Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Casa do Medo
O próprio Mr. Brooks contra si mesmo admitia, perante Kclver o mordomo, que criados americanos não eram coisa natural.
Era um homem sólido, apertado na libre, de óculos; cabelo ralo e grisalho, e voz inclinada para o agudo. Do bolso do seu colete de listras encarnadas, que fazia parte do uniforme, ressaltava visivelmente uma barra de goma de mascar já começada. Mascava a maior parte do tempo, movimentando a mandíbula com regularidade quase pendular. Gilder, que tinha grande amor pela exatidão matemática, chegara a cronometrar tais movimentos, concluindo que apenas variavam entre 51 e 56 por minuto. No recôndito de seu quarto porém, Mr. Brooks costumava saborear um grande cachimbo carregado com uma mistura adocicada, muito peculiar, que importava dispendiosamente da Califórnia.
Nem a figura de Mr. Brooks, lacaio, nem a de Mr. Gilder, lacaio também, assentava com Marks Priory ou com o povoado de Marks Thornton.
Eram pobres criados que nunca pareciam aprimorar-se com a prática nem beneficiar-se da experiência.
Entretanto eram homens muito requintados, se o leitor for capaz de imaginar tamanha anomalia como a de existirem dois lacaios americanos requintados. Jamais se intrometiam na vida alheia, mostravam-se quase extravagantemente polidos com seus conservos e nem uma vez sequer (figurava isto como um crédito monumental a seu favor) tinham jamais denunciado outros servidores por qualquer negligência no serviço, ainda quando tal negligência interferisse adversamente com seu próprio conforto pessoal.
Ambos eram muito estimados, e Gilder um tanto temido também. Sombrio, de faces rugosas e encovadas, tinha a voz ainda por cima lúgubre e cavernosa; o cabelo era preto e escasso, porém longo, e trazia na cabeça grandes áreas inteiramente calvas, sendo ademais imensamente forte.
Este último pormenor descobriu-o o couteiro do lugar, chamado John Tilling; ruivo, grandalhão, de faces coradas e obsecado por suspeitas.
É bem verdade que sua esposa era bonita e, à guisa de consolo, muito dada a sonhar, pela maior parte dos dias, com coisas que nunca chegava a realizar de todo. Por exemplo, não descobrira nenhum Romeu de pele azeitonada na pessoa de certo palafreneiro que conquistara no povoado. Ele era antes rosado, um tanto grosseiro demais, cheirava a um misto de estábulo e cerveja e costumava envergar uma mesma camisa sete dias a fio. Este homem lhe oferecera a mecânica do amor, e a imaginação dela encarregara-se de suprir o glamour faltante. Esse, porém, era um escândalo antigo. Tivesse chegado ao conhecimento de Lady Lebanon, e o chalé de Box Hedge depressa teria tido novos inquilinos.
Passado algum tempo, Mrs. Tilling deu mostras de já estar interessada em algo melhor que palafreneiros; o marido, entretanto, não o soube por algum tempo.
E aconteceu que, certa tarde, o couteiro interceptou Gilder quando este cruzava Priory Field.
—Com licença.
Sua polidez era ameaçadora.
—Esteve em meu chalé uma ou duas vezes ultimamente. . .enquanto eu estava em Horsham?
Era asserção mais que pergunta.
— Ora, sim — respondeu o americano à sua maneira lenta.
— Sua senhoria pediu-me que fosse lá buscar uma ninhada de ovos. Como o senhor estava ausente, deixei para ir no dia seguinte.
— Quando eu também não estava — disse Tilling, com um sorriso escarninho e o rosto ainda mais rubro.
Gilder fitava-o divertido. Não era dado a bisbilhotíces e, assim sendo, nada sabia dos infortúnios domésticos de seu interlocutor.
—É verdade. O senhor estava em alguma parte do bosque.
— Mas minha mulher bem que estava em casa. . . E foi daí que o senhor se deteve para tomar uma xícara de chá, não é assim?
Gilder sentiu-se ultrajado. Seus olhos cinzentos deixaram de sorrir e se tornaram duros.
— Aonde está querendo chegar? — perguntou.
Num gesto brusco, o outro o agarrou pelo paletó.
—Tire a mão daí!. . .
Tilling não se continha; então o criado americano empolgou--Ihe o pulso com delicadeza e, torcendo-o vagarosamente, fê-lo largar-lhe a roupa.
Se Tilling fosse uma criança não teria oferecido resistência mais efetiva.
—Veja lá; não faça isso. . . É verdade! Vi sua mulher e tomamos chá. Ela pode ser um pitéu pra você, mas pra mim não passa de dois olhos e um nariz. Ponha isto na cabeça.
Dizendo isto sacudiu-lhe o braço ligeiramente, mas com muita violência. Era um truque que aperfeiçoara com a prática. O outro oscilou para trás e só com dificuldade recuperou o equilíbrio.
Tilling era excessivamente bronco e incapaz de entreter duas emoções ao mesmo tempo. E na ocasião estava pasmado demais para sentir qualquer outra coisa que não fosse puro pasmo.
— Você conhece sua mulher melhor do que eu — prosseguiu Gilder, curvando-se, — e provavelmente está certo a respeito dela. Mas está completamente enganado quanto a mim!
Ao voltar do povoado (fora à farmácia), deu com Tilling à sua espera, quase no mesmo lugar em que o deixara.
Mas desta vez não houve o menor sinal de truculência; o outro de certo modo chegou até a mostrar-se escusatório.
Gilder, ao que diziam, caíra na graça de sua senhoria Lady Lebanon, sobre quem, de resto, exercia grande influência; coisa francamente fantástica para uns e obviamente torpe para outros.
— Gostaria que esquecesse o que lhe disse há pouco, Mr. Gilder. Anna e eu temos nossos pequenos desentendimentos, e eu sou um pouco precipitado. Mas é que tem havido muitas visitas a Box Hedge ultimamente. . . Entretanto, sendo o senhor um homem de família. . .
— Não sou casado, mas tenho índole doméstica — atalhou-o Gilder. — Não falemos mais nisso.
Depois contou o caso a Brooks, que o ouviu fleumaticamente, com a mandíbula em ação. Enquanto conversavam apresentou um paralelo histórico.
—Já ouviu falar de Messalina? Era uma italiana, mulher de Júlio César ou coisa que o valha.
Brooks lia muito, de modo que a memória às vezes o traía.
Ainda assim, para um criado que ademais era cidadão americano, o simples saber da existência de Messalina e o ser capaz de apresentá-la em alguma forma reconhecível para ilustrar uma situação, já era algo fenomenal.
Agora, coloque o leitor um tal homem e seu companheiro contra o fundo de Marks Priory, e eles se tornarão absurdos.
Os alicerces de Marks Priory foram assentados por pedreiros saxônios, e a Fortaleza Ocidental fora destruída quando Williám Rufus caçava na Nova Floresta. Henry Tudor achou-a em ruínas e a restaurou para seu protegido John, o Barão Lebanon. Resistira a um assédio dos soldados de Warwick.
Seu estilo era Plantageneta, Tudor e Moderno. Nenhum construtor do século XVIII lhe profanara a forma; sobreviveu, pois, à ascensão e à queda da renascença vitoriana, que produziu tantos anjos e querubins estrambóticos.
Havia ali certa madureza e vetustez que só o tempo e o clima da Inglaterra teriam possibilitado.
Entretanto, Willie Lebanon achava-o irritante e anódino; para o Dr. Amersham era uma prisão e urn desagradável encargo, enquanto que na opinião de Lady Lebanon, apenas, representava a Realidade.
Lady Lebanon era esguia, miúda segundo padrões estritos, embora jamais desse a impressão de pequenez. Entretanto, pessoas houve que, tendo-lhe falado por primeiro, acharam-na majestosa. Era firme, fria e decidida. Seus cabelos negros eram repartidos ao meio e penteados sobre as orelhas. Tinha feições pequenas e delicadas, e o talhe de seu rosto chegava a ser estético. Em seus olhos escuros ardia o fogo inextinguível do verdadeiro fanático. Sempre parecia consciente de algum dever para com a aristocracia. O mundo moderno mal a tocara; sua fala era precisa, isenta de extravagâncias, quase se podendo ver as vírgulas e os pontos com que espacejava as sentenças. Odiava a gíria, o fumo entre as mulheres e a vulgaridade da ostentação.
Jamais se esquecia de que provinha de um quarto barão (casara-se com um primo), nem tampouco da tremenda importância que se devia à família.
Willie Lebanon confessava-se aborrecido da vida que levava. Embora pequeno de estatura, passara em Sandhurst com distinção, e se seu serviço de dois anos no 30.° Hussardo não chegara a consagrá-lo como soldado, a experiência lhe fizera bem ao físico. O grave ataque de febre que o trouxera para casa(explicava Lady Lebanon, quando condescendia em explicar o que quer que fosse) era em grande parte responsável por sua inquietude. Um observador imparcial talvez encontrasse razões melhores para a exasperação do moço.
Ele desceu morosamente a escada em caracol da torre de Marks Priory e entrou no grande hall, determinado a "entender--se de vez" com a mãe. Já tivera o mesmo propósito antes, e, no meio do argumento que então usava, decidira abandonar o assunto, de puro enfado.
Ela estava sentada à escrivaninha, lendo cartas. Ergueu os olhos quando ele penetrou em seu campo de visão e fixou-o com aquele olhar comprido e inquisitivo que sempre o embaraçava.
—Bom dia, Willie.
A voz era suave e rica, mas tinha certa dureza que o fez recolher-se em si. Era como irromper na presença do oficial comandante quando este se achasse em seu pior estado de humor. .
—Humm, posso falar com a senhora? — começou a custo.
Tentava lembrar-se da fórmula que escolhera para dar início ao assunto. Era o chefe da casa, Senhor de Marks Priory no Condado de Sussex e de Temple Abbey no Condado de Yorkshire!. . . Teve apenas uma vaga satisfação ao lembrar-se disso, e certamente não estava nem um pouco mais próximo do ar dominador que diligentemente procurara assumir. . — Sim, Willie?
Ela depôs a pena sobre a mesa, recostou-se no espaldar e esperou.
—Despedi Gilder — informou ele num repelão. — Ele é um perfeito camponês. Muito impertinente. . . Acho ridículo a gente empregar
criados americanos que não conheçam o trabalho, a senhora não? Deve haver centenas de criados por aí, "que a senhora poderia empregar. E Brooks é tão mau quanto...
Nesse ponto fez uma pausa, esbaforido; mas ela esperou. Se ao menos dissesse alguma coisa, ou se zangasse! Afinal, ele era o chefe da casa. Era absurdo que não pudesse despedir qualquer criado que quisesse. Já comandara um esquadrão! (É bem . verdade que o fizera na ausência de oficiais superiores, mas o comandante elogiara o modo como se desincumbira.) Clareou a garganta e prosseguiu.
—Isto me faz um tanto ridículo, não acha? Quero dizer, a posição em que eu fico. As pessoas falam de mim. Até esses caipiras que freqüentam o "White Hart". Disseram-me que o pessoal anda comentando no povoado.
—Que lhe disse?
Willie, que detestava aquele timbre metálico na voz da mãe, estremeceu. ,
—Bom, quero dizer, o pessoal anda falando que a senhora me controla, sabe como é.
— Quem lhe disse? — tornou ela a perguntar.— Studd?
Ele ficou rubro. Era diabólico da parte dela adivinhar logo da primeira vez; mas tinha um dever de lealdade para com o chofer, por isso mentiu.
— Studd? Ora essa, não! Isto é, eu não iria discutir uma coisa dessas com um criado. Tomei conhecimento do boato, apenas. E seja como for, já despedi Gilder. .
— Receio que eu não possa dispensar Gilder. Foi uma grande falta de consideração sua despedir um criado sem me consultar..
— Mas estou consultando agora.
.Ele arrastou uma cadeira para a escrivaninha e sentou-se; fez um esforço heróico para defrontar os olhos da mãe, mas não conseguiu desfitar o castiçal de prata que pendia dum gabinete atrás dela.
— Todo mundo já notou como esses dois se comportam — prosseguiu ele com obstinação. — Só raríssimas vezes me chamam de "Senhor". Não que isso me importe. Acho que esse tratamento é estúpido e antidemocrático. Mas eles não fazem nada a não ser vadiar pela casa!
Ela se inclinou por sobre a mesa, com as mãos finas cruzadas sobre uma folha de mata-borrão.
— Está completamente enganado, Willie. Preciso desses homens aqui. É absurda a sua prevenção contra criados americanos.
— Mas eu não estou. . . — recomeçou ele.
— Por favor, não me interrompa quando estou falando, Willie querido. Não deve dar ouvidos a Studd. Ele é uma excelente pessoa, mas não estou bem certa de que seja a espécie de criado de que precisemos em Marks Priory.
—A senhora não está pensando em despedi-lo, está? — protestou o rapaz. — Tenha a santa paciência! Tive três bons criados de quarto, e cada um deles, na sua opinião, não era bom, apesar de me servirem muito bem. — Nesse ponto encheu-se de coragem: — Suponho que a verdade é que eles não sirvam para Amersham, não é?
Ela se entesou um pouco.
—Eu nunca levo em conta as opiniões do Dr. Amersham. Jamais lhe peço conselhos nem me deixo guiar por ele — replicou ela com voz mais aguda.
Com esforço ele a encarou nos olhos.
—Que faz ele aqui, então? — perguntou. — Esse fulano praticamente mora em Marks Priory. É um sujeito tremendamente asqueroso. Se eu lhe contasse tudo o que já ouvi sobre ele...
Deteve-se de súbito. O rubor que subiu ao rosto de sua mãe era indício a não ser ignorado.
Foi então que para seu alívio, Isla Cratie irrompeu no hall trazendo algumas cartas. Ao vê-los hesitou e teria empreendido uma rápida retirada se Lady Lebanon não a chamasse. Isla tinha vinte e quatro anos, era morena, delgada e comedidamente bela. Há duas variedades de beleza: a que demanda descoberta instantânea e a que só vem com a familiaridade, e isto para surpresa do descobridor. Islã não se fazia notar à primeira vista. À terceira, porém, monopolizava a atenção. Tinha belos olhos,- muito graves e um tanto tristonhos.
Willie Lebanon saudou-a com um sorriso. Gostava de Isla; ousara mesmo dizer isso à mãe, a qual, para surpresa sua, não o reprovou por isso. Era
uma espécie de prima, e secretária decididamente particular de Lady Lebanon. Willie ainda não lhe notara a beleza; por outro lado, pode-se dizer que o Dr. Amersham ainda não a deixara de notar; mas Lady Lebanon ignorava isso.
A moça depôs as cartas na mesa e sentiu-se aliviada ao ver que sua senhoria não fez o menor esforço por detê-la. Quando acabou de sair:
—- Não acha que Isla está ficando bonita? — perguntou Lady Lebanon.
Que pergunta mais esquisita! Elogios por parte de sua mãe eram coisa muito rara. Willie pensou que ela só estivesse querendo desviar o rumo da conversa, e acolheu com prazer a digressão, pois já atingira os limites de suas reservas de determinação por aquele dia.
—Sim,atordoante! — respondeu, sem nenhum entusiasmo especial, a perguntar-se o que viria a seguir.
— Quero que se case com ela — tornou a outra calmamente.
O rapaz esbugalhou os olhos, atônito.
— Casar?! Santo Deus, nunca pensei em me casar! Detesto essa idéia! Ora essa! Ela é terrivelmente bonitinha, mas. . .
— Nada de "mas", Willie. Quero que você tenha o seu próprio lar.
Ele poderia ter replicado, e esse pensamento de fato lhe ocorreu, que já tinha um lar próprio, o qual seria todo seu se tão-somente lhe permitissem governá-lo.
— Se andam falando por aí que você está sendo controlado, devia acolher bem essa idéia. Não tenho o menor desejo de permanecer em Marks Priory e devotar a você o resto de minha vida.
Aquela já era uma perspectiva mais atraente. Willie Le-banon deu um longo suspiro, descruzou as pernas e ergueu-se.
— Suponho que terei de me casar, cedo ou tarde — disse. — Mas olhe que é muito difícil lidar com ela.
Hesitou um instante, não sabendo como sua confissão seria recebida.
— Para ser franco, já tentei iniciar alguma intimidade com ela. Na verdade, tentei beijá-la faz quase um mês, mas ela me pareceu um tanto fria demais.
— É natural! Ora, isso foi muito vulgar da sua parte! Gilder apareceu por ali nesse instante, com o que as explicações do indignado jovem foram sustadas.
O uniforme de Gilder lhe fora cuidadosamente ajustado ao corpo por um bom alfaiate de Londres. Entretanto, ele era do tipo em quem toda roupa resultava em puro desperdício. Aquele seu uniforme poderia ter sido adquirido em qualquer lojinha ordinária. O casaco como que pendia dele, as calças amorfas formavam barrigas nos joelhos. Ele era alto, cadavérico, de feições duras; e sua expressão normal, de veemente desaprovação a tudo.
Lorde Lebanon esperou para presenciar a repreensão; no seu entender, inevitável. Mas sua mãe não fez a menor tentativa de admoestar o criado nem lhe pediu explicações das impertinêncías contra ele alegadas.
— Precisa de mim, m'lady? — Era uma pergunta maquinal.
Quando ela negou com um movimento de cabeça, ele se retirou sem pressa.
—Queria que a senhora lhe perguntasse que diabo ele está pretendendo com... — começou o rapaz.
—Lembre-se do que eu lhe disse sobre Isla — tornou ela, não fazendo caso de seu protesto inacabado. — É encantadora. . . e do mesmo sangue. Hei de falar-lhe a respeito.
—Ela ainda não sabe? — perguntou o rapaz, cheio de surpresa.
. . . Agora, quanto a Studd... — recomeçou ela, juntando as sobrancelhas numa carranca.
—Não está pensando em mandá-lo embora, está? Ele é um camarada danado de bom, e, seja como for, não me contou nada...!
Encontrou-se com Studd depois; estava trabalhando na garagem.
— Acho que enfiei os pés pelas mãos, Studd; e desconfio que você saiu prejudicado — explicou com pesar. — Contei a sua senhoria que o pessoal andava falando, sabe como é...
Studd ergueu os olhos, endireitou as costas com uma careta e sorriu.
—Não faz mal, m'lord.
Era um homem de trinta e cinco anos, fora soldado e servira na índia.
— Não me agradaria deixar esse emprego, mas acho que os meus dias aqui estão contados. Não guardo mágoa de sua senhoria; sua mãe sempre foi muito gentil e bondosa para mim, apesar de tratá-lo como a um escravo. . . Mas aquele cara eu não agüento. — E sacudiu a cabeça.
Lorde Lebanon suspirou. Não havia necessidade de perguntar quem era o tal "cara".
— Se sua senhoria soubesse a respeito dele tanto quanto eu — disse Studd misteriosamente, — não o deixaria entrar nesta casa.
—O que é que você sabe? — perguntou Lebanon.
Já fizera aquela pergunta antes, e recebera quase a mesma satisfação que agora.
—Na ocasião oportuna, terei algumas palavrinhas a dizer — respondeu Studd. — Ele não esteve na índia?
— Claro que sim. Só voltou de lá para me trazer pra casa. Esteve no Serviço Médico Indiano durante anos, creio eu. Sabe de alguma coisa sobre ele... quero dizer, sobre o que ele fez na índia?
—Na ocasião oportuna — insistiu Studd, grave — subirei e darei a minha opinião.
Apontou para um recesso na garagem. Willie Lebanon viu um carro luzidio que nunca vira antes.
—É dele. De onde ele tira o dinheiro? Se pagou alguma coisa por isto, deve ter sido umas duas mil libras. E quando eu o conheci ele estava completamente quebrado. De onde vem esse dinheiro todo?
Willie Lebanon nada disse. Fizera a mesma pergunta à mãe e não obtivera resposta satisfatória.
Detestava o Dr. Amersham; todos o detestavam, exceto os dois criados de Lady Lebanon. Um homenzinho janota, enfeitado demais e perfumado em excesso; tirânico e com o seu tanto de libertino, a julgar pelos boatos que sobre ele corriam o povoado. Enriquecera da noite para o dia e não se sabia a origem de sua fortuna; tinha um belo apartamento em Devonshire Street, dois ou três cavalos de corrida em treinamento, e era considerado bom sujeito por certas pessoas com idéias muito peculiares acerca do que seriam os bons sujeitos.
O fato de ele se encontrar em Marks Priory não surpreendeu Willie. Sempre estava lá. Vinha à tarde e pela manhã, de Londres, e passava ali uma ou duas horas; e quando chegava parecia o senhor de Marks Priory.
Desceu as escadas, onde estivera parado — e, se a verdade deve ser dita, a ouvir —, um instante depois de Willie ter-se retirado; arrastou uma cadeira para perto da escrivaninha onde estava Lady Lebanon e, colhendo um cigarro de uma cigarreira dourada, acendeu-o sem ao menos pedir licença. Lady Lebanon observava-o com olhos inescrutáveis, indignada de tanta familiaridade.
Por entre os lábios camuflados pela barba o Dr. Amersham soltou um anel de fumaça e olhou para ela.
— Que idéia é essa de casar Willie com Isla? Algum novo esquema?... Claro que ouvi tudo da escada — disse. — A senhora nunca me conta o que está havendo, de modo que tenho eu mesmo que descobrir as coisas. Isla, hem?
— Por que não?
Os olhos do homem estavam rubros e inflamados; sua cútis, que de modo algum era o seu ponto forte, estava um tanto manchada; a mão com que tirou o cigarro da boca tremia um pouco. Dera uma festinha em seu apartamento e, em conseqüência, dormira pouco ou nada.
— Foi por isso que me chamou? Era isso que queria me dizer? Para ser franco, eu quase não vinha. Tive uma noite terrível por causa de um paciente. . .
— Você não tem pacientes — disse ela. — Duvido que em Londres haja alguém tão tolo a ponto de empregá-lo!
Ele sorriu a isso.
—A senhora me empregando é o quanto basta. A melhor paciente do mundo, hem?
Era um bom gracejo, mas ele riu sozinho. O rosto de Lady Lebanon estava inteiramente inexpressivo.
—Esse seu chofer não é nada bom. . . Studd. Teve a maldita impertinência de me perguntar por que não trago o meu próprio chofer; e, além do mais, é demasiadamente amigo de Willie.
— Quem lhe disse? — perguntou ela incisiva.
—Sei tudo sobre isso. Há um monte de gente pelas vizinhanças que me informa por carta de tudo o que está se passando aqui.
Sorriu, complacente. Na verdade, tinha dois bons amigos em Marks Thornton, como por exemplo a encantadora Mrs. Tilling, mas Lady Lebanon ignorava tudo a esse respeito. A esposa do couteiro era grande admiradora de Studd; o médico recentemente descobrira isto e sentira-se aviltado.
— Que é que Isla tem a dizer sobre o casamento?
— Ainda não perguntei.
Ele tirou o cigarro de entre os lábios e fitou-o com interesse.
— É, não é má idéia. Por incrível que pareça, nunca me ocorreu. —> Puxou o pequeno cavanhaque. — Isla. . . sim, uma idéia extraordinária.
Se ela se surpreendeu com a aprovação dele, não o demonstrou.
— É parenta dos Lebanons, também. Não houve outro membro da família que se casou em circunstâncias parecidas. . . Isto é, com um primo?
Ergueu os olhos para os retratos escuros da família que pendiam da parede de pedras.
—Uma dessas damas, não foi? Tenho boa memória, hem? Lembro-me da história dos Lebanons quase tão bem quanto a,senhora.
Sacou do relógio com alguma ostentação.
— Está ficando tarde. . . — começou.
— Quero que fique aqui — disse ela.
— Mas tenho um compromisso muito importante esta noite. . .
— Quero que fique — repetiu a mulher. — Mandei preparar-lhe quarto. Studd, é claro, deve ir embora. Ele contou a Willie o boato da cidade.
O médico endireitou-se na cadeira. Mrs. Tilling seria da espécie de mulheres que falam. . . ?
— Sobre mim? — perguntou ele depressa.
— Sobre você? O que é que saberiam sobre você?
A isto ele sorriu confuso.
Se ela tivesse alguma opinião sobre o caráter da exuberância daquele homenzinho, não a exprimiria de modo algum.
Ele acatou o desejo dela como ordem; resmungou um pouco, mas já que não podia valer-se da escusa de que não estava preparado para ficar, não apresentou outra.
Não tinha mesmo nenhuma intenção de voltar para a cidade. Tinha um chalé nas cercanias, decorado e mobiliado por um jovem artista dos mais elegantes de Londres. Planejara passar lá aquela noite, pois era homem com responsabilidades locais. Lady Lebanon ignorava isso também.
—A propósito — tornou ela, detendo-o no meio da escada, — encontrou-se com Studd alguma vez na índia? Ele esteve em Poona.
O semblante do Dr. Amersham se transfigurou.
—Em Poona? — esganiçou ele. — Quando?
Ela meneou a cabeça.
— Não sei; mas anda dizendo que o conheceu lá; o que é mais uma razão para ele deixar Marks Priory.
O Dr. Amersham conhecia ainda outra, mas guardou-a para si.
Mr. Kelver, mordomo de Marks Priory, costumava ficar à porta do santuário durante uma hora em noites estreladas, a contemplar o luxuriante bosque de Sussex, e imaginando, sem nunca chegar a uma conclusão, se era condizente com sua dignidade e importância o ver-se segregado de sua senhora' às nove em ponto toda noite. Pois a essa hora sua senhoria, com as próprias mãos, girava a chave na fechadura daquela enorme porta de carvalho que daí em diante isolava a ala nordeste de Marks Priory das demais dependências da casa.
Os alojamentos dos criados eram confortáveis. Dentro dos limites do razoável, e com a permissão de Mr. Kelver, os criados podiam entrar ou sair à vontade, seguindo a trilha que, ladeando o bosque, dava para o povoado. Não seria afinal afrontoso para alguém que já estivera a serviço de uma Alteza Sereníssima o ver-se agora classificado entre os excluídos?
A porta do santuário ficava na ala nordeste, e, em certo sentido, era a entrada privativa de Mr. Kelver; os demais criados utilizavam-se do pequeno hall de entrada que também servia aos comerciantes. Coisa esquisita, pensava. Quase chegou a expressar sua Opiniãoa Studd, conquanto jamais fizesse àquele policio e experiente homem uma confidencia completa. Pois Mr. Kelver pertencia a uma época a que os choferes eram estranhos, e jamais colocara:esses vivos e.talentosos mecânicos em ordem de precedência na hierarquia doméstica. Desde seu advento constituíram-Iheum enigma. Um mordomo
seu conhecido sabia à perfeição todas as sutis distinções de importância entre um primeiro criado e uma dama de companhia; sem errar, era capaz de avaliar o "peso" de um cozinheiro contra o de um criado de quarto; mas, comchoferes a coisa não era tão fácil.
Studd fora aceito, convertera-se em "Mister Studd" e estava agora tão perto de tornar-se confidente do mordomo quanto o estaria qualquer outro. E ultimamente Mr. Kelver vinha sentindo necessidade de abrir o coração a alguém.
Pensava ainda em Studd, quando este apareceu contornando uma das torres do priorado. Mr. Kelver saudou-o com um gracioso aceno de cabeça, e Studd, a caminho da garagem, fez alto. listava um tanto corado. A princípio Mr. Kelver, que sempre pensava dos criados o pior, teve a impressão de que o outro andara bebendo.
—Acabo de ter uma conversinha com Amersham. —Studd apontou com o polegar por cima do ombro. — Que cavalheiro, hem! E que médico! Se sua senhoria soubesse o que eu sei, ele não permaneceria mais cinco minutos aqui. Exército Indiano, hem? Eu poderia lhe dizer alguma coisa sobre o Exér
cito Indiano!
—Mesmo? — interveio Mr. Kelver polidamente.
Nunca encorajava boatos, mas estava sempre ansioso por ouvi-los.
—Coisa engraçada — prosseguiu Studd. — Encontrei um fulano no povoado, um freguês muito esquisito, que disse ter estado na índia. Tomei um trago com ele no balcão particular do "White Hart". Não falei muito; só ouvi. Mas ele esteve lá sim.
Kelver, magro, aristocrático, moveu a cabeça prateada e fixou os olhos no pequeno chofer com interesse renovado.
—O Dr. Amersham se... humm. . . queixou de alguma coisa? —perguntou.
Studd reassumiu seu ar enfurecido.
—Alguma coisa encrencou no carro dele — explicou. —Ele quer que eu conserte em cinco minutos, e é trabalho pra dois dias. A gente chega a pensar que ele é o manda-chuva por aqui, o senhor não acha, Mr. Kelver, honestamente?
Kelver sorriu misteriosamente e apresentou a resposta convencional que reservava para as perguntas embaraçosas.
—Este mundo precisa de todo tipo de pessoas, Mr. Studd— disse ele.
Studd sacudiu a cabeça.
—Eu não sei, não — disse vagamente. — Que lugar é este? Marks Priory, não é? Quem é o proprietário? O Lorde Lebanon, não é?
Estendeu os dedos da mão e passou a interpretar a hierarquia local.
— É assim, pela ordem. Número um, a prenda desse Dr. Amersham, Senhor Alto Controlador. Número dois, sua senhoria Mrs. Lebanon. Número três. . . — neste número embaraçou-se. — Suponho que como número três o senhor poria Miss Crane, apesar de eu, não ter nada contra ela... E só depois é que vem o Lorde Lebanon!
— Sua excelência ainda é jovem demais — acudiu Mr. Kelver gentilmente.
Não era resposta, e ele o sabia muito bem. Concordava inteiramente com Studd, mas conhecia o seu lugar. Quem já servira o Duque de Meckenstein und Zieburg, bem como à casa do Duque de Colbrook, e cuja família, através de gerações, servira gente grande grandiosamente, não podia, com propriedade e dignidade, passar agora a criticar seus senhores.
Ouviu-se o som de passos apressados que se aproximavam pela trilha pedregosa, e o Dr. Amersham surgiu à vista deles.
—Então, Studd; já acabou de consertar meu carro?
Tinha voz aguda, horríssona. Seus modos eram normalmente irritantes.
—Não, não acabei de consertar o seu carro — respondeu Studd agressivamente. — E tem mais: não vou acabar de consertar o seu carro esta noite. Vou ao baile.
O rosto do médico ficou branco de fúria.
— Quem lhe deu permissão?
— A única pessoa nesta casa que pode me dar permissões — respondeu Studd aos brados. —Sua excelência!
O pequeno cavanhaque do doutor trepidava de indignação. — Pode ir tratando de arranjar outro emprego. —Outro emprego? — escarneceu Studd. — Que espécie de emprego, doutor? O de assinar meu nome nos cheques dos outros?
O rosto do médico de branco passou a carmesim e daí esmaeceu para roxo.
—- Se eu arranjar um outro emprego — prosseguiu Studd, - será emprego honesto. E não o de roubar um oficial patrído. . . Também, qualquer emprego que eu arranjar não me levará a julgamento e por causa dele ninguém seria expulso do Exército!
Seu tom era insinuante e recriminatório. Amersham murchou à vista do brilho de seus olhos; abriu a boca para falar, mas só lhe saíram umas trêmulas palavras.
—Você sabe demais, meu amigo — disse. E, girando nos calcanhares, retirou-se dali.
Mr. Kelver ouvira sem compreender, um tanto horrorizado ante a impropriedade das palavras de Studd, e incerto quanto a se deveria ter intervindo ou, mesmo não o tendo feito, se de algum modo não saíra comprometido da refrega. Se estava certo quanto à posição de Studd na hierarquia do serviço. . .
Enfim, tivera a impressão (e nisto não se enganava) de que o Dr. Amersham nem dera por sua presença.
— Peguei bem na ferida! — exclamou Studd triunfalmente.
— Viu só como ele mudou de cor? Agora na certa ele vai querer me despachar, não é?
— Creio que não deveria ter falado ao doutor daquele modo, Studd. — O tom de Kelver era levemente admonitório.
Mas o chofer estava sob a exaltação de quem emitira o próprio parecer e sentia-se acima de qualquer censura.
—Agora ele conhece o seu lugar, e ainda há mais umas outras coisinhas que eu podia ter dito — declarou.
Havia um baile a fantasia no povoado aquela noite, em, benefício do clube de bocha. Ao cair da tarde chegou uma carruagem trazendo um pierrô, uma pierrete, uma cigana e um hindu para as festividades.
Mr. Kelver reprovava o uso de roupas teatrais por parte de criados, ainda que fossem de confecção caseira. Pois isto os retirava de sua jurisdição. Tinha uma ou duas palavrinhas a dizer-lhes sobre a hora em que deveriam estar de volta. Preocupava-o a impropriedade das pernas da pierrete. Era a primeira vez que tomava consciência de que a arrumadeira tinha pernas. Reservara principalmente um conselho paternal para o suntuoso hindu, que não era outro senão Studd.
—Se eu fosse o senhor, Mr. Studd, creio que procuraria o doutor pela manhã e lhe pediria desculpas. Afinal, se o senhor estiver certo, bem pode dar-se o luxo de se desculpar, e se estiver enganado, não pode dar-se o luxo de deixar de fazê-lo.
Conscientemente ou não, parafraseava o mais sábio conselho de Mr. Horace Lorimer.
Após a partida da carruagem, ele entrou no hall e fez ainda uma inspeção antes de recolher-se à ala dos criados; ajeitou uma almofada no lugar e removeu um copo vazio (do doutor, sem dúvida) que ficara sobre a escrivaninha de sua senhoria.
Viu depois o doutor. Estava num desvão de janela, no corredor principal, em companhia dos dois criados: Brooks, grosso e de óculos, e o ossudo Gilder. Confabulavam em voz baixa. Além de Mr. Kelver, alguém mais os viu. O Lorde Lebanon, à porta de seu quarto, observava a conferência, um tanto divertido. Disse boa noite ao mordomo quando este passou, depois chamou-o de volta.
— Aquele não é o doutor? — O Lorde era um tudo-nada míope.
— Sim, senhor; o doutor e Gilder; e penso que Brooks também.
—Que diabo estarão falando? . . . Kelver, não acha esta casa um tanto esquisita?
Kelver era homem demasiado polido, e criado perfeito demais, para concordar.
Achava esquisitíssima a casa, e aqueles dois criados o fenômeno mais ultrajante de Marks Priory. Mas não estavam sob sua autoridade: fato que sua senhoria fizera questão de deixar claro desde sua chegada ali. Além disso, aqueles dois não eram segregados com os demais lacaios depois das nove; ao contrário, tinham livre acesso a todas as dependências da casa.
—Sempre me pareceu, senhor — respondeu ele, — que este mundo precisa de todo tipo de pessoas.
Willie Lebanon sorriu.
—Creio que já disse isso antes, Mr. Kelver — tornou ele, dando palmadinhas afáveis no ombro do outro, com o que surpreendeu e muito embaraçou o idoso mordomo.
Havia um homem chamado Zibriski. Como, entretanto, tivesse alma de poeta, dizia-se Montmorency. Também foi chamado de outros nomes, nada lisonjeiros, pelas pessoas que se pilharam na posse de notas de papel-moeda impressas em offset numa de suas prensas particulares. Como arte, eram admiráveis; como instrumentos de troca, inteiramente inúteis. Mr. Zibriski levava uma vida muito respeitável; ia a Monte Cario no inverno e a Baden-Baden no verão; constava que mantinha um luxuoso apartamento em Londres (mal sabia sua oxigenada esposa que na verdade eram dois) e rodava para cima e para baixo num reluzente carro americano.
Não era um falsário comum, mas um verdadeiro mestre, no mais alto sentido da palavra. Tinha uma prensa em Hanover c outra nos fundos de um pequeno hotel numa ruela próxima do cais de Ostend. Suas notas de cinco libras eram belamente impressas e impressionantemente numeradas. Caixeiros de bancos chegaram a aceitá-las; passaram igualmente sem despertar suspeitas debaixo dos narizes aduncos dos crupiês de Deauville.
Certo outro indivíduo, chamado Briggs, várias vezes condenado à prisão, que percorreu a vida na ilusão de que a desonestidade era compensadora, residia havia uma semana no povoado de Marks Thornton como hóspede do "White Hart". Era o subagente; em breve Mr. Montmorency apareceria em seu faiscante automóvel e lhe entregaria quatro imponentes embrulhos, recebendo por conta a metade do valor nominal da "mercadoria". Briggs, por seu turno, dividiria os pacotes em quatro partes e as distribuiria, levantando um lucro de cem por cento, o qual seria ainda maior se tão-somente ele tivesse a coragem de se tornar um negociante mais ativo.
Fora, pois, a Marks Thornton aguardar a chegada do atacadista; ao mesmo tempo, porém, chegaram a uma localidade vizinha dois estranhos, aparentemente inofensivos, e mais interessado em Zibriski do que em Briggs.
— Segui-o até Marks Thornton — declarou o Sargento-detetive Totty. — Na minha opinião não vai acontecer nada lá...
— A sua opinião — disse o Inspetor-chefe Tanner, do Departamento de Investigações Criminais — é tão sem importância que dificilmente eu a ouviria, e, seja como for, é de segunda-mão, pois eu a expressei primeiro.
— Por que não agarramos Briggs agora? —perguntou Totty.
Era um homem de altura abaixo da média e de maneiras pomposas; corajoso, mas um tanto curto de visão. Tanner, com um metro e oitenta e cinco de altura, baixou os olhos para o subordinado e suspirou.
— De que o acusaríamos? — perguntou. — Não poderíamos enquadrá-lo nem mesmo no Ato de Prevenção Criminal. Além disso, não é Briggs que eu quero. Quero Zibriski. Toda vez que vejo a fotografia dele atirando rosas às belas mulheres de Nice sinto-me mal. Não existe nenhuma força policial na
Europa que não saiba ser ele o comerciante mais sujo do mundo, e, apesar disso, nunca sofreu nenhuma condenação. Vamos nos mexer um pouco esta noite, Totty.
—Belo lugar esse Marks Thornton — disse Totty. — Pra dizer a verdade, quase aluguei um quarto no "White Hart". É besteira a gente investigar a seis milhas do lugar suspeito... Há lá também um castelo antigo.
Tanner confirmou.
—É a vivenda do Visconde de Lebanon: Marks Priory.
— Bem fora de moda — sugeriu o Sargento Totty.
—E tinha que ser — explicou Tanner. — Começou a ser construído em 1160.
Ao anoitecer dirigiram-se para o povoado, passaram pelo "White Hart" e subiram em marcha lenta a estrada que costeia Marks Priory. Da crista do morro podia-se ter uma boa vista do sombrio solar com suas quatro torres, uma em cada canto do edifício. No tempo dos.Tudors o sólido muro que o cercava fora demolido e construíra-se em seu lugar uma monstruosa peça do tudorismo.
Tanner freou o carro e examinou com curiosidade o castelo.
—Parece mais um presídio — comentou Totty. — Igualzinho ao Holloway Castle.
Mr. Tanner não se dignou responder a isso.
Não viram nem sinal de Zibriski em nenhum dos lugares que visitaram. Às onze em ponto voltaram para onde estavam alojados. Zibriski não apareceu nem no. dia seguinte nem ainda no outro. Ao fim da semana Tanner regressou a Londres. Sabia muito sobre as atividades do submundo; tanto, que estava convencido de que Zibriski fora avisado de sua presença e alterara o plano. Nisso, porém, se enganou.
Na noite do baile a fantasia Zibriski apareceu, encontrou--se com seu agente no quarto deste, onde fez uma rápida troca de dinheiro mau por bom. Briggs meteu as notas falsas numa maleta e, concluído o negócio, saiu para dar um passeio; achava--se naquele estado de exaltação comum aos criminosos em tais ocasiões.
Havia ali uma espécie de baile. Briggs ficou distante do centro do povoado, ouviu as notas exóticas emitidas por uma banda de jazz especialmente contratada, e, trepando pelo morro, chegou a. um mata-burro onde se sentou, encheu o cachimbo e pôs-se a especular gostosamente sobre a boa fortuna que lhe calhara. Passar notas falsas era bom negócio, e seu lucro de cem por cento coisa líquida e certa.
Viu alguém subindo a estrada, uma aparição estranha, envergando um chambre e trazendo um turbante na cabeça. Havia uma meia lua aquela noite. Briggs ergueu-se da trave em que sentara e, com ar curioso, pôs-se a tirar seguidas baforadas. Um hindu? Então lembrou-se do baile.
Ao passar por ele, o homem alegremente desejou-lhe boa noite. De sua voz Briggs concluiu que andara bebendo. O homem transpôs o mata-burro e enfiou-se pelo campo adentro, a caminho do povoado. Briggs tornou a sentar-se e reacendeu o cachimbo, que se apagara.
Súbito, chegou-lhe por trás um gemido como de alguém em agonia mortal. Só durou uma fração de segundo. Briggs, sentado na trave do mata-burro, sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos. Voltou-se, tentando enxergar através da escuridão, mas nada viu. Puxou do lenço e esfregou a testa úmida.
Depois ouviu que alguém corria em sua direção e logo avistou um homem.
—Quem está aí? — ouviu perguntar uma voz esganiçada.
Sob a luz desmaiada do luar distinguiu um rosto com uma pequena barba e ficou perplexo ante a visão.
— Quem é? — perguntou o ex-presidiário, notando com surpresa que estava rouco.
— Tudo bem! Sou o Dr. Amersham — retrucou o barbudo.
— Quem é que estava gemendo? — tornou a perguntar Briggs.
— Ninguém; deve ter sido alguma coruja.
Amersham voltou-se e mergulhou na escuridão. Briggs permaneceu ali sentado longo tempo. Estava meio aterrorizado, mas tinha a intensa curiosidade que constitui a grande virtude dos londrinos; em breve transpôs o mata-burro e percorreu cautelosamente a trilha batida. Lembrando-se de que levava uma pequena lanterna manual no bolso traseiro, apanhou-a, ligou-a, dirigiu-lhe o facho a poucos passos de si e prosseguiu caminho.
Já estava a ponto de desistir quando viu algo rebrilhar contra a luz do farol que empunhava. O reflexo provinha de um montículo à beira da trilha. O coração entrou a bater-lhe violentamente, enquanto caminhava lento em direção do local. Deteve-se, hesitou por um instante, cerrou os dentes e prosseguiu na investigação.
Era um homem; o mesmo que passara por ele em traje hindu. Jazia imóvel estendido no chão. Em torno de sua garganta havia uma gravata vermelha. . . apertada demais. Estava morto e fora estrangulado.
Seu rosto estava horrivelmente contorcido, mas apesar disso Briggs o reconheceu. Era o chofer da mansão; o mesmo homem em cuja companhia bebera no bar: Studd!
Palpou-lhe o pulso cautelosamente, enfiou a mão sob a extravagante camisa, procurando sentir-lhe o coração. Depois ergueu-se, percorreu apressadamente o caminho de volta e transpôs o mata-burro, com o coração aos saltos. Daí dirigiu-se vagarosamente para o "White Hart". Que lá a polícia encontrasse os seus próprios mortos. Briggs não queria envolver-se, e tinha para isso boas razões.
Deixou o lugarejo logo pela manhã, uma hora antes de encontrarem o corpo estrangulado.
Mr. Arty Briggs chegou a Victoria Station desejoso de ocultar-se na populosa cidade, mas sem revelar grande ansiedade. Os quatro policiais à paisana, que lhe fecharam um círculo em redor assim que ele transpôs o cancelo, não lhe deixaram dúvidas quanto à seriedade de sua situação.
Levaram-no a Bow Street e revistaram-lhe a maleta. Ninguém deu ouvidos à sua declaração de que tal objeto não lhe pertencia e que só o carregava para um amigo desconhecido chamado Smith. O receptáculo continha muito do que, com alegria, Mr. Briggs teria visto evaporar-se no ar.
—Eu nunca vi isto antes em toda a minha vida — jurou ele tomando o céu por testemunha.
Depois foi interrogado por Tanner, o inspetor-chefe.
—Transporte de notas falsas não é nada em comparação com aquilo de que ainda vamos acusá-lo, Briggs — começou Tanner. — Você esteve no povoado de Marks Thornton a noite passada, onde ocorreu um crime. Que é que você sabe sobre o caso?
Mr. Briggs não sabia nada. Causava-lhe, disse, grande admiração que alguém pudesse ser assassinado num lugar tão bonito como aquele. Perguntou, com muita argúcia, se tinham encontrado alguma arma com ele por ocasião da vistoria a que acabara de se submeter, e_ prontificou-se a deixar-se reexaminar com maior rigor.
—Até parece que você já sabe que o homem foi estrangulado — disse-lhe Tanner, que de sua parte, estava longe de supor que aquele homem tivesse algo a ver com o crime. Briggs não era assassino; era apenas o vendedor regular de um artigo com muita saída. Além do mais, era velho no ramo, e não so
mente sua história como até seu temperamento já eram sobejamente conhecidos da polícia.
Tanner não podia imaginar que aquele homem tivesse visto com os próprios olhos o chofer estrangulado, de modo que não levou o interrogatório muito longe. Mas, sob a ameaça de suspeita de assassínio, Briggs fez confissão completa do delito menor; e como não há honra entre gatunos, graças à sua cooperação, Mr. '/ibriski foi arrancado de um barco no Havre, àquela mesma noite, e atirado numa cela de Southampton.
Quando voltou à Scotland Yard, Tanner subiu para ver o comissário. Em resposta à sua pergunta este sacudiu a cabeça.
—Não, a polícia local não nos pediu auxílio, e é improvável que o faça até desaparecerem todas as pistas. Parece ser um crimezinho bem comum, e. eles o atribuem a mera vingança pessoal. Esse tal de Studd parece ter feito algumas péssimas amizades aqui e ali, mas aparentemente não tinha inimigos reais.
Falara a Horsham por telefone, de onde extraíra aquelas informações.
Bill Tanner também obtivera um ou dois outros fragmentos de informação aquela tarde, mas nada que despertasse interesse. Studd tivera uma escaramuça com um couteiro por este o suspeitar alvo das fantasias adulterinas da esposa; suspeita que, aliás, se revelou injusta. Ninguém mencionara o nome do Dr. Amersham. Nos relatórios que chegaram à Scotland Yard seu nome também não aparecia, e foi só uma semana depois, quando a polícia local invocou por fim o socorro da Yard, que Tanner e seu auxiliar, dirigindo-se para Marks Thornton, tomaram conhecimento dele.
Fizeram também uma rápida visita a Marks Priory, mas foram acolhidos com frieza. Casualmente Tanner mencionou o nome do Dr. Amersham a sua senhoria.
— Ele costuma vir aqui ocasionalmente — disse a dama, — mas não estava aqui na noite desse terrível acontecimento. Creio que nos deixou perto das dez.
Essa única vista rápida que tivera da vida interna em Marks Priory não o levou a nenhum progresso nas investigações. A vivenda era típica de um grande aristocrata, e, na ocasião de sua visita, estava em obras de reparo. Havia estacas e andaimes contra as paredes, e Kelver, que lhe servira de ciceròne, mostrou--lhe as plaquinhas de pedra encravadas na parede, cada qual exibindo o brasão de algum velho membro da família.
— Sua senhoria — dizia Kelver com a devida reverência — é uma autoridade em heráldica. Ela é capaz de identificar brasões como o senhor e eu identificamos as palavras de um livro. É surpreendente o conhecimento que tem da matéria. Como o senhor provavelmente sabe, a família é muito antiga. O primeiro Lebanon foi armado cavaleiro pelo Rei Ricardo I.
—Interessante — disse. Bill, que não era arqueólogo. —E o que é que pode me dizer sobre Studd?
Kelver meneou a cabeça.
— Aquele trágico acontecimento, senhor, tem-me feito passar noites em claro. Era uma pessoa extremamente agradável; um perfeito cavalheiro; e nunca o vi desentender-se com ninguém. . .
Fez uma pausa, e Tanner interpretou mal a hesitação do mordomo.
Este não vira nem ouvira nada. Tomara conhecimento da morte do chofer pelo policial que encontrara o corpo. Não tinha senão elogios para o defunto, e repelia toda sugestão de que em vida pudesse ter feito algum inimigo.
O Sargento Totty, que se encarregara de interrogar os demais criados, trouxe depois a mesma história.
—Procurei a femme, mas não achei nenhuma — explicou ele. — Não há mulher metida nisso.
Investigavam já havia seis dias. E era tarde demais para levantar novos indícios. Havia um estranho hospedado na estalagem do povoado, e Tanner sabia muito bem quem era. Ouviu--se a história do costume sobre vagabundos e ciganos, mas a caravana de ciganos mais próxima achava-se a vinte milhas dali. Os campos do priorado não costumavam ser freqüentados por caçadores ilícitos, pois estes preferiam os coutos do parque de Marks Priory. Todo caçador do local foi interrogado.
Tanner viu a fotografia da vítima, examinou a gravata com que fora estrangulada e apoderou-se dela: um feio pedaço de pano de cor vermelha, que tinha costurado a um canto um rótulo minúsculo onde se liam algumas palavras em hindustânico, as quais, umà vez traduzidas, revelaram o nome do fabricante.
Viu o Lorde Lebanon e interrogou-o. O rapaz não conseguiu ajudá-lo em nada. Era realmente amigo de Studd, mas isso Bill já apurara pelo mordomo; de resto, estava muito transtornado com a sua morte.
O terceiro membro importante da casa ele encontrou ao cruzar os campos do priorado em direção da aldeia. Isla Crane caminhava apressada em sua direção e o teria ultrapassado se não a parasse.
— Desculpe. . . É Miss Crane, não é? Sou o Inspetor Tanner, da Yard.
Para sua surpresa, a essas palavras o rosto da moça empalideceu e a mão que ergueu à altura da boca estava trêmula. Fitava-o com olhos esbugalhados, cheia de apreensão. Ele já vira expressões como aquela antes. As pessoas, inocentes ou não, sempre reagem de modo estranho quando interpeladas pela polícia; entretanto, nunca esperaria que uma moça daquela classe traísse a mesma emoção. Estava assustada, aterrada. Ao vê-la a ponto de desfalecer, sua surpresa ganhou vulto.
— Verdade? — disse ela num espasmo. — Sim. . . eu. . .disseram-me que o senhor era... É sobre a morte de Studd, não é? Coitado!
— Imagino que a senhora não viu nada, não é? Não pode nos ajudar a esclarecer o caso de algum modo?
Ela sacudiu a cabeça quase antes de ele terminar a pergunta.
—Não. . . Como eu poderia?
Dizendo isto arrancou dali abruptamente. Tanner virou-se e teve a impressão de que ela corria.
O Sargento Totty ficou a observá-la até perdê-la de vista. Depois disse ao superior:
—Que engraçado!
— Engraçado nada — retrucou Bill Tanner. — Já vi muita gente se comportar desse jeito. Deve ser péssimo para pessoas dessa classe verem-se de uma hora para outra às voltas com um assassinato.
Fez o resto do percurso imerso em meditações.
Isla chegou ao grande pórtico que havia diante da entrada principal de Marks Priory. Gilder, o lacaio, estava ali sentado, perdido na leitura de um jornal. Ergueu-se ao ver a moça aproximar-se e atirou-lhe um olhar reprovador. Já o tinha passado quando ele lhe falou:
—Esteve com o tira?
— O detetive? — perguntou ela, depois de se ter voltado.
Ele confirmou.
— Ele perguntou alguma coisa, Dona?
Isla fitou-o por um momento sem compreender.
—Ele perguntou alguma coisa? — trovejou o criado. Sua voz de baixo profundo era um tanto intimidadora.
— Só se eu tinha ouvido alguma coisa — respondeu ela; e voltando-se rápida, entrou.
Lady Lebanon estava no grande salão sentada à escrivaninha. Costumava passar lá a maior parte do tempo. Era capaz de dedicar-se dias a fio ao exame das velhas inscrições heráldicas e dos pergaminhos dos Lebanons. Era exímia latinista, e poucos a ombreavam no conhecimento do inglês antigo. Perlustrava agora um livro, fazendo anotações à parte, num bloco de papel. Ao ver Isla, fechou o livro, enfiou o bloco numa gaveta, trancando-a depois, resolutamente, à chave.
—Que há? — perguntou.
A moça tremia da cabeça aos pés. Por alguns instantes ficou como quem não pudesse falar.
— Ele anda fazendo perguntas — disse por fim. — Mr. Tanner!
— O policial? Que perguntas? Ele disse algo sobre Amersham?
A moça fez que não com a cabeça.
—Não mencionou o nome do doutor. O que vai acontecer agora?
Lady Lebanon recostou-se no espaldar, repousou os cotovelos nos braços estofados da cadeira e enclavinhou as mãos.
—Há momentos em que não chego a entendê-la, Isla — disse com alguma acrimônia na voz. — Que é que poderia acontecer?
—E se eles descobrirem?
Da escrivaninha, a calma dama ergueu para a moça os olhos escuros.
— Eu realmente não sei do que é que você está falando, Isla. Quem poderia descobrir? Gostaria que não falasse sobre coisas que não lhe dizem respeito.
Isla Crane foi cedo para seus aposentos aquela noite. Ocupava o que era conhecido, como "o quarto do velho lorde", uma câmara grande, majestosa e lúgubre, com um gigantesco leito de armação ainda a ostentar na cabeceira as armas já quase invisíveis de algum Lebanon esquecido. Não, porém, por Lady Lebanon; que jamais esquecia nada. Passou-se muito tempo até que Islã conseguisse dormir.
— Por que ela foi tão cedo pra cama?
— Não se -amofine, Willie querido — respondeu-lhe a mãe.— Não há nenhuma razão pela qual ela devesse ficar de pé.
E fitou o dispendioso relógio de pulso. — Está quase na hora de você também ir se deitar, querido. Não fique acordado até tarde. . . Falou com Isla?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, ainda não tive oportunidade desde que aconteceu essa coisa medonha. — Disse isto e inclinou a cabeça apurando o ouvido. — É um carro! — disse depois. — Amersham?
— Ele deve vir esta noite.„ŸEle estava aqui na noite do crime, não estava?
Ela ergueu rapidamente os olhos.
— Não, ele partiu cedo. . . perto das dez, eu acho.
O rapaz sorriu a isso.
— Mãe querida, eu vi o carro dele saindo daqui às sete da manhã. Por acaso eu estava olhando da janela. Alguém me disse que ele tinha dado uma escapada aquela mesma noite.
— E você corrigiu essa informação? — perguntou a. mulher agudamente.
Ele meneou a cabeça.
—Não; por quê?
E ergueu os olhos para o teto abobadado, com um suspiro.
—Puxa, que lugar medonho — comentou depois. — Até me dá arrepios. Não quero ver Amersham; vou para o meu quarto.
A porta se abriu, mas não para dar passagem ao ominoso doutor. Era Gilder que trazia uma bandeja, um sifão e um copo. Despejou um tanto de whisky e misturou-lhe soda. Durante todo o tempo que levou nisso, o olhar inamistoso do Lorde Lebanon o vigiava em cada movimento.
Apanhou o copo da mão do criado e sorveu-lhe o conteúdo. Só percebeu certo travor algum tempo depois de haver bebido.
—Que whisky mais engraçado! — disse...
E foi a última observação que se lembrava de ter feito. Quatro horas depois despertou com dor de cabeça; tendo acendido a luz, deu consigo em seu próprio quarto. Estava na cama e de pijama. Com um gemido, ergueu-se ainda estonteado. Mr. Gilder fora um tanto generoso no manejo da droga que lhe ministrara.
Lebanon levantou-se, cambaleou até a porta e tentou abri-la. Estava trancada. Instintivamente levou a mão para o lugar onde a chave deveria estar, mas não a achou. Ficou confuso; sua cabeça parecia estar fora de controle; inclinava-se de um lado para outro. Fez um esforço para acabar de acordar, encontrou o interruptor e acionou-o.
Na casa só havia dois quartos que conhecia intimamente. A princípio supôs que estivesse num terceiro; mas aos poucos, à medida que suas percepções despertavam, reconheceu alguns objetos. Havia um cordão de campainha próximo da cama; puxou-o, sentou-se no leito e esperou longo tempo antes de obter resposta. Estava a ponto de tocar de novo quando ouviu uma chave introduzir-se na fechadura e estalar ao ser girada.
Era Gilder. Algo tinha se passado com ele; seus olhos estavam descoloridos; trazia amarfanhado o colarinho; seu colete de listras estava um tanto lacerado e, ademais, faltavam-lhe dois botões. Por longo tempo fitou, carrancudo, o rapaz.
—Deseja alguma coisa, senhor? — disse por fim, e Lebanon percebeu que tivera de violentar-se para proferir aquela forma polida de tratamento.
— Quem trancou esta porta?
—Eu mesmo — respondeu friamente o outro. — Um fulano que apareceu esta noite armou um sururu lá embaixo, e eu não quis que o senhor se envolvesse.
O rapaz fitou-o embasbacado.
— Quem era? — perguntou.
— Ninguém que conheça — respondeu rápido o criado.— Há alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor-?
— Arranje-me um trago. . . Alguma coisa fria. Aquele whisky que você me deu não era lá muito bom, Gilder.
Talvez o lacaio percebesse o tom de suspeita na voz de seu senhor, mas não deu o menor sinal de estar embaraçado.
— Foi justamente o que o outro cavalheiro disse. Acho . que o whisky por aqui não presta mesmo. Vou pedir a sua senhoria que encomende mais da cidade.
.— Onde está minha mãe? Ela estava lá quando. . . ?
Gilder meneou a cabeça.
—Não, senhor; estava nos aposentos dela.
—O que foi que aconteceu?
O criado fitou-o com um sorriso forçado.
— Talvez o senhor prefira vir e ver — respondeu; e Lebanon, tendo calçado os chinelos, seguiu-o corredor afora. Desceram depois a escada circular que dava para o hall.
Brooks estava lá em mangas de camisa, aparentemente tentando restaurar a ordem do ambiente. Havia ainda uma mesa de pernas para o ar, a borda do sofá estava lacerada, os restos de um pequeno relógio jaziam espalhados em torno, e, do candelabro, quatro velas pendiam desordenadas e sem vida. Lebanon passeou os olhos escancarados por tudo aquilo.
— Quem fez isto? — perguntou, tentando imprimir à voz certo tom de autoridade.
— Um amigo do Dr. Amersham — respondeu Gilder, e havia no seu tom uma ponta de malícia que Lebanon não percebeu;
O chão estava manchado e coberto de cacos de vidro; obviamente a garrafa de whisky tinha levado a breca. Uma parte do apainelado fora rompida também.
—Parece que algum lunático andou solto por aqui! —disse Lebanon.
O sorriso se desvaneceu do rosto de Gilder, que ficou momentaneamente alarmado.
—Hem? — disse . — Sim, de fato. Parecia um doido mesmo. . . esse amigo do Dr. Amersham.
Eram três e meia. Wíllie notou uma luz mortiça a oriente, quando desaferrolhou a enorme porta, soltando-lhe as cadeias, e saiu alguns passos, a aspirar o ar fresco da manhã. Estava ainda muito escuro e muito calmo ali; e o silêncio o fez estremecer. Os últimos animais a se recolherem já o haviam feito, e os mais madrugadores ainda estavam por gorjear as primeiras notas de saudação ao novo dia. Ao ver a luz no outro extremo do campo lembrou-se de que Tilling, o couteiro, morava lá, à beira do bosque; homem ríspido e inamistoso. É óbvio que estaria de pé; parte de seu trabalho consistia em vigiar a propriedade. Marks Thornton contava com muitos caçadores ilícitos; homens astutos, de rostos tostados pelo sol, com seus cães indiscriminados.
A esse pensamento, Willie Lebanon sorriu dentro da noite. Aquela atividade, em todo caso, não lhe parecia criminosa. Se fosse juiz do condado não condenaria ninguém só por apanhar o que, afinal de contas, já lhe pertencia.
Ouviu atrás o passo lento e fatigado de Gilder que caminhava sobre o lajedo, vindo em sua direção. Fumava um charuto, sem aparentar o menor indício de embaraço.
—Tilling parece ter ficado de pé até tarde esta noite. Deve estar de serviço, não?
Gilder não respondeu logo. Tirava imperturbáveis baforadas, com os olhos taciturnos fixos na luz distante.
—Tilling foi a Londres a noite passada — respondeu depois.
Nesse momento o retângulo luminoso, alvo da atenção de ambos, se apagou, e Lebanon ouviu do criado uma interjeição reprobatória.
— Eis alguém à procura de encrenca.
—Quem? . . . Tilling?
Gilder não respondeu.
—É melhor entrar. Só está vestido com esse roupão, e a noite está fria.
Agora seu tom era respeitoso.
Havia ocasiões em que Lebanon gostava daquele magro americano. Em certos momentos sua familiaridade insolente o divertia. Não se vexava do charuto nem daquela camaradagem presunçosa.
„ŸVocê é engraçado — disse, enquanto seguia o lacaio e o ouvia trancar a casa por dentro ruidosamente.
„ŸNunca me senti menos engraçado em toda a vida — replicou Gilder.
—Quem foi que aprontou toda aquela confusão?
Gilder sacudiu a cabeça.
—Um amigo do Dr. Amersham — respondeu, e sorriu um sorriso esdrúxulo. — Mas, pensando melhor, talvez não fosse tão amigo dele.. .
Nesse ponto o rapaz notou que a voz do criado se alterava.
—Que está fazendo aqui embaixo, Dona?
Willie voltou-se em direção da escada. Era Islã. Usava um roupão espesso e decerto estava toda vestida por baixo, pois trazia meias e sapatos.
— Nada — respondeu ela num espasmo. — Está tudo bem, Gilder?
—Tudo bem, Dona. Não precisa se preocupar. O cavalheiro que armou o barulho já foi pra casa.
Disse isto com determinação, fitando-a fixamente. Willie teve a impressão de que veladamente ele tentava sugerir algo à moça, du mesmo lhe impingia uma explicação para aquela desordem que não somente seria irreal como forçosamente ela devia saber que o era.
—Compreendo — tornou a moça com um aceno de cabeça. Ainda estava sem fôlego. — Ele já foi para casa.. . É bom saber disso. . . Sua senhoria queria ver o Dr. Amersham antes de se recolher, Gilder.
O criado esfregou o queixo.
—Queria? . . . Bom, acho que Amersham. . -, o doutor não está aqui. Foi dar uma volta faz uma meia hora. Hora esquisita pra passear, não é? Pode dizer a sua senhoria que eu o mando logo que o encontrar.
Quando a moça se retirou, Lebanon transferiu o olhar atônito para Gilder.
—Ela o viu. . . esse tal, seja lá quem for?. . . Miss Isla?
O lacaio confirmou com um aceno.
—Se viu! — disse lacônico; e era óbvio que não estava para confidencias. — É melhor ir para a cama, senhor. É muito tarde.
Lebanon não protestou. Na verdade, aceitou de bom grado a sugestão, pois repentinamente começara a sentir-se muito cansado e estranhamente apático.
Fora narcotizado; sabia disso, mas quase não se importava. E em seu estado de exaustão era incapaz de afligir-se com o que quer que fosse.
O Inspetor-chefe Tanner, com sua alta estatura e índole prática, apenas preservara em si mesmo aquele bocado de romantismo sem o qual a vida se tornaria insuportável. Acreditava em muitas coisas, materiais e práticas sobretudo, mas nem sequer uma ínfima parte de sua vida se apoiava na imponderável substância dos sonhos. Entretanto, argumentava que quando alguém parasse de sonhar morreria, e nisso não se enganava,, pois os seus próprios sonhos, quase sempre rudes e extravagantes, tinham muitas vezes originado soluções extraordinariamente práticas para seus problemas mais comezinhamente mundanos.
Era crente fanático na eficácia dos departamentos de registro, e até mesmo aí encontrava certo encanto romanesco. Era capaz de ficar horas esquecidas num lugar desses, passando em revista velhos conhecidos. Dessem-lhe um cartapácio, alguns índices remissivos, um fichário com fotografias de gente mal-
.-encarada, e ele estaria feliz. Isto o faria permanecer sentado
,. horas a fio, cismando e ponderando.
No mais das vezes suas especulações tinham como origem
.algum ponto convencional. Que teria acontecido ao velho Steine? Fazia anos que não o via. Lá estava ele, velho e trombudo, transfixando-o do fichário; sua ficha era alentada; assaltante, arrombador de cofres, suspeito de homicídio. Estaria morto? Atirado, talvez, à vala comum, ou dissecado por algum jovem anatomista de algum hospital londrino? Ali estava Paddy the Boy; bem-apessoado, com o mesmo olhar feroz; larápio que nunca pudera resistir à tentação de beijar criadas adormecidas.
Foi isto mesmo o que o arruinou. Mais adiante apareceu Johnny Greggs, benevolente, calvo, a sorrir com afetação para o fotógrafo do presídio. Cumpria pena de sete anos e cinco meses em Parkhurst, e teve sorte de escapar de coisa pior. Seu crime fora assalto com violência, e ao ser preso tinha em seu poder duas automáticas inteiramente carregadas: pecado imperdoável.
Mr. Tanner permitiu-se afinal abandonar aquela linha de investigação. Dobrou o fichário e voltou a examinar a pasta M.O.
Ora, todos os malfeitores habituais são especialistas, e o método de classificá-los por seu modus operandi reduz-lhes a especialidade a um simples e frio índice. Mr. Tanner inspecionava, pois, os nomes e dossiês de todas as pessoas que, desde a formação do arquivo criminal, tivessem alguma vez estrangulado ou tentado estrangular alguém. Não poucos nomes que leu pertenciam a homens que tinham dado o passeio das nove horas que terminava no patíbulo. Alguns se achavam no asilo de criminosos lunáticos de Broadmoor; pervertidos que tinham ido longe demais. Na lista de nomes restante, não encontrou nenhum caso paralelo ao ocorrido em Marks Priory. Havia um número surpreendentemente grande de homens e mulheres que já haviam tentado ou conseguido estrangular alguém com cordas, mas examinando-os um por um não encontrou nome nem dossiê que pudesse identificar o autor do crime que investigava.
Desceu a seu gabinete achou o Sargento Totty confortavelmente instalado em sua cadeira, e, sem a menor cerimônia, tocou-o dali.
O sargento não era romântico na acepção ampla da palavra, Era, isto sim, um mentiroso de primeira quando se tratava de fazer o relatório de suas proezas. Mentiroso inofensivo, porque ninguém ia nas suas histórias, que aliás eram muito mal contadas. Abrigava certo ressentimento contra as autoridades do ensino, que em seus testes para promoção exigiam dos candidatos um nível mínimo de conhecimentos sobre História; e comungava com o temível Sargento Elk, antigo inspetor já aposentado, um desrespeito quase malevolente pela Rainha Elisabete, pois ainda não conseguira apresentar, nos três exames em que fora reprovado, detalhes precisos da vida daquela majestade.
Totty ergueu-se relutante, foi até a janela e pôs-se a fitar o movimentado Embankment.
Profissionalmente, aquela fora unia semana enfadonha.
— Quem é Amersham? — perguntou Tanner de sopetão.
-— Hem? — Mr. Totty estava distraído. — Amersham — respondeu depois — é uma cidade de Kent.
— Amersham — tornou o Inspetor Tanner pacientemente — é uma cidade de Buckinghamshire. Essa ânsia de aprender tudo ainda acaba por levá-lo a ser exato algum dia. Estou fakndo do Dr. Amersham.
Totty mordeu os lábios.
— Ah, sei! — disse. — Aquele fulano de Marks Thornton. É um médico.
— Nem isso você sabe — disse Tanner. — Ele se intitula doutor e talvez seja, mas se é de música ou medicina não temos meios de saber.
Tirou do bolso uma caderneta, virou-lhe as páginas e leu uma anotação.
— Ele tem um apartamento em Ferrington Court, Devonshire Street — disse. — Talvez um conjunto de apartamentos.
— Fica na esquina de Park Lane — informou Totty animadamente.
Quando ficava assim, Tanner já sabia que a informação que dava era falsa.
— Nisto eu estaria disposto a crer se já não soubesse que você está enganado — respondeu Tanner. — Ferrington Court é residência cara demais para médicos. Além disso, ele também é proprietário de dois cavalos de corrida.
— Um deles venceu outro dia — tornou Totty. — Engraçado, eu quase apostei nele.
— Faz dois anos que nenhum deles ganha uma corrida — informou Tanner gentilmente. — Gostaria de conhecer os antecedentes dele. E antes que você comece a fazer novas adivinhações, fique sabendo que o que eu queria era saber algo sobre o seu negro e hediondo passado.
„ŸMal reparei no homem — disse Totty,
— O que não é de admirar — tornou o outro, — já que você não chegou a vê-lo. Vou-lhe dar uma dica, para o caso de querer bancar autoridade no assunto: ele esteve na Índia; logo, talvez seja médico. Mas o que será que ele faz em Marks Priory, qual sua ligação com a família?
—Ele podia ter cometido aquele crime —- disse o Sargento Totty, momentaneamente alerta.
—E você também — disse Tanner. — E quase todo mundo que está na lista telefônica.
— Vou-lhe dizer o que foi que eu notei quando estive lá. — A voz de Totty assumiu um tom oficial, de modo que Mr. Tanner se dispôs a ouvi-lo. r— Eles têm lá um couteiro, um cara chamado Tilling. Alegre como um fim de semana chuvoso. Vi ele num boteco. . . Na estalagem, aliás. Estava com as mãos em cima do balcão. Nunca vi mãos daquele jeito: que nem lombo de carneiro! Mencionei isso ao estalajadeiro, e ele disse que Tilling uma ocasião matou um cachorro usando só as mãos; estrangulou ele., .
—Não me diga! — exclamou Tanner.
Totty sorriu
—Eu conservo os ouvidos abertos, Tanner. Você me acha um fracasso, mas quando acontece alguma. . .
— Claro que você conserva os ouvidos abertos; a natureza fez você assim. ... Então quer dizer que ele estrangulou um cachorro, hem? Por que não me disse isso antes?
— Pra falar a verdade — Totty parecia inusitadamente franco, — eu me esqueci. Ele também tem esposa. . . bonita, pelo que ouvi dizer.
— Isso quer dizer que ela tem boa cara ou que é um problema para o marido?
— As duas coisas. É muito amiga de rapazes, pelo que dizem. Parece que tem namorado uns dois ou três fulanos. Caramba! — Seu queixo caiu. — Ora essa, Studd foi um deles.
Como é que eu me esqueci disso? !
—O que foi morto?... O chofer? . . .
— Ele mesmo. .'. Engraçado eu não juntar os dois fatos.
Mas, sou assim mesmo; as coisas têm de estar muito bem arranjadas na minha mente. . .
— Que mais você tem a dizer? — perguntou Tanner impaciente. — Eu vi o homem. . . Um sujeito grandalhão e intratável; lembro dele,
Totty ergueu os olhos para o teto, em busca de inspiração.
— Acho que é só isso que eu sei — disse. — Ah, é mesmo; ele estava em Londres na noite do crime, com o filho do estalajadeiro. Por isso não pude levar adiante minhas investigações.
— Tilling estava na cidade? Vamos verificar isso. Eu vou sair e ter uma conversinha com essa mulher, e no caminho quero ver se encontro o Dr. Amersham,
Consultou o relógio; eram quatro e meia.
— Quer que eu vá junto? — perguntou Totty.
„ŸAcho que não é preciso. Fique aqui e tente lembrar um pouco mais de tudo que esqueceu. Sabe onde estiveram Tilling e o filho do estalajadeiro quando vieram a Londres?
Totty bateu na testa e sorriu um sorriso amarelo.
„ŸSim, sei — disse. — Está bem aqui. — E tornou a bater na testa. — Arquivo criminal. Fichário. Nunca me esqueço de nada, uma vez que tenha sido bem plantado. . . Eles vieram visitar o irmão do estalajadeiro que tem um bar em New Cut. Era aniversário dele, ou coisa parecida, e o jovem Tom deu uma carona a Tilling até lá; passaram a noite na cidade.
— Verifique isso — disse Tanner.
Chegou a Ferrington Court meia hora atrasado. Era um novo conjunto de apartamentos, concebido por um arquiteto com propensão para o estilo do tempo da Rainha Ana, no que se referia a exteriores, mas que se esquecera da funcionalidade ao planejar o interior. O saguão era de mármore. Os falsos pilares nem eram coríntios nem egípcios nem bizantinos. Havia um elevador com uma porta corrediça, cujo interior era laqueado à maneira chinesa.
—O Dr. Amersham? Sim, senhor; ele está. Ele o aguarda?
—Espero que não — sorriu Bill Tanner.
Passava para o elevador quando alguém mais entrou no prédio e atravessou correndo o vestíbulo em direção, deles. Era um clérigo; homem franzino e pálido que sorria beatifica-mente para o ascensorista e para Bill.
Subiram ao terceiro andar. Quando a porta se abriu, o clérigo desceu e Bill imitou-o. Via-o agora em frente do número 16, que também era seu destino.
Um jovem criado de libré abriu a porta. Obviamente o religioso não lhe era estranho. Por alguma razão supôs que Tanner o acompanhasse.
— Vou dizer ao doutor que o senhor está aqui, Mr. Hastings — disse o criado, e deixou-os sós.
— Meu assunto não é urgente — sorriu o clérigo. Sou o vigário de Peterfield.. . John Hastings. Conhece Peterfield?
„ŸJá ouvi falar — respondeu Tanner educadamente.
Não se admirou de que o Dr. Amersham conhecesse um clérigo. Para ele Amersham podia ser alguém de fundos princípios religiosos, ou aquele homem podia ser algum velho companheiro seu de escola.
O vigário inclinou a cabeça e falou em tom confidencial.
—Receio que vou causar amolação ao nosso caro amigo Amersham — disse, com certa malícia na voz. — É o salão de festas da cidade; um perfeito pesadelo para mim. Já tem sete anos, e ainda não o concluímos. O doutor tem sido muito bondoso e... — Nesse ponto, tossiu.
A porta abriu-se e entrou o Dr. Amersham. O sorriso com que saudou o vigário desvaneceu-se quando ele avistou Bill. —Bom dia, Mr. . . Tanner, não é?
—Isso mesmo, doutor — respondeu Bill. — O senhor tem boa memória.
— Maravilhosa — acudiu Mr. Hastings. — Constatei isso quando o doutor esteve em Peterfield numa, quase diria, missão vital.. .
— Posso conceder-lhe alguns minutos, Mr. Tanner. Quer entrar para a sala, por favor? — A interrupção de Amersham fora brusca, quase rude.
—Não se incomoda, Reverendo?
Cruzou apressadamente a porta e, quando Bill entrou, fechou-a atrás dele.
— Bem, Mr. Tanner, descobriram alguma coisa sobre esse infeliz acontecimento?
— Não, doutor; nada de importante. Pensei que talvez o senhor pudesse me dizer algo.
O Dr. Amersham fitou-o pensativamente, mordeu os lábios tapados pela barba e sacudiu a cabeça.
—Não. acho que não tenho muito que dizer. Claro que foi um grande choque para mim e para Lady Lebanon. . . Choque terrível. O homem, refiro-me a Studd, não era uma pessoa lá muito agradável; na verdade tivemos muitas rixas um com o outro. Tinha maneiras muito impertinentes e também como chofer não era essas coisas. . .
Studd, na verdade, era um excelente chofer, mas o doutor não pôde deixar de menosprezá-lo.
—Ele era uma espécie de conquistador, também; não era?— indagou Tanner.
O doutor olhou-o espantado.
—Não sei exatamente o que quer dizer. É claro que não cheguei a saber muito sobre sua vida particular. Havia alguma mulher na vida dele?
Bíll sorriu de leve e sacudiu a cabeça. Carregara a pergunta de certa malícia.
—Não sei mais do que o senhor, mas ouvi uma história de que houve uma espécie de caso amoroso entre ele e a mulher de um couteiro, uma tal de Mrs... — Fez uma pausa para lembrar-se do nome. — Tilling, não é?
E notou que o doutor se empertigara. Aquela sugestão representava um golpe na sua vaidade.
— Absurdo! — retrucou ele. — Mrs. Tilling é uma mulher muito... humm. . . encantadora. Studd?... Ridículo!
— Ela é muito bonita? — indagou Bill. — Quero dizer, atraente?
— Sim, creio que é — respondeu o doutor, lacônico. — Não, Mr. Tanner; o senhor está completamente enganado a respeito de Studd. Mrs. Tilling é uma jovem muito reservada, e dificilmente seria da espécie de mulheres que. . . Apre!
Bill Tanner nunca tinha ouvido um ser humano dizer "apre!" antes, e teve ímpetos de rir.
—Quem lhe disse isso? — perguntou, por fim, o médico.
O inspetor ergueu os ombros largos.
— É um desses rumores que correm por aí e acabam caindo em ouvidos atentos — respondeu de bom humor. — Mas ouvi dizer que o marido é muito ciumento. O senhor sabe de alguma coisa a esse respeito?
— O marido é uma besta! — bradou irado o doutor; — um caipira brutamontes e estúpido! Ele a trata de um modo detestável!
Nesse ponto pareceu perceber a maneira interessada com que os olhos de Tanner o inspecionavam, e emendou à pressa:
— Claro que não a conheço muito bem. Atendi-a profissionalmente. A gente tem de depender de boatos; como o senhor, Mr. Tanner.
Obviamente havia ali um ponto delicado a ser explorado mais a fundo. O doutor estava pronto para mudar de assunto. Por outro lado, Bill gostaria de ouvir mais.
— Pensei que a conhecesse bem — disse ele com ar de inocência; — se não, não a teria mencionado.
— E por que haveria de conhecê-la bem? — perguntou friamente o doutor. — Para mim, ela é apenas a esposa de um dos criados de sua senhoria, só isso. Naturalmente, tenho de me interessar por todos os criados de sua senhoria, mas é interesse puramente profissional.
— Naturalmente — murmurou Bill. — Quer dizer que em sua opinião todo esse boato sobre — tornou a sacudir os ombros — bem. . . essa espécie de camaradagem entre Studd e Mrs. Tilling não passa de um absurdo?
— Sem dúvida! — disse o outro enfaticamente. — É o tipo de rumor sujo que costuma percorrer os vilarejos onde as
pessoas não têm outra ocupação na vida a não ser fuxicar. . . e fuxicar maliciosamente.
Depois forçou um sorriso.
— Espero que ainda volte aqui para me informar sobre esse caso infeliz. A Scotland Yard parece não merecer a reputação de sensacionalista.
— Não temos reputação de sensacionalistas — disse o Inspetor Tanner calmamente. — Somos o. departamento mais prosaico do governo. Se o senhor está interessado em sensação devia ir ao Departamento do Tesouro! Sinto tê-lo incomodado. Não quero privá-lo por mais tempo da companhia de seu amigo.
E estendeu-lhe a mão.
—Ah, refere-se a Mr. Hastings? Já o conhecia?
Amersham fizera a pergunta casualmente, mas o inspetor percebeu-lhe uma ansiedade oculta. Quando Tanner meneou a cabeça, ele prosseguiu.
— Um pastor muitíssimo divertido. Eu o tenho ajudado com o clube para seus rapazes. . . Por falar nisso, Mr. Tanner, é verdade que havia um criminoso muito conhecido em Marks Thornton na noite do crime? Ouvi qualquer coisa a respeito e pus-me a pensar se o senhor estaria seguindo essa linha de investigação. . .
Bill Tanner lembrou-se de Briggs e reprimiu uma gargalhada.
—Eu não o definiria como criminoso muito conhecido. O que ele é, um criminoso bem "prendido". Não, não há nenhuma suspeita pesando sobre ele. É um falsário, e esta já deve ser a sua terceira ou quarta condenação. O senhor deve tê-lo encontrado na índia; parece que esteve por lá algum tempo, não? O nome dele é Briggs.
O Dr. Amersham era capaz de controlar os músculos do rosto; não porém a sua cor, que de vermelha passou a amarela e daí regrediu para um vermelho ainda mais vivo. Por um instante o Inspetor Tanner não pôde crer na evidência de seus sentidos. À simples menção daquele falsariozinho, Amersham empalidecera. Era incrível, mas era um fato; ficou, pois, embatucado.
— Nunca o encontrei — disse Amersham lentamente, — e também nunca ouvi falar dele. De fato, passei na índia uns cinco ou seis anos. . . Não sabia? No Serviço Médico Indiano. Era um cargo terrível, de modo que me demiti. . . A instabilidade da rupia. . . e as condições de trabalho eram. . .
Estava incoerente, mas recobrou-se quase de imediato, tornando a exibir os dentes alvos.
—Se ainda precisar de alguma informação que eu lhe possa dar, não hesita em telefonar-me, Mr. Tanner. Estou sempre aqui,-embora passe também uns dois ou três dias por semana em Marks Priory. Eu e Lady Lebanon estamos escrevendo um livro em colaboração. . . Isto é segredo; espero que não diga a ela que lhe contei, do contrário ela se zangaria. . . É sobre heráldica. Sou perito no assunto.
Bill não chamou o elevador; preferiu descer pela escada de mármore; um ou dois probleminhas lhe roíam o espírito.
O porteiro do edifício sorriu-lhe de seu cochicholo, mas a mente do inspetor estava ocupada demais para notá-lo.
Por incrível que pareça, a primeira de suas preocupações era a "ocasião vital" da visita de Amersham à igreja vilarinha de que Mr. Hastings era vigário. Arquivou o problema, com a promessa mental de investigá-lo depois, e concentrou-se no pró-'
prio Amersham. Problema, esse, que de modo algum era pequeno. Por que mudara de cor quando o nome de Briggs fora mencionado? Que relação poderia haver entre um criminoso barato, que passara a maior parte da vida na prisão por forjar dinheiro, e aquele ex-funcionário do Serviço Médico Indiano? E por que defendera ele com tanto ardor a reputação de Mrs. Tilling?
Só havia uma simples explicação para tudo isto: o boato que os relacionava seria verídico. Isto não era improvável. Mrs. Tilling era, como ele mesmo .admitira, uma mulher muito atraente, e, a menos que estivesse completamente enganado, o Dr. Amersham seria, no mínimo, bastante impressionável.
Tanner saiu para Devonshire Street, e procurava um táxi quando percebeu um homem parado no outro lado da rua. Viu-o voltar-se de súbito e absorver-se na vitrine de um fabricante de instrumentos cirúrgicos. Entretanto, não se voltara rápido o bastante: Tarmer imediatamente reconheceu naquela figura, momentaneamente fascinada pelos objetos repelentes que abarrotavam a vitrine, nada menos que Tilling, o couteiro; e compreendeu que ele estivera observando o apartamento do doutor.
Fez menção de atravessar a rua em direção do homem, quando este, notando-o decerto com o rabo dos olhos, escafedeu-se apressado. Bill seguiu-o no mesmo ritmo. Tilling dobrou por uma transversal e já tinha desaparecido quando seu perseguidor finalmente apontou na esquina. Havia um táxi rodando no outro extremo da rua, e Tanner era capaz de apostar que o passageiro era Tilling.
Voltou para a Scotland Yard com o interesse renovado pelo caso de Marks Priory. Já estava em seu gabinete, percorrendo um pequeno dossiê que conservava na escrivaninha, quando Totty reapareceu.
— Verifiquei aquela declaração e confere — disse. —Tilling dormiu naquela taverna de New Cut...
— Você não teve tempo de ir a New Cut! — disse Tanner.
— E pra que serve o telefone? — perguntou o outro.
— Não para interrogatórios policiais — respondeu Tanner a sério.
— Pra dizer a verdade eu conheço o proprietário. Eu e ele somos como irmãos — contraveio Totty com toda a calma.
— Tillíng dormiu lá. . . Na taverna, quero dizer. . . e voltou pra casa de manhã. Ele é um grande amigo do irmão do. . .
—Por falar em dormir, você dormiu bem a noite passada?
Totty fitou suspeitosamente o superior.
— Dormi muito bem, por quê? Não tenho a menor consciência de. . .
— Sei disso. Você não tem nenhuma consciência de culpa, e por acaso falou a verdade desta vez. Totty, vou-lhe dar uma tarefa do tipo que você gosta. Vá a Ferrington Court e siga o Dr. Amersham. Descubra se ele está em casa e quem são seus visitantes. Pode bater um papo com o criado dele e, também,
procure arrancar alguma coisa dos servidores do prédio.
Totty lançou um gemido.
— Isso não é tarefa pra sargento, Tanner. . .
— "Mr. Tanner", por favor, ou simplesmente "sir" — respondeu Bill. — Na verdade, é tarefa para inspetor, e eu não a confiaria a outro que não você. Pode haver uma brecha nesse caso de Marks Priory, e quero que você se encarregue dela. Não está ameaçando chover e, seja como for, você pode dar um jeito de ficar dentro do prédio... Sei que você não é de ficar, mal à vontade sempre que possa dar um jeito. Se não quer ir, eu mando Ferraby. Ninguém imaginaria que ele é detetive. . .
— Ninguém imaginaria que eu sou detetive — berrou Totty. — Não tenho nada a dizer contra o Sargento Ferraby ou contra qualquer outro oficial subalterno, mas, se você quer que eu faça esse trabalho, eu faço.
O Sargento Ferraby tinha uma qualidade que era o fraco de Totty. Pertencia àquele seleto grupo de indivíduos que tinham freqüentado uma public school e posteriormente se transferira para o serviço policial. Os incidentes do reinado da Rainha Elisabete não constituíam mistério para ele. Tinha bom aspecto, falava bem, e revelara grande aptidão para o trabalho, o que logo lhe valeu uma promoção. Secretamente Totty o admirava, e levava a admiração ao ponto mesmo de imitá-lo. Andava cultivando o que Tanner, nos seus momentos de maior azedume, descrevia como o acento de Oxford ou Cambridge; e o fazia com muito mais freqüência do que Bill supunha.
Totty tinha excelentes razões para relutar em aceitar aquela tarefa; seguir alguém é trabalho ingrato e muito aborrecido, envolve horas de paciente observação sem que absolutamente nada aconteça. Seguir uma pessoa por uma rua sem a perder de vista não é tão simples como pode parecer; especialmente quando a pessoa em questão tem a seu dispor um carro veloz.
Quando entrou no fervilhante saguão de Ferrington Court não viu a menor perspectiva de estabelecer nenhum contato proveitoso com o resplendente porteiro ou com o ascensorista.
Mas, se Tanner tivesse prestado mais atenção, e se se desse ao trabalho de olhar por trás dos uniformes purpurinos enfeitados de lacinhos dourados, teria reconhecido neste último um antigo membro da Força Policial Metropolitana, um tal de Bould. Totty, entretanto, reconheceu-o de pronto e saudou-o como a um velho camarada.
— Engraçado que Tanner não me notasse quando veio aqui hoje à tarde. Que é que ele anda procurando, Sargento? Esse tal de Amersham?
—Por que você pensa assim, Bouldy? — respondeu Totty, que invariavelmente pendurava um "y" em todo nome que o comportasse. — Caramba, que surpresa encontrar você aqui! Até parece um anunciador de cinema!
O ex-policial examinou embezerrado a manga de sua túnica bem ajustada.
— Não sei por que esse pessoal acha necessário a gente se fantasiar num lugar respeitável como este. É arte, mas a arte nunca significou nada pra mim — disse ele, e daí voltou a falar sobre a visita de Tanner aquela tarde. — Ele subiu até o andar de Amersham. Deve ter sido por causa daquele crime do Interior. É engraçado, eu comecei a esperar a visita do inspetor-chefe aqui assim que fiquei sabendo que nosso conjunto estava envolvido no caso.
—Que espécie de gente é esse Amersham?
Mr. Bould sacudiu a cabeça.
— Ele trata os criados como cães — respondeu. — É um salafrário! E que cavalheiro! Eu poderia lhe dizer umas coisinhas sobre ele — acrescentou obscuramente.
Havia um gabinetezinho onde se sentava quando ninguém chamava o elevador; convidou Totty para ali.
— Se você sentar naquele canto ninguém verá — e indicou um lugar. — Amersham? Esse é quente! Deu uma festa aqui... Puxa, quando foi mesmo? Já faz uns dois meses.
Todos os outros inquilinos reclamaram. . . Sabe como é: mulheres, champanhe. . . Mais parecia uma babilônia que outra coisa.
— É mesmo? — admirou-se Totty, imitando a voz cochichada do outro e pedindo mais detalhes.
Infelizmente, tudo o que fora realmente babilônico acontecera a portas fechadas, de modo que Mr. Bould só pôde acrescentar os detalhes que arrancara em primeira mão de Joe, o criado que aquela tarde recebera Tanner.
—É a fraqueza dele — disse Bould, após aduzir "alguns detalhes" que não eram de todo satisfatórios na opinião de Totty.
—Ele está em casa?
Bould meneou a cabeça.
— Não, Sargento; faz uma meia hora que saiu, mas vai voltar; tem um encontro. Está esperando a visita de uma jovem; disse que se ela chegar antes dele eu devo pô-la na sala de espera. Temos aqui uma grande sala de espera, já viu?
— Não, nem quero — disse Totty. — Onde está o criado. .. Joe, não é?
Mr. Bould piscou um olho,
— De folga. Saiu cedo esta tarde.
Tornou a dar uma piscadela, e Totty, que conhecia os signos lingüísticos das classes inferiores, compreendeu que a ausência do criado e o advento da jovem visitante não eram pura coincidência.
— Tanner por acaso está atrás dele por alguma razão? Eu não me espantaria se estivesse — tornou Bould. — Sujeitos como esse aí sempre me parecem suspeitos.,. Tem dinheiro demais. . . Que segundo consta lhe é fornecido por alguém do Interior. Ele só passa aqui umas três noites por semana, e então são festas, teatros e patuscadas!. . . Sabe o que quer dizer "patuscada"?
—Já ouvi falar — respondeu Totty.
Fez uma careta de advertência e encolheu-se no canto. Um passo apressado soou no piso de mármore do vestíbulo. Bould saiu às pressas, apagando a luz com um estalido, e, um segundo depois, Totty viu o doutor passar; ouviu uma pergunta, uma porta corrediça fechar-se e finalmente o gemido do elevador que subia.
Logo Totty ouviu o som de novos passos, e espiando cautelosamente viu uma moça e surpreendeu-se, pois reconheceu-a; vira-a em Marks Priory: Isla Crane!
Trajava um longo sobretudo escuro e tinha um chapeuzinho preto caído sobre os olhos, de modo que não era fácil reconhecê-la. Mas Totty nunca se esquecia de uma cara que já vira. Estava um tanto pálida, parecia fatigada, e não havia dúvida de que estava nervosa. Sua inquietude já por si traía culpabilidade; sem bem que, fazendo-se justiça à moça, é igualmente certo que para Totty toda espécie de emoção era indício infalível de culpa.
Ela olhou para a direita e para a esquerda e já estava semi-voltada em direção do policial quando, felizmente, o elevador baixou e Bould abriu-lhe a porta.
—Por aqui, Dona. Quer ver o Dr. Amersham, não é?
—Por favor —confirmou ela em voz baixa.
Totty aguardou até que Bould voltasse.
— É ela — disse o ascensorista. — Bonitona! Todas elas são; digo, as garotas que costumam vir aqui. Ah, se fosse minha filha...!
E arqueou as sobrancelhas impressivamente.
Totty não fez comentários. Aquela visita não tinha nada de mais, afinal. A moça era secretária de Lady Lebanon, e com certeza trazia alguma espécie de mensagem da parte da patroa. Contudo, não entrara.no prédio com ares de mensageira. Seu nervosismo, sua palidez, tudo isso eram indícios significativos para aquele traquejado detetive.
—Existe algum jeito de eu dar uma espiada no interior desse apartamento? — perguntou ele de súbito.
O rosto de Mr. Bould ficou grave. O policial que havia nele instava-o à descoberta imediata de chaves mestras ou pelo menos de uma entrada para o apartamento vago vizinho ao do doutor. Havia uma conveniente sacada, que só tinha uma travessa de ferro como divisão entre os apartamentos, onde uma pessoa indiscreta poderia se ocultar. Mas ele já não era policial: era o encarregado de Ferrinton Court e do bem-estar de todos quantos estavam ali acomodados, para o que recebia um respeitável salário que não convinha arriscar cometendo indiscrições.
— Bom, eu não sei, Sargento — respondeu ele cocando o queixo; — se fosse um caso importante, ou se o senhor fosse efetuar uma prisão, é claro que eu faria tudo o que estivesse ao meu alcance.
Totty argumentou durante alguns minutos, após o que ambos subiram juntos pelo elevador.
Isla Crane mal tocara a campainha, a porta se abriu.
—Entre, minha cara.
O Dr. Amersham mostrava-se gentil, paternal e muito mais afável do que jamais se revelara em presença de Lady Lebanon.
—Foi muita bondade sua ter vindo. Deixe-me ajudá-la com o casaco.
Mas não era por gosto que Isla estava ali.
—Não, obrigada; não pretendo tirá-lo. Não posso ficar mais que alguns minutos. Como o senhor soube que eu estava na cidade?
O doutor sorriu fazendo-a passar para a sala.
— Estive telefonando a sua senhoria, e ela me disse que você estava aqui. Uma tarde de folga, hem? Espero não ter estragado o seu descanso. É detestável que a mantenham encerrada naquele triste priorado.
—Vou a Stevenage pela manhã ver minha mãe — explicou a moça laconicamente.
Ele lhe empurrou uma cadeira, em que ela não se sentou.
— Lady Lebanon me disse em que hotel você estava —explicou ele. — Foi sorte encontrá-la antes que partisse.
— Que deseja?
Seu tom de voz não era nada amistoso, e ele lhe fez ver isso.
— Não vim aqui fazer-lhe nenhuma visita de cortesia —respondeu ela friamente. — O senhor disse que precisava me ver com urgência a propósito de alguma coisa relacionada com sua senhoria. De outro modo eu não estaria aqui.
— Você é um tanto ríspida, Islã. Deixe-me ajudá-la a tirar o casaco.
Ela, porém, recuou um passo, esquivando-se da prestimosa mão do médico.
—Por que me chamou?
Era difícil para ele atinar com # abordagem mais indicada naquelas circunstâncias, e certamente não lhe era fácil assumir o papel de amigo desinteressado.
— Alguém quer se casar com você. . . Sabia disso? — perguntou ele, e como não obtivesse resposta: — Que acha da idéia? Você será a Viscondessa de Lebanon, com precedência sobre as baronesas comuns e o resto da miuçalha aristocrática. Não é engraçado? Por falar nisso, você não deve contar a sua senhoria que lhe pedi que me viesse ver.
A moça atirou-lhe um olhar afiado.
— Por que não, se é a respeito dela?
— É a meu respeito e a seu respeito. . . e a respeito do seu casamento em perspectiva. Seria muito bom para você, Isla. O rapaz lhe dará um dote muito bom; ou melhor, ela o fará... Você não parece muito entusiasmada com essa idéia.
A moça umedeceu os lábios secos.
—Lady Lebanon já me falou sobre isso, ou antes, sugeriu o caso; mas eu não pretendo me casar, e já disse isso a ela.
Ele deu uma risada.
— E aposto que ela passou por cima da sua opinião sobre o caso e continuou a fazer os preparativos como se tudo estivesse perfeitamente assentado, não é? Lady Lebanon é muito dominadora; difícil de resistir quando encasqueta alguma.
Se esperava uma resposta a isso, ficou decepcionado. A moça aguardou ainda um ou dois segundos. Como o doutor não lhe visse intenção de responder, abespinhou-se.
—Mas por que diabo não tirar esse casaco e se comportar como uma criatura racional, Isla? Eu e você estamos no mesmo barco. Ambos somos altos servidores da mesma dama. Ganhamos nossos salários e nosso meio de subsistência à custa de abafar nossos sentimentos.
— Não há mais nada que queira me dizer? — perguntou ela. — Porque, se não há, eu já vou indo.
Ela fez menção de retirar-se, e então, antes mesmo de compreender o que se passava, sentiu-se rodopiar e cair nos braços dele. Eram braços fortes; não seria fácil escapar dali. O cavanhaque do doutor roçava-lhe o rosto; seus olhos descoloridos tinham agora um brilho que a aterrava.
—Isla, para mim não há no mundo ninguém além de você—sussurrou ele. — Quero ser seu amigo. Quero ajudá-la a atravessar os maus dias que vierem.
—Solte-me um instante — disse a moça, e fê-lo com tal tranqüilidade, que o enganou.
Na parede havia um botão de prata e, embaixo, uma placa lisa de metal; tão lisa que mal se notavam as instruções nela inscritas. Mal o médico afrouxou o abraço, a moça se esquivou e correu para junto da parede. Pousou o polegar naquele botão, ameaçando apertá-lo.
— Faça o favor de ir abrindo todas as portas — intimou-o ela, — e depois passe para outro cômodo.
Amersham ficou sem fôlego. Não respondeu; compreendia que qualquer argumentação era inútil naquele momento de derrota. Escancarou a porta do aposento em que estavam, atravessou o vestíbulo e, com um estrondo, abriu também a porta de entrada.
— Pode ir — disse. — Fui um idiota tentando ajudá-la.
A moça lhe indicou a porta no outro extremo da sala.
— Não seja estúpida; você está perfeitamente segura...—começou o médico.
—Estarei perfeitamente segura enquanto minha mão estiver em cima deste alarme contra incêndio — replicou ela com tranqüilidade, — porque o senhor não gostaria de se ver exposto ao ridículo.
Lá fora, na sacada, o indiscreto Sargento Totty aprovou a ação da moça.
—Genial! — murmurava ele.
Viu a porta de entrada fechar-se após ela e observou que o doutor voltava para a sala batendo a porta atrás de si.
—Genial! — repetiu consigo o sargento.
Por alguns momentos Amersham passeou de um lado para outro da sala, as mãos espetadas nos bolsos, o. cavanhaque contra o peito. Então Totty ouviu a campainha do telefone e viu o homem encaminhar-se para um aparelho sobre a escrivaninha e colher o receptor. Armou uma furiosa carranca e disse algo indistinto. Depois apagou as luzes da sala e dirigiu-se para o quarto.
Totty atreveu-se a progredir um pouco mais ao longo da sacada. Os anteparos da janela estavam corridos, mas através de um espaço lateral de meia polegada conseguiu seguir Amersham com os olhos, o qual felizmente tinha limitada a área em que podia se movimentar. Viu-o abrir uma gaveta e tirar algo que enfiou no bolso. Totty não pôde ver o que era, mas apostava que seria, no mínimo, um revólver ou uma pistola automática.
Havia ali outro telefone, para o qual o doutor se dirigiu; discou e falou um ou dois minutos. Evidentemente era telefone interno, pois a resposta fora imediata, e o sargento lembrou-se de ter visto na cabine de Bould um pequeno painel de distribuição.
Amersham apanhou um sobretudo do armário, amarrou no pescoço uma gravata de seda branca, e o detetive bateu em retirada em direção do apartamento vazio, onde persuadira Bould a introduzi-lo, ganhando, por fim, o saguão antes que Amersham descesse.
—Ele vai sair — explicou Bould. — Acabou de telefonar pro chofer. . . Tem o carro na porta.
Bould saiu e entrevistou o motorista.
—Vai para Marks Thornton — disse o porteiro por trás da mão que cautelosamente erguera em concha à altura da boca.
— O senhor precisava ter uma conversinha com esse chofer. O que não diz ele sobre Amersham!... É novo no emprego, mas já é o segundo este mês.
A campainha do elevador interrompeu-o. Entrou nele aço-dadamente e desapareceu em menos de um minuto. Quando o elevador tornou a descer, Amersham saltou rápido e ganhou à rua.
Só depois que o carro do médico se pôs em movimento é que o Sargento Totty reapareceu em cena.
—Sujeito safado! — disse.
—Viu alguma coisa? — perguntou Mr. Bould, que fora encontrá-lo à porta.
—Muita coisa — respondeu Totty misteriosamente.
—Ela não demorou muito lá em cima.
— Não tanto quanto ele queria — disse Totty. — Aquele traste danado!
Parou na primeira cabine telefônica e discou para a Yard. Mr. Tanner não estava. Tentou-lhe a residência, e teve mais sorte. — Que será que o levou a ir a Marks Thornton? — perguntou Tanner pensativo. — É evidente que ele não tinha nenhuma intenção de ir lá, a princípio. Onde está hospedada
a jovem?
Totty deu um gemido.
— Tenha a santa paciência! — protestou. — Eu não posso saber de tudo!
— Que confissão! — disse Tanner, e desligou.
A cabine telefônica ficava a menos de cem jardas de Fer-rington Court. Quando Totty abriu a porta e saiu, percebeu um homem parado a doze jardas dali, que o observava atentamente. A primeira impressão que teve era de que fosse um detetive local, pois recentemente tinha havido vários roubos de moedas de telefones públicos. Logo, porém, reconheceu-o e abriu a boca de surpresa. Obviamente o estranho tencionava falar-lhe, pois vinha ao seu encontro.
— Seu nome é Tilling, não é?
— É esse o meu nome — disse o outro. Tinha voz grave e profunda, e seu tom normal era inamistoso. — Não vi você saindo dali? — Apontara para Ferrington Court. — Acaso veio ver Amersham?
— Ora, escute aqui! — Totty esmerava-se por parecer educado. — Você sabe com quem está falando? Eu sou um detetive. Que negócio é esse de me interrogar?
— Quem era a mulher que entrou lá? Você viu ela? — perguntou Tilling com impaciência.
— Sim. eu vi.
—E reconheceu? Viu ela em Marks Priory quando andava por lá? Ela não foi com ele, foi? Eu não vi quando ela saiu. Aquele puxa-saco chamou um táxi pra ela, e eu estava esperando pra ver ele.
— Quem você acha que era ela, filho?
Totty procurava ser diplomático.
— De qualquer jeito, não podia ser ela, mesmo; não é tão alta e também não se veste daquele modo. Quem era?
— A minha vovozinha! — disse Totty. — Quem acha você que era? — Os olhos do outro falseavam sobre o pequenino sargento. — Vou-lhe dizer quem não era, se quer mesmo saber. Não era a sua mulher.
O homem ficou momentaneamente transtornado.
— E quem disse que era? Por que houvera de ser? Minha mulher está lá em Marks Priory. Pra onde foi ele?
— Quem... o Dr. Amersham? Foi a Marks Thornton. Agora explique que negócio é esse de andar espionando o doutor.
— Vá cuidar da sua vida — vociferou o homem. Quando ele lhe deu as costas, Totty pegou-o pelo braço e o fez voltar-se com violência.
— Não custa nada ser educado — disse.
Tilling estava nitidamente admirado ante a força de um homem uma cabeça mais baixo que ele próprio.
—Desculpe, sargento; é que eu tenho um probleminha doméstico — obtemperou o grandalhão.
—E quem não tem? — disse Totty, deixando-o ir.
Ficou a observar o couteiro até perdê-lo de vista, depois voltou para Bould no prédio.
— Tem idéia de para onde foi aquela garota?
—Treen's Hotel, Tavistock Square — respondeu Bould.
— Foi esse o endereço que ela deu ao motorista.
Totty não pretendia entrevistá-la, mas o tempo que lhe restava era todo seu. Caminhou até pegar um ônibus que o deixou a umas cem jardas de Tavistock Square. O Treen's Hotel compreendia duas casas particulares geminadas. Uma hospedaria barata e respeitável num lugarzinho pacato.
A jovem ainda não tinha ido para a cama, informaram-lhe; e estava no escritório, que também era sala de estar, beta como salão de jogos. No momento era, de fato, escritório, pois a moça ocupava uma escrivaninha, escrevia efetivamente uma carta e estava só, quando Totty apareceu, o qual não foi reconhecido de pronto.
—Sinto incomodá-la, mas a senhora decerto se lembra de mim. Sou Totty. Fui encarregado do caso de Marks Priory.
Ela parou de escrever e girou os olhos para ele, embatucada.
— Ah, sim. Lembro-me do senhor, é claro — disse ela. Estava um pouco esbaforida. — Queria falar comigo?
Totty sorriu-lhe afavelmente, sentou-se na beira de uma poltrona e pendurou o chapéu-coco num joelho.
— Por acaso vi a senhora saltar de um táxi e pensei comigo, "Ué, aquela é Miss Crane, sem dúvida!" Depois disse, "Não, não pode ser. O que viria ela fazer na cidade?" Aí então eu pensei, "Bom, deve ser". . .
A moça ouvia essa auto-analise com confiança cada vez maior.
— Como vão as coisas em Marks Priory?
Ela se recostou na cadeira e cruzou as mãos sobre o regaço. — Estão como sempre — respondeu.
— E o Dr. Amersham? — ousou ele perguntar.
Isla suspirou fundo.
—Não vejo o Dr. Amersham há tempos — respondeu ela.
Ele tornou a sorrir benevolamente.
—Engraçado! Eu era capaz de jurar que tinha visto a senhora saindo de Ferrington Court.
A moça aprumou-se na cadeira.
— Vi o doutor esta noite, mas não pensei que isto fosse um assunto que realmente lhe dissesse respeito, Mr. Totty. O senhor esteve me vigiando?
Ele confirmou com um aceno.
—Observei-a quando entrou e observei-a quando saiu. E a razão, Dona, de eu a ter observado entrar e de a ter observado sair é não ter achado que o doutor fosse um homem seguro para se ir ver depois do jantar, quando soube que ele tinha dado folga a todos os criados.
A princípio ela ficou alarmada, depois ele lhe viu um sorriso nos cantos dos lábios.
—Obrigada, Sargento Totty — disse a moça. — O senhor bancou o anjo da guarda?
Totty sorriu com presunção.
-— É a minha especialidade — respondeu.
Totty era incapaz de resistir à tentação de fazer revelações dramáticas. Essa maldita mania já o tinha arruinado muitas vezes antes. Naquele momento, porém, conseguiu alcançar o clímax desejado, com pouco dano para o que comumente se conhece como serviço público.
—Sim, e niesmo que lhe faltasse o alarme contra incêndio, eu estaria lá.
Ela o fitou cismada.
-— Eu fiquei na sacada, do lado de fora. Sabe de alguma coisa a respeito dele?
Ela primeiro hesitou, depois meneou a cabeça*sem convicção.
— Não, exceto que é grande amigo da família de Lady Lebanon — respondeu.
— Meio licencioso, não? — disse Totty com um discreto sorriso.
Ela também sorriu, mas depois, malgrado seu, soltou uma gargalhada.
—Ouvi certos rumores sobre ele em Marks Thornton — prosseguiu o policial. — Mrs. . . . Como é mesmo o nome? .. .
A mulher do couteiro. . . ?
Totty observou a moça argutamente. Era óbvio que aquele pequeno escândalo não lhe chegara aos ouvidos, pois estava francamente atônita.
—O doutor... O senhor se refere a Mrs. Tilling, não é?
Ah, não; é impossível.
Entretanto ela já ouvira que Mrs. Tilling tinha um fraco por fazer-se admirar. Criados falam. Até o ponderadíssimo Kelver, certa feita, chegara a indicar com uma significativa mudança de assunto o quanto desaprovava esposas de couteiros muito dadas a fazerem amigos.
Totty ouvira muito; ela se perguntava o quanto. Teria ouvido Amersham referir-se ao casamento dela? Se ouvira, não aparentava.
—O doutor está fazendo uma viagem a Marks Priory esta noite — informou ele espontaneamente ao fim de uma entrevista aparentemente casual.
A moça se espantou ao ouvir aquilo, e Totty viu-a baixar os olhos para a carta que interrompera.
—Tem certeza? — perguntou.
O Sargento Totty nunca se enganava; disse-lhe isso. Na verdade, estendeu-se por um bom quarto de hora a dar provas de sua presciência e sagacidade. Ela o achou divertido, e aquela noite foi deitar-se mais alegre do que esperara poder. Quanto ao Sargento, voltava sem pressa paia escrever seu relatório quando o policial à porta da Yard o surpreendeu com a informação de que Tanner estava em seu gabinete e já perguntara por ele.
—Você nunca dorme? — indagou ao entrar sem cerimônia
na sala do inspetor-chefe.
— Bem, que foi que descobriu? — perguntou Tanner. — Vá sentando aí, tire o chapéu (é o costume, quando se fala com um superior na sala dele), fique longe dos meus cigarros e conte o maior número de fatos que puder com o mínimo de invenções possível.
O Sargento Totty estava cansado demais para entrar em minúcias.
— Sorte que Bould esteja lá. Acho que me lembro dele— disse Tanner quando o subordinado terminou um relatório inusitadamente lúcido dos acontecimentos da noite. — Isso pode ser muito útil no futuro. Você não descobriu muito que eu já não soubesse, a não ser um projeto de casamento que não nos interessa. .. Tilling estava lá, não é? Eu o vi de tarde.
— Ele é ciumento! — disse Totty.
— E tem todo o direito de ser — anuiu Tanner. — Acho que aquele médico devia ser informado disso. Entre em contato com Bould e peça a ele que me informe quando Amersham voltar. Pretendo ir até lá falar com ele. Não é lá muito direito deixá-lo ignorando que está sendo vigiado por um marido ciumento que já estrangulou um cachorro.
— E Studd — sugeriu Totty, mas Bill Tanner abanou a cabeça.
—Duvido. Studd foi estrangulado com um pedaço de pano procedente da índia. Se Tilling fosse o autor da façanha teria usado as próprias mãos. Não; nós agora seguimos outra linha de investigação, e essa conduz a Amersham. Ele já viveu na índia.
Esticou o braço e tocou uma campainha.
— O que você quer? Posso ajudar?
— Quero Ferraby; ele está em alguma parte do edifício.
— Pra que precisa dele? — tornou a perguntar Totty, ressentido.
— Vou escalá-lo pra vigiar Miss Crane. Se você quiser, posso encarregá-lo dessa missão. Pode ir com ela a Marks Thornton e ver se descobre alguma coisa por lá. De passagem pode observar Mr. e Mrs. Tilling.
Ferraby acudiu ao chamado; rapaz alto e buliçoso, uma curiosa combinação de reverência e petulância. Ao ouvir qual era a tarefa, seus olhos faiscaram.
—.Miss Crane! Puxa, vou adorar isto! — exclamou.
— Conhece-a? — indagou Tanner, admirado.
— Vi-a na última vez que estivemos no priorado — ex
plicou o rapaz, que tinha a virtude de corar e deu provas disso.
— Terrivelmente bonita, não?
Totty sacudiu a cabeça com ar de censura.
—Você não está se concentrando no trabalho, velhinho—disse; e acertou em cheio, pois a mente do Sargento Ferraby andava concentrada, em prejuízo de tudo o mais, no doce encantamento de uma visão que tivera e desde então não o deixara mais. Era jovem, e os detetives têm lá suas emoções estranhas.
No segundo dia após ter sido incumbido daquela agradável tarefa, ele acompanhou a garota a Marks Thornton e deixou-a relutantemente diante dos portões de Marks Priory. Isla Crane ignorava por completo que estava sendo protegida, e nem por um momento supunha que a poucos passos de si havia um policial da Scotland Yard que vigiava cada um de seus movimentos.
O trabalho de Ferraby tornara-se mais difícil porque ela o conhecia e já lhe falara. Ele esperou até a carruagem perder-se de vista numa curva da avenida de choupos, depois regressou para o "White Hart", despachou a carruagem que o trouxera da estação e entrou para alugar um quarto.
Viu um rapaz atrás do balcão e lembrou-se de que recebera instruções para ver se se confirmava a investigação sumaríssima de Totty, pois supôs que aquele fosse "Tom", o filho do estalajadeiro.
Após estabelecer-se em seu confortável quartinho, desceu para o salão do bar. Tom ainda estava de serviço, e àquela hora o detetive era o único freguês. Ele interrompeu desconcertante-mente o amigável preâmbulo de Ferraby:
— O senhor não é um daqueles cavalheiros da Scotland Yard? — perguntou. — Esteve aqui com Mr. Tanner, não esteve? Há algo de novo sobre o Caso Studd?
—Não — disse Ferraby.
Estava contrafeito por ter sido identificado. Tom pegou num trapo e pôs-se a enxugar o balcão mecanicamente.
—Eu não estava aqui aquela noite... . Tinha ido à cidade, para a festa de aniversário do meu tio; dormi lá.
—Você é Tilling?— sugeriu Ferraby.
O rapaz sorriu.
—Já sabia? Sim, nós fomos juntos, mas Tilling voltou antes.
—Ele não passou a noite em casa de seu tio?
Tom abanou a cabeça.
—Não, não havia lugar pra ele, e seja como for ele fica muito encrenqueiro depois de um par de tragos, de modo que eu não insistiria pra que ficasse, mesmo que houvesse lugar.
Não, ele voltou pelo último trem. O pobre coitado anda com a cabeça cheia e já não é capaz de dizer uma palavra educada a ninguém. Esteve aqui na hora da janta, e não consegui arrancar nada dele a não ser um grunhido. Tem novas pistas, Mr. Ferraby?
Ferraby sorriu.
— Acho que vou desapontá-lo — respondeu. — Não estou de serviço. Vim só passar umas pequenas férias. Nós também temos férias, às vezes.
Tom fitou-o com ar incrédulo e evidentemente estava passando em revista todas as circunstâncias capazes de trazer um detetive da Scotland Yard a Marks Thornton, pois perguntou- de súbito:
—Talvez seja por causa do outro caso. . . Do camarada das notas falsas. Como era o nome dele? Briggs, não é? Ele esteve hospedado aqui pouco antes do crime. Na verdade, estava aqui na noite do crime. Papai e eu pensamos se não teria algo a ver com ele. Não tinha cara de criminoso, mas a julgar pelos
retratos que a gente vê nos jornais, nenhum deles tem!
Ferraby sorriu.
— Ainda transformamos você num detetive qualquer dia desses — disse; e iniciou um discreto interrogatório acerca da causa da infelicidade de Tilling. Porém a, resposta do rapaz não tinha nada de discreto.
—Ela levaria qualquer um a beber — disse enfaticamente.„ŸEu não culpo o pobre Tilling. . . Ele deve levar uma vida miserável.
E expressou sua opinião sobre Mrs. Tilling com algumas palavras muito francas.
—Bela como uma pintura. Era criada de uma senhora quando ele a encontrou. Pelo que ouvi dizer, toda espécie de gente tem corrido atrás dela. Dizem que o doutor. . .
Calou-se de súbito.
—O Dr. Amersham? O que tem ele?
Tom fez uma careta e passou a esfregar o balcão com mais energia.
—Sem nomes — disse. — Qual a utilidade de espalhar boatos? Esse pessoal de Marks Thornton arruinaria até a reputação de um santo.
É peculiar aos habitantes de toda cidadezinha inglesa a ilusão de que seus vizinhos sejam sempre os piores fuxiqueiros de todo o Interior, e ocorreu a Ferraby que o filho do estalajadeiro também podia ser contado entre o povo de Marks Thornton.
Foi ao telefone aquela noite e recitou um relatório a Tanner; pela manhã deu uma longa volta que o levou a umas cem jardas do chalé do couteiro. Ali sentou-se num portão e pôs-se a pitar no cachimbo; após uma hora de espera, foi recompensado. Uma mulher saiu do chalé, desceu pela trilha batida, destrancou o portão e ganhou a estrada. Carregava uma cestinha e obviamente ia ao povoado fazer compras. Ao passar por Ferraby atirou-lhe um olhar rápido e nada desamorável. Era bonita; poderia com pouco esforço e dinheiro, tornar-se realmente encantadora. E estava bem vestida; Ferraby notou-o. Os sapatos eram os da moda; as meias, de seda pura e de muito boa trama. O chapeuzinho justo que usava não era da espécie que o leitor pudesse adquirir em estabelecimentos populares.
Algo que ele também notou foi um minúsculo relógio, com incrustrações de diamante, que ela trazia no pulso esquerdo. Já o tinha ultrapassado quando lhe falou:
— Desculpe, isto aqui é Marks Priory, não?
Ela se voltou prontamente. Ferraby poderia ter imaginado que esperava ser abordada.
—Sim, é Marks Priory.
Havia apenas um toque de vulgaridade na voz, mas os olhos eram belos e cheios de vida. Os lábios rubros estavam ainda mais rubros mercê de artifícios. Queixava-se o povoado, Ferraby o soubera aquela manhã, de que ela se "empoasse e pintasse".
—Esta não é a entrada principal — e indicou o portão por que saíra. — É pelo povoado. Quer que lhe mostre?
O olhar era recatado.
—Nada me daria maior prazer.
Ferraby, sentindo que a galanteria fora provocada, pôs-se a caminhar ao lado da mulher, com aquele bamboleio levemente proprietarial que a ocasião exigia.
Uma ou duas vezes ela se voltou como se esperasse ser seguida. Na segunda, Ferraby também se virou.
— Que foi? — perguntou ele.
— Oh, nada. — E atirou um ombro bem feito, em sinal de desprezo. — É só meu marido. Pensei que podia estar me seguindo. O senhor conhece todos no Solar? — perguntou.
(Metade do povoado referia-se ao priorado como "o Solar", notara-o Ferraby.)
— Oh, sim; conheço uma ou duas pessoas.
— Sua senhoria?
E fitou-o com malícia.
Era dessas pessoas incapazes de conceber uma amizade entre homem e mulher que não seja inspirada pelo sexo. Qualquer que fosse o respeito em que Lady Lebanon pudesse ser tida no povoado, para Mrs. Tilling ela era apenas outra mulher.
— Sim, já fui apresentado a sua senhoria.
— Conhece sua excelência o lorde?
—Sim. Por falar nisso, vi-o subindo pela entrada esta manhã.
A mulher lançou-lhe um olhar de estranheza.
— Se já sabia qual era a entrada, por que me pediu que lhe mostrasse o caminho? — perguntou, e Ferraby sustentou-lhe corajosamente o olhar.
— Em primeiro lugar, não pedi que me mostrasse o caminho, e, em segundo, quando a gente quer conhecer uma pessoa lança mão de qualquer recurso — disse, e a resposta foi plenamente satisfatória, pois arrancou um sorriso de Mrs. Tilling.
— Duvido que tenha sido por isso que puxou conversa comigo. Vai me chamar de algum nome feio, mas não tem importância. ., Não conhece o Dr. Amersham, não é? — perguntou, com uma afetação de indiferença incapaz de lograr mesmo um policial principiante.
—Já o vi e acho que já fomos apresentados; não estou bem certo — respondeu ele.
—É encantador e terrivelmente esperto. Francamente, ad miro gente esperta; há tão poucas pessoas assim — tornou a mulher.
Falava rápido, encaixando clichê após clichê, à maneira decisiva de quem descobrisse verdades irreconhecidas e as traduzisse em linguagem original.
—Prefiro o cérebro à boa aparência num homem. As coisas que ele sabe. . Quero dizer, o Dr. Amersham. . . É incrível. Ele esteve no estrangeiro longo tempo, e naturalmente um médico sabe mais do que qualquer outro tipo de pessoa. Não pensa assim, Mr. . . ?
— Meu nome é Ferraby. Seu marido não é esperto?
O sorriso desvaneceu-se do rosto dela, onde o policial viu algo muito duro, quase repelente.
— Aquele! — respondeu ela; e tomou consciência do tom de desprezo que imprimira à voz. — É um bom homem, mas muito fatigante.
Não era nada reticente; tudo o que nela havia estava à flor da pele. Ferraby teve a, impressão de que ela vivia numa caixa de vidro, seus motivos, atos e reações, conscientemente visíveis para o mundo.
Chegaram aos portões de entrada e ela fez alto.
—Esta é a entrada da casa, mas imagino que já saiba disso. Vai ficar muito tempo?
O rapaz tinha boa aparência, era alto, e, embora não o sou-' besse, era o tipo ideal de beleza física daquela mulher.
—Um ou dois dias. . . — começou ele, depois calou-se subitamente e enrubesceu.
Isla Crane descia a via de entrada do solar; passou por ele com um olhar rápido e se foi. Aquele olhar dissera-lhe duas coisas: primeiro, que ela se lembrava dele; segundo, que se admirava de encontrá-lo cavaqueando com a mulher do couteiro. Teve ímpetos de correr-lhe atrás e explicar tudo, mas, pensando melhor, bem podia adivinhar o modo como ela reagiria a tal impertinência.
— Aquela é Miss Crane.
Mrs. Tilling não lhe notara a confusão.
— É secretária de sua senhoria; cheia de ares e de graças; dizem que não tem um níquel de seu; só tem o que recebe de sua senhoria. O jeito como certas pessoas se comportam nos leva a pensar que sejam rainhas de toda a Terra, não acha?
Havia ali uma ponta de aspereza; Ferraby perguntava-se por quê.
—Acha que é bonita? Eu não. Não é o que se poderia chamar de garota. . . Tem uma boa cara e tudo o mais. Mas não o que eu chamaria de estilo.
Então, às súbitas, estendeu a mão enluvada que Ferraby pegou. Seguiu-se um daqueles frouxos apertos de mão que tanto o aborreciam.
Estava consciente de que por detrás de uma cortina do "White Hart" alguém o observava. Era Tom, que o saudou com um amplo sorriso ao vê-lo reingressar na estalagem.
—Então ela descobriu o senhor, hem? Essa não perde uma! Eu de minha parte procuro ficar longe dela. Estou noivo, e minha garota é muito especial.
E azafamava-se em torno do balcão.
— Ainda é cedo para um copo de cerveja? — perguntou.
— Nunca é cedo demais para mim — mentiu Fèrraby.
Ouviu atrás de si um passo apressado e duro; como um cepo, uma mão se abateu sobre seu ombro.
—Você conhece minha mulher?
Virou-se e deu com o rosto tostado do couteiro que, já sombrio em circunstâncias ordinárias, tinha agora os olhos em chamas. Ferraby comprimiu os cotovelos no balcão e fitou-o.
—Se tornar a pôr a mão no meu ombro — disse com decisão — esmurro-lhe o queixo! Não, não conheço sua mulher. Encontrei-a hoje de manhã. . . se o seu nome é Tilling. Subi com ela a rua do povoado; e se tem mais alguma pergunta a fazer, faça, antes que eu o ponha_ fora daqui.
O homem era um fanfarrão e, pois, pusilânime.
— Tenho o direito de perguntar, não tenho?
Encolhera-se perceptivelmente.
— Tem o direito de ser educado — disse Ferraby.
— Não admito que estranhos falem com minha mulher!. . .
— Não sou nenhum estranho — Ferraby recobrara o senso de humor. — Sou um detetive da Scotland Yard e, portanto,amigo do mundo.
Tilling fitou aturdido o jovem policial e, quando falou, a voz lhe saiu rouca como a de alguém cuja profunda emoção dificultasse a articulação das palavras.
—Scotland Yard? -— gaguejou. — Eu não sabia. — Fez uma pausa e então perguntou:
„ŸQue andou perguntando a ela?
Antes que Ferraby pudesse responder, Tilling virou-se rápido e retirou-se do recinto.
—Fulano educado, não? -— comentou Tom, e acrescentou, mais caridoso: — Pra mim, é a mulher. Que achou dela, Mr. Ferraby?
—Encantadora — respondeu o policial; — e bonita.
Tom concordou com um aceno de cabeça.
— Ela ainda vai enlouquecer esse camarada, pode crer. Ele ainda acaba aprontando alguma pela qual não será responsável. Eu no lugar dela estaria morrendo de medo. Mas ela nem liga. Dizem que ele fica feito criança quando ela começa a xingá-lo. Ah, se fosse minha mulher. . .!
E sacudiu a cabeça ameaçadoramente.
Ferraby não costumava beber cerveja, muito menos de manhã; mas aquele bar era um bom posto de observação. Permaneceu ali, de copo em punho, observando a rua principal, na esperança de que Isla Crane retornasse para os lados do "White Hart". Estava desesperado por encontrá-la, ansioso por explicar--lhe o que não necessitava nenhuma explicação: ò seu encontro com Mrs. Tilling. Disse com seus botões que estava sendo ridículo; e não se enganava. Isla Crane com certeza nem tomara conhecimento da existência da mulher, e possivelmente já o esquecera.
Dali a pouco avistou-a e, desfazendo-se do copo apressadamente, enxugou os lábios e saiu em direção dela, afetando naturalidade. Notou que lhe atirava um olhar e em resposta ergueu o chapéu.
—Não se lembra de mim, Miss Crane?
Ela mostrou-lhe um sorriso breve.
—Sim, lembro-me. O senhor é Mr. Ferraby. Não o vi agora mesmo conversando com... — hesitava — com Mrs. Tilling?
Havia um vago indício de sorriso em seus olhos quando acrescentou:
—Está fazendo seus interrogatórios costumeiros? Que fa2 por aqui, afinal, Mr. Ferraby?
— Meus interrogatórios costumeiros — disse ele, e prosseguiu com eloqüência: — Na verdade, estamos conferindo certos dados a respeito de um homem que se hospedou aqui e foi preso por estar na posse de dinheiro falso.
—Oh! —Sentia-se aliviada.
Mais tarde ocorreu ao rapaz que ela estava tão ansiosa por entrevistá-lo quando ele por vê-la. Caminharam juntos até os portões do priorado e entraram. Quando já estavam umas cem jardas adentro, ela fez alto.
—Acho melhor não ir mais longe, Mr. Ferraby, ou pensaremos que não foi o falsário mas o crime de Marks Priory o que o trouxe aqui; e creio que isso iria aborrecer sua senhoria.
Ela voltou a cabeça rapidamente e olhou para os lados da casa. Tinha ouvidos mais apurados que os de Ferraby e reconhecia aquele ruído de passos sobre o cascalho. Dentro em pouco surgiu à vista deles um rapaz vestido de flanela, sem chapéu e com um taco de golfe que ergueu para saudá-los.
— Conhece o Lorde Lebanon? — perguntou em voz baixa.
—Só fomos apresentados — disse Ferraby. — Não creio que ele se lembre de mim.
— Bom dia, Isla — disse o recém-chegado olhando ironicamente para o seu acompanhante. — Conheço o senhor. — E cerrou os olhos num gesto de concentração. — Já esteve aqui com Mr. Tanner. É qualquer coisa parecida com Ferret... Ferraby; é isso, não?
„ŸTem memória maravilhosa, meu senhor — sorriu-lhe o detetive.
— É a única coisa maravilhosa em mim! — disse o outro.
„ŸE mesmo isso não é lá muito apreciado em Marks Priory.
Que está fazendo? Interrogando a pobre Isla? É uma vergonha!
— O lorde exibia um sorriso amplo. — A mim ninguém interrogou; nem Tanner nem aquele baixinho gozado que veio com ele... Sargento Totty, é esse o nome, não é? ... Nem ninguém. Devo parecer pouco inteligente. Você viu Amersham?
A pergunta fora desfechada em direção da moça.
— Nem sabia que ele estava aqui.
— Ah, se está! Devíamos hastear uma bandeira sempre que chega.. . Desfraldá-la ao galope do mastro. . . Uma caveira verde e duas tíbias cruzadas, sobre fundo amarelo!
— Willie! — protestou ela gentilmente, ao que ele sorriu baixinho.
— Não conhece nosso amigo Amersham, não é? — dirigia--se agora a Ferraby.
— Ligeiramente.
— É só o quanto se deve conhecê-lo — tornou Lebanon.
— Conhecê-lo bem talvez fosse muito instrutivo para um policial, mas é uma experiência acabrunhante para nós pobres e simples criaturas do campo.
E fitou pensativamente o detetive.
—Qual a verdadeira razão de o senhor estar aqui?... É aquele crime?
—Mr. Ferraby diz que não está nesse caso. Havia um falsário no povoado...
— Ah, sim; eu me lembro. . . Onde está hospedado, Mr. Ferraby? No "White Hart"? Podia ter vindo para o priorado. Estou certo de que sua senhoria não faria objeção, e eu. . .
Defrontou os olhos da moça e calou-se.
—Imagino que esteja muito mal acomodado no "White Hart". Aquilo lá é uma pocilga.
— É uma estalagem muito boa, Willie — interveio a garota.
—E eu fiquei com o melhor quarto — sorriu Ferraby —e também tenho excelentes pernas com as quais posso sair de lá caso a isso me sinta inclinado.
O rosto jovial do lorde encheu-se de pregas enquanto sorria.
—O senhor não costuma andar durante o sono, não é?
— Depois aduziu com ar penitente: — Sinto muitíssimo, Isla.
Para surpresa de Ferraby, a moça tornara-se rubra e depois empalidecera.
— Pretende subir até o Solar agora, Mr. Ferraby? Irei com o senhor.
— Não; Mr. Ferraby só me acompanhou até aqui. Ele vai voltar para o povoado.
— Nesse caso, darei uma volta até o povoado também.
A moça pôs-se a caminhar quase sem dizer uma palavra de despedida, mas Lebanon chamou-a.
—Isla, se você vir Gilder atrás daquela moita pode dizer-lhe que eu já sei que está lá! Ele não precisa dar-se a tão grande incômodo; com certeza a grama está toda úmida.
Enquanto se retiravam o policial viu, admiradíssimo, que a moça efetivamente parava perto da moita que Lebanon lhe indicara, e falava a alguém que permanecia invisível para ele.
— Sabia que estava lá — sorriu o rapaz; e, travando do braço de Ferraby, desceram juntos a estrada. Sua altura era abaixo da média; sua cabeça mal tocava o ombro de Ferraby.
— Existem dois ditos populares sobre os membros da aristocracia — disse ele. — Um, é que alguém se embriague como um lorde, e, o outro, que seja feliz como um lorde. Nunca me embriaguei e faz tanto tempo que me senti feliz que já quase me esqueci da experiência.
E olhou por cima do ombro.
—Imagino que o senhor esteja muito acostumado a vigiar os outros, não é? Quero dizer, a seguir pessoas, fazer-lhes sombra. . . Não é assim que se costuma dizer? Que diria o senhor se, para variar,, fosse vigiado e seguido? Posso garantir que é uma experiência éxasperante.
—Já foi vigiado alguma vez? — indagou o policial surpreso.
Lebanon sacudiu a cabeça em sinal afirmativo; e o fez com tanta convicção, que os óculos de aros de chifre escorregaram-lhe nariz abaixo. Suspendeu-os com um dedo enquanto respondia:
—Apesar do aviso de Isla, eu ainda estou sendo vigiado, neste momento — disse com calma.
Ferraby virou-se e viu um homem alto descendo lentamente atrás deles; já vira aquele criado em sua visita anterior a Marks Priory.
—É uma experiência esquisita, mas a gente acaba se acostumando. Vou-lhe fazer uma confissão. — Soltou o braço do outro e fitou-o no rosto. — Sabe por que lhe pedi que voltasse comigo? Para azucrinar o cavalheiro aí atrás. Quando digo "azucrinar" quero dizer alarmar. A não ser que eu muito me engane ele o reconheceu; deve saber que é um policial da Scotland Yard, e isso vai assustá-lo um bocado. Por que razão eu não sei, mas a gente só tem de mencionar a Scotland Yard nesta casa para produzir uma atmosfera pior que a da câmara de hor rores dos museus de cera! Onde fica a Scotland Yard, afinal? — perguntou abruptamente.
Ferraby explicou.
—Perto da Câmara dos Comuns? Acho que sei onde é. Qualquer dia desses ainda vou até lá bater um longo papo com o senhor e aquele fulano encarregado do caso. Como é o nome dele? Tanner! Eu poderia contar a ele alguma coisa que decerto o divertiria.
Atravessaram a rua em direção do "White Hart". — Deixarei o senhor em paz assim que tenha feito a última coisa que eles gostariam que eu fizesse.
„ŸE que coisa é essa? — perguntou Ferraby.
— Confabular sisudamente com um policial. Tenho a impressão de que o ofício de Gilder é prevenir exatamente isso; e se eu conseguir perturbar o sono dele esta noite terei recobrado um pouco da minha felicidade perdida!
Ferraby deteve-se à porta da estalagem a observar o jovem fidalgo caminhando ao longo da rua. Viu Gilder atravessar atrás dele, a uma respeitável distância. Obviamente seguia o amo.
Tom, o filho do estalajadeiro, observava isso.
—Não sabia que o senhor conhecia sua excelência. — Estava sem dúvida impressionado com a familiaridade que Lebanon dispensara a Ferraby. — Bom sujeito! Mas eu não trocaria de lugar com ele, nem por um milhão de libras. — Por que não? — perguntou o policial.
—Porque, pra começar, ele não é senhor de seu próprio nariz. Quem manda no duro em Marks Priory é sua senhoria
Lady Lebanon, se não for o doutor. O Lorde Lebanon só vem em terceiro lugar. Qualquer dia desses... — E meneou a cabeça sombriamente.
— Bem, o que acontece qualquer dia desses? — perguntou Ferraby depois de longa expectativa.
—Não sei. Pegaram Studd; talvez ainda peguem sua excelência. Studd sabia demais na opinião de alguns, e eu tenho a impressão de que sua excelência o lorde está atrapalhando alguém. Pelo que eu tenho ouvido dos criados, ele não somente anda metendo a língua em Amersham como já' lhe deu um soco
no nariz certa noite. Eu só queria ter visto! Mas isso não vai facilitar as coisas pra ele.
Nessa mesma noite Ferraby suspendeu o telefone e repetiu para o chefe toda aquela conversa.
—Boatos de cidadezinha, com toda certeza — disse Tanner. — Seja como for, Lebanon é do tipo que nasceu para ser dominado. Na verdade não existe nenhum outro tipo. Uns são dominados por mulheres, outros são azucrinados por sargentos-detetive de cabeça dura!
Donde Ferraby concluiu que, na ocasião, o Sargento Totty atravessava uma fase de grande impopularidade junto ao superior.
As noites em Marks Priory eram quase sempre monótonas. Amersham voltara a Londres, de modo que Willie não tinha com quem discutir. Diga-se, a bem da verdade, que o doutor o aterrorizava um pouco, mas havia momentos em que, graças a alguma observação aparentemente inocente, ele conseguia irritar Amersham de modo insuportável; e, havendo descoberto esse truque, nunca perdia a oportunidade de exercitá-lo.
Isla fora deitar-se, Lady Lebanon recusara-se decididamente a jogar gamão e tampouco mostrava-se inclinada a entregar-se ainda à mais inocente tagarelice. Não costumava ser divertida e repelia Willie toda vez que, interessado em heráldica, ele tentava se lhe achegar. O rapaz estava um.tanto apreensivo aquela noite. Sabia por experiência que a mãe tinha algo a dizer, alguma coisa desagradável. Havia certa quietude pressaga em torno dela, o que era em si mesmo o prenuncio de um pronunciamento inquietante.
— Quem era aquele homem com quem você esteve hoje, Willie?
Então era aquilo! Ele se conteve durante alguns desagradáveis instantes.
— Um sujeito chamado. . . Esqueci o nome dele. Encontrei-o no povoado. . .
— Era da polícia, não?
— Acho que era — respondeu Willie afetando despreocupação, e apanhou um jornal.
— Que disse a ele?
— Nada absolutamente. Só matamos o tempo. Ele está hospedado no "White Hart". É um sujeito muito bacana. Está investigando a vida de um falsário ou coisa parecida.
Ela mordeu o lábio inferior, os olhos escuros fitos no filho. —Ele está mas é investigando o crime — disse ela.
—Do pobre Studd? É mesmo?
Ele se inclinou na cadeira.
— Bem, não sei se o que ele disse é verdade. A gente não pode crer em tudo o que ouve. Quem disse isso?
— Viram-no falando com Mrs. Tilling; interrogando-a.
„ŸEspero que tenha sido discreto, Willie!
O rapaz deu uma risada.
—Discreto? Que absurdo! Em que deveria eu ser discreto? Não sei quem matou o coitado do Studd, sei? Posso suspeitar, mas saber não sei. Se soubesse, e estivesse absolutamente seguro, eu faria com que fosse fuzilado como. . . Especialmente se fosse quem eu penso que foi.
Ela o fitava fixamente, com intensidade hipnótica.
—Fala sobre essas coisas de modo muito leviano, Willie. — Sua voz era firme. — Mas espero que compreenda o que isto poderia significar para a pessoa de que você suspeita. A polícia, ainda que não descubra nada, pode inventar uma história capaz de levar à prisão alguém completamente inocente.
— Ou completamente culpado — disse Willie com temeridade. — Puxa, mãe, o que é que a preocupa? Alguém podia pensar que a senhora não quer ver preso o assassino do pobre Studd!
Viu-a aprumar-se diante dessa observação e notou que suspirava.
— Que foi que você contou a esse policial? — perguntou.
— Nada.
O rapaz ergueu-se rápido e atirou o jornal.
—Ele não é tão perguntador como a senhora. Vou dormir.
E ao virar-se em direção das escadas viu Gilder parado num degrau, com uma expressão agreste no rosto nada atraente.
—Um momento, senhor. Queria saber primeiro o que foi que o senhor contou àquele sujeito.
— Gilder! — A voz de Lady Lebanon era áspera. — Deixe sua excelência passar.
Lebanon ficara branco de fúria; não disse palavra, mas ao passar empurrou o criado e galgou os degraus numa corrida.
— Foi um tremendo descuido de sua parte, Gilder.
—Desculpe, senhora. — Não havia humildade em sua afetada contrição. — Mas é que aquele camarada me assustou hoje. Pensei que tivessem terminado as investigações. Por que será que recomeçaram tudo? Aquele é um dos homens de Tanner!
Ela anuiu.
—Ele está no "White Hart", não está? Acha que é verdade aquela história. . . de ele ter vindo aqui por causa do falsário? Pode ser verdade.
Gilder parecia embatucado.
—Não sei. Esse aí é apenas um sargento. Acho que se fosse alguma coisa de importância Tanner viria aqui pessoalmente. Esses outros só são mandados pra fazer perguntas e esclarecer pequenas questões. Não creio que ele esteja se apoquentando por causa de Studd. .. Do contrário eu. . .
— Você seria mais cuidadoso.
O sorriso de Lady Lebanon era raro e deslumbrante. O próprio Gilder não o vira mais que duas vezes antes.
— Gostaria de saber o que ele está fazendo e quando parte.
Ela apanhou uma caixinha de uma gaveta, sobraçou-a e subiu as escadas. Tinha uma rotina rígida; levantava-se e deitava--se em horas fixas, exceto nas noites em que elementos perturbadores como o Dr. Amersham interferiam na tensa serenidade de sua vida.
Não havia razão para preocupar-se com Ferraby. Ele se preparava para deixar o lugar na manhã seguinte; recebera de Tanner instruções específicas nesse sentido, embora relutasse em obedecer.
Após ter sido educadamente despachado o último freguês do "White Hart", o policial saiu a dar um passeio pela estrada que percorrera de manhã, chegando afinal a avistar o chalé do couteiro. Havia luz numa janela; Ferraby imaginava qual seria o efeito de atravessar o portão e bater à porta. Talvez seu amigo rabugento lhe tornasse a noite emocionante.
Passou o portão, andou mais cem jardas e virou-se. Ao aproximar-se da entrada do chalé tomou consciência de que havia ,alguém lá. Era uma mulher; tinha os ombros cobertos por um xale escuro e fumava um cigarro.
—Estava pensando se não seria você — disse ela.
Falara em voz baixa, como se temesse ser ouvida por mais alguém.
—Este lugar é bem morto. Deve estar farto daqui.
Afetava um tom de curiosidade educada que chegava a lembrar Totty em seus momentos de maior finura.
—Até que nem. A propósito, vi seu marido hoje de manhã; estava meio zangado comigo.
Ela deu de ombros.
—Não é novidade; ele sempre está zangado com alguém.
— Nesse ponto a mulher se virou. — Ele está de serviço esta noite na zona norte do parque. Têm aparecido ladrões de caça por lá. Se estiver trabalhando deve estar a umas duas milhas daqui.
Dissera-o com as mãos no portão, e, súbito, travou da dele.
— Lamento não poder convidá-lo a entrar — explicou. — Vamos dar uma volta pelos campos do priorado?
Ferraby teve um momento de hesitação.
— Vou dar uma volta até o "White Hart" e depois irei dormir — disse.
A mulher sorriu zombeteira.
— Johnny não iria machucá-lo — disse ela. Ela calculou que "Johnny" fosse Mr. Tilling. — Eu sempre dou um pequeno passeio toda noite. . . Desde que não perca o chalé de vista, não faz mal sair um pouco.
Nesse ponto suas maneiras e sua voz se alteraram.
— Quem foi que matou Studd? — perguntou.
Seu tom de voz era quase metálico, e o rapaz pressentiu-lhe uma fúria de que jamais suspeitara antes.
—A besta suja e criminosa? — Tinha a voz embargada.
— Eu vou descobrir, Mr. Ferraby; e vou fazê-lo antes de vocês detetives!
O seio dela arfava; havia quase um soluço em sua voz. — Studd era seu amigo, não é verdade?
—Namorado — respondeu desafiadoramente. — Estou lhe dizendo a verdade. Ele era o único.. .
De novo estacou, era-lhe quase impossível controlar a voz.
—Eu estava para me divorciar. Johnny não é nenhum santo, pode crer. E íamos nos casar. É a verdade. Ele teria me transformado. . . e me teria tirado desta cidadezinha suja.
Deteve-se, procurando recobrar o domínio próprio.
—Estava para lhe dizer isto hoje de manhã, só que não pude. Se descobrir quem o matou, pouco importa quem seja, eu me encarregarei de pô-lo na cadeia!
Havia nessas palavras uma dose concentrada de maligni-dade que o teria abalado, não fosse ele inabalável por natureza.
— Foi por isso que o convidei para darmos um passeio; por isso também que desejei ardentemente que viesse aqui esta noite. Esperava-o já fazia duas horas. Pensou que eu estivesse tentando conquistá-lo, não é? Nada disso. Eu queria descobrir o que sabe, e feito boba achei que seria fácil arrancá-lo de você. Mas agora vejo que se soubesse de alguma coisa não me diria. . . Mas não sabe nada!
Não havia nenhum som exceto o gotejar da água que caía das árvores. Chovera fortemente no início da noite, mas a tempestade já tinha passado.
— Ele estava indo ao meu encontro quando foi assassinado — prosseguiu a mulher, mais controlada. — Por isso estava sozinho. Eu teria ido ao baile, mas não quis dar motivo a falatórios, tanto mais que Johnny iria passar aquela noite em Londres.
— Ele voltou pelo último trem — informou Ferraby. — Sabia?
Ela o fitou, incrédula.
— Quem? Johnny ? Meu marido? Ele voltou no dia seguinte de manhã. Deve estar enganado.
— Ele regressou na mesma noite — insistiu Ferraby, —pelo último trem.
E notou que o ritmo da respiração dela tornava a acelerar-se.
—Meu Deus! Foi mesmo? — exclamou. — Eu não soube disso!
Entreolharam-se na penumbra. A única luz que ali havia era a da lâmpada pública que assinalava o começo do povoado, um segmento solitário da civilização.
— Bem, isso já é alguma coisa — disse ela por fim. — Boa noite, Mr. Ferraby.
E antes que ele respondesse ela já se tinha voltado e desaparecido em meio à escuridão do jardim. Num relance, ainda a viu abrir a porta do chalé; depois o rapaz voltou para a esta-lagem, intrigado e estimulado por aquela entrevista.
Não fora à toa que gabara o conforto de seu quarto. Era amplo, de teto baixo e, se o papel da parede enveredava pelo exótico, a mobília era antiga e cômoda, e muito promissora a cama de armação.
Despiu-se pachorrentamente, leu durante meia hora, depois, tendo aberto as janelas, correu sobre elas as cortinas quase transparentes.
Estava na idade em que se dorme pesada, profunda e des-preocupadamente. Via de regra caía no sono dois minutos após ter recostado a cabeça no travesseiro, mas nessa noite passou muito tempo a virar-se de um lado para outro, antes de finalmente conciliar o sono. A última coisa que ouvira foi o relógio do povoado dar a meia-noite.
Depois passou a sonhar; era um sonho terrível. Estava na entrada de Marks Priory, conversando com Isla Crane, quando alguém por trás dele, correu-lhe algo em roda do pescoço. "Não seja bobo"; disse ele, erguendo a mão para afrouxá-lo. Entretanto o laço ficava cada vez mais apertado; sufocava-o; a cabeça lhe parecia ter crescido até atingir tamanho descomunal. Lutando desesperadamente, acordou. Não era sonho; acreditar que o fosse seria o mesmo que morrer. Algo lhe fora atado ao pescoço e o estrangulava.
Agarrou com violência aquilo que o estrangulava, tentando puxá-lo de si, no que se arrojou do leito. Ouviu rangerem os rodízios da cama quando a puxou. Debatia-se desesperadamente, mas o laço que o enforcava permanecia inalterado; Ferraby já perdia os sentidos. Com um derradeiro esforço alcançou o colete, que pendurara numa cadeira. Nele havia um canivete. Localizou-o, abriu-o e, levando-o ao laço, pôs-se a cortá-lo ferozmente.
Já estava livre do pior, mas o laço ainda permanecia em seu pescoço. Os ouvidos lhe zuniam; mal tinha consciência do que estava fazendo, quando enfiou a lâmina entre a garganta e o laço. Num segundo estava livre, estendido no chão, respirando, ofegante, o ar da noite.
Ouviu obscuramente um passo apressado no corredor; alguém abriu a porta e entrou.
—Aconteceu alguma coisa?
Era a voz de Tom. Viu o vulto sobre o assoalho, acendeu uma vela e ajudou o detetive a sentar-se.
—Que aconteceu?
Alguém mais entrava agora no aposento; era o proprietário.
Arrastaram o rapaz até a janela aberta e ali o deixaram ajoelhado, com os braços sobre o peitoril.
—Acenda o gás, Tom.
A estalagem tinha gás acetilênico, a cuja branca luz examinaram o quarto. A cama fora deslocada do lugar para o meio da peça.
Ferraby ergueu-se lentamente, com os joelhos trôpegos, e a cabeça às voltas.
—Me peguem aquilo, por favor — disse.
Apontara para os fragmentos de uma gravata vermelha espalhados no chão; percebeu que se tratava de uma réplica da que fora usada contra Studd. Podia-se ver a pequena etiqueta metálica reluzir à débil luz do gás.
Quinze minutos depois já se recobrara o bastante para fazer um exame cuidadoso. A gravata lhe tinha sido atada ao pescoço, e à cabeceira da cama, operação que devia ter sido realizada por alguém muito forte. A posição em que se deitara lhe salvara a vida, sem dúvida.
Quem quer que fosse, tinha entrado pela janela; Ferraby abriu as cortinas, e na superfície úmida da sacada constatou a marca de um pé. Depois descobriu-se por perto uma escada de mão. Havia algo de grotesco na situação quando os policiai's vilarinhos foram convocados e informados dos detalhes da ocorrência.
À luz do dia Ferraby fez uma inspeção cuidadosa no aposento; entretanto, o intruso não deixara pistas, e mesmo sua pegada era tão indefinida que pouco poderia ajudar. Tanner foi chamado por telefone e posto rapidamente ao corrente dos fatos.
— Eu me sinto feito bobo — explicou Ferraby em tom de desculpa; — procurando um estrangulador que esteve atrás de mim o tempo todo!
— É, ele parece ter tido mais sucesso —- disse Bill Tanner secamente.
O inspetor-chefe fez poucos comentários. Perguntou, quase antes de tudo, se Ferraby vira Amersham.
— Não, não está aqui; saiu a outra noite.
—Ele não voltou à cidade — informou Tanner. — Acho que você vai descobrir que ele esteve em alguma parte de Marks Thornton. Faça uma investigaçãozinha e volte pra cá. Traga também os pedaços da gravata.
— Estão com a polícia local — respondeu Ferraby tristemente.
— Peca-lhes. O caso é nosso; e se lhe derem trabalho ligue para o delegado. Espero que conserve esse negócio em segredo e que o estalajadeiro não resolva abrir o bico. Quanto menos transpirar, melhor. Se isso for parar na imprensa você vai ficar com cara de trouxa e vão chover repórteres aí. Isto é exatamente o que não queremos.
Na verdade, Ferraby obtivera do estalajadeiro a promessa de nem sequer mencionar o caso. Já os policiais do local seria mais difícil calar; de modo que Ferraby tomou a precaução de telefonar ao delegado da localidade transmitindo-lhe instruções categóricas a respeito.
Quando regressou à cidade, aquela mesma noite, constatou que Tanner, por seu turno, partira para o Interior. Imaginou que tivessem se desencontrado durante a viagem; mas o fato é que as investigações de Mr. Tanner já tinham tomado outro rumo.
Tanner chegara, aquela tarde, a uma agradável localidade de Berkshire. Podia, se quisesse, ter ido diretamente ao vicariato de Peterfield entrevistar o Rev. John Hastings. Em vez disso, deu um passeio solitário, inspecionou as ruínas saxônicas que são a principal atração de Peterfield, o salão de festas inacabado, e por fim a própria igreja, onde um amável porteiro, que também era uma espécie de antiquário, salientava os encantos de uma edificação que já era velha no tempo de Henrique VIII. Como se isto fora um grande regalo, conduziu-o à cripta e mostrou-lhe certas relíquias lúgubres do tempo da Reforma. Havia livros eclesiásticos para serem inspecionados que remontavam ao ano de 1400... Enfim, o Inspetor Tanner passou uma tarde instrutiva.
Regressou então e descobriu que perdera Ferraby. Esse rapaz, um pouco abalado, fora para casa a fim de passar uma noite menos agitada. Entretanto, datilografara um relatório extremamente lúcido do que tinha acontecido. Tanner desfez o pacote que continha os fragmentos da gravata. Era idêntica à que já tinha em seu poder e com a qual Studd fora morto.
Embora Ferraby tivesse feito um esboço do quarto e arredores, isso foi pouco esclarecedor para o inspetor-chefe, porém havia um post scriptum no verso.
"O senhor estava inteiramente certo quanto a Amersham. Ele passou a noite em Cranleigh, cerca de cinco milhas de Marks Thornton. Hospedou-se na estalagem local onde também guardou o carro, e passou a maior parte da tarde e da noite em algum lugar, mas ainda não consegui descobrir onde."
Tanner leu e releu o relatório, meteu-o no cartapácio que guardava na escrivaninha e trancou a gaveta à chave. O caso de Marks Priory voltava a ganhar vida; era agora um problema vital; daí em diante teria prioridade sobre todos os demais casos.
Embora Ferraby não o soubesse, um terceiro policial fora enviado à cidadezinha a fim de proceder a uma terceira linha de investigação,- e dessa vez a investigação seguia uma nova e estranha avenida, pois dizia respeito ao falecido Lorde Lebanon, que morrera de maneira súbita e misteriosa, enquanto Willie Lebanon se encontrava na India.
Pela manhã o detetive encarregado de investigar o mistério da morte de Studd tinha a seu lado rnais onze policiais. Um deles anunciou o retorno do Dr. Amersham a seu apartamento; outro assumiu a investigação em Peterfield, <de que Tanner se retirara, enquanto que um terceiro fazia pacientes investigações no Consulado Norte-Americano.
Anunciou-se, às sete daquela noite, que o doutor saíra de Ferrington Court com destino a Marks Priory. Dispensara o chofer e dirigia o carro pessoalmente. Dez minutos depois de ser informado disso, Mr. Tanner entrou em contato com os policiais que dispusera em certos pontos-chave da estrada que dava para Marks Thornton, e às oito em ponto, quando o primeiro desses vigias informou que o carro ia na direção sul, ele deixou a Scotland Yard e foi de táxi até o apartamento de Amersham.
Dessa vez ia munido de um mandado de busca.
Sua entrevista com Bould foi breve. O zelador soube reconhecer o mandado quando o viu.
— Terei de informar isto ao doutor quando ele voltar, pela manhã — explicou.
— Não faz mal — disse Tanner, — mas se por qualquer razão você se esquecer de fazê-lo, eu lhe ficarei muito grato. Se eu mexer em alguma coisa, tornarei a colocá-la no lugar.
Totty o acompanhava, e uma vez que foram conduzidos ao interior do apartamento, graças a uma chave-mestra, iniciaram uma busca sistemática e cuidadosa. Era óbvio que o doutor não era nenhum ermitão. Seu apartamento estava luxuosamente mobiliado; os poucos artigos de manufatura indiana que evidentemente trouxera do Oriente tinham sido selecionados com muito bom gosto. Sua escrivaninha cedeu à persuasiva chave de Totty, mas pouco encontraram que lançasse luzes sobre os hábitos do doutor ou sobre a origem de sua renda.
Procuraram-lhe a caderneta bancária, mas não estava no apartamento; entretanto, encontraram papéis que revelavam ter ele um saldo em torno de £8000.
Evidentemente exercia a profissão, pois em seu quarto foi encontrada uma maleta médica pronta para entrar em uso, bem como um estojo de instrumentos cirúrgicos, que, ao que tudo indicava, já fazia tempo que não eram utilizados, pois estavam lambuzados de graxa preservativa.
Foi Tanner quem fez a descoberta mais importante. Todas as gavetas da escrivaninha tinham sido abertas e seu conteúdo examinado. Observou que duas delas, as do compartimento central, eram muito pequenas e seu comprimento não chegava até o fundo da mesa. Enfiou o braço pelo vão e deu algumas pan-cadinhas no fundo; o som indicava estar oco ali. Depois encontrou uma ranhura própria para enfiar-se o dedo -e acionar um painel corrediço; o que ele fez. Com a mão enfiada, apalpou e sentiu algo mole, que puxou; era um pedaço de pano. Assobiou de surpresa ao ver de que se tratava: uma gravata vermelha igualzinha à que matara Studd!
Chamou Totty, e mesmo esse, que sempre tinha algo que dizer, emudeceu ante aquele indício. A mesma etiquetazinha rubra estava costurada num canto, ostentando a mesmíssima marca de fabricação. Ainda não fora utilizada, pois conservava as dobras originais indicativas de que permanecera empacotada todo o tempo. Os dois se entreolharam em silêncio. Então Bill anunciou:
— Amanhã vou pedir ao Dr. Amersham que me explique isto — disse devagar, — e acho que ele não vai achar nada fácil.
Havia duas pessoas em Marks Priory que se antípatizavam intensamente. Mr. Kelver, aquele eminente criado, era polido demais até mesmo para admitir seu natural antagonismo para com a criada de Lady Lebanon denominada Jackson. Essa Jackson, que não era nenhuma dama, jamais ocultara seu desprezo por aquele a quem invariavelmente se referia como "o fóssil". A extrema delicadeza de Mr. Kelver já era para ela uma ofensa acabada; sua terminante recusa a perder a linha em toda e qualquer circunstância era por si só motivo suficiente para enfurecê-la.
Essa rixa datava do tempo em que Jackson andara repetindo uma história prolixa e aparentemente emocionante baseada em algo que ouvira em primeira mão de sua senhoria. Como fosse coisa escabrosa, Mr. Kelver a ouvira em silêncio. Quando, porém, já sem fôlego, a mulherinha finalizara o relato, dissera--Ihe ele:
—Preferia. humm. . . Miss Jackson, que não me trouxesse essas histórias. Não estou interessado na vida particular de minha. . . humm. . . empregadora. Os membros da aristocracia têm certos privilégios que, para as classes inferiores, podem parecer. . . humm. . . peculiares.
À vista disso o rosto da criada se tornou perigosamente rubro.
—Se se refere a mim como alguém das classes inferiores, Mr. Kelver... — começara ela.
Mas o mordomo a reduzira ao silêncio com um simples gesto. E era esse gesto que ela não lhe perdoava. Tornaram-se, pois, inimigos: tacitamente, pelo que tocava a ele; aberta e ostensivamente, pela parte de Jackson. Mr. Kelver não se aborrecera. Toda sua vida ele a passara a reprovar criados subalternos; atividade que, de certo modo, chegava a acrescentar-lhe algum encanto à existência.
Jackson era uma criada privilegiada, visto que tinha acesso à parte principal da casa mesmo depois das nove horas. Às onze em ponto, quando sua senhoria se recolhia, e só então, era ela excluída com os demais, girando Lady Lebanon a chave na fechadura da porta que pessoalmente cerrava sobre ela. Mas aquelas horas extras que passava em contato com a nobreza acrescentavam-lhe certa importância social aos olhos da demais criadagem de Marks Priory, que ficava com a impressão de que Miss Jackson iniciara-se em muitos segredos ocultos para o resto dos mortais. Sabiam que sua senhoria a escutava como a nenhum outro servo ou serva, e, pois, tratavam-na com o mais subido respeito.
Para Kelver, entretanto, ela não passava de uma megera-zinha de idade incerta, de quem ademais suspeitava, não sem motivo, lhe andasse minando a autoridade junto aos superiores.
Na noite em que o. Inspetor Tanner fizera aquela sua descoberta encontrava-se o mordomo em sua saleta de estar, absorto na leitura de Scott. Era provavelmente a única pessoa no mundo que lia Scott, só Scott e nada senão Scott. A admiração que tinha pelo gênio de Abbotsford quase atingia as raias da veneração. Estava no último capítulo de O Antiquârio (que já lera catorze vezes), quando lhe bateram à porta;, após o que, para seu espanto, Jackson entrou furtivamente.
Um simples olhar revelou-lhe que a criada já não era a mesma. Estava aturdida, nervosa; suas maneiras chegavam quase a ser humildes. Seu próprio modo de entrar dava provas disso.
— Queira desculpar, Mr. Kelver, mas o que passou, passou; e se alguma vez eu precisei de um amigo essa ocasião é agora. Sei que para um cavalheiro como o senhor é difícil suportar a malícia de uma jovem. . .
Mr. Kelver poderia ter fungado ao ouvir aquela mulher descrevendo-se como "jovem", mas, como convinha ao cavalheiro que era, conteve-se.
A recém-chegada soltou uma torrente de palavras, e exceto por ele pôr em dúvida a propriedade do vocábulo "jovem" que ela usara para descrever-se, Mr. Kelver a ouviu com* simpatia. Não estava absolutamente seguro de como a entrevista iria terminar, por isso manteve-se na defensiva.
Sua senhoria estivera intratável; na verdade, impossível; despedira Jackson (Kelver sentiu uma estranha satisfação ad ser notificado disso); chegara mesmo a espancá-la — dera-lhe um pé-de-ouvido, para ser exato. Mr. Kelver, que não poucas vezes desejara executar idêntica operação pessoalmente, arqueou as sobrancelhas e inclinou gravemente a cabeça.
—Sua senhoria — prosseguia a mulher — tem estado assim o dia todo. . . absolutamente fora de si! A gente não consegue agradá-la por mais que faça. Enfim, eu lhe pediria a conta se não me despedisse. Estou farta desta maldita casa. . .!
—Miss Jackson! — murmurou Kelver escandalizado.
— Bem, é uma casa maldita. . . Mal-assombrada! Tenho visto coisas, Mr. Kelver, nas duas horas que ainda permaneço na casa depois que o senhor, com os outros, é lançado fora — (Mr. Kelver recuou num estremeção) — que o senhor nem acreditaria. Estou cheia! — (Mr. Kelver tornou a estremecer). — Ah, mas antes de ir terei algo a dizer, acredite!
—Minha cara jovem — interveio Kelver à sua maneira mais absurdamente didática, — uma discussão só pioraria ainda mais as coisas. Este mundo precisa de todo tipo de pessoas; se todos fôssemos iguais, a vida seria monótona. Notei que sua senhoria está bastante estranha hoje. Algo a terá transtornado. .. Deve ser mais tolerante, Miss Jackson, para com o temperamento peculiar dos bem-nascidos. Veja, quando estive a serviço de Sua Alteza Sereníssima, não lhe era incomum virar o cozido sobre o cozinheiro. E sei que isto ocorreu mais de duas
vezes.. .
— Eu só queria ver alguém virar um cozido sobre mim! — comentou sem fôlego Miss Jackson.
E aquela possibilidade mergulhou Mr. Kelver em profunda meditação durante alguns segundos. Depois olhou para o relógio sobre o consolo da lareira: ainda não eram dez.
—Saiu cedo hoje — observou.
—Mas tenho de voltar — explicou a mulher. — Amersham está lá; está havendo uma espécie de banze lá em cinta. Ela disse que me chamaria pela campainha caso precisasse.
Kelver, sempre um perfeito cavalheiro, acionou por sua vez a sua própria campainha.
—Aceita uma xícara de chá, Miss Jackson? Creio que lhe faria bem aos nervos.
— Prefiro whisky e soda — respondeu-lhe a prática mu-lherzinha.
O mordomo travou grande luta contra si mesmo para negar que tivesse semelhante coisa em seus aposentos, mas a verdade venceu e ele acabou retirando do armário uma garrafa ainda por abrir.
Realmente, havia barulho em Marks Priory aquela noite. O Dr, Amersham chegara às nove, e não estava para. aturar repreensões. Na verdade, viera com o fito de repreender.
— Minha cara senhora, gostaria que se decidisse a me chamar mais cedo quando me quisesse ver; eu tinha um compromisso importante para esta noite. . .
—Este é o compromisso importante que tem.
Lady Lebanon postava-se rígida na cadeira, seu rosto pálido como se fosse uma máscara, os olhos escuros ameaçadores.
—Se me disser que há algo mais importante que isto eu ficarei surpresa.
Por um instante ele lhe retribuiu os ares ameaçadores, mas dominou-se.
—Imagino que seja por causa desse detetive. Se ele foi tolo bastante para quase deixar-se estrangular. . .
— Quem lhe contou isso? — perguntou ela rapidamente. — Corre por aí.
— Quem lhe contou? — repetiu ela.
— Gilder. Ele me telefonou.
Por longo tempo ela o mirou sem dizer palavra. Depois: — Não é sobre isso que lhe quero falar; é sobre outro assunto que lhe toca mais de perto.
E pegou uma pequena folha de papel do bloco à sua frente.
—Fui procurada hoje por uma mulher, uma antiga garçonete da casa de chá do povoado.
E notou que a expressão dele se alterou.
—E daí? — perguntou ele em desafio.
— É verdade que andou. . . fazendo-lhe a corte? Ele evitou responder.
— Que tolice! Minha cara senhora, se for dar ouvidos a essa gente. . .
— É verdade ou não? — tornou ela a perguntar. — Essa moça já foi sua amiga... chegada. . . ? Recuso-me a exprimir-me de modo mais vulgar que esse. . .
— Recuso-me a responder.
—Ouvi também certas histórias sobre a esposa de Tilling.
Ele riu, mas sem espontaneidade.
— A senhora poderia levar dias inteiros ouvindo "certas histórias" sobre ela. Mas com certeza não me fez vir de Londres aqui para me passar pitos, como se eu fosse um garotinho colhido no ato de furtar geléia. . .
Ela o fitou ainda por um momento, depois seus olhos des-caíram para a mesa.
—Suponho então que seja verdade — disse ela. — Que animalesco, que vulgar! Está claro que isto não poderá continuar.
Ele puxou uma cadeira, extraiu um charuto do bolso e só falou depois de acendê-lo e assegurar-se de que estava bem aceso.
—Já pensei nisso — disse friamente. — Decidi que prefiro deixar a Inglaterra e ir morar na Itália. Há tempos que venho fazendo este seu trabalho sujo. . .
Lady Lebanon empinou o queixo; odiava aquele homem por sua crueza.
—Tem sido Bem pago para isso — estridulou.
Ele deu uma risada.
— Sua idéia de pagar bem e a minha não coincidem exatamente. M-as não quero entrar no mérito da questão. Pretendo partir no fim do ano, comprar uma villa em Florença e esquecer que existem lugares como Marks Priory.
Ela inclinou a cabeça.
—Talvez também se disponha a esquecer que tenho uma conta bancária — sugeriu-lhe. — Para mim, isso seria um grande alívio.
Ele sorriu a isso.
—A conta não é sua, e sim de Willie; e ele está sempre pronto a assinar qualquer cheque que tenha pela frente. Não, não me esqueço disso; na verdade, eu dependo dessa feliz circunstância.
A atmosfera estava carregada. Ela reprimiu uma réplica óbvia e fez soar a campainha de sobre a mesa.
— Discutiremos isso pela manhã — disse. — Não creio que qualquer de nós esteja em condições de discutir o que quer que seja, por ora; poderia facilmente degenerar em algo horrível. Amersham, você deve pôr fim a esses namoricos. Isto afeta a minha reputação. .. Todos sabem que você tem o entrée aqui.. . E isso o faz parecer idiota. Já não é um rapazola! Nisto a vaidade do médico foi ferida, e ele corou.
—Minha idade não vem ao caso — respondeu. — A hora é avançada demais para examinarmos esse lado da questão. E não Vou parar esta noite... Na verdade, voltarei direto para Londres.
—Ficará aqui — tornou a mulher, — ou não haverá nenhum cheque para você amanhã.
Ele a mirou furibundo. O Dr. Amersham tivera educação de cavalheiro, e apesar de seus princípios se terem deteriorado em convenções a serem observadas ou descartadas de acordo com interesses de ocasião, ele sempre procurava manter as aparências. Podia aceitar dinheiro de uma mulher, mas não suportaria que isto lhe fosse lançado em rosto. Isto, e não aquilo, é que lhe era contrário aos princípios.
Imóvel, ela lhe ouvira a resposta imoderada.
— Jamais pensei que você fosse tão intensamente vulgar — disse-lhe depois, com toda a calma.
— Deve se lembrar — tornou ele — que a polícia nunca investigou esta casa e que, se o fizesse, a coisa esquentaria de verdade. Deve lembrar-se de que está inteiramente em minhas mãos, e isso deveria fazê-la voltar a si. Vou-me embora. Talvez eu tenha uma historieta para contar ao Inspetor Tanner.
Mas ela sacudiu a cabeça.
—Não creio. Ninguém acreditaria em você, se lhes contasse. Conte-lhes, se é que se atreve! Não se esqueça, Amersham, que está tão envolvido quanto qualquer um de nós. Mas o caso é que você sempre quis gerir o dinheiro de Willie, e o que não me perdoa é o ter-me colocado no caminho.
Ele permanecia ali, com os olhos faiscando sobre ela; a tal ponto que, por um instante sua senhoria temeu que a agredisse.
— Está bem — disse ele por fim. — Veremos. Não volto mais.
Dizendo isto retirou-se, e ela escutou a porta bater ruidosamente atrás dele. Lady Lebanon não se moveu; ficou a mirar o corredor escuro, mesmo depois de ouvir o rumor do carro que deixava o pórtico.
—Chamou, senhora?
Ela ergueu os olhos e ao dar com Jackson no topo da escada lembrou-se de que tocara a campainha. Por quanto tempo estivera ali e até onde ouvira? E como a ler os pensamentos da ama, Jackson prosseguiu:
— Esperei na escada até ouvir a porta bater.
— Muito bem — disse Lady Lebanon. — Sim, irei logo para o meu quarto.
Jackson ouviu passos apressados e ergueu os olhos. Era Isla.
— Que houve, Isla? —: A voz de sua senhoria era aguda.
— Nada.
Isla Crane não falara a verdade. Algo a aterrorizava. Com um gesto, Jackson foi despachada.
—Que aconteceu? — tornou a perguntar Lady Lebanon com voz rouca, indicando uma mesa sobre a qual havia uma garrafa.
A moça meneou a cabeça.
— Não quero vinho.. . Onde está Gilder? — perguntou.
— Não sei. Deve estar no quarto dele.
— Ele saiu. — A voz de Isla estava agudíssima, quase histérica. — E Brooks também. Vi-os da janela do meu quarto. .. Oh, Deus, não vai acontecer de novo!
Lady Lebanon não olhava para a moça. Tinha os olhos escuros fitos na grossa porta ao fim do corredor ensombrado. Desceu as escadas rapidarnente, escancarou a porta e deteve-se no limiar, transfixando a noite. Não se ouvia ruído algum, nem mesmo o rolar distante de um trem. A quietude era quase opressiva. Logo, do vazio negro que havia diante de si chegou--lhe aõs ouvidos um gemido que a gelou de pavor; um gemido seco, abafado, que cessou de maneira súbita e assustadora. Depois, o silêncio de novo. Manteve-se ereta, perscrutando a escuridão da noite, com um terrível pressentimento.
Muitos são chamados para o Departamento de Investigações Criminais, mas poucos escolhidos. Isto porque a grande maioria dos jovens policiais se crê detentora dos predicados essenciais dos grandes detetives.
Davam-se poucas aulas na Yard para tais detetives em perspectiva, de modo que coube a Mr. Tanner, já que se estava nas férias de verão, pronunciar conferências sobre a tarefa da polícia, ilustrando-as com sua extensa experiência pessoal. Sua ampla sala estava provida de várias cadeiras para os poucos pri vilegiados que assistiriam à "aula", e um quadro negro fora arrastado para ali, com o qual deveria a palestra ser ilustrada.
Totty chegou cedo, viu o quadro negro e teve ganas de retirar-se, não fossem as ordens imperativas que tinha para permanecer até a chegada do inspetor-chefe. Como sempre, quando Ferraby entrou, Totty. ocupava a mesa de Tanrier. Lia o "confidencial" e ergueu os olhos com um sorriso para o recém-chegado.
—Quase te pegam, hem? Ora, ora, nem sei o que seria da Yard se perdesse o seu membro mais ativo e inteligente...
Tão inteligente que nem trancou a porta do quarto...
— Ele entrou pela janela.
—Por uma passagem subterrânea, com certeza! — escarneceu Totty. —Ou por um painel secreto, como nos livros!
— Obrigado pela compreensão e bondade — disse Ferraby. — Quede Tanner?
— Chega em dez minutos. Como vai o pescoço?
— Bem, obrigado.
— Eu teria morrido — admitiu Totty gratuitamente. — Em todo caso,, não gosto mesmo que me acordem. Que estava fazendo em Marks Priory?
— Sapeando — respondeu Ferraby, daí passando para o seu assunto predileto. — Aquela garota é um estouro!
Totty ergueu os olhos e apoiou o queixo numa das mãos, compondo uma careta intrigada.
— Que garota?
— Miss Crane. E a menos que eu me engane, é a criatura mais infeliz deste mundo.
— Ah, então foi por isso que você andou por lá! — tornou o outro escarninho. — Foi confortá-la. Bem, parece que fracassou!
Ferraby tinha que falar a alguém do que lhe ia na alma.
—Dizem que ela vai casar com aquele camarada — informou bruscamente.
Totty soltou o documento confidencial, que aliás não tinha nenhum direito de ler.
— Qual camarada? — perguntou, e quando o outro lhe disse: — o Lorde Lebanon?... É uma moça de sorte. Será viscondessa. . .
— A sua idéia de sorte e a minha não coincidem nada — tornou Ferraby.
Foi até a janela, deu uma espiada no Embankment e mudou de assunto.
— Esse tal de Briggs está em Cannon Row.
— Quem?
— O que foi preso por passar dinheiro falso — explicou Ferraby. —- Ele escreveu para Tanner, ao que parece, e disse que tem algo a dizer sobre o crime de Marks Priory. Tanner acha que ele pode ajudar a esclarecer alguma coisa. Ele estava lá na noite em que Studd foi morto, e diz que o viu.
Totty sacudiu a cabeça e pôs-se a articular murmúrios de impaciência.
—Não posso entender que Tanner se dê ao trabalho de ouvir um camarada como esse — disse, quase com desespero. — No meu departamento os presidiários têm de confessar crimes, e não ajudar a esclarecê-los. E por que isto? Porque o que eles querem é escapar de Dartmoor, ao menos por um dia! Confissões de condenados! Essa é boa!
Nesse ponto Tanner entrou.
— Eu estava dizendo que, na minha opinião, é perda de tempo entrevistar alguém como Briggs. Deixe que eu vá vê-lo em Cannon Row. Eu me incumbo de arrancar a verdade dele.
— Você sempre diz "senhor"? — indagou-lhe Tanner.
— Direi "senhor" se o senhor quiser que eu diga "senhor", meu senhor — disse com ironia. — Briggs está em Cannon Row.
— Foi o que me disseram — confirmou Tanner.
— É pura perda de tempo ir vê-lo. Puxa, é surpreendente que você.. .
— Isso é comigo — atalhou-o Tanner.
— Só estou tentando ajudar, meu caro — obtemperou Totty numa efusiva demonstração de camaradagem.
— "Senhor" mesmo já serve — tornou Tanner. — Soa bem em presença de subordinados. — Tanner era quase oracular. — Quando estivermos sós lembrar-me-ei de que fomos, respectivamente, o melhor e o mais baixo policial que jamais trabalharam juntos.
— Já disse isso antes — replicou Totty, — e minha resposta é: Eu continuo sendo o melhor.
— Como se sente depois dessa aventura? — perguntou o inspetor, dirigindo-se a Ferraby.
O rapaz sorriu acabrunhado.
—Sinto-me como um idiota; fui investigar um estrangulamento e quase saio estrangulado. Estou bem agora; só com a vaidade ferida.
— Não viu ninguém nem ouviu nada!
—Eu devia estar a sono solto; é uma sorte que ainda esteja vivo!
Totty produziu um ruído de desdém.
—A mim nunca me pegariam, meu velho — disse. — O menor ruído já me acorda e logo põe todas as minhas faculdades em ação!
— Que, aliás, não são muitas — interrompeu-o Tanner. — Diga tudo o que descobriu sobre a tal de... num... Mrs. Tilling.
Até mesmo Totty se interessou pela narração daquelas duas entrevistas. »
— Ela sabe ou adivinha alguma coisa — disse Tanner.
— Mas tenho um palpite de que pode estar enganada. Você teve um pequeno bate-boca com o marido dela, não foi?
Totty meneou a cabeça.
—Engraçado como vocês não são capazes de fazer nada sem tentar destruir um lar — comentou.
— Quer calar essa boca?. . . Discutiu com ele, não foi?
Ferraby sorriu.
—Discutir é o modo natural de tratar com aquele fulano —explicou.
Tanner esfregou o queixo, irritado.
—Há gente suspeita demais nesse caso. O doutor estava nas redondezas? Ah, é; você já disse que sim. . . E você não descobriu nada de novo sobre Briggs?
Totty contemplava as cadeiras.
—Não está querendo que eu também assista a essa conferência, não é?
Tanner fez que sim.
—E posso saber qual a utilidade que teria para mim um curso para recrutas? Não sabe que eu tenho esquecido mais do que qualquer um da Scotland Yard jamais aprendeu?
Tanner ergueu os olhos, surpreso.
— Não sabia disso.
— Pois fique sabendo — tornou-lhe o subordinado. — Se eu tivesse passado naquele exame, a esta altura já era comissário. Rainha Elisabete. . . humm!
— Ela não era tão má pessoa — contraveio Tanner.
— Rainha Virgem, pois sim! — escarnecia Totty. — Esse foi um pequeno escândalo.
— Escândalo maior — interveio Ferraby — foi você fazê-la morrer em 1066.
Então Totty explodiu.
— E que interessa quando tenha morrido? Saber que ela morreu em 1815 faria de mim um melhor inspetor? E, depois, essa conferência não é sobre História. Ninguém precisa me ensinar como os criminosos operam. Já sei tudo sobre isso. Está tudo aqui dentro — concluiu, com um tapinha na testa.
— Está tudo aí dentro, só que esse é o último lugar em que alguém pensaria em procurar. — Não preciso de você por enquanto — disse Tanner. — Não; você não,, Totty; falei a Ferraby. Vou ver esse Briggs e depois teremos a nossa aula.
Totty lançou um suspiro e exprimiu laboriosamente a sua resignação.
— Qual é.o tema do raio dessa conferência? — perguntou depois, desabando numa cadeira e começando um cigarro.
— Poderia ser o caso de Marks Priory; está fresco na memória de todos.
—Eu mesmo poderia dizer-lhes tudo sobre esse caso. Tanner pegara a pasta da gaveta e retirara dela um pedaço de papel.
— Isto é uma coisinha que peguei ontem, juntamente com a gravata vermelha, da mesa de Amersham; são as duas descobertas mais importantes que fizemos.
—Posso ver esse papel? — pediu Totty.
—Não pode — respondeu o outro prontamente. — Isto— e brandiu o papelucho — é um exemplo de raciocínio e intuição de primeiríssima classe.
Totty ficou curioso, mas sua curiosidade permaneceu insatisfeita.
— É claro como água para mim — disse ele. — Qualquer caminho que se tome leva a Amersham. Ele estava nos campos do priorado na noite em que Studd foi morto; a gravata estava em seu poder; ele estava perto de Marks Thornton na noite em que tentaram estrangular Ferraby. Mas o motivo por que alguém se daria ao trabalho de riscar Ferraby da folha de pagamento é coisa que não consigo imaginar.
Totty inclinou-se.
— Andei fazendo uma pequena investigação por conta própria. Enquanto você roncava na cama, que fazia eu? — Embriagava-se! — sugeriu Tanner.
—Dava um murro danado para obter os fatos — disse Totty, indignado. — Queimando as pestanas e andando de um lado pra outro em busca de informações. Fique ' sabendo que Amersham tem uma ficha policial.
Bill Tanner teve um sobressalto.
—Está brincando!
O Sargento Totty saboreou o efeito que causara.
—Eu mesmo apurei isto nos arquivos.
Bill aguardou ainda, sern fôlego.
—Já foi multado em cinco libras por excesso de velocidade — explicou o sargento.
Tanner deixou-se afundar na cadeira.
—Compreendo. . . Um criminoso traquejado — grunhiu em resposta. — Será que ele nunca vendeu bananas depois das oito? . . . Você me deixa doente!
E virou as páginas soltas do dossiê. .
—Briggs poderia nos dizer alguma coisa
Totty sorriu zombeteiro.
— Aquele? O que ele quer é dar um passeio; um gito de táxi de Worwood Scrubbs até a Scotland Yard pra ele. é como uma excursão de jardineita e tudo.
— Veremos. Traga-o aqui.
Totty esticou o braço em direção do telefone, e levou um tapa na mão.
—Vá a Cannon Row e traga-o aqui, seu preguiçoso! —disse-lhe o inspetor-chefe. — Que é que você era na vida civil, afinal?
— Soldado — respondeu o outro, com certa dignidade.
Não teve que ir longe. Briggs esperava-o no corredor externo, algemado a um guarda do presídio. Parecia mais saudável do que quando fora sentenciado. Mostrava-se, entretanto, melancólico, cheio de lamúrias e disposto a aproveitar-se de toda oportunidade que se apresentasse. Soltaram-lhe os ferros, sentaram--rio numa cadeira e deram-lhe um cigarro. Ele, de seu lado, queixou-se de fraqueza e suplicou conhaque.
—Nunca perdem a esperança, hem? — disse Totty admirado. — É disso que eu gosto neles!
— Muito bem, Briggs! — Tanner era brusco e objetivo.:— Você estava em Marks Thornton na noite do crime, não' é exato?
—Sim, senhor. — A voz de Briggs era como um débil queixume. Falava como alguém que estivesse sofrendo. — Fiz uma declaração sobre isto. Não posso ajudar a polícia do modo como gostaria. Fui preso por perjúrio, acredite ou não, Mr. Tanner. Eu estava tão inocente como uma criança ainda não nascida. . .
—Estou certo que sim — interrompeu Tanner. —Agora diga-nos, há algo que queira acrescentar à sua declaração?
Briggs tinha a sua história para contar e desejava ardentemente que não fosse curta ou que durasse, pelo menos, três cigarros. Mr. Tanner, que tinha outra opinião, tratou de chegar logo ao ponto de ouvir o que o outro vira quando estava sentada no mata-burro próximo do priorado. Briggs vira a vítima passar e ouvira um gemido, depois:
—Vi um cavalheiro vindo na minha direção. Corria e parecia cansado. Quando eu disse: Quem vem lá?, ele respondeu: Está tudo bem; sou o Dr. Amersham.
— Tem certeza disso? — exclamou Bill, e fez uma ano-tação. — Você não disse isso no seu primeiro depoimento.
—Há muita coisa que eu não disse naquele depoimento—admitiu Briggs. — Pra falar a verdade, Mr. Tanner, eu achei que se contasse tudo de saída o senhor não iria mais querer me ver.
—Tudo pra passar um dia do lado de fora, hem? Está bem! E depois, o que foi que houve?
Tanner tinha uma longa experiência com criminosos e suas histórias. Sabia, por instinto, quando um tipo dessa espécie estava falando a verdade, e Briggs estava.
O prisioneiro ergueu-se da cadeira e deambulou até a escrivaninha. Tinha o sentido do dramático e sabia que o que estava para dizer imprimiria um tom sensacional à entrevista. Ao menos esforçava-se para isso.
—Mr. Tanner — disse lentamente, — tenho excelente memória para vozes. No momento em que o ouvi falar lembrei-me dele.
— Já o tinha visto antes? — perguntou Tanner admirado. —Onde?
—Na cadeia, em Poona —respondeu Briggs. — Aguardamos julgamento juntos. Ele era acusado de falsificar um "papagaio". Era oficial do exército e tinha assinado o nome no cheque de outro cara. Não é uma coincidência engraçada? Eu também fui acusado da mesma coisa. Mas ele saiu livre; eles acomodaram a coisa pra evitar escândalo.
Tanner fitou-o incrédulo. O Dr. Amersham, um falsário? Ou ele se enganava de pessoa ou. . .
—Você não está inventando tudo isto?
—Não, não estou — acudiu Briggs; — é tudo verdade. Se quiser dar-se ao incômodo de telegrafar para a índia, posso dar-lhe a data. Foi no dia quinze de novembro de 1918.
—Mas acontece que o Dr. Amersham é um homem refinado, é um cavalheiro, um oficial do Exército. . .! — começou Tanner.
—Claro que ele era oficial do exército — caçoou Briggs. — Mas acontece que ele falsificou a assinatura de outro oficial, um fulano chamado Willoughby. . . é esse o nome dele: Willoughby. . . Pode ver se não é verdade. .. Ele foi expulso do exército e não sei que fim levou. Dizem que casou com uma anglo-indiana em Madras. Houve ainda muitos outros escândalos, mas não sei nada sobre eles. Só sei que ele teve essa acusação e era culpado.
Leicester Charles Amersham! Não havia dúvida agora; era aquele o homem.
Tudo aquilo era mesmo novidade. Muito tempo depois de terem despachado o prisioneiro, que protestava ante a recusa de Tanner de prometer-lhe suspensão de pena, o inspetor-chefe sentou-se, apoiou a cabeça nas mãos, e dessa vez Totty não se mostrou petulante.
—Tenho de ter outra conversa com Amersham; e acho que vai ser uma bem séria — disse por fim. — Encontramos quatro fios que conduzem a ele de quatro direções diferentes. . . Queria saber de que é que ele está atrás agora.
—Eu digo que está atrás de Lebanon — acudiu Totty. Bill Tanner mordeu os lábios.
— De Lebanon? É, pode ser. . . Sempre achei que havia algo de esquisito em Amersham, mas nunca sonhei que tivesse essa ficha.
— E por que esses criados americanos? — perguntou o sargento. — Quem jamais ouviu falar de criados americanos? Não é nada natural. Seria presa bastante fácil, esse Visconde de Lebanon. Ele é um simplório. Seria o mesmo que tirar dinheiro de uma criança. . .
Nesse momento Ferraby entrou apressadamente na sala.
—Que foi?
—Quer ver o Lorde Lebanon? — disse ele.
O queixo do Inspetor Tanner caiu.
— Lebanon aqui? Essa não! Claro; faça entrar. — E assim que Ferraby tornou a sair: — Que será que ele quer?
— Seria melhor que eu atendesse, Mr. Tanner —r aconselhou Totty, grave e impressivamente. — Tenho certo trato com a aristocracia.. . Sei lidar com essa gente.
Bill Tanner limitou-se a fitar o subordinado.
Lebanon entrou, passeou os olhos curiosos pelo aposento, depositou chapéu, luvas e bengala sobre as cadeiras vagas e olhou, indeciso, de Totty para Tanner. . .
—Estão encarregados desse caso, não estão?
Totty tê-lo-ia admitido sem palavras, mas seu superior tornou clara a situação.
Não era mais fácil para o Lorde Lebanon tratar com Tanner do que o teria sido com o sargento. Estava mal à vontade; atirou para trás de si um olhar apreensivo no rumo da porta por onde entrara e pela qual Ferraby, a um sinal do inspetor, tinha se retirado.
—... Sim, lembro-me do senhor, Mr. Tanner, e parece que também me lembro de seu rapaz.
Diante disso, o Sargento Totty, sentindo-se visivelmente enobrecido, foi apresentado.
— Totty? Nome engraçado!
—Antiga família italiana — explicou o sargento com sua voz mais refinada, e Bill Tanner calou-o com um olhar duro.
O visitante ainda se mostrava inquieto com relação à porta. — Importam-se de verificar se não há alguém aí fora nos ouvindo?
Bill Tanner deu uma risada. Em todos os seus anos de serviço, e apesar dos milhares de pessoas, tanto inocentes como culpadas, que lhe tinham feito confidências naquela sala, jamais ouvira nada parecido.
—Claro que não há ninguém — disse a sorrir. — As pessoas não fazem isso na Scotland Yard.
Fora pego de surpresa pela chegada daquele visitante, a última pessoa no mundo que imaginava visitasse a Scotknd Yard, embora já tivesse previsto tal eventualidade. Ferraby lhe referira devidamente a breve palestra que tivera com o senhor de Marks Priory, de modo que o inspetor já fazia uma idéia da posição que o infeliz cavalheiro ocupava naquele solar. Cedo ou tarde algo aconteceria, e alguém teria uma história para contar. Seria o Lorde Lebanon esse alguém?
—Não sei muito sobre a Scotland Yard... É alguma espécie de prisão?
Totty sorriu-lhe com indulgência.
—Mas eu tinha que vir. Disse a Mr. Ferraby que talvez viesse. Decidi-me a noite passada.
Tanner teve uma idéia.
—Está acostumado a ter pessoas a escutá-lo atrás das portas, Lorde Lebanon? Ou tem vossa excelência alguma razão especial para esperar que tal coisa ocorra aqui?
O jovem fidalgo hesitou. Estava em posição delicada, e aquela pergunta era extremamente embaraçosa.
— Bem. . . sim. Não é uma experiência incomum, e creio que poderia acontecer mesmo aqui. A propósito, Mr. Ferraby é detetive?
Bill fez que sim.
— Pensei que fosse nobre — disse sua excelência com ingenuidade, e Mr. Totty já se preparava para dar provas da fina estirpe de vários membros da Scotland Yard, quando uma carranca de Tanner o reduziu ao silêncio.
— Serei inteiramente franco, Lorde Lebanon — disse ele com serenidade. — Apesar do que vossa excelência disse a Ferraby, não imaginei que viesse. Agora, porém, que está aqui (se me permite continuar usando de franqueza), espero que diga algo capaz de esclarecer uns misteriozinhos que me intrigam. Fique bem entendido que não tenho o direito de interrogá-lo; entretanto, como teve a bondade de apresentar-se voluntariamente, espero que nos ajude neste difícil caso, pois não sei de mais ninguém que possa.
Estava determinado a evitar que a visita descambasse para o terreno das frioleiras sociais.
—Há um bom número de pessoas suspeitas em Marks
Priory — prosseguiu. — Inclusive...— Hesitava, mas não sem arte.
—... Minha mãe? — sugeriu o rapaz serenamente.
Era um bom começo. Tanner admitiu-o.
— De certo modo. Creio que ela sabe muito mais do que nos contou. Mas eu estava pensando mais especialmente em outra pessoa: o Dr. Amersham.
O Lorde Lebanon sorriu sombriamente.
— Ele é um mistério para mim, e não me admiro de que o seja, até mais, para os senhores — respondeu. — Quanto à minha mãe. . . — Fez uma pausa, evidentemente procurando uma fórmula para descrever a posição dela. Como não a achasse, prosseguiu: — Seria melhor contar-lhes tudo o que sei — disse resoluto. — Contarei, desde o princípio, tudo sobre Amersham. . . Pelo menos, tudo o que sei sobre ele.
"Digo-lhes com toda franqueza que detesto Amersham. É-me impossível falar sem preconceito, porque tenho por ele tanta antipatia que mal posso ser imparcial."
Sentou-se e pareceu indeciso quanto à maneira de começar; depois, falando lentamente, e escolhendo palavras que não comprometessem em demasia os atores daquele curioso drama, começou:
"É melhor começar pelo meu tempo de escola. Nunca fui muito vigoroso, de modo que só passei dois anos em Eton; depois tive um tutor e preceptor particular. Meu pai, como devem saber, era inválido e. . . (foge-me a palavra) um verdadeiro recluso. Passou a vida toda (menos um inverno em que esteve no sul da França, país que aliás detestava) em Marks Priory; eu o via muito pouco, mesmo quando estava em casa durante as férias.
"Posso dizer que entre nós não havia nada da relação afetuosa que costuma existir entre pais e filhos. Tinha-lhe grande respeito e temia-o consideravelmente, mas era só.
"Marks Priory sempre foi para mim um lugar terrivelmente aborrecido, e mesmo em menino eu já detestava voltar para lá. Como vê, Mr. Tanner, não tenho o mesmo orgulho familiar de meus pais. Para eles, cada pedra do priorado era uma relíquia, e as tradições da família mais importantes que as escrituras sagradas.
"Quando deixei a escola passei a maior parte do tempo com meu tutor na Suíça, no sul da França, na Alemanha e às vezes em alguns balneários da Inglaterra, como Torquay. Meu pai estiverá no Exército. . . Na verdade, a família sempre teve algum representante num regimento de cavalaria. . . De modo que consegui entrar para Sandhurst, onde não me saí tão mal.
"Até então eu só tinha visto Amersham uma meia dúzia de vezes. Ele costumava aparecer regularmente no priorado, na qualidade de médico de meu pai. Sei que esteve alguns anos na índia, mas ignorava naquela ocasião que ele tinha deixado o Exército em "circunstâncias peculiares". .. Quero dizer, é claro que ele saiu debaixo de uma nuvem. . .; na verdade, em resultado de uma ação muito desabonadora.
"Jamais o apreciei. A primeira impressão que me causou foi a de ser um bajulador. Depois foi-se transformando aos poucos, até adotar maneiras senhoriaís, quando então passou a interferir em toda espécie de assunto que não lhe dizia respeito.
"Meu regimento partiu para a índia logo que incorporei, e dei-me por feliz de que assim fosse. Meu pai andava desespera-damente enfermo e, como disse, eu mal o conhecia. Talvez isto fosse errado, mas nunca me preocupei realmente com ele. Quando soube que morrera entristeci-me por minha mãe, mas não posso dizer que me afligisse. . . Estou sendo sincero; não quero que me julguem nem um pouco melhor do que sou.
"Estava na índia quando isto aconteceu, divertindo-me a mais não poder. Caçávamos muito, e a sociedade era sofrível, apesar de maçante. A única coisa desagradável que me aconteceu foi ferir à bala, por acidente, um de meus carregadores: ele entrou na minha linha de tiro quando eu alvejava um tigre.
"Tudo podia prosseguir normalmente, pois não havia ne- cessidade de eu voltar para a Inglaterra; minha mãe, uma mulher muito capaz, podia administrar os tens de meu pai, e todos os documentos que me cumpria assinar ser-me-iam enviados. Eu poderia ter concluído meu serviço na índia, mas sofri um grave ataque de febre logo após a caçada de que falei, de modo que adoeci por não sei quanto tempo. Deve ter sido sério, pois minha mãe chegou a enviar Amersham para me buscar.
"Não mantive contato com ele muito tempo antes de compreender a espécie de homem que era. Havia algo de estranho nele; o que me chamou a atenção para isso foram os seus modos furtivos. Ele não via ninguém, mal deixava o bangalô; surpreendi-me ao verificar que durante a viagem de volta deixara crescer a barba. Tem havido um bocado de boatos sobre ele, mas não tenho prestado muita atenção a isso. Naquele tempo eu ainda não sabia (mas vim a saber antes de deixar a índia) sobre a moça eurasiana... Contarei isso logo mais.
"A impressão que tive era de que receava encontrar-se com alguém. Só saía durante a noite. Chegava a preferir o trem comum para Bombaim, em lugar do expresso, só porque partia depois do por-do-sol.
"Voltei para a Inglaterra, e a situação que encontrei era impressionante.- Amersham praticamente era senhor em Marks Priory, e os dois criados americanos já tinham sido instalados. Mas o curioso era que eu já vira esses criados antes. Tinham estado a serviço de Amersham ou de minha mãe antes de eu entrar para Sandhurst. Mas nunca pareceram tão notáveis e salientes como por ocasião da' minha volta.
"Mamãe quase não mudara em nada, mas achei uma recém--chegada ali: Isla, a moça que o senhor encontrou. É filha de um primo de mamãe; encantadora, recatada e inteligente. Atua como secretária de minha mãe, mas é algo mais que isso. Mamãe lhe quer muito bem. Na verdade — nesse ponto o Lorde Lebanon hesitou, — estou para me casar com ela. Não tenho nenhum desejo especial de me casar, com ela nem com ninguém, mas essa é a idéia de minha mãe.
"Descobri uma tensão estranha na casa. Amersham, como já disse, dominava o lugar; os dois criados pareciam totalmente independentes. Eram impertinentes, mas nunca p foram comigo; faziam o que bem entendessem e eram tão incompetentes que qualquer rapaz de estábulo sabia mais sobre o serviço deles do que eles próprios.
"Passei a compreender que havia alguma coisa errada em Marks Priory; havia ali um segredo que todos ocultavam, mas nunca supus que meu retorno lhes fosse motivo de embaraço até descobrir que me vigiavam constantemente."
Nesse ponto sorriu baixinho.
"Ao que tudo indicava, a minha doença e a necessidade de me transferirem para casa atrapalhou-lhes os planos, quaisquer que estes fossem. Parecia-me que tinham o medo mortal de que eu por acaso viesse a dar com a coisa que tentavam ocultar--me. Até em minha própria mãe vi estampado esse receio. Era intrigante e, confesso, até mesmo assustador; mas logo me acostumei com tudo.
"O primeiro choque que tive foi quando despedi Gilder por causa de sua incompetência, e fui descobrir, no final da semana, que ele ainda estava em Marks Príory. Isso me deixou furioso; fui ter com minha mãe e insisti em que o mandasse embora."
Tornou a sorrir baixinho neste ponto.
"Foi o mesmo que sugerir a destruição de Marks Priory! Após duas tentativas inúteis, resignei-me àquela situação. Eram meus criados, era eu que lhes pagava, e todavia não tinha nenhuma autoridade sobre eles.
"Na verdade, não são difíceis de levar; em certo sentido são muito bons e, às vezes, até divertidos. Mas Amersham é outro assunto. Esse é um camarada que não mascara o fato de que manda em minha casa. Tem dinheiro à beca, um carro, cavalos de corrida. . . Mas, com certeza, já estão a par disso. Entretanto, se Gilder e Brooks, os criados, são atrevidos com todos, a ele demonstram grande respeito. O doutor os trata de igual para igual, e apesar de eu saber que minha mãe detesta esse tipo de coisa, ela não se queixa e nunca interferiu.
"Os senhores só precisam compreender que minha mãe é o que eu chamaria de aristocrata da velha escola, que não considera criados como seres humanos, para terem a medida do que essa sua tolerância significa.
"A pessoa que Amersham detestava mais que tudo era Studd, meu cri-ado, o pobre que assassinaram. Quase nunca se encontravam sem se hostilizar mutuamente, e acho. que Studd já estava para ser despedido quando o mataram. Não sei o que havia entre eles; ignoro se Studd sabia de alguma coisa contra Amersham;-mas, o qüe quer que fosse, era bastante sério para torná-los inimigos. Por falar nisso, Studd era um ex-soldado e estívera na índia.
"Enfim, quase a primeira coisa que minha mãe me disse no dia da minha volta foi que me queria casado corn Isla. Tenho mesmo de acabar casando com alguém, e não importa realmente com quem seja, mas a gente sempre gosta de exercer o direito de escolha! Como sabem, ela é muito encantadora, e sempre se comportou como uma pessoa perfeitamente normal. . . até a morte de Studd."
Nesse ponto o Inspetor Tanner aprumou-se na cadeira.
— Até a morte de Studd? — repetiu devagar. — E depois?
— Ela mudou. Daquele dia em diante tornou-se. . . assustada! "Aterrorizada" seria mais exato dizer. Chega a saltar de susto se a gente lhe fala de improviso, e parece estar sempre receando ver alguma aparição formidanda. Para completar, ela anda durante o sono!
"Já ouvi falar de sonâmbulos, mas nunca vi nenhum até encontrar Isla. Estava sentado no saguão, saboreando um whisky e soda antes de ir me deitar, quando ouvi alguém descendo as escadas. Ela estava só de camisol-a e pus-me a pensar que significaria aquilo. Dirigi-me a ela, falei-lhe e senti calafrios. . . Não sei se já viram alguém andando durante o sono; é fantástico! Enfim, falei-lhe mas ela não respondeu; limitou-se a agir como se procurasse alguma coisa, após o que, com igual lentidão, tornou a subir. Aproximei-me dela e vi-lhe o rosto. Tinha os olhos escancarados e murmurava alguma coisa. Mas só Deus sabe o que era; eu não distingui uma só palavra.
"Isso aconteceu duas vezes, que eu saiba. Sabia que era perigoso acordá-la; na primeira vez ela saiu à procura de minha mãe. Na segunda, minha mãe a viu e reconduziu-a ao quarto. Ficou também muito perturbada com isso; lá à sua maneira, que não é nada efusiva; basta dizer que eu não me lembro de jamais ter sido beijado por ela!
"Obviamente, a constatação desse sonambulismo não contribuiu para abrilhantar a perspectiva do meu casamento. A gente não quer ter de vagar pela casa no meio da noite à procura da esposa."
— Sonâmbula, hem? — disse Tanner pensativamente. — Amersham está ciente disso?
O lorde fez que sim.
— Claro que está — exclamou com amargura. —- Não há nada que ele ignore a respeito daquela casa. Ele até chegou a mandar preparar um remédio pra ela, mas não sei se ela tomou.
— Disse que ela tem medo, mas de quê?
— De tudo! Salta da cadeira ao ouvir o menor estalido na casa. Não há quem a faça sair durante a noite, e costuma trancar seu quarto à chave: deve ser a única pessoa na casa que faz isso. Na verdade, ela está amedrontada.
Bill deteve-se a meditar por alguns segundos. Ali estava um aspecto que complicava ainda mais o caso.
— Vossa excelência mencionou uma moça eurasiana com referência ao Dr. Amersham. Fale-nos mais sobre isso, por favor.
O lorde anuiu.
— Era muito bonita. Acho que o senhor deve saber disso. Aconteceu depois que ele foi me buscar. A moça foi achada no bangalô dele: estrangulada!
Tanner ergueu-se de um salto.
— O quê!? — esganiçou, incrédulo. Se aquilo fosse verdade, o mistério de Marks Priory já estava solucionado. — Tem certeza?
Lebanon confirmou com um aceno, exibindo um sorriso de triunfo. Com certeza era ainda bastante jovem para gostar de causar sensação.
—É um fato. Menina encantadora... Não da melhor classe, mas sua família tinha muito dinheiro. Seu corpo foi achado na varanda do bangalô onde o doutor habitava sozinho. Houve muita celeuma a respeito, mas não se encontrou nada que o incriminasse, apesar de haver sinais de luta em seu quarto. Os jornais atribuíram o crime a algum nativo que tivesse algo de pessoal com a moça, mas um fragmento de tecido vermelho foi achado em roda do pescoço dela, igualzinho ao que se achou em Studd.
— Tudo isso é novidade para mim — exclamou Tanner depois de recobrar-se do espanto. — Lady Lebanon está a par disso?
O jovem lorde hesitou em responder.
—Não estou bem certo. É tão difícil descobrir o que é que ela sabe! Espero que não esteja. Enfim, Mr. Tanner, queria que me aconselhasse. Que devo fazer? Talvez diga que me é facílimo fechar a casa para Amersham, e legalmente deve ser mesmo. O caso é que minha mãe se oporia, e me é quase impossível resistir a ela. Não quer passar um fim de semana em Marks Priory como meu convidado?
Tanner sorriu em resposta.
—E o que diria Lady Lebanon a isso? — perguntou, fazendo descair o semblante do rapaz.
— Francamente, não sei — admitiu. — É, seria horrível.
—Posso sugerir-lhe que tire umas férias? Não há nada que o impeça de passar algum tempo fora.
O lorde tornou a sorrir.
— Parece uma solução óbvia, hem? Quando diz não haver o que me impeça, está ignorando fatores importantes como, por exemplo, minha mãe e Amersham. Não que a opinião dele valha alguma coisa, mas é que eu não iria contra a vontade de minha mãe. Já sugeri que me deixasse partir para a América, adquirir lá uma fazenda e visitar o meu segundo herdeiro.
Nesse ponto sorriu.
— E quem é esse tal?
— Por incrível que pareça, é uma pessoa que vive na América; um garçom, creio eu, ou coisa parecida. Não, não, eu só estava brincando; não há a mínima possibilidade de encontrá-lo. .. Aliás, o meu primeiro herdeiro, ou herdeira, é Isla!
Eu ignorava isto até outro dia, quando minha mãe me contou.
"Sim, cheguei a pensar que fosse uma grande idéia ir para o Canadá e esquecer que há no mundo lugares como Marks Priory; já disse isso mesmo a minha mãe mais de dez vezes. Diz ela que meu lugar é aqui, de modo que me destruiu o projeto logo de cara."
Ergueu-se do assento e caminhou até a mesa. Agora não sorria; ao contrário, a expressão que Tanner lhe viu no rosto moveu-o à piedade.
—Mr. Tanner, sou um fracalhote. Deve haver neste mundo milhares de outros como eu. . . Creio mesmo que somos a maioria. Todos os homens fortes e silenciosos do mundo parecem estar concentrados na Scotland Yard!
Nessa altura sorriu, para logo prosseguir com seriedade ainda maior.
— Não posso opor minha vontade à vontade de minha mãe. Estou completamente nas mãos dela, e para ser absolutamente honesto, não tenho a energia necessária para sustentar uma luta dessas.
Aí o lorde virou-se de súbito.
— Há alguém à porta! — disse em voz baixa.
— Meu caríssimo Lorde Lebanon — começou Bill, divertindo-se
— garanto-lhe. ..
— Importa-se de verificar? — interrompeu-o o jovem, com obstinação.
— Abra a porta, Totty.
O sargento obedeceu e teve um sobressalto. Havia um homem fora, com a cabeça inclinada como a ouvir à porta. Era Gilder, o criado de libre.
— Desculpem-me, cavalheiros! — disse entrando desembaraçadamente no recinto. — Sua excelência esqueceu-se de trazer a cigarreira; vim trazê-la para ele.
— Por que estava escutando atrás da porta? — interpelou-o Bill.
„ŸBom, é claro que eu estava, não é? Não sabia ao certo em que sala procurar, então tive que me certificar e ver se reconhecia a voz de sua excelência, antes de bater.
— Quem o mandou subir?
—O policial lá da porta — respondeu Gilder, imperturbável como sempre.
Extraiu do bolso uma cigarreira e passou-a -a sua excelência." Após o que, com um amigável aceno de mão, retirou-se. Bill mal o viu sair, fez sinal a Totty.
— Siga-o e veja para onde vai.
Espantava-o tamanho atrevimento. Por quanto tempo esti-vera à porta e até onde ouvira? A audácia daquele ato de espionagem nos sagrados recintos da Scotland Yard deixava-o sem fôlego.
— Não sou tão tolo, afinal — disse Lebanon. — Pensei que tinha saído de Marks Priory esta manhã sem que ninguém notasse, mas esse Gilder é difícil de ludibriar.
— Desde quando vem sendo espionado?
— Desde que voltei da índia. Desde antes, talvez; mas não o notei. Tenho me insurgido contra isso desde então.
—Lady Lebanon sabe?
Sua excelência deu de ombros.
— É muitíssimo improvável que não saiba — respondeu. — Em todo caso, Amersham sabe, com toda a certeza.
— E onde está ele agora?
— Estava em Marks Priory ontem à noite, mas já voltou para a cidade. Mamãe mencionou o fato durante o café, hoje de manhã, de outra forma eu nem teria sabido que ele tinha estado lá.
Bill tornou para a escrivaninha, apanhou uma folha de papel e anotou algo.
—Quer me dar a data da morte da tal moça?
— Dê uma chegada até Marks Priory; lá tenho todos os dados. Também poderá ver o meu diário.
Dizendo isto, o Lorde Lebanon apanhou o chapéu e a bengala.
— Pode dizer a Amersbam que lhe contei, mas preferia que não dissesse; assim me pouparia muitos transtornos domésticos. Venha passar um fim de semana conosco, e eu lhe contarei algo ainda mais interessante. Conhece Peterfield? É uma cidadezinha de Berkshire.
Tanner mirou-b com um olhar incisivo. Era.uma pergunta que ele certamente não esperava.
Com que então o Lorde Lebanon não era tão tolo; também conhecia o segredo de sua mãe! Talvez até soubesse de tudo o que ainda permanecia sendo um mistério para Tanner: tudo o que estava por trás da aventura de Peterfield.
Acompanhou o visitante até a porta e, na volta, Totty o surpreendeu.
— Deixei o camarada do outro lado do Embankment — explicou ele. — Não podíamos prendê-lo por vadiagem?
— Quem? Gilder? Não, dificilmente. Em todo caso, ele não oferece perigo, a não ser que. . . Será que ele ouviu?
—O quê? Sobre a mulher? A tal eurasiana? Que coisa, hem, Tanner! Eu diria que já temos provas suficientes pra prender Amersham.
—Quando você tiver aprendido a fazer o seu trabalho de detetive, o que deverá ocorrer lá por volta de 1976 — começou Tanner ofensivamente, — descobrirá, para grande surpresa sua, que sempre há provas suficientes para prender pessoas, mas quase nunca as há suficientes para condená-las!
Ao voltar a seu gabinete, viu uma grande multidão que se apinhava no corredor e lançou um gemido. Detestava conferências, e naquele momento estava menos inclinado do que nunca a analisar os fatos elementares do caso Marks Priory. Que aliás já não eram elementares. Agora eram fatos típicos de uma aula de criminologia avançada.
Gostaria de escapulir para ir ver Amersham e desfechar--lhe algumas perguntas vitais.
— Depois da aula — disse ele — dê um pulo até o apartamento do Dr. Amersham e diga-lhe que quero vê-lo na Scotland Yard. Pode também dizer que ele não precisa vir se
não quiser, mas que simplificaria as coisas se viesse. Não deixe de bater
antes de entrar lá; decerto haverá alguma dona capaz de armar muita bagunça se a gente bobear.
— E se ele não quiser vir. . . trago na marra? — sugeriu Totty esperançosamente.
Tanner abanou a cabeça.
—Não, ainda não chegamos a esse ponto, se bem que não falta muito.
A sala se abarrotou e todos os lugares foram preenchidos; Totty fez a chamada e pronunciou a conferência preliminar de rotinaf enquanto Mr. Tanner traçava a giz algumas linhas que representavam o priorado.
A conferência foi insegura; a mente do inspetor-chefe errava sem rumo; estava muito envolvido no caso, para fazer dele uma boa narrativa. Mas, apesar disso, podia falar com muita fran queza entre aquelas quatro paredes, de modo que a conferência acabou por se transformar num exame franco do caráter do Dr. Amersham.
Não fora essa sua intenção original, notou-o ele à medida que a palestra evoluía. Mas os acontecimentos daquela manhã indicavam, com incrível unanimidade, que o culpado não era outro senão o Dr. Amersham.
— Não tenho escrúpulos em dizer-lhes que ele está sob suspeita, e isto pelas seguintes razões.
Nesse ponto um mensageiro apareceu trazendo um telegrama; Totty o interceptou e abriu.
— ... Certos fatos chegaram ao meu conhecimento esta manhã — conferenciava Tanner — mas infelizmente não posso discuti-los por enquanto. Amersham, sem dúvida, tem uma péssima ficha, e quando se examina o assassínio de Studd tem-se de entender que não só o doutor se encontrava em Marks Thornton como no próprio local, tendo sido visto alguns minutos depois que o crime foi cometido. Tudo indica, portanto, que ele...
— Mr. Tanner!
Era a voz agitada de Totty.
— Quer indicar aí no quadro negro a ala oeste do priorado?
Tanner obedientemente tomou o giz e fez uma marca no desenho que esboçara. Então, Totty dignou-se a ler um extrato do telegrama:
. . .arbustos a cinqüenta jardas ao sul da ala oeste. . .
Novamente, Tanner indicou o ponto em questão.
— Por que perguntou?
Totty não respondeu logo. Em vez disso, e para escândalo do conferencista, endereçou-se ao quadro negro, arrebatou o giz da mão do superior e traçou nada mais nada menos que uma enorme cruz sobre o desenho. , .
Tanner chegou a pensar por um instante que se tratasse de alguma brincadeira de mau gosto.
— Explique-se! — intimou ele carregando o cenho.
A voz de Totty estava grandemente agitada.
— Esse aí é o lugar onde encontraram o corpo do Dr. Amersham há meia hora! — disse ele.
Bill Tanner limitou-se a fitá-lo. Depois, tomou-lhe o telegrama e leu: Urgentíssimo. Corpo Dr. Amersham encontrado prio-rado às 11:7 h atrás arbustos cinqüenta jardas sul ala oeste Marks Priory. Estrangulamento. Nem sinal panos ou cordas. Venha logo. O Delegado.
Um jardineiro, ao regressar da aldeia, atravessava os campos do priorado em direitura às estufas, quando viu algo à sombra de um rodoendro. A princípio julgou serem roupas velhas jogadas fora; -aproximou-se mais e viu. . .
Lá estavam os restos de Amersham; as mãos em garra, como ainda a defender-se de algum inimigo invisível. Algo lhe tinha sido atado ao pescoço; podia-se ver claramente a marca, pois o assassino tardara muito em remover o objeto que a imprimira.
Um médico veio do povoado. Amersham estava morto fazia horas, declarou ele. Entretanto não estava em condições de precisar o momento do crime.
Lady Lebanon estava em seus aposentos quando lhe foram levar a nova: mostrou-se surpreendentemente calma.
— Notifique à polícia — dissera. — Seria melhor mandar um telegrama àquele homem da Scotland Yard. Como é mesmo o nome dele? ' Sim, Tanner!
Entretanto, a mensagem telefônica enviada à delegacia local fora transmitida à Scotland Yard e só muito depois é que o inspetor-chefe veio a receber o telegrama de Lady Lebanon.
Tudo o que se podia fazer no momento já tinha sido feito. O corpo não foi retirado quando uma viatura da esquadra chegou com grande alarido trazendo Tanner e quatro auxiliares. O le-gista e o médico local estavam presentes. Fez-se um rápido exame nos bolsos da vítima. Não se encontrou nenhuma pista. Num dos bolsos havia três notas de cem libras; noutro, um passaporte.
As fotos já tinham sido batidas antes de Tanner chegar, de modo que ele ordenou a remoção do corpo depois de empreender uma cuidadosa busca no local, onde tampouco descobriu sinais de luta. Contudo, o cascalho que revestia a rua particular que levava à casa exibia marcas de rodas de automóvel e revelava que o veículo rodara certo trecho em cima da relva que a margeava, depois a retomara para. logo tornar a ganhar a relva do lado oposto, sobre a qual rodou certa distância, para, finalmente,
voltar para o cascalho e rumar, em linha reta, para Marks Thornton.
Aquelas marcas de pneus eram muito elucidativas. Ele as interpretou quase num relance, e, como se apurou depois, sem erros. A cinqüenta jardas do ponto em que o carro deixara a estrada pela segunda vez, Totty descobriu uma mancha de óleo no chão, bem como dois palitos de fósforo usados. Um fora aceso e se apagara quase de imediato; o outro estava consumido até o meio.
Assistido de Ferraby ele subiu cuidadosamente à relva, onde logo achou um cigarro, úmido pelo orvalho. Não chegara a ser aceso, estava amarrotado e apresentava uma laceração no meio. Abriram o círculo de suas investigações, porém não acharam mais nada. Então Totty tornou ao chefe, levando-lhe o seu achado. Bill apanhou o cigarro e leu-lhe a marca impressa no papel.
— Chesterford — disse. — Cigarro positivamente americano, mas acho que também é muito fumado neste país. Guarde junto com os fósforos. Agora suba a via de entrada do priorado e veja se descobre alguma pegada no sentido relva-cascalho. Se houver alguma, deve estar logo acima do ponto em que o carro deixou a rua.
O cascalho da referida via estava úmido; na noite da véspera só chovera por uma hora, mas o ar noturno permanecera úmido e, em conseqüência disso, as estradas não chegaram a secar. Daí estarem ainda plenamente visíveis as marcas de pneus. .
— Onde está o carro, senhor? — perguntou Ferraby.
— O delegado diz que foi encontrado numa transversal, há umas duas milhas, e já está sendo guinchado para cá.
E olhou em torno.
—: Aliás, lá vem ele. Mande estacionar ali mesmo, Totty. Não quero que novas marcas se misturem com as outras. Compare-as para ver se correspondem.
Totty voltou logo após identificar as marcas.
— É o mesmo carro — declarou.
— Mais alguma coisa?
Tinham encontrado uma marca denteada, bastante profunda, mas que não tinha o menor valor como indício.
— Creio poder dizer-lhes como o crime foi cometido — começou Tanner. — Alguém saltou sobre a traseira do carro aqui. A capota agora está baixada, mas meu palpite é que estava erguida na ocasião do crime. Aliás, está tão mal fechada que dá para ver todos os tirantes soltos e pendentes do lado de dentro. — E apontou-os com o dedo. — Os clips metálicos mal chegaram a se encaixar — apontava de novo. — Foi neste ponto que o assassino enlaçou o pescoço do médico. Aqui ele largou o volante, o carro passou a fazer um ziguezague até parar em cima da grama onde você descobriu a mancha de óleo. Deve ter permanecido lá por uma hora, antes que alguém viesse buscá-lo. Esse alguém acendeu um cigarro antes de entrar no veículo. Abriu um novo maço de Chesterford — de cuja carteira, ademais, Ferraby acabara de achar um fragmento — e no puxar o primeiro cigarro, ele o estropiou, então amassou-o e jogou fora. O segundo foi aceso após duas tentativas. Aí então dirigiu o carro para o local onde o encontraram. Diz o delegado que um policial viu o automóvel passar às duas e meia, mas estava com a capota erguida, e ele não viu o motorista. Isto estabelece perfeitamente o horário do crime. Amersham deixou Marks Priory logo após as onze. Foi morto daí a dois minutos e arrastado para trás da moita. A seguir, o assassino retornou calmamente e se desfez do veículo. Talvez tenha entrado na casa. . . Com certeza entrou, mas dificilmente terá ficado lá, à toa, durante duas ou três horas. O guarda-portão lembra de ter ouvido um carro sair, mas não sabe ao certo a hora. Esfregou o queixo furiosamente.
—Resta saber o seguinte:, por que o assassino deixou o corpo de Amersham no campo, quando podia enfiá-lo no carro e levá-lo a alguma outra parte, ou, pelo menos, afastá-lo do local do crime?... Isso me intriga.
Depois, o inspetor fez um exame mais atento no veículo, cuja capota foi arriada a seu pedido. O relógio do painel estava despedaçado e havia lama e arranhões no pára-brisa.
— Isso foi feito por Amersham — explicava Tanner. — Quando sentiu o pescoço enlaçado ele esperneou à procura de apoio, quebrando o .relógio com um chute. Isso também explica as .marcas de pés no vidro.
A seguir examinou o tapete e o estribo. Neste último descobriu um profundo arranhão transversal, como a indicar que alguma coisa pesada tivesse sido arrastada sobre a borracha que o revestia.
— Aqui ele foi tirado do carro e arrastado pela grama; há marcas distintas que vão do lugar onde Totty achou a mancha de óleo até os arbustos onde encontraram o cadáver. Quero ver todos os criados da casa, e é claro que Lady Lebanon também. O lorde já voltou?
— Chegou uns quinze minutos antes de nós — informou Ferraby.
— Fale com ele, Ferraby. Não quero discutir teorias, e no momento não estou disposto a responder perguntas.
A seguir galgou a via de acesso ao solar. Lady Lebànon estava em seus aposentos, informou o mordomo. Alguém mais desejava falar ao inspetor, uma pessoa muito ansiosa e cheia de informações. Miss Jackson estava assaz comunicativa, e tal era o interesse do que dizia que Tanner a arrastou para o jardim onde esteve a interrogá-la por meia hora.
— Viu sua senhoria esta manhã?
— Não, senhor — respondeu a mulher. — Fui ao quarto dela, mas não me deixou entrar; disse-me que deixasse a casa quanto antes. Na verdade, chegou a chamar um coche do povoado para me buscar.
— E quando foi isso?
—Às nove da manhã de hoje. Deu-me um mês de indenização; mas estava tão ansiosa por livrar-se de mim que eu achei por bem ficar.
Sorria triunfalmente.
—Bem percebo eu quando me querem fora do caminho.
— Isso foi antes de acharem o corpo do doutor?
—- Sim, senhor. Mas como eu dizia, tanto cuidado com as contas me levou a pensar, e eu disse comigo: "Ora, que coisa! Tanto trabalho pra me fazer partir pelo trem das dez! Que será que está acontecendo?" Então me incumbi de perder o trem — declarou.
—Chegou a pôr os olhos dentro do quarto de sua senhoria?
— Não, mas o que eu sei de certo é que ela não passou toda a noite na cama. Seus calçados de noite estão molhados e havia lama em seu chambre. Mr. Kelver levou café pra ela e disse que notou que o leito ainda não tinha sido desarrumado. .. Pergunte a ele.
— Não tenha dúvida de que perguntarei — respondeu Tanner. — Já tinha ouvido falar desse crime antes de encontrarem o corpo?
Ela não tinha.
Tanner voltou-se^para Totty.
—Vá até aquela moita onde se achou o corpo e veja se descobre marcas de sapatos femininos de salto alto por perto. Dê também uma boa olhada em torno do lugar onde o carro esteve estacionado, e aproveite para dar mais uma espiada bem lá embaixo, na via de entrada; digamos, nó ponto oposto àquele onde o carro foi deixado. O que eu quero são indícios de que alguma mulher tenha estado ou nas proximidades do lugar onde estava o carro, ou na vizinhança do ponto onde acharam o corpo.
Então voltou à casa para interrogar Kelver, que o esperava no grande hall. Já conhecia o lugar, mas carecia de lembrança. Kelver forneceu todas as informações necessárias. Tinha os modos e a linguagem de um cicerone; o trágico acontecimento daquela manhã mal lhe arranhara a imponência.
Mas estava perturbado; tomara uma decisão e aguardava oportunidade para inteirar sua empreg-adora dos planos que tinha.
—Aqui é o vestíbulo, senhor. Originalmente era o saguão de entrada ou, como.diziam, o Átrio do Prior. Há alguns anos o falecido Lorde Lebanon lhe deu o atual aspecto, ao preço de alguns milhares de libras.
O lugar era um tanto melancólico à luz da manhã. A impecável escrivaninha de Lady Lebanon ele já conhecia. Os dois lacaios americanos aguardavam a vez de serem interrogados; expectantes, tinham as costas voltadas para a pequena estufa de antracito, situada a um canto. Sabia que observavam cada um de seus movimentos e não tinha dúvidas de que já haviam preparado uma história para lhe impingir. Chamou primeiro o mais alto.
— Seu nome é Gilder?
— Sim, senhor. — Mr. Gilder mostrava-se muito cortês e aparentava ter grandes reservas de domínio próprio. — Já tive o prazer de vê-lo hoje de manhã. . . Aliás, eu só o precedi de uns instantes.
Tanner ignorou aquele álibi.
— Há quanto tempo trabalha aqui?
— Oito anos.
Tanner fez uma inclinação de cabeça.
— Estava aqui no tempo do falecido lorde?
— Sim, senhor.
Sorria ao falar. Dir-se-ia que a pergunta lhe sugerisse algo muito divertido.
—Como criado? — tornou a perguntar o inspetor.
— Isso mesmo — confirmou o homem.
— A Scotland Yard fez uma ligeira investigação sobre o senhor, Mr. Gilder. Acabo justamente de receber o resultado. O senhor tem uma conta no London and Provincial Bank, não é verdade?
O sorriso de Gilder se alargou.
— Que sagazes! Parabéns pela descoberta! Isto já faz a Scotland Yard subir no meu conceito. Sim, é verdade.
— Não acha meio fora do comum um criado ter conta num banco de Londres?
Diante disso, Gilder franziu o cenho. — Alguns de nós economizam. — O saldo é grande?
—Umas três ou quatro mil libras — respondeu o outro sem se abalar. — Andei especulando na Bolsa.
Tanner esperava causar ao menos uma leve confusão ao revelar tal descoberta, mas o criado permaneceu imperturbável. Homem perigoso, aquele! Não o subestimassem! Ocorreu-lhe que dificilmente se poderia esperar que alguém, já experimentado nos apertos de um interrogatório americano de terceira categoria, viesse agora a ceder aos. métodos comparativamente brandos da Scotland Yard.
Convocou o outro criado de libre, que se ergueu, pachor-rento, com as mãos espetadas nos bolsos.
— Cidadão americano também?
— Também — respondeu Brooks, carregando no acento. — Só que não tenho conta em banco. É que alguns de nós americanos andam perdendo um bocado de dinheiro ultimamente.
—Há quanto tempo está aqui?
— Seis anos.
— Sempre como criado?
O homem gesticulou um assentímento.
—Por que uma pessoa como o senhor resolveu abraçar essa profissão?
— Bom, deve de ser porque eu sou servil por natureza.
Estaria sorrindo, porventura? Nem por sombra! Era homem de aspecto rude, e tão impassível quanto o companheiro. Seu rosto exibia a cicatriz de um velho ferimento. Tanner mencionou isso..
—Ah, isso daí aconteceu faz alguns anos. Num fuzuê um pilantra me acertou uma latada!
— Já era criado profissional nessa ocasião? — perguntou Bill sarcasticamente. —- Era. O detetive voltou-se para Gilder.
—Conhece bem esta casa? Lady Lebanon enviou mensagem autorizando uma busca. Talvez possa me guiar por aí.
—Claro! — respondeu Gilder, solícito como só ele.
Tanner dispensou-os e dirigiu-se ao expectante mordomo, que se mostrava muito interessado.
—Que fazem eles?
— Servem a sua senhoria Lady Lebanon, a sua excelência o lorde e a Miss Crane — respondeu o prestimoso Kelver.
— Onde está Miss Crane? —• perguntou Tanner de passagem.
— No jardim, senhor. A pobre está muito transtornada, o que é natural. Eu diria que isto é o clímax de uma fase que para ela foi das mais infelizes.
Tanner não lhe pediu que elucidasse essa misteriosa referência, o que pareceu desapontá-lo.
Nesse instante entrou Ferraby, e Tanner o arrastou a um canto.
— Vá atrás dessa moça chamada Crane, bata um papo com ela e veja o que consegue descobrir. Com certeza ela sabe mais do que estará disposta a confessar de início; você fica incumbido de amaciá-la e fazê-la desembuchar.
Quando Ferraby saiu, tornou a dirigir-se a Kelver.
— Não ouviu nada a outra noite?
O mordomo abanou uma negativa.
—Gemidos, gritos, nada?
— Coisa alguma, senhor.
Entretanto Tanner não se deixou convencer por inteiro.
— Lembra-se da noite em que Studd, o chofer, foi assassinado? Não ouviu nada nem naquela ocasião?
— Não, senhor. Deve lembrar-se de que lhe disse isto mesmo quando o senhor esteve aqui a primeira vez.
Bill confessou lembrar-se de já ter feito aquela pergunta.
— Havia alguma visita aqui a noite passada, neste lugar? . . . Não soube por algum criado da chegada aqui de alguém altas horas da noite?
— Não, senhor. Desculpe-me, mas creio tê-lo - visto com a criada de sua senhoria, D.elia Jackson. — Olhou em redor e baixou a voz: — Foi despedida esta manhã. Talvez possa lhe responder a isso: ela tem livre acesso a esta parte da casa. , . E uma criada despedida de fresco, embora naturalmente despeitada e nem sempre precisa, talvez possa lhe fornecer maiores informações.
— Obrigado mas já a entrevistei.
Kelver, situado na base da escada, ergueu os olhos, enxergando alguém que Tanner não via,
— Sua senhoria, senhor — anunciou ele.
Lady Lebanon desceu; extremamente calma, como sempre. Suas olheiras corroboravam a versão de Jackson. Mas, tivesse dormido ou não, tinha a voz firme; por onde se poderk imaginar não ter naquela noite ocorrido nada de extraordinário ou sequer capaz de molestá-la.
Mr. Kelver em tais momentos tornava-se incrivelmente empolado. Mas, por incrível que fosse, ela notou-lhe a agitação Era como um aristocrata a entender-se com outro.
— Dificilmente este assunto lhe diria respeito, Kelver — explicou ela amavelmente.
— Com a devida permissão de vossa senhoria — continuava Kelver, quase com firmeza — bem posso compreender o quanto isto influi negativamente sobre a pessoa de vossa senhoria e de sua excelência o lorde, seu filho; entretanto, tem efeitos igualmente perniciosos sobre mim. Explico-me: em todos os meus anos de serviço nunca meu nome andou associado a assuntos que fossem. . . Vossa senhoria me há de perdoar que os descreva como assuntos do mais vulgar interesse público.
Sua lógica era irresistível. Quase falavam de igual para igual: o mais aristocrata dos criados e a fidalga de Marks Priory. Ela bem compreendia aquele ponto de vista, mas ainda assim sentiu-se chamada a contestá-lo.
— Mas em que é que isto o afeta? .
Kelver espalmou as mãos níveas.
—- Damas e cavalheiros, senhora, sempre evitam matérias que tenham servido de tema a discussões públicas; não vêem com bons olhos criados de categoria superior que alguma vez tenham figurado, mesmo indiretamente, numa. . . — quão duro lhe era exprimi-lo! — questão de natureza policial. .. Que digo? Em nada menos que dois assassínios!. . . Tenho uma reputação a zelar. Vossa senhoria há de lembrar-se que tive a honra de ser, por muitos anos, o mordomo de Sua Alteza Sereníssima o Duque de Mekenstein und Zieburg, e que por muitos anos estive sob a proteção de Sua Alteza o Duque de Colnbrook.
Nada mais havia que dizer. Entendia perfeitamente o ponto de vista do criado; conseqüentemente, entristeceu-se. Se estivesse nela o desculpar-se de tudo o que ocorrera em Marks Priory, ela o teria feito sem pestanejar.
—Está bem, Kelver; lamento muito. Será difícil substituí-lo.
O mordomo, que não tinha a menor dúvida quanto àquilo, inclinou ligeiramente a cabeça, como num gesto de gratidão por sua senhoria reconhecer de viva voz aquele fato.
— Onde está sua excelência o lorde? — perguntou ela depois.
—Em seus aposentos, senhora. Acaba de chegar do parque.
— Diga-lhe que quero vê-lo.
Willie Lebanon logo obedeceu, com timidez e não sem
medo. Já afivelara antes uma máscara de coragem, que viu cair por terra sob o firme olhar de desaprovação da mãe. Não obstante, irrompia agora na presença dela afetando, como sempre, uma segurança que não sentia.
—Que coisa terrível, essa. . .! — começou ele.
—- Aonde foi hoje de manhã, Willie, quando saiu de automóvel?
O moço umedeceu os lábios.
— À cidade.
— Aonde na cidade? — insistiu a mulher.
Willie tentou sorrir, mas não pôde.
—À Scotland Yard.
—Por que foi à Scotland Yard?
Ele evitava o olhar dela, falando com dificuldade.
„ŸNesta casa estão acontecendo coisas que não entendo. . .
Fiquei alarmado e. . . Bem, achei que devia ir. . . E fui!
— Willie!
— Desculpe, mãe; é que a senhora me trata como uma criança.
—Com que então foi à Scotland Yard! É muita imperti-
nência de sua parte! Se há algo que a polícia deva saber fique
certo de que o descobrirá mesmo sem a sua ajuda. Saiba que
agiu mal e me magoou muitíssimo. . . Contou-lhes alguma coisa
sobre Amersham? ,
Era isto o que a aristocrata realmente queria saber, pois Gilder já a informara da ida do rapaz à Yard; restava saber o que aquele seu embaraçoso filho teria revelado aos detetives.
—Não — respondeu embezerrado; — só que ele era um camarada esquisito e que eu não o entendia, e que há uma porção
de coisas que não entendo nesta casa. Não consigo entender
esses malditos criados americanos; não entendo Gilder!
E, arremetendo para uma cadeira em que sentou com petulância, lamuriou:
—Oxalá eu nunca tivesse voltado da índia!
A mãe ergueu-se e foi até ele; fitava-o de cima, com uma terrível expressão no rosto.
— Não me torne a ir a Londres sem permissão e não fale com a polícia sobre coisa nenhuma que aconteça nesta casa. Compreendeu?
— Sim, mãe — murmurou ele.
— Gostaria que se conduzisse com um pouco mais de dignidade — prosseguia ela. — Um Lebanon não tem necessidade nenhuma de fazer amizade com policiais e outras pessoas desse tipo.
—Não sei por quê — tornou o moço, embirrado. — Eles são iguais a mim. Toda essa bobagem a respeito de estirpe. . .!
Sabe que esse tal de Gilder me seguiu até a Scotland Yard e de lá até o priorado? Ele também estava num carro.
— Eu o enviei — explicou ela. — Isto é o bastante? A isso ele sorriu resignado.
—Sim, mãe.
Depois, quando o filho se ergueu, disse-lhe:
—. Não se vá ainda; quero que assine alguns cheques.
Apanhou um gordo talão de uma gaveta e abriu-o. O moço aproximou-se da escrivaninha com relutância, pegou da caneta e mergulhou-a na tinta. Eram cheques em branco, como sempre.
— Por acaso isto não é uma grande estupidez? A senhora nunca preenche os cheques que me dá para assinar! Francamente, eu começo a achar que devia saber mais a respeito. . .!
„ŸAssine quatro — interrompeu-o ela, sem perder a calma.
— Isto deve bastar. E, por obséquio, cuidado para não borrar.
Se o rapaz fosse obedecer à sua primeira inclinação, esvaziaria o tinteiro em cima do talão ou atirá-lo-ia pela janela mais chegada; porém, ante o olhar firme da mãe, não pôde fazer mais que obedecer, bem que resmungando.
Aquilo não tinha muita importância, dizia-se depois, tentando consolar-se. Era rico, e sua mãe extremamente zelosa na gestão de seus bens. Estava ansioso por sair da casa, voltar a encontrar-se com Tanner e aquele baixote engraçado, e Ferraby; quando, pois, se viu dispensado, abalou da presença da mãe.
Lady Lebanon já estava no meio da escada quando se lembrou de algo que a fez estremecer. Que falta de cuidado! Que imperdoável descuido! Desceu apressadamente as escadas, olhou para a esquerda e para a direita, foi direta a uma gaveta da escrivaninha, destrancou-a com mãos trêmulas e apanhou um embrulhinho vermelho. Sua mão tiritava quando abriu a tampa da estufa e atirou-lhe dentro aquele terrível indício que depois empurrou com o atiçador. Viu a etiquetazinha metálica num canto e estremeceu. Deixar aquilo na gaveta, onde qualquer policial mequetrefe o poderia encontrar! Era loucura! Quando se sentou à escrivaninha, tremia da cabeça aos pés.
Tornou a caminhar até a estufa, procurou identificar-lhe o registro de chaminé e, atarantada, puxou uma alavanca ao acaso antes de voltar. Esperava as inevitáveis perguntas e já ideara as respostas mais convenientes para si e menos úteis à polícia.
Aquilo não era novidade para Lady Lebanon. Toda a vida ela a passara a simular e a interpretar, e a tentar esconder algum segredo. Agora, porém, sabia ser aquela a sua prova suprema, de cujo resultado dependia sua própria vida.
O Sargento Totty era divertido, preguiçoso, obstinado e muitas outras coisas que um sargento não deveria ser, mas era também um excelente "sabujo". Descobriu a primeira impressão de um salto feminino bem à beira da estrada-; a segunda, a poucos centímetros do carro.
E descobriu mais: um delicado frasquinho com tampa de prata, cheio até a metade de um fluido intensamente aromático. Essa descoberta acidental ele a fez a uns cinqüenta passos ao sul do lugar onde o carro fora estacionado. Nas proximidades dos arbustos onde Amersham fora encontrado não descobriu coisa alguma: nem pegadas nem nenhum outro indício. Porém, numa pequenina clareira, um tanto enlameada,, em que a relva crescia esparsa, encontrou não só marcas de salto como também de ponteira e sola.
A investigação ia em meio quando, olhando ele em torno, verificou que estava sendo observado com interesse por um dos lacaios americanos.
— Atrás de pistas, Mr. Totty? Aposto que essa aí é a
marca do sapato de sua senhoria. Ela esteve aqui hoje de manhã.
— Não me venha com essa, velhinho — respondeu Totty; — ela não saiu do quarto hoje de manhã.
— No duro?. . . Bom, eu mesmo não estive aqui; só repito o que me disseram. Os criados dizem que a viram; Brooks disse que ela saiu do quarto, e não é só ele.
— E que estaria ela fazendo aqui? — perguntou Totty, que logo achou-se subitamente inspirado. Deu uma busca laboriosa nos próprios bolsos e depois dirigiu-se ao outro:
— Tem um cigarro aí?
Gilder apalpou a túnica da sua libre, enfiou a mão num. bolso interno, de onde extraiu uma cigarreira de prata que, depois de abrir, ofereceu ao policial.
—São Chesterfords — explicou calmamente. — Iguais ao que acharam hoje de manhã. Aliás, eu tinha acabado de fumar um, pouco antes de vocês policiais chegarem. . . Estava nervoso.
„ŸComo sabe que achei?
„Ÿ„ŸNão foi o senhor, mas Mr. Ferraby. — Gilder sorria amplamente. — Eu até que daria um bom detetive, Mr. Totty. Além de descobrir pistas, também sei produzi-las!
Totty não se dignou replicar. Em vez disso, prosseguiu na sua busca; desceu pelo amplo relvado até uma aléia que corria paralela à estrada. Pouco depois alcançou um ponto de onde teve uma clara vista do chalé do couteiro, e já estava de volta,, quando viu uma cadeira dobradiça sob uma árvore. A relva escassa em torno estava polvilhada de cinza e, -a um lado do assento, caído sobre a grama havia efetivamente um cachimbo. O sargento também viu um embrulhínho contendo certa mistura de tabaco e, pelo menos, uma dúzia de fósforos queimados. Alguém estivera ali sentado por longo tempo. Havia pegadas também; de sapatos rudes.
Depois, fez nova descoberta. A grama que crescia para lá das árvores era mais alta; nela encontrou uma espingarda de dois canos. Não podia ter estado lá por mais de vinte e quatro horas, pois ainda não apresentava sinais de ferrugem. Ambos os canos estavam municiados, como verificou. Totty extraiu os cartuchos, enfiou-os no bolso e, após novo exame do local, voltou devagar para o ponto em que deixara Gilder. O americano não estava à vista, mas logo, emergindo pela entrada principal, veio-lhe ao encontro.
— Oi, Sargento! — saudou ele; e quando seus olhos tombaram sotire a espingarda, alterou por completo a expressão, — Onde achou isso aí? — perguntou.
—Se houver perguntas a fazer, eu as farei — esclareceu Totty logo de saída.
E inspecionou com mais cuidado os canos da arma; nada de resíduos nem cheiro de fumaça: não fora detonada.
—Já tinha visto isto aqui antes? — perguntou.
— Parece ser uma das armas do couteiro.
—E isto?
Totty tirara o cachimbo do bolso e lho mostrara.
—Não, não me lembro de ter visto isso — foi a resposta de Gilder, aquele fleumático criado americano. — De minha parte eu não fumo cachimbo. Se fizer uma análise do sarro, pode ser que encontre alguma outra pista, Mr. Totty. Acho que li qualquer coisa parecida num livro. . .
— Onde está Mr. Tanner? •— perguntou, incisivo, o sargento.
Tanner estava lá em cima, na casa. Ainda em meio de uma busca, até então improfícua. Andara de quarto em quarto, guiado por Brooks. O aposento do Lorde Lebanon era pequeno, e sua mobília a mais moderna de todos os cômodos da casa. O quarto maior era ocupado por Islã Crane; sóbrio, apainelado, com teto de caibros. Decerto permanecera inalterado uns duzentos anos. Tinha mobília escassa: a imensa cama de armar, um toucador com seu banquinho, e algumas cadeiras aqui e ali, que só faziam acentuar ainda mais aquela vastidão desolada.
—É o quarto do velho lorde — explicou Brooks. — É assim que é chamado, senhor. Verdadeiro ninho de fantasmas! É o único lugar, em toda a casa, que me dá arrepios.
Tanner caminhou devagar junto da parede, batendo nas tábuas do apainelado, Brooks a fitá-lo com curiosidade extrema.
—Há muitos painéis secretos na casa, mas acho que nenhum é utilizável hoje em dia.
Entretanto, se ali havia algum, Tanner não conseguiu descobri-lo. Muitas tábuas soaram como se nada tivessem por detrás.
—Qual é o quarto de Lady Lebanon?
— Vou mostrar.
Brooks esperou-o sair, tornando a trancar a porta. O quarto de sua senhoria ficava no outro lado do corredor e era menos sombrio que o do velho lorde. Exibia uma escrivaninha e dois ou três pequenos tapetes persas. A cama e demais mobília eram modernas.
Tanner fez um cuidadoso exame de conjunto no local, antes de proceder a uma investigação mais acurada. Viu algo vermelho em cima da mesa. Era uma capa de livro, avulsa. Pegou-a, revirou-a e viu que era uma lista de horários de trens.
— Lady Lebanon viaja muito? — perguntou enquanto examinava o papel.
— Que nada! É que ela pediu ao Gilder para ir até a cidade; então, acho que ela andou escolhendo um trem pra ele.
— Ele foi e voltou de carro — disse Tanner. — Tente outra vez.
Havia poucos papéis no cesto que esvaziou sobre a mesa; examinou-os um por um, não achando nada de interesse, exceto uma meia folha com alguns algarismos dispostos em coluna:
"630, 83, 10, 105."
A escrita era azul, e havia um lápis azul em cima da mesa. A princípio ficou intrigado; depois, compreendeu que tinham relação com a lista de horários; referiam-se a trens que partiam às 6h 30m, 8h 3m, lOh e lOh 5m. Por que quatro trens? E para onde um trem poderia partir às 10 e chegar só cinco minutos depois de haver partido? A solução lhe veio instintivamente. Havia ali só dois trens; um que partia às 6h 30m e chegava a seu destino às 8h 3m, e outro que saía às lOh e chegava a seu destino cinco minutos depois, o que era praticamente impossível. Por ora enfiou o papelucho no bolso. Devia haver alguma explicação bem simples para aquela nota. Mas, como aprendera por experiência, as coisas suscetíveis de explicações simples ficavam difíceis de explicar quando se apertava o interrogatório.
10 — 10:5. Evidentemente, uma vkgem continental. No continente havia um trem que levava ao cais e partia exatamente às lOh da manhã. Agora, aonde poderia ele chegar às lOh 5m? Aix Ia Chapelle? Alguma parte entre Paris e Dijon? Algum lugar próximo de Chambery? Os horários não encaixavam.
—Este é um quarto que talvez o senhor queira ver, capitão — disse Brooks, enquanto caminhavam novamente pelo corredor. — É o quarto de hóspedes que o Dr. Amersham costumava ocupar quando passava as noites aqui.
Tanner, porém, deteve-se, ignorando a sugestão.
—Que quarto é aquele?
Apontava para uma porta que Brooks deliberadamente passara por alto.
— Ah, esse aí é só o quarto de despejo!
— Quero dar uma espiada nele — declarou Tanner.
— Olhe, capitão, não há nada aí, pode crer — protestava o homem.
— Deve haver alguma coisa, para você não querer que eu veja — replicou o inspetor-chefe com toda a calma. — Por isso tentou me deslumbrar com essa história sobre o quarto de Amersham. Vá abrindo!
O outro, porém, ficou parado diante dele, com os polegares espetados nos bolsos do colete.
— Não tenho a chave daí. E mesmo que tivesse, não valia a pena olhar. Aí dentro só há uma porção de trastes. . .
— Vá buscar a chave.
— Melhor o senhor ir pedi-la a sua senhoria — replicou o homem, embezerrado. — Quem houvera de adivinhar que o senhor ia querer ver um velho quarto de despejo?!
Tanner bateu nas almofadas da porta. Pareciam sólidas. — A porta é um tanto pesadinha para um quarto de despejo, não? Medo que a mobília escape?
Inclinou a cabeça e aplicou-lhe o ouvido, mas não ouviu nenhum som digno de nota.
— Está bem, passemos adiante; mas depois voltaremos!
Brooks prosseguiu. Empurrou a porta do quarto de Amers-ham e fez um sinal com a cabeça.
— Não há nada aqui, mas talvez o senhor ache que vale a pena olhar.
Não havia ali absolutamente nada dos pertences pessoais de Amersham, como Tanner descobriu. Ao sair do quarto, deu com Totty a sobraçar uma espingarda.
—Podemos falar um minuto? — disse-lhe o sargento.
Entraram no quarto de Amersham e a porta cerrou-se atrás deles.
— Achei isto — disse o sargento, e fez um breve relatório de suas outras descobertas. — A arma pertence ao couteiro, e com certeza o cachimbo também.
— Por que será que ele os deixou jogados por aí? — disse Tanner pensativamente. — Deixe ver os cartuchos.
Inspecionou-os e depois os devolveu.
—Pesados demais pra servirem a um couteiro; e fatais, eu diria, se detonados contra caçadores ilícitos. É de Tilling, sem dúvida. A posição revela isso. Ele estava sentado lá, vigiando o chalé, e bem posso adivinhar a quem esperava ver.
Depois, aconteceu algo que o fez derrubar cachimbo e espingarda; o que teria sido?
— Mandei chamá-lo — informou Totty, e o outro acenou aprovativamente.
—Quanto a esse cigarro, Totty, é claro como água que Gilder procurou justificar-se antecipadamente. É um sujeito bem atrevido, aquele! Não contente com fornecer um álibi por si mesmo, ainda arranja outro para Lady Lebanon! Ela deve ter descido, quando ouviu falar do crime. . . e isso foi muito antes de encontrarem o corpo. Por que ela teria ido ao local onde estava o corpo? — perguntou Tanner. — Por que andou a
cinqüenta jardas ao sul, nem chegando perto cia moita onde acharam Amersham? Quer saber, Totty? Porque ela não sabia que ele estava lá. E não sabia que estava lá porque não podia vê-lo, porque ninguém ainda sabia onde estava o cadáver; porque o estavam procurando.
O inspetor-chefe ergueu os olhos para o teto, com a mão no queixo.
— A questão é saber se Gilder estava lá ou não. Não creio que estivesse. Pelo menos, êla não o viu, Ele deve ter entrado em cena um pouco mais tarde, ou então esteve lá du-rante todo o tempo sem que ela soubesse. Gostaria de ouvir o que Mr. Tilling tem a dizer.
— Que lugar mais gozado — disse Totty.
— Eu é que não sinto nenhuma vontade de rir — retrucou Bill.
Em Marks Priory havia três serviços telefônicos, independentes entre si, cada qual comunicando diretamente com o mundo exterior. Este fato era bastante incomum, pois em geral as casas têm um painel central de distribuição.
Na despensa de Mr. Kelver havia um aparelho, que Tanner usou para entrar em contato com a Scotknd Yard. Atendeu um de seus investigadores.
—Quero uma lista de todos os trens que partam de qualquer estação da Inglaterra às seis e trinta e cheguem a seu destino às oito e três; também quero outra lista: dos trens que partam às dez, da manhã ou da noite, e cheguem às dez e cinco do mesmo dia ou da manhã seguinte. Não sei de que estação eles saem; descubra isso também.
Qual era o plano de Lady Lebanon? Aonde teria ela pretendido ir no terrível pânico que se seguiu àquela descoberta? O corpo não fora encontrado até pouco antes das onze da manhã, mas decerto o crime tinha sido praticado pelo menos doze horas antes... E ela o sabia, e planejava... o quê? Uma fuga? Dificilmente. Não era desse tipo; a não ser que na ocasião perdesse o equilíbrio ante o horror da descoberta.
Já o inspetor voltava para o hall, a fim de interrogar Lady Lebanon, quando Totty o encontrou; trazia-lhe uma informação surpreendente.
—Tilling não está em Marks Thornton — revelou ele.—Saiu da cidade hoje cedo e ninguém sabe para onde foi.
Tanner assobiou.
— Alguém na casa sabe disso?
— Não; falei com sua excelência o lorde, mas esse está totalmente por fora de tudo. Pedi para ver a mãe dele, e ela também não sabe de nada.
Tanner pôs-se a meditar nisto.
„ŸQuem disse que Tilling partiu de manhã?
— A mulher dele. Fulaninha bastante amável, aquela. —Totty ajeitou o laço da gravata.
„ŸNão deixe que seja amável demais — aconselhou Tanner. „ŸQuero vê-la. Ela está aqui?
—Não; pedi que viesse, mas ela não quis. Aposto que essa fulana sabe de muita coisa. Anda tão assustada quanto a moça.
— Miss Crane?. . . Ela anda bastante assustada, não? Totty afiou a língua.
— Ferraby está fazendo tudo o que pode para acalmar os nervos dela.
—Muito bem — tornou Tanner. — Mostre-me o –caminho até o chalé.
Atravessaram os campos do priorado, ultrapassaram os arbustos em que o corpo do médico fora encontrado, depois o portão e, por fim, subiram a trilha lajeada em meio ao pequeno jardim fronteiro ao chalé. Mal se aproximaram da porta, logo a abriram. Tanner reconheceu a mulher, embora só a tivesse visto uma vez. Tinha o rosto pálido e contraído. Ali estava outra que pouco dormira na véspera. Olhou o inspetor temero-samente, hesitou um momento e depois, com voz rouca, convidou-o a entrar. Ele a seguiu até uma agradável saleta.
— É. a respeito de Johnny, não é? — Era uma voz tensa. —• Não sei onde ele está; saiu cedinho de manhã.
—Aonde foi ele?
A mulher meneou a cabeça.
— Não sei... Ele não me contava muita coisa.
—A que horas ele chegou a noite passada?
De novo, ela hesitou.
—De madrugada. Entrou, e dali a pouco tornou a sair; é só isso que eu sei.
Tanner sorriu com benevolência.
—Bem, Mrs. Tilling, deixe-me fazer-lhe algumas perguntinhas. E, por favor, não tenha nenhum receio de falar com toda a franqueza. Mentindo não ajudará ninguém; só fará piorar as coisas. A que horas seu marido chegou? A senhora já tinha ido se deitar?
Ela fez que sim.
— Ele a despertou? Que horas eram?
—Perto de uma hora — respondeu. — Ouvi ruído de água escorrendo na cozinha. . . A torneira fica logo atrás da minha cama. . . Noutro cômodo, bem entendido... E eu me levantei pra ver o que era.
Então, sem mais nem menos, a mulher inclinou a cabeça sobre o braço e pôs-se a soluçar.
—Oh, meu Deus! Que coisa horrível! Os dois! Amersham também!
O inspetor esperou que ela se acalmasse, para depois dizer: — Mrs. Tilling, a senhora estará prestando um grande serviço a mim e a si mesma se me contar exatamente o que aconteceu na outra noite. A senhora sabe muito mais do que tem dito. Para quando espera a volta de seu marido?
— Não sei — respondeu ela com a voz embargada. — Tomara que não voltasse nunca mais!
—Mas aonde foi ele?
— Ele não disse.
— À senhora ouviu água escorrendo. Que fazia ele? Os lábios da mulher se comprimiram.
—Estava se lavando? — insistiu ele.
— Não era nada. . . Só um arranhão — emendou ela à pressa, mas logo procurou atenuar a impressão que causara: — Ele tinha se machucado no bosque.
— Onde esse arranhão? Na mão?
— Sim, uma coisa à-toa.
— Nas duas mãos?
Ela não respondeu.
— A senhora arranjou algo pra ele aplicar ao ferimento? Vamos, vamos, Mrs. Tilling. Ele estava machucado, não estava? E a senhora o ajudou com o ferimento; foi preciso alguma ban-dagem ou coisa assim?
— Não, ele já tinha posto um lenço em cima. O corte não era fundo.
— Teria sido alguma briga?
Os olhos da mulher tombaram para o chão.
„ŸAcho que sim — disse depois. — Ele é muito encrenqueiro.
„ŸAgora, diga-me uma coisa: ele trocou de roupa antes de sair?
A mulher olhou de um lado para outro, como se caísse numa armadilha.
— Sim, trocou.
—Onde estão as que ele despiu?
A intuição do Inspetor Tanner fazia muito do seu trabalho parecer pura obra de adivinhação. Ele progredia passo a passo, tirando vantagem de cada deslize que suas vítimas cometessem. Invariavelmente começava sem nenhum objetivo em vista; perguntas nasciam de perguntas, e no final sempre tudo dava certo.
Levou tempo para que Mrs. Tilling se dispusesse a contar o caso; mas quando o fez, o resultado foi compensador.
À uma e meia (evidentemente ela não estava muito segura do horário) ouvira o marido chegar. Estava acordada, e não na cama como dissera a princípio. Bill supôs que ela estivesse à espera de alguém, pois ela tinha declarado que estava na sala, com todas as luzes acesas. A janela estava aberta, e ela pudera ver Tilling cruzar rápido o portão. Saíra a encontrá-lo.
Ele não lhe dissera nada do que tinha ocorrido, apenas confessara que tivera uma briga. Ela então perguntara se a briga tinha sido com o Dr. Amersham (declaração que Tanner decidiu passar por alto), mas o homem protestara que não tinha visto o doutor. Seu casaco estava rasgado; tinha a gola de ve-ludo pendente, e apresentava ferimentos em ambas as mãos, como se se tivesse atracado com algum animal selvagem.
Ela aplicara um pouco de iodo no ferimento e atara sobre a região onde os cortes eram mais profundos um lenço de seda. Depois ele trocara de roupa, vestindo um traje cinzento, e saíra de casa, num biciclo, às três e meia. Exibiu aos olhos do inspetor o casaco e as calças do marido, em apoio do que dizia. O casaco tinha uma mancha de sangue na frente; com certeza, das próprias mãos do couteiro; dois botões tinham sido arrancados, e um terceiro estava a ponto de cair por si.
— Ele tinha o rosto machucado?
— Sim — admitiu ela; — mas sem cortes. . . só uma pisa-dura. Ele estava muito transtornado e não me deu nenhuma explicação, a não ser que tinha brigado com uns ladrões de caça e perdido a carabina.
Bill conferiu várias vezes aquela história e já estava de saída quando teve súbita inspiração.
— Antes de sair ele lhe deu algum dinheiro?
Ela pareceu relutar em responder, mas logo exibiu quatro notas novas de cinco libras.
— Deixe-me anotar o número dessas notas — pediu Tanner. Verificou que eram consecutivos. — Ele tinha mais?
— Sim, tinha bastante no bolso. Disse que voltaria em cinco ou seis semanas. É só isso que eu sei, Mr. Tanner. Sou capaz de jurar que ele não matou o doutor. Ele é malcriado, mas não dessa espécie. E também não matou Studd. Perguntei--lhe isso antes de ele partir, e ele jurou de joelhos que nem tinha visto Studd na noite em que foi assassinado.
— Quantos cachimbos tem seu marido?
Essa pergunta a surpreendeu, mas ela apresentou resposta satisfatória.
-— Um só. . . Ele usou um até queimar, depois comprou outro.
Era muito exigente quando se tratava de cachimbos, e pagava bom preço por eles.
O inspetor tornou a mencionar a hora.
— Quer dizer então que ele saiu de casa às três e meia? Tem certeza? •
Podia ter sido mais tarde, achava ela. Seu relógio de mesa tinha parado na noite anterior, e ela nem pensara em consultar o de pulso; assim era que se louvava nos repiques da igreja. Talvez tivesse se esquecido do relógio incrustado de diamantes que agora usava, ou talvez, apesar de tudo, fosse um mau relógio.
Quando já estava longe do chalé, Tanner entregou a Totty os números das notas.
—Vá ao banco no povoado e veja se descobre de onde vieram estas cédulas e se elas passaram por Marks Thornton. Pegue uma viatura. Vou precisar de você, por isso ande logo. E, Totty, telefone à Yard e peça para enviarem à imprensa uma solicitação dirigida a todos os tabaqueiros que possam ter vendido um cachimbo de urze branca entre oito e trinta e dez horas O cachimbo é patenteado, a marca é "Orsus".
—É o cachimbo de Tilling?
Tanner confirmou.
—Quando a gente perde um cachimbo favorito, sempre compra outro igual. Dê um jeito pra que todas as respostas à solicitação sejam verificadas e diga-lhes que também obtenham uma descrição completa do comprador.
O mistério da lista de horários estava resolvido. Tanner apressou-se em direção da casa, surpreendendo Ferraby e Islã. A moça estava calma agora. Sem dúvida, qualquer que fosse o tipo de interrogatório a que Ferraby a submetera devia ter sido dos mais gentis.
—Ela diz que não sabe de nada, mas eu tenho certeza de que sabe muita coisa — confessou o rapaz, seguindo o chefe casa adentro.
Estava preocupado, pois tomava interesse pessoal pelo caso de Islã Crane.
Ela esperou até Tanner desaparecer, antes de tornar ao encontro de Ferraby.
„Ÿ„ŸEle me dá medo — confessou em voz baixa.
O moço sorriu.
„ŸMr. Tanner? Ele é o melhor sujeito do mundo.
Isla, que tinha ouvido muito apurado, inclinou a cabeça.
—Acho que ele o está chamando — declarou.
Lady Lebanon encontrou-a ali, sentada no enorme sofá, com a cabeça nas mãos; estivera justamente pensando nela.
—Isla!
A moça ergueu-se de um salto.
—Chamou, Lady Lebanon?
E ouviu uma leve gargalhada por trás de si. Willie estava parado no meio da escada.
— Digo que todo esse negócio de "Lady Lebanon" é uma estupidez, vocês não acham? Por que não algo mais amistoso? Por que não alguma coisa mais razoável?
Deparou com. os olhos da mãe e calou-se.
— Onde tem estado, Willie?
— Andei tentando desenvolver um interesse por investigações policiais — respondeu o rapaz com petulância. — Ninguém parece especialmente ansioso por empregar-me como detetive amador. Andam por aí tão ocupados à cata de sombras. . .
— Você não precisa interferir no trabalho deles — disse a mulher, incisiva.
O jovem chegou a virar-se para ir embora, mas mudou de idéia e voltou-se.
— Não estou nem um pouco aborrecido com o que houve com Amersham — declarou com intrepidez. — No duro, mãe; apesar de saber que isto a chateia. Naturalmente, a gente detesta ver um camarada desaparecer assim. .. Mas ele era um grande metido. . . Sinto um grande alívio agora. . Essa é que é a verdade.
—Já pode ir, "Willie.
A voz de Lady,Lebanon era como gelo; entretanto, o rapaz ainda esperou.
— Eles me perguntaram se eu tinha ouvido alguma coisa, e eu respondi prontamente "Sim!". Claro que era mentira, mas achei que isso talvez fizesse com que se interessassem pela minha pessoa. . . Mas aquele tal de Totty logo me confundiu todo! Sè ao menos alguém me achasse importante bastante para me conduzir a uma sala bela e quieta e me interrogar.. .!
—Willie, quando terminar com esse estúpido sarcasmo,
eu ficarei contente se nos deixar; preciso falar com Isla.
Não havia contender contra uma ordem direta; saiu, portanto, preguiçosamente; agravado e aborrecido.
Ela foi até a passagem em arco, de onde podia avistar todo o corredor, e, da base da escada, apurou o ouvido um momento.
—Que está havendo com você? — perguntou depois. —Responda antes que aquele homem-volte aqui. Deus do céu! Que está havendo com você?
Isla entrelaçava os dedos, seu peito arfava.
— Nada — respondeu, num arranco. — Que a senhora pensou que poderia haver?
Ergueu-se novamente do assento e caminhou até a mesa onde estava Lady Lebanon.
— Eu abri a gaveta de sua escrivaninha, hoje de manhã, e encontrei uma pequena gravata vermelha com uma etiqueta de metal num canto — disse ela, quase num queixume.
O rosto de Lady Lebanon tornou-se mais duro.
—Acho que não devia estar ali. Foi uma estupidez a senhora guardá-la ali!
— E por que foi que você abriu a gaveta da minha mesa? A velha mulher articulava cuidadosamente cada palavra.
—Para apanhar o talão de cheques — respondeu Isla, impaciente. — Por que a senhora guardou aquela gravata ali?
Os lábios de Lady Lebanon se encresparam.
—Minha pobre criança, você deve estar sonhando. Qual gaveta foi?
Quando a moça apontou qual era, sua senhoria meteu-lhe a chave e a puxou.
„ŸNão há nada aí, Islã; não deve deixar que essas coisas a perturbem.
„ŸEssas coisas! — A moça estava quase histérica. — Como pode falar com tanta leviandade a respeito! Um homem morto como um cão! — Sua voz tremia. — Eu o detestava. Ele sempre foi tão animalesco comigo. . .
Lady Lebanon se ergueu, interessada. — Animalesco? Que quer dizer? — perguntou. — Engraçou-se com você? — tornou a indagar, incrédula. — Amersham?
A moça fez um gesto de desespero e voltou pára o sofá.
„ŸNão posso continuar aqui — disse. — Não posso!
Lady Lebanon tornou a sorrir demoradamente.
— Você está aqui há muito tempo — disse ela.
Depois prcourou metodicamente uma carta na escrivaninha, que logo achou.
—Enviei a sua mãe o cheque trimestral, na segunda-feira, e esta manhã recebi dela uma encantadora carta. As duas meninas estão felicíssimas na escola! Diz que á maravilhoso sentir--se salva e segura, depois dos tempos difíceis que atravessaram. . .
A insinuação era demasiado clara para não ser percebida. Islã Crane já sentira piedade daquela mulher endurecida; agora odiava-a. Que maldade, trazer-lhe aquilo à memória, lançar-lhe em rosto que a felicidade de sua mãe e irmãs dependia de sua complacência.
— A senhora sabe que eu não teria passado aqui nem um dia se não fosse por elas — respondeu a moça. — Ela não sabe o que estou fazendo. . . Se não, iria preferir morrer de fome.
Lady Lebanon tornou a apurar o ouvido. Era o som da voz de Tanner.
—Céus, não fique histérica! — exclamou. — Estou-lhe fazendo um grande favor.
E novamente passou a bater as sílabas das palavras que pronunciava. .
— Quando. você chegar a ser Lady Lebanon vai me achar bastante tolerante com respeito à sua vida de casada. Entende isto? Muito tolerante.
Isla fitou-a, sem compreender patavina. Não era aquela a primeira vez que a outra usava essa expressão. Que quereria dizer? Sua senhoria, porém, não se dignava apresentar nenhuma explicação.
— Vi-a lá fora com um jovem policial. Espero que não estava neste seu estado de nervos ao falar com ele.
— Ele é boa pessoa — disse a moça. — Na verdade, é muito melhor do que eu. . .
— Do que você merece? Não seja boba. Estou certa de que ele é agradabilíssimo. Fala bem. Deve ter freqüentado uma boa escola.
Islã sabia o nome da escola; declarou-o a sua senhoria, o que a fez arquear as sobrancelhas.
—É mesmo? Essa é uma public school muito interessante. . . Talvez não seja de primeira categoria, mas conheci um bom número de criaturas assaz encantadoras que saíram de lá. E na força policial. . . Que absurdo! É a guerra, com certeza. Qual é o nome dele?
Isla não estava para conversas frívolas como aquela, mas o jovem policial ocupava um território distinto em sua mente.
—John Ferraby — respondeu, e viu os olhos de Lady Lebanon se derramarem para fora das órbitas.
—Ferraby?! Um dos Somerset Ferrabys?! Da família do Lorde Lesserfield?! O tal que arbitrariamente pôs leopardos em suas armas? ...
—Deve ser — tornou a moça distraidamente. — Sim, ele é de Somerset.
Lady Lebanon atirou à outra um olhar aguçado, e o pensamento que teve permaneceu inexpresso, para o bem de Islã Crane.
—Não há razão nenhuma para que você não o conheça, só não precisa falar-lhe sobre Ãmersham. Então Amersham, aquele velho danado, dava em cima de você, hem?
Isla virou-se, revoltada.
— Ele está morto agora! Oh! que horrível!
— Se esse rapaz lhe fizer perguntas. . .
— Ele não me perguntou nada — atalhou depressa a outra.
— Só falamos sobre gente que conhecemos. Mr. Tanner é que vai me interrogar. Que devo dizer a ele?
— Minha cara, você só deve contar o que ele precisar saber.
Nesse ponto Ferraby entrou.
—Oh, desculpem, mas é que Mr. Tanner estava à sua procura — disse ele, dirigindo-se a sua senhoria. — Vou dizer que está aqui.
— Não se vá, Mr. Ferraby. Já verei Mr. Tanner. A seguir ela juntou as cartas despreocupadamente. — Minha sobrinha estava me dizendo que o senhor é parente dos Lesserfields.
Ferraby achou-se colhido de surpresa e ficou embaraçado.
— Bem, é verdade. . . há uma espécie de parentesco entre nós. . . mas é muito, muito distante. Nem vale a pena a gente se ocupar com isso.
— Pois devia — tornou a mulher, incisiva. — É uma excelente coisa ser-se membro. . . mesmo membro afastado. . . de uma grande família. Saber que sua estirpe tem conservado autoridade através dos tempos e que ainda continuará a existir por milhares de anos. Onde está Mr. Tanner?
— Deixei-o nos aposentos do mordomo. Ele estava telefonando para Londres.
A mulher sorriu-lhe gracilmente.
—Creio que irei mesmo até lá — disse ela, como a planejar uma concessão das mais extravagantes.
Ferraby é que ficou impressionadíssimo.
— Arre! — exclamou depois, como de si para si. — Ela pertence à Idade Média!
— Ela é bem atual, pode crer — disse a moça com pesar.
—Como é esquisita! — O rapaz sacudia a cabeça, consternado. — Lesserfield impressionou-a, bastante. .. Eu o conheço, é claro. Um perfeito asno! E ainda com menos dinheiro que eu.
Fez-se breve silêncio entre eles, o que levou a moça a erguer os olhos, vendo que os dele a fitavam. — Posso fazer uma pergunta? Ela acenou que sim.
—Por que anda tão nervosa?
Isla tentou esquivar-se à pergunta.
—Eu disse a Lady Lebanon que o senhor não me faz perguntas.
—Estou só tentando ajudar. Por que está tão assustada?
— Estou? — reperguntou ela com inocência.
— Parece que está sempre esperando ver algum lobisomem saindo de algum painel secreto. . . Imagino que haja painéis secretos numa casa antiga como esta. De que tem medo?
A moça tentava sorrir.
—Da polícia — e quando ele sacudiu a cabeça, acrescentou: — O que aconteceu a noite passada já não seria um bom motivo?
Mas aquela resposta não o satisfez.
—Tem estado assim por longo tempo, não é?
-— Como sabe? — perguntou ela.
E, nessa altura, o policial que havia nele saiu de férias.
—Gostaria de ajudá-la de algum jeito. Acha que eu poderia?
Então ela ergueu para ele um olhar suspeitoso.
— Está querendo que eu o tome para confidente, a sério?
Ele quase respondeu que sim, mas lembrou-se, com pesar, de que seu trabalho era arrancar todos os pequeninos segredos que ela tivesse.
„ŸO senhor se ajusta muito mal à idéia que sempre fiz dos policiais — tornou ela de inopino.
„ŸOu está sendo rude ou muito lisonjeira — respondeu ele. — A senhora não tem realmente medo de mim. . . Não pode ter.
— E por que não?
A pergunta era desconcertante; ele não conseguiu responder.
—Não tenho medo de nada — prosseguia ela; depois, voltando-se depressa para as escadas, cochichou: — Há alguém lá! Havia alguém ali nos escutando!
Tanner veio apressadamente e fez uma inspeção. As brasas já tinham consumido a gravata, mas a delicada tecitura ainda era visível nos seus restos carbonizados. A etiquetazinha metálica já assumira a forma da brasa em que descansava, mas era indiscutivelmente semelhante à etiqueta encontrada junto a Studd, a Ferraby e na mesa de Amersham.
Sua senhoria seguiu preguiçosamente o inspetor e encontrou-o só.
— Alguma coisa queimando na estufa? — perguntou afetando despreocupação. — Com certeza é seda. Sim, deve ser. Ontem estive fazendo um vestido de boneca para a quermesse do povoado. Sobraram alguns retalhos, que eu queimei.
—Não eram retalhos — disse Tanner calmamente. Era uma peça só. Meu palpite é que isto aqui são os restos de uma gravata; uma gravata da índia; provavelmente vermelha; tem a marca do fabricante numa etiqueta costurada no canto. Imagino que a senhora nunca tenha visto nada parecido? Mas o Dr. Amersham sim.
Ela lançou-lhe um olhar rápido.
— Não estou compreendendo.
„ŸAchei uma gravata dessas na mesa de Amersham, durante uma busca que dei, a noite passada, no apartamento dele — explicou o inspetor.
Dirigiu-se até a porta; Ferraby e Totty estavam ao alcance da voz; deu-lhes algumas instruções, que também sua senhoria ouviu.
„ŸNinguém deve entrar enquanto estivermos conversando! — bradou.
— Quer dizer que estou feita prisioneira?
— Quer dizer que não quero interrupções.
A dama sentou-se e cruzou as mãos sobre a mesa.
—Quer me fazer algumas perguntas? Receio que eu não venha a ser de muita ajuda.
— Isso veremos — respondeu Tanner. — Não somente lhe farei perguntas, Lady Lebanon, como ainda lhe contarei certos fatos que a senhora pensa que eu ainda ignoro, e que desejaria que eu ignorasse de fato. Isto porventura a diverte?
— Não me prive de nenhuma diversão, por pequena que seja, num dia tão horrível como o de hoje —- respondeu friamente a mulher.
Ele a admirava. Já vira muitos homens e mulheres, mas
ninguém como aquela aristocrata culta e delicada, com um tão completo domínio de si mesma e das circunstâncias; talvez até de seu próprio destino.
— Há um cômodo lá em cima, Lady Lebanon, que seu criado não pôde abrir para mim. Ele o designou como sendo o quarto de despejo.
— Bem, então deve ser o quarto de despejo mesmo — disse ela, com despreocupação.
Bill meneou a cabeça.
—No primeiro andar, num dos melhores setores da casa?
Lugar esquisito para quarto de despejo.
Ela atirou os ombros delgados.
— Nós é que o chamamos assim; na verdade, é um depósito onde guardo alguns valores.
— Tem a chave?
— Nunca abro aquele quarto.
E sua voz reassumiu aquele timbre metálico.
Houve uma interrupção. A escada ficara desprotegida. O Lorde Lebanon desceu-a e chegou a ouvir as últimas palavras trocadas. A mãe ainda não o vira.
—Mr. Tanner, vou lhe dizer a verdade — recomeçou a mulher. — Esse é o quarto em que meu marido morreu. Desde então não tornou a ser aberto.
— Que absurdo, mãe! Estão falando do quarto da porta grossa? Pois eu já o vi aberto, muitas e muitas vezes!
Sua senhoria fixou no filho os olhos ameaçadores.
—Está completamente enganado, Willie. Esse quarto nunca mais foi reaberto; logo, você nunca o viu.
— Bem, quero vê-lo aberto agora — interveio Tanner.
— Receio que não possa.
— Lamento, mas devo insistir.
— Seja razoável, Mr. Tanner! — Ela se mostrava afável e não se lhe via ressentimento algum. — Que há naquele cômodo que possa interessar-lhe? Não há nada ali, senão uns quadros velhos. Não supus que o campo de suas investigações incluísse o interior da casa.
— Eu decido, Lady Lebanon, qual seja o campo de minhas investigações — replicou-lhe Tanner a sério.
— Ora essa, mãe. . .!
Desta vez seus olhos se encontraram com os de Bill.
—Importa-se de nos deixar por um instante, Lorde Lebanon? Poderá encontrar aquele sargento que tanto aprecia logo aí no corredor.
Tanner veio apressadamente e fez uma inspeção. As brasas já tinham consumido a gravata, mas a delicada tecitura ainda era visível nos seus restos carbonizados. A etiquetazinha metálica já assumira a forma da brasa em que descansava, mas era indiscutivelmente semelhante à etiqueta encontrada junto a Studd, a Ferraby e na mesa de Amersham.
Sua senhoria seguiu preguiçosamente o inspetor e encontrou-o só.
— Alguma coisa queimando na estufa? — perguntou afetando despreocupação. — Com certeza é seda. Sim, deve ser. Ontem estive fazendo um vestido de boneca para a quermesse do povoado. Sobraram alguns retalhos, que eu queimei.
— Não eram retalhos — disse Tanner calmamente. Era uma peça só. Meu palpite é que isto aqui são os restos de uma gravata; uma gravata da índia; provavelmente vermelha; tem a marca do fabricante numa etiqueta costurada no canto. Imagino que a senhora nunca tenha visto nada parecido? Mas o Dr. Amersham sim.
Ela lançou-lhe um olhar rápido.
— Não estou compreendendo.
— Achei uma gravata dessas na mesa de Amersham, durante uma busca que dei, a noite passada, no apartamento dele — explicou o inspetor.
Dirigiu-se até a porta; Ferraby e Totty estavam ao alcance da voz; deu-lhes algumas instruções, que também sua senhoria ouviu.
— Ninguém deve entrar enquanto estivermos conversando!— bradou.
— Quer dizer que estou feita prisioneira?
— Quer dizer que não quero interrupções.
A dama sentou-se e cruzou as mãos sobre a mesa.
—Quer me fazer algumas perguntas? Receio que eu não
venha a ser de muita ajuda.
— Isso veremos — respondeu Tanner. — Não somente lhe farei perguntas, Lady Lebanon, como ainda lhe contarei certos fatos que a senhora pensa que eu ainda ignoro, e que desejaria que eu ignorasse de fato. Isto porventura a diverte?
— Não me prive de nenhuma diversão, por pequena que seja, num dia tão horrível como o de hoje —- respondeu friamente a mulher.
Ele a admirava. Já vira muitos homens e mulheres, mas ninguém como aquela aristocrata culta e delicada, com um tão completo domínio de si mesma e das circunstâncias; talvez até de seu próprio destino.
— Há um cômodo lá em cima, Lady Lebanon, que seu criado não pôde abrir para mim. Ele o designou como sendo o quarto de despejo.
— Bem, então deve ser o quarto de despejo mesmo — disse ela, com despreocupação.
Bill meneou a cabeça.
—No primeiro andar, num dos melhores setores da casa?
Lugar esquisito para quarto de despejo.
Ela atirou os ombros delgados.
— Nós é que o chamamos assim; na verdade, é um depósito onde guardo alguns valores.
— Tem a chave?
— Nunca abro aquele quarto.
E sua voz reassumiu aquele timbre metálico.
Houve uma interrupção. A escada ficara desprotegida. O Lorde Lebanon desceu-a e chegou a ouvir as últimas palavras trocadas. A mãe ainda não o vira.
— Mr. Tanner, vou lhe dizer a verdade — recomeçou a mulher. — Esse é o quarto em que meu marido morreu. Desde então não tornou a ser aberto.
— Que absurdo, mãe! Estão falando do quarto da porta grossa? Pois eu já o vi aberto, muitas e muitas vezes!
Sua senhoria fixou no filho os olhos ameaçadores.
—Está completamente enganado, Willie. Esse quarto nunca mais foi reaberto; logo, você nunca o viu.
— Bem, quero vê-lo aberto agora — interveio Tanner.
— Receio que não possa.
— Lamento, mas devo insistir.
— Seja razoável, Mr. Tanner! — Ela se mostrava afável e não se lhe via ressentimento algum. — Que há naquele cômodo que possa interessar-lhe? Não há nada ali, senão uns quadros velhos. Não supus que o campo de suas investigações incluísse o interior da casa.
— Eu decido, Lady Lebanon, qual seja o campo de minhas investigações — replicou-lhe Tanner a sério.
„Ÿ Ora essa, mãe. . .!
Desta vez seus olhos se encontraram com os de Bill.
—Importa-se de nos deixar por um instante, Lorde Lebanon? Poderá encontrar aquele sargento que tanto aprecia logo aí no corredor.
E aguardou o desaparecimento do jovem. — Agora, Lady Lebanon, a senhora sabe que eu posso obter um mandado de busca paira obrigá-la a abrir aquele cômodo?
Diante disto ela se aprumou na cadeira.
—Seria ultrajante! — replicou com arrogância. — Nenhum juiz deste condado lhe forneceria tal documento. — E aduziu, alterando a voz: — Desejava me fazer alguma pergunta? Sobre que é?
Não havia nada a ganhar, no momento, com a insistência na abertura do quarto. Era obter o mandado, simplesmente; que aliás já fora solicitado a Londres.
— Por incrível que pareça, quero falar-lhe sobre o assas-sínio do Dr. Amersham — explicou ele.
Bill Tanner era incansável quando dirigia algum interrogatório. Passeava da estufa ao canto da enorme sala, contornava o sofá, ia até a base da escada e daí à entrada do corredor; possivelmente foi essa a característica mais enervante daquele interrogatório que, aliás* permanece como um clássico nos anais da Scotland Yard.
— É essa a razão por que estou aqui — repetia ele. — Só
para investigar a morte, por estrangulamento, do Dr. Leicester
Amersham.
— Creio já lhe haver dito. . .!
— Que não sabia nada a respeito; mas não é essa a minha opinião. Lady Lebanon, quando foi que viu o Dr. Amersham, vivo, pela última vez?
Agora ela não o fitava. Aquela seria a prova decisiva.
— Não o vi esta manhã — começou a mulher,
— Isso eu posso compreender — disse Tanner com paciência. — Esta manhã ele já estava morto. O exame pericial revelou que a morte ocorreu a noite passada; provavelmente entre onze horas e meia-noite. Enfim, quando o viu vivo pela última vez?
— Ontem de manhã. . . ou talvez anteontem. Não tenho bem certeza.
Mal acabou de dizer isto, compreendeu que cometera uma asneira.
—Ele esteve aqui às onze da noite de ontem e deve ter permanecido até poucos minutos antes de morrer — declarou o inspetor. — Ele esteve aqui, nesta mesma sala, falando com a senhora.
A fidalga empinou o queixo.
—O senhor andou falando com os criados?
A frivolidade da acusação implícita nessa pergunta quase levou Tanner a sair do sério.
— Claro que estive! — respondeu. -— Mas não vejo qual a importância disso.
— Teria sido mais decente falar comigo primeiro — resmungou ela.
—Bem, estou falando agora. — O sorriso de Bill era muito sereno e apaziguante, mas não logrou desarmar Lady Lebanon, que mais que nunca se lançava na defensiva. — E a senhora acaba de declarar que viu o doutor, pela última vez, ontem de manhã ou anteontem! Eis aí um homem assassinado; fato por si só bastante impressivo, ao que me é dado julgar!
Ela fez uma careta de concentração.
—Acho que não estou compreendendo.
„Ÿ Se a senhora tivesse alguma amiga que, logo depois de visitá-la, sofresse um acidente fatal, porventura não diria: "Ora, estivemos conversando pouco antes de acontecer isto!" Eis, senhora, o que eu entendo por fato impressivo.
—O Dr. Amersham não era meu amigo — replicou ela em voz baixa. — Era um teimoso, incapaz de levar em conta outro ponto de vista além do seu próprio.
Tanner fez sinal de que compreendia.
— Com que então o fato de ele ter sido assassinado a poucos passos desta sala realmente não tem importância?!
Ela tornou a se -aprumar.
— Isto já é ser um tanto insolente, Mr. . . inspetor. . .!,
— Tanner — lembrou-lhe Bill. — Sim, suponho que seja mesmo. Mas não lhe parece, Lady Lebanon, que sua atitude é peculiar? Não ouso dizer "arrogante". Sou um policial encarregado da investigação do assassínio do Dr. Amersham. Diz a senhora que não se lembra de quando o viu, ainda vivo, pela última vez, apesar de ter estado em companhia dele apenas alguns minutos antes da sua morte. Insinua que não pode precisar a hora em que o viu apenas porque ele não era amigo, sendo antes teimoso etc. e tal. Isto não lhe parece um tanto inadequado? Se não era amigo, donde procede que estivesse aqui às onze da noite?
— Ele veio me ver!
—Como médico?
Ela confirmou com um gesto.
—A seu pedido?
A mulher meditou antes de responder a isso.
— Não, ele entrou por acaso. . .
— Às onze da noite?! — Tanner mostrava-se incrédulo.
— Eu tive uma leve manifestação de neurite no braço. . .
— Mas não mandou chamá-lo? Ele tão-somente supôs que a senhora estaria com neurite e, em conseqüência, viajou de Londres até aqui só para tratá-la? Deixou alguma receita escrita?
Ela não respondeu.
— Ele a deixou às doze horas, apanhou o carro e dirigiu-o pela Long Avenue. . . Não é assim que a chamam? No meio do caminho alguém saltou sobre a traseira do automóvel, e o doutor, surpreendido ao volante, foi estrangulado.
— Nada sei sobre isso! — interrompeu-o a mulher, revoltada.
— O carro, do qual o corpo foi sem dúvida removido, encontrou-se depois, abandonado, no outro extremo da cidade.
Esses pormenores desnecessários a enlouqueciam. Já tinham repassado cada aspecto do caso, não uma mas dezenas de vezes.
— Na verdade, não estou muito interessada — foi, por fim, levada a dizer; o que verdadeiramente escandalizou Bill Tanner.
— Lady Lebanon! Não conhecia a senhora esse cavalheiro havia anos?! . Não a visitava constantemente, como médico e amigo?! E diz que não está interessada em seu brutal assassínio!
Ela deu um longo suspiro.
—É claro que lamento muitíssimo. Foi, na verdade, uma coisa terrível. . .!
Passou-se muito tempo até que formulasse a pergunta seguinte; os nervos da mulher estavam em frangalhos.
—O que é que o Dr. Amersham sabia?
Lady Lebanon atirou-lhe um rápido olhar e meneou a cabeça.
— Que sabia ele? — repetiu Tanner. — As últimas palavras que a senhora lhe disse enquanto ele se retirava foram estas:
E Bill apanhou um livro de notas do bolso e considerou-o com calma.
—A senhora estava ali — e apontou para certo lugar do recinto, não longe de onde ela se achava agora; — e por sua voz dir-se-ia que estava furiosa. Disse a senhora: "Ninguém acreditaria em você, se lhes contasse. Conte-lhes, se é que se atreve! E não se esqueça que está tão envolvido quanto qualquer um de nós. Você sempre quis gerir o dinheiro de Willie."
E, com ruído, fechou o livro.
—As palavras podiam não ser exatamente essas, mas o sentido é o mesmo. . . Em que é que o doutor estava envolvido?
A mulher não respondeu.
—O que foi que a senhora o desafiou a contar?
No momento ela estava surda, atônita ante a precisão com que ouvira repetidas suas próprias palavras; perguntava-se onde o inspetor obtivera tal informação, e, de repente, seu rosto pálido ficou rubro de fúria.
—Mas claro, Jackson lhe contou isso! Minha criada! É uma moça totalmente indigna de confiança; despedi-a! Se for dar ouvidos a criados recém-despedidos,. Mr. Tanner. . .!
Tanner abanou a cabeça, num gesto de enfado.
— Eu ouço a todos; é esse ò meu trabalho! Quanto tempo seu marido esteve doente antes de falecer?
A mulher, que não estava preparada para aquela súbita mudança de ângulo, teve de pensar um pouco antes de responder.
— Quinze anos.
— Quem tratava dele?
— O Dr. Amersham.
A resposta foi relutante, e lá veio Tanner, de novo, com o seu livro de notas.
— Apesar de ter estado doente tanto tempo, teve morte súbita, não foi? Tenho aqui todos os pormenores da certidão. Assinada por Leicester Amersham, licenciado pela Faculdade Real de Medicina e membro da Academia Real de Cirurgiões.
E tornou à enfiar o livro no bolso. A mulher se perguntava que outra indagação a esperaria, já engatilhada, naquelas páginas.
—Durante a enfermidade dele a senhora e o Dr. Amersham lhe administraram os negócios?
Ela fez que sim.
— Encontrei o nome do doutor em vários contratos de locação em que figura como procurador.
Agora ela se sentia em terreno mais seguro e tinha a impressão de que o ponto crítico do interrogatório já passara.
— Sim; meu esposo o estimava muito, e o doutor ajudou a administrar-lhe os bens, conforme o senhor já sabe.
Ela aguardou. Tanner a fitava e, quando por fim falou, seu tom era calmo, quase agradavelmente coloquial. '— Por que a senhora tornou a se casar?
A princípio ela não compreendeu o pleno significado da pergunta. Depois ergueu-se de um salto.
—Mas isso não é verdade! — exclamou, quase sem fôlego.
— Por que foi que a senhora tornou a se casar. . . numa igreja de Peterfield. . . e com Leicester Charles Amersham?.. . Imagino que a cerimônia tenha sido celebrada pelo Reverendo John Hastings.
A fidalga oscilou por um segundo e logo, muito lentamente, tornou a sentar.
— De onde tirou tudo isso? Bill Tanner deu-lhe um sorriso.
—De um certo registro de matrimônios que manuseei em Peterfield. Pra falar a verdade, Lady Lebanon, eu estava curioso pra saber a razão da amizade entre o Reverendo Hastings e o Dr. Amersham. ., Eles são tão diferentes um do outro... E concluí que essa amizade se baseava em algum favor prestado por Hastings. Dei-me ao trabalho de ir a Peterfield. Por que a senhora se casou três meses após a morte de seu primeiro marido e por que manteve esse casamento em segredo?
Havia sobre a escrivaninha uma pequena jarra de cristal. A mulher a apanhou com mão firme e encheu de água um copo que levou aos lábios ressequidos, enquanto Bill aguardava, curioso e expectante.
— Fui forçada a casar — confessou ela. — O Dr., Amersham era um aventureiro dos mais vis. Não tinha um vintém de seu quando serviu como médico ao exército indiano. Ele me forçou ao casamento por meio de chantagens!
— Como?
Um gesto de ombro foi a única resposta que obteve.
— Que sabia ele contra a senhora? Deve compreender que para chantagear uma pessoa é preciso saber algo contra ela. A senhora tinha transgredido a lei?
— Recuso-me a responder!... Só o que digo é que ele tinha... ele era um ladrão e falsário!. . . E tinha sido expulso do exército!
Tanner confirmou aquilo com um aceno de cabeça.
—Ele pode ter sido tudo isso, mas estava aqui a noite passada, por volta de onze e doze horas. Ameaçou-a, e foi assassinado minutos depois; no que a senhora não está muito interessada!
Lady Lebanon tornou a corar.
— E por que deveria estar? Estou contente porque ele. . .! — calou-se de súbito.
—Contente por ele ter morrido? — sugeriu Tanner. — E
agora, ao lembrar-se de alguma coisa, já não está tão contente? Ela murmurou algo em resposta, mas ele não conseguiu captar. Pensou tê-la ouvido dizer que estava sendo absurdo, e com certeza não se enganava.
Esperou até que a viu tensa de novo, então tornou à carga:
—Quanto a seu primeiro marido, Mrs. Amersham...
Ela ergueu a cabeça ao ouvir aquilo.
— Agradeceria muito que me chamasse de Lady Lebanon! — vociferou. Mas depois, com um leve sorriso não de todo artificial, deixou-se cair novamente na cadeira, dizendo:
— O senhor fez isso de propósito, só para me envenenar. Começo a compreender os seus métodos, Mr. Tanner!
— Quem foi que viu o falecido Lorde Lebanon depois que morreu? — prosseguiu Tanner, incansável.
— O Dr. Amersham.
— E a senhora não?
— Ninguém, salvo Gilder e Brooks. . . Eles se encarregaram de tudo.
— Compreendo. E o doutor assinou a certidão. A verdade é que ele morreu, e ninguém o viu exceto Amersham, Gilder e Brooks. Amersham era alguém interessado nessa morte.
Viu-a estremecer.
— Não estou fazendo acusações, só expondo fatos. Ele a chantageou porque conhecia alguma coisa contra a senhora. Serk interessante saber se a chantagem começou antes ou depois da morte de seu primeiro marido.
— Não tenho dúvida de que há muita coisa que lhe interessaria saber — disse ela com vestígios da sua antiga altivez.
Tanner concordou.
—Exato; e uma delas é esta: por que foi que a senhora achou necessário tirar o couteiro do caminho esta manhã? Por que lhe deu uma gorda soma de dinheiro (confesso que não sei a quantia exata), que sacou faz dois dias de um banco de Marks Thornton, para induzi-lo a ir? Averiguei as notas, sim, senhora.
Os olhos escuros da dama transfixavam os do detetive.
— Esta é a primeira vez que ouço falar que ele deixou a propriedade — respondeu ela. — Dei-lhe dinheiro, não há dúvida, mas para um fim que era inteiramente da conta dele. Não sei mais do que isto.
—Nesse caso, eu talvez possa lhe dar uma pequena informação ainda esta noite — disse Tanner.
Consultou o relógio e ficou surpreso ao ver quanto tempo fazia que estava em Marks Priory. Já estava escurecendo e havia muito trabalho por fazer no povoado.
—Hoje de manhã o meu interesse por este caso ainda era puramente teórico, Lady Lebanon, a não ser pelo Dr. Amersham, que me interessava bastante. Agora, estou realmente interessado na senhora, nesta casa...
Foi até a escrivaninha e estendeu a mão.
—. . . e no quarto, que a senhora diz nunca ter sido aberto. A chave, por favor.
Ela nem parecia ouvi-lo, de modo que ele prosseguiu com inesperada cordialidade:
Enfim, com certeza eu a estou aborrecendo sem necessidade; mas, bem que eu gostaria de pôr os olhos naquele quarto. Sou cismado por natureza, e tive a impressão (no que posso estar enganado) de que o que o Dr. Amersham pudesse saber contra a senhora tem algo a ver com esse misterioso quarto. Então, adivinhei?
Não — respondeu ela. — Tem a ver com. . . com o meu passado.
Ele abanou a cabeça a sorrir.
— Custou-lhe muito dizer isso, e não é verdade. A senhora
é uma dessas pessoas sobre as quais todos já leram; orgulhosa do
próprio sangue. — E fez uma careta. — Por falar nisso, mesmo
a senhora deve ser uma Lebanon, não é?
O efeito que isto teve sobre ela foi espantoso. Naquele breve instante seu rosto ficou radiante, quase belo.
— É extraordinário que afinal tenha dado por isso! — disse, mas com brandura. — Sim, sou uma Lebanon. Casei-me com meu primo. Descendo em linha reta de um quarto barão.
Ele abanou a cabeça.
— Estupendo!
— A família é das mais tradicionais, Mr. Tanner. A história dos Lebanons é mais antiga que a da Inglaterra e ainda perdurará muito tempo! Deve perdurar. Seria uma crueldade se a linhagem se extinguisse!
Agora a mulher se revelava extasiada. Ele a observava atônito.
— Estupendo! — tornou a dizer, e ela sorriu.
—Já disse isso, Mr. Tanner.
Bill chegou-se à boca do corredor e chamou Totty.
— Creio que vou deixá-la, por esta noite. Mas receio que torne a vir amolá-la pela manhã.
Estava na base da escada e por acaso ergueu os olhos. Lá estava Isla Crane, num lugar onde apenas ele a podia ver. Levara o indicador aos lábios e acenava-lhe com instância. Fingindo despreocupação, ele galgou a escada, e ela o segurou pelo braço.
—Está indo embora, Mr. Tanner? — Sua voz tremia.
—Pelo amor de Deus, não vá esta noite! Fique!
A mão com que apertava convulsamente o braço do inspetor tiritava. Em resposta, Bill tornou a descer lentamente os degraus.
—Chamarei um carro para levá-lo — recomeçou Lady Lebanon.
Mas Bill sorriu-lhe.
—Peço-lhe perdão, mas acabo de mudar de idéia. Resolvi passar a noite em Marks Priory; é só um capricho meu. Espero que não se importe, Lady Lebanon.
Por um instante a fúria faiscou nos olhos da mulher; logo, porém, ela se voltou e retirou-se abruptamente.
— Que idéia é essa, Mr. Tanner? — quis saber Totty.
—Gostaria de poder responder. Pela manhã talvez possa.
Totty deu um longo suspiro.
Se quer passar a noite neste museu medonho, está bem!
Mas eu é que não fico aqui, está ouvindo, Tanner?
Mister Tanner, por favor — corrigiu-o o inspetor-chefe. —Soa melhor. . . mesmo num casarão mal-assombrado!
Um policial motociclista, sujo de lama, entregou um alentado pacote a Bill Tanner antes do jantar. Aparentemente todos os trens do reino partiam às seis e trinta da manhã e chegavam a alguma parte às oito e três. Percorreu-os atentamente com os olhos e marcou o primeiro, na certeza absoluta de que não se enganava. Era um trem que ia de Horsham para a ponte de Londres, e Horsham nãó ficava longe dali.
Os trens que saíam às dez e chegavam às dez e cinco da manhã seguinte ou do mesmo dia eram raros, e nenhum era continental. Havia um que saía de Londres às dez da manhã e chegava a Aberdeen às dez e cinco. Ele consultou uma obra de referência. Lady Lebanon tinha um pequeno pavilhão de caça a menos de dez quilômetros de Aberdeen, e essexera sem dúvida o objetivo de Tilling.
Por telefone ele deu instruções que deviam ser passadas para a polícia de Aberdeen; estava muito atrasado, mas nem dava por isso. Um telegrama foi expedido numa estação escocesa intermediária e, em conseqüência, certo couteiro, pesadão e algo perturbado, teve de deixar o seu trem e arrepiar caminho, via Edimburgo, com destino a Stirling.
Havia outra informação. Só uma pessoa tinha adquirido um cachimbo da marca descrita por Bill. Um tabaqueiro das proximidades de King's Cross Station mal acabara de abrir a loja quando um homem, cujos traços correspondiam perfeitamente aos de Tilling, entrara e efetuara a compra.
Totty passara uma tarde bastante satisfatória no refeitório dos criados, onde foi visto corri a reverência a que sua posição e anteriores realizações lhe davam direito.
Descobrira ali uma nova vida; uma vida de que Lady Lebanon nem suspeitava: seres humanos com suas teorias e conje-turas, às vezes curiosamente próximas da verdade. Homens e mulheres que tinham conhecido e estimado Studd; que o consideravam humano e não só como o infeliz protagonista de um caso; que lhe recordavam o bom humor e as peculiares fraquezas, a que se referiam em voz baixa, muito embora houvesse uma moça de cozinha que dera uma fungadela ao mencionar Mrs. Tilling.
Todos estavam agradavelmente excitados pela presença na casa de membros da Scotland Yard. Totty logo se fez- admirar, aludindo interminavelmente aos seus muitos sucessos na arte investigatória e levando sua descontração — se Ferraby não se enganava — ao ponto mesmo de segurar, por debaixo da mesa, a mão de uma bela criadinha durante o chá.
Alguns vespertinos apresentaram um relato truncado do crime, mencionando que -o caso estava a cargo do Inspetor-chefe Tanner; entretanto, para grande indignação de Totty, não se fazia a menor referência ao seu nome.
Estava surpreso por verificar quão pequeno era o número de criados que tinham visto Amersham alguma vez. A informação que sobre ele lhe traziam era de segunda-mão e, na maioria, obtidas de Studd.
Gostavam do Lorde Lebanon, temiam-lhe a mãe, e, por qualquer razão, a atitude que tinham para com Isla era de piedade.
Mr. Kelver, que presidia o chá, chegou mesmo a convidar Totty, verbalmente, a visitar seus aposentos.
—Eu, se fosse o senhor, não discutiria tais assuntos com os criados. Eles não são dignos de confiança, e é um grave erro fazer com que se sintam importantes, Mr. Totty.
Totty inclinou gravemente a cabeça, e como Mr. Kelver não apenas era refinado como também induzia refinamento, Totty insensivelmente passou a empregar certo acento aristocrático.
—Sim, sim, suponho que seja realmente.
Quando se punha a falar desse modo, invariavelmente exibia um sorriso afetadíssimo.
—Encantadora esta velha casa, Mr. Kelver.
— Sim, é bastante antiga e histórica: a Rainha Elisabete residiu aqui um ano.
Tanto bastou para que-Totty se dispusesse a ouvir mais.
— Continue! — disse, olhando em torno, com renovado interesse. — Ela morreu aqui?
Ora, Mr. Kelver não somente sabia onde morrera a rainha, como também trazia na ponta da língua a data de sua morte. Pela primeira vez o Sargento Totty ficou sabendo que tal fato tinha realmente acontecido. Até então considerava tais incidentes da vida das grandes majestades como pura invencionice de examinadores, destinada a derrubar incautos.
—Arranjaram aqui dois criados bastante sacudidos, hem? —disse.
— Quase nada tenho a ver com eles — respondeu Kelver, que por outro lado chegara a ver o Dr. Amersham, mas nada sabia de seu caráter, salvo pelo que ouvira de Studd.
—Não era boa pessoa, de acordo com ele; mas como cheguei a dizer-lhe muitas vezes, este mundo precisa de todo tipo de gente.
— Sem dúvida — concordou Totty. — Suponho que nada de extraordinário jamais aconteceu aqui? Nenhum fuzuê?
Mr. Kelver ficou meio atarantado com aquele vocábulo, até que o visitante, percebendo-o, apressou-se a explicar-lhe o significado. Aparentemente tinha havido certo tipo de tumulto, e após exprimir a devida relutância em comentar os assuntos de seus empregadores, Mr. Kelver passou a comentá-los, sem rebuços, pela ordem.
— Certa manhã parecia ter havido aqui uma luta aberta
— disse ele quase num sussurro. — Espelhos partidos, cadeiras despedaçadas, copos espatifados pelo chão e Gilder com um olho preto; e parece, embora me louve unicamente na palavra do pobre Studd, que o Dr. Amersham mostrava-se assaz esgotado no dia seguinte.
Foi até a porta, abriu-a e deu uma espiada fora; após o que, tornou a fechá-la e prosseguiu em voz mais baixa:
— Nesta casa, senhor, está havendo algo que não consigo compreender. Sua excelência o lorde é tratado como se não existisse; os desejos que tem são ignorados, e na minha opinião a posição dele nesta casa não é melhor que a de um prisioneiro.
Exprimiu essa dramática declaração e deu um passo atrás para gozar o efeito que causara. A reação de Totty pareceu-lhe perfeitamente satisfatória.
—Nunca tiram os olhos de cima dele — prosseguiu. — Posso dizer-lhe isto: recebi instruções, coisa que lamento muitíssimo, apesar de provirem de sua senhoria, no sentido de bisbilhotar todos os telefonemas do Lorde Lebanorí. Se ele tem um criado que lhe mereça confiança, tal criado é despedido. Ele empregou três criados de quarto, que eu saiba, e todos foram despedidos por esta ou aquela razão. O único com quem tinha
amizade era Studd, que, acho eu, faria tudo por ele.
Aqui fez outra de suas dramáticas pausas e prosseguiu:
—Studd foi assassinado! Nunca exprimi minha opinião antes, e espero, Inspetor Totty. .. (Digo bem "inspetor"?)
— Perfeitamente bem — respondeu o sargento, com gravidade.
— . . . Espero que não passe adiante minha opinião, mas há algo nesta casa, alguma terrível força que começa a me dar nos nervos. De bom grado eu sacrificaria um mês de salário pelo direito de ir-me embora hoje mesmo!
Totty ergueu-se num salto. Kelver deteve-se boquiaberto. Não havia dúvida quanto ao som: tinha sido um grito! Um grito feminino de terror! Num átimo o sargento alcançou a porta e abriu-a.
Um corredor de teto baixo comunicava aquele aposento com o resto da casa, e à esquerda um lance de escadas levava ao pavimento superior. Ouviu-se o ruidar de passos apressados; Isla Crane oscilou e teria despencado, não fosse o braço de Totty enlaçá-la.
Estava à beira de um colapso; tão aterrorizada que mal podia falar.
— Que houve, Dona?
Ela olhava para as escadas com o pavor estampado nos olhos.
—Alguém a está perseguindo? Cuide da moça, Mr. Kelver.
Começou a subir os degraus aos saltos, mas deteve-se sobre o quarto. Do patamar superior os olhos rútilos de Gilder o fitavam.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ele com sua voz profunda ,e trovejante.
— Venha cá! Que houve aí com a moça?
— Não sei de nada; só ouvi um grito e vim ver o que era.
Desceu os degraus lentamente, chegou ao corredor e deteve-se a encarar sombriamente a moça. Ela já se recobrara em parte.
— Não preciso de você — disse ela, ainda trêmula. — Suba. . . Não preciso de você. . . está me ouvindo?
— Aconteceu alguma coisa, senhora? — perguntou ele.
— Não... Eu estou bem. Eu... — e não pôde terminar a frase.
Então voltou-se para Totty:
—Quero voltar para o meu quarto. Quer vir comigo?
Totty subiu as escadas adiante da moça, que sem mais dizer palavra entrou no quarto do velho lorde e cerrou a porta quase no rosto do detetive, fechando-a depois à chave.
Gilder observava-o.
— A moça anda meio nervosa — disse.
— Sabe o que foi que a assustou?... E trate de parar de sorrir, ouviu?
— Se não sorrir — explicou friamente o comprido Gilder,
— a gente enlouquece nesta casa. Não me admiro de que ela esteja transtornada. Todos nós estamos. O senhor não precisa de mim, não é?
Totty não respondeu. Em vez disso, voltou para os aposentos do mordomo e encontrou o agitado Kelver servindo-se de um cálice de conhaque; tanto lhe tremiam as mãos que, mesmo antes de entrar, Totty já ouvira o som de vidro contra vidro.
— Que acha que ela viu? — perguntou embatucado.
— Nem quero pensar, Mr. Totty! Aceita um cálice de Napoleão?
O sargento nunca bebia antes de certa hora, e tal hora ainda não soara.
Encontrou Tanner numa saleta, em que uma escrivaninha fora instalada especialmente para servi-lo. Aquele cômodo tinha a vantagem de contar com um dos três telefones de Marks Priory.
—É um mistério para mim — dizia Totty. — Ela viu alguma coisa. É claro que pode ter sido o criado americano o que a assustou.
Tanner fez-lhe um aceno de cabeça.
— Por falar nisso, o Lorde Lebanon vai até o povoado. Gostaria que você fosse com ele. É melhor ir armado, nem que seja só para levantar o moral, mas prefiro que você leve o cassetete de borracha. Acho que não vai acontecer nada, mas nunca se sabe.
— E por que é que sua excelência entendeu agora de ir ao povoado? — protestou o sargento.
Ele quer ver Mrs. Tilling, e eu prefiro que ele vá pela estrada. O lorde acabou de saber do desaparecimento de Tilling e está meio interessado no caso. Melhor ir pela estrada do que atravessar os campos. Se está com medo, eu mando Ferraby e não se fala mais nisso.
Totty se ofendeu.
— Já me viu com medo alguma vez? E o que pode haver no parque capaz de levar dois homens a darem a volta pela estrada? Xi, como você está ficando romanesco, Tanner!
—Senhor já serve — disse Bill. —Não, não sou romanesco; só não quero que você seja demasiado confiante, Totty. Haverá muito perigo no parque; prepare-se para enfrentá-lo.
Apesar de sua experiência, o Sargento Totty sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
— Ora, você não está conseguindo me assustar — disse ele. — Existe algum esconderijo lá no parque? Acha.que esse camarada ainda está por aqui?
Tanner fez que sim.
—Ele ainda está na propriedade — disse seriamente. — Pode levar Ferraby com você. . .
—Não seja bobo — replicou-lhe respeitosamente o subor
dinado. — Quando eu chegar ao ponto de agir em batalhão, troco a polícia pelo exército.
— Não esqueça que o lorde está a seus cuidados — recomendou ainda o inspetor-chefe enquanto o outro deixava a sala.
— Se acontecer alguma coisa a ele, você é responsável. Pode
levar um revólver, mas só deve usá-lo se alguém colocar aquela
gravata no seu pescoço, e mesmo aí, acho que já não dará tempo.
—Será que eles pretendem fazer alguma contra Lebanon? —perguntou ainda Totty.
— Não sei. Nada pode acontecer a nenhum de vocês dois se você seguir minhas instruções. E eu estou falando sério, Totty.
O sargento deu com o jovem fidalgo a esperá-lo no vestí-bulo; fumegava à vista das instruções expedidas por Tanner.
—Não me importo de ser tratado como uma criança por minha própria mãe — resmungava ele, — mas quando gente como vocês da Scotland Yard começam a me tratar do mesmo modo. . . Ora essa, é exasperante!
Enfim, agradava-lhe a companhia, pois gostava de Totty.
Desceram a escura via de acesso ao solar, Totty alerta, atento às sombras, examinando os arbustos com o auxílio da lanterna que trouxera. Na sua imaginação via formas furtivas em todas as concavidades. A certa altura pensou ter ouvido o som de passos que os seguissem; pelo que parou e voltou-se.
Podia jurar que então vira uma silhueta a confundir-se com os arbustos; entretanto, quando dirigiu para ali o facho da lanterna, nada viu.
Ao fim da via particular passaram à estrada pública, quando novamente Totty teve por certo ouvir alguém mover-se do outro lado dá sebe, paralelamente a eles. Era impossível enxergar através da sebe espessa, mas, num lugar em que esta se estreitava, ele assestou-lhe inesperadamente a lanterna e desta vez estava certo. Viu algo esquivar-se rapidamente à luz. Alguém que caminhava pelo lado de dentro dos jardins da casa, precisamente sob aquelas árvores em meio às quais, encontrara a carabina de Tilling e o assento dobradiço. Apesar de sua natural coragem, o sargento sentiu grande alívio quando, por fim, chegaram ao chalé.
O Lorde Lebanon estava menos perturbado e infinitamente mais intrigado.
— Alguém nos seguindo, de verdade?
E teria enfiado pela sebe adentro a fim de se certificar, se Totty não o puxasse para trás e dissesse imperativamente: — Afaste-se daí, rapaz!
—Mas quem poderia ser? — perguntou sua excelência.
Aquela era uma pergunta a que Mr. Totty não podia responder satisfatoriamente. Entrou pelo portão após Lebanon, espreitando à sua direita; virou-se em direção da aléia, apurando o ouvido. Deteve-se junto ao portão até ouvir a porta abrir-se ao chamado do rapaz, então entrou após ele.
Aquela visita não o satisfez como detetive; era de pura cortesia. Lebanon só queria saber se a mulher tinha dinheiro, e também crivá-la de perguntas sobre o couteiro seu marido. Mrs. Tilling estava nervosa e, pela primeira vez na vida, reticente. Aquela visita inesperada a aturdira e, em conseqüência, manteve-se de boca fechada quase todo o tempo.
—A senhora conhecia o pobre Amersham, não?
Ela fez que sim.
—Andam dizendo toda espécie de coisas sobre a senhora.
— Ao menos sua excelência não usava subterfúgios. — Mas é claro que não dou muito crédito ao que tenho ouvido.
Totty admirou-se de que a mulher nem sequer protestasse inocência.
—Esquisitíssima — comentou o lorde ao voltarem — e muito bonita também, não lhe pareceu? Dizem dela cobras e lagartos, mas eu não acredito nesses boatos. O que será que aconteceu ao marido?. . . Ela não devia ficar ali sozinha.
O.sargento estava absorvido em seus próprios pensamentos.
Caminhava rente à sebe e, de novo, tinha consciência de que uma sombra ia a seu lado. Chegou a ouvir um pequeno ramo estalar sob o pé do desconhecido. O ruído, forte como foi, fê-lo saltar de susto.
— Há alguém aí — disse Lebanon em voz baixíssima. — Vamos pular a sebe e caçá-lo!
—Vamos deixar que ele banque o caçador — respondeu ponderadamente o sargento.
E dirigia a lanterna para a direita e para a esquerda, à medida que faziam o caminho de volta. Não havia dúvida de que estavam sendo seguidos. Por duas vezes Totty se voltou de inopino lançando o facho da lanterna para trás, mas sem resultado. Entretanto ouvia. A sombra conservava-se junto à relva, mas a certa altura teve de cruzar uma trilha que cortava perpendicularmente a via particular, e então Totty ouviu o ruído de passos sobre cascalho. Observou atentamente Lebanon dirigir-se até a porta, esperou-o entrar e depois retornou pelo mesmo caminho por que viera. Movia-se com extrema cautela, beirando a relva, procurando conservar-se junto às árvores. Súbito, viu algo e sacou do revólver.
—Parado aí, se não quiser uma bala no estômago! —
bradou ele", e logo acendeu a lanterna.
No meio do círculo luminoso apareceu o sorridente Ferraby.
„ŸNão atire, coronel! — disse, divertido; — sou amigo e camarada!
— Era você?!
— Quem? — perguntou Mr. Ferraby.
— Que esteve me seguindo?!
— Em certo sentido, estive seguindo, e em certo sentido acompanhei-o pari passu — respondeu o culto Ferraby, egresso de uma public school.
— Também era você do outro lado da sebe?
—Era eu. Puxa, nunca pensei que você fosse tão medroso, Totty, e não sei onde Tanner estava com a cabeça quando lhe deu um revólver! Espero que não esteja carregado!
— Que é que você estava fazendo?
—Cumprindo minhas instruções — explicou Ferraby, levando lume ao cigarro. — Tive ordens para seguir vocês dois. Há um provérbio latino, que você já deve ter ouvido, que significa "Quem guardará o guardião?" ou coisa que o valha.
Mr. Totty estava compreensivelmente aborrecido, e um tanto aliviado também.
—Se Tanner não confia em mim. . .!
— E em quem é que ele confia?! — interrompeu-o Ferraby. — Vai ver que há algum outro me vigiando também; só que eu não sou tão sensível a essas coisas como você. Que foi que houve lá no chalé, afinal?
„ŸNada.
— Está a encantadora senhora atravessando alguma crise de nervos? Por Júpiter, eu é que não gostaria de passar uma noite sozinho naquele chalé! Por outro lado, também não gostaria nada de ter que vigiá-lo.
Enquanto deambulavam rumo à casa, Totty graciosamente condescendeu em aceitar um cigarro.
— Qual a intenção de Tanner, afinal? O pior nele é ser misterioso. Já notei isso em outros casos. Ele junta todos os fatos e não deixa a gente saber de nada até tudo se esclarecer. Essas mulheres gritadeiras já começam a me enervar, ouviu, Ferraby?
„Ÿ„ŸQuais?
—Essa sua namorada, Miss Não-Sei-Quê-Lá!
—Miss Crane!? Aconteceu alguma coisa com ela?
Ferraby tanto se alvoroçou que Totty se deu por vingado.
Então relatou ao companheiro a experiência que tivera. O outro abalou-se visivelmente.
—Há alguma coisa nessa casa danada que as assusta; na casa ou nos jardins em redor. Que há nesse quarto, que não se pode abrir? Apliquei o ouvido nele hoje, e sou capaz de jurar que ouvi alguma coisa. Parecia alguém chorando. Já disse isso a Tanner, e ele só respondeu: "é bem possível". Na sua opinião, o que foi que Miss Crane viu? Puxa, é terrível esse negócio! Ela precisava dar o fora daqui. Que diria Tanner de mandá-la para a casa da mãe, até o caso ficar resolvido?
Totty fitou severamente o companheiro. Estavam parados à meia-luz do pórtico, acabando os cigarros antes de entrar.
—Você está caído por essa fulana? — perguntou, à sua maneira mais paternal. — Se está, pode tirar o cavalo da chuva. Ela é muito superior a você; já está destinada para outro. Quem a conduzirá ao altar, ao som de sinos nupciais, será aí o nosso jovem lorde. "De corpo e alma ela te ama, todavia não hesitará." É só um trecho de um poema que decorei faz anos. É extraordinário como calha em você!
Ferraby encarou-o, trombudo.
—Que afinal houvesse qualquer tipo de poesia nessa alma
danada, mesmo da mais vagabunda, é a descoberta maior e mais
revoltante que fiz hoje — resmungou.
— Inveja! — diagnosticou Totty, sempre complacente.
O policial ciclista, após ter feito süa refeição, esperava sob o pórtico da casa. Totty só veio a dar por ele ao separar-se de Ferraby. Aguardava um- despacho para a cidade.
„ŸCoisa engraçada, sargento — começou ele; — quando a gente chega no campo sempre parece ser doze e meia, já notou?
— Eu noto tudo, soldado — respondeu Totty.
— Quem é aquele cara que estava aqui falando comigo, algum boy? O senhor foi até ali na porta com ele, agorinha mesmo.
— Aquele cara é o Lorde Lebanon, o Visconde Lebanon — disse Totty impressivamente.
— Ah! — fez o outro, que entretanto não se deixara impressionar. — O jeito que ele tem de falar é bastante comum. Bom sujeito! Logo vi que era alguém importante. Fez uma porção de perguntas a respeito do meu trabalho. A opinião que ele tem de Mr. Tanner não é lá muito boa.
—E de mim? — perguntou Totty, ansioso.
— Para falar a verdade, sargento, ele não mencionou o senhor; ele só saiu aqui fora um instante e logo voltou pra dentro.
Totty achou Tanner onde o tinha deixado. O inspetor-chefe terminara o relatório dirigido ao comissário da Yard e agora' enfiava-o num envelope.
—O mensageiro está aí fora?. . . Ótimo! Bem, como vai Mrs. Tillíng?
— Parece estar lindamente apavorada, chefe... — começou Totty.
— Raios, você anda indo muito ao cinema, Totty. Quer ter a gentileza de não me chamar de "chefe"? Se faz questão de ser meticuloso, trate-me de "inspetor-chefe", mas nem isso é necessário. . . Apavorada, hem? Humm! — Tanner mordia os lábios pensativamente. — Será que. . . ?
— Não há a mínima dúvida de que o marido dela seja o assassino. Acho que vão pegá-lo ainda esta noite, não vão?
— O marido dela não é nenhum assassino, más apesar disso espero que o peguem esta noite — respondeu Tanner.
— O nome do assassino está aqui dentro. — Mostrou o envelope colado. — Acho que pus aqui todos os fatos e seqüências, e ficarei surpreso se estiver enganado. Não me importo de dizer-lhe, Totty, que este é o caso mais interessante em que já trabalhei.
Tanner olhou em direção da porta, deu dois passos na ponta dos pés e abriu-a de sopetão. Gilder estava na soleira; portava uma pequena salva de prata com uma caneca de café.
—O seu café, capitão — apressou-se ele a dizer.
— Quanto tempo faz que está aí?
—Eu tinha justamente acabado de chegar quando o senhor abriu a porta. Eu só estava em dúvida se devia bater na porta com a cabeça ou com o pé — disse o homem de bom humor.
Tanner apontou para cima de uma mesa.
—Ponha isso ali — disse ele.
Fechou a porta logo que o criado tornou a sair e depois abriu-a de novo, bem rápido, para assegurar-se de que o homem ainda não estava ali; então fechou-a em definitivo.
— Lebanon tinha razão: ouve-se às portas por aqui! — disse. — Essa porta também não é espessa.
— Por que não o prende? — perguntou Totty.
„ŸHá uma excelente razão — respondeu Tanner. — Pressinto que se o prendesse teríamos um bocado de problemas. Assim como as coisas estão, a necessidade de realizar sua bisbi-lhoticezinha privada está embaraçando seriamente esse cavalheiro; tanto mais que como seu companheiro não lhe chega aos pés em matéria de talento, é ele próprio quem tem de fazer a maioria dos trabalhos delicados.
E passeou os olhos pela sala, com um sorriso perverso nos lábios.
— Lugar estranho, este!. . . Ou, como diz Lebanon, "esquisito". Eu daria uma fortuna para aviar este caso e cair fora — disse o sargento, estendendo a mão para o envelope que Tanner ameaçava passar-lhe.
— Entregue isto ao estafeta — disse e logo se arrependeu o outro. — Não, pode deixar que eu mesmo entrego.
Sem melindres, Totty acompanhou-o até o pórtico. O mensageiro açodadamente atirou fora o cigarro que só fumara até o meio e prestou continência.
—Isto aqui é para o comissário. Guarde bem e tenha muito cuidado. Você deve chegar a Londres perto das onze, e o comissário estará à sua espera no gabinete dele.
O homem rodou o pesado veículo para a via de entrada do solar, acionou-o estrondosamente e se foi, começando logo a ganhar velocidade.
Virou na primeira curva e só o reflexo mortiço de seu farol ainda era visível desde a casa, quando subitamente Tanner ouviu um ruído de colisão e viu que o farol da motocicleta se apagara. Imediatamente depois ouviu um urro. Então desceu correndo a via particular da casa, com Totty nos calcanhares. Ouviu-se um ruído de grande confusão e também tiros. Quando chegaram ao local o motociclista estava prostrado sobre os joelhos, e a máquina escarranchada à beira da rodovia. Totty acendeu a lanterna que trouxera. O rosto do estafeta estava lívido; perdera o quépi e tinha os cabelos revoltos. Ajudaram-no a pôr-se em pé e Tanner fez-lhe uma rápida inspeção: nenhum osso quebrado; entretanto, estava contundido e abalado.
— Puseram uma corda ou coisa assim atravessada no caminho — explicou ele, trêmulo. — Daí, alguém me pulou nas costas querendo me amarrar um pano no pescoço.
Totty examinou em torno com a lanterna. Nem sinal do assaltante.
— Como era ele?
— Sei lá! Não deu pra ver; meu farol logo pifou. Mas era alguém bem forte: quase me levantou no ar! Dei um murro nele, mas acho que ele nem sentiu!
Totty andou à cata do objeto que servira como obstáculo e achou-o. Era uma corda, e tinha sido amarrada de árvore em árvore à altura do peito de um homem, que se rompera sob o impacto da colisão.
—Não viu pra onde ele foi?
— Não, senhor — respondeu o mensageiro e pôs-se a man-quejar em direção do veículo.
À luz da lanterna de Totty irtspecionou-o, notando que não resultará nada de mais. sério que um farol quebrado; e mesmo nisso podia-se dar jeito: Totty apanhou a lanterna que trouxera e prendeu-a no guidão da moto.
—Não se machucou? Tem certeza? — tornou Bill a perguntar.
Examinou as pernas do outro e, ainda dessa vez, não achou nada quebrado.
— Eu estou legal; já posso seguir viagem!. . . Ah, como eu queria ter atropelado aquele filho da mãe!
—- Você disse que ele tentou amarrar um pano no seu pescoço? Pode ter caído por aí.
Mas quando o sargento, depois de ter voltado ao solar em busca de outra lanterna, fez uma investigação, não achou nenhum vestígio da gravata vermelha, nem descobriu nenhum indício que associasse alguém àquele ataque.
— A carta ainda está aí?
O estafeta rebuscou na sacok e fez uma descoberta. A tira que a segurava tinha sido cortada até o meio.
—Então era isso que ele queria? — exclamou Tanner.
— Trabalham depressa por aqui. Está bem, filho; enfie a carta no bolso e depois explique ao comissário por que precisou ser dobrada.
O homem meteu a carta num bolso traseiro e deu à partida. Tanner e Totty o acompanharam com os olhos certa distância estrada abaixo, até que o viram ganhar a estrada pública.
-— Ele está seguro agora — disse o inspetor-chefe. — Trabalham depressa, hem? Incrível! Ainda bem que mandei Fer-raby atrás de você.. . Podia haver barulho.
Totty, que já tomava impulso para repreender o superior por aquele ato tão derrogatório à sua dignidade, acabou achando mais prudente abandonar o assunto.
Quando chegaram de volta ao solar, aconteceu algo estranho. O enorme salão estava vazio. Mal entraram, Gilder apareceu. Parecia que estivera correndo, e estava claramente sem fôlego. Seu cabelo escasso, que sempre trazia pendente sobre a testa, e seu rosto desagradável, emprestavam-lhe agora uma expressão curiosamente tensa.
—Olá! — disse Tanner. — Que houve com você?
O americano engoliu em seco.
— Dei uma cochilada ali na copa. .. por incrível que pareça .. . e tive um pesadelo.
— A copa está molhada?
Tanner aludia aos sapatos do criado; estavam úmidos e exibiam, presos à sola, fragmentos de grama fresca. O homem olhou dos pés para o detetive e arreganhou um sorriso conciliatório.
—Dei uma escapada para fumar — explicou.
E já se retirava quando Tanner o chamou de volta. — Por acaso o seu pesadelo foi sobre motocicletas? Gilder abanou a cabeçorra.
— Não, senhor, foi sobre. .. — Deteve-se e raciocinou um instante. — terremotos!
— Quase chego a admirar esse indivíduo — confessou Bill, após a retirada do criado.
— Quem? Gilder? — perguntou o sargento, incrédulo.
— Viu só, os sapatos dele?!
—Eu vi; mas você não, até que eu mencionasse o fato — respondeu, Tanner.
Depois sentou-se à mesa -de Lady Lebanon, apanhou um lápis e pôs-se a mordiscá-lo.
Essa Mrs. Tilling é um caso sério! Para falar a verdade, acho que ela é o nosso maior problema no momento.
Ergueu-se e entrou a medir o cômodo com os pés.
— Pegue a viatura — ordenou às súbitas ao sargento, que lhe acompanhava o passeio com os olhos; — vá até o chalé, apanhe Mrs. Tilling, leve-a para o "White Hart" e não diga nada a ninguém. Temos dois homens hospedados lá, não é certo?
Mande um deles vigiá-la.
— Mas, e se ela não quiser ir? — interpôs Totty.
„ŸEntão você a pega no colo, gentilmente, quase com ternura — minuciava Tanner, esquipaticamente sarcástico; — pode até deixá-la apoiar a cabeça no seu ombro, carrega-a com todo o zelo que puder pelo jardim afora e arremessa-a para o interior do carro. Chega uma hora em que a gente tem de pôr fim a toda polidez. Assente-lhe uma porretada na cabeça, faça o que quiser, mas trate de levá-la para o "White Hart".
Então Totty foi desapressadamente até a garagem, convocou o motorista de plantão e se foram. O portão do chalé estava aberto, mas o sargento lembrava-se distintamente de o ter afer-rolhado ao sair. Havia ainda um segundo portão, menor que o primeiro, que também acharam escancarado. A porta, quando por fim a viram, estava entreaberta.
—Veja isso, sargento! — gritou o chofer da polícia. — A janela foi arrombada!
Totty endereçou a luz para lá. Dois retângulos da vidraça tinham sido despedaçados e a janela estava aberta. Com o coração batendo com mais força Totty saiu ao corredor escuro, movimentando-se com cautela. A porta da saleta também estava entreaberta, e, quando ele entrou, viu que a mesa estava de pernas para o ar; todos os quadros da parede tinham sido despedaçados, talvez com uma cadeira cujos restos jaziam agora em cima do sofá.
O cômodo pegado era um quarto de dormir. Não havia ninguém nele mas, como a sala, fora depredado. A cama estava de bruços; um tripé sobre que costumava descansar uma bacia dágua estava fora de posição e os cacos de uma bilha jaziam espalhados pelo tapete.
Aqueles tinham sido os únicos cômodos envolvidos na desordem, tanto quanto ele podia julgar; mas a porta dos fundos também estava amplamente aberta. Só não havia sinal de Mrs. Tilling.
Totty examinou rapidamente a soleira da porta e já se dirigia novamente para o interior da casa, quando lhe chegou por trás' o grito excitado do chofer:
—Alguém está caído ali em cima, perto daquelas árvores!
Havia um pequeno jardim nos fundos da casinhola, e, depois dele, um minúsculo pomar. Totty assestou a lanterna para o local indicado e, com seus próprios olhos, viu alguém estirado no chão. Era mulher! Correu lá e agachou-se junto dela. Ainda respirava, mas estava sem fala e quase louca de medo. Erguendo-a o sargento, Mrs. Tilling não fez mais que fitá-lo, com os lábios trêmulos mas sem voz.
Lembrou-se das instruções irônicas de Tanner, quando teve de levá-la ao colo para a viatura. A mulher gemia sem cessar e, a meio caminho da estalagem, passou a proferir sons ininteligíveis. Felizmente não havia viva alma por ali àquela hora da noite; de sorte que, com a ajuda do proprietário e de uma criada, conduziram-na a um quarto, após o que Totty correu ao telefone e ligou para Tanner.
— Está machucada?
— Não que dê pra notar, mas está tão perto de morrer que isso não faz diferença — respondeu, Totty. — Isso deve ter acontecido pouco antes de eu chegar lá. Digo isto porque havia uma candeia no quarto; tinha sido apagada, mas o pavio ainda estava fumegando quando eu cheguei.
Tanner fez uma pausa longa demais, e Totty, pensando que o outro já tinha deixado o aparelho, chamou-o.
—Eu só estava pensando — explicou Bill, com impaciência. — Trabalham depressa mesmo! Mande vir um médico pra ela...
— Já cuidei disso! Você não me conhece, Tanner! — O tom do sargento era recriminatório. —- Minha idéia era voltar ao chalé e ver o que ainda se pode apurar.
— Nada disso; volte já p-ara Marks Priory! Não iria conseguir nada indo lá de novo, nem mesmo um olho preto. Vou ligar para o delegado pedindo para mandar guardarem o chalé.
Tem certeza que ela não está ferida?... A propósito, o pavio fumegante não significa coisíssima nenhuma. Já vi pavios extra-longos fumegarem por mais de quinze minutos depois de apagados; se a candeia for barata, então nem se fala!
Seguiu-se outra comprida pausa.
—Volte pra cá.
Totty ainda permaneceu no "White Hart" tempo suficiente para instruir um dos homens da Scotland Yard ali alojados, o qual tinha sido designado para serviço completamente diferente.
Antes que deixasse o lugar Ferraby encontrou-o e ouviu o caso em primeira mão. Depois assobiou.
—Pobre infeliz! Parece que passamos uma noite de emoções. Dê uma olhada em mim: o Oeste Bravio in excelsis!
Dizendo isto, abriu o sobretudo. Trazia um cinturão de que pendiam, ameaçadoras, duas automáticas, cada qual em seu coldre.
— Idéia de Tanner; sabe como ele é! Dá um par de metralhadoras pra gente e passa uma hora nos dizendo para não usá-las. Enfim, ainda não sei em quem atirar nem por quê.
— Se você tiver alguma chance de chegar a atirar, será uma sorte, rapaz — disse-lhe Totty, agourento.
— Enfim, não será como da outra vez; agora estou prevenido. Mas ainda gostaria que ela estivesse fora disso.
— Mrs. Tilling?
— Mrs. Tilling! Claro que não; você sabe de quem eu estou falando: Miss Crane. Essa atmosfera horrível não se harmoniza com ela. Tentei persuadir Tanner a mandá-la para a cidade.
— E o que foi que ele disse? — perguntou, interessado, Totty.
Ferraby sorriu apesar de aborrecido.
—Que se todo mundo que está em perigo em Marks Priory fosse mandado pra cidade, teríamos de alugar um ônibus especial. Há qualquer coisa naquele quarto que não querem abrir. . . Nisso Tanner está certo. Não passo por aquela porta sem sentir o coração na boca. Havia luz ali hoje de noite. . . Eu percebi do lado de fora. Durou só um minuto, depois se apagou. E posso jurar que ninguém entrou lá pela porta.
— Quem ocupa o quarto pegado?
— O quarto pegado era de Amersham; quarto de hóspedes — explicou Ferraby enquanto voltavam -ao priorado. — Todo revestido de madeira; com certeza cada tábua do apainelado é uma porta secreta.
— E do outro lado? — perguntou Totty.
— Os aposentos de Miss Crane. Andei falando com Kelver, que conhece bem a casa. Por curiosidade ele outro dia mediu corredor e comparou sua largura com o comprimento do quarto; disse que sobrava inexplicavelmente quase um metro, e isto entre o quarto de Miss Crane e o tal cômodo que Lady Lebanon não quer abrir. Ali deve haver alguma passagem.
Nesse ponto, inclinou-se e falou ao motorista,
—Pare aí um instante!... Lá está o quarto. A quarta janela â direita a contar do pórtico. E pode ver que a vidraça não é nada comum; lembra uma grade como de alguma mas-morra.. . Epa!
A janela em questão subitamente se iluminou. A vidraça era opaca, nada se via por ela, exceto os pequeníssimos quadrân-gulos de uma luz difusa.
Ferraby saltou do carro, e Totty imitou-o. Deram uma corrida em direção da referida janela, onde, instantes depois, viram uma sombra: algo grotesco, de contornos indefinidos. Mexia-se vagarosamente e assumia posturas estranhíssimas. . . Depois, a luz se apagou.
Os dois policiais se entreolharam boquiabertos em meio *à obscuridade.
— Lugarzinho danado, esse! — comentou Totty, esbaforido.
— Deixe ver a lanterna!
Ferraby tomou-a da mão do outro e, ligando-a, assestou-a contra a parede. Não havia nenhuma janela imediatamente abaixo do misterioso quarto, e aparentemente nada havia ali exceto a sólida parede de tijolos vermelhos.
Então Totty ouviu uma exclamação:
—Veja só isto! — sussurou Ferraby. Com um lápis ele cutucava uma carreira de tijolos. — Isto aqui não é reboco; é ferro pintado à imitação! Há uma porta bem aqui!
Tirou um canivete do bolso (aquele que uma vez lhe salvara a vida) fez saltar a lâmina e passou a espetar o que parecia um meio tijolo comum. O exame não produziu nenhum resultado digno de nota, até que ele o premiu para comprovar-lhe a estabilidade. Ouviu-se um ruído quando se deslocou como a tampa de uma caixa. Na cavidade que então viram havia uma maçaneta. Ferraby levou a mão até ela e a torceu, nada acontecendo. Fez outra tentativa mais laboriosa, mas, se havia ali alguma porta, como obviamente havia, estava trancada por dentro.
— Interessados em alvenaria, cavalheiros? Ferraby voltou-se e viu somente o vulto que se aproximava deles sem ruído, mas reconheceu-lhe a voz.
—Que foi que descobriram?
Mr. Gilder mostrava-se interessado, espiando por sobre os ombros dos detetives. Quando o facho de luz incidiu sobre a maçaneta, ouviram-no exclamar:
— Ora, vejam só! — Era tão sincero que os outros logo viram que aquela descoberta o surpreendia tanto quanto a eles.
— Nunca vi isso aí antes!
Ferraby ergueu a tampa, que se fechou com um estalído.
— Então é assim! — sussurou Gilder.
— Havia luz naquela janela agorinha mesmo — disse Totty.
— Quem foi que entrou naquele quarto?
Gilder levantou os olhos.
— Brooks, com toda certeza — respondeu prontamente.
— Sua senhoria tem lá uma porção de cartas que não quer que a polícia veja. . . Cartas particulares; coisa sempre de se esperar duma dama... E naturalmente ela quer se livrar delas antes que Mr. Tanner dê sua busca. . . Só pode ser Brooks. . . Aconteceu alguma coisa lá no povoado, cavalheiros?
— Está tudo calmo por lá — respondeu Totty; — cal-
rníssimo! Agora, se quiser maiores detalhes leia os jornais de
amanhã. Aliás, eles também não serão informados de nada.
Quede sua senhoria? Dormindo?
— Não, senhor. A última vez que a vi jogava gamão com sua excelência o lorde na sala grande. . . Ainda não conhecem esse lugar. É praticamente a única parte na casa em que ainda se pode ter sossego.
Ferraby já o conhecia. Islã lhe mostrara o pavimento inferior. Era um comodozinho bastante triste, apesar de mobi-liado à Luís XV.
Os dois detetives o acharam bastante bom quando o viram. Gilder providenciou-lhes whisky e soda, acendeu o fogo, pois a noite esfriava, e retirou-se para ir, segundo explicou, à procura de Brooks.
Tanner, ligado à Yard por telefone, falava ao comissário muito mais do que gostaria de fazer por tal meio. A situação era um tanto urgente, e ele não podia esperar a volta do mensageiro para solicitar a ajuda do quartel-general.
Terminou o trabalho que fazia na saleta, apagou a luz e saiu à procura de Ferraby. Totty, que subira com o fito de experimentar a porta do quarto misterioso, descia agora sem. trazer novidades.
Esperava criar sensação com a história da luz que.avistara na janela, mas ficou desapontado ao ver a calma com que Tanner o ouvia. Esse era o traço mais exasperante da personalidade do inspetor-chefe.
—Já sei — disse ele depois. — Também já vi essa luz duas vezes. Na verdade, por incrível que pareça, Ferraby me contou esse fato antes de contá-lo a você. A tal porta na parede é interessante. Já tinha suspeitado que haveria uma porta ali, é claro, mas ainda não a tinha encontrado. Enfim, essa porta tinha de existir, ou então a minha teoria seria um completo fracasso. Totty, descubra onde está o lorde e peçaJhe que dê um pulo até aqui. Esse jovem só contou metade da história, e tenho um palpite de que a outra metade é ainda mais interessante.
Totty encontrou o rapaz sozinho, lançando dados sobre um tabuleiro de gamão.
— Olá! Pensei que já estivesse deitado. Joga gamão? Aposto que se jogar comigo eu ganho! Topo qualquer parada; a dinheiro ou a leite de pato! É por isso que minha mãe não gosta de jogar comigo. Sou bamba.
— Faz tempo que eu não jogo isso — disse Totty, que, na verdade, nunca tinha jogado. — O chefe quer vê-lo.
„Ÿ Não diga! Adoraria ter com quem conversar. Estive recitando "Casabianca" há meia hora, só para matar as saudades da minha própria voz. Minha mãe está escrevendo cartas.
E travou do braço do sargento.
—Por acaso sabe quem foi seu avô, Mr. Totty? Se nãosabe devia agradecer aos céus por isso. Eu sei muito bem quem foram meu bisavô, os pais dele e toda uma corja de ancestrais, e não gosto nada disso. Minha mãe dá muita importância a esse negócio de "linhagem". Quando o senhor me disse hoje de manhã que era (membro de uma antiga família italiana, espero que estava mentindo. Tenho certeza que sim. Aposto que nem conhece o próprio pai.
Totty protestou indignadíssimo.
— Estou desapontado — tornou Lebanon. — Gostaria de encontrar alguém que admitisse ter sido achado na soleira de uma porta!. . . Quando é que vocês vão cair fora? Acho que vou voltar para a Scotland Yard com vocês e armar minha cama no gabinete de Mr. Tanner. Só assim me sentirei seguro.
— Estará seguro em qualquer parte, meu senhor — disse Totty gracilmente, e acrescentou: — sempre que eu estiver por perto.
— Não creio que o senhor me fosse de muita valia — disse o jovem e franco fidalgo. — Pessoalmente, eu preferia depender de Tanner. Você é quase do meu tamanho e, isso não me inspira confiança. Baixinhos não confiam em baixinhos. É aos grandalhões que eles secretamente admiram.
Nesse ponto já estavam na sala em que Tanner os esperava.
Cumprimentou-o com um aceno e repetiu-lhe a sugestão que fizera a Totty. Bill riu-se de bom humor.
—A Scotland Yard havia de ser um bom lugar para hospedá-lo; ao menos estaria próximo da Câmara dos Pares. Por falar nisso, vossa excelência já tomou assento?
Lebanon abanou a cabeça, escolheu um charuto quase do seu tamanho, na caixa que lhe foi oferecida, e acendeu-o.
— Não, minha mãe não vê com bons olhos a minha entrada para a política. Tenho uma lista-completa de tudo o que ela não gosta; ainda dará um belo livro qualquer dia! Estou muito feliz por saber que vai ficar por esta noite. — Olhou em torno e baixou a voz. — Sua senhoria é que não está lá tão feliz! Passou-me um. pito terrível, e disse que eu sou o responsável por isso; coisa ridícula!
—Onde está Miss Crane? — perguntou Tanner.
Lebanon fez uma pequena careta.
—Deve estar deitada. Ela não é lá muito sociável. Acho que vou me aborrecer bastante depois de casado. Ela é violentamente boazinha e tudo mais, só que não temos nada em comum.
Com isso um membro de sua audiência estava de inteiro acordo.
Lebanon ergueu-se e fez-se ainda mais confidencial.
— Digo-lhes que quem está mesmo doente com a perma
nência de vocês aqui são aqueles dois camaradas.
Gilder entrou pela porta, aparentemente empenhado na vital tarefa de avivar o fogo que acendera não fazia muito.
—Não preciso de você, Gilder.
— Só ia cuidar do fogo, senhor.
— A que horas costuma se recolher? — perguntou-lhe Tanner.
O criado não respondeu.
— Gilder, Mr. Tanner está falando com você! Gilder olhou em torno, afetando surpresa.
—Queira desculpar. Pensei que estivesse falando a sua excelência. Não tenho um horário regular, Mr. Tanner.
— Dorme nesta parte da casa?
Gilder sorriu.
— Quando durmo, é nesta parte da casa — disse.
Brooks vinha deambulando escada abaixo, com movimentos que denotavam grande cansaço.
— Pelo jeito não dorme muito bem.
— Ao contrário, senhor — acudiu Gilder com extravagante polidez; — quando eu durmo é pra valer.
Brooks, espectador interessado da cena, fizera alto, com a imensa mandíbula em ação. Era viciado em goma de mascar.
—Quer alguma coisa? — indagou-lhe Tanner.
Brooks girou a cabeça lentamente, em direção do inspetor--chefe.
—Só vim ver se Gilder não tinha se metido em encrencas —respondeu.
Tanner ergueu-se de onde estava.
—Não estou bem certo se você está sendo desrespeitoso porque eu não seja visita de importância, ou se esta é a sua maneira habitual de se comportar.
Gilder apressou-se a explicar.
—Mr. Brooks veio da América; pátria das pessoas livres, lugar de grandes espaços abertos, onde os homens são homens — disse laboriosamente.
Voltou-se e pôs-se a remexer no fogo. Em dois segundos Tanner estava por trás dele; pegou-o pelo braço e fê-lo girar, voltando-o para si.
—Quando alguém faz pouco caso de mim, eu quase sempre o confino num espaço que não é nem grande nem aberto, muito menos livre!
Constatou o olhar de ressentimento nos olhos do homem, e prosseguiu.
—Suponha que eu pegue uma grande antipatia por vocês dois e decida que sabem muito mais do que estão dispostos a falar, sobre esses crimes! Imagine que os prendesse como cúmplices e os levasse esta noite para o posto policial? Agora vejo que já não estão tão sorridentes.
Quanto a isso, falava a pura verdade, pois os dois homens estavam mais lúgubres do que nunca.
—Isso seria meio embaraçoso, não seria?
Gilder fora pego de surpresa, estava alarmado, a julgar por sua expressão.
—Ora essa., não gostaria de lhe causar esse inconveniente, chefe.
— Não seria inconveniente nenhum. Há quarenta homens neste parque — disse Tanner devagar, — todos policiais exercitados e talentosos; membros da Scotland Yard. Chegaram há uns cinco minutos; a casa está cercada. Esta noite não haverá assassínios em Marks Priory.
Falava lento, Totty a fitá-lo de queixo caído,
— E seria muito simples arranjar quem os escoltasse até a prisão. Alguma dúvida sobre o assunto?
Extraiu do bolso um apito, levando-o aos lábios, Ferraby, que observava a cena, chegou a pensar que Brooks fosse desmaiar de medo.
— Ei chefe, não há razão para ir a extremos! — obtemperou Gilder. — Se eu disse alguma coisa que não devia, peço--lhe perdão.
E dirigiu os olhos para Lebanon, que lhes lançava, alterna-damente, olhares pasmos.
—Deseja alguma coisa, senhor? — perguntou-lhe.
— "Whisky e soda, por obséquio — respondeu-lhe o fidal-guete. — Você pode ir, Brooks.
Brooks tornou a subir as escadas, desta vez com passos menos firmes.
—Puxa! — exclamou o lorde. — É mesmo? Quarenta homens? Que bela organização!
— Para ser franco, são só trinta e seis, se não contarmos os motoristas — escrupulou Tanner.
Depois deu uns passos ao longo do encosto do velho sofá; inclinou-se sobre ele e entrou a fitar o senhor de Marks Priory nos olhos.
—Quando esteve na Scotland Yard hoje de manhã, vossa excelência deu a entender que corria perigo. Que quis dizer exatamente? Sofreu alguma ameaça? Alguém tentou feri-lo?
Lebanon levantou para o inspetor uns olhos cheios de surpresa.
— Não me lembro de ter feito essa sugestão — disse; depois meditou um pouco. — Muita coisa tem acontecido, coi-sinhas estranhas que talvez nem valesse a pena mencionar. .. Mas acho que posso dizer que ninguém ainda ousou tentar contra a minha vida. — Sorria. — Se o fizessem, na certa eu já estaria morto!
Então Tanner enveredou para terreno mais delicado.
— Chegou alguma vez a ver seu pai, excelência?
— Claro — respondeu o outro, surpreso. — Não em anos recentes. Ele era um inválido para quem não havia nenhuma esperança de recuperação. Mas quando eu era menino. . . ele era muito mais corpulento do que eu sou agora. . . E tremendamente forte. Há uma lenda por aqui, segundo a qual ele, quando jovem, teria conseguido erguer uma pesada carreta rural encalhada numa vala.
— Algum retrato dele?
— Não, acho que não — respondeu o outro lentamente.
— Mas, para dizer a verdade, descobri por acaso um velho instantâneo dele, batido quando se achava em sua cadeira de rodas. Não me lembro quem fotografou, mas estava guardado entre as folhas de um livro lá na biblioteca. Mostrei-o a minha mãe, mas ela o rasgou em pedacinhos sem nem mesmo olhar direito.
— Coisa esquisitíssima de se fazer, não concorda? — disse Tanner.
Lebanon sorriu.
—Sem dúvida. . . Enfim, mamãe é lá o seu tanto esquisita. Vá lá que a foto fosse horrível, mas daí a. . . É incompreensível.
Bill deu uma risada.
— Se era horrível, posso compreender que a rasgasse — disse. — Ele tinha o rosto escanhoado, usava barba ou o quê?
— Tinha barba. . . Não como me lembro dele, mas nessa fotografia.
—Consegue lembrar algum outro acontecimento estranho que o afetasse?
Neste ponto o jovem pôs de lado a revista cujas páginas até ali estivera revirando.
—Quer algo verdadeiramente sinistro; algo como uma página rasgada de uma história? Bem, vou contar-lhe. Houve duas ocasiões em que Gilder me trouxe um whisky e soda, que me lembro de ter bebido e pouca coisa mais. A última vez acordei em meu quarto, às escuras. Dei comigo de pijama, e teria me virado e tornado a dormir, não fosse uma terrível dor de cabeça. Toquei a campainha, e quando Gilder atendeu, me veio com a.
história de que eu tinha desmaiado; o que era ridículo: nunca desmaiei em toda a minha vida!
— E o que acha que aconteceu? —" perguntou Tanner, para encurtar assunto.
Lebanon abanou a cabeça ao responder.
—Não sei, mas aconteceu duas vezes depois de eu ter bebido. Naturalmente, lembro o episódio mais doloroso. Ainda aconteceu mais coisas nessa última vez. Quando desci, de manhã cedo, era como se um touro furioso tivesse atropelado tudo aqui. A mobília estava esbagaçada e havia como que os restos de uma festa selvagem dada à noite.
— Já me contaram isso — interveio Totty.
— Amersham estava envolvido, e também os dois criados americanos. Detesto pensar que minha mãe também estivesse,
— Já, mas a gente não precisa se preocupar.
Diante disso, o outro explodiu.
— Uma ova, que não precisa! Todo esse exército de tiras passeando pra cima e pra baixo acabam descobrindo tudo o que se passa aqui! E se isso acontecer, estamos fritos!... A gente pode até apodrecer na prisão por causa desse negócio, fique sabendo! Quede eles?
—Devem estar subindo pro quarto de sua excelência. ..
Estavam falando de alguma coisa sobre rádio. . . Psiu!, aí vem gente.
Era Totty que viera e se detivera a observar a confabu-lação dos criados desde a porta.
— A corda e a caçamba! — disse em tom de sarcasmo.
— Quer alguma coisa? —• perguntou-lhe o prestimoso Gilder.
— Muita coisa, meu rapaz — tornou Totty. — Imagino que vai passar a noite em claro!
Gilder sorria o seu sorriso conciliador.
— Se o senhor passar, eu também passo.
— Vocês não conseguem mesmo compreender que ainda podem arranjar muito barulho?
Brooks parou junto à porta, com uma bandeja nas mãos e os olhos cheios de ansiedade postos sobre o companheiro. Gilder, porém, sorria.
—A gente nasce pra sofrer — disse em tom oracular.
Para Mr. Totty, Gilder era um tipo desconcertante, tão pouco se deixava ele impressionar pela majestade e poder da lei. De resto, era talvez a única pessoa no mundo que jamais o fizera sentir-se pequeno, e ocorre que se ressentia da experiência.
Não estava interessado em rádios, mas por alguma razão detestava ficar só. Por aquela noite os regulamentos que regiam M-arks Priory tinham sido relaxados. As portas entre a ala dos criados e o resto do solar não foram trancadas. Mr. Kelver decerto estaria acordado. Totty estava em missão, quando passou uma porta por onde se ouviu chamado. Era Lady Lebanon.
— Não quer entrar, Sargento? Mr. Tanner já se recolheu?
—- Ainda não, minha senhora — respondeu ele, supinamente lisonjeado pelo convite. — O charuto incomoda?
Ela odiava charutos (até proibira a Willie fumá-los ali), mas agora era a mesma graça personificada; saiu por um instante e logo voltou trazendo-lhe solicitamente um cinzeiro, após o que, designou-lhe o assento mais confortável.
A mulher tinha sobre os joelhos uma pequena caixa de ve-ludo.
— É o meu cofre — esclareceu a sorrir, quando viu os olhos de Totty tombarem sobre ela. — Sempre a levo comigo lá para cima, todas as noites.
— Faz bem, minha senhora. Nunca se sabe se não haverá algum cardápio. . . digo, larápio por perto.
— O senhor é sargento, não, Mr. Totty? —• Temporariamente —respondeu ele. — E Mr. Tanner é. . . ?
—Inspetor-chefe. Praticamente não há diferença entre nós — explicou, majestoso. — É só uma questão de hierarquia.
A mulher inclinou a cabeça.
—Pode me perdoar que lhe pergunte se recebe um bom salário? Suponho que receba. O trabalho dos senhores deve ser muito importante.. .
Ele já se dispunha a explicar o quanto, mas a outra prosseguiu:
— Gostaria tanto de saber o que está havendo — disse ela, — e o que pensa a polícia sobre este caso!. .. Imagino que novas coisas surgem a cada instante. . . pistas, ou que nome tenham, não é assim?
— Um bom número delas — admitiu Totty.
— E quando o senhor faz alguma nova descoberta conta a Mr. Tanner? E então o que diz ele?
Neste particular Totty não podia cingir-se estritamente à verdade. Doí-a-lhe a lembrança de muitas coisas que Tanner lhe dissera nas ocasiões em que fora levar-lhe algum "indício".
— Normalmente — admitiu ele, — diz que já está a par de tudo há uma semana. Há uma porção de pequeninos ciúmes no nosso trabalho.
—Ele deve depositar muita confiança no senhor! — sugeriu a mulher. — Já ouvi dizer que é o braço direito dele.
Totty sorriu com afetação.
—Ele se comportou de maneira muito estranha — Lady Lebanon falava devagar, — quase rude, acho eu, sobre o quarto que eu não queria que vissem. Lembra-se?
Totty se lembrava, e estava a ponto de deixar escapar a descoberta que fizera, mas a mulher não lhe deu aso
—E se o senhor fosse até ele e dissesse: "Já vi o tal quarto e não há nada nele senão velhos quadros?"
Nesse ponto toda a vaidade pessoal do Sargento Totty retirou-se porta afora, e ele voltou a ser o policial frio, prático e obtuso de sempre.
—Isso o satisfaria, não? Com certeza ele dá muita importância ao que o senhor diz, não?
Não houve resposta.
— Suponha que o senhor lhe diga não haver nada naquele quarto — prosseguiu ela maneirosamente. — Isso me pouparia grandes aborrecimentos.
—Indubitavelmente! — concordou Totty, algo epigramático.
A mulher abriu a pequena caixa que trazia ao colo e ouviu--se -um estalar de papéis novos. Com grande determinação ela extraiu quatro notas. De seu lugar o detetive reconheceu serem de cinqüenta libras.
— A gente se sente tão insegura — prosseguiu ela com voz educada. — Quero dizer, quando se está batalhando contra o pessoal talentoso da Scotland Yard. É até natural que eles encarem com suspeita as ações mais inocentes, e seria muito bom contar com um amigo na corte.
Fechou a caixa, ergueu-se e, não inteiramente por acaso, as quatro notas que viera manuseando caíram sobre a cadeira onde a augusta fidalga estivera sentada.
—Boa noite, Sargento Totty.
—Muito boa noite, minha senhora.
Ela já tinha alcançado a porta.
—Desculpe! — ele apanhou as cédulas e correu a devolver-lhas. — A senhora ia esquecendo o dinheiro!
— Não me lembro de dinheiro algum — respondeu ela com firmeza, sem pôr os olhos em cima das notas na mão do sargento.
—Isso talvez ajude a se lembrar — disse ele brandindo as cédulas. — Ainda pode precisar dele.
A mulher as pegou da mão dele, sem aparentar confusão nem embaraço.
—Esperava que o aceitasse — explicou! — É uma grande pena!
O sargento a acompanhou até a saída, com um sorriso de triunfo observou-a enveredar para o corredor e desaparecer de vista.. Só então saiu ele, todo cheio de si, à procura de Tanner, què encontrou na saleta, a sós.
—É mesmo uma grande pena! — entrou a dizer enigmaticamente.
O inspetor-chefe ergueu para ele um rosto intrigado.
— O quê?
— Eu não ter aceito as duzentas libras que sua senhoria acaba de me oferecer.
Bill Tanner fez uma carranca. — Como assim?
— Ela não quer de jeito nenhum que a gente abra aquele quarto.
— Ah! Eu nunca esperei que quisesse! Ofereceu dinheiro?
— Deixou em cima da cadeira, o que vem a dar na mesma.
—Que respondeu você?
Mr. Totty empinou-se.
— O que eu respondi?! — exclamou seríssimo. — Que ela não devia fazer uma coisa dessas; que afinal de contas eu sou um sargento e que com toda certeza este caso ainda iria me valer uma promoção.. . do que já tive praticamente uma promessa, não tive?
— Não — respondeu Tanner. — Queira limitar-se. Aos fatos. Que respondeu ela?
— Que poderia responder? — tornou Totty. — Subiu as escadas chorando que nem criança. Tanner estava impressionado.
— Isso me cheira a mentira, mas deve haver um grão de verdade nessa história. Ela não quer que abramos o tal quarto?
Bem, será aberto amanhã, sem falta!
— E sabe o que vai achar lá? — disse Totty em tom confidencial. — Um mundo de bebida contrabandeada! Percebi isso logo de cara! Por que criados americanos?
Tanner, com genuína admiração, fitou os olhos no pequenino sargento.
— Você anda perto de se tornar o pior detetive que já vi na vida — disse ele. — Não fossem suas qualidades de fiel sabujo, como policial você daria um bom carteiro! Quer saber por que os criados americanos? Vou-lhe dizer: porque eles não têm nem amigos nem família na Inglaterra. Desse modo, Lady Lebanon não corre o risco de eles .discutirem os seus negócios particulares.
— Eu digo que eles estão fazendo disto aqui o quartel--general de uma quadrilha. . .! — recomeçou Totty.
— O cinema é o seu mal, Totty. Pra que querem eles uma quadrilha, se já estão feito mosca no mel? Lebanon paga mais de trezentas mil libras só de imposto de transmissão causa mortis, o que quer dizer que tem dinheiro que não acaba mais! Totty tossiu e mudou de assunto.
— Quede Ferraby? — perguntou depois.
— Não sei.. . Deve estar em alguma parte da casa.
Então o policial no Sargento Totty subitamente tornou a aflorar à superfície.
—E aqueles quarenta homens nos jardins da casa? —perguntou. — Já têm onde se instalar?
O inspetor-chefe aproximou-se dele e segredou-lhe em voz baixa:
—Não há quarenta homens, nem mulheres, nem mesmo crianças nos jardins, que eu saiba. Mantenha essa enorme boca fechada, entendeu?
O sargento inclinou gracilmente a cabeça. Compreendera aquela sutil insinuação.
— Qual é a sua jogada? — indagou depois no mesmo tom do outro.
— Vou lhe dizer qual é a minha jogada, Totty. — A voz de Tanner era pouco mais do que um sussurro. — Quero que todos os assassínios desta noite sejam cometidos do lado de dentro da casa.
Diante disso, o pequenino detetive gelou de pavor.
— E quantos acha que vão ser? — perguntou num frêmito.
— Só digo que talvez você seja a primeira vítima — ameaçou-o Tanner, que se sentia bastante satisfeito consigo mesmo naquele momento. E quando o inspetor-chefe se sentia assim, seu senso de humor assumia as mais curiosas formas.
O quarto do velho lorde era, para Isla Crane, uma câmara de horrores. Não se lembrava de nenhuma ocasião em que estivesse tão fatigada que conciliasse o sono de imediato. Noite após noite ela se erguia na cama, com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e punha-se a ouvir. Havia noites calmas, em que só distinguiu os estalídos do vetusto apainelado e o estranho farfalhar que tanto podia ser produzido pelos ratos como por mãos fantasmagóricas. E havia noites em que o murmúrio do vento acrescentava um novo elemento de terror às suas horas noturnas.
Certa vez, quando houve uma pane na instalação de sua lâmpada elétrica, Isla se deitou e ficou a tremer até o romper do dia. Desde então tratou de ter sempre à cabeceira uma pequena candeia. Aquilo era um antro de fantasmas, lugar de lúgubres memórias, com auras bolorentas nas paredes, que nos dias mais quentes exalava um odor bafiento.
Essa noite aquele cômodo estava cheio de sons como que de pessoas que se movessem; provenientes de algum ponto na escuridão, vozes sussurrantes chegavam aos ouvidos da moça. Chegou até a pensar ter visto uma seção do apainelado deslocar--se, e efetivamente ouviu uma tábua do assoalho estalar junto à soleira da porta. Tudo isto já ouvira antes, e devia estar indiferente.
Tinha a mãe e duas irmãs menores sob seu encargo. Se ao menos alguém a tirasse dali!. . . Mas teria de ser alguém capaz de lhe dar todo o conforto que Lady Lebanon lhe haveria de tirar. Nunca lhe ocorrera que em tal circunstância sua senhoria não lhe cortasse a mesada.
John Ferraby. . .? Ele ocupava a imaginação de Isla. Um detetive? Lady Lebanon achara' aquilo estranho e sugerira que a guerra com certeza explicasse a peculiar ocupação do moço. Qual seria o salário dele? Afinal, tudo acabava em dinheiro. Estimava muita gente, mas apreciava Ferraby ao ponto de entretê-lo no pensamento às vezes horas a fio. O que não era tão ridículo como poderia parecer.. .
Punha-se a imaginar qual seria o estilo da vida que ele levava; se teria alguma renda particular: afinal, tudo vinha a dar em dinheiro! O desejo que ela tinha de ver-se casada com Lebanon era ainda menor que o do próprio Willie. Contudo, gostava dele e, às vezes, tinha-lhe grande pena. Quem sabia se, Willie casado, Lady Lebanon se retirasse e desse uma oportunidade ao rapaz?.. . Sacudiu a cabeça, a esse pensamento. Não seria próprio de Lady Lebanon. Depois, não gostava tanto assim de Willie.
E virava-se de um lado para outro na cama; erguia o lençol até os ombros, para logo repeli-lo novamente. Dentro em pouco achou-se sonolenta e, em breve, entrou a sonhar. Quando, porém, sonhava era sobre as coisas em que não queria pensar durante a vigília; todos os escaninhos de sua mente se escancaravam, e tudo o que gostaria de esquecer surgia à tona. A gravata na gaveta! Que estupidez de Lady Lebanon! A qualquer momento aquele compridão podia entender de fuçar na escrivaninha, e a encontraria! Que era que a teria induzido a deixar ali aquela maldita prova para ser achada pelo policial mais desatento?
Houvesse o que houvesse, era mister queimá-la! E Isla nem percebeu que já estava fora da cama. Tampouco deu pelo fato de que tinha girado a chave na fechadura da porta, abrindo-a. Só tinha consciência daquilo que sonhava. Uma única idéia a obcecava. A gravata devia ser queimada; aquele pequeno trapo vermelho com a etiqueta de metal!
Bill Tanner ouviu o ruído da fechadura quando dava as últimas instruções a Ferraby. . Foi rapidamente até a base da escada e olhou para cima, erguendo a mão para os dois homens, em sinal de advertência.
—Silêncio! — disse.
Todos ficaram imóveis e silenciosos. O vulto branco descia lentamente os degraus. Isla olhava fixamente diante de si; tinha as mãos estendidas, como a tatear caminho ao longo de uma parede invisível.
—Precisa ser queimada! — murmurava.
Totty abriu a boca para falar, mas um olhar de Bill silenciou-o.
Islã já descera o último degrau e agora andava de modo pouco seguro em direção da escrivaninha.
—Deve ser queimada — repetia, no tom monótono, característico dos sonâmbulos. — Você tem de queimar essa gravata!
E procurava abrir a gaveta. Estava trancada, é claro; mas na imaginação ela a abrira.
—A gravata tem de ser queimada.. . Você o matou com ela... Estava em sua mão quando você voltou para casa... Você o matou com ela. Precisa ser queimada.
Caminhava de novo rumo à escada. Ferraby deu um passo em direção da moça, mas Bill agarrou-o e o fez voltar. Islã subiu pelos degraus morosamente, indo Tanner atrás dela. Depois viu-a entrar em seu quarto e cerrar a porta suavemente após si, fazendo estalar a fechadura.
"Você o matou com ela."
A quem a moça se dirigira em sonhos? Mr. Tanner tinha um bom palpite.
Ouviu outra porta abrir-se e dar passagem a Lady Lebanon, ainda completamente vestida.
— Era Isla? — indagou. — Miss Crane?
Tanner fez que sim.
— Estava andando?... Dormindo?... Que transtorno! Onde foi que a viram? — Ela veio até o hall — respondeu o inspetor.
Lady Lebanon deu um longo suspiro.
—Ela é tão distraite! Creio que eu devia mandá-la para o campo, para uma estada de um mês. Quando fica assim. . .
—A senhora já a viu nessas ocasiões?
Lady Lebanon fez que sim.
— Duas vezes — disse. — Ela diz coisas terríveis e absurdas nessas horas. Ouviram-na falar?
— Nada que se pudesse compreender — mentiu Bill, e creu ver na mulher sinais de grande alívio. Sua senhoria bem que tinha motivos para sentir-se assim.
— Boa noite, Mr. Tanner. Falarei com Isla depois. Não é aconselhável despertá-la imediatamente; mas a não ser que seja
despertada, pode tornar a sonambular hoje mesmo..
Bill Tanner desceu ao hall; estava muito preocupado. Seus dois homens estavam impressionados. Totty, anormalmente silencioso, não.ofereceu nenhuma de suas teorias pré-fabricadas.
—Vá à estalagem e veja se aquela mulher.. . Mrs. Tilling está calma bastante para sofrer um interrogatório.
E assim que Totty obedeceu, virou-se para o outro.
—Que pensa disso, Ferraby? É óbvio que a moça sabe quem foi que cometeu o assassínio.
Ferraby levantou para o superior um rosto sombrio.
—É, infelizmente parece que sabe mesmo; por outro lado, ela podia só estar sonhando. Afinal, ela sabia que a gravata tinha sido queimada. . . e pode ter simplesmente imaginado que estivera guardada na gaveta; o que não prova que de fato estivesse lá...-.! A gente não pode alegar contra uma pessoa aquilo que ela diz em sonhos, ora essa!
— Ei! açalme-se! Não estou alegando nada contra a moça — vociferou Tanner, com azedume.
E a seguir deu voz à pergunta que Islã se fizera:
—Você tem algum dinheiro, rapaz? Não, não aí no bolso!. . . Alguma renda particular?
O jovem corou como a sentir-se culpado.
— Trezentas por ano — respondeu.
— Esplêndido! — disse Tanner. — Já são trezentas a mais que eu! Você está caído por ela, não está?
— Por quem?. . . Miss Crane? Ora essa! Que absurdo!
Eu não poderia. . .! .
— Não fique nervoso — tornou Bill afavelmente. — Sei que você não ousaria erguer os olhos para a filha de um velho escudeiro. Já li sobre tais coisas em livros melosos e também cansei de vê-las em peças. Ocorre-me, entretanto, que essa moça podia ser mais feliz num apartamento de South Kensington do que em Marks Priory. Terá que me desculpar se eu encorajar esse seu pequeno romance... É que me sinto romântico esta noite.
— Ela nunca pensaria em mim dessa forma. . . — começou Ferraby.
—Você diz isso porque é ainda muito jovem e comete o erro de classificar as mulheres em camadas sociais, pensando que cada camada tenha o seu código particular. Mulheres sempre são mulheres; nunca se esqueça disso, Ferraby. Quando Deus criou Eva, praticamente deu a obra por acabada; desde então não houve grandes mudanças, exceto, talvez, um aprimoramentozinho genérico. Mas você descobrirá, quando aprender a pensar direito, que a única diferença entre uma jovem com vinte mil
de renda anual e qualquer estenógrafa da Yard é que a primeira investe mais nas roupas que usa. Se me desculpa a indelicadeza, eu diria que se visse a ambas em trajes menores não notaria diferença nenhuma, pois por qualquer razão que eu desconheço, todas sempre usam o melhor que o dinheiro possa comprar.
Ferraby fitava, escandalizado, o superior.
— Não sabia que o senhor era perito no assunto.
—Sou perito num bocado de coisas — replicou Bill.
Apanhou um charuto da caixa que Gilder deixara ali e, após beliscá-lo, farejou-o.
— Humm! Se isto aqui não foi envenenado por aquele mau criado, deve ser dos bons — disse.
—Que havia de errado naquele whisky que ele preparou para o lorde?
— Estava dopado — explicou Bill tranqüilamente. — Acho que até conheço a droga.
— Ao que parece eles costumam encharcar o lorde com bebidas amargas toda vez que o querem fora do caminho. E, segundo Lebanon, parece que eles tinham algo que fazer esta noite. Ele não deu nome aos bois, mas a gente bem pode adivinhar quem sejam. Oxalá ele tivesse ingerido aquela droga hoje.
Ferraby arregalou os olhos.
— Mas por quê?! — perguntou de novo, e notou que Tanner ria.
—Porque se ele ficasse fora do caminho me pouparia uma porção de embaraços na noite de hoje. De manhã o comissário vai me mandar três pessoas capazes de desvendar este mistério de maneira mais efetiva do que eu.... Eu mesmo pedi que os mandasse; chegarão aqui pelas dez.
— Gente da Yard?
— Não vou satisfazer essa sua curiosidade. . . Pense, e veja se descobre quem são: isto ajudará a mantê-lo acordado esta noite.
Totty voltava, nesse momento, com a informação de que a mulher dormia.
—Isso é satisfatório — disse Tanner. — Mais alguma coisa?
— Sim; pegaram Tilling em Stirling. Abandonou o trem em Edimburgo, mas a polícia deitou a mão nele; está detido.
— "Detido" é melhor palavra do que "preso", não há dúvida. Onde estão aqueles terríveis estripadores de libre?
— Na copa — informou Totty. — Ouvi a voz deles lá.
Os americanos?
— Qual será o assunto deles? — perguntava-se Tanner, e sorriu. — Mal sabem os infelizes que esta é a bem dizer a última noite que passam em Marks Priory!
— Vai prender os dois?
— Ainda não sei; depende — respondeu o inspetor-chefe pondo-se logo a procurar um baralho, pois tinha um fraco por paciência.
Gilder e seu companheiro tinham muito sobre o que falar. Todavia, era quase só Brooks quem falava. O volumoso americano escarranchara-se na cadeira, com um whisky puro ao alcance da mão e um charuto meio consumido espetado num canto da boca.
—Ah, cale o bico — grunhiu por fim. — Você me deixa doente! Acha que eu também não estou preocupado? Aquela menina tornou a andar dormindo esta noite; e andou falando um bocado de coisas que não vão nos ajudar em nada.
Fitava a porta pensativamente.
— Brooks, vou entrar no quarto dela esta noite e levá-la daqui!
Brooks encarou-o horrorizado.
— Com os detetives pela casa?
— Com toda a Scotland Yard na casa — confirmou Gilder, sombriamente. — Nãô quero correr mais riscos. . . Não essa espécie de risco, ao menos.
— Brooks sacudiu a cabeça num gesto de reverente admiração Já disse isso à velha?
— Ela que vá pro meio do inferno! —; trovejou Gilder.
— Esta noite ela não significa nada pra mim.
Ergueu-se, abriu a gaveta de um pequeno móvel, extraiu um estojo chato revestido de couro, desatou as tiras que o envolviam e ergueu-lhe a tampa. Dentro havia um jogo de ferramentas: após cuidadoso escrutínio, ele colheu um comprido alicate de bico fino. Experimentou-o num pedaço de fio, depois foi até a porta, tirou-lhe a chave e tornou a enfiá-la na fechadura, pelo lado de fora. Inserindo, por dentro, a ponta do alicate, virou-o e trancou a porta; outro giro, e destrancou-a.
Mr. Gilder era cuidadoso e bastante previdente. Não havia fechadura em toda a casa que ele não lubrificasse uma vez por semana, pois, como dissera, não queria correr riscos desnecessários.
Tornando a passar a chave para o lado de dentro, enfiou o alicate no bolso.
— Onde vai pôr a garota? — perguntou Brooks.
— No meu quarto —. respondeu laconicamente o outro.
— Mas, e se Tanner...
— Ah, cale a boca, ouviu! Você está vadeando o rio antes de começar a chover! Era melhor você voltar pra casa, Brooks!
— Será um sorte se nós dois ainda pudermos voltar pra casa — disse o outro sombriamente.
— Escute aqui! — Gilder apoiava a imensa mão no joelho do companheiro. — Você teve um trabalhinho bastante fácil e foi bem pago por ele. Quando você disse àquele tira que não tinha economizado, estava mentindo. Não digo que já tenha que chegue para o resto da vida, mas você bem que salvou o seu!
— Pois eu daria mil dólares pra estar de novo na Filadélfia — estridulou Brooks.
— Você pode arranjar uma passagem marítima por cento e cinqüenta — respondeu-lhe Gilder, que era homem assaz prático.
Consultou o relógio.
—O tempo está correndo. Vou ver se eles querem alguma coisa. Pode ser que vão pra cama. . . Até mesmo o pessoal da Scotland Yard precisa dormir de quando em vez.
Espiou o interior do cômodo em que estavam os policiais desde um posto de observação de qué já se valera antes: uma conveniente fenda no apainelado, cuja existência não era inteiramente casual. Tanner jogava paciência em cima de uma mesa, Totty manipulava um baralho noutra. O terceiro detetive não estava.
Gilder então arrepiou caminho pelo corredor, tornando a subir as escadas. Ao fazer a curva viu alguém dirigindo-se para o quarto de Isla. Era Lady Lebanon. Ele se afastou, ocul-tando-se.
Passou-se muito tempo até que a voz sonolenta de Islã perguntasse quem era, e tempo aparentemente interminável até que abrisse a porta. A mulher entrou, fechando a porta atrás de si. Isla estava sentada na cama, a cabeça descaída, só parcialmente desperta.
— Aconteceu alguma coisa? — murmurou.
Lady Lebanon sacudiu-a levemente pelo ombro.
— Acorde, Isla!
E notou a pequena candeia à cabeceira.
-— Você sempre dorme com isso do lado? — perguntou.
— Não é nada bom.
—Ultimamente, durmo.
Depois observou uma caixa prateada sobre a mesinha de cabeceira e abriu-a fitando o conteúdo com um olhar de reprovação.
— Cigarros! Então você fuma?! — E quando a moça o confessou: — Não me parece que assente bem em mulheres — sentenciou. — Está confortável aqui? — E olhou em torno.
— Só entrei por essa porta duas vezes nos últimos cinco anos.
Isla estremeceu.
—Detesto este quarto — declarou com veemência.
Os olhos frios da mulher estavam sobre ela.
—Nunca disse isto antes. Um quarto é tão bom quanto qualquer outro, e este aqui já chegou a ser o melhor da casa. Havia portas secretas nele, mas acho que meu marido as fez tirar. . . O homem que idealizou este cômodo viveu há cem anos atrás — prosseguia ela.
Sua mente enveredava instintivamente para a Linhagem.
— Era muito excêntrico. Jamais recebia ninguém. Passavam-lhe a refeição através do apainelado. Havia uma passagem aqui, bem no meio da parede. . .
Seguia uma seqüência de pensamentos fácil de acompanhar: a linha que reconduzia às sumidades da casa.
—Courcy Lebanon, era esse o nome dele. Casou-se com uma Hamshaws. Cuja mãe, por sua vez, era parenta de Monmouth. — E lançou um suspiro. — Esse ramo se extinguiu — sussurrou, pesarosa.
Depois, não sem esforço, arrancou-se do passado.
— Não devia dormir com essa candeia aí! A moça tornava acabecear de sono.
—Isla!. . . Lamento, mas você precisa acordar. — E sacudiu-a coni mais vigor. — Você tem de acordar, Isla.
A cabeça da moça inclinava-se sobre o ombro. — Estou cansada. Estou morta -de sono. Apesar disso ouviu o ruído na fechadura.
—Por que fechou a porta? — perguntou Isla.
— O priorado está cheio de gente estranha, e ainda há outros lá fora — explicou Lady Lebanon . Depois sentou-se na beirada da cama. — Você andou enquanto dormia, outra vez. —Era quase uma recriminação.
A moça fitou-a espantada.
—Andei? Isso nunca me aconteceu, antes.. . — começou; depois interrompeu-se.
— Antes de quê?
—Daquela noite medonha. — Tinha a voz trêmula. — Quando houve aquele quebra-quebra, e o Dr. Amersham. . . Eu cheguei a pensar que ele tinha sido assassinado aquele dia — disse, cobrindo o rosto com as mãos.
— Se não descesse, não teria visto nada — disse-lhe a voz rouca de Lady Lebanon, que de súbito se inclinou sobre a outra. Em sua voz transparecia uma intensidade emotiva que Islã nunca antes notara.
— Isla, algo pode acontecer esta noite. Talvez eu. . . — Mas não completou a sentença. — Espero que se possa evitar, mas tenho de estar prevenida. Quero que se case com Willie. . . Está ouvindo? Quero que você se case com Willie.
Havia desespero em sua voz. A mão com que agarrara o braço da jovem apertava-o a ponto de causar dor.
—Quero que se casem hoje. . . de manhã!
Isla Crane volteou a cabeça para a mulher, aturdida.
—O quê! Isso é impossível! Não posso me casar assim, de uma hora para outra! ! Eu. . . eu nem cheguei a pensar nisso a sério!
— Pode se casar hoje mesmo — replicou-lhe a mulher, com obstinação. — Arranjei a licença há uma semana.
— Willie vai detestar isso. Já contou a ele?
— Isso não vem ao caso — respondeu a outra, impaciente.
— Ele fará o que eu disser. Willie é o último dos Lebanons.. .entende isto? O último elo da cadeia. Um elo frágil. Houve outro igualmente frágil: Geoffrey Lebanon, mais frágil ainda, na verdade. Casou-se com uma prima chamada Jane Secamore. O retrato dela está no grande hall. Ela o deixou no altar.
Isla ouvia atenta, imaginando-se o que viria a seguir; quando Lady Lebanon tornou a falar, ela emudeceu horrorizada.
— Deixou-o no altar. . . mas teve muitos filhos.
— Que coisa medonha! — exclamou a jovem.
— Não acho. — Lady Lebanon aprumou-se. Isla teve a
impressão de que suas palavras tinham um objetivo definido.
— Não acho. Jane foi uma das maiores mulheres dentre os Lebanons. Compreende que você é uma Lebanon, Islã?. .. Que seu bisavô era irmão de um oitavo visconde? Aconteça o que acontecer, seus filhos serão da família, quando você se casar. Terão o nome de Lebanon!
Então Isla a ouviu suspirar. Parecia mais descontraída agora, suas atitudes eram mais espontâneas e a voz já não parecia tensa.
—Se depois você achar impossível a vida em comum com Willie, eu compreenderei — declarou.
Por fim ergueu-se e declarou:
—O carro estará pronto às onze..
Com esforço, Islã se levantou.
—Não posso fazer uma coisa dessas — disse ela. — Não posso, de jeito nenhum! Não amo Willie. Eu. . . amo outra pessoa.
Lady Lebanon desfechou-lhe um rápido olhar.
—Ferraby? — Longa pausa. — Bem, e daí? Já não disse que compreenderei. Você não entende o que estará fazendo? Uma coisa maravilhosa; você estará fundando uma nova raça. A família cobrará novas forças! Nessa família as mulheres sempre se distinguiram mais que os homens.
Algo roçou na porta. Lady Lebanon ouviu-o e voltou-se depressa.
—Que foi? — sussurrou a moça, cheia de pavor.
— É Gilder, com certeza. E essa é outra razão pela qual você deve se casar quanto antes. Está ficando difícil lidar com esses homens. Talvez eu já não possa controlá-los depois desta noite.
Voltou-se, veloz, para a moça, curvou-se sobre ela e sussurrou:
—Gilder não deve saber que você está para se casar, compreendeu? Haja o que houver, ele não deve saber de nada.
Bateram à porta. A mulher foi logo atender. Gilder estava na soleira; Isla ouviu-lhe a voz trovejante. Então a porta se fechou sobre ambos.
A moça recaía no estado de inconsciência; ergueu-se, notando que Lady Lebanon deixara a porta entreaberta. Arrastou-se até ela e empurrou-a; depois, voltando-se, deixou-se cair no leito, puxando as cobertas sobre si.
Estava num estado intermediário entre o sono e a vigília. Sua mente trabalhava. Problemas insoláveis emergiam encadeados. Examinava-os e, logo, abandonava-os com desespero. Mas sua respiração era regular,
Fazia um quarto de hora que estava ali estendida, quando alguém experimentou a maçaneta da porta. Esta cedeu e Gilder entrou quietamente no quarto.
Afinal, não estava trancada.
O homem aterrorizado que permanecera de fora tremia da cabeça aos pés.
—Quede sua senhoria? — murmurou ele.
— Não interessa! Passe esse cobertor pra cá. Dizendo isto, foi até o leito da moça na ponta dos pés e, tomando-a pelos ombros, sacudiu-a.
—Vamos, Dona! Quero que venha comigo!
Mas ela nem se movia; não se lhe notava sequer o mais leve mexer de pálpebra.
— Está completamente apagada! — disse o homem. — Veja se o caminho está livre.
— Por que não deixá-la aí mesmo? — instou Brooks.
— Não vou correr mais riscos — replicou o magro americano. — Faça o que eu disse.
Quando o homem voltou, um dedo de advertência lhe impôs silêncio. Islã estava sentada na beirada da cama, os olhos esbugalhados, e falava baixinho como de si para si.
—Está apagada! — explicou Gilder num sussurro. — O cobertor!
Apanhou o objeto que Brooks lhe passou, com o qual envolveu brandamente os ombros da moça.
—Não posso — ainda dizia Isla. — Preciso de tempo. Não quero me casar.
Gilder abriu a -boca de surpresa encarando Brooks.
— Raios! Você ouviu isso?!
— Não posso me casar hoje! — prosseguia ela a murmurar.
— Não quero! Não posso fazer isso!
Tinha agora os pés no chão. Gilder a guiava em direção da porta, mas ela mesma é que teria de abri-la; o que fez, tão logo deu com a maçaneta, sem precisar de ajuda. O americano sabia o bastante sobre sonambulismo para não se opor a ela. Só podia voltá-la para a direção que quisesse, mais nada; isso, porém, era suficiente.
Depois do segundo lance de escada a passagem se estreitava. A pequena distância dali ficavam os dois aposentos que ele e Brooks ocupavam. Abriu a porta do seu. A cama estava feita. Puxando as cobertas, fez a moça se deitar. Ela obedeceu, enrodilhando-se, e deu um suspiro; Gilder pôs sobre ela um edredom.
—Vai dormir. Seja como for, vou trancar essa porta. Volte ao quarto dela e traga seu chambre e chinelos. E ande logo!
Brooks fez um movimento, mas deteve-se. Lançou uma exclamação, dando uma palmada na coxa.
— Xi, rapaz, não é que eu perdi! Você não achou. . .?
— O quê? — perguntou Gilder.
— Minha arma!
Gilder desferiu-lhe um olhar inamistoso.
—Então você já tinha arranjado uma arma, não? Que coisa mais imbecil! Onde foi que você a deixou?
—Estava no meu bolso só faz uma hora!
Gilder pensou no caso.
—Bolas! Foi burrice você andar com ela, seja como for.
Vá dar uma olhada lá no seu quarto; veja se não está lá. E, depois, pra que você quer uma arma, afinal?!
Brooks foi até seu quarto e, ao fim de uma busca sem êxito, voltou.
—Tanto faz — disse o outro com impaciência. — De manhã você encontra. Agora vá buscar o chambre e os chinelos dela.
A porta do quarto do velho lorde estava aberta; entretanto, Brooks podia quase jurar que a tinha fechado ao sair. De uma coisa ele estava certo: deixara as luzes acesas. O quarto estava agora às escuras. Só podia ser Lady Lebanon. Brooks entrou e teve de fechar a porta, pois o interruptor estava na parede atrás dela. Tateava à sua procura quando alguma coisa lhe envolveu o pescoço, algo macio e flexível. Num segundo, ergueu as mãos procurando interpô-las entre si e o objeto que o estrangulava. O laço apertou-se ainda mais, prendendo-lhe as mãos junto ao pescoço. Num repelão violento conseguiu libertá-las e tentava alcançar o agressor levando-as às costas, porém não.conseguiu tocar nada. O experiente estrangulador estava preparado para essa eventualidade. Então o mundo se eclipsou aos olhos de Brooks, e ele despencou ruidosamente sobre o chão.
No pavimento de baixo, Mr. Tanner, que já terminara seu jogo, detinha-se a observar os desavergonhados esforços que o Sargento Totty fazia no sentido de favorecer os acidentes do acaso. Não pôde evitar um leve rumor de protesto ao vê-lo pegar deliberadamente uma carta do topo do monte e transferi--la para a base.
— Um camarada que trapaceia no jogo de paciência é capaz de cometer toda espécie de crimes, menos o de roubar bancos para alimentar os pobres — declarou.
— Um "sujeito que não promove a própria sorte é um palerma — replicou Totty.
Tornou a embaralhar as cartas, depois afastou-as de si, bo-cejou, mirou o relógio e reclinou a cadeira.
-— Ferraby estava dizendo que não gosta daqui. Disse que sente arrepios.
Totty sorriu em resposta.
— Aquele gordo arranjou uma arma — disse depois.
— Quem? Brooks? — Tanner estava interessado.
— Ele mesmo. Vi o volume de um revólver no bolso dele quando tirou o sobretudo, faz uma meia hora. Ele ainda vai arrumar encrenca.
—Encrenca pra ele mais do que pra nós — disse Tanner enigmaticamente. — Na verdade, acho que vai ser bem ruim pra ele. . . O que foi isso? — Ouvira um baque surdo. — Vá dar uma olhada.
Totty ergueu-se morosamente.
—Lá em cima? — perguntou.
— É. Está com medo?
— Estou — admitiu descaradamente Totty. — Não esperava que eu dissesse isso, hem? Porém, só para agradá-lo. . .
Subiu a escada com certa rapidez e Tanner, espreitando de baixo, não ouviu nenhum som até que gritaram.
—Que foi?
Era Gilder quem falava.
— Venha cá! — disse Totty, com instância. — Depressa!
Tanner subiu correndo as escadas e entrou no quarto do velho lorde. Brooks jazia de bruços, e o detetive pelejava por afrouxar o nó da gravata que o estrangulava. Não era fácil, e restava bem pouco tempo.
— Acho que este também já foi — murmurou Totty. —. Deixe ver, senhor.
Gilder pôs-se de joelhos, rasgou o colarinho e a parte da camisa superior de Brooks, e pôs-se a massagear-lhe o pescoço. O rosto de Gilder estava úmido; o americano parecia tenso, ansioso. Era a primeira vez que Tanner lhe via algum sinal de emoção verdadeira.
—Não está morto — disse ele. — Pode me trazer um pouco de conhaque?
Totty correu escada abaixo, encontrou a garrafa e levou-a para cima. Sob o efeito do licor Brooks manifestou sinais de vida. Suas pálpebras estremeceram, as mãos se crisparam, con-vulsas.
— Ele vai ficar bom com certeza — murmurou Gilder. — Ajude-me a levá-lo até o quarto. Puxa! Faltou pouco, hem? Brooks, velho de guerra! O revólver dele não ia adiantar nada.. .
Não obstante essa efusiva demonstração de interesse pela vida do amigo, o compridão agora conservava-se calmo; a ocorrência não o horrorizara nem agitara; as possíveis conseqüências daquilo é que pareciam inquietá-lo de verdade.
Transportaram o homem semi-inconsciente para seu pequeno quarto e o depuseram na cama. Só então Tanner se lembrou de que o quarto do velho lorde era ocupado por Islã Crane, que lá não estava!
— Quede a. moça? — perguntou de súbito.
Gilder ergueu os olhos, baixando-os depois.
—Não sei — disse. — Deve estar em alguma parte da casa.
Foi a sua última e desesperada tentativa de manter certa aparência de ordem numa situação caótica.
—Vá procurá-la! — A voz de Bill estava rouca. — Quede Ferraby?
Totty encontrou-o na escada e explicou-lhe a situação, com o que abalou-o extremamente.
—Não faça perguntas e não se despedace — vociferou-lhe Tanner. -— O que é isto aqui, afinal; alguma escola para moças? Dê um giro pela casa, acorde todo mundo pra ajudar a procurar Miss Crane: essa é sua tarefa. Totty, você não precisa ficar com esse homem; ele já está bom. Onde Gilder se meteu?
O criado americano tinha desaparecido; sem ser notado, deslizara porta afora após a chegada de Ferraby.
—Quer que eu vá atrás dele?
Totty já tinha dado um passo em direção d-a porta, quando, de súbito, todas as luzes se apagaram. Ambos saíram ao corredor, também imerso em-trevas.
Aquilo tinha uma explicação simples.
— Alguém desligou a chave principal. Você a tinha localizado, não é, Totty?
— Meia hora depois de chegarmos na casa — respondeu prontamente o sargento. — Posso encontrá-la num instante.
— Você tem uma lanterna aí no bolso? Ótimo! E conserve o cassetete na mão; pode precisar dele! Eu vou voltar para o hall.
Deixaram o homem na cama a gemer. Totty progredia cautelosamente pelo corredor, de onde tateou caminho para a ala dos criados. Não estava usando a lanterna, pois se ela lhe iluminasse o caminho também denunciaria sua presença, e o tornaria um alvo fácil demais. para seu inimigo invisível.
A chave elétrica ficava num pequeno porão, próximo da cozinha, e ele notou que a porta que dava para lá estava aberta. Iluminando a escada de pedra com a lanterna, segurou com mais firmeza o cassetete de borracha, e pôs-se a descer degrau a degrau. Apurou o ouvido, supondo ter ouvido alguém resfolegar e, girando sobre si, perscrutou os arredores com a luz; não conseguiu ver nada, mas havia ali um ou dois recessos em que alguém podia perfeitamente estar escondido.
—Saia daí! — ordenou.
Mas não houve resposta.
Sua primeira tarefa era acender as luzes. De onde estava viu que a chave mestra estava desligada. A caixa de luz ficava a cerca de seis pés do último degrau da escada, e ele prosseguiu em sua direção, com extremo cuidado, tateando a parede pintada à tempera. Já esticava o braço no rumo da'alça de ebonite, quando algo o golpeou violentamente na nuca. Soltou a lanterna, que caiu com estrondo, e voltou-se para atracar-se com o agressor. Momentaneamente atordoado ele distribuiu golpes ao acaso, que falharam. Então algo lhe esfuziou pelo ouvido indo rebentar contra a parede ao fundo. O que quer que fosse, ouviu-o quebrar-se e cair em fragmentos no piso ladrilhado. Devia ser carvão, supunha ele. Podia machucar, mas não era perigoso.
Golpeou de novo o ar, sem atingir nada. Um par de pés então moveu-se velozmente escada acima, e a porta se fechou com estrondo. Totty ouviu o ferrolho correr e aceitou a situação filosoficamente. Antes de mais nada, empurrou a alça da chave e instantaneamente as luzes se acenderam, pois estavam ligadas quando o circuito fora interrompido. No extremo oposto viu uma pilha de carvão, evidentemente para usar-se na cozinha. Dali saíra o projétil que o acometera no escuro. Totty recolheu a lanterna do chão e experimentou-a; depois, tirando um pedaço de barbante do bolso, amarrou bem.firme a alça da chave elétrica. Só então pôs-se a explorar o recinto, em busca de um meio de abrir a porta.
Não precisou empregar força bruta, afinal. A voz de Fer-'raby chegou até ele desde a cozinha e, um minuto depois, o ferrolho correu e o Sargento Totty emergiu, meio estonteado, de sua aventura.
Doía-lhe a cabeça, mas não apresentava nenhum ferimento.
— Um galo do tamanho de um ovò de pomba — concluiu Ferraby após rápido exame. — Você devia cair de joelhos e dar graças aos céus por ele só lhe ter batido na cabeça!
— Já encontraram a moça? — perguntou o Sargento Totty, pois via que Ferraby estava menos agitado.
— Não. Ela está em qualquer parte da casa, e Tanner não parece lá muito preocupado. Mas isso nã,o significa nada. . .
Tudo em ordem com você?
E saiu antes que Totty pudesse responder. O sargento tomou um comprido gole frio e dirigiu-se para o hall a fim de submeter-se ao interrogatório de Tanner.
— Não, não o vi; senti apenas — respondia. — Aquele camarada é mais rápido que um rato!
—Então ele atirou carvão em você? — inquiria Tanner.
— Foi sorte. . . Ele esqueceu que tinha um revólver no bolso!
Só me lembrei disso depois que deixei você. . . Para dizer a verdade, não esperava vê-lo vivo de novo.
Totty engoliu em seco.
— Obrigado pela solidariedade — disse. — De onde surgiu essa tal arma?
— O assassino a tirou do bolso de Brooks ainda esta noite. Foi a primeira coisa que Brooks mencionou ao voltar a si. Ele desembuchou tudo, apesar de não ser necessário no que me dizia respeito.
-— Já sabe quem é o assassino? Tanner fez que sim.
—Perfeitamente. Quando o Lorde Lebanon me falou sobre o seu whisky narcotizado, tudo se fez claro para mim.
Por acaso eu conhecia a droga utilizada; mas acho que já disse isso.
E levando a mão ao ombro de Totty prosseguiu:
— Se atravessarmos esta noite sem outros incidentes prometo que amanhã mesmo vou me ajoelhar diante do comissário e suplicar uma promoção para você. Será detestável vê-lo como inspetor, mas acho que não se pode mais fugir a isso.
Totty arreganhou modestamente um sorriso. — Ora, não me consta que eu tenha feito alguma coisa, para merecer. . . — começou ele.
—Ah, mas não fez! — interrompeu-o o superior com pungente franqueza. — Andei tentando me lembrar de alguma coisa, por menor que fosse, que você tivesse feito e que realmente me tivesse sido útil alguma vez, e no duro que não fui capaz de achar absolutamente nada; mas, enfim, é exatamente essa a razão por que a gente acaba sendo promovido, por não fazer nada.
Dizía-o andando sem descanso de um lado para outro, Mr. Totty a considerá-lo com um grande enternecimento estampado nos olhos.
—Sua senhoria esta em seus aposentos e recusa-se a nos dar o ar de sua graça. Deve estar puxando uma palha; sabia que ela o faria cedo ou tarde. Olá, Ferraby!
O descabekdo jovem já quase atingira os limites de suas forças.
—Não a encontrei em parte nenhuma. . . — disse.
— Não olhe agora, mas ela está no quarto de Gilder. . . dormindo. Dei uma chegada lá agora mesmo. Eis a chave do quarto, se quiser guardar.
—No quarto de Gilder? — exclamou o rapaz. — Tem a chave aí?
Tánner confirmou, exibindo-a na palma da mão.
—Ela não corre nenhum perigo imediato, e espero que nenhum remoto também.
—Puxa, ainda bem! — A voz de Ferraby tremia. —-Esses foram os piores minutos da minha vida. — Então lembrou-se: — O lorde quis saber o que estava se passando, mas eu não contei nada — explicou. — Estava junto da porta do quarto da mãe falando com ela de fora. Diz que ela não queria vê-lo.
—Quer dizer que ela não abriu a porta pra ele? Bem, isso não me surpreende. Lady Lebanon tem uma excelente razão para querer ficar só neste momento. Onde está o lorde?
Mal fizera a pergunta e o esguedelhado fidalguete desceu correndo as escadas. Aparentemente fora arrancado do sono, pois estava de pijama, chambre e pés descalços.
—Vai pegar um resfriado — sorriu-lhe Tanner. — Já veio me criar o único caso da noite?
— Ora essa, não consigo ver a minha própria mãe!... — começou.
— Ela anda meio esquisita esta noite — concordou Bill, tentando serenar-lhe o ânimo. — Mas eu não me preocuparia por isso. Totty, suba e pergunte a sua senhoria se não vai descer. Diga que eu gostaria que descesse. E, Ferraby, acalme os criados e mande-os para a cama.
Os dois ficaram a sós. Era o que Bill Tanner queria.
— Quede Islã? Passei pelo quarto dela e não estava lá!
Caramba, Mr. Tanner, este deve ser o clímax!
— É, acho que sim — anuiu o outro.
Tinha um palpite de que o verdadeiro clímax estava por vir quando Lady Lebanon aparecesse. Apareceria, afinal? Ou teria ela encontrado algum .meio de evitar a tragédia de seu fracasso e a triste exposição dos segredos que tanto lhe custara ocultar?
—Que é que está havendo? — Agora a voz de Lebanon revelava-se extraordinariamente firme. — Faça-me o favor de esquecer que eu tenho sido um bobo fácil de levar; decidi ser tempo de assumir o comando! Vou-me arrancar deste lugar bestial! Já estou por aqui de Marks Priory, Mr. Tanner! Sabe quemestá naquele quarto. . . esse que não querem abrir? Pois é o meu pai! O verdadeiro Lorde Lebanon, que não sou eu.
Bill arregalou os olhos de espanto. Aquela era a única revelação que ele não esperava. Porém, quase instantaneamente corrigiu-se da surpresa. Nada que ainda ouvisse o surpreenderia.
— Ele é que está causando todo esse rolo — continuou o jovem. Suas palavras jorravam impetuosas. — Ele já deu o fora. . . Deve estar a quilômetros daqui, neste instante. Ele saía e entrava na casa à vontade. Ficou surpreso, não ficou?
—Um pouco — admitiu Tanner, sem se perturbar.
O jovem estava sentado na cadeira da mãe, com as mãos unidas à frente; atitude que, àquela luz, o fazia curiosamente semelhante a ela.
BiU puxou uma cadeira para junto da escrivaninha e sentou--se defronte ao moço.
—Família, família. . . Puxa vida! Essa palavra até me dá nojo! — e inclinou-se sobre a mesa. — Não acha que já é tempo de a gente acabar com esse negócio? Primeiro Studd, depois Amersham, agora o coitado do Brooks!
Bill abanou a cabeça.
— Brooks não morreu.
— No duro? Ouvi dizer que ele tinha... Ainda bem. Não é um mau sujeito, afinal. Mas não concorda, Mr. Tanner?
Que esse raio dessa nossa linhagem devia se extinguir?
—Não chego bem a compreender — disse o outro.
O rapaz remexeu-se na cadeira, com ar de impaciência.
—Essa coisa tem perdurado anos e anos. Pergunte a minha mãe. Ela tem todas as datas e nomes, a maldita genealogia com todas as suas faixas seccionadas e suas aspas! Os Lebanons sempre foram assim, sabia?
E, baixando o tom:
-— Meu pai era igualzinho! Ele permaneceu quinze anos no quarto do velho lorde, doido varrido! Esses dois americanos é que tomavam conta dele.
Tanner fez que entendia. Aquilo também não era novidade para ele.
— Gilder e Brooks... É, eu já suspeitava disso.
Então o rapaz apoiou a cabeça nas mãos e pendurou os olhos no vazio.
—Só que ele nunca estrangulou ninguém — acrescentou depois, lentamente. Falava como de si para si; sua voz vibrava de satisfação.
O velho lorde jamais estrangulara alguém. Fizera, sim, muitas coisas malucas. Fora uma ameaça à vida e à felicidade de todos, mas acabara por perder a antiga inspiração de aproximar-se a furto por detrás de suas inocentes vítimas e matá-las a susto.
Vagarosamente o rosto de Lebanon se arredondou, e Bill contemplou dentro daqueles olhos faiscantes e risonhos.
—Meu pai morreu, já sabe disso? Completamente doido. Por acaso eu disse que ele habita aquele quarto? Bem, é mentira. Eu tenho facilidade para mentir. Tenho uma prodigiosa capacidade inventiva. Sou rápido. Já não o terei ouvido dizer que eu trabalho depressa? — Deu um sorriso. Não, ele nunca estrangulou ninguém. Ele nem mesmo sabia fazer isso.
Nesse ponto reclinou-se sobre a mesa e confidenciou rapidamente:
—A primeira vez que vi fazerem isso foi lá em Poona. Um baixinho veio por trás de um grandalhão e passou um negócio pelo pescoço dele e, trê-trê-trê, lá estava o outro morto! Foi fascinante! — concluiu endireitando-se.
Bill não fez comentários, então o jovem prosseguiu:
—Tentei fazer a mesma coisa com uma garota, só pra treinar a mão. — Tornou a debruçar-se sobre a mesa. — Uma indiana. Ela se foi assim!
O rosto do rapaz exibia uma expressão de ansiedade; e, a não ser pelo estranho brilho de seus olhos, não parecia alterado.
Ali estava o segredo — de modo algum oculto para Tanner — de Marks Priory. Aquele buliçoso jovem enganara a polícia e os outros, menos sua mãe, a qual sabia a verdade e com isso sofria, e que, de resto, passara a vida a proteger aquele filho: o último dos Lebanons.
„Ÿ„ŸExtraordinário, não? Como as pessoas morrem logo...
Enfiou a mão no bolso do chambre e puxou algo: uma comprida gravata vermelha, cuja visão o fez contorcer-se num riso silencioso.
—Olhe isso! Tenho uma batelada delas: trouxe da índia comigo. Amersham me afanou algumas, mas ele não sabia onde eu tinha guardado o meu estoque. Não acredita em mim? Eu não sou grande, mas sou forte à beca. Apalpe!
Fez muque, e Tanner apalpou-lhe um bíceps protuberante. Aquilo, sim, era uma surpresa; nunca imaginara que o fedelho fosse tão forte.
—É só uma brincadeira — bestuntava Lebanon. — Nunca
pensou que fosse eu, hem? O pessoal costuma dizer: "Olhem só aquele baixinho!", não é?
Então passou a falar com mais seriedade.
—Claro que fizeram um tremendo carnaval só por causa dessa indiana. Os camaradas lá do regimento nem sonhavam
que eu tivesse força pra fazer a coisa — disse. — Pra eles, também, foi uma tremenda surpresa.
—Essa é a tal de que falou na Yard?
Lebanon sorriu.
— É Amersham nunca teria o sangue-frio necessário pra
fazer aquilo; eu só quis confundir vocês. Gosto de gozar dos
outros.
— O caso deu pano pra manga, não foi? — perguntou Tanner, no mesmo tom.
Mantinha a altura da voz uniforme; um observador pensaria que conversavam sobre algum acontecimento comum e sem importância. Toda aquela noite ele já vinha sabendo o que teria de enfrentar quando ocorresse o denouement. Despachara seus auxiliares, pois sabia que nunca iria ouvir a verdade dos próprios lábios do rapaz, se outras pessoas estivessem presentes.
—Sim, os babus fizeram um tremendo carnaval daquele negócio — respondeu o jovem ressentido. — Foi por isso que mamãe enviou Amersham para me buscar. Que sujeito mais sem classe: um marginal horroroso. Alguém capaz de assinar o próprio nome num cheque de outra pessoa!. . . Não é horrível?
E tornou a fazer-se confidencial.
—Não se misture com ele, é o que eu lhe digo — aconselhou, com veemência.
Para ele Amersham ainda vivia naquele momento; uma vivida e odiosa restrição à sua liberdade de movimentos. Amersham o falsário e também Amersham o médico. Este poderia surgir a qualquer momento e promover na casa aquelas desagradáveis movimentações que invariavelmente lhe acarretavam grande desconforto.
—Depois que ele me trouxe pra Inglaterra, minha mãe mandou buscar aqueles fulanos que antes já tinham cuidado de papai. . . Gilder e Brooks. É claro que eles não são criados de verdade; são uma espécie de... Ora, eles cuidam de mim, compreende?
—Sim, já compreendi isso — respondeu Tanner. Foi então que um pensamento pareceu divertir o moço.
— Sabe o quarto que minha mãe não quer mostrar? Bom, ele é todo acolchoado; almofadas de borracha cobrem as paredes.
Eu tenho de ir pra lá quando começo a compreender coisas.
— Quando fica meio nervoso? — sugeriu Bill a sorrir.
— Quando compreendo coisas. — Estava irritadíssimo. — Sei o que estou dizendo, ouviu!? Compreender coisas é que é um troço terrível. Só quando me excito é que o meu cérebro fica claro.
Bill inclinou-se sobre a mesa, o que levou Lebanon a recuar apressado.
— Não ponha a mão em mim! — exclamou.
— Calma; eu só quero fogo. Banque o bom anfitrião — respondeu o inspetor, logo sossegando o outro.
— Sinto muito, muitíssimo; desculpe.
Riscou o fósforo e segurou-o com firmeza enquanto Tanner sugava na outra ponta do charuto. Após acendê-lo de todo, Tanner o depositou cuidadosamente sobre a borda do cinzeiro; então Lebanon perguntou:
—Afinal, você é amigo ou inimigo?
—Ora, que pergunta! Amigo, é claro.
Mas o outro abanou a cabeça.
— Telefonou pra Scotland Yard pedindo três médicos pra me examinarem. Eu ouvi! Estava bem atrás da porta.
„ŸÉ pra me ver que eles vêm — protestou Tanner.
— Mentira! É a mim que eles vêm ver. — E as linhas de seu rosto se endureceram. — Mas eu posso enganá-los do mesmo jeito que enganei você e toda gente esperta. . . Amersham. . . Todo mundo! Ela estava nas mãos dele, a minha mãe. Já digo por quê. Era ela que administrava os bens de meu pai, quando teve de pô-los em comissão. . . comissão por demência, não é assim que se diz? Deve conhecer a lei melhor que eu.. . Daí, ela está cuidando dos meus negócios agora. E é claro que ela se meteria em apuros se descobrissem isso. Amersham ameaçou
ir à polícia certa vez e, com essa brincadeira, arrancou dela uma
violenta soma em dinheiro.
Certo aspecto daquela loucura intrigava Tanner. — Mas por que você foi... tão mau com o coitado do Studd, seu chofer?
Nisto, o semblante do rapaz descaiu.
—Ah, como isso me entristece — explicou. — Ele era tão meu amigo. . . Mas eu tenho pavor de indianos. Alguns deles tentaram até me matar.. . Não calcula como eles ficaram furiosos por causa daquela garota de que já falei. E olhe que era uma estúpida.. . Eurasiana ou coisa assim. Não sabia de nada sobre o raio daquele baile a fantasia no povoado. Vi o
hindu, fiquei com medo e. . .
O rapaz penitenciava-se deveras; até havia lágrimas em seus olhos. Fora muito amigo de Studd. Ambos tinham em comum um ódio violento a Amersham; além disso, o chofer costumava prestar pequenos serviços ao jovem lorde, e isso às escondidas da patroa e do doutor;
—Chorei uma semana a fio depois que aquilo aconteceu. Pergunte à minha mãe. Todos os criados também viram. Mandei lindas flores para o funeral e tudo mais. Puxa, como eu fiquei triste! Também mandei duzentas libras à irmã dele. Era a única parente. Afanei a grana da minha mãe. .. que é meu mesmo, afinal. Ela ficou danada com isso... Mas, também, não precisa muito pra ela se danar.
Disse-o girando os olhos temerosos, da escada para a porta, e prosseguiu:
—Quer ver uma coisa? — perguntou, com um meio sorriso nos lábios. — Mas primeiro tem de jurar guardar segredo. . .
— Eu juro — disse Tanner, solene.
Então o rapaz levou a mão para dentro do chambre e sacou um revólver. Também isso o inspetor já esperava.
—É o primeiro que consegui arranjar até hoje — disse.
-— Tirei do bolso de Brooks. — Ria-se daquela arte. — Genial, não foi? Sempre quis ter um.
Nesse ponto fixou Tanner diretamente nos olhos.
— O caso é que ninguém pode se estrangular a si mesmo. É difícil, e os que o fazem ficam com uma aparência medonha. — Teve um estremecimento e cerrou os olhos. Quando os reabriu, tinha o rosto contraído. — Às vezes penso que toda a linhagem devia ser extinta. . . com todos os seus escudos e brasões. A linhagem! Minha nossa! Levá-la adiante! Não é ridículo?
Tanner não respondeu logo, mas depois:
—Pobre lapaz! — disse-o em voz baixa.
Lebanon semicerrou os olhos.
— Quem? Eu? Por quê?
— Tenho um irmão da sua idade. . .
Os olhos suspeitosos de Lebanon ttansfixavam o policial.
—Não vá me dizer que gosta de mim?
— Gosto, sim. Tenho sido um bom amigo seu. . . Fui bom pra você na Scotland Yard. O rosto do jovem se iluminou.
—Se foi!. . . Mas eu fui esperto em ir até lá, não fui? Quero dizer que essa era a última coisa que você poderia esperar; tinha justamente acabado de matar Amersham aquela manhã; e dei uma escapada no meio da confusão. Também preguei um susto danado naqueles dois. Mamãe deve ter mandado Gilder atrás de mim em seu próprio carro. Ele sabia aonde me achar porque de manhã eu tinha contado pra ele que iria até a Scotland Yard ter um papo com você.
Tanner adiantou-se para bater a cinza do charuto sobre o cinzeiro, e novamente o rapaz recuou defensivamente, protegendo o revólver com ambas as mãos.
— De fato, foi uma surpresa e tanto.
E permaneceram sem dizer palavra um ao outro por um minuto inteiro. Havia um relógio em alguma parte do aposento. Tanner ouviu pela primeira vez o seu bater monótono.
„Ÿ„ŸOnde será que ele a enfiou? — perguntou Lebanon, de súbito. — Quero dizer, Isla. . .
—Quem? Gilder?
Lebanon confirmou.
—Esta noite ela estava igualzinha àquela garota indiana!
Fui até ela e a abracei. Ouviu só o grito que ela deu? Depois desceu as escadas correndo. É que Totty estava lá, se não eu ainda pegava ela. E também Gilder, é claro. Esse sempre está por perto, já notou? Acho qué ele me mataria se eu machucasse Islã. Pode achar que ele é um brutamontes, mas não é certo. Até que é muito bom; para Isla especialmente. Ninguém a protege tão bem quanto ele; principalmente depois que ela ficou sabendo. . . Ela já sabe. . . É por isso.que anda sempre assustada. Ela desceu as escadas na noite em que eu virei tudo isto aqui de pernas pro ar.
Dizendo isso, lançou um olhar interessado em torno de si.
— Não me lembro de tê-lo feito, mas acho que fiz. Amersham escapou por pouco daquela vez! Foi preciso dois pra me segurar. Precisava ver como ele se apavorou! Isla viu a quizumba toda, dali da escada. Depois ficou amedrontada como ela só. Também, eu não a culpo, e você?
Bill abanou a cabeça.
— É engraçado! Quando eu finalmente peguei Amersham, à noite passada, ela tornou a me ver entrar pela porta com. a gravata na mão. Mamãe tirou-a de mim e me mandou pra cama. Eu sou terrivelmente forte — tornou a dizer. — Incrivelmente.
Bill concordou, fazendo um aceno de cabeça.
— É, eu sempre achei que você era, mesmo — disse.
Começava a sentir-se tenso. Seus olhos não se desviavam da arma na mão do rapaz. Aquele não era o clímax que ele tinha planejado. Entretanto, achava que conseguiria mantê-lo no seu presente estado de humor; acalmá-lo; dentro em pouco o paroxismo passaria e aquele jovem voltaria ao normal. Mas essa esperança depressa se esvaiu.
Só uma vez lidara com um tipo semelhante, e os sintomas que constatava não eram encorajadores. O ponto alto de seu delírio ainda estava por vir; e eis ali uma pistola na mão do rapaz, inteiramente carregada. De onde estava dava para ver as pontas cinzentas dos projéteis nas câmaras do tambor.
—Aborreci-os esta noite — Lebanon ria-se baixinho — deixando de tomar aquela beberagem. Sabe o que era aquilo?
Bill fez que sim.
— Brometo de potássio. Acharam que você estava meio excitado e quiseram acalmá-lo um pouco. Já não tinham feito isso antes?
—Milhões de vezes — respondeu Lebanon com ênfase, — mas hoje eu os enganei direitinho.
Tanner apanhou o whisky que tinha posto sobre a mesa, sorveu-o com determinação e depois levantou-se. —Acho que vou pra cama — disse, afetando despreocupação.
Afastou a cadeira para trás de si, bocejou e espreguiçou-se. Quando olhou em volta, o rapaz já estava à sua retaguarda, tendo nos olhos o mesmo olhar que já antes lhe notara.
—É mentira; você não está querendo ir pra cama; está mas é com medo!
Bill sorriu ao abanar a cabeça.
—Está sim. Eu amedronto as pessoas.
—Não a mim — disse Tanner, aparentando bom humor. — Crie juízo e passe esse revólver pra cá, vamos, Por que andar por aí, feito bobo, com um negócio desses?
—Há uma porção de coisas que eu poderia fazer com ele.
Tanner ouviu uma exclamação proveniente das escadas. Não se voltou para olhar, mas pela voz soube ser Lady Lebanon.
— Eu podia pôr um fim à minha linhagem com isto aqui.
— Willie!
Então, todo o comportamento do rapaz sofreu uma mudança radical. Ele recuou temerosaménte e escondeu a arma numa prega do chambre.
— Que está fazendo, rapaz idiota? Dê-me aqui esse revólver!
— Não dou nada! — gemeu ele. — Eu sempre quis ter um revólver. Pedi-lhe um uma dúzia de vezes.
— Largue já isso!
Só por um instante ele voltou as costas para Tanner, e Bill saltou sobre ele. Não exagerara no gabar a própria força: era tremenda. Totty chegou voando e meteu-se no meio do embrulho, mas, com esforço sobre-humano Lebanon desembaraçou-se deles e correu em direção das escadas. Foi quando Gilder apareceu. Por um instante o jovem hesitou, depois. . .
A detonação foi ensurdecedora. O revólver caiu-lhe da mão, e o rapaz desabou ao pé da escada.
Instantaneamente os três homens se juntaram em volta dele. Num relance Tanner compreendeu tudo. Lady Lebanon estava rija ao lado da escrivaninha, o rosto voltado para não ver a cena, e o queixo soberbo, ainda uma vez, empinou-se.
— E então? — perguntou ela, com voz rouca.
— Está morto. Suicidou-se — explicou Tanner. — Uma tragédia!
A mulher não respondeu. Torcia e retorcia as mãos. Dava pena ver-lhe a agonia. Por fim voltou-se em direção da escada e caminhou lentamente para eles. Passou pelo filho apenas um rápido olhar; então deteve-seum segundo num degrau da escada, apoiando-se à parede.
—Após dez séculos, não há quem leve adiante a linhagem dos Lebanons! — lamuriou-se ela.
Os homens a ouviram, pasmados e silenciosos.
—Mil anos de grandezas. . . extintos como uma vela soprada!
E não lhe ouviram mais que os murmúrios a perderem-se na distância.
Bill atirou ainda um olhar para o cadáver a seus pés.
—Mil anos de grandezas! — repetiu com amargura.
— A princípio — dizia Tanner, o inspetor-chefe, apresentando um relatório verbal a seu superior, — o caso me pareceu um crime comum motivado por desejos de vingança. Havia dois Ou três suspeitos. O principal, obviamente, era Amersham. Ele esteve presente quando Studd foi morto, e, além do mais, tinha um motivo: ambos andavam atrás da mesma pequena, e é sabido que o doutor era muito ciumento. Ademais, tinha uma péssima ficha; e confesso que fui ludibriado quando Lebanon apareceu na Yard com aquela história de que Amersham já andara envol-, vido num caso de estrangulamento ocorrido na índia. Isso, por um momento, pareceu confirmar a culpabilidade do médico. Para áízer a verdade, foi só depois que ele morreu que eu recebi um tfelegrama da índia com todos os pormenores daquele crime.
"Lebanon fora evidentemente o culpado, mas foi declarado insano, e as autoridades indianas, com alegria, o viram deixar o país. Ele andava se comportando de maneira muito estranha, desfechando tiros de emboscada contra os seus batedores, quando ia caçar, e já estava sob observação quando ocorreu o assas-sínio dessa moça.
"Se eu tivesse a menor suspeita de Lebanon, teria sabido que é fenômeno dos mais comuns um doente mental lançar suspeitas sobre outros, na tentativa de desviá-las de si. Mas Amersham, com seu passado negro, parecia um ponto de partida bas-tente promissor para minhas investigações. Isto, é claro, foi antes de ele morrer.
"A posição do doutor pode ser esclarecida rapidamente. Era ladrão e chantagista. Teve a boa sorte de se ver empregado por Lady Lebanon a fim de tratar-lhe o marido. O antigo mé dico da família, que mantivera o segredo dela até o fim, tinha morrido, e deve ter sido muito difícil para sua senhoria achar-lhe sucessor, porque qualquer médico decente logo teria levado os fatos ao conhecimento das autoridades, e a Comissão por Demência teria levado à partilha dos bens.
"Amersham era em todos os sentidos, a pessoa ideal para aquele cargo. Não era estúpido, conhecia alguma coisa sobre manias e, quando viu o anúncio no Times solicitando os serviços particulares de um médico experiente em patologia cerebral, imediatamente se apresentou e teve a sorte de arranjar o emprego.
"O salário era dos grandes, mesmo para começar. Mas ele deve ter percebido as oportunidades ilimitadas que se descortinavam diante de si; de sorte que gradualmente foi firmando pé na situação, até que passou a dominar a mulher de Lebanon e posteriormente o filho."
Aqui o comissário interpôs uma indagação a que Tanner respondeu abanando a cabeça.
"Não, senhor; não há nenhum registro de sintomas anteriores no que diz respeito ao rapaz. Ele não era lá muito brilhante, mas conseguira passar em Sandhurst e entrar para ó exército. As autoridades médicas indianas registraram uma ligeira insolação, que pode ter precipitado uma tendência hereditária para o mal, mas não houve a menor suspeita de que houvesse algo errado com ele até que passou a alvejar os batedores. As ' autoridades do exército não conheciam nada sobre o pai dele, apesar de seu bisavô ter morrido num asilo de lunáticos. Na verdade, havia casos de insânia em ambos os lados da família.
"Quando o lorde-pai morreu, sua senhoria deve ter-se sentido aliviada por ver-se livre de um homem que se tornara para ela um estorvo cada vez maior. Sabemos que Amersham não foi a Marks Priory durante três meses, então surgiu o problema na índia, e Lady Lebanon mandou chamá-lo.
"Ele concordou em tomar o rapaz a seu encargo e abafou o escândalo indiano; só o que pediu em troca foi um discreto casa-mentozinho com a patroa em Peterfield. Intrigava-me o motivo de terem ido a Peterfield, e verifiquei que Lady Lebanon não tinha propriedades nesse local.
"O casamento parece ter sido de conveniência. Não houve pretensões amorosas entre ambos nem nenhuma espécie de associação de natureza propriamente conjugai. O que todavia ela exigiu de Amersham foi certa linha de conduta. Mas Amersham tinha o seu próprio estilo de vida. Tornaram A trazer Gilder e Brooks, desta vez para cuidar do rapaz, de sorte que nada de muito importante aconteceu até a morte de Studd, que de certo modo foi acidental.
"O jovem descobrira uma saída secreta no quarto acolchoa-do onde às vezes era trancado. Achara essa passagem no painel, bem como a escada, que comunicava a uma porta utilizada, nos tempos do velho lorde, para conduzi-lo aos jardins a fim de tomar ar fresco. Há um trilhozinho em cada lado da escada, onde se encaixava sua cadeira de rodas. Isto deve ter sido antes de Gilder chegar, pois ele nada sabia dessa passagem nem dessa porta.
"A vitalidade do jovem Lebanon era extraordinária. O melhor exemplo disso é o" que aconteceu na noite da sua morte. Em quinze minutos ele praticou um atentado contra o estafeta da polícia, voltou para casa e em poucos minutos vestiu um traje de soirée.
"Quando chegou à Yard, eu não tinha idéia de que fosse um anormal. Parecia um fracalhote, um desses filhinhos-de-papai que a gente encontra em qualquer nível da sociedade; meio inso-lente, talvez, aos que lhe. eram socialmente inferiores, apesar de se proclamar democrata; mas, de modo geral, um rapaz bem--apanhado.
"A razão de ele ter vindo salta aos olhos; acabara de matar Amersham e queria aparecer antes que a polícia iniciasse as investigações, e desse modo desviar de si todas as suspeitas. O senhor e eu já vimos isso ser feito dezenas de vezes por criminosos normais, mas é extraordinário que esse rapaz, com tão pouca experiência do mundo, pudesse fazer o que fez.
"Assim que deu pela falta dele, Lady Lebanon mandou um de seus guardiães procurá-lo. Gilder por acaso o ouvira falar que viria à Scotland Yard, e seguiu-o. Voltaram no mesmo carro; não sabia disso até Gilder me contar.
"Seu apetite por destruição aguçou-se. Só tivera uma crise antes da morte de Studd, que foi quando virou de pernas para o ar o hall de Marks Priory. O assassínio de Amersham foi planejado com notável sagacidade. É possível que Lebanon se mostrasse à sua vítima pouco antes de a liquidar. Esperou de fora, tendo atravessado a passagem secreta; quando o doutor já tinha percorrido metade da. rua que dá acesso ao solar, num ponto em que tinha que diminuir a marcha por causa de uma curva fechada, o rapaz saltou sobre a traseira do veículo, matando a seguir o doutor.
"Dessa vez não voltou logo para casa. Talvez se perdesse. Em todo caso, deu consigo numa alameda que corria parelhas com a estrada. Prosseguiu por ela até que foi subitamente freado por Tilling, o couteiro. Num acesso de pavor, Lebanon atirou-se sobre ele. Não há a menor dúvida de que o couteiro reconheceu o agressor, pois a encenação que fez para dar a entender o contrário foi das mais pobres. Ele era forte bastante para se haver com Lebanon, e presume-se (é esta a versão dele) que só tenha feito força suficiente para impedir que o patrão lhe causasse danos físicos. Tilling ficou chocado com isso; provavelmente mais chocado do que já estava com os derriços da esposa. Foi ele quem levou Lebanon para casa.
"Lady Lebanon estava num dilema. Pela primeira vez seu segredo desbordara um seleto círculo de pessoas da mais absoluta confiança. Aturdia-a igualmente saber que algo tinha acontecido a Amersham. Na verdade, estavam à cata do corpo dele (ela, Gílder e Brooks), quando Tilling entrou em cena arrastando consigo o jovem que subjugara.
"Por alguma razão não puderam encontrar o cadáver, e o primeiro cuidado que tiveram foi fazer com que Gilder apanhasse o carro e o largasse à margem da estrada a alguns quilômetros do povoado.
"Mas ainda era preciso cuidar de Tilling. Lady Lebanon, sabendo que a polícia viria pela manhã e que o couteiro poderia levar tudo a perder, decidiu mandá-lo para o chalé de sua propriedade em Aberdeen. Deu-lhe dinheiro e assinalou-lhe a rota. Assim, Tilling desapareceu, e suponho que totalmente confuso.
"Acho que ela podia ter corrido o risco de deixá-lo ficar, se já não fosse suspeito e eu não estivesse a ponto de interrogá-lo, caso em que, para salvar a pele, ele acabaria fakndo tudo o que sabia. Tilling, portanto, saiu em seu biciclo com destino a Horsham, dali rumando para Aberdeen.
"Foi o último dos crimes definidos de Lebanon. Tudo o que se seguiu foi acidental, produto de circunstâncias que lhe pareceram desesperadoras.
"Para com Miss Isla Crane (descobri isso depois) ele tinha a mais amarga animosidade, e apesar de ela não saber (e, quanto estiver em mim, nunca saberá) ele tentou contra a vida dela por três vezes e ainda maquinava matá-la na mesma noite em que se suicidou.
"Com a astúcia própria dos malucos ele não contou a Gilder o plano que tinha, sabendo que aquele criado, que a si mesmo se constituira guardião da moça, faria tudo o que estivesse a seu alcance para defendê-la. Não obstante, Gilder sabia. Ao cuidar de um demente, uma pessoa ao fim de certo tempo acaba desenvolvendo um sentido extra; de sorte que ele transferiu a garota para o seu próprio quarto, bem em tempo. -'Seu companheiro, Brooks, é que por pouco não morre estrangulado.
"O quarto do velho lorde, aliás, tem três entradas: uma junto à cama, por onde o assassino entrou, e mais duas que foram vedadas, decerto à ordem de Lady Lebanon.
"Isso é tudo o que tenho para contar. Só gostaria ainda de recomendar a promoção do Sargento Totty a inspetor provisório."
Ao ouvir isto o comissário arregalou os olhos.
— Céus! E por quê? — perguntou horrorizado.
Bill pôs-se a cocar a cabeça.
— No duro que não sei; mas, enfim, ele merece — explicou.
Edgar Wallace
O melhor da literatura para todos os gostos e idades