Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A CASA DOS ESPÍRITOS
Segunda Parte
Como me sentia sozinho, nessa altura! Ignorava que a solidão não mais me abandonaria e que a única pessoa que tornaria a estar perto de mim no resto da minha vida seria uma neta boémia e estroina, com o cabelo verde como Rosa. Mas isso seria vários anos mais tarde.
Depois da partida de Clara, olhei à volta e vi muitas caras novas em Las Tres Marias. Os antigos companheiros de caminhada estavam mortos ou tinham-se afastado. Já não tinha nem minha mulher nem minha filha. O contacto com os meus filhos era mínimo. Tinham falecido minha mãe, minha irmã, a boa Ama, Pedro Garcia, o velho. E também Rosa me veio à memória como uma dor inesquecível. Já não podia contar com Pedro Segundo Garcia, que esteve a meu lado durante trinta e cinco anos. Deu-me para chorar. As lágrimas caíam-me, sozinhas, eu sacudia-as com a mão, mas vinham outras. «Vão todos para o caralho!», gritava eu pelos cantos da casa. Passeava-me pelos quartos vazios, entrava no quarto de Clara e procurava no seu roupeiro e na sua cómoda qualquer coisa que ela tivesse usado para levar ao nariz e recuperar, ainda que fosse por um momento passageiro, o seu ténue odor a limpeza. Estendia-me na sua cama, enfiava a cara na sua almofada, acariciava os objectos que tinha deixado sobre o toucador e sentia-me profundamente desolado.
Pedro Tercero Garcia tinha toda a culpa do que se havia passado. Por culpa dele Blanca tinha saído de junto de mim, por causa dele eu tinha discutido com Clara, por causa dele Pedro Segundo tinha saído da propriedade, por causa dele os caseiros olhavam-me com receio e cochichavam nas minhas costas. Tinha sido sempre um revoltado e o que eu devia ter feito desde o princípio era corrê-lo a pontapés. Deixei passar o tempo por respeito ao pai e ao avó e o resultado foi que aquele ranhoso de merda me roubou o que eu mais gostava no mundo. Fui ao posto da aldeia do povo e subornei os carabineiros para me ajudarem a procurá-lo. Dei-lhes ordens de não o prenderem, mas de mo entregarem sem fazer escarcéu. No bar, no barbeiro, no clube e no Farolito Rojo, fiz saber que havia uma recompensa para quem me entregasse o rapaz.
- Cuidado, patrão. Não se ponha a fazer justiça por suas mãos, olhe que as coisas mudaram muito desde o tempo dos irmãos Sanchez - avisaram-me. Mas não quis escutá-los. Que teria feito a justiça nesse caso? Nada.
Passaram perto de quinze dias sem nenhuma novidade. Eu sala para percorrer a propriedade, entrava nas terras vizinhas, espiava os caseiros. Estava convencido de que me escondiam o rapaz. Aumentei a recompensa e ameacei os carabineiros de os fazer destituir por incapazes, mas tudo foi inútil. Cada hora que passava aumentava-me a raiva. Comecei a beber como nunca o tinha feito, nem nos meus tempos de solteiro. Dormia mal e tornei a sonhar com Rosa. Uma noite sonhei que lhe batia como a Clara e que os seus dentes também calam no chão. Despertei aos gritos, mas estava sozinho e ninguém me podia ouvir. Estava tão deprimido que deixei de fazer a barba, não mudava de roupa, julgo que nem tomava banho. A comida parecia-me amarga, tinha um sabor a bílis na boca. Esfolei os nós dos dedos esmurrando as paredes e rebentei um cavalo galopando para espantar a fúria que me consumia as entranhas. Nesses dias ninguém se aproximava de mim, as criadas serviam-me à mesa a tremer, o que me punha ainda pior.
Um dia, estava no corredor fumando um cigarro antes da sesta quando se aproximou um menino moreno que ficou em frente de mim em silêncio. Chamava-se Esteban Garcia. Era meu neto, mas eu não o sabia, e só agora, devido às terríveis coisas que ocorreram por obra sua, acabei por saber do parentesco que nos une. Era também neto de Pancha Garcia, uma irmã de Pedro Segundo, a quem na realidade não recordo.
- O que é que queres, ranhoso? - perguntei ao menino.
- Eu sei onde está Pedro Tercero Garcia - respondeu-me.
Dei um salto tão brusco que a cadeira de verga onde estava sentado, se virou. Agarrei o rapaz pelos ombros e sacudi-o:
- Onde? Onde está esse maldito? - gritei-lhe.
- Dá-me a recompensa, patrão? - balbuciou o menino aterrorizado.
- Tê-la-ás! Mas primeiro quero ter a certeza de que não me estás a mentir. Vamos, leva-me onde está esse desgraçado!
Fui buscar a espingarda e saímos. O menino indicou-me que tínhamos de ir a cavalo porque Pedro Tercero estava escondido na serração dos Lebus, a várias milhas de Las Tres Marias. Como não me passou pela cabeça que estivesse ali? Era um esconderijo perfeito. Nessa época do ano, a serração dos alemães estava fechada e ficava longe de todos os caminhos.
- Como soubeste que Pedro Tercero Garcia está lá?
- Toda a gente o sabe, patrão, menos o senhor - respondeu-me.
Fomos a trote porque naquele terreno não se podia correr. A serração estava encravada numa ladeira da montanha e ali não se podia forçar muito os animais. No esforço para trepar, os cavalos arrancavam chispas nas pedras com os cascos. Julgo que as suas pisadas eram o único ruído da tarde abafada e quieta. Ao entrar na zona dos bosques, mudou a paisagem e o ar refrescou, porque as árvores erguiam-se em filas apertadas, fechando a entrada à luz do Sol. O chão era uma almofada avermelhada e mole onde as patas dos cavalos se afundavam brandamente. Então o silêncio rodeou-nos. O menino ia adiante, montado na sua besta sem albarda, colado ao animal como se fossem um só corpo, e eu ia atrás, taciturno, ruminando a minha raiva. Por momentos a tristeza invadia-me, era mais forte que a cólera que tinha estado incubada durante tanto tempo, mais forte que o ódio que sentia por Pedro Tercero Garcia. Deve ter passado um par de horas antes de avistar os casebres baixos da serração, distribuídos em semicírculo numa clareira do bosque. Naquele lugar, o cheiro da madeira e dos pinheiros era tão intenso que por um momento distrai-me do objectivo da viagem. Caíram sobre mim a paisagem, o bosque, o silêncio. Mas essa fraqueza não durou mais que uns segundos.
- Espera aqui e cuida dos cavalos. Não te movas.
Desmontei. O menino pegou nas rédeas do animal e eu parti acaçapado com a espingarda aperrada nas mãos. Não sentia os sessenta anos nem as dores dos velhos ossos moídos. Ia animado pela ideia de me vingar. De uma das casotas sala uma pequena coluna de fumo, vi um cavalo amarrado à porta, conclui que ali devia estar Pedro Tercero e dirigi-me para a casa dando uma volta. Os dentes batiam-me com impaciência, ia pensando que não queria matá-lo ao primeiro tiro porque isso seria muito rápido e o prazer ia-se embora num minuto, tinha esperado tanto que queria saborear o momento de fazê-lo em pedaços, mas também não lhe podia dar uma oportunidade de escapar. Era muito mais jovem que eu e se não podia surpreendê-lo estava fodido. Levava a camisa empapada em suor, pegada ao corpo, um véu cobria-me os olhos, mas sentia-me com vinte anos e com a força de um touro. Entrei no casebre arrastando-me silenciosamente, o coração a bater-me como um tambor. Encontrei-me dentro de uma grande casa que tinha o chão coberto de serradura. Havia grandes pilhas de madeira e máquinas tapadas com pedaços de lona verde para as preservar do pó. Avancei ocultando-me entre as pilhas de madeira, até que, de súbito, o vi. Pedro Tercero Garcia estava deitado no chão, com a cabeça sobre uma manta dobrada, dormindo. A seu lado havia uma pequena fogueira de brasas sobre umas pedras e uma panela para ferver água. Parei sobressaltado e pude observá-lo à vontade, com todo o ódio do mundo, fazendo por fixar para sempre na minha memória esse rosto moreno, de feições quase infantis, onde a barba parecia um disfarce, sem compreender que diabo tinha visto minha filha naquele cabeludo ordinário. Tive de fazer um grande esforço para controlar o tremor das mãos e dos dentes. Levantei a espingarda e avancei um par de passos. Estava tão perto que podia fazer-lhe voar a cabeça sem apontar, mas decidi esperar uns segundos para que o pulso se me tranquilizasse. Esse momento de vacilação perdeu-me. Creio que o hábito de se esconder tinha afinado o ouvido a Pedro Tercero Garcia e o instinto advertiu-o do perigo. Numa fracção de segundo deve ter tomado consciência, mas ficou com os olhos fechados, preparou todos os músculos contraiu os tendões e pôs toda a sua energia num salto formidável que de um só impulso o deixou parado a um metro do sitio onde se cravou a minha bala. Não consegui apontar de novo, porque se agachou, apanhou um pedaço de madeira e atirou-mo, batendo em cheio na espingarda, que voou para longe. Recordo que senti uma onda de pânico ao ver-me desarmado, mas imediatamente me dei conta de que ele estava mais assustado do que eu. Observámo-nos em silêncio, ofegando, cada um esperava o primeiro movimento do outro para saltar. E então vi o machado. Estava tão perto, que podia alcançá-lo esticando apenas o braço, e foi isso que fiz sem pensar duas vezes. Peguei no machado e com um grito selvagem que me saiu do fundo das entranhas lancei-me contra ele, disposto a rachá-lo de alto a baixo com um só golpe. O machado brilhou no ar e caiu sobre Pedro Tercero Garcia. Um jorro de sangue saltou-me à cara.
No último instante levantou os braços para deter a machadada e o fio da ferramenta decepou-lhe num ápice três dedos da mão direita. Com o esforço, caí para a frente de joelhos. Ele levou a mão ao peito e saiu correndo, saltou sobre as pilhas de madeira e os troncos espalhados pelo chão, alcançou o cavalo, montou de um salto e perdeu-se com um grito terrível entre as sombras dos pinheiros. Deixou atrás de si um rego de sangue.
Fiquei de gatas no chão, arquejando. Levei vários minutos a acalmar-me e a compreender que não o tinha morto. A minha primeira reacção foi de alívio porque, ao sentir o sangue quente que me atingira a cara, o ódio despejou-se-me subitamente, e tive de fazer um esforço para recordar por que razão o queria matar, para justificar a violência que me estava a afogar, que me fazia estalar o peito, zumbir os ouvidos, que me turvava a vista. Abri a boca deses-perado, para meter ar nos pulmões, consegui pôr-me de pé, mas comecei a tremer, dei um par de passos e cai sentado sobre um montão de tábuas, ator-doado, sem poder recuperar o ritmo da respiração. Julguei que ia desmaiar, o coração saltava-me no peito como uma máquina enlouquecida. Deve ter pas-sado muito tempo, não sei. Por fim levantei os olhos, parei e apanhei a espingarda.
O menino Esteban Garcia estava a meu lado, olhando-me em silêncio. Tinha apanhado os dedos cortados e pegava neles como num molho de espar-gos sangrentos. Não consegui evitar as náuseas, tinha a boca cheia de saliva, vomitei manchando as botas, enquanto o garoto sorria impassível.
- Larga isso, ranhoso de merda! - gritei, batendo-lhe na mão.
Os dedos caíram sobre a serradura, tingindo-a de vermelho. Apanhei a espingarda e avancei cambaleando para a saída. O ar fresco do entardecer e o perfume pesado dos pinheiros bateram-me na cara, devolvendo-me o sentido da realidade. Respirei com avidez, de boca aberta. Caminhei até ao cavalo com grande esforço, doía-me todo o corpo e tinha as mãos presas. O menino seguia-me.
Regressámos a Las Tres Marias procurando o caminho na escuridão, que cala rapidamente depois do pôr do Sol. As árvores dificultavam a marcha, os cavalos tropeçavam nas pedras e nas moitas, os ramos atingiam-nos ao passar. Eu estava como que no outro mundo, confundido e aterrado pela minha própria violência, agradecido de que Pedro Tercero tivesse escapado, porque estava certo de que se ele tivesse caído teria continuado a dar-lhe com o machado até o matar, destroçar, fazê-lo em bocados, com a mesma decisão com que estava disposto a meter-lhe um tiro na cabeça.
Eu sei o que dizem de mim. Dizem, entre outras coisas, que matei um ou vários homens na minha vida. Culparam-me da morte de alguns camponeses. Não é verdade. Se o fosse, não me importaria de o reconhecer, porque na minha idade essas coisas podem dizer-se impunemente. Já me falta muito pouco tempo para ser enterrado. Nunca matei um homem e quando mais perto estive de o fazer foi nesse dia em que peguei no machado e me atirei a Pedro Tercero Garcia.
Chegámos a casa à noite. Desci com dificuldade do cavalo e caminhei até ao terraço. Tinha-me esquecido por completo do menino que me acompanhava, porque em todo o trajecto não abriu a boca, por isso surpreendi-me ao sentir que me puxava pela manga.
- Vai dar-me a recompensa, patrão? - disse.
Despedi-o com um empurrão.
- Não há recompensa para os traidores que denunciam. Ah! E proíbo-te que contes o que se passou! Ouviste-me? - grunhi.
Entrei em casa e fui directamente beber um gole da garrafa. O conhaque queimou-me a garganta e devolveu-me algum calor. Estendi-me depois no sofá, arquejando. Ainda me batia desesperadamente o coração e estava enjoado. Com as costas da mão limpei as lágrimas que me escorriam pelas faces.
Lá fora ficou Esteban Garcia, em frente da porta fechada. Como eu, chorava de raiva.
Os Irmãos
Clara e Blanca chegaram à capital com o lamentável aspecto de duas sinistradas. Ambas tinham a cara inchada, os olhos vermelhos de choro e a roupa amachucada pela longa viagem de comboio. Blanca, mais débil que a mãe, apesar de ser muito mais alta, jovem e pesada, suspirava acordada e soluçava a dormir, num lamento ininterrupto que se mantinha desde o dia da sova. Mas Clara não tinha paciência para a desgraça, de modo que ao chegar à grande casa da esquina, que estava vazia e lúgubre como um mausoléu, decidiu que bastava de queixumes, que era altura de alegrar a vida. Obrigou a filha a ajudá-la na tarefa de contratar novos criados, abrir os postigos, tirar os lençóis que cobriam os móveis, as capas dos candeeiros, os cadeados das portas, sacudir o pó e deixar entrar a luz e o ar. Estavam nisso quando o inconfundível aroma das violetas silvestres invadiu a casa e assim souberam que as três irmãs Mora, avisadas pela telepatia ou simplesmente pelo afecto, tinham chegado de visita. O falatório feliz, as compressas de água fria, os consolos espirituais e o encanto natural conseguiram que a mãe e a filha se recompusessem das contusões do corpo e das dores da alma.
- Temos de comprar outros pássaros - disse Clara olhando pela janela as gaiolas vazias e o jardim por tratar, onde as estátuas do Olimpo se erguiam cagadas pelos pombos.
- Não sei como pode pensar nos pássaros se lhe faltam os dentes, mamã - observou Blanca, que não se acostumava ao novo rosto desdentado da mãe.
Clara teve tempo para tudo. Em duas semanas tinha as antigas gaiolas cheias de novos pássaros, e mandara fazer uma prótese de porcelana que se fixava no lugar mediante um engenhoso mecanismo que a prendia aos molares que restavam, mas o sistema resultou tão incómodo que preferiu usar a dentadura postiça pendurada no pescoço por uma fita. Punha-a só para comer e, às vezes, nas reuniões sociais. Clara voltou a dar vida à casa. Deu ordem à cozinheira para manter o fogão sempre aceso e disse-lhe que deviam estar preparados para alimentar um número variado de hóspedes. Sabia por que o dizia. Poucos dias depois, começaram a chegar os seus amigos rosa-cruzes, os espiritistas, os teósofos, os acupuncturistas, os telepatas, os fabricantes de chuva, os peripatéticos, os adventistas do sétimo dia, os artistas necessitados ou em desgraça e, por fim, todos os que habitualmente constituíam a sua corte. Clara reinava entre eles como uma pequena soberana alegre e sem dentes. Nessa época, começaram as suas primeiras tentativas sérias para comunicar com os extraterrestres, e, como ela anotou, teve as primeiras dúvidas relativamente à série de mensagens espirituais que recebia através do pêndulo ou da mesa de pé-de-galo. Ouviram-na dizer muitas vezes que talvez não fossem as almas dos mortos que vagueavam noutra dimensão, mas simplesmente seres de outros planetas que tentavam estabelecer uma relação com os terráqueos, mas que, por serem feitos de uma matéria impalpável, facilmente se podiam confundir com as almas. Essa explicação cientifica encantou Nicolau, mas não teve a mesma aceitação entre as irmãs Mora, que eram muito conservadoras.
Blanca vivia alheia a essas dúvidas. Os seres de outros planetas entra-vam, para ela, na mesma categoria das almas e não podia, portanto, compre-ender a paixão da mãe e dos outros em identificá-los. Estava muito ocupada na casa, porque Clara se desligou dos assuntos domésticos com o pretexto de nunca ter tido aptidões para eles. A grande casa da esquina requeria um exército de criados para se manter limpa e o séquito da mãe obrigava a ter turnos na cozinha. Havia que cozinhar grãos e ervas para uns, verduras e peixe para outros, frutas e leite azedo para as três irmãs Mora e suculentos pratos de carne, doces e outros venenos para Jaime e Nicolau, que ainda não tinham adquirido as suas próprias manias. Com o tempo ambos passariam fome: Jaime por solidariedade com os pobres e Nicolau para purificar a alma. Mas nessa época ainda eram dois robustos jovens ansiosos por gozar os prazeres da vida.
Jaime tinha entrado na Universidade e Nicolau vagueava procurando o seu destino. Tinham um automóvel pré-histórico, comprado com o produto das bandejas de prata que tinham roubado de casa dos pais. Baptizaram-no de Covadonga, como recordação dos avós del Valle. Cova longa tinha sido desmontado e tornado a montar tantas vezes com outras peças que mal podia andar. Deslocava-se com grande estrépito do motor barulhento, cuspindo fumo e porcas pelo tubo de escape. Os irmãos partilhavam-no salomonica-mente: nos dias pares usava-o Jaime e nos ímpares Nicolau.
Clara estava feliz por viver com os filhos e dispôs-se a iniciar uma relação amigável. Tinha tido pouco contacto com eles durante a sua infância e, no afã de que se «fizessem homens», tinha perdido as melhores horas dos filhos e procurara preservar-se de todas as ternuras. Agora que estavam com proporções adultas, feitos homens finalmente, podia dar-se ao gosto de mimá-los como devia ter feito quando eram pequenos, mas já era tarde, porque os gémeos tinham-se criado sem as suas caricias e tinham acabado por não necessitar deles. Clara viu que não lhe pertenciam. Não perdeu a cabeça nem a boa disposição. Aceitou os jovens tal como eram e dispôs-se a gozar a sua presença sem pedir nada em troca.
Blanca, no entanto, refilava porque os irmãos tinham transformado a casa numa esterqueira. À sua passagem ficava um rasto de desordem, atropelo e alvoroço. A jovem engordava a olhos vistos e parecia cada dia mais languida e mal-humorada. Jaime olhou a barriga da irmã e foi ter com a mãe:
- Julgo que Blanca está grávida, mamã - disse sem preâmbulos.
- Já o imaginava, filho - suspirou Clara.
Blanca não negou e, uma vez confirmada a notícia, Clara escreveu-o com a sua redonda caligrafia no caderno de anotar a vida. Nicolau levantou os olhos das práticas do horóscopo chinês e sugeriu que tinham de dizê-lo ao pai, porque dentro de um par de semanas o assunto já não poderia disfarçar-se e toda a gente iria saber.
- Nunca direi quem é o pai! - disse Blanca com firmeza.
- Não me refiro ao pai da criança, mas ao nosso - disse o irmão. - O papá tem o direito a sabê-lo por nós, antes que lhe conte outra pessoa.
- Mandem um telegrama para o campo - sugeriu Clara tristemente. Tinha a certeza de que, logo que Esteban Trueba soubesse, o bebé de Blanca se tornaria numa tragédia.
Nicolau redigiu a mensagem com o mesmo espírito criptográfico com que fazia versos a Amanda, para que a telegrafista do povoado não pudesse perce-ber o telegrama e propagar o mexerico: «Envie instruções em cinta branca. Ponto». Tal como a telegrafista, Esteban Trueba não conseguiu decifrá-lo e teve de telefonar para a sua casa da capital a fim de se inteirar do assunto. Coube a Jaime explicar o caso e acrescentou que a gravidez estava tão avançada que não podiam pensar em nenhuma solução drástica. Do outro lado da linha houve um longo e terrível silêncio e depois o pai pendurou o auscultador. Em Las Tres Marias, Esteban, lívido de surpresa e de raiva, pegou na bengala e partiu o telefone pela segunda vez. Nunca lhe tinha ocorrido a ideia de que uma filha sua pudesse cometer um disparate tão monstruoso. Sabendo quem era o pai, levou menos de um segundo a arrepender-se de não lhe ter metido uma bala na cabeça quando teve a oportunidade. Estava certo que o escân-dalo seria igual se ela desse à luz um bastardo, ou se se casasse com o filho de um camponês: a sociedade condená-la-ia ao ostracismo em qualquer dos dois casos.
Esteban Trueba passou várias horas às voltas pela casa em grandes passadas, dando bengaladas nos móveis e nas paredes, murmurando maldi-ções entredentes e forjando planos disparatados que iam desde mandar Blanca para um convento na Estremadura até matá-la com pancada. Finalmente, quando se acalmou um pouco, veio-lhe uma ideia salvadora à cabeça. Mandou selar o cavalo e foi a galope até à povoação.
Encontrou Jean de Satigny, a quem não tinha voltado a ver desde a infortunada noite em que o despertara para lhe contar os namoricos de Blanca, bebendo sumo de melão sem açúcar na única pastelaria da povoação, acompanhado pelo filho de Indalécio Aguirrazábal, um pedante luzidio que falava com voz aflautada e recitava Rubén Darío. Sem nenhum respeito, Trueba levantou o conde francês pelas bandas do casaco escocês e retirou-o da pastelaria, praticamente pendurado, face aos olhares atónitos dos outros clientes, pondo-o no meio do passeio.
- Jovem, você já me deu bastantes problemas. Primeiro as suas malditas chinchilas e depois a minha filha. Já me cansei. Traga as suas tralhas porque vai para a capital comigo, casar com Blanca.
Não lhe deu tempo de se refazer da surpresa. Acompanhou-o ao hotel da povoação, onde esperou com o chicote numa mão e a bengala na outra, enquanto Jean de Satigny fazia as malas. Depois levou-o directamente à estação e fê-lo subir, sem mais explicações, para o comboio. Durante a viagem, o conde quis explicar-lhe que não tinha nada que ver com aquele assunto e que nunca tinha posto nem um dedo em cima de Blanca Trueba, que provavelmente o responsável pelo sucedido era o frade barbudo com quem Blanca se encontrava de noite na margem do rio. Esteban Trueba fulminou-o com o olhar mais feroz:
- Não sei de que estás a falar, meu filho. Deves ter sonhado com isso - disse-lhe.
Trueba começou a explicar-lhe as cláusulas do contrato matrimonial, o que tranquilizou bastante o francês. O dote de Blanca, a sua renda mensal e as perspectivas de herdar uma fortuna tornavam-na um bom partido.
- Como vê, este é melhor negócio do que as chinchilas - concluiu o futuro sogro sem prestar atenção à choradeira nervosa do jovem.
Foi assim que, no sábado, Esteban Trueba chegou à grande casa da esquina, com um marido para a filha desflorada e um pai para o pequeno bastardo. Deitava chispas de raiva. Com um murro tombou a jarra com crisântemos da entrada, deu um bofetão a Nicolau que tentou interceder para explicar a situação e anunciou aos gritos que não queria ver Blanca e que ela devia ficar fechada até ao dia do matrimónio. Clara não apareceu para o receber. Ficou no quarto e não abriu a porta nem mesmo quando ele partiu a bengala de prata às pancadas na porta.
A casa entrou num turbilhão de actividade e de lutas. O ar parecia irrespirável e até os pássaros se calaram nas gaiolas. Os criados corriam às ordens daquele patrão ansioso e brusco que não admitia demoras para fazer cumprir os seus desejos. Clara continuou a fazer a mesma vida, ignorando o marido e negando-se a dirigir-lhe a palavra. O noivo, praticamente prisioneiro do futuro sogro, foi instalado num dos numerosos quartos de hóspedes, onde passava o dia dando voltas sem nada para fazer, sem ver Blanca e sem compreender como tinha ido parar àquele folhetim. Não sabia se havia de lamentar-se por ser vítima daqueles bárbaros indígenas ou de alegrar-se por poder cumprir o sonho de casar com uma herdeira sul-americana jovem e formosa. Como era de temperamento optimista e estava dotado de sentido prático, próprio dos da sua raça, optou pela segunda atitude e no decorrer da semana foi-se tranquilizando.
Esteban Trueba marcou a data do matrimónio para dali a quinze dias. Decidiu que a melhor forma de evitar o escândalo era fazer uma boda especta-cular. Queria ver a filha casada pelo bispo, com vestido branco e uma cauda de seis metros levada por pagens e donzelas, fotografada na crónica social do jornal, queria uma festa caligulesca e suficiente espavento e gastos para que ninguém reparasse na barriga da noiva. A única pessoa que o secundou nos seus planos foi Jean de Satigny.
No dia em que Esteban chamou a filha para a mandar à modista provar o vestido de noiva era a primeira vez que a via desde a noite da sova. Espantou-se de a ver gorda e com manchas na cara.
- Não me vou casar, pai - disse ela.
- Cale-se! - rugiu ele. - Vai-se casar porque eu não quero bastardos na família, está a ouvir-me?
- Julgava que já tínhamos vários - respondeu Blanca.
- Não me responda! Quero que saiba que Pedro Tercero Garcia está morto. Matei-o com as minhas próprias mãos, por isso esqueça-o e trate de ser uma esposa digna do homem que a leva ao altar.
Blanca desatou a chorar e continuou chorando incansavelmente nos dias que se seguiram.
O casamento que Blanca não desejava celebrou-se na catedral, com a bênção do bispo e um vestido de rainha feito pelo melhor costureiro do país que fez milagres para dissimular o ventre proeminente da noiva com uma guarnição de flores e pregas greco-romanas. A boda terminou com uma festa espectacular, com quinhentos convidados em traje de gala, que invadiram a casa da esquina, animada por uma orquestra de músicos contratados, com uma enormidade de reses temperadas com ervas finas, mariscos frescos, caviar do Báltico, salmão da Noruega, aves trufadas, um rio de bebidas exóticas, um jorro inacabável de champanhe, um esbanjamento de doces, suspiros, mil-folhas, éclaires, polvilhados, grandes taças de cristal com fruta cristalizada, morangos da Argentina, cocos do Brasil, papaias do Chile, ananases de Cuba e outras delícias impossíveis de recordar, sobre uma mesa compridíssima que dava volta ao jardim e terminava num bolo descomunal de três andares, fabricado por um artífice italiano originário de Nápoles, amigo de Jean de Satigny, que transformou humildes materiais, como ovos, farinha e açúcar, numa réplica da Acrópole, coroada por uma nuvem de merengue, onde repousavam dois amantes mitológicos, Vénus e Adónis, feitos com pasta de amêndoa tingida, para imitar o tom rosado da carne, o louro dos cabelos, o azul cobalto dos olhos, acompanhados por um Cupido gorducho, também comestível, e que foi partido com uma faca de prata pelo noivo orgulhoso e pela noiva desolada.
Clara, que desde o principio se opusera à ideia de casar Blanca contra a sua vontade, decidiu não assistir à festa. Ficou na sala de costura elaborando tristes previsões para os noivos, que se cumpriram à letra como todos puderam comprovar mais tarde, até que o marido lhe foi suplicar que mudasse de roupa e aparecesse no jardim, nem que fosse só por dez minutos, para calar os murmúrios dos convidados. Clara fê-lo de muito má vontade, mas, por carinho pela filha, pôs os dentes e procurou sorrir a todos os presentes.
Jaime chegou no final da festa, porque ficou a trabalhar no hospital dos pobres, onde iniciava os primeiros estudos de medicina. Nicolau chegou acompanhado pela bela Amanda, que acabava de descobrir Sartre e tinha adoptado o ar fatal das existencialistas europeias, toda de negro, pálida, com os olhos arroxeados, pintados com khol, o cabelo escuro solto até à cintura e uma chocalhada de colares, pulseiras e brincos que provocavam admiração à sua passagem. Por seu lado, Nicolau estava vestido de branco, como um enfermeiro, com amuletos pendurados no pescoço. O pai foi ao seu encontro, agarrou-o por um braço e introduziu-o à viva força na casa de banho, onde lhe arrancou os talismãs sem contemplações.
- Vá ao seu quarto e ponha uma gravata decente! Volte à festa e porte-se como um cavalheiro! Não lhe passe pela cabeça pregar alguma religião hereje entre os convidados e diga a essa bruxa que o acompanha que feche o decote! - ordenou Esteban ao filho.
Nicolau obedeceu de péssimo humor. Por princípio era abstémio, mas de raiva bebeu uns copos, perdeu a cabeça e atirou-se vestido para o tanque do jardim, de onde tiveram de pescá-lo com a dignidade ensopada.
Blanca passou toda a noite numa cadeira observando o bolo, com expressão alheada e chorando, enquanto o seu flamante esposo circulava entre os convidados explicando a ausência da sogra com um ataque de asma e o pranto da noiva com a emoção da boda. Ninguém o acreditou. Jean de Satigny dava beijos no pescoço de Blanca, pegava-lhe na mão e procurava consolá-la com golos de champanhe e lagostins escolhidos amorosamente e servidos pela sua própria mão, mas tudo foi inútil, ela continuava chorando. Apesar de tudo, a festa foi um acontecimento, tal como tinha planeado Esteban Trueba. Comeram e beberam opiparamente e viram chegar o nascer do Sol bailando ao som da orquestra, enquanto no centro da cidade os grupos de desempregados se aqueciam em pequenas fogueiras feitas com jornais, bandos de jovens com camisas cinzentas desfilavam saudando com o braço estendido, como tinham visto nos filmes sobre a Alemanha, e nas sedes dos partidos políticos se davam os últimos retoques para a campanha eleitoral.
- Vão ganhar os socialistas - tinha dito Jaime, que, de tanto conviver com o proletariado no hospital dos pobres, andava alucinado.
- Não, filho, vão ganhar os de sempre - respondeu Clara, que vira tudo nos baralhos e o tinha confirmado pelo senso comum.
Depois da festa, Esteban Trueba levou o genro à biblioteca e estendeu-lhe um cheque. Era o seu presente de casamento. Tinha tratado de tudo para que o casal fosse para o Norte, onde Jean de Satigny pensava instalar-se comodamente a viver das rendas da mulher, longe dos comentários da gente observadora que não deixaria de reparar no ventre prematuro. Tinha em mente um negócio de cântaros incas e de múmias indígenas.
Antes de abandonar a festa, os recém-casados foram despedir-se da mãe. Clara chamou Blanca à parte, que não tinha parado de chorar e falou-lhe em segredo:
- Deixa de chorar, filhinha. Tantas lágrimas farão mal à criança e talvez não venha a ser feliz - disse Clara.
Blanca respondeu com outro soluço.
- Pedro Tercero Garcia está vivo, filha - acrescentou Clara.
Blanca engoliu o soluço e assoou o nariz.
- Como sabe isso, mamã? - perguntou.
- Porque o sonhei - respondeu Clara.
Aquilo foi suficiente para tranquilizar Blanca completamente. Enxugou as lágrimas, endireitou a cabeça e não tornou a chorar até ao dia em que morreu a mãe, sete anos mais tarde, apesar de não lhe faltarem dores saudades e outras razões.
Separada da filha, a quem tinha estado sempre muito unida, Clara entrou noutro dos seus períodos confusos e depressivos. Continuou a fazer a mesma vida, com a grande casa aberta e sempre cheia de gente, com reuniões de espiritualistas e serões literários, mas perdeu a capacidade de se rir com facilidade e ficava amiúde a olhar fixamente em frente, perdida nos seus pensamentos. Tentou estabelecer com Blanca um sistema de comunicação directa que lhe permitisse superar os atrasos do correio, mas a telepatia nem sempre funcionava, e não havia a certeza de uma boa recepção da mensagem. Pude comprovar que as suas comunicações se embrulhavam em interferências incontroláveis, ouvindo-se coisas bem diferentes do que ela tinha querido transmitir. Além disso, Blanca não era permeável às experiências psíquicas e, apesar de ter estado sempre muito perto da mãe, nunca demonstrou a menor curiosidade pelos fenómenos da mente. Era uma mulher prática, terrena e desconfiada, e a sua natureza moderna e pragmática um grande obstáculo para a telepatia. Clara teve de se resignar a usar métodos convencionais. Mãe e filha escreviam uma à outra quase todos os dias e a sua volumosa correspondência substituiu por vários meses os cadernos de anotar a vida. Dessa maneira Blanca sabia tudo o que sucedia na casa grande da esquina e podia brincar com a ilusão de que ainda estava com a família e que o casamento era só um mau sonho.
Nesse ano, os caminhos de Jaime e Nicolau distanciaram-se definitiva-mente, porque as diferenças entre os irmãos eram irreconciliáveis. Nicolau andava por essa altura com a novidade do flamenco, que dizia ter aprendido com os ciganos nas grutas de Granada, ainda que na realidade nunca tivesse saído do pais, mas a sua convicção era tal que até no seio da própria família começaram a duvidar. À menor provocação fazia uma demonstração. Saltava para cima da mesa da sala de jantar, para a mesa de carvalho que tinha servido para fazer o velório de Rosa muitos anos antes e que Clara tinha herdado, e começava a bater palmas como um maluco, a sapatear espasmodi-camente, a dar saltos e gritos agudos, até conseguir atrair todos os habitantes da casa, alguns vizinhos e numa ocasião até os carabineiros, que chegaram com os casse-têtes na mão, enlameando as alcatifas com as botas, mas que acabaram como todos os outros, aplaudindo e gritando olé. A mesa resistiu heroicamente, embora ao fim de uma semana tivesse a aparência de uma banca de talho usada para esquartejar bezerros. A dança flamenca não tinha nenhuma utilidade prática na fechada sociedade da capital da altura, mas Nicolau pôs um discreto anúncio no jornal oferecendo os seus serviços como professor dessa fogosa dança. No dia seguinte tinha uma aluna e numa semana tinha corrido o rumor do seu encanto. As raparigas acudiam em grupos, a princípio envergonhadas e tímidas, mas ele começava a rodopiar à sua volta, a sapatear enlaçando-as pela cintura, a sorrir-lhes com o seu estilo de sedutor e em pouco tempo conseguia entusiasmá-las. As aulas foram um êxito. A mesa da sala de jantar estava quase a desfazer-se em pedaços, Clara começou a queixar-se de enxaquecas e Jaime passava o tempo fechado no quarto tentando estudar com duas bolas de cera nos ouvidos. Quando Esteban Trueba soube o que se passava em casa durante a sua ausência, teve uma justa e terrível cólera e proibiu o filho de usar a casa como academia de dança flamenca ou de qualquer outra coisa. Nicolau teve de desistir das contorções, mas a experiência serviu-lhe para se tornar o jovem mais popular da temporada, o rei das festas e de todos os corações femininos porque, enquanto os outros estudavam, se vestiam com casacos cinzentos assertoados e cofiavam o bigode ao ritmo dos boleros, ele praticava o amor livre, citava Freud, bebia Pernod e dançava flamenco. O êxito social, no entanto, não conseguiu diminuir-lhe o interesse pelas habilidades psíquicas da mãe. Tentava em vão imitá-la. Estudava com veemência, praticava até pôr em perigo a saúde e assistia às reuniões das sextas-feiras com as três irmãs Mora, apesar da proibição expressa da mãe, que insistia na ideia de que aquilo não era assunto de homens. Clara fazia por o consolar dos fracassos:
- Isto não se aprende nem se herda, meu filho - dizia, quando o via concentrar-se até ficar vesgo no esforço desproporcionado para mover o saleiro sem lhe tocar.
As três irmãs Mora gostavam muito do rapaz. Emprestavam-lhe livros secretos e ajudavam-no a decifrar os códigos dos horóscopos e das cartas de adivinhar. Sentavam-se à volta dele, de mãos dadas, para o trespassar de fluidos benéficos, mas nem isso conseguiu dotar Nicolau de poderes mentais. Ampararam-no nos amores com Amanda. No começo a jovem pareceu fascinada com a mesa de pé-de-galo e com os artistas guedelhudos da casa de Nicolau, mas em breve se cansou de evocar fantasmas e de recitar o Poeta, cujos versos andavam de boca em boca, começando a trabalhar como repórter num jornal.
- Isso é uma profissão de palhaço - disse Esteban Trueba ao tomar conhecimento.
Trueba não sentia simpatia por ela. Não gostava de a ver em sua casa. Pensava que era uma má influência para o filho e tinha a ideia de que o cabelo comprido, os olhos pintados e as missangas eram sintomas de algum vício oculto, e que a sua tendência para tirar os sapatos e se sentar no chão de pernas cruzadas, como uma indígena, eram maneiras de machona.
Amanda tinha uma visão muito pessimista do mundo e para suportar as depressões, fumava haxixe. Nicolau acompanhava-a. Clara notou que o seu filho passava por maus momentos, mas nem sequer a sua prodigiosa intuição lhe permitiu relacionar os cachimbos orientais que Nicolau fumava com os seus desvios delirantes, a suas modorras ocasionais e os ataques de injustificada alegria, porque nunca tinha ouvido falar daquela droga nem de nenhuma outra. «São coisas da idade, há-de passar-lhe», dizia quando o via actuar como um lunático, sem se lembrar que Jaime tinha nascido no mesmo dia e não tinha nenhum desses desvarios.
As loucuras de Jaime eram de estilo muito diferente. Tinha vocação para o sacríficio e a austeridade. No seu roupeiro só tinha três camisas e duas calças. Clara passava o Inverno a tecer à pressa prendas de lã grosseira, para o ter agasalhado, mas ele usava-as só até que outro mais necessitado lhe aparecesse pela frente. Todo o dinheiro que lhe dava o pai ia parar aos bolsos dos indigentes que atendia no hospital. Sempre que algum cão esquelético o seguia na rua, asilava-o em casa, e quando sabia da existência de um menino abandonado, de uma mãe solteira ou de uma velhinha sozinha que necessitassem da sua protecção, chegava com eles para a mãe tomar conta do caso. Clara tornou-se uma especialista em assistência social, conhecia todos os serviços do Estado e da Igreja onde se podiam instalar os infelizes e, quando tudo isso faltava, acabava por aceitá-los em casa. As amigas tinham-lhe medo, porque todas as vezes que aparecia de visita era porque tinha alguma coisa a pedir-lhes. Desta maneira se alargou a rede dos protegidos de Clara e Jaime, que já tinham perdido o conto da gente que ajudavam, de tal maneira que era uma surpresa que aparecesse alguém a agradecer-lhe um favor que não recordavam ter feito. Jaime começou os seus estudos de medicina com uma vocação religiosa. Parecia-lhe que qualquer diversão que o afastasse dos livros ou lhe roubasse o tempo era uma traição à humanidade que tinha jurado servir. «Este menino devia ter ido para padre», dizia Clara. Para Jaime, a quem os votos de humildade, pobreza e castidade do sacerdote nada diziam, a religião era a causa de metade das desgraças do mundo, por isso quando a mãe manifestava essa opinião punha-se furioso. Dizia que o cristianismo, como quase todas as superstições, tornava o homem mais débil e resignado e que não havia que esperar uma recompensa no céu, mas sim lutar pelos seus direitos na terra. Estas coisas discutia-as a sós com a mãe, porque era impossível fazê-lo com Esteban Trueba, que perdia rapidamente a paciên-cia e acabava aos gritos e a atirar com as portas, porque, como ele dizia, já estava farto de viver entre doidos varridos e a única coisa que queria era um pouco de normalidade, mas tinha tido a má sorte de se casar com uma excêntrica e de engendrar três chanfrados que não serviam para nada e que lhe amarguravam a existência. Jaime não discutia com o pai. Passava pela casa como uma sombra, dava um beijo distraído à mãe quando a via e dirigia-se directamente à cozinha, comia de pé as sobras dos outros e fechava-se logo a seguir no quarto a ler ou a estudar. O quarto era um túnel de livros, todas as paredes estavam cobertas desde o chão até ao tecto, com estantes de madeira cheias de volumes que ninguém limpava, porque ele fechava a porta à chave. Eram ninhos ideais para as aranhas e para os ratos. No meio da divisão estava a cama, uma tarimba de recruta, iluminada por uma lâmpada desco-berta pendurada do tecto sobre a cabeceira. Durante um tremor de terra que Clara não previu por esquecimento, sentiu-se um estrépito de comboio descar-rilado e, quando puderam abrir a porta, viram que a cama estava enterrada debaixo de uma montanha de livros. As estantes tinham tombado, deixando Jaime deitado debaixo delas. Retiraram-no sem uma beliscadura. Enquanto clara tirava os livros, recordava-se do terramoto e pensava que já tinha vivido esse momento. A ocasião serviu para sacudir o pó ao quarto e espantar GS bichos e passarões à vassourada.
As únicas vezes que Jaime afinava o olhar para perceber a realidade era quando via passar Amanda pela mão de Nicolau. Muito poucas vezes lhe dirigia a palavra e corava violentamente se ela o fazia. Desconfiava da sua aparência exótica e estava convencido de que, se ela se penteasse como toda a gente e tirasse a pintura dos olhos, ficaria como um rato magro e verdoso. No entanto, não podia deixar de a olhar. A chocalhada das pulseiras que acompa-nhava a jovem distraia-o dos seus estudos e tinha de fazer um grande esforço para não a seguir pela casa como uma galinha hipnotizada. Sozinho, na cama, sem poder concentrar-se na leitura, imaginava Amanda nua, envolta no cabelo preto, com todos os seus adornos ruidosos, como um ídolo. Jaime era um solitário. Foi um menino intratável e mais tarde um homem tímido. Não gostava de si próprio e talvez por isso pensasse que não merecia o amor dos outros. A menor demonstração de solicitude ou agradecimento para com ele envergonhava-o e fazia-o sofrer. Amanda representava a essência de tudo o que era feminino e, por ser a companheira de Nicolau, de tudo o que era proibido. A personalidade livre, afectuosa e aventureira da rapariga fascinava-o e o seu aspecto de rato disfarçado provocava nele uma ânsia tormentada de a proteger. Desejava-a dolorosamente, mas nunca se atreveu a admiti-lo, nem no país secreto dos seus pensamentos.
Nessa época, Amanda frequentava muito a casa dos Trueba: No jornal tinha um horário flexível e, sempre que podia, chegava à grande casa da esquina com o seu irmão Miguel, sem que a presença de ambos chamasse a atenção naquela grande casa sempre cheia de gente e actividade. Miguel teria então à roda de cinco anos, era discreto e limpo, não fazia reboliço, passava despercebido, confundindo-se com o desenho do papel das paredes e com os móveis, brincava sozinho no jardim e seguia Clara por toda a casa chamando-lhe mamã. Por isso, e porque chamava papá a Jaime, supuseram que Amanda e Miguel eram órfãos. Amanda andava sempre com o irmão, levava-o para o trabalho, habituou-o a comer de tudo a qualquer hora e a dormir estendido nos lugares mais incómodos. Rodeava-o de uma ternura apaixonada e violenta, coçava-o como se fosse um cãozinho, gritava-lhe quando se zangava e corria depois a abraçá-lo. Não deixava que ninguém repreendesse ou desse uma ordem ao irmão, não aceitava comentários sobre a estranha vida que o fazia levar e defendia-o como uma leoa, ainda que ninguém tivesse intenções de o atacar. A única pessoa a quem permitia dar opiniões sobre a educação de Miguel era a Clara, que a conseguiu convencer de que tinha de o mandar para a escola para não ser um eremita analfabeto. Clara não era especialmente partidária da educação regular, mas pensou que no caso de Miguel era neces-sário dar-lhe algumas horas diárias de disciplina e convivência com crianças da sua idade. Ela própria se encarregou de o matricular, de lhe comprar o material escolar e o uniforme, e acompanhou Amanda quando o foi deixar na escola no primeiro dia de aulas. à porta do infantário, Amanda e Miguel abraçaram-se chorando, sem que a professora conseguisse separar o menino das saias da irmã, a que se agarrou com unhas e dentes, berrando e aos pontapés desesperados a quem se aproximasse. Por fim, ajudada por Clara, a professora conseguiu arrastar o menino para dentro fechando a porta do colégio. Amanda ficou toda a manhã sentada no muro. Clara acompanhou-a porque se sentia culpada de tanta dor e começava a duvidar da sabedoria da sua iniciativa. Ao meio-dia tocou a sineta e o portão abriu-se. Viram sair um rebanho de escolares e entre eles, em ordem, calado e sem lágrimas, com um risco de lápis no nariz e as peúgas metidas pelos sapatos, ia o pequeno Miguel, que nessas poucas horas tinha aprendido a andar na vida sem ser pela mão da irmã. Amanda apertou-o contra o peito freneticamente e numa inspiração de momento disse: «Daria a vida por ti, Miguelito». Não sabia que um dia teria de fazê-lo.
Entretanto, Esteban Trueba sentia-se cada vez mais sozinho e furioso. Resignou-se à ideia de que a mulher não voltaria a dirigir-lhe a palavra e, cansado de a perseguir pelos cantos, de lhe suplicar com o olhar e de fazer buracos nas paredes da casa de banho, decidiu dedicar-se à política. Tal como Clara tinha previsto, os mesmos de sempre ganharam as eleições, mas por uma margem tão escassa que todo o país se alertou. Trueba considerou que era o momento de sair em defesa dos interesses da Pátria e do Partido Conservador, já que ninguém melhor do que ele podia encarnar o político honesto e incorruptível, como ele próprio dizia, acrescentando que tinha subido pelo seu próprio esforço, dando trabalho e boas condições de vida aos empregados, dono da única propriedade com casas de tijolo. Respeitava a lei, a Pátria e a tradição e ninguém podia acusá-lo de nenhum delito maior que a fuga aos impostos. Contratou um administrador para substituir Pedro Segundo Garcia, pô-lo em Las Tres Marias encarregado das galinhas poedeiras e das vacas importadas e instalou-se definitivamente na capital. Passou vários meses dedicado à campanha, apoiando o Partido Conservador, que necessi-tava gente para apresentar nas próximas eleições parlamentares e com fortuna própria posta ao serviço da causa. A casa encheu-se de propaganda política e dos seus partidários, que praticamente a tomaram de assalto, misturando-se com os fantasmas dos corredores, os rosa-cruzes e as três irmãs Mora. Pouco a pouco, a corte de Clara foi empurrada para os quartos traseiros da casa. Estabeleceu-se uma fronteira invisível entre o sector ocupado por Esteban Trueba e o da mulher. Por inspiração de Clara e de acordo com as necessida-des do momento, foram brotando na nobre arquitectura senhorial quartinhos, escadas, torrezinhas e açoteias. Sempre que se tinha de alojar um novo hóspede, chegavam os mesmos pedreiros para acrescentar outro quarto. Assim, a grande casa da esquina chegou a parecer um labirinto.
- Um dia esta casa vai servir para montar um hotel – dizia Nicolau.
- Ou um pequeno hospital - acrescentava Jaime, que começou a alimentar a ideia de levar os seus pobres para o Bairro Alto.
A fachada da casa manteve-se sem alterações. À frente viam-se as colunas heróicas e o jardim versalhês, mas para trás o estilo perdia-se. O jardim das traseiras era uma selva emaranhada onde proliferavam as variedades de plantas e flores e onde esvoaçavam os pássaros de Clara, juntamente com várias gerações de cães e gatos. Entre aquela fauna doméstica, o único exemplar que teve alguma relevância na recordação da família foi um coelho que Miguel levou, um pobre coelho vulgar que os cães lambiam constantemente, até que lhe caiu o pêlo, tornando-se o único calvo da sua espécie, coberto por uma pele furta-cores que lhe dava a aparência de um réptil orelhudo.
À medida que a data das eleições se aproximava, Esteban Trueba punha-se cada vez mais nervoso. Arriscara tudo o que tinha na sua aventura política. Uma noite não aguentou mais, foi bater à porta do quarto de Clara. Ela abriu-a. Estava em camisa de dormir e tinha posto os dentes, porque gostava de mordiscar bolachas enquanto escrevia no caderno de anotar a vida. Pareceu a Esteban tão jovem e formosa como no primeiro dia em que a levou pela mão àquele quarto alcatifado de azul e a pôs sobre a pele de Barrabás. Sorriu com a recordação.
- Desculpa, Clara - disse corando como um escolar. - Sinto-me só e angustiado. Quero estar aqui um pouco, se não te importas.
Clara sorriu também, mas não disse nada. Apontou-lhe o cadeirão e Esteban sentou-se. Ficaram um bocado de tempo calados, partilhando o prato de bolachas e olhando-se, estranhos, porque havia muito tempo que viviam debaixo do mesmo tecto sem se verem.
- Suponho que sabes o que me está a atormentar – disse Esteban Trueba finalmente.
Clara disse que sim com a cabeça.
- Acreditas que vou ser eleito?
Clara voltou a dizer que sim e então Esteban Trueba sentiu-se totalmente aliviado, como se ela lhe houvesse dado uma garantia escrita. Deu uma gargalhada alegre e sonora, pôs-se de pé, agarrou-a pelos ombros e beijou-a na testa.
- Era formidável, Clara! Se tu o dizes, serei senador - exclamou.
A partir dessa noite diminuiu a hostilidade entre os dois. Clara conti-nuou sem lhe dirigir a palavra, mas ele fazia caso omisso do seu silêncio e falava-lhe normalmente, interpretando os seus menores gestos como respos-tas. Em caso de necessidade, Clara usava os criados ou os filhos para enviar-lhe mensagens. Preocupava-se com o bem-estar do marido, ajudava-o no trabalho e acompanhava-o quando ele lhe pedia. Algumas vezes, sorria-lhe.
Dez dias depois, Esteban Trueba foi eleito senador da República tal como Clara tinha previsto. Celebrou o acontecimento com uma festa para os amigos e correligionários, um aumento no salário dos empregados e dos trabalhadores de Las Tres Marias e um colar de esmeraldas, que deixou para Clara sobre a cama ao lado de um ramo de violetas. Clara começou a assistir às recepções sociais e aos actos políticos, onde a sua presença era necessária para que o marido projectasse a imagem do homem simples e familiar que o público e o Partido Conservador desejavam. Nessas ocasiões Clara punha os dentes e algumas jóias que Esteban lhe tinha oferecido. Passava por ser a dama mais elegante, discreta e encantadora do seu circulo social e ninguém chegou a suspeitar que aquele par distinto nunca se falava.
Com a nova posição de Esteban Trueba aumentou o número de pessoas para atender na grande casa da esquina. Clara não conseguia contar as bocas que alimentava nem os gastos da casa. As facturas iam directamente para o escritório do senador Trueba, no Congresso, que pagava sem perguntar, porque tinha descoberto que quanto mais gastava mais parecia aumentar a sua fortuna, chegando à conclusão de que não seria Clara, com a sua hospitalidade indiscriminada e as suas obras de caridade, quem conseguiria arruiná-lo. A princípio usou o poder político como um brinquedo novo. Tinha chegado à maturidade transformado no homem rico e respeitado que jurara chegar a ser quando era um adolescente pobre, sem padrinhos e sem outro capital a não ser o orgulho e a ambição. Mas, em pouco tempo, compreendeu que estava tão sozinho como sempre. Os dois filhos evitavam-no e com Blanca não tinha voltado a ter nenhum contacto. Sabia dela pelo que lhe contavam os irmãos e limitava-se a mandar-lhe todos os meses um cheque, fiel ao compromisso que tinha tomado com Jean de Satigny. Estava tão afastado dos filhos que era incapaz de manter um diálogo com eles sem acabar aos gritos. Trueba teve conhecimento das loucuras de Nicolau quando já era demasiado tarde, quer dizer, quando toda a gente as comentava. Também não sabia nada da vida de Jaime. Se tivesse suspeitado que se reunia com Pedro Tercero Garcia, com quem chegou a desenvolver um carinho de irmão, certamente lhe teria dado uma apoplexia, mas Jaime tinha muito cuidado em não falar dessas coisas com o pai.
Pedro Tercero Garcia tinha abandonado o campo. Depois do terrivel encontro com o patrão, o padre José Dulce Maria recolheu-o na casa paroquial e curou-lhe a mão. Mas o rapaz estava deprimido e repetia incansavelmente que a vida não tinha nenhum sentido, porque havia perdido Blanca e não podia tocar guitarra, o seu único consolo. O padre José Dulce Maria esperou que a forte compleição do jovem lhe cicatrizasse os dedos, pô-lo numa carroça e levou-o à reserva indígena, onde o apresentou a uma velha centenária que estava cega e tinha as mãos enclavinhadas pelo reumatismo, mas que ainda tinha vontade de fazer cestaria com os pés. «Se ela pode fazer cestos com os pés, tu podes tocar guitarra sem dedos», disse-lhe. E o jesuíta contou-lhe a sua história:
- Na tua idade também eu estava apaixonado, filho. A minha noiva era a rapariga mais bonita da aldeia. íamos casar, ela começava a bordar o enxoval e eu a poupar para fazermos uma casinha, quando me mandaram para o serviço militar. Quando voltei, tinha casado com o homem do talho e tornara-se uma senhora gorda. Estive quase a atirar-me ao rio com uma pedra nos pés, mas depois decidi ir para padre. No ano em que tomei o hábito, ela enviuvou e vinha à igreja olhar-me com olhos lânguidos.
As francas risadas do gigante jesuíta levantaram o moral a Pedro Tercero e fizeram-no sorrir pela primeira vez em três semanas.
- Isto é para que vejas, meu filho - concluiu o padre José Dulce Maria, - que não há motivos para desesperar. Tornarás a ver Blanca um dia, quando menos esperares.
Curado do corpo e da alma, Pedro Tercero Garcia foi para a capital com um embrulho de roupa e umas poucas moedas que o padre subtraiu das esmolas de domingo. Também lhe deu a direcção de um dirigente socialista da capital, que o acolheu em casa nos primeiros dias e que depois lhe arranjou trabalho como cantor numa associação recreativa. O jovem foi viver para um bairro operário, numa casa de madeira que lhe pareceu um palácio, sem mais mobiliário que um divã, um colchão, uma cadeira e dois caixotes que serviam de mesa. Dali divulgava o socialismo e ruminava o desgosto de que Blanca tivesse casado com outro, negando-se a aceitar as explicações e as palavras de consolo de Jaime. Em pouco tempo, tinha dominado a mão direita e multipli-cado o uso dos dedos que lhe restavam e continuou compondo canções de galinhas e raposos perseguidores. Um dia convidaram-no para um programa de rádio e esse foi o começo de uma vertiginosa popularidade que nem ele próprio esperava. A sua voz começou a ouvir-se frequentemente na rádio e o seu nome tornou-se conhecido. O senador Trueba, no entanto, nunca o ouviu nomear, porque em sua casa não admitia aparelhos de rádio. Considerava-os instrumentos próprios de gente inculta, portadores de influências nefastas e de ideias vulgares. Ninguém estava mais afastado da música popular que ele, para quem a única música suportável era a ópera durante a temporada lírica e a companhia de zarzuelas que vinha de Espanha todos os Invernos.
No dia em que Jaime chegou a casa com a novidade de que queria mudar de apelido porque, desde que o pai era senador do Partido Conservador, os companheiros hostilizavam-no na Universidade e desconfiavam dele no Bairro da Misericórdia, Esteban Trueba perdeu a paciência e esteve quase a esbofeteá-lo, mas conteve-se a tempo porque lhe viu no olhar que já não lhe toleraria isso.
- Casei-me para ter filhos legítimos que tivessem o meu apelido e não bastardos que tenham apenas nome da mãe! - atirou-lhe lívido de fúria.
Duas semanas mais tarde, ouviu comentar nos corredores do Congresso e nos salões do Clube que o seu filho Jaime tinha tirado as calças na Praça Brasil para as dar a um pobre e tinha regressado a casa em cuecas, ao longo de quinze quarteirões, seguido por uma chusma de crianças e curiosos que o vitoriavam. Cansado de defender a honra do ridículo e das chacotas, autorizou o filho a usar o apelido que lhe desse na gana, contanto que não fosse o seu. Nesse dia, fechado no escritório, chorou de decepção e de raiva. Disse a si próprio que semelhantes excentricidades passar-lhe-iam quando amadure-cesse e, mais tarde ou mais cedo, se tornaria num homem equilibrado. Em contrapartida, com o outro filho tinha perdido as esperanças. Nicolau passava de um projecto fantástico para outro. Andava por essa altura com a ilusão de cruzar a cordilheira, tal como muitos anos antes o tinha tentado o seu tio-avô Marcos, num meio de transporte pouco usual. Escolhera subir em balão, convencido de que o espectáculo de um gigantesco globo suspenso nas nuvens seria um irresistível elemento publicitário que qualquer bebida gasosa podia subsidiar. Copiou o modelo de um Zepelin alemão de antes da guerra, que subia por meio de um sistema de ar quente, levando dentro uma ou mais pes-soas de temperamento audaz. O trabalho de armar aquela gigantesca salsicha insuflável, estudar os mecanismos secretos, os ventos, os presságios das cartas e as leis da aerodinâmica mantiveram-no entretido por muito tempo. Esqueceu durante semanas as sessões de espiritismo das sextas-feiras com a mãe e as irmãs Mora, e nem sequer notou que Amanda tinha deixado de ir a casa. Logo que terminou a nave voadora, viu-se perante um obstáculo que não tinha calculado: o gerente das gasosas, um gringo do Arcansas, negou-se a financiar o projecto com o pretexto de que, se Nicolau morresse com o seu aparelho, baixariam as vendas da sua beberagem. Nicolau tratou de procurar outros patrocinadores, mas ninguém se interessou. Isso não foi suficiente para o fazer desistir dos seus propósitos e decidiu subir por todos os meios, mesmo que fosse de graça. No dia fixado, Clara continuou tecendo, imperturbável, sem prestar atenção aos preparativos do filho, apesar de toda a família, os vizinhos e os amigos estarem horrorizados com o plano sem pés nem cabeça de cruzar as montanhas com aquela máquina estrambólica.
- Tenho o pressentimento de que não vai subir - disse Clara sem parar de tecer.
Assim foi. No último momento, apareceu uma carrinha cheia de polícias no parque público que Nicolau tinha escolhido para subir. Exigiram uma auto-rização municipal que, obviamente, não tinha. Nem a pôde conseguir. Passou quatro dias correndo de uma repartição para outra, em esforços desesperados que esbarravam contra o muro da incompreensão burocrática. Nunca soube que, por trás da carrinha dos policias e das intermináveis papeladas, estava a influência do pai, que não estava disposto a permitir a aventura. Cansado de lutar contra a timidez do gringo das gasosas e contra a burocracia aérea, convenceu-se de que não podia levantar voo a menos que o fizesse clandes-tinamente, o que era impossível dadas as dimensões da nave. Entrou numa crise de ansiedade, da qual o tirou a mãe ao sugerir-lhe que, para não perder o investimento, usasse os materiais do balão para algum fim prático. Então, Nicolau idealizou a fábrica de sanduíches. O seu plano era fazer sanduíches de frango, embalá-las na tela do balão cortada em pedaços e vendê-las aos escriturários. A grande cozinha de sua casa pareceu-lhe ideal para a indústria. Os jardins das traseiras foram-se enchendo de aves com as patas atadas, que aguardavam a sua vez para os dois magarefes especialmente contratados lhes cortarem a cabeça em série. O pátio encheu-se de penas e o sangue salpicou as estátuas do Olimpo, o cheiro a consommé dava náuseas a toda a gente e o monte de tripas começava a encher o bairro de moscas, quando Clara pôs fim à matança com um ataque de nervos que por pouco a fazia voltar aos tempos da mudez. Este novo fracasso comercial não importou tanto a Nicolau, que também estava com o estômago e a consciência revolvidos pela carnificina. Resignou-se a perder o que tinha investido naqueles negócios e fechou-se no quarto a planear novas formas de ganhar dinheiro e de se divertir.
- Há muito tempo que não vejo Amanda por aqui - disse Jaime, que já não podia resistir a impaciência do coração.
Nesse momento, Nicolau recordou-se de Amanda e reparou que não a via deambular pela casa há umas três semanas e que não tinha assistido à tentativa fracassada de subir em balão nem à inauguração da indústria doméstica de pão com frango. Foi perguntar a Clara, mas a mãe também não sabia nada da jovem e estava começando a esquecê-la porque tivera de habituar a memória ao facto iniludível de que a casa era um passadiço de gente e, como ela dizia, não lhe chegava a alma para lamentar todos os ausentes. Nicolau decidiu então ir buscá-la, quando viu que lhe estavam a fazer falta a presença de borboleta inquieta de Amanda e os abraços sufocados e silenciosos nos quartos vazios da grande casa da esquina, onde brincavam como cachorros todas as vezes que Clara afrouxava a vigilância e Miguel se distraía a brincar ou cala a dormir nalgum canto.
A pensão onde vivia Amanda com o irmãozinho era uma casa que meio século antes tivera provavelmente algum esplendor, alguma ostentação, mas que a tinha perdido à medida que a cidade se foi estendendo pelas encostas da cordilheira. Ocuparam-na primeiro os comerciantes árabes, que lhe aplicaram pretensiosos frisos de gesso rosado e, mais tarde, quando os árabes mudaram os seus negócios para o Bairro dos Turcos, o proprietário transformou-a em pensão, subdividindo-a em quartos mal iluminados, tristes, incómodos, próprios para inquilinos de poucos recursos. Tinha uma geografia impossível de corredores estreitos e húmidos, onde reinava eternamente o vapor da sopa de couve-flor e do guisado de repolho. A dona da pensão veio em pessoa a abrir a porta, uma mulherona imensa, provida de uma majestosa papada tripla e olhinhos orientais sumidos em pregas de gordura fossilizada, com anéis em todos os dedos e gestos afectados de noviça:
- Não se aceitam visitantes do sexo oposto - disse a Nicolau.
Mas Nicolau abriu o irresistível sorriso de sedutor e beijou-lhe a mão sem recuar frente ao carmesim estalado das suas unhas sujas, extasiou-se com os anéis e fez-se passar por um primo-irmão de Amanda, até que ela, derrotada, retorcendo-se em risinhos coquetes e reviravoltas elefantisíacas, levou-o pelas escadas empoeiradas até ao terceiro piso onde lhe indicou a porta de Amanda. Nicolau encontrou a jovem na cama, embrulhada num xaile desbotado, a jogar às damas com o seu irmão Miguel. Estava tão pálida e fraca que ele teve dificuldade em reconhecê-la. Amanda olhou-o sem sorrir e não lhe fez nem o menor gesto de boas-vindas. Miguel por sua vez, ficou na sua frente com as mãos na cintura:
- Até que enfim que vens - disse-lhe o menino.
Nicolau aproximou-se da cama e tentou recordar a coleante e morena Amanda, a Amanda frutífera e sinuosa dos seus encontros na escuridão dos quartos fechados, mas dentro da lã compacta do xaile e dos lençóis cinzentos havia uma desconhecida de olhos extraviados, que o observava com inexpli-cável dureza. «Amanda», murmurou pegando-lhe na mão. Aquela mão sem os anéis e as pulseiras de prata parecia tão abandonada como a pata dum pássaro moribundo. Amanda chamou o irmão. Miguel aproximou-se e ela disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O menino foi lentamente até à porta, de lá deu um último olhar furioso a Nicolau e saiu, fechando a porta sem ruído.
- Perdoa-me, Amanda - balbuciou Nicolau. - Estive muito ocupado. Porque não me avisaste que estavas doente?
- Não estou doente - respondeu ela. - Estou grávida.
Esta palavra doeu a Nicolau como uma bofetada. Recuou até sentir o vidro da janela nas costas. Desde o primeiro momento em que despiu Amanda, tacteando no escuro, enredado nos trapos do seu disfarce existencia-lista, tremendo de antecipação pelas protuberâncias e pelos interstícios que muitas vezes tinha imaginado sem os chegar a conhecer na sua esplêndida nudez, supôs que ela teria experiência suficiente para evitar que ele se tornasse pai de família aos vinte e um anos e ela mãe solteira aos vinte e cinco. Amanda tivera amores anteriores e tinha sido a primeira a falar-lhe de amor livre. Mantinha a sua irrevogável determinação de ficarem juntos apenas enquanto tivessem simpatia um pelo outro, sem amarras e promessas para o futuro como Sartre e Beauvoir. Esse acordo, que a principio pareceu a Nicolau uma prova de frieza e despreconceito um pouco chocante, foi depois muito cómodo. Descontraído e alegre como era para todas as coisas da vida, encarou a relação amorosa sem medir as consequências.
- Que vamos fazer agora! - exclamou.
- Um aborto, evidentemente - respondeu ela.
Uma onda de alívio sacudiu Nicolau. Tinha escapado ao abismo uma vez mais. Como sempre que brincava à beira do precipício, outra pessoa mais forte tinha surgido a seu lado para se encarregar das coisas, tal como no tempo do colégio, quando surrava os rapazes no recreio até lhe caírem em cima e então, no último instante, no momento em que o terror o paralisava, chegava Jaime que se punha na sua frente, transformando o seu pânico em euforia e permitindo-lhe ocultar-se entre os pilares do pátio a gritar insultos do refúgio, enquanto o irmão sangrava do nariz e distribuía murros com a silenciosa teimosia de uma máquina. Agora, era Amanda quem assumia a responsabilidade por ele.
- Podemos casar, Amanda... se tu quiseres - balbuciou para salvar a honra.
- Não! - respondeu ela sem vacilar. - Não gosto de ti o suficiente para isso, Nicolau.
Imediatamente os seus sentimentos deram uma viragem brusca, porque essa possibilidade não lhe tinha vindo à ideia. Até então nunca tinha sido repudiado ou abandonado e em cada namorico tivera de recorrer ao seu bom tacto para se escapar sem ferir demasiado a rapariga da ocasião. Pensou na difícil situação em que se encontrava Amanda, pobre, sozinha, esperando um filho. Pensou que uma palavra sua poderia mudar o destino da jovem, tornan-do-se a respeitável esposa de um Trueba. Esses cálculos passaram-lhe pela cabeça numa fracção de segundo, mas em seguida sentiu-se envergonhado e corou ao surpreender-se mergulhado nesses pensamentos. Amanda pareceu-lhe logo magnífica. Vieram-lhe à memória todos os bons momentos que tinham vivido a dois, as vezes que se deitavam no chão fumando o mesmo cachimbo para se embriagarem um pouco juntos, rindo daquela droga que sabia a bosta seca e tinha efeitos muito pouco alucinógenos, mas que fazia funcionar o poder da sugestão; dos exercícios de ioga e da meditação, os dois sentados frente a frente, em completa descontracção, olhando-se nos olhos e murmurando palavras em sânscrito que poderiam transportá-los ao nirvana, mas que geralmente tinham um efeito contrário e acabavam escapulindo-se dos olhares alheios, agachados entre os matagais do jardim, amando-se como desesperados; dos livros lidos à luz de uma vela afogados em paixão e fumo; das tertúlias eternas discutindo os filósofos pessimistas do pós-guerra, ou concentrando-se para mover a mesa pé-de-galo, duas pancadas para sim, três para não, enquanto Clara gracejava com eles. Caiu de joelhos junto da cama suplicando a Amanda que não o deixasse, que lhe perdoasse, que continua-riam juntos como se nada se tivesse passado, que isso não era mais que um acidente infeliz que não podia alterar a essência intocável da sua relação. Mas ela não parecia ouvi-lo. Acariciava-lhe a cabeça com um gesto maternal e distante.
- É inútil, Nicolau. Não vês que tenho a alma muito velha e tu és ainda uma criança. Serás sempre uma criança - disse-lhe.
Continuaram a acariciar-se sem desejo e atormentando-se com as súpli-cas e as recordações. Saborearam a amargura de uma despedida que pressen-tiam, mas que ainda podiam confundir com uma reconciliação. Ela saiu da cama para preparar uma chávena de chá para os dois e Nicolau viu que usava um saiote velho como camisa de dormir. Tinha emagrecido e os seus torno-zelos pareciam patéticos. Andava descalça pelo quarto, com o xaile pelos ombros e o cabelo em desalinho, atarefada com o fogareiro a petróleo que havia sobre uma mesa que servia de secretária, mesa de comer e cozinha. Viu a desordem em que vivia Amanda e que até esse momento ignorava quase tudo acerca dela. Supunha que não tinha mais família que o irmão e que vivia com um magro salário, mas tinha sido incapaz de imaginar a sua verdadeira situação. A pobreza parecia-lhe um conceito abstracto e longínquo, aplicável aos caseiros de Las Tres Marias e aos pobres que o seu irmão Jaime socorria, mas com os quais ele nunca tinha estado em contacto. Amanda, a sua Amanda tão próxima e conhecida, era subitamente uma estranha. Olhava os seus vestidos, que pareciam trajes de uma rainha quando ela os punha, pendurados em pregos na parede, como tristes roupas de mendiga. Via a sua escova de dentes num copo sobre o lavatório oxidado, os sapatos de Miguel tantas vezes engraxados e tornados a engraxar que já tinham perdido a forma original, a velha máquina de escrever ao lado do fogareiro, os livros no meio das chávenas, o vidro partido de uma janela tapado com um recorte de revista. Era outro mundo. Um mundo de cuja existência não suspeitava. Até então, dum lado da linha divisória estavam os pobres e do outro as pessoas como ele, onde tinha colocado Amanda. Não sabia nada dessa silenciosa classe média que se debatia entre a pobreza do colarinho e da gravata e o desejo impossível de imitar a canalha dourada a que ele pertencia. Sentiu-se confuso e acabrunhado, pensando nas múltiplas ocasiões passadas em que ela teve provavelmente de aldrabá-los para que não se notasse a sua miséria na casa dos Trueba e ele, em completa inconsciência, não a tinha ajudado. Recordou as histórias do pai, quando lhe falava da sua infância pobre e de que na sua idade trabalhava para sustentar a mãe e a irmã, e pela primeira vez pôde encaixar essas narrativas didácticas numa realidade. Pensou que era assim a vida de Amanda.
Partilharam uma chávena de chá sentados sobre a cama, porque só havia uma cadeira. Amanda contou-lhe o seu passado e o da sua família, de um pai alcoólico que era professor numa província do Norte, de uma mãe alquebrada e triste que trabalhava para sustentar seis filhos e como ela, logo que pôde contar consigo, saíra de casa. Tinha chegado à capital com quinze anos, a casa de uma madrinha bondosa que a ajudou por algum tempo. Depois, quando a mãe morreu, foi enterrá-la e buscar Miguel, que era ainda uma criança de fraldas. Desde então tinha-lhe servido de mãe. Do pai e do resto dos irmãos não tinha tornado a saber nada. Nicolau sentia crescer dentro de si o desejo de a proteger e de cuidar dela, de compensar-lhe todas as carências. Nunca a tinha amado tanto.
Ao anoitecer viram chegar Miguel com as faces coradas, virando-se em segredo e divertido para esconder o presente que trazia escondido atrás das costas. Era um saco com pão para a irmã. Pôs-lho sobre a cama, beijou-a carinhosamente, alisou-lhe o cabelo com a mão pequenina, aconchegando-lhe as almofadas. Nicolau estremeceu, porque nos gestos do menino havia mais solicitude e ternura que em todas as carícias que ele tinha dado na sua vida a qualquer mulher. Compreendeu então o que Amanda queria dizer-lhe. «Tenho muito que aprender», murmurou. Apoiou a testa no vidro engordurado da janela, perguntando a si próprio se alguma vez seria capaz de dar na mesma medida em que esperava receber.
- Como o vamos fazer? - perguntou, sem se atrever a dizer a palavra terrível.
- Pede ajuda ao teu irmão Jaime - sugeriu Amanda.
Jaime recebeu o irmão no seu túnel de livros, recostado na tarimba de recruta, iluminado pela luz da única lâmpada pendurada no tecto. Estava a ler sonetos de amor do Poeta, que na altura já tinha renome mundial, tal como previra Clara a primeira vez que o ouviu recitar com a sua voz telúrica, no salão literário. Especulava que os sonetos talvez tivessem sido inspirados pela presença de Amanda no jardim dos Trueba, onde o Poeta costumava sentar-se à hora do chá, a falar de canções desesperadas, na época em que era um hóspede habitual da grande casa da esquina. Ficou surpreendido com a visita do irmão porque, desde que tinham saído do colégio, cada dia se distanciavam mais. Nos últimos tempos não tinham nada que falar e saudavam-se com uma inclinação de cabeça as raras vezes que se cruzavam no umbral da porta. Jaime tinha desistido da ideia de atrair Nicolau às coisas transcendentais da existência.
Ainda sentia que as frívolas diversões eram um insulto pessoal, porque não podia aceitar que ele gastasse tempo em viagens pelo mundo e massacres de galos, havendo tanto trabalho para fazer no Bairro da Misericórdia. Mas já não tentava arrastá-lo ao hospital, para que visse o sofrimento de perto, na esperança de que a miséria alheia conseguisse comover-lhe o coração de ave de arribação e deixou de o convidar para as reuniões com os socialistas na casa de Pedro Tercero, na última rua do bairro operário, onde se reuniam vigiados pela polícia todas as quintas-feiras. Nicolau ria-se das suas inquietações sociais dizendo que só um tonto com vocação de apóstolo podia sair pelo mundo em busca da desgraça e da fealdade com um coto de vela. Agora Jaime tinha o irmão na frente, olhando-o com a expressão culpada e suplicante que usara tantas vezes para ter o seu afecto.
- Amanda está grávida - disse Nicolau sem preâmbulos.
Teve de o repetir porque Jaime ficou imóvel, na mesma atitude dura que tinha sempre, sem que um só gesto denunciasse que tinha ouvido. Mas por dentro a frustração tomava conta dele. Em silêncio chamava Amanda pelo seu nome, agarrando-se, para manter o domínio, à doce ressonância dessa palavra. Era tão grande a necessidade de manter viva a ilusão que chegou a convencer-se de que Amanda tinha por Nicolau um amor infantil, uma relação limitada a passeios inocentes de mãos dadas, a discussões à volta de uma garrafa de absinto, aos poucos beijos fugidios que ele tinha surpreendido.
Tinha-se negado à verdade dolorosa que agora tinha de enfrentar.
- Não me contes. Não tenho nada a ver com isso – respondeu logo que pôde falar.
Nicolau deixou-se cair sentado aos pés da cama, com a cara entre as mãos.
- Tens de a ajudar, por favor - suplicou.
Jaime fechou os olhos e respirou fundo, esforçando-se por controlar sentimentos loucos que lhe davam forças para matar o irmão, para casar ele próprio com Amanda, para chorar de impotência e decepção. Tinha a imagem da jovem na memória, tal como lhe aparecia sempre que a angústia do amor o derrotava. Via-a entrando e saindo da casa, como uma lufada de ar puro, No dia em que Jaime chegou a casa com a novidade de que queria mudar de apelido porque, desde que o pai era senador do Partido Conservador, os com-panheiros hostilizavam-no na Universidade e desconfiavam dele no Bairro da Misericórdia, Esteban Trueba perdeu a paciência e esteve quase a esbofeteá-lo, mas conteve-se a tempo porque lhe viu no olhar que já não lhe toleraria isso.
- Casei-me para ter filhos legítimos que tivessem o meu apelido e não bastardos que tenham apenas nome da mãe! - atirou-lhe lívido de fúria.
Duas semanas mais tarde, ouviu comentar nos corredores do Congresso e nos salões do Clube que o seu filho Jaime tinha tirado as calças na Praça Brasil para as dar a um pobre e tinha regressado a casa em cuecas, ao longo de quinze quarteirões, seguido por uma chusma de crianças e curiosos que o vitoriavam. Cansado de defender a honra do ridículo e das chacotas, autorizou o filho a usar o apelido que lhe desse na gana, contanto que não fosse o seu. Nesse dia, fechado no escritório, chorou de decepção e de raiva. Disse a si próprio que semelhantes excentricidades passar-lhe-iam quando amadure-cesse e, mais tarde ou mais cedo, se tornaria num homem equilibrado. Em contrapartida, com o outro filho tinha perdido as esperanças. Nicolau passava de um projecto fantástico para outro. Andava por essa altura com a ilusão de cruzar a cordilheira, tal como muitos anos antes o tinha tentado o seu tio-avô Marcos, num meio de transporte pouco usual. Escolhera subir em balão, convencido de que o espectáculo de um gigantesco globo suspenso nas nuvens seria um irresistível elemento publicitário que qualquer bebida gasosa podia subsidiar. Copiou o modelo de um Zepelin alemão de antes da guerra, que subia por meio de um sistema de ar quente, levando dentro uma ou mais pessoas de temperamento audaz. O trabalho de armar aquela gigantesca sal-sicha insuflável, estudar os mecanismos secretos, os ventos, os presságios das cartas e as leis da aerodinâmica mantiveram-no entretido por muito tempo. Esqueceu durante semanas as sessões de espiritismo das sextas-feiras com a mãe e as irmãs Mora, e nem sequer notou que Amanda tinha deixado de ir a casa. Logo que terminou a nave voadora, viu-se perante um obstáculo que não tinha calculado: o gerente das gasosas, um gringo do Arcansas, negou-se a financiar o projecto com o pretexto de que, se Nicolau morresse com o seu aparelho, baixariam as vendas da sua beberagem. Nicolau tratou de procurar outros patrocinadores, mas ninguém se interessou. Isso não foi suficiente para o fazer desistir dos seus propósitos e decidiu subir por todos os meios, mesmo que fosse de graça. No dia fixado, Clara continuou tecendo, imperturbável, sem prestar atenção aos preparativos do filho, apesar de toda a família, os vizinhos e os amigos estarem horrorizados com o plano sem pés nem cabeça de cruzar as montanhas com aquela máquina estrambólica.
- Tenho o pressentimento de que não vai subir - disse Clara sem parar de tecer.
Assim foi. No último momento, apareceu uma carrinha cheia de polícias no parque público que Nicolau tinha escolhido para subir. Exigiram uma autorização municipal que, obviamente, não tinha. Nem a pôde conseguir. Passou quatro dias correndo de uma repartição para outra, em esforços desesperados que esbarravam contra o muro da incompreensão burocrática. Nunca soube que, por trás da carrinha dos policias e das intermináveis papeladas, estava a influência do pai, que não estava disposto a permitir a aventura. Cansado de lutar contra a timidez do gringo das gasosas e contra a burocracia aérea, convenceu-se de que não podia levantar voo a menos que o fizesse clandestinamente, o que era impossível dadas as dimensões da nave. Entrou numa crise de ansiedade, da qual o tirou a mãe ao sugerir-lhe que, para não perder o investimento, usasse os materiais do balão para algum fim prático. Então, Nicolau idealizou a fábrica de sanduíches. O seu plano era fazer sanduíches de frango, embalá-las na tela do balão cortada em pedaços e vendê-las aos escriturários. A grande cozinha de sua casa pareceu-lhe ideal para a indústria. Os jardins das traseiras foram-se enchendo de aves com as patas atadas, que aguardavam a sua vez para os dois magarefes especial-mente contratados lhes cortarem a cabeça em série. O pátio encheu-se de penas e o sangue salpicou as estátuas do Olimpo, o cheiro a consommé dava náuseas a toda a gente e o monte de tripas começava a encher o bairro de moscas, quando Clara pôs fim à matança com um ataque de nervos que por pouco a fazia voltar aos tempos da mudez. Este novo fracasso comercial não importou tanto a Nicolau, que também estava com o estômago e a consciência revolvidos pela carnificina. Resignou-se a perder o que tinha investido naqueles negócios e fechou-se no quarto a planear novas formas de ganhar dinheiro e de se divertir.
- Há muito tempo que não vejo Amanda por aqui - disse Jaime, que já não podia resistir a impaciência do coração.
Nesse momento, Nicolau recordou-se de Amanda e reparou que não a via deambular pela casa há umas três semanas e que não tinha assistido à tentativa fracassada de subir em balão nem à inauguração da indústria doméstica de pão com frango. Foi perguntar a Clara, mas a mãe também não sabia nada da jovem e estava começando a esquecê-la porque tivera de habituar a memória ao facto iniludível de que a casa era um passadiço de gente e, como ela dizia, não lhe chegava a alma para lamentar todos os ausentes. Nicolau decidiu então ir buscá-la, quando viu que lhe estavam a fazer falta a presença de borboleta inquieta de Amanda e os abraços sufocados e silenciosos nos quartos vazios da grande casa da esquina, onde brincavam como cachorros todas as vezes que Clara afrouxava a vigilância e Miguel se distraía a brincar ou cala a dormir nalgum canto.
A pensão onde vivia Amanda com o irmãozinho era uma casa que meio século antes tivera provavelmente algum esplendor, alguma ostentação, mas que a tinha perdido à medida que a cidade se foi estendendo pelas encostas da cordilheira. Ocuparam-na primeiro os comerciantes árabes, que lhe aplicaram pretensiosos frisos de gesso rosado e, mais tarde, quando os árabes mudaram os seus negócios para o Bairro dos Turcos, o proprietário transformou-a em pensão, subdividindo-a em quartos mal iluminados, tristes, incómodos, próprios para inquilinos de poucos recursos. Tinha uma geografia impossível de corredores estreitos e húmidos, onde reinava eternamente o vapor da sopa de couve-flor e do guisado de repolho. A dona da pensão veio em pessoa a abrir a porta, uma mulherona imensa, provida de uma majestosa papada tripla e olhinhos orientais sumidos em pregas de gordura fossilizada, com anéis em todos os dedos e gestos afectados de noviça:
- Não se aceitam visitantes do sexo oposto - disse a Nicolau.
Mas Nicolau abriu o irresistível sorriso de sedutor e beijou-lhe a mão sem recuar frente ao carmesim estalado das suas unhas sujas, extasiou-se com os anéis e fez-se passar por um primo-irmão de Amanda, até que ela, derrotada, retorcendo-se em risinhos coquetes e reviravoltas elefantisíacas, levou-o pelas escadas empoeiradas até ao terceiro piso onde lhe indicou a porta de Amanda. Nicolau encontrou a jovem na cama, embrulhada num xaile desbotado, a jogar às damas com o seu irmão Miguel. Estava tão pálida e fraca que ele teve dificuldade em reconhecê-la. Amanda olhou-o sem sorrir e não lhe fez nem o menor gesto de boas-vindas. Miguel por sua vez, ficou na sua frente com as mãos na cintura:
- Até que enfim que vens - disse-lhe o menino.
Nicolau aproximou-se da cama e tentou recordar a coleante e morena Amanda, a Amanda frutífera e sinuosa dos seus encontros na escuridão dos quartos fechados, mas dentro da lã compacta do xaile e dos lençóis cinzentos havia uma desconhecida de olhos extraviados, que o observava com inexpli-cável dureza. «Amanda», murmurou pegando-lhe na mão. Aquela mão sem os anéis e as pulseiras de prata parecia tão abandonada como a pata dum pássaro moribundo. Amanda chamou o irmão. Miguel aproximou-se e ela disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O menino foi lentamente até à porta, de lá deu um último olhar furioso a Nicolau e saiu, fechando a porta sem ruído.
- Perdoa-me, Amanda - balbuciou Nicolau. - Estive muito ocupado. Porque não me avisaste que estavas doente?
- Não estou doente - respondeu ela. - Estou grávida.
Esta palavra doeu a Nicolau como uma bofetada. Recuou até sentir o vi-dro da janela nas costas. Desde o primeiro momento em que despiu Amanda, tacteando no escuro, enredado nos trapos do seu disfarce existencialista, tremendo de antecipação pelas protuberâncias e pelos interstícios que muitas vezes tinha imaginado sem os chegar a conhecer na sua esplêndida nudez, supôs que ela teria experiência suficiente para evitar que ele se tornasse pai de família aos vinte e um anos e ela mãe solteira aos vinte e cinco. Amanda tivera amores anteriores e tinha sido a primeira a falar-lhe de amor livre. Mantinha a sua irrevogável determinação de ficarem juntos apenas enquanto tivessem simpatia um pelo outro, sem amarras e promessas para o futuro como Sartre e Beauvoir. Esse acordo, que a principio pareceu a Nicolau uma prova de frieza e despreconceito um pouco chocante, foi depois muito cómodo. Descon-traído e alegre como era para todas as coisas da vida, encarou a relação amorosa sem medir as consequências.
- Que vamos fazer agora! - exclamou.
- Um aborto, evidentemente - respondeu ela.
Uma onda de alívio sacudiu Nicolau. Tinha escapado ao abismo uma vez mais. Como sempre que brincava à beira do precipício, outra pessoa mais forte tinha surgido a seu lado para se encarregar das coisas, tal como no tempo do colégio, quando surrava os rapazes no recreio até lhe caírem em cima e então, no último instante, no momento em que o terror o paralisava, chegava Jaime que se punha na sua frente, transformando o seu pânico em euforia e permi-tindo-lhe ocultar-se entre os pilares do pátio a gritar insultos do refúgio, enquanto o irmão sangrava do nariz e distribuía murros com a silenciosa teimosia de uma máquina. Agora, era Amanda quem assumia a responsabilidade por ele.
- Podemos casar, Amanda... se tu quiseres - balbuciou para salvar a honra.
- Não! - respondeu ela sem vacilar. - Não gosto de ti o suficiente para isso, Nicolau.
Imediatamente os seus sentimentos deram uma viragem brusca, porque essa possibilidade não lhe tinha vindo à ideia. Até então nunca tinha sido repudiado ou abandonado e em cada namorico tivera de recorrer ao seu bom tacto para se escapar sem ferir demasiado a rapariga da ocasião. Pensou na difícil situação em que se encontrava Amanda, pobre, sozinha, esperando um filho. Pensou que uma palavra sua poderia mudar o destino da jovem, tornando-se a respeitável esposa de um Trueba. Esses cálculos passaram-lhe pela cabeça numa fracção de segundo, mas em seguida sentiu-se envergo-nhado e corou ao surpreender-se mergulhado nesses pensamentos. Amanda pareceu-lhe logo magnífica. Vieram-lhe à memória todos os bons momentos que tinham vivido a dois, as vezes que se deitavam no chão fumando o mesmo cachimbo para se embriagarem um pouco juntos, rindo daquela droga que sabia a bosta seca e tinha efeitos muito pouco alucinógenos, mas que fazia funcionar o poder da sugestão; dos exercícios de ioga e da meditação, os dois sentados frente a frente, em completa descontracção, olhando-se nos olhos e murmurando palavras em sânscrito que poderiam transportá-los ao nirvana, mas que geralmente tinham um efeito contrário e acabavam escapulindo-se dos olhares alheios, agachados entre os matagais do jardim, amando-se como desesperados; dos livros lidos à luz de uma vela afogados em paixão e fumo; das tertúlias eternas discutindo os filósofos pessimistas do pós-guerra, ou concentrando-se para mover a mesa pé-de-galo, duas pancadas para sim, três para não, enquanto Clara gracejava com eles. Caiu de joelhos junto da cama suplicando a Amanda que não o deixasse, que lhe perdoasse, que continua-riam juntos como se nada se tivesse passado, que isso não era mais que um acidente infeliz que não podia alterar a essência intocável da sua relação. Mas ela não parecia ouvi-lo. Acariciava-lhe a cabeça com um gesto maternal e distante.
- É inútil, Nicolau. Não vês que tenho a alma muito velha e tu és ainda uma criança. Serás sempre uma criança - disse-lhe.
Continuaram a acariciar-se sem desejo e atormentando-se com as súplicas e as recordações. Saborearam a amargura de uma despedida que pressentiam, mas que ainda podiam confundir com uma reconciliação. Ela saiu da cama para preparar uma chávena de chá para os dois e Nicolau viu que usava um saiote velho como camisa de dormir. Tinha emagrecido e os seus tornozelos pareciam patéticos. Andava descalça pelo quarto, com o xaile pelos ombros e o cabelo em desalinho, atarefada com o fogareiro a petróleo que havia sobre uma mesa que servia de secretária, mesa de comer e cozinha. Viu a desordem em que vivia Amanda e que até esse momento ignorava quase tudo acerca dela. Supunha que não tinha mais família que o irmão e que vivia com um magro salário, mas tinha sido incapaz de imaginar a sua verdadeira situação. A pobreza parecia-lhe um conceito abstracto e longínquo, aplicável aos caseiros de Las Tres Marias e aos pobres que o seu irmão Jaime socorria, mas com os quais ele nunca tinha estado em contacto. Amanda, a sua Amanda tão próxima e conhecida, era subitamente uma estranha. Olhava os seus vestidos, que pareciam trajes de uma rainha quando ela os punha, pendurados em pregos na parede, como tristes roupas de mendiga. Via a sua escova de dentes num copo sobre o lavatório oxidado, os sapatos de Miguel tantas vezes engraxados e tornados a engraxar que já tinham perdido a forma original, a velha máquina de escrever ao lado do fogareiro, os livros no meio das chávenas, o vidro partido de uma janela tapado com um recorte de revista. Era outro mundo. Um mundo de cuja existência não suspeitava. Até então, dum lado da linha divisória estavam os pobres e do outro as pessoas como ele, onde tinha colocado Amanda. Não sabia nada dessa silenciosa classe média que se debatia entre a pobreza do colarinho e da gravata e o desejo impossível de imitar a canalha dourada a que ele pertencia. Sentiu-se confuso e acabrunhado, pensando nas múltiplas ocasiões passadas em que ela teve provavelmente de aldrabá-los para que não se notasse a sua miséria na casa dos Trueba e ele, em completa inconsciência, não a tinha ajudado. Recordou as histórias do pai, quando lhe falava da sua infância pobre e de que na sua idade trabalhava para sustentar a mãe e a irmã, e pela primeira vez pôde encaixar essas narrativas didácticas numa realidade. Pensou que era assim a vida de Amanda.
Partilharam uma chávena de chá sentados sobre a cama, porque só havia uma cadeira. Amanda contou-lhe o seu passado e o da sua família, de um pai alcoólico que era professor numa província do Norte, de uma mãe alquebrada e triste que trabalhava para sustentar seis filhos e como ela, logo que pôde contar consigo, saíra de casa. Tinha chegado à capital com quinze anos, a casa de uma madrinha bondosa que a ajudou por algum tempo. Depois, quando a mãe morreu, foi enterrá-la e buscar Miguel, que era ainda uma criança de fraldas. Desde então tinha-lhe servido de mãe. Do pai e do resto dos irmãos não tinha tornado a saber nada. Nicolau sentia crescer dentro de si o desejo de a proteger e de cuidar dela, de compensar-lhe todas as carências. Nunca a tinha amado tanto.
Ao anoitecer viram chegar Miguel com as faces coradas, virando-se em segredo e divertido para esconder o presente que trazia escondido atrás das costas. Era um saco com pão para a irmã. Pôs-lho sobre a cama, beijou-a carinhosamente, alisou-lhe o cabelo com a mão pequenina, aconchegando-lhe as almofadas. Nicolau estremeceu, porque nos gestos do menino havia mais solicitude e ternura que em todas as carícias que ele tinha dado na sua vida a qualquer mulher. Compreendeu então o que Amanda queria dizer-lhe. «Tenho muito que aprender», murmurou. Apoiou a testa no vidro engordurado da janela, perguntando a si próprio se alguma vez seria capaz de dar na mesma medida em que esperava receber.
- Como o vamos fazer? - perguntou, sem se atrever a dizer a palavra terrível.
- Pede ajuda ao teu irmão Jaime - sugeriu Amanda.
Jaime recebeu o irmão no seu túnel de livros, recostado na tarimba de recruta, iluminado pela luz da única lâmpada pendurada no tecto. Estava a ler sonetos de amor do Poeta, que na altura já tinha renome mundial, tal como previra Clara a primeira vez que o ouviu recitar com a sua voz telúrica, no salão literário. Especulava que os sonetos talvez tivessem sido inspirados pela presença de Amanda no jardim dos Trueba, onde o Poeta costumava sentar-se à hora do chá, a falar de canções desesperadas, na época em que era um hóspede habitual da grande casa da esquina. Ficou surpreendido com a visita do irmão porque, desde que tinham saído do colégio, cada dia se distanciavam mais. Nos últimos tempos não tinham nada que falar e saudavam-se com uma inclinação de cabeça as raras vezes que se cruzavam no umbral da porta. Jaime tinha desistido da ideia de atrair Nicolau às coisas transcendentais da existência.
Ainda sentia que as frívolas diversões eram um insulto pessoal, porque não podia aceitar que ele gastasse tempo em viagens pelo mundo e massacres de galos, havendo tanto trabalho para fazer no Bairro da Misericórdia. Mas já não tentava arrastá-lo ao hospital, para que visse o sofrimento de perto, na esperança de que a miséria alheia conseguisse comover-lhe o coração de ave de arribação e deixou de o convidar para as reuniões com os socialistas na casa de Pedro Tercero, na última rua do bairro operário, onde se reuniam vigiados pela polícia todas as quintas-feiras. Nicolau ria-se das suas inquieta-ções sociais dizendo que só um tonto com vocação de apóstolo podia sair pelo mundo em busca da desgraça e da fealdade com um coto de vela. Agora Jaime tinha o irmão na frente, olhando-o com a expressão culpada e suplicante que usara tantas vezes para ter o seu afecto.
- Amanda está grávida - disse Nicolau sem preâmbulos.
Teve de o repetir porque Jaime ficou imóvel, na mesma atitude dura que tinha sempre, sem que um só gesto denunciasse que tinha ouvido. Mas por dentro a frustração tomava conta dele. Em silêncio chamava Amanda pelo seu nome, agarrando-se, para manter o domínio, à doce ressonância dessa palavra. Era tão grande a necessidade de manter viva a ilusão que chegou a convencer-se de que Amanda tinha por Nicolau um amor infantil, uma relação limitada a passeios inocentes de mãos dadas, a discussões à volta de uma garrafa de absinto, aos poucos beijos fugidios que ele tinha surpreendido.
Tinha-se negado à verdade dolorosa que agora tinha de enfrentar.
- Não me contes. Não tenho nada a ver com isso – respondeu logo que pôde falar.
Nicolau deixou-se cair sentado aos pés da cama, com a cara entre as mãos.
- Tens de a ajudar, por favor - suplicou.
Jaime fechou os olhos e respirou fundo, esforçando-se por controlar sentimentos loucos que lhe davam forças para matar o irmão, para casar ele próprio com Amanda, para chorar de impotência e decepção. Tinha a imagem da jovem na memória, tal como lhe aparecia sempre que a angústia do amor o derrotava. Via-a entrando e saindo da casa, como uma lufada de ar puro, levando o irmão pela mão, ouvia o seu riso no terraço, cheirava-lhe o imper-ceptível e doce aroma da pele e do cabelo quando passava a seu lado em pleno sol do meio-dia. Via-a tal como a imaginava nas horas ociosas em que sonhava com ela. E, sobretudo, evocava-a nesse momento preciso, único, em que Amanda entrou no seu quarto e estiveram sós na intimidade do seu santuário. Entrou sem bater, quando ele estava deitado no catre a ler, encheu o túnel com as voltas do longo cabelo e dos braços ondulantes, mexeu nos livros sem nenhum respeito e até se atreveu a tirá-los daquelas prateleiras sagradas, soprou-lhes o pó sem o menor respeito e depois atirou-os para cima da cama, falando sem se cansar, enquanto ele tremia de desejo e de surpresa, sem encontrar em todo o seu vasto vocabulário enciclopédico nem uma só palavra para a reter, até que por fim ela se despediu com um beijo que lhe pregou na face, beijo que lhe ficou a arder como uma queimadura, único e terrível beijo, que lhe serviu para construir um labirinto de sonhos em que ambos eram príncipes enamorados.
- Tu sabes alguma coisa de medicina, Jaime. Tens de fazer algo - pediu Nicolau.
- Sou estudante, falta-me muito para ser médico. Não sei nada disso. Mas já vi muitas mulheres morrerem porque um ignorante fez a intervenção - disse Jaime.
- Ela confia em ti. Diz que só tu podes ajudá-la – disse Nicolau. Jaime agarrou o irmão pela roupa e levantou-o no ar, sacudindo-o como um boneco, gritando todos os insultos que lhe passaram pela cabeça, até que os seus próprios soluços o obrigaram a soltá-lo. Nicolau chorou aliviado. Conhecia Jaime e percebeu que, como sempre, aceitava o papel de protector.
- Obrigado, irmão!
Jaime deu-lhe um murro sem vontade e empurrou-o para fora do quarto. Fechou a porta à chave e atirou-se de bruços para a cama, sacudido por esse pranto rouco e terrível com que os bonecos choram as penas de amor.
Esperaram até ao domingo seguinte. Jaime recebeu-os no consultório do Bairro da Misericórdia onde praticava. Tinha a chave porque era o último a sair, de modo que pôde entrar sem dificuldade, mas sentia-se como um ladrão, porque não teria podido explicar a sua presença ali àquela hora tardia. Desde há três dias, estudava cuidadosamente cada passo da intervenção que ia efectuar. Podia repetir, palavra por palavra, o livro por ordem correcta mas nem isso lhe dava mais segurança. Estava a tremer. Procurava não pensar nas mulheres que tinha visto chegar agonizantes à sala de emergência do hospital, as que tinha ajudado a salvar naquele mesmo consultório e as outras, as que tinham morrido, lívidas, naquelas camas, com um rio de sangue correndo entre as pernas, sem que a ciência pudesse fazer nada para evitar que a vida lhes escapasse por essa torneira aberta. Conhecia o drama de muito perto, mas até àquele momento nunca tinha tido de enfrentar o conflito moral de ajudar uma mulher desesperada. E muito menos Amanda. Acendeu as luzes, vestiu a bata do seu oficio, preparou o instrumental passando em voz alta todos os pormenores que tinha decorado. Desejava que acontecesse uma desgraça material, um cataclismo que sacudisse o planeta nos seus alicerces, para não ter de fazer o que ia fazer. Mas nada aconteceu até à hora marcada.
Entretanto, Nicolau tinha ido buscar Amanda no velho Covadonga, que só andava aos solavancos com as suas porcas, no meio de uma fumarada negra de óleo queimado, mas que também servia para as emergências. Ela esperava-o sentada na única cadeira do seu quarto, de mão dada a Miguel, mergulhados numa mútua cumplicidade da qual, como sempre, Nicolau se sentiu excluído. A jovem estava pálida e extenuada devido aos nervos e às últimas semanas de más disposições e incertezas que tinha suportado, mas estava mais calma do que Nicolau, que falava aos atropelos, não podia estar quieto e se esforçava por animá-la com uma alegria fingida e com gracejos inúteis. Tinha-lhe levado de presente um anel antigo de granadas e brilhantes que tirara do quarto da mãe, na certeza de que ela nunca daria pela falta e, mesmo que o visse na mão de Amanda, seria incapaz de o reconhecer, porque Clara não levava em conta essas coisas. Amanda devolveu-lho com suavidade:
- Estás a ver, Nicolau, és uma criança - disse sem sorrir.
No momento de sair, o pequeno Miguel enfiou um poncho e agarrou-se à mão da irmã. Nicolau teve de recorrer primeiro ao seu encanto e depois à força bruta para o deixar entregue à patroa da pensão, que nos últimos dias tinha sido definitivamente seduzida pelo suposto primo da pensionista e, contra as suas próprias normas, aceitara cuidar do menino naquela noite.
Fizeram o trajecto sem falar, cada um metido nos seus temores. Nicolau percebia a hostilidade de Amanda como uma pestilência que se tivesse instalado entre os dois. Nos últimos dias ela tinha chegado a amadurecer a ideia da morte e temia-a menos que a dor e a humilhação que nessa noite teria de suportar. Ele guiava o Covadonga por uma zona desconhecida da cidade, por vielas estreitas e fábricas, por um bosque de chaminés que não deixavam passar a cor do céu. Os cães vadios cheiravam a imundície e os mendigos dormiam envoltos em jornais nos vãos das portas. Surpreendeu-o que fosse aquele o cenário quotidiano das actividades do irmão.
Jaime estava à espera deles à porta do consultório. A bata branca e a sua própria ansiedade davam-lhe um ar muito grave. Levou-os através de um labirinto de corredores gelados até à sala que tinha preparado, procurando distrair Amanda da fealdade do lugar, para que não visse as toalhas amareladas nos baldes esperando a lavagem de segunda-feira, os palavrões garatujados -nas paredes, os ladrilhos soltos e as canalizações oxidadas que gotejavam sem parar. Amanda parou à porta do pavilhão com uma expressão de terror: tinha visto os instrumentos e a mesa ginecológica e o que até esse momento era uma ideia abstracta e uma brincadeira com a morte, tomou forma nesse instante. Nicolau estava lívido, mas Jaime pegou-lhe pelo braço e obrigou-os a entrar.
- Não olhes, Amanda! Vou adormecer-te, para não sentires nada - disse-lhe.
Nunca fizera nenhuma anestesia nem nenhuma operação. Como estu-dante limitava-se a trabalhos administrativos, a fazer estatísticas, a preencher fichas e a ajudar curativos, suturas e tarefas menores. Estava mais assustado do que a própria Amanda, mas adoptou a atitude prepotente e descontraída que tinha visto aos médicos, para ela acreditar que todo aquele assunto não era mais do que rotina. Quis evitar-lhe o trabalho de despir-se e evitar ele próprio a perturbação de a observar, por isso ajudou-a a estender-se vestida sobre a mesa. Enquanto se lavava e indicava a Nicolau a maneira de o fazer também, tentava distraí-la com a anedota do fantasma espanhol que tinha aparecido a Clara numa sessão das sextas-feiras, com o conto de que havia um tesouro escondido nas fundações da casa e falou-lhe na família: uma data de loucos extravagantes em várias gerações dos quais até os fantasmas se riam. Mas Amanda não o ouvia, estava pálida como um sudário e batiam-lhe os dentes.
- Para que são essas correias? Não quero que me amarres!
- Não te vou amarrar. Nicolau vai dar-te o éter. Respira tranquila e não te assustes porque quando acordares já terminámos. - Sorriu Jaime por cima da máscara.
Nicolau aproximou da jovem a máscara da anestesia. A última pessoa que ela viu na escuridão foi Jaime a olhá-la, com amor, mas pensou que estava sonhando. Nicolau tirou-lhe a roupa e atou-a à mesa consciente de que aquilo era pior que uma violação, enquanto o irmão aguardava com as mãos enluvadas, tentando ver nela, não a mulher que ocupava todos os seus pensamentos, mas apenas um corpo como tantos que, todos os dias, passavam por essa mesma mesa, com um grito de dor.
Começou a trabalhar com lentidão e cuidado, repetindo para si próprio o que tinha de fazer, mastigando o texto do livro que tinha aprendido de memó-ria, com o suor caindo-lhe sobre os olhos, atento à respiração da rapariga, à cor da sua pele, ao ritmo do coração, para dizer ao irmão que lhe pusesse mais éter cada vez que gemesse, rezando para que não acontecesse nenhuma complicação, enquanto esgravatava na sua mais profunda intimidade, sem deixar, em todo esse tempo, de maldizer o irmão em pensamento, porque se aquele filho fosse seu e não de Nicolau teria nascido são e completo, em vez de ir em pedaços pelo cano de esgoto daquele miserável consultório e ele tê-lo-ia embalado e protegido, em vez de o extrair do seu nicho às colheradas. Vinte e cinco minutos depois tinha terminado e ordenou a Nicolau que o ajudasse a acomodá-la enquanto Lhe passava o efeito do éter, mas viu que o irmão cambaleava apoiado contra a parede, tomado de violentos vómitos.
- Idiota! - rugiu Jaime. - Vai à casa de banho. Depois de vomitares a culpa, aguarda na sala de espera, porque ainda temos pano para mangas!
Nicolau saiu aos tropeções, Jaime tirou as luvas e a máscara e começou a tirar as correias de Amanda, a vestir-lhe delicadamente a roupa, a esconder os vestígios ensanguentados da sua obra e a retirar da vista os instrumentos da sua tortura. Levantou-a em seguida nos braços, saboreando aquele instante em que podia apertá-la contra o peito, e levou-a para uma cama onde tinha posto lençóis limpos, que era mais do que tinham as mulheres que iam ao consultório pedir socorro. Vestiu-a e sentou-se a seu lado. Pela primeira vez na sua vida podia observá-la à vontade. Era mais pequena e doce do que parecia quando andava por todo o lado com o disfarce de pitonisa e a choca-lhada de missangas e, tal como sempre tinha suspeitado, no seu corpo delgado os ossos eram apenas uma sugestão entre as pequenas colinas e os lisos vales da sua feminilidade. Sem a melena escandalosa e os olhos de esfinge, parecia ter quinze anos. A sua vulnerabilidade pareceu a Jaime mais desejável que tudo o que antes nela o tinha seduzido. Sentia-se maior e mais pesado do que ela duas vezes e mil vezes mais forte, mas sentia-se antecipa-damente derrotado pela ternura e pela ânsia de protegê-la. Amaldiçoou o seu invencIvel sentimentalismo e tentou vê-la como a amante do irmão a quem acabava de praticar um aborto, mas logo compreendeu que era uma intenção inútil, e abandonou-se ao prazer e ao sofrimento de a amar. Acariciou-lhe as mãos transparentes, os dedos finos, os lóbulos das orelhas, percorreu-lhe o pescoço ouvindo o rumor imperceptível da vida na suas veias. Aproximou a boca dos seus lábios e aspirou com avidez o odor da anestesia, mas não se atreveu a tocá-los.
Amanda regressou do sono lentamente. Sentiu primeiro frio e a seguir deram-lhe vómitos. Jaime consolou-a falando-lhe na mesma linguagem secre-ta que reservava para os animais e para as crianças mais pequenas do hospital dos pobres, até que se foi acalmando. Ela começou a chorar e ele continuou a acariciá-la. Ficaram em silêncio, ela oscilando entre a modorra, as náuseas, a angústia e a dor que começava a arrepanhar-lhe o ventre, ele desejando que essa noite não terminasse nunca.
- Crês que eu poderei ter filhos? - perguntou ela por fim.
- Suponho que sim - respondeu ele. - Mas procura para eles um pai responsável.
Os dois sorriram aliviados. Amanda procurou no rosto moreno de Jaime, inclinado tão próximo do seu, alguma semelhança com o de Nicolau e não a pôde encontrar. Pela primeira vez na sua existência de nómada sentiu-se protegida e segura, suspirou contente e esqueceu a sordidez que a rodeava, as paredes descascadas, os frios armários metálicos, os pavorosos instrumentos, o cheiro a desinfectante e também a dor rouca que se tinha instalado nas suas entranhas.
- Por favor, deita-te a meu lado e abraça-me - disse.
Ele estendeu-se timidamente na cama estreita rodeando-a com os braços. Procurava manter-se quieto para não a incomodar e não cair. Tinha a ternura desajeitada de quem nunca foi amado e deve improvisar. Amanda fechou os olhos e sorriu. Estiveram assim, respirando juntos em completa calma, como dois irmãos, até que começou a clarear e a luz da janela foi mais forte que a da lâmpada. Então Jaime ajudou-a a pôr-se em pé, vestindo-lhe o casaco e levou-a pelo braço até à antecâmara onde Nicolau tinha adormecido numa cadeira.
- Acorda! Vamos levá-la a casa, para que a mãe cuide dela. É melhor não a deixar só por estes dias - disse Jaime.
- Sabia que podia contar contigo, irmão - agradeceu Nicolau, emocionado.
- Não o fiz por ti, desgraçado, mas por ela - grunhiu Jaime virando-lhe as costas.
Na casa grande da esquina Clara recebeu-os sem fazer perguntas, ou talvez as fizesse directamente às cartas ou aos espíritos. Tiveram de acordá-la porque estava a amanhecer e ainda ninguém se tinha levantado.
- Mamã, ajuda Amanda - pediu Jaime com a segurança que dava a grande cumplicidade que tinham nesses assuntos. – Está doente. Vai ficar por uns dias.
- E o Miguelito?-perguntou Amanda.
- Eu irei buscá-lo-disse Nicolau e saiu.
Prepararam um dos quartos de hóspedes e Amanda deitou-se. Jaime tirou-lhe a temperatura e disse que devia descansar. Fez menção de se retirar, mas ficou parado no umbral da porta, indeciso. Nesse instante Clara voltou com uma bandeja com café para os três.
- Suponho que lhe devemos uma explicação, mamã – murmurou Jaime.
- Não, filho - respondeu Clara alegremente. - Se é pecado, prefiro que não mo contem. Vamos aproveitar para acarinhar Amanda um pouco, que bem falta lhe faz.
Saiu seguida pelo filho. Jaime viu a mãe avançar pelo corredor descalça, com o cabelo solto pelas costas, vestida com o roupão branco e notou que não era alta e forte como a tinha visto na infância. Estendeu a mão e reteve-a por um ombro. Ela voltou a cabeça e sorriu, e Jaime abraçou-a de súbito, estreitando-a contra o peito, raspando-lhe a testa com o queixo onde a barba crescida já reclamava navalha. Era a primeira vez que lhe fazia uma carícia espontânea desde que era uma criança presa por necessidade aos seus seios e Clara surpreendeu-se ao ver como o seu filho era grande, com um tórax de levantador de pesos e braços como martelos que a esmagavam num gesto temeroso. Emocionada e feliz perguntou a si própria como era possível que aquele homenzarrão peludo, com a força de um urso e a candura de uma noviça, tivesse estado alguma vez na sua barriga e além disso na companhia de outro.
Nos dias seguintes Amanda teve febre. Jaime, assustado, vigiava-a a todo o momento e administrava-lhe sulfamidas. Clara cuidava dela. Não deixou de observar que Nicolau perguntava por Amanda discretamente, mas não fazia nenhuma tentativa de a visitar, e que por seu lado Jaime fechava-se com ela, emprestava-lhe os seus livros mais queridos e andava como que iluminado, dizendo incoerências e rondando pela casa como nunca o tinha feito, até ao ponto de esquecer a reunião dos socialistas das quintas-feiras.
Foi assim que Amanda passou a fazer parte da família durante algum tempo e que Miguelito, por uma circunstância especial, esteve presente, escondido no armário, no dia em que nasceu Alba na casa dos Trueba, nunca mais esquecendo o grandioso e terrível espectáculo da criança vinda ao mundo envolvida nas mucosidades ensanguentadas, entre os gritos da mãe e o alvoroço das mulheres que circulavam à sua volta.
Entretanto, Esteban Trueba tinha partido de viagem para a América do Norte. Cansado com a dor dos ossos e com aquela secreta doença que só. ele percebia, tomou a decisão de se fazer examinar pelos médicos estrangeiros, porque tinha chegado à conclusão apressada de que os médicos latinos eram todos uns charlatões mais próximos do bruxo indígena que do cientista. O seu encolhimento era tão subtil, tão lento e disfarçado, que ninguém mais tinha notado. Tinha de comprar os sapatos um númeromais pequeno, tinha de fazer encurtar as calças e de mandar fazer pregas nas mangas das camisas. Um dia pôs o boné que não tinha usado em todo o Verão e viu que lhe cobria comple-tamente as orelhas, donde deduziu horrorizado que estava encolhendo o tamanho do seu cérebro provavelmente também minguavam as suas ideias. Os médicos gringos mediram-lhe o corpo, viram-lhe os dentes um por um, interrogaram-no em inglês, injectaram-lhe líquidos com uma agulha e extraíram-lhos com outra, radiografaram-no, viraram-no do avesso como uma luva e até lhe meteram uma lâmpada no ânus. Por fim, concluíram que eram puras ideias suas, que não pensasse que estava a encolher, que tinha tido sempre o mesmo tamanho e que certamente tinha sonhado que alguma vez medira um metro e oitenta e calçava quarenta e dois. Esteban Trueba acabou por perder a paciência e regressou à pátria disposto a não prestar atenção ao problema da estatura, visto que todos os grandes políticos da história tinham sido pequenos, desde Napoleão até Hitler.
Quando chegou a casa, viu Miguel brincando no jardim, Amanda mais magra e olheirenta, sem colares nem pulseiras, sentada com Jaime no terraço. Não fez perguntas, porque estava acostumado a ver gente estranha à família vivendo debaixo do seu próprio tecto.
O Conde
Esse período teria desaparecido na confusão das recordações antigas e apagadas pelo tempo se não fossem as cartas que Clara e Blanca trocaram. Essa vasta correspondência preservou os acontecimentos, salvando-os da nebulosa dos factos improváveis. A partir da primeira carta que recebeu da filha, depois do casamento, Clara pôde adivinhar que a sua separação de Blanca não seria por muito tempo. Sem dizer a ninguém, preparou um dos mais soalheiros e amplos quartos da casa, para a esperar. Instalou ali o berço de bronze onde tinha criado os três filhos.
Blanca nunca pôde explicar à mãe as razões pelas quais tinha aceitado casar, porque nem ela própria as sabia. Analisando o passado, quando já era uma mulher madura, chegou à conclusão de que a causa principal foi o medo que sentia pelo pai. Desde criança de peito tinha conhecido a força irracional da sua ira e estava habituada a obedecer-lhe. A gravidez e a noticia de que Pedro Tercero tinha morrido acabaram por fazê-la decidir; no entanto, propôs a si própria, no momento em que aceitou o enlace com Jean de Satigny, que nunca consumaria o casamento. Ia inventar toda a espécie de argumentos para atrasar a união, a princípio sob o pretexto das indisposições próprias do seu estado e depois procuraria outros, certa de que seria muito mais fácil manejar um marido como o conde, que usava calçado de pelica, punha verniz nas unhas e estava disposto a casar com uma mulher grávida de outro, do que opor-se a um pai como Esteban Trueba. De dois males, escolheu o que lhe pareceu menor. Deu conta que entre o pai e o conde francês havia um acordo comercial em que ela não tinha nada a dizer. Em troca de um apelido para o neto, Trueba deu a Jean de Satigny um dote suculento e a promessa de que um dia receberia uma herança. Blanca prestou-se para o negócio, mas não estava disposta a entregar ao marido nem amor nem a intimidade, porque continuava a amar Pedro Tercero Garcia, mais por força do hábito, do que pela esperança de o tornar a ver.
Blanca e o seu flamante marido passaram a primeira noite de casados no quarto nupcial do melhor hotel da capital, que Trueba mandou encher de flores para a filha lhe perdoar o rosário de violências com que a tinha casti-gado nos últimos meses. Para sua surpresa, Blanca não teve necessidade de fingir uma enxaqueca, porque logo que ficaram sós, Jean abandonou o papel de noivo que lhe dava beijos no pescoço e escolhia os melhores lagostins para lhos dar na boca, e pareceu esquecer por completo os modos sedutores de galã de cinema mudo, para se transformar no irmão que havia sido para ela nos passeios do campo, quando iam merendar sobre a relva com a máquina foto-gráfica e os livros em francês. Jean entrou na casa de banho, onde se demorou tanto que, quando reapareceu no quarto, Blanca estava meio adormecida. Julgou estar sonhando ao ver que o marido tinha trocado o fato de casamento por um pijama de seda negra e um roupão de veludo estilo Pompeia, tinha posto uma rede para segurar as impecáveis ondas do penteado e cheirava intensamente a colónia inglesa. Não parecia ter nenhuma impaciência erótica. Sentou-se ao seu lado na cama, acariciou-lhe a face com o mesmo gesto um pouco brincalhão que ela tinha visto noutras ocasiões, e começou a explicar no afectado espanhol sem erres que não tinha nenhuma inclinação especial para o casamento, porque era um homem apaixonado só pelas artes, pelas letras e pelas curiosidades cientificas, e que por isso não queria incomodá-la com exigências de marido, de maneira que podiam viver juntos, mas não revoltados, em perfeita harmonia e boa educação. Aliviada estendeu-lhe os braços ao pescoço e beijou-o em ambas as faces.
- Obrigado, Jean! - exclamou.
- Não tem de quê - respondeu cortesmente.
Acomodaram-se na grande cama de falso estilo Império, comentando os pormenores da festa e fazendo planos para a sua vida futura.
- Não te interessa saber quem é o pai do meu filho? - perguntou Blanca.
- Sou eu - respondeu Jean, beijando-a na testa.
Dormiram cada um para seu lado, de costas viradas. Às cinco da manhã Blanca despertou com o estômago às voltas devido ao cheiro adocicado das flores com que Esteban Trueba tinha decorado o quarto nupcial. Jean de Satigny acompanhou-a à casa de banho, segurou-lhe a testa enquanto se dobrava sobre a sanita, ajudou-a a deitar-se e atirou as flores para o corredor. Depois ficou acordado o resto da noite a ler A Filosofia da Alcova, do Marquês de Sade, enquanto Blanca suspirava entre sonhos que era estupendo estar casada com um intelectual.
No dia seguinte Jean foi ao Banco levantar um cheque do sogro e passou quase todo o dia percorrendo as lojas do centro para comprar o enxoval de noivo que considerou apropriado para a sua nova posição económica. Entretanto, Blanca, aborrecida de esperar por ele no hall do hotel resolveu ir visitar a mãe. Pôs o melhor chapéu da manhã e partiu num fiacre para a grande casa da esquina, onde o resto da família estava a almoçar em silêncio, ainda rancorosos e cansados pelos sobressaltos do casamento e pela ressaca das últimas lutas. Ao vê-la entrar na sala de jantar, o pai deu um grito de horror:
- Que fazes aqui, filha! - rugiu.
- Nada... venho vê-los - murmurou Blanca aterrada.
- Está louca! Não vê que se alguém a vê vão dizer que o seu marido a devolveu em plena lua-de-mel? Vão dizer que não era virgem!
- E não era, papá.
Esteban esteve a pontos de lhe estampar um bofetão na cara, mas Jaime meteu-se na frente com tanta determinação que se limitou a insultá-la pela sua estupidez. Clara, sem se impressionar, levou Blanca até uma cadeira e serviu-lhe um prato de peixe frito com molho de alcaparras. Enquanto Esteban continuava a gritar e Nicolau ia buscar o carro para a levar ao marido, as duas cochicharam como nos velhos tempos.
Nessa mesma tarde, Blanca e Jean tomaram o comboio que os levou ao porto. Aí embarcaram num transatlântico inglês. Ele vestia calças de linho branco e um casaco azul de corte à marinheira, que combinava na perfeição com a saia azul e o casaco branco do tailleur da mulher. Quatro dias mais tarde, o barco largou-os na mais esquecida província do Norte, onde as elegantes roupas e as malas de crocodilo passaram despercebidas no calor seco da hora da sesta. Jean de Satigny instalou provisoriamente a esposa num hotel e deu-se ao trabalho de procurar um alojamento digno dos seus novos rendimentos. Vinte e quatro horas depois, a pequena sociedade provin-ciana sabia que havia um conde autêntico entre eles. Isso facilitou muito as coisas a Jean. Pôde alugar uma antiga mansão que tinha pertencido a uma das grandes fortunas dos tempos do salitre, antes de se ter inventado o substituto sintético que arruinou toda a região. A casa estava um pouco triste e abandonada como tudo o resto, necessitava de algumas reparações, mas conservava intacta a dignidade de antigamente e o encanto do fim do século. O conde decorou-a com gosto, com um refinamento equívoco e decadente que surpreendeu Blanca, acostumada à vida do campo e à sobriedade clássica do seu pai. Jean colocou suspeitos jarrões de porcelana chinesa que em vez de flores tinham plumas de avestruz coloridas, cortinas de damasco com drape-jados e borlas, almofadões com franjas e pompons, móveis de todos os estilos, bengalas douradas, biombos e uns incríveis candeeiros de pé, sustidos por estátuas de loiça representando negros abissínios em tamanho natural, semi-nus, mas com babuchas e turbantes. A casa estava sempre com as cortinas corridas, numa ténue penumbra que conseguia deter a luz implacável do deserto. Nós cantos, Jean pôs turíbulos onde queimava ervas perfumadas e paus de incenso, que a princípio deram volta ao estômago de Blanca, mas a que ela logo se habituou. Contratou vários índios para o seu serviço, além de uma gorda monumental que fazia o trabalho da cozinha, a quem treinou para preparar os molhos muito apurados como ele gostava, e uma aia coxa e anal-fabeta para cuidar de Blanca. Vestiu a todos vistosos uniformes de opereta, mas não conseguiu pôr-lhessapatos, porque estavam habituados a andar descalços e não os aguentavam. Blanca sentia-se incomodada naquela casa e desconfiava dos índios de rosto inalterável, que a serviam sem vontade e pareciam rir-se dela nas suas costas. Circulavam à sua volta como espíritos, deslizando sem ruído pelos quartos, quase sempre sem nada que fazer e aborrecidos. Não respondiam quando ela lhes falava, como se não compreen-dessem o castelhano, e entre si falavam num sussurro ou em dialectos do planalto. Sempre que Blanca comentava com o marido as estranhas coisas que via nos serviçais, ele dizia que eram costumes de índios e que o melhor era não fazer caso. O mesmo respondeu Clara por carta quando ela lhe contou que um dia viu um dos índios equilibrando-se nuns surpreendentes sapatos antigos de tacão torcido e laço de veludo, onde os largos pés calosos do homem se mantinham encolhidos. «O calor do deserto, a gravidez e o teu desejo inconfessado de viver como uma condessa, de acordo com a linhagem do teu marido, fazem-te ter visões, filhinha», escreveu Clara em tom de graça e acrescentou que o melhor remédio contra os sapatos Luís XV era um duche frio e um chá de macela. De outra vez Blanca encontrou no seu prato uma pequena lagartixa morta que esteve quase a levar à boca. Logo que se refez do susto e conseguiu falar, chamou aos gritos a cozinheira e apontou-lhe o prato com o dedo a tremer. A cozinheira aproximou-se bamboleando a imensidão de gordura e as tranças negras, e pegou no prato sem comentários. Mas, no momento de voltar-se, Blanca julgou surpreender um gesto de cumplicidade entre o marido e a índia. Nessa noite ficou acordada até muito tarde, pen-sando no que tinha visto, até que ao amanhecer chegou à conclusão de que tinha imaginado tudo. A mãe tinha razão: o calor e a gravidez estavam a transtorná-la.
Os quartos mais afastados da casa foram destinados à mania de Jean pela fotografia. Instalou lá as máquinas. Pediu a Blanca que não entrasse nunca sem autorização naquilo que baptizou de «laboratório», porque, segundo explicou, podiam-se velar as chapas com a luz natural. Pôs fechadura na porta e andava com a chave pendurada de uma corrente de ouro, precaução completamente inútil, porque a mulher não tinha praticamente nenhum interesse pelo que a rodeava e muito menos pela arte da fotografia.
À medida que engordava, Blanca ia adquirindo uma placidez oriental contra a qual esbarravam as tentativas do marido para incorporá-la na sociedade, levá-la a festas, passeá-la de carro ou entusiasmá-la pela decoração do seu novo lar. Pesada, sem graça, solitária e com um cansaço permanente, Blanca refugiou-se na tecelagem e no bordado. Passava grande parte do dia a dormir e nas horas de vigília fazia minúsculas peças de roupa para um enxoval cor-de-rosa, porque estava segura de que daria à luz uma menina. Tal como a mãe fizera com ela, desenvolveu um sistema de comunicação com a criança que estava a gerar, voltando-se para o seu interior num diálogo silencioso e ininterrupto. Nas cartas descrevia a vida retirada e melancólica e referia-se ao marido com cega simpatia, como um homem fino, discreto e considerado. Assim foi-se estabelecendo, sem ser proposta por si, a lenda de que Jean de Satigny era quase um príncipe, sem mencionar o facto de que aspirava cocaína pelo nariz e fumava ópio à tarde, porque tinha a certeza de que os pais não saberiam compreendê-lo. Dispunha de toda uma ala da mansão só para ela. Ali tinha assentado arraiais e ali amontoava tudo o que estava preparando para a chegada da filha. Jean dizia que nem em cinquenta anos conseguiria vestir toda aquela roupa e brincar com aquela quantidade de brinquedos, mas a única diversão de Blanca era sair para percorrer o reduzido comércio da cidade e comprar tudo o que via em cor-de-rosa para o bebé. O dia passava-o a bordar mantinhas, fazer sapatinhos de lã, decorar açafates, ordenar pilhas de camisas, de babeiros, de fraldas, passar a ferro os lençóis bordados. Depois da sesta escrevia à mãe e às vezes ao irmão Jaime e, quando o Sol se punha e refrescava um pouco, caminhava pelos arredores da casa para desentorpecer as pernas. à noite reunia-se com o marido na grande sala de jantar onde os. negros de loiça, postos nos seus cantos, iluminavam o jantar com luz de prostíbulo. Sentavam-se um em cada extremo da mesa posta com toalha grande, cristais e baixela completa e ornamentada com flores artificiais, porque naquela região inóspita não as havia naturais. Servia-os sempre o mesmo índio impassível e silencioso, que mantinha na boca girando permanentemente a bola verde de folhas de coca com que se sustentava. Não era um serviçal vulgar e não cumpria nenhuma função específica dentro da organização doméstica. Nem servir à mesa era o seu forte, porque não dominava nem as travessas nem os talheres e acabava por servir-lhes a comida de qualquer maneira. Blanca teve de dizer-lhe certa ocasião que por favor não agarrasse as batatas com a mão para as pôr no prato. Mas Jean de Satigny estimava-o por alguma razão e treinava-o para ser o seu ajudante de laboratório.
- Se não pode falar como um cristão, menos poderá tirar retratos - observou Blanca quando soube.
Foi aquele índio que Blanca julgou ver enfeitado com sapatos Luís XV.
Os primeiros meses da sua vida de casada passaram-se tranquilos e aborrecidos. A tendência natural de Blanca para o isolamento e a solidão acentuou-se. Negou-se à vida social e Jean de Satigny acabou por ir sozinho aos numerosos convites que recebiam. Depois, quando chegava a casa, comentava para Blanca o pedantismo daquelas famílias antigas e velhas em que as senhoras andavam com acompanhante e os cavalheiros usavam escapulários. Blanca pôde fazer a vida ociosa para a qual tinha vocação, enquanto o marido se dedicava àqueles pequenos prazeres que só o dinheiro pode pagar e àqueles a que tinha renunciado por tão longo tempo. Sala todas as noites para jogar no casino e a mulher calculou que devia perder grandes somas de dinheiro, porque no fim do mês havia invariavelmente uma fila de credores à porta. Jean tinha uma ideia muito peculiar sobre a economia doméstica. Comprou um automóvel do último modelo, com assentos forrados de pele de leopardo e buzinas douradas, digno de um príncipe árabe, o maior e o mais espaventoso que alguma vez se vira por aqueles lados. Estabeleceu uma rede de contactos misteriosos que lhe permitiam comprar antiguidades, especialmente porcelana francesa de estilo barroco, pela qual tinha um grande fraco. Também meteu no pais caixotes de bebidas finas que passavam pela alfândega sem problemas. Os seus contrabandos entravam em casa pela porta de serviço e saíam intactos pela porta principal rumo a outros sítios, onde Jean os consumia em pandegas secretas ou os vendia por um preço exorbitante. Em casa não recebiam visitas e em poucas semanas as senhoras da localidade deixaram de convidar Blanca. Tinha corrido o rumor de que era orgulhosa, altiva e doente, o que aumentou a simpatia geral pelo conde francês que granjeou fama de marido paciente e sofredor.
Blanca dava-se bem com o marido. As únicas ocasiões em que discutiam era quando ela tentava averiguar as finanças familiares. Não conseguia compreender que Jean se desse ao luxo de comprar porcelanas e passear naquele veículo tigrado, se não tinha dinheiro suficiente para pagar a conta do chinês do armazém nem os salários dos numerosos serviçais. Jean negava-se a falar do assunto, com o pretexto de que isso eram responsabilidades propriamente masculinas e que ela não tinha necessidade de encher a cabecinha de pardal com problemas que não tinha capacidade para compreender. Blanca supôs que a conta de Jean de Satigny com Esteban Trueba tinha fundos ilimitados e, ante a impossibilidade de chegar a um acordo com ele, acabou por se desinteressar desse problema. Vegetava como uma flor de outro clima, dentro daquela casa encravada nos areais, rodeada de índios insólitos que pareciam existir noutra dimensão, surpreendendo amiúde pequenos pormenores que a induziam a duvidar do seu próprio juízo. A realidade parecia-lhe indefinida como se aquele sol implacável que apagava as cores também tivesse deformado as coisas que a rodeavam e tivesse convertido os seres humanos em sombras silenciosas.
No torpor daqueles meses, Blanca protegida pela criança que crescia dentro de si, esqueceu a grandeza da sua desgraça. Deixou de pensar em Pedro Tercero Garcia com a oprimida urgência com que o fazia antes e refu-giou-se em recordações doces e distantes que podia evocar a todo o momento. A sua sensualidade estava adormecida e, nas raras ocasiões em que meditava sobre o seu destino infeliz, tinha prazer em se imaginar a si mesma flutuando numa nebulosa, sem tristezas e alegrias, alheada das coisas brutais da vida, isolada com a sua filha por única companheira. Chegou a pensar que tinha perdido para sempre a capacidade de amar e que o ardor da sua carne se apagara definitivamente. Passava intermináveis horas contemplando a paisa-gem pálida que se estendia diante da janela. A casa ficava no limite da cidade, rodeada por algumas árvores raquíticas que resistiam ao ataque implacável do deserto. Para o lado norte, o vento destruía toda a espécie de vegetação e podia ver-se a imensa planície de dunas e cerros longínquos tremendo na rever-beração da luz. De dia, o corpo vergava-se-lhe com o sufocar daquele sol de chumbo e de noite tremia de frio entre os lençóis da cama, defendendo-se das geadas com sacos de água quente e xailes de lã. Olhava o céu despido e límpido procurando o vestígio de uma nuvem com a esperança de que alguma vez caísse uma gota de chuva que viesse aliviar a aspereza opressiva daquele vale lunar. Os meses decorriam imutáveis sem mais diversão do que as cartas da mãe, em que lhe contava a campanha política do pai, as loucuras de Nicolau, as extravagancias de Jaime, que vivia como um padre, mas andava com os olhos enamorados. Clara sugeriu-lhe numa das cartas que, para ter as mãos ocupadas, devia voltar a fazer presépios. Ela tentou. Encomendou a argila especial que estava acostumada a usar em Las Tres Marias, montou a oficina na parte posterior da cozinha e pôs dois índios a construir um forno para cozer as figuras de barro. Mas Jean de Satigny ria-se do seu afã artístico, dizendo que se era para manter as mãos ocupadas melhor seria tricotar botinhas e aprender a fazer pastelinhos folhados. Ela terminou por abandonar o trabalho, não tanto pelos sarcasmos do marido, mas porque se lhe tornou impossível competir com a olaria antiga dos índios.
Jean tinha organizado o seu negócio com a mesma tenacidade que antes empregara no assunto das chinchilas, mas com mais êxito. A não ser um padre alemão que havia trinta anos percorria a região para desenterrar o passado dos Incas, ninguém mais se preocupava com aquelas relíquias por as considerarem sem valor comercial. O governo proibia o tráfego de antiguidades indígenas e tinha dado uma concessão geral ao padre, que estava autorizado a requisitar peças e levá-las para o museu. Passou dois dias com o alemão, que, feliz por encontrar depois de tantos anos uma pessoa interessada no seu trabalho, não teve reticências em revelar os seus vastos conhecimentos. Assim soube a forma de determinar quanto tempo tinham estado enterradas, aprendeu a diferençar as épocas dos estilos, descobriu o modo de localizar os cemitérios no deserto por meio de sinais invisíveis aos olhos civilizados e chegou finalmente à conclusão de que, se aquelas bilhas não tinham o esplendor dourado dos túmulos egípcios, tinham pelo menos valor histórico. Logo que obteve toda a informação de que necessitava, organizou grupos de índios para desenterrar tudo o que tivesse escapado ao zelo arqueológico do padre.
Os magníficos guacos (Objectos cerâmicos procedentes dos antigos túmulos ameríndios. (N. T.)), verdes pela pátina do tempo, começaram a chegar a casa disfarçados em embrulhos de índios e alforges de lamas, enchendo rapidamente os lugares secretos a eles destinados. Blanca via-os amontoarem-se nos quartos e ficava maravilhada pelas suas formas. Segurava-os nas mãos, acariciando-os como que hipnotizada e quando os embalava em palha e papel para os enviar para destinos longínquos e desconhecidos sentia-se angustiada. Aquela olaria parecia-lhe demasiado formosa. Sentia que os monstros dos seus presépios não podiam estar debaixo do mesmo tecto com os guacos e assim, mais por essa do que por outra razão, abandonou a oficina.
O negócio das gredas indígenas era secreto porque eram património histórico da nação. Trabalhavam para Jean de Satigny vários grupos de índios que tinham chegado ali deslizando clandestinamente pelas intrincadas passagens da fronteira. Não tinham documentos que os acreditassem como seres humanos, eram silenciosos, rudes e impenetráveis. Todas as vezes que Blanca perguntava de onde saiam aqueles seres que apareciam subitamente no pátio, respondiam-lhe que eram primos do que servia à mesa, e com efeito eram parecidos uns com os outros. Não demoravam muito tempo em casa. A maior parte do tempo estavam no deserto, sem mais bagagem que uma pá para escavar a areia e uma bola de coca na boca para se manterem vivos. Por vezes, tinham a sorte de encontrar ruínas semienterradas numa aldeia inca e em pouco tempo enchiam as caves da casa com o que roubavam nas escavações. A busca, transporte e comercialização dessa mercadoria fazia-se de maneira tão cautelosa que Blanca não teve a menor dúvida de que havia algo ilegal por detrás das actividades do marido. Jean explicou-lhe que o Governo era muito susceptível a respeito daqueles cântaros sujos e dos míseros colares de pedrinhas do deserto e que, para evitar os labirintos eternos da burocracia oficial, preferia negociá-los à sua maneira. Fazia-os sair do país em caixas seladas com etiquetas de maçãs, graças à cumplicidade interessada de alguns inspectores da alfândega.
Tudo isso trazia Blanca em cuidados. Só a preocupava o assunto das múmias. Estava familiarizada com os mortos, porque tinha passado toda a vida em estreito contacto com eles através da mesa de pé-de-galo, com que a mãe os chamava. Estava acostumada a ver-lhe as silhuetas transparentes passeando pelos corredores da casa dos pais, fazendo barulho nos roupeiros e aparecendo nos sonhos para prognosticar desgraças ou os prémios da lotaria. Mas as múmias eram diferentes. Aqueles seres encolhidos, envoltos em trapos que se desfaziam em tiras empoeiradas, com as cabeças descarnadas e amarelas, as mãozinhas enrugadas, as pálpebras cosidas, os cabelos ralos na nuca, os eternos e terríveis sorrisos nos lábios, o cheiro a ranço e o ar triste e pobre dos cadáveres antigos revolviam-lhe a alma. Havia poucas. Raras vezes os índios chegavam com alguma. Lentos, impassíveis, apareciam em casa carregando uma grande vasilha de barro cozido selada. Jean abria-a cuidado-samente num quarto com todas as portas e janelas fechadas, para que o primeiro sopro do ar a não transformasse em cinza. No interior da vasilha aparecia a múmia como o caroço de um fruto estranho, encolhida na posição fetal, envolvida em farrapos, acompanhada pelos miseráveis tesouros de cola-res de dentes e bonecos de trapo. Eram muito mais apreciadas que os restantes objectos que tiravam dos túmulos, porque os coleccionadores priva-dos e alguns museus estrangeiros pagavam-nas muito bem. Blanca pergun-tava que tipo de pessoas podia coleccionar mortos e onde os poriam. Não podia imaginar uma múmia fazendo parte da decoração de um salão, mas Jean de Satigny dizia-lhe que dentro de uma urna de cristal podiam ser mais valiosas que qualquer obra de arte para um milionário europeu. As múmias eram difíceis de colocar no mercado, transportar e passar pela alfândega, de maneira que às vezes permaneciam várias semanas nas caves da casa, esperando a sua vez de fazerem a grande viagem ao estrangeiro. Blanca sonhava com elas, tinha alucinações, julgava vê-las andar pelos corredores na ponta dos pés, pequenas como gnomos disfarçados e furtivos. Fechava a porta do quarto, metia a cabeça debaixo dos lençóis e passava horas assim, a tre-mer, a rezar, a chamar a mãe com a força do pensamento. Contou-o a Clara nas cartas e esta respondeu-lhe que não devia ter medo dos mortos, mas dos vivos, porque apesar da má fama não constava que as múmias atacassem alguém; pelo contrário, eram de natureza bem tímida. Fortalecida pelos conselhos da mãe, Blanca resolveu espiá-las. Esperava-as em silêncio, vigian-do a porta entreaberta do quarto. Teve imediatamente a certeza de que passea-vam pela casa, arrastando os pezinhos infantis pelas alcatifas, cochichando como escolares, empurrando-se, passeando todas as noites em pequenos grupos de duas ou três, sempre em direcção do laboratório fotográfico de Jean de Satigny. Por vezes, julgava ouvir uns gemidos longínquos do outro mundo e sofria arrebatamentos incontroláveis de terror, chamava o marido aos gritos, mas ninguém acudia e ela tinha demasiado medo para atravessar toda a casa para o ir procurar. Com os primeiros raios de Sol, Blanca recuperava a lucidez e o domínio dos nervos atormentados, via que as angústias nocturnas eram fruto da imaginação febril que tinha herdado da mãe e tranquilizava-se até voltarem a cair as sombras da noite e começar de novo o seu ciclo de temor. Um dia não suportou mais a tensão que sentia à medida que se aproximava a noite e decidiu falar com Jean sobre as múmias. Estavam a jantar. Quando ela lhe contou os passeios, os sussurros e os gritos sufocados, Jean de Satigny ficou petrificado, com o garfo na mão e a boca aberta. O índio que ia a entrar na sala com a bandeja escorregou e o frango assado rebolou para debaixo da cadeira. Jean empregou todo o seu encanto, firmeza e sentido de lógica para a convencer de que os nervos lhe estavam a falhar e que nada disso ocorria na realidade, mas que era produto da sua fantasia sobressaltada. Blanca fingiu aceitar o raciocínio, mas pareceu-lhe muito suspeita a veemência do marido, que habitualmente não prestava atenção aos seus problemas, assim como a cara do serviçal, que por um momento perdeu a expressão imutável de ídolo e se lhe desorbitaram os olhos. Considerou intimamente que tinha chegado a hora de investigar a fundo o assunto das múmias transumantes. Nessa noite despediu-se cedo, depois de dizer ao marido que pensava tomar um tranquili-zante para dormir. Em vez disso, bebeu uma chávena grande de café negro e pôs-se junto à porta, disposta a passar muitas horas de vigília.
Sentiu os primeiros passinhos por volta da meia-noite. Abriu a porta com muita cautela e assomou a cabeça, no preciso instante em que uma pequena figura agachada passava ao fundo do corredor. Desta vez tinha a certeza de não ter sonhado, mas devido ao peso do ventre, necessitou de quase um minuto para alcançar o corredor. A noite estava fria e soprava a brisa do deserto, que fazia ranger os velhos madeiramentos da casa e enfunava as cortinas como velas negras no alto mar. Desde pequena, quando escutava contos de cucos da Ama na cozinha, temia a escuridão, mas não se atreveu a acender as luzes para não espantar as pequenas múmias nos seus passeios vagabundos.
Em breve rompeu o espesso silêncio da noite um grito rouco, amortecido, como se saísse do fundo de um ataúde, pelo menos foi o que Blanca pensou. Começava a ser vítima de uma fascinação mórbida pelas coisas do além-túmulo. Ficou imóvel, com o coração quase a saltar-lhe da boca, mas um segundo gemido tirou-a da cisma dando-lhe forças para avançar até à porta do laboratório de Jean de Satigny. Quis abri-la, mas estava fechada à chave. Encostou a cara à porta e então sentiu claramente murmúrios, gritos sufocados e risos e perdeu todas as dúvidas de que alguma coisa se estava a passar com as múmias. Regressou ao quarto, confortada com a convicção de que não eram os nervos que lhe estavam a falhar, mas que algo de atroz acontecia no antro secreto do marido.
No dia seguinte, Blanca esperou que Jean de Satigny terminasse o pequeno almoço com a frugalidade do costume, lesse o jornal até à última página e saísse para o passeio de todas as manhãs, sem que nada da plácida indiferença de futura mãe denunciasse a sua feroz determinação. Quando Jean saiu, ela chamou o índio dos saltos altos e pela primeira vez deu-lhe uma ordem:
- Vai à cidade e compra-me papaias cristalizadas.
O índio foi com o andar lento dos da sua raça e ela ficou em casa com os outros serviçais, de quem tinha muito menos medo que desse estranho indivíduo de tendências cortesãs. Pensou que dispunha de um par de horas antes dele regressar, de maneira que resolveu não se apressar e actuar com serenidade. Estava decidida a esclarecer o mistério das múmias furtivas. Dirigiu-se ao laboratório, certa de que, com a luz da manhã, as múmias não teriam vontade de fazer passeatas e desejando que a porta não estivesse fechada à chave, mas encontrou-a trancada como sempre. Experimentou todas as chaves que tinha, mas nenhuma serviu. Então pegou na maior faca da cozinha, meteu-a no gonzo da porta e começou a forçar até que a madeira seca da guarnição saltou em pedaços e pôde soltar assim a chapa e abrir a porta. O estrago que fez na porta não se podia disfarçar e compreendeu que, quando o marido o visse, teria de dar alguma explicação razoável, mas contentou-se com o argumento de que como dona de casa tinha o direito de saber o que se estava a passar debaixo do seu tecto. Apesar do seu sentido prático, que tinha resistido inalterável mais de vinte anos ao baile da mesa de pé-de-galo e a ouvir a mãe prever o imprevisível, ao passar a porta do laboratório Blanca estava a tremer.
Procurou a tactear o interruptor e acendeu a luz. Encontrou-se num quarto espaçoso, com as paredes pintadas de preto e pesadas cortinas da mesma cor nas janelas, por onde não passava nem o mais pequeno raio de luz. O chão estava coberto de espessas alcatifas escuras e por todos os lados viu os focos, as lâmpadas e os quebra-luzes que tinha visto Jean usar pela primeira vez durante o funeral de Pedro Garcia, o velho, quando lhe deu para tirar retratos aos mortos e aos vivos, até que pôs toda a gente tão irritada que os camponeses acabaram por pisar as chapas no chão. Olhou à sua volta desconcertada: estava dentro de um cenário fantástico. Avançou pelo meio de baús abertos que tinham roupagens emplumadas de todas as épocas, perucas frisadas e chapéus pomposos, deteve-se em frente de um trapézio dourado suspenso do tecto, onde se pendurava um boneco desarticulado de proporções humanas, viu num canto um lama embalsamado, garrafas com licores amba-rinos e no chão peles de animais exóticos. Mas o que mais a surpreendeu foram as fotografias. Ao vê-las parou estupefacta. As paredes do estúdio de Jean de Satigny estavam cobertas de angustiantes cenas eróticas que revelavam a natureza oculta do marido.
Blanca era de reacções lentas e por isso demorou um certo tempo a assimilar o que via, até porque não tinha experiência desses assuntos. Conhecia o prazer como uma última e preciosa etapa no longo caminho que tinha percorrido com Pedro Tercero, por onde tinha passado sem pressa, com bom humor no meio dos bosques, dos trigais, do rio, debaixo de um céu imenso, no silêncio do campo. Não teve as inquietações próprias da adolescência. Enquanto as suas companheiras no colégio liam às escondidas novelas proibidas com galãs imaginários apaixonados e virgens ansiosas por deixar de o ser, ela sentava-se à sombra das cerejeiras no pátio das freiras, fechava os olhos e evocava com total precisão a magnifica realidade de Pedro Tercero Garcia abraçando-a, percorrendo-a com carícias e arrancando-lhe do mais profundo os mesmos acordes que podia tirar da guitarra. Os seus instintos viram-se satisfeitos mal despertaram e não lhe tinha passado pela cabeça que a paixão pudesse ter outras formas Aquelas cenas desordenadas e atormentadas eram uma realidade mil vezes mais desconcertante que as múmias escandalosas que esperara encontrar.
Reconheceu os rostos dos serviçais da casa. Ali estava toda a corte dos incas nua como Deus a pôs no mundo, ou mal coberta por roupagens de teatro. Viu o abismo insondável entre as coxas da cozinheira, o lama embalsamado montando a aia manca e o índio impávido que servia à mesa, em pêlo como um recém-nascido, sem barba e perna curta, com o rosto de pedra inalterável, e o desproporcionado pénis em erecção.
Por um instante interminável, Blanca ficou suspensa na sua própria incerteza, até que o horror a venceu. Procurou pensar com lucidez. Compreen-deu o que Jean de Satigny tinha querido dizer na noite de casamento, quando lhe explicou que não se sentia inclinado para a vida de casado. Vislumbrou também o sinistro poder do índio, a zombaria disfarçada dos serviçais e sentiu-se prisioneira na antecâmara do inferno. Nesse momento, a menina mexeu-se dentro de si e ela estremeceu como se uma campainha de alerta tivesse tocado.
- Minha filha! Tenho de a tirar daqui! - exclamou abraçando o ventre.
Saiu a correr do laboratório, atravessou a casa como um raio é chegou à rua, onde o calor de chumbo e a luz impiedosa do meio-dia lhe devolveram o sentido da realidade. Compreendeu que não podia chegar muito longe a pé com a barriga de nove meses. Regressou ao quarto, pegou em todo o dinheiro que pôde encontrar, fez um atado com algumas roupas do sumptuoso enxoval que tinha preparado e dirigiu-se para a estação.
Sentada na gare, num tosco banco de madeira, com o embrulho no regaço e os olhos espantados, Blanca esperou durante horas a chegada do comboio, rezando entredentes para que o conde, ao voltar a casa e ver os estragos na porta do laboratório, não a procurasse até dar com ela e a obrigasse a regressar ao reino maléfico dos incas, rezou para que o comboio se apressasse e cumprisse o horário uma vez na vida, para poder chegar a casa dos pais antes que a criança que lhe apertava as entranhas e lhe dava pontapés nas costelas anunciasse a sua vinda ao mundo, para ter forças para essa viagem de dois dias sem descanso e para que o desejo de viver fosse mais poderoso que aquela terrível desolação que começava a paralisá-la. Apertou os dentes e esperou.
A Menina Alba
Alba nasceu parada, o que é sinal de boa sorte. A sua avó Clara procurou nas suas costas e encontrou uma mancha em forma de estrela que caracteriza os seres que nascem capacitados para encontrar a felicidade. «Não há que preocupar-se com esta menina. Terá boa sorte e será feliz. Além disso terá boa pele, porque isso herda-se e, na minha idade, não tenho rugas e nunca me rebentou uma borbulha», sentenciou Clara no segundo dia do nascimento. Por essas razões não se preocuparam em prepará-la para a vida, já que os astros se tinham combinado para a dotar de tantos dons. O seu signo era Leão. A sua avó estudou a sua carta astral e anotou o seu destino com tinta branca num álbum de papel negro, onde colou também algumas mechas esverdeadas do seu primeiro cabelo, as unhas que lhe cortou pouco tempo depois de nascer e vários retratos que permitem apreciá-la tal como era: um ser extraordinariamente pequeno, quase calvo, enrugado e pálido, sem outro indício de inteligência humana que os negros olhos reluzentes, com uma sábia expressão de velhice desde o berço. O seu verdadeiro pai era assim que os tinha. A mãe queria chamar-lhe Clara, mas a avó não era partidária de repetir os nomes da família, porque isso cria confusão nos cadernos de anotar a vida. Procuraram um nome num dicionário de sinónimos e descobriram o seu, que é o último de uma cadeia de palavras luminosas que querem dizer o mesmo. Anos depois Alba atormentava-se pensando que, quando ela tivesse uma filha, não haveria outra palavra com o mesmo significado que pudesse servir-lhe de nome, mas Blanca deu-lhe a ideia de usar línguas estrangeiras, o que oferece uma ampla variedade.
Alba esteve quase a nascer num comboio de via reduzida, às três da tarde, no meio do deserto. Isso teria sido fatal para a sua carta astrológica. Por sorte, pôde aguentar-se dentro da mãe várias horas mais e conseguiu nascer na casa dos avós, no dia, na hora e no lugar exactos que mais convinham ao seu horóscopo. A mãe chegou à grande casa da esquina sem aviso prévio, desgrenhada, coberta de pó, olheirenta e dobrada em duas pela dor das contracções com que Alba puxava para sair, tocou à porta com desespero e, quando a abriram, passou como um furacão, sem parar, até à sala de costura, onde Clara estava a acabar o último vestido primoroso para a sua futura neta. Foi ali que Blanca se deixou cair, depois da sua longa viagem, sem conseguir dar nenhuma explicação, porque o ventre rebentou-se-lhe com um profundo suspiro e sentiu que toda a água do mundo lhe corria por entre as pernas num gorgolejo furioso. Aos gritos de Clara acudiram os criados e Jaime, que nesses dias estava sempre em casa à volta de Amanda. Levaram-na para o quarto de Clara e, enquanto a instalavam sobre a cama e lhe arrancavam a roupa do corpo aos puxões, Alba começou a mostrar a sua minúscula huma-nidade. O tio Jaime, que tinha assistido a alguns partos no hospital, ajudou-a a nascer, agarrando-a firmemente pelas nádegas com a mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda tacteava na escuridão à procura do pescoço da criança, para separar o cordão umbilical que a estrangulava. Entretanto Amanda, que chegou a correr, atraída pelo alvoroço, apertava o ventre de Blanca com todo o peso do seu corpo e Clara, inclinada sobre o rosto sofredor da filha, aproximava-lhe do nariz um coador de chá coberto com um trapo, onde se destilavam umas gotas de éter. Alba nasceu com rapidez. Jaime tirou-lhe o cordão do pescoço, segurou-a no ar de boca para baixo e com duas sonoras palmadas iniciou-a no sofrimento da vida e na mecânica da respi-ração, mas Amanda, que tinha lido sobre os costumes das tribos africanas e pregava o retorno à natureza, tirou-lhe a recém-nascida das mãos e colocou-a carinhosamente sobre o ventre morno da mãe, onde encontrou algum consolo na tristeza de nascer. Mãe e filha permaneceram descansando, nuas e abra-çadas, enquanto as outras pessoas limpavam os vestígios do parto e se atarefavam com os lençóis novos e as primeiras fraldas. Na emoção desses momentos, ninguém reparou na porta entreaberta do armário, onde o pequeno Miguel observava a cena paralisado de medo, gravando para sempre na sua memória a visão do gigantesco globo atravessado de veias e coroado por um umbigo saliente, donde saiu aquele ser arroxeado, enrolado numa horrenda tripa azul.
Registaram Alba no Registo Civil e nos livros da paróquia, com o apelido francês do pai, mas ela não chegou a usá-lo porque o da mãe era mais fácil de soletrar. O avô, Esteban Trueba, nunca esteve de acordo com esse mau hábito, porque, tal como dizia sempre que lhe davam a oportunidade, tinha tido muito trabalho para que a menina tivesse um pai conhecido e um apelido respeitável e não tivesse de usar o da mãe, como se fosse filha da vergonha e do pecado. Também não permitiu que se duvidasse da legitima paternidade do conde e continuou esperando, contra toda a lógica, que mais tarde ou mais cedo se notasse a elegância de modos e o fino encanto do francês na silenciosa e desajeitada neta que deambulava pela sua casa. Clara também não mencionou o assunto até muito tempo depois, numa ocasião em que viu a menina brincando entre as destruídas estátuas do jardim e verificou que não se parecia com ninguém da família e muito menos com Jean de Satigny.
- A quem terá ido buscar esses olhos de velho? - perguntou a avó.
- Os olhos são do pai - respondeu Blanca distraidamente.
- Pedro Tercero Garcia, suponho - disse Clara.
- Isso mesmo - concordou Blanca.
Foi a única vez que se falou na origem de Alba no seio da família, porque tal como Clara anotou, o assunto não tinha importância nenhuma, já que, de qualquer maneira, Jean de Satigny tinha desaparecido das suas vidas. Não tornaram a saber dele e ninguém se deu ao trabalho de averiguar o seu paradeiro, nem sequer para legalizar a situação de Blanca, a quem faltavam as liberdades de uma solteira e tinha todas as limitações de uma mulher casada, mas que não tinha marido. Alba nunca viu um retrato do conde, porque a sua mãe não deixou nenhum canto da casa por revistar, até os destruir todos, mesmo aqueles em que aparecia pelo seu braço no dia do casamento. Tinha tomado a decisão de esquecer o homem com quem se casou e fazer de conta que nunca existira. Não tornou a falar dele nem deu uma explicação para a sua fuga do domicílio conjugal. Clara, que tinha passado nove anos muda, conhecia as vantagens do silêncio, de modo que não fez perguntas à filha e colaborou na tarefa de apagar Jean de Satigny das suas recordações. Disse-ram a Alba que o pai tinha sido um nobre cavalheiro, inteligente e distinto, que tivera a desgraça de morrer de febre no deserto do Norte. Foi uma das poucas mentiras que teve de suportar na infância, porque em tudo o mais esteve em intimo contacto com as prosaicas verdades da existência. O tio Jaime encarregou-se de destruir o mito dos meninos que nascem nas couves ou são transportados de Paris pelas cegonhas e o tio Nicolau o dos Reis Magos, das fadas e dos papões. Alba tinha pesadelos em que via a morte do seu pai. Sonhava com um homem jovem, formoso e inteiramente vestido de branco, com sapatos de verniz da mesma cor e um chapéu de palhinha, caminhando pelo deserto debaixo de sol. No sonho, o caminhante abrandava o passo, vacilava, ia cada vez mais lento, tropeçava e cala, levantava-se e tornava a cair, abrasado pelo calor, pela febre e pela sede. Arrastava-se de joelhos um bocado sobre as ardentes areias, mas finalmente ficava estendido na imensidão daquelas dunas lívidas, com as aves de rapina voando em círculos sobre o seu corpo inerte. Tantas vezes o sonhou, que foi uma surpresa quando muitos anos depois teve de ir reconhecer o cadáver do que julgava seu pai, num depósito da Morgue Municipal. Nessa altura Alba era uma jovem valorosa, de temperamento audaz e acostumada às adversidades, por isso foi sozinha. Recebeu-a um praticante de avental branco, que à conduziu pelos longos corredores do antigo edifício até uma sala grande e fria, com paredes pintadas de cinzento. O homem do avental branco abriu a porta de uma gigantesca geleira e tirou um tabuleiro onde jazia um corpo inchado, velho e de cor azulada. Alba olhou-o com atenção sem encontrar nenhuma parecença com a imagem que tantas vezes tinha sonhado. Pareceu-lhe um tipo comum e corrente, com aspecto de empregado dos correios. Olhou-lhe as mãos: não eram as de um nobre cavalheiro, fino e inteligente, mas as de um homem que não tinha nada de interessante para contar. Mas os seus documentos eram. uma prova irrefutável de que aquele cadáver azul e triste era Jean de Satigny que não morrera de febre nas dunas douradas de um pesadelo de infância, mas simplesmente de uma apoplexia ao atravessar a rua na sua velhice. Mas tudo isso aconteceu muito depois. Nos tempos em que Clara estava viva, quando Alba era ainda uma criança, a grande casa da esquina era um mundo fechado, onde ela cresceu protegida até dos seus próprios pesadelos.
Alba não tinha ainda duas semanas, quando Amanda se foi da grande casa da esquina. Tinha recuperado as forças e não teve dificuldade em adivi-nhar o desejo intenso no coração de Jaime. Pegou no irmãozinho pela mão e partiu como tinha chegado, sem ruído e sem promessas. Perderam-na de vista e o único que a podia procurar não o quis fazê-lo para não ferir o irmão. Só por casualidade Jaime voltou a vê-la muitos anos depois, mas então já era tarde para ambos. Depois que ela se foi, Jaime afogou o desespero nos estudos e no trabalho. Regressou aos seus antigos hábitos de anacoreta e não aparecia quase nunca pela casa. Não tornou a mencionar o nome da jovem e afastou-se para sempre do seu irmão.
A presença da neta em casa amaciou o caracter de Esteban Trueba. A mudança foi imperceptível, mas Clara notou-o. Denunciavam-no pequenos sintomas: o brilho do seu olhar quando via a menina, os presentes caros que lhe trazia, a angústia se a ouvia chorar. Isso, no entanto, não o aproximou de Blanca. As relações com a filha nunca foram boas e desde o funesto casamento estavam tão deterioradas que só a cortesia obrigatória imposta por Clara lhes permitia viver debaixo do mesmo tecto.
Nessa época a casa dos Trueba tinha quase todos os quartos ocupados e punha-se diariamente a mesa para a família, para os convidados e um lugar a mais para quem chegasse sem se anunciar. A porta principal estava sempre aberta, para que entrassem e saíssem os que se aproveitavam do parentesco e as visitas. Enquanto o senador Trueba procurava emendar os destinos do seu país, a mulher navegava habilmente nas agitadas águas da vida social e nas outras, surpreendentes, do seu caminho espiritual. A idade e a prática acen-tuaram a capacidade de Clara para adivinhar o oculto e mover as coisas à distância. Os estados de animo exaltados conduziam-na com facilidade a transes em que podia deslocar-se sentada na cadeira por todo o quarto, como se houvesse um motor escondido debaixo do assento. Nesses dias, um jovem artista famélico, acolhido na casa por misericórdia, pagou a hospedagem pintando o único retrato que existe de Clara. Muito tempo depois, o misérrimo artista tornou-se um mestre e hoje o quadro está num museu de Londres, como tantas outras obras de arte que saíram do pais na época em que se teve de vender a mobília para alimentar os perseguidos. Na tela pode ver-se uma mulher madura, vestida de branco, com o cabelo prateado e uma doce expres-são de trapezista no rosto, descansando numa cadeira de balanço que está suspensa acima do nível do chão, flutuando entre cortinas de flores, uma jarra que voa de pernas para o ar e um gato gordo e negro que observa sentado como um grande senhor. Influência de Chagall, diz o catálogo do museu, mas não é assim. Corresponde exactamente à realidade que o artista viveu na casa de Clara. Essa foi a época em que as forças ocultas da natureza humana e o bom humor divino actuavam com impunidade, provocando um estado de emergência e sobressalto nas leis da física e da lógica. As comunicações de Clara com as almas vagabundas e com os extraterrestres davam-se através da telepatia, dos sonhos e de um pêndulo que ela usava para tal fim, sustendo-o no ar sobre um alfabeto que colocava ordenadamente na mesa. Os movimen-tos autónomos do pêndulo assinalavam as letras e formavam as mensagens em espanhol e esperanto, demonstrando assim que são os únicos idiomas que interessavam aos seres de outras dimensões, e não o inglês, como diria Clara nas suas cartas aos embaixadores das potências anglófonas, sem que eles alguma vez lhe respondessem, assim como também o não fizeram os suces-sivos ministros da Educação aos quais se dirigiu para lhes expor a sua teoria de que em vez de ensinar o inglês e francês nas escolas, línguas de marinhei-ros, negociantes e usurários, devia ser obrigatório as crianças estudarem esperanto.
Alba passou a sua infância entre dietas vegetarianas, artes marciais japonesas, danças do Tibete e respiração ioga, relaxamento e concentração com o professor Hausser e muitas outras técnicas interessantes, sem contar as contribuições que deram à sua educação os dois tios e as três encantadoras senhoritas Mora. A sua avó Clara arranjava as coisas de maneira a manter a rodar aquele imenso carromato cheio de alucinados em que se tinha transformado o seu lar, embora ela própria não tivesse nenhuma habilidade doméstica e detestasse as quatro operações até ao ponto de se esquecer de somar, de modo que a organização da casa e as contas caíram de forma natural nas mãos de Blanca, que repartia o seu tempo entre os trabalhos de mordomo daquele reino em miniatura e a sua oficina de cerâmica no fundo do pátio, último refúgio para os seus pesares, onde dava aulas tanto para mongolóides como para meninas, e fabricava os seus incríveis presépios de monstros que, contra toda a lógica, se vendiam como pão saído do forno.
Desde muito pequena, Alba teve a responsabilidade de pôr flores frescas nos jarrões. Abria as janelas para que entrassem a jorros a luz e o ar, mas as flores não conseguiam durar até à noite, porque o vozeirão de Esteban Trueba e as suas bengaladas tinham o poder de espantar a natureza. À sua passagem fugiam os animais domésticos e as plantas murchavam. Blanca criava uma árvore da borracha trazida do Brasil, uma mata esquálida e tímida cuja única graça era o seu preço: comprava-se às folhas. Quando ouviam chegar o avô, o que estava mais perto corria a pôr a seringueira a salvo no terraço, porque mal o velho entrava na sala, a planta baixava as folhas e começava a exumar pelo tronco um pranto esbranquiçado como lágrimas de leite. Alba não ia ao colégio porque a sua avó dizia que alguém tão favorecido pelos astros como ela não necessitava mais que saber ler e escrever e isso podia ela aprender em casa. Dedicou-se tanto a alfabetizá-la que aos cinco anos a menina lia o jornal à hora do pequeno almoço para comentar as notícias com o seu avô, aos seis tinha descoberto os livros mágicos dos baús encantados do lendário tio-bisavô Marcos e tinha entrado em cheio no mundo sem regresso da fantasia. Também não se preocuparam com a sua saúde, porque não acreditavam em benefícios de vitaminas e diziam que as vacinas eram para as galinhas. Além disso, a sua avó estudou-lhe as linhas da mão e disse que teria saúde de ferro e uma longa vida. O único cuidado frívolo que lhe prodigalizaram foi penteá-la com Bayrum para mitigar o tom verde-escuro que o seu cabelo tinha ao nascer, apesar do senador Trueba dizer que deviam deixá-lo assim, porque ela era a única que tinha herdado alguma coisa da bela Rosa, embora infelizmente só fosse a cor marítima do cabelo. Para lhe agradar Alba abandonou na adolescência os subterfúgios do Bayrum e enxaguava a cabeça com infusão de salsa, o que permitiu ao verde reaparecer em toda a sua frondosidade. O resto da sua pessoa era pequeno e anódino, ao contrário da maioria das mulheres da sua família que, quase sem excepção, foram esplêndidas.
Nos poucos momentos de ócio que Blanca tinha para pensar em si mesma e na sua filha, lamentava que ela fosse uma menina solitária e silenciosa, sem companheiros da sua idade para brincar. Na realidade, Alba não se sentia sozinha, pelo contrário, por vezes teria sido muito feliz se tivesse conseguido iludir a clarividência da avó, a intuição da mãe e o alvoroço das pessoas extravagantes que constantemente apareciam, desapareciam e reapa-reciam na grande casa da esquina. Blanca também se preocupava por a filha não brincar com bonecas, mas Clara apoiava a neta com o argumento de que esses
Alba passou a sua infância entre dietas vegetarianas, artes marciais japonesas, danças do Tibete e respiração ioga, relaxamento e concentração com o professor Hausser e muitas outras técnicas interessantes, sem contar as contribuições que deram à sua educação os dois tios e as três encantadoras senhoritas Mora. A sua avó Clara arranjava as coisas de maneira a manter a rodar aquele imenso carromato cheio de alucinados em que se tinha transfor-mado o seu lar, embora ela própria não tivesse nenhuma habilidade doméstica e detestasse as quatro operações até ao ponto de se esquecer de somar, de modo que a organização da casa e as contas caíram de forma natural nas mãos de Blanca, que repartia o seu tempo entre os trabalhos de mordomo daquele reino em miniatura e a sua oficina de cerâmica no fundo do pátio, último refúgio para os seus pesares, onde dava aulas tanto para mongolóides como para meninas, e fabricava os seus incríveis presépios de monstros que, contra toda a lógica, se vendiam como pão saído do forno.
Desde muito pequena, Alba teve a responsabilidade de pôr flores frescas nos jarrões. Abria as janelas para que entrassem a jorros a luz e o ar, mas as flores não conseguiam durar até à noite, porque o vozeirão de Esteban Trueba e as suas bengaladas tinham o poder de espantar a natureza. À sua passagem fugiam os animais domésticos e as plantas murchavam. Blanca criava uma árvore da borracha trazida do Brasil, uma mata esquálida e tímida cuja única graça era o seu preço: comprava-se às folhas. Quando ouviam chegar o avô, o que estava mais perto corria a pôr a seringueira a salvo no terraço, porque mal o velho entrava na sala, a planta baixava as folhas e começava a exumar pelo tronco um pranto esbranquiçado como lágrimas de leite. Alba não ia ao colégio porque a sua avó dizia que alguém tão favorecido pelos astros como ela não necessitava mais que saber ler e escrever e isso podia ela aprender em casa. Dedicou-se tanto a alfabetizá-la que aos cinco anos a menina lia o jornal à hora do pequeno almoço para comentar as notícias com o seu avô, aos seis tinha descoberto os livros mágicos dos baús encantados do lendário tio-bisavô Marcos e tinha entrado em cheio no mundo sem regresso da fantasia. Também não se preocuparam com a sua saúde, porque não acreditavam em benefícios de vitaminas e diziam que as vacinas eram para as galinhas. Além disso, a sua avó estudou-lhe as linhas da mão e disse que teria saúde de ferro e uma longa vida. O único cuidado frívolo que lhe prodigalizaram foi penteá-la com Bayrum para mitigar o tom verde-escuro que o seu cabelo tinha ao nascer, apesar do senador Trueba dizer que deviam deixá-lo assim, porque ela era a única que tinha herdado alguma coisa da bela Rosa, embora infelizmente só fosse a cor marítima do cabelo. Para lhe agradar Alba abandonou na adolescência os subterfúgios do Bayrum e enxaguava a cabeça com infusão de salsa, o que permitiu ao verde reaparecer em toda a sua frondosidade. O resto da sua pessoa era pequeno e anódino, ao contrário da maioria das mulheres da sua família que, quase sem excepção, foram esplêndidas.
Nos poucos momentos de ócio que Blanca tinha para pensar em si mesma e na sua filha, lamentava que ela fosse uma menina solitária e silen-ciosa, sem companheiros da sua idade para brincar. Na realidade, Alba não se sentia sozinha, pelo contrário, por vezes teria sido muito feliz se tivesse conseguido iludir a clarividência da avó, a intuição da mãe e o alvoroço das pessoas extravagantes que constantemente apareciam, desapareciam e reapa-reciam na grande casa da esquina. Blanca também se preocupava por a filha não brincar com bonecas, mas Clara apoiava a neta com o argumento de que esses pequenos cadáveres de loiça, com os seus olhinhos de abre e fecha e a sua perversa boca franzida, eram repugnantes. Ela própria fabricava uns seres informes com sobras da lã que empregava para tricotar para os pobres. Eram criaturas que não tinham nada de humano e que por isso mesmo era mais fácil embalá-las e atirá-las depois para o lixo. A brincadeira predilecta da menina era a cave. Por causa das ratazanas, Esteban Trueba mandou pôr uma tranca na porta, mas Alba deslizava de cabeça por uma clarabóia e aterrava sem ruído naquele paraíso dos objectos esquecidos. Aquele lugar estava sempre na penumbra, preservado do uso do tempo, como uma pirâ-mide selada. Ali se amontoavam os móveis postos de lado, ferramentas de utilidade incompreensível, máquinas desconjuntadas, pedaços do Covadonga, o automóvel pré-histórico que os seus tios desarmaram para transformar em carro de corrida e acabou os seus dias convertido em sucata. Tudo servia a Alba para construir casinhas nos cantos. Havia baús e malas com roupa antiga, que usou para montar os seus solitários espectáculos teatrais e um capacho triste, negro, comido pelas traças, com cabeça de cão, que posto no chão parecia um lamentável animal de patas abertas. Era o último vestígio vergonhoso do fiel Barrabás.
Uma noite de Natal, Clara deu à sua neta um fabuloso presente que chegou a substituir em certas ocasiões a fascinante atracção da cave: uma caixa com frascos de tinta, pincéis, um escadote e autorização para usar à vontade a maior parede do seu quarto.
- Isto vai servir-lhe para se desoprimir - disse Clara quando viu Alba equilibrando-se no escadote para pintar junto ao tecto um comboio cheio de animais.
Ao longo dos anos, Alba foi enchendo essa e as outras paredes do quarto com um imenso fresco, onde, no meio de uma flora venusiana e de uma fauna impossível de animais inventados, como os que Rosa bordava na sua toalha e Blanca cozia no seu forno de cerâmica, apareceram os desejos, as recordações, as tristezas e as alegrias da sua meninice.
Os dois tios eram muito chegados a ela. Jaime era o seu preferido. Era um homenzarrão peludo que tinha de se barbear duas vezes por dia e, mesmo assim, parecia ter sempre uma barba de terça-feira, tinha sobrancelhas negras e malévolas que penteava para cima para fazer crer à sobrinha que era aparentado com o diabo, e o cabelo duro como uma escova, inutilmente bezuntado e sempre húmido. Entrava e sala com os seus livros debaixo do braço e uma maleta de soldador na mão. Tinha dito a Alba que trabalhava como ladrão de jóias e que dentro da horrível maleta levava gazuas e luvas. A menina fingia espantar-se, mas sabia que o seu tio era médico e que a maleta tinha os instrumentos do seu ofício. Tinham inventado jogos de ilusão para se entreterem nas tardes de chuva.
- Traz o elefante! - ordenava o tio Jaime.
Alba saía e regressava arrastando com uma corda invisível um paqui-derme imaginário. Podiam passar uma boa meia hora dando-lhe a comer ervas próprias da sua espécie, banhando-o com terra para lhe preservar a pele das inclemências do tempo e a dar-lhe brilho ao marfim dos dentes, enquanto discutiam acaloradamente sobre as vantagens e os inconvenientes de viver na selva.
- Esta menina vai acabar doida varrida! - dizia o senador Trueba, quando via a pequena Alba sentada na varanda a ler os tratados de medicina que o tio Jaime lhe emprestava.
Era a única pessoa de toda a casa que tinha chave para entrar no túnel de livros do tio e autorização para pegar neles e ler. Blanca achava que se devia dosear a leitura, porque havia coisas não apropriadas para a sua idade, mas o tio Jaime era da opinião que a gente só lê o que lhe interessa e se lhe interessa é porque já tem maturidade para o fazer. Tinha a mesma teoria para o banho e para a comida. Dizia que se a menina não tinha vontade de tomar banho era porque não necessitava e que deviam dar-lhe de comer o que ela quisesse às horas em que tivesse fome, porque o organismo conhece melhor que ninguém as suas próprias necessidades. Nesse ponto Blanca era inflexível e obrigava a filha a cumprir horários rígidos e normas de higiene. O resultado era que além das comidas e dos banhos normais Alba comia as guloseimas que o tio lhe oferecia e tomava banho de mangueira sempre que tinha calor, sem que nenhuma destas coisas alterasse a sua saudável natureza. Alba teria gostado que o tio Jaime casasse com a mãe, porque era mais seguro tê-lo como pai do que como tio, mas explicaram-lhe que dessas uniões incestuosas nascem meninos mongolóides. Ficou com a ideia de que os alunos de quinta-feira na oficina da sua mãe eram filhos dos seus tios.
Nicolau também estava perto do coração da menina, mas tinha qualquer coisa de efémero, de volátil, apressado, sempre de passagem, como se saltasse de uma ideia para a outra, o que criava inquietação em Alba. Tinha cinco anos quando o tio Nicolau regressou da índia. Cansado de invocar Deus na mesa de pé-de-galo e no fumo do haxixe, decidiu ir procurá-lo a uma região menos rude que a sua terra natal. Passou dois meses a incomodar Clara, perse-guindo-a pelos cantos e sussurrando-lhe ao ouvido quando estava a dormir, até que a convenceu a vender um anel de brilhantes para lhe pagar a passagem até à terra do Mahatma Gandhi. Dessa vez Esteban Trueba não se opôs, porque pensou que um passeio por aquela longínqua nação de famintos e vacas transumantes faria muito bem ao seu filho.
- Se não morrer picado por uma cobra ou de alguma peste estrangeira, espero que venha transformado num homem, porque já estou farto das suas extravagâncias - disse-lhe o pai ao despedir-se no cais.
Nicolau passou um ano como mendigo, percorrendo a pé os caminhos dos iogas, a pé pelo Himalaia, a pé por Katmandu, a pé pelo Ganges e a pé por Benares. No fim dessa peregrinação tinha a certeza da existência de Deus e tinha aprendido a atravessar alfinetes de chapéu nas faces e na pele do peito e a viver quase sem comer. Viram-no um dia qualquer, chegar a casa, sem prévio aviso com uma fralda de criança cobrindo-lhe as partes pudendas, a pele pegada aos ossos e esse ar extraviado que se nota nas pessoas que se alimentam só de verduras. Chegou acompanhado por dois carabineiros incrédulos, dispostos a levá-lo preso a não ser que pudesse demonstrar que era na realidade o filho do senador Trueba e por uma comitiva de crianças que o seguiam atirando-lhe lixo e fazendo pouco dele. Clara foi a única que não teve dificuldade em reconhecê-lo. O pai tranquilizou os carabineiros e deu ordem a Nicolau para tomar banho e vestir roupa de cristão se queria viver em sua casa, mas Nicolau olhou-o como se não o visse e não lhe respondeu. Tinha-se tornado vegetariano. Não provava carne nem ovos ou leite, a sua dieta era a de um coelho e pouco a pouco o seu rosto ansioso foi-se parecendo com o desse animal. Mastigava cada bocado dos seus escassos alimentos cinquenta vezes. As refeições converteram-se num ritual eterno no qual Alba ficava adormecida sobre o prato vazio e os criados sobre as bandejas na cozinha, enquanto ele ruminava cerimoniosamente, por isso Esteban Trueba deixou de ir a casa e fazia todas as suas refeições no Clube. Nicolau garantia que podia caminhar descalço sobre brasas, mas cada vez que se dispôs a demonstrá-lo, foi obrigado a desistir, porque Clara tinha um ataque de asma. Falava por parábolas asiáticas nem sempre compreensíveis. Os seus únicos interesses eram de ordem espiritual. O materialismo da vida doméstica enfadava-o tanto como os excessivos cuidados da sua mãe e da sua irmã, que insistiam em alimentá-lo e vesti-lo, e a perseguição fascinada de Alba, que o seguia por toda a casa como um cachorro, pedindo-lhe que a ensinasse a dominar a mente e a atravessar-se com alfinetes. Permaneceu assim mesmo quando o Inverno chegou com todo o seu rigor. Podia manter-se quase três minutos sem respirar e estava disposto a realizar essa façanha sempre que alguém lhe pedia, o que sucedia com frequência. Jaime dizia que era uma pena que o ar fosse grátis, porque tirou a prova de que Nicolau respirava metade do de uma pessoa normal, ainda que isso não parecesse afectá-lo de todo. Passou o Inverno a comer cenouras, sem se queixar do frio, fechado no quarto, enchendo páginas e páginas com a sua minúscula letra em tinta preta. Ao surgirem os primeiros sintomas da Primavera, anunciou que o seu livro estava pronto. Tinha mil e quinhentas páginas e conseguiu convencer o pai e o irmão que o financiassem, por conta dos lucros que se obtivessem com a venda. Depois de corrigidas e impressas, as mil e tantas laudas manuscritas reduziram-se a seiscentas páginas de um volumoso tratado sobre os noventa e nove nomes de Deus e a forma de chegar ao nirvana através de exercícios respiratórios. Não teve o êxito esperado e os caixotes com a edição acabaram os seus dias na cave, onde Alba os usava como tijolos para construir trinchei-ras, até que muitos anos depois serviram para alimentar uma fogueira ignóbil.
Mal o livro saiu da tipografia, Nicolau segurou-o carinhosamente nas mãos, recuperou o seu perdido sorriso de hiena, vestiu roupa decente e anunciou que tinha chegado o momento de entregar a Verdade aos seus contemporâneos que permaneciam nas trevas da ignorância. Esteban Trueba recordou-lhe a sua proibição de usar a casa como academia e avisou-o de que não ia tolerar que metesse ideias pagas na cabeça de Alba e muito menos que lhe ensinasse truques de faquir. Nicolau foi pregar para o bar da universidade, onde conseguiu um impressionante número de adeptos para os seus cursos de exercícios espirituais e respiratórios. Nos momentos livres passeava de mato e ensinava a sobrinh4 a vencer a dor e outras fraquezas da carne. O seu método consistia em identificar as coisas que lhe causavam temor. A menina, que tinha certa inclinação para o macabro, concentrava-se de acordo com as instruções do tio e conseguia visualizar, como se a estivesse a viver, a morte da mãe. Via-a lívida, fria, com os seus formosos olhos mouros fechados, estendida num caixão. Ouvia o pranto da familia. Via a procissão de amigos que entravam em silêncio, deixavam os cartões de visita numa bandeja e saíam cabisbaixos. Sentia o cheiro das flores, o relincho dos cavalos empluma-dos da carreta funerária. Sofria a dor com os pés dentro dos seus sapatos novos de luto. Imaginava a sua solidão, o seu abandono, a sua orfandade. O tio ajudava-a a pensar em tudo isso sem chorar, relaxando-se sem opor resistência à dor, para que esta a atravessasse sem permanecer nela. Outras vezes Alba entalava um dedo na porta e aprendia a suportar a dor sem se queixar. Se conseguia passar toda a semana sem chorar, superando as provas a que Nicolau a obrigava, ganhava um prémio, que consistia quase sempre num passeio a toda a velocidade na moto, o que era uma experiência ines-quecível. Numa ocasião meteram-se no meio de uma manada de vacas que ia para o estábulo, num caminho dos arredores da cidade onde levou a sobrinha para lhe pagar o prémio. Ela recordaria sempre os corpos pesados dos animais, a sua lentidão, as caudas enlameadas golpeando-lhe a cara, o cheiro a bosta, os cornos que a roçavam e a sua própria sensação de vazio no estômago, de vertigem maravilhosa, de incrível excitação, mistura de apaixo-nada curiosidade e de terror, que só voltou a sentir em instantes fugazes da sua vida.
Esteban Trueba, que tivera sempre dificuldade em exprimir a sua necessidade de afecto e que desde que se deterioraram as suas relações matri-moniais com Clara não tinha acesso à ternura, derramou em Alba os seus melhores sentimentos. Importava-se mais com a menina do que alguma vez se tinha importado com os seus próprios filhos. Todas as manhãs ela ia em pijama ao quarto do avô, entrava sem bater e metia-se na sua cama. Ele fingia despertar sobressaltado, ainda que na realidade estivesse à espera dela e resmungava que não o incomodasse, que fosse para o seu quarto e o deixasse dormir. Alba fazia-lhe cócegas até que, aparentemente vencido, ele a autori-zava a ir buscar o chocolate que escondia para ela. Alba conhecia todos os esconderijos e o seu avô usava-os sempre pela mesma ordem, mas para não o decepcionar procurava durante um bom bocado, e dava gritos de alegria ao encontrá-lo. Esteban nunca soube que a sua neta odiava o chocolate e que o comia por amor a ele. Com essas brincadeiras matinais, o Senador satisfazia a sua necessidade de contacto humano. O resto do dia estava ocupado no Congresso, no Clube, no golfe, nos negócios e nos conciliábulos políticos. Duas vezes por ano ia a Las Tres Marias com a neta por duas ou três semanas. Ambos regressavam bronzeados, mais gordos e felizes. Ali destilavam uma aguardente caseira que servia para beber, para acender o fogão, para desin-fectar feridas e matar baratas e a que eles chamavam pomposamente «vodka». No final da sua vida, quando os noventa anos o tinham transformado numa velha árvore retorcida e frágil, Esteban Trueba recordaria esses momentos com a neta como os melhores da sua existência, e ela também guardou sempre na memória a cumplicidade dessas viagens ao campo pela mão do seu avô, os passeios na garupa do seu cavalo, os entardeceres na imensidão dos prados, as longas noites junto à chaminé do salão contando histórias de aparições e desenhando.
As relações do senador Trueba com o resto da sua família não fizeram mais que piorar com o tempo. Uma vez por semana, aos sábados, reuniam-se para jantar à volta da grande mesa de carvalho que tinha estado sempre na família e que antes pertencera aos del Valle, quer dizer, vinha da mais remota antiguidade e tinha servido para velar os mortos, para danças flamencas e outros ofícios impensados. Sentavam Alba entre a sua mãe e a sua avó, com um almofadão na cadeira para que o nariz chegasse à altura do prato. A menina observava os adultos com fascínio, a avó radiante, com os dentes postos para a ocasião, dirigindo mensagens cruzadas ao marido através dos filhos ou dos criados, Jaime fazendo alarde de má educação, arrotando depois de cada prato e escarafunchando os dentes com o dedo mínimo para chatear o pai, Nicolau com os olhos semicerrados mastigando cinquenta vezes cada bocado e Blanca falando de qualquer coisa para criar a ficção de um jantar normal. Trueba mantinha-se relativamente silencioso até que o mau carácter o atraiçoava e começava a discutir com o filho Jaime por causa dos pobres, dos votos, dos socialistas e dos princípios, ou a insultar Nicolau pelas iniciativas de se elevar em balão e praticar acupunctura com Alba, ou castigar Blanca com as suas réplicas brutais, a sua indiferença e as suas advertências inúteis de que tinha arruinado a sua vida e não herdaria dele nem um peso. A única a que não fazia frente era Clara, mas com ela quase não falava. Certas ocasiões Alba surpreendia os olhos do avô presos em Clara, ele ficava a olhar para ela pondo-se branco e doce até parecer um ancião desconhecido. Mas isso não ocorria com frequência, o normal era que os esposos se ignorassem. Algumas vezes o senador Trueba perdia o controlo e gritava tanto que se punha vermelho e tinham de atirar-lhe um jarro de água fria à cara, para que a cólera lhe passasse e recuperasse o ritmo da respiração.
Nessa época, Blanca havia chegado ao apogeu da sua beleza. Tinha um ar mourisco, lânguido e planturoso, que convidava ao repouso e à confidência. Era alta e opulenta, de temperamento desamparado e piegas, que despertava nos homens o ancestral instinto de protecção. O pai não simpatizava com ela. Não lhe perdoava os amores com Pedro Tercero Garcia e procurava que ela não esquecesse que vivia da sua caridade. Trueba não podia perceber que a filha tivesse tantos apaixonados, porque Blanca não tinha nada da inquietante alegria e da jovialidade que o atraíam nas mulheres e além disso pensava que nenhum homem normal podia sentir desejos de casar com uma mulher doente, de estado civil incerto e que carregava com uma filha. Por seu lado, Blanca não parecia surpreendida com o assédio dos homens. Estava cons-ciente da sua beleza. No entanto, com os cavalheiros que a visitavam adoptava uma atitude contraditória, animando-os com o pestanejar dos seus olhos muçulmanos, mas mantendo-os a prudente distância. Logo que via que as intenções eram sérias, cortava a relação com uma negativa feroz. Alguns, de melhor posição económica, tentaram chegar até ao coração de Blanca sedu-zindo a filha. Enchiam Alba de presentes caros, de bonecas dotadas de mecanismos para caminhar, chorar, comer e executar outras habilidades humanas, empanturravam-na de pastéis de nata e levavam-na a passear ao Jardim Zoológico, onde a menina chorava com pena dos pobres animais prisioneiros, especialmente a foca, que acordava na sua alma funestos presságios. Essas visitas ao Jardim Zoológico pela mão de algum pretendente vaidoso e mãos largas, deixaram-lhe para o resto da vida o horror à clausura, aos muros, às grades e ao isolamento. Entre todos os apaixonados, o que avançou mais no caminho de conquistar Blanca foi o Rei das Panelas de Pressão. Apesar da sua imensa fortuna e do seu caracter tranquilo e reflectido, Esteban Trueba detestava-o porque era circuncidado, tinha nariz sefardim e o cabelo crespo. Com a sua atitude trocista e hostil, Trueba conseguiu espantar esse homem que tinha sobrevivido num campo de concentração, havia vencido a miséria e o exílio e triunfara na impiedosa luta comercial. Enquanto durou o romance, o Rei das Panelas de Pressão passava a buscar Blanca para levá-la a jantar aos lugares mais requintados, num automóvel minúsculo, apenas com dois assentos, com rodas de tractor e um ruído de turbina no motor, único na sua espécie, que provocava tumultos de curiosidade à sua passagem e remoques depreciativos da família Trueba. Sem dar-se por achada com o mal-estar do pai e com a bisbilhotice dos vizinhos, Blanca subia para o veiculo com a majestade de um primeiro-ministro, vestida com o seu único saia e casaco preto e a sua blusa de seda branca que usava em todas as ocasiões especiais. Alba despedia-se dela com um beijo e ficava parada à porta, com o subtil perfume de jasmim da sua mãe colado às narinas e um nó de ansiedade apertando-lhe o peito. Só os treinos do seu tio Nicolau lhe permitiam suportar as saídas da mãe sem desatar a chorar, porque temia que um dia o galã do momento conseguisse convencer Blanca a ir com ele e ela ficaria para sempre sem mãe. Tinha decidido havia muito tempo que não precisava de um pai, e muito menos de um padrasto, mas que se chegasse a faltar-lhe a mãe enfiaria a cabeça num balde com água até morrer afogada, tal como fazia a cozinheira com os gatinhos que a gata paria todos os quatro meses.
Alba perdeu o medo de que sua mãe a abandonasse quando conheceu Pedro Tercero e a sua intuição a advertiu de que enquanto esse homem existisse não haveria ninguém capaz de ocupar o amor de Blanca. Foi num domingo de Verão. Blanca penteou-a com canudos, feitos com um ferro quente que lhe chamuscou as orelhas, pôs-lhe luvas brancas e sapatos de verniz preto e um chapéu de palha com cerejas artificiais. Ao vê-la, a avó Clara deu uma gargalhada, mas a mãe consolou-a com duas gotas do seu perfume que lhe pôs no pescoço.
- Vais conhecer uma pessoa famosa - disse Blanca misteriosamente ao sair.
Levou a menina ao Parque Japonês, onde lhe comprou chupa-chupas de açúcar queimado e um saquinho de milho. Sentaram-se num banco à sombra, de mãos dadas, rodeadas de pombas que debicavam o milho.
Viu-o aproximar-se antes que a mãe lho indicasse. Trazia um fato-macaco, uma enorme barba negra que lhe chegava a meio do peito, o cabelo revolto, sandálias de franciscano sem meias e um largo, brilhante e maravilhoso sorriso que o colocou imediatamente na categoria dos seres que mereciam ser pintados no fresco gigantesco do seu quarto.
O homem e a menina olharam-se e ambos se reconheceram nos olhos um do outro.
- Este é Pedro Tercero, o cantor. Já o ouviste na rádio - disse-lhe a mãe.
Alba estendeu-lhe a mão e ele apertou-lha com a esquerda. Então ela notou que lhe faltavam vários dedos da mão direita, mas ele explicou-lhe que apesar disso podia tocar guitarra, porque há sempre uma forma de se fazer o que se quer fazer. Passearam os três pelo Parque Japonês. A meio da tarde foram, numa das últimas tranvias que ainda existiam na cidade a comer peixe numa casa de fritos do mercado, e quando anoiteceu acompanhou-as até à rua da sua casa. Ao despedirem-se Blanca e Pedro Tercero beijaram-se na boca. Foi a primeira vez que Alba viu isso na vida, porque à sua volta não havia gente apaixonada.
A partir desse dia, Blanca começou a sair sozinha ao fim-de-semana. Dizia que ia visitar umas primas afastadas. Esteban Trueba entrava em cólera e ameaçava-a de a expulsar de casa, mas Blanca mantinha-se inflexível na sua decisão. Deixava a filha com Clara e partia de autocarro com uma malinha de palhaço com flores pintadas.
- Prometo-te que não me vou casar e que regresso amanhã à noite - dizia ao despedir-se da filha.
Alba gostava de se sentar com a cozinheira à hora da sesta, a ouvir na rádio canções populares, especialmente as do homem que tinha conhecido no Parque Japonês. Um dia o senador Trueba entrou na copa e ao ouvir a voz da rádio atirou-se contra o aparelho dando-lhe bengaladas até o deixar convertido num monte de fios retorcidos e botões soltos, ante os olhos espantados da sua neta, que não podia compreender o súbito arrebatamento do avô. No dia seguinte, Clara comprou outro rádio para que Alba escutasse Pedro Tercero quando lhe apetecesse e o velho Trueba fingiu não saber de nada.
Essa foi a época do Rei das Panelas de Pressão. Pedro Tercero soube da sua existência e teve um ataque de ciúmes injustificado, se compararmos o ascendente que ele tinha sobre Blanca com o tímido cerco do comerciante judeu. Como tantas outras vezes, suplicou a Blanca que abandonasse a casa dos Trueba, a tutela feroz do seu pai e a solidão da sua oficina cheia de mongolóides e de meninas ociosas e partisse com ele, de uma vez para sempre, para viver aquele amor desenfreado que tinham escondido desde a meninice. Mas Blanca não se decidia. Sabia que se fosse com Pedro Tercero ficaria excluída do seu circulo social e da posição que sempre tinha tido e apercebia-se que ela própria não tinha a menor oportunidade de ser bem aceite pelos amigos de Pedro Tercero ou de se adaptar à modesta existência numa povoação operária. Anos depois, quando Alba teve idade para analisar esse aspecto da vida da mãe, chegou à conclusão de que não foi com Pedro Tercero simplesmente porque não o amava o suficiente, já que em casa dos pais não tinha nada que ele não lhe pudesse dar. Blanca era uma mulher muito pobre, que só dispunha de algum dinheiro quando Clara lho dava ou quando vendia algum presépio. (Ganhava um salário miserável que gastava quase todo em remédios, porque a sua capacidade para sofrer doenças imagi-nárias não tinha diminuído com o trabalho e a necessidade, pelo contrário, não fazia senão aumentar de ano para ano. Procurava não pedir nada ao pai, para não lhe dar ocasião de a humilhar. De vez em quando, Clara e Jaime compravam-lhe roupa ou davam-lhe algum dinheiro para as suas necessida-des, mas o normal era não ter nem para um par de meias. A sua pobreza contrastava com os vestidos bordados e o calçado feito por medida com que o senador Trueba vestia a neta Alba. A sua vida era dura. Levantava-se às seis da manhã, no Inverno ou no Verão. A essa hora acendia o forno da oficina, vestida com um avental de oleado e socos de madeira, preparava as mesas de trabalho e amassava a argila para as aulas, com os braços mergulhados até aos cotovelos no barro áspero e frio. Por isso tinha sempre as unhas partidas e a pele gretada e com o tempo foram-se-lhe deformando os dedos. A essa hora sentia-se inspirada e ninguém a interrompia, de modo que podia começar o dia fabricando os seus monstruosos animais para os presépios. Depois tinha de ocupar-se da casa, dos criados e das compras, até à hora em que começavam as aulas. Os alunos eram meninas de boas famílias que não tinham nada que fazer e haviam adoptado a moda do artesanato, que era mais elegante do que fazer malha para os pobres, como faziam as avós.
A ideia de dar aulas para mongolóides foi obra do acaso. Um dia chegou a casa do senador Trueba uma velha amiga de Clara que trazia o neto com ela. Era um adolescente gordo e mole, com uma redonda cara de lua cheia e uma expressão de ternura imperturbável nos olhinhos orientais. Tinha quinze anos, mas Alba notou que era como um bebé. Clara pediu à neta que fosse brincar com o rapaz para o jardim e tivesse cuidado para que ele não se sujasse, não se afogasse na fonte, não comesse terra e não mexesse na braguilha. Alba aborreceu-se logo de o vigiar e não podendo comunicar com ele em nenhuma linguagem coerente, levou-o à oficina de cerâmica onde Blanca para o manter quieto, lhe pôs um avental que o protegia das manchas e da água e lhe meteu uma bola de argila nas mãos. O rapaz esteve entretido mais de três horas, sem se babar, sem se urinar e sem dar cabeçadas nas paredes, modelando umas toscas figuras de barro que depois levou de presente à avó. A senhora, que tinha chegado a esquecer que estava com ele, ficou encantada e assim nasceu a ideia de que a cerâmica era boa para os mongolóides. Blanca acabou dando aulas para um grupo de crianças que iam à oficina às quintas-feiras à tarde. Chegavam numa camioneta, acompanhadas por duas freiras de toucas engomadas que se sentavam no terraço do jardim a tomar chocolate com Clara e a discutir as virtudes do ponto de cruz e as hierarquias dos pecados, enquanto Blanca e a filha ensinavam as crianças a fazer lagartas, bolinhas, cães espalmados e vasos disformes. No fim do ano as freiras organizavam uma exposição e uma verbena e aquelas espantosas obras de arte vendiam-se por caridade. Blanca e Alba depressa viram que os meninos trabalhavam muito melhor quando se sentiam amados e que o afecto era a única maneira de comunicar com eles. Aprenderam a abraçá-los, a beijá-los e a fazer-lhes mimos, até que ambas acabaram por amá-los de verdade. Alba esperava toda a semana a chegada da camioneta com os deficientes e saltava de alegria quando eles corriam a abraçá-la. Mas as quintas-feiras eram esgotantes. Alba deitava-se arrasada, davam-lhe voltas na cabeça os doces rostos asiáticos das crianças da oficina e Blanca sofria invariavelmente uma enxaqueca. Depois das freiras se irem embora com o seu esvoaçar de trapos brancos e a sua leva de deficientes de mãos dada, Blanca abraçava furiosamente a sua filha, cobria-a de beijos e dizia-lhe que tinha de agradecer a Deus ela ser normal. Por isso, Alba cresceu com a ideia de que a normalidade era um dom divino. Discutiu isso com a sua avó.
- Em quase todas as familias há um tonto ou um louco, filhinha – asse-gurou Clara enquanto trabalhava no seu tear, porque em todos esses anos não tinha aprendido a tecer sem olhar. - Por vezes não se vêem, porque os escon-dem como se fosse uma vergonha. Fecham-nos nos quartos mais isolados, para que as visitas os não vejam! Mas na realidade não há de que ter vergonha, eles também são obra de Deus.
- Mas na nossa família não há nenhum, avó - replicou Alba.
- Não. Aqui a loucura distribuiu-se por todos e não sobrou nada para termos o nosso louco varrido.
Assim eram as suas conversas com Clara. Por isso, para Alba a pessoa mais importante da casa e a presença mais forte da sua vida era a avó. Ela era o motor que punha em marcha e fazia funcionar aquele universo mágico que eram as traseiras da grande casa da esquina, onde se passaram os seus primeiros sete anos em completa liberdade. Habituou-se às extravagancias da avó. Não se surpreendia ao vê-la deslocar-se em estado de transe por todo o salão, sentada na sua poltrona com as pernas encolhidas, arrastada por uma força invisível. Seguia-a em todas as suas peregrinações aos hospitais e casas de beneficência onde procurava seguir a pista da sua caterva de necessitados e até aprendeu a fazer com lã de quatro fios e agulhas grossas os coletes que o tio Jaime oferecia depois de os usar uma vez, só para ver o sorriso sem dentes da avó quando ela ficava vesga perseguindo as malhas. Amiúde Clara usava-a para levar mensagens a Esteban, por isso a alcunharam de Pomba Mensa-geira. A menina participava nas sessões das sextas-feiras, onde a mesa de pé-de-galo dava saltos em plena luz do dia, sem que interferisse nenhum truque, energia conhecida ou alavanca, e nos serões literários onde alternava com os mestres consagrados e com um número variável de tímidos artistas desconhe-cidos que Clara amparava. Nessa época na grande casa da esquina comeram e beberam muitos hóspedes. Revezaram-se para viver lá, ou pelo menos para assistir às reuniões espirituais, às cavaqueiras culturais e às tertúlias sociais, quase toda a gente importante do pais, inclusive o Poeta, que anos mais tarde foi considerado o maior do século e traduzido em todos os idiomas conhecidos da terra, em cujos joelhos Alba se sentou muitas vezes, sem suspeitar que um dia caminharia atrás do seu féretro com um ramo de cravos sangrentos na mão, entre duas filas de metralhadoras.
Clara era ainda jovem, mas à sua neta parecia-lhe muito velha porque não tinha dentes. Ainda não tinha rugas e quando estava com a boca fechada dava a ilusão de extrema juventude devido à expressão inocente do rosto. Vestia-se com túnicas de linho cru que pareciam batas de louco e no Inverno punha meias altas de lã e luvas sem dedos. Achava graça aos assuntos menos engraçados e, em contrapartida, era incapaz de compreender uma piada, ria-se a destempo, quando ninguém mais o fazia, e podia ficar muito triste se via outra pessoa ser ridícula. Algumas vezes sofria ataques de asma. Então cha-mava a neta com um sininho de prata que trazia sempre consigo e Alba acudia a correr, abraçava-a e cuidava dela com sussurros de consolo, pois ambas sabiam, por experiência, que a única coisa que tira a asma é o abraço prolon-gado de um ser querido. Tinha olhos risonhos cor de avelã e o cabelo enca-necido e brilhante apanhado num carrapito desordenado do qual se escapa-vam mechas rebeldes, as mãos finas e brancas, de unhas amendoadas e longos dedos sem anéis, que só serviam para fazer gestos de ternura, distri-buir as cartas de adivinhar e pôr a dentadura postiça à hora de comer. Alba passava o dia perseguindo a avó, metendo-se-lhe entre as saias, provocando-a para que contasse histórias ou movesse os jarrões com a força do seu pensamento. Nela encontrava um refúgio seguro quando a assediavam os pesadelos ou quando os treinos do tio Nicolau se tornavam insuportáveis. Clara ensinou-lhe a cuidar dos pássaros e a falar a cada um no seu idioma, a conhecer os signos premonitórios da natureza e a fazer cachecóis com ponto corrido para os pobres.
Alba sabia que a avó era a alma da grande casa da esquina. Os outros souberam-no mais tarde, quando Clara morreu e a casa perdeu as flores, os amigos que iam e vinham e os espíritos brincalhões e entrou em pleno na época da desordem.
Alba tinha seis anos quando viu Esteban Garcia pela primeira vez, mas nunca o esqueceu. Provavelmente tinha-o visto antes, em Las Tres Marias, em qualquer das suas viagens de Verão com o avô, quando a levava a percorrer a propriedade e com um gesto amplo lhe mostrava tudo o que a vista alcançava, desde as alamedas até ao vulcão, incluindo as casinhas de tijolo, e dizia-lhe que aprendesse a amar a terra porque um dia seria sua.
- Os meus filhos são todos uns mandriões. Se herdassem Las Tres Marias, em menos de um ano isto voltaria a ser a ruína que era nos tempos do meu pai - dizia à neta.
- Tudo isto é teu, avô?
- Tudo, desde a estrada pan-americana até à ponta daqueles cerros. Estás a vê-los?
- Porquê, avô?
- Como porquê! Porque sou o dono, claro!
- Sim, mas porque és o dono?
- Porque era da minha família.
- Porquê?
- Porque a compraram aos índios.
- E os caseiros, que também viveram sempre aqui, por que não são eles os donos?
- O teu tio Jaime anda a meter-te ideias bolchevistas na cabeça! - gritava o senador Trueba congestionado pela fúria. - Sabes o que se passava se aqui não houvesse um patrão?
- Não.
- Ia tudo para o caralho! Não haveria ninguém que desse as ordens, que vendesse as colheitas, que se responsabilizasse pelas coisas, entendes? Tam-bém não haveria ninguém que cuidasse das pessoas. Se alguém adoecesse, por exemplo, ou se morresse e deixasse uma viúva e muitos filhos morreriam de fome. Cada um teria um pedacinho miserável de terreno e não conseguiria nem para comer em sua casa. Necessita-se de alguém que pense por eles, que tome as decisões, que os ajude. Eu tenho sido o melhor patrão da região, Alba. Tenho mau caracter, mas sou justo. Os meus caseiros vivem melhor do que muita gente na cidade, não lhes falta nada e, mesmo que o ano seja de seca, de inundações ou de terramoto, eu preocupo-me por que aqui ninguém passe miséria. Tu terás de fazer isso quando tiveres a idade necessária, por isso trago-te sempre a Las Tres Marias para que conheças cada pedra e cada animal e, sobretudo, cada pessoa pelo seu nome e apelido. Compreendeste-me?
Mas na realidade ela tinha pouco contacto com os camponeses e estava muito longe de conhecer cada um pelo seu nome e apelido. Por isso não reconheceu o jovem moreno, acanhado e rude, com pequenos olhos cruéis de roedor, que uma tarde tocou à porta da grande casa da esquina na capital. Vestia um fato escuro muito estreito para o seu tamanho. Nos joelhos, nos cotovelos e nos fundilhos, o tecido estava gasto, reduzido a uma película brilhante. Disse que queria falar com o senador Trueba e apresentou-se como o filho de um dos seus caseiros de Las Tres Marias. Embora em tempos normais a gente da sua condição entrasse pela porta de serviço e aguardasse na copa, conduziram-no à biblioteca, porque nesse dia havia uma festa na casa à qual assistiriam os membros mais importantes do Partido Conservador. A cozinha estava invadida por um exército de cozinheiros e ajudantes que Trueba tinha trazido do Clube, e havia tal confusão e pressa, que um visitante só teria vindo incomodar. Era uma tarde de Inverno e a biblioteca estava escura e silenciosa, iluminada somente pelo fogo que crepitava na chaminé. Cheirava a polimento para madeira e a couro.
- Espera aqui, mas não toques em nada. O Senador já vem - disse a criada com maus modos, deixando-o sozinho.
O jovem percorreu a sala com os olhos, sem se atrever a fazer nenhum movimento, ruminando o rancor de que tudo aquilo poderia ter sido seu, se tivesse nascido de origem legítima, como tantas vezes lhe explicou a sua avó, Pancha Garcia, antes de morrer de lipéria convulsa e deixá-lo definitivamente órfão na multidão de irmãos e primos onde ele não era ninguém. Só a sua avó o distinguiu no montão e não lhe permitiu esquecer que era diferente dos outros, porque pelas suas veias corria o sangue do patrão. Olhou a biblioteca sentindo-se sufocado. Todas as paredes estavam cobertas por estantes de acaju encerado, excepto em ambos os lados da chaminé, onde havia duas vitrinas abarrotadas de marfins e pedras duras do Oriente. A divisão tinha o dobro do pé-direito, único capricho do arquitecto que o seu avô consentiu. Um balcão, a que se tinha acesso por uma escada de caracol de ferro forjado, fazia as vezes de segundo piso das estantes. Os melhores quadros da casa estavam ali, porque Esteban Trueba tinha transformado essa divisão no seu santuário no seu escritório, no seu refúgio, e gostava de ter à sua volta os objectos que mais apreciava. As prateleiras estavam cheias de livros e de objectos de arte desde o chão até ao tecto. Havia uma pesada secretária de estilo espanhol, grandes poltronas de couro negro de costas para a janela, quatro tapetes persas cobrindo o chão de carvalho e vários candeeiros de leitura com quebra-luz de pergaminho distribuídos estrategicamente, de modo que onde alguém se sentasse havia boa luz para ler. Nesse lugar preferia o Senador celebrar os seus conciliábulos, tecer as suas intrigas, forjar os seus negócios e, na horas mais solitárias, fechar-se para desafogar a raiva, o desejo frustrado ou a tristeza. Mas nada disso podia saber o camponês que estava de pé sobre o tapete, sem saber onde pôr as mãos, suando de timidez. Aquela biblioteca senhorial, pesada e esmagadora, correspondia exactamente à imagem que tinha do patrão. Estremeceu de ódio e medo. Nunca tinha estado num lugar assim, e até esse momento pensava que o mais luxuoso que podia existir em todo o universo era o cinema de San Lucas, onde uma vez a professora da escola levara toda a classe para ver um filme do Tarzan. Tinha-lhe custado muito tomar a sua decisão, convencer a sua família e fazer a grande viagem até à capital, só e sem dinheiro, para falar com o patrão. Não podia esperar até ao Verão para lhe dizer o que lhe entupia o peito. De súbito sentiu-se observado. Voltou-se e viu-se em frente de uma menina com tranças e meias bordadas que o olhava da porta.
- Como te chamas? - perguntou a menina.
- Esteban Garcia - disse ele.
- Eu chamo-me Alba Trueba. Não esqueças o meu nome.
- Não esquecerei.
Olharam-se bastante tempo, até que ela entrou confiante e se atreveu a aproximar-se. Explicou-lhe que teria de esperar porque o seu avô ainda não tinha regressado do Congresso e contou-lhe que na cozinha ia um pé de vento por causa da festa, prometendo-lhe que mais tarde conseguiria uns doces para lhe trazer. Esteban Garcia sentiu-se melhor. Sentou-se numa das poltro-nas de couro negro e pouco a pouco atraiu a si a menina e sentou-a nos seus joelhos. Alba cheirava a Bayrum, uma fragrância fresca e doce que se mistu-rava com o seu odor natural de rapariguinha transpirada. O rapaz chegou o nariz ao seu pescoço e aspirou aquele perfume desconhecido de limpeza e bem-estar e, sem saber porquê, encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Sentiu que odiava aquela criança tanto como odiava o velho Trueba. Ela encarnava o que nunca teria, o que ele nunca seria. Desejava fazer-lhe mal, destrui-la, mas também queria continuar cheirando-a, escutando-lhe a vozita de bebé e tendo ao alcance da mão a sua pele suave. Acariciou-lhe os joelhos, mesmo acima do bordo das peúgas, eram mornos e tinham covinhas. Alba continuou a falar sobre a cozinheira que metia nozes pelo cu dos frangos para o jantar da noite. Ele fechou os olhos, estava a tremer Com uma mão rodeou o pescoço da menina, sentiu as suas tranças fazendo-lhe cócegas no pulso e apertou suave-mente, consciente de que era tão pequena, que com um esforço mínimo podia estrangulá-la. Desejou fazê-lo, quis senti-la remexendo-se e esperne-ando nos seus joelhos, agitando-se à procura de ar. Desejou ouvi-la gemer e morrer nos seus braços, desejou despi-la e sentiu-se violentamente excitado. Com a outra mão avançou debaixo do vestido engomado, percorreu as pernas infantis, encontrou a renda das anáguas de baptista e as bombachas de lã com elás-tico. Ofegava. Num canto do seu cérebro restava-lhe suficiente cordura para dar-se conta de que estava parado à beira de um abismo. A menina tinha deixado de falar e estava quieta, olhando-o com os seus grandes olhos negros. Esteban Garcia pegou na mão da criança e apoiou-a sobre o seu sexo endurecido.
- Sabes o que é isto? - perguntou roucamente.
- É o teu pénis - respondeu ela, que o tinha visto nas ilustrações dos livros de medicina do tio Jaime e no tio Nicolau, quando passeava nu fazendo os seus exercícios asiáticos.
Ele sobressaltou-se. Pôs-se bruscamente de pé e ela caiu sobre o tapete. Estava surpreendido e assustado, tremiam-lhe as mãos, sentia os joelhos fracos e as orelhas quentes. Nesse momento ouviu os passos do senador Trueba no corredor e um instante depois, antes que conseguisse recuperar a respiração, o velho entrou na biblioteca.
- Isto está tão escuro porquê? - rugiu com o seu vozeirão de terramoto.
Trueba acendeu as luzes e não reconheceu o jovem que o olhava com olhos desorbitados. Estendeu os braços à sua neta e ela refugiou-se neles por um breve instante, como um cão batido, mas em seguida desprendeu-se e saiu fechando a porta.
- Quem és tu, homem? - pespegou a quem era também seu neto.
- Esteban Garcia. Não se recorda de mim, patrão? – conseguiu balbuciar o outro.
Então Trueba reconheceu o menino velhaco que tinha denunciado Pedro Tercero anos atrás e tinha apanhado do chão os dedos amputados. Compreendeu que não lhe seria fácil despedi-lo sem o ouvir, apesar de ter por norma que os assuntos dos caseiros quem os devia resolver era o administrador de Las Tres Marias.
- O que é que tu queres? - perguntou-lhe.
Esteban Garcia vacilou, não conseguia encontrar as palavras que tinha preparado tão minuciosamente durante meses, antes de se atrever a tocar à porta da casa do patrão.
- Fala depressa, não tenho muito tempo - disse Trueba.
A gaguejar Garcia conseguiu expor a sua petição: tinha conseguido terminar o liceu em San Lucas e queria uma recomendação para a Escola de Carabineiros e uma bolsa do Estado para pagar os seus estudos.
- Porque não ficas no campo, como o teu pai e o teu avô? - perguntou-lhe o patrão.
- Desculpe, senhor, mas quero ser carabineiro – pediu Esteban Garcia.
Trueba recordou que ainda lhe devia a recompensa por denunciar Pedro Tercero Garcia e achou que aquela era uma boa ocasião para saldar a divida e de caminho, ter um servidor na policia. «Nunca se sabe, de repente posso precisar dele», pensou. Sentou-se à sua pesada secretária, pegou numa folha de papel com timbre do Senado, redigiu a recomendação nos termos habituais e deu-a ao jovem que aguardava de pé.
- Toma, filho. Alegro-me por teres escolhido essa profissão. Se o que queres é andar armado, entre ser delinquente ou ser polícia, é melhor ser polícia, porque tens impunidade. Vou telefonar ao comandante Hurtado, é meu amigo, para te darem a bolsa. Se necessitares de alguma coisa, avisa-me.
- Muito obrigado, patrão.
- Não me agradeças, filho. Gosto de ajudar a minha gente.
Despediu-o com uma palmadinha amistosa no ombro.
- Porque te puseram Esteban? - perguntou-lhe à porta.
- Por sua causa, senhor - respondeu o outro corando.
Trueba não pensou mais no assunto. Os caseiros usavam frequente-mente os nomes dos patrões para baptizar os filhos, como sinal de respeito.
Clara morreu no mesmo dia em que Alba fez sete anos. O primeiro anún-cio da sua morte foi perceptível só para ela. Então começou a fazer secretas disposições para partir. Com grande discrição distribuiu a sua roupa pelas criadas e pela chusma de protegidos que sempre tivera, deixando para si o indispensável. Ordenou os seus papéis, retirando dos cantos perdidos os seus cadernos de anotar a vida. Atou-os com fitas de cores, separando-os por acontecimentos e não por ordem cronológica, porque a única coisa de que se tinha esquecido de pôr neles eram as datas e na pressa da sua última hora concluiu que não podia perder tempo a averiguá-las. Ao procurar os cadernos foram aparecendo as jóias em caixas de sapatos, em sacos de meias e no fundo dos armários onde as havia posto desde a época em que o marido lhas tinha dado pensando que com isso podia alcançar o seu amor. Colocou-as numa velha meia de lã, fechou-a com um alfinete de ama e entregou-as a Blanca.
- Guarda isso, filhinha. Um dia podem servir-te para alguma coisa mais do que mascarares-te - disse.
Blanca comentou o caso com Jaime e este começou a vigiá-la. Notou que a mãe fazia uma vida aparentemente normal, mas quase não comia. Alimen-tava-se de leite e algumas colheradas de mel. Também não dormia muito, pas-sava a noite a escrever ou vagueando pela casa. Parecia ir-se desprendendo do mundo, cada vez mais ligeira, mais transparente, mais alada.
- Um dia destes vai começar voar - disse Jaime, preocupado.
Pouco tempo depois começou a asfixiar. Sentia no peito o galope de um cavalo enlouquecido e a ansiedade de um ginete que vai a toda a pressa contra o vento. Disse que era a asma, mas Alba notou que já não a chamava com o sininho de prata para que a curasse com abraços prolongados. Uma manhã viu a avó abrir as gaiolas dos pássaros com inexplicável alegria.
Clara escreveu pequenos cartões para os entes queridos, que eram muitos, e pô-los em segredo numa caixa debaixo da cama. Na manhã seguinte não se levantou e quando chegou a criada com o pequeno almoço não a deixou abrir as cortinas. Tinha começado a despedir-se também da luz, para entrar lentamente nas sombras.
Avisado, Jaime foi vê-la e não se foi embora até ela se deixar examinar. Não lhe encontrou nada de anormal no aspecto, mas soube sem lugar para dúvidas, que ia morrer. Saiu do quarto com um sorriso rasgado e hipócrita, mas uma vez fora da vista da sua mãe teve de apoiar-se à parede, porque as pernas fraquejaram-lhe. Não disse nada a ninguém em casa. Chamou um especialista que tinha sido seu professor na Faculdade de Medicina e que nesse mesmo dia se apresentou em casa dos Trueba. Depois de ver Clara, confirmou o diagnóstico de Jaime. Reuniram a família no salão e sem muitos preâmbulos anunciaram-lhe que não viveria mais de duas ou três semanas e que a única coisa que se podia fazer era acompanhá-la, para morrer contente.
- Creio que decidiu morrer, e a ciência não tem remédio nenhum contra esse mal - disse Jaime.
Esteban Trueba agarrou o filho pelo pescoço e esteve quase a estrangulá-lo, correu com o especialista aos empurrões e depois partiu às bengaladas os candeeiros e as porcelanas do salão. Finalmente caiu de joelhos no chão gemendo como uma criança. Alba entrou nesse momento e viu o seu avô colo-cado à sua altura, aproximou-se, ficou a olhá-lo surpreendida e, quando viu as suas lágrimas, abraçou-o. Pelo pranto do velho a menina soube da noticia. A única pessoa na casa que não perdeu a calma foi ela, devido aos treinos para suportar a dor e o facto da avó lhe ter explicado tantas vezes as circunstancias e os afãs da morte.
- Tal como no momento de vir ao mundo, ao morrer temos medo do desconhecido. Mas o medo é algo interior que não tem nada que ver com a realidade. Morrer é como nascer: uma mudança apenas - tinha dito Clara.
Acrescentou que se ela podia comunicar sem dificuldade com as almas do Mais-Além, estava totalmente segura de que depois poderia fazê-lo com as almas do Mais-Aqui, de modo que em vez de choramingar quando esse momento chegasse, queria que estivesse tranquila, porque no seu caso a morte não seria uma separação, mas uma forma de estar mais unidas. Alba compreendeu-o perfeitamente.
Pouco depois Clara pareceu entrar num doce sono e só o visível esforço para introduzir ar nos seus pulmões, dava sinal de que ainda estava viva. No entanto, a asfixia não parecia angustiá-la, já que não estava a lotar pela vida. A neta permaneceu a seu lado todo o tempo. Tiveram de improvisar-lhe uma cama no chão, porque se negou a sair do quarto e, quando quiseram tirá-la à força, teve o seu primeira chilique. Insistia em que a sua avó dava conta de tudo e que precisava dela. Assim era, com efeito. Pouco antes do fim, Clara recuperou a consciência e pôde falar com tranquilidade. A primeira coisa que notou foi a mão de Alba entre as suas.
- Vou morrer, não é verdade, filhinha? - perguntou.
- Sim, avó, mas não importa, porque eu estou contigo - respondeu a menina.
- Está bem. Tira uma caixa com cartões que está debaixo da cama e distribui-os, porque não vou conseguir despedir-me de todos.
Clara fechou os olhos, deu um suspiro satisfeito e foi para o outro mundo sem olhar para trás. À sua volta estava toda a família, Jaime e Blanca, desfi-gurados pelas noites de vigília, Nicolau murmurando orações em sânscrito, Esteban com a boca e os punhos apertados, infinitamente furioso e desolado, e a pequena Alba, que era a única que se mantinha serena. Também estavam os criados, as irmãs Mora, um par de artistas paupérrimos que tinha sobrevi-vido na casa nos últimos meses e um sacerdote que chegou chamado pela cozinheira, mas não teve nada que fazer, porque Trueba não permitiu que incomodasse a moribunda com confissões de última hora nem aspersões de água benta.
Jaime inclinou-se sobre o corpo à procura de algum imperceptível bater do seu coração, mas não o encontrou.
- A mamã já partiu - disse num soluço.
A Época da Decadência
Não posso falar disso. Mas tentarei escrevê-lo. Passaram vinte anos e durante muito tempo senti uma dor constante. Julguei que nunca poderia consolar-me, mas agora, perto dos noventa anos, compreendo o que ela quis dizer quando nos assegurou que não teria dificuldade em comunicar connos-co, porque tinha muita prática nesses assuntos. Antes eu andava como perdido, procurando-a por todo o lado. Todas as noites, ao deitar-me, imagi-nava-a comigo, tal como acontecia quando tinha todos os dentes e me amava. Apagava a luz, fechava os olhos e no silêncio do meu quarto procurava imaginá-la, chamava-a acordado e dizem que também a chamava quando dormia.
Na noite em que morreu fechei-me com ela. Depois de tantos anos sem nos falarmos, partilhámos aquelas últimas horas repousando no veleiro de água mansa da seda azul, como ela gostava de chamar à sua cama, e aproveitei para lhe dizer tudo o que não pudera dizer-lhe antes, tudo o que eu tinha calado desde a noite terrível em que lhe bati. Tirei-lhe a camisa de dormir e revistei-a com cuidado procurando algum sinal de doença que justificasse a sua morte e, não o encontrando, soube que simplesmente tinha cumprido a sua missão nesta terra e voara para outra dimensão onde o seu espirito, livre por fim dos lastros materiais, se sentiria mais a seu gosto. Não havia nenhuma deformidade nem nada terrível na sua morte. Examinei-a demoradamente, porque fazia muitos anos que não tinha ocasião de a observar à vontade e nesse tempo a minha mulher tinha mudado, como nos acontece a todos com o avançar da idade. Pareceu-me tão formosa como sempre. Tinha adelgaçado e julguei que tinha crescido, que estava mais alta, mas logo compreendi que era um efeito ilusório, resultado do meu próprio mirrar. Antes sentia-me como um gigante a seu lado, mas ao deitar-me com ela na cama, notei que éramos quase do mesmo tamanho. Tinha a sua mata de cabelo encaracolado e rebelde que me encantava quando casámos suavizada por mechas brancas que lhe iluminavam o rosto adormecido. Estava muito pálida, com sombras nos olhos e notei pela primeira vez que tinha pequenas rugas muito finas na comissura dos lábios e na testa. Parecia uma menina. Estava fria, mas era a mulher doce de sempre e pude falar-lhe tranquilamente, acariciá-la, dormir um pouco quando o sono venceu a dor, sem que o facto irremediável da sua morte alterasse o nosso encontro. Reconciliámo-nos por fim.
Ao amanhecer, comecei a vesti-la para que todos a vissem bem apresentada. Pus-lhe uma túnica branca que havia no seu armário e estranhei que tivesse tão pouca roupa, porque eu tinha a ideia de que era uma mulher elegante. Encontrei umas peúgas de lã e calcei-lhas para que os pés não se lhe gelassem, porque era muito friorenta. Penteei-a com a ideia de armar o carrapito que usava, mas ao passar a escova alvoroçaram-se-lhe os caracóis, formando uma moldura à volta da sua cara e pareceu-me que assim ficava mais bonita. Procurei as suas jóias, para lhe pôr alguma, mas não as pude encontrar, assim, conformei-me em pôr-lhe apenas no dedo a aliança que eu trazia desde o noivado, para substituir a que ela tirou quando rompeu comigo. Compus as almofadas, endireitei a cama, pus-lhe algumas gotas de água-de-colónia no pescoço e abri a janela, para entrar a manhã. Logo que tudo ficou pronto, abri a porta e permiti que os meus filhos e a minha neta se despedissem dela. Encontraram Clara sorridente, limpa e formosa como sempre estivera. Eu tinha diminuído dez centímetros, os pés nadavam-me nos sapatos, tinha o cabelo definitivamente branco, mas já não chorava.
- Podem enterrá-la - disse. - Aproveitem para enterrar também a cabeça da minha sogra, que anda perdida na cave desde há algum tempo – acrescen-tei e sai a arrastar os pés para não me caírem os sapatos.
Foi assim que a minha neta soube que o que estava na chapeleira de pele de porco e que lhe servia para brincar às missas negras e ornamentar as suas casinhas da cave, era a cabeça da sua bisavó Nívea, que permaneceu por sepultar durante muito tempo, primeiro para evitar o escândalo e depois porque, na desordem desta casa, nos esquecemos dela. Fizemo-lo com o maior sigilo, para não dar motivo para falatórios. Depois que os empregados da funerária acabaram de colocar Clara no seu ataúde e de arranjar o salão como câmara ardente, com cortinados e crepes negros, círios gotejantes e um altar improvisado sobre o piano, Jaime e Nicolau meteram no caixão a cabeça da avó, que já não era mais que um brinquedo amarelo com expressão espavorida, para que descansasse junto da sua filha preferida.
O funeral de Clara foi um acontecimento. Nem eu mesmo pude explicar-me donde saiu tanta gente dorida com a morte da minha mulher. Não sabia que conhecia toda a gente. Desfilaram procissões intermináveis estreitando-me a mão, uma fila de automóveis fechou todos os acessos ao cemitério e chegaram umas insólitas delegações de indigentes, estudantes, sindicatos operários, freiras, crianças mongolóides, boémios e espirituados. Quase todos os caseiros de Las Tres Marias viajaram, alguns pela primeira vez nas suas vidas, em camiões e de comboio para se despedirem dela. Na multidão vi Pedro Segundo Garcia, a quem não tinha voltado a ver durante muitos anos. Aproximei-me para o cumprimentar mas não respondeu ao meu gesto. Aproximou-se cabisbaixo do túmulo aberto e atirou sobre o ataúde de Clara um ramo meio murcho de flores silvestres com aspecto de ter sido roubado num jardim alheio. Estava a chorar.
Alba, pela minha mão, assistiu aos serviços fúnebres. Viu descer o ataúde à terra, no lugar provisório que lhe tínhamos conseguido, ouviu os intermináveis discursos exaltando as únicas virtudes que a avó não teve e, quando regressou a casa, correu a fechar-se na cave à espera que o espírito de Clara comunicasse com ela, tal como ela lhe tinha prometido. Ali a encontrei sorrindo adormecida, sobre os restos roídos de Barrabás.
Nessa noite não pude dormir. Na minha mente confundiam-se os dois amores da minha vida, Rosa, a do cabelo verde, e Clara a clarividente, as duas irmãs que tanto amei. Ao amanhecer decidi que, se não as tinha tido em vida, pelo menos acompanhar-me-iam na morte, de modo que tirei da secretária algumas folhas de papel e pus-me a desenhar o mais digno e luxuoso mausoléu, de mármore italiano cor de salmão, com estátuas do mesmo material que representariam Rosa e Clara com asas de anjos, porque anjos tinham sido e continuariam sendo. Ali, entre as duas, serei enterrado um dia.
Queria morrer o mais rapidamente possível, porque a vida sem a minha mulher não tinha sentido para mim. Não sabia que ainda tinha muito que fazer neste mundo. Felizmente Clara regressou, ou talvez nunca se tivesse ido de todo. Por vezes penso que a velhice me transtornou o cérebro e que não se pode passar por alto o facto de que a enterrei há vinte anos. Suspeito que ando a ter visões, como um velho lunático. Mas essas dúvidas dissipam-se quando a vejo passar a meu lado e oiço o seu riso no terraço, sei que me acompanha, que me perdoou todas as minhas violências do passado e que está mais perto de mim do que nunca esteve antes. Continua viva e está comigo, Clara claríssima...
A morte de Clara transtornou por completo a vida da grande casa da esquina. Os tempos mudaram. Com ela foram-se os espíritos, os hóspedes e aquela luminosa alegria que estava sempre presente porque ela não acreditava que o mundo fosse um Vale de Lágrimas, mas, pelo contrário, um gracejo de Deus, e por isso seria uma estupidez tomá-lo a sério, se Ele próprio o não fazia. Alba notou a deterioração desde os primeiros dias. Viu-a avançar lenta, mas inexorável. Percebeu-o antes que ninguém pelas flores que murcharam nos jarrões, impregnando o ar com um cheiro adocicado e nauseabundo, onde permaneceram até secarem, desfolhando-se, caindo e ficando apenas uns talos tristes que ninguém retirou senão muito tempo depois. Alba não voltou a cortar flores para adornar a casa. Depois morreram as plantas porque nin-guém se lembrou de as regar nem de lhes falar, como fazia Clara. Os gatos foram-se silenciosamente, tal como tinham chegado ou nascido nos buracos do telhado. Esteban Trueba vestiu-se de preto e passou, numa noite, da sua vigorosa maturidade de varão saudável, a uma incipiente velhice encolhida e gaguejante, que não teve contudo a virtude de lhe acalmar a ira. Vestiu luto rigoroso pelo resto da vida, mesmo quando isso passou de moda e ninguém o punha, excepto os pobres, que atavam uma fita preta na manga em sinal de nojo. Pendurou ao pescoço uma bolsinha de camurça suspensa de um fio de ouro, debaixo da camisa, junto ao peito. Eram os dentes postiços da mulher, que para ele significavam ao mesmo tempo boa sorte e expiação. Todos na família sentiram que sem Clara se perdia a razão de estar juntos: não tinham quase nada a dizer entre si. Trueba sentiu que a única coisa que o retinha em casa era a presença da neta.
No decurso dos anos seguintes a casa converteu-se numa ruína. Nin-guém tornou a ocupar-se do jardim, para o regar ou limpar, até que pareceu tragado pelo esquecimento, pelos pássaros ou pelas ervas daninhas. Aquele parque geométrico que Trueba mandou plantar, seguindo os desenhos dos jardins dos palácios franceses, e a zona encantada onde reinava Clara na desordem e na abundância, a luxúria das flores e o caos dos filodendros, foram secando, apodrecendo, enchendo-se de ervas. As estátuas cegas e as fontes cantantes taparam-se de folhas secas, excremento de pássaro e musgo. As pérgolas, partidas e sujas, serviram de refúgio aos bichos e de lixeira aos vizinhos. O parque converteu-se num espesso matagal de aldeia abandonada, onde mal se podia andar sem abrir passagem à machetada. O caramanchão que antes podavam com pretensões barrocas, acabou destroçado, caído, ata-cado por caracóis e pestes vegetais. Nos salões, a pouco e pouco, as cortinas desprenderam-se dos seus ganchos e penderam como combinações de velha, empoeiradas e destingidas. Os móveis pisados por Alba que brincava às casinhas e às trincheiras com eles, transformaram-se em cadáveres com as molas ao ar e o grande gobelim do salão perdeu a sua pulquérrima impavidez de cena bucólica de Versalhes e foi usado como alvo das flechas de Nicolau e da sobrinha. O fogão cobriu-se de gordura e de fuligem, encheu-se de boiões vazios e pilhas de jornais e deixou de produzir as grandes travessas de leite creme e os guisados perfumados de outros tempos. Os habitantes da casa resignaram-se a comer quase todos os dias grãos e arroz com leite, porque ninguém se atrevia a fazer frente ao desfile de cozinheiras aborrecidas, agastadas e despóticas que reinaram por turnos entre as caçarolas enegrecidas pelo mau uso. Os tremores de terra, o bater das portas e a bengala de Esteban Trueba abriram fendas nas paredes e estilhaçaram as portas, as persianas saltaram dos gonzos e ninguém tomou a iniciativa de as reparar. Começaram a gotejar as torneiras, a filtrar as canalizações, as telhas a partirem-se, a aparecer manchas esverdeadas de humidade nas paredes. Só o quarto forrado de seda azul de Clara permaneceu intacto. No seu interior ficaram os móveis de madeira ruiva, dois vestidos de algodão branco, a gaiola vazia do canário, a cesta com malhas inacabadas, os baralhos mágicos, a mesa de pé-de-galo, e as resmas de cadernos onde anotou a vida durante cinquenta anos e que, muito tempo depois, na solidão da casa vazia e no silêncio dos mortos e dos desaparecidos, eu ordenei e li com recolhimento para reconstituir esta história.
Jaime e Nicolau perderam o pouco interesse que tinham pela família e não tiveram compaixão pelo pai, que na sua solidão procurou inutilmente construir com eles uma amizade que enchesse o vazio deixado por uma vida de más relações. Viviam na casa porque não tinham um lugar mais conveniente onde comer e dormir, mas passavam como sombras indiferentes, sem se deterem para ver a decadência. Jaime exercia o seu ofício com vocação de apóstolo, com a mesma tenacidade com que o pai tirou Las Tres Marias do abandono e juntou uma fortuna, ele esgotava as suas forças trabalhando no hospital e atendendo os pobres gratuitamente nas horas livres.
- Você é um falhado sem remédio, filho - suspirava Trueba. - Não tem sentido da realidade. Ainda não viu como é o mundo. Aposta em valores utópicos que não existem.
- Ajudar o próximo é um valor que existe, pai.
- Não. A caridade, tal como o seu socialismo, é uma invenção dos fracos para vergar e utilizar os fortes.
- Não acredito na sua teoria dos fortes e dos fracos - respondia Jaime.
- Sempre assim foi na natureza. Vivemos numa selva.
- Sim, porque os que fazem as leis são os que pensam como o senhor, mas não será sempre assim.
- Sê-lo-á, porque somos triunfadores. Sabemos mover-nos no mundo e exercer o poder. Tenha juízo, filho, assente cabeça e monte uma clinica privada, eu ajudo-o. Mas corte com os seus extravios socialistas! – pregava Esteban Trueba sem nenhum resultado.
Depois que Amanda desaparecera da sua vida, Nicolau pareceu estabi-lizar-se emocionalmente. As suas experiências na índia deixaram-lhe o gosto pelas empresas espirituais. Abandonou as fantásticas aventuras comerciais que lhe atormentaram a imaginação nos primeiros anos da sua juventude, assim como o seu desejo de possuir todas as mulheres que lhe passavam pela frente, e voltou-lhe a ânsia que sempre tivera de encontrar Deus por caminhos pouco convencionais. O mesmo encanto que antes empregara para conseguir alunas para suas danças flamencas, serviu-lhe para reunir à sua volta um número crescente de adeptos. Eram na sua maioria jovens enfastiados da boa vida, que deambulavam como ele em busca de um filosofia que lhos permitisse existir sem participar nas agitações terrenas. Formou-se um grupo disposto a receber os milenários conhecimentos que Nicolau tinha adquirido no Oriente. A seu tempo, reuniram-se nos quartos traseiros da parte abandonada da casa, onde Alba lhes distribuía nozes e lhes servia infusões de ervas, enquanto eles meditavam com as pernas cruzadas. Quando Esteban Trueba descobriu que nas suas costas circulavam os coetâneos e os epónimos respirando pelo umbigo e tirando a roupa ao menor convite, perdeu a paciência e correu com eles ameaçando-os com a bengala e com a polícia. Então Nicolau compreendeu que sem dinheiro não poderia continuar a ensinar a Verdade, de maneira que começou a cobrar modestos honorários pelos seus ensinamentos. Com isso pôde alugar uma casa onde montou a sua academia de iluminados. Devido às exigências legais e à necessidade de ter um nome jurídico, chamou-lhe Instituto de União com o Nada, IDUN. Mas o pai não estava disposto a deixá-lo em paz, porque os seguidores de Nicolau começaram a aparecer fotografados nos jornais, com a cabeça tosquiada, com tangas indecentes e expressão beatífica, metendo a ridículo o nome dos Trueba. Mal se soube que o profeta do IDUN era filho do senador Trueba, a oposição explorou o assunto para o ridicularizar, usando a procura espiritual do filho como uma arma política contra o pai. Trueba suportou tudo estoicamente até ao dia em que encontrou a neta Alba com a cabeça rapada como uma bola de bilhar repetindo incansavelmente a palavra sagrada Om. Teve um dos seus mais terríveis ataques de raiva. Apareceu de surpresa no Instituto do filho, com dois rufias contratados para tal fim, que partiram à cacetada o escasso mobiliário e estiveram quase a fazer o mesmo com os pacíficos coetâneos, até que o velho compreendendo que uma vez mais se tinha excedido, mandou-lhes parar com a destruição e que o esperassem lá fora. A sós com o filho, conseguiu dominar o tremor furibundo que se tinha apoderado dele, para lhe resmungar com voz contida que já estava farto das suas palhaçadas.
- Não quero voltar a vê-lo até crescer o cabelo à minha neta! - acrescentou antes de sair atirando com a porta.
No dia seguinte Nicolau reagiu. Começou por deitar fora os escombros deixados pelos rufias do pai e limpar o local, enquanto respirava ritmicamente para esvaziar do seu interior todo o rasto de cólera e purificar o seu espírito. Depois, com os discípulos vestidos de tanga e levando cartazes em que exi-giam liberdade de culto e respeito pelos seus direitos de cidadãos, marcharam até ao gradeamento do Congresso. Ali puxaram de apitos de madeira, de sine-tas e de pequenos gongos improvisados, com os quais armaram uma chinfri-neira que fez parar o transito. Logo que se juntou bastante público, Nicolau começou a tirar toda a roupa e, completamente nu como um bebé, deitou-se no meio da rua com os braços abertos em cruz. Produziu-se tal confusão de travagens, buzinas, chiadeiras e assobiadelas, que o alarme chegou ao interior do edifício. No Senado interrompeu-se a sessão em que se discutia o direito dos latifundiários a cercar com arame farpado os caminhos vicinais, e os congressistas vieram à varanda gozar o inusitado espectáculo de um filho do senador Trueba cantando salmos asiáticos totalmente em pelota. Esteban Trueba desceu a correr a larga escadaria do Congresso e lançou-se à rua disposto a matar o seu filho, mas não chegou a passar do gradeamento, porque sentiu que o coração lhe explodia de ira no peito e um véu vermelho lhe turvava a vista. Caiu ao chão.
Levaram Nicolau na ramona dos carabineiros e o Senador numa ambu-lância da Cruz Vermelha. O fanico de Trueba durou três semanas e por pouco despachava-o para o outro mundo. Quando pôde sair da cama agarrou o filho Nicolau pelo pescoço, meteu-o num avião e mandou-o para o estrangeiro, com ordem de não voltar a aparecer-lhe à frente pelo resto da vida. Deu-lhe, apesar de tudo, dinheiro suficiente para poder instalar-se e sobreviver por largo tempo, porque, tal como lhe explicou Jaime, essa era uma maneira de evitar que fizesse mais loucuras que pudessem desprestigiá-lo também no estran-geiro.
Nos anos seguintes Esteban Trueba soube da ovelha ronhosa da sua família pela esporádica correspondência que Blanca mantinha com ele. Assim se inteirou de que Nicolau formara na América do Norte outra academia para se unir com o nada, com tanto êxito que chegou a ter a riqueza que não conseguiu subindo de balão ou fabricando sanduíches. Acabou remolhando-se com os seus discípulos na sua própria piscina de porcelana rosada, respeitado pelos cidadãos, combinando, sem fazer por isso, a procura de Deus com a boa sorte nos negócios. Esteban Trueba naturalmente nunca acreditou nisso.
O Senador esperou que crescesse um pouco o cabelo da neta, para que não pensassem que apanhara tinha, e foi pessoalmente matriculá-la num colégio inglês para meninas, porque continuava a pensar que essa era a melhor educação, apesar dos resultados contraditórios que obteve com os seus dois filhos. Blanca concordou, por compreender que não bastava uma boa conjunção de planetas na sua carta astral para Alba ir para a frente na vida. No colégio, Alba aprendeu a comer verduras cozidas e arroz queimado, a suportar o frio do pátio, a cantar hinos e a abjurar de todas as vaidades do mundo, excepto as de ordem desportiva. Ensinaram-lhe a ler a Bíblia, a jogar ténis e a escrever à máquina. Esta última foi a única coisa útil que lhe deixaram aqueles longos anos em idioma estrangeiro. Para Alba, que tinha vivido até então sem ouvir falar de pecados nem de modos de senhora, desconhecendo o limite entre o humano e o divino, o possível e o impossível, vendo passar um tio nu pelos corredores aos saltos de karateca e outro enterrado debaixo de uma montanha de livros, o avô partindo à bengalada os telefones e as floreiras do terraço, a mãe escapulindo-se com a maleta de palhaço e a avó movendo a mesa de pé-de-galo e tocando Chopin sem abrir o piano, a rotina do colégio pareceu-lhe insuportável. Aborrecia-se nas aulas. Nos recreios sentava-se no canto mais afastado e discreto do pátio, para não ser vista, tremendo de desejo de que a convidassem para brincar e pedindo ao mesmo tempo que ninguém reparasse nela. A mãe advertiu-a de que não tentasse explicar às companheiras o que vira sobre a natureza humana nos livros de medicina do seu tio Jaime, nem falasse às professoras das vantagens do esperanto sobre a língua inglesa. Apesar destas precauções, a directora do estabelecimento não teve dificuldade em detectar, desde os primeiros dias, as extravagâncias da sua nova aluna. Observou-a durante umas duas semanas e quando ficou segura do diagnóstico, chamou Blanca Trueba ao escritório e explicou-lhe da forma mais cortês que pôde, que a menina fugia por completo aos limites habituais da formação britânica e sugeriu-lhe que a metesse num colégio de freiras espanholas, onde talvez lhe pudessem dominar a imaginação lunática e corrigir-lhe o péssimo civismo. Mas o senador Trueba não estava disposto a deixar-se esmagar por uma Miss Saint John qualquer, e fez valer todo o peso da sua influência para que não expulsassem a neta. Queria a todo o custo que ela aprendesse inglês. Estava convencido da superioridade do inglês sobre o espanhol, que considerava um idioma de segunda categoria, próprio para assuntos domésticos e para a magia, para as paixões incontro-láveis e empreendimentos inúteis, mas inadequado para o mundo da ciência e da técnica, onde esperava ver Alba triunfar. Tinha acabado por aceitar - vencido pela vaga dos novos tempos - que algumas mulheres não eram de todo idiotas e pensava que Alba, demasiado insignificante para atrair um marido de boa situação, podia ter uma profissão e acabar por ganhar a vida como um homem. Nesse ponto Blanca apoiou o seu pai, porque tinha sentido na própria carne os resultados de uma má preparação académica para enfrentar a vida.
- Não quero que sejas pobre como eu, nem que tenhas de depender de um homem que te sustente - dizia à filha sempre que a via a chorar por não querer ir para as aulas.
Não a tiraram do colégio e teve de suportá-lo durante dez anos ininterruptos.
Para Alba, a única pessoa estável naquele barco à deriva em que se converteu a grande casa da esquina depois da morte de Clara, era a mãe. Blanca lutava contra o desastre e a decadência com a ferocidade de uma leoa, mas era evidente que perderia a batalha contra o avanço da deterioração. Só ela tentava dar ao casarão uma aparência de lar. O senador Trueba continuou vivendo ali, mas deixou de convidar os seus amigos e relações políticas, fechou os salões e ocupou só a biblioteca e o quarto. Estava cego e surdo às necessidades da casa. Muito atarefado com a política e os negócios, viajava constantemente, pagava novas campanhas eleitorais, comprava terras e tractores, criava cavalos de corrida, especulava com o preço do ouro, do açúcar e do papel. Não via que as paredes de casa estavam ávidas de uma camada de pintura, os móveis desengonçados e a cozinha transformada numa esterqueira. Nem via os coletes de lã apertados da sua neta, nem a roupa antiquada da filha ou as suas mãos destruidas pelo trabalho doméstico e pela argila. Não agia assim por avareza: a família tinha deixado simplesmente de Ihe interessar. Sala algumas vezes da distracção e chegava com algum pre-sente desproporcionado e maravilhoso para a neta, que não fazia mais que aumentar o contraste entre a riqueza invisível das contas nos bancos e a austeridade da casa. Entregava a Blanca somas variáveis, mas nunca sufici-entes, destinadas a manter em andamento aquele casarão destrambelhado e escuro, quase vazio e cruzado pelas correntes de ar, em que tinha degenerado a mansão de outros tempos. A Blanca o dinheiro nunca chegava para as des-pesas, vivia pedindo emprestado a Jaime e por mais que cortasse o orçamento por aqui e o remendasse ali, ao fim do mês tinha uma quantidade de contas por pagar que se iam acumulando, até que decidia ir ao bairro dos joalheiros judeus vender algumas das jóias que um quarto de século antes tinham sido compradas ali mesmo e que Clara Ihe dera dentro de uma meia de lã.
Em casa, Blanca andava de avental e alpergatas, confundindo-se com a escassa criadagem que restava, e para sair usava o mesmo fato preto engo-mado e tornado a engomar, com a blusa de seda branca. Depois que o avô enviuvou e deixou de preocupar-se com ela, Alba vestia-se com o que herdava de algumas primas afastadas, que eram maiores ou mais pequenas do que ela, de modo que em geral os casacos ficavam-lhe como capotes militares e os vestidos curtos e apertados. Jaime teria querido fazer alguma coisa por elas, mas a sua consciência indicava-lhe que era melhor gastar as suas receitas dando comida aos famintos, do que luxos à sua irmã e à sua sobrinha.
Depois da morte da avó, Alba começou a sofrer pesadelos que a faziam despertar gritando e afogueada. Sonhava que morriam todos os membros da família e ela ficava vagueando sozinha pela grande casa, sem outra companhia que os ténues fantasmas desluzidos que deambulavam pelos corredores. Jaime sugeriu que a mudassem para o quarto de Blanca para ficar mais tranquila. Desde que começou a compartilhar o quarto com a mãe, esperava com secreta impaciência o momento de se deitar. Encolhida entre os lençóis, seguia-a com os olhos na rotina de acabar o dia e meter-se na cama. Blanca limpava a cara com creme do harém, uma gordura rosada com perfume de rosas, que tinha fama de fazer milagres na pele feminina, e escovava cem vezes o seu longo cabelo castanho que começava a tingir-se com algumas cãs invisíveis para todos, menos para ela. Era propensa ao resfriado, por isso no Inverno e no Verão dormia com saiotes de lã que ela mesma fazia nos momentos livres. Quando chovia cobria as mãos com luvas, para mitigar o frio polar que lhe tinha entrado nos ossos devido à humidade da argila e que todas as injecções de Jaime e a acupunctura chinesa de Nicolau foram inúteis para curar. Alba observava-a no ir e vir pelo quarto, com a camisa de noviça flutuando em redor do corpo, o cabelo liberto do carrapito, envolta na suave fragrância da roupa limpa e do creme do harém, perdida num monólogo incoerente no qual se misturavam as queixas pelo preço das hortaliças, o inventário dos seus múltiplos achaques, o cansaço de trazer às costas o peso da casa, e as suas fantasias poéticas com Pedro Tercero Garcia, a quem imaginava entre as nuvens do entardecer ou recordava entre os dourados trigais de Las Tres Marias. Acabado o ritual, Blanca enfiava-se no leito e apagava a luz. Através do estreito espaço que as separava, pegava na mão da filha e contava-lhe as histórias dos livros mágicos dos baús encantados do bisavô Marcos, mas que a sua má memória transformava em contos novos. Foi assim que Alba soube de um príncipe que dormiu cem anos, de donzelas que lotavam corpo a corpo com os dragões, de um lobo perdido no bosque a quem uma menina destripou sem razão alguma. Quando Alba queria voltar a ouvir essas truculências, Blanca não podia repeti-las, porque as tinha esquecido, pelo que a pequena tomou o hábito de as escrever. Depois anotava também as coisas que lhe pareciam importantes, como fazia a avó Clara.
Os trabalhos do mausoléu começaram pouco tempo depois da morte de Clara, mas demoraram quase dois anos, porque fui acrescentando novos e dispendiosos pormenores: lápides com letras góticas douradas, uma cúpula de cristal para entrar o sol e um engenhoso mecanismo copiado das fontes romanas, que permitia irrigar de forma constante e regrada um minúsculo jardim interior, onde mandei plantar rosas e camélias, as flores preferidas das irmãs que tinham ocupado o meu coração. As estátuas foram um problema. Rejeitei vários desenhos, porque não queria anjos cretinos, mas sim os retratos de Rosa e Clara, com os seus rostos, as suas mãos, o seu tamanho real. Um escultor uruguaio acertou com o meu gosto e as estátuas ficaram por fim como eu as queria. Depois de pronto, encontrei-me face a um obstáculo inesperado: não pude trasladar Rosa para o novo mausoléu, porque a família del Valle se opôs. Tentei convencê-los com toda a espécie de argumentos, com presentes e pressões, fazendo valer até o poder político, mas tudo foi inútil. Os meus cunhados mantiveram-se inflexíveis. Julgo que souberam do assunto da cabeça de Nívea e estavam ofendidos comigo por tê-la tido na cave todo esse tempo. Face à sua casmurrice, chamei Jaime e disse-lhe que se preparasse para me acompanhar ao cemitério para irmos roubar o cadáver de Rosa. Não demonstrou nenhuma surpresa.
- Se isto não vai a bem, vai a mal - expliquei a meu filho.
Como é habitual nestes casos, fomos de noite e subornámos o guarda, tal como fiz muito tempo atrás, para ficar com Rosa na primeira noite que ela passou ali. Entrámos com as nossas ferramentas pela avenida dos ciprestes, procuramos a tumba da família del Valle e demo-nos ao lúgubre trabalho de a abrir. Tirámos cuidadosamente a lápide que guardava o repouso de Rosa e sacamos do nicho o ataúde branco, que era muito mais pesado do que supu-nhamos, de modo que tivemos de pedir ao guarda que nos ajudasse. Traba-lhámos dificilmente no estreito recinto, estorvando-nos mutuamente com as ferramentas, mal iluminados por uma lanterna de carboneto. Depois voltámos a colocar a lápide no nicho, para que ninguém suspeitasse que estava vazio. Terminámos a suar. Jaime tivera a precaução de levar um cantil com aguar-dente e pudemos beber um trago para nos dar animo. Apesar de nenhum de nós ser supersticioso aquela necrópole de cruzes, cúpulas e lápides punha-nos nervosos. Sentei-me nos degraus do jazigo a recuperar o alento e pensei que já não estava nada jovem, se mover um caixão me fazia perder o ritmo do coração e ver pontinhos brilhantes na escuridão. Fechei os olhos e recordei-me de Rosa, do seu rosto perfeito, da sua pele de leite, do seu cabelo de sereia oceânica, dos seus olhos de mel provocadores de tumultos, das suas mãos entrelaçadas com o rosário de nácar, da sua coroa de noiva. Suspirei evocando essa virgem formosa que se me tinha escapado das mãos e que esteve ali, esperando durante todos esses anos, que eu fosse buscá-la e a levasse para o sítio onde devia estar.
- Filho, vamos abrir isto. Quero ver Rosa - disse a Jaime.
Não tentou dissuadir-me, porque conhecia o meu tom quando a decisão era irrevogável. Ajeitámos a luz da lanterna, ele desapertou com paciência os parafusos de bronze que o tempo tinha escurecido e pudemos levantar a tampa, que pesava como se fosse de chumbo. À luz branca do carboneto vi, Rosa, a bela, com as suas flores de laranjeira de noiva, o seu cabelo verde, a sua imperturbável beleza, tal como a vira muitos anos antes, deitada no féretro branco sobre a mesa da sala de jantar dos meus sogros. Fiquei a olhá-la fascinado, sem estranhar que o tempo a não tivesse alterado, porque era a mesma dos meus sonhos. Inclinei-me e dei-lhe através do vidro que cobria o rosto, um beijo nos lábios pálidos da amada infinita. Nesse momento uma brisa levantou-se por entre os ciprestes, entrou à traição por alguma frincha do caixão que até então tinha permanecido hermético e num instante a noiva imutável desfez-se como por encanto, desintegrou-se em pó ténue e cinzento. Quando levantei a cabeça e abri os olhos, com o beijo frio ainda nos lábios, já não estava Rosa, a bela. No seu lugar havia uma caveira com as órbitas vazias, umas tiras de pele cor de marfim pegadas aos malares e umas mechas de crina bolorenta na nuca.
Jaime e o guarda fecharam a tampa precipitadamente, colocaram Rosa numa carreta e levaram-na ao sitio que lhe estava reservado junto de Clara no mausoléu cor de salmão. Fiquei sentado sobre uma campa na avenida dos ciprestes, olhando a Lua.
- Férula tinha razão - pensei. - Fiquei sozinho e o corpo e a alma estão a mirrar-se-me. Só me falta morrer como um cão.
O senador Trueba lutava contra os seus inimigos políticos, que cada dia avançavam mais e mais na conquista do poder. Enquanto outros dirigentes do Partido Conservador engordavam, envelheciam e perdiam o tempo em intermi-náveis discussões bizantinas, ele dedicava-se a trabalhar, a estudar e a per-correr o pais de norte a sul, numa campanha pessoal que nunca cessava, sem ter em conta os anos nem o surdo ranger dos ossos. Reelegiam-no senador em cada eleição parlamentar. Mas não estava interessado no poder, na riqueza ou no prestigio. A sua obsessão era destruir o que ele chamava «o cancro marxista», que se infiltrava pouco a pouco no povo.
- Levanta-se uma pedra e aparece um comunista! - dizia.
Ninguém acreditava nisso. Nem os próprios comunistas. Gozavam com ele, pelos seus repentes de mau humor, o ar de corvo enlutado, a bengala anacrónica e os seus prognósticos apocalípticos. Quando lhes brandia diante do nariz as estatísticas e os resultados reais das últimas votações, os seus correligionários temiam que fossem coisas de velho.
- No dia em que não pudermos deitar a luva às urnas antes de contarem os votos, vamos todos para o caralho! – sustentava Trueba.
- Em nenhum lado os marxistas ganharam por votação popular. É necessário pelo menos uma revolução e neste pais não se passam coisas dessas - replicavam-lhe.
- Até passarem! - alegava Trueba frenético.
- Acalma-te, homem. Não vamos permitir que isso se passe - consolavam-no. - O marxismo não tem a mais pequena oportunidade na América Latina. Não vês que nãocontempla o lado mágico das coisas? É uma doutrina ateia, prática e funcional. Aqui não pode ter êxito!
Nem o próprio coronel Hurtado, que via inimigos da pátria por todos os lados.
O senador Trueba lutava contra os seus inimigos políticos, que cada dia avançavam mais e mais na conquista do poder. Enquanto outros dirigentes do Partido Conservador engordavam, envelheciam e perdiam o tempo em intermináveis discussões bizantinas, ele dedicava-se a trabalhar, a estudar e a percorrer o pais de norte a sul, numa campanha pessoal que nunca cessava, sem ter em conta os anos nem o surdo ranger dos ossos. Reelegiam-no senador em cada eleição parlamentar. Mas não estava interessado no poder, na riqueza ou no prestígio. A sua obsessão era destruir o que ele chamava «o cancro marxista», que se infiltrava pouco a pouco no povo.
- Levanta-se uma pedra e aparece um comunista! - dizia.
Ninguém acreditava nisso. Nem os próprios comunistas. Gozavam com ele, pelos seus repentes de mau humor, o ar de corvo enlutado, a bengala anacrónica e os seus prognósticos apocalípticos. Quando lhes brandia diante do nariz as estatísticas e os resultados reais das últimas votações, os seus correligionários temiam que fossem coisas de velho.
- No dia em que não pudermos deitar a luva às urnas antes de contarem os votos, vamos todos para o caralho! – sustentava Trueba.
- Em nenhum lado os marxistas ganharam por votação popular. É necessário pelo menos uma revolução e neste pais não se passam coisas dessas - replicavam-lhe.
- Até passarem! - alegava Trueba frenético.
- Acalma-te, homem. Não vamos permitir que isso se passe - consolavam-no. - O marxismo não tem a mais pequena oportunidade na América Latina. Não vês que não contempla o lado mágico das coisas? É uma doutrina ateia, Prática e funcional. Aqui não pode ter êxito!
Nem o próprio coronel Hurtado, que via inimigos da pátria por todos os lados, considerava os comunistas como um perigo. Fez-lhe ver mais de uma vez, que o Partido Comunista era composto por quatro pobres diabos que não significavam nada estatisticamente e que se regiam pelas ordens de Moscovo com uma beatice digna de melhor causa.
- Moscovo fica onde o diabo perdeu o capote, Esteban. Não têm ideia do que se passa neste pais - dizia-lhe o coronel Hurtado. - Não lhes interessam para nada as condições do nosso pais, a prova é que andam mais perdidos que o Capuchinho Vermelho. Há pouco tempo publicaram um manifesto cha-mando os camponeses, os marinheiros e os indígenas a fazer parte do primeiro soviete nacional, o que sob todos os pontos de vista é uma palhaçada. Os camponeses sabem lá o que é um soviete! E os marinheiros estão sempre no alto mar e andam mais interessados nos bordéis de outros portos que na política. E os índios! Restam-nos uns duzentos ao todo. Não creio que tenham sobrevivido mais aos massacres do século passado, mas se querem formar um soviete nas suas reservas, é lá com eles - gracejava o coronel.
- Sim, mas além dos comunistas estão os socialistas, os radicais e outros grupelhos! São todos mais ou menos o mesmo - respondia Trueba.
Para o senador Trueba, todos os partidos políticos, excepto o seu, eram potencialmente marxistas e não podia distinguir claramente a ideologia de uns e de outros. Não hesitava em expor a sua posição em público sempre que surgia a oportunidade, por isso para todos menos para os seus partidários o senador Trueba passou a ser uma espécie de louco reaccionário e oligarca, muito pitoresco. O Partido Conservador tinha de o travar, para que não desse à língua e não os pusesse a todos em xeque. Era o paladino furioso, disposto a dar luta nos tribunais, nas conferências de imprensa, nas universidades, onde ninguém mais se atrevia a dar a cara, lá estava ele sem se perturbar, no seu fato negro, com a sua melena de leão e a sua bengala de prata. Era o alvo dos caricaturistas, que de tanto o porem a ridículo conseguiram torná-lo popular, e em todas as eleições fazia encher a votação conservadora. Era fanático, violento e antiquado, mas representava melhor que ninguém os valores da família, da tradição, da propriedade e da ordem. Toda a gente o reconhecia na rua, inventavam piadas à sua custa e corriam de boca em boca as anedotas que se lhe atribuíam. Diziam que, na ocasião do seu ataque de coração, quando o seu filho se despiu às portas do Congresso, o Presidente da Repú-blica chamou-o ao seu gabinete para lhe oferecer a Embaixada da Suíça, onde poderia ter um cargo apropriado para a sua idade, que lhe permitisse restabe-lecer a sua saúde. Diziam que o senador Trueba respondeu com um murro na secretária do primeiro mandatário, deitando abaixo a bandeira nacional e o busto do Pai da Pátria.
- Daqui não saio nem morto, Excelência! - rugiu. – Porque basta eu descuidar-me, os marxistas tiram-no dessa cadeira onde está sentado.
Teve a habilidade de ser o primeiro que chamou à esquerda «inimiga da democracia», sem suspeitar que anos depois esse seria o lema da ditadura. Na luta política ocupava quase todo o seu tempo e uma boa parte da sua fortuna. Notou que, apesar de estar sempre a tramar novos negócios, esta parecia ir minguando desde a morte de Clara, mas não se alarmou, porque supôs que na ordem natural das coisas estava o facto irrefutável de que na sua vida ela tinha sido um sopro de boa sorte, mas que não podia continuar beneficiando dele depois da sua morte. Além disso, calculou que com o que tinha podia manter-se como um homem rico, pelo tempo que lhe restava neste mundo. Sentia-se velho, tinha a ideia de que nenhum dos seus três filhos merecia herdá-lo e que à sua neta deixá-la-ia assegurada com Las Tres Marias, apesar de que o campo já não era tão próspero como dantes. Graças às novas estradas e aos automóveis, o que antes era uma expedição de comboio, tinha-se reduzido a seis horas apenas desde a capital a Las Tres Marias, mas ele estava sempre ocupado e não encontrava ocasião para fazer a viagem. Chamava o administrador de vez em quando, para que lhe prestasse contas, mas essas visitas deixavam-no com a ressaca do mau humor por vários dias. O administrador era um homem derrotado pelo seu próprio pessimismo. As noticias eram uma série de circunstancias infelizes: as geadas tinham queimado os morangos, as galinhas apanharam gosma, a uva secara com a peste. Assim o campo, que tinha sido a fonte da sua riqueza, chegou a ser uma carga e amiúde o senador Trueba teve de tirar dinheiro de outros negócios para sustentar essa terra insaciável que parecia ter ganas de voltar aos tempos do abandono, antes de ele a resgatar da miséria.
- Tenho de ir pôr ordem naquilo. Faz lá falta o olho do dono - murmurava.
- As coisas estão muito agitadas no campo, patrão - avisou-o muitas vezes o administrador. - Os camponeses estão levantados. Todos os dias fazem novas exigências. Parece que querem viver como os patrões. O melhor é vender a propriedade.
Mas Trueba não queria ouvir falar em vender. « A terra é a única coisa que fica quando tudo o resto se acaba», repetia ele tal como o fazia quando tinha vinte e cinco anos e a mãe e a irmã o pressionavam nesse sentido. Mas, com o peso da idade e do trabalho político, Las Tres Marias, como muitas outras coisas que antes lhe pareciam fundamentais, tinha deixado de lhe interessar. Só tinha um valor simbólico para ele.
O administrador tinha razão: as coisas estavam muito agitadas naqueles anos. Assim o apregoava a voz de veludo de Pedro Tercero Garcia, que graças ao milagre da rádio chegava aos cantos mais afastados do pais. Aos trinta e tantos anos continuava a ter o aspecto de um rude camponês, por uma ques-tão de estilo, já que o conhecimento da vida e o êxito lhe tinham suavizado as asperezas e afinado as ideias. Usava uma barba de montanhês e uma melena de profeta que ele mesmo aparava sem espelho com uma navalha que fora do pai, adiantando-se em vários anos à moda que mais tarde fez furor entre os cantores de protesto. Vestia-se com calças de pano grosseiro, alpergatas artesanais e no Inverno cobria-se com um poncho de tecido de lã crua. Era a sua pose de batalha. Assim se apresentava nos palcos e assim aparecia retratado nas capas dos discos. Desiludido das organizações políticas, acabou por destilar três ou quatro ideias primárias com as quais armou a sua filoso-fia. Era um anarquista. Das galinhas e raposos evoluiu para cantar a vida, a amizade, o amor e também a revolução. A sua música era muito popular e só alguém tão casmurro como o senador Trueba pôde ignorar a sua existência. O velho tinha proibido a rádio em casa, para evitar que a neta ouvisse as comé-dias e folhetins em que as mães perdem os filhos e os recuperam anos depois, assim como para evitar a possibilidade de que as canções subversivas do seu inimigo lhe fizessem parar a digestão. Ele tinha um rádio moderno no quarto, mas só ouvia as noticias. Não suspeitava que Pedro Tercero Garcia era o melhor amigo do seu filho Jaime, nem que se encontrava com Blanca sempre que ela sala com a sua maleta de palhaço, gaguejando pretextos. Nem sabia que em alguns domingos de sol, ele subia aos cerros com Alba, se sentava com ela lá em cima a ver a cidade e a comer pão com queijo antes de se deixarem cair a rebolar pelas ladeiras, rebentados de riso como cachorros felizes, falava-lhe dos pobres, dos oprimidos, dos desesperados e de outros assuntos que Trueba preferia que a neta ignorasse.
Pedro Tercero via crescer Alba e procurou estar perto dela, mas não chegou a considerá-la realmente sua filha, porque nesse ponto Blanca foi inflexível. Dizia que Alba tivera que suportar muitos sobres altos e que só por milagre era uma criança relativamente normal, por isso não havia necessidade de lhe dar outro motivo de confusão a respeito da sua origem. Era melhor que continuasse a acreditar na versão oficial e, por outro lado, não queria correr o risco de ela falar do assunto com o avô, provocando uma catástrofe. De qualquer maneira, o espírito livre e contestatário da menina agradava a Pedro Tercero.
- Se não é minha filha, merece sê-lo - dizia, orgulhoso.
Em todos esses anos, Pedro Tercero nunca chegou a habituar-se à sua vida de solteiro, apesar do seu êxito com as mulheres, especialmente as adolescentes esplendorosas a quem os queixumes da sua guitarra incendia-vam de amor. Algumas introduziam-se à viva força na sua vida. Ele necessitava da frescura desses amores. Procurava fazê-las felizes um tempo brevíssimo, mas desde o primeiro instante de ilusão começava a despedir-se, até que por último as abandonava com delicadeza. Amiúde, quando tinha uma delas na cama suspirando adormecida a seu lado, fechava os olhos e pensava em Blanca, no seu amplo corpo maduro, nos seus seios abundantes e mornos, nas finas rugas da sua boca, nas sombras dos seus olhos árabes e sentia um grito oprimindo-lhe o peito. Tentou permanecer junto de outras mulheres, percorreu muitos caminhos e muitos corpos para se afastar dela, mas no momento mais íntimo, no ponto preciso da solidão e do presságio da morte, Blanca era sempre a única. Na manhã seguinte começava o suave processo de se desprender da nova enamorada e, mal se encontrava livre, regressava para Blanca, mais magro, mais olheirento, mais culpado, com uma nova canção na guitarra e outras inesgotáveis carícias para ela.
Blanca, por seu lado, tinha-se acostumado a viver só. Acabou por encontrar paz nos afazeres da grande casa, na sua oficina de cerâmica e nos seus presépios de animais inventados, onde a única coisa que correspondia às leis da biologia era a Sagrada Família perdida numa multidão de monstros. O único homem da sua vida era Pedro Tercero, porque tinha vocação para um só amor. A força desse imutável sentimento salvou-a da mediocridade e da tristeza do seu destino. Permanecia fiel mesmo nos momentos em que ele se perdia atrás de algumas ninfas de cabelo escorrido e osso. grandes, sem o amar menos por isso. A principio julgava morrer cada vez que se afastava, mas logo se deu conta que as suas ausências duravam o tempo de um suspiro e que invariavelmente regressava mais enamorado e mais doce. Blanca preferia esses encontros furtivos com o seu amante em hotéis de passagem, à rotina de uma vida em comum, ao cansaço de um casamento e ao pesadume de enve-lhecerem juntos compartilhando as penúrias do fim do mês, o mau cheiro da boca ao acordar, o tédio dos domingos e os achaques da idade. Era uma romântica incurável. Algumas vezes teve a tentação de pegar na sua maleta de palhaço e o que restava das jóias da peúga, e abalar com a sua filha para viver com ele, mas acobardava-se sempre. Talvez temesse que aquele grandioso amor, que tinha resistido a tantas provações, não pudesse sobreviver à mais terrível de todas: a convivência. Alba estava a crescer muito rapidamente e compreendia que não ia durar muito o bom pretexto de velar pela filha para retardar as exigências do amante, mas preferia sempre deixar a decisão para mais tarde. Na realidade, tanto como temia a rotina, horrorizava-a o estilo de vida de Pedro Tercero, o seu modesto casebre de tábuas e folhas de zinco numa povoação operária, entre centenas de outras tão pobres como a sua, com piso de terra batida, sem água e com uma só lâmpada pendurada do tecto. Por causa dela, ele saiu da povoação e mudou-se para um apartamento no centro, ascendendo assim, sem querer, a uma classe média a que nunca teve aspirações de pertencer. Mas nem isso foi suficiente para Blanca. O apartamento pareceu-lhe sórdido, escuro, estreito e o edifício promiscuo. Dizia que não podia permitir que Alba crescesse ali, brincando com outros meninos na rua e nas escadas, educando-se na escola pública. Assim passou a sua juventude e entrou na idade madura, resignada a que os únicos momentos de prazer eram quando sala dissimuladamente com a sua melhor roupa, o seu perfume e as anáguas de adolescente que cativavam Pedro Tercero e que ela escondia, corada de vergonha, no mais secreto do roupeiro, pensando nas explicações que teria de dar se alguém as descobrisse. Aquela mulher prática e terrena em todos os aspectos da existência, sublimou a sua paixão de infância, vivendo-a tragicamente. Alimentou-a de fantasias, idealizou-a, defen-deu-a com fereza, depurou-a das verdades prosaicas e pôde convertê-la num amor de novela.
Por seu lado, Alba aprendeu a não mencionar Pedro Tercero Garcia, porque conhecia o efeito que esse nome causava na família. Intuía que algo de grave se tinha passado entre o homem dos dedos cortados que beijava a mãe na boca e o avô, mas todos, até o próprio Pedro Tercero, respondiam às suas perguntas com evasivas. Na intimidade do quarto, Blanca contava-lhe histó-rias dele e ensinava-lhe as suas canções com a recomendação de que não fosse trauteá-las em casa. Mas não lhe contou que era seu pai e ela mesma parecia tê-lo esquecido. Recordava o passado como uma sucessão de violên-cias, abandonos e tristezas e não estava segura de que as coisas tivessem sido como pensava. Tinha apagado da memória o episódio das múmias, os retratos e o índio imberbe com sapatos Luís XV, que provocaram a sua fuga da casa do seu marido. Tantas vezes repetiu a história de que o conde morrera de febre no deserto que chegou a acreditar nela. Anos depois, no dia em que a filha chegou a anunciar-lhe que o cadáver de Jean de Satigny jazia na geleira da morgue, não se alegrou, porque havia muito tempo se sentia viúva. Nem tentou justificar a sua mentira. Tirou do armário o seu antigo fato de saia e casaco preto, ajeitou os ganchos do cabelo e acompanhou Alba a sepultar o francês no Cemitério Geral, numa sepultura do Município, onde iam parar os indigentes, porque o senador Trueba negou-se a ceder-lhe um lugar no seu mausoléu cor de salmão. Mãe e filha caminharam sós atrás do caixão negro que puderam comprar graças à generosidade de Jaime. Sentiam-se um pouco ridículas naquele abafado meio-dia estival com um ramo de flores murchas na mão e nenhuma lágrima para o cadáver solitário que iam enterrar.
- Vejo que o meu pai nem sequer tinha amigos – comentou Alba.
Nem nessa ocasião Blanca disse a verdade à filha.
Depois que tive Clara e Rosa instaladas no meu mausoléu, senti-me um pouco mais tranquilo, porque sabia que mais tarde ou mais cedo estaríamos os três reunidos ali, junto a outros seres queridos como a minha mãe, a Ama e a própria Férula, que espero me tenha perdoado. Não imaginei na altura que ia viver tanto como tenho vivido e que teriam de esperar por mim tanto tempo.
O quarto de Clara permaneceu fechado à chave. Não queria que ninguém lá entrasse, para que não mexessem em nada e eu pudesse encontrar o seu espirito ali presente sempre que o desejasse. Comecei a ter insónias, o mal de todos os velhos. De noite, deambulava pela casa sem poder pegar no sono, arrastando as sapatilhas que me ficavam grandes, embrulhado na antiga túnica episcopal, que ainda guardo por razões sentimentais, resmungando contra o destino como um velho acabado. No entanto, com a luz do Sol, recu-perava o desejo de viver. Aparecia à hora do pequeno almoço com a camisa engomada e o meu fato de luto, barbeado e tranquilo, lia o jornal com a minha neta, punha em dia os meus negócios, e a correspondência e depois sala pelo resto do dia. Deixei de comer em casa, mesmo aos sábados e domingos, porque sem a presença catalisadora de Clara, não havia nenhuma razão para suportar as discussões com os meus filhos.
Os meus únicos dois amigos procuravam tirar-me o luto da alma. Almoçavam comigo, jogávamos golfe, desafiavam-me para o dominó. Com eles discutia os meus negócios, falava de política e por vezes da família. Uma tarde em que me viram mais animado, convidaram-me para ir ao Cristóbal Colón, com a esperança de que uma mulher complacente me fizesse recuperar o bom humor. Nenhum dos três tinha idade para essas aventuras, mas bebemos uns copos e partimos.
Tinha estado no Cristóbal Colón fazia alguns anos, mas quase o tinha esquecido. Nos últimos tempos, o bordel tinha adquirido prestigio turístico e os provincianos viajavam até à capital só para o visitar e depois contar aos amigos. Chegámos ao antiquado casarão, que por fora se mantinha igual desde há muitíssimos anos. Recebeu-nos um porteiro que nos levou ao salão principal, onde recordava ter estado antes, na época da matrona francesa ou, melhor dito, com sotaque francês. Uma rapariguita, vestida como uma estu-dante, ofereceu-nos um copo de vinho por conta da casa. Um dos meus amigos tentou agarrá-la pela cintura, mas ela avisou-o de que pertencia ao pessoal de serviço e que devíamos esperar pelas profissionais. Momentos depois abriu-se uma cortina e apareceu uma visão das antigas cortes árabes: um negro enorme, tão negro que parecia azul, com os músculos oleados, vestido com umas bombachas de seda cor de cenoura, um colete sem mangas, turbante de lamé roxo, babuchas de turco e um anel de ouro atravessado no nariz. Ao sorrir, vimos que tinha todos os dentes de chumbo. Apresentou-se como Mustafá e passou-nos um álbum de retratos, para escolhermos a mercadoria. Pela primeira vez em muito tempo ri com vontade, porque a ideia de um catálogo de prostitutas pareceu-me muito divertida. Folheámos o álbum, onde havia mulheres gordas, magras, de cabelo comprido, de cabelo curto, vestidas como ninfas, como amazonas, como noviças, como cortesãs, sem que fosse possível para mim escolher uma, porque todas tinham a expressão pisada das flores de banquete. As últimas três páginas do álbum eram destinadas a rapazes com túnicas gregas, com coroas de louro, brincando entre falsas ruínas helénicas, com as nádegas gorduchas e as pálpebras pestanudas, repugnantes. Eu não tinha visto de perto nenhum maricas confesso, excepto Carmelo, o que se vestia de japonesa no Farolito Rojo, por isso surpreendeu-me que um dos meus amigos, pai de família e corretor da Bolsa do Comércio, escolhesse um daqueles adolescentes rabudos dos retratos. O rapaz surgiu como por arte de magia detrás das cortinas e levou o meu amigo pela mão, entre risinhos e saracoteios femininos. O meu outro amigo preferiu uma gordíssima odalisca, com quem duvido que tenha podido realizar alguma proeza, devido à sua idade avançada e ao seu frágil esqueleto, mas, em todo o caso, saiu com ela, também engolidos pela cortina.
- Vejo que o senhor custa a decidir-se - disse Mustafá cordialmente. - Permita-me oferecer-lhe o melhor da casa. Vou-lhe apresentar Afrodite.
E entrou Afrodite no salão, com três andares de caracóis na cabeça, mal coberta por tules drapejados e gotejando uvas artificiais desde o ombro até aos joelhos. Era Tránsito Soto, que tinha adquirido um definitivo aspecto mitológico, apesar das uvas de mau gosto e dos tules de circo.
- Alegra-me vê-lo, patrão - saudou.
Levou-me através da cortina e desembocámos num pequeno pátio interior, o coração daquela labiríntica construção. O Cristóbal Colón era formado por duas ou três casas antigas, unidas estrategicamente por pátios traseiros, corredores e pontes feitos para tal fim. Tránsito Soto levou-me para um quarto anódino, mas limpo, cuja única extravagância eram uns frescos eróticos mal copiados dos de Pompeia, que um pintor medíocre tinha reproduzido nas paredes, e uma banheira grande, antiga, um pouco oxidada, com água corrente. Assobiei de admiração.
- Fizemos algumas mudanças na decoração - disse ela.
Tránsito tirou as uvas e os tules e voltou a ser a mulher que eu recor-dava, só que mais apetecível e menos vulnerável, mas com a mesma expressão ambiciosa dos olhos que me cativara quando a conheci. Contou-me da coope-rativa de prostitutas e maricas, que tinha resultado formidável. Entre todos levantaram o Cristóbal Colón da ruína em que o deixou a falsa madame francesa de antigamente, e trabalharam para o transformar num aconteci-mento social e num monumento histórico, que andava na boca de marinheiros pelos mais remotos mares. Os disfarces eram a maior contribuição para o êxito, porque remexiam a fantasia erótica dos clientes, assim como o catálogo de putas, que tinham podido reproduzir e distribuir por algumas províncias, para despertar nos homens o desejo de chegar a conhecer um dia o famoso bordel.
- É uma chatice andar com estes trapos e estas uvas fingidas, patrão, mas os homens gostam. Vão contar lá para fora e isso atrai outros. Vamos muito bem, é um bom negócio e ninguém aqui se sente explorado. Todos somos sócios. Esta é a única casa de putas do país que tem o seu próprio negro autêntico. Outros que você vê por ai são pintados, ao passo que Mustafá, mesmo que o esfregue com lixa, fica sempre negro. Aqui até pode beber água na retrete porque deitamos lixívia até onde você não imagina e estamos todos controlados pela Sanidade. Não há doenças venéreas.
Tránsito tirou o último véu e a sua magnifica nudez esmagou-me tanto que senti logo um mortal cansaço. Tinha o coração oprimido pela tristeza e o sexo flácido como uma flor murcha e sem destino entre as pernas.
- Ai, Tránsito! Creio que já estou muito velho para isto-balbuciei.
Mas Tránsito Soto começou a ondular a serpente tatuada à volta do umbigo, hipnotizando-me com o suave contorcionar do ventre, enquanto me arrulhava com a sua voz de pássaro rouco, falando dos benefícios da cooperativa e das vantagens do catálogo. Tive de rir-me, apesar de tudo, e pouco a pouco senti que o meu próprio riso era como um bálsamo. Com o dedo tentei seguir o contorno da serpente, mas deslizou-me ziguezagueando. Maravilhei-me de que aquela mulher, que não estava na sua primeira nem na sua segunda juventude, tivesse a pele tão firme e os músculos tão duros, capazes de mover aquele réptil como se tivesse vida própria. Inclinei-me para beijar a tatuagem e comprovei, satisfeito, que não estava perfumada. O odor cálido e seguro do seu ventre entrou-me pelas narinas e invadiu-me por completo, alertando-me no sangue um fervor que julgava esfriado. Sem deixar de falar, Tránsito abriu as pernas, separando as suaves colunas das suas coxas, num gesto casual, como se acomodasse a posição. Comecei a percorrê-la com os lábios, aspirando, explorando, lambendo, até que esqueci o luto e o peso dos anos e o desejo voltou-me com a força de outros tempos e sem deixar de acariciá-la e de beijá-la fui tirando-lhe a roupa aos sacões, com desespero, comprovando feliz a firmeza da minha masculinidade, ao mesmo tempo que me afundava no animal morno e misericordioso que se me oferecia, arrulhado pela voz de pássaro rouco, enlaçado pelos braços da deusa, cirandado pela força daquelas ancas, até perder a noção das coisas e rebentar em gozo.
Depois demorámo-nos os dois na banheira com água morna, até que a alma me voltou ao corpo e me senti quase curado. Por um instante brinquei imaginando que Tránsito Soto era a mulher de que sempre tinha necessitado e que a seu lado poderia voltar à época em que era capaz de levantar em peso uma robusta camponesa, pô-la na garupa do cavalo e levá-la para os matagais contra a sua vontade.
- Clara... - murmurei sem pensar, e então senti que cala uma lágrima pela minha face e depois outra e outra mais, até que foi uma torrente de pranto, um tumulto de soluços, uma sufocação de nostalgias e de tristezas, que Tránsito Soto reconheceu sem dificuldade, porque tinha uma grande experiência com as penas dos homens. Deixou-me chorar todas as misérias e as solidões dos últimos anos e depois tirou-me da banheira com cuidados de mãe, secou-me, fez-me massagens até deixar-me mole como um pão demolhado e tapou-me quando fechei os olhos na cama. Beijou-me na testa e saiu em bicos de pés.
- Quem será Clara? - ouvi-a murmurar ao sair.
O Despertar
Por volta dos dezoito anos, Alba abandonou definitivamente a infância. No momento preciso em que se sentiu mulher, fechou-se no seu antigo quarto, onde ainda estava o mural que tinha começado muitos anos antes. Procurou nos velhos boiões de tinta até que encontrou um pouco de vermelho e de branco que ainda estavam frescos, misturou-os com cuidado e começou a pintar um grande coração rosado no último espaço livre das paredes. Estava apaixonada. Depois atirou para o lixo os boiões e os pincéis e sentou-se um bom bocado a contemplar os desenhos, para rever a história das suas tristezas e alegrias. Concluiu que tinha sido feliz e, com um suspiro, despediu-se da meninice.
Nesse ano mudaram muitas coisas na sua vida. Acabou o colégio e decidiu estudar filosofia, por gosto pessoal, e música, para ir contra o avô, que considerava a arte como uma forma de perder tempo e pregava incansavel-mente as vantagens das profissões liberais ou cientificas. Também a prevenia contra o amor e o casamento com as mesmas tolices com que insistia para que Jaime procurasse uma noiva decente e se casasse, porque estava a ficar solteirão. Dizia que para os homens é bom ter uma esposa, mas, em troca, as mulheres como Alba ficavam sempre a perder com o casamento. As prédicas do avô volatilizaram-se quando Alba viu pela primeira vez Miguel, numa tarde memorável de chuviscos e frio, na cafetaria da Universidade.
Miguel era um estudante pálido, de olhos febris, calças desbotadas e botas de mineiro, no último ano de Direito. Era dirigente esquerdista. Estava inflamado pela mais incontrolável paixão: procurar a justiça. Isso não o impe-diu de notar que Alba o observava. Levantou a vista e os seus olhos encon-traram-se. Olharam-se deslumbrados e desde esse momento procuraram todas as ocasiões para se juntarem nas alamedas do parque, por onde passea-vam carregados de livros ou arrastando o pesado violoncelo de Alba. Desde o primeiro encontro ela notou que ele trazia uma pequena insígnia na manga: uma mão levantada com o punho cerrado. Decidiu não lhe dizer que era neta de Esteban Trueba e, pela primeira vez na sua vida, usou o apelido que tinha no seu bilhete de identidade: Satigny. Cedo se deu conta que era melhor não o dizer aos outros companheiros. Pelo contrário, pôde gabar-se de ser amiga de Pedro Tercero Garcia, que era muito popular entre os estudantes, e do Poeta, em cujos joelhos se sentava em menina e que na altura era conhecido em todos os idiomas e cujos versos andavam na boca dos jovens e nos graffiti das paredes.
Miguel falava da revolução. Dizia que à violência do sistema havia que opor a violência da revolução. Alba, no entanto, não tinha nenhum interesse pela política e só queria falar de amor. Estava farta de ouvir os discursos do avô, de assistir às suas discussões com o tio Jaime, de viver as campanhas eleitorais. A única participação política da sua vida tinha sido sair com outros estudantes para apedrejar a Embaixada dos Estados Unidos, sem ter motivos muito claros para isso, devido ao que a suspenderam do colégio por uma semana e ao seu avô quase lhe deu outro enfarte. Mas na Universidade a política era iniludível. Como todos os jovens que entraram nesse ano, descobriu o atractivo das noites insones num café, falando das mudanças que o mundo necessitava e contagiando-se uns aos outros com a paixão das ideias. Voltava a casa já tarde na noite, com a boca amarga e a roupa impregnada de cheiro a tabaco rançoso, com a cabeça quente de heroísmos, segura de que, chegado o momento, poderia dar a sua vida por uma causa justa. Por amor a Miguel, e não por convicção ideológica, Alba entrincheirou-se na Universidade ao lado dos estudantes que ocuparam o edifício em apoio a uma greve de trabalhadores. Foram dias de acampamento, de discursos infla-mados, de gritar insultos à polícia das janelas até ficarem afónicos. Fizeram barricadas com sacos de terra e paralelipípedos que arrancaram do pátio prin-cipal, taparam as portas e janelas com intenções de tornar o edifício uma fortaleza e o resultado foi uma masmorra da qual era muito mais difícil para os estudantes sair, que para a polícia entrar. Foi a primeira vez que Alba passou a noite fora de casa, aconchegada nos braços de Miguel, entre montões de jornais e garrafas vazias de cerveja, na morna promiscuidade dos compa-nheiros, todos jovens, suados, com os olhos avermelhados pelo sono atrasado e pelo fumo, um pouco esfomeados e sem nenhum medo, porque aquilo se parecia mais com uma brincadeira do que com uma guerra. O primeiro dia passaram-no tão ocupados fazendo barricadas e mobilizando as suas cândidas defesas, pintando cartazes e falando pelo telefone, que não tiveram tempo para se preocupar quando a polícia lhes cortou a água e a electricidade.
Desde o primeiro instante, Miguel converteu-se na alma da ocupação, secundado pelo professor Sebastián Gómez, o qual apesar das suas pernas paralíticas os acompanhou até ao fim. Nessa noite cantaram para se anima-rem e, quando se cansaram dos discursos, das discussões e dos cantos, aco-modaram-se em grupos para passar a noite o melhor possível. O último a des-cansar foi Miguel, que parecia ser o único que sabia como actuar. Encarregou-se da distribuição da água, juntando em recipientes até a que estava armazenada nos autoclismos, improvisou uma cozinha e trouxe, ninguém sabe de onde, café instantâneo, bolachas e algumas latas de cerveja. No dia seguinte, o fedor dos sanitários sem água era terrível, mas Miguel organizou a limpeza e ordenou que não os ocupassem: havia que fazer as necessidades no pátio, numa fossa cavada junto à estátua de pedra do fundador da Univer-sidade. Miguel dividiu os rapazes em grupos e manteve-os todo o dia ocupa-dos, com tanta habilidade que não se notava a sua autoridade. As decisões pareciam surgir espontaneamente dos grupos.
- É como se fôssemos ficar aqui vários meses! – comentou Alba, encantada com a ideia de estarem sitiados.
Na rua, rodeando o antigo edifício, colocaram-se estrategicamente os carros blindados da polícia. Começou uma tensa espera que iria prolongar-se por vários dias.
- Vão aderir os estudantes de todo o país, os sindicatos, os colégios profissionais. Talvez caia o governo – opinou Sebastián Gómez.
- Não o creio - replicou Miguel. - Mas o que importa é estabelecer o pro-testo e não deixar o edifício até que se assine o caderno reivindicativo dos trabalhadores.
Começou a chover suavemente e muito cedo fez-se noite dentro do edifício sem luz. Acenderam alguns improvisados candeeiros com gasolina e uma mecha fumegante em boiões. Alba pensou que também tinham cortado o telefone, mas verificou que a linha funcionava. Miguel explicou que a polícia tinha interesse em saber o que eles diziam e preveniu-os a respeito das conversas. De qualquer modo, Alba ligou para casa para avisar que ficaria junto dos companheiros até à vitória final ou à morte, o que lhe soou falso logo que o disse. O seu avô arrebatou o aparelho da mão de Blanca e com a entoação iracunda que a sua neta conhecia muito bem, disse-lhe que tinha uma hora para chegar a casa com uma explicação razoável por ter passado toda a noite fora. Alba respondeu-lhe que não podia sair e mesmo que pudesse, também não pensava fazê-lo.
- Não tens nada que estar ai com esses comunistas! – gritou Esteban Trueba. Mas em seguida amaciou a voz e pediu-lhe que saísse antes que entrasse a polícia, porque ele estava em posição de saber que o governo não ia tolerá-los indefinidamente. - Se não saem às boas, entra o Grupo Móvel e vão tirá-los à cacetada - concluiu o Senador.
Alba olhou por uma fresta da janela, tapada com tábuas e sacos de terra e viu os tanques alinhados na rua e uma dupla fila de homens em pé de guerra, com capacetes, matracas e máscaras. Compreendeu que o avô não exagerava. Os outros também os tinham visto e alguns vacilavam. Alguém disse que havia umas novas bombas, piores que as lacrimogéneas, que provocavam uma incontrolável diarreia, capaz de dissuadir o mais valente com a pestilência e o ridículo. A Alba pareceu-lhe a ideia aterradora. Teve de fazer um grande esforço para não chorar. Sentia pontadas no ventre e supôs que eram de medo. Miguel abraçou-a, mas isso não lhe serviu de consolo. Estavam os dois cansados e começavam a sentir a má noite nos ossos e na alma.
- Não creio que se atrevam a entrar - disse Sebastián Gómez. - O governo já tem bastantes problemas. Não vai meter-se connosco.
- Não seria a primeira vez que carrega contra os estudantes - observou alguém.
- A opinião pública não o permitirá - respondeu Gómez. - Isto é uma democracia. Não é uma ditadura e nunca o será.
- Pensamos sempre que essas coisas só acontecem aos outros - disse Miguel. - Até que se passem também connosco.
O resto da tarde passou sem incidentes e à noite todos estavam mais tranquilos, apesar da prolongada incomodidade e da fome. Os tanques conti-nuavam parados nos seus postos. Nos longos corredores e nas salas os jovens jogavam ao galo ou às cartas, descansavam estendidos no chão e preparavam armas defensivas com paus e pedras. A fadiga notava-se em todos os rostos. Alba sentia cada vez mais fortes as cólicas no ventre e pensou que, se as coisas não se resolvessem no dia seguinte, não teria outro remédio senão uti-lizar a fossa do pátio. Na rua continuava chovendo e a rotina da cidade pros-seguia imperturbável. Ninguém parecia importar-se com outra greve dos estudantes e as pessoas passavam diante dos tanques sem parar para ler os cartazes pendurados da fachada da niversidade. Os vizinhos habituaram-se rapidamente à presença dos carabineiros armados e quando a chuva parou, as crianças saíram para jogar à bola no estacionamento vazio que separava o edifício dos destacamentos policiais. Por momentos, Alba tinha a sensação de estar num barco à vela num mar calmo, sem uma brisa, numa espera eterna e silenciosa, imóvel, explorando o horizonte durante horas. A alegre camarada-gem do primeiro dia transformou-se em irritação e em constantes discussões à medida que o tempo transcorreu e aumentou a incomodidade. Miguel inventariou todo o edificio e confiscou os viveres da cafetaria.
- Quando isto terminar, pagaremos ao concessionário. É um trabalhador como qualquer outro - disse.
Fazia frio. O único que não se queixava de nada, nem sequer da sede, era Sebastián Gómez. Parecia tão incansável como Miguel, apesar de ter o dobro da idade e do seu aspecto de tuberculoso. Era o único professor que ficou com os estudantes quando ocuparam o edifício. Diziam que as suas pernas paralí-ticas eram a consequência de uma rajada de metralhadora na Bolívia. Era um ideólogo que fazia arder nos alunos a chama que a maioria viu apagar-se quando abandonaram a Universidade e entraram no mundo que na sua primeira juventude julgaram poder mudar. Era um homem pequeno, magro de nariz aquilino e cabelo ralo, animado por um fogo interior que não lhe dava tréguas. Alba devia-lhe a alcunha de «condessa», porque no primeiro dia o seu avô teve a má ideia de mandá-la às aulas no automóvel com motorista e o professor viu-a. A alcunha era, por coincidência, certa, porque Gómez não podia saber que, no caso improvável de ela o querer fazer um dia, podia desenterrar o titulo de nobreza de Jean de Satigny que era uma das poucas coisas autênticas que tinha o conde francês que lhe deu o apelido. Alba não lhe tinha rancor pela alcunha brincalhona, pelo contrário, algumas vezes tinha fantasiado com a ideia de seduzir o esforçado professor. Mas Sebastián Gómez tinha visto muitas meninas como Alba e sabia distinguir essa mescla de compaixão e curiosidade que provocavam as suas muletas sustentando as suas pobres pernas de trapo.
Assim se passou todo o dia, sem que o Grupo Móvel movesse os seus tanques e sem que o governo cedesse às reivindicações dos trabalhadores. Alba começou a perguntar-se que diabo estava a fazer naquele lugar, porque a dor de barriga estava-se a tornar insuportável e a necessidade de tomar um banho com água corrente começava a obcecá-la. Cada vez que olhava para a rua e via os carabineiros enchia-se-lhe a boca de saliva. Nessa altura já se tinha dado conta que os treinos do tio Nicolau não eram tão eficazes no momento da acção como na ficção dos sofrimentos imaginários. Duas horas depois, Alba sentiu entre as pernas uma viscosidade morna e viu as calças manchadas de vermelho. Invadiu-a uma sensação de pânico. Durante aqueles dias o temor de que isso acontecesse atormentou-a quase tanto como a fome. A mancha nas calças era como uma bandeira. Não tentou disfarçá-la. Encolheu-se num canto sentindo-se perdida. Quando era pequena, a avó tinha-lhe ensinado que as coisas próprias da função humana são naturais e que podia falar da menstruação como da poesia, mas mais tarde, no colégio, viu que todas as secreções do corpo, menos as lágrimas, eram indecentes. Miguel notando-lhe a vergonha e a angústia, foi à improvisada enfermaria buscar um pacote de algodão, conseguindo alguns lenços, mas logo viram que isso não era suficiente e ao anoitecer Alba chorava de humilhação e de dor, assustada pelas tenazes nas suas entranhas e por esse gorgolejar sangrento que não se parecia em nada com o dos outros meses. Parecia-lhe que algo estava rebentando dentro de si. Ana Díaz, uma estudante que, como Miguel, usava a insígnia do punho erguido, fez a observação de que isso só dói às mulheres ricas, porque as proletárias não se queixam nem quando estão parindo, mas ao ver que as calças de Alba eram um charco e que estava pálida como um moribundo, foi falar com Sebastián Gómez. Este declarou-se incapaz de resolver o problema.
- Isto passa-se por meter as mulheres em coisas de homens - gracejou.
- Não! Isto passa-se por meter os burgueses nas coisas do povo - respondeu a jovem indignada.
Sebastián Gómez foi até ao canto onde Miguel tinha instalado Alba e deslizou para o seu lado com dificuldade, por causa das muletas.
- Condessa, tens de ir para a tua casa. Aqui não contribuis em nada, pelo contrário, és um empecilho - disse-lhe.
Alba sentiu uma onda de alívio. Estava demasiado assustada e aquela era uma saída honrosa que lhe permitiria voltar a sua casa sem que parecesse covardia. Discutiu um pouco com Sebastián Gómez para salvar a cara, mas aceitou quase em seguida que Miguel saísse com uma bandeira branca a parlamentar com os carabineiros. Todos o observaram das vigias enquanto atravessava o estacionamento vazio. Os carabineiros tinham estreitado filas e ordenaram-lhe pelo altifalante, que parasse, que deitasse a bandeira para o chão e avançasse com as mãos na nuca.
- Isto parece uma guerra! - comentou Gómez.
Pouco depois regressou Miguel que ajudou Alba a pôr-se em pé. A mesma jovem que antes tinha criticado os queixumes de Alba, pegou-lhe num braço e os três saíram do edifício saltando as barricadas e os sacos de terra, ilumi-nados pelos potentes projectores da polícia. Alba mal podia caminhar, sentia-se envergonhada e com a cabeça às voltas. A meio caminho, uma patrulha saiu-lhes ao encontro e Alba viu-se a poucos centímetros de um uniforme verde e viu uma pistola que lhe era apontada à altura do nariz. Levantou os olhos e enfrentou um rosto moreno com olhos de roedor. Soube logo quem era: Esteban Garcia.
- Vejo que és a neta do senador Trueba!-exclamou Garcia ironicamente.
Miguel soube assim que ela não lhe tinha dito toda a verdade. Sentindo-se traído, entregou-a nas mãos do outro, deu meia volta e regressou arras-tando a bandeira branca pelo chão, sem lhe dar nem um olhar de despedida, acompanhado por Ana Díaz, que ia tão surpreendida e furiosa como ele.
- O que tens tu? - perguntou Garcia apontando com a pistola as calças de Alba. - Parece um aborto!
Alba endireitou a cabeça e olhou-o nos olhos.
- Isso não lhe importa. Leve-me a minha casa! – ordenou copiando o tom autoritário que empregava o seu avô com todos os que não considerava da sua classe social.
Garcia vacilou. Há muito tempo que não ouvia uma ordem da boca de um civil e teve a tentação de levá-la para a prisão e deixá-la apodrecer numa cela, banhada no seu próprio sangue, até que lhe pedisse de joelhos, mas na sua profissão tinha aprendido que havia outros muito mais poderosos do que ele e que não podia dar-se ao luxo de actuar com impunidade. Além disso, a recordação de Alba com os seus vestidos engomados tomando limonadas no terraço de Las Tres Marias, enquanto ele arrastava os pés nus no pátio das galinhas e sorvia o ranho e o temor que ainda tinha ao velho Trueba, foram mais fortes que o seu desejo de humilhá-la. Não pôde aguentar o olhar da rapariga e baixou imperceptivelmente a cabeça. Deu meia volta, ladrou uma breve frase e dois carabineiros levaram Alba pelos braços até um carro da polícia. Assim chegou a casa. Ao vê-la, Blanca pensou que se tinham cum-prido as previsões do avô e que a polícia tinha arremetido à bastonada contra os estudantes. Começou a guinchar e não parou até que Jaime examinou Alba e lhe assegurou que não estava ferida e que não tinha nada que não se pudesse curar com um par de injecções e repouso.
Alba passou dois dias na cama, durante os quais se dissolveu pacifica-mente a greve dos estudantes. O ministro da Educação foi retirado do seu posto e transferido para o Ministério da Agricultura.
- Se pôde ser ministro da Educação sem ter terminado a escola, também pode ser ministro da Agricultura sem ter visto uma vaca inteira em toda a sua vida - comentou o senador Trueba.
Enquanto esteve na cama, Alba teve tempo para lembrar as circuns-tâncias em que tinha conhecido Esteban Garcia. Procurando muito atrás nas imagens da infância, recordou um jovem moreno, a biblioteca da casa, a lareira acesa com grandes troncos de pinheiro perfumando o ar, à tarde ou à noite, e ela sentada sobre os seus joelhos. Mas a visão entrava e sala fugaz-mente da sua memória e chegou a duvidar se não a teria sonhado. A primeira recordação que tinha dele era posterior. Sabia a data exacta porque foi no dia em que completou catorze anos e a mãe anotou no álbum negro que a sua avó iniciou quando ela nasceu. Para a ocasião tinha encaracolado o cabelo e estava no terraço, com o casaco vestido, esperando que chegasse o tio Jaime para a levar a comprar o seu presente. Fazia muito frio, mas ela gostava do jardim no Inverno. Soprou nas mãos e subiu a gola do casaco para proteger as orelhas. Dali podia ver a janela da biblioteca, onde o avô falava com um homem. O vidro estava embaciado, mas pôde reconhecer o uniforme dos cara-bineiros e perguntou a si própria que podia estar o avô a fazer com um deles no seu escritório. O homem estava de costas para a janela sentado rigida-mente na ponta da cadeira, com as costas direitas e um ar patético de solda-dinho de chumbo. Alba esteve olhando-os um bocado, até que calculou que o tio estava a chegar, então caminhou pelo jardim até um caramanchão meio destruído, esfregando as mãos para as aquecer, tirou as folhas húmidas que havia sobre o banco de pedra e sentou-se à espera. Pouco depois, Esteban Garcia encontrou-a ali mesmo, quando saiu de casa e teve de atravessar o jardim para se dirigir ao portão. Ao vê-la parou bruscamente. Olhou para todos os lados, hesitou e aproximou-se.
- Recordas-te de mim? - perguntou Garcia.
- Não... - duvidou ela.
- Sou Esteban Garcia. Conhecemo-nos em Las Tres Marias.
Alba sorriu mecanicamente. Trazia-lhe uma má recordação à memória. Havia qualquer coisa nos seus olhos que a inquietava, mas não conseguiu precisar o quê. Garcia varreu com a mão as folhas e sentou-se a seu lado no banco, tão perto, que as suas pernas se tocavam.
- Este jardim parece uma selva - disse, respirando muito perto dela.
Tirou o barrete do uniforme e ela viu que tinha o cabelo muito curto e duro, penteado com fixador. A mão de Garcia poisou-lhe no ombro. A familia-ridade do gesto desconcertou o rapariga, que por um momento ficou parali-sada, mas em seguida recuou, tentando libertar-se. A mão do carabineiro apertou-lhe o ombro, enterrando-lhe os dedos através do tecido espesso do seu casaco. Alba sentiu que o coração lhe latejava como uma máquina e o rubor lhe cobria as faces.
- Cresceste, Alba, pareces quase uma mulher - sussurrou o homem ao seu ouvido.
- Tenho catorze anos, faço-os hoje - balbuciou ela.
- Então tenho um presente para ti - disse Esteban Garcia sorrindo com a boca torcida.
Alba tentou desviar a cara, mas ele agarrou-a firmemente com as mãos, obrigando-a a enfrentá-lo. Foi o seu primeiro beijo. Sentiu uma sensação quente, brutal, a pele áspera e mal barbeada raspou-lhe a cara, sentiu o seu odor a tabaco rançoso e cebola, a sua violência. A língua de Garcia tentou abrir-lhe os lábios enquanto com uma mão lhe apertava as faces até obrigá-la a abrir os maxilares. Ela viu aquela língua como um molusco baboso e morno, invadiu-a a náusea e subiu-lhe um vómito do estômago, mas manteve os olhos abertos. Viu o duro tecido do uniforme e sentiu as mãos ferozes que lhe rodea-vam o pescoço e, sem deixar de beijá-la, os seus dedos começaram a apertar. Alba julgou que se afogava e empurrou-o com tal violência que conseguiu afastá-lo. Garcia levantou-se do banco e sorriu com zombaria. Tinha manchas vermelhas nas faces e respirava agitadamente.
- Gostaste do meu presente? - riu-se.
Alba viu-o afastar-se a grandes passadas pelo jardim e sentou-se a chorar. Sentia-se suja e humilhada. Depois correu para casa lavar a boca com sabão e escovar os dentes como se isso pudesse tirar a mancha da sua memória. Quando chegou o tio Jaime para a buscar, pendurou-se do seu pescoço, escondeu a cara na sua camisa e disse-lhe que não queria nenhum presente, porque tinha decidido ir para freira. Jaime desatou a rir com um riso sonoro e fundo que lhe nascia das entranhas e que ela só lhe ouvira em muito poucas ocasiões, porque o tio era um homem taciturno.
- Juro-te que é verdade! Vou para freira! - soluçou Alba.
- Terias de nascer de novo - respondeu Jaime. - E além disso terias de passar por cima do meu cadáver.
Alba não voltou a ver Esteban Garcia até que o teve a seu lado no estacionamento da Universidade, mas nunca pôde esquecê-lo. Não contou a ninguém aquele beijo repugnante nem os sonhos que teve depois, em que ele aparecia como uma besta verde disposta a estrangulá-la com as patas e a asfixiá-la introduzindo-lhe um tentáculo baboso na boca.
Recordando tudo isso, Alba descobriu que o pesadelo tinha estado oculto dentro de si anos e que Garcia continuava a ser a besta que a espreitava nas sombras para lhe saltar em cima em qualquer momento da sua vida. Não podia saber que era uma premonição.
A Miguel esfumou-se-lhe a decepção e a raiva de que Alba fosse neta do senador Trueba, quando pela segunda vez a viu deambular como alma perdida pelos corredores próximos da cafetaria onde se tinham conhecido. Decidiu que era injusto culpar a neta pelas ideias do avô e voltaram a passear abraçados. Em pouco tempo os beijos intermináveis tornaram-se insuficientes e começa-ram a encontrar-se no quarto onde vivia Miguel. Era uma pensão medíocre para estudantes pobres, dirigida por um casal de meia-idade com vocação para a espionagem. Observavam Alba com mal disfarçada hostilidade quando subia de mão dada com Miguel ao seu quarto e para ela era um suplício vencer a timidez e enfrentar a crítica desses olhares que lhe estragavam a felicidade do encontro. Para os evitar preferia outras alternativas, mas também não aceitava a ideia de irem juntos a um hotel, pela mesma razão que não queria ser vista na pensão de Miguel.
- És a pior burguesa que conheço! - ria-se Miguel.
Às vezes ele conseguia uma moto emprestada e escapavam-se umas horas, viajando a uma velocidade suicida, cavalgando a máquina, com as ore-lhas geladas e o coração ansioso. Gostavam de ir no Inverno às praias solitá-rias, andar sobre a areia molhada deixando as pegadas que a água lambia, espantar as gaivotas e respirar às golfadas o ar do mar. No Verão preferiam os bosques mais densos, onde podiam amar-se impunemente depois de iludirem as crianças exploradoras e os excursionistas. Alba depressa descobriu que o lugar mais seguro era a sua própria casa, porque no labirinto e no abandono dos quartos traseiros, onde ninguém entrava, podiam amar-se sem perturbações.
- Se as criadas ouvem ruídos, pensarão que voltaram os fantasmas - disse Alba e contou-lhe o glorioso passado dos espíritos visitantes e das mesas voadoras da grande casa da esquina.
A primeira vez que o conduziu através da porta traseira do jardim, abrin-do passagem no matagal e desviando-se das estátuas manchadas de musgo e cagadelas de pássaro, o jovem teve um sobressalto ao ver o triste casarão. «Eu estive aqui antes», murmurou, mas não pôde recordar, porque aquela selva de pesadelo e a lúgubre mansão só vagamente se assemelhavam com a imagem luminosa que guardara desde a infância.
Os apaixonados experimentaram um por um os quartos abandonados e terminaram improvisando um ninho para os seus amores furtivos nas profundidades da cave. Havia vários anos que Alba não entrava ali e chegou a esquecer a sua existência, mas no momento em que abriu a porta e respirou o inconfundível odor tornou a sentir a mágica atracção de antes. Usaram os trastes, os caixotes, a edição do livro do tio Nicolau, os móveis e os cortinados de outros tempos para arranjar um surpreendente quarto nupcial. No centro, improvisaram uma cama com vários colchões que cobriram com pedaços de veludo roído pela traça. Dos baús extraíram incontáveis tesouros. Fizeram lençóis com velhas cortinas de damasco cor de topázio, descoseram um sump-tuoso vestido de renda de Chantilly que usou Clara no dia em que morreu Barrabás, para fazer um mosquiteiro cor do tempo que os protegesse das ara-nhas que desciam do tecto. Alumiavam-se com velas e ignoravam os pequenos roedores, o frio e aquele cheiro de além-túmulo. Andavam nus no crepúsculo eterno da cave, desafiando a humidade e as correntes de ar. Bebiam vinho branco em taças de cristal que Alba subtraiu da sala de jantar e faziam um minucioso inventário dos seus corpos e das múltiplas possibilidades do prazer. Brincavam como crianças. Ela tinha dificuldade em reconhecer nesse jovem enamorado e doce que ria e brincava numa incansável bacanal, o revolucio-nário ávido de justiça que aprendia, em segredo, o uso das armas de fogo e as estratégias revolucionárias. Alba inventava irresistíveis truques de sedução e Miguel criava novas e maravilhosas formas de amá-la. Estavam deslumbrados pela força da sua paixão, que era como feitiço de sede insaciável. Não chega-vam as horas nem as palavras para dizerem um ao outro os mais íntimos pensamentos e as mais remotas recordações, numa ambiciosa tentativa de se possuírem mutuamente até à última estrofe. Alba descuidou o violoncelo, excepto para o tocar nua sobre o leito de topázio, e assistia às aulas na Universidade com ar alucinado. Miguel também pôs a tese de lado e as suas reuniões políticas, porque necessitavam estar juntos a toda a hora e aprovei-tavam a menor distracção dos habitantes da casa para deslizarem para a cave. Alba aprendeu a mentir e a dissimular. Com o pretexto de estudar de noite deixou o quarto que compartilhava com a mãe desde a morte da avó e insta-lou-se num quarto do primeiro andar que dava para o jardim, para poder abrir a janela a Miguel e levá-lo em bicos de pés através da casa adormecida até à guarida encantada. Mas não se juntavam só à noite. A impaciência do amor era por vezes tão intolerável, que Miguel se arriscava a entrar de dia, arras-tando-se por entre o mato, como um ladrão, até à porta da cave, onde o espe-rava Alba com o coração preso por um fio. Abraçavam-se com o desespero de uma despedida e escapuliam-se para o seu refúgio sufocados de cumplicidade.
Pela primeira vez na sua vida, Alba sentiu a necessidade de ser formosa e lamentou que nenhuma das esplêndidas mulheres da sua família lhe tivesse legado os seus atributos, e a única que o fez, a bela Rosa, só lhe deu o tom de algas marinhas ao seu cabelo, o qual, se não ia acompanhado por tudo o resto, parecia mais um erro de cabeleireiro. Quando Miguel adivinhou a sua inquietação, levou-a pela mão até ao grande espelho veneziano que adornava um canto da sua câmara secreta, sacudiu o pó do cristal quebrado, e depois acendeu todas as velas que tinha e pô-las à sua volta. Ela olhou-se nos mil pedaços partidos do espelho. A sua pele, iluminada pelas velas, tinha a cor irreal das figuras de cera. Miguel começou a acariciá-la e ela viu transformar-se o seu rosto no caleidoscópio do espelho e aceitou finalmente que era a mais bela de todo o universo, porque pôde ver-se com os olhos com que Miguel a olhava.
Aquela orgia interminável durou mais de um ano. Por fim, Miguel termi-nou a sua tese, licenciou-se e começou a procurar trabalho. Quando passou a premente necessidade do amor insatisfeito, puderam recuperar a compostura e normalizar as suas vidas. Ela fez um esforço para se interessar outra vez pelos estudos e ele voltou-se novamente para a sua acção política, porque os acontecimentos estavam a precipitar-se e o país estava dividido pelas lutas ideológicas. Miguel alugou um pequeno apartamento perto do seu trabalho, onde se juntavam para se amar, porque no ano que passaram nus brincando na cave contraíram ambos uma bronquite crónica que retirava uma boa parte do encanto ao seu paraíso subterrâneo. Alba ajudou a decorá-lo, pondo almo-fadões e cartazes políticos por todos os lados e até chegou a sugerir que poderia ir viver com ele, mas nesse ponto Miguel foi inflexível.
- Avizinham-se tempos muito maus, meu amor - explicou. - Não posso ter-te comigo, porque quando for necessário entrarei na guerrilha.
- Irei contigo para onde quer que vás - prometeu ela.
- Para aí não se vai por amor, mas por convicção política e tu não a tens - replicou Miguel. - Não podemos dar-nos ao luxo de aceitar diletantes.
A Alba aquilo pareceu-lhe brutal e tiveram de passar alguns anos para que pudesse compreendê-lo em toda a sua magnitude.
O senador Trueba já estava em idade de se retirar, mas essa ideia não lhe passava pela cabeça. Lia o jornal do dia e resmungava entre dentes. As coisas tinham mudado muito nesses anos e sentia que os acontecimentos o ultrapassavam, porque não pensou que fosse viver tanto que os tivesse de enfrentar. Tinha nascido quando não existia a luz eléctrica na cidade e tinha-lhe sido dado ver pela televisão um homem passeando na Lua, mas nenhum dos sobressaltos da sua longa vida o tinham preparado para enfrentar a revolução que estava nascer no seu país, nas suas barbas, e que trazia toda a gente perturbada.
Jaime era o único que não falava do que se estava a passar. Para evitar discussões com o pai adquirira o hábito do silêncio e depressa descobriu que era mais cómodo não falar. As poucas vezes que abandonava o seu laconismo trapista era quando Alba ia visitá-lo no seu túnel de livros. A sua sobrinha chegava em camisa de dormir, com o cabelo molhado depois do duche, e sentava-se aos pés da sua cama a contar-lhe assuntos felizes, porque, tal como ela dizia, ele era um íman para atrair os problemas alheios e as misérias irremediáveis, e era necessário que alguém o pusesse em dia sobre a Prima-vera e o amor. As suas boas intenções desfaziam-se com a urgência de discutir com o seu tio tudo o que a preocupava. Nunca estavam de acordo. Partilha-vam os mesmos livros, mas na hora de analisar o que haviam lido, tinham opiniões totalmente contrárias. Jaime ria-se das suas ideias políticas, dos seus amigos barbudos e repreendia-a por se ter enamorado por um terrorista de café. Era o único em casa que conhecia a existência de Miguel.
- Diz a esse ranhoso que venha um dia trabalhar comigo no hospital, para ver se fica com vontade de andar a perder tempo com panfletos e discursos - dizia a Alba.
- É advogado, tio, não é médico - respondia ela.
- Não importa. Lá precisamos de qualquer coisa. Até um canalizador nos serve.
Jaime estava seguro de que os socialistas triunfariam finalmente, depois de tantos anos de luta. Atribuía-o a que o povo tinha tomado consciência das suas necessidades e da sua própria força. Alba repetia as palavras de Miguel, que só através da guerra se podia vencer a burguesia. Jaime tinha horror a qualquer forma de extremismo e sustentava que os guerrilheiros só se justi-ficavam nas tiranias, onde não há outro remédio senão batel se a tiro, mas que são uma aberração num pais onde as mudanças se podem obter por votação popular.
- Isso nunca aconteceu, tio, não sejas ingénuo – respondia Alba. - Jamais deixarão que ganhem os teus socialistas!
Ela tentava explicar o ponto de vista de Miguel: que não se podia conti-nuar à espera do passo lento da história, do laborioso processo de educar o povo e organizá-lo, porque o mundo avançava por saltos e eles ficavam para trás, que as mudanças radicais nunca se implantavam a bem e sem violên-cias. A história demonstrava-o. A discussão prolongava-se e ambos se perdiam numa oratória confusa que os deixava esgotados, acusando-se mutuamente de ser mais teimosos que um burro mas no fim davam as boas noites com um beijo e ficavam ambos com a sensação de que o outro era um ser maravilhoso.
Um dia à hora do jantar, Jaime anunciou que ganhariam os socialistas, mas como há vinte anos previa o mesmo, ninguém o acreditou.
- Se a tua mãe estivesse viva, diria que vão ganhar os de sempre - respondeu-lhe o senador Trueba desdenhosamente.
Jaime sabia por que o dizia. Tinha-lho dito o Candidato. Havia muitos anos que eram amigos e Jaime ia frequentemente jogar xadrez com ele à noite. Era o mesmo socialista que pretendia a Presidência da República desde há dezoito anos. Jaime tinha-o visto pela primeira vez às cavalitas do seu pai, quando passava no meio de uma nuvem de fumo nos comboios do triunfo, durante as campanhas eleitorais da sua adolescência. Naqueles tempos, o Candidato era um homem jovem e robusto, com faces de perdigueiro, que gritava exaltados discursos entre os apupos e os assobios dos patrões e o silêncio raivoso dos camponeses. Era a época em que os irmãos Sánchez penduraram na cruz dos caminhos o dirigente socialista e que Esteban Trueba chicoteou Pedro Tercero Garcia diante do pai, por repetir aos caseiros as perturbadoras versões bíblicas do padre Josè Dulce Maria. A sua amizade com o Candidato nasceu por casualidade, um domingo à noite em que o mandaram do hospital atender uma emergência ao domicilio. Chegou à direcção indicada numa ambulância de serviço, tocou a campainha e o Candidato em pessoa abriu a porta. Jaime não teve dificuldade em reconhecê-lo, porque tinha visto o seu retrato muitas vezes e porque não tinha mudado desde que o vira passar no comboio.
- Passe, doutor, estamos à sua espera - saudou o Candidato.
Levou-o a um quarto de serviço, onde as filhas tentavam ajudar uma mulher que parecia asfixiar-se, tinha a cara arroxeada, os olhos esbugalhados e uma língua monstruosamente inchada que lhe saía para fora da boca.
- Comeu peixe - explicaram-lhe.
- Tragam o oxigénio que está na ambulância - disse Jaime enquanto preparava uma seringa.
Ficou com o Candidato, os dois sentados ao lado da cama até que a mulher começou a respirar normalmente e conseguiu meter a língua dentro da sua boca. Falaram do socialismo e de xadrez e esse foi o começo de uma boa amizade. Jaime apresentou-se com o apelido da mãe, que sempre usava, sem pensar que no dia seguinte os serviços de segurança do Partido entregariam ao outro a informação de que era filho do senador Trueba, o seu maior inimigo político. O Candidato, no entanto, nunca o mencionou, e até à hora final, quando ambos apertaram a mão pela última vez no fragor do incêndio e das balas, Jaime perguntava-se se alguma vez teria a coragem de lhe dizer a verdade.
A sua longa experiência da derrota e o seu conhecimento do povo permitiram ao Candidato ver antes de ninguém que dessa vez ia ganhar. Disse-o a Jaime e acrescentou que a palavra de ordem era não o divulgar, para que a direita se apresentasse às eleições segura do triunfo, arrogante e dividida. Jaime respondeu que, mesmo que o dissessem a toda a gente, ninguém o ia acreditar, nem os próprios socialistas, e para ter a prova disse-o ao pai.
Jaime continuou a trabalhar catorze horas por dia, inclusive aos domin-gos, sem participar na contenda política. Estava acobardado pelo rumo violen-to daquela luta, que polarizava as forças em dois extremos, deixando ao centro só um grupo indeciso e volúvel, que esperava ver perfilar-se o vencedor para votar por ele. Não se deixou provocar pelo pai, que aproveitava todas as ocasiões em que estavam juntos para o advertir das manobras do comunismo internacional e do caos que cairia sobre a pátria no caso improvável em que triunfasse a esquerda. A única vez que Jaime perdeu a paciência foi quando uma manhã encontrou a cidade forrada de cartazes truculentos onde aparecia uma mãe barriguda e desolada, que tentava inutilmente arrebatar o seu filho a um soldado comunista que o levava para Moscovo. Era a campanha de terror organizada pelo senador Trueba e pelos seus correligionários, com ajuda de especialistas estrangeiros importados especialmente para esse fim. Aquilo foi demasiado para Jaime. Decidiu que não podia viver debaixo do mesmo tecto que o pai, fechou o seu túnel, levou a sua roupa e foi dormir para o hospital.
Os acontecimentos precipitaram-se nos últimos meses antes das eleições. Em todas as paredes havia retratos dos candidatos, atiraram panfletos do ar com aviões e taparam as ruas com um lixo impresso que caía como neve do céu, os rádios uivavam palavras de ordem e faziam-se as apostas mais desca-beladas entre os partidários de cada bando. De noite os jovens saiam em grupos para tomar de assalto os seus inimigos ideológicos. Organizaram-se concentrações multipartidárias para medir a popularidade de cada partido, e com cada uma atochava-se a cidade e apinhavam-se as pessoas em igual número. Alba estava eufórica, mas Miguel explicou-lhe que as eleições eram uma palhaçada e fosse qual fosse o vencedor vinha a dar no mesmo, porque se tratava da mesma seringa com cânula diferente e que a revolução não se podia fazer nas urnas eleitorais, mas com o sangue do povo. A ideia de uma revolução pacífica em democracia e com plena liberdade era um contra-senso.
- Esse pobre rapaz está louco! - exclamou Jaime quando Alba lho contou. - Vamos ganhar e terá de engolir o que disse.
Até esse momento, Jaime tinha conseguido evitar Miguel. Não queria conhecê-lo. Secretos e inconfessáveis ciúmes atormentavam-no. Tinha ajuda-do Alba a nascer e tinha-a tido mil vezes sentada nos joelhos, tinha-lhe ensi-nado a ler, tinha-lhe pago o colégio e festejado todos os seus aniversários, sentia-se como seu pai e não podia evitar a inquietação que lhe causava vê-la uma mulher. Tinha-lhe notado a mudança nos últimos anos e enganava-se com falsos argumentos, apesar de que a sua experiência cuidando de outros seres lhe tinha ensinado que só o conhecimento do amor pode dar esse esplendor a uma mulher. Da noite para o dia tinha visto Alba amadurecer, abandonando as formas imprecisas da adolescência, para se acomodar no seu novo corpo de mulher satisfeita e aprazível. Esperava com absurda veemência que a paixão da sobrinha fosse um sentimento passageiro porque no fundo não queria aceitar que precisasse de outro homem além dele. No entanto, não pôde continuar a ignorar Miguel. Por esses dias, Alba contou-lhe que a irmã dele estava doente.
- Quero que fales com Miguel, tio. Ele vai-te contar o que se passa com a irmã. Farias isso por mim? - pediu Alba.
Quando Jaime conheceu Miguel, num café do bairro, todas as suas sus-peitas não puderam impedir que uma onda de simpatia lhe fizesse esquecer o seu antagonismo, porque o homem que tinha na frente mexendo nervosa-mente o café não era o extremista petulante e brigão que esperava, mas um jovem comovido e trémulo, que enquanto explicava os sintomas da doença da irmã, lutava contra as lágrimas que lhe enevoavam os olhos.
- Leva-me a vê-la - disse Jaime.
Miguel e Alba levaram-no ao bairro boémio. Em pleno centro, a escassos metros dos edifícios modernos de aço e vidro, tinham surgido na encosta de uma colina as ruas íngremes dos pintores, ceramistas, escultores. Tinham feito ali as suas tertúlias dividindo as antigas casas em minúsculos estúdios. As oficinas dos artesãos abriam-se ao céu pelos tectos de vidro e nas obscuras pocilgas sobreviviam os artistas num paraíso de grandezas e misérias. Nas ruelas brincavam crianças satisfeitas, mulheres formosas de grandes túnicas carregavam os filhos às costas ou escarranchadas nas ancas e os homens barbudos, sonolentos, indiferentes, viam passar a vida sentados nas esquinas e nos umbrais das portas. Pararam em frente de uma casa estilo francês decorada como uma torta de creme com anjinhos nos frisos. Subiram uma escada estreita, construída como saída de emergência em caso de incêndio, e que as numerosas divisões do edifício tinha transformado no único acesso. À medida que subiam, a escada dobrava-se sobre si mesma e envolvia-os um penetrante odor a alho, marijuana e terebintina. Miguel parou no último piso, em frente de uma porta estreita pintada de cor de laranja, tirou uma chave e abriu-a. Jaime e Alba julgaram entrar numa gaiola de pássaros. O quarto era redondo, coroado por uma absurda cúpula bizantina e rodeado de vidros, através dos quais se podia passear a vista pelos telhados da cidade e sentir-se muito perto das nuvens. Os pombos tinham feito o ninho no peitoril das janelas e contribuído com os seus excrementos e as suas penas para o jaspeado dos vidros. Sentada numa cadeira à frente da única mesa, havia uma mulher de roupão adornado com um triste dragão em fiapos bordado sobre o peito. Jaime necessitou de alguns segundos para reconhecê-la.
- Amanda... Amanda... - balbuciou.
Não tinha voltado a vê-la há mais de vinte anos, quando o amor que ambos sentiam por Nicolau pôde mais que o que tinham um pelo outro. Nesse tempo o jovem atlético, moreno, com o cabelo cheio de brilhantina e sempre húmido, que se passeava lendo em alta voz os seus tratados de medicina, tinha-se transformado num homem ligeiramente curvado pelo hábito de se inclinar sobre as camas dos doentes, com o cabelo grisalho, um rosto grave e pesado, lentes com aros metálicos, mas basicamente era a mesma pessoa. No entanto, para reconhecer Amanda, era preciso tê-la amado muito. Parecia mais velha do que era, estava muito magra, quase esquelética, a sua pele macilenta e amarela, as mãos muito descuidadas, com os dedos enegrecidos de nicotina. Os seus olhos estavam inchados, sem brilho, avermelhados, com as pupilas dilatadas, o que lhe dava um aspecto desamparado e aterrorizado. Não viu Jaime nem Alba, só teve olhos para Miguel. Tentou levantar-se, tropeçou e cambaleou. O irmão aproximou-se e segurou-a, apertando-a contra o peito.
- Conheciam-se? - perguntou Miguel admirado.
- Sim, há muito tempo - disse Jaime.
Pensou que era inútil falar do passado e que Miguel e Alba eram muito jovens para compreender a sensação de perda irremediável que ele sentia nesse momento. De uma penada tinha-se apagado a imagem da cigana que tinha guardado todos aqueles anos no coração, único amor na solidão do seu destino. Ajudou Miguel a estender a mulher no divã que lhe servia de cama e ajeitou-lhe a almofada. Amanda segurou o roupão com as mãos, defendendo-se debilmente e balbuciando incoerências. Estava sacudida por tremores convulsivos e ofegava como cão cansado. Alba observou-a horrorizada e só quando Amanda ficou deitada, quieta e de olhos fechados, é que reconheceu a mulher que sorria na pequena fotografia que Miguel trazia sempre na sua carteira. Jaime falou-lhe com uma voz desconhecida e a pouco e pouco conseguiu tranquilizá-la, acariciou-a com gestos ternos e paternais, como os que fazia às vezes aos animais até que a doente se descontraiu e permitiu que lhe subissem as mangas do velho roupão chinês. Apareceram os braços esqueléticos, e Alba viu que tinha milhares de minúsculas cicatrizes, nódoas negras, picadelas, algumas infectadas e deitando pus. Destapou depois as pernas, as coxas estavam também torturadas. Jaime observou-a com tristeza, compreendendo nesse instante o abandono, os anos de miséria, os amores frustrados e o terrível caminho que aquela mulher tinha percorrido até chegar ao ponto de desespero em que se encontrava. Recordou-a como era na sua juventude, quando o deslumbrava com o esvoaçar do seu cabelo, o tilintar das missangas, o seu riso de sino e a sua candura para abraçar ideias disparatadas e perseguir ilusões.
Amaldiçoou-se por tê-la deixado ir e por todo esse tempo perdido para ambos.
- Temos de interná-la. Só uma cura de desintoxicação poderá salvá-la - disse. - Vai sofrer muito - acrescentou.
A Conspiração
Tal como o Candidato tinha previsto, os socialistas, aliados com o resto dos partidos de esquerda, ganharam as eleições presidenciais. O dia da votação decorreu sem incidentes numa luminosa manhã de Setembro. Os de sempre, acostumados ao poder desde tempos imemoriais, ainda que nos últimos anos tivessem visto as suas forças debilitar-se muito, prepararam-se para celebrar o triunfo com semanas de antecipação. Nas lojas acabaram-se as bebidas, nos mercados esgotaram-se os mariscos frescos e as pastelarias trabalharam em dois turnos para satisfazer a procura de tortas e pastéis. No Bairro Alto não se alarmaram ao ouvir os resultados dos escrutínios parciais nas províncias, que favoreciam a esquerda, porque toda a gente sabia que os votos da capital eram decisivos. O senador Trueba seguiu a votação na sede do seu Partido, com perfeita calma e bom humor, rindo-se com petulância quando algum dos seus homens se punha nervoso com o avanço indissimu-lável do candidato da oposição. Antecipando-se ao triunfo, tinha quebrado o seu luto rigoroso pondo uma rosa vermelha na lapela do casaco. Entrevis-taram-no na televisão e todo o pais pôde escutá-lo: «Ganharemos nós, os de sempre», disse com soberba, e logo convidou a um brinde pelo «defensor da democracia». Na grande casa da esquina, Blanca, Alba e os criados estavam em frente do televisor, bebendo chá, comendo torradas e anotando os resultados para seguir de perto a corrida final, quando viram aparecer o avô no écran, mais velho e teimoso do que nunca.
- Vai dar-lhe um fanico - disse Alba. - Porque desta vez vão ganhar os outros.
Depressa se tornou evidente para todos que só um milagre mudaria o resultado que se ia desenhando ao longo do dia. Nas residências senhoriais brancas, azuis e amarelas do Bairro Alto, começaram a fechar as persianas, a trancar as portas e a retirar apressadamente as bandeiras e os retratos do seu candidato, que se tinham antecipado a pôr nas varandas. Entretanto, das povoações suburbanas e dos bairros operários saíram para a rua famílias inteiras, pais, filhos, avós, com a sua roupa de domingo, caminhando alegre-mente na direcção do centro. Levavam rádios portáteis para ouvir os últimos resultados. No Bairro Alto, alguns estudantes, inflamados de idealismo, fizeram troça dos pais reunidos à volta do televisor com expressão fúnebre, e lançaram-se também para a rua. Das cinturas industriais chegaram trabalha-dores em ordenadas colunas, com os punhos no ar cantando os versos da campanha. Juntaram-se todos no centro, gritando como um só homem que o povo unido jamais será vencido. Puxaram-se de lenços brancos e esperaram. À meia-noite soube-se que tinha ganho a esquerda. Num abrir e fechar de olhos, os grupos dispersos engrossaram, incharam, estenderam-se e as ruas enche-ram-se de gente eufórica que saltava, gritava, se abraçava e ria. Ataram tochas e a desordem das vozes e o vaivém da rua transformou-se numa alegre e disci-plinada comitiva que começou a avançar até às bonitas avenidas da burgue-sia. E então viu-se o espectáculo inédito da gente do povo, homens com os sapatorros da fábrica, mulheres com os filhos nos braços, estudantes em man-gas de camisa, passeando tranquilamente pela zona reservada e preciosa onde muito poucas vezes se tinham aventurado e onde eram estrangeiros. O clamor dos seus cantos, das suas passadas e o resplendor das tochas penetraram no interior das casas fechadas e silenciosas, onde tremiam os que tinham acabado por acreditar na sua própria campanha de terror e estavam convencidos de que a populaça os ia despedaçar ou, na melhor das hipóteses, despojá-los dos bens e mandá-los para a Sibéria. Mas a multidão ululante não forçou nenhuma porta nem pisou os jardins impecáveis. Passou alegremente sem tocar nos veículos de luxo estacionados na rua, deu voltas pelas praças e parques que nunca tinha pisado, deteve-se maravilhada diante das vitrinas do comércio, que brilhavam como no Natal e onde se ofereciam objectos que não se sabia sequer que uso tinham, e seguiu a sua rota aprazivelmente. Quando as colunas passaram à frente da sua casa, Alba saiu correndo e misturou-se com elas cantando em voz alta. Nas mansões, as garrafas de champagne ficaram fechadas, as lagostas amoleceram nas suas bandejas de prata e as tortas encheram-se de moscas.
Ao amanhecer, Alba viu na multidão que já começava a dispersar a inconfundível figura de Miguel, que ia a gritar com uma bandeira nas mãos. Abriu passagem até ele, chamando-o inutilmente, porque não podia ouvi-la no meio da algazarra. Quando chegou à frente dele e Miguel a viu, passou a bandeira ao que estava mais perto e abraçou-a, levantando-a do chão. Os dois estavam no limite das suas forças e, enquanto se beijavam, choravam de alegria.
- Disse-te que ganharíamos às boas, Miguel! - riu Alba.
- Ganhámos, mas agora há que defender o triunfo - replicou.
No dia seguinte, os mesmos que tinham passado a noite de vela aterrorizados nas suas casas saíram como uma avalancha enlouquecida e tomaram de assalto os bancos, exigindo que lhes entregassem o seu dinheiro. Os que tinham algo valioso, preferiam guardá-lo debaixo do colchão ou enviá-lo para o estrangeiro. Em vinte e quatro horas, o valor da propriedade diminuiu para menos de metade e todas as passagens aéreas se esgotaram na loucura de sair do pais antes que chegassem os soviéticos a pôr arame farpado na fronteira. O povo que tinha desfilado triunfante foi ver a burguesia que fazia bicha e lutava às portas dos bancos e riu às gargalhadas. Em poucas horas o pais dividiu-se em dois grupos irreconciliáveis e a divisão começou a estender-se a todas as famílias.
O senador Trueba passou a noite na sede do Partido, retido à força pelos seus seguidores, que estavam seguros que se saísse à rua a multidão não ia ter dificuldade nenhuma em reconhecê-lo e pendurá-lo-ia num poste. Trueba estava mais surpreendido que furioso. Não podia acreditar no que tinha acontecido, apesar de ter passado muitos anos repetindo a cantilena de que o pais estava cheio de marxistas. Não se sentia deprimido, pelo contrário. No seu velho coração de lutador despertava uma emoção exaltada que não sentia desde a juventude.
- Uma coisa é ganhar as eleições e outra muito distinta é ser presidente - disse misteriosamente aos seus chorosos correligionários.
A ideia de eliminar o novo Presidente, no entanto, não estava ainda na mente de ninguém, porque os seus inimigos estavam seguros que acabariam com ele pela mesma via legal que lhe tinha permitido triunfar. Isso era o que Trueba estava pensando. No dia seguinte, quando foi evidente que não havia que temer a multidão festiva, saiu do seu refúgio e dirigiu-se a uma casa de campo nos arredores da cidade, onde houve um almoço secreto. Ali se juntou com outros políticos, alguns militares e com os gringos enviados pelo serviço de inteligência, para traçar o plano que derrubaria o novo governo: a desestabilização económica, como chamaram à sabotagem.
Era um casarão de estilo colonial rodeado por um pátio de paralelipí-pedos. Quando o senador Trueba chegou, já havia vários carros estacionados. Receberam-no efusivamente, porque era um dos chefes indiscutíveis da direita e porque ele, prevendo o que se avizinhava, tinha feito os contactos neces-sários com meses de antecipação. Depois da refeição: corvina fria com molho de abacate, leitão assado em brande e musse de chocolate, despediram os criados e trancaram as portas do salão. Ali traçaram em grandes linhas a sua estratégia e depois, de pé, fizeram um brinde pela pátria. Todos eles, menos os estrangeiros, estavam dispostos a arriscar metade da sua fortuna pessoal na empresa, mas só o velho Trueba estava disposto a dar também a vida.
- Não o deixaremos em paz nem um minuto. Terá de renunciar - disse com firmeza.
- E se isso não resultar, Senador, temos isto – acrescentou o general Hurtado pondo a arma do regulamento sobre a toalha.
- Não nos interessa um golpe militar, general - respondeu o agente da embaixada no seu correcto castelhano. – Queremos que o marxismo fracasse estrondosamente e caia por si, para tirar essa ideia da cabeça de outros países do continente. Compreende? Este assunto vamos resolvê-lo com dinheiro. Ainda podemos comprar alguns parlamentares para que não o confirmem como presidente. Está na sua Constituição: não obteve a maioria absoluta e o Parlamento deve decidir.
- Tire essa ideia da cabeça, mister! - exclamou o senador Trueba. - Aqui não se vai conseguir subornar ninguém! O Congresso e as Forças Armadas são incorruptíveis. É melhor destinar esse dinheiro para comprar todos os meios de comunicação. Assim poderemos manejar a opinião pública, que é a única coisa que na realidade conta.
- Isso é uma loucura! A primeira coisa que os marxistas vão fazer é acabar com a liberdade de imprensa! - disseram várias vozes em uníssono.
- Acreditem-me cavalheiros - respondeu o senador Trueba. - Eu conheço este país. Nunca acabarão com a liberdade de imprensa. Além disso, está no seu programa de governo, jurou respeitar as liberdades democráticas. Apanhá-lo-emos na sua própria armadilha.
O senador Trueba tinha razão. Não conseguiram subornar os parlamen-tares e no prazo estipulado pela lei a esquerda assumiu tranquilamente o poder. E então a direita começou a juntar ódios.
Depois das eleições, mudou a vida de toda a gente e os que pensaram que podiam continuar como sempre, depressa verificaram que isso era uma ilusão. Para Pedro Tercero Garcia a mudança foi brutal. Tinha vivido evitando as armadilhas da rotina, livre e pobre como um trovador errante, sem ter usado nunca sapatos de cabedal, gravata nem relógio, dando-se ao luxo da ternura, da pureza, da boémia e das sestas, porque não tinha que prestar contas a ninguém. Cada vez lhe dava mais trabalho encontrar a inquietação e a dor necessárias para compor uma nova canção, porque com os anos tinha chegado a ter uma grande paz interior e a rebeldia que o mobilizava na juventude tinha-se transformado na mansidão do homem satisfeito consigo mesmo. Era austero como um franciscano. Não tinha nenhuma ambição de dinheiro ou de poder. A única mancha na sua tranquilidade era Blanca. Tinha-lhe deixado de interessar o amor sem futuro das adolescentes e tinha adquirido a certeza de que Blanca era a única mulher para ele. Contou os anos que a tinha amado clandestinamente e não pôde recordar nem um momento da vida em que ela não tivesse estado presente. Depois das eleições presidenciais viu o equilíbrio da sua existência destroçado pela urgência de colaborar com o governo. Não pôde negar-se, porque, como lhe explicaram, os partidos de esquerda não tinham suficientes homens capacitados para todas as funções que havia que desempenhar.
- Eu sou um camponês. Não tenho nenhuma preparação – tentou escusar-se.
- Não importa, companheiro. Você, pelo menos, é popular. Mesmo que meta a pata na poça, nós perdoamos-lhe - responderam.
Foi assim que se viu sentado detrás duma mesa de trabalho pela primeira vez na sua vida, com uma secretária para seu uso pessoal e nas suas costas um grandioso retrato dos próceres da Pátria nalguma honrosa batalha. Pedro Tercero Garcia olhava pela janela gradeada do seu luxuoso escritório e só podia ver um minúsculo quadrilátero de céu cinzento. Não era um cargo honorifico. Trabalhava desde as sete da manhã até à noite e no fim estava tão cansado, que não se sentia capaz de arrancar nem um acorde da guitarra e muito menos de amar Blanca com a paixão do costume. Quando se podiam encontrar, vencendo todos os obstáculos habituais de Blanca, mais os novos que o trabalho lhe impunha, encontravam-se entre os lençóis com mais angústia que desejo. Faziam amor fatigados, interrompidos pelo telefone, perseguidos pelo tempo, que nunca lhes chegava. Blanca deixou de usar a sua roupa interior de jovem, porque lhe parecia uma provocação inútil que os fazia cair no ridículo. Acabaram por se juntar para repousar abraçados, como um par de avós e para conversar amigavelmente sobre os seus problemas quotidianos e sobre os graves assuntos que faziam tremer a nação. Um dia, Pedro Tercero concluiu que quase há um mês não faziam amor e, o que lhe pareceu ainda pior, que nenhum dos dois sentia desejo de o fazer. Teve um sobressalto. Calculou que na sua idade não havia razão para a impotência e atribuiu o facto à vida que levava e aos hábitos de solteirão que tinha adquirido. Supôs que se fizesse uma vida normal com Blanca, em que ela o estivesse esperando todos os dias na paz de um lar, as coisas passar-se-iam de outra maneira. Impôs-lhe casarem-se de uma vez por todas, porque já estava farto daqueles amores furtivos e já não tinha idade para viver assim. Blanca deu-lhe a mesma resposta que lhe tinha dado muitas vezes antes.
- Tenho de pensar nisso, meu amor.
Estava nua, sentada na cama estreita de Pedro Tercero. Ele observou-a sem piedade e viu que o tempo começava a devastá-la com os seus estragos, estava mais gorda, mais triste, tinha as mãos deformadas pelo reumatismo e os maravilhosos seios que noutro tempo lhe tiravam o sono, estavam a tornar-se um amplo regaço de matrona instalada em plena maturidade. No entanto, achava-a tão bela como na juventude, quando se amavam entre as canas do rio em Las Tres Marias, e justamente por isso lamentava que a fadiga fosse mais forte que a paixão.
- Pensaste nisso quase meio século. Já basta. É agora ou nunca - concluiu.
Blanca não se alterou, porque não era a primeira vez que ele a intimava a tomar uma decisão. Sempre que rompia com uma das suas jovens amantes e voltava para o seu lado, exigia-lhe casamento, numa busca desesperada de reter o amor e de se fazer perdoar. Quando consentiu em abandonar o bairro operário onde tinha sido feliz durante vários anos, para se instalar num apartamento de classe média, tinha-lhe dito o mesmo.
- Ou te casas comigo agora ou nunca mais nos veremos.
Blanca não compreendeu que nessa ocasião a determinação de Pedro Tercero era irrevogável.
Separaram-se zangados. Ela vestiu-se, apanhando apressadamente a roupa que estava espalhada no chão e enrolou o cabelo na nuca prendendo-o com alguns ganchos que apanhou na desordem da cama. Pedro Tercero acendeu um cigarro e não lhe tirou os olhos de cima enquanto ela se vestia. Blanca acabou de calçar os sapatos, pegou na carteira e da porta fez-lhe um gesto de despedida. Estava certa de que no dia seguinte ele lhe telefonaria para uma das suas espectaculares reconciliações. Pedro Tercero virou-se para a parede. Um ricto amargo transformava-lhe a boca numa linha apertada. Não se tornariam a ver durante dois anos.
Nos dias que se seguiram, Blanca esperou que ele comunicasse com ela, de acordo com um esquema que se repetia desde sempre. Nunca lhe tinha falhado, nem sequer quando ela se casou e passaram um ano separados. Também nessa ocasião foi ele quem a procurou. Mas ao terceiro dia sem notícias, começou a alarmar-se. Dava voltas na cama, atormentada por uma insónia constante, duplicou a dose de tranquilizantes, tornou a refugiar-se nas suas enxaquecas e nevralgias, atordoando-se na oficina, metendo e tirando do forno centenas de monstros para presépios, num esforço para se manter ocupada e não pensar, mas não conseguiu sufocar a impaciência. Por fim telefonou-lhe para o ministério. Uma voz feminina respondeu-lhe que o companheiro Garcia estava numa reunião e que não podia ser interrompido. No outro dia, Blanca voltou a telefonar e continuou a fazê-lo durante o resto da semana, até que se convenceu de que não conseguiria nada por esse processo. Fez um esforço para vencer o monumental orgulho que herdara do pai, pôs o melhor vestido, o cinto de ligas de renda e foi vê-lo ao apartamento. A sua chave não entrou na fechadura e teve de tocar à campainha. Abriu a porta um homenzarrão de bigodes com olhos de colegial.
- O companheiro Garcia não está - disse sem convidá-la a entrar.
Então compreendeu que o tinha perdido. Teve a fugaz visão do seu futuro, viu-se num vasto deserto, entregando-se a ocupações sem sentido para consumir o tempo, sem o único homem que tinha amado em toda a sua vida e longe dos braços em que tinha dormido desde os dias memoráveis da sua primeira infância. Sentou-se na escada e rompeu em pranto. O homem de bigodes fechou a porta sem ruído.
Não disse a ninguém o que se tinha passado. Alba perguntou por Pedro Tercero e ela respondeu-lhe por evasivas, dizendo-lhe que o novo cargo no governo o ocupava muito. Continuou dando as suas aulas para meninas ociosas e crianças mongolóides e além disso começou a ensinar cerâmica nas povoações suburbanas, onde as mulheres se tinham organizado para aprender novos ofícios e participar, pela primeira vez, na actividade política e social do pais. A organização era uma necessidade, porque ao caminho para o socialis-mo» depressa se converteu num campo de batalha. Enquanto o povo celebrava a vitória deixando crescer o cabelo e as barbas, tratando-se uns aos outros por companheiros, resgatando o folclore esquecido e o artesanato popular e exercendo o seu novo poder em eternas e inúteis reuniões de trabalhadores onde todos falavam ao mesmo tempo e nunca chegavam a nenhum acordo, a direita realizava uma série de acções estratégicas destinadas a destruir a economia e a desprestigiar o governo. Tinha nas suas mãos os meios de difusão mais poderosos, contava com recursos económicos quase ilimitados e com a ajuda dos gringos, que destinaram fundos secretos para o plano de sabotagem. Em poucos meses puderam apreciar-se os resultados. O povo encontrou-se pela primeira vez com dinheiro suficiente para cobrir as suas necessidades básicas e comprar algumas coisas que sempre desejara, mas não o podia fazer, porque os armazéns estavam quase vazios. Tinha começado o desabastecimento, que chegou a ser um pesadelo colectivo. As mulheres levantavam-se ao amanhecer para ficarem de pé nas longas bichas onde podiam comprar um magro frango, meia dúzia de fraldas ou papel higiénico. A graxa para dar lustro aos sapatos, as agulhas e o café passaram a ser artigos de luxo que se ofereciam envoltos em papel de fantasia pelo aniversário. Produziu-se a angústia da escassez, o pais estava sacudido por ondas de rumores contraditórios que alertavam a população sobre os produtos que iam faltar e as pessoas compravam o que houvesse, sem medida, para prevenir o futuro. Estavam nas bichas sem saberem o que se estava a vender, só para não deixarem passar a oportunidade de comprar qualquer coisa, mesmo que não necessitassem. Apareceram profissionais das bichas, que por uma soma razoável guardavam o lugar dos outros, os vendedores de bugigangas que aproveitavam o tumulto para colocar as suas bagatelas e os que alugavam mantas para as bichas nocturnas. Alastrou o mercado negro. A policia tentou impedi-lo, mas era como uma peste que se metia por todos os lados e por muito que revistassem os carros e detivessem os que transportavam volumes suspeitos não o puderam evitar. Até as crianças traficavam nos pátios das escolas. Na pressa de açambarcar produtos, criavam-se confusões e os que nunca tinham fumado acabavam pagando qualquer preço por um maço de cigarros, e os que não tinham filhos lutavam por um boião de comida para lactantes. Desapareceram os acessórios dos fogões, das máquinas industriais, dos automóveis. Racionaram a gasolina e as filas de automóveis podiam durar dois dias e uma noite, bloqueando a cidade como uma gigantesca jibóia imóvel tostando ao sol. Não havia tempo para tantas bichas e os escriturários tiveram de deslocar-se a pé ou de bicicleta. As ruas encheram-se de ciclistas ofegantes, aquilo parecia um delírio de holandeses. As coisas estavam neste pé quando os camionistas se declararam em greve. Na segunda semana foi evidente que não era um assunto laboral, mas político e que não pensavam voltar ao trabalho. O exército quis tomar conta do problema, porque as hortaliças estavam a apodrecer nos campos e nos mercados não havia nada para vender às donas de casa, mas verificou-se que os motoristas tinham estripado os motores e era impossível mover os milhares de camiões que ocupavam as estradas como carcassas fossilizadas. O Presidente apareceu na televisão pedindo paciência. Advertiu o pais de que os camionistas estavam pagos pelo imperialismo e de que iam manter-se em greve indefinidamente, por isso o melhor era cultivar as suas próprias verduras nos pátios e varandas, pelo menos até que se descobrisse outra solução. O povo, que estava habituado à pobreza e que só comia frango nos feriados nacionais e no Natal, não perdeu a euforia do primeiro dia, pelo contrário, organizou-se como para uma guerra, decidido a não permitir que a sabotagem económica lhe amargasse o triunfo. Continuou a celebrar com espírito festivo, a cantar pelas ruas aquilo de que o povo unido jamais será vencido, embora cada vez soasse mais desafinado, porque a divisão e o ódio aumentavam inexoravelmente.
A vida do senador Trueba, como a de todos os outros, também mudou. O entusiasmo pela luta que tinha empreendido devolveu-lhe as forças de antigamente e aliviou um pouco a dor dos seus pobres ossos. Trabalhava como nos seus melhores tempos. Fazia múltiplas viagens de conspiração ao estrangeiro e percorria infatigavelmente as províncias do país, de norte a sul, de avião, de automóvel e de comboio, onde se tinha acabado o privilégio das carruagens de primeira classe. Resistia aos truculentos jantares com que o acolhiam os seus partidários em cada cidade, povoado ou aldeia que visitava, fingindo o apetite de um preso, apesar das suas tripas de ancião já não estarem para esses sobressaltos. Vivia em conciliábulos. A principio, o amplo exercício da democracia limitava-o na sua capacidade para pôr armadilhas ao governo, mas depressa abandonou a ideia de o atacar dentro da lei e aceitou o facto de que a única maneira de o vencer era empregar recursos proibidos. Foi o primeiro que se atreveu a dizer em público que para deter o avanço do marxismo só daria resultado um golpe militar, porque o povo não renunciaria ao poder que tinha esperado com ansiedade durante meio século, só porque lhe faltavam os frangos.
- Deixem-se de mariquices e peguem nas armas! - dizia quandoouvia falar de sabotagem.
As suas ideias não eram nenhum segredo, divulgava-as a todos os ventos e, não contente com isso, ia de vez em quando atirar milho aos cadetes da Escola Militar e gritar-lhes que eram umas galinhas. Tiveram de arranjar um par de guarda-costas que o vigiassem dos seus próprios excessos e esquecia que ele próprio os tinha contratado e ao sentir-se espiado sofria acessos de mau humor, insultava-os, ameaçava-os com a bengala e terminava geralmente sufocado pela taquicardia. Estava certo de que, se alguém se propunha assassiná-lo, esses dois imbecis gorilas não serviriam para o evitar, mas confiava em que a sua presença pelo menos poderia atemorizar os insolentes espontâneos. Tentou também pôr vigilância à sua neta, porque pensava que se movia num antro de comunistas onde em qualquer momento alguém poderia faltar-lhe ao respeito por culpa do parentesco com ele, mas Alba não quis ouvir falar do assunto. «Um rufia contratado é o mesmo que uma confissão de culpa. Eu não tenho nada a temer», alegou. Não se atreveu a insistir porque já estava cansado de lutar com todos os membros da família e no fim de contas, a sua neta era a única pessoa no mundo com quem partilhava a sua ternura e que o fazia rir.
Entretanto, Blanca tinha organizado uma cadeia de abastecimento através do mercado negro e das suas ligações nas povoações operária, onde ia ensinar cerâmica às mulheres. Passava muitas angústias e trabalhos para dissimular um pacote de açúcar ou uma caixa de sabão. Chegou a desenvolver uma astúcia de que não se sabia capaz, para armazenar num dos quartos vazios da casa toda a espécie de coisas, algumas francamente inúteis, como dois barris de molho de soja que comprou a uns chineses. Tapou a janela do quarto, pôs cadeado na porta e andava com as chaves à cintura, sem as tirar nem para tomar banho, porque desconfiava de todos, mesmo de Jaime e da sua própria filha. Não lhe faltavam razões. «Pareces um carcereiro, mamã», dizia Alba, alarmada por essa mania de prevenir o futuro à custa de amargar o presente. Alba era de opinião de que se não havia carne, comiam-se batatas, e se não havia sapatos, usavam-se alpergatas, mas Blanca, horrorizada com a simplicidade da filha, sustentava a teoria de que, aconteça o que acontecer, não se devia baixar de nível, com o que justificava o tempo gasto nas suas argúcias de contrabandista. Na realidade, nunca tinham vivido melhor desde a morte de Clara, porque pela primeira vez havia alguém na casa que se preocupava com a organização doméstica e dispunha do que ia parar à panela. De Las Tres Marias chegavam regularmente caixotes de alimentos que Blanca escondia. A primeira vez apodreceu quase tudo e a pestilência saiu dos quartos fechados, ocupou a casa e espalhou-se pelo bairro. Jaime sugeriu à irmã que desse, trocasse ou vendesse os produtos perecíveis, mas Blanca negou-se a compartilhar os seus tesouros. Alba compreendeu então que a mãe, que até então parecia ser a única pessoa equilibrada da família, também tinha as suas próprias loucuras. Abriu um buraco na parede da despensa, por onde tirava à mesma medida que Blanca armazenava. Aprendeu a fazê-lo com tanto cuidado para que não se notasse, roubando o açúcar, o arroz e a farinha com chávenas, partindo os queijos e espalhando as frutas secas para que parecesse obra de ratos, que Blanca demorou mais de quatro meses a suspeitar. Então fez um inventário escrito do que tinha na arrecadação e marcava com cruzes o que tirava para o uso da casa, convencida que assim descobriria o ladrão. Mas Alba aproveitava o menor descuido da sua mãe para fazer cruzes na lista, de modo que por fim Blanca estava tão confundida que não sabia se se tinha enganado ao fazer as contas, se na casa comiam três vezes mais do que ela calculava ou se era certo que naquele maldito casarão ainda circulavam almas penadas.
O produto dos furtos de Alba ia parar às mãos de Miguel, que o repartia nos bairros dos subúrbios e nas fábricas juntamente com os seus panfletos revolucionários apelando à lota armada para derrotar a oligarquia. Mas ninguém fazia caso. Estavam convencidos que se tinham chegado ao poder por via legal e democrática, ninguém lho podia tirar, pelo menos até às próximas eleições presidenciais.
- São uns imbecis, não se dão conta de que a direita se está a armar! - disse Miguel a Alba.
Alba acreditou nele. Tinha visto descarregar a meio da noite grandes caixas de madeira no pátio da casa, e logo, com grande sigilo, o carregamento foi armazenado, às ordens de Trueba, num dos quartos vazios. O avo, tal como a mãe, pôs um cadeado na porta e andava com a chave ao pescoço na mesma bolsinha de camurça onde trazia os dentes de Clara. Alba contou ao tio Jaime, que depois de acordar uma trégua com o pai, tinha voltado a casa. «Tenho quase a certeza de que são armas», comentou para Jaime, que nessa altura estava na lua, e assim continuou até ao dia em que o mataram. Ele não pode acreditar, mas a sobrinha insistiu tanto, que aceitou falar com o pai à hora da refeição. As dúvidas que tinham dissiparam-se-lhes com a resposta do velho.
- Na minha casa faço o que me dá na real gana e trago quantas caixas me apetecer! Não tornem a meter o nariz nos meus assuntos! - rugiu o senador Trueba dando um murro na mesa que fez dançar e cortou secamente a conversa.
Nessa noite Alba foi ter com o tio Jaime ao túnel de livros e propôs-lhe usar com as armas do avô o mesmo sistema que ela empregava com as vitualhas da mãe. Assim fizeram. Passaram o resto da noite abrindo um buraco na parede do quarto contíguo ao arsenal, que dissimularam por um lado com um armário e pelo outro com as próprias caixas proibidas. Por -ali puderam entrar no quarto fechado pelo avô, munidos de um martelo e de um alicate. Alba, que já tinha experiência desse ofício, apontou as caixas de baixo para as abrirem. Encontraram um arsenal que os deixou boquiabertos, porque não calculavam que existissem instrumentos tão perfeitos para matar. Nos dias seguintes roubaram tudo o que puderam, deixando as caixas vazias debaixo das outras e enchendo-as com pedras para que não se notasse ao levantá-las. Entre os dois sacaram pistolas de combate, pistolas metralhado-ras, espingardas e granadas de mão, que esconderam no túnel de Jaime até que Alba pôde levá-las no estojo do violoncelo para lugar seguro. O senador Trueba via passar a neta arrastando a pesada caixa, sem suspeitar que no interior forrado de pano rodavam as balas que tanto lhe tinham custado a passar pela fronteira e a esconder em casa. Alba teve a ideia de entregar as armas confiscadas a Miguel, mas o tio Jaime convenceu-a de que Miguel não era menos terrorista que o avô e que era melhor dispor delas de modo a que não pudessem fazer mal a ninguém. Discutiram várias alternativas, desde atirá-las ao rio até queimá-las numa pira, e finalmente decidiram que era mais prático enterrá-las em sacos de plástico num lugar seguro e secreto, porque assim, um dia, poderiam servir para uma causa mais justa. O senador Trueba estranhou ver o filho e a neta planeando uma excursão à montanha, porque nem Jaime nem Alba tinham voltado a praticar qualquer desporto desde os tempos do colégio inglês e nunca tinham manifestado inclinação pelas incomodidades do andinismo. Um sábado pela manhã partiram num jipe emprestado, equipados com uma tenda, um cesto com provisões e uma misteriosa mala que tiveram de carregar os dois, porque pesava como um morto. Dentro iam os armamentos de guerra que tinham roubado ao avô. Foram entusiasmados rumo à montanha até onde puderam chegar pelo caminho e depois avançaram a corta-mato, procurando um sitio tranquilo no meio da vegetação torturada pelo vento e pelo frio. Ali puseram os seus apetrechos e levantaram sem qualquer perícia a pequena tenda, cavaram os buracos e enterraram os sacos, marcando cada lugar com um monte de pedras. O resto do fim-de-semana passaram-no a pescar trutas no rio e a assá-las num fogo de espinheiras, a andar pelos cerros como crianças exploradoras e a recordar o passado. A noite aqueceram vinho tinto com canela e açúcar e embrulhados nos xailes brindaram pela cara que faria o avô quando descobrisse que o tinham roubado, rindo até lhes saltarem as lágrimas.
- Se não fosses meu tio, casava-me contigo! - gracejou Alba.
- E Miguel?
- Seria meu amante.
Jaime não achou graça e o resto do passeio esteve intratável. Nessa noite meteram-se cada um no seu saco de dormir, apagaram o candeeiro de petróleo e ficaram em silêncio. Alba adormeceu rapidamente, mas Jaime ficou até ao amanhecer com os olhos abertos no escuro. Gostava de dizer que Alba era como sua filha, mas nessa noite surpreendeu-se desejando não ser seu pai ou seu tio, mas ser simplesmente Miguel. Pensou em Amanda e lamentou que já não pudesse comovê-lo, buscou na memória o rescaldo daquela paixão descomedida que uma vez sentiu por ela, mas não o pôde encontrar. Tinha-se tornado um solitário. Ao principio esteve muito perto de Amanda, porque se tinha encarregado do seu tratamento e via-a quase todos os dias. A doente passou várias semanas de agonia, até que pôde prescindir das drogas. Deixou também os cigarros e a bebida e começou a fazer uma vida saudável e ordenada, ganhou algum peso, cortou o cabelo e voltou a pintar os grandes olhos escuros e a pendurar colares e pulseiras tilintantes, numa patética tentativa de recuperar a descorada imagem que guardava de si mesma. Estava apaixonada. Da depressão passou a um estado de euforia permanente e Jaime era o centro da sua mania. O enorme esforço de vontade que fez para se libertar das suas numerosas dependências ofereceu-o a ele como prova de amor. Jaime não a estimulou, mas também não a repudiou, porque pensou que a ilusão do amor podia ajudá-la na recuperação, mas sabia que era tarde para eles. Mal pôde tratou de criar a distância, com a desculpa de ser um solteirão perdido para o amor. Bastavam-lhe os encontros furtivos com algumas enfermeiras complacentes do hospital ou as tristes visitas aos bordéis, para satisfazer as suas urgências mais prementes, nos raros momentos livres que lhe deixava o trabalho. Contra a sua vontade, viu-se envolvido numa relação com Amanda que na sua juventude desejara com desespero, mas que já não o comovia nem se sentia capaz de manter. Só o inspirava um sentimento de compaixão, mas esta era uma das emoções mais fortes que ele podia sentir. Em toda uma vida de convivência com a miséria e a dor, não se lhe tinha endurecido a alma, mas, pelo contrário, era cada vez mais vulnerável à piedade. No dia em que Amanda lhe lançou os braços ao pescoço e disse que o amava, abraçou-a maquinalmente e beijou-a com uma paixão fingida, para que ela não percebesse que não a desejava. Assim se viu apanhado numa relação absorvente numa idade em que se julgava incapacitado para os amores tumultuosos. «Já não sirvo para estas coisas», pensava depois daquelas esgotantes sessões em que Amanda, para o encantar, recorria a rebuscadas manifestações amorosas que deixavam ambos aniquilados.
A sua relação com Amanda e a insistência de Alba, puseram-no em contacto com Miguel. Não podia evitar encontrá-lo em muitas ocasiões. Fez o possível por manter-se indiferente, mas Miguel terminou por cativá-lo. Tinha amadurecido, já não era um jovem exaltado, mas não tinha mudado nada na sua linha política e continuava pensando que sem uma revolução violenta seria impossível vencer a direita. Jaime não estava de acordo, mas apreciava-o e admirava o seu caracter corajoso. No entanto, considerava-o um desses homens fatais, possuídos de um idealismo perigoso e de uma pureza intransigente, que tingem de desgraça tudo o que tocam especialmente as mulheres que têm a pouca sorte de os amar. Também não gostava da sua posição ideológica, porque estava convencido de que os extremistas de esquerda como Miguel faziam mais dano ao Presidente que os de direita. Mas nada disso impedia que tivesse simpatia por ele e se inclinasse perante a força das suas convicções, a sua alegria natural, a sua tendência para a ternura e a generosidade com que estava disposto a dar a vida por ideais que Jaime partilhava, mas que não tinha coragem de levar a cabo até às últimas consequências.
Nessa noite Jaime adormeceu preocupado e inquieto, incómodo no saco de dormir, ouvindo muito próximo a respiração da sua sobrinha. Quando despertou, ela tinha-se levantado e estava aquecendo o café do pequeno almoço. Soprava uma brisa fria e o Sol iluminava com reflexos dourados os cumes das montanhas. Alba deitou os braços ao pescoço do seu tio e beijou-o, mas ele manteve as mãos nos bolsos e não devolveu a carícia. Estava perturbado.
Las Tres Marias foi um dos últimos latifúndios que a reforma agrária expropriou no Sul. Os mesmos camponeses que tinham nascido e trabalhado ao longo de gerações naquela terra, formaram uma cooperativa e assenhorea-ram-se da propriedade, porque fazia três anos e cinco meses que não viam o patrão e tinham esquecido o furacão das suas cóleras. O administrador, atemorizado pelo rumo que tomavam os acontecimentos e pelo tom exaltado das reuniões dos caseiros na escola, juntou os seus tarecos e pôs-se ao largo sem se despedir de ninguém e sem avisar o senador Trueba, porque não queria enfrentar a sua fúria e porque pensou que já tinha cumprido ao adverti-lo várias vezes. Com a sua partida, Las Tres Marias ficou algum tempo à deriva. Não havia quem desse as ordens e nem quem estivesse disposto a cumpri-las, porque os camponeses saboreavam pela primeira vez nas suas vidas, o gosto da liberdade e de serem os seus próprios amos. Repartiram entre si equitativamente os pastos e cada um cultivou o que lhe deu na gana, até que o governo mandou um técnico que lhes deu sementes a crédito e os pôs em dia sobre a procura do mercado, as dificuldades de transporte para os produtos e as vantagens dos adubos e desinfectantes. Os camponeses fizeram pouco caso do técnico, porque parecia um janota da cidade e era evidente que nunca tinha tido um arado nas mãos, mas de qualquer modo celebraram a sua visita abrindo as sagradas adegas do antigo patrão, saqueando os seus vinhos velhos e sacrificando os touros reprodutores para comer os testículos com cebola e coentro. Depois que o técnico partiu, comeram também as vacas importadas e as galinhas poedeiras. Esteban Trueba inteirou-se que tinha perdido a terra quando o notificaram que iam pagar-lhe com bonificações do Estado, num prazo de trinta anos e pelo mesmo preço que ele mencionara na declaração de impostos. Perdeu o controlo. Sacou do seu arsenal uma metralhadora que não sabia usar e ordenou ao seu motorista que o levasse de carro numa tirada até Las Tres Marias sem avisar ninguém, nem sequer os seus guarda-costas. Viajou várias horas, cego de raiva, sem nenhum plano concreto na mente.
Ao chegar, tiveram de travar, porque a passagem estava fechada por uma grossa tranca no portão. Um dos caseiros montava guarda armado de um chuço e uma caçadeira sem cartuchos. Trueba desceu do carro. Ao ver o patrão, o pobre homem tocou freneticamente o sino da escola, que lhe tinham posto ao pé para ele dar o alarme e a seguir atirou-se de borco para o chão. A rajada de balas passou-lhe por cima da cabeça e cravou-se nas árvores próximas. Trueba não parou para ver se o tinha morto. Com uma agilidade inesperada na sua idade, meteu-se a caminho da propriedade sem olhar para nenhum lado, de maneira que a pancada na nuca apanhou-o de surpresa e atirou-o de bruços no pó antes que conseguisse dar conta do que se tinha passado. Despertou na sala de jantar da casa senhorial, deitado sobre a mesa com as mãos amarradas e uma almofada debaixo da cabeça. Uma mulher punha-lhe panos molhados na testa e à sua volta estavam quase todos os caseiros olhando-o com curiosidade.
- Como se sente, companheiro? - perguntaram.
- Filhos da puta! Eu não sou companheiro de ninguém! - gritou o velho tentando levantar-se.
Tanto se debateu e gritou, que lhe soltaram as cordas e o ajudaram a pôr-se em pé mas quando quis sair, viu que as janelas estavam tapadas por fora e a porta fechada à chave. Quiseram explicar-lhe que as coisas tinham mudado e já não era o dono, mas não quis ouvir ninguém. Deitava espuma pela boca e o coração ameaçava estalar-lhe, dizia impropérios como um demente, ameaçando com tais castigos e vinganças, que os outros acabaram por rebentar a rir. Esteban Trueba caiu numa cadeira, esgotado pelo tremendo esforço. Horas depois, soube que era um refém e que queriam filmá-lo para a televisão. Avisados pelo motorista, os dois guarda-costas e alguns jovens exaltados do seu Partido tinham feito a viagem até Las Tres Marias, armados com paus, boxes e correntes, para o libertar, mas encontraram guarda dobrada no portão, apontados pela mesma metralhadora que o senador Trueba lhes tinha proporcionado.
- Ninguém leva o companheiro como refém - disseram os camponeses, e para dar ênfase correram-nos a tiro.
Apareceu um camião da televisão e os caseiros, que nunca tinham visto nada semelhante, deixaram-nos entrar e posaram para as câmaras com os maiores sorrisos, ao lado do prisioneiro. Nessa noite, todo o pais pôde ver nos écrans o representante máximo da oposição amarrado, espumando de raiva e gritando tais palavrões que a censura teve de actuar. O Presidente também o viu e não achou graça ao assunto, porque pensou que podia ser o detonador que faria rebentar o barril de pólvora em que o seu governo se sentava em equilíbrio precário. Mandou os carabineiros resgatarem o Senador. Quando estes chegaram à herdade, os camponeses, tornados valentes pelo apoio da imprensa, não os deixaram entrar. Exigiram uma ordem judicial. O juiz da província, vendo que se podia meter num sarilho e aparecer também na televisão, achincalhado pelos repórteres de esquerda, foi pescar apressadamente. Os carabineiros tiveram que limitar-se a esperar do outro lado do portão de Las Tres Marias, até que mandassem a ordem da capital.
Blanca e Alba souberam do caso como toda a gente, porque o viram no noticiário. Blanca esperou até ao dia seguinte sem fazer comentários, mas ao ver que nem os carabineiros tinham podido resgatar o avô, decidiu que chegara o momento de voltar a encontrar-se com Pedro Tercero Garcia.
- Tira essas calças sujas e põe um vestido decente – ordenou a Alba.
Apresentaram-se ambas no ministério sem ter pedido entrevista. Um secretário quis detê-las na antecâmara, mas Blanca afastou-o com um empurrão e passou com passo firme, levando a filha a reboque. Abriu a porta sem bater e entrou pelo gabinete de Pedro Tercero, que não via fazia dois anos. Esteve quase a pontos de retroceder, julgando que se tinha equivocado. Em tão curto prazo, o homem da sua vida tinha emagrecido e envelhecido, parecia muito cansado e triste, tinha o cabelo ainda negro mas mais ralo e curto, aparara a formosa barba e estava vestido com um fato cinzento de funcionário e uma gravata triste da mesma cor. Blanca só o reconheceu pelo olhar dos seus antigos olhos.
- Jesus! Como mudaste!... - balbuciou.
A Pedro Tercero, no entanto, ela pareceu-lhe mais formosa do que se recordava, como se a ausência a tivesse rejuvenescido. Naquele espaço de rompo ele tinha tido tempo de se arrepender da sua decisão e de descobrir que sem Blanca perdera até o gosto pelas jovens que antes o entusiasmavam. Por outro lado, sentado naquele escritório, trabalhando doze horas diárias, longe da guitarra e da inspiração do povo, tinha muito poucas oportunidades de se sentir feliz. À medida que o tempo passava, tinha cada vez menos saudades do amor tranquilo e repousado de Blanca. Mal a viu entrar com modos decididos e acompanhada de Alba, compreendeu que não ia vê-lo por razões sentimentais e adivinhou que a causa era o escândalo do senador Trueba.
- Venho pedir-te que nos acompanhes - disse Blanca sem preâmbulos. - A tua filha e eu vamos buscar o velho a Las Tres Marias.
Foi assim que Alba soube que Pedro Tercero Garcia era seu pai.
- Está bem. Passemos por minha casa para buscar a guitarra - respondeu, levantando-se.
Saíram do ministério num automóvel preto como um carro funerário com chapas oficiais. Blanca e Alba esperaram na rua enquanto ele subiu ao apartamento. Quando regressou, tinha trocado o fato cinzento pelo fato macaco e o seu poncho de antigamente, calçava alpergatas e levava uma guitarra pendurada às costas. Blanca sorriu-lhe pela primeira vez e ele inclinou-se e beijou-a levemente na boca. A viagem foi silenciosa durante os primeiros cem quilómetros, até que Alba pôde recuperar da surpresa e fez sair um fio de voz trémula, para perguntar por que não lhe tinham dito já que Pedro Tercero era seu pai, assim lhe teriam poupado tantos pesadelos de um conde vestido de branco, morto de febre no deserto.
- É melhor um pai morto do que um pai ausente – respondeu enigmaticamente Blanca, e não tornou a falar no assunto.
Chegaram a Las Tres Marias ao anoitecer e encontraram no portão da herdade uma multidão em conversa amigável à volta de uma fogueira onde se assava um porco. Eram os carabineiros, os jornalistas e os camponeses que estavam dando baixa às últimas garrafas da adega do Senador. Alguns cães e várias crianças brincavam iluminados pelo fogo, esperando que o leitão rosado e brilhante acabasse de assar. Os da imprensa reconheceram logo Pedro Tercero Garcia, porque o tinham entrevistado amiúde, os carabineiros pela sua inconfundível pinta de cantor popular e os camponeses porque o tinham visto nascer naquela terra. Receberam-no com afecto.
- Que o traz aqui, companheiro? - perguntaram-lhe os camponeses.
- Venho ver o velho - sorriu Pedro Tercero.
- Você pode entrar companheiro, mas sozinho. A Dona Blanca e a menina Alba vão aceitar um copinho de vinho - disseram.
As duas mulheres sentaram-se à volta da fogueira com os outros e o aroma suave da carne chamuscada recordou-lhes que não comiam desde a manhã. Blanca conhecia todos os caseiros e tinha ensinado muitos deles a ler na pequena escola de Las Tres Marias, por isso puseram-se a recordar tempos passados, quando os irmãos Sánchez impunham a lei na região, quando o velho Pedro Garcia acabou com a praga das formigas e quando o Presidente era um eterno candidato, que parava na estação a discursar-lhes dentro do comboio das suas derrotas.
- Quem pensaria que alguma vez ia ser Presidente! – disse um.
- E que um dia o patrão ia mandar menos que nós em Las Tres Marias - riram-se os outros.
Conduziram Pedro Tercero Garcia a casa, directamente à cozinha. Estavam lá os caseiros mais velhos tomando conta da porta da sala de jantar onde tinham o antigo patrão prisioneiro. Não tinham visto Pedro Tercero durante anos, mas todos o recordavam. Sentaram-se à mesa a beber vinho e a recordar o passado remoto, os tempos em que Pedro Tercero não era uma lenda na memória das gentes do campo, mas apenas um rapaz rebelde apaixonado pela filha do patrão. Depois, Pedro Tercero pegou na guitarra, ajeitou-a na perna, fechou os olhos e começou a cantar com a sua voz de veludo a história das galinhas e do raposo, acompanhado em coro por todos os velhos.
- Vou levar o patrão, companheiros - disse suavemente Pedro Tercero numa pausa.
- Nem sonhos, filho - responderam.
- Amanhã virão os carabineiros com uma ordem judicial e vão levá-lo como um herói. É melhor que eu o leve com o rabo entre as pernas - disse Pedro Tercero.
Discutiram o assunto durante um bom bocado e por fim levaram-no à sala de jantar e deixaram-no só com o refém. Era a primeira vez que estavam frente a frente desde o dia fatídico em que Trueba lhe cobrou a virgindade da filha com uma machadada. Pedro Tercero lembrava-se dele como um gigante furibundo, armado com um chicote de couro e uma bengala de prata, que fazia tremer à sua passagem os caseiros e que alterava a natureza com o vozeirão de trovão e a prepotência de grande senhor. Surpreendeu-se ao ver que o seu rancor amassado durante tanto tempo se esvaia na presença daquele ancião curvado e mirrado que o olhava com susto. O senador Trueba esgotara a raiva e a noite que tinha passado sentado numa cadeira de mãos amarradas tinha-lhe provocado dores em todos os ossos e nas costas um cansaço de mil anos. A princípio teve dificuldade em reconhecê-lo, porque não o tinha voltado a ver desde há um quarto de século, mas ao notar que lhe faltavam três dedos na mão direita, compreendeu que isso era o culminar do pesadelo em que se encontrava submergido. Observaram-se em silêncio por longos segundos, pensando os dois que o outro encarnava o que de mais odioso havia no mundo, mas sem encontrar o fogo do antigo ódio nos corações.
- Venho tirá-lo daqui - disse Pedro Tercero.
- Porquê? - perguntou o velho.
- Porque Alba mo pediu - respondeu Pedro Tercero.
- Vá para o caralho! - balbuciou sem convicção.
- Bom, lá vamos. Você vem comigo.
Pedro Tercero começou a desatar-lhe as cordas, que lhe haviam voltado a pôr nos pulsos para evitar que desse murros na porta. Trueba desviou os olhos para não ver a mão mutilada do outro.
- Tire-me daqui sem que me vejam. Não quero que os jornalistas saibam - disse o senador Trueba.
- Vou tirá-lo daqui exactamente por onde entrou, pela porta principal - disse Pedro Tercero e começou a andar.
Trueba seguiu-o com a cabeça baixa, tinha os olhos avermelhados e pela primeira vez, tanto quanto podia recordar, sentia-se derrotado. Passaram pela cozinha sem que o velho levantasse a vista, atravessaram toda a casa e percorreram o caminho desde a casa senhorial até ao portão da entrada, acompanhados por um grupo de crianças travessas que brincava à sua volta e um séquito de camponeses silenciosos que caminhava atrás. Blanca e Alba estavam sentadas entre os jornalistas e os carabineiros, a comer porco assado com os dedos e a beber grandes goles de vinho tinto pelo gargalo da garrafa que circulava de mão em mão. Ao ver o avô, Alba comoveu-se, porque nunca o tinha visto tão abatido desde a morte de Clara. Engoliu o que tinha na boca e correu ao seu encontro. Abraçaram-se estreitamente e ela sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Então, o senador Trueba conseguiu dominar a dignidade, levantou a cabeça e sorriu com a antiga soberba às luzes das máquinas fotográficas. Os jornalistas fotografaram-no a subir para um automóvel preto com matricula oficial e a opinião pública perguntou durante semanas que significava aquela palhaçada, até que outros acontecimentos muito mais graves apagaram a recordação do incidente.
Nessa noite, o Presidente, que apanhara o hábito de enganar a insónia jogando xadrez com Jaime, comentou o assunto entre duas partidas, enquanto espiava com os olhos astutos, ocultos detrás dos óculos grossos com aros escuros, algum sinal de atrapalhação do amigo, mas Jaime continuou a colocar as peças no tabuleiro sem dizer palavra.
- O velho Trueba tem os colhões no sítio - disse o Presidente. - Merecia estar do nosso lado.
Nos meses que se seguiram, a situação piorou muito, aquilo parecia um país em guerra. Os ânimos estavam muito exaltados, especialmente entre as mulheres da oposição, que desfilavam pelas ruas batendo em tachos como protesto contra a falta de abastecimento. Metade da população procurava deitar abaixo o governo e outra metade defendia-o, sem que ninguém tivesse tempo para trabalhar. Uma noite, Alba admirou-se ao ver as ruas do centro escuras e vazias. Não tinham recolhido o lixo em toda a semana e os cães vadios esgravatavam entre os montões de porcaria. Os postes estavam cobertos de propaganda impressa, que a chuva de Inverno tinha desbotado, e em todos os espaços disponíveis estavam escritas as palavras de ordem de ambos os lados. Metade dos candeeiros tinha sido apedrejada e nos edifícios não havia janelas iluminadas, a luz vinha de tristes fogueiras alimentadas com jornais e tábuas, onde se aqueciam pequenos grupos que montavam guarda em frente dos ministérios, dos bancos, dos escritórios, fazendo turnos para impedir que os grupelhos da extrema direita os tomassem de assalto durante a noite. Alba viu parar uma camioneta em frente de um edifício público. Desceram vários jovens com capacetes brancos, baldes de tinta e brochas que cobriram as paredes com uma base de cor clara. Depois desenharam grandes pombas de muitas cores, borboletas e flores de sangue, versos do Poeta e apelos à unidade popular. Eram as brigadas juvenis que acreditavam salvar a revolução com murais patrióticos e pombas panfletárias. Alba aproximou-se e apontou-lhes o mural que havia do outro lado da rua. Estava manchado com tinta vermelha e tinha só uma palavra escrita com letras enormes: Djacarta.
- Que significa aquele nome, companheiros? - perguntou.
- Não sabemos - responderam.
Ninguém sabia por que razão a oposição pintava aquela palavra asiática nas paredes, nunca tinham ouvido falar nos montões de mortos nas ruas dessa cidade distante. Alba montou na bicicleta e pedalou rumo a casa. Desde que havia racionamento de gasolina e greve de transportes públicos, tinha desenterrado da cave o velho brinquedo da infância para se deslocar. Ia a pensar em Miguel e um negro pressentimento apertava-lhe a garganta.
Há bastante tempo que não ia às aulas e começava a sobrar-lhe tempo. Os professores tinham declarado uma paragem indefinida e os estudantes tomaram os edifícios das faculdades. Aborrecida de estudar violoncelo em casa, aproveitava os momentos em que não estava a sós com Miguel, passean-do com Miguel ou discutindo com Miguel, para ir ao hospital do Bairro da Misericórdia ajudar o tio Jaime e uns poucos médicos mais, que continuavam exercendo, apesar da ordem do Colégio Médico de não trabalhar para sabotar o governo. Era uma tarefa hercúlea. Os corredores atulhavam-se de doentes que esperavam durante dias para serem atendidos, como um rebanho geme-bundo. Os enfermeiros não resolviam coisa alguma. Jaime adormecia com o bisturi na mão, tão ocupado que muitas vezes se esquecia de comer. Emagreceu e andava muito extenuado. Fazia turnos de dezoito horas e quando se deitava no catre não conseguia pegar no sono, pensando nos enfermos que estavam à espera das anestesias que não havia, nem seringas, nem algodão, e que mesmo que ele se multiplicasse por mil, ainda não era suficiente, porque aquilo era como tentar deter um comboio com a mão. Amanda também trabalhava no hospital como voluntária, para estar perto de Jaime e manter-se ocupada. Nessas jornadas esgotantes, a cuidar de doentes desconhecidos, recuperou a luz que a iluminava por dentro na sua juventude e por algum tempo, teve a ilusão de ser feliz. Usava um avental azul e sapatilhas de borracha, mas Jaime julgava ouvir as missangas de outros tempos a tilintar sempre que ela andava perto. Sentia-se acompanhado e teria desejado amá-la. O Presidente aparecia na televisão quase todas as noites para denunciar a guerra sem quartel da oposição. Estava muito cansado e a voz falhava-lhe constantemente. Fizeram constar que estava bêbado e que passava a noite em orgias de mulatas trazidas do trópico por via aérea para lhe aquecer os ossos. Avisou que os camionistas em greve recebiam cinquenta dólares por dia do estrangeiro para manterem o pais parado. Responderam que lhe enviavam granadas e armas soviéticas nas malas diplomáticas. Disse que os seus inimigos conspiravam com os militares para fazer um golpe de estado, porque preferiam ver a democracia morta, em vez de governada por ele. Acusaram-no de inventar patranhas de paranóico e de roubar as obras do Museu Nacional para as pôr no quarto da amante. Preveniu que a direita estava armada e decidida a vender a pátria ao imperialismo e respondiam-lhe que tinha a despensa cheia de peitos de aves enquanto o povo fazia bichas para o pescoço e as asas dos mesmos pássaros.
No dia em que Luísa Mora tocou a campainha da grande casa da esquina, o senador Trueba estava na biblioteca a fazer contas. Ela era a última das irmãs Mora que ainda restava neste mundo, reduzida ao tamanho de um anjo errante e totalmente lúcido, em plena posse da sua inquebrantável energia espiritual. Trueba não a via desde a morte de Clara, mas reconheceu-a pela voz, que continuava a soar como uma flauta encantada e pelo perfume das violetas silvestres que o tempo tinha suavizado, mas ainda perceptível à distância. Ao entrar na sala trouxe consigo a presença alada de Clara, que ficou a flutuar no ar perante os olhos enamorados do marido, que não a via desde há vários dias.
- Venho anunciar-lhe desgraças, Esteban - disse Luísa Mora depois de se ajeitar na poltrona.
- Ai, querida Luísa! Disso já tive bastante... – suspirou ele.
Luísa contou o que tinha descoberto nos planetas. Teve que explicar o método científico que tinha usado, para vencer a pragmática resistência do Senador. Disse que tinha passado os últimos dez meses estudando a carta astral de cada pessoa importante do governo e da oposição, incluindo o próprio Trueba. A comparação das cartas dizia que nesse preciso momento histórico ocorreriam inevitáveis actos de sangue, dor e morte.
- Não tenho a menor dúvida, Esteban - concluiu. - Aproximam-se tempos terríveis. Haverá tantos mortos que não se poderão contar. Você fará parte do grupo dos vencedores, mas o triunfo não lhe vai trazer mais que sofrimento e solidão.
Esteban Trueba sentiu-se incomodado em frente daquela pitonisa insólita que transtornava a paz da sua biblioteca e lhe alvoroçava o fígado com desvarios astrológicos, mas não teve coragem para a mandar embora, por causa de Clara, que estava observando pelo rabo do olho lá do seu canto.
- Mas não vim aborrecê-lo com noticias que escapam ao seu controlo, Esteban. Vim falar com a sua neta Alba, porque tenho uma mensagem da avó para ela.
O senador Trueba chamou Alba. A jovem não via Luísa Mora desde os sete anos, mas recordava-se perfeitamente dela. Abraçou-a com delicadeza, para não lhe desconjuntar o frágil esqueleto de marfim e aspirou com prazer uma baforada daquele perfume inconfundível.
- Vim dizer-te que tenhas cuidado contigo - disse Luísa Mora depois de ter enxugado as lágrimas de emoção. - A morte anda a pisar-te os calcanhares. A tua avó Clara protege-te do Mais-Além, mas mandou-me dizer-te que os espíritos protectores são ineficazes nos cataclismos maiores. Seria bom que fizesses uma viagem, que fosses até ao outro lado do mar, onde ficarás a salvo.
Nessa altura da conversa, o senador Trueba tinha perdido a paciência e teve a certeza de se encontrar em frente duma anciã demente. Dez meses e onze dias mais tarde, recordaria a profecia de Luísa Mora, quando levaram Alba de noite, durante o toque de recolher.
O Terror
O dia do golpe militar amanheceu com um sol radioso, pouco usual na tímida Primavera que despontava. Jaime tinha trabalhado quase toda a noite e às sete da manhã só tinha no corpo duas horas de sono. Despertou-o a campainha do telefone e uma secretária, com a voz ligeiramente alterada, acabou por lhe espantar a modorra. Telefonavam-lhe do Palácio para o informar que devia apresentar-se no gabinete do companheiro Presidente o mais depressa possível, não, o companheiro Presidente não estava doente, não, não sabia o que se estava a passar, ela tinha ordem de chamar todos os médicos da Presidência. Jaime vestiu-se como um sonâmbulo e entrou no automóvel, agradecendo que, pela sua profissão, tivesse direito a uma quota semanal de gasolina, porque se não fosse assim, teria que ir até ao centro de bicicleta. Chegou ao Palácio às oito e estranhou ver a praça vazia e um forte destacamento de soldados nos portões da sede do governo, todos equipados com farda de combate, capacetes e armamentos de guerra. Jaime estacionou o automóvel na praça solitária, sem reparar nos gestos que lhe faziam os soldados para não parar ali. Desceu e imediatamente o rodearam apontando-lhe as armas.
- Que se passa, companheiros? Estamos em guerra com os chineses? - sorriu Jaime.
- Siga, não pode parar aqui! O tráfego está interrompido! - ordenou um oficial.
- Sinto muito mas chamaram-me da Presidência - alegou Jaime mostrando a identificação. - Sou médico.
Acompanharam-no até às pesadas portas de madeira do Palácio, onde um grupo de carabineiros montava guarda. Deixaram-no entrar. No interior do edifício reinava uma agitação de naufrágio, os funcionários corriam pelas escadas como ratos assustados e a guarda privada do Presidente estava a empurrar os móveis contra as janelas e a distribuir pistolas pelos mais próximos. O Presidente veio ao seu encontro. Tinha posto um capacete de combate que parecia incongruente com a sua fina roupa desportiva e os sapatos italianos. Jaime compreendeu então que algo de grave estava a passar-se.
- A Marinha sublevou-se, doutor - explicou laconicamente. - Chegou o momento de lutar.
Jaime pegou no telefone e chamou Alba para lhe dizer que não saísse de casa e pedir-lhe que avisasse Amanda. Nunca mais voltou a falar com ela, porque os acontecimentos desencadearam-se vertiginosamente. Durante a hora. que se seguiu chegaram alguns ministros e dirigentes políticos do governo e começaram as negociações telefónicas com os insurrectos para medir a grandeza da sublevação e procurar uma solução pacífica. Mas, às nove e meia da manhã, as unidades armadas do pais estavam sob o comando de militares golpistas. Nos quartéis, tinha começado a purga dos que permaneciam leais à Constituição. O general dos carabineiros ordenou à guarda do Palácio que saísse, porque a policia acabava de aderir ao golpe.
- Podem ir, companheiros, mas deixem as armas - disse o Presidente.
Os carabineiros estavam confusos e envergonhados, mas a ordem do general era categórica. Nenhum se atreveu a desafiar o olhar do Chefe de Estado, depositaram as armas no pátio e saíram em fila, com a cabeça baixa. Na porta, um voltou-se.
- Eu fico com o senhor, companheiro Presidente - disse.
A meio da manhã, tornou-se evidente que a situação não se resolveria com o diálogo e começou a retirar-se quase toda a gente. Só ficaram os amigos mais próximos e a guarda privativa. As filhas do Presidente foram obrigadas pelo pai a sair. Tiveram de levá-las à força e podiam ouvir-se os seus gritos a chamá-lo da rua. No interior do edifício ficaram à roda de trinta pessoas entrincheiradas nos salões do segundo andar, entre os quais estava Jaime. Parecia-lhe estar no meio de um pesadelo. Sentou-se numa poltrona de veludo vermelho, com uma pistola na mão, olhando-a apalermado. Não sabia usá-la. Pareceu-lhe que o tempo corria muito lentamente, no seu relógio só tinham passado três horas desse mau sonho. Ouviu a voz do Presidente que falava pela rádio ao país. Era a sua despedida.
«Dirijo-me àqueles que serão perseguidos, para lhes dizer que não vou renunciar: pagarei com a minha vida a lealdade do povo. Estarei sempre junto de vós. Tenho fé na pátria e no seu destino. Outros homens vão ultrapassar este momento e muito mais cedo do que se pensa vão abrir-se as grandes alamedas por onde vai passar o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras. Tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão.»
O céu começou a toldar-se. Ouviam-se alguns disparos isolados e distantes. Nesse momento o Presidente estava a falar por telefone com o chefe dos sublevados, que lhe ofereceu um avião militar para sair do pais com toda a família. Mas ele não estava disposto a exilar-se em qualquer lugar longínquo onde pudesse passar o resto da vida vegetando com outros mandatários destituídos, que tinham saído da pátria pela porta do cavalo.
- Enganaram-se comigo, traidores. Aqui pôs-me o povo e daqui só sairei morto - respondeu serenamente.
Então, ouviram o rugido dos aviões e começou o bombardeamento. Jaime atirou-se ao chão com os outros, sem poder acreditar no que estava a viver, porque até ao dia anterior estava convencido de que no seu pais nunca se passava nada e até os militares respeitavam a lei. Só o Presidente se manteve de pé, aproximou-se de uma janela com uma bazuca nos braços e disparou contra os tanques na rua. Jaime arrastou-se até ele e agarrou-o pelas pernas para o obrigar a agachar-se, mas o outro disse um palavrão e manteve-se de pé. Quinze minutos depois ardia todo o edifício e dentro não se podia respirar por causa das bombas e do fumo. Jaime andava de gatas por entre os móveis partidos e pedaços de tecto que calam à sua volta como uma chuva mortífera, procurando auxiliar os feridos, mas só podia dar consolo e fechar os olhos aos mortos. Numa súbita pausa do tiroteio, o Presidente reuniu os sobreviventes e disse-lhes que se fossem embora, que não queria mártires nem sacrifícios inúteis, que todos tinham uma família e teriam que realizar uma importante tarefa depois: «Vou pedir uma trégua para poderem sair», acrescentou. Mas ninguém se retirou. Alguns tremiam, mas todos estavam na aparente posse da sua dignidade. O bombardeamento foi breve mas deixou o Palácio em ruínas. Às duas da tarde, o incêndio devorara os antigos salões que tinham servido desde os tempos coloniais, e só ficara um punhado de homens à volta do Presidente. Os militares entraram no edifício e ocuparam tudo o que ficara do rés-do-chão. No meio do estrondo ouviram a voz histérica de um oficial que lhes ordenava que se rendessem e descessem em fila indiana e com as mãos no ar. O Presidente apertou a mão a cada um. «Eu descerei no fim», disse. Não voltaram a vê-lo com vida.
Jaime desceu com os outros. Em cada degrau da grande escadaria de pedra havia um soldado. Pareciam ter enlouquecido. Davam pontapés e coronhadas aos que desciam, com um ódio novo, recentemente inventado, que tinha florescido neles em poucas horas. Alguns disparavam as armas por cima das cabeças dos rendidos. Jaime levou um pontapé no ventre que o dobrou em dois e quando pôde endireitar-se, tinha os olhos cheios de lágrimas e as calças quentes de merda. Continuaram a bater-lhes até à rua e ali mandaram-nos deitar-se de borco no chão, pisaram-nos, insultaram-nos até que se lhes acabaram os palavrões em espanhol e começaram a fazer sinais a um tanque. Os prisioneiros ouviram-no aproximar-se, estremecendo o asfalto, com o seu pisar de paquiderme invencível.
- Abram caminho porque vamos passar com o tanque por cima destes ovos! - gritou um coronel.
Jaime olhou do chão e julgou reconhecê-lo, porque lhe lembrava um rapaz com quem brincava em Las Tres Marias quando era jovem. O tanque passou resfolgando a dez centímetros da sua cabeça entre as gargalhadas dos soldados e o silvo das sereias do bombeiros. Ao longe ouvia-se o rumor dos aviões de guerra. Muito tempo depois, separaram os prisioneiros em dois grupos, conforme a sua culpa, e levaram Jaime para o Ministério da Defesa que estava transformado em quartel. Obrigaram-no a avançar agachado, como se estivesse numa trincheira, levaram-no através de uma grande sala, cheia de homens nus, atados em filas de dez, com as mãos amarradas atrás das costas, tão espancados, que alguns não conseguiam ter-se em pé, e o sangue corria a jorros sobre o mármore do chão. Conduziram Jaime à casa da caldeira, onde havia pessoas em pé contra a parede vigiadas por um soldado lívido que se passeava apontando-lhes a pistola-metralhadora. Passou ali muito tempo imóvel, parado, aguentando-se como um sonâmbulo, sem conseguir compreender o que estava a suceder, atormentado pelos gritos que se ouviam através da parede. Notou que o soldado o observava. Baixou a arma e aproximou-se.
- Sente-se a descansar, doutor, mas se eu o avisar, ponha-se de pé imediatamente - disse num murmúrio, passando-lhe um cigarro aceso. - O senhor operou a minha mãe e salvou-lhe a vida.
Jaime não fumava, mas saboreou aquele cigarro aspirando lentamente. Tinha o relógio partido, mas pela fome e pela sede, calculou que já era noite. Estava tão cansado e incómodo nas suas calças sujas, que não imaginava o que ia acontecer-lhe. Começava a cabecear quando o soldado se aproximou.
- Levante-se, doutor - sussurrou-lhe. - Vêm buscá-lo. Boa sorte!
Um instante depois entraram dois homens, algemaram-no e conduziram-no junto de um oficial que tinha o cargo de interrogar os prisioneiros. Jaime tinha-o visto algumas vezes na companhia do Presidente.
- Sabemos que não tem nada a ver com isto, doutor - disse. - Só queremos que apareça na televisão e diga que o Presidente estava bêbado e se suicidou. Depois deixo-o ir para casa.
- Faça essa declaração você mesmo. Comigo não contem, seus cabrões! - respondeu Jaime.
Agarraram-lhe os braços. O primeiro golpe caiu-lhe no estômago. Depois levantaram-no, estenderam-no sobre uma mesa e sentiu que lhe tiravam a roupa. Muito tempo depois levaram-no inconsciente do Ministério da Defesa. Tinha começado a chover e a frescura da água e do ar reanimaram-no. Despertou quando o subiram para um autocarro do Exército e o deixaram no assento traseiro. Através do vidro observou a noite e, quando o veiculo se pôs em marcha, pôde ver as ruas vazias e os edifícios embandeirados. Compreendeu que os inimigos tinham ganho e provavelmente pensou em Miguel. O autocarro deteve-se no pátio de um regimento, ali o deixaram. Havia outros prisioneiros em tão mau estado como ele. Ataram-lhe os pés e as mãos com arame farpado e atiraram-no de bruços nas cavalariças. Jaime e os outros passaram ali dois dias sem água e sem comida, apodrecendo nos seus próprios excrementos, no seu sangue e no eu espanto, ao fim dos quais os transportaram a todos num camião até aos arredores do aeroporto. Num descampado fuzilaram-nos estendidos no chão, porque não podiam aguentar-se em pé e dinamitaram logo os corpos. O assombro da explosão e o fedor dos despojos ficaram no ar por muito tempo.
Na grande casa da esquina, o senador Trueba abriu uma garrafa de champanhe francês para celebrar a queda do regime contra o qual ele tinha lutado ferozmente, sem suspeitar que nesse momento estavam a queimar os testículos ao seu filho Jaime com um cigarro importado. O velho pendurou a bandeira na entrada da casa e não saiu para a rua a dançar porque era coxo e porque havia toque de recolher obrigatório, mas a vontade não lhe faltou, como disse satisfeito à filha e à neta. Entretanto Alba, pendurada no telefone, tentava obter notícias das pessoas que a preocupavam: Miguel, Pedro Tercero, o tio Jaime, Amanda, Sebastián Gómez e tantos outros.
- Agora vão pagá-las! - exclamou o senador Trueba levantando o copo.
Alba tirou-lho da mão com uma pancada e atirou-o contra a parede, fazendo-o em pedaços. Blanca, que nunca tinha tido coragem de fazer frente ao pai, sorriu sem disfarçar.
- Não vamos celebrar a morte do Presidente nem a dos outros, avô! - disse Alba.
Nas lindas casas do Bairro Alto abriram as garrafas que tinham esperado durante três anos e brindaram pela nova ordem. Os helicópteros voaram toda a noite, zumbindo como moscas de outros mundos.
Muito tarde, quase ao amanhecer, tocou o telefone e Alba, que não se tinha deitado, correu a atendê-lo. Aliviada, ouviu a voz de Miguel.
- Chegou o momento, meu amor. Não me procures nem me esperes. Amo-te - disse.
- Miguel! Quero ir contigo! - soluçou Alba.
- Não fales a ninguém de mim, Alba. Não vejas os amigos. Rasga as agendas, os papéis, tudo o que possa relacionar-te comigo. Vou-te querer sempre, lembra-te disso, meu amor - disse Miguel e cortou a ligação.
A ordem de recolher durou dois dias. Para Alba foram uma eternidade. As rádios transmitiam ininterruptamente hinos guerreiros e a televisão mostrava só paisagens do território nacional e desenhos animados. Várias vezes por dia apareciam nos écrans os quatro generais da Junta, sentados entre o escudo e a bandeira, para promulgar os seus éditos: eram os novos heróis da pátria. Apesar da ordem de disparar contra quem saísse de casa, o senador Trueba atravessou a rua para ir celebrar a casa dum vizinho. A algazarra da festa não chamou a atenção das patrulhas que circulavam na rua, porque aquele era um bairro onde não esperavam encontrar oposição. Blanca disse que tinha a maior enxaqueca da sua vida e fechou-se no quarto. À noite, Alba ouviu-a andar pela cozinha e supôs que a fome tinha sido mais forte que a dor de cabeça. Passou dois dias às voltas pela casa em estado de desespero, revistando os livros do túnel de Jaime e a sua própria secretária para destruir o que considerou comprometedor. Era como cometer um sacrilégio, estava certa de que quando o tio regressasse ia ficar furioso e deixaria de ter confiança nela. Destruiu também as agendas onde estavam os números de telefone dos amigos, as suas mais preciosas cartas de amor e até as fotografias de Miguel. As criadas da casa, indiferentes e aborrecidas, entretiveram-se durante o toque de recolher fazendo empanadas, excepto a cozinheira, que chorava sem parar e esperava com ansiedade o momento de ir ver o marido, com quem não tinha podido comunicar.
Quando se levantou por algumas horas a proibição de sair, para dar à população a oportunidade de comprar viveres, Blanca comprovou admirada que as lojas estavam abarrotadas com os produtos que durante três anos tinham escasseado e que pareciam ter surgido como obra de magia nas montras. Viu montes de frangos preparados e pôde comprar o que quis, apesar de custar tudo o triplo porque tinha sido decretada liberdade de preço. Notou que muitas pessoas observavam os frangos com curiosidade, como se nunca os tivessem visto, mas poucas os compraram, porque não os podiam pagar. Três dias depois, o cheiro a carne putrefacta empestava as lojas da cidade.
Os soldados patrulhavam as ruas nervosamente, vitoriados por muita gente que tinha desejado a derrocada do governo. Alguns, tornados uns valentaços pela violência daqueles dias, detinham os homens com cabelo comprido ou barba, sinais inequívocos do seu espirito rebelde, e mandavam parar na rua as mulheres com calças para as cortarem à tesourada, porque se sentiam responsáveis por impor a ordem, a moral e a decência. As novas autoridades disseram que não tinham nada a ver com essas acções, nunca tinham dado ordens para cortar barbas ou calças, provavelmente tratava-se de comunistas disfarçados de soldados para desprestigiar as Forças Armadas e torná-las odiosas aos olhos dos cidadãos, porque não estavam proibidas as barbas nem as calças, mas certamente, preferiam que os homens andassem barbeados e com o cabelo curto e as mulheres com saias.
Correu o boato de que o Presidente havia sido morto e ninguém acreditou na versão oficial de se ter suicidado.
Esperei que se normalizasse um pouco a situação. Três dias depois do Pronunciamento Militar, dirigi-me no automóvel do Congresso ao Ministério da Defesa, estranhando que não me tivessem ido buscar para me convidar a participar no novo governo. Toda a gente sabe que fui eu o principal inimigo dos marxistas, o primeiro que se opôs à ditadura comunista e se atreveu a dizer em público que só os militares podiam impedir que o pais caísse nas garras da esquerda. Além disso, fui eu quem fez quase todos os contactos com o alto comando militar, quem serviu de ligação com os gringos e pus o meu nome e o meu dinheiro à disposição para comprar armas. No fim de contas, expus-me mais que ninguém. Na minha idade o poder político não me interessa para nada. Mas sou dos poucos que podiam assessorá-los, porque passei muito tempo ocupando cargos e sei melhor que ninguém o que convém a este pais. Sem assessores leais, honestos e capacitados, que pode fazer meia dúzia de coronéis improvisados? Só asneiras. Ou deixar-se enganar pelos espertos que se aproveitam das circunstancias para se tornarem ricos, como de facto está a suceder. Nesse momento, ninguém sabia que as coisas iam ocorrer como ocorreram. Pensávamos que a intervenção militar era um passo necessário para voltar a uma democracia sã, por isso me parecia tão importante colaborar com as autoridades.
Quando cheguei ao Ministério da Defesa fiquei surpreendido ao ver o edifício transformado em esterqueira. As ordenanças lavavam os pisos com esfregões, vi algumas paredes picadas pelas balas e por todos os lados corriam militares, agachados como se estivessem de verdade no meio de um campo de batalha ou esperassem que caíssem inimigos do tecto. Tive que aguardar quase três horas para ser atendido por um oficial. Ao principio julguei que naquele caos não me tinham reconhecido e por isso me tratavam com tão pouca deferência, mas vi logo como eram as coisas. O oficial recebeu-me com as botas sobre a secretária, mastigando uma sanduíche gordurosa, mal barbeado, com o dólman desabotoado. Não me deu tempo de lhe perguntar pelo meu filho Jaime nem de o felicitar pela valente acção dos soldados que tinham salvo a pátria, mas pediu-me as chaves do automóvel com o argumento de que o Congresso tinha fechado, e por isso, também tinham
acabado as regalias dos congressistas. Sobressaltei-me. Era evidente, então, que não tinham nenhuma intenção de voltar a abrir as portas do Congresso, como todos esperávamos. Pediu-me, não, ordenou-me, que me apresentasse no dia seguinte na catedral, às onze da manhã, para assistir ao Te Deum com que a pátria agradecia a
Deus a vitória sobre o comunismo.
- É verdade que o Presidente se suicidou? - perguntei.
- Foi-se embora - respondeu-me.
- Foi-se embora? Para onde?
- Foi-se em sangue - riu-se o outro.
Saí para a rua desconcertado, apoiado no braço do meu motorista. Não tínhamos maneira de regressar a casa, porque não circulavam táxis nem autocarros e não estou em idade para caminhar. Felizmente que passou um jipe de carabineiros e me reconheceram. É fácil distinguir-me como disse a minha neta Alba, porque tenho uma pinta inconfundível de velho corvo raivoso e ando sempre vestido de luto, com a minha bengala de prata.
- Suba, Senador - disse um tenente.
Ajudaram-nos a subir para o carro. Os carabineiros mostravam-se cansados, pareceu-me evidente que não tinham dormido. Confirmaram-me que estavam a patrulhar a cidade há três dias, mantendo-se acordados com café e comprimidos.
- Encontraram alguma resistência nas povoações ou nas cinturas industriais - perguntei.
- Muito pouca. O povo está tranquilo - disse o tenente. - Espero que a situação se normalize depressa, Senador. Não gostamos disto, é um trabalho sujo.
- Não diga isso, homem. Se vocês não se adiantassem, os comunistas teriam dado o golpe e a estas horas você, eu e outras cinquenta mil pessoas estaríamos mortos. Não sabia que eles tinham um plano para implantar a ditadura?
- Foi isso que nos disseram. Mas na povoação onde eu vivo há muitos presos. Os vizinhos olham-me com receio. Aqui, acontece o mesmo com os rapazes. Mas temos que cumprir ordens. A pátria está em primeiro lugar, não é verdade?
- Ora aí está! Eu também lamento o que se está a passar, tenente. Mas não havia outra solução. O regime está podre. Que teria sido deste pais, se vocês não pegassem nas armas?
No entanto, no fundo, não estava seguro. Tinha o pressentimento de que as coisas não estavam a sair como as tínhamos planeado e que a situação nos estava a escapar das mãos, mas naquele momento acalmei as minhas inquietações pensando que três dias são muito pouco para endireitar um pais e que provavelmente o grosseiro oficial que nos atendeu no Ministério da Defesa representava uma minoria insignificante dentro das Forças Armadas. A maioria era como aquele tenente escrupuloso que me levou a casa. Supus que em pouco tempo a ordem se estabeleceria e quando se aliviasse a tensão dos primeiros dias, me poria em contacto com alguém melhor colocado na hierarquia militar. Lamentei não me ter dirigido ao general Hurtado, não o tinha feito por respeito e também, reconheço, por orgulho, porque o correcto é que ele me procurasse e não eu a ele.
Não soube da morte do meu filho Jaime senão duas semanas depois quando nos tinha passado a euforia do triunfo, quando toda a gente andava a contar os mortos e os desaparecidos. Um domingo, apresentou-se lá em casa um soldado que em segredo contou a Blanca o que tinha visto no Ministério da Defesa e o que sabia dos corpos dinamitados.
- O doutor del Valle salvou a vida à minha mãe - disse o soldado olhando o chão, com o capacete de guerra na mão. - Por isso venho dizer-vos como o mataram.
Blanca chamou-me para eu ouvir o que dizia o soldado, mas eu neguei-me a acreditar. Disse ao homem que estava a fazer confusão, que não era Jaime, mas outra pessoa que ele tinha visto na sala das caldeiras, porque Jaime não tinha nada que fazer no Palácio Presidencial no dia da rebelião militar. Tinha a certeza de que o meu filho tinha escapado para o estrangeiro por alguma passagem da fronteira ou se tinha asilado nalguma embaixada, na hipótese de o estarem a perseguir. Por outro lado, o seu nome não aparecia em nenhuma das listas das pessoas procuradas pelas autoridades, por isso deduziu que Jaime não tinha nada que temer.
Teria que passar muito tempo, várias meses, na realidade, para eu compreender que o soldado tinha dito a verdade. Nos desvarios da solidão eu aguardava o meu filho sentado na poltrona da biblioteca, com os olhos fixos no umbral da porta, chamando-o com o pensamento, tal como chamava Clara. Tanto o chamei, que finalmente cheguei a vê-lo, mas apareceu-me coberto de sangue seco e andrajoso, arrastando rolos de arame farpado sobre o soalho encerado. Soube assim que tinha morrido como nos tinha contado o soldado. Só então comecei a falar da tirania. A minha neta Alba, por seu lado, viu desenhar-se o ditador muito antes de mim. Viu-o destacar-se entre os generais e gente da guerra. Reconheceu-o logo porque ela herdou a intuição de Clara. Era um homem rude e de aparência simples, de poucas palavras, como um camponês. Parecia modesto e poucos puderam adivinhar que algum dia o veríamos envolto numa capa de imperador, com os braços no ar, para acalmar as multidões carregadas em camiões para o vitoriar, com os augustos bigodes tremendo de vaidade, inaugurando o monumento Às Quatro Espadas, em cujo cimo um facho eterno iluminaria os destinos da pátria, mas, onde por um erro de técnicos estrangeiros nunca se levantou chama nenhuma, mas apenas uma fumarada espessa de cozinha que ficou a pairar no céu como uma constante tempestade de outros climas.
Comecei a pensar que tinha procedido erradamente e que talvez não fosse essa a melhor solução para fazer cair o marxismo. Sentia-me cada vez mais só, porque já ninguém necessitava de mim, não tinha os meus filhos nem Clara, com a sua mania da mudez e distracção, parecia um fantasma. Até Alba se afastava cada vez mais, dia a dia. Via-a apenas em casa. Passava ao meu lado como uma rajada, com as horrorosas saias compridas de algodão enrugado e o incrível cabelo verde, como o de Rosa, ocupada em tarefas misteriosas que levava a cabo com a cumplicidade da avó. Estou certo que nas minhas costas ambas tramavam coisas secretas. A minha neta andava irritada, como Clara nos tempos do tifo, quando pôs às costas o fardo da dor alheia.
Alba teve muito pouco tempo para lamentar a morte do tio Jaime, porque as urgências dos necessitados a absorveram imediatamente, de maneira que teve que guardar a dor para a sofrer mais tarde. Só voltou a ver Miguel dois meses depois do golpe militar e chegou a pensar que também tinha morrido. No entanto, não o procurou, porque tinha instruções dele muito precisas nesse sentido e além disso soube que o citavam nas listas dos que se deviam apresentar às autoridades. Isso deu-lhe esperança. «Enquanto o procurarem, está com vida», deduziu. Atormentava-se com a ideia de que o podiam apanhar vivo e invocava a avó para lhe pedir que isso não acontecesse. «Prefiro mil vezes vê-lo morto, avó», suplicava. Sabia o que se estava a passar no pais, por isso andava dia e noite com o estômago oprimido, tremiam-lhe as mãos, e quando se inteirava da sorte de algum prisioneiro, cobria-se de inchaços dos pés à cabeça, como um infectado pela peste. Mas não podia falar disso a ninguém, nem sequer ao avô, porque as pessoas preferiam não o saber.
Depois daquela terrível terça-feira, o mundo mudou de forma brutal para Alba. Teve que habituar os sentidos para continuar a viver. Teve que se acostumar à ideia de que não tornaria a ver os que mais tinha amado, o tio Jaime, Miguel e muitos outros. Culpava o avô pelo que se tinha passado, mas logo, ao vê-lo encolhido na sua poltrona chamando Clara e o filho num murmúrio interminável, voltava-lhe todo o amor pelo velho e corria a abraçá-lo, a passar-lhe os dedos pela cabeleira branca, a consolá-lo. Alba sentia que as coisas eram de vidro, frágeis como suspiros, e que a metralha e as bombas daquela terça-feira inesquecível, tinham destroçado uma boa parte do que conhecia e que o resto tinha ficado estraçalhado e salpicado de sangue. Com o decorrer dos dias, das semanas e dos meses, o que a principio parecia ter-se preservado da destruição, também começou a mostrar sinais de deterioração. Notou que os amigos e parentes a evitavam, que alguns atravessavam a rua para não a cumprimentar ou viravam a cara quando se aproximava. Pensou que corria o boato de que ajudava os perseguidos.
Assim era. Desde os primeiros dias a maior urgência foi esconder os que corriam perigo de morte. A princípio isso pareceu a Alba uma ocupação quase divertida, que lhe permitia manter o pensamento noutras coisas e não pensar em Miguel, mas logo verificou que não era brincadeira nenhuma. Os éditos avisavam os cidadãos de que deviam denunciar os marxistas e entregar os fugitivos, ou então seriam considerados traidores à pátria e julgados como tal. Alba recuperou milagrosamente o automóvel de Jaime, que se salvara do bombardeamento e esteve uma semana estacionado na mesma praça onde ele o deixara, até que soube disso e o foi buscar. Pintou-lhe dois grandes girassóis nas portas, de uma amarelo forte, para se distinguir dos outros carros e facilitar assim a sua nova tarefa. Teve que fixar a morada de todas as embaixadas, os turnos de carabineiros que as vigiavam, a altura dos muros, a largura das portas. O aviso de que havia alguém para dar asilo chegava-lhe de surpresa, frequentemente através de um desconhecido que a abordava na rua e que ela pensava ser enviado por Miguel. Ia ao lugar do encontro em pleno dia e quando via alguém a fazer sinais, advertido pelas flores amarelas pintadas no automóvel, parava um pouco para que subisse a toda a pressa. Pelo caminho não falavam, porque ela preferia não saber nem o seu nome. Às vezes tinha que passar todo o dia com ele, inclusivamente escondê-lo por uma ou duas noites, antes de encontrar o momento adequado para o introduzir numa embaixada acessível, saltando um muro nas costas dos guardas. Esse sistema resultava mais rápido que os tramites com embaixadores timoratos das democracias estrangeiras. Nunca mais voltava a saber do exilado, mas guardava para sempre o seu agradecimento comovido, e quando tudo terminava, respirava aliviada porque dessa vez tinha-se salvo. Certas ocasiões teve que o fazer com mulheres que não queriam afastar-se dos filhos, e apesar de Alba lhos prometer fazer chegar a criança pela porta principal, porque nem o mais tímido embaixador lhe recusaria isso, as mães negavam-se a deixá-los para trás, de maneira que no fim tinham também que passar as crianças por cima dos muros ou descê-los pelos gradeamentos. Em breve todas as embaixadas estavam eriçadas de arame farpado e metralhadoras e tornou-se impossível continuar a tomá-las de assalto, mas manteve-se ocupada por outras necessidades.
Foi Amanda quem a pôs em contacto com os padres. As duas amigas juntavam-se para falar em segredo de Miguel, a quem nenhuma voltara a ver, e para recordar Jaime com uma nostalgia sem lágrimas, porque não havia uma prova oficial da sua morte e o desejo que ambas tinham de o tornar a ver era mais forte que o relato do soldado. Amanda tinha voltado a fumar por necessidade, tremiam-lhe muito as mãos e tinha o olhar vago. Por vezes tinha as pupilas dilatadas e movia-se pesadamente, mas continuava a trabalhar no hospital. Contou-lhe que muitas vezes atendia gente que chegava desmaiada de fome.
- As famílias dos presos, dos desaparecidos e dos mortos não têm nada para comer. Os desempregados também não. Apenas um prato de comida de prisão de dois em dois dias. As crianças dormem na escola, estão subnutridas.
Acrescentou que o copo de leite e as bolachas que os alunos recebiam antes todos os dias, tinham sido suprimidos e que as mães calavam a fome dos filhos com água chalada.
- Os únicos que fazem alguma coisa para ajudar são os padres - explicou Amanda. - As pessoas não querem saber a verdade. A Igreja organizou refeitórios para dar um prato diário de comida seis vezes por semana, aos menores de sete anos. Claro que não é suficiente. Por cada criança que come uma vez por dia um prato de lentilhas ou de batatas, há cinco que ficam de fora a olhar, porque não chega para todos.
Alba compreendeu que tinham retrocedido aos tempos antigos, quando a avó Clara ia ao Bairro da Misericórdia substituir a justiça com a caridade. Só que gora a caridade era mal vista. Verificou que quando percorria as casas das pessoas amigas para pedir um pacote de arroz ou um púcaro de leite em pó, não se atreviam a dizer-lhe que não a primeira vez, mas depressa a evitavam. A principio, Blanca ajudou-a. Alba não teve dificuldade em obter a chave da despensa da mãe, com o argumento de que não havia necessidade de açambarcar farinha vulgar e feijões de pobre, se se podia comer santola do mar Báltico e chocolate suíço, com o que pôde abastecer os refeitórios dos padres por um tempo que, de qualquer modo, lhe pareceu muito curto. Um dia levou a mãe a um dos refeitórios. Ao ver a grande mesa de madeira, onde uma fila dupla de crianças com os olhos suplicantes esperava que lhe dessem a ração, Blanca pôs-se a chorar e caiu de cama com enxaqueca por dois dias. Tinha continuado a lamentar-se se a filha não a obrigasse a vestir-se, a esquecer-se de si mesma e a conseguir ajuda, mesmo que fosse a roubar o avô tirando do orçamento familiar. O senador Trueba não quis ouvir falar do assunto, tal como faziam as pessoas da sua classe e negou a existência da fome com a mesma teimosia com que negava a dos presos e a dos torturados, de maneira que Alba não pôde contar com ele e mais tarde, quando nem pôde contar com a mãe, teve que recorrer a métodos mais drásticos. O mais longe que o avô chegava era ao Clube. Não andava pelo centro e muito menos se aproximava da periferia da cidade ou das povoações dos subúrbios. Não lhe custou nada a crer que as misérias que a neta contava eram patranhas dos marxistas.
- Padres comunistas! - Era a última coisa que me faltava ouvir.
Mas quando começaram a chegar a toda a hora as crianças e as mulheres a pedir às portas das casas, não deu ordem de fechar o portão gradeado e as persianas para não os ver, como faziam os outros, mas pelo contrário aumentou a mensalidade a Blanca e disse que tivessem sempre alguma comida quente para lhes dar.
- É uma situação de momento - assegurou. - Logo que os militares puserem ordem no caos em que o marxismo deixou o pais, o problema está resolvido.
Os jornais disseram que os mendigos da rua, que não se viam desde há tantos anos, eram mandados pelo comunismo internacional para desprestigiar a Junta Militar e sabotar a ordem e o progresso. Puseram vedações para tapar os bairros de lata, ocultando-os dos olhos dos turistas e dos que não queriam ver. Numa noite surgiram como por encanto jardins aparados e maciços de flores nas avenidas, plantados pelos desempregados para criar a fantasia de uma primavera pacífica. Pintaram de branco as paredes, apagando os murais de pombas panfletárias e retirando da vista para sempre os cartazes políticos. Qualquer tentativa de escrever mensagens políticas na via pública era punida com uma rajada de metralhadora no local. As ruas limpas, ordenadas e silenciosas, abriram ao comércio. Em pouco tempo desapareceram as crianças mendigas e Alba notou que não havia cães vadios nem caixotes de lixo. O mercado negro terminou no momento em que bombardearam o Palácio Presidencial, porque os especuladores foram ameaçados com a lei marcial e fuzilamento. Nas lojas começaram a vender-se coisas que não se conheciam nem de nome e outras que antes só conseguiam os ricos através do contrabando. A cidade nunca tinha estado tão bonita. Nunca a alta burguesia tinha sido mais feliz: podia comprar uisque sem taxas e automóveis a crédito.
Na euforia patriótica dos primeiros dias, as mulheres ofereciam as suas jóias nos quartéis, para a reconstrução nacional, até as alianças de casamento, que eram substituídas por anéis de cobre com o emblema da pátria. Blanca teve de esconder a meia de lã com as jóias que Clara lhe tinha dado, para que o senador Trueba não as entregasse às autoridades. Viu-se nascer uma nova e soberba classe social. Senhoras muito importantes, vestidas com roupas de outros lugares, exóticas e brilhantes como lanternas nocturnas, pavoneavam-se nos centros de diversão de braço dado com os novos e soberbos economistas. Surgiu uma casta de militares que ocupou rapidamente os postos chave. As famílias, que antes tinham considerado uma desgraça ter um militar entre os seus membros, moviam influências para meter os filhos na Academia Militar e ofereciam as filhas aos soldados. O pais encheu-se de fardas, de máquinas bélicas, de bandeiras, hinos e desfiles, porque os militares conheciam a necessidade que o povo tinha dos seus próprios símbolos e cultos. O senador Trueba, que por princípio detestava essas coisas, compreendeu o que os amigos do Clube tinham querido dizer, quando asseguravam que o marxismo não tinha nem a menor oportunidade na América Latina, porque não contemplava o lado mágico das coisas. « Pão, circo e algo que respeitar é tudo o que necessitam», concluiu o Senador, lamentando no seu intimo que faltasse o pão.
Orquestrou-se uma campanha destinada a limpar da face da terra o bom nome do ex-Presidente, com a esperança de que o povo deixasse de chorar por ele. Abriram a sua casa e convidaram o público a visitar o que chamaram «o palácio do ditador». Podia olhar-se para dentro dos seus armários e ficar pasmado com o número e qualidade dos seus casacos de camurça, registar os caixotes, vasculhar a despensa, para ver o rum cubano e o saco de açúcar que guardava. Circularam fotografias grosseiramente truncadas que o mostravam vestido de Baco, com uma grinalda de uvas na cabeça, refastelando-se com matronas opulentas e atletas do seu próprio sexo, numa orgia perpétua que ninguém, nem o próprio senador Trueba, acreditou serem autênticas. «Isto é demasiado, estão a exagerar», resmungou quando soube.
De uma penada, os militares mudaram a história universal, apagando os episódios, as ideologias e as personagens que o regime desaprovava. Ajeitaram os mapas, porque não havia nenhuma razão para pôr o norte para cima, tão longe da pátria benemérita, se se podia pôr em baixo onde ela ficava mais favorecida e, de caminho, pintaram com azul da Prússia vastas margens de águas territoriais até aos limites da ásia e da áfrica e apoderaram-se de terras longínquas nos livros de geografia, traçando as fronteiras com toda a impunidade, até que os países irmãos perderam a paciência, deram um grito nas Nações Unidas e ameaçaram cair-lhes em cima com tanques de guerra e aviões de caça. A censura, que a principio só abarcou os meios de comunicação, logo se estendeu aos textos escolares, às letras das canções, aos argumentos dos filmes e às conversas privadas. Havia palavras proibidas pelos militares, como a palavra «companheiro», e outras que não se diziam por precaução, apesar de nenhuma facção as ter eliminado do dicionário, como liberdade, justiça e sindicato. Alba perguntou de onde tinham saído tantos fascistas de um dia para o outro, porque na larga trajectória democrática do seu pais nunca os tinha notado, excepto alguns exaltados durante a guerra, que por macaquice vestiam camisas negras e desfilavam com o braço no ar, no meio das gargalhadas e das assobiadelas dos transeuntes, sem que tivessem algum papel importante na vida nacional. Nem se explicava a atitude das Forças Armadas, que provinham na sua maioria da classe operária e que historicamente tinham estado mais perto da esquerda do que da extrema direita. Não compreendeu o estado de guerra interna nem viu que a guerra é a obra de arte dos militares, o culminar dos seus treinos, a jóia dourada da sua profissão. Não são feitos para brilhar na paz. O golpe deu-lhes a oportunidade de pôr em prática o que tinham aprendido nos quartéis, a obediência cega, o manejo das armas e outras artes que os soldados podem dominar quando acalmam os escrúpulos do coração.
Alba abandonou os estudos, porque a Faculdade de Filosofia, como muitas outras que abrem as portas do pensamento, foi fechada. Também não continuou com a música porque o violoncelo lhe pareceu uma frivolidade nessas circunstancias. Muitos professores foram despedidos, presos ou desapareceram, de acordo com uma lista negra que a polícia política detinha. Mataram Sebastián Gómez na primeira limpeza, denunciado pelos próprios alunos. A Universidade encheu-se de espiões.
A alta burguesia e a direita económica, que tinham propiciado o golpe militar, estavam eufóricos. No começo assustaram-se um pouco ao ver as consequências da sua acção, porque nunca tinham vivido em ditadura e não sabiam o que era. Pensaram que a perda da democracia ia ser transitória e que se podia viver por algum tempo sem liberdades individuais nem colectivas, desde que o regime respeitasse a liberdade de acção. Também não lhes importou o desprestígio internacional, que os pôs na mesma categoria de outras tiranias regionais, porque lhes pareceu um preço barato para derrubar o marxismo. Quando chegavam capitais estrangeiros para investir no pais, atribuíram isso, naturalmente, à estabilidade do novo regime passando por alto o facto de, por cada peso que entrava, levarem dois de lucro. Quando se foram fechando, a curto prazo, quase todas as indústrias nacionais e os comerciantes começaram a falir, derrotados pela importação maciça de bens de consumo, disseram que os fogões brasileiros, os tecidos da Formosa e as motocicletas japonesas eram muito melhores que qualquer outra coisa que se tivesse algum dia feito no pais. Só quando devolveram as concessões das minas às companhias norte-americanas, depois de três anos de nacionali-zação, é que algumas vozes disseram que isso era o mesmo que oferecer a pátria embrulhada em celofane. Mas quando começaram a entregar aos antigos donos as terras que a reforma agrária tinha dividido, tranquilizaram-se: tinham voltado os bons tempos. Viram que só uma ditadura militar podia actuar com o peso da força e sem ter que dar contas a ninguém para lhes garantir os privilégios, por isso deixaram de falar de política e aceitaram a ideia de obter o poder económico, enquanto os militares governavam. O único trabalho da direita foi assessorá-los na elaboração dos novos decretos e das novas leis. Em poucos dias acabaram com os sindicatos, os dirigentes operários foram presos ou mortos, os partidos políticos declarados indefinidamente suspensos, e todas as organizações de trabalhadores e estudantes, e até os colégios oficiais, desmantelados. Era proibido reunir-se em grupo. O único sítio onde as pessoas se podiam reunir era na igreja, de modo que em pouco tempo a religião tornou-se moda e os padres e as freiras tiveram que pôr de parte os trabalhos espirituais para socorrer as necessidades terrenas daquele rebanho perdido. O governo e os empresários começaram a vê-los como inimigos potenciais e alguns sonharam resolver o problema assassinando o cardeal, uma vez que o Papa, em Roma, se negou a tirá-lo do seu lugar e mandá-lo para um asilo de frades alienados.
Uma grande parte da classe média alegrou-se com o golpe militar, porque significava o voltar da ordem, da pureza dos costumes, das saias nas mulheres e do cabelo curto nos homens, mas logo começou a sofrer o tormento dos preços altos e da falta de trabalho. O salário não chegava para comer. Em todas as famílias havia alguém a lamentar e já não podiam dizer, como no principio, que se estava preso, morto ou exilado, era porque se o merecia. Também não puderam continuar a negar a tortura.
Enquanto floresciam os negócios de luxo, as financiadoras milagrosas, os restaurantes exóticos e as casas importadoras, às portas das fábricas os desempregados faziam bicha à espera da oportunidade de trabalhar por um salário mínimo. A mão-de-obra desceu a níveis de escravidão e os patrões puderam, pela primeira vez desde há muitas décadas, despedir os trabalhadores à vontade, sem lhes pagar indemnização e prendê-los pelo mais pequeno motivo.
Nos primeiros meses, o senador Trueba participou do oportunismo dos da sua classe. Estava convencido de que era necessário um período de ditadura para o pais voltar ao redil do qual nunca devia ter saído. Foi um dos primeiros latifundiários a recuperar a sua propriedade. Devolveram-lhe Las Tres Marias em ruínas, mas inteira, até ao último metro quadrado. Há quase dois anos que estava à espera desse momento, ruminando a raiva. Sem pensar duas vezes, foi ao campo com meia dúzia de rufias contratados e pôde vingar-se a seu bel-prazer dos camponeses que se tinham atrevido a desafiá-lo e a tirar-lhe o que era seu. Chegaram lá numa manhã luminosa de domingo, pouco antes do Natal. Entraram na propriedade com um alvoroço de piratas. Os rufias meteram-se por todos os lados, arreando nas pessoas aos gritos, com golpes e pontapés, juntaram pessoas e animais no pátio e regaram imediatamente com gasolina as casinhas de tijolos, que antes tinham sido o orgulho de Trueba, e pegaram fogo a tudo o que elas tinham. Mataram os animais a tiro. Queimaram os arados, os galinheiros, as bicicletas e até os berços dos recém-nascidos, numa confusão dos diabos que por pouco matava o velho Trueba de alegria. Despediu todos os caseiros com o aviso de que se voltasse a vê-los à volta da propriedade, iam sofrer a mesma sorte que os animais. Viu-os partir mais pobres do que nunca, numa grande e triste procissão, levando as crianças, os velhos, os poucos cães que sobreviveram ao tiroteio, uma ou outra galinha salva do inferno, arrastando os pés pelo caminho de pó que os afastava da terra onde tinham vivido por várias gerações. No portão de Las Tres Marias havia um grupo de gente miserável esperando com olhos ansiosos. Eram outros camponeses desocupados, expulsos de outras herdades, que chegavam tão humildes como os antepassados de séculos atrás, a pedir ao patrão que lhes desse emprego na próxima colheita.
Nessa noite, Esteban Trueba deitou-se na cama de ferro que tinha sido dos pais, na velha casa senhorial onde não ia há muito tempo. Estava cansado e tinha no nariz o cheiro do incêndio e dos corpos dos animais que tiveram de queimar, para a podridão não infectar o ar. Ainda ardiam os restos das casinhas de tijolo e à sua volta tudo era destruição e morte. Mas ele sabia que podia voltar a levantar o campo, tal como o tinha feito uma vez, porque os prados estavam intactos e as suas forças também. Apesar do prazer da vingança, não conseguiu dormir. Sentia-se como um pai que castigara os filhos com demasiada severidade. Toda a noite viu os rostos dos camponeses, a quem tinha visto nascer na propriedade, afastando-se na estrada. Amaldiçoou o seu mau génio. Não dormiu o resto da semana e, quando conseguiu fazê-lo, sonhou com Rosa. Resolveu não contar a ninguém o que tinha feito e jurou que Las Tres Marias tornaria a ser a herdade modelo que tinha sido. Fez constar que estava disposto a aceitar os caseiros de volta, sob certas condições, evidentemente, mas nenhum regressou. Tinham-se espalha-do pelo campo, pelos cerros, pela costa, alguns iam a pé para as minas, outros para as ilhas do Sul, procurando cada um o pão para a família com qualquer ofício. Enojado o patrão regressou à capital sentindo-se mais velho do que nunca. Pesava-lhe a alma.
O Poeta agonizou na sua casa junto ao mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram-lhe o desejo de continuar a viver. A tropa revolveu-lhe a casa, as suas colecções de búzios, as suas conchas, as suas borboletas, as suas garrafas, as figuras de proa apanhadas em tantos mares, os livros, os quadros, até os seus versos, à procura de armas subversivas e comunistas escondidos, até que o seu velho coração de bardo começou a falhar. Levaram-no para a capital. Morreu quatro dias depois e as últimas palavras do homem que cantou a vida, foram: «Vão fuzilá-los! Vão fuzilá-lo i!» Nenhum dos seus amigos se pôde aproximar na hora da morte, porque estavam fora da lei, fugitivos, exilados ou mortos. A sua casa azul do cerro estava meia em ruínas, o chão queimado e os vidros partidos, não se sabia se era obra dos militares, como diziam os vizinhos, se dos vizinhos, como diziam os militares. Velaram-no ali, alguns, poucos, que se atreveram a ir e jornalistas de todas as partes do mundo que apareceram para dar a notícia do enterro. O senador Trueba era seu inimigo ideológico mas recebera-o muitas vezes em casa e sabia de cor os seus versos. Apresentou-se no velório vestido de negro rigoroso com a neta Alba. Velaram ambos junto do singelo ataúde de madeira e acompanharam-no até ao cemitério numa manhã triste. Alba levava na mão um ramo dos primeiros cravos da temporada, vermelhos como o sangue. O pequeno cortejo percorreu a pé, lentamente, o caminho do cemitério, entre duas filas de soldados que faziam cordão nas ruas.
As pessoas iam em silêncio. Mas logo alguém gritou roucamente o nome do Poeta e uma só voz saída de todas as gargantas respondeu: «Presente! Agora e sempre!» Foi como se tivessem aberto uma válvula e toda a dor, o medo e a raiva daqueles dias saísse dos peitos e rodasse pela rua e subisse em clamor terrível até às nuvens negras do céu. Outro gritou: «Companheiro Presidente!» E responderam todos num só lamento, pranto de homem: «Presente!» A pouco e pouco o funeral do Poeta transformou-se no acto simbólico de enterrar a liberdade.
Muito perto de Alba e do avô, os operadores de câmara de televisão sueca filmavam para enviar para o gelado país de Nobel a visão pavorosa das metralhadoras colocadas de ambos os lados da rua, as caras das pessoas, o ataúde coberto de flores, o grupo de mulheres silenciosas que se apinhavam às portas da morgue, a dois quarteirões do cemitério, para ler as listas dos mortos. A voz de todos elevou-se em canto e o ar encheu-se com as palavras de ordem proibidas, gritando que o povo unido jamais será vencido, fazendo frente às armas que tremiam nas mãos dos soldados. O cortejo passou diante de uma construção e os operários largando as ferramentas, tiraram os capacetes e fizeram fila, cabisbaixos. Um homem caminhava com a camisa gasta nos punhos, sem colete e com os sapatos rotos, recitando os versos mais revolucionários do Poeta, com as lágrimas caindo-lhe pelas faces. Seguia-o o olhar atónito do senador Trueba, que caminhava ao lado.
- É pena que fosse comunista - disse o Senador à neta. – Tão bom poeta e com as ideias tão confusas. Se tivesse morrido antes da rebelião militar, suponho que teria recebido uma homenagem nacional.
- Soube morrer como soube viver, avô - respondeu Alba.
Estava convencida de que morrera no devido tempo, porque nenhuma homenagem podia ter sido maior que aquele modesto desfile de uns quantos homens e mulheres que o enterraram numa campa emprestada, gritando pela última vez os seus versos de justiça e liberdade. Dois dias depois, apareceu no jornal um aviso da Junta Militar decretando luto nacional pelo Poeta e autorizando a pôr as bandeiras a meia haste nas casas particulares que o desejassem. A autorização vigorava desde o dia da sua morte até ao dia da publicação do aviso.
Do mesmo modo que não pôde sentar-se a chorar a morte do tio Jaime,
O Poeta agonizou na sua casa junto ao mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram-lhe o desejo de continuar a viver. A tropa revolveu-lhe a casa, as suas colecções de búzios, as suas conchas, as suas borboletas, as suas garrafas, as figuras de proa apanhadas em tantos mares, os livros, os quadros, até os seus versos, à procura de armas subversivas e comunistas escondidos, até que o seu velho coração de bardo começou a falhar. Levaram-no para a capital. Morreu quatro dias depois e as últimas palavras do homem que cantou a vida, foram: «Vão fuzilá-los! Vão fuzilá-lo i!» Nenhum dos seus amigos se pôde aproximar na hora da morte, porque estavam fora da lei, fugitivos, exilados ou mortos. A sua casa azul do cerro estava meia em ruínas, o chão queimado e os vidros partidos, não se sabia se era obra dos militares, como diziam os vizinhos, se dos vizinhos, como diziam os militares. Velaram-no ali, alguns, poucos, que se atreveram a ir e jornalistas de todas as partes do mundo que apareceram para dar a notícia do enterro. O senador Trueba era seu inimigo ideológico mas recebera-o muitas vezes em casa e sabia de cor os seus versos. Apresentou-se no velório vestido de negro rigoroso com a neta Alba. Velaram ambos junto do singelo ataúde de madeira e acompanharam-no até ao cemitério numa manhã triste. Alba levava na mão um ramo dos primeiros cravos da temporada, vermelhos como o sangue. O pequeno cortejo percorreu a pé, lentamente, o caminho do cemitério, entre duas filas de soldados que faziam cordão nas ruas.
As pessoas iam em silêncio. Mas logo alguém gritou roucamente o nome do Poeta e uma só voz saída de todas as gargantas respondeu: «Presente! Agora e sempre!» Foi como se tivessem aberto uma válvula e toda a dor, o medo e a raiva daqueles dias saísse dos peitos e rodasse pela rua e subisse em clamor terrível até às nuvens negras do céu. Outro gritou: «Companheiro Presidente!» E responderam todos num só lamento, pranto de homem: «Presente!» A pouco e pouco o funeral do Poeta transformou-se no acto simbólico de enterrar a liberdade.
Muito perto de Alba e do avô, os operadores de câmara de televisão sueca filmavam para enviar para o gelado país de Nobel a visão pavorosa das metralhadoras colocadas de ambos os lados da rua, as caras das pessoas, o ataúde coberto de flores, o grupo de mulheres silenciosas que se apinhavam às portas da morgue, a dois quarteirões do cemitério, para ler as listas dos mortos. A voz de todos elevou-se em canto e o ar encheu-se com as palavras de ordem proibidas, gritando que o povo unido jamais será vencido, fazendo frente às armas que tremiam nas mãos dos soldados. O cortejo passou diante de uma construção e os operários largando as ferramentas, tiraram os capacetes e fizeram fila, cabisbaixos. Um homem caminhava com a camisa gasta nos punhos, sem colete e com os sapatos rotos, recitando os versos mais revolucionários do Poeta, com as lágrimas caindo-lhe pelas faces. Seguia-o o olhar atónito do senador Trueba, que caminhava ao lado.
- É pena que fosse comunista - disse o Senador à neta. – Tão bom poeta e com as ideias tão confusas. Se tivesse morrido antes da rebelião militar, suponho que teria recebido uma homenagem nacional.
- Soube morrer como soube viver, avô - respondeu Alba.
Estava convencida de que morrera no devido tempo, porque nenhuma homenagem podia ter sido maior que aquele modesto desfile de uns quantos homens e mulheres que o enterraram numa campa emprestada, gritando pela última vez os seus versos de justiça e liberdade. Dois dias depois, apareceu no jornal um aviso da Junta Militar decretando luto nacional pelo Poeta e autorizando a pôr as bandeiras a meia haste nas casas particulares que o desejassem. A autorização vigorava desde o dia da sua morte até ao dia da publicação do aviso.
Do mesmo modo que não pôde sentar-se a chorar a morte do tio Jaime, Alba também não pôde perder a cabeça a pensar em Miguel ou a lamentar o Poeta. Estava absorvida na sua tarefa de procurar os desaparecidos, consolar os torturados que regressavam com as costas em carne viva e os olhos transtornados e procurar alimentos para os refeitórios dos padres. No entanto, no silêncio da noite, quando a cidade perdia a sua normalidade utilitária e a sua paz de opereta, ela sentia-se assustada por pensamentos atormentados que tinha acalmado durante o dia. A essa hora só circulavam na rua os furgões cheios de cadáveres e de presos e os automóveis da polícia, como lobos perdidos, ululando na escuridão do toque de recolher. Alba tremia na cama. Apareciam os fantasmas desgarrados de tantos mortos desconhecidos, ouvia a grande casa respirando como um arquejo de velha, apurava o ouvido e sentia nos ossos os ruídos terríveis: uma travagem longínqua, um bater de porta, tiroteios, o barulho das botas, um grito surdo. A seguir vinha o longo silêncio que durava até ao amanhecer, quando a cidade voltava a viver e o sol parecia apagar os terrores da noite. Não era a única pessoa acordada em casa. Muitas vezes encontrava o avô em camisa de dormir e pantufas, mais velho e mais triste que de dia, aquecendo-se com uma chávena de caldo e resmungando blasfémias de flibusteiro, porque lhe doíam os ossos e a alma. Também a mãe mexia na cozinha ou passava como uma aparição da meia-noite pelos quartos vazios.
Assim passaram os meses e tornou-se evidente para todos, inclusiva-mente para o senador Trueba, que os militares tinham tomado o poder para ficar com ele e não para entregar o governo aos políticos de direita que tinham propiciado o golpe. Era uma raça à parte, irmãos entre si, que falavam um idioma diferente do dos civis e com quem o diálogo era como que uma conversa de surdos, porque a menor dissidência era considerada traição no seu esquemático código de honra. Trueba viu que tinham planos messiânicos que não incluíam os políticos. Um dia, comentou a situação com Blanca e Alba. Lamentou que a acção dos militares, cujo propósito era acabar com
o perigo de uma ditadura marxista, tivessem condenado o pais a uma ditadura mais severa e, pelos vistos, destinada a durar um século. Pela primeira vez na sua vida, o senador Trueba admitiu que se tinha equivocado. Afundado na poltrona, como um velho acabado, viram-no chorar em silêncio. Não chorava pela perda do poder. Chorava pela pátria.
Então, Blanca ajoelhou-se a seu lado, pegou-lhe na mão e confessou que tinha Pedro Tercero Garcia a viver como um anacoreta, escondido num dos quartos abandonados que mandara construir para Clara, no tempo dos espíritos. No dia seguinte ao golpe tinham-se publicado listas de pessoas que deviam apresentar-se às autoridades. O nome de Pedro Tercero Garcia estava entre elas. Alguns, que continuavam a pensar que naquele país nunca se passava nada, foram pelos seus próprios pés entregar-se ao Ministério da Defesa e pagaram-no com a vida. Mas Pedro Tercero teve primeiro que os outros o pressentimento da ferocidade do novo regime, talvez porque durante aqueles três anos tivesse aprendido a conhecer as Forças Armadas e não acreditava na história de serem diferentes das de outros lados. Nessa mesma noite, durante o toque de recolher, arrastou-se até à grande casa da esquina e chamou à janela de Blanca. Quando ela assomou, com a vista turvada pela enxaqueca, não o reconheceu, porque tinha cortado a barba e trazia óculos.
- Mataram o Presidente - disse Pedro Tercero.
Ela escondeu-o nos quartos vazios. Arranjou um refúgio de emergência, sem suspeitar que teria que o manter oculto durante vários meses, enquanto os soldados passavam o pais a pente fino à sua procura.
Blanca pensou que ninguém se lembraria de que Pedro Tercero Garcia estava em casa do senador Trueba no próprio momento em que este escutava de pé o Te Deum solene na catedral. Para Blanca foi o período mais feliz da sua vida. Para ele, no entanto, as horas passavam-se com a mesma lentidão como se estivesse preso. Passava o dia entre quatro paredes, com a porta fechada à chave, para que ninguém tomasse a iniciativa de entrar para limpar e a janela com as persianas e as cortinas corridas. Não entrava a luz do dia, mas podia adivinhá-la pela mudança ténue das frinchas da persiana. De noite abria a janela de par em par, para arejar o quarto - onde tinha de ter um balde tapado para fazer as suas necessidades -, e para respirar a plenos pulmões o ar da liberdade. Ocupava o tempo a ler livros de Jaime, que Blanca lhe ia levando às escondidas, ouvindo os ruídos da rua, os sussurros do rádio ligado no volume mais baixo. Blanca conseguiu-lhe uma guitarra em que pôs trapos de lã debaixo das cordas, para ninguém o ouvir compor em surdina as suas canções de viúvas, de órfãos, de prisioneiros e de desaparecidos. Tratou de organizar um horário sistemático para preencher o dia. Fazia ginástica, lia, estudava inglês, dormia a sesta, escrevia música e tornava a fazer ginástica, mas com tudo isso sobravam-lhe intermináveis horas de ócio, até que finalmente ouvia a chave na fechadura da porta e via entrar Blanca, que lhe levava os jornais, a comida, água limpa para se lavar. Faziam amor com desespero, inventando novas fórmulas proibidas que o medo e a paixão transformavam em alucinadas viagens às estrelas. Blanca já se tinha resignado à castidade, à idade e aos seus variados achaques, mas o sobressalto do amor deu-lhe uma nova juventude. Acentuou-se-lhe a luz da pele, o ritmo do andar e a cadência da voz. Sorria para dentro e andava como que adormecida. Nunca tinha sido tão formosa. Até o pai deu conta disso atribuindo-o à paz da abundância. «Desde que Blanca não tem que ir para a bicha, parece mais nova.» Alba também reparou. Observara a mãe e o seu estranho sonambulismo parecia-lhe suspeito, assim como a sua nova mania de levar comida para o quarto. Em mais do que uma ocasião teve a ideia de a espiar de noite, mas vencia-a o cansaço das suas múltiplas ocupações de auxílio e quando tinha insónias, tinha medo de se aventurar pelos quartos vazios onde sussurravam os fantasmas.
Pedro Tercero enfraqueceu e perdeu o bom humor e a doçura que o tinham caracterizado até então. Aborrecia-se, amaldiçoava a sua prisão voluntária e bramava de impaciência por saber notícias dos amigos. Só a presença de Blanca o apaziguava. Quando ela entrava no quarto, abraçava-a como um alienado, para acalmar os terrores do dia e o tédio das semanas. Começou a obcecá-lo a ideia de que era traidor e cobarde, por não ter compartilhado a sorte de tantos outros e que o mais honroso seria entregar-se e enfrentar o seu destino. Blanca procurava dissuadi-lo com os seus melhores argumentos, mas ele parecia não a ouvir. Tentava retê-lo com a força do amor recuperado, dava-lhe comida na boca, dava-lhe banho esfregando-o com um pano húmido e punha-lhe pó de talco como a uma criança, cortava-lhe o cabelo e as unhas, barbeava-o. No fim, acabou por ter de lhe pôr comprimidos tranquilizantes na comida e soporíferos na água, para o fazer cair num sono profundo e tormentoso, do qual despertava com boca seca e o coração mais triste. Em poucos meses, Blanca viu que não podia tê-lo prisioneiro indefinidamente e abandonou os planos de lhe diminuir o espirito para o tornar o amante perpétuo. Compreendeu que estava a morrer em vida porque para ele a liberdade era mais importante do que o amor, e que não havia p lulas milagrosas capazes de o fazer mudar de atitude.
- Ajude-me, papá! - suplicou Blanca ao senador Trueba. - Tenho de fazê-lo sair do país.
O velho ficou paralisado pelo espanto e compreendeu quanto estava gasto, ao procurar a raiva e o ódio e não os poder encontrar em nenhum lado. Pensou no camponês que tinha partilhado um amor de meio século com a filha e não pôde descobrir nenhuma razão para o detestar, nem seque o seu poncho, a sua barba socialista, a sua tenacidade ou as suas malditas galinhas perseguidoras de raposos.
- Caramba! Temos de procurar-lhe asilo, porque se o encontram nesta casa, fodem-nos a todos - foi a única coisa que lhe ocorreu dizer.
Blanca deitou-lhe os braços ao pescoço e cobriu-o de beijos, chorando como uma menina. Era a primeira carícia espontânea que fazia ao pai desde a mais remota infância.
- Eu posso metê-lo numa embaixada - disse Alba. - Mas temos de esperar o momento propício e terá de saltar um muro.
- Não será necessário, filhinha - respondeu o senador Trueba. - Ainda tenho amigos influentes neste país.
Quarenta e oito horas depois, abriu-se a porta do quarto de Pedro Tercero Garcia, mas em vez de Blanca apareceu o senador Trueba no umbral. O fugitivo pensou que tinha chegado finalmente a sua hora e, de certo modo, alegrou-se.
- Venho tirá-lo daqui - disse Trueba.
- Porquê? - perguntou Pedro Tercero.
- Porque Blanca me pediu - respondeu o outro.
- Vá para o caralho - balbuciou Pedro Tercero.
- Bom, para lá vamos. Você vem comigo.
Os dois sorriram simultaneamente. No pátio da casa, o carro prateado de um embaixador nórdico estava à espera. Meteram Pedro Tercero na bagageira do veículo, encolhido como um fardo, cobriram-no com sacos do mercado cheios de hortaliças. Nos assentos instalaram-se Blanca, Alba, o senador Trueba e o seu amigo embaixador. O motorista levou-os à Nunciatura Apostólica, passando em frente de uma barreira de carabineiros, sem que ninguém os detivesse. No portão da Nunciatura havia guarda reforçada, mas ao reconhecer o senador Trueba e ao ver a placa diplomática do automóvel deixaram-nos passar com uma saudação. Detrás do portão, a salvo na sede do Vaticano, libertaram Pedro Tercero, tirando-o de baixo de uma montanha de folhas de alface e de tomates rebentados. Levaram-no ao gabinete do Núncio, que o esperava vestido com a sotaina episcopal e com um salvo-conduto acabado de passar, para o mandar para o estrangeiro com Blanca, que tinha decidido viver no exílio o amor adiado desde a meninice. O Núncio deu-lhes a bênção. Era um admirador de Pedro Tercero Garcia e tinha todos os seus discos.
Enquanto o sacerdote e o embaixador nórdico discutiam sobre a situação internacional, a família despedia-se. Blanca e Alba choravam de angústia. Nunca se tinham separado. Esteban Trueba abraçou apertadamente a filha, sem lágrimas, mas com a boca apertada, a tremer, esforçando-se por conter os soluços.
- Não fui um bom pai para si, filha - disse. - É possível perdoar-me e esquecer o passado?
- Gosto muito de si, papá! - chorou Blanca, deitando-lhe os braços ao pescoço, abraçando-o desesperadamente, cobrindo-o de beijos.
Depois, o velho virou-se para Pedro Tercero e olhou-o nos olhos. Estendeu-lhe a mão, mas não conseguiu apertar a do outro, porque lhe faltavam alguns dedos. Então abriu os braços e os dois homens, num nó apertado, despediram-se, livres por fim dos ódios e dos rancores que durante tantos anos lhes tinham manchado a existência.
- Cuidarei da sua filha e tentarei fazê-la feliz, senhor - disse Pedro Tercero Garcia com a voz quebrada.
- Não duvido. Vão em paz, meus filhos - murmurou o velho.
Sabia que não tornaria a vê-los.
O senador Trueba ficou sozinho em casa com a neta e alguns empregados. Pelo menos assim pensava. Mas Alba resolvera adoptar a ideia da mãe e usava a parte abandonada da casa para esconder gente por uma ou duas noites, até encontrar outro lugar mais seguro ou a forma de tirá-la do país. Ajudava os que viviam na sombra, fugindo durante o dia, misturados com o bulício da cidade, mas que ao cair da noite deviam estar ocultos, de cada vez num sítio diferente. As horas mais perigosas eram durante o toque de recolher, quando os fugitivos não podiam sair à rua e a policia os podia caçar à vontade. Alba pensou que a casa do avô era o último sítio que vasculhariam. Pouco a pouco, transformou os quartos vazios num labirinto de refúgios secretos onde escondia os protegidos, por vezes, famílias completas. O senador Trueba só ocupava a biblioteca, a casa de banho e o seu quarto. Vivia ali rodeado pelos seus móveis de acaju, as suas vitrinas vitorianas e as alcatifas persas. Mesmo para um homem tão pouco propenso aos impulsos do sentimento, aquela mansão sombria era inquietante: parecia ter um monstro oculto. Trueba não compreendia a causa da sua mágoa, porque sabia que os ruídos estranhos que os criados diziam ouvir, provinham de Clara, que vagueava pela casa na companhia dos espíritos amigos. Tinha surpreendido muitas vezes a mulher deslizando pelos salões com a sua túnica branca e o seu riso de rapariga. Fingia não a ver, ficava imóvel e até deixava de respirar, para não a assustar. Se fechava os olhos fazendo-se adormecido, podia sentir o roçar suave dos seus dedos na testa, a sua respiração fresca passar como um sopro, o roçar do seu cabelo ao alcance da mão. Não tinha motivo para suspeitar de algo anormal, no entanto fazia por não se aventurar na região encantada que era o reino da mulher e o mais longe onde ia era a zona neutra da cozinha. A antiga cozinheira tinha-se ido embora, porque num tiroteio tinham-lhe morto por engano o marido e o seu filho único, que estava numa aldeia do Sul, fora pendurado num poste com as tripas enroladas ao pescoço, como vingança do povo por ter cumprido ordens dos superiores. A pobre mulher perdeu a razão e em pouco tempo Trueba perdeu a paciência, farto de encontrar na comida os cabelos que ela arrancava no seu lamento ininterrupto. Por essa altura, Alba estreou-se nas panelas, valendo-lhe um livro de receitas, mas apesar da sua boa vontade, Trueba acabou por jantar quase todas as noites no Clube, para ter uma refeição decente pelo menos uma vez por dia. Isso deu a Alba maior liberdade para o tráfego de fugitivos e maior segurança para meter e tirar a gente de casa antes do toque de recolher, sem o avô suspeitar.
Um dia apareceu Miguel. Ela estava a chegar a casa, quando ele saiu ao seu encontro. Tinha estado à espera dela escondido nas moitas do jardim. Pintara o cabelo de amarelo pálido e vestia um fato azul assertoado. Parecia um vulgar empregado de banco, mas Alba reconheceu-o logo e não pôde calar um grito de júbilo que lhe subiu das entranhas. Abraçaram-se no jardim, à vista dos transeuntes e de quem quis ver, até que caíram em si e compreenderam o perigo. Alba levou-o para dentro de casa, para o seu quarto. Caíram na cama num entrelaçado de braços e pernas, chamando um ao outro os nomes secretos que usavam nos tempos da cave, amaram-se com desespero, até que sentiram a vida a escapar-se-lhes e a alma a rebentar, ficando quietos, a ouvir as estrepitosas batidas dos seus corações, até se acalmarem um pouco. Alba olhou-o então pela primeira vez e viu que tinha estado amando um desconhecido, que não só tinha o cabelo de um viking, mas que não tinha a barba de Miguel, nem óculos redondos de perceptor e parecia muito mais magro. «Estás horrível!», soprou-lhe ao ouvido. Miguel tinha-se transformado num dos chefes da guerrilha, cumprindo assim o destino que ele próprio traçara desde a adolescência. Para descobrir o seu paradeiro, tinham interrogado muitos homens e mulheres, o que pesava no espírito de Alba como pedra de moinho, mas para ele isso não era mais que uma parte do horror da guerra, e estava disposto a correr sorte igual quando chegasse o momento de encobrir outros. Entretanto, lutava na clandestinidade, fiel à teoria de que à violência dos ricos se havia que opor a violência do povo. Alba, que imaginara mil vezes que ele estava preso ou que o tinham morto de alguma maneira horrível, chorava de alegria, saboreando-lhe o cheiro, o corpo, a voz, o calor, o afagar das mãos calosas pelo uso das armas e o hábito de desafiar, rezando, e amaldiçoando e beijando-o e odiando-o por tanto sofrimento acumulado e desejando morrer ali mesmo, para não tornar a penar na sua ausência.
- Tinhas razão, Miguel. Passou-se tudo o que dizias que se ia passar - admitiu Alba, soluçando no seu ombro.
Contou-lhe das armas que roubara ao avô e que escondera com o tio Jaime e ofereceu-se para ir com ele buscá-las. Teria gostado de lhe dar também as que não tinham podido roubar e tinham ficado na adega da casa, mas, poucos dias depois do golpe militar, tinham ordenado à população civil que entregasse tudo o que se pudesse considerar arma, até as facas de mato e os canivetes das crianças. As pessoas deixavam os seus pacotinhos embrulha-dos em papel de jornal à porta das igrejas, porque não se atreviam a levá-los aos quartéis, mas o senador Trueba, que tinha armas de guerra, não sentiu nenhum temor porque as suas estavam destinadas a matar comunistas, como toda a gente sabia. Telefonou para um amigo, o general Hurtado e este mandou um camião do exército para as levar. Trueba levou os soldados até ao quarto das armas e ai pôde verificar, mudo de surpresa que metade das caixas estavam cheias de pedras e palha, mas compreendeu que se admitisse a falta, ia incriminar alguém da sua própria família ou a meter-se ele próprio num sarilho. Começou a dar desculpas que ninguém lhe pedia, já que os soldados não podiam saber o número de armas que ele tinha comprado. Suspeitava de Blanca e Pedro Tercero Garcia, mas as faces coradas da neta também o fizeram duvidar. Depois que os soldados levaram as caixas assinando um recibo, pegou Alba por um braço e sacudiu-a como nunca tinha feito, para confessar se tinha alguma coisa a ver com as metralhadoras e as espingardas que faltavam: «Não me perguntes o que não queres que diga, avô», respondeu Alba olhando-o nos olhos. Não voltaram a falar do assunto.
- O teu avô é um desgraçado, Alba. Alguém o vai matar como ele merece - disse Miguel.
- Vai morrer na cama. Já está muito velho - disse Alba.
- Quem com ferro mata, não pode morrer com chapeladas. Talvez eu mesmo o mate um dia.
- Não o queira Deus, porque obrigavas-me a fazer o mesmo contigo - respondeu Alba ferozmente.
Miguel explicou-lhe que não podiam ver-se durante muito tempo, talvez nunca mais. Tentou explicar-lhe o perigo que significava ser companheira de um guerrilheiro, mesmo que estivesse protegida pelo apelido do avô, mas ela chorou tanto e abraçou-o com tanta angústia, que ele teve que prometer-lhe que embora com o risco das suas vidas, procurariam a ocasião de se verem algumas vezes. Miguel então acedeu, também, ir com ela buscar as armas e munições enterradas na montanha, porque era do que mais necessitava na sua luta temerária.
- Espero que não estejam transformadas em sucata – murmurou Alba. - E que eu consiga recordar o sítio exacto, porque já lá vai um ano.
Duas semanas depois, Alba organizou um passeio com as crianças do seu refeitório popular numa camioneta que lhe emprestaram os padres da paróquia. Levava cestos com a merenda, um saco de laranjas, bolas e uma guitarra. Nenhuma das crianças notou que recolhera no caminho um homem louro. Alba conduziu a pesada camioneta, com a sua carga de crianças, pelo mesmo caminho da montanha que antes tinha percorrido com o tio Jaime. Duas patrulhas mandaram-na parar e teve de abrir os cestos da comida, mas a alegria contagiante das crianças e o inocente conteúdo das bolsas afastaram toda a suspeita dos soldados. Puderam chegar tranquilos ao sítio onde as armas estavam escondidas. As crianças brincaram ao agarra e às escondidas. Miguel fez com elas um jogo de futebol, sentou-as à sua volta e contou-lhes histórias e depois todos cantaram até enrouquecer. Rapidamente desenhou um plano do local para regressar com os companheiros pelas sombras da noite. Foi um agradável dia no campo em que por algumas horas puderam esquecer a tensão do estado de guerra e gozar o morno sol da montanha, ouvindo a gritaria das crianças que corriam entre as pedras com o estômago cheio pela primeira vez em muitos meses.
- Miguel, tenho medo - disse Alba. - Será que nunca vamos poder fazer um vida normal? Porque não vamos para o estrangeiro? Porque não escapamos agora, que ainda é tempo?
Miguel apontou as crianças e Alba compreendeu.
- Então deixa-me ir contigo! - suplicou ela, como tantas vezes o tinha feito.
- Não podemos ter uma pessoa sem treino neste momento. Muito menos uma mulher apaixonada - sorriu Miguel. - É melhor que tu continues cumprindo a tua tarefa. Há que ajudar estes pobres miúdos. até virem tempos melhores.
- Pelo menos, diz-me como te posso encontrar.
- Se a polícia te apanhar, o melhor é que não saibas nada - respondeu Miguel.
Ela estremeceu.
Nos meses seguintes, Alba começou a traficar com o mobiliário da casa.
A princípio só se atreveu a tirar as coisas dos quartos e da cave, mas quando vendeu tudo, começou a levar uma por uma as cadeiras antigas do salão, as bengalas barrocas, os cofres coloniais, os biombos trabalhados, até ao jogo de toalhas da sala de jantar. Trueba deu por isso mas não disse nada. Calculava que a neta estivesse a dar ao dinheiro um fim proibido, como julgava que tinha feito com as armas que lhe roubara, mas preferiu não o saber, para poder continuar a aguentar-se em precária estabilidade num mundo que se fazia em pedaços. Sentia que os acontecimentos escapavam ao seu controlo. Compreendeu que a única coisa que realmente lhe importava era não perder a neta, porque ela era o único laço que o unia à vida. Por isso também não disse nada quando ela foi tirando, um por um, os quadros das paredes e as tapeçarias antigas para as vender aos novos ricos. Sentia-se muito velho e muito cansado, sem forças para lutar. Já não tinha as ideias tão claras e tinha-se-lhe apagado a fronteira entre o que lhe parecia bom e o que considerava mau. De noite, quando o sono o surpreendia, tinha pesadelos com casinhas de tijolo incendiadas. Pensou que se a sua única herdeira decidia deitar a casa pela janela, ele não o podia evitar, porque lhe faltava muito pouco para estar no caixão e não precisaria mais do que da mortalha. Alba quis falar com ele, para lhe dar uma explicação, mas o velho negou-se a ouvir a história dos meninos com fome que recebiam comida de esmola com o produto da sua tapeçaria de Aubisson, ou dos desempregados que sobreviviam mais uma semana com o seu dragão chinês de pedra. Tudo isso, teimava ele, era uma monstruosa patranha do comunismo internacional, mas, no caso remoto de ser verdade, não cabia a Alba tomar essa responsabilidade, mas ao governo, ou em última instância à Igreja. No entanto, no dia em que chegou a casa e não viu o retrato de Clara pendurado à entrada, considerou que o caso estava a ultrapassar os limites da sua paciência e foi ter com a neta.
- Onde diabo está o quadro da tua avó? - bradou.
- Vendi-o ao consul inglês, avô. Disse-me que o poria num museu de Londres.
- Proíbo-te que tornes a tirar seja o que for desta casa! A partir de amanhã, terás uma conta no banco, para os teus alfinetes - respondeu.
Esteban Trueba depressa viu que Alba era a mulher mais cara da sua vida e que um harém de cortesãs não teria sido tão caro como aquela neta de cabeleira verde. Não a censurou porque tinham voltado os tempos da boa sorte e quanto mais gastava mais tinha. Desde que a actividade política estava proibida sobrava-lhe tempo para os negócios e calculou que, contra todos os prognósticos, ia morrer muito rico. Colocava o dinheiro nas novas financia-doras que proporcionavam aos investidores multiplicar o seu dinheiro, de um dia para o outro, de maneira espantosa. Descobriu que a riqueza lhe dava um imenso tédio, porque se tornava fácil ganhá-la, sem encontrar aliciante de maior e nem sequer o prodigioso talento para o esbanjamento da sua neta conseguia despejar-lhe as algibeiras. Com entusiasmo reconstruiu e melhorou Las Tres Marias, mas depois perdeu o interesse em qualquer outro empreen-dimento, porque notou que graças ao novo sistema económico não era necessário esforçar-se e produzir, uma vez que o dinheiro atraí mais dinheiro e sem nenhuma participação sua as contas bancárias engrossavam dia a dia. Assim, fazendo contas, deu um passo que nunca imaginou dar na vida: mandava todos os meses um cheque a Pedro Tercero Garcia, que vivia com Blanca, exilados no Canadá. Ambos se sentiam ali plenamente realizados na paz do amor satisfeito. Ele escrevia canções revolucionárias para os trabalha-dores, para os estudantes e, sobretudo, para a alta burguesia que as tinha adoptado como moda, traduzidas para inglês e francês, com grande êxito, apesar das galinhas e raposos serem criaturas subdesenvolvidas, sem o esplendor zoológico das águias e dos lobos desse gelado pais do Norte. Blanca, entretanto, plácida e feliz, gozava pela primeira vez na sua vida de uma saúde de ferro. Instalou um grande forno em casa para cozer os presépios de monstros que se vendiam muito bem, por se tratar de artesanato indígena, tal como previra Jean de Satigny, vinte e cinco anos atrás, quando os quis exportar. Estes negócios, os cheques do pai e a ajuda canadiana, davam o suficiente e Blanca, por precaução, escondeu no seu canto secreto a meia de lã com as inesgotáveis jóias de Clara. Esperava nunca as vender para que um dia Alba as pudesse usar.
Esteban Trueba não soube que a polícia política tinha vigiado a casa até à noite em que levaram Alba. Estava a dormir e, por casualidade, não estava ninguém escondido no labirinto dos quartos abandonados. As coronhadas na porta da casa tiraram o velho do sono com o nítido pressentimento da fatalidade. Mas Alba tinha despertado antes, quando ouviu as travagens dos automóveis, o ruído dos passos, as ordens a meia voz e começou a vestir-se porque não teve dúvidas de que chegara a sua hora.
Nesses meses, o Senador tinha aprendido que nem s quer a sua limpa trajectória de golpista era garantia contra o terror. Nunca imaginou, todavia, que veria entrar na sua casa, ao abrigo do toque de recolher, uma dúzia de homens sem uniforme, armados até aos dentes, que o tiraram da cama sem contemplações e o levaram pelo braço até ao salão, sem lhe deixar calçar as pantufas ou agasalhar-se com um xaile. Viu outros que abriam com um pontapé a porta do quarto de Alba e entravam com as metralhadoras na mão, viu a neta completamente vestida, pálida, mas serena, esperando-os de pé, viu-os dando-lhe empurrões e levando-a com armas apontadas, até ao salão onde lhe ordenaram que ficasse junto do velho sem fazer o menor movimento. Ela obedeceu sem pronunciar uma só palavra, alheia à raiva do avô e à violência dos homens que percorriam a casa partindo as portas, esvaziando os armários à coronhada, tombando os móveis, esventrando os colchões, revol-vendo o conteúdo dos roupeiros, aos pontapés nas paredes e gritando ordens, em busca de guerrilheiros escondidos, de armas clandestinas e outras provas. Tiraram as criadas das camas e fecharam-nas num quarto, vigiadas por um homem armado. Deram voltas às estantes da biblioteca e os adornos e obras de arte do Senador rolaram pelo chão com estrépito. Os livros do túnel de Jaime foram parar ao pátio, onde os empilharam, os regaram com gasolina e os queimaram numa pira infame, que foram alimentando com os livros mágicos dos baús encantados do bisavô Marcos, a edição esotérica de Nicolau, as obras de Marx em encadernação de couro e até as partituras das óperas do avô, numa fogueira escandalosa que encheu de fumo todo o bairro e que, em tempos normais, teria atraído os bombeiros.
- Entreguem todas as agendas, livros com direcções, os livros de cheques, todos os documentos pessoais que tenham! - ordenou o que parecia o chefe.
- Sou o senador Trueba! Não me reconhece, homem de Deus? - gritou o avo desesperado. - Não podem fazer-me isto! é uma agressão. Sou amigo do general Hurtado!
- Cala-te, velho de merda! Enquanto eu não te autorizar não tens o direito de abrir a boca! - respondeu o outro com brutalidade.
Obrigaram-no a entregar o conteúdo da secretária e meteram em sacos tudo o que lhes pareceu importante. Enquanto um grupo acabava de revistar a casa, outro continuava a atirar livros pela janela. No salão ficaram quatro homens sorridentes, chocarreiros, ameaçadores, que puseram os pés em cima dos móveis, beberam uisque escocês pela garrafa e partiram um a um os discos da colecção de clássicos do senador Trueba. Alba calculou que tinham passado pelo menos duas horas. Estava a tremer, não era frio, mas de medo. Pensara que aquele momento chegaria um dia, mas tivera a esperança irracional de que a influência do avô podia protegê-la. Mas ao vê-lo encolhido num sofá, pequeno e miserável como um velho enfermo, compreendeu que não podia esperar ajuda.
- Assina aqui! - ordenou o chefe a Trueba, pondo-lhe um papel diante do nariz. - É uma declaração de que entramos com uma ordem judicial, e que te mostramos as nossas identificações, que tudo está em regra, que procedemos com todo o respeito e boa educação, que não tens nenhuma queixa a fazer. Assina!
- Nunca assinarei isso! - exclamou o velho furioso.
O homem deu uma rápida meia volta e esbofeteou Alba. O golpe atirou-a ao chão. O senador Trueba ficou paralisado de surpresa e de espanto, compreendendo por fim que tinha chegado a hora da verdade, depois de quase noventa anos a viver sob a sua própria lei.
- Sabias que a tua neta é a puta de um guerrilheiro? – disse o homem.
Abatido, o senador Trueba assinou o papel. Depois aproximou-se a custo da neta e abraçou-a, acariciando-lhe o cabelo com uma ternura nele desconhecida.
- Não te preocupes, filhinha. Tudo se vai arranjar, não podem fazer-te nada, isto é um erro, fica tranquila - murmurava.
Mas o homem afastou-o brutalmente e gritou aos outros que tinham de ir. Dois brutamontes levaram Alba pelos braços, quase pelo ar. A última coisa que ela viu foi a figura patética do avô, pálido como a cera, a tremer, em camisa de dormir e descalço, que do umbral da porta lhe assegurava que no dia seguinte ia resgatá-la, falaria directamente com o general Hurtado, iria com os seus advogados buscá-la onde quer que ela estivesse, para a trazer de volta para casa.
Fizeram-na subir para uma camioneta para junto do homem que lhe tinha batido e de outro que guiava assobiando. Antes de lhe porem tiras de fita gomada nas pálpebras, olhou pela última vez a rua vazia e silenciosa, admirada de que apesar do barulho e dos livros queimados nenhum vizinho tivesse assomado para ver. Supôs que, tal como muitas vezes ela própria tinha feito, estavam a espreitar pelas frinchas das persianas e pelas pregas das cortinas, ou que tinham tapado a cabeça com almofadas para não saber. A camioneta pôs-se em marcha e ela, cega pela primeira vez, perdeu a noção do espaço e do tempo. Sentiu uma mão húmida e grande na perna, apertando, beliscando, subindo, explorando, uma respiração pesada na cara, sussur-rando vou-te aquecer puta, já vais ver, e outras vozes e risos, enquanto o veiculo dava voltas e voltas, no que lhe pareceu uma viagem interminável. Não soube onde a levavam até que ouviu o ruído de água e sentiu as rodas da camioneta passar sobre madeira. Então adivinhou o seu destino. Invocou os espíritos dos tempos da mesa pé-de-galo e do irrequieto açucareiro da avó, invocou os fantasmas capazes de desviar o rumo dos acontecimentos, mas eles pareciam tê-la abandonado, porque a camioneta seguiu o mesmo caminho. Sentiu uma travagem, ouviu um pesado portão que se abria chiando e se tornava a fechar depois de ela entrar. Então Alba entrou no pesadelo, naquele que a sua avó tinha visto na sua carta astrológica ao nascer e Luísa Mora, num momento de premonição. Os homens ajudaram-na a descer. Não conseguia dar dois passos. Recebeu o primeiro golpe nas costelas e caiu de joelhos sem poder respirar. Os dois levantaram-na pelos sovacos e arrastaram-na um longo espaço. Sentiu os pés sobre a terra e depois sobre a superfície áspera de um chão de cimento. Pararam.
- Esta é a neta do senador Trueba, coronel - ouviu dizer.
- Já vi - respondeu outra voz.
Alba reconheceu sem hesitar a voz de Esteban Garcia e compreendeu nesse momento que ele a tinha esperado desde o dia remoto em que a sentara nos joelhos, quando ela era uma criança.
A Hora da Verdade
Alba estava encolhida no escuro. Tinham-lhe tirado com um puxão a fita gomada dos olhos e no seu lugar puseram-lhe uma venda apertada. Tinha medo. Recordou o treino do tio Nicolau quando a prevenia contra o perigo de ter medo do medo, e concentrou-se para dominar o tremor do corpo e fechar os ouvidos aos ruídos pavorosos que lhe chegavam do exterior. Tentou evocar os momentos felizes com Miguel, procurando ajuda para enganar o tempo e encontrar forças para o que se ia passar, dizendo a si própria que devia suportar umas quantas horas sem que os nervos a atraiçoassem, até que o avô pudesse mover a pesada máquina do seu poder e influências, para a tirar dali. Procurou na memória um passeio com Miguel pela costa, no Outono, muito antes que o furacão dos acontecimentos virasse o mundo de pernas para o ar, na época em que as coisas ainda se chamavam por nomes conhecidos e as palavras tinham um significado único, quando povo, liberdade e companheiro eram só isso, povo, liberdade e companheiro e não ainda contra-senhas. Tentou tornar a viver esses momentos, a terra vermelha e húmida, o intenso odor das matas de pinheiros e eucaliptos, onde o tapete de folhas secas apodrecia, depois do longo e cálido Verão, e onde a luz acobreada do Sol se filtrava por entre as copas das árvores. Tentou recordar o frio, o silêncio e essa preciosa sensação de serem os donos da terra, de ter vinte anos e ter a vida à sua frente, de se amarem tranquilos, ébrios de perfume a bosque e a amor, sem passado, sem suspeitar o futuro, com a única e incrível riqueza desse instante presente, em que se olhavam, se ouviam, se beijavam, se exploravam, envolvidos pelo murmúrio do vento entre as árvores e pelo rumor próximo das ondas rebentando contra as rochas ao pé da falésia, estalando num fragor de espuma cheirosa, e eles os dois, abraçados dentro do mesmo poncho como siameses dentro da mesma pele, rindo e jurando que seria para sempre, convencidos de que eram os únicos a descobrir o amor em todo o universo.
Alba ouvia os gritos, os longos gemidos e o rádio no máximo. O bosque, Miguel, o amor, perderam-se no túnel profundo do seu terror e resignou-se a enfrentar o destino sem subterfúgios.
Calculou que tinha passado toda a noite e uma boa parte do dia seguinte, quando a porta se abriu pela primeira vez e dois homens a tiraram da cela. Levaram-na entre insultos e ameaças à presença do coronel Garcia, a quem ela podia reconhecer de olhos fechados, pelo hábito da sua maldade, mesmo antes de lhe ouvir a voz. Sentiu-lhe as mãos agarrando-lhe a cara, os dedos grossos no pescoço e nas orelhas.
- Agora vais-me dizer onde está o teu amante - disse. - Isso evitará muita chatice aos dois.
Alba respirou aliviada. Então não tinham detido Miguel!
- Quero tomar banho - respondeu Alba com a voz mais firme que pôde articular.
- Vejo que não vais cooperar, Alba. É pena – suspirou Garcia. - Os rapazes terão de cumprir o seu dever, eu não posso impedi-lo.
Houve um breve silêncio à sua volta e ela fez um esforço desmedido para recordar a mata de pinheiros e o amor de Miguel, mas as ideias enredaram-se-lhe e já não sabia se estava a sonhar, nem de onde provinha aquela pestilência de suor, de excremento, de sangue e urina e a voz do locutor de futebol que anunciava uns golos filandeses que nada tinham a ver com ela, entre outros berros próximos e precisos. Um bofetão brutal atirou-a ao chão, mãos violentas voltaram a pô-la de pé, dedos ferozes apertaram-lhe os seios triturando-lhe os mamilos e o medo venceu-a por completo. Vozes desconhecidas pressionavam-na, ouvia o nome de Miguel, mas não sabia o que lhe perguntavam e só repetia incansavelmente um não monumental enquanto lhe batiam, lhe mexiam, lhe arrancavam a blusa, e ela não podia pensar, só repetia não e não, calculando quanto podia resistir antes de esgotar as forças, sem saber que aquilo era só o começo, até que se sentiu desfalecer e os homens a deixaram tranquila, estendida no chão, por um tempo que lhe pareceu muito curto.
Ouviu a voz de Garcia e adivinhou que eram as mãos dele ajudando-a a levantar-se, levando-a até uma cadeira, ajeitando-lhe a roupa, vestindo-lhe a blusa.
- Ai, meu Deus! - disse. - Olha como te deixaram! Eu disse-te, Alba. Agora tenta acalmar-te, vou dar-te uma chávena de café.
Alba rebentou a chorar. O líquido morno reanimou-a, mas não lhe sentiu o sabor, porque o bebia misturado com sangue. Garcia segurava a chávena aproximando-a com cuidado, como um enfermeiro.
- Queres fumar?
- Quero ir tomar banho - disse ela, pronunciando cada sílaba com dificuldade através dos lábios inchados.
- Com certeza, Alba. Vão levar-te a tomar banho e depois poderás descansar. Eu sou teu amigo, compreendo perfeitamente a tua situação. Estás apaixonada e é por isso que o proteges. Sei que não tens nada a ver com a guerrilha. Mas os rapazes não acreditam em mim se digo isso, não vão conformar-se até que lhes digas onde está Miguel. Na realidade já o têm cercado, sabem onde está, vão apanhá-lo, mas querem ter a certeza de que tu não tens nada a ver com a guerrilha, estás a perceber? Se o proteges, se te negas a falar, eles vão continuar a suspeitar de ti. Diz-lhes o que querem saber e, então, eu mesmo te levo a casa. Vais dizer, não é verdade?
- Quero tomar banho - repetiu Alba.
- Vejo que és casmurra, como o teu avô. Está bem. Vais tomar banho. Vou dar-te a oportunidade de pensar um pouco – disse Garcia.
Levaram-na à casa de banho, onde teve que esquecer-se do homem que estava ao seu lado agarrando-a pelo braço. Depois levaram-na para a cela. Na pequena cela solitária da prisão tentou aclarar as ideias, mas estava atormentada pela dor da pancada, pela sede, pela venda apertada nas fontes, pelo ruído atroador do rádio, pelo terror dos passos que se aproximavam e pelo alivio quando eles se afastavam, pelos gritos e pelas ordens. Encolheu-se como um feto no chão e abandonou-se aos vários sofrimentos. Esteve assim várias horas, talvez dias. Por duas vezes, um homem foi tirá-la dali e guiou-a até uma latrina fétida, onde não conseguiu lavar-se porque não tinha água. Dava-lhe um minuto, punha-a na sanita com outra pessoa silenciosa e trôpega como ela. Não podia adivinhar se era outra mulher se era um homem. A princípio chorou, lamentando que o tio Nicolau não lhe tivesse dado um treino especial para suportar a humilhação, que lhe parecia pior que a dor, mas por fim resignou-se à sua própria imundície e deixou de pensar na insuportável necessidade de se lavar. Deram-lhe a comer milho tenro, um pedaço de frango e um pouco de gelado, que ela adivinhou pelo sabor, pelo cheiro, pela temperatura, e que devorou apressadamente com a mão, admirada por aquele jantar de luxo, inesperado naquele lugar. Depois soube que a comida para os prisioneiros daquele recinto vinha da nova sede do governo, que se tinha instalado num edifício improvisado, porque o antigo Palácio dos Presidentes não era mais que um montão de escombros.
Tentou contar os dias passados desde a sua detenção mas a solidão, a escuridão e o medo baralharam-lhe o tempo e deslocaram-lhe o espaço, acreditava ver cavernas povoadas de monstros, imaginava que a tinham drogado e, por isso, sentia todos os ossos frouxos e as ideias loucas, tinha intenção de não comer nem beber, mas a fome e a sede eram mais fortes que a sua decisão. Perguntava a si própria por que razão o avô não tinha ido resgatá-la. Nos momentos de lucidez podia compreender que não era um sonho mau e que não estava ali por engano. Resolveu esquecer até o nome de Miguel.
A terceira vez que a levaram onde estava Esteban Garcia, Alba estava mais preparada, porque através da parede da cela podia ouvir o que se passava na sala do lado, onde interrogavam prisioneiros, e não teve ilusões. Nem sequer fez por invocar os bosques dos seus amores.
- Tivestes tempo para pensar, Alba. Agora vamos falar os dois calmamente, vais dizer-me onde está Miguel e assim sairemos disto rapidamente - disse Garcia.
- Quero tomar banho - respondeu Alba.
- Estou a ver que estás a gozar comigo - disse ele. – Sinto muito, mas aqui não podemos perder tempo.
Alba não respondeu.
- Tira a roupa! - ordenou Garcia com outra voz.
Ela não obedeceu. Despiram-na com violência, arrancando-lhe as calças apesar dos seus pontapés. A recordação nítida da sua adolescência e do beijo de Garcia no jardim deram-lhe a força do ódio. Lutou contra ele, gritou, até que se cansaram de lhe bater e lhe deram uma curta trégua, que aproveitou para invocar os espíritos compreensivos da avó, para que a ajudassem a morrer. Mas ninguém veio em seu auxílio. Duas mãos levantaram-na, quatro deitaram-na numa tarimba metálica gelada, dura, cheia de porcas que lhe feriam as costas, ataram-lhe os tornozelos e os pulsos com correias de couro.
- Pela última vez, Alba. Onde está Miguel? – perguntou Garcia.
Ela negou silenciosamente. Tinham-lhe prendido a cabeça com outra correia.
- Quando estiveres disposta a falar, levanta um dedo – disse ele.
Alba ouviu outra voz.
- Eu manejo a máquina - disse.
E então ela sentiu a dor atroz que lhe percorreu o corpo e tomou completamente conta dela e que nunca, nos dias da sua vida, poderia esquecer. Afundou-se na escuridão.
- Disse-lhes para terem cuidado com ela, seus cabrões! - ouviu a voz de Esteban Garcia, que chegava de muito longe, sentiu que lhe abriam as pálpebras, mas não viu nada mais que um resplendor difuso, sentiu a seguir uma picadela no braço e tornou a perder-se na inconsciência.
Um século depois, Alba acordou molhada e despida. Não sabia se estava coberta de suor, de água ou de urina, não podia mover-se, não recordava nada, não sabia onde estava nem qual era a causa do mal-estar intenso que a tinha reduzido a um farrapo. Sentiu uma sede de deserto e pediu água.
- Aguenta, companheira - disse alguém ao seu lado. - Aguenta até amanhã. Se beberes água, tens convulsões e podes morrer.
Abriu os olhos. Não os tinha vendados. Um rosto vagamente familiar estava inclinado sobre ela, umas mãos taparam-na com uma manta.
- Recordas-te de mim? Sou Ana Díaz. Fomos companheiras na Universidade. Não me reconheces?
Alba negou com a cabeça, fechou os olhos e abandonou-se à doce ilusão da morte. Mas umas horas mais tarde despertou e ao mover-se sentiu que lhe doía tudo até à última fibra do corpo.
- Em breve te sentirás melhor - disse uma mulher que lhe acariciava a cara e lhe afastava as madeixas de cabelo húmido que lhe tapavam os olhos. - Não te mexas e tenta relaxar-te. Eu estarei a teu lado, descansa.
- Que se passou? - balbuciou Alba.
- Deram-te forte, companheira - disse a outra com tristeza.
- Quem és tu? - perguntou Alba.
- Ana Díaz. Estou aqui há uma semana. Apanharam também o meu companheiro, mas ainda está vivo. Vejo-o uma vez por dia quando o levam a tomar banho.
- Ana Díaz? - murmurou Alba.
- Eu própria. Não éramos muito amigas na Universidade mas nunca é tarde para começar. A verdade é que a última pessoa que pensava encontrar aqui eras tu, condessa - disse com doçura de mulher. - Não fales, tenta dormir, para o tempo ser mais curto para ti. A memória há-de voltar-te a pouco e pouco. Foi por causa da electricidade.
Mas Alba não conseguiu dormir, porque a porta da cela abriu-se e entrou um homem.
- Põe-lhe a venda! - ordenou a Ana Díaz. - Por favor...! Não vê que está muito fraca. Deixe-a descansar um pouco...
- Faz o que te digo!
Ana inclinou-se sobre a tarimba e pôs-lhe a venda nos olhos. Tirou-lhe a manta e quis vesti-la, mas o guarda afastou-a com um empurrão, levantou a prisioneira pelos braços e sentou-a. Entrou outro para o ajudar e os dois levaram-na pendurada, porque não podia caminhar. Alba pensava que estava a morrer, se é que não estava já morta. Sentiu que avançava por um corredor onde o ruído dos passos era devolvido pelo eco. Sentiu uma mão na cara, levantando-lhe a cabeça.
- Podem dar-lhe água. Levem-na e dêem-lhe outra injecção. Vejam se pode engolir um pouco de café e tragam-na – disse Garcia.
- Vestimo-la, coronel?
- Não.
Alba esteve nas mãos de Garcia muito tempo. Poucos dias depois ele deu conta de que ela o tinha reconhecido, mas não abandonou a precaução de a manter com os olhos vendados, inclusivamente quando estavam sozinhos. Traziam e levavam diariamente novos prisioneiros. Alba ouvia os veículos, os gritos, o portão que se fechava e procurava contar os presos, mas era quase impossível. Ana Díaz calculava que havia à roda de duzentos. Garcia estava muito ocupado, mas não deixou passar um dia sem ver Alba, alternando a violência desesperada, com a comédia do bom amigo. Por vezes parecia sinceramente comovido e com a sua própria mão dava-lhe colheradas de sopa, mas no dia em que lhe enfiou a cabeça num balde cheio de excrementos, até ela desmaiar de nojo, Alba compreendeu que ele não queria averiguar o paradeiro de Miguel, mas sim vingar-se das ofensas que lhe tinham feito desde o nascimento e que tudo o que pudesse confessar não modificaria a sua sorte como prisioneira particular do coronel Garcia. Então saiu a pouco e pouco do círculo privado do seu terror e, o seu medo começou a diminuir e pôde sentir compaixão pelos outros, pelos que penduravam pelos braços, pelos recém-chegados, por aquele homem sobre quem passaram com uma camioneta por cima dos pés agrilhoados. Levaram todos os prisioneiros ao pátio, ao amanhecer, e obrigaram-nos a ver, porque isso era também um caso pessoal entre o coronel e o prisioneiro. Foi a primeira vez que Alba abriu os olhos fora da penumbra da cela, e a suave claridade da madrugada e o orvalho entre as pedras, onde se tinham juntado os charcos da chuva da noite, pareceram-lhe insuportavelmente luminosos. Arrastaram o homem, que não opôs resistência, nem se podia ter de pé, e deixaram-no no centro do pátio. Os guardas tinham a cara coberta com lenços, para que nunca pudessem ser reconhecidos no caso improvável das coisas mudarem. Alba fechou os olhos quando ouviu o motor da camioneta, mas não pôde fechar os ouvidos ao berro que lhe ficou a vibrar na memória para sempre.
Ana Díaz ajudou-a a resistir durante o tempo que estiveram juntas. Era uma mulher invencível. Tinha suportado todas as brutalidades, tinham-na violado diante do companheiro, tinham-nos torturado juntos, mas ela não tinha perdido a capacidade do sorriso ou da esperança. Nem a perdeu quando a levaram para uma clínica secreta da polícia política, porque, por causa de um espancamento, perdeu a criança que esperava e começou a esvair-se em sangue.
- Não importa, um dia terei outro - disse a Alba quando voltou à cela.
Nessa noite, Alba ouviu-a chorar pela primeira vez, tapando a cara com o cobertor para afogar a tristeza. Aproximou-se dela, abraçou-a, embalou-a, limpou-lhe as lágrimas, disse-lhe todas as palavras ternas que pôde recordar, mas nessa noite não havia consolo para Ana Díaz, de modo que Alba limitou-se a aconchegá-la nos braços, aquecendo-a como a uma criança e desejando suportar ela própria aquela dor para lhe dar alívio. A manhã surpreendeu-as a dormir enroladas como dois animaizinhos. De dia esperavam ansiosamente o momento em que a longa fila de homens passasse para o banho. Iam com os olhos vendados, e para se guiarem cada um levava a mão no ombro do que seguia à frente, vigiados por guardas armados. Entre eles ia André. Pela minúscula janela gradeada da cela, elas podiam vê-los, tão perto que se pudessem estender a mão tê-los-iam tocado. Sempre que passavam, Ana e Alba cantavam com a força do desespero e de outras celas saíam vozes femininas. Então, os prisioneiros endireitavam-se, levantavam os ombros, viravam a cabeça na sua direcção e André sorria. Tinha a camisa rasgada e manchada de sangue seco.
Um dos guardas deixou-se comover pelo hino das mulheres. Uma noite levou-lhes três cravos numa jarra de água, para ornamentarem a janela. De outra vez, foi dizer a Ana Díaz que precisava de uma voluntária para lavar a roupa de um preso e limpar-lhe a cela. Levou-a onde estava André e deixou-os sós por alguns minutos. Quando Ana Díaz regressou estava transfigurada e Alba não se atreveu a falar-lhe para não lhe interromper a felicidade.
Um dia, o coronel Garcia deu por si a acariciar Alba como um apaixonado e a falar-lhe da sua infância no campo, quando a via passar ao longe, pela mão do avô, com os bibes engomados e o halo verde das suas tranças enquanto ele, descalço na lama, jurava a si mesmo que um dia lhe faria pagar caro a sua arrogância e se vingaria do seu maldito destino de bastardo. Rígida e ausente, nua e a tremer de asco e frio, Alba não o ouvia nem o sentia, mas aquela quebra na ânsia de a atormentar, soou ao coronel como uma campainha de alarme. Ordenou que pusessem Alba no canil e dispôs-se furiosamente a esquecê-la.
O canil era uma cela pequena, fechada como um túmulo, sem ar, escura e gelada. Havia seis ao todo, construídas como lugar de castigo numa cisterna vazia. Eram ocupadas por períodos mais ou menos curtos, porque ninguém resistia muito tempo nelas, no máximo poucos dias, antes de começar a divagar, a perder a noção das coisas, o significado das palavras, e a angústia do tempo ou, simplesmente, começar a morrer. A princípio, encolhida na sua sepultura, sem poder sentar-se, nem deitar-se apesar do seu pequeno tamanho, Alba defendeu-se contra a loucura. Na solidão, compreendeu quanto necessitava de Ana Díaz. Julgava ouvir pancadinhas imperceptíveis e longínquas, como se lhe mandassem mensagens em código de outras celas, mas logo deixou de lhes prestar atenção, porque verificou que toda a forma de comunicação era inútil. Abandonou-se, decidida a acabar o suplicio de uma vez, deixou de comer e só bebia um gole de água quando era vencida pela própria fraqueza. Tentou não respirar, não se mover e pôs-se à espera da morte com impaciência. Passou muito tempo. Assim, quando tinha conseguido quase o seu propósito, apareceu a avó Clara, a quem tinha invocado tantas vezes para a ajudar a morrer, com o argumento de que a graça não era morrer, porque isso chegaria de qualquer modo, mas sim sobreviver, o que era um milagre. Viu-a tal como sempre a tinha visto na sua infância, com a túnica de linho branco, as luvas de Inverno, o seu dulcíssimo sorriso desdentado e o brilho travesso dos olhos de avelã. Clara trouxe a ideia salvadora de escrever com o pensamento, sem lápis nem papel, para lhe manter o espírito ocupado, para se evadir do canil e viver. Sugeriu-lhe, também, que escrevesse o testemunho que um dia poderia servir para trazer à luz o terrível segredo que estava a viver, para que o mundo conhecesse o horror que se vivia paralelamente à existência agradável e ordenada daqueles que não queriam saber, dos que podiam ter a ilusão de uma vida normal, dos que podiam negar que flutuavam numa jangada num mar de lamentos, ignorando, apesar de todas as evidências, que a poucos quarteirões do seu mundo feliz estavam os outros, os que sobrevivem ou morrem no lado escuro. «Tens muito que fazer, por isso deixa de te lamentar, bebe água e começa a escrever», disse Clara à neta antes de desaparecer como tinha chegado.
Alba tentou obedecer à avó, mas logo que começou a apontar com o pensamento, o canil encheu-se de personagens da sua história, que entraram atropelando-se e envolvendo-a nas suas anedotas, nos seus vícios e virtudes, esmagando os seus propósitos documentais e deitando por terra o seu testemunho, intoxicando-a, exigindo-lhe, apressando-lhe, e ela anotava à pressa, desesperada, porque à medida que escrevia uma nova página, ia-se apagando a anterior. Esta actividade mantinha-a ocupada. A princípio, perdia o fio com facilidade e esquecia na mesma medida em que recordava novos factos. A menor distracção ou um pouco mais de medo ou de dor, emaranhavam-lhe a história como um novelo. Mas logo inventou um código para recordar com ordem, e então pôde entrar no seu próprio relato tão profundamente que deixou de comer, de se coçar, de se cheirar, de se queixar, e chegou a vencer, uma por uma, as suas inúmeras dores.
Constou que estava a morrer. Os guardas abriram o postigo do canil e tiraram-na sem nenhum esforço, porque estava muito magra. Levaram-na de novo ao coronel Garcia, que durante aqueles dias tinha renovado o ódio, mas Alba não o reconheceu. Estava para lá do seu poder.
Por fora, o hotel Cristóbal Colón tinha o mesmo aspecto anódino de uma escola primária, tal como eu o recordava. Eu perdera a conta dos anos que tinham passado desde a última vez que ali estivera, e imaginei que podia vir receber-me o mesmo Mustafá de outros tempos, aquele negro azul, vestido como uma aparição oriental com a sua dupla fileira de dentes de chumbo e a sua cortesia de vizir, o único negro autêntico no pais, todos os outros eram pintados, como tinha asseverado Tránsito Soto. Mas não foi assim. O porteiro levou-me a um cubículo muito pequeno, apontou-me um assento e indicou-me uma senhora com ar triste e bonito de tia da província, fardada de azul e com gola branca engomada, que ao ver-me tão velho e fraco, teve um gesto de enfado. Tinha uma rosa vermelha na mão.
- O cavalheiro vem sozinho? - perguntou.
- Claro que venho só! - exclamei.
A mulher passou-me a rosa e perguntou-me que quarto preferia.
- É-me indiferente - respondi surpreendido.
- Estão livres o Estábulo, o Templo e as Mil e Uma Noites. Qual quer?
- As Mil e Uma Noites - disse ao acaso.
Levou-me por um longo corredor assinalado com luzes verdes e flechas vermelhas. Apoiado na bengala, arrastando os pés, segui-a com dificuldade. Chegámos a um pequeno pátio onde se levantava uma mesquita em miniatura com absurdas ogivas de vidros coloridos.
- É aqui. Se deseja beber alguma coisa, peça por telefone - informou.
- Quero falar com Tránsito Soto. Foi para isso que vim - disse.
- Sinto muito, mas a senhora não atende particulares. Só os fornecedores.
- Eu tenho que falar com ela! Diga-lhe que sou o senador Trueba. Ela conhece-me.
- Não recebe ninguém, já lhe disse - respondeu a mulher cruzando os braços.
Levantei a bengala e disse-lhe que se dentro de dez minutos não aparecesse Tránsito Soto em pessoa, partiria os vidros e tudo o que estava dentro daquela caixa de Pandora. A da farda recuou espantada. Abriu a porta da mesquita e encontrei-me dentro de uma Alhambra de pacotilha. Uma escada curta de azulejos, coberta de falsos tapetes persas, levava a um quarto hexagonal com um tecto em cúpula, onde alguém tinha posto tudo o que pensava que existisse num harém da Arábia, sem ter lá estado nunca: almofadões de damasco, perfumadores de vidro, campainhas e toda a espécie de baratezas de bazar. Entre as colunas, multiplicadas até ao infinito por sábia disposição de espelhos, vi uma casa de banho de mosaico, maior que um dormitório com um grande tanque onde calculei que se podia lavar uma vaca e com maior razão se podiam refastelar dois amantes brincalhões. Não se parecia nada com o Cristóbal Colón que eu tinha conhecido. Sentei-me a custo na cama redonda, sentindo-me de repente muito cansado. Doíam-me os velhos ossos. Levantei os olhos e um espelho no tecto devolveu-me a imagem: um pobre corpo mirrado, um rosto triste de patriarca bíblico, sulcado de rugas amargas e os restos de uma melena branca. «Como o tempo passou!», suspirei.
Tránsito Soto entrou sem bater.
- Alegro-me de o ver, patrão - saudou como sempre.
Tinha-se tornado urna senhora madura, magra, com um carrapito severo, ataviada com um vestido de lã, e duas voltas de soberbas pérolas no pescoço, majestosa, serena, com mais aspecto de concertista de piano que de dona de prostíbulo. Tive dificuldade em relacioná-la com a mulher de outros tempos, com uma serpente tatuada à roda do umbigo. Pus-me de pé para a cumprimentar e não consegui tratá-la por tu, como dantes.
- Está com muito bom aspecto, Tránsito - disse, calculando que devia ter mais de sessenta e cinco anos.
- Tenho passado bem, patrão. Recorda-se de que, quando nos conhecemos, eu lhe disse que um dia ia ser rica? – sorriu ela.
- Alegro-me que o tenha conseguido.
Sentámo-nos lado a lado na cama redonda. Tránsito serviu um conhaque para cada um e contou-me que a cooperativa de putas e maricas tinha sido um negócio estupendo durante dez longos anos, mas que os tempos tinham mudado e que tinham sido obrigados a dar-lhe outra volta, porque, por culpa da liberdade de costumes, do amor livre, da pílula e de outras inovações, já ninguém precisava de prostitutas, excepto os marinheiros e os velhos. «As meninas decentes deitam-se de borla, imagine-se a competência», disse ela. Explicou-me que a cooperativa começou a arruinar-se e que os sócios tiveram de ir trabalhar noutros ofícios melhor remunerados e até Mustafá partiu, de regresso à pátria. Então pensou que o que era preciso era um hotel de encontros, um sítio agradável para que os casais clandestinos pudessem fazer amor e onde um homem não tivesse vergonha de levar a noiva pela primeira vez. Nada de mulheres, essas traz o cliente. Ela própria o decorou, segundo os impulsos da sua fantasia, tendo em consideração o gosto da clientela e assim, graças à sua visão comercial, que a levou a criar um ambiente diferente em cada canto disponível, o hotel Cristóbal Colón transformou-se no paraíso das almas perdidas e dos amantes furtivos. Tránsito Soto fez salões franceses com móveis acolchoados, baias com feno fresco e cavalos de papelão que observa-vam os namorados com os seus imutáveis olhos de vidro pintado, cavernas pré-históricas, com estalactites e telefones forrados em pele de puma.
- Visto que não veio fazer amor, patrão, vamos falar no meu escritório, para deixar este quarto para a clientela – disse Tránsito Soto.
Pelo caminho, contou-me que depois do golpe a polícia política tinha arrasado o hotel por duas vezes cada vez que tiravam os casais da cama e os levavam na ponta da pistola até ao salão principal, encontravam um ou dois generais entre os clientes, e por isso deixaram de incomodar. Tinha muito boas relações com o novo governo, como tivera com os governos anteriores. Disse-me que o Cristóbal Colón era um negócio florescente e que todos os anos ela renovava algumas decorações, substituindo naufrágios em ilhas polinésicas por severos claustros de convento e baloiços barrocos por potros de tortura, segundo a moda, podendo introduzir muita coisa numa residência de proporções relativamente normais graças ao artificio dos espelhos e das luzes que podiam multiplicar o espaço, enganar o clima, criar o infinito e suspender o tempo.
Chegámos ao seu escritório, decorado como uma cabina de aeronave, de onde dirigia a sua incrível organização com a eficiência de um banqueiro. Contou-me quantos lençóis se lavavam, quanto papel higiénico se gastava, quantos licores se consumiam, quantos ovos de codorniz se coziam diariamente - são afrodisíacos -, quanto pessoal era necessário e a quanto chegava a conta da luz, da água e do telefone, para manter a navegar aquele descomunal porta-aviões de amores proibidos.
- E agora, patrão, diga-me o que posso fazer por si – disse finalmente Tránsito Soto, acomodando-se na cadeira reclinável de piloto aéreo, enquanto brincava com as pérolas do colar. - Suponho que veio para que lhe pague o favor que lhe devo desde há cinquenta anos, não é verdade?
Então eu, que tinha estado à espera que ela mo perguntasse, abri a torrente da minha ansiedade e contei-lhe tudo, sem esconder nada, sem uma só pausa, desde o principio até ao fim. Disse-lhe que Alba é a minha neta única, que eu tinha ficado só no mundo, que se me tinha mirrado o corpo e a alma, tal como Férula disse ao amaldiçoar-me, e a única coisa que me falta é morrer como um cão, que aquela neta de cabelo verde é última coisa que me resta, o único ser que realmente me importa, que por desgraça saiu idealista, um mal da família, é uma dessas pessoas destinadas a meter-se em problemas e a fazer-nos sofrer a nós, os que estamos ao pé, deu-lhe para andar a dar asilo a fugitivos nas embaixadas, fazia-o sem pensar, estou certo, sem dar conta que o país está em guerra, guerra contra o comunismo internacional ou contra o povo, já não se sabe, mas guerra no fim de contas, e que essas coisas são punidas por lei, mas Alba anda sempre na lua e não dá pelo perigo, não o faz por maldade, antes pelo contrário, fá-lo porque tem o coração destravado como a avó, que ainda anda a socorrer os pobres nas minhas costas, nos quartos abandonados da casa, a minha Clara clarividente, e qualquer tipo que chegue junto de Alba contando a história de que o perseguem, consegue que ela arrisque a pele para o ajudar, mesmo que seja totalmente desconhecido, eu já lhe disse, já a avisei muitas vezes de que podiam fazer-lhe uma armadilha e um dia ia acontecer que o suposto marxista era um agente da polícia política, mas ela não me ligou, nunca me ligou na vida, é mais casmurra que eu, mas mesmo que seja assim, dar asilo a um pobre diabo de vez em quando não é uma malfeitoria, não é algo tão grave que mereça que a levem presa, sem considerar que é minha neta, neta de um senador da República, membro proeminente do Partido Conservador, não podem fazer isso com alguém da minha própria família, na minha própria casa, porque então que diabo fica para os outros, se pessoas como nós caem assim, quer dizer que ninguém está a salvo, que não valeram de nada, mais de vinte anos no Congresso e ter todas as relações que tenho, eu conheço toda a gente neste país, pelo menos toda a gente importante, inclusivamente o general Hurtado, que é meu amigo pessoal, mas neste caso não me serviu de nada, nem sequer o cardeal me pôde ajudar a encontrar a minha neta, não é possível que ela desapareça como por magia, que a levem uma noite e eu não volte a saber nada dela, passei um mês à sua procura e a situação já me está a pôr louco, estas são as coisas que desprestigiam a Junta Militar no estrangeiro e dão azo a que as Nações Unidas comecem a foder-nos com os direitos humanos, eu ao principio não queria ouvir falar de mortos, de torturados, de desaparecidos, mas agora não posso continuar a pensar que são calúnias dos comunistas, se até os próprios gringos, que foram os primeiros a ajudar os militares e mandaram os seus pilotos de guerra para bombardear o Palácio dos Presidentes, estão agora escandalizados pela matança, e não é que eu esteja contra a repressão, compreendo que ao princípio é necessário ter firmeza para impor a ordem, mas alambazaram-se, estão a exagerar as coisas e com a história da segurança interna e de acabar com os inimigos ideológicos, estão a acabar com toda a gente, ninguém pode estar de acordo com isso, nem eu próprio, que fui o primeiro a atirar penas de galinha aos cadetes e a ajudar o golpe, antes que os outros tivessem a ideia na cabeça, fui o primeiro a aplaudi-lo, estive presente no Te Deum da catedral, e por isso mesmo não posso aceitar que estejam a acontecer estas coisas na minha pátria, que desapareçam as pessoas, que levem a minha neta de casa à viva força e eu não possa impedi-lo, nunca se tinham passado aqui coisas assim, por isso, justamente por isso, é que tive de vir falar consigo, Tránsito, nunca imaginei que há cinquenta anos, quando você era uma rapariguinha raquítica do Farolito Rojo, que um dia teria que vir a suplicar-lhe de joelhos que me faça este favor, que me ajude a encontrar a minha neta, atrevo-me a pedir-lho porque sei que tem boas relações com o governo, falaram-me de si, estou certo que ninguém conhece melhor as pessoas importantes nas Forças Armadas, sei que você lhes organiza festas e pode chegar onde eu nunca teria acesso, por isso peço-lhe que faça alguma coisa pela minha neta antes que seja demasiado tarde, porque há semanas que estou sem dormir, corri todos os gabinetes, todos os Ministérios, todos os velhos amigos, sem que ninguém me pudesse ajudar, já não me querem receber, obrigam-me a ficar na sala de espera durante horas, a mim, que fiz tantos favores a essa mesma gente, por favor, Tránsito, peça-me o que quiser, ainda sou um homem rico, embora nos tempos do comunismo as coisas tivessem sido difíceis para mim, expropriaram-me a terra, você soube disso certamente, deve ter visto na televisão e nos jornais, foi um escândalo, aqueles camponeses ignorantes comeram os meus touros reprodutores e puseram as minhas éguas de corrida a puxar o arado e em menos de um ano Las Tres Marias estava em ruínas, mas agora eu enchi a herdade de tractores e estou a levantá-la de novo, tal como o fiz uma vez, quando era jovem, estou a fazer o mesmo agora que estou velho, mas não acabado, enquanto esses desgraçados que tinham o titulo de propriedade da minha propriedade, a minha, andam a morrer de fome, como uma cambada de pobres diabos, à procura de algum trabalhito miserável para subsistir, pobre gente, eles não tiveram a culpa, deixaram-se enganar pela maldita reforma agrária, no fundo eu já lhes perdoei e gostaria que voltassem a Las Tres Marias, cheguei mesmo a pôr anúncios nos jornais para os chamar, hão-de voltar um dia e não terei remédio senão estender-lhes a mão, são como crianças, bom, mas não é disso que lhe vim falar, Tránsito, não quero roubar-lhe o seu tempo, o importante é que tenho uma boa situação e os meus negócios vão de vento em popa, por isso posso dar-lhe tudo o que me pedir, qualquer coisa, contanto que encontre a minha neta Alba antes que um demente me continue a mandar mais dedos cortados ou comece a mandar orelhas e acabe por pôr-me maluco ou matar-me com um enfarte, desculpe-me que fique desta maneira, me tremam as mãos, estou muito nervoso, não posso explicar o que se passou, um pacote pelo correio e lá dentro só três dedos humanos, cortados rente, uma piada macabra que me traz recordações, mas essas recordações não têm nada a ver com Alba, a minha neta nem sequer era nascida na altura, sem dúvida eu tenho muitos inimigos, todos nos, os políticos, temos inimigos, não seria difícil haver um anormal disposto a chatear-me enviando-me dedos pelo correio, justamente no momento em que estou desesperado pela prisão de Alba, para me pôr ideias horríveis na cabeça, que se não fosse por estar no limite das minhas forças, depois de ter esgotado todos os recursos, não teria vindo incomodá-la a si, por favor, Tránsito, em nome da nossa velha amizade, tenha piedade de mim, sou um pobre velho destroçado, tenha piedade e procure a minha neta Alba antes que acabem por mandar-ma em pedacinhos pelo correio, solucei.
Tránsito Soto chegou à posição que tem, entre outras coisas, porque soube pagar as suas dívidas. Suponho que usou o conhecimento do lado mais secreto dos homens que estão no poder, para me pagar os cinquenta pesos que lhe emprestei uma vez. Dois dias depois, chamou-me ao telefone.
- Sou Tránsito Soto, patrão. Está satisfeito o seu pedido - disse.
Esta noite morreu o meu avô. Não morreu como um cão, como receava, mas calmamente nos meus braços, confundindo-me com Clara e por vezes com Rosa, sem dor, sem angústia, consciente e sereno, mais lúcido que nunca e feliz. Agora está estendido no veleiro de água mansa, sorridente e tranquilo, enquanto eu escrevo sobre a mesa de madeira que era da minha avó. Abri as cortinas de seda azul para que a manhã entre alegre neste quarto. Na gaiola antiga, junto da janela, há um canário novo, cantando e no centro do quarto vêem-se os olhos de vidro de Barrabás. O meu avô contou-me que Clara desmaiara no dia em que ele, para lhe agradar, colocou a pele do animal como tapete. Rimos até às lágrimas e decidimos ir à cave buscar os despojos do pobre Barrabás, soberbo na sua indefinível constituição biológica, apesar da passagem do tempo e do abandono e voltar a pô-lo no mesmo lugar onde meio século antes o pusera o meu avô, em homenagem à mulher que mais amou na vida.
- Vamos deixá-lo aqui, que é onde sempre devia ter estado - disse.
Cheguei a casa numa brilhante manhã de Inverno numa carroça puxada por um cavalo escanzelado. A rua, com a sua dupla fila de castanheiros centenários e as mansões senhoriais, parecia um cenário impróprio para aquele modesto veículo, mas quando este parou em frente da casa do meu avô encaixava muito bem com o estilo. A grande casa da esquina estava mais triste e velha do que podia recordar, absurda com as excentricidades arquitectónicas e as pretensões de estilo francês, com a fachada coberta de hera apodrecida. O jardim era um emaranhado de mato e quase todos as portadas estavam penduradas dos gonzos. O portão estava aberto como sempre. Toquei à campainha e passado um bocado, senti umas alpergatas que se aproximavam e uma criada desconhecida abriu-me a porta. Olhou-me sem me conhecer e senti no nariz o maravilhoso perfuma a madeira e a mofo da casa onde nasci. Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Corri à biblioteca, pressentindo que o avô estava à minha espera onde sempre se costumava sentar, encolhido numa poltrona. Admirei-me de o ver tão velho, tão minúsculo e trémulo, mantendo do passado apenas a branca melena leonina e a pesada bengala de prata. Abraçamo-nos estreitamente por muito tempo, sussurrando avô, Alba, Alba, avô, beijámo-nos e quando ele viu a minha mão, rebentou a chorar, a dizer maldições e a dar bengaladas nos móveis, como fazia dantes, e eu ri-me porque afinal não estava tão velho e acabado como me parecera a princípio.
Nesse mesmo dia, o avô quis que saíssemos do país. Tinha medo por minha causa. Mas expliquei-lhe que não podia ir-me embora, porque longe desta terra eu seria como as árvores que se cortam para o Natal, esses pobres pinheiros que duram algum tempo e morrem depois.
- Não sou tonto, Alba - disse, olhando-me fixamente. – A verdadeira razão por que queres ficar é Miguel, não é verdade?
Tive um sobressalto. Nunca Ihe tinha falado em Miguel.
- Desde que o conheci, soube que não ia poder tirar-te daqui, minha filhinha - disse com tristeza.
- Conheceste-o? Está vivo, avô? - sacudi-o, agarrando-o pela roupa.
- A semana passada ainda estava, quando nos vimos pela última vez.
Contou-me que depois de me terem prendido, Miguel apareceu uma noite na grande casa da esquina. Esteve quase a dar-lhe uma apoplexia de susto, mas em poucos minutos, compreendeu que os dois tinham uma meta comum: libertar-me. Depois, Miguel voltou frequentemente para o ver, fazia-lhe companhia e juntavam os seus esforços para me procurar. Foi Miguel quem teve a ideia de ir falar com Tránsito Soto, ao avô isso nunca teria ocorrido.
- Acredite-me, senhor. Eu sei quem tem o poder neste país. A minha gente está infiltrada em todos os lados. Se há alguém que possa ajudar Alba neste momento, essa pessoa é Tránsito Soto - assegurou-lhe.
- Se conseguirmos tirá-la das garras da polícia política, meu filho, terá de sair daqui. Vão os dois. Posso conseguir-vos salvo-condutos e não vos faltará dinheiro - ofereceu o avô.
Mas Miguel olhou-o como se ele fosse um velhinho sem tino e começou a explicar-lhe que tinha uma missão a cumprir e não podia fugir assim.
- Tive de resignar-me à ideia de que ficarás aqui, apesar de tudo - disse o avô abraçando-me. - E agora conta-me tudo. Quero saber até ao último pormenor.
De maneira que eu contei tudo. Disse-lhe que depois que a mão infectou, levaram-me para uma clínica secreta para onde mandavam os prisioneiros que não lhes interessava deixar morrer. Lá, atendeu-me um médico alto, de maneiras elegantes, que parecia odiar-me tanto como o coronel Garcia e se negava a dar-me calmantes. Aproveitava cada curativo para me expor a sua teoria pessoal a respeito da forma de acabar com o comunismo no país e, se possível, no mundo. À parte isso, deixava-me em paz. Pela primeira vez em várias semanas tinha lençóis limpos, comida suficiente e luz natural. Era Rojas quem me tratava, um enfermeiro de tronco maciço e cara redonda, vestido com uma bata azul celeste sempre suja e extremamente bondoso. Dava-me de comer na boca, contava-me intermináveis histórias de longínquos desafios de futebol disputados entre equipas que eu nunca tinha ouvido nomear e conseguia calmantes para me injectar às escondidas, até conseguir fazer parar o meu delírio. Rojas tinha assistido nessa clínica a um desfile interminável de desgraçados. Tinha verificado que na sua maioria não eram nem assassinos nem traidores à pátria, por isso tratava bem os prisioneiros. Muitas vezes acabava de curar alguém e levavam-lho de novo. «Isto é como encher o mar de areia», dizia com tristeza. Soube que alguns lhe pediram para os ajudar a morrer e, pelo menos num caso, julgo que o fez. Rojas tomava nota rigorosamente dos que entravam e saíam e podia recordar-se, sem hesitar, dos nomes, das datas e das circunstâncias. Jurou-me que nunca tinha ouvido falar de Miguel e isso devolveu-me a coragem para continuar a viver, mesmo que por vezes caísse no abismo negro da depressão e começasse a repetir a cantilena de que queria morrer. Ele falou-me de Amanda. Prenderam-na ao mesmo tempo que a mim. Quando a levaram a Rojas, já não havia nada a fazer. Morreu sem denunciar o irmão, cumprindo a promessa que lhe fizera muito tempo atrás, no dia em que o levou à escola pela primeira vez. O único consolo foi ter sido tudo mais rápido do que eles tinham desejado, porque o seu organismo estava muito debilitado pelas drogas e pela infinita desolação que a morte de Jaime lhe deixou. Rojas tratou de mim até baixar a febre. A minha mão começou a cicatrizar e a voltar-me a razão, e então acabaram-se-lhe os pretextos para continuar a reter-me; mas não me mandaram voltar para as mãos de Esteban Garcia, como eu temia. Suponho que nesse momento actuou a influência benéfica da mulher do colar de pérolas a quem fui visitar, com o avô, para lhe agradecer ter-me salvo a vida. Quatro homens foram buscar-me de noite. Rojas acordou-me, ajudou-me a vestir e desejou-me boa sorte. Beijei-o, agradecida.
- Adeus, menina! Mude o penso, não o molhe e se voltar a febre é porque se infectou outra vez - disse-me da porta.
Levaram-me para uma cela estreita onde passei o resto da noite sentada numa cadeira. No dia seguinte, transferiram-me para um campo de concentração para mulheres. Nunca esquecerei quando me tiraram a venda dos olhos e me encontrei num pátio quadrado e luminoso, rodeada de mulheres que cantavam, para mim, o Hino à Alegria. A minha amiga Ana Díaz estava entre elas e correu a abraçar-me. Instalaram-me imediatamente num beliche e deram-me a conhecer as regras da comunidade e as minhas responsabilidades.
- Até que te cures não tens de lavar nem coser, mas tens de cuidar das crianças - disseram-me.
Eu tinha resistido ao inferno com certa integridade, mas quando me senti acompanhada, quebrei. A menor palavra de carinho provocava-me uma crise de choro, passava a noite com os olhos abertos na escuridão no meio da promiscuidade das mulheres, que faziam turnos para cuidar de mim, acordadas, sem nunca me deixar sozinha. Ajudaram-me quando as más recordações começavam a atormentar-me ou me aparecia pela frente o coronel Garcia mergulhando-me no terror, ou quando Miguel me ficava preso num soluço.
- Não penses em Miguel - diziam-me, insistiam. - Não se deve pensar nos entes queridos nem no mundo que existe para lá destes muros. É a única maneira de sobreviver.
Ana Díaz conseguiu um caderno escolar e ofereceu-mo.
- É para escreveres, para veres se tiras de dentro de ti o que está podre, se melhoras de uma vez e cantas connosco e nos ajudas a coser - disse-me.
Mostrei-lhe a mão e neguei com a cabeça, mas ela pôs-me o lápis na outra mão e disse-me que escrevesse com a esquerda. Pouco a pouco, comecei a fazê-lo. Tentei ordenar a história que começara no canil. As minhas companheiras ajudaram-me quando a paciência me faltava e o lápis me tremia na mão. Em certas ocasiões, atirava tudo para longe, mas em seguida apanhava o caderno, endireitava-o, arrependida, porque não sabia quando poderia conseguir outro. Outras vezes acordava triste e cheia de pressentimentos, virava-me para a parede e não queria falar com ninguém, mas elas não me deixavam, sacudiam-me, obrigavam-me a trabalhar, a contar histórias às crianças. Mudavam-me a ligadura com cuidado e punham-me o papel na frente.
« Se quiseres conto-te o meu caso, para o escreveres», diziam-me, riam-se, gracejavam, alegando que todos os casos eram iguais e que era melhor escrever histórias de amor porque isso agradava a toda a gente. Também me obrigavam a comer. Repartiam as rações com inteira justiça, a cada qual segundo a sua necessidade e a mim davam-me um pouco mais porque diziam que eu estava só com a pele e o osso e dessa maneira nem o homem mais necessitado iria olhar para mim. Eu estremecia, mas Ana Díaz lembrava-me que eu não era a única mulher violada e devia esquecer isso, como tantas outras coisas. As mulheres passavam o dia a cantar em coro. Os carabineiros batiam na parede.
- Calem-se, suas putas!
- Façam-nos calar vocês, se puderem, seus cabrões, a ver se se atrevem! - E continuavam a cantar mais forte e eles não entravam porque tinham aprendido que não se pode evitar o inevitável.
Tentei descrever os pequenos acontecimentos da secção de mulheres, que tinham prendido a irmã do Presidente, que nos tiraram os cigarros, que tinham chegado novas prisioneiras, que Adriana tivera outro dos seus ataques e se tinha atirado aos filhos para os matar, que tivemos que lhos tirar das mãos e me sentei com um menino em cada braço, para lhes contar as histórias mágicas dos baús encantados do tio Marcos, até que adormeceram, enquanto eu pensava no destino daquelas crianças, crescendo naquele lugar, com a mãe transtornada, criadas por outras mães desconhecidas que não tinham perdido a voz para uma canção de embalar, nem o gesto para um carinho e eu perguntava a mim própria, escrevia, de que maneira os filhos de Adriana poderiam restituir a canção e o gesto aos filhos ou aos netos daquelas mesmas mulheres que os acarinhavam.
Estive no campo de concentração poucos dias. Numa quarta-feira à tarde os carabineiros foram buscar-me. Tive um momento de pânico, pensando que me levariam de novo a Esteban Garcia, mas as minhas companheiras disseram-me que se eles usavam uniforme não eram da polícia política e isso tranquilizou-me um pouco. Deixei-lhes o meu colete de lã, para o desman-charem e fazerem qualquer coisa quente para os meninos de Adriana e dei-lhes todo o dinheiro que tinha quando me detiveram e que, com a escrupulosa honestidade que têm os militares para o transcendente, me tinham devolvido. Meti o caderno nas calças e abracei-as a todas, uma por uma. A última coisa que ouvi ao sair foi o coro das minhas companheiras cantando para me dar animo, tal como faziam com todas as prisioneiras que chegavam ou deixavam o acampamento. Eu ia a chorar. Tinha sido feliz ali.
Contei ao avô que me tinham levado num carro celular com os olhos vendados, durante o toque de recolher. Tremia tanto que ouvia o bater dos dentes. Um dos homens que estava comigo na parte traseira do veiculo, pôs-me um caramelo na mão e deu-me umas palmadinhas no ombro.
- Não se preocupe, menina. Não lhe vai acontecer nada. Vamos soltá-la e dentro de algumas horas estará com a sua família - disse num murmúrio.
Deixaram-me numa lixeira perto do Bairro da Misericórdia.
O mesmo que me deu o doce ajudou-me a descer.
- Cuidado com o toque de recolher - segredou-me ao ouvido. - Não se mova até amanhecer.
Ouvi um motor e pensei que iam esmagar-me e que depois aparecia na imprensa que eu tinha sido atropelada num acidente de trânsito, mas o carro afastou-se sem me tocar. Esperei algum tempo, paralisada de frio e de medo, até que por fim resolvi tirar a venda para ver onde me encontrava.
Olhei à volta. Era um sítio baldio, um descampado cheio de lixo onde corriam ratazanas por entre desperdícios. Brilhava uma lua ténue que me permitiu ver ao longe o perfil de um miserável bairro de cartão, zinco e tábuas. Compreendi que devia respeitar a recomendação do guarda e ficar ali até amanhecer. Teria passado a noite na lixeira, se não chega um rapazinho agachado nas sombras e me faz sinais em segredo. Como já não tinha muito a perder, caminhei na sua direcção, cambaleando. Ao aproximar-me, vi a sua carinha ansiosa. Deitou-me uma manta pelos ombros, pegou-me na mão e levou-me para o bairro sem dizer palavra. Caminhámos agachados, evitando a rua e os poucos candeeiros acesos, alguns cães ladraram, mas ninguém assomou para saber o que era. Atravessámos um pátio de terra onde umas roupas calam como pendões presas a um arame e entramos numa barraca desconjuntada como todas as outras ali. Dentro havia uma única lâmpada iluminando tristemente o interior. Comoveu-me a extrema pobreza: os únicos móveis eram uma mesa de pinho, duas cadeiras toscas e uma cama onde dormiam várias crianças amontoadas. Veio receber-me uma mulher baixa, de pele escura, com as pernas atravessadas de varizes e os olhos afundados numa rede de rugas bondosas, que não conseguiam dar-lhe um aspecto de velhice. Sorriu e vi que lhe faltavam alguns dentes. Aproximou-se e ajeitou-me a manta, com um gesto rude e tímido que substituiu o abraço que não se atreveu a dar-me.
- Vou dar-lhe um chazinho. Não tenho açúcar mas vai-lhe fazer bem tomar qualquer coisa quente - disse.
Contou-me que tinham ouvido o carro e sabiam o que significava um veículo circulando de noite durante o toque de recolher naqueles ermos. Esperaram até ficar certos de que se tinha ido embora e depois o menino saiu para ver o que tinham deixado. Pensavam encontrar um morto.
- Às vezes vêm atirar-nos para aqui um fuzilado para a gente ganhar medo - explicou-me.
Ficámos a conversar o resto da noite. Era uma daquelas mulheres estóicas e práticas do nosso país, que têm um filho de cada homem que passa pelas suas vidas e que além disso recolhem no seu lar as crianças que outros abandonam, os parentes mais pobres e qualquer pessoa que necessite de uma mãe, uma irmã, uma tia, mulheres que são a trave mestra de muitas vidas alheias, que criam filhos para os verem ir embora depois e que vêem também partir os seus homens, sem um queixume, porque têm outras coisas mais urgentes para fazer. Pareceu-me igual a tantas outras que conheci nos refeitórios populares, no hospital do meu tio Jaime, na casa do vigário onde iam perguntar pelos seus desaparecidos, na morgue onde iam buscar os seus mortos. Disse-lhe que se tinha arriscado muito ao ajudar-me, e ela sorriu. Então, eu soube que o coronel Garcia, e outros como ele, têm os seus dias contados porque não conseguiram destruir o espírito dessas mulheres.
De manhã, acompanhou-me a casa de um compadre que tinha uma carroça de aluguer com um cavalo. Pediu-lhe que me trouxesse a casa e foi assim que cheguei aqui. Pelo caminho, pude ver a cidade nos seus terríveis contrastes, as barracas cercadas por tapumes para dar a ilusão de não existirem, o centro compacto e cinzento, e o Bairro Alto, com os jardins ingleses, os parques, os arranha-céus de vidro e os meninos louros passeando de bicicleta. Até os cães me pareceram felizes, tudo em ordem, tudo limpo, tudo tranquilo e aquela sólida paz das consciências sem memória. Este bairro é como um outro país.
O avô ouviu-me com tristeza. Acabava de desmoronar-se um mundo que ele tinha acreditado ser bom.
- Enquanto estivermos aqui à espera de Miguel, vamos arranjar um bocado esta casa - disse por fim.
Assim fizemos. A principio passamos o dia na biblioteca, inquietos, pensando que poderiam voltar a levar-me outra vez para Garcia, mas depois decidimos que o pior é ter medo do medo, como dizia o meu tio Nicolau, e que havia que ocupar a casa por inteiro e começar a fazer uma vida normal. O meu avô contratou uma empresa especializada que a percorreu desde o telhado até à cave, passando com máquinas polidoras, limpando vidros, pintando e desinfectando, até que ficou habitável. Meia dúzia de jardineiros e um tractor acabaram com o matagal, trouxeram relva enrolada como um tapete, um invento prodigioso dos gringos, e em menos de uma semana tínhamos até álamos crescidos, a água tinha voltado a brotar nas fontes cantantes e mais uma vez se levantaram, arrogantes, as estátuas do Olimpo, limpas finalmente de tanta caca de pombo e tanto esquecimento. Fomos juntos comprar pássaros para as gaiolas que estavam vazias desde que a minha avó, pressentindo a morte, lhes abriu as portas. Pus flores frescas nas jarras e bandejas com fruta sobre as mesas, como no tempo dos espíritos e o ar impregnou-se com o seu aroma. Depois demos o braço, o meu avô e eu, e percorremos a casa, parando em cada lugar para recordar o passado e saudar os imperceptíveis fantasmas de outras épocas, que apesar de tantos altos e baixos, persistem nos seus postos. O meu avô teve a ideia de escrevermos esta história.
- Assim poderás levar as raízes contigo se algum dia tiveres de ir embora daqui, filhinha - disse.
Desenterrámos dos cantos secretos e esquecidos, os velhos álbuns e tenho aqui, sobre a mesa da minha avó, um montão de retratos: a bela Rosa junto de um baloiço descolorido, a minha mãe e Pedro Tercero Garcia aos quatro anos, a dar milho às galinhas no pátio de Las Tres Marias, o meu avô quando era jovem e media um metro e oitenta, prova irrefutável de que se cumpriu a maldição de Férula e de que se lhe foi mirrando o corpo na mesma medida em que se lhe encolheu a alma, os meus tios Jaime e Nicolau, um, taciturno e sombrio, gigantesco e vulnerável, e o outro, delgado e gracioso, volátil e sorridente, também a Ama e os bisavós del Valle, antes de morrerem no acidente, enfim, todos menos o nobre Jean de Satigny, de quem não há nenhum testemunho científico e de cuja existência cheguei a duvidar.
Comecei a escrever com a ajuda do meu avô, cuja memória permaneceu intacta até ao último instante dos seus noventa anos. Com o seu punho e letra escreveu várias páginas e quando considerou que tinha dito tudo, deitou-se na cama de Clara. Eu sentei-me a seu lado, à espera com ele, e a morte não tardou a chegar-lhe suavemente, apanhando-o no sono. Talvez sonhasse que era a sua mulher que lhe acariciava a mão e o beijava na testa, porque, nos últimos dias, ela não o abandonou nem um instante, seguia-o pela casa, espreitava-lhe por cima do ombro quando lia na biblioteca e deitava-se com ele de noite, com a formosa cabeça coroada de caracóis, apoiada no seu ombro. A princípio era um halo misterioso, mas à medida que o meu avô foi perdendo para sempre a raiva que o atormentou durante toda a existência, ela apareceu tal como era nos seus melhores tempos, rindo com todos os dentes e alvoroçando os espíritos com o seu voo fugaz. Também nos ajudou a escrever e, graças à sua presença, Esteban Trueba pôde morrer feliz murmurando o seu nome, Clara, claríssima, clarividente.
No canil, escrevi pensando que um dia teria o coronel Garcia vencido na minha frente e poderia vingar todos os que têm de ser vingados. Mas agora duvido do meu ódio. Em poucas semanas, desde que estou nesta casa, parece ter-se diluído, ter perdido os contornos. Suspeito que tudo o que aconteceu não é fortuito, mas que corresponde a um destino traçado antes do meu nascimento e que Esteban Garcia é parte desse desenho. É um traço rude e torcido, mas nenhuma pincelada é inútil. No dia em que o meu avô derrubou nos matagais do rio a sua avó, Pancha Garcia, acrescentou outro degrau a uma cadeia de factos que se deviam cumprir. Depois, o neto da mulher violada repete o gesto com a neta do violador e dentro de quarenta anos, talvez o meu neto viole a sua nas matas do rio e assim, pelos séculos vindouros, numa história infindável de dor, de sangue e amor. No canil, tive a ideia de que estava a fazer um quebra-cabeças em que cada peça tem uma posição precisa. Antes de as colocar, a todas, parecia-me incompreensível, mas estava certa de que se o conseguisse terminar, daria um sentido a cada uma e o resultado seria harmonioso. Cada peça tem uma razão de ser tal como é, inclusivamente o coronel Garcia.
Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo que não sou eu, mas outra mulher, que escreveu nos seus cadernos para que eu viesse a servir-me deles. Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil e o transito de uma vida é muito breve e sucede tudo tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos actos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas. Por isso, a minha avó Clara escrevia nos seus cadernos para ver as coisas na sua dimensão real e para enganar a má memória. E agora procuro o meu ódio e não consigo encontrá-lo. Sinto que se apaga na medida em que explico a mim própria a presença do coronel Garcia e de outros como ele, que compreendo o meu avô e tomo conhecimento das coisas através dos cadernos de Clara, das cartas da minha mãe, dos livros da administração de Las Tres Marias e de tantos outros documentos que estão agora sobre a mesa, ao alcance da mão. Ser-me-á muito difícil vingar todos os que têm de ser vingados, porque a minha vingança não seria mais que outra parte do mesmo ritual inexorável. Quero pensar que o meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio, mas apenas encher estas páginas enquanto espero o regresso de Miguel, enquanto enterro o meu avô que descansa agora a meu lado neste quarto, enquanto aguardo que cheguem tempos melhores, gerando a criança que trago no ventre, filha de tantas violações ou talvez filha de Miguel, mas sobretudo minha filha.
A minha avó escreveu durante cinquenta anos nos seus cadernos de anotar a vida. Guardados por alguns espíritos cúmplices, salvaram-se por milagre da pira infame onde morreram tantos outros papéis da família. Tenho-os aqui, a meus pés, atados com fitas de cores, separados por acontecimentos e não por ordem cronológica, tal como ela os deixou antes de se ir embora. Clara escreveu-os para que me servissem agora para resgatar as coisas do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O primeiro é um caderno de delicada caligrafia infantil. Começa assim «Barrabás chegou à família por via marítima...»
Isabel Allende
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