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A CASA DO RIO VERMELHO / Zelia Gattai
A CASA DO RIO VERMELHO / Zelia Gattai

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA DO RIO VERMELHO

 

        Após trinta anos de vida em comum, de amigação — gosto demais da palavra amigação, usada para nomear o que o código de família denomina concubinato, tenho aversão à palavra concubinato, má e feia, ; filha do preconceito e da discriminação —, Zélia requer, no uso da lei, o direito de usar meu sobrenome, assinar-se Amado. Na Bahia perde a causa, o juiz encagaçou-se, ignomínia; em São Paulo ela a ganha, junta Amado a seu nome de solteira.   

       

      O CARA DE SAPO

        De repente dou-me conta de que a paixão de Jorge por sapos é antiga, vem de longe. Somente agora chego a essa conclusão ao recordar a compra do automóvel que nos levaria do Rio de Janeiro à Bahia.

        O anúncio do jornal dizia: Particular vende carro confortável, quase novo, preço de ocasião.

        Não custava dar uma espiada. Próximo à nossa casa, em Copacabana mesmo, na garagem de um edifício da rua Tonelero, fomos encontrar o tal carro confortável, quase novo. Tratava-se de um Citroen ID19, preto, enorme.

        —  É um cara de sapo! — entusiasmou-se Jorge. — Repare, os faróis parecem dois olhos arregalados.

        Não havia dúvida, o carro tinha a aparência de um batráquio negro, enorme, escarrapachado. Reparando bem, vi que ele não era tão quase novo quanto fora anunciado. Estava — não havia dúvida — lustroso, preparado para entusiasmar o freguês. O vendedor, jovem simpático, bem-falante, ao reconhecer o possível comprador, entusiasmou-se:

        —  Se acomode, seu Jorge — disse indicando o assento diante do volante —, veja como ele é macio; ligue o motor, acelere, e... não se assuste, ele vai subir. É carro de suspensão a óleo! — explicou de boca cheia, entusiasmo de quem faz uma grande revelação.

        Perdia seu tempo, pois de suspensão e motor de automóvel o comprador não entendia absolutamente nada. Exatamente como eu previra, Jorge não se impressionou com a novidade nem mesmo fingiu admirar-se, fez apenas um sinal negativo com a mão:

        —  Ligar o carro? Eu? Deus me livre! Nunca dirigi automóvel em minha vida. Quem guia é ela. — Assim dizendo, apontou-me a porta já aberta: — Vamos, Zélia, suba.

        Eu também não sabia o que significava suspensão a óleo, qual a sua função, a vantagem de um automóvel com tal incrementação.

        Passei minha infância e adolescência entre operários na oficina mecânica de meu pai, ouvindo conversas sobre consertos de motores de automóveis; decorei até nomes de peças: cárter, pistão, anéis de pistão, platinado, caixa de marcha, embreagem, vela, vela suja, vela limpa, carburador, virabrequim... —meu pai dizia "girabrequim", creio que em italiano. Esses nomes me eram familiares, porém nunca ouvira falar em suspensão a óleo, certamente coisa moderna. Perguntei:

        —  O que significa suspensão a óleo? Solícito, o rapaz tratou de explicar:

        —  A senhora não sabe? Pois olhe. Está vendo o cárter?

        —  O cárter?

        O jovem resolveu ficar de cócoras e apontou com o dedo.

        —  Isso mesmo. Ali está o cárter. Aquela caixa de ferro está cheia do LHM — o rapaz falava com um certo orgulho do tal LHM —, comporta uns vinte litros desse óleo finíssimo que alimenta a suspensão. Isso é coisa nova. Só carros desta marca têm essa vantagem. Assim mesmo, apenas os do último modelo.

        Eu nunca ouvira falar no famoso óleo LHM. Mas ele o mencionara com tamanho entusiasmo que eu nem me atrevi a dar parte de ignorante, confessar o meu desconhecimento. Restringi-me a perguntar:

        —  Vinte litros? Tudo isso? O senhor sabe, pretendemos ir à Bahia de carro, mil e tantos quilômetros de estrada. E se o tal LHM acabar no meio do caminho? Onde é que vamos consegui-lo?

        Jorge estava doido pra ver o carro em movimento e eu ali perguntando sem parar. Paciência esgotada, ele respondeu pelo rapaz:

        —  Ora, minha filha, qual é o problema? Tanto posto de gasolina pela estrada... Em qualquer lugar a gente encontra óleo. Suba, vamos, não perca mais tempo. Fica aí perguntando bobagens... — foi dizendo e se acomodando. Resmungara em voz baixa, mas alto o suficiente para que eu o ouvisse. Não gostei.

        —  A gente tem que saber tudo, ora! — retruquei enquanto subia.

        Virei a chave, o motor respondeu, acelerei, a carroceria começou a elevar-se, foi subindo, subindo, ficamos lá no alto.

        Jorge e eu estávamos tão ou mais entusiasmados que o jovem vendedor.

        —  Estão vendo que beleza? — dizia ele. — Sabem qual é a vantagem desse sistema? O carro nessa altura deixa espaço para que o motor não bata em pedras ao passar por estradas esburacadas, podendo até enfrentar lamaçais sem correr o risco de ficar atolado.

        Jorge estava encantado, e eu vi logo que nada neste mundo o  faria desistir do negócio mas, mesmo assim, voltei à carga;

        — E o LHM pode ser encontrado em qualquer posto de gasolina?

        — Bem, em qualquer posto, não. — O rapaz até que era honesto. — Esse óleo, pela sua finura, é comparável ao óleo de rícino, e o óleo de rícino o substituí perfeitamente. A senhora pode comprá-lo, em caso de emergência, em qualquer farmácia.

        —  O senhor está falando sério? Óleo de rícino, o purgante?

        —  Esse mesmo. É muito fino e bom, pode ser usado sem susto.

        Olhei para Jorge que ria divertido. É, não havia jeito. Ele estava apaixonado pelo Sapão, não adiantava fazer mais perguntas, saímos de lá de negócio fechado.

       

      DECISÃO TOMADA

        Decidimos nos mudar para a Bahia quando João Jorge completou treze anos. Nosso filho tornava-se um homenzinho, Paloma também crescia e o ambiente no Rio de Janeiro, sobretudo em Copacabana, nos assustava. Queríamos que nossos filhos vivessem em cidade mais tranqüila, livres das tentações das drogas que andavam na berlinda, da maconha ameaçando os escolares, oferecida à saída das aulas.

        Salvador era, na época, uma cidade pacata, não chegava a quinhentos mil habitantes. Lá os meninos poderiam andar soltos, nós poderíamos dormir tranqüilos.

        Tirar as crianças do Rio de Janeiro era assunto decidido, assunto prioritário. Existia, no entanto, ainda um motivo para essa mudança radical de vida: havia muito que Jorge sonhava voltar a viver em Salvador, comprar uma casa na Bahia.

        Atendendo ao desejo do pai, aos dezoito anos ele partira para o Rio de Janeiro com o propósito de só voltar com o canudo de bacharel em Direito embaixo do braço. O coronel João Amado desejava, como era comum entre os fazendeiros da época, ter um filho advogado, um filho doutor, sobretudo o primogênito. Jorge não iria desapontar o pai. Atendeu, pois, ao seu pedido e em 1930 viajou para o Rio: não apenas faria a vontade do velho como iria lutar para realizar um sonho que alimentava desde menino: escrever um romance. Sonhava com isso desde os tempos de colégio, quando, certa vez, na sala de aula, um professor de português, padre Cabral, ao ler o trabalho de um aluno, na classe, previra a vocação do discípulo: ... o autor desta redação será um dia um grande escritor, profetizara. O autor da composição que impressionara de tal forma o professor, outro não era senão o menino Jorge Amado, o mais vivo e traquinas da classe.

        Aos quatorze anos, Jorge Amado já colaborava em revistas e jornais e sonhava: quem sabe um dia não chegarei a escrever um romance? A oportunidade chegara, talvez numa grande capital ele teria novos conhecimentos, mais chances de realizar seu desejo.

       

      A VOLTA

        Muitos anos haviam se passado desde os tempos de estudante do rapazinho Jorge Amado. Ele cumprira sua tarefa, fizera a vontade do pai: bacharel formado, um retrato de toga e capelo, lá estava, pendurado na parede da sala do Coronel. Escrevera não apenas um livro mas muitos livros; fizera viagens de não acabar. Deputado comunista, fora perseguido, sofrerá prisões e anos de exílio. Chegara, pois, a hora de voltar definitivamente para a Bahia, sua terra, sua fonte de inspiração. Nesses anos todos de ausência, no entanto, ele não deixou de voltar, sempre que pôde, a Salvador e também a Ilhéus, cidade de sua infância.

       

      DINHEIRO DO IMPERIALISMO AMERICANO

        Jorge vendera à Metro Goldwin Mayer os direitos autorais de seu romance Gabriela, cravo e canela. Não recebera o dinheirão que se poderia imaginar, mas lhe pagaram o suficiente para adquirir uma casa na Bahia. Comprarei essa casa com o dinheiro do imperialismo americano, dizia rindo.

       

      AMIGOS PERNAMBUCANOS

        Morávamos, havia anos, num apartamento dúplex, adquirido pelos pais de Jorge. Costumávamos passar as férias dos meninos em Recife, hóspedes de amigos muito queridos. Conhecêramos Laís e Rui Antunes dos tempos em que ambos terminavam o curso de Direito, Rui, líder do movimento estudantil de esquerda. Grande jurista, ele tornara-se professor da Faculdade de Direito de Recife; Laís não advogava, contentava-se em ser a mãe zelosa de vários filhos, crianças que, nas férias, enturmavam com João e Paloma. A casa dos Antunes, na cidade, era enorme, rodeada de pomar com mangueiras de toda espécie. Possuíam também uma granja nas aforas da cidade que, além do coqueiral, era plantada de pitangueiras, jambo do Pará, goiabeiras, pitomba, graviola, frutas para todos os gostos.

        Verdadeira alforria para João Jorge e Paloma, eram as férias e a viagem de avião para Pernambuco, a cada fim de ano, que os libertavam da prisão de um apartamento em Copacabana e das recomendações a azucrinarem-lhes os ouvidos a cada vez que saíam à rua.

        Além de Rui e Laís, tínhamos em Recife um outro casal de amigos íntimos: Dóris e Paulo Loureiro, donos de um laboratório de análises. Juntando as duas filhas do casal, Cláudia e Paula, e os de Rui e Laís: Julita, Henrique, Aninha, Iracema e Ricardo aos nossos meninos, a festa era uma só: brincavam, brigavam, pintavam o bode.

       

      MARIA FARINHA

        A casa dos Loureiro na cidade não era grande: em compensação, a que possuíam em Maria Farinha era enorme, rústica, na praia quase deserta, mar de peixes e lagostas garantindo soberbas pescarias e deliciosas peixadas. Não precisávamos ir longe para trazer peixe. Da praia, ali mesmo, defronte à casa, era só atirar o anzol e recolher em seguida o peixe se debatendo. Fiz até a proeza, certa manhã, de pescar, com anzol de três ganchos, três peixes de uma só vez, deixando uns estrangeiros que passavam por acaso de queixo caído.

       

      CONVERSAS DE SOTAQUE

        Jorge não aderia às pescarias, nem às grandes caminhadas. Seu divertimento era outro: preferia descansar, deitado na rede do terraço, ouvindo histórias dos empregados da casa e de pescadores que apareciam por lá na hora da preguiça. Lembro-me bem de três pescadores assíduos no bate-papo, os três de nome Amaro: um deles, o Amaro Amarelo — palidez igual nunca se viu —, aparecia nas estadas da família Loureiro em Maria Farinha. Era um operado, título que justificava a preguiça para o resto da vida e, além do mais, um aposentado do istitute — como se referia ao Instituto de Aposentadorias. Funcionava de quebra galho da casa, sem nenhuma função definida, à disposição de quem dele precisasse para qualquer serviço leve. Os outros dois Amaro não faziam nada, nem serviços leves, nem pesados, pois também, como Amaro Amarelo, eram aposentados do istitute e operados. Tranqüilos, os pais da indolência, cansavam-se só de ver os outros trabalhar. Gostavam de um papo macio com o baiano, amigo de doutor Paulo, que ria com as histórias que eles lhe contavam. Conversa sem compromisso que parecia não levar a nada inspirava o romancista.

        Aos sábados e domingos chegavam os amigos da cidade: Marcos, Benaia, Carlos Pena Filho, Paulo Cavalcanti, Pelópidas Silveira e outros. Os carros chegavam lotados, cada qual com sua família, esposa e filhos. Inda bem que a casa era espaçosa, vários dormitórios e redes nos terraços acomodavam todo mundo. Os homens faziam ruidosas rodadas de pôquer, as mulheres jogavam canastra, as crianças se espalhavam. Fins de semanas animadíssimos com jogos e conversas de varar a noite. Das histórias ouvidas nesses encontros com os amigos pernambucanos e dos momentos de lazer e preguiça na hora da modorra, foi que nasceu a inspiração para Quincas Berro Dágua.

       

      O PEIXE DE MEUS SONHOS

        Paulo inventava, de vez em quando, sair num barco a motor, em busca de peixes grandes. Levávamos os meninos maiores e Amaro Amarelo, o Lobo dos Mares, como o nomeara o gozador Paulo Loureiro. Compenetrado, Amaro, achando que orientava sem orientar coisa alguma, braço direito à frente, estirado, movimentando-o de um lado para outro, não apontando direção nenhuma, fazendo de conta que indicava o rumo que evitaria as pedras embaixo da água. Não fosse Paulo conhecedor do pedaço, teríamos batido, naufragado com o sábio conhecimento de Amaro. A presença dele servia apenas para nos divertir e colaborar na hora de baixar e levantar a âncora. Um dia ele até foi útil: movido pelo entusiasmo, esqueceu que era um operado e ajudou-nos a tirar da água e colocar no barco uma arraia enorme, o maior peixe que pesquei em toda a minha vida. Não vou mentir, todos colaboraram: ao ver aquele peixe imenso se debatendo, lutando para livrar-se do anzol, Paulo tomou a frente e mesmo João Jorge me ajudou até conseguirmos tirar o bicho da água.

        Antes disso, Amaro já participara, dando palpites, de outro episódio emocionante numa de nossas saídas de barco. Estava eu, muito na minha, tranqüila, esperando pescar o peixe de minha vida quando senti que mordiam minha isca. É ele, disse em voz baixa para não assustar o peixe e fui puxando a linha, estirada, pesada... o danado resistindo. Paulo largou sua vara, tentava me ajudar, e eu, orgulhosa, não deixando, querendo ter a glória de pescar sozinha o peixe que ali estava ao alcance de minhas mãos... depois de um bom tempo nessa peleja, eu insistindo, suando, já quase sem forças, aconteceu o que eu não queria que acontecesse. Não gosto nem de lembrar, muito menos de contar, mas a verdade é que, numa das arrancadas, a linha se partiu e a vara ficou leve em minhas mãos, um pedaço de fio balançando no espaço. Paulo ficou possesso. Ouvi todos os desaforos que um pescador enfurecido pode atirar sobre um parceiro incompetente que deixa o peixe escapar por puro orgulho e vaidade. Se eu tivesse permitido a ajuda dele, nada disso teria acontecido. Amaro, com sua sabedoria infinita, chegou a afirmar que a garoupa fujona — ele vira até a marca do peixe — tinha pra mais de um metro.

        Ainda desconsolados, demos por terminada a pescaria, nem tinha graça continuar. Ao puxarmos a corda para recolher a âncora foi aquela surpresa: minha garoupa pra mais de metro, reluzente, outra não era senão a âncora que eu tentara levantar, gastando todas as forças. O anzol estava ali, de testemunha, preso na corda que sustinha o pesado ferro.

       

      A ARRAIA NOVAMENTE              

        Não contei, nem posso deixar de contar o final da pesca da arraia, coisa que nunca pude esquecer, nem eu nem ninguém que se encontrava na casa de Maria Farinha naquela manhã, principalmente Jorge que até hoje fala no assunto. Ao saber que eu pescara uma arraia enorme, Jorge deixou a preguiça na rede, foi até a praia para esperar a nossa chegada, aplaudir a gloriosa pescadora.

        A arraia podia pesar uns dez quilos e Paulo resolveu carregá-la sozinho. De um só golpe, atirou-a nas costas e, sustendo-a pelo rabo, foi andando, já que Amaro fizera corpo mole. Quando lembrava que fora operado de apendicite em criança, Amaro se recolhia. Não havia força humana que o fizesse levantar pesos acima de cinco quilos e, a seu ver, aquela arraia devia pesar pra mais de vinte. E com essa, a duras penas, Paulo chegou até nossa casa trazendo o fardo, exausto, porém satisfeito.

        Avisados do acontecido, todo mundo foi nos esperar no portão. Reclamando do peso que carregara e da comichão que sentira nas costas o tempo todo, ainda de um só golpe, Paulo atirou a arraia de costas sobre a areia: do ventre branco do peixe saía uma espécie de pênis, enorme, vermelho, ainda com vida, latejando. Comichão, seu Paulo?, perguntou-lhe Jorge, a perder o fôlego de tanto rir. A história da arraia macho foi motivo de galhofa para o resto das férias; Jorge espalhou entre os amigos que Paulo era um fenômeno, o único homem no mundo a ter excitado sexualmente um peixe.

       

      PLANOS

        Quando comprássemos a casa na Bahia nossas férias iam ser diferentes: já não precisaríamos viajar para ter um grande pomar, jardim com flores e, quem sabe, à nossa disposição, lá estaria o marzão da Bahia, repleto de peixes, peixes para nossos anzóis, peixes fresquinhos para nossas panelas. Iríamos ter a alegria de hospedar os Antunes e os Loureiro em nossa casa, retribuiríamos o carinho.

       

      LALU NÃO ACHA GRAÇA

        Ao saberem de nossa intenção de mudança, os velhos não gostaram, o coronel João Amado calou-se, Lalu se afligiu. Não querendo discutir com o filho, ela tentava me tomar de aliada:

        —  Menina, vocês estão ficando malucos? Deixar uma cidade linda como o Rio de Janeiro, com praias e jardins, para irem se meter naqueles matos? — Passava da voz de comando para a mansidão: — Fia, vê se tu dá uns conselhos pra Jorge. Diga pra ele que o lugar de vocês é na cidade, não é no mato. Se tu não quer ir ele não vai. E só dizer que tu não quer ir e pronto.

        Em realidade, a mudança do Rio para a Bahia representava para mim uma certa cota de sacrifício, sacrifício esse que valia a pena em se tratando da segurança de meus filhos, da realização de um sonho de Jorge. Já estivera várias vezes na Bahia e me sentira uma espécie de corpo estranho, uma intrusa. Jorge, rodeado de amigos a recordar fatos passados, namoros e amores antigos, todo mundo se divertindo, rindo e eu ouvindo calada.

        Tão calada ficava que aconteceu, certa manhã de domingo, numa de nossas estadas em Salvador, escutar o que não queria. Acompanhamos Carybé e Jenner, antes do almoço, à casa de uns amigos deles, no Campo Grande, pessoas que mal conhecíamos. Como de hábito, nesses encontros domingueiros, a animação era grande, exaltação que ia crescendo à medida que as caipirinhas e as batidas produziam efeito.

        —  De que fruta é esta? — perguntei ao saborear uma deliciosa batida de mangaba.

        —  Você não sabe? — admirou-se alguém. — Você não conhece mangaba?

        —  Mangaba é manga? — perguntei inocente.

        —  Não é manga, não — riu a dona da casa. — Manga não tem nada a ver com a mangaba, mangaba é uma fruta pequena... — explicou, gentil, a senhora.

        — Como é que ela pode saber? — interveio uma outra. — Zélia é paulista. Em São Paulo não há frutas como as nossas... Lá é só pêra e maçã, uva, banana...

        Nem respondi. Podia enumerar todas as frutas de São Paulo, variadas e maravilhosas, mas preferi não dar bola. Calei-me.

        A conversa e as gargalhadas corriam soltas quando, de súbito, um cidadão cujo nome não lembro (possuo a qualidade — ou será defeito?— de esquecer por completo o nome de quem me ofende, me agride), de pé em minha frente, apontou-me com o indicador: Essa aí até parece minha mãe: pamonha e besta. Dessa vez ninguém achou graça, Luísa, mulher de Jenner, artista vindo de Sergipe, aliás, os dois são sergipanos, reclamou, os outros também reclamaram. Eu fiquei ainda mais calada e mais besta.

        Felizmente, nessas idas e vindas à Bahia, eu conquistara algumas amigas: Norma, mulher de Mirabeau Sampaio (colega de Jorge dos tempos de colégio interno); Nancy, mulher de Carybé, Luísa de Jenner, Nair, mulher de Genaro de Carvalho, o tapeceiro inigualável da Bahia, Lúcia, mulher de Mário Cravo, escultor do ferro e da pedra. Todas se tornaram minhas amigas, todas dispostas a me ajudar nessa mudança. Já não estaria sozinha fazendo papel de "pamonha e besta" e, ainda por cima, paulista.

        Mesmo sabendo que na época a vida da dona de casa na Bahia não era fácil, tratei de avivar meu otimismo, passei a pensar somente nas vantagens que iríamos ter com a mudança. Assim enfrentava com bom humor a pressão de Lalu, que não se conformava de nos ver partir, depois de dez anos de convivência.

       

      LALU VOLTA À CARGA

        —  E quem vai cuidar da casa, aqui? — perguntava Lalu.

        —  A senhora vai cuidar da casa por pouco tempo, dona Eulália. A senhora e seu João vão morar conosco na Bahia. Não vai demorar. Não encontramos ainda uma boa casa mas vamos achar. Antes do fim do ano esperamos estar de mudança.

        —  Tu quer que eu fique aqui, trabalhando? Já trabalhei muito na vida, pra mim chegou...

        Tive vontade de rir mas me contive:

        —  E verdade — disse —, a senhora já trabalhou muito, não deve trabalhar mais. Por isso queremos que venham viver conosco na Bahia. A senhora devia aconselhar seu João a ir embora com a gente.

        —  Eta sujeitinha pedante! Aconselhar o quê? Ora veja só! Então tu não sabe que quem não quer ir sou eu? João não diz nada, só quer ficar junto do filho seja lá onde for... Tu é que deve aconselhar Jorge. Tu só vai se tu for besta... É só dizer que não quer ir que ele não vai. É verdade ou não é?

        —  Mas eu quero ir, dona Eulália. Salvador é uma cidade bonita, tranqüila, vai ser bom para os meninos.

        —  Bom para os meninos? Tá... Que bom, o quê! Bom coisa nenhuma! Teus filhos vão virar dois tabaréus. Tu pensa que lá tem as facilidades daqui? Tu pensa que lá tem recepções nas embaixadas? Vai ver que nem embaixadas tem por lá. Tu pensa que lá é como aqui, todo mundo convidando pra festas?... Vá atrás disso! Vá atrás!

        —  Lá não tem embaixadores mas tem amigos, dona Eulália. Na Bahia estão os colegas de Jorge dos tempos do colégio interno: Mirabeau e Giovanni Guimarães; estão também esperando, Carybé, Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner, todos ansiosos. — Citei esses nomes, esperando impressioná-la. Mas qual!

        — Ora veja! Não é por falta de amigos que vocês vão embora; a casa aqui vive sempre cheia. É verdade ou não é? Tu não acha que seu Portella, seu José Conde, seu João Conde, seu Mauritônio, dona Eneida, seu José Mauro, a Misette, dona Glorinha, seu Giges (era assim que ela chamava o poeta Sosígenes Costa), dona Gervance (referia-se à Giovanna Bonino), seu Waldemar e dona Gerusa então eles não vão ficar tristes aqui sem vocês? — Ela mesma respondia: — Ora se vão!

        Não adiantava discutir com Lalu, ela ganhava sempre. Carregava um trauma dos tempos da juventude. Irmã de desbravadores de mata, mulher de outro desbravador, vivera no sertão e em fazendas de cacau, rodeada de jagunços, vendo irmãos e marido serem atingidos por tiros de carabina, o irmão mais velho perdendo uma vista, o marido com as costas cravejadas de chumbo... dormia com uma repetição carregada ao lado do travesseiro para se defender, por via das dúvidas. Muitíssimos anos haviam decorrido desde esse tempo, mas ela não esquecera, não queria saber de história: Salvador, Ilhéus, Itabuna, Pirangi ou Ferradas, era tudo a mesma coisa, o fim do mundo. Sem nenhuma cerimônia, o que ela dizia mesmo era: o eu do mundo.

        Jorge não perdia a esperança de convencer os pais a nos acompanhar. Havíamos de encontrar uma casa, confortável, com jardim e pomar, onde eles pudessem viver tranqüilos. Mas isso seria resolvido depois de comprarmos a casa.

       

      A PRIMEIRA TENTATIVA

        Nesse início de dezembro de 1960, logo que os meninos entraram em férias, os mandamos para Recife, onde nos aguardariam na casa de nossos amigos. Tudo fora muito bem planejado: iríamos de carro até Salvador, compraríamos a casa, o carro ficaria nela nos esperando, de avião iríamos a Recife, passaríamos as festas de Natal e Ano-Novo lá, como de hábito. Apanharíamos João e Paloma e da Bahia voltaríamos todos juntos, de automóvel. Coisa mais simples e tranqüila, impossível.

        Os velhos tomaram o místico, nome dado pelo Coronel e repetido nas risadas ao referir-se ao avião misto — carga e passageiros —, mais barato do que o de vôo normal, com direito a lanche e tudo. Por muito favor, Lalu acompanhava o marido a Pirangi, onde possuíam uma fazenda de cacau. Todos os anos, em dezembro, lá se iam os dois de avião até Pontal e de lá, numa lancha velha, desconfortável, de apelido Gasolina, iam para Ilhéus, de onde seguiam de automóvel até Pirangi. Época de colheita e de acerto de contas, o velho não deixava de estar presente para o devido controle. Apenas chegavam a Pirangi, ele montava a égua já atrelada, à sua espera, e se tocava para a roça enquanto Lalu permanecia na cidade, hóspede das sobrinhas, tratada nas palmas das mãos, tiazinha pra cá, tiazinha pra lá.

       

      A LONGA VIAGEM

        No místico, seguiram os velhos para Ilhéus, enquanto Jorge e eu partimos no Cara de Sapo, como já se sabe. O apartamento da Rodolfo Dantas ficou sob os cuidados de Milu, Emília Jacob David, amiga dos velhos, sergipana de Estância. Moça velha, mulher alta e sacudida, uma força da natureza, Milu não tinha família, quer dizer, não vou mentir, sobrara-lhe um irmão de quem ela não tinha notícias havia uns trinta anos. Milu vivia ora na casa de um, ora na casa de outro, sem endereço certo. A chegada de Milu em casa com sua loucura e sua animação era um alvoroço. Amiga leal, podíamos deixar tudo em suas mãos, sem susto.

       

        Peço licença para contar apenas uma historinha sobre o caráter, a retidão e a maluquice de Milu.

        O coronel João Amado possuía um relógio de estimação, um cuco, presente dado pelo filho Jorge, que o ganhara de um amigo, o médico mineiro Belini Burza, relógio recebido de um cliente. O cuco em sua casinha de madeira, pendurado na parede da sala de jantar, era a grande distração do velho. Relógio bom, gabava ele. Não atrasava nem adiantava, as horas sempre conferidas com o cebolão de ouro, de algibeira, preso a uma corrente também de ouro, um American Swatch Company que o Coronel chamava de meu Patek Philippe, Afinado, o cuco cantava em horas certas. Saía por uma portinhola e soltava a voz. Enquanto isso, os pesados pêndulos de ferro, em formato de pinha rematando duas correntes, se movimentavam, ora um, ora outro. Enquanto um descia, o outro subia. Acontece que, encostada na mesma parede que o cuco, bem embaixo dele, havia uma pequena mesa, um consolo, cuja altura impedia a corrente do relógio de seguir seu curso normalmente, ir até o fim. Era preciso estar sempre atento, afastar a mesa no momento exato, para que a pinha não tombasse sobre ela, o que faria o relógio parar. Isso acontecera uma vez e dera um trabalhão danado ao velho fazê-lo voltar às boas. Sempre de olho, seu João controlava e manobrava, puxava rapidamente a mesa antes que acontecesse o estrago.

        Obedecendo às recomendações a respeito do cuco, Milu seguia à risca as instruções: afastava o consolo na hora certa. Acontece que numa certa manhã de sábado, ao sair às compras, ela esbarrou de repente com o irmão, o irmão que não via há séculos. Ficou sabendo que ele morava no subúrbio do Encantado, passara por acaso em Copacabana. Do encontro resultou um convite: Milu iria almoçar com a família no dia seguinte, conheceria a cunhada e os sobrinhos, relembrariam o passado, matariam saudades.

       

        De Copacabana ao Encantado faziam-se necessárias duas ou três baldeações, não sei quantas exatamente, uma verdadeira viagem em ônibus paradores. Precavida, Milu saiu cedo de casa, comprou na padaria uns doces para os sobrinhos e se tocou.

        A viagem parecia não ter fim, contou Milu, tempos depois, ao narrar sua aventura, o ônibus parando em todos os pontos, recebendo passageiros, despejando outros... Comecei a me preocupar, o tempo ia passando e nada de chegar... desse jeito não ia dar tempo de estar de volta em Copacabana na hora de puxar a mesa. Do ponto final do ônibus até a casa de meu irmão ainda tinha uma boa caminhada. Fui ficando nervosa, agoniada, agoniada... Cheguei no portão da casa do mano, toda esbaforida, suada. Ele veio me receber, os meninos e a cunhada atrás, eu nem vi a cara de ninguém, entreguei a bandeja de doces, o papel todo amarrotado, fui me despedindo, me desculpem, fica para outra vez, tenho que voltar antes que a pinha da corrente encoste na mesa. Diante do espanto da família que não entendeu nada, ou que na certa pensou estar a pobre maluca, ela se foi rapidamente para o ponto do ônibus. Quando abri a porta do apartamento, ouvi o canto do cuco, o último antes dele soltar a corrente de vez. Ufa! Foi Deus quem me ajudou!

       

      OTIMISMO

        Vivo me gabando de ser otimista. Aliás não me gabo propriamente, não é esse bem o termo pois não considero ser o otimismo uma virtude, cada qual é como é, uns nascem otimistas, outros pessimistas. Acho apenas que tive sorte de ter nascido otimista, não me apoquento com pouca coisa, não sofro por antecipação, acho sempre — mesmo que o céu ameace desabar sobre minha cabeça — que posso dar uma guinada e seguir em frente, acreditando em dias melhores.

       

        Viajei para a Bahia, como de hábito, com esse espírito, cheia de otimismo, certa de que encontraria à nossa espera dúzias de casas, as mais belas, para comprar. Pura ilusão. Quem tinha uma boa casa não queria vendê-la.

       

      O SAPÃO BRILHA

        Não precisei recorrer ao óleo de rícino para alimentar meu carro na estrada. Nossa viagem à Bahia foi perfeita, até divertida. O Sapão não reclamou, obedeceu sempre que desejei ultrapassar um carro — aliás, quem sempre deseja ultrapassar os carros é Jorge, reclama quando me deixo ficar para trás: Ora, minha filha! Você parece que gosta de comer poeira, todo mundo passa em tua frente!... Foram dois dias de cansaço, de tensão, mas não poderia me queixar; o ID19 nos proporcionou momentos muito engraçados. Em todas as paradas ele causava sensação. Naquela época, os carros desse tipo eram raros no Brasil e, creio, o nosso era o primeiro a enfrentar a BR-316.

        Em Teófilo Otoni, por exemplo, o trânsito chegou a parar. Estacionamos um momento, para tomar um café. Ao voltarmos, encontramos o carro cercado de curiosos, meninos e adultos, vendedores de pedras semipreciosas a turistas ali estavam no maior entusiasmo. Entusiasmo que aumentou quando, ao ligar o motor, resolvi fazer uma demonstração, botando a suspensão a óleo a funcionar: Uai! Que trem mais sabido! Bonito demais da conta!, disse, surpreso, um rapazinho enquanto acariciava o capo empoeirado. Em Milagres o Sapão chegou a realizar um milagre: fez um ceguinho recuperar a vista. O pedinte cantador, de óculos pretos e cuia estendida, ao ver o carro parar em frente a uma barraquinha de frutas, foi se chegando e, esquecido de sua condição de cego, exclamou: Eta bichão porreta! Igual que este eu nunca vi.

       

      SALVADOR À VISTA

        Chegamos à Bahia muito antes do tempo previsto. Jorge dizia: Só quero ver a cara de Carybé... só quero ver a cara dele.

        Carybé, mesmo que irmão, de artes com os encantados, íntimo dos Orixás, afilhado de Exu, ele próprio um capeta, era rival de Jorge em pregar peças. Eu estava curiosa só de imaginar sua reação ao ver o automóvel. Diante do compadre embasbacado eu manejaria a suspensão, faria o carro subir às alturas.

        Cansados da viagem, sujos, suados, paramos no portão de Norma e Mirabeau Sampaio, no Chame-Chame. Ouvimos de Mirabeau e Norma — sobretudo de Norma, animada por natureza — exclamações de entusiasmo diante do Sapão. Eles haviam reservado, a nosso pedido, acomodações no Retiro de São Francisco, em Brotas, ficaríamos hospedados nessa espécie de pousada, tranqüila e barata, não iríamos gastar nosso dinheiro em hotéis caros. Norma entrou no carro, me ensinaria o caminho. Mirabeau parecia satisfeito:

        —  Eu também vou com vocês mas acho que devíamos antes dar uma passadinha pela casa de Carybé. Ele vai ficar surpreso, pensa que vocês chegam amanhã. Quero só ver a cara dele diante deste automóvel. Vai ficar humilhado. Comprou um fusquinha caindo aos pedaços, não sabe guiar mas não dá o braço a torcer. Vive fazendo barbeiragens. Capotou noutro dia em Feira de Santana. Felizmente ninguém se machucou.

        Carybé e Nancy moravam no Rio Vermelho, num sobrado em cima de uma padaria, no Largo de Santana.

        Buzinei debaixo da janela de Carybé, Norma abriu a porta do carro e da calçada berrou: Carybé!  Nancy espiou da janela, acenou com a mão, chamou o marido. Ele apareceu, olhou e sumiu, para em seguida surgir junto ao carro, limpando as mãos sujas de tinta, com uma estopa.

        —  Estava trabalhando... pelejando pra botar um cavalo de pé e o burro não querendo me obedecer — riu. De repente grudou os olhos no automóvel que subia às alturas: — Ué! Onde foi que vocês arranjaram esse Mané Pato?

        —  Mané Pato, Carybé? Você está querendo dizer Mané Sapo? — protestou Jorge.

        —  Sapo? Ora veja! De sapo ele não tem nada. É um pato, direitinho! Olhe só o bico dele! — Carybé era forte.

        Não adiantou discutir se era sapo ou pato, Carybé ganhou a parada. O apelido pegou, pegou de tal maneira que até nós, Jorge e eu, passamos a chamá-lo de Mané Pato e Mané Pato ficou sendo até o último dia de sua vida.

        Mané Pato agüentou ainda duas viagens: Bahia—Rio, Rio— Bahia. Continuava lépido, obediente, até que um belo dia, aliás, uma bela noite, ao voltarmos de uma visita a Odorico Tavares, no Morro Ipiranga, ao descer a ladeira, na escuridão, não percebi que faltava no meio da pista uma tampa redonda de ferro, das que cobrem os bueiros. Meti a roda dianteira na boca-de-lobo, o tanque do óleo bateu com violência no chão, partiu-se e, era uma vez... Lá se foi o pobre se arrastando, o óleo escorrendo até a derradeira gota, marcando uma trilha no asfalto. No portão de Mirabeau, à rua Ari Barroso, logo abaixo do morro Ipiranga, nosso Mané secou de vez, arriou para sempre; deu um último suspiro, emudeceu.

        Por mais que buscássemos um tanque para substituir o quebrado, não encontramos. Em Salvador não havia, nem por milagre. Não havia outro jeito senão despachar o carro. Numa última tentativa mandamos ele, em cima de um caminhão, para o Rio de Janeiro, onde havia uma agência da Citroen, mas nem lá conseguiram ressuscitá-lo. Nosso Mane Pato terminou seus dias num depósito de sucata. Quando penso nele ainda sinto saudades, um nó na garganta...

       

      CADÊ A CASA?

        Batíamos pernas em busca de casa, muita gente empenhada em nos ajudar e, nada. Meu otimismo rolava por água abaixo.

        Genaro de Carvalho nos aconselhara a dar uma olhada num sobrado antigo, no alto da colina, ao lado da igreja de Santo Antônio. É a casa que eu gostaria de ter, dissera. Mesmo sabendo que ela estava ocupada, fomos até lá dar uma espiada.

        Genaro nos entusiasmara: Os moradores são suíços, quem sabe se eles não estão querendo ir embora, voltar para a Europa? Não custa tentar.

        Aquela, sim, era a casa de nossos sonhos. Toda branca, contrastando com o verde do gramado, na encosta algumas árvores enormes e o mar inteiro a seus pés com direito a nascente e a poente refletidos em suas águas. Já imaginou, Jorge, nas noites de lua cheia?, comentei, romântica, já me sentindo debruçada na janela, embevecida. Ao ver-nos ali, tão interessados, a proprietária, uma senhora loira, se aproximou. Antes que ela dissesse qualquer coisa eu me adiantei: Estamos gostando muito de sua casa. A resposta veio pronta: Nós também gostamos... Só se fosse louca ela ia vender a casa, disse Jorge. Daí por diante ia ser difícil encontrar fosse o que fosse que nos agradasse. Esta era a terceira casa visitada e riscada da lista.

        Partimos para uma, na Pituba. Casa boa, nova, com frente para duas ruas, um belo terreno com árvores e flores. A proprietária, uma viúva, queria vendê-la. O preço anunciado estava dentro de nosso orçamento. Só havia um inconveniente: ficava bem na praça, ao lado da igreja, lugar movimentado e barulhento, sobretudo em dias de festas da paróquia. Esse inconveniente foi superado quando pensamos que talvez os velhos gostassem de morar lá, poderiam passear na pracinha, sentar num banco, apreciar o movimento. A casa era bem-conservada, havia acomodações para todos, até para hospedar a turma de Recife, não precisava de reformas, podíamos nos mudar em seguida. Ao procurarmos a viúva para concretizar a compra, ela não teve meia conversa: Olhe, seu Jorge Amado, esta casa está muito barata... não sei onde estava minha cabeça quando dei esse preço. E, além do mais, gosto muito dela, é a minha pérola, não faço questão de vendê-la. Tenho outras propriedades, mas esta é a minha preferida. Não encompridamos conversa, não quer vender, não vende. Ainda uma riscada da lista.

        No local dessa casa na Pituba, por coincidência, ergue-se hoje o Teatro Jorge Amado.

        Partimos para outra recomendada, na cidade baixa, em Itapagipe. Diziam maravilhas do casarão antigo, localizado em frente ao mar. Tratava-se, na verdade, de um casarão velho, caindo aos pedaços, um horror! Vimos logo que não prestava para nós. Os quartos eram enormes, altos, a pintura descascando, nas paredes manchas de percevejos esmagados. Eu as reconheci, eram iguais às que víramos nos campos de concentração na Alemanha, Tchecoslováquia e Polônia. Nesta casa encontrei uma coisa que me surpreendeu: um cachorro que ria. Ele esticava o focinho, levantava o lábio superior, mostrava os dentes num sorriso. Fiquei encantada com o animal que passou a me acompanhar por toda a parte como se fosse um velho amigo: Se ficarem com a casa, sorriu o proprietário, deixo o cachorro de presente para a senhora. E o cachorro sem a casa, não pode ser? Arrisquei, mas não pegou. Sem comprar a casa, neca de cachorro.

       

      A VOLTA DE MÃOS VAZIAS

        Não foi daquela primeira tentativa que conseguimos comprar casa na Bahia. Viemos encontrá-la meses mais tarde, ao voltarmos de avião. A viagem de automóvel fora cansativa, pesada demais para mim. Ao voltarmos para o Rio com as crianças, em fevereiro, no Mane Pato, contratamos um motorista para me revezar na direção, na longa estrada. Assim mesmo, com motorista, a viagem foi cansativa. De avião eram apenas três horas, uma beleza para mim, três horas de nervosismo para Jorge, que tem horror a viagens aéreas.

       

      PEÇO LICENÇA

        Por falar em horror a viagens aéreas, peço licença para contar uma pequena história que não tem nada a ver com a compra da casa na Bahia, mas sim com o horror de Jorge por viagens de avião.

        Há alguns anos, exatamente dez, foi conferido a Jorge o Grande Prêmio de Poesia do Mont Saint-Michel, decisão tomada em reunião de poetas no Encontros Poéticos Internacionais da Bretanha, medalha atribuída pelo livro O Gato Malhado e Andorinha Sinhá. O prêmio seria entregue no próprio Mont Saint-Michel — a oitava maravilha do mundo — durante o festival anual de poesia, comandado pelo poeta francês Claude Couffon e pela presidente do Encontros Poéticos, Dodik Jegou. Conhecer o Mont Saint-Michel era um velho desejo meu e eu me sentia encantada com essa perspectiva.

        Nosso avião, de companhia de vôos domésticos, sairia do aeroporto de Orly, uma hora apenas de viagem até Saint-Malo, na Bretanha. De lá ao Mont Saint-Michel teríamos ainda uma boa meia hora de automóvel.

        No momento do embarque, descobrimos que viajaríamos num turboélice, bimotor, para doze passageiros, e Jorge se alarmou:

        — Se eu soubesse que ia viajar num aviãozinho desses, não teria vindo.

        —  Às vezes um aviãozinho desses é mais garantido do que um aviãozão — disse à guisa de conforto, conforto que não pegou, pois Jorge continuou reclamando, nervoso.

        No avião lotado, couberam-nos os assentos ao lado do motor. Apenas levantáramos vôo olhei pela janelinha, queria ver Paris do alto. As únicas coisas que eu via, no entanto, eram o motor e a hélice do aparelho. Sobre a chapa de metal abaulada do motor, vi escrito: Rolls-Royce. Me animei:

        —  Fique tranqüilo, Jorge, estamos garantidos por um possante motor Rolls-Royce.

        —  E o que é que você quer dizer com isso? — irritou-se ele.

        —  Então você não sabe que o Rolls-Royce é o melhor motor do mundo? Dizem até que não encrenca nunca.

        —  E onde foi que você descobriu que o motor é Rolls-Royce? Afastei a cabeça para dar espaço, queria que ele mesmo

        lesse.

        —  Pois olhe — disse Jorge em tom de ironia —, o teu motor que nunca encrenca acaba de encrencar. A hélice está parando.

        Olhei. Vagarosamente, a hélice acabara de dar sua última volta. Ouviu-se, em seguida, a voz do comissário de bordo: Senhores passageiros, acabamos de ter uma pequena pane no motor esquerdo, nada de grave... Nesse momento o tumulto e o pânico se generalizaram. Por favor, pedia o comissário, conservem-se em seus lugares, sobretudo evitem o pânico! Vamos aterrissar num campo de emergência. Com a colaboração de todos chegaremos a terra sem problemas.

        Adernado, o avião descia lentamente. Morta de medo, pela primeira vez na vida tive a sensação de ver a morte se aproximar. Se o motor que era Rolls-Royce pifara, o outro, igualzinho, poderia muito bem também pifar e aí estaríamos fritos. Mil pensamentos passaram por minha cabeça: não ia mais ver meus filhos, ia morrer sem conhecer o Mont Saint-Michel. Segurei a mão de Jorge: se é pra morrer ao menos que morramos de mãos dadas.

        —  Me dê o jornal que está no bolsão em tua frente — disse Jorge, a voz quase tranqüila.

        —  E você vai ler jornal, numa hora destas?

        —  Ao menos morro sabendo as notícias...

        Após meia hora de agonia, aterrissamos no tal campo de emergência, com ambulâncias e carros de bombeiro à nossa espera.

        Mesmo depois dessa experiência, continuo preferindo as viagens de avião a outro meio qualquer de locomoção. Você é uma irresponsável, costuma dizer Jorge. Você não tem jeito.

       

      JORGE VESTE FARDÃO

        Nosso plano, ao voltarmos ao Rio, no início de 1961, era acertar o colégio dos meninos, esperar que os velhos voltassem da fazenda, orientar a empregada, organizar as coisas lá em casa para então tomar um avião e voltar para a Bahia a fim de continuar a via-crúcis em busca de casa. Mas nosso plano falhou, aliás, nunca podemos fazer planos e contar certo com eles. Sempre acontece alguma coisa, que impede. Dessa vez foi a eleição da Academia Brasileira de Letras.

        Com a morte de Otávio Mangabeira, Jorge candidatou-se à sua vaga na cadeira 23, cujo patrono é José de Alencar e o fundador, Machado de Assis. Em eleição tranqüila ele foi eleito a 6 de abril. A cerimônia da posse fora marcada para daí a três meses, Jorge devia escrever seu discurso de posse, devia atender a entrevistas de jornalistas de toda parte, e experimentar o fardão... Ah! O fardão! Habituado a roupas leves, sandálias nos pés, que penitência experimentar o fardão! Não podíamos, de forma alguma, pensar em viajar antes da posse na Academia.

        Por falar em fardão, peço licença para contar uma historinha sobre o fardão: na noite da posse na Academia, enquanto ajudava Jorge a se vestir, ouvia ele reclamar da escravidão do fardão justo, de lã quente, os bordados a ouro, segundo ele, esses bordados pesam que é um horror!

        Dei um passo atrás, olhei-o dos pés à cabeça, encantada: Pronto! Já está prontinho, lindo!

        —  Me dê uma tesoura aí — ordenou ele.

        —  Uma tesoura? Para quê?

        —  Não pergunte nada, Zélia, me dê uma tesoura, depressa! Assim dizendo, foi desabotoando a casaca — é casaca ou fraque? — que me dera tanto trabalho abotoar. Apanhou a tesoura que lhe entreguei e, antes que eu dissesse qualquer coisa ou tentasse impedi-lo, foi cortando o colarinho branco, alto, duro de goma, deixando-o esfiapado, rente à parte escura de lã. Em seguida me devolveu a tesoura: Muito obrigado. Agora vou me sentir mais aliviado, melhor.

        Ao ver o filho de fardão, de chapéu bicorne com arminhos, capa e espada, seu João, que nesse dia envergara o melhor terno e colocara no dedo mindinho o anelão de brilhante, sorriu satisfeito. Meu filho!, murmurou e não conseguiu dizer mais nada. Nesse dia Lalu foi ao cabeleireiro, vestiu o traje bordado de miçangas, elegante, feito pela sobrinha Diná, famosa modista. Não perdeu a oportunidade de querer me convencer mais uma vez a desistir da Bahia: Tu tá vendo, fia? Na Bahia tem Academia de Letras, com todo esse luxo?

        Jorge completaria 49 anos daí a um mês, a 10 de agosto, e os amigos, no Rio, preparavam-lhe uma festa. Viajaríamos depois.

 

      VOLTA À BAHIA

        Ao voltarmos à Bahia, em setembro, por pouco não compramos a casa do Morro das Margaridas, na Mariquita, no Rio Vermelho, bem localizada, no alto de uma colina, paisagem de todos os ângulos. Ao examinarmos a planta, porém, verificamos que aquele terreno todo que a circundava, não era, como nos haviam dito, área verde da Prefeitura, intocável. Era, isso sim, terreno loteado, muitas casas e edifícios seriam levantados em torno tirando-lhe completamente a vista e a privacidade, o mais importante para nós, já que a casa não era grande coisa, precisava de muitas reformas.

       

      SONATA

        Em outubro de 1961, assinamos, finalmente, a escritura de nossa casa na Bahia, localizada à rua Alagoinhas, bem no alto de uma ladeira, no Rio Vermelho. Ela pertencia a um pianista suíço, Jean-Sebastian Benda, contratado pela Universidade da Bahia para ensinar no Seminário de Música. Família de músicos, a mãe violinista, a irmã e a mulher, uma jovem baiana, pianistas. O contrato com a universidade estava para terminar e a família, acrescida de dois filhinhos, preparava-se para regressar à Europa. Vendemos a casa com muita pena, disseram.

        Essa não era, de jeito nenhum, a casa de nossos sonhos. Grande e desconfortável, ela necessitava de reformas, de muitas reformas para que ficasse a nosso gosto. O que nos encantou, no entanto, foi o terreno enorme e a deslumbrante vista, descortinando o Rio Vermelho, Descobrimos também uma coisa bonita — coisa que nos agradou —, a casa tinha nome, um nome poético: Sonata.

        Dois grandes sapotizeiros, seculares, eram as únicas árvores existentes no terreno, cheio de mato rasteiro. De nosso terraço podíamos ver o mar em toda a sua grandeza, a Igreja de Santana e o pequeno porto de pescadores, de onde, a 2 de fevereiro, sai a procissão de barcos, levando os presentes que o povo oferece a Yemanjá.

       

      PROCISSÃO DE YEMANJÁ

        Na grande festa popular dedicada à Rainha do Mar, orixá da devoção dos pescadores, o espetáculo do pôr-do-sol, na hora da viração, é inigualável: dezenas de embarcações a vela, carregadas de oferendas as mais diversas, desde os sabonetes e pentes para a sereia lavar-se e pentear-se, aos espelhos para se mirar, frutas, flores, muitas flores, levados pelo povo que, paciente, em filas quilométricas, aguarda sua vez de depositar o presente num balaio e fazer o seu pedido.

        O balaio, quando cheio, é colocado no barco. Vento soprando, velas enfunadas, eles se distanciam, lentamente, um atrás do outro, até perderem-se no infinito. Só então os cestos, transbordando de prendas, são depositados no mar. Os presentes que afundam são os que a sereia aceita e o pedido será atendido; repudiados, os que flutuam.

        Assistiríamos de nossa casa, de nosso terraço, à festa da Mãe-d'Água, a procissão marítima seguindo até o fim.

       

      Rio VERMELHO

        Bairro popular, distante do centro da cidade, levando-se em conta as maltratadas vias principais. Até de bonde podia-se ir ao Rio Vermelho, bonde aberto, pesado, que fazia ponto final, no largo da Amaralina. Nossa rua, a rua Alagoinhas, era mal calçada, rua de casas modestas e nenhum edifício.

        Ao saber da compra da casa, todo mundo se admirou: por que no Rio Vermelho e não num bairro nobre, como a Barra, o Corredor da Vitória, por exemplo? Por que vão morar tão longe? Longe de quê, meu Deus do céu? Longe da Praça Castro Alves e da rua Chile, o chamado centro da cidade? Estávamos contentes de morar no Rio Vermelho, contentes da vizinhança de nossos amigos.

       

      VAMOS PLANTAR?

        As férias dos meninos se aproximavam e queríamos passá-las juntos na casa nova. Casa nova é maneira de dizer. Na casa que deveria ir abaixo para ser reconstruída a nosso gosto. Trabalho demorado e custoso, não queríamos nos apressar, começaríamos as obras em 1962, os meninos ainda voltariam ao Rio para estudar. Podíamos, no entanto, tratar do terreno, iniciar uma plantação. Habitaríamos provisoriamente na casa do jeito que ela estava.

        De Cruz das Almas, da escola de agronomia, conseguimos um presente régio: mudas de laranjeiras, de limas, de tangerinas, frutas de boa qualidade. Entusiasmado, Jorge providenciou um jardineiro para começar a faxina no terreno.

        Não fui com a cara de seu Quiquinho, achei-o com toda a pinta de preguiçoso e de sabido. Pediu dinheiro para comprar adubo, sabia onde vendiam adubo. Dias depois um caminhão despejou em nosso terreno montanhas de lixo: misturadas com a terra, latas de sardinha vazias, papéis apodrecidos, uma fedentina a atrair todas as moscas do Rio Vermelho e adjacências.

        Jorge não teve dúvidas, despachou o tal Quiquinho no mesmo dia. Jardineiro era o que não faltava. Chegou seu Ambrósio, homem pacato, boa cara. Seu Ambrósio capinou o terreno todo, fez uma limpeza geral em poucos dias e, mãos à obra: numa só jornada, de manhã à noite, conseguiu plantar todas as laranjeiras. Ninguém mais feliz do que Jorge ao mostrar a Carybé a plantação:

        —  O senhor está convidado com dona Nancy a voltar aqui em breve para saborear as laranjas — dizia com orgulho.

        —  Muito obrigado, compadre — retrucou Carybé. — Eu também convido você e a comadre Zélia a provar as frutas de meu pomar. Acabo de comprar uma casa em Brotas com um terreninho de fazer gosto, todo plantado de bananeiras, jaqueiras, pitangueiras, mangueiras, goiabeiras, tudo crescido, dando frutas — anunciou Carybé, também orgulhoso. — Estou me mudando.

        Íamos perder a vizinhança de Carybé, uma pena, mas, afinal de contas, isso não era motivo para ficarmos tristes, Nancy e Carybé não iam para tão longe. Brotas ficava logo ali, de nossa casa à casa deles não levava, de automóvel, mais de quinze minutos.

        Pela manhã, ao despertarmos, tivemos a maior decepção, a maior tristeza: nossas laranjeirinhas, plantadas com tanto entusiasmo, lá estavam, completamente peladas, nem uma única folha em seus galhos. O terreno era minado de saúvas, vorazes formigas que só aparecem à noite. Elas haviam encontrado seu prato predileto: folhas de laranjeiras, feito a festa, e se encontravam recolhidas debaixo da terra, empanturradas.

 

      ZUCA, o MATADOR DE FORMIGAS

        Agora, chegava Zuca. De jardinagem ele não entendia nada, mas em formigas era doutor- Contratado para liquidar as inimigas, ele fez um exame no terreno: Aqui tem muita e as que vêm de fora são ainda mais, diagnosticou. Vamos ter que liquidar todas as daqui e também as dos vizinhos. Enquanto isso, não vale a pena plantar nada. É plantar e perder.

       

      INTIMAÇÃO

        Carybé chegou pela manhã, trazendo uma jaca: E lá da casa de Brotas.

        Lamentava o estrago das saúvas, quando bateram à porta. Um rapaz queria entregar em mão própria um papel para Jorge. O senhor assina aqui, disse abrindo um livro de protocolo. Jorge deu uma olhada por alto, assinou e despachou o rapaz: Está entregue.

        Só então foi ver direito do que tratava o documento. Carybé se aproximou, espichou o olho no papel enquanto Jorge, intrigado, sem compreender o que aquilo significava, pediu: Veja se você entende isso, Carybé.

        Tratava-se de um papel timbrado com as armas da República, da Justiça do Trabalho, notificando o Dr. Jorge Amado para uma audiência de uma reclamação trabalhista proposta por Francisco Bispo dos Santos. Mais abaixo, dizia que o não comparecimento implicaria em revelia e confissão. Mais abaixo, ainda: Pede-se trazer a contestação por escrito. Solicita-se, também, organizar os documentos oferecidos como prova em ordem cronológica e reunidos em uma pasta, caso ultrapassem 50 (cinqüenta) folhas.

        — Você está entendendo isso, Carybé?

        —  É uma intimação...

        —  Até aí eu entendi — disse Jorge. — Mas intimação de quem? De quê? Quem é esse tal de Francisco Bispo dos Santos?

        —  Você não conhece? — indagou Carybé.

        —  Conheço coisa nenhuma. Vai ver que se enganaram...

        —  Pense bem, Jorge. Como era o nome daquele jardineiro do estrume podre, o que você despediu? Talvez seja esse sujeito.

        Jorge nem lembrava seu nome:

        —  Como era, Zélia?

        —  Quiquinho — respondi.

        —  Pois aí está — entusiasmou-se Carybé, que acabava de decifrar a charada. — Quiquinho é apelido de Francisco. Veja bem: Francisco, Francisquinho, Quinho, Quiquinho. É o próprio que está te intimando, não há dúvida.

        —  Mas eu paguei a ele o que nem devia ter pago...

        —  Ele te deu recibo?

        —  Recibo, Carybé? Qual é o recibo? Um analfabeto que nem sabe assinar o nome... Nunca pedi recibo a empregados.

        —  Pois faz muito mal. A gente deve sempre pedir recibo para evitar essas amolações.

        Jorge ficara enfurecido. Que miserável! Jogou lixo no meu terreno, recebeu como se fosse adubo de primeira e vem com essa... Eu também estava furiosa, não somente com o pobre-diabo, ladrão descarado, como também, e sobretudo, com o juiz do Trabalho, de assinatura ilegível a mandar tal convocação:

        —  Eu acho que você nem deve se apresentar, Jorge. Não vai te acontecer nada.

        —  Não vai acontecer? — interveio Carybé — Com essa Justiça do Trabalho, nunca se sabe. Quem é esse juiz? Certamente algum reacionário, teu inimigo que quer te ver no xilindró.... Não convém abusar... Eu acho que você deve fazer a contestação por escrito, como eles pedem, organizar os documentos oferecidos como prova, ainda como eles exigem, arrumar as testemunhas e esperar pela absolvição.

        —  Absolvição!? — explodiu Jorge. — Devo contestar por escrito para ser absolvido? E isso? Absolvido de quê? — Jorge espumava, berrava. — Oferecer documentos como prova? Prova de quê? Não vou escrever porra nenhuma, não tenho por que fazer contestação... Não sou nenhum moleque! O que eu vou fazer, isso eu já sei. Vou procurar o Walter da Silveira. Ora! Absolvição! Vou mostrar a eles a absolvição! — esbravejava Jorge.

        Jorge voou para o telefone. Falou com Walter, que se inflamou em seguida. Velho amigo, advogado trabalhista, conceituado e temido, Walter da Silveira brigava e não perdia causas, sempre ao lado do empregado contra o empregador. Desta vez faria uma exceção, o caso era muito especial, defenderia o empregador, no caso seu amigo Jorge Amado, vítima de um juiz cretino. Resolvo esse caso com um pé nas costas, deixa comigo. Queria saber de qual junta viera a convocação. Ao tomar conhecimento, deu um berro, conhecia muito bem o juiz, um cretino, seu desafeto, ele ia ver o que era bom. Combinaram um encontro para mais tarde, ele não devia se preocupar.

        Mais tranqüilo, Jorge nos contou, com todos os detalhes, sua conversa com Walter.

        —  E o que é que você acha que ele vai fazer? — quis saber Carybé.

        —  Acabar com esse juiz. Walter é inimigo dele. Disse ter sido muito sacaneado por ele, e que agora chegou a sua vez de tirar a forra. Vai até ao governador se for preciso.

        Carybé se despediu, Nancy o esperava em casa, devia levar Sossó e Ramiro à escola. Antes de sair, me fez um sinal para que o acompanhasse até a porta.

        —  Olha, comadre — recomendou-me, apressado —, diga a Jorge que desista do Walter.

        —  Desistir do Walter, por quê? — me admirei.

        — Olha, não vá contar nada pra ele, isso é uma brincadeira minha, de Tibúrcio e de Gisela. — Assim dizendo, saiu apressado, me deixando sem ação.

       

      REVANCHE

        Se Carybé pensava que eu ia guardar segredo, mancomunar-me com ele contra Jorge, estava redondamente enganado. Jorge precisava saber, o quanto antes, que tinha caído que nem um patinho no trote de Carybé. Precisava acabar, o quanto antes, aquela agonia. E foi o que fiz, contei-lhe tudo em seguida:

        O que é que você está me dizendo? Carybé? Coisa de Carybé? Ora! Só podia ser coisa dele mesmo e eu, idiota, fui cair nessa!, enfureceu-se Jorge, ao saber de tudo. Carybé me paga, ele vai me pagar caro! Que miserável! Armou tudo direitinho, até uma jaca me trouxe para estar aqui no momento, gozar com a minha cara, se divertir à minha custa... que miserável.', repetia. Falou até em absolvição... E onde é que ele foi buscar o papel timbrado da Justiça do Trabalho? Só pode ter sido obra do Tibúrcio. Ele não te disse que armou tudo com Tibúrcio e Giseía? Eu até entendo ver Tibúrcio envolvido, advogado, procurador do Trabalho com entrada franca no Tribunal... Mas Gisela? O que é que essa gringa, que mal conheço, tinha que se meter?

        Americana, viúva de José Valadares, conceituado crítico de arte, Gisela, também pessoa estimada na Bahia, era dona de uma escola de inglês, a EBEC. Entre tantos amigos era íntima de Nancy e Carybé. Dagmar Barreiros, mulher de Tibúrcio, era sócia de Gisela, ambos igualmente amigos do casal. Segundo me contou Nancy, de um encontro da turma e de conversas sobre a volta de Jorge para a Bahia foi que surgiu a idéia de lhe pregarem uma peça.

        Jorge dava tratos à bola, a vingança devia começar o quanto antes:

        —  Fale com Carybé ou Nancy, com Nancy até é melhor. Não diga que me contou e confirme a minha ida com o Walter ao Tribunal.

        —  Você não vai falar com o Walter? — perguntei, já sabendo a resposta.

        —  Claro que vou falar com Walter, ou você acha que eu não devia falar?

        Jorge continuava muito nervoso, agitado, e eu tratei de sair de baixo:

        —  Vou dar um tempinho, o tempo de Carybé chegar em casa, para então telefonar.

        Ao saber que tudo não passara de um trote de Carybé, Walter ficou desolado, perdia a chance de arrasar o juiz. Prometeu sigilo, com muito prazer ajudaria Jorge a dar uma lição ao sacripanta.

        Não foi preciso eu chamar, Nancy telefonou nos convidando para jantar em casa deles. Carybé tomou do fone, queria saber das novidades. Tudo na mesma, compadre, e não adiantei mais nada.

        Convidados também para jantar lá estavam os componentes do complô: Tibúrcio com Dagmar e Gisela, que foi ao encontro de Jorge, toda fagueira:

        —  Mas que chateação, hem, Jorge? Carybé me contou tudo. Agora me diga, cá entre nós, você pagou ao jardineiro?

        Gisela nem sonhava com quem estava se metendo. Tive medo de que Jorge explodisse, mas ele manteve a linha. Essa vai pagar caro, pensei.

        Carybé e Tibúrcio me chamaram em particular, no quarto, estavam doidos por notícias. Tibúrcio apavorado com o que podia lhe acontecer caso descobrissem o seu envolvimento na trama, a folha surrupiada do Tribunal, a falsificação da assinatura do juiz. Antes que me perguntassem algo, me adiantei:

        —  Olha, compadre, não consegui convencer Jorge a desistir de Walter. Já está tudo combinado, eles vão juntos ao Tribunal, amanhã cedo. Jorge resolveu ir também para dizer as últimas ao juiz, ele está furioso.

        Tibúrcio ria amarelo, Carybé sem saber que rumo dar aos acontecimentos.

        —  E se eu mesmo falar com o Walter, disser para ele não ir? — sugeriu Carybé.

        —  Você quer contar a ele que tudo não passou de uma farsa?

        —  É, que tudo não passou de uma brincadeira — corrigiu ele. — Afinal de contas, o melhor seria acabarmos de vez com esta história e rirmos todos juntos...

        Carybé e Tibúrcio estavam tão agoniados, tão nervosos que cheguei a ter pena.

        Nancy apareceu, Jorge me chamava, queria ir para casa dormir, precisava levantar-se cedo, marcara encontro com o Walter às sete horas da manhã. Ao nos acompanhar à porta, Nancy me deu um particular, desabafou: Carybé inventa essas brincadeiras... agora está sofrendo que nem um danado, não vai dormir esta noite.

        Ao chegarmos em casa, pedi a Jorge que telefonasse, tranqüilizasse o compadre que de tão aflito podia ter uma coisa... O castigo dele e de Tibúrcio só vai terminar amanhã, depois da noite maldormida, disse. Quanto à Gisela, ela que aguarde.

        Depois da noite maldormida, Carybé apareceu. Fora à casa de Walter e, como chegara muito cedo, não se atrevera a tocar a campainha, ficara tocaiando a saída do advogado para o Tribunal. Também seu amigo, Walter ouviu a explicação do que já estava farto de saber, deu o assunto por encerrado. Agora, todo lampeiro, vinha o peste oferecer seus préstimos a Jorge, podia ajudá-lo a castigar Gisela, a danada que teve a idéia da brincadeira. O santinho dizia ter apenas entrado de gaiato no imbróglio. Jorge fingiu acreditar e tratou de aliciar o compadre, que lhe daria boa ajuda na trama da vingança.

       

       VENDETTA

        O anúncio, de três colunas, na primeira página do jornal A Tarde dizia:

        BOLSAS DE ESTUDO EM UNIVERSIDADE AMERICANA

        A escola de inglês, EBEC, na rua João das Botas, em prosseguimento à campanha de intercâmbio cultural Brasil-Estados Unidos, oferece aos vinte primeiros candidatos que se apresentarem na manhã do dia 12, segunda-feira, à citada escola, uma bolsa de estudos de três meses nos Estados Unidos. Passagens pagas, estada e duzentos dólares por mês. Pede-se levar documento de identidade e diploma de curso primário. Assinado: A diretora Gisela Valadares.

       

      CONFUSÃO NO CANELA

        A rua João das Botas, no bairro do Canela, amanheceu congestionada. Centenas de pessoas aglomeravam-se em frente à EBEC. Candidatos às bolsas de estudo anunciadas em A Tarde, na véspera, tentavam entrar na escola, falar com os responsáveis. De jornal na mão, impacientes, esperavam ser atendidos, porém ninguém os atendia. A paciência se esgotara havia muito. Chegavam candidatos, cada vez mais, e o tumulto se generalizava.

        Os detalhes do que aconteceu depois, soubemos pelo olheiro Carybé que, metido entre o povo, ouvia as reclamações, divertindo-se à grande. A muito custo consegui entrar na escola. Ao me ver, Gisela, furiosa, gritou: isso é coisa daquele moleque... o moleque era você... dei um conselho: ela devia colocar um cartaz fora da poria avisando que as vagas já haviam sido preenchidas. Confusão muito grande, as professoras tendo chilique, ninguém sabendo pra que lado se virar, quer saber de uma coisa?, acabei fazendo o cartaz, eu mesmo... amigos são para esses momentos... Os dois compadres riam de se acabar.

        —  Quer dizer que ela estava furiosa? Boa!

        — Furiosa é apelido. Ela estava desesperada, histérica, com medo de que o povo invadisse a escola, rebentasse aquilo tudo... E quase invadiram mesmo. Não chegaram a forçar a porta mas ameaçaram, gritaram, disseram todos os desaforos que você pos* sa imaginar.

        —  Agora só está faltando o último detalhe da vingança — disse Jorge.

        —  Qual é o detalhe, compadre? Você não acha que já está bom?

        —  Eu só quero ver a cara dela quando chegar a cobrança do anúncio, ou você esquece que ele foi feito em nome dela?

        Sobre esse detalhe também tivemos notícia: ao atender o funcionário de A Tarde com a nota de cobrança do anúncio, de dez mil cruzeiros, Gisela endoidou: Vá cobrar daquele vagabundo do Jorge Amado! Acabou pagando. Ainda um inesperado arremate da vingança, detalhe que não entrara no esquema do plano: pressionada com ameaça de processo, por candidatos de maus bofes, Gisela viu-se obrigada a dar três bolsas de estudo na própria EBEC, em Salvador.

       

      O ARQUITETO

        A casa do escultor Mário Cravo, no Rio Vermelho, era ponto de reunião de intelectuais da Bahia e dos que vinham de fora. Rodeada de um grande terreno repleto de esculturas do artista; casa iluminada, estava sempre aberta para receber a quem lhes batesse à porta. Íamos freqüentemente à casa de Lúcia e Mário.

        Lá nos reuníamos com Mirabeau Sampaio, Carybé, Jenner Augusto, para grandes papos e gostosas gargalhadas. Foi na casa do escultor, em janeiro de 1962, que conhecemos Gilberbet Chaves, jovem e talentoso arquiteto. Esta é a pessoa indicada para reformar a casa de vocês, disse Mário, ao nos apresentar ao moço e a Sônia, sua noiva. Mário admirava o trabalho e a competência do jovem.

        Devíamos voltar para o Rio depois das férias dos meninos. Nesse movimentado ano da Copa do Mundo, no Chile, tínhamos programado uma viagem a Cuba, devíamos partir em maio. Não podíamos pensar em obras naquele ano, certamente as faríamos em 1963. Enquanto isso, manteríamos uma na vete entre Rio de Janeiro e Bahia e os meninos continuariam estudando no Andrews por mais um ano.

        Gilberbet Chaves comprometeu-se a nos apresentar um projeto para a nossa aprovação, trataria do assunto com cuidado e carinho, faria o estudo com calma, já que não estávamos apressados.

       

      As BANANAS DE PERNAMBUCO

        Mesmo no desconforto da casa, havíamos convidado Dóris, Paulo Loureiro e as duas meninas para as festas do 2 de fevereiro.

        Felizmente Zuca já nos dera sinal verde para recomeçar a plantação. Ele continuava se ocupando dos formigueiros da vizinhança, não deixaria que elas voltassem ao nosso terreno.

        No Instituto Biológico da Bahia, compramos plantas, muitas plantas, mudas já crescidas. Contratamos Zuca como jardineiro esperando que, sob a nossa orientação, ele desse certo. Jardineiro inexperiente, porém bom matador de formigas, boa pessoa. 

        Estava Zuca na lida de plantar bananeiras, quando chegou a família Loureiro. Paulo vinha disposto a descansar, deitar-se numa rede, curtir a preguiça. Encontrou em Zuca a pessoa ideal para uma conversa fiada.

        — De que qualidade são essas bananeiras que você está plantando? — perguntou Paulo a Zuca.

        —  Aqui tem banana de toda a marca, doutor: prata, ouro, maçã, da-terra, São Tome...

        —  Só essas? Em Pernambuco nós temos muito mais. Por exemplo: temos a banana de canudo, você conhece a banana de canudo? Pois é uma que se espreme com as mãos e depois se toma o suco de canudo, feito refresco. Você não conhece?

        Zuca sorriu:

        —  Doutor Paulo é tão interessante...

        —  E a banana de metro, a que cresce até arrastar no chão? Outro sorriso:

        —  Essa também não, doutor Paulo.

        — E a de saca-rolha? Uma beleza ver as bananas encaracoladas...

        Educado, Zuca apenas esboçou um sorriso: Ai, doutor Paulo!

       

      2 DE FEVEREIRO

        A festa do 2 de fevereiro era novidade para Dóris e Paulo. De nossa casa podia-se ouvir a música, assistir a tudo do alto, mas preferimos participar de perto, sentir o calor do povo, falar com as pessoas. Entramos na fila para levar flores a Yemanjá, comemos abará e o delicioso acarajé frito na hora, no azeite-de-dendê, pelas baianas de roupas bordadas, alvas, impecáveis. Mãos hábeis giravam a grande colher de pau no caldeirão de alumínio a bater a massa do acarajé, o odor da cebola dourada no azeite fervendo, espalhando -se pela praça, subindo por nossas narinas. Nas barraquinhas de bebidas e peixe frito, o povo abrigava-se do sol, descansava, emborcava sua cerveja, batia papo, cantava. Nos sentamos numa barraca, escolhemos uma que dava sobre o mar: de lá podíamos receber a doce brisa, ver o movimento dos barcos recebendo os presentes, podíamos ouvir conversas divertidas e acompanhar os passos de nossos filhos que, enturmados com Mariozinho Cravo, Maria de Mirabeau e Sossó de Carybé, se espalhavam no meio da folia.

        Os Loureiro haviam chegado por uma semana apenas, desejavam assistir à tão falada festa de Yemanjá, cantada por Dorival Caymmi, exaltada por Jorge Amado. Regressavam encantados, aproveitariam ainda uns dias de férias em Maria Farinha, onde Amaro Amarelo os aguardava com varas de pesca e anzóis.

        Da próxima vez viriam também os Antunes, para férias completas.

       

      VIAGEM A CUBA

        O convite partira de Nicolás Guillén, poeta cubano, maravilhoso, nosso compadre e amigo, companheiro de imensas viagens por esse mundo afora. Proibido de viver em Cuba durante o governo de Batista, vivera perambulando pelo mundo, viera algumas vezes ao Brasil, regressara à sua pátria somente após a vitória de Fidel Castro. Ocupava um alto posto no Ministério da Cultura e nos convidara para visitar Cuba, a nós, a Carybé e a Nancy.

        Saímos do Rio de Janeiro no mês de maio, para Cuba, devendo mudar de avião no México. Desembarcamos no aeroporto da Cidade do México, escala para Havana. As autoridades policiais examinaram nossos passaportes e mandaram que esperássemos um momento e, sem nenhuma explicação, nos fotografaram de frente e de perfil. A marca do Zorro, disse Carybé, ironizando. Acabamos de ser fichados pelo FBI, afirmou Jorge, não escondendo o seu desagrado.

        A emoção de ir a Cuba, conhecer de perto esse país tão atacado por uns e louvado por outros, acrescentávamos o prazer de rever nossos compadres Nicolás e Rosa, sua mulher. Não permitimos que a violência sofrida ao chegarmos ao México viesse perturbar nosso entusiasmo.

        Nosso hotel era o Rivera, gigantesco, luxuoso, construído para receber milionários americanos, hospedava agora delegações de sindicatos operários de todas as partes do mundo, hospedava pessoas que jamais haviam entrado num hotel dessa categoria a não ser para trabalhar. Nele continuavam os mesmos móveis de sua inauguração, os mesmos quadros, porém sem o mesmo cuidado.

        De seu quarto, no andar acima do nosso, Carybé telefonou. Subam um momento,

        O que seria que o compadre havia descoberto? Subimos, curiosos.

        —  Espiem só.—Apontava um quadro, o maior entre vários pequenos.

        —  Uma natureza-morta. E daí? — disse Jorge.

        —  E daí? Se aproxime, repare bem.

        A essa altura eu já estava junto do quadro. Inúmeras assinaturas e frases ali rabiscadas sobre o colorido das rosas e das orquídeas da natureza-morta indicavam a identidade dos hóspedes que nos haviam antecedido. Espie aqui, Carybé apontava um coração atravessado por uma flecha, amor de Alméria e Ricardo. Havia frases: Estive aqui e gostei João P. dos Reis; Amor de Rosália Perez e Daniel; Viva el proletariado!, Abajo el sangriento Batista, assinado Juanito, él justicero. E aqui, neste cantinho, vocês não viram nada? No cantinho indicado pelo compadre, um lindo anjinho, nas mãos um pergaminho com assinaturas: Nancy e Héctor Júlio.

        —  Por que você não assinou Carybé, compadre? Teve medo?

        — Porque não sou besta. Carybé todo mundo sabe quem é, Héctor Júlio ninguém conhece, não sabem que sou eu. No quarto de vocês também tem quadros escritos?

        Não havíamos reparado, mal tivéramos tempo de abrir as malas. Nicolás nos deixara no hall do hotel, voltaria para nos apanhar dentro de uma hora.

        Os quadros autografados não eram um privilégio de Carybé, nós também tínhamos vários quadros em nosso quarto, mas o preferido para as assinaturas era o maior, também uma natureza-morta.

        Antes que pudéssemos impedi-lo, Carybé sacou do lápis, riscou uma caricatura de Jorge, nu, segurando um coração e dentro do coração: amor de Zélia e Jorge Amado. Mais respeito, Carybé, estamos num país..., não encontrava um adjetivo à altura de Cuba, num país... civilizado, acabei dizendo, e você não vai fazer das suas. Carybé ria de se acabar, Jorge também ria, Nancy, a mais comportada, ria menos.

       

      TíQUETES PARA AS REFEIÇÕES

        Acompanhado de uma secretária, Nicolás nos trazia o programa de nossa estada em Havana.

        — Vocês vão receber, estão aqui neste envelope, os tíquetes para as refeições. Vocês sabem que estamos em situação difícil, sabotados pelos Estados Unidos que nos fecharam as portas e nos isolam. Estamos num momento de restrições, vocês vão receber os mesmos tíquetes que todo mundo recebe. Nada de privilégios, tudo muito democrático.

        —  Quer dizer que cada cidadão cubano recebe tíquetes para comer? — perguntei.                                                       

        —  Isso mesmo, comadre, aqui ninguém passa fome..

       

      PASSEIO A PÉ PELO CENTRO

        Saímos andando pelas ruas do centro, e, confesso, fiquei chocada com a falta de conservação das casas: descoloridas, abandonadas, pintura e reboco caindo. Poucos automóveis circulavam, em geral veículos antigos, americanos, caindo aos pedaços, muita gente nas ruas. Passou por nós um caminhão cheio de homens cantando. São voluntários que vão cortar cana, explicou Nicolás, muita gente desertou, estão faltando braços para trabalhar.

        A cada observação nossa, Nicolás dava explicações, aliás, para todos os problemas, quase a mesma explicação: falta de divisas, falta de braços, não ter a quem comprar. Não se pode gastar divisas comprando tinta para pintar as casas e deixar de comprar monumentos para alimentar o povo... não temos peças de reposição para os automóveis, nem podemos importar carros novos. Os que aí estão, se não houver um recuo dos Estados Unidos, vão acabar e não haverá outros para substituí-los.

        Nicolás fez questão de nos levar à Bodeguita del Médio, célebre taberna, no centro de Havana, onde artistas se reúnem para tomar um trago, conversar, cantar, tocar violão. Nicolás sempre nos falava da saudosa Bodeguita, quando juntos viajamos pela China, Mongólia, União Soviética, Tchecoslováquia, França.

        Recebido com ovação pelo pessoal da tasca, don Nicolás pra cá, don Nicolácito pra lá... Pedimos ao jovem que dedilhava um violão que cantasse a música sempre cantarolada por Nicolás em viagens, música que ficara em meus ouvidos: Me voy al pueblo /  I hoy es mi dia /  me voy al centro llenar la calavera... la-ra-la-la, la,la,la,la,la,la... Gostou, comadre? Estávamos os dois emocionados.

        Para o trago não eram necessários tíquetes, para o tira-gosto, de pão e salame, sim. A maioria dos restaurantes havia fechado suas portas. Nicolás apontou para um restaurante adiante, no outro lado de uma praça: Naquele se come divinamente... se come?, corrigiu rindo, mia, se comia. Sempre rindo, Nicolás explicou: Já não se pode comer lá, está fechado.

        Almoçamos numa tasca popular—popular como todas as que existiam em Havana —, cada cliente de tíquete em punho. O menu era simples porém gostoso, pareceu-me estar comendo numa casa brasileira: arroz, feijão, legumes, um ovo frito, um bife, prato feito sem direito a pedir bis. Quanto damos de gorjeta?, quis saber Jorge. Aqui as propinas são malvistas. Guillén se pôs a rir, tenho uma história que vocês vão gostar de ouvir: Sempre dei a meu peluquero, o que corta meus cabelos há muitos anos—já cortava antes de meu exílio —, um dólar de propina. Depois que surgiu a moda de que a propina humilha o homem, resolvi entrar na onda, cortei a gorjeta do pobre, repetindo a lição:  a propina humilha o homem. Ele não se deu por achado e, com muito espírito, estendeu a mão: pois humilha-me, humilha-me muito, Nicolazito, humilha-me com um dólar...

        Entre os tíquetes do envelope, Carybé descobriu que havia um para la merienda. Entusiasmou-se: onde é que podemos comer a merienda ? Em qualquer lugar, sobretudo no bar do hotel onde vocês estão, disse Nicolás.

        Nicolás e Rosa nos levaram a conhecer a famosa casa de espetáculos de Havana, o cabaré Tropicana. Nas suas luxuosas instalações já não funcionava o jogo, já não se exibiam, em seus palcos, em shows memoráveis, grandes artistas e cantores de renome universal, não são mais contratados nem grandes nem pequenos artistas, nos disse Rosa, com pesar. Vocês vão ver.

        O majestoso Tropicana, com o cassino que atraíra milionários de Miami, vindos em seus aviões particulares, para o jogo e em busca de aventuras amorosas, esse já não existia. Isto aqui virou uma bela esculhambação, definiu Carybé. Não é à toa que os americanos estão furiosos contra Fidel Castro, concluí.

        Os garçons, vestidos cada qual de seu jeito, circulavam, davam palpites enquanto serviam aos clientes, na maior esculhambação, como repetia Carybé, divertido. Os cantores que se exibiam não sabiam para onde ir. Apareceu no palco uma jovem russa, funcionária de um escritório comercial soviético. Desafinada como ela só e encabulada também como ela só, a moça cantou uma canção russa, a voz esganiçada de fazer pena. Pra cantar como ela, até eu, disse Nancy, horrorizada. Una verguenza, resmungou Rosa, entre o envergonhado e o revoltado, habituada que era aos grandes espetáculos na Europa e também aos de Cuba, de antes da Revolução. O garçom que nos servira o cuba-libre arregalou os olhos, empertigou-se ao receber das mãos de Carybé uma gorjeta: Thank you! Esse voltou às grandes noitadas americanas, ironizou Jorge.

       

      Os PROGRAMAS

        Já tínhamos visto alguns problemas e restrições do país. Os programas que íamos cumprir, organizados oficialmente, mostravam o lado positivo, as coisas boas do regime.

        Visitamos uma creche-modelo, para crianças filhas de trabalhadores. Como esta existem muitas, nos explicou a moça que nos acompanhava. Enquanto as mães trabalhavam os filhos eram cuidados por pessoas competentes, em ambiente confortável, alegre. Carybé sentou-se em meio às crianças e fez vários desenhos atendendo aos seus pedidos: una cabra, un perro, una casita con el sol... De repente Carybé bateu no relógio: Esta na hora, são 3:30, hora de la merienda — a merenda consistia num copo de refresco e uma fatia de queijo. Jorge levantou-se: Precisamos ir, não era pela merienda que ele se despedia, lembrara que tinha um compromisso às quatro, ia dar uma entrevista coletiva na Casa de Ias Américas.

        Passamos duas semanas visitando o que nos mostraram e o que quisemos ver.

        Gostei de visitar as casas de camponeses que antes viviam em taperas. Mi casa era tan chica que solo una rueda de la bicicleta entraba en ella, la de detrás se quedaba fuera, contou-nos um trabalhador, cuja casa de duas peças, cozinha e jardinzinho, visitávamos.

        Numa das casas que visitamos nos recebeu uma jovem camponesa, tipo de beleza cigana, de olhar e lábios provocadores, extraordinária. Acompanhada de violão, ela nos cantou uma canção. Jorge e Carybé perderam as estribeiras diante do encanto da jovem. Entreolharam-se: Que coisa! hem, compadre!, gemeu Jorge, sem ligar para o beliscão que lhe ferrei. Maravilha!,  concordou Carybé, sem pressa de ir embora, pedindo à moça que cantasse mais.

        Visitamos também as aldeias de pescadores. Não era hora de pesca e os encontramos consertando redes nos alpendres de suas casas novas. Sentimos que alguns deles não se mostravam entusiasmados com a mudança de vida. Acostumados a viver em choupanas, em casas miseráveis, não achavam necessário manter a casa limpa, arrumada e, sobretudo, receber a visita das chicas, as educadoras voluntárias que os visitavam periodicamente para ver se tudo estava em ordem, para ensinar-lhes a viver na limpeza, a lidar com o fogão, a utilizar a privada, a conservar a casa. Não necessito de tanto luxo, prefiro viver em paz...

        Guillén fez questão de ir conosco, numa viagem de cerca de 150 quilômetros, à Baía de los Porcinos, a tão falada Baía dos Porcos onde, havia um ano, fracassara uma tentativa de Invasão a Cuba. Desertores cubanos, treinados pela CIA na Guatemala, haviam saído da Nicarágua em grandes barcos, para desembarcar na Playa Girón. Nessa tentativa, combate de apenas dois dias, morreram dezenas de pessoas e foram aprisionadas cerca de 1.200. Isso ocorrera havia um ano e agora Nicolás nos levaria até lá.

        O que desejava nos mostrar Nicolás de tão surpreendente nesse malogrado campo de batalha?

        De longe avistamos uma longa e larga faixa colorida, cores vibrantes, que se movimentava. A medida que nos aproximávamos, pudemos distinguir milhares de caranguejos amarelos, vermelhos, azuis, cobrindo a abandonada pista de asfalto. Saídos do mangue, ao lado, pareciam vir ao nosso encontro, andando, ligeiros, nas patas traseiras, as dianteiras levantadas, verdadeiros fantasminhas, oferecendo um espetáculo único, inesquecível. Somente um poeta como Nicolás Guillén poderia ter se empenhado tanto para mostrar essa maravilha aos amigos.

        Ainda faríamos uma visita oficial: visitaríamos, no cemitério de Havana, o túmulo dos Mártires da Pátria, tombados na Baía dos Porcos.

        Jorge tem horror a cemitérios, evita sempre ir a enterros, mas não pôde dizer que não ia e lá fomos.

        O velho guia, antigo guarda do cemitério, foi muito recomendado ao ser escalado para acompanhar os tão importantes hóspedes; a ordem era de nos levar e mostrar o que havia de mais importante no Campo Santo. Ora! Se era para mostrar o que havia de mais importante, o velhinho não teve dúvidas, mostraria o melhor: levou-nos ao túmulo do fundador do rum Bacardi. Lá estava ele, de pé, el senor Bacardi, corpo inteiro, num pedestal sobre o túmulo, em escultura de bronze. Reparen en los anteojos, entre orgulhoso e encantado o guia apontava com o dedo um par de óculos colocados sobre o nariz de bronze do falecido: Miren, anteojos autênticos, los mismos que el usaba en vida, disse, a admiração estampada no rosto.

        Jorge deu por terminada a visita ao cemitério. Batemos em retirada. Felizmente, o mausoléu dos Mártires da Pátria ficava em nosso caminho, pudemos vê-lo de relance, cumprir nossa missão. Tratava-se, sem tirar nem pôr, de um mausoléu igual a tantos que já havíamos visto em visitas oficiais em várias partes do mundo. Ao contrário do que imagináramos, a ida ao cemitério não foi aborrecida, até nos divertiu.

       

      ABAIXO O ANALFABETISMO!

        Rosa Guillén queria nos oferecer um almoço antes que nos fôssemos mas estava tendo dificuldades. Esperava que o genro, médico que trabalhava num povoado, viesse passar o fim de semana em casa e trouxesse a encomenda que ela lhe fizera. No povoado ele conseguiria obter uma galinha, um patinho, talvez alguns ovos para melhorar o almoço.

        Tínhamos visto Rosa apenas uma vez, na ida ao Tropicana. Ela andava ocupadíssima, empenhada na campanha de alfabetização do país, campanha que era levada a sério. Qualquer cubano alfabetizado deveria ensinar ao menos uma pessoa a ler e a escrever. Rosa visitava casas, descobria analfabetos por toda a parte, providenciava escolas e professoras, ficava responsável pelas pessoas cadastradas por ela. Orlando, neto de Guillén, de quatorze anos, integrava uma brigada de jovens estudantes escalada para ensinar em povoados pobres, próximos a Havana. Ele ficaria um ano sem estudar, recuperaria depois. O genro, médico, como já disse, fora mandado para um povoado que antes nunca vira a cara de um doutor. Mucho sacrifício, nina, disse Rosa num suspiro, pero no es lo que queríamos? Agora ela esperava a chegada do genro para poder marcar o almoço.

        O apartamento dos Guillén, no 25º. andar de um edifício no Vedado, bairro de gente rica em outros tempos, era amplo, arrumado com bom gosto. A vista do alto era deslumbrante. Tudo muito bonito, porém quando falta energia elétrica quem é que vai subir vinte e cinco andares? Temos apenas um elevador funcionando e às vezes nem ele funciona. A vizinhança é barulhenta, queixou-se Rosa, a maior parte dos moradores é de jovens que vêm de fora para estudar e eles não têm a mínima noção de higiene, jogam lixo nos corre' dores, riscam os elevadores, estragam tudo e a gente nem pode se queixar. Pessoas que viviam feito bichos, sem nenhuma noção de higiene, não podem aprender de um dia para o outro... às vezes não aprendem nunca, não é verdade? Existem grupos de educadoras sanitárias para ensiná-los a conviver com a limpeza, mas o número de alunos ainda é muito grande para as poucas professoras. Só neste edifício vive mais de uma centena de rapazes e moças. Rapazes e moças considerados inteligentes, capazes de cursar uma escola superior. Esses deixaram de cortar cana.

       

      O ALMOÇO DE ROSA

        A mesa de Rosa estava um primor. Toalha bordada, copos de cristal, flores no centro da mesa. Rosa se virara para obter, com os restritos tíquetes da família, o material para fazer o almoço. Completado com o frango e o patinho trazidos pelo genro, ela nos apresentava agora uma bela mesa. Conseguira até espigas de milho e frutas.

        Ao entrar na sala de jantar, diante da mesa posta, Guillén se entusiasmou: Que maravilla, Rosita! Me parece que hemos volvido a los sangrientos dias de Batista!

        

      CANDOMBLÉ

        Jorge quis assistir a um candomblé e eles disseram que não havia candomblés em Cuba. Num discurso de despedida, para uma grande platéia de intelectuais e de leitores seus, Jorge disse o quanto lamentava não ter encontrado um terreiro de candomblé em Cuba, o quanto repudiava o sectarismo e que não concordava com qualquer restrição religiosa, fosse ela qual fosse.

        Viemos assistir a um candomblé em Havana alguns anos mais tarde, em 1986, ao voltarmos a Cuba quando Jorge presidiu o Festival de Filmes Latino-Americanos.

        Peço licença para me adiantar nos anos e contar um episódio sucedido durante o Festival de Filmes Latino-Americanos.

        O júri do Festival, presidido por Jorge Amado, era formado de personalidades literárias da América Latina.

        Depois de vistos todos os filmes concorrentes, o júri reuniu-se para decidir a premiação. A reunião durou um dia inteiro. Já no fim da tarde chegaram a um acordo sobre os vencedores. A resolução seria anunciada, em ato público, no dia seguinte. Nesse mesmo fim de tarde haveria uma grande recepção oferecida ao júri e a personalidades presentes, vindas a Cuba para a instalação da Escola de Cinema, nas proximidades de Havana. Entre tantos, recordo-me de Harry Belafonte, Gregory Peck, Gabriel Garcia Márquez.

        Estávamos na festa quando surgiram, afobados, dois cidadãos querendo falar com Jorge. Vinham diretamente do aeroporto, traziam um filme, um curta-metragem que deveria concorrer. Por mil motivos, haviam chegado atrasados e não se conformavam de saber que o julgamento do prêmio já estava encerrado, insistiram. Tratava-se de dois brasileiros, gaúchos, que traziam o curta-metragem de Jorge Furtado e José Pedro Goulart: O dia em que Dorival encarou o guarda.

        Felizmente todos os juizes estavam na festa e Jorge falou a todos, convenceu-os a fazer uma sessão extra, assistir ao filme.

        Resolveram assisti-lo naquela mesma noite, e quando chegamos — eu acompanhara Jorge a todas as sessões — foi feita uma pergunta: O filme está dublado? Não estava. Não sei qual a razão, mas nós brasileiros entendemos o espanhol mas eles não entendem o português. O impasse fora criado: Como julgar um filme sem saber o que dizem?, argumentou um dos juizes. Foi aí que eu tive uma idéia: juntei atrevimento e coragem e me ofereci: Eu traduzo. E traduzi, mal e porcamente, mas traduzi e eles entenderam tudo. O dia em que Dorival encarou o guarda ganhou, merecidamente, nesse festival, o primeiro prêmio de curta-metragem.

        Outras histórias dessa viagem, quando tivemos um encontro com Fidel Castro, ficam para serem contadas em outra ocasião, se houver outra ocasião, não quero me distanciar ainda mais da Casa do Rio Vermelho.

       

      COPA DO MUNDO DE 1962

        Junho se aproximava, e com ele a Copa do Mundo no Chile. Em Cuba, nem uma notícia, nem se falava em futebol. Apaixonados por futebol, Jorge e eu estávamos na maior inquietação, loucos por notícias da seleção: o que faziam Pele, Garrincha, Didi, Zagalo? Na televisão o que mais transmitiam eram discursos políticos, palavras de ordem, palestras culturais, música clássica... Tudo muito educativo, educativo demais para nosso gosto, sobretudo no momento em que estávamos ansiosos por um futebolzinho, ter notícias da Copa do Mundo, prestes a começar.

        No regresso ao Brasil, faríamos escala em Lima, não iríamos via México. O plano de Nancy era desembarcar em Lima, passar uma semana com sua irmã que vivia no Peru. A irmã de Nancy nos convidara e eu me entusiasmara, não conhecia o Peru e essa era uma boa oportunidade. E a Copa do mundo? Você não quer assistir?, revidou Jorge diante de minha insistência. Não houve argumento que o convencesse, queria sentar-se diante da televisão, na casa dele, não perder um só jogo. Foi assim que, por causa da Copa do Mundo no Chile, em 1962, perdi a chance de conhecer Lima.

       

      DOUTOR MIRABEAU

        O ano terminava, novamente chegavam as férias dos meninos. Da Bahia os amigos nos chamavam, o arquiteto Gilberbet Chaves queria nos mostrar o projeto da casa.

        Presos por compromissos no Rio, resolvemos mandar João Jorge e Paloma na frente. João se hospedaria na casa de Norma e Mirabeau Sampaio, Paloma, na de Dorothy e Moisés Alves, fazendeiro de Itabuna, amigos nossos, a filha mais velha, Balbina, e a sobrinha, Yeda, enturmando com Paloma. João se enquadrava bem na casa de Norma, enturmava com Arthur e Maria, os filhos e, sobretudo, adorava bater papo com Mirabeau, ouvir dele as histórias, contadas com graça, dos tempos em que Jorge era menino. Amizade de infância, Mirabeau sabia de todas as peraltices do colega no colégio interno, as contava e João o ouvia fascinado.

        Formado em medicina, para fazer o gosto do pai, fabricante de calçados, dono de uma sapataria na cidade, Mirabeau nunca clinicou, teve um consultório bem montado, no centro, quando solteiro, que servira, sobretudo, como garçonnière, para encontros amorosos. Do bem montado e bem localizado consultório serviam-se também os amigos. Para não dizer que Dr. Mirabeau nunca teve clientes, teve um: passageiro de navio francês que ancorara na Bahia, o cidadão sofreu um desarranjo intestinal enquanto passeava pelas ruas de Salvador e, quando sentiu a segunda eólica, bateu os olhos, por acaso, numa placa: Dr. Mirabeau Sampaio, clínica geral. Ainda bem que encontrara um conterrâneo, pelo nome devia ser francês: Mirabeau. Não teve dúvida, entrou, bateu à porta do consultório. Mirabeau o atendeu e lhe deu uma amostra grátis do medicamento que convinha a seus males. Não cobrou a consulta. E nunca mais atendeu ninguém.

        Mirabeau não exerceu a medicina. Após a morte do pai, herdou o negócio de calçados, foi comerciante de sapatos durante muitos anos. Comandou tão bem e com tal tino os negócios que acabou dono de uma rede de sapatarias na cidade. Essa, porém, não era a sua profissão. Sensibilidade e gosto artísticos não lhe faltavam, Mirabeau tornou-se um artista da goiva e do pincel: escultor e pintor admirado e respeitado, professor da Escola de Belas Artes.

       

      DONA NORMA

        Norma, mulher de Mirabeau, era a pessoa mais encantadora deste mundo, alegre, sempre disposta a ajudar a quem lhe batesse à porta, a animação em pessoa. Peço licença para contar apenas uma história dela, contar um pouco de Norma.

        Quem um dia ler o romance de Jorge Amado Dona Flor e seus dois maridos, não deixe de observar o personagem, Dona Norma, que outra não é senão a própria Norma Sampaio, copiada com maestria, sem desprezar detalhes, pelo escritor.

        Ao lado da rua Ari Barroso, no Chame-Chame, onde moravam os Sampaio, existia uma favela, pobre, miserável, o Rancho Fundo. Os habitantes dessa favela adoravam Norma, e sempre que precisavam de um socorro recorriam a ela. Certa vez, Caminhão, morador do Rancho Fundo, trabalhador do cais do porto, foi ouvido, referindo-se à Norma: Dona Norminha é a pessoa mais porreta desta rua, fala com a gente como se a gente fosse igual que ela, prestativa como ela só, mulher educada está aí... filha de família rica, avô senador, não tem o nariz levantado... Esta gente aí, apontara uns sobrados da rua, do alto de suas rnerdacências não valem os seus cocores.

        Nessa mesma favela do Chame-Chame morava seu Antônio, conhecido como seu Antônio Cozinheiro. Naquela época, os bons restaurantes eram raros, em geral ninguém convidava ninguém para comer em restaurantes, convidavam para comer em luas casas, a mulher se desdobrando na cozinha.

        O Conquistador, na Barra Avenida, não chegava a ser um restaurante, era uma bodega popular, onde o prato de resistência era uma galinha assada. O cozinheiro, seu Antônio do Chame-Chame, não dava a receita por nada deste mundo, não explicava como conseguia fazer uma galinha tão dourada e tenra, tio saborosa.

        Formavam-se filas na porta de O Conquistador, candidatos I tal galinha maravilhosa, aguardavam a vez. Maridos que nunca haviam levado as mulheres a restaurantes, as levavam na esperança de que, vendo e saboreando o prato, com prática de Cozinha, conseguissem reproduzi-lo. Foi o caso de Godô, poeta Godofredo Filho, gourmet pela própria natureza, que não titubeou em levar ao O Conquistador dona Carmem, sua mulher. Dona Carmem era conhecida como mãos de fada no meninico de carneiro, prato difícil à beca de se fazer e que ela fazia pra ninguém botar defeito. Mulher de olfato fino e paladar refinado, dona Carmem desvendaria no primeiro pedaço que pusesse à boca. Inexpugnável segredo da galinha dourada, desfazendo-se de tão macia. Para decepção de Godofredo e de amigos freqüentadores de sua mesa, a mestra do forno e do fogão não desvendou o segredo. A galinha que tentou fazer no dia seguinte, em sua cozinha, ficou a quilômetros de distância daquela de seu Antônio.

        Já passava de meia-noite, chovia torrencialmente, quando Norma despertou com a campainha tocando, gritos no portão chamando: Dona Norminha, dona Norminha... Era a mulher de seu Antônio, na maior agonia, gritando entre soluços: Meu marido está doido, doido de se amarrar! Quebrou tudo dentro de casa. Me ajude, dona Norminha, me ajude pelo amor de Deus! Mirabeau dormia a sono solto e, mesmo que estivesse acordado, não ia resolver nada. Norma telefonou para seu cunhado, o médico Wenceslau Veiga, aconselhou-se. Chame uma ambulância, disse ele, receitou uma injeção de calmante. Mas peça para o enfermeiro aplicar antes de levá-lo, recomendou. Não vá se meter a aplicar a injeção.

        Norma não chamou ambulância coisa nenhuma, conseguiu no armário de remédios a injeção receitada e tocou-se com a pobre mulher para a favela, tropeçando na escuridão, vou aliviar uma boa alma, não disse, mas deve ter pensado.

        —  Boa noite, seu Antônio — foi entrando e foi dizendo, como se nada demais estivesse acontecendo. — O que é que há, seu Antônio?

        Sentado num banquinho, no canto do quarto em desalinho, seu Antônio levantou a cabeça:

        —  Boa noite, dona Norminha.

        —  Então, seu Antônio, o senhor, tão meu amigo e nem pra me dar a receita da galinha, hem?

        Enquanto falava, embebia o algodão no álcool, a seringa em posição, ordenou: Arregace um pouco a manga, seu Antônio....

        — Pra senhora eu dou a receita, dona Norma — disse esfregando o braço, depois da picada da injeção. — Logo que fique bom, andei perturbado, vou até sua casa ensinar.

        Dias depois, a crise passada, seu Antônio, que era homem de palavra, bateu à porta de Norma. Levava consigo uma panela de ferro, pesadíssima. Um dos filhos, o mais crescido, trazia um fogareiro a carvão. Só saiu da cozinha de Norma com a galinha pronta, dourada, cheirando como ela só.

        Naquele dia Mirabeau e a família puderam comer a galinha do O Conquistador em sua mesa. Naquele dia e nunca mais, pois Norma não conseguiu fazê-la sozinha. Não adiantava ter os ingredientes, a panela de ferro, o fogão a carvão; o ponto e a maneira de mexer, sei lá... faziam parte do mistério.

       

      VAMOS LEVANTAR A CASA?

        Jorge chamou os amigos para conosco estudarem o projeto feito pelo jovem Gilberbet. O encontro foi na casa de Mário Cravo. Estavam todos lá: Carybé, Mirabeau, Jenner Augusto e o próprio Mário. Projeto interessante, de casa ampla, largos terraços, muita treliça, grades, casa para o clima da Bahia. Agora era botar mãos à obra. O empreiteiro, conhecido da turma, se propôs a iniciar o quanto antes, o trabalho ia ser demorado, a casa atual iria praticamente abaixo. Seria preservada uma parte para habitarmos durante aquelas férias, voltaríamos ao Rio e lá pelo fim do ano estaríamos de casa pronta. As grades ficam por minha conta, disse Mário; eu me encarrego de pintar os azulejos, disse Carybé; eu pinto as portas e os basculantes de vidro, falou Jenner. Por acaso, naquela noite, encontrava-se na casa de Mário, de quem era muito amiga, Una Bo Bardi, que viera de São Paulo para a Bahia, contratada pelo governador do Estado — na ocasião, Juracy Magalhães — como diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia. Lina também deu seu palpite: Por que não colocam no piso das escadas e nos caminhos cacos de azulejos? Vocês podem conseguir à vontade na cerâmica do Udo. Ele tem montes de azulejos quebrados. Tudo que foi combinado nessa noite foi feito e muito mais.

       

      GARRINCHA

        As obras começaram, mas, como havia sido combinado, não saímos da casa. Os meninos continuaram hospedados com nossos amigos e nós, sem cozinheira, passamos a aceitar convites para comer ora na casa de um, ora na casa de outro.

        Como viajamos de avião, deixamos Mane Pato no Rio e sem automóvel andávamos sempre de táxi, táxi de um só chofer, o Cigano, um rapaz educado que estava sempre à nossa disposição. Mas não era suficiente para nós ter apenas o carro do Cigano. Nossa casa ficava longe de qualquer condução e a ladeira era íngreme. Resolvemos então comprar um  fusquinha de segunda mão e contratamos Garrincha como motorista. Garrincha era negro retinto, magrinho, sempre alegre e surpreendente. Vez ou outra fazíamos pequenas viagens. Gostávamos de passear pela feira de gado em Feira de Santana, visitar as pequenas cidades do Recôncavo, viagens de pouco mais de uma hora que Garrincha não agüentava. Em meio do caminho, aconteceu uma vez ele parar de repente, encostar o carro: Tô cansado, a senhora passa pra aqui, saltou, deixando o volante à minha disposição. Que fazer? Eu tomei a direção.

        Um dia perguntei a Garrincha:

        —  Você tem namorada, Garrincha?

        —  Tenho, sim senhora — sorriu —, ela é tipo balde.

        —  Tipo balde?—me admirei. — Como é isso? Me explique.

        —  A senhora não sabe? Pois tipo balde é quando a dona é larga em cima e fina nos quartos.

        Na convivência com Garrincha e com a lavadeira Antônia, aprendi muitas coisas do dia-a-dia do povo da Bahia. Antônia chegava e da porta ia gritando: Ói eu! Um dia, depois de anunciada a chegada, ela me disse: Vou sair e volto logo. Tenho que dar uma sastifa para uma dona. Vendo que eu não entendera, riu: Eu tinha combinado ir lavar na casa dela hoje e não posso porque vim aqui, aí vou dar uma sastifa, repetiu, depois explicou: sastifação.

        No momento de sair para dar a tal da sastifa, Antônia me advertiu:

        —  A senhora precisa mandar consertar o chuíte do quarto de passar. Ele está quebrado.

        —  Chuíte? Que diabo é isso?

        —  A senhora não sabe? — parou um momento. — É verdade. A senhora fala estrangeiro. Pois olhe, dona Zélia, chuíte é aquele negocinho que a gente aperta pra acender a luz. Entendeu?

        Fiquei sabendo como me referir ao interruptor de luz na língua baiana. Fiquei sabendo que falava estrangeiro.

       

      UM PRATO ESPECIAL

        Wilson Lins, escritor, romancista, amigo de Jorge dos tempos de rapaz, nos convidou para almoçar em sua casa. Anita, sua mulher, mãe de três filhos, era a chamada verdadeira dona de casa, os almoços em casa de Wilson eram famosos. A paixão de Anita, no entanto, era o jardim; semente plantada por ela vingava, as flores de seus potes nas janelas tinham um viço especial.

        Anita nos apresentou no almoço desse dia um prato diferente, não era comida baiana. Que coisa é essa que você fez?, estranhou Wilson. Pois prove e me diga, respondeu Anita. Tratava-se de um bolo de arroz, com uma abertura no centro, completamente coberto de queijo Catupiry que escorria, brilhante, ainda quente; camarões graúdos, ensopados em molho de tomate, saindo do centro e espalhados em torno, prato bonito de se ver, apetitoso e gostoso. Aprovei a novidade com entusiasmo. Jorge ficou reticente, pois esperava uma comidinha baiana e, além do mais, detesta queijo Catupiry.

        No dia seguinte fomos comer na casa de Giovanni Guimarães, colega de colégio interno de Jorge. Giovanni e Jacy, nossos compadres, somos padrinhos de Vânia, a segunda filha do casal.

        Jacy nos recebeu em seu apartamento, no centro da cidade. Foi logo avisando: Hoje não fiz comida baiana, mas preparei, eu mesma, um prato muito especial para vocês. Trouxe para a mesa o já conhecido bolo de arroz, coberto de Catupiry e os camarões com tomate.

        O jantar, no dia seguinte, seria na casa de Godofredo Filho. Hoje vamos, com certeza, comer meninico de carneiro. Dona Carmem sabe que gosto.

        Dona Carmem colocou sobre a mesa o manjado bolo de arroz, coberto de Catupiry e os camarões com tomate.

        Norma nos chamou para jantar, na noite seguinte. Espero que Norma não me dê pra comer o tal de arroz com Catupiry, já não agüento mais, disse Jorge.

        Sobre a mesa dos Sampaio foi posta a surpresa anunciada minutos antes por Norma: bolo de arroz coberto de Catupiry e camarões com tomate.

        Com a liberdade que tinha com a dona da casa, Jorge quis saber daquela novidade que o impedia de matar as saudades dos pratos baianos.

        — Pois é um prato muito caro — foi dizendo Norma —, um Catupiry inteirinho e o camarão do preço que está... Você não gostou, compadre?

        —  Eu só quero saber onde foi que você desencavou essa receita.

        — Desencavei? Desencavei coisa nenhuma! Paguei caro para aprender. Tomei um curso com uma professora muito da porreta que veio de São Paulo.

        —  Anita, Jacy e Carmem também tomaram esse curso? Somente então Norma entendeu tudo.

        —  Mas não aprendi a fazer só esse prato, não se assuste, compadre, aprendi outros, vou te convidar para um vol-au-vent de galinha. Que tal?

        —  Que tal? Eu prefiro uma moqueca de siri-mole, um sarapatel, um xinxim de galinha, um efó... Deviam proibir essas professoras de fora dar aulas às senhoras baianas. Vão estragar a nossa culinária.

       

      CAMAFEU DE OXOSSI

        Camafeu de Oxóssi nos deu o recado de Mãe Senhora: que fôssemos ao terreiro vê-la, queria nos dar um presente.

        Amigo do peito, capoeirista, tocador de berimbau, compositor, Camafeu comerciava produtos africanos numa barraca do Mercado Modelo: vendia colares de contas, com as cores dos santos, anéis, pulseiras e mil e uma coisas de candomblé, recebidos diretamente da África.

        Irmão de santo de Jorge, ele também de Oxóssi, também Obá do terreiro do Axé Opô Afonjá, comandado por uma das mais respeitadas mães-de-santo da Bahia, Mãe Senhora. Casado com Toninha, doce e bela mulata, Camafeu era um bom amigo.

        Camafeu nos deu o recado em sua barraca no mercado quando fomos lá comprar colares de santo para levar de presente a amigos do Rio. Aproveitando a ida ao mercado, almoçamos no Maria de São Pedro, antigo restaurante popular, onde se comia divinamente. Iríamos no fim da tarde, desse mesmo dia, visitar Mãe Senhora.

       

      HORA DE LAZER

        Lidinha veio ao nosso encontro: Mãe Senhora está assistindo à novela... está pra terminar. Neta da mãe-de-santo, a mocinha conhecia bem os hábitos da avó, que não gostava de ser importunada na hora da novela, um de seus raros momentos de lazer. Ela gosta muito de ver a Brandines, e daqui a pouco a gente já pode entrar, explicou Lidinha, tentando nos deter um momento mais no terreiro. A Brandines à qual Lidinha se referia era a novela O Cara Suja, de muito grande sucesso na ocasião. A protagonista chamada por Sérgio Cardoso, o galã italiano da trama, de Biondina por ser lourinha, era, no entender da mãe-de-santo, a Brandines. Como eu também gostava de assistir à novela da tal Biondina, resolvemos entrar, eu assistiria, com prazer, àquele fim de capítulo.

        Ao nos ver, Mãe Senhora sorriu: Entrem... com um gesto de mão, lhe dissemos que ficasse tranqüila, esperaríamos. Sentada a seu lado, a filha-de-santo Stela levantou-se e nos ofereceu cadeiras para sentar.

        Mãe Senhora não desgrudava os olhos da tela, não perdia um só movimento dos atores, dava palpites, ralhava: Não vá atrás da conversa dele, Brandines, olha que tu vai te dar mal,., advertia. Ora! Tá! Brandines acabava de dar com os burros n'água. Agora chora... não quer ouvir conselhos... Fim do capítulo, entravam os comerciais. Mãe Senhora, ainda sob a emoção da última cena, suspirou: Agora só amanhã.

        Mãe Senhora foi logo nos passando um sabão: Então, vocês chegam e nem para vir me ver, salvar seus santos... E preciso que eu mande recado. Se eu não chamasse, nem vinham. Pois olhem, tenho aqui uma pitangueira para o jardim de vocês. Já soube que estão plantando muito e precisam ter um pé de planta daqui do terreiro. Vou dar a vocês uma pitangueira já crescidinha. Chamou o menino Reginaldo, pediu-lhe que trouxesse a pitangueira separada por ela. E até quando ficam por aqui? Não esqueçam que antes de voltarem para o Rio temos que fazer o bori, já está na hora. Carybé mais dona Nancy podem fazer no mesmo dia. Eu mando avisar.

        Antes de nos despedirmos ela quis notícias de seu Paulo e de dona Simone. Referia-se a Jean-Paul Sartre e a Simone de Beauvoir que a haviam visitado em 1959. Na ocasião ela jogara os búzios para ambos e a resposta fora: Seu Paulo é filho de Oxóssi, como Jorge, e dona Simone é filha de Oxum, como Zélia. Impressionada, Simone de Beauvoir ouvira de Mãe Senhora que o santo dela era o mesmo que o de Zélia e que Zélia vai ser sua mãe pequena. Vivaldo Costa Lima, que estava conosco, traduziu tudo ao pé da letra, deu mil explicações sobre o que significava ser mãe-pequena. Não havia dúvida, sendo eu a mãe-pequena de Simone, daí por diante ela deveria me obedecer, prestar conta de seus atos, não deve fazer nada sem consultar Zélia, afirmou Vivaldo. Pensamos que o casal fosse rir, como nós rimos, mas qual! Mostraram-se intrigados com o que viram e ouviram.

        Depois da visita ao Brasil, todas as vezes que nos encontramos, na Europa, Simone e Sartre pediam notícias de Mãe Senhora, mulher inteligente e sábia, que nunca iriam esquecer. E Vivaldo? Que é feito dele?, perguntavam.

       

      STELA DE OXOSSI

        A jovem filha-de-santo, Stela, moça esguia, retraída, séria, atenta a tudo, a eficiência em pessoa, era a eleita de Mãe Senhora que descobrira na moça as qualidades necessárias para substituí-la no comando da casa no dia em que faltasse. Mãe Senhora a preparava passando-lhe os ensinamentos que recebera de Mãe Aninha.

        Senhora não se enganara. Mãe Stela de Oxóssi há muitos anos reina no terreiro do Axé Opô Afonjá, governa com firmeza e competência o maior terreiro da Bahia.

       

      O MISTERIOSO VULTO

        Devíamos fazer o bori uma vez por ano. O bori lava a cabeça, limpa-nos dos males de um ano inteiro. Em geral tínhamos, para essa cerimônia, a companhia de Nancy e Carybé, de Zora e Antônio Olinto, velhos amigos. Olinto também, como Jorge e Carybé, tinha um posto no terreiro de Mãe Senhora.

        A cerimônia do bori durava uma noite inteira. Chegávamos à tardinha. Epifânia, filha-de-santo do terreiro, nos dava um banho de folhas, vestíamos batas e saias rodadas, brancas, e assistíamos, à noite, ao sacrifício das galinhas e à preparação da comida feita com a galinha no dendê, farinha, quiabos... Parte daquela comida, acompanhada de preces em língua nagô, iria lavar nossas cabeças e parte seria oferecida aos orixás.

        Em quartos separados, homens num, mulheres noutro, dormíamos sobre uma esteira de palha no chão de cimento. Sobre nossas cabeças era colocada a comida, sustentada por uma faixa que se transformava em torço. Uma luz fraca, quase nenhuma, e o silêncio.

        Peço licença para me adiantar e contar o que aconteceu comigo semanas depois da visita à Mãe Senhora, na noite em que apenas Jorge e eu fizemos o bori, já que nem os Carybé, nem os Olinto puderam nos fazer companhia.

        Pela primeira vez fazia o bori sozinha. Deitada sobre a esteira, mesmo mal acomodada, com o peso da comida amarrada na cabeça e seu cheiro ativo, adormeci em seguida. Não sei quantas horas dormi. Acordei durante a noite e vi, de pé, encostada na porta de meu quarto, a uns três metros de minha esteira, um vulto de mulher, alta, magra, toda de branco, os braços cruzados. Pensei: Certamente Mãe Senhora mandou que Stela ficasse a noite toda aí de pé, de sentinela. Não vendo razão para esse sacrifício, resolvi pedir à moça que fosse dormir. Forcei uma tosse. Ela nem se mexeu. Tossi novamente, nada. Será que estou vendo direito?, pensei. Será que é uma pessoa mesmo ou uma sombra? Resolvi sentar na esteira, quem sabe ela se manifestaria? Sentei na esteira. Lá estava ela, continuava ali parada. Resolvi então me levantar, falar-lhe. Fiquei de pé, andei em sua direção. A medida que me aproximava, ela foi desaparecendo. Junto da porta não havia ninguém. Deitei-me novamente, olhei, o vulto havia desaparecido.

        O dia apenas raiara, os gaios começavam a cantar, quando Mãe Senhora veio tirar o torço de minha cabeça.

        —  Dormiu bem, minha filha?

        — Quase não dormi, Mãe Senhora. Vi um vulto encostado naquela porta.

        —  Um vulto? E como era esse vulto?

        Expliquei-lhe tudo que havia acontecido e ela me perguntou:

        —  Teve medo?

        — Nem um pingo. Fiquei bastante calma. Mãe Senhora deu uma gargalhada:

        —  Pois, minha filha, tu viu a alma de Mãe Aninha. É muito raro ela aparecer... Quer dizer que Mãe Aninha veio te visitar... Parabéns... — Falava e ria satisfeita.

        Mãe Aninha fora a fundadora do Axé Opô Afonjá, adorada, respeitada.

        —  Sim, senhora! Agora vamos falar com ela.

        Assim dizendo, me levou pelo braço para o peji de Xangô, num quartinho de frente. Diante do altar do santo, me fez ajoelhar junto dela. Em seguida, jogou um punhado de búzios que se espalharam sobre uma toalhinha branca que cobria uma mesinha: braços levantados, olhos para o alto, Mãe Senhora começou a falar, conversava com o santo em iorubá, falava e sorria. De repente virou-se para mim: Tu não está entendendo nada, não e? Voltou a olhar para o alto: Ela não está entendendo nada, por isso eu vou falar em português. Jogou novamente os búzios e foi lendo, de acordo com a posição em que eles haviam caído: Muitas felicidades para você, nunca ninguém vai poder te fazer mal, tudo que for atirado contra tu vai voltar para cima de quem quer te fazer mal. Está satisfeita? Volvendo novamente os olhos para o alto, disse: Muito bem, a conversa está muito boa mas eu tenho que cuidar de minhas obrigações. Vamos parar por aqui.

        Eu estava verdadeiramente fascinada com a intimidade de Mãe Senhora com o egum. Incrédula de formação, sempre em busca do desconhecido, procurando descobrir os mistérios da vida e os mistérios da morte, indagando sem nunca encontrar uma resposta convincente, nessa madrugada, no terreiro de Mãe Senhora, senti-me profundamente comovida, encantada sem no entanto dar por terminadas as minhas indagações sobre os mistérios da vida e os mistérios da morte.

       

      LIGA PELA RESTAURAÇÃO DOS IDEAES

        Norma telefonou me convidando para fazer um curso com ela. Chegara à Bahia uma japonesa, professora de arranjos florais, ikebana, São apenas três aulas, argumentou, você tem tempo de sobra, só vai para o Rio daqui a dez dias... Olha aqui, vocês vêm almoçar com a gente, vou fazer uma galinha de cabidela para o Jorge, quero tirar a má impressão dele do último jantar. Venham cedo, Mirabeau tem uma surpresa para vocês.

        Da gaveta de um armário de seu ateliê, Mirabeau tirou um caderno de capa dura, bastante velho, as folhas amareladas pelo tempo. Aqui está, foi dizendo e rindo, o que eu queria mostrar a vocês. Numa arrumação da papelada, encontrei isto. Estendeu-me o caderno: Leia, Zélia, leia em voz alta, Jorge vai gostar.

        Logo na primeira página, com caligrafia caprichada, estava escrito: Este livro fica destinado à cópia dos trabalhos apresentados pelos sócios, lidos nas sessões da Liga pela Restauração dos Ideaes. Assinado, Cândido Colombo Cerqueira — Presidente. Bahia, 2 de Julho de 1926.

        Achei graça, essa tal liga fora fundada a 2 de julho, exatamente no dia de meu aniversário, quando eu completava dez anos.

        —  Você lembra dessa Liga, Jorge?

        —  Tenho uma vaga idéia — disse.

        —  Vá mais adiante — ria Mirabeau.

        Mirabeau, sempre que contava uma coisa divertida, ria e falava ao mesmo tempo, muitas vezes difícil de ser entendido. Virei a página:

         Liga pela Restauração dos Ideaes.

         Padroeiro: Santo Estanislau Hostha.

         Fins: Elevação moral, phisica e intellectual

         Meios: Practica do Catholicismo — Amor e Caridade — Serenidade—Alegria—Optimismo—Domínio de si mesmo e das paixões.

         Lemma: Sursum!!!

        Parei:

        —  Sursum? O que significa isso?

        —  Talvez uma saudação — disse Mirabeau —, continue a leitura.

         Deveres: Castidade — Obediência — União — Cumprimento dos deveres sociais — Defesa mutua — Estudo.

         Prohibições: Tudo o que servir para deprimir e rebaixar em vez de levantar para os ideaes, como leituras más, conversas degradantes e indecorosas, brigas e contendas.

         Direção: Confiada a um Presidente auxiliado por um Censor e pelo Conselho dos sócios fundadores, todos subordinados a um Director espiritual.

         Diretor Espiritual: Pe. Camillo Torrend S. ].

         Reuniões: Podendo ser cada semana, ou duas vezes por mez consta de

         l) Uma leitura de um capítulo da Imitação de Christo, comentada depois por algum sócio ou pelo Director Espiritual.

        Depois de vários itens como tema das reuniões, antes de encerrar, havia ainda uma advertência:

         Infracção: Toda a infracção do regulamento, especialmente a de fallar de assumptos deprimentes será punida com uma reprehensão dada pelo Presidente ou pelo Censor (Antônio Vieira de Mello) ou pelo Director informado, e o delinqüente longe de se entristecer com a reprehensão e de fomentar pensamentos contra aquelle que o reprehende deverá mostrar-se agradecido e offerecer uma communhão por elle. Em caso de recidiva poderá ser excluído da liga ou suspenso.

        Enquanto eu lia, Jorge e Mirabeau riam, comentavam, divertiam-se.

        —  Você fez parte dessa liga moralista, Mirabeau?

        —  Certamente fiz, mas veja: teu marido foi sócio fundador, leia mais adiante o discurso dele. Um discurso porreta.

        —  E eu fui sócio fundador dessa liga? Fiz discurso? A gente faz cada coisa...

        Eu não aprendo nunca. Levo sempre ao pé da letra as graças, as ironias de Jorge:

        — Você não sabe? Pois está tudo aqui, veja, não estou inventando nada, assinado e com data. Você ia completar quatorze anos.

         Discurso pronunciado pelo seu auctor Jorge Amado, em sessão ordinária da Liga para a Restauração dos Ideaes em 1926.

         A tarde morre.

         No horizonte o sol entrega a terra à lua, a Jacy dos índios, a deusa dos poetas.

         Numa cabana de um camarada agoniza um homem.

         Um padre ao seu lado pede-lhe que se confesse:

        —  Mas padre — diz o moribundo — eu sou um desgraçado, pequei em demasia, Deus não me perdoa,

        —  Perdoa, filho — diz o padre e reza uma jaculatória por este coração desanimado.

         Mas o desanimo é grande e a morte o leva enquanto pronuncia esta blasphemia:

        —  Pequei muito, se Deus perdoasse seria injusto. È un facto que todos os dias acontece aos milhares.

         E o desanimo um dos inimigos com quem temos de travar mais aberta guerra.

         As celebres injecções tão bem aplicadas pelo Padre Torvend e Padre Cabral, os elixirs do Padre Arraino, as communhões freqüentes, a confissão, a missa diária, congregam-se para impedir o desanimo. Isto no colégio, mas lá fora, nas ferias é tão fácil desanimar!... Como vence-lo?

         O problema está resolvido; uma nova cohorte de guerreiros entra no campo de batalha. É a Liga para a Restauração dos Ideaes. E nós, seus membros não só não devemos, mas não havemos de desanimar. E um dever. Se desanimarmos aonde irá parar o nosso Sursum!!!?

        Paro por aqui, embora o discurso não pare por aqui, ainda vai longe. Acabo de pedir licença ao escritor Jorge Amado para incluir em meu livro as palavras do aluno do colégio jesuíta, o menino Jorge Amado que encerrou seu discurso com as seguintes palavras: Se abusarem-se com minhas disconessas palavras, vinguem-se exercitando-se na paciência.

        Sempre ouvi dizer que padre Cabral, do Colégio Antônio Vieira, ao ler a composição de um aluno (Jorge Amado) sobre o mar, teria profetizado que o autor daquelas páginas seria, um dia, um grande escritor. Fico conjecturando, agora, ao copiar o discurso do tal menino onde o padre Cabral é citado: não teriam sido essas páginas, na realidade, as inspiradoras do padre?

       

      IKEBANA

        As aulas que tomei, levada por Norma, não têm conta. Cursos que me valeram e cursos que apenas me divertiram: por exemplo, o de Ikebana, aulas de arranjos florais, me valeu. Mesmo com poucas flores, muitas vezes pude enfeitar minha casa e, numa viagem que fizemos no navio Brasil Maru, para os Estados Unidos, ganhei um prêmio num concurso de arranjos de flores.

        Nunca vou esquecer do curso multiponto da Elgin, na Calçada, o fim do mundo. Tínhamos que tomar várias conduções, perdendo um tempão no vai-e-vem. Até que foi divertido, Norma aprendeu um bocado de pontos e bordados, mas eu não tive paciência, o pouco que aprendi esqueci em seguida.

        Norma só não conseguia uma coisa comigo: arrastar-me a enterros e a velórios. Tendo grande consideração pelas pessoas que passam a noite velando seus mortos, Coisa mais triste, não deixava de comparecer quando podia e às vezes até quando não podia. Era saber da morte de algum conhecido lá se ia ela para o enterro ou para o velório, levando variado farnel: sanduíches, café, biscoitos, para confortar um pouco os que iam passar a noite em claro.

        Certa vez, passávamos por um enterro de anjinho, enterro pobre, quatro meninos segurando as alças do caixãozinho azul, dois ou três adultos, entre eles Norma com um ramo de flores. Qual não foi nossa surpresa ao reconhecermos entre os meninos que carregavam o esquife o nosso João Jorge. Ele havia sido arrebanhado por Norma para essa piedosa tarefa. O coitadinho, era tão pobrezinho que não tinha uma única flor, nem mesmo quem lhe segurasse a alça do caixão, explicou ela.

       

      NOSSO JARDIM

        Dessa vez, sim, com as formigas afastadas por Zuca, as plantas cresciam. Os caminhões de adubo, misturados à terra, deram resultado surpreendente. A pitangueira de Mãe Senhora fora plantada por Zuca, ao lado de um pé de fruta-pão. Essa pitangueira jamais daria frutos, não receberia o sol necessário, vivendo à sombra da frondosa árvore. Não deu frutos, mas vive até hoje.

        Ao ver aquele mundo de mudas, plantadas uma ao lado da outra: mangueiras, cajazeiras, pitangueiras, jambeiros, jaqueiras, caramboleiras, além de outras árvores não frutíferas, Carybé foi taxativo: Quando isso tudo crescer, para Jorge ir ao fundo do jardim vai ter que ir abrindo picada a facão. Isso só não aconteceu porque nem todas as plantas vingaram na sombra e muitas morreram por descuido do jardineiro. Assim mesmo, o bosque ficou espesso. Tirou nossa vista sobre o Rio Vermelho, mas ficou lindo.

       

      REMINISCÊNCIA

        De meu terraço diviso, entre o arvoredo, Zuca que se aproxima. Cabelos grisalhos, o mesmo sorriso de sempre. A tiracolo,  pulverizador com veneno de matar formigas.

        —  Matando uma formiguinha, Zuca? — pergunto-lhe. Antes de responder, educadamente como sempre, ele diz:

        —  Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a Deus! Choveu muito e as danadinhas das formigas depois da estiada costumam aparecer... lá embaixo encontrei um bocado delas. Até amanhã não vai ter mais nenhuma, se Deus quiser.

        Fico lembrando dos primeiros tempos, Jorge na peleja com Zuca:

        —  O Zuca, trouxe estas mudas para você plantar.

        —  Muito bem, doutor. Vamos plantar.

        —  Pensei plantar neste lugar para substituir as que morreram.

        —  Pode deixar, doutor, amanhã eu planto.

        —  Amanhã? Por que não hoje?

        —  Deixa ver, doutor: hoje é quarta-feira, quinta, sexta... tá bom na sexta-feira?

        —  Não está não, Zuca, eu quero que plante hoje mesmo.

        —  Pode ser de tarde, doutor? Foi aí que me intrometi:

        —  De tarde não, Zuca. Por que de tarde? Tem que ser agora... já!

        Zuca sorriu, balançou a cabeça:

        —  Dona Zélia é tão interessante... (Queria ele dizer, tão chata?)

        Durante esses anos que Zuca nos serve, todas as vezes que viajávamos deixando o jardim aos cuidados dele, às vésperas de nosso retorno, estivéssemos onde estivéssemos, recebíamos uma cartinha de nosso jardineiro. Elas começavam sempre da mesma maneira: Dona Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que doutor Jorge mais dona Zélia estejam gozando boa saúde. Por aqui vai tudo mais ou menos. Este ano choveu muito, muita água, afogou um bocado de planta... Ou então, depois do preâmbulo, até as novidades da carta: Por aqui vai tudo mais ou menos. Este ano a seca foi demais. Não choveu nada. Um bocado de planta secou...

        Certa vez, às vésperas de uma viagem nossa à Europa, visitamos uma fazenda no estado do Rio. Qual não foi nossa surpresa ao sabermos que nessa fazenda havia um bosque de lichizeiros. Entusiasmada, pedi aos proprietários uma muda. Com muito prazer, disse José Amádio, dono da fazenda. Mudas de lichi é o que mais há. A fruta cai, o caroço brota... Chamou um empregado, encarregou-o de preparar a muda para que eu levasse.

        Conheci a fruta na China, não sabia que podia encontrá-la no Brasil. Plantaria o lichizeirinho, com todo o capricho, em nosso jardim. Viajei do Rio de Janeiro à Bahia levando no colo a latinha com a planta.

        Mal botei os pés em casa, chamei Zuca:

        —  Está vendo esta plantinha que eu trouxe do Rio, Zuca? E uma planta rara, no Brasil não existe. Ela dá a fruta mais deliciosa do mundo. Vamos plantar e cuidar dela com todo o carinho, entendido, Zuca?

        Zuca olhou a muda, não disse nada. Levei-o para o melhor lugar que encontrei no terreno, para plantá-la. Comigo Zuca não regateava dia nem hora de plantar, ele já havia descoberto que dona Zélia era uma pessoa muito interessante e não teimava. Consultei-o:

        —  Este lugar está bom?

        —  Está mais ou menos... podia ter um pouco mais de sol...

        —  Pois é aí mesmo que vamos plantar minha plantinha rara. — Voltei a frisar planta rara para que ficasse bem gravado em sua cabeça que ele não podia facilitar, devia cuidar dela com todo o carinho, durante nossa ausência.

        Ordenei-lhe que fizesse a cova bem profunda e exageradamente larga, cercasse a muda de terra vegetal e adubo, e Zuca só obedecendo. Pronto, lá estava ela, plantadinha. Com terra boa e tanto adubo ela cresceria rapidamente, daria frutos, mataria Carybé de inveja. Ele vivia se vangloriando da maravilha de seu pomar, atirando em nossas caras frutas e mais frutas que colhia. Lichi ele não tinha.

        Fiz ainda uma recomendação a Zuca antes de partir, mais do que uma recomendação, uma ameaça:

        —  Cuide direito de minha planta, Zuca. Quando eu voltar, se você vier com a conversa de que a planta morreu afogada ou de sede, eu te mato. Entendeu bem? Eu te mato.

        Zuca riu:

        — Dona Zélia é tão interessante... deixa comigo, pode deixar, dona Zélia, eu cuido dela.

        Dessa vez nossa viagem foi longa, passamos vários meses fora. De vez em quando pensava no meu lichizeirinho: Estaria crescido? Teria morrido?

        Ao chegarmos ao Hotel Tivoli, em Lisboa — nosso endereço em Portugal —, na véspera de nosso retorno ao Brasil encontrei na portaria uma carta dirigida a mim. Pelo envelope e pela caligrafia, identifiquei Zuca. Olha aqui, Jorge, disse, desta vez ele endereça a carta a mim. Será que houve temporais ou seca na Bahia! Abra o envelope, vamos ver o que ele diz, apressou-me Jorge. A carta, como sempre, começava assim:

        Dona Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que tudo tenha corrido bem com dona Zélia mais doutor Jorge. Por aqui, graças a Deus tudo tem corrido muito bem. Tem chovido pouco e o sol não está muito forte. Tenho uma novidade que vai agradar dona Zélia: aquela planta dela, rara, está uma beleza. Cresceu muito e já deu uma pitanga. Sem mais...

        Até hoje, trinta e tantos anos se passaram, Zuca não se conforma que dona Zélia, pessoa tão sabida, tenha comprado gato por lebre. Com tantas pitangueiras no jardim ela não viu o que qualquer um podia ver: a plantinha que ela trouxera do Rio de Janeiro, no colo, com tanto cuidado, era uma pitangueira e não a árvore rara da qual ela fizera tanto alarde.

        Há pouco, conversando com Zuca à sombra da mangueira, junto ao terraço, ele recordou o fato e isso deu-me a idéia de narrá-lo agora, já, não deixar para mais tarde ou para amanhã ou depois de amanhã, no velho sistema do Zuca. Não fosse eu a pessoa tão interessante...

       

      RUFINO

        Pelas mãos de Wilson Lins, chegou Rufino. Negro, alto, forte, jovem, bem-apessoado, sorriso aberto.

        —  Este é Rufino — apresentou-o Wilson. — Mestre-de-obras, ele tem trabalhado para mim. A especialidade de Rufino é muro de arrimo. Como vocês vão precisar de um muro de pedras para agüentar a terra da frente, achei que com Rufino vocês vão estar bem servidos.

        Realmente, tínhamos um problema sério e caro a resolver. A casa ficava no alto de um barranco e seria preciso levantar uma espécie de muralha para sustentar tanta terra: obra que ia nos custar um dinheirão.

        Contratado, Rufino apareceu com um grupo de pedreiros para fazer o serviço. Os pedreiros trabalhavam muito e Rufino só olhava.

        —  Você não trabalha, não, Rufino? — perguntou-lhe Jorge um dia, ao vê-lo de braços cruzados.

        —  Tenho que fiscalizar, doutor.

        Depois do paredão pronto, dinheiro recebido, Rufino continuou aparecendo, mesmo sem ter nenhuma função na obra. Recebera bastante e enquanto não gastasse o último tostão, não precisava se preocupar em arranjar outro trabalho. Gostara da atmosfera da casa, aparecia apenas para se divertir, fazendo camaradagem com nossos amigos, Carybé, sobretudo, que lhe dava muita corda.

        Rufino tornou-se um agregado da casa e, no correr dos anos, até hoje, volta sempre, o sorriso aberto, a simpatia estampada no rosto:

        —  Tudo bem, Rufino?

        —  Tudo mais ou menos.

        —  Mais ou menos? Então não está bem?

        —  Saí há pouco de casa, dona Zélia, deixei as brasas vivas no fogão, um caldeirão de água fervendo, nem um grão de feijão dentro... as crianças em volta olhando a água ferver, todos de boca aberta assim — imitava as crianças de boca aberta. Na vez seguinte:

        —  Tudo bem, Rufino?

        —  Tudo mais ou menos.

        —  Mais ou menos? Então não está bem?

        —  A minha mais velhinha foi subir numa árvore para colher uma manga, estava com fome, teve tontura, caiu e quebrou o braço... Então eu vim pedir socorro a doutor Jorge e à senhora.

        Ao ver Rufino chegar, já sei que vem problema. Ele aprendeu a ser gentil, sabe nos conquistar. Nos últimos anos, ele nunca chega de mãos vazias: passa antes por um matagal perto de sua casa e colhe flores, traz-me grandes ramos de flores. Só depois despeja seus males. Às vezes o aconselho a procurar Wilson Lins, que se livrou das suas facadas nos passando a bola.

        Sabendo que Jorge adorava teiú moqueado, um belo dia Rufino resolveu tocaiar um que costumava aparecer no seu terreiro. Matou o teiú, e sua mulher, que é cozinheira, dispôs-se a prepará-lo. Ele então apareceu.

        —  Tudo bem, Rufino?

        — Tudo bem. Cacei um teiú para doutor Jorge, sei que ele gosta, agora estou precisando de um dinheirinho emprestado (o dinheiro que pede é sempre emprestado, nunca dado, embora jamais tenha a intenção de devolvê-lo) para comprar os temperos. A patroa vai preparar.

        Meio-dia em ponto, Rufino iniciou a subida da ladeira da rua Alagoinhas, um tabuleiro na cabeça, o teiú moqueado com seu perfume marcando presença.

        Sem conhecer as habilidades culinárias da mulher de Rufino, sem saber como seria esse teiú, por via das dúvidas, preparei uma galinha ao molho pardo para completar o menu. Tínhamos nesse dia um convidado para o almoço: Antônio Celestino, português radicado no Brasil, vivendo desde jovenzinho na Bahia, casado com baiana, pai de três moças. Celestino era alto funcionário do Banco Econômico, amigo dos artistas da Bahia, crítico de arte. Eu estava sem saber o que Celestino ia achar do teiú de Rufino, o que ia dizer, piadista inveterado, qual a graça que iria inventar para acabar com nosso teiú.

        No tabuleiro de Rufino o lagartão dourado cheirava. Ele havia gasto o dinheiro que levara para o tempero, não fizera economia: com o teiú vinham batatas douradas, ovos duros, pimentão, tudo muito bem-arrumado. Quem pensar que português não gosta de teiú, se engana. Celestino não tugiu nem mugiu, entrou direto no lagarto, comeu de lamber os beiços, Eu provava teiú pela primeira vez e confesso a minha desconfiança. Pena ter sido pouco, não lembro ter comido nada tão delicioso. Se soubesse que você ia gostar tanto de teiú, Celestino, não teria te convidado ou teria me servido antes, pilheriou Jorge ao vê-lo repetir o prato, limpar os ossinhos.

        Rufino descobriu tarde a sua profissão, a que lhe dava prazer: figurante de cinema. Durante as filmagens de Dona Flor e seus dois maridos, aqui na Bahia, Jorge pediu a Bruno Barreto, que dirigia o filme, um lugar de figurante para Rufino. Ele chegou até a trabalhar, quer dizer, fazer força carregando coisas, levantando pesos, durante as filmagens, além de aparecer em várias cenas. O que recebeu em dinheiro não lhe deu independência, continua, como sempre, a trazer flores, a dar facadas.

       

      AS OBRAS DA CASA

        O interesse de nossos amigos baianos pela obra da casa era enorme, acompanhavam passo a passo as demolições e as paredes levantando... Todo mundo dando palpites, todos ajudando.

        Lev Smarchewski fazia parte da turma de artistas e foi trazido um dia por Carybé. Arquiteto, russo de nascimento, tão brasileiro quanto um brasileiro nato, casado com Quinquinha, baiana de família tradicional, pai de vários filhos, homem dos sete instrumentos. Lev, na ocasião, debruçava-se sobre desenhos de automóveis de corrida, montara um para ele próprio. Também construtor de barcos a vela, Lev fazia barcos capazes de atravessar o oceano, desenhava móveis, possuía fábrica de móveis e sobretudo era pintor, bom pintor.

        De mangas arregaçadas, Lev chegou com Carybé, disposto a dar a sua contribuição na reforma da casa. Vira e estudara a planta nas mãos de Gilberbet, tomara nota das medidas da sala principal, nos oferecia agora fazer os móveis. Gostamos dos desenhos que trazia, era um privilégio ter móveis desenhados por Lev.

        Carybé trouxera, nessa manhã, o desenho do portão de ferro, com pássaros e frutas, uma beleza como só Carybé sabia fazer. Ele próprio falara com Udo Knoff, o alemão dono da cerâmica, e sem nenhum problema conseguira os cacos de azulejo para colocar nas escadas e nos passeios. Homem requintado, Udo era amigo dos artistas da Bahia, sua cerâmica era utilizada em todas as casas de bom gosto.

        A Yemanjá vermelha, de madeira, de Mário Cravo, estava à espera que fosse feito o laguinho no jardim. A bela sereia ficaria no centro, refletiria na água. Nesse lago seriam colocadas plantas aquáticas, nenúfares, conhecidas na Bahia como baronesas, haveria sapos, muitos sapos.

        O entusiasmo de Jorge, inventando sempre novidades para a casa, era tão grande que não tinha vontade de voltar para o Rio, ficava sempre adiando os compromissos que o esperavam lá, e onde os meninos já se encontravam desde o início das aulas. Tínhamos esperança de que antes de terminar o ano a casa estivesse pronta. Cerca de trinta operários trabalhavam de manhã à noite, a toda hora chegava material. Jorge e Carybé ali, conferindo tudo. Gilberbet, no momento, dividia o trabalho na casa com os preparativos para seu casamento. Ele pensara até em adiar, mas Sônia batera o pé, casamento não se adia.

        O apartamento que possuíamos no Hotel Quitandinha, onde haviam passado sua lua-de-mel João Gilberto com Astrud e Glauber Rocha com Helena Ignês, abrigaria ainda um casal de noivos: convidamos Gilberbet e Sônia para passar a lua-de-mel lá. Enquanto o arquiteto estivesse ausente, Carybé tomaria da batuta, dirigiria a obra.

       

      MAUS PRESSÁGIOS

        Mais do que eu, Jorge se afligia com a morosidade da obra na Bahia, não via a hora de sair do Rio de Janeiro.

        Andávamos tristes com a morte do Coronel. Seu João morrera quando menos esperávamos, deixando-nos desolados. Detalhes sobre o seu falecimento já narrei em livro anterior (Chão de meninos), poupo-me agora de recordá-los novamente.

        Estávamos inquietos com a situação política do Brasil. Víamos as coisas malparadas. Nosso mau pressentimento se agravara depois de termos participado de uma reunião, convocada pelo presidente João Goulart, no apartamento de Di Cavalcanti, no Rio, na qual o presidente — empossado a duras penas depois da renúncia de Jânio Quadros — falou a um grupo de intelectuais, dizendo de seu otimismo, de sua segurança, contando que nomeara novos oficiais, de sua confiança, reformara comandantes e generais, inclusive seu chefe do Estado-Maior, marechal Castelo Branco.

        João Goulart ligara-se a movimentos de esquerda, dando ouvidos a sectários e dogmáticos, enfrentando os militares com planos de reformas, afastando de seu governo comandantes e generais, apoiando passeatas gigantescas com faixas provocativas, comparecendo e falando em comícios... Ele não se dá conta de que está forçando uma volta atrás?, comentara Jorge, ao ver anunciado um comício monstro na Central do Brasil. Ele está cutucando vespeiro com vara curta, respondi.

        Segundo os que — inclusive nós — já haviam sofrido na própria carne dolorosos retrocessos políticos, João Goulart marchava a passos largos para a sua deposição, para a implantação de mais um regime totalitário, de repressões, de censura, de violação dos direitos do homem em nosso país.

        Com esse espírito de preocupação, viajamos de muda para a Bahia, no final do ano de 1963 para 1964.

       

      MANÉ PATO NOVAMENTE NA ESTRADA

        Dessa vez viajávamos para ficar. Os meninos já se encontravam na Bahia havia um mês, seu João morrera havia um ano. Desde a morte do marido, dona Eulália me autorizara chamá-la pelo apelido que o Coronel lhe dera: Até aqui tu foi minha filha, disse-me ela, daqui por diante, tu vai ser minha mãe. Pode me chamar de Lalu. Só depois da casa pronta, ela iria morar conosco na Bahia.

        Carybé nos apressava em ligações telefônicas, voz de longa distância: Venham logo. O olho do patrão engorda o gado... Enquanto vocês não vierem a obra não vai terminar. Já dá pra morar... faltam umas coisas pequenas, arremates... Está uma beleza!...

        Conseguimos um motorista profissional para dirigir o Mané Pato até a Bahia, homem competente que nos daria segurança, eu não me esfalfaria como da outra vez. Levaríamos no carro mil e uma coisas, a começar por livros e presentes que Jorge comprara para todo mundo.

        Passei a noite empacotando, embrulhando, colocando livros em caixas. Uma consumição! Ao meu lado, Milu procurava me ajudar. Mais atrapalhava do que ajudava com seus suspiros e reclamações: Coisa mais triste é ser mulher... Deus me livre! Veja! A pobrezinha aí trabalhando e o outro lá dormindo... Ave-Maria! Jesus! Não sei como ela agüenta... A interminável ladainha só acabou quando dei por encerrada a arrumação e me despedi para dormir.

        Logo cedo Jorge me acordou. Queríamos aproveitar a frescura da manhã, partir antes do sol esquentar. Felizmente Lalu encontrava-se em São Paulo, em casa de Joelson, seu filho médico, não ia cair na choradeira ao nos ver de mudança.

        Milu estava a postos, na sala, aguardando que o cuco cantasse seis vezes. Ficou vendo Jorge e o chofer descerem a bagagem, não se ofereceu para ajudar. Os dois que se arrumem, resmungou ela, pelo menos que arrumem o carro... ao menos isso... Eu só desceria, com as últimas miuçalhas, quando Jorge desse por terminadas as arrumações.

        Jorge demorava a subir, devia estar tendo dificuldade de acomodar tanta coisa. De repente a porta abriu-se e ele entrou, todo nervoso, falando alto:

        —  Não coube nem a metade...

        —  Nem a metade?

        —  Nem a metade, sim, nem a metade — repetiu. — Eu não sei que necessidade você tem de levar tanta coisa... que mania..

        —  Sou eu quem quer levar tanta coisa? Decidimos juntos o que levar, você não lembra? Agora eu é que sou a culpada... — Cansada e nervosa, comecei a chorar.

        —  Também não é motivo para tantas lágrimas — disse Jorge mais calmo, em tom conciliador. — Desça comigo, vamos, você vai me ajudar.

        Jorge tem fama de bom arrumador de mala de automóvel — ele próprio se gaba disso —, mas dessa vez fracassara. Depois de nova tentativa, com a ajuda do porteiro do prédio, conseguimos encaixar tudo: na mala do carro e na parte de trás onde eu viajaria, espremida.

        Subimos para nos despedir de Milu.

        —  Conseguiram? — perguntou ela.

        —  Tudinho, Milu, coube tudo — respondi. — Quando a casa estiver em ordem você vai passar uma temporada conosco.

        Milu já tinha seu discurso preparado: Minha filha, foi dizendo, trate de se cuidar. A mocidade é uma só, a vida também é uma só. Não ligue pras coisas que ele te fizer, homem é assim mesmo, escravagista, fuzilava Jorge com o olhar enquanto ele prendia o riso. Quando ele lhe maltratar não diga nada, não chore, num gesto patético abriu os botões da blusa, abra a blusa, assim, e diga apenas: não me mate aos poucos, mata de uma vez, mata!

       

      A CASA COMEÇA A FUNCIONAR

        Vários operários ainda trabalhavam dentro das portas, quando nós e os meninos entramos para habitar a casa da rua Alagoinhas. Conseguimos a transferência de João Jorge e Paloma do Colégio Andrews, no Rio, para uma escola pública em Salvador, o Colégio Estadual Manuel Devoto. Sempre quisemos que nossos filhos estudassem ao lado de meninos de classe menos favorecida, fossem colegas de crianças que não tinham tido os mesmos privilégios que eles. Nossos filhos já haviam feito o curso primário, no Rio de Janeiro, na escola pública Marechal Trompowski. Só depois foram para um colégio particular. Queríamos nossos filhos sem empáfia, eles deviam conhecer de perto as necessidades do povo.

       

      EXU, MEU COMPADRE

        Manu, artesão do ferro retorcido e do latão, foi escolhido por Jorge para fazer um Exu a fim de enfeitar o jardim: O Compadre vai ser o guardião da casa, disse Jorge.

        Lá estava ele, enorme, formoso, de cauda virada, chifrinhos e estrovenga, Exu pra ninguém botar defeito, nem mesmo Carybé, se roendo de inveja.

        Não tardou muito, um recado de Mãe Senhora pedia que Jorge fosse vê-la, com a maior urgência.

        A mãe-de-santo havia sabido da existência do Exu em nosso jardim e estava horrorizada. Tu não tem juízo, seu Jorge? Onde já se viu botar dentro das portas um orixá forte desses, sem o fundamento? Não quis nem ouvir Jorge, tentando lhe explicar que colocara a escultura no jardim apenas como decoração. Se tu não tem cabeça, eu tenho, disse Mãe Senhora, encerrando a bronca.

        No dia seguinte, mal o sol levantara, apareceu na porta Loló, emissário de Senhora. Trazia uma enorme sacola, dentro dela o necessário para assentar o santo: um galo preto, um litro de azeite-de-dendê, um litro de cachaça, farofa amarela e alguns charutos. Cavou a terra, fez uma valeta em torno da escultura, nela atirou os charutos, despejou o dendê, a cachaça, a farofa e o sangue do galo de pescoço decepado na hora.

        Até hoje sigo as instruções de Mãe Senhora: às segundas-feiras, infalivelmente, chova ou faça sol, dou de beber ao meu compadre, despejo meio copo de cachaça sobre ele, assobio uma música que Verger me ensinou e, com isso, dou por completada a obrigação. Nas minhas ausências, Aurélio me substitui.

       

      EXPLOSÃO

        Montar a casa não era fácil. Casa grande, de muito movimento, tivemos que comprar três refrigeradores e um freezer. Tudo a postos, ligamos os quatro aparelhos de vez. Ouviu-se um estrondo. O transformador, que servia à rua toda, não agüentara a carga, explodira, e com ele nossos aparelhos. Quem pensou que por ser Jorge Amado ele fosse ter todos os privilégios enganou-se: o novo transformador, de alta voltagem, potência infinitamente superior, com capacidade para beneficiar a rua toda, foi pago por Jorge, dinheiro alto, de seu bolso.

       

      O SAPO-CURURU

        A casa estava pronta e graças ao excelente arquiteto e aos nossos amigos, grandes artistas da Bahia, tínhamos conseguido o que desejávamos: viver numa casa ampla, arejada, agradável, sem requintes de grandeza, combinando com a nossa maneira de ser, de vida simples, sem ostentação. Uma casa sincera, como disse certa vez Gilberbet, em sua linguagem de arquiteto. Estaríamos rodeados de arte e, ainda de quebra, para a satisfação de Jorge, tínhamos até sapos coaxando à noite no laguinho redondo, rodeado de flores.

        Peço licença para interromper o que dizia e contar a história do sapo-cururu:

        Certa noite, chovia torrencialmente quando ouvimos o coaxar forte de um sapo junto à porta de nossa sala. Lá se encontrava um enorme sapo-cururu. De onde teria vindo? Esse detalhe não interessou a Jorge. Tivesse vindo ele de onde fosse, devíamos, sem perda de tempo, contar a grande novidade a Carybé. Na casa dos Carybé, em Brotas, não havia lagos nem lagoas e, portanto, nada de sapos, o que deixava nosso amigo na maior frustração.

        Não levou meia hora, enfrentando temporal e ventania, apareceu Carybé. Acocorou-se ao lado do cururu e começou a coçar-lhe cabeça e costas. O sapo inchou de tal forma que parecia uma bola de futebol. Não brinque com ele, compadre, preveniu Jorge, daqui a pouco ele vai começar a soltar veneno por aí e veneno de sapo é perigoso. Carybé só desistiu da brincadeira quando o sapo perdeu a paciência, se movimentou, deu um pinote inesperado e, a largos saltos, sumiu entre a folhagem do jardim.

     

      BRINCADEIRINHA

        Resolvi um dia pregar uma peça em meu compadre e, armada de um gravador, registrei o coaxar dos sapos. Fomos à casa de Carybé. Seu ateliê ficava nos fundos do jardim, em cima da garagem. Deixei meu gravador no último degrau da escada, junto à porta e, quando a prosa estava bem animada, dei uma saidinha e liguei o gravador. Espera, espera aí, gritou Carybé, interrompendo uma frase pelo meio, vocês também estão ouvindo? Tenho sapos no jardim, gritou. Foi em busca de uma lanterna, saiu porta afora, à procura dos sapos, sem lembrar que seus compadres também eram bons em pregar peças.

       

      CALASANS NETO

        Em nossa casa, feita com tanto carinho, tanta arte, tanta beleza espalhada por todo lado, havia uma falha: a porta de entrada destoava de tudo o mais, era azul, sem nenhuma graça. A porta que faltava só veio a ser colocada alguns anos depois da inauguração da casa.

        O talentoso artista, autor da bela porta que veio substituir a que era azul, sem nenhuma graça, Calasans Neto ou Mestre Cala, como é chamado, caprichou na provocante Tereza Batista entalhada na madeira que se abre a nobres e a plebeus.

        Mestre Cala conhecera a fundo a heroína do romance de Jorge Amado, ao ilustrá-lo em 1971. Pícaro, ele soube muito bem recriar a personagem do escritor, dando forma e sensualidade à jovem Tereza, aproveitando a deixa e, por que não?, dar a doutor Emiliano Guedes, que amou Tereza, traços de Jorge Amado. Numa das ilustrações do livro, ele retrata o casal tomando banho de rio, ambos nus, claro!

        —  Como é que você se atreve a mostrar meu marido nu, tomando banho de rio, abraçado com Tereza, Cala? — pilheriei, fingindo ciúmes.

        Calasans não é homem de perder o rebolado, não ia perder dessa vez:

        —  Você reclama porque não reparou que a minha Tereza é você todinha.

        —  Ora, Cala, não me venha com essa conversa, você fez Tereza de costas, nem se vê o rosto.

        —  E quem falou em rosto? — riu o malandro. — Ela é você de costas, sem tirar nem pôr...

        —  Do balaio grande — completou Jorge, que se divertia ouvindo a discussão.

        Mestre da gravura e do entalhe, artista também do pincel, Calasans Neto pertencia a uma geração de jovens, do movimento Mapa, formado por um grupo de moços talentosos, a geração de Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Anísio Melhor, Sante Scaldaferri, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos. Esses não eram da fornada dos mais velhos, da geração de Jorge Amado, Mirabeau, Mário Cravo e Carybé.

        Conhecíamos a todos, admirávamos o talento desses artistas, cada qual na sua especialidade: Glauber Rocha com seu talento cinematográfico, Sante com sua pintura, Calasans com suas gravuras e seus entalhes, João Ubaldo Ribeiro no início de sua famosa literatura, Fernando da Rocha Peres, Carlos Anísio Melhor, com sua poesia, e Paulo Gil Soares, homem de mil artes nas letras.

       

      CASA CHEIA

        Amigos na Bahia era o que não nos faltava. Nosso círculo de relações com figuras da intelectualidade baiana era cada vez maior: Vivaldo Costa Lima, por exemplo, tornou-se nosso amigo mesmo antes de habitarmos a Bahia. Inteligência viva, Vivaldo era quem mais entendia de candomblé. Com ele aprendi muita coisa. Nas festas do terreiro do Axé Opô Afonjá, de Mãe Senhora, enquanto Jorge, no seu posto de Obá, sentava-se ao lado da mãe-de-santo, Vivaldo, a meu lado, esclarecia minhas dúvidas, explicava-me coisas que, no meu desconhecimento dessa religião, ignorava.

        Quando da visita de Sartre e Simone de Beauvoir à Bahia, Vivaldo os acompanhou, respondeu com enorme competência a todas as questões que o ilustre casal, interessadíssimo no assunto, lhe fez, tornaram-se amigos.

        Outra amizade que conquistou nossa intimidade foi a deValdeloir Rego. Doutor em capoeira, autor de importante livro sobre a arte de lutar capoeira. Valdeloir passou a freqüentar nossa casa e muitas vezes nos acompanhou às festas nos terreiros de candomblé. Com Valdeloir também aprendi muito.

        Foi Odorico Tavares quem descobriu e nos apresentou o artista Emanuel Araújo, muito jovem, quase um menino, porém já um mestre na arte da gravura.

        Fomos pela primeira vez, à casa de Emanuel, levados por Odorico. Íamos ver os trabalhos, louvados pelo expert em arte, e tivemos uma surpresa. O menino Emanuel nos esperava com um delicioso almoço preparado por ele mesmo. Nessa ocasião o jovem se dedicava a desenhar gatos. A série de gravuras que nos mostrou nesse dia era de gatos. Só gatos, os mais belos, de olhos de todas as cores, impressionantes.

        Já havíamos visto um trabalho de Emanuel, à venda, na loja de antiguidades que Luz da Serra mantinha no térreo do Hotel da Bahia. Gostamos, porém era um só, em sua casa, diante do desfile de gatos que ele nos apresentou, pudemos nos encantar e ver que o menino iria longe, não havia dúvida, ele era um artista de mão-cheia. Desde então Emanuel ficou sendo nosso amigo, freqüentador de nossa casa.

        Luz da Serra, mulher poderosa, tornara-se nossa amiga desde a nossa chegada à Bahia, mesmo antes de comprarmos a casa. Amizade que perdura até hoje.

       

      AS VELHINHAS SE ENCONTRAM

        Lalu chegara para ficar definitivamente. Preparamos um quarto especial para ela, o único a ser assoalhado e forrado, na enorme casa de telha-vã com piso de lajotas.

        Convidei mamãe a passar uma temporada conosco. Ela e Lalu se davam muito bem — inimigas íntimas —, distraíam-se contando e ouvindo casos. Lalu gabando os filhos, filho dela não tinha defeito. Mamãe, mais modesta, bem mais, não elogiava os seus; aventurou-se, apenas uma vez, em conversa com Lalu, a justificar a sorte da filha caçula:

        — Zélia nasceu com a estrela.                                     

        Lalu não perdeu tempo: 

        —  Nasceu mesmo, casou com meu filho! Jorge também nasceu com uma estrela. Só que a dele é bem melhor que a de Zélia, a estrela dele é muito forte, ajuda ele a escrever livros, uma beleza!

        Essas conversas muitas vezes se repetiam e enchiam o dia das duas velhinhas.

        Dona Angelina chegou ansiosa para ver as maravilhas da Bahia, conhecer o Pelourinho do qual ela tanto ouvira falar.

        Já naquela época o Centro Histórico de Salvador estava muito arruinado, casas caindo aos pedaços, muito lixo acumulado pelas ruas. Levei-a ao Pelourinho e à feira de Água dos Meninos, onde chafurdamos na lama para fazer algumas compras. Dona Angelina não gostou e, muito confidencialmente, temendo ofender, me disse: Nunca vi tanta sujeira... Gostaria de ouvir os comentários de dona Angelina nos dias de hoje. Ela nos deixou há muitos anos, não viu, não chegou a ver a restauração do Pelourinho, a urbanização da cidade. O que diria ela? Parece que estou a vê-la e ouvi-la: Que beleza! Gente danada! Nunca pensei.

        Habituada a comer verduras e legumes, dona Angelina estranhou. Naquela época, em Salvador, não havia verduras a escolher. Encontrava-se: taioba, língua-de-vaca, repolho, abóbora, quiabo, maxixe, jiló, alface e tomate da pior qualidade.       

        —  Com um terreno tão grande, por que não fazem uma horta? — sugeriu dona Angelina. — Plantem escarola, tomate do bom, alface, couve-manteiga, couve-flor, brócolis, rúcula, salsão...

        Lalu ouvia atenta a lista de verduras que dona Angelina citava:

        —  Virgem Maria! — disse ela. — Pra que tanta verdura?  Quem é que vai comer tudo isso? Eu mesma não como, meu filho também não gosta de verduras...

        Os planos de dona Angelina iam muito além da mesa dos Amado:

        —  Olhe, dona Eulália, vocês podiam até ganhar muito dinheiro vendendo verduras. Nesta casa tem duas garagens e vocês só têm um carro. Então! Podiam muito bem usar uma para fazer uma quitanda... Seria a única da rua, única do bairro.

        Lalu ouvia estatelada a proposta da mãe de Zélia:

        —  Olhe, dona Angelina. Vou lhe pedir um favor: a senhora nunca mais me repita uma baixeza dessas.

        —  Baixeza, dona Eulália? Então vender verduras é baixeza? Numa terra que não tem verduras, vender verduras é até uma obra de caridade — respondeu mamãe, revoltada.

        —  A senhora esquece, dona Angelina, que meu filho é um grande escritor, um homem conhecido no mundo inteiro? A senhora quer que ele vire verdureiro?

        A discussão estava pegando fogo e eu, que até então me divertia ouvindo-as, resolvi intervir:

        —  Muito bem. Dona Eulália tem razão em não querer que o filho vire verdureiro, nem teria cabimento uma coisa dessas. Mas eu tenho uma solução: Jorge não vai nem entrar na quitanda, Lalu fica na caixa registradora e mamãe recebe e serve a freguesia, ela é muito comunicativa, gosta de contar casos, a clientela vai gostar.

        Mamãe entendeu que não valia a pena insistir, Lalu se deu por vencedora.

       

      A CASA DAS FRUTAS

        Correu voz que haviam aberto na Barra, no Alameda, uma casa que vendia frutas e verduras vindas de São Paulo. Era a primeira e única, freguesia enorme. Quem nos deu a boa nova foi Mirabeau. Jorge resolveu dar uma espiada, pois, se ele não fora habituado a comer verduras e não sentia falta delas, adorava frutas e atrás das frutas é que ele queria ir.

        Mirabeau tinha um chofer de nome Edgard, que o servia desde os tempos de solteiro. Algumas vezes na vida, por circunstâncias diversas, Mirabeau deixou de ter automóvel mas nunca dispensou o chofer. Na ocasião da abertura da Casa das Frutas, Edgard exercia sua verdadeira função: dirigia o carro de Mirabeau.

        Mirabeau chamou Edgard.

        —  Você sabe onde fica a Casa das Frutas?

        —  Sei, não, doutor.

        — Me disseram que fica no Alameda. Chegando lá a gente pergunta. Deve ser fácil — disse Mirabeau.

        Assim dizendo, Mirabeau chamou Jorge e ambos embarcaram no automóvel, Edgard ao volante. Ao chegarem ao local indicado, Edgard encostou o carro:

        —  Vou perguntar ali, no ponto de táxi, na certa eles sabem onde fica a tal...

        Voltou sem a indicação:

        —  Ninguém sabe, não, doutor.

        —  Vamos mais adiante — ordenou Mirabeau. Rodaram mais um pouco:

        — Vá perguntar naquela padaria — mandou Mirabeau. Enquanto Edgard ia em busca do endereço, Jorge divisou, mais adiante, um cartaz anunciando: Casa das Frutas. Ao voltar, ainda uma vez sem a indicação, Mirabeau lhe mostrou o anúncio da casa. É ali mesmo.

        Somente dias depois ficamos sabendo do engano de Edgard. Ele confidenciou a Arthur, filho de Mirabeau, que havia entendido casa das putas. No ponto de táxi o chofer lhe dissera: Eu mesmo não sei, não. Mas se você descobrir, me avise. Quanto ao empregado da padaria: Casa de puta mesmo, por aqui não tem. Se tivesse eu saberia, mas está vendo aquele prédio, ali adiante? Dizem que lá moram umas francesas que facilitam.

       

      FLORINDA DOS SANTOS

        Uma das coisas que me encantou, durante anos, foi ver, quando menos esperava, passar em minha frente, nas ruas da Bahia, um vulto de mulher coberta da cabeça aos pés por uma mortalha de cetim roxo, séria, calada, excessivamente maquiada, andando entre a multidão. Não era esmoler mas não se acanhava em pedir restos de ruge, batom, qualquer maquiagem. Ninguém conhecia a sua identidade. Nem o nome dela sabiam. Corriam lendas sobre sua vida, falavam de amor malparado, de mulher rica que perdera a fortuna, de caso de loucura, mas nenhuma das histórias que ouvi me convenceu. A mulher de roxo de repente sumiu, nunca mais foi vista. Somente agora, no jornal da TV, soube seu nome. Florinda dos Santos, a mulher de roxo, falecera aos oitenta anos num asilo onde fora internada havia tempo.

       

      HÓSPEDE INESPERADO

        Um belo dia tocaram a campainha da porta. Fui atender, dei de cara com um senhor idoso, uma valise de viagem depositada ao seu lado, junto à porta de entrada. Embaixo, na calçada, dois rapazes que o acompanhavam me deram um alô já se despedindo, o automóvel à espera, de porta aberta, disseram: Ele é tcheco, é um diretor de cinema, veio do Rio a convite de Walter da Silveira que vai prestar uma homenagem a Jores Ivens e a este cavalheiro, amanhã. Ele vai se hospedar aí com vocês. Não tive tempo de dizer nada, eles se foram.

        O cavalheiro tcheco, professor ilustre da Academia de Artes de Praga, me cumprimentou em tcheco: Dobriden. Dobriden, respondi a seu cumprimento e não fui mais adiante. Além do tcheco o cavalheiro falava inglês, mas preferia falar tcheco já que lhe haviam anunciado que os hospedeiros na Bahia, ex-moradores da Tchecoslováquia, falavam a língua correntemente. Exageraram. O pouco do tcheco que eu aprendera, àquelas alturas, já estava quase que completamente esquecido, e Jorge também guardara apenas algumas palavras.

        O professor Broussel (não lembro se o nome era exatamente esse) entendeu logo que não poderia manter longas conversações conosco, nem longas e nem curtas. Ele participara de um festival de curtas-metragens, no Rio, chegava à Bahia convidado por cineastas baianos que iam homenageá-lo, assim como a Jores Ivens, famoso cineasta, internacionalmente amado e respeitado. Ivens não pudera vir à Bahia nessa ocasião, viria depois a convite de Jorge, velho amigo de longos encontros pela Europa.

        Acomodei o professor tcheco no apartamento da frente, junto à sala. Ele me perguntou se havia laranjas em casa e eu lhe dei uma cestinha com laranjas, um prato e talheres. Ele então me pediu água fervendo e um recipiente onde coubessem as laranjas. Colocou duas laranjas dentro do recipiente, despejou a água fervendo em cima, até cobri-las. Só depois de alguns minutos, descascou-as. Me contou das recomendações que lhe haviam feito, de só comer frutas no Brasil depois de matar os micróbios.

        A homenagem ao professor tcheco seria realizada no dia seguinte, às onze, no Cine Guarany, na Praça Castro Alves. Eu ia levá-lo, pois nosso chofer Garrincha mostrara-se incapaz de dirigir o Mane Pato e fora despedido. Estávamos à espera de um novo motorista que devia chegar a qualquer hora.

        Pela manhã, depois do café, enquanto aguardávamos que o professor arrumasse os seus pertences, ouvimos um ruído estranho que vinha do banheiro: floc, floc, floc... O que estaria acontecendo? João e Paloma, que iriam conosco, estavam intrigados com o estranho barulho que não parava: floc, floc, floc... Por fim, o professor abriu a porta, numa das mãos trazia a valise — depois da homenagem ele iria diretamente para o aeroporto —, na outra, algo branco, embolado. Ao tomar o carro recusou-se a sentar na frente ao meu lado, cedeu o lugar a Paloma, sentou-se atrás com João.

        Um vento forte entrava pela janela traseira e eu notei que as pessoas que passavam na rua paravam para olhar. Dei uma espiada para trás: o velho desfraldara uma camisa branca para fora da janela, verdadeira bandeira tremulante; a camisa era, sem dúvida alguma, a que ele lavara pela manhã, lavagem causadora do intrigante ruído, e ele agora pretendia secá-la.

        Guido Araújo, jovem cineasta baiano, um dos promotores do evento daquela manhã, nos recebeu à porta do teatro, conduziu o ilustre diretor ao palco onde Walter da Silveira e outras personalidades o aguardavam para darem início à cerimônia.

       

      GOLPE DE ESTADO

        Aurélio, o novo motorista, veio avisar que Dr. Wilson Lins e dona Anita, estavam chegando. Havíamos passado dias de angústia, com os boatos políticos que corriam, boatos alarmantes de golpe militar.

        Jorge estivera em São Paulo e no Rio, fora tratar com a editora a publicação de Os pastores da noite, romance que acabara de escrever.

        Jorge saíra do Rio para a Bahia com o irmão, James Amado, num Peugeot novo que comprara para substituir o arruinado e pranteado Mane Pato, que ficara no ferro-velho para sempre.

        Os boatos sobre o golpe que se armava eram tantos e tais que, ao verem os dois irmãos pegando estrada, comentaram: já estão fugindo.

        Os boatos se confirmaram na véspera dessa inesperada visita de Wilson Lins. Rádio e televisão anunciavam a deposição do presidente João Goulart, que fugira para o Uruguai, tropas na rua, no Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado do presidente, comandava um movimento contra o golpe.

        Os generais reformados pelo presidente não estavam tão submissos e conformados como ele supunha. Era anunciado o nome do general Humberto de Alencar Castelo Branco, para substituir João Goulart.

        Telefonamos para alguns amigos no Rio e sentimos na voz de todos que voltara a prudência ao falar por telefone. A censura e a autocensura já andavam à solta comboiando toda a sorte de restrições.

        O sorriso estampado no rosto, olhos brilhando de satisfação, Wilson era o próprio vencedor do golpe, golpe chamado pelos golpistas de revolução:

        Em nome da revolução... disse ele, mas não o deixei terminar a frase. Olhe, Wilson, não venha falar em revolução nesta casa! Estamos cansados de sofrer, cansados de golpes militares. Me admira você, nosso amigo, vir com essa conversa de revolução, revolução fajuta, fascista, que vai acabar com a liberdade, vai botar todo mundo de novo na cadeia... Diante da minha violência Anita quis reagir, mas Wilson não deixou. Vim aqui para oferecer meus préstimos, apenas isso, justificou-se ele.

        Sem mesmo lhe pedir, acabamos precisando da ajuda de Wilson Lins. Homem cotado pelos cabeças do golpe, ele mesmo um dos inocentes úteis, conseguiu libertar João Jorge, que fora espancado e preso ao participar nas ruas de uma passeata estudantil. Nem foi preciso recorrer a Wilson. Ao saber da prisão de nosso filho foi ele quem, espontaneamente, se mexeu, não teve dúvidas em acordar, de madrugada, uma alta autoridade, tirou João da cadeia, veio trazê-lo em casa, de manhãzinha.

        Nossos amigos andavam preocupados com o que pudesse acontecer a Jorge. Começavam as invasões de lares, os livros de Jorge Amado apreendidos, os leitores tachados de comunistas por lerem tal escritor. Temerosas, as pessoas tratavam de esconder os livros proibidos.

        Ao voltar de uma viagem à União Soviética, havíamos trazido miniaturas do Sputnik, novidade, coisa tola, mas que agradara os amigos. Depois desse malfadado 1º. de abril até os pequenos Sputniks, por prudência, foram destruídos por alguns de seus apavorados possuidores.

        A preocupação dos amigos de Jorge era saber se ele pretendia exilar-se ainda uma vez. Daqui não saio, respondia Jorge. Se quiserem me prender, que venham, mas não creio que tenham coragem de tocar em mim, a repercussão no estrangeiro os amedronta.

        O golpe iria, certamente, prejudicar o lançamento do livro novo, Os pastores da noite, apenas saído da impressora. Dmeval Chaves, dono da livraria e nosso amigo, chegou a sugerir o adiamento da tarde de autógrafos. Jorge não concordou, e na tarde do lançamento a Livraria Civilização Brasileira ficou abarrotada de amigos, de leitores, heróis arriscando a própria segurança, e de olheiros da polícia política.

        Depois dessa tarde, pelo que se soube, algumas residências foram visitadas pela polícia, várias pessoas intimadas a depor para responder a perguntas que tais: Qual a sua ligação com Jorge Amado?

       

      DONA ZÉLIA ENTRA NA DANÇA

        Já que falei em movimento estudantil e contei da prisão de João Jorge, peço licença para continuar no assunto e contar um episódio ocorrido com Paloma e eu, fato que se deu alguns anos depois quando nossa filha já cursava o Colégio de Aplicação.

        Naqueles tempos de descontentamento, todo motivo era motivo para que os estudantes levantassem a voz, se organizassem.

        Dessa vez o que os incomodava era a assinatura do Acordo MEC/USAID. A medida mexera com os estudantes universitários, levando-os a promover uma passeata e concentração em frente à reitoria para protestar junto ao reitor. O Colégio de Aplicação, onde Paloma estudava, pertencia à universidade, e seus alunos aderiram ao movimento. Tomei conhecimento da reivindicação, achei-a justa.

        Paloma chegou em casa, toda inflamada:

        —  Mãe, amanhã vou participar de uma passeata. Não adianta dizer que não.

        Ela acompanhara nossa angústia na ocasião em que João Jorge fora preso e temia que eu a aconselhasse a não se envolver. Enganara-se redondamente. Perguntei-lhe o motivo da passeata e, ciente, quis saber:

        —  A que horas vai ser essa concentração?

        —  Ao meio-dia, quando terminar a aula. Para grande espanto de Paloma, eu disse:

        —  Muito bem, eu também vou.

        — Você vai, mãe? Vai mesmo? Mas a passeata é só para os estudantes, não é para as mães.

        —  Você não conhece tua mãe, menina — disse Jorge, que ouvia o diálogo —, ela está doidinha para ir... deve estar morrendo de saudades dos tempos dela... Tua mãe não foi brincadeira, Paloma, ela não perdia uma passeata, uma concentração... Foi numa dessas que nos conhecemos, e ela me pegou, você sabia?

        Eu não estava doidinha, morrendo de saudades de uma passeata, como pilheriara Jorge. Eu estava, isso sim, preocupada com minha filha, com aquela juventude inexperiente que poderia fazer bobagens, botar tudo a perder. Com minha velha experiência política, testemunha e vítima de vários retrocessos democráticos, retrocessos desastrosos, devidos exclusivamente à inépcia de falsos dirigentes, queria estar ao lado dos estudantes tentando ajudá-los, impedindo-os de praticar atos de vandalismo.

       

      A PASSEATA

        Cheguei antes da hora marcada. Tive dificuldade para estacionar o carro, o bairro do Canela estava intransitável, centenas de adolescentes se aglomeravam nas adjacências e em frente ao Colégio de Aplicação. Procurei por Paloma, ela ainda não havia saído, fiquei esperando junto ao portão de entrada. De repente ela chegou acompanhada de uma professora. Ao me ver, gritou, eufórica: Mãe. Olhou para a professora, que havia, minutos antes, tentado dissuadi-la de participar da passeata dizendo-lhe: Pense em sua mãe, e disse: Está vendo? Esta é minha mãe. Se a mãe não tem juízo, deve ter pensado a professora, lavo minhas mãos. Disse qualquer coisa que não entendi e entrou no colégio.

        No meio de tantos jovens eu me sentia a própria choca, cuidando dos pintinhos. Saímos andando e, ao ver um menino colhendo pedras no chão, dei meu primeiro grito de comando: Vamos fazer uma passeata pacífica, nada de provocações, jogue fora essas pedras... Surpreso, o menino me obedeceu.

        A passeata subia a Avenida Sete de Setembro, paramos em frente ao Palácio da Aclamação. Enquanto os meninos gritavam, pedindo escolas para as crianças, tudo bem, eu gritava com eles, mas quando vi que voltavam a colher pedras do chão, dispostos a quebrar os vidros das janelas do Palácio, subi num monte de pedras encostadas a um poste, abracei-me nele e voltei a ordenar, aos gritos, com toda a veemência, que deixassem as pedras no chão e, sempre aos berros, fiz-me entender: aquela não era uma passeata de baderneiros, de provocadores, botei toda a minha experiência em funcionamento e eles me ouviram.

        Passávamos pela casa de Genaro de Carvalho, em frente ao Hotel da Bahia. Da janela, ele chamou Nair e ambos não acreditaram em seus olhos ao me verem entre os meninos, gesticulando e gritando com eles.

        Nosso destino era a reitoria, tínhamos combinado cantar o hino nacional para anunciar nossa chegada, mas não deu tempo: fomos recepcionados por um camburão de onde saltaram vários soldados com máscaras, em disparada sobre nós, atirando bombas de gás lacrimogêneo. Havia chovido e as plantas do jardim da reitoria estavam molhadas; também molhados estavam os carros estacionados. Com um desembaraço enorme, os jovens molhavam os rostos com as folhas e as flores, empapavam lenços na água depositada nos capôs e nos vidros dos automóveis, passando-os molhados no rosto a fim de neutralizar o efeito do gás. Meninos sabidos, mais experientes do que eu supunha. Segui-lhes o exemplo, molhei meu rosto com flores mas, mesmo assim, passei algumas horas sentindo um incômodo ardor nos olhos.

        

      LALU SE ACIDENTA

        Durante o almoço, o guardanapo de Lalu escorregou de seu colo, ela baixou-se para apanhá-lo, perdeu o equilíbrio, a cadeira tombou e, bumba, lá se foi ela ao chão. Coisa de segundos para interromper um almoço, alarmar a todos. Tentávamos levantá-la, mas ela se recusava num gemido só: Ai, ai, ai, me deixem, quebrei minha perna. A muito custo, conseguimos colocá-la na cama e, enquanto esperava o médico que Jorge chamara, ela se lamuriava: Ai, meu Deus, o que vai ser de minha vida.. Velha e de perna quebrada! Osso de velho não cola nunca.., Não vou mais poder andar... Não adiantava querer consolá-la, dizer que certamente não fora o fêmur o osso fraturado, que talvez nem houvesse fratura. Lalu se ofendia: É porque não é tu que está sofrendo as dores que estou sofrendo, é por isso que tu fica aí dizendo essas coisas, pensando que estou fingindo... ai, ai, ai...

        O médico não demorou a chegar, trazendo o necessário para fazer uma radiografia de cujo resultado só se soube no dia seguinte: completamente descartado o diagnóstico de Lalu: nada de fratura na perna, apenas trincara um osso na virilha, pequena rachadura sem importância.

        Tu viu!, disse-me ela ao ficarmos a sós, não quebrei a perna, não, foi só a caixa da periquita. Fez uma pausa. Também ela já não tem mais serventia, não é, fia?

        Não foi preciso engessá-la, apenas o repouso e a imobilidade por alguns dias seriam suficientes para recuperá-la. Eu estava sempre a seu lado, mas um dia necessitei sair com Jorge e ao voltarmos encontramos a cama de Lalu vazia. Chamei por Eunice, nossa empregada, e, tranqüilamente, ela nos disse que dona Eulália estava passeando no jardim. Alarmados, fomos ao seu encontro e qual não foi a surpresa: Lalu passeava refestelada nos braços de Rufino. Emocionados, vimos a cena: o homem forte, braços estirados para a frente e sobre eles uma pluma, frágil, delicada, feliz da vida entre o arvoredo e as flores, a nossa Lalu.

        Creio ter sido a emoção daquela tarde o motivo, válido por toda a vida, de nosso reconhecimento, carinho e paciência com Rufino. (Pode parecer invenção minha mas não é: interrompi o que estou escrevendo para atender a Rufino, dar-lhe o dinheiro para que pague a conta de água atrasada de três meses. Com seu eterno sorriso, estendeu-me o aviso, dizendo-me apenas: Já estão pra cortar.)

       

      LADEIRAS DA BAHIA

        Esta cidade do Salvador é uma cidade de muitas ladeiras, seus nomes os mais belos e sugestivos:

        Ladeira do Aquidabã, Ladeira dos Perdões, Ladeira da Água Brusca, Ladeira da Preguiça, Ladeira do Quebra Bunda, Ladeira da Roça do Lobo, Ladeira do Curriachito, Ladeira do Taboão, Ladeira do Sangradouro, Ladeira Amparo do Tororó e mil outras, cada nome fazendo refletir sobre sua origem. A do Quebra Bunda, penso eu, deve ter sido dada após a queda de alguém.

       

      DADÁ REALIZA SEU SONHO

        Na Ladeira dos Perdões morava Dadá, viúva de Corisco, lugar-tenente de Lampião. Dadá perdera uma perna numa luta do cangaço. Ferida e sem recursos para tratar-se, a perna gangrenara e o jeito fora cortá-la. Sentada o dia todo em frente a uma máquina de costura, ela vivia de confeccionar embornais de lona, bordados, iguais aos que fizera para Lampião e seu bando. Embornais coloridos e bordados, verdadeiras belezas.

        Conhecêramos Dadá ao irmos em busca de comprar embornais, uma amiga nos dera o seu endereço. Estávamos de viagem marcada para a Europa e queríamos levar alguns para presentear amigos. Daí para a nossa amizade com Dadá foi um pulo. Casada pela segunda vez, vários filhos, ela colara, pelas paredes de seu modesto quarto, retratos, recortes de jornais e revistas do bando de Lampião e, sobretudo, de Corisco, de quem falava com grande ternura. Contou-nos que fora raptada por ele aos quatorze anos, ele passara a cavalo, a apanhara e a envolvera numa manta. Fora muito feliz com o cangaceiro, não admitia que falassem mal dele. Transfigurava-se ao contar os episódios por que passara, chorava ao recordar a barbaridade que haviam cometido, cortando as cabeças de Lampião, de Corisco e dos demais do bando, conservadas em formol, sob uma redoma de vidro, expostas à visitação pública, no Museu Nina Rodrigues, na Faculdade de Medicina.

         Nunca permiti que enterrassem o corpo de Corisco. Um corpo deve ser enterrado inteiro, com cabeça, disse ela. Espero que um dia ainda apareça um governador que se dê conta desse horror e libere as cabeças. Quando isso acontecer, disse-nos, eu vou fazer o enterro. Indicou-nos um baú de flandres, debaixo de sua cama: Ali dentro estão os ossos de Corisco esperando pela cabeça, para o enterro.

        Dadá e o segundo marido dormiram durante muitos anos sobre o esqueleto de Corisco, até que o governador Luiz Viana Filho, homem de letras, culto e civilizado, apenas eleito acabou com aquela monstruosidade, ordenando que as cabeças fossem enterradas.

        Havia muita gente no Campo Santo naquela tarde assistindo ao enterro de Corisco, realizado por sua amada. Lá estava, firme, solidária, Maria Amélia, mulher de Roberto Santos, que por vezes a socorrera. Contribuímos para a compra do caixão. Quero um caixão decente para ele, dissera-nos Dada. Ao lado dela, vimos Corisco ser enterrado, esqueleto e cabeça juntos no mesmo caixão, num caixão decente.

       

      BIOGRAFIA DE CORISCO E DADÁ

        Sabedor da amizade e do carinho de Jorge por Dadá, tempos depois do enterro de Corisco um cidadão telefonou: queria, em nome de Dadá, falar com Jorge Amado um assunto da maior importância. Sendo em nome de Dadá, Jorge marcou entrevista com o cavalheiro. Ele apareceu, a vigarice estampada no rosto:

        — Seu Jorge Amado—foi dizendo —, tenho uma proposta a lhe fazer, empreitada que pode nos dar muito dinheiro.     

       

        Jorge não mostrou curiosidade pela proposta, perguntou-lhe:

        —  Como vai Dadá? Esteve com ela?

        —  Não é bem isso — confessou o cara. — Andei entrevistando Dadá...

        Não foi preciso ouvir mais nada, Jorge entendeu tudo, foi levantando. O sujeito estava ansioso para explicar a que vinha.

        —  Veja bem, seu Jorge — insistiu —, tenho um belo material, material precioso das entrevistas com Dadá e das pesquisas que fiz sobre o bando de Lampião, de Corisco, o amor de Dadá. Pode dar um livro e tanto.

        —  Já está escrevendo o livro? — perguntou Jorge

        — Bem, a minha participação no livro será apenas de pesquisador, essa é a minha especialidade. Pensei que o senhor poderia, com a prática que tem, escrevê-lo em três tempos. Nós dois o assinaríamos. Que tal?

        Vendo Jorge calado, cara de poucos amigos, ele ainda ousou:

        —  A gente pode até dar uma coisinha à Dadá, o que acha? Jorge já não achava mais nada, perdera a paciência. Levantou-se, despediu-se:

        —  A sua proposta não me interessa. Me desculpe, tenho o que fazer. — Chamou Aurélio, pediu que acompanhasse o cidadão até a porta.

        Dias depois, o "pesquisador" voltou à carga, uma, duas, três vezes, tentando, por telefone, convencer o escritor a ser seu sócio no livro. Cansados dos repetidos telefonemas, resolvemos não atender mais, deixamos que a secretária eletrônica gravasse as mensagens. Uma delas, creio que a última, porque depois ele desistiu, foi tarde da noite. Uma voz de além-túmulo dizia: Jooorge Amaaado, hóóó Jooorge Amaaado! Quem fala aqui é a alma de Corisco... ouviu bem? Coooriiiscooo... Faça o livro de Dadáaaa, Jorge Amado! Faça o livro de Dadáaaa... ouviu bem? Hó! Jorge Amado... senão eu vou aí com Lampião te puxar os pés...

       

      AS CAMPAINHAS TOCAM       

        Histórias como a da alma de Corisco e outras se repetem nesta nossa casa do Rio Vermelho. Não fossem elas cansativas seriam até pitorescas. Tocam as campainhas do telefone e da porta, algumas vezes eu atendo o telefone e ouço histórias e pedidos como, por exemplo, o da senhora que, ao terminar de ler Capitães da areia, descobrira o bom coração do escritor e o carinho dele pelas crianças:

        —  É dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo com a senhora mesmo: eu tenho uma filha de dez anos, menina estudiosa, só tira notas altas mas... não tem computador para fazer os trabalhos... Ela me pede sempre um computador e eu não tenho dinheiro para comprar. Então pensei... Talvez o Jorge Amado ou dona Zélia...

        —  Um computador? A senhora quer um computador? Entendi direito?

        —  Isso, dona Zélia, mas não precisa ser grande, pode ser pequeno mesmo... desses portáteis, ela é uma criança...

        Outro telefonema:

        —  E dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo com a senhora mesmo. Sabe o que é? Minha professora mandou que a gente lesse o livro de Jorge Amado, Mar morto. Eu não tive tempo de ler e preciso falar sobre ele hoje. Se não souber, tiro zero. Eu queria então que Jorge Amado, ou a senhora, me contasse o enredo do livro, pode ser mais ou menos, não precisa ser tudo...

        Outro telefonema:

        —  Jorge Amado não pode atender? Então eu falo com a senhora mesmo. Sabe o que é? Eu tenho uma filha muito bonita e muito inteligente, uma verdadeira artista. Ela tem vontade de trabalhar no teatro. Eu queria pedir ao Jorge Amado, eu agradeceria muito se ele pudesse fazer um teste com ela no teatro dele... Ela é uma gracinha, garanto que ele vai gostar, vai contratá-la...

        Em homenagem ao escritor, foi dado, há um ano, seu nome ao teatro inaugurado na Pituba: Teatro Jorge Amado. Daí a confusão, dessa e de outras que telefonam pedindo entradas.

        Desta vez foi a campainha da porta que soou:                    

        Aurélio veio anunciar: Tem um caboclo aí na porta, quer mostrar ao doutor Jorge uns versos que ele escreveu. Ocupado, com visitas em casa, Jorge mandou dizer que não estava.                   

        Passaram-se alguns minutos, novamente a campainha da porta soou. Outra vez Aurélio apareceu, na mão uma folha de papel pardo: E o caboclo que voltou. Enfiada no papel uma enorme pena de peru e, abaixo, escrito: QUIS FALA COM NHO-NHÔ  MAS NHO-NHÔ XISCONDEU!

        Ainda um telefonema: não vendo jeito de falar diretamente com Jorge Amado, conformada em se abrir comigo, a voz feminina foi falando sobre o motivo do telefonema:

        — O único bem que possuo na vida é a minha história. Moro em casa de aluguel, preciso muito comprar uma casinha para morar e quero propor ao Jorge Amado vender a ele a história de minha vida. Não tenho nada escrito, está tudo na minha cabeça e se ele estiver de acordo, posso ir à sua casa e lhe conto tudo. É uma história muito boa, muito forte, vai dar um romance e tanto, com toda a certeza.

       

      O IMPERADOR ROMANO

        Quando o Concorde fazia a linha Rio de Janeiro—Paris, Com escala em Dacar, viagem que reduzia à metade o tempo de Vôo, Jorge não quis outra vida. Tomamos o Concorde algumas vezes. Com pouco mais de três horas de vôo, desembarcávamos no Senegal e lá ficávamos até o vôo seguinte a Paris, três dias depois.

        Em Dacar tínhamos a companhia de João Cabral de Melo Neto, velho amigo, na ocasião embaixador do Brasil no Senegal, visitávamos Leopold Senghor, presidente da República, nosso velho conhecido dos tempos do exílio em Paris. Mais do que a companhia formidável desses ilustres amigos, gostávamos de perambular pelas ruas, andar pelo mercado, conversar com as pessoas, uma graça, um divertimento. Jorge já se tornara popular entre os barraqueiros do mercado, com os quais, durante horas, barganhava o preço da mercadoria, no velho estilo africano. A intimidade entre eles era tal que certa vez, enquanto um deles teve que se ausentar por alguns minutos, confiou a barraca a Jorge, que não queria outra coisa senão mercadejar como se fosse o dono daquilo tudo e até conseguiu vender um bubu. No mercado e numa butique elegante, de uma irmã do presidente Senghor, compramos os mais belos bubus, os mais vistosos e coloridos, cômodos para o nosso clima quente. Jorge adotou o bubu como traje de verão na Bahia, veste-o ao levantar-se da cama, soltão, em cima da pele, o ar circulando, um conforto.

        Naquela manhã, ele escolhera para vestir o mais colorido dos bubus e tomava o café quando a campainha da porta tocou. Quem seria, àquela hora? Eram apenas sete horas.

        Aurélio entrou anunciando:

        —  Está aí na porta um padre.

        —  Um padre? — admirou-se Jorge. — Tem certeza?

        —  Tenho sim, senhor. Ele está de batina branca, traz alguns livros para o senhor autografar.

        —  Mande ele entrar — disse Jorge.

        Homem ainda moço, simpático, o padre começou por pedir desculpas pelo horário, tão cedo. Convidei-o a tomar café conosco, ele agradeceu, acabara de tomar, aguardaria que Jorge terminasse para autografar os livros que trouxera, dele e de outras pessoas de sua paróquia, em Tucano, cidade de águas térmicas da Bahia.

        O visitante mostrava-se emocionado e, de mãos trêmulas, transmitiu um convite do prefeito da cidade, se quiséssemos fazer uma estação de águas lá, seríamos hóspedes da prefeitura.

        Os livros autografados na mão, o padre passou a falar da emoção que sentia diante de seu autor preferido, citou trechos de romances seus... Não sendo afeito a elogios à queima-roupa, muito pelo contrário, Jorge ficou encabulado, procurou mudar de assunto, como sempre acontece. Dessa vez não conseguia mudar de conversa, o padre era seu fervoroso admirador. Finalmente, cortando um elogio no meio de uma frase, Jorge lhe perguntou:

        —  O senhor tem condução?

        —  Não, não tenho. Vim de táxi e o despachei na porta. Naquele tempo não havia a facilidade de hoje, de pedir táxi por telefone, e o jeito foi mentir:

        — Meu motorista deve sair agora e talvez o senhor possa aproveitar a condução.

        Dizendo isso, Jorge chamou Aurélio e pediu-lhe que deixasse o reverendo onde ele quisesse: Depois você vai fazer o que mandei. Escolado, Aurélio entendeu tudo. Jorge levantou-se para as despedidas e qual não foi nosso espanto ao ver o padre cair de joelhos diante a seus pés, tentando beijar-lhe a mão, olhos voltados ao céu e exclamar: Que lindo! Parece um imperador romano!

        Ao voltar da empreitada, Aurélio comentou: O padre estava muito impressionado com doutor Jorge. Ele até me perguntou: O mestre traja-se sempre assim? Ao que eu respondi: Daí pra mais!...

        (Interrompo meu trabalho para ouvir um recado que Rose me traz: Uma mulher telefonou agora, pedindo para a senhora escrever uma carta para Roberto Marinho pedindo-lhe um emprego de Mista, na Rede Globo, gostaria que fosse em novela.)

        

      CASA PRONTA, HÓSPEDES ILUSTRES

        Morávamos na rua Alagoinhas fazia algum tempo, ocupáramos a casa com operários ainda trabalhando nos mil e um retoques de acabamento e, com ela nesse estado, hospedáramos os amigos de Pernambuco — as famílias de Paulo Loureiro e de Rui Antunes — e também Floriano Teixeira.

        O último operário que nela trabalhara arrumou as ferramentas, despediu-se. A casa estava pronta. Tudo em seus lugares. Uma beleza. Podíamos receber à vontade.

        Muitos amigos foram nossos hóspedes, no correr dos anos: Georges Moustaki, Roseana Sarney e Jorge Murad, Pablo Neruda e Matilde, Chico Anísio e Sônia Braga, Odylo Costa, filho e Nazareth, Arnaldo Estrela e Mariuccia Jacovino, Antônia e Gabriel Darboussier, Moacir Werneck de Castro com Nené, Tereza e Márcio Amaral, Beatriz Costa, Nicole e Frank Thomas, Antoinette Hallery, Misette Nadreau, Anny-Claude Basset, Antônio Olinto e Zora Seljan, Sérgio Porto, entre tantos outros, vindos de todas as partes.

        Só depois de instalados foi que nos demos conta — eu, sobretudo — de que a casa, maravilhosa no lado esquerdo, era um horror no lado direito. Ela fora construída parede e meia com o vizinho, a cozinha era mínima, a área de serviço não passava de um corredor separado, por um muro, do quintal da casa ao lado e não havia lavanderia.

        Bocas santas as de Lalu e de dona Angelina, ao afirmarem que os filhos haviam nascido com uma estrela: um belo dia, soubemos que o vizinho da direita pretendia vender a casa. Não perdemos tempo, não discutimos preço, compramos a casa e, novamente, entramos em obras.

        Demolimos a residência modesta de três pequenos cômodos acanhados e fizemos uma cozinha grande, lavanderia, área de serviço, quarto para hóspedes e um grande gabinete com estantes, muitas estantes para as traduções dos livros de Jorge. O terreno dos fundos, um belo terreno, foi transformado em jardim de rosas, com roseiras trazidas de São Paulo e de outras partes. Carybé jurava que o clima da Bahia não se prestava para roseiras, mas teve que entregar os pontos ao vê-las, meses depois, floridas das mais belas rosas do mundo.

        As mais belas roseiras viveram uns poucos anos, viveram até que uma cartinha de Zuca, na véspera de nosso regresso à Bahia, de uma de nossas viagens à Europa, endereçada para o Hotel Tivoli, nos contava: Tudo por aqui vai mais ou menos.... choveu muito estes tempos e as roseiras sofreram bastante... Haviam sofrido tanto que, desanimados, resolvemos acabar com o jardim e nele cavar uma piscina que nos vale, até hoje, nos dias quentes de verão e até nos dias quentes de inverno.

        No gabinete feito para Jorge trabalhar, ele nunca trabalhou: Quero saber o que se passa em minha volta, não consigo produzir em ambiente fechado, costuma dizer e é verdade. Jorge escreveu Dona Flor e seus dois maridos no terraço aberto, o gato Nacib, um siamês que o acompanhava por toda a parte, era seu peso de papel. Nacib dormia sobre as folhas dos originais, podia ventar à vontade que elas não voavam. Gabriela e Vadinho eram sua família, esposa e filho, porém o grande amor de Nacib era Jorge.

        Certa vez, ao vê-lo parado diante da máquina, perguntei-lhe se estava tendo algum problema. Nenhum problema, disse ele, preciso consultar uma página e estou com pena de acordar Nacib, que dorme tão bem...

        Quando chovia, aliás, quando chove, pois ele não mudou seus hábitos, chuva de açoite, molhando tudo, Jorge se recolhe, e é numa das extremidades da mesa de jantar que ele instala sua máquina, a papelada, e trabalha sempre ligado ao movimento da casa, querendo saber quem telefonou, quem tocou a campainha da porta.                                                                              

       

      GATOS

        Jorge teve a quem puxar esse seu amor por gatos. Lalu sempre teve um gatinho de estimação, falava muito num de nome Buzégo mas os que conheci foram Professor e Naninha. Professor morreu ao cair de um segundo andar do Hotel Ópera, onde os velhos moraram, no Rio de Janeiro. Naninha veio com ela do Rio e recebia de sua dona tratamento especial, verdadeira baronesa: Sempre gostei de ter gato fidalgo, dizia Lalu ao ajeitar a gatinha sobre uma almofada de cetim, ao colocar-lhe um babador no pescoço antes de dar-lhe na boca o mingauzinho.

        A empregada que atendia Lalu um dia lhe perguntou:

        —  A Naninha já comeu, dona Eulália? Lalu ficou danada:

        —  Que é isso, menina, mais respeito com minha gata! Ela é tua irmã, por acaso, pra você chamar ela de Naninha? Ela é tua patroa, entendeu?, é Dona Naninha! Dona!!!

        Dona Naninha era uma gata bonita, porém sem nenhuma raça. Lalu mandara castrá-la: Não quero que ela se meta com qualquer gato por aí. Ainda se fosse com o gato de Jorge, gato de raça, eu até deixava, mas o burro nem olha pra cara dela, gato muito cheio de vontades, gato prosa. Um dia, Nacib, o gato cheio de vontades, o gato prosa, engasgou-se com uma espinha de peixe e morreu, deixando-nos inconsoláveis. Jorge não disfarçou a tristeza de perder seu companheiro. Nunca mais vou me apegar a nenhum animal, disse. Nacib morreu deixando viúva a Gabriela, uma siamesa como ele, e Vadinho, filho do casal.

        Ao voltar de São Paulo, onde fora tratar com o editor da publicação de um novo livro, Jorge deu uma parada no Rio. Leu num jornal um anúncio: Vendem-se gatinhos persa azuis, tratar na rua Santo Amaro... Seu amor por gatos falou mais alto do que a promessa feita de nunca mais se apegar a animais.

        A ninhada anunciada já estava quase toda vendida quando Jorge chegou, só restara uma gatinha. Pois é uma gatinha mesmo que eu quero, disse ele, encantado com o bichinho cinzento de longos pêlos finos de seda, quase a lhe cobrir os olhos e o focinho achatado. Comprou a bichaninha, com pedigree, detalhe, aliás, que para ele não tinha a menor importância, estava encantado com o animalzinho e isso bastava. A gatinha chegou à Bahia já batizada: se chamaria Dona Flor.

        Dona Flor crescia, cada vez mais linda, Jorge encantado com ela, até que um belo dia a flagramos cruzando Gabriela. Dona Flor não era apenas macho, revelava-se um garanhão de primeira. Achamos a maior graça nesse engano de sexo, mas os empregados não gostaram da brincadeira, a decepção foi geral, sentiram-se logrados e trataram de mudar-lhe o nome: Onde é que já se viu um macho ter nome de mulher?, dizia Eunice, preconceituosa. Passaram então a chamá-lo de Dom Floro. Para nós ele continuou sendo Dona Flor, o pai de Chacha, que nasceu da sua primeira cruza com Gabriela, gatinha linda, de pêlos brilhantes, escuros, olhos de âmbar, grandes e amarelos. Seu nome—nome de uma heroína argentina — foi sugerido por Pedro José Entío, jovem argentino, namorado de Paloma na época.

        Poderia, ainda uma vez, pedir licença para contar que Chacha ficou sendo minha gata com quem eu conversava nos passeios pelo jardim. Mulher de Vadinho e de todos os gatos da redondeza, Chacha insistia em dar cria ao meu lado e, certa vez, após uma operação que me obrigara a ficar em repouso, ela, praticamente, induziu Jorge a forrar minha cama com jornais e plástico e pariu sobre meu corpo... A cada intervalo de um gatinho para outro, eu falava com ela, massageava-lhe a barriga, mas... fico por aqui com os gatos, já falei demais neles. Deixo até de contar detalhes sobre um casal que tivemos, vindos da ilha inglesa de Man, no mar da Irlanda, gatos extraordinários, que tinham a postura e andavam aos saltos, como coelhos, mortos por Chacha numa crise de ciúmes.

       

      O GOLPE DO BICHO-PREGUIÇA

        Falarei, se me permitem, num bicho-preguiça em nosso jardim.

        Tudo indicava que o rapaz, parado na esquina da padaria, no Largo de Santana, vendia o enorme animal peludo que trazia nos braços.

        — Pare, Aurélio, quero ver que bicho é aquele — disse Jorge. Aurélio deu a volta na praça, parou na esquina:

        —  É um bicho-preguiça. Olha só a cara dele!

        Jorge pagou pelo animal o que o rapaz lhe pediu, achou caro mas pagou, iria enriquecer o arvoredo lá de casa. Pediu segredo a Aurélio, não devia me dizer nada, soltariam o bicho no terreno sem que eu visse, queria fazer-me surpresa.

        Quando me mostraram a preguiça subindo, lentamente, num pé de mulungu, nem de longe acreditei que ela tivesse aparecido sozinha, com suas próprias pernas, mas fiquei contente, chamei as crianças, todo mundo de cabeça para cima assistindo à lenta trajetória do animal.

        No fim da tarde, já não havia mais uma única folha no mulungu. Zuca disse logo: É a planta que o bicho-preguiça mais gosta. Tínhamos três pés de mulungu e, em dois dias, eles ficaram reduzidos ao toco, não sobrou uma folha sequer. No quarto dia quem sumiu foi a preguiça. Nem cogitamos em mandar procurá-la, em pouco tempo o animal daria cabo de nossas árvores com tal competência que faria inveja às saúvas destruidoras.

        Dias depois, quem é que estava firme, na esquina da padaria no Largo de Santana? O mesmo rapaz que nos vendera o animal. Ali estava ele tentando passar adiante o bicho-preguiça, certamente o seu ganha-pão.

       

      CASA MOVIMENTADA

        As portas de nossa casa estavam sempre abertas para os amigos. Trouxemos da Europa, certa vez, uma quantidade boa de queijos e convidamos alguns amigos para saboreá-los, num domingo pela manhã. Reunidos em torno dos queijos e do vinho, estavam: Carybé e Nancy, Mirabeaue Norma, João Ubaldo Ribeiro, Francês Switt, Alexandre e Judy Watson, Jenner e Luísa, Lev Smarchewski, Coqueijo e Aydil, Gilberbet e Sônia, muita conversa, muita cantoria e muita risada.

        Ainda havia muito queijo e vinho, repetiríamos aquele encontro delicioso. A notícia se espalhou e, no domingo seguinte, em vez de quinze pessoas, apareceram vinte. O número de conhecidos e desconhecidos, parentes e aderentes, que apareciam a cada domingo foi crescendo: Soubemos que vocês estão recebendo aos domingos... open house... E, de repente, nos demos conta de que, mesmo sem queijo francês, estávamos sendo obrigados a receber, aos domingos pela manhã, dezenas de pessoas em nossa casa. O que fora satisfação e alegria tornara-se uma obrigação, trabalheira sem tamanho, um cansaço para nós.

        Felizmente, uma viagem ao estrangeiro nos ajudou a terminar a esbórnia das manhãs dominicais.

       

      UM EBÓ SEM RUMO CERTO

        Jorge reservava as tardes de domingo para uma rodada de pôquer. Por vezes, quando os parceiros eram muitos, faziam duas mesas: Mirabeau, Mecenas Marcos, Negro Batista, Odorico Tavares, Yves Palermo, os infalíveis. Enquanto os homens jogavam pôquer, as mulheres se acabavam no bigorrilho ou no buraco: Norma, Nancy, Josette, Emina, Stella Robato e eu. O único homem a jogar conosco, de vez em quando, era Alexandre Robato, cineasta, fotógrafo, dentista, homem cheio de bom humor. Carybé não gostava de jogo, mas vinha com Nancy, ficava desenhando.

        Um dia ouvi Lalu falando a Jardelino, seu irmão mais novo, Jarde, como ela o chamava: Tu nem imagina, meu irmão, os amigos de Jorge aqui na Bahia não trabalham, são todos artistas, todos vagabundos, só vivem pintando quadros, cantando, gostam de conversar, de rir e de jogar baralho... O único trabalhador, deles todos, é Jorge, vive escrevendo o coitadinho, às vezes tenho até pena...

        Num domingo à tarde, depois de uma movimentada partida de bigorrilho, ao despedir-me das parceiras, senti forte dor nas costas. Certamente apanhei uma corrente de ar, pensei. Jorge me massageou, mas a dor não foi embora. Passei uma noite incômoda, a estranha dor persistia.

        Pela manhã, apareceu Carybé com Olga de Alaketo, mãe-de-santo, nossa amiga.

        Carybé tivera um sonho muito estranho: sonhara que eu tinha tido um filho e a criança nascera andando e falando. Ao passar pela casa de Olga, coisa que costumava fazer ao deixar os filhos no colégio ali nas imediações, ao tomar o cafezinho com a mãe-de-santo, contou-lhe o sonho que tivera comigo. Olga, dona dos mistérios e dos segredos dos encantados, arregalou os olhos, não quis encompridar conversa: Vamos agora mesmo à casa de Jorge, Zélia está correndo perigo de vida... Prevenida, com um ramo de folhas variadas no braço, ela entrou no quarto onde eu me encontrava com dores, sem poder me levantar:

         Isso é trabalho feito aqui dentro das portas, afirmou. Vocês têm alguma empregada que é de candomblé? Nós não sabíamos mas, depois de uma sondagem, tivemos conhecimento de que a cozinheira lidava com ebós. Tudo então ficou claro: a cozinheira queria dobrar Jorge, que se recusara a aceitar em casa, como empregada, sua filha com uma criança de colo. Orientada, ninguém soube por quem, a cozinheira então depositara um pó branco nos quatro cantos da casa, aferventara umas ervas, jogara tudo pelas escadas da rua. Segundo Olga, nas ervas atiradas porta afora, estava o perigo, perigo às vezes até de morte. Como Jorge tem corpo fechado, explicou ela, nada pega nele, a mandinga virou sobre a pessoa mais próxima: Zélia.

        Como que por milagre, depois de umas sacudidas das folhas, que Olga trouxera, em cima de mim, e de palavras em língua nagô, as dores sumiram.

       

      O ANEL DE JUREMA

        Bm toda a literatura de Jorge Amado sente-se o destaque que ele dá aos mistérios das ruas da Bahia, no poder dos encantados. Vim compreender realmente a verdade dessas afirmações ao mudar-me para Salvador, ao conviver com seu povo, com seus preceitos e segredos.

        Num domingo à tarde, enquanto Jorge e eu dormíamos a sesta, Beatriz Costa, atriz portuguesa, nossa hóspede na ocasião, atendeu à porta. Uma senhora, muito aflita, queria falar com Jorge. A visitante era de São Paulo, estava há dias procurando encontrar-se com o escritor, devia regressar no dia seguinte. Beatriz despachou-a: Não pode, o escritor precisa de descanso, é preciso respeitar... Tivemos pena da pobre que, segundo Beatriz, partira chorando.

        À noitinha, apareceu Carybé, vinha nos chamar para ir à festa de Oxóssi, no candomblé de Mãe Senhora.

        A festa começara, já fora oferecido o padê a Exu, as filhas-de-santo dançavam, quando, de repente, Beatriz apertou meu braço: Olhe lá, a mulher Que esteve à tarde na vossa casa... De aspecto simples, a senhora estava acompanhada de um casal.

        Assim que as filhas-de-santo foram levadas para mudar o traje, Jorge levantou-se da cadeira dos obás, ao lado de Mãe Senhora, veio para fora, Beatriz e eu o acompanhamos. A paulista precipitou-se sobre Jorge:

        —  O senhor é Jorge Amado, não é?

        —  Sim, senhora — confirmou Jorge.

        Sem nenhum preâmbulo, ela foi direto ao assunto:

        —  Jorge Amado, onde é que está meu anel?

        Nesse momento, vimos Camafeu de Oxóssi andar em nossa direção. Sem fazer nenhuma pergunta à mulher, Jorge respondeu-lhe:

        —  Seu anel está com Camafeu de Oxóssi. — Assim dizendo, apresentou-a a Camafeu: — É ele quem tem seu anel.

        A mulher, então, tirou da bolsa um papel com um desenho, mostrou-o a Camafeu:  

        —  O senhor tem este anel?                                                  

        —  Tenho, sim senhora — disse ele.                                               Resumo aqui a história da forasteira: nunca soube seu nome   nem seu endereço. Tudo que sei é que era costureira de profissão, casada, e o marido querendo abandoná-la por outra. No Terreiro da Cabocla Jurema, em São Paulo, fora-lhe aconselhado ir a Salvador, procurar o escritor mais importante da Bahia, pedir a ele um anel — deram-lhe o desenho do anel — e, de: posse dele, ela reconquistaria o marido.

        Levando o desenho na bolsa, ela partira de ônibus para a Bahia. Hospedara-se num pequeno hotel junto à rodoviária. O que se passou quando bateu em nossa porta já se sabe. Por coincidência, ao voltar para seu hotel depois da frustrada visita, viu passar de automóvel uma freguesa sua, de São Paulo. A freguesa e o marido passeavam em Salvador e a convidaram para ir ao candomblé, naquela noite. Foi assim que a costureira pôde falar com quem procurava.

        Acostumado a lidar com pessoas, as mais estranhas, Jorge não se surpreendeu com a pergunta à queima-roupa. Não quis perder tempo questionando com a mulher que o abordava. Solucionou o caso apresentando-a a Camafeu que se aproximava, pessoa indicada, já que o amigo possuía — como já se sabe — uma barraca de coisas africanas, no Mercado Modelo. Por coincidência, Camafeu acabara de receber, da África, uma partida de anéis, pulseiras e outros enfeites. Encantara-se com um dos anéis, esse seria de Toninha, levou-o para casa, não ia vendê-lo.

        Qual foi, finalmente, o resultado dessa série de coincidências? Tudo o que eu soube foi que Toninha ficou sem o anel. E a costureira reconquistou o marido? Isso só Deus sabe. Nunca mais tivemos notícias dela.

       

      PESSOA IMPORTANTE

        Nesse dia eu mesma atendi à porta. Em minha frente, Zé Trindade, nos braços um cachorrinho pequinês.

        Popular ator de filmes de chanchada, Zé Trindade apresentava-se em teatros e na televisão, fazia sucesso com seus programas humorísticos. Viera à Bahia visitar a família, daria um show no teatro e aproveitava a ocasião para visitar o amigo Jorge Amado.

        A cadelinha é um mimo para você e já está batizada: o nome dela é KM, disse-me Zé Trindade ao me entregar o presente.

        A chegada de Zé Trindade em nossa casa causou alvoroço entre os empregados. José, o faxineiro, Neusa e Eunice estavam excitados. Ouvi um cochicho entre eles: Tu sabia que doutor Jorge era tão importante assim? Até Zé Trindade? Eu, hem!  Nem acredito...

        Nossa casa era freqüentada por Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, João Gilberto, Tom Jobim, Sérgio Porto e outros bambas, sem contar os estrangeiros e os artistas importantes da terra. Nenhum deles, no entanto, aparecera em filmes de chanchada e nem eram populares. Na opinião de José, Neusa e Eunice, esses amigos de doutor Jorge não passavam de gente boa, gente educada. Adoravam Carybé mas nunca iriam achar que podia ser importante um cara que só andava de sandálias japonesas e em mangas de camisa. No entender dos empregados lá de casa, estou certa, esses amigos estavam longe de dar ao doutor Jorge o status e as glórias de um Zé Trindade.

        Kiki não morou conosco muito tempo. Ela chegou num momento em que viajávamos freqüentemente e para que tivesse companhia durante a nossa ausência a deixávamos sob os cuidados de nossa amiga Auta Rosa, esposa de Calasans Neto, louca por cachorros e dona de Yuki, um pequinês que, embora platonicamente, adorava Kiki. Auta e Calasans se afeiçoaram a Kiki e a cadelinha acabou ficando com eles, morando em Itapuã.

        Na época de nossa chegada à Bahia, Caetano Veloso, Maria Betânia, Gilberto Gil, Calasans Neto freqüentavam pouco a casa do Rio Vermelho. O mundo dessa juventude era outro. Calasans Neto só veio a ser cidadão de nossa casa depois de seu casamento com Auta Rosa, moça de Ilhéus, alegre, franca, que nos conquistou, tornando-se uma de nossas melhores amigas. Quanto a Caetano Veloso, viemos estreitar nossos laços de amizade na Inglaterra quando, banido pelo golpe militar, Caetano foi viver em Londres. Nessa época, passamos seis meses morando num apartamento alugado, na Georges Street, onde Jorge escreveu o romance Tieta do Agreste.

        Gilberto Gil despedia-se da Bahia, as terras do Sul abriam-lhe as portas. João Jorge e Paloma freqüentavam o grupo dos jovens artistas e eu os acompanhei algumas vezes às despedidas de Gilberto Gil, em locais os mais diversos, cada despedida uma festa.

       

      GLAUBER ROCHA

        Dos jovens baianos geniais, apenas Glauber Rocha era íntimo de Jorge, mantinham uma amizade quase de pai para filho. Alma inquieta, Glauber não parava na Bahia. Casara-se com Helena Ignês, antes que nos mudássemos para Salvador. Assistimos ao seu casamento e lhes oferecemos nosso apartamento no hotel Quitandinha, onde os noivos passaram os primeiros dias de sua lua-de-mel. Lá, Glauber adoeceu, deve ter se chateado naquele imenso e deserto hotel, desceu para o Rio e ficou em nosso apartamento na Rodolfo Dantas. De Salvador, Jorge viajara para Pernambuco e eu para o Rio. Passei a dormir na sala para ceder nossa cama ao casal. Chamei um médico amigo, Dr. Alcedo Coutinho, que o botou de pé em três tempos, e lá se foi Glauber, partiu para novas aventuras, para novos filmes já bulindo em sua cabeça, mundo afora.

        Acompanhamos a carreira de Glauber e sua vida até o fim. Estávamos em Portugal, onde nosso amigo se refugiara, depois de uma campanha sórdida e sectária desencadeada contra ele, no Brasil, por ter manifestado sua opinião favorável sobre o general Golbery do Couto e Silva, teórico da Revolução, com quem manteve bom diálogo.

        Sensível como era, Glauber Rocha não pudera suportar o patrulhamento do qual estava sendo vítima.

        Ao vê-lo gravemente enfermo, Jorge aconselhou-o a retornar ao Brasil onde teria a assistência de sua mãe, de seus amigos, estaria na sua terra. Desculpou-se por não aceitar dessa vez o conselho do amigo, recusou-se a voltar. íamos visitá-lo diariamente no hospital, em Cascais, e depois em Lisboa, onde fora Internado.

        Amigo fraterno de Glauber, desde os tempos da juventude, João Ubaldo Ribeiro passava um ano em Lisboa, coincidindo com I estada de Glauber em Portugal. Na casa de Ubaldo e Berenice, Glauber encontrou refúgio e carinho. Incansável, durante a enfermidade do amigo, João esteve a seu lado até o fim.

        O cantor Raimundo Fagner, que se encontrava de passagem por lá, na época, também o visitava sempre, fazia-lhe companhia. Foi nessa ocasião que conhecemos e ficamos amigos do cantor e compositor cearense. As últimas fotografias de Glauber, no hospital, foram tiradas por mim e por Fagner.

        Já nas últimas, quando não havia mais esperanças, Glauber foi transportado para o Brasil, onde faleceu apenas chegou.

       

      DORIVAL CAYMMI

        Dorival Caymmi passava temporadas na Bahia e era assíduo freqüentador de nossa casa. Foi nessa época que ele compôs a canção para Menininha do Gantois: ... a mão da doçura, está no Gantois... Isso mesmo. A mão da doçura, a doçura ela própria, Mãe Menininha, a ternura em pessoa.

        Amigos de longa data, Caymmi e Jorge são confundidos muitas vezes, porém de parecido eles têm apenas as cabeças brancas.

        Certa vez, no terreiro do Gantois, numa visita à Mãe Menininha, encontramos no barracão algumas pessoas à espera de serem atendidas. A chegada de Jorge provocou um certo movimento, houve cochichos, olhos em cima dele. Reconheceram-no, pensei. Não passou muito tempo, uma senhora do grupo, não resistindo à curiosidade, adiantou-se:

        —  O senhor não é o Dorival Caymmi?

        — Não sou o Dorival Caymmi, mas sou o irmão dele — respondeu Jorge, tranqüilamente.

        Caymmi nos contou que o mesmo se passava com ele:

        —  Jorge Amado, como vai o livro?

        — Vai indo, vai indo — respondera Dorival ao homem que o abordou na rua.

        Se nossos empregados não davam a devida importância aos amigos da casa, em compensação a chegada de qualquer um deles movimentava a rua.

        Vinicius de Moraes, outro amigo de toda a vida, não deixava de aparecer, sempre que vinha à Bahia. Numa dessas visitas, que durou um dia inteiro, ao sair, à noitinha, foi abordado por um grupo de jovens na calçada em frente à nossa porta. Munidos de cadernos e canetas, voaram pra cima dele: Dorival Caymmi, pode me dar um autógrafo? Vinicius não perdeu o rebolado, foi autografando: Dorival Caymmi, Dorival Caymmi, Dorival Caymmi..., muito obrigado, e se foi rindo satisfeito.

        Comigo aconteceu confusão semelhante: eu fora visitar Mãe Menininha no Gantois. Perguntei a um preto velho, sentado junto à janela, pela mãe-de-santo. De onde estava gritou: Ó Licinha! Avise Mãe Menininha que a mulher de seu Carybé está aí. Corrigi-o em seguida: Não sou a mulher de seu Carybé, não, sou a mulher de Jorge Amado. Ele fez um gesto com a mão: É tudo a mesma coisa...

       

      VINÍCIUS DE MORAES

        Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a série de canções para crianças, de sua autoria:

        A beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão em punho, Vinicius cantava.

        Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querer contar logo a história que me veio à memória — como já devem ter percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as lembranças chegam — esqueci-me de pedir licença para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora, pois devo explicar como foi que as músicas infantis de Vinícius de Moraes se salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os três que existiam na época: Mariana, Bruno e Maria João.

        Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma baiana, Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma casa ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de Itapuã.

        Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava — como foi dito — quando chegaram meus três netos.

        Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada... Espera aí, interrompi, vou buscar um gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho ligado e ele recomeçou: Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá... Cantou todas as canções, intercalando entre elas uma chamada: Esta é para Marianinha!... Esta é para Bruninho!... Esta é para Maria João!... Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois elas ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não restara nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei meu cassete à Gilda Queiroz Matoso, última e amada companheira do poeta até seus derradeiros momentos. Gravação precária, porém a única que restou e é a que se ouve até hoje.

        Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa, adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria, queria ficar perto deles.

        A rua da Amoreira, onde moravam — e moram até hoje — Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso não bastasse, havia esgoto a céu aberto.

        Freqüentador assíduo da casa, inconformado com a situação dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao prefeito de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e carinho para a rua.

        Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-petição na primeira página do jornal A Tarde.

       

        Petição ao Prefeito

      

        Prefeito Clériston Andrade

        A quem ainda não conheço:

        Quero tomar a liberdade

        Que eu nem sequer sei se mereço

        De vir pedir-lhe, em causa justa

        Um obséquio que, sem favor

        Muito honraria (e pouco custa!)

        Ao Prefeito de Salvador.

        Existe ali no Principado

        Livre e Autônomo de Itapuã

        Uma ruazinha que, sem embargo

        Pertence à sua jurisdição

        Uma rua não sem poesia

        E cujo título é dar teto

        A uma das glórias da Bahia:

        O gravador Calasans Neto.

        Dizer do estado dessa ruela

        (Da Amoreira) eu não arrisco

        Porque sem esgotos, correm nela

        Rios de......— Valha-me o asterisco!

        E isso é uma pena, Senhor Prefeito

        Pois Calasans e sua gravura

        Têm cada dia mais procura

        De fato como de direito:

        O que constrange os visitantes

        Com boa margem de estrangeiros

       

        A, entre gravuras fascinantes

        Ver quadros nada lisonjeiros.

        Calce essa rua, Senhor Alcaide

        E eu lhe garanto que algum dia

        Pro domo sua, esta Cidade

        O há de lembrar com mais valia.

        Na expectativa de que acorde

        Um novo "Cumpra-se", sem mais

        Aqui se assina, muito ex-corde

        O seu, Vinícius de Moraes.

       

        Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco tempo a rua de Auta e Cala foi consertada e asfaltada e, diga-se de passagem, ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das imediações.

        Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.

        Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da limpeza pública, levando para Cala e Auta a petição, enquadrada.

       

      CONCEITO DE LIBERDADE

        Numa edição pequena da editora Macunaíma, Vinicius de Moraes publicou um livro sobre seu amigo Pablo Neruda: História natural de Pablo Neruda ou A elegia que vem de longe.

        Um belo dia, estava Vinicius, muito na dele, tomando seu uisquinho na casa de Cala, divertindo-se com as histórias que o anfitrião lhe contava, mestre na arte de contar histórias, quando apareceu uma repórter do Jornal do Brasil para entrevistar o poeta sobre o livro recém-saído.

        Naqueles anos duros de censura e repressão, as palavras deviam ser medidas. A repórter, inocente ou não, fazia perguntas comprometedoras. Vinícius, ele próprio, fora vítima da ditadura, perdera seu posto de diplomata com o seguinte despacho do presidente da República: Afaste-se esse vagabundo. Assinado: Artur da Costa e Silva.

        Experiente, Vinícius respondia com evasivas às perguntas da repórter até que a jovem resolveu fazer-lhe a pergunta definitiva:

        —  Vinícius de Moraes: o que pensa o senhor sobre a liberdade? Qual é o seu conceito de liberdade?

        Vinícius não titubeou, tranqüilamente respondeu:

        —  Meu conceito de liberdade é poder fazer cocô de porta aberta.

       

      MOUSTAKI VEM À BAHIA

        Assinando a coluna social de A Tarde, notas lidas pela Bahia inteira, July (Julieta Isenssée) anunciava: A convite de Vinícius de Moraes, chegará à Bahia, nesses próximos dias, o compositor grego, de nacionalidade francesa, Georges Moustaki, autor de Le Meteque e de Joseph, entre tantas composições maravilhosas. Ele virá para a estréia, no Teatro Castro Alves, do show de Vinícius de Moraes, O poeta, a moça e o violão, que terá a participação de Toquinho e Maria Creuza.

        Georges Moustaki chegou à Bahia quando Vinícius ainda morava em casa de aluguel, casa sempre movimentada, ponto de encontro de artistas, cantores, compositores, mais movimentada, sem comparação, do que a nossa.

        Além de Toquinho e Maria Creuza, integrantes do show, estavam hospedados com Vinicius a atriz Suzana Gonçalves e a estrela canadense Alexandra Stewart. Com a casa repleta, Vinicius nos consultou, talvez pudéssemos hospedar Georges Moustaki. Foi com o maior prazer que concordamos: o compositor seria nosso hóspede.

        Conhecêramos Moustaki na França, éramos seus admiradores. Paloma possuía uma coleção de cassetes das canções dele e a voz de Moustaki nos acompanhava em todas as viagens de automóvel.

        Georges Moustaki lera os livros de Jorge Amado e, segundo diz e repete, se apaixonara. Pedira à Verinha, jovem paulista, nossa conhecida, amiga dele, que o apresentasse ao escritor. Daí começou o nosso relacionamento.  

                                               

      O BANDIDÃO

         O poeta, a moça e o violão estrearia no dia seguinte, havia grande expectativa em torno do espetáculo. Ocupadíssimos com os preparativos e os ensaios, Vinicius não poderia ir ao aeroporto esperar seu convidado que chegaria naquele dia. Pediu então às duas atrizes, Suzana e Alexandra, que o fossem esperar. Elas tomariam um táxi, de Itapuã ao aeroporto era um pulo.

        Plantadas no meio da rua à espera de que passasse um táxi, viram que um carrão de luxo, um rabo-de-peixe, que passara por elas, diminuíra a marcha, parará, dera uma ré. Bem-posto, óculos ray-ban, o moço perguntou:

        — Querem carona? Para onde vão?

        Encantadas, elas aceitaram, o cavalheiro era simpático. Ele abriu a porta da frente e as duas entraram.

        —  Você não é a Suzana Gonçalves? — Ele a reconhecera das novelas, era seu admirador.

         — Sou eu mesma. Minha amiga também é atriz, ela não fala português.

        —  Você não está me reconhecendo, Suzana? — perguntou ele, rindo.

        —  Não, não estou. Creio que nunca o vi antes.

        —  Ainda bem — disse ele ao mesmo tempo em que tirava os óculos. — E agora?

        A moça tentava lembrar-se:

        —  Não, não me lembro.

        —  Eu sou Mariel Mariscot—disse.—Isso não lhe diz nada? Claro que dizia: Mariel Mariscot, o temido policial-bandido do Esquadrão da Morte, procurado como agulha no palheiro pela polícia. Os jornais haviam se ocupado muito dele. Suzana conseguiu apenas dizer:

        —  Não acredito. O senhor está brincando, está querendo me assustar...

        —  Não estou brincando, não. Abra a caixa que está a seus pés e veja.

        O homem não mentia. Na caixa havia nada mais, nada menos do que uma metralhadora e munições.

        Alexandra Stewart estava sem entender nada até o momento em que viu a metralhadora e aí se apavorou, empalideceu: Vamos pedir para ele parar e vamos descer, pediu a moça. Vivo, Mariscot entendeu o que a canadense dizia: Explique a ela que não precisa se assustar, eu não sou nenhum bicho-papão, não sou o bandido de quem tanto falam. Apenas faço justiça com minhas próprias mãos, nunca matei um inocente, só mato bandidos, assassinos, por isso pertenço à Scuderie Le Cocq. Não se assustem, por favor, repetiu ele. Levo vocês ao aeroporto e posso até esperar que vosso amigo chegue—é um cantor grego, não é?—e levo vocês de volta à casa de Vinicius. A conversa havia rolado bastante antes da descoberta da sua identidade.

        Mariel Mariscot estava a par de tudo, não conhecia, nem de nome, Georges Moustaki, mas em compensação era grande admirador de Vinícius de Moraes, até cantar, cantou um verso do Poetinha que, segundo ele, o comovia às lagrimas: Mas quero as janelas abrir para que o sol possa vir iluminar nosso amor...

        Aos poucos foi conquistando a confiança de Suzana, que chegou até a oferecer-lhe entradas para o show, no dia seguinte.

         Entradas para o show, disse ele, infelizmente não posso aceitar. Sou procurado pela polícia, como você sabe, não posso me arriscar a ir a um local fechado, se me pegam me matam na hora. ..Só não abro mão de esperar por vocês no aeroporto. Vivo tão solitário que as suas companhias, hoje, foram um presente para mim.

        Georges Moustaki encontrou à sua espera as duas belas e um possante rabo-de-peixe, dirigido por um membro do Esquadrão da Morte, que o levou a Itapuã.

        Ao deixá-lo na casa de Vinícius, Mariscot, gentil, ofereceu-se: Posso, se quiserem, passeá-lo pela Bahia, não façam cerimônia, estou disponível, não tenho o que fazer, conheço os mais belos recantos da cidade. Será um grande prazer para mim. Convite tentador, mas isso seria demais, não foi aceito.

        Ao tomar conhecimento do acontecido, Vinícius quase desmaiou. Moustaki, ao saber dos detalhes, achou muita graça e sempre que fala de sua primeira visita à Bahia conta com orgulho: Na minha primeira visita à Bahia fui recebido pelo maior bandido do Brasil.

        Peço licença para dar uma nota, nota que nada tem a ver com a Casa do Rio Vermelho, mas que pode satisfazer a curiosidade de quem, por acaso, tenha se interessado pelo fim que levou Mariel Mariscot:

        Os jornais anunciaram com estardalhaço: Preso na fronteira da Bahia, ao regressar ao Rio de Janeiro, de automóvel, o bandido Mariel Mariscot, perigoso elemento do Esquadrão da Morte...

        Tempos depois, voltei a ler nos jornais: Morto por uma rajada de metralhadora, no rosto, o fugitivo da polícia Mariel Mariscot, membro do Esquadrão da Morte... O carro do bandido, dirigido por ele próprio, foi abordado e metralhado, de frente, numa rua do centro do Rio de Janeiro, por um pelotão da polícia...

       

      PAIXÃO

        Nessa sua primeira visita à Bahia, Moustaki passou um mês conosco e sua presença na rua Alagoinhas aumentou ainda mais o movimento da casa: músicos e compositores o visitavam, moças bonitas e feias também apareceriam. Houve até uma que apelidamos de peitudinha, devido, só podia ser, aos seus peitos enormes. Essa se plantou e não queria mais ir embora. Outra convidada por Moustaki a ir à praia e, não tendo um biquíni à mão, declarara: Isso não tem importância, tomo banho nua mesmo. Solícita, quis emprestar-lhe um maio, clássico, Christian Dior. Olhando com o maior desprezo para o meu lindo Dior, ela deu um chega pra lá, monologando com desdém: Samba-canção.

        O telefone tocou, queriam falar com Jorge. Jorge Amado foi chamado:

        —  Querem falar com você — disse Misette, que passava uma temporada conosco e atendera o telefone.

        —  Homem ou mulher? — quis saber Jorge.                    

        —  Tanto pode ser homem como mulher — riu Misette.   

        —  Alô! É Jorge?                                                          

        —  Sim, eu mesmo.

        A voz — masculina, segundo ele — vinha do fundo do coração e exclamou:

        —  Paixão!!!

        —  Espera um pouco — disse Jorge, rindo -—, há uma pequena confusão, não sou eu a sua paixão. Sua paixão já vai lhe falar. — Passou o fone para Moustaki.

        Essa história rendeu muita risada e até hoje os dois, Georges e Jorge, se tratam por paixão.

        Moustaki voltou ainda várias vezes à Bahia e, numa delas, inspirado, compôs duas músicas: Bye bye Bahia e Bahia. Nessa última há um verso que diz: c'est la que j'ai trouvé lê paradis, à côté de chez Jorge Amado.

        

      A CANJA

        O show de Vinicius, no Castro Alves, foi o maior sucesso, o teatro superlotado. Moustaki foi chamado ao palco, deu uma canja, cantou Águas de março em sua versão francesa. Na volta para Itapuã, ao passarem por Amaralina, Vinicius resolveu dar uma esticada no bar Samburá. Passaria ainda uma horinha com os amigos, se distendendo.

        Toquinho dedilhava o violão, Maria Creuza cantarolava, falavam, riam. Vinicius pediu a Moustaki que cantasse sua versão do Balance, ele adorava ouvi-la. Moustaki cantou: ... j´sais pas dance, pas dance... o balance, balance... A pedido de Moustaki, Vinicius entrou com Garota de Ipanema. Cantava, alma e charme para dar e vender, quando de repente, surgiu um empregado do bar. Interrompendo o poeta disse: Vamos acabar com isso aí? O patrão não quer esculhambação aqui dentro!

       

      O HOMEM FORTE

        Homem forte da Bahia, diretor do Diário de Notícias, mandachuva da TV Itapuã, primeira estação de televisão no estado, também da organização dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, Odorico Tavares mandava e não pedia.

        Na casa de Odorico Tavares, no Morro Ipiranga, encontrava-se a mais bela coleção de quadros, pinturas de renomados artistas brasileiros e estrangeiros. Lá estavam as famosas marinhas de Panceti, as mais belas mulatas de Di Cavalcanti, a Bahia de Carybé, gravuras de Calasans Neto, dois ou três Portinari. Além da valiosa coleção de pintura, Odorico possuía imagens de ; santos, tantas e tão belas que, basta dizer, durante alguns anos o Museu de Arte Sacra da Bahia foi famoso pelos objetos sacros e pelas preciosas imagens emprestados por Odorico Tavares, de sua coleção.

        Numa sala, à parte, estavam os primitivos e entre os baianos destacavam-se João Alves, Cardoso e Silva e Willys, pseudônimo de Thales Porto, um mestre primitivo que pintava pouco, seus elos quadros eram raros. Três personagens que faziam história.

        A grande casa de Odorico, comandada por Gercina, meiga e doce criatura, a esposa que fala pouco e manda muito, era movimentada e sóbria. As filhas Leda e Maria, o filho Jader, ajudavam a receber os visitantes, personalidades quase sempre recomendadas por Chateaubriand.

        A grande festa era a chegada de Di Cavalcanti, amigo fraterno de Odorico, pernambucano como os donos da casa, que vinha para os bate-papos e as rodadas de pôquer com parceria formada: o anfitrião, Jorge, Mirabeau, Yves Palermo, Negro Batista... Muitas vezes o jogo era na rua Alagoinhas e, então, todos almoçavam conosco, e o festival de histórias contadas por Di era em nossa casa. Eu não participava do pôquer mas me regalava, ali ao lado, sem dar palpites, ouvindo as histórias e as invenções do imaginoso Di. Recordo ele cantando a paródia de uma canção italiana: Comme prima..., que ele dava a sua versão: Quem tem prima, come prima...

       

      MÚSICA PARA o ANIVERSÁRIO

        Odorico Tavares ia completar cinqüenta anos, Gercina e os filhos haviam preparado uma festa de arromba, até Assis Chateaubriand viria para a comemoração.

        Uma festa dessas sem banda de música não tem graça, não presta, pensaram os compadres Jorge e Carybé. Se bem pensaram, melhor executaram: foram ao comandante do Corpo de Bombeiros, conseguiram que a corporação prestasse uma homenagem ao ilustre aniversariante, mandando a banda tocar marchas e dobrados, em hora determinada pelos dois pelintras, na porta da casa em festa, no Morro Ipiranga. Não satisfeito com isso, por conta própria, Carybé comprou uns rojões para serem disparados à chegada dos músicos.

        Do caminhão aberto que encostou, homens uniformizados, cada qual com seu instrumento, desembarcaram em frente à casa de Odorico, repleta de convidados. Rojões pipocaram no céu, a banda entoou o hino: O Cisne Branco. Lá dentro os donos da casa se entreolharam: Foram eles, disse Odorico ao poeta Carlos Eduardo da Rocha, a seu lado, Jorge e Carybé. Gercina ouviu o comentário e disse: Isso mesmo, obra dos dois pilantras, de Jorge e Carybé. Todo mundo saiu à rua, o primeiro a chegar ao portão, rindo de se acabar, foi Di Cavalcanti. Carybé, dava uns requebros na frente da banda, Dmeval Chaves, o livreiro, vizinho de Odorico, assustado apareceu, de roupão, entre os moradores da rua, saíra do banho com a gritaria dos filhos que anunciavam uma revolução, bombas e soldados desembarcando no morro...

       

      SEM SAIR DO LUGAR

        Di Cavalcanti me telefonou um dia. Soube que vocês têm criação de Pug, vi um filhote na casa do Noel Nutels. Ando louco atrás de um cachorrinho dessa raça.

        Tínhamos, realmente, um casal de cachorros da raça Pug, vindos da Inglaterra, chamavam-se: Mr. Pickwick e Capitu. Mr. Pickwick, homenagem de Jorge a um personagem de Charles Dickens, autor de seus encantos, e Capitu, heroína de um romance de Machado de Assis.

        Déramos a nosso amigo Noel Nutels um cachorrinho de Capitu, parideira de grandes ninhadas. O cãozinho foi o amigo fiel do famoso médico indigenista, até seus últimos dias. Numa visita ao enfermo, Di vira o cãozinho e ficara alucinado.

        —  Pois olhe, Di — eu lhe disse —, minha cadelinha está prenha e eu vou guardar um cachorrinho pra você.

        Di Cavalcanti riu satisfeito.

        —  Em troca, vocês vão receber um quadro meu.

        —  Sem sair do lugar! — exclamei.

        Aprendera com Odorico Tavares, cuja teoria era a de que jamais se deve recusar um presente de obra de arte. É aceitar na hora, sem fazer rapapés, sem discutir, sem sair do lugar, frisava o mestre.

        Semanas após minha conversa telefônica com Di, soubemos da vinda dele à Bahia. Fora anunciado que lhe seria outorgado o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia.

        A notícia da homenagem da universidade a Di Cavalcanti nos alegrara e a todos os seus amigos e admiradores. Recebíamos a notícia com o júbilo de quem havia se revoltado, sem poder reclamar, com a humilhação imposta ao grande pintor pelos donos da Revolução Redentora, destituindo-o do posto de embaixador na França.

        Nomeado embaixador na França pelo presidente João Goulart pouco antes do golpe de 64, ao receber as credenciais Di Cavalcanti viajou para a Europa a fim de assumir o cargo. Apenas chegara a Paris e mal tomara posse, sua nomeação fora cassada, fora tirado do posto: Fui embaixador por um dia..., costumava dizer Di, cheio de bom humor.

       

      FESTIVAL DE CASSAÇÕES

        O embaixador Di Cavalcanti fora cassado, como muita gente boa, naqueles anos de regime militar, quando se vivia num verdadeiro festival de cassações.

        Uma série de atos institucionais a partir de 1964, culminou, em 1968, com o célebre AI-5, dando poderes totais ao regime militar, carta branca para cometer, impunemente, os maiores crimes: prender e torturar, cassar os direitos do homem, sobretudo de cientistas, compositores, cantores, artistas plásticos, jornalistas.

        O renomado cientista Haity Moussatché, professor e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, foi cassado e passou quinze anos trabalhando no Conselho de Pesquisas, na Venezuela, até voltar ao Instituto de Manguinhos em 1985. Moussatché costumava dizer: Não fui eu quem foi cassado, foi toda uma geração de jovens em formação.

        Dos compositores, os mais visados e atingidos foram Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda.

        Com a cabeça raspada pelos esbirros da polícia, num ato de violência e selvageria, perseguido, Caetano Veloso deixou o país, foi procurar teto em Londres.

        A vez de Gilberto Gil não tardou a chegar, não era mais possível viver no Brasil. Como deixar de criar livremente suas músicas? O clima de restrições, de censura, tornava-se insuportável. Despedindo-se do Brasil e da Bahia, Gil foi encontrar-se com Caetano em Londres, partiu deixando aquele abraço.

        Chico Buarque sobreviveu muito tempo com a censura em seus calcanhares proibindo tudo e ele teimando, prosseguindo, camuflando: Apesar de você amanhã há de ser outro dia..., cantou ele, cantou o povo até que a censura maliciou, cassou, prosseguiu na tocaia à espera de novas composições para novas cassações. Chico partiu, continuou a compor na Itália, onde viveu vários anos. Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, cantou Roberto Carlos para Caetano Veloso, no exílio.

        Di Cavalcanti voltou para o Brasil, para sua pintura, aguardando dias melhores para seu país. Agora ele seria recebido com as pompas merecidas, na Bahia.

       

      A BARGANHA

        Capitú já dera cria, o cãozinho prometido a Di estava à sua espera. Na véspera de chegar à Bahia ele me telefonou:

        —  Chego amanhã. O quadro está pronto. Vou levando...

        —  Pois o cachorrinho também está pronto, é lindo, você vai se apaixonar...

        Di veio direto do aeroporto à nossa casa, trazendo o quadro. Quadro enorme, de mais de um metro, mulatas deitadas, coloridas... Cheguei a perder o fôlego, imaginara que o trabalho anunciado fosse um desenho, quando muito uma aguada... Lembrei dos ensinamentos de Odorico: Aceite antes que ele se arrependa... Entreguei o cachorrinho, apanhei o quadro que foi pendurado, em seguida, na parede de nosso quarto de dormir, onde se encontra até hoje. No momento só me ocorreu dizer: aceitamos o quadro em troca de um cachorro e de quarenta anos de amizade...

        Em homenagem a Vasco Moscoso de Aragão, personagem de O capitão de longo curso — dos romances de Jorge Amado, a paixão de Di —, o cachorrinho foi batizado com o nome de Capitão. Inscrito, por Beril, mulher de Di, em concursos caninos, Capitão recebeu medalhas de ouro como o melhor da raça. O remorso da disparatada barganha, até que diminuiu diante dos diplomas, das glórias e da satisfação que Capitão dava a seus donos.

       

      Os PRIMITIVOS

        Mostrei interesse pelos primitivos da coleção de Odorico Tavares e ele mandou que João Alves e Cardoso e Silva nos procurassem.

        Personagem popular no centro de Salvador, João Alves começara a pintar quando ainda era engraxate, no Largo da Sé. Sem nenhuma instrução, João Alves era um primitivo, ele próprio, de grande sensibilidade artística. Retratava a Bahia em cores vivas, seus casarios, seus telhados. Sua pintura era inconfundível, destacava-se entre os demais primitivos da Bahia.

        João deixara de ser engraxate, dedicava-se apenas à pintura. Vendia seus quadros por qualquer dinheiro e quando não vendia trocava por bugigangas. Até por duas latas de goiabada, certa vez, ele trocou um quadro. Estava encantado com o bom negócio e me explicou: Eu como uma, a outra fica de pé, de enfeite, na prateleira.

        João Alves vivia com uma senhora gorda e calada, a criatura, como ele dizia, numa cafua do Pelourinho. No acanhado cubículo sem janelas, escuro e úmido em que viviam, não havia espaço para o cavalete de trabalho, o jeito era pintar no corredor ou na rua, o que não fazia diferença para o artista, isso não alterava a qualidade dos quadros.

        Sobraçando três telas, João Alves apareceu um dia, todo suado, penara debaixo do sol na ladeira íngreme. Foi doutor Odorico que disse que doutor Jorge está interessado nos meus quadros... Muito bonitos os três, ficamos com eles. Na hora de dar o preço, João torceu a boca, olhou para os lados, por fim disse: Pro senhor eu faço mais barato... Talvez, pela cara de satisfação que fez ao receber o dinheiro, deduzi que ele nunca havia vendido um quadro tão caro. Acostumado com clientes que pechinchavam, ele devia ter aumentado um pouco o preço, mas mesmo assim fora barato, nós compramos as três telas e lá se foi João, feliz da vida.

        Desde esse dia, as visitas do pintor se renovaram e todas as vezes ria satisfeito, os quadros que comprávamos eram, na sua maioria, para presentear amigos.

       

      CARDOSO E SILVA

        Ao contrário de João Alves, a produção de Cardosinho era pequena. Ele pintava igrejinhas, caprichava nos detalhes. Pintava, vendia seu quadro e quando o dinheiro acabava ele pintava outro. Algumas igrejinhas de Cardoso permanecem em nossas paredes.

        Homem de meia-idade, quase calvo, os poucos cabelos que lhe restavam eram grisalhos. Aposentado de uma repartição pública onde fora escriturário, Cardosinho era uma pessoa estimável. Dono de alguma cultura — falava até frases em francês —, tinha a língua embolada — parecia estar imitando o português falado por inglês — devido a um derrame cerebral que sofrera.

        Pessoa alegre, gargalhava por qualquer coisa e também chorava com freqüência. Espírita e maçom, dizia ser médium vidente, tinha lembranças de suas vidas anteriores, de suas vidas e das vidas de amigos. Cardoso afirmava, por exemplo, com a maior convicção e seriedade, ter nos conhecido, a mim e a Jorge, há cinco mil anos, quando, na Arábia, eu era a princesa Nadeija e Jorge o príncipe Zalomar. Ele, Cardosinho, um vassalo.

        Nossa história fora romântica e triste, história que provocava ao narrador lágrimas nos olhos.

         Zalomar e Nadeija eram muito felizes, contava ele. Mas um belo dia, quando o céu escureceu e o vento forte soprou anunciando um siroco, teimoso, Zalomar montou em seu cavalo zaino e despedindo-se de Nadeija disse: Vou para o deserto de areia, minha amada.

         Nadeija implorou: Não vá, Zalomar! É perigoso! Mas Zalomar não a ouviu e partiu: petelé, petelé, petelé... galopava o cavalo.

        Cardoso não contava uma história — e eram muitas — sem confirmar a sua veracidade. A história de Nadeija e Zalomar não escapou à regra. Interrompendo a narrativa, ele me perguntou:

        —  Me diga uma coisa: Jorge Amado é teimoso?

        — Muito teimoso, teimoso até demais—confirmei e fui dando corda —, quando ele encasqueta com uma coisa não há quem lhe tire da cabeça. — Por que não colaborar com meu amigo?

        O vassalo riu, glorioso:

        —  Estão vendo? Aí está! Teimoso como Zalomar... Não mudou nada.

         O fim da história foi muito triste, prosseguiu Cardoso. Zalomar e seu cavalo zaino foram soterrados pelas areias do deserto. Ao saber que nunca mais o seu amado voltaria, Nadeija caiu morta. Os espíritos dos dois se encontraram no céu e então combinaram voltar à terra, daí a cinco mil anos, para serem felizes para sempre.

        Resolvi provocar Cardosinho:

        — Jorge combinou nascer na Bahia e eu em São Paulo? Há cinco mil anos?

        —  Isso mesmo — disse ele —, combinaram se encontrar na terra... A verdade é que se encontraram... Estou mentindo? — A gargalhada de satisfação encobriu suas últimas palavras.

        Uma das mágoas do pintor era a de ter sido, numa de suas inúmeras encarnações, o cardeal Pierre Cauchon, que presidira o processo contra Jeanne d'Arc e assinara sua pena de morte:

         Eu sabia que a garota era inocente, dizia o ex-cardeal, aos prantos, mas fui obrigado a assinar...

         Fui também prisioneiro, na França, passei dez anos na prisão des Oubliettes, que, como o próprio nome diz, explicava o erudito, era a prisão dos esquecidos. Quem entrasse nela, era para sempre, nunca mais saía. A masmorra ficava num subterrâneo ao lado do no Sena e a água me cobria até a cintura em dias de baixa e até o queixo em dias de cheia. Eu me distraía vendo os peixes passarem pelo meu nariz, para um lado e para outro... Por isso sou um dos maiores entendidos em peixes. Quer uma prova?

        —  Claro que queremos — falava por mim e por Jorge, que ouvia calado.

        —  Pois então me diga uma coisa: quantas vezes eu já comi peixe aqui em sua casa, dona Zélia?

        —  Muitas vezes...

        —  E a senhora, por acaso, alguma vez me viu engasgar com espinhas?

        —  Nunca.

        —  Aí está a prova — gargalhou ele, vitorioso.

        João e Paloma adoravam ouvir as histórias das reencarnações de Cardoso. João Jorge, segundo ele, fora seu colega no Egito, há milhares de anos, quando João era um notável matemático. Querem a prova?

        —  Queremos — dissemos em coro.

        —  Me diga uma coisa, João: qual é a sua cor preferida?

        —  Azul — disse João.

        — Aí está confirmado: azul. A cor da matemática... Jorge sempre dizia: De Cardoso não se deve duvidar, com Cardoso não se deve discutir, suas histórias são lindas, cheias de imaginação. Ele não é louco. Ele acredita no que conta. É uma alma boa.

       

      LICÍDIO LOPES

        Ainda um pintor primitivo entrou no círculo de nossas relações: Licídio Lopes, pintor de parede. Homem de meia-idade, pacato, simpático, Licídio Lopes pintava, para seu prazer, paisagens do Rio Vermelho. Velho morador do bairro, ele retratava com enorme graça e fidelidade as praias do Rio Vermelho, as banhistas, muitas banhistas de maiôs comportados, porém sempre mostrando pernas roliças e seios abundantes.

        Terminada a pintura de nossa casa, na qual trabalhara, Licídio veio nos trazer um quadro de presente. Só então soubemos de sua arte. Creio que Licídio nunca mais precisou pintar uma casa. Sua fama de bom primitivo se espalhou e ele passou a viver dos quadros que vendia.

        Homem surpreendente, um belo dia Licídio Lopes apareceu com um manuscrito, um diário que escrevia nos intervalos de tempo. Páginas de muito interesse, escritas com graça, Jorge se encantou, fez uma revisão no texto, escreveu um prefácio: "Duas palavras sobre Licídio Lopes" e conseguiu a publicação do livro com a Fundação Cultural do Estado. O livro, ilustrado com fotografias do Rio Vermelho, saiu com o título: O Rio Vermelho e suas tradições — Memórias de Licídio Lopes.

       

      FLORIANO TEIXEIRA

        A Bahia ganhava ainda um pintor. Desta vez não se tratava de um primitivo. Vindo do Ceará pelas mãos de Lina Bo Bardi, diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, Floriano Teixeira, com sua pintura e sua simpatia, conquistou a todos os que o cercaram. Carybé, olho crítico severo, decretou: Esse é dos bons; Mirabeau Sampaio disse amém; dos melhores, afirmou Odorico.

        Arquiteta de grande competência, numa visita a Fortaleza, Lina Bo Bardi batera os olhos no quadro de um artista desconhecido, se encantou e o trouxe à Bahia; faria uma exposição no museu que dirigia. A primorosa pintura de Floriano impressionou todo mundo, sobretudo a Jorge, que viu no modesto funcionário da reitoria, que jamais vendera um único quadro por lá, um pintor extraordinário. Na Bahia ele teria mais chance de ir adiante.

        Pai de sete filhos, maranhense de nascimento, radicado em Fortaleza, Floriano titubeou diante da insistência dos amigos para que largasse o emprego seguro no Ceará e se mudasse, com armas e bagagens para a Bahia, numa aventura promissora. Ele contara, com muito humor — humor é o que não lhe falta —, que Giotto, seu filho, o mais velho das crianças, lhe dissera ao despedir-se dele: Olhe, pai, se aparecer por lá, na tua exposição, um besta, e comprar um quadro, não deixe de trazer uma televisão pra gente...

        Floriano voltou para Fortaleza levando a televisão para a família e o bolso cheio. Muitos bestas — segundo o menino Giotto — haviam ido à exposição, comprado todos os quadros e mais houvesse...

        Em nossa casa do Rio Vermelho, Floriano viveu cerca de dois meses, pintando, organizando sua vida para trazer Alice, sua mulher, e os filhos que haviam ficado à espera, em Fortaleza.

        Numa casa rústica, na Amaralina, cedida por Mecenas Marcos, amigo da turma, Floriano alojou a família o tempo necessário até engrenar e poder viver em casa própria. Com Alice, mulher tranqüila e determinada, e seus oito filhos—o oitavo nascido na Bahia —, Floriano mudou-se para o Rio Vermelho, numa casa próxima à nossa, pinta e vende seus belos quadros e cria netos.

        Floriano ilustrou vários livros de Jorge: Dona Flor e seus dois maridos, Quincas Berro Dágua, O milagre dos pássaros, O menino Grapiúna e Tocaia grande. É autor das capas de meus cinco livros de memórias.

       

      CAMUS, BRUNO E NELSON, NA BAHIA

        Quando Marcel Camus chegou com sua equipe à Bahia para filmar Os pastores da noite completou-se o rebuliço. Desembarcara em Salvador, com armas e bagagens, poucos dias antes, Bruno Barreto, trazendo a tiracolo Sônia Braga e José Wilker, para filmar Dona Flor e seus dois maridos.

        Na mesma ocasião, Nelson Pereira dos Santos, na casa da rua Alagoinhas, trabalhava dia e noite no roteiro de Tenda dos Milagres, a ser rodado sob sua direção, a filmagem marcada para aqueles dias.

        A produção de Os pastores da noite era rica. A equipagem que Camus trouxera chegara de navio, num imenso caminhão com gerador elétrico que, segundo foi dito, daria para iluminar Salvador inteira. A produtora do filme, Claire Duval, vinha de ganhar rios de dinheiro com seu filme Emmanuelle, sucesso mundial, e apostava no livro de Jorge Amado e no diretor famoso.

        Camus precisava de muito espaço para trabalhar. Encontrou e alugou um terreiro de candomblé, desativado, que pertencera a Joãozinho da Goméia. Numa das casas que permanecia no terreiro vivia um casal de empregados.

        Em conversa com a caseira, Camus perguntou-lhe se conhecia mulatas bonitas, precisava de muitas para figurantes. A senhora lhe respondeu que conhecia poucas, mas bonita mesmo ela só conhecera uma e dessa ela pendurara o retrato na parede, recortado de uma revista. Chamou-o para ver. Na página de O Cruzeiro, desbotada pelo tempo, Marcel Camus reconheceu sua esposa, Lourdes de Oliveira, com quem era casado havia anos, desde a filmagem de Orfeu do carnaval, de Vinícius de Moraes, que ele dirigira e ela fora atriz.

        Camus necessitava de um ator da terra para ser o padre que batizaria o filho do Negro Massu. Explicou a Jorge as características do personagem que necessitava para a cena de O compadre de Ogun. Jorge não pensou duas vezes, indicou-lhe Licídio Lopes.

        —  Licídio Lopes?—me admirei. —Você acha que Licídio?... Jorge me cortou:

        —  Acho sim. Deixa comigo...

        Na bela Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, o padre Licídio Lopes cumpriria, lindamente, sua missão de ator.

       

      CONFUSÃO NO PELOURINHO

        No Centro Histórico de Salvador desenvolviam-se, ao mesmo tempo, as filmagens dos três romances de Jorge Amado.

        Ao iniciar uma tomada, Camus acionava uma estrepitosa sirene, seguida de um grito: Moteur! Como que por encanto, todo mundo se calava, ninguém saía do lugar.

        Quando Bruno Barreto ia iniciar uma tomada, munido de um megafone, um assistente dele, um jovem chileno, alertava com seu sotaque: Silêncio, por favor! Vamos iniciar a filmagem! O aviso se repetia várias vezes, tantas quantas fosse preciso, até que o barulho terminasse e as pessoas se aquietassem em seus lugares.

        Quando Nelson Pereira dos Santos ia iniciar seu trabalho, no brega, lugar quente, considerado o mais perigoso do Pelourinho, sem ajuda de sirene nem sequer de um megafone, com sua voz tranqüila, ele pedia: Vamos começar a filmagem: silêncio, por favor. Não precisava repetir uma segunda vez, todo mundo se calava.

        Nelson fora avisado que lá no brega vivia um temido desordeiro por nome Sergipinho. Dele contavam que havia matado uma pessoa com um facão e depois lambido o sangue da lâmina. Nelson convocou o tal Sergipinho para uma conversa. Contratou-o como auxiliar, fiscal para evitar bagunça. Encantado com o posto, o temido facínora passou a ser o mais feliz e eficiente auxiliar da equipe.

       

      CONFUSÃO COM DOM AVELAR

        Jorge era solicitado diariamente pelas três equipes, resolvia problemas, os mais diversos.

        Camus lhe pediu, um dia, que conseguisse autorização do bispo, na época Dom Avelar Brandão, para que a filmagem do batizado do filho do Negro Massu fosse realizada dentro da Igreja do Rosário dos Pretos, na ladeira do Pelourinho. A produção se informara e fora avisada de que era proibido filmar dentro da igreja.

        Jorge conseguiu a autorização do bispo explicando-lhe que se tratava apenas de uma cena de batizado católico, nada que pudesse desrespeitar a religião.

        Ao chegar à porta da igreja para a filmagem, em dois ônibus repletos, Marcel Camus, sua equipe, equipagem, atores e figurantes foram barrados. Havia ordem superior para não deixar ninguém entrar com câmeras de filmagens. Surpreso, Camus telefonou para Jorge pedindo ajuda, os ônibus à porta da igreja aguardando uma solução. Surpreso e indignado, Jorge não perdeu tempo, telefonou para o Palácio Arquiepiscopal. Atendeu uma pessoa dizendo que Dom Avelar não podia atender, estava meditando.

        —  Meditando? E até que horas ele medita? — quis saber Jorge.

        —  Depende, às vezes ele fica até meio-dia — disse o rapaz.

        —  Meio-dia? São apenas nove horas da manhã...

        —  É isso, o jeito é aguardar.

        Jorge não estava disposto a aguardar nem um minuto quanto mais três horas. Falou grosso, ordenou:

        —  Pois vá em seguida chamar Dom Avelar, vá por minha conta, diga que sou eu, que o assunto é urgente, urgentíssimo. Pode ir, eu me responsabilizo.

        Finalmente, Dom Avelar veio ao telefone e justificou a sua proibição: recebera queixa da direção da irmandade de que uma equipe de cinema, a de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, havia dois dias filmara um homem nu dentro do templo. O seu pedido, doutor Jorge, foi para filmar um batizado e não cenas de nudismo... não foi isso?

        Depois de muitas explicações, tudo foi esclarecido: sem saber se podia ou não filmar na igreja e por isso não pedira autorização, Bruno Barreto encontrara a porta do templo aberta, por ordem de Dom Avelar. O diretor de Dona Flor não sabia — e mesmo que soubesse do equívoco, não creio que seria louco de recuar — que, a pedido de Jorge Amado, a igreja fora franqueada para a filmagem de Os pastores da noite e não para ele.

        Bruno Barreto filmara a saída da missa, entre os fiéis Vadinho nu. Por acaso havíamos assistido à tomada de cena onde o ator apareceu nu somente de costas, na frente um tapa-sexo, que, como o próprio nome diz, tapava o sexo de José Wilker. Wilker não entrara na igreja; aguardara, de roupão, atrás de uma coluna, para, de lá, sem o roupão, seguir abraçado com Sônia Braga, aliás, Dona Flor, ladeira do Pelourinho abaixo. Dom Avelar fora mal informado por seus olheiros.

        O quiproquó esclarecido, nova ordem do bispo permitiu que a cena do batizado fosse realizada. Diante da pia batismal, ao batizar o filho do Negro Massu, o padre Licídio Lopes, bom ator, caiu em transe, as filhas-de-santo também caíram em transe. Só faltou mesmo a mãe-de-santo para que a festa fosse completa, comentou alguém.

       

      CORAÇÃO MOLE

        O coronel João Amado costumava dizer: Meu filho nasceu para escrever. Fale em literatura com ele que ele entende tudo. Só não fale em negócios com ele, pois de negócios ele não entende nada. Tem o coração mole demais.

        Em parte, o velho João Amado tinha razão. Quem assistiu ao sucesso de público de Dona Flor e seus dois maridos, o estouro de bilheteria por toda a parte, até no estrangeiro, ficou certo de que o escritor havia enriquecido. Ledo engano.

        Dos três filmes, rodados na mesma ocasião, na Bahia, Jorge não teve participação nos lucros. O contrato com os franceses para Os pastores da noite, que na França recebeu o nome de Otália de Bahia, foi de pouca monta.

        Em Tenda dos Milagres, produção de poucos recursos, dirigida por Nelson Pereira dos Santos, Jorge nem se importou com dinheiro, assinou um contrato modesto, quase simbólico. Amigo fraterno do cineasta, Jorge acompanhava a sua carreira desde quando, quase um menino, Nelson dirigira o premiado Rio 40 graus.

         Dona Flor e seus dois maridos também rendeu pouco. Produzido por Luiz Carlos Barreto, velho amigo de Jorge, foi dirigido por  seu filho Bruno, menino de vinte e um anos incompletos, talentoso,  apaixonado pela história de Dona Flor. O coração de Jorge—como diria o velho João Amado — amoleceu e ele assinou um contrato sem participação nos lucros, por dois vinténs pingados.

        Jorge Amado não ficou rico com as três produções, como muita gente pode ter pensado, mas o que ele se divertiu durante as filmagens e as alegrias que os filmes lhe trouxeram depois, cada qual com seu sucesso, não havia dinheiro no mundo que pagasse. Mau negócio feito pelo filho, incompetente no ramo, na visão do velho Coronel, excelente negócio realizado pelo escritor, mestre na arte de viver.

       

      PROBLEMAS DOMÉSTICOS

        Numa casa movimentada como a nossa, eu sofria com os problemas domésticos. Casa enorme, povoada, movimentada, e eu sem conseguir arranjar empregadas competentes e de confiança. Não me acostumava com o ritmo lento das que conseguia. Não havia —e não há na Bahia—essa de salário alto para todo o serviço da casa, como estava habituada no Rio. Na Bahia o salário é baixo para pouco trabalho, serviço que pode ser feito por uma pessoa são precisas duas ou três, restando ainda a terra de ninguém, como costumo chamar as áreas que ninguém limpa achando que é obrigação do outro. Ao menos essa é a minha experiência, até hoje.

        A única empregada que dera certo, que me contentava, embora lenta, era Eunice, pessoa direita, educada, cumpridora. As outras duas estavam sempre sendo revezadas, tornavam-se mais problema do que ajuda. Eunice está aposentada há bastante tempo, a lacuna continua aberta.

        Das Dores chegou recomendada. A moça é um pouco lesa mas é direita, obediente, é só ensinar e mandar fazer que ela faz..,

        Na adolescência, Das Dores fora babá de uma criança em Salvador. Um belo dia ela ouviu pelo rádio que o mundo ia se acabar. Pensou com seus botões: Se é mesmo que o mundo vai se acabar, o melhor é eu  ir morrer junto de pai mais mãe. Pediu as contas e se mandou para o interior.

        O mundo não se acabou, e a mãe de Das Dores aproveitou a presença da filha para mandá-la tirar leite da vaca. Bem-mandada, a mocinha foi. Procurou uma boa posição atrás das patas da vaca, sentou-se, baldinho a postos, mas, ao tocar no úbere cheio do animal, recebeu uma patada no pé do ouvido. Ficou sem uma orelha e, como já foi dito, lesa para o resto da vida.

        Das Dores foi contratada. Sempre sorridente, ela era tranqüila. Todos os dias eu repetia o que devia fazer, embora fosse sempre a mesma coisa: arrume os quartos, varra e tire o pó, bem tiradinho. A última observação devia ser frisada para que o trabalho saísse a contento.

        Certa manhã, depois das recomendações à moça, saímos, Jorge e eu. Ao voltarmos, horas depois, encontrei tudo do jeito que deixara, Das Dores não havia mexido uma palha sequer. Fui encontrá-la no terraço, sentada com o gato no colo. Das Dores nos sorriu:

        —  Nacib estava muito triste — disse —, miando pela casa, com saudades de doutor Jorge...

        —  E você então agradou ele?... — perguntou Jorge.

        —  É, doutor. Depois que eu botei ele no colo e fui passando a mão nele, ele parou de miar.

        Entusiasmado com o que presenciava e ouvia, Jorge meteu a mão no bolso, puxou uma pelega de dez, deu a ela:

        — Sempre que ele miar me procurando ponha ele no colo e agrade. Agrade muito, viu?

       

      Os MISTÉRIOS DA BAHIA DENTRO DAS PORTAS

        Neusa chegara para substituir Das Dores, quando a moça voltou para o interior onde foi viver com os pais.

        Tipo franzino, Neusa era uma pessoa educada, discreta, inteligente. Quase perfeita no trabalho, com Eunice ela me dava tranqüilidade. Até que enfim..., pensava eu.

        Ao receber o salário, certa manhã, Neusa saiu para depositar o dinheiro na Caixa Econômica. Foi e nada de voltar, o que teria acontecido com Neusa?

        Por volta das três da tarde, Eunice veio me chamar, olhos esbugalhados:

        — Corre, dona Zélia. Um homem trouxe Neusa, disse que ela estava perdida na rua. Ela está estirada na cama feito morta. Acho que ela está morrendo.

        Atirada a corpo morto em sua cama, Neusa não dava sinal de vida. Fiz o que estava ao meu alcance para reanimá-la sem conseguir. Mandei chamar Aurélio, pedia-lhe que buscasse um médico, quando Neusa despertou e num salto, dando gargalhadas, pôs-se de pé em cima da cama. Não respondia às minhas perguntas, dizia coisas ininteligíveis.

        Alertado, Jorge apareceu para ver o que estava se passando. Ao ver Jorge, Neusa deu um salto, gritando: Vovô, vovô, vovô... Antes que alguém pudesse impedi-la ela correu para Jorge, agarrou-o pelas pernas, levantou-o e se pôs a cantar e a dizer coisas, com ele nos braços, suspenso.

        Eu nem precisava sair de minha casa para presenciar milagres, os chamados mistérios das ruas da Bahia. Não podia acreditar que uma criatura magra e frágil como Neusa tivesse força para levantar aqueles cem quilos que era o peso de Jorge na época.

        —  Ela está com o santo, doutor — diagnosticou o entendido Aurélio.

        —  Isso mesmo — disse Jorge, tentando desvencilhar-se dos braços da moça, sem conseguir.—Vá Aurélio, vá depressa, imediatamente, buscar o Luiz da Muriçoca — ordenou.

        Aurélio saiu rápido, em busca do pai-de-santo. Felizmente o candomblé de Exu, onde Luiz da Muriçoca mantinha boas relações com o Exu Toco Preto e o Sete Pinotes, ficava numa ladeira na Vasco da Gama, bem perto de nossa casa.

        Pessoa de nossa amizade, Luiz da Muriçoca, poderoso e competente, viria em seguida socorrer o amigo caso estivesse em casa. Não havia dúvida.

        Felizmente, enquanto aguardávamos o pai-de-santo, Neusa resolveu libertar o vovô de suas garras e, com a agilidade de um gato, subiu ao alto do guarda-roupa. Falando e cantando sem parar, ela descobriu lá em cima, enrolado em jornais, um litro de mel, pela metade. Até então, não dando palpites, apenas murmurando.'Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora..., Eunice gritou: Ai meu mel!, buscando dar explicações que ninguém pediu nem interessavam a ninguém: E o mel que eu tomo todas as noites, uma colher de sopa, para a minha bronquite... Está me curando... Assim dizendo, levantou as mãos para Neusa: Me dê meu mel...

        Neusa não estava nem ali. Para desespero da proprietária do precioso remédio, ela despejava o mel no chão.

        Estávamos nessa quando a porta do quarto se abriu e Luiz da Muriçoca adentrou, seguido de Aurélio.

        —  O que é que há, meus meninos? — disse, dirigindo-se a Neusa.

        —  Meus meninos? — estranhou Jorge

        —  Você então não vê que ela está tomada pelos Ibejes? Só crianças como Cosme e Damião, pra fazer essas reinações.

        Neusa gritava:

        —  Bulofa, bulofa...

        A princípio pensei que ela estava querendo o relógio Bulova de Jorge, mas o pai-de-santo traduziu: Ela está pedindo ovos.

        —  Traga dois ovos, Eunice, vá ligeiro...

        —  Cru ou cozido, dona Zélia?...

        —  Cozidos — respondi —, bem durinhos.

        —  Nada disso — interrompeu Muriçoca —, os ovos devem ser crus.

        Meleira igual nunca se viu: sentada no chão, Neusa misturava mel com os ovos abertos sobre os ladrilhos.

        A pedido de Luiz, todo mundo se retirou e o deixamos a sós com a moça para tirar-lhe o santo que a possuía, aliás, os santos, como afirmara ele próprio.

        O trabalho não foi demorado. Ao sair do quarto, Luiz da Muriçoca deixava a moça liberada, dormindo profundamente:

        —  Ela não vai lembrar nada do que aconteceu. Deixem que durma até despertar naturalmente.

        —  Qual a explicação disso? — perguntei curiosa. — Ela é católica, vai sempre à missa, não é de candomblé...

        —  Ela não é mas tem uma parenta que é e fez uma promessa em nome dela a Cosme e Damião. Essa parenta, não sei se é prima ou o que é, prometeu que se Neusa sarasse de uma doença que teve, com o dinheiro de um salário ofereceria um caruru a sete crianças pobres. Ela não deu a comida, botou o dinheiro na poupança... deu nisso... — riu o pai-de-santo.

       

      A VENDEDORA DE QUADROS

        Havia muito que não víamos João Alves. Depois da morte da criatura, ele não aparecera mais. Supúnhamos que ele devia andar muito triste, sozinho. Por isso, ao saber que João Alves estava na sala, me preparei para recebê-lo com palavras de consolo, mas, qual!, encontrei um João Alves sorridente, feliz da vida, cheio de planos.

        —  Doutor Jorge, mais dona Zélia — foi dizendo —, encontrei uma pessoa ótima.

        Jorge e eu nos entreolhamos diante do inesperado:

        —  Ótima, como? — quis saber Jorge. — Boa pessoa? bonita? quem é?

        —  É tudo isso e muito mais... — respondeu ele rindo. — É uma vendedora de acarajé, o nome dela é Neide e eu quero casar com ela.

        —  Você quer casar ou juntar? — quis saber Jorge.

        —  Que juntar o quê! Essa é coisa séria, ela só vem pra minha companhia de papel passado.

        —  Então case de papel passado, João, você não é viúvo? — disse eu.

        João torceu a boca, deu um meio sorriso:

        —  Eu não era casado com a criatura, não. Eu sou solteiro. Eu só posso casar se tiver onde levar a moça. Não posso botar ela na cafua, onde a falecida faleceu. Preciso comprar uma casa.

        —  E você tem dinheiro para comprar uma casa?

        —  Tenho não. Vim aqui hoje pra pedir a doutor Jorge mais tua senhora pra me emprestar o dinheiro.

        Tive uma idéia, sabia que ele deixava quadros, em consignação, na galeria de arte de Renot, creio que a única em Salvador.

        —  Por que você não pede o dinheiro a Renot? Ele vende teus quadros e paga a casa. Muito fácil.

        Novamente, João Alves torceu a boca:

        —  Ele não vai concordar não. A galeria dele dá muita despesa...

        Entendi que ele já havia tentado com Renot e nada conseguira. Nós éramos, Jorge e eu, sua última esperança.

        Ao ouvir que nós também não poderíamos comprar uma casa para ele, João assumiu um ar dramático:

        —  Se eu não puder comprar essa casa, então eu me mato. Diante da situação tragicômica, tentei conversar com ele.

        Ficamos sabendo que a moradia de seus sonhos já havia sido encontrada, ficava em Cosme de Faria, bairro pobre da cidade. Casa modesta, o proprietário pedia uma entrada e o resto seria pago em prestações. Pedi a João que trouxesse os quadros que tinha em casa, pintasse outros e os trouxesse. Eu mesma faria uma exposição aqui em casa, convidaria a sociedade baiana, venderia os quadros, obtendo o dinheiro para o primeiro pagamento, assinaria as promissórias e continuaria vendendo outros quadros que ele pintasse, até resgatar a última promissória.

        Impunha-lhe apenas uma condição: enquanto a casa não estivesse completamente paga, João se comprometeria a me dar prioridade na escolha dos trabalhos e estipularíamos um preço fixo. Nada de vender quadros por qualquer trocado.

        Nenhum convidado deixou de atender a meu apelo: Carybé, Mirabeau e Norma me ajudaram a fazer a lista de prováveis compradores e todos compareceram, quase todos compraram. Recolhi dinheiro suficiente para o pagamento maior, dei o restante para o pintor ir se mantendo.

        João estava apressado, marcou a data do casamento, Mirabeau e Norma, Jorge e eu fomos os padrinhos. A noiva era realmente simpática, moça inteligente, trabalhadora. João ganhara na loteria, como se diz, ao encontrar Neide para companheira.

        Atenta ao compromisso que assumira, preocupada com o vencimento das promissórias, aproveitei uma viagem ao Rio, poderia vender também lá os quadros do artista.

        A exposição que improvisei, no apartamento da Rodolfo Dantas, fez sucesso. Vendi todos os quadros que levei, trouxe para a Bahia o suficiente para quitar várias promissórias e ficar despreocupada por alguns meses. Trouxe ainda dinheiro para o pintor ir se mantendo enquanto pintava outros quadros. As pessoas estavam interessadas nos artistas da Bahia e me pediram que levasse outras telas quando voltasse ao Rio.

        Ao saber que eu estava vendendo para João Alves, apareceu Cardosinho com dois quadros pedindo-me que os vendesse também. Aproveitou para nos contar que estivera nos visitando na véspera, à noite, disfarçado em bolha verde. Do jardim, pelo vidro do janelão, ele nos vira sentados diante da televisão:

        —  É verdade ou não é? Estavam ou não estavam sentados nestas poltronas?

        —  Estávamos—respondi, dizendo a verdade, confirmando a fantástica história.

        Depois de João Alves e Cardoso e Silva, outros pintores primitivos me procuraram, mas não havia por que só vender primitivos. Minha clientela tornara-se grande, havia compradores para todos os gostos e para todos os preços.

     

      BOLA DE NEVE

        De repente, não mais que de repente, me vi transformada em marchand de tableaux, vendendo quadros dos mais importantes pintores da Bahia. Viajava constantemente para o Rio e São Paulo, onde, de sociedade com minha cunhada Fanny, mulher de Joelson, expúnhamos e vendíamos os trabalhos em seu apartamento de Higienópolis.

        Os negócios aumentavam como uma bola de neve. Conseguira pagar, antes do prazo, todas as promissórias da casa de João Alves. Não havia sentido continuar trabalhando de graça. Começamos a ganhar dinheiro, Fanny e eu. Vendi vários Carybé, Floriano Teixeira, gravuras de Emanuel Araújo, Adelson do Prado, Ana Lúcia, Eckemberger, Hélio Basto e outros. Até Cristos e ceias em madeira, do Louco, escultor primitivo de Caxoeira, vendi.

        

      DE REPENTE...

        Não foi tão de repente que desisti de vender quadros. Quando me dei conta, estava tão envolvida na nova atividade que já não me sobrava tempo para nada, nem para me ocupar de Jorge, como fazia há mais de vinte anos. A rotina de nossa vida mudara. Minha atividade de mercadora de arte exigia cada vez mais de mim, sobretudo que eu viajasse constantemente, quase sempre deixando Jorge sozinho, na Bahia. Jorge não se queixava, mas senti que ele não estava contente, nem um pouco contente. Ora, se tudo o que eu desejava na vida era fazer Jorge feliz e ser feliz com ele, por que diabo eu me metera naquela empreitada, arriscando a tranqüilidade de nossas vidas, arriscando até a estabilidade de nosso amor?

        O dinheiro que eu estava ganhando significava pouco para mim, aliás, não significava nada, absolutamente nada, diante do mundo que Jorge me oferecia.

        Não tive dúvida: desfiz a sociedade com Fanny, desisti de vender quadros.

       

      AS BAIANAS DE CARYBÉ

        Carybé fizera uma série de baianas de cerâmica, uma diferente da outra, cada qual mais bela. Presenteou os amigos com uma, as restantes ele vendeu. Vendeu, inclusive, cinco para nós, ficamos com duas aqui em casa, levamos uma para o apartamento do Rio, presenteamos James e Joelson, irmãos de Jorge, demos uma para Alfredo Machado, nosso editor.

        Ao ir em busca de mais baianas, para outros amigos, já não encontrei. Carybé as vendera com uma rapidez incrível, muita gente querendo, reclamando. Quisemos saber se ele iria fazer novas cópias e ele disse que não. Tinham dado muito trabalho, a olaria que fizera as fôrmas e as queimara no forno ficava distante de Salvador, o transporte era difícil, ele havia perdido uma porção delas, quebraram-se pelo caminho.

        Ao ouvir de Carybé: Não quero mais saber de negócio com essas baianas, pra mim chegou..., tive uma idéia:

        —  Quer fazer um trato comigo, Carybé? Eu me ocupo de tudo, pago as despesas e dividimos o lucro...

        Carybé gostou da proposta:

        —  E você vai até o português encomendar e trazer as baianas? Tá bom, comadre, trato feito.

        O português a quem Carybé se referia era o oleiro, profissional competente, que ele descobrira em Dias D'Ávila e queimara as fôrmas das baianas.

        O português levou mais de um mês para entregar minha encomenda. Nessa época, tínhamos uma Veraneio, caminhonete espaçosa, com bom molejo, na medida para transportar tanta cerâmica, de Dias D'Ávila para cá, num bom pedaço de má estrada. Mesmo tendo Aurélio ao volante, cuidadoso como ele só, assim mesmo, com todas essas facilidades, muitas chegaram quebradas.

        Nosso terraço foi transformado num verdadeiro ateliê de restauração de cerâmica. Em cima das mesas, que espalhei por toda a parte, podiam-se encontrar baianas sem braço, sem mãos, sem dedos, sem tabuleiros na cabeça, sem pés, sem enfeites dos vestidos, aguardando a vez de serem recuperadas. Carybé se encantou ao deparar-se com aquele verdadeiro hospital, deu-me um conselho: Vá à feira de Água de Meninos e compre pratos de cerâmica, travessas de barro, para substituir os tabuleiros quebrados, vai ficar porreta. E ficou.

        Consumi tubos e tubos de cola na operação cola-tudo, Jorge e Carybé de fiscais, exigindo que tudo saísse na perfeição, uma pagodeira mais do que um trabalho.

        Visitando a Bahia, vinda do Rio Grande do Sul, a artista plástica Zorávia Betiol veio à nossa casa e, ao ver aquele mar de cerâmicas sendo restauradas, se encantou, não resistiu e entrou na dança; não só me ajudou a colar, como me ensinou truques de restauração que aprendi e até hoje aplico ao colar uma e outra peça que aparece quebrada, ouvindo as empregadas dizerem: Eu não fui ou Tem anos que está quebrado, quando cheguei aqui já estava... que fazer? Dona Zélia vai colando.

        Recuperadas, na sua quase maioria, as baianas receberam a assinatura de Carybé. Aqui na Bahia tudo se sabe e, durante alguns dias, a casa foi invadida por verdadeira romaria de pessoas querendo comprar baianas. Até um grupo de turistas paulistas, de passagem pelo porto de Salvador, sabendo, não sei como, que havia baianas de Carybé à venda, apareceram e saíram cada qual com sua peça, enorme, incômoda de ser carregada, porém felizes.

        Contas acertadas, Carybé quis saber, um ar de provocação:

        — Vai repetir a dose, comadre?

       

        — Pra mim chega, compadre. Foi muito divertido, mas suficiente.

        Mais do que o lucro que tivemos, Carybé e eu guardamos algumas peças que enfeitam nossas casas e as de alguns amigos a quem presenteamos.

        Com a proeza das cerâmicas de Carybé, encerrei minha carreira de vendedora de artes.

       

      CASA FESTIVA

        Lalu bem que gostava de ver a casa sempre em festa, sempre cheia de gente, mas não dava o braço a torcer:

        —  Eta trabalheira danada! Não sei como tu agüenta! O Rio de Janeiro era muito melhor do que aqui, não era? Não tinha todo esse movimento na casa...

        —  E mais alegria do que trabalho, Lalu. Você não gostou de ver as artistas do bale do Senegal aqui?

        Claro que ela havia gostado. Nem conseguira disfarçar o impacto que sentira ao ver surgir, portas adentro, o grupo de moças em seus trajes africanos, artistas lindas. O bale se apresentava no Teatro Castro Alves, viera recomendado a Jorge e recebemos o grupo em nossa casa.

        Muitos artistas amigos nossos vieram à recepção: Norma e Mirabeau, Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, Lev Smarchewski, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Bastos e Altamir, James Amado e Luiza, entre outros.

        Seguindo nosso exemplo, Luiza e James Amado haviam trocado o Rio de Janeiro pela Bahia, dando a Lalu a maior das alegrias: passara a ter dois filhos ao alcance da mão. Só falta agora Joelson, dizia ela cheia de mágoa, mas esse é difícil que venha, São Paulo é muito longe...

        Encantada por uma das dançarinas, linda no seu torço dourado, no frufru da seda pura dos drapeados do traje a envolver-lhe o corpo, Lalu deu o braço à moça e com ela saiu andando.

        Dona Eulália não esquecera os princípios da boa educação em que fora criada: a polidez ordenava que a dona da casa, ao receber uma visita, lhe perguntasse: Quer tomar um cafezinho ou prefere primeiro correr a casa?

        Lá se foi Lalu correndo a casa, a bailarina do Senegal a tiracolo. Divertindo-se ao ver a sogra conversar com a moça que só falava francês, Luiza aproximou-se e ouviu o curto diálogo:

        —  A senhora gosta de gatos? — perguntava Lalu.

        — Je ne comprends pas le portugais, madame — respondia a moça.

        Lalu olhou para Luiza e traduziu:

        —  Tá vendo, fia? Ela disse que é doida por gatos!

       

      VERUCHKA NA BAHIA

        Chegavam à Bahia para uma série de reportagens o famoso fotógrafo Franco Rubartelli e a mais comentada das modelos fotográficas, Veruchka, mulher que, com sua beleza e charme, causava frisson à época.

        Nossa casa da rua Alagoinhas foi escolhida, entre outras locações, para as poses e fotografias da famosa modelo,

        A preparação foi grande, uma equipe de apoio se instalou no quarto de hóspedes, o maquiador com seus estojos repletos de toda a sorte de cosméticos; uma jovem, com um ferro elétrico, começou logo a passar os trajes—sumários, porém trajes—que Veruchka iria usar. A bem dizer, havia mais perucas do que roupas. Montanhas de perucas foram despejadas sobre uma cama: cabelos longos e curtos, castanhos de todos os tons, chegando ao louro, cada qual mais linda. Veruchka usava uma peruca sobre a outra, misturando os tons, cabelos de todos os comprimentos se entrelaçando, formando mechas... verdadeira obra de arte. Na idade de gostar de perucas, Paloma se encantou, quem me dera ter uma dessas, disse baixinho, mas seus olhos falaram alto e a modelo percebeu o interesse da jovem.

        Ao contrário do que se possa imaginar, Veruchka só tinha pose nas fotografias, no convívio era a pessoa mais simples e amável do mundo. Tão gentil que ao perceber o encanto de Paloma por suas perucas e sabendo que, em breve, Jorge e eu iríamos à Itália, ela pediu uma mecha dos cabelos de Paloma e outra dos meus: Vou pedir ao meu fornecedor, em Roma, que prepare duas para vocês e quando chegarem lá as encontrarão prontas. Presente meu. Deu-me o endereço. E não mentiu.

       

      PARÊNTESE PARA FALAR DA PERUCA

        Ao chegarmos ao cabeleireiro indicado pela modelo, em Roma, as perucas já estavam à nossa espera. Coloquei, em seguida, a minha na cabeça: me achei linda. O mesmo não achou Jorge que, ao me ver toda cheia de cabelos encaracolados, quase teve um desmaio: Coisa mais horrível, disse. Enquanto você estiver com esse troço medonho na cabeça não vou nem olhar pra tua cara... Virou o rosto para o outro lado.

        Ao chegarmos ao hotel, fui logo tratando de retirar a cabeleira — não era por submissão que me desfazia dela, nada disso, queria apenas corrigir um equívoco: achara que Jorge ia gostar de me ver toda emperucada, mas, nada disso, ele detestara, execrara, ficara infeliz. Ora, se o que eu desejava era me enfeitar para ele, eu me enganara. Muito simples, o jeito era abdicar da bela peruca, abdiquei e, diga-se de passagem, ao retirá-la, senti um enorme alívio. Aí meu Deus! Como aquele diabo esquentava!

       

      FIM DO PARÊNTESE

        Peço desculpas pelo longo parêntese que acabo de fazer, encompridando conversa e peço licença para reatar o fio da meada.

        Quem ficou intrigada com a movimentação na casa foi Lalu. Ao saber que aquele aparato todo era só para tirar fotografias da moça, achou um exagero.

        Com uma montanha de perucas na cabeça a cobrir-lhe parte do rosto, estirada no parapeito do janelão que dá para o jardim, Veruchka posava, Franco Rubartelli só acionando o disparador do aparelho fotográfico, num clic, clic, clic interminável, verdadeira metralhadora. Ele me explicou depois que, para conseguir uma fotografia perfeita, a seu gosto, às vezes necessita tirar quatrocentas.

        Assistíamos, a certa distância, à sessão fotográfica, quando surgiu Lalu, de banho tomado, vestígios de talco perfumado e um pente enterrado nos cabelos lisos, certamente na intenção de dar um jeito neles: Enfroquei um pouco o cabelo, disse-me, por que tu não enfroca o teu? Admirou-se ao nos ver assistindo à distância, fora do enquadramento do fotógrafo.

        —  Daí tu não sai no retrato — disse —, vá ficar atrás da moça, boba...

        —  Não vou, não, Lalu. E só a modelo que vai ser fotografada.

        —  Oxente! — reclamou ela. — E a casa não é tua, menina? Vá lá, vai... — insistiu.

        Pra não dizer que Lalu usou o pente em vão, antes de despedir-se Rubartelli tirou uma foto dela com um aparelho Polaroid.

        — Este retrato não valeu de nada — comentou Lalu mais tarde.

       

       HARRY BELAFONTE NA BAHIA

        Os pais de July Belafonte, russos radicados nos Estados Unidos, haviam conhecido Nancy e Carybé quando o artista, vencedor de um concurso internacional, foi pintar dois murais no terminal da América Latina do Aeroporto Internacional John Kennedy, em Nova York. Dessa época vinha a amizade deles.

        Um quadro que Carybé oferecera ao casal naquela ocasião encantava seu genro, o ator Harry Belafonte. O interesse de Belafonte pela Bahia aumentou ainda mais quando caiu em suas mãos um romance de Jorge Amado, Jubiabá.

        Entusiasmado em conhecer a misteriosa terra distante e os dois responsáveis por seu entusiasmo, Belafonte e July decidiram que a próxima viagem da família seria à Bahia.

        Em seu avião particular, trouxeram os pais de July e os filhos do casal, David e Gina, crianças. A chegada da família Belafonte causou rebuliço no Brasil, a imprensa, em peso, foi a Salvador, pois nas declarações de Belafonte, ao desembarcar no Rio de Janeiro, ele dissera ter vindo ao Brasil exclusivamente para visitar os amigos Carybé e Jorge Amado e conhecer Salvador. Depois voltaria direto para Nova York. Seu avião não pudera descer na Bahia, pois o aeroporto de Salvador, na época, não tinha ainda estrutura para vôos internacionais.

        Hospedada no Hotel da Bahia, naquela ocasião ainda o melhor de Salvador, a família Belafonte passou a maior parte de seu tempo em nossa casa e na de Carybé. Com eles visitamos os artistas Carlos Bastos e Altamir, Genaro e Nair de Carvalho, que lhes ofereceram um jantar; Jenner Augusto e Luísa que os acolheram com um almoço. No terreiro do Gantois, Belafonte participou de uma festa e, emocionado, não resistiu, dançou com as filhas-de-santo em transe.

        Pessoa adorável, da maior simpatia e simplicidade, Belafonte conquistou a todos que o conheceram. Pudemos ver em seguida que ele era igual aos compadres Jorge e Carybé: brincalhão, despojado de empáfia, comunicativo, gozador. July nos falou de quanto o marido se divertia pregando peças aos amigos. Entenderam-se os três personagens, como se velhos amigos fossem.

        Nas vésperas da partida, oferecemos a eles uma grande recepção, reunindo em nossa casa o que havia de mais significativo da intelectualidade da Bahia.

        Antecipamos uma viagem ao Rio para irmos com os Belafonte, no mesmo avião. No Rio de Janeiro, estava sendo organizado um grande almoço a Jorge, não recordo a propósito de quê, programado por amigos.

        Harry Belafonte devia partir do Rio dois dias antes da homenagem a Jorge, mas foi nos ver e almoçar conosco no apartamento da Rodolfo Dantas.

        Ao abrir a porta do elevador em nosso andar, Belafonte deparou-se com uma enorme e colorida estatueta de porcelana sobre um móvel no hall — decoração do vizinho de porta —, horrível figura de mulher deitada com um cachorro galgo ao lado. Moleque como ele só, Belafonte não teve dúvida: tirou a jaqueta que estava vestindo, envolveu a estatueta nela e entrou na sala fazendo um discurso e entregando o volume a Jorge: Não repare no presente, lhe ofereço de coração. Assim dizendo, ele mesmo, rapidamente, retirou a jaqueta que envolvia a peça e explodiu numa gargalhada sem tamanho, gargalhada de satisfação ao ver a cara de espanto de Jorge diante da execrável estatueta. Ria ele, ríamos nós com ele, ria também Misette, que se encontrava lá em casa. Acostumada com esse tipo de brincadeiras, muito ao gosto dos compadres da Bahia, ela os comparava. Você não acha que os três são iguais?, perguntava Misette, entusiasmada. Mais entusiasmada ficou ao ser convidada a ciceronear os Belafonte durante os dois dias que ficaram no Rio.

        Encontramo-nos ainda muitas vezes com Harry Belafonte e sua família, em nossas caminhadas pelo mundo: em Nova York, quando jantamos em seu apartamento e tivemos a surpresa e a emoção de encontrar pendurado, em lugar de destaque, um quadro de Portinari. Em Paris, quando, depois de assistir à sua apresentação no Olympia, saímos juntos para cear e Belafonte mostrou um exemplar de Tenda dos Milagres, em edição americana, todo anotado por ele, que lia no momento, e trouxera para receber o autógrafo do amigo. Em Cuba, quando juntos fomos a uma casa de santeria, cujo ritual é o mesmo do candomblé da Bahia. Da mesma forma que Belafonte se emocionara no terreiro de Menininha do Gantois, voltava a se emocionar com os orixás de Cuba. Com os Belafonte e Gregory Peck, mulher e filha, que estavam com eles nessa viagem, assistimos à inauguração da Escola de Cinema e a um encontro de artistas, escritores e cineastas, na casa de Gabriel Garcia Márquez nas aforas da cidade.

        Foi a essa inauguração e a festa de Garcia Márquez que compareci de chinelos. Essa história, se não me falha a memória, já contei em outro livro. Só não contei que Belafonte, ao me ver de chinelos, quase morreu de rir, adorou.

        Para quem não conhece os detalhes, peço licença para contar novamente e explicar que tudo aconteceu por causa da afobação de Jorge, sempre preocupado em não chegar atrasado aos compromissos.

        Nesse dia da inauguração da Escola de Cinema, distante uns quarenta ou cinqüenta quilômetros de Havana, Jorge exagerou na pressa, ficou no meu pé enquanto eu me arrumava: vam´bora, vam´bora, vam´bora... Eu também me afobei e só me dei conta de que ainda estava de chinelos quando já tínhamos rodado mais de vinte quilômetros. Voltar para o hotel, nem pensar. O jeito foi dar a volta por cima, acreditar no que Jorge dizia para me consolar: Teus chinelos são mais bonitos do que qualquer sapato... muita mulher vai morrer de inveja ao te ver tão confortável...

         A noite, após a festa da inauguração, fomos à casa de Garcia Márquez, uma bela residência com enorme jardim e piscina, cedida ao escritor para trabalhar e viver a vida toda. Nessa noite, o Comandante — como é chamado Fidel Castro, em Cuba — nos disse: Aqui Gabo pode escrever tranqüilamente seus livros. A casa é dele enquanto for vivo. Depois, certamente, será um museu.

        Com July, nessa viagem a Cuba, fui a um deslumbrante desfile de modas, onde ela comprou vários modelos para levar a Nova York.

        Entusiasta dos produtos de beleza, os famosos cosméticos cubanos, July comprou grande quantidade deles, para ela e para encomendas que levava.

        Encontramo-nos ainda várias vezes com os Belafonte em Nova York e em Paris. Ao Brasil ele não voltou mais, mas, vez ou outra, nos manda notícias.

       

      JUBIABÁ

         Jubiabá, romance de Jorge escrito em 1935, conseguiu a proeza de atrair para a Bahia três personalidades excepcionais:

        Carybé leu Jubiabá, entusiasmou-se com o livro, com a descrição da Bahia e da maneira de viver do povo baiano. Disse lá com seus botões: Quero ver com meus próprios olhos se essa terra existe. Vou dar uma espiada. Veio e ficou.

        Belafonte também veio à Bahia, como já se sabe, movido pelo entusiasmo, após a leitura de Jubiabá.

       

      PIERRE VERGER

        A terceira personalidade a vir à Bahia pelas mãos de Jubiabá merece um capítulo à parte.

        Pierre Verger ainda não era doutor em ciências do Centre de Recherches Scientifiques, na França, nem íntimo dos países da África, nem profundo conhecedor dos mistérios das religiões africanas, quando veio pela primeira vez à Bahia. Era apenas um viajante incansável a correr mundos, os mais impossíveis e distantes, na ânsia de tudo ver, tudo conhecer, tudo registrar com sua câmera fotográfica.

        O título do livro que chamou a atenção de Verger era: Bahia de tous les saints, tradução francesa do romance Jubiabá, editado na França em 1938. Teve a curiosidade de ler o livro e depois o desejo de ver de perto essa Bahia distante e desconhecida, descobrir com seus próprios olhos o belo e o mágico que o autor do livro tão bem descrevera.

        Ancorou em Salvador. Na Bahia encontrou manancial infindável para sua curiosidade, cidade à espera de suas descobertas, de suas fotografias: Aqui vou viver, disse Verger. A Bahia ficou sendo seu porto de partida e de chegada, a sua casa.

        Tornou-se íntimo dos terreiros de candomblé, amigo de mães e pais-de-santo.

        No terreiro do Axé Opô Afonjá, foi proclamado, por Mãe Senhora, Oju-Obá, os olhos de Xangô, o que tudo enxerga e tudo sabe. Realmente, Verger tudo via, tudo sabia. Com Verger tivemos o melhor relacionamento. Raramente vinha à nossa casa, nos encontrávamos em festas de candomblé. Eu nunca tivera ocasião de fotografá-lo e precisava de uma foto sua para um livro que eu preparava, onde apareceria Jorge, ao longo dos anos, ao lado de amigos, em vários países do mundo.

        O livro, que veio a receber o título de Reportagem incompleta, seria editado por Aríete Soares, nossa amiga, pessoa da maior competência, que dirigia uma editora, fundada por ela mesma, a Corrupio. O livro será incompleto se não houver uma foto de Jorge com Pierre Verger, me disse Aríete e ela tinha razão. A ausência de Verger no livro seria uma falha imperdoável. Na primeira oportunidade eu faria a foto.

        Na primeira oportunidade, ao receber Verger em nossa casa, tratei logo de apanhar a minha Leica que estava com um filme apenas começado e anunciei, pilheriando com o Mestre: Com todo o respeito, professor, permite-me fotografá-lo?

        Para minha surpresa, Verger me respondeu:

        —  Senhora professora, eu não permito que me fotografe.

        —  E por quê?

        —  Porque não gosto de ser fotografado. Basta esse motivo?

        —  Você está brincando, Verger? Me chama de professora e se nega a posar para mim...

        Verger ria mas falava sério, o que me encabulava.

        —  Todas as vezes que você me chamar de professor eu vou chamá-la de professora, certo? E não gosto de ser fotografado porque não gosto do meu perfil, tenho um perfil de pássaro — ficou de lado —, está vendo? Meu nariz parece um bico de passarinho... Não tire as fotos — repetiu.

        Jorge e ele saíram para o jardim, foram sentar-se num banquinho debaixo da mangueira. Enquanto os dois conversavam, coloquei a teleobjetiva na máquina e resolvi dar uma de paparazzi, fotografá-los sem ser vista, à distância. Bati umas vinte chapas, feliz da vida.

        Ao revelar o filme, no entanto, tive a maior decepção: as quinze primeiras fotos do filme, tiradas antes, estavam ótimas, as de Verger, completamente veladas.

        Em conversa com Mãe Senhora, contei-lhe o sucedido. Ela riu: Menina, e tu foi te meter com Verger? Tu não sabe que ninguém pode contrariar Verger? Verger é bruxo!

        Acabei achando que Mãe Senhora tinha razão, alguns anos depois. Mãe Menininha completava oitenta anos, e o historiador Cid Teixeira programou uma gravação de depoimentos onde deviam participar, contando de seus conhecimentos e experiências com a mãe-de-santo, Pierre Verger, Carybé, Jorge Amado, entre outros.

        A gravação deveria ser feita naquela noite, no próprio terreiro do Gantois. Nesse dia, nos telefonou um amigo de São Paulo, que acabara de chegar, Thomas Farkas, conhecido homem de cinema. Ao saber da gravação com Menininha, Farkas pediu a Jorge que conseguisse permissão para ir conosco, tinha grande interesse em assistir.

        Ao chegarmos ao terreiro, a parafernália de Cid Teixeira já estava instalada: aparelhos e máquinas as mais sofisticadas. Eu levara comigo um gravadorzinho, seria interessante registrar tudo. O aparelho que Farkas levara era maior que o meu, um gravador profissional.

        Carmem e Cleusa, filhas de sangue de Mãe Menininha, nos receberam e nos acomodaram nas cadeiras em frente à mãe-de-santo.

        Fez-se silêncio e Cid Teixeira pediu que Verger fosse o primeiro a falar. De microfone em punho, Verger disse algumas palavras para, em seguida, pedir aos operadores que parassem, ele reiniciaria. Voltou a falar, mas, de repente, parou: Não, não é isso que eu queria dizer... por favor apaguem o que já foi gravado. Disse e só recomeçou a falar depois de estar convencido de que seu pedido fora atendido. Ao pedir, pela terceira vez, que apagassem o que dissera, explicou sua emoção: desejava ser o último a intervir. Nem preciso dizer que não desliguei o meu gravadorzinho. Atrás de mim, Farkas também não desligou o seu.

        Ao voltarmos para casa, já de madrugada, depois do depoimento de Mãe Menininha e de Verger, uma beleza, eu disse a Jorge: Ouça só, gravei todo o começo, Verger emocionado... Ligado o aparelho, cadê a voz de Verger? O que se ouviu foi uma estática ruidosa que só parou quando o primeiro depoente, Carybé, começou a falar. Jorge riu: Também com um gravadorzinho furreca desses, você não podia esperar outra coisa... Pela manhã, logo cedo, o primeiro telefonema foi de Farkas, que me pedia: Por favor, Zélia, estou precisando que você me empreste a sua gravação para completar a minha... parece que deu um enguiço no meu gravador e toda a fala de Verger, do início, se apagou, só deu estática...

        Lembrei do que me dissera a saudosa Mãe Senhora: Não se meta com Verger, menina, Verger é bruxo.

        Verger gostou muito quando lhe contei das falcatruas que tentara contra ele e da palavra sábia de Mãe Senhora. Isso mesmo. Eu sou um bruxo, professora doutora.

        Professora doutora foi o título que Verger passou a me dar para sempre. Caçoada ou carinho? Preferi acreditar no carinho desde o dia em que, no lançamento de seu livro Oxóssi, na livraria da Editora Corrupio, Verger me chamou: Professora doutora, venha tirar um retrato meu com Jorge e Carybé. Só não tire meu perfil. Verger vestia um belo bubu africano e essa fotografia dele entre Jorge e Carybé encontra-se no Reportagem incompleta, editado por Aríete Soares, livro em três idiomas sendo que a tradução para o francês foi feita por Pierre Verger.

        Editora principal e amiga dedicada de Verger, Aríete Soares conseguiu restaurar velhos e antigos negativos que ele deixara em Paris para publicá-los num livro: Retratos da Bahia. Publicou ainda Orixás, lendas africanas dos orixás e sua obra-prima, o admirável livro sobre o tráfico de escravos, Fluxo e refluxo.

       

      UMA NOTA APENAS

        Não quero, nem posso deixar de falar em Cleusa, filha de sangue de Mãe Menininha do Gantois. Amiga querida, herdeira da ternura e da sabedoria da mãe, Cleusa ocupou o lugar da mãe-de-santo no candomblé do Gantois. Cultivando com delicadeza e bondade seus amigos e devotos, honrando o nome da Casa, Mãe Cleusa partiu, tem poucos meses, nos deixando, seus amigos, muito tristes e um pouco órfãos. O terreiro está de luto por um ano e, segundo o ritual, estará fechado durante esse tempo. Só então, no jogo de búzios, os orixás elegerão a nova mãe-de-santo.

       

      CARLOS BASTOS

        Além, pouco além de Itapuã, estende-se a praia de mar bravio da Pedra do Sal. Nela, Carlos Bastos levantou sua casa, casa senhorial, requintes compatíveis com seu dono, artista de tela e cavalete, mestre na argila e no cinzel.

        Logo à entrada, na casa da Pedra do Sal, junto à porta, encontra-se sobre uma coluna o busto de Molière com sua vasta cabeleira, trabalho do dono da casa.

        Conta-se que dois franceses foram visitar Carlos e, ao reconhecerem o célebre conterrâneo, exclamaram entusiasmados: O lá-lá! Molière! O empregado da casa que lhes abrira a porta, sabido como ele só, os corrigiu em seguida: Não é mulher, não. Seu Carlos disse que é homem mesmo.

        O pintor Carlos Bastos se diferencia de todos os pintores da Bahia: em seus quadros ele consegue, brincando com as tintas, retratar, à perfeição, pessoas de sua intimidade e personagens da Bahia.

        Uma das curiosidades que Jorge quis me mostrar na Bahia foi um painel de Carlos Bastos, A procissão, exposto no hall do Edifício Martins Catharino, na rua da Ajuda. Nesse trabalho, o pintor incorpora aos santos os rostos de artistas, em geral seus amigos, e de pessoas conhecidas na cidade, como, por exemplo, todos os componentes da família José Martins Catharino. Lá estavam, que me lembre, nossa amiga, a bela atriz Nilda Spencer, os pintores Genaro de Carvalho, Carybé, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Mário Cravo, Jenner Augusto, cada qual com sua respectiva auréola de santo, uns segurando andores, outros sendo carregados sobre andores. Jorge Amado teve a regalia de aparecer duplamente: de bispo, puxando o cortejo, e de São Jorge, ao lado de Cosme e Damião. Por esse painel Carlos Bastos recebeu o título de Paleta Satânica, dado por um colaborador de um jornal católico da época.

        Anos depois, em 1972, fomos ao Parque da Cidade, no Rio de Janeiro, ver o trabalho que Carlos Bastos realizava na capelinha abandonada, uma dependência do Museu Histórico, capela que nunca fora consagrada para atos religiosos. Funcionara sempre como um simples depósito.

        Obtendo permissão para pintá-la, Carlos Bastos não perdeu tempo. Aproveitou todo o espaço de duas paredes para retratar amigos, apresentar como santos alguns, outros sem o aparato da santidade, queria que lá estivessem pessoas em evidência e representativas da época: Di Cavalcanti, Vinícius de Moraes, Djanira, Pele, Caetano Veloso, Gal Costa, Marta Rocha, Jorge Amado, Orlando Villas-Boas, Genaro de Carvalho, Zanini, Adolfo Bloch... até o presidente Medici estava lá. Marina Montini, de Salomé, segurava a cabeça de São João Batista. O rosto de São João Batista era, sem tirar nem pôr, o de Altamir Galimberti, o grande amigo de Carlos, companheiro de toda a vida. Djanira era Santa Isabel, Caetano Veloso era São João com seu carneirinho, Pele era um anjo. Dessa vez, Di Cavalcanti, Jorge Amado e Vinicius de Moraes não foram santificados. Gal Costa, montada a cavalo, seria Joana d'Arc? Havia outros personagens, mas me lembro bem desses.

        Os murais, que ainda precisavam de retoques, ficaram inacabados. Ao chegar para trabalhar certa manhã, como habitualmente fazia, Carlos Bastos encontrou a porta da capela trancada e lacrada. Cometera a heresia de misturar aos santos, pecadores comunistas, os mais perigosos: Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti, Caetano Veloso, Djanira... Ao mesmo tempo, Carlos Bastos colocara entre eles o presidente Medici, tido e havido como inimigo dos comunistas, presidente das perseguições, das prisões e das torturas. Carlos não era político, de política e de seus partidos ele nada entendia, sua única intenção fora a de retratar os amigos de sua admiração e de seu bem-querer, sem restrições, e pessoas em evidência na época, nada mais que isso.

        A capelinha do Parque da Cidade, no Rio de Janeiro, permaneceu lacrada de 1972 a 1997.

       

      ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES

        A população de Salvador aumentava, a cidade sofria o problema do menino que cresce e a roupa fica apertada; tornara-se quase impossível o trânsito pelas ruas do centro, cada vez mais sufocado. Fazia-se necessário abrir as comportas, estender a cidade.

        Homem dinâmico, voz de comando, apaixonado por sua terra, Antônio Carlos Magalhães, governador do Estado, arregaçou as mangas e foi em frente: abriria vales e montes, na direção do aeroporto, construiria avenidas, pontes e elevados nos quilômetros e quilômetros de terras abandonadas, mato desprezado, expandiria a cidade do Salvador.

        Planejou e fez: construiu o Centro Administrativo, para onde foram transferidas as secretarias de Estado que entulhavam o centro da cidade. Plantados em grande área de jardins gramados, ergueram-se prédios da mais alta qualidade, onde foram instaladas a administração do governo estadual e as repartições públicas. Antônio Carlos não fez por menos, mandou colocar uma obra de arte em cada edifício. Convocados para realizá-las—sem ser levado em conta o seu credo político, amigo ou inimigo do governador —, os grandes artistas da Bahia lá deixaram, perpetuadas, suas pinturas e suas esculturas. Entre outros lá estão: Carybé, Fernando Coelho, Calasans Neto, Floriano Teixeira, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Juarez Paraíso, Carlos Bastos, Tati Moreno, Mário Cravo e outros. Carlos Bastos faria o mural do plenário da Assembléia Legislativa.

       

      OBRA DE POLÍTICO CORAJOSO

        Ainda uma vez peço licença, quero testemunhar, não poderia deixar de falar sobre mais uma realização de Antônio Carlos Magalhães em sua gestão anterior, como prefeito: a instalação do esgoto na cidade do Salvador. Obra de necessidade premente, obra gigantesca e antipática, obra de político corajoso que não tem medo de incomodar o povo, aquela gente que gosta de ver tudo pronto e bonitinho, que exige benefícios mas não tolera sacrificar-se para obter o resultado. Pois o pioneiro das obras do esgoto da cidade foi ACM. Centenas de quilômetros de ruas foram abertas, montes de terra entulharam as calçadas, enormes manilhas de esgoto atravancaram o trânsito durante meses, até o trabalho estar terminado. Fazemos parte dos sacrificados e recompensados depois, já que nossa casa da rua Alagoinhas, até a instalação do esgoto era servida pelo detestável sistema de fossa. Ouvi de alguém, entusiasmado com a obra do prefeito: ... se ele não tomasse essa providência, Salvador, logo, logo, ia afundar na merda...

     

      O MURAL

        Carlos Bastos nos chamou à sua casa, pediu que levássemos retratos. Ele recebera uma encomenda do Estado: devia realizar um trabalho, pintaria um painel cobrindo toda uma parede do plenário da nova Assembléia Legislativa, no Centro Administrativo de Salvador.

        O croqui do trabalho estava pronto: os desenhos da procissão do Bom Jesus dos Navegantes, que seria pintada no mural, dava bem noção do trabalho gigantesco que o artista tinha pela frente.

        A idéia de Carlos era a de colocar na barca principal da procissão, a galeota, a que conduz a lo. de janeiro o Bom Jesus e a Virgem, sua mãe, pelo golfo da Bahia em festa, personagens e personalidades as mais importantes da terra. Atrás, no cortejo, nas barcaças e nos saveiros, nas pequenas e nas grandes embarcações enfeitadas de bandeirolas coloridas e bandeirinhas do Brasil, retrataria ainda outras figuras conhecidas.

        Nesse mural pintado sobre acrílico, em 1973, Carlos Bastos retratou 170 pessoas. Tivemos a honra e o privilégio de aparecer na primeira fila da galeota e a tristeza de desaparecer num incêndio em 1978, nas chamas que destruíram completamente o mural pintado sobre material inflamável.

        Em 1994, ainda por encomenda de ACM, Carlos Bastos pintou novamente, para o mesmo local do mural incendiado, outra procissão de Bom Jesus dos Navegantes. Figuras representativas da Bahia novamente ocuparam os barcos.

       

      CASA NA PEDRA DO SAL

        Ao lado da casa de Carlos Bastos havia um terreno à venda. Me entusiasmei, poderíamos ter uma pequena casa na praia, um bom refúgio para trabalhar. O sossego para escrever tornava-se cada vez mais difícil. Os últimos livros de Jorge haviam sido escritos aqui e acolá, em casa de um e de outro e até fora do Brasil. As solicitações eram cada vez maiores e Jorge, de coração mole, como bem dizia o velho João Amado, não conseguia negar nada a ninguém, muitas vezes sacrificando seu trabalho para atender a pedidos,

        Nos recolhemos certa vez na chácara de Dmeval Chaves, na Boca do Rio, mas o esconderijo logo foi descoberto e adeus viola, tivemos que levantar acampamento.

        Fomos para a casa de campo de Nair e Genaro de Carvalho, na Estrada Velha do Aeroporto, Isso foi em 1969, quando Jorge escreveu Tenda dos Milagres,

        Lugar tranqüilo, uma beleza. Na chácara do famoso tapeceiro, Jorge poderia trabalhar sem ter que abandonar a máquina para resolver problemas alheios, pedidos de pessoas que o procuravam, às vezes até desconhecidas.

        Por falar nos problemas que sempre aparecem para serem resolvidos por Jorge, até de desconhecidos, peço licença para contar uma historinha que ilustra bem:

        Em certa noite de tempestade, ouvimos tocar a campainha da porta. Quem poderia ser àquelas horas, com aquele temporal?

        Tratava-se de uma senhora de aspecto modesto, acompanhada de uma jovem em adiantado estado de gravidez, mãe e filha, molhadas como dois pintos: Seu Jorge Amado, foi dizendo a mãe, só o senhor vai poder resolver o nosso problema, me desculpe ter vindo aqui a estas horas mas não tinha outro jeito. Só o senhor mesmo, repetiu, vai poder dar socorro pra gente. Chorava e falava ao mesmo tempo, fungando e enxugando as lágrimas e o nariz nas costas das mãos: Minha filha, como o senhor vê, está grávida e tem que se casar amanhã. Tudo está pronto, os móveis do quarto, as panelas, até as alianças... A moça abriu uma caixinha, mostrou o par de alianças, a mãe não estava mentindo. A gente ia até fazer uma festinha, festa de gente pobre, o senhor compreende, eu só tenho ela...

        Para encurtar a conversa, o noivo dera o fora, sumira deixando apenas um bilhete lacônico, não ia mais se casar.

        —  E daí?—quis saber Jorge. — No que é que posso ajudar?

        — Eu quero que o senhor me diga o que devemos fazer — respondeu ela.

        Jorge refletiu e em seguida me pediu que telefonasse a Tibúrcio Barreiros, o nosso amigo advogado, explicasse-lhe o problema. Tibúrcio até parecia já conhecer o caso, pois estava com a solução na ponta da língua:

        —  Não há outro remédio senão adiar o casamento—aconselhou o experiente advogado —, a noiva deve dar parte de doente. É só a mãe ir ao cartório amanhã, logo cedo, e dizer que a filha não pode se locomover. Só isso.

        Ao saber que devia adiar o casamento, a noiva, que até então não pronunciara uma única palavra, pronunciou, num quase gemido doloroso: Adiar? Só então chorou, chorou aos soluços...

        Tibúrcio entendia da coisa. O noivo fora ameaçado por uma ex-amásia com quem já tinha dois filhos: Vou ao cartório com as crianças e acabo com tudo... gritara ela.

        O jeito era sumir do mapa e foi o que ele fez. Reapareceu quinze dias depois, quando tudo voltara à calma e, então, o casamento realizou-se na surdina e sem festa.

        Se aparece gente em casa com pedidos, ou por pura curiosidade, quando trabalhamos, há, no entanto, pessoas que adoramos receber, mesmo tendo que interromper nosso trabalho. Foi o caso da inesperada visita de Clarice Lispector. Ela estava em Salvador e desejava entrevistar Jorge para uma revista. Estávamos na chácara de Genaro e Jorge pediu a Aurélio que a levasse até lá.

        A tarde que Clarice Lispector passou conosco foi ótima, com ela batemos grandes papos, Jorge respondeu com satisfação ao que ela queria saber para sua reportagem. Foi a última vez que a vimos.

       

      RUA DO LAGARTO AZUL

        O terreno ao lado da casa de Carlos Bastos me entusiasmou. Jorge ficou reticente mas se rendeu diante dos argumentos de Carlos e de Altamir. Naquele ermo, Jorge ia ter paz e inspiração na rua que nem nome tinha, rua deserta, apenas Carlos e Altamir como vizinhos. Ficaríamos à esquerda deles, o terreno à direita pertencia a Pelé, que, certamente, não tinha intenção de construir. A nossa frente todo um oceano encheria nossos olhos, subiríamos nas pedreiras que, ao meio-dia, com o sol escaldante, ficavam brancas de sal.

        Altamir encarregou-se de providenciar a papelada para a compra do terreno. Jorge havia estado com Juca Chaves e se entusiasmara ao saber que o Menestrel, nosso amigo, planejava com Yarinha comprar um terreno em praia da Bahia e nela levantar um iglu, espécie de tenda dos esquimós do pólo Norte, novidade pitoresca, anunciada em jornais e revistas. Jorge achou a idéia divertida, mas um iglu não iria servir para nós, assim como não iria servir para Yara e Juca Chaves que acabaram construindo uma bela residência em Itapuã, perto da Pedra do Sal, em frente ao mar.

        Optamos por uma casa mais modesta que a do Juca. A Sun House anunciava casas pré-fabricadas, patente da Finlândia: A casa que é sucesso na cidade, na praia, no campo e na montanha. Projete você mesmo sua Sun House: paredes de poliuretano rígido injetado entre laminados tipo Fórmica/Eucaplac. Esquadrias: madeira de lei, com aço inox e alumínio e laminados, pisos de lajotão. Tudo isso e muito mais eu li, decorei e repeti para entusiasmar Jorge que, como eu, pouco ou nada entende de poliuretano rígido injetado. O mais importante do anúncio eram os noventa dias apenas para a construção ficar pronta para habitar. E, já que havíamos decidido construir a tal casa de módulos, procuramos o arquiteto André Sá. Com ele bolamos a disposição dos cômodos e ele armou e construiu a casa a nosso gosto.

        Tati Moreno, nosso amigo, escultor dos orixás, mestre no manejo de peças de sucata, de ferros retorcidos, de placas laminadas, com que levanta e dá vida a Exus, Oxóssis, Yemanjás e Omolus, nos presenteou com uma bela escultura de material refratário ao salitre e a colocou em nosso jardim da Pedra do Sal.

        A casa estava pronta, uma gostosura, porém ainda havia um senão: Jorge não se conformava em morar numa casa de rua sem nome e sem número de porta. Depois de muita confabulação com Carlos Bastos, acabaram por encontrar um nome que agradasse a todos nós e rua do Lagarto Azul ficou sendo o nome de nossa rua. E o número da porta? Carlos adiantou-se: Eu adoro o número 500. Pois eu gosto do número 1.000, disse Jorge. Até hoje, as casas vizinhas ostentam em placas nas portas: 500 e 1.000, e o correio chega direitinho, ninguém se atrapalha.

       

      A BRISA DO MAR

        A brisa do mar é inimiga do trabalho. Jamais Jorge havia escrito um livro em casa de praia. Em nossas férias, nos tempos de Maria Farinha, em Pernambuco, bem que ele tentara escrever, mas a brisa do mar o convidava à preguiça, a rede o atraía mais do que a máquina de escrever.

        Ao chegarmos à Pedra do Sal, Jorge levava na cabeça, amadurecido, um romance. A força da criação, desta vez, foi mais forte do que todas as brisas de todos os mares, a vontade de ir para a máquina suplantou a preguiça. Fez como costuma fazer quando começa a escrever um livro: impôs-se uma disciplina de trabalho e, diariamente, inspirado ou não, sentava-se pela manhã, muito cedo, o papel branco a ser preenchido em sua frente, e o santo baixava, como costumo dizer.

        Durante o ano que passamos na Pedra do Sal, à beira-mar, Jorge Amado escreveu: Farda, fardão, camisola de dormir.

        Eu jamais havia escrito coisa alguma, jamais pensara escrever um dia e, no entanto, foi na casa da Pedra do Sal que escrevi meu primeiro livro: Anarquistas, graças a Deus.

        Sempre gostei de contar histórias, meus ouvintes eram as crianças da casa e da vizinhança. Desde muito pequenos, João e Paloma viviam atrás de mim: Conta, conta, conta... e eu contava coisas vividas na minha infância, infância de uma criança viva, olho crítico sempre atento a tudo, menina que nada perdia, nem esquecia.

        Foi na ocasião da estada na Pedra do Sal que Paloma me perguntou um dia:

        —  Por que, mãe, você não escreve as histórias da tua infância?

        Até me assustei:

        — Porque não sei escrever, minha filha—respondi. — Está brincando comigo, menina? O escritor da casa é teu pai e já estamos bem servidos.

        —  Não estou brincando, não, mãe. Você acha que não sabe escrever porque nunca tentou... Você conta histórias tão bem... Faça uma experiência, escreva como se estivesse falando, bem natural... por exemplo, escreva a história do disco quebrado, o da Serenata de Schubert, tão divertida.

        A semente estava atirada, a conversa com Paloma não me saía da cabeça, bulira comigo e, num belo dia, estando eu sem ter o que fazer, enquanto aguardava que Jorge me desse páginas já revisadas de seu trabalho para que eu passasse a limpo, resolvi escrever a historinha que Paloma me pedira. Fiz um cálculo: em três ou quatro laudas liquido o assunto.

        Comecei a escrever minha história e, no entusiasmo, as folhas escritas aumentavam: Não é que essa danada é muito mais longa do que eu imaginava?, disse eu com meus botões e continuei escrevendo. Ao chegar às quinze páginas vi que não havia ainda contado tudo.

        A hora do recreio terminara, Jorge me chamou, pediu-me que consultasse a enciclopédia, precisava de um dado histórico. Minha brincadeira ficou de lado, continuaria depois. Continuaria?

        Enquanto esperávamos que o almoço fosse servido, criei coragem e, morta de encabulamento, estendi as quinze páginas a Jorge: Leia. Entreguei as folhas e saí da sala, conjecturando: e se ele rir? Eu também riria. E se ele disser: Que besteira é essa? Eu calaria. E se ele me devolver as folhas sem dizer nada? Eu choraria. Tudo isso poderia acontecer, Jorge não ia, nunca, fazer um elogio só para me agradar, não é de seu feitio. Ele jamais iria me expor ao ridículo. Em se tratando da mulher e dos filhos, ele possui um sentido crítico severo, não dá colher de chá.

        Jorge me chamou: Cadê você? Senta aqui. Sentei a seu lado, esperando a sentença. Gostei do que você escreveu, foi dizendo, gostei da simplicidade da escrita. Coisa difícil de se conseguir. Afora, o que está aqui é apenas uma anedota, história que já conheço de ouvir você contar. Essa anedota, assim, isolada, é muito pouco, não tem valor. Você, que foi menina pobre, mas teve uma infância rica de acontecimentos, criada num meio de imigrantes estrangeiros, de família integrante da Colônia Cecília, de anarquistas sonhadores, que assistiu ao crescimento de São Paulo, poderia escrever um livro de tudo o que viveu e recorda. Quero te dar apenas um conselho: escreva com a mesma simplicidade com que escreveu estas quinze páginas, será um livro escrito com emoção, de dentro para fora, com o coração, ao contrário dos historiadores que pesquisam e escrevem de fora para dentro. Seu livro será único. Agora, uma coisa importante: não tente fazer literatura, nem procure palavras difíceis, você não é literata. Talvez temendo me magoar ao dizer: Você não é literata, acrescentou ele: Eu também não sou literato.

       

        Deus me livre! Sorriu: Toque o bonde! Me mostre quando o livro estiver pronto.

        

       ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS

        Nunca pensara poder sentir tantas e tais emoções, àquela altura de minha vida, aos sessenta e três anos de idade, como as que senti ao escrever Anarquistas, graças a Deus.

        Sem ter uma única anotação, apenas a memória trabalhando, voltei ao passado, voltei a ser criança no convívio de meus pais e de meus irmãos, recuperei amigos perdidos na distância do tempo e, sobretudo, descobri minha mãe. Dona Angelina era uma pessoa formidável e eu não lhe dera o devido valor. Seu Ernesto, meu pai, era bem como o julgara: inteligente, humano, homem bom. A seu Ernesto eu sempre fizera justiça.

        Nas minhas lembranças cheguei mesmo a sentir o perfume do talco de heliotrópio que mamãe usava na gente. Ai que saudades de Maria Negra, chorei de saudades de Maria Negra, ri das graças dela. Lembrei da beleza de Wanda, minha irmã, mais bonita do que Zezé Leone, a miss Brasil. E Vera? Minha irmã tão despachada, prestativa, tão boa... E Tito? Espírito crítico, generosidade camuflada... Remo, irmão mais velho, sabia conquistar as meninas do bairro e eu o admirava. Chorei novamente ao ver Flox, meu cachorro, meu companheiro, atropelado e morto no meio da rua...

        Jorge só viu o livro pronto. Tive como leitores e conselheiros, enquanto escrevia, Paloma e João Jorge, Luiza e James Amado, que deram palpites e me encorajaram a prosseguir.

       

      LINA WERTMÜLLER

        Ao pensarmos que poderíamos escrever tranqüilamente nossos livros na Pedra do Sal, nos enganamos. Durante esse ano que passamos lá tivemos que interromper o trabalho, várias vezes. Uma delas foi quando chegou à Bahia toda uma equipe de cineastas italianos. Vinham conversar com Jorge e fazer locações para o filme Tieta do Agreste, estrelado por Sofia Loren e dirigido por Lina Wertmüller, diretora e roteirista dos filmes: Mimi o metalúrgico, Pasqualino Sete Belezas, Dois na cama numa noite de chuva, entre outros. Nessa embaixada cinematográfica estavam o produtor Alfredo Bini, velho amigo nosso, e Renzo Rosselini, jovem simpático, filho de Roberto Rosselini.

       

      SOFIA LOREN

        Numa de nossas estadas em Paris, Jorge foi procurado por Cario Ponti e cedeu-lhe uma opção de Tieta do Agreste para o cinema. Para Cario Ponti ele vendera, havia anos, os direitos de Mar morto, filme nunca realizado.

        Carlo Ponti e Sofia Loren nos receberam em seu apartamento de Paris: Sofia está fascinada pelo personagem de Tieta, deseja muito conhecê-lo pessoalmente, conversar. Quer saber se essa Tieta existiu mesmo ou se é apenas fruto de sua imaginação, dissera Ponti ao nos convidar à sua casa.

        Fui a esse encontro munida de câmera fotográfica, não ia perder a oportunidade.

        No imenso apartamento, pouco iluminado, havia outras pessoas além do casal. Foi nessa noite que conhecemos Lina Wertmüller.

        Ao sermos apresentados a Sofia e a Lina, Jorge disse: Podem falar com Zélia em italiano, ela é filha de italianos. Com tantos méritos, disse Lina, descubro mais este no Amado: é casado com uma italiana... Todos riram, menos eu, pois nunca abri mão de ser brasileira. Mas esse não era momento para discussão; aos italianos basta o sangue italiano para ter a nacionalidade.

        Entre os convidados da noite havia um cidadão muito elegante e muito paparicado, era só: Toscan pra cá, Toscan pra lá... Esse deve ser muito importante, pensei. Realmente era: tratava-se de Daniel Toscan du Plantier, nada mais, nada menos que o presidente da Académie des Arts et Techniques du Cinema, nada mais, nada menos do que o mandachuva do mais importante prêmio do cinema francês, o César.

        Sofia repetiu a Jorge o que Carlo Ponti já lhe dissera: queria saber se o personagem Tieta fora copiado da vida real ou era ficção. Com todo o seu charme Jorge lhe disse o que ela gostou de ouvir: Depois que você a interpretar ela passará a ser personagem da vida real. Rindo muito, ela chamou o marido: Senti questa, Cario. Contou que desde a leitura do romance se pusera na pele da personagem e decidira interpretá-la. Ela já quisera, havia anos, fazer o papel de Lívia, de Mar morto. Ponti comprou os direitos do romance, a montagem da produção já andava adiantada quando Sofia engravidou do primeiro filho. Foram obrigados a suspender tudo, adiar a filmagem. Sofia realizava o sonho de sua vida: ter um filho e para esse filho dava prioridade. Depois tivera outro filho, e o sonho de ser Lívia terminou. Entusiasmara-se também por Gabriela, mas quando Ponti correu atrás dos direitos eles já haviam sido vendidos à Metro.

        Enquanto Jorge conversava com Sofia e Lina, eu só ia tirando fotografias. Num dado momento, Toscan se aproximou de mim e disse: Essas fotografias vão lhe render milhões... Não são para serem vendidas, expliquei-lhe, são para um livro que estou fazendo. Não sei se ele acreditou, muito menos acreditaria se eu lhe dissesse que jamais recebera um tostão furado das fotos que tenho, publicadas em matérias sobre Jorge, em revistas e jornais, em capas e contracapas de livros, no mundo inteiro. Quando muito, por muito favor, me dão os créditos, mas em geral ao lado da foto aparece simplesmente a palavra: arquivo. As daquela noite, com Sofia Loren e Lina Wertmüller, estão no Reportagem incompleta.

        Carlo Ponti nos convidou a voltar no dia seguinte, Sofia desejava nos mostrar os filhos, tomaríamos um drinque e sairíamos para jantar num restaurante. Cario Ponti até sugeriu que a própria mulher nos preparasse uma bela macarronada, especialidade dela, mas ficou mesmo decidido que iríamos a um restaurante.

        Nessa ocasião, nosso amigo e editor, Alfredo Machado, encontrava-se na Europa e nos telefonou de Londres. Jorge contou-lhe que jantaríamos naquela noite com Sofia Loren. Alfredo se entusiasmou: Estou nessa boca, disse. Pois tome um avião e venha, aconselhou Jorge

        Foi assim que, naquele jantar, com Sofia Loren, num charmoso restaurante de Paris, Jorge levou um convidado: seu amigo, Alfredo Machado, responsável pela publicação de Tieta do Agreste.

        Como toda história deve ter começo, meio e fim, não sou eu quem vai deixar de contar o fim desta. Seu desfecho foi bastante complicado, mas vou tentar resumi-lo a fim de explicar por que o filme acabou não sendo feito pelos italianos. Peço, no entanto, licença para contar tudo depois que Lina Wertmüller for embora da Bahia.

        Lina e sua equipe chegavam agora à Pedra do Sal, prontos para com Jorge irem fazer locações em Mangue Seco. Fretaram um pequeno avião, visitariam todos os locais das filmagens. A diretora contava certo com a companhia do escritor nessa caravana, mas ele se negou, à última hora, a subir no aviãozinho. Foi Renato Ferraz, nosso amigo, que tudo conhece e sabe da região, quem lhe serviu de cicerone.

        Em Salvador, Lina Wertmüller entrevistou vários artistas, contratou uma porção de gente. As filmagens deveriam começar o mais cedo possível. Jorge negou-se a voar com a diretora, mas prontificou-se a acompanhá-la a um candomblé, mostrar-lhe a cidade, apresentá-la a uns e a outros.

        Com a presença dos cineastas italianos na Bahia, nossas máquinas ficaram fechadas, não pudemos escrever uma linha sequer.

        Pouco depois da partida de Lina, fomos apanhados de surpresa com a notícia dada pela televisão, em edição extraordinária: ao desembarcar em Roma, Sofia Loren foi presa. Havia contra ela, na Itália, um processo por sonegação de imposto, ou coisa semelhante. Sofia Loren deveria filmar umas tomadas internas, de Tieta na Cinecitá, em Roma, antes de viajarem para a Bahia, e, mesmo ameaçada de ir para a cadeia caso voltasse à Itália, ela resolveu arriscar. Ninguém poderia acreditar que alguém ousasse prender a tão famosa atriz. Enganou-se quem assim pensou, inclusive ela.

        Lina Wertmüller voltara do Brasil com tudo encaminhado. Mas o inesperado acontecera: La Loren è in galera, realidade que acabava com o entusiasmo da realização do filme. Segundo dizia a imprensa, na ocasião a falência do Banco Ambrosiano, que patrocinava a produção da parte italiana do filme, fora decisiva para que o projeto não fosse adiante, gorasse, mesmo depois da libertação da atriz.

        O destino de Tieta era o de ser interpretada por uma brasileira, e que brasileira! Sônia Braga. Do filme de Caca Diegues, Tieta, realizado na Bahia, recentemente, feito com a maior competência e carinho, com excelentes atores, quero destacar, com entusiasmo, os trabalhos de Marília Pera e de Chico Anísio. E por que não contar que foi o primeiro trabalho de minha neta Cecília, segunda filha de Paloma, como continuísta, tendo inclusive nos dado a emoção de bater a claquete para a cena de abertura do filme, onde seu avô Jorge, sentado num banco de praça, lê uma página de seu livro.

       

      ADEUS, PEDRA DO SAL               

        Com as idas e vindas da equipe italiana à Pedra do Sal, nosso esconderijo foi descoberto e começaram a aparecer visitas, começaram os pedidos. Como se isso não bastasse, uma empresa de turismo colocou no seu roteiro a casa de praia do escritor. Diariamente, à hora certa, parava em nossa porta um grande ônibus cheio de turistas, de nacionalidades as mais variadas. Eunice, nossa empregada, ficava de tocaia, aguardando a chegada do by day, para dar o alarme: Lá vem eles... Com o aviso de Eunice, nos trancávamos dentro das portas, ouvindo o rumor lá fora.

        A guia da excursão fazia todo mundo saltar do ônibus e, de microfone em punho, sapecava seu discursinho decorado: Esta é a residência do escritor Jorge Amado... por aí ia, contando coisas sobre o escritor, inventando gracinhas para fazer os clientes rirem. Eles rodeavam a casa e chamavam: Jorge Amado! Jorge Amado!, saia um pouquinho... Turistas argentinos aos gritos de: Que salga Jorge Amado! Certa vez invadiram o jardim. Jorge me disse um dia: Não vejo a hora de terminar esse livro e sair daqui, voltar para nossa casa. Tenho às vezes a sensação de ser um foragido, um bandido me escondendo da polícia,: dia e noite...

        Agüentamos até o fim. Só voltamos para a casa do Rio Vermelho de livros prontos.

       

      CONCURSO DE BELEZA

        Hoje em dia os concursos de beleza perderam a graça. Já não são, nem de longe, aqueles de outros tempos, da época em que as baianas foram as maiorais. Lembro das duas Martas, a Rocha, injustiçada na hora das medidas, podia ter sido a Miss Universo, a outra Marta, a Vasconcelos, foi vencedora nos enchendo de orgulho e entusiasmo. Terezinha Morango, Adalgisa Colombo, Vera Fischer e tantas outras são lindas até os dias de hoje.

        Permito-me falar aqui de um concurso de Miss Bahia, do ano de 1967, quando esses concursos ainda tinham seu lugar, quando o interesse por eles ainda era grande e quando, irresponsável, entrei de gaiata numa fria e sofri as conseqüências.

        O movimento para a escolha da mais bela brasileira daquele ano apenas iniciara. A TV Itapuã, única emissora da Bahia e, por isso mesmo, ouvida por todo mundo, começava a movimentar-se na pesquisa e na descoberta de beldades baianas.

        Diretor dos Diários Associados, o mandachuva da televisão Odorico Tavares me convidou para dar uns palpites sobre os concursos de beleza em geral. Mesmo não sendo expert no assunto, aceitei o convite e fui ao estúdio à noite, para a entrevista, no horário nobre. Entre outras coisas, me perguntaram se conhecia alguma moça bonita para concorrer. Eu conhecia: Ana Maria Guimarães, sobrinha de Norma Sampaio. Havia estado com ela naquela mesma tarde, em casa de Norma, e não me cansara de apreciar a beleza da moça. Não tive dúvidas em citar seu nome e endereço.

        Ao chegar em casa, Norma já havia me telefonado várias vezes: Menina, exclamava, entusiasmada, a televisão já está na casa da Ana Maria... Ana Maria teve a maior surpresa ao ver você falando no nome dela... está doidinha...

        Convidada, dias depois, fui à casa de Carmilton, irmão de Norma, pai da candidata. Norma, como sempre, à frente de tudo:

        Ana Maria já está inscrita e você vai ser a madrinha dela, vai fazer a campanha... Levei um susto:

        —  Eu, Norma? Você está doida?

        —  Doida coisa nenhuma. Não foi você quem atirou a menina no fogo? Agora agüente!!

        —  Eu apenas disse que ela é bonita, nada mais que isso...

        —  E você acha pouco? Não vejo motivo para se assustar... Vai ser até divertido.

        Felizmente, surgiram patrocinadores para a campanha da moça: duas conhecidas casas comerciais, a Ipê e a Rosatex, dariam toda a assistência à candidata, fornecendo-lhe o guarda-roupa e o que necessitasse: acompanhante e conselheira, automóvel à disposição, em troca da promoção das duas lojas comerciais. A mim coube, sempre sob a batuta de Norma, dar mais umas entrevistas e levar Ana Maria à casa de Genaro de Carvalho para que Nair, entendida em beleza, estudasse o rosto da moça e lhe desse conselhos sobre a maquiagem a usar. Bem ou mal eu cumpria a minha sina de madrinha de miss.

        O dia do desfile se aproximava, a consagração seria no Balbininho. Os patrocinadores de Ana Maria encheram o estádio, por dentro e por fora, de faixas de propaganda das duas lojas. A opinião dos que acompanhavam o concurso era a de que não havia candidata mais bela do que Ana Maria Guimarães. Ninguém duvidava de sua vitória.

        Só não tínhamos atinado, Norma e eu, com um perigo ameaçador: o patrocinador do concurso, era A Moda, conceituada casa de roupas femininas de Salvador, concorrente ferrenha da Ipê e da Rosatex. Inocentes desse detalhe que punha em risco o desfecho da eleição, fomos ao Balbininho com bastante antecedência, o tempo suficiente para pensar sobre o caso. Encontramos os patrocinadores de Ana Maria furiosos. Marcos Kertzman, proprietário de A Moda, o que bancava o concurso e pagava alto, havia mandado retirar todas as faixas das lojas adversárias.

        Sentado em nossa frente, Odorico Tavares mal nos cumprimentou. Fiquei cismada: Odorico sempre tão efusivo, tão gentil... A seu lado, na primeira fila, o prefeito Antônio Carlos Magalhães, o governador Luiz Viana Filho e dona Juju, sua esposa, o general Augusto Tinoco e senhora, entre outros.

        Entraram os componentes do júri, quase todos conhecidos nossos, entre eles o poeta Hélio Simões. Norma se entusiasmou: Está no papo, disse, Dr. Hélio é garantido, vota nela e os outros também. Enquanto o meu entusiasmo diminuía, dando lugar ao pessimismo, o de minha amiga pegava fogo. Já ganhou!, dizia ela.

        As seis misses selecionadas na finalíssima desfilavam. Mais linda do que nunca, Ana Maria flutuava entre as pétalas de rosas que caíam do alto sobre ela. Isso, as pétalas de rosas, seu Marcos não pudera evitar.

        O tempo passava e nada de sair o resultado. Decisão mais demorada, reclamou Norma. O que é que essa gente está tramando lá dentro?, disse eu, desconfiada ao ver que havia um vai-e-vem de bilhetinhos e de recados para Odorico.

        Finalmente, os alto-falantes entraram em ação, anunciavam a decisão do júri:

         Ana Maria Guimarães, sexto lugar! Isso mesmo, sexto lugar!

        O estádio quase veio abaixo com as vaias: Marmelada, marmelada...

        Norma endoideceu, saiu na disparada para alcançar Odorico que também saíra na disparada, tratando de salvar-se. Segurando-o pelo braço, Norma esbravejou: Olhe aqui, seu Odorico, quando você escolher outro júri filho da puta como esse para seus concursos, me avise para não meter minha família nele... Tratei de levá-la para fora do estádio, ela estava exaltada demais.

        Enquanto esperávamos que Aurélio encostasse o carro, aproximou-se de mim uma senhora do grupo dos patrocinadores da miss derrotada, que, aos berros, foi me insultando: Você é a culpada dessa derrota. Ela só perdeu por sua causa, dizia gritando. Sem ação, surpresa com tamanho disparate, ainda a ouvi esbravejar: Seu lugar era lá dentro e não assistindo da poltrona... Se estivesse lá dentro, ao lado dos juizes, teria evitado essa marmelada... Sem lhe dizer palavra, dei-lhe as costas e fui saindo. Aurélio demorava, e Norma, que continuava exaltada, divisou entre as pessoas que saíam pelos fundos do estádio o poeta Hélio Simões que acabara de dar seu voto. Alcançou-o, segurou-o pelos gorgomilos e gritou para o pobre que, atônito, não estava entendendo nada: Quer um conselho, Dr. Hélio? Nunca mais se meta em concursos de beleza, porque de beleza o senhor não entende nada!... A muito custo ele conseguiu se defender: Mas eu votei nela, dona Norma, votei em Ana Maria... Era a mais bonita... Ele votara, sim, e outros também haviam votado na nossa candidata. Norma conseguiu tirar tudo a limpo: Ana Maria ficara em primeiro lugar, mas seu Marcos não concordara nem em lhe dar o segundo.

        Nesse concurso de beleza, no qual me metera de gaiata, venceu uma casa comercial contra duas adversárias.

       

      HANSEN BAHIA

        A primeira vez que ele veio à Bahia, há muitos e muitos anos, seu nome era Karl Heins Hansen. Alemão de Hamburgo, conceituado professor de gravura em sua terra natal. O cidadão Karl Heins veio dar com os costados na Bahia, trazendo Rosa, sua mulher e um casal de filhos. Artista de primeira linha, todo mundo logo viu, homem de hábitos diferentes dos nossos, Karl Heins fez sucesso, não teve dificuldade em relacionar-se com o que havia de melhor nas artes, tornou-se amigo de Deus e o mundo. Comprou uma casinha rústica na praia de Amaralina, o mar na porta, o resto um descampado. Pela porta sempre aberta de sua casa entravam e ficavam habitando os animais que aparecessem: cachorros, gatos, cabras, porcos e até um jegue passou a fazer parte da família.

        Encantado com a terra que escolhera, nosso herói resolveu um dia mudar de nome, passou a chamar-se, para todos os efeitos, Hansen Bahia.

        Do artista alemão, tínhamos notícias através de amigos, de Carybé sobretudo, que por ele tinha o maior respeito e admiração. Carybé se divertia contando uma história que sucedera a Hansen: caminhava ele pelas areias da praia de Amaralina quando deparou-se com uma pedra amarela coberta de areia. Pedra grande, deveria pesar uns dois quilos. Lavou-a no mar, ela era transparente, uma beleza! Levou-a para casa, tirou-lhe um pedacinho, ia levar a amostra para ser avaliada por um entendido, na cidade. Guarda essa pedra aí, disse à Rosa, entregando-lhe o achado.

        Não foi preciso examinar muito para que Mamede, o antiquado da cidade, reconhecesse a qualidade do material que lhe fora entregue. É âmbar, Hansen, disse-lhe o expert, coisa rara na Bahia. Se você tem em casa uma pedra dessas, do tamanho que você diz ter, está rico. Traga ela aqui para eu ver.

        No percurso de bonde que o levaria ao ponto final de Amaralina, Hansen achou a viagem longa, estava ansioso por chegar em casa, contar a grande novidade a Rosa e aos meninos, fazia planos. Foi entrando porta adentro e perguntando à mulher:

        —  Onde está a pedra, Rosa?

        —  Que pedra?

        —  A que eu te dei para guardar.

        — Deve estar onde deixei, ali no chão — respondeu Rosa. No lugar em que Rosa a havia deixado, ali no chão, restavam apenas farelos do âmbar. O jegue a havia comido.

        Hansen tornara-se assíduo freqüentador do Pelourinho, melhor dito, do baixo meretrício que reinava no Centro Histórico de Salvador. Chegava, sentava-se junto à janela do bar Flor de São Miguel, onde a cachaçada era uma só, ficava apreciando os tipos que se misturavam, homens e mulheres de todas as cores e matizes, ia tomando nota, desenhando, material precioso para um álbum que faria, inclusive até o título estava escolhido Flor de São Miguel.

        Os originais do álbum foram levados por Carybé, ao Rio, ele queria que Jorge visse e escrevesse: Este trabalho do Hansen merece um texto teu, disse ele, mais uma intimação do que um pedido. Jorge se encantou com as gravuras e o álbum de Hansen, todo feito à mão pelo artista na sua primeira edição, teve a apresentação de Jorge Amado.

        Ao chegarmos para viver na Bahia, Hansen já se havia ido, partira com a família. Ao que soubemos, ele mudara de mulher, casara-se com uma jovem aluna de nome Ilse, estavam morando na Abissínia.

        Depois de correr mundos, de ter vivido na Etiópia, de ter sido amigo de Haile Selassie, de ter tido hienas a gargalhar em seu jardim, em Adís-Abeba, Hansen Bahia sentiu saudades da terra de seus encantos. Trazendo uma grande tenda de campanha, com Ilse ao lado, voltou para Salvador. Juntara algum dinheiro, comprou um terreno em Patamares, armou a tenda e lá ficaram instalados até levantarem a casa. A casa foi construída tempos depois, ampla e arejada, como gostavam seus donos, portas abertas e franqueadas a quem chegasse, suas vidas passaram a ser compartilhadas com aves e animais: cães, gatos, papagaios, macacos, inclusive um jegue.

        Fomos à inauguração da casa de Ilse e Hansen, festa para a qual eles convidaram meia Bahia, desde as prostitutas do Pelourinho às mais elegantes damas da sociedade baiana.

        Vestido de árabe, torço na cabeça, Hansen recebia os convidados no terraço da casa. Nunca soube se era um hábito árabe ou invenção dele, o leilão que Hansen fazia com cada senhora que chegava. Levantava-a pela cintura, deitando-a em seguida de bumbum para cima e começava o pregão: Quanto me dão por esse mulher? uma camelo? duas camelos? três camelos?... a cada camelo ele sapecava um, dois, três tapas na bunda da dama que se debatia no ar, tentando desvencilhar-se. Hansen ria divertido, mas os maridos não achavam graça nenhuma na brincadeira e, quanto ao meu, tratou de me arrastar com ele e entrar pelos fundos da casa para evitar a maluquice do anfitrião. Carybé e Nancy nos acompanharam, aliás, muita gente nos acompanhou.

        Como esquecer a maneira como Hansen, no seu português germânico, apresentou Ilse aos amigos?

         Eu conheci Ilse no barriga do mamãe dela, Ursula, meu amiga. Quando vi Ilse depois, ela já estava grande, era meu aluna de desenho. Me apaixonei por Ilse, Ilse se apaixonou por mim. Meu casamento com Rosa, muito ruim, acabou. Tinha medo de casar com Ilse, Ilse muito novo pra mim. Fui falar com minha papai: minha papai, eu quer casar com llse, gosto muito de Ilse mas tenho medo, Ilse é muito moço pra mim. Minha papai disse: meu filho, mulher velha come mais do que mulher moço. Mulher velha fica mais doente do que mulher moço. Mulher velha gasta mais dinheiro no remédio do que mulher moço. Mulher velha é mais feio do que mulher moço. Casa com Ilse, minha filho. Ao terminar de contar a entrevista com o velho pai e de louvar o sábio conselho, Hansen abria-se num sorriso de satisfação: Minha papai uma poeta.

        Hoje, vinte anos após sua morte, seu nome é recordado, suas divertidas histórias são repetidas, sua arte é louvada por toda a parte e, sobretudo, na Fundação Hansen Bahia, onde se encontra o acervo do artista, em Cachoeira, cidade de encantamentos que Hansen e llse escolheram para viver até o fim de seus dias.

       

      TRÊS AMIGAS FRANCESAS

        As três amigas francesas das quais desejo falar têm a ver com a casa do Rio Vermelho e ainda mais com a nossa vida:

        Misette Nadreau é citada em quase todos os meus livros. Nossa amizade vem do tempo do exílio, na França e na Tchecoslováquia. Desde então, Misette continua presente, nos bons e nos maus momentos, estejamos aqui ou lá, no Brasil ou na Conchinchina.

        Moradora do Rio de Janeiro, que adora de paixão, sem renegar a sua nacionalidade francesa, Misette prefere morar no Brasil onde, trazida por nossa amizade, vive há mais de quarenta anos, rodeada de amigos brasileiros. Em nossa casa do Rio Vermelho temos um quarto para nossa amiga que, quando pode, vem nos dar a alegria de sua presença. Nossa amiga? Eu diria mesmo que, mais do que amiga, ela é irmã, se é que irmã pode ser mais do que amiga.

        Anny-Claude Basset apareceu em nossa casa do Rio Vermelho já faz muitos anos, sou muito ruim para cálculos de tempo, mas posso afirmar que isso se passou há mais ou menos trinta anos. Ela trazia na mão uma carta de recomendação de Rubem Braga para Jorge e para mim que dizia mais ou menos isto: Tratem bem a menina, ela é gente boa...

        Formada em literatura de língua portuguesa, na França, Anny-Claude fizera um mestrado sobre a obra de Erico Veríssimo. Estagiara em Portugal e, nessa ocasião, conhecera Otto Lara Resende e João Cabral de Melo Neto. Dessa amizade resultou a sua vinda ao Brasil, mais precisamente a Porto Alegre, onde pôde ter contato com Erico Veríssimo, autor de seus encantos, responsável pelo trabalho que realizava. A moça francesa tornou-se amiga de Erico e de Mafalda, amiga de grandes escritores brasileiros.

        Terminado o mestrado, doutora em literatura brasileira, Anny-Claude Basset não quis ser professora, optou pela profissão de aeromoça, na Air France, teria a possibilidade de retornar muitas vezes ao Brasil, país que a conquistara, rever seus amigos. Até aposentar-se, Anny-Claude veio ao Brasil, constantemente, comprou apartamento no Rio de Janeiro e divide sua vida entre Brasil e França.

        Desde o dia em que apareceu em nossa casa com a cartinha de Rubem Braga, Anny tomou-se nossa amiga. Nem vou contar aqui histórias que tenham acontecido com ela, quis apenas falar dessa amiga fiel, sempre presente em nossa vida, às vezes em temporadas na casa do Rio Vermelho e na Pedra do Sal, outras vezes nos confins do mundo, em viagens que fazemos juntos. Infelizmente as temporadas de Anny-Claude na Bahia não são freqüentes, pois a moça adora buscar emoções em mundos distantes e estranhos, adora fazer grandes marchas e escalar montanhas. Por acaso, no momento ela se encontra fazendo cooper no deserto de Gobi, na Mongólia, com Mimiche, sua irmã, outra andarilha inveterada, de onde nos mandaram notícias.

        Alice Raillard é a francesa que mais conhece o português, que mais sabe da arte de ser amiga. Conhecedora profunda da obra de Jorge Amado, Alice traduziu a maior parte de seus livros. Não contente com isso, resolveu escrever sobre ele.

        Veio para a Bahia e em sua bagagem trouxe um gravadorzinho para as entrevistas. Deixou em Paris o marido, como ela nosso grande e querido amigo, Georges Raillard, um intelectual retado, no dizer de Jorge, que, entre outros trabalhos, é autor de um importante livro sobre o pintor Miro.

        Se minha estima e admiração por Alice era grande, aumentou muito depois dessa sua temporada na Bahia. Impressionante sua paciência e obstinação. De gravador em punho, sensível, discreta, um senso de oportunidade incrível, ela aguardava calada que Jorge se dispusesse ou tivesse tempo de responder às suas perguntas. Devia aproveitar os momentos livres dele, coisa rara. Muitas vezes Jorge até se esforçava para atender à amiga, mas bastava sentar-se para ser importunado, interrompido por telefonemas ou problemas que iam dos mais importantes aos mais banais. Desligando o gravador, Alice aguardava. E nesse ligar e desligar do aparelho, passou-se um mês ou mais. O esforço de trabalho e de paciência foi coroado de êxito: O livro Jorge Amado, conversations avec Alice Raillard, é um dos melhores estudos já publicados sobre o escritor. Traduzido em várias línguas, faz sucesso.

       

      NOIVADO E CASAMENTO

        Nos mudamos para a Bahia por causa das crianças, quisemos preservá-las das ameaças de uma cidade grande. Agora as crianças já não eram crianças, criavam asas, buscavam seu rumo próprio.

        Não me admirei quando Paloma me contou um dia que estava namorando o Pedro. Eu já percebera um certo clima entre os dois.

        Filho do poeta Odylo Costa, filho, amigo da juventude de Jorge, Pedro viera estudar na Bahia. Ainda bastante traumatizado com o que sucedera a Odylinho, seu irmão mais velho, morto num assalto em Santa Tereza ao voltar do cinema com a namorada, Pedro tornara-se um rapaz triste, parecia ter perdido o gosto pela vida. Ele precisa mudar de ares e de ambiente, disse Odylo a Jorge que o aconselhou em seguida a mandar o filho estudar na Bahia, onde seria nosso hóspede.

        Os ares da Bahia, realmente, faziam bem ao rapaz. Os ares, a convivência com João, Paloma e a turma deles, jovens animados, sempre em dia com os programas festivos da cidade, participando de tudo. Pedro aderiu à turma e foi aderindo, com o passar dos meses, aos encantos de Paloma.

       

        Jorge não gostou da notícia — e qual é o pai que gosta de ver sua filha única namorando? Nesse caso ele tinha razão, Paloma era ainda muito nova e ele desejava vê-la formada, mais madura para saber o que realmente queria, antes de pensar em casamento. Mas quem é louco de se meter a dar conselhos a jovens apaixonados ou proibir, como faziam os pais de antigamente? Nem pai, muito menos mãe seriam ouvidos. O jeito foi atender ao apelo dos namorados, doidos de pressa para oficializar o noivado.

        Ao menos uma coisa agradou a Jorge. Gostou de saber que Pedro, por iniciativa própria, após oficializar o namoro, mudara-se, alugara um quarto onde passara a dormir todas as noites. Dormia no quarto alugado, era bem verdade, mas logo cedo aparecia para o café da manhã e, quando não estava no curso que fazia na Escola de Arquitetura, era em nossa casa que podia ser encontrado.

        Ao ter notícia do acontecido, Odylo achou muita graça, eu já esperava por essa, teria dito. Nazareth, mãe de Pedro, da mesma forma que nós, se preocupou, o filho era jovem demais para assumir um compromisso tão sério. Mas também Nazareth sentiu-se impotente diante da resolução do filho, não teve outro jeito senão abençoá-lo.

        A família Costa chegou de automóvel, pais e irmãos para o noivado de Pedro, todos hospedados na casa da rua Alagoinhas.

        Amigueiro como ele só, Odylo convidou para a festa de noivado seus amigos da Bahia, a começar por Dom Timóteo, abade do Mosteiro de São Bento, ex-professor de Pedro no Rio, pessoa do nosso maior bem-querer, ao governador do Estado, na época o escritor Luiz Viana Filho, que veio com Juju, sua esposa.

        Jorge fazia questão do pedido formal, com discurso e tudo: Afinal de contas só tenho uma filha e não faço por menos, disse. Podíamos até vestir o fardão da Academia, pilheriou Odylo.

       

        Na sala repleta, o pai do noivo levantou-se e mandou verbo: com palavras cheias de poesia, pediu a mão de Paloma para seu filho Pedro. Terminava perguntando:

        —  Você dá a mão de Paloma para Pedro, Jorge?

        —  Bem... — ia respondendo Jorge, mas Odylo exigiu que ele ficasse de pé.

        Jorge levantou-se.

        —  Bem — prosseguiu ele —, antes de dar uma resposta, eu queria consultar a pessoa mais sábia que se encontra nesta sala, minha mãe. Minha mãe — disse ele —, o Odylo está pedindo a mão de Paloma em casamento. Paloma e Pedro querem ficar noivos. O que você acha?

        Sentada ao lado da cadeira vaga que fora ocupada pelo filho, Lalu não titubeou, respondeu em seguida:

        — Acho muito bom. Que fiquem logo noivos para acabar com esse namoro de descaração.

        Se houvera pressa para o noivado, agora havia pressa para o casamento. Insistiram e marcaram data para daí a menos de um ano.

       

      JOÃO JORGE ENTRA NA DANÇA

        Como se o casamento de Paloma não bastasse, João Jorge também inventara se casar. Filha de um amigo nosso, o português Antônio Celestino, radicado na Bahia, Mariinha era a eleita de João Jorge.

        O problema se repetia, ambos muito jovens para assumir um compromisso tão sério. João recém-formado em sociologia, ela, ainda cursando veterinária. Mas, como já foi dito, quem é doido de se meter a dar conselhos a jovens apaixonados, mais doido ainda de proibir? Nessas ocasiões, pai e mãe devem concordar sem abrir o bico para evitar problemas maiores.

       

        A cabeça ardendo, precisando arejar, Jorge tratou de organizar uma longa viagem, seria bom sair um pouco.

       

      A LONGA VIAGEM

        Nossa filhinha nos escapava das mãos. Ia-se embora, voltaria a morar no Rio de Janeiro, viveria em outro ambiente familiar, se aproximaria da família Costa, se distanciaria de nós... Seriam ciúmes da minha Palominha o que eu sentia? Sem que me vissem, chorei muitas lágrimas. Embora nada dissesse, Jorge também andava triste. Mas Jorge não é homem de se entregar, de se lamuriar, é homem de ação: convidou Paloma a fazer uma viagem conosco pela Europa, viagem de uns quatro meses, chegaríamos um mês antes do casamento.

        Jorge participaria de um congresso de escritores latino-americanos, na Alemanha, na cidade de Düsseldorf. Como a data do congresso ainda estava muito distante, ficaríamos circulando pela Europa, iríamos à Escandinávia. Em Copenhague, visitaríamos nossos amigos Emília e Georges Ploestanu. Ele fora, durante anos, embaixador da Romênia no Brasil, daí nossa amizade.

        Temi que Paloma fosse reagir, não querendo ficar tanto tempo longe de Pedro, mas não, a viagem era tentadora demais. Prazerosa, ela aceitou o convite, tinha muita vontade de conhecer a Escandinávia. Jorge sorriu satisfeito, ao menos por mais algum tempo a filha de seu amor estaria a seu lado.

        Quanto a João, íamos cuidar de seu casamento na volta da viagem. Ao menos ele não sairia da Bahia, teria sua própria casa mas não o perderíamos de vista.

       

      CABO SAN ROQUE

        A empresa de navegação espanhola, Ybarra, tinha três navios que faziam a linha regular entre a Bahia e Vigo com escalas em Tenerife, nas Ilhas Canárias e em Lisboa. Viagem de descanso, agradável e confortável para quem não gosta de avião, a fazíamos sempre, ora num ora noutro navio.

        Ainda uma vez embarcamos no Cabo San Roque, voltaríamos no Cabo San Vicente, com data já marcada.

        Recordo que numa dessas viagens, no Monte Umbe, Jorge levou a máquina de escrever e trabalhava no tombadilho quando dele se aproximou um homem: Por favor, meu senhor, disse, onde é que se encontra a porta de saída? Debruçou-se no tombadilho e, olhando o mar, disse: Quero ir ao Baile... Veja que beleza! Todo mundo dançando... Sem se perturbar, Jorge apontou-lhe Guillelmo, o barman: Pergunte a ele, ele sabe tudo.

        No porto de Lisboa uma ambulância aguardava o paciente, portador de um desequilíbrio mental.

       

      LISBOA À VISTA

        Lá estavam, no porto, nos esperando como de hábito, vários amigos: o escritor Ferreira de Castro, a atriz Beatriz Costa e os amigos, editor Francisco Lyon de Castro com sua mulher, Eunice e Aríete Soares, nossa amiga baiana que viera de Paris onde defendia uma tese, para nos esperar e seguir viagem conosco.

        Do Hotel Tivoli, onde nos hospedamos, saímos andando, descemos a Avenida da Liberdade, subimos ladeiras, matamos saudades dos lugares, de amigos que encontramos e da comida portuguesa.

       

        À noite, com Ferreira de Castro, Lyon de Castro e Fernando de Assis Pacheco fomos à Alfama ouvir fados. Nessa noite, no A Nau Catarineta, deu-se um fato divertido.

        Ao dar-se conta da presença dos famosos escritores na sua casa de fados, a proprietária pediu ao fadista, que no momento ia cantar, que anunciasse a presença dos dois insignes cidadãos. Desembaraçado, o fadista nem engasgou ao anunciar com grande ênfase: Temos a honra e o prazer de anunciar a presença nesta casa de duas grandes personalidades: o ilustre poeta brasileiro Ferreira de Castro e o escritor português Jorge Amado. Ferreira de Castro riu, mas não gostou: Veja só o parvo... Tentou até corrigir a parvoíce do outro, mas Jorge o dissuadiu. Deixa pra lá, foi até divertido...

        

      RUMO À DINAMARCA

        Num Mercedes preto, com motorista e tudo, carro alugado em Lisboa, saímos numa viagem pelo norte de Portugal, atravessamos serras e planícies, passamos a fronteira com a Espanha. Nos divertimos constatando a diferença de caráter entre os vizinhos, tão próximos e tão distantes na maneira de ser.

        Deixávamos Portugal e antes de atravessarmos a fronteira lemos numa parede: Um dia o sol brilhará para todos. Logo abaixo, a intromissão de um gaiato: E nos dias de chuva?

        Mal pisamos a Espanha, lemos na fachada de uma casa, em letras garrafais: Te ódio, te ódio y te ódio!

        Em Vigo almoçamos no restaurante El Mosquito os mais deliciosos frutos do mar. Jorge fez questão de passar com Aríete por uma papelaria, nossa conhecida, atração e divertimento de brasileiros que por ela passam, interessados no nome do proprietário escrito na fachada da casa comercial: Papeteria Juan Buceta.

       

        Nosso destino era Santiago de Compostela, passaríamos, a caminho, por Pontevedra, onde tínhamos amigos. Lá encontraríamos Manolo ou José Alberto Moreira, donos do melhor anti-quário da Bahia. Os Moreira tinham em Pontevedra uma sucursal ou matriz, não sei, da casa de antiguidades. Nessa cidade também viviam alguns baianos casados com galegos. Por onde passávamos íamos encontrando conhecidos.

        Santiago de Compostela é a cidade de meus encantos. Não víamos a hora de chegar à catedral, não queríamos perder a impressionante cerimônia do bota fumem, quando um gigantesco turíbulo suspenso ao alto por grossas cordas é balançado de um lado a outro da igreja, a velocidade aumentando cada vez mais, a fumaça do incenso se espalhando, invadindo tudo.

        Havia fila para reverenciar Santiago de Compostela, cuja imagem estava instalada no centro do altar-mor.

        Paramos para ver, dentro do templo, nas suas laterais, enormes pinturas, onde Santiago, montado a cavalo, de espada em punho, decepa cabeças, mata os mouros que o rodeiam. Por isso o chamavam Santiago Mata Moros, explicava um guia de turismo a um grupo que acompanhava.

        Eu estava doida para me aproximar da imagem, no altar, ao alto, coisa fácil pois era só subir uma escadinha atrás, que dava acesso às costas do santo. Esperei que um grupo de turistas acabasse de subir, fui atrás. Naquele ambiente sombrio, a proximidade com a imagem me impressionou. Queria dar-lhe um beijinho e para completar o carinho devia também abraçá-lo. No momento em que o abraçava e beijava-lhe as costas, ouvi uma gargalhada, aliás, duas gargalhadas. Sem me separar de Santiago, olhei para o lado, onde Aríete e Paloma morriam de rir. Eu não estava ali por caçoada, nem por devoção, apenas tivera esse ímpeto e fora adiante. Não sei se foi impressão minha ou não, senti Santiago tremer na base, não devia estar muito preso. Nesses momentos a gente pensa nos maiores absurdos, e eu pensei: e se a imagem desabar sobre o altar e eu junto, grudada em suas costas? Atacou-me uma vontade louca de rir, sobretudo ao ver que Jorge chegara junto à escadinha e ria com as duas. Não conseguia me soltar do santo, atrás de mim a fila aumentava e eu ali, fingindo que chorava de emoção, recurso instintivo, evitaria ser linchada caso descobrissem a falta de respeito, rir daquele jeito nas costas de Santiago de Compostela. Situação tragicômica, inesquecível, nos rende boas risadas todas as vezes que a recordamos.

        Nosso destino era a França onde pararíamos uns poucos dias em Paris, antes de prosseguirmos a viagem para a Escandinávia.

       

      PARIS

        Em Paris demos folga a seu Noel, o motorista, ele não conhecia a cidade e descansaria antes de reiniciarmos a viagem, rumo a Estocolmo.

        Aríete vivia na Casa do Brasil, na Cite Universitaire. Fazia, na Sorbonne, um mestrado cujo tema era a praia de pescadores de Jauá no litoral da Bahia. Tinha como orientador, em Paris, o professor Brusse Bastide. Ela comprara um Renault 4L já bastante combalido mas ainda muito prestativo.

        No 4L de Aríete, fizemos o nosso recorrido em Paris, visitando velhos amigos, em geral comerciantes, pessoas de nossa estima desde os tempos do exílio.

        Não podíamos deixar de visitar Madame Salvage, e a encontramos no seu posto, na portaria do Hotel Saint Michel. Ela se revelara uma grande amiga ao nos hospedar durante todo o tempo de nosso exílio. Não mudara nada: Ma petite Zélia! Mon cher Jorge!, exclamou satisfeita, ao nos ver. Quase se ofendeu ao saber que estávamos hospedados em outro hotel. Insistiu para que passássemos para o dela, havia feito algumas reformas, teríamos mais conforto. Nossos quartos, os que habitáramos durante dois anos, estavam ocupados, mas isso não tinha a menor importância, ela despejaria tranqüilamente os hóspedes que lá estavam: O quarto é de vocês, insistiu, e não vão pagar nada, serão meus convidados.

        Preferimos ficar mesmo no Select, um hotelzinho simples, mas bem melhor do que o Saint Michel.

       

      BÉLGICA

        Chegamos em Bruges num domingo pela manhã. A cidade estava em festa, aliás, ela em si já é uma festa com seus canais navegáveis circundando a cidade de casarões antigos, belos.

        Pernoitaríamos no Hotel Portinari, o escolhemos por patriotismo, homenagem ao nosso grande artista, e acertamos. Era um bom hotel e bem localizado, próximo ao centro onde se concentravam figuras gigantescas, fantasiadas, que dançavam movimentadas por uma pessoa que se encontrava dentro. Não consigo recordar como são chamadas no Brasil essas figuras. Em Portugal as chamam de gigantones e, em espanhol, mascarones.

        Pelas janelas dos sobrados ao lado dos canais podia-se assistir a concertos, os músicos vestidos a caráter, com trajes de época, tocando instrumentos antigos, enquanto barcos enfeitados de flores deslizavam, levando personagens caracterizados.

        Chegáramos a Bruges num dia de festa, por acaso, não esperávamos assistir a espetáculo tão belo. Em meio a gigantones e mascarones, a tanta música, tivemos ainda tempo de comprar rendas, as famosas rendas de Bruges, feitas à mão, só comparáveis às rendas de bilro do norte do Brasil.

       

      HOLANDA

        Bm Amsterdã pararíamos mais tempo, havia muito a ver, desejávamos voltar ao Museu Rembrandt e ao Museu Van Gogh, queríamos que Paloma visse as obras dos dois gênios holandeses, na Holanda, lá ela veria quadros que não vira em sua visita de um dia inteiro ao Museu do Louvre.

        A viagem a Amsterdã foi tranqüila e linda, passamos por campos e campos de tulipas, verdadeiros tapetes coloridos.

        Passeamos em barcos, pelos canais, vendo a parte pitoresca da cidade, famílias inteiras, com cães, gatos e passarinhos, morando tranqüilamente em barcos onde até jardim cultivavam.

        Tínhamos grande curiosidade de conhecer as célebres ruas das vitrines, onde prostitutas esperam alguém que as eleja para uns momentos de prazer.

        Procurávamos que alguém nos desse uma informação, nos indicasse o caminho, quando vimos parar um imenso by night de onde saltaram turistas, na sua maioria senhoras idosas que pelo trajar e o indefectível chapeuzinho indicava serem americanas. Os guias, um homem e uma mulher, com um guarda-chuva fechado, abanando no ar, iam à frente indicando o caminho como quem dirige uma boiada. Lá vão eles!, dissemos e, sem perda de tempo, colamos na excursão.

        Em cada vitrine, nas ruas estreitas e movimentadas, encontrava-se uma moça, em geral bonita. O ambiente de cada vitrine era diferente do outro: numa, apenas uma jovem sentada numa cadeira de balanço, decentemente vestida, com o ar mais ingênuo do mundo, lendo um livro; noutra, a moça fazia tricô, noutra ela segurava um gatinho, noutra, apenas fumava e daí por diante. Em toda a extensão da vitrine havia uma cortina grossa que, à chegada de um cliente, era fechada aos olhos dos passantes. O que fora vitrine virava uma alcova. A cortina só voltava a ser aberta depois de tudo terminado, o ambiente novamente arrumado, a moça composta esperando, comportada, um novo freguês.

       

      DINAMARCA

        Atravessamos a Alemanha e, como pretendíamos parar em Colônia, na volta, seguimos diretos e, sempre ouvindo músicas de Moustaki, pelo gravador de Aríete, entramos por Lubec e, costeando o mar Bákico, chegamos a Puttgarden de onde atravessamos para a Dinamarca num ferry-boat.

        Em Copenhague os Ploestanu nos esperavam e se puseram à nossa disposição para o que precisássemos.

        Com Emília passeamos e ela nos levou a ver a famosa Sereiazinha de Copenhague, escultura singela, homenagem da Dinamarca ao seu escritor maior, Andersen. Nos regalamos com os pratos romenos preparados por Emília, nas vezes que almoçamos e jantamos na embaixada com o casal.

        Enquanto seu Noel folgava, andamos pelo centro da cidade, às vezes pelas nossas próprias pernas, às vezes com a ajuda de Emília, que sabia tudo sobre as melhores lojas e onde fazer compras.

        Diante de tanta coisa bela nas vitrines de Copenhague, Paloma se entusiasmou, não resistiu: por que não comprar o que gostara tanto e jamais encontraria em nenhuma outra parte? As peças e os objetos iam fazer o maior sucesso no Brasil. Compraria o que pudesse para sua casa, devia começar a pensar nela já que a data do casamento estava marcada.

        Ao nos despedirmos da Dinamarca, indo para a Alemanha, seu Noel teve que amarrar uma grande mala que acabáramos de adquirir, cheia das compras de Paloma e compras nossas, no porta-bagagem em cima do carro. Nossa mala faria companhia à de seu Noel, que desde o início da viagem estivera lá em cima.

        Depois da parada em Colônia voltaríamos a Paris onde terminaria o contrato de aluguel do carro e lá o entregaríamos.

        Em Paris tomaríamos o trem noturno para Londres onde Antônio Olinto e Zora nos esperavam. Olinto era na ocasião adido cultural da Embaixada do Brasil na Inglaterra. Ele e Zora nos hospedariam em seu apartamento na Harowby Street. A data do congresso em Düsseldorf ainda estava distante, mais de um mês. Teríamos tempo bastante para mostrar Londres a Paloma, visitar museus, ir a teatros, fazer compras. De Londres voltaríamos, sempre de trem, a Paris de onde, no carro de Aríete, seguiríamos direto para Düsseldorf, a tempo de Jorge chegar antes do início do Congresso.

       

      COLÔNIA

        Por recomendação de seu Noel, paramos num hotel no centro da cidade onde passaríamos a noite. Hotel simpático, cujos empregados eram em grande parte portugueses. Ao contrário dos outros hotéis nos quais pernoitáramos, esse não tinha garagem, apenas um pátio interno de estacionamento onde já havia vários carros ao chegarmos.

        O malão das compras era tão pesado que nem tivemos coragem de insistir para que ele fosse levado para dentro do hotel. Lugar seguro, gente séria, garantira seu Noel, podem deixar tranqüilamente a mala, dissera um empregado que ajudava a levar nossas coisas pessoais para nossos quartos. Dormimos tranqüilos, um sono só.

        Nosso programa da manhã seria andar pelo centro, visitar a famosa catedral. Isso faríamos com um amigo de Aríete, alemão de Colônia, que ela conhecera em Paris.

        Madrugador como sempre, Jorge saiu logo cedo do quarto, me deixou dormindo. Nem estranhei de só vê-lo aparecer quando, com Paloma e Aríete, tomávamos café. Jorge foi chegando e nos estendendo uma folha de papel em branco: Vamos vê se vocês têm memória, se lembram das compras que fizeram em Copenhague, disse na maior calma. Vam'bora, tomem nota aí de tudo o que trazíamos no carro, dentro e fora, insistia. Não agüentei: E loucura ou um capricho apenas? A essa hora da manhã fazer uma lista de tudo? Vamos perder tempo, é muita coisa pra lembrar, pra que isso agora?... Enquanto eu reclamava, Aríete e Paloma atiravam-se à tarefa, viam na proposta de Jorge apenas um grande divertimento, faríamos a lista num abrir e fechar de olhos enquanto aguardávamos a chegada do amigo de Aríete.

        Ao entregarmos a lista a Jorge, devia, certamente, faltar ainda alguma coisa a lembrar. Eu não me convencera de que o capricho de Jorge fosse apenas um divertimento, continuava curiosa e, ao vê-lo com a relação das coisas na mão, novamente perguntei:

        —  Agora me diga, por favor, pra que você quer essa lista?

        —  Pra mandar para Emília Ploestanu — respondeu.

        —  Para Emília? Por quê? — Cada vez eu entendia menos.

        —  Porque fomos roubados — respondeu Jorge.

        —  Roubados? — dissemos as três, em coro.

        — Isso mesmo. Roubaram o malão de cima do carro, arrombaram o vidro e levaram tudo o que estava dentro.

        Ficamos as três sem ação. Paloma perdera tudo o que comprara com tanto gosto para a sua casa... Aríete perdera a máquina fotográfica, o gravador e as fitas; eu perdera um par de botas que deixara dentro do carro e algumas compras pequenas, sobretudo presentes que levava para amigos, coisas que estavam no malão.

        — Levaram também a mala de seu Noel? — lembrei de perguntar.

        —  Não. Ele não deixou a mala dele no carro...

        A mim, seu Noel explicou que retirara sua mala do porta-malas porque precisara tirar dela um pente para pentear-se. Explicação que achamos melhor não discutir.

        O pessoal do hotel não quis saber de conversa, não tinham nada a ver com o sucedido, isentaram-se de qualquer responsabilidade.

         Nunca mais vamos recuperar nossas coisas, disse Jorge. Eu não quero ver ninguém de cara triste, ninguém chorando, não quero, sobretudo, que esse roubo venha estragar a nossa viagem. Vou telefonar aos Ploestanu, pedir à Emília que nos faça o favor de comprar tudo novamente e nos enviar para Portugal. Virou-se para a filha: Você vai ter de volta o teu lindo faqueiro, as peças de cerâmica, os bordados... tudo. A Emília é uma boa amiga, ela vai conseguir comprar tudo. Não fique triste.

        Por insistência do amigo de Aríete, revoltado e encabulado com o que nos sucedera em sua cidade, fomos à polícia que também não resolveu nada. Disseram que havia sido imprudência nossa, que os roubos em Colônia eram freqüentes. Se um dia conseguissem pegar os ladrões e recuperar nossas coisas, nos dariam notícias, e adeus, fim de conversa. O ladrão não foi apanhado e nossas coisas não foram recuperadas.

        Embarcamos novamente no Mercedes depois de Jorge ter pago a reposição do vidro quebrado. Seguíamos a longa viagem de volta, sem música, toda hora alguém lembrando de uma coisa que não havia entrado na lista, quando Jorge rompeu o silêncio caindo na gargalhada: Eu estou só pensando, dizia ele, no susto dos ladrões ao pegarem a risadinha... Havíamos descoberto e comprado em Copenhague a risadinha, caixinha que bastava apertá-la um pouco para que dela saíssem gargalhadas seguidas e escandalosas, novidade na ocasião. Essa caixa de risadas fora a única coisa que restara, desprezada dentro do carro.

       

      RUMO A DÜSSELDORF

        Não conhecíamos Düsseldorf. O nome para mim, no entanto, era familiar, fazia-me recordar um filme: O vampiro de Düsseldorf, impressionante, interpretado pelo magistral Peter Lorre, filme cujas imagens de uma cidade sombria eu conservava na lembrança.

        Depois de ter viajado dias e dias num possante Mercedes, o frágil 4L de Aríete tornava-se bastante desconfortável, sobretudo para mim e para Paloma, que ocupávamos o duro banco de trás, onde até a ponta de uma mola que escapara do estofamento nos arranhava sempre que nos distraíamos.

        Viagem desconfortável, porém mais agradável, mais íntima, livre da presença de seu Noel, com Aríete ao volante. A voz de Moustaki retornara no gravador novo que compráramos em Paris para Aríete em substituição ao roubado. A viagem se tornara não somente mais íntima, como mais engraçada. Transformamos a chateação do roubo da mala em gozação e nos divertíamos. Jorge falara com Emília por telefone, ela lhe garantira, encontraríamos tudo em Lisboa, antes de embarcarmos de volta para o Brasil.

        A prova de generosidade e de nobreza de caráter que Jorge nos dera ao preocupar-se em apagar nossa tristeza e nos devolver o riso lhe dava créditos para o futuro. Daí por diante ele poderia até implicar com bobagens, berrar fora de hora, pegar no meu pé quando apressado, sem que eu reclamasse, e até o absolveria de um eventual espichar de olho sobre umas ancas a rebolar em sua frente.

       

      DÜSSELDORF

        Em Düsseldorf fazia frio e o dia era sombrio. Na sede da organização do congresso nos informaram que os hotéis da cidade estavam lotados e nos coubera como acomodação um gentil hotelzinho, rodeado de jardim e bosque, a uns trinta quilômetros do centro da cidade. Mesmo com um mapa riscado na hora numa folha de papel, tivemos dificuldade para encontrá-lo. Deixamos a bagagem no hotel e voltamos para a cidade.

        Os escritores convidados haviam chegado e fomos encontrá-los reunidos num salão. Apenas Miguel Angel Asturias, Prêmio Nobel, conseguira lugar em hotel da cidade. Os demais, Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, Eduardo Portella, Josué Montello, estavam espalhados em pequenos hotéis, distantes.

        Se lá fora a noite era fria e triste, dentro, no salão, onde se encontravam escritores dos mais distantes países da América Latina, reinava a euforia num clima cálido de confraternização. Que alegria te encontrar aqui, Príncipe, disse Jorge, ao se aproximar de Eduardo Portella, seu amigo a quem sempre chama de Príncipe. Nosso amigo dos tempos de exílio, Miguel Angel Asturias, me abraçou: E tu comadrita, que me contas? Blanca quiere ver te.

        A abertura do congresso estava marcada para o dia seguinte pela manhã, em sessão solene, num teatro. Ficamos contentes ao saber que houvera um equívoco, tínhamos reserva num hotel do centro. Dormiríamos ainda aquela noite fora da cidade. Deixaríamos o hotelzinho pela manhã ao sairmos para a solenidade.

        Pela manhã, logo cedo, como de hábito, Jorge se arrumou, tomou café sozinho, ficou à espera do ônibus que viria buscá-lo. Combinou comigo que eu arrumaria a mala com calma e iria depois com Aríete e Paloma. Eu não posso esperar por você. Tenho horror de chegar atrasado aos compromissos, você sabe disso. Claro que sabia. Não reclamei.

        Eu sempre digo e repito que a pontualidade é uma qualidade, mas o excesso de pontualidade, a preocupação de chegar antes da hora marcada, é um defeito. Sobre essa minha teoria eu poderia dar vários exemplos, contando algumas histórias, mas não me alongo, fico por aqui.

        O ônibus para Düsseldorf chegou às oito e trinta e a abertura do congresso estava marcada para as dez horas. O chofer devia ainda apanhar umas pessoas pelo caminho.

        Eu já estava pronta, a mala fechada, faltando apenas recolher a miuçalha de última hora quando Jorge apareceu na porta do quarto: Vou indo que já estou atrasado. Você vai com Aríete e Paloma, já avisei a elas. Falou e desceu rapidamente as escadas.

        Desci em seguida a tempo de ainda ouvir o ronco do motor do ônibus que acabara de partir. A moça da portaria fez um gesto indicando com a mão o portão de saída. Pedi-lhe que mandasse buscar a mala lá em cima e saí à procura das meninas. Não as encontrei em parte alguma. Voltei à portaria e perguntei em inglês, à mesma moça, pelas duas. Com o mesmo gesto que fizera havia pouco, acrescido de uma bela risada, ela mostrou-me o portão de saída. Essa é obtusa mesmo, pensei, não entende gestos e nem inglês, deve estar achando que pergunto novamente: por Jorge e responde novamente que o ônibus já foi. A risada só podia ser de gozação: Ele foi e te deixou, hem! Não disse mas pensou, claro. Voltei ao quarto das meninas, até os colchões das camas já não estavam.

        Minha mala se encontrava na portaria e nem sombra de Aríete e Paloma. Saí andando pelo jardim e percebi um sorriso significativo nos lábios de cada pessoa que eu ia encontrando pela frente. A notícia de que eu ficara esquecida, abandonada, já devia ter corrido e eu, com razão ou não, me senti humilhada, alvo da chacota daqueles alemães todos. Não podia me comunicar com ninguém, não tinha um único número de telefone para chamar, ia perder a abertura do congresso, a intervenção de Jorge... me sentia impotente.

        Felizmente o tempo levantara, fazia sol e eu resolvi ler um livro, sentada no jardim, aguardando os acontecimentos. Não consegui ler nem uma página. Tudo estava claro para mim: Aríete e Paloma haviam me esquecido, ido embora. O jeito era esperar.

        Esperava há quase duas horas quando divisei no portão a ponta vermelha do capo do Renault, dentro as duas, afobadíssimas: Mãe, desculpe..., dizia Paloma.

        Todos os sentimentos, os maus sentimentos, acumulados e remoídos durante essa interminável espera, vieram à tona.

        Em nenhum momento sequer, no entanto, meti Jorge no embrulho, não o culpei: essa sua pressa exagerada, a eterna preocupação de chegar aos encontros antes da hora marcada, estava convencida, era coisa hereditária, defeito congênito, sem remédio, a herdara de João Amado de Faria, seu pai, que por sua vez herdara do velho José Amado, avô de Jorge. Não fora, porventura, o coronel João Amado que, certa vez, saiu do barbeiro de cara ensaboada, a barba meio feita, meio por fazer? O diabo do barbeiro mais falava do que trabalhava... perdi a paciência, explicara o Coronel. O velho José Amado devia embarcar às oito da manhã, num trem que saía da gare perto de sua casa, e, precavido, chegou às seis. Na estação deserta, o trem ainda fechado, ele não teve dúvida, não ia ficar esperando de pé, forçou e abriu a janelinha de um vagão, por ela entrou e aguardou sentadinho.

        Despejei minha ira toda sobre Paloma e Aríete, a meu ver as únicas responsáveis por tudo. Exaltada, exaltação congênita, hereditária da raça italiana, atirei contra elas o que me veio à boca, disse o diabo: não desculpava coisa nenhuma, nunca sofrerá uma desconsideração tamanha, uma falta de respeito tal, e daí pra mais. O próprio vampiro de Düsseldorf, a mostrar as presas afiadas, a lançar chispas pelas narinas e pelos olhos, não teria impressionado tanto as duas. Até hoje elas não gostam de relembrar a cena. Nem eu. Pela primeira vez, depois de tantos anos, toco no assunto descrevendo-a aqui, na esperança de que assim, quem sabe, consiga esquecê-la.

        Acontece que, no final das contas, Aríete e Paloma não eram tão culpadas assim: não entenderam que deviam me esperar. Ao chegarem ao pátio viram que Jorge já se encontrava dentro do ônibus e acharam que eu devia estar com ele. O ônibus dava a partida e as duas não perderam tempo, colaram em seu fundo, assim não se perderiam pelo caminho. Ao entrarem no teatro depois de estacionar o carro, deram de cara com Jorge que perguntou à Paloma: Cadê tua mãe? Ao saber do mal-entendido ele se alvoroçou: Voltem imediatamente, ela deve estar aflita. Elas voltaram e se perderam várias vezes, só chegaram lá àquela hora, considerando um milagre terem conseguido encontrar o caminho.                                                    

       

      NOTURNO PARA LONDRES

        Em Paris tomamos o noturno, com leito, para Londres. Dessa vez Aríete não nos acompanhou. Íamos sentir falta de nossa amiga.

        Ao chegarmos ao apartamento dos Olinto tínhamos a sensação de chegarmos em casa. Nos hospedáramos lá várias vezes. Perfeitos anfitriões, eles nos deixavam à vontade, me sentia a própria dona da casa: ia para a cozinha, fazia nossa comidinha costumeira, cansados que estávamos de comer em restaurantes. Em Londres podíamos encontrar tudo que quiséssemos para os meus pratos brasileiros: desde o arroz e feijão e a farinha de mandioca à carne-seca.

        Aproveitando a estada em Londres, com uma cozinha à disposição, dei aulas de culinária a Paloma, que estava para se casar e não entendia nada de panelas e temperos. Eu era da teoria de meu pai, que a moça quando casa deve saber como se virar diante de um fogão. Se não precisar, muito bem, dizia seu Gattai, mas é sempre bom saber. Disso eu tinha experiência, quantas vezes precisei, quantas vezes tive que assumir o comando da cozinha?

        O apartamento dos Olinto era refúgio de brasileiros. Podíamos encontrar lá pintores, músicos, estudantes brasileiros com bolsas de estudo ou mesmo sem bolsa, dando um duro danado... Zora tinha sempre uma palavra de boas-vindas para cada um, lá eles se sentiam bem.

        Adido cultural da Embaixada, Olinto conseguia exposições e concertos para uns e outros. Já estivéramos hospedados na Harowby Street, ao mesmo tempo que Genaro e Nair, por ocasião de uma exposição das tapeçarias de Genaro.

        Agora, a surpresa de encontrar Carybé já instalado na casa dos Olinto fora grande. Dessa vez Nancy não estava com ele. Sua estada era rápida, o tempo de amarrar uma exposição e receber uma homenagem do diretor de um banco de Londres que lhe oferecia um cocktail no próprio banco. O convite para essa honraria lá estava à nossa espera. Ficamos intrigados:

        —  Por que isso tudo, compadre? Você é amigo do banqueiro? — perguntou-lhe Jorge.

        —  Não sou amigo do banqueiro, não conheço ele, nem sei quem é. Não sei mesmo por que isso tudo. Vai ver que é porque eu sou um porreta — caçoou.

        —  Que você é um porreta todo mundo sabe, mas como é que esse banqueiro te descobriu?

        Quem botou tudo em pratos limpos foi Olinto. O tal banqueiro era um criador de eqüinos, apaixonado por cavalos. Seu filho estivera na Bahia e comprara um quadro de Carybé e o presenteara. Na tela, dezenas de cavalos, de todos os tamanhos e todas as cores, saltando e correndo em todas as direções, cavalos em movimento que só Carybé sabia pintar. O banqueiro apaixonara-se pela pintura e agora homenageava o artista. (Um quadro de Carybé, de cavalos, encontra-se num dos aposentos da rainha da Inglaterra, num de seus palácios.)

        Querendo fazer uma surpresa a Carybé, Jorge comprou um chapéu-coco. Vou com ele à tal homenagem, quero só ver a cara dele. Escondeu o chapéu bem escondidinho, segredo absoluto, só botaria na hora de sairmos. E assim foi. Já estávamos prontos quando Carybé e Jorge disseram ao mesmo tempo: Esperem um pouquinho. Carybé entrou no quarto dele, Jorge no nosso. Saíram ambos de chapéu-coco. Haviam tido a mesma idéia. Lépidos e fagueiros, lá se foram os dois, chapéu-coco na cabeça, dois distintos ingleses.

        Estavam levando, com grande estardalhaço, num teatro de Londres, uma peça musical, Oh! Calcutá. A peça escandalizava, pois, coisa ainda não vista em teatro para o público em geral, os artistas ficavam nus em cena. O musical combinava com o clima londrino onde, pelas ruas, jovens cabeludos, os revolucionários hippies, enfrentavam preconceitos, muitos deles até então filhinhos de papai, cantavam e tocavam, cuia estendida para receber um cent, verdadeiros mendigos felizes, realizados.

        No programa de Paloma, entre as visitas a museus, passeios no Hyde Park, estava a ida ao teatro para assistir Oh! Calcutá. Não era apenas o escandaloso ou a curiosidade de ver os homens pelados que a atraíam, mas, sobretudo, a sensação de pensar na cara de Balbina, de Maria Sampaio e de outras amigas da Bahia, quando soubessem que ela assistira à tal peça proibida no Brasil e lhes contasse, com todos detalhes, o que vira. Nem iam acreditar.

        Entre outras coisas, Paloma tinha curiosidade de ir ao Hyde Park, onde qualquer um podia dizer o que bem quisesse, até falar mal da rainha podia. Era só conseguir um caixote, subir nele e deitar verbo. Juntava logo gente em torno e, dependendo da eloqüência e da pose do orador, a assistência aumentava ou diminuía. Para nós que vínhamos de um país onde a liberdade de fazer críticas era proibida, tal espetáculo era uma novidade. Outra curiosidade do Hyde Park era o homem tatuado. Montado num caixote, um homem forte, de torço nu exposto, exibia suas tatuagens inclusive no rosto e na cabeça, tatuagens azuis formando desenhos, frases e datas, não deixando espaço nem para se ver a cor da pele, coisa horrível, não gostamos.

     

      Os CELESTINO EM LONDRES

        Chegavam da Bahia Antônio Celestino, Cândida, sua mulher, pais de Mariinha, noiva de João Jorge, e Gininha, a filha mais velha. Hospedaram-se numa pensão do bairro. Traziam notícias frescas de todo mundo. Ficamos sabendo por eles que nossos filhos, jovens apressados, haviam marcado data para o casamento que seria realizado um mês depois ao de Paloma. Cândida ia comprar em Londres peças de enxoval para a filha.

        Cândida não esquecera a malandragem que Carybé lhe fizera, antes de viajarmos para a Europa; ainda uma vez puxou-lhe as orelhas, reclamou e ele mais uma vez se divertiu.

        Baiana, afeita a gentilezas de boa vizinhança, pelo São João Cândida preparara uma perfumada canjica de milho verde e leite de coco para nos mandar de presente. Telefonou para casa, pediu a Jorge que mandasse Aurélio apanhar a encomenda. Explicou que havia colocado a canjica numa fôrma de porcelana em formato de carneirinho, peça antiga, de estimação, devia ser devolvida.

        Ao atender o telefone Jorge comentou com Carybé, que se encontrava em casa, a gentileza de Cândida, iria se regalar na hora da ceia. Carybé ouviu calado mas deve ter pensado: quem vai se regalar é aqui o compadre. Despediu-se e foi diretamente para a casa de Celestino. Jorge me telefonou, disse a Cândida, me pediu que apanhasse aqui com você um prato de pamonhas. Como vou lá agora, posso levar. Cândida riu: Jorge não entendeu, eu não falei em pamonhas, eu falei canjica e até expliquei que ele pedisse à Zélia para virar na travessa e ver como o carneirinho sai inteirinho. Explique isso a ele, Carybé. Pegando a encomenda, que inclusive estava coberta com um belo e recomendado guardanapo de linho a ser devolvido, disse; É, vai ver que Jorge se enganou porque gosta mais de pamonha do que de canjica. Atirou a farpa e foi direto para a casa dele onde papou a canjica toda.

        Logo depois, Aurélio chegou e Cândida deu-se conta, furiosa, de que havia sido ludibriada, caído na trama de Carybé. Indignada, telefonou para ele que, tranqüilamente, lhe disse: Dona Cândida, adorei sua canjica, não lembro de ter comido outra tão boa, só acho que a senhora deve, na próxima vez, procurar um carneiro maior...

 

       OH! CALCUTÁ!

        Com os Celestino, Olinto e Zora, fomos ao teatro assistir Oh.' Calcutá. Tão ou mais entusiasmada do que Paloma era Gininha, pois ouvira sobre o musical, no Brasil, os mais contraditórios comentários: dos mais elogiosos aos mais depreciativos: o mínimo que diziam era que se tratava de uma afronta ao pudor, uma indecência encenada...

        Teatro lotado, as meninas sentaram-se longe de nós. Adoraram e não se preocuparam em poupar comentários enquanto assistiam ao espetáculo e parece que, segundo Paloma depois me contou, elogiaram ou depreciaram a plástica e os complementos dos atores. Falavam soltas, diziam coisas, satisfeitas de não serem entendidas pelos vizinhos sem nem de longe desconfiarem que, sentado atrás delas, um cidadão baiano divertia-se mais com os comentários das duas moças do que com o que via em cena. Por coincidência, o cidadão era Walter Baraúna, marido de Ninita, prima de Jorge. Ao acenderem as luzes, ele deu uma batidinha no ombro de Paloma: Gostou, Paloma? Onde estão teus pais? Educado, felizmente, não fez comentários.

        O que aconteceu com Paloma e Gininha costuma acontecer com muitos brasileiros que se soltam a dizer besteiras quando se vêem em terras estrangeiras sem pensar que sempre há alguém nas imediações que entende o português.

        Lembrei de contar uma historinha, elucidativa, sobre o assunto que venho de comentar e não há quem me segure:

        Estávamos em Paris, a data não importa, com Auta Rosa e Calasans Neto, hospedados no Hotel de EAbbaye, e devíamos ir ao aeroporto esperar Antônio Celestino, que chegava do Brasil.

        Em Paris, todo mundo sabe, os táxis não apanham mais do que três passageiros, a conta do banco traseiro. Quando se deseja um táxi para quatro pessoas é preciso especificar, pagar mais caro, pois esses carros pagam seguro para quatro passageiros, em caso de acidente, quando os outros pagam só para três.

        Com Cala e Auta pedimos o táxi para quatro, o que significava termos que esperar mais tempo pois são poucos os que fazem esse serviço. O avião de Celestino devia chegar por volta das dez horas da noite. Fizemos um cálculo, pediríamos o táxi para as sete horas, chegaríamos ao Charles De Gaulle por volta das oito, teríamos tempo de sobra para jantar no restaurante do aeroporto.

        O táxi foi pedido e saímos para esperá-lo na porta. O tempo passava e nada dele chegar. Jorge começava a ficar nervoso, não contáramos com o engarrafamento àquela hora de fim de expediente. Enquanto Cala se encostou na porta do hotel, Jorge foi para o meio da rua e de lá gritou: Cadê esse táxi, seu Cala.. Ele não vem e eu já estou morrendo de fome... Olhando para a sua esquerda, Cala divisou dois rapazes que se aproximavam trazendo na mão um queijo redondo e várias baguetes de pão. De onde estava, Cala gritou: Ó Jorge, você não disse que está com fome? Pois dê uma porretada na cabeça desses dois caras, tire o queijo e o pão deles e coma. Os rapazes, dois brasileiros, deram uma pequena parada e disseram: Pode dar a porretada mas é perigoso! Pela primeira vez vi Cala desconcertado.

       

      FIM DA ESTADA EM LONDRES

        Nesse fim de estada em Londres tivemos ainda uma surpresa; vinda do Brasil, nossa amiga Heloísa Ramos, viúva do escritor Graciliano Ramos, acabara de chegar e trazia novidades.

         Heloísa pode almoçar conosco, disse Zora, convido alguns brasileiros que gostarão de vê-la e ter notícias frescas da terra e ainda matar a saudade de uma feijoada. Vamos fazer uma feijoada, Cândida?

        Zora era vegetariana, macrobiótica, preparava a sua gororoba — como a denominavam, pilheriando, Jorge e Olinto — e às hóspedes dava a liberdade de cozinhar os venenos em seu fogão e em suas panelas. Por isso, Nair de Carvalho e eu já havíamos sido cozinheiras em Londres, no apartamento dos Olinto, a preparar almoços festivos.

        Chegara a vez de Cândida mostrar seus dotes culinários. Nós estávamos de partida para Paris, Aríete nos esperava com o seu 4L para seguirmos viagem para Lisboa.

        Combinamos com Celestino e Cândida nos encontrar com eles em Póvoa do Lanhoso, ao norte de Portugal, na quinta de dona Virgínia, mãe de Celestino, onde eles passariam o resto das férias. Lá então, combinaríamos os detalhes do casamento de João e Mariinha.

       

      PORTUGAL NOVAMENTE

        Tínhamos muito tempo pela frente. A data da saída do Cabo San Vicente de Lisboa ainda estava distante. Poderíamos, com folga, encontrar e curtir os amigos que não pudéramos ver na ida. Se fizéssemos a conta, seria difícil dizer se tínhamos mais amigos em Portugal ou no Brasil.

        Queríamos muito estar com Fernando Namora e Zita, com Álvaro Salema e Elisa, com Antônio Alçada Baptista, com Forjaz Trigueiros e Helena, Fernando Assis Pacheco e Rosarinho, José Carlos Vasconcelos e Maria José, Raul Solnado. Iríamos, sem falta, comer no restaurante Amadora, no Parque Meyer, onde seríamos recebidos por Mimi, Gloria e Amadora, três velhas amigas, três queridas. Restaurante de comida caseira feita por Amadora para fregueses certos, em geral artistas dos teatros do Parque. Alguns amigos nossos, por exemplo, Antônio Alçada Baptista, era freguês assíduo do pitoresco restaurantezinho.

        Faríamos programas com cada amigo, almoçaríamos e jantaríamos juntos, bateríamos grandes papos, saberíamos das novidades da terra, contaríamos as nossas. Teríamos tempo de ir ao Norte conversar com Celestim. Paloma teria a oportunidade de fazer compras. Ela encontraria em Lisboa as mais belas porcelanas e toalhas bordadas, para seu enxoval, as juntaria às compras de Copenhague, que já haviam chegado. Estavam à nossa espera no Hotel Tivoli, segundo informação de Vinagre, amigo nosso, funcionário do hotel. Emília fora formidável, comprara e remetera tudo.

       

      JOSÉ FRANCO

        Com Francisco Lyon de Castro e Eunice e com Beatriz Costa, fomos ao Sobreiro, nas cercanias de Lisboa, visitar a cerâmica de José Franco. O ceramista reproduzira num grande terreno, à volta de sua casa, toda uma aldeia saloia: do moinho de vento à roda-d'água, uma singela capelinha, o armazém de secos e molhados, o ferra-cavalos, o açougue, o correio, tudo em tamanho natural, e ainda fizera um grande presépio onde as figuras se movimentavam. As esculturas de madonas, santos e tipos populares, que José Franco esculpia, moldadas no barro por suas mãos de artista, eram a maior perfeição, a maior delicadeza. Nos encantaram também as grandes peças rústicas, e não resistimos, compramos vários gaios, azul, verde, preto... que trouxemos para a Bahia e até hoje enfeitam a nossa casa do Rio Vermelho. Tínhamos a tranqüilidade de comprar o que bem quiséssemos, sem nos preocupar com o peso. Embarcaríamos tudo no navio, em Lisboa, e desembarcaríamos tudo no porto de Salvador, a bem dizer, na porta de casa, sem problemas. Sabedora dessa facilidade, Beatriz Costa comprou e nos ofereceu um serviço de jantar, de barro, completo. Nesses pratos e nessas travessas eu costumo servir a nossa comida baiana, em grandes ocasiões.

        Voltamos sempre ao Sobreiro em nossas visitas a Portugal. No entanto, o que nos atrai já não são tanto as cerâmicas como o encontro com nosso amigo José Franco. Homem de bem, grande artista, grande amigo. Na porta de nossa casa, na rua Alagoinhas, temos cravada na parede uma pequena placa, dois pequenos azulejos com dois corações pintados, dentro de cada coração, nossos nomes: Jorge e Zélia e José e Helena. Dona Helena, mulher de José Franco, ela também com sensibilidade artística, foi a autora da plaquinha, pintada pouco antes de morrer.

        

      O AMIGO NUNO

        Nessa tarde da visita a José Franco, encontramos lá Nuno Lima de Carvalho, que com Clarinda, sua mulher, fazia compras. Sem esperar que nos apresentassem, Nuno se aproximou, falou com Jorge, era seu admirador.

        Jornalista, secretário-geral do núcleo Estoril Sol, homem de ação, executivo de primeira, pessoa simpática, inteligente, em seguida nos tornamos amigos. Amizade que perdura até hoje, amizade sempre presente, mesmo nas longas ausências.

        Aqui venho novamente pedir licença para me adiantar no tempo. Como o Cabo San Vicente ainda demora a zarpar de Lisboa, nos levando e ao casal Francisco Lyon de Castro, para a Bahia, eu não queria perder o fio da meada e contar as proezas de Nuno Lima de Carvalho.

        Interessado pela Bahia, por sua música, pela comida baiana, pelos cantores, por seus artistas plásticos, sem nunca ter visitado Salvador, Nuno tudo sabia, aprendera bastante lendo os livros de Jorge Amado. De nosso encontro, de nossa convivência, nos dias que se seguiram, Nuno projetou um intercâmbio cultural com a Bahia. Começaria com a realização de uma semana da Bahia, no Casino Estoril. Depois faria a semana do Estoril, na Bahia. Empreitada difícil, cheia de tropeços burocráticos, mil e um problemas a enfrentar, porém, obstinado, levou o projeto avante. Custaram-lhe dez anos de esforço até realizá-lo.

        Plano amadurecido, Nuno Lima de Carvalho estudou e entendeu que havia chegado a hora de concretizar seu projeto. Com Antônio Carlos Magalhães no governo do Estado, homem dinâmico e empreendedor, tudo ficara mais fácil, teria o apoio necessário.

        Apresentado por Jorge, ele entrou em contato com o prefeito de Salvador, na ocasião Manuel Castro, procurou Paulo Gaudenzi, o responsável e quem mais entendia de turismo e divulgação da cidade.

        Estudada a importância desse projeto de intercâmbio cultural entre Brasil e Portugal, o plano recebeu o beneplácito do proprietário e diretor do Casino Estoril, Dr. Manuel Telles, que o apoiou permitindo a sua realização no Casino, na sala de visitas do turismo português, espaço privilegiado para a realização de grandes eventos culturais, para a apresentação da Semana da Bahia no Estoril. Com a colaboração do embaixador do Brasil em Portugal, Dário Castro Alves, a festa foi realizada em 1980.

        Numa grande sala foi montada uma exposição bibliográfica e documental de Jorge Amado, com muitas centenas de capas de traduções do autor, além de valiosa documentação, a primeira exposição desse material a ser mostrado fora do Brasil.

        Pode-se visitar, nessa semana de arte da Bahia, uma exposição de obras de Carybé, Carlos Bastos, Mário Cravo Júnior, Jenner Augusto, Calasans Neto e Floriano Teixeira. Pode-se ver as obras e conhecer os artistas, lá presentes.

        Responsável pelo catálogo, trabalho de alto nível, James Amado também lá estava, porém dessa vez sem Luiza. Ela não pudera viajar, ficara com Fernanda, sua filha, que esperava o primeiro filho por aqueles dias. Também naqueles dias nasceria o terceiro filho de João. Os nascimentos de João Jorge Filho, o nosso neto Jonga, e de Fábio, neto de Luiza e James, foram celebrados ao mesmo tempo que a inauguração da Semana da Bahia no Estoril, com direito a enorme bolo, decorado com dois bonequinhos e dizeres de boas-vindas aos nossos netinhos.

        Os portugueses poderiam, nessa semana de 11 a 19 de fevereiro, no espaço principal do Casino, encontrar o que havia de mais significativo na Bahia. Poderiam ver exposições de arte popular e de artesanato. Poderiam saborear um bom vatapá, um caruru, xinxim de galinha, de peixe e de camarão, preparados com material da Bahia, dezenas de quilos de camarões secos, azeite-de-dendê, castanhas de caju, transportados de avião, servidos por belas baianas, vestidas de bata bordada, pano da Costa e torço na cabeça, se regalariam com os acarajés e os abarás, feitos por mestras da cozinha baiana, cozinheiras da Casa da Gamboa, sob a batuta de dona Conceição, que lá se encontrava dirigindo a cozinha. No palco do grande restaurante exibiam-se todas as noites grupos folclóricos da Bahia.

       

        Ainda no quadro da semana da Bahia, Jorge Amado foi honrado com uma recepção no Forte S. Julião da Barra pelo presidente da República, general Ramalho Eanes, que o condecorou com o grau de Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada. O secretário de Estado do Turismo atribuiu-lhe a Medalha do Mérito Turístico.

        O incansável Nuno Lima de Carvalho, à frente de tudo, começava a pôr de pé a campanha de promoção da Semana do Estoril na Bahia a ser realizada daí a um ano.

        Uma bela medalha de bronze, comemorativa do evento, com a efígie de Jorge Amado, foi feita pela escultora Dorita Castelo Branco.

        Compareceram à inauguração dessa festa, que transformou o Casino Estoril numa Bahia alegre e colorida, o presidente da República, Dr. Antônio Ramalho Eanes com dona Manuela, sua esposa. Não faltou nenhum intelectual português, pintores e escritores lá estavam, e artistas e intelectuais baianos os receberam como donos da casa.

        Nessa noite, ao cumprimentar o presidente da República, Calasans Neto, que, por merecimentos, conquistou o direito de pilheriar, contar as mais picantes anedotas, sem que ninguém reclame ou se ofenda, ao contrário, diverte a todo mundo, perguntou a Ramalho Eanes: Sabe, Presidente, qual foi a coisa que os brasileiros mais gostaram do senhor em sua recente visita ao Brasil! Homem aparentemente sisudo, que não ria em público, não sabia o que os brasileiros haviam mais gostado dele, ficou curioso: Não, não sei... Pois foi do seu sorriso, Presidente. Sem poder conter-se, Antônio Ramalho Eanes soltou uma boa risada. Riram juntos, e desde esse dia o presidente e Calasans tornaram-se amigos.

        Outra amizade ilustre que Cala fez nessa noite foi com o primeiro-ministro, Mário Soares. Visitando a exposição de pintura Mário Soares bateu um grande papo com Calasans, autor do quadro de que gostara muito e convidou-o para, quando saíssem, levá-lo a dar um giro por Lisboa, queria mostrar-lhe algo interessante.

        Na hora de ir embora, o escritor Alçada Baptista passou pela exposição de Cala para lhe oferecer uma carona: Vamos, Calasans!, dou-te boléia na minha carrinha..., ao que Calasans lhe respondeu: E eu lá vou querer boléia na carrinha de um simples escritor, quando tenho carona garantida no carro de um primeiro-ministro, o próximo presidente da República? Seria apenas um palpite de Cala ou ele entendia mesmo da política portuguesa?

       

      NOTA TRISTE

        Nessa noite da inauguração da Semana da Bahia, com as autoridades portuguesas, a direção do Casino e os artistas brasileiros esperávamos a chegada do presidente da República para dar início à inauguração.

        Dário Castro Alves, embaixador do Brasil que dera grande apoio ao evento, não conseguia esconder sua tensão, rosto transtornado... Jorge quis saber o que estava ocorrendo e ele não pôde conter as lágrimas. Sua mulher, a escritora Dinah Silveira de Queiroz, estava agonizando, no Brasil, onde se encontrava em tratamento. Ele só esperava que o presidente Eanes inaugurasse a exposição, para sair direto para o aeroporto, não podia sair antes, não podia quebrar o protocolo diplomático.

        Assim que o presidente chegou, Jorge chamou dona Manuela de lado, explicou-lhe o drama do embaixador. Dona Manuela não teve dúvidas, discretamente falou em particular ao marido, e foi assim que o presidente Eanes inaugurou em seguida a Semana da Bahia no Estoril.

        Dário conseguiu tomar o avião e chegar ao Brasil a tempo de assistir aos funerais de sua amada Dinah.

           

      ALDEIA SUBMERSA

        Acompanhados pelo engenheiro-agrônomo João Vasconcelos, primo de Celestino, visitamos uma aldeia ao lado da Serra do Jerez, nos seus últimos dias de vida. As comportas da barragem que acabavam de construir iam ser abertas, a aldeia e quilômetros de campo ao seu redor iam ficar submersos.

        Descemos com dificuldade o terreno íngreme até chegarmos à aldeia, onde caminhões estavam sendo carregados com os últimos pertences da população.

        Aldeia mais linda, mais pitoresca, me emocionou. As casas, na sua maioria, eram feitas de blocos de pedras, com vasos de delicadas flores nos parapeitos das janelas. Por toda a parte, o terreno fora aproveitado, lá estava o vinhedo, as parreiras baixas carregadas de cachos de uvas mal despontadas que estavam sendo devoradas, com avidez, por cabras, bodes e carneiros, diante da indiferença dos camponeses. Deixa que comam, coitadinhos, ao menos que eles as aproveitem, dizia a velhinha,  já não as colheremos...

        Com um nó na garganta diante da tristeza daquelas criaturas que se despediam de toda uma vida, eu fotografava. Olhe esse, não perca..., apontava-me o engenheiro-agrônomo a porta da igrejinha. Dela saía um homem equilibrando um caixão mortuário na cabeça, o único da comunidade, o que servia para velórios e o acompanhamento do funeral até a cova, quando então o cadáver era envolvido num lençol para ser enterrado e o ataúde devolvido para o próximo ocupante. O caixão foi colocado no caminhão ao lado de colchões, cadeiras, mesas, tachos e mil tralhas. Até um cachorro foi embarcado nessa viagem.

        Nosso entusiasmo ao chegarmos se fora, dera lugar à melancolia, assistíamos aos últimos momentos, à agonia de um povoado. Coração apertado, nos despedimos dessa gente da aldeia do Jerez, seus últimos habitantes.

       

      PÓVOA DO LANHOSO

        Nosso plano de passar alguns dias na quinta de Celestino não deu certo, ficamos com eles apenas um dia e uma noite. Viagem muito longa, de Lisboa ao norte, a gente parando em Póvoa do Varzim, querendo visitar uma das maiores joalherias de Portugal, cujo proprietário era casado com uma baiana, Fernanda São Paulo. Como passar por Braga, cidade encantadora, sem parar?

        Os acertos com Cândida e Celestino para o casamento de nossos filhos não foram fáceis. Havia um problema muito sério para os pais da noiva, a ser resolvido, problema que para nós, os pais do noivo, não existia.

        Católicos praticantes, o casal Celestino não podia admitir um casamento que não fosse na Igreja, a noiva de véu e grinalda.

        Consultado sobre a realização da cerimônia na Igreja de Santa Tereza, no Museu de Arte Sacra do qual era diretor, Dom Clemente da Silva Nigra se negara a oficiar a cerimônia, como não permitiria, sequer, o casamento de um herege em sua igreja. João não queria batizar-se, era irredutível em seus princípios.

        Para nós isso não era um problema, pois tanto Jorge como eu éramos de opinião que o casamento só no civil era suficiente e até sem civil bastava. Tínhamos o nosso exemplo: apenas o amor nos ligava há tantos anos. Não podíamos nos casar oficialmente, pois Jorge e eu éramos desquitados e ainda não existia a lei do divórcio.

        Por falar nesse assunto tão delicado de casamento e amigação, eu me permitiria contar aqui um sucedido, mostrar que nem tudo o que brilha é ouro. Quem pensa, e há muita gente que assim julga, que na Bahia Jorge Amado manda e desmanda, tem todas as facilidades e regalias, se engana.

        Ao completarmos vinte e cinco anos de vida em comum, Jorge achou que devíamos oficializar meu nome. Eu usava ilegalmente o sobrenome Amado. Para quem viajava e necessitava apresentar passaporte, às vezes era desagradável ter que dar explicações: Afinal de contas a senhora é Amado ou Gattai! Encomendas postais, recomendadas à Zélia Amado, eu não podia retirar.

         Não custa nada oficializar teu nome de vez, disse Jorge, vamos resolver isso em três tempos. Tínhamos tanto o exemplo de Mindinha Villa Lobos, que adotara oficialmente o nome do Maestro com quem vivia há muitos anos, como também o de Nair de Carvalho que adotara, oficialmente, o nome de Genaro.

        Tibúrcio foi convocado para tratar do assunto. Vai ser fácil, disse, principalmente já havendo precedentes. Nenhum juiz vai ter medo de ser o primeiro. Se foi por medo ou por qual motivo foi, não sei. A resposta à petição foi um não redondo, o juiz, cujo nome fiz questão de esquecer, borrar de minha mente, negou o pedido de Jorge. Soubemos por Tibúrcio, que nos contou morto de encabulado, que houve rebuliço no Tribunal por causa dessa negativa e até gestões foram feitas junto ao juiz, mas ele, irredutível, confirmou a sentença: Não pode e tenho dito.

        Quem resolveu o assunto foi o senador Nelson Carneiro, que, através de seu escritório em São Paulo, encaminhou novo pedido. Numa semana tudo foi resolvido. Viajei para São Paulo apenas para assinar os papéis necessários. Estava autorizada a usar oficialmente o nome Zélia Gattai Amado.

        Com a promulgação da lei do divórcio, lei proposta e batalhada por Nelson Carneiro, Jorge e eu, após trinta e dois anos do concubinato, nos casamos oficialmente, o que nada mudou em nossa vida, a não ser nos permitir legalizar nossos filhos que deixaram de ser filhos ilegítimos para serem filhos legítimos.

        Ao escrever Anarquistas, graças a Deus, assinei o livro com o nome herdado de meu pai. Não queria, de forma alguma, aproveitar a promoção de um nome famoso, não queria vender livros na rabeira de Jorge Amado. Se o que escrevi agradar aos leitores, pensei, que seja esse o único motivo para um eventual sucesso. Hoje sou conhecida como Zélia Gattai, não desprezo o nome que ganhei pelo casamento, ao contrário, é um nome que muito me honra e o uso sempre que preciso.

       

      DOIS PADRES, DUAS CABEÇAS

        A seu ver, Cândida não nos pedia muito, queria apenas que, ao voltarmos para a Bahia, convencêssemos João a se batizar. Na sua ingenuidade ela nem desconfiava estar pedindo a coisa mais impossível.

        Criamos nossos filhos na maior liberdade religiosa, eles seguiriam o que suas cabeças e seus corações mandassem, estaríamos sempre ao lado deles sem interferir. Pelo visto, João e Paloma ainda não haviam abraçado nenhuma religião e não seria o pai nem a mãe que iriam violar seus princípios de liberdade, forçando-os a fazer concessões. João, aliás, fizera uma concessão, casaria na Igreja Católica para não desgostar a noiva e seus pais. Porém, de jeito nenhum se batizaria nem confessaria.

        O impasse criado, Jorge deu uma sugestão: Por que não procuram outro padre? Certamente encontrarão um mais liberal. Por exemplo, Paloma ia casar-se na Igreja Católica, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento, de Salvador, convidado pelos meninos para celebrar a cerimônia, sugerira realizar um casamento ecumênico, de um católico com uma não-católica. Mas era difícil encontrar outro padre tão aberto, tão inteligente quanto Dom Abade.

       

      CASAMENTO ECUMÊNICO

        Cerimônia marcada para as onze horas da manhã, no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, às dez horas, em nosso apartamento da Rodolfo Dantas, todo de branco, terno impecável, Jorge dava pressa à filha que se vestia. Vestido simples de seda tailandesa, presente de uma das madrinhas, Beatriz Costa, confecção de Diná, prima de Jorge. Paloma não quisera véu nem grinalda, apenas um arranjo na cabeça, desenhado pelo noivo.

        Às onze em ponto Jorge ajudava a filha a saltar do carro, na porta da igreja. Desta vez ele não conseguira chegar adiantado, desistira de apressar a filha ao ver que a menina chorava nervosa. Os convidados, em sua maioria, acostumados aos atrasos das noivas, ainda não haviam chegado, pouca gente estava na igreja. A menina Ana Tornaghi, filha de Maria e sobrinha de Pedro, que levaria as alianças, só chegou no fim da cerimônia. Pedro fazia hora conversando com Dom Abade na sacristia, quando foi chamado às pressas, assim mesmo, ao chegar ao altar a noiva lá se encontrava à sua espera.

        Elegante, num vestido novo, comovida com o casamento da neta, lá estava Lalu. Eu usava um vestido verde e chapéu de palha, trazidos de Paris, onde comprara na companhia de Blanca Astúrias, que morava lá e, muito expedita, sabia tudo de modas e onde encontrar o melhor e mais barato.

        Dom Abade, com sua batina branca, iniciou o ato: Realizo aqui a cerimônia ecumênica do casamento de um católico com uma não-católica. Ao meu lado Lalu não gostou, cutucou meu braço. Dom Timóteo continuou escandalizando Lalu, a cada vez que mandava Pedro ajoelhar-se e Paloma ficar de pé ou Pedro rezar e Paloma permanecer calada.

        Em casa, ao ser indagada se gostara do casamento, Lalu desabafou: Se gostei? Estou indignada com esse padre, disse, havia necessidade dele atirar na cara da menina, na frente de todo mundo, que ela não é católica? Mandou a pobrezinha ficar de pé, mandou que não rezasse pra que as pessoas pensassem que ela não sabe rezar... Eu estava vendo a hora dele meter a mão na cara de minha neta... Nem sei como tu mais Jorge tiveram paciência de assistir tudo isso, calados...

        Não entendendo nada sobre essa modernidade de casamentos ecumênicos, Lalu fora sincera ao desabafar e não se convenceu nem mesmo depois de ouvir a explicação do filho sobre a significação do progresso da Igreja Católica, permitindo, democraticamente, que tal cerimônia se realizasse. Jorge tratou de desfazer a má impressão da mãe sobre Dom Timóteo... Achávamos que Lalu entendera tudo mas ela ainda tinha uma ressalva: Está tudo muito bem, disse, no meu tempo não tinha dessas coisas, só não achei certo o padre dizer na frente de tanta gente que a menina não é católica. Roupa suja a gente lava em casa, não é, meu filho?

        Deixamos Paloma no Rio, ela ia morar no andar superior de nosso apartamento, na Rodolfo Dantas.

       

       A OUTRA AVÓ

        Fico pensando o que teria dito minha mãe se tivesse assistido ao casamento da neta. Liberal, anarquista anticlerical, ela era, no entanto, preconceituosa, tinha medo da língua do povo e, certamente, pelos mesmos motivos de Lalu, não teria gostado da novidade ecumênica. Não se deve fiar nos herdeiros da Santa Inquisição; os anos passam mas o ranço fica. Ouvi mais de uma vez dona Angelina repetir essa frase.

        Mamãe nos deixara havia dois anos. O telegrama anunciando a sua morte, enviado por meu cunhado, José Soares, marido de Wanda, era lacônico: Dona Angelina faleceu, repentinamente, esta noite. O enterro será às cinco horas.

        Repentinamente, eu ficara sem mãe. Me atirei na cama, o corpo morto, chorei, chorei, sem mesmo poder ouvir as palavras de consolo de Jorge e de meus filhos.

        Jorge trabalhava no momento num livro, escrevia Tenda dos Milagres, não podia me acompanhar aos funerais de minha mãe. Consegui um vôo para São Paulo e sozinha parti. Cheguei ao cemitério do Araçá, onde o corpo estava sendo velado, a tempo de beijar a testa gelada de mamãe e de colocar-lhe nas mãos uma rosa vermelha.

 

      CASAMENTO DE JOÃO

        Voltamos logo do Rio, o casamento de João estava marcado para daí a um mês e eu não tivera tempo de providenciar nada.

        O impasse continuava: Dom Clemente fincara o pé, não celebraria o casamento de um herege, filho de um ateu. Botara Jorge na berlinda ao negar também a Igreja de Santa Tereza.

        O Museu de Arte Sacra, ao qual pertencia a Igreja de Santa Tereza, era administrado pela Universidade Federal da Bahia. Bastou uma palavra do reitor, Roberto Santos, para que suas portas fossem franqueadas e bastou uma autorização do cardeal-arcebispo, Dom Avelar Brandão Vilela, para que o casamento ecumênico se realizasse sem necessidade de batismo.

        Finalmente, foi escolhido o padre ideal, pessoa ótima, liberal, estimado na Bahia, Dom Jerônimo de Sá Cavalcante, de família cearense. Ele, inclusive, fora citado por Jorge, como personagem, num romance.

        Dom Jerônimo deu início à cerimônia, presentes o reitor e dona Maria Amélia, sua esposa, o governador do estado, Luiz Viana Filho com dona Juju. Às tantas, Dom Jerônimo fez uma pausa e, dirigindo-se ao noivo, disse: João, no romance Dona Flor e seus dois maridos seu pai deu-me a honra de fazer-me personagem. Na página 231 ele diz: "onde o celebrante, Dom Jerônimo, sapecou sermão dos mais eloqüentes". Eu queria dizer aqui, hoje, na presença de Jorge Amado, que não costumo sapecar sermões, costumo proferir palavras de amor... e é o que vou fazer agora ao celebrar um casamento ecumênico de uma católica com um não-católico.

        A gargalhada foi geral, Dom Jerônimo acabara de lavar a alma, livrara-se daquele incômodo sapecou, que havia anos estava entalado em sua garganta.

        Felizmente, segundo a praxe, os pais da noiva ocuparam-se dos detalhes do casamento, inclusive os da recepção. A nós coube ceder um pedaço de nosso terreno e construir uma casa para os jovens morarem. Seríamos vizinhos, dividiríamos o mesmo jardim.

       

      CASA VAZIA

        Nossa casa tão grande, tão movimentada com nossos filhos e seus amigos trazendo música e entusiasmo para dentro das portas, de repente, no espaço de um mês, ficou vazia, silenciosa. Bom motivo para fugirmos daquela tristeza, foi Jorge aceitar o convite para um período de três meses, como autor residente de uma universidade da Pensilvânia, a Pen State University, em State College. Sairíamos um pouco da condição de pais órfãos de filhos.

        O programa que a universidade propunha era interessante. Jorge se reuniria uma vez por semana com alunos que estudavam literatura brasileira nos livros de Jorge Amado. Nas reuniões semanais entre o autor e seus leitores, haveria debates e questões apresentadas pelos alunos, curiosidades respondidas pelo escritor. Uma intérprete faria a tradução nesses encontros e nas palestras que ele deveria realizar.

        Jorge respondeu a Stanley Wentraub, conhecido escritor e diretor da universidade, aceitando o convite. Seria uma boa experiência o contato direto com alunos e leitores, conheceríamos de perto o dia-a-dia da vida americana, aprenderíamos bastante. Eu voltaria aos trabalhos de dona de casa, pois teríamos um apartamento mas não uma empregada. Ser dona de casa, arrumar e limpar, cuidar da roupa lavada e ir para a cozinha não me assustava.

        Deveríamos estar em State College em agosto, tínhamos muito tempo pela frente, podendo nos dar ao luxo de ir de navio até Los Angeles, onde passaríamos uns dias com Cyva e Aloysio de Oliveira que, ao saberem de nossa viagem, nos haviam convidado a passar uns dias na casa deles. Depois, a conselho de Alfredo Machado, doutor em roteiros americanos, tomaríamos um confortável ônibus indo até Las Vegas.

       

       BRASIL MARU

        Deixamos Lalu com Fanny e Joelson, em São Paulo. Ao lado do filho médico ela se sentiria confortada.

        Tomamos em Santos o Brasil Maru que nos levaria até Los Angeles. Navio japonês, pequeno, simpático, ele tinha apenas três cabines de primeira classe, duas das quais já se encontravam ocupadas por passageiros embarcados na Argentina. No convés inferior havia uma pequena piscina e, mais abaixo, uma segunda classe que ia lotada de japoneses de volta à sua terra, depois de muitos anos no Brasil. Famílias inteiras com filhos nascidos em São Paulo, haviam, como nós, embarcado em Santos.

        Naquela tarde fria, tarde triste de garoa, o navio zarpou lentamente, iria costeando as cidades do Norte.

        Passávamos ao largo, em frente a Salvador, vendo ao longe as luzinhas da cidade, quando ouvimos pelo rádio de um vizinho o noticiário da Bahia. Teríamos entendido bem? Prestamos atenção, o locutor falava da morte de Genaro de Carvalho, vítima de um aneurisma. Genaro morrera no dia do meu aniversário. Passamos um telegrama para Nair, falando de nossa imensa tristeza. Nada mais podíamos fazer.

        As distrações no navio eram poucas: concurso de arranjos florais, roleta com pequenos brindes para os ganhadores, cerimônia do chá, à tarde... Não tínhamos com quem bater grandes papos, as conversas de nossos companheiros argentinos eram diferentes das nossas. Um dos casais levava uma filmadora e marido e mulher faziam planos de filmagens para um documentário, aproveitando em Los Angeles em excursões de ônibus, já programadas, uma ao Grand Canyon, onde pretendiam esbaldar-se. Não esqueço a cena: diante de um espelho, o camera man, em atitude de quem está filmando, ensaiava, dizendo com voz pausada, um texto decorado: Estamos delante del grande canon, muy grande... muy grande...

        Mais interessante do que as conversas com os companheiros da primeira classe era o convívio com os pequenos nisseis lá de baixo, uns azougues, vivos como eles só. Jorge os convidava todos os dias para um piquenique, comprava na cantina Coca-Cola, sanduíches, bolos, balas... Reunia-se com os meninos lá embaixo, pois eles eram proibidos de subir à piscina e à primeira classe. Todos eles tinham um nome japonês e um brasileiro. Gilberto, o mais esperto, o mais sabido, em voz baixa, tom confidencial, perguntou-me certa manhã, após um gole de Coca-Cola e um arroto: O marido da senhora é prefeito? não é? então como ele compra tanta coisa pra gente?... Esse mesmo garoto um dia, levado por  mim ao nosso camarote, se encantou ao ver que até tapetes havia no chão. Depois pegou de cima da mesinha um jornal de Santos que compráramos ao embarcar e, ao ver o retrato de Jorge estampado nele, se admirou. Soletrando a legenda embaixo, descobriu o nome do generoso promotor de piqueniques e não se conteve, bateu a mão na testa: Jorge Amado! Pooorrra!

        A freguesia para os piqueniques aumentava cada vez mais. Jorge, com suas compras, cada vez maiores, ia esgotando os estoques da cantina. Os meninos traziam a mãe, o pai, o tio, as irmãs mocinhas que animavam o convescote com músicas de Roberto Carlos cujos discos eram tocados numa eletrolinha. Era uma graça vê-las revirando os olhos ao ouvir a voz de seu ídolo. Essas nunca vão se conformar de viver longe do Brasil, profetizava Jorge.

       

      LOS ANGELES

        Depois da repousante viagem no Brasil Maru, chegamos a Los Angeles onde Cyva, Aloysio e um grupo de brasileiros nos esperavam.

        Numa casa pré-fabricada da longa avenida de graciosas residências, as casas exatamente iguais, rodeadas de grama e jardins floridos, viviam Aloysio de Oliveira e Cyva Leite, fundadora do célebre Quarteto em Cy. Voz suave, afinada como um sabiá, toda delicadeza, Cyva ali na cozinha, de dona de casa, limpava um peixe enorme que ela mesma prepararia para nós. Perguntou-me se tínhamos roupa para lavar: Hoje é dia da lavadeira vir... Aloysio ouviu a conversa e desmascarou-a em seguida: Não vá na conversa dela, Zélia, aqui não é Brasil, não existe essa de dia de lavadeira vir... Temos máquina de lavar mas é Cyva quem se ocupa disso e, se você duvidar, ela é muito mulher de ir para o tanque e lavar a roupa de vocês, ela mesma. Vi logo que, com a disposição de nossa amiga, não poderíamos encompridar a estada em sua casa.

        Com Cyva e Aloysio fomos à Disneylândia e passamos uma tarde inteira nos estúdios da Universal assistindo a filmagens simuladas, tudo novidade para nós.

        Chegara a hora de partir, nossos anfitriões tinham compromissos de trabalho, Cyva fazia dublagem em filmes da Walt Disney e Aloysio era conselheiro musical. Já déramos muito trabalho à nossa amiga, a nos cercar de atenções. Além do mais, tínhamos pela frente um bom pedaço de caminho a percorrer.

        Os carros do casal eram enormes, aliás, eram tão grandes quanto os que todo mundo usava em Los Angeles, no diário. Pelas ruas da cidade a novidade era ver-se um carro pequeno. Estranhamos, desde o primeiro dia, um carrão estacionado no jardim, encostado à casa de nossos hospedeiros. É do Edu Lobo, explicou Aloysio, está aí guardado até que um dia ele volte do Brasil. Se vocês quiserem ir a Las Vegas nele, está às ordens, Edu não vai se incomodar, ao contrário, vai até gostar. Agradeci, preferíamos ir de ônibus mesmo.

       

      LAS VEGAS

        Las Vegas era o que esperávamos ver e muito mais. O táxi que nos pegou no ponto final do ônibus nos levou ao hotel indicado por Alfredo Machado, reserva feita também por ele.

        O chofer nos deixou diante de um prédio onde havia uma porta fechada. Largou nossa bagagem na calçada, recebeu e partiu sem querer muita conversa. Esse homem nos deixou em lugar errado, disse Jorge. Isto não tem cara de hotel. Fique aí com as malas, vou até a esquina, talvez a entrada seja do outro lado... Não era. Fique você agora com as malas aí que eu vou empurrar aquela porta e ver se alguém pode nos informar, disse eu.

        Logo atrás da discreta porta, divisei um verdadeiro mar de maquininhas, caça-níqueis com pessoas em torno, puxando manivelas para a frente e para trás, os níqueis caindo nas cuias, fazendo barulho. Na porta não havia uma única pessoa para dar informações. Não foi preciso. Descobri, logo adiante, num cantinho, a portaria do hotel. Apenas um balcão que não ocupava grande espaço. Nossa reserva lá estava. Um hotel quatro estrelas, luxuoso, e não tinha, no entanto, uma portaria decente. Nos deram, como oferta da casa, alguns vales para jogar. Nessa eles não me pegam, disse Jorge que tanto adora um joguinho de pôquer com amigos quanto detesta jogos de azar. Jamais joga em cassinos.

        Até chegarmos ao nosso quarto fomos esbarrando com jogos de todos os tipos e tamanhos. Descobrimos, em seguida, que no hotel não havia um único relógio. Ninguém devia se dar conta da hora, estavam ali para jogar, sem se preocupar com horários, sem parar. Passamos dois dias em Las Vegas, tempo suficiente para ver tudo, inclusive para assistirmos ao espetacular show que o cassino oferecia na hora do jantar.

        Em Las Vegas tomamos uma excursão, o ônibus nos levaria ao Grand Canyon e à Floresta Petrificada.

       

       GRAND CANYON E FLORESTA PETRIFICADA

        Para o Grand Canyon, eu nunca encontrarei um adjetivo que lhe faça justiça: grandioso? monumental? A enciclopédia, à qual pedi ajuda, diz tratar-se das gargantas do Colorado no Arizona, sem outros comentários.

        Pensávamos tê-los perdido de vista, mas lá estavam eles os argentinos companheiros de viagem, filmando, ele de operador, ela de assistente. A distância dava para notar que ele filmava e falava ao mesmo tempo. Estaria repetindo o que decorara no navio ou, diante daquela grandeza, teria mudado o texto?

        Se o Grand Canyon nos causou um grande impacto, o mesmo não aconteceu com a Floresta Petrificada. Era a segunda que visitávamos, uma bem diferente da outra. A primeira fora em Kuo-Ming, no sudoeste da China, em viagem com Pablo Neruda e Matilde. Viagem começada em Sri Lanka — na época, Ceilão — depois de um congresso de escritores. De lá seguimos para a índia, depois fomos à Birmânia e, finalmente, à China, viagem e peripécias já narradas em livros anteriores.

        Na Floresta Petrificada do Colorado os enormes troncos de pedras que um dia, há milhares de anos, haviam sido árvores, estavam tombados, caídos no chão, enquanto as árvores petrificadas de Kuo-Ming conservavam-se de pé, verdadeira floresta de troncos e galhos de pedra, espetáculo único. A caminho de Nova York passaríamos pelas cataratas do Niágara.

        Estávamos ansiosos para chegar a Nova York onde, certamente, encontraríamos cartas de nossos filhos, notícias da Bahia. Mirabeau ficara de escrever sempre. Jorge dera a todos o endereço da Editora Knopf, que publicava seus livros, para o envio das cartas ou para qualquer emergência.

       

      NOVA YORK

        A nossa espera, em Nova York, estava nosso amigo e editor de Jorge, Alfred Knopf. No hotel, reservado por ele, encontramos uma cesta de frutas, frutas de toda qualidade, formando uma pirâmide altíssima com um gentil cartão de Helen e Alfred.

        Ao lado da corbeille, estava o que mais ansiávamos: várias cartas do Brasil e ainda um cassete. Na fita gravada, João mandava notícias, fora de casa em casa, gravando mensagens de nossos amigos.

        Agora, deleitados, ouvíamos João contando as novidades da casa, falando com orgulho da gravidez de Mariinha, que nos preparássemos para estrear de avós. Norma, Mirabeau e Carybé contavam as novidades da terra. Havia carta de Paloma, falando de sua vida nova, de seus estudos. A carta de Joelson dava notícias de Lalu. Havia ainda uma cartinha de Zuca: Graças a Deus, o jardim vai bem, não tem chovido muito, nem feito muito sol...

       

      ALFRED KNOPP

        Alfred Knopf editara nos Estados Unidos, pela primeira vez, em 1945, um livro de Jorge Amado: The Violent Land tradução de Terras do sem fim. De editor ele se tornara nosso amigo.

        Knopf estivera no Brasil havia pouco tempo e com ele fizemos uma viagem de automóvel à cachoeira de Paulo Afonso, Norma, Caymmi e Paloma, alegrando a longa viagem.

        Foi em Pedra, cujo nome hoje é Delmiro Gouveia, que Antônio Carlos Menezes, dono de uma fábrica têxtil, nos hospedou. Essa fábrica, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso, estava instalada onde outrora fora a famosa e moderna, para sua época, fábrica de linhas de Delmiro Gouveia, destruída por concorrentes estrangeiros, que atiraram as máquinas na cachoeira. Fato histórico.

        Noto que me distanciei da viagem a State College sem ao menos pedir licença. Mas, já que me deslanchei nesse longo parêntese, me desculpo agora e vou até o fim que, aliás, não está muito longe. Talvez.

        Numa espécie de gaiola, sustentada por um grosso cabo de aço, atravessamos a cachoeira, barulho ensurdecedor, espetáculo fantástico. No jantar ao ar livre, no jardim da fábrica, assistimos a danças populares regionais, inclusive uma de autoflagelação: homens sem camisa, munidos de ramos de urtiga, fazendo uma roda, cantando, dançando e se autoflagelando, batendo com violência os ramos da erva-de-fogo no peito e nas costas, os vergões vermelhos rompendo a pele... Espetáculo que recebia aplausos dos curiosos que assistiam de pé, mas que a nenhum de nós agradou.

        My God!, dizia Alfred Knopf, horrorizado, ao terminar o macabro espetáculo, quando um cidadão que nos rondava desde a nossa chegada aproximou-se, abaixou-se e lhe disse:

        —  Fodelequê? Fodelequê?

        —  O que ele está dizendo? — quis saber Knopf.

        Jorge também não entendera, perguntou à mulher do gerente da fábrica que riu meio encabulada:

        —  Ele está oferecendo mulher e, para que as esposas presentes não entendam o que diz, ele muda um pouco a palavra... não é a primeira vez que faz isso. É um cretino — concluiu —, está pensando que nós somos burras.

        Quem gostou da história foi Caymmi: Que moleque mais descarado!, riu a viagem toda recordando a astúcia do pilantra. Até hoje ele não esquece e ri novamente ao lembrar o malandro de Paulo Afonso.

        A mesma moça, a mulher do gerente da fábrica, nos falou de um hábito da terra: na véspera de seu casamento, a noiva é banhada pelas amigas com óleos perfumados. Ela mesma participara do banho de Socorro, uma operária da fábrica:

        No bacião, pelada, Socorro, ia recebendo a água perfumada e os óleos que as amigas lhe passavam, respondendo, deleitada, às suas piadas maliciosas:

        — E hoje, hein, Socorro...

        —  Cala a boca, mulher!                                        

        —  Socorro, tu tá nervosa?

        —  Cala a boca, mulher!

        —  Socorro, tu tá com medo?

        —  Cala a boca, mulher!

        —  Socorro, tu vai gritar?

        —  Cala a boca, mulher!

        —  E se tu não gostar, Socorro?

        —  Cala a boca, mulher!

        Segundo a simpática senhora que nos contou essa e outras historinhas da terra, o banho das noivas dura horas e enquanto houver perguntas ele não termina.

        Nosso último passeio por Paulo Afonso foi a Piranhas, nas margens do São Francisco, quando fizemos um belo passeio de barco. Eu sabia, de ouvir Dadá contar, que fora em Piranhas que haviam matado o seu amado Corisco.

        O prefeito de Piranhas nos ofereceu um almoço e foi nesse almoço que eu cometi a grande gafe: na maior das inocências perguntei ao anfitrião, a meu lado na mesa, se o assassino de Corisco fora preso, se ainda era vivo. Houve um silêncio de gelo, e não precisei que me explicassem nada. Metera a pata: o tal prefeito outro não era senão o mandante ou o próprio que matara Corisco, nunca fora esclarecido. Em Piranhas o assunto era tabu, ninguém comentava.

        De Salvador, Knopf seguiria para o Rio de Janeiro onde se encontraria com Helen, que devia chegar do Oregon, sua terra, para casar-se com ele. Ambos idosos, ambos viúvos, ela autora de livros, ele seu editor, haviam tido um romance no passado. Tendo se reencontrado, depois de muitos anos, o amor renascera, marcaram encontro no Rio para o casamento. Alfredo Machado se encarregara dos papéis, de tudo. A cerimônia seria celebrada na casa do advogado José Nabuco, grande amigo de Knopf.

        Minha admiração por esse cidadão, apaixonado aos setenta e tantos anos, aumentou ao saber que ele não iria esperar Helen à sua chegada no aeroporto, às primeiras horas da manhã. Quero deixar Helen à vontade, não vou constrangê-la com a minha presença... Depois de uma viagem longa, de uma noite maldormida, na sua idade, certamente chegará muito cansada.. Só vou me encontrar com ela depois que descansar, de banho tomado, toalete feita, maquiada.  Pedi a Alfredo Machado, ele irá recebê-la. Tanta delicadeza me impressionou.                                           

        Maravilhado com tudo o que vira na longa viagem, Knopf disse sua última palavra: Quem tem uma cachoeira como a de Paulo Afonso não pode invejar as cataratas do Niágara. Foi exatamente o que pensamos, Jorge e eu, tempos depois, a caminho de Nova York, no encontro com as famosas cataratas do Niágara, tão lindas, tão arrumadinhas, tão bem-cuidadas... Nem se comparam com as nossas cachoeiras, dissemos, a de Paulo Afonso, poderosa com sua voz de trovão e as selvagens e grandiosa Sete Quedas do Iguaçu, únicas, nenhuma outra pode nos causar inveja.

        

      LAÍS E WALTER

        Além de Alfred Knopf, tínhamos encontro marcado em Nova York com uma amiga, Laís Saldanha. Casada com o americano Walter Palmer, Laís deixara o Rio, onde tinha uma butique de luxo, fora morar na Pensilvânia. Íamos ser quase vizinhos por três meses, motivo de júbilo para nós e para eles. A cidadezinha onde Laís e Walter moravam ficava entre Washinghton e State College, nos separaria apenas uma montanha.

        A gentileza de Laís e Walter nos comovia. Em dois automóveis eles foram a Nova York especialmente para nos oferecer um dos carros que usaríamos enquanto estivéssemos nos Estados Unidos.

       

        Saí, pois, de Nova York dirigindo um Chevrolet enorme, sem tamanho. Eu nunca pegara um carrão daqueles. Morta de medo, diante do sofisticado painel em minha frente com mil botões e mil luzinhas, sem conhecer as estradas americanas, dei a partida e me toquei. Seja lá o que Deus quiser. Felizmente Laís e Walter nos acompanharam no seu carro e, comboiados na longa viagem com montanhas e curvas fechadas, chegamos à State College sãos e salvos.

        

      STATE COLLEGE

        A cidade universitária, pequena e simpática, nos agradou em seguida. Professores e alguns brasileiros aguardavam a nossa chegada, destacando-se entre eles Gerard Moser, entusiasta da literatura brasileira, ele mesmo falando perfeitamente o português.

        Nosso apartamento era situado num edifício igual a todos os daquele correr de prédios. Apartamento de dois quartos, uma sala e cozinha, era absolutamente idêntico, inclusive na decoração, a todos os apartamentos do prédio. Disso tivemos uma experiência divertida.

        Todos os dias, à mesma hora, da janela aguardávamos a chegada do carteiro. Ele descia de um carro, entrava no prédio, separava a correspondência e a depositava cada uma a seu dono, em seus escaninhos. Assim que o carteiro apontava, corríamos ao seu encontro. O desejo de receber cartas, ter notícias de nossos meninos, dos amigos, era grande.

        Nesse dia, o da historinha que vou contar, Jorge desceu sozinho, eu estava ocupada na cozinha. O carteiro trouxera várias cartas e ele tratou de abrir logo a de tarja verde e amarela com carimbo da Bahia. Abriu a carta e foi lendo, o elevador chegou e ele continuou lendo no elevador, a porta do elevador se abriu e ele saiu, sempre lendo, empurrou a porta do que achou ser seu apartamento, entrou e, como de hábito, refestelou-se na poltrona, tirou os sapatos e me chamou. Quem atendeu ao seu chamado foi um casal de japoneses, habitantes daquele apartamento. Jorge descera em andar errado. Ao dar-se conta do engano, tratou de calçar os sapatos, desculpe, e se foi, sem outra explicação. Jorge cumpria com seriedade o contrato que fizera com a universidade. Participava e gostava dos encontros, sempre muito animados, com alunos americanos e também assistidos por jovens brasileiros. Com Gerard Moser, esses jovens haviam fundado o clube do bate-papo que, como o nome indica, os reunia para grandes papos.

        Sempre cercados de muito carinho, fomos algumas vezes convidados a jantar em casa de um e de outro. Ninguém tinha empregada, as mulheres, em geral professoras, acumulavam funções, trabalhando muito, embora sempre ajudadas pelos maridos nos afazeres da casa e, sobretudo, na hora de servir o jantar cabia ao marido cortar o pernil assado, trinchar o frango, servir as bebidas. Ajuda que jamais poderia esperar de Jorge, desajeitado, sem vocação nem vontade de se bandear para tais misteres. Também não era tanto assim, não quero ser injusta: Jorge arrumava a mesa e me ajudava a tirá-la, despejava o lixo.

        Morrendo de saudades de meus filhos, estranhei constatar que, em geral, os jovens, ao chegar à puberdade, iam cuidar de suas vidas, deixavam a tutela dos pais, iam se arrumar, morar sozinhos.

       

      VÁRIAS VIAGENS

        Para quem sempre teve uma vida movimentada, a tranqüila estada em State College começava a cansar. Estávamos em pleno outono, o inverno se aproximava, já víramos tudo o que queríamos ver, inclusive a coisa mais bela, o amarelo em todos os seus tons, do ouro ao vermelho, das folhas caídas das árvores, formando um tapete, no outono da Pensilvânia. Descobrimos uma feira nas aforas da cidade, onde vivia toda uma comunidade de homens e mulheres que cultivavam a terra, construíam suas próprias casas, faziam as próprias roupas e em suas grandes carroças, também feitas por eles, transportavam verduras e frutas para vender. Em nosso pequeno e frio alpendre havia sempre melancias e melões geladinhos que comprávamos desses camponeses.

        Na companhia de Laís fomos mais de uma vez a Washington, parando nos imensos shopping centers, em plena estrada, onde eu comprava coisas para meu neto que estava para chegar.

        De Nova York, Knopf preocupava-se conosco, Alfredo Machado também andava inquieto, telefonava muito do Brasil e, conhecendo como conhecia Jorge, estava achando que devíamos espairecer um pouco e trataram, ele e Knopf, de organizar viagens para nós, que não atrapalhassem os compromissos cpm a universidade.

        Organizada pelos dois amigos, passamos um fim de semana em Filadélfia, visitando o grande museu, tão grande e tão poderoso que um fim de semana não foi suficiente. Voltamos ainda uma vez.

       

      BOSTON

        Tínhamos grande curiosidade de conhecer Boston, queríamos ver de perto o problema racial onde, na voz geral, o poder negro era absoluto, dominante.

        Por telefone, Knopf nos disse que chegara do Brasil para nós uma carta e um cassete. Pedimos-lhe que mandasse tudo para o hotel em Boston, no mesmo reservado por ele.

        Cidade imensa, poderosa, Boston com seus arranha-céus, lembrou-me um pouco São Paulo. Pelas ruas circulavam enormes cadilaques conversíveis, de cores vivas, alguns até com pinturas de flores, todos, sem exceção, dirigidos por negros tão ou mais enfeitados que os próprios carros.

        Prevenidos da animosidade deles contra os brancos, procuramos ser o mais prudentes possível. Mesmo assim, ao olhar encantada, sem nenhuma segunda intenção, para uma fila de mulheres negras de vestidos coloridos e vistosos chapéus de abas largas que, de braços dados, tomavam grande parte da calçada, quase fui agredida por uma delas que me ameaçou com um guarda-chuva.

        Sempre repudiamos, Jorge e eu, o preconceito racial, sabíamos, e quem não sabe? Só não sabe quem não quer, o quanto os negros sofreram, desde os tempos da escravidão, nas mãos dos brancos. Pela primeira vez, no entanto, conhecíamos de perto um novo tipo de racismo, o racismo ao contrário: o do preto sentindo-se superior ao branco, enfrentando-o, acintoso, sem camuflagem, com evidente espírito de revanche, de vingança. Em Boston não vimos mulatos nem casais de preto com branca, nem branco com preta.

        

      O CASSETE

        A carta que viera com o cassete de fita gravada, enviados por Knopf de Nova York, era de James, dando notícias da Bahia, contando que Lalu voltara de São Paulo, estava hospedada em sua casa, esperando por nós. A fita gravada, ai a fita gravada!

        Como ouví-la? Havíamos esquecido de levar nosso gravador, falha imperdoável. Nessa gravação, como a da outra vez, certamente João nos faria ouvir os amigos e ele próprio falando, contando do filho por nascer... O problema, no entanto, não era tão grave como parecera, seria solucionado: procuraríamos na cidade uma loja que vendesse gravadores e pediríamos que nos deixassem ouvir a fita, lá mesmo, muito fácil.

        A loja era enorme, a vitrine repleta de tudo quanto era aparelho, um mundo. É aqui mesmo que vamos entrar, dissemos ao mesmo tempo. Na movimentada loja não conseguíamos localizar uma pessoa que nos atendesse até que, finalmente, descobri um rapazinho de crachá no peito e, com a voz mais suave deste mundo, num precaríssimo inglês, pedi-lhe que nos emprestasse um gravadorzinho para ouvir a voz de nossos filhos, tão distantes, no Brasil. Para que ele entendesse bem que falava do Brasil, mostrei-lhe o envelope tarjado de verde e amarelo, da carta de James. Sem dizer uma única palavra, o rapaz tomou-me o cassete da mão. Graças a Deus, ele entendeu tudo, disse eu a Jorge, enquanto o via sumir pelos labirintos da loja. Você acha que ele foi buscar c gravador?, duvidou Jorge. Claro!, respondi. Ele levou o cassete para ver o tamanho. Estávamos nesses comentários quando, de repente, uma altíssima e poderosa voz ecoou, saída de possantes alto-falantes distribuídos pela loja toda: E a voz de Lalu, alarmou-se Jorge, reconhecendo a voz da mãe.

        — Jorginho, meu filho. Como vai? E Zélia, vai bem? — perguntava ela.

        Após o primeiro choque, baixamos a cabeça, encabulados. Ai meu Deus que vergonha, todo mundo ouvindo, ninguém compreendendo o que se passava.... O rapaz não me entendera. O jeito era ficarmos encolhidos, incógnitos num canto, calados para ouvir o que Lalu dizia. Agora ela reclamava de João:

        —  Eles não estão entendendo nada, nem respondem... Não estão me ouvindo...

        —  Não é pra responder não, Lalu, vá falando que eles ouvem — dizia João.

        Lalu voltava a falar:

        —  Olhe Jorge, por aqui vai tudo bem. Eu voltei de São Paulo, estou na Bahia, vim esperar vocês. Quando é que tu volta, meu filho? Ainda vão demorar muito? As saudades são grandes...

        —  Diga, Lalu, que Paloma está grávida — soprava-lhe João, ao lado.

        —  Que grávida o quê, menino! Grávida! coisa nenhuma!... — reclamava Lalu, ríspida. Tendo falado fora do microfone, ela julgara que não a tivéssemos ouvido, nem percebido que ela estava contra a gravidez de Paloma. Ao voltar ao microfone, Lalu mudara o tom de voz, falava com doçura: — Olhem, Paloma veio com uma história de gravidez... mas não tem nada certo... não passa da vontade da moleca.

        Durante um tempo sem fim, de pé, sem comentar, nem rir, como se a coisa não fosse conosco, ouvimos Carybé, Nancy, Mirabeau, Celestino, Luiza, James, contando as novidades da Bahia, falando de saudades.

        Ao terminar a fita, gentil, o rapaz veio nos trazer o cassete: Querem ouvir novamente? Thank you very much, agradeci e nos fomos. Ouviríamos a gravação ainda algumas vezes, tranqüilamente, ao voltarmos a State College.

       

      INVERNO

        Nem bem o outono terminara, o inverno entrou dando o ar de sua graça, dias escuros, frios, dias tristes, de vez em quando um barrufo de neve.

        De nossa janela podíamos vigiar nosso carro que, desde a nossa chegada, ficava estacionado no pátio, bem em frente ao nosso prédio. Não tínhamos nem por que vigiar, pois ninguém iria roubá-lo, não havia casos de furtos de automóveis em State College. Esse Chevrolet nos servira muito e iríamos devolvê-lo nas vésperas de nossa partida que já se aproximava.

        A festa de despedida, em homenagem a Jorge, no salão nobre da universidade, fora organizada por Stanley Wentraub, Gerard Moser e outros professores. Muitos convidados, vindos de fora, inclusive Alfredo Machado, Alfred Knopf com Helen, Laís e Walter entre outros, lá estavam, naquela noite, quando, além dos discursos e das músicas brasileiras, houve uma apresentação teatral, trecho de um romance de Jorge, adaptado e interpretado por alunos e professores.

        Por telefone, eu pedira a Alfredo Machado que levasse de Nova York, onde tudo se encontra à venda, material para uma feijoada, incluindo carne-seca, paio e farinha de mandioca.

        Convidamos alunos, professores e amigos brasileiros para um encontro de despedida em nosso apartamento. Preparei uma imensa feijoada num caldeirão emprestado e lhes ofereci um almoço brasileiro. Até espiga de milho e coco ralei para a canjica de milho verde e as cocadas, preta e branca, que ofereci como sobremesa. O aroma apetitoso da feijoada invadiu o prédio todo. Da portaria ao último andar do edifício, podia-se sentir a presença do Brasil.

        Viajaríamos para Nova York, nos primeiros dias de dezembro, onde tomaríamos um navio de volta ao Brasil. Como fora combinado, devolveríamos o carro de Laís no dia 25 de novembro, data que não poderíamos esquecer pois esse era o dia do aniversário de João Jorge. Era também o thanksgiven, dia de ação de graças dos americanos. Jantaríamos com Laís e Walter, participaríamos de sua mesa festiva, assistiríamos Walter trinchando o tradicional peru assado.

       

      VIAGEM PERIGOSA

        Olhei pela janela e me assustei: nosso carro estava coberto de neve. Deveríamos devolvê-lo naquele dia. Ao saberem que tencionávamos descer a serra, nossos amigos se alarmaram. Rodella Wentraub me telefonou. Não façam isso, por favor, o rádio está anunciando novas quedas de neve, pedem que ninguém viaje com esse tempo, as estradas se encontram escorregadias, perigosas.

        Enquanto Jorge, lá embaixo, com a ajuda de alguns vizinhos, tirava a neve do carro, os telefonemas se sucediam, nossos amigos, alarmadíssimos, nos pediam que adiássemos a viagem. Não dava para adiar, nosso tempo era limitado, um adiamento iria nos causar a maior confusão. Prevenida, eu dirigiria com prudência, iria devagar e, sem pressa, chegaríamos ao nosso destino.

        Fazendo ouvidos moucos aos apelos, saímos lentamente pela estrada afora. Dos carros que víamos passar, o nosso era o único que não tinha correntes antiderrapantes nos pneus e além do mais nossos pneus estavam bastante gastos, quase carecas.

        Descíamos a serra, eu quase não agüentando segurar o carro. Ele deslizava como se rolasse sobre uma pedra de gelo. De um lado tínhamos o precipício, do outro, um barranco e uma valeta separando-o da estrada. De repente me dei conta de que devia optar entre o precipício e o barranco e não tive dúvidas, despenquei para dentro da valeta cheia de neve. Os carros que vinham atrás de nós pararam e, munidos de pás, picaretas, etc. que, prevenidos, traziam na mala do carro, homens, mulheres e crianças puseram-se ao trabalho e depois de muito esforço conseguiram nos colocar novamente na estrada.

        À nossa busca, na raiz da serra, encontramos Laís e Walter que, alertados e alarmados, estavam indo nos procurar.

        Digo e repito sempre que mesmo nos piores momentos não me desespero, procuro tirar dos males o lado positivo. O lado positivo que tiramos do acidente na serra foi descobrirmos que não estávamos sós, estávamos protegidos pela solidariedade humana. Aqueles americanos, sem mesmo nos conhecer, interromperam sua viagem, pararam, desceram debaixo de neve e trabalharam duro para nos dar ajuda. Experiência essa que, em vez de nos trazer má recordação, nos traz boa lembrança da viagem.

       

      GREVE NO PORTO DE NOVA YORK

        Alfredo Machado nos esperava em Nova York com uma novidade: doqueiros e estivadores do porto de Nova York estavam em greve. Nossa viagem, com data marcada, estava suspensa. O jeito era esperar com paciência até que tudo se normalizasse. Enquanto isso, eu faria compras para meus netos, que agora seriam dois, pois a gravidez de Paloma se confirmara.

        Pela primeira vez viajaríamos num navio americano, aliás, em dois navios americanos. No primeiro, depois de fazermos uma escala na Flórida, no porto de Fort Lauderdale, onde embarcaria muita gente, seguiríamos até o Panamá. Mudaríamos para outro navio que deveria passar por lá, a caminho do porto de Salvador, na Bahia, dez dias depois.

        Embora o longo roteiro e os dez dias em terra fossem atrasar nossa chegada ao Brasil, essa viagem nos entusiasmava, desembarcaríamos na Bahia. Conheceríamos o Panamá, atravessaríamos o canal. Teríamos tempo suficiente para conhecer a Cidade do Panamá, lugar que, em geral, ninguém lembra de visitar, ninguém sai de sua casa para ir lá a passeio, como sai para ir a Paris, Londres ou Roma. Teríamos a oportunidade única de conhecer o país, embora de passagem. No porto livre de Cristóbal, eu compraria uma filmadora e uma câmera fotográfica.

       

      SOMOS AVÓS

        Ainda estávamos em Nova York quando chegou a notícia tão esperada: nascera nosso primeiro neto. João nos telefonou em seguida ao nascimento do menino, vai se chamar Bruno, disse. Impossível descrever a emoção que senti ao pensar que João já era pai, Jorge e eu, avós. Agora só desejava que a greve terminasse logo, não via a hora de chegar em casa, ver meu neto.

        Em Purchase, na casa de campo dos Knopf, passamos um fim de semana. Tínhamos estado lá no verão onde tudo era verde e florido, e agora, em pleno inverno, a paisagem mudara completamente: tudo branco, caía neve. Tomando um bom vinho da adega dos anfitriões, nos aquecemos recordando a viagem deles ao Brasil.

        Alfredo Machado, nosso informante sobre o movimento grevista, finalmente nos deu a boa nova; mesmo não estando completamente resolvido o problema, o navio ia zarpar. Como os carregadores do porto continuavam em greve, os passageiros deveriam encarregar-se de suas bagagens, colocá-las nas cabines. Felizmente, Alfredinho, filho de Alfredo, estava estagiando em Nova York e, com seu pai e um funcionário da editora Knopf, conseguimos embarcar tudo sem maiores dificuldades.

       

      INÍCIO DA VIAGEM DE VOLTA

        Viagem péssima, em mar revolto, mar de inverno, diziam, a viagem curta tomou-se longa. Prevenida, tomei remédio contra enjôo. Velho marinheiro, Jorge recusou o remédio, nunca precisou precaver-se contra o mal de mar.

        Naquele navio imenso, éramos os únicos a enfrentar o balanço do barco para conseguir chegar ao salão de refeições. Nos segurávamos em grossas correntes que atravessavam o navio e assim mesmo muitas vezes perdemos o equilíbrio. Os demais passageiros haviam sumido, deviam estar trancados em suas cabines. Só nos demos conta de que eram numerosos ao chegar à Flórida.

       

      RUMO AO PANAMÁ

        Os novos passageiros, embarcados no porto de Fort Lauderdale, em excursão que os levaria até a Argentina, ida e volta, eram, na sua maioria, pessoas idosas, aposentados, que, na maior animação, não desistiam de gozar a vida.

        A longa experiência nos ensinou que numa longa viagem marítima somente depois de muitos dias de convívio pode-se reconhecer as pessoas. Às vezes, no último dia de viagem aparecem caras novas: Estes embarcaram hoje, costuma pilheriar Jorge.

        Nossas companheiras de viagem se pareciam muito, no modo de trajar, no modo de vestir, no cabelo crespo de permanente. Notamos que uma das mulheres, de seus setenta anos, todos os dias colocava um lacinho de fita colorida nos cabelos loiros, encaracolados; o lacinho que enfeitava sua cabeça um dia era azul, noutro, vermelho, noutro, roxo... Eu e Jorge só reparando nos coloridos enfeites da coquete. Quem mais se divertia era ele que ao vê-la surgir, certo dia, com um laço bicolor, me disse: Se essa burra me aparecer amanhã de laço amarelo, sou capaz de lhe dar um bofete... Pela manhã do dia seguinte, não deu outra, a burra surgiu toda faceira, um lacinho amarelo encarapitado no cocuruto. Olhei para Jorge: E agora? Sempre rindo, ele não se atrapalhou e apontando ostensivamente o laçarote na cabeça da outra, atrevido, gastou uma das poucas palavras que sabia em inglês dizendo: Beautiful!

        Pouca coisa, ou nada, servia para encher nossas horas. Quando poderíamos imaginar que uma besteira daquelas, como a dos lacinhos coloridos, poderia nos fazer rir com tanto gosto? Nos divertiam também, e muito, os comentários que fazíamos sobre os namoros dos velhinhos. Sapecas todos eles, velhos e velhas, dançando, no maior assanhamento, namorando, saindo do baile, como quem não quer nada, indo para encontros amorosos na escuridão do tombadilho. Soubemos que alguns namoros, nessas longas excursões, algumas vezes resultaram em casamento. Acontecia também morrer algum velhinho, durante a viagem, em alto-mar. O navio levava de reserva dois ou três caixões mortuários, próprios para serem metidos no frigorífico em caso de necessidade. Viajava, nessa excursão, uma senhora que perdera o marido durante uma viagem anterior, havia um ano, e agora, viúva e solta, não perdia uma dança.

        Por coincidência, uma passageira que viajava com o marido estava lendo Dona Flor e seus dois maridos, em edição americana, presente de uma amiga, na Flórida, onde moravam. Ao ler a lista de passageiros ela encontrara o nome de Jorge. Aproximou-se, queria saber se ele era ele mesmo. Seu entusiasmo, grande, aumentou ainda mais ao descobrir na Enciclopédia Britânica, na biblioteca do navio, o nome de Jorge Amado. Nos chamou, nos levou para ver. Essa senhora, uma das passageiras mais jovens, devia ter uns cinqüenta anos, era quem mais dançava, o marido só apreciando. Um dia ele confidenciou a Jorge: Ela vai esquentando o prato para eu comer depois... Ela fez tudo para dar umas rodopiadas com Jorge, sem conseguir. Jorge não sabe dançar e nem se esforça, o que para mim, apaixonada por dança, é uma falha enorme.

       

      PANAMÁ

        Viagem longa, pelo mar do Caribe até Colón, e ainda teríamos oito horas antes de chegar ao porto de Balboa. Atravessaríamos o canal do Panamá, comportas e mais comportas antes de atracar.

        Ainda era dia claro quando iniciamos a travessia do canal. Pudemos assistir às manobras demoradas de entradas e saídas de navios nas eclusas, a água baixando, o navio lá embaixo esperando que ela subisse. Apaixonante movimento de água e de navios, baixando, subindo, seguindo em frente, lentamente, até chegar ao porto e atracar.

        No hotel, simpático, no centro da cidade, deixamos nossa bagagem, saímos em seguida, curiosos de conhecer a cidade. Na portaria vimos um cartaz anunciando a estréia de um show de artistas brasileiros.

        A hora marcada, aliás, muito antes da hora marcada, lá estávamos naquele imenso teatro ao ar livre. As cadeiras vagas ao nosso lado em seguida foram ocupadas. O rapaz moreno que sentara ao lado de Jorge tinha ar de brasileiro. Não só era brasileiro como baiano, soubemos depois, no intervalo do show, quando ele se apresentou. Seu nome era Miguel Franco, morava no Panamá com a mulher e filhos, a família toda fora assistir ao show dos brasileiros, matar saudades.

        Espetáculo bonito, entusiasmava panamenhos e americanos, passageiros do navio que lá estavam. Ouvindo as músicas tão nossas conhecidas, as danças tão sensuais, nos sentíamos mais próximos do Brasil.

        No intervalo, Jorge viu-se rodeado de brasileiros que o reconheceram, não sabíamos que haviam tantos vivendo no Panamá.

        Encontro providencial, Miguel Franco, que se revelou amigo de Camafeu e de Carybé, nos deu todas as dicas da cidade, o que ver e onde ver... Soubemos por ele que a senhora do ministro da Cultura, Jayme Ingram, era uma pianista brasileira, Nelly Ingram.

        Eu estava interessada em comprar trabalhos dos índios cunas, as molas, trabalhos feitos com tiras de tecidos de cores variadas, costuradas a mão, formando desenhos, verdadeiras obras de arte. Eu já vira almofadas e até peças de vestidos, como bolsos, golas, barras, feitos com molas. Ao desembarcar, ainda no porto, eu as vira expostas ao lado de um índio que as vendia.

        Aconselhados na portaria do hotel, fizemos uma excursão à Ilha de San Blás, comarca indígena, onde os cunas vivem e trabalham. Seria um experiência única, não podíamos perder tempo.

        Na agência de turismo tivemos quase todas as informações: a viagem era feita num avião de doze passageiros, trinta minutos de vôo até a ilha. O avião saía duas vezes por semana pela manhã e voltava no final da tarde. O entusiasmo de Jorge era tão grande que, mesmo sabendo que devia entrar num avião pequeno, não recuou. Ao ver que a passagem, tirada pela funcionária da empresa, era de ida e volta para o mesmo dia, Jorge reclamou: Não quero voltar no mesmo dia de jeito nenhum, quero ficar lá, tenho tempo de sobra. A moça do guichê fez uma cara admirada, todos voltam no mesmo dia, disse, mas, como não explicou mais nada, marcamos nossa volta para dali a três dias.

        Saímos num avião lotado com um grupo de turistas franceses e um guia. Pousamos numa pista cercada de torres de controle, ao lado de uma espécie de quartel. Achamos que era quartel pois havia soldados por lá. Mais adiante um restaurante, e mais nada. Cadê os índios?, perguntei admirada ao guia da excursão. Estávamos numa base militar e para ver os índios devíamos ir de lancha a outra ilha.

        Seguimos o guia ao restaurante onde, numa sala reservada, ele costumava dar aos excursionistas uma aula sobre os índios de San Blás, antes de ir visitá-los. Com ares professorais, o guia contou a história da chegada dos índios na região, pescadores de pérolas, pérolas que, segundo ele, abundavam por lá... Essa da abundância de pérolas no Panamá era novidade para nós, mas, se o guia afirmava com tanta veemência, é porque devia ser verdade. Todo mundo prestando muita atenção, faziam perguntas, ele respondia às dúvidas de alguns, à curiosidade de todos. Bem-falante, simpático, ouvimos sua palestra durante uma interminável meia hora.

        Antes da travessia na lancha que nos levaria aos cunas o guia tinha ainda uma tarefa a cumprir: conduziu o bando todo, e nós atrás a segui-lo, para visitar algumas malocas. A uns cem metros do restaurante, no meio de um pequeno bosque, as divisamos, redondas, bonitinhas, feitas de polidos troncos de árvores e cobertura de sapé. Construídas pela companhia de turismo à guisa de dormitórios para hóspedes, essas malocas, estava na cara, nunca haviam sido habitadas por índios. Nem por índios, nem por ninguém, pois o cheiro abafado do mofo, lá dentro, dizia tudo. A cama de casal, bem arrumadinha, e os lençóis com vestígios de bolor estavam à nossa espera, seria nessa cama, com certeza, que devíamos passar a noite. Aqui eu não durmo, nem morta, cochichei ao ouvido de Jorge. Vamos primeiro ver como é a ilha dos índios, depois a gente resolve, disse ele.

        A ilha dos índios, onde eles viviam e trabalhavam, era outro blefe, não havia nada de interessante a ver. Acostumados a essas visitas de turistas curiosos, a lhes fazer perguntas idiotas, a lhes encher o saco, eles nem nos deram confiança, ficaram na deles, na sua pobreza, no seu trabalho. Quanto às molas que eu pretendia comprar, não havia uma sequer, quanto a pérolas, nem o rastro. Os trabalhos prontos eram levados para a cidade, vendidos lá, e quanto às pérolas, que pérolas?

        Somente agora entendíamos a surpresa da moça do guichê ao saber que pretendíamos passar algumas noites na ilha. Na lancha, ao voltarmos para a base, onde iríamos almoçar, já não tínhamos dúvidas, estava decidido, voltaríamos naquele dia mesmo, nem pleitearíamos a restituição do dinheiro pago pelas três noites. Queríamos voltar mas não conseguimos, nossos lugares no avião já estavam reservados, seriam ocupados por dois oficiais da base. Nem adiantou insistir.

        Depois de horas lutando contra mosquitos que nos atacavam, dispostos a nos devorar, naquela maloca de lençóis úmidos, cheirando a bolor, desistimos de dormir, saímos andando e, sentados num degrau do restaurante fechado, passamos o resto da noite contando estrelas no céu. Contando estrelas ou procurando nossas estrelas? Por onde andavam elas que não nos socorriam? A minha, que dona Angelina, minha mãe, afirmava ter nascido comigo e a de Jorge que, segundo Lalu, era bem mais poderosa que a minha. Só em pensar que devíamos passar ainda duas noites naquele horror, perdêramos a graça.

        Tudo aconteceu quando menos esperávamos. O dia já estava alto quando nosso mau humor foi interrompido pelo ronco de um avião. Um teco-teco descia, pousou na base. Vinha buscar um soldado que sofrera um acidente, precisava de socorro.

        Nossas estrelas tardaram mas não falharam. Apareceram iluminando o sol do meio-dia, trazendo o aviãozinho que nos levaria dali. Nesse teco-teco embarcamos de volta, aliviados, felizes da vida.

        A notícia da presença de Jorge no Panamá correra e à nossa espera, no hotel, várias mensagens, inclusive um convite do ministro da Cultura, Jayme Ingram e senhora, nos convidando para um jantar.

        Nossa estada no Panamá chegara ao fim. O jantar na casa de   Nelly e Jaime Ingram fora dos mais agradáveis. Conhecemos, nessa noite, intelectuais e artistas panamenhos e brasileiros da Embaixada do Brasil. Não pudemos aceitar mais nenhum convite, nosso navio já estava chegando e partiria em seguida.

        Antes de embarcar só tivemos tempo de combinar um almoço com Miguel Franco e sua família. Com eles estava uma senhora, leitora de Jorge, amiga do casal. Notei que a moça falava de boca fechada e me impressionei. Miguel me explicou que ela fazia regime para emagrecer utilizando um método muito empregado no Panamá, método esse que os médicos diziam ser único e infalível: colocavam uma armação nos dentes do paciente, trancando-lhe a boca, permitindo-lhe apenas a ingestão de líquidos. Mas ela é gorda, comentei com Miguel, parece que a boca trancada não está adiantando... Miguel riu: E que ela toma, com um canudinho, todos os dias, litros de Coca-Cola.

        Há vários anos, com Telma, Miguel Franco voltou a viver na Bahia. Amigo de Camafeu, de Carybé, nosso amigo.

        Novamente atravessaríamos o canal, rumo ao Atlântico, viajaríamos a noite inteira. Faríamos uma escala, pela manhã, em Colón, onde o navio permaneceria algumas horas, o tempo suficiente para que os passageiros, aproveitando a vantagem nos preços da zona franca, pudessem fazer suas compras.

        Não perdi tempo. No porto livre de Cristóbal, comprei o que desejava: molas, as mais belas; uma câmera fotográfica com várias lentes e uma filmadora com as quais pretendia fotografar e filmar a cidade de Cristóbal Colón.

        Infelizmente, não pude fotografar nem filmar nada, pois as compras feitas na zona franca só eram entregues ao comprador dentro do navio, na hora do embarque. Se não pude utilizar meus aparelhos em terra, em compensação, durante a viagem para a Bahia, no belo e luxuoso transatlântico, infinitamente melhor do que o primeiro, fotografei, filmei, me esbaldei. Como não me esbaldar, com tais companheiros de viagem? Verdadeiro buquê de velhinhos e velhinhas sapecas, exemplo de amor à vida, provando não haver limite de idade para aproveitá-la nem para se amar.

       

      CARTAGENA

        Fotografei e filmei meus velhinhos no navio, fotografei em Cartagena, nossa primeira escala depois da saída de Colón.

        Prevenidos por Carmem Balcells — nossa amiga e agente literária em comum — de nossa passagem pela Colômbia, Mercedes e Gabriel Garcia Márquez nos esperavam no porto de Cartagena, terra natal de Gabriel.

        Com o casal Garcia Márquez passamos o tempo todo da escala do navio. Almoçamos na casa dos pais de Gabo, passeamos pela cidade e pudemos constatar o prestígio, o respeito e o amor daquele povo pelo seu escritor maior.

        Personagem de vários mundos, com moradas em algumas partes, o casal conservava um apartamento em Cartagena, para quando pudessem aparecer. O apartamento ficava localizado em cima de uma casa comercial, uma loja que vendia calças femininas. Paramos em frente, na calçada, para que eu os fotografasse. Na fachada da loja, em letras garrafais, um anúncio: Tenemos pantalones para todas las nalgas. Rindo, Jorge chamou a atenção do casal e Gabo jurou nunca tê-lo notado antes.

       

      MAIO DE 1981

        Havia pouco mais de um ano, a Bahia fora festejada pelos portugueses, artistas e homens de cultura da Bahia recebidos com pompa e carinho, em Portugal. Era a nossa vez de retribuir: recepcionaríamos o que de mais significativo havia na cultura portuguesa que chegaria às terras baianas.

        Sempre sob a batuta do maestro Nuno Lima de Carvalho, com o apoio do governador Antônio Carlos Magalhães, a colaboração de Paulo Gaudenzi que comandava o turismo na Bahia e a do prefeito Manuel Castro, o programa da festa do Estoril na Bahia ganhou vulto e enorme importância.

        Uma exposição histórico-documental e bibliográfica, organizada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar e pelo Arquivo Histórico Ultramarino, com dezenas de documentos, códices, espécies cartográficas e iconográficas dos séculos XVI a XIX sobre a Bahia e o nordeste brasileiro, foi mostrada no Gabinete Português de Leitura, em Salvador.

        Uma exposição de artes plásticas, realizada no saguão do Teatro Castro Alves, nos trouxe os artistas: Manuel Cargaleiro, Carlos Botelho, Bartolomeu, Charters de Almeida (Conde da Bahia), Dorita Castelo Branco, autora da medalha comemorativa com a efígie do padre Antônio Vieira, Júlio Resende, Francisco Relógio e Maluda; com eles, os jornalistas Vitor Direito e Vera Lagoa. Do Sobreiro, chegou nosso amigo José Franco com sua mulher, artista ela também, dona Helena. José Franco trazendo, para a exposição, suas peças de cerâmica.

        A TAP, comandada na época pelo engenheiro Santos Martins, deu contribuição fundamental para o sucesso do acontecimento. Sem a liberação de peso para o transporte das obras de arte, do material da culinária portuguesa e as passagens dos participantes, essa manifestação de intercâmbio cultural entre os países irmãos não teria sido possível.

        Uma semana gastronômica portuguesa, no Hotel Othon, ofereceu aos baianos o mais completo cardápio até hoje apresentado.

        Houve a apresentação do Grupo de Folclore da TAP e uma exposição de trajes regionais do Minho.

        Verdadeira embaixada de 83 personalidades do mundo artístico e cultural português desembarcou em Salvador. Jorge e eu fomos ao aeroporto, o dia apenas amanhecia. Nesse vôo chegariam amigos muito queridos: Fernando Namora que vinha para a apresentação de uma grande exposição documental e bibliográfica de Ferreira de Castro e pronunciar conferências. Com Namora chegava nossa amiga Zita, sua mulher.

        Também Amália Rodrigues, nossa querida, com sua voz incomparável, participaria de um espetáculo no Teatro Castro Alves. Espetáculo esse que teve um êxito estrondoso, levando para o Campo Grande milhares de pessoas.

        Recebemos, naquele início de manhã, nossos amigos José Franco e Helena e os trouxemos em nosso carro para a cidade. Franco estava encantado, assombrado com o calor e a areia fina e alva que cobre as encostas da estrada nas imediações do aeroporto:

        —  Disseram-me que na Bahia já é inverno... — comentou José Franco.

        —  Isso mesmo — disse Jorge, apontando as alvas areias das dunas —, lá está a neve, e apenas entramos no inverno.

        —  Neve? — assombrou-se Franco.

        Em seguida, dando-se conta de que o amigo pilheriava, também riu:

        —  Com esse sol... ela estaria derretida há muito... Franco ainda tinha uma curiosidade a satisfazer:

        —  E cá, no inverno não faz frio, pois não?

        —  Não, na Bahia nunca faz frio... — dissemos. Cada vez mais intrigado, Franco perguntou:

        —  Então, quando é que deitam as batatas?

        —  Quando der vontade — respondeu Jorge, rindo.

        —  Então, não pode haver pobreza neste país... — concluiu nosso amigo.

        O rádio tocava música portuguesa. Aliás, durante uma semana antes e outra depois do evento, o tema de fundo da programação local, das rádios e televisões, era Portugal.

        Para nós não podia haver maior alegria do que receber em nossa casa velhos e queridos amigos e para eles fizemos um almoço: começando pelo incansável Nuno Lima de Carvalho com sua Clarinda, José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, com Maria José, sua mulher, ambos nossos queridos; Manuel Telles, que contribuiu com seu apoio ao sucesso da Semana da Bahia no Estoril, chegado com Maria Emília, sua mulher, recebia os agradecimentos dos baianos e participava de nossa festa; Santos Martins com Graciete seriam nossos convidados de honra, não fossem todos convidados de honra as quase duzentas pessoas que vieram almoçar em nossa casa. O etnólogo Amadeu Costa, bom amigo, de Viana do Castelo nos trouxe duas palmas douradas, da Festa da Agonia, e o prefeito de Cascais estavam entre os nossos convidados, em mesas espalhadas nos terraços e jardins, entre tabuleiros de baianas fazendo acarajés, oferecendo abarás e beijus de tapioca.

        Mais numerosos eram os convidados brasileiros, a começar pelo governador Antônio Carlos, o prefeito Manuel Castro, Paulo Gaudenzi, Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, Carlos Bastos e Altamir, James Amado e Luiza, Mário Cravo e Lúcia, Jenner e Luísa, Floriano e Alice, Lev Smarchewski e Quinquinha, Gilberbet Chaves e Sônia, Mirabeau, Vitor Gradim e Grace, para citar apenas alguns nomes.

        Vitor e Grace, maravilhosos anfitriões da Bahia, costumam abrir as portas de sua casa, no Morro da Paciência, aos amigos no dia 2 de fevereiro, festa de Yemanjá. Lá do alto, da bela residência, descortina-se um oceano inteiro e a procissão do presente à bela sereia, no dia de sua festa.

        Em seu jardim, Grace Gradim construiu um forno onde queima cerâmicas, peças feitas com amor por suas mãos de artista.

        Na casa do Morro da Paciência refugiou-se José Franco nessa Semana da Bahia. As peças trazidas de Portugal foram vendidas no primeiro dia da exposição, êxito absoluto, muita gente querendo comprar. Grace ofereceu-lhe ateliê e forno onde o ceramista do Sobreiro criou muitas peças, novas figuras de saloios, que em seguida também foram vendidas.

       

      CIDADÃO SOTEROPOLITANO

        Ainda uma vez, há uns poucos anos, festejamos aqui, em nossa casa do Rio Vermelho, o cidadão Nuno Lima de Carvalho, responsável e idealizador da Semana da Bahia no Estoril e da Semana do Estoril na Bahia. Aplaudimos a Câmara de Vereadores de Salvador que lhe conferira, na ocasião, o título de Cidadão Soteropolitano ou, para quem não conhece a palavra, cidadão da cidade do Salvador, um filho da terra.

        O presidente Mário Soares encontrava-se na Bahia e veio à homenagem que prestávamos ao seu concidadão. Veio ele e vieram altas autoridades portuguesas e brasileiras, a começar pelo embaixador de Portugal no Brasil, do embaixador do Brasil em Portugal e pelo governador do estado.

        Almoço sem protocolo, num dia quente de verão, todo mundo tirou paletó e gravata, Mário Soares, pessoa mais simples e informal do mundo, foi o primeiro a dar o exemplo.

        Por falar na simplicidade de Mário Soares, ocorreu-me contar um fato sucedido em Paris e para isso peço licença e me desculpo por interromper o que contava.

        Estávamos passando uma temporada em nosso apartamento em Paris, quando Jorge adoeceu. Nessa mesma ocasião chegava à França, em visita oficial, o presidente Mário Soares. A cidade engalanou-se com bandeirinhas portuguesas e pela televisão o vimos, com dona Maria de Jesus, desembarcar do avião pisando em tapete felpudo, vermelho, recebendo todas as honras que cabem a um estadista estrangeiro.

        Recebemos um convite assinado pelo presidente Mitterrand e senhora, para jantar no Palais de L´Elysée em homenagem ao presidente português. Jorge estava doente, como já disse, e eu respondi explicando o motivo de nossa ausência no jantar.

        No dia seguinte, um telefonema da Embaixada Portuguesa nos pedia agendar uma visita do presidente Mário Soares e senhora a Jorge Amado. A visita seria às seis da tarde e já às cinco o quarteirão onde morávamos, no quai des Célestins e rue St. Paul, foi interditado. De nosso apartamento, no quinto andar, às seis horas, ouvimos a sirene do pelotão que abria alas para o presidente que se aproximava. João Jorge, que se encontrava conosco, desceu rapidamente para receber as ilustres visitas no portão de entrada.

        Mário Soares pediu aos membros da comitiva que os aguardassem lá fora e, com Maria de Jesus, subiu ao nosso apartamento.Tirou o paletó em seguida, refestelou-se numa poltrona, livrou-se dos sapatos e, enquanto na rue St. Paul comitiva e curiosos o aguardavam, lá em cima ele descansava os pés, batendo um papo descontraído com o amigo.

        Volto ao almoço oferecido ao mais jovem soteropolitano, Nuno Lima de Carvalho e à sua bela Clarinda, num dia de grande calor, em nossa casa do Rio Vermelho, quando cerca de duzentos convidados vieram felicitá-lo e nos alegrar.

        No almoço a Nuno, tivemos um convidado muito especial o doutor Aloysio Campos da Paz, diretor e criador dos hospitais Sarah, da Associação das Pioneiras Sociais, hospitais de primeiro mundo, atendendo, indiscriminadamente, a pobres e ricos, sobretudo, gente pobre que jamais poderia pagar um tratamento como o que recebe no Sarah. A Bahia tem o privilégio de possuir um desses hospitais. Dr. Aloysio estava de passagem por Salvador e nos deu a honra de sua presença. Após o almoço, Jorge e José Aparecido de Oliveira, nosso embaixador em Portugal, que são conselheiros da Associação, acompanharam o presidente Mário Soares a uma visita ao Sarah. Queriam mostrar ao amigo, velho lutador pela causa dos deserdados, o que já tínhamos de bom e de positivo em nossa terra.

        Mário Soares percorreu as dependências do hospital, falou com os pacientes e, ao despedir-se, foi entrevistado pela televisão, que desejava saber sua opinião sobre o hospital. Mais do que impressionado, emocionado, disse jamais ter visto nada que se lhe comparasse: É bestial! Coisa de primeiro mundo. José Aparecido de Oliveira aproveitou para contar o chiste que corria em Portugal: Deus esteve em todos os lugares, mas antes lá esteve o doutor Mário Soares.

        Quem leu a coluna de July, em A Tarde, depois desse almoço ao qual ela compareceu, aliás comparece sempre, é nossa amiga, ficou a par do menu e dos convidados presentes, com a lista completa. Terezinha Cardoso, em sua página dominical do mesmo jornal, descreveu com imagens poéticas o que viu, estampou fotos das personalidades presentes, instantâneos batidos por ela própria.

        Mário Soares chegara acompanhado de oficiais que faziam parte de sua comitiva. Entre eles, um simpático oficial da Marinha que, sufocado em seu uniforme de gala, chamou-me de lado:

        —  Estou a morrer de calor, sufocado... — me disse. — Vejo que estão todos em mangas de camisa...

        —  Pois não faça cerimônia — disse-lhe —, tire seu dólmã.

        — Não posso, minha senhora, não tenho nada por baixo, precisaria que me arranjasse um T-shirt.

        Da gaveta de camisetas de Jorge, escolhi uma com desenho de Miro que entreguei ao oficial. Ao vê-lo com a camiseta, Paloma perguntou-lhe se havia estado em Barcelona, na exposição de cerâmica no centenário de Miro onde ela comprara uma igualzinha à dele. Não estive, não senhora, e creio que estou a vestir a que a senhora comprou, pois foi sua mãe quem ma emprestou. E era. A empregada colocara por engano na gaveta de Jorge a camiseta de Paloma e eu, na afobação, não reparara. Encontrei esse oficial em outras cerimônias e ele nunca deixou de comentar a história da camiseta de Paloma que o salvou de morrer sufocado, na Bahia, no dia da homenagem a Nuno Lima de Carvalho.

       

      ACERVO COBIÇADO

        A carta vinha da Universidade de Boston. Assinada por um professor, falava em nome da universidade, pedindo a Jorge Amado que recebesse uma comissão de professores que voaria para a Bahia, especialmente para conversar com ele sobre um pedido de doação de seu acervo para a universidade americana.

        O acervo de Jorge, material precioso, composto de centenas de traduções de livros seus para cinqüenta e tantas línguas, em várias edições; artigos do autor e sobre o autor, recortes de jornais e revistas, teses de doutorado sobre sua obra, vindas de várias partes do mundo; centenas de fotografias e negativos; retratos e caricaturas do escritor, retratos de personagens dos romances vistos por artistas renomados como, por exemplo, Dona Flor vista por Floriano Teixeira e José de Dome, Tereza Batista vista por Calasans Neto, Gabriela vista por Di Cavalcanti; o próprio Jorge Amado visto por Carybé, Portinari, Carlos Scliar e Calasans Neto, sem esquecer a pintura dos admiradores anônimos que, mesmo sendo amadores, quiseram expressar seu carinho retratando seu autor e seus personagens.

        O material, aumentando a cada dia, há mais de meio século, invadia armários, estantes e gavetas. Nossa casa tão grande tornava-se pequena para conter esse mundo de coisas, mas sobretudo tornava-se cada vez mais difícil a sua catalogação, conservação e a preservação dos livros e documentos, dos filmes e fotografias, ameaçados pela umidade e em vias de destruição.

        Os americanos da Universidade de Boston acenavam com um departamento especializado em preservação de documentos e livros, com salas climatizadas e pessoal qualificado na separação e na classificação do material. Material que seria consultado pelos estudantes da universidade. Haveria uma exposição permanente, com vitrines, enfim, tudo que o nosso sacrificado acervo estava necessitando.

        Proposta tentadora, porém Jorge nem precisou refletir, não podia mandar para fora do país um bem que, por direito, devia ficar no Brasil. Recusou a proposta da Universidade de Boston.

        Não tardou a surgir outra proposta. Desta vez era a USP, de São Paulo, melhor credencial impossível, que pleiteava os arquivos de Jorge Amado. Os planos para o aproveitamento do imenso material estavam prontos. O acervo ficaria em boas mãos, preservado, separado e catalogado, exposto em ambiente climatizado, à disposição de interessados para pesquisas e estudos. Desta vez Jorge se entusiasmou, a conversa era outra, seu acervo permaneceria no Brasil e eu senti que ele estava propenso a mandar tudo para São Paulo.

        Me alarmei. Embora paulista, não achei justo que um material tão rico, inspirado pela Bahia, fosse embora daqui, herdado por São Paulo. Disse a Jorge o que pensava e ele retrucou: E você prefere que tudo se estrague, se acabe de vez? Ele não pensava isso de mim, sabia muito bem o que eu desejava: ver seus arquivos na Bahia, cuidados e aproveitados pelos baianos. Porém, cético, ele não acreditava no meu otimismo exagerado, a fazer planos, não contando com obstáculos. Mesmo assim, ouviu minha opinião, concordou comigo e recusou a proposta da USP: Não posso, meu acervo deve ficar na Bahia, encerrou o assunto.

        Com João e Paloma conversamos sobre a possibilidade de criar-se uma instituição cultural que cuidasse de tudo. Ouvindo a conversa Jorge apenas disse: Só não quero que façam de minhas coisas um museu. Claro que nossa intenção era criar um centro de cultura, mas por onde começar? Fácil era desejar, difícil executar.

        A frente da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Geraldo Machado organizou uma exposição comemorativa dos setenta anos de Jorge Amado e dos cinqüenta anos da publicação de seu primeiro livro, O país do carnaval. Exposição iconográfica e biobibliográfica, no foyer do Teatro Castro Alves. Montada por Myriam Fraga e Zilah Azevedo, com fotografias e peças do acervo do escritor, a exposição alcançou enorme sucesso. Logo surgiram convites para que ela fosse levada ao Ceará, a Ilhéus, a São Paulo, na Bienal do Livro, e a Brasília.

        Diante do interesse despertado por esse material, surgiu a idéia do aproveitamento do acervo de Jorge para criar-se uma instituição cultural que permitisse, ao mesmo tempo, catalogar, conservar o material e garantir aos estudiosos e pesquisadores o acesso a ele.

        Pessoa de prestígio, poetisa respeitada, nossa amiga Myriam Fraga já andara sondando sobre a possibilidade da criação de uma Casa Jorge Amado, mas não conseguira.

        Soubemos que o reitor da Universidade Federal da Bahia, Germano Tabacof, estava interessado no assunto. Com a sua colaboração poderíamos tocar o plano avante. Com Germano Tabacof— James Amado, desejoso de ver o problema resolvido, porém cético como o irmão —, Myriam, Paloma, Pedro Costa, João e eu nos reunimos e decidimos que a primeira coisa a fazer era procurar casa. Depois iríamos atrás do dinheiro para o primeiro impulso.

        Quem descobriu que o casarão do Largo do Pelourinho estava vazio havia muito foi João Jorge. O casarão do século XIX, o mais belo do Pelourinho, era ideal para o nosso plano. A Casa de Jorge Amado ficaria no coração do centro histórico, fonte das histórias de seus romances, onde circulavam seus personagens. Conseguirmos essa casa seria ainda um milagre da Bahia.

        A casa enorme era, no entanto, dividida em vários imóveis: um deles pertencia ao Banco do Estado que já o utilizara com uma de suas agências. Ao Baneb pertencia ainda parte do casarão vizinho, na ladeira ao lado. Ainda um outro imóvel pertencia ao Estado.

        Myriam Fraga procurou em seguida o presidente do Baneb, Lafayette Ponde Filho, que, ao saber do plano de fazer-se uma fundação contendo o acervo de Jorge Amado, mostrou-se sensível à iniciativa e tomou as necessárias providências para a doação dos imóveis pertencentes ao banco que iriam abrigar o patrimônio da nova instituição. A outra parte do prédio pertencia ao Estado.

        Na ocasião o governador era João Durval. Com o apoio de Antônio Carlos Magalhães, falou-se com ele, que não teve dúvidas em assinar um documento de cessão de uso, por dez anos, da casa do Pelourinho

        Mas nem tudo foi tão fácil como pode parecer. Ao visitarmos o casarão encontramos, já pregada ao lado de fora da porta, uma placa do Instituto Mauá. Dentro, no recinto principal, várias vitrines indicavam a chegada de mudança.

        Sem ter conhecimento do acerto do governador com a instituição Jorge Amado, dona Yeda Barradas, esposa do governador, havia cedido a casa ao Instituto Mauá. Situação embaraçosa, não foi fácil desfazer o mal-entendido, levou algum tempo até que a decisão fosse tomada a nosso favor e a casa nos fosse entregue.

        Em péssimo estado de conservação, o casarão precisava de grandes reformas, todo o sistema de eletricidade devia ser mudado e tudo o mais também.

        Não foi difícil conseguir, através de nosso amigo Renato Martins, um dos diretores da Odebrecht, que a poderosa construtora se responsabilizasse pelo trabalho de restauração da casa.

        Teríamos o prédio tinindo de novo, porém sem um único tostão furado para pôr de pé a instituição. Por intermédio de Paloma, assessora do presidente José Sarney, consegui uma audiência com ele no Palácio do Planalto e viajei para Brasília.

        Velho amigo nosso, José Sarney ouviu tudo o que eu tinha a lhe dizer sobre o plano. Sem fazer objeções aplaudiu a iniciativa, dando-nos uma soma, não grande, porém suficiente para começarmos a nos movimentar.

        A 2 de julho de 1986 José Sarney e Marly ofereceram um grande almoço no Palácio da Alvorada. Mais tarde, no Palácio do Planalto, em presença de numerosos amigos e personalidades, foi instituída a Fundação Casa de Jorge Amado, Germano Tabacof, presidente, Myriam Fraga, diretora executiva. Ao mesmo tempo, o presidente da República promulgava a lei de incentivo à cultura que passou a ser conhecida por Lei Sarney.

        Sabendo o quanto eu ficaria feliz, sensível, boa amiga, Marly me fez uma surpresa: convidou meu filho Luiz Carlos que vive em São Paulo e eu, rodeada pelos meus três filhos, apaguei as setenta velinhas de um grande bolo, outra surpresa de Marly, pelo meu aniversário, naquele dia.

       

      INAUGURAÇÃO DA CASA

        A 7 de março de 1987 foram inauguradas as instalações da Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, depois de quase um ano de sua instituição em Brasília. Jovens funcionárias da universidade atiraram-se à tarefa de separar cartas e documentos. Bibliotecárias recém-formadas, como Maried Carneiro e Rosane Rubim, até hoje fiéis funcionárias da Fundação, catalogaram livros, documentos e negativos fotográficos. Claudius Portugal, diretor-adjunto, coordenando tudo, Adenor Gondim fotografando. Jacira Oswald foi a responsável pelo projeto arquitetônico da reforma da casa. Ainda outras pessoas, contratadas ou voluntárias, trabalharam para que a Fundação começasse a funcionar.

        Compareceram à festa de inauguração da Casa o presidente José Sarney e Marly, assim como o governador, já em fim de exercício, João Durval com Yeda, Antônio Carlos Magalhães com Aríete, o governador de Brasília, José Aparecido de Oliveira com Leonor, Walter Moreira Salles, o ministro Marcos Vinícius Vilaça com Maria do Carmo, Fernando Sabino, Aldemir Martins, Roberto Santos com Maria Amélia, Ângelo Calmon de Sá com Aninha, Regina de Melo Leitão, Celso Furtado, Renato Martins com Norma, Jorge Calmon, o recém-eleito governador Waldir Pires com Yolanda, Mário Kertesz, Newton Rique com Regina, Manuel Castro com Neusa, Edivaldo Boaventura com Solange, Zitelmamm de Oliva com Lygia, Dmeval Chaves com Inas, Cláudio Veiga com Mary, Wilson Lins e Anita, entre tantas personalidades. Um dos instituídores da Fundação, Edwaldo Pacote, veio do Rio para a festa e ofereceu à Casa um belíssimo quadro do pintor Siron Franco. O último coronel do cacau, Raymundo de Sá Barreto com Itassussê, vieram de Ilhéus. Alfredo Machado 'com Glória chegaram do Rio de Janeiro.

        Não citei aqui outros amigos da Bahia, amigos que nos acompanham e estão presentes desde o início destas minhas memórias, como, por exemplo, Calasans Neto que pintou um enorme e magnífico retrato de Jorge, um velho marinheiro, do qual foram feitos cartazes; Carybé que ofereceu para a Fundação uma escultura em placa de concreto com figuras das três raças que formam a nossa identidade: o índio, o negro e o branco. Colocada na parede azul da fachada, pouco acima de uma escultura de Tati Moreno, um Exu, protetor da casa.

        Dom Timóteo Amoroso Anastácio e Luiz da Muriçoca, do candomblé da Muriçoca, deram suas bênçãos: A essa casa de cultura que hoje abre suas portas, disse Dom Timóteo. Axé, disse Luiz da Muriçoca, libertando uma pombinha branca que voou pela janela.

        Emocionado, Jorge Amado proferiu algumas palavras de agradecimento: ... o que desejo é que nesta Casa o sentido da vida da Bahia esteja presente e que isto seja o sentimento de sua existência. Que ao lado da pesquisa e do estudo, seja um local de encontro, de intercâmbio cultural entre a Bahia e outros lugares.

        Junto à porta de entrada, uma placa de azulejos, desenhada por Floriano Teixeira com texto de James Amado, diz:

       

        CASA DE JORGE AMADO, NESTE LARGO DO PELOURINHO CORAÇÃO DA BAHIA E DO BRASIL E DE SUA OBRA, FIEL À NOSSA GENTE E AO NOSSO AMOR À LIBERDADE, TENDA DOS MILAGRES PARA O ZELO DA CRIAÇÃO LITERÁRIA E O ESTUDO DA FICÇÃO BAIANA E BRASILEIRA.

        SEJA BEM-VINDO SE FOR DE PAZ

        PODE ENTRAR

       

      O ALMOÇO

        Do Pelourinho, terminada a cerimônia da inauguração, partiram os convidados para nossa casa da rua Alagoinhas onde oferecíamos um almoço.

        Convidamos cerca de trezentas pessoas, a começar pelo presidente da República e sua comitiva, personalidades da Bahia e de fora, artistas, instituidores da Fundação, amigos e jornalistas.

        Jorge convidara para o almoço personagens da vida baiana, não levando em conta se eram amigos ou inimigos, adversários políticos ou não. Convidou a todos que quis convidar, indiscriminadamente. Não tenho nada com isso, disse ele ao lhe chamarem a atenção para a confusão que poderiam dar esses encontros, cara a cara: Convido quem bem me parece e estou certo de que em minha casa não haverá brigas.

        As trezentas pessoas, com lugares marcados, em mesas espalhadas pelo jardim, nos terraços e ao lado da piscina, aumentaram para quase quatrocentas. Trabalho de Pedro Costa e Paloma, responsáveis pela disposição das mesas e dos convidados.

        Estava eu atendendo a uns e a outros, quando fui chamada à porta. Os seguranças da guarda do presidente haviam barrado a entrada de uma senhora que, sem saber do tal almoço, insistia em entrar sem convite. Fui socorrê-la, tratava-se de Amália, nossa amiga de Goiás, vinda diretamente do aeroporto, trazendo-nos mudas de orquídeas para colocar nas árvores de nosso jardim.

        Oferecemos aos convidados tira-gostos, pratos típicos e não típicos, tais como: beiju de tapioca, acarajés e abarás servidos por baianas, lindas. Mesmo com tanta gente a mais, o almoço deu e sobrou.

        Almoço alegre e descontraído, todos, indiscriminadamente, amigos e inimigos, alguns ferrenhos adversários políticos, riam, esquecidos das desavenças. Ao passar por Jorge, seu xará Jorge Calmon lhe disse ao ouvido: Só mesmo você, seu Jorge Amado, seria capaz de realizar tal milagre.

       

      HÓSPEDES ESPECIAIS

        Aguardávamos a chegada de um jovem casal de chineses que seriam nossos hóspedes por uma semana, duas pessoas de nossa maior estima: Ho-Ping e Ting-Li.

        Conhecêramos Ho-Ping ainda bebê, na Tchecoslováquia, no Castelo de Dobris, onde vivemos dois anos, exilados. Ho-Ping era filho de Eva Siao, fotógrafa alemã, e do poeta Emi-Siao, na ocasião representante da China no Conselho Mundial da Paz, na Tchecoslováquia. Nessa ocasião, nascia Paloma e nos divertíamos combinando um casamento de Ho-Ping o Pupsik, como era chamado pela mãe, com a nossa Palomita.

        Anos mais tarde na China, em plena Revolução Cultural, quando eram cometidas as maiores injustiças e crimes inomináveis, Emi-Siao foi preso e passou dezesseis anos na cadeia de onde saiu enfermo para falecer em seguida.

        Ting-Li, esposa de Ho-Ping, era filha de Liu Chão Shi, que fora presidente da República Popular da China e assassinado durante os terríveis anos do domínio do Bando dos Quatro.

         Filhos de traidores, proibidos, pelo regime, de estudar na China enquanto meninos, eles só sentaram em bancos escolares quando, já adolescentes, partiram para os Estados Unidos. Parentes que lá viviam os chamaram responsabilizando-se por sua manutenção e estudos.

        Ting-Li e Ho-Ping conheceram-se na Universidade de Harvard, em Cambridge, onde estudaram e se formaram. Casaram-se e trabalham em postos de responsabilidade em grandes empresas, em Nova York.

        Chamei Eunice, nossa antiga empregada, e pedi-lhe que preparasse o quarto de hóspedes.

        —  Desta vez você vai se atrapalhar, Eunice — disse-lhe —, os hóspedes são chineses, falam chinês.

        Eunice riu:

        —  Atrapalho, nada... A senhora é que pensa. Se eles são chineses eu vou entender o que eles falam.

        —  E você entende chinês, Eunice? — me assombrei com tal revelação.

       

        — Entendo tudo. A senhora se lembra quando a dona Tisuka andou por aqui? Pois eu entendia tudinho do que ela dizia, não perdia uma palavra...

        Eunice referia-se à consagrada diretora de cinema, Tisuka Iamasaki, brasileira, nissei, que fora, aqui na Bahia, assistente de Nelson Pereira dos Santos, na filmagem de Tenda dos Milagres e vinha muito aqui em casa.

        Na estante de livros do quarto em que o casal dormia, Ting-Li encontrou traduções de Dona Flor e seus dois maridos em edição americana e em chinês.

        Nos intervalos dos passeios pela cidade, Ting-Li mergulhava na leitura das duas traduções. Estávamos curiosos de saber a sua opinião sobre a chinesa. Finalmente, ao fechar os livros, ela disse a Jorge o que achara: As duas traduções são ótimas, apenas a chinesa é mais romântica. A americana é mais sensual. Ela explicou: Por exemplo, na versão chinesa, quando Dona Flor, depois do ebó que fez para mandar Vadinho embora o vê partindo, desesperada, o chama com o coração. Na versão americana ela o chama com a outra coisa... Fazendo-se de desentendido, malandro, Jorge perguntou: Que outra coisa? Ting-Li não se apertou: Com aquilo que tem debaixo das calcinhas. E como se diz isso em chinês?, insistiu ele. Desta vez a moça encabulou, apenas riu.

        Casal adorável, cheios de vida, voltamos a vê-los ainda algumas vezes: na China, em Nova York e em Paris.

       

      SÃO PAULO

        Infalivelmente, ao chegar a São Paulo, canto o início de um hino que aprendi na distante infância: "São Paulo, terra querida, de gloriosas tradições, aceite de vossa filha as sinceras saudações..."

        Voltar a São Paulo sempre é motivo de satisfação para mim, embora há muito não reconheça a terra em que nasci. Minha casa na Alameda Santos número 8 já não existe, deu lugar a um enorme edifício; a rua da Consolação e a avenida Rebouças, ruas dos meus folguedos de criança, estão irreconhecíveis.

        O motivo principal de minha alegria em São Paulo era rever meus irmãos, meu filho e minhas três netas: Adriana, Camila e Valéria.

        Lalu costumava queixar-se das saudades do filho Joelson que morava tão longe, em São Paulo. Eu achava graça da sua noção de lonjura, até que, pensando bem, vejo que ela estava certa.

        Falo em Lalu no passado, não toquei no assunto até agora, porque me custa. Ainda me recuso a admitir que Lalu já não existe. Na maior tristeza, peço licença para contar que em 1972, aos oitenta e oito anos, Lalu nos deixou. Entrou em coma diabética, e em dois dias se foi.

        Ao voltarmos do cemitério onde a deixamos, a única coisa que me ocorreu para atenuar o sofrimento de Jorge, distender seus nervos—nem sei mesmo se tinha cabeça para pensar, o que fiz, certamente, foi instintivo —, enchi a banheira de água morna e, com um sabonete perfumado, dei-lhe um banho, o banho que a mãe daria pela última vez no seu filhinho.

       

      OS AMIGOS CONFABULAM

        Ouvi muitas vezes Jorge dizer que jamais escreveria suas memórias. Ele e seus amigos Pablo Neruda e Ilya Ehrenburg costumavam dizer isso.

        Em anos passados, no apartamento de Ehrenburg, em Moscou, a rua Gorki número 8, os três amigos conversavam, nunca vou esquecer. Somos homens de mil histórias, diziam, vivemos muito. Vimos coisas que pouca gente viu. Conhecemos povos os mais distantes. Tivemos algumas alegrias e grandes decepções. Aprendemos a conhecer os homens, os falsos e os verdadeiros, a bondade e a maldade. Damos o que temos de melhor, por dias melhores. Temos compromissos com nossos princípios, com nós mesmos. Nunca poderemos escrever um livro de memórias.

        Neruda costumava fazer apontamentos. Ehrenburg também. Jorge nunca fez apontamentos, sempre disse que o que não é importante para ele não deve ser lembrado e as coisas importantes ele guarda na cabeça, não precisa anotar.

        Depois de sua morte, a filha de Ehrenburg, Irina, reuniu os escritos do pai e publicou suas memórias em vários tomos.

        Depois da morte de Neruda, Matilde, sua mulher, publicou, como já se sabe, o livro de memórias de Pablo Neruda, Confesso que vivi.

        

       NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM

        Temos um pequeno e aconchegante apartamento em Paris. Ainda uma vez o imperialismo americano contribuiu para essa aquisição, pagando um adiantamento alto pelo contrato de publicação de Tieta do Agreste. Foi a conta, o dinheiro deu certinho, nem um tostão a mais, nem um tostão a menos. Já não precisamos ficar em hotéis quando vamos a Paris.

        É nesse apartamento, no Marais, ao lado do Sena, que costumamos nos refugiar buscando paz para o nosso trabalho. Do janelão de nossa mansarda avistamos a Notre-Dame e a Torre Eiffel, podemos acenar para Georges Moustaki que do terraço de seu apartamento, na Ile Saint Louis, nos acena. Foi nesse apartamento que Jorge teve o estalo, resolveu escrever, passar para o papel, os apontamentos que trazia na cabeça, fervendo a ponto de transbordar. Me entusiasmei:

        —  Você então resolveu? Maravilha! Vai escrever um livro de memórias?

        Jorge revidou ao meu entusiasmo, bruscamente:

        —  De jeito nenhum! Não vou escrever um livro de memórias, não senhora. Não invente. Vou fazer um livro de apontamentos. Já tenho até título e subtítulo.

        Sentou-se à máquina, papel branco na frente, escreveu: NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM — Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei.

        Paloma, Pedro e as meninas moravam em Paris. Pedro trabalhava num escritório de arquitetura, Mariana e Cecília estudavam lá.

        Ao chegar ao nosso apartamento para brindar com o pai a grande novidade, Paloma encontrou-o debruçado sobre a máquina, os dois indicadores batendo com rapidez e força no teclado, como quem está com pressa, várias anotações já escritas sobre a mesa.

        Eu havia apenas começado a escrever Chão de meninos. Ia ter que largar meu trabalho para ajudar Jorge. Paloma se ofereceu: deixa comigo, mãe, eu passo tudo pelo computador, num instante, vou me regalar. E pela primeira vez deixei de me deliciar batendo os originais de Jorge, entregando à minha filha a agradável tarefa.

        Jorge trabalhava dia e noite, as lembranças se atropelavam sem ligar para a ordem cronológica dos fatos, numa corrida desabalada, de quem quer chegar primeiro. As recordações apareciam inclusive durante o sono e mesmo dormindo ele tomava notas no primeiro pedaço de papel que encontrava à mão.

        A coisa tomou tal vulto que Paloma e Pedro resolveram dar uma ordem nos capítulos. Faziam fichas de cada assunto tratado e as iam pregando na parede da sala. Assuntos e datas colocados em cartões de cores diferentes davam ao quadro a idéia de um quebra-cabeça, de um puzzle. Isso facilitaria muito a ordem dos capítulos, pois, ao terminar o livro, tudo passado a limpo, Paloma faria um índice que remeteria as pessoas citadas à página de citação.

        Carmem Balcells, agente literária de Jorge, chegara de Barcelona para falar com ele e se assombrou ao deparar-se com o estranho e enorme quadro de fichas coloridas, presas com tachas de cores variadas, que cobria a parede: Não posso acreditar, disse encantada. Nunca vi organização semelhante. Uma beleza! É único!

        Antes de sentar-se para trabalhar, todas as manhãs, Jorge consultava o quadro e partia para novas aventuras.

       

      FÔLEGO PARA FALAR SOBRE A DESCOBERTA DA AMÉRICA

        O livro já andava pela metade, quando Jorge recebeu uma proposta da Itália. Queriam uma história sobre a descoberta da América, para um pequeno livro. O assunto do dia na ocasião eram as comemorações dos 500 anos da Descoberta da América. A proposta que os italianos faziam era sedutora e Jorge resolveu tomar um fôlego de suas anotações, seria até bom, e em poucos dias escreveu: A descoberta da América pelos turcos.

       

      VIAGEM PELO MAR NEGRO

        O Navegação já passava das quinhentas páginas. O que tenho agora a contar é pouco, quase nada, disse Jorge. Preciso terminar e sair, tomar um pouco de ar, estou muito cansado. Fez um cálculo de quanto tempo ainda precisava para encerrar o trabalho. Num mês, não mais, eu liquido o assunto e então vamos sair por aí afora de navio, disse ele. Convidamos Misette, ótima companhia, velha companheira de viagens, e compramos passagens para zarparmos dentro do prazo previsto. Faríamos uma bela excursão pelo mar Negro.

        O Cunard Princess sairia do porto de Atenas, viajaríamos pelo mar Egeu, navegaríamos pelo mar de Mármara, atravessaríamos o estreito de Bósforo, antes de entrarmos no mar Negro

        Jorge deu o livro por terminado, entregou-o a Paloma para o remate final, com o devido índice dos personagens. Mesmo tendo dado o livro por terminado, eu senti que ele ainda não estava satisfeito. Jorge estava precisando de um descanso depois de escrever seiscentas páginas. Essa excursão era necessária, providencial.

        Os dedos feridos das batidas nos teclados da máquina iam cicatrizar e, ao voltar, se ainda quisesse trabalhar, já estaria em condições.

       

      ATENAS

        Viajamos para a Grécia de avião, Jorge deixou a máquina, eu o computador, íamos bem leves sem compromissos. Ficaríamos dois dias em Atenas, hóspedes de nosso amigo, o embaixador do Brasil na Grécia, Alcides da Costa Guimarães, filho. Na mansão da embaixada encontramos ainda um querido amigo, cônsul do Brasil em Zurich, René Aguenauer, que viera para nos ver.

        Nós já conhecíamos Atenas mas assim mesmo passeamos com nosso anfitrião e René, vendo coisas que só a gente da terra tem o privilégio de conhecer.

        Durante os passeios percebi em Jorge aquele olhar distante, olhos de quem não está nem aí, olhar muito meu conhecido.

        —  Está pensando no livro? Claro que estava, pergunta óbvia.

        — Logo que embarcarmos vou fazer uma nota de um negócio que lembrei e mandar para Paloma por fax — respondeu-me ele.

        Jorge escreveu a nota e foi escrevendo outras e mais outras de fatos que lhe ocorriam e que ele não queria deixar de registrar. Não tendo máquina de escrever ele escrevia a mão e em seguida eu passava a limpo, com letra bem legível para facilitar o trabalho de minha filha. Na pressa de escrever, sua caligrafia, verdadeira garatuja, era de tal maneira complicada que, por vezes, nem ele mesmo a entendia.

        Cada remessa de capítulos pelo fax do navio ia acompanhado de um bilhete de desculpas: Palé, minha filha, vá me perdoando tanto trabalho que te dou... Em Paris, Paloma passava tudo a limpo e devolvia para o navio as páginas para uma última revisão do pai. Quando aconteciam novas correções feitas por ele, o que era comum, o trabalho de ida e volta era dobrado.

        O Cunard fez rápidas escalas em várias ilhas gregas. Em nenhuma delas Jorge desceu, absorvido no trabalho. Eu saltava com Misette, nem via nada direito na preocupação de voltar, dar assistência a ele.

        Agora passaríamos um dia inteiro em Istambul. Com Misette havíamos estado na Turquia e adorado.

        Insisti com Jorge para que saltasse conosco, ele havia gostado tanto de Istambul... mas não houve jeito: Vão vocês e depois me contem... Não adiantava insistir, ele estava ocupado demais com as provas recém-chegadas, remetidas pela filha.

        Em Istambul, Misette e eu fizemos o recorrido da cidade, revendo coisas que tanto nos agradara. Resolvi entrar numa livraria. Da vez anterior havíamos encontrado várias traduções de livros de Jorge, edições piratas. Quem sabe, ainda há outras, disse a Misette. Eu lembrava bem do logotipo da editora que publicara os livros e fui procurá-lo na estante de traduções estrangeiras. Encontrei um livro de Jorge, localizei-o pela fotografia na contracapa, aliás, fotografia feita por mim. Perguntei ao livreiro se não havia outros livros do mesmo autor e ele mandou buscar mais um no depósito.

        Jorge fez uma pausa no trabalho para folhear as edições de Tereza Batista e Tieta do Agreste, em língua turca.

        Num bilhete, Paloma nos contou ter recebido uma chamada da Francetelecom estranhando o envio diário de fax de 15 a 20 páginas. Estranhavam sobretudo pelo preço excessivo de fax enviados para navios.

        A próxima escala foi no porto de Varna, na Bulgária. Nem em Varna Jorge saltou. Quando muito foi à amurada do navio dar uma espiada, não viu nada.

        Peço licença para não entrar em pormenores da viagem, das festas, dos portos de escala, das graças de Misette. Aqui o cruzeiro entra apenas como detalhe, não é difícil perceber, do que foi o trabalho de Navegação de cabotagem.

        Em Odessa Jorge resolveu descer, tinha mandado as provas para a filha, esperava-as de volta para correções.

        — Vou desenferrujar as pernas — disse.

        Odessa, na Ucrânia, era nossa penúltima escala, antes de Ialta, quando então regressaríamos.

        Em Odessa fomos ver as impressionantes escadarias que aparecem no filme: O encouraçado Potenkim e voltamos andando até o navio.

        Nem bem pisou no navio, Jorge lembrou de outras histórias e foi lembrando de outras e mais outras até chegarmos a Veneza, fim de nossa excursão.

        Na véspera de nosso desembarque, acompanhando os novos capítulos, Jorge mandou um bilhete que dizia: Palézinha, meu amor. Aqui vai o último fax. O derradeiro. Juro pela alma de tua mãe que não haverá outro...

        No mesmo dia, chegou um bilhete de Paloma: Paizinho, querido. Jure pela alma de tua mãe que a minha ainda está viva...

       

      VENEZA

        Perambulávamos beirando os canais de Veneza, sentando na Piazza San Marco, praça de nosso encanto. Fomos parar na Basílica dei Santi Giovanni e Paolo. Lembramos que nessa igreja havíamos assistido às obséquias de Stravinski, espetáculo inesquecível!

        Os olhos de Jorge brilhavam.

        —  O enterro de Stravinski está no livro? — provoquei, sabia que não estava.

        —  Vai estar — disse ele.

       

      PEÇO LICENÇA AO MESTRE

        Com a devida licença do Mestre, aqui transcrevo o último capítulo que ele escreveu embora não se encontre na página 638, a última do livro.

        A nota escrita em Veneza faz parte de três funerais que o impressionaram, se intitula KARACHI e está na página 341:

         Com Aríete Soares acompanhamos em Veneza os funerais de Stravinski, as obséquias na Basílica dei Santi Giovanni e Paolo, oficiadas por meia dúzia de padres católicos e outros tantos popes ortodoxos, uns e outros na pompa do ritual, a música do desvario, o incenso em labaredas, o pássaro de fogo nos turíbulos, o coro em língua russa, coisa de ver-se e de ouvir-se. A gôndola com o esquife singra o rio dei Mendicanti no rumo do cemitério, a marcha fúnebre se evola da nave da Basílica, cobre os canais e os palácios da Sereníssima.

        Ao receber esta última e derradeira nota, Paloma mandou seu último e derradeiro bilhete: Paizinho querido: adorei a nota, está linda demais! Só quero saber onde é que ficou a alma de minha mãe. Foi para o brejo?

       

      VOLTO A SÃO PAULO

        Meus irmãos já morreram. Eu sou a última e única filha de dona Angelina e de seu Ernesto que ainda teima em viver.

        Em São Paulo tenho sobrinhos, alguns primos e meu filho Luiz Carlos com sua família que, por viverem em São Paulo, muito longe, segundo Lalu, e por circunstâncias da vida que nos impede, os vejo pouco. Luiz Carlos e a família, quando podem e quando coincide estarmos aqui na época, vêm passar uns dias conosco, na Pedra do Sal ou na casa da rua Alagoinhas. As meninas, hoje moças, lindas, já viajaram conosco pela Europa. Adriana e Camila já se formaram e Camila até já se casou, nos dando a honra de sermos seus padrinhos. Valéria, a mais nova, também em breve estará formada.

        Continuo tendo motivos de sobra para me entusiasmar com as viagens a São Paulo. Além de minha família, Joelson e Fanny, como já foi dito, moram lá há muitos anos, assim como os filhos, nossos sobrinhos, André, Paulo e Roberto. Nem têm conta os amigos de São Paulo, são tantos que não me atrevo a enumerá-los, a lista seria grande demais e no fim eu acabaria esquecendo alguém, talvez dos mais importantes, como Jô Soares e Saulo Ramos, por exemplo.

        Chegamos a São Paulo naquele ano de 1993, como sempre, tendo pela frente um programa enorme, não posso esquecer.

        Devíamos fazer uma tarde de autógrafos, Jorge assinando A descoberta da América pelos turcos, e eu, Chão de meninos. O lançamento de nossos livros seria na mesma livraria, no mesmo dia, na mesma hora.

        Do aeroporto seguimos diretamente para a livraria onde uma fila enorme estava à nossa espera. Assinamos sem parar durante várias horas. Só chegamos ao hotel tarde da noite, mortos de cansaço. Ainda teríamos em São Paulo dois dias puxadíssimos de entrevistas e programas de televisão. A duras penas, reservamos o horário do almoço para estar com Luiz Carlos e as meninas, pois à noite iríamos a um grande jantar em homenagem a Jorge, oferecido pelo Rotary Club.

        Depois de mais um dia esfalfante, exaustos, chegamos de volta à Bahia. Coisa boa chegar em casa, não há nada melhor. Costumamos dizer que o melhor de uma viagem é retornar à casa da gente. Nesse dia, no entanto, não me senti tão aliviada, não estava satisfeita. Jorge viajara calado e, embora não se queixasse, percebi que ele não se sentia bem, mas preferi atribuir isso ao seu pavor a viagens aéreas.

        Não havia ninguém nos esperando em casa. João e Rízia, que moravam conosco, ainda não haviam chegado. Apenas Jorginho, nosso neto de nove anos, filho de João e Rízia, nos recebeu. Jorge queixou-se, sentia-se incômodo, não quis jantar, foi deitar-se. Ao vê-lo estirado na cama, gemendo, imaginei que ele podia estar tendo um enfarto. Não havia muito tempo, Calasans Neto tivera uma ameaça de enfarto e os sintomas haviam sido esses que Jorge sentia agora. Fora Dr. Jadelson Andrade quem o socorrera. Conhecêramos o médico nessa ocasião. Corri para o telefone, chamei-o.

        Ele acabava de chegar em casa, vindo do consultório. Mal tirara o paletó quando o telefone tocou. Eu o chamava, no maior desespero. Enquanto eu falava, na sala, Jorginho, no quarto, fazia companhia ao avô, vendo-o se retorcer de dor. Ciente do que se passava, Jadelson deu-me o telefone do Hospital Aliança: Chame uma ambulância com a maior urgência! Estou indo para aí.

        Jorge foi salvo, não tenho dúvida, graças ao atendimento imediato que teve. Jadelson veio da Barra ao Rio Vermelho em menos de quinze minutos.

        Debruçado sobre o paciente, examinando-o, o médico transmitia ordens e eu as executava: telefonei para o hospital dando instruções, providenciando um lugar na UTI, pedindo pressa à ambulância que já estava a caminho mas custava a chegar. Mandei Jorginho descer a ladeira, ir ao encontro dela, talvez perdida na encruzilhada, lá embaixo, para indicar o caminho... E foi o que aconteceu. Jorginho voltou na ambulância orientando o motorista que chegou em seguida.

        Há algo que me protege em momentos difíceis. Supero o desespero, não me entrego, conservo o sangue-frio, não perco a cabeça, colaboro. Minha mãe diria ser a proteção da estrela que me ajuda, mas a quem chamei naquela noite, ao ver Jorge torcendo-se em dores, sofrendo, escapando de meus braços, vendo-me impotente diante da morte, foi dele que lembrei, de Deus. Não parei de repetir seu nome, ai meu Deus! Ai meu Deus do céu!

        No Hospital Aliança, hospital cinco estrelas, com a assistência permanente de Jadelson Andrade, honra seja feita, Jorge conseguiu sair-se dessa.

        Comentando com Paulo Sérgio Tourinho, dono e responsável por esse bem aparelhado hospital, inigualável de beleza e bom gosto, com a obra de Francisco Brenand presente a começar do piso, teto e paredes, às esculturas espalhadas por toda a parte, até a capelinha, única, disse-lhe do meu encanto por esse hospital: Chego até a me atrapalhar ao falar nele, chamando-o de hotel cinco estrelas, disse-lhe. Paulo Sérgio riu: E preciso sempre acrescentar que são cinco estrelas para todo mundo, para todas as camadas sociais. Atendemos aqui pobres e ricos, você pode constatar com seus próprios olhos, é só andar pelos corredores. Ao projetá-lo, essa foi a intenção de meu tio, Pâmphilo de Carvalho, e a minha e, graças a Deus, é o que está acontecendo. Pâmphilo de Carvalho fora colega de colégio de Jorge e veio do Rio para visitá-lo.

        Depois de uma boa temporada no Hospital Aliança, refeito sem precisar ser operado, Jorge voltou para casa.

        Chega a ser monótono, mas eu gosto de repetir que dos males, por maiores e negativos que sejam, sempre tiro um lado positivo deles. Desta vez, do enfarto de Jorge que nos pegou de surpresa, quase me levando ao desespero, salvamos o lado positivo: descobrimos um novo amigo, um amigo para todas as horas, assim como devem ser os grandes amigos. Jadelson Andrade, o médico, com sua dedicação, competência e amor, passou a fazer parte de nossa vida. Como se ele apenas não bastasse, trouxe-nos Tânia, sua mulher, médica ela também, doce e adorável criatura. Com eles temos passado bons momentos, juntos estivemos em alegres temporadas em Paris.

        Peço uma licencinha para contar, pouca coisa, mas, creio, vale a pena:

        Caminhávamos, os quatro, flanando pelas ruas de Paris, e era exatamente o dia da música. Por toda a parte encontravam-se grupos e mesmo solistas tocando instrumentos, os mais variados. Pessoas caracterizadas, outras não, a gente parando aqui e ali. A Place des Vosges, uma das mais charmosas praças de Paris, estava minada de músicos, quando, não mais que de repente, meu coração bateu forte, senti calor nos pés, seria a timbalada que se aproximava? A batida forte e o ritmo não me enganavam. Compenetrados, num compasso bem marcado, os músicos, que nem brasileiros eram, apenas jovens franceses, aficionados de nosso embalo, recém-chegados de um aprendizado na Bahia, batiam forte no timbau, no surdão e no repique, trazendo o Brasil até nós. Como resistir? De que jeito? Vambora dançar, Jorge?, convidei por convidar, já certa de sua recusa. Antes que eu insistisse, Jorge tratou de sentar-se, Tânia o acompanhou, ficaram assistindo de camarote. Não hesitei, já que ele não dança eu danço sozinha. Caí no samba de pé, mas não fiquei só, tive parceiro: contagiado, ele também, pelo ritmo, Jadelson me acompanhou. Juntou gente em volta, alguns estrangeiros até tentaram nos seguir no requebro mas, qual! Cadê o molejo de cintura e a picardia no passo? Só mesmo um brasileiro é capaz. Traz a coisa no sangue.

         Pena que naquele tempo não havia ainda surgido a dança da bundinha..., pilheriei aqui em casa, relembrando aquele dia. Jorge que ouvia calado resolveu entrar na conversa: A dança da bundinha? Nada me surpreenderia, Zélia é capaz de tudo...

        Dizemos sempre que temos inúmeros conhecidos, pessoas que estimamos, mas a lista dos amigos íntimos não é tão grande assim. Esses podem ser contados nos dedos das mãos. Pois Jadelson e Tânia entraram nessa lista, por todos os merecimentos.

       

      NERUDA VEM SE DESPEDIR

        Já se passaram muitos anos e eu me recordo, como se fosse hoje, da chegada de Matilde e Pablo Neruda à Bahia. Ele vinha se despedir. Não disse, mas tudo indicava.

        Ainda no aeroporto, enquanto aguardávamos a bagagem, ele assumiu um ar solene e nos disse: Não me perguntem por ninguém, morreram todos. Somos dos raros que ainda estão vivos. Vim para conversar, matar saudades, ouvir uns atentos da comadrita.

        A notícia da chegada de Neruda à Bahia correu rápida e a imprensa invadiu nossa casa. Vieram poetas e literatos, amigos nossos, como, por exemplo, Ildásio Tavares, Fernando Batinga e Carlos Eduardo da Rocha, o jovem jornalista Guido Guerra, por alcunha o Papagaio Devasso, certamente por não ter papas na língua, e à frente ainda um amigo, o historiador Luiz Henrique Dias Tavares. Organizaram em seguida um recital de poesia na Escola de Teatro. Fazer um recital nesses dias de Bahia não estava nos planos de Pablo, ele viera nos ver, conversar, descansar. Aceitou, no entanto, ter um encontro com estudantes, artistas e poetas como também concordou em passar algumas horas na sede da Ordem dos Trovadores, no Largo 2 de Julho, onde Rodolfo Coelho Cavalcante e outros repentistas e trovadores o saudaram numa festa popular que, verdadeiramente, o encantou.

        Com sua voz pausada, Neruda declamou poemas, falou à multidão de admiradores que lotaram as dependências da Escola de Teatro. Empolgou com seus versos e com suas respostas às perguntas que lhe foram feitas após o recital, perguntas quase todas políticas, às quais ele respondeu com a coragem que sempre lhe foi peculiar.

        Em nossa casa, em reunião familiar, pouca gente, Zitelman Oliva e Ligia, James e Luiza, Luiz Henrique com Laurita, conversamos muito, Matilde, com sua bela voz cantou uma canção de Pablo: "Príncipe de los caminos, hermoso como un clavel, enbriagador como el vino, era dom José Miguel..," Guardei na memória apenas esse verso, nunca mais ouvimos a canção que era belíssima.

        Perguntei a Pablo se já tinha terminado o livro de memórias. Lembrava que por todas as partes onde andáramos ele costumava, vez ou outra, recolher-se a um canto isolado e tomar notas num caderno. Pablo riu. Aprenda mais essa, comadre, um livro de memórias jamais tem fim. A vida continua. Novos fatos vão acontecendo. Um livro de memórias de pessoas como nós, Jorge e eu, não pode ter fim. Nós vivemos a vida ardentemente. Vidas cheias de acontecimentos, bons e maus, sofremos as piores injustiças, desfrutamos as maiores alegrias e recompensas, viajamos e conhecemos esse mundo inteiro, temos amigos que nos esperam onde quer que cheguemos, aprendemos a compreender os homens, a perdoá-los, a amá-los, aprendemos a arrancar de nossos corações os maus sentimentos, não precisamos ter inveja de ninguém, ai, a inveja! Só maltrata a quem a sente, somos amados por nossos leitores e até por pessoas que nunca leram uma só página nossa, mas nos amam... Um livro de memórias nosso, de Jorge e meu, repetiu, não pode ter fim. Nem nosso, nem de ninguém, riu. Não sei quando publicarei o meu, se é que o publicarei um dia.

        Ao dar-nos tão importante lição de vida, Pablo estava longe de imaginar que um dia sua comadre também acabaria escrevendo livros, livros que, inclusive, contariam suas histórias.

       

       CONFESSO QUE VIVI

        Foi Matilde quem, depois da morte de Pablo, conseguindo driblar a sanha dos perseguidores de Pablo, dos assassinos de Salvador Allende, levou clandestinamente os originais do livro de memórias de Pablo para a Venezuela. Com a ajuda de Miguel Otero Silva, dono de um jornal venezuelano, velho amigo de Neruda, compôs o livro Confesso que vivi...

        Quando o livro estava quase pronto, Matilde veio à Bahia aconselhar-se com Jorge sobre o problema de editores estrangeiros que desejavam publicar a tradução. Ficou apenas dois dias conosco. Em seguida à sua partida recebemos, aqui em casa, a visita de um policial do FBI. Tinham visto, em notícia de jornal, a foto da viúva de Neruda em nossa casa. Queriam saber quando ela chegara. Ela esteve aqui conosco e já não está, veio legalmente, não tinha por que esconder-se, respondeu Jorge, secamente, ao policial. Meio sem jeito ele explicou que a polícia estava intrigada pelo fato de Matilde Neruda não estar registrada na lista de entrada do aeroporto. Nessa lista da polícia não constava nenhum Neruda, apenas Matilde Urrutia.

         Admira-me que a polícia não saiba, disse-lhe Jorge, que nos países da América Latina, ao casar-se, a esposa conserva o nome do pai e acrescenta, se quiser, o nome do marido. No caso de Matilde seria Urrutia de Neruda ou viúva de Neruda. Certamente ela não quis acrescentar, ao seu nome de solteira, o do marido. Depois desse esclarecimento, não nos importunaram mais.

        Aqui estou pensando em Pablo, recordando seus sábios conselhos: Um livro de memórias não pode ter fim.

        Minha intenção era parar por aqui, já que um livro de memórias não pode ter fim e eu já contei histórias até demais.

        Abusando da paciência dos leitores, ainda uma vez, peço licença para, em breves palavras, contar que a festa dos oitenta anos de Jorge, na Bahia, foi das mais belas e emocionantes que eu já vi. Aniversário de número redondo que nos trouxe amigos do Brasil inteiro e do mundo todo.

        Do Rio de Janeiro veio a família Caymmi e cantou para o velho amigo, no palco armado no Largo do Pelourinho. E nesse palco, quantos mais cantaram? Maria Betânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Waltinho Queiroz, Daniela Mercury, Margareth Menezes e tantos e tantos outros que, com o povo da Bahia lotando a grande praça, enfrentando até a chuva que caiu de repente, sem arredar pé, entoaram numa só voz o "Parabéns pra você..."

        Aproveitando a licença pedida, vou na cola para contar que a Fundação Casa de Jorge Amado vai de vento em popa. Já festejou seu décimo aniversário e, sempre sob a orientação de Myriam Fraga, Claudius Portugal e também de Germano Tabacof, ela cumpre o seu objetivo, segue o seu destino.

        Centro de cultura no coração da Bahia, num Pelourinho restaurado, lindo, alegre, onde o povo canta e dança nas praças e ladeiras, a Fundação Jorge Amado edita livros, publica revista, promove exposições, orienta estudiosos.

        Num galante café-teatro recém-inaugurado, no recinto de exposições, no andar térreo, realizam-se conferências, exibem-se filmes, apresentam-se peças de teatro e toma-se um cafezinho. Na parede, um pôster com um texto de Jorge, texto esse escrito para o programa de uma exposição de xícaras pintadas por artistas:

       

        Numa xícara de café,

        pode-se colocar a beleza do mundo.

        Numa xícara de café,

        pode-se sentir o sabor amargo

        e doce da vida.

       

        Para meu encabulamento, a direção da Casa decidiu homenagear-me, dando ao café-teatro o meu nome.

       

      VOLTO A NERUDA

        Assim como Neruda nos pediu: Não me perguntem por ninguém, já morreram todos, eu também pediria que não me perguntassem pelos amigos que estiveram ao meu lado enquanto escrevi estas memórias. Os amigos que me fizeram companhia, provocando riso e às vezes pranto, permitindo-me voltar a reviver o passado, morreram quase todos. Diria apenas que a primeira a partir foi Norma e o último Carybé. A chaga ainda está aberta.

     

      NA CASA DO RIO VERMELHO

        Da janela de meu gabinete, onde escrevo, vejo Zuca se aproximar entre as árvores do jardim.

        — Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a Deus! Choveu muito, a senhora sabe, e as danadinhas das formigas depois da estiada costumam aparecer... Acabei de descobrir um formigueiro grande, ali, bem nos pés do Exu. — Zuca apontou o Exu. — Já dei cabo delas, não sobrou nenhuma... — concluiu, satisfeito. Encompridei conversa:

        — É verdade, tem chovido muito. Por isso as formigas aparecem, não é, Zuca?

        — Isso mesmo. Dona Zélia entende dessas coisas, entende mesmo. Com as chuvas as danadinhas voltam...

        —  E os coqueirinhos, Zuca?

        —  Já comprei o coqueirinho que a senhora pediu, trouxe hoje, está aí.

        Eu pedira a Zuca que me conseguisse dois coqueirinhos para plantar no lugar de dois velhos coqueiros, derrubados por um temporal.

        —  Só trouxe um? Eu pedi dois...

        —  O outro eu trago amanhã.

        — Muito bem, Zuca, então vá preparando a terra, abrindo a cova para plantar enquanto eu fecho o computador. Vou em seguida, quero estar lá...

        —  A senhora quer plantar hoje mesmo?—admirou-se Zuca.

        —  Sim, senhor. Hoje mesmo. Qual é o problema? Zuca coçou a cabeça:

        —  Não pode ser amanhã, não, dona Zélia?

        — Amanhã a gente planta o que você vai trazer. Este vai ser plantado hoje, sem falta. Agora! — enfatizei.

        Discretamente, Zuca olhou para o céu, meneou a cabeça e, num meio sorriso, monologou: Dona Zélia é tão interessante...

 

                                                                                            Zelia Gattai

 

 

                      

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