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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DOS ANJOS / Colleen McCullough
A CASA DOS ANJOS / Colleen McCullough

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Como é que hei-de ver-me livre do David? Não pensem que não pus já a hipótese do assassínio, mas não conseguiria sair impune disso, assim como também não consegui sair impune da compra do biquini com as cinco libras que a avó me deu no Natal.

Devolve-o, minha menina, e traz para casa um fato de banho de uma só peça, com uma sainha a cobrir isso aí em baixo disse a mãe.

Para dizer a verdade, fiquei um bocado horrorizada quando o espelho me mostrou a grande parte de mim que o biquini punha em exposição, incluindo as madeixas de pêlos púbicos em que nunca tinha reparado quando ficavam ocultas por trás da saia do fato de banho. Bastou a ideia de arrancar um milhão de pêlos púbicos para ir a correr trocar o biquini por um modelo Esther Williams da cor mais recente, Beleza Americana. Uma espécie de rosa-forte avermelhado. A empregada da loja disse que eu ficava muito apetitosa, mas quem é que vai satisfazer tais apetites por mim com a Porra do David Mur-chison a pairar sobre a minha carcaça como um cão a guardar um osso? Certamente que não será a Porra do David Murchison!

Hoje a temperatura subiu acima dos quarenta graus e fui até à praia baptizar o fato novo. As ondas estavam muito altas, o que não é costume em Bronte, mas pareciam grandes salsichas verdes acetinadas pesadíssimas, nada boas para furar. Por isso, estendi a toalha na areia, cobri o nariz com creme de zinco, pus a touca estilo Beleza Americana a condizer com o fato de banho e corri para a água.

 

 

 

 

            O mar não está bom para tomar banho, vais ser esmagada — disse uma voz.

David. A Porra do David Murchison. Se ele me sugerir a segurança da porra da piscina dos miúdos, pensei firmando as pernas cobertas pela saia do fato de banho, vamos ter discussão.Vamos até à piscina. É mais seguro disse ele.E sermos esmagados pelas bombas dos miúdos? Não! rosnei e atirei-me para a briga. Embora «briga não seja o termo mais indicado. Eu grito e discuto e o David limita-se a pôr ares de superioridade e recusa-se a morder o isco. Mas a briga de hoje conheceu uma nova arma: arranjei finalmente coragem para lhe dizer que estava farta de ser virgem.Vamos ter um caso propus eu.Não sejas pateta respondeu ele, imperturbável.Não estou a ser pateta! Toda a gente que eu conheço já teve um caso, só eu é que não! Raios, David, tenho vinte e um anos e olha para mim, comprometida com um tipo que nem me beija com a boca aberta!

Ele fez-me uma festinha no ombro e sentou-se na toalha.

            Harriet proclamou ele naquela sua voz nasalada e super- fina de universidade católica para rapazes , já é tempo de marcarmos a data do casamento. Já fiz o doutoramento, o C.S.I.R.O.1 ofe- receu-me um laboratório e uma bolsa de investigação, já namoramos há quatro anos e estamos noivos há um. Os casos são pecado. O casamento não.

Grrr!Mãe, quero romper o noivado com o David! disse assim que cheguei a casa vinda da praia e com o meu fato novo por baptizar.Então diz-lho, querida disse ela.Alguma vez tentaste dizer ao David Murchison que já não queres casar com ele? perguntei.

 

C.S.I.R.O. - Commonwealth Scientifie and Industrial Research Organization. (N. da T.)

 

A mãe riu-se. Bem, não. Eu já sou casada.

Oh, detesto quando a mãe se diverte à minha custa!

Mas fui em frente. O problema é que eu tinha só dezasseis anos quando o conheci, dezassete quando ele começou a convidar--me para sair e, naqueles tempos, era óptimo ter um namorado que não tinha de ser mantido à distância pela força. Mas, mãe, ele é tão... tão obstinado Aqui estou eu, já maior de idade, e ele trata-me exactamente da mesma maneira como tratava quando eu tinha só dezassete anos! Sinto-me uma mosca conservada em âmbar.

A mãe é uma boa companheira e não começou a dar-me lições de moral; contudo, ficou com um ar um pouco preocupado.Se não queres casar com ele, Harriet, então não cases. Mas ele é muito bom partido, querida. Bonito, bem constituído... e tem à sua frente um futuro tão brilhante! Olha o que aconteceu a todas as tuas amigas, especialmente à Merle. Metem-se com tipos que não são maduros nem sensatos como o David e magoam-se sempre. Não dá em nada. O David agarrou-se a ti como uma lapa e será sempre assim.Eu sei disse eu com os dentes cerrados. A Merle continua a chatear-me por causa do David: como ele é divinal e eu não sei a sorte que tenho. Mas, francamente, ele é um chato! Estou há tanto tempo com ele que todos os outros rapazes que conheço acham que já não sou livre... nunca tenho oportunidade de descobrir como é o resto do mundo masculino, raios!

Mas ela não estava a ouvir verdadeiramente. A mãe e o pai aprovam o David, sempre aprovaram. Talvez se eu tivesse uma irmã, ou tivesse uma idade mais próxima da dos meus irmãos... é duro ser um acidente do sexo errado! Quer dizer, o Gavin e o Peter têm trinta e tal anos, continuam em casa, comem hordas de mulheres na parte de trás da carrinha, em cima de um colchão impermeável, são sócios do pai na nossa loja de artigos de desporto e jogam críquete nos tempos livres uma bela vida! Mas eu tenho de partilhar um quarto com a avó que faz chichi num bacio que despeja na relva ao fundo do quintal. O cheirete é uma maravilha.

«E já tens muita sorte, Roger, de eu não o atirar para a roupa lavada da vizinha do lado, é o que ela responde quando o pai tenta repreendê-la.


Mas que boa ideia é ter um diário! Já conheci um número suficiente de psiquiatras esquisitos e de psiquiatras maravilhosos para saber que agora tenho um meio através do qual poderei exteriorizar as frustrações e repressões. Foi a Merle quem sugeriu que eu escrevesse um diário suspeito que ela gostaria de lhe dar uma espreitadela sempre que cá vem, mas não tem hipótese. Tenciono guardá-lo debaixo da cama da avó, encostado ao rodapé, mesmo ao lado do Penico.

Desejos desta Noite: Nada de David Murchison na minha vida. Nada de Penico na minha vida. Nada de salsichas de caril na minha vida. Um quarto só para mim. Um anel de noivado para o poder atirar à cara do David. Ele disse que não me dava um porque era dinheiro mal gasto. Que forreta!

 

Sábado, 2 de Janeiro de 1960

Fiquei com o emprego! Depois de ter feito os exames finais na Escola Técnica de Sydney, no ano passado, candidatei-me a um lugar de técnica no Departamento de Radiologia do Royal Queens Hospital e hoje veio no correio uma carta a comunicar que o lugar era meu! Vou começar esta segunda-feira como técnica superior de radiologia no maior hospital do Hemisfério Sul mais de mil camas! Faz com que o Ryde Hospital, a minha velha alma mater, pareça uma canoa atracada ao paquete Queen Elizabeth. Sabendo o que sei agora, nunca deveria ter feito a minha formação no Ryde Hospital, mas na altura pareceu-me uma excelente ideia, quando David a sugeriu. O seu irmão mais velho, o Ned, é lá médico teria um amigo no interior do sistema. Ah! Afinal, funcionou como cão de guarda. De cada vez que alguém do sexo masculino me lançava um olhar intencional, a Porra do Ned Murchison avisava-o: eu era a namorada do irmão dele, portanto nada de investidas furtivas em reservas já demarcadas! De início não me importei, mas tornou-se uma grande chatice, à medida que me fui livrando das inseguranças e da humildade da adolescência e comecei a pensar ocasionalmente em como seria giro sair com X ou Y.

Ter estudado no Ryde teve, todavia, uma vantagem. São precisas duas horas para ir de Bronte até lá de transportes públicos, e estudar nos transportes públicos é muito melhor do que estudar na residência Purcell, com a avó e a mãe a verem televisão e os homens a levarem o serão inteiro para lavar os pratos enquanto tagarelam sobre críquete, críquete e mais críquete. Os filmes de Clint Walker e Efrem Zimbalist Júnior na sala de estar, Keith Miller e o críquete de Don Bradman na cozinha, sem quaisquer portas a separar a confusão e o único local disponível para estudar, a mesa da sala de jantar. Um autocarro ou um comboio é sempre melhor que isto. E adivinhem! Fiquei em primeiro lugar em todas as disciplinas! Com nota máxima a tudo. Foi por essa razão que consegui o emprego no Royal Queens. Quando as notas saíram, a mãe e o pai chatearam--me um bocado por eu me ter recusado ir para a Universidade, tirar um curso em Ciências ou Medicina, depois de ter terminado o ensino secundário em Randwick. Ter ficado em primeiro lugar em radiologia fê-los aperceberem-se melhor da minha falta de ambição, acho eu. Mas quem é que quer ir para a Universidade ter de aturar todos aqueles homens que não querem mulheres nas profissões masculinas? Eu não!

 

Segunda-feira, 4 de Janeiro de 1960

Comecei a trabalhar esta manhã. Às nove horas. O Royal Queens é muitíssimo mais perto de Bronte do que o Ryde! Se fizer a pé os dois últimos quilómetros, só ando vinte minutos de autocarro.

Como me tinha candidatado ao emprego na Escola Técnica, nunca tinha estado lá; só passara por perto nas poucas ocasiões em que fomos ao Sul visitar alguém ou fazer um piquenique. Mas que lugar! Tem as suas próprias lojas, bancos, estação de correios, entrai eléctrica, uma lavandaria suficientemente grande para aceitar erviço de hotéis, oficinas, armazéns... Pense-se no que se pensar, o foyal Queens tem. É um autêntico labirinto! Levei quinze minutos num passo acelerado para ir dos portões principais até à Radiologia, assando por todos os tipos arquitectónicos que Sydney produziu ios últimos cento e tal anos. Edifícios quadrangulares, rampas, al-endres com colunas, edifícios de grés, edifícios de tijolo vermelho, mensos edifícios modernos com vidro por fora horrivelmente [uentes para se trabalhar lá dentro!

A julgar pelo número de pessoas por que passei, deve haver lá mais de dez mil funcionários. As enfermeiras andam embrulhadas em tantas camadas de tecido engomado, que parecem embrulhos verdes e brancos. As pobrezinhas têm de usar meias de algodão castanho e grosso e sapatos rasos, atacados, castanhos! Até a Marilyn lonroe teria dificuldade em parecer atraente com meias opacas e sapatos rasos de atacar. As suas toucas parecem duas pombas brancas ntrelaçadas e usam punhos e colarinhos de celulóide e a saia a bater no meio da barriga da perna. As irmãs enfermeiras têm um aspecto semelhante, só que não usam aventais, na cabeça ostentam chapéus egípcios em vez de toucas e usam meias de nylon os sapatos atacados delas têm saltos com cinco centímetros.

Bem, eu sempre soube que não tenho feitio para aturar toda iquela insana disciplina militar, tal como não o tenho para ser mal-ratada por estudantes universitários do sexo masculino que querem Droteger o seu território. Nós, as técnicas, só temos de usar um uniforme branco abotoado à frente (a bainha por baixo do joelho), com meias de nylon e sapatos rasos.

Deve haver aí umas cem fisioterapeutas detesto fisioterapeutas! Quero dizer, que são elas senão massagistas promovidas? Mas, meu Deus, como são convencidas! Até põem goma nos uniformes voluntariamente] E têm todas aquele ar despachado, atlético e superior e mostram os enormes dentes cavalares e dizem coisas como Fantástico! e Oh, boa!.

Foi uma sorte eu ter saído de casa com tempo suficiente para andar aqueles quinze minutos e, ainda assim, chegar a horas ao gabinete da Enfermeira Toppingham. Mas que fera! A Pappy diz que toda a gente lhe chama Enfermeira Agatha, por isso também lhe vou chamar assim... pelas costas. Tem aí uns mil anos e foi, em tempos, uma das irmãs que praticam enfermagem continua a usar o véu egípcio engomado das enfermeiras diplomadas. Tem a forma de uma pêra e até o sotaque é em forma de pêra. Horrível, horrível. Tem os olhos de um azul pálido, frios como uma manhã gelada, que me olharam como se eu fosse uma mancha numa janela.

Vai começar, Miss Purcell, nos Tórax. Belos e simples pulmões, de início, sabe? Prefiro que todo o pessoal novo tenha um período de orientação, a fazer algo simples. Mais tarde veremos aquilo de que é verdadeiramente capaz, sim? Excelente, excelente!

Bolas, que desafio! Tórax. É mandá-los encostar à tábua direita e suster a respiração. Quando a Enfermeira Agatha falou em Tórax, estava a referir-se a Pacientes da Consulta Externa, aos feridos que conseguiam caminhar, nada de grave. Somos três a fazer os tórax de rotina, eu e duas estagiárias. Mas as câmaras escuras são muitíssimo solicitadas: temos de processar as nossas chapas à velocidade máxima, o que significa que, se alguém leva mais de nove minutos, ouve um grito.

Este é um departamento de mulheres, o que me espanta. Muito raro! Os técnicos de raios X são pagos com salários masculinos, o que faz com que os homens acorram como moscas à profissão em Ryde, a maioria de nós eram homens. Suponho que a diferença no Queens se deva à Enfermeira Agatha, portanto ela não deve ser assim tão má.

Conheci a auxiliar de enfermagem na área tristonha onde estão instalados os nossos cacifos e as casas de banho. Gostei dela à primeira vista, muito mais do que de qualquer das técnicas que conheci hoje. As minhas duas estagiárias são miúdas simpáticas, mas são ambas caloiras, o que as torna um tanto entediantes. Já a Auxiliar de Enfermagem Papeie Sutama é interessante. O nome é exótico... mas a dona também o é. Os olhos dela têm pálpebras superiores mas, decididamente, há ali muito de chinês, pensei quando a vi. Não de japonês: tem as pernas demasiado bem feitas e direitas para isso. Mais tarde, ela confirmou a costela chinesa. Oh, é a rapariga mais bonita que eu já vi! Tem uma boca que parece um botão de rosa, umas maçãs do rosto de morrer, sobrancelhas penugentas. E conhecida por Pappy e o nome fica-lhe bem. É uma coisinha pequenina, com cerca de metro e meio e muito magra, mas sem ter aquele ar de quem saiu de um campo de concentração, como aqueles casos de anorexia nervosa que a Psiquiatria me envia para fazer radiografias de rotina ao tórax por que raio se matarão à fome as adolescentes? Voltemos a Pappy, cuja pele parece feita de seda cor de marfim.

A Pappy também simpatizou comigo e, quando descobriu que eu tinha trazido almoço de casa, convidou-me para ir comer com ela para o relvado junto à morgue, que não fica muito distante da Radiologia, mas onde a Enfermeira Agatha não nos consegue ver quando anda a fazer a ronda. A Enfermeira Agatha não almoça, anda demasiado ocupada a patrulhar o seu império. Como é evidente, não conseguimos ter uma hora inteira, em especial à segunda-feira, que é onde cai todo o expediente de rotina do fim-de-semana juntamente com o serviço normal. Mesmo assim, eu e a Pappy conseguimos ficar a saber muita coisa uma da outra em apenas trinta minutos.

A primeira coisa que ela me disse foi que vive em Kings Cross! Ufa! É a única zona de Sydney que o pai me proibiu de visitar um antro de iniquidade, é o que a avó lhe chama. Um poço de vícios. Não tenho a certeza do que é o vício, à parte a prostituição e o alcoolismo. Há muito de ambos em Kings Cross, a avaliar pelo que diz o Reverendo Alan Walker. Mas ele é Metodista muito puritano. Kings Cross é onde vive Rosaleen Norton, a bruxa aparece sempre nas notícias por pintar quadros obscenos. O que é um quadro obsceno... pessoas a copular? Perguntei à Pappy, mas ela limi-tou-se a dizer que a obscenidade estava no olhar de quem vê. A Pappy é muito profunda: lê Schopenhauer, Jung, Bertrand Russell e gente assim, mas disse-me que não tem muito boa opinião de Freud. Perguntei-lhe porque é que não estava na Universidade de Sydney e ela disse-me que não tivera grande educação formal. A mãe era australiana, o pai, chinês de Singapura, e tinham sido apanhados pela Segunda Guerra Mundial. O pai morrera e a mãe enlouquecera após quatro anos no campo de prisioneiros de Changi mas que vidas trágicas têm algumas pessoas! E aqui estou eu sem qualquer razão de queixa a não ser o David e o Penico. Nascida e criada em Bronte.

A Pappy diz que o David tem um monte de repressões que ela atribui à educação católica ela até tem um nome para os Davids deste mundo: «colegiais católicos com prisão de ventre. Mas eu não queria falar dele, queria saber como era viver em Kings Cross. É como viver noutro sítio qualquer, disse ela. Mas eu não acredito, tem demasiada má fama. Estou a morrer de curiosidade!

 

Quarta-feira,6 de Janeiro de 1960

Outra vez o David. Por que será que não consegue aceitar que uma pessoa que trabalha num hospital pode não querer ver um monstruoso filme europeu? Para ele está tudo muito bem, que vive lá naquele seu pequeno mundo estéril e desinfectado onde a coisa mais excitante que acontece é a porcaria de um rato ficar com uma porcaria de um tumor, mas eu trabalho num daqueles sítios onde as pessoas têm dores e às vezes até morrem! Estou rodeada pela horrível realidade... já choro o suficiente, já me deprimo o suficiente! Quando vou ao cinema, quero rir ou, pelo menos, dar umas boas funga-delas quando a Deborah Kerr desiste do amor da sua vida por estar numa cadeira de rodas. Já os filmes de que o David gosta são deprimentes. Não são tristes, são deprimentes.

Tentei explicar-lhe isso mesmo quando ele disse que me ia levar a ver o filme novo que estava em exibição no Savoy Theatre. A palavra que usei não foi deprimente, foi sórdido.

A grande literatura e os grandes filmes não são sórdidos contrapôs ele.

Sugeri-lhe que fosse atormentar a alma em paz e sossego no Savoy enquanto eu ia para o Prince Edward ver um western, mas ele ficou com aquela expressão estampada no rosto que precede, ensinou-mo uma longa experiência, uma admoestação que é uma espécie de cruzamento entre um sermão e uma arenga, pelo que cedi e fui com ele ao Savoy para ver o Gervaise — do Zola, explicou-me o David quando íamos a sair. Eu sentia-me um pano da loiça amarrotado, o que, na verdade, nem é uma má comparação. O filme era passado numa versão vitoriana de uma lavandaria gigante. A heroína era muito jovem e bonita, mas não havia em lado nenhum um homem para quem valesse a pena olhar eram todos gordos e carecas. Acho que o David é capaz de vir a ficar careca: o cabelo dele já não é tão espesso como era quando o conheci.

O David insistiu em regressar a casa de táxi, embora eu tivesse preferido de longe uma boa caminhada até ao Quay e depois ir de autocarro. Ele deixa sempre que o táxi vá até junto da minha casa, depois acompanha-me pela passagem ao lado da casa onde, às escuras, pousa uma mão de cada lado da minha cintura e esmaga o meu lábio com três beijos tão castos que nem mesmo o Papa os acharia pecaminosos. Depois fica a ver se eu entro sã e salva pela porta das traseiras e a seguir vai a pé os quatro quarteirões até à sua própria casa. Vive com a mãe viúva, apesar de ter comprado um chalé espaçoso em Coogee Beach, que alugou a uma família de australianos novos vindos da Holanda são muito limpos, os holandeses, disse-me ele. Oh, será que o David tem algum sangue nas veias? Nunca, nem uma única vez, pôs um dedo, quanto mais uma mão, nos meus seios. Para que será que os tenho?

Os meus manos mais velhos estavam em casa a fazer chá e a morrer de riso com o que tinha acontecido na passagem ao lado da casa.

O Desejo desta Noite: Conseguir poupar quinze libras por semana no meu novo emprego e ter dinheiro suficiente no início de 1961 para poder ir passar os tais dois anos de férias activas em Inglaterra. Assim ver-me-ei livre do David, pois ele em caso algum poderá afastar-se da porra dos ratos, não vá um deles ficar com a porra de um tumor.

 

Quinta-feira, 7 de Janeiro de 1960

A minha curiosidade relativamente a Kings Cross vai ser satisfeita no sábado, quando for jantar a casa da Pappy. No entanto, não vou dizer à mãe e ao pai onde é que a Pappy vive exactamente. Limitar--me-ei a dizer que fica nas proximidades de Paddington.

O Desejo desta Noite: Que Kings Cross não seja um desapontamento.

 

Sexta-feira, 8 de Janeiro de 1960

Ontem à noite tivemos uma crise com o Willie. É típico da mãe ter insistido em salvar a catatua bebé que estava na estrada de Mudgee e criá-la. O Willie estava tão magrinho e desgraçado que a mãe começou por lhe dar uma gota de leite morno baptizado com o brandy medicinal que temos para as crises da avó. Depois, como o bico dele ainda não era suficientemente forte para partir sementes, começou a dar-lhe papas de aveia baptizadas com o brandy medicinal. E o Willie lá cresceu, transformando-se num belo pássaro branco e gordo, com uma crista amarela e o peito sujo coberto de aveia seca. A mãe deu-lhe sempre a aveia com brandy num dos meus pratos com coelhinhos de quando eu era pequenina. Mas ontem partiu o pratinho dos coelhos e usou, em vez desse, um prato de um verde bilioso. O Willie olhou para o prato, não tocou no jantar, virou-o de pernas para o ar e passou-se guinchou Dós agudos sem parar até todos os cães de Bronte estarem a uivar e o pai recebeu a visita da polícia que veio numa ramona.

Atrevo-me a dizer que foram todos os anos que passei a ler policiais que aguçaram as minhas capacidades dedutivas pois, após uma noite horrenda com uma catatua aos guinchos e mil cães a uivar, cheguei a duas conclusões. Primeira, as catatuas são suficientemente inteligentes para distinguirem um prato com coelhinhos giros aos saltos em torno da borda, de um prato de cor verde biliosa. Segunda, o Willie é alcoólico. Quando viu o prato errado, concluiu que a aveia com brandy tinha sido retirada e entrou em carência daí a confusão.

A paz foi finalmente devolvida a Bronte quando cheguei esta tarde do trabalho. À hora do almoço tinha apanhado um táxi e corrido à cidade para comprar um prato novo com coelhinhos. Tive de comprar também a caneca: duas libras e dez.! Mas o Gavin e o Pe-ter são uns tipos porreiros, mesmo sendo meus irmãos mais velhos. Cada um deles contribuiu com um terço das duas libras e dez, por isso eu não fiquei com o prejuízo todo. Um disparate, não é? Mas a mãe adora aquele pássaro pateta.

 

Sábado,9 de Janeiro de 1960

Kings Cross não foi, de modo algum, um desapontamento. Saí do autocarro na paragem antes da Taylor Square e fui o resto do caminho a pé. seguindo as indicações da Pappy, que tinha memorizado. Aparentemente não se come muito cedo em Kings Cross, pois só tinha de estar lá às oito; por isso, quando saí do autocarro já estava bastante escuro. Depois, ao passar pelo Vinnie's Hospital começou a chuviscar, nada que o meu guarda-chuva pregueado cor-de-rosa não conseguisse aguentar. Quando cheguei ao cruzamento enorme que, creio, é o Kings Cross original, vê-lo da rua, com o pavimento molhado e o brilho de todas aquelas luzes de néon e de faróis do carro reflectida nas poças, foi totalmente diferente de vê-lo ao passar num táxi a toda a velocidade. É lindo. Não percebo como é que os lojistas conseguem evitar os Regulamentos Municipais de Sydney, mas as lojas continuavam abertas ao fim da tarde de sábado! Fiquei contudo algo desapontada quando me apercebi de que o meu caminho não passava junto às lojas de Darlinghurst Road tive de descer a Victoria Street, onde fica A Casa. É assim que a Pappy lhe chama, A Casa e sei que ela usa maiúsculas. Como se fosse uma instituição. Confesso que passei rápida e ansiosamente pelas moradias em banda da Victoria Street.


Adoro os quarteirões seguidos de casas geminadas que existem no centro de Sydney hoje em dia muito mal conservadas, infelizmente! Os maravilhosos gradeamentos em ferro foram todos arrancados e substituídos por placas de fibra para transformar as varandas em divisões suplementares e as paredes de estuque estão sujas. Mesmo assim, continuam cheias de mistério. As janelas estão tapadas por cortinas de rendas de Manchester e por estores de papel castanho, e mais parecem olhos fechados. Já viram demasiado. A nossa casa em Bronte só tem vinte e dois anos; o pai construiu-a depois de ter passado a pior fase da Depressão, quando a loja dele começou a dar lucro. Por isso não aconteceu nada no seu interior a não ser nós, e nós somos maçadores. A nossa maior crise foi o prato do Willie; pelo menos foi essa a única vez que a polícia nos visitou.

A Casa ficava bastante lá para baixo na Victoria Street e, enquanto caminhava, reparei que naquela zona algumas das casas geminadas ainda conservavam os varandins em ferro forjado, estão pintadas e bem conservadas. Mesmo ao fundo, por trás da Challis Avenue, a rua alargava formando um impasse em semicírculo. Aparentemente, a Câmara ficara sem alcatrão, pois o chão estava pavimentado com pequenos blocos de madeira, e reparei que não havia carros estacionados no semicírculo. O que dava ao crescente, formado pelas cinco casas em banda do semicírculo, o ar de não pertencer ao presente. Tinham todas o número dezassete: 17a, b, c, d, e. A do meio, a 17c, era A Casa. Tinha uma porta da rua fabulosa, com um rubi de vidro engastado num padrão de lilases e, por baixo, vidro transparente, com os cinzelados brilhando com cor púrpura e âmbar reflectida pela luz que vinha do interior. Não estava fechada, por isso empur-rei-a, abrindo-a.

Mas a porta de contos de fadas dava acesso a um deserto de destroços. Uma parede encardida pintada de cor creme, uma escada de cedro vermelho que levava ao andar de cima, um par de lâmpadas nuas, cobertas de pintas de mosca, penduradas de compridos fios eléctricos, um linóleo castanho horrível no chão, coberto de marcas de saltos altos. Desde os rodapés até uma altura de cerca de um metro e vinte, cada centímetro de parede visível estava coberto de rabiscos, de círculos e espirais sem sentido, com o aspecto ceroso dos lápis de cor.

Olá! gritei.

A Pappy apareceu por trás da escada com um sorriso de boas--vindas. Acho que fiquei a olhar para ela de uma forma um tanto inconveniente, pois estava completamente diferente. Em vez da farda cor de malva que não a favorecia e da touca que lhe escondia os cabelos, trazia um vestido tubular muito justo em cetim azul-pavão, bordado com dragões e com uma racha tão grande do lado esquerdo, que conseguia ver a parte de cima da meia e a liga de renda. O cabelo caía-lhe pelas costas numa massa negra e brilhante por que é que o meu cabelo não é assim? O meu é igualmente preto, mas de tal forma encaracolado que se o deixasse crescer pareceria uma vassoura com um ataque epiléptico. É por causa disso que o corto muito curto com a tesoura.

Conduziu-me pela porta até ao fundo do corredor que havia por trás das escadas e chegámos a um átrio muito mais pequeno que se abria para um dos lados e parecia desembocar no ar livre. Ali havia apenas uma porta, que a Pappy abriu.

Lá dentro era a Terra do Sonho. A sala estava de tal forma atafulhada de livros que as paredes não estavam visíveis: só livros, livros e mais livros do chão até ao tecto e havia pilhas de livros no chão que suspeitei terem sido retirados de cima das cadeiras e da mesa para me receber. Ao longo do serão tentei contá-los, mas eram demasiado numerosos. A colecção de candeeiros dela deixou-me siderada, de tão bela. Dois de pasta de vidro decorados com libélulas, um globo terrestre iluminado sobre uma base, candeeiros indonésios a querosene convertidos em candeeiros eléctricos, um que parecia uma chaminé com um metro e oitenta de altura, coberto com protuberâncias púrpura. A lâmpada do tecto estava dentro de um candeeiro chinês de papel com pendentes de seda.

Ela cozinhou então uma refeição que nada tinha a ver com as mistelas servidas pelo Hoo Flung de Bronte Road. Com a língua ligeiramente escaldada pelo gengibre e o alho, repeti duas vezes. Não tenho falta de apetite, apesar de nunca ter conseguido engordar o suficiente para passar dos sutiãs de copa B para C. Raios. A Jane Russell usa o D, mas, na minha opinião, a Jayne Mansfield não passa de um B em cima de uma enorme caixa torácica.

Depois de terminarmos a refeição e bebermos um bule de chá verde aromático, a Pappy anunciou que chegara a altura de ir ao andar de cima conhecer a Mrs. Delvecchio Schwartz. A senhoria.

Quando comentei que o nome era estranho, Pappy sorriu.

Levou-me novamente para o átrio da entrada e até às escadas de cedro vermelho. Enquanto a seguia, consumida pela curiosidade, reparei que os gatafunhos a lápis de cor não cessavam. Aumentavam, aliás. As escadas levavam a um andar superior, mas nós fomos para uma sala enorme na parte da frente do edifício e a Pappy empurrou--me para o interior. Se quiséssemos encontrar uma sala que fosse exactamente o oposto da sala da Pappy, seria aquela. Nua. Com excepção dos gatafunhos, que eram de tal forma densos que não havia espaço para mais nenhum. Talvez devido a esse facto, uma parte da parede tinha sido pintada de forma grosseira, aparentemente para fornecer uma tela vazia à artista, e já a adornavam uns quantos gatafunhos. A sala poderia acomodar seis sofás grandes e uma mesa de jantar com doze lugares sentados, mas estava praticamente vazia. Havia uma mesa de cozinha em metal enferrujado com um tampo laminado vermelho, quatro cadeiras enferrujadas, com o enchimento dos estofos de plástico vermelho a sair como pus de abcessos de carbúnculo, um sofá de veludo com um grave caso de calvície e um frigorífico com congelador. Portas de vidro duplo davam para uma varanda.

Estou aqui, Pappy! disse alguém.

Saímos para a varanda onde estavam duas mulheres. A primeira que vi era claramente originária dos Subúrbios Orientais de Ha-bourside ou de Upper North Shore cabelo com brilhos azulados, um vestido vindo de Paris, sapatos a condizer, bolsa e luvas de pele de vitelo cor de vinho e um chapeuzinho muito mais bonito do que os usados pela Rainha Isabel. Depois, a Mrs. Delvecchio Schwartz avançou e esqueci-me completamente da manequim de moda para a meia-idade.


Pff! A mulher era uma montanha autêntica! Não que fosse gorda, era mais gigantesca. Media um bom metro e noventa, apesar de calçar uns chinelos sujos e velhos com a parte de trás calcada, e era extraordinariamente musculada. Não tinha meias calçadas. Vestia uma velha bata desbotada e abotoada na frente, com um bolso de cada lado. Tinha um rosto redondo, enrugado, um nariz pequeno e totalmente dominado por uns olhos extraordinários que me olharam directamente a alma, de um azul pálido com anéis negros em torno das íris, e pupilas pequenas, penetrantes como agulhas. O seu cabelo era grisalho e fino cortado curto como o de um homem e sobrancelhas que mal se viam sobre a pele. Idade? Cinquenta e muitos, calculei.

Assim que ela desviou os olhos dos meus, a minha formação clínica entrou em acção. Seria acromegalia? Síndrome de Cushing? Mas ela não tinha o maxilar inferior avantajado nem a testa saliente dos doentes de acromegalia nem as formas físicas nem os pêlos característicos de um doente de Cushing. Era certamente qualquer coisa ao nível da pituitária, ou do cérebro ou do hipotálamo, mas o quê exactamente, eu não sabia.

O epítome da moda acenou delicadamente a mim e à Pappy, passou por nós e saiu com a Mrs. Delvecchio Schwartz no seu encalço. Como estava junto à porta, vi a visitante meter a mão na bolsa, tirar um maço grosso de notas alaranjadas de dez libras! e entregar-lhe umas quantas de cada vez. A senhoria da Pappy limitou-se a manter a mão estendida até ficar satisfeita com o número de notas recebidas. Depois dobrou-as e enfiou-as num bolso enquanto o manequim dos subúrbios mais exclusivos de Sydney saía da sala.

A Mrs. Delvecchio Schwartz regressou, atirando-se para cima de uma cadeira igual às que havia no interior e convidando-nos a sentar noutras duas com um aceno da mão do tamanho de uma perna de cordeiro.

Sente-se, princesa, sente-se rugiu. E com'é qu'está, Miss Harriet Purcell? Um bom nome, dois conjuntos de sete letras: magia forte! Consciência espiritual e boa sorte, a felicidade alcançada através do trabalho... e não me estou a referir aos políticos trabalhistas, ah, ah, ah.

O «ah ah ah foi uma espécie de risada perversa com grande significado; era como se nada no mundo conseguisse surpreendê-la, embora tudo no mundo a divertisse imenso. Fazia-me lembrar a risada de Sid James nos filmes cómicos.

Eu estava tão nervosa que me agarrei ao comentário que ela fizera ao meu nome e tagarelei sobre a história das Harriets Purcell: disse-lhe que o nome era passado de geração em geração mas que, até à minha chegada, todas as possuidoras do nome tinham sido algo loucas. Uma Harriet Purcell, contei-lhe, tinha sido presa por ter castrado um aspirante a seu amante e outra fora presa por ter atacado o primeiro-ministro de Nova Gales do Sul durante uma manifestação das sufragistas. Ela ouviu com interesse e suspirou de desapontamento quando lhe disse que a geração do meu pai tivera tanto receio do nome que não existira nela nenhuma Harriet Purcell.

            No entanto, o seu pai baptizou-a Harriet disse ela. Bom homem! Parece ser alguém que vale a pena conhecer. Ah, ah, ah.

Ei... oh! Afaste-se do meu pai, Mrs. Delvecchio Schwartz!

            Ele disse que gostava do nome Harriet, e que não acreditava nessas histórias da família disse eu. Eu vim mais ou menos por acidente, percebe? E toda a gente pensou que seria mais um rapaz.

            Mas nã foi disse ela a sorrir. Oh, gosto dessa história! Durante toda a conversa ela estivera a beber brandy puro e sem

gelo por um copo de vidro grosso. Deu um copo a cada uma de nós, mas um golo da bebida que provocara a desgraça do Willie foi o suficiente para que eu abandonasse o meu: uma mistela horrível, áspera e ácida. Reparei que a Pappy parecia gostar da bebida mas que não a consumia à mesma velocidade da Mrs. Delvecchio Schwartz.

Tenho estado aqui sentada a pensar se não pouparia imenso esforço na escrita se reduzisse o nome para Mrs. D-S mas, não sei porquê, falta-me a coragem. Não sou pouco corajosa, mas Mrs. D-S? Não.

Depois apercebi-me de que havia mais alguém connosco na varanda, que estivera ali o tempo todo mas se mantivera absolutamente invisível. Senti um formigueiro na pele, num arrepio delicioso, como quando se sente o primeiro sopro do Vento Suão após dias e dias de uma onda de calor de rebentar a escala. Um rosto apareceu por cima da mesa, espreitando por trás da anca da Mrs. Delvecchio Schwartz. O rostinho mais encantador, o queixo pontiagudo, os malares salientes por baixo dos olhos, pele bege e macia, madeixas de cabelo castanho-claro, sobrancelhas pretas, pestanas pretas tão compridas que pareciam embaraçadas oh, quem me dera ser poeta para descrever aquela criança divina! O meu peito abriu-se, amei-a assim que a vi. A sua pequena boca em forma de botão de rosa abriu-se e ela sorriu-me. Retribuí-lhe o sorriso.Oh, decidiste juntar-te à festa, nã foi? Passados instantes já a criança estava sentada nos joelhos da Mrs. Delvecchio Schwartz, ainda com a cara virada para mim e a sorrir-me, mas a puxar pela bata da mulher com uma das mãos pequeninas.Esta é a nha filha Fio disse a senhoria. Há quatro anos pensei que tinha tido a Mudança de Idade, depois tive uma dor de barriga e fui à retrete a pensar que estava de caganeira. E... pum! Ali estava a Fio, a contorcer-se no chão toda suja. Não soube que estava prenha até ela ter saído... Foi uma sorte não te ter afogado na latrina, não foi, meu rosto de anjo? A última frase foi dirigida a Fio, que se debatia com um botão.Que idade tem ela? perguntei.Quatro anos acabados de fazer. Um Capricórnio que não é um Capricórnio disse Mrs. Delvecchio Schwartz desabotoando descontraidamente a bata. Tirou para fora um seio que parecia uma meia velha com o pé cheio de feijões e enfiou o mamilo enorme e pontiagudo na boca de Fio. Esta fechou os olhos com deleite, recostou-se nos braços da mãe e começou a chupar com puxões grandes e sonoros. Fiquei ali de boca aberta, sem saber o que dizer. Os olhos raios X ergueram-se para se concentrarem em mim.Adora o leite da mãe, a Fio disse num tom casual. Sei qu'ela já tem quatro anos, sim, mas o qu'é qu'a idade tem a ver com o assunto, princesa? E o melhor conforto do mundo, o leite da mãe. O único problema é que, como ela já tem os dentes todos, magoa-me com'um raio.


Continuei ali sentada, de boca aberta, quando a Pappy disse subitamente: Bem, Mrs. Delvecchio Schwartz, o que é que acha?

            Acho que A Casa precisa da Miss Harriet Purcell respondeu a Mrs. Delvecchio Schwartz com um aceno e uma piscadela de olho. Depois olhou para mim e perguntou: Alguma vez pensou em sair de casa, princesa? Para um belo apartamento só seu?

A minha boca fechou-se com estrondo e abanei a cabeça. Não tenho dinheiro para isso respondi. Estou a poupar para ir para Inglaterra trabalhar durante dois anos, compreende?

            E paga alguma coisa em casa? perguntou. Disse que entregava cinco libras por semana.

            Bem, eu tenho um belo apartamento nas traseiras, com dois quartos grandes, por quatro libras por semana, electricidade incluída. Na lavandaria há uma banheira e uma latrina que só seriam usadas por si e pela Pappy. A Janice Harvey, a nha inquilina, vai sair. E tem uma cama de casal acrescentou com uma risada. Detesto essas caminhas acanhadas de um corpo só.

Quatro libras! Duas divisões por quatro libras! Um milagre em Sydney!

            Tens mais hipóteses de te veres livre do David a viveres aqui do que a viveres em casa disse a Pappy persuasivamente. Encolheu os ombros. Afinal de contas, ganhas o salário de um homem, ainda podias poupar para a tua viagem.

Lembro-me de ter engolido em seco, procurando desesperadamente uma forma educada de dizer que não mas, subitamente, estava a dizer que sim! Não sei de onde veio aquele sim de certeza que eu não estava a pensar sim.

            Espectacular, princesa! rugiu a Mrs. Delvecchio Schwartz. Tirou o mamilo da boca da Fio e pôs-se de pé.

Quando os meus olhos encontraram os de Fio, soube a razão por que tinha dito que sim. Fora ela quem pusera a palavra na minha mente. A Fio queria-me ali e eu derretera-me toda. Ela veio ter comigo e abraçou-me as pernas, sorrindo-me com os lábios sujos de leite.

            Olhem só p'ra isto! exclamou a Mrs. Delvecchio Schwartz sorrindo à Pappy. Deves sentir-te honrada, Harriet. A Fio não costuma gostar logo das pessoas, pois não, meu anjo?


Por isso aqui estou eu, a tentar escrever tudo antes que os pormenores se esbatam e a pensar como raio irei dar à minha família a novidade de que, muito em breve, irei mudar-me para duas divisões grandes em Kings Cross, bairro de alcoólicos, prostitutas, homossexuais, artistas satânicos, snifadores de cola, fumadores de haxixe e sabe Deus o que mais. Só que gostei daquilo que vi naquele dia chuvoso e escuro, e a Fio quer-me na Casa.

Disse à Pappy que talvez pudesse dizer que A Casa ficava em Potts Point e não em Kings Cross, mas a Pappy limitou-se a rir.

Potts Point é um eufemismo, Harriet disse. A Marinha Real Australiana é proprietária da totalidade de Potts Point.

O Desejo desta Noite: Que não dê uma coisa má aos meus pais.

 

Domingo, 10 de Janeiro de 1960

Ainda não lhes disse. Ainda estou a arranjar coragem. Quando fui para a cama, ontem à noite a avó ressonava que era um portento , tive a certeza de que quando acordasse esta manhã iria mudar de ideias. Mas não mudei. A primeira coisa que vi foi a avó sentada no Penico e uma resolução férrea apossou-se da minha alma. Mas que bela frase! Nunca me tinha apercebido, até ter começado a escrever este diário, que pareço ter apanhado todo o tipo de frases boas nas minhas leituras. Não vêm à superfície nas conversas, mas no papel não há dúvida de que aparecem. E, apesar de ter começado há poucos dias, já vou muito adiantada num caderno bem grosso e estou viciada nisto. Talvez seja por nunca conseguir ficar parada a pensar, tenho sempre de estar afazer qualquer coisa, pelo que mato dois coelhos de uma cajadada só. Consigo pensar no que me está a acontecer e, no entanto, estou a fazer qualquer coisa. Escrever o que acontece exige uma disciplina que faz com que eu veja as coisas com mais clareza. É como no meu trabalho. Dou-lhe toda a minha atenção porque gosto do que faço.

Ainda não cheguei a nenhuma conclusão definitiva relativamente à Mrs. Delvecchio Schwartz, apesar de gostar muito dela. Faz-me lembrar alguns dos meus doentes mais memoráveis, aqueles de que me lembrarei sempre que fizer radiografias, de que talvez me lembre toda a vida. Como aquele velhote adorável do Lidcombe State Hospital, que não parava de fazer pregas perfeitas no cobertor. Quando lhe perguntei o que estava a fazer, ele disse que estava a dobrar as velas e depois, quando comecei a conversar com ele, disse-me que fora contramestre num veleiro, num dos navios-silos que costumavam vir à desfilada de Inglaterra, carregadinhos de cereais até às amuradas, palavras dele, não minhas. Aprendi imensas coisas e depois apercebi-me de que ele iria morrer em breve e que todas aquelas experiências morreriam com ele, pois nunca ninguém as escrevera. Bem, Kings Cross não é um veleiro e eu não sou um marinheiro, mas se escrever tudo, alguém, numa posteridade remota, irá ler as minhas palavras e saberá o tipo de vida que vivi. Pois tenho uma sensação peculiar de que não irá ser a mesma vida entediante e suburbana que se me deparava no último Dia de Ano Novo. Sinto--me como uma cobra a largar a pele.

O Desejo desta Noite: Que não dê uma coisa má aos meus pais.

 

Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1960

Ainda não lhes disse, mas vou fazê-lo amanhã à noite. Quando perguntei à mãe se o David podia vir comer bifes com batatas fritas cá a casa, ela disse que claro que podia; é melhor, parece-me, dar-lhes a pancada a todos ao mesmo tempo. Assim o David vai ter tempo suficiente para se habituar à ideia antes de passar comigo o tempo suficiente, sozinho, para me chatear e atormentar para que desista da ideia. Como detesto os seus sermões! Mas a Pappy tem razão, vai ser mais fácil ver-me livre do David se não continuar em casa. Essa ideia já é suficiente para que me mantenha firme na minha rota em direcção a Cross, como lhe chamam os seus habitantes. Lá em Cross, para ser mais exacta.

Hoje vi um homem no trabalho, na rampa que vai da radiologia ao Edifício Chichester, o edifício todo fino em tijolo vermelho que alberga os Doentes Particulares num ambiente de luxo. Quartos individuais com casa de banho privativa, nada menos, em vez de uma cama numa fila de vinte de cada lado de uma enfermaria enorme e em mau estado. Deve ser muitíssimo agradável não ter de ficar ali deitado a ouvir metade dos doentes a vomitar, cuspir, tossir ou delirar. No entanto, não há dúvida de que ouvir metade dos doentes a vomitar, cuspir, tossir ou delirar é um tremendo incentivo para melhorar e ter alta ou então para morrer de vez.

O homem. A Enfermeira Agatha apanhou-me quando eu estava a acabar de pendurar uns filmes na cabina de secagem até agora ainda não tive nenhuma chapa estragada, o que maravilha as minhas duas subordinadas, reduzindo-as a uma submissão abjecta.

Miss Purcell, tenha a bondade de dar um salto a Chichester Três para entregar isto ao Mr. NasebyMorton disse ela acenando-me com um envelope contendo uma radiografia.

Apercebendo-me do seu desagrado, peguei no envelope e parti num ápice. A Pappy teria sido a primeira a ser encarregada de tal tarefa, o que significava que a Enfermeira Agatha não a encontrara. Ou então estava a segurar numa bacia para vomitado ou a tratar de uma arrastadeira, claro. Não me cabia a mim pensar nas razões e lá fui, como a mais humilde das humildes funcionárias, em direcção ao Hospital Particular. Muito fino, o Edifício Chichester! Os pavimentos aborrachados tinham um tal brilho que conseguia ver neles o reflexo das cuecas cor-de-rosa da Enfermeira de Chichester Três e a quantidade de flores espalhadas pelos corredores em pedestais dispendiosos era tal, que daria para abrir uma florista. Estava tudo tão silencioso que, quando subi o último degrau da escada que levava ao andar Chichester Três, houve seis pessoas que me olharam zangadas e puseram os dedos sobre os lábios. Chiiiuu! Chiiuuu! Por isso fiz um ar constrangido e afastei-me em bicos de pés como a Margot Fonteyn.

A meio da rampa, vi um grupo de médicos a aproximar-se: um Director de Serviço e a sua corte de subalternos. Não é preciso trabalhar mais do que um dia em qualquer hospital para perceber que um DS é Deus, mas Deus no Royal Queens é um Deus muito superior ao Deus do Ryde Hospital. Aqui, usam fatos azul-escuros às riscas ou fatos de flanela cinzenta, gravatas com as cores das Universidades, camisas de punhos engomados com botões de punho discretos mas, ainda assim, em ouro maciço e sapatos castanhos de camurça castanha ou pretos de pele de vitela com solas finas.

Este espécime vestia fato cinzento e calçava sapatos de camurça castanha. Com ele vinham dois Chefes de Departamento (batas brancas compridas), os internos mais antigos e mais recentes (fardas brancas e sapatos brancos) e seis estudantes de medicina (batas brancas curtas) com os estetoscópios em evidência e as mãos de unhas roídas transportando transparências de estudos de casos ou suportes com tubos de ensaio. Sim, uma versão muito sénior de Deus, para ter tanta gente à sua volta. Foi isso que me chamou a atenção. Fazer radiografias de rotina ao tórax não nos põe em contacto com Deus, seja ele sénior ou júnior, por isso fiquei curiosa. Ele estava a falar animadamente com um dos chefes de departamento, com a bela cabeça atirada para trás, e acho que tive de abrandar e fechar a boca que, actualmente, parece ter uma certa tendência para ficar escancarada. Oh, que lindo homem! Muito alto, uns belos ombros e uma barriga lisa. Uma bela cabeleira ruiva acastanhada e muito ondulada e cãs brancas de neve, pele ligeiramente sardenta, feições bem definidas sim, era um belo homem. Estavam a falar de osteomalacia, pelo que o cataloguei como ortopedista. Depois, enquanto me esgueirava por entre eles ocupavam a rampa praticamente toda , dei por mim a ser examinada por um par de olhos esverdeados. Pff! O meu peito apertou-se pela segunda vez na mesma semana, apesar de, desta vez, não ter sido num acesso de amor, como acontecera com Fio. Aquela foi uma espécie de atracção ofegante. Fiquei sem forças nos joelhos.

Ao almoço interroguei a Pappy acerca do homem, armada com a minha teoria de que ele era ortopedista.Duncan Forsythe disse ela sem hesitar. É o Director de Serviço Chefe da Ortopedia. Por que é que perguntas?Ele atirou-me um olhar à moda antiga disse eu.

A Pappy ficou a olhar para mim. Ai sim Isso é estranho, vindo dele. Não é um dos libertinos do Queens. É muito bem casado e tem fama de ser o Director de Serviço mais simpático de todo o hospital um completo cavalheiro, nunca atira com os instrumentos à Enfermeira Instrumentista nem diz piadas porcas, nem implica com os internos mais novos, por mais desajeitados que estes sejam ou por maior que seja a sua falta de tacto.

Deixei cair o assunto, apesar de ter a certeza de que não fora imaginação minha. Ele não me despira com o olhar nem nenhum desses disparates, mas o olhar que me lançara fora, decididamente, um olhar de homem para mulher. E, no que me diz respeito, é o homem mais atraente que alguma vez vi. O Director de Serviço Chefel E novo para o lugar, de certeza que não tem mais de quarenta anos.

O Desejo desta Noite: Ver mais vezes o Mr. Duncan Forsythe.

 

Sábado, 16 de Janeiro de 1960

Bem, fi-lo hoje à mesa do jantar com o David presente. Bife com batatas fritas é a refeição preferida de toda a gente, embora seja uma trabalheira para a mãe, que tem de fritar bifes numa frigideira enorme e manter, ao mesmo tempo, a fritadeira debaixo de olho. O Ga-vin e o Peter comeram três cada um e até o David comeu dois. A sobremesa foi bolo de passas com creme, muito apreciado, e toda a gente estava satisfeita e de bom humor quando a mãe e a avó trouxeram o bule. Chegara o momento de atacar.Sabem uma coisa? perguntei. Ninguém se deu ao trabalho de responder.Aluguei um apartamento em Kings Cross e vou sair de casa. Também ninguém respondeu, mas cessaram todos os ruídos.

O bater das colheres nas chávenas, os goles da avó, o catarro de fumador do pai. Depois o pai tirou o maço de Ardaths, ofereceu-os ao Gavin e ao Peter, depois acendeu os três cigarros com o mesmo fósforo — uiii, vinham aí sarilhos!

            Kings Cross disse finalmente o pai, olhando-me com grande firmeza. Rapariga, és uma idiota. Pelo menos espero que


sejas idiota. Só os idiotas, os boémios e as pegas vivem em Kings Cross.Não sou idiota, pai disse eu corajosamente , e também não sou boémia nem pega. Se bem que, hoje em dia, os boémios tenham passado a ser chamados Beatniks. Arranjei um apartamento muitíssimo respeitável, numa casa muitíssimo respeitável que, por acaso, fica em Cross na melhor parte de Cross, perto da Challis Avenue. Em Potts Point, na verdade.A Real Marinha Australiana é a proprietária de Potts Point disse o pai.

A mãe estava com ar de quem ia desatar a chorar. Porquê, Harriet?

            Porque tenho vinte e um anos e preciso de um espaço só meu, mãe. Já acabei a minha formação, estou a receber um bom ordenado e os apartamentos em Kings Cross são suficientemente baratos para eu poder lá viver e juntar dinheiro para ir para Inglaterra no ano que vem. Se fosse viver para outro sítio qualquer, iria ter de dividir a casa com mais duas ou três raparigas e acho que isso não seria melhor do que continuar em casa.

O David não proferiu palavra, limitou-se a ficar sentado do lado direito do pai e a olhar para mim como se me tivesse crescido outra cabeça.Bem, então, meu rapaz grunhiu-lhe o Gavin , que tens a dizer disto?Desaprovo respondeu David numa voz gelada , mas prefiro falar com a Harriet em privado.Bem, eu acho fixe disse o Peter, e inclinou-se para me dar uma palmadinha no braço. Precisas de mais espaço, Harry.

Aquelas palavras pareceram fazer o pai decidir-se e dizer, com um suspiro: Bem, não há muita coisa que eu possa fazer para te impedir, pois não? Ao menos fica mais perto do que a velha mãe Inglaterra. Se te meteres em sarilhos, posso sempre arrancar-te de Kings Cross.

O Gavin desatou a rir às gargalhadas, debruçou-se sobre a mesa enfiando a gravata na manteiga e deu-me um beijo na cara. Boa


para ti, Harry! disse. Chegámos ao fim da primeira parte e ainda estás em jogo. Mantém o taco pronto para o que se segue!Quando é que decidiste isso tudo? perguntou a mãe a pestanejar imenso.Quando a Mrs. Delvecchio Schwartz me ofereceu o apartamento.

O nome soava muito peculiar pronunciado na nossa casa. O pai franziu o sobrolho.Mrs. quê? perguntou a avó que mantivera o tempo todo uma expressão algo petulante.Delvecchio Schwartz. É a senhoria. Lembrei-me de um facto que não mencionara. A Pappy vive lá. Foi assim que eu conheci a Mrs. Delvecchio Schwartz.Eu sabia que essa chinoca ia ser uma má influência disse a mãe. Desde que a conheceste, nunca mais quiseste saber da Merle.

Levantei o queixo. A Merle não quis saber de mim, mãe. Tem um namorado novo e não vê mais nada à frente. Só voltarei a cair nas suas boas graças quando ele a deixar.É mesmo um apartamento? perguntou o pai.Dois quartos. Partilho a casa de banho com a Pappy.

            Não é higiénico partilhar a casa de banho disse o David. Arreganhei-lhe o lábio. Aqui também partilho a casa de banho, ou não?

Isto calou-o.

A mãe decidiu ser corajosa. Bem disse , parece-me bem que vais precisar de loiça e de talheres e de utensílios de cozinha. E de roupas de cama. Podes levar os teus lençóis de cá de casa.

Nem pensei no que disse, aquilo saiu automaticamente: Não, não posso, mãe. Tenho uma cama de casal só para mim! Não é fantástico?

Ficaram sentados a olhar para mim, de boca aberta, como se estivessem a imaginar a cama de casal com uma maleta de cobrador de autocarros pendurada aos pés para receber os pagamentos.

            Uma cama de casal? perguntou o David, empalidecendo.


Sim, uma cama de casal.As raparigas solteiras dormem em camas de um corpo só, Harriet.Bem, pode muito bem ser que assim seja, David ripostei , mas esta rapariga solteira vai dormir numa cama de casal!

A mãe pôs-se de pé de um salto. Rapazes, os pratos não se lavam sozinhos! guinchou. Avó, está na hora do 77 Sunset Strip.

            Kooky, Kooky, empresta-me o teu pente! entoou a avó aos saltinhos. Bem, bem, alguma vez pensaram nisto? A Harriet vai sair de casa e eu vou ter um quarto só para mim! Acho que vou arranjar uma cama de casal, eh, eh!

O pai e os manos levantaram a mesa num tempo recorde e deixaram-me sozinha com o David.O que é que provocou isto? perguntou ele, de lábios apertados.Falta de privacidade.Tens algo melhor do que mera privacidade, Harriet. Tens um lar e uma família.

Bati com um punho na mesa. Por que é que és um imbecil tão míope, David? Partilho um quarto com a avó e com o Penico e não tenho sítio nenhum onde possa pousar as minhas coisas sem ter de as arrumar logo de seguida! Todo o espaço de que disponho aqui também é usado por outros. Por isso agora vou desfrutar do meu próprio espaço.Em Kings Cross.Sim, na porra de Kings Cross! Onde as rendas são razoáveis.Numa casa de hóspedes gerida por uma estrangeira. Por uma nova australiana.

Aquilo deu cabo de mim e ri-me na cara dele. A Mrs. Delvecchio Schwartz uma estrangeira? Ela é australiana pura, com um sotaque australiano cerradíssimo!Isso ainda é mais suspeito disse ele. Uma Australiana com um nome meio italiano e meio judeu? No mínimo, casou abaixo da sua condição.Seu snobe de merda! Arfei. Seu idiota preconceituoso! Que é que os Australianos têm de tão fino? Viemos todos para cá uma porra de uns cadastrados! Ao menos os nossos novos australianos vieram como colonos livres!

Com números das SS tatuados nos sovacos ou tuberculose ou a tresandar a alho! rosnou ele. E colonos livres está correcto. .. livres de encargos, vieram para cá a troco de uma passagem de dez libras subsidiada!

Aquilo foi a gota de água. Dei um salto e comecei a bater-lhe na cabeça por cima das orelhas. Trás, trás, trás! Desaparece, David, desaparece, porra! gritei.

Ele desapareceu com uma expressão no olhar que significava que eu estava a ter um Daqueles Dias e que regressaria para tentar de novo.

E pronto. Gosto da minha família são uns tipos fixes. Mas o David é exactamente aquilo que a Pappy lhe chamou: um colegial católico com prisão de ventre. Graças a Deus que sou da Igreja de Inglaterra.

 

Quarta-feira, 20 de Janeiro de 1960

Tenho andado tão ocupada que nem tive tempo para me sentar a escrever, mas as coisas parecem bem encaminhadas. Consegui convencer o pai e os manos a não irem inspeccionar as minhas novas instalações (fui lá no sábado passado para dar uma olhadela e ainda não estão em condições de serem inspeccionadas) e tenho trabalhado que nem uma doida para ter tudo em ordem para a mudança no próximo sábado. A mãe tem sido fantástica. Tenho montes de loiça, de talheres, de roupas de cama e utensílios de cozinha e o pai enfiou--me cem libras na mão com a explicação esfarrapada de que não queria que eu mexesse nas poupanças para a viagem a Inglaterra para comprar o que, para todos os efeitos, por direito, me pertencia ter no enxoval. O Gavin ofereceu-me uma caixa de ferramentas e um voltímetro e o Peter ofereceu-me a sua velha aparelhagem, dizendo que precisava de uma melhor. A avó deu-me um frasco de água-de-colónia 4711 e uma série de napperons que tricotara para o meu enxoval.

O meu novo apartamento tem uma espécie de arco entre o quarto e a sala de estar não há porta e vou usar uma parte das cem libras do pai para comprar contas de vidro e fazer eu mesma uma cortina. As que se compram já feitas são de contas de plástico, têm um aspecto horrível e fazem um barulho ainda pior. Quero uma coisa que repique. Cor-de-rosa. O meu apartamento vai ser cor-de-rosa, pois essa é a única cor que ninguém permite em sítio nenhum em Bronte. E eu gosto de cor-de-rosa. É uma cor quente, feminina e alegra-me. Além disso, fica-me bem, o que já não se pode dizer do amarelo, azul, verde e carmim. Sou morena de mais.

O meu apartamento dá para a varanda corrida que passa ao lado do quarto da Pappy e vai até à lavandaria e ao quintal das traseiras. As divisões são grandes e têm os tectos muito altos, mas os equipamentos são muito básicos. Tem uma zona de cozinha com uma pia, um fogão a gás muito antigo e um frigorífico, e é impossível dar bom aspecto àquilo, o que me levou a telefonar a Ginge, o chefe dos contínuos no Ryde, e a perguntar-lhe se me conseguiria arranjar um biombo velho do hospital. Ele disse que não havia problema e depois começou a lamentar-se sobre o quão aborrecido o hospital ficara desde que eu saíra de lá. Que disparate! Uma técnica de radiologia? O Ryde District Soldiers Memorial Hospital não é assim tão pequeno. O Ginge sempre foi dado a exageros.

A Enfermeira-Chefe veio ontem fazer uma visita ao raio X. Mas que sargento! Se o D.S. é Deus, a Enfermeira-Chefe está ao mesmo nível hierárquico da Virgem Maria e acho até que a virgindade é mesmo um requisito para o lugar, pelo que a comparação não é assim tão disparatada. Nenhum homem teria coragem para tal, pelo que teria de ser uma pomba que entrasse pela janela a engravidar qualquer enfermeira-chefe. São sempre vasos de guerra de velas enfunadas, mas tenho de admitir que a Enfermeira-Chefe do Queens é um navio muito elegante. Com apenas cerca de trinta e cinco anos, alta, esbelta, com o cabelo ruivo alourado, olhos da cor de águas-marinhas e um belo rosto. Não se consegue ver muito cabelo por causa do véu como é evidente, mas tenho a certeza de que aquela cor não saiu de um frasco de tinta. No entanto, o olhar dela seria capaz de gelar uma lagoa tropical. Glacial. Árctico. Uauu!

Na verdade, senti pena dela. É a Rainha do Queens, portanto é impossível que consiga ser também uma mulher. Se se quiser dar uma demão de tinta numa parede ou pendurar um poster para animar os pacientes, a Enfermeira-Chefe decide qual a cor da tinta ou o local onde o poster pode ser pendurado. Usa umas luvas de algodão branco e, embora não possa fazê-lo no raio X (formalmente ali é uma convidada da Enfermeira Agatha), em todos os locais onde as enfermeiras trabalham, ou descansam, ela passa a ponta dos dedos ao longo dos rodapés, dos parapeitos das janelas, em todo o lado, e Deus ajude a responsável pela enfermaria cujas instalações produzam a mais ligeira sombra cinzenta na luva branca! É ela quem dirige o pessoal doméstico, assim como o pessoal de enfermagem, e tem o mesmo estatuto hierárquico do Superintendente Médico Geral e é membro da Direcção do Hospital que, descobri, é presidida por Sir William Edgerton-Smythe que é, por acaso, o tio do meu atraente Mr. Duncan Forsyth. A razão de este ser, com a sua idade, D.S. de Ortopedia, torna-se evidente. O tio deve ter dado uma boa ajuda. Que pena. Tinha pensado, pelo aspecto do Mr. Forsythe, que ele seria o tipo de homem que não se rebaixa a pedir que puxem os cordelinhos a seu favor Lá em Cima. Porque será que os ídolos têm sempre pés de barro?

Bem, fui apresentada à Enfermeira-Chefe, que me apertou a mão durante o número exacto de microssegundos exigido pela educação e pelo estatuto. Enquanto a Enfermeira Agatha, quando a conheci, olhou através de mim, a Enfermeira-Chefe olhou-me nos olhos à moda da Mrs. Delvecchio Schwartz. Parece que o objectivo da sua visita era discutir a compra de um daqueles mecanismos rotativos para os equipamentos de raios X, mas era obrigatória a visita às instalações.

O Desejo desta Noite: Parar de pensar em Forsythe, o Rastejante.


 

Sábado, 23 de Janeiro de 1960

Já cá estou! Mudei-me! Esta manhã, aluguei uma carrinha com motorista e corri com as minhas caixas de cartão a abarrotar com o saque para o 17c da Victoria Street. O motorista era um tipo óptimo que não fez qualquer comentário e se limitou a ajudar-me a carregar o meu saque, aceitou graciosamente uma gorjeta e se pirou para o trabalho seguinte. Uma das caixas de cartão estava a abarrotar com latas de tinta cor-de-rosa muito obrigada pelas cem libras, pai e uma outra continha um milhão de vários tipos de contas de vidro cor-de-rosa. Deitei mãos à obra sem mais demoras. Tirei a lata de desinfectante (dá muito jeito trabalhar num hospital para se dar valor ao desinfectante), panos, escova e esfregão de arame, e dei início às limpezas. A Mrs. Delvecchio Schwartz dissera-me que tinha feito limpezas quando me mostrara o apartamento e, na verdade, até não fizera mau trabalho, mas havia dejectos de baratas por todo o lado. Vou ter de telefonar novamente ao Ginge, no Ryde, a pedir--lhe algum do seu veneno para as baratas. Odeio os bichos, estão carregados de germes... bem, vivem nos esgotos, nas sarjetas e na porcaria.

Esfreguei e desinfectei até a Natureza me chamar e saí à procura da casa de banho que, recordava-me, ficava no anexo da lavandaria. Bastante horrível, o anexo da lavandaria. Não era para admirar que Mrs. Delvecchio Schwartz não o tivesse incluído na visita às instalações. Tinha uma caldeira de cobre com um contador para meter moedas e dois enormes tanques em betão e uma calhandra muito antiga presa ao chão. A casa de banho fica por trás, de um dos lados. Tem uma banheira velha com metade do esmalte arrancado e, quando pousei uma mão, a banheira caiu para um dos lados com um baque: um dos pés de bola e garra tinha sido arrancado. Um bloco de madeira remediaria a situação, mas só várias camadas de tinta esmaltada para bicicletas poderiam servir para a ajudar. Um esquentador a gás, na parede, fornece a água quente: outro contador, mais moedas. Quanto ao estrado de madeira, enfiei-o imediatamente num dos tanques da lavandaria para ficar de molho em desinfectante.


A sanita ficava numa divisão própria e acaganitada (boa piada!) e é uma obra de arte: porcelana inglesa do século passado, a bacia adornada por dentro e por fora com pássaros em azul-cobalto e trepadeiras. A cisterna do autoclismo, pendurada bem alto na parede e ligada à sanita por um cano espalmado de chumbo, também era decorada com pássaros azuis. Sentei-me cautelosamente no velho assento de madeira apesar de, na verdade, este estar bastante limpo a sanita é tão alta que nem mesmo eu consigo fazer chichi sem me sentar. A corrente do autoclismo está equipada com uma maçaneta de porcelana a condizer e, quando a puxei, as Cataratas do Niagara desabaram dentro da sanita.

Trabalhei todo o dia sem ver vivalma. Não que estivesse à espera de ver alguém, mas pensei que ouviria a Fio à distância os miúdos pequenos estão sempre a rir e a guinchar, quando não estão em pranto. Mas a casa estava silenciosa como um túmulo. Não fazia ideia de onde estaria a Pappy. A mãe mandara-me um cesto com comida, pelo que tinha muito combustível para todo aquele trabalho árduo. Mas não estava habituada a estar absolutamente sozinha. Muito estranho. A sala e o quarto tinham ambos apenas uma tomada, mas como eu tenho muito jeito para fazer puxadas, tirei a caixa de ferramentas do Gavin e o voltímetro e instalei umas quantas tomadas adicionais. Depois tive de ir ao terraço da frente examinar a caixa dos fusíveis. Sim, lá estava ele! Um daqueles fusíveis cerâmicos com um arame de três amperes esticado entre os pólos. Tirei-o, enrolei um fio de quinze amperes e estava mesmo a fechar a caixa quando um rapaz muito novo, com o cabelo cortado à escovinha e um fato amarrotado com a gravata toda torta, entrou pelo portão.Olá disse eu pensando tratar-se de um inquilino.E nova aqui, hem? foi a resposta dele. Disse-lhe que sim e fiquei à espera do que se seguiria.Onde é que fica o seu apartamento? perguntou ele.Nas traseiras, perto da lavandaria.Não vive no apartamento da frente, no rés-do-chão? Franzi o sobrolho, o que, em alguém tão moreno como eu, pode

dar um aspecto bastante feroz. O que é que tem a ver com isso? perguntei.


Oh, tenho imenso a ver com isso. Enfiou a mão no casaco, tirou uma carteira de cabedal muito usada e abriu-a. Brigada de Costumes disse. Como é que se chama, Miss?Harriet. E o senhor?Norm. O que é que faz para ganhar a vida?

Acabei de fechar a caixa dos fusíveis e pus-lhe a mão no cotovelo com um olhar sedutor copiado da Jane Russell. Pelo menos eu achei que era sedutor. Não quer um chá? perguntei.Obrigado disse ele alegremente e deixou que o acompanhasse até dentro de casa.Se anda na vida, é muito limpa disse ele olhando em torno da minha sala enquanto eu punha a chaleira ao lume. Moedas! Vou ter de arranjar sacos cheios de moedas, tantos são os contadores que tenho de alimentar.Eu não ando na vida, Norm. Sou técnica especializada de radiologia no Royal Queens Hospital disse eu continuando a fazer o chá.Oh! A Pappy trouxe-a para cá.Conhece a Pappy?Quem é que não conhece? Mas ela não leva dinheiro, pelo que é fixe.

Dei-lhe uma chávena, servi outra para mim e encontrei uns biscoitos que a mãe enfiara no cesto. Molhámo-los no chá em silêncio durante uns instantes e depois comecei a interrogá-lo sobre os Costumes. Mas que bela sessão de aprendizagem! O Norm era, não apenas uma mina de informações, como aquilo a que a Pappy chamaria um pragmático absoluto. Não era possível excluir a prostituição da equação social, dissessem o que dissessem os puritanos, como arcebispos, cardeais e pastores metodistas, explicou, portanto, o objectivo era manter as coisas calmas e em ordem. Todas as raparigas da rua tinham o seu território e os problemas começavam quando uma rapariga tentava estabelecer-se num território já ocupado. Aí era um inferno.

            Dentes e unhas, dentes e unhas disse ele, servindo-se de mais um biscoito estaladiço. Depois, os chulos sacam das facas e navalhas.


Hum, quer dizer então que não prende as prostitutas mesmo que saiba que o são? perguntei.Só quando os puritanos tornam impossível não as prender: quando começam a agitar, do púlpito, as Associações de Mães e as Legiões para a Decência — são uns grandes chatos, os puritanos. Meu Deus, como os detesto! Mas continuou, controlando as emoções , o vosso apartamento térreo na parte da frente da casa é sempre um problema, pois o 17c não faz parte dessas vidas. A Mrs. Delvecchio Schwartz bem tenta, mas as raparigas são de todas as formas e feitios e depois o pêlo do 17b e do 17d começa a ficar eriçado.

Foi então que fiquei a saber que os apartamentos térreos na parte da frente das casas, em Cross, eram ideais para as raparigas da vida. Podiam fazer entrar os clientes pelas portas dos alpendres e fazerem-nos sair pela mesma via quinze minutos depois. E, fosse quem fosse a quem a Mrs. Delvecchio Schwartz alugasse o apartamento da frente, a rapariga acabava sempre por revelar-se uma prostituta. Fiz mais umas quantas perguntas e fiquei a saber que as habitações dos dois lados da Casa eram bordéis. O que diria o pai disso? Não que eu lhe fosse contar.

            Fazem rusgas aos bordéis das casas aqui ao lado? perguntei. Norm - um rapaz bem-parecido, a todos os títulos - fez um ar

completamente horrorizado. - Espero bem que não! São os dois bordéis mais finos de Sydney, frequentados pelos melhores clientes. Vereadores da Câmara de Sydney, políticos, juízes, industriais. Se lhes fizéssemos rusgas, acabaríamos pendurados pelos tomates.

—        Uauuu! disse eu.

Acabámos de beber o nosso chá e eu corri com ele, mas não antes de ele me ter convidado para a sala das senhoras de um bar de Piccadilly para beber uma cerveja no sábado à tarde. Aceitei. O Norm nem sequer sabia da existência de um David Murchison no meu horizonte oh, muito obrigada, Mrs. Delvecchio Schwartz! Eis-me aqui, há menos de doze horas, e já fui convidada para sair. Não me parece que o Norm vá ser o meu primeiro caso, mas é sem dúvida suficientemente apresentável para beber uma cerveja comigo. E para um beijo?


Desejo desta Noite: Que a minha vida transborde de homens interessantes.

 

Domingo, 24 de Janeiro de 1960

Hoje conheci vários inquilinos da Casa. Encontrei os primeiros dois depois de ter tomado um banho (não há chuveiro) e decidido fazer uma visita ao quintal das traseiras. Uma das coisas que me intrigara em Victoria Street fora o facto de não haver ruas nem veredas a saírem do lado esquerdo da rua: a nossa rua acabava num impasse e não havia casas com números inferiores a 17. O pavimento de tijoleira do meu corredor continuava até ao quintal das traseiras propriamente dito, que era atravessado por várias cordas da roupa, uma grande parte destas cheia de lençóis, toalhas e roupas que pareciam pertencer a um homem e a uma mulher. Cuequinhas enfeitadas com rendas, cuecas de homem, camisas de homem, sutiãs e blusas de mulher. Passei por entre a roupa que estava seca e descobri a razão de não haver ruas do lado esquerdo e de a nossa rua terminar num impasse. Victoria Street estava empoleirada no topo de um penhasco de grés com vinte metros de altura! Por baixo de mim, os telhados inclinados dos quarteirões de casas geminadas de Woollo-omooloo marchavam até ao Domain nesta altura do ano, a relva tem um aspecto óptimo e verde. Gosto da forma como este separa Woolloomooloo da Baixa, ainda que nunca me tivesse apercebido disso até ter ido espreitar à vedação das traseiras. Tantos edifícios novos na Baixa! Com tantos andares! Mas ainda consigo ver a torre AWA. À direita de Woolloomooloo fica o porto, todo salpicado de branco, pois hoje é domingo e foi toda a gente velejar. Mas que vista! Apesar de me sentir muito feliz com o meu apartamento, senti um assomo de inveja pelos habitantes do 17c que vivem no primeiro andar e cujos apartamentos dão para este lado. O paraíso por umas quantas libras por semana.

Quando afastei os lençóis para regressar às minhas pinturas, vinha a passar no corredor um rapaz novo com um cesto.


            Olá! Deve ser a famosa Harriet Purcell disse quando chegou ao pé de mim, estendendo-me uma mão comprida, magra e elegante.

Eu estava demasiado ocupada a admirá-la para a apertar com a rapidez indicada.

            Chamo-me Jim Cartwright disse ele.

Uaauu! Uma lésbica! Vista de perto, era óbvio que Jim não era um homem, mas estava vestida com umas calças de homem com braguilha na frente em vez de ser abotoada de lado e uma camisa creme de homem com os punhos dobrados com uma volta. Corte de cabelo masculino à moda, nem vestígios de maquilhagem, nariz grande e uns lindos olhos cinzentos.

Apertei-lhe a mão e disse que era um prazer e ela começou a rir--se silenciosamente de mim, tirou uma bolsa com tabaco e mortalhas do bolso da camisa e enrolou um cigarro só com uma mão, com uma destreza igual à do Gary Cooper.

            A Bob e eu vivemos no segundo andar por cima da Mrs. Del- vecchio Schwartz. É lindo! Temos janelas para este lado e para a frente.

Da Jim obtive mais informações acerca da Casa: quem vive onde. A Mrs. Delvecchio Schwartz ocupa todo o primeiro andar com excepção do quarto do fundo, que fica mesmo por cima da minha sala de estar; está alugado a um professor idoso chamado Harold Warner, mas quando falou nele a Jim franziu completamente a cara, no que pareceu uma expressão de asco. Mesmo por cima do Harold vive um novo australiano da Bavária chamado Klaus Muller, que é joalheiro para ganhar a vida e cozinha e toca violino para se divertir. Vai todos os fins-de-semana ter com amigos que vivem perto de Bow-ral e organizam churrascos apocalípticos com carneiros inteiros, porcos e vitelos no espeto. A Jim e a Bob ocupam a maior parte do segundo piso e o sótão pertence ao Toby Evans.

A Jim sorriu quando pronunciou o seu nome. É um artista... como ele vai gostar de ti!

Tendo deitado o cigarro para um caixote do lixo, a Jim começou a apanhar a roupa e eu ajudei-a a dobrar os lençóis e a meter tudo direitinho no cesto. Depois apareceu a Bob, muito apressada e de cenho franzido, com os pés pequeninos enfiados em sapatos rasos azuis, dando passinhos semelhantes aos dos ratinhos. Era uma rapariguinha loira que mais parecia uma bonequinha de porcelana, muito mais nova do que a Jim e vestida de acordo com o epítome da moda feminina de quatro anos antes vestido azul pastel com a saia muito rodada e armada por seis saiotes engomados, a cintura muito apertada, os seios apertados num sutiã pontiagudo que, segundo os manos, significava: «Não me toques!

Estava atrasada para o comboio, explicou a Bob numa grande agitação, e não havia táxis. A Jim inclinou-se para a beijar bem, aquilo era um beijo! Bocas abertas, línguas, sons ronronantes de prazer. Resultou; a Bob acalmou-se. Com o cesto da roupa numa anca masculina, a Jim levou a Bob pelo corredor, virou a esquina e desapareceu.

Com os olhos no chão, fui até ao meu apartamento mergulhada em pensamentos. Sabia que as lésbicas existiam, mas nunca conhecera nenhuma... pelo menos oficialmente. Havia certamente imensas entre as enfermeiras solteiras de qualquer hospital, mas elas não davam nada a entender, seria demasiado perigoso. Uma reputação dessas daria cabo da carreira de qualquer uma. No entanto, ali estavam a Jim e a Bob a não fazerem segredo de nada! O que significava que, embora a Mrs. Delvecchio Schwartz pudesse levantar objecções a ter raparigas da vida no apartamento térreo da frente, não tinha qualquer problema em hospedar um casal de lésbicas muito notórias. Óptimo da parte dela!

B'dia, querida! gritou alguém.

Dei um salto e olhei na direcção da voz, que era feminina e viera de uma das janelas com cortinas de renda cor de malva do 17d. As janelas do 17d intrigavam-me bastante, com as suas cortinas de renda cor de malva e os canteiros de gerânios rosa-arroxeados suspensos sob aquelas — na verdade, dava um belo efeito e fazia com que o 17d parecesse um hotel privado mal cuidado. Uma mulher jovem e nua, com uma enorme cabeleira de cabelos pintados com henna estava debruçada de uma das janelas, escovando vigorosamente os cabelos. Os seios, muito cheios e, oh, só ligeiramente pendentes, moviam-se alegremente ao ritmo das escovadelas e a parte de cima dos pêlos púbicos espreitava por entre os gerânios.Bom dia! respondi.Está a mudar-se, hem?Sim.Prazer em vê-la, adeus! E fechou a janela.

As minhas primeiras lésbicas e a minha primeira prostituta profissional!

Depois daquilo, as pinturas foram um tanto desapontantes, mas lá fui pintando até ter os braços doridos e ter dado a primeira demão em todas as paredes e no tecto. Uma parte de mim estava com saudades dos jogos domingueiros de ténis com a Merle, a Jan e a Deni-se, mas brandir uma trincha dava praticamente o mesmo efeito de brandir uma raqueta de ténis e, portanto, pelo menos estava a fazer exercício. Será que há algum court de ténis perto de Cross? Provavelmente, mas não me parece que haja muitos moradores do bairro a jogar ténis. Os jogos aqui são muito mais sérios do que isso.

À hora do pôr do Sol alguém me bateu à porta. A Pappy!, pensei, mas depois apercebi-me de que ela não batia assim. Aquela batida era forte, brusca e autoritária. Quando abri a porta e vi o David, caiu-me o coração aos pés. Não estava nada à espera dele, filho-da-mãe. Entrou antes de eu o convidar a fazê-lo e olhou à volta com uma expressão de nojo enjoado, a mesma que um gato faria se se visse no meio de uma poça de chichi. As minhas quatro cadeiras da mesa de refeições eram boas, de madeira robusta que eu ainda não começara a lixar, e empurrei uma com o pé na direcção dele e encavalitei-me na borda da mesa para poder olhá-lo de cima. Mas ele não foi na conversa: ficou de pé para me poder olhar de frente.Alguém disse ele está a fumar haxixe. Senti o cheiro na entrada.São os cheiros da Pappy: incenso, David, incenso! Um bom rapaz católico como tu devia certamente reconhecer o odor respondi.

- Sem dúvida que reconheço a libertinagem e a devassidão.


Senti os lábios a apertarem-se. Um antro de iniquidade, é o que queres dizer.

            Se gostas dessa expressão, sim disse ele, muito tenso. Falei num tom descontraído, atirando as palavras como se estas

não tivessem importância. Na verdade, estou mesmo a viver num antro de iniquidade. Ontem um agente da Brigada de Costumes veio cá falar comigo para se certificar de que eu não andava no ataque e esta manhã disse olá a uma das profissionais de topo de gama da porta ao lado quando esta se debruçava nua em pêlo da janela. Também esta manhã conheci a Jim e a Bob, as lésbicas que vivem dois andares acima e vi-as beijarem-se com muitíssimo mais paixão do que aquela que alguma vez demonstraste em relação a mim! Toma e embrulha!

Ele mudou de táctica, decidiu recuar e convencer-me a ter juízo. No fim da sua dissertação sobre o tema de o lugar das raparigas decentes ser em casa da família até ao casamento, disse: Harriet, eu amo-te!

Soprei com todas as forças e juro que, quando o fiz, acendeu-se uma lâmpada por cima da minha cabeça. Subitamente compreendi tudo!

            Tu, David disse eu , és o tipo de homem que escolhe deliberadamente uma rapariga muito jovem para a poder moldar de acordo com as suas próprias necessidades. Mas não resultou, companheiro. Em vez de me moldares, partiste a porra do teu querido molde!

Oh, sentia-me como se me tivessem aberto a gaiola! O David sempre me intimidara com as suas prédicas e sermões, mas eu agora estava-me nas tintas para os seus discursos. Perdera o poder que tinha sobre mim. E como fora astuto ao nunca me dar a oportunidade de o avaliar enquanto homem através de beijos, carícias ou é melhor nem pensar nisso! mostrando a pilinha para ser inspeccionada, quanto mais usada. Como é muito bem-parecido e bem constituído e um partido tão bom, eu fiquei agarrada a ele, convencida de que o resultado era algo que valia bem a espera. Agora apercebia-me de que ele fora sempre o resultado final. Eu nunca poderia ter consciência dos seus defeitos enquanto homem, e a única forma que ele tinha de se assegurar disso era impedir-me de experimentar outros espécimes. Percebera tudo mal não era do David que eu tinha de me livrar, era do meu velho eu. E foi o que fiz no momento em que soltei aquele sopro tremendo.

Deixei-o por isso falar durante mais algum tempo de como eu estava a passar por uma fase e de como ele seria paciente e esperaria que eu recuperasse o juízo, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

Tinha encontrado um maço de cigarros Du Maurier na lavandaria e enfiara-o no bolso. Quando ele chegou à parte em que dizia que eu me estava a armar em importante, tirei os cigarros do bolso, enfiei um na boca e acendi-o com um fósforo da caixa que estava junto ao fogão.

Os olhos saltaram-lhe das órbitas. Apaga isso já! E um vício nojento!

Soprei-lhe uma nuvem de fumo para a cara.A seguir vais começar a fumar haxixe e depois vais acabar por cheirar cola...és um fanático intolerante respondi-lhe.Sou um cientista que faz investigação médica e tenho um cérebro excelente. Andas com más companhias, Harriet, não é preciso ter um Prémio Nobel para perceber isso disse ele.

Apaguei o cigarro num pires tinha um sabor horrível, mas eu não o ia deixar perceber isso e levei-o para fora. Depois escoltei--o até à porta da frente. Adeus para sempre, David — disse-lhe.

Ele ficou com os olhos cheios de lágrimas e pôs uma mão no meu braço. Isto está completamente errado! disse numa voz insegura. Tantos anos! Vamos dar um beijo e fazer as pazes, por favor.

Foi a gota de água. Cerrei a mão direita num punho e dei-lhe um murro em cheio no olho esquerdo. Quando ele cambaleou eu dou uns belos murros, os manos certificaram-se disso , vi, por cima do ombro dele, que vinha alguém a chegar e dei ao David um empurrão que o fez cair dos degraus para o passeio. Esperava parecer, aos olhos do recém-chegado, uma Amazona particularmente perigosa.


Apanhado numa situação ridícula por um estranho, David saiu a correr pelo portão da frente e partiu disparado pela Victoria Street como se fossem atrás dele os cães dos Baskerville.

O que nos deu, a mim e ao recém-chegado, oportunidade de nos examinarmos mutuamente. Apesar de eu estar em cima dos degraus e ele no caminho, achei que ele não chegava ao metro e oitenta. Nodoso, duro, balouçando-se ligeiramente nas pontas dos pés como um pugilista, olhando para mim com os olhos castanho-avermelhados a brilharem, matreiros. Um belo nariz, direito, bons malares, uma cabeleira acobreada e encaracolada mas disciplinada com a tesoura, sobrancelhas pretas e direitas e pestanas pretas e fartas. Muito atraente!Vais entrar ou vais limitar-te a ficar aí a decorar o caminho? perguntei friamente.Vou entrar — disse ele, mas não fez qualquer movimento nesse sentido. Estava demasiado ocupado a olhar para mim. Um olhar estranho, agora que a matreirice se estava a desvanecer dos seus olhos distante, fascinado de uma forma não emocional. Pareceria, a qualquer um, um médico a avaliar um doente, mas eu comeria o chapéu do David Akubra se ele fosse médico. Tens as articulações muito flexíveis? perguntou.

Respondi que não.É pena. Podia pôr-te numas poses espectaculares. Não tens muita carne sobre os ossos e, aquela que tens, parece em boa forma, mas tens uns seios muito sedutores. São devido ao físico e não ao sutiã de um qualquer fabricante. Deu um salto para o degrau enquanto proferia aquelas palavras e esperou que eu entrasse à sua frente.Deves ser o artista que vive no sótão disse eu.Em cheio no alvo. Toby Evans. E tu deves ser a rapariga nova que arrendou o apartamento térreo das traseiras.Em cheio no alvo. Harriet Purcell.Vem lá a cima beber um café, deves estar a precisar de um, depois da sova que deste no pobre tolo idiota que estava lá fora. Vai ficar com o olho negro durante um mês disse.


Segui-o pelas escadas acima até ao segundo andar e a um patamar que tinha pintado, numa das portas, um enorme símbolo feminino (Jim e Bob, sem dúvida) e uma paisagem alpina na outra (Klaus Mul-ler, sem dúvida). O acesso ao sótão fazia-se por uma robusta escada de madeira. O Toby foi à frente e, assim que eu alcancei terra firme, puxou uma corda que erguia a escada e a dobrava contra o tecto.

Oh, isso é fantástico disse eu olhando-o, espantada. Podes erguer a ponte levadiça e aguentar um cerco.

Estávamos numa sala enorme, com uma janela de sacada e duas outras em nichos, na parte de trás, e mais duas a dar para a frente na parte mais baixa do telhado. A sala estava inteiramente pintada de branco e parecia tão estéril como um bloco operatório. Não havia um alfinete fora do lugar, nem uma mancha, nem uma nódoa, nem um bocadinho de pó, nem mesmo a marca de uma gota de chuva seca nas vidraças das janelas. Por ser no sótão, havia assentos junto às janelas, cobertos com almofadas de lona branca. Os quadros estavam virados contra as paredes num suporte pintado de branco e vi um enorme cavalete profissional (pintado de branco), um estrado com uma cadeira em cima e uma pequena cómoda branca ao lado do cavalete. Era a área de trabalho. Para o lazer, ele dispunha de duas cadeiras de repouso cobertas com lona branca, estantes brancas onde cada livro estava rigidamente no lugar, um biombo branco de hospital a tapar o recanto da cozinha, uma mesa branca quadrada e duas cadeiras de madeira branca. Até o chão fora pintado de branco. E também não tinha qualquer marca de sujidade. As luzes eram brancas e fluorescentes. O único toque de cor era dado pelo cobertor cinzento do exército que estava em cima da cama de casal.

Como ele fora muito pessoal no início com aquela frase sobre os meus seios a lata! , disse exactamente o que estava a pensar. Meu Deus, tu deves ser obsessivo! Aposto que quando tiras tinta de um tubo o apertas no fundo e depois dobras cuidadosamente o pedacinho vazio para cima, para ficar exactamente direito.

Ele sorriu e pôs a cabeça de lado como um cãozinho atento. Senta-te disse, desaparecendo por trás do biombo para ir fazer o café.


Sentei-me e falei com ele através das pregas impecavelmente engomadas do biombo e, quando ele apareceu com o café em duas canecas brancas, continuámos a falar. Ele era, segundo me disse, um rapaz do campo que crescera perto das enormes fazendas de gado da Queensland ocidental e dos Territórios do Norte. O pai fora cozinheiro numa cantina mas, em primeiro lugar e principalmente, um grande bêbado, e era Toby quem cozinhava a maior parte do tempo e conseguia que o pai conservasse o emprego. Ele não parecia levar aquilo a mal ao velhote, que acabara por morrer devido à bebida. Nesses tempos as pinturas do Toby eram aguarelas infantis e o seu papel de desenho, o papel de embrulho barato usado pelos talhantes; os lápis eram surripiados do escritório. Depois da morte do pai, partira para a Grande Cidade, para aprender a pintar como deve ser e a óleo.

            Mas Sydney é muito desagradável quando não se conhece ninguém e todos percebem que somos uns campónios disse, deitando brandy forte no segundo café. Tentei trabalhar no ofício de cozinheiro: em hotéis, pensões, casas de pasto, no Concord Repat Hospital. Foi horrível, no meio de pessoas que não falavam inglês e baratas por todo o lado, com excepção do Concord. Uma coisa tem de se admitir relativamente aos hospitais: são limpos.

«Mas a comida é pior do que a comida de cantina. Depois mudei-me para Kings Cross. Estava a viver num barracão com um metro e meio por dois metros quando conheci a Pappy. Trouxe-me a casa para conhecer a Mrs. Delvecchio Schwartz, que me disse que eu podia ficar a viver no sótão por três libras por semana e que lhe podia pagar quando tivesse dinheiro. Sabes, vemos aquelas estátuas da Virgem Maria e da Santa Teresa e assim, e são todas mulheres lindas. Mas eu achei que a Mrs. Delvecchio Schwartz, a malandra da velhota, era a mulher mais bela que alguma vez vira. Um dia, quando tiver mais confiança, vou pintá-la com a Fio ao colo.

            Continuas a cozinhar? perguntei.

Ele fez um ar desdenhoso. Não! A Mrs. Delvecchio Schwartz disse-me para arranjar um emprego a apertar parafusos numa fábrica: «Vais ganhar bom dinheiro e não vais sofrer nada, companheiro e oeste, e, para leste, ao longo de quilómetros, só há parques e campos desportivos. Partilha os bairros residenciais com o St. George Hospital, se bem que também abranja a sua quota-parte de casas geminadas degradadas. Como é evidente, o Governo Estadual está sempre a tentar fechar o Queens, empregar o dinheiro que o Queens bebe como uma esponja no St. George e nos hospitais mais pequenos que ficam a Ocidente, onde a população de Sydney está a crescer exponencialmente. Todavia, aposto na Enfermeira-Chefe contra o Ministro da Saúde sem a menor hesitação. O Queens não está prestes a fechar e o meu novo trabalho nas Urgências está seguro.A menina é uma excelente técnica, Miss Purcell — disse a Enfermeira Agatha com o seu sotaque de vogais arredondadas e também é excelente com os pacientes. São factos que não nos passam despercebidos.Sim, Senhora Enfermeira, obrigada, Senhora Enfermeira disse eu saindo às arrecuas e a fazer vénias.

Iupii! Urgências!

O Desejo desta Noite: Que a Pappy e o Toby se casem.

 

Sábado, 6 de Fevereiro de 1960

É melhor bateres com a cabeça contra uma parede de tijolos, Harriet Purcell, até que o cérebro que tens lá dentro comece a pensar. Que idiota que és! Que bronca!

Eu e a Pappy fomos às compras esta manhã, equipadas com os nossos sacos e bolsas. Aos sábados de manhã quase não se consegue andar por causa da quantidade de pessoas que andam na rua, em Dar-linghurst Road, mas em Cross ninguém é vulgar. Uma mulher espantosamente bela passou por nós num passo arrogante com um caniche com o pêlo tingido cor de damasco rosado, preso por uma trela coberta de jóias de fantasia, e vestida dos pés à cabeça com sedas cor de damasco e cabedal cor de damasco. O cabelo dela estava tingido

± Ha cor do pêlo do Cão.


Ufff! ofeguei quando ela passou.Ele é um espanto, não é? perguntou Pappy a sorrir.Ele?Vulgarmente conhecido por Lady Richard. Um travesti.Mais tricha do que bicha, queres tu dizer disse eu, atónita.Não, gosta de tal forma de roupas que é assexuado, mas há imensos travestis que são heterossexuais. Gostam é de roupas de mulher.

E foi assim que a conversa começou. Apesar de nunca ver a Pappy na Casa, vemo-nos imenso durante a semana e, naquela altura, eu achava que já a conhecia. Mas não a conheço de todo.

Ela disse-me que já era mais do que tempo de eu ter um caso e eu concordei em absoluto. Mas o Norm, o agente da Brigada de Costumes, revelou-se um horror no capítulo dos beijos afogou-me em saliva. Separámo-nos como bons amigos depois de beber a tal cerveja, mas percebemos os dois que dali não resultaria nada. Uma pena. Sinto-me muito atraída por ele e ele tem ar de quem sabe o que faz na cama. Que era, aliás, o assunto de que a Pappy estava a falar enquanto caminhávamos, dizendo que a Minha Primeira Vez não poderia, de forma alguma, acontecer com alguém insensível, ignorante, imbecil ou convencido.

            Tem de ser alguém experiente, atencioso e terno disse. Comecei a rir. Oiçam só a especialista! ri-me eu. Afinal, ela é mesmo uma especialista.

            Harriet disse ela, parecendo um pouco exasperada , não te interrogaste ainda sobre a razão de quase não me veres aos finsde-semana?

Disse-lhe que tinha pensado nisso mas que tinha partido do princípio de que ela estava mergulhada num livro.Oh, Harriet, tu és um bocado burra! exclamou ela. Eu passo os fins-de-semana a fazer sexo com homens.Homens perguntei eu, ofegante.Sim, homens.No plural?No plural.


O que é que uma pessoa diz, a seguir a uma coisa destas? Continuava à procura das palavras quando virámos para a Victoria Street.Porquê?Porque ando à procura de qualquer coisa.Do amante perfeito?

Ela abanou a cabeça de um lado para o outro como se a sua vontade fosse abanar-me a mim e não à cabeça. Não, não, não! Não tem nada a ver com o sexo, tem a ver com o espírito. Ando à procura da alma gémea, suponho.

Estive quase a sugerir-lhe que esta se encontrava no sótão a cobrir uma tela de tinta, mas mordi a língua e não disse nada. Estava um rapaz novo sentado nas escadas, quando entrámos. A Pappy dirigiu-me um sorriso de desculpas quando ele se levantou e eu escapuli-me para o meu apartamento cor-de-rosa. onde me deixei cair numa cadeira para recuperar o fôlego. Então era a isso que Norm, o agente da Brigada de Costumes, se referira quando dissera que a Pappy não levava dinheiro! Sem dúvida que ela também fizera sexo com ele.

Já é tempo de definires as tuas prioridades, Harriet Purcell. Está em causa tudo aquilo que foste educada para pensar. A Pappy não pode ser descrita como uma rapariga decente; no entanto, é a rapariga mais decente que já conheci. Mas as raparigas decentes não andam a distribuir livremente os seus favores sexuais a um número desconhecido de homens. Só as prostitutas é que fazem esse tipo de coisa. A Pappy, uma prostituta? Não, nisso não acredito! Sou o único membro do meu grupo de Bronte-Bondi-Waverley que não teve, pelo menos, um caso, mas a Merle, por exemplo, não se acha mais prostituta do que aquilo que realmente é. Oh, as reviravoltas emocionais que testemunhei quando a Merle mergulha na paixão! Os entusiasmos, as fúrias, as dúvidas e a desilusão final. E os dias horríveis, daquela vez em que ela esperava que viesse o período, que estava mais do que atrasado. Mas acabou por chegar, fazendo-me sentir um alívio tão intenso como o dela, ao pôr-me no seu lugar. Se há alguma coisa que nos mantenha na linha é o medo da gravidez.


As únicas pessoas que fazem abortos usam agulhas de tricô, mas a alternativa é a reputação arruinada. Habitualmente, o que acontece é um desaparecimento de quatro meses ou um casamento muito apressado e um bebé «prematuro. Mas quer a rapariga opte por ir para uma instituição durante quatro meses e dê o bebé para adopção, quer se case com o tipo, as más-línguas persegui-la-ão até ao final dos seus dias. Ela teve de se casar ou «Bem, todos nós sabemos, não é verdade? Anda por aí com uma cara de poucos amigos, o rapaz não se vê em parte nenhuma, ela começa a alargar na cintura e depois, subitamente, vai visitar a avó na Austrália Ocidental durante uns meses... Quem é que ela pensa que engana, hem?

Acho que nunca participei nesse tipo de conversas maliciosas, mas é um facto na vida de todas as raparigas. No entanto, aqui está a Pappy, que eu adoro, a brincar com o fogo em todas as direcções, arriscando desde uma gravidez até ao contágio de doenças venéreas ou a levar uma sova. A usar o sexo na busca da alma gémea! Mas como poderá o sexo ajudá-la a encontrar a alma de um homem? O problema é que não tenho quaisquer respostas. O que sei é que não consigo pensar mal da Pappy. Oh, pobre Toby! Como se sentirá? Será que ela teve relações com ele? Ou será o único que não a atrai? Sim, não sei porque penso isso, mas penso.

Não conseguia acalmar e decidi ir dar um passeio e perder-me naquelas multidões de pessoas fascinantes de Cross. Mas, quando ia a passar pelo átrio, a Mrs. Delvecchio Schwartz estava a varrê-lo. Com pouco sucesso. Usava uma vassoura tão rija e fazia movimentos de tal forma rápidos, que o pó limitava-se a erguer-se em nuvens e a assentar novamente no chão atrás dela. Estava prestes a perguntar se ela já pensara em espalhar folhas de chá húmidas antes de varrer, mas não fui a tempo.Espectáculo! disse ela com um grande sorriso. Vem lá acima beber um copinho de brandy.Nunca mais lhe pus a vista em cima, desde que me mudei disse eu seguindo-a pelas escadas acima.Nunca nos devemos impor às pessoas quando elas estão ocupadas, princesa disse ela deixando-se cair sobre uma das cadeiras


da varanda e deitando brandy em dois copos de vidro grosso. A Fio estivera o tempo todo agarrada às suas saias, mas depois trepou para o meu colo e ficou a olhar para mim com aqueles olhos trágicos cor de âmbar e, no entanto, sorrindo.

Dei um golinho na bebida horrível, mas não conseguia gostar daquilo. Nunca oiço a Fio disse eu. Ela não fala?

            O tempo todo, princesa respondeu a Mrs. Delvecchio Schwartz.

Estava a baralhar um baralho de cartas enormes, depois fixou em mim os seus olhos de raio X e pousou as cartas. O que é que te está a incomodar? perguntou.A Pappy diz que dorme com muitos homens.Sim, pois dorme.O que é que acha disso? Sempre pensei que as senhorias despejavam as raparigas que recebessem homens nos seus apartamentos e sei que é isso que faz quando se trata do apartamento da frente, no andar de baixo.Não está certo fazer com que mulheres verdadeiramente boas pensem que são perversas só porque gostam de dar umas quecas disse ela, dando um grande gole. O sexo é tão normal e natural como mijar ou cagar. E, no que diz respeito à Pappy, que é que há para pensar? O sexo é a forma de ela viajar. Outro olhar penetrante na minha direcção. Mas não é a tua maneira, pois não?

Senti-me desconfortável e encolhi-me. Pelo menos até agora, não disse e dei mais um golinho. O álcool estava a saber-me melhor.

            Tu e a Pappy representam os extremos opostos na vida das mulheres disse a Mrs. Delvecchio Schwartz. Para a Pappy, se não houver toque, não há amor. É uma Rainha de Espadas de Balança e portanto não é forte. Sobretudo por causa de Marte. Muito mal orientado. E o Júpiter também. Tem a Lua em Gémeos em quadratura com Saturno.

Creio que reproduzi correctamente.

            E eu o que sou? perguntei.

- Não posso saber até me dizeres quando nasceste, princesa.


A onze de Novembro de mil novecentos e trinta e oito respondi.Ah! Eu sabia! Uma mulher de Escorpião! Muito forte! Onde? No Hospital de Vinnie.Mesmo ao pé de Cross! A que horas?

Puxei pela cabeça. Às onze horas e um minuto da manhã.Onze, onze, onze, Oh, fixe! Espectacular! Ofegou e inclinou a cadeira, recostou-se nela e fechou os olhos. Hum. Vejamos. .. Ascendente em Aquário... bem, bem! Um minuto depois, estava de gatas junto a um pequeno armário de onde tirou um livro tão usado que se estava a desfazer, umas quantas folhas de papel e um pequeno transferidor de plástico barato. Uma das folhas de papel, em branco, foi empurrada na minha direcção juntamente com um lápis.Escreve tudo com'eu te disser disse ela, e olhou para a Fio.

            Meu anjo, empresta-me os teus lápis de cor. A Fio escorregou do meu colo e trotou até à sala, regressando com as mãos cheias de lápis: azul, verde, vermelho, roxo e castanho.

            Faço tudo de cabeça... Não é pr'admirar, depois de tantos anos disto disse a Mrs. Delvecchio Schwartz, consultando o livro velho e escrevendo sinais misteriosos numa folha já com um desenho parecido com uma tarte dividida em doze fatias iguais. Sim, sim, muito interessante. Escreve, Harriet, escreve! Três oposições, to das potentes: Sol em oposição a Urano, Marte a Saturno e o Urano ao Meio do Céu. A Maior parte da tensão é desfeita pelas quadraturas... uma sorte, hem?

Enquanto ela ia falando a um ritmo normal, eu tinha de me esforçar imenso para conseguir escrevinhar tudo o que ela dizia.

            Júpiter na primeira casa de Aquário, o signo do teu ascendente... muito poderoso! Vais ter uma vida afortunada, Harriet Purcell. O Sol está na décima casa, o que significa que farás da tua carreira toda a tua vida.

Aquilo fez-me endireitar na cadeira! Franzi-lhe o sobrolho.

            Não, não farei! ripostei. Raios me partam se vou continuar a tirar radiografias até ter idade para me reformar! Pôr um avental de chumbo preso aos ombros durante quarenta anos e fazer análises ao sangue uma vez por mês? Quero que isso se lixe!Há carreiras e carreiras disse ela com um esgar. Vénus também está na décima casa e a tua Lua está em Caranguejo. Saturno está na cúspide da segunda e terceira casas, o que significa que cuidarás sempre de quem não puder cuidar de si. Suspirou. Oh, tens montes de coisas, mas nenhuma delas vale um tostão furado comparada com o quincôncio perfeito entre a Lua e Mercúrio!Quincôncio) tinha um som perfeitamente obsceno.É o aspecto que vais fazer p'ra mim disse ela, esfregando as mãos com uma expressão de satisfação extrema. Tem de s'olhar p'ra tudo num mapa, antes do quincôncio fazer sentido, mas a forma como as estrelas progrediram desde o teu nascimento dizem que é mesmo um quincôncio. A visão raio X pousou novamente sobre mim, depois ela pôs-se de pé, foi lá dentro e abriu o frigorífico. Regressou com uma travessa com umas coisas que pareciam umas cobras cortadas às postas. Toma, come princesa. Enguia fumada. É um alimento muito bom para o cérebro. O amigo do Klaus, o Lerner Chusovich, apanha-as e fuma-as ele próprio.

A enguia fumada era deliciosa e comi com gosto.Sabe muito de astrologia disse eu enquanto mastigava.Espero bem que sim! Sou vidente disse ela.

De repente, lembrei-me da senhora do cabelo azulado de Upper North Shore e de várias outras que encontrara no átrio da frente e tudo se encaixou. Aquelas mulheres de ar próspero são suas clientes? perguntei.

            Acertaste em cheio, campeã! Voltou a trespassar-me com aqueles seus olhos gelados. Acreditas no Além?

Pensei uns instantes antes de responder. Só talvez. É um bocado difícil de acreditar na razão e na justiça que estão por detrás dos imutáveis propósitos divinos, quando se trabalha num hospital.

            Não te perguntei sobre Deus, perguntei sobre o Além. Respondi-lhe que também não tinha certezas relativamente a isso.

            Bem, eu trabalho com o Além disse a Mrs. Delvecchio Schwartz. Faço horóscopos, leio as cartas, leio o mê Cristal ela pronunciava a palavra com letra grande — e comunico com os mortos.Como?Não faço a mínima ideia, princesa! disse ela alegremente. Não soube que conseguia fazê-lo até já ter mais de trinta anos.

A Fio trepou-lhe para o colo a pedir leite materno, mas foi contrariada gentil mas firmemente. Agora não, meu anjo, a Harriet e eu estamos a conversar. Dirigiu-se ao pequeno armário e tirou de lá um objecto muito pesado coberto com um pedaço de seda cor-de--rosa muito suja e pousou-o na mesa. Depois estendeu-me o baralho de cartas. Virei-as à espera de ver os corações habituais, os ouros, os paus, e as espadas, mas aquelas cartas tinham desenhos. A que estava no fim do baralho ostentava uma mulher nua rodeada por uma grinalda, tudo em cores berrantes.

            Isso é o Mundo disse a Mrs. Delvecchio Schwartz.

Por baixo estava outra carta com uma mão a segurar num cálice de onde escorriam gotas finas de um líquido. Uma pomba com um pequeno objecto circular no bico pairava de cabeça para baixo sobre o cálice onde estava inscrito aquilo que parecia ser um W.

            O As de Copas disse ela.

Pousei o baralho cuidadosamente. Que cartas são estas?Um baralho de Tarot, princesa. Consigo fazer todo o tipo de coisas com ele. Posso ler-te a sina, se quiseres. Faz-me uma pergunta sobre o tê futuro q'eu respondo-te. Posso sentar-me aqui sozinha e deitar as cartas para ter uma ideia do que está a acontecer na Casa e às pessoas que estão sob os meus cuidados. As cartas têm bocas. Falam.Antes a senhora a ouvi-las do que eu disse eu com um estremecimento.

Ela continuou como se não tivesse sido interrompida. Este é o Cristal disse, puxando a seda suja cor-de-rosa de cima do objecto que trouxera do armário. Depois estendeu o braço por cima da mesa para me pegar na mão e pousá-la sobre a superfície fresca daquela coisa muito bela. Fio, que estava a observar de pé, susteve subitamente a respiração e correu a esconder-se atrás da mãe, depois espreitou de trás daquela massa enorme com os olhos muito abertos.É de vidro? perguntei fascinada pela forma como reflectia tudo no seu interior a varanda, a sua proprietária, uma árvore vulgaríssima... mas tudo de cabeça para baixo.Não, é genuíno... cristal. Tem mil anos. Já viu tudo, oh se viu, o Cristal. Não o uso muito, é como ter um ataque dos horrores da secura.Horrores da secura? Quantas perguntas haveria para fazer?As tremuras do gin, os tremores do whisky... delirium tremem. Com o Cristal, nã se sabe nunca o qu'é q'aparece aos gritos a empurrar a cara contra a parte de dentro. Não. A maior parte das vezes, uso as cartas. E para as senhoras, a Fio.

Assim que ela pronunciou o nome da Fio, percebi a razão de me estar a confidenciar tudo aquilo. A Mrs. Delvecchio Schwartz, por razões que me eram absolutamente desconhecidas, decidira que eu tinha de ficar a saber daquela vida secreta. Fiz, portanto, a mais importante das perguntas. Fio?

            Sim, a Fio. Ela é o meu médium. Ela sabe sempre as respostas às perguntas c'as senhoras me fazem. Eu nã nasci c'o dom... ele apareceu-me de repente quando eu estava... oh, Harriet, desesperada por dinheiro! Quando comecei a fazer vidência era uma fraude, estou a ser sincera. Depois descobri que tinha mesmo o dom. Mas na Fio é tudo natural. Às vezes mete-me um medo dos diabos, a Fio.

Sim, também me mete um medo dos diabos a mim, pensei não sem algum asco. Acreditava naquilo tudo. A Fio não tinha ar de pertencer a este mundo, não era portanto uma grande surpresa descobrir que tinha acesso ao outro. Talvez fosse o seu mundo natural. Ou talvez ela fosse histérica. Há histéricos de todas as idades. Mas sabendo tudo aquilo, eu ainda amava mais a Fio. Aquilo esclarecia o mistério da dor estampada nos seus olhos. O que ela devia ver e sentir! Uma espontânea


Depois de beber um copo cheio de brandy, desci as escadas com alguma dificuldade mas não caí na cama para dormir: queria escrever tudo antes que me esquecesse. E estou aqui sentada com a esferográfica na mão a pensar por que razão não me sinto escandalizada, por que não sinto vontade de dar uma boa ensaboadela à Mrs. Del-vecchio Schwartz por estar a explorar a filha tão pequena. Mas isto é tão diferente e tão distante de tudo o que conheço e compreendo que, mesmo vivendo aqui há muito pouco tempo, já cresci imenso. Pelo menos é o que eu sinto. Mais ou menos nova e mudada. Gosto daquela monstruosidade chamada Mrs. Delvecchio Schwartz, mas amo a sua filha. O que acalma as ensaboadelas a que a minha língua é atreita, Horatio, é aperceber-me de que há realmente muito mais coisas nos céus e na terra do que a filosofia de Bronte alguma vez sonhou. E já não posso regressar a Bronte. Nunca mais posso voltar para Bronte.

Fio, uma médium. A mãe sugerira que ela própria comunicava com os mortos através do Cristal, mas não descrevera verdadeiramente as actividades mediúnicas da Fio no que respeitava aos mortos. A Fio sabe as respostas para as perguntas que as 'nhãs senhoras fazem. Evoquei imagens das «'nhãs senhoras e tive de admitir que não pareciam mulheres que andassem atrás de fantasmas amados. Eram todas diferentes umas das outras, mas nenhuma delas tinha aquele ar de desgosto inultrapassado. O que quer que as fazia procurar a ajuda da Mrs. Delvecchio Schwartz, sabia-o intuitivamente, estava ligado a este mundo e não ao outro. Embora a Fio não fosse deste mundo.

Talvez no início, quando era uma fraude a tentar ganhar o dinheiro pelo qual estava desesperada, a Mrs. Delvecchio Schwartz desse valor ao dinheiro. Suponho que deve ter sido assim que comprou a Casa. Mas, e actualmente? Naquele ambiente sombrio, despojado e horrível? A Mrs. Delvecchio Schwartz não quer saber do conforto para nada e a Fio também não. O que quer que as interesse, não se encontra nos vestidos bonitos nem nos sofás confortáveis. Até consigo perceber a razão de a Fio continuar a mamar. É uma ligação à mãe de que ela precisa. Oh, Fio! Meu anjo. A tua mãe é todo o teu mundo, o início e o fim, é a tua âncora e o teu refúgio. E sinto-me honrada por me teres concedido o teu afecto, meu anjo. Sinto--me abençoada.

 

Segunda-feira, 8 de Fevereiro de 1960

Comecei hoje a fazer radiografias nas Urgências e devo confessar que não o fiz com a rapidez do costume. A minha vida está a ficar um bocadinho complicada, entre a ninfomania e a vidência. Apesar de não ter a certeza de poder qualificar como ninfomania a actividade sexual confinada ao fim-de-semana. No entanto, dez minutos depois de ter começado, já me esquecera de que havia vida para além da Radiologia das Urgências.

Somos três: uma técnica sénior, uma intermédia (eu) e uma júnior. Não tenho a certeza de gostar da Christine Leigh Hamilton, que foi como a minha chefe se apresentou. Tem trinta e tal anos e, a julgar pelo que ouvi de uma conversa entre ela e a Enfermeira da Urgência, começa a sofrer daquilo a que chamo «Síndrome da Solteirona. Se eu continuar solteira aos trinta e tal anos, prefiro cortar o pescoço a passar pela Síndrome da Solteirona. Este tem origem no estado solitário e na contemplação de uma velhice passada com outras mulheres em relativa penúria, a não ser que haja dinheiro de família, o que, habitualmente, não há. E o sintoma principal é uma determinação esmagadora de caçar um homem. Casar. Ter filhos. Realizar-se enquanto mulher. Compreendo, ainda que esteja decidida a não contrair eu própria essa doença. Nunca tenho a certeza de qual é a motivação principal na S.D.S. — a vontade de encontrar alguém para amar e que retribua esse amor ou a vontade de alcançar a segurança económica. É claro que a Chris é técnica de radiologia e ganha, portanto, o salário de um homem, mas, se fosse a um banco fazer uma hipoteca para poder comprar uma casa, esta ser-lhe-ia recusada. Os bancos não fazem hipotecas a mulheres, ganhem elas o que ganharem. E a maioria das mulheres ganha mal e nunca consegue poupar para a velhice. Estava a falar com a Jim sobre isso ela é mestre tipógrafa, mas não recebe um salário igual ao dos homens. Não é para admirar que algumas mulheres fiquem esquisitas e renunciem completamente aos homens. A Bob é secretária de um grande empresário qualquer e também não ganha lá muito bem. E se trabalharmos para o Estado, temos de nos despedir quando casamos. É por isso que todas as enfermeiras e chefes de departamento são solteironas. Embora umas quantas sejam viúvas.

Se não fosse a Mrs. Delvecchio Schwartz, teríamos uma vida de cão disse-me a Jim. Sempre com medo de que descobrissem o que se passa entre nós e nos despejassem e sem ter dinheiro para comprar uma casa. A Casa é o nosso salva-vidas.

Seja como for, voltemos à Chris Hamilton. O problema é que ela não é propriamente irresistível para os homens. Uma figura um tanto atarracada, um cabelo indomável, óculos, maquilhagem desadequada e pernas de piano de cauda. O que poderia ser ultrapassado se ela tivesse algum senso, mas não tem. Senso em relação aos homens, quero dizer. Por isso, sempre que um homem, especialmente um homem de branco, entra no nosso pequeno domínio, ela sorri afectadamente, atarefa-se de um lado para o outro e vira-se do avesso para o impressionar. Oh, não aos contínuos, os novos australianos (nem dá pela sua existência), mas até mesmo os homens das ambulâncias têm direito a chávenas de chá e conversinhas enquanto comem biscoitos. Isto é, se não estivermos ocupadas, sejamos justos. A melhor amiga dela é a Marie 0'Callaghan, que é a Enfermeira da Urgência. Partilham um apartamento em Coogee e têm ambas trinta e tal anos. E sofrem ambas da Síndrome da Solteirona! Porque será que as mulheres não são consideradas verdadeiras mulheres até terem marido e filhos? É claro que, se a Chris lesse estas palavras, fungaria e diria que para mim está tudo muito bem, pois sou muito atraente para os homens. Mas por que é que me qualificam dessa forma?

A técnica estagiária é muito tímida e, como acontece habitualmente num departamento com muito movimento, passa a maior parte do dia na câmara escura. Pensando na minha própria formação.


Houve alturas em que achei que estava mais qualificada para trabalhar na Kodak do que em radiologia. Mas, não sei como, no fim tudo se equilibra: conseguimos ter a experiência suficiente com os pacientes para passar nos exames e transformamo-nos nas pessoas que mandam os estagiários para a câmara escura. O problema é que é tudo uma questão de prioridades, especialmente nas Urgências, onde não se podem cometer erros nem estragar as chapas.

Ainda não tinham passado cinco minutos quando percebi que não ia conseguir fazer tudo à minha maneira na Radiologia das Urgências. O chefe da cirurgia das Urgências entrou acompanhado pelo chefe dos internos, deu-me uma olhadela e começou a atirar com charme para cima de mim. Não sei porque é que tenho este efeito nalguns médicos (em alguns, não todos!) porque, sinceramente, não ando atrás de nada que use uma bata branca. Prefiro ficar solteirona do que ser casada com alguém que está sempre a sair a correr para ir atender uma urgência. E só sabem falar de medicina, medicina, medicina. A Pappy diz que eu sou sensual, mas se a Brigitte Bardot é sensual, então não faço ideia do que é que a palavra quer dizer. Eu não abano o rabo, não faço beicinho, não atiro olhares demorados e lânguidos aos homens e não faço ar de quem não tem nada dentro da cabeça. Excepto aquela ocasião em que vi o Mr. Duncan Crawler Forsythe na rampa, para mim é como se os filhos-da-mãe nem existissem. Não fiz portanto absolutamente nada para encorajar aqueles dois médicos, mas mesmo assim eles ficaram por ali a meter-se debaixo dos meus pés. Acabei por lhes dizer que desaparecessem, o que horrorizou a Chris (e a estagiária).

Felizmente, nesse momento entrou pelas nossas portas duplas uma suspeita de fractura na coluna. Atirei-me ao trabalho decidida a não dar qualquer oportunidade à Chris Hamilton de se queixar do meu trabalho à Enfermeira Agatha.

Não foi preciso muito tempo para descobrir que não teria tempo para almoçar com a Pappy: comemos a correr. Ao fim de quatro horas a fazer aquele trabalho, já tínhamos recebido três suspeitas de colunas fracturadas, uma fractura exposta numa tíbia, perónio e ossos do tornozelo, várias fracturas com pulverização em ossos longos, costelas partidas, uma dúzia de outros tipos de ferimentos e um ferimento grave na cabeça com o paciente comatoso e com convulsões, que foi levado directamente para o bloco operatório da neurocirurgia. Depois de ter ultrapassado o mau humor provocado pelo comportamento dos dois médicos tão apetecíveis, a Chris foi suficientemente esperta para se aperceber de que eu não me atrapalharia relativamente aos pacientes e arranjámos rapidamente um sistema de trabalho.

A unidade estava a funcionar, oficialmente, entre as seis da manhã e as seis da tarde. A Chris fazia o primeiro turno e saía às duas, eu começava às dez e saía às seis.

E uma ficção agradável, essa de que saímos a horas disse a Chris enquanto abotoava o casaco por cima da farda às três e meia , mas é esse o nosso objectivo. Não gosto de manter aqui a estagiária mais tempo do que o necessário, portanto certifica-te de que a mandas embora às quatro, a não ser que apareça aí uma grande confusão.

Sim, minha senhora.

Consegui sair finalmente passava um bocado das sete e estava tão cansada que cheguei a pensar em chamar um táxi. Mas acabei por me arrastar a pé até casa, apesar de as pessoas estarem sempre a dizer que Sydney não é uma cidade segura para as mulheres andarem sozinhas depois do escurecer. Mesmo assim, arrisquei e não aconteceu nada. Na verdade, até ter chegado ao Vinnie's Hospital quase não vi vivalma. E vou para a cama. Estou exausta.

 

Terça-feira, 16 de Fevereiro de 1960

Esta noite vi finalmente a Pappy. Quando empurrei a porta da frente quase a atirei ao chão, mas ela não devia ter nenhum encontro muito importante, porque deu meia volta e foi comigo para o meu apartamento, entrou e esperou que eu fizesse café.

Instalada no meu único sofá, olhei para ela com atenção e apercebi-me de que não estava com bom aspecto. Tinha a pele amarelada e os seus olhos pareciam mais orientais do que o habitual e estavam marcados por olheiras escuras provocadas pela fadiga. Tinha a boca inchada e tinha nódoas negras horríveis por baixo das duas orelhas. Apesar de a noite estar abafada, tinha o casaco de malha vestido... teria também marcas nos braços?

Embora fosse uma cozinheira horrível, ofereci-me para fritar umas salsichas para comermos com a salada de couves e batatas que eu adoro. Ela abanou a cabeça e sorriu.Pede ao Klaus que te ensine a cozinhar disse ela. Ele é um génio da culinária e tu tens o temperamento adequado a uma boa cozinheira.Que tipo de temperamento dá bons cozinheiros? perguntei.És eficiente e organizada disse ela encostando a cabeça às costas da cadeira.

Como é evidente, percebi o que se passara. Um dos visitantes do fim-de-semana fora bruto com ela. Não que ela fosse admiti-lo, nem mesmo perante mim. Estava desejosa de lhe dizer que ela corria riscos terríveis ao ir para a cama com homens que mal conhecia, mas algo me impediu de o fazer, deixei as coisas como estavam. Apesar de eu e a Pappy sermos, em muitos aspectos, melhores amigas do que eu e a Merle fôramos uaauuu, interessante, o tempo verbal! tive a estranha sensação de que havia barreiras que seria sensato não tentar derrubar. A Merle e eu éramos mais ou menos iguais, apesar de ela ter tido um par de casos e eu não ter tido nenhum. Já a Pappy é dez anos mais velha do que eu e muitíssimo mais experiente. Não consigo sequer reunir a coragem necessária para fingir que sou sua igual.

Ela lamentou-se por não nos vermos muito agora nem almoços, nem as idas e vindas juntas do Queens. Mas conhece a Chris Hamilton e concorda comigo, ela é uma cabra.Tem cuidado foi o que ela disse.Se o que queres dizer é para não olhar para os homens, já percebi isso respondi. Felizmente estamos extremamente ocupadas, por isso, enquanto ela se atarefa a fazer um chá para um parvalhão qualquer de calças brancas, eu ocupo-me do trabalho. Pisarreei. Tu estás bem?


            Mais ou menos disse ela com um suspiro e depois mudou de assunto. Hum, já conheceste o Harold? perguntou com um ar muito descontraído.

A pergunta surpreendeu-me. O professor que vive por cima de mim? Não.

Mas ela também não aprofundou esse assunto e eu desisti.

Depois de ela sair, fritei um par de salsichas, devorei salada de batata com couve roxa e fui ao andar de cima à procura de companhia. Como começo a trabalhar às dez, não tenho de me levantar cedo e tenho suficiente bom senso para saber que, se me deitar cedo, acordo com as galinhas. A Jim e a Bob tinham visitas, ouvia o ruído das vozes através da porta e uma gargalhada relinchada que não pertencia a nenhuma delas. Mas a escada do Toby estava descida e eu puxei a corda do sino que ele instalara para as visitas e recebi um convite para subir.

Lá estava ele, junto ao cavalete, com três pincéis presos nos dentes, quatro na mão direita e outro na mão esquerda, que estava a ser usado para esfregar uma mancha mínima de tinta numa superfície seca. Parecia nevoeiro ou vapor.És canhoto — disse eu, sentando-me em lona branca.Finalmente deste por isso ganiu ele.

Suponho que aquilo em que ele estava a trabalhar era uma obra excelente, mas não tenho as qualificações necessárias para o avaliar. A mim pareceu-me um monte de escombros a libertar vapor no meio de uma tempestade, mas atraía a atenção: muito dramático, cores maravilhosas. O que é isso? perguntei.

            Um monte de escombros numa trovoada disse ele. Fiquei toda satisfeita! Harriet Purcell, a especialista em arte, ataca de novo! Os montes de escombros fumegam? perguntei.Este fumega. Acabou de pintar o pedacinho de fumo, levou os pincéis para a bacia de esmalte branco e lavou-os cuidadosamente com sabão de eucalipto, depois secou-os e lavou a bacia com detergente. Estavas pendurada? — perguntou ele pondo a chaleira ao lume.Sim, é verdade.


Não podias ler um livro?É o que faço muitas vezes disse eu num tom algo provocador. Oh, ele sabia ser desagradável! , mas agora estou a trabalhar nas Urgências e quando saio do trabalho não estou em condições de ler livros. Mas que filho-damãe malcriado tu és!

Ele virou-se para me sorrir, com as sobrancelhas erguidas que atraente! A maneira como falas é de quem costuma ler livros disse ele dobrando um filtro de papel de laboratório, enfiando-o num funil de vidro de laboratório e metendo lá dentro colheres de café em pó. Estava fascinada pois nunca o vira fazer café. Para variar, o biombo estava desviado para um dos lados: devia estar sujo.

O café era excelente, mas decidi que me manteria fiel à minha nova máquina de café eléctrica. Era mais fácil e eu não sou muito exigente. Como é óbvio, ele é exigente, está-lhe na alma.

            O que é que lês? perguntou ele, sentando-se e passando uma das pernas por cima de um dos braços da cadeira.

Disse-lhe que lia de tudo, desde o E Tudo o Vento Levou, a Lord jim, ao Crime e Castigo, após o que ele disse que limitava as suas próprias leituras aos jornais populares e a livros sobre técnicas de pintura e óleos. Sofria, apercebi-me, de um enorme complexo de inferioridade relativamente ao pouco ensino que tivera, mas era demasiado sensível relativamente a esse assunto para que eu tentasse quaisquer medidas correctivas.

Pensava eu que era tradição os artistas vestirem-se como vagabundos, mas ele vestia-se bem. Concentrara as suas atenções no monte de escombros na tempestade, envergando roupas com as quais o Kingstone Trio2 não teria tido vergonha de actuar: camisola de lã angora de gola redonda com o colarinho impecavelmente engomado por fora, umas calças com o vinco tão afiado como uma lâmina e sapatos de cabedal pretos muito bem engraxados. Não se via nele o mais pequeno vestígio de tinta e, quando se debruçara junto a mim para pousar a minha chávena de café, não sentira nenhum odor senão o de um sabonete caro com cheiro a pinho. Era evidente que

 

Kingstone Trio - Grupo americano de música folk. (N. da T.)

 

 

apertar parafusos na fábrica dava um belo salário. Já o conhecendo um pouco, pensei que os seus parafusos estariam impecavelmente aparafusados, nem demasiado soltos nem demasiado apertados. Quando lho disse, ele riu-se até as lágrimas lhe correrem pela cara, mas não partilhou comigo a razão de tanta hilaridade.Já conheceste o Harold? perguntou mais tarde.Já és a segunda pessoa que me pergunta isso esta noite disse eu. Não e também ainda não conheci o Klaus, mas ninguém me pergunta se já o conheço. Que é que o Harold tem de tão importante?

Ele encolheu os ombros e não se deu ao trabalho de responder. APappy, hem?Ela está com um aspecto horrível.Eu sei. Um filho-da-mãe qualquer entusiasmou-se de mais.Isso acontece com muita frequência?

Ele respondeu que não, não se apercebendo, aparentemente, do meu olhar inquisitivo. O seu rosto e os seus olhos pareciam preocupados, mas não angustiados. Mas que belo actor ele era! E como o devia magoar, ter de suportar aquele tipo de rejeição. Queria confortá-lo mas, ultimamente, a minha língua parecia ter adquirido o hábito de ficar demasiado trapalhona para conseguir falar, por isso não disse nada.

Depois falámos sobre a sua vida no mato, quando andava com o pai, de fazenda em fazenda, onde a erva se estende até ao infinito «como um oceano dourado-prateado, disse ele. Consegui vê-lo apesar de nunca o ter visto. Por que é que será que nós, os Australianos, não conhecemos o nosso próprio país? Porque teremos todos, em vez disso, esta ânsia de ir para Inglaterra? Aqui estou eu numa casa recheada de pessoas extraordinárias e sinto-me um mosquito, uma minhoca. Não sei nada Conseguirei alguma vez crescer o suficiente para os olhar nos olhos como iguais?


 

Quarta-feira, 17 de Fevereiro de 1960

Meu Deus, eu ontem estava com um estado de espírito muito negativo, quando escrevi aquelas linhas! E o Toby, ele tem esse eleito sobre mim. Gostava mesmo de ir para a cama com ele! Que se passa com a Pappy, será que não consegue ver aquilo que tem debaixo do nariz?

 

Sábado, 20 de Fevereiro de 1960

Bem, finalmente consegui fazê-lo. Convidei a família para jantar no meu apartamento novo. Também convidei a Merle, mas ela não veio. Telefonou-me em Janeiro quando eu ainda estava nos Tórax e eu tive de mandar uma estagiária dizer-lhe que não podia ir ao telefone e que não era permitido ao pessoal receber chamadas pessoais. Aparentemente, a Merle levou aquilo a peito, porque desde aí, sempre que eu lhe telefono para casa, a mãe diz que ela não está. O problema é que ela é cabeleireira e essas parece que passam metade do tempo ao telefone a fazer chamadas pessoais. No Ryde, as regras não eram tão rígidas, mas o Queens não é o mesmo tipo de instituição. Paciência.

Queria convidar a Mrs. Delvecchio Schwartz e a Fio para virem também ao jantar, mas a Mrs. Delvecchio Schwartz limitou-se a sorrir e a dizer que iria mais tarde cumprimentar os meus pais.

Não foi um sucesso estrondoso apesar de, à superfície, as águas se terem mantido calmas. Tivemos de nos apertar para cabermos todos à mesa, mas eu tinha ido buscar mais cadeiras ao apartamento da frente, que está novamente vazio. Tinha sido arrendado por duas mulheres e um homem que diziam ser irmãos mas, deixem-me que vos diga, os homens não são nada esquisitos quando se trata de se aliviarem. A mais bonita das duas irmãs fazia a Chris Hamilton parecer a Ava Gardner e ambas cheiravam a um perfume rançoso e a cheirar a suor. O irmão cheirava só a suor. Estavam a fazer imenso negócio até a Mrs. Delvecchio Schwartz telefonar para a Brigada de Costumes e chegar a ramona. Está um porta-aviões americano no porto e, quando abri a porta da frente na noite de quinta-feira, vi marinheiros por todo o lado: sentados nas escadas, encostados às garatujas da Fio no átrio, no átrio da Pappy e a dirigirem-se às dúzias para a casa de banho do andar de cima que, de tanto ser puxado o autoclismo, começou a fazer barulhos esquisitos. A Mrs. Delvecchio Schwartz não achou graça nenhuma àquilo. O irmão e as irmãs foram levados para o chilindró na ramona e os marinheiros despareceram por tudo quanto é canto quando viram os agentes fardados que acompanhavam o Norm e o sargento, um tipo enorme e anafado chamado Merv. O bom velho Norm e o Merv, as estrelas da Brigada de Costumes de Kings Cross!

Tive muita pena de não poder contar esta história à família.

Como ainda não conheço o Klaus, quanto mais ter começado a aprender a cozinhar, fiz batota e encomendei aquelas comidas maravilhosas que há na minha charcutaria preferida. Mas eles não gostaram de nada, nem da salada de macarrão, nem das folhas de videira recheadas, nem do fiambre fatiado. Tinha comprado um bolo fantástico de licor de laranja para a sobremesa; fatias finíssimas de bolo separadas por espessas camadas de creme de manteiga aromatizado. Limitaram-se a depenicar. Oh, paciência. Suponho que bife com batatas fritas, seguido de bolo de passas com natas ou gelado com xarope de chocolate é aquilo com que sonham quando sentem a barriga a dar horas a meio da noite.

Andaram pela casa como gatos num sítio estranho que tivessem decidido detestar. Os manos passaram a cortina de missangas e foram inspeccionar o meu quarto com alguma timidez, mas a mãe e o pai ignoraram-no e a avó estava demasiado obcecada com o facto de ter de fazer chichi de meia em meia hora. A pobre da mãe não parava de ter de a levar lá fora, à lavandaria, porque a minha sanita com os pássaros azuis é demasiado alta para ela se conseguir sentar sozinha. Pedi desculpa pelo estado das loiças da casa de banho e expliquei que quando tivesse tempo as iria pintar com esmalte para bicicletas, para que ficasse tudo com um aspecto absolutamente asseado. Azul-cobalto, branco, e banheira escarlate fui eu tagarelando compulsivamente. Coube-me a maior parte da despesa da conversa.

Quando lhes perguntei se algum deles vira a Merle, a mãe disse--me que ela estava convencida de que eu já não queria ter nada a ver com ela, agora que me tinha mudado. Não acreditava que o Queens não permitisse que o pessoal recebesse telefonemas pessoais. A mãe falou no tom meigo que as mães usam quando crêem que os filhos vão sofrer uma amarga desilusão, mas eu limitei-me a encolher os ombros. Adeus, Merle.

Tinham mais notícias do David do que da Merle, apesar de este não os ter visitado não se atrevera, calculei eu, até ter desaparecido a esplêndida marca do olho que eu lhe pusera negro.Ele tem uma namorada nova comentou a mãe descontraidamente.Espero que seja católica comentei eu descontraidamente.Sim, é. E acaba de fazer dezassete anos.E adequado disse eu com um suspiro de alívio. Acabara-se o David Murchison! Encontrara um novo pedaço de barro feminino para moldar.

Depois de ter tirado o bolo não comido de cima da mesa e de ter feito um bule de chá, a Mrs. Delvecchio Schwartz e a Fio materializaram-se. Meu Deus. A minha família não sabia o que pensar delas! Uma não falava e a gramática da outra não era das melhores e o mais que se podia dizer dos seus vestidos por engomar era que estavam limpos. A Fio, descalça como sempre, trazia o habitual bibe acastanhado enquanto a mãe envergava um vestido malva brilhante com flores cor de laranja.

Depois de ter lançado ao meu alto e atlético pai um olhar inconfundivelmente apreciativo, a minha senhoria sentou-se e mono-polizou-o, para grande aborrecimento da minha mãe. Como pretexto, usou a história das Harriets Purcell e interrogou-o quanto à razão de, não existindo nenhuma na geração dele, ter posto o temido nome à sua única filha. Normalmente indiferente aos avanços femininos, o Dai estava encantado com todas aquelas atenções até fez charme


É verdade que vai a caminho dos oitenta, mas não parece ter mais de sessenta e cinco. Na verdade, pensei ao olhar para eles, até ficavam bem juntos. Quando ela finalmente se levantou para se ir embora, a mãe estava de tal forma furiosa que a pobre da avó, com as pernas e os olhos trocados, já estava também desesperada para ir à casa de banho. Só quando a Mrs. Delvecchio Schwartz desapareceu completamente é que a mãe fez a vontade à avó. Nunca tinha visto a mãe com ciúmes.

            Aquela miúda deu-me arrepios disse o Gavin. É como se Deus tivesse tencionado fazê-la deficiente e depois se tivesse esquecido e lhe tivesse dado inteligência.

Fiquei tão eriçada como a mãe e deitei um olhar furioso ao idiota míope! A Fio é especial! ripostei.

            A mim, pareceu-me subalimentada foi o veredicto da avó quando regressou com a mãe da casa de banho. Mas que mulher enorme é a mãe! Muito ordinária. Que é o comentário mais ofensivo que a avó faz acerca de uma pessoa. Ordinária. A mãe concordou fervorosamente.

Meu Deus! Acompanhei-os à porta às dez horas e fiquei a acenar-lhes enquanto o pai se afastava no seu novo Ford Customline, e desejei que nunca mais regressassem. O que terão dito sobre mim, o meu apartamento, a Casa, a Fio e a Mrs. Delvecchio Schwartz a caminho de casa só posso adivinhar, sei, no entanto, que a opinião do pai sobre a minha senhoria é um bocado diferente da da minha mãe. Aposto que aquela malandra provocou apenas os estragos necessários por forma a que a família Purcell não fizesse da Casa um ponto de paragem habitual sempre que fosse dar uma voltinha.

O que me dá vontade de chorar é que eu estava tão cheia de opiniões e sensações relativamente a tudo o que me acontecera nas últimas quatro semanas e, no entanto, assim que vi as caras deles quando olharam para os rabiscos da Fio no átrio da frente, percebi que não poderia exprimir uma única dessas opiniões. Porque será que isso acontece, se eu continuo a amá-los loucamente? Amo! Amo! Mas é como estar no cais a despedir-me de uma amiga de partida para Inglaterra no velho Himalaya. Ficamos ali a olhar para cima, para as centenas de rostos aglomerados junto à amurada, com a serpentina colorida na mão, e os rebocadores começam a levar o navio, este separa-se do cais e todas as serpentinas, incluindo a nossa, se rasgam e ficam a flutuar na água suja sem qualquer objectivo excepto contribuir para a acumulação de lixo.

De futuro, irei eu a Bronte visitá-los. Sei que já aqui escrevi algures que não mais poderia voltar a Bronte, mas o que eu queria dizer era no interior da minha alma. O meu corpo, todavia, terá de cumprir o seu dever.

 

Domingo, 28 de Fevereiro de 1960

Amanhã poderei pedir em casamento qualquer tipo que me atraia, porque este ano é bissexto: Fevereiro tem vinte e nove dias. Querias!

Hoje conheci o Klaus, que não foi a Bowral passar o fimde-se-mana. É um tipo baixinho e gorducho com cinquenta e tal anos. olhos redondos e grandes de um azul pálido, que me disse que tinha sido soldado no exército alemão durante a Guerra, a trabalhar num escritório de um armazém perto de Bremen. Tinham sido os Britânicos que o tinham internado num campo, na Dinamarca. Tinham--lhe dado a escolher entre a Austrália, o Canadá ou a Escócia. Ele escolhera a Austrália por ser tão longe, trabalhara como escriturário para o Estado durante dois anos e depois voltara a exercer o ofício que aprendera, ourives. Quando lhe perguntei se me ensinava a cozinhar, o seu rosto iluminou-se e disse que teria muito prazer nisso. O Inglês dele é tão bom que o seu sotaque parece quase americano e não tem tatuagens das SS nos sovacos, sei disso porque o vi a pendurar a roupa para secar em camisola interior de alças. Portanto, vai--te lixar, David Murchison, com os teus preconceitos mesquinhos em relação aos novos australianos. Eu e o Klaus marcámos encontro para as nove horas da noite da próxima quarta-feira depois de ele me ter garantido que não era uma hora demasiado tardia para um Europeu. Tinha quase a certeza de que a essa hora já estaria em casa, mesmo que as Urgências estivessem um pavor.

Na noite de sexta-feira, eu parara no departamento de bebidas engarrafadas do bar de Piccadilly e comprara uma garrafa de Joe Dwyer a quem começo a conhecer bastante bem, agora que descobri que o brandy não sabe assim tão mal. Esta tarde subi as escadas e levei a garrafa à senhoria que nos recebeu, à garrafa e a mim, com grande entusiasmo. Ela fascina-me e quero descobrir montes de coisas sobre ela.

Enquanto a Fio pegava em várias dúzias de lápis de cor e desenhava os seus rabiscos sem sentido numa parte da parede recentemente pintada mesmo ao pé da porta, nós sentámo-nos na varanda, a apanhar o ar quente e salgado com os nossos copos de vidro grosso, um prato de enguia fumada, um pão, manteiga e todo o tempo do mundo ou, pelo menos, era isso que parecia. Ela nunca me deu a sensação de que talvez aparecesse mais alguém para a visitar e muito menos me tentou despachar apressadamente. Reparei, no entanto, que mantinha sempre a Fio debaixo de olho e que se sentava num local de onde pudesse vê-la a rabiscar, acenando e emitindo sons sempre que a pequenota se virava para ela com um olhar interrogativo.

Tagarelei sobre a minha virgindade, sobre o David, sobre o beijo molhado e decepcionante do Norm; ela ouviu tudo como se fossem assuntos muito importantes e assegurou-me de que o rompimento do meu hímen estava definitivamente para breve, pois vira isso nas cartas.Outro Rei de Ouros, outro homem de medicina disse, fazendo uma sanduíche com enguia fumada, pão e manteiga. Está ao lado da tua Rainha de Espadas.Rainha de Espadas?Sim, Rainha de Espadas. Com excepção da Bob, somos todos Rainhas de Espadas na Casa, princesa. Fortes! Continuou a falar do Rei de Ouros que aparecia junto a mim. Um navio que passa de noite. O q'é muito bom, princesa. Nã vais apaixonar-te por ele. E péssimo fazê-lo pela primeira vez com alguém por quem achamos que estamos apaixonadas. O seu rosto adquiriu uma expressão que era um misto de malícia, divertimento e presunção. A maior parte dos homens disse em tom descontraído , nã são grande coisa nesse capítulo, sabes. Oh, eles gabam-se muito uns aos outros, mas nã passa disso mesmo, de gabarolice, podes crer. Sabes, os homens são diferentes de nós em muito mais coisas do que terem pilas, ah, ah, ah. Têm de se vir — têm de disparar a velha ferramenta, ou ficam doidos. É isso que atormenta os desgraçados dos filhos-damãe, têm c'o fazer nem q'isso os mate! Suspirou. Sim, nem q'isso os mate! Mas nós não precisamos de nos vir, por isso é assim... nã sei, menos importante. Arfou de exasperação. Não, a palavra não é essa, importante.Compulsivo? sugeri.Em cheio, princesa! Compulsivo. Por isso, se a tua primeira vez for com alguém que tu achas q'é o maior dos bonecos da bola, o mais provável é teres um desapontamento. Arranja um tipo muito experiente que goste tanto de dar prazer às mulheres como gosta de disparar a ferramenta. E ele 'tá ali nas cartas p'ra ti, garanto.

Finalmente arranjei maneira de lhe falar da consternação da minha família, apesar de ela ter contribuído grandemente para essa consternação ela aguenta esse tipo de assaltos directos e do navio e das serpentinas rasgadas.

Enquanto conversávamos, ela acariciava as cartas como se estas fossem suas amigas, virando uma de vez em quando e voltando a juntá-la ao baralho. Achei que o fazia distraidamente. Depois perguntou-me se eu estava no navio ou na margem e eu respondi que estava em terra, decididamente em terra.

            Óptimo, óptimo disse ela satisfeita. Não foste tu quem perdeu o pé, princesa. Isso nunca acontecerá. Tens os pés tã bem assentes com'uma velha árvore-da-borracha. Nem mesmo um machado te conseguirá derrubar. Nã és pessoa p'ra ir ao sabor da maré, q'é o que faz a nossa Pappy. Como um ramo à mercê da corrente. Tu és a portadora de luz para a Casa, Harriet Purcell, a portadora de luz. Tenho estado à tua espera há muito tempo. Engoliu de um trago o resto do brandy e serviu outro. Depois baralhou as cartas como deve ser e começou a virá-las.


Ainda aí estou? perguntei com egoísmo.Tão grande como a vida e duas vezes mais bela, princesa.Alguma vez me vou apaixonar?Sim, sim, mas inda não, por isso aguenta os cavalos. Há homens aos montes, mas... Ah, outro médico! Vês? Ali está ele, o Rei de Ouros que 'tou sempre a ver p'ra ti. Ah, ah, ah.

Espera e tudo será respondido. Não percebera o que ela quisera dizer com o tal Rei de Ouros, mas agora tinha descoberto.

            Este é um tipo mesmo muito fino, de falas muito chiques. Mil títulos junto ao nome. E já não está nos primores da juventude, como se costuma dizer.

O meu coração estremeceu dentro do meu peito quando pensei no Mr. Duncan Forsythe, o ortopedista. Não, não podia ser ele. Um Director de Serviços de alto nível e uma humilde técnica de radiologia? Nem pensar. Mas escutei tão atentamente como a Chris Hamilton escutaria o padre que presidisse ao seu matrimónio.

            Tem uma esposa e dois filhos adolescentes. Montes de dinheiro na família: nã precisava de trabalhar, mas trabalha com'um condenado por q'é o trabalho c'o mantém a funcionar. A mulher é fria como gelo e em casa ele só tem as refeições quentes. Nã costuma andar com uma e com outra, mas está apanhado por ti, o desgraçado.

Isso, dissessem as cartas o que dissessem, era uma falácia. Só vira o Mr. Forsythe uma única vez. A Mrs. Delvecchio Schwartz sorriu-me com ar malandro, mas continuou a dar as cartas.

            Pronto, é tudo o que te diz respeito. Agora vamos dar uma olhadela aos outros. Ah! Também estou a ver um homem para a Pappy! Este também nã está nos primores da juventude e também tem tantos títulos ao pé do nome com'ó teu. Credo! O qu'é isto? Oh, merda!

Parou de cenho franzido e estudou as cartas, tirou mais uma, grunhiu e abanou a cabeça com alguma tristeza, pareceu-me. Mas não disse nada. — O Toby foi apanhado numa rede que não foi ele a tecer disse quando voltou a dar as cartas , mas vai conseguir safar-se daqui a algum tempo. É um bom rapaz, o Toby. Roncou quando viu a carta seguinte, Aqui estou eu, a Rainha de Espadas! Muito bem colocada. Sim, sim, nã paro de as meter outra vez no baralho.

Eu estava a ficar um bocado aborrecida, talvez por ela não me ir explicando o que significava cada uma das cartas ou de que forma se encaixava no panorama geral. Mas, cerca de quatro ou cinco cartas depois da Rainha de Espadas, pousou uma carta com uma figura deitada de bruços com dez espadas cravadas nas costas não se conseguia perceber o seu sexo. Assim que ela viu a carta, deu um salto. Estremeceu e deu um gole no brandy. Foda-se! sibilou. Lá está a merda do Dez de Espadas outra vez e mesmo ao lado do Harold.

Eu estava tão ocupada a desfalecer de prazer que quase não ouvi o que ela disse ela usara a Grande Palavra Para-Dentro-E-Para--Fora sem qualquer sobressalto! Talvez um dia eu arranjasse coragem para fazer o mesmo. Mas como não podia fazer comentários a esse facto, perguntei o que significava o Dez de Espadas.

Quando s'é a Rainha de Espadas, princesa, é a carta da morte. Se fores a rainha de outro naipe qualquer Paus, ou Ouros ou Copas , então o mais provável é significar ruína e não morte. E ao pé do Harold. Sempre ao pé do Harold.

Fiquei com a pele à volta da boca dormente e olhei-a, aterrorizada. Está a ver a sua própria morte? perguntei.

Ela riu e riu, com gargalhadas genuínas e sinceras. Não, não! Nã é nada disso, princesa! Nunca se consegue ver essas coisas com'a nossa morte! No que diz respeito ao vidente, as cartas dizem tanto sobre o futuro como múmias numa tumba. Estou desatinada porque nã sei o q'ué c'o Harold e o Dez de Espadas querem dizer. Não param de sair-me desde a Véspera de Ano Novo.

O Harold estava de cabeça para baixo. O Rei de Paus invertido era a forma como a Mrs. Delvecchio Schwartz o descrevia. Deduzi que quando uma carta era tirada ao contrário, isso queria dizer que teria o significado oposto ao que tinha quando saía direita. Mas por que é que aquele Harold era tão importante? Não tive coragem de perguntar.


A Fio largou os lápis e veio cá fora ter connosco. Quando passou por mim, roçou uma face acetinada pelo meu braço mas, em vez de trepar para o colo da mãe para mamar, agarrou no copo da mãe e bebeu. Fiquei paralisada com o choque.Oh, deixa-a beber disse a Mrs. Delvecchio Schwartz, percebendo o que eu estava a pensar. E domingo e ela sabe o que vem aí.Mas ela pode ficar alcoólica! guinchei.

Aquilo provocou uma enorme convulsão. Quem, a Fio? Ná! disse ela com uma despreocupação deliciosa. Isso nã está nem nas cartas dela nem no horóscopo. O brandy não é só álcool, também faz bem à alma. Riu-se. E também deixa a verga dos homens rija. Se ele beber outras bebidas ou cerveja! , fica tão murcho como uma peúga pendurada a secar.

O que se seguiu foi tão rápido que eu quase nem vi. A Fio contraiu-se e saltou, atirou com o copo meio cheio pelos ares, provocando uma chuva de brandy, e depois fugiu como se atrás dela viessem os diabos do inferno, entrou na sala e enfiou-se debaixo do sofá.

            Ah, merda, vem lá o Harold. A Mrs. Delvecchio Schwartz suspirou, levantando-se para apanhar o copo que não se partira. Ainda abalada pela aflição da Fio, saí atrás dela da varanda para a sala.

E lá entrou ele, delicadamente, parecido com um velho bailarino empenado. Cada um dos passos era bem medido, colhido numa qualquer coreografia. Era um homenzinho macilento e encolhido, com cinquenta e muitos anos, e olhou para nós por cima dos óculos de meias-lentes que tinha encavalitados no nariz fino e pontiagudo. Com malevolência pura. Mas fui eu o único alvo daquele olhar terrível, não foi a Mrs. Delvecchio Schwartz. Não sei muito bem como hei-de descrever algo que nunca vira na vida, nem mesmo nos pacientes dementes com tendências homicidas. Ele deitou-me um olhar de ódio e veneno puros! E, de repente, lembrei-me de que a Mrs. Delvecchio Schwartz dissera que também eu era uma Rainha de Espadas. Passou-me pela cabeça que talvez fosse a minha morte o que ela vira nas cartas. Ou a da Pappy. Ou a da Jim.


Ela pareceu não notar nada de estranho, pois exclamou: Este é o Harold Warner, Harriet. E o homem que vive comigo.

Eu disse qualquer coisa educada e ele respondeu com um aceno de cabeça gélido, depois virou-se como se não suportasse ver-me nem mais um segundo. Não fora a minha saudável estatura de um metro e setenta, e ter-me-ia juntado à Fio debaixo do sofá. Pobrezinha! Era óbvio que o Harold tinha sobre ela o mesmo efeito que sobre mim.

E o homem que vive comigo. Era então por isso que toda a gente queria saber se eu já conhecera o Harold!

Saíram os dois da sala, com ele na frente e ela atrás, como um cão de guarda a encaminhar uma ovelha tresmalhada. Presumivelmente, terão ido para o quarto. Ou talvez para os aposentos do Harold, mesmo por cima da minha sala. Quando percebi que não iriam regressar, deitei-me no chão, levantei a coberta esfarrapada do sofá e fiquei a olhar para os olhos enormes que brilhavam no escuro como reflectores numa estrada escura. Foi preciso algum tempo para convencer a Fio a sair de debaixo do sofá, mas acabou por gatinhar pelo chão como um caranguejo até ficar pendurada, com os braços à volta do meu pescoço. Apoiei-a na anca e olhei para ela.

Ora bem, meu anjo disse afagando-lhe o cabelo despenteado , e que tal irmos até ao meu apartamento para arrumar os teus lápis de cor?

Juntas apanhámos os lápis de cor do chão deviam ser mais de cem e não eram lápis de cor baratos, para crianças, eram lápis alemães de qualidade e de todas as cores imagináveis. A Fio poderia ter um belo vestido diferente para cada dia da semana, pelo dinheiro que a mãe gastara naqueles lápis.

Esta tarde fiquei a saber imensas coisas acerca da Fio. Não fala, pelo menos quando eu estou presente, mas a sua mente é penetrante, atenta e inteligente. Fizemos tabuleiros de cartão e depois pedi-lhe que reunisse todos os lápis verdes. O que ela fez. Depois pedi-lhe que os dispusesse em gradações de cor num dos tabuleiros e fiquei a vê-la tentar decidir se um amarelo-esverdeado deveria ser posto junto dos lápis verdes. Separámos os vermelhos, os cor-de-rosa, os amarelos, os castanhos, os cinzentos, os roxos e os cor de laranja e ela nunca se enganou. Não era difícil perceber que ela se estava a divertir imenso, pois passado pouco tempo começou a cantarolar com a boca fechada, uma bela melodia não modulada por lábios ou língua. E não tentou escrevinhar nas minhas paredes uma única vez, apesar de eu ter receado que ela o fizesse. Puxámos duas cadeiras e comemos salada de couve roxa e fiambre e bebemos limonada e depois deitámo-nos as duas na minha cama para fazer uma sesta. Quando eu me mexia, ela agarrava-se a uma das minhas pernas e mexia-se comigo. Nunca me tinha sentido tão feliz como esta tarde, com a Fio, sentindo o seu mundo. Enquanto a mãe, aquela espantosa massa de contradições, dava cambalhotas no andar de cima com um homem muito doente. O que faria a Fio nas outras tarde de domingo? Pois aquelas escapadelas com o Harold eram um evento semanal; a Mrs. Delvecchio Schwartz dera-o a entender. O Dez de Espadas e a Rainha na mesma mão, a morte.

Devolvi a Fio quando ouvi a mãe aos gritos pelo seu anjo. A criancinha trotou alegremente com a mão na minha e saudou a mãe sem qualquer vestígio de ressentimento por ter sido abandonada durante duas horas. Deixei-as com as ideias num turbilhão e o coração dorido. Quando fechei a porta do apartamento delas, olhei de relance para o átrio escuro que dava para as traseiras, sentindo um medo horrível. E ali estava Harold, no escuro, não revelando a sua presença. Imaginei que ele conseguira fundir-se na parede, coberto de rabiscos na metade inferior e com a metade superior de cor creme. Os nossos olhos encontraram-se e fiquei com a boca completamente seca. O ódio! Era palpável. Desci as escadas o mais rapidamente que consegui, apesar de ele ter reconhecido a minha presença unicamente com o olhar.

E agora, apesar de já serem mais do que horas de estar na cama, estou aqui sentada à mesa com pele de galinha. Que mal fiz eu àquele homenzinho horrível para provocar um tal ódio? E quem é a Rainha de Espadas relevante? A Mrs. Delvecchio Schwartz, a Pappy, a Jim, ou eu?


 

Quarta-feira, 2 de Março de 1960

A maior vantagem de se usar um caderno normal para escrever o diário é que não há folhas em branco a repreenderem-nos quando não escrevemos, fielmente, todos os dias. Basta-me escrever a data e continuar imediatamente após o último registo, mesmo que este tenha sido feito quinze dias antes. Já vou no segundo caderno grosso. Apesar de a minha porta ter fechadura, eu própria consigo abri--la quando me esqueço da chave, portanto qualquer pessoa com um mínimo de iniciativa poderá fazer o mesmo. Por isso, decidi esconder o() caderno() já acabado() por trás do armário onde guardo o queijo tilsiter. A minha teoria é que ninguém, nem mesmo o Harold, conseguiria reunir a coragem necessária para enfiar a cabeça no interior daquele armário para procurar fosse o que fosse. O fedor é inacreditável. Consigo confinar o mau cheiro ao interior do armário vedando a porta com plasticina e na porta pus um aviso com o sinal de radioactividade e uma caveira com tíbias cruzadas por cima das palavras: cuidado com o queijo! O que satisfaz dois objectivos. Primeiro, retirar a plasticina é um trabalho demorado, pelo que só como tilsiter uma vez por semana quando começo a comê-lo não consigo parar. Segundo, os meus cadernos já cheios estarão seguros. Certifico-me de que assim é colando um cabelo à plasticina, um truque que aprendi num filme de detectives. O caderno em uso vai para todo o lado comigo, seja para o Queens, seja para as compras. O cuidado nunca é de mais, quando se trata de segredos.

Hoje aconteceu uma coisa estranha no trabalho. Houve uma afluência enorme nas Urgências: um avião de setenta lugares despenhou-se na pista de Mascot e metade das vítimas foi para o St. George e a outra metade veio para o Queens: os mortos e os sobreviventes. Detesto queimados. Toda a gente detesta. Seis dos passageiros e os dois pilotos foram directamente das Emergências para a morgue, mas dois dos passageiros continuavam vivos quando me vim embora. Oh, o fedor! Parecia carne assada queimada e é um cheiro impossível de eliminar, o que significa que os outros doentes das Urgências ficaram inquietos e com medo, as enfermeiras assustadas como é raro acontecer, e as freiras não conseguiam estar em todo o lado ao mesmo tempo.

A Chris estava fora numa reunião convocada pela Enfermeira Agatha e a estagiária estava a arrumar a câmara escura enquanto eu remendava sacos de areia para variar, não estávamos afogadas em trabalho. E foi quando o Mr. Duncan Forsyth entrou pela porta dentro! Eu estava sentada na nossa única secretária na sala de espera de doentes, a brincar com a minha agulha, e não levantei imediatamente os olhos. Quando o fiz, fiquei de boca aberta. Que belo sorriso ele me dirigia! E mesmo um homem muito bonito. Consegui fazer um sorriso bem-educado e pôr-me de pé com as mãos atrás das costas, como uma subordinada obediente na presença de Deus. O queixo e a barriga para dentro e os pés alinhados. Depois de um par de anos a trabalhar num hospital, torna-se espontâneo.

Ele só queria um telefone os das Urgências estavam a rebentar por causa do acidente de avião, explicou. Mostrei-lhe onde estava o nosso e ali fiquei, ainda em sentido, enquanto ele dizia ao telefonista para enviar uma mensagem à sua equipa de subordinados para irem ter com ele ao Chichester Four. Depois de ter desligado o telefone, fiquei à espera que se fosse embora, mas ele não foi. Sentou--se num canto da secretária a abanar uma perna e a olhar para mim. Depois perguntou-me o nome e, quando lho disse, repetiu-o.Harriet Purcell. Tem um toque simpático e antiquado.Sim, senhor disse eu direitinha que nem um fuso.

Os olhos verdes são misteriosos. Nas novelas românticas são sempre da cor das esmeraldas, mas, de acordo com a minha experiência, são mais de um verde pantanoso, mutável. Os meus olhos são pretos, é difícil distinguir a pupila da íris, razão pela qual suponho ter gostado tanto dos olhos dele: diferentes dos meus, mas não o oposto. Ele continuou sentado a olhar para mim, a sorrir calmamente, durante o tempo suficiente para eu sentir a cara a ficar quente, e depois deslizou de cima da secretária e saiu calmamente pela porta, com aquela maravilhosa descontracção dos cirurgiões, como se fossem impelidos de um sítio para outro por forças externas.

            Adeus, Harriet disse enquanto saía.


Pff! Ele deve ter mais de um metro e noventa, pois tenho de olhar lá para cima. Oh, que homem lindo! Mas a Mrs. Delvecchio Schwartz não vai condicionar-me com aquelas malvadas cartas!

E esta noite tive a minha primeira lição de culinária. O Klaus já tinha os ingredientes todos preparados quando lhe bati à porta, pouco depois das oito; ouvi o som do seu violino e percebi imediatamente que ele não se importaria de eu chegar cedo. Ele toca como um virtuoso, música clássica cheia de melancolia. Eu não percebo muito de música clássica, mas se aquilo que o Klaus toca serve de exemplo, então comprarei todos os discos que ele me sugerir. Arruma completamente com o Billy Vaughan.

Fizemos Bifes Strogonoff com spaetzle (pedi ao Klaus que soletrasse a palavra... ainda bem que o fiz, pois não vem no dicionário) e acho que morri e fui parar ao paraíso. Ele mostrou-me como se cortam os bifes muito fininhos, como fatiar os cogumelos e as cebolas, e deu-me uma palestra sobre a necessidade de manter as facas afiadas usando um afiador de aço. O spaetzle é feito da mesma maneira dos bolinhos cozidos da avó, só que ele passa a massa por um passador antes de a deitar em água e sal a ferver, e corta a massa em pedacinhos regulares, por forma a que esta pareça um macarrão curto e grosso.

Frite a carne ligeira e rapidamente e ponha-a no tacho, aloure as cebolas e ponha-as no tacho, frite os cogumelos até que fiquem macios e junte-os ao tacho. Aqueça a frigideira até o molho ficar castanho e depois junte um pouco de conhaque.

Quando deitou o conhaque (ele desdenha do velho e bom brandy vulgar), este assobiou e fez bolhas e evaporou-se. Junte natas frescas na frigideira antes de começar a fazer o molho, Harriet. Se não o fizer, o molho vai coalhar quando se aproximar do ponto de cozedura. Eu, por mim, prefiro a minha comida muito quente, portanto uso as natas frescas para impedir o molho de coalhar. Separe o molho e use uma batedeira para o mexer enquanto vai aquecendo desfaz os grumos todos. Deite então o molho para o tacho, misture bem e voilà Bifes Strogonoff.

A refeição toda levou menos de meia hora a preparar e nunca comi nada tão bom. Não junte massa de tomate nem picles admoestou-me ele como se eu estivesse prestes a sair a correr para ir praticar imediatamente tais crimes. A maneira como eu faço o Strogonoff é a correcta e a única. Pensou por instantes e depois disse: Com excepção do conhaque, mas isso é desculpável. Mantenha os sabores simples e certifique-se de que aquilo que usa nos molhos não se sobrepõe aos ingredientes principais. Quando se têm bons bifes, cogumelos e cebolas, quem precisa de disfarçar os sabores?

Fim da lição. Para a próxima semana vamos fazer Galinha com Paprica paprica doce da Hungria! Tivemos uma pequena discussão sobre quem financiaria os ingredientes: ele insistia em ser ele e eu não lho permiti. No fim, concordámos em dividir os custos.

No próximo sábado vou à procura de facas, um afiador e uma batedeira. E nem posso esperar por dizer à mãe como é que se faz molho de carne sem grumos! Mistura-se com uma batedeira.

 

Sexta-feira, 11 de Março de 1960

Recuso-me a acreditar naquelas cartas!

Hoje foi dia de ferimentos na cabeça. Não sei por que é que as coisas acontecem assim em levadas, mas acontecem. Nuns dias tendemos a receber mais de um certo tipo de pacientes do que noutro. E hoje foram cabeças, cabeças, cabeças.

A Chris ainda lá estava quando o Demetrios, o contínuo novo australiano das Urgências, entrou pela porta a empurrar uma maca com o enésimo ferimento na cabeça. O Demetrios é grego e organizou um serviço de traduções para conseguirmos lidar com as diferentes nacionalidades dos novos australianos que actualmente recebemos aos montes. Gosto muito dos novos australianos. E acho que são uma vantagem para o país: menos bifes com batatas fritas e mais Bife Strogonoff. Mas a minha família detesta-os e a Miss Christine Hamilton também. O que é uma pena, pois o Demetrios acha que a Chris não é nada má. Ele é solteiro, bastante alto e nada mal-parecido de uma forma um tanto estrangeira e já me disse que o emprego de contínuo era uma coisa temporária. A noite anda na Escola Técnica, a aprender mecânica de automóveis, porque um dia quer ter a sua própria oficina. Tal como todos os novos australianos, trabalha muito e poupa cada tostão. Acho que é por isso que a maior parte dos velhos australianos detesta os novos australianos. Os novos australianos encaram o emprego como um privilégio e não como um direito. Sentem-se felizes por estar num sítio onde as suas barrigas estão cheias e as contas bancárias têm algo que se veja.

Seja como for, depois de ter lançado um olhar lânguido à Chris e de ter recebido um olhar de poucos amigos em resposta, o Demetrios foi-se embora e deixou-nos com o paciente. O dito paciente, a cair de bêbado, tresandava a cerveja rançosa, não parava quieto e recusava-se a cooperar. Depois, quando me debrucei para lhe enfiar um saco de areia de cada lado do pescoço, vomitou-me toda de cerveja. Oh, que porcaria! Tive de deixar a Chris a praguejar e a estagiária a lavar o chão enquanto ia aos vestiários do pessoal feminino das Urgências, tirava a farda, os sapatos, as meias, o cinto de ligas, o sutiã, as cuecas, tudo. Tinha outra farda no meu cacifo mas não tinha roupa interior nem outro par de sapatos e tive de lavar tudo no lavatório, torcer o mais possível e voltar a vestir a roupa interior, até mesmo as meias. E absolutamente proibido andar de pernas nuas. Os meus muito amados e velhos sapatos nunca mais serão os mesmos, uma tragédia. Mimaram-me os pés durante três anos e agora vou ter de comprar uns sapatos novos e fazê-los aos pés... o que é um inferno quando se passa o dia de pé. E os sapatos não podem ser torcidos e tive de os calçar encharcados e chapinhar de regresso à Radiologia das Urgências, deixando o caminho cheio de pegadas molhadas. A Enfermeira-Chefe estava a fazer as rondas e olhou-me de alto a baixo.Miss Purcell, está a deixar o chão molhado, o que é muitíssimo perigoso para as outras pessoas disse num tom gelado.Sim, Senhora Enfermeira-Chefe. Eu sei, Senhora Enfermeira-Chefe. Peço desculpa, Senhora Enfermeira-Chefe respondi, e entrei disparada pela nossa porta. Não vale a pena tentarmos jus-tificar-nos perante a Enfermeira-Chefe ou a Enfermeira Agatha, o melhor é fugirmos o mais rapidamente possível. Mas ela é mesmo espantosa! Só me viu uma vez, mas sabe quem eu sou e lembra-se do meu nome.

E o dia continuou assim um daqueles dias. Mas às quatro horas mandei embora a estagiária e continuei a batalhar sozinha e já passava muito das oito quando levei a roupa suja para a rampa da Urgência e fui à procura de alguém a quem pudesse pedir que o pessoal da limpeza dedicasse uma atenção especial ao nosso pavimento. Depois de ter entregue os formulários e ter preparado as cassetes para o dia seguinte, fiquei livre.

Quando saí, descobri que se formara uma daquelas tempestades típicas do mês de Março que estava prestes a rebentar. Eu, evidentemente, tinha o meu guarda-chuva, mas uma olhadela para cima e para baixo pela South Dowling Street foi o suficiente para perceber que os táxis tinham decidido desaparecer todos da rua antes de desabar o dilúvio. Só tinha duas alternativas: ou ia a pé para casa ou dormia num sofá de plástico nas Urgências, e não me parecia que a Enfermeira-Chefe aprovasse tal coisa.

Vi alguém a sair pela porta dos peões da Urgência ao mesmo tempo que soprava uma forte rajada de vento que enviou pelos ares folhas, pedaços de papel e latas. Não me dei ao trabalho de olhar para ver quem era até a pessoa estar tão perto de mim que depreendi ser alguém conhecido. Era o Mr. Forsythe, nada menos! Dirigiu--me um dos seus sorrisos estonteantes e apontou a ponta do seu enorme guarda-chuva com cabo de ébano para o parque de estacionamento dos Directores de Serviço. Os Rolls e os Bentleys já tinham desaparecido todos e só lá estavam um Mercedes de 1930 e um aerodinâmico Jaguar preto. Era o carro dele, apostei eu silenciosamente comigo própria.

            Não tarda nada vai estar a chover a potes, Harriet — disse ele. Deixe-me levá-la a casa.

Atrevi-me a retribuir-lhe um sorriso como deve ser, mas abanei a cabeça enfaticamente. Obrigada, senhor doutor, mas eu cá me arranjo.

            Não me dá trabalho nenhum, a sério insistiu ele, e depois exclamou triunfalmente quando os céus se abriram e a chuva desabou.


É impossível ficar à espera do autocarro debaixo desta chuva, Harriet, e não se vê um táxi em sítio nenhum. Deixe-me levá-la a casa.

Mas eu não ia ceder. Os hospitais são terríveis ninhos de bisbilhotices e nós estávamos num local público, com pessoas a passarem por nós constantemente. Obrigada, senhor doutor disse eu com firmeza , mas estou a tresandar a vomitado. Prefiro ir a pé.

Tinha o queixo erguido e os cantos da boca para baixo. Ele olhou-me nos olhos por um instante, encolheu os ombros e abriu o guarda-chuva que tinha, em volta do cabo, uma anilha de prata com uma qualquer mensagem de Geoffrey e Mark gravada. E lá foi ele a correr para o Jaguar. Boa aposta, Harriet! Um Mercedes de 1930 era o tipo de carro preferido de psiquiatras ou patologistas. Os Ortopedistas eram conservadores. Quando o Jaguar preto passou a chiar por mim, consegui ver a cara dele por trás dos vidros embaciados e uma mão a acenar. Não retribuí. Esperei mais um bocado e depois abri o guarda-chuva e iniciei a penosa caminhada de cinco quilómetros até casa. Foi melhor assim. Muito melhor.

 

Segunda-feira, 28 de Março de 1960

Devido ao trabalho nas Urgências e aos cozinhados, há muito tempo que não tenho energia para escrever no meu caderno. Mas hoje aconteceu uma coisa que não me sai da cabeça e, se a escrever, conseguirei banir os fantasmas e dormir um sono mais do que necessário.

A Jim chamou-me para uma reunião de emergência lá em cima, no apartamento dela, que é uma estranha mistura de folhinhos da Bob e da natureza mais rude da Jim. Sei há séculos que a mota Har-ley Davidson acorrentada à nossa vulgaríssima árvore na Victoria Street pertence à Jim, não foi portanto uma surpresa ver cartazes da Harley Davidson colados nas paredes. Elas andam sempre atrás de mim para ir às reuniões delas, que acontecem regularmente, mas até hoje tenho resistido: por pura cobardia, admito. Simplesmente não achava que me apetecesse misturar-me muito com um grupo de mulheres que, na sua maioria, parecem ter nomes de homem: Frankie, Billie, Joe, Robbo, Ron, Bert e por aí fora. Eu gosto da Jim e da Bob porque fazem parte da Casa e a Mrs. Delvecchio Schwartz avisou--me, severamente, de que as fufas tinham um rabo difícil de esfolar (as metáforas dela são sempre maravilhosas, mas nunca sei quando se está a meter comigo, a malvada horrorosa). Quando a Jim me implorou que fosse esta noite, percebi que estava a ser avaliada e fui.

Para minha grande surpresa, o Toby estava presente. E o Klaus também. No entanto, a Mrs. Delvecchio Schwartz não estava. Estavam lá seis mulheres que eu não conhecia. Uma, que me foi apresentada como sendo a Joe, é advogada, na verdade é uma advogada de topo. O que é espantoso, chegar ao topo da pirâmide da advocacia e vestir saias. Isto é, um fato de saia e casaco. Pára, Harriet! Não é altura para divagações. Acho que faço estes comentários a despropósito porque estou a adiar pôr no papel o assunto da reunião.

As personagens do drama não estavam presentes: Frankie e Olívia. Percebi que a Frankie é uma espécie de ídolo lésbico, muito dinâmica e atraente e também muito masculina. Tinha começado a andar recentemente com a Olivia, de dezanove anos e de uma família podre de rica. Quando o pai de Olivia descobriu as inclinações sexuais da filha, não se limitou a ficar de cabelos em pé, decidiu dar--lhe uma lição. Puxou uns cordelinhos e fez com que a Frankie e a Olivia fossem apanhadas quando andavam a passear o cão e levadas para as celas de uma esquadra qualquer nos subúrbios mais afastados de Sydney. Onde foram violadas ininterruptamente por uma dúzia de Rapazes de Farda Azul durante a noite passada e depois, de madrugada, tinham sido despejadas na estrada junto à estação de Milson's Pointe, juntamente com o cão morto. Ambas estão internadas no Mater Hospital gravemente feridas.

Fiquei ali sentada a sentir-me mal e a pensar que ia ter de pedir desculpa e sair para vomitar o jantar, mas o orgulho manteve-me o estômago sob controlo e aguentei-me. Depois de ter dado uma olhadela


à minha cara, o Toby veio do ponto mais distante da sala e sentou-se no chão ao pé de mim, estendendo a mão para agarrar a minha. Agarrei-me a ela como se a minha vida dependesse disso. Joe, a advogada, estava a falar de intentar uma acção, mas a Robbo disse que a Frankie se recusava a testemunhar e que a pobrezinha da Olivia ia ser transferida para o departamento de urgências psiquiátricas, em Rozelle, assim que estivesse suficientemente bem em termos físicos para ter alta do Mater.

Depois de a raiva e a confusão terem acalmado, começaram a falar de como era ser-se fufa, provavelmente por eu estar presente. A Robbo disse que em tempos fora casada e tivera dois filhos mas que o marido pedira o divórcio invocando adultério com outra mulher e, consequentemente, ela fora proibida de ver os filhos até conseguir provar que não é uma «influência corruptora. Duas delas tinham sido violadas repetidamente pelos pais quando eram pequenas, a mãe de outra tinha-a «vendido a um velho rico cujas preferências consistiam em ter sexo anal com meninas pequenas. Todas elas tinham cicatrizes, fossem elas físicas ou psíquicas. Os casos da Jim e da Bob eram leves, quando comparados com as restantes. Tudo o que a Jim sofrera fora uma expulsão de casa dos pais por gostar de vestir roupa de homem. Os pais da Bob, que vivem no mato, não fazem ideia de que a Jim é uma mulher.

Depois da reunião, o Toby levou-me para o sótão e deu-me café pingado com brandy enquanto eu tremia como um soldado velho com um ataque de paludismo.Não sabia que era crime ser-se lésbica disse eu depois de o líquido quente me ter acalmado o estômago e o coração sobressaltado. Sabia que era crime um homem ser homossexual, mas alguém me disse que a Rainha Victoria, ao ser-lhe submetida e lei para sua aprovação, tinha eliminado todas as cláusulas referentes às mulheres por se recusar a acreditar que as mulheres pudessem ser homossexuais. Mas se a Frankie e a Olivia foram presas, então deve ser crime.Não, tens razão disse ele enchendo-me novamente a caneca. Não é crime ser-se fufa.


A Casa dos Anjos 93Então como é que foi possível aquilo acontecer? perguntei.Por baixo dos panos, Harriet. Em segredo. Não encontrarás os nomes da Frankie e da Olivia no registo da esquadra. Um qualquer manda-chuva da polícia fez o favor ao pai da Olivia. Suponho que a ideia era demonstrar à Olivia aquilo de que um homem é capaz, mas as coisas descontrolaram-se. Provavelmente depois de a Frankie se ter atirado aos violadores. Ela não é do tipo de comer e calar, nem mesmo numa situação daquelas.

Ele é tão frio, o Toby. Suponho que todos os bons artistas o são, observam o mundo à procura de temas.

Eu não sou completamente ignorante no que respeita ao lado mais repelente da vida. Ninguém que tenha trabalhado mais de três anos num hospital é. Mas nunca se ouve mesmo a história toda, especialmente em especialidades como a radiologia, onde os pacientes vêm fazer os seus exames e depois vão para outro sítio qualquer e nós raramente temos tempo para ouvir as suas histórias. Quando nos encontramos para almoçar ou numa festa, ou temos algum tempo para conversar umas com as outras, o assunto da discussão é sempre o tema mais escaldante da bisbilhotice do momento a correr no hospital. O horror está em ver aquilo que entra, aquilo que foi provocado por um outro ser humano. Não, não sou ignorante. Mas sempre estive protegida. Até me ter mudado para o Cross e para a Casa.

Esta noite foi de um esclarecimento estonteante. Nunca mais vou ver as pessoas da mesma maneira. Em público são uma coisa, das portas para dentro são outra. E o Dorian Gray por toda a parte. Não faço a mínima ideia de quem é o pai da Olivia, mas esta noite amadureci o suficiente para perceber que ele está em paz consigo próprio e que deita todas as culpas para cima da Frankie e da filha. E não suporto pensar naqueles que atacam crianças pequenas! E um mundo terrível.


 

Sexta-feira, 1 de Abril de 1960 (Dia das Mentiras)

Hoje cheguei a casa bastante cedo e, para variar, a Pappy não tinha compromissos. Não sei onde ela estava na segunda-feira à noite quando a Jim e a Bob fizeram a reunião desde que estou na radiologia da Urgência quase nunca a vejo. O Toby ofereceu-se para nos levar a jantar ao Lorenzini's, um bar que fica ao fundo da Eli-zabeth Street, na Baixa.

            Hoje recebi duas notícias no trabalho disse o Toby quando íamos a descer as Escadas na direcção de Woolloo mooloo, que é o caminho mais curto para o LorenzinFs. Uma boa e outra má.

Como a Pappy não disse nada, perguntei: Qual foi a boa?Deram-me um belo aumento de ordenado.Então qual foi a má notícia?Os contabilistas da empresa sentaram-se a fazer contas disse ele, fazendo uma careta. O resultado é que a partir do início do próximo ano vou ficar sem emprego juntamente com quase toda a gente. Entre aumentos de ordenados, greves, encarregados a ordenar a diminuição do ritmo de trabalho e investidores que querem obter grandes lucros, a empresa decidiu substituir homens por robôs. Os robôs conseguem apertar parafusos e montar peças vinte e quatro horas por dia sem precisar de pausas para as refeições ou para ir à retrete.Mas os robôs custam uma fortuna — objectei.É verdade, mas os contabilistas concluíram que muito rapidamente serão amortizados e, depois disso, sem pessoal humano, vai ser só ganho para os investidores.Isso é terrível! arfou a Pappy. Ela era sempre muito militante em relação aos crimes contra os trabalhadores. É uma desgraça!É assim que o mundo funciona, Pappy, já devias saber disso disse-lhe o Toby em tom de sermão. Ambas as partes têm alguma razão. Os patrões tentam explorar-nos e nós tentamos explorar os patrões. Se queres culpar alguém, culpa os tipos que inventaram os robôs.

            E culpo! ripostou ela. A ciência é que está errada!

Dei o meu contributo dizendo que, na minha opinião, o que estava mesmo errado eram os seres humanos, que conseguem dar sempre cabo de tudo.

No Lorenzini's há sempre mais rapazes do que mulheres disponíveis e ficámos rapidamente sem a Pappy que, de qualquer maneira, já deve ter dormido com todos os empregados do sexo masculino. O Toby arranjou uma mesinha com duas cadeiras ao fundo da sala e ficámos sentados num silêncio agradável a observar as voltas e reviravoltas das pessoas a saltar de mesa em mesa. Pobre Toby! Deve ser assustador estar apaixonado por uma pessoa como a Pappy.

Não estávamos ali há muito tempo quando a porta se abriu e entraram aí umas doze pessoas, quase todas elas raparigas novas. A Pappy veio a voar na nossa direcção, com os olhos muito abertos.

            Harriet! Toby! Viram quem entrou mesmo agora? Aquele é o Professor Ezra Mar... mumble... mumble, o filósofo mundial mente famoso!

Tentei que ela repetisse o nome que, sem dúvida, era um nome peculiar, mas ela já se tinha ido juntar ao grupo que se juntara à volta do Professor Ezra Mar... supial? Sim, Marsupial soava bem. Era um bocado entradote para o Lorenzini's, pensei quando o grupo se afastou e o Professor emergiu como o sol de trás das nuvens.

O homem não vai ganhar nenhum prémio de Mr. América, isso é certo. É um homenzinho pequenino, magricela e franzino, com o cabelo demasiado comprido e penteado para um dos lados para esconder a careca e estava vestido com o mesmo tipo de roupas usado pelos autores importantes de ensaios nas fotos que vêm no interior da capa: casaco de tweed com cotoveleiras de cabedal, camisola de lã, calças de bombazina e cachimbo na mão. Como a noite estava quente e húmida, ele devia sentir-se a assar no forno.

Nunca consigo perceber como a Pappy o faz. O Professor estava soterrado em estudantes do sexo feminino, todas mais novas dez anos do que a Pappy, no mínimo, e algumas delas tão bonitas como


estrelas de cinema. E no entanto, dois minutos depois, a Pappy já conseguira correr com as outras raparigas e estava sentada ao seu lado direito, com a cara virada para ele com uma expressão de adoração, com algumas madeixas do cabelo espesso, brilhante e preto espalhadas por cima da mão dele. Talvez seja por causa do cabelo. Ela é a única mulher que conheço com o cabelo comprido e dizem que os homens adoram cabelo comprido.

Funguei. Aquele disse eu ao Toby indicando o Professor com a mão , é o Valete de Copas invertido.

O Toby ficou a olhar para mim com ar de espanto. Andas a ter lições com a velhota?

Disse-lhe que não, mas que o vira nas cartas deitadas à Pappy.

            E a velhota é uma malandra, para além do mais, a querer con- vencer-me de que o Valete de Copas invertido era mesmo o que a Pappy estava a precisar. Eu sei que a carta tirada do baralho identifica apenas a pessoa, são as outras cartas que definem a personagem e mostram como esta se relaciona com os outros, mas a Mrs. Del- vecchio Schwartz mentiu-me. Ela via, de forma clarinha como água, o tipo de pessoa que é este novo namorado da Pappy e viu mais qual quer coisa que a perturbou imenso. Mas não me disse uma única palavra sobre esse assunto. Não me lembro que cartas se seguiram ao Valete de Copas, mas fui à livraria comprar um livro sobre Tarot e fui ver o que ele significava, ainda que não conseguisse ter o quadro completo.Pensei que os valetes fossem homens novos. Este tem cinquenta e tal anos.Não necessariamente disse eu, exibindo os meus conhecimentos recentemente adquiridos. Eles, para além de valetes, também podem ser chamados velhacos.

Ele recostou-se e olhou-me por entre as pálpebras semicerradas.

—        Sabes, princesa, às vezes pareces-te horrivelmente com a nossa senhoria.

Achei que aquilo era um cumprimento.

Quando a Pappy e o Professor se levantaram ao mesmo tempo e saíram juntos, deixando as estudantes com ar de quem ia suicidar-se, eu e o Toby decidimos ir também para casa. Não saímos muito depois deles mas, quando emergimos na Elizabeth Street, não havia sinais dos dois. Não queria que o Toby fosse comigo até ao meu apartamento para o caso de a Pappy e o Professor estarem no quarto dela, mas ele insistiu em acompanhar-me.

Oh, óptimo! Não se via luz por baixo da porta da Pappy nem ruídos de satisfação carnal. Talvez o Professor tivesse um covil próprio, atendendo às suas preferências por jovens e belas mulheres.

Eu e o Toby bebemos café e conversámos sobre os bordéis de ambos os lados do 17c. Ele dera alcunhas a todas as prostitutas Castidade, Paciência, Prudência, Temperança, Honra, Constança, Verdade, Pomba e baptizara a proprietária do 17d como Madame Fuga e a proprietária do 17b como Madame Toccata. Na verdade, dadas as circunstâncias de o amor da sua vida estar provavelmente na cama com um velho tolo, careca e comprometido, o Toby estava em excelente forma e fez-me chorar a rir. Desaprovou o cor-de-rosa por todo o lado e catalogou as minhas cortinas de missangas como um desejo subconsciente de estar fechada num harém, mas eu diverti-me.Estou espantado por não me teres dado uma sova como deste ao David disse ele, e olhou-me atentamente. Não me dou bem com mulheres.A não ser que sejam fufas.As fufas não avaliam um tipo de acordo com os parâmetros do casamento. Não, acho que não me dou bem com mulheres porque digo o que penso. Suspirou e espreguiçou-se e deixou os olhos vaguearem pelo meu corpo. Um dia vais ser uma velhota adorável e magricela e continuo a achar que tens uns seios magníficos.

Era altura de mudar de assunto. O que achas do Harold? O Toby arreganhou o lábio. Nada. Porquê?Ele odeia-me.Isso é um bocado forte, Harriet.É verdade! insisti. Já o encontrei umas quantas vezes e ele mete-me um medo de morte. O ódio que sente por mim transparece no olhar! E o que é pior, é que não consigo perceber que mal é que lhe fiz.


            Arranjaste maneira de conseguir o afecto da Mrs. Delvecchio Schwartz, suponho disse ele, levantando-se. Mas não te preocupes com ele... já está de partida. A velhota está farta dos seus esquemas.

Acompanhei-o à porta e ele parou na soleira.

            Não te importas de sair para a rua? perguntou.

Fiz o que me pedia. Ele ficou um pouco mais alto do que eu.

            Assim está melhor. Preciso de toda a altura que conseguir arranjar. As mãos dele agarraram-me os ombros firme mas delicadamente. Boa noite, princesa disse ele, e beijou-me.

Pensei que, depois da noite traumática que tivera, ele estivesse à procura de uma consolação simpática. Mas não foi nada disso. Passou as mãos por baixo dos meus braços e pousou-as nas minhas costas, puxou-me para si e beijou-me como deve ser. Os meus olhos abriram-se com o choque quando um assomo de uma qualquer sensação altamente emocional alastrou pelos meus maxilares até chegar aos meus lábios. Depois fechei os olhos e deixei-me ir na onda. Oh, foi maravilhoso! Depois do David e do Norm, nem conseguia acreditar no que estava a sentir. Sei que as mãos nas minhas costas não se mexeram, mas imaginei que tinham arranjado forma de penetrar até aos meus ossos. Foi tudo ao meu jeito: ele limitou-se a deixar-se levar ao meu ritmo e, quando precisei de vir à superfície para respirar, ele enfiou a cara no meu pescoço e beijou-o com força. Uaaaau! Isso provocou todo o tipo de reacções! Vá lá Toby, estava eu a pensar, surripia umas festas nos tais seios magníficos!

O filho-da-mãe largou-me! Abri os olhos com indignação e vi--o a olhar para mim todo impante e malandro.

            Boa noite disse eu, tentando ficar na mó de cima.

Os seus olhos dançaram com um riso travesso, fez-me uma festinha descontraída na cara e subiu o caminho sem sequer olhar para trás.

            Dia das mentiras! gritou.

Entrei em casa de um salto e bati com a porta, rangi os dentes uns instantes e depois acalmei-me. Dia das mentiras ou não, tinha acabado de ter o meu primeiro beijo em condições e tinha adorado.


Finalmente tinha tido uma amostra do prazer que poderia ter, estando com um homem. Sinto o sangue a dançar.

 

Segunda-feira, 4 de Abril de 1960

A Pappy veio a casa o tempo suficiente para tomar um café comigo antes de sair para o trabalho, apesar de isso significar que fui arrancada da cama duas horas antes do necessário. Sentia-me tão ansiosa por descobrir o que se passara que nem quis saber das duas horas de sono perdido. Ela estava radiante... tão linda!

            Onde foste? perguntei.

Ela explicou que ele tem um pequeno apartamento em Glebe, perto da Universidade de Sydney. Fomos para lá, trancámos a porta, tirámos o telefone do descanso e não pusemos o nariz de fora até às seis da manhã. Oh, Harriet, ele é maravilhoso, perfeito... um rei, um deus! Nunca me aconteceu nada de semelhante! Acreditas que ficámos os dois nus na cama e acariciámo-nos durante seis horas antes de ele me ter possuído pela primeira vez? Os olhos dela brilharam com a recordação. Atormentámo-nos um ao outro lambemo-nos e chupámo-nos até estarmos prestes a virmo-nos, depois parámos e depois recomeçámos tudo de novo e o nosso clímax foi simultâneo, não é incrível? No mesmíssimo momento! E depois mergulhámos numa tristeza tão completa e total que chorámos os dois.

Aquelas confidências eram tão embaraçosas que lhe implorei que guardasse para si os pormenores mais suculentos, mas a Pappy não tem inibições, não tem mesmo.

            Estás a embaraçar-te a ti própria, Harriet disse ela em tom reprovador. Já é mais do que tempo de aceitares o teu corpo.

Ergui o queixo. Não acho ninguém atraente menti. Toby, Toby, Toby.Tens medo.De ficar grávida, evidentemente.


            A Mrs. Delvecchio Schwartz diz que se uma mulher não quiser mesmo uma criança, até às profundezas da alma, então não concebe.

Grunhi. Muito obrigada, mas não faço tenções de testar a teoria Delvecchio Schwartz, Pappy, e ponto final. Passaste então um bom bocado com o Professor. Foi só sexo ou também conversaram?

            Falámos sem parar! Fumámos um pouco de haxixe, ficámos abraçados, snifámos um pouco de cocaína... nunca tinha percebido como algumas substâncias conseguem levar o prazer a níveis quase insuportáveis!

Sabia que se começasse a argumentar com ela iríamos brigar e, em vez disso, perguntei-lhe se o Professor era casado.Sim disse ela com um ar bastante satisfeito , com uma mulher triste e enfadonha que ele detesta. Têm sete filhos.Então não a deve detestar assim tanto. Onde é que vivem?Algures para os lados das Montanhas Azuis. Ele vai lá de vez em quando por causa das crianças, mas ele e a mulher dormem em quartos separados.Ora aí está um método de controlo da natalidade disse eu num tom algo ríspido.O Ezra disse-me que se tinha apaixonado por mim assim que me viu. Disse que eu lhe tinha dado alegria de uma forma que nunca outra mulher lhe dera.Então o Ezra significa que os desfiles de homens nos teus fins-de-semana são uma coisa do passado? perguntei.

A Pappy pareceu ficar genuinamente chocada. É claro que sim, Harriet! A minha busca terminou, encontrei o Ezra. Os outros homens não significam nada.

Bem, francamente, não sei se deva acreditar no que ela disse. A Pappy acredita e eu, por atenção a ela, espero que as minhas dúvidas não tenham fundamento. Haxixe e cocaína. Não há dúvida de que o Professor sabe como usufruir de prazeres radicais. E é casado. Há muitos homens com casamentos infelizes, não existe razão para pensar que o Ezra Marsupial qual é o nome dele? não seja um deles. Oh, mas o que me deixa verdadeiramente irritada é a forma como o querido Ezra decidiu viver a sua vida. Mantém a mulher e os sete filhos a uma distância suficiente do seu local de trabalho para os ignorar e tem um pequeno apartamento no Glebe. Muito conveniente, um pequeno apartamento mesmo ao pé de um fornecimento inesgotável de jovens donzelas núbeis. Não consigo perceber de maneira nenhuma por que é que o malvado do homem é tão atraente para as idiotas das raparigas, mas é óbvio que alguma coisa ele deve ter, apesar de duvidar que tenha uma pila tão comprida como a mangueira do jardim do meu pai. Suponho que deve ser por causa do haxixe e da cocaína.

Ele está só a aproveitar-se da Pappy, tenho a certeza. Mas por que a terá escolhido a ela, com tantas outras a olhar para ele de língua de fora? E, já que penso nisso, porque será a Pappy tão atraente para os homens? Quando o sexo é a coisa mais importante na cabeça de um homem, não é a beleza da personalidade de uma mulher aquilo que os atrai. Há aqui um mistério que vou ter de resolver. Adoro a Pappy e acho que ela é a criatura mais bonita do mundo. Mas há ali mais qualquer coisa.

Harriet Purcell, és uma novata no que respeita ao amor, que é que te dá o direito de especular? Despacha-te, Rei de Ouros número um! Estou a precisar de um ponto de referência.

 

Quinta-feira, 7 de Abril de 1960

Uaaau! Aquela imbecil da Chris Hamilton armou uma confusão enorme no nosso mundo atarefado mas plácido. Quem me dera que ela olhasse bem para o Demetrios, em vez de responder mal ao pobre do homem de cada vez que ele traz um paciente.

Esta manhã quase nos morreu um doente nas mãos, que é a pior coisa que pode acontecer. Um indivíduo com suspeita de fractura no crânio decidiu desenvolver um grave edema do cérebro enquanto o estávamos a radiografar. Dei por mim a ser empurrada para o lado por um médico-chefe desconhecido que agiu prontamente e levou o paciente para o bloco operatório da neurocirurgia num abrir e fechar de olhos. Mas dez minutos mais tarde regressou para nos deitar, a mim e à Chris Hamilton, um olhar mais frio do que os da Enfermeira Chefe.

            Suas cabras de merda, por que não viram o que estava a acontecer? rosnou. Aquele homem entrou em coma porque vocês demoraram muito tempo a pedir ajuda! Estúpidas cabras de merda!

A Chris Hamilton enfiou as cassetes que tinha na mão na minha mão e dirigiu-se à porta. Tenha a bondade de me acompanhar ao gabinete da Enfermeira Toppingham, doutor disse num tom gelado. Ficar-lhe-ia grata se repetisse esses comentários à frente dela.

A Enfermeira das Urgências entrou a correr passados instantes, com os olhos a saírem das órbitas. Eu ouvi! gritou ela. Oh, ele é um filho-da-mãe, o Dr. Michael Dobkins!

A estagiária tinha ido a correr ao bloco da neurocirurgia para levar as radiografias e eu não tinha nenhum paciente e fiquei a olhar para ela com umas quantas ideias a germinar na cabeça. Eles conhecem-se, não se conhecem? perguntei. A Chris Hamilton e o Dr. Dobkins, quero dizer. Como ela e a Chris Hamilton partilham a casa, pensei que ela estaria ao corrente da roupa suja.

            Sem dúvida que sim disse ela sombriamente. Há oito anos, quando o Dobkins estava no início do internato, ele e a Chris Hamilton andavam tão enrolados um com o outro que ela partiu do princípio de que estavam noivos. Depois, ele largou-a sem explicações. Seis meses mais tarde casou-se com uma fisioterapeuta cujo pai é director de uma empresa e a mãe é membro da associação de beneficência mais chique do país. Como continuava a ter o hímen intacto, a Chris Hamilton nem podia ameaçá-lo com uma acção por violação de compromisso.

Bem, isso explicava as coisas, sem dúvida.

A Chris regressou com a Enfermeira Agatha e o Dr. Michael Dobkins e eu tive de dar a minha versão do incidente, que bateu certo com a da Chris. Em resultado do meu testemunho, a Supervisora, o Supervisor Clínico e a Enfermeira-Chefe apareceram por esta ordem e eu tive de contar a história outra vez perante os seus rostos reprovadores. A Chris acusara o Dobkins de conduta pouco profissional, nomeadamente por chamar nomes imperdoáveis ao pessoal feminino. Os cirurgiões fazem-no o tempo todo nos blocos operatórios, mas aos cirurgiões têm de ser permitidas pequenas fraquezas. O Dr. Dobkins, um mero chefe de serviço, deve ser capaz de controlar as suas emoções.

O pior é que nada daquilo deveria ter acontecido. Se a Chris tivesse mantido o sangue-frio e tivesse controlado a tempestade localmente talvez se tivesse arrastado o Dobkins para um canto e, em privado, lhe tivesse dito das boas por causa da sua falta de maneiras , então os de Lá de Cima nunca teriam sido forçados a entrar em acção. Assim, ligou um projector de um milhão de watts que nos dificultou o trabalho e pôs em questão a nossa integridade.

Ao fim da tarde, era Dobkins quem tinha ido ao tapete e não nós. O paciente tinha entrado em coma o cérebro tinha inchado subitamente até os centros vitais cerebrais estarem esmagados contra os ossos da caixa craniana , mas um enorme hematoma sub-dural tinha sido aspirado com sucesso no bloco da neurocirurgia e o paciente sobrevivera intacto graças à proximidade das Urgências e do equipamento de reanimação. O veredicto que chegou do Andar de Cima e que nos foi comunicado pela Enfermeira Agatha foi o de que não tínhamos sido negligentes no cumprimento do dever.

A Chris foi-se embora com o ar de Joana d'Arc no patíbulo e deixou-me entregue ao resto daquilo que foi um dia horrível.

Eram quase nove da noite quando andei pela Dowling Street em busca de um táxi. Nem um à vista. Fui a pé. A luz dos candeeiros da Cleveland Street, vi um Jaguar preto e brilhante parar na berma ao pé de mim, a porta do passageiro abrir-se e Mr. Forsythe dizer: Está com um ar muito cansado, Harriet. Não quer uma boleia para casa?

Atirei as precauções para trás das costas e saltei para dentro do carro. O senhor foi uma dádiva de Deus! disse eu, acomodando-me no assento de cabedal.


Ele lançou-me um sorriso, mas não disse nada. No entanto, no cruzamento seguinte, virou automaticamente para a Flinders Street e percebi que ele não fazia ideia de onde eu vivia. Tentei então pedir desculpa e dizer-lhe que vivia no lado de Potts Point da Victoria Street. Que vergonha, Harriet Purcell! Que acontecera a Kings Cross? Ele pediu desculpa por não ter perguntado onde eu vivia, desceu a William Street e voltou para trás.

Quando íamos a entrar suavemente na cacofonia visual de néons, eu disse: na verdade vivo em Kings Cross. A Marinha Real Australiana é proprietária da totalidade de Potts Point.

Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu. Não teria pensado que vivia em Kings Cross disse.

            E que tipo de pessoa vive em Kings Cross? rosnei. Aquilo sobressaltou-o! Desviou os olhos da estrada durante o

tempo suficiente para perceber que eu estava com um ar militante e tentou emendar a mão. Na verdade, não sei disse em tom apaziguador. Suponho que sofro dos mesmos preconceitos de todos quantos têm contacto com Kings Cross unicamente através da imprensa sensacionalista.

            Bem, o carteiro disse-me que as prostitutas que vivem ao lado da minha casa dão o endereço como sendo Potts Point, mas no que me diz respeito, Senhor Doutor, Victoria Street é Kings Cross de uma ponta à outra!

Porque estaria eu tão zangada? Tinha sido eu a falar em Potts Point! Mas ele deve ser muito bem-educado, pois não tentou justificar-se, limitou-se a manter-se em silêncio enquanto seguia as minhas indicações.

Estacionou num local que a polícia de trânsito mantém desimpedido para os clientes mais ilustres do 17b e 17d; o caduceu colado ao pára-choques do Jaguar protege das multas de estacionamento em toda a parte sem excepção.

Depois saiu do carro, deu a volta e abriu-me a porta antes de eu ter conseguido encontrar o manípulo certo. Obrigada pela boleia murmurei, morta por sair dali o mais depressa possível.

Mas ele estava com ar de quem não tencionava mexer-se. Vive aqui? perguntou, apontando para o nosso impasse.


Na casa do meio. Tenho um apartamento.É encantador disse ele, gesticulando novamente com a mão.

Fiquei ao lado dele, tentando desesperadamente encontrar qualquer coisa que transmitisse a minha gratidão pela sua bondade mas que lhe desse a entender que não o ia convidar a entrar. Mas o que saiu foi: Apetece-lhe um café, senhor doutor?

Sim, obrigado.

Oh, merda! Rezando para não encontrar ninguém, empurrei a porta da frente e comecei a atravessar o átrio, horrivelmente consciente da presença dele atrás de mim a olhar para as paredes escrevinhadas, para o linóleo em mau estado, para as caganitas de mosca nas lâmpadas nuas. As coisas no 17d estavam animadíssimas quando saímos para o exterior; os sons abafados das prostitutas a darem no duro eram quase tão audíveis como os gritos da briga que a Madame Fuga estava a ter com a Prudência na cozinha, sendo que o tema da discussão era uma descrição muito explícita daquilo que uma rapariga tinha de fazer para agradar a um cavalheiro com uns gostos um tanto peculiares.E, porra, não mijes antes de ires com eles quando eles querem que lhes mijes em cima, e bebe uma merda de cinco litros de água! Era este o cerne da questão.Uma altercação interessante disse ele enquanto eu me debatia com a minha velha fechadura.E um bordel muito fino e o do outro lado também disse eu, escancarando a porta. Frequentados pelos mais poderosos e mais chiques de Sydney.

Ele limitou os comentários seguintes ao meu apartamento, chamando-lhe bonito, charmoso e acolhedor.Sente-se disse eu com pouca graciosidade. Como gosta do café?Simples, sem açúcar, por favor.

E nesse momento começou a ouvir-se um violino a tocar aquilo que, presentemente, eu já identificava como sendo Bruch.

Quem é que está a tocar? perguntou ele.


É o Klaus, no andar de cima. É bom, não é?Soberbo.

Quando emergi de trás do biombo com as duas canecas de café, fui encontrá-lo recostado na cadeira de repouso, muito descontraído a ouvir o Klaus. Depois ergueu o olhar e pegou na caneca com um sorriso de prazer tão genuíno que os meus joelhos ficaram sem forças. Senti menos medo dele e consegui sentar-me com razoável compostura. Os hospitais condicionam o pessoal dos níveis hierárquicos inferiores a olhar para os Directores de Serviço como se fossem seres de outro planeta seres que não visitam Cross a não ser para frequentarem as Mesdames Fuga e Toccata.

            Viver aqui deve ser muito divertido disse ele. O básico e o intelectual.

Bem, na verdade ele não estava a ser crítico. Sim, é muito divertido respondi.

            Conte-me como é.

Oh, realmente! Como é que eu podia fazer uma coisa dessas? O sexo está por detrás de tudo quanto aqui acontece, não percebera ele isso mesmo através da conversa da Madame Fuga? Decidi então falar-lhe do apartamento térreo da frente.De momento terminei , achamos que encontrámos mesmo um casal idoso que não anda na vida.Quer dizer que são demasiado idosos?Oh, ficaria surpreendido, senhor doutor disse eu descontraidamente. As mulheres que andam nas ruas são bastante decrépitas. As jovens e bonitas trabalham nos bordéis: ganham mais, vivem melhor e não têm chulos a dar-lhes sovas.

Os seus olhos verdes pantanosos tinham uma expressão que era um misto de diversão e de tristeza; pensei que o divertimento se devia a mim, mas não tive a certeza a respeito da tristeza. Talvez, concluí, esta fosse permanente.

Ele deu uma olhadela ao relógio de ouro caríssimo e levantou-se. Tenho de ir, Harriet. Obrigado pelo café e pela companhia... e pela lição sobre como vive a outra metade. Diverti-me.

            Obrigada pela boleia até casa, senhor doutor disse eu, e levei-o até à porta da frente. Depois de a ter fechado, encostei-me a ela e tentei perceber o que acontecera. Parecia que acabava de fazer um novo amigo. Graças a Deus que ele não me fizera nenhum avanço! Mas não parava de me lembrar da tristeza nos seus olhos e pensei se não seria apenas a necessidade de falar com alguém... Que estranho. Uma pessoa não se detém para pensar que talvez Deus, o director de serviço, precise de alguém com quem falar.

 

Segunda-feira, 11 de Abril de 1960

Vi a Pappy outra vez esta amanhã, mas desta feita ela não teve de me acordar. Eu estava emboscada à sua espera quando regressou do seu encontro de fim-de-semana em Glebe e arrastei-a para a minha casa, para que tomasse um pequeno-almoço decente. Ela pode estar apaixonada, mas está ainda mais magra. Magra, mas idilicamente feliz.Um fímde-semana bom? perguntei passando-lhe os Ovos Benedict.Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso! Harriet, nem consigo acreditar! exclamou, lançou a cabeça para trás e riu-se, deliciada. O meu Ezra quer casar comigo! No próximo fim-de-semana vai dizer à mulher.

Ora, por que será que isto não me soa verdadeiro? Mas mantive a mesma expressão sorridente e interessada. Isso é uma óptima notícia, Pappy.

Ela bocejou, franziu o sobrolho ao prato e afastou-o.

Come! ralhei. Não podes viver de haxixe e cocaína!

Intimidada, ela puxou novamente o prato para si e enfiou a primeira garfada na boca com ar ausente. Depois começou a comer com entusiasmo as minhas lições com o Klaus estão a dar os seus frutos. Sentei-me diante dela e inclinei-me para a frente, sentindo--me muito desconfortável mas determinada a dizer o que tinha a dizer. Hum, sei muito bem que aquilo que te vou perguntar é uma falta de educação e uma indiscrição, mas... hesitei sem saber o que dizer a seguir. Perdido por cem perdido por mil, Harriet... fá-lo — Pappy, tu mal conheces o Ezra e ele mal te conhece a ti. Na verdade, acho que nenhum dos dois está muito capaz de pensar racionalmente entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda-feira. Dois fins-de-semana juntos e eleja quer casar contigo? Com que tipo de base? O tu não te ralares nada com as suas pequenas recreações farmacêuticas? Percebo por que é que ele acha que é mais seguro estar contigo do que com as suas núbeis e jovens estudantes... tu és uma mulher do mundo. Não lhe vais atiçar a polícia nem mesmo por acidente. Mas casamento! Não será ir um pouco longe de mais com base em apenas dois fins-de-semana?

O meu cepticismo não a ofendeu. Duvido que tenha penetrado o nevoeiro. É o sexo disse ela. Os homens precisam de sexo para estarem verdadeiramente apaixonados.

            Isso é iludir a questão objectei. Não estás a falar de amor, estás a falar de casamento. Ele é um filósofo mundialmente famoso, segundo dizes. O que significa que tem um determinado estatuto no seu pedacinho de império intelectual, e não pode, portanto, ter evitado todas as obrigações que a carreira académica e uma cátedra exigem. Eu não sou académica, mas conheço um pouco a academia, e esta é bastante rígida. Se ele deixar a mulher e os filhos por causa de ti... Calei-me, atolada num lamaçal que eu própria criara, e fiquei a olhar para ela, impotente.

Ela abanou lentamente a cabeça. Querida Harriet, tu não percebes nada disse. Há sexo e há sexo.Por que é que não paras de falar em sexo? rosnei. As manias peculiares não se adequam ao casamento, se é disso que estás a falar.Tu és tão nova!

Passei-me e comecei a gritar. Oh, por amor de Deus, Pappy, estou farta de que me chamem ignorante e não me liguem! Não estou aqui a interrogar-te por estar cheia de curiosidade doentia! Quero simplesmente saber exactamente por que é que o Ezra quer casar contigo, em vez de continuar a ter essa maravilhosa relação de fins-de-semana! Eu conheço-te, não és do tipo de te fazeres à aliança, portanto porque é que ele quer casar? Não bate certo, simplesmente não bate certo!Felação disse ela.Fe... quê? perguntei eu sem perceber.Felação. Chupo-lhe o pénis até ele ejacular na minha boca. É essa a fantasia sexual de todos os homens disse. No entanto, poucas mulheres gostam de o fazer. Especialmente as esposas que, tal como tu, na verdade, não conhecem tal coisa até os maridos lhes pedirem que o façam. Aí ficam escandalizadas e pensam que eles são uma espécie de pervertidos. Enquanto eu adoro fazê-lo ao Ezra. O pénis dele é perfeito para mim. pequeno e sempre um pouco flácido. E é por isso que ele quer casar comigo. Se eu for a sua esposa, ele terá felação todos os dias. Suspirou. Oh, Harriet, seria maravilhoso estar casada com o Ezra!

O meu maxilar inferior estava caído em cima da mesa, mas lá consegui sorrir. Bem, atrevo-me a dizer que esse é um método eficiente de planeamento familiar disse.

            Oh, nós também o fazemos da forma convencional disse a Pappy.

Portanto, aqui têm. A receita para a felicidade conjugal.

 

Terça-feira, 12 de Abril de 1960

A Chris está determinada a vingar-se do Dr. Michael Dobkins, auxiliada e amparada pela Enfermeira da Urgência. Acontece que ele é o novo chefe da Urgência, mas os de Lá de Cima demitiram-no depois da escaramuça connosco? Não! Volta e meia há discussões e prevejo que o Dr. Dobkins decida muito em breve que se sentiria muito melhor no Hornsby Hospital, que fica muito mais perto da casa dele, em Pymble, do que no Queens. Eu apostaria no Royal Northe Shore, que é chique e adequadamente grande, mas o hospital prefere o seu próprio pessoal. Não falando em felação, os homens que irritam mulheres em posições de poder são estúpidos. Dobkins não estava errado quanto ao facto de nós sermos umas cabras, mas estúpidas? Ele é que é estúpido.

A Chris repreendeu-me à frente da estagiária por eu ter sido simpática com o Demetrios. Vi tudo vermelho e atirei-me a ela com as garras de fora.

Escuta, minha cabra preconceituosa, aquele é um homem muito decente com uma boa cabeça e um futuro brilhante! Ele gosta de ti, só Deus saberá porquê, mas tu nem cuspir nele cuspirias, só porque ele transporta doentes e é estrangeiro! Se eu quiser tratar o Demetrios como um ser humano trato e nada que tu ou a Enfermeira Agatha digam me impedirá de o fazer! Do que tu precisas, Christine Leigh Hamilton, é de uma boa queca

Disse-o, disse mesmo! A estagiária quase desmaiou e depois fugiu, voluntariamente, para a câmara escura, e a Chris ficou a olhar para mim de boca aberta como se tivesse sido atacada por um por-quinho-da-índia.

Fiquei à espera que ela me levasse à força à presença da Enfermeira Agatha, mas desta vez decidiu que o melhor era ser discreta e não proferiu palavra, nem sequer para mim. Todavia, da vez seguinte que o Demetrios entrou com um doente, a Chris ficou a olhar para ele como se as palas tivessem sido tiradas dos seus olhos. Até lhe sorriu. Aposto que amanhã ela lhe oferece um chá e um biscoito.

Chamem-me Cupido.

 

Segunda-feira, 25 de Abril de 1960 (Dia dos Anzac3)

Já se passaram quase duas semanas sem que eu tivesse tirado o caderno da minha sacola. Hoje tivemos de trabalhar, apesar de ser feriado nacional, mas não houve muito que fazer e saí a horas.

Quando entrei pela porta, ainda senti o cheiro das especiarias: noz-moscada, açafrão-da-índia, cardamomo, trigonela, cominhos.

 

3 ANZAC - Sigla do Corpo Expedicionário dos Exércitos da Austrália e da Nova Zelândia. (N da T.)

 


Que palavras tão exóticas. Sentei-me à mesa, chorei um pouco por causa do silêncio e daqueles cheiros, e depois tirei o caderno do saco.

A sexta-feira a seguir àquela em que a Pappy me transmitiu a sua teoria sobre os casamentos felizes e em que eu disse à Chris Hamilton que ela precisava de uma boa queca, foi Sexta-Feira Santa, mas no Cross a Sexta-Feira Santa não é diferente de qualquer outra sexta-feira. É o trabalho do costume. O Toby, a Pappy e eu fomos ao Apollyon, um bar numa cave. É demasiado intelectual para o meu gosto parece que toda a gente joga xadrez mas a Pappy adora lá ir e o Toby achava que o seu amigo, o Martin, era capaz de aparecer por lá. A Rosaleen Norton desceu as escadas com o amigo poeta, o Gavin Greenlees era a primeira vez que eu via a Bruxa do Cross. A minha conclusão foi de que ela não era lá muito assustadora. Arranja-se por forma a parecer satânica sobrancelhas pontiagudas e pretas, cabelo e olhos pretos e base branca e brilhante , mas não senti quaisquer vibrações satânicas, como diria a Mrs. Del-vecchio Schwartz.

Depois o Martin apareceu de braço dado com um tipo lindíssimo. Até mesmo os mais compenetrados jogadores de xadrez pararam para olhar para ele, assim como a Rosaleen Norton e o Gavin Greenless. Senti-me entusiasmada e excitadíssima quando os recém--chegados se dirigiram à nossa humilde mesa.

            Importam-se que nos sentemos? ciciou o Martin.

Importam-se! Não consegui mexer a cadeira com a rapidez desejada para arranjar espaço. Apesar de o Martin ser um membro descarado e loquaz do contingente homossexual de Cross, não cicia por se amaricado. Cicia por não ter dentes. E uma daquelas pessoas esquisitas que se recusa a entrar no consultório de um dentista.Este disse ele com um gracioso gesto de mão na direcção do Adónis sorridente é o Nal. Está a ser particularmente difícil de seduzir... estou absolutamente estafado de tanto tentar.Como está? perguntou o relutante seduzido com um sotaque de Oxford antes de se sentar à minha frente. O meu nome completo é Nal Prarahandra, sou médico e estou em Sydney esta semana para participar num congresso da Organização Mundial de Saúde.


Ele era tão lindo Nunca tinha pensado em nenhum homem como sendo lindo, mas não existe outra palavra que o descreva adequadamente. Tinha umas pestanas tão longas, espessas e emaranhadas como as da Fio, as sobrancelhas perfeitamente arqueadas por cima dos olhos pareciam ter sido desenhadas a carvão e os olhos propriamente ditos eram negros, líquidos e langorosos. A cor da pele também era semelhante à da Fio. O nariz era alto e ligeiramente aquilino, a boca cheia mas não em demasia. E era alto, de ombros largos e ancas estreitas. Adónis. Fiquei a olhar para ele como um parolo a olhar para a Rainha.

Depois ele estendeu o braço por cima da mesa, agarrou-me na mão, virou-a ao contrário e olhou para a palma. É virgem disse, mas não em voz alta. Tive de lhe ler os lábios.

—        Sim respondi.

O Toby tinha o Martin a tagarelar-lhe ao ouvido mas tinha os olhos fixos em mim e parecia zangado. Depois a Pappy pousou-lhe uma mão no braço e ele olhou para ela; a ira desvaneceu-se e ele sorriu-lhe. Pobre, pobre Toby!Vive num local adequado? murmurou ele... o Nal.Sim respondi.

A minha mão ainda estava presa na dele quando se levantou. Então vamos.

E fomos, simplesmente. Não me sentia nem remotamente tentada a dar-lhe um estalo, mas suspeito de que o Toby estava. Suponho que ficou preocupado por eu sair com um desconhecido.

            Como te chamas? perguntou ele quando saímos para as luzes brilhantes do Cross.

Respondi-lhe, ainda de mão dada com ele. Como é que foste encontrar o Martin? perguntei-lhe quando íamos a atravessar a William Street.

            Hoje é o meu primeiro dia em Sydney e toda a gente disse que eu tinha de ir a Kings Cross. Quando o Martin me abordou, eu estava a contemplar uma janela interessante e, como o achei divertido, consenti em acompanhá-lo. Achei que ele me levaria até alguém de quem eu gostaria e estava certo disse ele com um daqueles seus sorrisos que não são tão maravilhosos como os do Mr. Forsythe devido ao facto, creio, de uma tal beleza não ter sido feita para sorrir.E porquê eu? perguntei.E porque não tu, Harriet? Ainda não estás completamente desperta, mas tens um enorme potencial. E és muito bonita. Ficarei muito feliz por ensinar-te um pouco sobre o amor e encherás a minha semana em Sydney de um prazer memorável. Não nos conheceremos durante o tempo suficiente para sentir verdadeiro amor e, quando nos separarmos, fá-lo-emos como bons amigos.

Acho que não tenho as características da Pappy, pois não me apetece descrever todos os pormenores picantes. Excepto o facto de ele ter feito amor comigo pela primeira vez na banheira ao pé da lavandaria graças a Deus eu tinha tido tempo de a pintar com tinta de esmalte para bicicletas de cor escarlate! E que ele foi maravilhoso, terno, atencioso e tudo aquilo que toda a gente me dizia que eu tinha de ter no meu primeiro amante. Amou os meus seios e eu adorei as atenções que ele lhes dispensou, mas suponho que o melhor foi a sua sensualidade. Ele fez-me sentir que estava mesmo a desfrutar da situação, mas estava completamente concentrado em mim e nos meus sentimentos. Como eu não era ignorante relativamente a nenhum dos aspectos do acto, especialmente depois dos quatro meses passados na Casa, atrevo-me a pensar que o apreciei muito mais do que as virgens de antigamente. Para elas deveria ser um choque!

Nessa noite ele mudou-se para o meu apartamento e ficou lá a viver a semana toda, com a bênção da Mrs. Delvecchio Schwartz. Que, suponho, deve ser a única senhoria de Sydney com vistas tão largas. Quando a Fio veio lá para casa, na tarde de domingo, ele ficou fascinado pela sua mudez. Garanti-lhe que a mãe dizia que ela falava com ela, mas ele tem grandes dúvidas.

            Elas podem comunicar num plano diferente disse ele depois de ter conhecido a Mrs. Delvecchio Schwartz quando esta veio buscar a Fio após ter passado duas horas com o Harold. A mãe é uma mulher extraordinária. Muito poderosa, uma alma muito antiga. Os pensamentos são como pássaros que conseguem voar através de objectos. Acho que a Fio e a mãe comunicam sem palavras.

Comunicar sem palavras. Bem, isso foi algo que o Nal, que é psiquiatra, e eu praticámos imenso. Apesar da forma estranha que ele tem de ver as coisas, gostei imenso dele e acho que ele gostou de mim por outras razões que não apenas o sexo. Também comunicámos muito com palavras.

Ele ensinou-me a cozinhar dois pratos indianos, um korma e um caril de legumes, tendo o cuidado de explicar que o verdadeiro caril não é feito com o nosso pó de caril, pois cada prato requer uma selecção diferente de ervas e especiarias. Na manhã de domingo fomos ao Mercado do Paddy e comprámos a noz-moscada, o açafrão--da-índia, o cardamomo e a trigonela e alho. Não acho que a comida indiana tenha comparação com o Bife Strogonoff ou a Vitela Picatta do Klaus, mas creio que as papilas gustativas levam algum tempo a habituarem-se a sabores tão estranhos.

A única questão relativamente à qual discordámos foi a Pappy. Não é estranho? Ele limitou-se a dizer que ela era uma mestiça típica. Os Indianos conseguem ser tão preconceituosos como os australianos velhos, ao que parece. Como é evidente, ele é de uma casta elevada e o pai é uma espécie qualquer de marajá. Disse-me que já lhe tinham escolhido a noiva mas que, de momento, era demasiado novo para se casar. Eu já sabia a resposta à pergunta que não me dei ao trabalho de fazer: que, depois do casamento, ele continuaria a procurar mulheres como eu sempre que fosse ao estrangeiro. Bem, os costumes dele são os costumes dele. Não são os nossos. Sem dúvida que a mulher não lhe levará a mal, portanto por que hei-de eu levar a mal?

Ele estava à minha espera todas as tardes junto às Urgências para me levar para casa, sentado num dos horríveis sofás de plástico a ler o Mirror até eu sair e trancar a porta. Ele pegava então no meu saco e íamos embora, semeando atrás de nós um trilho de deliciosa coscuvilhice. A Enfermeira das Urgências trabalha num dos primeiros turnos, como a Chris, mas tenho a certeza de que a Enfermeira Her-bert, que chefia o turno da noite, lhe comunica todas as novidades.


A Chris lançou-me alguns olhares estranhos, mas a minha pequena explosão melhorou imenso a nossa relação. Além disso, a Chris começou a sair com o Demetrios. Provavelmente terão filhos muito bonitos, com o fleumatico sangue bife dela temperado pelo exotismo do dele. Desde que ela não se arrependa. A Enfermeira das Urgências olha para os dois com desdém e faz comentários subtilmente venenosos à Chris. Se ela se casar, a Enfermeira das Urgências vai ter de arranjar outra companheira de apartamento, não é?

O Nal voou para Nova Deli ao romper da madrugada do último sábado. Eu não consegui enfrentar a ideia de passar o fim-de-semana sozinha na Casa e fugi para Bronte, onde dormi no sofá da sala até hoje de manhã. A mãe olhou para mim atentamente, mas não fez comentários. E eu também não.

Coentros. Tinha-me esquecido dos coentros. Um aroma a coentros escapuliu-se de trás do biombo. Mas o Nal tinha razão. Não nos conhecemos o tempo suficiente para desenvolver uma grande paixão e separámo-nos realmente como bons amigos, o meu primeiro Rei de Ouros e eu.

 

Terça-feira, 26 de Abril de 1960

Esta manhã tive um encontro esquisito com o Toby; foi a primeira vez que o vi desde que eu e o Nal saímos juntos do Apollyon.

Ele tem andado a mourejar num retrato da Fio desde há dois meses, o que o está a deixar louco de frustração. Quando o encontrei no átrio da frente, perguntei-lhe como ia o trabalho.

— Oh, mil agradecimentos pelo interesse de vossa alteza rosnou ele. E deverei ajoelhar-me para te demonstrar o quão tremendamente agradecido estou pela pergunta?

A minha cabeça estremeceu como se ele me tivesse batido por que raio estaria ele zangado? Não respondi educadamente , claro que não. Da última vez que falámos não estavas satisfeito com os resultados, razão pela qual andavas à procura do teu mentor, o Martin.


A resposta educada fê-lo ficar com ar de quem estava com vergonha de si próprio. Estendeu-me uma mão. Desculpa, Harriet. Apertamos as mãos?

Apertei-lha.

            Anda lá a cima ver com os teus próprios olhos disse ele.

Para os meus olhos de leiga, o retrato estava espantoso... e também insuportavelmente triste. O meu pequeno anjinho! O Toby conseguira dar à pele da Fio um aspecto finíssimo, sem dar a impressão de privações, o rosto era apenas um enquadramento para os olhos enormes cor de âmbar e o fundo era totalmente constituído por sombras semelhantes a fantasmas que se formavam num nevoeiro cinzento. Eu e o Toby nunca tínhamos falado muito sobre a Fio e ver aquele fundo foi um choque. Seria a sua natureza sobrenatural assim tão evidente para toda a gente? Ou sê-lo-ia apenas para o olhar perspicaz de artista do Toby?Está fantástico — disse eu com sinceridade. Da última vez que o vi, a Fio parecia saída de um campo de concentração. Agora conseguiste reter a essência sem a fazer parecer vítima de maus tratos.Obrigado disse ele bruscamente, mas não me convidou a sentar nem ofereceu café. O amor fugiu? perguntou subitamente.Sim, no sábado.Estás com o coração desfeito? Queres chorar no ombro do tio Toby?

Ri-me. Não, idiota! Não foi nada disso.

            Então como foi?

O Toby a fazer uma pergunta tão pessoal? Foi muito bom disse eu.

Ele ficou todo vermelho e o rosto contorceu-se ferozmente. Não ficaste magoada?

Então era isso! Deus abençoe o Toby, sempre protector das mulheres da Casa. Abanei a cabeça. Nada mesmo, juro. Foi um devaneio, companheiro. Um devaneio de que eu estava muito necessitada depois de anos e anos com o David.


Ele ficou ainda mais zangado e arreganhou os dentes. Como podes chamar a isso um devaneio? perguntou.Oh, francamente! Pareces uma personagem de um romance vitoriano! disse eu arreganhando também os dentes. Achava-te superior a essas coisas, Toby Evans, não te achava capaz de dois pesos e duas medidas! Os homens podem molhar a pena desde o princípio da adolescência, mas as mulheres têm de se aguentar até casarem! Ora, vai-te lixar! gritei.Aguenta os cavalos, aguenta os cavalos! disse ele, controlando a ira mas sem saber ao certo qual seria o seu estado de espírito seguinte. Ou foi o que eu achei. Posso estar enganada, não sei, foi tudo tão incaracterístico dele!Tenciono aguentar a manada inteira, Mr. Evans! ripostei. Um devaneio com um pavão indiano não significa que tencione voar com quaisquer vacas australianas!Paz, paz! gritou ele, erguendo as mãos no ar com as palmas viradas para a frente.

Eu ainda estava a fumegar, mas a última coisa que quero no mundo é estar zangada com o Toby, a amizade dele é-me muitíssimo preciosa. Portanto, mudei de assunto. Sei que o Ezra ia pedir o divórcio à mulher há dois fins-de-semana disse , mas, como não vi a Pappy, não sei qual foi a resposta da mulher.

A disposição dele tinha passado de vermelha a castanha e agora transformava-se num negro profundo. O Ezra não apareceu no último fim-de-semana, portanto ela não sabe em que ponto estão as coisas. Só sabe que ele lhe telefonou na sexta-feira passada a dizer que a mulher estava a ser muito difícil e que teria de visitá-la novamente.

            Talvez ela esteja suficientemente desesperada para lhe fazer um broche disse eu sem pensar.

O Toby ficou a olhar para mim como se estivesse paralisado, depois virou-se abruptamente, agarrou na garrafa de brandy que estava em cima da mesa e serviu-se de uma dose generosa. Foi só quando ia a descer as escadas que me apercebi de que ele devia ter pensado que fora o Nal quem me ensinara o termo, provavelmente durante a prática da coisa. Já tinha percebido há algum tempo que, apesar de todo o seu liberalismo, o Toby era antiquado a respeito das mulheres e suas actividades. Aos olhos dele, eu era uma mulher. A Jim, a Bob e a Mrs. Delvecchio Schwartz não eram. Os homens não são estranhos?

 

Sexta-feira, 29 de Abril de 1960

Gosto mesmo do Joe Dwyer que trabalha no departamento de engarrafados no bar de Piccadilly. Hoje à noite passei por lá para comprar uma garrafa de brandy para a minha sessão de domingo à tarde com a Mrs. Delvecchio Schwartz. Ele enfiou a garrafa num saco de papel castanho e estendeu-ma com um grande sorriso. Para a tigresa vidente do andar de cima disse ele.

Comentei que até parecia que ele conhecia muito bem a tigresa vidente do andar de cima, o que o fez rir. Oh, ela é uma das grandes personagens de Cross disse. Pode dizer-se que a conheço há um par de vidas.

Algo no tom dele sugeria que o conhecimento era no sentido bíblico e dei por mim a pensar quantos dos homens idosos e não tão idosos que a Mrs. Delvecchio Schwartz conhece são seus ex--amantes. Sempre que encontro o tímido e sombrio Lerner Chuso-vich, o tal que fuma as nossas enguias e que às vezes vem comer com o Klaus, ele fala da nossa senhoria com uma saudade carinhosa. As razões por que ela escolhe um homem são diferentes das das outras pessoas. Ela é, em si própria, uma lei.

Como a retrete do andar de cima fica numa divisão separada da casa de banho, uso muitas vezes a casa de banho porque tem um chuveiro na banheira e eu prefiro o duche ao banho. O meu horário de trabalho peculiar significa que quando eu preciso de um duche os outros habitantes da Casa ou não estão, ou estão mergulhados nas actividades de fim de dia e eu não incomodo ninguém. Na verdade, uma casa de banho não é suficiente para uma casa com quatro andares. Ninguém usa a casa de banho da lavandaria.


Vai direita ao assunto, Harriet! Harold. A casa de banho e a retrete do andar de cima ficam por trás dos domínios do Harold, mesmo por cima da minha sala de estar e do quarto e da cozinha da Mrs. Delvecchio Schwartz, divisões que nunca vi porque as portas estão sempre fechadas. Ele parece saber quando eu chego, apesar de eu, juro, ter passos silenciosos e nunca chegar à mesma hora devido às irregularidades da Radiologia das Urgências. Mas ele está sempre no átrio, que está sempre mergulhado na escuridão parece que a lâmpada se funde todos os dias, apesar de, ao ter comentado o facto com a Mrs. Delvecchio Schwartz, ela ter parecido surpreendida e ter dito que, com ela, a lâmpada funcionava. Quererá isso dizer que o      Harold a desenrasca do casquilho quando as suas antenas o avisam da minha aproximação? Consigo ver o caminho porque a luz da casa de banho está sempre acesa e a porta sempre escancarada, mas o átrio propriamente dito fica mergulhado numa escuridão de breu e ele está sempre a um dos cantos quando eu dou a volta às escadas. Nunca diz palavra, limita-se a ficar ali colado à parede e a olhar-me com ódio e eu, confesso, afasto-me apressadamente, pronta para lhe fugir se ele me atacar com uma faca ou me tentar estrangular com uma corda da roupa.

Porque não me contento com um banho no andar de baixo? Porque sou teimosa ou talvez seja mais apropriado dizer que tenho mais medo da cobardia do que até mesmo do Harold. Se eu ceder e não tomar o meu duche, estarei a dizer ao Harold que tenho demasiado medo dele para invadir o seu território e isso dar-lhe-ia vantagem sobre mim. Seria entregar-lhe o meu poder. Isso não pode acontecer, não posso permitir que isso aconteça. Por isso, vou ao andar de cima tomar o meu duche e finjo que o Harold não está ali, mergulhado na escuridão, e que eu não sou o único alvo do mal que o habita.

 

Domingo, 1 de Maio de 1960

A bola de cristal estava descoberta em cima da mesa da sala quando entrei. O Verão há muito que acabou qual, suponho, a Mrs. Delvecchio Schwartz se retirou da varanda. Hoje também está a chover.

A Fio veio a correr dar-me um abraço e quando me sentei ela escolheu o meu colo. Porque será que me sinto como se ela fosse sangue do meu sangue? Amo-a cada vez mais, à medida que o tempo passa. Meu anjo.A Bola deve ser muito valiosa, se tem mil anos disse eu à Mrs. Delvecchio Schwartz que tinha posto a mesa com as coisas habituais para a nossa merenda.Provavelmente poderia comprar o Hotel Austrália se a vendesse, mas ninguém vende uma bola de cristal, princesa. Especialmente se ela funciona.Como é que a arranjou?A sua última dona deu-ma. Em testamento. São passadas de uma vidente para outra. Quando me for, deixá-la-ei a alguém.

Subitamente a Fio estremeceu, deu um salto, fugiu do meu colo e mergulhou debaixo do sofá.

Não havia passado meio minuto quando o Harold se esgueirou pela porta aberta. Como saberia a Fio que ele vinha aí? Os meus ouvidos são óptimos, mas não ouvi nem o mais ligeiro arrastar de pés.

A Mrs. Delvecchio Schwartz olhou para ele com uma expressão tempestuosa. Que raio estás aqui a fazer? rosnou. Não são quatro horas, é uma hora. Não és bem-vindo, Harold, pira-te.

Ele tinha os olhos fixos em mim, cheios de ódio, mas virou-os para ela e manteve-se firme. Delvecchio, isto é uma vergonha!

Delvecchio? Qual seria o seu primeiro nome?

Ela pousou a garrafa de brandy com estrondo e virou os olhos para ele, apesar de eu não estar sentada num local que me permitisse ver a sua expressão. Uma vergonha? perguntou ela.Aquelas duas pervertidas sexuais nojentas que vivem no piso de cima roubaram o dinheiro do contador da casa de banho!Tens provas? perguntou ela com o lábio inferior esticado.Provas? Não preciso de provas! Quem mais nesta casa faria tal coisa? Foste tu quem me pediu para fazer a recolha do dinheiro nos contadores do gás todos os domingos! O rosto dele contorceu-se.


És demasiado alta para te dobrares para tirar o dinheiro, disseste, mas eu tenho a doença de pato!

Ela deu uma gargalhada e olhou para mim. E tem mesmo, princesa. Sabes o que é a doença de pato?Não respondi, desejando que ela não se divertisse à custa dele.O cu demasiado próximo do chão. Pôs-se de pé com esforço. Anda, Harold, vamos dar uma vista de olhos.

Eu sabia que não valia a pena tentar persuadir a Fio a sair do seu esconderijo. Era provável que o Harold regressasse e a Fio sabia-o. Percepção extra-sensorial. Lera algures que esse tipo de percepção estava a ser estudado. Que se lixasse o Harold! Aquele era um estratagema para dar cabo do bocado que eu passava com a Mrs. Del-vecchio Schwartz. A Jim e a Bob a roubarem tostões do contador do gás? Ridículo.

Muitos indícios diziam-me que aquele homem idoso, reprimido e cheio de ódio era um turbilhão de emoções negativas. De repente, lembrei-me de uma conferência dada por um psiquiatra. Tinha falado de meninos da mamã os homens solteiros que ficavam sob o controlo das suas mães até estas morrerem, altura em que, condenados pelas suas próprias incapacidades, caíam nas garras de outra mulher dominadora. Seria o Harold um menino da mamã? Encai-xava-se bem na definição. Mas isso não explicava o seu ódio por mim. Habitualmente eram homens bastante inofensivos e, se ficavam violentos, a violência era por vezes dirigida à mulher dominadora mas, habitualmente, virava-se contra eles próprios. De acordo com o tipo que dera a conferência. Mas os acontecimentos de hoje indicavam que o ódio do Harold não era dirigido unicamente a mim. Hoje os seus alvos eram a Jim e a Bob. E a Jim era outra Rainha de Espadas.

Ouvi o regresso da Mrs. Delvecchio Schwartz porque esta ria às gargalhadas. Raios partam! Rugiu ela quando entrou pela sala dentro com o Harold atrás com o rosto pálido de morte. Oh, é extraordinário!

O quê? perguntei obedientemente.


Os filhos-da-mãe gamaram as moedas da casa de banho, sem dúvida, mas não rebentando o cadeado, oh, não! Usaram uma serra e cortaram as dobradiças na parte de trás do depósito do dinheiro. Parecia estar tudo impecável! O que dá cabo de mim é que os filhos da mãe deram-se àquele trabalho todo por causa de duas libras em moedas pequenas.Delvecchio, insisto em que despejes aquelas mulheres! gritou o Harold.Escuta, campeão disse a Mrs. Delvecchio Schwartz com os dentes cerrados , não foram a Jim e a Bob, foram o Chikker e a Marge do apartamento da frente, no rés-do-chão. Tenho a certeza.São pessoas respeitáveis disse o Harold, muito tenso.Cresce, idiota! Não o ouves moê-la de pancada todas as sextas-feiras à noite quando chega a casa bêbado? Respeitáveis uma ova! Os seus ombros estremeceram. Imaginem, darem-se a tanto trabalho por causa de uns tostões! E não os posso acusar. E mais, não quero acusar ninguém. Ao menos não andam na vida e, à parte as sextas-feiras à noite, são bons inquilinos.Tenho de aceitar o que dizes disse o Harold que, era óbvio, não gostava do Chikker e da Marge. Ainda assim, insisto, que te livres das lésbicas! A andar de mota, realmente! São nojentas e tu és uma idiota!E tu disse a Mrs. Delvecchio Schwartz num tom descontraído , não serias capaz nem de te organizar para uma queca à borla no 17d! Pira-te! Vá, pira-te! E não te dês ao trabalho de voltar às quatro. Não estou com disposição.

A ordem dela pareceu cair em orelhas moucas; ele estava demasiado ocupado a olhar-me fixamente. E eu, que me sentia desconfortável por ter a consciência de que não deveria estar a ouvir nada daquilo, olhava concentradamente para a bola de cristal e para a imagem invertida da sala nela contida.

            Estás a treinar mais outra charlatã? rosnou o Harold.

A Mrs. Delvecchio Schwartz não respondeu. Limitou-se a agarrá-lo pela parte de trás do colarinho e pelo fundilho das calças e a atirá-lo pela porta como se ele não tivesse peso. Ouvi o estrondo da sua aterragem, quase saltei para ir ver se ele se magoara e depois deixei-me ficar quieta. Se se tivesse magoado talvez se acalmasse um pouco.Pira-te, cagalhãozinho! gritou ela para o átrio, e sentou-se, resplandecente de contentamento. Depois disse, na direcção do sofá: Já podes sair, Fio, o Harold foi-se embora.Por que é que ela tem medo dele? perguntei bebericando o brandy enquanto Fio, ao colo da mãe, mamava.Não sei, princesa.Não consegue convencê-la a dizer-lho?Ela não quer. E eu não tenho a certeza de querer saber.Ele... ele não se meteria com ela, pois não? perguntei.Não, Harriet, ele não faria uma coisa dessas. Eu não sou estúpida, de verdade. É uma coisa espiritual.Não tinha percebido que na Casa havia quem se importasse com a Jim e a Bob.O Harold importa-se com toda a gente.Ele é um menino da mamã?

A visão raio X entrou em acção. E tu na és uma espertalhona? Sim, é verdade. Ela era aquilo a que chamo uma inválida profissional ficava na cama enquanto o Harold a servia. Mas quando ela morreu, ele ficou completamente desorientado, nã sabia o q'havia de fazer. Pior, ela deixou tudo o que tinha a uma prima na Metrópole que nã via desde o tempo d'infância. A prima vendeu a casa e o Harold nã tinha p'ra onde ir. Gastara todos os tostões que ganhara com a cabra egoísta. Por isso, quando veio ter comigo à procura de um quarto, tive pena dele. Um dos outros tipos que ensina na escola fina dele viveu cá há séculos... foi assim que o Harold soube da Casa. Eu deitei as cartas e elas disseram-me q'ele tinha uma tarefa importante a desempenhar na Casa e eu recebi-o disse ela com uma careta , descobri q'ele era uma solteirona em mais do que nos maneirismos... sim, era virgem! Acredita no que te digo, princesa, tens de ter um homem virgem antes de morreres.

Eu queria desesperadamente dizer-lhe que pensava que o Harold era um homem muito doente mas, actualmente, a minha língua tende a meter-me em trabalhos, portanto mordi-a e não disse nada, nem mesmo sobre a forma como ele se emboscava e olhava para mim. Disse antes: Está muito cansada dele.Estou pelos cabelos, princesa.Então porque não se vê livre dele?Não posso. As cartas continuam a dizer que ele tem uma tarefa importante a desempenhar na Casa e não se pode desobedecer às cartas. Encheu novamente o copo e deu uma dentada no pão com enguia e disse, com a boca cheia: Então o Rei de Ouros foi p'ra casa, pr'à Terra do Caril?Há oito dias. Passei o último fim-de-semana em Bronte.Um tipo muito bem-parecido! Faz-me lembrar o Mr. Del-vecchio, só q'esse era um Esparguete, não tinha um toque de sangue escuro como o teu rapaz. Mas era orgulhoso e belo! Rei do mundo, o Mr. Delvecchio. Suspirou e fungou. Costumava ficar deitada na cama a vê-lo andar d'um lado p'ró outro como um galo. Um dos seus olhos claros olhou para mim, trocista, enquanto o outro se fechou especulativamente. O teu primeiro Rei de Ouros era um belo homem peludo?Não. Parecia-se mais com uma escultura de marfim.Uma pena. O Mr. Delvecchio tinha o corpo coberto de pêlo. Eu costumava pentear-lhe o peito e aquele sítio que tu sabes deu uma grande gargalhada era cheio de remoinhos e caracóis, remoinhos e caracóis! Uma bela selva. Eu adorava explorá-la! Pen-teava-a com a língua.

Não sei como, consegui manter uma expressão impávida. Isso foi há quanto tempo?Oh, parece que foi há cem anos! Na verdade foi aí há trinta. Mas, aaaah, lembro-me dele como se tivesse sido ontem! Lembra-mo-nos sempre assim dos nossos homens, vais descobrir isso quando eles se começarem a acumular. Sim, lembro-me como se tivesse sido ontem. É o que me mantém jovem.Não tiveram filhos? perguntei.Ná. Nã é estranho? Um belo homem peludo como ele e nã houve filhos. Acho q'a culpa era minha. A Fio veio depois de eu tomar hormonas.


O que aconteceu ao Mr. Delvecchio?

Ela encolheu os ombros. Nã sei. Um dia desapareceu. Nã levou nada. Esperei uns dias mas ele nunca regressou. Então eu deitei as cartas e elas disseram-me que ele se tinha ido de vez. A Torre. Os Amantes invertidos. O Enforcado. O Nove de Espadas. O Quatro de Paus invertido. A ruína da casa, sabes. Mas a Rainha de Espadas — eu estava bem colocada e ultrapassei aquilo. Uma vez vi-o no Cristal, muito tempo depois. Parecia estar muito bem e feliz e estava rodeado de miúdos. Quando estivemos juntos a primeira vez, ele ofereceu-me um coelhinho azul de pano para o filho que nunca tivemos. Ora, deixa!

A história comoveu-me imensamente, apesar de ter sido contada sem qualquer vestígio de autocomiseração. Lamento muito! disse eu.Não lamentes, princesa. As coisas têm o seu tempo de acabar, só isso. Tu sabes isso, depois da semana que passaste com a tua estátua de marfim.Sim, suponho que sei.Ficaste com o coração destroçado?Nem sequer amolgado.Então pronto, aí tens. Há mais peixes no mar, minha cara Harriet Purcell. Não és do tipo de ficar com o coração destroçado, és mais do tipo de partir corações. Não és como eu, mas nisso és parecida. A vida é demasiado bela e há demasiados peixes no mar para mulheres como nós, jovem Harriet Purcell. Somos indestrutíveis.

O brandy do Willie há muito que deixara de ter um sabor horrível, e a verdade é que quanto mais bebo mais gosto. E já tinha bebido uma boa quantidade, o que me permitiu continuar a fazer perguntas. Divorciou-se do Mr. Delvecchio?Não foi necessário.Quer dizer que não estavam oficialmente casados?É uma forma de descrever a situação tão boa como qualquer outra. A Mrs. Delvecchio Schwartz voltou a encher os nossos copos.

Mas a senhora e o Mr. Schwartz eram casados.


Sim. Estranho, não é? E com mais do que tempo para conseguir a Fio. Eu estava nessa idade. Sabes, quando os anos começam a passar e de repente ficas com um bocado de frio sem um marido que te aqueça os pés.O Mr. Schwartz era como o Mr. Delvecchio?Era o oposto, princesa, completamente o oposto. É assim que deve ser. Nunca repitas os mesmos erros! Nunca escolhas duas vezes o mesmo tipo de homem. A variedade é o sal da vida.O Mr. Schwartz era bonito?Sim, no género poético. Olhos escuros mas o cabelo muito louro. Um rosto agradável, fresco e jovem. A Fio é um bocado parecida com o pai.

Uma sensação deliciosamente dormente estava a espalhar-se pelo meu interior e, talvez por causa disso, ao olhar para a Mrs. Delvecchio Schwartz com os olhos semicerrados, vi como ela devia ter sido trinta ou quarenta anos antes. Não bela nem bonita, mas muito atraente. Os homens, ao escalar as suas alturas, deviam ter-se sentido como o Sir Edmund Hillary se sentira no topo do Monte Evereste.Gostou muito do Mr. Schwartz disse eu.Sim. Gostamos sempre daqueles que não chegam a velhos disse ela com ternura. O Mr. Schwartz não chegou a velho. Era vinte e cinco anos mais novo do que eu. Um adorável cavalheiro judeu.

Fiquei de boca aberta. E ele morreu?

            Sim. Uma manhã não acordou. Uma morte tramada, princesa. No inquérito disseram que ele tinha um coração fraco. Se calhar foi disso. Mas as cartas revelaram-me que, se não tivesse sido isso, teria sido outra coisa qualquer. Um autocarro ou a picada de uma abelha. Não se consegue escapar à velha senhora da foice quando chega a nossa hora.

Afastei o copo. Se não me for embora, Mrs. Delvecchio Schwartz, vou começar a entaramelar as palavras. Depois lembrei-me de outra pergunta. O Harold chamou-lhe Delvecchio. Mas esse não é o seu nome de baptismo. Qual é, se é que me permite perguntar?


            Essa é uma maneira engraçada de descrever o primeiro nome quando a maior parte do mundo não é cristã disse ela com um sorriso. Livrei-me do meu primeiro nome há montes de anos. A minha magia está em Delvecchio Schwartz.

            E a minha magia está em Harriet Purcell? perguntei. Ela beliscou-me a face. Ainda não sei, princesa. Uma espreguiçadela. Oh, mas que alívio! Hoje não tenho a porra do Ha-rold!

Desci as escadas, caí na cama e dormi duas horas. Há bocado, quando acordei, sentia-me óptima. Hoje fiquei a saber montes de coisas sobre a minha senhoria. Fio? Hormonas? Raios! Não perguntei.

 

Quarta-feira, 11 de Maio de 1960

Um pobre velhote entrou esta tarde com as duas pernas esmagadas logo abaixo da pélvis. Um daqueles acidentes horríveis e loucos que não deviam acontecer nunca. Ele ia a caminhar, a tratar da sua vida, quando um bloco de cimento caiu da cornija de uma fábrica velha. Se o tivesse atingido não teria restado nada dele, mas o que o apanhou foi a folha de chapa ondulada que veio atrás do bloco de cimento e que o atingiu a uma distância suficiente do solo para lhe esmagar as pernas e, quando bateu em terra, ressaltou, libertando-o e permitindo que a ambulância o transportasse para o Queens. Não havia esperança para ele, como é evidente, não na sua idade. Oitenta anos.

Estava a regressar da sala do pessoal feminino na direcção dos meus domínios quando a Enfermeira Herbert, do turno da noite, me agarrou e perguntou se eu estava ocupada. Disse-lhe que não.

            Olha, isto está um caos e vão chegar mais enfermeiras daqui a pouco, mas preciso de que alguém com formação vá ver o que está a perturbar o meu pobre velhote na Sete. Está muito agitado, não se acalma e eu não quero que ele vá infeliz desta para melhor. Fizemos o que podíamos de certeza que entregará a alma ao Criador esta noite, mas não pára de chamar alguém chamado Marceline. Não suporto a ideia de não estarmos a tratar devidamente os seus últimos momentos, mas não posso dispensar ninguém para falar com ele. Ele insiste que não tem família nem parentes oh, está completamente consciente, está nesse tipo de choque. Não te importas de falar com ele? E lá fui eu... aquilo estava mesmo um caos.

Ele era um doce, o pobre velhote, e estava escrupulosamente limpo. Tinham-Ihe tirado a placa e ele sorriu a mostrar-me as gengivas e apertou-me a mão. O soro, a cama de hospital, os monitores, nada parecia interferir com ele. Só conseguia pensar em Marceline. A sua gata.

Eu não vou estar em casa para lhe dar de comer disse ele. Marcelinel Quem cuidará do meu anjo?

As palavras atingiram-me como uma tonelada de tijolos. O anjo dele.

O meu coração condoeu-se dos velhos e abandonados e há tantos no interior da cidade, a viver naquelas casas geminadas em mau estado entre o Royal Queens e Cross. cama e mesa, só para homens dizem os cartazes de cartão escritos à mão, e homens como o meu pobre velhote lá vão sobrevivendo num quarto minúsculo. Subsistindo à custa de dignidade e do cheiro de um pano encharcado em óleo ou então encharcados em bebida. Comendo na sopa dos pobres, resignados com a sua solidão. E ali estava um deles, a morrer sob os meus olhos, sem ninguém que cuidasse do seu anjo.

Uma enfermeira do quarto ano chegou nem cinco minutos depois de mim e, entre as duas, conseguimos convencê-lo de que eu iria dar comida ao gato até ele voltar para casa. Assim que acreditou em nós, fechou os olhos e deixou-se ir, tranquilo.

Eu pedi emprestado o saco de lona com que a Chris ia às compras, forneci-me de alfinetes-de-ama, subi a Flinders Street, encontrei a casa e bati à porta. Quando ninguém respondeu, empurrei a porta da frente e comecei a bater a todas as portas que encontrei. O senhorio estava ausente, pois ninguém com autoridade me questionou. Um velhote todo a tremer e com um hálito tão alcoólico que me pôs a cabeça à roda, apontou para um arremedo de quintal. Um espaço horrível e rectangular cheio de tralha. E ali, sentada em cima da estrutura de um fogão a gás, estava o anjo do meu velhote. Uma gata esquelética, com pelagem malhada, que se pôs de pé e me miou em tons implorantes.

Estendi-lhe a mão. Marcelinel a Marcelinel

Ela saltou para o chão e esfregou-se nas minhas pernas a ronronar alto. Quando deitei o saco da Chris no chão e levantei uma ponta para formar uma gruta, a gata entrou calmamente lá para dentro e, quando se sentou no fundo chato e eu comecei a fechar o saco com os alfinetes-de-ama, a gata continuou a ronronar. E lá levei o meu fardo para casa sem nenhum problema a não ser o receio de que a Mrs. Delvecchio Schwartz se recusasse a deixar-me ficar com o anjo Marceline. Mais ninguém tem animais de estimação, a não ser o Klaus, que tem dois periquitos numa gaiola e que deixa esvoaçar pelo quarto.

Ela soube o que eu tinha no saco, apesar de o bicho não ter miado nem se ter mexido. Como é que ela sabe? Porque vê nas cartas ou no Cristal.

Fica com ela, princesa disse ela, acenando com a mão.

Eu não lhe disse que a Marceline era um anjo. Que trouxera o animal para casa como um presságio.

Quando abri o saco de compras, lá estava a Marceline deitada no fundo, com as patas dobradas a dormir uma soneca. Talvez o meu pobre velhote tivesse alguma razão ao sentir-se tão ligado ao único ser vivo da sua vida. A Marceline era especial. Dei-lhe enguia fumada para comer e ela devorou-a, esfomeada e, quando lhe mostrei a janela entreaberta, ela olhou-me com ar solene e depois caminhou bamboleante com a barriga distendida, saltou para o parapeito e desapareceu.

Será que amanhã de manhã ainda terei uma gata?


 

Quinta-feira, 12 de Maio de 1960

Sim, ainda tenho uma gata. Quando acordei, a Marceline estava enrolada aos pés da minha cama. Peguei nela e examinei-a cuidadosamente, à procura de pulgas, feridas, sarna, mas ela estava tão escrupulosamente limpa como o seu velhote. Só estava magra, provavelmente porque ele não tinha dinheiro para a alimentar com abundância. Tomámos o pequeno-almoço juntas: tostas com ovo mexido... ela não é, isso é seguro, esquisita com a comida. Mas gosta bastante de natas. Isso deverá engordá-la. Na Casa não há problema em ter uma janela aberta; para se chegar ao nosso quintal, tem de se escalar um talude com vinte metros de altura. E para que é que alguém se daria a esse trabalho, se a porta da frente está sempre aberta?

O meu pobre velhote tinha entregue a alma ao Criador mais ao menos à mesma hora em que eu me apropriara do seu anjo, na casa de Flinders Street.

Como teria de levar a Marceline ao veterinário para a desparasitar e, talvez, esterilizar, fiquei com o saco de lona da Chris e ofereci-lhe um novo e mais bonito que comprei a caminho do trabalho.

 

Sábado, 14 de Maio de 1960

Acreditam numa coisa destas? O David Murchison apareceu pouco tempo depois de eu ter regressado do veterinário. O meu pobre velhote sem dúvida que gastara o que pudera com o seu anjo, pois o veterinário disse-me que ela já estava esterilizada. Só tive de pagar a desparasitação, os comprimidos de levedura e um par de vacinas contra as febres dos felinos. Uma porra de cinco libras! Por isso, quando o David me apareceu à porta, eu estava a pensar na minha gata dispendiosa e na sorte que os veterinários têm.

Quando viu a Marceline enrolada no meu colo, o David estremeceu e não fez qualquer tentativa de se aproximar de mim, ficando do outro lado da lareira onde (mais um contador, mais moedas) eu tinha acendido o fogão a gás. O Inverno está ao virar da esquina.


Onde é que foste arranjar isso? perguntou ele com um esgar de nojo.No paraíso, suspeito respondi. Acabo de regressar do veterinário e posso dizer-te que o nome dela é Marceline, que foi esterilizada e que tem cerca de três anos.

A sua única reacção foi um som de repugnância, mas sentou-se à minha frente no outro cadeirão, olhou para mim com aqueles olhos azuis que eu costumava achar divinos e entrelaçou os dedos.

Ouvi dizer que tens uma namorada nova disse eu em tom casual.

Ele corou e pareceu ficar aborrecido. Não, não tenho! disse numa voz agreste.Partiu-te o molde, foi?Estou aqui disse ele em voz tensa para te pedir que mudes de ideias e voltes para mim. A Rosemary foi uma compensação, só isso.David disse eu pacientemente , tu saíste da minha vida. Não quero ver-te, quanto mais sair contigo.És cruel tartamudeou ele. Estás mudada.Não, não estou, pelo menos no que te diz respeito. Mas sou uma pessoa diferente. Ganhei coragem para ser directa e a dureza suficiente para resistir quando as pessoas tentam manipular a minha compaixão. E tu podes levantar o traseiro da minha cadeira e pirar--te, porque eu não te quero.Não é justo! gritou ele com as mãos abertas. Eu amo-te! E não vou aceitar um não como resposta.

Pronto, Harriet Purcell, podes sacar do canhão Grande Bertha4. Não sou virgem disse.O quê?Ouviste-me. Não sou virgem.Estás a brincar! Estás a inventar!

Ri-me. David, porque não consegues acreditar na verdade?

            Porque tu não farias isso! Não podias!

 

Dicke Bertha - Trad. literal Bertha Gorda, obus usado pelos Alemães na Primeira Guerra Mundial, cujo nome fica a dever-se à mulher de Alfred Krupp, o fabricante de armamento. (TV. da T.)

 

 

            Ai isso é que podia, e fiz mesmo. E mais, gostei imenso. Dispara o projéctil das dez toneladas, Harriet! E mais, ele não era exactamente um homem branco, apesar de ter uma cor linda.

O David levantou-se e saiu sem mais uma palavra.Pronto disse ao Toby mais tarde , vi-me finalmente livre do David de uma vez por todas, embora suspeite de que foi mais por o meu amante ser indiano do que por ter tido um amante.Não, foi um pouco das duas coisas disse o Toby a sorrir. O imbecil! Ele devia ter percebido, há anos, o que estava para vir. São as mulheres que escolhem os parceiros. Se um homem está interessado, tem de esperar de chapéu na mão até ela se decidir. E se ela decidir mandá-lo dar uma curva, paciência. Já vi isso acontecer com todos, desde os cães aos passarinhos. Quanto às aranhas estremeceu , as senhoras comem os companheiros.Obrigadinha, mas eu não sou uma cadela no cio! rosnei.

Ele riu-se. Talvez não, Harriet, mas não há dúvida de que surtes efeito em nós, pobres cães. Baixou as pálpebras e estudou-me como um atirador estuda o seu alvo. És sensual. Não é coisa que se possa classificar, está por baixo da pele.Eu não faço beicinho, não dou ao rabo nem deito a língua de fora!Isso é confundir forma com conteúdo. Quando um homem diz que uma mulher é sensual, quer dizer simplesmente que acha que ela seria divertida na cama. Algumas das mulheres como o ar mais doméstico que eu conheço são sensuais. Olha a Mrs. Delvecchio Schwartz. Parece uma bota da tropa, mas aposto que os homens têm andado aos saltos atrás dela desde que tinha doze anos. Eu próprio me sinto atraído por ela, na verdade. Sempre gostei de mulheres mais altas do que eu. Devo ter sangue sherpa5.

Avançou até junto do meu cadeirão e pôs uma mão no espaldar, depois baixou-se sobre um dos braços do cadeirão, prendendo-me com um dos joelhos. E, de acordo com a minha experiência, as mulheres genuinamente sensuais são divertidas na cama.

5 Sherpa — Etnia que habita os Himalaias cujos membros são especialistas em monta-


A Casa dos Anjos

Eu olhei, desconfiada. Isso é uma indirecta ou um convite?

Nem uma coisa nem outra. Não tenciono que, nesta altura do campeonato, tu fiques comigo preso pelos tomates, muito obrigado. O que não quer dizer que não te vá beijar, percebes?

E beijou, com força suficiente para ser doloroso até a minha cabeça se desencostar da cadeira e virar-se, para se ajeitar a ele, e aí encaixou a boca lascivamente na minha e brincou com a minha língua.Não pretendo passar daqui disse ele, soltando-me.Não pretendia deixar-te passar daqui respondi.

Um homem interessante, o Toby Evans. Apaixonado pela Pappy mas, ainda assim, atraído por mim. Bem, eu também me sinto atraída por ele, apesar de não estar apaixonada. Porque será que tudo na vida parece acabar no sexo?

A Pappy está outra vez em casa, este fim-de-semana. A mulher do Ezra, disse-me quando a convidei para vir comer qualquer coisa e conhecer a Marceline, está a ser horrivelmente difícil.Com sete filhos isso não me surpreende disse eu, pondo a carne guisada em cima da mesa para nos servirmos à vontade. Reparei que a Pappy torceu o nariz e começou à procura das cenouras e das batatas e deixava a carne. Que se passa? perguntei.O Ezra detesta comer carne. Os animais dos prados são criaturas inocentes que sujeitamos a torturas horríveis nos matadouros explicou. O homem não foi criado para comer carne.Isso é uma idiotice completa! O Homem, no início, era caçador e nas nossas gengivas há tantos dentes para rasgar a carne como para moer as plantas! ripostei. Os matadouros são inspeccionados por funcionários do Estado e os animais que lá vão parar nem sequer existiriam se nós não os comêssemos. Quem é que te diz que a cenoura que estás tão ocupada a mastigar com os teus dentes omnívoros não foi sujeita a uma tortura horrível quando foi arrancada do solo, decapitada, esfregada com força suficiente para lhe tirar a pele, cruelmente cortada em bocados e depois fervida até toda a vida se evaporar dela? E isso não é nada, quando comparado com o destino da batata que estás a devorar: não só a esfolei como peguei numa faca afiada que lhe enfiei na carne para lhe arrancar todos os olhos!


A carne faz-te bem, estás tão magra que já deves estar a queimar proteínas musculares. Come tudo!

Meu Deus, estou a transformar-me numa víbora. Mas, ainda assim, funcionou. A Pappy serviu-se de carne e apreciou suficientemente o sabor para se esquecer do querido estúpido, parvalhão e atrasado mental do Ezra.

Felizmente, gostou da Marceline e a Marceline gostou suficientemente dela para lhe saltar para o colo e ronronar. Depois dediquei--me a sacar informações sobre o Ezra e fiquei a saber algumas coisas interessantes, do tipo como é que ele consegue manter a mulher e sete filhos, um apartamento em Glebe e comprar substâncias muito dispendiosas que a Lei proíbe. Ele é catedrático, mas os académicos não recebem o mesmo que os directores de empresas, pois o intelecto e a educação não estão ao nível dos fazedores de dinheiro. O seu salário, segundo a Pappy, é entregue à família. Mas escreveu um par de livros que são um sucesso editorial e fica com esses rendimentos. Oh, quanto mais sei do Ezra, menos gosto dele! Completa, total e perfeitamente egoísta.

Por outro lado, a Pappy está muito feliz e cada dia que ela está feliz é um dia em que não está infeliz. Não tem um grama de sentido prático, mas suponho que nem toda a gente pode ser como eu.

 

Sábado, 28 de Maio de 1960

Um animal é uma boa companhia. Hoje foi um daqueles sábados verdadeiramente calmos, com a Jim e a Bob às voltas pelas Montanhas Azuis na Harley Davidson, o Klaus lá para Bowral, o Chikker e a Marge do apartamento térreo da frente a dormir para curar a ressaca, o Toby fora com o bloco de desenho e as aguarelas num qualquer local que lhe agradara em Iron Cove, a Mrs. Delvecchio Schwartz a tratar de uma avalancha de clientes de cabelos branco-- azulados (adoram vir aos sábados) e a Pappy algures, na terra dos sonhos, em Glebe. O Harold estava cá, evidentemente. Não sei o que ele faz quando não está a dar aulas na escola, mas o certo é que não sai. A Mrs. Delvecchio Schwartz lava-lhe a roupa juntamente com a sua, portanto o local da Casa onde estou certa de não o encontrar é na lavandaria e no quintal. Nunca se ouve um som vindo do seu quarto, apesar de ficar mesmo por cima de mim: nem música, nem o ranger do meu tecto e, quando estou lá fora e ergo os olhos para olhar para a sua janela, a cortina está descida e ambas as vidraças completamente fechadas. No entanto, há uma parte de mim que está sempre ciente dele. Costumava ser só quando subia as escadas para ir tomar duche, mas nas duas últimas semanas reparei que, quando vou lá acima para ir ver alguém e desço novamente, parece que oiço o roçar de pés descalços atrás de mim. Viro-me, mas não vejo ninguém. E se é a Mrs. Delvecchio Schwartz que vou visitar, ele está sempre no patamar junto à porta dela quando me vou embora, sem se mexer, limitando-se a olhar-me fixamente.

Deviam ser cerca de seis horas quando alguém me bateu à porta. Os dias diminuíram imenso e às seis horas já é de noite, e eu comecei a trancar-me por dentro quando as traseiras da Casa estão desertas com excepção de mim e do Harold. Um indicador ainda melhor da minha paranóia crescente é o facto de ter pregado pregos de quinze centímetros nos caixilhos e arquitraves das janelas, de forma a poder mantê-las abertas em cima e em baixo mas não deixando o espaço suficiente para alguém se esgueirar para o interior. Sydney não é suficientemente fria para se fecharem completamente as janelas durante o Inverno, e nem o vento nem a chuva entram directamente pelo corredor lateral e, no Verão, não apanho com o sol de chapa. Quando estou dentro de casa e a grande tranca está posta, estou segura. Quando penso no assunto, arrepio-me toda. Aquele homenzinho horroroso do primeiro andar anda a fazer-me guerra psicológica e, apesar de todo o horror que tenho à cobardia, ele está de alguma forma a vencer a guerra. Contudo, não posso falar do assunto com ninguém... quando o mencionei ao Toby ele riu-se de mim. Disse que eu estava paranóica.

Por isso, quando me bateram à porta dei um salto. Eu estava a ler um policial de uma autora bife peneirenta e o Planet Suite de Holst estava a tocar na aparelhagem do Peter, o aquecedor a gás estava ligado e a Marceline estava enrolada no outro cadeirão, profundamente adormecida. Uma parte de mim queria perguntar quem era, mas isso seria uma cobardia, Harriet Purcell. Dirigi-me à porta, des-tranquei-a e abri-a de repente, com todos os músculos preparados, não para fugir, mas para lutar.

Quem ali estava era Mr. Forsythe. Os meus músculos descontraíram-se.

            Olá, Senhor Doutor disse eu alegremente, e abri completamente a porta. Ah, hum, entre. Numa voz fraca.

            Espero não estar a ser inoportuno? perguntou ele, entrando.

Que fraseado incrível! Deus falou numa língua superior, nada de «Não atrapalho, pois não?».

            Está a ser perfeitamente oportuno, Doutor disse eu. Sente-se.

A Marceline, contudo, não dava sinais de se querer mexer. Gosta demasiado do fogo. A solução dele foi pegar-lhe, instalar-se no cadeirão, pô-la no colo e fazer-lhe festas para que adormecesse novamente.Posso oferecer-lhe café ou brandy corrente disse eu.Café, obrigado.

Desapareci atrás do meu biombo e fiquei a olhar para o lavaloiça como se este tivesse a solução para o significado da vida. O som da voz dele fez-me entrar em acção, enchi a máquina de café com água, juntei o café e liguei-a.

            Fui visitar uma idosa, minha doente, em Elizabeth Bay estava ele a dizer , e terei de lá voltar mais tarde, esta noite. Infelizmente, fica a mais de uma hora de distância da minha casa e pensei que você talvez estivesse livre para jantar aqui na zona.

Oh, meu Deus! Devem ter passado quase dois meses desde a última vez que o vi, naquela noite em que ele me deu boleia para casa e bebeu uma caneca do meu café. Desde então, não soubera mais nada dele.

            Eu vou já disse eu, pensando qual seria a razão de as máquinas de café levarem tanto tempo a fazer o seu trabalho.


Porque estaria ele aqui? Porquê?

            Simples, sem açúcar disse eu reaparecendo finalmente. Depois sentei-me à frente dele e olhei-o da mesma forma que a Chris Hamilton olhara para o Demetrios naquele célebre dia em que eu me atirara a ela como uma ratazana encurralada num esgoto. As vendas caíram-me dos olhos. Ele deseja-me! E fiquei ali a olhar para ele estupidamente, demasiado espantada para conseguir dizer o que quer que fosse.

Acho que ele não viu a caneca de café nem reparou no gato que tinha no colo, estava demasiado concentrado em mim, com o queixo erguido, os olhos firmes e calmos. Parecia-se um pouco com uma estrela de cinema a representar um espião a caminho da sua própria execução. Preparado para sofrer, preparado para morrer pelas suas convicções. Subitamente, apercebi-me de que não sabia nem de longe o suficiente acerca dos homens para compreender as forças que impeliam um homem como o Duncan Forsythe a fazer uma coisa destas. Sabia apenas que, caso aceitasse o seu convite, iria desencadear uma série de acontecimentos que podiam arruinar-nos a ambos.

Quão rápido é o pensamento? Quanto tempo é que fiquei ali sentada, muda, a decidir-me? Com excepção do Harold, estou satisfeita com a minha sorte — comigo própria, com a minha sexualidade, o meu código de conduta, com a minha vida. Mas ele, pobre homem, não sabe sequer o que é ou quem é. Não faço a mínima ideia da razão por que ele me deseja, sei apenas que chegou ao extremo que o fez vir aqui convidar-me. Tendo apenas três breves encontros anteriores comigo.

            Muito obrigada, Mr. Forsythe disse eu. Ficaria encantada por jantar consigo.

Por instantes, ele pareceu ter sido apanhado completamente desprevenido, mas depois aquele sorriso que me derrete completamente iluminou-lhe o rosto e o olhar. Reservei uma mesa no Chelsea para as sete disse ele vendo finalmente o café, pegando-lhe e começando a dar pequenos goles. O Chelsea. Bom Deus! A coscuvilhice do hospital estava certa, ele não é mesmo um mulherengo.


Estava a preparar-se para me levar a jantar ao restaurante mais chique entre a Baixa e Prunier's, onde metade dos clientes o reconheceriam imediatamente.Ao Chelsea não, Doutor disse eu suavemente. Não tenho roupa para um sítio desses. Importa-se de ir ao Bohemian, que fica ao fundo da rua? Come-se Ovos à Russa e Rostbraten Esterha-zy6 por cinquenta cêntimos.Como preferir — disse ele como se lhe tivessem tirado dos ombros um fardo pesadíssimo. Depois pousou a caneca e levantou-se, depositando a Marceline no cadeirão. Certamente que quer ficar algum tempo sozinha disse então com a cortesia que o tornara famoso , eu vou para o carro e espero lá por si. Deteve-se junto à porta. Deverei ir lá já para fazer uma reserva?Não é necessário, Senhor Doutor. Eu irei ter consigo dentro de instantes disse eu, e fechei a porta nas suas costas.

O Nal tinha sido um devaneio, mas aquilo em que me estava a meter não poderia, de forma nenhuma, transformar-se numa indulgência amigável de curta duração. Tal não fazia parte da natureza de Duncan Forsythe, conseguia percebê-lo sem precisar de consultar a Mrs. Delvecchio Schwartz. Oh, raios! Que será que nos leva a transformar as nossas vidas em caos potenciais? Eu deveria ter corrido educadamente com ele, sabia-o. Não tive simplesmente a coragem e a personalidade suficientes para o fazer. Não sou nenhuma Enfermeira-Chefe, eu. Fui vestir o meu fato novo de Inverno em tweed cor-de-rosa com borbotos, enfiei os pés nos sapatos com os saltos mais altos que possuo não corria o risco de ficar mais alta do que ele e procurei o meu único par de luvas. Umas luvas de algodão branco e não de pelica. Aos chapéus não os suporto, são completamente inúteis, sobretudo quando se tem o cabelo em pé.

Comemos Ovos à Russa e Rostbraten Esterhazy no Bohemian e quase não dissemos palavra. Mas ele insistiu em mandar vir um borgonha espumante que quase duplicou o preço da refeição. O Mr. Czer-ny serviu-nos pessoalmente e, quando Duncan Forsythe pôs em cima

 

Rostbraten Esterhazy - Uma receita alemã de bife. (N. daT.)

 

da mesa uma nota azul de cinco libras novinha em folha e lhe disse para guardar o troco, Mr. Czerny quase desmaiou.

Tínhamos ido a pé e regressámos da mesma forma. Quando avistámos a sombra da escola para raparigas de S. Vicente, eu atravessei a estrada na diagonal sem parar para ver se vinham carros e ele estendeu o braço para me agarrar, para me deter. O contacto fez-me entrar em pânico, esbarrei numa árvore e dei por mim contra o tronco com ele na minha frente. Ouvi-o ofegar e depois senti a sua boca ro-çar-me a face e fechei os olhos, encontrei os lábios dele e agarrei--me a eles com uma alegria feroz, aumentada pelos meus receios em relação ao futuro.

Depois disso convenci-o, através de olhares e toques, a entrar. As luzes estavam acesas, aguardando o nosso regresso, e lá estava a Mareline, olhando-nos do seu cadeirão, bocejando e mostrando a língua cor-de-rosa.

Ele atirou a cabeça para trás, as pupilas dos olhos ainda muito dilatadas devido à escuridão da noite e ofegando como se tivesse vindo a correr. Oh, tinha um ar tão vivo! E eu sabia que ele pagaria por isto um preço tão elevado que eu teria de fazer tudo ao meu alcance para que merecesse o preço.

E amei-o com a pele e a boca e as pontas dos dedos, delicada e suavemente, forte e apaixonadamente. Era óptimo estar novamente com um homem, especialmente com este homem. O Nal fora uma experiência de aprendizagem, descuidada e descontraída, os fins e os meios num só. Mas o Duncan Forsythe era importante. Não haveria forma de o poder separar da minha vida. A emoção! Beijei-lhe as mãos e os pés, montei-o até as suas costas se arquearem por entre as minhas coxas escorregadias, enlacei-o com os braços e as pernas e lutei com ele, músculos contra músculos, até a sua força superior me dominar.

Ele ficou até um pouco depois das onze, pareceu-me, dado ter perdido completamente a noção da passagem do tempo e depois, subitamente, saiu da minha cama e ficou a olhar para mim.

Tenho de ir disse ele, mas depois de se vestir e de usar o pente em frente ao meu espelho, voltou para junto de mim, debruçou-se e encostou a face à minha. Posso vir cá amanhã depois das quatro?

            Oh, sim respondi.

Oh, sim. Acho que devo estar apaixonada. Se não, porque teria eu permitido que algo assim acontecesse?

 

Domingo, 29 de Maio de 1960

Quando cheguei ao andar de cima à uma hora, para a minha sessão com a Mrs. Delvecchio Schwartz, já tinha encontrado o Toby. Não faço ideia de como as notícias se espalham tão depressa, porque o Toby sabia, mas como podia saber?

            És uma idiota disparou ele com os olhos mais vermelhos do que castanhos. Se tal for possível, ainda és mais idiota do que a Pappy.

Não me dei ao trabalho de responder: limitei-me a empurrá-lo e a entrar na sala da Mrs. Delvecchio Schwartz.O Rei de Ouros está aqui disse ela enquanto eu me sentava e estendia a mão para o copo de vidro grosso com brandy.Eu não percebo esta casa disse eu bebericando moderadamente, era melhor ter calma, com o Mr. Forsythe de regresso dali a um par de horas. Como é que as notícias se espalham?É a Fio disse ela simplesmente, fazendo o nosso anjinho saltitar sobre os joelhos. A Fio fez-me um sorriso triste e depois saltou do colo da mãe e foi garatujar a parede.Nã te rala ele ser casado? perguntou a minha senhoria, servindo-me pão com manteiga e enguia fumada.

Pensei no assunto e depois encolhi os ombros. Na verdade, acho até que fico satisfeita por ele ser casado. Não tenho a certeza daquilo que quero, mas tenho a certeza do que não quero.E o qu'é que nã queres?Assentar numa casa fina a fazer de Esposa do Sr. Doutor.Ainda bem disse ela com um sorriso. As cartas nã dão muitas esperanças d'uma vida nos subúrbios p'ra ti, Harriet Purcell.


            E tenho uma vida em Kings Cross? perguntei.

Mas ela tornou-se vaga, recusando comprometer-se. Tudo depende do q'acontecer com aquilo. E apontou para a bola de cristal.

Estudei-a com curiosidade e com mais atenção do que alguma vez lhe dispensara. A bola não era perfeita, apesar de não ter rachas nem bolhas. Apenas farrapos baços, tão etéreos como as nebulosas de estrelas nos nossos céus do Sul. Estava assente numa base de madeira de ébano que devia ser côncava para acomodar a bola enorme tinha pelo menos vinte centímetros de diâmetro com tanta estabilidade e reparei que um pedacinho de um tecido negro estava dobrado por cima da borda da base. Sim, a madeira de ébano teria de estar acolchoada, para não riscar o cristal. Eu tinha procurado a definição de cristal de quartzo na enciclopédia na biblioteca do Queens e descobrira que este tinha uma dureza suave. Não adequado para pedras preciosas, mas podia ser esculpido e polido. Por que é que ela tinha dito aquilo Era significativo, mas como?Tudo depende do que aconteça ao Cristal disse eu.Certo. Ela tencionava, portanto, manter-se críptica.

Eu insisti, perguntando em tom casual: Quem será que teve primeiro a ideia de esculpir o cristal mineral numa bola e de a usar para ver o futuro?

            Oh, até pode nã ser o futuro. Pode ser o passado. Nã sei, mas as bolas de cristal já eram antigas quando o Merlim era rapazinho

            disse ela recusando-se a deixar-se encaminhar.

Vim-me embora cedo para já estar em casa quando Mr. Forsythe chegasse, mas havia coisas que não iam mudar só porque ele existia. A Fio viria passar as duas horas do costume comigo e ele ou gostava ou engolia. A Mrs. Delvecchio Schwartz não queria, mas eu levei a melhor. Quando o Harold chegasse, o anjinho viria ter comigo lá abaixo.

Ele estava lá fora, às escuras, o Harold. A espera. Os olhos cheios de ódio. ígnorei-o e comecei a descer as escadas.

            Puta! murmurou ele. Puta!

Mr. Forsythe chegou pontualmente. Eu estava no chão, a brincar com os lápis de cor da Fio porque ela se recusa a brincar com mais o que quer que seja. Tinha trazido alguns dos meus antigos brinquedos de Bronte: uma boneca com vestidos, um pequeno triciclo, cubos com as letras do alfabeto em cada uma das faces. Mas ela nem olhou para eles. Só queria os lápis de cor.

            A porta está aberta! gritei.

E a primeira coisa que o pobre homem viu foi a namorada no chão, em cima da carpete, a brincar com os lápis de cor e uma menina de quatro anos. Fez uma cara tal, que não consegui deixar de me rir.Não, não é minha filha disse eu, levantando-me e pondo-lhe as mãos dos dois lados do pescoço para lhe puxar a cabeça para baixo até conseguir encostar a boca e o nariz ao cabelo branco de neve da sua têmpora. Ele cheirava optimamente, a sabonete caro, e não enchia aquele cabelo maravilhoso de brilhantina. Depois agarrei-lhe na mão e levei-o até junto da Fio, que o olhou sem vestígios de medo e sorriu imediatamente.Esta é a Fio, a filha da minha senhoria. Tomo conta dela todos os domingos entre as quatro e as seis; portanto, se estiver com pressa, tudo o que poderá fazer comigo é conversar.

Ele pôs-se de cócoras e fez festas no cabelo de Fio, sorrindo-lhe. Como estás, Fio? Os ortopedistas costumam ter jeito para as crianças, pois uma boa parte dos seus doentes são crianças, mas por mais que se esforçasse não conseguiu que a Fio falasse.

            Ela parece ser muda disse eu , embora a mãe diga que ela fala. Pode ser céptico a esse respeito, mas eu e um amigo meu pensamos que ela e a mãe comunicam sem palavras, através de uma espécie de telepatia.

Ele era céptico... bem, é um cirurgião. Não são dados a devaneios, pelo menos em relação a coisas como a telepatia e a percepção extra-sensorial. Para isso há os psiquiatras e, melhor ainda, um psiquiatra asiático.

No entanto, o Harold hoje foi despachado a toda a velocidade. A Fio não estava no meu apartamento há mais de meia hora quando a Mrs. Delvecchio Schwartz entrou ruidosamente pela porta que continuava aberta.


            Oh, estás aí, meu anjo! guinchou ela numa voz artificial como se tivesse revistado a Casa de ponta a ponta. Depois estacou como uma comediante grotesca e fingiu que nunca vira um homem até àquele exacto momento. Oh! O Rei de Ouros! urrou e agarrou na Fio, que estava espantada. Anda, meu anjo, não empates. Dá-lhes alguma privacidade, ah, ah, ah.

Lancei-lhe um olhar que lhe deu a entender que aquela fora a pior actuação que eu alguma vez vira e disse: Mrs. Delvecchio Schwartz, este é o Dr. Duncan Forsythe. E um dos meus chefes no Queens. Doutor, esta é a mãe da Fio, a minha senhoria.

A malvada fez-lhe mesmo uma vénia. Maravilhada por o conhecer, senhor. Com a Fio debaixo do braço, marchou porta fora com mais um ahahah.Meu Deus! disse o Mr. Forsythe a olhar para mim. Ela é a mãe biológica da Fio?Ela diz que sim e eu acredito.Ela devia estar na menopausa quando teve a pequenina.Disse-me que nem sabia que estava grávida.

E aquelas foram as últimas palavras pronunciadas durante pelo menos uma hora. Oh, ele é um homem adorável! Damo-nos tão bem!Vais ter de deixar de pensar em mim como Mr. Forsythe e parar de me chamar doutor. Foram as primeiras palavras pronunciadas após aquela hora. O meu nome é Duncan, como já deves saber. Gostaria de o ouvir nos teus lábios, Harriet.Duncan disse eu. Duncan, Duncan, Duncan.

O que levou a outro interlúdio, após o qual aqueci o guisado de peito de carneiro que fizera de manhã e cozi algumas batatas para acompanhar. Ele comeu como se estivesse a morrer à fome.Não te ralas com o facto de eu ser casado? perguntou, enquanto molhava grandes bocados de pão no molho.Não, Duncan. Ontem percebi que tu já tinhas resolvido essa questão antes de aqui chegares. A mim não me rala nada que sejas casado, desde que também não seja um problema para ti.

Mas é claro que para ele é importante o facto de ser casado, como passou a explicar-me mais pormenorizamente do que aquilo que eu estava interessada em ouvir. Mas que grande fardo é a culpa. A verdade é que ele andou atrás de mim a mulher é um bloco de gelo e, para ela, ele só significa dinheiro. É o que acontece com as mulheres de muitos médicos. Eu sabia, por ter ouvido a Chris e a Enfermeira das Urgências a conversarem, que ele se casara com uma colega de escola da Enfermeira das Urgências a enfermeira mais alegre e bonita daquele ano, tal como o Duncan daqueles tempos fora o médico-chefe solteiro mais cobiçado e atraente de Queens. E, ainda por cima, a família dele é podre de rica. Dinheiro antigo, dissera a Enfermeira das Urgências, em tom de admiração. O dinheiro antigo é mesmo uma coisa espantosa, num país que começou ainda ontem, apesar de me parecer que a definição australiana de dinheiro antigo não é a mesma da inglesa.

Ele e Cathy tinham sido bastante felizes durante os primeiros anos, enquanto ele estava a estabelecer-se como especialista e ela a ter os dois filhos de ambos. O Mark tem treze anos e o Geoffrey onze. Ele adora-os, mas quase não os vê devido aos muitos e muitos quilómetros percorridos no seu Jaguar e às muitas horas passadas em blocos operatórios e consultórios, enfermarias e consultas externas. Tinha na ponta da língua uma pergunta relativamente à razão por que todos eles pareciam viver em North Shore quando os seus hospitais eram frequentemente do lado oposto de Sydney e por que é que os consultórios têm de ser em Macquarie Street, que não fica a caminho nem dos hospitais nem das residências. Os Chefes de Serviço no Vinnie's Hospital, que fica bem localizado, são quase todos católicos ou judeus que vivem sensatamente nos subúrbios orientais.

Mas não disse nada, porque as minhas dúvidas não ficariam esclarecidas com as respostas que Duncan me daria. A verdade é que são as mulheres deles que adoram a parte alta de North Shore. Aglo-meram-se entre Lindfield e Wahroonga, onde podem conduzir os seus elegantes carrinhos britânicos a salvo do trânsito mais intenso, podem reunir-se para jogar brídege, canasta, ter reuniões das várias comissões a que pertencem e jogar ténis. Os filhos frequentam as escolas privadas muito finas da área e há montes de árvores, pedaços de verdadeira floresta. A parte alta de North Shore é idílica para uma esposa rica.

Seja como for, a mim a Cathy Forsythe parece-me uma bela cabra, apesar de o Duncan a defender valorosamente e de se responsabilizar a si próprio pela sua infidelidade. E talvez de forma totalmente subconsciente! um pouco a mim.

            És uma bruxa, minha querida morena disse ele agarrando-me a mão por cima da mesa. Enfeitiçaste-me.

Como é que se responde a uma coisa assim? Nem tentei.

Ele levou a minha mão aos lábios e beijou-a. Tu não sabes como é ter sucesso disse ele , por isso vou dizer-te. A última coisa que as pessoas que te amam compreendem é que tu gostas do trabalho pelo trabalho em si. És apanhada por uma imagem que pertence a toda a gente menos a ti. Mesmo no trabalho, metade consiste em fazer com que as outras pessoas estejam felizes, não fazer ondas no grande lago hospitalar. O meu tio é Presidente do Conselho de Administração do Hospital, o que tem sido um grande empecilho ao longo dos anos. Eu estava satisfeito como Subdirector de Serviços: tinha mais tempo para a investigação e para tratar dos meus doentes. Mas, como mais alto responsável pela Ortopedia, acabo por passar um tempo imenso em reuniões... a política no hospital é como qualquer outra forma de política.

            Deve ser uma grande chatice disse eu calorosamente, agradada pelo facto de ele não ter andado a lamber as notas do tio. Duncan Forsythe é exactamente aquilo que parece ser: um homem muito simpático, decente, educado e inteligente. Deixa lá, Duncan. És bem-vindo no 17c da Victoria Street sempre que tiveres tempo.

Aquela não era, evidentemente, a resposta que ele queria ouvir. Ele queria que eu lhe dissesse que o amava loucamente, que moveria montanhas por ele, que lhe lavaria as meias e lhe faria broches. Bem, não me importo de lhe lavar as meias e gosto de semibroches, se é que esse é o termo correcto para não ir até ao fim. Mas não tenho a certeza de querer entregar-lhe a chave da minha alma. Tenho muita pena dele e gosto imenso dele e adoro fazer amor com ele e temos uma outra ligação, que é a camaradagem profissional. Mas amor? Se isso significa entregar a chave da minha alma, então não é amor.

Depois de ele ter saído, cerca das nove da noite, fiquei uma hora a pensar em nós e no fim continuava sem ter a certeza de o amar loucamente. Porque um raio me parta se eu vou abdicar da minha liberdade por ele. É como eu disse à Mrs. Delvecchio Schwartz: não quero viver numa casa chique e fazer de esposa do Senhor Doutor.

Ao reler o que escrevi no sábado à noite, percebi como a minha atitude mudou rapidamente. Na altura, pensava que estava apaixonada. Agora percebo que não estou nada apaixonada. O que é que me mudou em meras vinte e quatro horas? Acho que foi ouvi-lo falar da sua vida e da mulher. Foi ela quem lhe conseguiu o mais alto cargo!

 

Segunda-feira, 30 de Maio de 1960

Hoje ele apanhou-me nos semáforos da Cleveland Street, quando eu ia para casa já de noite, mas, apesar de me ter feito um daqueles sorrisos incríveis e de ter os olhos a brilhar, percebi imediatamente que não estava a pensar em fazer amor. O que me fez sentir um pouco melhor em relação a nós; era evidente que para ele eu era mais do que um corpo de mulher que, por acaso, o atraía.

            Não tenho muito tempo disse ele enquanto conduzia , mas hoje apercebi-me de que não fiz qualquer esforço para cuidar de ti, Harriet.

Mas que coisa tão estranha para se dizer! Cuidar de mim?

            Sim, cuidar de ti. Ou talvez fosse mais apropriado perguntar como cuidas de ti.

A moeda caiu e a lâmpada acendeu-se. Oh! disse eu. Oh, isso! Receio não ter pensado no assunto. A minha carreira de amante mal começou, sabes. Mas, de momento, devo estar a salvo. O meu período deve vir amanhã e eu sou certa como um relógio.


Ouvi o seu suspiro de alívio mas, tendo ficado descansado, não disse mais nada até eu lhe abrir a porta do meu apartamento. Pegou na Marceline e aconchegou-a no colo e depois pôs a maleta preta em cima da minha mesa. Até tê-lo feito, eu não me apercebera que ele a trazia, tal é a forma como ele me afecta.

Tirou de lá de dentro o estetoscópio, o esfígmomanómetro e aus-cultou-me o coração e os pulmões, mediu-me a tensão arterial, inspeccionou-me as pernas à procura de varicoses, puxou-me a pálpebra inferior para baixo, olhou cuidadosamente para as pontas dos meus dedos e para a cor dos lóbulos das minhas orelhas. Depois tirou o livro de receitas de dentro da mala e escreveu rapidamente, destacou a folha de cima e entregou-ma.Este é o melhor dos novos contraceptivos orais, minha querida Harriet disse ele, voltando a enfiar tudo dentro da mala. Começa a tomá-los assim que terminares o próximo período menstrual.A pílula? guinchei.É o que lhe chamam. Não deves ter problemas, tens uma saúde excelente, mas se sentires dores nas pernas, falta de ar, tonturas, náuseas, inchaço nos tornozelos ou dores de cabeça pára imediatamente a medicação e diz-me nesse próprio dia ordenou.

Fiquei a olhar para a letra ilegível e depois olhei para ele. Como é que um ortopedista percebe de coisas como a pílula? perguntei a sorrir.

Ele riu-se. Todo o tipo de homens da medicina, do psiquiatra ao gerontologista, sabe da pílula, Harriet. Como em todas as especialidades, deparamos com um ou outro aspecto de gravidezes indesejadas, todos nós damos suspiros de alívio perante esta pequena maravilha. Ele segurou-me no queixo e olhou-me com um ar muito sério. Não te quero causar mais problemas do que os estritamente necessários, meu amor querido. Se não posso fazer mais por ti do que receitar-te o contraceptivo mais eficaz alguma vez inventado, pelo menos terei feito qualquer coisa.

Depois beijou-me, disse-me que me veria no próximo sábado ao meio-dia e foi-se embora.


Que sorte que eu tenho! Há mulheres solteiras que correm Sydney inteira em busca de um médico com fama de receitar a pílula. Está bastante difundida, mas só entre quem é casado. Mas o meu homem cuida de mim devidamente. Nalguns aspectos, amo-o mesmo.

 

Segunda-feira, 6 de Junho de 1960

Teria de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Embora a Pappy soubesse que eu tinha um namorado, a identidade deste manteve-se misteriosa até esta manhã. Ela entrou pela porta da frente cerca das seis horas, ao mesmo tempo que o Duncan saía. Ele, como é evidente, não a reconheceu, limitou-se a sorrir e desviou-se cortesmente, mas ela sabia exactamente quem ele era e veio direita ao meu apartamento.Não acredito! gritou ela.Nem eu.Há quanto tempo é que isto dura?Há dois fins-de-semana.Não sabia que tu o conhecias.Mal o conheço.

Uma conversa estranha para ser tida por duas amigas, pensei enquanto fazia o pequeno-almoço para as duas.A Mrs. Delvecchio Schwartz disse-me que o Rei de Ouros tinha chegado e o Toby disse-me que arranjaras um amante, mas nunca sonhei que fosse o Mr. Forsythe disse ela.Eu também nem sonhei com ele. Ainda assim, é bom saber que as coscuvilhices da Casa não são tão eficientes como eu pensava. O Toby disse-me que eu era uma idiota e, desde então, nem sequer tenho visto as suas costas a subir a escada, e a Mrs. Delvecchio Schwartz aprovou-o, depois de ter entrado por aqui adentro de rompante para o conhecer disse eu, dando à Marceline as natas do leite.Estás bem? perguntou a Pappy olhando-me com ar céptico. Pareces horrivelmente distante.


Sentei-me, curvei os ombros e olhei para o meu ovo escalfado sem o menor apetite. Estou bem, mas estarei a fazer bem? Essa é que é a verdadeira questão. Não sei porque o fiz, Pappy! Sei porque é que ele o fez... sente-se só e com medo e está casado com um bloco de gelo.

            Parece o Ezra disse ela, devorando o ovo.

Não gostei da comparação, mas percebi por que é que ela a fazia e deixei passar. As seis e meia de uma manhã escura de Inverno não são horas propícias a discussões, em especial depois de ambas termos passado dois dias de amores ilícitos com homens casadíssimos.Ele nunca tinha feito este género de coisa, portanto a razão por que me escolheu é um mistério. Está apaixonado por mim, ou pensa que está, e quando apareceu do nada não tive coragem de o mandar embora disse eu.Queres dizer que não estás apaixonada por ele? perguntou ela como se isso fosse um pecado pior do que aqueles alguma vez imaginados em Sodoma e Gomorra.Como é que se pode amar uma pessoa que mal se conhece? argumentei, mas aquele não era o argumento adequado para usar com a Pappy que, em definitivo, não conhecia minimamente o Ezra.Basta um olhar disse ela com alguma tensão.Ai é? Ou será a isso que os meus irmãos chamam amor de elefante? Na realidade, só tenho o meu pai e a minha mãe como termos de comparação e eles estão muito apaixonados. Mas a mãe diz que eles construíram a relação, que levou anos e que está cada vez melhor. Olhei para ela, sentindo-me impotente. Eu sei cuidar de mim, Pappy, é com ele que estou preocupada. Terei eu iniciado algo cujas consequências será ele a sofrer por inteiro?

O seu rosto requintado adquiriu subitamente uma expressão de grande dureza. Não tenhas muita pena dele, Harriet. Os homens têm todas as vantagens.Queres dizer que o Ezra continua a perder tempo com a mulher.Eternamente. Encolheu os ombros e olhou para o meu ovo. Queres o ovo? Os ovos têm proteínas excelentes.


Empurrei-o para o outro lado da mesa. É todo teu, precisas mais do que eu. Pareces um bocado desiludida.

Não, não estou desiludida suspirou mergulhando um pedaço de tosta na gema mole como se esta fosse muito mais interessante do que o assunto da nossa conversa. Suponho que parti do princípio de que o Ezra seria capaz de se comprometer completamente comigo. Amo-o tanto! Vou fazer trinta e quatro anos em Outubro. .. Oh, ia ser tão bom estar casada!

Eu não me tinha apercebido de que ela era tão velha, mas os trintas e tais justificavam aquele comportamento, lá isso é verdade. A Pappy está a sofrer da Síndrome da Solteirona. Ter passado de muitos homens para um único não a recompensou com a segurança e a tranquilidade por que ela anseia. Oh, por favor, por favor, Deus, não permitas que a Síndrome da Solteirona me ataque!

 

Quinta-feira, 23 de Junho de 1960

Esta tarde, quando subi as escadas para ir à casa de banho tomar duche, concluí que não sofro de nenhum ataque de optimismo imaginário, é real. Desde que o Duncan entrou na minha vida, o Harold parou de me emboscar. A luz do átrio está sempre acesa e ele não se vê em parte nenhuma. Não oiço o som de pés calçados com meias a roçagar atrás de mim nas escadas e ele não está à minha espera junto à porta da sala da Mrs. Delvecchio Schwartz quando de lá saio. Na verdade, a última vez que o vi foi naquele dia em que me chamou puta. Será isso o que é preciso para desencorajar estes tipos psicopatas? O aparecimento de um homem poderoso?

 

Terça-feira, 5 de Julho de 1960

Tenho andado a negligenciar o meu caderno. Este é o número três, mas não se tem enchido muito depressa desde que o Duncan entrou na minha vida. Não tinha percebido o tempo que um homem ocupa, mesmo que seja só a tempo parcial. Ele arranjou um esquema para passar comigo todo o tempo possível. Aos sábados sou um jogo de golfe que dura até suficientemente tarde para incluir «um copo com os amigalhaços na sede do clube depois dos dezoito buracos. Aos domingos vem de manhã e fica até a Fio descer — sim, ela incomo-da-o um bocado, mas recuso-me a pôr as necessidades dele à frente das da Fio. Aos domingos sou, durante uma parte do dia, uma sessão de actualização de registos, e depois disso sou ou uma operação de emergência ou uma reunião qualquer.

Não acredito que a mulher dele não desconfie, mas ele assegura-me de que ela não tem qualquer consciência de que algo de diferente se passa. Parece que os horários dela também são bastante frenéticos. Ela é fanática do brídege e o Duncan detesta o jogo e recusa-se a jogá-lo. Atrevo-me a dizer que, quando a cara-metade parece ter em mente os nossos interesses, é fácil adormecer as suspeitas. Mas ela não deve ser muito esperta, a Cathy dele. Ou será que é apenas tremendamente egoísta? Ele fez-me algumas confidências esclarecedoras, como o facto de terem quartos separados (para não a acordar quando é chamado a meio da noite) e o facto de ela o ter relegado para aquilo a que chama a casa de banho dos rapazes. Ele detesta a casa de banho dela, que dá para o quarto «dela: tem espelhos de alto a baixo. Parece que é uma das mulheres mais bem vestidas de Sydney e agora, que se aproxima dos quarenta, mantém sob vigilância todos os pormenores, desde os pés-de-galinha à volta dos olhos até à gordura em torno da cintura. É quase tão viciada no ténis como no brídege, por este contribuir para a sua figura esbelta. E quando a sua fotografia aparece nas colunas sociais dos jornais de fim-de-semana, sente-se no sétimo céu. Razão pela qual ele não pode passar os serões de sábado comigo: ela precisa dele para a acompanhar a um ou outro acontecimento social, de preferência um evento sobre o qual pairem os jornalistas e fotógrafos das colunas sociais.

Que vida vazia! Mas essa é a minha opinião. Para ela, é exactamente a vida com que sonhou desde os tempos de escola, suponho.


Montes de dinheiro, dois belos filhos que ela parece ter mantido muito infantis para a idade, uma casa divinal bem lá para o meio de Wahroonga, com dez mil metros quadrados de terreno, piscina e os vizinhos fora de vista. Tem um jardineiro, uma criada para esfregar o chão, aspirar, lavar e passar a ferro e uma mulher que vai lá a casa cozinhar quando ela está à espera do Duncan para jantar, um carro Hillman Minx e crédito ilimitado nas melhores lojas e nos dois salões de beleza de Sydney. Como é que sei tudo isto? Não pelo Duncan, mas sim através da Chris e da Enfermeira das Urgências, que admiram a Cathy Forsythe de corpo e alma. Ela tem o que as mulheres desejam.

Quanto a mim, penso que se pode dizer que me satisfaço com as sobras da Cathy Forsythe. A parte de Duncan que ela definitivamente não quer é a parte dele que eu mais aprecio. Conversamos imenso, ele e eu, sobre tudo, desde o seu fascínio pelo sarcoma à sua secretária particular do consultório que tem em Macquarie Street, a Miss Augustine. Tem cinquenta e tal anos, outra solteirona, e trata o Duncan como se este fosse o seu único filho. E um modelo de eficiência, tacto, entusiasmo, tudo o que se possa imaginar. Até inventou um sistema especial de arquivo que me fez sorrir intimamente quando ele mo mencionou. Mas que bela forma de garantir a sua indispensabilidade! O pobre homem não consegue encontrar nada sem a ajuda dela.

Passaram cinco semanas desde que me bateu à porta com um convite para jantar no Cheisea, e eleja mudou. Para melhor, gosto eu de pensar. Ri com mais facilidade e aqueles olhos verdes e baços não estão tão tristes como estavam. Na verdade, ele melhorou de tal forma que a Enfermeira das Urgências não pára de comentar que sempre soube que Mr. Forsythe era um homem bonito, mas que nunca reparara quão bonito. Ele está a desabrochar simplesmente porque existe alguém que o estima como homem. Ao contrário dos galanteadores habituais, não tem consciência de que é atraente para as mulheres e acha que me ter apanhado foi um milagre.

Seja como for, desde que a Cathy Forsythe não desconfie da minha existência, espero que tudo continue como está. Só o meu caderno é que tem sofrido e esse é um pequeno preço a pagar pelo amor e companhia de um homem terrivelmente simpático e muito desejável.

 

Sexta-feira, 22 de Julho de 1960

Vi finalmente o Toby. Tenho andado preocupada com o facto de ele se ter mantido completamente invisível. Sempre que subi as escadas até ao andar da Jim, da Bob e do Klaus, as escadas estavam sempre puxadas para o tecto e a campainha desligada. A Jim e a Bob não alteraram a sua atitude em relação a mim, embora me aperceba de uma certa pena pela minha falta de senso na escolha de homem, e o Klaus continua a dar-me lições de culinária todas as quartas-feiras à noite. Já sei fritar e grelhar, bem como estufar e guisar, mas ele não me ensina a fazer pudins.

            O estômago tem um compartimento separado para as sobremesas disse ele muito sério , mas se treinares esse compartimento para se fechar agora, cara Harriet, beneficiarás grandemente quando chegares à minha idade.

Suspeito, contudo, de que ele não conseguiu encerrar o seu próprio compartimento, a julgar pela sua figura.

Esta noite não fui lá acima para ir ver a Jim, a Bob ou o Klaus, fui lá acima para ver se a escada do Toby estava descida. E estava! E mais, a campainha estava novamente ligada.

—        Sobe! gritou ele.

Ele debatia-se com uma paisagem vasta, que não conseguia pôr no cavalete, e trabalhava nela em cima de uma estrutura improvisada pintada de branco, evidentemente — presa à parte de cima do cavalete. Nunca o tinha visto pintar nada de parecido com aquilo. Quando pintava paisagens eram geralmente fornalhas flamejantes, ou uma central eléctrica em ruínas ou um monte de escória fumegante. Mas esta era um espanto. Um vale enorme, cheio de sombras suaves, penhascos de arenito avermelhados pelos últimos raios de sol, uma sugestão de montanhas que se perdiam no infinito, florestas imóveis a perder de vista.Onde é que viste isto? — perguntei, fascinada.Lá para cima, do outro lado de Lithgow. É um vale chamado Wolgan, completamente isolado com excepção de um trilho para carros com tracção às quatro rodas que serpenteia em torno de um penhasco e termina num bar que é uma verdadeira relíquia. Newnes. Extraíam xisto oleoso ali naquela zona durante a Guerra, quando a Austrália estava desesperada por combustíveis. Tenho passado lá todos os fins-de-semana, a pintar aguarelas e a desenhar.É lindo, Toby, mas por que é que mudaste de estilo?Vão fazer um contrato para as pinturas do átrio de um hotel novo na Baixa e este é o tipo de coisa que a gerência procura, diz o Martin. Grunhiu. Normalmente, os decoradores dos hotéis têm um esquema montado com um qualquer proprietário de galeria, mas o Martin meteu uma cunha por mim. Ele não consegue fazer paisagens, é um retratista puro, isso quando não está numa de cubismo.Bem, eu acho que este devia ir para o Louvre disse eu sinceramente.

Ele corou, pareceu absurdamente satisfeito e pousou os pincéis. Queres um café?Sim, obrigada. Mas a razão que aqui me trouxe foi perguntar-te se não queres combinar um dia para vires provar os meus recém-descobertos dotes culinários disse eu.E atrapalhar-te se o namorado novo aparecer? Não, obrigado, Harriet disse ele bruscamente.

Fiquei sem ver. Escuta, Toby Evans, o namorado não se intromete a não ser que eu queira que ele se intrometa! Não me lembro de teres muito a dizer acerca do Nal, só me recordo da tua atitude intolerante em relação à minha leviandade, mas, pela forma como me afastaste desde que o Duncan entrou na minha vida, até parece que estou a ter um caso com o Duque de Edimburgo!

            Ora, Harriet disse ele de trás do biombo , tu sabes muito bem porquê! Segundo a coscuvilhice da Casa, parece que ele não é o tipo de indivíduo que visita raparigas que vivem em Kings Cross.


Isto é, a não ser que sejam raparigas da vida, como a Castidade ou a Paciência.Toby, és um preconceituoso! Eu não tocaria num homem que frequentasse as casas da Madame Fuga ou da Madame Toccata!Despejar os tomates é despejar os tomates.Não sejas grosseiro! E estás mesmo a pedi-las. E então o querido Professor Ezra Marsupial?O Ezra não frequenta isto aqui. A Pappy vai à casa dele. E, afinal, quem é o teu tipo todo aristocrata?Queres dizer que a Casa não te informou desse pormenor?

            perguntei sarcasticamente. E um ortopedista do Queens.Um quê? disse ele, entrando com o café.Um ortopedista, um cirurgião ortopedista.Mas a Mrs. Delvecchio Schwartz chama-lhe Senhor , não lhe chama Doutor.Os cirurgiões, nos seus próprios hospitais, são sempre chamados Senhor expliquei. Mas não foi à nossa senhoria que ouviste isso. Eu apresentei-lhe o Duncan como Doutor.

Ele não se perturbou e limitou-se a erguer as sobrancelhas. Então deve ter sido o Harold quem me falou nisso disse ele, sentando-se.O Harold?Que tem isso de estranho? perguntou ele, surpreendido.

            Muitas vezes paro para dois dedos de conversa com o Harold. Normalmente, chegamos mais ou menos à mesma hora. E ele é o maior bisbilhoteiro da Casa, sabe tudo.

            Aposto que sabe resmunguei.

Como a opinião do Toby é importante para mim, tentei explicar-lhe as razões do meu envolvimento com o Duncan, tentei fazê-lo compreender que não é imoral, ainda que seja ilícito. Mas ele manteve-se céptico e não consegui demovê-lo. Malvados homens e a sua duplicidade de critérios! E contagiado pelo veneno daquela cobra do Harold Warner, sem dúvida. Aí estava alguém que não perderia a oportunidade de me arranjar problemas com aqueles de quem gosto. Oh, mas magoa-me, quando o Toby me condena de uma forma tão injusta! Ele é tão decente e directo, tão incapaz de dissimulação. Como é que não é capaz de perceber que a minha franqueza sobre o meu caso com Duncan é uma prova de que eu própria também não sou dissimulada? Se dependesse só de mim, toda a gente poderia saber. É o Duncan que quer manter tudo em segredo, para a sua querida Cathy não se sentir embaraçada.

Mudei o assunto novamente para a tela que ele tinha no cavalete, muito satisfeita por as suas ausências não se deverem a mim. Na realidade, tinha sido a situação difícil da Pappy que o levara até ao outro lado de Lithgow. Depois arrumou-me ao dizer que tinha comprado um pedaço de terra do lado pior da linha de caminho-de-ferro, em Wentworth Falis, e que estava a construir lá uma casa.Queres dizer que vais sair da Casa? perguntei.No próximo ano vou ter de sair disse ele. Quando os robôs me ficarem com o emprego, vou ficar outra vez com muitas dificuldades se continuar na Baixa, mas, se estiver a viver nas Montanhas Azuis, posso cultivar os meus legumes, ter árvores de fruto e comprar tudo mais barato porque os preços são mais baixos. E se conseguir o contrato do hotel, poderei construir uma casa decente e ficar dono da minha própria casa sem quaisquer encargos.

Apetecia-me chorar, mas consegui sorrir e dizer-lhe que estava muito feliz por ele. Raios partam a Pappy! Isto era tudo culpa dela.

 

Quarta-feira, 24 de Agosto de 1960

Meu Deus! Passou um mês inteiro desde a última vez que escrevi. Mas o que há para escrever, quando se instalou uma rotina na nossa vida e não acontece nada que a perturbe? Suponho que me transformei numa verdadeira habitante de Cross e as coisas que me deixavam de boca aberta já não me afectam. Eu e o Duncan estamos tão instalados como um velho casal, apesar de não termos perdido o entusiasmo na cama. Durante algum tempo, tentou persuadir-me a deixá-lo visitar-me mais vezes, acrescentando os serões de terça e a quinta-feira, mas eu mantive-me firme. Até mesmo os idiotas tão míopes como a Cathy F. têm olhos. As ausências durante a semana muito para além daquilo a que ela está habituada poderiam levá-la a interrogar-se sobre a súbita paixão de Duncan pelo golfe nos Lakes, muito mais perto de Queens do que de Wahroonga, a desculpa que ele arranjara para jogar num campo onde não é conhecido.

Talvez eu esteja um pouco cansada desta clandestinidade, mas o meu instinto de autopreservação diz-me que enquanto a Cathy F. viver num abençoada ignorância, eu não vou ter de tomar quaisquer decisões relativamente a casas chiques e a um futuro a fazer de Esposa do Senhor Doutor. A situação aborrece-o, embora ele não a queira magoar, confessando. Ela é, afinal, a mãe dos seus filhos e o tio no Conselho de Administração do Hospital acha que ela é o máximo. O que é que o Duncan disse? E preciso não fazer ondas no lago hospitalar. Bem, eu também não quero fazer ondas no meu lago de Kings Cross, se faz favor.

Hoje abateu-se uma autêntica vaga gigante sobre o lago do Raio X das Urgências. A Chris e o Demetrios vão casar-se e ela está absolutamente extasiada. Toda a Urgência já viu o anel de noivado, um anel muito bonito e invulgar de diamantes, rubis e esmeraldas que pertenceu à mãe do noivo. O pedantismo no hospital é tal, que o nosso humilde contínuo grego, só por ter apanhado uma técnica radiologista, já é considerado como estando a subir na vida. Para o que contribuiu a gabarolice da Chris sobre o curso de mecânico de automóveis e da garagem que o Demetrios já sinalizou. Que foi inteligentemente escolhida, pois fica na Estrada de Princes, em Sutherland, onde não existe concorrência quilómetros em redor. Ele vai ter sucesso de certeza. A pobre Enfermeira das Urgências aguentou tudo aquilo estoicamente, o que é inteligente da sua parte. Anda a falar em mudar-se para o Lar das Enfermeiras até encontrar outra pessoa adequada para partilhar um apartamento. E há também a perspectiva agradável de ser dama de honor da Chris. A Chris convidou-me também para ser dama de honor, mas recusei educadamente e disse que iria ao casamento. Depois brinquei com a Enfermeira das Urgências dizendo que já tinha sido campeã de basquetebol e que tencionava bater a concorrência e ficar com o buque da noiva. O Dr. Michael Dobkins vai ficar no Queens. Assim que o Demetrios entrou em cena, a Chris esqueceu completamente essa briga e a Enfermeira das Urgências decidiu que é melhor deixá-lo ficar porque ele é atento e competente.

Bem, bem. Mesmo que morra amanhã, a Chris não morrerá a pensar como seria. O Demetrios anda por todo lado como um galaró e a Chris tem uma nova expressão no rosto o ar Já sei como é dar uma boa queca. Eu tinha razão, fez-lhe muitíssimo bem.

O casamento está marcado para o mês que vem e vai ser uma cerimónia na Igreja Ortodoxa Grega. A Chris anda muito ocupada a ter lições com o padre e, suspeito, vai acabar por ficar mais ortodoxa que os ortodoxos. Os convertidos são, geralmente, uns grandes chatos.

 

Domingo, 11 de Setembro de 1960

Estava a acompanhar a Duncan à porta esta tarde, com a Fio agarrada à minha perna, quando o Toby desceu ruidosamente as escadas. Assim que nos viu, estacou, a dúvida claramente estampada no seu rosto: até agora tinha conseguido evitar completamente o Duncan. Mas depois encolheu os ombros e continuou a descer a escada. E sempre difícil para um homem baixo ter de olhar tão para cima quando estende a mão para o cumprimento das apresentações, mas Toby cumpriu o seu dever tentando parecer à altura do homem muito alto.

Quando se escapulia em direcção à porta, atirou-me uma pergunta: Que se passa com a nossa Pappy? Está com um ar horrível. Depois desapareceu.

Eu não a vejo muito, é esse o problema. Mas amanhã de manhã vou levantar-me cedo e apanhá-la.


 

Segunda-feira, 12 de Setembro de 1960

O Toby tinha razão, ela está com um aspecto horrível. Não me parece que esteja mais magra seria difícil sem se transformar num esqueleto mas parece ter perdido substância. A sua linda boca está curvada para baixo nos cantos e os olhos mexem-se nervosamente de um lado para o outro sem se fixarem em nada. Incluindo em mim.

            Que se passa, Pappy? perguntei.

Ela entrou em pânico. Harriet, vou chegar atrasada ao trabalho e tenho tido tantos problemas com a Enfermeira Agatha nos últimos meses: estou com um aspecto cansado, não me empenho devidamente no trabalho, tendo a chegar atrasada ou a não aparecer às segundas-feiras... Se não forja, meto-me numa alhada!

            Pappy, eu vou visitar a Enfermeira Agatha esta manhã e conto-lhe uma história qualquer, que foste atropelada por um autocarro, ou levada para a escravatura branca, ou que anda um homem a seguir-te há meses e que isso afecta o teu trabalho... Eu trato da Enfermeira Agatha, dou-te a minha palavra. Mas não sais deste quarto até me contares o que se passa e ponto final! disse eu ferozmente.

Subitamente, a Pappy curvou a cabeça, cobriu o rosto com as mãos e chorou tão desoladamente que dei por mim a chorar também.

Levei imenso tempo para a acalmar. Dei-lhe brandy, amparei-a até ao cadeirão e instalei-a, recostada e com os pés em cima de um banquinho. Até àquele momento, eu sempre me tinha sentido fascinada pela Pappy, mais velha, mais intelectual, mais experiente, mais carinhosa e generosa. Demasiado carinhosa e generosa, percebia agora. De um momento para o outro, senti-me sua igual porque me apercebi de que possuía montes de uma coisa que lhe faltava completamente: senso comum.

            O que se passa? perguntei suavemente, sentada ao lado dela e agarrando-lhe a cabeça com firmeza.

Ela olhou-me com olhos enevoados e afogados em lágrimas. Oh, Harriet, que heide eu fazer? Estou grávida!

Engraçado. Quando uma rapariga está transbordante de alegria diz sempre que vai ter um bebé. Mas quando está cheia de horror diz que está grávida. Como se a frase que escolhe fosse um distinção cerebral e emocional entre um facto adorável da vida e uma doença muito temida. Olhei para o seu rosto devastado com uma tristeza avassaladora: seria o meu destino, não fora os cuidados de um homem preocupado.O Ezra sabe? perguntei. Ela não respondeu.O Ezra sabe? repeti.

Ela engoliu em seco, abanou a cabeça e tentou limpar as lágrimas com a mão.

            Toma — disse eu, estendendo-lhe mais um lenço.Tentei tudo murmurou ela inexpressivamente. Atirei-me das escadas abaixo. Bati com a barriga no canto de uma mesa. Tomei um duche de amoníaco e tentei fazer entrar água e sabão até lá acima. Comprei tartarato de ergotina a um dos empregados do economato, mas o único resultado foi vomitar. Cheguei até a derreter haxixe com queijo numa tosta e a comê-la, mas também só vomitei. Tentei tudo, Harriet, tudo! Mas continuo grávida. O seu rosto transformou-se numa máscara de terror. Que é que vou fazer?Querida, a primeira coisa que tens a fazer é contar ao Ezra. É filho dele também. Não achas que tem o direito de saber?Harriet, eu estava tão feliz! Que vou eu fazer?Conta ao Ezra insisti.Eu era tão feliz! Isto vai dar cabo de tudo. Ele quer uma parceira sexual emancipada, não quer mais bebés.De quanto tempo estás? perguntei.Não tenho a certeza. Quase de vinte semanas, acho.Oh, meu Deus! Já vais a meio do tempo!Nada me livrou disto, nada!Não queres a criança, é óbvio.

A Pappy estremeceu e depois começou a tremer violentamente. Sim, sim, quero-a! Mas como posso tê-la, diz-me lá? O Ezra não me pode ajudar, eleja tem sete filhos! A mulher recusa-se a dar-lhe o divórcio, apesar de saber tudo sobre mim. Como é que vou conseguir dizer-lhe?


São precisos dois para fazer um bebé, Pappy. Tens de lhe dizer! Não interessa quantos filhos ele ja tenha, vai ter de responder por este também, é responsabilidade dele. Dei-lhe mais café pingado com brandy. Por que é que mantiveste segredo disto durante tanto tempo? Com certeza que sabias que ficaríamos todos do teu lado.Eu... só... não conseguia dizer as palavras, nem mesmo à Mrs. Delvecchio Schwartz murmurou ela, enxugando as lágrimas. Devem-me ter faltado dois períodos até eu ter desconfiado. Depois contei os dias, mas já devia estar muito adiantada para coisas como a ergotina resultarem. Oh, Harriet, que vou eu fazer? gritou ela.Em primeiro lugar, vais telefonar ao Ezra para a Universidade e vais dizer-lhe que tens de o ver ainda hoje, aqui. Depois de ele saber, veremos o que acontece disse eu com mais optimismo do que aquele que sentia.

Como ela recusasse telefonar, eu avancei para o telefone que o Dunean insistiu que eu mandasse instalar no meu quarto, telefonei para a Enfermeira Agatha e disse-lhe que a Pappy estava tão doente que nenhuma de nós iria trabalhar, depois localizei o Ezra e ordenei--lhe que se apresentasse dentro de uma hora. Se tivesse sido a Pappy a falar com ele, era capaz de ter discutido, mas, ao ouvir a minha voz desconhecida e a sua determinação férrea, disse que viria.

A Pappy adormeceu enquanto eu tentava ler um livro, mas a minha mente estava demasiado ocupada para conseguir entender uma única palavra. A pílula representa a verdadeira emancipação das mulheres, pensei. Razão pela qual agora, que já está presente nas nossas vidas como uma espantosa realidade, é tão denegrida, tão impossível de obter. Está sobretudo na mão de homens. Algumas entidades religiosas apelidaram-na de maligna e os filhos-da-mãe hipócritas dos políticos fugiram aos gritos. Mas os homens não serão capazes de controlar a sua distribuição durante muito mais tempo. A pílula vai fazer pender a balança para o lado das mulheres. A pílula é Poder.

Compreendi, ainda assim, que Ezra não é um dos adversários da pílula. Como a Pappy trabalha num hospital, provavelmente ele partiu do princípio de que ela tinha acesso a ela. Ele não trabalha no sistema de saúde, como poderia compreender a forma como os hospitais funcionam? Mas deveria ter-lhe perguntado. Talvez tenha perguntado. Ela uma vez disse-me que usava sempre o diafragma. Mas eles passavam os fins-de-semana em que estavam juntos a expandir as emoções com haxixe e cocaína. Provavelmente não tinham sido tão cuidadosos como pensavam durante uma sessão de relações sexuais normais. Oh, Pappy, devias ter-te ficado pela felação!

Deixei-a dormir meia hora e depois acordei-a e disse-lhe para ir tomar um duche e preparar-se para a chegada do Ezra.Estou toda inchada de tanto chorar argumentou ela.O sono já resolveu esse problema, agora vais tu ter de resolver as coisas com o Ezra disse eu, inflexível.Lamento não ter confiado em ti, Harriet, mas as palavras fi-cavam-me entaladas na garganta. Não conseguia fazê-las sair. E não parava de dizer a mim própria que se não dissesse nada a ninguém, isto desapareceria... Se eu esperasse um pouco mais, deixaria de existir. Não é estranho? Seria de pensar que uma coisa tão indesejada desapareceria por puro desespero. Mas isto não. Isto não.Então não queres decididamente levar a gravidez por diante disse eu, ajudando-a a caminhar ao longo do corredor.Quem me dera poder! Oh, como eu desejo poder! gritou ela. Quero-o porque o amo tanto e este é o seu filho. Quero-o porque adoraria ter um filho por quem viver. Mas é completamente impossível. Como é que iria sustentar-me? Não dão nada às mães solteiras, Harriet, tu sabes disso.Creio que existe um pequeno subsídio de subsistência, mas é demasiado pequeno para chegar ao fim do mês, se não se trabalhar. E tê-lo e dá-lo para a adopção?Não, não, não! Prefiro matá-lo em embrião do que dá-lo! Fazê-lo crescer sabendo que a mãe biológica não o quis? Eu passaria pelo processo todo como um padeiro esfomeado a fazer um pão para que outros comessem. Não, um aborto é a única solução. Os seus olhos encheram-se novamente de lágrimas. Oh, Harriet, é tudo um desespero! Nunca mais serei a mesma. Mas que mais posso fazer?


Ezra vai ajudar-te disse eu com uma confiança que não sentia.Ele não tem dinheiro para me ajudar disse ela.Disparate! Tem uma casa suficientemente grande para a mulher e sete filhos, um apartamento em Glebe e dinheiro para comprar drogas ilegais disse eu. Agora arranja-te, Pappy, o Ezra estará aqui dentro de vinte e cinco minutos.

Ele não se demorou muito. Ouvi a porta da frente bater e fiquei à espera da Pappy. Dez minutos depois, como continuasse sem aparecer, fui ter com ela.Ele foi-se embora! disse ela em tom de espanto.Foi-se de vez?Oh, sim, definitivamente de vez. Não me pode ajudar, Harriet, pura e simplesmente não tem dinheiro.Teve dinheiro para te meter nesta confusão disse eu asperamente. O filho-da-mãe! Se lhe pudesse pôr as mãos em cima cortava-lhe os tomates. O filósofo mundialmente famoso teria de mudar de carreira e ir cantar para o Coro dos Pequenos Cantores de Viena.

Depois começou a verdadeira batalha e eu perdia-a. Porque será que os sentimentos das pessoas as dominam de tal forma que as privam do mais ínfimo bom senso? A Pappy quer este bebé, mas nem quer ouvir falar em levar o seu querido Ezra a tribunal, nem sequer em ir ter com a mulher dele e pedir-lhe ajuda. Não, não, não, o Ezra não pode sofrer! A carreira e a posição do Ezra têm de ser preservadas a todo o custo! Não parava de dizer que o aborto era a única solução, não parava de dizer que a criança estava amaldiçoada porque o pai não a desejava, não parava de repetir que não traria ao mundo uma criança indesejada pelo próprio pai. E repetia-se, repe-tia-se, repetia-se. Finalmente, perguntou-me se eu podia emprestar--lhe o dinheiro para o aborto. Aparentemente, tinha andado a ajudar o querido Ezra a pagar as drogas ilegais e estava tesa.

Acabei por deixá-la e ir ao andar de cima falar com a Mrs. Del-vecchio Schwartz, que tinha de ser posta ao corrente da situação. Nessa altura, fui eu quem se foi abaixo e chorei, chorei e chorei enquanto a Mrs. Delvecchio Schwartz andava à minha volta e me servia brandy.


Mas não se atreva a dizer que estava tudo nas cartas! gritei-lhe quando recuperei a fala. — Se estava, devia ter feito qualquer coisa!Tretas, princesa — disse ela. — Nã podemos gerir as vidas das outras pessoas e se elas nã nos perguntam o que está nas cartas, nã podemos ir atrás delas p'ra lhes dizer. As cartas não funcionam dessa maneira. Nem o Cristal, nem as Progressões.Por um lado, ela está quase de vinte semanas disse eu acalmando-me. Por outro, eu sei que ela deseja este bebé desesperadamente, por mais que fale em abortos. Não podíamos contribuir todos e ajudá-la com o bebé?Nã, nã podemos disse a mulher que eu sempre achara tão bondosa, tão generosa, tão indulgente. Pensa, Harriet Purcell, pensa! Sim, podíamos fazer isso durante algum tempo, mas o Toby vai mudar-se em breve, a Jim e a Bob nã vão querer desviar o pouco dinheiro que têm das causas das mulheres p'ra ajudar a Pappy e o bebé e tu, hem? Qu' é que acontecerá, se decidires c'afinal sempre vais viver p'rós subúrbios e desapareceres também? Achas que eu estarei cá para assumir a responsabilidade, é?

Levantou-se e deu a volta à mesa para olhar para mim e trespassar-me com aqueles olhos terríveis. Pensas mesmo q'eu nã sei que se passa qualquer coisa errada comigo? perguntou. Tenho um tumor no cérebro que já me deixou viver muito mais do q'alguém pensava qu'eu ia viver. Posso ainda viver muito mais, mas não há garantias. Fui consultar o grande Gilbert Phillips em pessoa e ele disse que eu tenho um tumor cá no mê cérebro. Ele nunca se engana. .. se diz que tens um tumor no cérebro, é porque tens um tumor no cérebro. Não é maligno, mas está cá e suponho que cresce um bocado de vez em quando. Uma porra d'um médico qualquer do Vin-nie deu-me uma hormona nova e pimba! Tive a Fio. Por isso deixei de tomar a coisa. Continuo só a viver. É o que todos temos de fazer. Por isso, deixa a Pappy em paz para decidir o que quer fazer, estás a ouvir, princesa?

Fiquei paralisada e olhei para a Mrs. Delvecchio Schwartz como nunca a tivesse visto.


Quando recuperei o fôlego, fiz uma última tentativa desesperada e disse que podia sustentar a Pappy. E, perguntou ela, o que diria o meu marido de tal coisa quando eu casasse? E por aí fora.

Pronto disse eu derrotada. Vou deixar a Pappy decidir. Só que eu sei que ela ficaria com o bebé se pudesse esperar o tempo suficiente para recuperar o juízo. Com quase vinte semanas, não pode esperar, evidentemente. Mas quem fará um aborto com a gravidez tão adiantada?Pergunta ao teu Dr. Forsythe disse ela.

Não consigo escrever mais, estou estoirada. Quantos choques conseguirá uma pessoa suportar no mesmo dia sem enlouquecer? Sinto como se o mundo tivesse sido abalado de tal forma por baixo dos meus pés que eu tivesse ido parar a uma terra desconhecida, perdida e só. Mas, se eu me sinto assim, como se sentirá a pobre Pappy? E aquela gigante lá em cima, com aquela noz a crescer-lhe no interior do cérebro?

 

Terça-feira, 13 de Setembro de 1960

O Duncan e eu temos um sistema para que ele possa saber quando preciso de lhe falar com urgência e vice-versa. Apanhou-me nos semáforos da Cleveland Street passava pouco das oito e levou-me a casa e, durante o caminho, fizemos conversa de circunstância. Gosto disso nele. É tão imperturbável, tão atencioso, tem tanta consciência das circunstâncias e momentos adequados para conversas sérias. Pobre tipo, atingi-o em cheio no plexo solar assim que entrámos: Duncan, sabes de alguém que estivesse disposto a fazer um aborto às vinte semanas?Porquê? disse ele com calma, mas apreensivo.É para a Pappy disse eu.Deduzo que o Professor mal encarado se tenha baldado? perguntou ele, dirigindo-se ao armário onde está guardado o brandy.

O resto da história saiu de supetão, incluindo as novidades relacionadas com a Mrs. Delvecchio Schwartz e o seu tumor cerebral.


Lamento muito pela Pappy disse ele, dando-me um copo cheio. Ela não pensou em ter o bebé e dá-lo para adopção? Essa é a solução habitual.Atirouse a mim como uma harpia, quando lhe sugeri essa possibilidade.

Ele deu um grande gole no seu copo de brandy e estremeceu. Acho que devo estar a habituar-me a este mijo de gato. Por falar em gatos, onde está a magnífica Marcelinel

Durante vários minutos esteve ocupado a namorar com ela ela derrete-se toda com ele, a rameirazinha. Depois disse: Se o falecido Gilbert Phillips lhe diagnosticou um tumor no cérebro, então a Mrs. Delvecchio Schwartz deve mesmo tê-lo. Ele deve ter encontrado uma calcificação explícita numa vulgar radiografia ao crânio.

Os meus dentes bateram contra o copo. Oh, Duncan, o que acontecerá à Fio se ela... se ela morrer? A ruína da Casa. Não suporto essa ideia.

Ele pôs a Marceline no chão e sentou-se no braço do meu cadeirão. Isso só acontecerá no futuro, Harriet, e a presença de um tumor não significa que ela não chegue aos setenta ou mais. O nosso problema neste momento é a Pappy, não é Mrs. Delvecchio Schwartz. A Pappy não põe a hipótese de ter o bebé e ficar com ele?Acho que ela adoraria essa ideia, mas não tem dinheiro para isso. Se não trabalhar, não paga a renda. Raios, Duncan, porque será que o mito da Mulher Perdida persiste no fim da segunda metade do século vinte? Nunca chegaremos a ser racionais? Deus inventou a gravidez, não inventou o casamento! O casamento foi inventado para ajudar os homens a garantir que a descendência era mesmo deles... transforma as mulheres em cidadãs de segunda!Pára de falar como uma professora mal-encarada, Harriet. Enfrentemos a brutal realidade disse ele, olhando-me com severidade.Ela quer um aborto e eu não consigo fazê-la desistir da ideia.E queres que eu nomeie a pessoa indicada disse ele com um ar muito sério. Compreendes que me estás a pedir que viole a lei?


Grunhi. Não sejas pateta, Duncan! Não estou a pedir que sejas tu a fazê-lo, só quero saber quem o poderá fazer. Dá-me um nome, dá-me só um nome! Eu tratarei do resto.

            Duvido de que o Comité de Ética ou o Conselho Disciplinar se sintam muito inclinados a fazer essas pequenas distinções, Harriet. A partir do momento em que eu te indicar um nome, também serei culpado.

Sim, claro que seria! E que mais posso eu fazer? perguntei. A alternativa é procurar alguém numa ruela que usará uma agulha de tricô... se é que essas pessoas se atrevem a tocar em alguém com a gravidez tão adiantada. Suponho que poderia perguntar a uma das patroas dos bordéis aqui do lado, mas suponho que os pequenos erros que por lá ocorram sejam tratados com ergotamina nas primeiras seis semanas.Pronto, minha querida disse ele beijando-me. Tenho-te finalmente onde queria. Rejeitaste todos os presentes que te ofereci desde que estamos juntos. Agora posso oferecer-te finalmente algo que tu aceitarás. Há um sanatório muito discreto e simpático na província que se especializa em casos como os da Pappy. A cirurgia é de primeira classe, bem como a medicina e a enfermagem. Vou telefonar ao homem, do teu telefone, e combinar a admissão dela amanhã de manhã bem cedo. Pôs-se em pé. Mas primeiro quero falar a sós com a Pappy.Quanto é que isso vai custar? perguntei, sentindo-me imensamente grata. Tenho mil libras na minha caderneta do banco.

            Os favores profissionais não custam dinheiro, Harriet. Esteve com a Pappy durante meia hora e regressou com um ar

muito triste. Posso usar o telefone para falar com o homem? perguntou.

Segui-o até ao quarto, tirei a roupa e enfiei-me na cama, o que o sobressaltou. Não me parece que ele estivesse à espera que eu lhe oferecesse consolo físico como compensação por aquele serão horrível, mas eu gosto de pagar as minhas dívidas. Estranho, pensei ao vê-lo despir-se... habitualmente arrancamos a roupa em simultâneo e nunca tinha tido oportunidade de olhar para ele como deve ser. Aos quarenta e dois anos, o seu alfaiate não tem de disfarçar nada, só realçar.


            Tens um corpo absolutamente maravilhoso disse eu. Aquilo arrumou-o. Susteve a respiração e ficou imóvel. Será que

as mulheres nunca elogiam os homens? É óbvio que a mulher dele não o faz e eu agora já sei o suficiente acerca dele para saber que quando eles se casaram a experiência sexual dele se resumira a uns quantos encontros em estado de embriaguez de que mal se recordava.

 

Quarta-feira, 14 de Setembro de 1960

Acordei às seis da manhã com alguém a bater à minha porta de uma forma que dava a entender que não pararia até que eu respondesse.

O Toby empurrou-me para um lado e olhou-me sombriamente.Foi a Mrs. Delvecchio Schwartz quem me mandou aqui abaixodisse. Queria saber notícias da Pappy, mas ela não mas deu e agora a Pappy não está em casa.

Fui fazer café mostrando-lhe má cara.

            Pronto, eu faço isso — disse ele, tirando-me da frente. — Quero saber o que se passa com a Pappy, concentra-te nisso.

Contei-lhe. Ele escutou, em sofrimento, rangendo os dentes e batendo com os punhos na bancada.Vou à procura desse filho-da-mãe e mato-o de pancada!Antes de o fazeres, é melhor consultares a Mrs. Delvecchio Schwartz disse eu enfiando o nariz na caneca. A Pappy não quer que se toque num único cabelo do Ezra, está decidida a protegê-lo a qualquer custo, sacrificando até o bebé. Recusa-se a processá-lo para conseguir uma pensão para a criança, ou informar a mulher dele... nada que possa perturbar aquela besta marsupial! E a Mrs. Delvecchio Schwartz ainda vai tornar as coisas piores, dizen-do-te que não és marido da Pappy, nem pai, nem irmão, tio ou primo e que não tens direito nenhum de dizer ou fazer o que quer que seja.O amor não será uma boa desculpa? perguntou ele. A Pappy já não tem ninguém do seu próprio sangue. Se não formos nós a cuidar dela, quem cuidará?


            Nós estamos a cuidar dela, Toby, da forma que ela quer que cuidemos disse eu calmamente. O mal já está feito e dêmos graças a Deus pelo Duncan Forsythe. Se ela não está aqui ao lado, então é porque já foi para o sanatório... e não, não sei o nome do sítio nem onde fica, porque o Duncan se recusou a dizer-me. E tu tam bém não podes dizer nada a ninguém, portanto controla o mau feitio! E se fores dizer alguma coisa ao Harold Warner quando o encontrares à entrada de casa mesmo que penses que lhe estás a deitar areia para os olhos juro-te, Toby Evans, que te corto os tomates! Aquele homenzinho malvado não é parvo nenhum e é perigoso.

Mas eu duvido de que ele tenha ouvido uma única palavra, de tal forma estava transtornado. E sentia-se amargamente ressentido por o Duncan poder ajudar mais do que ele. Senti imensa pena dele. O que ele deve ter passado por causa da Pappy e do Ezra é algo em que tenho até dificuldade em pensar.

A segunda caneca de café acalmou-o um bocado e ele recuperou o suficiente para me olhar de alto a baixo com... desprezo!Estás com um ar muito satisfeito disse ele duramente.Satisfeito? Que queres dizer com isso?Sem mencionar os problemas da Pappy, tens o ar de quem, depois de o grande cirurgião ter cuidado do futuro da Pappy, passou com ele um belo bocado zombou.

Dei-lhe um estalo de tal modo violento que ele cambaleou. Não te atrevas a armar-te em meu juiz! murmurei. Não te atrevas, com um raio! E, aliás, não te atrevas a armar-te em juiz do Duncan Forsythe também! O teu problema reside unicamente no facto de te sentires ressentido por as outras pessoas conseguirem fazer mais pela Pappy do que tu próprio! Bem, é uma porra, é uma pena, mas é assim mesmo! Aceita os factos e não te vingues em mim!

Ele estava tão pálido que a marca da minha mão sobressaía na sua pele como um sinal de nascença. Desculpa disse ele rigidamente. Tens razão. Não te preocupes, aceitarei os factos.

Passei o meu braço pelos seus ombros e dei-lhe um abraço breve. Ele retribuiu, deslizou por baixo do meu braço, sorriu-me e foi--se embora.


Não era uma boa maneira de começar o dia. Tive de ir ao gabinete da Enfermeira Agatha e explicar que a Pappy estaria ausente durante duas semanas.Isto é muito irregular, Miss Purcell! disse ela. Por que é que a Enfermeira Auxiliar Sutama não se apresentou na enfermaria a dar parte de doente?Ela consultou o médico da sua área de residência menti. Suponho que ele envie os doentes para o Vinnie's e hospitais privados nos subúrbios orientais. Oh, porque será que toda a gente tem de complicar tanto as coisas?Isso não interessa, Miss Purcell. A Enfermeira Auxiliar Sutama faz parte do quadro de pessoal e tem, portanto, direito a uma cama, seja qual for o seu médico. Teria sido simplesmente transferida para os cuidados de um dos nossos médicos que, estou certa de que não será preciso recordar-lho, se contam entre os melhores profissionais.

Mantive-me firme. Enfermeira Toppingham, na verdade não lhe posso dar mais qualquer informação. Sei apenas que a Enfermeira Auxiliar Sutama preferiu manter-se sob os cuidados do seu próprio médico.Muito, muito irregular! resmungou a Enfermeira Agatha, lançando-me um olhar horrivelmente penetrante com aqueles olhos de um azul pálido. Ela desconfia de qualquer coisa, tenho a certeza disso. Pode ser uma velhota emproada e engomada, mas não é possível uma pessoa manter-se no comando de um pequeno exército de raparigas durante trinta anos sem se aperceber de que, por vezes, um mais um são três.Desculpe, Senhora Enfermeira disse eu, dando a resposta formal.Muito bem, Miss Purcell, muito bem. Debruçou-se sobre os papéis que tinha sobre a secretária. Pode ir.

E fui direitinha a outra catástrofe, se bem que esta fosse do género rotineiro. Um paciente desorientado que requeria as competências calmantes de Harriet Purcell.

Felizmente as coisas acalmaram passada uma hora e sentámo--nos a beber um chá. A Enfermeira das Urgências juntou-se a nós...


o casamento está cada vez mais próximo. Mas a Chris tinha umas contas a ajustar comigo primeiro.

Porque chegaste atrasada? — perguntou.

Tive de ir falar com a Enfermeira Agatha. A Pappy continua doente.

Que tem ela?

Nada de grave, mas o médico internou-a num hospital.

Pobre desgraçada! Em que hospital está ela, em Vinnie's ou em Sydney? A Marie e eu iremos lá no caminho para casa.

Não podes. Ela está num sanatório no campo.

Chris e Marie trocaram olhares de perfeita compreensão, mudaram de assunto e começaram a falar do casamento.

Graças a Deus por a Pappy não estar envolvida com ninguém do pessoal do hospital! A Chris e a Enfermeira da Urgência foram impecáveis, mas a notícia da doença súbita da Pappy espalhar-se-á, sem dúvida. Toda a gente a conhece, há treze anos que trabalha na radiologia. A Chris e a Enfermeira da Urgência provocaram-me um ataque de tremuras, confesso. Uma coisa é pensar vagamente na possibilidade de se ser descoberta, concluindo mesmo que nos estamos nas tintas para sermos descobertas ou não, mas quando subitamente essa possibilidade se torna muito real devido ao facto de os problemas de uma amiga se tornarem do domínio público... oh, isso põe o mundo em perspectiva!

E se a mãe e o pai descobrissem! Meu Deus do Céu, eu morria se a mãe e o pai pensassem que a filha era uma destruidora de lares! Porque se a Cathy F. descobrir, será essa a fama com que ficarei: uma destruidora de lares.

 

Sábado, 17 de Setembro de 1960

Quando o Duncan chegou, hoje ao meio-dia, acabei tudo.

Não consigo aguentar o suspense tentei explicar-lhe sem entrar em pormenores sobre as coscuvilhices do hospital nem referir a bofetada no Toby por causa dos seus comentários maldosos. Sei que escolhi um momento óptimo, logo a seguir à forma maravilhosa como tomaste conta da Pappy... devo parecer-te muito ingrata! Mas é por causa da mãe e do pai, percebes? Duncan, o que eu faço comigo e da minha vida só a mim me diz respeito, mas não quando está envolvido um homem casado. Aí já diz respeito a toda a gente. Como encararia eu o pai e a mãe? Se continuarmos, é inevitável que se descubra. Por isso acaba já.

A cara dele! Os seus olhos! O pobre homem tinha o ar de quem fora morto. Tens razão, evidentemente disse ele com a voz a tremer. Mas eu tenho outra solução. Harriet, não consigo viver sem ti, de verdade que não consigo. O que dizes é indiscutível, meu amor. A última coisa que eu desejo é fazer com que não consigas encarar o teu pai e a tua mãe. Por isso, o melhor é eu pedir imediatamente o divórcio à Cathy. Assim que o divórcio se resolver, nós casamo-nos.

Oh, meu Deus! Aquela era a única reacção com que eu não contara e a última que desejava obter. Não, não, não! gritei eu e bati com as mãos freneticamente. Não, isso não... isso nunca!

            Estás a pensar no escândalo disse ele ainda pálido. Mas eu manter-te-ei afastada disso, Harriet. Contratarei uma mulher para aparecer como coarguida e não nos voltaremos a ver até eu ser livre. Deixa a Cathy alardear as suas mágoas à imprensa de escândalos e que esta faça o pior de que seja capaz! Desde que tu não sejas envolvida, não interessa a sordidez a que se possa chegar. Pegou nas minhas mãos e acariciou-as. Meu amor, a Cathy pode ficar com o que ela quiser, mas isso não significa que vás passar mal. Tenho dinheiro mais do que suficiente, acredita.

Oh, Deus! Ele não percebia o que eu queria dizer porque não lhe ocorrera que eu não quisesse fazer o papel de Esposa do Senhor Doutor. Que eu não conseguia fazer o papel de Esposa do Senhor Doutor, nem mesmo por ele. Talvez se eu o amasse um pouco mais conseguisse fazer esse sacrifício. Mas o problema é que eu o amo nalguns aspectos, não em todos.

            Duncan, escuta-me disse eu, numa voz dura como aço. Não estou pronta para casar com ninguém, não estou pronta para assentar. Na verdade, duvido de que alguma vez esteja pronta para assentar, pelo menos no tipo de vida que teria tido com o David ou que teria contigo.

Ciúmes, até mesmo num momento como aquele! Quem é o David? perguntou.O meu ex-noivo... não é ninguém disse eu. Volta para a tua mulher, Duncan, ou encontra uma mulher que queira viver no teu mundo, se não conseguires enfrentá-lo com a Cathy. Mas es-quece-me. Não quero ter casos com homens casados e não quero que sonhes comigo no papel de segunda Mrs. Forsythe. Acabou e esta é a forma mais directa que consigo encontrar para o dizer.Tu não me amas disse ele inexpressivamente.Sim, amo-te. Mas não quero construir ninhos nos subúrbios e não me quero sentir suja.Mas filhos! Com certeza que queres ter filhos! insistiu ele, atabalhoado.Não nego que desejo ter pelo menos um filho, mas terá de ser de acordo com as minhas condições e prefiro não ter filhos a ter um homem a assumir a responsabilidade pelo meu destino. Tu não és como o Ezra, Duncan, mas vens do mesmo mundo, esperas os mesmos compromissos e divides as mulheres de forma idêntica. Umas para te divertires e outra para procriares. Encaro como um enorme elogio o facto de preferires ter-me como tua mulher a teres-me como tua amante, mas eu não quero ser nem uma coisa nem outra.Não te compreendo disse ele profundamente espantado.Não, Senhor Doutor, nem nunca compreenderá. Dirigi-me à porta e escancarei-a. Adeus, Doutor. Estou a falar a sério.Adeus, então, meu amor disse ele e deixou-me.

Oh, foi horrível! Eu devo amá-lo, porque estou a sofrer horrivelmente. Mas fico muito satisfeita por ter terminado antes de piorar e muito.


 

Sábado, 24 de Setembro de 1960

Christine Leigh Hamilton tornou-se hoje a Mrs. Demetrios Papa-dopoulos. Foi uma cerimónia maravilhosa, embora um tanto peculiar. Suspeito de que houve intensas discussões diplomáticas antes do casamento, concedendo esta tradição à noiva e aquela ao noivo, até noivo e noiva chegarem a um consenso. Os amigos e parentes do noivo estavam de um dos lados da igreja e os da noiva do outro. O lado dele estava a abarrotar, o dela só tinha um terço dos lugares ocupados, quase unicamente por mulheres solteiras e uns quantos médicos e respectivas esposas. O Dr. Michael Dobkins estava presente com a mulher fisioterapeuta, o que solucionava um mistério. Ela era igualzinha à Chris, até mesmo nas pernas de piano de cauda, só que, por ter dinheiro, podia usar lentes de contacto. Como é que sei disso? Ela tinha aquele ar de cego-como-um-morcego-sem-os--meus-óculos. Por mais que as lentes as ajudem a ver melhor, conti-nua-se a ter o olhar confundido dos míopes.

A última pessoa que eu esperava ver era o Duncan, mas lá estava ele, com a Esposa e tudo. Claro, apercebi-me, a Chris devia conhecê-lo muito bem dos tempos em que trabalhara no departamento principal de radiologia os ortopedistas pedem muitas radiografias de ossos. Eu mantive-me na parte de trás da igreja, com um lenço de renda cor-de-rosa na cabeça porque me recuso a usar chapéu, mesmo no casamento da Chris. Até ter posto os olhos na Mrs. Duncan Forsythe, tinha-me sentido satisfeita com o meu vestido justo de malha cor-de-rosa. Mas a patroa pff! Um modelo Jacques Fath, se é que os ornamentos do fato justo de cor bege serviam de indicador. Luvas de pele bege com sete botões, sapatos de pele bege Charles Jourdan, um chapéu enorme que nenhum membro da família real se atreveria a usar, de tão elegante que era. No meio de nós, australianos velhos e novos vestidos com fatos vistosos, ela dava imenso nas vistas, apesar de o seu cabelo, olhos e pele serem tão beges como o fato. Deveria ter passado despercebida, mas lá despercebida é que ela não passava. As suas jóias eram pérolas, demasiado sombrias e baças para serem falsas.


O Duncan estava com um aspecto horrível, apesar de a Esposa se ter certificado de que vinha perfeitamente vestido para a cerimónia que, tenho a certeza, ela desprezava. Tinha-se passado apenas uma semana e ele já murchara. Não ficara bege como ela, antes adquirira várias tonalidades de cinzento. Pele cinzenta e cabelos cinzentos: como pode tanto cinzento aparecer em apenas uma semana? Acho que pode, dado que o cabelo pode ficar grisalho de um dia para o outro. Parecia-me que ele estava a preparar-se para ter um ataque cardíaco, mas está numa forma física boa de mais para isso. Não, Harriet Purcell, ele está pura e simplesmente a sofrer e a culpa é toda tua, sua cabra indecente e egoísta! Apesar de ter ficado satisfeita por ter dado uma vista de olhos à Esposa, provavelmente não a voltarei a ver.

Afinal, a Chris não tem parentes próximos e foi a Enfermeira Agatha que levou a noiva ao altar! O vestido da noiva era branco, de crinolina e tule, ao estilo de Scarlett 0'Hara, coberto por milhões de babados em renda, a parte de trás talhada de forma a formar uma cauda longuíssima transportada por duas meninas gregas muito pequenas que cambaleavam amorosamente e toda a gente soltou ohs e ahs quando ela desceu a nave da igreja pelo braço da Enfermeira Agatha. A Enfermeira Agatha trazia um fato com rendas e bordados azul-claros e um chapéu que teria feito a Rainha-mãe morrer de inveja: uma alcofa de palha em azul pastel a condizer, enfeitado com pedaços de rede rígida cor de malva e um par de orquídeas em púrpura forte iguais ao do bouquet que lhe enfeitava o peito. A Enfermeira das Urgências suponho que hoje lhe deveria chamar Mane 0'Callaghan — era a única dama de honor, trajando um vestido de cetim amarelo-narciso enfeitado com rendas de cor creme. A noiva levava o tipo de buque que só se vê em fotos de casamentos das décadas de 1920 e 1930 um volume enorme de lírios e orquídeas brancos. A dama de honor levava um buque igualmente enorme feito com rosas de cor creme. Como cabe ao noivo comprar as flores, tirei o chapéu ao Demetrios.

O copo-de-água foi num restaurante grego em Kensington e foi, na minha opinião, espectacular. Os pais do Demetrios estavam tão orgulhosos dele! Ele tinha conseguido apanhar uma australiana velha, a viagem de dez libras da Grécia para a Austrália no navio a cair de podre e cheio de baratas dera os seus frutos. Os Papadopoulos entraram para a sociedade australiana. Os Forsythes, reparei, limitaram--se a ir à igreja, apertaram a mão do noivo, beijaram as faces da noiva no meio de um tempestade de confetti e afastaram-se a ronronar num enorme Rolls preto, sem dúvida para irem participar num evento de gosto mais requintado. Não me parece que qualquer deles tenha dado pela minha presença, pois ocultei-me atrás de um pilar da igreja e es-condi-me no vestíbulo até o Rolls se ter afastado.

Pude, portanto, descontrair no copo-de-água e dancei com uma dúzia de tipos gregos que me despiram toda com os seus olhos brilhantes, parti pratos como o mais atrevido de entre eles e experimentei aquela coisa das danças gregas, mas depois decidi que era melhor sentar-me e ver os homens a fazê-lo como deve ser. Eram elegantes e apaixonados e a música era mágica. Não me parece que a comida tenha provocado um grande entusiasmo entre os convidados da noiva, mas eu comi com gosto. Moussaka1, folhas de videira recheadas, almôndegas minúsculas, taboulfi, cordeiro assado, beringelas, azeitonas, alcachofras, polvo, lulas. O pudim de arroz era do outro mundo, uma papa cremosa e doce, temperada com noz-mos-cada e canela. Comi como um alarve.

Apesar da comida divinal e da corte de admiradores que me solicitavam para dançar ou dormir com eles, consegui arranjar tempo para observar a mesa em cima do estrado. A Chris e o Demetrios estavam em transe e não comeram nada, mas a Enfermeira das Urgências e o padrinho, Constantin, olhavam-se nos olhos e davam--se de comer mutuamente, cheios de timidez, isto quando não davam gargalhadinhas provocadas pelo retsina9. Vai haver outro casamento nas Urgências, escrevam as minhas palavras! Quando chegou a altura do Demetrios e a Chris se irem embora, esta reuniu as forças necessárias, robustecidas pelos sacos de areia da radiologia, para atirar

 

Moussaka - Prato grego com borrego, beringela e queijo. (N. da T.) Tabouli - Salada grega. (N. da T.)

Retsina - Vinho grego (N. da T.)

 

 

o buque colossal na direcção da horda de mulheres desesperadas e aos gritos. Eu usei mesmo as minhas velhas aptidões do basquetebol, só que não da forma que ameaçara. Consegui empurrar a Enfermeira das Urgências para o local exacto, dei uma pancada com os nós dos dedos nas flores quando estas passaram por mim a assobiar e estas desviaram-se e caíram nas mãos deleitadas da Enfermeira das Urgências.

O Cupido ataca de novo.

 

Domingo, 25 de Setembro de 1960

Nem eu nem o Harold vimos a Mrs. Delvecchio Schwartz no último domingo porque ela esteve com a sua cliente mais importante, a Mrs. Desmond Thingummy esqueço-me sempre do nome das mulheres. Pode muito bem ser que ela tenha combinado as coisas assim com malícia devido à crise da Pappy. A propósito, a Pappy ainda não regressou a casa. Uma grande preocupação, mas tenho a certeza de que se alguma coisa tivesse acontecido o sanatório teria contactado connosco. O Duncan não deixaria de ter tratado disso. Talvez o seu estado de saúde esteja tão debilitado que eles tenham preferido aguardar algum tempo antes de agir e tenham decidido mantê-la lá alguns dias depois da intervenção.

Pelo menos foi isso o que eu disse hoje à Mrs. Delvecchio Schwartz e ela é suficientemente sensata para concordar com a minha teoria.

É evidente que ela já sabia que eu mandara o Duncan embora, apesar de eu ter sido muito discreta, de não haver ninguém por perto na altura e de não a ter visto no último domingo. Não disse nada a ninguém sobre o Duncan, mas ela sabia. Estava nas cartas. Está sempre nas cartas. Será o tumor que a torna presciente? Dizem que há partes do nosso cérebro que não são utilizadas, que temos poderes que desconhecemos possuir. Será que existem pessoas que conseguem mesmo comandar os elementos? Que conseguem fazer com que os acontecimentos decorram de acordo com as suas vontades? Ver por entre as brumas dos tempos? Quem me dera saber, mas não sei. Só sei que ou a Mrs. Delvecchio Schwartz tem o melhor sistema de espionagem do mundo, ou consegue mesmo ver o que acontece ao deitar as cartas.

Tive de lhe contar o casamento até aos mínimos pormenores, desde os seis copos de cristal para vinho que oferecera ao feliz casal até à forma como a Enfermeira Agatha dançara durante horas com os seus pés pequeninos e alegres. Quem teria pensado? O retsi-na é potente.

A Fio parecia exausta, no entanto a mãe disse que não tinha tido clientes naquele fim-de-semana. Quando entrei, a Fio olhou para mim como se soubesse aquilo por que eu estava a passar, apesar de eu ter tentado manter tudo em segredo relativamente a toda a gente e não ter registado as minhas emoções neste caderno. Ninguém tem nada a ver com isso, incluindo quem quer que tenha partido o cabelo no meu armário do tilsiter quando arrancaram a plasticina e enfiaram lá dentro a cabeça. Os meus cadernos antigos foram lidos, não estão na mesma posição, todos enfileirados muito direitinhos. Encontrei-os deitados e não tinham caído. Há alguém que está ao corrente da minha vida quase até ao dia de hoje, pois estou a começar um caderno novo. Fiquei com um sabor amargo na boca, apesar de saber quem é o culpado. O Harold. Por isso, dei o passo seguinte quando corri as cortinas completamente, pus-me em cima da cama e enfiei os cadernos num buraco no tecto. Ele teria de usar uma escada, se quisesse ir à procura no forro. Quem me dera que houvesse alguém com quem eu pudesse falar acerca do Harold. Agora que o Duncan se foi, será que ele está prestes a reiniciar novamente a sua guerrazinha contra mim?

Mas a Fio sabe, ou pressente, ou sente algo daquilo por que eu passei, juro que sabe. Está nos seus olhos, meu rico anjinho. Veio ter comigo assim que me sentei e trepou-me para o colo, encheu-me a cara de beijos, aninhou-se e ficou a brincar com os meus dedos. Depois, a mão dela estendeu-se na direcção do meu copo de brandy.

Do meu não bebes, minha querida Fio disse eu. Se queres. . .


Oh, deixa-a beber um golinho rugiu a Mrs. Delvecchio Schwartz. Consegui desmamá-la finalmente, portanto merece uma recompensa.Por que é que fez isso? perguntei espantada.Vi nas cartas, princesa. Esticou o braço e agarrou a minha mão direita virando-a para estudar a palma, depois fechou-a num punho e riu-se. Vais ficar bem, Harriet Purcell. Não é isto que te vai deitar abaixo. Mandaste-o de volta para a patroa, hem?Sim, ele estava a ficar cada vez mais possessivo e depois dis-se-me que ia pedir o divórcio à mulher para se poder casar comigo e vivermos respeitavelmente. Mas eu nem conseguia aguentar a ideia. Suspirei. Tentei mandá-lo embora com suavidade.Os homens são muito orgulhosos, é impossível mandá-los embora suavemente quando é a mulher que os põe a andar. Ele é um tipo muito simpático, um cavalheiro e muito culto, como se dizia dantes. Vocês os dois davam-se bem a tempo parcial, mas permanentemente? Não está nas cartas. Toda aquela água e aquele fogo... mais cedo ou mais tarde, vocês os dois iam ser como um vulcão em contacto com o mar.Fez o horóscopo dele? perguntei surpreendida.Sim. Um Leão sólido, Carneiro e Sagitário. Parece e age como um Virgem com um toque de Balança e Sagitário, mas lá por baixo está sempre em combustão lenta tem uma quadratura de Vénus com Saturno, apesar de não ter o aspecto egoísta dessa conjugação , no entanto, isso atrapalha-o bastante. Uma pena não saber o ascendente.Como é que descobriu a data de nascimento dele? Nem mesmo eu a sei!Procurei-o no Quem é Quem na Austrália disse ela com um ar dissimulado.Foi a uma biblioteca?Ná, princesa! Eu tenho a minha própria biblioteca.

Se a tem não a guarda nesta sala. A atitude dela ajudou-me imenso: isto passará, há mais peixes no mar, a minha Rainha de Espadas está bem colocada, sou indestrutível. No entanto, a Fio ajudou-me mais. Nunca saiu do meu colo até o Harold chegar, e então fugiu para debaixo do sofá.

Ele está com um aspecto horrível. Doente, descuidado. Está a ir--se abaixo, a sua auto-estima está a desfazer-se. Costumava andar tão imaculadamente tratado um homenzinho afectado e cheio de manias, com fatos antigos de três peças, um relógio de ouro com a corrente por cima do colete. Agora faz-me lembrar um destroço. Tem a gola da camisa puída, as calças amarrotadas, o cabelo grisalho e fino cheio de caspa. Oh, Mrs. Delvecchio Schwartz, tente ser simpática com ele!

Mas isso não está nela. Ela está ressentida com ele, quer ver-se livre dele, no entanto, as cartas dizem que ele tem uma tarefa a desempenhar na Casa e ela nunca iria contra as cartas. Por isso ataca--o como um corvo depenica num cadáver, primeiro nos locais mais moles e vulneráveis.

            Vieste cedo rosnou.

Até a voz dele perdeu o brilho, as vogais arredondadas e finas mais nasais, mais abertas, mais australianas. São precisamente quatro horas no meu relógio disse ele com os olhos em mim. Ódio, ódio, ódio.

            Que se lixe a hora! rugiu ela. Vieste cedo, por isso pira-te! O Harold virou-se mesmo a ela! Cala-te! guinchou ele em

tons agudos. Cala-te, cala-te!

Oh, Fio, não devias estar a ouvir isto mas estás, daí debaixo do sofá! Encolhi-me na cadeira e rezei em silêncio para que as cartas libertassem a mãe de Fio daquela servidão odiosa e auto-imposta.

A Mrs. Delvecchio Schwartz limitou-se a rir-se dele.Raios, Harold, tu não és um perigo nem mesmo para os rapazinhos lá da escola! disse com desprezo. — Não me impressionas nem um bocadinho com esses teus gritos. Nem com a cobra que tens dentro das calças, campeão. Dirigiu-me uma grande piscadela de olho, certificando-se de que ele via. A verdade verdadinha, princesa, é que se fosse um centímetro mais curta era um buraco.Cala-te, cala-te! gritou ele novamente. De repente virou--se para mim, com o ódio a chispar-lhe dos olhos como fogo ateado com gasolina. A culpa é tua, Harriet Purcell! A culpa é toda tua! As coisas mudaram cá em casa desde a tua chegada!

Se eu tivesse conseguido responder, ela ter-me-ia interrompido.

            Deixa a Harriet! rugiu com estrondo. O qu' é qu' a Harriet te fez?Mudou as coisas! Ela mudou as coisas!Tretas! reprendeu-o ela. A Casa precisa da Harriet. Aquilo fez com que ele começasse às voltas pela sala, a torcer as mãos, enfiando a cabeça entre os ombros, tremendo e estremecendo. Bom Deus, pensei eu, ele está genuinamente demente! A casa, a casa, a porcaria da casa! — gritou. Sabes o que eu penso, Del-vecchio? Penso que tens uma ligação pouco saudável com esta... esta mulher! O que a Harriet quer a Harriet tem. Não há diferença entre ti e aquele par sujo de lá de cima! Oh, porque és tão cruel?

            Pira-te daqui, Harold disse ela com uma calma perigosa.

            Pira-te daqui para fora. As cartas podem dizer qu'eu tenho de te manter aqui, mas acabaste de pôr uma cruz no departamento das quecas. A partir de agora podes masturbar-te. Põe-te na alheta!

Com mais um olhar venenoso na minha direcção, ele foi-se embora.Desculpa lá isto, princesa disse-me ela e depois, na direcção do sofá: Podes sair daí, meu anjo, o Harold nunca mais entra nesta sala.Mrs. Delvecchio Schwartz, passa-se algo de extremamente errado com os processos mentais do Harold disse eu com toda autoridade que consegui. Se insiste em mantê-lo na Casa, por favor, peço-lhe, trate-o com mais bondade! Ele está a deteriorar-se, com certeza que vê isso! E ele faz-me emboscadas... ou pelo menos fazia, até o Duncan aparecer. Agora que o Duncan se foi, é capaz de voltar a fazer.

Oh, como é que ela consegue ser tão inteligente e sensata e no entanto tão burra? A reacção dela foi enviar-me um beijo jocoso. Nã te preocupes mesmo nada com o Harold, princesa disse. As cartas dizem que nã corres nenhum perigo de uma carracinha co-m'ó Harold.


As cartas, as cartas, a porra das cartas!

Mesmo assim tive a Fio só para mim durante duas horas, o que me encantou. A cena entre os dois amantes improváveis fora horrível de suportar mas, mesmo no meio da cena, o meu coração ficara pesado como chumbo quando pensei que aquela ruptura significava que não teria mais a Fio nas tardes de domingo. Acho que a Fio estava a sentir o mesmo, aninhada debaixo do sofá, porque quando a mãe ma entregou ela alegrou-se de uma forma tão evidente que me derreti como costumava acontecer quando o Duncan me sorria. Costumava. Passado, Harriet, passado. Oh, tenho saudades dele! Graças a Deus que não tenho de sentir a falta do meu pequeno anjo também.

Ela adora o outro anjinho, a Marceline. Se ao menos a Fio ganhasse peso como a Marcelinel A minha gata, que pesava dois quilos e meio, pesa agora cinco quilos e continua a engordar. É um prazer ver as duas às cambalhotas pelo chão! Mas eu decidi que a Fio tem de começar a brincar com os cubos com as letras do alfabeto. Tentei comunicar-lhe os meus pensamentos, mas estes não chegam ao destino. Por isso, se eu lhe ensinar a ler e a escrever, então seremos capazes de comunicar.

Ela ouviu atentamente enquanto eu lhe mostrava o A e o B e o C e o T e mais umas quantas letras e pareceu compreender perfeitamente quando compus GATO e CÃO. Quando lhe passei os cubos o que saiu foi CTB e D AC. Não consegue sequer identificar A ou B. Não faz sentido, para ela. O centro da leitura no cérebro dela deve estar danificado ou ser inexistente. Oh, Fio!

 

Segunda-feira, 26 de Setembro de 1960

A Pappy deve ter regressado muito tarde a noite passada, enquanto a Marceline e eu estávamos a dormir. No entanto, deve haver uma espécie qualquer de força sobrenatural na Casa, pois eu acordei duas horas mais cedo e soube que ela estava em casa. Quando virei a esquina para o quarto dela com a máquina de café na mão, a porta estava escancarada.


Ela estava sentada à mesa, olhou para mim e sorriu. Oh, está com muito melhor aspecto do que quando se foi embora! Abracei-a e beijei-a, servi café para as duas e sentei-me. Havia folhas de papel espalhadas em cima da mesa, algumas em branco, outras com umas quantas palavras escritas a tinta roxa.Ezra Pound outro Ezra! tinha uma letra enorme disse ela. Escrevi-lhe quando esteve preso e ele respondeu-me. Não é espantoso? Tenho de te mostrar a carta dele: escrita a lápis numa folha tirada de um caderno. A sua poesia maravilhosa! Tenho estado a tentar escrever um poema, mas não consigo encontrar as palavras certas.Conseguirás, mais tarde. Como foi?

Ela não evitou a pergunta. Não foi muito mau. Tive uma hemorragia pós-operatória que me manteve lá mais tempo do que o habitual. Trataram-me como se eu sofresse de um fibroma... era esse o diagnóstico na minha ficha. E um hospital muito bem gerido. Eu tinha um quarto só para mim e não me deixaram ver nenhuma das outras doentes... muito prudente. A comida era boa e eles foram compreensivos com o facto de eu não comer carne. Um nutricionista veio ter comigo e explicou-me que eu teria de equilibrar a minha alimentação com muito cuidado para obter os aminoácidos necessários: ovos, queijos, nozes. Por isso, no futuro, não vais poder repreender-me, Harriet, eu vou alimentar-me com muita sensatez.

Tudo aquilo foi dito numa voz suave a que faltava qualquer espécie de vitalidade.Harriet disse ela subitamente , já alguma vez sentiste que estás presa a um sítio, pregada só por um pé e que giras e giras sempre à volta?Ultimamente, sinto-o muitas vezes disse eu ironicamente.Estou tão cansada de andar às voltas.

Engoli em seco e tentei pensar em qualquer coisa para dizer que não lhe abrisse as feridas e, no entanto, pudesse confortá-la. Acabei por me limitar a ficar a olhar para ela com os olhos cheios de lágrimas.


Podes ensinar-me? pediu ela.Ensinar? Eu? Ensinar o quê?Quero fazer o exame para a entrada em enfermagem, mas não tenho sequer a escolaridade elementar. Engraçado, sei ler e escrever como uma verdadeira autora, no entanto não sei analisar nem dividir uma frase, não sei somar, subtrair, multiplicar ou dividir para lá do nível do pré-escolar. Mas estou farta de ser auxiliar. Quero fazer enfermagem disse.

Que alívio! As palavras dela não indicavam um regresso àqueles fins-de-semana caóticos com homens às dúzias. O Ezra podia tê--la quase morto de uma forma, mas de outra parecia tê-la libertado.

Disse-lhe que tentaria e sugeri-lhe que fosse falar com a Enfermara Tutora do Queens para ter uma ideia das exigências do exame.Achas que o Duncan me daria uma carta de recomendação? perguntou.Tenho quase a certeza de que ele agarraria imediatamente a oportunidade, Pappy.

Ela respirou fundo e depois suspirou. Sabes que ele se ofereceu para me sustentar a mim e à criança? Para me dar dinheiro suficiente para eu não ter de trabalhar e para a educar convenientemente?

Oh, Duncan! Como és simpático e bom e como eu sou cruel! Não disse eu , ele não me disse.Eu transtornei-o muito, ao recusar. Ele não compreendeu.Eu também não , disse eu.Cabe ao pai e à mãe cuidar da criança. Se este não está disposto a honrar as suas obrigações éticas e morais, nenhum outro homem poderá ocupar o seu lugar. Se outro homem o fizesse, então, em tribunal, os advogados conseguiriam provar ser esse homem o pai.A Lei é uma besta disse eu enojada.Tenho de agradecer ao Duncan tudo o que ele fez por mim. Pede-lhe que ele me venha ver da próxima vez que cá vier, está bem, Harriet?Vais ter de lhe deixar um recado no cacifo dele, no Queens. Acabei com o Duncan disse eu.


Aquilo pareceu perturbá-la mais do que o problema do fibroma. E não conseguia compreender por que razão correra eu com ele. Na opinião dela eu traíra o, ao melhor homem do mundo. Não tentei explicar-lhe o meu ponto de vista. Para quê perturbá-la ainda mais?

 

Quarta-feira, 19 de Outubro de 1960

Estou a perder o entusiasmo por tudo, incluindo escrever neste caderno, apesar de os outros já cheios parecerem estar a salvo no tecto.

O Harold voltou aos seus velhos truques e, talvez devido ao facto de sentir tanto a falta de Duncan, o velho doido filho-da-mãe venceu pelo menos uma batalha, se é que não venceu a guerra. Já não vou lá a cima tomar duche, uso a casa de banho da lavandaria. Oh, cheguei ao ponto em que ficava com os cabelos em pé e com pele de galinha antes de chegar ao cimo das escadas. Quando espreitava à esquina, a lâmpada estava apagada e a porta da casa de banho fechada. Um escuro de breu e aterrorizador.

— Puta! — sussurrava ele. Puta!

Por isso decidi comprar um chuveiro, tubo e um par de ligações em cotovelo para ver se consigo montar eu própria um chuveiro. Cheguei a pedir à Mrs. Delvecchio Schwartz para mandar instalar um, mas ela ultimamente também tem andado com uma disposição esquisita. Acho que nem ouviu o que eu disse. As forças malignas entraram em acção, foi só o que ela disse e, mesmo isso, num resmungo. De onde se pode concluir que já não almoçamos aos domingos. Continuo a ficar com a Fio, que é o mais importante. Mas parece que a Fio não é capaz de aprender o alfabeto.

O Toby nunca está cá aos fins-de-semana, anda muito ocupado a construir a casa em Wentworth Falis e durante a semana está ocupadíssimo a dar lições à Pappy, que está determinada a fazer este ano o exame de admissão, no fim de Novembro. Eu tentei dar-lhe explicações, mas sou tão boa a matemática que não consigo perceber como é que as pessoas têm dificuldades com uma simples aritmética. Não sou uma professora nata, infelizmente. O Toby, pelo contrário, está a revelar-se maravilhosamente paciente e atencioso. Estou encantada. Andam a passar imensas horas juntos, de segunda a sexta-feira. Ela continua com bom aspecto, só que apagada.

Graça ao Klaus, sou agora uma belíssima cozinheira de cozinha europeia e sei fazer alguns pratos de comida indiana e chinesa graças ao Nal e à Pappy. No entanto, não é engraçado não me apetecer cozinhar só para mim? Reservo os meus talentos para os convidados que recebo para jantar, que são muito poucos. Na verdade, resumem-se à Jim e à Bob. Vêm cá abaixo às terças à noite, por vezes com a Joe, a advogada e a amiga dela, a Bert. Já descobri os seus nomes verdadeiros. Jim é Jemima e não a critico por detestar tal nome. Imaginem os pais terem uma tal falta de consideração para fazerem uma coisa assim a um bebé! A Bob e a Bert são ambas Robertas e a Joe chama--se Joana. Depois daquele episódio horrível com os Rapazes de Farda Azul, a Frankie (Francês) saiu de Cross e actualmente vive algures em Drummoyne. Isso devido ao facto de a pobrezinha da Olivia ter tido alta de Rozelle e ter sido internada em Callan Park enlouqueceu, pobre alma, e anda a vaguear num outro mundo. Mas a Fankie não a abandona, apesar de a família o ter feito. Patético, não é?

Quando convidei o Norm para jantar galinha assada, batatas assadas e belos legumes tipicamente australianos para o bom do Norm descobri que a notícia do escândalo Frankie-Olivia se espalhara pelo sistema e que os nossos polícias de Kings Cross estão tão irritados como horrorizados. Bem, os polícias são como qualquer outro grupo com muita gente: há bons, há maus e há indiferenciados. Os nossos chuis deixam as fufas em paz, não pensam pior de uma rapariga só por ela ser fufa, assim como não têm pior opinião de uma rapariga por ela andar na vida. Limitam-se a manter os puritanos sob controlo. A mim parece-me bem que são os puritanos quem fomenta os vícios piores, simplesmente por acicatarem as pessoas contra aquilo que é inevitável, enquanto os políticos servem os seus próprios interesses ao lamberem as botas dos puritanos. É preciso ter muito cuidado com as pessoas que estão viciadas no poder. Nos políticos, junta-se a ambição à ausência de talento. Ou são advogados falhados ou professores falhados, com um ou outro sindicalista pelo meio.

Desce do púlpito, Harriet Purcell!

Falei no Harold à Jim e à Bob, que acreditaram em mim.

            Não acham que ele vai começar a assombrar a lavandaria, pois não? perguntei com um estremecimento.

A Jim pensou no assunto e abanou a cabeça. Não, não me parece, Harry. Ele parece que está colado ao andar da Mrs. Delvecchio Schwartz, é aí que está localizado o centro do seu universo. Ele quer afastar-te da velhota, só isso. Se ele fosse mesmo atacar-te, penso que já o teria feito.Ele também vos odeia a vocês disse eu sombriamente.Sim, mas isso é o puritano que existe nele. Oh, ele tem ciúmes de nós, mas sabe que não temos a importância que tu tens para a velhota.

Mas que pessoa extraordinária que a Jim é! Ali estava ela, parecendo feita de cabo de chicote e arame esticado, esbelta e musculada, com o rosto ossudo muito mais parecido com o rosto de um homem do que de uma mulher. Não é para admirar que toda a gente pense que ela é um rapaz, quando passa à desfilada na sua Harley Davidson com a Bob empoleirada na parte de trás do assento: um tipo todo vestido de cabedal a dar uma volta com a namorada. Até consigo perceber que os pais da Bob, já idosos e muito provincianos, nunca se tenham apercebido de que a Jim é uma mulher. Que sensato da parte deles!

A Jim ofereceu-se para me ajudar a instalar o chuveiro.

 

Segunda-feira, 7 de Novembro de 1960

Bem, sou agora a responsável oficial pela radiologia das Urgências. A Chris foi-se embora na sexta-feira passada, depois de uma festinha organizada pela Enfermeira das Urgências que, no passado, teria ficado lacrimejante e lamurienta, mas que fez cara alegre porque está esperançosa e confiante de que seguirá o exemplo da Chris no próximo ano. Constantin (chef no restaurante Romano's) continua muito atraído por ela. Quando a Chris anunciou que um Feliz Acontecimento vinha a caminho, o pequeno grupo de técnicas e enfermeiras suspiraram, soltaram exclamações, guincharam e deram risadinhas. Felizmente que chegaram emergências várias que desfizeram a festa e voltámos todas ao trabalho.

Tenho uma nova técnica para o meu antigo lugar: mais velha e mais experiente do que eu, mas noiva de um interno sénior e perfeitamente satisfeita com o lugar de segunda técnica. Chama-se Ann Smith e está preparada para um longo noivado, pois o Dr. Alan Smith (não será necessária uma mudança de nome!) tem de deslindar a questão da carreira profissional antes de poderem dar o nó. Mas porquê eu para o lugar de chefia?O seu trabalho é excelente, Miss Purcell disse-me a Enfermeira Agatha quando me perfilei à frente da sua secretária. Decidi substituir a Miss Hamilton por si porque é eficiente, muito organizada e consegue pensar sob pressão: o que é essencial para um bom trabalho nas Urgências.Sim, Senhora Enfermeira, obrigada, Senhora Enfermeira disse eu automaticamente.

A não ser... Fez uma pausa ominosa.A não ser o quê, Senhora Enfermeira? perguntei.A não ser que esteja a pensar casar-se, Miss Purcell.

Não consegui evitar sorrir. Não, Senhora Enfermeira, posso garantir-lhe que não estou a pensar casar-me.

            Excelente, excelente! E até sorriu. Pode ir, Miss Purcell.

Ser a responsável faz toda a diferença. A Chris era muito boa técnica, mas dirigia o serviço de uma forma que eu achava que poderia ser melhorada. Agora posso fazer o que quero desde que nem a Enfermeira-Chefe nem a Enfermeira Agatha levantem objecções.

O que significa que começo agora a trabalhar às seis da manhã,

tenho a estagiária entre as oito e as quatro e a Ann a partir das dez no

meu antigo turno. Não me parece que a Ann tenha ficado muito contente.

Se o horário significa que terá menos tempo para o seu Alan, terá de se aguentar. Estão a ver o que faz ter poder? Transformei-me numa cabra pouco compreensiva.

 

Sexta-feira, 11 de Novembro de 1960 (O Meu Aniversário)

Escutei uma conversinha maravilhosa entre a Enfermeira-Chefe e o Superintendente Clínico Geral pouco depois das seis da manhã. Deus sabe o que estaria o Superintendente a fazer ali àquelas horas da manhã, mas a Enfermeira-Chefe, como é evidente, não conta com as palavras «de folga no seu vocabulário.

Nunca teria acreditado numa coisa destas da parte do Dr. Blood worthy disse ela numa voz tensa mesmo do lado de fora da minha porta.

Ora o que terá o Dr. Bloodworthy andado a fazer? É um patologista cuja especialidade é o sangue não é estranho como as pessoas com nomes sugestivos os adoptam completamente? Como o Lord Brain10, que é neurologista.É de ir às lágrimas! respondeu o Superintendente, claramente abalado por ataques de riso. Talvez ensine àquelas velhas galinhas do refeitório das Enfermeiras a meterem-se nas suas vidas, para variar.Doutor disse a Enfermeira-Chefe num tom que fez com que o meu equipamento se cobrisse imediatamente de gelo , existe um número equivalente de galináceos velhos no refeitório dos Médicos. Creio mesmo, na realidade, que o Mr. Naseby-Morton chegou até a pôr um ovo que o senhor equilibrou na colher, correndo escadas abaixo com ela na mão.

Fez-se um pequeno silêncio e depois o Superintendente falou. Um destes dias, Enfermeira-Chefe, vou conseguir ter a última palavra! E quando isso acontecer, não vou ser uma galinha velha! Vou ser o galo da capoeira! Um bom dia para si, minha senhora.

Uuuaaau! E que se lixem os aniversários. Esta noite fui a Bronte.

Alusão ao nome dos médicos, Bloodworthy, que se poderá traduzir por sangue digno e Brain. que significa cérebro.


 

Quarta-feira, 23 de Novembro de 1960

Hoje vi o Duncan. O Professor Sjõgren veio da Suécia para dar uma palestra sobre as técnicas hipotérmicas no tratamento de anomalias vasculares no cérebro. Todo o Queens, acima da categoria de auxiliar, queria assistir, mas o nosso anfiteatro só tem quinhentos lugares e a competição por um lugar foi feroz. O velho sueco é um grande neurocirurgião com reputação mundial pela ideia pioneira de congelar o paciente para abrandar o ritmo do coração e a circulação antes de partir para a resolução do aneurisma ou para desviar a corrente sanguínea ou seja o que for. Como técnica responsável pela radiologia das Emergências eu tinha direito a um lugar e dei por mim sentada entre a Enfermeira das Urgências e, nada mais nada menos, que o Mr. Duncan Forsythe. Oh, foi uma agonia! Não podíamos evitar estabelecer contacto físico e todo o lado direito do meu corpo ardeu durante horas. Ele cumprimentou-me com um pequeno aceno de cabeça mas sem qualquer sorriso e depois olhou fixamente para o palco, isso quando não estava a trocar impressões com o Mr. Na-seby-Morton, que estava sentado do outro lado.

A Enfermeira Tesoriero, que dirige a Ortopedia Infantil, encontrava-se do outro lado da Enfermeira das Urgências e estavam a travar a escaramuça habitual.Eu trabalho mesmo — dizia Marie 0'Callaghan —, já vocês, as responsáveis pelas enfermarias, são meramente decorativas. Andam de um lado para o outro a lamber as botas dos Directores de Serviço e a fazerem-lhes sanduíches de tomate para o chá, em vez de lhes darem sanduíches de manteiga de amendoim como as que nós, comuns mortais, comemos.Chiu! sibilei. Estou sentada ao lado de vocêss sabem e de qquem!

A Enfermeira das Urgências limitou-se a fazer uma careta, mas a Enfermeira Tesoriero fez um ar horrorizado e calou-se. O seu querido Mr. Forsythe, chefe da Ortopedia Infantil, podia não aprovar as sanduíches de tomate se descobrisse que o resto dos pobre mortais comia manteiga de amendoim. Ele era tão simpático.


Durante um bocado considerei se havia de pôr a minha mão na boca e fugir, fingindo que estava doente do estômago, mas como estávamos mesmo no centro de um banco comprido de madeira, atrairia mais as atenções do que se me limitasse a aguentar.

Acho que não ouvi uma única palavra da palestra e, assim que esta terminou, levantei-me pronta para me juntar ao êxodo em massa. Ele sairia com o Mr. Naseby-Morton pela coxia principal, graças a Deus. Mas não saiu. Veio atrás de mim, com o chefe da cirurgia cardíaca atrás dele para continuar a conversa. Depois, pôs as mãos uma de cada lado da minha cintura, o idiota! Não terá ele consciência de que metade dos olhos femininos daquela multidão estavam fixos nele? O toque foi uma carícia, não um apertão e voltou-me tudo à lembrança, aquelas mãos grandes e bem cuidadas que conseguiam partir ossos de uma só vez e que, no entanto, eram tão reverentes sobre a minha pele, tão excitantes. A minha cabeça girou e eu cambaleei. O que foi a melhor coisa que podia ter acontecido, agora que penso nisso. Assim ele teve um pretexto para manter ali as mãos, até mesmo para me virar para poder olhar para o meu rosto.Obrigada, obrigada, Senhor Doutor! ofeguei, libertei-me e corri na direcção da Enfermeira das Urgências e da Enfermeira Tesoriero que iam lá muito à frente.Que é que se passou ali? perguntou a Enfermeira das Urgências quando cheguei ao pé delas.Tropecei disse eu , e Mr. Forsythe amparou-me.Quem me dera ter essa sorte! suspirou a Enfermeira Tesoriero.

Sorte, uma ova! O filho-da-mãe fê-lo deliberadamente para ver como eu reagia e eu fiz-lhe a vontade.

A Enfermeira das Urgências, que me conhece muito melhor, limitou-se a ficar pensativa. Que se passaria com a minha cara?


 

Quinta-feira, 1 de Dezembro de 1960

É incrível pensar que o ano de 1960 está quase a acabar. No ano passado por esta altura eu ainda estava no Ryde Hospital, acabara de fazer os exames, ainda não vira que havia uma vaga no Royal Queens na Escola Técnica de Sydney, quanto mais ter pensado em trabalhar aqui. Não conhecia a Pappy, não sabia da existência da Mrs. Del-vecchio Schwartz nem da Casa. Não sabia da existência do meu pequeno anjo. A ignorância é uma bênção, dizem, mas eu não acredito nisso. A ignorância é uma armadilha que leva as pessoas a tomarem as decisões erradas. Com excepção do Harold e do Duncan, estou muito satisfeita por ter emergido da minha crisálida e por me ter tornado numa grande e bela traça, em vez de me ter transformado numa frágil borboleta.

Quando o dia é mais ou menos bom, já estou em casa às quatro e meia da tarde. Hoje, como o dia não passou de mediano, saí pouco depois das cinco e vim para casa a pé com a Pappy, que acabou agora os exames. Ela acha que passou ajusta e eu tenho a certeza de que conseguiu. Nunca há enfermeiras que cheguem, graças à disciplina duríssima, ao trabalho duro e à obrigação de viver numa residência para enfermeiras. É este último aspecto que mais me preocupa; afinal de contas, como auxiliar de enfermagem ela foi sujeita a uma disciplina ainda mais dura, pois os auxiliares são os mais humildes dos humildes. Mas como irá a Pappy conseguir viver num quarto minúsculo, se for colocada num hospital com uma residência grande, ou como conseguirá partilhar um quarto minúsculo, se for parar a um hospital menos privilegiado?Vais manter o teu quarto na Casa disse eu enquanto caminhávamos.Não, não tenho dinheiro para isso — disse ela —, e, muito honestamente, querida Harriet, não tenho a certeza de o querer.

Oh, o que se passa O Toby diz que se vai embora e agora a Pappy! Vou ficar reduzida à Jim, à Bob, ao Kaus e ao Harold. E a dois novos inquilinos, um dos quais viverá ao meu lado. Sem aquelas paredes forradas de livros de alto a baixo, vou ouvir tudo quando estiver na cama há entre os nossos apartamentos uma porta que foi selada com painéis vitorianos finos como aparite. Sei que pareço egoísta e suponho que estou a ser egoísta, mas não suporto pensar que não terei a Pappy. Deus amaldiçoe o Professor Ezra Marsupial! Quando ela matou o filho dele, matou qualquer coisa dentro de si própria que nada tem a ver com fetos.

            Acho que devias fazer um esforço para manter um refúgio na Casa disse eu enquanto atravessávamos a Oxford Street. Para já, porque nunca vais conseguir levar um vigésimo dos teus livros contigo e, por outro lado, já és demasiado velha para aquele tipo de alegre vida comunitária cheia de risadinhas. Pappy, elas são uns bebés

Oh, que frase tão infeliz! Ela ignorou-a.

            Provavelmente conseguirei arrendar qualquer coisa que seja um meio termo entre um chalé e um barracão em Stockton disse ela. Guardarei aí os meus livros e passarei lá os meus dias.

Só ouvi Stockton stockton? Ofeguei.Sim, vou candidatar-me a enfermagem psiquiátrica em Stockton disse ela.Meu Deus, Pappy, não podes fazer isso! gritei detendo-me em frente do Vinnie's Hospital. A enfermagem psiquiátrica já é suficientemente má... toda a gente sabe que as enfermeiras e os médicos são mais doidos do que os doentes, mas Stockton é a lixeira das lixeiras! Fica nas dunas de areia do lado mais distante do estuário do Hunter, com todos os idiotas, dementes e pesadelos biológicos... dará cabo de ti!Espero que me cure — disse ela.

Sim, evidentemente. E exactamente o tipo de coisa que a Pappy faria. E tão fácil para os católicos, podem renunciar ao mundo, tomar o véu e entrar num convento. Mas que podem fazer os não católicos? Resposta: tomar a touca e irem ser enfermeiras psiquiátricas em Stockton, fazendo os cento e sessenta quilómetros até Newcastle e tomando depois o ferry-boat para sítio nenhum. Ela está a expiar os seus pecados da única forma que sabe.


            Compreendo perfeitamente disse eu e recomecei a andar. A Mrs. Delvecchio Schwartz estava emboscada junto à porta da frente quando chegámos e saudou-nos de uma forma muito peculiar.

            Oh, preciso de vocês as duas! exclamou parecendo agitada e preocupada, depois teve de conter uma gargalhada.

A gargalhada acalmou-me instantaneamente: a Fio estava bem. Se tivesse acontecido alguma coisa à Fio, ela não estaria a rir-se.

            Então? perguntei eu.

            É o Harold disse a Mrs. Delvecchio Schwartz. Podes dar-lhe uma vista de olhos, Harriet?

A última coisa que eu queria era dar uma vista de olhos ao Harold, mas aquela era, decididamente, uma situação clínica. No que dizia respeito às questões clínicas, eu ultrapassava a Pappy aos olhos da nossa senhoria.

            Claro que sim. O que se passa? perguntei enquanto subíamos.

E aí ela pôs uma mão na boca para abafar uma gargalhada, depois acenou com a mão e rebentou num enorme ataque de riso. Eu sei que não tem graça, princesa, mas, raios, é tão engraçado! disse quando conseguiu falar. A coisa mais engraçada que vejo há anos! Oh, meu Deus, não consigo controlar-me! É en... en... engraçado!

            E desatou a rir novamente.Pare com isso, sua bruxa! Ralhei. Que se passa com o Harold?Nã consegue fazer chichi! gritou ela novamente às gargalhadas.Desculpe?Nã consegue fazer chichi! Nã... consegue... fazer... chichi! Meu Deus, é engraçado!

A hilaridade dela era tão contagiosa que foi com esforço que me consegui manter séria, mas lá me arranjei. Pobre Harold. Quando foi que isso aconteceu?

            Nã sei, princesa disse ela limpando os olhos com o vestido e mostrando umas espantosas culotes cor-de-rosa que lhe davam quase pelo joelhos. Só sei que ultimamente anda a açambarcar a retrete. Pensei que andava com prisão de ventre... ele fica com tudo lá dentro, o Harold. Seja como for, a Jim e a Bob queixaram-se, o Klaus queixou-se e o Toby começou a correr para a latrina da lavandaria. Disse ao Harold que tomasse um chá, ou um laxante, ou qualquer coisa dessas, e ele ficou todo ofendido. Isto dura há dias! Hoje ele esqueceu-se de trancar a porta da retrete quando entrou e eu entrei por ali a dentro para lhe dar um sermão. As gargalhadas ameaçaram reaparecer, mas ela controlou-as heroicamente. E lá estava ele de pé em frente da latrina, a segurar na pobre pila e a chorar como se tivesse o coração partido. Foi preciso imenso tempo p'ra ele dizer, sabes com' ele é, um pudico. Nã... consegue... fazer... chichi! E lá teve outro ataque.

Estava farta dela. Bem, pode ficar aí a rir até rebentar, se quiser, mas eu vou ver o Harold disse eu, e marchei para o seu quarto.

Nunca ali estivera, como é evidente. Tal como o seu ocupante, era sombrio, arrumado e completamente destituído de imaginação. Uma fotografia numa moldura de prata de uma mulher idosa e arrogante, com rancor estampado nos olhos, estava em cima da cornija da lareira; de cada um dos lados da fotografia estava uma jarra com um ramo de flores. Tantos livros! Beau Geste. A Pimpinela Escarlate. O Prisioneiro de Zenda. The Dam Busters. O Cavalo de Pau. O Conde de Monte Cristo. Tap Roots. These Old Shades. The Foxes ofHarrow. Todas as histórias de Hornblower. Uma extraordinária colecção de histórias de feitos de cavalaria com heróis de armadura brilhante e o tipo de fantasias românticas que eu deixara de ler aos doze anos.

Sorri-lhe e disse-lhe um olá suave. O pobre homem estava sentado todo encolhido de um dos lados da cama de solteiro; quando falei, olhou-me com os olhos cheios de sofrimento. Depois apercebeu-se de quem eu era e a dor desapareceu, dando lugar ao ultraje.Contaste-lhe! gritou à Mrs. Delvecchio Schwartz que estava de pé junto à porta. Como pudeste contar-lhe a ela?Harold, eu trabalho num hospital, foi por isso que a Mrs. Delvecchio Schwartz me contou. Estou aqui para o ajudar, por isso deixe-se de disparates, por favor! Não consegue urinar, não é?


Ele tinha o rosto contorcido e os braços cruzados protectoramente sobre a barriga, as costas curvadas como um arco, tremia ligeiramente e balouçava-se para trás e para diante. Depois fez que sim com a cabeça.Há quanto tempo é que isso dura? perguntei.Há três semanas sussurrou ele.Três semanas! Oh, Harold! Porque não disse nada a ninguém? Porque não foi ao médico?

Ele respondeu com lágrimas, os diques abertos, as lágrimas correndo dispersas por baixo das lentes dos seus óculos como sumo espremido de um limão seco.

Virei-me para a Pappy. Vamos ter de o levar imediatamente para as Urgências do Vinnie disse-lhe.

Apesar do sofrimento, ele levantou-se como uma cobra. Não vou para o St. Vincent, é um hospital católico! sibilou.

            Então levamo-lo para o Hospital de Sydney sibilei em resposta. Assim que lhe puserem um cateter, vai sentir-se de tal forma melhor que irá perguntar-se porque não procurou ajuda mais cedo.

A ideia de o Harold com um cateter fez com que a Mrs. Del-vecchio Schwartz voltasse a rir às gargalhadas. Virei-me para ela. É capaz de sair daqui? ladrei. Faça qualquer coisa de útil! Arranje umas toalhas velhas para o caso de ele fazer pelas pernas abaixo e chame um táxi... Mexa-se!

Encorajando-o a tentar andar mas amparando-o entre as duas, eu e a Pappy conseguimos que o Harold se pusesse mais ou menos de pé. As dores não lhe permitiam endireitar-se, nem tirava as mãos de cima do baixo-ventre. Quando conseguimos descer as escadas com ele, já o táxi estava à espera.

O interno estagiário e a Enfermeira das Urgências limitaram-se a ficar a olhar para o Harold quando lhes foi explicada a natureza da emergência.

            Três semanas! exclamou o interno estagiário sem qualquer tacto, depois encolheu-se com os olhares que recebeu da Enfermeira das Urgências, da Pappy e de mim.


Instalámos o Harold numa cadeira de rodas e fomos embora, saímos do hospital e apanhámos o eléctrico de Bellevue Hill.Eles vão fazer-lhe os exames todos e mais alguns — disse a Pappy quando subimos para o eléctrico. Não o teremos de volta a casa antes de lhe fazerem um citoscópio e exames aos rins e sabe Deus que mais.Também não achas que seja orgânico disse eu.Não, ele está com demasiado bom aspecto e a origem da dor está na bexiga dilatada. Sabes o aspecto que os doentes com doenças renais têm, ou com pedras ou cancros pélvicos. Ele deve ter um desequilíbrio nos electrólitos, mas pelo aspecto Não é orgânico.

Oh, Pappy, quem dera que fizesses enfermagem geral! Mas não me atrevi a verbalizar aquele pensamento.

Portanto, por agora estou livre do Harold, apesar de a minha preocupação ter aumentado. Um qualquer instinto clínico diz-me que este homem horrivelmente reprimido vai a caminho da repressão final. Reter as fezes já não lhe chega, a dor e humilhação que isso lhe causa já não o satisfazem, portanto passou a reter a urina. Mas para além da retenção urinária a única coisa que lhe resta suprimir é a própria vida. Oh, raios partam a Mrs. Delvecchio Schwartz por se rir dele! Se ela não aprende a controlar-se, um dia destes ele ainda se mata. Esperemos que se fique por aí e não leve a Jim ou a Pappy consigo. No entanto, como poderá qualquer uma de nós argumentar com uma força da Natureza como a Mrs. Delvecchio Schwartz? Ela é uma lei em si mesma. Espantosamente sensata, abismalmente idiota. E se ele se matar, ela ficará desolada, penitente, inconsolável. Por que é que ela não vê isso nas cartas? Esta lá! Está lá! Harold e o Dez de Espadas. A ruína da Casa.

 

Sábado, 10 de Dezembro de 1960

Convidei o Toby para vir almoçar hoje cá em baixo e ele veio mesmo. Precisou da manhã de sábado para comprar ferramentas especiais para a construção da casa e teve de ficar em Sydney porque a Nock & Kirbys é a única loja que vende aquilo que ele quer.

De qualquer maneira, o sábado já está estragado, bem podes almoçar antes de te meteres no comboio disse eu convincentemente.

A ementa era empada à pastor feita com atum e cogumelos, misturados com molho de manjerona fresca, puré de batata com imensa manteiga e pimenta rosa, tudo acompanhado com salada com molho de óleo de avelã misturado com água e vinagre pouco ácido.Se continuares a cozinhar assim, vou ter de me casar contigo assim que ficar famoso disse ele de boca cheia. Isto é bomE tu só vais ficar famoso depois de morreres, portanto estou segura disse eu sorrindo-lhe. Cozinhar é divertido, embora suspeite de que não o seria se tivesse de cozinhar todos os dias, como a minha mãe.Aposto que ela gosta disse ele passando para o cadeirão em frente ao da Marceline, que dele só recebeu uma careta.Se gosta é só porque tem prazer em ver os homens dela a empanturrarem-se respondi com alguma aspereza. A ementa é bastante limitada: bife com batatas fritas, peixe com batatas fritas, perna de carneiro assada, peito de borrego guisado, salsichas com caril, costeletas de carneiro, camarões comprados já cozinhados na peixaria e depois volta ao início... Porque não gostas tu da minha linda MarcelineO lugar dos animais disse ele não é dentro de casa.Mas que campónio tu me saíste! Se um cão não é bom pastor, mata-se o cão.Envenenamento com chumbo na orelha esquerda é uma morte santa protestou ele. Não estou a brincar, acaba-se tudo num segundo.és mesmo um solitário observei eu, sentando-me no cadeirão ao pé da gata.Aprende-se a sê-lo, quando não conseguimos sempre, que as coisas funcionem como queremos. E quando digo sempre, quero dizer sempre, não quero dizer ocasionalmente.

Ela vai acabar por se virar para ti, Toby, sei que vai disse eu calorosamente.Do que é que estás a falar? perguntou ele inexpressivamente.

Fiquei sem reacção. Com certeza que sabes!Não, não sei. Explica-te.A Pappy.

Ele ficou de boca aberta. A Pappy?Sim, claro, seu tonto, a Pappy!Porque haveria a Pappy de se virar para mim? perguntou ele de cenho franzido.Oh, realmente! Pode ser que penses que consegues esconder os teus sentimentos, Toby, mas não é preciso ser-se um grande génio para perceber que gostas da Pappy.É claro que gosto da Pappy disse ele , mas não estou apaixonado pela Pappy... Deves estar a brincar, Harriet.

            Mas tens de estar apaixonado por ela! disse eu, confusa. Ele estava a ficar com os olhos vermelhos. Isso é um disparate.Oh, ora, Toby, vá lá! Eu vi a dor nos teus olhos, não me enganas nem por um minuto gaguejei.Sabes, Miss Purcell disse ele levantando-se rapidamente, , podes realmente pensar que és uma mulher do mundo, mas na verdade és cega, estúpida, ilógica e obcecada contigo própria!

Com aquela última farpa saiu, deixando-me sentada com a Marceline no colo e a pensar no que é que me batera.

Está a acontecer qualquer coisa à Casa, sinto-o, e o Toby é apenas mais um sintoma. Não consigo tirar nada de jeito da Mrs. Del-vecchio Schwartz a respeito da Casa nem dela própria e, desde que regressou, o Harold caiu novamente nas suas boas graças. Suponho que ele nunca se apercebeu de como ela rira dele, de tal forma estava a sofrer. Quando o Hospital de Sydney o encaminhou para um psiquiatra, ele ficou de tal forma ofendido que assinou o termo de responsabilidade e veio para casa.

Oh, Duncan, tenho saudades tuas!


 

Domingo, 25 de Dezembro de 1960 (Dia de Natal)

Fui para casa, para Bronte, apesar de não ter aceitado dormir no sofá da sala. Amanhã, que é feriado, vou trabalhar porque há vários eventos desportivos marcados para os vários recintos que ficam a leste do Queens, portanto vai haver imensos acidentes de trânsito e algumas vítimas das zaragatas de bêbados. Também estarei de serviço no Dia de Ano Novo, apesar de a Ann Smith se ter oferecido para trabalhar na Véspera de Ano Novo porque o noivo está de serviço nas Urgências nessa noite. A Véspera de Ano Novo é um caos em todas as Urgências hospitalares, apesar de ser pior no Vinnie's, porque meia Sydney faz a sua visita anual a Cross para se embebedar, encher as ruas de lixo e de vómito e fazer com que Norm, Verv, Bumper Farrel e os restantes polícias de Cross estejam freneticamente ocupados.

Dei ao Willie um garrafa de brandy barato, à avó um lindo xaile espanhol, a Gavin e ao Peter uma objectiva excelente para a máquina Zeiss, ao pai uma caixa de charutos cubanos e à mãe roupa interior lindíssima (sensual mas respeitável). A família fez uma vaquinha e deu-me um vale para comprar montes de discos na Nichol-son's. O que apreciei imenso.

 

Quarta-feira, 28 de Dezembro de 1960

A Mrs. Delvecchio Schwartz apanhou-me quando eu ia a entrar esta tarde e convidou-me para um copo de vidro grosso de brandy. O que me irritou.

Porque continua a usar estes copos? perguntei. Ofereci-lhe sete belos copos de brandy em vidro fino pelo Natal!

A visão raio X não está tão apurada de momento, está com um olhar mais distante, pelo que a minha pergunta não provocou um incêndio no seu farol interno. Oh, eu não podia usá-los! exclamou ela. Estou a poupá-los para ocasiões especiais, princesa.


A poupá-los para ocasiões especiais? Mas eu não lhos dei para os guardar! disse eu, desesperada.Se eu os usasse, podia partir um.Mas isso não tem importância, Mrs. Delvecchio Schwartz! Se um se partir, eu compro outro.Não se pode substituir uma coisa que se parte disse ela.

            A aura está no original, princesa, e esses são os sete. Bem pensado, comprar sete e não seis... aqueles em que tocaste e embrulhaste tão bem.

            Eu tocaria e embrulharia também o substituto com todo o cuidado disse eu.

            Não é o mesmo. Não, vou poupá-los para ocasiões especiais. Desisti e contei-lhe a minha estranha conversa com o Toby.

Eu iria jurar que ele está apaixonado pela Pappy!

            Ná, nunca esteve. Ela trouxe-o para casa há quase cinco anos para uma rapidinha e depois percebeu qu' eu andava à procura dele vi-o nas cartas. O Rei de Espadas. Tenho de ter um Rei de Espadas na Casa, princesa, mas são muito mais difíceis d' encontrar do c'as Rainhas. Os homens são uns coitados, não são fortes com tanta frequência com' as mulheres. Mas o Toby é. Um bom tipo, o Tobydisse ela, acenando com a cabeça.

Eu sei disso! ripostei.Pois sabes, princesa, mas não como devias.Não como devia? perguntei.

Mas ela mudou de assunto e informou-me de que faz uma festa todas as Vésperas de Ano Novo. Uma festa de arromba, segundo ela. Que se tornou uma tradição em Cross e toda a gente que é alguém em Cross estará presente pelo menos durante parte das festividades. Até mesmo Norm, Merv, a Madame Fugue, a Madame Toccata, Chastity Wiggins e umas quantas outras raparigas permanentes arranjam tempo para ir à festa de Ano Novo da Mrs. Delvecchio Schwartz. Eu disse que também iria, mas tinha de trabalhar no Dia de Ano Novo e portanto não poderia festejar a todo o gás.

            Não haverá trabalho para ti no Dia de Ano Novo disse ela.

            Posso garantir-te.

            Está nas cartas disse eu numa voz muito sofrida.


            Percebeste logo, princesa!

Afinal, o que ela quer, evidentemente, é ajuda culinária. Os tipos têm instruções para fornecer as bebidas, as raparigas da Casa (mais o Klaus) fornecem a comida. A própria Mrs. Delvecchio Schwartz assa um peru vai ficar seco e duro, pensei eu com um estremecimento. O Klaus comprometeu-se com um leitão assado, a Jim e a Bob fazem as saladas, pastéis de chouriço e de salsicha em miniatura, a Pappy faz crepes e tostas de camarão e eu estou encarregada das sobremesas, que têm de ser todas passíveis de ser comidas com os dedos. Eclairs, pastéis, bolos e tortas, são essas as minhas ordens.

            E é melhor fazeres uns daqueles biscoitos tradicionais australianos que sabes fazer disse a velha bruxa. Nã gosto muito de doces, mas gosto de um bom biscoito estaladiço para molhar no meu chá.

Rime. Deixe-se disso, sua trapalhona! Desde quando é que bebe chá?Bebo sempre duas chávenas todas as noites de Fim de Ano respondeu ela solenemente.Como está o Harold? perguntei.O Harold é o Harold disse ela, fazendo uma careta. A sorte é qu' aquilo qu' ele tem de fazer pela Casa está para muito breve, foi o q'as cartas m' informaram. Assim qu' a coisa estiver feita, ele vai-se embora.Nem vale a pena dizer-lhe que vamos perder a Pappy, para além do Toby disse eu, e suspirei. A Casa está a desfazer-se.

Uma luz potente reacendeu-se nos seus olhos. Nunca digas isso, Harriet Purcell! disse ela com severidade. A Casa é eterna.

A Fio entrou a bocejar e a esfregar os olhos, viu-me e saltou-me para o colo. Nunca a tinha visto ensonada observei.Ela dorme.Nem nunca a ouvi falar.Ela fala.

E lá desci eu escadas abaixo, com a mão da Fio na minha, para um serão tornado apenas suportável por a Mrs. Delvecchio Schwartz ter deixado o meu pequeno anjo vir comigo. Quando a levei de volta, um pouco antes das nove da noite (a Fio não tem os horários normais das crianças, aparentemente fica acordada até a mãe ir para a cama o que diria a minha mãe de uma coisa assim?), a Mrs. Delvecchio Schwartz estava sentada na sala às escuras, e não na varanda, como é seu hábito durante o Verão. O Cristal estava em cima da mesa na sua frente e parecia atrair a si todas as partículas de luz vindas do candeeiro da rua, da lâmpada do átrio e das luzes ocasionais dos faróis dos Rolls com motorista que vinham deixar um cliente no 17b ou 17d. A Fio, assim que viu a mãe, ficou absolutamente imóvel, a pressão da sua mão na minha uma ordem silenciosa para que não me mexesse. Ficámos ali imóveis na escuridão durante aquilo que me pareceu ser uma meia hora, enquanto a mulher enorme permanecia sentada e absolutamente imóvel, com a face ensombrada a trinta centímetros do Cristal.

Finalmente, com um suspiro, a Mrs. Delvecchio Schwartz recostou-se na cadeira e limpou o rosto com uma mão cansada. Puxei a Fio suavemente na direcção dela até chegarmos junto da mesa.Obrigadinha por tomares conta dela, princesa. Eu precisava de ver no Cristal.Quer que acenda a luz?Obrigada. Depois chega aqui um bocadinho.

Quando regressei, a Fio estava sentada no colo dela, olhando para o vestido abotoado com um ar triste.E uma pena tê-la desmamado dei por mim a dizer.Tinha de ser respondeu ela bruscamente. Depois pegou-me nas mãos e pousou-as sobre o Cristal enquanto a Fio as olhava com um ar arrebatado. De seguida transferiu o olhar para o meu rosto com uma expressão... maravilhada? Não sei. Mas fiquei ali com as mãos a cobrir o Cristal, à espera que algo acontecesse. Nada aconteceu. A superfície é fria e macia e é tudo.Lembra-te disse a Mrs. Delvecchio Schwartz , lembra-te de que o destino da Casa está no Cristal. Tirou-me as mãos de cima da Bola de Cristal e juntou-as, palma contra palma, com os dedos unidos como as mãos dos anjos nas pinturas. Está no Cristal.


 

Sexta-feira, 30 de Dezembro de 1960

A porcaria das cartas, outra vez! Afinal de contas, não vou trabalhar no Dia de Ano Novo. O Dr. Alan Smith está escalado para o serviço nas Urgências o dia todo e a Ann quer trabalhar também. Não me surpreende. Se fizer um turno duplo nas Urgências, vai ficar estourado e vai precisar do refúgio que será a radiologia das Urgências no caso de ser a Ann a lá estar de serviço. A nossa estagiária está de licença e foi substituída por uma eventual que é boa rapariga. Eu não teria consentido se a Ann não desse conta do trabalho, mas dá, e fiz um favor ao casalinho, pois depois disto estarão os dois de folga dois dias seguidos.

 

Domingo, 1 de Janeiro de 1961 (Dia de Ano Novo)

Mil novecentos e sessenta e um já tem quase vinte e quatro horas e a noite já caiu. Há já um ano que escrevo este diário e, apesar de estar completamente rebentada e quase não me conseguir mexer, tenho de anotar no meu caderno tudo o que aconteceu hoje antes que as emoções se desvaneçam. Descobri que estes cadernos são uma espécie de catarse e que a escrita não anda às voltas como acontece quando pensamos nas coisas.

A Festa de Ano Novo foi estrondosa como uma bomba de hidrogénio uma verdadeira farra de arromba, como disse a Mrs. Delvecchio Schwartz, com um braço à volta do Merv e a cara vermelha como um tomate. Apesar de não estar bêbada, não estar mesmo. Só um bocadinho tocada, só isso. Terrivelmente feliz, lembro-me de ter pensado.

Todo o Cross veio à festa, ainda que algumas pessoas tenham ficado apenas alguns minutos e outras parecessem ameaçar perpetuar--se, quando saí às três da manhã ajudada pelo Toby a descer as escadas. As minhas recordações são vagas, lembro-me apenas de fragmentos, como a chegada de Lady Richard com uma peruca oxigenada, saltos com doze centímetros de altura e um vestido vermelho justíssimo, bordado com lantejoulas, com rachas de ambos os lados que chegavam quase à parte de cima das ancas, revelando pele branca sedosa e glabra acima das meias finíssimas de seda preta. Os seus seios decididamente não são postiços e não se viam sinais de inchaço no local onde os homens devem ter um inchaço. A Pappy disse-me, numa voz supostamente baixa, que corriam rumores de que ele fora à Escandinávia fazer a Operação Total. Se foi, respondi eu num murmúrio, o aparelho urinário deve ter ficado numa desgraça. O pobre do Norm só ficou o tempo suficiente para me dar um beijo molhado, mas o Merv aproveitou-se do seu posto para ficar um pouco mais e namoriscou descaradamente com a Mrs. Delvecchio Schwartz. O Lerner Chusovich não ficou nada satisfeito com isso. E, reparei, o Klaus também não; não parava de olhar para a senhoria com um desejo descarado. A Jim deu-me um beijo muito competente e eu estava suficientemente tocada para o apreciar, mas a Bob ficou furiosa e eu empurrei a Jim e concentrei-me no Toby o resto da noite. A nossa pequena discussão foi esquecida e os beijos dele, lembro-me, estavam ao mesmo nível dos do Duncan, apesar de eu não o ter beijado a fingir que ele era o Duncan. O Toby é sem dúvida o Toby.

Desabei sobre a cama com as roupas da festa e fui acordada por volta das oito da manhã pela Marceline, cujo estômago rege a sua vidinha anafada. O Toby deve ter corrido as minhas cortinas, o que foi uma bênção. Cambaleei até à máquina de café, bebi uma boa porção de remédio para o estômago para me acalmar as náuseas e calei a Marceline com natas e uma lata de sardinhas que cheiravam tão mal que me pus aos vómitos no lava-loiça. Não saiu nada, mas fugi para o quarto até a Marceline ter acabado com as sardinhas.

A Fio estava na minha cama, enrolada a dormir na semiobscuridade. Anjinho, meu anjinho! Não a vira nem sentira. As coisas deviam estar bastante loucas no andar de cima, para ela ter vindo à minha procura. Ou então o Harold estava na cama da mãe. Oh, sim, ele estivera na festa, a beber brandy pelos cantos, a ver a Mrs. Delvecchio Schwartz a divertir-se com o Merv, a resmungar, a mandar--me olhares malévolos, especialmente quando beijei a Jim. Puta desenharam os seus lábios.


Assim que achei que a náusea tinha passado de vez, voltei para a sala e abri a porta de par em par para deixar entrar o fresco, e respirei fundo. O mundo lá fora estava absolutamente silencioso. Não havia roupa pendurada nas cordas, nenhum som de discussão nem de conversas frívolas saía das janelas cobertas com cortinados de renda cor de malva do 17d e, na Casa, reinava a quietude total. Estivera mais ou menos à espera de ouvir a Mrs. Delvecchio Schwartz aos gritos à procura do seu anjinho, mas tal não aconteceu. O início da manhã do Dia de Ano Novo deve ser uma das experiências mais calmas em Cross, pensei. Todos os habitantes do bairro estão fora de combate.

Mas eu tinha de levar a Fio lá para cima, para o caso de a mãe dela acordar e ficar preocupada. Fui então ao meu quarto, sentei-me na beira da cama e peguei na Fio ao colo, encostei a cara ao seu cabelo despenteado, embalei-a e beijei-a. Quando eu era pequenina, a minha mãe acordava-me sempre assim e eu ainda me lembro de como era maravilhoso regressar da terra dos sonhos para uma realidade de abraços e beijos.

Ela estava molhada. Oh, meu anjo, não! Como é que vou conseguir pôr o meu colchão de algodão grosso na corda a secar? Foi essa a minha primeira reacção. Mas a Fio não cheirava a urina e aquilo não parecia urina, pois esta não fica dura e rígida como o vestido da Fio. Ela não se mexera, apesar dos abraços e dos beijos. Nem ela nem a mãe se tinham arranjado para a festa e, ao olhar para o tecido castanho, não conseguia perceber que tipo de líquido era aquele. Mas conhecia o odor único. Oh Deus! Rápido! Abre as cortinas!

Sangue. Ela estava coberta de sangue. A minha pele arrepiou-se toda mas mantive a calma, dirigi-me a ela lenta e cuidadosamente, levantei o vestido e puxei as cuecas velhas para baixo, para lhe inspeccionar a púbis. Por favor, Deus, não! Isso não, isso não! Dizia eu repetidamente com as mãos e o corpo a tremer. Não, nada. Não era o seu próprio sangue que cobria a Fio das plantas dos pés até às mãos as mãos estavam cobertas de sangue, completamente cobertas de sangue. Assim que acordou, dirigiu-me um sorriso sonolento e pôs os braços à volta do meu pescoço. Tirei-a da cama e levei-a para a sala onde a Marceline, que não deixara absolutamente nada na taça, estava sentada a lavar-se.

Querida, brinca com a Marceline disse eu através do entorpecimento que me envolvia progressivamente, e pousei a Fio ao lado da gata. Tenho de ir lá fora num instante, meu anjo, e tu tens de ficar aqui a tomar conta da pobrezinha da Marceline. Tens de ver se ela se porta bem.

Subi as escadas cinco degraus de cada vez, atravessei o átrio com um único salto e entrei de rompante na sala e fiquei imóvel como uma estátua. O sangue era um lago que cobria o chão por baixo e em volta da mesa, solidificado nos locais onde o linóleo abatera, uma camada fina cobrindo as saliências. Alguém arrumara a sala, os restos da festa tinham sido empurrados para um canto, apesar de a mesa estar coberta com pilhas de pratos sujos e de ainda lá estar a carcaça do peru horrível. Os meus olhos abarcaram tudo e pareceu não me escapar nada. O sangue não jorrara de forma a salpicar as paredes, mas havia um local onde a parede estava suja de sangue a parede que a Fio usara nestes últimos dias para fazer os seus rabiscos. Estava suja com grandes cornucópias de sangue acastanhado e via-se, aqui e ali, a impressão de uma mãozinha. Pequenas pegadas ensanguentadas atravessavam o linóleo limpo entre a borda do lago e aquela secção da parede, pegadas dirigindo-se à parede e regressando ao lago. Os lápis de cor não serviam para expressar os seus sentimentos. A Fio pintara com os dedos usando o sangue como tinta.

A Mrs. Delvecchio Schwartz jazia de cara para baixo ao lado da mesa, morta. Não longe dela estava o Harold Warner, caído sobre os quadris, com as mãos em torno do cabo da faca de trinchar o peru enterrada na sua barriga, a cabeça pendente, o queixo apoiado no peito como se contemplasse a sua própria ruína.

A minha boca abriu-se e eu uivei. Não quero dizer que chorei ou solucei ou gritei produzi, sem parar, sons animalescos de horror e desespero aos berros.

O Toby foi o primeiro a chegar e o Toby tomou conta das operações. Suponho que tenha mandado alguém chamar a polícia, porque ouvi-o vagamente a disparar ordens na direcção das pessoas que estavam junto à porta, mas nunca saiu de ao pé de mim. Quando eu já não conseguia uivar mais, ele levou-me para fora da sala e fechou a porta. A Pappy, o Klaus, a Jim e a Bob estavam todos juntos no átrio, mas do Chikker e da Marge do andar de baixo não havia sinais.Chamei a polícia... Toby, o que se passa? gritou a Pappy.A ruína da Casa disse eu a bater os dentes. O Dez de Espadas e o Harold. Ele está aqui para destruir a Casa. Era essa a sua tarefa e, se ela nunca o percebeu nas cartas, viu-o no Cristal, eu estava presente quando isso aconteceu. Ela sabia, ela sabia! Mas submeteu-se.A Mrs. Delvecchio Schwartz e o Harold estão mortos disse o Toby.

Quando ele conseguiu levar-me lá para fora, para o caminho do jardim, todas as janelas do 17d estavam escancaradas com uma cabeça a espreitar.

            A Mrs. Delvecchio Schwartz morreu teve ele de repetir várias vezes até conseguir entrar comigo no meu apartamento.

A Fio estava encolhida num emaranhado compacto de membros, enrolada à volta da Marceline, que ronronava. O Toby olhou para ela, lançou-me um olhar horrorizado e foi buscar a garrafa do brandy.

            Não! ofeguei. Nunca mais quero ver essa porcaria. Já estou bem, Toby, a sério que estou.

A manhã passou com uma procissão de gente, a começar pela polícia. Não eram os meus amigos da Brigada de Costumes estes eram desconhecidos à paisana. Como o Toby assumira o comando e se recusava a sair de ao pé de mim, tudo parecia desenrolar-se na minha sala. Mas antes de eles chegarem, a Pappy levou a Fio para lhe dar banho e vesti-la de lavado e eu fui à lavandaria para tomar um duche e trocar o vestido da festa por algo mais sóbrio. Sóbrio.

O que preocupou mais a polícia foram as pinturas com os dedos da Fio. Aquilo parecia fasciná-los; já o crime, era vulgaríssimo. Assassínio e suicídio, clarinho como água. Interrogaram-nos a todos, tentando descobrir o motivo, mas nenhum de nós reparara em mudanças de comportamento, quer por parte da Mrs. Delvecchio Schwartz, quer por parte do Harold. Tive de lhes contar a forma como ele me emboscava, falei-lhes da sua instabilidade emocional e mental, da retenção urinária e da sua recusa em consultar um psiquiatra quando isso lhe fora recomendado. O Chikker e a Marge do apartamento térreo da frente tinham desaparecido sem deixar rasto, não ficara nem uma impressão digital. Mas a polícia não estava interessada neles, isso era evidente, apesar de terem emitido ordens para que fossem detidos para interrogatório. Como estavam por baixo da sala onde tudo acontecera, com certeza que tinham ouvido o que se passara.

            O que é óbvio disse o sargento ao Toby é que a miúda assistiu a tudo. Assim que ouvirmos a sua versão da história, ficaremos a saber.

Eu meti-me na conversa. A Fio não consegue falar disse eu. É muda.Quer dizer que ela é atrasada? perguntou o sargento de cenho franzido.Pelo contrário, é extremamente inteligente respondi. Simplesmente, não fala.É também essa a sua opinião, Mr. Evans?

O Toby confirmou que a Fio não falava. Ela ou é sobre-hu-mana ou sub-humana, nunca tenho a certeza — acrescentou o filho-da-mãe.

Logo a seguir, a Pappy reapareceu com a Fio, vestida agora com um vestido lavado castanho e os pés descalços como sempre. Os dois polícias ficaram a olhar para o meu anjo como se ela fosse anormal e eu vi o que estavam a pensar como se pronunciassem as palavras: ela tem o aspecto de qualquer outra menina de cinco anos mas, lá por baixo, é um monstro.

Sim, a Fio tem cinco anos. Hoje é o dia de anos dela e eu tenho o presente de aniversário todo embrulhadinho dentro do armário um lindo vestido cor-de-rosa. Continua lá.

Depois passámos aos pormenores dos inquéritos oficiais; nomeadamente, há alguns parentes? Cada um de nós teve de responder que não, achávamos que não. Até mesmo a Pappy, que é quem vive na Casa há mais tempo, teve de dizer que nunca vira nenhum parente por ali, pelo menos que tivesse dado por isso. E a Mrs. Delvecchio Schwartz nunca falara em quaisquer parentes.

Por fim, o sargento fechou o bloco de notas e levantou-se, agradeceu ao Toby o brandy que este lhe oferecera muito obrigado, amigo, muito obrigado. Via-se que eles estavam muito satisfeitos por haver ali um homem com quem podiam falar, por não terem de lidar com um monte de mulheres muito estranhas do ponto de vista social. Porque havia ali um elemento social o trabalho era um trabalho sujo, mas um tipo decente é sempre mais fácil de se lidar.

Quando chegou à porta, o sargento virou-se para mim. Ficava-lhe grato se pudesse tratar da menina durante mais ou menos uma hora, Miss Purcell. É o tempo que vai levar a Protecção de Menores a chegar cá.

Senti os olhos a dilatarem-se. Não é necessário chamar a Protecção de Menores disse eu. De ora em diante, eu cuidarei da Fio.Lamento muito, Miss Purcell disse ele , mas as coisas não funcionam dessa maneira. Dado não haver parentes, a pequena Florence Florence? é agora uma responsabilidade da Protecção de Menores. Se conseguirmos encontrar um parente, então poderá ir viver com essa pessoa, se esta assim o desejar e, em casos como estes, geralmente os parentes dizem sempre que sim. Mas se não conseguirmos localizar nenhum parente, então a Florence Schwartz fica sob custódia do Estado da Nova Gales do Sul. Pôs o chapéu de feltro de polícia à paisana na cabeça e saiu com o agente atrás.Toby! ofeguei.Pappy, leva a Fio e a Marceline para o quarto disse o Toby, e ficou a observá-la enquanto ela lhe obedecia.

Depois pegou-me nas mãos, sentou-me num cadeirão e empoleirou-se num dos braços, como o Duncan costumava fazer. Costumava fazer. Passado, Harriet, passado.

            Ele não pode estar a falar a sério disse eu.

Nunca vi o Toby tão severo, tão implacável, tão frio. Sim, Harriet, estava. O que ele quis dizer é que a Fio provavelmente não tem amigos nem parentes. A mãe dela morreu naquilo que ele presume ter sido uma briga de bêbados com o amante louco que não era o pai da Fio. Ele, pessoalmente, pensa que a Fio é uma criança gravemente negligenciada de uma família pouco decente. Ele também pensa que a Fio não é boa da cabeça. E é isso que, assim que ele chegar à esquadra, irá dizer à Protecção de Menores, que recomenda que a Fio seja imediatamente entregue à custódia do Estado.Não pode, não pode! gritei. A Fio não sobreviverá fora da Casa! Se eles a levarem, ela vai morrerEsqueceste o factor mais importante, Harriet. A Fio estava naquela sala quando tudo aconteceu e usou o sangue para escrevinhar nas paredes. Isso é uma acusação disse o Toby duramente.

O meu querido amigo a falar daquela maneira? Não haverá ninguém disposto a defendê-la, a não ser eu? Toby, a Fio só tem cinco anos! disse eu. O que terias tu feito, o que teria eu feito na idade dela, naquelas circunstâncias? Sê justo! Não há nenhumas estatísticas muito certinhas que rejam estas coisas! Durante toda a sua vida lhe foi permitido escrevinhar nas paredes da mãe. Quem sabe por que razão terá usado sangue? Talvez tenha pensado que isso traria a mãe de volta. Não podem tirar-me a Fio, não podem!

            Podem e fálo-ão disse Toby sombriamente, e dirigiu-se ao fogão para pôr a chaleira ao lume. Harriet, estou a fazer de advogado do diabo, só isso. Concordo contigo em como a Fio não se desenvolverá longe da Casa, mas nenhuma autoridade verá isso dessa maneira. Agora vai buscar a Pappy e a Fio. Se te recusas a beber brandy, o chá é o substituto aproximado.

Tiraram-me a Fio cerca do meio-dia, duas mulheres da Protecção de Menores. Mulheres bastante decentes: é um trabalho horrível. A Fio recusou-se a cooperar fosse de que forma fosse, mesmo depois de eu ter sugerido que lhe chamassem Fio, e não Florence. Aposto que o nome que vem na certidão de nascimento dela é Fio... se é que ela tem uma certidão de nascimento. Conhecendo a Mrs. Del-vecchio Schwartz, é bem capaz de não ter. Meu anjo, meu anjo. Ela não permitiu que nenhuma das mulheres lhe tocasse nem vacilou quando elas a lisonjearam, adularam, persuadiram e imploraram. A Fio limitou-se a agarrar-se a mim como se disso dependesse a sua vida e a enterrar o rosto no meu colo. Por fim, decidiram sedá-la com hidrato de cloral, mas ela vomitou sempre a cada tentativa, mesmo quando lhe apertaram o nariz.

A Jim e a Bob desceram para assistir, apesar de eu desejar que não o tivessem feito. A mulher responsável olhou-as de cima a baixo como se fossem lixo e tomou mais uma nota negativa no seu bloco de notas sobre a Casa, que tinha apenas uma casa de banho como deve ser e uma retrete para servir quatro andares. E porque estava a Fio descalça? Não tinha sapatos? Aquilo parecia preocupar muito as duas intrusas. Quando, após a quarta tentativa com o hidrato de cloral, a Fio abandonou a minha protecção e começou a correr pelo quarto como um pássaro que, tendo entrado numa casa, não consegue encontrar a saída, esbarrando nas paredes, no fogão, na mobília, eu passei ao ataque e lancei-me sobre as funcionárias da Protecção de Menores para as esmurrar. Mas o Toby agarrou-me e obrigou-me a mim e à Jim a não interferir.

Finalmente, decidiram dar-lhe uma injecção de paraldeído, o que nunca falha. A Fio caiu para o lado, elas agarraram-na e levaram-na, comigo no seu encalço e o Toby agarrado a mim.Como é que a posso encontrar? perguntei na rua.Telefone para a Protecção de Menores foi a resposta. Enfiaram-na no carro e a última visão que tive do meu anjo foi o seu rosto pequenino, imóvel e pálido enquanto a levavam.

Todos eles queriam ficar a fazer-me companhia, mas eu não queria companhia, muito menos a de Toby, que foi o mais insistente. Gritei-lhe que se fosse embora! Vai-te embora! Até que ele foi. A Pappy esgueirou-se pela porta um pouco mais tarde, para me dizer que o Klaus, o Lerner Chusovich e o Joe Dwyer do departamento de engarrafados de Piccadilly estavam lá em cima no quarto do Klaus e queriam saber como eu estava e o que podiam fazer para me ajudar. Obrigada, estou bem, não preciso de nada, disse eu. O meu nariz ainda sentia o odor adocicado da droga que tinha dado à Fio.


Cerca das três horas, fui ao quarto para telefonar para Bronte. Tinha de informar a mãe e o pai antes de a história aparecer nos jornais, embora supusesse que um assassínio e suicídio de bêbados em Kings Cross na Noite de Passagem de Ano não mereça mais do que um pequeno parágrafo na página dez. Quando levantei o auscultador, descobri que o telefone estava desligado o fio tinha sido desligado da ficha junto ao rodapé. Devia ter sido o Toby quando me pôs na cama, na noite anterior. Assim que liguei a ficha, o telefone começou a tocar.Harriet, onde tens estado? perguntou-me o pai. Estamos raladíssimos!Tenho estado sempre aqui respondi. Alguém desligou o meu telefone. Embora me pareça que vocês já sabem o que aconteceu.Vem para casa imediatamente foi tudo o que ele disse... uma ordem, não um pedido.

Disse à Pappy para onde ia e mandei parar um táxi em Victoria Street. O motorista lançou-me um olhar estranho, mas não disse nada.

A mãe e o pai estavam sentados, sozinhos, à mesa de jantar. A mãe parecia ter estado a chorar durante horas e o pai, subitamente, ficara o ar dos anos que tinha: o meu coração comprimiu-se, pois podia ver que ele tem quase oitenta anos.

            Fico satisfeita por não ter de vos contar disse eu, sentando-me.

Estavam ambos a olhar para mim como se não me conhecessem; só agora, ao escrever estas palavras, me apercebo de que eu devia parecer saída de um caixão. O horror tem esse efeito.

            Não queres saber como nós sabemos? perguntou então o pai.

            Sim, como é que souberam? perguntei obedientemente. O pai tirou uma carta de um envelope e estendeu-ma. Peguei-lhe

e li-a. Uma belíssima caligrafia sofisticada, absolutamente direita sobre o papel liso e caro, papel de muito boa qualidade. A caligrafia e o papel de carta de alguém muito fino.


 

Senhor,

A sua filha é uma puta. Uma rameira vulgar e ordinária que não é digna de habitar este mundo e que não será bem-vinda no outro.

Durante os últimos oito meses tem mantido um sórdido caso sexual com um homem casado, um médico famoso do hospital. Seduziu-o, vi-afazê-lo na escuridão de Victoria Street. Como ela o levou! Como ela exibiu os seus encantos! Como ela se insinuou na sua vida e afectos! Como ela o rebaixou! Como ela o trouxe até ao seu próprio nível e adorou fazê-lo! Mas um homem decente não consegue satisfazê-la. Ela é lésbica, um membro apreciado dessa sociedade de sujas pervertidas que habitam a sua casa. O nome do médico é Mr. Duncan Forsythe.

Um Cidadão Preocupado.

 

            Harold disse eu, e pousei o papel como se este estivesse a ferver.

            Deduzo que as acusações sejam verídicas disse o meu pai. Sorri e fechei os olhos. Foram, durante algum tempo, pai.

Corri com o Duncan em Setembro, na verdade, e posso assegurar-te de que não sou lésbica, apesar de ter muitas amigas que o são. São boas pessoas. Muito melhores do que o homenzinho horrível que escreveu isto. Quando é que chegou? perguntei.

            No correio de ontem à tarde. O pai estava de cenho franzido. Não é parvo e percebeu que o meu aspecto de hoje nada tem a ver com um caso terminado quatro meses antes. Que se passa, se não é isto? perguntou ele.

E contei-lhes o que acontecera naquele dia. A mãe ficou horrorizada e voltou a chorar, mas o pai... o pai ficou destroçado. Abalado até ao mais íntimo de si. Que teria ele sentido em relação à Mrs. Del-vecchio Schwartz na única vez em que a vira, para ficar tão abalado com a sua morte? Não parava de ofegar e apertar o coração até a mãe se levantar e lhe dar uma boa dose de brandy do Willie. Isso fê-lo acalmar um pouco, mas passou bastante tempo até eu poder contar--lhe o que tinha de lhe contar, que ia pedir a custódia da Fio. Talvez a reacção profunda que ele tivera com a notícia da morte da minha senhoria me tivesse encorajado a pensar que ele ficaria imediatamente do meu lado, mas não ficou.

Obter a custódia daquela criança anormal? gritou ele, erguendo a voz. Harriet, não podes fazer isso! Vais afastar-te de tudo isso e sair daquela casa! A melhor coisa que tens a fazer é vir para casa.

Eu não queria discutir, não tinha energia para discutir, por isso levantei-me e deixei-os ali sentados.

Pobres pais, também foi um dia difícil para eles. Têm uma filha que teve um caso com um importante médico casado, mas a importância desse facto empalidecera quando comparado com assassínio, suicídio e a determinação da referida filha em obter a custódia de uma criança louca que não fala e pinta com os dedos sujos de sangue. Não é para admirar que olhem para mim como se não me conhecessem.

Grande Dia de Ano Novo. Não um pesadelo, mas realidade.

 

Segunda-feira, 2 de Janeiro de 1961

Tive um pesadelo às cinco da manhã, acordei a sentir-me sufocada e dei por mim sentada na cama a gemer, tentando respirar e a sentir o lago de sangue vermelho-escuro a subir e a subir até eu estar em bicos de pés com as narinas quase submersas e o Harold a rir-se histericamente a olhar para mim.

O Sol já vinha a caminho e a luz entrava pelas minhas cortinas abertas. Saí da cama, dei de comer à Marceline, fiz café e sentei-me à mesa para me dizer repetidamente que a Mrs. Delvecchio Schwartz está morta. As pessoas como ela têm tanta vida que quando morrem é incrível sentimos que não é possível, que houve um engano. Não sei porque é que aquilo aconteceu, não sei por que é que ela permitiu que acontecesse. Porque ela permitiu que acontecesse! Ela viu o que ia acontecer no Cristal, daquela última vez, e não fez qualquer tentativa para o evitar. No entanto, estivera tão feliz na festa! Talvez sentisse que aquela coisa que tinha no cérebro estava a mover-se e preferisse a rapidez da faca do Harold.

Mas não conseguia sentir dor, não conseguia chorar nem fazer o luto. Havia demasiadas coisas para fazer. Onde estava a Fio? Como passara ela a noite? A primeira noite da sua vida fora da Casa.

A primeira coisa a fazer era telefonar para a Radiologia do Queens a informar quem quer que estivesse encarregue das escalas àquela hora de que não iria trabalhar. Não lhes dei qualquer justificação, limitei-me a pedir desculpa e a desligar o telefone cortando a conversa a meio. Não era preciso fazer o mesmo relativamente à Pappy: ela terminara no Royal Queens na véspera de Natal. Stock-ton aproximava-se.

Vesti-me e fui ver se a Pappy estava acordada. Abri a porta e verifiquei que estava profundamente adormecida, fechei a porta e subi as escadas. Não fui à sala, para isso ainda não estava preparada. Diri-gi-me antes às outras divisões que a Mrs. Delvecchio Schwartz reservara para uso próprio e que eram três. Um quarto sombrio para ela própria com as paredes cobertas com quase tantos livros como os que havia nos domínios da Pappy. Mas que livros! Teria ela partilhado mesmo aquele segredo com o Harold ou será que ele não compreendia?

Agora já percebo como é que fazias, sua malvada disse eu sorrindo. Álbuns cheios de recortes de jornais sobre políticos e homens de negócios e as suas vidas, os escândalos em que estavam envolvidos, as suas tragédias, as suas fraquezas, sendo que os mais antigos remontavam há trinta anos atrás. O Quem é Quem de todas as nações de língua inglesa. Almanaques. Processos judiciais. As actas das sessões dos Parlamentos Estadual e Federal. Tudo o que ela pudesse pensar que lhe faria jeito, desde biografias de australianos a listas de sociedades, associações, instituições. Uma mina de ouro para uma vidente.

Ligada ao quarto dela havia uma pequena divisão para a Fio, mobilada com um velho berço de ferro apenas com um colchão e uma cómoda nem uma imagem de um cachorrinho, de um gatinho ou de uma fada, nenhum sinal de que o quarto fora ocupado, com excepção das garatujas em todas as paredes. Parecia mais o quarto de uma criança morta numa instituição do que o quarto de uma criança viva, e estremeci de horror. Por que razão teria ela desfeito o berço da Fio, se não sabia que esta iria partir? Seria uma mensagem de que, privada da sua vida na Casa, a Fio morreria?

A cozinha dela era uma divisão apertada incapaz de produzir boa comida, com utensílios antiquíssimos, em mau estado, amolgados, rachados e partidos.

O que a teria tornado tão indiferente ao seu próprio conforto? Que tipo de mulher não quer saber do seu próprio ninho?

Saí e regressei ao andar de baixo sentindo que o mistério se adensava, que a morte da Mrs. Delvecchio Schwartz era apenas o início de um labirinto infinito.

A Pappy andava de um lado para o outro e convidei-a para vir tomar o pequeno-almoço e beber café comigo. Sim, pequeno-almoço. Havia muitas coisas para fazer e todas elas precisavam de força e saúde.

A Jim e a Bob vieram ver-me a caminho do trabalho, dizendo que ficariam em casa se eu precisasse delas, mas mandei-as embora. Quando o Toby chegou, preparei-me para fazer o mesmo, mas ele não foi na conversa, entrou por ali dentro e preparou-se para a batalha.

            Vais precisar de mim hoje — disse ele muito tenso, o rosto muito pálido, o queixo erguido, os olhos límpidos e luminosos.

Em resposta, levantei-me e abracei-o. Ele retribuiu o abraço, com força.Desculpa aquilo de ontem, mas alguém tinha de o fazer disse ele.Sim, eu sei. Senta-te, temos muito trabalho pela frente.Tal como recuperar o corpo dela para o enterro, procurar um testamento, descobrir onde têm a Fio, isto para começar disse ele.

Mas, por fim, fizemos os três o trabalho pior. Subimos as escadas e limpámos a sala.


O Toby tratou da polícia e descobriu que o corpo da Mrs. Del-vecchio Schwartz não seria entregue para o enterro antes de o Médico Legista concluir o relatório o que levaria entre uma a três semanas. Depois foi para a rua, à procura de Martin, Lady Richard ou alguém que percebesse de cangalheiros e de burocracias funerárias: como somos ignorantes nessas questões, a não ser que tenhamos passado pela experiência e nenhum de nós tinha, na verdade. O pai do Toby morrera no mato. O Mr. Schwartz morrera quando a Pappy estava em Singapura, disse ela, e a minha própria família não perdera nenhum dos seus membros desde antes do meu nascimento.

Telefonei para a Protecção de Menores que, dado eu não poder garantir-lhes ser a parente mais próxima ou mesmo parente afastada da menina, se recusou a dar-me qualquer informação sobre a Fio para além de que estava a ser bem tratada num local não especificado.

            Yasmar não! disse a Pappy quando eu desliguei. Sentei-me, sem acção. Meu Deus, nunca pensei em Yasmar!

            A Fio já tem cinco anos, Harriet, pode ser mandada para Yas mar.

Yasmar era a instituição para onde eram enviadas as meninas sem-abrigo ou com problemas até ser decidido o destino a dar-lhes. Actualmente é uma instituição muito criticada por não fazer qualquer esforço para separar as vítimas da sorte e das circunstâncias, como a Fio, das raparigas duras, descontroladas e por vezes violentas, que eram internadas por todo o tipo de razões, desde a prostituição ao homicídio.

Telefonei então para o escritório da Joe, a advogada, e comecei a fazer-lhe perguntas sobre testamentos e o que acontecia na ausência destes.

            Se não for encontrado um testamento em casa, nem o nome de um solicitador, então o Estado intervirá. Serão publicados anúncios na imprensa local para tentar averiguar se alguém tem o testamento e, entretanto, cuidará dos bens. Para além do testamento, procura também uma escritura, Harriet, que eu verei o que posso fazer disse a Joe naquela voz seca e clara que imaginei a fazer estremecer as vigas da sala do tribunal.


            Não desligues já apressei-me a dizer. Podias também indicar-me o nome de uma firma de advogados que se especialize em casos de custódia de crianças? Se a minha intuição se comprovar, não vamos encontrar testamento nenhum e o Estado também não. E eu vou pedir a custódia da Fio.

Ela não respondeu durante um bom bocado e depois suspirou.

            Tens a certeza de que é isso que queres fazer? perguntou.

            A certeza absoluta respondi.

Ela prometeu encontrar alguém e desligou.

Depois começámos à procura do testamento. O Klaus apareceu não sei de onde e ajudou-nos a abrir e sacudir todos os livros, a virar todas as páginas dos álbuns de recortes, a apalpar os recortes para nos certificarmos de que por baixo não havia nenhum papel. Nada, nada, nada. Encontrámos aquilo que parecia ser a escritura do número 17 da Victoria Street e que nos deixou confusos. Não era do 17c, só 17.Quer isso dizer que ela é a dona das cinco casas! guinchou a Pappy.Certamente que não disse o Klaus de olhos muito abertos.

            Ela não é rica.

Havia uma grande caixa de madeira por baixo das escadas, mesmo por trás da lata com o sabão de eucalipto que tínhamos usado para esfregar o chão da sala, mas não tínhamos reparado nela, pois partíramos do princípio de que se tratava de uma caixa de ferramentas. Mas o desespero levou o Toby a voltar ao armário e a tirar a caixa. Pousou-a em cima da bancada minúscula da cozinha da Mrs. Delvecchio Schwartz e abriu-a, como se de lá de dentro pudesse sair qualquer coisa, fosse o Drácula ou um palhaço de papel.

Continha um coelhinho azul de pano velho mas que nunca fora usado, um cristal enorme cortado de uma qualquer pedra cor de malva, sete cálices ainda nas embalagens originais de cartão, uma escultura em mármore branco de uma mão e braço de bebé até acima do cotovelo com covinhas e, literalmente, muitas dúzias de pequenas cadernetas bancárias de poupanças.


O Toby enfiou a mão lá dentro e tirou uma mão-cheia de cadernetas, abriu cada uma delas e estudou-as com incredulidade.

            Meu Deus! exclamou. Cada uma destas tem cerca de mil libras, que é a quantia máxima que se pode ter numa conta de poupança livre de impostos e encargos e sem ninguém a fazer perguntas.

No total contámos mais de cem cadernetas, apesar de não as termos aberto todas. Para quê, quando era evidente o que continham? Havia ali um sistema, simples mas ardiloso. Ela nunca usava duas vezes o mesmo banco, o que significava que tinha contas em todas as agências de todos os bancos existentes em Sydney. A medida que os últimos vinte anos tinham passado, ela tinha ido cada vez mais longe, depositando mil libras nos bancos de Newcastle, Wollongong e Bathurst. Que faria ela com a Fio quando viajava o dia inteiro?Bem, à Fio não faltará nada disse o Toby enquanto arrumava cuidadosamente as cadernetas numa caixa de cartão, a embrulhava em papel castanho e atava tudo com um fio: ela guardara quilómetros de fio, bem como maços de papel castanho, cuidadosamente alisado e dobrado de novo.A Fio pode nunca vir a ver um tostão nem a ficar com a Casa disse eu sombriamente. O Estado ainda pode vir a apropriar-se de tudo... não encontrámos a certidão de nascimento da Fio.

E não encontrámos mesmo, apesar de termos retomado as buscas com energia redobrada. Nem testamento, nem certidão de nascimento, nem o nome de solicitadores ou advogados. E também não havia nenhuma certidão de casamento. E, afinal, depois de a termos espremido, a Pappy também não podia garantir que a Fio fosse mesmo filha da Mrs. Delvecchio Schwartz: a Pappy tinha passado dois anos em Singapura a tentar descobrir parentes do pai. Fora depois de regressar que trouxera o Toby para a Casa, portanto ele também não podia ajudar. Virássemo-nos para onde nos virássemos, deparávamo-nos com um beco sem saída. Era como se a Mrs. Delvecchio Schwartz tivesse vindo ao mundo já crescida, nunca se tivesse casado, nem tido uma filha. Uma pessoa nem sonhava que este género de coisas pudesse acontecer hoje em dia, mas aconteciam.


Ela era a prova disso. Quantas pessoas existiriam sem que o Governo soubesse da sua existência? E também não havia registo de impostos, um simples livro de contabilidade registava rendas mínimas do 17c. Não havia recibos de impostos sobre imóveis, contas de água, contas de gás, reparações.

            Ela pagava tudo a dinheiro disse o Klaus, que parecia estar sem fôlego.

O último local onde procurámos tínhamos de atravessar a sala para lá chegar foi o pequeno armário que estava na varanda onde ela guardava a Bola de Cristal, as cartas e as esferas celestes. E era tudo o que lá estava, absolutamente mais nada. Folheámos as tabelas astrológicas, examinámos todas as folhas de horóscopos, virámo-las ao contrário, vimo-las à transparência até examinámos o baralho de Tarot carta por carta. Nada de certidão de nascimento, nem testamento, nada.

            Pronto, vamos lá pôr tudo onde estava suspirei.

Mas a Pappy susteve a respiração e apertou-me ansiosamente o braço: Não, Harriet, não! Não faças isso! Leva tudo lá para baixo e esconde essas coisas no teu apartamento.

Fiquei a olhar para ela como se tivesse enlouquecido. Não posso fazer isso! disse eu. Estas coisas eram dela, fazem parte dos seus bens. A Bola de Cristal é extremamente valiosa... ela disse-me que, se a vendesse, poderia comprar o Hotel Austrália.

O Toby viu aquilo que eu não vira. A Pappy tem razão. Leva tudo.

Eu disse que não e ele grunhiu, exasperado, perante a minha estupidez.

            Não sejas idiota, Harriet! Usa a cabeça! As primeiras pessoas que, provavelmente, virão revistar a casa serão da Protecção de Menores e o que achas que irão dizer ao encontrar estas coisas? Especialmente havendo todas aquelas cadernetas bancárias? Se queres obter a custódia da Fio, então a vida dela e a vida da mãe dela! têm de parecer tão vulgares e enfadonhas quanto possível. Não podemos evitar que eles achem que a velhota era excêntrica mas, por amor de Deus, Harriet, não lhes dês munições dessa maneira!


Enfiámos a parafernália do oculto noutra caixa de cartão e descemos a galope as escadas, correndo para o meu apartamento, aterrorizados com a ideia de a campainha tocar.

Mas só tocou às cinco da tarde, o que me pareceu uma hora estranha para uma visita da Protecção de Menores. Deixei o Klaus ao fogão da minha casa, atarefado a preparar-nos uma refeição, e fui abrir a porta no dia anterior havíamos trancado a porta da frente e agora mantemo-la trancada.

O Duncan Forsythe estava ali, no alpendre.

            Não posso entrar disse ele , a minha mulher está à espera no carro.

Estava com um aspecto ainda pior do que aquele que tivera no dia do casamento da Chris Hamilton magro e curvado, derrotado. O cabelo dele já quase não tinha reflexos ruivos mas não ficara grisalho. Grandes madeixas brancas misturavam-se com madeixas cinzentas; muito impressionante. Tinha os olhos exaustos, mas olharam-me com tanto amor que o meu coração se apertou.

Espreitei por cima do seu ombro e vi o Jaguar estacionado no nosso beco, com a parte da frente apontada para a berma, num local onde a Patroa poderia ver tudo o que acontecesse na varanda do 17c. Não corria riscos, a Patroa.A tua mulher recebeu uma carta escrita numa caligrafia arredondada e em papel caríssimo disse eu. Dizendo-lhe que tu caíras nas garras de uma puta, uma rameira ordinária e vulgar indigna deste mundo e indigna do outro. As datas eram inexactas e sugeria que continuávamos a encontrar-nos.Sim, exactamente disse ele sem surpresa. Chegou no correio desta manhã.Foi por ser para mais longe disse eu. A que o meu pai recebeu chegou a Bronte na Noite da Passagem de Ano.

Aquilo magoou-o e ele respirou fundo. Oh, Harriet, minha querida! Lamento muito!

Oh, tantas coisas que tinham acontecido! Pareceu-me que o olhava por entre um enredado de fios de dores e preocupações que não sentira até o ver ali, no entanto nenhum dos fios de dor lhe pertencia, nem as preocupações eram por causa dele. Eu passara para um qualquer outro lugar e, ao olhar para ele, perguntei-me se alguma vez conseguiria regressar ao que fora o nosso lugar. Antes do assassínio. Antes de me terem levado o meu pequeno anjo, para que morresse. Por isso, respondi-lhe friamente: Bem, Duncan, se isso te serve de consolação, não haverá mais cartas dessas. Foi o Harold quem as escreveu e o Harold está morto. Agora só me resta pensar se a velha Enfermeira Agatha também terá recebido uma.

            Receio que sim. Telefonou-me esta manhã.

Encolhi os ombros. Paciência. Que pode ela fazer? Despedirme? Hoje em dia, não o poderá fazer. O pior que me pode fazer é tirar-me das Urgências e pôr-me a fazer rotinas de tórax, mas não me parece que seja assim tão estúpida. Sou demasiado boa no que faço para ela me desperdiçar nas rotinas dos tórax.

Ele estava a olhar para mim como se eu fosse diferente da velha Harriet Purcell, tal como eu no meu íntimo sentia. Pus-lhe a mão no braço e fiz-lhe uma festa, certificando-me de que a Patroa via. Duncan, não precisas de me vir ver, eu estou bem, de verdade. Estou bem.

            A Cathy insistiu disse ele com um ar acossado. Queria que eu te dissesse que ela ignorará o nosso caso e nos apoiará negando a história a quem quer que receba uma carta destas.

Céus, a lata que a mulher tinha! O meu distanciamento evaporou-se à medida que senti a ira a crescer. Como é que ela se atrevia a armar-se em superior com ele?! Como se atrevia a armar-se em superior comigo?! Como se as suas decisões tivessem o poder de tornar o que quer que fosse insignificante! Que generoso da parte dela disse eu. Muito generoso da parte dela. Rosnido, grunhido, ronco e as garras de fora!

            Dei-lhe a minha palavra de que nunca mais falarei contigo. Aquela foi a última gota. Empurrei o Duncan para o lado com

um ombro e dirigi-me ao carro, agarrei no manipulo da porta do passageiro e abri-a antes de a Patroa a conseguir trancar. Enfiei o braço dentro do carro, apertei a mão em torno de um chumaço de ombro de alta-costura francesa e puxei a Mrs. Duncan Forsythe para fora do assento e para o passeio. Depois empurrei-a contra a vedação do 17c e cresci para ela porque será que os homens altos casam sempre com mulheres baixinhas? Ela estava aterrorizada! Nunca lhe ocorrera que, ao forçar Duncan a vir até aqui com ela à pendura, iria encontrar-se com Jesse James.

            Escuta-me bem rosnei eu com o rosto a centímetros do dela , mantém-te fora da minha vida! Como te atreves a armar-te em superior comigo? Se tivesses cumprido com o teu dever e tivesses dado umas quecas com o teu marido de vez em quando, ele não teria variado. Só andas atrás do dinheiro mas não pagas as tuas dívidas. Eu pago e esta é uma dívida que eu tenho para com o teu marido por ser um homem decente e um amante maravilhoso! Ele não tem culpa de lhe teres cortado os tomates, mas vais deixá-lo em paz, ouviste?

Ela estava ofegante, toda corada, com os olhos a saltarem-lhe da cara e, por essa altura, já a Madame Toccata estava na varanda do 17b e a Madame Fuga e a Castidade estavam na varanda do 17d a aplaudirem-me.

O Duncan descera para o passeio, mas não para resgatar a mulher. Encostou-se à vedação, cruzou as pernas e os braços e sorriu.

            Mete-te na tua vida, sua cabra estúpida! gritei-lhe en quanto a arrastava de volta para o carro. Se queres vir a ser Lady Forsythe um dia, então cala a boca e usa-me juntamente com Balenciaga, seu cabide esquelético! E atirei-a para dentro do carro.

O Duncan ria às gargalhadas enquanto a Patroa se encolhia no banco do passageiro e chorava para dentro do lenço arrendado. como primeiro assalto disse ele, enxugando os olhos com o seu próprio lenço. Meu Deus, eu adoro-te!E eu a ti disse-lhe eu tocando-lhe no rosto. Não sei porquê, mas adoro. Há muita força e coragem dentro de ti, Duncan, tem de haver, para conseguires lidar com a vida e a morte, com es-tropiamentos e doenças. Mas quando se trata de relações pessoais, és um cobarde. Sê tudo aquilo que puderes ser e que se dane aquilo que os outros pensam. Agora leva a Patroa para casa.Posso voltar a ver-te? perguntou ele, recuperando subitamente a atitude com que aparecera naquela noite em Victoria Street, iluminado por dentro, fremente de vida.


Agora não, e sabe Deus durante quanto tempo ainda respondi. O Harold assassinou a Mrs. Delvecchio Schwartz no Dia de Ano Novo e depois matou-se. E eu tenho de andar na linha porque vou candidatar-me a ficar com a custódia da Fio.

É claro que ele ficou chocado, horrorizado, que sentiu pena e muita vontade de ajudar, mas vi que não percebia por que razão eu queria a Fio. Não importa. Ele ainda me ama e esse é um grande conforto.

 

Terça-feira, 3 de Janeiro de 1961

Hoje fui trabalhar. Apesar das palavras corajosas que disse ao Duncan, não posso perder o emprego. Se conseguir contratar uma alma caridosa que fique com a Fio enquanto eu estiver a trabalhar, entre o que restar do meu salário e as rendas da Casa, conseguiremos viver as duas palavra horrível! respeitavelmente, ainda que não luxuosamente. Ela, aos cinco anos, está em idade escolar, mas qual será a escola que a aceita? Teria de procurar escolas de ensino especial, mas nunca ouvi falar de nenhuma no sistema público, seja como for. E como iria a Fio sobreviver no ensino especial, rodeada de crianças atrasadas mentais ou com convulsões? Ela não tem nada de errado, mas é como aquela planta que se fecha quando lhe tocam nas folhas. Sim, existe um Centro de Convulsões em Mosman que tem uma excelente reputação, mas a Fio seria admitida? Ela não sofre de convulsões, é simplesmente muda.

Isso são tudo questões para o futuro, quando me derem a custódia da Fio. Entretanto, terei de manter o meu emprego com o seu salário masculino e poupar o máximo que puder. Se o Estado não for cooperante e quando é que uma instituição pública é cooperante? , eu e a Fio somos capazes de nem poder viver no 17c, quanto mais poder receber as suas rendas. Não encontrámos nenhuma certidão de nascimento nem de casamento. Ela teve a Fio em casa, no chão da casa de banho, e não na enfermaria da maternidade de um hospital.

Não vale a pena especular. O que me resta é esperar.


A Enfermeira Agatha convocou-me esta manhã às nove horas e mandou uma técnica para me substituir durante a minha ausência. Grave, muito grave.

            Apercebe-se da dimensão da perturbação que causou ontem, Miss Purcell? perguntou a Enfermeira Agatha. Telefonou às dez para as seis da manhã, dez minutos antes de entrar ao serviço!, para dizer que não viria trabalhar. E deu alguma justificação? Não, não deu. Desligou na cara da Miss Barker.

Olhei para os olhos frios e azuis com uma estranha visão da dançante Enfermeira Agatha sobreposta ao cubo de gelo que estava sentado na cadeira sem conseguir que ambas se fundissem, por mais que tentasse. E é claro que ela recebera uma das cartas do Harold, o que não iria ajudar-me. Mas isso deu-me uma ideia. Eu sabia perfeitamente que explicar-lhe o que acontecera com a Mrs. Delvecchio Schwartz, com o Harold e com a Fio só iria pô-la ainda mais contra mim: as mulheres respeitáveis não se viam envolvidas em assassínios e respectivas consequências.Lamento muito, Enfermeira Toppingham disse eu , mas estava demasiado perturbada ontem para conseguir pensar racionalmente. Este é um assunto embaraçoso mas parece-me que terá de ficar a saber. Embeleza as coisas, Harriet, mente se tiveres de mentir. A Fio vale um milhão de mentiras. O meu pai recebeu uma carta anónima que me acusava de ter um caso com o Mr. Duncan Forsythe. O que é, evidentemente, um disparate. Mas deve compreender que aquilo arruinou completamente o meu dia. O meu pai exigiu a minha presença em casa e eu tive de ir. ha disse ela, e fez uma pausa. E resolveu essa questão muitíssimo perturbante, Miss Purcell?Sim, Senhora Enfermeira, com a ajuda da Mrs. Duncan Forsythe, sim, resolvi.

A velha cabra astuciosa, não me ia dizer aquilo que já sabia. No entanto, falar na Patroa resultou. As suas desculpas estão aceites, Miss Purcell. Pode ir.

Demorei-me. Senhora Enfermeira, há no entanto uma consequência desagradável desta questão horrível. , parece que vai haver um inquérito legal e eu sou capaz de ter de sair do trabalho por volta da minha hora oficial de saída, nalgumas tardes, durante as próximas semanas. Asseguro-lhe de que tentarei que todas as reuniões sejam marcadas para uma hora tão tardia quanto possível, mas terei de sair a horas de responder às convocatórias.

Ela não gostou mas compreendeu. Nenhum dirigente hospitalar gosta de ser recordado do facto de o pessoal fazer muitas horas extraordinárias não pagas. Poderá ir a essas reuniões, Miss Purcell, desde que me avise dos dias em questão.

Sim, Senhora Enfermeira, obrigada, Senhora Enfermeira disse eu, e fugi.

Não correu mal, ao fim e ao cabo. Oh, por que será que o Royal Queens não é um daqueles hospitais como o Vinnie ou o Royal Prince Albert, que nunca têm um fim-de-semana calmo? Se eu fosse escalada para os fins-de-semana, teria dias de semana inteiros durante os quais poderia tratar de tudo quanto tenho para tratar. Ao escolher entre o Ryde e o Queens, não fizera uma boa escolha de local de trabalho.

 

Quinta-feira, 5 de Janeiro de 1961

Joe, a advogada, deu-me o nome de uma firma de advogados especializada em questões de menores. Partington, Pilkington, Purblind

Hush, na Bridge Street. Parece um nome saído de um livro do Charles Dickens, mas ela garantiu-me que existem montes de firmas de advogados com nomes que mais parecem saídos da pena de Dic kens, pois faz parte da tradição legal e a maior parte dos apelidos que aparecem nos nomes das firmas pertencem a sócios que já morreram há mil anos, se é que alguma vez existiram. A minha escolha seria Mr. Purblind, mas tenho uma reunião com Mr. Hush agendada para segunda-feira às quatro da tarde.

Continuo a não conseguir qualquer informação da parte da Protecção de Menores, que continua a recusar dizer-me qual o paradeiro da Fio. Está bem, está feliz, está isto e está aquilo, mas, se estivesse em Yasmar, eles não o admitiriam. O inquérito às mortes do Harold e da Mrs. Delvecchio Schwartz foi marcado para a quarta-feira da próxima semana, pelo que terei de inventar uma boa razão para precisar de folga nesse dia. Todos nós, habitantes da Casa, somos obrigados a assistir e a responder a quaisquer questões que nos sejam postas, embora o Norm me tenha dito que os tipos da polícia não encontraram qualquer vestígio do Chikker e da Marge no apartamento térreo da frente. Em teoria, devem ter fugido para outro Estado, o que significa que, apesar de não andarem na vida, deviam estar metidos em qualquer coisa. O problema é que, sem impressões digitais, ninguém sabe exactamente quem eles são. Provavelmente são assaltantes de bancos. Eu acho que eles são simplesmente pessoas um tanto marginais que não confiam na Lei.

Aconteceu uma coisa muito estranha na madrugada passada cerca das três e dez. Estávamos todos em casa e a dormir. Fui acordada pelo som de passos pesados a atravessar o átrio do andar de cima iria jurar que eram os passos da Mrs. Delvecchio Schwartz a fazer uma ronda de madrugada. Mais ninguém anda daquela maneira! Até mesmo a Casa, uma robusta moradia vitoriana em banda, costumava abanar sob o impacto dos seus passos. Mas a Mrs. Delvecchio Schwartz está morta, eu vi-a morta e sei que neste momento a pobre criatura jaz numa gaveta da morgue. No entanto, ela caminhava no andar de cima! Depois ouvi o estrondo das suas gargalhadas, não o eh-eh-eh, mas o ah-ah-ah. O meu cabelo ficou liso pela primeira vez na minha vida.

Logo a seguir já estavam todos aglomerados junto da minha porta. O Klaus estava fora de si, a chorar e a gemer, e a Bob também. A Jim tentava armar-se em valente e o rosto do Toby estava branco. E o meu também, o que não é fácil para alguém tão moreno como eu.

Mandei-os entrar e tentei acomodá-los nas cadeiras, mas eles mexiam-se, saltavam, tremiam. E eu também.

Só a Pappy é que não estava borrada de medo. Ela está aqui connosco disse ela com os olhos a brilhar. Eu sabia que ela nunca abandonaria a Casa.


Disparates! — disparou o Toby.Não, o que quer que seja, é real — disse eu. Estávamos todos profundamente adormecidos e fomos acordados.

Pus a chaleira ao lume, fiz chá e deitei uma boa dose de brandy em cada chávena. Os votos de nunca mais tocar em tal coisa não são à prova de Mrs. Delvecchio Schwartz.

Depois a Pappy deixou cair a bomba. A experiência daquela noite enchera-a de uma alegria como eu não lhe vira desde os dias tranquilos do Ezra. Ela brilhava.

            Não vou para Stockton disse. Ficámos todos a olhar para ela.

            Depois de a Mrs. Delvecchio Schwartz ter falecido murmurou ela , apareceu-me. Não num sonho... foi enquanto estava a ler. Disse-me que eu não podia abandonar a Casa. Por isso fui ter com as Irmãs no Vinnie e perguntei se podia receber lá a formação de enfermagem mas viver aqui. As freiras são tão bondosas, tão compreensivas! Decidiram que com a minha idade e experiência de hospitais seria melhor enfermeira vivendo no exterior do que se ficasse interna. Vou começar a trabalhar no Vinnie com a última fornada de formandas, no fim deste mês.

Aquela era a primeira boa notícia que tínhamos desde a Véspera de Ano Novo e estávamos todos muito precisados de algo assim. A Pappy é estranha, é muito mística. No entanto, mesmo depois de ouvir o que ela tinha para nos dizer, recusei-me a acreditar que fora a verdadeira Mrs. Delvecchio Schwartz que eu ouvira no andar de cima. Preferia pensar que tinham sido emanações do meu anjo perdido que tinham entrado nas nossas mentes e nos tinham enganado.

Onde estás, Fio? Estás bem? Eles compreendem? Não, é claro que não estás bem e é claro que eles não compreendem. Com a tua mãe morta, pertences-me a mim e eu moverei céus e terra para que não te mandem para um orfanato. Se não te conseguir trazer para casa, morrerás. O teu destino está nas minhas mãos porque a tua mãe o pôs aí, que é o maior mistério de todos.


 

Sábado, 7 de Janeiro de 1961

Hoje veio cá uma mulher da Protecção de Menores. Vi-a de pé, no alpendre, quando vinha das compras, uma mulher mal vestida com cerca de cinquenta anos e todas as características das solteironas, desde a mão esquerda sem anéis aos pêlos que lhe cresciam no queixo. Por que será que não os arrancam ou rapam? Seria de pensar que uma vaidade desculpável as levaria a fazê-lo, mas pelo menos metade delas prefere usar os pêlos como um distintivo. É óptimo a Guerra ter libertado este tipo de mulheres para o trabalho; caso contrário, o que seria delas? Mas, por outro lado, suponho que a Guerra também tenha feito diminuir o fornecimento de maridos. Na verdade, não há tantas mulheres solteiras da minha idade como há da idade da Chris e da Marie e nas gerações mais velhas. Vejam bem que os homens australianos são difíceis de apanhar e ainda mais de conservar. Tal como a Chris e a Marie descobriram, os australianos vovós são um belo partido (para o casamento) quando comparados com os australianos velhos.

O exemplar de solteirona apresentou-se e eu apresentei-me. A Miss Farfer ou Arthur ou Farfin, o nome soou a qualquer coisa como Arf-Arf na sua voz tensa. Eu chamei-lhe Miss Arf-Arf e ela respondeu, sem parecer reparar. Quando destranquei a porta e ela me seguiu para o interior, não pude aperceber-me da sua reacção às garatujas e à feiura negligente dos espaços comuns da Casa. Depois, com uma enorme falta de sorte, emergimos na passagem exterior quando a Madame Fuga decidiu dar uma descasca na Verdade.Sua puta de cadela estúpida! — foi a única parte perceptível, graças a Deus, mas suspeito que tenha sido mais do que suficiente.O que é aquela casa? — perguntou ela quando abri a minha porta.Um hotel particular respondi enquanto a fazia entrar no meu lindo apartamento cor-de-rosa. Foi então que ela me informou de que viera inspeccionar as antigas instalações residenciais da Florence Schwartz. Antigas instalações residenciais.Tenho vindo cá todos os dias desde a passada terça-feira, mas nunca está vivalma em casa disse ela em tom rabugento.


Meu Deus! Tínhamos começado mal e a coisa só estava a piorar. Sacou de um bloco de notas, onde escreveu conscienciosamente enquanto eu ia explicando a natureza da Casa, os seus inquilinos, quem éramos todos, o que fazíamos para ganhar a vida, há quanto tempo ali vivíamos, como conhecêramos bem a Mrs. Delvecchio Schwartz e a Fio, a quem a Miss Arf-Arf insistia em chamar Florence. O facto de ela já ter conferenciado com o par que levara a Fio era óbvio pelas suas perguntas. A Fio alguma vez andava calçada? Porque é que a Fio não falava? Que tipo de horários tinha a Fio? Que tipo de alimentação lhe dava a mãe? Graças a Deus pela presença de espírito da Pappy relativamente à parafernália ocultista, pois a Miss Arf-Arf inspeccionou a casa de cima a baixo, não tendo deixado tapete por virar nem gaveta por abrir. O que diria ela, se soubesse que até pouco antes da morte da mãe, a Fio ainda mamara? Tal como a vidência, esse era um segredo nosso.

Recusei-me a deixá-la entrar no apartamento da Jim e da Bob ou no quarto do Klaus, pois eles não estavam em casa. Não gostou de ter sido impedida, mas ficou ainda mais desagradada com a reacção do Toby ao pedido de subir para ir falar com ele.

            Vá-se lixar rosnou ele, e bateu com o alçapão.

Deixei a sala para último, nutrindo ainda algumas esperanças, mas é evidente que a Miss Arf-Arf não iria perder O Local do Crime. Muito desapontante, obviamente. Tínhamos limpado tudo escrupulosamente, de tal modo que até mesmo as garatujas nas paredes mal se viam. Das pinturas em sangue com os dedos não havia o mais pequeno vestígio.

            No entanto, vi as fotografias da polícia disse ela com petulância.

Eu estava cheia de vontade de a mandar bugiar também, mas não me atrevi. Com o destino da Fio por decidir, tudo o que eu dissesse aos funcionários da Protecção de Menores teria de ser agradável, sincero, equilibrado e ajuizado. E terminei a vista com a oferta de uma chávena de chá. A Miss Arf-Arf aceitou.

            Tendo em conta a localização insalubre das instalações e o estado da residência pessoal da mãe da Florence, minha cara Miss Purcell, a menina construiu aqui um ninho muito agradável disse ela mastigando um dos meus biscoitos tradicionais. Nada de molhar o biscoito!

Disse-lhe que me ia candidatar à custódia da Fio.

            Oh, isso é impossível! disse ela.

Perguntei-lhe o que queria dizer e ela explicou que a Florence estava a ser bem cuidada no local onde estava (nada de mencionar o local tanto podia ser em Melbourne como em Timbuktu, pela maneira como ela falou), pelo que a custódia não seria uma opção até toda a gente ter decidido serem inexistentes testamento ou parentes.

            O que pode levar muitos meses concluiu.

Olhei para os seus olhos azuis aguados e percebi que se começasse a argumentar eloquentemente sem quaisquer barreiras emocionais, se tentasse dizer-lhe que a Fio morreria a não ser que viesse para casa muito em breve, as minhas hipóteses de alguma vez conseguir a custódia da menina diminuiriam imediatamente.Não é que eles sejam desumanos ou inumanos disse eu a Toby mais tarde, no seu sótão espaçoso , eles regem-se apenas por regras, e as circunstâncias individuais não são tidas em conta.Claro grunhiu ele, pincelando um quadro estilo hotel de uma árvore-da-borracha azul numa clareira. Eles são funcionários públicos, Harriet, e os funcionários públicos não fazem ondas. É tudo decidido por uns fantasmas cinzentos quaisquer numa comissão. O relatório da Miss Arf-Arf será anexado ao processo da Fio juntamente com todos os outros relatórios e, quando o processo tiver cinco centímetros de espessura, irá para decisão Superior.Nessa altura já ela terá morrido disse eu pestanejando para afastar as lágrimas.

Ele pousou os pincéis e veio para junto de mim, sentando-se numa cadeira de espaldar direito que puxou para muito perto. Depois inclinou-se para a frente e afastou-me uma madeixa da testa. Por que a amas tanto? perguntou. Quer dizer, ela é uma miúda simpática, ainda que um tanto estranha, mas qualquer um pensaria que é mesmo tua, pela forma como falas. Dizes que eu sou obcecado, mas para ti a Fio é uma obsessão muito maior do que qualquer coisa que eu consiga inventar.


Que tipo de resposta poderia fazê-lo compreender como a Fio era especial?É difícil para alguém que não seja íntimo das coisas do coração compreender, mas a verdade é que a amei assim que a vi respondi.Não, não é difícil disse ele, e encolheu os ombros. É fácil... eu não estou assim tão afastado dessas coisas. Dirigiu-me um sorriso adorável e voltou a compor-me o cabelo. Se tem de ser, Harriet, então atira-te a essa tarefa com toda a energia e entusiasmo espectaculares de que és capaz, até mesmo em alturas como esta. Mas faz-me um favor: pensa na tua vida. Se ficares com a Fio, nunca mais serás livre.

É verdade. Mas não há alternativa, que é o que o Toby não consegue ver. A Fio é tudo para mim, vale mesmo a perda da liberdade. Eu não caminharia sobre brasas pelo Duncan Forsythe ou qualquer outro homem, mas pela Fio? Ela é o meu pequeno anjo. A minha filha.

 

Segunda-feira, 9 de Janeiro de 1961

Cheguei aos escritórios da firma Partington, Pilkington, Purblind & Hush, na Bridge Street, exactamente um minuto antes da hora marcada para a reunião com o Mr. Hush que, pelo que disse a sua secretária inacreditavelmente convencida, não costuma receber clientes à hora tão tardia das quatro da tarde. Desculpei-me pelo incómodo causado a Mr. Hush — ter formação hospitalar é uma coisa maravilhosa! Se o homem do lixo me desse um sermão sobre uma amolga-dela na tampa do latão, eu poria as mãos atrás das costas, ficaria em sentido e pediria desculpa. É muito mais fácil do que tentar dar uma justificação ou desculpa. A secretária incrivelmente convencida ficou encantada com a minha reacção, dirigiu-me um sorriso tipo ânus de gato, todo espremido, e disse-me que me sentasse e esperasse. As firmas de advogados, apercebi-me, são amadoras, comparadas com os hospitais. Se dispusesse de meia hora, faria a Miss Hoojar andar a toque de caixa. É interessante, as firmas de advogados também funcionam à base de solteironas. O que seria do mundo profissional sem elas? E que irá acontecer quando a minha geração, onde há muito mais mulheres casadas, as substituir? Vai haver secretárias pessoais e directoras de departamento a tentar dar conta de miúdos doentes, maridos pouco cumpridores e ainda do trabalho. Uaaau!

O Mr. Husher parece um talhante. Grande e gorducho, com manchas roxas no nariz. Está bem, decidi depois de lhe dar uma olhadela, tiro a gordura toda da carne, retiro os tendões e sirvo-lhe só a carne vermelha, boa e fibrosa. Desfiei a minha história sem proferir uma única palavra desnecessária, destituí-a de todo o colorido e sabor e terminei dizendo: Quero a custódia da Fio, Mr. Hush.

Ele ficou extremamente impressionado com toda aquela frieza lógica: não me digam que não sei dar a volta aos homens!Primeiro temos de ter em conta alguns pormenores pessoais, Miss Purcell. É maior de idade? Trabalha?Tenho vinte e dois anos e sou técnica de radiologia diplomada.Poderá suportar aquilo que será provavelmente um exercício dispendioso?Sim, senhor.Quer dizer que tem recursos pessoais.Não, senhor. Mas tenho poupanças suficientes para suportar os custos legais.A sua resposta leva-me a concluir que não dispõe de outras fontes de rendimento para além do seu trabalho. Correcto?Sim, senhor murmurei, sentindo-me subitamente desalentada.É casada? Está noiva?Não, senhor — murmurei. Percebi a direcção que aquilo estava a tomar.Hummm. Bateu com o lápis nos dentes.

Passou então a explicar-me que existiam três tipos de custódia: adopção, tutoria e família de acolhimento. Francamente, Miss Purcell, a menina não tem as qualificações necessárias para nenhuma das alternativas disse ele brandindo o cutelo de forma impessoal. Neste Estado, as muitas pesquisas efectuadas não descobriram um único caso de criança entregue a uma mulher trabalhadora solteira sem quaisquer laços consanguíneos. A sua juventude também desaconselha a entrega da custódia. Talvez fosse mais sensato desistir desde já dos seus intentos.

Uma nova determinação apoderou-se da minha alma e olhei-o com ferocidade. Não, não desisto! exclamei. A Fio pertence-me, teria sido esse o desejo da sua mãe. Não me interessa o que tenha de fazer para trazer a Fio de volta e estou a ser completamente franca. Mas tê-la-ei de volta! Tê-la-ei, tê-la-ei!

Ele deu um salto de trás da secretária, contornou-a e dobrou-se para me beijar a mão! Oh, mas que valente batalhadora a menina é, Miss Purcell! exclamou ele. Isto vai ser muitíssimo divertido! Eu adoro abanar as fundações das instituições! Agora conte-me o resto, porque há muito mais, não há?

Contei-lhe tudo aquilo que considerei prudente contar. Sim, gostava dele, mas não o suficiente para lhe dar informações relativamente à vidência e à amamentação. Falei-lhe apenas das cadernetas bancárias, da escritura que parecia pertencer a todo o número 17 da Victoria Street e da ausência de documentos de qualquer tipo, da certidão de nascimento à certidão de casamento e às declarações de impostos. Ele adorou de tal forma a história que ainda ficou com mais ar de talhante. Conseguia imaginar a sua mente a inventar uma nova receita de salsichas feitas à base de funcionários da Protecção de Menores.

Decidimos então que o Mr. Hush se dedicaria pessoalmente às questões como a busca de um testamento, os esforços para localizar parentes, o Administrador Oficioso, e todos os outros elementos que aparecessem eventualmente a cheirar o trilho de trufas que era uma fortuna bastante grande e possivelmente ilícita.

Foi assim que decorreu o meu primeiro encontro com a firma de advogados, se não mesmo com a Lei. Se contarmos com a síndrome de carência do Willie, com o Norm, o Merv e os detectives que estão a investigar o assassínio, devo ter consideravelmente mais experiência da Lei do que a maior parte das raparigas da minha idade que não andam na vida.


Não me ocorrera que as pessoas que tinham poder sobre a Fio me considerariam uma tutora desadequada. Que a minha idade, a minha necessidade de trabalhar e o meu estado civil de solteira se sobrepusessem completamente a coisas abstractas como o amor. O que só serve para demonstrar como sou estúpida. As pistas estavam todas presentes naquelas mulheres da Protecção de Menores, que estavam mais preocupadas com sapatos do que com o amor. Não, não é isso. Que faziam sapatos equivaler a amor.

Só sei que, se não conseguir trazer a Fio para casa, ela morrerá. Apagar-se-á, deixando aqueles que têm poder sobre ela a interrogar--se sobre o que terá acontecido. Porque eles não compreenderiam genuinamente o que se passara.

 

Quarta-feira, 11 de Janeiro de 1961

O inquérito realizou-se esta manhã. Não serviu de nada. Fomos todos chamados a testemunhar. Eu trabalhei das seis às nove, fui numa correria de táxi, até à cidade e depois regressei a correr ao Queens noutro táxi, assim que tudo terminou. A história que inventei para a Enfermeira Agatha foi um inquérito policial sobre as cartas anónimas, que ela aceitou sem fazer comentários.

Não, não tínhamos reparado em nenhuma tensão especial entre o Mr. Warner e a sua amante Mrs.? Delvecchio Schwartz. Nem mesmo a Pappy sabia o primeiro nome. Não, nenhum de nós ouvira nada. As ausências de Chikker e Marge foram devidamente anotadas, mas a polícia era de opinião de que não tinham estado envolvidos. Veredicto: assassínio e suicídio. Caso encerrado. Podíamos ir buscar o corpo da Mrs. Delvecchio Schwartz para fazer o enterro. Não podia ser cremada! Seria para a poderem desenterrar novamente, caso aparecessem novas provas? Ou uma qualquer nova técnica imaginativa de investigação? Sim, concluímos.

Alguém, possivelmente através da Patroa, recebera umas dicas acerca do caso entre mim e o Duncan, porque a Enfermeira das Urgências mandou-me umas quantas bocas. Fiz-me completamente parva e desentendida. Deixa-as especular o que quiserem, não têm quaisquer provas.

A minha credibilidade junto da Enfermeira Agatha sofreu outro revés quando tive de lhe dizer que não iria trabalhar na sexta-feira durante todo o dia. Uma morte na família, expliquei. Acho que ela não acreditou em mim.

 

Sexta-feira, 13 de Janeiro de 1961

Ao batalhar para conseguir o funeral a uma sexta-feira, treze, percebi a razão da Enfermeira Agatha não ter acreditado em mim. O cangalheiro ergueu as mãos no ar, horrorizado com a ideia, mas eu e o Toby, que tínhamos ficado encarregados da organização, recusámo--nos a ceder. Que outro dia do ano seria mais adequado ao enterro da Mrs. Delvecchio Schwartz que uma Sexta-Feira, Treze? No fim, a única maneira que encontrámos para convencer o cangalheiro foi ter um sacerdote a presidir à cerimónia, algo que pensávamos que ela não quereria. Creio que o homem pensou que nós éramos um bando de satanistas a viver em Kings Cross e tudo o mais, percebem? Eu e o Toby olhámos um para o outro e encolhemos os ombros. Talvez divertisse imenso a velhota ser enterrada segundo os ritos da Igreja de Inglaterra. O pó volta ao pó, as cinzas às cinzas, etc. Homem que é nascido da mulher o nosso pastor nem queria ouvir falar de mulher nascida da mulher. Mas que estranho mundo aquele em que vivemos. Cheio daquilo a que a Pappy chama manias.

Nunca se viu dia pior para um funeral. Sydney estava sufocada por uma onda de calor e às nove da manhã já estavam quarenta graus. Com um vento a soprar de oeste como uma ventoinha gigante a soprar das fornalhas do Inferno. Havia incêndios florestais por todo o lado nas Montanhas Azuis, o ar estava castanho, tresandava a fumo e choviam cinzas. Tudo aquilo petrificou o pastor, que estava convencido de que o Diabo preparava uma grande recepção a uma das suas mais importantes diabretes terrenas. A carreta saiu da agência funerária sem qualquer incidente, seguido pelos acompanhantes enlutados transportados em dois grandes Fords pretos — a Pappy, o Toby, a Jim e a Bob, o Klaus, o Lerner Chusovich e o Joe Dwyer do departamento de engarrafados do bar de Picaddilly. E eu, evidentemente. A Fio não apareceu, apesar de termos informado a Protecção de Menores. A Madame Fuga e a Madame Toccata e as amigas juntaram-se ao cortejo num enorme Rolls preto que devem ter pedido emprestado a um cliente; quando chegámos ao cemitério, o Norm e o Merv aguardavam-nos, o carro-patrulha estacionado a dez metros de distância, entre um anjo caído e uma cruz de ferro enferrujado. Quando o Rolls estacionou, despejou Lady Richard pelo braço de Martin, estonteante num vestido preto de simples shantung, com um chapeuzinho atrevido sobre a cabeleira cor de malva, o rosto coberto por um véu de rede preta. Perfeito! Toda a gente que a velhota gostaria que estivesse presente estava ali. Com excepção da Fio.

Enterrámo-la em Rookwood, seguramente o maior e mais desleixado cemitério do mundo, literalmente quilómetros quadrados de cemitério largados no meio dos Subúrbios Ocidentais. Cheio de ervas daninhas e relva por aparar, polvilhado de arbustos espinhosos, umas poucas árvores, berços arruinados entre campas dispersas cujas lápides partidas estavam dispostas em todos os ângulos com excepção da vertical.

O Toby, o Klaus, o Merv, o Norm, o Joe e o Martin transportaram a urna, puxaram e empurraram, grunhiram e gemeram até conseguirem pôr o caixão gigantesco aos ombros e depois vacilaram sob o peso enorme tivera de ser forrado a chumbo, evidentemente, depois de uma tão longa espera na gaveta da morgue , até junto da campa recentemente aberta, onde o depositaram por entre exclamações de Merda! e Valha-me Deus! sobre os barrotes dispostos sobre a cova. O pastor, que não vira realmente a urna até àquele momento, ficou de boca aberta enquanto o cangalheiro mantinha uma conversa murmurada com um dos coveiros, certificando-se de que eles obedeceriam às suas instruções e fariam um buraco suficientemente grande para a última morada.

As mulheres puseram-se de um lado e os homens do outro era um funeral australiano, afinal de contas. A Jim pôs-se do lado dos homens. Nós, as mulheres, estávamos com um ar muito corajoso, eu com um vestido rosa-choque, a Pappy com um cheong-sam'' esmeralda, a Bob com um vestido de organdi bordado com contas azuis, Lady Richard no seu vestido de shantung e as Mesdames abo-necadíssimas, com cetins pretos e justos, sapatos de salto alto pretos e espessos véus negros ao estilo Casa de Windsor. Os homens tinham todos conseguido arranjar uma gravata algures (a do Martin parecia vomitado de cenouras e ervilhas), apesar de terem tido o bom senso de não vestir os casacos. Usavam fumos negros nos braços.

Como ela se teria regalado! Exactamente no momento em que o pastor se abeirou da campa para dar início à cerimónia fúnebre, uma rajada de vento horrivelmente quente abateu-se como um sopro satânico, ergueu-lhe a batina até ao rosto e arrancou-lhe os óculos. Ele quase caiu sobre o caixão, uma caixa simples sem uma flor sequer, quanto mais uma coroa. Tínhamos concordado que a Mrs. Delvec-chio Schwartz não apreciaria enfeites tradicionais como as flores, dado que, aparentemente, ainda não partira exactamente desta vida. Os galopes nocturnos pelo átrio e os acessos de gargalhadas tinham deixado de ser novidade quando a enterrámos. Nas últimas noites acordávamos, erguíamo-nos na cama, suspirávamos, sorríamos e voltávamos a dormir.

Os seis homens passaram as correias por baixo do caixão, içaram-no o suficiente para o cangalheiro aterrorizado tirar os barrotes e baixaram-no à terra com mais exclamações de Merda! e Valha-me Deus!». Quando a urna bateu no fundo, eu avancei e pus-lhe em cima a caixa de madeira. Tínhamos concluído que ela quereria levar o coelhinho azul, o enorme cristal cor de malva, a escultura do braço e da mão em mármore e os sete cálices de vidro. Ninguém atirou uma mão-cheia da terra esfarelada de Rookwood; limitámo-nos a afastar-nos e deixámos o resto com os coveiros que tinham assistido a tudo espantadíssimos.Estou aflito da porra das costas! lamuriou-se o Merv.Mais pesada em morta do que em viva disse Klaus solenemente.

 

Cheong-sam — fato tradicional chinês. (TV. da T.)

 

Oh, raios! Caiu uma malha da meia! gemeu Lady Richard.Ao menos fica à sombra disse o Toby apontando para uma árvore-da-borracha.Memorável! disse o Joe Dwyer limpando as lágrimas. Memorável!

Fomos todos para casa e fizemos uma festa no sótão do Toby. Quem será que vai enterrar o Harold? Perguntem-me, a ver se eu me ralo.

 

Sábado, 14 de Janeiro de 1961

Hoje tenho tido um dia triste. O que é compreensível, depois do dia de ontem. Acabei por considerar peculiar que as coisas tenham acabado por se orientar de forma a termos conseguido enterrar a Mrs. Delvecchio Schwartz a uma Sexta-Feira, Treze. A última tinha sido em Maio e não voltará a haver outra até Outubro. Uma espécie de presságio, não muito diferente da aparição da Marceline na minha vida. As coisas acontecerão mesmo aleatoriamente? Quem me dera saber.

O Toby desapareceu para ir verificar se a sua casa de Wentworth Falis não estará no meio de um incêndio florestal, a Jim e a Bob desandaram na Harley Davidson e o Klaus foi para Bowral com o Ler-ner Chusovich, que se sentiu um bocado excluído por não o termos deixado transportar o caixão. É um homem muito magro e frágil. Muito sombrio e tímido.

A Pappy estava em casa e jantámos juntas. Começa esta segunda-feira a trabalhar com o resto das estagiárias no Vinnie. Graças a Deus que Stockton foi excluído dos seus projectos. Isto é, graças à Mrs. Delvecchio Schwartz, o fantasma. A Pappy acredita mesmo piamente que a velha bruxa se materializa e fala com ela, apesar de eu não conseguir acreditar. Sim, oiço as suas caminhadas e as suas gargalhadas, mas continuo a pensar que são um fenómeno gerado pela Fio.


Já mexeste na Bola de Cristal e nas cartas? perguntou a Pappy.Bom Deus, não! Estão no armário do queijo tilsiter.Harriet, ela não ia gostar disso. A Bola de Cristal e as cartas têm de ser manuseadas ou perderão os seus poderes. E não descansou enquanto não fui buscar aquelas coisas e as pus em cima da mesa, envoltas nas suas protecções de seda encardida, apesar de me ter recusado a olhar para o Cristal ou a deitar as cartas.Mexer-lhes-ei de vez em quando, mais do que isso não disse eu com firmeza. Ela disse-me que era uma fraude e todos aqueles livros no quarto dela dizem-me que ela era uma fraude.Em tempos foi disse a Pappy sem se impressionar. Mas isso foi há muitos anos, antes de ela ter percebido que tinha o poder. Os livros continuam lá porque ela não conseguia deitar nada fora.Os livros são actuais... é a Fio quem tem o poder.Talvez ela os mantivesse actualizados por serem parte da herança da Fio disse a Pappy. Até mesmo uma Fio tem de gatinhar antes de conseguir caminhar. Os livros estão ali para que a Fio os possa estudar mais tarde.Mas que grande disparate! Tenho a certeza de que a Mrs. Delvecchio Schwartz sabia tão bem como eu que a Fio nunca lerá, assim como nunca falará disse eu. Quanto a essa história de médiuns, espero que tu me possas dizer como é que a Fio e a mãe trabalhavam.

Mas a Pappy diz que não me pode esclarecer porque ela própria não sabe, nunca assistiu a uma das suas sessões com uma cliente. Nem, acrescentou ela apressadamente (vendo a minha expressão), as clientes discutiam as sessões. Mandámos desligar o telefone da Mrs. Delvecchio Schwartz e, após várias notas desesperadas terem sido apanhadas do chão do átrio da frente, pusemos um pequeno aviso na porta da entrada dizendo que a Mrs. Delvecchio Schwartz falecera. E pronto. Que horrível, pensar que uma daquelas senhoras chiques de Point Piper, Vaucluse, Killara e Pymble podia encontrar uma funcionária da Protecção de Menores no alpendre da Casa!


A Pappy está com bom aspecto, parece tranquila. Recuperou o peso perdido e está preparada para o trabalho duro do curso de enfermagem. Embora uma parte de mim deseje que ela mencione o bebé perdido ou Ezra, nem que fosse para desabafar, outra parte de mim sente-se muito satisfeita por ela aparentemente ter decidido enterrar o passado num limbo.

 

Quinta-feira, 2 de Fevereiro de 1961

Estão mesmo em acção forças ocultas! Olhem para a última palavra da minha última entrada de há quase três semanas. Limbo. E aí que estamos a viver actualmente, num limbo. Já passou mais de um mês desde a morte da Mrs. Delvecchio Schwartz e continuamos a não saber de nada. A Fio é como se tivesse desaparecido da face da Terra. E embora não tenha passado um único dia útil sem que eu tenha telefonado para saber dela e a telefonista da Protecção de Menores já deva conhecer a minha voz pelo menos tão bem como a sua própria, continuo sem a mínima pista acerca do seu paradeiro. Sim, Miss Purcell, a Florence Schwartz está bem e feliz. Não, Miss Purcell, não é um procedimento aceite da nossa parte permitir aos amigos que visitem as nossas crianças até o seu futuro estar garantido... Corro o risco de perder a paciência, no entanto não posso perder a paciência. E se eles guardarem registos dos meus telefonemas e um dia um comentário amargo ou maldoso for usado contra mim? Eles já têm a minha juventude, a minha falta de dinheiro e o meu estado civil contra mim. Para bem da Fio, tenho de me manter agradável e apenas adequadamente preocupada. Oh, quem me dera que o amor contasse no mundo oficial! Mas não conta porque não é uma coisa que se consiga ver, sentir ou pesar. Eu compreendo, compreendo mesmo. É muito mais fácil falar de amor do que agir com amor.

Através do Mr. Hush, soube que ainda não foi encontrado qualquer testamento, que o nascimento de Florence Schwartz não consta do Registo Civil, que não existe qualquer registo de alguém chamado


Delvecchio ter casado com um Schwartz. Na verdade, o Mr. Schwartz, o tal cavalheiro judeu misterioso, parece nunca ter existido. Todos os Schwartz dos cadernos eleitorais foram ou serão contactados. Já o foram todos os residentes em Nova Gales do Sul, mas nenhu-m Schwartz admitiu conhecer nem a Fio nem o pai da Fio! Depois de ter falado com a Pappy, o Mr. Hush acha que o nosso Mr. Schwartz tinha outro nome, nome esse com o qual nasceu, casou e morreu.

O problema é a Pappy ter ido para Singapura durante dois anos os dois anos relevantes para a resolução do mistério do Mr. Schwartz. Ela lembra-se de um homem sombrio e tímido se ter mudado para o quarto que viria a ser do Harold, mas nunca se tinham encontrado e a Mrs. Delvecchio, como na altura ela chamava a si própria, nunca o mencionara. Quando a Pappy voltara para casa, lá estavam a Mrs. Delvecchio Schwartz e a recém-nascida Fio. Cada vez mais misterioso. O Mr. Hush está enfeitiçado.

O Administrador Oficioso é agora o cão de guarda do nosso limbo, mas é um cão de guarda muito impessoal e indiferente. Temos de pagar as nossas rendas de quatro em quatro semanas através de cheque ou vale postal, mencionando o nosso Número Oficial. Todos nós compreendemos que o cão de guarda se limita a esperar pela resolução da incrível confusão que são os assuntos da Mrs. Delvecchio Schwartz para tomar medidas concretas. Afinal de contas, pode haver mesmo um testamento nos ficheiros de um qualquer solicitador caquético. Limitamo-nos a esperar no limbo que o machado se abata sobre nós.

De uma forma estranha, tornei-me muito próxima do Toby nestas últimas semanas. A vida corre-lhe bem. Graças a Deus que assim é pelo menos para um de nós! Conseguiu o contrato do hotel, encontrou mesmo um proprietário de uma galeria que não rouba os artistas o que é muito raro, garantiu-me e há uma pessoa em Camberra que anda a falar em encomendar-lhe uns quadros para as embaixadas australianas no estrangeiro. Portanto, não tem importância os robôs irem tomar conta da fábrica dele. E as notícias melhores são ele crer que, uma vez que só paga três libras semanais pelo


sótão, pode ficar na Casa e com a casa de Wentworth Falis. Não paro de insistir com ele para que me mostre o seu refúgio nas montanhas, mas ele limita-se a rir e diz que não me leva lá até ter instalado a fossa séptica ligada à casa de banho. É um tipo atencioso. Se há coisa que eu deteste é uma latrina. Há grandes debates sobre a natureza da civilização, mas eu sei qual é a minha definição: uma sanita com autoclismo e água quente instalada na cozinha e na casa de banho.

Estás ficar decadente, Harriet Purcell, se o único assunto que arranjas sobre que escrever é esgotos.

Só espero não estar a ficar demasiado dependente do Toby. Como sempre lhe achei graça, tenho algum receio de que a minha dependência lhe dê a ideia errada. Ele tem toda a razão quando diz que não se dá bem com as mulheres. E tão... australiano. Apesar do meu pai, do Duncan e de um monte de outros tipos, há um traço de desprezo pelas mulheres em muitos homens australianos. Vejam só os meus irmãos mais velhos. Típicos. Tão longe de serem homossexuais quanto um homem pode ser, quando querem ter uma conversa séria, ou passar um bom bocado, escolhem outros homens como parceiros. As mulheres, de acordo com o Gavin e o Peter, não sabem falar de mais nada a não ser de roupas, miúdos, períodos e tarefas domésticas. Já os ouvi dizer isso um milhão de vezes. E apesar de o Toby não viver como os meus manos, tenho sempre a estranha sensação de que ele só está preparado para partilhar uma parte de si com qualquer mulher, mesmo com as mulheres bastantes excêntricas da Casa. Não consigo imaginar simplesmente o Toby a tremer, rendido aos encantos de uma mulher. Ele mantém sempre uma reserva.

Os galopes e as gargalhadas continuam todas as noites.

 

Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 1961

Esta noite jantei com o Toby, um jantar simples de fiambre frio, salada de batata e couve da minha charcutaria preferida. O tempo está demasiado pesado e peganhento para comida quente. Não falamos muito, não nos parece necessário evitar os silêncios absortos que se instalam de quando em vez. Quando conversamos é sobretudo sobre a Pappy, que está a florescer no Vinnie. Do que não falamos é do meu pequeno anjo. Apesar de ele me ter dito para tentar ficar com ela, sei que, no seu íntimo, o Toby não aprova amor e paixão tão intensos. E eu guardo essas coisas para as marchas nocturnas após a primeira marcha nocturna, a marcha da Mrs. Delvecchio Schwartz, ter acabado. Às três e dez em ponto. Quanto mais a Fio se afasta de mim, mais dificuldade tenho em adormecer, talvez porque, seja como for, tenho de me levantar às quatro e meia. Por isso fico ali deitada a pensar nela, a tentar enviar-lhe mensagens mentais de amor e encorajamento, a tentar fazer com que a minha imagem lhe apareça. Disparates fantasiosos, mas é um conforto para mim e se alguns dos meus pensamentos conseguirem chegar até ela, serão um conforto para a Fio. Sinto tanto a sua falta!

Esta manhã desisti de ficar na cama e levantei-me para ir fazer café. A Marceline, que dorme sempre aos pés da minha cama, nunca é indiferente à perspectiva da comida e levantou-se também. Andar de um lado para o outro abraçada a uma coisa macia e ronronante é uma armadura contra a solidão, creio. Mas passado um bocado, a Marceline quis ir para o chão e depois o ponteiro dos minutos no grande relógio que tinha sido da estação dos comboios e que estava na parede imobilizou-se e não se mexeu mais. Eu olhei e eram três e meia. Olhei novamente passada uma hora e continuava a marcar três e meia. Talvez eu ande a correr à velocidade da luz. Em desespero, sentei-me à mesa, desembrulhei as cartas e fui buscar o meu livro de Tarot. Não, não iria deitar as cartas. Limitar-me-ia a memorizar o significado de cada carta, direita e invertida. Talvez, se eu souber os seus significados de cor se e quando deitar as cartas, consiga ver um padrão. Pelo menos é um exercício mental, qualquer coisa para me ocupar a mente. Há uma eternidade que não consigo ler um livro, nada cativa o meu interesse. E o exercício funcionou: pelo menos, da vez seguinte que olhei para o relógio este marcava quatro horas.

Embrulhei novamente as cartas e tirei a seda de cima da Bola de Cristal e puxei-a para mim. Subitamente, recordei-me de uma pequena série de episódios envolvendo a Bola de Cristal, sobretudo, creio, devido ao rosto da Fio. Mesmo no início do ano passado, quando a Mrs. Delvecchio Schwartz me enfiara o Cristal nas mãos e me dissera para lhe tocar. A Fio suspendera a respiração, a sua expressão o epítome do espanto e da admiração. Naquela altura não lhe atribuíra grande significado mas, percebia-o agora, eu devo ter sido a primeira pessoa que a Mrs. Delvecchio Schwartz jamais deixou tocar no Cristal. Tinha sido depois, mais ou menos por essa altura, que eu me envolvera com o Duncan e ela me dissera qualquer coisa sobre tudo depender do Cristal. O quê exactamente não conseguia lem-brar-me, se bem que devo ter isso registado num dos meus cadernos. Mas recordo-me muito claramente do que ela me disse naquela última noite em que eu e a Fio tínhamos entrado na sala e a tínhamos encontrado em comunhão com o Cristal.

O destino da Casa está no Cristal, dissera ela, e pusera as minhas mãos sobre a Bola e depois juntara-as. E a Fio observara tudo com óbvio encantamento.

Talvez que, daquela forma oblíqua e críptica com que abordava tudo, ela me estivesse a dar a sua autorização formal para que eu usasse o Cristal, talvez me estivesse a comunicar ser eu a escolhida para herdeira dos seus mistérios.

Levantei-me, desliguei as luzes e sentei-me novamente à mesa com o rosto a pouca distância da esfera levemente nublada, a luz vinda do exterior sendo a estritamente necessária para conseguir ver. E olhei fixamente, fixei a vista focando-a no interior da esfera e man-tive-a assim.

«O destino da Casa está no Cristal. Bem, se estava eu não tinha o que era preciso para o ver, pois, passada meia hora a olhar, olhar, olhar, não via nada que não estivesse já dentro do quarto. Nem visões, nem rostos, nem nada.

Cobri a Bola de Cristal e comecei a preparar-me para ir trabalhar.

Esta noite, como já disse, jantei com o Toby. Tínhamos acabado e eu estava a guardar os restos no frigorífico enquanto ele lavava os poucos pratos quando tocou a campainha da porta. O Toby secou as mãos num pano e foi abrir. Desde a morte da Mrs. Delvecchio Schwartz só o Toby, o Klaus e a Jim é que abrem a porta. Sem ela para a vigiar, a Casa ficou subitamente vulnerável.

Ele pareceu demorar-se muito tempo, tanto que comecei a ficar preocupada. Depois ouvi passos a aproximarem-se, os dele e os de outra pessoa e o murmúrio grave de duas vozes masculinas.

            O Dr. Forsythe quer falar contigo, Harriet anunciou o Toby entrando na frente de cenho carregado. Oh, quem me dera que ele não embirrasse com o Duncan!

Este entrou, com a expressão distante que os médicos conseguem adoptar, como se fosse uma peça de vestuário. Recebi um aceno de cabeça, um pequeno sorriso, mas nenhum clarão de sentimentos explodiu nos seus olhos.

Convidei-o a sentar-se e lancei um olhar de aviso ao Toby, que me ignorou e se manteve de pé junto à porta.Não, não posso demorar-me, obrigado. Como provavelmente sabes continuou ele na sua melhor atitude clínica , andam a circular no Queens alguns rumores sobre nós. Quando abri a boca, ele fechou-ma com um gesto. Por causa disso, um dos chefes de serviço do Pavilhão de Psiquiatria veio hoje ter comigo, e perguntou-me como ia a minha Harriet Purcell. Tinha visto o nome num relatório da polícia e num relatório da Protecção de Menores e queria saber se a Harriet Purcell dos rumores poderia ser a mesma Harriet Purcell. Perguntei-lhe por que razão viera ele ter comigo, em vez de ir ter contigo, e ele disse-me que não considerara isso sensato antes de obter confirmação junto de um sorriso muito, muito ligeiro um homem sensato.A Fio disse eu quando ele fez uma pausa. É a Fio.Ela está no Pavilhão de Psiquiatria, Harriet. Foi enviada para lá há dois dias, enviada de um centro da Protecção de Menores.

Os meus joelhos perderam as forças, sentei-me de repente e fiquei a olhar para ele. O que é que ela tem, Duncan?

            Ele não me disse e eu não perguntei. Ele chama-se Prender gast, John Prendergast, e disse-me para te dizer que vai estar de serviço na Psiquiatria amanhã o dia todo. Está ansioso por falar contigo.


As lágrimas começaram a correr-me pelo rosto, as primeiras que vertia desde que me tinham levado o meu anjo. Talvez se Duncan não se sentisse atrapalhado com a presença do Toby e o Toby com a presença do Duncan, tivessem tentado confortar-me. Assim, quando tapei a cara com as mãos e chorei com mais força, deixaram-me chorar.

Mesmo antes de a porta se fechar, ouvi o Toby dizer ao Duncan: Não é uma chatice ela não amar um de nós um décimo sequer do que ama aquela criança?

Anjo, meu anjo, vens a caminho de casa! Agora que te descobri, nada poderá manter-nos afastadas. A Protecção de Menores pôs-te no meu território, que fica muito mais perto de casa do que Yasmar.

 

Terça-feira, 21 de Fevereiro de 1961

As enfermarias psiquiátricas dos hospitais são muito recentes. Só os grandes hospitais universitários é que as têm e os doentes internados não são os pobres tristes dos epilépticos crónicos, sifilíticos de terceiro grau, senis e outros dementes como os internados em sítios do tipo Callan Park ou Gladesville. Aqui os pacientes têm todos sintomas que não estão firmemente ligados a lesões orgânicas do cérebro: esquizofrénicos e maníaco-depressivos sobretudo, apesar de eu não estar muito ao corrente do que se passa na psiquiatria. Quando estava a fazer tórax de rotina, apanhava ocasionalmente uma rapariga com anorexia nervosa, mas praticamente só isso.

O Pavilhão de Psiquiatria é portanto um edifício novo, o único com caixilhos de alumínio e vidro. É uma construção sólida, em tijolo vermelho, com poucas janelas. E as janelas que existem têm barras. Nas traseiras há uma enorme porta dupla de aço que é a porta de serviço mas, à parte essa, só existe uma outra porta no edifício: outra porta de aço com um painel de vidro com cinco centímetros de espessura, reforçado com rede de aço. Quando lá cheguei, pouco depois das quatro, vi que a porta tinha duas fechaduras diferentes com os manípulos para o lado de fora. Não tive portanto qualquer dificuldade em entrar, só precisei de girar simultaneamente os dois puxadores mas, assim que a porta se fechou atrás de mim, apercebi-me de que precisaria de duas chaves diferentes para conseguir sair. Um bocado como as prisões, suponho.

O edifício tem ar condicionado e está muito bem decorado. Como terão conseguido convencer a Enfermeira-Chefe a deixá-los usar cores e tecidos brilhantes? E fácil de perceber. Todo o mundo, até mesmo a Enfermeira-Chefe, foge da Mania. Todas as nossas defesas não são suficientes para lidar com aqueles que sofrem de disfunções da razão porque não conseguimos conversar com eles. É uma ideia muito assustadora. Os quatro pisos estão perfeitamente divididos. Laboratórios e gabinetes no rés-do-chão, pacientes do sexo masculino no primeiro piso, pacientes do sexo feminino no segundo piso e crianças internadas no piso de cima, o terceiro. A recepcionista chamou o Dr. John Prendergast pelo intercomunicador e disse-me que apanhasse o elevador até ao terceiro andar, onde ele iria ter comigo.

Era um homem grande que mais parecia um urso de peluche, com cabelos castanhos encaracolados, olhos cinzentos, e a estatura de um jogador de râguebi. Levou-me para o seu gabinete, sentou--me e foi para trás da secretária, o que deixa sempre o visitante em desvantagem. Mesmo enquanto trocávamos comentários inócuos, apercebi-me de que ele é um filho-da-mãe ardiloso. Enganadora-mente suave e apatetado. Bem, a mim não me enganas, pensei. Não sou apenas sã de espírito como sou inteligente. Não vais conseguir nada de mim que me possa explodir na cara.Então no que respeita à Florence... chama-lhe Fio, não é? perguntou ele.Fio é o que a mãe lhe chamava. Tanto quanto sei, ela chama-se Fio. Florence é uma dedução da Protecção de Menores.Não gosta da Protecção de Menores disse ele, e não estava a fazer uma pergunta.

Não tenho razões para gostar da Protecção de Menores, Senhor Doutor.Os relatórios dizem que a criança estava negligenciada. Também sofreu abusos?A Fio não sofreu negligência nem abusos! disparei. Ela era o anjinho da mãe e objecto de um imenso amor. A Mrs. Delvecchio Schwartz pode não ter sido uma mãe convencional, mas era muito carinhosa. A Fio também não é uma criança vulgar.

Depois daquela explosão, forcei-me a acalmar, a controlar-me e a ficar alerta. Contei ao Prendergast o tipo de vida que a Fio tivera, a falta de interesse em confortos materiais, falei do tumor cerebral da mãe e da sua estranha aparência física, do nascimento da Fio no chão da casa-de-banho durante uma dor de barriga, contei-lhe do médico que receitara a hormona que resultara na chegada da Fio.Por que é que a Fio foi internada no Queens? perguntei.Suspeita de loucura.Certamente que não acredita numa coisa dessas! ofeguei.Não estou a fazer juízos de qualquer tipo, Miss Purcell. Creio que serão precisas semanas para fazermos uma pálida ideia de quais são os problemas da Fio: que parte do seu estado actual é consequência daquilo que testemunhou e que parte esteve sempre presente. Ela fala?Nunca, doutor, que alguém tenha ouvido, apesar de a mãe insistir em que ela falava. Descobri também que os centros da leitura no cérebro dela ou estão gravemente afectados ou não existem simplesmente.Que tipo de criança é ela? perguntou ele com curiosidade.Hipersensível às emoções dos outros, extremamente inteligente, muito doce e gentil. Tinha tanto medo do assassino da mãe que se enfiava debaixo do sofá antes de ele aparecer, apesar de ninguém, a não ser eu, o considerar perigoso.

E continuámos assim, pergunta e resposta, um pouco como num combate de esgrima. Ele sabia que eu não lhe estava a contar tudo, eu sabia que ele estava a tentar apanhar-me numa armadilha. Um impasse.

 


 

As fichas da polícia e da Protecção de Menores dizem que a Fio estava na sala quando a mãe foi assassinada. Depois de ambos os intervenientes estarem mortos, ela manteve-se na sala sem tentar pedir ajuda. E usou o sangue para pintar as paredes com as mãos disse ele, franzindo o sobrolho e mexendo-se na cadeira para olhar para mim. Não parece nada surpreendida por a Fio ter pintado as paredes... porquê?

Olhei inexpressivamente. Porque a Fio garatujava disse eu.

            Garatujava?

Bem, bem! Sem dúvida porque tinha achado tanto a criança como a casa gravemente negligenciadas, a Protecção de Menores não mencionara as garatujas! A sua importância tinha-lhes escapado.

            A Fio disse eu escrevinhava em todas as paredes da mãe. Ela deixava-a garatujar, era a sua ocupação favorita... praticamente a única ocupação. Foi por isso que os desenhos com o sangue não foram uma surpresa.

Ele soprou e pôs-se em pé. Gostava de ver a Fio?

            Se gostava!

Enquanto descíamos o corredor, ele lamentou as fechaduras na porta que impediam o acesso ao mundo exterior e as grades nas janelas. As novas drogas estavam a produzir um efeito tal no comportamento dos doentes que as medidas de segurança não eram necessárias. Mas disse ele com um suspiro , os mecanismos dos hospitais centrais movem-se muito lentamente. O Hospital Royal Prince Albert aboliu as fechaduras, portanto é só uma questão de tempo até que o Queens o faça também.

A Fio estava no seu quartinho, a receber os cuidados de uma enfermeira que exibia não apenas o distintivo da enfermagem geral como um outro de cuidados psiquiátricos. O meu anjinho estava sentado muito quieto na caminha, tão magro e pequeno na camisa curta do hospital que tive vontade de chorar. Os meus olhos horrorizados viram um colete de lona afivelado nos ombros e nas costas com correias de cabedal. Do colete saíam cordas ligadas à cama, que lhe permitiam sentar-se ou deitar-se com facilidade mas não a deixavam pôr-se de pé.


Fiquei atordoada. Um colete-de-forças na Fio

O Prendergast ignorou-me, dirigiu-se à cama e baixou a grade lateral. Olá, Fio sorriu-lhe. Tenho aqui uma visita muito especial para ti.

Os enormes olhos tristes olharam-me com espanto, depois a boca em botão de rosa abriu-se num enorme sorriso e a Fio estendeu-me ambos os braços. Sentei-me no colchão, abracei-a e enchi-lhe o pequeno rosto de beijos. Anjinho, meu anjo! E ela beijou-me, fez-me festas, aninhou-se em mim e olhou-me para a cara. Toma e embrulha, Dr. John Um Porra Prendergast Dum Raio! Ninguém poderia deixar de perceber a alegria da Fio em me ver.

Durante um grande bocado, não tive consciência de mais nada a não ser da alegria de a abraçar. Depois, olhando-a com atenção, vi as marcas. As pernas e os braços da Fio estavam cheios de nódoas negras.Ela foi espancada! gritei. Quem? Quem se atreveul Vou denunciar a Protecção de Menores de alto a baixo!Acalme-se, Harriet, acalme-se disse Prendergast. A Fio fez isto a si própria, tanto aqui como no abrigo para crianças. Foi por isso que a atámos. Pode não acreditar, mas esta criatura pequena e frágil fez em tiras o colete de algodão: não uma vez, mas meia dúzia de vezes. Não tivemos alternativa senão recorrer ao cabedal e à corda.Porquê? perguntei ainda céptica.Pensamos que tenta fugir. Assim que se vê livre, a Fio arranca, atira-se literalmente contra o objecto mais próximo. Eu próprio a vi atirar-se repetidamente contra a parede. Não se importa com a dor que se auto-inflige. No abrigo das crianças, atravessou uma vidraça no primeiro andar. Foi por isso que a mandaram para aqui. Como é que não se matou nem partiu nada nunca saberemos, mas ficou gravemente ferida. A sua mão grande e bem feita subiu-lhe ligeiramente a camisa curta para que eu visse as fiadas muito direitas de pontos no interior de ambas as coxas. Ou a púnhamos com o colete-de-forças ou lhe dávamos um sedativo forte e aqui não gostamos de sedativos. É confortável para o pessoal, mas mascara os sintomas e atrasa o diagnóstico.


A púbis dela? murmurei.Receio que também tenha sido cosida. Chamámos os cirurgiões plásticos para nos aconselharem, mas eles pensam que ela vai ficar bem. Quem quer que a suturou nas Urgências do Royal Prince Albert, fez um excelente trabalho.Urgência do Royal Prince Albert, hem? Então a Fio estava em Yasmar disse eu.Eu não disse isso nem direi.Por que é que a Fio não foi internada na psiquiatria do Royal Prince Albert?Não havia cama disse ele simplesmente. Além disso, nós somos a unidade principal para crianças pequenas.Seja como for disse eu triunfantemente , tudo isto só prova uma coisa. Esta é a forma que a Fio tem de conseguir aquilo que quer, e ela quer-me a mim. Esteve disposta a correr o risco de morrer para me encontrar. Isso significa muito.

Ele olhou-me especulativamente. Sim, ela sem dúvida que a quer a si. Hum, não poderia persuadi-la a ser menos frenética? perguntou.

Sorri. Nem pensar, campeão!Mas, por amor de Deus, porquê? perguntou ele.Porque eu não quero. Por que razão haveria eu de o ajudar a amolecê-la até ficar suficientemente maleável para ser mandada de volta para Yasmar? A Fio é minha. Se a mãe dela pudesse falar, sei que seria isso o que diria. Foi por isso que pedi a sua custódia disse eu.A menina é jovem e solteira, Miss Purcell. Nunca vai conseguir que lha dêem.É o que toda a gente diz, mas eu não quero saber do que toda a gente diz. Vou conseguir ficar com a Fio. Sorri à Fio. Não vou, meu anjo?

A Fio fechou os olhos, enfiou o polegar na boca e começou a cantarolar a sua musiquinha.

Deixaram-me ficar com ela meia hora, apesar de o Prendergast nunca me ter deixado em paz, tentando, por todos os meios de que se lembrou, descobrir o que eu estava a esconder. Ele é um tipo manhoso e percebeu que eu não lhe contara tudo. Pesca à vontade, campeão, pesca à vontade! Não vais conseguir levar-me. Eu sou uma grande árvore-da-borracha, foi a mãe dela quem o disse.

Quando a secretária emergiu do cubículo para me abrir a porta, entregou-me um envelope selado. O Dr. Forsythe pediu-me que lhe entregasse isto disse ela com uma total ausência de curiosidade. Como se fosse uma doente cheia de sedativos. Bem, se calhar, é.

A mensagem pedia-me que fosse encontrar-me com ele no café por baixo da estação de caminho-de-ferro em Circular Quay, às seis da tarde. Dali a uma hora. Decidi ir a pé, percorrendo os quilómetros envolta numa névoa feliz. Não, ainda não tenho a Fio, mas ao menos sei onde ela está. Depois disto, a Protecção de Menores aper-ceber-se-á de que eu sou uma força a ter em conta, ah-ah-ah. A pequena Florence Schwartz quer-me a mim! Mesmo que a devolvam ao abrigo, não poderão manter-me longe dela. O Dr. John Prender-gast pode ser um filho-da-mãe bisbilhoteiro, mas o seu relatório vai dizer inequivocamente que a Florence Schwartz está emocionalmente dependente de uma rapariga solteira de vinte e dois anos que tem de trabalhar para viver. Os fantasmas cinzentos bem se podem debater com isso! Boa!

Quando entrei na penumbra algo encardida da estação de comboios da Circular Quay, apercebi-me de que tudo aquilo acontecera no dia, ou próximo do dia, em que olhara para a Bola de Cristal. Será nisso que consiste a vidência? Poderá ser que o vidente não veja verdadeiramente as coisas mas que o acto de focar toda aquela energia mental num objecto com moléculas combinadas de uma forma tão requintada tenha a capacidade de alterar os acontecimentos? Mas que ideia!

Por isso, quando entrei no café vazio não ia a pensar no Duncan. Na verdade, por momentos nem soube exactamente o que estava ali a fazer. Depois ele saiu de trás da máquina Gaggia, dirigiu-me um sorriso de puro deleite e puxou uma cadeira para que me sentasse. Assim que me sentei, ele agarrou-me na mão e beijou-ma, olhou-me com tanto amor estampado nos olhos que eu me derreti. Ele consegue sempre que isso aconteça. Oh, por que será ele uma vítima das convenções?

            É uma pena disse eu ainda a pensar em Fio e no Cristal que um homem não possa dividir-se ao meio. A metade de ti que a Patroa quer, eu não quero para nada, a metade de ti que eu quero, a Patroa não quer para nada. Mas já concluí que esse é mesmo o problema dos homens, no que respeita às mulheres. Nós só queremos sempre metade do homem.

Ele não ficou minimamente ofendido. Na verdade, até sorriu. É maravilhoso ver-te novamente em boa forma, meu amor disse ele ternamente. Se só quiseres um oitavo de mim, estás à vontade para me começares a dissecar de imediato.

Apertei-lhe a mão. Sabes que não posso. Tenho de me manter na linha até conseguir a custódia da Fio.

Depois apercebemo-nos ambos de que a empregada estava pacientemente à espera dos nossos pedidos. A ouvir, hipnotizada.

            Peço-lhe desculpa, minha cara disse-lhe ele, e pediu dois cappuccini. A rapariga afastou-se a arrastar os pés, com o ar de alguém a quem o Papa tivesse concedido uma audiência privada. As boas maneiras do Duncan têm o efeito mais extraordinário nas mulheres. O que só demonstra que não estamos habituadas a ser tratadas como se fôssemos flores delicadas.

Contei-lhe da Fio e do Dr. John Prendergast e ele escutou-me como se o assunto fosse importante para ele. Não é, sei disso, salvo no que respeita ao facto de ele gostar muito de mim e, gostando muito de mim, isso poderá ser importante.

            Estás com o ar disse ele quando acabei de contar a minha história de quem andou por cima de carvões em brasa. Estudou a palma da minha mão como se ali estivesse a resposta para um qualquer mistério. Por que será que olhei para ti e te amei? Um milésimo de segundo numa rampa e fiquei apanhado. Será por pertenceres ao mundo de Kings Cross? A habitante de uma casa velha e horrível, infestada de baratas, uma caminhante e não uma motorista, bebedora de brandy barato, uma devota do bizarro, do espalhafato do francamente indesejável.


A tua língua sorri eu , campeão, está coberta de mel.Não, não está disse ele imediatamente e mordeu-me a mão. Deixa-me ir para casa contigo e em breve ela se cobrirá de mel.

Os cappuccini chegaram. Duncan sorriu à empregada e agradeceu-lhe: duas audiências com o Papa!Por que é que quiseste este encontro? perguntei.Só para te ver a sós — respondeu ele. — O Mr. Toby Evans parece ter invadido o meu território.Não, ele tem o seu próprio território disse eu, lambendo a espuma da minha colher. A felicidade inundou-me novamente. — Oh, Duncan, a alegria de ter encontrado o meu anjo!Como é que estás de dinheiro? perguntou ele.Estou bem disse eu.

            Se precisares de dinheiro, já sabes que me podes pedir. Mas ele sabe que eu não posso aceitar o dinheiro dele. Ainda

assim, é simpático ter oferecido. Se sinto a sua falta, nunca tenho consciência disso até estar novamente com ele, nem que seja para beber um cappuccino no Quay.

Quando me levantei para ir embora, debrucei-me por cima da mesa e beijei-o com desejo, com os lábios e a língua, e ele retribuiu o beijo, com uma das mãos a acariciar-me o peito. A empregada olhava-nos como se fôssemos Heathcliff e Catherine.Nunca vou conseguir manter-me longe de ti disse ele.Óptimo! Fui-me embora e deixei-o pagar a conta.

Estavam todos à espera para saber novidades da Fio quando entrei. Como as estagiárias não entram nas enfermarias nos primeiros três meses, a nossa Pappy também estava em casa ao fim da tarde. Tinha feito imensa comida chinesa que levámos para o sótão do Toby por este ter a maior sala da casa e a vista ser maravilhosa. É engraçado. O Toby costumava ficar todo nervoso só de pensar na possibilidade de lhe invadirem a casa, não fosse alguém deixar a marca de uma sola de borracha no seu chão branco, ou riscar a mesa, ou coisa do género. Mas ultimamente anda mais sociável, talvez por termos adoptado algumas regras também nós, como descalçarmo-nos todos antes de subirmos as escadas e não nos oferecermos para lavar a loiça.


Suspeito, no entanto, que na verdade o Toby está com saudades da Mrs. Delvecchio Schwartz, apesar de a ouvirmos todas as noites.

É claro que eles sabem, tal como eu, que não estou minimamente mais próxima de ficar com a Fio do que antes de ter descoberto o seu paradeiro, mas saber onde ela está faz a diferença, bem como saber que todos nós a podemos visitar. Perguntei isso mesmo ao Prendergast que, como é evidente, estará presente para ouvir o que for dito e ver qual o nosso aspecto, etc. Mas não conseguirá mais de qualquer um deles do que conseguiu de mim hoje. Os habitantes de Cross estão habituados a guardar segredos face às autoridades. Ninguém ficou surpreendido por o nosso anjinho ter atravessado uma vidraça, assim como ninguém ficou surpreendido por ela ter sobrevivido, apesar de a Bob ter chorado horrivelmente quando descrevi os ferimentos. Ela tem um coração sensível. O Klaus pensou que seria simpático levar o violino ao hospital e tocar para ela não lhe disse que pensava que eram capazes de levantar objecções a isso. Assim que ouvirem aquele arco passar sobre as cordas, mudarão de ideias. Suponho que foi a Guerra que tirou ao Klaus qualquer hipótese de fazer carreira na música, mas a perda do mundo foi o nosso ganho e ele é um homem tão doce e tão apaixonado pelos seus periquitos! São todos tão queridos!

Do que não falamos quando estamos juntos é do futuro. O Administrador Oficioso, agora um pouco mais ousado, depois de se terem passado quase dois meses sem que aparecesse qualquer testamento, enviou um tipo para inspeccionar a Casa quando só cá estava a Pappy. Oh, o desperdício! Emitiu sons reprovadores quando se apercebeu de que havia dois apartamentos e um quarto vagos. E porque eram as rendas tão baratas? Estamos, portanto, à espera de que dentro de dois meses, talvez antes, o apartamento da frente seja ocupado por desconhecidos, bem como o quarto do Harold e os aposentos da Mrs. Delvecchio Schwartz. Como é que se pode explicar ao Administrador Oficioso o problema dos apartamentos térreos com frente para a rua no bairro de Kings Cross? Vai haver outra vez marinheiros por toda a parte. A Jim disse-nos que falara com a Joe, a advogada, cuja opinião abalizada é de que as nossas rendas não poderão ser aumentadas sem grandes complicações junto do Comité para as Rendas Justas, pois fora a própria senhoria quem as fixara havia anos. É mais a ideia de ter pessoas na Casa que não tenham sido criteriosamente escolhidas. Quero dizer, o problema é estarmos em King Cross, os apartamentos não o serem verdadeiramente e os quartos serem bastante horríveis. E tudo por baixo dos panos! E agora temos o Administrador Oficioso a espreitar-nos por baixo das saias. Assim que assumirem completamente o controlo, haverá um grande tremor de terra e provavelmente gastarão uma boa parte da herança da Fio registada nas cadernetas a transformar a Casa em algo que se adeque ao espírito da Lei, seja qual for a Lei que decidam ser aplicável. Provavelmente irão proibir que se escreva nas paredes.

Quando os outros se foram embora, eu fiquei.

O Toby não dissera grande coisa, limitara-se a ficar sentado no chão de pernas cruzadas e a ouvir, olhando de um rosto para outro. Os olhos dele estavam mais vermelhos do que o normal, sinal de que havia qualquer coisa a agitar-se na sua cabeça ou no seu espírito. Uma parte, estou convencida, é a Fio. Oh, ele sempre foi simpático com ela, mas ela não tem sobre ele o poder que tem sobre nós. O Toby resiste, o que pode ser parte das suas características australianas. Deixar que uma mulher tenha poder sobre ele? Nunca!

            Estás a começar a ter dúvidas quanto a manter aqui o teu quarto? perguntei quando ele começou a lavar a loiça.

Estava de costas viradas para mim. Não.Então o que é que te está a incomodar?Nada.

Fui até ao canto do lavaloiça e encostei-me ao armário para lhe poder ver pelo menos o perfil. Há alguma coisa. É a Fio? Ele virou a cabeça e olhou-me. A Fio não me diz respeito.E é esse o problema. Diznos imensamente respeito a todos nós. Por que não te diz respeito a ti, uma criança órfã?Porque ela vai arruinar a tua vida disse ele para o lavaloiça.A Fio nunca poderia fazer uma coisa dessas, Toby disse eu suavemente.


A Casa dos AnjosTu não percebes rosnou ele de dentes cerrados.Não, não percebo. Por que é que não me explicas? perguntei.Vais amarrar-te a alguém que nem sequer é completamente normal. Há qualquer coisa de errado com a Fio e tu és mesmo o tipo de pessoa que vai passar os próximos vinte anos preocupada com ela, a levá-la a médicos, a gastar o dinheiro que não tens. Despejou a água.E então o dinheiro das cadernetas? perguntei.Isso é passado. Isto é presente. Não há testamento, Harriet, e sendo os governos como são, a miúda nunca verá um tostão do dinheiro da mãe. Vai ser um fardo às tuas costas e tu vais envelhecer antes do tempo.

Sentei-me num cadeirão de cenho franzido. Então isto tudo é por causa de mim, e não da Fio?Só há uma pessoa nesta casa por quem eu faria tudo, Harriet, e essa pessoa és tu. Não suporto a ideia de te transformares numa dessas mulheres derrotadas e macilentas que se vêem por todo o lado em Sydney, com os miúdos atrás e o homem no bar disse ele andando de um lado para o outro.Bom Deus! disse eu numa voz fraca. Quer dizer que é por mim que estás apaixonado? E por isso...És mais cega do que a porra de um morcego, Harriet interrompeu-me ele. Posso perceber por que te apaixonaste pelo Forsythe, um grande especialista em ossos, mas não consigo perceber por que é que te apaixonaste pela Fio.Oh, isto é horrível! — gritei.Porquê, porque não me amas? perguntou ele. Já estou habituado, posso viver com isso.Não, tu estares a dizer-me isso sem amor tentei explicar. Isso deveria ser dito de uma forma a que eu pudesse reagir, mas, em vez disso, estás a dar-me na cabeça por causa de um tipo de amor que não tem nada a ver com nenhum homem adulto! Não consigo explicar a Fio, Toby, olhei para ela e amei-a, só isso.

E eu olhei para ti e amei-te, naquele dia em que deste um belo murro no alpendre disse ele a sorrir. E sem dúvida que o grande e importante especialista em ossos olhou para ti e te amou da primeira vez que te viu.

            É o que ele diz. Foi numa rampa, no Queens. Portanto, todos nós olhámos e amámo-nos. Mas isso não nos serviu de muito, pois não? A única que está preparada para se comprometer totalmente sou eu, mas não contigo nem com o Duncan. Levantei-me. E muito misterioso, não achas? Fui até junto dele, beijei as pontas dos meus dedos e pu-los na sua testa. Talvez um dia consigamos deslindar isto tudo, campeão, ah, ah, ah.

 

Quarta-feira, 15 de Março de 1961

Já se passaram dois meses e meio desde a morte da Mrs. Delvecchio Schwartz e nada está resolvido. Segundo Mr. Hush, será em breve decretado que ela morreu intestada. Terá de ser tudo entregue a uma espécie de tribunal de menores, pois o Mr. Schwartz não existe e a Fio, oficialmente, também não. A Fio continua internada no Pavilhão de Psiquiatria do Queens, a ser sujeita a todos os testes, desde electroencefalogramas, a baterias de testes neurofisiológicos. Nenhum dos quais esclareceu minimamente nem o Prendergast nem o seu Professor. O electroencefalograma está normal: tem uma bela e elevada amplitude e um ritmo alfa devidamente modulado que aparece quando a Fio fecha os olhos. Divertiram-se a inventar testes de inteligência que possam ser respondidos por uma criança muda mas inteligente e com uma audição normal, mas ela recusa-se a reagir. As únicas pessoas que ela fica feliz por ver são as visitas da Casa. Apesar de todas as enfermeiras, todos os psiquiatras e terapeutas já a conhecerem bem, a Fio recusa-se a ser amiga de quem quer que seja que não pertença à Casa.Por que é que continuam a mantê-la aqui? perguntei hoje ao Prendergast quando fui fazer a minha visita assim que saí do trabalho.Porque ela está melhor aqui do que no abrigo respondeu ele de cenho franzido. Ao menos aqui pode receber visitas sem grandes confusões. Embora a verdadeira razão seja o Professor Llewllyn e eu acharmos que estamos perante um caso daquilo a que costumavam chamar esquizofrenia juvenil, mas a que agora se começa a chamar autismo. Ela não sofre, de maneira nenhuma, da síndrome clássica, mas há sinais característicos. Não é frequente podermos ficar com uma criança tão nova como a Fio durante tanto tempo... os pais estão sempre ansiosos por os levar para casa, por mais difíceis que eles sejam de tratar. Por isso, a Fio é, para nós, uma dádiva dos deuses. Parecia melancólico. Gostávamos de lhe fazer angiografias, introduzir-lhe ar no cérebro para ver se tem alguma lesão nas zonas da linguagem ou alguma atrofia do córtex, mas os riscos são demasiado grandes.E melhor continuar a pensar assim! disparei. Tente usá-la para fazer experiências e eu vou para os jornais!Paz, paz! gritou ele, erguendo as mãos. Limitamo-nos a observá-la.

Sinto-me permanentemente cansada, impotente, desanimada. O meu trabalho não se ressentiu porque eu não permito que isso aconteça, mas a verdade é que estou farta de hospitais. A disciplina, os rituais, a batalha constante com as mulheres em posição de autoridade. Se quisermos dar um peido, temos de ter autorização. E a Enfermeira Agatha tem-me debaixo de olho graças ao Harold e à sua carta. Ninguém conseguiu ainda descobrir a mínima prova que confirmasse a veracidade dos boatos sobre o caso entre Duncan e eu, mas estão a morrer por consegui-lo. Com que objectivo, não faço ideia. Eu não posso ser despedida por causa disso e o Duncan também não será prejudicado. O que o hospital está a precisar é de um novo escândalo suculento, mas até ao momento o Queens tem sido invulgarmente bem comportado no departamento dos escândalos.

A Enfermeira das Urgências e o Constantine estão noivos, apesar de não estarem a planear casar-se antes do fim do ano. Qualquer coisa ligada à abertura do restaurante do Constantin em Parramatta, onde poderá ter um parque de estacionamento decente e oferecer uma ementa adequada à populaça de Parramat, o tipo de gente que gosta de bifes com batatas fritas. Óptimo.


Naturalmente, toda a gente sabe que eu visito todos os dias uma criança no Pavilhão de Psiquiatria, apesar de ninguém ter conseguido descobrir a razão. A coscuvilhice floresce entre as enfermeiras, incluindo as enfermeiras psiquiátricas, mas ninguém soube da minha candidatura à custódia da menina.

Que parece não estar a ir a sítio nenhum. Tenho uma conversa semanal pelo telefone com Mr. Hush, que não cessa de me avisar que, mesmo depois de terminados todos os inquéritos sobre a Fio e ela ter sido oficialmente catalogada, não posso ter esperanças de ficar com a custódia dela. Vou juntar o relatório do Dr. John Prendergast, mas Mr. Hush não pensa que este vá ter, junto da Protecção de Menores, o peso que ey desejaria. Se a Fio acabar com um diagnóstico de esquizofrenia juvenil, podem enviá-la — imagine-se! — para Stock-ton. Isto apesar de o seu historial psiquiátrico a tornar inelegível para a adopção ou para ser recebida por uma família de acolhimento! Pensar-se-ia que eles receberiam a minha candidatura de braços abertos, mas não. Sou demasiado nova, demasiado pobre e demasiado solteira. Não é pura e simplesmente justo.

Harriet disse esta tarde Mr. Hush , tem de compreender a mente oficial. Decidir a seu favor no caso da Florence Schwartz requereria o tipo de sensatez e de coragem que as instituições oficiais não se atrevem a possuir. Tudo se resume à arte de não arranjar problemas. Eles sabem demasiado bem que, se alguém que se quisesse vingar de qualquer coisa soubesse de uma adopção ou acolhimento tão pouco ortodoxo, poderia haver uma confusão dos diabos e seriam eles a arcar com as culpas. Portanto, não correrão esse risco, minha cara. Simplesmente não o farão.

Lindo. Lindo, mesmo. Ela está ali, presa num colete-de-forças, a viver de visita para visita, e não posso fazer nada para a tirar dali. Oh, mas tem havido ideias loucas a trabalhar na minha cabeça! A primeira foi pedir o Toby em casamento, mas essa não durou muito mais do que um relâmpago. Se o Toby admitisse uma criança, ela teria de ser sua e só sua. E teria de ser um filho e não uma filha. Gosto dele em muitos aspectos — é honestíssimo, inteligente, tem futuro, é muito divertido e muito atraente. A tempo parcial é óptimo. A tempo inteiro seria um grande chato. Depois tive outra ideia brilhante, que ainda estou a remoer. Podia raptar a Fio e fugir deste Estado e, eventualmente, fugir do país. A Austrália é um país enorme. Se fôssemos as duas para Alice Springs ou para Katherine e eu trabalhasse como doméstica num qualquer motel de segunda, ninguém faria perguntas sobre a Fio. Ela limitar-se-ia a passar os dias a brincar no pó com os miúdos aborígenes que não se ralariam nada com o facto de ela ser muda... Provavelmente, ler-lhe-iam os pensamentos como a sua mãe fizera. Faria parte de uma comunidade espiritual e, quando eu estivesse de folga, estaria comigo. O esquema tinha as suas vantagens.

Já sei as cartas de Tarot de cor, embora ainda não tenha tentado deitá-las. Isto foi apenas um comentário inócuo para adiar escrever aquilo que estou prestes a escrever. As minhas mãos não estão muito firmes, tenho comichão nos olhos, sinto-me como se os mecanismos do meu corpo estivessem desgastados ou prestes a partir-se. É ridículo, eu sei. É um estado de espírito que passará. Oh, se ao menos acontecesse qualquer coisal

Continuo a olhar para a Bola de Cristal todas as noites depois de a Mrs. Delvecchio Schwartz me acordar, a seguir às três da manhã. Foi uma teoria adorável a que eu desenvolvi quando o Duncan encontrou a Fio, mas os acontecimentos não a confirmaram. Tenho portanto de deduzir que o Duncan ter encontrado a Fio naquele dia foi uma coincidência.

 

Sexta-feira, 24 de Março de 1961

Aconteceu uma coisa estranha esta noite. Quando a campainha da porta tocou, depois das seis, fui responder porque nenhum dos homens estava em casa. E ali, no alpendre, estava a Madame Fuga do 17d. Oh, meu Deus. Qual será o seu nome verdadeiro?Que prazer vê-la disse eu ganhando tempo.Também é bom vê-la a si, querida ronronou ela.Não quer entrar? Tomar um café?

Ela disse que não, que tinha de ir para casa antes de o negócio animar, mas andava a, hum, pensar, hum, se, hum, tínhamos, hum, planos para os quartos vazios? Algumas das minhas raparigas estão interessadas concluiu ela.

Que estranho! A Jim e a Bob chegaram na Harley Davidson naquele momento e juntaram-se-me enquanto eu explicava à Madame que era o Administrador Oficioso quem controlava as coisas e que ainda não sabíamos quando é que ele planeava alugar as instalações vagas.Uns atrasados de merda! — disse ela, e foi-se embora deixando atrás de si um forte aroma a perfume Joy.O negócio deve estar próspero — disse eu à Jim. Acho que aquele perfume é mais caro do que diamantes ou trufas.Bem, ela também trazia muitos diamantes, a não ser que tenhas pensado que os brincos e o pendente eram fundos de garrafa disse a Jim.Não é justo, pois não? disse a Bob algo pensativa. As boas raparigas como tu e as raparigas homossexuais como eu já temos sorte se nos oferecerem um caixa de chocolates de duas libras.

Agarrei-me à porta em estado de choque. Bob! Queres dizer que a Jim te dá uma caixa inteira de chocolates finos?

A Bob riu-se e mostrou os caninos vampirescos. A Jim ama-me.

            Bem, estou a pensar seriamente em pedir umas dicas à Madame Fuga para me iniciar no negócio disse eu. Parece que andar na vida é a única forma de ganhar dinheiro decente uups, indecente sem sair de casa! Também daria à Fio um monte de tios.

A Jim estava de cenho franzido mas não por causa das piadas. Sabes, Harry, foi muito estranho o que a Madame fez. Ela tem de saber que não somos nós que decidimos o arrendamento dos quartos. O que será que ela quer mesmo?

—        Não faço ideia disse eu.

A Bob começou a rir-se de repente. O que será que a Protecção de Menores diria se soubesse do 17b e do 17d? Uaau!

Mas eles sabem do 17b e do 17d, é claro que sabem. Contudo, a Jim tinha razão: a aparição da Madame Fuga era peculiar. O que é que ela poderia estar a tentar saber? Apesar de eu suspeitar de que a Protecção de Menores não ficara tão chocada com os bordéis das casas ao lado como com o falo alado bordado na parte de dentro das calças da Jim aquando da segunda visita da Miss Arf-Arf. Embora tenha ficado imensamente impressionada com Lady Richard, que vinha de braço dado com a Jim. Lady Richard tinha sido a única de entre nós que fizera um luto formal e tradicional pela Mrs. Delvec-chio Schwartz. Continuava de preto, embora tivesse anunciado que, dentro em breve, poderia começar as usar roxos e cinzentos. Até mesmo, se a ocasião o exigisse, branco.

 

Terça-feira, 4 de Abril de 1961

A secretária do Mr. Hush telefonou-me para o trabalho esta manhã e perguntou se eu poderia ir ao escritório deles às duas da tarde. Não era um pedido, avisou-me o meu instinto. Era uma convocatória. O que significava que eu teria de ir ter com a Enfermeira Agatha e avisá-la de que teria de sair mais cedo da Radiologia. Não era um dia particularmente movimentado, mas isso, como é evidente, era pouco relevante.Realmente, Miss Purcell começou a Enfermeira Agatha a dizer em tom rabugento , esta mania de largar tudo e desaparecer de um momento para o outro está a tornar-se ultimamente um hábito muito desagradável em si. Não pode ser.Enfermeira Toppingham disse eu muito tensa , está a exagerar. As ocasiões em que faltei ao trabalho este ano resumem-se a três. Dois de Janeiro, onze de Janeiro e treze de Janeiro. Fui mesmo a um funeral na Sexta-Feira, Treze, na realidade, por muito pouco apropriada que possa considerar a data. Não pedi que me pagassem essas ausências e não estou a pedir que me paguem as duas horas que perderei esta tarde. A Miss Smith e a estagiária dão perfeitamente conta do recado porque as Urgências estão calmas. E, sim, sei que lhe estou a causar um transtorno, Senhora Enfermeira, mas não passa mesmo disso, de um transtorno. O hospital não deixará de funcionar em condições óptimas se eu aqui não estiver.


Ela engoliu em seco como tinha feito a Patroa. É uma impertinente, Miss Purcell! foi a melhor resposta que conseguiu arranjar.

            Não, Senhora Enfermeira Toppingham, não sou impertinente. Estou apenas a praticar o acto imperdoável ao defender os meus interesses disse eu.

A Enfermeira Agatha estendeu a mão para um livro de registos.

            Pode ir, minha senhora. Garanto-lhe que não esquecerei este episódio.

Uaaau! Aposto que a velha cabra não se esquecerá. Ah, mas foi óptimo quando o verme Purcell se transformou!

A disposição de Mr. Hush estava pouco melhor do que a da Enfermeira Agatha. Tinha a expressão de quem descobrira que o frigorífico da carne se avariara no minuto seguinte a ter fechado a loja para o fim-de-semana.Tive ontem uma reunião com a Protecção de Menores disse ele com o objectivo de formalizar a candidatura para a adopção de Florence Schwartz. Receio que a reacção deles tenha sido mais implacável e adversa no que lhe diz respeito, Miss Purcell, do que aquilo que eu esperava. Eles informaram-me simplesmente de que não tem as qualidades morais necessárias para ter uma criança a cargo.Qualidades morais ?Foi essa a expressão. Qualidades morais. Em primeiro lugar, há a questão das duas casas que ladeiam a propriedade da sua falecida senhoria e onde tenciona criar a criança que é, questionavel-mente, a sua herdeira. Em segundo lugar, uma das funcionárias da Protecção de Menores entrevistou Mrs. Duncan Forsythe. Aparentemente, correm rumores sobre si e o Dr. Forsythe e esta funcionária foi posta ao corrente desse facto por uma amiga que trabalha no Queens. Mrs. Duncan Forsythe deu cabo de si. —A sua expressão indicava que ela tinha acabado comigo. Lamento muito, mas é esta a situação.A cabra! Vou matá-la! disse eu lentamente.

Ele olhou-me com simpatia. Concordo que lhe faria bem ao espírito matá-la, Harriet, mas isso não ajudaria a Fio, pois não?

            As facas tinham saído das bainhas e ele escolheu uma que não fosse muito afiada para eu não sofrer tanto. — A Protecção de Menores também me informou de que a Fio está prestes a ter alta do Royal Queens. O diagnóstico é uma forma não especificada de autismo, o que significa que a enviarão para uma instituição apropriada.Stockton disse eu desesperada.Altamente improvável. A Protecção de Menores tem consciência de que a Fio tem um grupo de visitas regulares que vive em Sydney. Suponho que a enviarão para Gladesville.E lá vai a Fio, devidamente etiquetada. Olhei-o a direito. Mr. Hush, não me importa o que a Protecção de Menores diga, quero fazer uma candidatura formal. E de cada vez que ma indeferirem, faça outra. Durante anos, se for preciso. Quando a Fio for crescida, quero que ela saiba que eu tentei e tentei e tentei. Se ela ainda for viva, o que eu duvido. E essa a verdadeira tragédia.

Fui para casa através do Domain, tirei os sapatos e as meias e senti a relva dura e áspera nos pés. Oh, por que tinha eu humilhado publicamente a Patroa? Por que a tinha arrastado para fora do carro debaixo dos narizes das Mesdames e a atirara novamente lá para dentro, depois de ter dito o que queria? Por que lhe demonstrara como era insignificante e mesquinha? Bem, ela vingara-se. Só que eu acho que ela teria feito o mesmo ainda que eu não tivesse explodido com ela. Mas eu vou apanhar a Patroa, ai vou, vou. A começar na próxima semana. Visto já terem decidido que não tenho as qualidades morais necessárias, que diferença fará um cavalheiro visitar o meu apartamento? Vou telefonar ao Duncan para casa a convidá-lo a passar a noite inteira comigo. Se quer fazer jogo sujo, Mrs. Forsythe, então vai descobrir quão sujo o jogo pode ser. Baratas.... Vou encher um pote enorme com baratas e vou despejá-las no seu lindo carrinho de bife emproada. Daquelas enormes que voam, ah-ah-ah. Vou pôr--me à porta da próxima reunião da Associação de Beneficência com um cartaz enorme que dirá: mrs. duncan forsythe não dá quecas COM O MARIDO E É POR ISSO QUE ELE ANDA COM UMA RAPARIGA SEM QUALIDADES MORAIS COM IDADE PARA SER SUA FILHA.

Ideias agradáveis. Fizeram-me chegar até Woolloomooloo, onde calcei os sapatos e parei de pensar no que podia fazer à Patroa, mas que sei que não farei, porque faria ricochete no Duncan. Contudo, as baratas são exequíveis. E o convite ao Duncan para que passe a noite nos meus braços está decidido. Melhor ainda, vou rogar-lhe uma praga para que fique com um odor corporal horrível e com halitose. Aftas incuráveis. Há-de ficar obesa por mais que passe fome. Com rugas. Os pés e os tornozelos incharão de tal forma que a carne sairá dos sapatos e balouçará. Conjuntivite. Caspa. Vermes que ponham os ovos no ânus dela e que a obriguem a coçar o rabo em público. Oh, sim! Adoeça lentamente, Mrs. Forsythe! Morra de vaidade frustrada! Que todos os espelhos se partam quando olhar para eles, que as suas roupas de alta-costura se transformem em sacas de batatas e botas da tropa.

Aquelas ideias acompanharam-me até às Escadas McElhone, onde, a meio dos degraus, parei e chorei. Fio, a minha Fio! O meu anjo! Como é que vou conseguir trazer-te para casa outra vez?

Ainda continuava a chorar quando abri a porta e, mesmo através do véu cinzento das lágrimas, vi como as garatujas estavam desvanecidas. Ela vai afastar-se de mim, terei de ficar nas margens da sua vida institucionalizada, com o coração despedaçado porque não poderei passar lá com ela todo o dia, os dias todos. Sou jovem, pobre e solteira. Tenho de trabalhar. Amanhã terei de ir ter com a Enfermeira Agatha e pedir-lhe desculpa. Que Deus te apodreça, Mrs. Duncan Forsythe, mais as tuas farpas malévolas. Estás a arranjar maneira de arruinar mais vidas que a do verme invertebrado do teu marido.

Atirei-me para cima da cama e chorei até adormecer; só acordei já estava escuro. As janelas do 17d brilhavam em tons cor de malva, com os habituais ecos de risos e conversas e uma briga cheia de gritos entre a Prudência e a Constância, que não conseguem dar-se bem. Boa sorte para vocês, minhas senhoras, pensei eu enquanto tratava da minha gata indignada. Há maneiras piores de ganhar a vida. Maneiras muito piores, Mrs. Duncan de Merda Parasita Forsythe.

Bem, terá de ser o rapto e a fuga para um local qualquer nos Territórios do Norte, onde os homens são homens e há poucas mulheres. Uma separação horrível. Não vou sequer poder contar os meus planos à mãe e ao pai nem os vou poder contactar depois de encontrar um local para viver. Eu e a Fio vamos ter de desaparecer do mapa. Se contarmos um segredo a uma pessoa, deixa logo de ser segredo. Vou ter de levantar o dinheiro todo da minha conta bancária e escondê-lo num saco por baixo do bibe da Fio. Roupas velhas. Temos de ter o ar de quem come na sopa dos pobres. As roupas da Fio são óptimas para isso, mas eu vou ter de procurar nas roupas em segunda mão do Exército de Salvação ou das Vicentinas... piada, ah, ah, ah. Sim, vou conseguir. Porquê? Porque sou suficientemente esperta para conseguir não perder o fio à meada de tanta mentira. O meu marido abandonou-me essa é uma boa história-padrão. A Austrália está a abarrotar de mulheres abandonadas. Tenho de comprar uma aliança de casamento. A minha pobre filhinha tem tantas saudades do pai que nem fala. Não, isso não soa bem... por que haveria ela de ter saudades de um filho-da-mãe que tratou a mãe tão mal? Ela não fala porque houve um pedacinho do seu cérebro que ficou afectado depois de o pai lhe ter batido numa fúria alcoólica. Sim, isso parece convincente. Marceline! O meu pobre velhote tinha-me confiado o seu anjo... como posso trair a sua confiança? Mas terá de ser... os gatos não viajam. Ou viajam? Se a Marceline tiver o seu saco de compras de lona, talvez possa viajar. Vou levá-la numa viagem experimental até às Montanhas Azuis. Se resultar, então levarei os meus dois anjinhos para o Mato.

... Isto está a ser escrito mais tarde, muito mais tarde. Devia ser quase meia-noite quando parei de andar de um lado para o outro, a congeminar e projectar, a planear a logística. Não tinha comido mas não sentia fome. Não me apetecia café nem chá nem me apetecia um copo de brandy. Na verdade, sentia-me como se tivesse sido vomitada pela Marceline. Ao menos não tenho de me preocupar mais com o Harold e os meus diários. Os mais antigos estão outra vez guardados no armário do queijo tilsiter.

Quando me dirigia à mesa, a Bola de Cristal chamou-me a atenção. .. Bem, é praticamente a única coisa digna de atenção em toda a sala. Estava no lugar do costume, emitindo um brilho rosado. Uma treta de coisa. A ressumar dramatismo. Estava a pensar se deveria tentar ver no Cristal antes de me deitar ou se deveria esperar que a velhota me acordasse com os seus galopes e risotas nocturnas. Talvez se o fizesse o Cristal funcionasse comigo? Que se lixe, não! Dei-xei-me cair numa cadeira e jurei nunca mais me rebaixar perante um pedaço de dióxido de silicone. Vulgar areia derretida.

E fiquei ali sentada, a pensar como toda a gente tinha sido horrível para mim naquele dia. E, o que era muito pior, tinham sido fatalmente horrendos para a Fio. E tinham sido horrivelmente agressivos e não simplesmente horríveis. E a agressividade horrível é insuportável quando não temos uma cabeça para dar uns murros ou uns tomates para dar uma joelhada. E não pensem que aquelas mulheres horríveis da Protecção de Menores não têm tomates. Têm, e são tão grandes como os de qualquer outra espécie de ratazanas.

Olhei para o Cristal e uma ideia esquisita surgiu-me na cabeça. Que se passa com a Mrs. Delvecchio Schwartz? Se é ela quem ouvimos lá em cima todas as noites, então continua a assombrar o plano terreno. E, assim sendo, por que razão está a deixar que matem o seu anjo? Por que razão deixou tudo numa confusão tão grande? Ela devia saber que estava a deixar tudo numa grande confusão! Portanto, também deve ter deixado uma solução. Ela era muito estúpida relativamente a algumas coisas, mas era também muito esperta. Só me deu duas pistas: que o destino da Casa está no Cristal; que depende do Cristal. Teria ela acreditado tão ardentemente em si própria e nos seus poderes que partira do princípio de que eu veria tudo revelado no Cristal? Ela pusera as minhas mãos sobre ele, como que abençoando--me. Mas eu não consigo ver nada no Cristal! Há um mês que ando a tentar e nada. Absolutamente nada.

Olhei para a coisa ferozmente, para o reflexo invertido e rosado da minha sala. O destino da Casa está no Cristal. Tudo depende do Cristal. Agarrei-o e fiz o indizível, libertei-o da sua base erguendo-o com ambas as mãos. Quando o pousei, começou a rolar. Parei-o. Não senti quaisquer vibrações nem estranhos choques eléctricos. É apenas uma bolha muito pesada de sílica liquefeita pela pressão. A mesa, era evidente, estava inclinada no sentido oposto a mim, por isso enfiei o pires da manteiga por baixo da minha cruz, para que se detivesse, e transferi o olhar para a base. O pequeno círculo almofadado


 


entre o cristal e a madeira preta não é de seda, é de veludo, o pêlo esmagado e brilhante do peso do Cristal.

Oh, Harriet Purcell, sua imbecil! Como podes ter sido tão estúpida? A resposta tem estado aqui há quatro meses!

Agarrei na base e comecei a levantar o tecido nos locais onde este estava colado à madeira, libertando um pedacinho de cada vez porque a cola era de muito boa qualidade. Mas a cola não se estendia por baixo da bola, limitava-se a prender as extremidades do tecido. E ali, por baixo do veludo, estava um pedaço de papel dobrado numa pequena cavidade que devia ter sido feita com uma goiva. Um formulário barato de testamento do tipo que se compra numa papelaria ou quiosque. Diabólico. O tempo que ela deve ter levado a inventar aquela última charada, dando uma última bicada no seu mundo, incluindo no seu anjinho. Nem sequer equilibrou as probabilidades. Apostou tudo no nariz. No meu nariz para mistérios, enigmas. Nem sequer foi justa com as duas pistas que me forneceu. O destino da Casa não estava no Cristal, estava debaixo do Cristal. Uma palavrinha pequena. Se ela tem usado a preposição correcta, eu teria encontrado o testamento num único dia, talvez menos. Mas não, ela não o faria. Isso seria demasiado simples, demasiado sen-saborão.

O testamento não era muito longo. Dizia apenas que todos os seus bens e propriedades eram deixados a Fio Schwartz, a sua única filha, e que, enquanto esta fosse menor, a sua administração deveria ser confiada à sua querida amiga Miss Harriet Purcell, residente no mesmo endereço, que seria livre de dispor dos rendimentos como achasse mais adequado. E que confiava a custódia de Fio Schwartz, sua única filha, aos cuidados da dita Miss Harriet Purcell, por ser da opinião que a dita Miss Harriet Purcell educaria a Fio como ela própria desejava. Estava assinado Harriet Purcell Delvecchio Schwartz e havia duas testemunhas. Um Otto Werner e um Fritz Werner que eu não conhecia de lado nenhum. Irmãos? Pai e filho?

Harriet Purcell! A Mrs. Delvecchio Schwartz nascera Harriet Purcell. A geração perdida. Mas, se era parente do pai, então ninguém lhe falara nela. O que é possível, se ela tivera um ar esquisito


desde o nascimento. Os pais do século xix eram muito estranhos no que respeitava aos descendentes que tinham um ar esquisito despachavam-nos para um lar e escondiam-nos, como a uma vergonha. É muito possível que ela fosse uma parente chegada... irmã do pai? Ele nasceu em 1882 e ela deve ter nascido à volta de 1905. E se ela tivesse nascido por volta de 1902, quando o pai estava na Africa do Sul a combater na Guerra dos Bóer? O pai tem irmãs gémeas nascidas depois dele, em 1900... algo de muito embaraçoso diz ele sempre, a rir. E se, após a tia Ida e a tia Joan, tivesse havido outra filha? Que tinha um ar esquisito e fora escondida? Este é um mistério que, estou disposta a apostar, nunca será resolvido, apesar de responder ao porquê de lhe terem dado o nome amaldiçoado da família. Uma cebola, a Mrs. Delvecchio Schwartz. Camada sobre camada e, no âmago, uma infância que ela nunca mencionara a qualquer um de nós na Casa, nem mesmo à Pappy.

Eu não saltei, gritei, guinchei ou uivei. Aconteceram demasiadas coisas para acreditar que isto seja verdade. Vou esperar até poder mostrar o testamento a Mr. Hush, amanhã de manhã.

 

Quarta-feira, 5 de Abril de 1961

Acordei às seis da manhã a sentir-me muito estranha. Se a causadora de toda a agonia acima descrita galopou e riu às três e dez desta madrugada, eu não a ouvi. A minha primeira tarefa era telefonar para o gabinete da Enfermeira Agatha a informá-la de que não iria trabalhar hoje. Não, não posso dizer-lhe a razão, Miss Barker, lamento. Assuntos pessoais. Depois andei de um lado para o outro num adormecimento maravilhoso, dei à Marceline uma dose extra de natas, bebi várias chávenas de café, comi ovos mexidos com torradas e vesti-me com um fato novo castanho-claro e cor-de-rosa de Outono, acabadinho de comprar. De vez em quando, desdobrava o testamento e confirmava que dizia realmente todas aquelas coisas maravilhosas. E diz. E diz, e diz!


Já estava ao pé da porta da firma Partington, Pilkington, Pur-blind & Hush antes de a Miss Hoojar ter chegado para abrir as instalações. Quando ela me disse desdenhosamente que o Mr. Hush estava demasiado ocupado para me poder receber naquele dia, respondi que, ainda assim, esperaria. Meio minuto, um quarto de minuto, não me importa, mas vou falar com ele! Disse eu. E sentei-me na recepção, a olhar de vez em quando para o testamento, depois cantarolei uma musiquinha, virei ruidosamente as páginas de revistas e fui de uma forma geral de tal modo incómoda, que quando Mr. Hush entrou pela porta às dez horas, a Miss Hoojar estava prestes a esganar-me.A Miss Purcell recusou-se a sair, Mr. Hush! baliu ela.Então o melhor será a Miss Purcell entrar disse ele com um suspiro, resignando-se a desmanchar uma peça do pescoço em vez de se dedicar ao lombo. Não posso dispensar-lhe muito tempo, vou passar o dia quase todo no tribunal.

Em resposta, estendi-lhe o testamento.Bem, um raio que me parta! disse ele depois de dar uma rápida vista de olhos. Onde é que foi que isto apareceu?Encontrei-o ontem à noite, senhor, escondido na base do bibelô preferido da Mrs. Delvecchio Schwartz.Harriet Purcell é mesmo o nome dela? perguntou ele olhando para mim como se suspeitasse de falsificação. Depois examinou cuidadosamente o testamento. Parece genuíno... E a mesma caligrafia das cadernetas bancárias e está datado de há um ano atrás. Conhece as testemunhas?

Tive de admitir que não, não conhecia, mas que iria fazer perguntas por aí. Isso é importante? perguntei eu muito tensa. Alguém vai criar problemas? Contestar o testamento?Minha cara Harriet, creio bem que toda a gente irá saudar a misteriosa aparição deste documento com um suspiro de alívio. É o único testamento existente da senhora e nele ela reconhece a Fio como sua filha e entrega-lhe a si, inequivocamente, a sua custódia. De acordo com a lei, as suas ordens são as nossas ordens.Mas a Protecção de Menores não vai mudar de opinião sobre mim, pois não, Mr. Hush?


            Provavelmente, não disse ele placidamente. Contudo, o testamento tira dos seus ombros o fardo da responsabilidade pela Fio. Deixam de ser os árbitros do destino da Fio... e por isso sentir- -se-ão muito, muito satisfeitos. Devo acrescentar também que o testamento lhe confere independência financeira. Poderá viver muito confortavelmente com os rendimentos da propriedade, portanto não terá de trabalhar. Está instalada.

Depois pigarreou de forma suspeita. Dei-lhe toda a minha atenção. Como não é nomeado um executor testamentário, terá de decidir quem tratará do assunto. Poderá recorrer ao Administrador Oficioso ou, caso prefira, eu poderei tratar da aprovação do documento. Devo avisá-la de que o Administrador Oficioso anda a passo de tartaruga e que os seus honorários são tão elevados como os cobrados pelas firmas privadas.

Era a minha deixa! Gostaria que o senhor tratasse de tudo, Mr. Hush.

            Óptimo, óptimo! Era óbvio que a peça do pescoço se tinha transformado, afinal de contas, em bife do lombo. Compreenderá que já tive ocasião de discutir a herança com o Administrador Oficioso. A Mrs. Delvecchio Schwartz tinha mais de cento e dez mil libras depositadas em contas de poupança por toda a Sydney. A origem desse dinheiro confundiu os peritos, que não conseguem provar serem rendimentos do trabalho. Naturalmente que toda a gente tem consciência do que se passa no 17b e no 17d, mas ambos os estabelecimentos gozam de praticamente total imunidade relativamente às, hum, atenções oficiais, e os peritos tiveram de aceitar o depoimento das proprietárias em como pagam cento e vinte libras de renda semanal. Um bom advogado poderá argumentar que essa quantia é toda ela gasta em manutenção, gás, água e electricidade e no imposto predial, pois ambos os edifícios estão em excelentes condições... coisa que não acontece com a casa da Mrs. Delvecchio Schwartz, segundo sei. Os tipos dos impostos estão num alvoroço mas, a não ser que apareçam provas concretas, só poderão taxar os juros e as rendas. Se os Impostos decidirem contestar, uma boa equipa de advogados poderá arrastar o caso pelos tribunais durante décadas.


Pô-la-ei, como é evidente, em contacto com uma firma de contabilistas e gestores financeiros que a poderão aconselhar quanto à melhor forma de aplicar o capital da Fio... nas contas de poupa/iça só rende tostões, brrrr! Birdwhistle, Entwhistle, 0'Halloran & Gold-berg são os melhores.

Era então disto que andava à procura, Madame Fuga! Queria saber o que é que eu sabia. Mas não se rale, comigo estará perfeitamente segura. Não podemos fazer com que todos aqueles industriais, políticos, banqueiros e juízes se vejam privados da oportunidade de aliviarem os tomates em instalações impecáveis, pois não? Hum, trinta libras por semana? Uma ova! Trezentas, mais provavelmente. Mas ficam desde já avisadas! Vou regatear duramente em nome da Fio, caras Mesdames. Não me chamo Harriet Purcell por acaso.

Esta perspectiva entusiasmava-me tanto que me debrucei sobre a secretária e dei um beijo nos lábios do Mr. Hush, gesto que ele retribuiu com um entusiasmo interessante. O senhor é um querido!

Ele deu uma risadinha. Devo confessar que sempre achei isso mesmo, mas é simpático ter a confirmação. Seria melhor que me deixasse tratar da libertação da Fio. Entretanto, certificar-me-ei de que terão dinheiro suficiente para viver até o testamento ser aprovado. Vai ter a Fio consigo muito antes disso.

Apanhei um táxi para o Queens, apesar de não ter ido direita ao gabinete da Enfermeira Agatha. Fui ao Pavilhão de Psiquiatria e apanhei o Dr. John Prendergast a caminho de uma conferência.

John, John! A Mrs. Delvecchio Schwartz deixou um testamento em que me dá a custódia da Fio! gritei. A Protecção de Menores entregar-me-á em breve... Iupi!

Ficou com uma expressão muito parecida com a de um ursinho de peluche. Então vamos ficar aqui com ela até isso acontecer. Levantou-me como se eu fosse uma pena e fez-me girar no ar. Como não sou muito dado a enfermeiras disse ele conduzindo-me ao quarto da Fio , a história da minha vida resume-se ao facto de cada mulher que eu acho atraente pertencer a um paciente e ser-me, portanto, interdita. Você está prestes a deixar de pertencer a essa categoria, pelo que me interrogo se não terá algum tempo livre para jantar com um psiquiatra menos doido do que o habitual?

            Tem o meu número de telefone disse eu, olhando-o com outros olhos. Humm. Os meus horizontes estão a expandir-se. Um tipo do género defesa de râguebi. Variedade, dissera ela. Devem ser todos diferentes, princesa, e tens de ter um virgem antes de morreres. Apesar de eu duvidar muito que o John Prendergast seja virgem.

A Fio recebeu-me de braços abertos como de costume, mas eu saudei-a com abraços e dúzias de beijos. E umas quantas lágrimas. Minha querida Fio, virás comigo para casa muito em breve murmurei eu para a orelha que estava mais perto da minha boca.

O maior sorriso do mundo iluminou o seu pequeno rosto, atirou os braços ao meu pescoço e apertou-me fervorosamente.Não é nenhuma tola, a nossa Fio disse o John Prendergast sem surpresa.

Autista uma ova rosnei eu. A Fio é única. Acho que Deus está muito farto das confusões que nós arranjámos e está a inventar um novo modelo. São as palavras que nos metem em tantas alhadas. Mas se conseguirmos ler os pensamentos uns dos outros, as mentiras e a duplicidade serão lançadas pela janela. Teremos de ser o que realmente somos.

A Enfermeira Agatha estava a seguir na minha lista e ela preparara-se indubitavelmente para a batalha, a julgar pela expressão estampada no seu rosto quando entrei no gabinete. Mas não lhe dei oportunidade de abrir a boca, à velha amarga.

            Enfermeira Toppingham, despeço-me! declarei. Hoje é quarta-feira e não estou ao serviço. Trabalharei amanhã e sexta-feira e depois vou-me embora!

Engole em seco, engole em seco, engole em seco. Exijo-lhe duas semanas de aviso, Miss Purcell.

            É uma gaita, campeã, porque não as vai ter. Na sexta-feira à tarde, piro-me daqui.

Engole em seco, engole em seco, engole em seco. É uma impertinente!

—        A impertinência disse eu aumenta tanto directa como exponencialmente na razão da nossa independência financeira.


Atirei-lhe um beijo e pirei-me dali para fora. Adeus, Enfermeira Agatha!

Depois fui para Bronte noutro táxi, para dar a notícia à.minha muito ralada família.

Escolhi deliberadamente aquela hora. O pai e os manos estavam na loja, só a mãe e a avó é que estariam em casa. É uma pena a avó não ser mãe do pai. Então saberíamos a verdade. Mas o passamento dos pais do pai estou a apanhar a mania de falar assim foi antes de eu ter nascido. O pedaço de relva onde a avó costumava despejar o Penico estava venenosamente verdejante e luxuriante. O Willie estava a tomar banhos de sol.

            Ta taaa! Estão a olhar para alguém de tal forma rico, que não precisa de trabalhar! anunciei quando entrei em casa.

A mãe e a avó estavam sentadas a almoçar. Pão, manteiga, uma espessa compota de ameixa e um bule de chá. Ambas estavam com um aspecto tão, oh, sombrio... a discutir os acontecimentos do 17c da Victoria Street pela enésima vez, supus. Casos amorosos com cirurgiões ortopédicos casados, assassínio e suicídio, crianças desaparecidas, uma filha que ficara xexé... não eram a ideia que nenhum pai ou avô fazia do paraíso.

Quando fiz o meu anúncio, elas levantaram-se de repente.Queres um chá, minha querida? perguntou a mãe.Não, obrigada disse eu, e fui ao armário e tirei a garrafa de brandy do Willie que estava guardada por trás das garrafas de molho de tomate, molho de chicória e café e molho picante. Vou tomar um golo disto. De brandy disse eu enquanto vertia uma porção para um copo de cristal Stuart. Faz bem à alma. Perguntem ao Willie. Sabes, mãe, devias poupar os velhos copos de vidro grosso, são indestrutíveis e não ficam com muito mau aspecto quando lhes pintam umas tulipas. Sentei-me e ergui-lhe o copo fino. E rabos ao ar, como disse o bispo aos meninos do coro.Harriet! guinchou a avó.

A mãe é esperta. Relaxou. Está tudo resolvido disse ela.Isso mesmo respondi, e contei-lhes a história toda.Harriet Purcell! ofegou a mãe no fim. Será que ela era irmã do Roger? Isso explicaria muita coisa.


Se era, então nem o pai nem a tia Joan nem a tia Ida sabem disse eu , mas estás à vontade para especular. Talvez um deles se recorde de um comentário incompreensível feito por um dos pais, há anos. Ou ausências misteriosas do rebanho familiar para visitar ocasionalmente um qualquer sítio só referido em murmúrios. Perguntem à tia Ida... ela tem uma memória de elefante e adora bisbilhotices.. . uma solteirona típica.Não vais ter pena de desistir da radiologia? perguntou a mãe.

Pobre mãe, ela teria adorado ter tido um emprego para além do trabalho doméstico, mas naqueles tempos as coisas não funcionavam assim. Creio que ela se candidatou à formação de enfermagem no Royal Prince Albert, em 1920, mas a avó cortara-lhe as aazas dessa iniciativa. A mãe é muito mais nova do que o pai. Talvez seja por isso que eu gosto de homens mais velhos? É certamente o que a Pappy diria, mas a verdade é que a Pappy consegue sempre descobrir qualquer coisa freudiana nem que seja num buraco cheio de creme em cima de um bolo com doce.Mãe, fiquei farta, pelos cabelos, de empregos remunerados disse eu. O trabalho em si é excelente, mas as pessoas responsáveis saíram directamente da Arca de Noé. Acredite que não tenciono ficar sem fazer nada. Vou ter muito que fazer, entre supervisionar inquilinos mal comportados, tentar arranjar uma forma de comunicar com a Fio e conseguir os melhores rendimentos do capital dela.Bem suspirou a mãe , não é difícil ver que estás felicíssima, querida, e eu também estou por ti. Tossiu delicadamente e ficou ligeiramente rosada. Hum e então o Dr. Forsythe?

            E então o quê? perguntei eu, fazendo-me desentendida. Faltou-lhe a coragem. Hum, nada, acho eu.

Quando ia a sair, fui até ao sítio onde estava a gaiola do Willie, num canto ensolarado. Pelo que vi das penas do peito todas sujas, continuava com a mesma dieta de papas de aveia e brandy. Pássaro esquisito.

            Olá, meu lindo entoei.

Ele abriu um olho e mirou-me. Vai-te lixar disse.

            Cuidado com a língua, campeão respondi.


Já ia a três passos de distância quando ele replicou. Toma cuidado contigo, princesa!

Quando girei sobre mim própria, espantada, ele estava a dormitar.

Preparei um banquete na minha sala: enguia fumada, salada de batata, couve roxa, fiambre fatiado fino, baguetes francesas estaladiças, manteiga nem muito dura nem muito mole, cerca de uma tonelada de pudim grego, todo o brandy que conseguiríamos beber, já que todos tínhamos de ir trabalhar amanhã. O Lerner Chusovich estava de visita ao Klaus e veio também, telefonei ao Martin para trazer Lady Richard, que chegou envolta num lilás suave temperado por uma peruca vermelha, e o Martin que, para nosso alívio, se rendera finalmente e fora tirar as medidas para uma placa dentária no Hospital Dentário de Sydney, onde é tudo de borla porque os doentes servem para os estudantes treinarem. A boca repleta de dentes provocou uma grande alteração na sua carreira, pois ele é colossalmente bem--parecido, elegante como um salgueiro e tão encantador como o George Sanders quando lida com as senhoras que agora fazem bicha para lhes tirar o retrato. Chega-te para lá, Annigoni! Também convidei Joe, a advogada, e a sua amiga Bert e, mais tarde, o Joe Dwyer chegou de Piccadilly com duas garrafas de Don Perignon. Tinha pensado se devia convidar as Mesdames, mas decidi que as podia deixar em lume brando durante mais alguns dias. A Castidade Wiggins con-vidou-se a si própria depois de ter ouvido os gritos de alegria da sua janela e fi-la prometer que guardaria as novidades para si própria.

A primeira coisa que irei fazer anunciei ao grupo ali reunido é proceder a algumas alterações na Casa. Instalarei uma casa de banho e uma retrete em cada andar, pintarei tudo de novo, porei uma iluminação decente, linóleo novo e carpetes, vou comprar frigoríficos e fogões novos, um par de máquinas de lavar para a lavandaria, uma boa corda da roupa e nada de contadores de gás! Vou arranjar um tipo de decoração que faça com que os rabiscos da Fio pareçam deliberados... avant garde ultramoderno. Posso estar in loco parentis da Mrs. Delvecchio Schwartz, mas funcionamos de forma diferente. O meu género é conforto, modernidade e uma decoração bonita.


Vai ser difícil disse a Jim de cenho franzido. A Câmara não está muito cooperante, no que toca a recuperações de casas.Como não tenciono informar a Câmara, Jim, é irrelevante o que esta pensa. Vou fazer tudo clandestinamente.Os irmãos Werner! — disseram o Klaus e a Pappy em simultâneo.Eles podem fazer tudo o que tu quiseres, Harriet explicou o Klaus. Entram com os materiais e as ferramentas depois do escurecer.

Aí têm, portanto. Fritz e Otto Werner apareceram. Mr. Hush vai ficar satisfeito!E então os apartamentos vazios? perguntou a Bob.Vamos esperar até estarem arranjados e depois escolherei criteriosamente os novos inquilinos disse eu, e ergui o copo de espumante. À Fio, à Mrs. Delvecchio Schwartz e à Casa.

Quando o barulho acalmou e as pessoas começaram a fazer grupinhos, o Toby sentou-se no chão, a um canto, ao pé de mim.

            Surpreende-me que não tenhas convidado o Norm e o Merv disse.

            O Norm e o Merv pertencem à mesma categoria da Fuga e Toccata, Toby. Dir-lhes-ei quando considerar que chegou a altura.

            Esvaziei o copo, espumante não é mesmo concorrência para o brandy e pousei-o. Vais perdoar-me por ficar com a Fio? perguntei.

Avermelhados de amor, os seus olhos acariciaram-me. Como poderia deixar de fazê-lo? Ela é, ao que parece, do teu próprio sangue, e isso eu compreendo. Além disso, não vais sofrer por causa dela. A velhota no fim acabou por tratar de tudo. Mas que sítio para esconder um testamento!

Aninhei-me nele, a minha mão no seu braço apercebendo-se de uns músculos salientes e muito agradáveis. Havias de ter gostado de me ouvir dizer ao Mr. Hush que o encontrara no seu bibelô preferido.

            Uma coisa tenho de admitir, Harriet: para uma mulher tão turbulenta e barulhenta como tu, consegues ser muito dissimulada quando queres.


O que a Mrs. Delvecchio Schwartz fazia para ganhar a vida não é da conta de ninguém fora da Casa.Já instalei a fossa disse ele, afastando cabelo da minha testa. Queres vir este fim-de-semana a Wentworth Falis dar uma vista de olhos?Claro que quero, campeão, claro que quero. Ah! Ah! Ah.

A Pappy ajudou-me a arrumar tudo, quando lhe pedi, e empurrou o Toby porta fora, apesar dos seus protestos.

            Disto tudo, o que é que tu já sabias? perguntei-lhe.

Os olhos amendoados alongaram-se e a boca em botão de rosa abriu-se num sorriso. Uma parte, talvez, mas não tudo, nem pensar. Tive sempre de fazer deduções e, com frequência, mais a partir daquilo que ela não dizia do que daquilo que ela dizia. O que eu sabia era que, assim que lhe disse que tinha conhecido uma tal Harriet Purcell no Queens, ela nunca mais me largou até eu te trazer cá a casa. Percebi, portanto, que o teu nome tinha um qualquer significado para ela, mas qual não fazia ideia. Se alguém percebeu a mensagem, esse alguém foi o Harold. Ele sabia que ela nutria por ti um afecto maior do que pelos restantes habitantes da Casa juntos, embora eu não acredite nem por um momento que ela lhe tenha dito alguma coisa. Mas ele amava-a, pobre homenzinho, e depois de quase quarenta anos a ter a mãe só para ele, não conseguia aceitar ter de partilhar a mulher que a substituíra. Ele sabia que ela te amava mesmo antes de aqui teres aparecido em carne e osso e aquilo foi roen-do-o cada vez mais, à medida que vos foi vendo juntas. Creio que tinhas razão em ter medo dele. Penso que durante muito tempo foi a ti que ele planeou assassinar, não a ela. Apesar de eu ter a certeza de que ele não planeou aquilo que aconteceu. Nunca saberemos o que aconteceu entre eles naquela noite, a única coisa de que tenho a certeza é que ela lhe disse o maior dos insultos. A faca estava ali, ele agarrou-a e usou-a. Mas não, não creio que tenha sido planeado.Será que ela viu nas cartas ou no Cristal, Pappy?Estás em melhor posição para o saber do que eu, Harriet. Eu só sei que ela não era uma charlatã, apesar de poder ter começado como tal. Ela conseguia ver coisas, especialmente nas cartas, quando eram coisas que tinham a ver com a Casa, e com a Fio quando dizia respeito às suas clientes. Aquelas mulheres confiavam totalmente nela e não a consultavam sobre questões pessoais. Consul-tavam-na para informarem os maridos do que iria acontecer no mercado das acções, com o dinheiro, como as acções do Governo poderiam afectar o comércio. Pagavam-lhe fortunas, o que significa que aquilo que ela lhes dizia batia completamente certo. E, apesar de termos encontrado álbuns com montes de recortes sobre esses homens, não encontrámos nenhuns manuais de economia nem de tendências comerciais.É o facto de ela se ter submetido sem luta que dá cabo de mim disse eu.Ela acreditava implicitamente no destino, Harriet. Se a hora do seu passamento tinha chegado, teria de a aceitar simples e naturalmente. E mais, tudo começou antes do Ano Novo de 1960... foi aí a primeira aparição de Harold e do Dez de Espadas. Nessa altura, ela ainda não ouvira sequer falar no teu nome, apesar de tu teres aparecido nas cartas ao mesmo tempo do Harold e do Dez de Espadas. Eras a salvação dela, a Rainha de Espadas de Escorpião, com o Marte poderosíssimo. A única coisa que ela me disse foi que tu preservarias a Casa.

Esta é portanto a Teoria de Papeie Sutama. Agrada-me bastante.

 

Segunda-feira, 10 de Abril de 1961

Regressei hoje de comboio de Wentworth Falis, deixando o Toby entregue à sua construção. Tal como para mim, hoje é o seu primeiro dia de independência; ambos nos despedimos dos nossos locais de trabalho na última sexta-feira, sem confusões nem alaridos.

Quando pus os olhos no refúgio do Toby, fiquei espantada. Tinha estado à espera de encontrar aquilo a que ele sempre se referira, uma cabana, mas, em vez disso, deparei-me com uma casa pequena, mas muito moderna, quase terminada. Tinha havido ali uma casa velha abandonada, explicou-me ele, que rendera uma quantidade suficiente de belas pedras de arenito para as fundações, pilares, pavimentos e pilastras entre as janelas, bem como para algumas das paredes interiores. Tinha gasto o dinheiro sobretudo em vidro, um telhado de chapa ondulada e acabamentos.Copiei-a de uma Casa Walter Burley Griffin, no cimo de uma elevação, em Avalon disse ele —, que pertence a Sali Her-man. Não tenho a paisagem marítima que ele tem, mas vejo montanhas e florestas até ao infinito. É óptimo pensar que esta parte do país é tão inacessível que, no passado, ninguém a arroteou e agora também não o podem fazer devido às proibições do Governo.Apanhas o sol da tarde disse eu de cenho franzido. Com este vidro todo, vais assar dentro de casa.Vou fazer um alpendre muito profundo do lado poente explicou ele. Ao fim da tarde, vou sentar-me nele a ver o Sol pôr-se em Grose Valley.

Fora ele quem fizera todo o trabalho de construção com uma pequena ajuda do Merv e do resto dos homossexuais de Cross.

            Eu sou do Mato explicou ele. Na minha terra não se pode contratar um canalizador, nem um carpinteiro nem um pedrei ro. Aprendemos a fazer tudo com as nossas próprias mãos.

A propriedade estava num estado lastimável, mas viam-se os restos de um pomar de macieiras que, naquele preciso momento, estavam carregadinhas de fruta. Comi tão alarvemente que fiquei muitíssimo satisfeita por haver uma retrete com autoclismo, ligada a uma fossa séptica, que ele me informou ter posto a funcionar enfiando lá dentro um coelho morto. As coisas que uma pessoa aprende!

Fomos para a cama logo a seguir a comer e a ele lavar os pratos há coisas que nunca mudam, ele continua a ser o homem mais obsessivo que eu conheço. Um maná dos céus, no que me diz respeito! Nunca vou ter de fazer trabalhos domésticos. Só uns cozinhados.

Tinha-me perguntado que tipo de amante ele seria, sendo tão obsessivo, mas não precisava de me ter preocupado. Sendo um artista, aprecia a beleza e, por uma qualquer razão, acha que eu sou bonita. E eu não o sou, mas a beleza está nos olhos de quem vê, como se costuma dizer. Que irão dizer a mãe e o pai quando aparecerem nas galerias nus da Harriet Purcell? O sexo foi delicioso, mas acho que ele está mais interessado em pintar-me. É claro que, à medida que for ficando mais famoso, irá perder o seu olho clínico e irá derivar para o tipo de coisa que só os grandes especialistas de arte apreciam, suspeito, mas também são esses quem paga mais dinheiro pelos quadros. Continuo a gostar do monte de escombros fumegantes no meio da tempestade. E do retrato que ele pintou da Fio e que me ofereceu. Ele nunca chegou a pintar a Mrs. Delvecchio Schwartz, embora não o pareça lamentar.

É um homem adoravelmente peludo, o que agradaria à velhota. Não tem pêlos pretos como Mr. Delvecchio, mas sim vermelho-escuros. Tal como eu suspeitava, é musculado e forte e o facto de ser baixo em nada o prejudica. Ele diz que isso torna os meus seios mais acessíveis. Explorei os remoinhos e caracóis e penteei aquilo-que--vocês-sabem com a minha língua, ah, ah, ah.

Mas não deves pensar disse-lhe enquanto metia as coisas na mala pequena de fim-de-semana e me preparava para a caminhada de seis quilómetros e meio até à estação de caminho-de-ferro que eu sou tua, Toby.

Os olhos dele estavam escuros, provavelmente porque a aurora ainda mal rompera. Não precisas de mo dizer, Harriet — respondeu. Já to disse antes e vou dizer-to novamente. Em alguns aspectos, és muito parecida com a Mrs. Delvecchio Schwartz. Nenhum homem pode possuir uma força da Natureza.

É um bom tipo!

A grande locomotiva a vapor C-38 estava mesmo a chegar à estação quando passei a ponte que atravessa a linha e parei para me debruçar do parapeito apanhando com as enormes nuvens de carvão preto e de fuligem no rosto. O comboio vinha de Mount Victoria e era um belo animal. Adoro os comboios a vapor e passei toda a viagem de regresso a casa debruçada da janela para ouvir o som e sentir o cheiro das bielas a funcionar, para cima e para baixo, para cima e para baixo, para cima e para baixo. O Governo está a substituir as locomotivas a carvão por máquinas a diesel que são deprimentes. Nunca nos apercebemos da sua potência. Eu adoro exibições de potência, inclusive em homens musculados.


 

Sexta-feira, 21 de Abril de 1961

A Fio chegou hoje, encavalitada na minha anca e agarrando-se a mim como um macaquinho, toda ela sorrisos. Quando viu a gorda Marceline, saltou para o chão e foi brincar, como se aqueles meses no abrigo para crianças e na Psiquiatria do Queens nunca tivessem existido. Como se nunca tivesse pintado com sangue nem atravessado uma vidraça, nem levado pessoas genuinamente bondosas a atá-la.

Continuo confundida. Será que ela fala? Percebe todas as palavras que lhe digo, mas não recebi uma única vibração ou vestígio de comunicação telepática. Eu esperara, contra toda a lógica, que isso acontecesse quando ela regressasse a casa e aceitasse que a mãe já não fazia parte da sua vida. Disparate! Ela aceitara-o na noite em que a mãe morrera.

Os Werner revelaram-se valiosíssimos. Ganham a vida a fazer biscates sem declarar nada e recebendo os pagamentos em dinheiro. A experiência demonstrou que eles são homens dos sete ofícios tão competentes como o Toby e chegámos a um acordo. Foram viver para o apartamento térreo da frente e eu não lhes cobro renda e pago-lhes bem o trabalho que fazem e que continuarão a fazer eternamente. As cinco casas do número 17 da Victoria Street têm agora um par de biscateiros residentes para as manter em excelentes condições. O Lerner Chusovich ficou com o meu antigo apartamento pela mesma renda que eu pagava e pode fumar as enguias no quintal das traseiras sem que os vizinhos reclamem. O apartamento já não é cor-de-rosa. O Lerner prefere o amarelo da enguia fumada e as madeiras pintadas de preto.

Eu e o Toby descobrimos uma forma de pôr instalações sanitárias no piso que a Jim e a Bob partilham com o Klaus. Vamos mandar os Werner tirarem um bocadinho de espaço ao Klaus e um bocadinho de espaço à Jim e à Bob. Vão abrir as paredes para o átrio onde o Otto arranjou maneira de instalar duas retretes ainda que apenas uma casa de banho. Água quente em abundância fornecida por uma grande caldeira, um chuveiro e uma banheira. Encontrei azulejos com motivos de periquitos... o Klaus está maravilhado. O quarto do Toby é tão grande que os Werner limitaram-se a ampliar a zona da cozinha e a acrescentar mais um biombo para esconder a casa de banho, mas os ocupantes do andar térreo continuam a ter de correr para a lavandaria. O Fritz e o Otto costumam fazer chichi no chão em volta do arbusto horroroso do nosso jardim minúsculo quando estão aflitos, mas a árvore cresceu incrivelmente com a dieta rica em ureia, pelo que decidi não dizer nada. Agora temos tigelas com água perfumada com as flores aromáticas do arbusto em cima das nossas mesas.

Apesar de inicialmente a ideia não me agradar, acabei por me encher de coragem e ficar com todo o piso da Mrs. Delvecchio Schwartz para minha própria residência. Todavia, depois de pintar tudo de novo (sobretudo de cor-de-rosa), de ter posto carpetes na sala e nos quartos e de ter comprado móveis decentes, perdi o medo. Com certeza que acontecem coisas horríveis em todas as casas de tempos a tempos e sinto um estranho conforto por estar onde ela estava. Estava. O pretérito de que não nos livramos.

Até parece que o trabalho está terminado, mas não está. Levará muitos mais meses e há imenso pó de estuque por toda a parte, os átrios estão atravancados de sanitas e banheiras e lava-loiças e fogões e chuveiros e caldeiras e o quintal está atulhado de azulejos e mosaicos. Os Werner fazem entrar tudo pelas portas envidraçadas que dão para o alpendre.

Estou tão feliz, agora que o meu anjinho está em casa.

Devo também mencionar que a minha vida amorosa acabou por se resolver lindamente, pelo menos na minha opinião. Os fins-de-se-mana são do Toby. Vamos os dois para Wentworth Falis. No futuro, a Fio virá connosco. O Toby não ficou muito entusiasmado com a ideia, mas eu disse-lhe que ou íamos as duas ou não ia nenhuma. Ele fez uma careta e disse que escolhia as duas. Relativamente ao Duncan, não está, hum, satisfeito.

O Duncan passa as noites de terça e quinta-feira comigo. Chegou a um acordo com a Patroa, que está a sofrer horrivelmente com a Praga da Harriet Purcell. Não tem no entanto caspa nem um odor corporal insuportável. Contraiu uma neuropatia nas pernas... nada de fatal, faz-lhe apenas a vida num inferno. Penso que o Duncan ficou um tanto horrorizado pela minha total falta de piedade por ela, mas suponho que terei que fazer concessões ao facto de eles viverem juntos há quinze anos. Disse-lhe para lhe entregar uma mensagem minha: se ela for decente e compreensiva e não encher os filhos de veneno em relação ao pai, eu retirarei a praga. Ela não pode jogar ténis, para caminhar tem de usar uma bengala e, com as drogas que lhe deram e a falta de exercício, o seu peso disparou descontroladamente. Muito em breve vestirá o XL e terá de calçar sapatos rasos atacados, com meias de descanso opacas. Ah, ah, ah.

Ainda não tenho a certeza relativamente ao John Prendergast, portanto o forte não caiu. Por mais que ele o negue, suspeito fortemente de que me vê um bocado como a uma doente com um tipo raro de psicopatia. E esse o problema dos psiquiatras: nunca estão completamente de folga. Ele provavelmente também analisa o seu desempenho na cama. Por isso deixo que ele me ofereça uma refeição de vez em quando e vou-lhe dando a volta.

 

Quarta-feira, 17 de Maio de 1961

Estamos espantados, siderados e baralhados de todo. A Fio já está em casa há um mês e ainda não fez garatujas. Há paredes pintadas de fresco até meio por todo o lado nos meus aposentos, nos corredores e nos patamares, eu comprei mais lápis de cor para a sua colecção e digo-lhe cem vezes por dia que pode garatujar à vontade. Ela limita-se a acenar e a sorrir, a passar por cima dos lápis de cor e a ir observar o Fritz e o Otto a trabalhar e passa-lhes anilhas, pregos, parafusos, cavilhas, colheres de pedreiro. Sempre aquilo de que eles estão a precisar para o trabalho naquele momento. Eles estão fascinados por ela.

Oh, continua a agarrar-se às minhas pernas, senta-se no meu colo, e cantarola a sua musiquinha. Os bibes castanhos desbotados pertencem ao passado, mas não a obrigo a usar sapatos e os vestidos que lhe comprei são muito simples. Para a Fio, a cor pertence aos lápis de cor, se bem que agora já não. Actualmente acompanha-me às lojas, algo que nunca fazia com a mãe; por isso, às vezes penso se, por pura ignorância, terei prejudicado a forma como a Fio e a Casa funcionam. O meu único barómetro é a própria Fio. Se ela parece estar a gostar ou a divertir-se com determinada coisa, fazemo-la. Sem dúvida que adora os fins-de-semana em Wentworth Falis, faz a sua malinha na sexta-feira à noite e certifica-se de que o saco de lona foi arejado para a Marceline. Pobre Toby! Não apenas uma, mas três mulheres!

Apesar de a ideia não me agradar nada, fiz do quarto do Harold o meu quarto e pus a Fio no antigo quarto da mãe. A alcova onde a Fio costumava dormir é agora o roupeiro das roupas de casa e a biblioteca de consulta Delvecchio Schwartz. Pensei se estaria a insta-lar-me demasiado longe da Fio, mas felizmente a Marceline resolveu essa questão transferindo-se para a cama da Fio. O meu anjo dorme doce e profundamente, nunca se mexe nem parece ter pesadelos.

Os galopes e risadas nocturnas terminaram assim que encontrei o testamento, mas continuo a não ter a certeza absoluta de a Mrs. Delvecchio Schwartz ter partido completamente. Quando entrei no quarto do Harold na primeira noite, com os cabelos em pé e cheia de pele de galinha, ouvi um suspiro suave quando fechei a porta. Não um suspiro dela. Um suspiro do Harold. Como um adeus para sempre.

Depois a voz dela disse: Portaste-te bem, princesa. És a maior!»

Qualquer coisa estremeceu e adejou. Um dos periquitos do Klaus. E eu olhei para ele e ele olhou para mim, depois estendi a mão e ele saltou para o meu dedo e balouçou-se para a frente a para trás, todo divertido.Oh, graças a Deus! exclamou o Klaus quando lhe entreguei o pássaro. O meu pequeno Mausie voou pela janela assim que a abri. Pensei que o tinha perdido para sempre.Não se rale, campeão disse eu. Não se vai ver livre do pequeno Mausie com essa facilidade toda. Pois não? Hem, Mausie?


Mas, e apesar de tudo isto, a Fio não garatuja e está a confundir--nos a todos. A Jim e a Bob, o Klaus e a Pappy passam todos horas com ela e com os lápis de cor, tentando convencê-la e persuadindo--a. Até mesmo o Toby sucumbiu à Mania das Garatujas. Saiu e comprou vários blocos de papel branco e mostrou-lhe como poderia rabiscar no papel, mas ela limitou-se a olhar para mim com tristeza e a deixar cair o lápis de cor que ele lhe oferecera.

 

Quinta-feira, 25 de Maio de 1961

Levou imenso tempo, mas o problema das Mesdames Fuga e Toccata foi finalmente resolvido a contento de todos. Estas mantiveram--se firmes na sua versão de que só pagavam trinta libras de renda por semana e eu soltei vários grunhidos e a discussão manteve-se nesse pé durante imenso tempo. Mas hoje concordámos em quatrocentas libras por semana de cada uma das senhoras, registando apenas trinta libras na contabilidade. Apesar de eu gostar das Mesdames, sei que estas não poderiam dirigir bordéis de altíssima qualidade, satisfazendo todos os gostos muito para além do que é normal e habitual, se não fossem ossos muitíssimo duros de roer. Elas são duras. E houve um breve período em que tentaram mexer os cordelinhos na Câmara para me meter em trabalhos, mas eu limitei-me a man-dar-lhes umas bonequinhas infantis com alfinetes de cabeça de porcelana enfiados nos orifícios fundamentais, traseiros e dianteiros e um terceiro na boca como garantia. Uaau! A mensagem foi correctamente interpretada e as Mesdames cederam.

Parece ter sido o momento decisivo. Hoje lancei as cartas pela primeira vez depois de a Fio se ter ido deitar e a Casa estar mergulhada em silêncio, com excepção do violino do Klaus.

A Casa está feliz. As Rainhas de Espadas estão muito bem colocadas, assim como o Rei de Ouros e o Rei de Espadas. Só o Valete de Espadas a Fio não está completamente em paz. São as garatujas, só podem ser as garatujas. Não existe nenhuma carta com um significado que eu consiga relacionar com as garatujas, mas começou tudo a encaixar-se nos seus lugares quando tirei um Seis de Copas invertido. Algo vai acontecer em breve. Especialmente porque a carta seguinte foi o jóquer: um aparecimento inesperado? Depois três Noves e quatro Dois: conversa, correspondência, mensagens. Oh, espero bem que tudo isto queira dizer que a comunicação está prestes a estabelecer-se!

 

Sábado, 3 de Junho de 1961

Estamos no início do Inverno e está a chover tanto que eu e o Toby tivemos de desistir do nosso fim-de-semana em Wentworth Falis. A Fio e a Marceline têm andado de um lado para o outro toda a manhã com um ar frustrado. Apesar de a porta da frente ter passado a estar novamente aberta, dei-lhes ordens rigorosas para que não a abrissem nem fossem para o alpendre.

Estávamos todos juntos na sala, a beber café e a planear o que iríamos comer ao almoço. Como isto é bom, pensei, sentindo uma onda de bem-estar tomar conta de mim. Obrigada, Mrs. Delvecchio Schwartz, por me ter dado a oportunidade de ser aquilo que estava destinada a ser. És uma campeã, princesa, uma campeã. Oh, mas quando é que irá descansar em paz?

De repente, a Fio parou de arrastar os pés na carpete, correu para os lápis, escolheu três com a rapidez de um relâmpago e começou a garatujar na parede. Cor de carne, depois um azul-claro acinzentado e depois muito roxoescuro.

E eu percebi. Uma mulher desconhecida com cabelo azulado e um vestido roxoescuro está a subir as escadas anunciei.

Ninguém se mexeu. Ninguém disse palavra.

Uma pancada na porta fê-los saltar a todos nas cadeiras. O Toby levantou-se de um salto para ir abrir. Uma mulher desconhecida com o cabelo tingido de azul e um vestido roxo-escuro estava de pé junto à porta.


            Peço imensa desculpa disse ela hesitando , mas procuro a Mrs. Delvecchio Schwartz.

Eles apontaram todos para mim.É ela disse o Toby erguendo as sobrancelhas para os outros, que se puseram de pé em silêncio.Sou a Mrs. Charles PomfrettSmythe disse a desconhecida , e estava a pensar se, hum...?Entre, entre disse eu enquanto ou outros iam saindo. Está um dia terrível lá fora, princesa.Está mesmo disse ela, sentando-se à minha frente numa cadeira forrada com veludo cor-de-rosa puxada para junto da mesa de castanho. Mas o meu motorista trazia um chapéu-de-chuva.Vale a pena conservar o pessoal competente disse eu dando pancadinhas no Cristal.

A Mrs. Pomfrett-Smythe olhou em volta. Não pensei, pelo que a Elma Pearson me contou, que a sua casa fosse tão bonita disse ela.As coisas mudam, princesa, as coisas mudam. Uma súbita ruptura adstringente necessitou de uma redecoração para devolver as energias e os fluxos cartilaginosos à normalidade disse eu suavemente. Foi então a Mrs. Pearson quem lhe falou de mim, foi?Não exactamente, não. Toda a gente parece pensar que a Mrs. Delvecchio Schwartz faleceu, mas eu estou tão desesperada que pensei tentar de qualquer maneira disse ela, descalçando as luvas de pele roxa.Há sempre uma Mrs. Delvecchio Schwartz. Eu sou, hum, a segunda edição. Esta é a minha filha, a Fio.Como estás, Fio? perguntou ela simpaticamente.

A Fio deitou a língua de fora, não por má-criação, mas daquela maneira que os meninos pequenos fazem quando andam agarrados às pernas da mamã a tentar ver um desconhecido de todos os ângulos.

            O que é que se passa, Mrs. PomfrettSmythe? perguntei.

Ela apertou as luvas convulsivamente. Minha cara Mrs. Delvecchio Schwartz, é o meu marido! Apostou num determinado produto... qualquer coisa que tem a ver com os aparelhómetros curiosos que funcionam como cancelas de selecção das ovelhas. Com electricidade, acho disse ela muito perturbada.Cancelas de selecção de ovelhas? perguntei eu sem perceber.Talvez não saiba como separam as ovelhas no campo, mas eu sei... o meu pai era negociante de gado. A cancela abre-se para dois redis explicou ela e quem está a operar a cancela pode fazer passar o animal para qualquer um dos redis disse. Depois de o meu marido ter comprado o seu primeiro lote de acções, não de ovelhas , fez umas pesquisas e empregou tudo o que tinha a comprar mais.

            Estava a ficar cada vez mais agitada, pelo que deduzi que o motorista com o guarda-chuva estava em risco de ser perdido juntamente com a limusina que conduzia e a mansão em Point Piper.E que tal uma bela chávena de chá? disse eu em tom tranquilizador.Oh, meu Deus, adorava, mas não tenho tempo! uivou ela.

            Tive de vir aqui imediatamente porque ele recebeu uma oferta pelas acções e tem de dar a resposta até às duas horas desta tarde. Acho que ele continua inclinado a ficar com elas, mas todos os seus amigos e colegas estão convencidos de que ele irá perder tudo e estão a pressioná-lo para que aceite. Começou a passar as mãos pelas luvas e a esticá-las de um modo que Lady Richard teria considerado deplorável.Um dilema terrível disse eu.Sim! Estica, estica, estica.O que me confunde, Mrs. Pomfrett-Smythe disse eu de cenho franzido , é a razão de um eminente homem de negócios como o seu marido procurar os conselhos de uma vidente. Quero dizer, a senhora nunca aqui esteve.Ele não sabe que eu aqui estou! gritou ela, arruinando completamente as luvas. Ele entregou-me a decisão a mim!A si?Sim, a mim! Não sabe pura e simplesmente o que fazer e, sempre que não sabe o que fazer, deixa a decisão comigo.

A lâmpada acendeu-se. Assim, se tomar a decisão errada, ele tem alguém a quem assacar as culpas.


A Casa dos Anjos 293Exactamente! disse ela, destroçada.Bem, não podemos permitir que isso aconteça, princesa... pois não, Fio?

A Fio escolheu cuidadosamente quatro lápis da sua colecção e dirigiu-se à parede. Aquele era, apercebi-me, o momento complicado; a atenção da Mrs. Pomfrett-Smythe tinha de permanecer concentrada em mim, o que exigia um qualquer tipo de comportamento mediúnico: um transe, com certeza, resmungos e gemidos, definitivamente, mas como é que eu havia de conseguir produções de ectoplasma? Pastilha elástica e sabão? Investiga, Harriet, investiga!

Hoje limitei-me a reclinar-me na minha cadeira cor-de-rosa, suspirei e fiquei flácida e soltei pequenos grasnidos. E olhei para a Fio através dos olhos semicerrados. Ela primeiro pegou no lápis roxo--escuro e escrevinhou. A Mrs. Pomfrett-Smythe. Depois fez uns rectângulos de bordas onduladas em verde-garrafa. Dinheiro. Imensos círculos amarelo-vivo. Moedas de ouro. E finalmente uma pirâmide de pequenos pontos de cor ocre. Um monte de areia. Agora que já sei, é fácil. As palavras da Fio são cores e formas. À medida que for sabendo desenhar melhor, isso será evidente. Mas o verdadeiro milagre é a Fio conseguir ver as respostas certas a todas as perguntas que as minhas senhoras me fazem. Consegue ver o tormento da alma, ver o que vai em cada coração. Consegue ver a aproximação do assassínio. O meu pequeno anjinho, a nova experiência de Deus. Bem, comigo está a salvo. Foi isso o que a Mrs. Delvecchio Schwartz percebeu. Sabendo, é o que penso agora, que ela própria estava mal preparada para conseguir lidar com tudo aquilo em que a Fio se tornará. Passou a tarefa a uma Harriet Purcell mais jovem e mais culta. Percebi hoje finalmente a razão de a Mrs. Delvecchio Schwartz se ter submetido tão mansamente ao seu destino. Nós estamos aqui para o nosso anjo; é ela quem realmente importa.

Quando a Fio pousou os lápis, eu gemi e emergi lentamente do meu transe. A Mrs. Pomfrett-Smythe estava a olhar para mim como se me tivesse nascido outra cabeça.

            Princesa anunciei eu , diga ao seu marido que se agarre aos seus aparelhometros esquisitos como se disso dependesse a sua vida. O que o mundo tem estado à espera é de qualquer coisa que lhe permita distinguir as ovelhas eléctricas das cabras eléctricas. Esses aparelhómetros são dinamite pura. Acariciei o Cristal. Silicone! Um material espantoso.

            Tem a certeza absoluta, Mrs. Delvecchio Schwartz? perguntou ela com ar duvidoso.

Não, a Fio tem a certeza, pensei para comigo. As cancelas de selecção dos carneiros são transístores muito recentes, mas eu tenho formação técnica. Há uns quantos aparelhos médicos que estão equipados com eles e até mesmo um ou dois computadores. Que astuto, o Mr. Pomfrett-Smythe! Deve ter deparado com um qualquer avanço espantoso nos aparelhos e quem sabe se os dias dos tubos de vácuo e das emissões de electrões a altas temperaturas não estarão contados?

Depois tive outra ideia: não estariam os amigos e colegas do Mr. Pomfrett-Smith a conspirar para ficar com o seu negócio?

Mal tinha acabado de ter esta ideia, a Fio pegou num lápis verdeervilha e desenhou uma forma parecida com um fígado seguida de raios amarelo-icterícia. Sim, era essa a história. E a Fio acabara de me ler os pensamentos e respondera à minha pergunta não verbalizada. Progressos, finalmente! A Fio admitiu-me na sua mente, ela e eu acabámos de nos tornar uma só. Sinto-me realizada.

A Mrs. Pomfrett-Smythe continuava a olhar para mim interrogativamente, a sua pergunta a pairar no ar.Tenho a certeza total, positiva e absoluta disse eu com total convicção. E mais, pode fazer-lhe uma sugestão da parte da use o meu nome! Mrs. Delvecchio Schwartz. Um homem sensato não deve acreditar em tudo o que os amigos e colegas lhe dizem.Direi, direi! Não era idiota nenhuma, a Mrs. Pomfrett-Smythe; percebeu a minha insinuação. A bolsa de pele lilás-claro abriu-se. Hum, quanto lhe devo?

Fiz um gesto grandioso. Não cobro naprimeira vez, princesa, mas daqui em diante cobrarei como gente grande. Cobrar-lhe a sessão de hoje? Nem pensar! Na segunda-feira vou iniciar duas carteiras de acções, uma para a Fio e outra para mim, e a nossa primeira aposta será nos aparelhómetros esquisitos do Mr. Pomfrett-Smythe.

A minha primeira cliente estava a olhar-me com admiração e imenso respeito; depois, o seu olhar desviou-se para a Fio, transparecendo apenas a terna admiração que as mulheres nutrem pelas crianças belas.

            Ficar-lhe-ia agradecida disse eu, pondo-me de pé se desse uma telefonadela à Mrs. Pearson e lhe dissesse que a própria e única Mrs. Delvecchio Schwartz abriu novamente a loja, na sua nova encarnação. O mu magnético está novamente menor de um e os vectores da equanimidade estão completos. As coisas voltaram à normalidade na Casa.

A Fio e eu acompanhámo-la pelas escadas e até ao alpendre, onde esperámos que o motorista elegante viesse a correr com o guarda-chuva em punho.

            Meu anjo disse eu enquanto acenávamos em despedida para o Rolls que se afastava sob a chuva , vamos manter os teus crescentes dotes para o desenho um segredo nosso, está bem? As clientes vão começar a Rolar ah, ah, ah aos montes muito em breve e não queremos que elas descubram como é que nós fazemos, não é? A Mrs. Delvecchio Schwartz tem de permanecer única... ela é o teu abrigo de um mundo que não está pronto para ti.

E, de um momento para o outro, vi o interior da sua mente! Imagens desfocadas de mobília institucional passaram a voar, o choque e a dor quando ela se atirou contra qualquer coisa, os milhares de estilhaços de uma janela que explodia, os rostos preocupados mas in-compreensivos. Mas tudo isso, compreendi, não é nada comparado com o amor que ela nutre pelas suas duas mães, as duas Mrs. Delvecchio Schwartz.

Ela sorriu-me, acenando vigorosamente. O nosso segredo.

            Pergunto-me disse quando pus a mão na porta se a primeira edição irá alguma vez descansar em paz? Qual é a tua opinião, meu anjo?

A Fio tirou três lápis amarelo, azul e verde do seu bolso cor-de-rosa e desenhou uma catatua e um periquito na parede branca e brilhante entre o 17d e a Casa.

Acho que a mãe não vai ficar nada surpreendida quando eu lhe pedir a guarda permanente do Willie; sem dúvida que já está tudo arranjado.

 

 

                                                                  Colleen McCullough

 

 

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