Biblio VT
Numa tarde de Março, fustigados pelo vento áspero que soprava, os transeuntes apressavam o passo, mostrando poucos desejos de passearem. A chuva, de mistura com granizo, começava a cair. Uma pequena, que saía duma casa de frutas, para se abrigar, ergueu sobre os cabelos louros o xaile que lhe cobria os ombros e começou a correr, ágil e leve como um fogo-fátuo. Em dois minutos alcançou uma grande casa de andares, muito velha, pela entrada da qual desapareceu o seu frágil e pequeno ser.
Para além do pátio estreito e escuro, outro edifício se erguia, de cinco andares, cheio de fendas e de numerosas janelas. A pequena internou-se no corredor dessa parte do edifício e começou a subir a estreita escada de tijolo e madeira. O corrimão velho e gorduroso, as paredes dum verde desbotado, donde haviam caído grandes pedaços de caliça, o cheiro a bafio das cozinhas e das pias de lavar, tudo revelava uma casa onde só vivia gente pobre.
No terceiro andar, uma mulher, que descia, perguntou à pequena:
Boas-tardes, Lila... Como tem passado tua mãe, nestes dias?
Sempre pouco bem, D. Justina,
Este tempo não ajuda nada os doentes. Se fizesse um pouco de sol, melhoraria logo.
Lila suspirou,
Não sei!... Está muito fraca!
.....
Depois de dirigir um amigável boa-noite à interpelante, uma vizinha muito prestável do seu patamar, continuou a subir até ao quinto andar, onde parou diante duma porta que ela mesma abriu.
Entrava-se directamente para a acanhada cozinha, dum asseio impecável. A seguir a esta ficava o único quarto da casa, onde a senhora de Sourzy reunira alguns restos da sua passada opulência,. Uma luz fraca iluminava o compartimento, que dava para o pátio, abafado pelo outro edifício de cinco ou seis andares. Perto da janela a senhora de Sourzy cosia. À entrada da pequena levantou o rosto pálido, juncado de numerosas rugas.
Estás molhada, minha querida?
Nada, minha mãe, quase nada. Corri, e depois é muito perto... Mas como nos sentimos bem, quando entramos aqui!
Lila, falando, tirou o xaile que lhe cobria os admiráveis cabelos, dum louro dourado. A sua delicada figura surgiu, toda rosada pela corrida e pelo frio, iluminada por dois grandes olhos pretos e aveludados, sobre os quais se alinhava a franja sedosa das pestanas castanhas.
Aproximando-se da mãe, deitou-lhe um braço em volta do pescoço e curvou-se para a beijar.
É preciso deixar agora esse trabalho, minha mãe. Os seus olhos não podem com esse esforço.
Preciso acabá-lo hoje, minha filha, para o levares amanhã à senhora Bordier.
Trabalharei nele esta noite, minha mãe. Deixe isso, peço-lhe.
E Lila, meigamente, tirou das mãos da mãe a peça de roupa branca quase terminada. Depois de lhe ter dado novo beijo, dirigiu-se para a cozinha, a fim de preparar o pequeno jantar.
A senhora de Sourzy seguiu-a com os olhos. Um suspiro dilatou-lhe o peito, e, juntando as mãos, murmurou, estremecendo: ”Minha querida filha, tão delicada e tão bonita!... Que existência a tua!... E o que nos acontecerá, se Lourença não nos responder?”
Enquanto a pequena ia e vinha, a mãe, uma vez mais, voltava o seu pensamento para a recordação dos anos de felicidade: os da sua infância, os da sua curta união com Adriano Sourzy. Depois as desgraças haviam começado: a morte do marido, a venda apressada e em más condições duma propriedade até ali próspera e a má colocação dos seus capitais, diminuíram rapidamente a fortuna da pobre viúva.” Esta, de carácter passivo e indolente, não teve a energia bastante para deter a corrente que a arrastava. A sua saúde também se alterou. O último golpe recebido, foi quando o que lhe restava para viver, sossobrou numa catástrofe financeira. Alquebrada por todas estas desgraças, abandonou a cidade da província onde vivia depois da sua viuvez e foi instalar-se em Paris, com a Lila, que tinha então dez anos.
Uma das suas amigas, que mantivera a sua amizade pela infortunada, conseguiu-lhe algumas lições. Porém a pobre caiu doente, teve de ficar vários meses em casa, e, quando melhorou, não encontrou mais os seus alunos, pois haviam procurado outras professoras”
As forças abandonaram-na por completo. Agora já quase não saía. A senhora Bardennes, sua amiga, era muito pobre e sobrecarregada com uma numerosa família, só podia apenas auxiliá-la dando-lhe conselhos e os endereços de diversas casas, onde Lila ia pedir, para sua mãe, alguma costura. A maior parte das vezes mandavam-na embora sem nada lhe darem. No entanto uma costureira de roupas brancas anuiu em lhe ceder algum trabalho, mas era muito mal paga e tinha de ser entregue em datas fixas. A senhora de Sourzy aceitou... e por isso gastava as suas últimas forças, juntando esse mísero ganho à sua pequena renda vitalícia dalgumas centenas de francos, os quais permitiam à mãe e à filha o não morrerem de fome.
Porém esta renda terminaria logo que morresse. Que sucederia então à Lila?... Isto era para a pobre senhora, que sabia a sua saúde irremediavelmente perdida, a terrível angústia de cada dia!... Lila era uma pequena encantadora, dedicada, de inteligência viva, de coração amante e delicado.... que dentro em poucos anos seria uma mulher muito bonita, bonita demais, ai dela! para viver sem um amparo.
Como parentes, a senhora de Sourzy só tinha uma prima do marido, a senhora Stanville, mais velha do que ela uns doze anos, viúva dum rico industrial inglês. Apenas se encontrara com ela uma vez, alguns meses depois do seu casamento, mas ficara com uma recordação pouco simpática dessa mulher morena, orgulhosa da sua fortuna e da sua posição, olhando altivamente para seus primos, os quais, ainda que bem naquela época, ficavam no entanto muito aquém da situação da prima, As suas relações tinham-se limitado ao envio duns cartões por ocasião da morte de James Stanville e da de Adriano de Sonrzy. Quando a ruína a atingiu, a senhora de Sonrzy pensou muitas vezes em pedir auxílio a Lourença de Stanville. Lembrando-se porém dessa altiva fisionomia, não se atrevia e dizia: ”Esperemos ainda!.. Talvez me possa salvar sem chegar a esse extremo...”
Foi preciso no entanto chegar até esse extremo... Com a mão a tremer e o coração em agonia, a senhora de Sourzy escreveu à prima, para lhe expor a sua situação. Um mês se havia passado depois disso... e nenhuma resposta tinha vindo a esse grito de socorro.
”A minha carta ter-se-ia extraviado?” perguntava a si mesma a pobre senhora, que o desespero começava já a dominar. ”Devo voltar a escrever-lhe?.... ou devo pensar que nada quer fazer por nós e nem se digna mesmo responder?. Não tem coração, conforme o meu pobre Adriano me disse muitas vezes. Este tinha por ela uma viva antipatia e ela também não simpatizava com ele, segundo parece. É evidente que são péssimas as minhas condições para conseguir alguma coisa!”
Enquanto assim pensava, acabrunhada, o crepúsculo insinuava-se no quarto, já sombrio durante o dia e sempre frio, pois nunca ali se acendia qualquer lume. O pequeno fogão da cozinha não conseguia aquecer o húmido aposento, mal fechado, onde o vento entrava à vontade. A senhora de Sourzy estremeceu, apertando mais estreitamente em volta dela a velha capa em que se envolvia.
Lila estendeu um guardanapo na pequena mesa, depois trouxe os pratos e dispô-los nos seus habituais lugares, tudo isto com movimentos ao mesmo tempo vivos e cuidadosos, Na sombra crescente, a senhora de Sourzy via cirandar o frágil vulto da pequena e o seu coração confrangia-se ao pensar na dedicação, na coragem, na inteligência e na viveza de que dava provas a adorada pequena, superiores à sua idade.
No silêncio do ambiente, uma pancada seca se ouviu na porta, repercutindo por toda a casa e fazendo estremecer a viúva.
Lila disse, pousando rápida, sobre a mesa, um copo que tinha na mão:
Aposto em como é o Lulu que se diverte a bater assim. Merecia que não lhe fosse abrir a porta!
Sem tirar o velho avental azul que havia posto, para fazer o serviço, a pequena dirigiu-se para a porta... Em lugar porém do Lulu, o filho da senhora Berdennes, encontrou à porta uma alta e forte senhora, vestida de preto, que perguntou secamente:
É aqui que vive a senhora de Sourzy? Lila balbuciou:
É sim, minha senhora.
Sou a sua prima Lourença. Diz-lhe que venho para lhe falar.
A senhora Stanville!... Faz favor de entrar.
Do seu quarto, a senhora de Sourzy tinha ouvido tudo. Tremendo bastante, levantou-se e dirigiu-se para a visitante, que Lila deixara entrar.
Como lhe agradeço, minha prima, o ter vindo até aqui!
A mesma voz seca replicou-lhe:
Gosto sempre mais de tratar todos os assuntos de viva voz... Vives cá muito em cima! Felizmente tenho ainda boas pernas!
A mão enluvada de lã preta estendeu-se para a senhora de Sourzy, que a apertou, balbuciando desculpas quanto aos seus horríveis aposentos.
Estou vendo que tens retrocedido muito nestes últimos dez anos. É incompreensível que alguém se deixe arruinar assim!... É na verdade incompreensível!
O desprezo vibrava na voz da senhora Stanville. A pobre doente balbuciou:
Há infelicidades...
Infelicidades?... Não creio, prima... É sempre essa a palavra com que muita gente tenta ocultar o desleixo! a incúria, os gastos supérfluos, as fortunas mal governadas...
Lila tinha ido para a cozinha a fim de acender o candeeiro. De lá ouvia a conversa, e o seu jovem coração, orgulhoso e sensível, estremecia de comoção e de cólera ao ouvir as duras e humilhantes palavras que iam magoar tanto a sua pobre mãe.
Quando entrou no quarto, com o candeeiro na mão, as duas senhoras estavam sentadas perto da janela, da qual não vinha mais do que um crepúsculo a desaparecer. A senhora Stanville curvou um pouco a cabeça para olhar para a pequena, perguntando:
É a tua filha, Ermelinda?
Sim, é a minha Lila, a minha consolação!... Continuando a examinar a pequena, dos pés à cabeça, a visitante perguntou ainda:
Que idade tem ela?
Doze anos, prima.
Doze anos?... Quem diria! Que fraquinha!... Carolina Bairn, a sobrinha do meu marido, tem a mesma idade, mas é muito mais forte do que esta.
A senhora de Sourzy observou timidamente:
Lila tem sofrido muito nestes últimos anos. Não tem suficiente alimentação, é pouco o ar nesta triste casa e trabalha muito para me ajudar. Contudo, se é magra, a saúde não lhe tem faltado, pois nunca esteve doente.
É muito bom para ela; sendo pobre, precisa de ter saúde para trabalhar. Mas falemos do principal, Ermelinda, pois tenho pouco tempo disponível. Cheguei ontem e parto amanhã à noite. Tenho de tratar dalguns negócios de que me encarregou o meu filho, relativos à nossa fábrica.
É ele que a dirige agora?
Depois da morte do pai tomou conta da direcção; e com quanto só conte vinte e três anos, tudo caminha admiravelmente sob as suas ordens. Hugo é dotado duma inteligência superior, servida por uma energia inflexível. Prevejo que os negócios atingirão, com a sua administração, uma prosperidade nunca atingida.
O orgulho fazia-lhe vibrar a voz seca, animava-lhe a dura fisionomia, sem beleza e sem encanto, bem como os olhos claros e frios.
As suas opiniões são infalíveis e não faço coisa nenhuma sem o consultar. Depois, é ele o chefe da família, e por isso toda a fortuna dos Stanvilles lhe pertence. Resolvemos que devíamos, como teus parentes, responder ao teu apelo, convidando-te a ires viver na nossa casa. Na tua carta disseste-me que tinhas seiscentos francos de renda, não é assim?
Sim, é tudo quanto possuo.
Uma espécie de ricto desdenhoso contraía os finos lábios da senhora Stanville.
Estás na verdade numa linda situação!... Enfim, concordamos em te tirar de embaraços, visto que fazes parte da nossa família. Irás para Breenwich, e aí tomaremos a nosso cargo as tuas despesas de alimentação e as que forem necessárias para instruirmos esta pequena, a qual é preciso preparar para um dia ganhar a vida.
A angústia e a humilhação comprimiam o coração da senhora de Sourzy. Esperava que lhe estabelecessem uma pequena renda, que lhe permitisse viver muito simplesmente e ao mesmo tempo acabar de educar a filha. Em vez disso ofereciam-lhe e de que maneira! uma hospitalidade que não passaria duma triste escravidão, sob o jugo daquela mulher orgulhosa e má!... E no entanto era necessário aceitar, pois não lhe era permitido o direito de escolha!
Balbuciou:
Mas, minha prima, vai ser um incómodo para todos vós.
Espero que não. À casa é grande e posso instalar-te com facilidade. As refeições serão em comum connosco. Depois encarregar-me-ei de te arranjar qualquer ocupação... Falas inglês?
Falo, tanto eu como a Lila.
Muito bem. O meu filho e eu falamos frequentemente o francês, entre nós, Os criados porém ignoram-no, a não ser o criado de quarto de Hugo e a minha criada particular, que é normanda... Muito bem, está combinado?
A senhora de Sourzy, crispando as mãos na velha saia, respondeu com voz trémula:
Fico-te muito agradecida... Aceitamos ir para Breenwich e esforçar-nos-emos por não te incomodar.
Está combinado, Podem ir já na próxima semana, se quiserem; os vossos quartos estarão prontos... Perto da nossa casa existe uma pequena escola, onde a Lila receberá uma instrução bastante para a sua posição uma instrução prática, sobretudo.
E assim falando, levantou-se. O seu alto corpo endireitou-se, coberto por uma ampla capa preta, de corte deselegante, mas quente e confortável. Perto dela a senhora de Sourzy, muito magra e doente” quase desaparecia.
Passa bem, Ermelinda. Escreve-me, se tiveres qualquer informação a pedir-me... Penso contudo que não precisarás, pois tenho o hábito de prever tudo. Tens aqui o horário dos comboios e dos vapores...
Tirou da bolsa um papel, que deu à prima.
Quanto à importância necessária para a viagem, creio que não a tens?
Oh! não!...
O olhar inquiridor da senhora Stanville deu uma volta ao aposento e parou sobre uma pequena secretária de pau-rosa.
Podes vender isto, que tem um certo valor. A senhora de Sourzy balbuciou:
Conservei-a até agora por ser a última recordação de família que me resta e que minha mãe muito estimava. Mas vendê-la-ei... sim, para pagar as despesas da viagem e algumas dívidas...
Dívidas a quem?
Na farmácia, no talho, e um mês atrasado de renda de casa...
Total?
Mais ou menos trezentos francos, penso eu.
Mais ou menos?... Não sabes ao certo?... Se sempre te comportaste assim nos teus negócios, não admira que chegasses a este estado!...
A pobre senhora curvou a cabeça ante esta ironia. A senhora Stanville prosseguiu:
Trezentos francos!... Este móvel vale bem oitocentos ou mil, pois estas coisas vendem-se caro, na nossa época, Cuidado, que não te roubem!... Quanto ao resto, arranjarás pouco, porque é tudo sem valor...
Saiu, depois de ter estendido a mão à prima, que murmurou um rápido agradecimento. Lila acompanhou-a até ao patamar e no descer da escada escura, para a alumiar, A senhora Stanville levantava alto a saia e punha todo o cuidado por não tocar nas paredes e no corrimão. No corredor do rés-do-chão tropeçou num tijolo desligado da parede. Magoando-se, resmungou:
Que casal... Devem ficar bem reconhecidas às pessoas que vêm tirá-las desta miséria!
O coração de Lila sentia-se indignado, Quando entrou no quarto, encontrou a senhora de Sourzy, que a estava esperando, de cabeça inclinada sobre uma cadeira.
Oh! minha mãe, que mulher tão má!... Será possível que sejamos obrigadas a ir viver para casa dela?
Que remédio, minha filha!
Lila ajoelhou-se perto da mãe, e pegando na sua mão gelada, apoiou nela os lábios.
Minha mãe, se já fosse mulher, preferiria trabalhar todo o dia e noite, do que aceitar este oferecimento!
Mas tu és ainda uma criança, minha filha!... e eu estou fraca, exausta), É preciso aceitar o oferecimento que nos fazem... É preciso em absoluto, minha filha...
A pequena teve um momento de revolta.
Temos então que aceitar o que ela nos der?... Mas não posso aturar isso, minha mãe!...
O olhar inquieto e doloroso da doente fitou aquela delicada fisionomia, toda palpitante e onde os olhos brilhavam com ardente altivez.
Lila, é preciso habituares-te a suportar tudo... Compreendeste bem?... Seremos sempre os parentes pobres... os parentes que vivem na sua dependência, que devem curvar a cabeça e agradecer. O teu carácter é altivo e delicado, mas na nossa situação deves reprimi-lo, acostumar-te à humildade.
A sua mão trémula acariciou-lhe os lindos e sedosos cabelos.
Lila disse com veemência:
Ah! como eu vou aspirar pelo fim dos meus estudos, para escapar a essa servidão, para viver e sustentá-la, mãezinha, com o meu trabalho!
A mãe, suspirando, pensou: ”Com tanto que eu viva até lá, minha querida filha!... Quanto não sofrerá ela, tão terna e tão sensível, junto dessa Lourença dotada dum coração tão frio?”
Durante um momento ambas se calaram, num silêncio pesado de angústia. Depois a senhora de Sourzy murmurou, lançando um olhar para a secretária de pau-rosa:
Precisamos falar com a senhora Burdennes, quanto à venda deste móvel, Lila. Poderá, talvez, dar-nos o endereço dalgum antiquário consciencioso...
Pobre e querido morei, custa-me separar-me de ti!... Representaria tão pouca coisa para a Lourença, o evitar-me este sacrifício!... Sim, pouca coisa, meu Deus!...
Juntando os dedos magros, suspirou, dizendo baixinho:
Que a tua vontade seja feita, Senhor!
A família Stanville era de origem normanda. Na época em que Henrique V reinava na Inglaterra, o cavaleiro Hugo de Stanville, tendo desposado a filha dum negociante inglês, veio viver para Breenwicb, tornando-se sócio do sogro, Sob a direcção desse homem inteligente, enérgico e empreendedor, a fábrica de tecidos, que se encontrava em más condições administrativas, tomou um novo incremento. Os cofres vazios encheram-se de novo de ouro sonante e a fábrica entrou numa nova fase de prosperidade, o que dentro em pouco os levou a uma verdadeira opulência.
Hugo Stanville teve sucessores que o continuaram dignamente. Quase todos foram grandes trabalhadores, inflexíveis para consigo mesmo e para com os outros; económicos e hábeis nos seus negócios, mantiveram-se sempre duma probidade inatacável. Alguns, em horas críticas, puderam auxiliar os seus soberanos e algumas outras altas personalidades, prestando-lhe óptimos serviços monetários, dos quais foram recompensados com honrosas vantagens. Foi assim que o avô de James Stanville, o marido da senhora Lourença, recebeu do rei o pariato, com o título de lord. O prestígio de que já gozava esta opulenta família, em Breenwich e em todo o condado, aumentou consideràvelmente com esta distinção... Mas nem o novo lord, nem seu filho, mudaram coisa alguma nos seus hábitos de trabalho e economia. Ocupavam-se eles próprios da direcção da fábrica, como o tinham feito a maior parte dos seus antecessores, e manejavam com firmeza os trabalhadores, segundo uma tradição bem conhecida.
Hugo Stanville, o filho de Lourença, parecia disposto a trilhar o mesmo caminho a ultrapassá-los mesmo, como industrial.
No ângulo formado pela praça e uma pequena rua estreita, erguia-se há séculos a pesada fachada de Stanville-House, recortada de altas janelas e decorada com três maciças sacadas de pedra. Uma porta de madeira grossa, chapeada de ferro, abria para um grande vestíbulo lajeado, ao fundo do qual se elevava uma imponente escadaria de granito, sóbria e severa como toda a casa. Nos vastos aposentos do rés-do-chão e do primeiro andar, existiam bonitos, sólidos e velhos móveis, conservados com meticuloso cuidado. Pesados brocados e veludos espessos cobriam as cadeiras e ocultavam as janelas. Nos armários de fundas prateleiras acumulavam-se tesouros em prata e pilhas de soberbas roupas brancas, orgulho da senhora Stanville, depois de ter sido o das suas antecessoras, Uma impressão de riqueza sólida, pesada sufocante mesmo, se revelava em toda a casa, tanto no interior, como no exterior.
Na pequena rua vizinha, estreita, escura e mal calcetada, existia um largo portal, no meio dum alto muro cinzento. Para além desse muro elevavam-se as construções da fábrica, ligadas a Stanville-House por uma galeria sustentada por arcarias de pedra, passagem reservada ao dono, para ir directamente de sua casa para os escritórios, os quais dirigia como um autócrata, pondo no entanto o máximo cuidado na resolução dos seus mais importantes negócios, os quais aumentavam cada vez mais.
O dono... Era este nome, e não o mais moderno, de patrão, que os operários e os empregados de todas as categorias continuavam a dar a Hugo Stanville. A tradição entre eles mantinha-se de pais a filhos. esta denominação não tinha naquela casa o sentido afectuoso que lhe davam outrora, tão frequentemente, os criados e os trabalhadores doutras casas, que chegavam quase a ser considerados como fazendo parte da família. Os Stanvilles, no decorrer dos séculos, tinham sido temidos, mas poucas vezes amados. Seguravam os operários pela necessidade, pois só eles davam trabalho a toda aquela gente de Breenwich, velha cidade da aristocracia, sem outra indústria além desta fábrica, mesmo nos arredores.” Por isso Hugo pôde declarar um dia, ao falar em greves com outro industrial:
Se um dia se dá uma coisa dessas na minha casa, fecho a fábrica e nada neste mundo me convencerá a reabri-la.
Ora, sabia-se muito bem que manteria a sua palavra. A sua mão de ferro podia por isso pesar como lhe agradasse e manter uma disciplina inflexível. Não existia um ser, empregado na sua casa, do mais humilde ao mais importante, que não curvasse o rosto e não sentisse um estremecimento de receio e de mal estar, sob o olhar cintilante e deveras inteligente, mas duro e imperioso, desse jovem, que era na verdade o chefe, tão detestado como talvez nenhum dos Stanvilles o tivesse sido até aí, tal era a educação infiltrada por James Stanville, e sobretudo pela esposa, na alma dessa criança admiravelmente dotada, sob todos os pontos de vista, mas em quem haviam exaltado o orgulho, fechado o coração, insuflado tendências denominadoras, persuadindo-o de que era um ente à parte, muito acima do comum da humanidade, assegurando-lhe que a bondade, a indulgência e a caridade eram palavras com as quais um Stanville não se devia preocupar.
Se a senhora de Sourzy conhecesse isto, as suas apreensões, já tão dolorosas, não diminuiriam, mas sim, antes pelo contrário!...
Numa tarde chuvosa e fria desceu ela e Lila na estação de Breenwich. Ninguém as esperava. Lila procurou sair-se o melhor possível das dificuldades. Dentro de pouco subiu com sua mãe, alquebrada de fadiga, para um carro, que as levou à porta de Stanville-House.
Um criado carrancudo, com os cabelos a embranquecer, recebeu-as e fê-las subir para o segundo andar, onde ficavam os seus quartos. Estes eram dois grandes aposentos, convenientemente mobilados, mas sem conforto. Não havia fogão e a senhora de Sourzy disse, estremecendo:
Creio que no próximo inverno teremos mais frio aqui, do que no nosso pobre casebre!...
As janelas davam para um vasto jardim, impecavelmente tratado, tratado mesmo demais para o gosto de Lila, que murmurou:
Este jardim deve ser triste, mesmo quando cheio de sol!...
Depois, vendo a fisionomia abatida e sem coragem da mãe, esforçou-se por dominar as dolorosas impressões, fingindo certa alegria; falou nalgumas arrumações a fazer, para dar ao quarto da senhora de Sourzy um aspecto mais hospitaleiro.
A senhora Stanville não apareceu. Uma criada de quarto trouxe o chá, mas não ofereceu os seus serviços. Informou apenas as recém-chegadas sobre a hora do jantar, acrescentando que a senhora Stannville lhes recomendava a mais estrita pontualidade.
Antes de deixar Paris, a senhora de Sourzy comprara para ela um vestido preto, e para Lila, um cinzento, muito simples.
Eram muito modestos, sobretudo para os hábitos ingleses na refeição da noite. Porém ela não os podia usar melhores.
Quando pagou as dívidas e pôs de lado o dinheiro necessário para a viagem, sobrou-lhe apenas, da venda da secretária, o bastante para comprar alguma roupa branca, uns sapatos, os dois vestidos e alguns objectos indispensáveis.
Se a senhora Stanville não nos achar bem, vestir-nos-á à sua vontade! declarou Lila, passando uma última vez a escova pelos cabelos, antes de descer.
Num grande salão, onde ardia um fogo de antracite, que não conseguia aquecê-lo, a senhora Stanville trabalhava numas malhas, à luz duma lâmpada eléctrica colocada junto dela, em cima duma pequena mesa com o tampo de mármore. Do outro lado dessa mesa, uma jovem muito alta, com o corpo anguloso, o rosto magro, semeado de sardas, e os cabelos dum louro muito pálido, trabalhava indolentemente numa tapeçaria.
Foi assim que as recém-chegadas a encontraram,
Era Carolina Bairn, sobrinha do falecido senhor Stanville, uma órfã que Lourença ajudara a criar.
A sua fisionomia desagradável e o seu ar arrogante explicavam a impressão antipática que o seu todo produzia. Examinou de alto a baixo a senhora de Sourzy e a sua filha Lila, estendendo-lhes depois a ponta dos dedos, num gesto de quem cumprimentava por favor.
Quanto à senhora Stanville, depois de lhes ter feito uma fria recepção, começou a interrogar a senhora de Sourzy sobre os mínimos factos da viagem, até que abriram uma porta ao fundo da sala. Na penumbra apareceu uma silhueta de homem, esbelta e alta... Lourença interrompeu-se, e disse num tom onde vibrava a satisfação e o orgulho:
Eis o meu filho.
Stanville adiantou-se e dirigiu algumas correctas palavras de saudação à senhora de Sourzy. Tinha uma voz clara e bem timbrada, mas a entoação dura e autoritária devia ser a habitual. O seu rosto ficou na sombra, visto que o quebra-luz da lâmpada reflectia a luz toda sobre a mesa. Destacavam-se-lhe apenas os olhos investigadores, que examinaram num rápido golpe de vista as recém-chegadas.
Tendo a senhora de Sourzy começado a exprimir o seu reconhecimento pela hospitalidade que lhe concediam, interrompeu-a com fria delicadeza.
Cumpro somente um dever para com uma parenta de minha mãe. Espero que se habituem depressa à nossa Breenwich.
A senhora de Sourzy balbuciou:
Oh! em Paris só tive desgostos. Não sinto da sua vida saudades algumas.
O jantar foi anunciado nessa altura. Na sala de jantar, ornada com velhos móveis de carvalho esculpido, um homem de meia idade, que esperava ao fundo da sala, saudou a senhora Stanville. Hugo apresentou-o à senhora de Sonrzy.
Lila, colocada ao fundo da mesa, pôde olhar bem para Stanville, iluminado nessa ocasião a plena luz. Todos os traços dessa fisionomia morena, de linhas bem modeladas, denotavam firmeza uma dureza mesmo. Os cabelos castanhos e sedosos, cortados à escovinha, deixavam ver uma fronte voluntariosa. Nos olhos escuros, muito bonitos, reflectia-se um grande poder de energia e de inteligência, uma decisão orgulhosa, o que lhe dava ao semblante dez anos mais do que a sua verdadeira idade.
Era um bonito homem, duma distinção muito aristocrática, dum porte correcto e quase severo, o que lhe tirava a aparência da juventude própria dos vinte e três anos.
Lila sentiu um pequeno estremecimento, ao pensar:
Não tem ar de bondoso, este Stanville. Suponho que não deve ser agradável contrariá-lo.
O secretário, um homem pequeno e magro, de tez amarela e olhos vivos, devia ser dessa mesma opinião, a julgar pela maneira discretamente aduladora com que escutava as menores frases saídas dos lábios de Stanville. Este, aliás, falava pouco. Dirigiu algumas palavras à senhora de Sourzy, sentada à sua direita, trocou algumas curtas ideias, sobre política, com Huntler, e escutou distraidamente o relato dos menores acontecimentos de Breenwich, que lhe fez a mãe. Esta, vestida de seda preta, um pesado alfinete de brilhantes no peito, olhava para ele com idolatria”. Quanto a Carolina, que ocupava o lugar à esquerda do primo, parecia extasiada, quando o fitava, o que acabou por divertir muito intimamente a Lila.
É tola pensou com ela. Que modo estranho de olhar para ele... o qual, aliás, parece não lhe prestar a menor atenção!... Mas, agora reparo, parecem estar todos de joelhos diante dele. Será preciso que nós façamos o mesmo?
Neste ponto das suas reflexões encontrou o olhar de Stanville, esse mesmo olhar penetrante, altivo e indiferente, que a tinha fitado há pouco no salão, quando a mãe a apresentara ao dono da casa.
Corou e teve um arrepio de constrangimento, como se Stanville pudesse adivinhar a revolta da sua jovem alma orgulhosa, ao pensar que exigiriam dela, talvez, humilhantes submissões para com os donos da casa, que tinham entre as suas mãos a sorte dela e a da mãe.
Logo que acabou o jantar, o senhor de Stanville pediu licença às duas senhoras e afastou-se em companhia do seu secretário; Lourença seguiu-o com um olhar orgulhoso... Mal a porta se fechou sobre ele, voltou-se para a sua parenta e exclamou:
Vai trabalhar até tarde da noite!... É nisso que ele encontra prazer, o meu belo Hugo, numa idade em que os outros só pensam em se divertir. Viste como é um homem forte? A sua parecença com um irmão de meu pai é flagrante. Mas, graças a Deus, difere dele moralmente, tal como o dia da noite! No moral, é um Stanville, um perfeito Stanville.
Assim, desde essa noite, a senhora de Sourzy e Lila compreenderam muito bem que Stanville era naquela casa o todo poderoso, e que a sua própria mãe, tão autoritária, admirava-o com devoção e diante dele não manifestava a sua vontade. Compreenderam também que este jovem, de fronte altiva e de olhos friamente dominadores, não sentiria mais do que indiferença pelos seus infelizes parentes, a quem havia concedido o abrigo do seu teto.
Desde manhã cedo, um sol de primavera veio aquecer um pouco os grandes quartos, onde, no dia seguinte, acordaram a senhora de Sourzy e Lila. Esta vestiu um traje ligeiro e desceu, a fim de pedir o pequeno almoço de sua mãe, que uma noite de insónia tinha enfraquecido muitíssimo. Logo que desceu a escada, parou indecisa sobre o caminho a tomar; avistando um criado, de aspecto carrancudo, que atravessava a sala com um prato na mão, dirigiu-se para ele e perguntou:
Faz favor de me dizer por onde devo ir, para poder tomar o meu café?
Respondeu-lhe com a ponta dos lábios:
Siga-me.
À direita da sala de jantar abriu uma porta e fez entrar Lila num aposento forrado de carvalho, de alto a baixo, iluminado por estreitas e altas janelas, guarnecidas de lindos vitrais antigos. Uma mesa quadrada, coberta por uma grossa toalha adamascada, ocupava o centro. Era ali que serviam a primeira refeição, que a senhora Stanville, seu filho e Carolina acabavam de tomar.
Logo que Lila entrou na sala, interpelaram-na num tom brusco:
Linda estreia, sim senhora!... Chegas atrasada logo no primeiro dia!...
Peço-lhe perdão, minha prima... Não sabia,.
Está bem, senta-te. Porém toma cuidado em não fazer outra, porque ficarás sem refeição,. A tua mãe não vem?
Passou mal toda a noite e sente-se muito fraca para se poder levantar. Venho pedir-lhe licença para lhe levar o almoço ao quarto.
Lourença contraiu os lábios.
Não gosto disso. Naturalmente, com um bocadinho de boa vontade podia ter descido!... Enfim, desde tque isso se não repita!... Encarregar-te-ás de a servir, pois os criados têm mais que fazer... Logo que acabes de comer, o Domingos dar-te-á uma bandeja, sobre a qual disporás o que for necessário.
Stanville, que percorria um jornal, respondeu com um pequeno movimento de cabeça à saudação tímida da pequena. Esta sentou-se à mesa e recebeu das mãos de Lourença uma chávena de chá.
Serve-te de torradas disse a mesma voz seca. E apressa-te, pois tira-se a mesa quando saimos da sala.
Enquanto Lila começava a comer, com o coração” deveras opresso, a senhora Stanville examinava-a com toda a atenção,. De repente disse num tom de censura:
Que modo de te penteares! Esses cabelos ondulados não te ficam bem.
São ondulados, naturalmente, minha prima. Não consigo impedir que se anelem...
Sim, sim!... Sempre se consegue, quando se quer. Vais-me fazer o favor de te pentear doutro modo... Por exemplo, aqui como a Carolina.
Designou os cabelos desgraciosos da sobrinha: lisos, secos, presos em duas pequenas tranças, que caíam, muito espetadas, dum e doutro lado do pescoço.
Lila objectou timidamente:
Não é a mesma coisa...
Nesse momento Stanville levantou os olhos, admirou com um olhar a cabeleira ondulada, com tons de ouro vivo, e depois acabou de tomar o seu chá.
Lourença franziu as sobrancelhas.
És teimosa?... Sendo assim, terei de corrigir-te desse defeito!... Amanhã de manhã deitarás óleo nos cabelos e apertá-los-ás bem, em duas tranças. O resultado, tenho a certeza, será satisfatório.
Lila conservou-se calada, compreendendo que não seria a mais forte ai dela!... e que isto era apenas o começo das contrariedades que a atormentariam sob este teto.
Hugo levantou-se, trocou algumas palavras com sua mãe e saiu, seguido pelo olhar adulador de Carolina.
A senhora Stanville perguntou:
Terminaste, Carolina?... Então veste-te, para a Matty te acompanhar ao colégio, Na próxima semana, Lila, apresentar-te-ei à directora do colégio Lebson. Daqui até lá procurarás trabalhar em qualquer coisa aí de casa. Dou-te licença, hoje, para ires passear até ao jardim, mas não toques em coisa alguma.
Acedendo aos pedidos de sua mãe, Lila, à tarde, aproveitou a licença dada. Internou-se nas bem alinhadas alamedas do vasto jardim, decorado com canteiros, de formas sem graça e flores dispostas com falta de gosto, que ela notou logo, pois tinha o sentido da harmonia e da beleza. Passeando, atingia um velho muro revestido de hera, onde existia uma porta, que com certeza há muito não abriam, pois a fechadura estava coberta de ferrugem.
Lila, chegando até ali, preparava-se para voltar, quando uma voz se elevou do outro lado do muro, uma voz jovem, leve, bem educada, de timbre sonoro e brilhante. A pequena parou, de ouvido atento, a fim de não perder nota alguma daquele canto... Este, aliás, parecia aproximar-se...De repente, por cima do muro, surgiu uma cabeça de rapaz, loira e delicada. A boca que acabava de soltar uma vocalização, abriu-se de espanto durante uns segundos. Depois o jovem desconhecido começou a rir, sem constrangimento.
Perdão, não sabia que estava aí alguém! A senhora ouviu-me cantar?
Lila, que a surpresa fizera corar um pouco, respondeu afirmativamente, acrescentando:
E tem uma voz muito bonita!
Dizem, e por isso a tento educar. Apesar de que na minha casa todos cantam e tocam qualquer instrumento!... E a senhora?
Comecei a estudar piano, mas não pude continuar. No entanto gosto muito de música!
Ah! mas não será em Stanville-House que lho permitirão!... Suponho que é uma das parentas francesas, que a nobre senhora esperava e que teve o cuidado de anunciar a todo o Breenwicht, para que caíssem de admiração ante a sua generosidade?
Sim, sou Lila de Sourzy. 30Como tenho pena de si!.
Era uma piedade sentida, pois se reflectia nos seus olhos azuis, claros e ternos.
Viver em Stanville-House!... sob o jugo do senhor de Stanville e de sua mãe!... Valia mais fugir vivo para uma geleira ou fechar-se num calabouço sem luz e sem ar!... Tocar música... Loorença detesta-a, e considera-a uma arte inútil e aborrecida mesmo! Imagine como somos julgados nessa casa! Tocamos de manhã à noite, e além disso somos pobres. Isto era mais do que o preciso para sermos desprezados pelos nossos riquíssimos primos.
Seus primos?
Sim, somos parentes pelo lado dos Stanvilles por minha mãe. Porém esta pertencia a um ramo pobre, e desposou um compositor irlandês de grande talento, Daniel O’Feilgen, que morreu novo ainda, deixando-lhe por única herança algumas dívidas e cinco filhos, o mais velho dos quais sou eu, e chamo-me Joé. O senhor Stanville e sua mãe olham-nos de alto, como bem pode imaginar. Quando minha mãe, depois da sua viuvez, teve que vir solicitar auxílio aos seus parentes, foi recebida cortesmente, mas sem benevolência, e concederam-nos, como uma insigne graça, a posse desta velha casa.
E designou qualquer coisa atrás dele... Tudo está a desmoronar-se, tudo ameaça ruína! Porém o senhor James recusou fazer o menor reparo. e não será ao filho que nos atreveremos a tal pedir!... Sua senhoria deve achar esta casa mais do que suficiente para pobres diabos como nós, indignos da sua augusta atenção... Enfim, isto evita-nos o termos de pagar aluguer, pelo menos enquanto restarem as paredes e o teto!
E começou a rir. A alegria vibrava nos seus olhos, animava-lhe a tez clara... Lila achou-o muito amável e muito simpático. Depois era também um parente pobre como ela. Isto estabelecia como que um laço entre eles.
Joé, tendo-se sentado comodamente no muro, olhava-a com atenção. Disse num tom sincero de admiração:
Tem uns lindos cabelos! Isso deve causar raiva à presumida Bairn, que só tem fios de estopa na cabeça!... É feia e desagradável!... Todavia, porque tem dinheiro, a senhora Stanville trata-a como filha.
É verdade, parece que não é nada amável!... Vêm algumas vezes a Stanville-House?
Nós? Uma vez por ano, no dia um de Janeiro, com toda a cerimónia!. E é mais do que o suficiente! O senhor Stanville não se dignou nunca aparecer; é a mãe que nos recebe e os dez minutos da visita passam-se a ouvi-la criticar as pessoas que esbanjam a sua vida e fortuna em ocupações estéreis e inúteis o que ouvimos com serenidade, apesar de sabermos a quem pretende atingir com o seu discurso.
Joé riu de novo, abanando a cabeça loura. Lila perguntou:
Como pode estar aí no muro?
Há aqui um pequeno patamar,.. Venha amanhã até aqui, a esta mesma hora, se puder. Trarei as minhas irmãs, que terão muito prazer em a conhecer.
Não peço mais, só desejo que elas se pareçam consigo. Que idade têm elas?
Catarina, catorze anos, e já toca muito bem piano. Daisy, a violinista, entra nos doze...
Como eu.
Não parece ter doze!... E depois tenho os meus irmãozitos: Pascoal, de nove anos, e Trick, de seis. Não nos aborrecemos em nossa casa, asseguro-lhe!... Não vivemos petrificados como aí... a sua mão estendia-se em direcção a Stanville-House. Que infelicidade ser assim tão rico e não aproveitar a riqueza!... Qualquer dia há-de encontrar o nosso parente transformado em pedra... a menos que não seja numa barra de ouro... Bem, até amanhã. Vou-me embora, pois ainda tenho que estudar piano. Venha visitar-nos com sua mãe. A minha ficará encantada, creia. Quanto aos meus irmãos, gostará deles logo que os conheça.
Pensa que nos darão licença?
Não precisam dizer nada à senhora Stanville.
E se ela sabe?
Sim... isso acarretar-lhe-ia qualquer dissabor... Por outro lado, pedir-lhe licença, é ir ao encontro duma recusa quase certa!... Enfim, pensaremos. Volta aqui amanhã para ver a Catarina e a Daisy?
Voltarei, se não mo impedirem.
Dirigiu à pequena um amigável gesto de adeus e desapareceu do outro lado do muro.
Na segunda-feira seguinte a senhora de Sourzy foi apresentar a Lila à directora do colégio, escolhido com antecedência pela senhora Stanville. Um colégio modesto, que nada tinha de comum com o colégio aristocrático que Carolina Bairn frequentava. Lourença tinha dado as suas instruções, segundo explicou a senhora Lebson à senhora de Sourzy. A pobre mãe susteve algumas objecções que pretendia fazer sobre certos pontos, compreendendo uma vez mais que tinha apenas de se submeter à servidão.
Sim!... uma servidão... pior que a dos criados de Stanville-House, os quais, ao menos, tinham a liberdade de procurar outra colocação, quando esta não lhes agradava!...
A senhora Stanville dissera-lhe, quando a fora ver a Paris: ”Encontrarei em que te ocupar”. Manteve a palavra. Uma criada de quarto com quem não estava satisfeita, despediu-a, e a senhora de Sourzy passou a substituí-la no arranjo da roupa branca. A pobre senhora cansava a pouca vista que tinha para satisfazer as exigências da prima, nunca contente, examinando tudo com exagero, resmungando sempre e dizendo que não prestava para coisa alguma... Lila, que fazia o possível por ajudar sua mãe, estava por seu lado sobrecarregada com o colégio e outras ocupações mais ou menos fatigantes, ”excelentes para a habituar à situação modesta que a esperava no futuro”.
Lourença parecia animada de má vontade contra a pequena. Com quanto Lila fosse uma criança bem educada, simples e discreta, tudo nela era motivo para crítica. Davam-lhe como exemplo os gestos bruscos e pretensiosos de Carolina, os seus olhos dissimuladamente baixos, a sua voz surda e arrastada. A senhora de Sourzy teve que suportar mais dura discussão a propósito dos lindos cabelos de ouro da filha, que obstinavam em se erguer e em se ondular, por mais que os alisassem. A senhora Stanville acusou-a mesmo de má vontade e de vaidade maternal. E como a pobre senhora tentasse protestar, interrompeu-a:
Eu sei o que digo!... Não vejo nos teus olhares a condescendência com que proteges essa jovem? Se tivesses um pouco de bom senso que fosse, sentir-te-ias desolada, ao veres tal cabeleira na cabeça da tua filha uma cabeleira que é capaz de a induzir, mais tarde, a proceder mal.
Oh! prima!...
Naturalmente!... Não foi preciso mais a Maria Madalena. Contudo uma mãe prudente deve empregar todos os meios para evitar isso... tingindo os cabelos, por exemplo.
A senhora de Sourzy não pôde conter um grito de horror”
Tingir os cabelos da Lila!
E porque não!
Stanville, que acabava de entrar na sala esta discussão teve lugar antes do almoço, ouviu as últimas palavras trocadas entre sua mãe e a senhora de Sourzy, e disse com impaciência:
Deixe lá isso, minha mãe. Que esta criança seja educada seriamente, é o importante. Não é preciso, para proceder mal, ter os cabelos como Maria Madalena, pois infelizmente temos todos os dias a prova disso.
Está bem, mas pode-se ser induzido com mais facilidade quando nos fazemos notar.
É evidente. No entanto essa ideia de pintar os cabelos, parece-me um pouco... esquisita. Creio que faria melhor renunciando a ela.
Como sempre, a senhora Stanville cedeu ante a opinião de seu filho, e os cabelos de Lila salvaram-se do perigo que os ameaçava. Se bem que, com toda a evidência, Hugo só agisse nessa ocasião por simples impulso de homem inteligente, a quem tais discussões, a propósito duma ninharia, impacientavam, e não por interesse pela pequena, a quem não concedia nunca a menor atenção, a senhora de Sourzy e Lila passaram a ter por ele uma grande gratidão, bem como pela decisão que tomara... a qual lhes permitia manter relações com a família O’Feilgen.
As irmãs de Joé frequentavam o mesmo colégio que Lila. Tornaram-se desde logo amigas, como o havia previsto o irmão. Uma loura e a outra morena, não eram bonitas, mas eram bondosas, amáveis e alegres como o irmão. Uma cantiga, um garganteio, estavam sempre prestes a escapar-se-lhes dos lábios, Lila achava-as encantadoras e desejava muito ir à ”Casa dos Rouxinóis”, como chamavam em Breenwich à moradia dessa família de músicos e cantores.
Não me atrevo a pedir semelhante coisa a Lourença, minha filha dizia a senhora Sourzy. Bem sei que isso te distrairia um pouco! A tua vida é tão triste nesta casa!... Mas Lourença não consentirá nunca, e sobretudo porque esses parentes lhes são antipáticos.
Um domingo, à saída da missa, Lila e a mãe encontraram-se com os O’Feilgen, Os dois grupos juntaram-se e regressaram a casa, conversando. A senhora O’Feilgen, de pequena estatura, morena e de rosto afável, insistia muito para que Lila fosse passar a tarde com as suas filhas. Diante do vivo desejo que os lindos olhos da filha mostraram, a senhora de Sourzy prometeu que falaria nesse mesmo dia à senhora Stanville.
Foi durante o almoço que se lhe dirigiu, para lhe fazer o pedido que tanto lhe custava... Lourença franziu as sobrancelhas e teve um gesto de desprezo.
A casa dos O’Feilgen? Umas cabeças sem miolo!... a desordem em pessoa!... Não!... não permitirei que a Lila tenha relações com eles.
No entanto, minha prima, a senhora O’Feilgen pareceu-me uma excelente pessoa, dotada de bons modos...
Não faltava mais nada do que ser mal educada... Pensas que se assim fosse, viveria numa casa nossa?... Critico-lhe a pouca cabeça que tem, a sua indolência e a maneira ridícula como educa os filhos, Pretendem ser todos artistas e ela deixa-os à vontade, apesar dos meus conselhos. Na sua casa é um desgoverno; cada um gasta mais do que pode e chegam mesmo a ficar sem terem de comer no dia seguinte. É uma família original... No teu lugar, Hugo, visto que não querem levar uma vida mais séria, punha-os fora daquela casa, para que fossem cantar para outro lado.
Stanville disse com indiferença:
Não me incomodam. Que se deixem estar!...
Oh! bem sei que não tem importância. Não precisamos daquele casebre!... E és da minha opinião quanto ao pedido feito pela Ermelinda?
O coração de Lila bateu apressado. A sentença que ia sair dos lábios de Stanville era decisiva, As belas pupilas aveludadas voltaram-se para ele, inquietas, imploradoras, sem quase ter consciência do que fazia. Encontraram aqueles olhos azuis e sombrios, onde nunca passava um reflexo de comoção, e que não se suavizavam ante o olhar da pequena... Stanville respondeu friamente:
Os O’Feilgen são pessoas honestas, apenas uns pobres cérebros, sem dúvida!... Lila encontra as pequenas no colégio, por isso a minha opinião é que pode permitir-se-lhe que os visite de tempos a tempos,
Seja!... Acompanharás a tua filha, Ermelinda, e tratarás de lhe fazer ver os defeitos dessa família, falta de ordem, incúria, desperdício, etc. de maneira a dar-lhe uma boa lição, que lhe pode ser muitíssimo útil, na sua posição. Assim, poderá tirar um grande proveito dessas relações, que, doutra maneira, lhe podem ser prejudiciais.
Um tímido olhar agradeceu ao senhor Stanville, Porém, afastando os seus olhos com orgulhosa indiferença, dirigiu uma pergunta ao secretário... Lila, por sua vez, encerrou-se na sua silenciosa alegria, que apenas manifestou quando ficou a sós com a mãe.
Muito contente por ter vencido, onde contava com uma recusa certa, bendisse a ideia que teve de falar na presença de Stanville. De tarde preparou-se para ir à ”Casa dos Rouxinóis” com a Lila. Saíram de Stanville-House, tristes, apesar do dia claro de Abril, e seguiram por uma rua ladeada de grades de jardins, até chegarem à casa dos O’Feilgen,
Outrora, um Stanville apaixonado por sua esposa, frágil e linda francesa que ia definhando entre as paredes de Stanville-House, mandou construir para ela esta casa, modelo encantador da arquitectura do século XVII. Porém agora, como bem salientara Joé, encontrava-se em ruínas. No interior, as paredes de madeira, delicadamente trabalhadas e noutros tempos brancas, não tinham então cor definida, os tetos pintados esboroavam-se e as tábuas do soalho despregavam-se. Quanto ao jardim, transformara-se numa pequena floresta virgem, onde brincavam satisfeitos Pascoal e Trick.
Não posso mandar arranjar coisa alguma
- explicou a senhora O’Feilgen às suas visitas, mostrando-lhes o primeiro andar da sua casa. Temos apenas o suficiente para vivermos, mas modestamente. O que não compreendo, é como os Stanvilles deixam arruinar uma casa como esta!... Disse isto mesmo um dia à Lourença. Ela porém encolheu os ombros e respondeu-me: ”Seriam umas obras muito Dispendiosas e inúteis. Quando a casa estiver completamente arruinada, mandá-la-emos demolir, é o que é,
A senhora de Sonrzy exclamou:
Que pena... Estas pinturas e esculturas são uma maravilha. É preciso que a senhora Stanville seja desprovida de todo o sentimento artístico!... E o filho, naturalmente, parece-se com ela nesse ponto?
Não sei. Ele nunca pôs aqui os pés, e, para falar a verdade, não o conheço. Um cumprimento, quando nos encontramos na rua, é tudo quanto se digna conceder-nos.
Será melhor do que a mãe?
Nada o deixa supor... Dizem que é inflexível para com os seus inferiores, orgulhoso e friamente autoritário, impondo que todos se curvem diante dele. No restante é duma inteligência superior... Contudo peço a Deus que me conceda a graça de não ter nunca que solicitar o seu auxílio!
E nós que temos de viver na sua dependência! murmurou a pobre senhora.
A O’Feilgen apertou-lhe as mãos com calorosa simpatia:
Como eu a lastimo!... Lourença é muito antipática!... Enfim, talvez a sua interessante filhinha consiga comover esses corações de pedra.
Lourença não gosta dela disse, abanando a cabeça, E por mim aflijo-me ao pensar que, se eu morrer, ficará na dependência dessa mulher!...
Mas talvez até lá já esteja uma pequena capaz de ganhar a vida, sem precisar do auxílio dos Stanvilles...
Não, não vivo até então!... Estou quase no fim... e não é a vida que levo em Stanville-House que me permitirá durar muito tempo!... Se ao menos
Stanville fosse outra espécie de homem!... Não me atreverei a recomendar-lhe a minha querida filha. Mete-me medo, faz-me constranger!... Depois, é tão novo!
Ele, novo!. Há homens de quarenta anos que parecem mais novos do que ele!... Stanville é a razão e a seriedade em pessoa, como orgulhosamente o proclama sua mãe. Se tivesse um pouco mais de coração, era talvez um ser quase perfeito.
O coração!... Oh! como vai sofrer com isso aminha pobre Lila! suspirou a mãe.
Quando as duas senhoras, depois de terem percorrido toda a casa, voltaram ao salão, onde já se encontravam as pequenas e Joé, estava junto delas uma jovem, alta, morena, vestida de branco, que a senhora O’Feilgen apresentou:
Rosa O’Feilgen, minha cunhada.
Esta jovem tinha vinte anos, elegante e belo porte, rosto moreno e regular, sobressaindo nele uns olhos cinzentos expressivos, e abundantes cabelos pretos que, apartados ao meio, lhe cobriam as orelhas. Vivia em geral em Londres, onde dava lições de canto e se fazia ouvir em concertos. Ha um ano porém adoecera da garganta, o que a obrigara a certo repouso. Tinha vindo por isso hospedar-se na ”Casa dos Rouxinóis”.
Com quanto se mostrasse amável e carinhosa, não agradou à pequena Lila. A mãe, menos observadora do que sua filha e sensível à primeira afabilidade, verdadeira ou não, ficou logo simpatizando com ela, devido ao seu olhar meigo, à sua terna voz e às maneiras insinuantes da bonita artista.
Lila passava agora todas as tardes dos domingos na ”Casa dos Kouxinóis”, sempre cheia de cantos, de risos e de música. Qualquer que fosse a situação monetária dos O’Feilgen, não se tornavam nunca melancólicos. Sem se preocuparem, viviam cada dia sem pensar no dia seguinte, gastando em qualquer ninharia ou gulodice aquilo que no outro dia talvez lhe fizesse falta para o necessário. A senhora de Sourzy concordava que, neste ponto, a altiva Stanville não exagerara. Faltavam nessa casa a ordem e uma boa direcção, e as crianças não recebiam aquela educação que lhes era necessária. A senhora O’Feilgen chegou a confessá-lo, certo dia, em conversa com a sua nova amiga.
Encontrei-me dum dia para o outro viúva e com cinco filhos nos braços, sendo o mais pequeno recém-nascido! Nunca fui enérgica confesso-o sinceramente! e não recebi uma educação prática... Enfim, fiz tudo quanto me foi possível para sair da situação embaraçosa em que fiquei. As crianças agora auxiliam-me na limpeza da casa e no arranjo da cozinha. Fazem-no de boa vontade, coitadas, mas têm pouca habilidade para essas coisas. Que quer?... todas elas salvo talvez o Pascoal têm a propensão artística do pai.
Desculpava por isso de boa vontade os defeitos desses encantadores amigos, que eram muito bons para com a Lila, fazendo todos os possíveis por a distraírem. Quase chegava a achar perfeita semelhante desordem e imprevidência, em especial ao compará-las à dura disciplina de Stanville-House.
Com viva satisfação da Lila, a senhora O’Feilgen começou a dar-lhe todos os domingos uma lição de piano, e a cunhada ofereceu-se para lhe ensinar solfejo; ambas afirmavam que a pequena era dotada de qualidades dignas de serem aproveitadas.
Possui todos os dons, como uma pequena princesa dos contos das fadas! exclamou Joé, rindo.
Gostava muito da Lila e, apesar dos seus vinte anos, brincava com ela e as irmãs em loucas correrias pelo jardim. Era um excelente coração, mas um cabeça no ar. Estudava música e canto, tendo como professor o organista de S. Miguel. Esperava partir para Londres no outono. Queria, dizia ele, preparar-se para o teatro.
Não digam porém palavra em Stanville-House recomendava ele à senhora Sourzy e à Lila. Não admitem essa carreira para um parente dos Stanvilles!... Qualquer outra espécie de trabalho faz parte das suas ideias! Quando a maior parte das pessoas, na sua situação, corariam, por deixarem seus primos ganhar o pão dando lições, como terão de o fazer minhas irmãs e sem dúvida, meus irmãos, eles acham isso perfeitamente natural. A senhora Stanville vangloria-se, dizendo às amigas: como vêem, não sustentamos a preguiça. O meu filho trabalha... Que os O’Feilgen façam o mesmo!
Cada vez que Lila regressava da <Casa dos Rouxinóis”, a senhora Stanville interrogava-a sobre o que tinha feito.
Brinquei com a Catarina, o Daisy e os pequenos... Passeámos...
abstinha-se porém de falar nas lições de música, nos pequenos concertos executados pelos jovens artistas, nos duetos cantados por Joé e Rosa, de todas essas alegrias afectuosas e encantadoras que eram a grande atracção da casa dos O’Feilgen.
Os meses iam passando e o inverno ia-se aproximando, o que passava a impedir a senhora de Sourzy de poder sair do quarto. As forças diminuiam-lhe dia a dia. Sofria sobretudo pela sua situação de dependência, pelas recriminações desagradáveis da senhora Stanville, pelas críticas acerbas e sempre injustas de que Lila era objecto. A sua saúde, com uma existência calma e muitos cuidados, poder-se-ia manter ainda por alguns anos, mas sentia-se definhar rapidamente sob a influência dos penosos atritos de todos os dias, pelo tormento que lhe causava a sorte futura da Lila e pelas privações que passava nesta casa de multi-milionários, pois que não se sentia com coragem para pedir aquecimento para o quarto, ou uma chávena de leite, quando o seu estômago doente recusava qualquer outro alimento, com receio das secas impertinências da senhora Stanville.
De vez em quando pensava: ”Deverei falar com Stanville, tentar comovê-lo?”
Porém quando voltava a encontrar-se com a gélida e altiva fisionomia, de olhos duros, indiferentes e desdenhosos, dizia, estremecendo: ”Não!... seria inútil, perigoso até, pois logo que a mãe fosse informada, a antipatia que tem pela Lila tornar-se-ia ainda maior”.
Esforçava-se por esconder da filha as suas aflições, mas a pequena, amorosa e delicada, adivinhava tudo, Recalcava ela própria o seu sofrimento, rodeava de cuidados a pobre senhora, aparentando, perto dela, uma alegria que estava muito longe de sentir, e proporcionava-lhe um bem estar compatível com o pouco dinheiro de que dispunham.
Ah! se não fosse Deus proibi-lo, como eu detestaria Lourença, que faz sofrer a minha pobre mãe! dizia ela às suas amigas O’Feilgen.
Nevou muito toda a semana antes do Natal. Apenas na véspera do dia de festa, depois do meio-dia, é que a neve cessou, Lila, ao voltar da escola, foi à ”Casa dos Rouxinóis para saber como estava a senhora O’Feilgen e os filhos, pois tinham-se gripado. Joé recebeu-a e introduziu-a na sala, onde a Rosa tocava uma berceuse de Chopin. Em cima da mesa o chá estava pronto. A senhora O’Feilgen ofereceu uma chávena à pequena, enquanto Joé cortava umas fatias dum bolo de grandes dimensões.
Aproveite, minha querida declarou ele, que se havia servido duma dessas fatias. Trouxe-o de Londres e não me custou caro, pois foi um amigo que me fez presente dele... É um bom rapaz! Desconfiou que a minha bolsa estava vazia e que não podia trazer qualquer coisa de presente, para o Natal.
Riu, e tomou uma chávena de chá com rum.
Que miséria!... Cá em casa é preciso fazer prodígios de imaginação para se poder comprar um bolo!... Em Stanville-House vão dar amanhã um grande banquete, não? Toda a boa sociedade da nossa terra assistirá... ou, melhor, só aqueles altos personagens, bem colocados e bem ricos.
Já andam por lá a preparar esse grande jantar do Natal. A minha mãe precisa ajudar as criadas a tirar as pratas, as toalhas de mesa, enfim, todos os aprestos necessários!... Pobre dela, que ficará bem cansada essa noite!...
Lila suspirou e a Rosa perguntou:
A sua mãe, naturalmente, assistirá a esse jantar?...
Oh! não!... Nunca aparecemos, quando têm visitas. Nesses dias jantamos no nosso quarto, e sou eu que vou buscar os pratos à copa, a não ser que nesse dia os criados se dignem servir-nos 1... Mas assim é melhor. Jantamos as duas sozinhas, sem a senhora Stanville, sem o filho e sem a desagradável Carolina!...
A companhia deles não deve ser muito agradável!... Jantar sob o olhar de Stanville... O meu estômago até gelava!... e no entanto amanhã terão bons pratos extraordinários!... Nas ocasiões de festa, fazem régias coisas, por tradição e por orgulho. Nos outros dias continuam a entesourar!... Que infelicidade! Oh! se tivesse os milhões do meu primo!...
Suponho que lhe desapareceriam depressa por entre os dedos disse Lila, sorrindo, a julgar pela rapidez com que um tostão foge do seu bolso. A virtude deve residir no meio termo: entre Stanville e Joé,
Tem talvez razão. Por mim gosto de gastar e de dar. Não posso amealhar... É da minha família!... Porque me olha assim, Lila?... Parece que está com cara de quem me recrimina.
Um pouco. A prodigalidade sem peso nem medida é um defeito.
Um defeito que não é desagradável para os outros, em todo o caso... Enquanto que a economia dos Stanvilles!... Repare, minha tia, como ela fica bonita com aquele capuz! Tem a aparência duma linda e pequena fada, que se esconde para visitar os pobres desgraçados!
Quem me dera ser uma fada para proporcionar outra existência à minha pobre mãe e aliviar todos os infelizes!... Preciso porém ir-me embora. Se Stanville me visse entrar, indagaria logo porque regresso tão tarde.
Que escravidão!... Mas se vai já, e como tenho que ir à cidade, acompanho-a até casa.
Foi buscar a capa e saiu com a pequena.
Já era noite escura. Joé e a sua pequena companheira caminhavam lentamente por sobre a neve escorregadia, na rua iluminada a electricidade... Um soluço, de repente, chegou-lhes aos ouvidos.
Lila parou e indicou a Joé um pequeno que, com o rosto escondido entre as mãos, se apoiava ao muro do jardim de Stanville-House.
Olhe aquele pobre pequeno... Que terá ele? Vamos perguntar-lho.
E Joé, sempre compassivo dirigiu-se para o pequeno, seguido da Lila, já toda comovida.
Que tens, meu pequeno?... Alguém te fez mal?
Este afastou as mãos, deixando ver um pobre rosto muito magro e inchado pelas lágrimas,
Não senhor... mas não tenho trabalho... e a minha mãe está doente... Vamos morrer de fome!...
Por que não tens trabalho?... Que fazias, meu pequeno?
Era empregado na fábrica...
Em Breenwich dizia-se apenas a ”fábrica”, sem que fosse precisa outra designação.
...Ganhava certos escudos por dia e trabalhava bastante. Alguns dias, porém, chegava um pouco tarde, por causa de ter de tratar da minha mãe. O contramestre toma nota de tudo e no fim da semana apresenta um relatório ao dono... Esta tarde, antes de passar pelo caixa, disse-me: ”É escusado vir mais, Billy. O senhor Stanville não gosta de ter empregados retardatários”.
Mas ele sabe as razões da tua falta de pontualidade?
Oh! sabe, sim, porque estava no relatório. Ele porém não faz caso dessas coisas... Agora estou sem emprego e a minha mãe sem poder fazer coisa nenhuma. Que irá acontecer-nos, meu Deus?
E voltou de novo a soluçar. Lila, cujos olhos se humedeceram, pegou na mão do pequeno.
Pobre miúdo!... E não há ninguém na fábrica que possa pedir por ti ao senhor Stanville? Oh! não, minha senhora!... Ninguém se atreveria!
E Billy sentiu um arrepio de pavor. Joé levantou a cabeça.
Já todos sabem isso... Não há nada a fazer, meu pobre pequeno. É preciso procurar emprego noutro lado.
Sou tão pequeno acrescentou ele, soluçando para a minha idade... e tão magro!... Ninguém quererá tomar-me ao seu serviço!...
Lila disse resolutamente. Escuta, vou tentar pedir ao senhor Stanville que te perdoe.
Joé exclamou:
Que vai fazer, Lila? Está louca?. Receberá um não irritante, e este pequeno nada conseguirá,
Vou experimentar... Talvez se comova, apesar de tudo...
Apiedar-se, ele?...Duvido muito!... No entanto, como é corajosa, tente!... Por mim, pensaria duas vezes antes de lhe fazer semelhante pedido”
Que arrisco eu, por isso?... Que me diga qualquer coisa desagradável?... É de presumir que não me coma!
Apesar da sua resolução tremeu um pouco e o coração bateu-lhe apressado quando, após ter subido a imponente escadaria de granito, tomou pelo largo corredor que, no primeiro andar, levava ao gabinete de trabalho de Stanville.
Era um aposento onde nunca havia entrado... Com os dedos bateu levemente na porta de carvalho” Ao mesmo tempo pensava: ”Oxalá que cá esteja!... Doutra forma não terei coragem para voltar...”
Uma voz breve disse:
Entre.
Lila deu uma volta ao fecho, empurrou a porta e encontrou-se no limiar dum vasto aposento, do qual a maior parte estava na penumbra. Toda a luz da única lâmpada acesa, sob um quebra-luz de porcelana verde, se concentrava na secretária, junto da qual estava sentado Stanville.
Este escrevia. Levantou a cabeça, e a sua fisionomia deixou transparecer uma grande surpresa ao ver a pequena.
Que vens aqui fazer?
Lila deu alguns passos para ele, dizendo com voz mal segura:
Perdoe”me vir incomodá-lo, senhor Stanville,.”
Venho-lhe pedir misericórdia para um pobre pequeno que hoje despediu, porque chegava um pouco atrasado ao trabalho. A mãe está muito doente, e ele não sabe como há-de sustentá-la...
A luz da lâmpada iluminava mal o rosto trémulo da pequena, emoldurado por um capuz preto, bem como os seus lindos olhos suplicantes e as suas delicadas mãos, postas, instintivamente.
Que significa isto?... Foi para me contares essa história que te atreveste a vir-me incomodar?... É preciso, na verdade, um grande arrojo!...
Falava, não encolerizado, mas com uma fria dureza, que tornava mais acentuado o seu olhar de desdém, fito em Lila com uma expressão de desprezo,
Merecias um severo castigo por te teres atrevido a isto. Vai-te embora e não te lembres mais daqui voltar.
Lila juntou as pequeninas mãos geladas, num gesto de súplica.
Oh! senhor Stanville, não se zangue comigo!... Torne a aceitar o pobre Billy, peço-lhe... Se tal não fizer, morrerá de fome...
Cala-te e vai-te embora.
Com a mão estendida e um olhar duro, indicou-lhe imperiosamente a porta.
Uma revolta explodiu de repente nessa alma jovem, ardente, generosa e caritativa, ante tamanha inflexibilidade e dureza. Esquecendo tudo, gritou num tom de vibrante indignação:
É muito mau!... É horrível o que está fazendo!...
Stanville levantou-se e aproximou-se com a mão erguida. O seu olhar zangado fitou a frágil pequena, tremendo sob a sua capa preta, mas procurando manter-se corajosa ante a ameaça, não curvando a cabeça, nem desviando mesmo o seu olhar orgulhoso. A sua mão fina e nervosa pousou-se sobre o ombro da Lila, que apertou como um torno.
Não sairás do teu quarto durante oito dias, onde ficarás a pão e água. Depois disso virás pedir-me perdão de joelhos. Espero que esta lição te aproveite, minha criança insolente. Caso contrário encarregar-me-ei de te dar outras... Vai embora.
Empurrou-a para o corredor e fechou a porta atrás dela.
Durante um longo minuto Lila ficou imóvel, quase sem pensar... Depois, como um autómato, tomou pelo corredor e subiu a escada que levava ao segundo andar.
À porta do quarto parou um momento e pensou, estremecendo: ”Que vou dizer agora à minha pobre mãe?”
Entrou por fim... A senhora de Sourzy, na obscuridade, descansava um pouco do trabalho do dia e perguntou:
Vens da Casa dos Rouxinóis, Lila?
Venho sim, minha mãe... Ou melhor... E deixou-se cair de joelhos... Depois os nervos distenderam-se-lhe de repente e começou a chorar. A mãe, inquieta, apertou nos braços a linda cabeça da filha e perguntou:
Que tens tu, Lila?... Vamos, diz-me depressa!... Alguém te fez mal?...
Por último os soluços cessaram um pouco e Lila pôde contar o que se tinha passado.
A pobre senhora não conseguia dissimular o seu medo.
Pobre criança!... Podias provocar a nossa expulsão desta casa!... Não é essa a melhor maneira de conquistar as graças de Stanville!
Oh! a prisão neste quarto, a pão e água, não custa nada!... Agora ir-lhe pedir perdão, quando não fiz mal nenhum!... Pôr-me de joelhos diante dele!... Oh! minha mãe!
Curvou o rosto sobre as mãos da senhora Sourzy. E a mãe sentiu a digna altivez da filha estremecer dolorosamente.
Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, Stanville, ao conversar com sua mãe, contou-lhe aquilo que ele classificou de ”arrojo duma criança exaltada”. Lourença levantou as mãos para o teto, exclamando:
Que atrevimento! Puni-la-ei como merece, Hugo.
Já a castiguei. Oito dias metida no quarto e só a alimentação indispensável... Estou convencido de que esta pequena tem de ser educada com toda a severidade.
É também a minha opinião... É uma pequena orgulhosa, amimada pela mãe, que vive extasiada diante dela. Encarregar-me-ei de a humilhar... É uma criança que nos deve tudo, pois a estas horas teria talvez morrido de fome, se não tivéssemos ido em seu auxílio. Tem a certeza de que a farei andar direitinha, meu querido Hugo, e ensinar-lhe-ei a ser humilde, coisa indispensável numa criança que nós alimentamos, criamos e vestimos por simples caridade,
Sentada a um canto da carruagem, Lila via, melancolicamente, o fugir da paisagem. O comboio levava-a para Breenwich para Stanville-House, para a servidão... Achava que seguia a uma rapidez demasiada.
Há cinco anos, após a morte da mãe sobre vinda um ano depois de chegarem a casa dos Stanvilles internaram-na numa escola, que a preparou para poder desempenhar as funções de guarda-livros, de secretária ou outra semelhante, conforme as instruções da senhora de Stanville. Só saía durante as férias grandes, que ia passar a Stanville-House. Este era para ela o pior período de ano.
Na escola Welling aprendera por isso a contabilidade, a dactilografia, o alemão, o italiano e o desenho industrial. A sua viva inteligência, a sua energia e a sua grande vontade de saber, permitiram-lhe vencer tudo sem dificuldade. A sua propensão intelectual encontrava porém pouco alimento no estudo de tais matérias... Quanto à música, de que gostava muito, um feliz acaso fez-lhe conhecer um velho professor de piano, amigo da directora, que, impressionado com a sua grande habilidade, dava-lhe lições gratuitamente, só pelo único prazer de fazer dela uma notável artista, declarava ele.
Tudo isto era desconhecido da senhora Stanville. A directora, a senhora Welling, tomara a responsabilidade desta pequena variação, depois de Lila lhe ter contado quanto era penosa a sua situação, sob o domínio da sua parenta.
Além disso tinha ainda encontrado, na escola Welling, uma amiga, na professora de desenho, a senhora Jallew, uma viúva ainda nova e de muito mérito, que sustentava com o seu trabalho sua mãe e os seus sobrinhos órfãos. Era a casa desta senhora que ela ia de vez em quando, ainda sem o consentimento da senhora Stanville, que achava desnecessário quaisquer relações, pois, como ela repetia sempre, Lila devia aprender a privar-se de muitas coisas, e em especial de distracções.
Esta amizade e a simpatia que o seu encanto físico e moral atraíram, não só por parte das professoras, mas também das suas companheiras, tornou mais cruel esta partida, que desta vez por mal dela não seria seguida do regresso... Como os seus estudos estavam terminados, passaria a ficar em definitivo em Stanville-House. Lourença ocupá-la-ia no serviço da casa, enquanto não lhe encontrasse um emprego,
Lila sabia muito bem quais seriam os seus serviços. Nos seus períodos de férias grandes tinha que bordar e coser para a senhora Stanville e para Carolina, tinha de ajudar as criadas de quarto na limpeza das numerosas salas de Stanville-House, além de muitos outros afazeres deste género, acompanhados ainda, para seu maior tormento, de críticas acerbas, por parte da sua parenta, e de ditos desagradáveis, por parte de Bairn, cada vez mais arrogante. Na chegada, vinha dez vezes mais triste e atemorizada do que na partida, e sobretudo alquebrada pela luta que ia ter de sustentar consigo mesma, para dominar a sua revolta, para suportar com coragem e firmeza inabaláveis tantas ofensas, injustiças e severidades.
Tinha portanto motivos mais do que suficientes para estremecer, ante a perspectiva que a esperava. Por esse motivo resolvera, por mais custoso que isso lhe fosse, pedir a Stanville, seu tutor, autorização para imediatamente procurar um emprego, a fim de poder viver sem dever nada a ninguém.
Há três anos que não o via. Na época das férias, nestes últimos anos, andava sempre em viagens tratando dos seus negócios, com certeza, pois ninguém ia imaginar que ele se pudesse distrair a contemplar paisagens, galerias de quadros, ou as lindas tardes nas margens dos lagos italianos. Lila alegrava-se com esta ausência, visto não ter mais desaparecido da sua memória a implacável dureza com que a tratara e a humilhação que lhe infligira. Por causa da sua mãe dominara a sua revolta e recalcara a sua altivez. Porém, a partir desse dia, não conseguia manter-se perto de Stanville, sem que o seu coração não se confrangesse, sem que um certo mal estar a não invadisse. Teve de recorrer a toda a sua fervorosa fé cristã para combater os sentimentos de ódio que tentavam dominar-lhe a alma, tanto com respeito ao filho, como com respeito à mãe.
Se, no entanto, só tivesse o seu próprio sofrimento a apontar-lhes, o perdão tornar-se-lhe-ia mais fácil. Havia contudo sua mãe. a sua pobre mãe, que nos últimos dias da sua vida conheceu as maiores amarguras, devido ao procedimento de Lourença.
Quantas angústias a martirizaram, só ao pensar que ia deixar sua filha, ”a sua Lila de cabelos de ouro”, entregue à vontade dessa mulher, que ela detestava, e sob a tutela desse homem reservado e orgulhoso, que fingia ignorar por completo a sua presença, desde o incidente por causa do pequeno Billy... comquanto procurasse escondê-las da filha, esta adivinhava-lhas. Depois, havia ainda todas as outras causas de sofrimento físico e moral, que a senhora de Sourzy encontrara nessa casa, e as quais lhe apressaram o fim da vida. Por outro lado não se esquecia também de que a filha mostrara certa satisfação, porque se esforçava por obedecer a uma das suas últimas palavras:
Perdoa-lhes, Lila... perdoa-lhes, como eu faço!
Recordando estes dias de amargura, estremecia, dizendo: ”Senhor, encorajai-me!... Eles fizeram-lhe tanto mal!”
O comboio deslizava à margem dos prados, dos vergéis e das sebes, por detrás das quais se divisavam lindas casas de campo. Uma cidade estava próxima... Lila avistou-a. Espraiava-se ao longo duma colina, aquecida pelo brilhante sol de Junho. O comboio entrou na estação e parou durante dez minutos.
O passageiro que vinha na sua frente reuniu as bagagens e desceu, com grande satisfação de Lila, pois não deixou durante a viagem de a olhar com uma admiração mal dissimulada. Todavia, nada tinha, de certo, no seu traje, que pudesse chamar a atenção!... A sua saia preta e a blusa cinzenta eram feitas dos velhos vestidos de Lourença, e o seu chapéu, feito o melhor possível, tinha como enfeite ”uns restos da menina Bairn”, conforme dissera um dia irreverentemente o Joé. Os seus sapatos, deformados pelo longo uso, deixavam adivinhar somente um lindo pé. Na escola Welling não havia ninguém mais pobremente vestido do que Lila de Sourzy... A sua beleza, porém, bastante notável, sobressaía mesmo nesse mais que modesto vestido, com grande desgosto seu, que compreendia o obstáculo e o perigo que isso representava para uma mulher obrigada a ganhar o pão de cada dia.
O rosto encostado ao vidro da carruagem, olhava o vaivém dos viajantes ao longo da plataforma da estação... De repente estremeceu e teve um instintivo movimento de recuo. Um jovem alto, de maneiras sérias e distintas, passou, com o cigarro entre os lábios. O seu olhar encontrou-se de fugida com o da Lila. Esta notou uma ligeira hesitação na sua fria fisionomia... Depois passou, não a tendo talvez reconhecido ou fingindo não a reconhecer...
Lila pensou: ”Tomou este comboio em Londres e volta para Breenwich... Que pena não andar agora em viagem como sucedeu nos outros anos! Passaria pelo menos mais algumas semanas sem o ver!”
Um vivo rubor lhe subiu às faces, dum branco nacarado e duma pele assetinada, nas quais se destacava a púrpura viva duma pequena boca encantadora. Os cílios castanhos baixaram-se um pouco sobre os olhos negros, ”onde se reflectia uma dolorosa comoção.” Bastou-lhe ver Stanville para que todos os sofrimentos, todas as antigas revoltas, tão dificilmente adormecidas na sua alma ardente e altiva, despertassem.
”A minha pobre mãe tinha razão em dizer que ninguém, menos do que eu, era feito para suportar tal situação” pensava ela, melancolicamente. ”Era preciso, para lhes agradar, a docilidade e a pobreza de espírito... E ela era incapaz disto graças a Deus!... Daí a razão por que Lourença lhe tinha tão grande antipatia”.
O sol, cor-de-laranja, descia no horizonte quando o comboio parou na estação de Breenwich, Lila não teve pressa em descer. Espreitou pelo vidro da portinhola, até ver passar Stanville, saudado por todos com consideração e solicitude. Só então desceu e se dirigiu para a saída.
De longe, viu-o subir para um soberbo automóvel, que se afastou a toda a velocidade. Depois de ter arranjado quem lhe levasse a mala, encaminhou-se para Stanville-House. Com quanto fosse longo o trajecto, não podia pensar em tomar um carro. Lourença, para lhe fazer conhecer bem, com certeza, o que era a pobreza, contava de tal maneira o dinheiro que lhe dava que, uma vez pagas as despesas indispensáveis da viagem, não lhe ficava com que pagar uma passagem sequer na camioneta que fazia o serviço da estação à cidade.
Assim, essa mulher de espírito mesquinho, mau e tirânico, colocava-a na obrigação de lhe pedir tudo quanto precisava fosse ele a mais insignificante coisa. Era este, para Lila, o aspecto mais penoso da sua situação. Preferia privar-se das coisas, as mais necessárias, e esperar que os vestidos chegassem ao último fio, do que pedir-lhe qualquer coisa. Foi o Domingos, o criado carrancudo, quem lhe abriu a porta de Stanville-House.
Sem passar por nenhum aposento, nem ver ninguém, subiu para o seu quarto, situado no terceiro andar. A senhora Stanville tinha-a mandado para lá depois da morte da mãe. Este cubículo, decorado com uns móveis muito velhos e já fora de uso, era muito quente no verão, quando o sol aquecia o telhado, Depois de ter passado pelo vestíbulo e pela escadaria, sempre frescas, sentiu no seu quarto uma sensação de sufocação. Pensou porém: ”Preciso habituar-me!... Há muita gente que suporta isto, e até mais ainda! E depois, isto não é o pior do que eu tenho a passar nesta casa”.
Começou a instalar-se, tentando trabalhar para combater a pesada tristeza que a ia dominando, por se encontrar na casa onde sua mãe tinha sofrido e morrido, onde não a esperava nem uma única afeição, mas que lhe reservava, pelo contrário, quotidianos sofrimentos morais. Quando a sua mala chegou, tratou logo de arrumar o seu pequeno enxoval. Em seguida alizou os cabelos louros, mais lindos ainda do que noutros tempos, e muitíssimo mais dourados. Isto dava-lhe um certo trabalho, pois era preciso apertá-los bem e torcê-los, a fim de não ouvir as secas observações de Lourença. No entanto, a despeito dos seus cuidadosos esforços, a admirável cabeleira continuava a manter-se ondulada, a armar-se e a emoldurar, tal como se fosse a mais brilhante coroa, o seu jovem e delicado rosto.
Alguns minutos antes da hora do jantar saiu do seu quarto, sem pressa alguma. Desejava, pelo contrário, retardar o mais possível o momento em que lhe fosse preciso voltar a ver a senhora Stanville e sobretudo o filho.
Num dos degraus da escadaria que descia do segundo para o primeiro andar, um lindo gato cinzento lambia as patas. No ano anterior, ainda recém-nascido, fora uma das poucas distracções de Lila. Pegou nele, deitou-o nos braços, e, acariciando-o, desceu os degraus que faltavam para chegar ao largo patamar do primeiro andar.
Este patamar era iluminado por uma janela guarnecida de antigos vitrais. Contudo os corredores que para ali convergiam, eram escuros... Lila, entretida com o gato que tinha nos braços, não viu uma silhueta masculina que saía dum dos corredores, e, que, ao avistá-la, parou. Até ao último degrau foi acariciando o lindo animal, ao qual disse, sorrindo,.
Ah! meu maroto, tu conheces-me?... Cresceste bastante, meu bichano!... Mas tens o mesmo ar velhaco...
Os últimos raios do sol, que ia desaparecendo, iluminaram os seus lindos cabelos louros e o seu rosto de traços encantadores. A harmoniosa elegância do seu busto destacava-se na sua atitude graciosa, apesar dos velhos vestidos que trazia. E o mais terno e jovial dos sorrisos entreabria-lhe os lábios vermelhos, animava-lhe os olhos aveludados e ardentes, cujo brilho se mesclava tantas vezes de melancolia.
Vamos, meu gatinho, preciso deixar-te, quando não chego atrasada.
Desceu o último degrau e pousou o gato no chão... Quando se voltou, viu Stanville, que saía do corredor.
Um vivo rubor lhe subiu ao rosto, enquanto, sem querer, recuou um pouco, estremecendo de surpresa e duma comoção desagradável.
Boas-noites, Lila... Eras tu que vinhas no comboio há pouco?... Não tive a certeza, pois há já muito tempo que te não via.
Sim senhor. Vinha da escola Welling. onde terminei o meu curso,
Foi o que me disse a minha mãe há pouco. Com um gesto convidou-a a passar diante dele,
na escada. Ela desceu rápida, com o coração agitado pela comoção que lhe ocasionou este encontro.
Embora tivesse pensado muitas vezes nele, não pudera conter a sua perturbadora impressão, misto de raiva dolorosa e de torturante confusão, que sempre a dominava diante deste homem, diante do seu olhar avassalador, que outrora havia fitado com desde nhosa irritação uma pobre pequena, trémula e corajosa, culpada apenas de ter implorado a sua piedade em favor duma criança infeliz.
No salão, onde tinha o costume de estar sempre, a senhora Stanville entretinha-se com os seus trabalhos de agulha. Perto dela, Carolina folheava um figurino, sem grande interesse... Os seis anos decorridos tinham feito dela uma jovem, mas não a haviam embelezado. Era alta, magra e desgraciosa, O rosto coberto de sardas tornava ainda mais acentuada a deselegância do seu físico. Deveras pretensiosa, toda a mocidade de Breenwich a escarnecia. Tinha ainda uma falta total de gosto no seu vestir, o qual pretendia, primeiro que tudo, que fosse rico e de efeito. Lourença dava-lhe uma grande liberdade, não só sobre este ponto, como ainda acerca de muitos outros. As duas entendiam-se muito bem, por afinidade de carácteres e em especial quando se tratava de contrariar ou desgostar Lila.
Ao ver a menina de Sourzy, a senhora Stanville disse secamente:
Ah Já vieste!... Como te correu a viagem?
Fazendo-lhe esta pergunta, envolveu-a num olhar inquiridor e malévolo, como de costume.
Muito bem, minha prima.
Lila apertou a mão da sua parenta, que lha estendeu por condescendência, e em seguida a ponta dos dedos que Carolina lhe ofereceu, pois julgou inútil levantar-se para a receber.
Porém a sua fisionomia arrogante mudou imediatamente e mostrou um sorriso, que pôs a descoberto os seus largos dentes, mal alinhados. Acabava de dirigir um olhar extasiado para a porta, no limiar da qual viu aparecer Hugo.
Os olhos claros de Lourença iluminaram-se também duma alegria orgulhosa, ao fitarem o filho.
Lila afastara-se um pouco... A senhora Stanville apresentou-a ao filho.
Eis aqui a tua pupila, Hugo.
Encontrámo-nos lá em cima, minha mãe. Ele fitou-a com uma atenção que a fez baixar um pouco os cílios castanhos, estremecendo ao mesmo tempo.
Esse olhar, voltou a encontrá-lo ainda durante a refeição, enquanto Stanville falava, por momentos, com sua mãe ou com o secretário. No entanto nem uma só vez dirigiu a palavra à pupila, sentada ao fundo da mesa, como quando era pequena. E Lila alegrou-se com isso, pois assim não estaria tão perto daquela malevolência, daquela indiferença desdenhosa, que teria de suportar não sabia ainda por quanto tempo. Só o pensar nisso fazia-a sofrer, a garganta comprimia-se-lhe e as lágrimas quase lhe saltavam.
Só quinze dias depois da sua chegada conseguia ir às escondidas à ”Casa dos Rouxinóis”, para cumprimentar de fugida os seus amigos. Depois da morte da mãe, a senhora Stanville obrigava-a a pedir-lhe autorização cada vez que desejava visitá-los, e de todas as vezes, sem motivo, lha recusava.
A existência dos O’Feilgen continuava sendo imprevidente e alegre. Catarina dava lições de piano; Daisy, de saúde delicada, estudava violino com ardor, apesar de tudo; e Joé acabava de ser contratado para um pequeno teatro lírico de Londres. Quanto à cunhada, tendo recobrado a voz, desposara um violinista de talento e dera com ele concertos vários. Depois enviuvara e voltara a ser atacada da mesma doença de garganta, que a impossibilitava de ganhar o pão; esbanjado o dinheiro ganho nas suas excursões pelas principais cidades do continente, voltou à ”Casa dos Rouxinóis”, onde todos a receberam bem, mas admirados de que na sua época de abastança não os tivesse auxiliado.
Moralmente os O’Feilgen não tinham mudado. E Lila, que lhes conhecia os defeitos, pensava que os mesmos lhe deviam ser perdoados em consideração à grande bondade que possuíam.
Foi recebida com entusiasmo por todos menos pela Rosa.
Hábil em dissimular, esta mostrou-se amável” no entanto um certo despeito a perturbou, ao avistar Lila. Nunca sentira simpatia por essa criança de alma franca e delicada, o oposto do seu carácter. Tendo de reconhecer que esta pequena continuava a ficar cada vez mais bonita, era para ela uma coisa insuportável, pois invejava todas as superioridades físicas ou morais.
A senhora O’Feilgen, desprovida desse sentimento, entusiasmara-se ao ver a sua amiguinha.
O Joé é que vai ficar admirado quando te vir, Lila! exclamou Daisy. No último ano já só tinha olhos para te admirar, quando vinhas visitar-nos... Mas durante este ano tornaste-te mais mulher...
Lila começou a rir, apertando as mãos das suas amigas.
Não me posso demorar. Contar-me-ão isso qualquer outro dia!... Por agora vou-me lá, pois a senhora Stanville pode achar que me demorei muito tempo a dar a volta de que me encarregou... Até breve, senhora O’Feilgen e senhora Hegton!...
E saiu rápida, para voltar à sombria vivenda que era, até certo ponto, a sua prisão.
Depois do almoço subiu ao quarto e pegou num trabalho de costura, que lhe dera para fazer a senhora Stanville. O calor, naquele dia, estava terrível. Lila, muito fatigada, custava-lhe a dominar o torpor que a invadia... Sentia-se fraca há algunsmeses, e o trabalho com que a sobrecarregavam, a falta de ar e de exercício, o seu torturante estado moral, a tristeza e a inquietação que sentia pelo seu futuro, contra a qual todos os dias precisava lutar corajosamente tudo isto era mais do que suficiente para aumentar um estado de fraqueza que começava a inquietá-la.
Falar à dona da casa?... Só num caso extremo o faria, pois sabia muito bem por lho ter ouvido repetir mais duma vez que uma rapariga pobre, obrigada a ganhar a vida, não devia sentir-se fatigada, nem atender a uma simples constipação, nem ter muito frio, nem muito calor...
”Quando o entenderes, meu Deus, chamai-me para vós, e reunir-me-eis então à minha querida mãe” pensava ela, juntando as mãos sobre o trabalho, num instante de desalento.
No silêncio daquela tarde abrasadora, ouvia-se apenas o barulho dum motor, que punham em movimento. Era sem dúvida Stanville que ia sair de automóvel.
Lila teve um ligeiro estremecimento... Precisava decidir-se a tentar qualquer coisa junto dele... Pedirlhe talvez autorização para trabalhar, para ganhar o pão de cada dia, deixando de lhes ficar a dever mais qualquer coisa, e libertar-se, enfim, de semelhante cativeiro!
Que lhe responderia ele?... Expulsá-la-ia com a mesma dureza como fizera noutros tempos?...
Durante esses quinze dias não lhe dirigira mais do que dez palavras, além dum breve ”bons-dias” ou ”boas-noites, Lila”, quando a via ao café, ou quando saía da sala, depois do jantar. No entanto sentira mais duma vez fito nela o olhar enigmático desses olhos azuis olhar rápido, mas deveras penetrante.
Não tinha a frieza habitual, mas causava a Lila uma espécie de mal-estar.
Não seria na verdade coisa fácil o resolver-se a fazer-lhe tal pedido... O altivo Stanville mantinha à distância quem quer que fosse, até mesmo sua própria mãe. Lourença estava colhendo o que semeara na alma de seu filho, secura de coração, espírito de orgulhosa independência, convicção de que pertencia a uma espécie superior... e, sob a fria deferência com que a tratava, sentia-se um íntimo desprezo pela idolatria de que fora e continuava sendo objecto.
Antigamente falava-lhe nos negócios da fábrica. Agora porém era raro falar-lhe em tal... Soubera no entanto que em dois anos se tinham construído novos pavilhões, que importantes melhoramentos haviam sido introduzidos nas máquinas, que dera uma enorme amplitude aos seus negócios, já antes bastante avultados. Todavia a mulher de mau coração, que sabia dominar os seres sem defesa, curvava a fronte como os outros diante da imperiosa vontade, da decisão e da autoridade glacial do filho. Lila observara que nestes últimos tempos ela não contrariava nunca o filho, com quanto emitisse duas ou três vezes ideias contrárias às dela... Era portanto compreensível que, naquela atmosfera de temor e de adulação, o orgulho de Stanville se tornasse cada vez maior nos últimos anos.
Para dizer a verdade, esta completa independência quanto à opinião de sua mãe, deixava-lhe antever uma certa esperança de ser atendida no seu pedido... Que lhe custaria a ele autorizar a sua pupila a trabalhar em Londres ou em outra qualquer cidade, como dactilógrafa ou guarda-livros? Se deixava as suas primas O’Feilgen dar lições na cidade onde residia!... E uma vez concedida essa licença, Lourença nada mais teria a dizer, admitindo que pretendesse ainda durante algum tempo manter sujeita ao seu domínio esta jovem parenta tão detestada.
Lila não podia falar contudo a Stanville na presença de sua mãe. Era preciso pedir-lhe uma audiência... mas de dia para dia ia adiando esse penoso momento.
”Oh! como eu sou fraca” pensava ela, retomando o seu trabalho. ”Amanhã hei-de tentar!... Por pior que me receba, não me comerá, tal como eu disse noutros tempos a propósito do pobre Billy... Uma humilhação a mais ou a menos, pouco importa!”
Neste momento soou uma campainha eléctrica. Era a senhora Stanville que a chamava.
O quê!... mais alguma volla ainda! murmurou ela, soltando um leve suspiro.
No salão, onde as persianas corridas mantinham uma relativa frescura, estava Lourença escrevendo, enquanto Carolina, vestindo uma cassa clara e leve, descansava numa poltrona com um bordado na mão.
Foi esta que se dirigiu a Lila, num tom de habitual arrogância.
Põe o chapéu e vai-me buscar o meu vestido a casa da senhora Áhston.
Tem pressa dele?... Se não fizer diferença irei um pouco mais tarde, quando se sentir menos o calor.
Preciso já dele, para o experimentar antes do jantar. De resto, quando estiveres empregada, terás de te habituar a sair a qualquer hora, seja com chuva ou com sol!
E um olhar de desprezo e maldade completou a frase.
Lila, sem lhe retorquir a menor palavra, voltou ao seu quarto. Pôs o velho chapéu de palha preta, pegou nas luvas, que já haviam sido mais do que cosidas, e desceu as escadas, sentindo logo o grande calor a que ia expor-se.
A costureira de Carolina vivia no lado oposto da cidade... Lila, já antes exausta pela fadiga e pelo calor, ia deveras cansada quando lá chegou. Descansou um momento, pegou no embrulho contendo o vestido e retomou o caminho de casa.
Caminhava com dificuldade, sentindo as pernas pesadas e o cérebro em fogo. Um sol escaldante dardejava os seus raios na larga rua, marginada de elegantes vivendas... Lila não tinha trazido guarda-sol para se proteger, pois o único que possuia, estava tão velho, que tinha ido a compor... Precisava portanto arrastar-se até casa, indo de sombra em sombra, em cada uma das quais descansava um momento, para criar ânimo...
Àquela hora, de tão grande calor, pouca gente havia na rua. Alguns carros e automóveis passavam. Um desses, deslizando ao longo da rua por onde seguia, parou de repente. Uma voz imperativa perguntou:
Que fazes cá por fora com um sol destes?... Sobe depressa para aqui,
Levantou os olhos e viu Stanville, que abria já a porta do carro. Como ficasse imóvel e estupefacta, ele repetiu:
Vamos, sobe depressa!
Obedeceu, sem bem saber o que fazia... O automóvel partiu imediatamente.
Hugo tirou-lhe o embrulho das mãos e pousou-o num lugar diante dele. O seu olhar fixou-se no rosto vermelho da jovem, devido ao calor e à fadiga, e nos seus olhos febris, sobre os quais se baixavam as pálpebras delicadas.
Que ideia foi esta de saíres com este calor?...
Arriscas-te a uma insolação...
Eu sei... mas não podia escolher!...
Não podias porquê?
Porque a menina Bairn quis que lhe fosse buscar, o mais depressa possível, o vestido que estava em casa da costureira.
A menina Bairn?... Então tem por costume mandar-te fazer recados ou as suas compras?... de te impor a sua vontade?...
A face rosada de Lila tornou-se vermelha.
Sim, senhor.
E a minha mãe sabe?... Consente nisso?...
Lila respondeu afirmativamente... Stanville recostou-se no canto do carro, sem deixar de a fitar. Parecia examiná-la dos pés à cabeça... Depois dum curto silêncio, perguntou:
É minha mãe que te veste?
É, sim.
Não te dá nenhuma importância para as tuas pequenas despesas?
Nunca recebi coisa alguma... Não tenho, aliás, direito a receber seja o que for.
Um clarão de altivez passou pelos seus admiráveis e aveludados olhos, que a fadiga tornara lânguidos”
Um sorriso aflorou aos lábios de Stanville um desses raros sorrisos que, quando os não dominava uma fria ironia, transformavam por segundos a expressão da sua fisionomia.
Não se trata de direito... Mas falaremos disto tudo com mais vagar.
Lila fechou um pouco os olhos, numa súbita fraqueza física... Depois de tanta fadiga e mal-estar, sabia-lhe bem o balanço das acolchoadas almofadas... Não tinha nesse momento força para reflectir, para se admirar, tal como lhe devia suceder quando se sentisse só; o ver-se sentada no automóvel de Stanville e o interesse por ele manifestado, tal como o provavam as suas perguntas e a atenção com que continuou a fitá-la.
Apesar de manter as pálpebras descidas, sentia bem o seu olhar.
O automóvel parou diante da porta de Stanville-House, que Domingos abriu com solicitude, prevenido pelo buzinar do motorista.
A mão de Stanville estendeu-se para a ajudar a descer... Como ela se curvasse para pegar no embrulho de Carolina, Hugo deteve-a com um gesto.
Deixa ficar. O Domingos se encarregará de o levar à Carolina.
Entrou junto com ela no vestíbulo. Quando se voltou para lhe agradecer, ele perguntou:
Se à tarde estiveres um pouco restabelecida da tua fadiga, vai ao meu gabinete às cinco horas. Preciso falar-te.
Está bem, senhor Stanville. Eu também lhe desejava falar...
Está combinado. Até daqui a pouco. Descansa até lá,
Tirou o chapéu, e voltando-se para o Domingos, ordenou-lhe que entregasse o embrulho à criada de quarto da senhora Bairn. Depois, por sua vez, subia a escada, seguindo com o olhar a elegante silhueta da mulher que o precedia.
Só passado bastante tempo é que Lila se convenceu de que estava bem acordada, de que este incidente inesperado não fora um sonho... Stanville veio ao seu encontro, concedendo-lhe a conversa que ela tanto desejava. E parecia bem disposto... tal como nunca o vira.
Obteria, com certeza, sem dificuldade, aquilo que ela mais desejava e que para ele devia ser em absoluto indiferente.
No entanto foi com o coração opresso pela ansiedade e pela comoção que se encaminhou para o gabinete de Stanville, à hora indicada.
Sentia um certo constrangimento, de que não sabia definir o motivo ou melhor, que atribuía apenas à recordação duma cena passada noutros tempos nesse mesmo aposento, entre uma criança, tremendo de revolta e humilhação, e um jovem inflexível, que a fitou sempre friamente até final do seu castigo.
O gabinete de trabalho do dono de Stanville-House era um grande aposento, com três janelas, que um seu avô, muito pródigo talvez o único na família, mandara revestir dum magnífico couro estampado e ornado de madeira esculturada, cujo valor devia ser então incalculável. Os móveis, da mesma ”época, eram preciosos exemplares do século XVI... E o mesmo avô, com certeza um artista e homem de gosto, reunira ali alguns bonitos marfins, Havia também jarros de prata esmaltada e curiosos cofres cinzelados, que eram verdadeiras maravilhas.
Os seus descendentes continuaram a vir trabalhar para ali, quase sem atenderem às belezas que os rodeavam. O pai de Hugo chegou mesmo a pensar em vender essas coisas a um coleccionador, que lhe ofereceu por elas um alto preço. Morreu porém antes de concluir o negócio. Por sua vez o filho despediu o comprador, desistindo da venda.
Hugo conservava essas velhas coisas, por tradição, por orgulho de raça, ou apreciada na verdade tais belezas?... Nada se sabia, pois se estava, pelas revistas que assinava, ao corrente do movimento intelectual e artístico, falava pouco nesse assunto!... E Lila supunha que, como era natural, a sua cultura prática de grande industrial não lhe deixasse sentir muito prazer na admiração das artes.
Quando entrou no gabinete, Stanville estava sentado diante da escrivaninha, com o queixo apoiado na mão, e um raio de sol, a desaparecer, roçando-lhe pelos cabelos curtos.
Foi nessa mesma atitude que um dia, seis anos antes, viu aproximar-se dele uma pequena de olhar firme e faces rubras, mantendo-se altiva até final da humilhação... Neste dia levantou-se e foi ao encontro da sua pupila, designando-lhe uma poltrona.
Senta-te, Lila... Estás melhor agora?...
Um pouco, muito obrigada.
Não retomou o seu lugar na escrivaninha, mas sim se sentou na frente dela, cujo rosto era iluminado em cheio pela claridade do poente. Os cílios castanhos tremeram e baixaram-se um pouco, para evitar a luz que a incomodava e, mais do que ela, o olhar de Stanville.
Queres-me dizer em que serviços te ocupa a minha mãe?
Respondeu, hesitando e procurando as palavras. Visto dar a entender que de facto ignorava a maneira como a tratavam e os serviços de que a encarregavam, foi relatando tudo, mas com delicadeza e de forma a irritar o menos possível.
Hugo, recostado na poltrona e o queixo apoiado na mão, não deixava de fitar aquele rosto expressivo e delicioso, que corava e palpitava ao mesmo tempo, deixando ver o embaraço que lhe causava o ter de responder a semelhante pergunta.
No final disse-lhe com uma voz clara e não tendo a fria entoação habitual:
Não é mais do que o serviço duma criada de quarto?... De hoje em diante tudo isso mudará. Terás a liberdade de empregar os dias no trabalho que te aprouver, à tua escolha. Para as tuas despesas dar-te-ei cada trimestre uma pensão de vinte e cinco libras, que poderás gastar à tua vontade.
Durante um momento Lila nem pôde falar. Esperava tão pouco isto, que uma verdadeira estupefacção a dominou... Olhava apenas para Stanville, com um ar de quem queria dizer: ”Teria compreendido bem?”
Balbuciou por fim:
Agradeço-lhe muito. Mas queria... pois custa-me imenso aceitar isto!
Porquê?
Porque agora já posso ganhar a minha vida,. E era isso que eu desejava pedir-lhe... A directora da escola Welling ofereceu-se para me encontrar uma colocação, Autoriza-me a escrever-lhe, dizendo que o faça?
Não precisas. Ficarás aqui até à maioridade. Lila estremeceu. Ainda há pouco esperava ver satisfeita a sua pretensão!. A sua decepção foi tão grande e a sua comoção tão forte, que o vermelho que lhe coloria as faces desapareceu, dando lugar a uma súbita palidez.
Objectou com os lábios trémulos:
No entanto o senhor Stanville deve compreender que, podendo eu ganhar a minha vida, deseje libertá-lo deste encargo, conservando-me no entanto muito reconhecida por me ter acolhido na sua casa.
Esta última frase custou-lhe a pronunciar, dado o quanto lhe tinham feito pagar caro essa hospitalidade
Reconheço o sentimento de dignidade que te impele a fazer-me esse pedido. Todavia, enquanto fores minha pupila, não quero que trabalhes fora.
Muito bem, e na sua casa?... Não tem um emprego que me dê?
Na minha casa?
Voltou-se ligeiramente, fitando-a com uma atenção concentrada,
E imediatamente, com o coração opresso, pensou: ”Que fiz eu?... Se aceito, em que situação vou ficar, sob o domínio de tal senhor?”
Stanville respondeu ao fim dum momento:
Não te posso colocar entre os meus operários...
Os lugares de dactilógrafos estão completos. Como ajudante de guarda-livros, talvez!... Osner e a es” posa têm necessidade dum ajudante... Sabes desse trabalho?
Tirei o curso de contabilidade.
Muito bem, irás experimentar. Vai para o escritório das nove ao meio-dia e das duas às cinco, a partir de segunda-feira... Está combinado?
Sim senhor, e agradeço-lhe muito.
Levantou-se um pouco tonta. Estava então combinado?... Tornava-se um pequeno mecanismo dessa poderosa casa; deveria, a partir de segunda-feira, curvar-se ante a inflexível disciplina, a obediência passiva que Stanville exigia dos seus subordinados?...
Para ires para o escritório servir-te-ás da minha passagem, pois é desnecessário atravessares a fábrica. Vou-ta mostrar.
Acompanhou-a ao longo dum corredor e abria uma porta que dava para a galeria, feita sob fortes arcarias de pedra, pondo assim em comunicação Stanville-House com a fábrica.
É por aqui. Na extremidade fica o escritório do guarda-livros. É à esquerda de quem entra, ao fim do corredor. O senhor Osner indicar-te-á o trabalho.
Inclinando a cabeça para se despedir dela, deu alguns passos em direcção ao seu gabinete... Depois, reconsiderando voltou-se para ela.
Ainda uma palavra... Trata-me por primo, em vez desse ”senhor” cerimonioso, que não tem razão de ser.
Balbuciou, cheia de surpresa:
Se assim me autoriza. da melhor vontade. Entrando no seu gabinete, sentou-se de novo à secretária. Porém, em lugar de continuar a escrever, apoiou o rosto na mão e ficou imóvel, de fisionomia pensativa.
Bateram à porta pouco depois... Lourença vinha pedir a seu filho informações a respeito duns títulos que lhe pertenciam e que desejava negociar. Deu-lhos, com a breve clareza que lhe era habitual. Quando a mãe se levantou para sair, deteve-a com um gesto.
Ainda um instante, minha mãe... Esta tarde encontrei a Lila, que tinha saído a um recado da Carolina. Devia ter escolhido uma hora mais favorável para a mandar, pois se sentia mal, por causa do calor que fazia, quando a encontrei. Pergunto a mim mesmo porque é que a mãe autorizou a Carolina a dar-lhe ordens, como se fosse uma sua criada?
Uma viva surpresa se reflectiu na fisionomia da senhora Stanville.
Mas, meu filho, não sei o que possa haver de repreensível nisso. Lila está destinada a viver uma vida muito modesta. É preciso ensiná-la a obedecer e a suportar...
É então por isso que a veste tão... pobremente?
É uma pequena orgulhosa, que é preciso dominar, e além disso muito vaidosa,
Parece-me, pelo contrário, muito simples e séria. Mas, enfim, ainda a não conheço o bastante para a poder julgar. Desde já, porém, não consinto que essa pequena, minha pupila e prima, cujo sustento está a meu cargo, se vista daquele modo, que a mãe não toleraria na sua criada de quarto, Senti-me humilhado esta tarde,
Lastimo muito, Hugo... De amanhã em diante vesti-la-ei melhor.
Não terá mais a preocupação de tratar disso, minha mãe. Pediu-me há pouco licença para procurar um emprego, a fim de não nos incomodar mais; ofereci-lhe um lugar de guarda-livros no meu escritório, o que ela aceitou. Desse modo terá o seu ordenado, o qual lhe permitirá vestir-se.
A fisionomia da senhora Stanville mostrou uma grande surpresa, seguida duma viva satisfação.
Oh! empregaste-a no teu escritório?... Tanto melhor!... Saberá assim o que é ser severamente dirigida!... Porém é muito nova para gastar por sua conta o dinheiro que lhe dás. Comprar-lhe-ei o necessário...
Não se dê a esse trabalho. Lila comportar-se-á muito bem, guiando-se pela sua cabeça, estou convencido.
Mas, meu filho, tu não pensas?... Essa pequena não tem nenhuma experiência da vida, e é muito, muito vaidosa, asseguro-te. Enquanto eu a orientar, tudo irá bem, mas se tiver a liberdade de se vestir como quiser!... Já chama a atenção por causa dessa figura... dessa cabeleira que todas as minhas exortações não conseguiram fazer pentear ainda como deve!...
Acho, pelo contrário, que é necessário dar-lhe alguma liberdade, para ver como se comporta.
O tom firme e decidido com que Hugo pronunciou estas palavras, advertiu Lourença que não devia insistir,
Se achas preferível!... Será sempre tempo de mudar essas disposições, se houver necessidade. Estou na verdade satisfeita em que ela se torne tua empregada. O espírito de independência, que sempre combati nela, e o seu tolo orgulho, que não consegui fazer desaparecer, encontrarão em ti o devido dominador... Tiveste uma excelente ideia, meu querido Hugo.
Um clarão de ironia atravessou-lhe os olhos azuis e sombrios. A senhora Stanville não o notou. Estava satisfeitíssima, sem nenhum pensamento reservado, ao pensar que essa Lila cuja coragem e altivez calma a irritavam, se ia encontrar, todos os dias, de manhã à noite, sob as ordens daquela inflexível autoridade, que todos temiam. Embora seu filho não tivesse ainda trinta anos, considerava-o como sendo um ser excepcional, inacessível a qualquer comoção e a qualquer paixão, desdenhando as vulgares fraquezas da vida, e achava impossível que pudesse algum dia interessar-se pela beleza de Lila.
Na noite desse mesmo dia, quando ela se ia a sentar no seu lugar habitual, ao fundo da mesa, Stanville ordenou ao criado:
Ponha sempre o talher da senhora Sourzy à minha esquerda, Domingos. Que ideia foi essa de a colocar ao fundo da mesa?...
Lila, que nesse dia já nada lhe podia causar maior admiração do que as que tinha tido, sentou-se ao lado do tutor. Lourença teve um ligeiro movimento de surpresa e de contrariedade, pois esta observação do filho foi para ela uma censura, visto o Domingos ter agido conforme as suas ordens. Não emitiu nenhuma observação e contentou-se em fitar a jovem parenta com o seu habitual olhar hostil, que Lila já não temia.
Uma tarde de domingo, três dias depois, Lila acompanhou até casa as suas amigas Catarina e Daisy, ao saírem da novena. A senhora Stanville e Carolina tinham ido à Câmara Municipal, onde havia uma conferência, presidida por Stanville.
Tinha portanto algum tempo disponível para poder estar junto das suas amigas, antes que a tia e a sobrinha voltassem.
No salão, Joé, chegado nessa noite, dormitava. Daisy fez-lhe cócegas no nariz com a luva, Acordou bruscamente.
Que há?
Olhou para Lila, que ria docemente. Então pôs-se de pé, exclamando:
Ah! é a menina dos cabelos de ouro! Estendeu-lhe as pequenas mãos, que ele apertou calorosamente. O seu olhar, encantado de admiração e ternura, fixou o lindo rosto sorridente.
Estás ainda mais bonita do que o ano passado, Lila!.
Corou, e ficou séria,
Combinámos que nunca me dirigirias galanteios, Joé!
É verdade!... Mas eles saiem sem querer... A culpa é tua também, Pode-se lá ter uns olhos assim!... E esses cabelos!...
Lila voltou-lhe as costas,
Boas-noites, meu amigo. Voltarei quando tiveres partido.
Como és susceptível!... Mas calo-me!... Senta-te aqui. Trouxe bolos de Londres daqueles que tu gostas, Lila. A minha tia vai dar-nos chá, que me saberá cem vezes melhor... Cala-te, que ias deixando escapar mais um elogio!...
Mantinha sempre a sua fisionomia risonha e terna, este louro Joé, Bonito jovem, de mediana estatura, delgado e gracioso, de rosto um pouco afeminado, vestia com uma elegância muito apurada. Na parte moral era um coração excelente, mas uma cabeça leve. Não escondia a sua admiração por Lila, mas esta, afectando não o tomar a sério, mantinha entre eles, com muito tato, um ar de camaradagem, cujos limites ele não tinha nunca transposto.
Catarina, pousando sobre a mesa o seu livro de orações, disse:
Adivinhas, Joé, o que acaba de nos contar a Lila?
Daisy repetiu com horror:
Adivinhas?... Pobre amiga!...
Que foi?... Que foi?...
Sim, que aconteceu à pobre Lila?
Estas últimas palavras foram pronunciadas por Rosa, que entrava com o bule do chá na mão. Catarina esclareceu num tom triste:
Entrou como guarda-livros para a fábrica! Joé deu um salto.
O quê?!... Passas a ficar sob as ordens directas de Stanville?
Teve um sorriso triste.
Talvez seja melhor do que a mãe.
Foi ele que to ofereceu ou impôs-to?
Não, não mo impôs!... Devo mesmo dizer que fui eu que lho pedi.
Contou então com todos os pormenores os incidentes ocorridos nesse dia, em que, pela primeira vez, Stanville pareceu lembrar-se de que era o seu tutor.
Em resumo, manifestou tanto interesse quanto lhe era possível ter por uma pessoa como eu concluiu ela.
Não és difícil de contentar!... Faz-te trabalhar nos seus escritórios!... a ti, que és sua prima!...
Julga isso mais razoável do que deixar-me trabalhar no escritório dum estranho.
Mas não devia atender o teu pedido!... Devia antes dizer-te: ”Não, não precisa ganhar a vida, visto que está na minha casa e eu sou seu parente...” Pelo contrário, sentiu-se satisfeito por ficar tendo uma nova escrava!... Ah! Já se sabe o que significa ”ser empregada em casa do Stanville!...” Depressa verás o que te sucederá, minha pobre Lila!
Esta respondeu-lhe com voz trémula:
Não me desencorajes, Joé.
Estás sendo mau! exclamou Daisy. Supões que não tem já bastantes preocupações, e vens ainda aumentar-lhas, não?
Joé apertou a mão de Lila.
Perdão! Sou um imbecil, de facto!. E depois, que sei eu?... Stanville deve com certeza tornar-se indulgente contigo, pois as próprias estátuas de mármore devem sentir-se encantadas diante dos teus lindos olhos, do teu sorriso, Lila...
Não digas tolices, Joé!
Este sentiu-se contrariado, enquanto pelos lábios de Rosa passou um sorriso de escárnio, ao ver a vermelhidão que subiu às faces de Lila. Catarina agarrou o irmão pelos ombros e abanou-o, sorrindo.
Rapaz incorrigível!... Se continuas assim, impomos-te como penitência ires render galanteios à menina Bairn!
Seria divertido!... Era capaz de acreditar, até aposto!... Sempre amável a simpática Carolina, não? Sempre duma graça ideal?... Não anunciaram ainda o seu casamento com o Stanville?
Nunca falaram nisso. Supões que se possa realizar?
Ignoro-o!... Deve ser um projecto de Lourença, que adora essa encantadora herdeira. Hugo porém partilhará das ideias da mãe?... É o que não se sabe.
Daisy exclamou:
Não acredito que case com ela. É muito feia e muito deselegante!... E depois essa deve ser a principal questão para ele há muitas outras mulheres, muito mais simpáticas e ricas e que o tornarão senhor duma fortuna considerável.
Rosa, que servia o chá, declarou:
Sou da tua opinião. Stanville pode escolher entre cem, entre mil até, tanto mais que é um bonito homem, duma extrema distinção.
Joé concordou:
E muito aristocrático. Se não cortasse os cabelos tão curtos e se tivesse outro alfaiate, que não fosse esse Becker, que vestiu todos os avós de Breenwich, devia ser duma elegância impressionante.
Mesmo assim é um homem distinto. Joé simulou um estremecimento.
Muito distinto mesmo!... Deve ser irresistível... Quando penso na feliz criatura que vai ter a honra de se tornar a senhora Stanville, É horrível!... No entanto devem ser muitas, tenho a certeza, as que aspiram a essa honra.
Sim, mas por causa da sua grande fortuna! Há mais, existem mulheres, segundo parece, a quem esses homens de pedra e de gelo dominam por completo, e elas sentem-se bem sob tal domínio. Devem ser muito felizes! Faço ideia!... Não se daria isso contigo, pois não, Lila? Esta teve um forte sobressalto e respondeu com energia:
Oh! não!...
Rosa nada disse. No entanto pensou, com o coração vencido por ambiciosos desejos: ”Ah! eu aceitava logo!... Por uma fortuna e uma posição como aquela, pode-se muito bem suportar um pouco a escravidão!... E depois uma mulher hábil e bonita, de carácter condescendente, podia tornar menos intratável esse orgulhoso Stanville”.
Lila demorou-se ainda um pouco na ”Casa dos Rouxinóis”. Como a princesa dum conto de fadas, fugiu logo que ouviu dar cinco horas... No momento em que dobrava a esquina da casa, um belo carro, puxado por dois cavalos cinzentos, tradição a que Lourença se mantinha fiel, parou diante de Stanville-House, em seguida ao automóvel do filho.
Este desceu logo e aproximou-se do carro para ajudar sua mãe. Lourença, ainda com o pé no estribo, avistou Lila e perguntou-lhe secamente:
Donde vens a esta hora?
Hugo, voltando a cabeça, viu a prima toda corada, antevendo as reprimendas e os aborrecimentos que a ”speravam.
Da casa dos O’Feilgen, prima.
Foste lá sem me pedir licença, como eu ordenei?” Vês, Hugo, que indisciplinada ela é?
Stanville disse friamente:
Fez mal, com efeito.
Carolina, que se preparava para descer após a tia, fitou Lila com olhar sombrio.
A senhora, pondo o pé em terra, disse com satisfação:
Estás vendo como é rebelde o carácter desta pequena, como é grande o seu espírito de insubmissão, contra o qual tenho lutado tanto?
Não terá mais esse cuidado, minha mãe. É a mim que a Lila, de hoje em diante, pedirá todas as licenças,
Muito bem!... Assim não terá mais a ideia de infringir uma ordem que lhe dês, essa jovem que parece zombar das minhas!
E Lourença teve um riso seco, fitando-a com um olhar de malévolo contentamento.
Entrou no vestíbulo, seguida de Carolina, que se pavoneava no seu vestido branco, muito cheio de bordados. Com um gesto, Hugo convidou Lila a passar à frente dele... e seguindo quase logo ao lado, perguntou-lhe:
Que fazem os O’Feilgen?... Disseram-me que o Joé tinha um contrato para um teatro de Londres?
É verdade, meu primo. Lourença voltou-se bruscamente.
Não sabia!... Então é um comediante?. não faltava mais nada!
Hugo respondeu com desdém:
Que queria que ele fizesse? Não tem competência para qualquer outra carreira!...
Que tom de desprezo!... Com estas palavras Stanville julgava esmagar e reduzir ao nada o seu humilde parente.
Lourença disse com vivacidade:
Acho, meu filho, que deves chamar à ordem essa gente... Ou melhor, mandá-los ir viver para outro lado!
Porquê?
Porquê?... Se esse Joé der que falar de si? e não elogiosamente, visto que não deve ter nenhum talento,.
A sua voz parece que é boa, mas não extraordinária. Até aqui tem-se portado bem. Tirei as minhas informações a tal respeito... Por agora não vejo motivo para os expulsar da casa que lhes dei para viverem.
E voltando-se para Lila, que escutava com ansiedade, pois receava nesse momento pelos seus amigos, cuja vida pecuniária já era tão difícil, o primo prosseguiu:
Permito-lhe que os visite de quando em quando. Porém, cuidado!... Não se deixe influenciar por esse meio de artistas, pessoas perdulárias e sem previdência.
Oh! não tenha receio. Se aprecio as suas excelentes qualidades, reconheço também os seus defeitos... Agradeço-lhe, meu primo...
Os olhos pretos, vivos de alegria, ergueram-se para o belo e orgulhoso rosto de Hugo. Depois inclinou a cabeça, numa saudação digna e graciosa, e dirigiu-se para a escada que levava ao seu cubículo.
A senhora Stanville perguntou, baixando um pouco a voz:
Foste tu que lhe permitiste o chamar-te assim?
Fui... Que vê a mãe de extraordinário nisso?
O outro tratamento era mais respeitoso... punha mais em evidência as distâncias... E com mais razão ainda agora, que é tua empregada...
Penso que por esse facto não deixa de ser minha prima!
O tom de voz era seco e impaciente, e o olhar dizia claramente: ”Como é que se permite discutir o que me apraz fazer?”
Lourença balbuciou:
Bem sei que és tu o único juiz... Fiz uma simples observação... Desde que achas assim melhor!...
Acho lógico, apenas.
E o incidente ficou por aqui, prevalecendo como sempre a irredutível vontade de Stanville.
Lila principiou, no dia seguinte, a aprender as suas novas ocupações, sob a direcção da senhora Osner, uma mulher de cabelos brancos, rosto comprido, cansado e bondoso. Ela e o marido ocupavam na casa, há já vinte anos, o lugar de guarda-livros. Só eles poderiam dizer quanto trabalho e paciente submissão tiveram de ter, primeiro com James Stanville e mais tarde com o filho!... Depois de já haverem criado seis filhos, e quando contavam fazer algumas economias para a velhice, caíram-lhes nos braços dois órfãos. Por esse motivo a hora do descanso recuara para limites indefinidos. Mas, coitados, sem se queixarem, continuavam o seu consciencioso trabalho, sempre receosos de não satisfazerem o seu orgulhoso e inflexível dono, de quem dependiam as suas existências.
A senhora Osner e o marido, apesar de taciturnos, pareciam ser boas pessoas, As intermináveis horas passadas entre as paredes daquele sombrio escritório, parece que os marcaram com uma indelével e silenciosa tristeza. E Lila, recordando o que lhe tinham dito a respeito da disciplina impiedosa em que viviam os operários e empregados de todas as categorias, pensou, com um pequeno estremecimento:
”Ficarei igual a eles, se permanecer aqui muito tempo?”
Em geral, quando Stanville tinha necessidade de falar a um dos seus guarda-livros, mandava-o chamar ao escritório. Três dias depois de Lila ali começar a trabalhar, Stanville entrou para dar uma ordem a Osner, e saiu sem dirigir uma palavra sequer à sua pupila. Fitou porém com interessado olhar a loura cabeça curvada sobre os livros.
Dirigia-lhe agora durante as refeições algumas palavras. Sentia por isso que não lhe era indiferente. Porém, na sua presença, dominava-a sempre um grande constrangimento, tal como nunca sentira noutros tempos, quando era criança, com quem Stanville não dignava preocupar-se.
Se a nova ocupação de Lila nada tinha de interessante, era pelo menos motivo para escapar, em parte, ao domínio e à convivência da senhora Stanville. Tinha plena liberdade nas horas em que não estava no escritório. Hugo adiantara-lhe o primeiro trimestre dos seus vencimentos e ela começou a fazer alguma roupa de que precisava. As suas habilidosas mãos transformaram em lindas blusas dois cortes dum leve tecido que a Daisy comprara para ela numa loja de novidades. Gostava da elegância discreta, harmoniosa e simples, o sinal evidente da mais rara distinção,. E também neste ponto não podia ser compreendida pela senhora Stanville, que, com quanto fosse aristocrática pelo nascimento, tinha gostos deveras antiquados
Lila temia portanto que as suas pobres blusas, cópia dum figurino de Catarina, incorressem no desagrado e crítica da sua rabujenta prima. Assim, pois, ficou bastante assustada quando a interrogou nestes termos:
Que significa esse luxo exagerado?... Onde compraste essa blusa?...
Foi à hora do almoço, quando esperava pelo filho, que Lourença interpelou Lila. Hugo entrou nessa ocasião e perguntou:
Que há?
Não estás vendo!... Não te tinha dito que não se saberia vestir de acordo com a sua posição?...
Os penetrantes olhos do filho examinaram, de relance, a saia escura e a blusa, com finas listas de seda azul clara, franzida em volta do lindo pescoço, e as mangas, deixando a descoberto um delicado pulso e um pouco do branco e fino braço
Não compreendo o que quer dizer... Não vejo nada digno de crítica no traje de Lila.
Como? Achas que se lhe possa permitir um tal luxo?... Então isto não mostra que é duma vaidade que não devemos tolerar, no seu próprio interesse?
Indicava as mangas curtas e o pequeno e discreto decote.
Lila, estupefacta ante este imprevisto ataque, manteve no entanto a atitude de dignidade, sem arrogância, que opusera sempre a todas as injustiças. Os seus belos e tristonhos olhos voltaram-se instintivamente para Stanville e pareceram perguntar: ”É verdade, tudo isto?”
Hugo, num tom de fria impaciência, acrescentou:
Que está para aí a imaginar, minha mãe? Uma jovem gosta sempre de se vestir bem, e é natural. Não a qualifique de vaidosa por isso nem por mostrar um pouco dos seus braços e pescoço. É uma moda de todos, devido ao calor que faz, e noto que a Carolina a usa também com toda a liberdade.
A mãe contraiu os lábios, antes de responder:
Deves concordar, meu filho, que há uma certa diferença entre a Carolina e a Lila; não é a mesma coisa...
Hugo olhou para o pescoço amarelado e magro da prima, bem como para os seus braços sem frescura, nus até ao cotovelo. Os lábios entreabriram-se-lhe num sorriso de fria ironia.
Sou da sua opinião: não é a mesma coisa!... Mas Lila pôs na escolha do seu traje toda a discrição necessária, e é-me impossível associar-me à sua crítica.
Terminaram a discussão com estas palavras. No entanto, durante a refeição, Lila surpreendeu, mais duma vez, o olhar surdamente hostil da senhora Stanville fito nela, e pensou, estremecendo: ”Como sou detestada!”
Sim, detestava-a... e sobretudo a partir dessa manhã, pois sentira penetrar nela uma inquietação, ainda que vaga...
Parecia-lhe que até ali não tinha notado a beleza de Lila. beleza perigosa, que aquele traje tão simples fazia realçar. Sonhara ou vira o olhar de Hugo demorar-se por segundos, fito naquele perfil delicado, naquelas mãos finamente modeladas?...
Ele? Não podia ser!. Nunca concedera a menor atenção a uma mulher, nem mesmo à linda senhora Wilken, que todos consideravam irresistível.
Evidentemente, o súbito interesse que testemunhava pela pupila, depois do regresso desta, parecia um pouco estranho. Mas esse homem autoritário gostava de dirigir e trazer todos sob o seu domínio.
Era tal a certeza na invencibilidade do filho, que não se quis deter nesse louco pensamento, completamente inverosímil. Disse consigo mesma: ”Não, não é possível que Hugo se deixe dominar por essa pequena fútil e vaidosa!...
Na tarde desse dia, Lila foi a casa dos O’Feilgen, pois era domingo, e combinara dar um passeio com as amigas. Estavam reunidas no jardim, à sombra duma velha tília centenária. Daisy foi ao seu encontro e pegou-lhe nas mãos.
Chegas ainda a tempo... Estás bonita, minha querida!... Olhem para a linda princesa...
Joé, que cantarolava em volta da tília, fumando um cigarro, aproximou-se rápido:
Que infeliz eu sou!... Como queres que mantenha a minha promessa?... Se já eras bonita com os teus vestidos velhos, agora...
Agora, Joé, deve calar-se, se quiser ser-me agradável.
Sorriu-se, murmurando;
Oh! nada prometo!...
Catarina aproximou-se por sua vez. Com olhar interessado, examinou a Lila.
Estás muito bem!... Este vestido, que te custou tão barato e que é a própria simplicidade, em ti é duma inacreditável elegância, minha querida!... Estás adorável com esse teu chapeuzito, Joé aprovou calorosamente:
Adorável, é o termo!...
Sorrindo, um pouco confusa, aproximou-se da senhora O’Feilgen e da cunhada. Esta, com as mãos cruzadas sobre o jornal, que deixara cair nos joelhos, olhava para a jovem através das pálpebras semi-cerradas... Perguntou com ambíguo sorriso:
Que disse a senhora Stanville dessa transformação?
Uma sombra passou pela fisionomia de Lila.
Esta manhã houve lá em casa uma verdadeiradiscussão por causa disso. Parece que este vestido sem valor, como lhe chamou Catarina, é elegante demais para mim.
Joé exclamou, indignado:
Estúpida criatura!... Todas as riquezas do mundo seriam ainda pouco ao pé de ti!...
A senhora Hegton interrompeu o sobrinho:
E o seu tutor deu-lhe os parabéns, por essa transformação?
Lila começou a rir.
Parabéns, ele?... Fiquei já muito satisfeita por ter declarado que o meu vestido nada tinha de censurável.
Ainda desta vez Joé exclamou, zangado:
Seria muito imbecil se pensasse doutra maneira. Embora seja um iceberg, há factos que se impõem!... Já é imperdoável que consinta que trabalhes no escritório... Isto faz-me irritar, quando penso nas fabulosas somas encerradas nos cofres desse nababo!... Ah! Se fosse eu!... Com que alegria te diria: ”Minha encantadora prima, sentir-me-ei feliz em colocar a seus pés o necessário e o supérfluo, em troca dum sorriso seu, terno agradecimento que não posso pagar, nem com toda a minha riqueza”. Às pequenas riram às gargalhadas.
Que louco, este Joé!... Imaginem o Stanville, a fazer este discurso...
A Rosa teve um sorriso singular e murmurou:
Não... ainda não é a hora.
Nessa tarde, os O’Feilgen e Lila deram um grande passeio pelo campo. A jovem, esquecendo um pouco as suas preocupações, tomou parte na alegria dos seus companheiros, riu com satisfação das anedotas espirituosas do Joé e brincou às escondidas com Trick, uma loira criança que a estimava muito. Quando voltaram para a cidade, tinha as faces coradas e os olhos haviam adquirido um maravilhoso brilho, revelador duma intensa vida. Os numerosos passeantes dessa tarde de domingo voltavam-se para a admirar, o que parecia contrariar muito a senhora Hegton, a julgar pela sua fisionomia.
Quando o pequeno grupo chegou à praça, em frente de Stanville-House, alguém abriu a porta, aparecendo Hugo. Cumprimentou as primas, estendeu a mão a Joé, a quem dirigiu algumas palavras de fria delicadeza. O seu alto porte, duma discreta elegância, parecia esmagar o jovem O’Feilgen, e o seu forte vigor apagava o encanto afeminado deste último.
Durante uns segundos desapareceu-lhe do olhar com que fitava a pupila a sua dureza habitual.
Acabas de dar um passeio com os teus amigos, não?
É verdade, meu primo. Fomos até Blilingham.
Fizeste bem em aproveitar esta linda tarde. Joé comentou:
Deu-lhe até melhor cor.
O olhar de admiração com que fitou Lila não passou despercebido a Stanville, pois as suas pretas sobrancelhas contraíram-se e os olhos azuis tomaram a sua cor sombria.
Hugo perguntou, num tom de altiva indiferença:
Demora-se por aqui até ao fim das férias?
Infelizmente, não. Tenho alguns compromissos que me obrigam a partir dentro de oito dias.
Sim senhor!... Entre, Lila!... Não deve estar aqui ao sol nem deter estas senhoras.
Lila despediu-se apressadamente dos amigos e desapareceu no vestíbulo. Stanville, depois dum ligeiro cumprimento, afastou-se, atravessando a praça, enquanto os O’Feilgen se dirigiram para casa.
Daisy observou.
Delicado como sempre, não há dúvida, o nosso augusto primo!... Não pode passar sem mostrar que somos a seus olhos umas pessoas pouco mais do que insignificantes.
Joé disse num tom irritado;
Não sei explicar o que sinto quando vejo a Lila desaparecer no interior daquela sombria casa, onde tanto tem sofrido e onde ninguém a ama!...
Rosa, que caminhava ao lado do sobrinho, deixou escapar um riso abafado.
Onde ninguém a ama?... Não temas por isso! Amá-la-ão e mais do que tu desejas, provavelmente!...
Joé olhou-a com ar de surpresa.
Que quer dizer? Encolheu os ombros, penalizada.
Trata de adivinhar sozinho e põe de lado essa tua simplicidade infantil.
Este teve um brusco movimento.
Não pensa que... que Stanville?...
Mas sim, meu tolo! É claro como o dia que nos cerca. Lila nada mais tem a temer; poderosa força protectora vela por ela. O austero Stanville deixou-se encantar pelos seus lindos olhos e pelos seus cabelos de ouro... Verás se me engano!...
Joé, com o rosto sombrio, disse por entre dentes
São ideias loucas!. Não acredito em coisa nenhuma do que disse!... Não quero mesmo acreditar!...
É À tua vontade! Abrirás os olhos mais tarde, meu amigo!... Por mim, desde o dia em que ela nos disse que ele a tomava sob a sua protecção, em vez da senhora Stanville, pensei: ”Porque começou ele a interessar-se por ela, dum dia para o outro, sendo um homem tão orgulhoso e indiferente?” E a minha impressão parece confirmar-se. Há pouco, quando a admirava... não era o mesmo homem.
Joé, cuja fisionomia se alterara um pouco, perguntou:
Supõe então que a desposará?
Quanto a isso, não sei!... Talvez, se ela for hábil...
Hábil?... a Lila?... Pobre amiguinha, que é a sinceridade e a simplicidade em pessoa!... E além disso tenho a certeza de que não aceitará esse odioso Stanville. Sempre mostrou ter por ele receio e antipatia,
Esses sentimentos podem mudar, se ele se tornar mais amável.. - Depois existe a fortuna...
A fortuna?... Essa parte é a que menos a impressiona.
Rosa teve outra vez um sorriso escarninho.
Não se importa? É o que teremos de ver, quando chegar o momento,. Em todo o caso terá que viver sob o domínio do tutor e primo ainda três anos. Deverá reflectir duas vezes, caso queira recusar tão lisongeira atenção...
Joé mordeu os lábios e respondeu irrespeitosamente:
Está a dizer asneiras, minha tia!... Stanville é um déspota, um tirano, um ser sem coração, tudo o que queira nesse género; mas creio-o um homem honesto e incapaz de abusar duma tal situação.
A senhora Hegton encolheu os ombros,
Sabe-se lá!... Um tal carácter não tolera talvez nenhum obstáculo em matéria de amor, como nas outras.
Joé tentou rir.
Stanville enamorado!... A senhora diverte-me, não há dúvida!
Fia-te, meu caro! Tenho mais experiência e vejo melhor do que tu!... Estamos apenas no começo!... É provável que esse homem orgulhoso e severo lute contra si mesmo!... Talvez tenha a energia bastante para romper de vez, afastando a Lila!... Sim, é muito possível!
Meditou um momento, com o rosto contraído e uns olhos sombrios e maus. Depois sorriu-se, murmurando:
O que eu queria ver, por exemplo, era a cara da senhora Stanville, quando fizer essa descoberta.
Doze dias mais tarde, Lila, da parte da manhã, foi chamada ao escritório de Stanville.
O coração pulsava-lhe, inquieto, quando, deixando o seu registo de contas, se dirigiu para o grande aposento, claro e severamente mobilado, onde só tinha entrado uma vez: no dia em que o tutor lhe entregara o primeiro trimestre ganho em sua casa.
Qual o fim desta chamada?... Não estaria satisfeito com o seu trabalho?. No entanto punha na sua execução toda a atenção possível... Mas sabia, pelo que ouvira dizer, durante umas ligeiras e receosas reflexões dos Osner, que era muito exigente e que nada lhe escapava.
Quando entrou, Hugo, de pé, junto a uma janela aberta, tinha nos lábios um cigarro. Atirou-o fora e aproximou-se da escrivaninha.
Vais ser hoje a minha dactilógrafa, Lila. Senta-te.
Designou-lhe uma pequena mesa, Obedeceu, sem fazer nenhuma observação, a esse trabalho de secretária, de que não lhe falara quando a tomara ao seu serviço. Trabalhar dessa maneira ou doutra era-lhe indiferente, com tanto que não fosse, como nesta ocasião, sob o olhar de Stanville.
Esse olhar não era tão frio... tão imperioso... ou pelo menos era diferente do que costumava ser. Reconhecia isto, mas não o podia explicar. Continuava a sentir-se sempre pouco à vontade, na presença do seu tutor.
Stanville ditava com uma rapidez tal, que exigia da parte dos seus habituais dactilógrafos uma grande prática. Esta faltava a Lila. Assim, num dado momento, teve que parar, pedindo timidamente:
Perdão, meu primo... Mas atraso-me...
Os seus olhos aveludados, um pouco confusos, levantaram-se para ele, que sorriu, sem uma sombra de impaciência.
Dito muito depressa para uma principiante. Recomecemos.
Desta vez Lila pôde facilmente acompanhá-lo. Hugo não parecia nada apressado. Com o rosto encostado à mão, não afastava os olhos dos cabelos, com reflexos dourados, e do delicioso rosto, um pouco emagrecido e pálido, desde que desaparecia o corado, que tão depressa lhe subia às delicadas faces.
Findo o ditado, deu-lhe algumas instruções a respeito da cópia dactilografada que devia apresentar no dia seguinte... Depois, como fizesse menção de sair, deteve-a com um gesto...
Diz-me, sentes-te fatigada? Não trazes boa aparência e comes pouco às refeições,.
Teve dificuldade em conter a estupefacção ante esta coisa surpreendente: Stanville preocupado com pequenos nadas, como teriam sido para ele noutros tempos a saúde e o apetite da pupila.
Sinto-me na verdade muito fatigada há uns tempos, meu primo. Deve ser fraqueza.
- Pois é preciso tratares-te...
Reflectia um momento e depois continuou. Podes pedir à senhora O’Feilgen para te acompanhar ao consultório do doutor Thomwille?... É o melhor médico de Breenwich, um homem muito inteligente e consciencioso.
Suponho que me prestará esse serviço até com prazer... Mas penso que não é necessário... Tomo há uns dias um remédio com base de ferro, que curou Daisy O’Feilgen...
Prefiro antes que o consultes. Vai a casa dele amanhã, e diz-me, quando voltares, quais as suas recomendações... À tarde deixa o trabalho e dá um passeio com as tuas amigas, sempre que elas possam. Isso faz-te melhor do que ficares fechada no escritório, sem ar.
Agradeceu e saiu, perguntando a si mesma se estaria bem acordada.
As senhoras O’Feilgen, quando lhes contou, pouco depois, o que se passara, não mostraram grande surpresa. Rosa abrira os olhos às suas parentas, tal como fizera com o Joé... A senhora O’Feilgen declarou:
Faz o que deve. Cumpre com o seu dever, em recompensa do que fez noutros tempos. Quanto a mim, minha querida, estou pronta a acompanhar-te. Hoje de tarde a Catarina irá marcar uma hora.
Daisy observou:
É de estranhar que não encarregue a mãe de te acompanhar!
Prova que a conhece bem, e compreendeu qual a hostilidade desta para com a Lila. Parece que pretende subtrair por completo a pupila a essa ingerência implicante e malévola... Não cumpre mais do que o seu dever. E isto mostra que se pode esperar dele, sob o ponto de vista de justiça, muito mais do que da mãe.
Rosa teve um riso escarninho, murmurando, tão baixo, que só Daisy ouviu:
Oh! certamente!... sob o ponto de vista de justiça,. e de afeição...
Daisy lançou-lhe um olhar descontente. A senhora O’Feilgen e as filhas, reconhecendo que a nova atitude de Stanville, com respeito a Lila, testemunhava um interesse muito significativo, julgavam no entanto esse homem, glacial e orgulhoso, incapaz de se baixar a cortejar qualquer mulher e mais que nenhuma outra, essa jovem que era ao mesmo tempo sua pupila e sua empregada.
A senhora Hegton não era desta opinião. Pretendia conhecer bem a natureza masculina e declarava que, pelo contrário, o orgulho de Stanville não o impedia de se deter diante de escrúpulos, que devia julgar abaixo duma personagem da sua categoria pessoal. Depois de terem discutido bastante a tal respeito, cada qual ficou com a sua opinião. No entanto a boa senhora O’Feilgen tinha receio, sugestionada pela cunhada, sobre o futuro dessa encantadora pequena, que amava ternamente,. Pobre Lila, que dom funesto o da sua beleza, que atraía para ela todos os olhares!. Não tinha dúvidas que todos a acolheriam com alegria na ”Casa dos Rouxinóis”, se um dia fosse obrigada a deixar Stanville-House! Em seguida, porém, seria preciso procurar-lhe uma colocação e os perigos recomeçariam.
”Enfim, ainda lá não chegámos!” pensou a excelente senhora. ”E esta criança é tão piedosa, tão dedicada e séria, que pode, com a ajuda do céu, sair-se muito bem desta tão difícil posição”.
Ao voltar no dia seguinte da consulta médica, Lila encontrou-se no vestíbulo com a senhora Stanville, que saía. Vendo-a, perguntou-lhe, na sua habitual voz seca
Muito bem! A passear a esta hora?... Quando vais ao escritório?
O senhor Stanville deu-me licença de ir hoje consultar o médico, minha prima.
O médico?. O que tens?
Cansaço e muita fraqueza!
Ora deixa-te disso!... Preocupa-lo sem razão!... Não me surpreende, em especial numa presunçosa como tu!... Espero que o meu filho te fique a conhecer bem, dentro em breve, para não se deixar enganar por essa comédia.
Respondeu-lhe em voz vibrante e com altiva ironia:
Sim, eu sei, com efeito! Não tenho o direito de estar doente. Já mais de uma vez me fez compreender isso, minha prima. Acredite que não esqueci, e se o senhor Stanville não me interrogasse a tal respeito, morreria, sem coisa alguma lhe pedir, como tenho feito até aqui.
Seguiu adiante, com a cabeça levantada e o coração opresso por causa dessa constante hostilidade, deixando Lourença, por momentos, atordoada com essa resposta, que nunca lhe dera.
A cólera apossou-se durante segundos da alma desta mulher, que em vão tentara durante seis anos dominar a altivez desta criança detestada. Agora encontrava-se em frente duma jovem que sabia defender-se e lhe deixava antever que não se preocupava com a sua opinião... Era isto, de facto, o que Lourença via no fundo da altiva e dolorosa resposta de Lila,
Pensou, apertando o cabo da sobrinha: ”É uma desaforada!... Atreve-se a falar assim, depois que o Hugo teve a ideia de a proteger!... Esta sirigaita imagina talvez que causou nele alguma impressão!... Tola!... Preciso fazer compreender ao Hugo que, a um tal carácter, a menor concessão é deplorável... Os homens não observam bem estas coisas!... E ele mesmo, tão sério e tão sobrecarregado de trabalho... ele mesmo poderá mostrar indulgência por esta pequena?... Oh! por muito pouco!... para ela é sempre demais!...”
Debalde nessa tarde e nos dias seguintes a senhora Stanville esperou que o filho lhe dissesse qualquer coisa a respeito da visita de Lila ao médico”. Ele não fez a menor alusão a tal facto, e ela teve de chegar à conclusão de que, daí por diante, lhe era interdita qualquer interferência no que se referia a Lila.
No dia seguinte, quando pensava se devia ir falar com Stanville ao escritório para lhe dizer o diagnóstico do médico, encontron-o na galeria, ao sair dos escritórios, à hora da merenda. Parecia esperá-la, e perguntou-lhe logo:
Que te disse Thomwille?
Depois de haver respondido às suas perguntas” declarou-lhe:
Precisas portanto observar todas as suas prescrições. Nos dias bons não virás ao escritório de tarde e farás o exercício recomendado...
Ela tentou protestar:
Não quero atrasar o trabalho, meu primo. Da uma às duas horas tenho tempo...
Interrompeu-a com alguma impaciência:
Enquanto não estiveres completamente restabelecida, farás o que eu disse. Depois veremos. Quanto aos tónicos a tomares, segue à risca as indicações do médico. A senhora O’Feilgen que os compre, mandando lançar na minha conta.
Murmurou um agradecimento, corando muito. Interrompeu-a de novo, dizendo:
Não me agradeças, É justo que eu contribua para o restabelecimento da tua saúde, pois foi aqui que foste enfraquecendo.
Lila teve um ligeiro arrepio e logo em seguida desviou os olhos do olhar que parecia querer penetrar-lhe até ao fundo da alma... Acabava de compreender que Stanville adivinhara o que nunca lhe quisera dizer: os sofrimentos morais e a fadiga resultaram da tirânica autoridade que Lourença lhe fez sentir. Existia por isso nele um certo espírito de justiça. Não seria tão mau como sua mãe?!.
No entanto outrora também tratara pouco bem a pobre criança, quando esta se lhe dirigira!... E agora mesmo sabia bem que era duro e exigente para com todos... Para ela porém não o era; reconhecia-o lealmente.
Não podia contudo sentir simpatia por ele, e sempre uma pequena sensação de receio e de mal-estar a dominava, quando lhe dirigia a palavra, quando o enigmático fulgor daqueles olhos azuis se encontrava com os seus.
Os meses passavam e o outono dispunha-se a ceder o lugar aos ventos do inverno. O fim de Novembro estava próximo. A senhora Stanville começou a pensar no tradicional jantar do Natal, que reunia as mais importantes personagens de Breenwich.
Este jantar, de grande aparato, representava uma das suas maiores satisfações de orgulho. O pesado e soberbo serviço de prata, o precioso serviço de velho Saxe, os linhos admiravelmente tecidos, tudo isto era a prova tangível duma opulência, que só exibiam em certas ocasiões, mas que eram a confirmação da alta situação ocupada pelos Stanvilles em toda a região. Depois, exultava ainda, ao ver o filho, o seu ídolo, a única afeição do seu coração endurecido, cercado de homenagens e de consideração pela sua alta inteligência e pela sua inflexível vontade, que nada fazia dobrar.
Nesse ano, contudo, o contentamento vaidoso que punha nos preparativos, apesar de ainda estar longe dessa grande recepção, não conseguia abafar-lhe a surda inquietação que, mais e mais, aumentava dentro dela.
O filho continuava a tratar Lila com uma indulgência incompreensível. Mais duma vez a vira sair a passear, à hora em que devia encontrar-se no escritório. Sabia também, por algumas palavras trocadas à mesa, entre o tutor e a pupila, que Hugo lhe emprestava livros e revistas literárias... Porém o indício que para Lourença era mais significativo, consistia na mudança que há alguns meses observava no filho. Ele, que até ali se contentara em que o seu traje fosse apenas correcto, com um pouco mesmo de severidade, modificava-o no sentido de lhe dar uma nota da mais sóbria elegância. ”O alfaiate dos avós”, como dizia Joé, fora substituído por um dos melhores de Londres. E ainda outra: Hugo já não cortava os cabelos tão curtos, deixando-os crescer, sedosos e um pouco ondulados, atenuando e remoçando a dureza da sua fisionomia.
Assim Stanville, que já antes não passava desapercebido, tornou-se ”um homem elegante”, conforme escrevera Rosa ao sobrinho.
Depois havia ainda outros factos menores... como por exemplo um que se dera recentemente: Lila, cujo relógio não andava bem, chegou uma tarde, para o jantar, com o atraso dalguns minutos. Como se desculpasse, Hugo, tão exigente com a exactidão, de que dava o primeiro exemplo, sorriu!... e disse:
Não tem importância. Não te apresses, temos tempo.
Lourença, tentando não acreditar na evidência dos factos, via-a impor-se no entanto cada vez mais dia a dia. Por outro lado encontrava-se completamente impossibilitada de agir, visto que não tinha nenhum poder para actuar sobre o filho.
Uma tarde, recebeu a visita duma das suas mais íntimas amigas, a senhora Haig, esposa do principal banqueiro de Breenwich e a rainha das más línguas da cidade. Era alta, loura, com cinquenta anos, tentando manter-se sempre jovem, adulando a todo o instante a senhora Stanville, o que explicava a amizade que disfrutava junto dela.
Nesse dia, depois de ter conversado sobre outros assuntos, acabou por perguntar:
A sua jovem prima, a menina de Sourzy, sempre está empregada nos escritórios do senhor Stanville?
Está.
Ah!...
Depois desta exclamação, plena de subentendidos, acrescentou, com terno sorriso nos lábios:
Encontrei-a ontem... Para dizer a verdade está-se tornando cada vez mais bonita!... Felizmente vive num meio sério e orientada por um tutor que é a perfeição em pessoa.
Lourença respondeu secamente:
De facto o meu filho não é desses homens que se deixam prender por uns bonitos olhos e uns modos vaidosos.
A outra não insistiu. Lançara apenas a sua pequena gota de veneno num terreno bem preparado para a receber.
Quando acompanhava até à porta a visita, encontraram Hugo, que vinha de fora, no vestíbulo. Cumprimentou a senhora Haig, cuja fisionomia, ao avistá-lo, se tornou mais melíflua e solícita do que nunca. Mal a excelente senhora saiu, pela porta que o Domingos lhe abriu, Stanville disse, com ligeiro sorriso de escárnio:
Que maneira de se vestir, para uma mulher daquela idade!... Torna-se grotesca, na verdade?
Sim, um pouco!... Mas é uma boa pessoa.
Pois não tem essa reputação. Chamam-na até ”a víbora de Breenwich”,
Ora, ora, também acreditas nessas histórias!?... É uma mulher inteligente e muito sensata!... Sabe dizer as coisas com discrição. Hoje fez-me compreender que censuram muito a Lila por aí.
As sobrancelhas de Stanville franziram-se e o seu olhar tornou-se duro. Perguntou:
Onde?... Quem?...
Todos, sem dúvida... E compreendi... que se admiram da... da sua presença no teu escritório.
Como?... Porquê?
Ante o olhar e o tom de voz do filho, Lourença começou a arrepender-se do que dissera.
Na tua idade... e na tua, Replicou-lhe num tom glacial;
Não compreendo o que quer dizer. No caso de qualquer pessoa lhe vir contar tolices desse género, responda-lhe que a sua prima está em mais segurança na minha casa, do que em qualquer outro escritório onde tivesse de ir ganhar a vida.
Lourença não replicou. Uma vez mais constatou que uma discussão com Hugo era impossível, pois ninguém nem mesmo ela seria capaz de suportar o olhar e o ar de fria e implacável vontade.
Por isso a rancorosa hostilidade contra Lila aumentou ainda mais. Uma surda cólera a atormentava ao pensar que não podia mais tratar essa ”miserável pequena” como desejava... Não, não podia mais!... O que podia era dirigir-lhe alguma malévola palavra, fazer-lhe qualquer ofensa, dar-lhe um trabalho pesado para as suas horas livres... A senhora Stanville prestava, ao proceder assim, uma escarninha homenagem àquela que detestava, pois tinha a certeza de que ela era muito delicada para se queixar ao tutor.
De facto; depois de ter aceitado a incumbência de concluir um bordado, ante um pedido, aliás muito cortês, da menina Bairn, viu-se solicitada para fazer outros trabalhos desse género, tanto por Carolina como por Lourença, e à terceira ou quarta vez com o modo arrogante doutros tempos, visto que Stanville não se lembrara de proibir que a pupila fosse tratada com menos atenção do que uma criada de quarto... Lila tentou esquivar-se... Porém logo que ouviu frases como esta: ”É bom ser mais prestável, e em especial numa casa onde recebeu o agasalho e o alimento”, a sua altivez exacerbou-se e pensou, num sobressalto de revolta: ”Está bem, vou pagar-lhes a sua dura hospitalidade!...” Privou-se desde então de sair, ou trabalhava até tarde, para terminar a tarefa imposta por Lourença ou por Carolina. E a sua fisionomia, que melhorara no fim do verão, empalideceu de novo e as forças começaram a faltar-lhe.
Perdes o pouco que ganhaste, minha querida! dizia a senhora O’Feilgen. Devias falar ao teu primo!... Uma palavra dele poria termo às maldades dessas duas mulheres.
Lila replicou vivamente:
Oh! não, nunca lhe faria queixas da mãe e Continuava o seu consciencioso trabalho de guarda-livros, onde nada havia a censurar, visto que Stanville nunca lhe tinha feito a menor observação. Chamava-a muitas vezes ao escritório, a fim de lhe dactilografar qualquer coisa.
Certo dia, quando terminava o trabalho, interrogou-a sobre os estudos que tinha feito... E fez-lhe esta pergunta:
Interessaram-te?
Alguma coisa... embora preferisse outros,
Quais?
Estudos mais intelectuais. Gostaria de estudar letras, por exemplo.
Durante alguns segundos Hugo olhou em silêncio aquele jovem e vibrante rosto e os ardentes e profundos olhos. Depois respondeu-lhe com um sorriso, que Lila lhe via agora muitas vezes nos lábios e que dava um encanto nunca visto à fisionomia:
Se gostas desses estudos emprestar-te-ei livros que te interessem e que instruam o teu espírito. És ainda muito nova para adquirir essa cultura literária que desejas e da qual foste privada até aqui.
Manteve a palavra. Livros e revistas, escolhidos com cuidado, foram postos à disposição de Lila. E quando vinha ao seu gabinete, interrogava-a sobre as suas impressões; depois, nos termos claros que estava habituada a ouvir, emitia a sua opinião, discutia uma ou outra ideia, fazia comparações entre tal ou tal obra, esclarecia aquela jovem inteligência, que o escutava com ardente atenção.
Um Stanville desconhecido se lhe revelava um homem que se interessava e se demorava na contemplação de obras-primas da estatuária e da pintura, que gostava de se deter por minutos diante duma ruína pitoresca ou dum recanto de paisagem, Chegou à conclusão, por frases ouvidas no decorrer dessas palestras, que o primo, se se ocupava com negócios nas suas viagens, não descurava no entanto as diversões artísticas e intelectuais. Quanto ao silêncio mantido por ele sobre esse ponto, nas suas relações com a mãe e a menina Bairn, explicava-o facilmente pela completa falta de compreensão, por parte de Lourença e de Carolina, de tudo quanto se referisse às coisas de espírito.
Esta descoberta, ligada à mudança exterior do tutor e ao interesse inegável que lhe testemunhava, fazia dele, aos seus olhos, um ser imprevisto e desconcertante. Ficava por isso numa espécie de indecisão, não sabendo o que pensar desse Stanville, na verdade muito diferente do outro, e sempre constrangida e um pouco esquiva na sua presença, por se lembrar da dureza e humilhações de outrora... Por outro lado, e apesar de tudo, sentia interesse por essa personalidade muito acima do vulgar, por essa fisionomia que, uma vez despida da sua frieza habitual, se tornava duma sedução inesperada.
Joé não poderia mais chamar iceberg a Stanville, se o visse a conversar com a pupila; os seus olhos, dum azul sombrio, tinham uma doçura estranha e ardente, que perturbavam muitíssimo Lila, sem que ela se detivesse a definir o motivo.
Continuava a ir ao escritório todos os dias, nas horas indicadas por Hugo, e ajudava em tudo quanto podia os dois velhos, que, apesar da fadiga, das preocupações e da idade, se esforçavam por dar ao dono o mesmo trabalho que antigamente, para não perderem o lugar.
Ora encontrou-os, uma tarde, muito abatidos. Ele, com o triste e velho rosto todo vermelho da comoção, estava imóvel diante do livro de registos, com as mãos cruzadas e trémulas. Ela, o rosto escondido nas mãos chorava em silêncio, enquanto soluços seguidos lhe agitavam os ombros. Lila exclamou:
Que têm os meus amigos?. Que lhes aconteceu?...
Osner disse com voz rouca:
O senhor Stanville acaba de nos dizer que nos consideremos despedidos a partir do princípio do próximo mês.
Despedidos?... E porquê?
Porque estamos velhos.
Mas fazem bem o serviço!...
Talvez não a seu gosto... Compreende, não nos atrevemos a pedir-lhe explicações!... Somos postos de lado com o pequeno ordenado dum quarto do actual... e na entrada do inverno...
A senhora Osner soluçou, descobrindo o pálido rosto coberto de lágrimas.
É a miséria! O nosso pequeno Tony esteve doente todo o verão, fizemos-lhe tratamentos caros e endividámo-nos para o tratar.
Disseram isso a Stanville? Ambos a olharam com assombro.
Dizer-lho?... Oh! minha senhora, quem se atreveria!... Todos sabem muito bem que sua senhoria é insensível a considerações desse género e que é preciso evitar tais pedidos. De facto já o sabia por experiência própria, a póbre Lila!...
E a sua alma generosa comovia-se de indignação e piedade, ante o desespero destes infelizes, vítimas também do duro egoísmo que outrora pusera na rua o pequeno Billy.
Apertando a mão enrugada, fria e trémula da senhora Osner, perguntou-lhe:
Não poderão encontrar outro lugar, ao menos para um
Osner abanou a cabeça,
Será muito difícil!... Na nossa idade... e sobretudo tendo sido despedidos por Stanville, que todos sabem que conserva os seus empregados até alcançarem o limite das suas forças!
Enfim, talvez!... É preciso esperar com paciência, até encontrarem alguma colocação, meu bom senhor Osner.
Dirigiu-lhes ainda mais algumas palavras de conforto; depois sentou-se diante da secretária. Sentia-se porém incapaz de fazer qualquer trabalho nessa manhã...: violenta dor de cabeça, desde a véspera, a incomodava, Além disso, o que acabava de saber perturbava-lhe deveras o coração, sensível a todos os sofrimentos. Sentia de novo aquela revolta que tanto lhe custara a reprimir!... Não pôde dominar um forte estremeção, quando a campainha eléctrica, tocando três vezes, a advertiu de que a chamavam ao gabinete de Stanville.
Ah! nesse momento daria tudo para não responder a essa chamada, Encontrar-se diante dele, desse homem implacável, quando todo o seu ser protestava, indignado, contra a indiferença glacial que lançava na miséria dois velhos e fiéis empregados!.
No entanto era preciso obedecer... Num passo pouco apressado dirigiu-se para o gabinete e, empurrando a porta de molas, entrou no grande aposento iluminado por um sol do outono.
Stanville, que estava escrevendo, interrompeu-se e disse, pegando num papel de cima da secretária:
Não sei onde tinhas ontem a cabeça, quando fizeste esta conta. Vê os graves erros que cometeste.
O tom de voz, apesar de se mostrar um pouco impaciente e autoritário, não tinha a entoação costumada quando dirigia uma repreensão a qualquer dos seus empregados. Lila tinha naquele dia os nervos excitados e não podia suportar o menor abalo. Corou e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, enquanto os trémulos lábios murmuraram:
Peço desculpa... Não sei como foi...
Com um vivo movimento, Hugo levantou-se e, pousando o papel na secretária, aproximou-se dela:
Então, não vais agora chorar por isso! Falei-te um pouco vivamente, talvez... sabendo que és muito sensível, apesar do teu aspecto corajoso...
Pegou-lhe na delicada mão. O seu olhar, onde se reflectia uma viva chama, procurava os olhos brilhantes de lágrimas, aqueles belos e confusos olhos que tentavam esconder-se por detrás de cílios palpitantes.
Lila tentou sorrir.
Estou hoje um pouco nervosa,. Peço-lhe perdão pelos erros que cometi, mas vou corrigi-los já,
É inútil. Eu faço isso... Falemos agora doutra coisa. Não tens hoje boa fisionomia. Noto-te fundas olheiras, o que há muito tempo não tinhas!... Tens o aspecto duma pessoa que está com dores de cabeça.
Sim, estou... Ontem já a sentia... E talvez por isso é que fiz tão mal essa conta...
Devias ter deixado o trabalho e ir repousar. Daqui por diante exijo que faças assim, ouves, Lila?... Suponho que tens saído todos os dias, como te recomendou o doutor Thomwille?
O vermelho acentuou-se nas faces de Lila, enquanto respondeu com embaraço:
Todos os dias, não.
Porquê?... Sentes-te fatigada?... Qual a razão, então?...
Tenho tido uns trabalhos para executar...
Que trabalhos?... Teus?...
Não!... da senhora Stanville e da menina Bairn.
Como?... Elas têm-te dado trabalho?... Uma irritação atravessou o olhar de Stanville.
E obedeces-lhe?
Os seus lindos olhos, onde se reflectia toda a altiva e pura alma, sustentaram aquele olhar descontente com calma energia.
Na minha situação é difícil recusar, primo. Perguntou num tom de violência concentrada:
Deixaram-te entender que lhes devias qualquer coisa?...
Não respondeu, mas baixou num instante as trémulas pálpebras, para fugir à imperiosa interrogação desse olhar irritado... não contra ela, sentia-o bem!...
Hugo disse entre dentes:
Está bem, compreendo!...
Depois dum curto silêncio recomeçou num tom de meiga autoridade:
Vai-te preparar para dares um passeio, aproveitando este lindo dia. Não quero que fiques no escritório hoje...
Não acabou a frase; olhou durante um momento para o rosto encantador da pupila, onde palpitava uma jovem, intensa e ardente vida; depois acrescentou com o raro sorriso nos lábios:
Vai dar um bom passeio, e não quero mais lágrimas, ouviste?
Sorriu, mas conservou um véu de tristeza a embaciar-lhe o olhar.
Oh! não, acabaram-se!
Inclinou a cabeça e deu um passo para a porta.
Mas de repente lembrou-se dos pobres velhos que se encontravam tão desolados... Não poderia tentar qualquer coisa por eles? Stanville tinha um ar condescendente... e mostrara-se bondoso e indulgente para com ela... Porque não confiar nele?
E no entanto era-lhe penoso solicitar alguma coisa, depois... do que acontecera noutros tempos!
Mas era preciso... era preciso recalcar o seu amor-próprio para deixar falar o coração, a sua alma caridosa!
Voltou-se e encontrou o olhar de Stanville fixo nela, com aquela expressão enigmática e ardente que sempre a perturbara.
Baixou os olhos e o sangue subiu-lhe ao rosto.
Hugo perguntou
Tens ainda alguma coisa a dizer-me, Lila?
Tenho, sim, meu primo... É a respeito dos pobres velhos dos Osner... Estão desesperados!... O emprego que tinham permitia-lhes ir vivendo; agora, porém...
Hugo interrompeu-a, com as sobrancelhas ligeiramente contraídas.
Não te preocupes com isso. Desde que julguei necessário mudar esses empregados, não deves discutir a minha decisão.
Lila, porém, corajosamente, insistia:
É que não sabe o quanto são infelizes!. Um dos seus pequenos está sempre doente e tiveram que contrair dívidas para o tratar... São tão bondosos, tão honestos e trabalhadores!... Peço-lhe que tenha piedade deles!
Juntou as mãos, levantando para Stanville os seus admiráveis olhos, que suplicavam, eloquentes, Hugo respondeu com voz um tanto excitada:
Não posso Lila... já contratei os substitutos. Amarga decepção se reflectiu na fisionomia de Lila.
Ah!... Pobre gente!... Infelizes!...
E de novo as lágrimas lhe subiram aos olhos. Ainda desta vez se aproximou dela e lhe pegou nas mãos.
Vamos, estás hoje muito sensível, Lila?... E eu que não gosto de ver chorar!... Ouve, diz aos teus protegidos que continuarei a dar-lhes o ordenado que até aqui recebiam... Está bem?
Ah! obrigada... mil vezes obrigada!. Que olhar de reconhecimento!... Por momentos esqueceu as penosas recordações que se erguiam entre ela e Stanville. Este cedera à sua súplica com bom modo, o que tinha maior valor ainda, pois julgavam que ele não permitiria nunca uma solicitação deste género.
...Como eles vão ficar contentes!... Como essa pobre gente o abençoará!...
Stanville mostrava uma expressão que dizia claramente: ”Eles?. Isso é-me indiferente. Mantinha presos nas suas mãos os lindos e trémulos dedos da prima, e não parecia disposto a abandoná-los.
Tanto melhor, se ficaste contente... Esquecia-me ainda que tinha uma comunicação a fazer-te. Este ano assistirás ao nosso jantar de Natal,.
Perguntou com surpresa:
Quer que assista?
Sem dúvida, Tens dezoito anos, e já é tempo de aparecer na nossa sociedade,
Interrompeu-o ainda;
Mas, meu primo, se não estou destinada a viver nessa sociedade, é necessário que aprenda a conhecê-la?
Sim, senhora. Mandarás fazer um bonito vestido, a teu gosto, que sei ser delicado. E como sou eu que te peço para assistir a esse jantar, custearei todas as despesas que isso te acarretar. Pretendo que te apresentes bem,. Agora vai-te vestir depressa para aproveitares este resto de sol.
Abriu os dedos e a pequena mão ficou liberta. Lila murmurou um agradecimento e saiu, meia estonteada, julgando ser um sonho.
Como estava mudado o orgulhoso Stanville. Seria o remorso do anterior procedimento que lhe inspiraria esta nova atitude?
Era esta a única explicação possível, ou pelo menos a alma pura e nada romântica de Lila não procurava outra, na sua perfeita candura, até ali preservada por Stanville.
Quando contou ao guarda-livros o favor que Stanville lhes concedia, ambos a olharam com tal assombro, que não pôde conter o riso.
Isso admira-os assim, meus amigos?... No entanto garanto-lhes que não estou a brincar!. Minha querida senhora Osner, o seu pequeno Tony terá de comer no próximo inverno!
E aproximando-se da boa mulher deu-lhe um beijo no rosto, com aquela encantadora espontaneidade, tão natural nela,
A senhora Osner murmurou:
Menina Lila!... Parece incrível!... Obteve semelhante coisa?... E como se atreveu a pedir-lhe?
Lila confessou:
Tive que recorrer a toda a minha coragem.. Porém o senhor Stanville não se mostrou contrariado e atendeu-me logo.
Osner fitava-a com os olhos esgazeados pela alegre estupefacção... Balbuciou por fim:
Menina Lila!... Não sei como mostrar-lhe a nossa gratidão!... Se um dia lha puder provar...
Lila pegou-lhe nas mãos e apertou-lhas com ternura.
Senhor Osner, aqui está a minha recompensa: é a sua alegria. Agora vou-me, pois de contrário o senhor Stanville ralhar-me-á, visto que quer que eu saia enquanto há sol.
E deixou o escritório, quase tão contente como os guarda-livros, pois para ela nada se igualava à alegria de fazer bem.
Osner olhou para a esposa e disse:
É claro que gosta dela!... Para conseguir isto!...
Sim!... É tão bonita e encantadora!. Mas pensas que o senhor Stanville tenha a ideia de a desposar?
Osner abanou a cabeça.
Admirar-me-ia muito se tal se desse!... Ele deve querer uma grande fortuna e uma alta posição na sociedade, Ora ela não tem nem uma, nem outra coisa. E depois, tal casamento não devia ser lá muito bom para ela!... Um marido como ele!... Nem pensar nisso!...
A esposa estremeceu.
Oh! sim, pobrezinha... Ela que tem tão bom coração!... Graças a ela ficou dissipada a nossa terrível inquietação, mon bom Jemmy!
E os dois abraçaram-se com as lágrimas nos olhos.
A senhora O’Feilgen manifestou grande satisfação quando Lila, indo buscar o Trick para seu companheiro de passeio, lhe contou o que se passara.
Assim o Stanville ficou a saber do trabalho que a mãe dele te dá!... Foi muito bom. Espero que sossegarás agora, quanto a esse ponto, minha querida.
Rosa, cujo olhar brilhou de malévolo ciúme, disse com um riso de escárnio:
Como se vai humanizando, o belo Stanville!... Não está admirada, menina Lila?
Esta respondeu com simplicidade, sem compreender a intenção da senhora Hegton:
Quase nem o conheço já. Está muito mudado. Deve ser melhor do que a mãe.
Quando Lila saiu com o Trick, a senhora O’Feilgen disse à cunhada:
Não lhe deves falar assim de Stanville. É melhor não lhe incutir ideias que ela não tem.
Rosa encolheu os ombros.
Acreditas que não as tenha?... É talvez mais viva do que tu pensas.
Tenho a certeza de que não há nenhuma dissimulação neste caso, minha querida!. Nós é que fazemos esse juizo, imaginando Stanville apaixonado pela pupila.
Um homem da sua idade e com o seu carácter, que se interessa de tal maneira por uma pupila até aqui colocada à margem, entregue à mais completa indiferença!... Não, Fanny, compreendes tão bem como eu que, neste caso, se trata doutra coisa mais do que o remorso dos seus passados erros, como crê ou parece crer a Lila.
A cunhada suspirou, dizendo:
Pobre pequena Quantas dificuldades e sofrimentos em perspectiva! Nem sequer ouso pensar!... e quero acreditar que somos nós que inventamos tudo isto, Rosa.
A senhora Hegton riu com ironia, ao responder:
É hábito teu, minha amiga, não quereres olhar de frente a realidade, até ao dia em que ela te cega por completo.
Nessa tarde, Lila, depois de ter ido mais uma vez a casa das amigas, na volta do seu passeio, chegou a Stanville-House quando caía a noite. No patamar do primeiro andar encontrou-se face a face com Carolina, que se preparava para descer. Em voz arrogante interpelou-a:
Quando me acabarás o lenço que te dei para bordar?
Daqui a três ou quatro dias, menina Bairn. O desenho é tão complicado, que não posso trabalhar muito tempo nele.
Preciso dele para depois de amanhã. Faz serão, se for preciso.
Uma silhueta masculina surgiu da penumbra dos corredores, por detrás de Carolina. A voz de Stanville elevou-se, dura e glacial:
Que significam esse tom e essas palavras, Carolina?... Com que direito obrigas a Lila a trabalhar assim?
A menina Bairn deu um salto tão forte, que faltou pouco para rolar pela escada. Conseguindo agarrar-se ao corrimão de pedra, balbuciou:
Mas eu... eu...
Entrega-lhe esse lenço, Lila, como estiver. Proibo-te de dares nele mais um ponto, e de aceitares de hoje em diante qualquer trabalho para ela, sobretudo quando te falar neste tom... E podes-me dizer porque a chamas menina Bairn, quando ela te chama pelo teu nome?
Lila, vermelha e constrangida, respondeu:
Foi a senhora Stanville quem assim o quis.
Nesse caso, Carolina, chamá-la-ás menina de Sourzy, visto que nesta casa ocupa o mesmo lugar que tu, como minha parenta, e quero também, além disso, que seja tratada do mesmo modo... Entendeste?
Carolina respondeu com voz sumida:
Entendi, meu primo.
Desceu a escada com a cabeça tão curvada e tão humilde, sob a admoestação recebida, quanto era arrogante com quem encontrasse sem defesa.
Lila, ainda toda trémula com a súbita intervenção de Stanville, fez um movimento para se dirigir para a escada que levava ao segundo andar.
Hugo deteve-a, perguntando:
É sempre assim que a Carolina te fala?
Quase sempre, meu primo.
Penso que não voltará a fazê-lo... Deste um bom passeio?
Muito bom, e obrigada.
Agora vai repousar... O teu quarto é devidamente aquecido?
Lila tornou-se mais vermelha ainda, tentando sorrir.
Será difícil, porque não tem aquecimento.
Não tem aquecimento?... Onde é, então?
No terceiro andar.
No terceiro andar?... Alojaram-te num dos cubículos?...
Sentiu irritada surpresa na voz de Stanville...Pensei que tivesses estado sempre no quarto onde vivias com tua mãe!
Não, saí dele logo depois da sua morte.
Ao clarão da lâmpada eléctrica, que iluminava o patamar, Lila viu os olhos de Hugo faiscarem.
Tens frio lá em cima, agora!
Bastante; mas devo-me habituar a tudo, na minha posição.
Hugo respondeu com uma impaciência misturada de ironia:
Essa é uma frase que deves ter ouvido mais duma vez? Eu sou doutra opinião. Prepara-te para desceres amanhã. Vou-me entender com minha mãe a tal respeito.
Voltou-se e dirigiu-se para os aposentos de Lourença, deixando Lila mais uma vez assombrada
A mãe estava no gabinete ao lado do seu quarto e escrevia, sentada diante duma pequena mesa. Ao avistar o filho, disse com satisfação
Ah! vieste até aqui!? Queria justamente mostrar-te a lista dos nossos convidados, para veres se não esqueci alguém.
Hugo pegou na folha e percorreu rapidamente ”com os olhos essa lista de nomes, cada um deles com a indicação do lugar que ocuparia. Depois disse num tom de imperativa decisão:
É preciso um lugar para a Lila, pois está já em idade de assistir a esse jantar.
A mãe estremeceu e olhou para o filho, estupefacta:
Lila?... queres que?... Mas na sua posição... parece-me que...
A sua posição?... Até aqui, com efeito, não tem ocupado o lugar que devia ocupar, sob o nosso teto. Assim, ainda há pouco tive de admoestar a Carolina, pois dirigiu-se-lhe num tom insuportável e atreveu-se a dar-lhe ordens. Soube também, por acaso, que está alojada num cubículo sem aquecimento,
A voz do dono da casa estava calma e sem cólera, mas era dura e glacial. Lourença não ignorava o que esse tom escondia de irritação. Aliás, só o olhar do filho era o bastante para lha mostrar... Assim, foi a custo que conseguiu replicar:
Mas, meu filho, combinámos que ela devia ser tratada com simplicidade e um pouco duramente, em face do futuro que a espera... Não compreendo, confesso, por que queres que ela assista a essa recepção. Não está habituada a tais relações.
Aprenderá, como todas.
Está destinada a ganhar para viver e a casar num meio modesto.
Stanville teve um clarão de escárnio nos olhos.
Aí está uma coisa que ainda se não pode provar. A Lila só lhe falta a fortuna; de resto é muito bem dotada, sob todos os pontos de vista, e por isso pode fazer um brilhante casamento. A sua antipatia por ela é que a cega, minha mãe.
A minha antipatia?... Nada disso... Conheço-a apenas melhor do que tu e sei que deve ser orientada com mão forte, pois a menor indulgência torna-a insuportável.
Uma contracção de sobrancelhas e um clarão nos olhos sombrios advertiram-na de que se aventurava a ir longe de mais.
Hugo acrescentou com seca impaciência:
Tenho a minha opinião formada sobre ela. Pode guardar a sua, minha mãe... É preciso colocar a Lila... Vejamos... Pode ficar entre os senhores Belavie e Everson.
Lourença exclamou em voz rouca, de mal contida cólera:
No lugar da senhora Wilken?
Sim, senhora. Quero que a Lila fique perto de gente séria, que não lhe dirijam galanteios e que sejam ao mesmo tempo interessantes. Peço-lhe também para mandar preparar, no primeiro andar, um quarto voltado ao sul, e aquecido.
Se assim desejas!... Mas não compreendo por que dás ouvidos às queixas dessa pequena contra tua mãe...
Hugo interrompeu-a friamente:
Nunca teve uma palavra de queixa contra si ou contra qualquer outra pessoa. Eu é que reconheci um pouco tarde que tinha deveres a cumprir para com ela. Peço-lhe que me faça a vontade, e deixe, bem como a Carolina, de lhe dar trabalho; numa palavra, abstenham-se de lhe tornarem a vida desagradável, sob o meu teto.
Balbuciou apenas:
Será feito como desejas.
Quando o filho saiu, Lourença ficou um longo momento imóvel, com as mãos cruzadas e apoiadas na escrivaninha. Contracções diversas lhe perpassavam pelo rosto, que se tornara muito pálido.
Ainda podia duvidar?... Aqui estava o homem de coração insensível!... Hugo, até então tão desdenhoso para com as mulheres, tão indiferente aos seus galanteios, Estaria vencido por essa Lila... ou pelo menos interessado, até ao ponto de lhe testemunhar uma indulgência incompreensível, uma solicitude de que parecia incapaz?
”E que fazer, se isto acontecer...” pensava Lourença, estremecendo de inquietação e de cólera. ”Como toda a gente, não tenho a menor influência sobre ele, É o dono... assim mo fez compreender quando disse: sob o meu teto! Ah!. como eu tinha razão em desconfiar desta criança! e que erro cometi, trazendo-a para aqui!...”
A partir desse dia a senhora Stanville não dirigiu mais uma palavra à sua parenta. Fingia ignorar a sua presença e Carolina imitava-a, na forma do costume. Lila sentia com isso viva satisfação. Como as duas só lhe testemunhavam má vontade, era preferível o silêncio.
Quanto ao filho, Lourença não lhe deixava perceber os sentimentos que a agitavam. Hugo também não lhe dissera uma palavra mais sobre ela. Não duvidando de ser obedecido, julgava por isso inútil voltar a um assunto que ele e a mãe consideravam dum modo tão diferente!... Lourença continuava porém a notar indícios que lhe demonstravam não serem infundados os seus receios.
Outros observavam também discretamente... por exemplo, Huntler, o secretário, o qual cumprimentava agora Lila com toda a solicitude, e os próprios criados, cujas maneiras, para com aquela que até aqui era tratada sempre pior que eles, mudaram por completo,
É que Stanville tinha ralhado severamente ao carrancudo Domingos, a propósito duma resposta pouco cortês dada à menina de Sourzy... ”Faltou pouco” dissera a criada de quarto, que tudo ouvira ”para que sua senhoria não o mandasse pela porta fora!. Teve que pedir desculpa à senhora Lila, esse velho rabujento, que só fala baixo e se mostra humilde diante do dono.
Os outros, com este exemplo, assumiram para com Lila uma atitude respeitosa e modos deveras serviçais,
Assim a vida em Stanville-House tornou-se-lhe mais suave. Embora subsistissem ainda as velhas e penosas recordações, a sua alma era bastante delicada para não sentir pelo tutor certo reconhecimento. Não ousava porém demonstrar-lho. O olhar de Hugo, tão diferente no entanto do de outrora, intimidava-a duma maneira estranha,
É um coração bondoso! diziam as senhoras O’Feilgen. E tanto melhor para ti, querida Lila, pois que essa terrível Lourença e a maldosa Bairn faziam-te morrer de pesar.
Os moradores da ”Casa dos Rouxinóis” encontravam-se nesse momento numa difícil situação. Catarina tinha perdido muitas lições. A senhora O’Feilgen, mal aconselhada, perdera alguns milhares de francos do seu magro capital. Trick, o mais novo dos filhos, tinha pouca saúde, o que exigia muitas e dispendiosas despesas. Apesar, porém, de dizerem sempre: ”Não sabemos como havemos de sair desta dificuldade”, tanto a mãe como os filhos não perdiam a sua alegre imprevidência.
Por outro lado, não se atreviam a dirigir-se a Stanville para conseguirem um auxílio pecuniário.
Encarrega a Lila, minha querida dizia Rosa com irónico sorriso. O seu amável tutor nada lhe recusará”
A bela senhora Hegton, acordando enfim da sua indolência, decidiu-se a abandonar a agradável profissão de parasita para procurar lições. Não punha nisso muito zelo e a cunhada não contava com o auxílio que ela pudesse trazer para casa.
A minha tia é a cigarra da fábula disse um dia Catarina. E como nós não somos as laboriosas formigas, em nossa casa passa-se mal!... Ah! se pudesse ”explorar” os Stanvilles, era uma coisa que ela faria da melhor vontade!... Porém devolvê-la-iam com desprezo à sua miséria: ”Cantavas? Folgo em saber!... Pois bem, dansa agora!...” Enquanto que nós, pobres e estúpidos como somos, recebemo-la em nossa casa. Enfim, ninguém nos modificará. Que queres, é o destino, concluiu a alegre menina O’Feilgen.
Na véspera do Natal, o céu, carregado de neve, desanuviou-se um pouco sobre o lado sul e um tímido raio de sol apareceu à tarde. Lila aproveitou-o para ir até casa das suas amigas. Logo que Pascoal lhe abriu a porta, achou-se envolvida por uma grande fumarada. A senhora O’Feilgen, com os olhos a lacrimejar, acolheu-a com estas palavras:
Minha querida, não sei para onde te levar. As chaminés do rés-do-chão estão a desmoronar-se e não deixam sair esta fumaça, há já dois dias. Estamos gelados!... Vem para o meu quarto. Acendi lá uma fogueira, por causa do Trick, que tosse muito. Porém o ar frio entra aqui como em sua casa, por estas janelas que nada já resguardam.
Lila, seguindo-a pela escada, observou:
Devia dizer qualquer coisa ao senhor Stanville, pois esta casa está a ficar inabitável,
Sim, eu sei!... Mas custa-me muito!... No entanto preciso resolver-me a isso... Querida Lila, poderás encarregar-te de lhe pedir que me marque a hora em que lhe posso falar?
Sim, senhora. Falo-lhe logo que me seja possível.
Saindo da ”Casa dos Rouxinóis”, dirigiu-se para o outro extremo da cidade, a fim de fazer uma visita de caridade,. Noutros tempos, a bondosa senhora O’Feilgen ajudara como pudera o pobre Billy e a mãe, e, por ela, Lila soube que os desgraçados continuavam a viver miseravelmente, mas sempre dignos. Billy era agora um rapaz de dezoito anos e trabalhava como jardineiro. Todavia as privações e as necessidades que passara na infância fizeram dele um ser franzino e de precária saúde, Quanto à mãe, Jenny Folken, arrostava com coragem a sua triste existência de mulher doente e pobre, tratando do Jack, o seu segundo filho, criança raquítica, que o Billy cercava de tocante ternura,
Depois que se libertara da tirânica tutela da senhora Stanville, fora muitas vezes visitar esses infelizes. Uma parte do seu ordenado servia para os auxiliar. Com palavras afectuosas tentava reconfortá-los, Bastava porém que a avistassem, para que um sorriso surgisse nos lábios dessa pobre gente, encantados pela sua beleza, pela luz que irradiava dos seus bonitos olhos, pela graça simples desta deliciosa jovem, de quem Billy dizia, num tom de ardente reconhecimento:
Foi ela que implorou por mim ao senhor Stanville! Foi ela que teve a coragem de tal fazer!
Lila ia a casa dos Folkens. No caminho parou, a fim de comprar os modestos presentes de Natal que lhes destinava. Teve que esperar, pois os estabelecimentos encontravam-se cheios nesse dia. Assim, era já tarde quando se dirigiu para o bairro onde vivia a senhora Folken.
Não reparou que pelo passeio oposto àquele por onde seguia, Stanville voltava para casa, Avistando-a, parou um momento a admirá-la, Depois atravessou a rua e seguiu-a a distância.
Os Folkens habitavam uma casinha quase em ruínas, que tinha um pequeno jardim na frente, onde Billy plantava alguns legumes. Quando Lila entrou nessa miserável habitação, Hugo, empurrando a velha cancela de madeira, que ela não fechara por completo, entrou por sua vez no pequeno jardim e aproximou-se da única janela.
Como já era quase noite, Billy acendera um pequeno candeeiro. A essa fraca luz distinguia-se vagamente o mísero interior, sempre bem arrumado. Jack, doente, estava na cama, Recebeu a visitante com uma alegre exclamação, enquanto a mãe e o irmão apertavam a mão que ela lhes estendera, levantando para a jovem um olhar de comovido reconhecimento.
Sentou-se um pouco perto da cama, informando-se do estado do doente e apertando entre as suas a magra mão de Jack... O seu rosto era iluminado em cheio pelo candeeiro, pelo que Hugo podia distinguir todos os movimentos dessa expressiva fisionomia. Mostrava-se alegre para com esses desgraçados, a quem pretendia encorajar e era esse um dos aspectos do seu carácter que Stanville ignorava, pois nunca se sentia muito à vontade a seu lado, para se permitir outra coisa além dum discreto sorriso, aliás encantador. Ora esta descoberta não lhe desagradou, visto que não deixou de fitar, deveras satisfeito, o jovem rosto, rosado pelo frio, onde os lábios vermelhos e os olhos pretos e bonitos riam ternamente, enquanto colocava sobre a cama do Jack os presentes de que se munira. Os olhos do doente brilharam de alegria no triste e pálido rosto. A mãe, a quem Lila acabava de dar uma pequena quantia, agradecia comovida, enquanto a honesta fisionomia de Billy reflectia um reconhecimento quase religioso à sua jovem benfeitora.
Stanville, deixando o seu posto de observação,” saiu do quintalejo e seguiu ao largo do passeio, afastando-se um pouco... Quando, cinco minutos depois, Lila passou perto dele, estremeceu ao ouvir a sua voz, que a interpelava em tom amigável:
Muito bem, minha independente pupila, dás passeios tão tarde e sem a minha permissão
Balbuciou apenas:
Oh, meu primo!... Que susto me meteu. Pegou-lhe no braço e prendeu-o no dele.
Apoia-te bem, pois a neve está escorregadia... Sabes, Lila, que devia ralhar-te por te encontrar a esta hora neste afastado bairro?
É verdade, atrasei-me. A noite chega tão depressa!
Quem é essa pobre gente que visitaste?
É uma família muito infeliz e muito bondosa. A mãe e um filho estão sempre doentes, e o outro trabalha muitíssimo para os sustentar. É uma grande miséria, mas suportada com dignidade,
Como se chamam eles?
Folkens...
E depois dalguns segundos de hesitação, continuou, não sem esforço e corando muito:
...O mais velho, Billy, já esteve empregado na fábrica.
Hugo respondeu apenas
Sim, já me lembro.
Caminharam durante um longo momento calados. Conforme tinha dito Stanville, a neve estava escorregadia e Lila reconhecia que lhe era necessário o apoio do seu vigoroso braço. Quando chegaram a uma avenida, que os levava mais directamente a Stanville- House, Hugo observou:
Não me pareces agasalhada o bastante para o frio que faz!. Não tens uma capa?
Não, meu primo. Estou muito bem assim...
O que não impede que tremas de vez em quando... Receio que te prives daquilo que precisas, auxiliando pessoas que se aproveitam da tua inexperiência para te comoverem.
Lila protestou, entusiasmada:
Oh! não, os Folkens são de facto pobres e a sua miséria é muito grande!... É bom ajudá-los!... Quem me dera!... Posso fazer tão pouco por esta tão grande infelicidade!.
Por mim, acho que a caridade é uma burla.
Será levada em conta dos nossos pecados... O olhar de Stanville admirou por instantes aquele encantador perfil que o frio empalidecia... Durante alguns instantes os dois voltaram a caminhar calados. Sob a luz dos candeeiros, a avenida, coberta de neve, estendia-se por ali fora até se perder de vista na brancura iluminada. Stanville e a pupila voltaram para uma rua transversal.
Esta fora limpa e estava completamente seca... Lila retirou o braço, com um tímido agradecimento. Hugo respondeu-lhe num tom de amável cortesia;
Sinto-me muito feliz por te ter podido ajudar. Voltemos porém ao assunto de há pouco. Quero que gastes só contigo o ordenado que recebes em cada trimestre,
Oh não, não me peça isso! Não me poderia sentir satisfeita, sabendo que essa pobre gente estava na miséria!...
Os seus lindos olhos levantaram-se para ele, iluminados pela ardente compaixão que lhe transbordava do coração e que resolutamente protestava contra a exigência de Stanville.
Hugo sorriu.
Deixarão de ficar na miséria, pois encarregarme-ei de lhes assegurar a sua subsistência,
Lila parou, olhando-o com estupefacção... Depois, em voz hesitante, que alegre comoção fazia tremer, perguntou:
Vai fazer isso?... Ajudá-los-á?
Sem dúvida, visto que me asseguras que o merecem.
Oh! meu primo, como é bondoso!...
Sorriu, ao ver aquele olhar de ardente reconhecimento, e disse em voz um pouco baixa, onde perpassavam certas vibrações apaixonadas:
Tanto melhor, se ficas contente. Será este o meu presente do Natal!...
Depois continuou no mesmo tom:
...Quando tiveres qualquer coisa a pedir-me, fá-lo sem receio. Sentir-me-ei muito feliz, realizando todos os teus desejos.
Quando entrou no seu quarto, Lila ficou um momento imóvel, reflectindo no que se acabava de passar, e que era quase inacreditável.
Como é que Stanville se encontrava tão perto da casa dos Folkens?... Tê-la-ia seguido?... Porque mostrava tal solicitude, coisa de que ninguém o julgava capaz?... E com que cuidado ele a amparou, no escorregadio caminho!...
Chegando a este ponto das suas reflexões, Lila pensou, estremecendo toda, como seria bom apoiar-se durante toda a sua existência a um braço forte como aquele, forte e delicado, quase terno mesmo, quando apertava contra ele o braço trémulo da prima.
Mas, acima de tudo, o que era inacreditável, era a decisão tão espontânea tomada por Stanville a favor dos Folkens.
Era este o mesmo homem de há seis anos?...
Não queria mais evocar essas tristes recordações!... Devia fazer por não esquecer antes esta, dum novo Stanville, mostrando-se bom e amável!...
”Quando tiveres qualquer coisa a pedir-me, fá-lo sem receio. Sentir-me-ei muito feliz, realizando todos os teus desejos”.
O sangue subiu-lhe às faces e o coração começou a bater-lhe apressado, tal como quando Hugo lhe falou numa voz que ela não lhe conhecia... e ainda a maneira como a olhava desde há certo tempo.
Não notara, noutros tempos, que esses olhos fossem tão bonitos, nem nunca vira passar a menor comoção por eles. Porém agora!...
Agora, sim!... Sentia uma leve perturbação quando as suas altivas pupilas, dum azul escuro, se fixavam nela. Já não eram como antigamente, mostrando glacial indiferença ou inflexível dureza. Não, nunca mais mostraram essa expressão. Pelo contrário, reflectiam um fervor e um interesse tão ardente, que transformavam por completo essa fisionomia, e tão por completo, que Lila sentiu uma comoção estranha.
Juntando as mãos, pensou: ”Minha pobre mãe!... se pelo menos tivesses podido ver esta transformação!... Tu, que te desesperavas por deixar a tua Lila no meio de tão grande indiferença e hostilidade!... Graças a ele estou livre do despotismo de Lourença. Merece por isso todo o meu reconhecimento”.
A senhora Stanville estava sozinha no pequeno salão, quando seu filho entrou, no dia de Natal. Num relance Hugo observou o aposento brilhantemente iluminado e decorado com um luxo um pouco pesado; depois perguntou:
As primas ainda não desceram?
Não!. Mas parece-me que não estão atrasadas?
Não, nada disso.
Aproximou-se da estufa, junto da qual se recostou, no seu costumado sofá. Lourença envolveu-o num olhar de orgulho e surda inquietação. A sua transformação física acentuava-se mais ainda nesse traje de noite, que vestia com naturalidade de grande senhor e cuja discreta elegância impressionava o olhar materno, habituado a uma correcção quase severa. Hugo parecia agora mais novo do que nunca, mais novo do que aos vinte anos. Constatando que esta mudança e a vida intensa do seu olhar lhe davam um encanto que até ali não tivera, Lourença maldizia a pequena que era a causadora de tal, a loura Lila, a quem o seu filho queria agradar.
Hugo, com as mãos apoiadas nos braços do sofá, percorria com o olhar o salão, como se inventariasse cada móvel. E observou:
Faltam aqui flores. Devia ter pensado nisso... Este salão é austero de mais, desgracioso até. Uma ornamentação com flores não seria de mais...
A mãe exclamou num tom de surpresa:
Foi sempre assim, e nunca fizeste reparo.
Não dava importância a essas coisas. Agora porém é diferente.
A mãe pensou, fremente de cólera: ”Seria ela que lhe deu tal ideia?”
Houve entre eles um grande silêncio, que a senhora Stanville quebrou, dizendo num tom um pouco hesitante:
Há algum tempo que desejo falar-te, Hugo... a respeito do teu casamento...
Este voltou a cabeça para ela. Constrangida pela fria impaciência do seu olhar, baixou um pouco os olhos e continuou, balbuciando:
Tens trinta anos... Seria tempo de pensar... Interrompeu-a desabridamente:
Tenho tempo, minha mãe. Não se preocupe com isso.
Bem sei!... No entanto... as circunstâncias!... Pensei em Carolina...
Carolina?...
Mostrou tal desprezo na voz e no olhar, que a senhora Stanville estremeceu e perturbou-se.
Sim. Era um projecto...
Hugo deixou ver um sorriso sarcástico,
Projecto seu, talvez, mas nunca meu, isso nunca!. Em primeiro lugar não admito o casamento entre primos num grau tão próximo. Mas mesmo que esse obstáculo não existisse, Carolina seria a última pessoa que eu pensaria em tornar minha esposa.
Porquê?... Tem belas qualidades... Não é vaidosa.
Hugo respondeu, num tom de fina zombaria:
Era só o que lhe faltava!...
A mãe prosseguiu, enquanto os seus dedos iam amarrotando febrilmente a seda floreada do vestido:
... Nunca procurou fazer-se reparada... é modesta, calada, excelente dona de casa,
Tanto melhor para o feliz mortal que escolher essa pérola de beleza, inteligência... e bondade!
Lourença tratou de se dominar, sentindo fugir-lhe toda a firmeza sob a fria ironia do filho.
Sei muito bem, meu amigo, que a Carolina não é o que se chama uma beleza... Tem no entanto agradável fisionomia... e é mais inteligente do que pensas, Quanto à sua bondade, ninguém é melhor dotada do que ela.
Estou em condições de a poder julgar, nesse ponto.
Ante a fisionomia e as palavras do filho, a senhora Stanville compreendeu que qualquer insistência era inútil e perigosa. Por isso exclamou:
Não simpatizas com ela, é o que é!
Tenho a minha opinião formada, e é o bastante. Carolina é feia o que não é culpa dela e constitui, a meu ver, o menor dos seus defeitos. É tola e isso poder-se-ia ter remediado um pouco com melhor educação. Falta-lhe totalmente a mais elementar bondade, é vaidosa e arrogante, torna-se aduladora ante os que teme ou aqueles por quem procura fazer-se estimar!... Como vê, minha mãe, conheço muito bem a sua preciosa Carolina!
Mas... Hugo... estás enganado! Vê-la sob um falso aspecto...
Deixemos este assunto sem importância!... e não se preocupe com o meu casamento, Saberei escolher quando chegar a hora.
Ouviu-se neste momento um rugir de sedas. Carolina apareceu, trazendo um vestido de seda cor-de-rosa, sobrecarregado de enfeites. Quis dar ao seu vestido uma aparência de riqueza e só conseguiu torná-lo pesado e sem graça, Os cabelos descoloridos, penteados dum modo complicado, vinham enfeitados com uma pluma branca, que oscilava desgraciosamente a cada um dos seus movimentos. Em volta do seu magro pescoço fulgia um colar de pérolas e topázios rico e pesado, tal como as pulseiras que lhe ornavam os pulsos angulosos.
O olhar estático com que a menina Bairn fitou o primo foi completamente inútil. Toda a atenção de Stanville se concentrou na maravilhosa aparição que surgia em seguida à sobrinha querida de Lourença.
Uma seda branca e leve, com suaves reflexos nacarados, caía harmoniosamente em volta do corpo mais esbelto e elegante que se poderia sonhar; uma gaze delicada tremulava-lhe sobre os braços, duma palpitante brancura, e deixava ver um pescoço fino e assetinado; os cabelos louros, penteados à grega, formavam um verdadeiro diadema sobre aquele delicioso rosto, todo iluminado pela ardente luz duns olhos aveludados, que se baixaram um instante sob o olhar de Stanville um olhar deslumbrado e cheio de admiração.
Era para contrabalançar o de Lourença, que se encheu duma cólera dificilmente dominada, ao avistar essa maravilhosa Lila tão terrivelmente bela... Com ligeiro golpe de vista viu o efeito que essa aparição produziu em seu filho, apesar do domínio que este tinha sobre si mesmo. Lila murmurou:
Cheguei atrasada?
Hugo, levantando-se, deu alguns passos para ela
Não. A minha mãe e eu é que chegámos mais cedo.
Lourença acrescentou secamente:
Não muito!... Compõe essa prega da blusa... Mais abaixo... Esse vestido não te assenta nada bem!... E esse penteado!... Onde foste procurar o modelo?
Foi Daisy O’Feilgen quem mo aconselhou. Disse que me ficaria bem.
E isso foi o bastante para tu ousares?... Desde que a tua vaidade fique satisfeita, usas seja o que for; tanto o teu penteado como o teu vestido vão chamar a atenção de toda a gente, duma maneira que uma menina séria não deve gostar muito.
O seu íntimo furor fez-lhe perder toda a prudência. Mas calou-se de repente, ante o olhar de violenta irritação com que seu filho a fitou.
Contente-se, minha mãe, em criticar o vestido de Carolina, que tem bastante necessidade disso. Que copie o modelo da Lila, é tudo quanto lhe podem desejar de melhor as pessoas de bom gosto, Não vejo nenhum inconveniente em que copie também o penteado encantador e muito próprio duma menina nova... Gostaria de te ver sempre assim penteada, Lily,
Era a primeira vez que a tratava por este diminuitivo, muitas vezes empregado pela senhora de Sourzy e pelos O’Feilgen, Pronunciou esta resposta com uma ternura estranha nos lábios, a qual foi por isso quase uma carícia. Lila, corada e perturbada pela admiração, de que ele não podia dominar o fervor, baixou de novo os belos olhos, que levantara um instante para ele, inquietos e interrogativos, ao ser recebida com tão injustas recriminações.
Lourença, cujo rosto, antes vermelho pela cólera, empalidecera de repente, disse num tom um pouco rouco, sinal do seu inútil furor:
Desde que não aceitas os meus conselhos e a minha experiência... e tudo aprovas...
Domingos abriu neste momento a porta do salão, e anunciou os primeiros convidados. Lourença levantou-se, cambaleando um pouco. Compreendeu que a partida, para ela, estava irremediavelmente perdida e que Lila triunfara... Desta vez não havia dúvidas possíveis. Hugo amava-a. E se resolvera casar com ela, nada no mundo o demoveria dessa resolução. No entanto pensava ainda: ”Talvez não passe duma fantasia da sua parte, dum momento de paixão, de que o seu carácter em breve se enfastiará... Terei contudo que deixar passar estes desagradáveis momentos, até que reconheça a verdade e reponha no seu lugar esta intrigante”.
Enquanto esperava esse momento, ia reconhecendo o êxito causado por Lila ao ser apresentada por Stanville aos seus convidados. Nessa fria casa, onde até ali tudo fora orgulho afectado, ela parecia uma flor preciosa, que transformava todo aquele ambiente. O próprio dono da casa parecia nessa noite mais afável do que o costume; conversou muito mais, mostrando assim a sua vasta cultura intelectual, que até aí se mostrara ignorada, surpreendendo com isso as pessoas das suas relações, que o consideravam apenas um grande industrial e um inflexível mane” jador de operários.
Está irreconhecível! dizia a senhora Wilken à senhora Haig, a venenosa língua de Breenwich. Parece-me que estou a sonhar ante este inesperado Stanville,
A senhora Haig cochichou com um pequeno e irónico sorriso:
O amor opera metamorfoses extraordinárias.
E deleitava-se ao ver o olhar ciumento com que a bela senhora Wilken a ”feiticeira”, como a chamavam em Breenwich, fitava a menina de Sourzy.
Apesar de Hugo se ter mostrado sempre insensível aos seus encantos, a loura viúva não se dava por vencida. E neste dia, ao ver a mudança de Stanville, mostrando possuir todas as qualidades necessárias para que a mais insensível das mulheres se apaixonasse por ele, maior foi ainda a sua ânsia de lhe agradar. Porém o grande obstáculo era a pupila... a linda pupila, que todos os convidados tinham o mau gosto de admirar, olhando para ela, nessa noite, mais do que para a bela Aurélia Wilken.
Lila, a quem toda esta apresentação assustara, começava a sentir-se mais tranquila. Todos os convidados de Stanville foram amáveis para com ela, e os seus vizinhos de mesa, dois homens de certa idade, inteligentes, possuindo maneiras distintas e de conversação muito agradável, fizeram com que achasse curto o tempo de jantar. Depois deste, viu-se cercada por um grupo das mais notáveis personagens, desejosas de fazer por esse meio a vontade ao dono da casa, cujo interesse pela encantadora pupila se tornou a todos evidente e muito significativo. A graça e a simplicidade da jovem conquistaram, aliás, a simpatia de muitos desses senhores, e Lourença teve que ouvir, sem ousar protestar, com receio do filho, os cumprimentos sinceros que lhe apresentaram a respeito da ”sua encantadora prima, um modelo de beleza e modéstia”,
Apenas a compassiva senhora Haig lhe sussurrou ao ouvido, num tom melífluo:
Como a lastimo, minha querida Stanville!..” Ter todos os dias junto de si esta pequena vaidosa!... A senhora Wilken assegurou-me que ela põe qualquer coisa para embranquecer a pele e para colorir os lábios, pois tudo aquilo não parece natural!... E os cabelos?... Como se atreve a apresentar-se com tais cabelos?... Ah! que diferença entre ela e essa encantadora menina Bairn!
Como muitos espíritos autoritários, teimosos e orgulhosos, Lourença era sensível à lisonja e à hipocrisia. A senhora Haig, que era hábil nas duas coisas, disfrutava de grande simpatia. No entanto, como a senhora Stanville receava a sua língua, não fazia dela a sua confidente. Porém, nessa noite, com a alma a transbordar de amargura e de cólera, contoulhe, com os ouvidos intencionalmente aproximados, a maneira ”revoltante” como o filho tomara a defesa de Lila.
A senhora Haig desfez-se em exclamações de indignação; depois, como a conversa não podia prolongar-se nessa noite, declarou-lhe que viria no dia seguinte para conversarem acerca da dolorosa situação da ”sua querida Stanville”.
À meia-noite todos os convidados se retiraram, No segundo salão ficaram apenas Lourença, Hugo e as duas jovens. Carolina, cuja tez nunca se mostrara tão amarelada a causa era o êxito de Lila despediu-se logo e foi para o quarto, a fim de ruminar à vontade o seu furor contra a menina de Sourzy e o seu desespero pela indiferença glacial que lhe testemunhava esse primo, de quem era, desde a infância, a mais servil admiradora... Lourença foi até à copa lançar um golpe de vista pelas preciosas porcelanas e constatar, nessa mesma noite, se lhe faltava alguma. Hugo disse a Lila, envolvendo-a num olhar profundo e ardente, aquele olhar com que a fitara muitas vezes, durante a recepção.
Agora precisas ir descansar... Estás muito fatigada?
Não muito, meu primo.
Chama-me Hugo, apenas, pois me agrada mais... Amanhã não quero que vás ao escritório, para descansares.
Garanto-lhe que posso muito bem,
Não se discute a minha vontade, Lila, bem o sabes...
Sorriu e a sua voz não tinha nada da imperiosa entoação habitual.
...Então, boas noites. Dir-me-ás depois a tua impressão sobre a nossa reunião.
A senhora O’Feilgen encarregou-me de lhe pedir para lhe dizer se a poderia receber. Deseja falar-lhe a respeito da casa, que precisa de reparações urgentes.
Está bem, mas não posso atendê-la antes do meu regresso de Londres, pois parto amanhã à tarde... Quais são as reparações?
As mais urgentes são as das chaminés, que tendo desmoronado em parte, não deixam sair o fumo, A casa fica muito fria nesta época.
Diz à senhora O’Feilgen que mande fazer as obras indispensáveis, por minha conta. O resto, eu irei lá depois e verei se a casa merece ser reparada.
Tem pinturas e esculturas em madeira que parecem de grande valor. Precisa porém duma grande reparação.
Não sabia! Não conheço nada dessa casa. Preciso ir lá ver.
Falando, encaminhara-se para o salão ao lado, e Lila seguiu-o. Encontraram-se assim no vão da porta que dava comunicação entre os dois aposentos, sob o ramo de azevinho, caindo em grinalda... Hugo voltou-se para a pupila e disse a meia voz;
Quando se passa sob o azevinho, conheces o nosso costume inglês, Lila?
Um vivo rubor lhe subiu às faces enquanto inclinava afirmativamente a cabeça.
Hugo curvou-se um pouco mais e tocou-lhe com os lábios nos cabelos louros,
Boas noites, Lila,. Penteia-te sempre assim, peço-te.
Stanville deixou no dia seguinte Breenwich, para ir passar alguns dias a Londres, onde o chamavam os seus negócios. Lila encarara com alguma inquietação a perspectiva de se encontrar a sós, durante as refeições, com Lourença e Carolina. Hugo pensava porém em tudo. Antes de partir, disse-lhe, na frente da mãe:
Concedo-te umas férias durante a minha ausência, Lila. Vai, por exemplo, almoçar e jantar a casa dos O’Feilgen, todos os dias. Pagando a tua parte, não serás pesada nem incómoda, visto que sois amigas íntimas.
Lila não podia esperar mais e a boa senhora O’Feilgen também não... Além desses momentos que passava com as amigas, continuava a ir pontualmente ao escritório e a fazer com cuidado o trabalho habitual. Não queria por maneira nenhuma abusar da indulgência de Stanville.
Indulgência?... Havia nele mais do que isso, com respeito à pupila. Corando muito, ao recordar as suas palavras, o seu olhar e o beijo que lhe dera nos cabelos, Lila pensava, com um pequeno tremor, que não sabia dizer se era receio ou alegria. Parece ter por mim um grande afecto!... Como é estranho!... Ele!... Ele!...”
Tudo isto seria para qualquer outra jovem, por mais simples que fosse e vindo dum homem como ele, mais do que significativo. Lila não pensava sequer que era para Hugo mais do que uma priminha simpática, à qual lhe agradava testemunhar uma solicitude afectuosa. Se sentia qualquer perturbação, atribuia-a ao assombro que lhe causava a transformação física e moral do tutor e o penetrante domínio daquele olhar, onde não vira mais o duro brilho ou o frio desdém doutros tempos.
Nunca lhe veio ao pensamento a ideia de se interrogar sobre o motivo por que lhe pareceram tão longos esses dias, durante os quais esteve ausente Stanville. Porque é que o seu coração começou a bater apressadamente, quando, na véspera do primeiro de Janeiro, Hugo, apesar de ter chegado um pouco tarde, foi do mesmo modo ao escritório, à hora habitual?
Chamou-a pelas dez horas.
Veio ao seu encontro de mãos estendidas e o olhar iluminado por uma alegria mal contida.
Então, Lila, como passaste?... Mostra-me lá o teu rosto.
Levou-a para perto duma janela e começou a examinar atentamente aquele lindo rosto cor-de-rosa. Lila sorriu, constrangida, com os olhos, confusos e brilhantes, meios escondidos pelos cílios castanhos que pestanejavam.
Foste muitas vezes a casa dos O’Feilgen, como te recomendei?
Quanta ternura na sua voz e como os seus dedos apertavam a pequena mão, tépida e trémula, da prima!...
Sim, meu primo.
Não me queres chamar Hugo?
Quero, sim...
Um encantador e confuso sorriso aflorou aos lábios de Lila.
... Ainda não estou acostumada...
é justo... Diz-me o que fizeste com as tuas amigas?!
Tocámos sobretudo música.
Música?... Onde aprendeste?... pois suponho que não fez parte do programa de instrução aprovado por minha mãe?
Lila explicou-lhe de que maneira aprendera o que sabia. Ele replicou, sorrindo:
Quero-te ouvir. Qualquer dia mandarei vir um piano.
Lila olhou-o com uma surpresa que não pôde dominar.
Pensei que não gostasse de música!
Pelo contrário, gosto muito, desde que seja boa. Quando estou em Londres ou Paris não falto aos concertos. Já vês que serei, portanto, um juiz dalgum valor.
Replicou, sorrindo:
Não mo devia dizer. Assim estaria mais à vontade ao tocar na sua frente.
Oh! suponho que não tens que temer o meu juízo, pois deves ter uma alma de artista... E agora, Lila, vamos trabalhar... Tenho umas cartas a fazer...
Pela primeira vez na sua vida, provavelmente, Stanville enganou-se duas vezes, enquanto ditava. Tal distracção era explicável, pois aquele delicioso e rosado rosto, aqueles cabelos de ouro, aqueles olhos retos com longos cílios escuros, pareciam preocupá-lo muito mais do que as questões tratadas nessa correspondência de negócios,
No dia seguinte, primeiro de Janeiro, Lila, depois de ter ouvido a missa da manhã, foi ao cemitério visitar a campa da mãe.
A sepultura da senhora de Sourzy ficava a cinquenta metros mais ou menos da velha e rica capela onde repousavam os restos mortais dos Stanvilles. Lila, desde que tivera algum dinheiro, mandara plantar umas flores em volta da simples pedra tumular, que tinha apenas uma cruz gravada, e nesse dia trazia uma linda coroa, que acabara de comprar.
Mas, de repente, parou estupefacta... A humilde campa surgiu-lhe coberta de flores, as mais lindas e as mais raras, maravilhosamente dispostas, com muito bom gosto.
Lila murmurou:
Quem seria?... quem seria?. Um só nome se lhe apresentava... Só ele se podia permitir essa prodigalidade, essa profusão louca, como a qualificaria muita gente, visto que dentro dalgumas horas todas estariam queimadas pela geada, mas onde a piedade filial de Lila via uma homenagem à pobre senhora que ali repousava e que fora tão infeliz e tão humilhada dentro das paredes de Stanville-House; um acto de reparação pela indiferença com que a trataram, pela dureza de que a sua filha até ali fora vítima.
Ajoelhada diante da campa, rezou por esse homem enigmático com todo o fervor do seu coração reconhecido. Depois, antes de se levantar, curvou-se para respirar o perfume das flores e pegou numa rosa chá, que meteu entre as páginas do livro de orações.
”Assim, minha mãe” disse ela baixinho” ”juntarei o seu nome às orações que dirigir a Deus por ti”.
Uma outra surpresa a esperava nessa manhã em Stanville-House... Hugo trouxera presentes para as primas, o que constituía uma inovação da sua parte. A menina Bairn recebeu uma pesada jóia, a dizer com o gosto da sua destinatária, e Lila uma preciosa capa de chinchila, que lhe fez soltar um grito de admiração.
É muito linda!... mesmo linda de mais!... Ele sorriu, ao pôr-lha sobre os ombros. Depois fitou-a longamente, com aquela ardente atenção que a comovia dum modo cada vez mais intenso.
Sim, escolhi muito bem. Ao lado da delicada cor rosada da tua pele, fica-te admiravelmente.
Agradeceu-lhe com vivo ardor. Este presente o primeiro que recebia em Stanville-House, causara-lhe um prazer, cuja intensidade não procurava dissimular. Não porque se detivesse a avaliar o seu valor intrínseco, ignorado em parte pela sua inexperiência, mas sentiu uma viva comoção ante a ideia de que Stanville, durante a sua permanência em Londres, pensara nela e escolhera em sua intenção essa deliciosa capa, que não se cansava de admirar.
Lourença não dissera palavra... Quando, depois do almoço, Carolina se encontrou a sós com ela, no salão, pegou no estojo, onde estava a jóia oferecida por Hugo, e atirou com ele, enfurecida, para sobre um móvel.
Eu é que sou tratada por ele como uma póbre!... O que vale isto comparado à capa?... Trazer tal presente a essa pequena sem um centavo!... Não é uma loucura... uma grande loucura É certo... Ela enlouqueceu-o... Dar-lhe aquilo na minha frente!... Foi um desafio, visto que conhece as minhas ideias a respeito dessa pequena!... Espero porém que se arrependa... e espero sobretudo que ma não imponha como nora!...
Carolina juntou as mãos num gesto de horror.
Oh! minha tia, não consinta nunca isso... Ela, dona desta casa!... Oh! nunca o permita!.
A senhora Stanville não respondeu. Com a cabeça curvada, pensava que não valia coisa nenhuma diante dessa vontade, de que ela exaltara o orgulho inflexível,; pensava que a paixão dum carácter da sua têmpera devia ser invencível!... E a beleza de Lila, essa beleza que em cada dia se acentuava mais, como uma flor maravilhosa era daquelas que tornam um homem, até aí insensível, capaz de ir à loucura.
Na tarde desse primeiro dia de Janeiro, Lila foi à ”Casa dos Rouxinóis”. Joé, que ficara retido, na véspera, em Londres, devido a um concerto, chegara de manhã. Correu para ela, com os lábios prontos a proferir galanteios, segundo o seu costume, e os olhos reflectindo grande admiração.
A mãe, as irmãs e a senhora Hegton cercaram-na logo, extasiando-se diante da capa de chinchila, que pusera para lhes mostrar, soltando exclamações a respeito dessa generosidade de Stanville.
Joé, com o rosto profundamente constrangido, disse, num sorriso contrafeito:
Como tem mudado!... Faz verdadeiros milagres, Lila!.
É verdade. Tem-se tornado muito bondoso para mim. E por isso já não sinto junto dele aqueles receios doutrora.
Rosa teve um ligeiro sorriso de escárnio e replicou:
Farias mal, de facto.
Os seus dedos, muito brancos, mas um pouco pesados, apalparam a capa, e os olhos luziram-lhe de inveja sob as pálpebras meias cerradas.
Daisy perguntou:
Quanto valerá, minha tia?
É difícil calcular. Hoje em dia as capas de peles naturais custam uma exorbitância,. E esta garanto que não é imitação!... É uma verdadeira fortuna que trazes contigo, Lila.
Esta teve um pequeno movimento de espanto.
Oh! supõe isso?... Deve enganar-se, pois o senhor Stanville não teria certamente a ideia de fazer tal despesa com uma pessoa tão modesta como eu.
Catarina exclamou, abraçando calorosamente a amiga:
E porque não?. Ninguém o merece mais do que tu, minha querida Lily, O teu tutor reconheceu enfim o que vales, o que prova ser inteligente.
Joé balbuciou algumas palavras que ninguém compreendeu, salvo naturalmente a tia, pois que o fitou com olhar escarninho, encolhendo os ombros.
A senhora O’Feilgen perguntou:
O senhor Stanville não te falou mais da visita que prometeu fazer-nos?
Não, nada mais me disse.
Oxalá não se esqueça... ou não mude de ideias!
O esquecer-se não é hábito dele. Tem uma incomparável memória. Com certeza me dirá qualquer coisa, e eu comunicar-lho-ei logo, caso não venha sem avisar.
Obrigada, minha querida!... Desejava bastante que ficássemos um pouco mais resguardadas!... O Trick não pára de dizer que sente frio!... Enfim, já foi uma grande coisa a compostura das chaminés!
Graças à Lila! prosseguiu Daisy. Conseguiu-nos isso com facilidade, livrando-te duma entrevista com o senhor Stanville.
Joé acrescentou, com impaciência mal dissimulada:
De que embaixada te encarregaram!... Não, Lila, não tires ainda a capa!... Se não te desagrada, vamos dar uma volta pelo jardim, tão pitoresco sob a neve.
Concordou. Saiu com Joé por uma das portas do salão, e caminhou ao lado dele pelas alamedas todas brancas, iluminadas por um tímido sol, que chegava” no entanto, para tornar sumptuosas as árvores adornadas duma imaculada alvura, na confusão e desordem pitoresca em que se encontravam.
Está encantador o teu jardim, Joé. Gosto sempre dele em todas as estações.. Como é diferente da de Stanville-House!...
Ele começou a rir.
Deve ser deveras aborrecido, como toda a casa!. Minha pobre Lila, têm-te feito sofrer bastante.
Uma nuvem escura passou pelos olhos de Lila.
Sim, tenho sofrido muito... e sobretudo pelo que a minha mãe sofreu.
Mesmo agora não és feliz, Lourença detesta-te...
Não tenho nada com ela, nem ela comigo.
Mas Stanville tem-te sob o seu domínio. És obrigada a ir trabalhar para o escritório...
Porque assim quero... porque não me convém, na minha idade, não ganhar o pão que como. No entanto o primo testemunha-me grande simpatia e tem mesmo comigo delicadas atenções. Assim, ainda hoje de manhã encontrei a campa da minha mãe adornada com maravilhosas flores.
O rosto de Joé contraiu-se.
De facto está-se tornando deveras extraordinário... No entanto teria sido melhor para a pobre senhora de Sourzy que tivesse impedido sua mãe de a martirizar.
Lila respondeu vivamente:
Porque dizes isso num tom tão áspero, Joé?... Na verdade Stanville errou muito no passado, mas era muito novo... e agora faz o que pode para o reparar.
Joé agarrou, ao passar, num ramo de árvore e sacudiu-o maquinalmente. Um pó húmido e gelado caiu-lhe sobre o rosto, fundindo-se em pequenas gotas, que enxugou com impaciência.
Já é fora de tempo!... Ainda não há muito eras tratada odiosamente nessa casa... Mas, querida Lila, não estarás lá muito tempo.
Lila abanou a cabeça.
O primo não quer que o deixe antes da minha maioridade.
Mas se se tratasse dum casamento...
Um casamento?... Penso que não se falará em tal, até lá!... Sou muito nova ainda e não tenho pressa...
Com um ligeiro sorriso, continuou, depois de curto silêncio:
...Não, nunca pensei nisso. Mas outros pensaram... Eu, por mim, tive esse lindo sonho!... Queres que sigamos os dois juntos pela vida fora, querida, querida Lila?
Ela parou bruscamente. Um certo rubor subiulhe ao rosto e os seus olhos, surpresos e sérios, fitaram com ar de censura o olhar terno e suplicante do companheiro.
Estás louco, Joé... Que ideia tiveste?... Somos ainda muito novos os dois, ganhas apenas para ti, e eu não tenho uma posição remuneradora...
Trabalharei mais. Por ti, sinto-me animado de toda a coragem . Minha Lila, ouve-me!. Eu amo-te!.
Interrompeu-o com doce firmeza.
Não te ouço mais, Joé. Esse teu projecto é impossível. Esquece tudo isso, meu amigo.
O seu rosto contraiu-se.
Impossível?... Porquê?... Se ainda não queres casar, esperarei tanto quanto for preciso,. Dá-me porém uma esperança.
Seria uma deslealdade da minha parte, visto que nunca a poderia cumprir.
Murmurou com voz sufocada:
Compreendo, Não me amas,. e supões que nunca me poderás amar.
Tamanha dor se reflectiu na sua fisionomia, que Lila, muitíssimo comovida, pegou-lhe nas mãos e disse-lhe docemente:
Tenho por ti uma grande afeição, meu querido Joé. Porém não acho que tenhamos, um e outro, as qualidades necessárias para sermos felizes...
Oh! não te falta nenhuma!... E eu deixarme-ei guiar por ti, e não terei outra vontade que não seja a tua!
Mas, meu pobre Joé, se um dia casar, quero precisamente encontrar um conselheiro, um apoio. Vês portanto que não nos podemos entender?
Objectou entre dentes:
Poderíamos, se tu quisesses... se não houvesse alguém entre nós.
Ela repetiu, olhando-o surpreendida:
Alguém entre nós?. Quem?
Joé mordeu os lábios, depois balbuciou, constrangido pelo ingénuo e cândido assombro daqueles bonitos olhos:
Não é nada... A dor leva-me a dizer asneiras...
Tenho muita pena que tivesses essa ideia, meu amigo. Esquece-a depressa. Garanto-te que não sou a mulher que precisas!
Acrescentou num tom ardente:
És a mulher que eu amo!
Lila afastou-se e dirigiu-se para casa. Estava aflita por se ver livre desta conversa, que se tornava embaraçadora e penosa, depois da declaração que lhe fizera... Seguiu-a, calado.
O sol descia por detrás deles e os últimos raios iluminavam a elegante fachada da casa.. A uma das portas envidraçadas do salão apareceu a senhora O’Feilgen,
Atrás dela surgia um alto vulto masculino, logo reconhecido por Lila e por Joé.
Esta voltou-se para o companheiro, dizendo:
Está ali Stanville, que vem com certeza visitar a casa, como prometeu.
Joé comprimiu os lábios. O seu olhar sombrio dirigiu-se para a porta e encontrou o de Stanville, duro e altivo surdamente irritado, mesmo. As sobrancelhas castanhas, que se contraíram, acentuaram ainda mais essa expressão, que impressionou desagradàvelmente Joé.
O jovem O’Feilgen, que se mostrava muito arrogante com respeito ao seu nobre parente quando o sabia longe da sua presença, sentia-se subitamente fraco ao aproximar-se dele, e baixava os olhos como um colegial.
Quanto a Lila, pensou com inquietação, observando a fisionomia do tutor: ”Está aborrecido comigo... sem dúvida... Mas porquê?... Com certeza por andar a passear sozinha no jardim com o Joé”.
A senhora O’Feilgen, que parecia muito impressionada com a visita, anunciou:
O senhor Stanville quis vir ver as reparações a fazer na casa.
Hugo estendeu a mão a Joé, com um gesto pouco amigável. Ao mesmo tempo lançou um rápido golpe de vista para o rosto de Lila, onde se viam ainda traços da surpresa e da contrariedade que lhe causara o pedido de O’Feilgen... Depois perguntou num tom de fria polidez:
Senhor O’Feilgen, podemos começar a nossa visita?
Enquanto se afastava com a dona da casa e Joé, Lila entrou no salão onde Catarina e a Daisy se apressavam a preparar o chá, para que estivesse pronto, caso Stanville aceitasse. A senhora Hegton desaparecera... Lila, ajudando as amigas, perguntou:
Onde está a tua tia?
Não sei... Tem sempre a especialidade de se eclipsar no momento em que a sua presença é precisa. O remédio é passarmos sem o seu auxílio.
Um pouco mais tarde, ao vir da cozinha com um bolo, Lila notou que Rosa voltara. Mantinha-se de pé diante da janela, onde os últimos clarões do sol posto iluminavam o seu perfil correcto, os escuros cabelos, o talhe esbelto ainda, apesar dum princípio de gordura. O elegante vestido preto, num crepe leve, caía-lhe muito bem. Acabara de o vestir, em honra de Stanville, pois que pouco antes Lila vira-a com um traje simples. Em volta do pescoço, um colar de azeviche fazia sobressair a brancura da epiderme.
Daisy, que entrara atrás da amiga, disse a meia voz:
Escolhi as chávenas menos esbotenadas. Este pobre serviço já não vale nada!... Recomendo a quem servir o senhor Stanville para lhe dar esta, que é a única que não está rachada!
Rosa teve um desdenhoso sorriso.
Mas, minha querida, acho, pelo contrário, que devemos mostrar-lhe a nossa miséria,
Não é por isso que deixará de a ver... sobretudo visitando
a nossa casa como o faz neste momento!...
Depois, olhando para a tia, continuou com ironia:
...Vejo que se foi arranjar para que o nosso visitante a não tomasse como pobre, não?...
Um encolher de ombros foi a única resposta da senhora Hegton. Aliás, a entrada de Stanville, da senhora O’Feilgen e de Joé evitaram que desse qualquer outra, se é que tinha para a dar.
O olhar de Hugo incidiu sobre a bela criatura, sabiamente colocada sob os últimos raios do sol, e depois desviou-se para Lila... Esta despira a capa e tirara o chapéu; ia e vinha em volta da mesa de chá, com lindos e leves movimentos. O dourado dos cabelos e a delicada alvura do rosto não precisavam das claridades do poente para se realçarem e menos ainda os admiráveis olhos, reflectindo uma alma pura e que se levantavam enternecidos para o recém-chegado.
A senhora O’Feilgen disse num tom de tímido pesar:
O senhor Stanville recusa aceitar uma chávena de chá... Sentir-nos-íamos felizes no entanto se.
A voz amorosamente timbrada da senhora Hegton aprovou, num tom de deferência:
Muito felizes, de facto, senhor.
A bela viúva avançou alguns passos,. De novo um distraído olhar se fixou nela. Hugo agradeceu com fria cortesia:
É muito amável, minha senhora. Se na verdade não as incomodo, ficarei alguns instantes, e pedirei a Lila para nos deliciar com a sua voz...
Rosa apertou os lábios, olhando com maldade para ela, que respondeu, um pouco confusa, com o seu encantador sorriso:
Oh! receio dar-lhe uma grande desilusão.
Vamos ver. Dir-te-ei com franqueza a minha opinião, como costumo fazer sempre.
Todos os traços de contrariedade haviam desaparecido do rosto de Stanville... Sentou-se perto da dona da casa, enquanto Catarina e Lila se encaminharam para o piano. A senhora O’Feilgen informou:
Esta querida Lila tem uma voz maravilhosa!. E não só a voz, como também é dotada de todas as melhores qualidades,
Ele replicou:
Assim o tenho notado nas nossas relações. Rosa sentara-se na frente dele, num sofá, numa elegante atitude. Trabalho perdido, pois que não olhou para ela. Toda a sua atenção se concentrou na prima, de pé, perto de Catarina, que a acompanhava... A senhora Hegton notou, com cólera, sinais de concentrada comoção na fria fisionomia de Hugo, à medida que a voz pura e vibrante da prima se tornava mais expressiva. Ah! essa Lila era dotada de todos os dons sedutores! Como lutar contra ela?... Como poderia roubar-lhe o amor desse homem, que ligava os mais admiráveis dotes físicos às vantagens duma alta posição e duma opulência, que só o pensar nela fazia estremecer de ávido desejo a bonita Rosa?
Se qualquer dúvida subsistia ainda nela, com respeito aos sentimentos de Stanville pela pupila, desvaneceram-se nesse dia. Era um homem apaixonado que escutava e que olhava para a jovem cantora... E Rosa pensava, com o coração a transbordar de raivosa inveja: ”Que triunfo para ela!... Um homem que sempre desdenhou conquistar as mulheres!... Ah! tem muita sorte, esta Lila!”
Quando a última nota expirou nos lábios da cantora, Hugo levantou-se e aproximou-se dela.
Que estupidez a minha. Há quantos meses já podia ter-me deliciado a ouvir esta maravilhosa voz, e por ignorância nunca o fiz!... Mas vou telefonar para Londres, e dentro de poucos dias terás um piano, Lila. Então pedir-te-ei muitas vezes para me dares esse prazer incomparável, pois nada há para mim que suplante uma voz que me agrade.
Confusa e vermelha, Lila baixou um pouco os olhos, sob o olhar cujo brilho a comovia profundamente... Hugo dirigiu algumas felicitações à acompanhadora; depois, tornando-se amável, pediu para ouvir Catarina e Daisy, a quem felicitou pela sua boa interpretação. Joé desculpou-se, protestando um resfriado, e Stanville não insistiu. Falou em seguida em música com a senhora Hegton, durante um momento; informou-se sobre o que contavam fazer de Pascoal e Trick, que estavam calados e muito intimidados, quase não ousando levantar os olhos para o dono de Stanville-House, do qual ouviam sempre falar como duma extraordinária personagem.
A senhora O’Feilgen abanou a cabeça, olhando para o Pascoal, um frágil rapaz de dezasseis anos, moreno e distinto, no qual se notava qualquer semelhança com Stanville.
- Este não tem a mesma queda dos outros. Tem um espírito mais prático; gosta das ciências, da mecânica. Não tenho porém os meios necessários para o mandar estudar o que ele quer.
- Talvez o possa colocar na minha fábrica. Se é inteligente, dar-lhe-ei um lugar.
Comovida com esta inesperada oferta, a senhora O’Feilgen balbuciou:
- Ficar-lhe-ei muito reconhecida.
- Veremos depois isso... Lila, creio que é tempo de irmos embora ! Demorei-me já muito - agradavelmente, aliás.
A senhora O’Feilgen interveio num tom tímido; - íamos pedir à Lila para jantar connosco...
- Hoje não. Amanhã talvez... Quero que termine o primeiro dia do ano em minha casa.
Joé foi buscar a capa de Lila e ajudou-a a vesti-la. Os dedos tremiam-lhe. Ela percebeu-o e olhou-o com afectuosa compaixão... Ele porém voltou a cabeça e afastou-se, com um gesto de impaciência.
No vestíbulo, Hugo punha também a sua capa com o auxílio de Pascoal. Despediu-se das primas sem lhes dizer uma palavra sobre as reparações pedidas, com grande desgosto da senhora O’Feilgen.
- Viu tudo - disse ela depois sem fazer uma reflexão, sem nada prometer. Durante a visita tinha um aspecto tão reservado, que não me atrevi a fazer-lhe a menor pergunta sobre o que decidira.
Rosa encolheu os ombros.
- Não te apoquentes!... Desde que se deu ao trabalho de vir até aqui, não é para nada fazer.,.
- Deve ser assim,,, E depois a Lila encarregar-se-á de lho lembrar. Não tirava os olhos dela, viste, Rosa ?
A senhora Hegton teve um pequeno e seco sorriso.
- Vi.,, Agora concordas que as minhas previsões não foram erradas?...
- Concordo!... Pobre Joé!... - respondeu ela, soltando um fundo suspiro, e com o olhar procurou o filho, que havia desaparecido da sala.
- ...Ele ama-a tanto e ela é tão encantadora.
- Penso que lhe fez hoje a sua declaração - a qual foi recebida com uma recusa, como era de esperar.
Veio na verdade do jardim com ar triste e preocupado... Tem bom coração, no entanto, o meu Joé!... Tão amável, tão franco. Mas temos de concordar que nada vale ao pé de Stanville?
Sob o ponto de vista da fortuna. e no físico mesmo, concordo que não pode competir com ele. Contudo no coração!... Se Stanville casar com Lila, receio que ela não seja feliz! E Lourença, quanto não a fará sofrer...
Rosa respondeu-lhe com o mesmo sorriso:
Oh! da Lourença nada haverá a temer, enquanto for amada pelo marido!... Depois, não garanto!... O que ficará sempre é a posição e a fortuna, como compensação!...
Oh! não terão qualquer valor para a Lila, que necessita de muito carinho! objectou a cunhada.
A bela viuva murmurou, com uma chama de inveja no olhar:
Pois eu suponho que terão muito!...
Pela rua coberta de neve, seguia Lila, apoiada ao braço de Stanville. Caía a noite e acabavam de acender os candeeiros. Hugo observou:
O tempo melhorou esta tarde. Estava quase agradável para dar um passeio.
Lila respondeu maquinalmente:
Estava agradável.
Hugo fitou-a um momento com atenção, depois perguntou. Pareces muito preocupada, Lila!... Que tiveste?
Esta suspirou e levantou para ele os olhos comovidos.
Tive que causar um desgosto a alguém, ainda há pouco, e isso custou-me muito,
Desgosto?... Como foi isso?
Atingiam nesse momento a esquina que Stanville-House fazia entre a praça e a rua. Vendo que ela hesitava em responder, disse:
Desconfio o que foi... Falaremos daqui a pouco nisso.
Entraram em casa e subiram a escadaria; a convite de Stanville, Lila acompanhou-o até ao gabinete.
Fê-la sentar numa poltrona de couro e tomou lugar na sua frente. Os seus fortes e carinhosos dedos prenderam-lhe as mãos quentes, devido ao calor do regalo, enquanto perguntou, curvando-se um pouco para ela:
Vejamos do que se trata, Lila? Conta lá isso ao teu tutor”
O Joé pediu-me em casamento, enquanto passeávamos pelo jardim. Fiquei estupefacta, e muito penalizada também, por ter de o magoar com uma recusa,
Recusaste?... e sem hesitar? sem lhe deixares nenhuma esperança?
Os olhos ardentes e um pouco ansiosos de Hugo tentaram ler no belo e sincero olhar da pupila,
Oh! sem hesitar, dum modo categórico. Não queria que o pobre amigo conservasse a menor dúvida, Confessei que lhe tinha muita afeição, mas que nunca pensei em casar com ele... Ah! não, pobre Joé!... Muito bom, mas muito fraco, sem força de vontade, habituado à imprevidência, à vida um pouco boémia... E, além disso, ainda sou muito nova para pensar em casar. Tenho tempo. Preciso primeiro arranjar uma colocação...
Stanville teve um pequeno sorriso.
Se eu consentir,
Como?
Falaremos depois nisso,. Então afastaste o Joé... Foi atrevimento o fazer-te um tal pedido, não tendo nenhuma posição para te oferecer, vivendo, se se pode dizer, ao Deus dará!... Era uma boa protecção para ti, esse cabeça louca!. Não hesita diante de coisa nenhuma!
O tom de ironia desdenhosa em que falou, provocou-lhe uma resposta rápida:
Não reflectiu, tenho a certeza; seguia apenas o impulso do coração. As questões práticas não existem para os O’Feilgen.
Coitados, vivem sempre nas nuvens. Vê a que resultado chegaram!...
Bem sei que nesse ponto não os devemos imitar. Todavia têm um coração tão bom, que com facilidade esquecemos os seus defeitos!
Foram sobretudo bons para ti!... para ti, que não eras feliz nesta casa!...
Estremeceu um tanto e baixou os olhos, sem responder.
Hugo continuou em voz baixa e trémula:
Sim, eu sei, não queres acusar ninguém. No entanto compreendo muito bem quanto amarga foi a tua existência nesta casa!
Murmurou:
Oh! para mim não foi nada!... Agora para a minha pobre mãe...
E lembrando-se de que ainda não lhe tinha agradecido a ornamentação da campa da mãe, levantou os olhos para ele e disse-lhe comovida:
Hoje de manhã lá encontrei as flores... Estou-lhe muito obrigada por se ter lembrado dela..”
Tenho pena de o não ter feito antes... Não me perdoo, Lila, o que ambas aqui sofreram!...
Sentiu-se impressionada ante o tom contristado daquela voz, e de novo os cílios escuros lhe velaram os olhos, perturbados pelo ardente olhar de Stanville.
Durante instantes ficaram calados. Curvado para ela, Hugo contemplava-a com uma espécie de alegre embriaguês... Um pequeno chapéu de veludo preto, guarnecido com um ramo de violetas, cobria-lhe deliciosamente os louros cabelos. A capa de chinchila roçava-lhe pelo delicado rosto corado, onde palpitava uma inquieta comoção. Lila, de repente, teve medo... mas não um medo como antigamente!...
A mesma voz apaixonada disse-lhe mais baixo;
Lila dos cabelos de ouro, quero fazer-te esquecer tudo isso. Quero dar-te a felicidade que até aqui não conheceste... Amo-te, Lila, e peço-te para seres minha esposa.
Esta teve um movimento de estupefacção, fixando Stanville com verdadeiro assombro. Não encontrou palavras, tão grande foi a sua surpresa.
Sorriu, murmurando:
Ah! Lila, quanto é recta e pura a tua alma!... Pôde apenas balbuciar:
Deseja?... pensa mesmo?
Muito seriamente te asseguro... que és para mim a mais querida criatura do mundo, e não tenho desejo maior do que o de te fazer feliz!
A falar a verdade?... Não esperava!.
Já há muitos meses que te amo! Curvou-se, e os lábios pousaram-se-lhe nas mãos. Retirou-as com um gesto assustado, dizendo numa voz um pouco trémula:
Preciso reflectir... Assim não posso!...
Tens ainda algum ressentimento contra mim? Lembras-te talvez do quanto fui duro, cruel e severo para contigo noutros tempos?
Durante muito tempo me lembrei!.
E nos seus olhos pretos, cheios de comoção, Hugo pôde ver um reflexo do antigo sofrimento, suportado pelo coração delicado e pelo orgulho da pequena Lila.
Antes que pudesse obstar a este movimento, pôs-se de joelhos diante dela e, agarrando-lhe de novo as mãos, cobriu-lhas de beijos.
Perdão, minha Lila querida!... Far-te-ei esquecer tudo com o meu amor e com a dedicação de toda a minha vida,.
Hugo... peço-lhe...
Não!... É justo que pela primeira vez te peça perdão, como outrora te obriguei a fazer!...
Já esqueci tudo!... Já esqueci tudo, Hugo!... Levantou-se, sentou-se de novo perto dela, sem lhe deixar as mãos trémulas. E perguntou-lhe num tom de prece, estranho nessa boca altiva:
Vais-me dizer agora qual a tua resposta, não?
Não, não posso... Deixe-me reflectir alguns dias... Fiquei tão surpreendida...
Às suas mãos tremiam entre as de Stanville e a comoção empalidecera-lhe o formoso e palpitante rosto.
Seja. Não te posso recusar isso. Mas não me faças esperar muito, querida Lila!... Tenho tanta pressa que sejas a minha noiva, que possamos falar do nosso casamento!
Mas o que dirá a sua mãe?... Nunca me aceitará...
Não te inquietes com isso, Tudo decorrerá bem e não terás a menor contrariedade nesse ponto, nem agora, nem mais tarde.
É que, sobretudo, não queria ser a origem de quaisquer ressentimentos entre os dois...
Nada receies, volto a dizer-te. Pensa só em mim, sem te preocupares com o resto...
Então dou-lhe a minha resposta... dentro de oito dias.
Assim falando, levantou-se. Hugo protestou, rápido:
Oito dias!... Não, peço-te para ser antes, Lila!
Veremos... Agradeço-lhe o ter pensado em mim.
Fez um movimento em direcção da porta... Stanville porém segurou-a, pousando-lhe no braço a mão um pouco nervosa.
Lila, diz-me francamente qual o sentimento que te inspiro?
Hesitou e corou ao mesmo tempo; depois, desviando os olhos daqueles que ardentemente a interrogavam, murmurou:
Não sei bem... Não o conheço ainda o bastante... Tenho-lhe uma grande gratidão pelo que tem feito por mim há um certo tempo...
Gratidão?... Não precisas tê-la, porque nada mais tenho feito do que reparar os meus erros passados... Pensas que será possível ter por mim... alguma afeição?
Hesitou, embaraçada, antes de responder.
Parece-me que sim...
Então reflecte, minha querida Lila... Agora deixo-te ir embora. Até amanhã.
Abriu a porta e deixou-a passar, seguindo com os olhos, ao longo do corredor, a sua elegante silhueta. Logo que desapareceu, ficou um momento imóvel, com o rosto contraído, antes de fechar a porta. Ao voltar para a sua secretária viu, caído no tapete, o pequeno ramo de violetas que Lila trazia na blusa. Os seus olhos entristeceram-se e os traços do rosto contraíram-se-lhe, enquanto o olhava. Entre dentes, murmurou;
Foi talvez aquela cabeça de vento do Joé quem lho deu!
Rapidamente abaixou-se, agarrou no ramo com a ponta dos dedos, abriu uma janela e deitou-o fora, com um sorriso desdenhoso. Depois disso, deu alguns passos através do aposento, nervoso e pensando: ”Ela não me ama. Tem medo de mim”...
Havia de facto receio nos diversos sentimentos que a agitavam, quando entrou no seu quarto e se lembrou da incrível cena passada.
Havia também uma perturbadora comoção, que se tornava maior à medida que a dominava um pouco o assombro; ia tomando mais consciência da realidade.
O amor de Stanville... por ela, a prima pobre e obscura... o amor dum homem tão frio na aparência e orgulhoso como ninguém!...
Orgulhoso?. No entanto vira-o a seus pés, solicitando convicto o seu perdão, ele que outrora a tratara tão duramente naquele mesmo lugar.
E desejava que fosse sua esposa!
Ao lembrar-se dos olhos dum azul escuro, iluminados por ardente chama de amor, e dos beijos dados nas suas mãos, pareceu-lhe estar sonhando. Sentiu por isso um grande sobressalto... Depois pensou: ”Oh! minha mãe, quanto desejaria vê-la a meu lado, neste momento, para me dizer o que devo fazer”.
Encontrava-se numa completa incerteza. Embora fosse grande a transformação do primo, lembrava-se ainda muito do antigo Stanville e receava que voltasse a esses tempos. Por outro lado, este novo Hugo, cuja forte beleza se misturava a um encanto desconhecido nele até há pouco tempo, não lhe era indiferente, como confessou com comoção. Não podia ficar insensível à solicitude que lhe testemunhava, à sua preocupação em lhe ser agradável, a tudo aquilo em que lhe demonstrava o seu forte desejo de lhe fazer esquecer os maus dias.
Chamara-a há pouco ”Lila dos cabelos de ouro!...” Ninguém mais lhe dera esse nome desde que a senhora de Sourzy morrera. Tendo uma voz seca e em geral imperiosa, tornara-se ardente e terna ao pronunciar esse nome. Lila fechou os olhos, seduzida, comovida, ao lembrar o olhar que acompanhara a confissão de Stanville. pensou: ”Não sei, meu Deus! não sei o que devo decidir!”
Forte insónia conservou-a acordada uma grande parte da noite. Debatia-se na incerteza: às vezes sentia-se atraída para Hugo, outras afastava-se receosa, ao pensar que seria o seu senhor para sempre, O pensamento da posição que iria ocupar na sociedade, se concordasse com esse casamento, e a sua imensa fortuna, veio-lhe também ao espírito, mas não pensou muito, porque isso estava em segundo lugar para uma alma como a sua.
Embora estivesse muito fatigada, pela manhã levantou-se como de costume e foi à igreja ouvir missa e pedir a inspiração do céu.
À saída encontrou a senhora O’Feilgen, que ia no seu passinho apressado. A boa senhora, enquanto apertava a mão da jovem amiga, perguntou, um pouco inquieta:
Que tens, minha querida?... O teu rosto é o duma pessoa que passou mal a noite.
Sim, dormi pouco... Adivinhe, senhora O’feilgen, o que me aconteceu ontem!...
O que foi, minha filha?
Stanville pediu-me em casamento!
Sem parecer muito surpreendida, sorria e fitou o encantador e corado rosto de Lila.
Era de prever, minha querida.
Como?... Teve essa ideia?
Tive, ao vê-lo tão preocupado contigo.
Oh! nunca imaginei!... Nunca!... Pensava nadiferença de posição!... na maneira como fui tratada durante tanto tempo naquela casa... e por ele mesmo!”
A diferença de posição?... Sob o ponto de vista da fortuna, está bem; agora no restante, és igual a Stanville.
Isso depende. Podem dizer que sou sua empregada, o que é verdade.
Penso que consentiu nisso esclareceu a senhora O’Feilgen, sorrindo de novo para te poder ver mais de perto... e também para te libertar do domínio da mãe. Além disso, pelo pedido que te fez, prova que ele próprio não liga nenhuma importância a isso!... E que lhe respondeste, Lila?
Pedi-lhe algum tempo para reflectir... Compreende como fiquei!... E não sei o que fazer, senhora O’Feilgen!
Viva comoção surgiu no terno olhar da viúva.
Bem poucas mulheres, na tua posição, teriam essa hesitação!... Stanville é um dos homens mais em evidência na Inglaterra, um dos partidos mais invejados.
Sim... mas o que será ele para a esposa?... Admitindo mesmo que continue a ser bom para mim, sofreria muito se o visse insensível com respeito àqueles que dependem dele, como tem sido até aqui!
Se te ama, Lila, é fácil fazê-lo mudar de ideias. Abanou a cabeça.
Não sei... É verdade que com respeito aos Osner atendeu o meu pedido... Mas, para falar verdade, tenho um certo receio dele, do seu carácter.
E, não o amas?
Não... creio que não... Durante muito tempo lutei contra o ressentimento que me inspirava, Agora tudo esqueci e estou-lhe muito grata pela bondade com que me tem tratado... Mudou muito de há um tempo para cá, e reconheço que com o seu carácter sério e enérgico, não me desagradaria como marido... se não fosse o receio do seu feitio autoritário e inflexível...
Está bem... mas, minha filha, pensaste no quanto uma recusa é difícil para ti?. O teu dever obrigava-te a uma recusa se Stanville fosse, de qualquer forma, um homem indigno de ti. Isso porém não acontece. Tu mesma reconheces que as suas qualidades são as ambicionadas para a constituição dum lar honesto e feliz, Quanto às vantagens da situação, não se lhe dando uma importância primordial, não são também de esquecer, minha querida, Reconheço isso!...
E suspirando, continuou:
... Além disso és sozinha no mundo e é preciso reconhecer que a tua beleza seria sempre para ti uma grande dificuldade, para não dizer uma infelicidade, logo que saísses de Stanville-House. Ora, respondendo a teu primo com uma recusa, será difícil a tua permanência na sua casa. Lila objectou rápida:
Oh! não, não podia mais lá ficar!
E depois, com certeza ia ficar zangado!. Um homem tão orgulhoso dificilmente perdoaria, em meu entender, à mulher que recusasse ao mesmo tempo o seu amor e a sua tão invejada posição sobretudo quando essa mulher depende dele e a quem supõe, naturalmente, dar uma grande honra, escolhendo-a... A tua posição é de facto difícil, minha filha... bem difícil, sobretudo na tua idade...
Deram alguns passos caladas. Depois Lila perguntou, levantando para a companheira um olhar ansioso.
Acha então que devo aceitar?...
Não me atrevo a dar-te um conselho... É uma questão tão delicada!...
Com um suspiro, prosseguiu:
Se o meu pobre Joé fosse mais perseverante, se tivesse uma posição melhor, dir-te-ia: Visto que não amas Stanville, casa com o Joé, que conheces muito bem e que sabes ter bom coração. Compreendo muito bem que não te inspira confiança, é imprevidente, leviano e não tem o futuro garantido...
Lila apertou a mão da viúva, enluvada com uma luva toda velha e descosida.
Oh! minha boa senhora O’Feilgen... Estou também desolada por ter sido obrigada a desiludi-lo. Tenho-lhe tanta amizade!... No entanto era-me impossível proceder doutra forma. A senhora mesma o reconhece...
Sim, minha pequena. Apesar de toda a sua ternura por ti, não te faria feliz. Embora sofra com a dor do meu filho, não te quero mal por isso... E ele próprio reconhece que lhe faltam certos predicados para te merecer.
Lila apertou de novo a mão da excelente senhora.
São dotados todos duma grande vontade, conforme disse ontem a Stanville.
Falaste-lhe de nós, Lila?
Por uma pergunta que me fez, tive que lhe contar o pedido do Joé.
Antes que te fizesse o dele?
Sim, senhora.
E que disse ele?
Que o Joe não era de facto o marido que me convinha, pois não tinha uma posição séria...
Como é a dele, não!... evidentemente! Sob esse ponto, Stanville reúne todas as qualidades desejáveis,. Por isso é preciso reflectir... Quando deves dar a tua resposta?
Dentro de oito dias... Mas não creio que espere até lá.
E... minha] querida. tiveste a impressão de que te ama... e te estima muito?
De novo o sangue lhe subiu às faces, enquantomurmurou:
Oh! sim!
A boa senhora apertou-lhe a mão, olhando-a com um sorriso comovido:
És tão encantadora, Lila!... Estou persuadida de que foi só por tua causa que ele se transformou. Assim deverás ter sempre alguma influência sobre ele,. Vou deixar-te aqui, pois tenho que dar umas voltas, Rezarei muito por ti nestes dias, acredita!...
Oh! agradeço-lhe muito, senhora O’Feilgen!...
Porém peço-lhe que não diga nada lá em casa do que acabei de lhe contar...
Fica descansada que não direi nada a ninguém!... Até logo!. Stanville não te disse nada a respeito das obras?
Nada.
Penso que não se esquecerá!
Não, não se esquece!... Mas se tal se der, falo-lhe logo que possa.
Separaram-se, e Lila dirigiu-se para StanvilleHouse. Tirou o vestido de sair e encaminhou-se para o escritório. Só desejava que Stanville a não chamasse essa manhã, porque, depois da conversa da véspera, sentir-se-ia embaraçada ao encontrar-se diante dele. Já na véspera, à noite, quando ele entrou no salão antes do jantar, corou vivamente ao encontrarem-se os seus olhares, E mais duma vez, durante o jantar, enquanto Hugo falava de política com o secretário, evocou a cena do gabinete... Fora este homem, que intimidava a própria mãe com a sua fria altivez, o mesmo que ajoelhara diante de Lila de Sourzy, da pobre e por vezes humilhada prima, e lhe oferecera o amor e o nome, ligado a uma das mais magníficas posições do Reino Unido!... esse ”glacial Stanville”, como o chamavam em Breenwich, cujos lábios, no entanto, haviam deixado uma singular impressão de calor na pequena e trémula mão que apertara entre as dele.
O desejo de Lila porém não se realizou. Pelas onze horas foi chamada ao escritório do primo. Hugo, pousando o cigarro que fumava, levantou-se e veio ao encontro dela, de mãos estendidas.
Bons-dias, Lily... Serias muito gentil se me pusesses em ordem todas as facturas, separando-as por nomes... Vem cá, que eu te explico...
Notava-se que pretendia pô-la à vontade, pois a sua profunda comoção e constrangimento não lhe passaram despercebidos. Não fez nenhuma alusão ao que se passara entre eles na véspera. Enquanto Lila, sentada a uma mesa, perto da secretária, tratava de separar cuidadosamente as facturas, ele percorria as cartas chegadas pelo segundo correio da manhã... Elas no entanto não o absorviam de tal modo que o impedissem de fitar com frequentes e amorosos olhares a loura cabeça da prima, curvada sobre o trabalho. Isso não era mais do que um pretexto para que pudesse apreciar à vontade, durante algum tempo, a presença daquela que amava com todas as forças do seu coração jovem, concentrado até então num implacável egoísmo, numa fria inflexibilidade, e agora se revelava capaz da mais intensa paixão.
Em cima da secretária encontrava-se um ramo de soberbas violetas, cujo perfume enchia todo o aposento. Vendo-o, lembrou-se imediatamente do que trazia na véspera, na blusa, e cuja desaparição lhe passara por completo despercebida, devido à comoção causada pela confissão de Stanville. Onde o perdera?... Fora ou dentro do gabinete do seu primo? Aquilo não tinha importância. As suas modestas violetas não se podiam comparar a estas. Comprara-as a uma velha mulher, toda encolhida de frio, que encontrara no caminho para a ”Casa dos Rouxinóis”.
Stanville gostava também de flores?... Nada até ali lho dera a perceber... Decididamente havia nele todo um mundo desconhecido... E por isso mesmo a sua personalidade surgia ao mesmo tempo inquietante e cheia de atracção aos olhos duma mulher inteligente, delicada e vibrátil como Lila.
Terminado o trabalho, pela primeira vez, desde que se sentara, levantou os olhos para Stanville e perguntou:
Precisa ainda de mim, Hugo?
Não, obrigado, Lila. Já é hora da merenda. Levantou-se e Lila imitou-o. Estendendo a mão, pegou no ramo e ofereceu-o à prima.
Gostas de violetas, Lily? Fui procurá-las esta manhã para ti.
Pegou nas flores, corando, e agradeceu em voz um pouco trémula. Depois, sem que Stanville pronunciasse mais uma palavra, saíram do escritório, e pela galeria chegaram a Stanville-House. Separaram-se no patamar do primeiro andar. Hugo dirigiu-se para os seus aposentos e Lila foi colocar as flores no quarto... Parecendo terem-se combinado, reencontraram-se, decorridos alguns minutos, nesse mesmo patamar, desceram juntos a pesada escadaria de pedra e entraram no salão, onde Lourença e Carolina os esperavam... A mãe fitou Lila com um olhar surdamente hostil. A perturbação desta, na véspera à noite, quando entrara no salão, não lhe passara despercebida. Soubera pela Sara, a criada de quarto, transformada em espia, que na véspera Stanville viera com a pupila e a levara para o gabinete... ”Ao sair, a menina Lila trazia um aspecto comovido” acrescentara a Sara. ”Vi também que não trazia na blusa o ramo de violetas, como quando para lá entrou”.
Lourença fazia um grande esforço para conter a cólera e a inquietação, que chegara a um estado agudo. Parecia-lhe evidente que Hugo não era homem capaz de comprometer a honra duma pequena confiada à sua tutela. Neste caso, uma única solução se apresentava, e que fazia estremecer de horror a mulher vingativa e orgulhosa: Lila seria a esposa muito amada duma das principais personagens da Inglaterra, a nora de Lourença Stanville, a qual, por sua vez, seria posta de lado, desdenhada e exilada de Stanville-House, afastada do filho, visto que Hugo, pelo menos nos primeiros tempos, daria ouvidos aos desejos da sua triunfante noiva, orgulhosa da inesperada e perturbante vitória.
Ora Lourença estava ligada a duas coisas neste mundo: ao filho, objecto duma afeição idólatra, e a essa velha e imponente casa, onde passaram gerações de Stanvilles, adquirindo sem cessar riquezas e considerações, onde exercera o seu poder doméstico durante tantos anos, tendo plena liberdade, nesse ponto, do filho, como a tivera do marido.
Já mais duma vez pensara que um dia teria de dar passagem à nora; porém esperara da parte de Hugo um brilhante casamento, o qual seria uma compensação para o seu materno amor-próprio. Em vez disto, tinha na sua frente a humilhante perspectiva de se ver suplantada por Lila, por essa criança detestada, por essa pequena sem fortuna, e ver o filho ligado para sempre a ela, todo ocupado com essa mulher bastante amada, para que lhe fizesse o sacrifício da sua ambição.
A aparição dos dois, de cujo acordo já não tinha dúvidas, fez reviver em Lourença toda a sua impotente cólera, que devia dominar diante de Hugo, diante de Lila, mas que deixava transbordar na frente de Carolina, não menos exasperada, pois tivera durante muito tempo a ilusão de se tornar a senhora Stanville.
Lila encontrava-se na ”Casa dos Rouxinóis”, três dias mais tarde, quando Hugo foi dar à senhora O’Feilgen a sua resposta a respeito das reparações pedidas.
Com viva surpresa de todos, declarou:
Tenho a intenção de mandar arranjar esta ”casa para minha residência. Por isso alugar-lhes-ei uma outra, que escolherão a seu gosto. Dar- lhes-ei também uma pensão anual de cento e cinquenta libras, das quais receberão por estes dias o primeiro trimestre.
O assombro da senhora O’Feilgen foi tal, que nem pôde falar. Quanto a Lila, que trabalhava num bordado, perto da sua amiga Catarina, levantou os olhos para Stanville, uns olhos brilhantes de reconhecimento, que encontraram um olhar, significando claramente: ”É por ti que faço isto... é para te agradar, Lila”.
Ela baixou a cabeça, enquanto a sua delicada tez se tornava toda rosada. O amor de que era objecto, a preocupação de Hugo em lhe ser agradável, comovia-a profundamente.
O que decidiria?... Qualquer dia pedia-lhe a resposta... e ela ainda não sabia!...
No fundo do coração, porém, sentia bem que não poderia dizer ”não!”
A senhora O’Feilgen, recuperando um pouco a presença de espírito, tentou exprimir o seu reconhecimento. Hugo interrompeu-a, num tom ao mesmo tempo imperativo e sorridente:
Não falemos nisso, minha prima, peço-lhe!... ”Minha prima” A pobre viúva pouco lhe faltou para cair de assombro.
...Se quer agradecer a alguém, agradeça à Lila, que me ensinou a conhecê-las.
Oh! a Lila é uma criança a quem muito queremos!.
A senhora O’Feilgen abraçou-a entusiasmada e toda confusa. Stanville ficou perto de uma hora no salão decorado com delicadas esculturas, antigamente brancas, ornado de velhos móveis, que a viúva herdara da família. Cada um instalava-se neste salão à sua vontade, trazendo o trabalho. Catarina tinha ali o piano, Daisy o violino, a mãe as roupas para compor, no que muitas vezes as filhas a ajudavam, e Pasccal e Trick os livros e cadernos escolares. Quanto a Rosa, bordava nessa época um cabeção para ela, pois todos os seus actos se relacionavam em geral com a sua preciosa pessoa.
A bela viúva tinha saído durante a visita de Stanville. Entrou no momento em que este deixava a ”Casa dos Rouxinóis”. À passagem, cumprimentou-a com uma fria saudação... Logo que se afastou, a senhora O’Feilgen agarrou a cunhada pelas mãos e arrastou-a para o salão.
Vem, Rosa, vem ouvir a felicidade que nos aconteceu!
O que foi?... Stanville manda compor toda a casa?
Oh! é melhor ainda!... É encantador quando quer!... Revelou um grande interesse por nós.
Despede-nos da ”Casa dos Rouxinóis”! concluiu alegremente Daisy.
Estás a caçoar comigo, não? exclamou a senhora Hegton.
Oh! é verdade, minha tia, O nosso primo quer que o tratemos assim agora, imagine! vai mandar reconstruir esta casa para nela vir viver. Quanto a nós, manda-nos para outra casa, à nossa escolha. Então é ou não amável?... E nós a caluniá-lo interrompeu Catarina.
E ainda nos vai dar uma pensão anual de cento e cinquenta libras.
Ainda não voltei a mim, Rosa! acrescentou a senhora O’Feilgen,
A cunhada lançou um olhar maldoso a Lila, que, um pouco afastada, sorria toda contente com a felicidade das amigas.
Sabias das intenções do senhor Stanville a este respeito, Lila?
Não. Não me disse coisa nenhuma e eu fui a que fiquei mais surpreendida.
Rosa voltou-se para a cunhada.
Tanto melhor para todos. Aproveitem a boa vontade, e façamos votos porque ela dure.
Oh! agora sim, há-de durar! murmurou a senhora O’Feilgen, fitando Lila com discreto olhar.
Eram quase seis horas quando Lila, saindo da ”Casa dos Rouxinóis”, regressou a Stanville-House. Na escada encontrou Lourença, que descia. Quando se afastava para lhe dar passagem, uma voz desagradável interpelou-a, num tom mal contido:
Quando terminará esta comédia?... Dizes que és guarda-livros; no entanto a tua presença no escritório torna-se dia a dia cada vez mais hipotética, Não julgues que não compreendem o motivo de tudo isto.
Lila olhou-a com ar estupefacto e o rosto contraído pela cólera.
O motivo?... Qual motivo?... Lourença teve um pequeno sorriso de escárnio.
Faz-te de inocente!... A tua tentativa de conquistares o meu filho não é mistério para ninguém, minha disfarçada intrigante. Agora tem ele muitas razões para não ver claro no teu jogo... porém depois, adeus belos sonhos.
Lila teve um movimento de revolta.
É odioso aquilo que me diz!... Tenho a certeza de que não se atreveria a repeti-lo diante dele!
Lourença, sem responder, continuou a descer... E Lila, com o coração excitado, subiu os últimos degraus da escada.
Uns passos fizeram ranger as tábuas do corredor e, a uma das portas do patamar, surgiu a alta estatura de Stanville.
És tu, Lila?... Com quem falavas na escada?... Mas o que tens?
Não pudera dominar a indignada comoção que despertara nela o ataque imprevisto de Lourença. Hugo compreendeu logo na sua fisionomia que alguma coisa de grave se havia passado.
Lila murmurou, afastando os olhos do olhar investigador e inquieto do primo:
Não é nada.
E tentou retirar a mão que Stanville lhe prendera. Ele porém replicou vivamente:
Oh! não te deixo ir assim!... Com quem falavas...
A senhora Stanville disse-me umas palavras, à passagem... umas palavras muito duras...
Quais?
Não as posso repetir.
Mas quero eu sabê-las... Vem, Lila.
Fazia o gesto de a levar para o gabinete. Porém ela resistiu, protestando com voz trémula:
Não, não... Diriam depois...
O quê?
Como se calasse, opressa pelo constrangimento e pela dolorosa comoção, Hugo repetia, curvando-se para ela:
O quê?... O que ousou ela dizer ao meu amor? Balbuciou a custo:
Que sou uma conquistadora... uma intrigante... Oh! Hugo, deixe-me!... Não se preocupe mais comigo!... Nunca ”ela” me aceitaria como nora... e eu não quero que haja nada entre si e ela, por minha causa.
Um braço leve e vigoroso envolveu-a e levou-a para o gabinete sumptuoso, nessa noite perfumado pelo delicado aroma que se exalava dalgumas flores maravilhosas, todas brancas, colocadas em cima da secretária... Uma vez sentados, Hugo disse-lhe com ardor:
Vais agora dar-me a tua resposta. Quero contudo que seja isenta de qualquer receio, tanto a respeito da minha mãe, como de mim mesmo. Fica certa de que saberei sempre guardar a mais estrita deferência filial e que nunca serás a causa dum conflito.
A minha mãe não te ama, sei-o bem; ficará descontente com o nosso casamento, podemos ter a certeza disso. É impossível porém deixar de te amar por causa dessa malevolência de que és objecto, sem motivo algum. tu, querida Lila, podes, sem escrúpulo, aceitar o que te ofereço... se na verdade este terrível Stanville não te causa muito medo.
Curvou para ela o rosto, onde se reflectia apaixonada comoção... Os seus lindos olhos pretos encheram-se de lágrimas e os soluços tomaram-lhe a garganta.
Exclamou:
Que tens, minha Lily? Que te disse eu que te pudesse magoar?
Enlaçou-a entre os seus braços e o seu olhar ansioso fitou aquele lindo rosto palpitante. Respondeu-lhe baixinho:
Oh! não és tu!... pelo contrário!... Mas quando penso como sou odiada!...
Que te importa isso, se te amo e hei-de amar sempre, minha Lila!
Os palpitantes lábios de Hugo beijaram-lhe os leves e sedosos cabelos, como tocaram no rosto asse” tinado da prima... Lila fez menção de se retirar. Hugo murmurou com paixão:
Não, não te deixarei sair, minha querida, minha noiva, enquanto vir lágrimas nos teus olhos!. nos teus maravilhosos olhos pretos! Quero ter a certeza de que te confortei, de que te tranquilizei!... Quero também que me digas: ”Hugo, tenho confiança em ti, penso que poderei amar-te quando te conhecer melhor, e aceito ser tua esposa”.
Lila sentiu um arrepio de angústia ou de alegria, não sabia bem.
...Diz-me, querida, pensas que poderás amarme um dia?
O encantador e rosado rosto de Lila apoiou-se ao peito de Stanville, enquanto murmurou:
Devo poder... Parece-me que... não será difícil.
Ficaram um momento calados. Hugo beijou-lhe amorosamente os cabelos louros, objecto da antipatia de Lourença, disse a meia voz:
Minha Lily dos cabelos de ouro, não viveremos em Stanville-House, nesta casa severa e sombria, onde tanto sofreste. A nossa vivenda será a ”Casa dos Rouxinóis”, que voltará à sua antiga grandeza, para se tornar a moldura digna da tua beleza e da tua mocidade. Lá serás feliz, minha bem amada, em tudo quanto depender de mim, e não consentirei a ninguém que te ocasione o mais leve aborrecimento.
Quando Lila saiu do gabinete de Stanville, alguns instantes depois, levava as brancas flores as suas primeiras flores de noivado. Todo o corredor do primeiro andar ficou perfumado, de tal sorte que Lourença, ao subir um pouco depois, para ir para o quarto, sentiu ainda o delicioso aroma. Estremeceu de cólera, pensando: ”Que significa isto?...” Depois deu alguns passos, aspirando o perfume, e parou com o rosto contraído...
Alguém passara por ali com flores... E quem poderia ser senão Lila?... Mas donde teriam vindo essas flores?
Lourença avançou pelo corredor, ao fundo do qual se encontrava o gabinete do filho... O suave perfume flutuava ali também, aquecido pelo tépido ar dos caloríferos.
Onde tinha chegado!... Mas quem poderia imaginar que um homem como ele, sério e indiferente, pelo menos assim o parecia, todo orgulhoso e dotado dum frio desdém, se deixaria arrastar a tais loucuras?...
Abriram de repente a porta do gabinete. Lourença fez um ligeiro movimento de recuo. Mas era tarde, pois ele tinha-a visto. Veio ao seu encontro, mostrando certa ironia, sob a qual se discernia uma cólera mal contida:
Quem esperava aqui, minha mãe? Balbuciou:
Mas, nada... Senti um perfume, e perguntava donde poderia ser,.
Nada de extraordinário: é dumas flores que ofereci à Lila,
Ah! Está bem... Mas eu...
Fez um grande esforço para continuar a falar sentindo o olhar gelado do filho:
Admiro-me que não penses nas consequências das... das tuas atenções para com ela.
As consequências?... Será o nosso casamento. Acabámos ainda há pouco de o combinar e contava participar-lho amanhã.
Lourença, estremecendo, disse numa voz um pouco rouca:
Então é verdade?... Venceu-te com as suas manobras
Interrompeu-a com uma espécie de violência. Não quero ouvir nem mais uma palavra a esse respeito sobre a Lila, minha mãe!. Lila foi sempre, da sua parte, objecto duma injusta vingança. Não posso mudar coisa alguma a tais sentimentos, devido aos quais ela tanto sofreu, a pobre criança, mas é inadmissível que se manifestem em acusações desse género... Lila nada fez para despertar a minha atenção. Fui eu que quis que ela tivesse por mim este amor, porque havia resolvido fazer dela a senhora Stanville. Que isso contrarie os seus desejos, é muito possível, mas é preciso que concorde que neste assunto sou eu o único juiz da minha escolha.
Voltou-se para ele, encolerizada:
E se te disser que não consinto Respondeu-lhe com calma glacial:
Teria o desgosto de passar adiante, porque não existe na sua oposição nenhum motivo plausível, mas sim apenas uma injusta animosidade contra a Lila.
Então, por ela, recusas os conselhos da tua mãe?. permites que seja sacrificada a essa pequena hábil e...
Interrompeu-se, ante o clarão que atravessou o olhar do filho. Hugo objectou-lhe com dura impaciência:
Quer-me levar a extremos?... Sempre desconheceu a minha Lila, de alma sensível. É preciso que a sua situação fique desde já bem definida. Não lhe peço afeição para ela; basta que se mantenha numa atitude de indiferença, e que ela nunca ouça da sua parte uma palavra capaz de a magoar. Por este preço, apenas, poderei esquecer a sua animosidade para com aquela que é agora a minha noiva...
Soltou ainda um último grito de revolta:
Estás pronto a sacrificar-lhe a tua própria mãe!... Ficaste louco, como tantos outros... tu, Hugo!. tu, o orgulhoso, o inflexível!...
Nada sacrifico, nem pessoa alguma. Apenas pretendo que a Lila não sofra com a sua hostilidade. Conformando-se com o meu desejo, neste ponto, ser-lhe-á lícito continuar a viver aqui, como sempre o fez.
Lourença concluiu com voz opressa pela cólera:
Como é isso possível?. Hás-de querer que ”ela” governe, e eu não me posso conformar...
Stanville-House não é casa que convenha à Lila, Viveremos na casa ao lado, que mandarei restaurar. Aqui será livre, minha mãe, como sempre foi.
Balbuciou apenas:
Está bem... Vou reflectir...
E afastou-se com a cabeça curvada como uma vencida.
No dia seguinte, Stanville e Lila foram anunciar o seu noivado aos O’Feilgen. Hugo informou-as, ao mesmo tempo, que se encontrava para alugar uma casa não longe dali, e que ele quase já se entendera com o proprietário, no caso de lhes agradar.
Logo que resolvam esse assunto continuou ele peço-lhes que se mudem, pois desejo restaurar esta casa o mais depressa possível, a fim de estar pronta na altura do nosso casamento.
Depois disto ofereceu à senhora O’Feilgen um dos seus criados, para a ajudar na mudança, o que mais a acabou de assombrar.
Nem sei bem o que lhe respondi e penso que tinha um ar absolutamente estúpido disse ela aos filhos e à cunhada, mal saíram os noivos” Depois de ter vivido tantos anos completamente esquecida, não nos habituamos assim de repente a vermo-nos tratadas como convém amavelmente mesmo.
Catarina exclamou. A querida Lila!... É a ela que devemos esta transformação no procedimento de Stanville... Aqui há uns meses poderíamos prever isto?... Este casamento!... Lila, esposa de Stanville!
Daisy informou, pensativa:
Ela parecia muito feliz! E o olhar dele mudava, sempre que a fixava!
Sim, eu vi! declarou a senhora O’Feilgen.
Espero que seja bom para ela. É um homem sério, e desde que a ame, suponho que não sofrerá muito com o seu carácter autoritário,
Rosa, de pé, perto do piano, batia com a ponta dos dedos no teclado, sem dizer palavra. Com uma ruga vincada no rosto, os olhos, sob as pálpebras meias cerradas, luziam de inveja e de cólera.
Catarina perguntou:
Não diz nada sobre isto, minha tia?... Esta respondeu quase por favor
O que queres tu que eu diga?... Há muito tempo que previa este resultado. Quanto à felicidade futura de Lila. talvez seja melhor não falar! Stanville está obsecado neste momento; quando voltar à realidade, quando tiverem passado os ardores da paixão, Lila convencer-se-á que tem um senhor pouco condescendente.
Catarina teve imperceptível encolher de ombros, e, arrastando a irmã para fora do salão, murmurou:
O que ela tem, é uma grande inveja da Lila!
Supões isso?
Tenho a certeza!. Vi muito bem a maneira como a olhava, há pouco, quando supunha que não a observavam. Estava enamorada pelo Stanville, e pela sua fortuna ainda mais.
Daisy soltou uma risadinha de escárnio.
Que não se apoquente, a tia Rosa!... Não é para ela o belo pássaro azul!... Acha que é muito mais bonita essa fada, que é a Lila... e aqui para nós, tem toda a razão.
A notícia do casamento de Stanville com a prima e pupila produzia em Breenwich uma viva sensação. Com certeza, devido ao cuidado dalgumas boas línguas, e em especial da senhora Haig, ninguém ignorava que ele testemunhava à linda prima uma solicitude inesperada da sua parte, e que Lourença o considerava verdadeiramente apaixonado por ela. Todavia um homem como aquele, muito ambicioso, conforme a senhora Stanville dizia do filho, determinando-se sempre apenas pela razão, não era capaz de cometer semelhante fraqueza!...
Porém o boato confirmou-se, pois Stanville acabava de combinar o casamento com Lila de Sourzy.
Outra notícia correu logo em seguida. O dono de Stanville-House ia mandar restaurar por completo a ”Casa dos Rouxinóis”, para se instalar ali com a esposa.
Isto pôs termo à curiosidade com que todos se interrogavam: ”Como se arranjarão a sogra e a nora?” Stanville preparara a situação de tal maneira, que sua mãe conservaria todos os seus hábitos e continuaria a governar em Stanville-House, enquanto o novo lar formaria uma vida completamente à parte” Recalcando o rancor e a cólera, Lourença mostrava quase boa cara a Lila. Compreendeu muito bem que Hugo não suportaria o menor melindre feito à noiva, que ele cercava de atenções, de quem adivinhava os pensamentos com uma solicitude amorosa exasperante.
Assim, teve de receber os O’Feilgen, de quem Hugo noutros tempos quase parecia ignorar a existência!...
Foram convidados para o jantar de núpcias e Hugo declarou que se sentariam à sua mesa duas vezes por semana. Lourença objectou, não podendo conter a irritação:
Resolveste então receber esses boémios?
Essa denominação não é para eles, minha mãe, Esquecemo-nos durante muito tempo que eram nossos parentes. Levam uma existência honrada, por isso devemos recebê-los e ajudá-los mesmo, se tiverem necessidade.
Não obstante os seus hábitos de esbanjadores?
São dignos de lástima, quando muito. Porém resgatam esse defeito com as suas excelentes qualidades,
A senhora Stanville não insistiu mais. Só lhe restava resignar-se e receber essas amigas de Lila, como já suportava, sem uma palavra de censura, a presença, num dos seus salões, do magnífico piano de cauda, recentemente chegado de Londres. Todas as noites Hugo pedia à noiva para lhe tocar alguma música e passavam os serões nesse salão, conversando demoradamente, quando ela saía do piano, depois de ter tocado ou cantado as músicas preferidas por Stanville.
Nos dias em que os O’Feilgen vinham, havia verdadeiros concertos musicais. Rosa, cuja voz não se restabelecera ainda, não podia brilhar como desejava. Sentia-se também muito vexada com a indiferença delicada que lhe testemunhava Stanville, apesar dos seus discretos galanteios, Sempre invejando a situação de Lila, aproximava-se dos que a detestavam, e muito depressa, por meio de hábeis lisonjas e insinuações, manifestando a pouca simpatia que lhe inspirava a menina de Sourzy, soube captar as boas graças da senhora Stanville e de Carolina.
A primeira disse um dia ao filho:
Nunca imaginei que a senhora Hegton fosse tão séria. Julgo-a superior, nesse ponto e na sua inteligência, à cunhada e aos filhos.
Hugo respondeu-lhe:
Engana-se, pois é sobretudo manhosa e duma rara hipocrisia.
Oh! julgas que seja assim?
Tenho a certeza. E depois, é a maior egoísta que conheço.
Quem ta apresentou sob esse aspecto? Talvez a Lila, não?
Bastou-me, para formar essa opinião, o seguinte facto: essa mulher forte, capaz de ganhar a vida, dando lições, que as suas relações de Londres lhe conseguiriam com relativa facilidade, passa meses e meses aqui, a expensas duns parentes pobres, aos quais nunca auxiliou, nem na época em que esbanjava o dinheiro ganho por ela e pelo marido.
Lourença nada achou para responder em defesa da bela viúva. Não deixou no entanto por isso de a olhar com benevolência, nesse dia à noite, quando, como de costume, foi jantar a Stanville-House com a cunhada e os sobrinhos.
A senhora O’Feilgen estava triste. Acabara de receber uma carta de Joé, em que lhe declarava ser impossível esquecer Lila e lhe comunicava que ia assinar um contrato com o director duma companhia, a partir para a América.
Além disso, nessa mesma manhã, Lila dissera-lhe que Stanville queria colocar o Pascoal no seu escritório e olhar pelo seu futuro: ”Prometeu-me não ser muito severo com ele”. Apesar desta promessa, a senhora O’Feilgen ficara receosa, entre a satisfação de ver o filho num bom caminho, e o receio de que o seu pequeno Pascoal fosse tratado com dureza.
Por outro lado, ela e os filhos estavam encantados com a nova casa, onde lhes era possível sentir um certo bem estar, graças à pensão que Hugo lhes dera, do primeiro trimestre. Quanto à ”Casa dos Rouxinóis”, estava repleta de operários e o arquitecto escolhido por Stanville ia transformá-la numa verdadeira maravilha.
Três semanas, mais ou menos, antes da data fixada para o casamento, Hugo foi a Londres com a noiva, para escolherem a mobília e as decorações da nova casa. Além disso Lila tinha de tratar dos vestidos e de tudo o mais que necessitava para a sua nova posição.. Instalou-se em casa da senhora Jailew, que fora sua professora de desenho no colégio Welling e de quem era muito amiga. Hugo ia lá visitá-la todos os dias, para a acompanhar às diversas casas de modas, onde tinham sempre que fazer.
Apesar dos protestos da noiva, Stanville mostrava-se duma generosidade principesca. ”Nada me parece digno de ti” dizia ele. ”Depois, não preciso eu recompensar as privações que sofreste durante tantos anos?”
Lila sentia-se cada vez mais adorada. Pelo seu lado afeiçoava-se todos os dias cada vez mais a esse noivo, que a rodeava duma grande solicitude, por-detrás da qual, discreta e vigorosamente, se exercia a sua influência. Todos os seus receios haviam desaparecido e podia dizer sinceramente à sua amiga:
Tenho nele a maior confiança e sinto que poderei modificar um pouco o seu espírito, no que diz respeito à sua dureza e vontade inflexível para com os outros.
Conseguirás isso, tenho a certeza, minha bela fada! respondera a senhora Jallew, muito orgulhosa da amiga, de quem rendia a Stanville mil louvores, desde que se encontrava a sós com ele.
Uma tarde, ao voltarem dum passeio de carro pelos arredores de Londres, os noivos encontraram em casa da senhora Jallew a Rosa, que estava de passagem em Londres, de visita a uma cantora das suas relações. Ora, dissera ela com o seu mais amável sorriso, não quisera voltar sem ver a sua querida Lila, que tanta falta fazia em casa dos seus amigos.
Hugo demonstrou-lhe grande indiferença, e Lila, que nunca simpatizara com ela, não insistiu, quando, depois dum quarto de hora, ela se levantou para sair.
Quando a veremos em Breenwich? perguntou a linda viúva, olhando de soslaio e com ar de inveja para o vestido discretamente elegante que Lila trazia.
Eu parto amanhã. Stanville, depois de me acompanhar à estação, tomará o comboio para Edimburgo, onde tem uns negócios a tratar.
Ah! tanto melhor, minha querida!... Quando regressar já lá a encontrarei.
Fica ainda em Londres?
Não sei... Tudo depende da demora da minha amiga.
Mal saiu, a senhora Jallew declarou:
É bonita, mas penso como tu, Lila, não me agradou muito.
Stanville acrescentou:
Nada tem de extraordinário, pois que a franqueza e a hipocrisia dificilmente andam juntas. Quanto à sua beleza, embora exista, é melhor não se falar nela, diante da que faz eclipsar todas as outras!...
E pegando na mão de Lila, apoiou nela os lábios.
A senhora Jallew retirou-se discretamente, deixando os noivos entregues a essa conversa, que devia ser a última antes da partida.
Na manhã seguinte, Hugo acompanhou Lila à estação, instalando-a no compartimento que mandara reservar. Mais uma vez, beijando-lhe os lindos e tristes olhos, prometeu fazer o possível por não se demorar em Edimburgo mais de dois dias.
Logo que o comboio se pôs em marcha, instalou-se comodamente e abriu um livro. O seu pensamento ia porém para Hugo, de quem se separara com tristeza... E ele, com quanta dificuldade dominara a comoção que se lia na sua fisionomia e nos seus olhos, que sabiam ser tão ternos para ela!... Como ele me ama!”pensava ela com alegria.
Há meia hora que havia partido de Londres. Lila meditava, com o livro nos joelhos, quando alguém abriu a porta e surgia um jovem, em quem reconheceu logo Joé. Exclamou:
Ias também neste comboio, meu amigo?... Vais a Breenwich?...
Respondeu-lhe, ao mesmo tempo que apertava a mão que ela lhe estendeu:
Sim... Vi-te entrar, mas hesitei antes de te vir falar...
Fico contente por conversar um momento contigo, Joé... A senhora Hegton nada nos disse sobre esta tua ida a Breenwich?!
Não... não sabia nada... Resolvi. dum momento para o outro...
Corou ao dizer isto. Lila, ocupada a procurar o lenço, caído atrás da almofada, não deu por isso.
... Tenho alguns dias de férias, que aproveito para ir visitar a nossa nova casa.
Ah! é verdade, não foste ainda lá, depois que mudaram de casa, pois não?... É uma linda casa, muito cómoda, com a qual estão todos encantados... Mas senta-te, Joé, vamos conversar um pouco.
Ela sentia-se muito à vontade. Persuadida de que Joé era incapaz dum sentimento durável, e que o seu feitio despreocupado devia facilmente encontrar consolação, pensava até que já tivesse esquecido esse capricho, e que voltava a ser para ele apenas uma amiga, como noutros tempos. Assim, não se sentia constrangida, ao mostrar-se cordial e afectuosa para com ele, como fora sempre seu hábito.
Então como vão as tuas coisas?... A Daisy disse-me que tens tido êxito... Estás contente?...
O seu fino rosto contraiu-se e disse bruscamente
200 -Como queres que esteja contente?. Não é a ti que cabe fazer-me tal pergunta... a ti, que me fazes tão infeliz!...
Oh! Joé, ainda pensas nisso?... Não julguei que fosses tão desajuizado...
As faces de Lila coloriram-se, e os olhos, constrangidos e descontentes, desviaram-se daquele olhar terno e acariciador.
Acreditavas, então, que podia esquecer-me assim depressa? Odeio esse Stanville!... Não poderia contentar-se com a sua riqueza, sem te querer também?... sem te roubar à minha amizade?...
Vamos, Joé!...
Ela voltou-se, mostrando uma fisionomia severa. Ele porém não deu atenção, e antes que ela se pudesse defender, agarrou-lhe nas mãos e apertou-as entre as dele.
Não te saberá fazer feliz, Lila!... Será para ti um senhor ciumento e tirânico!... Mas ainda é tempo. Rompe com esse noivado a aceita-me por teu marido. Verás como eu trabalharei, como eu...
Num movimento brusco Lila conseguiu retirar as mãos... Joé, vendo nela um olhar indignado, calou-se imediatamente.
O que significa isto?... Como te atreves a fazer-me tal proposta?... Quero acreditar que isso é apenas uma loucura passageira, pois doutra maneira não admitiria...
Interrompeu-a surdamente:
Eu amo-te!... amo-te muito!... Ele não saberá amar-te como eu!... Tu desconfias também disso... Tens medo...
Medo?. Medo de quê?
De ser infeliz junto dele!
Onde foste descobrir tal história?
Oh! o que não queres é confessar!... Não te atreves a retirar a tua promessa... E no entanto tremes...
Na verdade, és tu quem me dá tal novidade. Tenho a certeza da minha profunda afeição por Stanville, a quem já não temo. Isto seja dito duma vez para sempre... Quanto às tuas palavras quero esquecê-las, em atenção à nossa velha amizade,.
Levantou-se cambaleando, com a fisionomia transtornada.
Então ama-lo, O que me disse ela?... Enganou-me?...
Quem?
Não to posso dizer... Prometi-lhe não falar nela... Mas peço-te perdão, Lila... Adeus...
E dirigiu-se para a porta. No momento de a abrir, voltou-se:
Um conselho te dou: desconfia da minha tia Rosa, Procurou conquistar Stanville e diz tê-lo conseguido. Hoje foi para Edimburgo no mesmo comboio que ele. É uma mulher perigosa, intriguista e muito ambiciosa... Não quero que seja para ti uma causa de tristeza...
Desapareceu no corredor e Lila ficou só.
Manteve-se imóvel e estupefacta durante um largo momento... O que quisera ele dizer?... Que nova história havia naquilo tudo?
Não se deteve porém a pensar nisso nem um momento... Admitindo mesmo que Joé tivesse dito a verdade a respeito da tia, Hugo, tinha a certeza, desdenharia as pretensões da senhora Hegton, para quem se mostrava sempre frio, e cujo carácter adulador e nada franco lhe era visivelmente antipático, e Lila pensou: ”A dor perturba a imaginação deste pobre Joé! Quem o teria convencido de que me arrependi do meu compromisso com o Hugo?... Com certeza foi ”ela”!
Uma intriga, na verdade, surgia ante os seus olhos! Joé há pouco mentira, dizendo que sua tia ignorava a sua partida para Breenwic, pois que a vira na estação, onde tomara o comboio para Edimburgo. Houvera combinação entre eles... alguma manobra suspeita!...
Porquê? ”Para me separarem do Hugo!... Não era capaz de supor tal coisa do Joé!...” pensou.
Este pensamento fê-la sofrer, Depois, embora raciocinasse, uma surda inquietação se apossou dela...
Rosa era bonita... Os seus olhos tinham às vezes acariciadores clarões... E em especial quando se fitavam em Stanville, lembrava-se agora!. Na véspera estava de facto muito bonita, naquele seu vestido cinzento, que fazia sobressair o elegante talhe, apertado de forma a combater a sua tendência para engordar...
No entanto, depois que partira, Hugo proferira a seu respeito severas palavras,
Teve um movimento de impaciência e passou a mão pelo rosto, como para afastar esses ridículos pensamentos.
Concentrou-se durante um momento, recordando as palavras pronunciadas pelo noivo no momento de a deixar: ”Minha querida, queria ser mais velho dois dias para tomar já o caminho de Breenwich e voltar a ver-te dentro em breve”.
Quanto amor e lealdade no olhar e no tom da voz!... Não, nada tinha a recear. Era todo seu, unicamente seu, esse Hugo de quem só ela conseguira vencer a glacial indiferença.
Embalada pelo movimento do comboio, acabou por adormecer. Porém logo sonhou que a linda Rosa, vestindo o mesmo traje cinzento, entrava no compartimento onde estava Stanville e sentava-se perto dele” Hugo recebia-a amavelmente, escutava-a com interesse e olhava-a com prazer... Lila acordou toda trémula, e um mal-estar persistiu nela durante o resto da viagem; quando o comboio parou na estação de Breenwich, tinha a fisionomia um pouco pálida; ao descer, Joé passou perto, saudando-a, mas sem ousar encará-la.
Pensou: ”Pobre rapaz! A tia induziu-o a fazer esta asneira!... É tão fraco!...”
Aproximando-se da saída, teve um movimento de surpresa, ao avistar a senhora Stanville, acompanhada da senhora Haig.
Vim acompanhar a Carolina, que vai passar um mês a casa da sua prima Joana explicou, ela. Sabendo que devias chegar neste comboio, esperei-te, pois era inútil mandar segunda vez o carro.
Agradeço-lhe muito, minha prima.
No regresso deixaremos a senhora Haig em casa. Teve a gentileza de vir despedir-se da Carolina... Não é o Joé O’Feilgen que vai acolá?
É ele, sim, minha prima.
Assim respondendo, não pôde dominar a vermelhidão que lhe subia ao rosto, ao recordar a conversa com Joé.
Viajastes juntos?
O tom de Lourença era irónico e malévolo. Lila respondeu com vivacidade:
Não, senhora. Vim num compartimento reservado.
A senhora Stanville replicou a meia voz:
Não é uma razão,
A reflexão não foi perdida pela senhora Haig, a julgar pelo movimento dos lábios, que revelaram íntimo prazer, pois sentia-se sempre satisfeita quando pensava que podia pôr a correr uma sensacional calúnia ou maledicência.
Lila recebeu no dia seguinte uma carta de Stanville. Informava-a de que os negócios o reteriam, contra sua vontade, mais vinte e quatro horas do que supusera.
”Tenho tanta pressa em te voltar a ver, minha bem amada!... Longe de ti, longe dos teus lindos e queridos olhos, sinto-me triste e sem vida”.
Lila leu duas vezes as páginas cobertas com uma bem feita e firme caligrafia, as quais lhe transmitiam as saudades do seu amoroso noivo. Todos os vagos receios que haviam ficado no seu espírito desde a véspera dissiparam-se por completo.
Ao jantar participou o adiamento do regresso de Hugo... Lourença não fez nenhuma observação a tal respeito. Mas, pouco depois, disse com placidez:
Com certeza encontrou essa encantadora senhora Hegton!. Devia ir para lá, depois de passar alguns dias em Londres, segundo me parece!
Lila replicou com indiferença;
Nada nos disse quando nos visitou, na véspera da minha partida, em casa da minha amiga Jállew,
Foi ela no entanto que mo contou, quando a encontrei em High-Street, na manhã em que tomou o comboio para Londres... É de prever que tivesse qualquer razão para não te informar.
Lila não respondeu. De novo porém surda inquietação se apoderou dela.
Nessa tarde foi a casa das O’Feilgen. Na véspera fora passar um instante com as amigas. Joé tivera a delicadeza de se ausentar, e soubera que ia tomar o comboio da noite para Londres. Assim, pois, não receava encontrá-lo nessa tarde.
A senhora O’Feilgen e as filhas ignoravam a tentativa que ele fizera perto de Lila, e esta evitou dizer-lhes qualquer coisa sobre o sucedido, pois estava convencida de que desta vez o seu amigo se desiludira... Quanto a Rosa, sentia repugnância em perguntar por ela, em saber o que a chamara a Edimburgo. Tinha no entanto um grande desejo de o saber.
Catarina, à sua chegada, acercou-se dela e levou-a para junto do piano, a fim de lhe decifrar uma partitura. Procurando um caderno no armário, muito mal arrumado, a mais velha das O’Feilgen perguntou:
É amanhã que chega o senhor Stanville?
Não, é depois de amanhã. Foi obrigado a demorar-se mais um dia, para terminar os seus negócios.
Parece-te longa a ausência, não, Lila?... Tem paciência, pois o dia do casamento está próximo!... Que linda noiva vais ficar, Lily!... Os nossos vestidos de damas de honor são muito bonitos, sabes? A senhora Hegton tem muito gosto!... Mas onde está este caderno? A minha tia desarrumou tudo, na véspera de partir, e não se deu ao trabalho de o endireitar. Está em Edimburgo, sabes?
Sei!... Porque foi até lá?
Para ver uma velha tia do marido, de quem nunca se importou, por ser pobre, Ora, pelo pouco que nos diz na carta, parece que a senhora Berghen está doente e a chamou. Foi obrigada a ir e a ficar no hotel... Pergunto com que irá ela pagar essas despesas?... Naturalmente descarregará nos bons O’Feilgen, não?!...
Começou a rir, e depois acrescentou, estendendo a mão para uma mesa:
Está ali a carta... No envelope está o endereço do hotel... Podes ler, se queres, tanto mais que manda algumas palavras amáveis para ti.
Lila curvou-se e, olhando para o envelope, exclamou com a voz um pouco mudada:
Este hotel é o mesmo onde está Stanville! Catarina voltou-se, deixando cair o caderno que tinha nas mãos.
O hotel onde?. Um grande hotel, então?
O primeiro de Edimburgo.
É impossível.. Espero que desta vez a minha mãe a receba como merece, quando lhe vier pedir dinheiro, como o fez agora, para esta viagem a Londres!... Tem hábitos de rica a minha linda tia, e quis com certeza dar a ilusão de ser uma milionária, Mas é mesmo uma tola!... Até escarnece de nós, procedendo assim!
Toda entregue ao seu descontentamento, Catarina, de resto pouco observadora, não notou certa alteração na fisionomia da amiga. Lila dominou logo a comoção. Conversou e tocou piano como de costume... Uma vez no seu quarto, um pouco mais tarde, condenava-se severamente por prender o pensamento nessa singular coincidência: a senhora Hegton escolhera o mesmo hotel de Stanville.
Não, não fazia essa injúria a Hugo, não o suporia capaz de conceder a menor atenção às habilidades de Rosa... No entanto tinha pressa em o voltar a ver, em encontrar de novo a ardente ternura do seu olhar!
Dormiu mal essa noite e o dia seguinte pareceu-lhe interminável. As refeições a sós com a prima eram um sacrifício, embora Lourença se abstivesse de ser desagradável, a não ser com o seu silêncio... Nessa tarde não foi a casa das amigas, com receio de que lhe falassem em Rosa, de quem procurava esquecer a existência. Ficou no quarto, ornado de preciosos pequeninos nadas, oferecidos por Hugo, e trabalhou até à hora em que devia chegar Stanville.
Aguardou a sua chegada no patamar... Logo depois ouviu abrir a porta e a voz de Hugo, dirigindo-se a Lourença:
Boas-noites, minha mãe. Todos estão bons?
Sim... todos bons...
O que foi?... Diz-me isso como que a hesitar!... É a Lila?
Oh! a Lila está muito bem! Não é isso,. Mas desejava dizer-te uma palavra.
Está bem. Estarei à sua disposição dentro de meia hora.
Muito bem!. Irei falar-te ao teu gabinete... fizeste boa viagem?
Respondeu-lhe em tom apressado. Depois deixou a mãe e subiu a escadaria a correr. Lila não fizera um movimento para descer. Gostava mais de o receber ali, do que sob o olhar de Lourença.
Ele pegou-lhe nas mãos e olhou apaixonadamente para a comovida e sorridente fisionomia da noiva.
Minha querida!... Aqui estou ao pé de ti! E deu-lhe um longo beijo no rosto.
Como o tempo me pareceu longo, Hugo!
No entanto fiz o possível por ser breve!” Houve mesmo um negócio que não acabei de tratar só para não me demorar mais. Mas isso não importa. Tinha muita pressa em voltar a ver a minha Lila, para não me prender com tais considerações!
Como desaparecia toda a sua íntima inquietação, agora que se encontrava entre os braços do noivo que voltava a encontrar esse olhar, onde de novo lia o quanto valia para esse orgulhoso Stanville.!
Parece-me que não tens bom aspecto, Lila?.” Essas olheiras?... Estás cansada?
Um pouco, sim... Dormi mal,
Porquê?... Tiveste algum aborrecimento?... com a minha mãe, talvez?
Não! não foi com ela,. Contar-te-ei amanhã.
Muito bem, espero. Até logo, minha querida.
Quando meia hora mais tarde Lourença entrou no gabinete do filho, viu este de pé, entretido a examinar o conteúdo dum estojo que tinha nas mãos. Pousou-o na secretária, mas a senhora Stanville teve tempo de ver o brilho das pedras preciosas, pelo entreaberto da tampa, ao fechá-la.
Com um gesto indiferente, Hugo indicou uma poltrona a sua mãe. Esta, sentando-se, lançou um golpe de vista para a grande fotografia de Lila pousada na mesa. O vê-la, excitou a sua cólera... Bruscamente estendeu a mão para o estojo:
É para ela esse presente? para ela, que escarnece de ti?...
O que quer dizer com isso?
Curvou-se, fitando com olhar interessado o rosto da mãe, que se tornara duro,
Escuta-me, Hugo... De Londres até aqui viajou em companhia de Joé O’Feilgen... e hoje todos falam nisso em Breenwich.
Nada estremeceu na sua impassível fisionomia e perguntou friamente:
Como pode dar crédito a esses boatos?... e sobretudo porque me veio contar isso?
Boatos?... Estava na estação, onde fui acompanhar a Carolina. Eu própria vi o Joé descer da mesma carruagem que ela.
Muito bem, e que prova isso?
Pouca coisa, é verdade, Porém quando perguntei a Lila, quase maquinalmente: ”Viajavas na sua companhia?” corou muito, respondendo negativamente. Uma pessoa que estava perto de mim viu-o também...
Hugo interrompeu-a com impaciência.
É de mais, minha mãe!... Em tudo o que me disse, nada vejo que possa motivar a menor crítica à Lila.
Tu, é possível... mas outros vêm... O Joé vangloria-se, junto dos seus amigos, de estar apaixonado por ela.
Eu sei. Ela própria contou-me que ele a pediu em casamento.
Lourença sorriu.
E recusou-o, porque visava outro mais alto!... Mas acha com certeza agradável continuar a namorar com ele...
Hugo interrompeu-a de novo, desta vez com uma violência apenas disfarçada:
Fiquemos aqui, minha mãe!... E permita que lhe diga: tenho na minha noiva a mais completa confiança e sei que nunca coisa alguma se passará, sem que mo possa contar de rosto erguido e sem reticências.
Lourença levantou-se com o rosto contraído.
Vejo bem que te dominou por completo!... Isso não impede no entanto que se fale em todo o Breenwich, tanto mais que o Joé tem uma reputação de grande leviano... e Lila é considerada por muita gente como um pouco cabeça no ar.
Não tem mais nada a dizer-me, minha mãe? A pergunta foi feita num tom tão glacial, que acabou por desconsertar Lourença. Esta balbuciou:
Mais... não... Queria apenas prevenir-te...
Era melhor não o ter feito. Acompanhou-a até à porta. Voltou depois para junto da mesa e sentou-se. Pôs-se a olhar para o retrato de Lila,. Durante um longo momento ficou imóvel, pensando com as sobrancelhas contraídas, ”O que existe de verdade em tudo isto?” murmurou, impressionado. ”Alguma intriga de minha mãe!... Em todo o caso, da tua parte é que nada houve, minha delicada Lila!”
Levantou-se e deu alguns passos através do aposento. Em seguida tocou a campainha, a fim de ordenar que fossem pedir à menina de Sourzy para lhe vir falar, logo que lhe fosse possível.
Alguns instantes decorridos, Lila entrava no gabinete... Hugo veio para ela e pegou-lhe nas mãos.
Querida, estou impaciente porque me contes hoje qual o motivo da tua contrariedade.
Como queiras, meu querido Hugo.
Fê-la sentar na mesma poltrona ocupada há pouco por Lourença; ele, por sua vez, sentou-se perto dela e curvou-se para lhe beijar longamente a mão que ela lhe estendeu.
Lily, não deixei de pensar em ti durante toda a nossa separação!
E eu esperava com toda a minha alma pelo teu regresso... Estes três dias pareceram-me muito compridos.
Mas estamos de novo juntos, minha muito amada... Vamos, conta-me agora o aborrecimento que tiveste...
Um aborrecimento, sim... e nada mais... como verás...
E contou-lhe a curta palestra que tivera com Joé no compartimento reservado.
À medida que falava, uma forte irritação se reflectia nas pupilas azuis do noivo, que se iam tornando quase pretas... Quando Lila se calou, Stanville disse surdamente:
Far-lhe-ei pagar caro essa ousadia, a esse mariola!
Oh! não, Hugo, peço-te que não!... Foi uma asneira e nada mais!... E penso que lhe foi inspirada com um fim que eu mesma não explico...
Inspirada?... Por quem?
Então, corando muito, repetiu-lhe as enigmáticas palavras do jovem a respeito da tia.
Stanville teve um brusco movimento, e deixou escapar uma exclamação:
A senhora Hegton!... Ah! mas... sim, tudo se esclarece!...
Compreendes, Hugo?
Sim, minha querida Lila. Imagina que essa encantadora viúva seguiu no mesmo comboio em que eu fui para Edimburgo. Aí começou a pedir-me dinheiro emprestado, o que continuou a fazer no hotel pois que foi hospedar-se no mesmo hotel onde eu estava, se bem que uma tal despesa não fosse compatível com os poucos meios de que dispunha. Desiludia de tal modo, que não se atreverá a voltar... Mas analisemos essa coincidência: enquanto a tia me seguia, o sobrinho fazia o mesmo junto de ti, Havia nisto um pequeno plano para nos separarem, Lila, lançando a desconfiança entre nós!...
Oh! pensas que fosse assim?
Tenho a certeza. E como tu, reflectindo um pouco, creio que o Joé representou muito tolamente o seu papel. Foi um boneco nas mãos da tia.
Assim, Hugo, não o deves castigar muito!... Stanville rodeou com os braços os ombros da noiva e depôs-lhe um beijo nos lindos olhos suplicantes,
Não, Lila querida, esqueceremos tudo, visto que, com certeza, esse louco não foi mais do que um comparsa nesta intriga tão mal maquinada, Zango-me com ele, sobretudo, por te ter causado esse aborrecimento... embora tenhas sido pouco razoável em te teres atormentado por causa disso.
Oh! eu sei bem!... Mas que queres?... A imaginação não pode ser sempre dominada,
A imaginação?... A propósito da senhora Hegton?... Suponho que não te preocupaste ante a suposição de que eu me deixasse cair na armadilha?
Oh! não, Hugo! Se essa ideia me passou pelo espírito, foi contra vontade, e posso-te assegurar que se afastou logo, só achando em mim a mais completa confiança na tua pessoa.
E a sua encantadora cabeça inclinou-se sobre o ombro de Stanville... Depois dum curto silêncio, perguntou:
A minha mãe estava na estação quando tu chegaste?
Tinha ido acompanhar a Carolina ao comboio, para Liverpool. Sabendo que eu devia chegar pouco depois, esperou-me, para evitar que o carro fizesse outra viagem. Na volta deixámos em casa a senhora Haig, que a acompanhava:
Ah! a senhora Haig estava na estação?
Estava.
E olhando para o noivo com surpresa, Lila acrescentou:
Com que voz disseste isso, Hugo! Respondeu-lhe evasivamente:
É uma criatura com quem não simpatizo, e não compreendo como a minha mãe a tolera na sua intimidade... Mas, para voltar ao assunto, previno-te, Lily, de que porei ao corrente do que se passou a senhora O’Feilgen, pois não permito que tu ou eu encontremos mais na sua casa essa intrigante criatura.
Faz como quiseres, Hugo. Porém não sejas muito severo com o Joé, que lhe causarias um grande pesar.
Não insistirei sobre isso, e far-lhe-ei compreender que não o considero responsável por coisa alguma. Agora não falemos mais em tal, minha querida, e pensemos apenas na nossa mútua confiança, no nosso amor, o qual ninguém no mundo pode destruir.
No dia seguinte, às duas horas, quando a senhora Stanville descia, vestida para sair, viu vir para ela o filho, que perguntou:
Pode dispensar-me um minuto?
Aquiesceu, pensando com um arrepio de inquietação: ”O que quererá ele”, visto que mostrava nesse momento a sua mais inflexível fisionomia.
Entraram no salão. Hugo, sem preâmbulos, declarou-lhe:
Previno-a que vou desde já a casa da senhora Haig, para lhe impor a obrigação de se retratar das mentiras que espalhou pela cidade.
Lourença ficou um momento sem palavras. Depois balbuciou:
Mentiras?... O que queres tu dizer?...
Sabe-o melhor do que eu, pois não foi sem premeditação que a levou consigo, a essa víbora, à chegada da Lila... Mas a conspiração gorou-se, não obtendo outro resultado senão tornar maior a nossa mútua confiança. A amável senhora Hegton não passará mais os umbrais desta casa... e tão pouco essa senhora Haig, de quem se fez amiga. Quanto a uma outra pessoa, cujo principal papel nesta questão me parece infelizmente evidente, não quero procurar aprofundar, com a condição de que nunca mais, seja ainda na menor coisa, procurará melindrar ou ofender a Lila.
Antes que Lourença pudesse recobrar um pouco a sua presença de espírito, saiu do salão.
Então deixou-se cair sobre uma cadeira, ao acaso” A sua tez empalideceu e o regalo, que tinha nas mãos, caiu no tapete, sem que se apercebesse disso.
Como pudera Hugo adivinhar tudo?... Agora nunca mais lhe perdoaria. Seria tolerada, e nada mais... com a condição de se curvar diante ”dela”, da triunfante, da feiticeira, daquela de quem Hugo nem por um instante só duvidara. Ah! vira bem nas suas fisionomias, na maneira como falaram, na véspera à noite e durante a manhã, que estavam sempre de acordo... e mais do que nunca!...
Devia na verdade dar”se por vencida... E uma lágrima de raiva deslizou-lhe pelo rosto, indo até ao veludo do vestido.
A senhora Haig nunca revelou a ninguém o motivo da curta visita que lhe fez nesse dia, pela primeira vez, Hugo Stanville. Depois da sua partida, havia ficado com uma fisionomia deveras alterada, conforme os seus criados logo notaram.
Nesse mesmo dia começou a visitar a casa de todas as suas amigas e conhecidas, e desmentiu aquilo que contara, deliciada, sobre o incidente que três dias antes havia observado. E ao fazê-lo, não encontrava palavras para elogiar e louvar a menina de Sourzy, ”essa jovem honesta e bondosa, que haviam indignamente caluniado na sua frente”,
Notaram, mais ainda, que a esposa do banqueiro Haig deixou de ser recebida em Stanville-House donde concluíram que a autora e a propagadora das referidas calúnias fora uma e a mesma pessoa.
Muitos compreenderam o que se tinha passado e, desejosos de agradarem a Stanville, afastaram-se dela ostensivamente. A senhora Haig aprendeu à sua custa o quanto era grave ofender a futura senhora Stanville. E ainda se podia considerar muito feliz por Stanville não os ter prejudicado nos interesses do banco, como o poderia ter feito com facilidade. Declarara no entanto à culpada que o faria sem hesitar, caso não se retratasse das suas mentiras.
O casamento celebrou-se numa atmosfera de admiração e deferência. A igreja da localidade foi pequena para conter a multidão dos convidados e curiósos podia-se mesmo dizer, de toda a cidade. Foi uma cerimónia grandiosa, como convinha à posição de Stanville. Era voz geral de que era difícil encontrar dois noivos mais bonitos.
”É inacreditável a mudança porque passou Stanville nestes últimos meses!” diziam. ”É preciso que a noiva tenha sobre ele grande influência!... Dizem que consente que ela interceda pelos seus operários, quando têm um favor a pedir-lhe...”
Um destes factos se produzira, com efeito, nos últimos dias. Hugo mandou informar Billy Folken que lhe arranjara um lugar na fábrica, pouco fatigante e bem remunerado.
O reconhecido rapaz não faltou à festa, todo contente no seu traje novo, adquirido graças à generosidade de Stanville. Ao passar pelo braço do marido, Lila sorriu aos bondosos e brilhantes olhos, que a admiravam num êxtase de gratidão.
Quanto aos O’Feilgen, exaltavam com este casamento, em primeiro lugar por causa da felicidade de Lila, e em seguida porque lhes proporcionava um bem estar providencial. Com efeito, Hugo mostrara-se muito generoso para com eles, e deixara mesmo perceber que favoreceria monetariamente o casamento de Catarina com Frank Dalton, um jovem organista, de boa família, que sustentava sua mãe com o produto das suas lições... Só a recordação de Joé ofuscava um pouco esta satisfação. Sempre conseguira partir para a América, declarando que não se consolaria nunca. Todavia, na primeira carta escrita durante a viagem, contava a sua mãe que uma jovem e loira passageira lhe causara uma viva impressão e que, se não tivesse amado tanto Lila, era capaz talvez de se apaixonar por ela,
”Era a melhor coisa que lhe podia acontecer!” concluiu Catarina, depois de ter lido o final da carta, onde explicava que a referida jovem era uma francesa, professora de piano, que ia com a mãe para uma cidade americana, onde pessoas amigas lhe prometiam arranjar lições.
A ”Casa dos Rouxinóis” não perdeu o nome, ao tornar-se a residência de Stanville e da esposa. Muitas vezes a voz de Lila ali se fazia ouvir, geralmente só, para prazer de Hugo, pois que os estranhos não gozavam desse favor, a não ser na igreja. A encantadora casa, voltando à sua passada grandeza, decorada com um luxo sóbrio e delicado, assistia a poucas mas deslumbrantes reuniões da sociedade. Contudo a encantadora dona da casa recebia, graciosamente, um pequeno e escolhido número de visitas, no qual o ser-se admitido, era considerado como um grande privilégio. Tudo decorria da melhor forma no seu interior, onde ela dirigia com firmeza a criadagem numerosa e bem disciplinada. E assim, mais uma vez se desfizeram as íntimas esperanças da sogra, que pensara: ”Não saberá nunca governar uma casa como aquela, essa pequena mendiga!”
As relações entre Stanville-House e a ”Casa dos Rouxinóis” mantinham-se correctas e frias. Às quintas-feiras Lourença almoçava com os filhos, e no domingo, por sua vez, estes iam jantar com ela. Trocavam-se frases banais; depois separavam-se, e Lourença ficava só, na sombria casa, da qual também saíra Carolina, casada com um proprietário, a quem a fortuna tentara e que a fazia já muito infeliz.
Quando as pessoas das suas relações a vinham visitar, era obrigada a ouvir celebrar em todos os tons a beleza e o encanto irresistível de Lila, a sua inesgotável caridade, a forma como tudo conseguia de Stanville. Tornava-se um elemento de preponderância em Breenwich, e só dependia dela o ver à sua volta uma corte de bajuladores, sempre dispostos a insensá-la... A sogra reconhecia tudo isto, mas essa constatação não atenuava a animosidade e a amargura que transbordava da sua alma vingativa.
Sofria também com a frieza e glacial desinteresse de Hugo. A notícia da próxima chegada dum menino à ”Casa dos Rouxinóis”, não pareceu interessá-la, nem mesmo lhe causou prazer, O filho de Lila... Ser-lhe-ia sempre indiferente, caso até não o detestasse, como à mãe.
Numa manhã de primavera, viu aparecer um criado da ”Casa dos Rouxinóis”. Stanville mandava dizer a sua mãe que Lila dera à luz um rapaz.
Lourença respondeu somente:
Ah! está bem!...
Quando o criado saiu, ficou um momento imóvel, hirta na sua poltrona, com o rosto contraído por penosa reflexão... Depois levantou-se lentamente, atravessou o vestíbulo e saiu para o jardim, ligado ao da ”Casa dos Rouxinóis”, com o qual formava um pequeno e maravilhoso parque.
Esta mudança fora feita para agradar a Lila, e isso bastou para que Lourença a desaprovasse no seu íntimo, e se irritasse todas as vezes que passava pelos canteiros, guarnecidos de admiráveis maciços de flores, Naquele dia uma só preocupação parecia absorver todo o seu pensamento, enquanto caminhava em passo pesado, com uma espécie de hesitação.
Entrou na ”Casa dos Rouxinóis” por uma das portas envidraçadas da salinha de Lila e subiu a escada, cujo corrimão era uma maravilha em trabalho de ferro. No limiar duma das portas do primeiro andar, Hugo apareceu. Nos seus olhos via-se um grande clarão de alegria.
Disse a meia voz:
Tudo correu bem... O pequeno é bonito!.
Venho vê-lo,
Hugo abriu a porta, dizendo no mesmo tom:
Entre devagarinho, sim?... A Lila está a dormir no quarto ao lado.
Lourença fez um sinal de concordância e dirigiu-se para o berço. Durante um momento contemplou o pequenino ser todo vermelho e cheio de rugazinhas. Depois curvou-se e tomou-o nos braços...
Sim, é muito bonito para um recém-nascido, O seu olhar voltou-se para Hugo.
Estás contente que seja um rapaz?...
Muito contente.
Abriram uma porta e a enfermeira apareceu.
A senhora Stanville acaba de acordar; chama pelo senhor Hugo,
Este dirigiu-se logo para o quarto pegado,. Lourença ficou só, com a criança nos braços. Não deixava de a fitar, e com os dedos tocava-lhe delicadamente nas minúsculas mãozitas ou nas faces enrugadas.
Murmurou:
O filho de Hugo, o meu neto..
As pequeninas pálpebras ergueram-se e os olhos surgiram... uns olhos pretos. A avó pensou: ”São os olhos da Lila!... Antes queria que se parecessem com os do pai...”
No limiar da porta do quarto da esposa, Hugo apareceu.
Lila quer ver o pequeno. Quer levar-lho, minha mãe?
Um sorriso animou o pálido rosto de Lila, bem como os seus lânguidos olhos, ao ver aparecer Lourença, trazendo com todo o cuidado o neto.
Está contente, minha mãe?
Sim, muito contente. É um rapagão... E tu, Lila, como te sentes?
Enquanto esta lhe respondia, Hugo fitava-as em silêncio. Lourença, depois de Lila beijar o bebé, pegou outra vez nele, e falando, uma e outra dirigiam os olhos vigilantes e comovidos para o recém-nascido.
Quando Lourença se afastou, levando o pequeno Reginaldo com ela, Lila disse a seu marido, que se curvara para a beijar:
Vai amar o nosso filho, Hugo!... E talvez, por causa dele, chegue a não me detestar tanto!
Desejo, com toda a minha alma, que o nosso filhinho consiga esse milagre, pois é sempre triste pensar que mantém contra ti, minha bem amada, esse cego ressentimento.
Uma vez no quarto, Lourença deitou a criança com cuidado; depois sentou-se perto dele e contemplou-o durante minutos, enquanto repetia com terno orgulho:
É o filho do Hugo... o meu neto!...
M. Delly
Voltar à “Página do Autor"
O melhor da literatura para todos os gostos e idades