Esta é a última viagem disse Cléon. Parecia que as palavras lhe ficavam presas na garganta. O barco de transporte está carregado e pronto. Eu vou com eles. E tu? Vens connosco, Espúrio?

Espúrio observou as colinas que rodeavam a praia.

Ainda não sei bem. Mas uma coisa é certa este homem tem de ser silenciado.

Cléon fixou Espúrio com uma expressão de súplica, depois olhou de esguelha para mim, pouco à-vontade.

Bem disse o rapaz, tu tens uma faca, Cléon, e ele não. A tarefa é simples. Trata disso. Ou vou ter de chamar outro homem do barco de transporte?

Cléon estava com uma expressão desgraçada.

Então? Vá lá, Cléon! Disseste-me que uma vez tinhas morto um homem numa rixa, numa taberna infestada de ratos, em Pompeia! Foi uma das razões pelas quais te escolhi para me ajudares. Sempre soubeste que podíamos ter de o fazer.

Cléon engoliu em seco e levou a mão à bainha do punhal que tinha à cinta. Tirou uma faca de gume denteado, do género das que os pescadores usam para estripar e limpar o peixe.

Cléon! disse eu. Estou a par de tudo. O rapaz está a servir-se de ti. Deves saber que assim é. O teu afecto por ele é um desperdício. Larga a faca. Vamos pensar numa maneira de rectificar aquilo que fizeste.

Espúrio riu-se e abanou a cabeça.

Cléon pode ser idiota, mas não é parvo. Os dados estão lançados. Ele não tem outra alternativa, a não ser seguir em frente. E para isso tem de se livrar de ti, Gordiano.

Cléon gemeu. Sem desviar os olhos de mim, dirigiu-se a Espúrio.

 

Naquele dia, na baía, quando nadaste até ao nosso barco e subiste a bordo, logo que poisei os olhos em ti, soube que só me trarias problemas. As tuas ideias loucas...

Parece-me que as minhas ideias te agradaram bastante, especialmente quando eu falei no ouro.

Deixa lá o ouro! Eram os outros que queriam o ouro. Eu apenas queria...

Sim, Cléon, eu sei bem o que tu querias. Espúrio revirou os olhos. E prometo-te que, um dia destes, te vou deixar. Mas agora... Espúrio moveu as mãos, num gesto de impaciência. Faz de conta que é um peixe. Estripa-o! Feito isso, metemo-nos no barco de transporte e partimos com o ouro, de regresso a Neápolis.

Tu vens connosco?

Claro. Mas primeiro este tem de ser silenciado. Sabe de mais. Vai denunciar-nos.

Cléon aproximou-se. Eu considerei a hipótese de fugir, mas achei melhor não o fazer; Cléon estava com certeza mais habituado do que eu a correr sobre areia, e a ideia de aquela faca de gume denteado me ser espetada nas costas era insuportável. Considerei a possibilidade de o enfrentar; éramos mais ou menos do mesmo tamanho, e era provável que eu tivesse mais experiência na luta corpo-a-corpo. Mas isso não era especialmente importante, tendo em conta que ele tinha uma faca e eu não.

A minha única vantagem era o facto de ele estar a agir sem convicção. Sempre que ele se dirigia a Espúrio, havia na sua voz uma nota de desolação, mas também um matiz de ressentimento. Se eu jogasse com isso, talvez conseguisse afastá-lo. Tentei pensar numa forma de explorar a sua frustração, de o voltar contra o rapaz ou pelo menos de o manter confuso.

Mas, antes de conseguir falar, vi a mudança que se operou no rosto de Cléon. Ele tomou uma decisão, literalmente, num piscar de olhos. Por breves instantes, pensei que fosse atacar Espúrio, como um cão que se virasse ao dono. Como é que eu poderia jamais explicar a Valéria que tinha assistido impotente ao esfaqueamento do seu querido filho, que morrera diante dos meus olhos?

Mas isso era uma fantasia motivada pelo desejo. Cléon não atacou Espúrio. Atacou-me a mim.

Engalfinhámo-nos um com o outro. De repente, uma sensação de queimadura desceu-me pelo braço; parecia mais que tinha sido chicoteado, do que cortado por uma lâmina. Mas deve ter sido mesmo um corte enquanto o mundo girava loucamente à minha volta, avistei enormes gotas de sangue espalhadas na areia.

Caímos ao chão. Eu senti a areia pedregosa entre os dentes. Senti o calor e o odor a suor do corpo de Cléon. Ele tinha andado a trabalhar, carregando o ouro no barco de transporte. Estava cansado. Foi o que me valeu; só tive forças para o manter à distância, até uma figura se aproximar a correr das rochas da extremidade da praia.

Num instante, Cléon estava em cima de mim, esgotando-me a força dos braços, aproximando a lâmina mais e mais do meu pescoço; no instante seguinte, parecia que um deus o tinha agarrado pela parte de trás da túnica, lançando-o em voo pelos céus. Na realidade, fora Belbo quem o tirara de cima de mim, erguendo-o nos ares e lançando-o ao chão. Só a areia macia impedira que ele ficasse partido ao meio. Conseguiu manter a faca na mão, mas um pontapé de Belbo no flanco fê-lo voar de novo pelos ares. Belbo ajoelhou-se em cima do peito de Cléon, impedindo-o de respirar, e ergueu o punho como se fosse um martelo.

Não, Belbo! Vais matá-lo! gritei eu.

Belbo voltou a cabeça e olhou para mim de sobrolho franzido e com ar intrigado. Cléon agitava-se como um peixe debaixo do peso que tinha em cima do peito.
Entretanto, os três amigos de Cléon saltaram do barco de transporte. Enquanto se tratara de Cléon contra mim, tinham-se deixado estar, mas agora que Cléon estava no chão e fora dominado, vinham socorrê-lo, puxando das facas enquanto corriam.

Eu pus-me de pé e corri para a faca de Cléon. Peguei nela, sentindo-me tonto perante a visão do meu sangue na lâmina denteada. Belbo voltara a pôr-se de pé, brandindo o seu próprio punhal. Cléon continuava deitado de costas, tentando respirar. Pronto, pensei eu: três contra dois, todos armados. Eu tinha um gigante do meu lado, mas estava ferido no braço direito. Isso equilibraria as coisas?

Aparentemente não, porque de repente os pescadores pararam, chocando uns contra os outros na confusão, e depois voltaram-se e fugiram para o barco, chamando Cléon. Suspirei de alívio por momentos, na ilusão de que os tinha assustado (com uma ajudinha de Belbo, naturalmente), depois apercebi-me de que, antes de se voltarem, eles tinham avistado qualquer coisa acima e por trás de mim. Voltei-me. Marco e os seus homens tinham surgido no alto das colinas e corriam em direcção à praia, de espadas na mão.

De regresso ao barco de transporte, dois dos pescadores pegaram atabalhoadamente nos remos, enquanto o terceiro se inclinava para a praia, gritando a Cléon que fosse ter com eles. Cléon tinha conseguido pôr-se de joelhos, mas não parecia capaz de se pôr de pé. Eu olhei para Marco e para os homens dele, depois para o barco e os pescadores, depois para Espúrio, que não estava longe de Cléon, de braços cruzados e sobrolho franzido, como se estivesse a assistir a uma comédia de péssima qualidade.

Por amor de Hércules, Espúrio, pelo menos ajuda-o a pôr-se de pé gritei, e corri para o fazer eu próprio. Cléon cambaleou e eu empurrei-o na direcção do barco. Corre! disse eu. Corre, a não ser que queiras morrer!

Ele fez o que eu lhe disse e lançou-se a chapinhar na espuma das ondas. Depois, de repente, deteve-se. O barco de transporte estava a afastar-se, mas ele voltou-se para olhar para Espúrio, que lhe correspondeu com um sorriso sardónico.

Corre! gritei eu. Corre, seu imbecil! Os homens do barco também o chamavam, embora começassem a remar com toda a força, para se afastarem. Mas, como Espúrio não desviasse o olhar dele, Cléon permanecia no mesmo local, lutando por se manter à tona da água, com uma máscara de profunda infelicidade no rosto.

Eu corri em direcção a Espúrio, pus-lhe as mãos nos ombros e virei-o.

Tira as mãos de cima de mim! rosnou ele. Mas o encantamento tinha sido quebrado. Cléon pareceu acordar. O seu rosto endureceu. Voltou-se e mergulhou nas ondas, nadando atrás do barco de transporte.

Deixei-me cair na areia, agarrado ao braço que sangrava. Momentos depois, Marco e os seus homens chegaram à praia, brandindo as espadas.

Marco confirmou que Espúrio estava bem, depois descarregou a sua ira sobre mim.

Deixaste um deles escapar! Eu vi-te ajudar o homem a pôr-se de pé! Ouvi-te dizer-lhe que fugisse!

Cala-te, Marco. Não percebes nada.

Percebo que eles estão a fugir. Já estão longe demais para nadarmos atrás deles. Maldição! Muito bem. Vamos deixá-los chegar ao barco maior, e depois o Carneiro Rubro trata deles.

Antes que eu pudesse perceber o que queria ele dizer com aquilo, Belbo deu um grito e apontou para a água. Cléon tinha finalmente chegado ao barco de transporte. Os amigos estavam a içá-lo para bordo. Mas havia um problema qualquer; o barquinho carregado começou a inclinar-se. Os pescadores, que eram homens experientes, deviam ser capazes de o controlar, mas entraram em pânico. De repente, o barco de transporte voltou-se ao contrário.

Marco resfolegou. Espúrio latiu. Em uníssono, gritaram:

O ouro!

Mais adiante, os pescadores do barco maior esforçavam-se por partir. Pareciam tremendamente apressados por deixar os amigos, pensei, mas depois percebi por quê. Tinham visto o navio de guerra aproximar-se, antes de nós, que nos encontrávamos na praia, o vermos. Era o navio de guerra carmesim que estava ancorado na baía de Óstia. Os remos cortavam as águas em uníssono. A cabeça de carneiro de bronze marrava na espuma das ondas. O Carneiro Rubro, como lhe chamara Marco.

Logo que se tornou visível na esquina da enseada, Marco fez sinal a um dos seus homens, que se encontrava no alto da colina, e que começou a acenar com uma capa vermelha o sinal de que Espúrio tinha sido resgatado e de que a manobra contra os piratas podia começar.

Parece impossível que aquilo que aconteceu fosse planeado; mas a verdade é que essa apreciação se aplica a todos os factos deste caso desastroso. Certamente que o Carneiro Rubro tencionava aproximar-se do barco de pesca pelo flanco, e abordá-lo, a fim de recuperar o ouro. Um navio de guerra devia ser capaz de fazer essa manobra com alguma facilidade. Mas ninguém podia prever as manobras dos infelizes pescadores. Tal como os seus companheiros do barco de transporte, também eles entraram em pânico. Quando o Carneiro Rubro se aproximou de lado, o barco de pesca pareceu voltar-se como se visasse intencionalmente a sua própria destruição, oferecendo o flanco de estibordo à maciça cabeça de carneiro de bronze, como um gladiador que se empalasse na espada de um inimigo.

Ouvimos o impacte distante, a madeira a estilhaçar-se, os gritos dos pescadores. A vela caiu. O barco de pesca agitou-se e dobrou-se sobre si próprio, desaparecendo por entre as ondas quase antes de eu conseguir compreender o horror do que estava a passar-se.

Pelos deuses! murmurou Belbo.

O ouro! resfolegou Marco.

Aquele ouro todo... suspirou Espúrio.

Quando o barco de transporte se afundara, os homens que nele seguiam tinham começado a nadar para o barco maior. Agora, debatiam-se nas águas, apanhados entre o Carneiro Rubro e os homens de Marco, que esperavam por eles na praia.

Vão ter de acabar por regressar resmungou Marco, eles e os sobreviventes do outro barco. Vamos cercar a enseada e apanhamo-los um por um, à medida que forem saindo da água. Homens! Oiçam!

Não, Marco! Eu apertei o braço e pus-me de pé, a cambalear. Não podes matá-los! O rapto foi um embuste!

Ai foi um embuste? E o ouro que se perdeu, calculo que tenha sido uma ilusão?

Mas aqueles homens não são piratas. São simples pescadores. Foi Espúrio quem organizou tudo isto. Eles agiram por ordem sua.

Defraudaram Quinto Fábio.
Não merecem morrer!

Não te compete decidir isso. Não te metas, Descobridor.

Não! Corri em direcção às ondas. Os pescadores lutavam no meio das águas, demasiadamente longe para que eu conseguisse perceber qual deles era Cléon. Não se aproximem! gritei. Eles vão matar-vos à medida que forem chegando!

Fui atingido por qualquer coisa na nuca. O mar e o céu fundiram-se numa luz sólida e branca que os incendiou, e em seguida mergulharam numa escuridão profunda.

Acordei com a cabeça a latejar e uma dor que me embotava o braço direito. Levei a mão à cabeça e descobri que a tinha ligada, bem como o braço.

Finalmente acordaste! Belbo debruçou-se sobre mim com uma expressão de alívio. Começava a pensar...

Cléon... e os outros...

Shh! Encosta-te para trás. Vais fazer com que o braço recomece a sangrar. Sei bem que é assim; aprendi alguma coisa sobre ferimentos quando era gladiador. Tens fome? É a melhor cura, comer. Devolve o fogo ao sangue.

Se tenho fome? Tenho. E sede.

Bem, estás no local mais indicado para satisfazer as duas. Aqui no Peixe Voador, há tudo aquilo de que um estômago precisa.

Olhei em volta do quartinho. A minha cabeça começava a recuperar a lucidez.

Onde está Espúrio? E Marco?

Regressaram ontem a Roma, com os outros. Marco queria que eu também fosse, mas eu recusei-me. Alguém tinha de ficar contigo. O senhor há-de compreender.

Toquei cuidadosamente a nuca, por baixo das ligaduras.

Bateram-me.

Belbo acenou com a cabeça.

Foi Marco?

Belbo abanou a cabeça.

Foi Espúrio. Com uma pedra. Ia bater-te outra vez quando já estavas no chão, mas eu impedi-o. Depois, deixei-me estar ao pé de ti, para ter a certeza de que não voltava a fazê-lo.
O grande traidor... Fazia sentido, é claro. Frustrado o plano, o melhor que Espúrio podia esperar era silenciar toda a gente que tivesse conhecimento da conspiração, incluindo eu.

Cléon e os outros... Belbo baixou os olhos.

Os soldados fizeram o que Marco lhes tinha ordenado.

Mas não podem tê-los morto a todos...

Foi horrível. Ver homens morrer na arena já é mau, mas pelo menos há uma certa igualdade, quando se trata de dois homens armados, ambos treinados para lutar. Mas ver aqueles pobres sujeitos a sair da água, esgotados e ofegantes, a suplicar misericórdia, e os homens de Marco a matarem-nos um atrás do outro...

E Cléon?

Também, tanto quanto sei. ”Matem-nos todos!” disse Marco, e foi o que os homens dele fizeram. Espúrio ajudou, apontando e gritando sempre que via um deles aproximar-se da praia. Mataram os piratas um por um e lançaram os corpos outra vez ao mar.

Imaginei o espectáculo e a minha cabeça recomeçou a latejar.

- Eles não eram piratas, Belbo. Nunca houve piratas nenhuns. De repente, o quarto ficou enublado. Não era da pancada que me tinham dado na cabeça; era das lágrimas que me enchiam os olhos.

Alguns dias mais tarde, estava eu outra vez nas Termas Senianas, deitado num banco, nu, a receber uma massagem de um dos escravos de Lúcio Cláudio. O meu corpo desgastado precisava de mimos. A minha consciência ferida precisava do alívio de derramar todo aquele caso sórdido nos ouvidos de Lúcio, que eram como esponjas benfazejas.

Chocante! murmurou ele por fim. Tens muita sorte em estar vivo, diria eu. E quando regressaste a Roma, foste falar com Quinto Fábio?

Claro, para lhe pedir que me pagasse os honorários.

Já para não falar na tua parte do ouro, presumo! Eu estremeci, mas não foi por causa da massagem.

Essa parte não foi agradável. Como Quinto Fábio me fez notar, eu devia receber um vigésimo do ouro que fosse recuperado. Dado que o resgate se perdeu...
Ele enganou-te com um pormenor técnico? É mesmo típico dos Fábios! Mas certamente que algum do ouro veio dar à costa. Não mergulharam para ir buscá-lo?

Mergulharam, e os homens de Marco recuperaram uma pequena quantidade, mas era apenas uma fracção minúscula. A minha parte não ascendia a mais do que uma mão-cheia de moedas.

Só? Depois do trabalho que tiveste e dos perigos que correste? Quinto Fábio deve ser tão sovina como afirma o enteado! Calculo que lhe tenhas contado a verdade sobre o rapto?

Contei. Infelizmente, os homens que podiam confirmá-la os pescadores estão mortos, e Espúrio continua a insistir jovialmente em que foi raptado por piratas.

O mentiroso descarado! Certamente que Quinto Fábio tem a sensatez de não acreditar nele.

Pelo menos publicamente, aceitou a versão da história que o enteado lhe contou. Mas julgo que foi apenas para se poupar ao embaraço de um escândalo. Deve ter desconfiado sempre da verdade. Julgo que foi essa a verdadeira razão por que me contratou, para ter a certeza. E foi por isso que ordenou a Marco que matasse os cúmplices do enteado, para impedir que a verdade se soubesse. Oh sim, ele sabe o que de facto aconteceu. Deve detestar Espúrio mais do que nunca, e a inimizade é mútua.

Ah, o tipo de amargura familiar que tão frequentemente termina em...

Assassínio disse eu, atrevendo-me a pronunciar em voz alta a palavra aziaga. Não gostaria de apostar qual deles vai sobreviver ao outro.

E Valéria, a mãe do rapaz?

O filho submeteu-a a uma preocupação agonizante, com o simples fito de satisfazer a sua ganância. Achei que ela tinha o direito de o saber. Mas, quando tentei contar-lhe, de repente, pareceu-me que tinha ensurdecido. Se ouviu uma única palavra do que eu disse, não mostrou. Quando terminei, agradeceu-me amavelmente por ter resgatado o filho às mãos daqueles piratas horríveis, e mandou-me embora.

Lúcio abanou a cabeça.

Mas consegui obter de Quinto Fábio uma coisa que queria muito.

Sim?

Já que se recusou a dar-me a parte que me cabia do resgate, insisti em que me desse uma coisa que lhe pertencia, e a que ele obviamente não dava o devido valor.

Ah, sim, o teu novo guarda-costas. Lúcio lançou um olhar de esguelha a Belbo, postado de braços cruzados do outro lado do compartimento, guardando o nicho onde eu tinha colocado a minha roupa com a mesma seriedade com que guardaria o resgate de um senador. O sujeito é um tesouro.

O sujeito salvou-me a vida na praia de Óstia. Poderá não ser a última vez que o faz.

De vez em quando, tenho assuntos a tratar no Sul, nas proximidades da Neápolis e da baía. Nessas alturas, nunca deixo de ir ao porto, à zona onde os pescadores se reúnem. Pergunto-lhes em grego se algum deles conhece um jovem chamado Cléon. Infelizmente, os napolitanos são uma raça desconfiada, não gostam de falar. Nenhum deles admitiu jamais conhecer um pescador com esse nome, embora ele devesse ter amigos em Neápolis.

Perscruto as caras que vejo nos barcos de pesca, tentando descobri-lo. Sem ter qualquer razão de peso para isso, convenci-me de que, naquele dia fatídico, ele conseguiu iludir os homens de Marco e regressar a casa.

Uma vez, tive quase a certeza de o ter avistado. O homem tinha a cara rapada, ao contrário do rapaz que eu conhecera, mas os seus olhos eram os olhos de Cléon. Chamei-o do porto, mas o barco afastou-se antes que eu pudesse observá-lo melhor. Nunca consegui confirmar se a pessoa que eu tinha visto era Cléon ou não. Talvez se tratasse de um parente, ou muito simplesmente de outro homem parecido com ele. Não investiguei o assunto, como podia ter feito, talvez com receio de que a verdade me desiludisse. Preferi acreditar que era de facto Cléon, com provas ou sem elas. Seria possível que houvesse neste mundo dois homens com os mesmos olhos verdes cheios de sentimento?
O Desapacimento da Prata dos Saturnais

Jogos de dados no Fórum! Francamente, Gordiano, quem pode tolerar semelhante comportamento? Cícero fungou, pondo o nariz no ar à vista do círculo de homens ocupados a lançar os dados sobre as lajes do pavimento.

Mas, Cícero, são os Saturnais observei pacientemente. Eco e eu tínhamo-nos cruzado com ele quando nos dirigíamos a casa de Lúcio Cláudio, e Cícero insistira em que seguíssemos em sua companhia. Estava com uma disposição irascível, e eu não conseguia compreender o que o levara a desejar a nossa companhia, a não ser que fosse a vontade de engrossar as fileiras da sua pequena comitiva de secretários e” penduras enquanto atravessava o Fórum. Um político romano não pode ser visto sem uma comitiva numerosa, ainda que entre os seus membros se contem um cidadão de respeitabilidade duvidosa, como eu, e um mudo de treze anos.

Ao estralejar dos dados seguiram-se guinchos de deleite e gemidos de derrota, e depois o tinido das moedas a mudar de mãos.

Sim, são os Saturnais suspirou Cícero. É da tradição os comissários da cidade autorizarem este género de comportamento em público durante as festividades de meio do Inverno, e as tradições romanas devem ser reverenciadas. Apesar disso, dói-me presenciar actividade tão aviltante mesmo no coração da cidade.

Eu encolhi os ombros.

Na Subura, joga-se a toda a hora.

Sim, na Subura sim disse ele, e a sua polida voz de orador exsudava desdém pela zona onde eu vivia. Mas aqui no Fórum, não!

Vindo não se sabe de onde, surgiu um grupo de estróinas embriagados, que passou pelo meio da comitiva de Cícero. Os estróinas deram umas voltas sobre si próprios, fazendo erguer acima dos joelhos a orla das túnicas largas. Com a ponta do dedo indicador, tiraram da cabeça os barretes pontiagudos de feltro, e fizeram-nos girar nos ares, em manchas imprecisas de vermelho, azul e verde. No meio dos celebrantes, erguido ao alto numa cadeirinha de transporte, seguia um corcunda vestido à maneira do Rei Numa, com um traje amarelo-forte e uma coroa de papiro. Acenava ebriamente com a cabeça, esguichando vinho para os lábios do odre que segurava numa mão, e empunhando na outra uma bengala toda torcida, como se se tratasse de um ceptro. Eco, deliciado com o espectáculo, abriu a boca numa gargalhada silenciosa e bateu as palmas. Cícero não se mostrou divertido.

Os Saturnais são, evidentemente, as festividades de que eu menos gosto, por muito sensatos que os nossos antepassados tenham sido ao estabelecê-las resmungou. Esta festança e licenciosidade ébria não devia ter lugar numa sociedade respeitável. Como vês, trago hoje a toga, como habitualmente, sem fazer caso daquilo que é costume usar nestes dias. Dispenso a túnica larga, muito obrigado. Homens às voltinhas, a mostrar as pernas nuas, francamente! As roupas soltas só podem gerar uma moral devassa. Uma toga mantém um homem erecto, se bem me entendes. Endireitou os ombros e abanou ligeiramente os cotovelos, fazendo com que as dobras da toga caíssem ordenadamente, depois levou um braço ao peito, para manter as pregas no lugar. Para ter um ar respeitável quando veste uma toga, dizia o meu pai, um homem tem de ter uma espinha de ferro. A toga era perfeitamente adequada a Cícero. Ele baixou a voz.

O pior de tudo são as liberdades concedidas aos escravos nestes dias. Sim, dei um dia de descanso aos meus e permiti-lhes dizer o que pensam, dentro do razoável, mas não os autorizo a andar na pândega pelas ruas, com chapéus de feltro colorido na cabeça, como homens livres. Imagina um dia em que não se sabe se um desconhecido que se encontra no Fórum é um cidadão ou é propriedade de outro homem! As festividades são consagradas a Saturno, mas bem podiam sê-lo ao Caos! E recuso-me absolutamente a permitir que os meus escravos vistam as minhas roupas e se reclinem no meu canapé enquanto eu lhes sirvo de jantar!

 

Mas, Cícero, é só uma vez por ano.

E já é de mais.

Há quem diga que faz bem virar as coisas de pernas para o ar de vez em quando deixar que um corcunda seja rei, e que sejam os senhores a servir os escravos. Que melhor altura para um pouco de extravagância do que o meio do Inverno, terminadas as colheitas, acostados os barcos, quando os velhos magistrados estão prestes a ser expulsos dos cargos, para que os novos possam substituí-los, e a República solta um suspiro colectivo de alívio por ter sobrevivido a mais um ano de corrupção, ganância, facadas nas costas e traições? Por que não há-de Roma vestir-se informalmente durante uns dias e abrir uns odres de vinho novo?

Fazes de Roma uma prostituta comentou Cícero com desaprovação.

Em vez de um político carrancudo e teimoso? Acho que Roma é ambas as coisas, conforme o ângulo do qual se contemple. Não te esqueças de que, segundo dizem, os Saturnais foram instituídos pelo deus Jano, e Jano tem duas faces.

Cícero resmungou qualquer coisa imperceptível.

Mas tenho a certeza de que observas pelo menos uma das tradições dos Saturnais disse eu. A troca de presentes com os amigos e a família. Fiz o comentário sem qualquer motivação pessoal, apenas para lhe recordar um dos aspectos mais simpáticos das festividades.

Ele olhou-me com uma expressão carrancuda, mas subitamente deixou que um sorriso lhe iluminasse o rosto, como se tivesse tirado uma máscara.

Isso sim! disse, e bateu as palmas a um dos escravos, que lhe trouxe um pequeno saco, do qual retirou um objecto minúsculo, que me depositou na palma da mão. Para ti, Gordiano! Deu uma gargalhada ao ver a minha expressão de surpresa. O quê, pensavas que eu te obrigava a atravessar o Fórum comigo só para poder deliciar-te com a baixa opinião que tenho destas festanças?

Eco aproximou-se de mim e observámos juntos o minúsculo objecto redondo que brilhava na minha mão aberta, à luz branca e intensa do sol de Inverno. Parecia uma simples conta de prata com algumas imperfeições mas, observando-a melhor, percebi que tinha a forma de um grão de bico em miniatura que, tradicionalmente, identificava a família do orador. Eco arquejou em silêncio.

Cícero, é uma honra! disse eu. Pelo peso da conta, tinha de ser de prata maciça. A prata é a substância de eleição para os presentes dos Saturnais, entre aqueles que podem permitir-se tal extravagância.

Vou dar um colar de contas destas à minha mãe comentou Cícero com orgulho. Mandei-as fazer o ano passado, em Atenas, quando estive lá a estudar.

Bem disse eu, indicando a Eco, com um gesto, que procurasse dentro da bolsa que trazia, receio não ter nada à altura. Só tenho isto. Homem nenhum sai à rua durante os Saturnais sem levar presentes para oferecer, se tiver precisão disso; antes de sairmos de casa, eu tinha dado a Eco uma bolsa cheia de velas de cera. Eco estendeu-me uma, que eu ofereci a Cícero. Era o presente tradicional de um homem remediado a um homem abastado, e Cícero aceitou-o com graciosidade.

É da melhor qualidade disse eu, de uma lojinha da Rua dos Artífices de Velas, tingida de azul-escuro e com odor a jacinto. Embora eu desconfie de que, dados os teus sentimentos relativamente às festividades, esta noite não te encontrarei entre a multidão que vai iluminar o Fórum com as suas velas acesas.

Na verdade, esta noite o meu irmão Quinto vem juntar-se a nós, e vamos fazer uma pequena celebração em família. Mas costumo ficar acordado até tarde, a ler. O teu presente vai iluminar o meu caminho da próxima vez que meditar num documento jurídico. O odor há-de recordar-me a doçura da nossa amizade. Ouvindo tão amáveis palavras, quem poderia duvidar de que o jovem Cícero caminhava a passos largos para se tornar o mais conhecido orador de Roma?

Eco e eu despedimo-nos de Cícero e subimos o Monte Palatino. Até aqui, no bairro mais elegante da cidade, se jogava às claras e se faziam pândegas embriagadas nas ruas; a única diferença era que as apostas eram mais altas e os estróinas trajavam tecidos mais finos. Chegámos a casa do meu amigo Lúcio Cláudio, e foi ele próprio que veio abrir-nos a porta.

Reduzido à condição de escravo porteiro! riu-se. Acreditas que disse aos escravos que tirassem folga o dia todo e eles me levaram a sério? Saturno saberá por onde andarão e o que estarão a fazer! O nariz vermelho e as faces redondas faziam de Lúcio Cláudio a própria imagem da benevolência, especialmente quando as suas feições estavam inundadas, como estavam neste momento, por um sorriso luminoso e levemente embriagado.

Imagino que não irão muito longe, a não ser que tenham uma bolsa que os transporte comentei eu.

Oh, mas têm! Dei a cada um deles uma bolsa com algumas moedas e um chapéu de feltro. Como haviam de se divertir, se não tivessem maneira de participar nas jogatinas?

Eu abanei a cabeça num gesto de falso desdém.

Pergunto a mim próprio, Eco, o que diria Cícero da imprudente liberalidade do nosso amigo Lúcio.

Eco assumiu imediatamente a deixa e lançou-se numa inquietante imitação de Cícero, dispondo o seu próprio traje de festa como se fosse uma toga, lançando a cabeça para trás e franzindo o nariz. Lúcio riu-se tanto, que começou a tossir, e as suas faces ficaram ainda mais vermelhas. Por fim, recuperou o fôlego e limpou as lágrimas.

Cícero diria, sem sombra de dúvida, que um proprietário de escravos com tão negligente atitude está a esquivar-se à sua responsabilidade de manter a paz e a ordem na sociedade e que me importa a mim! Venham, deixem-me mostrar-vos por que motivo estou tão bem-disposto. Os presentes chegaram esta manhã.

Atravessámos o vestíbulo atrás dele, passámos por um jardim imaculado, decorado com uma esplêndida estátua de bronze de Minerva, descemos um comprido corredor e entrámos num pequeno compartimento escuro ao fundo da casa. Ouviu-se um baque surdo e uma praga abafada, quando Lúcio bateu com o joelho contra uma espécie de pequena arca, que estava encostada a uma parede.

Luz, precisamos de luz murmurava ele, debruçando-se sobre a arca e lutando com a tranca das portadas de uma das janelas altas e estreitas.

Senhor, deixa-me ajudar-te disse uma voz rouca, proveniente da escuridão. Ao meu lado, Eco deu um salto. Embora tenha uma visão penetrante, nem ele tinha visto o dono da voz quando entrámos no compartimento.

A capacidade de passar invisível é um traço muito apreciado nos escravos domésticos, e parecia ser uma das competências do braço direito de Lúcio, um velho grego de cabelos brancos chamado Estefânio, que há muitos anos se encarregava da gestão da casa do Palatino. Deslocou-se imponentemente de janela em janela, desaferrolhando as estreitas portadas e abrindo-as para deixar entrar o ar frio e a luz brilhante do Sol.

Lúcio murmurou uma palavra de agradecimento ao escravo, que respondeu com outra fórmula igualmente murmurada, mas eu praticamente não os ouvi. Tal como Eco, senti-me transfigurado pelo súbito brilho da prata. Diante dos nossos olhos espantados, o Sol que entrava pelas janelas foi transformado num fogo branco e líquido, que brilhava, cintilava, dançava. Olhei de esguelha para Eco e vi o seu rosto maravilhado resplandecer em losangos de luz reflectida, depois voltei a concentrar as atenções no esplendor que tinha à minha frente.

A peça de mobiliário contra a qual Lúcio tinha batido com o joelho era uma arca de madeira que nos dava pelas coxas. Ela própria era uma peça maravilhosa, finamente trabalhada, com embutidos de conchas e obsidianas. Sobre a tampa articulada, estava estendido um pano encarnado. E em cima desse pano, a mais espantosa colecção de objectos de prata que eu jamais vira.

São magníficos, não são? perguntou Lúcio.

Eu limitei-me a acenar com a cabeça, tão emudecido como Eco pela exposição.

Repara no jarro dizia Lúcio entusiasmado. Na forma, é tão elegante. Vês a pega? É uma cariátide cobrindo o rosto.

Era uma peça requintada, como o era o pente de prata com embutidos de cornalina, que fazia par com uma escova de prata, nas costas da qual se via uma imagem em relevo de um sátiro espiando um casal de ninfas que se banhavam num lago. Havia um colar de prata e âmbar, colocado ao lado de outro de prata e lápis-lazúli, e de outro de prata e ébano, cada um deles com um par de brincos e pulseiras a condizer. Havia duas taças de prata com relevos de cenas de caça à volta da base, e outro par de taças decoradas com um desenho geométrico grego.

O mais impressionante de tudo, quanto mais não fosse pela dimensão, era uma enorme salva de prata, larga com o antebraço de um homem. Tinha a orla guarnecida por um círculo de folhas de acanto em relevo; no centro, Sileno, o espírito ruidoso da alegria, movia-se exuberantemente por entre sátiros, faunos e ninfas em estonteante parada. Quando Lúcio desviou os olhos por momentos, Eco apontou para o rosto de Sileno, e em seguida fez um aceno de cabeça na direcção do nosso anfitrião. Eu percebi o que ele queria dizer; embora se possa dizer que todas as imagens de Sileno têm uma parecença de família com Lúcio Cláudio, com quem têm em comum uma face roliça no alto de um corpo roliço, esta imagem específica era demasiadamente parecida com Lúcio para não ser um retrato seu.

Deves ter mandado fazer estas peças especialmente para ti observei.

Sim, encomendei-as numa loja de artesãos da Rua dos Ourives. Julgo que elas provam que podemos encontrar aqui em Roma a mesma qualidade de trabalho artesanal que nas peças importadas de Alexandria e de outros locais.

Sim concordei eu, desde que a pessoa tenha com que pagá-las.

Bem, foi um pouco extravagante admitiu Lúcio, mas a matéria-prima veio de Espanha, e não do Oriente, o que permitiu baixar o preço. De qualquer maneira, vai valer a despesa ver as caras dos meus primos quando lhas der, pelos Saturnais. A prata é o presente tradicional, claro...

Para quem pode comprá-la resmoneei eu.

... mas houve tempos em que alguns dos meus parentes declararam que eu era um tanto sovina. Bem, não tendo esposa nem filhos, não estou habituado a esbanjar a minha riqueza com aqueles que me rodeiam, e às vezes é difícil a um solteiro deixar-se entranhar pelo espírito das festividades. Mas este ano não, este ano superei-os a todos, como podes ver.

Superaste de facto concordei, pensando que nem um grupo de patrícios ricos e entediados como o clã dos Cláudios poderia deixar de ficar impressionado com a generosidade de Lúcio.

Este ficou por momentos a contemplar as várias peças, depois voltou-se para o escravo.

Estefânio, o que é isto? O que estás tu aqui a fazer, metido no escuro num dia esplêndido como o de hoje? Devias andar na rua, na pândega com os outros.

Na pândega, senhor? respondeu friamente o escravo cheio de rugas, como que dando a entender que a possibilidade de ele fazer semelhante coisa era muito remota.

Sabes perfeitamente ao que me refiro devias andar a divertir-te.

Divirto-me bastante aqui em casa, senhor.

Bem, então a entreteres-te.

Garanto-te que sou tão capaz de me entreter aqui como noutro sítio qualquer respondeu Estefânio. Parecia duvidoso que fosse capaz de se entreter fosse em que circunstâncias fosse.

Muito bem riu-se Lúcio, faz o que quiseres, Estefânio. Afinal, as festividades são para isso mesmo.

Lúcio fez nova pausa diante da arca e passou um dedo amoroso pelo jarro a que anteriormente fizera referência, e que parecia agradar-lhe especialmente. Depois, foi à nossa frente até ao átrio e ofereceu-nos uma taça de vinho.

Muito aguado, no caso de Eco disse eu, enquanto Lúcio nos servia de um jarro simples de prata, cheio a transbordar de vinho tinto espumoso. Eco franziu o sobrolho, mas ergueu a taça, disposto a receber tudo o que lhe dessem. Pela minha experiência de visita a esta casa, sabia que Lúcio só servia vinhos excelentes, de maneira que lhe pedi que me deitasse apenas umas gotas de água no meu, a fim de poder saborear todo o vigor do excelente bouquet. Para um homem habituado a ser servido, Lúcio atendeu-nos de forma bastante aceitável; depois serviu-se a si próprio e sentou-se connosco.

Considerando a intensidade com que trabalhas, calculo que aprecies imenso o lazer das festividades.

Na verdade, é frequente estar mais ocupado nos dias de festa do que nos outros.

A sério?
O crime não respeita os feriados disse eu. Ou, para ser mais preciso: o crime aprecia imensamente os feriados. Não fazes ideia da quantidade de roubos e assassínios que ocorrem durante as festividades já para não falar de imprudências e infidelidades.

Por que será?

Eu encolhi os ombros.

Os habituais constrangimentos sociais abrandam; as pessoas estão mais sensíveis às tentações e a fazer coisas que em geral não fariam, por razões muito variadas por ganância, por despeito, ou simplesmente por graça. As famílias reúnem-se, quer os seus membros se apreciem uns aos outros, quer não, o que pode gerar conflitos. E os custos dos divertimentos podem levar os homens, mesmo os ricos, a cometer actos de desespero. Quanto àqueles que já têm uma predisposição criminosa, pensa nas vantagens de agirem durante as festividades, uma altura em que as pessoas estão menos atentas e se entorpecem de comida e bebida. Oh, sim, as festividades romanas são um convite ao crime, e são muitas vezes a época do ano em que ando mais atarefado.

Nesse caso, considero-me feliz por poder usufruir da tua companhia neste dia, Gordiano! disse Lúcio, erguendo a taça.

Nesse momento, ouvimos abrir a porta da rua, depois vozes falando alto no vestíbulo, e a seguir os passos rápidos de dois jovens escravos, que surgiram no átrio. Estavam corados devido ao frio, com as faces quase tão vermelhas como os barretes de feltro que traziam na cabeça. Tinham os olhos lacrimosos por causa da bebida, mas recompuseram-se consideravelmente à vista do seu senhor.

Tropso, Zótico, espero que estejam a divertir-se disse Lúcio cordialmente.

Subitamente, Tropso, que era magro e louro, tornou-se rígido, sem ter bem a certeza de como havia de reagir, enquanto o companheiro, que era corpulento e moreno, desatou a rir e atravessou o átrio a correr e aos gritos, em direcção à parte de trás da casa.

Sim, senhor, muito, senhor disse finalmente Tropso. Saltitava de um pé para o outro, como se estivesse à espera de que o mandassem embora. Por fim, Lúcio pegou numa côdea de pão e atirou-a ao rapaz. Vai-te lá embora! riu-se. Tropso partiu a correr atrás de Zótico, com um ar completamente confuso.
Bebemos em silêncio durante algum tempo, apreciando o vinho.

Não há dúvida de que te esforças por ser informal, Lúcio observei discretamente, mesmo que isso faça com que o pobre escravo se sinta pouco à-vontade.

Tropso é novo cá em casa. Não compreende: são os Saturnais! comentou Lúcio com um gesto grandioso. Tinha acabado a segunda taça de vinho e estendia a mão para se servir de uma terceira. Voltei-me para Eco, esperando que ele me piscasse o olho divertido, mas ele parecia distraído e não tirava os olhos da parte de trás da casa.

E vais ao ponto de servir o jantar aos teus escravos? perguntei-lhe, recordando-me de que Cícero se recusara a representar semelhante inversão.

Bem, não, afinal, Gordiano, eles são muitos, e eu sou só um! E estarei esgotado, depois de andar a visitar os meus primos a tarde toda, e a entregar os presentes. Mas autorizo os escravos a reclinarem-se nos canapés como se fossem convidados e a servirem-se uns aos outros, enquanto eu janto no quarto. Eles costumam gostar da brincadeira, a. avaliar pelo barulho que fazem. E tu? Vais servir o jantar aos teus escravos domésticos?

São só dois.

Ah, sim, o teu guarda-costas, o enorme Belbo, e claro, a tua concubina egípcia, a bela Betesda. Que homem seria capaz de se recusar a servi-los? Lúcio suspirou, e depois estremeceu. Sempre se sentira fascinado por Betesda, e mais do que um pouco intimidado por ela.

Quando nos despedirmos de ti, Eco e eu vamos para casa preparar-lhes o jantar disse eu, e esta noite, antes de as pessoas se amontoarem nas ruas com as velas acesas, servir-lhes-emos o jantar enquanto eles se reclinam nos nossos canapés.

Delicioso! Gostava de assistir!

Só se estiveres disposto a carregar um tabuleiro, como os restantes cidadãos da casa.

Bem...

Naquele momento, pelo canto do olho, vi Eco fazer um movimento súbito e brusco em direcção à parte de trás da casa. Ele ouve muito bem; por isso, ouviu o jovem escravo aproximar-se antes de Lúcio e eu o ouvirmos. Momentos depois, Tropso entrou no átrio a correr, com uma expressão de choque e consternação. Abriu a boca mas engasgou-se com as palavras.

Então, Tropso, o que se passa? perguntou Lúcio, franzindo a testa carnuda.

Uma coisa horrível, senhor!

Sim?

Foi o velho Estefânio, senhor...

Sim, sim, diz lá.

Tropso retorcia as mãos e fez uma careta.

Por favor, senhor, vem ver!

Será uma coisa assim tão terrível, que o escravo nem consegue articular? comentou Lúcio com ligeireza enquanto se levantava laboriosamente da cadeira. Anda, Gordiano, provavelmente é um assunto para ti! disse, a rir-se.

Mas os risos cessaram quando seguimos o jovem Tropso até à sala onde Lúcio nos tinha mostrado os objectos de prata. As janelas estavam todas fechadas, à excepção da que ficava mais perto da arca. A luz fria que por ela entrava permitiu-nos avaliar o desastre que prendera a língua do escravo. O pano vermelho continuava a tapar a arca, mas estava todo repuxado, e as peças de prata tinham desaparecido! No chão, diante da arca, vimos Estefânio, o velho escravo, deitado de lado, imóvel, com os braços erguidos à altura do peito. Tinha a testa cheia de sangue, proveniente de uma ferida profunda, e embora tivesse os olhos muito abertos, eu já tinha visto um número suficiente de mortos para ter a certeza de que Estefânio abandonara o serviço de Lúcio Cláudio para sempre.

Por Hércules, o que foi que aconteceu? arquejou Lúcio. A prata! E Estefânio! Está...?

Eco ajoelhou-se para lhe sentir o pulso e levou o ouvido aos lábios ligeiramente abertos do escravo. Ergueu os olhos para nós e abanou a cabeça com gravidade.

Mas o que foi que aconteceu? gritou Lúcio. Tropso, o que sabes sobre isto?

Nada, senhor! Entrei aqui e encontrei-o exactamente como está agora. Fui logo chamar-te.

E Zótico perguntou Lúcio com ar sombrio. Onde está ele?

Não sei, senhor.

O que queres dizer com isso? Vocês entraram juntos.

Pois foi, mas eu tinha de ir aliviar-me, por isso fui à latrina, no outro extremo da casa. Depois, fui à procura de Zótico, mas não consegui encontrá-lo.

Bem, nesse caso vai à procura dele agora! trovejou Lúcio. Tropso voltou-se com ar submisso, e preparava-se para se ir embora.

Espera disse eu. Não me parece que haja grande pressa em encontrar Zótico, se ele ainda estiver em casa. Penso que seria mais interessante saber o que te fez vir a esta sala, Tropso.

Andava à procura de Zótico, como já disse. baixou os olhos.

Mas porquê aqui? Este é um dos compartimentos privados do teu senhor. Não me parece natural alguém entrar aqui, à excepção de um escravo com a categoria de Estefânio, ou talvez uma rapariga para fazer as limpezas. Por que vieste à procura de Zótico a esta sala, Tropso?

Eu... pareceu-me ouvir um barulho.

Que género de barulho? Tropso fez uma expressão pesarosa.

Pareceu-me ouvir alguém... rir.

Subitamente, Eco bateu as palmas para chamar a atenção, e acenou vigorosamente com a cabeça.

O que estás tu a dizer, Eco, que também ouviste esse riso?

Ele acenou com a cabeça, e fez um movimento de mãos, indicando que, ouvido do átrio, lhe parecera fraco e longínquo.

O riso vinha deste compartimento, Tropso?

Pareceu-me que sim. Primeiro foi um riso, e depois... e depois uma espécie de chocalhar, e um baque, ou uma pancada, não muito alto.

Olhei para Eco, que apertou os lábios numa expressão ambivalente e encolheu os ombros. Também ele, sentado no átrio, tinha ouvido qualquer coisa ao fundo da casa, mas tratara-se de um ruído indistinto.

Seria Zótico a rir? perguntei eu.

Julgo que sim respondeu Tropso, hesitante.

Vá lá, era Zótico ou não? Certamente conhecias o seu riso vocês vinham os dois a rir-se quando entraram em casa, há pouco.

Não parecia Zótico, mas julgo que devia ser, a não ser que estivesse mais alguém cá em casa.

Não está cá mais ninguém disse Lúcio. Tenho a certeza.

Podia ter entrado alguém disse eu, avançando na direcção das portadas abertas. Curioso este ferrolho parece ter sido forçado. Já estava partido?

Julgo que não disse Lúcio.

O que fica no exterior desta janela?

Um pequeno jardim.

E à volta desse jardim?

Fica a casa, em três dos lados, e um muro no quarto.

E do outro lado desse muro?

A rua. Oh deuses, já estou a ver o que queres dizer. Sim, calculo que uma pessoa jovem e ágil poderia ter escalado o muro e assaltado a casa.

E esse muro também pode ser escalado deste lado?

Calculo que sim.

Mesmo por um homem com um saco cheio de objectos de prata ao ombro?

Gordiano, não estás a pensar que Zótico...

Espero que não, para bem dele, mas já vi sucederem coisas mais estranhas quando um escravo tem um pequeno antegosto da liberdade, a experiência de gastar algumas moedas, e bebeu um pouco de vinho a mais.

Compassiva Fortuna murmurou Lúcio. A prata! Aproximou-se da arca e estendeu a mão para o local de onde tinham desaparecido os objectos de prata, como se estivesse a tocar em fantasmas.

O jarro, as jóias, as taças desapareceu tudo!

Não há vestígios de armas disse eu, olhando em volta da sala.

Talvez uma das peças desaparecidas tenha sido usada para dar aquela pancada na cabeça de Estefânio. Uma coisa com uma aresta lisa e direita, pelo aspecto da ferida. Talvez a salva...

Que ideia horrível! Pobre Estefânio. Lúcio apoiou as mãos na berma da arca e subitamente recuou com um sobressalto de horror. Ergueu a mão e viu que tinha a palma coberta de sangue.

De onde é que isso veio? perguntei eu.

Do pano que cobre a arca. Não se consegue ver bem a esta luz, porque o tecido é vermelho, mas há uma mancha de sangue molhado.

Olha, foi todo repuxado. Vamos pô-lo como estava. Endireitámos o pano e descobrimos que a mancha de sangue ficava mesmo por cima da aresta superior da arca.

Como se a cabeça dele tivesse batido na madeira disse Lúcio.

Sim, como se ele tivesse caído ou sido empurrado observei eu.

Tropso pigarreou.

Senhor, ainda queres que vá à procura de Zótico? Lúcio ergueu uma sobrancelha.

Vamos todos à procura dele.

Uma rápida busca às dependências dos escravos revelou-nos que Zótico não estava em casa. Voltámos ao compartimento do tesouro roubado.

Queres que vá procurar Zótico na rua, senhor? A quebra na voz de Tropso dava a entender que ele tinha perfeita consciência da delicadeza da sua posição. Se Zótico tinha roubado e assassinado, não seria provável que o seu amigo Tropso estivesse envolvido no plano? Mesmo que Tropso fosse totalmente inocente, por Lei, o testemunho dos escravos tem de ser obtido sob tortura; se a prata não fosse recuperada, e o assunto rapidamente resolvido, Tropso corria o risco de ter de enfrentar uma prova nada fácil. O meu amigo Lúcio tem bom coração, mas sempre pertence a uma família patrícia tradicional, e os patrícios de Roma não chegaram onde se encontram hoje sendo altruístas e melindrosos, especialmente na gestão das coisas que lhes pertencem, sejam humanas ou não.

Lúcio mandou Tropso para o quarto, e depois voltou-se para mim.

Gordiano, o que hei-de fazer? disse num gemido, e naquele momento parecia tudo menos um patrício.

Não podes deixar Tropso sair, evidentemente. Se se vir sozinho nas ruas, pode pôr-se com ideias loucas e fugir, e esses processos terminam sempre mal para os escravos. Além disso acrescentei baixinho, pode perfeitamente ser culpado de conspirar para te roubar a prata. Também sugiro que contrates uns quantos gladiadores, se conseguires encontrar algum que esteja sóbrio, e os mandes à procura de Zótico, se conseguirem encontrá-lo.

E se ele não tiver a prata com ele?

Nesse caso, tens de decidir de que forma hás-de arrancar-lhe a verdade.

E se ele protestar a sua inocência?

Julgo que é possível que um estranho tenha trepado o muro e te tenha roubado a prata. Talvez outro escravo dos teus, ou alguém da Rua dos Ourives, que tivesse sabido das tuas aquisições recentes. Mas primeiro encontra Zótico e descobre o que ele sabe.

De repente, Eco, que há algum tempo se mostrava pensativo, exigiu que eu lhe prestasse atenção. Apontou para o cadáver de Estefânio, e a seguir fez uma pequena representação, sorrindo com ar estúpido e fingindo rir-se.

Lúcio não achou graça.

Francamente, isto não é divertido!

Não, Lúcio, percebeste mal. Queres tu dizer, Eco, que foi Estefânio que ouviste rir?

Eco acenou com a cabeça, mas de tal maneira que dava a entender que tinha hesitado muito, e chegara finalmente a uma conclusão.

Estefânio, a rir? disse Lúcio, no mesmo tom com que teria reagido se Eco lhe tivesse comunicado que vira Estefânio lançar fogo pela boca ou fazer malabarismos com os globos oculares.

Pareceu-me um sujeito bastante austero concordei, lançando a Eco um olhar de cepticismo. E, se foi Estefânio quem se riu, por que é que Tropso não disse nada?

Provavelmente porque nunca tinha ouvido Estefânio rir disse Lúcio. Tenho a impressão de que eu próprio nunca ouvi tal coisa. Baixou os olhos para o cadáver com uma expressão intrigada. Tens a certeza de que foi Estefânio que ouviste rir, Eco?

Eco cruzou os braços e acenou gravemente com a cabeça. Tinha decidido.

Bem, talvez nunca venhamos a ter a certeza disse eu, encaminhando-me para a porta.

Não ficas comigo para me ajudar, Gordiano?

Infelizmente, Lúcio Cláudio, tenho de ir andando. Preciso de ir preparar um jantar e de o servir a uma concubina.

Eco e eu conseguimos chegar a casa relativamente incólumes. Um grupo de prostitutas risonhas impediu-nos de avançar durante algum tempo, dançando em roda à nossa volta, outro Rei Numa transportado no alto de uma liteira entornou-me uma taça de vinho sobre a cabeça, e um gladiador embriagado vomitou em cima de um dos sapatos de Eco; à parte isso, a viagem do Palatino para a Subura foi calma.

Preparámos um jantar bastante simples, adequado aos meus talentos. Apesar disso, Betesda parecia quase incapaz de sair da cozinha. De vez em quando, espreitava lá para dentro de sobrolho franzido e com ar céptico, e abanava a cabeça, como se a simples maneira como eu empunhava a faca revelasse a minha total incompetência em matéria culinária.

Por fim, quando o sol de Inverno começava a mergulhar no horizonte, a oeste, Eco e eu emergimos da cozinha, e encontrámos Betesda e Belbo confortavelmente aninhados nos canapés da sala de jantar habitualmente usados por nós. Eco trouxe as mesinhas de jantar, enquanto eu servia os diversos pratos uma sopa de lentilhas, uma papa de miIheto com cordeiro, um pudim de ovos com mel e pinhões.

Belbo mostrou-se satisfeito com a refeição, mas Belbo gosta de todas as refeições, desde que haja suficiente que comer; estalava os lábios, comia com as mãos, e ria-se muito com a novidade de pedir ao jovem senhor Eco que lhe servisse mais vinho, aceitando a tradição da inversão de papéis como uma brincadeira. Betesda, por seu lado, abordava cada prato com uma expressão de frio distanciamento. Como sempre, a sua atitude tipicamente indiferente mascarava a profundidade daquilo que se passava no seu interior, e que eu desconfiava ser tão complexo e subtil como o mais fino guisado. Por um lado, não acreditava nos meus dotes culinários; por outro, agradava-lhe a novidade de ser servida e a aparência de matrona romana que isso lhe conferia; por outro lado ainda, não desejava revelar qualquer sinal exterior da sua satisfação porque, ah, bem, porque Betesda é Betesda.

Dignou-se, contudo, felicitar-me pelo pudim de ovos, cumprimento que eu aceitei com uma vénia.

E como foi o teu dia, senhor? perguntou como quem não quer a coisa, recostando-se no canapé. Eu estava de pé junto dela, com os braços deferencialmente atrás das costas. Na sua imaginação, ter-me-ia reduzido a um escravo ou, pior ainda, a um marido?

Narrei-lhe os acontecimentos do dia, como é costume os escravos fazerem, a pedido dos seus senhores. Betesda ouvia-me com ar distraído, passando as mãos pelo luxuriante cabelo preto e dando palmadinhas nos lábios muito vermelhos. Quando lhe descrevi o meu encontro com Cícero, os seus olhos negros faiscaram, porque sempre desconfiou de um homem que gosta mais de livros do que de mulheres e de comida; quando lhe disse que tinha ido a casa de Lúcio Cláudio, sorriu, porque sabe quão susceptível ele é à sua beleza; quando lhe contei do falecimento de Estefânio e do desaparecimento da prata, ficou profundamente pensativa. Inclinou-se para diante, apoiou o queixo na mão, e de repente ocorreu-me que estava perigosamente perto de representar uma paródia de mim.

Depois de eu lhe ter narrado os lamentáveis acontecimentos, pediu-me que voltasse a narrar-lhos, chamou Eco, que tinha estado a fazer um jogo infantil de palmas com Belbo, e pediu-lhe que esclarecesse alguns pormenores da história. Uma vez mais, tal como tinha feito em casa de Lúcio, ele insistiu em que fora Estefânio quem ouvira rir.

Senhor perguntou Betesda pensativamente, esse escravo, Tropso, vai ser torturado?

É possível. Suspirei. Se Lúcio não conseguir recuperar a prata, pode perder a cabeça Lúcio, quero eu dizer, embora Tropso também possa acabar por perder a dele.

E se encontrarem Zótico, mas sem a prata, e protestando a sua inocência?

É quase certo que será torturado - disse eu. Lúcio perderia a face perante a família e os amigos se se permitisse ser enganado por um escravo.

Enganado por um escravo murmurou Betesda pensativamente, acenando com a cabeça. Depois abanou-a e assumiu uma expressão imperativa. Senhor, tu estavas lá! Como é possível que não tenhas percebido a verdade?

O que queres dizer com isso?

Estavas a beber o vinho de Lúcio Cláudio sem água, não estavas? Isso deve ter-te perturbado a capacidade de discernimento.

Durante os Saturnais, são concedidas muitas liberdades aos escravos, mas isto era de mais!

Betesda! Exijo...

Temos de ir imediatamente a casa de Lúcio Cláudio. Betesda pôs-se de pé e foi a correr buscar uma capa. Eco olhou para mim, para ver o que havia de fazer. Eu encolhi os ombros. Vai buscar a tua capa, Eco, e traz também a minha; a noite pode estar fresca. Talvez seja melhor vires também Belbo, se conseguires erguer-te desse canapé. Esta noite, as ruas devem estar desenfreadas.

Não vou narrar a loucura que foi atravessar Roma em noite de Saturnais. Basta dizer que, em certas zonas do percurso, me senti muito satisfeito por Belbo vir connosco; de uma maneira geral, a sua presença corpulenta bastava para abrir caminho por entre a multidão. Quando finalmente batemos à porta de casa de Lúcio, esta foi novamente aberta pelo dono da casa.

Gordiano! Oh, estou tão satisfeito por te ver. Este dia está a tornar-se cada vez mais horrível. Oh, e Eco, e Belbo e Betesda! A sua voz teve uma ligeira quebra ao dizer o nome dela, e os seus olhos abriram-se muito. Corou, se era possível a sua face rosada tornar-se de um vermelho ainda mais carregado.

Levou-nos até ao jardim. A estátua de Minerva olhava-nos do alto; a sua aparência serena era um estudo de luar e sombras. Lúcio conduziu-nos a um compartimento que dava para o jardim, sumptuosamente mobilado e aquecido por uma braseira acesa.

Segui o teu conselho disse. Contratei uns homens para procurarem Zótico. Encontraram-no bem depressa, embriagado como um sátiro, a jogar na rua à entrada de um bordel da Subura a tentar ganhar o suficiente para entrar, segundo afirma.

E a prata?

Não há sinais dela. Zótico jura que nunca viu a prata e nem sequer tinha conhecimento da sua existência. Afirma que se escapou pelas traseiras, saindo por uma janela que há nas dependências dos escravos. Afirma que Tropso estava a aborrecê-lo e que queria sair sozinho.

Acreditaste nele?

Lúcio apertou a cabeça entre as mãos.

Oh, já não sei em que hei-de acreditar. Só sei que Zótico e Tropso entraram, Zótico voltou a sair, e em certo momento intermédio

Estefânio foi morto e a prata foi levada. Só queria recuperar a prata! Os meus primos vieram visitar-me hoje, e eu não tinha nada para lhes dar. Claro que não tinha vontade nenhuma de lhes explicar a situação; disse-lhes que os meus presentes se tinham atrasado, e que iria visitá-los amanhã. Gordiano, não quero torturar o rapaz, mas que posso eu fazer?

Podes levar-me ao compartimento onde tinhas a prata disse Betesda, avançando e despindo a capa, que lançou sobre uma cadeira. A sua cascata de cabelo preto brilhava com reflexos de azul-escuro e roxo à luz das chamas da braseira. O seu rosto estava impassível e os seus olhos firmemente poisados em Lúcio Cláudio, que pestanejou sob tal intensidade. Eu próprio vacilei um pouco, ao olhar para ela à luz das chamas, pois embora usasse o cabelo caído, como uma escrava, e um vestido simples, o seu rosto tinha a mesma majestade imponente que o rosto de bronze da deusa que presidia ao jardim.

Betesda não desviava os olhos de Lúcio, que levou a mão à testa para limpar uma gota de suor. A braseira estava quente, mas não tanto.

Claro disse ele, ainda que, neste momento, não haja nada que ver. Mandei levar o corpo de Estefânio para outra sala... A sua voz foi diminuindo de intensidade enquanto ele se voltava para retirar uma lamparina de uma palmatória fixa na parede, a fim de iluminar o caminho até às traseiras da casa.

À luz tremeluzente da lamparina, o compartimento parecia muito vazio e ligeiramente fantasmagórico. As portadas estavam fechadas e o pano manchado de sangue tinha sido retirado de cima da arca.

Quais eram as portadas que estavam abertas quando encontraste Estefânio morto? perguntou Betesda.

E-estas respondeu Lúcio, gaguejando um pouco. Ao tocar nelas, abriram-se. Parece-me que o ferrolho está partido explicou ele, tentando empurrá-las para voltar a fechá-las.

Está partido, porque as janelas não foram abertas pelo ferrolho, foram forçadas disse Betesda.

Sim, percebemos isso esta manhã disse ele. Devem ter sido empurradas e abertas a partir de fora. Algum estranho entrou à força...

Não me parece disse Betesda. E se uma pessoa agarrasse nas portadas por cima, e as puxasse para as abrir, assim? Foi até junto de outra janela e deu um puxão forte nas portadas, abrindo-as para trás e partindo o pequeno ferrolho que havia no meio.

Mas por que havia alguém de fazer semelhante coisa? perguntou Lúcio.

Eu abri a boca e inspirei, começando a perceber o que Betesda tinha em mente. Estive prestes a intervir, mas contive-me. Afinal, a ideia fora dela. Tinha o direito de ser ela a revelá-la.

O escravo Tropso disse que tinha ouvido, primeiro uma gargalhada, depois um chocalhar, e depois uma pancada. O riso, segundo Eco, era de Estefânio.

Lúcio abanou a cabeça.

É difícil imaginar tal coisa.

Por nunca teres ouvido Estefânio rir? Eu explico-te por quê: porque ele só se ria nas tuas costas. Pergunta a alguns dos escravos que vivem em tua casa há mais tempo do que Tropso, e vê o que eles te dizem.

Como é que podes saber isso? protestou Lúcio.

O homem geria a tua casa, não é verdade? Era o teu escravo principal, aqui em Roma. Acredita em mim, de vez em quando ria-se de ti nas tuas costas. Lúcio pareceu surpreendido com tal ideia, mas Betesda não estava disposta a ser contrariada. Quanto ao chocalhar que Tropso ouviu, tu ouviste o mesmo ruído agora mesmo, quando eu abri estas portadas com um puxão. Depois, Tropso ouviu uma pancada, um baque era o som da cabeça de Estefânio a bater na aresta da arca. Franziu o sobrolho. Depois, caiu ao chão, calculo que aqui, agarrando-se ao peito e a sangrar da testa. apontou para o local exacto onde tínhamos encontrado Estefânio. Mas o ruído mais significativo foi aquele que ninguém ouviu o ruído metálico da prata, que teria certamente sido considerável, se alguém tivesse metido apressadamente todos os objectos dentro de um saco, partindo a correr com ele às costas.

Mas o que significa tudo isso? perguntou Lúcio.

Significa que o teu escravo de face empedernida, que tu julgavas desprovido de sentido de humor, arranjou uma maneira muito própria de celebrar os Saturnais este ano. Estefânio pregou-te uma pequena partida em segredo e depois riu-se alto da sua impertinência. Mas riu-se de mais. Estefânio era muito velho, não era? Os escravos velhos têm o coração fraco. Quando o coração lhes falha, caem e estendem a mão para qualquer coisa onde se apoiem. Agarrou na parte superior das portadas e puxou-as bruscamente. Estas portadas eram fraco apoio. Ele caiu e bateu com a cabeça, e continuou a cair até ao chão. Terá sido o golpe na cabeça que o matou, ou a falha no coração? Quem sabe?

 

Mas a prata! exigiu Lúcio. Onde está ela?

Onde Estefânio a escondeu, cuidadosa e discretamente, na esperança de pregar um susto ao seu senhor.

Sustive a respiração e Betesda abriu a tampa da arca; e se ela estivesse enganada? Mas não. Lá dentro, aninhados sobre umas cobertas bordadas, brilhando à luz da lamparina, estavam os recipientes e os colares e as pulseiras que Lúcio nos tinha mostrado naquela manhã.

Lúcio arquejou e pareceu prestes a desmaiar de alívio.

Ainda não acredito disse por fim. Estefânio nunca me tinha feito semelhante partida!

Não? disse Betesda. Os escravos estão sempre a fazer graças destas, Lúcio Cláudio. O objectivo destas partidas não é que os seus senhores descubram e se sintam palermas, porque nesse caso o escravo seria punido pela sua impertinência. Não, o objectivo é que o senhor nunca se aperceba de que foi alvo de uma brincadeira. Estefânio devia ter planeado andar na rua a divertir-se quando tu desses pela falta da prata. Ter-te-ia deixado correr de um lado para o outro, em pânico, durante algum tempo, e depois teria voltado para casa, e quando tu lhe contasses, frenético, que a prata tinha desaparecido, ele mostrar-ta-ia guardada na arca.

Mas eu teria ficado furioso.

Tanto mais razão para Estefânio se divertir. Porque, quando lhe perguntasses por que tinha guardado a prata, ele ter-te-ia respondido que tu próprio lhe ordenaras que o fizesse, e que se limitara a cumprir ordens tuas.

Mas eu nunca lhe dei tais instruções!

”Ah, mas deste sim, senhor”, ter-te-ia ele dito, abanando a cabeça perante a tua distracção, com aquele expressão severa e desprovida de sentido de humor que lhe conhecias; e tu não terias outra alternativa se não acreditar nele. Pensa bem, Lúcio Cláudio; desconfio que te recordarás de outras ocasiões em que te sentiste embaraçado, e Estefânio foi obrigado a dizer-te que era devido aos teus esquecimentos.

Bem, agora que falas nisso... comentou Lúcio, mostrando-se nitidamente pouco à-vontade.

E, entretanto, Estefânio ria-se de ti nas tuas costas disse Betesda.

Eu abanei a cabeça.

Devia ter percebido a verdade quando aqui estive, há bocado comentei pesarosamente.

Que disparate respondeu Betesda. Tu és sensato à maneira do mundo, senhor, mas não podes conhecer o funcionamento secreto da mente de um escravo, porque nunca foste escravo. Encolheu os ombros. Quando me contaste a história, percebi logo a verdade. Não tinha de conhecer Estefânio para saber como funcionava a mente dele; há uma maneira de olhar para o mundo que é comum a todos os escravos, penso eu.

Eu acenei com a cabeça e depois tornei-me rígido.

Isto significa que, às vezes, quando eu não consigo encontrar uma coisa, ou quando me recordo claramente de te ter dado uma ordem e tu me convences de que na realidade não o fiz...

Betesda sorriu muito ligeiramente, como sorriria a deusa da sabedoria ao apreciar uma graça excessivamente sofisticada para simples mortais.

Mais tarde, juntámo-nos à multidão que se aglomerava no Fórum, de velas acesas na mão, para que as grandes praças públicas e as fachadas dos templos ficassem iluminadas por milhares e milhares de luzes vacilantes. Lúcio veio connosco, e connosco entoou o alegre canto Io, io, Saturnais!, que ressoou por todo o Fórum. Pelo sorriso frívolo que lhe brilhava no rosto, percebi que tinha recuperado o bom humor. Betesda também sorria, e por que não? Trazia no braço uma pulseira de prata e ébano, o presente dos Saturnais de um admirador agradecido, que brilhava como um círculo de fogo líquido à luz da vela que tinha na mão.


A Abelha-Mestra e o Mel

Gordiano! E Eco! Que tal foi a viagem?

Digo-te logo que desmontar deste cavalo e descobrir se ainda tenho pernas.

Lúcio Cláudio soltou uma gargalhada bem-disposta.

Ora, Roma fica apenas a algumas horas a cavalo! E a estrada é excelente, toda pavimentada. E o tempo está magnífico!

Era verdade. Estávamos no final de Aprilis, num daqueles dias dourados de Primavera que a pessoa deseja que se prolonguem para sempre. O próprio Sol parecia ter a mesma opinião; mantinha-se imóvel nos céus, como que arrebatado pela beleza da Terra e incapaz de se afastar.

E a Terra era efectivamente bela, em especial este cantinho cheio de ondulações de terreno da zona rural etrusca, a norte de Roma. As colinas estavam guarnecidas de carvalhos e cobertas de florinhas amarelas e roxas. Aqui no vale, os olivais reflectiam brilhos de verde e prata sob a brisa suave. Os pomares de figueiras e tílias estavam em plena floração. As abelhas esvoaçavam e zumbiam por entre as longas carreiras de vinhas. Havia no ar canções de pássaros, que se misturavam com a melodia entoada por um grupo de escravos que percorriam um campo vizinho, agitando as foices em uníssono. Inspirei profundamente o doce odor da erva alta a secar ao sol. Até o meu querido amigo Lúcio parecia invulgarmente robusto, um sileno de faces rosadas e cabelo ruivo emaranhado; a única coisa que lhe faltava para completar o quadro era um jarro de vinho e umas quantas ninfas do bosque a atender-lhe os desejos.

Desci do cavalo e descobri que afinal ainda tinha pernas. Eco saltou da sua montada e desatou aos pulos. Oh, ter catorze anos e não saber o que são músculos rígidos! Um escravo levou os nossos cavalos para o estábulo.

Lúcio deu-me uma palmada amigável nas costas e conduziu-me à villa. Eco corria em círculos à nossa volta, como um cãozinho excitado. Era uma casa encantadora, baixa e cheia de janelas, com as portadas todas abertas, para deixar entrar a luz e o ar fresco. Pensei nas casas da cidade, estreitas e amontoadas umas em cima das outras, e sem janelas por medo dos ladrões. Aqui, a própria casa parecia suspirar de alívio, permitindo-se descontrair.

Vês, eu bem te disse comentou Lúcio. Olha-me para esse sorriso! A última vez que te vi na cidade, parecias um homem que trouxesse os pés metidos dentro de sapatos apertados. Eu sabia que era disto que estavas a precisar de uns dias no campo. A mim faz-me sempre um bem imenso. Quando estou completamente farto das politiquices e dos processos do Fórum, fujo para a quinta. Vais ver. Uns dias aqui, e serás um homem novo. E Eco vai-se divertir imenso, a trepar às colinas, a nadar no rio. Mas não trouxeste Betesda?

Não. Ela... Comecei a dizer ela recusou-se a vir, que era a verdade, mas receei que o meu amigo bem-nascido troçasse da ideia de um escravo se recusar a acompanhar o seu senhor em viagem. Betesda é uma criatura da cidade, como sabes. Não fica bem no campo, por isso deixei-a em casa, com Belbo a tomar conta dela. Aqui, ter-me-ia sido inútil.

Oh, estou a ver. Lúcio acenou com a cabeça. Ela recusou-se a vir?

Bem... Comecei a abanar a cabeça, depois desisti e dei uma gargalhada. De que serviam as pretensões urbanas aqui, onde o Sol se imobilizava no céu, lançando a sua luz dourada sobre um mundo perfeito? Lúcio tinha razão. Era melhor deixar esses disparates em Roma. Obedecendo a um impulso, estendi a mão para Eco e, quando ele me fugiu, corri atrás dele. Perseguimo-nos em círculos à volta de Lúcio Cláudio, que lançou a cabeça para trás, rindo-se à gargalhada.

Nessa noite, jantámos espargos e fígado de ganso, seguidos de cogumelos salteados em gordura de ganso e uma galinha-da-índia em molho de vinagre e mel, polvilhada de pinhões. Era uma refeição simples, mas estava soberbamente preparada. Elogiei a cozinha com tal entusiasmo, que Lúcio mandou chamar o cozinheiro para que eu pudesse cumprimentá-lo pessoalmente.

Fiquei surpreendido ao ver que se tratava de uma mulher, com pouco mais de vinte anos. Tinha o cabelo escuro preso num rabo-de-cavalo, sem dúvida para não interferir com a culinária. As suas faces roliças tornavam-se ainda mais roliças devido ao sorriso que lhe brilhava no rosto; apreciou os elogios. Tinha um rosto agradável, ainda que não fosse bela, e uma figura que, apesar das roupas soltas, parecia bastante voluptuosa.

Dávia começou por auxiliar o meu cozinheiro principal na casa de Roma explicou Lúcio. Ajudava-o nas compras, media os ingredientes, esse género de coisas. Mas quando, no Inverno passado, ele adoeceu e ela teve de o substituir, mostrou-se de tal maneira à altura que eu decidi entregar-lhe a gestão da cozinha aqui na quinta. Quer dizer que aprovas, Gordiano?

Completamente. Estava tudo esplêndido, Dávia.

Eco juntou os seus louvores aos meus, mas os aplausos dele foram interrompidos por um bocejo profundo. Excesso de boa comida e ar puro, explicou-nos, apontando para a mesa e inspirando profundamente. Pediu licença para se retirar e foi direitinho para a cama.

Lúcio e eu fomos sentar-nos junto ao rio, a beberricar o melhor vinho dele, a ouvir a água gorgolejar e os grilos cantar, e a observar as tiras de nuvens que tapavam a cara da lua como farrapos de véus.

Dez dias disto e acho que me esqueço do caminho de regresso a Roma.

Ah, mas aposto que não te esqueces do caminho de regresso para junto de Betesda disse Lúcio. Eu estava com esperanças de que ela viesse. É verdade que ela é uma flor da cidade, mas se a trouxesses para o campo é bem possível que lhe nascessem novas flores, que haviam de te surpreender. Ah, pronto, nesse caso vamos ser apenas nós os três.

Não há mais convidados?

Não, não, não! Estive especificamente à espera de não ter compromissos sociais pendentes, para ficarmos com a casa só para nós. Sorriu-me ao luar, depois voltou os lábios para baixo com severidade fingida. Não é o que estás a pensar, Gordiano.

E em que estou eu a pensar?

Que, apesar de toda a sua virtuosa modéstia, o teu amigo Lúcio Cláudio continua a ser um patrício, com o pretensiosismo próprio da sua classe; que eu escolhi para te convidar, um momento em que não houvesse mais ninguém por aqui, a fim de evitar que fosses visto pelos meus amigos da classe mais elevada. Mas não foi absolutamente nada disso. Queria que tivesses a quinta só para ti, para que tu não tivesses de os aturar! Oh, se conhecesses o género de pessoas de quem estou a falar.

Sorri perante o seu desconforto.

De vez em quando, o meu trabalho põe-me em contacto com os bem-nascidos e os abastados, sabias?

Ah, mas conviver com eles é diferente. Nem sequer estou a referir-me à minha família, embora eles sejam do pior. Não, refiro-me aos caçadores de fortunas, que vivem nas franjas da sociedade e pensam que podem arranhar e raspar como os furões, abrindo caminho em direcção à respeitabilidade. E aos avôs, os velhos peidos entediantes e convencidos, que nunca permitem que ninguém se esqueça de que um antepassado seu foi cônsul durante dois mandatos, ou saqueou um templo grego, ou deu cabo de um navio cheio de cartagineses durante a época de ouro. E aos desarranjados mentais que afirmam ser descendentes de Hércules ou de Vénus é mais provável que descendam de Medusa, a avaliar pela maneira como comem. E aos ricos que são ricos de mais, e estragam com mimos jovens que não pensam em mais nada se não em jogar aos dados e apostar nas corridas de cavalos, e às miúdas que são bonitas de mais, e não pensam em mais nada se não em vestidos novos e em jóias, e aos pais que não conseguem pensar em mais nada, a não ser em combinar os rapazes com as raparigas, para poderem produzir mais do mesmo.

”Estás a ver, Gordiano, tu conheces essas pessoas no seu pior, quando houve um assassínio horrível, ou outro crime qualquer, e elas se sentem ansiosas e confusas, e precisam da tua ajuda, mas eu vejo-as no seu melhor, quando se ataviam como pássaros africanos e vertem o seu encanto umas sobre as outras como mel, e acredita em mim, no seu melhor, elas são mil vezes pior! Oh, não podes imaginar as reuniões horríveis que eu tive de suportar aqui na villa. Não, não, durante os próximos dez dias não haverá nada disso. Será uma folga para ti, mas também para mim para ti, da cidade, e para mim, do meu chamado círculo de amigos. Mas não seria assim.

 

Os três dias que se seguiram foram um antegosto dos Campos Elísios. Eco explorou todos os recantos da quinta, tão fascinado por borboletas e formigueiros, como pelo misterioso funcionamento das prensas de azeite e de vinho. Sempre fora um rapaz da cidade antes de eu o adoptar, era um miúdo das ruas, mas era manifesto que sabia apreciar o campo.

Quanto a mim, regalava-me com os cozinhados de Dávia pelo menos três vezes por dia, percorria a quinta na companhia de Lúcio e do capataz, e repousava durante horas debaixo dos salgueiros, junto ao rio, lendo os romances gregos de má qualidade que Lúcio tinha na sua pequena biblioteca. O enredo era sempre o mesmo rapaz humilde conhece rapariga nobre, rapariga é raptada por piratas/gigantes/soldados, rapaz resgata a rapariga e vem-se a verificar que era nobre de nascimento, mas estes disparates estavam perfeitamente de acordo com o meu estado de espírito. Permiti-me ser mimado e descontrair totalmente o corpo, a mente e o espírito, e desfrutei cada momento.

Veio então o quarto dia, e com ele os visitantes.

Chegaram estava a luz do Sol a decair, numa carroça aberta puxada por quatro cavalos brancos e seguida por uma pequena comitiva de escravos. Ela vinha vestida de verde e tinha os caracóis castanhos arranjados na peculiar forma em leque que era moda na cidade naquela Primavera; era um enquadramento adequado à extraordinária beleza do seu rosto. Ele usava uma túnica azul-escura sem mangas e por cima dos joelhos, que lhe deixava à mostra os braços e as pernas atléticas, e uma barbinha de contornos estranhos, que parecia especificamente concebida para zombar das convenções. Pareciam ter aproximadamente a minha idade, entre os trinta e os quarenta anos.

Eu estava a chegar à villa, depois de passar a tarde junto ao rio. Lúcio saiu de casa para me receber, olhou para além de mim e avistou os recém-chegados.

Bolas de Numa! exclamou baixinho, usando a minha expressão favorita.

São teus amigos? perguntei eu.

São! Não teria uma expressão mais consternada se estivesse a assistir à chegada do espectro de Aníbal.

Ele era um sujeito chamado Tito Dídio. Ela era Antónia, a sua segunda mulher. (Tinham-se divorciado ambos dos primeiros cônjuges, a fim de se casarem um com o outro, dando origem a um escândalo enorme, e a não pouca inveja entre os seus pares infelizes no casamento.) Lúcio chamou-me à parte enquanto o casal se instalava no quarto ao lado do meu, e contou-me que bebiam como peixes, discutiam como chacais, e roubavam como pegas. (Reparei que, pouco depois de eles chegarem, os escravos retiravam discretamente os vinhos mais caros, a melhor prata, e os vasos arrecianos mais frágeis.)

Parece que faziam tenções de passar uns dias em casa do primo Mânio explicou Lúcio, mas, quando chegaram, não estava lá ninguém. Bem, já percebi o que aconteceu: Mânio partiu para Roma só para não os receber.

Ele não fazia uma coisa dessas.

Fazia e fez. Pergunto-me se não se terão cruzado com ele pelo caminho! Por isso, vieram até cá, pedir para se instalarem uns dias. ”É só um dia ou dois, antes de voltarmos à cidade. Estávamos com tanta vontade de passar algum tempo no campo. Tu és um querido, Lúcio, não és, e vais deixar-nos ficar, só um bocadinho?” É mais provável que fiquem dez dias do que dois!

Eu encolhi os ombros.

Não me parecem assim tão horríveis.

Oh, espera e verás. Espera só.

Bem, se eles são assim tão horríveis, por que não os deixas passar a noite, e depois os mandas embora?

Mandá-los embora? Ele repetiu a frase, como se eu tivesse deixado de falar Latim. Mandá-los embora?. Mandar embora Tito Dídio, o filho do velho Marco Dídio? Recusar a minha hospitalidade a António. Gordiano, conheço-os desde miúdo. Evitá-los, como fez o primo Mânio, é uma coisa. Mas dizer-lhes na cara...

Deixa lá. Já percebi disse eu, embora na realidade não tivesse percebido coisa nenhuma.

Fossem quais fossem os seus defeitos, o casal tinha uma virtude que se impunha: eram encantadores. Na realidade, eram tão encantadores, que na primeira noite, enquanto jantava em sua companhia, comecei a pensar que Lúcio tinha exagerado imenso. Era um facto que não exibiam sombra do pretensiosismo próprio da sua classe relativamente a Eco e a mim. Tito mostrava-se interessadíssimo nas minhas viagens e no meu trabalho para advogados como Cícero. (”É verdade”, perguntou, debruçando-se para mim com uma expressão muito séria, ”que ele é eunuco?”) Eco estava obviamente fascinado por Antónia, que era ainda mais bela à luz das lamparinas. Ela divertia-se a namoriscar com ele, mas fazia-o com uma graça natural desprovida de condescendência ou malícia. Eram ambos inteligentes, vibrantes e urbanos, com um sentido de humor só ligeira, e encantadoramente, vulgar.

Também gostavam de boa comida. Tal como eu tinha feito após a minha primeira refeição na villa, insistiram em cumprimentar a cozinheira. Quando Dávia apareceu, a face de Tito iluminou-se de surpresa, e não foi só pelo facto de se tratar de uma jovem. Quando Lúcio abriu a boca para lha apresentar, Tito roubou-lho o nome dos lábios.

Dávia! disse. A palavra deixou-lhe um sorriso no rosto. Nos olhos de Antónia cintilou uma expressão de desagrado. Lúcio olhava alternadamente para Dávia e para Tito, momentaneamente mudo.

Quer dizer... que já conhecias Dávia?

Sim, claro. Conhecemo-nos na tua casa da cidade. Mas Dávia não era cozinheira. Tanto quanto me lembro, era apenas ajudante de cozinha.

Quando foi isso? perguntou Antónia com suavidade. Tito encolheu os ombros.

O ano passado? No ano anterior? Calculo que tenha sido num dos jantares de Lúcio. É estranho tanto quanto me lembro, tu não estavas. Houve qualquer coisa que te impediu de ir, minha querida. Talvez uma dor de cabeça... Lançou à mulher um sorriso de comiseração, e depois voltou a olhar Dávia, com outro género de sorriso.

E como foi que conheceste a ajudante de cozinha? A voz de Antónia estava ligeiramente tensa.
Oh, acho que devo ter ido à cozinha pedir um favor ao cozinheiro, ou qualquer coisa assim. E depois... bem, depois conheci Dávia. Não foi, Dávia?

Foi. Dávia olhava para o chão. Embora fosse difícil perceber à luz da lamparina, pareceu-me que estava a corar.

Bem disse Tito, batendo as palmas, tornaste-te uma esplêndida cozinheira, Dávia! Totalmente digna dos padrões elevados que o teu senhor tem a fama de manter. Estamos todos de acordo com isso, não é verdade? Gordiano, Eco, Lúcio... Antónia?

Toda a gente acenou com a cabeça em uníssono, uns mais entusiasticamente do que outros. Dávia murmurou umas palavras de agradecimento e desapareceu, regressando à cozinha.

Os novos convidados de Lúcio estavam cansados da viagem. Eco e eu tínhamos tido um dia muito cheio. Toda a gente se recolheu cedo.

A noite estava quente. As janelas e as portas ficaram abertas, para aproveitar a brisa ligeira. Descera sobre a Terra uma profunda tranquilidade, de um género que a cidade nunca nos proporciona. Ao deslizar para os braços de Morfeu, pareceu-me ouvir, no silêncio absoluto, o sussurro distante e sonhador das ovelhas no estábulo, o suspiro murmurado da erva alta lá ao longe, na estrada, e até a sugestão do suave gorgolejar do riacho. Eco, com quem partilhava o meu quarto, começou a ressonar muito baixinho.

Depois, começou a discussão.

A princípio, apenas me chegava do quarto ao lado o som de vozes, sem palavras. Algum tempo depois, porém, eles começaram a gritar. A voz dela era mais aguda e mais projectada do que a dele.

Adúltero imundo! Já é suficientemente mau aproveitares-te das raparigas de tua casa, mas andares a meter-te com as escravas de outro homem...

Tito gritou qualquer coisa, presumivelmente em sua defesa. Ela não se deixou impressionar.

Oh, mentiroso imundo! Não me enganas. Vi muito bem como olhavas para ela esta noite. E não te atrevas a mencionar a minha história com o mergulhador de pérolas de Andros. Não passou de um fruto da tua imaginação embriagada!
Tito voltou a gritar. Antónia gritou. Isto prosseguiu durante algum tempo. Depois, ouviu-se um som de cerâmica partida. Silêncio durante algum tempo, e depois os gritos recomeçaram.

Gemi e puxei o cobertor, para tapar a cabeça. Algum tempo depois, apercebi-me de que os gritos tinham cessado. Rolei sobre mim próprio, deitando-me de lado, pensando que poderia finalmente adormecer, e reparei que Eco estava de joelhos na cama, com o ouvido encostado à parede entre o nosso quarto e o deles.

Eco, em nome do Hades, o que estás tu a fazer?

Ele manteve o ouvido encostado à parede, e fez-me um aceno de mão, pedindo-me silêncio.

Não estão outra vez a discutir, pois não? Ele voltou-se e abanou a cabeça.

O que se passa, então?

O luar mostrou-me o sorriso malandro que ele tinha no rosto. Ergueu e baixou as sobrancelhas, com a expressão lúbrica de um menino de rua, fez um círculo com os dedos de uma mão, esticou o indicador da outra mão, e fez um gesto que todos os meninos de rua conhecem.

Oh! Estou a ver. Nesse caso, pára de escutar. É indelicado. Voltei-me para o outro lado, e tapei a cabeça com o cobertor.

Devo ter dormido algum tempo antes de o luar, que se mudara do lado do quarto ocupado por Eco para o meu lado, me atingir na face, acordando-me. Suspirei, compus o cobertor, e vi que Eco continuava de joelhos, com o ouvido fervorosamente encostado à parede.

O casal devia ter estado a noite inteira naquilo!

Nos dois dias que se seguiram, Lúcio chamou-me repetidamente à parte, para me pedir desculpa pela intromissão nas minhas férias, mas Eco mantinha-se ocupado com os seus prazeres simples, eu continuava a ter tempo para ler sozinho à beira-rio, e a intromissão que Tito e Antónia impunham às nossas vidas era irritante e divertida em partes iguais. Homem algum podia ser mais delicioso do que Tito ao jantar, pelo menos até beber uma taça de vinho a mais, altura em que as suas piadas se tornavam um tanto vulgares e as suas picadas um tanto afiadas. E mulher alguma podia ser mais docemente sedutora diante de uma mesa de porco assado do que Antónia, até acontecer qualquer coisa que a pusesse mal-disposta.

Ela tinha um olhar que podia perfurar um homem com tanta eficácia como o espeto que tinha perfurado o animal que estava sobre a mesa.

Eu nunca tinha conhecido um casal assim. Comecei a perceber por que motivo nenhum dos seus amigos conseguia recusar-lhes fosse o que fosse. E também comecei a perceber de que forma eles distraíam esses mesmos amigos com súbitos ataques de mau génio e uma paixão arrebatadora um pelo outro, que tinha alternâncias de fogo e gelo, e podia queimar ou arrepiar qualquer estranho que se aproximasse excessivamente.

No terceiro dia da estadia de ambos, Lúcio anunciou que se tinha lembrado de uma coisa especial, que podíamos fazer todos juntos.

Alguma vez viste retirar mel de uma colmeia, Eco? Não, bem me pareceu que não. E tu, Gordiano? Também não? E vocês dois?

Olha, não, nunca vimos disse Antónia. Ela e o marido tinham dormido até ao meio-dia, e acabavam de se juntar a nós à beira-rio, para o almoço.

Esta água tem de gorgolejar tão alto? Tito massajava as têmporas. Disseste qualquer coisa sobre abelhas, não foi, Tito? Esta manhã, parece que tenho um enxame delas a zumbir-me dentro da cabeça.

A manhã já passou, Tito, e as abelhas não estão dentro da tua cabeça, estão num pequeno vale, ali adiante disse Lúcio em tom de censura.

Antónia franziu o sobrolho.

Mas afinal, como é que se recolhe o mel? Acho que nunca pensei muito no assunto, limito-me a gostar de o comer!

Oh, é uma verdadeira ciência disse Lúcio. Tenho um escravo chamado Urso, que comprei especificamente por saber tratar das abelhas. Faz as colmeias a partir de cascas de árvores esvaziadas, presas com videiras e cobertas de lama e folhas de árvores. Mantém os insectos nocivos à distância, vê se existem no prado as flores adequadas, e recolhe o mel duas vezes por ano. Diz ele que, agora que as Plêiades se ergueram no céu nocturno, chegou o momento de fazer a colheita de Primavera.

De onde vem o mel? Quero eu dizer, onde é que as abelhas vão buscá-lo? perguntou Antónia. A perplexidade dava-lhe um encanto enganadoramente vulnerável.

O que interessa isso? respondeu Tito, pegando-lhe na mão e beijando-lhe a palma. O meu mel és tu!

Oh, e tu és a minha rainha! Beijaram-se. Eco fez uma careta. Na presença de beijos reais, a sua lascívia de adolescente transformava-se num excesso de escrúpulos.

De onde vem o mel, de facto? perguntei eu. E é verdade que as abelhas têm rainhas?

Eu explico disse Lúcio. O mel cai do céu, naturalmente, tal como o orvalho. Urso assim o diz, e ele deve saber. As abelhas recolhem-no e concentram-no, até se tornar espesso e pegajoso. Para terem onde o pôr, recolhem a seiva das árvores e a cera de determinadas plantas, com que constróem favos dentro das colmeias. Se as abelhas têm rainhas? Têm, pois! As abelhas-mestras. E as outras dão gostosamente as suas vidas para as protegerem. Às vezes, dois enxames entram em guerra. As abelhas-mestras recuam, organizando a estratégia, e o recontro pode ser terrível com actos de heroísmo e sacrifício que rivalizam com os da Ilíada!

- E quando não estão em guerra? perguntou Antónia.

Uma colmeia é uma espécie de cidade em grande azáfama. Umas vão trabalhar nos campos, recolhendo o mel-orvalho, outras trabalham dentro de casa, construindo e mantendo os favos, e as rainhas promulgam leis para o bem comum. Dizem que, em recompensa por lhe terem salvo a vida, Júpiter concedeu às abelhas sabedoria para se governarem. Quando, em bebé, foi escondido numa gruta, para não ser morto pelo pai, Saturno, as abelhas sustentavam-no com mel.

Falas delas quase como se fossem superiores aos seres humanos disse Tito, rindo-se e depondo uma fiada de beijos no pulso de Antónia.

Oh, nem tanto. Afinal, ainda são governadas por rainhas, e não progrediram a ponto de terem uma república, como nós explicou Lúcio muito sério, sem se aperceber de que estavam a arreliá-lo. Então, quem quer vir assistir à recolha do mel?

Eu não gostava de ser picada disse Antónia cautelosamente.

Oh, não há grande perigo de isso acontecer. Urso acalma as abelhas com fumo, tornando-as pesadas e sonolentas. E nós mantemo-nos à distância.

Eco acenou entusiasticamente.

Acho que seria interessante... disse Antónia.

Eu não, disse Tito, recostando-se na margem coberta de erva e massajando as têmporas.

Oh, Tito, não sejas uma abelha-mestra pesada e sonolenta disse Antónia, dando-lhe uma cotovelada e fazendo beicinho. Vem connosco.

Não.

Tito... Houve uma sugestão de ameaça na voz de Antónia. Lúcio estremeceu, prevendo uma discussão, depois pigarreou.

Sim, Tito, vem também. O passeio vai fazer-te bem. Bombeia-te o sangue.

Não. Já decidi.

Antónia fez um sorriso contrariado.

Muito bem, faz como quiseres. Vais perder uma coisa divertida, tanto pior para ti. Vamos, Lúcio?

Os inimigos naturais das abelhas são os lagartos, os pica-paus, as aranhas e as traças dizia indolentemente o escravo Urso, que seguia à cabeça da nossa pequena procissão, com Eco a seu lado. Todas estas criaturas invejam o mel, compreendem, e fazem grandes danos às colmeias para conseguirem chegar até ele. Urso era um homem alto e robusto, de meia-idade, passo pesado, e muito peludo em todo o corpo, a avaliar pelas zonas que eram visíveis por entre as aberturas da túnica de mangas compridas. Seguiam-nos diversos escravos ao longo da vereda à beira-rio, transportando os carvões incandescentes e as tochas de feno que seriam usadas para fazer o fumo.

Também há plantas que são inimigas das abelhas prosseguiu Urso. O teixo, por exemplo. Nunca se coloca uma colmeia ao pé de um teixo, porque as abelhas adoecem e o mel fica amargo e muito líquido. Mas gostam muito de oliveiras e salgueiros. Gostam de retirar o mel-orvalho de flores vermelhas e roxas; o jacinto cor de sangue é a sua flor preferida. Se encontrarem tomilho, também podem usá-lo, dando ao mel um sabor delicado. Preferem viver perto dos rios, onde haja poças de água sombrias e musgosas, para beberem e se lavarem. E gostam de paz e silêncio. Como vês, Eco, o lugar reservado onde guardamos as colmeias tem todas estas qualidades: está perto do riacho, rodeado de oliveiras e salgueiros, e de todas as flores que mais deliciam as abelhas.

Ouvi as abelhas antes de as avistar. O seu zumbido combinava-se com o gorgolejar do rio, e foi-se tornando mais pronunciado à medida que íamos percorrendo a sebe de arbustos de cássia, até chegarmos a um pequeno vale sarapintado de sol e coberto de flores, que era exactamente como Urso o tinha descrito. Aquele sítio era mágico. Parecia que sátiros e ninfas cabriolavam nas sombras, sem se deixarem ver por nós. Quase se podia imaginar Júpiter criança deitado na erva macia, alimentado pelo mel das abelhas.

As colmeias, dez ao todo, estavam colocadas em fila no centro da clareira, sobre umas plataformas de madeira que nos chegavam à cintura. Tinham a forma de cúpulas altas e, devido às coberturas de lama e folhas secas, parecia que tinham sido ali postas pela Natureza; Urso dominava a arte tão bem como o saber a ela associado. Cada colmeia tinha apenas uma pequena abertura, que servia de entrada e saída, e as abelhas circulavam diligentemente para dentro e para fora.

Chamou-me a atenção uma figura que estava ao pé de um salgueiro; fiquei espantado por momentos, porque me pareceu que um sátiro saltara para a clareira, para se juntar a nós. Antónia também o viu. Teve um pequeno sobressalto, e depois bateu as palmas, deliciada.

O que está este sujeito aqui a fazer? Riu-se, e aproximou-se para ver melhor.

Vigia o vale respondeu Urso. É o tradicional guardião das colmeias. Mantém à distância os ladrões de mel e os pássaros.

Era uma estátua de bronze do deus Príapo, rindo-se com ar sensual, com uma mão na coxa e empunhando uma pequena foice na outra. Estava nu e era eminente e desaforadamente priápico. Fascinada, Antónia observou-o com atenção de alto a baixo, e depois tocou-lhe no falo erecto, de tamanho grotesco, num gesto que invocava a fortuna.

Nesse momento, a minha atenção desviou-se para Eco, que se afastara para o outro lado do vale e se debruçava sobre umas flores roxas que cresciam junto ao chão. Apressei-me a chegar junto dele.

Tem cuidado com essas flores, Eco! Não apanhes mais. Vai lavar as mãos no riacho.

O que se passa? perguntou Urso.

Isto é a língua-estrela etrusca, não é? disse eu,

É.

Se tens tanto cuidado com as plantas que crescem nesta zona como dizes, surpreende-me que não a tenhas arrancado. Esta planta não é venenosa?

Para as pessoas, talvez seja respondeu Urso despreocupadamente. Mas para as abelhas não é. Por vezes, quando uma colmeia adoece, é a única coisa capaz de as curar. Arrancam-se as raízes da língua-estrela, fervem-se em vinho, deixa-se arrefecer e põe-se junto à colmeia, para as abelhas beberem. Devolve-as à vida.

Pois a um homem pode fazer o contrário.

Pois pode, mas na quinta toda a gente sabe que não deve aproximar-se dela, e os animais não a comem. Duvido de que as flores sejam venenosas; são as raízes que contêm o tónico para as abelhas.

Bem, ainda assim, vai lavar as mãos ao riacho disse a Eco, que tinha seguido a conversa e olhava para mim, na expectativa. O tratador das abelhas encolheu os ombros e foi tratar da recolha do mel.

Tal como Lúcio tinha prometido, era uma tarefa fascinante. Enquanto os outros escravos acendiam e abafavam as tochas, alternadamente, produzindo nuvens de fumo, Urso avançou sem medo para o meio das abelhas semiadormecidas. Tinha a boca cheia de água, com que de vez em quando pulverizava o ar à sua frente, formando uma fina névoa que evitava que as abelhas se animassem. Foi levantando as colmeias uma a uma e, com uma faca comprida, escavava uma parte do favo. As suaves nuvens de fumo, os movimentos lentos e precisos de Urso, de colmeia em colmeia, a magia daquele sítio retirado, e certamente a presença risonha do vigilante Príapo, conferiam à tarefa uma aura de procissão religiosa rústica. É assim que os homens recolhem o doce labor das abelhas desde o começo dos tempos.

Uma só coisa perturbou o encantamento. Quando Urso ergueu a última colmeia, saiu de dentro dela uma onda fantasmagórica de traças brancas. Atravessaram rapidamente as nuvens de fumo, e dispersaram por entre as folhas brilhantes das oliveiras. Urso recusou-se a tirar o mel desta colmeia, afirmando que a presença das traças ladras era de mau agoiro.

Abandonámos o vale num estado de espírito festivo. Urso cortou pedaços de favo e deu-no-los a comer. Não tardámos a ficar com os dedos e os lábios pegajosos por causa do mel. Até Antónia se sujou toda.

Ao chegar à villa, ela deu uma corrida.

Abelha-mestra gritou, trago um beijo doce para ti! E um doce motivo para me beijares as pontas dos dedos! O teu mel está coberto de mel!

O que teria ela visto quando entrou no vestíbulo? Certamente não mais do que nós, que entrámos poucos momentos depois. Tito estava completamente vestido, e Dávia também. Talvez houvesse uma expressão fugitiva no rosto de ambos, uma expressão a que nós, os restantes membros do grupo, não tivemos acesso, ou talvez Antónia tenha pressentido, mais do que visto, aquilo que suscitou a sua fúria.

Fosse o que fosse, a discussão começou imediatamente. Antónia abandonou o vestíbulo a passos largos, em direcção ao quarto. Tito correu atrás dela. Dávia, muito corada, fugiu para a cozinha.

Lúcio olhou para mim e revirou os olhos.

O que irá passar-se agora? Do queixo rechonchudo escorria-lhe um fio de mel, fino como uma teia de aranha.

Ao jantar, a frieza entre Antónia e Tito não deu sinais de ter abrandado. Enquanto Lúcio e eu conversávamos sobre a recolha do mel, com a colaboração de eloquentes gestos de mãos de Eco (a sua evocação do voo das traças foi particularmente viva), Antónia e Tito comiam em silêncio empedernido. Retiraram-se cedo para o quarto. Nessa noite, não se ouviram ruídos de reconciliação. Tito ladrava e gania como um cão, alternadamente. Antónia guinchava e chorava.

Eco conseguiu dormir, apesar do barulho, mas eu agitava-me e revirava-me na cama, até que finalmente decidi ir dar uma volta. A Lua iluminou-me o caminho quando saí da villa, contornei o estábulo, e passei pelas dependências dos escravos. Ao dobrar uma esquina, vi duas figuras sentadas lado-a-lado, muito perto uma da outra, num banco ao lado do pórtico que dava acesso à cozinha. Embora o cabelo dela não estivesse apanhado, mas solto, o luar iluminava-lhe suficientemente o rosto para me permitir reconhecer Dávia. E, pela sua estatura, percebi que o homem que estava sentado a seu lado, com um braço em volta dela, a fazer-lhe festas na cara, era Urso. Estavam de tal maneira concentrados um no outro, que não repararam em mim. Eu virei-me e voltei por onde tinha vindo, perguntando a mim próprio se Lúcio teria conhecimento de que a sua cozinheira e o seu tratador de abelhas eram amantes.

Que contraste entre a silenciosa devoção destes dois, e o casal que habitava o quarto ao lado do meu. Quando voltei para a cama, tive de tapar a cabeça com uma almofada para abafar o ruído da discussão de Tito e Antónia.

Mas a manhã pareceu trazer um novo dia. Lúcio, Eco e eu comíamos um pequeno-almoço de pão e mel no pequeno jardim à saída do escritório de Lúcio, quando Antónia se aproximou de nós vinda do riacho, trazendo na mão um cesto de flores.

Antónia! disse Lúcio. Julguei que ainda estivesses deitada.

Nem pensar disse ela, sorrindo. Acordei antes de amanhecer, e deu-me para ir até ao riacho apanhar flores. Não são encantadoras? Vou pedir a uma das minhas raparigas que as teça numa grinalda, para usar esta noite, ao jantar.

A tua beleza não necessita de ornamentos disse Lúcio. E de facto, naquela manhã Antónia mostrava-se especialmente radiosa. E onde está mmm, posso atrever-me a chamar-lhe a tua abelha-mestra?

Antónia riu-se.

Calculo que ainda esteja a dormir. Mas vou imediatamente acordá-lo. Está um dia tão bonito, que não se pode perder! Estava a pensar que Tito e eu podíamos levar um cesto com comida e algum vinho, e ir passar uma parte do dia à beira-rio. Só os dois...

Ergueu as sobrancelhas. Lúcio compreendeu.

Ah sim, bem, Gordiano e eu temos muito com que nos ocupar aqui na villa. E Eco, não me disseste que tinhas pensado em ir fazer uma pequena exploração no alto da colina?

Eco não percebeu muito bem o que se estava a passar, mas acenou com a cabeça.

Bem, nesse caso parece que tu e a abelha-mestra podem ficar com o rio por vossa conta disse Lúcio.

Antónia sorriu.

Lúcio, és tão querido. Deteve-se para lhe beijar a calva, que ficou muito vermelha.

Um pouco mais tarde, estávamos nós a terminar um calmo pequeno-almoço, quando vimos o casal dirigir-se ao riacho, não levando sequer um escravo que lhes transportasse o cesto da comida e o cobertor. Iam de mãos dadas, a rir-se e tão entretidos um com o outro, que Eco se mostrou positivamente nauseado.

Um estranho fenómeno acústico fazia com que, por vezes, os ruídos provenientes do riacho chegassem até à villa. E foi assim que, algum tempo depois, estando com Lúcio à entrada de casa, com ele a discutir os trabalhos do dia com o capataz, me pareceu ouvir um grito, seguido de um estalido seco, proveniente dessa direcção. Lúcio e o capataz, um a falar e outro a ouvir, não pareceram ter-se apercebido de nada, mas Eco, que observava uma velha prensa de vinho ali perto, espetou as orelhas. Eco pode ser mudo, mas tem uma audição extremamente apurada. O grito fora de Tito. Ambos o tínhamos ouvido falar alto vezes demais durante os últimos dias, para não sermos capazes de o reconhecer.

Afinal, os esposos não tinham feito as pazes, pensei. Lá estavam eles os dois outra vez...

Um pouco mais tarde, foi Antónia que gritou. Todos a ouvimos. Não era o habitual guincho de Antónia, quando estava irritada. Era um grito de puro pânico.

E voltou a gritar.

Desatámos todos a correr. Eco à frente, Lúcio na retaguarda, arquejante.

Por Hércules gritou, ele deve estar a matá-la! Mas não era Antónia quem estava a morrer. Era Tito.

Estava deitado de costas em cima do cobertor, com a túnica curta toda repuxada e subida até às coxas. Olhava para o dossel de folhas acima da sua cabeça, com as pupilas enormemente dilatadas.

Tonto... a girar... arquejou. Tossiu, respirou com um som rouco, e agarrou-se à garganta, depois inclinou-se para diante. Levou as mãos à barriga, apertando-a por causa das cãibras. Tinha a cara de um tom mortal de azul.

Em nome do Hades! exclamou Lúcio. O que se passa com ele, Antónia? Gordiano, o que podemos nós fazer?

Não consigo respirar! disse Tito, pronunciando as palavras sem pausas entre elas. O fim... o meu fim... oh, dói muito! Agarrou-se à tanga que trazia vestida. Malditos sejam os deuses!

Deu um puxão na túnica, como se lhe apertasse o peito. O capataz estendeu-me um punhal. Eu abri a túnica ao meio e despi-lha, deixando-o nu, à excepção da tanga solta que lhe cobria as coxas; não serviu de nada, a não ser mostrar-nos que ele estava a ficar com o corpo todo azul. Voltei-o de lado e meti-lhe a mão na boca, pensando que talvez se tivesse engasgado, mas também isso foi inútil.

Ele continuou a espernear até ao fim, esforçando-se por respirar. Foi uma morte horrível. Por fim, o som rouco da sua respiração foi suspenso, e as suas mãos deixaram de apertar a roupa. A vida desapareceu daqueles olhos muito abertos.

Antónia continuava ali de pé, espantada e silenciosa, e o seu rosto parecia uma máscara de tragédia petrificada.

Oh não! sussurrou, caindo de joelhos e abraçando o corpo. Começou novamente a gritar, e a soluçar desvairadamente. Era quase tão doloroso assistir à sua agonia como fora às convulsões mortais de Tito e, tal como relativamente a ele, também não parecia haver grande coisa a fazer por ela.

Em nome do Hades, como foi que isto aconteceu? indagou Lúcio. Qual foi a causa?

Eco, o capataz e eu olhámos uns para os outros em silêncio.

A culpa foi dela! guinchou Antónia.

O quê? disse Lúcio.

Da tua cozinheira! Dessa mulher horrível! A culpa foi dela! Lúcio olhou em volta, para o que restava da comida. Crostas de pão, um pequeno frasco de mel, azeitonas pretas, um odre de vinho. Havia ainda um recipiente de barro, partido era o estalido seco que eu tinha ouvido.

O que queres dizer com isso? Estás a dizer que Dávia o envenenou?

Os soluços de Antónia ficaram-lhe suspensos na garganta.

Sim, foi isso. Sim! Foi um dos meus escravos que pôs a comida no cesto, mas foi ela que a preparou. Dávia! A bruxa envenenou-o. Ela envenena tudo!

Oh, valham-me os deuses, mas isso quer dizer... Lúcio ajoelhou-se. Agarrou nos braços de Antónia e olhou-a de frente. Tu também podes estar envenenada! Antónia, tens dores? Gordiano, o que havemos de fazer?

Eu olhei para ele sem expressão. Não fazia a menor ideia.

Antónia não tinha sintomas de doença. Afinal, não estava envenenada. Mas alguma coisa tinha morto o marido dela, e de uma forma súbita e terrível.

Os escravos do casal não tardaram a acorrer. Deixámo-la a chorar sobre o cadáver, e regressámos à villa, para interrogar Dávia. Lúcio dirigiu-se à cozinha, e nós seguimo-lo.

Dávia! Sabes o que aconteceu?

Ela baixou os olhos e engoliu em seco.

Dizem... que um dos teus convidados morreu, senhor.

Pois foi. E que sabes tu sobre isso? Ela mostrou-se chocada.

Eu? Nada, senhor.

Nada! Estavam a comer alimentos preparados por ti quando Tito adoeceu. Continuas a afirmar que nada sabes sobre o assunto?

Senhor, não percebo o que queres dizer...

Dávia disse eu, tens de nos contar o que se passava entre ti e Tito Dídio.

Ela gaguejou e desviou os olhos.

Dávia! O homem morreu. A mulher acusa-te de o matar. Corres um grande risco. Se estás inocente, a verdade pode salvar-te. Sê corajosa! Vá, diz-nos o que foi que se passou entre ti e Tito Dídio.

Nada! Juro pela sombra da minha mãe. Não é que ele não tenha tentado, e não continuasse a tentar. Abordou-me na casa do senhor, na cidade, na primeira noite em que me viu. Tentou convencer-me a ir para um quarto vazio com ele. Eu recusei-me. E aqui continuou a tentar a mesma coisa. Seguia-me, insistia. Tocava-me. Eu nunca o encorajei! Ontem, quando foram todos ver as colmeias, veio ter comigo, puxando-me pela roupa, beliscando-me, beijando-me. Eu afastava-me. E ele parecia gostar disso, de me perseguir. Quando finalmente regressaram, quase chorei de alívio.

Quer dizer que ele te incomodou disse Lúcio, tristemente. Bem, não me espanta nada. Calculo que a culpa seja minha; devia ter-lhe dito que não tocasse no que me pertence. Mas foi assim tão horrível, que tivesses de o envenenar?

Não! Eu não...

Vais ter de a torturar, se quiseres chegar à verdade! Antónia estava à porta. De punhos cerrados, cabelo desgrenhado, e um ar tão completamente perturbado que parecia uma harpia sedenta de vingança. Tortura-a, Lúcio! É o que se faz aos escravos quando testemunham em tribunal. Tens o direito de o fazer ela pertence-te. É teu dever eras o anfitrião de Tito. Exijo-te que a tortures até ela confessar, e que depois a mandes matar!

Dávia ficou tão branca como as traças que tinham fugido da colmeia, e desmaiou, deixando-se cair no chão.

Louca de dor, Antónia retirou-se para o quarto. Dávia recuperou a consciência, mas parecia tomada por uma febre cerebral; tremia furiosamente e não conseguia falar.

Gordiano, o que hei-de fazer? Lúcio andava de um lado para o outro no átrio. Presumo que terei de torturar a pequena se ela não confessar. Mas nem sequer sei como é que isso se faz! Nenhum dos meus escravos do campo sabe fazer torturas. Talvez devesse consultar um dos meus primos...

É prematuro falar de tortura disse eu, perguntando a mim próprio se Lúcio avançaria de facto para tal coisa. Era um homem afável que vivia num mundo cruel; por vezes, as expectativas do mundo sobrepunham-se à sua natureza de base. Podia ser que me surpreendesse. E eu não queria ter de chegar a isso. Acho que é melhor irmos observar melhor o corpo, agora que nos acalmámos um bocadinho.

Voltámos à beira-rio. Tito estava deitado no local onde o tínhamos deixado, nu à excepção da tanga. Tinham-lhe fechado os olhos.

Tu sabes imenso sobre venenos, Gordiano observou Lúcio.

O que te parece?

Há muitos venenos e muitas reacções. Não consigo imaginar, sequer, o que terá morto Lúcio. Se encontrássemos algum recipiente com veneno na cozinha, ou se um dos outros escravos tiver visto Dávia a fazer alguma coisa à comida...

Eco apontou para os alimentos espalhados, imitou o acto de soltar um animal da quinta, e depois representou vivamente a morte do animal uma pantomima desagradável de ver, depois de termos assistido a uma morte real.

Sim, podíamos verificar a presença de veneno na comida dessa maneira, à custa de um pobre animal. Mas, se o veneno estava nos alimentos que se encontram aqui, como se explica que Antónia não tenha sido igualmente envenenada? Eco, traz-me esses fragmentos do recipiente de barro. Lembras-te de ouvir o som de uma coisa a partir-se, mais ou menos na mesma altura em que ouvimos Tito gritar?

Eco acenou com a cabeça e entregou-me os fragmentos de barro cozido.

O que te parece que havia aqui dentro? perguntei eu.

Vinho, calculo eu. Ou água respondeu Lúcio.

Mas está ali um odre de vinho. E o interior deste recipiente parece tão seco como o exterior. Tenho um palpite, Lúcio. Queres mandar chamar Urso?

Urso? Mas por quê?

Quero fazer-lhe uma pergunta.

O tratador das abelhas não tardou a aproximar-se, descendo pesadamente a colina. Para um sujeito tão grande e corpulento, era muito susceptível na presença da morte. Manteve-se afastado do corpo, e fazia uma careta sempre que olhava para ele.

Eu moro na cidade, Urso. Não sei grande coisa sobre abelhas. Nunca fui picado por uma abelha. Mas já ouvi dizer que um ferrão de abelha pode matar um homem.

É verdade, Urso?

Ele mostrou-se um pouco embaraçado perante a ideia de que as suas bem-amadas abelhas pudessem fazer semelhante coisa.

Bem, sim, pode acontecer. Mas é raro. Quase sempre, as pessoas são picadas, mas depois ficam boas. Mas há pessoas...

Alguma vez viste alguém morrer em consequência de uma picada de abelha, Urso?

Não.

Mas tens tantos conhecimentos, que deves saber alguma coisa sobre isso. Como é que a coisa se passa? Como é que as pessoas morrem?

São os pulmões que não aguentam. Sufocam e morrem. Não conseguem respirar, começam a ficar azuis...

Lúcio mostrou-se horrorizado.

Achas que foi isso, Gordiano? Achas que ele foi picado por uma das minhas abelhas?

Vamos ver. O ferrão deixa uma marca, não deixa, Urso?

Oh, sim, um inchaço vermelho. E mais do que isso, hás-de encontrar a farpa envenenada. A abelha foge, mas deixa-a ficar, metida na carne.

É uma coisa minúscula, mas não é difícil de descobrir.

Examinámos o peito e os membros de Tito, virámo-lo ao contrário e examinámos-lhe as costas. Passámos-lhe as mãos pelo cabelo e observámos-lhe a cabeça.

Nada disse Lúcio.

Nada admiti eu.

De qualquer maneira, é muito pouco provável que uma abelha andasse por acaso a voar nesta zona...

O recipiente, Eco? Quando foi que o ouviste a ser partido? Antes de Tito gritar ou depois?

Depois, indicou Eco com um gesto, fazendo rolar os dedos para diante. Bateu as palmas duas vezes. Logo a seguir.

Sim, também é assim que eu me lembro da sequência. Uma abelha, um grito, um recipiente partido... Recordei a imagem de Antónia e Tito a última vez que os tinha visto juntos, de mãos dadas, muito entretidos um com o outro, dirigindo-se para o riacho. Duas pessoas apaixonadas, sozinhas na margem coberta de erva de um rio é de esperar que se entretenham com quê?

O que queres dizer com isso, Gordiano?

Acho que vamos ter de examinar as partes íntimas de Tito.

O que queres dizer?

Acho que vamos ter de lhe tirar a tanga. Já foi solta, como vêem. Provavelmente por Antónia.

Tal como eu calculava, encontrámos a picada de abelha, vermelha e inchada, na zona mais íntima do corpo.

Claro que, para termos a certeza absoluta, teríamos de encontrar o ferrão e retirá-lo. Deixo a tarefa a teu cargo, Lúcio. Afinal, ele era teu amigo, e não meu.

Lúcio encontrou e extraiu a minúscula farpa.

Estranho comentou, pensei que fosse maior.

O quê, a farpa?

Não, o... bem, pela maneira como ele se gabava, pensei que fosse... oh, deixa lá.

Confrontada com a verdade, Antónia confessou. Não tivera intenção de matar Tito, mas apenas de o castigar por ele andar atrás de Dávia.

A viagem matutina à beira-rio, ostensivamente para apanhar flores, fora na realidade uma expedição destinada a capturar a abelha. Para isso, usara um recipiente de barro, que fechara com uma rolha, escondendo-o depois no meio das flores que levava no cesto. Mais tarde, o próprio Tito transportara a abelha dentro do recipiente até à beira-rio sem o saber, escondida no cesto da comida.

Fora o Príapo do vale das abelhas quem dera a ideia a Antónia.

Sempre achei que o deus tinha um ar tão... vulnerável... daquela maneira, confessou-nos. Se pudesse infligir um golpe a Tito na parte mais vulnerável da anatomia masculina, pensou, o castigo não seria apenas doloroso e humilhante, mas mordazmente apropriado.

Quando se deitaram no cobertor à beira-rio, Antónia envolveu Tito num abraço amoroso. Beijaram-se e começaram a despir-se. Tito ficou excitado, tal como ela esperava que acontecesse. Enquanto ele se deitava de costas, fechando os olhos com um sorriso sonhador, Antónia foi buscar o recipiente de barro. Abanou-o, para agitar a abelha, depois desrolhou-o e encostou rapidamente a abertura ao membro erecto. A picada foi infligida antes de Tito se aperceber do que estava a acontecer. Ele endireitou-se com um salto, deu um grito e arrancou-lhe o recipiente da mão, atirando-o contra um salgueiro e partindo-o.

Antónia estava preparada para fugir, consciente de que ele podia explodir de raiva. Mas Tito envolveu o tronco com os braços, arquejante. A catástrofe que se seguiu foi tão rápida, que a apanhou completamente de surpresa. Momentos depois, Tito estava morto. O choque e a dor de Antónia eram perfeitamente genuínos. Ela planeara feri-lo, mas nunca matá-lo.

Contudo, não podia admitir o que tinha feito. Num impulso, escolheu Dávia como bode expiatório. Afinal, em última análise, a culpa era de Dávia, achava ela, por ter tentado o marido.

Ficou acordado que Lúcio não divulgaria toda a verdade acerca do que se tinha passado. O círculo de amigos de ambos seria informado de que Tito tinha morrido em consequência de uma picada de abelha, mas não que fora Antónia a provocá-la. No fim de contas, a sua morte não fora intencional, não se tratara de um assassínio deliberado. A dor de Antónia era, provavelmente, castigo suficiente. Mas o facto de ter descarregado sobre Dávia, tentando fazer dela um bode expiatório, era imperdoável. Teria mantido a mentira durante todo o processo de tortura e morte de Dávia? Lúcio achava que sim. Permitiu-lhe passar aquela noite lá em casa, mas depois mandou-a de volta para Roma, juntamente com o corpo do marido, e disse-lhe que não voltasse a visitá-lo, nem a falar com ele.

Ironicamente, é possível que Tito fosse poupado, se tivesse sido um pouco mais acessível ou um pouco menos apaixonado. Mais tarde, nas conversas que se seguiram à morte de Tito, Lúcio veio a saber que, em criança, ele fora picado por uma abelha e tinha estado muito mal. Tito nunca se tinha referido a esse incidente da sua infância, nem diante dos amigos, nem na presença de Antónia; só a sua velha ama e os seus parentes mais próximos sabiam. Presumo que, quando se recusou a ir assistir à recolha do mel, terá sido, em parte, porque queria ficar algum tempo a sós com Dávia, mas também porque tinha (e tinha razões para ter) receio de se aproximar das colmeias, e não queria admitir esse receio. Se ele nos tivesse dito nessa altura que era extremamente vulnerável à picada das abelhas, estou certo de que Antónia nunca teria concebido semelhante plano de vingança.

Eco e eu deixámo-nos ficar até ao final do período antecipadamente combinado, mas os dias que se seguiram à partida de Antónia foram melancólicos. Lúcio estava rabugento. Os escravos, sempre supersticiosos relativamente à morte fosse de quem fosse, mostravam-se inquietos. Dávia continuava abalada, e os seus cozinhados sofreram com isso. O Sol estava tão brilhante como aquando da nossa chegada, as flores igualmente bem-cheirosas, o rio igualmente luminoso, mas a tragédia lançara um véu mortuário sobre todas as coisas. Quando chegou o dia marcado para a nossa partida, não me importei de voltar ao ruído e à azáfama da cidade. E que história levava para contar a Betesda!

Antes de partirmos, fui visitar Urso, e lançar um derradeiro olhar às colmeias do vale.

Alguma vez foste picado por uma abelha, Urso?

Oh, sim, muitas vezes.

Deve doer.

Arde muito.

Mas calculo que não seja uma dor violenta. De outra maneira, deixavas de ser tratador de abelhas.

Urso riu-se.

Sim, de vez em quando as abelhas picam-nos. Mas eu costumo dizer que tratar de abelhas é como amar uma mulher. De vez em quando, somos picados, mas não deixamos de voltar, porque o mel compensa a dor.

Oh, nem sempre, Urso suspirei eu. Nem sempre.
 

O Gato de Alexandria

Estávamos sentados ao sol no átrio da casa de Lúcio Cláudio, a discutir os mais recentes mexericos do Fórum, quando um miado horrível trespassou os ares.

Lúcio apanhou um susto e abriu muito os olhos. O miado terminou num guincho felino, seguido por um ruído de arranhadelas, e pelo surgimento de um gato amarelo gigantesco, que atravessou o telhado a correr. As telhas de barro vermelho não proporcionavam grande tracção às garras da criatura, que deslizou pela superfície, aproximando-se tanto da borda, que por momentos pensei que ia cair mesmo em cima do colo de Lúcio. E Lúcio pensou a mesma coisa. Levantou-se apressadamente da cadeira, deitando-a ao chão e recuando freneticamente para a outra extremidade do viveiro de peixes.

Ao enorme gato seguiu-se rapidamente outro mais pequeno, totalmente preto. A pequena criatura devia ter um temperamento particularmente agressivo, para dar caça a um rival tão maior do que ela, mas a sua imprudente ferocidade foi a sua queda literalmente, porque, enquanto o oponente conseguiu atravessar o telhado sem cair, o gato preto percorreu as telhas de forma tão temerária, que em certa esquina crítica perdeu o equilíbrio. Após uma cacofonia de dilacerar os ouvidos, de guinchos felinos e unhas arranhando desesperadamente as telhas, o gato preto poisou no átrio, de pé.

Lúcio gritava como uma criança; depois, começou a praguejar como um homem. O jovem escravo que se ocupara a encher-nos as taças de vinho chegou a correr.

Maldita criatura! gritou Lúcio. Afasta-a de mim! Tira-a daqui!

Não tardaram a chegar mais escravos, que rodearam o animal. Houve um compasso de espera, enquanto o gato preto virava as orelhas para trás e rosnava, mantendo os escravos à distância, com medo das unhas do bicho.

Recuperando a dignidade, Lúcio voltou a respirar calmamente e endireitou a túnica. Estalou os dedos e apontou para a cadeira voltada. Um dos escravos endireitou-a, e Lúcio subiu para cima dela. Queria sem dúvida distanciar-se o mais possível do gato, mas cometeu um erro terrível, porque ao erguer-se àquela altura passou a ser o objecto mais alto que havia no átrio.

Sem aviso prévio, o gato deu um salto. Atravessou o cordão de escravos que o rodeavam, ressaltou no assento da cadeira de Lúcio, trepou pelo corpo dele acima, passando-lhe pela cara e atingindo-lhe o alto da cabeça, de onde pulou para o telhado e desapareceu. Lúcio ficou imobilizado por momentos, de boca aberta.

Por fim, auxiliado pelos escravos (muitos dos quais pareciam prestes a desatar à gargalhada), Lúcio conseguiu descer da cadeira, a tremer. Sentaram-no e puseram-lhe na mão uma taça de vinho, que ele levou aos lábios com um gesto vacilante. Esvaziou a taça, e estendeu-a novamente ao escravo.

Bem! disse: vão-se embora, todos. Acabou-se a festa. Enquanto os escravos saíam do átrio, vi Lúcio corar, certamente de vergonha por ter perdido a compostura daquela maneira, já para não falar do facto de um animal bravio ter levado a melhor sobre ele em sua casa, e em frente dos seus escravos. A expressão da sua cara rechonchuda e corada era tão cómica, que eu tive de morder os lábios para não me rir.

Gatos! disse ele por fim. Malditas criaturas! Quando eu era miúdo, quase não havia gatos em Roma. Agora, tomaram conta da cidade! Há milhares deles, por toda a parte, circulando à-vontade, lutando e acasalando como lhes agrada, e ninguém consegue dar conta deles. Pelo menos no campo, já não se vêem assim muitos; os camponeses expulsaram-nos, porque eles assustam os outros animais. Monstrozinhos estranhos e ferozes! Estou convencido de que vêm do Hades.

Na verdade, julgo que vieram de Alexandria disse eu sobriamente.

Oh?

Pois é. Os marinheiros começaram a trazê-los do Egipto, pelo menos foi o que me disseram. Os homens do mar gostam de gatos, porque eles matam a bicharada que enche os navios.

Mas que bela alternativa ratos e ratazanas, ou um desses animais assustadores, de unhas afiadas! E tu, Gordiano continuaste aí sentado, como se nada se estivesse a passar! Mas já me esquecia de que estás habituado a gatos. Betesda tem um gato, não tem? Tem-no em casa como se fosse um cão, não é? Fez uma careta. Como é que ela lhe chama?

Betesda dá sempre o mesmo nome aos gatos: Bastet. É assim que os Egípcios chamam ao deus-gato deles.

Que povo tão peculiar, adorarem animais como se fossem deuses. Não é de estranhar que os seus governos mudem constantemente. Um povo que adora gatos não pode saber governar-se.

Mantive o silêncio ao ouvir estas palavras de sabedoria convencional. Podia ter salientado que os adoradores de gatos que ele desdenhava tão soberanamente tinham produzido uma cultura de delicada subtileza e empreendimentos monumentais enquanto Rómulo e Remo ainda mamavam o leite da loba; mas estava demasiado calor para nos envolvermos numa discussão sobre história.

Se a criatura regressar, mando-a matar murmurou Lúcio entredentes, olhando nervosamente para o telhado.

No Egipto disse eu, tal acto seria considerado um assassínio, punível com a morte.

Lúcio olhou para mim de esguelha.

Estás certamente a exagerar! Sei que os Egípcios veneram todo o tipo de pássaros e animais, mas isso não os impede de lhes roubarem os ovos ou de os comerem. A morte de uma vaca é considerada um assassínio?

Talvez não, mas a morte de um gato é, sem dúvida nenhuma. Na realidade, quando eu era jovem e sem compromissos, e andava pelas ruas de Alexandria, uma das minhas primeiras investigações esteve relacionada com a morte de um gato.

Oh, Gordiano, estás a brincar! Queres dizer que foste realmente contratado para encontrar o assassino de um gato?

Foi um pouco mais complicado do que isso.

Lúcio sorriu, pela primeira vez desde que tínhamos sido interrompidos pela briga dos gatos.

Vá lá, Gordiano, não me arrelies disse, batendo as palmas ao escravo, a pedir mais vinho. Tens de me contar essa história.

Eu fiquei satisfeito por vê-lo recuperar o bom humor.

Muito bem respondi. Vou contar-te a história do gato de Alexandria...

O recinto chamado Rakotis é a zona mais antiga de Alexandria. O coração do Rakotis é o Templo de Serápis, um magnífico edifício de mármore, decorado com fabulosos adereços de alabastro, ouro e marfim. Os romanos que já viram o templo admitem contrariados que, em esplendor, poderá (poderá, repare-se) rivalizar com o nosso austero Tempo de Júpiter um comentário mais revelador do provincianismo romano do que dos méritos arquitectónicos de um e outro templos. Se eu fosse deus, sei bem em qual das moradas gostaria de habitar.

O templo é um oásis de luz e esplendor, rodeado por um labirinto de ruelas estreitas. As casas de Rakotis, feitas de barro endurecido, são altas e encostadas umas às outras. Os habitantes do bairro estendem cordas nas ruas, em diversas direcções, onde penduram a roupa a secar, peixe e aves depenadas. De uma maneira geral, o ar é quente e parado, mas de vez em quando uma brisa marítima consegue atravessar a Ilha de Faros, a grandiosa baía e as muralhas da cidade, agitando as altas palmeiras que crescem nas pequenas praças e nos jardins de Rakotis.

Em Rakotis, quase podemos imaginar que a conquista grega nunca teve lugar. A cidade recebeu o nome de Alexandre e é governada por um Ptolemeu, mas as pessoas que vivem no bairro antigo são notoriamente egípcias, de compleição e olhos escuros, e o tipo de feições que se apreciam nas velhas estátuas dos faraós. Esta gente é diferente de nós, como o são os seus deuses, que não são deuses gregos e romanos, de forma humana perfeita, mas estranhos híbridos de animais e homens, terríveis de contemplar.

Em Rakotis há muitos gatos. Circulam de um lado para o outro à sua vontade, sem ninguém os incomodar, aquecendo-se ao sol, caçando gafanhotos, dormitando no peitoril das janelas e sobre os telhados, contemplando peixes e aves inacessíveis, pendurados fora do seu alcance.

Mas os gatos de Rakotis não passam fome; longe disso. As pessoas colocam taças de comida nas ruas para eles, murmurando encantamentos, e não ocorreria ao pedinte mais esfomeado apoderar-se dessa comida consagrada porque os gatos de Rakotis, como os gatos de todo o Egipto, são considerados divinos. Os homens fazem uma vénia ao passar por eles na rua, e maldizem os visitantes grosseiros, Romanos e Atenienses, que se atrevem a rir à socapa ao vê-los, porque os Egípcios são tão vingativos como piedosos.

Aos vinte anos, depois de ter visitado as Sete Maravilhas do Mundo, passei uns tempos em Alexandria. Instalei-me em Rakotis por diversas razões. Por um lado, por ser uma zona onde um estrangeiro com pouco dinheiro podia encontrar alojamento adequado à sua situação. Mas Rakotis não significava apenas alojamento barato. Para alimentar o corpo, podia comprar as iguarias exóticas desconhecidas em Roma que os vendedores de comida ambulante apregoavam nas esquinas das ruas. Para alimentar a mente, ouvia os filósofos que pregavam e discutiam uns com os outros nos degraus da biblioteca anexa ao Templo de Serápis. Foi aí que conheci o filósofo Díon; mas isso é outra história. Quanto a”outros apetites, comuns aos jovens, também era fácil satisfazê-los; os Alexandrinos consideram-se os mais mundanos dos seres, e qualquer romano que o ponha em causa mais não faz do que demonstrar a sua ignorância. Finalmente, foi em Alexandria que conheci Betesda; mas isso também é outra história.

Certa manhã, passeava eu numa das ruas menos povoadas do bairro, quando ouvi um ruído atrás de mim. Era um ruído vago, indistinto, que parecia o rugir de uma multidão a certa distância. O governo do Egipto é conhecido pela sua instabilidade, e os distúrbios públicos são relativamente frequentes, mas pareceu-me que era muito cedo para as pessoas andarem a bramar pelas ruas. No entanto, quando parei para ouvir melhor, o ruído tornou-se mais forte e o estridor ecoado transformou-se no som de vozes humanas irritadas.

Momentos depois, dobrou uma esquina um homem com uma túnica azul, correndo na minha direcção, com a cabeça voltada para trás. Apressei-me a sair-lhe do caminho, mas ele mudou de rumo, às cegas, e correu direito a mim. Caímos os dois ao chão, numa confusão de braços e pernas.

Bolas de Numa! gritei eu, porque o idiota me tinha feito arranhar as mãos e os joelhos nas pedras rugosas do pavimento.

De repente, o desconhecido parou de se agitar como um louco, pôs-se de pé e olhou-me fixamente. Era um homem de meia-idade, bem tratado e bem alimentado. Havia nos seus olhos um pânico absoluto, mas também um brilho de esperança.

Praguejaste em Latim! disse em voz rouca. Quer dizer que és romano, como eu?

Sou.

Conterrâneo, salva-me! Por esta altura, estávamos ambos de pé, mas o desconhecido movia-se de forma tão espasmódica, e agarrava-se a mim com desespero tal, que quase nos empurrou aos dois outra vez para o chão.

O rugido de vozes iradas aproximava-se. O homem olhou para trás, para o caminho por onde viera. O medo dançou-lhe no rosto, como uma chama. Agarrou-se a mim com as duas mãos.

Juro que não toquei no animal! sussurrou em voz rouca. A miúda disse que eu o tinha matado, mas ele já estava morto quando eu cheguei ao pé dele.

O que estás tu a dizer?

O gato! Eu não matei o gato! Já estava morto, deitado na rua. Mas eles querem arrancar-me os braços e as pernas, estes Egípcios, são loucos! Se ao menos conseguisse chegar a minha casa...

Nesse momento, dobrou a esquina uma série de pessoas, homens e mulheres vestindo os farrapos das classes mais pobres. Depois apareceram mais pessoas, e mais, gritando e torcendo a cara, em expressões de puro ódio. Aproximavam-se de nós a correr, uns brandindo facas e varapaus, outros agitando os punhos fechados e erguidos.

Ajuda-me! guinchou o homem, com a voz aguda como a de um miúdo. Salva-me! Eu recompenso-te! A multidão estava quase em cima de nós. Eu agitei-me para ele me soltar o braço. Por fim, ele largou-me e recomeçou a correr. Quando a multidão irada se aproximou, por momentos, pareceu-me que a sua fúria se tinha transferido para mim. Na realidade, alguns deles dirigiram-se para onde eu me encontrava, e eu percebi que não tinha qualquer possibilidade de fugir. A morte vem no fim diz um velho poema egípcio, e eu senti que ela estava muito próxima perto da primeira linha da multidão, e que chamava a atenção pela sua barba comprida, encaracolada à maneira dos Babilónios, apercebeu-se do erro e gritou em voz ribombante:

Não é esse! O homem que nós queremos veste de azul! Ali, ao fundo da rua! Depressa, senão volta a escapar-nos!

No último momento, os homens e as mulheres que se preparavam para me atacar afastaram-se de mim a correr. Eu entrei num portal, colocando-me fora da vista, espantado com a dimensão da multidão que passava. Metade dos moradores de Rakotis perseguia o romano vestido de azul!

Uma vez passado o corpo da multidão, voltei à rua. Seguia atrás uma série de retardatários. Entre eles, reconheci um homem que vendia pastéis numa loja da Rua dos Padeiros. Respirava com dificuldade, mas avançava com passo decidido. Levava na mão um rolo de madeira de estender a massa do pão. Eu conhecia-o como padeiro gordo e bem-disposto, cuja principal satisfação residia em encher o estômago dos outros, mas naquele dia vi nele a expressão severa de um vingador determinado.

Menápis, o que se passa? perguntei, acertando o meu passo com o seu.

Ele atirou-me um olhar de tal maneira fulminante, que pensei que não me tivesse reconhecido, mas quando me respondeu era perfeitamente óbvio que tinha. Vocês, Romanos, chegam cá com as vossas maneiras pomposas e as vossas fortunas de proveniência duvidosa, e nós fazemos o possível por vos aturar. Vocês impóem-se-nos, e nós suportamo-vos. Mas, quando começam as profanações, é de mais! Há coisas que nem um romano pode fazer!

Menápis, conta-me o que se passou.

Ele matou um gato! O imbecil matou um gato a poucos passos da minha loja.

Viste?

Viu uma miúda. Gritou aterrorizada, naturalmente, e apareceu uma multidão a correr. Pensaram que tinha acontecido qualquer coisa à miúda, mas afinal ainda era pior. O idiota do romano tinha morto um gato! Tínhamo-lo apedrejado até à morte ali mesmo, mas ele conseguiu escapar e desatou a correr. Quanto mais durava a perseguição, mais pessoas se juntavam a nós. Ele não escapa. Olha para ali - o rato romano tem de ser apanhado na ratoeira!

A perseguição parecia ter terminado, porque a multidão tinha parado numa praça ampla. Se o tivessem apanhado, o homem, de azul já devia estar transformado numa massa de carne, pensei, sentindo-me nauseado. Mas, quando me aproximei, a multidão começou a cantar:

Sai daí! Sai daí! Assassino de gatos! A meu lado, Menápis cantava com os outros, batendo com o rolo da massa na palma da mão e com os pés no chão.

Aparentemente, o fugitivo tinha-se refugiado numa casa com ar próspero. Pelas caras horrorizadas que apareciam nas janelas do andar de cima, antes de serem fechadas, a casa devia estar cheia de romanos era a casa do homem. Pela qualidade da túnica, eu já tinha presumido que se tratava de um homem de meios, e nada parcos, mas a dimensão da casa confirmou essa impressão. Um comerciante rico, pensei mas nem a prata nem os discursos tinham grandes probabilidades de o salvar da ira da multidão, que continuava a cantar, e depois começou a bater na porta com os varapaus.

Menápis gritou:

Esses paus nunca deitarão abaixo uma porta como essa! Temos de fazer um aríete. Eu olhei para o padeiro, habitualmente tão bem-disposto, e senti um arrepio percorrer-me a espinha. Tanta coisa, por causa de um gato!

Retirei-me para um recanto mais calmo da praça, onde se encontravam alguns residentes locais que se tinham atrevido a sair de casa para assistir ao tumulto. Uma mulher egípcia de certa idade, que trajava um impecável vestido branco de linho, olhava a multidão com uma expressão de crítica.

Que ralé! observou, sem falar com ninguém em particular.

O que lhes terá passado pela cabeça, para assaltarem a casa de um homem como Marco Lépido?

É teu vizinho? perguntei eu.

Há muitos anos, e antes dele era o pai. Um honesto comerciante romano, que dá maior prestígio a Alexandria do que algum deles jamais dará. Também és romano, jovem?

Sou.

Foi o que me pareceu, pela tua pronúncia. Bem, por mim, não quero mal aos romanos. As relações com homens como Marco Lépido e o pai dele fizeram do meu falecido marido um homem rico. Mas o que terá Marco feito, para atrair semelhante multidão para a porta de sua casa?

Acusam-no de ter morto um gato.

Ela arquejou. Uma expressão de horror contorceu-lhe a cara coberta de rugas.

Isso seria imperdoável!

Ele afirma estar inocente. Diz-me, quem mais vive naquela casa?

Marco Lépido vive com dois primos, que o ajudam nos negócios.

E as respectivas mulheres?

Os primos são casados, mas as mulheres e os filhos estão em Roma. Marco é viúvo. Não tem filhos. Olha para aquilo! Que loucura é esta?

Uma grande palmeira arrancada do solo atravessava a multidão como um crocodilo movendo-se por entre nenúfares. A cabeça daqueles que a transportavam, vi o homem da barba de Babilónio. Quando eles colocaram a árvore na perpendicular da porta de casa de Marco Lépido, o objectivo tornou-se manifesto: tratava-se de um aríete.

Eu não matei o gato! tinha-me dito Marco Lépido. E também: Ajuda-me! Salva-me! Bem como (e, aos meus ouvidos, isto não era menos significativo): Eu recompenso-te! Pareceu-me que, na minha qualidade de compatriota cujo auxílio fora solicitado, eu só tinha uma coisa a fazer: se o homem de azul estava inocente do crime, era meu dever ajudá-lo. Se a noção de dever não bastasse, os roncos do meu estômago e a minha bolsa vazia faziam com que o prato da balança se inclinasse definitivamente para um dos lados.

Teria de actuar rapidamente. Voltei atrás por onde tinha vindo.

O caminho para a Rua dos Padeiros, geralmente apinhado, estava quase deserto; parecia que os lojistas e os vendedores ambulantes tinham partido todos à caça do romano. A loja de Menápis estava vazia; espreitei lá para dentro, e vi pilhas informes de massa de pão em cima da mesa, e o forno apagado. Ele afirmara que o gato tinha sido morto a poucos passos da loja dele; dobrei a esquina de uma pequena rua transversal e deparei com um grupo de sacerdotes de cabeça rapada, que formavam um círculo, com as cabeças inclinadas.

Espreitando por entre os fatos cor de laranja dos sacerdotes, avistei o cadáver do gato, estatelado entre as pedras do pavimento. Tinha sido uma criatura linda, de membros esguios e pêlo cor da noite. Não havia qualquer dúvida de que tinha sido morto deliberadamente, uma vez que lhe tinham cortado o pescoço.

Os sacerdotes ajoelharam-se e ergueram o gato morto do chão, depositando-o sobre uma pequena padiola funerária. Colocaram-na aos ombros e, com cantos e lamentos, deram início a uma lenta procissão em direcção ao Templo de Bastet.

Olhei em volta, sem saber exactamente o que fazer. Um movimento numa janela do primeiro andar chamou-me a atenção mas, quando ergui os olhos, nada vi. Continuei a olhar, até aparecer uma cara minúscula, que voltou a desaparecer rapidamente.

Menina chamei baixinho. Menina!

Momentos depois, ela reapareceu. Tinha o cabelo preto afastado do rosto, que era perfeitamente redondo. Os olhos eram amendoados e a boca pequenina, em bico.

Tu falas de uma maneira engraçada disse.

 

Falo?

- Como o outro homem.

- Qual homem?

Ela pareceu pensar no assunto por momentos, mas não respondeu.

Gostavas de me ouvir gritar? perguntou. Sem esperar pela minha resposta, deu um grito.

Foi um grito agudo, que me feriu os ouvidos e ecoou estranhamente na rua vazia. Rangi os dentes até ela se calar.

Mas que belo grito comentei. Diz-me uma coisa, foste tu que gritaste há bocado?

Talvez.

Quando o gato foi morto, quero eu dizer. Ela franziu a testa, pensativa.

Não foi bem.

Não foste tu que gritaste quando o gato foi morto? Ela meditou no assunto.

Foi o homem da barba esquisita que te mandou falar comigo? perguntou por fim.

Pensei por momentos, e recordei-me do homem da barba de babilónio, cujo grito O homem que nós queremos veste de azul! me tinha salvo da multidão, e que eu tinha visto à frente do aríete.

Uma barba de babilónio, enrolada com ferro, é dessa que estás a falar?

É respondeu ela toda enrolada, como raios de sol a saírem-lhe do queixo.

Ele salvou-me a vida disse eu. E era verdade.

Oh, nesse caso, acho que posso contar-te disse ela. Também me trouxeste um presente?

Um presente?

Ele deu-me um presente. Ergueu uma boneca, feita de canas de papiro e trapos.

É muito bonita comentei eu, começando a compreender. Ele deu-te a boneca para tu gritares?

Ela riu-se.

Já viste o disparate? Queres que eu volte a gritar? Eu estremeci.

Agora não. Não viste quem matou o gato, pois não?

Tolo! Ninguém matou o gato, o gato não foi mesmo morto. Estava apenas a representar, como eu. Pergunta ao homem da barba esquisita. Abanou a cabeça perante a minha credulidade.

Claro disse eu. Eu já sabia; só que me tinha esquecido. Quer dizer que achas que eu falo de uma maneira engraçada?

Acho... acho mesmo disse ela, imitando a minha pronúncia romana. As crianças de Alexandria adquirem muito cedo uma tendência para o sarcasmo. Falas mesmo de uma maneira engraçada.

Como o outro homem, disseste tu.

Sim.

Estás a falar do homem da túnica azul, que eles perseguiram por ter morto o gato?

A sua carinha redonda alongou-se um pouco.

Não, esse não cheguei a ouvi-lo falar, a não ser quando o padeiro e os amigos começaram a persegui-lo, e depois ele gritou. Mas eu grito mais alto.

Parecia disposta a prová-lo, por isso eu acenei rapidamente com a cabeça.

Mas então quem é que fala como eu? Ah, sim, o homem da barba esquisita disse eu, mas no próprio momento em que dizia estas palavras sabia que não devia ser ele, porque o homem me parecera um egípcio genuíno, e não era com certeza romano.

Não, tolo, não é ele. O outro homem.

Que homem?

O homem que veio cá ontem, o que pingava do nariz. Ouvi-os os dois a falar, ali na esquina, o da barba esquisita e aquele que fala como tu. Estavam a falar e a apontar com um ar muito sério, o da barba puxava por ela, e o que pingava do nariz assoava-se, mas por fim lembraram-se de qualquer coisa divertida e riram-se. ”E pensar que o teu primo adora gatos!”, disse o da barba esquisita. Percebi que estavam a planear pregar uma partida a alguém. Nunca mais me lembrei disso até hoje de manhã, quando voltei a ver o da barba esquisita, e ele pediu-me que gritasse quando visse o gato.

Estou a ver. Deu-te a boneca, depois mostrou-te o gato...

Sim, tinha um ar tão morto, que enganava qualquer pessoa. Até enganou os sacerdotes, agora mesmo!

O homem da barba esquisita mostrou-te o gato, tu gritaste, as pessoas apareceram a correr e depois?

O da barba esquisita apontou para um homem que ia a passar na rua e gritou: ”Foi o romano! Foi aquele homem de azul! Ele matou o gato!” Recitava o papel com grande convicção, erguendo a boneca no ar como se fosse outro actor.

O homem que pingava do nariz, que fala como eu perguntei. Tens a certeza de que ele falou do primo.

Tenho, pois. Eu também tenho um primo. E estou sempre a pregar-lhe partidas.

E qual era o aspecto desse homem que pingava do nariz e tinha pronúncia romana?

Ela encolheu os ombros.

Era um homem.

Está bem, mas era alto ou baixo, novo ou velho?

Ela pensou por momentos, depois voltou a encolher os ombros.

Era um homem, como tu. Como o homem da túnica azul. Os romanos são todos parecidos.

Riu-se. Depois voltou a gritar, para me mostrar que sabia fazê-lo muito bem.

Quando regressei à praça, já lá estava uma companhia de soldados do Rei Ptolemeu que tentava, com êxito limitado, afastar a multidão. Os soldados eram muito menos do que os populares, e a multidão só se deixava conter até certo ponto. De vez em quando, as pessoas lançavam pedras e tijolos contra o edifício, alguns dos quais atingiam as portadas das janelas, que já estavam rachadas. Parecia que tinham feito uma tentativa consistente de deitar a porta abaixo, mas a porta tinha resistido.

Um funcionário do palácio real, um eunuco, a avaliar pelo tom agudo da sua voz, subiu ao ponto mais elevado da praça: o telhado de uma casa vizinha da casa cercada. Tentou acalmar a multidão, garantindo que seria feita justiça. O Rei Ptolemeu tinha, naturalmente, todo o interesse em evitar aquilo que poderia transformar-se num incidente internacional; o assassínio de um comerciante romano abastado pelo povo de Alexandria podia prejudicá-lo muito, politicamente.

O eunuco continuava a chilrear, mas a multidão não se deixava impressionar. Para eles, o assunto era simples e claro: um romano matara impiedosamente um gato, e não se sentiriam satisfeitos enquanto o mesmo romano não morresse. Recomeçaram o canto, abafando a voz do eunuco:

Sai daí! Sai daí! Assassino de gatos! O eunuco desceu do telhado.

Eu tinha decidido entrar em casa de Marco Lépido. A prudência dizia-me que semelhante comportamento era uma loucura depois de entrar, corria o risco de não voltar a sair de lá com vida e, de qualquer maneira, aparentemente uma impossibilidade, porque se houvesse uma forma simples de entrar naquela casa, a multidão já a teria descoberto. Depois ocorreu-me que, do alto do telhado para onde tinha subido o eunuco de Ptolemeu, talvez se pudesse saltar ou ser descido para o telhado da casa sitiada.

Pareceu-me um esforço enorme, até ouvir ecoar de novo, dentro da cabeça, o queixume da voz do desconhecido:

Ajuda-me! Salva-me! E também, claro:

Eu recompenso-te!

O edifício de onde o eunuco falava tinha sido requisitado pelos soldados, tal como os outros edifícios adjacentes à casa cercada, por precaução, a fim de evitar que a multidão conseguisse entrar por algum muro lateral ou pegasse fogo ao quarteirão. Deu-me um certo trabalho convencer os guardas a deixarem-me entrar, mas o facto de eu ser romano e afirmar conhecer Marco Lépido acabou por me permitir conquistar as atenções do eunuco do Rei.

Em Alexandria, os servidores dos reis têm vida curta; aqueles que não conseguem satisfazer o seu senhor tornam-se alimento para os crocodilos e são rapidamente substituídos. Este servidor real estava nitidamente sujeito à pressão que consistia em servir um monarca que podia suprimir-lhe a vida com um mero erguer de sobrancelhas. Fora mandado acalmar uma multidão irada e salvar a vida de um cidadão romano, e naquele momento as suas hipóteses de ser bem sucedido eram muito incertas. Podia chamar mais soldados, e chacinar a multidão, mas um banho de sangue poderia ter consequências ainda mais graves. Para complicar as coisas, um Sumo Sacerdote de Bastet seguia cada passo do eunuco, uivando e agitando as vestes cor de laranja, e exigindo que se fizesse imediatamente justiça, em nome do gato assassinado.

O eunuco, acossado, estava receptivo a quaisquer ideias que eu pudesse sugerir-lhe.

És amigo deste romano, o homem que a multidão persegue? perguntou-me.

O assassino corrigiu o Sumo Sacerdote.

Conheço o homem, sim respondi eu e era verdade, se ter tido uma breve e desesperada conversa depois de chocar com ele na rua se pudesse considerar conhecê-lo. Na verdade, sou seu representante. Ele contratou-me para o livrar desta trapalhada. Também era verdade, de certa maneira. E acho que sei quem realmente matou o gato. Não era bem verdade, mas podia passar a ser, se o eunuco colaborasse comigo. Tens de me ajudar a entrar em casa de Marco Lépido. Estava a pensar que talvez os teus soldados possam descer-me para o telhado dele com uma corda.

O eunuco ficou pensativo.

Também podíamos salvar o próprio Marco Lépido dessa maneira, dizendo-lhe que se içasse pela mesma corda até este edifício, onde os meus homens poderão protegê-lo melhor.

Salvar um assassino de gatos? Dar-lhe protecção armada? O sacerdote estava indignado. O eunuco mordeu o lábio.

Por fim, ficou acordado que os homens do Rei me forneceriam uma corda, que me permitiria aceder ao telhado da casa sitiada.

Mas não podes regressar a este edifício pelo mesmo caminho insistia o eunuco.

Porquê? Tive uma súbita visão da casa a ser incendiada comigo lá dentro, ou de uma multidão irada arrombando a porta e matando todos os habitantes com facas e varapaus.

Porque a corda será visível da praça lançou o eunuco. Se a multidão vir alguém sair da casa, vai presumir que se trata do homem que anda a perseguir. E depois arrombam este edifício! Não, deixo-te entrar em casa do teu compatriota, mas depois ficas por tua conta.

Pensei por momentos, e depois concordei. Por trás do eunuco, o Sumo Sacerdote de Bastet sorria como um gato, certamente prevendo a minha morte iminente, e ronronando perante a ideia de ver outro romano ímpio abandonar o reino dos vivos.

Enquanto eu era descido para o telhado do comerciante, os escravos de sua casa aperceberam-se do que se passava e deram o alarme. Cercaram-me imediatamente, dispostos a atirar-me para a praça, mas eu ergui as mãos para lhes mostrar que estava desarmado e gritei que era amigo de Marco Lépido. O facto de me expressar em Latim pareceu acalmá-los. Por fim, fizeram-me descer um lance de escadas, levando-me à presença do seu senhor.

O homem de azul tinha-se retirado para um pequeno compartimento, que eu calculei que fosse o escritório, porque estava atulhado de rolos e fragmentos de papiro.

Olhou-me cautelosamente, mas depois reconheceu-me.

És o homem com quem choquei na rua. O que vieste cá fazer?

Pediste-me ajuda, Marco Lépido. E ofereceste-me uma recompensa acrescentei com brusquidão. Chamo-me Gordiano.

Para além das portadas fechadas, que davam para a praça, a multidão recomeçou os seus cantos. Uma pedra atingiu as portadas, num embate ruidoso. Marco deu um salto e mordeu os nós dos dedos.

Os meus primos, Rufo e Ápio disse, apresentando-me dois homens mais jovens que acabavam de entrar no compartimento. Tal como o primo mais velho, estavam bem tratados e bem-vestidos, e tal como ele pareciam quase incapazes de dominar o pânico.

Os guardas começam a ceder disse Rufo com voz estridente.

O que havemos de fazer, Marco?

Se entrarem cá em casa, matam-nos a todos! disse Ápio.

És obviamente um homem abastado, Marco Lépido disse eu.

Comerciante, segundo me disseram.

Os três primos olharam para mim sem expressão, espantados com o meu aparente desprezo pela crise que estavam a viver.

Sim disse Marco, possuo uma pequena frota. Transportamos cereais, escravos e outros produtos entre Alexandria e Roma. Falar sobre o seu trabalho acalmou-o visivelmente, da mesma maneira que a recitação de um canto que lhe é familiar acalma um fiel num templo.

Esse negócio também pertence aos teus primos? perguntei.

O negócio pertence-me por inteiro disse Marco, com uma ponta de altivez. Herdei-o do meu pai.

É só teu? Não tens irmãos?

Não.

E os teus primos são meros empregados, não são sócios?

Se quiseres.

Olhei para Rufo, o mais alto dos dois primos. Terá sido o medo da multidão que lhe li no rosto, ou a amargura de velhos ressentimentos? O primo Ápio começou a andar de um lado para o outro, a roer as unhas e a lançar-me o que me pareceu serem olhares de hostilidade.

Tanto quanto sei, não tens filhos, Marco Lépido prossegui.

Não. A minha primeira mulher só me deu filhas; morreram todas de febre. A minha segunda mulher era estéril. Presentemente, não sou casado, mas sê-lo-ei em breve, quando a rapariga chegar de Roma. Os pais dela enviaram-na de barco, e prometeram-me que é fértil, tal como as irmãs. Para o ano, por esta altura, poderei ser finalmente um pai orgulhoso! Conseguiu produzir um sorriso ténue, depois mordeu os nós dos dedos. Mas de que vale pensar no futuro, se não vou ter futuro nenhum? Malditos sejam os deuses do Egipto, que puseram um gato morto no meu caminho!

Tenho a impressão de que não foi um deus que fez isso observei eu. Diz-me, Marco Lépido, Júpiter não permita que semelhante tragédia ocorra se morresses antes de te casares, antes de teres um filho, quem herdaria a tua propriedade?

Os meus primos, em partes iguais.

Rufo e Ápio olharam-me com gravidade. Outra pedra atingiu as portadas, pregando-nos um susto a todos. Era impossível encontrar no rosto de qualquer deles vestígios subtis de culpa.

Compreendo. Diz-me, Marco Lépido, quem poderia ter sabido, ontem, que esta manhã andarias por aquela ruela transversal do Rakotis?

Ele encolheu os ombros.

Não faço segredo dos meus prazeres. Há uma casa dessa rua onde passo algumas noites na companhia de um certo catamita. Dado que, de momento, não tenho mulher...

Quer dizer que qualquer dos teus dois primos podia saber que esta manhã regressarias a casa por aquele caminho?

Calculo que sim disse ele, encolhendo os ombros. Se ele estava excessivamente perturbado para perceber onde eu queria chegar, os primos não estavam. Tanto Rufo como Ápio me lançaram um olhar carregado, olhando-se depois entre si, com desconfiança.

Nesse momento, entrou no compartimento um gato cinzento, de cauda direita e cabeça erguida, aparentemente ignorante do caos que reinava no exterior da casa e do desespero que se vivia no seu interior.

A ironia de tudo isto! gemeu Marco Lépido, desatando subitamente a chorar. A ironia amarga! Ser acusado de ter morto um gato quando eu seria incapaz de fazer semelhante coisa! Adoro estas criaturinhas. Ocupam um lugar de honra em minha casa, são alimentadas à minha mesa. Vem cá, querido Néfer! Baixou-se e juntou os braços, para onde o gato deu um salto gracioso. O animal voltou-se de patas para o ar, ronronando audivelmente. Marco Lépido encostou-o a si, acariciando-o para se acalmar. Rufo parecia compartilhar o amor que o primo tinha aos gatos, porque sorriu debilmente e começou também a fazer festas na barriga do animal.

Eu estava num impasse. Parecia-me certo que pelo menos um dos primos tinha conspirado com o egípcio da barba para obter a destruição de Marco Lépido, mas qual deles? Se ao menos a rapariguinha me tivesse dado uma descrição mais precisa. Os Romanos são todos parecidos, francamente!

Tu e os teus malditos gatos! exclamou Ápio subitamente, franzindo o nariz e retirando-se para um canto do compartimento. Foram os gatos que me fizeram isto. Lançam uma espécie de encantamento odioso! Alexandria está cheia deles, transformando a minha vida num tormento. Sempre que me aproximo de um deles, acontece-me isto! Nunca na minha vida tinha espirrado desta maneira! Ao dizer isto, espirrou e fungou, e tirou um lenço de dentro da túnica para assoar o nariz que pingava.

O que se seguiu não foi agradável, embora possa ter sido justo.

Contei a Marco Lépido o que a rapariguinha me tinha dito. Levei-o até à janela, e abri as portadas o suficiente para lhe apontar o homem da barba de babilónio, que naquele momento supervisionava o acendimento de uma fogueira na praça. Marco já tinha visto o homem de outras vezes, na companhia do primo Ápio.

De que resultado estava eu à espera? Tinha tentado ajudar um compatriota que estava longe da pátria, salvar um inocente da ira de uma multidão desvairada, e com isso ganhar algumas moedas tudo objectivos honrosos. Não me teria apercebido de que era inevitável que um homem morresse? Era jovem, e nem sempre era capaz de prever as consequências lógicas de determinado facto.

A fúria de Marco Lépido apanhou-me de surpresa. Talvez não devesse ser assim, tendo em conta o choque terrível que ele sofrera naquele dia; bem como o facto de se tratar de um homem de negócios bem sucedido, o que implicava que fosse, até certo ponto, implacável; e finalmente a circunstância de a traição no seio da própria família conduzir os homens a actos de vingança extrema.

A tremer diante de Marco Lépido, Ápio confessou a sua culpa. Rufo, que ele declarou inocente da conspiração, pediu misericórdia para o primo, mas as suas súplicas foram inúteis. Embora estivéssemos a centenas de milhas de Roma, as leis romanas de família eram as leis vigentes naquela casa de Alexandria: todo o poder estava concentrado no chefe da família. Quando Marco Lépido despiu a túnica azul e ordenou que a vestissem ao seu primo Ápio, os escravos obedeceram; Ápio resistiu, mas foi dominado. Quando Marco ordenou que Ápio fosse atirado da janela para o meio da multidão, assim se fez.

Rufo retirou-se para outra sala, pálido e a tremer. Marco endureceu o rosto como pedra, e voltou-se. O gato cinzento enroscou-se-lhe aos pés, mas o consolo que ele proporcionava foi ignorado.

Não se apercebendo da substituição, o egípcio da barba gritou aos outros elementos da multidão que se vingassem do homem de azul. Só muito mais tarde, depois de a maior parte da multidão ter dispersado, e de poder observar melhor o cadáver esmagado e coberto de sangue, é que o egípcio se apercebeu do erro que tinha cometido. Nunca me esquecerei da sua expressão, que passou de um olhar de triunfo a uma máscara de horror, ao aproximar-se do cadáver e estudar-lhe o rosto, erguendo depois a cabeça para a janela onde eu me encontrava. Tinha promovido a morte do seu cúmplice.

Talvez fosse adequado que Ápio recebesse o fim que destinara ao primo. Teria certamente previsto que, enquanto ele esperava, são e salvo, na casa da família, o egípcio da barba levaria a cabo o plano de ambos, e o primo mais velho seria feito em pedaços na Rua dos Padeiros. Não previu que Marco Lépido conseguisse enganar a multidão e fugir até casa, onde ficariam os três fechados, como que presos numa armadilha. Nem previu a intervenção de Gordiano, o Descobridor ou, já agora, a intervenção do gato cinzento, que o levou a trair-se com um espirro.

E assim termina o episódio do gato de

Alexandria, cuja morte foi terrivelmente vingada.

Alguns dias depois de contar esta história a Lúcio Cláudio, fui novamente visitá-lo à sua casa do Palatino. Fui surpreendido pelo mosaico que ele tinha mandado instalar à porta. Nos pequenos azulejos coloridos, via-se a imagem de um molosso de má-catadura, juntamente com uma inscrição sombria: CAVE CANEM.

Um escravo mandou-me entrar e conduziu-me ao jardim que ficava no centro da casa. Ao aproximar-me, ouvi um latido, juntamente com uma gargalhada bem-disposta. Avistei Lúcio Cláudio, sentado com o que parecia um gigantesco rato branco no colo.

Mas o que é isto? exclamei.

É o meu querido, o meu doce, o meu adorável, o meu pequeno Momo.

Tens à porta um mosaico com um molosso de aspecto selvagem, coisa que esse animal certamente não é.

Momo é um terrier de Mileto pode ser pequeno, mas é muito feroz afirmou Lúcio, na defensiva. Como que para demonstrar que o dono tinha razão, o cãozito começou outra vez a latir. Depois, enroscou-se nervosamente no colo de Lúcio, num gesto que ele pareceu apreciar imensamente.

Tens à porta um aviso para se ter cuidado com o cão disse eu em tom céptico.

E é bom que tenham especialmente visitantes indesejados de quatro patas.

Esperas que este cão assuste os gatos?

Espero, pois! A minha casa nunca mais voltará a ser violada por essas criaturas malditas, agora que tenho a protecção do meu pequeno Momo. Não é, Momo? Não és o mais valente dos caçadores de gatos que jamais existiram? O meu valente e corajoso Momo...

Eu revirei os olhos, e apercebi-me de uma insinuante forma preta que circulava no telhado. Tive quase a certeza de que se tratava do mesmo gato que tinha aterrorizado Lúcio na minha visita anterior.

Instantes mais tarde, o cão tinha saltado do colo do dono e produzia uma frenética dança circular no solo, latindo como um doido e chocalhando os dentes. Lá em cima, no telhado, o gato preto arqueou o dorso, bufou e desapareceu.

Estás a ver, Gordiano! Cuidado com este cão, gatos de Roma! Lúcio ergueu o terrier ao colo e deu-lhe um beijo na ponta no nariz. Pronto, pronto, Momo! E o incrédulo do Gordiano a duvidar de ti...

Eu pensei num truísmo que Betesda me tinha ensinado: neste mundo, há pessoas que gostam de gatos e pessoas que gostam de cães, e os dois grupos nunca cerrarão fileiras. Mas podíamos pelo menos partilhar uma taça de vinho, Lúcio Cláudio e eu, e trocar os mais recentes mexericos que corriam no Fórum.


A Casas das Vestais

O que sabes acerca das Virgens Vestais? perguntou Cícero.

Sei apenas aquilo que qualquer romano sabe: que são seis; que guardam a chama eterna do Templo de Vesta; que o seu período de serviço nunca é inferior a trinta anos, durante os quais fazem voto de castidade. E que, mais ou menos uma vez por geração, irrompe um enorme escândalo...

Sim, sim respondeu Cícero. A liteira deu um pequeno solavanco, que o arremessou para a frente. Era uma noite sem luar, e os carregadores, que avançavam por entre as rugosas pedras do pavimento à luz de tochas, estavam a obrigar-nos a uma viagem acidentada. Só falo nisso porque, hoje em dia, nunca se sabe vivemos um período tão pouco religioso, não é que eu preste alguma atenção a superstições desprovidas de senso...

A mente mais arguta de Roma divagava. Cícero estava invulgarmente agitado.

Tinha chegado a minha casa a meio da noite, obrigando-me a levantar e insistindo para que o acompanhasse a um destino não especificado.

Os carregadores trotavam a passo rápido, empurrando-nos de um lado para o outro; quase teria preferido descer para a rua e trotar ao lado deles. Abri as cortinas e espreitei para fora. Como a liteira era coberta, tinha perdido o sentido de orientação; a rua estava às escuras, e pareceu-me igual a todas as outras.

Onde vamos, Cícero?

Ele ignorou a minha pergunta.

Como fizeste notar, Gordiano, as Vestais são particularmente vulneráveis ao escândalo. Terás com certeza ouvido falar da acusação pendente contra Marco Crasso.

Não se fala de outra coisa em todas as tabernas da cidade o homem mais rico de Roma é acusado de ter corrompido uma Vestal. E não foi uma Vestal qualquer, foi nada menos do que Licínia em pessoa.

Sim, a Virgo Máxima, grande sacerdotisa de Vesta e prima afastada de Crasso. A acusação é absurda, evidentemente. É tão provável que Crasso se tenha envolvido em semelhante coisa, como seria eu envolver-me. Tal como eu, e ao contrário de tantos contemporâneos nossos, Crasso está acima dos vis apetites da carne. Apesar disso, há uma série de testemunhas dispostas a afirmar que ele foi visto na companhia de Licínia em numerosas ocasiões no teatro, durante as festividades, no Fórum agitando-se à sua volta de forma indecorosa, quase parecendo atormentá-la. Também me disseram que há provas circunstanciais que indicam que foi visitá-la, durante o dia, à Casa das Vestais, sem a presença de quaisquer acompanhantes. Mas nada disso é crime, a não ser que a falta de discernimento seja um crime. As pessoas odeiam Crasso porque ele enriqueceu daquela maneira. Mas isso também não é crime...

A grande mente recomeçara a divagar. Afinal, a hora ia avançada. Eu pigarreei.

Vais defender Crasso nos tribunais? Ou Licínia?

Não vou defender nenhum deles! A minha carreira política entrou numa fase muito delicada. Não posso estar publicamente ligado a um escândalo relacionado com as Vestais. E é por isso que os acontecimentos desta noite são tão desastrosos!

Finalmente, pensei, vamos entrar no assunto. Voltei a espreitar por entre as cortinas. Pareceu-me que estávamos a chegar ao Fórum. Que assunto haveria a resolver a meio da noite, por entre templos e praças públicas?

- Como provavelmente saberás, Gordiano, uma das Vestais mais jovens é minha parente.

Não, não sabia.

É um parentesco por afinidade; Fábia é meia-irmã de minha mulher, e portanto minha cunhada.

Mas a Vestal que está a ser investigada é Licínia, a Virgo Máxima.

Sim, o escândalo apenas envolvia Licínia... até se darem os acontecimentos desta noite.

Cícero, estás a ser deliberadamente obscuro?

Muito bem. Esta noite, deu-se um acontecimento na Casa das Vestais. Um acontecimento terrível. Impensável! Um acontecimento que ameaça, não apenas destruir Fábia, mas lançar a calúnia sobre a própria instituição das Vestais, e minar por completo a estrutura religiosa de Roma. Cícero baixou a voz, a que começara a conferir uma entoação oratória. Não tenho dúvida nenhuma de que a acusação a Licínia e Crasso está, de alguma maneira, relacionada com esta desgraça mais recente; está de pé uma conspiração organizada, que visa espalhar a dúvida e o caos pela cidade, utilizando as Vestais como ponto de partida. Se os anos que tenho passado no Fórum me ensinaram alguma coisa, foi que certos políticos romanos não se deixam deter por coisa alguma!

Inclinou-se para diante e apertou-me o braço.

Tens consciência de que este ano é o décimo aniversário do incêndio que arrasou o Templo de Júpiter, e destruiu os oráculos sibilinos? O povo é supersticioso, Gordiano; está perfeitamente disposto a acreditar que, no décimo aniversário de tão tremenda catástrofe, acontecerá outra coisa igualmente horrível. E aconteceu mesmo. Se foi produzida pelos deuses ou pelos homens, essa é a pergunta a que teremos de responder.

A liteira deu um último solavanco, e deteve-se. Cícero largou-me o braço, encostou-se para trás e suspirou.

Chegámos ao nosso destino.

Eu afastei as cortinas e vi a fachada, em colunata, da Casa das Vestais.

Cícero, posso não ser um especialista em assuntos religiosos, mas sei perfeitamente que um homem entrar na Casa das Vestais depois de cair a noite é um crime punível com a morte. Espero que não me peças...

Esta noite é diferente das outras noites, Gordiano.

Cícero! Voltaste finalmente! A voz proveniente da escuridão era-me estranhamente familiar. Um choque de cabelo ruivo penetrou no círculo de luz da tocha, e eu reconheci o jovem Marco Valério Messala Rufo chamado Rufo devido ao seu cabelo flamejante, que não voltara a ver, assim ao pé, nos sete anos que se tinham passado desde a época em que colaborara com Cícero na defesa de Sexto Róscio. Na altura, ele tinha apenas dezasseis anos, era um rapaz de faces coradas e sardas no nariz; agora, era um funcionário religioso, um dos mais jovens jamais eleitos para o colégio dos augures, a quem fora confiada a interpretação da vontade dos deuses por meio da leitura de presságios em relâmpagos e no voo das aves. Continuava a parecer-me um rapaz. Apesar da óbvia gravidade do momento, os seus olhos brilhavam intensamente, e sorria quando avançou na direcção de Cícero, tomando-lhe a mão; aparentemente, o amor pelo seu mentor não tinha diminuído com o passar dos anos.

A partir daqui, Rufo tomará conta de ti disse Cícero.

O quê? Obrigas-me a sair da cama a meio da noite, fazes-me percorrer metade de Roma sem me dares explicações precisas, e agora abandonas-me?

Pensei que tinha ficado claro que eu não posso ter qualquer ligação pública, seja de que tipo for, com os acontecimentos desta noite. Fábia pediu ajuda à Virgo Máxima, que pediu ajuda a Rufo, porque o conhece; juntos, decidiram chamar-me, sabendo do meu parentesco com Fábia; eu fui-te buscar, Gordiano e aqui termina o meu envolvimento no caso. Com um gesto impaciente, indicou-me que saísse da liteira. Logo que os meus pés tocaram nas pedras do pavimento, sem perder tempo com mais despedidas, bateu as palmas e a liteira pôs-se em movimento com um solavanco. Rufo e eu vimo-la afastar-se, em direcção ao Monte Capitolino e a casa de Cícero.

Ali vai um homem extraordinário suspirou Rufo. Eu estava a pensar uma coisa bastante diferente, mas mordi a língua. A liteira dobrou uma esquina e desapareceu.

À nossa frente, ficava a entrada na Casa das Vestais. Havia duas braseiras acesas, uma de cada lado, que produziam as sombras vacilantes que dançavam na escadaria ampla e inclinada. Mas o interior da casa estava às escuras, e as portas altas de madeira estavam fechadas. Normalmente, estavam abertas, fosse de dia ou de noite pois quem se atreveria a penetrar na morada das Vestais sem ser convidado ou com propósitos malignos? Do outro lado da rua, o Templo de Vesta, um templo redondo, estava estranhamente iluminado, e dele provinha um suave canto que enchia o ar tranquilo da noite.

Gordiano! disse Rufo. Que estranho voltar a ver-te, após tantos anos. De vez em quando, tenho notícias tuas...

Como eu tenho notícias tuas ocasionalmente, quando presides a uma invocação pública ou privada dos auspícios. Não acontece nada de importante em Roma sem estar presente um augure, que leia os presságios. Deves andar muito ocupado, Rufo. Ele encolheu os ombros.

Somos, ao todo, quinze augures, Gordiano. Eu sou o mais jovem, e apenas um principiante. Para mim, muitos dos mistérios não passam disso mesmo de mistérios.

Relâmpago à esquerda, bom; relâmpago à direita, mau. E, se a pessoa para quem estás a fazer a adivinhação não ficar satisfeita, basta-te mudar de direcção, trocando a direita pela esquerda. Parece-me bastante simples.

Rufo apertou os lábios.

Vejo que és tão céptico como Cícero em matéria de religião. Sim, em grande parte trata-se de fórmulas vazias e cedências políticas. Mas há outro elemento, cuja percepção exige, creio eu, uma certa sensibilidade por parte de quem se dedica a esta actividade.

E prevês relâmpagos para esta noite? disse eu, farejando o ar. Ele sorriu com pouca vontade.

Na verdade, prevejo, acho que é possível que chova. Mas não podemos ficar aqui a conversar, corremos o risco de ser vistos. Vem comigo. Começou a subir as escadas.

Entrar na Casa das Vestais? A esta hora?

A Virgo Máxima está à nossa espera, Gordiano. Vem comigo!

Eu subi as escadas atrás dele, mas subi-as hesitante. Ele bateu suavemente a uma das portas, que se abriu para dentro em silêncio. Eu inspirei profundamente, e atravessei a soleira da porta atrás dele.

Chegámos ao majestoso átrio que dava para um pátio central, contornado por uma colunata. Estava tudo às escuras; não havia uma tocha acesa. O tanque que havia ao centro do pátio, comprido e pouco profundo, estava preto e cheio de estrelas; a sua superfície vítrea apenas era interrompida por alguns juncos que cresciam do centro.

Atingiu-me um súbito temor supersticioso. Senti arrepios na nuca, a testa encheu-se-me de suor, e fiquei incapaz de respirar. O coração batia-me com tanta força, que me pareceu que o ruído devia ser suficiente para acordar uma virgem adormecida. Queria agarrar o braço de Rufo, e sussurrar-lhe ao ouvido que devíamos voltar imediatamente para o Fórum tão profundo é o medo do proibido que me incutiram na infância, naquela altura em que nos contam histórias de homens que entram furtivamente em recintos sagrados e sofrem castigos inimagináveis. Ironicamente, pensei, só um homem que se relaciona com as pessoas mais respeitáveis do mundo como Cícero e Rufo pode encontrar-se, súbita e inesperadamente, no local mais proibido de Roma, a uma hora em que o simples facto de ali estar pode significar a morte. Num momento, dormia inocentemente na minha cama, no momento seguinte estava na Casa das Vestais!

Ouvi um ruído indistinto atrás de nós. Voltei-me e vi na escuridão uma vaga forma branca, que foi gradualmente adquirindo os contornos de uma mulher. Devia ter sido ela a abrir-nos a porta, mas não era uma escrava. Era uma das Vestais, e isso percebia-se pela sua aparência tinha o cabelo bastante curto, e usava uma tira branca e larga à volta da testa, uma espécie de diadema, adornado com fitas. Vestia uma estola branca simples, e usava sobre os ombros o manto de linho branco característico das Vestais.

Deu um piparote no ar com os dedos, e eu senti gotas de água na cara.

Sejam purificados sussurrou. Juram pela deusa do lar que entram nesta casa sem qualquer intenção perversa, e a pedido da senhora desta casa, que é a Virgo Máxima, a grande sacerdotisa de Vesta?

Juro respondeu Rufo. Eu fiz o mesmo.

A Vestal conduziu-nos até ao outro lado do pátio. Ao passarmos pelo tanque, ouvi uma suave batida na água. Estaquei, mas apenas vi uma pequena onda percorrer a superfície negra, fazendo rebrilhar e piscar a luz das estrelas, nela reflectida. Debrucei-me ao ouvido de Rufo e sussurrei:

Um sapo?

Mas não macho, com certeza! respondeu-me ele, também num sussurro, e depois mandou-me calar com um gesto.

Percorremos a colunata mergulhados em sombras profundas, e parámos diante de uma porta, invisível à excepção da tira de luz incerta que escapava de baixo da sua aresta inferior. A Vestal bateu muito suavemente e murmurou qualquer coisa que eu não consegui ouvir, depois deixou-nos e desapareceu nas sombras. Momentos depois, a porta abriu-se para dentro. Surgiu uma cara assustada, bela, e bastante jovem. Também ela usava o diadema das Vestais.

Abriu a porta para trás, para nos deixar entrar. A sala estava fracamente iluminada, com uma única lamparina, por baixo da qual estava sentada outra Vestal, com um rolo de pergaminho aberto na mão. Era mais velha do que a companheira, já de meia-idade. O seu cabelo curto tinha vestígios de prata nas têmporas. Quando nos aproximámos, manteve os olhos sobre o pergaminho, que começou a ler em voz alta, em Grego. Tinha uma voz madura e aveludada.

”Estrela da noite, que a todos congregas

Depois da partida da luz brilhante:

Reúnes as ovelhas e as cabras;

Devolves o filho à segurança dos braços de sua mãe.”

Poisou o pergaminho e ergueu os olhos, primeiro para Rufo, depois para mim. Suspirou.

Em tempos de angústia, a poetisa conforta-me. Conhecem Safo?

Alguma coisa respondi eu. Ela poisou o pergaminho a seu lado.

Sou Licínia.

Olhei-a com mais atenção. Era esta a mulher por quem o homem mais rico de Roma tinha arriscado a vida? A Virgo Máxima não parecia de modo algum extraordinária, pelo menos a meus olhos; por outro lado, que género de mulher seria capaz de se sentar calmamente a ler Safo no meio daquilo que até o sóbrio Cícero tinha considerado uma catástrofe?

És Gordiano, chamado o Descobridor? perguntou ela. Eu acenei com a cabeça.

Cícero mandou dizer por Rufo que virias. Ah, o que teríamos feito esta noite, se Cícero não nos tivesse ajudado?

”Semelhante é ele a um deus imortal” disse Rufo, citando outro verso de Safo.

Seguiu-se um silêncio desconfortável. A rapariga que nos tinha aberto a porta permanecia na sombra.

Vamos então ao que interessa disse Licínia. Já deves saber que fui acusada de conduta proibida a uma Vestal; acusam-me de namoriscar com o meu parente Marco Crasso.

Já ouvi dizer.

Há muito que deixei para trás a juventude, e não tenho qualquer interesse pelos homens. A acusação é absurda! É verdade que Crasso procura a minha companhia no Fórum e no teatro, e me importuna constantemente mas se os nossos acusadores soubessem de que fala ele quando estamos sozinhos! Acredita que nada tem a ver com questões do coração. Crasso é tão lendário pela sua ganância, como as Vestais pela sua castidade mas não vou desenvolver a questão. Crasso tem a sua defesa e eu a minha, e dentro de três dias os tribunais ouvirão o que temos a dizer, e decidirão. Não há testemunhas nem provas de qualquer acto contrário ao meu voto; o processo mais não é do que um incómodo destinado a embaraçar Crasso e a minar a confiança do povo nas Vestais. Nenhum painel de juizes minimamente razoável poderá considerar-nos culpados; e, contudo, após os acontecimentos que tiveram lugar esta noite, as coisas podem correr muito mal a ambos.

Olhou para a escuridão e franziu o sobrolho, acariciou o rolo de pergaminho que tinha no colo, como se a conversa se lhe tivesse tornado desagradável e ansiasse por escapar de novo para os ritmos calmantes da poetisa de Lesbos. Quando voltou a falar, a sua voz era lânguida e sonhadora.

Fui consagrada a Vesta aos oito anos; todas as Vestais são escolhidas muito cedo, entre os seis e os dez anos. O serviço que prestamos dura nada menos que trinta anos. Nos primeiros dez, somos noviças, estudiosas dos mistérios, como Fábia. Apontou para a rapariga que se encontrava nas sombras. Nos segundos dez anos, desempenhamos os deveres sagrados purificamos o santuário e fazemos oferendas de sal, vigiamos a chama eterna, consagramos templos, assistimos às festividades sagradas, guardamos as sagradas relíquias. Nos terceiros dez anos, tornamo-nos mestres e instrutoras das noviças, transmitindo-lhes os mistérios. E, ao final de trinta anos, somos autorizadas a abandonar a vida consagrada, mas as poucas que escolhem essa via terminam quase sempre na miséria. Suspirou. Dentro da Casa das Vestais, uma mulher adquire determinados hábitos e expectativas, ritmos de vida incompatíveis com o mundo exterior. A maioria das Vestais morre como viveu, em casto serviço à deusa e ao seu eterno lar.

”Por vezes... a voz fraquejou-lhe. Por vezes, em especial nos primeiros anos, podemos ser tentadas a desviar-nos do voto de castidade.

Consequência disso é a morte, e não uma morte simples e misericordiosa, mas um destino realmente horrível.

”O último escândalo desse género teve lugar há quarenta anos. Uma virgem, filha de uma família respeitada, foi atingida por um raio e morreu. Ficou com as vestes rasgadas e a sua nudez foi exposta; os augures atribuíram a este facto um significado tremendo: que as Vestais tinham violado os seus votos. Três Vestais foram acusadas de impureza, juntamente com os alegados amantes, e julgadas pelo colégio dos pontífices. Uma delas foi considerada culpada. As outras foram absolvidas. Mas o povo não ficou satisfeito. Protestou violentamente, até se constituir uma comissão especial. O caso voltou a tribunal. As três Vestais foram condenadas.

O rosto de Licínia alongou-se. Os seus olhos brilhavam à luz da lamparina.

Conheces o castigo, Gordiano? O amante é publicamente açoitado até à morte; é desagradável, mas é simples e acaba depressa. O mesmo não acontece à Vestal. Ela é despojada do seu diadema e do seu manto de linho. É açoitada pelo Pontífice Máximo. É vestida como se vestem os cadáveres, é colocada numa liteira fechada, que percorre o Fórum, acompanhada pelos seus parentes, enlutados e chorosos: é obrigada a sofrer o tormento do seu próprio funeral. É levada até junto da Porta Colina, onde lhe prepararam um pequeno túmulo subterrâneo, com uma cama, uma lamparina e uma mesa com alguma comida. Um carrasco vulgar acompanha-a escadas abaixo, até à cela, mas não lhe faz mal. Compreendes, a sua pessoa foi consagrada a Vesta; nenhum homem pode matá-la. A escada é retirada, o túmulo é selado, o solo alisado. Compete à deusa tomar a vida da Vestal...

Enterrada viva! sussurrou Fábia em voz rouca. A rapariga permanecia nas sombras, mas levara as mãos aos lábios, nervosamente.

Sim, é enterrada viva. A voz de Licínia era calma, mas fria como a morte. Após um longo momento, baixou os olhos para o regaço, e para o rolo de papiro com os poemas de Safo, que tinha esmagado entre as mãos.

Julgo que chegou o momento de explicarmos a Gordiano por que motivo o chamámos. Pôs o pergaminho de lado e levantou-se. Ao princípio desta noite, um intruso penetrou nesta casa. Mais exactamente, dois intrusos, e possivelmente um terceiro. Um homem veio visitar Fábia depois de escurecer, a convite dela, segundo afirmou...

Nunca! exclamou a rapariga.

Licínia silenciou-a com um olhar fulminante.

Foi descoberto no quarto dela. Mas, pior do que isso tu próprio verás, Gordiano.

Pegou na lamparina e conduziu-nos a outro compartimento, por uma espécie de passagem estreita. Era um aposento privado, mais simples do que aquele onde nos tinha recebido. As paredes estavam cobertas por reposteiros ornamentais, de um vermelho-escuro, que parecia engolir a luz proveniente da braseira que ardia a um canto. Havia apenas duas peças de mobiliário: uma cadeira sem costas e uma cama. Reparei que a cama parecia acabada de fazer, com as almofadas batidas e arrumadas, e a coberta bem esticada. O homem que estava sentado na cadeira ergueu os olhos quando nós entrámos. Ao contrário do que ditava a mais recente moda, não tinha a cara rapada, antes usava uma barbinha elegante. Pareceu-me vê-lo sorrir ligeiramente.

Aparentava ter uns anos a menos do que eu cerca de trinta e cinco, calculei, perto da idade de Cícero. Ao contrário de Cícero, era muito atraente. O que não significa que fosse particularmente belo; se tentar recordar-me do seu rosto, apenas poderei dizer que tinha a barba e o cabelo escuros, olhos de um azul penetrante e feições regulares. Mas havia na sua presença qualquer coisa de indefinivelmente sedutor, e nos seus olhos uma jovialidade contagiante, que parecia dançar como os pontos brilhantes de uma chama.

Lúcio Sérgio Catilina disse ele, pondo-se de pé e apresentando-se.

O clã patrício dos Sérgios remontava aos tempos de Eneias; não havia em toda a República outro nome digno de maior respeito. Eu conhecia Catilina pela fama que o acompanhava. Havia quem dissesse que era um homem encantador; outros diziam que era uma praga. Todos concordavam em afirmar que era inteligente, mas havia quem achasse que era inteligente de mais.

Ele lançou-me um estranho meio sorriso, que sugeria que, interiormente, estava a rir-se de qualquer coisa mas de quê? Inclinou a cabeça e dirigiu-se a mim:

Diz-me uma coisa, Gordiano, o que têm em comum cinco das pessoas que vês neste quarto?

Espantado, olhei para Rufo, que franziu o sobrolho.

Todas respiram disse Catilina, ao passo que a sexta... já não! Dirigiu-se ao reposteiro que cobria a parede mais distante e correu-o, dando a ver outra passagem. No chão, contorcido de forma antinatural, estava o corpo de um homem, obviamente morto.

Rufo e Licínia mostraram uma severa desaprovação pela teatralidade de Catilina; Fábia estava à beira das lágrimas; porém, nenhum deles se mostrou surpreendido. Eu sustive a respiração, depois ajoelhei-me e estudei o corpo enrolado durante um longo momento.

Recuei e sentei-me na cadeira, sentindo-me ligeiramente maldisposto. Nunca é agradável ver um homem com o pescoço cortado.

Foi para isto que me chamaste, Licínia? É esta a calamidade de que Cícero falava?

Um assassínio na Casa das Vestais sussurrou ela. É um sacrilégio inaudito!

Eu dominei as náuseas. Rufo tinha ido buscar uma taça de vinho, que me colocou na mão. Bebi-o todo, agradecido péla atenção.

Acho melhor começarmos pelo princípio disse eu. Em nome de Júpiter, o que fazes tu aqui, Catilina?

Ele pigarreou e engoliu em seco; um sorriso brilhou-nos nos lábios, desaparecendo em seguida, como se tivesse sido apenas um gesto nervoso.

Fábia mandou-me chamar, ou pelo menos foi o que eu pensei.

Como?

Recebi isto, hoje ao princípio da noite. Entregou-me um fragmento de pergaminho dobrado.

VEM IMEDIATAMENTE À CASA DAS VESTAIS, Ao MEU QUARTO. ESQUECE O PERIGO, PEÇO-TE. ESTÁ EM CAUSA A MINHA HONRA, E NÃO ME ATREVO A CONFIAR EM MAIS NINGUÉM. SÓ TU PODES AJUDAR-ME. DESTRÓI ESTA MENSAGEM DEPOIS DE A LERES.

                                                                            FÁBIA

Pensei naquilo por momentos.

Mandaste esta mensagem, Fábia?

Nunca!

Como é que ela te foi entregue, Catilina?

Um mensageiro foi a minha casa, no Palatino, um miúdo da rua.

Costumas receber mensagens de Vestais?

Nem pensar.

E, no entanto, acreditaste que se tratava de uma mensagem genuína. Não ficaste admirado ao receber uma comunicação tão íntima de uma Vestal?

Ele sorriu indulgentemente.

As Vestais vivem castamente, Gordiano, mas não vivem retiradas. Não deve surpreender-te que eu conheça Fábia. Ambos pertencemos a famílias antigas. Já nos encontrámos no teatro, no Fórum, em jantares privados. Até já vim visitá-la aqui à Casa das Vestais, embora raramente, e sempre à luz do dia e na presença de acompanhantes; ambos nos interessamos por poetas gregos e vasos arrecianos. O nosso comportamento em público sempre foi irrepreensível. Sim, fiquei surpreendido ao receber a mensagem dela, mas apenas por ser tão alarmante.

E, no entanto, decidiste fazer o que ela te pedia entrar nesta casa a meio da noite, desprezando as leis dos homens e dos deuses?

Ele riu-se baixinho. Tinha uma barba tão preta, que o seu sorriso se tornava ainda mais deslumbrante.

Francamente, Gordiano, queres melhor desculpa para pôr em causa essas leis, do que vir em auxílio de uma Vestal em dificuldades? Claro que entrei! Ficou sério. Percebo agora que, muito provavelmente, não entrei sozinho.

Foste seguido?

Na altura, não tive a certeza; quando andamos sozinhos em Roma, à noite, temos sempre a tendência para imaginar que há pessoas escondidas nas sombras. Mas sim, acho que posso ter sido seguido.

Por um homem ou por muitos? Ele encolheu os ombros.

Por este homem? Apontei para o cadáver. Catilina voltou a encolher os ombros.

Nunca na minha vida o tinha visto.

O certo é que ele vinha vestido como quem se veste para seguir um homem uma capa preta, com capuz preto, para tapar a cabeça. Onde está a arma que o matou?

Não a viste? Voltou a correr o reposteiro e apontou para um punhal que jazia numa poça de sangue, mais adiante. Eu peguei na lamparina e fui examiná-lo.

Uma lâmina com aspecto terrível comprida como a mão de um homem e com metade dessa largura, tão afiada que o gume brilha, apesar do sangue. O punhal é teu, Catilina?

Claro que não! Não fui eu que o matei.

Então quem foi?

Se soubéssemos quem foi, não te tínhamos chamado! Ele revirou os olhos e depois sorriu, com um sorriso doce como o de uma criança. Naquele momento, era difícil imaginá-lo a cortar o pescoço a outro homem.

Se este punhal não te pertence, Catilina, onde está o teu punhal?

Não tenho.

O quê? Saíste para as ruas de Roma numa noite sem Lua e não vieste armado?

Ele acenou com a cabeça.

Catilina, como queres que acredite em ti?

Acredita no que quiseres. A Casa das Vestais fica a pouca distância de minha casa, naquele que é, afinal, um dos melhores bairros da cidade. Não gosto de andar armado. Estou sempre a cortar os dedos no punhal. O meio sorriso voltou a brilhar-lhe nos lábios.

Talvez fosse boa ideia prosseguires a tua história dos acontecimentos da noite. Uma mensagem fictícia trouxe-te a esta casa. Chegaste à entrada...

... e encontrei as portas abertas, como sempre. Tenho de admitir que foi preciso uma certa coragem para atravessar a soleira da porta, mas estava tudo em silêncio e, tanto quanto pude aperceber-me, ninguém me viu. Tenho uma ideia aproximada da disposição da casa, resultante das visitas que tenho feito durante o dia; dirigi-me logo a este quarto, e encontrei Fábia sentada na cadeira, a ler. Tenho de admitir que ela se mostrou surpreendida por me ver.

Têm de acreditar nele disse Fábia, dirigindo-se principalmente a Licínia. Eu nunca teria enviado semelhante mensagem. Não fazia a menor ideia de que ele ia aparecer.

E depois, o que foi que aconteceu? perguntei eu.

Catilina encolheu os ombros.

Rimo-nos um bocado juntos, discretamente.

Acharam graça à situação?

Por que não? Eu ando sempre a pregar partidas aos meus amigos, e eles a mim. Presumi que um deles me tivesse enganado, e logo atraindo-me aqui! Tens de concordar que é divertido!

À excepção do pormenor de haver um corpo morto no chão.

Sim, isso disse ele, franzindo o nariz. Preparava-me eu para me ir embora oh, sim, deixei-me estar por momentos, saboreando o delicioso perigo da situação; que homem não o faria? quando ouvi um grito horrível atrás do reposteiro. O género de ruído que um homem produz quando estão a cortar-lhe o pescoço, presumo eu. Corri a cortina, e vi-o, ainda a contorcer-se no chão.

Não viste sinais do assassino?

Só vi o punhal no chão, a girar sobre si próprio naquela poça de sangue.

Não foste atrás do assassino?

Confesso que fiquei paralisado pelo choque. Momentos depois, claro, as Vestais começaram a acorrer.

O grito ouviu-se na casa inteira disse Licínia. Eu fui a primeira a chegar. As outras chegaram pouco depois.

E o que viram?

O corpo, evidentemente; e Fábia e Catilina comprimidos um contra o outro...

Podes ser mais precisa?

Não compreendo.

Licínia, obrigas-me a ser directo. Como estavam vestidos?

Ora, exactamente como estão agora! Catilina de túnica, Fábia com a veste habitual.

E a cama...

... estava precisamente como a vês agora: não tinha sido usada. Se estás a insinuar...

Não estou a insinuar coisa nenhuma, Licínia; apenas quero ter uma percepção dos acontecimentos tal como se deram.

Era um espectáculo e tanto observou Catilina, com as pálpebras descaídas. Um corpo coberto de sangue, um punhal, seis Vestais desfalecendo cada uma para seu lado foi um momento extraordinário, agora que penso nisso! Quantos homens podem reclamar ter estado no centro de um quadro tão desenfreado e sensual?

Catilina, estás a ser absurdo! disse Rufo com desagrado.

Ninguém viu o assassino fugir? Nem tu, Licínia, nem nenhuma das outras?

Não. Claro que o pátio estava às escuras, como agora. Mas eu não perdi tempo a mandar uma das escravas fechar e trancar a porta.

Nesse caso, é provável que tenham apanhado o vilão aqui dentro de casa.

Era o que eu esperava. Mas já revistámos tudo e não encontrámos ninguém.

Quer dizer que ele conseguiu fugir; a não ser, claro, que seja uma invenção de Catilina...

Não! gritou Fábia. Catilina está a dizer a verdade. Foi exactamente como ele contou.

Catilina voltou as palmas das mãos para cima e ergueu as sobrancelhas.

Aí tens, Gordiano. Achas que uma Vestal mentia?

Catilina, isto não é uma brincadeira. Deves aperceber-te de que as circunstâncias não são as mais favoráveis. Para além de ti, quem mais tinha razões para matar o intruso?

Ele não soube responder a isto.

Não sou um especialista em leis religiosas prossegui, mas tenho dificuldade em imaginar pecado mais grave do que cometer um assassínio na Casa das Vestais. Mesmo que consigas, de alguma maneira, explicar a tua presença aqui esta noite e poucos juizes considerarão uma mensagem forjada, ou uma partida, desculpa suficiente, o facto do cadáver, permanece. Num vulgar caso de assassínio, um cidadão romano tem a hipótese de fugir para outro país, em vez de ir a tribunal e confrontar-se com a respectiva pena; mas, quando se trata de uma profanação, não está nas mãos das autoridades ser clementes. A não ser, evidentemente, que fujas da cidade esta noite...

Ele olhou-me de frente, muito seguro de si. Os seus olhos pareciam-me impossivelmente azuis, como se houvesse chamas azuis a dançar por trás deles.

Embora possa brincar e propor enigmas, Gordiano, nunca duvides de que tenho consciência das circunstâncias em que me encontro. Não, não fugirei de Roma como um cachorro assustado, abandonando uma jovem Vestal, e obrigando-a a enfrentar sozinha uma acusação de iniquidade.

Fábia começou a chorar. Catilina mordeu o lábio.

Se isto for mais do que uma simples partida e o cadáver prova que o é, julgo saber quem está por trás dela.

Isso já seria um começo. Quem?

O mesmo homem que está por trás da acusação a Licínia e a Crasso. Chama-se Públio Clódio. Conhece-lo?

Já ouvi falar dele, naturalmente. É um agitador, um desordeiro...

É meu inimigo pessoal. Anda constantemente metido em esquemas. Um homem de moral tão baixa, que não teria escrúpulos em envolver as Virgens Vestais numa conspiração destinada a destruir os seus inimigos.

Suspeitas, pois, de que Públio Clódio te atraiu aqui com uma mensagem forjada, e te mandou seguir. Nesse caso, por que motivo teria mandado o seu homem entrar atrás de ti? Bastava-lhe lançar o alarme do exterior da casa, e apanhar-te cá dentro, como numa ratoeira. Continuamos a não conhecer o motivo do assassínio deste homem.

Catilina encolheu os ombros.

Mais não te posso dizer. Eu abanei a cabeça.

Farei o que puder. Gostava de interrogar as outras Vestais, e as escravas que se encontravam cá em casa esta noite; mas posso fazê-lo amanhã. É possível que consiga descobrir o rapaz que te levou a mensagem, e a partir dele remontar a Clódio, ou a quem quer que fosse. Também é possível que descubra o homem, ou homens, que te perseguiram esta noite, quando vinhas para aqui, se eles existirem; pode ser que se deixem induzir a contar aquilo que sabem acerca do morto e das razões pelas quais se encontrava onde se encontrava. Receio que tudo isto seja apenas circunstancial, mas pode ser que descubra alguma coisa que possa ser usada em tua defesa, Catilina. Ainda assim, o cenário é muito negativo. Não vejo que se possa fazer mais alguma coisa esta noite, excepto talvez revistar outra vez a casa.

Já a revistámos, e nada encontrámos observou Licínia.

Mas podíamos voltar a revistá-la disse Fábia. Por favor, Virgo Máxima.

Muito bem respondeu Licínia com aspereza. Chama algumas escravas, e diz-lhes que tragam facas da cozinha. Vamos procurar outra vez em todos os cantos e buracos.

Eu vou convosco anunciou Catilina. Para vos proteger acrescentou, olhando para Fábia. Afinal, o homem de que andam à procura é um assassino desesperado.

Licínia franziu o sobrolho, mas não protestou.

Fiz uma pausa no pátio às escuras, por baixo da colunata, para permitir que os meus olhos se adaptassem à falta de luz. Rufo chocou comigo. Eu tropecei e dei um pontapé num seixo, que ressaltou sobre as pedras. O silêncio era tal, que o ruído pareceu muito acentuado. Ouviu-se uma pancadinha na água do tanque.

O barulho assustou-me e o meu coração desatou a bater desenfreadamente. Era apenas o sapo a mexer-se outra vez, pensei. Apesar disso, avistei fantasmas nas sombras, e abanei a cabeça às partidas que me pregava a imaginação. Devia ter sido assim, pensei, que Catilina imaginara que estava a ser perseguido por homens inexistentes. Apesar de tudo, tive a sensação de que Rufo e eu não estávamos sozinhos naquele pátio. O canto indistinto das Vestais, proveniente do templo vizinho, parecia pairar sobre nós, no ar parado. Sentei-me num banco, perto dos juncos da borda da piscina, e olhei para as estrelas que salpicavam a superfície escura.

Rufo sentou-se a meu lado.

Em que estás a pensar, Gordiano?

Estou a pensar que nos encontramos em águas profundas.

Acreditas em Catilina?

E tu?

Nem pensar! O homem é falso até à medula, todo encanto, sem qualquer substância.

Ah, compara-lo com Cícero, talvez, e achas que fica aquém.

Exactamente.

E, contudo, aquela reacção a uma carta tão irreflectida, só pela novidade da coisa, parece estar de acordo com o seu carácter, não parece? Essa parte da história parece-me crível; ou será tão tortuoso, que foi ele a conceber a carta, para a utilizar como ardil, se fosse necessário?

É suficientemente retorcido para tê-lo feito, disso não duvides!

Não estou certo disso. Quanto à sua inocência no assassínio, fiquei impressionado com o pormenor de ele ter encontrado o punhal ainda a girar sobre si próprio na poça de sangue. Parece-me um pormenor excessivamente dramático para ter sido inventado.

Subestimas a inteligência dele, Gordiano.

Ou talvez sejas tu quem subestima a sua nobreza. E se tiver sido Fábia a assassina do intruso, e Catilina estiver a mentir para protegê-la?

Isso é completamente absurdo, Gordiano! Uma rapariga frágil e tímida...

E muito apaixonada por Catilina. Não percebeste, Rufo? Poderia ter matado, num momento de delírio, a fim de proteger o amante?

Isso é fantástico de mais, Gordiano.

Talvez tenhas razão. Deixei-me entusiasmar pelo murmúrio de um canto longínquo e um tanque cheio de estrelas. Até dou por mim a considerar a possibilidade de ter sido Licínia a brandir o punhal...

A Virgo Máxima? Mas com que objectivo?

Para desviar as atenções do seu próprio julgamento, que está iminente. Para se vingar dos jovens amantes presumindo que eles são amantes, porque tem uma inveja insane deles. Ou para os proteger, matando o homem enviado para os espiar porque se vai tornando mais sentimental com os anos, tal como eu. Só que o plano dela fracassou quando o homem deu um grito e as outras Vestais chegaram a correr...

Águas profundas concordou Rufo. Alguma vez chegaremos a conhecer a verdade?

Aos bocadinhos e em fragmentos respondi eu, e talvez procurando onde menos esperamos encontrá-la. Esfreguei os olhos e esforcei-me por engolir um bocejo. Fechei os olhos só por um instante, pensei...

Acordei sobressaltado, quando senti uma mão tocar-me no ombro; ergui os olhos e vi Catilina.

A busca... ? perguntei.

Infrutífera. Espreitámos por trás de todos os reposteiros, por baixo de todas as camas, para dentro de todos os bacios.

Eu acenei com a cabeça.

Nesse caso, vou voltar para minha casa, se Licínia tiver a gentileza de me chamar uma liteira. Espero lá fora, na escadaria. Comecei a encaminhar-me para as enormes portas trancadas. Calculo que seja a última vez que me encontro neste sítio a esta hora da noite. Foi uma experiência memorável.

Espero que não tenha sido excessivamente desagradável comentou Catilina. Baixou a voz. Farás o que puderes por mim, não é verdade, Gordiano? Bisbilhotar, localizar o mensageiro, descobrir o que puderes acerca de Clódio e dos seus planos? Eu não me esqueço dos meus amigos, Gordiano. Haverá um momento, no futuro, em que poderei pagar-te.

Claro disse eu, e pensei: Se houver futuro para ti, Catilina. A Vestal que nos tinha mandado entrar aproximou-se da porta trancada. Mantinha os olhos desviados, em especial de Catilina.

Quando a porta se abriu para trás, ouvi um plop líquido, proveniente do tanque. Sorri à Vestal.

Esta noite, os sapos estão muito inquietos. Ela abanou a cabeça, fatigadamente.

Não há sapos no tanque respondeu.

A porta fechou-se atrás de mim. Ouvi cair a tranca. Desci lentamente os degraus. Uma súbita rajada de vento percorreu o Fórum, transportando o odor a chuva. Ergui os olhos e vi que as estrelas começavam a desaparecer, uma a uma, por trás de um manto de nuvens pretas, provenientes de ocidente.

De repente, percebi a verdade.

Corri pelas escadas acima, e bati à porta, primeiro suavemente. Vendo que não obtinha resposta, comecei a bater com o punho fechado.

A porta estremeceu e abriu-se. Eu entrei. A Vestal olhou para mim confusa, de sobrolho franzido. Catilina e Fábia estavam de pé, à beira do tanque, Licínia e Rufo ali ao pé. Aproximei-me deles rapidamente, sentindo toda a estranheza da luz das estrelas, dos cantos longínquos, da atmosfera de santidade e morte que prevalecia no interior destes muros proibidos.

O assassino continua aqui, dentro desta casa disse. Aqui mesmo, na vossa presença.

Olhares de suspeita passaram de um para outro rosto. Licínia recuou. Até Fábia e Catilina se afastaram um do outro.

Ainda têm convosco as facas com que foram fazer a busca? Licínia mostrou-me uma faca de cozinha, que retirou das pregas da estola, e Fábia fez o mesmo.

E tu, Rufo?

Ele apresentou um punhal curto, e eu empunhei o meu. Só Catilina estava desarmado.

Dirigi-me à beira do tanque.

Quando entrei na Casa das Vestais, havia uns juncos no centro do tanque só no centro. Mas estes juncos estão muito perto da beira. Há qualquer coisa que dá pancadinhas suaves na água, mas não há sapos no tanque. Estendi a mão para os juncos ocos, puxei-os da água e lancei-os às pedras do pavimento.

Momentos depois, um homem emergiu de dentro de água, cuspindo e tossindo. Agitava-se em várias direcções, lutando contra o estorvo que era a capa de lã encharcada, que pendia dele como uma cota de malha. Era uma capa preta com capuz, igual à que o seu cúmplice tinha usado. Na escuridão, parecia um monstro de negro, emergindo de um tanque de pesadelo. Depois, qualquer coisa oscilou no espaço, brilhando à luz das estrelas. Ele cambaleou na minha direcção, brandindo o punhal.

Embora estivesse desarmado, foi Catilina quem se atirou ao assassino. Caíram os dois à água. Rufo e eu corremos atrás deles para dentro do tanque, mas o caos de espuma era tal, que se tornou impossível acertar fosse no que fosse.

Depois, o combate terminou, tão abruptamente como tinha começado. Catilina pôs-se de joelhos, com água a pingar-lhe da barba, os olhos muito abertos, como se estivesse surpreendido com aquilo que tinha feito. O assassino contorcia-se, rodeado por uma infusão que, apesar do negrume das águas, não era possível deixar de identificar como sangue; as estrelas reflectidas nessa escuridão eram vermelhas de fogo.

Ajuda-me a tirá-lo da água disse eu. Depressa, Rufo! Arrastámos o homem para as pedras do pavimento. Tinha o próprio punhal espetado no coração até ao cabo. Os dedos ainda apertavam o punho. Tinha os olhos muito abertos, mas o rosto nariz largo, sobrancelhas hirsutas, escurecidas com restolho estava estranhamente pacificado. As escravas da casa, alertadas pelo barulho, reuniram-se em seu redor. No Templo de Vesta, as sacerdotisas prosseguiam os seus cantos, alheias a tudo.

Tal como Cícero e desconfio de que tal como Catilina, não sou especialmente religioso. No entanto, parece-me que foi o próprio Júpiter quem naquele momento se mostrou favorável a Catilina. O assassino teria confessado tudo antes de morrer, se um ténue filamento do raio do próprio Júpiter não tivesse atravessado o céu?

O moribundo viu-o. Os seus olhos aumentaram de tamanho. Rufo debruçou-se sobre ele, e tocou na mão do homem, naquela mão que segurava o copo do punhal.

Sou um augure disse, num tom de autoridade que excedia em muito os seus anos. Apesar do cabelo ruivo, das sardas e dos brilhantes olhos castanhos, naquele instante, pareceu-me tudo menos um rapazinho. Leio os auspícios.

O raio... gemeu o homem.

À tua direita; a mão que agarra o punhal que tens espetado no coração.

É mau presságio? Diz-me, augure!

Os deuses vieram buscar-te

Oh não!

Olha onde vão encontrar-te, na Casa das Vestais, com o sangue do homem que assassinaste ainda quente. Vão ficar furiosos...

Outro relâmpago atravessou os céus, que a seguir ribombaram.

Fui um homem ímpio! Ofendi terrivelmente os deuses!

Sim, e é melhor que os apazigues enquanto podes. Confessa aquilo que fizeste, aqui na presença da Virgo Máxima.

O homem teve uma convulsão, tão violenta que eu pensei que ia morrer naquele instante. Momentos depois, contudo, reanimou-se.

Perdoa-me...

O que vieste aqui fazer?

Vim atrás de Catilina.

Por ordem de quem?

De Públio Clódio ”Eu sabia!”, murmurou Catilina.)

Com que objectivo?

Mandou-nos segui-lo até esta casa, sem sermos vistos. Mandou-nos espiá-lo no quarto da Vestal. Eu devia esperar até chegar o momento mais comprometedor só que eles não chegaram a despir-se! Deu uma gargalhada rouca, e arquejou de dor.

E depois?

Depois, mandou-me matar Gneu.

O homem que vinha contigo?

Sim.

Mas por quê? Por que havias de matar o teu companheiro?

Para dar completamente cabo de Catilina, que seria apanhado nu com uma Vestal, juntamente com um cadáver e um punhal cheio de sangue. Só que eles... não chegaram... a despir-se! Deu outra gargalhada rouca. O sangue começou a correr-lhe pelo canto da boca. Por isso... cortei... o pescoço a Gneu. O pobre imbecil não estava à espera daquilo! Depois, tinha de fugir dali silenciosamente, e lançar o alarme fora de portas. Mas não contava que Gneu desse um grito daqueles! Larguei o punhal como Clódio me disse que fizesse, para ter a certeza de que havia uma arma a incriminar Catilina. Depois peguei no punhal de Gneu, e corri para o pátio. De repente, começaram a aparecer lamparinas por toda a parte, impedindo-me de chegar à porta. Lembrei-me de um truque que o meu antigo centurião me tinha ensinado, quando estava no exército meti-me dentro do tanque, silencioso como uma cobra de água, e cortei um junco para respirar por ele. Pouco depois, vim à superfície ver como iam as coisas; as portas tinham sido fechadas e trancadas, e havia uma Vestal a guardá-las! Voltei a deslizar para debaixo de água e esperei. É uma espécie de morte estar debaixo de água, a olhar para o céu preto, coberto de estrelas...

Os relâmpagos dançavam à nossa volta, à direita e à esquerda. Ouviu-se o ribombar de um trovão, e o céu abriu-se por cima das nossas cabeças, libertando uma torrente de água. O assassino teve uma derradeira convulsão, tornou-se rígido, depois flácido.

Como Roma inteira está ciente, os julgamentos das Vestais Licínia e Fábia, e dos seus alegados amantes terminaram com a absolvição de todos eles.

Licínia e Crasso foram julgados em simultâneo. A defesa de Crasso foi inovadora, mas eficaz. Verificou-se que a razão pela qual perseguia apaixonadamente Licínia não era a luxúria, mas a simples ganância. Parece que ela era proprietária de uma villa nos arredores da cidade, que ele estava decidido a comprar por bom preço. O facto de os juizes terem aceitado esta explicação sem mais perguntas dá uma percepção adequada da reputação de avareza de Crasso. Este foi envergonhado publicamente, e alvo de graças durante uma estação inteira; mas disseram-me que continuou a importunar Licínia, até conseguir adquirir a propriedade pelo preço que lhe interessava.

Os julgamentos de Fábia e Catilina foram separados, e desceram rapidamente para o nível do insulto político. Cícero manteve-se notoriamente ausente dos processos, mas alguns dos mais respeitados oradores de Roma, como Pisão, Catulo e Marco Catão provavelmente o único homem de Roma com reputação de ser ainda mais indiferente às tentações sexuais do que Cícero, falaram em nome da defesa. Catão fez insinuações de tal maneira ousadas acerca das maquinações de Clódio (impossíveis de provar, dado que os assassinos tinham morrido e o homicídio tinha sido abafado, mas nem por isso menos prejudiciais), que Clódio achou conveniente fugir de Roma, e ir passar uns meses em Baias, à espera que o furor acalmasse. Depois, Cícero agradeceu a Catão, em privado, o facto de ter defendido a honra da sua cunhada. Catão replicou altivamente que não o tinha feito por Fábia, mas pelo bem de Roma. Que par de empertigados!

Catilina também foi absolvido. A insistência no facto de ele e Fábia terem sido encontrados completamente vestidos pesou muito em seu favor. Pela minha parte, continuo sem conseguir decidir da sua culpa ou inocência, no que diz respeito à sedução de Fábia. Parece-me estranho que ele tenha gasto tanto tempo a cortejar uma jovem com voto de castidade, a não ser que as suas intenções fossem ilegítimas; e como é que Clódio sabia que Catilina reagiria favoravelmente a uma mensagem forjada de Fábia, a não ser que tivesse razões para pensar que já eram amantes? À primeira vista, pode parecer que o repetido lamento do assassino eles não chegaram a despir-se dá razão a Catilina e Fábia; mas a verdade é que as pessoas podem fazer muitas coisas permanecendo mais ou menos vestidas.

As intenções e motivações de Catilina continuam a ser um mistério para mim. Só o tempo dirá que género de pessoa ele realmente é.

Muito depois de os julgamentos terem terminado, recebi um presente inesperado da Virgo Máxima um rolo de pergaminho com uma colectânea de poemas de Safo. Eco, que tem agora dezassete anos e estuda Grego, declara que é o seu livro favorito, embora eu não esteja certo de que ele tenha idade suficiente para apreciar as suas múltiplas subtilezas. Eu também gosto de o retirar da estante de vez em quando, especialmente naquelas longas noites em que não há luar, e de o ler devagar e em voz alta:

”A Lua nasceu, e assim também As Plêiades; em breve será Meia-noite; passa a hora: E eu, na minha cama sozinha.”

Esta passagem, em particular, recorda-me Licínia, sozinha no seu quarto da Casa das Vestais.

 

                                                                                            Steven Saylor

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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