Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA GRANDE - P.3 / Taylor Caldwell
A CASA GRANDE - P.3 / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

CAPÍTULO 46
Se alguém fosse dizer a Stuart Coleman, felizmente ignorante de tudo, quais eram os pensamentos que se formavam metodicamente no espírito de Angus Cauder, seu parente e subordinado, ficaria espantado e, em seguida, estouraria em incrédulas gargalhadas. É verdade que ele sentia uma zangada inquietação na presença de Angus e traduzia isso num tratamento desdenhoso, tendo o cuidado de exagerar um desprezo que dificilmente sentia e deixando deliberadamente de tomar conhecimento dele nas ocasiões próprias. "O rapaz perdeu todas as emoções menos o amor ao dinheiro", dizia ele consigo mesmo, cheio de aborrecimento. "Ainda há poucos anos, era humano. Agora, é apenas uma imagem de pedra de si mesmo."
Mas o fato de que ele, Stuart, e Sam Berkowitz estivessem já postos de lado como inferiores no espírito de Angus teria parecido a Stuart o sonho de um demente. Poderia ter tido um indício desses sentimentos se tivesse visto o sorriso levemente irônico de Angus quando olhava os livros de escrituração e via as grandes quantias que Stuart retirava em adiantamento sobre lucros futuros.
Poderia também ter sentido alguma inquietação se soubesse que Joshua Allstairs e Angus tinham-se tornado amigos discretos e distantes e que Joshua fazia questão de ter longas e derramadas conversas com seu cliente sobre assuntos que só de leve se referiam às lojas e às suas contas e dívidas. Se soubesse, teria exclamado: "Onde estão a lealdade e a gratidão desse jovem patife?" Mas Stuart nunca teria compreendido um homem que não via qualquer deslealdade ou ingratidão nas suas tramas, mas apenas retidão. Nunca poderia ter compreendido quem acreditava que um homem de virtude devia dispor do poder de destruir e alijar aqueles que não tinham "virtude" e estavam, portanto, fora do âmbito da dignidade como seres humanos e fora da consideração, da tolerância e da justiça de homens "melhores".

.
.
.

.
.
.

De fato, Angus acreditava que os favoritos do céu eram destinados a ordenar os assuntos daqueles que não gozavam da aprovação de Deus e dirigi-los arbitrariamente sem piedade, sem dúvida e sem indulgência. Homens mais sábios poderiam ter dito a Stuart que se poderia achar alguma cordialidade e generosidade em homens que eram abertamente canalhas, mas que não se encontraria senão inflexibilidade, crueldade e dureza de coração naqueles que acreditavam que tinham a aprovação de Deus, o direito e a justiça, para as suas opressões e crimes contra seus semelhantes.
Infelizmente, o ingênuo Stuart sabia apenas que o seu jovem subgerente era muito competente e inteligente. Stuart, que detestava dar ordens, delegava esse dever desagradável a Angus, que tinha inspirado aos caixeiros e aos outros empregados ódio e profundo respeito. Um certo ambiente de displicência e entusiasmo havia desaparecido das lojas, fenômeno que afligia o observador Sam Berkowitz, sendo substituído por uma atenção rigorosa ao trabalho e uma operosidade automática. Angus era temido, ainda que abominado, e, em consequência disso, a ordem predominava, as contas eram rigorosamente feitas e ninguém merecia confiança. Em consequência disso, a amizade desaparecera entre os empregados e cada qual procurava ganhar vantagens para promoção às custas dos companheiros que dantes só lhe mereciam camaradagem e simpatia. Angus tinha introduzido nas lojas o vírus da desconfiança e da exigência ambiciosa e, embora a disciplina e a ordem reinassem, a luz da devoção se apagara para sempre e fora substituída pela cobiça.
Sam via tudo isso. Vivia deprimido e triste. Mas sabia que não adiantaria nada conversar com Stuart, que não compreenderia e ainda o olharia com indignação.
Angus era pródigo tanto nos prêmios quanto nas punições. E incentivava a espionagem. Tinha agora o seu escritório, pequeno, arrumado e austero nos fundos da terceira loja. Quase todas as decisões relativas ao pessoal das lojas eram tomadas ali sem que Stuart ou Sam Berkowitz fossem consultados.
— Há agora uma certa falsidade nas lojas, apesar do desejo superficial de agradar e servir —, dissera a Sra. Cummings a seu marido, o Prefeito. — Não posso explicar bem o que há. Os caixeiros continuam a ser atenciosos e amáveis, solícitos em servir. Não posso explicar, Frank, mas os sorrisos desaparecem no instante em que a gente dá as costas e o freguês não é mais um amigo, a quem é um prazer atender, mas apenas uma fonte de dinheiro. E o pior é que eu acho que o pobre Stuart não sabe de nada disso.
— Mas você tem de reconhecer que não há mais uma certa displicência e morosidade —, respondera o marido. — Foi você mesma, quem disse. O serviço é pronto e eficiente.
— É verdade, Frank. Mas falta uma coisa mais valiosa. Dantes, era um prazer fazer compras ali. Encontravam-se as amigas em volta dos balcões e podia-se levar horas a conversar nas cadeiras, discutindo os artigos que queríamos comprar. Agora, somos servidas com rapidez e, se a gente pára a fim de conversar, as sedas são retiradas e as cadeiras são ostensivamente arrumadas, dando a impressão de que não se tem mais nada que fazer ali, que a nossa ausência seria bem vista e que a única coisa que interessa é abrirmos a bolsa para pagar.
— Bem, tudo isso é mais comercial, Alicia —, disse o Sr. Cummings sem muita convicção.
— Talvez, mas é muito menos agradável. Nada mudou nas lojas a não ser a boa vontade e a amabilidade. E eu, pessoalmente, gosto mais disso do que de um serviço rápido e eficiente.
Stuart, que era uma alma cordial, via apenas que suas freguesas se mostravam ansiosas por terminar as compras e sair quando ele as encontrava e olhavam-no quase como se pedissem desculpas pela sua demora. Isso o deixava apreensivo, mas ele continuava a não compreender. Via que as confortáveis cadeiras das lojas quase não eram mais ocupadas e temia vagamente que ninguém mais se interessasse em ficar ali conversando e espalhando perfume e risos.
— Por que foi que essa gente mudou? — murmurava ele zangado. — Por que não continua a ser o que era?
Era nisso que estava pensando uma manhã quando Angus bateu na porta e entrou no seu escritório. Stuart, que estava esperando Sam, ergueu a cabeça com um sorriso de satisfação. Quando viu Angus, o sorriso se desvaneceu e ele resmungou:
— Oh, é você. Que é que há agora?
Angus não se sentiu bem com essa acolhida pouco amável. Sentou-se deliberadamente perto do primo e cruzou as pernas. O seu olhar gelado contemplou Stuart desapaixonadamente e com severidade, embora com o respeito que todo o homem civilizado concede ao seu superior, por mais reprovável que ele seja. Observou atentamente o rosto vermelho e abatido de Stuart, a papada sob o queixo, as rugas fundas da dissipação em torno dos olhos pretos e irascíveis. Sabia que Stuart era quase sempre obrigado a andar apoiado na bengala por causa do pé atacado de gota e foi com satisfação que viu as manchas esbranquiçadas nas têmporas de seu patrão. Sim, na verdade, Stuart estava envelhecendo embora tivesse pouco mais de quarenta anos. Está quase acabado, refletiu Angus.
Intuitivo como sempre, Stuart notou esse exame e exclamou de repente:
— Que diabo. Angus! Cada vez que vejo você, está mais um pouco mudado. Houve um tempo em que era um rapaz bem direito, mas agora....
— Espero —, disse Angus friamente —, que eu não tenha mudado para pior e que não esteja vendo nada de errado ou de insatisfatório em meu trabalho.
Stuart olhou para ele piscando os olhos. Por fim, exclamou:
— Vamos deixar isso para lá. Que é que você quer?
Angus não desviou o olhar quando disse com calma e firmeza:
— Não se trata das lojas, Primo Stuart. É de certo modo um assunto mais pessoal. Venho falar-lhe de uma petição, assinada por você e por outros, a respeito de certas propriedades de meu sogro.
— E daí? — perguntou Stuart com uma voz enganosamente mansa. Os dedos carregados de anéis tamborilavam impacientemente na mesa.
— Creio, Primo Stuart, que não está inteiramente a par dos fatos. Se estivesse, tenho certeza de que mandaria retirar seu nome dessa petição.
— E posso saber quais são os fatos? — perguntou Stuart, ainda com voz cordata.
— Os fatos, Primo Stuart, consistem em que tudo isso é uma ideia absurda, revolucionária e injusta para com o Sr. Schnitzel. Posso até dizer que é inconstitucional, pois infringe, os direitos de propriedade.
— Ah! Quer dizer que estamos agora enamorados dos direitos de propriedade? Pois eu pensei que de vez em quando passassem por cima desses direitos. Mas continue que eu estou interessado.
Angus teve um rictus de desprezo nos lábios e começou a falar em palavras lentas e precisas, como se estivesse explicando tudo a uma pessoa de poucas luzes.
— O Sr. Schnitzel comprou os terrenos em volta de seus matadouros há cerca de trinta e cinco anos. Construiu... pequenas casas no local, bem arrumadas, limpas e utilitárias. Três peças em cada casa. Eram pegadas umas nas outras, é verdade, sem espaço para um jardim ou para um gramado, mas eram limpas. Os seus trabalhadores ficaram muito contentes com elas...
— Desde que na sua maioria tinham vindo dos buracos de ratos da Europa —, disse Stuart —, até um chiqueiro de três peças parecia o céu.
— Não estou dizendo, Primo Stuart, que essas casas sejam palácios. Mas no começo, segundo estou informado, eram pelo menos limpas. Infelizmente, as pessoas que nelas moram são por sua própria natureza imundas, inferiores e baixas. Se essas... casas estão agora num estado deplorável, a culpa não é o do Sr. Schnitzel. A culpa é das pessoas desleixadas e pouco civilizadas que nelas moram. São elas que acumularam no local o lixo e a sujeira e lhe deram o aspecto de ruína e abandono.
— Já esteve lá, Angus?
Uma expressão de ódio transpareceu involuntariamente nas feições de Angus. Mas disse numa voz controlada:
— Já estive, sim. Reconheço que estão imundas. Mas é assim que aqueles trabalhadores e suas famílias desejam viver. Não se sentiriam à vontade em qualquer outro ambiente.
— Como é que você sabe? Perguntou a eles?
— Não é da minha competência interrogar os empregados do Sr. Schnitzel. Mas, pelo que tenho sabido, os trabalhadores não reclamam absolutamente da sujeira e do mau cheiro.
— E isso os relega a uma condição inferior à dos porcos —, murmurou Stuart.
— Na verdade, as pessoas dessa classe não são melhores que animais —, disse Angus, sem perceber a ironia do primo.
Stuart olhou para ele, exasperado. Insolente, obtuso e burro! Disse então:
— Bem, tenho também alguns fatos para você, Angus. As pessoas que moram ali não gostam absolutamente da sujeira e do mau cheiro. Algumas delas têm até procurado desesperadamente limpar os buracos onde moram. Mas, com uma regularidade impressionante, seu amável sogro manda jogar montões de vísceras e de lixo nos fundos daqueles imundos barracos. E tudo fica lá durante semanas, impregnando tudo com o seu fedor, -até que os moradores são forçados a levar tudo para longe ou enterrar.
"Desde que estão ligados por um contrato de trabalho odioso a Herr Schnitzel, que os obriga a viver naqueles antros perto dos nauseabundos matadouros, não se podem mudar sem incorrer em penalidades muito onerosas. Creio que há também alguma espécie de intimidação exercida pelos agentes de Schnitzel. Muitos dos trabalhadores acreditam, e talvez seja verdade, que se eles romperem o contrato com Schnitzel, terão de enfrentar multas, prisão e deportação para os canis de onde vieram. Não examinei bem o assunto e talvez essas pessoas estejam erradas. De qualquer maneira, os agentes, nas suas relações com os trabalhadores, afirmam que essa é a verdade.
"As privadas não se limpam há anos. Os barracos nunca são consertados, salvo quando os próprios moradores conseguem pedir ou roubar alguma madeira ou um pedaço de vidro. Os telhados estão esburacados, os pavimentos também. Cada aguaceiro enche as casas de água. O lixo e a sujeira se acumulam incessantemente. O mau cheiro é horrível. A água das casas é poluída. Moscas, baratas, ratos e todas as espécies de insetos e vermes pululam ali em todas as estações. Todo aquele distrito é um foco de doenças. É uma vergonha para a cidade e um insulto às pessoas decentes!
— Reconheço a razão de muitas de suas acusações, Primo Stuart —, disse Angus. — Mas isso não invalida o fato de que aquelas pessoas não desejam nada melhor. Se as casas fossem demolidas e se construíssem melhores habitações, o aspecto do lugar seria exatamente o mesmo em menos de dois anos.
Stuart recostou-se na sua cadeira. Olhou para Angus pensativamente.
— Os trabalhadores —, continuou Angus, enchendo-se de coragem diante do silêncio de Stuart —, viveriam muito contentes ali se não fossem os agitadores que lhes dizem que são explorados e que merecem mais de seus patrões.
Stuart continuou a tamborilar com os dedos na mesa, mas sorriu um pouco.
— Escute, Angus, vou-lhe dizer mais uma coisa. Não tem havido agitadores de fora. Foram os próprios moradores que, no seu desespero, organizaram um comitê que conseguiu chegar até ao Prefeito e pediu providências para que fosse atenuada a desgraça em que vivem.
Levantou-se, dominando com a sua altura Angus, que o olhava com gelada firmeza.
— Angus, estou-lhe falando com antecedência, mas preste atenção. Leve este recado a seu amável sogro. Se aqueles barracos não forem imediatamente limpos, com os piores demolidos e todas as vísceras removidas permanentemente, as privadas limpas, o abastecimento de água purificado, novos telhados colocados nas casas que precisarem disso e todas as concessões que os moradores pedem atendidas — e tudo isso dentro de três meses — o caso será levado à justiça sob o patrocínio dos melhores advogados deste país. Nesse caso, não só o Sr. Schnitzel será obrigado a fazer tudo isso, mas também os seus contratos com os trabalhadores serão revogados. Neste momento, esses excelentes advogados de quem lhe falei, estão examinando todo o caso em Washington. Devem estar chegando à conclusão de que o Sr. Schnitzel e os que agem como ele estão praticando a servidão nos Estados Unidos, numa espécie de virtual escravidão branca que constitui uma flagrante violação das leis deste país.
Fez uma pausa e sorriu para Angus, que julgou esse sorriso perverso e negro.
— Tenha a bondade de dizer ao Sr. Schnitzel, Angus, que ele deve limpar e consertar tudo imediatamente. Diga-lhe também que cancele os seus contratos. Se não proceder assim, nós o arruinaremos. Não faremos outra coisa.
Angus se levantou prontamente e encarou Stuart com o rosto branco e rígido.
— Você é um homem sem lei, Primo Stuart —, disse ele, com voz dura. — Você não tem respeito pela lei e pela ordem, bem como pelos direitos dos cidadãos como o Sr. Schnitzel. Você é um revolucionário, um agitador, um niilista. Você não é um verdadeiro americano, Primo Stuart Os direitos de propriedade nada significam para você, os direitos sagrados de propriedade que são assegurados pela Constituição e afirmados pelas Santas Escrituras. Você profana os direitos estabelecidos por Deus Onipotente e atenta contra o trabalho de séculos. É um blasfemo, Primo Stuart.
Stuart olhou para os olhos de Angus, cheio de incredulidade. Era hipocrisia e cinismo que havia naqueles olhos? Não, não era. Aqueles olhos ardiam de indignação, com profunda convicção. Stuart não podia acreditar numa coisa dessas.
— Mas você é um imbecil! — exclamou ele, inteiramente atônito. Olhou para Angus, pálido e veemente como um anjo afrontado. O camarada acreditava no que dizia! Acreditava inabalavelmente que tinha a sanção de Deus e o apoio da justiça dos homens. Stuart se horrorizava com isso e começou a gritar num frenesi de confusão e de raiva: — Saia daqui antes que eu o bote para fora a pontapés, cretino! Vá dizer a seu amo o que eu lhe disse! Falei em três meses? Pois agora são dois meses e vá para o inferno, seu idiota e seu porco!
Agarrou Angus pelos ombros e arrastou-o literalmente até à porta, onde lhe bateu no rosto. Abriu a porta e empurrou o primo violentamente para as lojas. Os caixeiros arregalaram os olhos e as freguesas ficaram boquiabertas. Stuart bateu então a porta e foi sentar-se na sua cadeira, ofegando.

CAPÍTULO 47
Stuart estava sentado com o Padre Houlihan à sombra da pereira no velho jardim do padre. As frutas pendiam em glóbulos róseos e dourados acima de suas cabeças, cheirando bem ao quente sol de outono. O jardim era longo e estreito, com caminhos tortuosos calçados de tijolos que passavam por entre canteiros exuberantes e mal cuidados de flores amarelas e vermelhas que cresciam ali com um viço que não se encontrava em nenhum outro lugar. Entre os tijolos afundados e irregulares, brotavam grama e musgo. Perto do muro, erguiam-se os caules de rosas-trepadeiras de uma espécie desconhecida na região salvo naquele jardim onde floresciam em abundância. O Padre Houlihan tinha um jeito especial com as flores. O jardim era uma festa de flores vermelhas, brancas, douradas e róseas, havendo até algumas que pareciam roxas ou quase pretas. Aqui e ali, à beira dos caminhos, havia pequenas imagens de pedra branca de Nossa Senhora. Um tanque no centro do jardim estava cheio de pássaros, que repousavam um instante nas suas migrações outonais. A algazarra era grande nos galinheiros colocados ao fim do jardim. O Padre Houlihan tinha também um pombal onde os pombos arrulhavam e abriam as asas para receber o sol nas penas. Era espantoso o que continha aquele pequeno jardim. Além da pereira, havia três macieiras carregadas de frutas e um bordo que ardia como uma moita sagrada. Desordenado, mas amável e cheio de cor e de plenitude, o jardim parecia a Stuart um lugar repleto de paz e que poderia, enquanto ele se sentava ali com o amigo, dissipar um pouco da tristeza que lhe ia na alma.
Ele e o padre observavam com carinho a pequena Mary Rose que passeava entre as roseiras cortando flores que depositava num pequeno cesto. A criança, com o rostinho triangular banhado de uma cor que era rara nele, parava de vez em quando para conversar com esquilos nervosos ou para examinar alguma rosa extraordinariamente bela. Fazia parte do jardim com o vestidinho branco esvoaçante coberto por um manto azul, um chapeuzinho azul sobre os densos cabelos pretos e os pezinhos calçados de sandálias a percorrer os caminhos entre os canteiros. Tinha nove anos, mas era tão pequena e esguia que parecia muito mais jovem, como se o tempo tivesse parado para ela aos seis anos e ela não tivesse crescido mais. Estava preocupada com seus tímidos e fugitivos pensamentos e tinha esquecido o pai e o velho amigo. Havia tirado o chapéu e o vento lhe agitava os longos cabelos, embaraçando-os no rosto. Ela achava graça com seu riso doce e gentil e jogava os cabelos para trás com as mãozinhas.
— A menina parece bem melhor —, disse o Padre Houlihan com satisfação.
— Está, sim. E está tossindo menos. Mas terei de mandá-la com a mãe para longe daqui antes do inverno —, disse Stuart, com a testa franzida. — O inverno daqui é rigoroso demais para ela. Não há sol. Nas montanhas, ela estará muito melhor.
Mary Rose começou a tossir, num súbito acesso. Levou as mãos à garganta e dobrou o corpo. O rostinho ficou contorcido e congestionado. Stuart fez menção de levantar-se para ir socorrê-la. Mas o espasmo desapareceu com a rapidez com que tinha surgido. A menina tirou um lenço do bolso e enxugou a testa molhada de suor, sacudindo os cabelos para trás. Deu um suspiro. Os dois homens ouviram comovidamente esse suspiro. Os olhos dela tinham ficado um pouco avermelhados. Depois, um esquilo mais atrevido lhe atraiu a atenção e ela riu, continuando no seu passeio por entre as flores.
O Padre Houlihan estendeu a mão para Stuart ao lado dele no banco e bateu-lhe na mão com profunda emoção e amizade. Disse animadamente:
— Tem razão. A tosse está muito melhor, mais breve e menos forte. Quando crescer um pouco mais, não sentirá mais nada.
Acima deles, o céu era de um vívido azul, imaculado e luminoso. Tudo resplandecia de cor, nos últimos arrancos do verão. Mas a depressão de Stuart aumentara de repente.
— Grundy, qualquer destes dias você vai ter de me visitar na cadeia.
— Que é que quer dizer com isso, Stuart? — perguntou o Padre Houlihan, alarmado.
Stuart riu e esgaravatou a terra entre os tijolos com a ponteira da bengala.
— Acontece que botei para fora de meu escritório ontem aquela vara seca de Angus. Esbofeteei-o também. Se eu o conheço bem, não me perdoará isso. E muito bom que ele seja meu empregado e meu parente. Do contrário, eu já estaria sendo processado por agressão e tentativa de morte.
— Mas por que, Stuart? — perguntou ansiosamente o Padre Houlihan.
Stuart contou-lhe tudo em palavras rápidas e divertidas. Mas era evidente que ele não estava contente com a violência de que usara. Acrescentou:
— Se não fosse você, Grundy, falar tanto sobre os chiqueiros de Schnitzel e insistir para que eu o ajudasse, nunca me teria importado com isso. Meu Deus, por que você tem de se meter em todo? Você já tem a sua paróquia. Não basta?
— Mas, Stuart, alguns dos meus paroquianos moram naqueles chiqueiros malcheirosos. Já os vi morrer, Stuart. Já vi os filhos deles morrerem vitimados por doenças causadas por aquela sujeira. Pediram-me que os ajudasse. Você sabe muito bem, Stuart, que está tão interessado no caso quanto eu. Contei-lhe tudo e você visitou as casas de Schnitzel. Desculpe. Se eu soubesse que lhe ia causar tantos aborrecimentos...
Mas Stuart riu.
— Deixe disso, Grundy. Você tem razão. Como sempre. Mas acho que um dia vou ter de salvá-lo das mãos de uma multidão enfurecida. Você está fazendo Schnitzel ficar furioso e, conhecendo a humanidade como conheço, não seria grande surpresa para mim que ele consiga convencer as próprias pessoas que você está querendo salvar a atacarem-no ou tocarem fogo na sua casa.
Esperava que o Padre Houlihan se insurgisse contra a ideia, baseado na sua firme crença na bondade essencial da natureza humana. Mas, para sua surpresa, o Padre Houlihan pareceu minguar dentro da batina. Suspirou profundamente.
— Tem recebido mais ameaças? — perguntou Stuart.
O padre abanou a cabeça, passou as mãos pelo rosto e tentou sorrir.
— Não mais do que de costume, Stuart. — Acrescentou abstratamente: — Pelo que vejo, estão acabando nosso Angus. Estão matando a alma dele.
— Ora, a alma dele! Foi coisa que ele nunca teve ou então, se teve, foi uma coisa que nunca valeu nada! Grundy, você é um bobo em falar em almas. E mais bobo ainda em se meter na vida.de gente que está muito contente como está.
— Recebi ontem a visita do Padre Hauser, da igreja de S. Luís —, disse o padre. — É um homem muito elegante. Sentou-se na minha sala como se fosse um manequim e me informou que eu estava "criando dificuldades" para os outros padres com as minhas "cruzadas" em benefício do povo. Deu a entender que eu era "turbulento". Ao menos, foi essa a impressão que me deu. Sendo muito educado, não pôde ser abertamente insultuoso. Usa alfazema no lenço e olhou para minha sala com um sorriso significativo. Sugeriu que eu era um homem pobre e que isso talvez acontecesse porque eu era "incorrigível" e não contava com o apoio de meus paroquianos mais ricos, os quais podiam sentir repulsa pelas minhas ideias "radicais". Sugeriu de maneira delicada que eu estava prejudicando a Santa Madre Igreja nestes dias difíceis, inspirando desconfiança e antagonismo contra ela. Disse-me que outros padres eram da mesma opinião dele. Sugeria, portanto, que eu me cingisse exclusivamente ao meu ministério para as almas, fechando os olhos aos males, injustiças e explorações que se poderiam atenuar.
Stuart exclamou explosivamente:
— Deve ser um grande idiota esse padre! Não compreende ele então que todo homem, religioso ou leigo, tem o dever de lutar pelo bem-estar, pela saúde e pela paz de uma comunidade?
O Padre Houlihan riu e seus olhos azuis faiscaram. Colocou a mão no ombro do amigo e disse:
— Você mesmo respondeu à sua pergunta, meu caro Stuart!
— Você agora me armou uma cilada, Grundy —, disse Stuart, rindo. — Está muito bem. Faça o que quiser. Do jeito que estão as coisas, os chiqueiros de Schnitzel vão sofrer uma limpeza em regra dentro em pouco. Que é que você quer atacar depois disso? E a quem? É só dizer. Estou às suas ordens e já vou começar a afiar o machado de guerra!
Riram juntos afetuosamente. Mas Stuart notou que as preocupações não haviam abandonado de todo o rosto do amigo. Havia nele um cansaço, uma abstração que não lhe eram habituais.
O padre começou então a falar dos tempos conturbados que atravessavam.
— Não há a menor dúvida de que Abraham Lincoln será eleito. É um homem bom e nobre, segundo todos dizem, e todo o Norte o apoiará. E o Sul? A Carolina do Sul já ameaçou separar-se da União se ele for eleito. Estamos vivendo em tempos muito difíceis, Stuart.
— Se todo o Sul quiser, que se separe, ora essa —, murmurou Stuart, que estava observando a pequena Mary Rose. A menina tinha parado de brincar e estava deitada à sombra de uma árvore, com os olhos fechados.
Mas o Padre Houlihan continuava a comentar a situação.
— Será que você não compreende, Stuart? Vamos supor que muitos Estados do Sul se separem e formem uma união à parte. Teremos então, em vez de uma nação forte e unida, duas nações pequenas, fracas e vulneráveis aos ataques de seus inimigos. Como acontece na Europa. Só uma federação única pode manter a liberdade neste país, desafiando todo um mundo invejoso que pretenda destruí-lo. Conheço um pouco de história, Stuart. Os Estados Unidos divididos estarão enfraquecidos e à mercê de qualquer nação ambiciosa que os cobice. A Europa está à espera da divisão e planejando futuros ataques.
— Neste caso, somos uns imbecis completos, tanto no Norte quanto no Sul, por permitirmos essa divisão e esse perigo —, exclamou Stuart, olhando inquietamente para a filha. Estaria dormindo? Deveria ir vê-la. — Além disso, por que temos de brigar uns com os outros por causa dos negros?
— Os negros são homens —, disse o padre. — A escravização de qualquer homem por outro é um crime não só contra o escravo, mas contra todos os outros homens. Sempre que um homem é oprimido, todo o mundo dos homens é oprimido nessa opressão. Sempre que se comete um crime em qualquer ponto do mundo, todos os homens são culpados.
— Com toda a certeza, é isso que você diz a seus paroquianos —, disse Stuart, sorrindo. — E é por isso que Schnitzel e os amigos dele estão chamando você de agitador. Grundy, não me posso interessar pelos negros. Talvez seja porque só vi dois ou três. Para mim, o mais importante de tudo é a unidade dos Estados Unidos. Se o negro tiver de ser sacrificado para manter essa unidade, que seja sacrificado. O tempo resolverá tudo, fique sabendo.
— A indiferença dos homens de coração duro e cruel! — exclamou o padre, indignado. — Você não sabe o que está dizendo, Stuart. Você não é assim. Está apenas repetindo as insinuações de homens menores e venais. O povo do Sul, no fundo de seu coração, sabe que a escravidão é hedionda e injusta, constituindo um crime aos olhos de Deus.
— Creio que o que mais preocupa a gente do Sul não é exatamente isso, mas a ameaça de usurpação de seus direitos civis. Se o Sul se separar, Grundy, estará agindo de acordo com os dispositivos da Constituição. É um direito que lhe assiste.
— Há direitos, Stuart, que devem ser cancelados em benefício da segurança e da paz de todos.
— Agora, você está ficando sutil demais para mim, Grundy. O que eu sei é que não deve haver guerra. O que acontecerá ao comércio? Não poderei resistir a outro pânico, meu caro Grundy. Estou cheio de dívidas até ao pescoço. Só paguei a Sam três mil dólares nestes últimos quatro anos. Que é que vai haver se as remessas da Europa cessarem, como não pode deixar de ser, no caso de uma guerra? Ficarei arruinado.
Apesar de seu interesse, o Padre Houlihan esquivou-se de dizer a Stuart que seus infortúnios eram uma consequência de suas extravagâncias, que não tinham diminuído. Olhou para Stuart com compaixão e disse, tentando consolá-lo:
— Talvez não haja guerra. É possível que as divergências sejam resolvidas amistosamente e em paz.'
Stuart disse um instante depois:
— Sabia que Laurie vai para a Europa em abril? Vai iniciar dois anos de estudos, segundo creio. Ela é formidável! As notícias que recebo dela são excelentes. Virá fazer uma visita em casa antes de partir e eu lhe darei alguns conselhos, como um homem do mundo.
O Padre Houlihan, que observava o amigo, sentiu-se perturbado por um motivo que não pôde precisar. Mas vira o rosto de Stuart ao mencionar Laurie, animar-se de uma luz secreta e intensa. Disse então:
— Laurie não precisa de conselhos. É uma pessoa blindada contra o mundo em consequência de sua amargura, de sua dureza e de seu desdém.
— Tolice, Grundy. Que amargura, que dureza ou que desdém pode haver numa mocinha de dezessete anos? Ela não aprendeu tudo isso em Nova York.
— Não. Creio que, infelizmente, aprendeu tudo isso ainda no berço. Como é belo o rosto dela! Parece um anjo. Mas só o amor e Deus poderiam tocar-lhe o coração, que é de ouro, mas frio e duro também.
Stuart se agitou nervosamente no banco. Os olhos dele estavam cheios de uma dor que ele não compreendia. Via Laurie diante dele e uma forte angústia lhe atingiu o coração. Tirou dois charutos do bolso do colete e passou um ao padre. Riscou um fósforo e acendeu os dois charutos. A mão lhe tremia um pouco. A fumaça azul dos charutos flutuou no ar quente.
— Há alguma coisa fora do normal com você, Grundy —, disse de repente Stuart. — Estou sentindo isso. Que é que há?
Esperava que o amigo negasse, mas o rosto do padre se tornou velho e flácido e ele disse apenas:
— Estou com medo, Stuart.
— Medo de quê?
Mas o padre não respondeu. Estava olhando Mary Rose, que se levantava da grama, limpando o vestido. Pegando o seu cesto de rosas e sorrindo, aproximou-se do pai e do padre. O sorriso do Padre Houlihan era como o sol, quente e afável.
— Está cansada, minha linda? — perguntou ele.
A criança parou diante dos dois homens. A cor lhe havia desaparecido do rosto e os olhos estavam anuviados. Mas ela sorria timidamente para eles. Olhou para as flores do cesto e disse:
— São tão bonitas. Mais bonitas, do que as nossas, Padre Houlihan.
Tirou uma rosa do cesto e cheirou-a.
— Cuidado com os espinhos —, disse o padre.
— Mas, Padre Houlihan, eu não olho para os espinhos. Só olho para as rosas.
Stuart riu com encantada indulgência. Mas o padre curvou-se para a menina e perguntou ansiosamente:
— Que foi que você disse, minha filha?
Mary Rose não se perturbou e disse calmamente:
— Sei que há os espinhos, Padre Houlihan. Por baixo das folhas e nos talos. Às vezes, há bichos nas rosas também. Mas não olho para nada disso. Vejo só os botões bonitos, frescos e cheirosos. Sei que foi Deus que fez as rosas. Não quis os bichos e os espinhos, mas só o cheiro e as pétalas. Por isso, a gente só deve olhar as rosas e esquecer o resto.
O padre murmurou quase inaudivelmente:
— Os espinhos e os bichos estão presentes, mas as rosas também estão. Se olharmos apenas para os espinhos e para os bichos, nunca veremos as rosas, nem saberemos da existência delas. No fim, o mundo ficará cheio de espinhos e de bichos e só haverá para nós trevas, podridão e dor.
Passou o braço pelos ombros da menina e, por um instante, escondeu o rosto na sua massa de cabelos negros. Mary Rose sorriu e passou os bracinhos pelo pescoço de seu velho amigo.
Stuart ficou perplexo. Que era que estava havendo com o velho Grundy? Por que estava com a cabeça curvada assim e por que o peito lhe arquejava, como se soluçasse? O padre olhou então para ele. Estava muito pálido, mas os olhos lhe brilhavam de paz e alegria.
— Stuart —, disse ele —, sua filha me salvou a fé e talvez a razão. A verdade é que eu estava começando a ver apenas os espinhos e os bichos.
— Oh! — exclamou Stuart, ainda inteiramente confuso.
Mas o padre disse, fervorosamente:
— Tinha-me esquecido de uma coisa que aprendi em minha mocidade. Há uma passagem de Rupert, Abade de Deutz, que me tocou o coração com o conhecimento de sua verdade e da eterna beleza. Disse ele: "Os céus, a terra e o mar e tudo o que há neles são obra do Senhor, mas o homem é Sua obra de modo especial, porque, para fazê-lo, o Senhor usou as mãos. Bastou que o Senhor falasse para que as outras coisas fossem feitas, mas para fazer o homem Ele tomou o barro e modelou-o com as mãos". Tinha-me esquecido disso, Stuart. Tinha-me esquecido de que o que o Senhor fez com as mãos não pode ser inteiramente mau, corrupto e cheio de vileza.
Stuart olhou-o vagamente durante alguns momentos. Então, a sua intuição, sempre maior que a sua razão ou a sua inteligência, compreendeu. Riu afetuosamente:
— Quer dizer que você também, Grundy, vem tendo suas lutas! Começou a ferir os dedos nos espinhos e a sentir o cheiro mau dos bichos! Quem poderia esperar uma coisa dessas?
Levantou-se, ainda rindo. Colocou a mão na cabeça da filha.
— Dê um beijo no Padre Houlihan, Mary Rose. Vamos para casa.
O Padre Houlihan continuou sentado no banco muito tempo depois que seu amigo e a filha saíram. Estava muito parado com as mãos juntas entre os joelhos. Mas em seu rosto cansado e rústico havia pela primeira vez em muitas semanas um ar de luminosa paz.

CAPÍTULO 48
Robbie estava sentado no quarto de Bertie em companhia do irmão. Era um dia cinzento e feio de novembro, com o ar cortante e frio e o vento a uivar em estertores de encontro às vidraças. A. chuva caía além das vidraças de mistura com pesados flocos de neve. O fogo crepitava na lareira. Robbie acendera dois candeeiros, mas a luz deles quase não dissipava a prematura escuridão. Tirou da boca o cachimbo que havia começado a usar e disse:
— De novo o maldito inverno.
Bertie estava sentado ao lado dele na sua poltrona favorita, vestido com um robe e com uma manta sobre os ombros. Virou a cabeça e disse:
— É horrível. Detesto o inverno. E ele nunca termina aqui.
Estava muito magro, quase emaciado, com o rosto encovado e macilento. Mas os cabelos ainda estavam bastos e os olhos azuis cintilavam. Tossia um pouco de vez em quando. Depois das suas últimas bebedeiras, em outubro, caíra de cama com uma febre pulmonar e correra perigo de vida. Estava em fase de recuperação. Mas as forças lhe voltavam lentamente. Viu Robbie servir-se de um copo de xerez e franziu a boca num gesto de repulsa. Virou a cabeça e olhou para o fogo. O seu rosto, em que pairava sempre a sombra de um sorriso, estava sereno e tranquilo, mas não perdera a sua expressão infantil de amistoso interesse e espera potencialmente ansiosa. As suas mãos descansavam calmamente nos braços da poltrona. Eram mãos belas, mas sem significação. Nada exprimiam. Eram mãos mortas, pensava Robbie, mas sem paz e até sem necessidade de paz.
Robbie olhou para o Commercial, que estava lendo, e disse:
— Bem, Lincoln foi eleito e agora o diabo está solto. Vai haver guerra, com toda certeza.
— Não seja tão pessimista —, disse Bertie sorrindo, mas com uma voz desinteressada. — Daqui a uma semana, Robbie, você será um homem casado. Vou sentir falta de você.
Robbie largou o copo de xerez, limpou os lábios com o guardanapo e disse:
— Deixe de conversa, Bertie. Você não vai sentir minha falta. Não sente falta de ninguém.
— Sentirei sua falta, sim, Robbie. Irei visitá-lo até que você me bote pela porta a fora, como um chato.
Não, pensou Robbie, você continuará a viver dentro do seu vácuo de vidro brilhante e sorrirá para mim e para o mundo, sem que nunca haja nada dentro desse vidro senão suas negras e insondáveis tempestades. Mas disse:
— Espero que você possa ser padrinho de meu casamento, como prometeu. Mas se acha que isso o vai aborrecer muito, não vá.
— Ora essa, nunca me aborreço.
Você nunca se aborrece porque é indiferente, pensou Robbie.
— Juiz Cauder —, murmurou Bertie rindo como se estivesse realmente divertido com a ideia. — O pequeno Robbie, juiz! Já lhe disse que me orgulho de você?
— É mesmo, Bertie? — perguntou Robbie, com súbita seriedade.
— É claro. Sinto muito que estivesse passando mal e não pudesse comparecer às cerimônias. Mas estava presente em espírito.
Você não tem espírito, pensou Robbie, e o pensamento foi uma dor lancinante para ele. Você se move, bebe, dorme e sorri, mas nada há dentro de você. Se houve, já morreu e as cinzas foram levadas pelo vento.
Tinha vontade, como já tivera milhares de vezes, de aproximar-se de Bertie e forçar a compreensão dentro daqueles olhos serenos e vazios, para despertar neles o reconhecimento das coisas, o sofrimento e a vida. Se ao menos ele morresse, pensou ele. Nunca terei paz enquanto ele não morrer, enquanto ele não voltar para o vácuo e o nada de onde veio. Nunca poderei sentir coisa alguma até que ele morra. Nunca serei um ser humano, uma criatura de vitalidade e plenitude, enquanto ele estiver vivo.
Desprezou-se por essa confissão terrível, por sua impotência e por seu sofrimento. Não podia compreender por que nunca seria completo enquanto Bertie vivesse. A pequena Alice o esperava. Amava-a sem dúvida. Mas nada podia sentir e nada podia dar a ninguém, enquanto Bertie fosse vivo.
Disse abruptamente:
— Bertie, você se lembra de Agnes Clayton, prima de Alice? Ela se interessava muito por você e eu pensei durante algum tempo que você gostasse dela. Pelo menos, você chegou a namorar com ela e, depois que ela voltou para Syracuse, vocês se escreveram. Que foi que houve?
Bertie riu baixinho e fez um gesto vago.
— Ela foi muito gentil comigo —, murmurou.
— Mas você não gostava dela?
— Claro que gostava. É uma boa moça e muito encantadora.
Mas não havia na voz de Bertie qualquer inflexão de pesar ou de tristeza.
— E então?
— Escute, estou muito contente com a vida como ela é. Por que iria eu complicá-la? Além disso, eu lhe disse que ela foi muito gentil comigo. Que tenho eu para oferecer a uma moça tão distinta?
— Você poderia oferecer-lhe alguma coisa, se você quisesse —, disse Robbie e então compreendeu de repente que era inútil.
— Não quero oferecer nada a ninguém, Robbie —, disse Bertie com um sorriso.
Robbie começou a falar aborrecido, querendo lutar com o impossível e, então, viu os olhos de Bertie. Era apenas imaginação ou havia alguma coisa estranha e fixa naquelas profundezas azuis, alguma coisa que denotava uma dor pungente?
Se ao menos houvesse! Se ao menos houvesse! Mas Bertie sorria de novo e em seus olhos nada havia senão vacuidade.
Abalado pelo que tinha visto ou imaginado, Robbie disse ansiosamente:
— Você fala como um danado idiota, Bertie! Que quer dizer com isso de não querer oferecer nada a ninguém? Você é um danado egoísta, Bertie! Não quer por nada desfazer o caso de amor que tem consigo mesmo!
Bertie riu com prazer.
— Como você é inteligente, Robbie! Não há ninguém para trabalhar um epigrama como você!
Mas Robbie estava profundamente transtornado, apesar de sua fria razão. Agora ou nunca, pensava ele. Tinha de quebrar aquela brilhante redoma que cercava seu irmão. Tinha de despertar aquela coisa estranha e viva que vira no fundo dos olhos dele.
— Há muito tempo que quero falar com você, Bertie —, disse ele com voz calma e neutra, mas estranhamente penetrante.
— Sobre que, Robbie?
— Não lhe vou perguntar se você me tem amizade, Bertie. Você sempre diz que tem. Mas agora tente pensar, Bertie, tente compreender. Temos sido muito unidos. Tenho procurado viver muito ligado a você. Temos sido amigos, Bertie. Isso não significa nada para você?
— É claro que sim, Robbie, —disse Bertie prontamente. — Mas onde você quer chegar?
Robbie não respondeu logo. Mordeu os lábios e encarou o irmão com uma atitude próxima do desespero.
— Vou-me casar, Bertie. Isso quer dizer que nós dois vamos viver separados. Continuaremos a ver-nos com frequência, mas não seremos mais íntimos como éramos. Terei de me interessar cada vez mais pelo meu trabalho.
Ficou sabendo de repente que não adiantava nada o esforço que estava fazendo. Era impossível quebrar aquela redoma de vidro. Nada havia dentro dela ou, se havia, estava irremediavelmente afastado dele. Levantou-se e foi atiçar o fogo no silêncio que se seguiu às suas palavras. Jogou mais carvão na lareira. Tomou a sentar-se e olhou sombriamente o fogo. Era inútil, inteiramente inútil. Podia sentir Bertie perto dele, tranquilo, intangível, inabordável.
Ouviu então Bertie falar muito calmamente e levou alguns momentos para perceber a significação do que estava ouvindo.
— Deixe-me em paz, Robbie.
Robbie teve um sobressalto. Virou-se e viu o sorriso nos lábios de Bertie. Mas viu também com um choque a inexorável advertência, a coisa que era quase uma severa ameaça. Prendeu a respiração. Os dois irmãos se olharam num terrível silêncio.
— Deixe-me em paz, Robbie —, repetiu Bertie. — Não toque em mim, Robbie. Vá-se embora e me esqueça.
E então, para o espanto angustiado de Robbie, ele viu que as mãos de Bertie apertavam convulsivamente os braços da poltrona.
— Ó meu Deus! — murmurou Robbie.
Bertie inclinou gravemente a cabeça e disse:
— "Ó meu Deus" sim.
Robbie sentiu um aperto no coração. Baixou a cabeça e disse:
— Não posso! Não posso ir-me embora!
— Mas tem de ir, Robbie. Tem de me deixar em paz. Talvez não demore muito. Mas tem de me deixar sozinho.
Nesse momento, a maçaneta da porta foi girada e ouviu-se a voz rouca e autoritária de Janie. Robbie levantou-se, sentindo-se muito fraco e trêmulo. Olhou para o irmão. O rosto de Bertie estava novamente vazio, voltado para a porta num sorriso de acolhida.

CAPÍTULO 49
O Prefeito e a Sra. Cummings moravam numa mansão branca em estilo clássico na Avenida Delaware, perto da Rua Norte. Ficava no alto de uma majestosa elevação de terra verde, embelezada por numerosas árvores e canteiros de flores bem cuidados. Todas as peças da casa eram altas, amplas e graciosas com belas escadarias e imensas lareiras. A Sra. Cummings (em solteira Alicia Clayton) tinha sido filha única de um flibusteiro excessivamente rico e que, desde que a maioria da classe alta de Grandeville era composta de curtidores, fabricantes de salsichas, proprietários de matadouros, negociantes do Lago, criadores e traficantes de cavalos, homens de pedreiras e lojistas, o falecido Sr. Clayton havia adquirido uma espécie de realeza pelo fato de ser um aventureiro. Tinha dado de presente à filha aquele terreno e aquela casa perfeita por ocasião de seu casamento com um de seus companheiros, que não levava mais a auréola esplêndida de flibusteiro. De fato, ninguém poderia ter um ar mais respeitável que aquele homem baixo, rotundo e esperto, de olhos sérios e palavra comedida, que tinha verdadeira paixão pela justiça e pela honestidade. Era moreno e com feições aquilinas, passando, na opinião dos maliciosos, por ter sangue índio.
Estava cumprindo o seu terceiro período como prefeito e, como era em geral prezado pelos cidadãos mais corretos, acreditava-se que seria eleito para um quarto período. Apesar da sua baixa estatura, tinha uma certa dignidade e uma placidez que lhe conferiam alguma grandeza. Era de esperar que fosse virulentamente odiado por muitos e respeitado por todos.
Alice, a filha, parecia-se com ele, tendo herdado os olhos castanhos e um certo jeito aristocrático de feições. Mas tinha também cabelos brilhantes da cor das castanhas novas e uma pele clara. Tinha um porte refinado e elegante. Mostrava um riso leve, muito musical e bem-humorado e a inteligência rápida e reservada do pai. Eram muitas as suas prendas, pois a mãe era uma mulher de sensibilidade e inteligência, que educara Alice num ambiente livresco, mas alerta que a distinguia vivamente das moças apáticas de suas relações. Tinha também um coração compreensivo e simples, um senso de humor brilhante, uma percepção inteligente das coisas e a serena graça de uma senhora de alta distinção. A paixão do pai dela era o direito e Alice se tornara tão versada na matéria que o Prefeito lamentava às vezes que ela fosse mulher. Entre pai e filha havia a mais perfeita compreensão e amizade e ele pensava que uma das coisas mais belas do mundo era ver as mudanças rápidas do espírito vivaz da filha se refletirem no lindo rosto oval, como sombras trêmulas de folhas na água batida de sol. A Sra. Cummings costumava dizer um tanto aborrecida que dera à luz a Alice, mas que na verdade ela era filha do pai.
Desde que o Prefeito a adorava e a tinha em tão alta conta, exercia rigorosa vigilância em torno de seus pretendentes e só depois do aparecimento de Robbie sentiu completo alívio e satisfação. Julgava Alice uma pessoa de grande sensibilidade e cabeça equilibrada, mas, ainda assim, pensava que as mulheres eram imprevisíveis quando se tratava de coisas do coração. A moça chegara quase aos dezenove anos sem mostrar qualquer sinal de irrefletido interesse por homens inconvenientes. Não obstante, foi uma grande tranquilidade para o Prefeito o fato de que ela tivesse finalmente escolhido Robbie Cauder.
O casamento se realizou em fins de novembro. A mansão dos Cummings, toda decorada de flores, samambaias e vasos de plantas, se encheu de vida e de festa e daquela efervescência simples da mocidade tão cara ao coração do tranquilo Prefeito. Chegaram amigas de Alice de Nova York e até de Boston para assistirem à cerimônia. Houve quase duzentos convidados e, como disse o redator do Commercial, foi "o acontecimento mais importante da temporada social de 1860".
Entretanto, mesmo na alegre mansão profusamente iluminada e feliz, pairava a sombra espectral daquele ano conturbado. Os homens, que deviam dedicar-se quase exclusivamente à apreciação do bom ponche, reuniam-se em grupos e discutiam gravemente a "situação". Onde só se deviam ouvir risos, vozes discordantes e exaltadas se levantavam zangadamente. A Sra. Cummings, aflita e irritada, espicaçava o Prefeito a ir de grupo em grupo, lembrando que aquilo era um casamento e não uma reunião política.
O fogo crepitava nas lareiras. Grandes espelhos refletiam as luzes, as faces sorridentes dos convidados e as elegantes toaletes das mulheres. Stuart passara três meses em grande atividade importando rendas, veludos, sedas, plumas e perfumes para a festa e as modistas não tinham tido mãos a medir. O vestido da noiva, de cetim branco e faille, tinha sido importado da França, sendo uma criação do próprio Worth, e o véu era uma nuvem de rendas francesas. No delicado pescoço da noiva, via-se um colar de pérolas, presente de casamento de Robbie, e no braço direito cintilava o presente do pai, uma pulseira de brilhantes e rubis. Acima do grande balão da saia, o corpo esbelto se erguia como o caule de uma flor e o belo busto pequeno era coberto de renda recamada de pérolas.
A mãe do noivo, num belo vestido de veludo carmesim guarnecido de arminho enfeitado de rosas de veludo azul, encimado por um chapéu de veludo azul, estava resplandecente e magnífica, no rigor da moda. Os cabelos cor de cenoura de Janie estavam naturalmente entremeados de branco, pois ela já passava dos quarenta e cinco anos. Entretanto, esses fios indiscretos tinham sido pintados (por ela mesma, no segredo de seu quarto) e a pele fora submetida também a uma série de hábeis manipulações. Era a senhora mais vivaz da festa e o seu riso rouco e entusiástico podia ser ouvido por toda a mansão. Estava excessivamente satisfeita com o casamento e, embora nada tivesse que ver com isso, afirmava que tinha sido muito hábil em sugerir a Robbie que deixasse crescer a barba.
Stuart, que ainda conservava certo esplendor apesar de todas as suas dissipações, estava presente em companhia da esposa, a perfeitamente bela Marvina Allstairs em solteira. Quando aquela beleza impecável aparecia, os grupos mais animados ficavam em silêncio e cheios de admiração, embora todos sentissem que o olhar dourado da Sra. Coleman acompanhado daquele gracioso sorriso não significava absolutamente nada.
Naturalmente, os odiosos Schnitzels estavam presentes com todos os seus amigos e agregados alemães. Angus, que fazia parte da tribo, estava perto deles. O corpo alto e magro, o rosto pálido, os olhos que pareciam fechados mesmo quando estavam arregalados, distinguiam-no daqueles corpulentos e desajeitados estrangeiros, que não paravam de resmungar, de grunhir, de sorrir e de olhar para tudo com inveja.
Laurie, segundo Janie comunicou, embora extremamente sentida de não poder estar presente ao casamento do irmão, mandara seus melhores votos e felicitações. Janie dissera à Sra. Cummings com orgulho que Laurie estava inteiramente dedicada a seus estudos de canto e tinha de trabalhar muito para poder prosseguir os seus estudos na Europa no verão.
Nenhum dos homens presentes ao casamento era mais belo, mais alegre, mais cheio de riso e de fascinação que o padrinho, Bertie Cauder. As moças sentiam-se arrasadas ao vê-lo. Agnes Clayton, sobrinha da Sra. Cummings, olhava para ele embevecidamente e com frequentes suspiros. Até as senhoras mais velhas eram dominadas pelo encanto envolvente de Bertie. Mostrava-se ele muito afetuoso com Robbie e, depois da cerimônia, quase não saia de perto dele, com a mão pousada no ombro do irmão.
Foi uma festa de casamento muito feliz. As oito horas, os noivos partiram para a estação no meio de muita confusão, parabéns, risos e carinho. Iam passar a lua-de-mel em Nova York e era ali que se encontrariam com Laurie e passariam algum tempo com ela.
Ninguém percebeu as calmas despedidas de Robbie e do irmão. Robbie tinha tomado providências para ter algumas palavras em particular com Bertie num hall perto da escadaria. Os dois irmãos se olharam, Robbie pálido e grave e Bertie, como sempre, com seu sorriso fixo e intraduzível. O murmúrio da festa lhes chegava aos ouvidos, vindo das outras salas.
Por fim, depois de longo silêncio, Robbie disse:
— Gostaria muito de saber que você ficará bem durante a minha ausência, Bertie.
— Ora, não se preocupe! Estarei muito bem —, disse Bertie, batendo afetuosamente no ombro do irmão. Mas o rosto de Robbie ficou mais carrancudo. Já devia estar convencido de que tudo era inútil, mas insistia.
— Cuide-se bem, Bertie. Teremos muito que conversar quando eu voltar.
— É claro! — exclamou Bertie com entusiasmo. — Não desistiremos de nossos passeios!
— Na primavera, passearemos de novo pela margem canadense e veremos seu amigo, o Capitão Willoughby.
— O velho e querido Joe —, murmurou Bertie, afetuosamente.
— Iremos ao Frenchman’s Creek —, disse Robbie, já em desespero.
Bertie concordou com alegria.
— E não poderemos esquecer as nossas pescarias!
Houve de novo silêncio entre eles! Bertie olhou para o irmão e seu rosto sofreu uma leve alteração. Deixou cair a mão do ombro de Robbie.
— Seja feliz, Robbie —, disse ele.
Havia uma súplica na voz dele? Robbie escutou com emocionada atenção.
— Seja feliz, Robbie —, repetiu Bertie, com um tom mais urgente. — Você vai entrar numa vida nova. É sua, toda sua. Não deve pensar em nada mais. Prometa-me que é isso que vai fazer!
— Não posso separar-me da minha antiga vida, como se ela nunca tivesse existido —, disse Robbie, sentindo um aperto na garganta.
Tocou no braço do irmão. Mas Bertie, num movimento impulsivo embora delicado, recuou dois ou três passos. Olhou então para Robbie como de uma distância imensa e intransponível.
— É o que você deve fazer, Robbie. Você tem a sua vida pela frente e nada mais. Lembre-se da mulher de Ló. Virou uma estátua de sal porque foi olhar para trás. Não olhe para trás, Robbie! Nunca!
Levantou a mão até à altura da cabeça num adeus, girou nos calcanhares e saiu.
Robbie ficou sozinho durante algum tempo depois que Bertie voltou para a festa. Sentia uma desolação tão completa como nunca em sua vida. Podia sentir na boca o gosto amargo da solidão e no coração a dor pungente da privação e do desespero. O desespero o dominava. Tudo em torno dele estava silencioso e vazio, sem ao menos uma sombra para lhe quebrar a inóspita extensão. Ali não penetravam nem voz, nem movimento.
A tristeza e a solidão estavam acima de suas forças. Nunca se sentira tão sozinho, tão abandonado, tão à deriva num universo sem ecos.
Nesses momentos, não pensou absolutamente na noiva.

CAPÍTULO 50
A jovem esposa de Robbie olhou com distraída aprovação para o espelho e levantou a cabeça para deixar os cabelos castanhos rolarem numa brilhante massa até aos ombros. Examinou o belo rosto oval e um sorriso lhe chegou aos lábios vermelhos fazendo todas as covinhas do rosto florescerem. Os olhos, sempre vivos e brilhantes, estavam solenes apesar do sorriso. Achou graça nesse exame que fazia de si mesma e riu intimamente. Começou a escovar os cabelos.
O robe de veludo azul-claro lhe caía sobre as coxas e os joelhos chegando até aos pés e flutuava, seguindo-lhe os movimentos. Podia ver pelo espelho os dourados, os cristais e a pelúcia no apartamento nupcial do hotel de luxo. A luz do sol entrava pelas amplas janelas que davam para a Quinta Avenida. Tudo era perfumado, sossegado e tranquilo naquele quarto. O silêncio só era quebrado pelo roçar da escova de Alice e pelo farfalhar do jornal que Robbie lia.
Alice podia ver o marido pelo espelho, sentado perto da janela, com as pernas cruzadas e o rosto quase de todo escondido pelas folhas do jornal.
Alice pensou: Eu o amo. Ninguém pode saber quanto eu o amo. Sempre o amei. Ele é meu coração e minha alma. Nunca disse isso a ninguém e não posso dizer a ele. Mas ele vive fechado e longe de mim. Sempre. Por quê? Será que nunca vou saber?
Robbie virou outra página do jornal e passou os olhos por ela. Um carvão se inflamou na lareira. Os rumores do tráfego lá embaixo invadiam o silêncio.
Alice murmurou em voz doce e baixa:
— Robbie...
Ele olhou para ela, viu-lhe pelo espelho o jovem rosto lindo, tão sério e sorriu afetuosamente:
— Que é, meu amor?
— Robbie, você me ama?
— Mas é claro! Que pergunta mais tola! Não me casei com você?
Ela levantou a mão e continuou a escovar os cabelos. A mão dela tremia. Ficou calada por alguns momentos, durante os quais ele a observou com aquela sua curiosidade reservada, embora sentindo uma ponta de inquietação. Alice largou de repente a escova, voltou-se no banco estofado e olhou para ele. Robbie largou o jornal e contemplou-a em silêncio.
— Robbie, sabe que você nunca disse que me ama?
— E era preciso? Pensei que uma moça compreendia isso tacitamente quando um homem lhe pedia a mão.
— Não, Robbie, não compreendi. Devo confessar que não pensei nisso. Só depois que nos casamos. Só depois que chegamos aqui.
— Por que só agora? Fiz alguma coisa que não lhe agradou?
Ela sacudiu a cabeça.
— Você é uma criancinha querida —, disse ele, rindo.
— Escute, Robbie. Há alguma coisa estranha... É verdade que nunca fui casada, mas sinto que há entre nós dois uma espécie de estranheza, alguma coisa incompleta.
Ela esperou impacientemente que ele voltasse a sorrir. Mas não sorriu. Tinha baixado a cabeça e olhava para o chão. Disse então suavemente:
— Minha querida, não deve ficar alarmada. Meu temperamento é assim .mesmo. Não sou muito demonstrativo e você tem de me aceitar como eu sou.
— Não é isso, Robbie. Sei tudo a seu respeito. Nunca esperei, e talvez não quisesse, muito carinho de sua parte. Você é muito parecido nisso com Papai, que também não é carinhoso. Ele e Mamãe são muito felizes e se amam muito, mas nunca os vi se beijarem ou dizerem uma palavra mais terna um para o outro. Não é isso, Robbie, pois eu sei como Papai e Mamãe se amam. Há entre eles uma amizade que se pode sentir de tão intensa e tão clara.
Robbie murmurou então numa voz tão baixa que ela quase não pôde ouvir:
— Tem de me dar tempo, querida.
— Tempo? Por que, Robbie?
Ele deu um suspiro e disse:
— Sou um marido ainda novo, Alice. Temos de crescer juntos. Essas coisas não acontecem da noite para o dia. Podem levar anos.
Ela agarrou com força o banco em que estava sentada e perguntou:
— Por que você se casou comigo, Robbie?
Ele se levantou e ela teve a terrível impressão de que ele ia deixá-la. Mas ele ficou parado no mesmo lugar e disse num tom pausado e medido:
— Casei-me com você porque a queria, Alice. Amo você tanto quanto me é possível amar alguém.
— Não —, disse ela, sacudindo a cabeça. — Você não me ama, Robbie. Faz o possível para isso. Sinto o seu esforço. Você quer amar-me. Mas alguma coisa o detém, impedindo que você me ame tanto quanto deseja. Que é, Robbie?
Ele descerrou os lábios como se fosse falar. Mas virou-se para a janela e disse calmamente:
— Tudo isso é fantasia sua, Alice. Seu temperamento feminino exige demais e é muito trabalhado pela imaginação.
— Você me quis, Robbie, porque pensou que eu pudesse representar um meio de você fugir de alguma coisa. Que coisa é essa, Robbie?
Quando ele não respondeu, ela se levantou com o corpo todo a tremer. Tinha a garganta seca e os olhos lhe ardiam. O terror a dominava.
— Tenho apenas dezenove anos, Robbie, mas compreendo muitas coisas. Sinto-as no coração. E é por isso que lhe pergunto: Que coisa ou que pessoa é essa que afasta você de mim?
Ele se virou lentamente para ela, contra a sua vontade. Queria ir para ela. Alguma coisa lhe inspirava a vontade de correr para ela, de tomá-la nos braços, de apagar o terror que toldava aqueles lindos olhos. Mas não pôde. Era como se uma tonelada de pedra tivesse caído sobre ele, imobilizando-o.
— Houve alguém que você amasse antes de mim, Robbie? Alguém que você não pode esquecer?
— Querida, nunca amei nenhuma mulher antes de você. Acredita em mim?
— Sim, Robbie, acredito em você. Mas por que você não me pode amar com todo o seu coração?
— Talvez não esteja em mim amar com todo o meu coração... Não sei. Talvez eu seja diferente, Alice. Você tem de me aceitar como eu sou. Eu me esforçarei ao máximo. Você merece isso. É a coisa mais doce deste mundo. Nunca houve ninguém como você.
Ele fez uma pausa e ela baixou a cabeça em silêncio com os cabelos a esconderem-lhe o rosto.
— Compreenda —, disse ele, estendendo as mãos para ela.— Tenho vivido absorvido por muitas coisas. Houve os estudos, o trabalho... E também meu irmão Bertie. Tenho tido de tomar conta dele...
Ao dizer o nome do irmão, sentiu-se mal e terrivelmente abalado. Encostou-se na janela.
Alice levantou lentamente a cabeça. Foi invadida então pelo terrível conhecimento, graças à sua sensibilidade perceptiva sem a ajuda da razão abalada. Os olhos se arregalaram, abandonando Nova York e chegando a Grandeville, através de todos os anos em que tinha conhecido e amado Robbie. Bertie... Bertie estava sempre ao lado dele. Bertie, rindo, bebendo, afável, alegre, sem jamais exigir coisa alguma e até às vezes um pouco aborrecido da absorção de Robbie por ele e até em certas ocasiões procurando fugir dele. Robbie raramente estava sozinho, salvo quando visitava a mansão dos Cummings e, às vezes, nem mesmo nessas ocasiões. Sempre Bertie, sempre. Por que ela nunca tinha sabido disso antes? Não, de certo modo tinha sabido e se sentira até emocionada por tamanha dedicação num homem tão frio e reservado. Tinha julgado isso admirável.
— É Bertie, não é, Robbie? — perguntou ela.
— Sim, acho que sim, Alice —, respondeu ele, ao fim de algum tempo. — Sempre fomos muito unidos. Creio que nunca me interessei por ninguém de minha família a não ser Bertie. Sempre fomos muito amigos e eu tive de tomar conta dele desde os nossos tempos de criança. De certo modo, ele sempre esteve sob os meus cuidados. Ninguém o compreendia senão eu, nem mesmo minha mãe que sempre o adorou. E até eu nunca o compreendi bem. Ninguém pode compreendê-lo. Tenho tido alguns momentos de intuição e só lhe posso dizer que foram terríveis. Ele é como uma criança. Alguém tem de tomar conta dele. Talvez... talvez eu seja como sou, Alice, porque ainda não me libertei da obrigação de tomar conta de Bertie.
Exclamou então, como se as palavras lhe fossem arrancadas do fundo do coração:
— Nunca me libertarei dele enquanto ele não morrer!
Ela o olhou durante muito tempo.
Houve então um grande choque no seu coração, que se dilatou e derramou fragorosamente. O amor cresceu nela como uma avalancha a esmagá-la e se misturava com uma imensa compaixão, um desejo intenso de proteger, de resguardar e de salvar.
Abriu os braços e correu para ele. Abraçou-o, encostando ao dele o seu jovem corpo e fazendo a cabeça dele descansar no seu seio. Abraçou-o como uma mãe abraça um filho ameaçado, embalando-o com palavras de carinho e beijando-o.
Ele a cingiu nos braços. Pousou a cabeça no seio jovem e palpitante. Ela lhe sentiu o cansaço, a solidão, o desespero.
Mas havia nela uma triunfante e obstinada alegria. Sorriu e pensou. Posso esperar. Ele precisa tanto de mim, o pobre querido.

LIVRO III
Ó Estrela da Manhã!

CAPÍTULO 51
No dia 20 de dezembro de 1860, a Carolina do Sul separou-se da União e, embora houvesse em muitos outros Estados profundas apreensões e tristezas, as comemorações espontâneas realizadas na Carolina do Sul foram uma demonstração incômoda de que a secessão representava a vontade popular. Atormentado, acossado e provocado durante anos pelos Estados do Norte, o Sul se erguia em desafio diante de Washington e havia a ameaça de outras secessões. Ao menos temporariamente, a ameaça de bancarrota que tinha pairado sobre os fazendeiros de algodão em vista do ritmo crescente do abolicionismo no Norte passara, e uma atmosfera geral de vitalidade otimista e entusiasmo galvanizava o Sul. Muita gente acreditava que não haveria guerra, mas que o Norte acataria a vontade soberana dos Estados que resolvessem deixar a União, de acordo com a Constituição.
— É verdade —, dizia tristemente o Padre Houlihan, .— o Sul tem o "direito" de deixar a União e a liberdade de decidir se deve ou não lealdade ao governo central, mas no exercício desse "direito", o Sul já pôs em perigo o resto do país, talvez para sempre.
Para consternação, desânimo e desespero dos homens sensatos não apenas no Norte, mas também no Sul, outros Estados seguiram o exemplo da Carolina do Sul num desfile majestoso e trêmulo. Um por um, os Estados belos e floridos se erguiam e davam as costas a Washington, enquanto na Casa Branca o rosto bondoso e feio de Lincoln se anuviava na sua impotência, mesmo que houvesse nele apaixonada determinação. A Casa da América era abandonada pelas suas mais belas filhas, rumo à ameaça, o perigo e a um terrível futuro, enquanto a Europa observava, sorridente e malévola. A Constituição dos Estados Unidos era a porta ampla pela qual as filhas partiam e junto a essa porta Abraham Lincoln se postava em silêncio. Esperava em silêncio e nada tinha dito ainda. Mas observava o esvaziamento da casa e olhava para a Europa.
— Foi um dia sinistro para o povo a eleição desse homem como Presidente —, dizia Stuart, desesperadamente preocupado.
— Um dia só é sinistro para um povo quando Deus não lhe aponta um chefe na hora da aflição —, replicava o Padre Houlihan.
Os senadores sulistas se retiraram de Washington. Os Estados do Sul apreenderam os bens dos Estados Unidos nos seus respectivos territórios. Arsenais e fortes foram ocupados. Embora não houvesse ainda ameaça de guerra, apareceu e foi distribuído um grande e misterioso suprimento de armas. Stuart, lembrando-se de um homem sorridente chamado Raoul Bouchard, sentiu a vergonha nas faces e um aperto no coração. Depósitos do Exército e outros bens federais foram confiscados em San Antonio, e os estaleiros da Marinha em Norfolk e Pensacola passaram para as mãos dos "sulistas".
Em março de 1861, os Estados separados formaram a sua união — a Confederação do Sul.
O Sul, embriagado pelos seus brilhantes êxitos, com a sua convicção de que só fizera o que lhe era permitido pela Constituição, com a sua cólera aristocrática e desdenhosa diante dos duros ianques que haviam "provocado aquela catástrofe para o país" e da firmeza e da dignidade simples do novo Presidente, se retirara para dentro de si mesmo entre uma massa de bandeiras e uma espécie de delírio feliz e alegre resolução. Não receberia mais os insultos e as ameaças dos industriais do Norte que viam o inevitável êxodo das indústrias para as regiões de trabalho escravo do Sul. O Sul não seria mais atingido pelas acusações de "barbaria e práticas pagãs". Só alguns homens do Sul ouviam os murmúrios de uma Europa ávida e predatória e a agitação nas capitais do continente a cinco mil quilômetros de distância.
"Com o correr dos anos", disse um eminente aristocrata sulista, "os caminhos do Norte e do Sul tendem cada vez mais a afastar-se. O Norte, que se tornará cada vez mais poliglota e estrangeiro, será para nós uma nação estranha, fora da nossa raça protestante e anglo-saxônica e de nossa tradição aristocrática britânica. É em defesa de nossa raça, de nossa religião, de nossas tradições, que devemos afastar-nos do Norte."
A atmosfera de todo país estava eletricamente carregada de cólera, desânimo, desespero e traição. Mas ninguém acreditava ainda no advento da guerra.
O próprio Lincoln dizia que a crise era apenas artificial, que nada havia propriamente de errado e que mal algum sobreviria a ninguém. Recomendava ao povo que "conservasse a calma". E, sozinho, no seu grande quarto na Casa Branca, ficava sem dormir com a cabeça no travesseiro e escutava as grandes rodas que rolavam do céu sobre seu país.
Grandeville recebia as notícias com a apatia e a indiferença que iriam marcar toda a sua história. Alguns homens estavam terrivelmente perturbados e receosos. Mas a massa do povo e os lavradores que cercavam a cidade tinham uma atitude de inércia. Não acreditavam na possibilidade de guerra ou não se incomodavam com isso. As questões em jogo não tinham qualquer importância para os habitantes dos pardieiros e para os trabalhadores. Olhavam para as notícias dos jornais e se esqueciam delas. Quando surgiu o boato de que o Presidente Lincoln visitaria Grandeville pessoalmente durante a sua excursão por Albany, Poughkeepsie, Trenton, Nova York, Filadélfia e Harrisburg, poucas pessoas se interessaram fora da "sociedade elegante". Sabiam vagamente que alguém em algum lugar estava armando uma tremenda confusão "por causa dos negros", mas como raramente tinham visto um negro e de escravidão só conheciam a disfarçada que sofriam em Grandeville e a também disfarçada que tinham sofrido na Europa, a questão era para eles tão remota quanto a lua. Menos de quinhentas pessoas em Grandeville tinham lido A Cabana do Pai Tomás. Menos de quinhentas pessoas falavam nos salões ou nas tavernas do terror que se avizinhava. Menos de oito mil pessoas tinham votado nas últimas eleições. Menos de um terço da população sabia sequer o nome do Presidente dos Estados Unidos. Afundados numa espécie de rústica letargia, que de nada sabia senão da labuta pesada e incessante, da embriaguez alucinada intermitente e da constante procriação, viviam tão absorvidos pelos seus interesses insignificantes, pelos seus escassos prazeres insípidos e pelo trabalho embrutecedor como se fossem os animais das fazendas em torno da cidade. E essa atitude de indiferença não era exclusivamente encontrada nos estrangeiros. Os lavradores, operários, estivadores e carregadores de cereais ianques mostravam pouco ou nenhum interesse pelo estado do país. Se alguém mais sabido falava nisso, as suas palavras eram ouvidas com aborrecimento ou indiferença.
O fato de que, se a guerra viesse, milhares deles seriam forçados a empenhar-se pessoalmente nela, ainda não lhes penetrara os corações insulares nem lhes fizera bater mais depressa os pulsos.
Entretanto, alguns trabalhadores falavam da situação com preocupação, receio e compreensão. E esses poucos eram os alemães que tinham saído da Alemanha em 1848, cheios de ódio e de desgosto. Acostumados aos alarmas e calamidades, à ameaça e à insegurança ao desespero e à revolta, sentiam de longe os primeiros sinais do pavor que se aproximava. Era paradoxal então que os filhos desses amantes da liberdade se despreocupassem da iminente luta e, quando emitissem alguma opinião, esta fosse desdenhosa, indiferente ou desleal. Os pais alemães, lembrando-se de Bismarck e de uma Alemanha dilacerada e arquejante, ficavam desolados com o fato de que seus filhos não sentissem entusiasmo pela América livre, embora tivessem sido criados nos Estados Unidos e os pais lhes tivessem incutido a sua resolução e a sua inabalável fé nos direitos do homem.
— Ah —, dizia o padre, sacudindo a cabeça —, creio que infelizmente sempre haverá entre nós quem odeie o bem e a liberdade e só anseie pela cobiça, pela loucura e pelo crime. Que faremos com eles? Há alguma previsão sinistra para o país nessa ideia.
No Sul, havia regozijo, resolução, coragem, entusiasmo e um patriotismo apaixonado. Em muitas grandes Cidades do Norte, havia apenas ressentimento, apatia, ignorância, inconsciência ou frio desinteresse. Entretanto, os lojistas, os industriais, os comerciantes e outros cujos lucros dependiam da paz e do comércio estavam alarmados. Levavam em conta a ameaça da guerra e temiam-na. Murmuravam zangadamente entre si e culpavam Lincoln, culpavam os abolicionistas, culpavam os loucos perturbadores de uma paz que lhes havia enchido as bolsas. Enquanto o patriotismo lavrava como um incêndio nas cidades do Sul, as cidades do Norte se quedavam em soturna apatia.
Lincoln sabia disso. Vira os rostos hostis que o tinham cercado durante a sua excursão pelas cidades do Norte. Vira as fisionomias ressentidas, a confusão e a desconfiança. Como lhe seria possível chegar ao coração daquelas pessoas retraídas e fazê-las compreender que o destino do país e todas as esperanças do futuro dependiam delas? O seu coração se confrangia de desespero. Aquele povo não tinha visão, paixão de justiça, patriotismo, orgulho, coragem ou sonho. Havia apenas rapacidade. A rapacidade devia ser então o caminho para chegar àquelas almas de pedra. Se compreendessem que, no caso da vitória do Sul, o império industrial do Norte em ascensão poderia deslocar-se para o Sul, para as zonas de trabalho escravo e barato, o seu interesse monetário poderia ser despertado como o seu patriotismo nunca o fora pela visão de uma bandeira ou o toque de um clarim. Uma ameaça à bolsa de um ianque seria levada em consideração. A economia inexorável falava uma linguagem que ele podia compreender.
Lincoln levou alguns meses para compreender que um fenômeno estranho e horrível estava começando a tomar forma no Norte e, quando compreendeu, ficou estarrecido. Até então, os ódios raciais e religiosos não haviam manchado a história da República. Agora, no Norte, esses ódios erguiam a cabeça de serpente dos pantanais sombrios da alma humana. A princípio, sentiu incredulidade. Quem, entre tantas raças, entre tantas religiões diversas, tinha conjurado as serpentes e lhes fizera ondular as mortíferas cabeças? Quem era o traidor? Quais eram seus pianos? A destruição ameaçava a República e ela precisava de todas as mãos, de todos os corações firmes, de todas as vozes enérgicas, pois, do contrário, não conseguiria sobreviver. Entretanto, em algum lugar, nas sombrias profundezas do espírito dos homens, uma língua pérfida pregava a desunião, a dissidência, o ódio, a violência e a crueldade às vésperas da tempestade que ia desabar sobre a nação. Que queria o traidor? Não compreendia que essa desunião ameaçava a existência do país? Seria possível que soubesse muito bem disso?
Lincoln se convenceu lenta, mas implacavelmente de que o traidor sabia muito bem disso. Uma nação nos paroxismos de uma guerra perdê-la-ia prontamente se fosse desviada para ódios e violências regionais. Era esse, pois, o plano. Viviam nas cidades nortistas, odiavam o seu país e queriam ver os Estados Unidos morrerem. E era assim que planejavam dispersar a força do país, confundi-lo e enfraquecê-lo nas contendas regionais para que ele fosse destruído. Destruído pelo Sul? Não. O Sul contrairia inevitavelmente a terrível doença e marcharia como o seu irmão do Norte para o aniquilamento. Era contra os Estados Unidos então que o plano se formava, contra o Sul como contra o Norte.
Lincoln via a sombra do espectro. Podia sentir-lhe os eflúvios mortíferos. Mas desaparecia nas trevas quando ele estendia as mãos enfurecidas e resolutas para aprisioná-lo. O seu sussurro letal estava em toda a parte, mas o sussurro se desvanecia em silêncio quando alguém que pesquisava se aproximava. Os olhos vermelhos espionavam de cada beco, de cada rua, de cada esquina e até da sombra dos álamos nas fazendas distantes. Mas se alguém chegava ansiosamente a procurar, os olhos se cerravam e iam reaparecer em outro lugar.
Sabia Lincoln que a tolerância pelo estranho de raça e credo era mais ativa numa nação homogênea. Do solo homogêneo da Inglaterra brotara a Magna Carta, o Parlamento e a crença nos direitos de todos os homens. Era a nação heterogênea que corria constante perigo em consequência de seus grupos internos e isolados que odiavam todos os outros grupos. O Norte era heterogêneo. Os românticos haviam acreditado muito tempo que, se homens diversos vivessem juntos, acabariam por compreender que todos os homens são iguais e não diferem radicalmente de maneira alguma. Essa crença se despedaçara nas cidades do Norte. A ligação estreita com estranhos estimulava o ódio natural pelos seus semelhantes que existe eternamente em todos os homens. E algumas pessoas estavam utilizando esse ódio natural do homem pelo homem para destruir os Estados Unidos.
Algumas pessoas que traziam no coração o ódio da América, tinham formado a organização denominada "Nada Sabe", cuja força propulsora era ostensivamente o ódio à Igreja Católica. Mas, quando o círculo crescia, eram abrangidos nesse ódio todos os homens que tinham nome estrangeiro, naturalidade estrangeira ou religião estrangeira.
Enquanto o Norte e o Sul se olhavam de um lado e do outro da fronteira com olhos alarmados pela suspeita e pelo medo, havia nas cidades do Norte desordens anticatólicas e antiestrangeiras. Os que odiavam o país lhe preparavam a morte. Preparavam-lhe a morte como através de toda a história tinham preparado a morte de tudo o que era belo e nobre, grande e heroico, sábio, bondoso e justo.
Para conseguir isso, estimulavam ódios falsos e cruéis, inventavam perigosas mentiras, incentivavam o Norte a permanecer confuso, inerte e ressentido, caluniavam Lincoln e espalhavam coisas horríveis sobre ele. Usavam até as palavras sagradas do patriotismo para alcançar os seus objetivos. Falavam de "salvar a América para os americanos", de expulsar "os estranhos de nosso meio". Pela primeira vez, a expressão "elemento estranho" foi ouvida através dos espaços livres da República.
Esses conspiradores contra a República usavam os próprios lemas dos patriotas, dos que amavam os Estados Unidos.
Os conspiradores rastejavam no rumo do Sul, levando a morte no coração. Em meio às bandeiras, aos heroísmos, aos clarins, às mobilizações e às resoluções, o rumor circulava e o Sul, parando de vez em quando atordoado, ouvia a voz da destruição.

CAPÍTULO 52
É confortador ver, pensou Laurie olhando pelas janelas do trem, como a natureza repudia as paixões e os ódios dos homens. Todas as coisas vivem na natureza e fazem parte delas, menos o homem. Ele é o eterno pária, o proscrito, o forasteiro e um estranho neste planeta, cercado de criaturas desconfiadas que lhe são hostis, que o odeiam e fogem dele mal lhe sentem o cheiro da carne ou o som dos passos. Dizem que é o "instinto do rebanho" que o faz unir-se aos seus semelhantes, ainda que os odeie. Mas é coisa mais profunda que o instinto do rebanho que o impele a construir suas terríveis cidades de pedra e esconder-se nelas, como um assassino acuado, um criminoso perseguido, afastado do coração profundo e vivo da terra. Sabe que a natureza o rejeitou e não lhe fala na linguagem universal dos outros seres, negando-lhe o direito de ser contado entre seus filhos.
Somos o que é mau, sombrio e horrendo. Sei que não fomos criados assim. Mas foi isso que nos tornamos com nossas guerras, nossos horrores, nossos ódios, nossa permanente inimizade por todas as coisas que vivem, nossas traições e nossas cobiças, nossas monstruosidades. Somos os destruidores, a enormidade perversa e inominável que a terra amaldiçoou e Deus esqueceu. Somos Caim e fomos expulsos do Jardim do Éden.
Laurie estremeceu e, embora o vagão particular fosse aquecido, fechou mais de encontro ao corpo a capa de peles. O trem percorria com barulhenta rapidez a calma paisagem primaveril. Como tudo era belo! A terra reverdescente e florescente se estendia em suaves ondulações até ao horizonte, onde montes de ametista, trêmulos de luz, se destacavam contra um céu do mais puro azul. Aqui e ali, em retalhos de sombra, erguiam-se árvores, ainda vazias, mas já começando a pulsar de vida através dos galhos. Nas verdes extensões da terra, apareciam poças de água onde floresciam íris selvagens. Pássaros silenciosos cruzavam o céu. Se havia casas de fazenda por ali, Laurie não as estava vendo. Uma paz intensa e quieta pairava sobre a terra.
Quando estamos calmos, quando não estamos presentes, pensou Laurie, a terra é paz e esquece a existência do homem. Encerra-se na sua beleza, sonhando e planejando, com infinita paciência, criando e cheia de alegria porque não ouve a voz do homem.
A jovem Sra. Rhinelander olhou o perfil de Laurie contra a luz pura que vinha da janela. Refletiu como era estático e imutável o rosto de Laurie, o que fazia pensar que ela era privada de qualquer calor emocional, de qualquer paixão, de qualquer veemência. Conhecia Laurie havia quatro anos, porque o falecido marido da Sra. Rhinelander tinha sido um dos principais patronos da música em Nova York. Uma forte amizade se estabelecera entre as duas jovens mulheres, embora a Sra. Rhinelander nunca tivesse analisado por que se sentira atraída por aquela moça fria e fechada que nunca procurara aproximar-se dela. Ainda que Laurie não pudesse ser chamada de secreta, não esclarecia ninguém sobre seus pensamentos, desejos ou sentimentos. Até os aplausos calorosos que havia recebido na semana anterior no Teatro de Opera Astor, onde fizera sua estreia nos Estados Unidos depois de voltar da Europa, não a tinham emocionado. É verdade que tinha sorrido, mas fora um sorriso de remoto tédio e ela não mostrara muito empenho em agradecer a ovação do público ou as felicitações dos amigos. Quando alguns rapazes cheios de entusiasmo tinham insistido em desatrelar os cavalos da sua carruagem e puxar o veículo pelas ruas repletas enquanto outros jovens os acompanhavam com archotes acesos e aclamações, Laurie parecera francamente aborrecida. Não era absolutamente uma pose. Mas justamente essa atitude de reserva e alheamento aumentou o fervor dos seus admiradores. Quando afinal ela havia descido sem pressa à porta do hotel não se dignara sequer olhar para a multidão que lhe tributava uma última ovação e se mostrara indiferente aos montões de flores que a esperavam em seu apartamento. A jovem Sra. Rhinelander e seu irmão, Dick Thimbleton, tinham-na acompanhado até ao apartamento, mas ela, mal havia tirado as luvas, murmurara com a sua habitual indiferença:
— Estou tão cansada, queridos, que se vocês não se incomodarem ...
A Sra. Rhinelander tivera um sorriso contrafeito, mas o arrebatado Dick dissera prontamente:
— É claro. Vamos sair imediatamente. Boa noite, querida.
Mas Laurie não era a querida de Dick. Elissa duvidava de que ela viesse a ser algum dia a querida de alguém. Havia nela alguma coisa que parecia terrivelmente granítica. Elissa nunca vira a sua cor se alterar, nem notara nela qualquer expressão de ternura ou gentileza. Tinha apenas dezenove anos e sua beleza e sua incrível voz prenunciavam-lhe uma carreira esplêndida através do mundo. Mas quando se falava dessas coisas com Laurie, ela se limitava a encolher os ombros impassivelmente.
Estava no momento de posse de um contrato cuja munificência era desconhecida no país, mesmo no caso de Jenny Lind, cuja voz. todos o julgavam, tinha sido superada pela daquela jovem americana. Laurie tinha cantado Tannhäuser em Munique, onde recebera aplausos mais delirantes que os de Nova York. O grande Wagner se inclinara diante dela e beijara-lhe as mãos em sinal de gratidão. Laurie tinha cantado aquela ópera também em Dresde, e o público, embora preparado para reagir com insultos e menosprezo, fora reduzido ao silêncio pelo puro esplendor de sua Elizabeth. No fim, fora tomado de verdadeiro delírio. A primeira apresentação em Paris, com outro cantor, tinha sido um caso escandaloso acompanhado de estridentes vaias. Mas a extraordinária beleza de Laurie, bem como a sua voz, tinham conquistado também os parisienses. A Princesa Metternich, a grande amiga de Wagner, tinha convidado Laurie para o seu castelo, mas ela só aceitara o convite depois de insistentes rogos do próprio compositor. Mais tarde, fora convidada também do Rei Luís da Baviera e fascinara por completo o monarca.
Naquela oportunidade, Laurie devia cantar Tannhäuser e interpretar o papel de Elsa em Lohengrin, nos Estados Unidos. Quando assinara o fabuloso contrato para as suas apresentações no Astor, tinha mostrado o mesmo tédio com que recebera os aplausos do público. Tinha-se levantado da cadeira dourada no seu apartamento e dissera aos cavalheiros entusiasmados ali reunidos que estava muito cansada e pedia desculpas. Na realidade, sua amiga Elissa Rhinelander sabia muito bem que ela nunca ficava cansada. A sua fria vitalidade era inesgotável. Ela não experimentava mais fadiga do que uma montanha ou um penhasco.
Elissa tinha chegado à estupefata conclusão de que Laurie não dava a menor importância à sua música, aos seus triunfos ou às suas conquistas e de que, embora cantasse com a maior paixão e profundo sentimento, isso era automático e produto de seus estudos e não uma coisa que lhe viesse do coração e da alma. Era uma atriz maravilhosa, mas as suas paixões nunca participavam de seu desempenho ou não pareciam dele participar, pensava Elissa enquanto o trem corria pelos campos.
Laurie estava tão impassível e impenetrável quanto se fosse feita de ouro, ainda que brilhasse como ouro. Entretanto, Elissa não podia esquecer a tumultuosa paixão que vibrava no seu canto e o olhar estranho e enigmático que às vezes lhe ensombrava o rosto.
Elissa, olhando para o rosto da amiga e vendo esse estranho olhar de novo quando o vulto de uma montanha passou pela janela, perguntou:
— Está cansada, Laurie?
Laurie voltou lentamente a cabeça. Um raio de sol entrou pela janela e lhe iluminou o belo rosto.
— Não, Elissa. Por quê?
— Está tão calada.
A porta do vagão particular se abriu e Dick Thimbleton entrou. Tinha estado na plataforma, fumando um dos seus "horrorosos charutos", como dizia Elissa. Como sempre, o primeiro olhar dele foi para Laurie e ela o olhou simpaticamente. Ele se aproximou dela ansiosamente, com um sorriso que era uma pergunta. Mas quando ela apenas o olhou com imutável gentileza, o rosto dele ficou novamente carrancudo. Era um homem bem apessoado e elegante de trinta anos, solteiro e muito rico, bem-educado e distinto. Conhecia Laurie havia dois anos e estava completamente apaixonado por ela. Tinha-a acompanhado através da Europa, pedindo-a em casamento, como ele dizia, "todos os sábados à noite, infalivelmente". Para um homem jovem, educado e reservado, tinha sido singularmente persistente, conseguindo afinal de Laurie uma aquiescência muito vaga. Ao menos, ela não o proibia mais irritadamente de falar-lhe em casamento, mas Elissa suspeitava de que isso não representava qualquer enfraquecimento da parte de Laurie, mas o desejo de livrar-se de uma recusa mais ativa. Continuava inerte, mas não cedia.
Quando Laurie anunciara a intenção de fazer uma visita à família em Grandeville ("onde fica Grandeville, pelo amor de Deus?" perguntara Dick), Elissa tinha sugerido que ela e o irmão a acompanhassem. Pensara que talvez, vendo-se ausente de Nova York e da sua agitação, Laurie pudesse ver como Dick era bom, sincero, atencioso e superior. Na atmosfera de uma rude cidade de fronteira, as qualidades dele seriam plenamente realçadas. Na presença de homens rústicos e sem refinamento, Dick se destacaria em todo o seu esplendor aristocrático. Elissa astutamente suspeitava de que Laurie, apesar de sua letargia, não era inteiramente insensível ao dinheiro, especialmente quando este era profuso. Acreditava também que Laurie gostava de Dick Thimbleton e começara a confiar na amizade dele.
Era no vagão particular dele, todo de veludo e pelúcia, com cortinas azuis nas janelas e fofos tapetes no chão, que estavam viajando para Grandeville. Afastara as objeções friamente irritadas de Laurie.
Depois que Elissa e Dick tinham vencido as suas teimosas objeções, Laurie tinha escrito a Janie, informando-a dos hóspedes que levaria com ela. Tinha esperado uma carta furiosa da mãe, com a afirmação de que não tinha tempo, nem lugar em casa para essas pessoas estranhas. Mas tinha esquecido o espírito engenhoso da mãe e foi com surpresa que recebeu uma carta entusiástica de Janie, na qual ela dizia que hospedaria Elissa e Dick com muito prazer. Laurie não sabia que Janie tinha feito muitas e muito indiscretas perguntas a respeito da família Thimbleton e estava de fogos acesos com as implicações dessa visita. Laurie, que estava preparada para mostrar aos amigos uma carta bem diferente da mãe, ficou bastante aborrecida.
Os triunfos de Laurie em Nova York e na Europa eram bem conhecidos dos cidadãos de Grandeville. Em vista disso, a Rua Principal fora decorada com bandeiras, festões de papel colorido e grandes cartazes. A própria guerra, que já durava havia um ano, passara para segundo lugar no interesse da população. O Teatro Elmwood, recém-construído, tinha sido preparado na esperança de que Laurie desse ao menos um recital para deleite de Grandeville. Felizmente, Laurie ainda não sabia de nada disso.
A hábil e vivaz Elissa não tinha conseguido arrancar de Laurie muitas informações sobre a família dela. Laurie dissera apenas as coisas mais gerais e mais indiferentes. A mãe era viúva e escocesa. Um irmão era juiz e outro se casara com uma alemã rica e era subgerente de algumas lojas em que a família tinha um vago interesse. Havia ainda outro irmão. Nesse ponto, o rosto de Laurie se havia alterado quase imperceptivelmente. Bertie. Bertie nada fazia senão encher a mãe de encanto. Era um gentleman. Laurie franzira um pouco a boca ao dizer isso e ficara então calada. Mas Elissa, bem inteligente, percebera que os laços que prendiam Laurie à família eram muito frouxos e até desdenhosos. Era evidente que ela não tinha afeição por eles. Por que então estava voltando a Grandeville para "descansar"? O "cansaço" nela não passava de uma atitude.
Laurie devia estar pensando também nessas coisas, pois Elissa lhe surpreendeu um olhar rápido, curioso e cruel. Perturbada, Elissa sacudiu os cabelos pretos e olhou para outro lado. Não tinha ainda trinta anos, estava viúva havia dois anos e era extremamente elegante. Não podia absolutamente ser chamada de bonita, com o rosto comprido e muito estreito, a boca malfeita, o nariz muito aquilino e o corpo muito magro. Mas tudo isso era de certo modo compensado pelos olhos grandes e luminosos, cheios de vivacidade e espírito. Além disso, era cercada de uma auréola de riqueza, cultura e elegância inata em sua pessoa.
Os três estavam sozinhos. As criadas de Laurie e de Elissa viajavam na classe pública à frente do vagão. Numa das extremidades do vagão, estavam os leitos das duas amigas por trás de uma pesada cortina. O leito de Dick Thimbleton ficava perto da plataforma, na frente. Pesadas mesas de mogno, presas ao chão, estavam espalhadas do outro lado do vagão, cada qual com um abajur de filigrana. Um lustre de cristal pendia do teto curvo. Havia também uma estante com livros e uma caixa de música envernizada. Quando a tarde foi caindo, uma das criadas entrou e acendeu as luzes. A paisagem desapareceu das janelas. Elissa podia ver os rostos do irmão e de Laurie refletidos nas vidraças, onde os reflexos das lâmpadas se superpunham ao cenário de montanhas, prados e vales.
Elisa sentiu, de repente, antipatia por Laurie. Tinha de vez em quando esses momentos de antipatia. Nessas ocasiões, gostava de pensar que Laurie era pouco inteligente e apática. Mas a sua honestidade inata reagia contra isso. Que era que Laurie queria? Aparentemente, nada.
Laurie era um enigma. Pobre Dick, pensou Elissa, ele não se devia absolutamente envolver com aquela estranha criatura. De fato, naqueles momentos de penetração, Laurie lhe parecia uma pessoa remota e inteiramente inacessível.
Laurie reclinou-se na sua cadeira e Elissa, que cada vez mais antipatizava com ela, admirando-a com igual energia, sentiu-se fascinada pela graça da amiga. Não havia uma só linha imperfeita na curva do jovem busto cheio, na linha do pescoço bem modelado ou na cintura acima das enfunadas saias de tafetá azul. Os cabelos dourados eram reluzentes como se fossem feitos de metal. Havia uma imensa serenidade em torno dela, quando voltou lentamente a cabeça para o ardente Dick, que se inclinava da sua cadeira para dizer-lhe alguma coisa. Wagner, o admirável e terrível Wagner, exclamara ao ver Laurie pela primeira vez: "Brünnhilde! Walküre!" Tinha sido sem dúvida uma extravagância, coisa que não era de admirar, tratando-se de estrangeiros. Mas Elissa tinha de reconhecer que havia motivo para esse entusiasmo de Wagner.
Que era que absorvia tanto Dick naquele momento na conversa lenta e lânguida de Laurie? Esta nunca se distinguira pela originalidade ou pelo espírito. Entretanto, Dick a ouvia com uma luz de interesse no rosto. Elissa aproximou-se também para ouvir.
— Acho que se vão aborrecer muito em Grandeville —, dizia Laurie. — Lavradores de chapéu redondo cheirando a cocheiras e multidões de estranhas criaturas vindas dos mais remotos cantos da Europa, matadouros, fábricas de salsichas, elevadores de cereais e vapores no Lago. É uma cidade horrível e completamente grosseira. Quanto à minha família, nunca se distinguiu pela sua finura ou pela variedade de seus interesses, com exceção talvez de Robbie. É casado com uma moça encantadora, filha do Prefeito, mas até ele tem os contornos ásperos do provinciano.
Em seguida, uma estranha inquietação caiu sobre ela e Laurie desviou os olhos de Dick.
— Que guerra terrível! Todos achavam que estaria terminada dentro de seis meses. Que exuberante insensatez! Agora é que o povo começa a compreender que uma guerra é uma coisa terrível, apesar das bandeiras, dos clarins e dos belos uniformes, e a inquietação se generaliza. É verdade, Dick, que muitas pessoas morreram nas desordens provocadas pelo recrutamento em Nova York?
A expressão de Dick se tornou grave. Falou rapidamente. Se a guerra continuasse ainda por muito tempo, ele se candidataria a ser comissionado como oficial. Disse então:
— As pessoas amam em geral os belos ideais e se emocionam com eles. Mas quando chega o momento de sacrificarem-se, de lutar e até de morrer por esses ideais, começam a acusar, a recuar e a protestar. Pensam que o amor da pátria deve viver confinado nos livros escolares e o amor da justiça e de Deus nas páginas da Bíblia? Não compreendem que se uma coisa não é digna de se lutar e morrer por ela não tem motivo para existir, ainda que seja em palavras?
Laurie nada disse e Dick continuou com veemência:
— Esta República não foi fundada por homens que colocavam o seu conforto e a sua segurança acima da justiça e da liberdade. Foi fundada por homens de visão, que acreditavam nos direitos do homem e na paternidade de Deus, que odiavam a tirania, a injustiça e a opressão. Onde estão agora os filhos desses homens? Onde estão suas vozes nesta triste e insubmissa República?
Podia ver apenas o perfil de Laurie que nada lhe dizia. Pegou na mão dela e perguntou:
— Sentirá minha falta, se eu for para o Exército?
Ela retirou calmamente a mão. Sorriu. Mas sua voz atenuou um pouco a qualidade cáustica do sorriso.
— Claro que sentirei sua falta, Dick. Só espero é que não seja precipitado.
O rosto dele se fechou e ele se recostou na sua cadeira.
Ele está falando a uma criatura sem sensibilidade, pensou Elissa, irritada. Que interesse tem Laurie pelo país? Que interesse tem ela por alguma coisa? Ela não tem coração. Por que então gosto dela? Sou mulher e a beleza dela não me impressiona absolutamente, salvo despertando de vez em quando uma ponta de inveja. Ela não faz qualquer esforço para ser agradável, mesmo comigo. Apesar disso, gosto dela.
Laurie voltou-se para ela e disse:
— Espero, Elissa, que se sinta à vontade em casa de minha mãe. Não espere nada de grandioso. É tudo rústico e sem conforto. Mas acho que vai apreciar Mamãe!

CAPÍTULO 53
Tinha nevado durante a noite, não a neve ligeira de abril das regiões mais ao sul, que simplesmente realçava e refrescava a verdura nova da terra. Era a neve de abril do Norte, acompanhada de céus sombrios, com a torva insistência do inverno.
Eram apenas três horas da tarde, mas tinha sido preciso acender as luzes. O fogo crepitava como em pleno inverno, vigoroso e quente nas lareiras. Em torno da casa, o vento uivava e os céus se enegreciam rapidamente. Laurie levantou a vista da costura e olhou indiferentemente pela vidraça. Estava habituada às primaveras do Norte e não lhes dava muita importância. Mas a pobre Elissa tivera de ir para a cama com um resfriado e o irmão estava solicitamente ao lado dela. Dois dias em Grandeville tinham sido mais que suficientes para Elissa. As compressas de terebintina no peito, o nariz inflamado e vermelho, o espetáculo de desolação lá fora e o quarto estreito e alto onde estava deitada, tudo isso a convencia de que quanto mais depressa se fosse embora dali, melhor. Laurie sorria sozinha, com a cabeça mais inclinada para a costura que fazia.
Janie estava sentada ao lado, perto do fogo. Tinham tido uma conversa desconexa, toda ela referente a Nova York, à Europa e os sucessos de Laurie. Janie olhava para a filha. Todas aquelas grandiosas referências à Princesa Metternich, ao Rei Luís, à Rainha Vitória e à gentileza do Presidente Lincoln! E aquelas displicentes histórias sobre os aplausos delirantes recebidos nos teatros! Janie mordia os lábios azedamente. Bem que gostaria de acreditar que a filha estava exagerando e de que tudo não passava de vaidade pueril. Mas Laurie tinha falado de tudo com indiferença e desinteresse e, ainda assim, por insistência da mãe. Não obstante, seu sorriso tinha sido estranho e Laurie já não era tão taciturna quanto Janie sempre a conhecera. Tinha até dado voluntariamente informações sobre si mesma e sobre seus sucessos. Teria havido uma satisfação malévola naqueles frios olhos azuis e uma curiosa zombaria na voz pausada e simpática?
Laurie estava sentada perto do fogo, alta, grande, muito fria, muito remota, com o vestido de caxemira azul-marinho com uma gola grossa de rufos cor de creme e uma saia de arcos muito exagerados que devia ser a última palavra da moda parisiense. Usava ao pescoço um grande adereço de brilhantes, pérolas e rubis que, segundo ela declarara distraidamente depois de interrogada por Janie, tinha sido um presente do Rei Luís. Tinha no braço uma larga pulseira com as mesmas pedras e trazia nas orelhas os brincos que completavam o conjunto. Janie umedeceu os lábios. O Rei Luís, nada menos! Laurie tinha dito displicentemente sem um sorriso sequer que ele era muito "bom" e que ela tinha sido hóspede do palácio real. Janie sacudiu a cabeça como que em obstinada contestação. Não era possível. Tais coisas não podiam acontecer a Laurie Cauder, filha de Janie Driscoll e Robin Cauder, de uma obscura família rural e de selvagem sangue escocês! Laurie tinha mostrado à mãe outras joias também, uma medalha de ouro que lhe fora pessoalmente entregue pela Rainha Vitória, um colar de pérolas da Princesa Metternich e fabulosos anéis, pulseiras e tiaras e broches das "cabeças coroadas da Europa". Janie ouvia e olhava tudo, pensando que não devia esquecer um só detalhe para comunicar no dia seguinte as espantosas notícias ao Courier de Grandeville. Se Janie não tivesse visto pessoalmente os contratos que Laurie assinara em Nova York, talvez não tivesse acreditado em nada disso. Tinha arregalado os olhos diante das cartas de personagens ilustres, embora não pudesse compreender uma só palavra, desde que estavam escritas em francês, alemão ou russo. Mas compreendia os brasões que lhes serviam de timbre e as assinaturas. Ficara assombrada, abalada, atordoada, pois não havia acreditado muito nas notícias dos jornais de Nova York, convencida de que "naquele país" a imprensa sempre exagerava muito. Mas os recortes dos jornais de Londres tinham sido uma surpresa para ela.
Laurie não se mostrara absolutamente reservada quando era solicitada a contar esses fatos. Por quê? Ela sempre fora enigmática e secreta. Que era que agora lhe desatava a língua? Bem, pensou Janie, ela me odeia. E me joga essas coisas na cara não para que eu tenha orgulho, mas para que me sinta perturbada e humilhada.
Disse então numa voz majestosa:
— Mas, afinal de contas, está contente de estar em sua casa, não é?
Laurie a olhara calmamente e respondera:
— É claro. Do contrário, não estaria aqui.
— Não nos esqueceu então, apesar de tantas grandezas, de tantos palácios, nobres, duques e reis?
— Não, não me esqueci, Mamãe —, disse Laurie, com seu peculiar sorriso.
— É mesmo, Laurie. Os outros podem curvar-se diante de você e dar-lhe flores e presentes, mas eu ainda sou sua mãe e ainda vejo em você minha filhinha a quem eu castigava quando procedia mal. Para o resto do mundo você pode ser a maravilhosa Laurie Cauder, mas para mim continua a ser minha filhinha a quem procurei botar no bom caminho.
Laurie olhou a mãe em silêncio. Mas seu olhar assustou Janie que exclamou:
— Não me olhe assim. Até parece que você me odeia!
Laurie voltou os olhos para a sua costura e disse:
— Não odeio ninguém. Não acho ninguém de suficiente importância para merecer ódio.
Janie teve um choque. Olhou para Laurie e viu que ela a olhava com distância e desprezo. Se a odiava, era com o ódio que pode ter uma deusa por um verme. Por sua vez, Laurie observava a mãe.
Janie tinha mais de quarenta e cinco anos, mas ainda estava cheia de vida. Os cabelos ruivos habilmente pintados se arrumavam em cachos cor de cenoura em torno das faces pálidas e empastadas de ruge que se enrugavam. Estava mais magra do que nunca, mas ainda tinha muita classe a tal ponto que a própria Elissa se sentiu impressionada. Até o espírito meio rude e esfuziante de Janie havia encantado Elissa, como Laurie esperara, e Dick se mostrara divertido e encantado por ela.
Tentando sustentar firmemente o olhar de Laurie, Janie sentiu-se diminuir. Não tinha qualquer poder sobre Laurie e compreendeu, com furiosa convicção, que nunca tivera. Aquela mulher alta e dourada não era sua filha, nunca fora sua filha. Não dava a menor importância a Janie e esta se sentiu quase sufocar de raiva, ódio e humilhação.
Tudo isso era muito difícil de suportar para Janie e ela fervia por dentro. Deixou-se invadir por uma onda de pena de si mesma. Era essa a paga que tinha pelos cuidados de mãe que tivera com aquela criatura, pelos seus sacrifícios, pelas suas "noites sem dormir", pelas suas "preces", pelas suas "ambições"? Como podia aquela mulher desligar-se assim da mãe que lhe dera a vida? Se Laurie era famosa, isso acontecia graças ao "bom sangue" que corria nas veias de Janie e, por intermédio de Janie, nas dela. Janie começava a julgar-se a verdadeira fonte da fama e da gloriosa voz de Laurie e que, portanto, era indignamente espoliada e espezinhada.
Mas Laurie, estreitando os olhos, encarava a mãe, adivinhando-lhe os pensamentos. Franziu os lábios num sorriso cruel e desviou a vista para outro lado.
Apesar do seu desapontamento, do seu ódio e da sua raiva, Janie tinha na cabeça uma questão que lhe dominava todo o interesse. Laurie iria casar-se com aquele magnífico Richard Thimbleton, tão rico e aristocrático, e que era amigo íntimo de todos os poderosos dos Estados Unidos e da Europa?
Janie sorria intimamente, cheia de orgulho e de excitação. Ela tivera a ideia de precipitar um entendimento entre, segundo julgava, uma Laurie importuna e obscura e um grão-senhor hesitante. Entretanto, era Laurie quem se mostrava indiferente e repelia, enquanto o grão-senhor era humildemente ardente e suplicante.
— Você tem quase dezenove anos, Laurie —, disse ela —, e já está em tempo de se casar. Tem pensado nisso?
— Casar para quê? — perguntou Laurie, sorrindo.
— Por que não? — exclamou Janie, espantada.
— Por que é que uma mulher se casa? — perguntou Laurie com frio e sorridente desinteresse. — Em primeiro lugar, para ter casa, roupa e comida. Para fugir de um ambiente familiar desagradável. Para ter o seu lar. Para não morrer de fome ou para livrar-se da humilhação de um cantinho de caridade na casa de um irmão. Para ter uma posição na sociedade. Para ter dinheiro. Para viver em companhia do homem a quem ama. Ora, nenhuma dessas razões me impele ao casamento.
Tudo isso para Janie era escandalosa heresia e insensatez. Mas não teve uma resposta imediata para dar. O que Laurie tinha dito era verdade. Ela não tinha necessidade de se casar. Afinal, disse com alguma aspereza:
— E você acha bonito andar por este mundo para cima e para baixo solteira, como uma mulher desprotegida, sujeita a ouvir propostas equívocas, indefesa e vulnerável?
Laurie sentiu a vitalidade de seu corpo grande e belo e não pôde conter uma gargalhada.
— Ora, Mamãe, tenho a força e os músculos de um homem e sou perfeitamente capaz de enfrentar qualquer cavalheiro que tenha ideias impróprias a meu respeito. Quanto a andar pelo mundo solteira, acho a situação eminentemente agradável, desde que não vivo sujeita aos caprichos, às mesquinharias e aos ciúmes de nenhum homem. Sou uma mulher livre.
Janie olhou para ela ao mesmo tempo com ódio e com inveja. Ah, isso é que era vida, cheia de beleza, conquista, riqueza e liberdade! Por que não fora ela escolhida para uma vida assim em lugar daquela montanha de insensibilidade?
— Por que então esse camarada segue você até dentro de sua casa, choroso como um bezerro desmamado e com os olhos derretidos? — perguntou Janie, ardendo de inveja.
— Ele veio porque quis. Não lhe dei o menor estímulo para isso —, disse Laurie tranquilamente.
Largou o trabalho que estava fazendo. Recostou-se na poltrona, com os finos e longos tornozelos surgindo da barra da saia-balão e com os braços cruzados atrás da radiosa cabeça. Começou a cantarolar baixinho com os olhos voltados para o fogo.
Criatura preguiçosa e abrutalhada!, pensou Janie. Se não fosse a exímia criada francesa que a acompanhava e estava hospedada no alojamento dos empregados no terceiro e no quarto andar, os cabelos de Laurie viveriam maltratados e despenteados, os vestidos seriam amarfanhados, as sandálias acalcanhadas e as meias tortas, como ela sempre vivera quando era menina dentro daquela casa. Ela aceitava a vida, pensou Janie com amargura e virulência, como uma grande gata indolente que às vezes lambia um pires de leite, indiferente aos desejos ou à presença dos outros. Só quando a contrariavam ou aborreciam, alguma paixão se mostrava naquele rosto de pedra. Quando fora recebida na estação pelo comitê entusiástico e vira a Rua Principal toda enfeitada em homenagem a ela, tinha fechado a cara como se considerasse aquilo uma afronta. Houve quem atribuísse essa reação à sua modéstia natural, mas Janie sabia que se tratava de uma vaidade injusta e que Laurie devia ter demonstrado alguma gratidão por essas manifestações de admiração.
E tudo isso, Janie sabia com sua penetrante intuição, vinha do grande ódio frio de Laurie pelo mundo e por tudo o que havia nele.
Janie teve de repente medo daquela mulher a quem dera a vida.
Laurie perguntou então num tom comum:
— Que foi que aconteceu com Angus? Está achando por fim intolerável aquela montanha de toucinho alemão? Está com um aspecto verdadeiramente cadavérico!
Em circunstâncias normais, Janie teria embarcado com prazer em maliciosos mexericos a respeito do filho, mas a atitude de Laurie não podia deixar de intimidá-la. Laurie era perigosa, Janie sabia disso agora. Disse, portanto, fingindo o aborrecimento de uma mãe extremosa:
— Que maneira mais absurda de falar, Laurie! Angus está muito cansado pois trabalha demais. Quanto a Gretchen, parece que está esperando. Só se pode dizer é que demorou demais.
Laurie ficou em silêncio. Janie exclamou irritadamente:
— Você e Angus sempre foram tão amigos! Não sei por que fala agora dele com tanto desprezo!
— Ele não merece senão desprezo —, replicou Laurie calmamente.
— Por quê? Está subindo no mundo. Vai indo muito bem, goza de muito respeito e já tem uma pequena fortuna.
Um leve sorriso se esboçou nos lábios de Laurie.
— Como vai ele das dores de cabeça?
Janie franziu a testa.
— Está usando óculos para ler. Foram os olhos sem dúvida alguma. Ele foi sempre tão estudioso. Deve ter forçado muito a vista. — Teve um momento de hesitação. — Sofreu um colapso um tanto forte há coisa de três meses.
— Um colapso? Que foi que houve?
— As dores de cabeça. Angus passou dois meses de cama e, durante algumas semanas, mal pôde andar. O Sr. Schnitzel, que é muito bom e dedicado a Angus como um pai, mandou chamar em Chicago um médico famoso para tratar dele. Mas não era nada grave. O médico ficou um pouco perplexo e chegou à conclusão de que era nervosismo e mais os olhos de Angus.
— Nervosismo —, murmurou Laurie, rindo depois. Passou a mão pelos cabelos e disse: — Robbie está indo bem, não está?
— Com a ajuda do velho Cummings, naturalmente —, disse Janie com má vontade. — E aquela porcariazinha de Alice está esperando também, embora com aquele corpinho de nada dela vá ter um parto muito difícil. Creio que é só o prestígio do velho Cummings que faz todos ajudarem tanto Robbie.
— Não concordo com você, Mamãe. Robbie teve sempre uma inteligência muito brilhante. Não precisava do Sr. Cummings para vencer. Poderia talvez demorar mais um pouco, mas alcançaria os seus objetivos mais cedo ou mais tarde. É verdade o que eu soube ontem, que ele se vai candidatar este ano ao Congresso?
— Bem, fala-se muito nisso. Mas vai dar em nada. Pode ficar certa de que Robbie não tem personalidade para ser político. Não tem chance alguma.
— Pois eu tenho certeza de que vai vencer, Mamãe. Robbie nunca falha. Desejo de todo coração que ele vença e lhe darei toda a ajuda que puder.
Janie sentiu nova onda de ódio pela filha. Odiava-a pelo que dissera a respeito de Robbie e odiava a bela e rica voz que enchia de ressonâncias musicais o quarto sombrio e quente. Odiava-a pelo que sentia em Laurie de ódio, de força, de perigo latente e de implacável crueldade.
— Uma coisa que não compreendo —, murmurou Laurie —, é que Bertie ainda esteja vivo apesar de todos os seus excessos. Parece um cadáver em pé.
O coração de Janie começou a bater com a mais intensa dor. Olhou para a filha com uma revolta mortífera. Como se atrevia aquela criatura a ligar Bertie à ideia de morte e com aquela intenção malévola? Que mal lhe fizera Bertie? Como era que ela podia olhar para a mãe com aquele jeito sorridente, como se compreendesse e gozasse a angústia na alma de Janie?
Falou com voz trêmula e com as mãos apertadas espasmodicamente.
— Você nunca pôde gostar do pobre Bertie, nem compreender o que ele sofre. Sei que não lhe vou dar prazer dizendo que ele não tem... bebido uma gota há seis meses e que está ficando mais forte de dia para dia.
— Ao contrário, Mamãe. Fico muito satisfeita com isso por sua causa.
Laurie reprimiu um bocejo, ajeitou a saia. Janie continuava a olhá-la, com o corpo todo a tremer, como se tivesse recebido um golpe traiçoeiro e violento.
Laurie perguntou então no seu tom neutro de voz:
— Como vão indo as lojas?
Janie precisou apenas de um instante para recuperar as forças e responder. Mas o assunto era da maior importância para ela. Respondeu então com voz dura e exultante:
— Vão muito mal. É claro que eu recebo regularmente meu dinheiro. Stuart não tem coragem de deixar de me pagar, ainda que o dinheiro saia do bolso dele ou do bolso daquele detestável judeu. Mas Stuart está cheio de dívidas. A guerra não o ajudou em nada. O seu sortimento de fazendas de algodão foi naturalmente cortado. Não me surpreenderia nada se dentro de muito pouco tempo requeressem a falência dele.
Na alegria com que deu essas notícias, não notou que Laurie aprumara o corpo na poltrona e ficara muito pálida. Ouviu apenas Laurie dizer:
— Por que tudo isso lhe dá tanto prazer? Você não tem dinheiro investido nas lojas?
Janie riu, agitando os cachos ruivos.
— Quer saber por que é que isso me agrada? Porque quando Stuart entrar em falência, coisa que não deve tardar muito, Angus comprará a firma dele e daquele judeu. Forçará a saída deles. Embora você tenha tanto desprezo por sua família, Laurie, nós não deixamos de ter amigos que teriam prazer em ajudar Angus. O dia que há tanto espero está próximo. As dívidas e as extravagâncias daquele canalha, juntamente com a guerra, acabaram por arruiná-lo. Tudo agora é uma questão de poucos meses.
Num movimento rápido e enérgico, Laurie levantou-se e foi até à janela com aquele seu passo largo e tão pouco feminino. Afastou as cortinas e olhou para a escura tempestade de abril. Ouvia atrás dela a voz exultante de Janie num crescente delírio. Sentia-lhe o ódio venenoso na voz, a alegria perversa. Agarrou uma ponta das cortinas e torceu-a com raiva.
Stuart estava então arruinado. Não o vira desde a sua volta dois dias antes. Fora preciso cancelar todos os planos em vista da doença de Elissa. Laurie respirou fundo e as narinas se dilataram, ao mesmo tempo que os lábios se apertavam. Ao fim de algum tempo, sorriu, mas o seu sorriso, refletido na vidraça, não era uma coisa agradável de ver.
— Há muito tempo que espero —, dizia Janie em voz ainda mais estridente. — Há muito tempo que espero vingar-me dos seus insultos e da crueldade com que abandonou uma pobre viúva com quatro filhos nas costas. Tenho esperado o dia de vingar-me de todas as desconsiderações dele por Angus e por minha família.
Laurie interrompeu-a, perguntando:
— Onde está Marvina? E como está a pequena Mary Rose?
Janie sofreou a sua exaltação e respondeu com desprezo:
— Marvina, aquela cretina? Foi para as montanhas como de costume com aquela filha doente deles. Não me admiraria nada se a menina desta vez levasse à breca. Tosse cada vez mais enquanto Stuart roda em volta dela como um besouro tonto. E seria uma boa coisa ela morrer. Stuart gasta um bom dinheiro com a doença dela, tirando isso dos lucros das lojas e me prejudicando, evidentemente.
— Stuart está então sozinho naquela casa? — perguntou Laurie, afetando indiferença.
Janie deu uma gargalhada estridente e venenosa.
— Aquela preciosa casa! Ora, não vai ser dele mais por muito tempo. Tenho uma certa vontade de tomá-la para mim e o Sr. Allstairs não se mostra contrário aos meus desejos! Aquela casa cheia de tesouros que ele não sabe apreciar! Gostarei muito de ver a cara dele quando a casa lhe for tomada depois da falência! Será um dia de glória para mim, fique sabendo! — Os olhos dela se estreitaram de repente. — Ele nunca lhe pediu que você pagasse o que ele gastou com você? Isso, da parte dele, não me surpreenderia de modo algum.
— Não, não me pediu —, disse Laurie.
Nada poderia ser mais indiferente e entediado do que a voz dela. Saiu da janela e voltou para perto do fogo.
— Que é que se pensa da guerra aqui em Grandeville, Mamãe? Quando saí de Nova York, havia muita exaltação a esse respeito e esperavam-se desordens. Mas isso não quer dizer nada. Nova York vive perpetuamente exaltada.
Janie encolheu os ombros. Ainda estava toda arrebatada pelo seu triunfo e não era com prazer que mudava de assunto. Gostaria de continuar no seu canto de vitória.
— Ora a guerra... Os fazendeiros estão naturalmente enriquecendo e o Sr. Schnitzel e seus amigos estão fazendo bom dinheiro. Têm contratos com o Exército para toda a carne e todas as salsichas que puderem produzir. O apelo de Lincoln por voluntários não encontrou nenhum eco em Grandeville. O Sr. Schnitzel e os outros industriais e negociantes advertiram seus homens de que, se atendessem ao apelo, perderiam o emprego quando a guerra acabasse. Agora, veio o recrutamento e há muita disposição a resistir. Muita gente da alta classe está tratando de comprar substitutos e faz muito bem.
— Que belo espírito patriótico! — murmurou Laurie com desdém. — Gostaria de saber se no Sul há a mesma felicidade.
Fez um gesto de desalento, abrindo lentamente os braços, e bocejou.
— Já está quase na hora do jantar, não está? Vou-me preparar. Creio que Elissa vai poder descer. Está muito melhor.
Janie teve outra ideia e perguntou:
— A guerra está afetando a sua situação, Laurie?
— De modo algum, Mamãe. Nova York está cheia de dinheiro e de gente que se diverte com os lucros da guerra. Os teatros têm sempre casas cheias. Nunca se viu tanta alegria, tanta elegância, tanta riqueza, tanta despreocupação. Além disso, pretendo ir para a Europa, logo que acabar o meu contrato. A guerra não significa absolutamente nada para mim.
Subiu para o seu velho quarto. Sentou-se à mesa de pau-rosa. Pousou na mesa a mão grande, branca, bem feita e cheia de anéis que cintilavam à luz das lâmpadas. Por fim, pegou uma folha de papel timbrada com seu nome e escreveu:
"Tenho muita necessidade de vê-lo amanhã. É da maior importância. Chegarei a sua casa pontualmente às quatro horas. Por favor, não pense que haja nada de extraordinário em meu pedido. Não me escreva, pois é impossível. Estarei lá. Laurie."
Tocou a campainha. Uma criadinha apareceu quase imediatamente. Laurie pôs a carta num envelope e lacrou-o com uma vela, selando-o com seu anel. Voltou-se então para a criada, que a estava olhando cheia da admiração. Laurie sorriu e, tirando de uma bolsa de contas uma moeda de ouro, colocou-a na mão da empregada.
— Leve imediatamente esta carta ao Sr. Stuart Coleman. Não quero que ninguém a veja sair ou entrar. Tenho certeza de que poderá conseguir isso.
Esperou durante todo o tempo, cheia de tensão sob os sorrisos, os risos fáceis, as brincadeiras com Dick, a agradável conversa com Elissa. De vez em quando, olhava para o relógio. Mas ninguém apareceu com um recado para ela. As dez horas, foi para seu quarto e sorriu para si mesma.

CAPÍTULO 54
Com a inconstância sempre imprevisível e curiosa do Norte, o tempo mudou durante a noite. Laurie, ao acordar, viu que a neve se havia reduzido a pequenos montões cintilantes de inocentes alvura, como lã espalhada sobre a brilhante verdura da relva nova. O céu, de um cobalto puro e polido, estava inundado de luz. Os abetos e outras árvores sempre verdes em torno da casa dos Cauders mostravam as pontas de seus galhos cheios de vida.
— Tenho de reconhecer —, disse Elissa Rhinelander, ao sentar-se, bem agasalhada em peles, na carruagem dos Cauders —, que este clima nunca pode ser enfadonho. Ainda ontem, a impressão que se tinha era de que isto aqui era o Polo Norte. Eu quase esperava ver esquimós ao olhar de minha janela. Hoje, tudo está brilhante e muito belo!
Laurie olhou para as ruas que atravessavam e disse:
— Você devia passar um inverno aqui Aposto que chegaria a duvidar da existência do verão.
Havia um tom rosado sob a sua pele clara e ela estava mais animada do que Elissa jamais a vira. Parecia conter a custo a animação que a dominava. Quando Dick Thimbleton, que acompanhava ambas, fez uma observação engraçada, o riso dela estrugiu espontaneamente, como que impelido por alguma exaltação secreta. Ela nunca lhe parecera uma pessoa jovem, apesar de sua mocidade. Mas naquele momento era uma moça em flor, alegre e resplandecente, disposta a ser amável e atenciosa. Resolveu falar-lhe mais uma vez de casamento naquela tarde, pois havia em seus olhos um ar de consentimento e de ternura.
Mas, quando procurara por ela depois de deixar a irmã, descobriu que ela havia desaparecido. A Sra. Cauder saíra também na sua carruagem e o desconsolado Dick chegou à conclusão de que Laurie devia ter saído com a mãe.
Mas Laurie, envolta numa capa negra com capuz, estava naquele momento atravessando as ruas já vazias das multidões do dia, inclinando um pouco a cabeça com a capa e as saias enfunadas pelo vento ao compasso de seu passo enérgico. O capuz quase lhe ocultava inteiramente o rosto. Uma loura madeixa de cabelos lhe caía pela testa.
Esperou impacientemente na Rua Niágara a passagem de um bonde puxado a burro, acompanhados de carretas e carruagens. Batia com o pé na borda do passeio. Quando houve uma abertura no tráfego, passou rapidamente para o outro lado e seguiu o seu caminho rumo ao rio. O vento lhe batia com força no rosto e no pescoço, balançando-lhe a saia armada. Sentia o ar fresco dos Lagos e do rio e ouvia o murmúrio das águas agitadas do Canal. O rio, àquela hora da tarde, tinha perdido a sua cintilação e parecia pardacento e fosco. A margem canadense mal se distinguia contra um céu de heliotrópio. Laurie parou por um instante para respirar o ar puro e vivo. Estava junto aos rochedos da margem do rio. O capuz lhe caiu da cabeça mostrando o ouro vivo e revolto dos cabelos, enquanto o rosto voltado para o céu tinha aquela rude energia, simples e inocente, tocada de indomada selvajaria, que fizera o grande Wagner exclamar ao vê-la: "Die Walküre".
Laurie não ouviu, nem viu a aproximação de um homem velho, baixo e enormemente gordo, que se movia pesadamente na direção dela pela margem do rio. Logo a percebeu e parou, fascinado pela sua aparência. Pareceu-lhe ao coração simples que ela não era uma criatura deste mundo, mas um ser caído de um planeta mais heroico e altivo, uma criatura que não era toda bondade e gentileza, mas possuía uma brava solidão, uma indizível implacabilidade e uma terrível beleza. O seu coração, sempre inclinado à superstição, começou a bater com um estranho medo e ele quase chegou a persignar-se. Reconheceu-a, então, embora já fizesse vários anos que não a via. Sem compreender o alívio que sentia, correu para ela sorrindo e de mão estendida.
— É Laurie! — exclamou, com a voz quase perdida no estrépito do vento e da água.
Ela voltou a cabeça para ele e teve um sorriso gracioso e contente.
— Padre Houlihan! — disse, estendendo-lhe a grande mão branca, naquele momento nua de joias.
Ela o olhou, ainda sorrindo. Pobre homem, como envelheceu, pensou ela. Os olhos azuis estavam cheios de tristeza e bem esmaecidos e o grande rosto corado estava sulcado de rugas como as que produzem uma tristeza profunda e crônica. Sob as abas do chapéu preto redondo, a pequena franja de cabelos era branca e esparsa. Os fortes ombros estavam caídos, como se tivessem de carregar um peso superior às suas forças. Mas o sorriso, amplo e infantil, ainda possuía a simplicidade, o amor e a bondade de que ela se lembrava e que nada poderia destruir.
— Quase não reconheci você, Laurie —, disse ele, olhando-a com admiração quase ingênua. — Como você está bonita e que orgulho sinto de você! Stuart me disse que você tinha chegado, mas eu ainda não a tinha visto nem de longe. É da casa dele que venho.
O mundo está duro demais para ele, pensou Laurie, mas ele ainda não sabe disso. Nunca tivera grande amizade pelo padre e nem mesmo muito convívio com ele. Tinha sempre havido nos olhos dele uma expressão que a perturbava, mesmo na infância. Ele estava a olhá-la naquele momento com a mesma expressão honesta e franca.
— E como vai Stuart? — perguntou ela naquela sua voz neutra que nada revelava. — Vou agora mesmo fazer-lhe uma visita.
O padre Houlihan ficou espantado e era um homem tão simples que não conseguiu esconder a sua súbita perturbação. Tinha passado a última meia hora com Stuart e este lhe parecera agitado e inquieto, mas nada dissera de uma visita que esperasse de Laurie. Na verdade, parecera ansioso pela saída do amigo, coisa que o padre não chegara a compreender, saindo um pouco depois, um tanto magoado. Generoso como sempre nos seus pensamentos, atribuíra tudo ao cansaço e às preocupações de Stuart, que com certeza queria descansar. Agora, estava esperando sozinho naquela casa vazia e aquela jovem mulher ia sozinha ao encontro dele.
Olhou ansiosamente para Laurie e viu que ela o olhava com um sorriso frio que o repelia.
Disse então:
— Quer que eu a acompanhe, Laurie? O caminho da beira do rio é um pouco difícil e eu ainda tenho uma coisa para dizer a Stuart de que me esqueci.
— Não, Padre, muito obrigada —, disse ela calmamente.
Mas ele não se afastou, embora houvesse nela uma impaciência bem visível.
— Tenho sabido de coisas maravilhosas a seu respeito —, disse ele. — Quase não posso acreditar que a pequena Laurie tenha sido capaz de tudo isso! É verdade que vai cantar no Auditório no sábado? Pode ter certeza de que estarei lá, feliz e orgulhoso!
— Espero não o decepcionar, Padre —, disse ela e a sensibilidade pronta do padre logo percebeu a ironia em sua voz. Teve imediatamente pena não dela, mas de Stuart. Entretanto, isso era ridículo.
— Boa tarde, Padre —, disse ela, friamente. — Espero vê-lo ainda antes de voltar para Nova York.
— Tem certeza de que não quer que eu a acompanhe, ao menos durante parte do caminho, Laurie? Pode haver algum desordeiro na margem do rio. Nunca se sabe...
— Sei muito bem tomar conta de mim mesma, Padre. De qualquer maneira, muito obrigada.
Em seguida, ela inclinou a cabeça e se afastou dele com o seu passo rápido. O Padre Houlihan ficou ali a olhá-la até que um bosque de abetos a escondeu, numa curva do rio. O padre ficou sozinho, fustigado pelo vento, cercado pela interminável desolação do rio, do céu e das árvores. Teria ela estado realmente ali? Não deixara uma impressão sensível no ar e nenhuma aura de sua presença. Depois, o padre fez involuntariamente o sinal-da-cruz e sentiu o coração cheio de tristeza.
Embora ele não soubesse disso, Laurie se escondera no bosque de abetos e esperava impacientemente para ver se ele ia segui-la. Com todo o poder de sua inexorável vontade, desejou que ele se fosse. Depois de longos minutos, saiu de seu esconderijo e olhou para o lugar onde o havia deixado. O padre desaparecera. Laurie continuou o seu caminho, sorrindo um pouco.
Chegou por fim à casa de Stuart que se erguia à luz vesperal como um templo grego, flutuando no ar claro e trêmulo, com as suas colunas rebrilhando e as vidraças azuis do reflexo do céu. Era a imaginação que a fazia parecer abandonada e deserta, isolada num círculo irreal de desespero? Empurrou o portão resolutamente e entrou. Subiu lentamente os degraus de pedra e bateu a aldrava da porta cujos ecos repercutiram desoladamente em torno dela.
Foi Stuart quem abriu a porta. Estendeu a mão e puxou-a para o pavimento polido preto e branco do vestíbulo. À luz esmaecente da tarde que chegava ao vestíbulo, Laurie viu diante dela, fatigado e devastado, mas sorridente e ainda imponente, o esplendor intenso e violento que ele tivera. Havia manchas grisalhas nas têmporas e uma grande mecha branca se estendia da fronte para as ondas dos cabelos. O rosto estava muito vermelho e muito marcado pelas dissipações e pelas canseiras e a boca cheia e sensual estava mais murcha apesar do sorriso. Mas quando ela olhou para ele (e era tão alta que os seus olhos estavam quase no mesmo nível dos dele), o coração lhe bateu descompassadamente e uma longa onda de emoção, sensual e perturbadora, lhe percorreu todo o corpo. Sentiu-se fraca e tomada de uma terrível e trêmula alegria.
Olharam-se em silêncio, com as mãos juntas como se estivessem soldadas por fortes impulsos elétricos, e se limitavam a sorrir. Depois do que pareceu um tempo enorme, Stuart tirou-lhe a capa e jogou-a sobre uma cadeira do vestíbulo. Tornou a tomar-lhe a mão e levou-a para o salão silencioso e deserto. Ela olhou em torno, quase aturdida. Ali estavam as belas poltronas, os reposteiros, os tapetes de que nunca se havia esquecido, a profusão de flores, o fogo rosado que tremia no fundo da lareira de mármore. O ar estava cheio de perfume das rosas da estufa e do cheiro mais quente do carvão que ardia. Não havia um som, um murmúrio que fosse na grande casa. Estavam inteiramente a sós.
Pararam ali de novo e se olharam. O vestido preto de Laurie lhe realçava a beleza dourada. Stuart a olhava em silêncio, com os cantos da boca trêmulos.
Ela se afastou um pouco dele, com o seu enigmático sorriso.
— Vamo-nos sentar? — disse ela e foram essas as primeiras palavras que ela lhe disse.
Ela se sentou sem pressa diante do fogo e, um momento depois, ele se sentou ao lado em outra cadeira. Ele se curvou para ela com as mãos entrelaçadas entre os joelhos, a cabeça para a frente e os olhos fitos quase rudemente no rosto dela. Ela tinha nas mãos um lenço de rendas e o olhava serenamente, embora o busto arfasse imperceptivelmente.
— Laurie —, murmurou ele ternamente.
Ela agitou o lenço diante do rosto, deixando-o ver apenas de relance os olhos e a boca sorridente.
— Como vai, Stuart? — perguntou ela tranquilamente.
Ele apertou os lábios sem responder. Ficaram de novo em silêncio. A queda dos carvões na lareira e o leve movimento do lenço de Laurie eram os únicos ruídos no salão, Laurie sentiu de novo a curiosa impressão de abandono e vazio da casa. Até os móveis pareciam ter-se afastado, de modo que o salão parecia maior do que lhe havia ficado na lembrança e mais frio. Stuart parecia sentir também o ambiente estranho da casa, pois dava a impressão de retrair-se dela e fundir-se na frieza geral. Moveu-se um pouco e esse movimento bastou para que os olhos dele se voltassem para ela, ansiosos e à espera.
— Ainda não me deu parabéns pelos meus sucessos, Stuart —, disse ela, afastando resolutamente da consciência a fria luz que se coava pelas vidraças. — Afinal de contas, sejam eles o que forem, só você os tornou possíveis.
— Tive muita vontade de ir assistir à sua estreia na Ópera, mas Mary Rose estava muito doente. Fui forçado a levá-la com a mãe para as montanhas, onde vão passar o verão. Mas tenho na verdade muito orgulho de você, Laurie. Deve saber muito bem disso.
Mas ela viu que o momento mágico tinha passado e que ele estava de novo emaranhado em suas preocupações, a ponto de quase esquecê-la.
— Sinto muito a doença de Mary Rose —, disse ela, tentando controlar a sua impaciência. — Mas pensei que ela estivesse melhor. Foi o que você me disse numa carta que recebi na Europa.
Ele se voltou para ela, tentando sorrir.
— Ela estava melhor. Mas teve um ataque violento neste inverno e o médico recomendou a ida para as montanhas. A última carta que recebi foi muito animadora. Talvez eu me esteja preocupando à toa.
Olhou para ela apaticamente.
— Você agora é uma mulher muito bela, Laurie. Tenho orgulho de você. Mas não deve esquecer-se de nós aqui.
Ela estava indignada. Que tinha acontecido de errado? Olhou-o fixamente, sentindo a vibração no corpo que lhe doía de novo. E ele a olhava, com os olhos velados de tristeza e de dor impotente. Era a casa, aquela que agora lhe parecia horrível. Ele estava preso dentro dela e não podia vê-la entre as suas paredes.
— A guerra lhe está criando muitos problemas, Stuart? — perguntou ela mecanicamente.
Talvez fosse inteiramente errado ter dito isso, porque ele se levantou com uma impetuosidade que bem lhe traía os receios e os tormentos.
— Terríveis problemas! — exclamou ele. — Se isso continuar ainda por muito tempo, estarei arruinado.
Ela se levantou também, decidida a tirá-lo daquela casa e das lembranças que a enchiam.
— Isto aqui dentro está tão abafado, Stuart. Vamos para o ar livre?
— Está bem, Laurie.
Saíram para o vestíbulo e Stuart tornou a colocar-lhe a capa sobre os ombros. Pegou o seu capote e o chapéu de castor e abriu a porta. Saíram juntos lado a lado, em silêncio.
Tinha havido de novo uma mudança de tempo. O vento havia caído. O céu era um claro azul ultramarino no qual o brilhante crescente da lua era visto entre os galhos descarnados de um álamo, como uma luz de abajur através de uma filigrana delicada como uma renda. Pássaros se chamavam de árvore para árvore num silêncio solene como o de uma catedral. Abaixo dos gramados que desciam quase até à margem, o rio rolava sombrio e turbulento. Nada se podia ver na margem canadense a não ser algumas luzes que piscavam. A cena era imponente em sua solidão e tinha uma religiosa tranquilidade, triste e melancólica.
Enquanto Laurie e Stuart desciam para o rio, a lua crescente se destacou das árvores. A cabeça de Laurie estava descoberta e o vento lhe agitava docemente os cabelos. Mil pensamentos lhe corriam pela cabeça impaciente, à procura de uma chance para o que ela queria dizer.
Laurie tinha uma inteligência pronta e flexível de que poucos suspeitavam. Tinha chegado até ali, através de oceanos e de grandes extensões de terra para aquele momento. Tinha-se encaminhado para ele através de toda sua vida. Por que então lhe faltavam as palavras e por que estava ali ao lado de um Stuart quase inconsciente da presença dela? Que tinha acontecido?
Tinha consciência de sua humilhante incapacidade. De repente, não pôde mais esperar. Foi seu próprio desespero que a fez voltar-se impetuosamente para Stuart e tocar-lhe o braço com a mão. Sentiu com prazer os músculos dele contraírem-se involuntariamente e viu os olhos cheios de assombro voltarem-se para ela.
— Stuart —, disse ela, sentindo a voz forte tremer —, nunca agradeci sua ajuda...
Os olhos cansados se iluminaram, cheios de afeto.
— Nunca desejei seus agradecimentos, Laurie. Bastou-me a alegria de poder ajudar. Não lhe posso dizer o orgulho que tenho de você. Parece impossível que minha pequena Laurie se tivesse tornado tão...
Ela replicou numa explosão:
— Nada disso me interessa, Stuart! Nunca quis nada disso, nunca me interessei! Só fiz isso porque era esse seu desejo, porque eu sabia que você ficaria contente, porque você desejava! Deve saber disso, Stuart!
Ele ficou de repente imóvel como se fosse de pedra. Ela se aproximou dele e todo o longo controle e inércia de sua vida foi varrido como palha pelo fogo. Ela exclamou:
— Não compreende, Stuart? Tenho amado você toda a minha vida! Fiz tudo o que você queria porque pensei que era essa a maneira de chegar até você! Amei você desde a primeira vez que o vi no cais de Nova York! Toda a minha vida, Stuart! Nada significa para mim senão você!
Em seguida, ela começou a chorar. As lágrimas lhe rolavam pelas faces. Ela ainda segurava o braço de Stuart e se aproximou tanto que seus corpos se tocaram.
Ele voltou a cabeça para ela e murmurou:
— Você não sabe o que está dizendo, Laurie. Sou quase vinte e dois anos mais velho do que você e tenho idade bastante para ser seu pai. Você é muito jovem ainda. Pensa que me ama, mas o que sente é apenas gratidão, Laurie. Não fale comigo assim. Você não me conhece, Laurie. Não sabe a que se está expondo em vista de sua ignorância e de seu romantismo imaturo. Não me tente, Laurie. Você não sabe o que está fazendo.
— Stuart —, disse ela com férvida ansiedade —, amo você, sempre amei. Por que acha que voltei? Não havia nada que me fizesse vir até aqui senão você. Meus estudos em Nova York, meu canto na Europa, tudo isso foi um caminho para voltar para você — Olhou para o rosto congestionado e duro e suplicou: — Beije-me, Stuart!
Ele afastou as mãos dela. Todos os movimentos dele eram delicados. Mas tremia dos pés à cabeça. Ele estava diante dela e derramava para ele numa vaga irresistível de desejo. Ela o ouviu dizer:
— Não, Laurie! Pelo amor de Deus! Você tem de me escutar. Nada tenho para lhe dar, nem para lhe oferecer. Sou um homem arruinado, Laurie. E não posso nem me casar com você.
— Você pensa que eu ainda sou uma criança? — exclamou ela. — Quem falou de casamento? Sou uma mulher, Stuart, e amo você. Não o deixarei mais. Ficarei com você para sempre!
Os olhos de Stuart se voltaram para ela, como se ele a estivesse vendo pela primeira vez. Não era mais a jovem Laurie que ele tinha conhecido. Acreditava nela agora. O rosto dela flutuava diante dele, ardente e cheio de desejos e os olhos eram luminosos e doces como o céu da manhã. Ela havia colocado as mãos nos ombros dele e o seu contato atravessava o pano, queimando-lhe a carne.
Entretanto, algum senso de honestidade o fez parar. Que era que sabia aquela menina de dezenove anos? Como poderia ela saber o que estava fazendo com ele, um homem de mais de quarenta anos, com uma vida conspurcada de anos, aventuras e desejos? Era fantástico, terrível. Ele poderia possuí-la com a maior facilidade e conhecer o êxtase, o arrebatamento e o prazer. Mas, pensou atordoadamente, ele a amava. Sim, sempre a tinha amado. Pela primeira vez na vida, amava uma mulher e era tarde demais.
Tinha vivido toda a sua vida sem controle. Tinha sempre feito tudo o que desejava com violência, luxúria e brutalidade. Tinha-se apoderado de tudo o que desejara. Ainda que algumas vezes o resultado fosse calamitoso, sempre se sentira satisfeito. Nunca sentira compaixão, nunca se detivera diante de qualquer consideração de ordem moral sempre que desejava uma coisa, fosse uma mulher, dinheiro ou qualquer luxo.
Mas aquela era Laurie, a pequena Laurie, e ele a amava. Não era apenas uma mulher, mas alguma coisa terna, querida e indefesa. Via agora que sempre a tinha amado desde o início, desde a infância. Ela era infinitamente cara e preciosa para ele. Estava atordoado com o seu desejo e o seu desespero, enquanto o coração lhe batia aceleradamente.
Ela não sabia o que estava fazendo ou o que aquilo significava. Tinha de mostrar-lhe e fazê-la recuar com horror e cólera. Não se atrevia a olhar-lhe a boca. Estendeu a mão e agarrou-lhe brutalmente o seio esquerdo. Empurrou-lhe a cabeça para trás com a outra mão e beijou-a, separando-lhe os lábios, com o que lhe pareceu tremenda ferocidade. Sentiu, de repente, um impulso de ternura e de pena. E, então, não estava mais tentando apavorá-la, nem horrorizá-la.
Só muito tempo depois, dentro do seu delírio, foi que ele percebeu que Laurie não havia fugido dele, não chorara, não protestara, nem se esquivara. Tinha os braços passados pelo pescoço dele, retribuía-lhe os beijos com igual frenesi e murmurava coisas estranhas e incoerentes.
De repente, ele a levantou nos braços e tomou o caminho da casa. Ela descansou a cabeça no ombro dele. Chegaram ao vestíbulo e Laurie não achou mais a casa desolada e abandonada, mas quente, encantada e cheia de cores que dançavam.
Quando Stuart subiu a bela escadaria, ela lhe procurou a boca, cheia de extático desejo e triunfante alegria.

CAPÍTULO 55
Janie bateu com força na porta do quarto de Laurie e entrou logo em seguida, sem esperar permissão.
Tinha feito muito calor durante a noite para o mês de abril e a luz do sol se derramava, cascateante, pela cama de Laurie. Ela se sentou na cama ao ver a mãe irromper de cara fechada no quarto. Janie já ia abrir a boca para uma série de palavras iradas, mas parou, estupefata. Laurie estava sentada na cama inteiramente nua, sem a menor vergonha ou, evidentemente, qualquer consciência de sua nudez.
— Que é, Mamãe?
Janie, atônita, olhou para a filha, cujos ombros dourados e seios pontudos estavam parcialmente ocultos por longas massas de cabelos. Não via Laurie nua desde que a menina tinha seis anos de idade e diante da súbita realidade daquela mulher feita e voluptuosa compreendia afinal que tinha uma estranha dentro de casa. Por mais libertina e experimentada que fosse, Janie sentiu-se chocada e estranhamente amedrontada.
Recobrou por fim o fôlego e perguntou:
— Quer-me dizer o que significa essa lamentável exibição? Por que está assim nua na cama?
Laurie olhou para si mesma sem se perturbar e até um pouco surpresa. Sorriu então, sem fazer o menor esforço de cobrir-se.
— Ora, Mamãe, durmo sempre assim. Não suporto camisolas.
Estendeu os braços longos e belos e puxou o cordão da campainha. Recostou-se nos travesseiros e bocejou sem constrangimento e indolentemente como uma gata. Sacudiu os cabelos dourados, passou as mãos por eles e deixou-os cair sobre o corpo. Olhou Janie com curiosidade, mas sem cinismo.
Janie deixou-se cair numa cadeira. Estava tão pálida que as sardas se lhe destacavam no rosto. O seu choque era cada vez maior. Evitava olhar para os seios de Laurie e não podia também encará-la nos olhos. Na sua confusão, fixou o olhar na testa calma de Laurie.
— Presumo —, disse ela com voz rouca e trêmula —, que você não vê nada de vergonhoso, nem de indecente nisso? Sem dúvida, isso faz parte de seu procedimento geral.
Laurie riu.
— Mas vergonhoso e indecente por quê? Durmo sozinha. E quando não durmo, tenho certeza de que a outra pessoa não se opõe.
— Que é que está dizendo?
— Escute, Mamãe, que importância tem a minha maneira de dormir? Gosto assim e creio que é só isso que interessa. — Fez uma pausa e acrescentou: — Que era que me queria dizer?
Numa voz trêmula de ódio e de raiva, Janie retrucou:
— Tocou a campainha pedindo seu café, não foi? Quer que a empregada veja você nesse... nesse estado? Por favor, cubra-se, se isso não for um esforço muito grande. Esta casa sempre foi respeitável e eu não quero que as empregadas saiam por aí contando coisas.
Laurie encolheu os ombros. Estendeu para fora da cama as pernas longas e perfeitas. Fascinada, Janie foi incapaz de desviar os olhos. Viu Laurie cobrir displicentemente com um peignoir azul o esplendor de sua nudez. Laurie apanhou uma escova em cima da penteadeira e passou-a rapidamente pela riqueza dos cabelos, sem olhar para o espelho. Era tão inconsciente de sua beleza ou tão indiferente a ela quanto uma árvore em flor. Começou a cantarolar e sua voz plena e poderosa encheu o quarto. Janie sentiu uma opressão peculiar no peito magro; todos os seus nervos vibravam com intolerável malignidade. Como eram horrivelmente injustos o mundo e o destino! Dar tudo aquilo a uma mulher desinteressada e desavergonhada e nada a outras!
Exclamou então do fundo da sua malevolência e inveja:
— Quer parar com esses miados e me escutar?
Laurie olhou-a por cima do ombro com sincera surpresa. Tinha esquecido a presença da mãe.
— Desculpe, Mamãe. Pode falar.
Tremendo com os esforços que fazia para controlar-se, Janie quase gritou:
— Posso perguntar a Vossa Alteza se sabe que horas são?
— Não. Que horas são? — disse Laurie. Olhou para o céu e riu: — Já deve ser quase meio-dia.
— Quase meio-dia, hem? E isso não significa nada mais para você, não é? Pois fique sabendo que para mim significa muito. Significa que você só entrou nesta casa respeitável quase ao amanhecer. Significa que eu passei a noite sem dormir, cheia de preocupação, em companhia de seus belos amigos, um dos quais, pelo menos, andou o tempo todo de um lado para outro, na ansiedade que sentia por você, só Deus sabe por quê! Os homens são tão cegos e idiotas! Quando afinal me deixaram, fiquei esperando sozinha. E então, ouvi as rodas de uma carruagem no fim da rua, quase atrás da carroça do leite. Ouvi a carruagem parar. Não se aproximou mais. Logo depois, você apareceu, evitando a luz dos lampiões como uma prostituta e entrou furtivamente pela porta dos fundos.
Levantou-se de um salto, com o rosto pálido a esfuziar de fúria.
— Quer ter a bondade de esclarecer-me quanto a esses reprováveis fatos?
Laurie voltou-se para a mãe e disse muito calmamente:
— O que eu faço é exclusivamente de minha conta. Nestes últimos seis meses, mandei-lhe dois mil dólares e numerosos presentes. Se quiser, deixarei esta casa imediatamente.
Janie ficou estarrecida e sem poder falar diante de tanto atrevimento. Não estava mais representando. Pegou o espaldar da cadeira. Esta lhe escorregou das mãos e caiu no chão, virando-se. Olhou em torno de si cegamente, com o corpo oscilando um pouco. Deixou-se então cair na cama quente e perfumada de que Laurie se levantara pouco antes. E Laurie a olhou durante todo esse tempo impassivelmente. Disse então:
— Não sou nada para você e você não é nada para mim. Tem de compreender isso.
— Como é que pode dizer isso a mim que sou sua mãe, Laurie? — perguntou Janie com voz fraca e trêmula. — Que foi que eu fiz para merecer tamanha crueldade? Crueldade —, repetiu, cheia de amarga surpresa por não ter sabido antes que Laurie era cruel. Com isso, seu medo aumentou e também sua desolação.
— O que estou querendo dizer apenas, Mamãe, é que não se deve meter em minha vida. Não estou querendo ser insolente, nem insensível. Mas não sou mais uma criança. Sou uma mulher e tive a experiência de uma mulher. Tenho alguma fama e não dependo absolutamente para proteção e para abrigo de você ou de meus irmãos.
— Para que voltou, então, Laurie, se sua mãe e seus irmãos nada representam para você?
— Bem, reconheço que empreguei mal as palavras. Não devia ter dito talvez que você nada é para mim e não devia ter dado a entender que também assim considero meus irmãos. Tenho minhas simpatias. Não teria voltado a Grandeville se nada houvesse aqui para mim. Nunca me deixei levar pelo sentimentalismo, nem por aqueles que estabeleceram padrões de sentimentalismo para serem seguidos por outros entes humanos.
Mas Janie olhou fixamente para a filha e Laurie compreendeu que a mãe não era tola e não se deixava enganar com palavras bonitas.
— Que veio fazer aqui, Laurie? — perguntou ela.
Aquilo se estava tornando cansativo. E também perigoso. Laurie se sentia secretamente exasperada e impaciente. A sua posição era firme e segura, acima de qualquer escândalo, mas era preciso levar em conta a pessoa de Stuart.
— Já não lhe disse, Mamãe? Afinal de contas, tenho o direito de ser também um pouco sentimental.
— Veio então jogar o seu triunfo em nossa cara, não foi?
— Talvez —, disse Laurie, rindo. — Eu também sou humana...
Bateram discretamente na porta e a empregada a quem Laurie tinha dado a moeda de ouro entrou com a bandeja do café. Laurie fez sinal com um sorriso para que ela deixasse a bandeja na mesinha de cabeceira. Sentou-se indolentemente na cama e examinou o mingau fumegante, os ovos e o bacon com sadio interesse. O robe azul se entreabriu, revelando-lhe as coxas redondas e perfeitas. A empregadinha ficou vermelha, mas não pôde afastar a vista.
Mas Janie olhou para a empregada e se lembrou de outra coisa. Ali estava alguém sobre quem ela podia lançar o vitríolo de sua raiva e de sua humilhação sem o menor perigo de reação ou de derrota. Gritou:
— Berta! Acabo de saber que você saiu sem pedir licença na noite de quinta-feira, embora fosse a hora do jantar e a outra empregada estivesse doente, e que só voltou quase no momento em que se ia servir o jantar. Qual é a explicação que tem para me dar? Era por acaso a sua noite de folga ou teve a impressão de que era?
Berta, amedrontada, torcia as mãos à frente do avental e lançou um olhar suplicante a Laurie. Esta levantou a cobertura de prata de um prato e disse amistosamente:
— Não brigue com Berta, Mamãe. A culpa foi minha. Tinha alguns assuntos legais para discutir com Robbie e mandei Berta levar uma carta a Alice, perguntando se eu podia vê-los ontem à noite para uma longa conversa e uma consulta. Parece que perturbei imperdoavelmente a ordem desta casa. Primeiro, afastei Berta de seus deveres e, depois, fiz minha cara Mamãe ficar metade da noite acordada, esperando a minha volta. Creio que adquiri hábitos cosmopolitas que, infelizmente, não se aplicam a Grandeville.
A expressão de Laurie era amistosa, mas ela estava intimamente irritada. Era odiosa e humilhante aquela contingência de mentir e usar de subterfúgios, tão necessária numa cidade pequena e, ainda mais, no seio de sua família! Era intolerável.
Janie olhou para a filha e a sua fisionomia se abrandou um pouco. Voltou-se então para Berta e disse com voz menos áspera:
— Vá trabalhar. Estou vendo que não teve culpa. Deve naturalmente obedecer à Srta. Laurie em tudo o que ela deseje, mas veja lá como anda.
Laurie franziu levemente o cenho. Nesse momento, entrou sua empregada pessoal lamentando não ter ouvido a campainha e preparada para uma explosão de Laurie. Mas, com surpresa para Laurette, Laurie recebeu-a afavelmente.
— Tenha a bondade de encher de novo o bule de chá para mim, Laurette —, disse Laurie. — Talvez a Sra. Cauder queira tomar uma xícara comigo.
As duas empregadas saíram e Janie e Laurie ficaram de novo sozinhas. Laurie comia com prazer embora estivesse muito aborrecida e Janie a olhava em silêncio. Laurette voltou com o bule de chá e serviu Janie com extrema solicitude. A atitude dela abrandou Janie, que lhe agradeceu gentilmente. Ah, as empregadas de Nova York tinham um jeito que nunca se podia encontrar entre as rústicas de Grandeville. Invejava Laurie por ter uma empregada assim. Laurette retirou-se discretamente para o quarto de vestir de Laurie, a fim de preparar os vestidos de sua patroa para o dia.
Janie tomou o chá enquanto Laurie devorava os ovos, o bacon, os bolinhos. Como era pouco distinto ter um apetite assim, pensou Janie, sem se envergonhar absolutamente disso. Laurie lhe lembrava uma camponesa, cheia de vitalidade, de grosseria e de fome. Esses pensamentos a aplacaram um pouco.
Laurie recostou-se nos travesseiros e suspirou voluptuosamente.
— Como maravilhosamente! — exclamou ela. — Nem em Nova York ou Londres há ovos tão frescos assim! Quanto a Paris, nem é bom falar! Só se arranja um pãozinho duro e uma xícara de um café abominável. Parabéns pela sua cozinheira, Mamãe!
Janie sorriu de orgulho.
— Gordon é preciosa. Uma comida substancial sem requintes, mas o que pode haver de melhor.
Laurie olhou pela janela e murmurou:
— É difícil imaginar um dia bonito assim em Grandeville no mês de abril. Amanhã, vamos ter neve de novo, com certeza. —. Olhou para a mãe e disse: — Sempre fico mal-humorada antes do café, Mamãe. Peço-lhe perdão. Estou tão habituada a entrar e sair como bem me agrada que nunca me ocorreu que lhe devia uma explicação. Sinto muito que lhe tenha dado aflição.
O tom de Laurie era tão gentil e tão contrito que o ânimo de Janie se recuperou por completo. Franziu os lábios com severidade maternal:
— Temos de pensar nos vizinhos, Laurie, para não falar da minha ansiedade natural. É uma coisa que uma mãe tem de aprender a suportar com a maior filosofia possível, o egoísmo dos filhos. E não acho bom uma mulher andar sozinha à noite pela rua. Nunca se sabe.
— Ora, Robbie me trouxe até em casa na carruagem dele —, disse Laurie, de novo aborrecida com a necessidade de informar Robbie de que ele a levara para casa naquela madrugada. Era horroroso isso. — E não estava andando pela rua. Pedi que a carruagem parasse na esquina para não incomodá-la, porque sei que seu sono é muito leve.
Mas já estava aborrecida. Naqueles últimos três anos, não tivera necessidade de anular ou apaziguar ninguém. Esse papel cabia aos outros. Excessivamente horrível. Laurette apareceu para perguntar qual era o vestido que Laurie pretendia usar no recital daquela noite no Auditório. Laurie franziu a testa. Tinha-se esquecido.
— Qualquer coisa, Laurette! Mas nada de muito exagerado. Talvez o de cetim verde com rendas.
Olhou para a mãe e começou a tirar o robe. Janie ficou meio confusa, alegou os serviços de casa de que tinha de cuidar e saiu do quarto.
Laurie esperou que a porta se fechasse e tirou o robe. A luz do sol, dourada como a sua carne, banhou-lhe o corpo.
Laurie sorriu e começou a cantar baixinho. Laurette escutou-a, encantada. Mademoiselle estava muito contente naquela manhã. E aquele canto era o canto de uma mulher que amava, de uma mulher que tinha um amante. Laurette nunca ouvira Mademoiselle cantar assim. Era muito interessante. Será que Mademoiselle havia afinal cedido àquele adorável Monsieur Thimbleton?

CAPÍTULO 56
Laurie ficou irritada quando um mensageiro lhe levou o programa apressadamente feito para o recital daquela noite. Com ingenuidade e inocência, a comissão encarregada do espetáculo fazia extensos comentários sobre a raça de Laurie e anunciava que ela cantaria "uma seleção de cantos escoceses, sempre caros ao coração dessa americana de origem celta. Embora a Srta. Cauder seja famosa pelas suas magníficas interpretações de várias óperas, especialmente as de Robert (!) Wagner, um músico alemão de considerável competência, e embora ela tenha concordado em cantar essas óperas para a sociedade elegante e refinada de Nova York, vai apresentar ao compreensivo público de Grandeville as árias e baladas simples tão apreciadas pelos corações simples e tão caras aos que preferem a sinceridade a árias cantadas em línguas estrangeiras e compostas por músicos que desconhecem a honestidade e a simplicidade do povo americano. Os acompanhamentos ao piano serão feitos pela Srta. Rachel Ellicott, descendente do fundador desta florescente cidade."
Apesar de tudo, Laurie não pôde deixar de rir quando leu esse programa impresso. Cantos escoceses, pois sim! Aqueles imbecis com sua "honestidade e simplicidade"! Talvez aquela gente não tivesse pensado que ela teria necessidade de ensaiar as "árias e baladas" com a Srta. Ellicott, que provavelmente fungava, tinha pés grandes e mãos piores. Nada havia a fazer senão ir ao Auditório, pegar a Srta. Ellicott entre seus lenços e espirros e ensaiar de qualquer maneira os "cantos escoceses" com ela antes do recital.
Como se atreviam a mortificá-la com a sua adoração! Que presunção a deles de que estivessem fazendo honra a ela, que tinha sido homenageada pela Rainha Vitória, pelo Rei da Baviera, pelos Bonapartes! Julgavam sem dúvida que estavam sendo condescendentes com o seu culto amável e deviam estar dispostos a fazer críticas rústicas à sua arte. Em Nova York, dariam gargalhadas quando ela dissesse isso. Era uma mortificação por mais ridícula que fosse.
Reagiu então com o seu senso de humor sempre vigoroso. Passou em revista o seu repertório. Não havia uma só ária ou balada escocesa. Entretanto, a Srta. Ellicott devia ter várias entre as suas músicas.
Não lhe faria mal algum dar àqueles rústicos um pouco de prazer, refletiu ela. Encontrou duas músicas e ficou muito quieta, olhando para elas. Tinham sido escritas para ela em Paris por um amigo, um músico de grande competência um tal Bizet, que ainda iria escrever uma ópera famosa. Tinha feito um arranjo muito hábil da música, mas sem obscurecer a pura beleza e simplicidade dos cantos naturais. Ficou de repente com os olhos fixos e muito pálida sentindo no coração uma indizível angústia.
Pensava: daqui a cinco dias, tenho de voltar para Nova York. Durante esse tempo, tenho de ligá-lo a mim de uma maneira que ele nunca mais esqueça. Temos uma vida no futuro, juntos. Nada até hoje me derrotou. Nada me derrotará agora. Ele é meu e eu sou dele e tenho de fazê-lo ver que isso será para sempre.
Mostrou o programa do Auditório de Grandeville a Elissa Rhinelander e Dick Thimbleton e se alegrou com o riso deles. O riso de Elissa foi um tanto cruel. Dick pareceu comovido e isso aborreceu Laurie mais do que nunca.
— Eles têm amor por você —, dissera ele. — Afinal de contas, são seus velhos amigos e têm orgulho de você.
— Insultam-me com esse orgulho —, dissera ela altivamente.
Dick a olhara com obscura tristeza. Havia ocasiões, pensou ele, em que Laurie era inteiramente vulgar e insensível. Entretanto, essas qualidades faziam dela o que ela era: exuberantemente sadia, indomável e robusta, cheia de energia e poder. Laurie estava sustentando o olhar dele. Não gostava de vê-la estreitar os olhos daquele jeito. Mostravam um brilho frio e calculista. Ele amava Laurie, sim. Mas não aquela Laurie que absolutamente não lhe agradava.
Olhou para a irmã e disse:
— Elissa, minha querida, sinto muito, mas acho que temos de voltar para Nova York antes que Laurie parta de Grandeville. Por favor, creia em mim. Há necessidade disso.
Elissa sentiu-se confusa. Volveu os olhos do irmão para Laurie, que estava sorrindo indiferentemente. Elissa encolheu os ombros. Não entendia nada, mas era de presumir que Dick soubesse o que estava fazendo.
Laurie deixou-os, voltando para seu quarto. Os dois irmãos ficaram sozinhos e Elissa disse, arqueando as sobrancelhas:
— Bem, acho que está na hora de me dar explicações.
Dick deu um suspiro.
— Sei perfeitamente quando recebo ordem de despedida. De um modo geral, sempre soube que nada adiantava com Laurie. Aconteceu alguma coisa com ela aqui. O que foi não sei, mas a verdade é que ela me pôs de lado como se eu tivesse perdido toda a importância. Ela vai ficar satisfeita quando eu me for embora. É tudo o que posso fazer por ela agora.
Em seu quarto, Laurie estava escrevendo às pressas o seguinte bilhete:
"Vou encontrar-me com você amanhã, às quatro horas, na beira do rio, defronte de sua casa. Tenho muito o que lhe dizer e não tive oportunidade ontem." Releu o que tinha escrito e teve a impressão de que havia em suas palavras um tom imperioso, quase de uma ordem. Rasgou o bilhete e escreveu o seguinte: "Preciso vê-lo outra vez, perto do rio, defronte de sua casa, às quatro horas. Tenho uma coisa para lhe dizer, querido, para a qual não tive oportunidade ontem. Com todo o coração e toda a alma, sua Laurie."
Por que era preciso sempre levar em conta a sensibilidade dos outros? A maneira direta, que chegava logo ao âmago das coisas, sempre ofendia. Lacrou e selou a carta e guardou-a no seio. Entregá-la-ia a Stuart naquela noite, quando tivesse oportunidade. Levantou-se, sentindo-se renovada e dominando todas as circunstâncias, inexoravelmente. Mas o coração estava constrangido e perturbado, o sangue corria muito depressa. Olhou pela vidraça. O enganoso tempo primaveril tinha mudado. O céu para os lados do norte já estava escurecendo e havia no ar um jeito de neve. Apesar disso, abriu a janela e deixou que o vento frio lhe refrescasse o rosto ardente.
Lembrou-se dos escrúpulos de Stuart, de sua delicadeza, dos seus receios por ela. Essas recordações só lhe inspiravam um desdém cheio de amor. Ele quase não acreditara quando ela havia declarado a sua paixão por ele, a sua obsessão por ele, o longo caminho percorrido para chegar a ele. Ele tinha pensado que tudo isso era o ardor extravagante e inocente de uma mocinha de quem ele se estava aproveitando em detrimento dela. É verdade que durante algum tempo a reação dela ao desejo e a impetuosidade dele tinham-no quase convencido, mas haviam-no também desorientado. Ele tinha querido protegê-la. Laurie apertou com força o peitoril da janela. Que era que ele sabia dela? Como poderia compreender o longo desejo e a devoção que a tinham feito empreender uma carreira apenas porque acreditara que isso poderia enchê-lo de admiração e de orgulho?
Era difícil para ele, sem dúvida, compreender. Laurie, que já não era ingênua, não se sentia inteiramente ofuscada pela sua paixão. Sabia muito bem que Stuart era um negociante provinciano, à beira da ruína. Era extravagante, violento e inescrupuloso, pródigo e dissoluto. Os seus apetites seriam sempre superiores às suas posses e acabariam por destruí-lo. Não tinha um espírito muito brilhante, embora a sua intuição fosse sutil e capaz de discernimento. Era desordenado e impetuoso e seria sempre incapaz de refinamento, tangido apenas pelos seus desejos, pelos seus impulsos e pelos seus anseios tempestuosos.
Por que então ela o amava? Que era que a tinha levado para os seus braços, para o seu desespero e para a sua ruína naquela cidadezinha abominável que ela detestava? Na verdade, não sabia. Sabia apenas que sempre o desejara com todas as fibras de seu corpo e com todas as gotas de seu sangue. Quando pensava nele, alguma coisa se fundia em sua alma e ela se tornava de novo pura, terna e resplandecente.
Que importância tinha a ruína dele? Que mal fazia que ele perdesse aquelas ridículas lojas? Ela tinha muito dinheiro. E ia ter muito mais. Não havia limite para o que ela podia fazer. Via-se em companhia de Stuart indo de uma bela cidade para outra, hóspedes dos poderosos que a cultuavam. Todos aceitariam Stuart, por ordem sua. Todos esperavam que uma cantora famosa tivesse amantes. Stuart ficaria no brilhante fundo da vida dela, sempre confortando-a, sempre admirando-a, sempre orgulhoso dela, sempre amoroso e apaixonado. Ela voltaria para os braços dele depois de cada triunfo e repousaria neles, de novo uma menina, carinhosa e simples, vivendo nesses momentos exclusivamente para ele.
Quando lhe passou pela cabeça a incômoda ideia de que talvez Stuart não quisesse ser o beneficiário da fortuna dela, sacudiu a cabeça com impaciência. Ele não poderia ser tão idiota a esse ponto. Dinheiro era dinheiro e ele não poderia ser insensível à fortuna dela. Sem que soubesse conscientemente, contava principalmente com a ponta de fraqueza que notara nele anos antes. Ele é que a tinha feito; nada mais justo que aceitasse as compensações pelo que fizera.
Para ela, a vida dele ou as circunstâncias dessa vida não constituíam um impedimento. A filha, aquela insignificante criaturinha doente? A boca de Laurie se contraiu cruelmente. Odiava Mary Rose com virulenta intensidade, só porque Stuart a amava. Ela, Laurie, acabaria com esse sentimentalismo. Sentia dentro de si mesma a força e a resolução, que nada poderia derrotar. Ela faria planos para a vida de Stuart e dela e a energia dela a fazia vê-lo aceitando tudo, cedendo em tudo. Em troca, ele a teria inteiramente, fundida em seus braços, dando-lhe toda sua vida e toda sua alma. Como poderia qualquer homem resistir a perspectivas tão grandiosas, a futuro tão radioso?
Aborrecida e irritada quase além do que seria tolerável, Laurie voltou ao miserável camarim nos fundos do palco cheio de correntes de ar do Auditório de Grandeville. Uma hora de ensaio com a lacrimejante Srta. Ellicott a havia enfurecido. Tinha tiranizado e maltratado a pobre criatura até fazê-la dar uma execução ao menos aceitável das "simples árias e baladas". Isso, ao menos, era algum consolo. A Srta. Ellicott com toda a certeza estava odiando-a, mas ela também havia intimidado a sujeitinha. Laurie sentia-se de novo humilhada pelo fato de se ver sujeita a tal situação, contra sua vontade e sem consulta prévia. Só desejava era que a mulherzinha não estivesse tão desmoralizada por ela que fosse falhar nos acompanhamentos.
Quando abriu a porta do camarim, encontrou Robbie e Alice que a esperavam. Alice usava um amplo vestido de rendas com um xale de caxemira passado pelos ombros delicados. O seu estado era evidente, coisa que absolutamente não a perturbava. Abraçou Laurie com gentil efusão.
— Recebemos sua carta, minha querida —, explicou ela —, mas só agora pudemos vir.
Laurie aceitou calmamente o beijo que o irmão lhe deu no rosto. Ainda estava cheia de raiva e mortificação, mas sorriu amavelmente.
Não via o casal desde que recebera a visita deles em Nova York seis meses antes. Olhou para Alice e perguntou com um sorriso:
— Quando?
Alice ficou um pouco vermelha, olhou timidamente para Laurie e respondeu:
— Daqui a três meses.
Estendeu a mãozinha branca para Robbie, que a tomou carinhosamente, ao mesmo tempo que olhava para a irmã como curiosidade e afeto. Respeitava-a muito e com seu espírito sutil via muita coisa no seu rosto enérgico e belo.
— De tudo o que sei, você vai indo excelentemente, Laurie —, disse ele.
— Ao que sei, você também vai indo muito bem —, disse Laurie, dando-lhe um de seus encantadores sorrisos.
Sentara-se no banco diante do espelho gretado do camarim e era toda esplendor e majestade. O vestido de cetim verde-claro se enfunava diante dela graças aos arcos enormes da saia, cobertos por verdadeiras cascatas de rendas e botões de rosa. O corpete de rendas mal lhe escondia os belos seios. Os ombros estavam inteiramente nus e eram perfeitos. Os cabelos dourados, penteados com simplicidade, estavam presos atrás num lustroso coque. Levava ao pescoço um colar de rubis cujos reflexos escarlates se difundiam sobre a pele macia. Pulseiras do mesmo conjunto do colar se mostravam nos longos braços nus. Naquele camarim mal cuidado e frio, ela era uma visão incrível de beleza. A um canto, via-se um montão de rosas e samambaias das estufas de Stuart.
Alice sentia-se virtualmente intimidada pela presença de Laurie, apesar da gentileza com que era tratada.
Laurie disse de repente, olhando pare Robbie:
— É muito desagradável para mim o que vou dizer, mas pedi que viessem até aqui com um objetivo especial. Robbie, às quatro horas da tarde de ontem, estive em sua casa para fazer uma visita a você e a Alice. Queria debater alguns assuntos legais com você e passar horas agradáveis com sua gentil esposa e com você. Você me levou para casa quase ao amanhecer. Foi uma longa visita porque já fazia algum tempo que eu não o via e porque os assuntos que eu tinha para discutir com você, a respeito de minhas propriedades em Nova York, eram um tanto complicados.
Alice olhou para ela, toda confusa, e murmurou:
— Mas, Laurie, esta é a primeira vez que estamos com você desde que chegou...
Laurie lançou-lhe um olhar de impaciência e se virou para Robbie, que sorria calmamente e murmurou:
— Acho que está enganada, Alice...
Laurie levantou-se. Robbie podia sentir sua energia, o profundo desprezo que ela sentia por aquele subterfúgio.
— Que cidadezinha horrível é esta! — exclamou ela. — Aqui, todas essas mentiras e truques parecem necessários. Nossa querida Mamãe poderá fazer-lhe perguntas. Além disso, posso ter de fazer-lhe algumas visitas nos próximos cinco dias.
Olhou para Alice, que parecia completamente estupefata.
Robbie franzia pensativamente a testa. Não tinha críticas a fazer a Laurie. Não tinha perguntas. Sabia que ela era imperiosa e forte. Ela sempre havia de saber o que estava fazendo.
— Laurie —, disse Alice, falando com resolução apesar de sua confusão e de sua timidez —, não sei o que quer dizer tudo isso. Não sei a necessidade que você tem desses... estratagemas, tão abaixo de você. Mas pode confiar em nós.
— Sei que posso confiar em você, Alice. Mas não vou fazer confidências. Só lhes estou pedindo esse favor e um pouco de compreensão. Mas meus casos são meus. Não consulto a ninguém. E você, Robbie? Não vai assumir o papel severo do irmão mais velho?
É ridículo, pensou Robbie, achando graça. Ela é mais alta e bem mais forte do que eu. Poderia derrubar-me com um dedo apenas. "Irmão mais velho"... O seu forte senso do ridículo fê-lo sorrir involuntariamente. Que estaria Laurie fazendo? Havia um homem metido nisso ou ele não conhecia a humanidade. Quem seria o homem? O aristocrata hospedado na casa da mãe? Havia lido as insinuações dos jornais locais. Mas que necessidade tinha ela de ir furtivamente com ele para os matos? Tudo poderia ser feito com mais conforto dentro de casa. Mas talvez o cavalheiro fosse escrupuloso e não quisesse violar a "santidade" do lar de Laurie.
Mas não se sentia absolutamente escandalizado, como poderia sentir-se com uma irmã mais fraca e mais obscura.
Recostou-se na cadeira pouco confortável do camarim e disse calmamente, como se estivesse discutindo um assunto de interesse muito remoto:
— Laurie, é evidente que você adquiriu uma tendência a, como se diz, pegar o boi pelos chifres. Deve ter aprendido com Euclides que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos dados. Infelizmente, para pessoas como você, uma proposição axiomática não admite absolutamente as extravagâncias da natureza humana e os caprichos alheios que poderiam levar a mal você cobrir triunfalmente o caminho mais curto, com o vento a seu favor. Será que você está seguindo minha linha de raciocínio?
A pequena Alice, que era bastante perspicaz, olhou, entretanto, para o marido com espanto, achando que o que ele dizia não se aplicava ao caso. Mas Laurie olhava para o irmão com muita seriedade e um leve rubor lhe apareceu nas faces. Começou a tamborilar com os dedos na mesa do camarim e, dentro em pouco, batia também o pé. Disse então:
— Vejo que continua a mesma criatura racional, Robbie. Mas se abrandou um pouco. Houve um tempo em que você só tinha censuras para os que levavam em conta as sensibilidades humanas quando escolhiam o caminho mais curto entre dois pontos. Devo dar-lhe parabéns por uma sabedoria que veio com o correr dos anos ou lamentar que tivesse perdido o seu realismo?
A testa de Robbie, em geral tão serena e calma, se enrugou um pouco. Olhou Laurie firmemente e disse:
— Acho melhor dizer que agora é que eu sou realista.
Levantou-se sob o olhar irônico da irmã e disse:
— Pode parecer sem importância para você, Laurie, mas eu me lembro agora de uma frase de Hesíodo: "Para os animais da terra e para as aves do ar, Deus ordenou uma lei, segundo a qual devem atacar-se uns aos outros; mas para os homens, ele ordenou a justiça, que é muito melhor." Em circunstâncias que só posso encarar com preocupação, você aprendeu a atacar. Aprendeu também a não levar mais ninguém em conta. Estabeleceu seu rumo de acordo com seus desejos. Isso é triste para você, Laurie, porque a fará sofrer. De certo modo, tenho muita pena de você.
Ela o havia escutado com sorridente desdém e disse:
— Não compreendo muito bem suas referências clássicas, Robbie, mas admiro humildemente sua cultura. É verdade que aprendi muitas coisas, mas isso não interessa agora. Acontece que voltei a Grandeville com um objetivo determinado, que é o objetivo de minha vida. Dentro em pouco, estarei de novo ausente. Qual é esse objetivo, isso é meu caso pessoal. Foi muito desagradável para você o meu pedido de ajuda?
Ele ficou diante dela em silêncio. Mas Laurie viu os olhos dele fitos nela e percebeu que estavam cheios de bondade, de uma bondade como nunca vira neles. Alguma coisa se moveu no coração dela. As linhas duras de sua fisionomia se suavizaram. Robbie disse então:
— Não, Laurie, não há nada de desagradável. Você não é mais uma criança, é evidente. Se pudermos ajudá-la, é só dizer.
Estendeu a mão para Alice, cujo rosto se iluminou todo ante esse gesto de ternura. Levantou-se imediatamente e deu infantilmente a mão ao marido. Das alturas de seu amor, contemplou radiantemente a pobre Laurie, a quem ninguém amava apesar de sua beleza, de sua fama e de suas grandes qualidades. Laurie disse então:
— Muito obrigada, Robbie. Agora, tenho de me preparar para comparecer diante do distinto público.
O gerente do Auditório entrou logo depois de Robbie e sua mulher terem saído. Estava muito nervoso e quando encontrou o olhar duro de Laurie Cauder, ficou ainda pior. Pedia desculpas, mas talvez ela não tivesse compreendido bem o programa. Haveria quatro números interpretados pelo coro da Primeira Igreja Presbiteriana antes do recital dela. Era um coro muito bom, gaguejou ele diante da cara fechada de Laurie ao saber dessa afronta. Depois do coro, o ministro daquela igreja diria algumas palavras. Seria então a vez dela.
— Isso vai levar pelo menos uma hora! — exclamou Laurie. — Vou ficar esse tempo todo neste camarim frio e sem conforto, enquanto um coro de basbaques grita lá fora?
O gerente fugiu. Laurie, perigosamente perto do ponto de explosão, passeou de um lado para outro durante vários momentos. Começou então a rir estrondosamente.

CAPÍTULO 57
Tinham sido reservadas cadeiras especiais perto do palco para a família Cauder. Janie estava sentada do lado direito com Bertie, um Bertie esquelético e pálido, mas que sorria tão afavelmente quanto sempre, causando o desespero das moças próximas que tentavam atrair-lhe o olhar. Entretanto, quando ele não estava sorrindo, o rosto se mostrava tragicamente abatido e envelhecido e as mãos tremiam quase sem parar. Era a primeira vez que aparecia em público desde muitos meses e as pessoas por perto trocavam cochichos sobre ele. Bertie parecia não tomar conhecimento disso e dispensava a todos a quem olhava o seu sorriso ausente e fulgurante. Isso fazia com que se calassem, embora não fosse absolutamente essa a sua intenção.
A esquerda de Janie, estavam sentados Angus, sua mulher Gretchen, e os pais dela disfarçadamente despeitados e invejosos. Angus estava tão rígido como um cadáver escorado, com o rosto pálido e severo fixo e sem expressão e os olhos cinzentos frios e foscos como pedras. Robbie, naturalmente, estava sentado ao lado de seu irmão Bertie e empenhava-se com ele numa conversa amistosa e esparsa, enquanto Alice lhe segurava a mão mais ou menos inerte.
Atrás do grupo Cauder, estavam sentados Stuart e seus dois amigos, Padre Houlihan e Sam Berkowitz. Sam estava muito calado porque perdera recentemente a mãe e o padre parecia cheio de tensão e de cansaço, embora não houvesse qualquer razão manifesta para isso. Stuart é que se mostrava muito alegre e animado, com uma exuberância que os dois amigos havia anos não viam nele. Notavam também nele uma espécie de febril inquietação. Embora falassem de vez em quando com ele durante os números do coro e o sermão floreado do ministro, ele mal respondia e os seus gestos eram puramente mecânicos.
A assistência, como disseram derramadamente os jornais na segunda-feira, era extremamente selecionada e elegante e se reunia com a melhor das disposições para homenagear a ilustre conterrânea. Falaram também os jornais da profusão de flores no palco, dos festões e bandeiras que engalanavam a sala, das fardas dos oficiais em licença que enchiam a plateia e das belíssimas toaletes das senhoras que enchiam o salão em alegre expectativa.
Na realidade, a sala era fria, cheia de corrente de ar e superlotada. As verbas municipais tinham minguado a tal ponto na construção do auditório que o teto não era forrado e havia no alto uma confusa e ameaçadora mistura de ripas, vigas, andaimes e teias de aranha. O pano de boca, de um veludo vermelho barato, tinha sido aproveitado de um teatro mais antigo e estava esfiapado e empoeirado. Das vigas, pendia um lustre com bicos de gás, cujo mau cheiro dominava todos os perfumes usados pelas senhoras, mas era uma inovação e, como tal, merecia olhares de admiração e de orgulho. As paredes estavam pintadas de um marrom sujo e delas escorriam gotas de umidade. O chão era de tábuas mal aplainadas e sujas. Os bancos eram uma mistura reunida às pressas de várias igrejas e salas de reunião abandonadas, não apresentando o menor conforto.
Mas sob aquela luz incerta, as senhoras se abanavam com os leques de penas, inclinavam as cabeças com os chapéus, agitavam os lenços e conversavam afetadamente com os cavalheiros que as acompanhavam, certas de que se tratava de um espetáculo distinto para um público ainda mais distinto. Não tinham a menor dúvida de que Laurie ficaria impressionada com o aspecto cosmopolita do Auditório e com a elegância das pessoas presentes. Tinham firmemente decidido que não se deixariam impressionar excessivamente por ela e que os seus aplausos seriam comedidos para dar-lhe uma lição de humildade que ela não tivera nos salões dourados de Nova York ou da Europa. Muitas das senhoras já começavam a exibir um tédio de bom-tom, cheiravam sais languidamente e conversavam sobre o horror que era tudo aquilo com as pessoas vizinhas. Laurie não tinha ainda aparecido e muitas senhoras insinuavam que talvez tivessem de retirar-se antes que ela surgisse timidamente no palco, para cuidar da casa e das crianças, pois as criadas estavam impossíveis desde que começara a guerra e corriam para as fábricas a fim de costurar fardas e roupa de cama para os soldados. Ninguém sabia onde era que o mundo ia parar.
A "orquestra" de três figuras, composta de um piano, um violino e uma caixa insistente, começou a tocar triunfalmente e, como que em resposta, o lustre sibilou, lançando clarões ameaçadores. O pano, que havia caído depois da saída do ministro, subiu aos arrancos para mostrar Laurie Cauder no palco empoeirado, diante de um pano de fundo que mostrava uma cena de jardim, espalhafatosamente pintada com violetas, amarelos, vermelhos e azuis gritantes. O público a recebeu com aplausos moderados, que ela agradeceu ironicamente com uma leve inclinação da cabeça. Aos seus pés, as gambiarras ardiam espasmodicamente. Laurie sentia o cheiro do gás, da poeira, da umidade. Avançou um pouco mais para a ribalta e a Srta. Ellicott levantou a vista para a artista famosa com um ódio mesclado de medo e nervosismo.
Laurie olhou para a assistência e esta, cheia de dignidade, olhou para Laurie. Sorriu intimamente, mas não pôde deixar de sentir-se mortificada. Com a sensibilidade de uma artista, percebeu imediatamente a disposição do público. Viu claramente que aqueles provincianos julgavam que lhe estavam fazendo uma "honra" — aqueles fabricantes de salsichas, pequenos industriais, negociantes de cereais, lojistas, criadores e negociantes de cavalos, proprietários de matadouros, donos de pedreiras e fabricantes de tijolos. As mulheres olhavam para Laurie com binóculos de teatro e inclinavam majestosamente a cabeça. Na verdade, murmuravam entre si, a moça é grande demais, tem um andar pouco distinto e o jeito dela é muito pouco feminino.
Laurie abriu a boca. E a assistência ficou imediatamente atordoada. Todos tinham esperado uma voz doce e gorjeante, bonita, leve e atraente, uma voz semelhante à da Srta. Ducey, que era muito apreciada nas festas particulares. Bem, tinham concedido antes de Laurie aparecer, talvez fosse um pouco melhor que a da Srta. Ducey, com melhor timbre e mais volume, à qual estavam preparados para aplaudir. A Srta. Cauder não iria encontrar um público de basbaques sem discernimento.
Mas a voz que se derramava dos lábios de Laurie era como uma catarata de ouro puro, líquido e cintilante, sem esforço e de um vigor extraordinário. Era como uma grande ave de ouro que voava e subia contra um céu dourado com as fortes asas abertas e refulgentes de ofuscante luz. Elevava-se, batia nas vigas do teto, ricocheteava das estreitas paredes num volume assombroso de som fantástico que fez o público emudecer de estupefação. Era incrível que toda aquela música vigorosa e perfeita pudesse sair da garganta de uma só mulher e que ela não se despedaçasse com o simples dinamismo dela. Fez desaparecer a fraca "orquestra" e parecia cantar sozinha. Só nas suas pausas é que se podia perceber o acompanhamento, com o atraso de um compasso ou dois. Era como a retaguarda trêmula de um exército de bandeiras desfraldadas.
Stuart, que no começo tinha sorrido, estava muito parado, com o cotovelo apoiado nas costas da cadeira de Janie. Estava pálido e imóvel. Escutava a voz que tinha emocionado reis, príncipes, duques e rainhas, que tinha levado ao delírio dezenas de milhares de pessoas distantes. Parecia-lhe que Laurie cantava só para ele. Não ouviu o sussurro atônito do Padre Houlihan, que murmurava "Meu Deus!", nem a exclamação surda de Sam. Aquela voz que vibrava triunfalmente e que dominava a sala com o seu vigor selvagem e belo enchia-o de êxtase, de orgulho e de arrasadora paixão. Laurie! Laurie! Ela olhava para ele e sorria enquanto cantava e ele via atordoadamente o seio arfar com o canto como as ondas do mar.
Um pouco da magia de sua voz se comunicou misteriosamente à sua carne, de modo que ela pareceu cingida de luz, com o rosto incandescente e os poucos gestos que fazia irradiantes de claridade. A assistência, petrificada e muda, a olhava fixamente, deslumbrada pela "mais gloriosa Elizabeth do mundo", como dela dissera entusiasticamente Wagner.
Então ela ficou em silêncio e a trêmula orquestra parou também.
Não se ouvia o menor som, salvo o sibilar do lustre de gás. Laurie cumprimentou, sorrindo de novo ironicamente, arqueando as sobrancelhas. A plateia a olhava, congelada em completa imobilidade, incapaz de levantar sequer as mãos.
Laurie disse então:
— Agora, caros amigos, vou executar um canto, em sinal de reconhecimento. Não o encontrarão em loja alguma. Foi composto e cantado por meu pai nas montanhas da Escócia.
Algumas pessoas na plateia bateram palmas fracamente, numa recuperação tardia. Mas todos os outros ainda estavam mudos e estupefatos, salvo um homem cuja mulher, sentada ao lado dele, não notou o seu gesto convulsivo ao ouvir as palavras de Laurie e não viu a transformação que se lhe operou no rosto.
Laurie abriu o pequeno rolo de música que tinha na mão e se voltou gentilmente para a orquestra atarantada.
— Não tenho música de acompanhamento para este canto —, disse ela. — Vou cantar sozinha.
Voltou-se de novo para a plateia. Levantou a cabeça, a luz incerta do gás lhe brilhou nos olhos e as órbitas se encheram de intensa chama azul. Não olhava mais para Stuart. Procurava o rosto do irmão, o rosto de Angus, e fitou-o fixamente.
Entoou então o canto do pai, Ó Estrela da Manhã! Proferiu as palavras simples e pungentes, modulou a música pura, terna e apaixonada. A voz dela tremia. Era uma torrente de cristal cintilante ou de lágrimas. Erguia-se numa súplica ardente como a um céu matinal sombrio, no qual uma estrela brilhava com exultante fogo. Aquela voz era como um levantar de mãos em prece, como um rosto voltado com humildade e dignidade para os céus iluminados. Era o apelo de uma alma, que adorava, suplicava e se unia a Deus, cheia do orgulho que lhe dava a consciência de conhecê-Lo. Eram asas de anjos que se transfiguravam em luz ao toque do amanhecer. Era o mais doce e mais reverente êxtase, translúcido e severo.
Ninguém viu Angus inclinar-se para a frente a fim de ouvi-la, nem lhe notou à luz do gás o rosto banhado de suor. Ninguém o viu levar as mãos à cabeça num gesto de angústia. Ninguém percebeu que ele olhava apenas para a irmã e que ela olhava apenas para ele, clamando por ele com todo o poder e a antiga ternura de sua voz, como se, naquele momento, ela se tivesse lembrado dele e estendesse as mãos para ele numa derradeira súplica.
— Por Deus! — exclamou Bertie, quando a última nota se extinguiu dramaticamente. — Ela tem uma voz maravilhosa! Se Papai a pudesse ter ouvido!
Janie estava enxugando sentimentalmente os olhos. Robbie sorria muito comovido para sua mulherzinha pálida.
— Ah, é uma grande coisa saber que se deu uma voz assim ao mundo —, murmurou Janie entre suspiros.
Mas Angus estava sentado na cadeira como um morto e comprimia as têmporas que latejavam com uma dor terrível.
Laurie estava cumprimentando, sorrindo e recuando, ao mesmo tempo que varria o chão com a saia. Por fim, desapareceu, deixando no palco uma espécie de leve e trêmula aura.
A plateia, voltando afinal a si, começou a murmurar incoerentemente, como se despertasse de um torpor. Foi então que se ouviu Gretchen gritar cheia de medo:
— Angus! Meu marido está sentindo alguma coisa!

CAPÍTULO 58
Gretchen, de rosto intumescido, abriu a porta do quarto escurecido de Angus para Laurie e a mãe dela. Os grossos reposteiros vermelhos estavam cerrados para não deixar entrar o sol de abril e o fogo aceso fazia o ambiente do quarto fechado muito sufocante. Os odores dos lugares sem ventilação pairavam compactamente no ar imóvel. Janie ofegou um pouco e levou ao nariz o lenço perfumado de alfazema. Mas Laurie se aproximou da cama e ficou olhando para o irmão em frio silêncio. No fundo do quarto, Gretchen chorava baixinho e torcia as mãos, lançando olhares furtivos e hostis a Laurie.
Angus estava com a cabeça reclinada nos travesseiros brancos, com os olhos fechados. Mas as mãos magras se moviam incessantemente, como se tateassem.
Vendo isso, Janie exclamou estridentemente:
— Meu Deus! Vejam o que ele está fazendo!
Começou a chorar. Gretchen, esquecendo a sua antipatia por Laurie, correu para a cama e se curvou sobre o marido, ao mesmo tempo que o seu choro se transformava em gritos de dor. Procurou os sinais de morte iminente, mas quando viu que Angus não estava fazendo nada de diferente do que fazia desde a noite anterior, o seu terror se dissolveu em ressentimento contra Janie, fazendo-a olhar furiosamente para a sogra.
— Isso que ele está fazendo com os dedos não é nada demais —, disse ela com voz rouca. — Está dormindo e com um pesadelo.
— Sim, ele está tendo um pesadelo —, disse Laurie, friamente.
Sentou-se, sem tirar o chapéu e a capa, na cadeira ao lado da cama. Um candeeiro de querosene ardia tristemente no quarto. Laurie olhava o irmão sem emoção visível. Depois, olhou divertidamente para a afogueada Janie e a gorda e esbranquiçada Gretchen, as quais trocavam olhares acerados como baionetas.
Laurie achava Gretchen mais desagradável do que nunca. O folgado robe violeta encrespado de rendas não contribuía no mínimo para disfarçar o seu "estado", realçando-o ao contrário. Era uma terrível criatura, meditou Laurie, revoltada. Mas era também digna de compaixão. Era evidente que adorava Angus, o qual estava ali deitado, preocupado demais com os seus horrores e desesperos íntimos.
Não havia em Laurie muita margem para a piedade. Não obstante, ao contemplar Gretchen com a sua frieza e a sua objetividade habituais, não pôde deixar de sentir alguma coisa que parecia compaixão. Havia nela naqueles dias um abrandamento e um calor por onde podiam penetrar emoções mais humanas. Sorriu para a jovem mulher, que tinha completado o seu estudo mal intencionado de Janie.
— Não parece tão mal assim —, disse ela. — Que é que os médicos dizem?
Gretchen, tomada de certo modo de surpresa por essa gentileza e pelo brilho claro dos olhos de Laurie, se derreteu em pena de si mesma e no afastamento dos seus receios.
— Dizem que é um dos ataques que ele costuma ter. Só que esse foi o pior de todos. É na cabeça, sabe? Ele é sujeito a essas dores de cabeça. Mas já há algum tempo que não sofria disso e nós tínhamos esperança de que estivesse curado.
— O que ele precisa é de um pouco de ar e de luz —, disse Janie em voz alta. — Isto aqui dentro está sufocante.
Marchou para as janelas, afastou os reposteiros e abriu uma vidraça. A luz do sol irrompeu pelo quarto nas asas do vento. A luz do candeeiro empalideceu. Uma faixa de sol tocou o rosto de Angus e ele se agitou e murmurou.
— Oh! — exclamou Gretchen, correndo desajeitadamente para as janelas. — Não pode fazer isso! Os médicos recomendaram sossego e escuro!
Mas parou, acovardando-se diante dos olhos verdes fuzilantes de Janie.
— Você está é matando meu filho! É de ar e de luz que ele precisa e vai ter isso, ao menos enquanto a mãe dele estiver aqui!
— É uma imprudência —, murmurou Gretchen, dominada. — Ele vai piorar.
Laurie, vendo que Angus estava a ponto de acordar, disse:
— Por que não param de discutir? Isso o perturba mais do que o ar e a luz.
Angus movia a cabeça nos travesseiros, como se estivesse em grande sofrimento. Por fim, muito lentamente, abriu os olhos. Não houve qualquer sinal de reconhecimento quando olhou para a irmã, sentada ao lado dele. Olhou-a com o cansaço vazio e distante de uma criança doente, ainda imersa em seus sonhos febris. Ela se curvou para ele e disse gentilmente:
— Sou eu, Angus, Laurie. Está melhor?
Mas ele não respondeu. Continuou a olhá-la, imóvel, como se tentasse ver-lhe o rosto através de densa névoa. Mas, por fim, houve em seus olhos uma breve fagulha de reconhecimento e os seus lábios se descerraram num suspiro. Tentou sorrir e moveu a mão. Laurie hesitou. Tocou-lhe de leve a mão e sorriu.
— Estou vendo que está melhor. Soubemos de sua doença súbita e aqui estamos para fazer-lhe uma visita. Sei que não é nada de grave. Você deve repousar.
A mão sob a dela estava fria, úmida e fraca. Teve ímpeto de afastar-se. Mas a piedade incerta rompeu as barreiras e inundou-a. Apertou a mão com força, tentando transmitir-lhe a sua força e saúde. Uma ponta de dor se lhe agitou no frio coração. Sentiu os olhos arderem e uma tristeza avassalante lhe invadiu a alma.
Depois de muito esforço, ele conseguiu murmurar:
— Aquele canto, Laurie. O canto de Papai.
A voz era simples, quase infantil, e a dor cresceu no peito de Laurie. Curvou-se mais para ele e murmurou:
— Foi para você que eu cantei, Angus.
De repente, com surpresa para ela ou talvez sem surpresa, o rosto dele se fechou, pleno de acusação e de amargura. Afastou a mão e murmurou com voz mais forte:
— Foi uma coisa cruel que você fez, Laurie.
Ela ficou a olhá-lo e, afinal, exclamou:
— Não foi cruel, Angus. Pensei que podia chegar a você pela última vez. Pensei que pudesse chegar a você por mim, também.
Janie e Gretchen tinham-se aproximado da cama. Estavam escutando com espanto, trocando olhares perplexos, com a inimizade entre elas esquecida. Gretchen disse:
— Você o está afligindo, Laurie.
Laurie levantou-se. Olhou para o .irmão com raiva nos olhos, mas com súplica também.
— Não adianta, Angus? — perguntou.
Ele não respondeu. Virou a cabeça para o outro lado e encolheu os ombros.
Ela hesitou. A vontade que tinha era de deixá-lo imediatamente. Mas alguma coisa a fez dizer com um tremor na voz:
— Já me esqueceu inteiramente, Angus? Sou ainda Laurie.
Ele suspirou profundamente e murmurou sem voltar a cabeça para ela:
— Não, não é Laurie.
O rosto de Laurie se endureceu ainda que a dor a devorasse e ela disse:
— Então, você também não é mais Angus.
Esperou um pouco, mas ele não tornou a falar. Ela olhou para a mãe e fez-lhe um sinal. Janie curvou-se para o filho e beijou-lhe o rosto com os lábios pintados. Ele não fez o menor sinal de reconhecimento. As duas mulheres saíram juntas do quarto. No mesmo instante, Gretchen correu para as janelas, fechou as vidraças e correu os reposteiros, vedando de novo o ar e a luz. Voltou na ponta dos pés para junto do marido. Ele parecia dormir.

CAPÍTULO 59
O rio rolava escuro e cor de vinho, com um som distante, sob um alto céu cinzento que escurecia fantasticamente. Todas as cores da terra estavam esmaecidas, de modo que a relva próxima, as árvores e os canteiros de flores tinham um ar pardacento e indistinto como se pertencessem a um mundo de sonhos ou a algum estranho planeta. Não havia rumor de pássaros ou de vento e a atmosfera parecia singularmente oca, indo nela perder-se todos os ecos. Até a casa branca de Stuart no alto parecia irreal, como que formada de névoa flutuante.
Era um cenário que deprimia e inquietava Laurie. Fazia-a lembrar-se da história do jardim de sonho que Stuart lhe contara havia muito tempo. Ela e Stuart caminharam até à margem do rio num pesado silêncio que eles não puderam durante algum tempo quebrar, sentindo-se dentro de um vácuo numa paisagem de contornos débeis e que podia dissolver-se a qualquer instante. Ficaram por um momento de mãos dadas, olhando o rio. A margem canadense se dissolvera num nevoeiro cinzento, de modo que as águas não tinham um limite visível. Embora fosse quase a hora do crepúsculo, não havia qualquer resplendor avermelhado para os lados do poente, mas apenas uma sombra purpúrea que escurecia perceptivelmente.
Sentaram-se num rochedo e Stuart acendeu um charuto. Laurie viu a fumaça subir no ar, quase tão cinzenta e preguiçosa como a névoa que os envolvia. Tinha os olhos cansados e imersos em seus pensamentos. A sua mão na de Stuart era só o que havia de quente em toda aquela sombria desolação.
Stuart disse então:
— Há muito tempo, cheguei à conclusão de que não adianta fazer coisa alguma em relação a Angus. Você se está afligindo inutilmente, meu amor.
A expressão de Laurie se tornou mais triste, mais sombria.
— Foi loucura minha ter tentado. Angus mudou há anos e eu nada pude fazer senão vê-lo mudar. Não sei o que foi que me deu naquela noite. Talvez fosse porque nunca me conformei com a derrota e julguei que poderia abrir caminho até ele.
Ela jogou a cabeça para trás e levantou a mão nua. Os cabelos dourados refulgiam ao crepúsculo, mas no rosto não havia cor. Esqueceu Stuart nos seus pensamentos sombrios e ele olhou atentamente para o heroico perfil de Laurie, todo em planos fortes e claros e ângulos delicados. Que mulher era ela! Nunca havia conhecido uma mulher honesta, dotada de energia, propósito e resolução e que, apesar disso, pudesse ser tão terna e tão docemente apaixonada. Ela o fazia sentir-se fraco, exausto e irresoluto e, mais uma vez, ficou sem saber por que ela o amava. Seria alguma ilusão que ela mantinha e lhe obscurecia o julgamento? Não, ela não estava iludida. Tinha sido em alguns momentos muito franca e concordava com ele quanto ao fato de que ele estragara e aviltara a sua vida.
Ela vai partir dentro em breve, pensou ele, e queira Deus que me esqueça. O pensamento desprendido dava-lhe estranha força e coragem ainda que o enchesse de sofrimento e desolação. Nada tinha para ela, nada lhe podia dar, nem sequer esperança. Não estava ao seu alcance dar-lhe nem a duvidosa honra de seu nome. Mas é claro, pensava ele, que ela me vai esquecer! Quem sou eu em comparação com os homens que já conheceu e vai conhecer?
Mas era uma maravilha, que o enchia de humildade, o fato de que ela tivesse feito tanto para estar ao lado dele, que tivesse marchado através das sombras para a realidade dele! Que tenacidade! Que ilusão! A compaixão se misturou à tristeza e desolação que sentia e ele levou a mão dela aos lábios.
Ela sorriu abstratamente para ele. Tinha ainda os olhos cheios de dor e inquietação. Continuava a pensar em Angus.
— Angus e eu costumávamos passear aqui pela beira do rio. Sempre tínhamos tanto que dizer um ao outro. Como posso esquecê-lo, abandoná-lo? Ele faz parte de minha infância. Era meu amigo. Nós nos amávamos. Então, ele mudou. Odiei minha mãe por tê-lo influenciado para a sua destruição. Agora, não tenho mais tanta certeza. Só um fraco se deixa levar por outra criatura humana para a ruína e para o desespero.
Com inesperada impetuosidade, retirou a mão que Stuart segurava e disse:
-— Não sei por que cantei aquilo! A razão talvez esteja no fundo de meu espírito, porque obedeci cegamente ao impulso. Vi o rosto dele. Vi o cadáver vivo que ele se havia tornado e me pareceu terrível que fosse Angus, meu irmão, o homem que estava ali sentado ao lado daquela mulher imbecil, com toda a sua vida destruída! Ouvi meu pai cantar e cantei com ele para Angus. Eram as mãos de meu pai que se estendiam para Angus por meu intermédio. Eu ouvia a voz dele na minha.
Olhou para Stuart com os olhos cheios de lágrimas e continuou:
— Sei que parece ridículo. Mas vi meu pai estender as mãos para Angus, tentando salvá-lo. Acredito que há ocasiões em que os "mortos" chamam os outros e estendem as mãos para eles por intermédio da voz e do corpo de outra pessoa. Sei que foi isso que aconteceu ontem à noite com meu pai.
Stuart colocou a grande mão quente sobre um dos joelhos dela e disse:
— Talvez você tenha razão. Há dois ou três anos, sonhei com minha mãe. Era uma pobre criatura, boa e modesta. Julguei que ela me apareceu, me tomou pela mão e me fez sair da cama. Disse-me então: "Stuart, você sempre acreditou que tinha inimigos. E talvez um grande inimigo, maior que todos. Você tem razão. Tem um terrível inimigo. Venha comigo através de sua vida e eu lhe mostrarei o rosto dele, para que você possa conhecê-lo e nunca mais esquecê-lo."
Laurie tentou sorrir, tentou falar, mas ficou calada. Por fim, desde que Stuart não disse mais nada e ficou olhando as águas do rio com uma expressão trágica, perguntou:
— E então, Stuart? Ela lhe mostrou o rosto de seu inimigo?
— Mostrou, sim —, disse ele, sem olhar para ela. — Levou-me através da selva mais emaranhada e terrível que se pode imaginar. Era cheia de uivos, de fétidos, de poços, de trepadeiras com horrendas flores vermelhas. Era noite e havia uma lua avermelhada acima das árvores. Levou-me afinal para uma poça de água no meio da selva e me disse: "Aí está seu inimigo. Fique prevenido dele a tempo." Olhei para a poça e vi meu rosto. Estava certa, sabe? E acho que ela me apareceu naquela noite.
Laurie estava muito parada no rochedo onde se sentavam. Toda a vitalidade parecia havê-la abandonado. Ao fim de muito tempo, disse:
— Tentei chegar a Angus. Foi um erro. Só fiz foi causar-lhe sofrimento e ele agora me odeia.
— Como é que você pode saber o que realmente fez por ele? — perguntou prontamente Stuart. — Talvez ele ainda venha a compreender. Eu, também, lutei muito com Angus e acabei desistindo. Mas talvez eu tenha plantado dentro dele alguma coisa que pode brotar um dia quando menos se esperar. Ao menos, essa ideia é agradável à minha vaidade.
Laurie tomou a mão dele entre as suas. Ele passou o outro braço pelas costas dela e Laurie descansou a cabeça em seu ombro. Disse então ternamente:
— Quando é que você irá a Nova York de novo, Stuart?
— Não sei, querida. Não tenho motivo algum para ir. As remessas das mercadorias que encomendei na França e na Inglaterra foram "indefinidamente adiadas", segundo diz o Departamento da Guerra. Os embarques de algodão do Sul cessaram por completo. É claro que eu poderia negociar com contrabando, mas não quero. Teria de pagar preços muito altos por essa mercadoria ilegal.
— Mas os tecidos de algodão são fabricados na Nova Inglaterra, não são?
— Eu costumava importar meu algodão e remetê-lo para as fábricas da Nova Inglaterra, onde as fazendas eram tecidas de acordo com os padrões que eu escolhia por um preço bem razoável. Isso não é mais possível. É claro que posso comprar às fábricas tecidos de padrões comuns, mas os preços subiram tanto que não estão mais ao alcance da maior parte de minha freguesia. As fábricas estão ganhando muito dinheiro com esta guerra. Posso comprar o que quiser por um preço acima de qualquer limite e explorar minha freguesia na mesma proporção. Na verdade, é isso o que me têm cinicamente aconselhado. O fato é que o Norte está atravessando um surto de prosperidade enquanto o Sul passa fome. Mas não é essa prosperidade, comprada com o sangue dos soldados e o suor das mulheres e das crianças pagas miseravelmente, que eu desejo. Não quero negócios com esses patifes. Além disso, eles exigem dinheiro.
— As coisas vão mal então para você, Stuart?
— Muito mal. Não quero nem pensar até que ponto. Passei a viver de dia para dia. Se puder conservar minha casa, nada mais terá importância.
Deixou cair os braços em desânimo e continuou:
— Não posso mais pagar as minhas contas em dia. Em alguns casos, estou com seis meses de atraso. Só o fato de que Sam quase não retira um centavo da firma é que nos mantém em atividade. Se a guerra terminar neste ano, conseguirei sobreviver. Do contrário, irei à guerra. Mas a guerra não pode deixar de terminar neste ano.
— Sendo assim, que é que você vende?
— Vendo o que tenho e compro o que posso. Muitas das minhas prateleiras estão vazias. Tive de despedir quase a metade de meus empregados e isso, para mim, foi o pior de tudo. Felizmente, muitos deles se alistaram e outros conseguiram outros empregos. Nenhum deles está sofrendo. Preciso de quinhentos dólares por mês! Não posso viver com menos. Por isso, não olho mais os livros agora. Quando se passa mais um dia sem termos chegado à ruína, respiro fundo e espero o dia seguinte.
Que maneira mais insensata de viver, pensou Laurie. Disse então:
— Mas Angus lida com os livros. Sem dúvida, ele lhe informaria se o ponto de perigo estivesse próximo.
— Sem dúvida.
Sem dúvida, ela repetiu para si mesma, com uma ironia apreensiva e sombria.
Mas a apreensão de Laurie aumentou e ela viu o rosto de Angus. Claro que Stuart podia confiar nele! Claro que ele se lembraria de que Stuart é que lhe dera as suas oportunidades, tinha confiado nele, tinha-lhe estendido a mão com a maior bondade e lhe dera uma consideração e uma amizade que ele nunca havia encontrado antes. Tentou lembrar-se de que Angus tinha ao menos um elevado sentimento de honra e de integridade e pensou que ele nunca mentia nem enganava e que sua triste religião o refrearia de procedimentos indignos. Abanou a cabeça repetidamente, como se quisesse negar a possibilidade. Janie poderia fazer planos sinistros, mas Angus era de uma rígida integridade. Tudo ele poderia ter perdido, menos isso!
— Lembra-se da Ilha do Rio, Laurie? — perguntou Stuart. — Sam me disse que economizou agora dez mil dólares. A ilha é propriedade municipal e está à venda. Ninguém a quer particularmente ou se ofereceu para comprá-la, a não ser aquela aranha velha, Joshua Allstairs. Sabe que já está com mais de oitenta anos e continua ruim como sempre? Allstairs acha que pode lotear a ilha para sítios, embora haja dificuldade de transportes. De qualquer maneira, já ofereceu sete mil dólares por ela. Sam oferece dez mil. Ainda não desistiu de seu sonho e vê agora uma oportunidade de realizá-lo. Vem-se privando nestes últimos anos até das necessidades mínimas da vida a fim de economizar esse dinheiro. Acontece que há quatro anos houve um grande pogrom na Polônia e ele receia que em breve haverá outro, logo que isso for conveniente aos proprietários de terras e ao clero. Quer trazer para cá pelo menos quatro mil judeus aterrados e estabelecê-los na ilha. E eu não consigo esquecer que se ele não tivesse pago algumas dívidas pessoais minhas, essas infortunadas pessoas já poderiam estar livres da morte e da tortura. De certo modo, sinto-me culpado. Há cerca de um mês, ele me ofereceu esse dinheiro, mas eu não poderia aceitar. Seria um crime! Até hoje, me arrependo do dinheiro que ele gastou comigo e de que eu só paguei quatro mil dólares.
— Sam algum dia lhe cobrou esse dinheiro, Stuart?
— Nunca! Ele não seria capaz de uma coisa dessas! Foi preciso insistir muito para que ele recebesse os quatro mil dólares que já paguei. Houve então os pogroms e eu compreendi o que minha insensatez lhe havia custado. O pobre homem envelheceu dez anos em alguns dias quando os jornais publicaram as notícias. Quando fiquei aflito e me atribuí toda a culpa, ele me disse: "Se eu não tivesse prezado você acima de tudo mais, não lhe teria dado esse dinheiro, meu amigo. Não pense mais nisso. Não fiz mais do que você teria feito por mim."
Laurie umedeceu os lábios. Olhou firmemente para a frente e disse:
— Vamos ser honestos e lógicos, Stuart. Quanto foi que você gastou comigo?
Ele se afastou imediatamente dela, como se tivesse sido insultado. Ela exclamou, enchendo-se de energia:
— Não me olhe assim como se estivesse louco, Stuart! Pensou que eu pretendia aceitar a sua generosidade sem pagá-la, quando pudesse? Acha que posso ser objeto de caridade, uma criatura desprezível, sem orgulho, nem respeito próprio? É verdade que você é meu primo, mas o parentesco é distante. Nunca se admirou de não lhe perguntarem quem foi que me ajudou e por quê? Posso assegurar-lhe que essas perguntas têm sido feitas e que a resposta que eu tenho dado a essas pessoas curiosas é que esse dinheiro me foi emprestado e vai ser pago.
Stuart estava com o rosto congestionado e a ponto de explodir. Ela pousou a mão no braço dele.
— Sou agora uma mulher rica, Stuart. Peço-lhe que me permita pagar-lhe para que eu não perca meu respeito próprio e minha dignidade. — Riu secamente e acrescentou: — Se eu fosse homem, isso nem se discutiria entre nós. Ficaria tacitamente entendido.
Ele se levantou como se fosse deixá-la. Ela se levantou também.
— Sente-se ofendido em seu orgulho, Stuart? Mas pense que eu também tenho o meu.
Stuart tentou falar calmamente, mas a voz saiu um tanto áspera.
— Você não deve nunca mais falar disso, Laurie. O caso é muito menos simples do que você pensa. Só lhe direi uma coisa: nossas palavras enfraqueceram o respeito próprio, a segurança, o domínio das circunstâncias que eu ainda possuo. Permita que eu me orgulhe de uma coisa ao menos!
Olharam-se firmemente durante alguns momentos. Laurie viu como ele estava abalado, exasperado e atormentado. Aproximou-se então e com extrema delicadeza beijou-lhe o rosto, dizendo:
— Muito bem, Stuart. Não falarei mais nisso, se é o que você quer. Sinto muito que você não me deixe ter o meu orgulho, querido. Ainda acho, porém, que nesta emergência você poderia deixar-me restituir o dinheiro que de direito lhe pertence.
Tentou fazê-lo voltar à disposição anterior, mas o havia magoado de alguma maneira inexplicável e embora ele se mostrasse cheio de gentilezas quando continuaram o seu passeio pela beira do rio, estava muito calado e abstrato. Ela disse afinal:
— Tudo o que fiz, Stuart, foi porque você o desejou para mim e não porque eu mesma o desejasse. Eu era uma menina bronca, cheia de indiferença e indolência. Mas quando você falou de meu "futuro", pude ver que esse futuro lhe daria orgulho de mim. Fiz tudo por sua causa.
O egoísmo lacerado de Stuart ficou sinceramente satisfeito com essas palavras e ele apertou a mão pousada em seu braço com uma ternura que despertava. E disse:
— Mas quem sou eu em comparação com você, meu amor querido?
— Sem você, eu não seria nada —, respondeu ela.
Stuart começou a falar então de suas ansiedades e ela o ouviu com o mais profundo interesse. Duas semanas antes, o Padre Houlihan, quando voltava tarde da noite da cabeceira de um doente a quem fora prestar assistência espiritual, fora atacado por alguns desordeiros que o haviam espancado e insultado. Duas freiras, quando iam para a missa no domingo anterior, tinham sido abordadas por dois homens que lhes tinham dito coisas horríveis, num espírito de zombaria obscena. Outro vitral da igreja tinha sido quebrado a pedradas e na porta do convento tinham aparecido palavras imorais. De puro medo, muitos fiéis estavam deixando de ir à missa e as crianças católicas, quando voltavam da escola para casa, tinham sido ameaçadas. Sam Berkowitz e os outros judeus da cidade, em número de cerca de cem, tinham recebido ameaças de violência física e de expulsão de Grandeville. O sentimento "antiestrangeiro" estava aumentando perigosamente.
— E nós estamos empenhados numa luta de morte pela salvação da República! — exclamou Stuart exaltadamente. — Há aqui uma trama sinistra e muito grave, mas que é difícil de ser desvendada.
Laurie tentou acalmá-lo embora não sentisse interesse pessoal pelo caso.
— Mas, segundo soube, Stuart, Grandeville já deu 14.000 homens para o exército da União. Isso mostra que, se há uma trama, não faz sucesso aqui.
— Há uma trama, sim, Laurie, e não apenas em Grandeville! O sentimento contra os "estrangeiros" se alastra tanto no Norte quanto no Sul. A coisa é tão alarmante que o próprio Presidente já dirigiu mensagem ao Congresso sobre o assunto. Qual é o objetivo disso? Por que surgiu numa ocasião como esta? E quem é que, neste país, tem competência para julgar quem é "estrangeiro" e prejudicial e quem não é? Não somos todos, nascidos no estrangeiro ou aqui, estranhos neste país? Não somos todos filhos de europeus? Falam dos Estados Unidos como um país "novo". Mas não é. A terra é nova talvez, mas o povo que a habita descende de várias raças europeias. Os americanos não brotaram do solo do Novo Mundo como se fossem uma nova raça. A terra é nova, mas o povo é velho e está amarrado para sempre aos seus antepassados europeus por laços raciais. Mas os espíritos é que não devem estar amarrados. Devemos compreender que, embora nós, americanos, sejamos um povo europeu de cem raças, temos juntos um destino diferente e devemos ser um só povo, seja qual for o nosso sangue.
Estava muito emocionado e continuou impetuosamente:
— Não devemos ter lealdade a qualquer potentado, príncipe ou nação, mas só aos Estados Unidos! No momento em que nos chamamos "irlandeses", "ingleses", "alemães" ou seja o que for, nós não somos mais americanos. Somos estranhos, ainda que nossos antepassados tenham vivido há duzentos anos aqui! Ou somos apenas americanos ou não somos absolutamente americanos! Durante quase duzentos anos, o povo compreendeu isso. Agora, está esquecendo. Alguns homens perversos estão falando de velhas lealdades, velhas traições, velhas tiranias, velhas opressões e velhos ódios e só têm um objetivo, a destruição da República e a morte dos Estados Unidos.
Laurie nunca o vira tão exaltado e tão sério assim. Espantou-se com isso e ficou calada. Pensou consigo mesma que os Estados Unidos nunca haviam representado coisa alguma para ela. Nem qualquer outro pais. Ela era apenas um ser humano.
Stuart continuava a falar, cada vez mais furioso.
— Sabe o que os alemães desta cidade estão fazendo, Laurie? Dizem a seus homens que, se eles se alistarem no Exército, não encontrarão mais os seus empregos quando voltarem depois da guerra! É claro que têm sido muito hábeis e discretos na sua traição e na sua deslealdade. Não falam abertamente, mas fazem sugestões muito claras. Por isso, muitos homens que gostariam de alistar-se desistiram com receio do que lhes pudesse acontecer às famílias. Entretanto, o recrutamento começou agora. Não é horrível que este país, concebido com o sangue de homens resolutos e martirizados, nutrido pelos seus corações e pelos seus ideais, abençoado pelas suas preces e pela sua fé, tenha de recorrer ao recrutamento para preencher as fileiras de um exército que deveria ter três vezes o seu efetivo com homens dedicados? É horrível que o país tenha chegado a esse extremo e que nem mesmo uma ameaça mortal à sua existência faça bater o pulso indolente e reanime a alma morta de seu povo. Se eu não amasse tanto este país, gostaria de que ele morresse mesmo para arrastar esses indignos na sua morte!
Laurie se sentiu envergonhada e alarmada. Olhou para o rio e para a terra a seus pés. Era aquela sua terra. Nunca a conhecera, nem fizera questão disso. Havia uma aceleração no seu sangue, um rubor em suas faces.
— Tentei alistar-me —, disse Stuart sombriamente. — Mas não me aceitaram. Eu poderia ter tido uma comissão como oficial, mas disseram que minha saúde é precária. Conversa! Sou um homem sadio, de sangue e de força. É verdade que sofro de gota e que meu coração não é lá muito certo, mas minha resolução superaria isso, tenho certeza.
Olhou para ela e perguntou:
— Seus irmãos falaram por acaso em alistar-se?
— Não. Segundo soube, todos eles compraram substitutos —, disse ela.
— Substitutos! — exclamou Stuart. — Pagar a um miserável para morrer em nosso lugar, enquanto nós engordamos com os lucros da guerra! Comprar a própria segurança com a vida de outra pessoa, para que se possa continuar a dormir num colchão de penas e gerar outros fracos, covardes e traidores à sua imagem e semelhança!
Laurie franziu um pouco a testa. Tinha muito pouco sentimento de família, mas as palavras de Stuart tinham sido ofensivas. Não era nada agradável ser parente de "fracos, covardes e traidores".
— Talvez você não esteja a par de todas as circunstâncias, Stuart —, disse ela.
— Circunstâncias? Neste momento, só há uma circunstância que deve ser levada em conta. É o perigo que corre a República!
Voltaram para a casa. Stuart, com sua sutil intuição, sentiu que Laurie se tornara fria e alheada. Arrependeu-se do que tinha dito. Passou o braço pelos ombros dela e perguntou com triste ardor:
— Será que a magoei, meu amor?
Ela hesitou. Como poderia ele magoá-la? O homem amado nunca poderia magoar sem merecer imediatamente perdão e esquecimento. Abraçou-o apaixonadamente.
— Magoar-me? Como seria possível? Não há nada que você possa fazer, Stuart, que eu não seja capaz de perdoar, de esquecer e de compreender.

CAPÍTULO 60
O Prefeito Cummings estava sentado a tomar o seu cálice de vinho do Porto depois do jantar em companhia de Robbie Cauder.
Gostavam muito um do outro e tinha sido essa simpatia mútua que fizera Robbie concordar em ocupar o segundo andar da bela mansão da Avenida Delaware. O Prefeito achava que tinha realmente encontrado um filho naquele escocês pequeno e sutil que, embora fosse muito reservado, tinha uma espécie de integridade cética muito do agrado de seu sogro. Robbie se tornara seu confidente e o Prefeito achava indizivelmente tranquilizante discutir com ele os problemas e atribulações de seu cargo.
O Prefeito falava naquele momento da poderosa camarilha dos ricaços de Grandeville e era evidente que não gostava deles.
— Vêm sistematicamente fazendo oposição à vinda de várias indústrias para a cidade —, dizia ele. — Veja o que está acontecendo em Chicago e Detroit. São cidades que estão crescendo rapidamente e ostentam um progresso notável. Mas com Grandeville não pode ser assim. A cidade cresce, mas contra tremendos obstáculos. Temos aqui um grupo de velhos idiotas que gostam de ruas sujas e calçadas de pedras, de casas feias e do que eles chamam de "paz". Pairam numa esfera própria. As "massas", como eles dizem, não existem para a refinada consciência deles.
O Prefeito sorriu com desdém e continuou:
"Numa sociedade feudal, que esses grão-senhores oriundos das fábricas de salsichas, dos matadouros e dos curtumes adorariam, essa camarilha pode funcionar com segurança. Mas aqui não temos cossacos, nem espiões da polícia, nem clero submisso, nem guarda pretoriana, nem casta militar, para manter o povo oprimido e calado. Temos uma sociedade republicana e os insensatos que se isolam do crescimento de uma república ou de uma cidade correm o risco de perder não apenas os seus bens, mas também a vida. Estagnam uma cidade e lhe destroem as possibilidades. O povo numa república deve crescer ou morrerá. Dezenas de indústrias poderiam vir para Grandeville, mas os sorridentes homens dos matadouros e dos fétidos curtumes dizem: "Isso nunca! Temos de conservar a querida Grandeville como era em nossos tempos de criança!" E, assim, a indústria se move para oeste, com satisfação para Detroit e Chicago!
O Prefeito tirou uma baforada do charuto.
"Eu poderia ainda perdoá-los se eles tivessem uma tradição aristocrática autêntica. Mas as almas deles cheiram a curtumes e a vísceras. Poderia rir deles, mas quando vejo que Grandeville poderia tornar-se a porta do Oeste e um vasto centro de prosperidade e de esperança, não me rio mais e lhes desprezo as pessoas e as pretensões.
Levantou-se, pôs as mãos para trás e começou a passear de um lado para outro no agradável salão de jantar, do qual as senhoras se haviam retirado.
— Mais que tudo isso, preocupam-me as situações que estão criando. É verdade que há desordens anticatólicas e antiestrangeiras em todo o país, mas em Grandeville são especialmente graves. Por quê? Talvez porque o povo se ofenda com o fato de viver desprezado e constrangido, com oportunidades limitadas e numa situação desesperada. Está na natureza da humanidade odiar sempre alguma coisa. Mas, em vez de odiarem as injustiças e tragédias que deram causa a essa guerra e os homens que se vêm beneficiando com essas coisas, têm de odiar alguma coisa mais imediata. Um homem não pode sentir um ódio abstrato embora deva tentá-lo para o bem de sua alma. Não pode odiar as crueldades feitas a outros homens e a intolerância, embora também deva tentá-lo. Não pode ser uma criatura humana completa, se não possuir esse ódio salutar. Mas é mais fácil odiar o vizinho e oprimi-lo, particularmente se esse vizinho é mais fraco e indefeso do que ele.
O Prefeito sentou-se e olhou ansiosamente para Robbie.
"Falando objetivamente, estou preocupado, por exemplo, com o velho Houlihan. Foi forçado a vir pedir-me proteção. No mês passado, fez um sermão entusiástico na sua igreja sobre o patriotismo. Disse que o país se levantara sobre os ossos de homens dedicados, que o nutriram com seu sangue e sua fé. Disse que o país merecia todas as pulsações do coração de todos os homens, do suor das mãos e dos anseios da alma de todos. Se seus filhos o abandonassem, o país morreria e a culpa recairia sobre todos. Fez um apelo a todos os seus fiéis para que não esperassem o recrutamento e se alistassem quanto antes. Condenou os gananciosos e os traidores, os evasionistas e os indiferentes. Falou das desordens provocadas em Nova York pelo recrutamento e declarou que eram uma vergonha e um crime diante de Deus. Disse que um crime contra os Estados Unidos era um crime contra toda a humanidade, porque os Estados Unidos eram a esperança do mundo. Quem traía os Estados Unidos, traía os mártires de todos os tempos.
"Sem dúvida, foi um sermão apaixonado! Tão apaixonado e entusiástico que ele foi atacado numa noite numa rua escura e rudemente espancado. Por quem? Por aqueles que odeiam este país, é claro. Desordeiros empregados por nossos Schnitzels, Schnickelburgers e Zimmermanns, que odeiam a liberdade, a tolerância e a justiça, que odeiam o homem comum e sua esperança de vida e de dignidade. Esses desordeiros podem também ter sido armados pelos nossos Kents, Hamiltons ou Brewsters e toda a camarilha "aristocrática" que quer adquirir bens e servos para cultivarem e ampliarem esses bens. Para mim, o pior de tudo é que esses desordeiros fazem parte da massa dos oprimidos! Quando um homem fala de salvar a América para os americanos, o que ele tem em vista é salvar a América para a sua exploração pessoal, a sua cobiça e o seu ódio!
— Pobre Padre Houlihan —, murmurou Robbie. — Transformado em agitador... Devo dizer que nunca dei muita atenção a essas coisas de patriotismo. Mas quando se encontra um patriota como ele, é preciso pensar. E é um homem de coragem. Pode dar-lhe alguma proteção?
— Tenho tentado. Mas há forças em ação aqui que me apavoram. Bem sabe que eu não sou muito simpatizado, Robbie, embora tenha conseguido reeleger-me algumas vezes. O pobre padre é alvo do ódio não só daqueles a quem ataca, mas também daqueles a quem defende! É a história dos mártires, mas nunca deixa de me surpreender pela sua colossal imbecilidade e incrível cegueira. Soube que alguns dos seus paroquianos mais ricos foram pedir ao bispo que ele fosse removido. Essa gente prefere um Billingsley, que é um sujeito inteiramente vazio, mas tem um respeito sadio pelos direitos adquiridos. Quanto ao Padre Houlihan — Deus lhe abençoe a alma ingênua — só reconhece como direitos adquiridos Deus e o povo, um erro pelo qual tem sofrido muito e continuará a sofrer. Ah! Se eu não tivesse um pouco de consciência e alguma admiração pelos inocentes de cabeça quente como o Padre Houlihan, poderia ser um homem feliz.
A noite de julho estava quente e abafada. Relâmpagos se acendiam de vez em quando no horizonte ocidental, enquanto as árvores sacudiam incessantemente as plumas escuras num ritmo desordenado.
O Prefeito chegou à porta que dava para a varanda e disse, respirando fortemente o vento fresco:
— E Stuart. Estou preocupado também com ele. As coisas vão mal em todo o país. A súbita prosperidade está declinando. O povo começa a mostrar sinais de cansaço e irritação. Era muito ruim para Stuart o tempo em que as lojas viviam cheias de fregueses. É muito pior agora que a economia nacional se está tornando mais difícil com o prosseguimento da guerra.
— Talvez a guerra acabe dentro em pouco —, disse Robbie, olhando com carinho para o sogro, que também começava a mostrar "sinais de cansaço e irritação". Era o mal de ter consciência. Era uma coisa que produzia sempre inquietação e tormento espiritual. — Não pode durar muito mais. Já tomamos Vicksburg e os homens do Sul já devem ver que estão numa situação desesperada. Ocupamos Port Hudson e o Presidente Lincoln disse: "A Confederação agora está partida ao meio. O Mississippi rola livremente até ao mar." Quanto a Stuart, não se preocupe. Ele sempre se salva no último momento tanto de si mesmo quanto da falência.
O Prefeito olhou para Robbie por cima dos óculos, coçou o queixo e disse:
— Escute aqui, tem tido notícias de Laurie?
— Está às voltas com os ensaios. Deve estrear em novembro no Teatro Astor com uma ópera chamada Tannhäuser, escrita por um velho alemão incrível de nome Wagner. Ela nos mandou alguns jornais de Nova York e parece que há por lá grande interesse pela estreia dela. É possível que vamos até Nova York para ouvi-la. Mas é uma coisa em que ainda temos de pensar muito, pois a distância é muito grande.
Olhou atentamente o sogro, pois ele estava visivelmente inquieto com alguma coisa.
— Laurie vai longe —, murmurou o Prefeito. — Que sensação ela fez em Grandeville! Ainda discutem o acontecimento com toda a malícia de que são capazes. Laurie violou todas as convenções a respeito das mulheres quando mostrou a voz que tem. As suas maneiras são também um tanto bruscas.
Ele ainda estava inquieto e Robbie o olhou, cheio de cautela. Mas Cummings limitou-se a olhar com ansiedade para o genro.
— Laurie fará sempre o que for melhor para ela. Pode ter certeza disso —, murmurou Robbie.
O Prefeito perguntou finalmente:
— Onde está Stuart agora, Robbie? Em Nova York?
— Não está por acaso querendo dizer que se fala de alguma coisa entre Stuart e Laurie, não é?
Cummings ficou muito vermelho. Depois, enxugou o rosto com o lenço e disse:
— É isso mesmo que estou querendo dizer, Robbie. Por favor, não me interprete mal! Eu sei que não há nada de errado. Mas andam falando que eles foram vistos muitas vezes sozinhos na beira do rio quando ela esteve aqui e que na véspera da partida dela os dois foram juntos até às Cataratas do Niágara e passaram a noite no hotel. Sei que isso é um boato vil e tenho combatido o escândalo tanto quanto me é possível, inclusive dizendo que sua mãe estava em companhia deles.
Robbie sorriu com uma ironia que o Prefeito não percebeu e disse:
— Laurie está acima de qualquer escândalo. Infelizmente, Grandeville é provinciana demais para compreender isso. Afinal de contas, Stuart tem sido um pai para todos nós. É primo de nossa mãe e foi com a ajuda dele que Laurie fez seus estudos de canto. Foi ele quem deu a Angus o emprego que tem e quem mais trabalhou para a minha eleição como juiz. Tem dedicado também muito tempo a Bertie. Entretanto, o povo não vê nada disso e só quer falar.
— É claro, é claro —, murmurou o Prefeito. — Mas têm sido recebidas aqui cartas de Nova York que dizem que Stuart é visto por toda a parte na cidade com Laurie e com toda a aparência de amantes. Dizem as cartas que Nova York está deliciada com o fato. Mas Grandeville não está deliciada, posso assegurar-lhe. Stuart tem de viver aqui, onde vivem a mulher e a filha e onde estão seus negócios. Tudo isso pode ser muito desagradável para ele.
— Já conversou com Stuart sobre isso? — perguntou Robbie.
— Não. Deixei isso para a família dele... para você.
— Eu? — exclamou Robbie, rindo. — Ele seria capaz de me botar pela porta afora a pontapés. Já que é tão amigo dele, por que não trata do caso pessoalmente?
O Prefeito encolheu os ombros e Robbie continuou:
— Não acha melhor deixar isso a critério de Stuart e afirmar que o caso é absolutamente inocente, como de fato é? Creio que é essa a melhor defesa tanto para Stuart quanto para Laurie. Se falarmos disso abertamente com prazer e naturalidade, como se fosse a coisa mais normal do mundo um parente de meia-idade estar interessado nos assuntos de sua prima jovem a quem sempre deu proteção, parece que ninguém terá muito o que dizer. Se eu insistir em dizer em nossa festa da semana que vem que Laurie escreveu dizendo que Stuart a escolta por toda a parte em Nova York e se sente muito orgulhoso dela, enquanto ela por sua vez lhe é particularmente grata por tanta dedicação, creio que o escândalo será consideravelmente atenuado. Escute, só me falou isso pensando em Alice, não foi?
— É claro, meu filho. Acho que neste momento nada a deve perturbar.
— Alice é muito mais resistente do que o senhor pensa. Há muito que ela sabe que Stuart e Laurie... se gostam.
A voz dele tremeu um pouco quando se referiu à esposa e o seu cenho se franziu.
— Escute, Robbie, quero sua opinião sobre outro assunto. É a respeito da Ilha do Rio. Aprovei a venda a Sam Berkowitz. Mas não sabia a tempestade que isso iria provocar. Deve saber o que aconteceu. Imprimiram e distribuíram prospectos em que meu ato era condenado e em que os piores insultos eram feitos a Sam. Tenho receio de que as coisas não parem nisso. O velho Allstairs queria também a ilha, mas a proposta dele era de apenas oito mil dólares, ao passo que Sam, depois da aprovação do Conselho, vai pagar onze mil dólares. O Conselho não poderá deixar de aprovar a venda, pois do contrário não terá justificação alguma. É claro que é Joshua Allstairs quem está promovendo toda essa agitação. Nunca em minha vida e em minha terra ouvi um homem ser insultado pelo fato de ser judeu. Estou ouvindo agora. Allstairs influenciou vários ministros para que trovejem do púlpito como se fossem dementes. É claro que Joshua só está querendo tirar vantagem monetária da campanha, mas o fato é que está havendo na cidade uma revolta popular contra Sam. Que é que eu devo fazer?
— É claro que deve manter a sua decisão, apesar de Joshua Allstairs e de seus amigos dementes. Sei que Allstairs deseja comprar a ilha por oito mil dólares a fim de revendê-la a Sam por vinte mil. É só por isso que está criando toda essa agitação. Depois que ele tiver feito a transação, Sam passará de novo a ser uma criatura muito boa para o velho cantor de salmos.
— A ruindade humana ultrapassa minha compreensão! — exclamou o Prefeito, exaltadamente.
— Pois a ruindade humana está inteiramente de acordo com as minhas expectativas —, murmurou Robbie.
— Vou exercer pressão sobre o Conselho para que a venda seja aprovada. A ilha será de Sam, seja lá como for. Nunca pude tolerar Joshua Allstairs. É uma influência perniciosa em Grandeville e, embora minha cidade tenha seus defeitos, eu gosto disto aqui.
Alice e a mãe estavam à espera deles na sala de estar. A Sra. Cummings estava placidamente cosendo o enxoval do esperado neto. Mas Alice, embora sorrisse ao ver o pai e o marido aparecerem, se mostrava muito pálida e cansada. Abanava-se apaticamente com o leque. Robbie aproximou-se dela e examinou-a ansiosamente.
— É o calor, meu bem —, disse ela, respondendo à pergunta que não fora feita.
Estava quase na época do nascimento e Robbie acariciou ternamente os cabelos da mulher, notando que ela transpirava excessivamente.
A Sra. Cummings cosia. O Prefeito lia o jornal. Robbie sentou-se ao lado de Alice e conversou gentilmente com ela. A voz dele era suave e terna e Alice o escutava embevecida. Dizia muito pouco, embora o seu coração tivesse vontade de gritar: Quando afinal você será todo meu, querido? Fala comigo com toda essa doçura, mas eu sei que você mantém fora de meu alcance alguma coisa que deveria ser minha também.
Estava tão cansada naquela noite quente que não podia pensar muito em coisa alguma senão em quanto amava o marido. A mão dele, ainda que pequena, tinha a força e a firmeza de que ela precisava.
Uma tempestade se avizinhava. O vento sacudia com maior violência as árvores do lado de fora e ouviam-se alguns trovões distantes. O calor na sala estava maior. O Prefeito levantou-se com o rosto afogueado. Robbie que tinha começado a examinar alguns papéis, levantou-se também por deferência.
— Vamos dar uma volta pelo jardim? — disse Cummings, convidando a família.
Alice sacudiu a cabeça.
— Estou muito cansada. Mas você, Robbie, se quiser, pode ir tomar um pouco de ar com Papai. Mamãe ficará comigo.
Os dois homens saíram da casa e começaram a andar pelos jardins escuros.
— Vamos precisar dessa chuva que vem aí —, disse o Prefeito. — A terra aqui está ficando muito seca.
Falaram de assuntos jurídicos e Robbie discutiu dois ou três casos com o sogro. Os relâmpagos riscavam quase incessantemente o horizonte, mas embora o vento aumentasse, a chuva não caía.
De repente, Robbie parou e perguntou:
— Ouviu um grito?
O Prefeito parou também e prestou atenção. Sim, havia alguma agitação na casa. Os dois homens voltaram com Robbie correndo à frente. Foram recebidos pela Sra. Cummings, que estava muito pálida, mas sorria.
— Creio que já começou —, disse ela. — Vou mandar a carruagem buscar o médico. E agora, querem me ajudar a levar Alice?
Carregaram para a cama Alice que gemia, mas tentava sorrir, com a cabeça pousada no ombro de Robbie durante a jornada para o andar de cima. Na sua agitação, o pai falava sem parar:
— Calma, calma. Não tenha receio, minha querida. Estamos todos aqui. Tomaremos conta de você. Não, não chore. Vamos ver.
Mas Alice só olhava para o marido, embora a dor lhe dilatasse os olhos.
Deitaram-na na cama e saíram, enquanto uma criada a ajudava a trocar de roupa. O Prefeito e Robbie desceram. O Prefeito passou o braço pelos ombros do genro e disse em tom paternal, embora na realidade estivesse mais agitado do que ele:
— Não se preocupe, meu filho. Dentro em pouco, tudo estará resolvido. Já passei por isso e sei. Sente-se e acalme-se!
Enquanto isso, começou a passear de um lado para outro da sala. Robbie o observava, com secreta e afetuosa ironia. O Prefeito continuou a falar:
— Nada na natureza masculina está à altura de uma situação como esta. Temos de confiar em Deus e na natureza!
— Estou perfeitamente preparado para isso —, murmurou Robbie.
Mas o Prefeito não o ouviu. Tocaram a campainha da porta e ele foi abrir impacientemente, sem esperar uma empregada.
— Deve ser o médico! — exclamou.
Era, porém, uma criada da casa de Janie que queria falar com o Sr. Cauder. Robbie chegou à porta e ela exclamou:
— É o Sr. Bertie! A Sra. Cauder está muito preocupada e pede que o senhor vá até lá imediatamente! O Sr. Bertie não aparece em casa há dois dias e ela está inteiramente fora de si!
O Prefeito disse impacientemente:
— Diga a sua patroa que sentimos muito, mas que o Sr. Cauder não pode ir no momento, pois há um assunto da maior importância...
Mas Robbie se aproximou da empregada e disse, muito pálido:
— Irei imediatamente.
O Prefeito olhou-o, estupefato e murmurou:
— Mas Alice precisa se você. O médico deve chegar a qualquer instante. Não pode sequer pensar em sair, Robbie!
— Tenho de ir —, disse Robbie com voz tranquila e firme. — Alice está bem cuidada. Além disso, voltarei dentro em breve.
O Prefeito olhou para o rosto fixo e branco do genro e teve dificuldade em reconhecê-lo. Com o coração a ferver de indignação e incredulidade, exclamou:
— Não pode abandonar sua mulher neste momento. Sua mulher, minha filha, precisa de você. Seu irmão é um bêbado e um desclassificado e deve estar entregue a uma de suas bebedeiras. É capaz de deixar minha filha e sua mulher e ir levantá-lo mais uma vez da sarjeta onde deve estar caído?
— O Sr. não compreende —, disse Robbie. — Meu irmão nunca ficou ausente de casa tanto tempo. Deve ser alguma coisa terrível. Talvez esteja morto. Tenho de ir procurá-lo. Não poderia ficar aqui pensando no que lhe terá acontecido. Ainda faltam algumas horas para que Alice... Tenho de ir. Mas voltarei imediatamente, logo que tiver alguma notícia de Bertie.
Encaminhou-se para a porta. Mas o Prefeito, recuperando-se em parte de sua estupefação, agarrou-o pelo braço. Estava com o rosto muito vermelho e os olhos fuzilantes.
— Não pode ir! Eu o proíbo! Proíbo esse abandono criminoso e cruel de sua mulher! Não deve estar em seu juízo perfeito!
— Tenho de ir! Pode dizer a Alice o que quiser. Ela compreenderá. É uma questão de vida e morte para mim!
— Vida e morte! — exclamou o Prefeito, amparando-se à parede para não cair. — É minha filha que está enfrentando a vida ou a morte! Sua mulher. Entretanto, por causa de seu irmão, vai abandoná-la na hora de sua maior necessidade! Fique sabendo que, se a deixar agora, eu nunca lhe perdoarei isso, nunca!
— Nada posso fazer —, disse Robbie. — Mas Alice me perdoará. Ela sabe.
Transtornado, ainda sem acreditar, o Prefeito viu-o sair da casa e desaparecer dentro da noite.

CAPÍTULO 61
O vento, os relâmpagos e a trovoada aumentaram furiosamente enquanto Robbie seguia na carruagem que a mãe mandara para buscá-lo. Sentava-se na beira do banco, como se estivesse pronto para saltar no momento em que o veículo parasse. Não tomava absolutamente conhecimento da criada sentada à sua frente, embrulhada num xale.
Tinha os maxilares cerrados e olhava fixamente à frente. Não se moveu durante toda a viagem. Mas sentia um aperto no estômago e uma dor lancinante na cabeça. Tinha esquecido por completo sua jovem esposa que naquele momento se contorcia nos trabalhos de parto. Pensava apenas em Bertie com frenética intensidade. Já está desaparecido há dois dias e uma noite, sem dar qualquer notícia ou deixar qualquer vestígio. Está morto, pensou Robbie com uma sensação quase avassaladora de abatimento. O coração lhe batia tão apressadamente que ele mal podia respirar. Os músculos estavam retesados e doloridos. Que tinha acontecido a Bertie? Para onde teria ido? Seria possível que, num de seus delírios, se tivesse jogado no rio? Robbie tentou acalmar-se. A negação da vida nem sempre queria dizer que o portador de tal negação desejasse a morte. Quem não tinha amor à vida raramente ansiava pela extinção. A não ser, a não ser que fossem arrastados para a morte pelo fato de não fazerem qualquer esforço para a sobrevivência diante de uma ameaça. Poderia ter caminhado na sua embriaguez até à beira do rio, ter caído no rio e, então, com um último sorriso, se deixara morrer de maneira tão apática e tão indiferente quanto havia vivido.
Eu nunca o deveria ter deixado, pensou Robbie. Se ele morreu, eu sou culpado dessa morte. Devia ter ficado ao lado dele. Ele não tinha um afeto muito grande por mim, mas tinha confiança. Ia para onde eu queria, fazia o que eu pedia, concordava com tudo o que eu sugeria. Sem dúvida, gostava um pouco de mim e me tinha alguma consideração. É claro que não iria fazer uma coisa capaz de me causar tamanha angústia!
Toda a sua tranquila razão se desmoronou ao choque dessa agonia. Gritou do fundo de seu coração: Bertie! Espere por mim, Bertie! Já estou chegando. Sentiu que a ânsia o deixava como um grito de súplica que transpunha o espaço e salvava o irmão das trevas derradeiras. Sentiu um ardor intenso nos olhos. Não podia alcançar Bertie com sua voz e tinha as mãos vazias. Bertie sempre fugira dele com um sorriso e, quando tentava segurá-lo, Bertie lhe lançava um estranho olhar de advertência, que o fazia largá-lo.
Pela primeira vez na vida, Robbie se perguntou: Por que tenho tanto amor por ele? E não encontrou resposta. Não havia resposta nos livros que tratavam das afeições normais e não havia resposta nos livros sombrios dos homens que estavam começando a explorar o oculto e enevoado continente da mente humana. É uma obsessão, pensou Robbie. Mas por que tenho essa obsessão?
A casa da Avenida Porter estava acesa de alto a baixo. Robbie saltou da carruagem antes que ela parasse e subiu correndo os degraus da entrada. Deparou no vestíbulo com Janie desgrenhada e a chorar desabaladamente. Abraçou-se com Robbie, murmurando coisas incoerentes. Ele a levou para a sala de estar e então perguntou:
— Já teve alguma notícia? Já avisou a polícia? Onde ele foi visto pela última vez? Desde quando desapareceu? Disse alguma coisa?
Ela tentou falar por entre as suas lágrimas e Robbie, na impaciência em que estava, sacudiu-a violentamente. Chocada, mesmo no meio de sua dor e de seu medo, por essa veemência, Janie o olhou assustada. Por fim, recuou alguns passos e disse:
— Você está quase alucinado, Robbie. Acalme-se.
Sem tirar os olhos dele, ela procurou com as mãos uma cadeira e sentou-se. Tremia apesar do forte calor e tornou a dizer:
— Acalme-se. Você parece um louco, Robbie. Não me olhe desse jeito. Seja homem. Sente-se e vamos conversar.
Mas ele continuou de pé diante dela e Janie nunca o vira tão agitado assim. Procurou falar com voz pausada e calma porque ele a enchia de medo. Disse que Bertie, dois dias antes, lhe havia dito que ia sair para comprar umas gravatas. Deviam ser onze horas da manhã e ele parecia perfeitamente normal. Dera-lhe um beijo naquele dia, como sempre fizera, sem que houvesse qualquer coisa estranha em suas maneiras. Fazia apenas dois meses de sua última bebedeira e não estava na época de outra, ao menos por mais um mês ainda. Ela lhe tinha dado dinheiro e lhe pedira que passasse pelas lojas para dizer a Angus que a procurasse naquele dia pois ela queria discutir com ele alguns assuntos urgentes de negócios. Ele havia concordado com isso e dissera ainda que estaria de volta na hora do chá e também que passaria pela casa da Sra. Hathaway a fim de pegar um livro que Janie havia emprestado à mesma. Desde que o dia estava muito bonito, ele não mandara preparar a carruagem e tinha saído assobiando, evidentemente satisfeito consigo e com o mundo. Não tinha mostrado o menor sinal da inquietação, do silêncio e da abstração que precediam sempre de dois ou três dias as suas bebedeiras.
Robbie escutava com fremente atenção, sem afastar os olhos um só momento do rosto da mãe. Perguntou então, quando ela fez uma pausa:
— Ele não beijou você... como se fosse partir para uma longa viagem ou coisa parecida? Não levou nada com ele? Não correu os olhos pela casa... como se a estivesse vendo pela última vez?
— Que quer dizer com isso? — exclamou Janie, desesperadamente. — Claro que não! Meu filho querido! Eu teria sabido no fundo de meu coração se houvesse alguma coisa de anormal com ele, se ele tivesse qualquer intenção oculta! Procedeu como sempre, da maneira mais comum possível. Nem sequer olhou para trás quando desceu a rua. Que é que você está querendo dizer, Robbie?
Mas Robbie começou a andar na sala de um lado para outro, ao mesmo tempo que lhe fazia perguntas. Ela respondia da melhor maneira possível, por entre as suas lágrimas. Sim, a polícia fora avisada. Todos os bares que Bertie costumava frequentar tinham sido procurados. Não fora visto em nenhum deles. Tanto quanto se sabia, não bebera uma só gota. Algumas pessoas disseram que o tinham visto descer assobiando a Avenida Dalaware ou a Rua Principal. Mas não estivera nas lojas. Nem Angus, nem Stuart o tinham visto.
Bertie havia desaparecido como se a terra se houvesse aberto aos seus pés. A última pessoa que o vira? Um jovem tenente do Exército. Bertie fora visto em conversa com o oficial na esquina da Rua Niágara com a Rua Hudson, por volta das quatro horas da tarde. A Sra. Fiske o vira ao passar na sua carruagem e fora cumprimentada por ele, com sua habitual cortesia. Não, ela não conhecia o oficial. Não era nada fora do comum para Bertie travar conhecimento com estranhos, conversar afavelmente com eles e até dar alguns passos em companhia deles.
— E esse tenente foi encontrado e interrogado? — perguntou Robbie.
— A polícia foi encontrá-lo no centro de alistamento da Rua Niágara. Trata-se de John Girard, de Nova York. Lembrou-se imediatamente de Bertie e disse que tinha conversado amistosamente com Bertie na Rua Niágara e que lhe tinha perguntado por que ele não estava no Exército. Bertie respondera que era "quase um inválido" e mudara de assunto. Tinham dado milho aos pombos juntos e tinham discutido a guerra com muito interesse. John ficara encantado com seu novo amigo. Tinha-o convidado para jantar num restaurante próximo, mas Bertie recusara polidamente, explicando que tinha alguns "negócios" para resolver.
Robbie voltou-se para a mãe ao ouvir isso e um pouco da tensão em seu rosto se atenuou. O seu receio mais terrível estava parcialmente abrandado.
— Não foi perto do rio então! — exclamou ele.
De repente, ouviram a porta abrir-se. Janie se levantou com um grito e correu para o vestíbulo acompanhada de Robbie. Mas era apenas Angus de rosto pálido e rígido, que ali estava com seu terno preto e fez uma exclamação involuntária escapar-se dos lábios de Janie.
Angus lançou a Robbie o olhar frio e distante de hábito. Depois, colocou o braço nos ombros da mãe e disse:
— Quer dizer que ele não voltou ainda? É terrível. Uma ação insensata e cruel. Mas outra coisa não se poderia esperar de um bêbado, patife e cretino!
Num movimento impetuoso, Janie separou-se dele e gritou:
— Retire-se imediatamente desta casa! Como se atreve a falar assim de meu querido Bertie? Quem quer você aqui, cadáver ambulante, fantasma de homem? Saia já de minha casa!
Ela estava furiosa e Angus se afastou dela, ainda mais pálido e com os olhos cheios de sofrimento. Ela bateu os pés para ele, gritou, insultou-o com espuma nos lábios. Os anos de ódio dela explodiam em palavras obscenas. Tinha os olhos desvairados de ódio, desespero, terror e agonia. Angus a ouvia, com os braços caídos e um olhar que nem o cético Robbie pôde suportar. Fosse Angus o que fosse, não merecia aquela monstruosa avalancha de ódio e repulsa. Sempre amara a mãe, sempre lhe obedecera e a servira, dando-lhe a única dedicação que ela tivera na vida.
Quando Janie parou a fim de tomar fôlego, Angus perguntou com voz suave:
— Você me odeia mesmo, não é Mamãe?
— Se eu o odeio? — exclamou Janie. — Odeio você desde que nasceu, com suas preces, sua igreja, seus salmos, suas conversas cretinas de dever, honra e obediência! Odeio sua presença, o som de sua voz, seu andar furtivo, seu jeito piedoso, seus sermões, seu ar de ministro. Você nunca foi um homem! É um pedaço de pau, um cadáver e tem sido um idiota toda a sua vida, ganindo como um cachorrinho a meus pés, querendo que eu gostasse de você. Gostar de você? Quero é que vá estourar no inferno, sujeitinho abjeto!
Estava inteiramente alucinada. E Angus se limitava a ouvir, com a cabeça um pouco inclinada para a frente, e os olhos fitos nela.
— Já desejei sua morte mil vezes! — exclamou ela com redobrada fúria. — Por que não está dentro de uma sepultura ou no fundo do rio? Você tem sido dentro de minha casa como uma doença terrível, como uma peste! Foi um dia de alegria para mim o dia em que você saiu daqui e eu desejei do fundo do coração nunca mais pôr os olhos em cima de você! Por que não foi você que desapareceu sem deixar vestígios? Por que é que você está aqui e não meu filho querido?
Angus deu um profundo suspiro e para Robbie foi um som horrível, como de um coração que se estivesse despedaçando. Dava a impressão de que seu corpo se estava encolhendo dentro do terno preto. Levantou as mãos e apertou as têmporas. Tornou a suspirar.
Robbie sentiu-se invadido por uma onda de profunda compaixão. Era absurdo ter pena de Angus, mas não havia outro jeito. Durante toda sua vida, ele tinha procurado alguém para amar e que também o amasse. Mas tinha sido repelido por todos. Era odiado e desprezado por Janie, rejeitado desdenhosamente por Laurie, deixado de lado por Bertie, alvo da ironia de Robbie, devorado pela esposa. Entretanto, só queria ser amado e servir. Afinal, tinha sido rejeitado não só pelas pobres e desvaliosas criaturas que o cercavam, mas pelo próprio Deus.
Robbie achou que devia intervir. Tocou no braço de Angus e disse calmamente:
— Não dê atenção ao que Mamãe está dizendo. Ela está naturalmente desorientada com o desaparecimento de Bertie. Vamos para a sala.
Angus afastou mecanicamente a mão do irmão, mas se dirigiu para a sala. Movia-se como se estivesse em transe. Os olhos estavam anuviados por tremendo sofrimento. Chegando à sala, encostou-se à lareira apagada e ficou de olhos voltados para o chão. Robbie levou para uma poltrona a mãe que chorava copiosamente.
Robbie começou a falar então calmamente, explicando ao irmão que Bertie ainda não fora encontrado, mas que não havia motivo para temer que tivesse havido qualquer violência. Angus nada dizia. Era impossível dizer se estava escutando ou não. Só os movimentos ocasionais das pálpebras mostravam que havia alguma vida nele.
— Vamos continuar a busca —, disse Robbie, acendendo um charuto. A sua agitação tinha desaparecido diante daquela nova situação. — Dentro em pouco, haverá notícias. Não tenho a menor dúvida disso. Bertie não esteve em nenhum bar, nem perto do rio e todas as pessoas que o viram disseram que ele parecia perfeitamente normal.
Olhou para Angus e este se moveu, mas como se o movimento lhe custasse um tremendo esforço. Levantou os olhos parados para Robbie, mas continuou calado. Janie estava chorando com menos intensidade depois das palavras de Robbie. Estendeu as mãos trêmulas para ele e disse:
— Você é agora meu consolo único, meu filho.
Robbie olhou para as mãos dela e pensou: São as mãos de uma assassina. Foram elas que tangeram Angus para a morte em vida, que transformaram Laurie numa vagabunda dominadora, dura e inescrupulosa, que impeliram Bertie para a negação de sua vida e talvez para a sepultura. Mas, embora fossem as mãos de uma assassina, olhou para elas e para o rosto da mãe sem sentir a menor emoção.
Janie olhou para ele e, de repente, seus olhos verdes se estreitaram de compreensão e brilharam de ódio por ele. Mas não disse uma só palavra.
Nesse terrível silêncio, repleto de emoções amargas e congeladas, mortíferas e irremediáveis, ninguém ouviu a entrada sossegada de outro homem, que envergava o uniforme de oficial do Exército dos Estados Unidos. Parou à porta, olhando para as três pessoas petrificadas na sala, sorrindo um pouco. O corpo magro, mas ereto vestia a farda azul da União e o quepe lhe escondia um pouco o brilhante azul dos olhos.
Foi Robbie quem, desviando da mãe o olhar penetrante, viu primeiro o soldado. Tão intensos eram os seus pensamentos que por um momento o olhou confusamente, julgando que se tratava do amigo de Bertie. Viu então que não era um estranho quem estava ali tão calado e sorridente, mas o próprio Bertie.
Os dois irmãos se olharam através da sala, antes que Angus ou Janie tomassem conhecimento do recém-chegado.
No mesmo instante, Robbie sentiu no coração um afluxo de sangue, que era ao mesmo tempo, dor, alegria e medo. Atravessou em silêncio a sala e estendeu a mão para o irmão. Bertie apertou-lhe a mão, não com lentidão e indiferença, mas com força, firmeza e calor. Não sorriram um para o outro.
Ouviram então um gemido abafado. Janie se levantava com dificuldade da cadeira. O xale lhe escorregou dos ombros e ela, na sua estupefação, murmurou coisas ininteligíveis. Deu então um grito e correu com os braços abertos, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelo rosto. Robbie largou a mão do irmão, sentindo ainda na carne a pressão daquele aperto. Janie abraçou-se com o filho, apertou o rosto de encontro ao peito dele e começou a murmurar coisas incoerentes, correndo as mãos pelo corpo dele como para certificar-se de que estava vivo. Deu graças a Deus na mesma voz com que insultara tão desabridamente Angus momentos antes.
Robbie afastou-se. Não podia deixar de ter pena da mãe, embora a alegria dela tivesse um elemento de violência e excesso que lhe era muito desagradável. Deu alguns passos na direção de Angus. Este olhava para a mãe e o irmão com um rosto sombrio, sem fazer qualquer menção de aproximar-se dos dois ou de dizer alguma coisa.
Bertie, sorrindo, tentou acalmar a mãe e a levou para uma cadeira. Mas ela não queria deixá-lo. Beijava-lhe repetidamente as mãos. Alisava os braços dele. Levou alguns momentos para perceber que o braço estava vestido com uma manga diferente. Quando percebeu, os choros e exclamações cessaram instantaneamente e ela olhou para o uniforme, inteiramente atônita.
Robbie foi para junto de Bertie e colocou a mão no ombro do irmão. Bertie estava falando com a sua calma e a sua amabilidade naturais.
— Esperei toda a tarde que me atendessem no posto de alistamento e entrei pela noite. Mas havia muita gente à minha frente e eu tinha receio de sair para mandar um recado aqui para casa e perder o lugar. Só às dez horas é que eu fui atendido e o oficial e eu começamos a conversar tão animadamente que só fui dar acordo de mim quando já era meia-noite. O oficial me convidou para dormir no alojamento dele nos fundos do posto e eu aceitei, não querendo incomodar ninguém aqui em casa. Resolvi então só voltar depois que todo o processo de alistamento estivesse terminado. Mas isso demorou mais do que eu supunha...
Fez uma pausa e olhou para Robbie. Este viu que os olhos de Bertie não estavam mais ausentes e vazios, mas calmos e cintilantes. Entretanto, havia ainda neles uma advertência, não de repúdio, mas de súplica.
— O trabalho de alistamento se estendeu por todo o dia e eu fui submetido a muitos exames. Não queria ser comissionado como oficial. Queria apenas alistar-me como um soldado comum, mas acabaram por me convencer. Tenho de partir esta noite para o campo de treinamento.
Robbie nunca soube o que o fez aproximar-se da mãe e apertar-lhe o ombro com força. Ela abrira a boca, talvez para protestar, mas, ao sentir a mão de Robbie, ficou em silêncio, embora empalidecesse um pouco mais. Olhou para Bertie com intensa penetração e suas feições se tornaram austeras e até cheias de dignidade graças à emoção contida e à advertência de Robbie.
— Bertie —, disse Robbie, encarando o irmão —, você quis mesmo fazer isso?
— Quis, sim —, disse Bertie, sorrindo.
Robbie ficou em silêncio. Bertie sentira realmente o desejo de fazer aquilo? Haveria de fato nele os impulsos e as paixões do patriotismo? Teria mesmo aquela guerra algum sentido para ele? Robbie não se podia lembrar de que em dois anos de guerra tivesse discutido o assunto com ele ou com qualquer outra pessoa. Tinha lido os jornais, fazendo um comentário displicente sobre alguma batalha e, então, bocejava e virava a página. Robbie não podia acreditar que Bertie tivesse escondido durante tanto tempo um interesse oculto, um desejo secreto e uma resolução.
Bertie continuava a ser um enigma. Respondera polidamente à pergunta do irmão. A resposta fora convencional. Mas que haveria no fundo dessa resposta? Que significavam os Estados Unidos para Bertie, que nunca vivera na realidade neste mundo?
— Isso é maravilhoso, Bertie —, disse Robbie. — Devo dar-lhe parabéns.
Estendeu de novo a mão para o irmão, pensando: Siga o seu caminho, Bertie. Procure encontrar-se seja lá onde for e como for.
Os seus pensamentos se lhe estampavam no rosto e foram percebidos por Bertie que apertou significativamente a mão de Robbie.
Janie devia ter tido também seus pensamentos. Continuava a chorar, mas sem agitação. Levantou-se e beijou o rosto de Bertie, dizendo:
— Meu bravo filho! Meu filho soldado! Orgulho-me de você!
Bertie olhou-a com grata surpresa. Beijou-a também e deixou que ela tornasse a abraçá-lo.
Tiveram todos um sobressalto quando Angus começou a falar, pois haviam-no esquecido.
— É isso então tudo o que você pode fazer, enchendo sua mãe de preocupação e fazendo-a acreditar que tinha morrido bêbado em alguma sarjeta ou se tinha jogado no rio, para voltar agora fantasiado de herói, com um uniforme que não tem o direito de usar! Esse uniforme não tem o menor sentido para nós, nem para você. Você é um patife barato e irresponsável e eu o desprezo e repudio!
A sua voz trêmula de paixão, com dominante e desesperada emoção, cheia de ciúme e angústia, encheu toda a sala. Apontou implacavelmente o dedo para o irmão com tamanho ódio no rosto que até Bertie perdeu o seu constante sorriso e se tornou grave e silencioso.
— Toda a sua vida você foi um fardo e uma vergonha para sua mãe, uma desmoralização pra sua irmã, uma ignomínia para seus irmãos! Você sempre pairou sobre esta família como uma nuvem negra que nos humilhava perante os inferiores e nos manchava o nome e a honra. Acha que com o que acaba de fazer pode inspirar-nos admiração por sua loucura? Mas eu lhe digo que isso é o seu ato máximo para nossa mortificação e que só fez isso para colocar-nos diante de nossos iguais, de nossos inferiores e de nossos superiores numa posição do mais completo e desastroso ridículo!
O rosto severo e estreito de Angus, sempre tão pálido e sem expressão tinha-se tornado a cara de um demônio selvagem e odiento. Parecia possesso e vibrava com as suas emoções. Olhava apenas para Bertie, que nada dizia.
E então, antes que Janie pudesse voltar a si do seu assombro, saiu da sala e da casa, cambaleando um pouco, como se estivesse bêbado.
Robbie estava sentado ao lado de Alice à pálida luz do amanhecer. Alice dormia e seu rosto jovem estava abatido, mas em descanso. Duas horas antes, tinha dado à luz uma filha, que estava no berço no quarto do outro lado do corredor.
Havia duas horas que Robbie estava assim sentado ao lado da esposa. Mas não pensava nela, nem na filha. Pensava era no irmão. E dizia a si mesmo: Nunca mais o verei. Ele se foi para sempre.
Havia nele uma ampla e vazia desolação na qual a dor vagueava como um espectro. Olhava para o rosto da mulher que dormia e via apenas Bertie. Não era a mão de Alice que segurava, mas a do irmão. Quando ela suspirou um pouco em seu sono profundo, o suspiro que ele ouviu foi de Bertie.
Sentia que estava não num quarto onde a vida tinha entrado, mas num quarto onde a morte esperava.

CAPÍTULO 62
— Não quer, não é? — perguntou Stuart, cheio de raiva. — Pois fique sabendo, Grundy, que vai tê-los, queira ou não queira! Quem os está pagando sou eu e não você!
— Vou-me queixar à polícia! — exclamou o Padre Houlihan, furiosamente. — Não quero desordeiros e valentões atrás de mim! Você pode acabar na cadeia por isso, sabe?
— Pois eu acho que deve dar atenção a Stuart, Padre —, disse pausadamente Sam Berkowitz.
— Dar atenção a Stuart?— gritou o padre. — Ele me está fazendo seguir de um pelotão de ferrabrases e arruaceiros como se eu fosse um criminoso! Deus é que é meu protetor! Não preciso de assassinos com cacetes e pistolas!
— Deus não impediu que lhe quebrassem já três vezes a cabeça! — retorquiu Stuart. — Ou quem sabe se não ficou com esses olhos roxos por ter batido sem ver numa porta fechada? E como foi que quebrou esse braço? Foi quando estava diante do altar e fazia a elevação da hóstia?
— Blasfemo indigno! — exclamou o Padre Houlihan, querendo levantar-se da cadeira com os punhos cerrados. — Não consinto que um blasfemo e um ímpio fique nem mais um minuto dentro de minha casa! Saia antes que eu o ponha para fora a pontapés!
Mas Stuart se limitou a rir porque o Padre Houlihan com os seus vigorosos movimentos tinha repuxado vários músculos doloridos de seu último espancamento por um grupo de desordeiros mascarados. O padre se deixou cair na cadeira com um gemido, mas seu olhar ainda era furibundo.
— Creio — disse o Padre Billingsley com sua voz neutra e explícita —, que o Padre Houlihan tem toda a razão nas suas objeções. Ninguém precisa senão da proteção de Deus.
— Pensa assim, não é? — exclamou Stuart desdenhosamente e olhando o padre mais moço com visível má vontade. — Todas as provas da história dizem o contrário, Padre. Ou talvez não conheça bem a história?
Stuart sabia muito bem que o Padre Billingsley era muito versado em história e escrevera um livro bem fundamentado sobre Napoleão e outro sobre Gustavo Adolfo, que tinham despertado muito interesse nos dois continentes. O Padre Houlihan, esquecido por um momento de seus problemas, exclamou:
— Ora, aí está uma coisa muito impensada que você disse! Você que é incapaz de saber a diferença entre o Monte Etna e Santa Helena! Ou quem sabe se não acha que tem competência para dar uma lição de história ao Padre Billingsley?
Stuart ficou de repente exasperado.
— Eu bem que poderia ensinar a ele e a você também, não tenha dúvida, muito boa lição sobre a natureza humana e uma grande lição sobre as distrações do Onipotente quando devia estar protegendo bobos e crianças como vocês! Você vai ter esses... esses cavalheiros para protegê-lo, quer você queira, quer não. Além do mais, são bons irlandeses católicos e você não pode fazer nada para impedir que eles o acompanhem até à sua igreja. Portanto, conforme-se!
— Não consentirei! — gritou o padre.
— Já consentiu —, replicou Stuart, rindo.
Olhou para os dois grandes e jovens irlandeses que se conservavam respeitosamente perto da porta da sala do padre. O Padre Houlihan olhou também para eles e perguntou:
— Posso saber por que dois rapagões como esses não estão no Exército em vez de atormentarem um pobre padre como eu?
Já estiveram no Exército, Grundy, e deram baixa em consequência de ferimentos recebidos em combate. Walsh perdeu o olho direito e Cullen levou uma bala no quadril. Mas ainda têm uma musculatura esplêndida, sabem com que lado de uma pistola é que se atira e costumam atirar primeiro e fazer perguntas depois.
— Quer dizer que eu vou ser guardado por assassinos? Por onde eu andar, irei deixando um rastro de cadáveres! Não, não quero!
— Vai querer, sim —, murmurou Stuart, gentilmente.
O padre teve uma exclamação de raiva seguida de um olhar feroz. Tentou reprimir os sorrisos de seus guarda-costas. Eles lhe retribuíram o olhar com olhos inocentes e respeitosos. Sam sorriu e disse:
— Stuart tem razão, Padre. Tem necessidade de proteção e Stuart não tem tempo de se estar preocupando a todo instante com sua pessoa. Deve ter alguma consideração por ele.
— E Cullen me disse que há três anos que não se confessa —, disse Stuart, sorrindo. — E Walsh não vai à missa há quase quatro anos. Pode agir com eles à vontade!
— E ainda por cima hereges! — exclamou o Padre Houlihan.
Olhou os dois homens com a testa franzida e começou a censurá-los pelo não cumprimento de seus deveres religiosos. Os dois escutaram tudo humildemente, fazendo sinais de aquiescência à medida que a indignação do padre contra eles aumentava. De repente, começou a rir. O braço que até pouco antes estivera na tipoia doeu e ele o esfregou distraidamente.
— E escute aqui —, disse o padre a Stuart, tentando não dar a impressão de que estava perdoando coisa alguma —, quem é que vai dar casa e comida a esses dois latagões?
— Já me entendi a esse respeito com a Sra. Murphy, que mora a duas portas daqui. Vão se revezar montando guarda à sua pessoa, um durante o dia, o outro à noite. Por exemplo, Cullen, que é ligeiro no gatilho, passará a noite encolhido à porta de seu quarto como se fosse um cachorro fiel. Amanhã, Walsh lhe seguirá humildemente os passos. Pode dar-lhe um terço e um livro de missa e tratar de assuntos religiosos com ele enquanto cuidar de seus deveres. Ele bem que precisa de ser educado de novo.
O padre olhou para Stuart tentando manter a sua expressão furiosa. Mas era inútil. Deu um suspiro e sorriu. A voz lhe tremia um pouco ao dizer:
— Stuart, você é um patife teimoso, mas gosto de você.
Estendeu a mão ao amigo, que a apertou afetuosamente. Os olhos do padre tinham uma obscura tristeza ao contemplá-lo.
Stuart disse:
— As coisas vão muito mal quando um homem de Deus tem de ser protegido neste país. É uma triste coisa de ver numa república livre pobres freiras inofensivas não poderem sair de seu convento sem se sujeitarem a imundos insultos e ameaças e crianças que não podem sair das escolas sem serem aterrorizadas. É uma coisa lamentável ver um homem de bem como Sam ser insultado em plena rua e receber comunicados em que sua vida é ameaçada. É uma coisa que tira do coração toda a esperança na humanidade e no progresso da raça humana.
Mas o Padre Houlihan disse com indignação:
— A humanidade sobe dois degraus e desce um. Mas partimos de muito baixo e, com a ajuda de Deus, subiremos ainda mais. Estamos num tempo de tensão e as paixões estão exaltadas. Mas isso vai passar.
— Ah, você com seu amor por este país é incorrigível, Grundy! E me faz repetir suas palavras por toda a parte como um papagaio —, disse Stuart. — Sim, isso vai passar. Mas as sementes do ódio e da crueldade têm vida longa e o que for espalhado ao vento hoje poderá encontrar um lugar onde germine amanhã. Não pense que as sementes que estão sendo lançadas agora no solo do país vão morrer. Podem dormir durante muito tempo. Mas podem brotar e crescer daqui a vinte, trinta, cinquenta ou cem anos. Sinto isso, infelizmente, no meu coração.
— As sementes do mal sempre crescem —, disse o Padre Houlihan. — Mas a fé, o amor, a misericórdia e a justiça sempre acabarão por destruí-las. Nunca tive medo. Reconheci um dos meus atacantes, mas não apresentei queixa contra ele. Não foi ele quem deu origem à doença. Foi um homem que vive numa dessas casas ricas que tem medo de que minhas palavras ameacem a sua cama macia, a sua casa com seus numerosos ocupantes, seus bons vinhos, suas belas carruagens, suas fartas contas de banco e seus títulos.
— E há outra coisa, Grundy —, disse Stuart. — Quando você falou em Union Hall e recomendou aos operários dos matadouros de Schnitzel que exigissem melhores salários e organizassem um sindicato para sua proteção, fez uma coisa muito perigosa. Ganhou com isso um inimigo de morte. É verdade que Schnitzel teve de aumentar os salários, mas foi uma vitória sinistra. Você fez também discursos semelhantes aos operários da fábrica de salsichas de Zimmermann, aos trabalhadores das docas e dos vapores, aos operários das usinas siderúrgicas e de outros lugares. Com isso, você tornou Grandeville um lugar perigoso para a sua segurança.
— Não, fiz foi de Grandeville um lugar mais decente para os que trabalham! Parece até que você pensa que não faz parte do trabalho de um padre proteger o seu povo e tornar-lhe a vida mais suportável além de cuidar-lhe das almas. Tenho pena dos homens de Deus que julgam que o trabalho de um padre termina no altar, onde deve falar apenas de coisas transcendentais. Um homem tem de estar de barriga cheia para pensar em sua alma. Se não houver justiça, a própria religião não poderá sobreviver.
Stuart sorriu afetuosamente.
— Está bem, Grundy. Concordo com você. Mas acho que nem cem operários valem seu dedo mínimo. Não se esqueça de que são os primeiros que se voltam contra você, os primeiros que acreditam nas mentiras a seu respeito, enquanto se alimentam da comida melhor que você lhes proporcionou e têm nos bolsos o dinheiro a mais que você lhes conseguiu. Moram em casas mais higiênicas e dormem em camas mais confortáveis, tudo conseguido por você, mas pensam nos boatos que ouviram a seu respeito e o odeiam.
— Não posso acreditar nisso —, disse o padre. Mas o sofrimento estampado em seu rosto cansado lhe desmentia as palavras.
— Ainda que seja assim, tenho de fazer o que me for possível. Há de haver um tempo em que saberão e compreenderão.
Stuart se levantou. Mas a Sra. O’Keefe entrou nesse momento com a notícia de que estava servida uma refeição leve. Olhou para os dois guarda-costas com satisfação e disse que havia um bom prato e uma cerveja para eles na cozinha. Piscou o olho para Stuart, que sorriu. O Padre Billingsley levantou-se muito sério e pediu permissão ao Padre Houlihan para retirar-se. Depois que ele saiu, o Padre Houlihan disse a Stuart:
— Um homem muito bom e uma alma excelente. Mas vive tão fora da terra...
— Por falar nisso, já fez as pazes com Madre Mary Elizabeth? — perguntou Stuart.
O Padre Houlihan riu.
— Ah! É também uma criatura excepcional, muito culta e muito santa. Acho que devo ser uma grande decepção para ela. Acredita decerto que minha conversa é muito vulgar e, de minha parte, confesso que não entendo quase nada do que ela diz.
— Você sabe alguma coisa muito melhor, Grundy.
Foram para a saleta dos fundos onde a Sra. O’Keefe havia servido um excelente jantar. Mas o apetite do Padre Houlihan, sempre muito vigoroso, estava bem fraco naquela noite. Examinou furtivamente Stuart. Havia decerto uma mudança nele. Estava mais magro e um tanto nervoso, com os olhos inquietos e febris. Parecia mais moço, mais alerta e vivo, é verdade, quase como era dez anos antes. Mas não podia parar; estava nervoso e intenso. As amplas mechas de cabelos grisalhos haviam desaparecido misteriosamente. O padre pensava que isso era o mais triste e revelador de tudo. Ainda, um certo espalhafato na maneira de vestir-se de Stuart estava atenuado e o seu traje mostrava agora uma elegância tranquila que nunca fora de seu gosto natural. Bebia mais que nunca, mas a bebida não o tornava exuberante como dantes, mas ainda mais nervoso, mergulhando-o em momentos de profunda abstração. Vários dos seus anéis mais espetaculares tinham desaparecido e a corrente do relógio cheia de pedrarias fora substituída por outra, mais discreta e passada por sobre coletes que impressionavam pela sua reserva distinta.
O Padre Houlihan perguntou por Marvina e Mary Rose. A expressão de Stuart sofreu uma mudança sutil. Brincou com os talheres ao lado de seu prato e disse que a mulher e a filha estavam em Saratoga. Os médicos asseguravam que Mary Rose estava muito melhor. Mas precisava das águas. Dentro de duas semanas, ela e a mãe iriam de novo para as montanhas durante algumas semanas, a fim de completar o tratamento. Estariam ambas de volta em novembro.
O padre pigarreou e perguntou como estava Nova York naqueles tempos de guerra. A situação estava afetando a cidade de alguma maneira? Stuart cortou cuidadosamente uma fatia de presunto, embora já tivesse duas fatias em seu prato. Sam Berkowitz olhou ansiosamente em silêncio para o amigo e para o padre. Stuart disse que o povo em Nova York já não estava tão bem vestido; havia menos dinheiro. As ruas estavam cheias de soldados em licença, os quais promoviam desordens com as suas bebedeiras. Mas, afora isso, a cidade continuava muito alegre. Não havia muito para comprar desde que o bloqueio e os corsários do Sul tinham reduzido o movimento marítimo. Entretanto, as mulheres ainda se vestiam muito bem e ele, Stuart, nunca vira tantas joias.
— Pretende ir assistir à estreia de Laurie nessa nova ópera? — perguntou o Padre Houlihan com o que julgava imenso fato.
Stuart pegou outro pedaço de pão e disse que certamente iria ouvi-la. Nova York estava muito interessada pelo espetáculo, embora se estivesse ainda em setembro. Seria ótimo se Sam e Grundy pudessem ir também. Seria uma coisa maravilhosa. A mão de Stuart tremia um pouco e as faces estavam coradas. O olhar dele tinha a vivacidade de um homem sob a influência do álcool.
E então, mudou repentinamente de assunto.
O padre refletiu que não era difícil ajudar um homem a seguir o caminho certo quando se podia mostrar que o outro caminho era errado ou quando o homem era mau. Mas Stuart não era mau. Era um bom homem. Os seus únicos defeitos eram os excessos de suas qualidades. Podia ser pródigo, mas a sua prodigalidade em coisas sem mérito nascia de sua generosidade, de sua bondade, de suas paixões exaltadas e.de sua capacidade de amor. A mesma chuva e o mesmo sol que produziam as flores, as árvores, a relva, as frutas e os alimentos da terra em profusão estimulavam também o crescimento de ervas daninhas, das selvas emaranhadas e perigosas, dos espinheiros e das bagas venenosas.
Que poderia ele dizer a Stuart? Que ele era um adúltero e, como tal, sujeito ao fogo do inferno? Que ele tinha seduzido uma moça e poderia levá-la à destruição? O padre sorriu tristemente consigo mesmo. Stuart tinha sido um "adúltero" havia muitos e muitos anos e o Padre Houlihan duvidava muito de que ele corresse o risco do fogo do inferno. Estava pessoalmente convencido de que o fogo do inferno era especialmente preparado e reservado para os homens virtuosos que não tinham caridade, nem bondade em seus corações, que rezavam fervorosamente com os lábios e odiavam seus semelhantes no fundo da sua alma, que frequentavam ativamente as igrejas e davam dinheiro para os seus cofres, ao mesmo tempo que só guardavam maldade no seu frio coração. O Padre Houlihan não estava convencido, porém, de que esses homens fossem hipócritas, como lhes chamaria Stuart. Tinham intensa fé, muito mais fé do que possuíam os homens fáceis e sem virtude que dariam a vida com prazer para ajudar a humanidade a ter um futuro melhor e uma existência mais nobre.
Além disso, o padre não tinha a menor dúvida de que, se tinha havido alguma sedução, Stuart fora o seduzido e não o sedutor. De uma coisa tinha certeza: Stuart estava amando uma mulher pela primeira vez em sua vida. Como poderia então dizer a Stuart que o que ele estava fazendo era mau? É claro que sou muito pouco ortodoxo, estou completamente em erro e meu bispo ficaria escandalizado, pensou humildemente o Padre Houlihan, mas não vejo mal algum no amor, quando é verdadeiramente amor, e para mim esse amor não é pecado, seja santificado ou não pelo casamento. O poder de amar e o próprio amor vêm de Deus e nenhum mal pode vir Dele.
Depois que Stuart e Sam saíram, ele ficou em meditação durante muito tempo, rezando pela paz de seu amigo e pela proteção de Deus para ele. Em dado momento, percebeu com ingênua surpresa que tinha rezado mais por Stuart do que por qualquer outra pessoa deste mundo! Ainda dominado por essa surpresa, subiu para seu quarto. Descobriu que sua competente irmã tinha ido desencavar, ele não sabia onde, uma cama de campanha e nessa cama o homem chamado Cullen repousava sobre um rolo de cobertores e bem acordado. Franziu a testa para o homem que se levantou imediatamente e fez continência.
— Pretende mesmo dormir diante de minha porta? — perguntou o padre.
— Sim, Padre. É meu serviço.
— Seria muito melhor que estivesse dormindo em sua casa como um bom cristão —, disse severamente o padre. — Que tolice!
Depois que entrou e fechou a porta, o padre ouviu o homem arrastar a cama para a frente de sua porta.
Quanto drama! Stuart tinha sem dúvida a veia histriônica. Como se fosse possível alguém entrar naquela casa com intuitos homicidas! Não podia haver nada mais ridículo.

CAPÍTULO 63
Stuart e Sam Berkowitz caminhavam lentamente dentro da noite suave e clara de setembro. A lua cheia difundia por todo o céu a sua claridade leitosa. O ar doce e embalsamado pairava sobre a cidade. Os lampiões brilhavam nas ruas desertas, cujo silêncio só era quebrado de quando em quando por vozes, rumor de passos ou rodar de carruagem. Os andares superiores das casas estavam acesos mostrando que as famílias se estavam preparando para dormir.
Os dois homens caminhavam em amistoso silêncio. Sam fumava o seu cachimbo de costume e Stuart tirava baforadas de um charuto. Passaram por alguns oficiais alegres que saíam de uma festa. Stuart olhou-lhes rapidamente os rostos. Talvez um deles fosse Bertie Cauder. Mas Bertie não estava entre eles. A família não tinha notícias dele havia quase seis semanas. O treinamento dele não podia estar concluído ainda. Mas a vasta máquina da guerra estava rolando com mais rapidez e ninguém podia saber.
Stuart, olhou para o homem de meia-idade cansado e magro ao lado dele. Sentia que Sam parecesse tão velho, com os cabelos tão brancos e o rosto tão encarquilhado. Mas a expressão de Sam era perfeitamente pacífica. Sentiu o olhar de Stuart e se voltou para o amigo com um sorriso.
— Os negócios foram um pouco melhores nesta semana —, murmurou ele.
— Por favor, Sam, não vamos falar de negócios. Você bem sabe que eu não gosto. Nós ambos sabemos que eu estou à beira de um precipício, mas eu, de uma maneira vaga, creio que, se não tomar conhecimento do precipício, não terei medo e poderei talvez afastar-me dele e escapar, sem que nada me aconteça.
Não, pensou Sam, desta vez, nem você, nem eu conseguiremos escapar. Stuart nem olhava mais os livros. Passava a maior parte do tempo nas lojas, conversando amavelmente com as freguesas, fechando vendas difíceis. Vivia numa espécie de transe febril, num sonho de que não queria ser despertado, para livrar-se do inevitável terror. Sam sacudiu tristemente a cabeça. Estavam no fim. Só um milagre poderia salvar as lojas.
Pensou de repente em Angus Cauder e cerrou os maxilares. Que adiantava dizer a Stuart se era tarde demais?
Ele, Sam, tinha chegado ao fim. O seu trabalho nas lojas estava terminado. Dentro em breve, o dinheiro lhe sairia das mãos e a Ilha do Rio seria sua. Apressou o passo. Sentia-se menos cansado. Os olhos lhe brilhavam sob a aba do chapéu alto. O velho sonho se tornara realidade por obra de Deus e, dentro de um ano, duas mil pessoas acossadas e atormentadas achariam um refúgio final na segurança cheia de árvores da Ilha do Rio para ali empregar os braços contundidos e cansados nas tarefas da vida.
Disse então:
— Vou pagar minha ilha amanhã, Stuart. Minha ilha. Tudo está aprovado e não haverá mais demoras.
— Ótimo, Sam! Você não me poderia dar melhor notícia!
Sam sorriu.
— Será uma boa notícia também para os que esperam apenas sofrimento e morte. Já escrevi para eles e em breve estarão aí, homens, mulheres e crianças.
— Tem certeza de que tudo está resolvido?
— Absoluta. O contrato foi assinado hoje e eu farei o pagamento amanhã. Vou tirar o dinheiro do banco. Hoje, fui ao banco para regularizar tudo e encontrei-me com Joshua Allstairs. Há anos que não nos falamos. Mas ele foi muito amável comigo e me disse: "Sam, é muito perigoso neste momento você fazer isso. Espere um pouco. Comprarei a ilha em meu nome e você poderá comprá-la a mim dentro de alguns meses ou de um ano, pagando apenas os juros. Farei isso por você como um depositante, um cliente."
Stuart parou na rua e exclamou, cerrando os punhos:
— Que cachorro! Que cachorro imundo e infame!
— Calma, Stuart —, disse Sam, com a mão no braço do amigo. — Você assim vai acordar toda a rua. Mas Allstairs foi muito amável. É um velho, pensei eu, e deve estar esquecido ou arrependido do mal. Talvez seja sincero. Não sei. Talvez pense no povo desta cidade que prefere atormentar pessoas indefesas a ir lutar pelo país. Não sei. Já desisti de pensar. Quando se fica velho, sabe-se que há coisas que escaparão sempre ao nosso conhecimento. Só os moços querem saber o porquê das coisas. Pouco tempo me resta de vida e eu não vou perdê-lo em perguntas. Limitei-me, portanto, a dizer com toda a gentileza: "Não, Sr. Allstairs. Tenho de fazer isso agora. Mas agradeço muito sua bondade."
— Você disse isso mesmo, seu maluco?
— Claro que sim. Dizem que as palavras amáveis talvez não evitem um golpe nem façam um homem mudar de ideia, mas, ao menos, não provocam nem o golpe, nem a reação de um homem justo. Quanto aos injustos, já têm os seus planos formados e não vão mudar de ideia. Depois, eu acho que Joshua já está velho demais para pensar em maldades.
— Você é um idiota incorrigível, Sam! Você sabe muito bem quem é que está fazendo essa agitação toda para contrariar seus planos sobre a ilha! Isso foi apurado numa investigação. Foi ele quem pagou os cartazes que diziam: "Não queremos um Gueto em Grandeville! Abaixo os Judeus!" Foram desordeiros contratados por ele que atacaram o velho Grundy e ameaçaram atacar você. Foi a mão de Joshua, por intermédio de outros, quem arremessou pedras contra as portas e as janelas de sua casa. E você ainda acha que ele talvez se tenha esquecido de suas maldades. Não sabe que ele é maligno? Não dorme. Vive em Grandeville como uma lepra que se estende cada vez mais e ameaça cobrir toda a cidade!
— Ele nada pode fazer nem a mim, nem a meus planos —, disse Sam. — Tudo o que ele tem tentado fazer tem sido inútil. Por isso, não me preocupo e não penso mais nele. Há mais uma coisa que me esqueci de lhe dizer. Irei amanhã a Nova York, para discutir muitos assuntos com um rabino, meu amigo. Você tem de ficar com as chaves de meu cofre particular.
Stuart refletiu que devia haver bem pouco no cofre e Sam continuou:
— Há também papéis no cofre relativos a alguns negócios que têm de ser feitos nos próximos dias. Peço-lhe que cuide disso por mim. Tudo se refere à ilha e às discussões que planejei com os lavradores que já estão estabelecidos lá. Peço-lhe que leia meus apontamentos. É possível que você tenha sugestões a fazer sobre alguns pontos que me passassem despercebidos.
— Esses lavradores são proprietários das terras?
— Não. São apenas arrendatários. Mas tenho certeza de que poderemos chegar a um acordo amigável. Não quero que saiam de lá. Quero apenas explicar-lhes meu plano e conseguir a aquiescência deles.
Chegaram à casa isolada onde Sam vivia. Ele a olhou tristemente. Sentia falta da mãe, mas ela deveria estar alegre naquela noite se pudesse saber que o filho havia afinal conseguido realizar o seu sonho.
Stuart olhou para o rosto do amigo à luz mortiça do lampião da rua. Estava sereno, cheio de determinação e paz. Brilhava-lhe nos olhos cansados o sonho majestoso de toda uma vida.
Stuart despediu-se dele e seguiu o seu caminho, cantarolando distraidamente. Sam se encaminhou para o lado da casa e meteu a mão no bolso para tirar a chave. Havia ali muitos canteiros e arbustos, que tinham feito a alegria da falecida Sra. Berkowitz. Sam já ia colocar a chave na fechadura quando ouviu um rumor de passos à suas costas e voltou-se para ver dois homens enormes que se aproximavam.
Sentiu um arrepio pelo corpo, mas encarou-os com calma resolução e perguntou:
— Que desejam?
Um dos homens deu um passo à frente e perguntou:
— Você é o judeu Berkowitz?
— Sou.
Num último relance, viu o cacete erguido e o rosto bestial. Em seguida, o universo explodiu numa torrente de fogo e de estrelas que se despedaçavam.

CAPÍTULO 64
Stuart tinha-se afastado apenas algumas ruas quando se lembrou de que Sam não lhe dera as chaves de que havia falado. Isso queria dizer que no dia seguinte o amigo seria obrigado a atrasar a sua viagem para lhe entregar as chaves. Voltou rapidamente sobre seus passos.
Ficou surpreso de ver de longe que a casa de Sam ainda estava às escuras. Não era possível que em apenas dez minutos se tivesse preparado para dormir e já estivesse deitado. Além disso, conhecia bem os hábitos de Sam. Nunca se deitava sem ler antes um pouco e, muitas vezes, entrava pela madrugada com um livro na mão. Por tudo isso, era inexplicável que não houvesse uma só luz acesa dentro da casa.
A intuição de Stuart acelerou-lhe o coração em súbito pavor. Parou no passeio diante da casa, tentando controlar-se e acalmar o tumulto que lhe ia na cabeça. Mas segurou a bengala com involuntária firmeza. Que tolice a sua! A noite estava linda e talvez no último momento Sam tivesse resolvido passear um pouco antes de entrar e ler.
De qualquer maneira, resolveu ir até ao lado da casa, a fim de tentar a porta. Não havia som algum salvo o farfalhar das folhas e o murmúrio do vento. Os arbustos lançavam sombras nas lajes do caminho. Uma janela, escura e vazia, escancarava-se à sua passagem como um olho sinistro. Insetos esvoaçavam, batendo-lhe no rosto. Esmagava com os pés folhas secas pelo chão. Começou a mover-se cautelosamente, penetrado por um medo sem causa.
Tropeçou de repente em alguma coisa. Recuou, trêmulo e com o suor a escorrer-lhe do rosto em estranha premonição. Tirou os fósforos do bolso e riscou um deles. Viu Sam estendido a seus pés, com a cabeça despedaçada, o rosto ensanguentado e os olhos fechados.
O fósforo chegou ao fim e caiu da mão de Stuart. Deu um grito e caiu de joelhos ao lado do amigo. Levantou-o nos braços, chamando-o desesperadamente pelo nome. Depois, gritou alucinadamente por socorro. Janelas se abriram por toda a rua e ouviram-se vozes estridentes.
— Assassinos! — gritou Stuart. — Polícia! Assassinos!
Tudo escureceu e rodou em torno dele. Sentia os braços fracos e flácidos. Abraçava Sam de encontro ao peito e falava incoerentemente com ele, pedindo que dissesse ao menos uma palavra. Pela primeira vez desde a infância, chorou. Sentiu o ardor quente das lágrimas nas pálpebras e começou a gemer e a soltar terríveis imprecações. Não sabia que estava cercado de homens ansiosos com lanternas nas mãos, que estavam vestidos às pressas, gritavam e emitiam exclamações de medo e de espanto. Não sabia que tinha as mãos molhadas do sangue de Sam. Não sentiu que o agarravam, que o sacudiam, que lhe pediam ajuda para carregar Sam para a casa.
Só sabia era que Sam estava gemendo e se movia fracamente em seus braços. Cingiu o amigo com mais força, enxugando o sangue que lhe escorria pelo rosto.
— Sam! Sam! Quem foi? Diga-me quem foi!
A luz das lanternas vacilava sobre o rosto do homem que morria nos braços desesperados de Stuart.
Sam se moveu de novo, abriu os olhos e voltou-os através das névoas escuras para o amigo. Murmurou afinal:
— Stuart... Stuart...
— Sim, sou eu, Stuart! Quem foi que fez isso, Sam?
A cabeça de Sam caiu para trás. Os olhos tornaram a fechar-se. Mas os lábios sussurraram fracamente:
— Allstairs... Não queria que eu...
Os braços de Stuart enfraqueceram. Olhou para as pessoas em torno e viu-as pela primeira vez. E elas recuaram involuntariamente diante da terrível expressão que havia no rosto dele. Mas ele disse apenas:
— Ajudem-me. Temos de levá-lo para dentro. E chamem imediatamente um médico.

CAPÍTULO 65
A realidade tinha tomado a consistência, as sombras e o horror de um pesadelo. Às vezes, seguindo às pressas pelas ruas silenciosas, Stuart parava trêmulo, olhava para o céu e exclamava: "É um sonho! É apenas um sonho!" Olhava para o alto, via as estrelas, as copas escuras das árvores, os lampiões acesos, as casas escuras e um intenso tremor lhe percorria o corpo, numa náusea mortal e num furor insano e ele desejava que pudesse acordar e sentir-se em segurança na sua cama. Dentro das casas, as pessoas ouviam as suas maldições, suas desvairadas exclamações e blasfêmias e se viravam, murmurando coisas contra o "bêbado" que lhes estava perturbando o sono. Ouviam-lhe então os passos apressados que ressoavam e se perdiam no silêncio da noite.
Dois soldados passaram por ele numa esquina, viram-lhe o rosto à luz do lampião e recuaram instintivamente. Viram o vulto rápido desaparecer na escuridão e um deles tocou com a mão na cabeça.
— Não, não está maluco —, disse o outro. — Está com cara de quem vai procurar alguém. E Deus ajude quem for.
Mas Stuart nada via à sua frente senão a cara de Joshua Allstairs. Era como se caminhasse através de um longo túnel escuro, em cuja extremidade Joshua o esperava, encolhido e incapaz de mover-se. Chegou à casa às escuras de Joshua e bateu a aldrava da porta. Tornou a bater uma, duas, três vezes até que o barulho repercutiu em toda a rua. Começou então a bater na porta com o castão da bengala. Gritou:
— Deixe-me entrar! Você não pode mais se esconder de mim!
Ouviu afinal algumas exclamações fracas do outro lado da porta. Esta se entreabriu e ele viu o rosto amedrontado do mordomo de Joshua que o espiava.
— O que você quer? Vá-se embora daqui! Está louco? Quem é você?
Stuart meteu a mão na porta e empurrou-a. O velho caiu para trás com um grito e recuou.
— Policia! — exclamou ele com voz fraca. — Socorro!
Stuart agarrou-o pelo pescoço com a mão esquerda e levantou a bengala. Por um instante, o velho mordomo lhe viu o rosto e fechou os olhos murmurando uma prece incoerente. As pernas lhe falharam. Stuart jogou-o de lado como se fosse um boneco de pano e subiu a escada. Os degraus estavam orlados de fogo. Toda a escadaria tremia diante dele e ondulava como uma serpente. Mas subiu firmemente com a bengala erguida na mão.
No andar de cima, todos os quartos estavam às escuras. Mas atrás de uma porta havia exclamações lamurientas e, então, uma luz se acendeu lá dentro.
— Que é? — exclamou Joshua. — Judson? Judson? Quem é a uma hora destas?
Stuart agarrou a maçaneta, mas a porta estava trancada. Meteu o ombro contra a madeira forte. A porta resistiu. Não se jogou contra ela. Fechou os olhos e fez força com o ombro implacavelmente. Com os músculos retesados, disse:
— Vou entrar, Joshua. Vou entrar para matá-lo.
Joshua começou a gritar. Stuart ouviu o arrastar de seus velhos pés quando ele se dirigiu para a janela, abriu-a e gritou:
— Socorro! Assassino! Policia!
Stuart fez mais força contra a porta. Esta começou a estalar e a ceder.
— Vamos, vamos —, murmurava Stuart na alucinação de que estava possuído. -— Mais um pouco, só um pouquinho mais.
Dentro do quarto, Joshua gritava como um desesperado, debruçado da janela. Ouviam-se sons na rua, passos apressados. Stuart não os escutava. Só ouvia a voz de Joshua e, quando afinal a porta cedeu, deu uma gargalhada.
A porta se estilhaçou fragorosamente e se inclinou, pendente das dobradiças, para dentro do quarto. Stuart entrou correndo no quarto como um touro furioso. Tropeçou e teve de parar a fim de não cair. Joshua estava encolhido junto à janela, tremendo e gemendo. O seu rosto de velho era uma máscara de morte, de terror, de um medo abjeto e obsceno. Os olhos mortiços estavam distendidos à luz do candeeiro e a comprida camisa de dormir branca lhe pendia do corpo como uma mortalha. Olhou para Stuart e, então, não pôde mais nem gemer. Abria e fechava a boca seca sem emitir qualquer som e as suas narinas de animal predatório murcharam.
Stuart olhou para seu inimigo, para o homem que matara seu amigo. Disse então:
— Reze, Joshua, porque eu vim matá-lo.
O vulto encolhido junto à janela estremeceu. Abriu a boca e pôde murmurar:
— Será enforcado por isso, Stuart. Subirá ao cadafalso e lhe porão uma corda no pescoço.
Stuart sorriu.
— Mas você não vai ver isso, Joshua. Já estará no fundo da sepultura.
Levantou a bengala e deu um passo na direção de Joshua, que voltou a gritar alucinadamente. Stuart parou.
— Você matou Sam Berkowitz esta noite, Joshua. Contratou assassinos profissionais para matá-lo. Ele nunca lhe fez mal. Você o odiava sem motivo. Você é um velho, Joshua, mas sua cobiça não tem idade. Nunca se contentou com tudo o que você tem e, porque nunca se contentou, matou meu amigo. Ele morreu nos meus braços. Olhe para mim, Joshua. Está vendo esse sangue em minhas mãos, em minhas roupas? E o sangue de Sam. Ele não morreu logo, porém. Os assassinos que você contratou pensaram que ele estivesse morto, mas não estava. E antes de morrer, ele me disse...
Joshua murmurou numa voz que era um gemido:
— É mentira, uma mentira infame. Não mandei ninguém matá-lo. Mentiram. Acredite que eles mentiram, Stuart. Não tenho culpa nenhuma disso. Você não me vai matar, não é, Stuart? Sou o pai de sua mulher. Sou o avô de sua filha. Você será enforcado se me matar, Stuart!
Deu um grito quando Stuart avançou para ele, com o corpo encurvado e a cabeça estendida para a frente. Mas foi a expressão do rosto de Stuart e não o seu avanço que lhe inspirou o grito inumano de terror.
Juntou as mãos. Começou a escorregar encostado às paredes, empurrando futilmente alguns móveis pequenos para o espaço que o separava de Stuart — uma mesinha, uma cadeira, uma pequena cômoda. As mãos se contorciam sobre cada móvel. Encolhia-se atrás deles e pensava que, se pudesse chegar à grande cama, teria tempo de escorregar por baixo dela e livrar-se das mãos assassinas de Stuart. Enquanto isso, continuava a gritar. A luz do candeeiro iluminava aquela cena de horror — o velho que fugia e o homem mais moço que avançava em silêncio e sem pressa. As longas sombras trêmulas de ambos os acompanhavam pelas paredes, pelo alto teto branco e pelo chão.
O alucinado terror da morte pairava sobre Joshua. Entre seus gritos, fazia súplicas dementes a Stuart, ao mesmo tempo continuava a empurrar móveis no caminho de Stuart e a escorregar pelas paredes em direção à cama. Bateu numa estante cheia de raros e velhos objetos de arte. A estante caiu, num estrépito de vidros e porcelanas que se quebravam. Os fragmentos brilharam à luz do candeeiro. E sobre eles, esmagando-os, vinha Stuart inexoravelmente, cada vez mais perto.
Percebeu, de repente, o que Joshua pretendia fazer. Parou e riu. Ao ouvir o som horrível dessa gargalhada, Joshua ficou como que petrificado. Encolheu-se contra a parede. Levantou os braços magros e abriu-os. As pernas fracas se vergaram. Ficou numa atitude de crucificação, com a cabeça pendida para a frente e os olhos cheios de medo fixos em Stuart Era um homem velho e mau e estava condenado à morte.
Sabia agora que não tinha mais esperança. Caiu de joelhos. Tornou-se um montão de ossos coberto por uma camisa de dormir. Não podia nem mais gemer. Estava reduzido ao silêncio. Levantou para a cabeça os braços esqueléticos e ficou à espera do golpe que o mataria.
Stuart chegou junto dele e disse:
— Está rezando, Joshua? Ou não tem coragem de rezar com receio de que Deus o escute? Assassino, demônio, cão danado!
Joshua nada disse. Limitou-se a apertar com mais força os braços sobre a cabeça. Mas um longo tremor lhe percorreu o corpo, a tal ponto que parecia que a camisa de dormir era sacudida pelo vento.
Sentiu então Stuart agarrá-lo pela nuca e levantá-lo no ar. Pela última vez, gritou freneticamente, cheio de indizível terror. Viu Stuart levantar a bengala e fechou os olhos. Perdeu os sentidos antes de levar uma só pancada.
Stuart olhou para o esqueleto em camisa de dormir que tinha em seu poder. A cabeça descaía sobre sua mão como se o pescoço estivesse quebrado. A baba escorria dos lábios frouxos. Os braços e as pernas pendiam inertes.
Houve então um rápido tropel de passos na escada, gritos e a luz vacilante das lanternas. Stuart ouviu e viu tudo e então arremessou Joshua violentamente. O corpo do velho escorregou pelo chão e foi bater na outra parede, onde ficou, num montão silencioso, obsceno e repulsivo de carne e ossos velhos.

CAPÍTULO 66
— É aqui, Padre —, disse o carcereiro, abrindo a porta. — Só dez minutos, sim?
O Padre Houlihan hesitou na soleira da úmida célula de pedra. Havia uma janelinha gradeada no alto da parede molhada. Raios tênues de sol entravam na prisão, indo cair sobre o estreito catre no qual Stuart estava sentado com a cabeça entre as mãos. Os cabelos desgrenhados estavam embaraçados entre os dedos manchados de sangue. As roupas, amarfanhadas e manchadas, não tinham sido tiradas durante a noite. A gravata de plastron pendia desamarrada sobre o colete. Paradoxalmente, o brilhante do anel lhe cintilava na mão direita.
O Padre Houlihan entrou na célula. Olhou para o amigo, mas Stuart não fez o menor movimento. Não percebera a entrada de alguém, nem mesmo depois que a pesada porta fora batida depois da passagem do padre. Num tamborete ao lado, estava a comida de pão, água e carne gordurosa em que ele não havia tocado. Não usara também o jarro de água e a toalha esgarçada que lhe tinham deixado. Estava sentado no catre como se fosse de pedra e dava a impressão de que nem estava respirando.
O padre deu um suspiro profundo, que lhe veio do fundo do coração. Tirou do tamborete a bandeja suja e sentou-se perto do amigo. Disse então, numa voz entrecortada:
— Stuart, meu velho e querido amigo, por que não olha para mim?
Stuart não se moveu. Os olhos avermelhados e cansados do padre se encheram de lágrimas. Colocou a mão no ombro do amigo e disse:
— Olhe para mim, Stuart! Tenha pena de mim!
Um longo tremor percorreu o corpo de Stuart e o padre o sentiu na mão sobre o ombro. Depois, Stuart deixou cair as mãos, mas não levantou a cabeça. O Padre Houlihan viu-lhe o rosto sombrio e entorpecido. Os olhos de Stuart estavam cercados de uma orla arroxeada. O sangue lhe escorria de uma das faces e havia uma terrível equimose na testa.
Disse então numa voz rouca e inumana:
— Sam está morto. Foi assassinado. Mas eu não matei o assassino. Ele morreu antes que eu pudesse matá-lo. — A sua voz se elevou e ele gritou cheio de desespero e raiva: — Maldito seja Deus! Maldito seja tudo! Ele morreu antes que eu pudesse matá-lo! Fui logrado. Sam foi logrado! Maldito seja Deus!
O padre segurou-o pelos ombros e sacudiu-o com firmeza, dizendo:
— Olhe para mim, Stuart! Quem está aqui é seu amigo Grundy! Está-me ouvindo, Stuart?
Stuart ficou durante algum tempo em silêncio. De repente, a sua expressão se transformou e ele afastou dos ombros as mãos do amigo.
— Que está fazendo aqui? Veio dizer-me suas palavras mentirosas? Veio consolar-me com suas frases ridículas e vazias?
Levantou-se de súbito e começou a andar de um lado para outro nos estreitos limites da prisão. Estava inteiramente transtornado. Gritava. Amaldiçoava. Chorava. Batia com os punhos nas paredes como se estivesse alucinado. Quando o seu olhar desvairado caía sobre o padre, arrasava-o com indignadas maldições. Onde estava o seu Deus? perguntava com a voz alta e engrolada da loucura. Onde estava seu Deus, que consentira que Sam fosse assassinado tão brutalmente, o pobre Sam que nunca fizera mal a ninguém? Onde estava seu precioso Jesus na hora em que Sam tinha morrido? Quem o ajudara? Quem o defendera? Não tinha havido ninguém para lhe ouvir o último grito, o grito de um homem inocente que fora tão imundamente morto por dinheiro. Que tinha feito Sam para inspirar tamanho ódio? Nada. Diante de Deus, nada! Mas Deus nada fizera para salvá-lo! Sam tinha morrido nos braços dele e era o sangue de Sam que estava em suas mãos. Stuart estendeu as mãos ensanguentadas para o padre, mas este não olhou para as mãos que quase lhe tocavam o rosto. Olhava apenas para Stuart.
— Não gosta de ver sangue, não é, padre? Você é um homem de paz e de perdão! Perdoa os assassinos de Sam, não perdoa? Sam era apenas um judeu e os assassinos dele eram "cristãos". Cristãos... Sabe disso, não sabe? Um cristão pode fazer o que quiser, pode cometer qualquer crime, pode assassinar por dinheiro qualquer homem bom que sempre será perdoado! Pode ser lavado no sangue do Cordeiro e ser levado depois para o conforto do céu a fim de tocar hinos numa harpa de ouro! Ele foi batizado com uma água suja! O seu crime contra um judeu pode ser perdoado porque não foi de modo algum um crime! Pode descansar aos pés de Deus e ser felicitado, como foi felicitado pelas criaturas imundas que Deus criou! Através do mundo, os mentirosos, os ladrões, os assassinos, os perversos e os imundos dirão: "Ele matou apenas um judeu!"
Stuart se calou por um momento. O padre estava diante dele e olhava-o firmemente.
— Por que não fala? — perguntou Stuart. — Por que não me diz que eu não devia ter atacado aquele demônio imundo pelo simples fato de ter matado um judeu?
O padre então levantou a mão e bateu no rosto de Stuart não uma vez, mas muitas, com calma e firme deliberação. Stuart cambaleou até chegar à parede e então ali se deixou ficar de olhos bem abertos.
O padre olhou-o e disse:
— Só lhe quero dizer uma coisa. Se você não tivesse ido matar Allstairs, eu teria ido como você foi. Devo-lhe minha gratidão.
Houve profundo silêncio na célula. Os dois homens se olhavam a uma distância que não chegava a metro e meio. O padre parecia uma estátua. Estava muito pálido, mas não tremia.
— Que é que você pensa que eu tenho dentro do peito? — exclamou ele. — Um bloco de gelo? Uma pedra? Um pedaço de sebo? Não sabe que é o coração de uma criatura humana, de um homem como você? Acha que debaixo destas roupas pretas se esconde um corpo sem vida e sem sentimento? Sam era meu amigo, muito mais do que era seu. Fomos homens juntos. Conhecíamos um ao outro, como você jamais conheceu qualquer de nós. Conhecíamos a alma um do outro. Quando ele foi morto, uma parte de mim morreu também. Nunca mais serei um homem completo.
Falava com simplicidade e sem emoção na voz. Estava muito calmo. Sentou-se então no tamborete e moveu os lábios numa prece silenciosa. Depois, curvou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.
— Deus me perdoe, porque há em meu coração a vontade de matar.
Stuart continuava imóvel, encostado à parede. Não podia afastar os olhos do amigo. Pouco a pouco, a angústia, a fúria alucinada lhe desapareceram do rosto. Levou as mãos à cabeça. Por fim, dirigiu-se em passos incertos para o catre e sentou-se nele com a cabeça baixa.
Houve de novo silêncio na célula. O padre continuava a rezar em silêncio como se estivesse sozinho. Stuart sentia essas preces e tinha a impressão de que as preces lhe penetravam todas as células do corpo em intolerável agonia.
Em dado momento, a chave girou na fechadura da porta. O carcereiro apareceu em companhia de dois homens, Robbie Cauder e Ezekiel Simon, advogado de Joshua Allstairs. Era um homem pequeno e irrequieto, calvo e com uma expressão maliciosa nos olhos azuis.
— Ora, muito bem! — disse ele, logo que a porta se fechou. — Que é que os traz aqui? Um caso muito desagradável, mas de modo algum irreparável! Não temos onde nos sentar, Juiz Cauder. Mas não faz mal. O que nos traz aqui não vai demorar muito.
Piscou o olho para Robbie, que estava muito sério, olhou Stuart com preocupação e franziu a testa olhando para o padre, fazendo um gesto que indicava que o padre devia sair. Mas Robbie discordou dele, sacudindo gravemente a cabeça.
Robbie avançou e estendeu a mão que o padre apertou.
— Temos alguns assuntos para discutir, Padre Houlihan. Se tiver tempo, peço-lhe que fique. Foi muito bom encontrá-lo aqui. Tenho certeza de que Stuart precisa do senhor.
— Posso ficar, se é esse o seu desejo, e se puder ajudar meu amigo —, disse o padre com dignidade.
Stuart havia recaído na sua apatia e não parecia ter tomado conhecimento da entrada dos dois homens.
Robbie hesitou e então sentou-se ao lado do parente. Olhou-o com triste gravidade e disse:
— Reaja, Stuart O assunto é sério e temos de falar com você.
As mãos de Stuart caíram-lhe lentamente do rosto. Olhou para Robbie e murmurou:
— Veio preparar minha defesa? Quer salvar-me das mãos do carrasco, não é?
— Que carrasco? — perguntou Robbie com impaciência. Tirou um lenço do bolso e entregou-o a Stuart. — Tome. Limpe o rosto. Reaja e ouça-me, Stuart. Você pode ter sido imprudente, mas não é assassino. Allstairs não morreu. Está bem vivo, embora com um braço quebrado.
Stuart olhou-o e sua expressão mudou, voltando a ser contorcida e feroz.
— Não está morto! Não está morto! Ainda está vivo! Meu Deus!
O padre levantou-se com um grito. Agarrou o braço de Stuart e exclamou:
— Graças a Deus, ele não está morto! Não é por ele que digo isso, mas por você, Stuart! Graças te sejam dadas, Deus!
— Stuart não parece compartilhar de sua alegria, Padre Houlihan —, murmurou Robbie.
Stuart cerrou os punhos e murmurou:
— Terei de tentar matá-lo de novo!
Robbie disse então severamente:
— Não seja idiota como sempre foi! Procure usar a cabeça, se é que você a tem. Procure controlar-se. Tem de pensar em sua família. Vou tomar providências para que fique aqui, a salvo de si mesmo, até recuperar o juízo.
Fez um gesto para o padre que forçou delicadamente o trêmulo Stuart a sentar-se no catre. Simon, o advogado, tinha olhado tudo com prazer e interesse e disse então:
— Ah, tem o sangue quente. É melhor mesmo para ele passar alguns dias aqui. Estou de inteiro acordo. Uma pequena sentença de dez dias por perturbação da ordem pública e agressão, não acha?
— Isso pode ser resolvido depois, disse Robbie com impaciência. — Vamos aos fatos, primeiro.
Fez uma pausa e então disse a Stuart com firmeza e calma:
— Há muitas testemunhas, vizinhos de Allstairs. Estão todos de seu lado. É uma felicidade para você que ele seja tão universalmente odiado. Agora, tenho algumas perguntas para fazer-lhe. Procure responder sensatamente. Allstairs desmaiou em suas mãos antes que você pudesse bater nele?
Só alguns momentos depois, Stuart conseguiu recuperar-se suficientemente para responder, com um gesto afirmativo.
— Isso confirma o depoimento das testemunhas —, disse Simon. — E do Sr. Allstairs também.
— E então você o arremessou de encontro à parede, fazendo-o quebrar o braço? — continuou Robbie.
— Esperava quebrar-lhe o pescoço. Meu desejo era que ele morresse.
Robbie franziu a testa e olhou para o advogado.
— O que ele diz não deve sair destas paredes, ouviu?
— Claro, claro —, disse Simon. — Nosso desejo é que tudo se resolva amigavelmente.
Robbie disse friamente:
— Os vizinhos e um polícia chegaram a tempo de ver o último ato desse caso desagradável. Alguns chegaram ao quarto antes que você tivesse agarrado o velho... Dizem que você o agarrou pela nuca e ele perdeu os sentidos. Você então jogou-o longe. Caíram sobre você no momento em que você ia liquidá-lo a pontapés ou a bengaladas. Tiveram muito trabalho para contê-lo, pois você se debatia como um cão danado que é e só quando o polícia lhe assestou uma pancada com o cassetete foi que puderam trazê-lo para cá, o que não deixou de ser uma felicidade para você.
Stuart nada disse. Tinha as mãos cruzadas sobre os joelhos e olhava para a frente.
— Vamos ser breves —, disse Simon. — O Sr. Allstairs declarou que não apresentará queixa criminal contra sua pessoa. O senhor é genro dele. Ele mostra com isso discrição e, eu poderia dizer, tato. Não quer escândalos de família e deseja que o caso fique nisso mesmo. É muita generosidade de meu cliente, na minha opinião.
Stuart levantou a vista e disse:
— Compreendo. Ele está com medo de que eu seja submetido a julgamento e comece a falar. Está com medo de que eu o acuse de assassinato!
— Que tolice, meu caro senhor! — exclamou o advogado. — Que acusações absurdas ao meu venerável cliente! Como pode prová-las? Quem são esses "assassinos" de quem fala? Pode apresentá-los em juízo? Parece-me que tudo isso é produto de sua imaginação. O infortunado Sr. Berkowitz foi atacado à porta de sua casa por malfeitores desconhecidos que queriam roubá-lo e não matá-lo. Podemos dizer que... exageraram. Mas a verdade é que o roubaram. Tiraram-lhe o dinheiro dos bolsos e um certo anel que ele usava desapareceu.
De repente, Stuart foi acometido de um verdadeiro acesso de fúria e desespero.
— Isso quer dizer que ele não vai ser punido pelo seu crime! Vai ficar impune como sempre ficou! Ficará impune para assassinar e roubar de novo e continuar com sua vida imunda! Não! Quero ser julgado! Exijo uma oportunidade de acusá-lo e dizer tudo o que eu sei! Eu sei o que Sam me contou quando íamos para casa juntos! Sei o que Sam me disse antes de morrer!
Apontou o dedo para o advogado e exclamou:
— Você sabe muito bem o que significa isso! Sabe o que isso vai significar para Allstairs! E ele sabe também! Foi por isso que ele o mandou até aqui!
O sorriso afável de Simon desapareceu. O rosto dele se enfarruscou e ele disse friamente:
— Onde estão suas testemunhas, Sr. Coleman? Quem confirmará as suas acusações desvairadas? Quem lhe irá dar crédito? Não, convença-se de que nada poderá fazer. O Sr. Allstairs sabe disso também. Entretanto, magnanimamente me deu instruções para retirar a queixa contra sua pessoa!
— Magnanimamente? Quanta benevolência! Escute aqui, se Allstairs não estivesse com medo, não o mandaria aqui nessa missão hipócrita! Ele não tem coragem de enfrentar minhas acusações num tribunal...
Simon meteu as mãos nos bolsos e olhou calmamente para Stuart.
— Vamos ser francos, Sr. Coleman. Não quero enganá-lo. O Sr. Allstairs tem realmente receio de enfrentar as suas acusações. Como vê, estou sendo honesto com o senhor, embora não devesse. Em troca de seu silêncio, ele também guardará silêncio e o assunto ficará resolvido.
"Por outro lado, Sr. Coleman, examinemos o outro caminho. O Sr. Allstairs não retirará a queixa contra o senhor de agressão e tentativa de homicídio. O senhor não sabe ficar calado e não vai negar que tinha a intenção de matá-lo. Além disso, há as testemunhas. Será levado a julgamento. Fará então as suas acusações. As coisas poderão ser desagradáveis para meu cliente durante algum tempo e ele poderá até ser encerrado numa célula como esta enquanto se procura apurar as suas acusações. Mas, e isso é um ponto que deve compreender perfeitamente, não serão encontradas testemunhas que provem as suas alegações. Espera que os malfeitores apareçam espontaneamente e se acusem, acusando o Sr. Allstairs? É ridículo esperar que isso aconteça. A polícia está procurando os homens, mas eu duvido muito de que sejam encontrados. Esses criminosos têm uma maneira muito hábil de desaparecer. Como provará qualquer relação entre o Sr. Allstairs e os criminosos? Com as palavras de um homem à morte? É verdade que o Sr. Berkowitz tinha tido a oposição do Sr. Allstairs, por um motivo que o Sr. Allstairs considerava sinceramente da maior importância. O Sr. Allstairs tinha o plano de vender a Ilha do Rio em lotes a lavradores pobres em condições muito generosas, a longo prazo e juros baixos. Não acha que a apresentação de documentos nesse sentido fará muito efeito no tribunal, Sr. Coleman?
"Por outro lado, o Sr. Berkowitz desejava trazer para as terras uma horda de estrangeiros. Os estrangeiros não são muito desejados aqui, Sr. Coleman, pelo menos agora. O sentimento geral do povo é contrário a esse projeto, meu caro, e o tribunal levará isso também em conta.
"Poderá dizer que o Sr. Berkowitz teve a oposição do Sr. Allstairs, mas a verdade é que neste caso o Sr. Allstairs conta com a solidariedade de toda a população, como, aliás, sempre contou. Assim sendo, o Sr. Berkowitz lhe falou dessa oposição. Em seguida, o senhor o acha à morte. Note que o encontrou sozinho e devo voltar dentro em pouco a esse aspecto do caso.
"Alega que o Sr. Berkowitz murmurou o nome de meu cliente antes de morrer. Mas que prova disso tinha o Sr. Berkowitz? Nenhuma! Além disso, ninguém o ouviu murmurar esse nome. Só o senhor.
"O Sr. chega então a uma conclusão louca, infundada, melodramática. Sai correndo então para matar meu cliente baseado na pretensa acusação de um homem brutalmente espancado, que não tinha qualquer justificação para a sua acusação. Meu cliente o perdoa por amor da filha, que é sua mulher.
O padre se levantou com os olhos faiscantes e disse numa voz trêmula:
— O senhor é que está justificando um assassino! E quer que o Sr. Coleman também o justifique e se tome um cúmplice?
Robbie olhou o padre com desprazer e disse:
— Por favor, não seja quixotesco, Padre Houlihan! Não pode ser insensível aos argumentos tão bem fundamentados do Sr. Simon.
Simon levantou a mão com benevolência.
— O... Sr. Houlihan... tem evidentemente sentimentos muito carregados de emoção em relação ao Sr. Coleman. Deixemos isso de lado...
Em seguida, deu um passo na direção de Stuart, que o estava escutando em sombria estupefação. Baixou a voz que perdeu o seu tom de satisfação.
— Há outro aspecto do caso no qual vou tocar agora, Sr. Coleman. Peço-lhe que preste atenção. Nas primeiras declarações incoerentes que prestou a polícia, disse que tinha esquecido umas chaves que o Sr. Berkowitz dissera que ia dar-lhe. Essas chaves não foram encontradas no corpo da vítima. Disse que voltou cerca de dez minutos depois de ter-se despedido do Sr. Berkowitz e o encontrou morrendo. Os vizinhos afirmam que nada ouviram até que o senhor gritou pedindo socorro e então encontraram o Sr. Berkowitz em seus braços. Disse que ele tinha sido assassinado e ninguém o ouviu falar de novo antes de morrer. Foi o senhor quem encontrou o Sr. Berkowitz à morte. Estava coberto com o sangue dele. Além disso, descobriu-se, Sr. Coleman, que devia quatorze mil dólares ao Sr. Berkowitz, nunca tendo pago juros sobre essa importância.
— Santa Mãe de Deus! — exclamou o Padre Houlihan, pálido como a morte. — Está por acaso acusando o Sr. Coleman de ter assassinado seu melhor amigo?
Simon sorriu.
— Não estou acusando o Sr. Coleman de nada senão de indiscrição, leviandade e pertinaz cegueira. Estou apenas sugerindo que as coisas podem tornar-se muito desagradáveis para ele se insistir num julgamento e fizer acusações absurdas e infundadas no tribunal.
O padre voltou-se para Robbie.
— Você está de acordo com isso? Você aprova isso, Robbie?
Robbie olhou-o friamente e respondeu:
— Não tenho outro remédio, Padre. Não ouviu os fatos? Allstairs acabará por livrar-se de tudo, se Stuart insistir na sua loucura. Mas Stuart não se livrará. Será sentenciado a uma longa pena de prisão. Na pior das hipóteses, será acusado de homicídio. Todos os indícios são contra ele. Se realmente é amigo dele, peço que o convença a ouvir a voz do bom senso. — Levantou-se, consultou o relógio: — Temos de sair agora. Voltaremos dentro de uma hora. Espero sinceramente que nessa ocasião já o tenha convencido.
Hesitou, olhando para Stuart. Este parecia atordoado, com as mãos entre os joelhos e as feições contorcidas. Robbie respirou fundo.
— Sou forçado a pedir a Stuart que leve outro aspecto do caso em consideração. Todos os fatos de sua vida serão esmiuçados e divulgados para deleite do público. Coisas absolutamente sem importância para o caso serão expostas e comentadas. Pessoas inocentes vão sofrer com isso, como Marvina e a pequena Mary Rose, a esposa e a filha de Stuart. E, sem dúvida, muito provavelmente também, minha irmã Laurie.
Stuart reagiu violentamente ao ouvir isso. Não tinha mais os olhos apáticos. Levantou-os para Robbie, com furiosa indignação. Robbie fez um sinal afirmativo.
— É verdade, Stuart Tudo será feito para denegri-lo, para apontá-lo como culpado aos olhos do júri. Sou advogado e sei. Você será apresentado como um homem inteiramente sem caráter. Não recuarão diante de nada. E, se você não tem, eu tenho alguma consideração por minha irmã. Peço-lhe que tenha também consideração por ela. Laurie é jovem e tem a vida toda pela frente. Está em suas mãos protegê-la ou arruiná-la irremediavelmente. E ela não tem outra culpa senão a de amá-lo.
Tomou o braço de Simon e repetiu sem olhar para trás:
— Voltaremos dentro de uma hora.
O carcereiro abriu a porta e os dois saíram da célula.
O padre e Stuart ficaram sozinhos. Olharam-se por muito tempo. O padre deixou-se cair lentamente no tamborete. O silêncio entre os dois naquele pequeno espaço era amargo e terrível.
Afinal, o padre disse numa voz entrecortada pelo sofrimento:
— Fomos vencidos pelas forças do mal!
Stuart parecia alucinado. Bateu furiosamente os punhos cerrados nos joelhos. Mas não dizia coisa alguma. O padre tinha a impressão de que aquelas pancadas surdas eram vibradas diretamente em seu coração dolorido.
Disse então:
— Não temos outro refúgio, nem outro tribunal senão Deus. É a esse refúgio e a esse tribunal que devemos entregar nosso caso. Nós, pessoalmente, nada podemos fazer.

CAPÍTULO 67
Estavam ao lado da sepultura onde Sam Berkowitz estava enterrado havia um mês. O cemitério tranquilo estava cheio de sol que brilhava sobre a folhagem escarlate, verde e dourada do outono, derramando-se do brilhante azul-turquesa do céu. Os pássaros cantavam nas árvores as suas despedidas outonais, lançando sombras ligeiras como flechas quando esvoaçavam acima da terra quente. O vento se levantava numa voz cantante e melancólica, agitando as folhas caídas. Mas não havia outros sons. As sepulturas se estendiam pacificamente sob os céus, à sombra dos ciprestes, dos bordos chamejantes e dos abetos negros.
O padre murmurou uma voz trêmula:
"A beleza de Israel está morta em teus altos; como caíram os poderosos!"
A voz se lhe estrangulou na garganta e ele baixou a cabeça com os olhos cheios de lágrimas. Stuart estava ao lado dele com o rosto marcado pela dor e pelo desalento. Olhou para a sepultura de Sam e o ódio e o desespero nele eram como uma negra maré sobre a qual a lua jamais brilharia. Moveu-se nervosamente ao lado do padre como se chorasse e cerrou os punhos, enquanto o Padre Houlihan continuava, como que em meditação:
"Saul e Jônatas foram amáveis e agradáveis em suas vidas E na sua morte não foram divididos.
... ó, Jônatas, foste morto em teus altos.
Estou aflito por ti, meu irmão Jônatas.
Muito agradável foste para mim.
Teu amor por mim foi admirável,
Maior que o amor das mulheres..."
O Padre Houlihan tinha-se tornado um velho e o sofrimento pela perda do amigo lhe vergava o corpo e vincava o rosto. A sepultura estava coberta com as últimas rosas do jardim do padre.
Stuart pensava: Pode chorar por ele, mas a mim isso não basta. Hei de encontrar um meio.
O padre ficou em silêncio durante algum tempo enquanto chorava. Depois, murmurou:
"Para os montes levanto os olhos:
De onde me virá socorro?
O meu socorro virá do Senhor,
Criador do Céu e da Terra.
Ele não permitirá que resvalem;
Não dormirá aquele que te guarda.
Não, não há de dormir, nem adormecer
O guarda de Israel.
O Senhor é teu guarda.
O Senhor é teu abrigo, sempre ao teu lado.
De dia, o sol não te fará mal,
Nem a lua durante a noite.
O Senhor te resguardará de todo o mal.
Ele velará sobre tua alma.
O Senhor guardará os teus passos
Agora e para todo o sempre."
O Senhor te resguardará de todo o mal, pensou Stuart cheio de desolação. Mas não resguardou Sam. Deixou-o morrer sozinho e inocente. O Senhor o puniu porque ele tinha um sonho de misericórdia e de amor. Homens vis o mataram pelo simples fato de que ele era um homem bom.
Sem poder mais conter-se, Stuart encaminhou-se para algumas árvores próximas e sentou-se num banco. A luz que o cercava, a própria paz que reinava no cemitério, tudo isso lhe aumentava a angústia como se todos os objetos fossem acentuados por um traço lívido. Sam, Sam! Onde está você, Sam? Não, Sam não está em lugar algum senão debaixo daquela sepultura e nada mais resta dele.
Havia apenas uma certeza que era a morte. Todos os sonhos, amores e esperanças do homem chegavam a esse ponto final, além do qual não havia mais nada e, por fim, nem a lembrança. O sonho de Sam estava enterrado ali com ele e nunca se concretizaria, uma joia perdida no meio do barro que nunca mais seria encontrada.
Um cansaço doentio e pesado caiu sobre Stuart. Pensou como nunca havia pensado até então na vida e os seus pensamentos nada produziam senão tortura e desespero. Todos os desejos cessaram nele. Sam está morto, mas eu estou morto também, pensou ele. Chegava a invejar o amigo, que não tinha mais no peito a dor pungente da vida.
O Padre Houlihan enxugou os olhos e olhou em volta. Viu Stuart sob as árvores e deu um suspiro. Sam descansava, mas aquele pobre homem estava sofrendo verdadeiras torturas. Foi para perto do amigo e sentou-se ao lado dele. Começou a falar brandamente, como se estivesse meditando em voz alta:
— Não pense que ele está morto, Stuart. Está mais vivo do que nós. Sei disso não pela fé que tenho, mas por uma convicção íntima. Não pense que o sonho de Sam morreu com o corpo dele. O sonho de libertação, de amor, de segurança e de paz é uma luz que os mortos transmitem aos vivos e que passará de mão em mão através dos tempos, ora brilhante, ora mortiça, ora oculta por pedras, árvores, montanhas, nevoeiros e tempestades, mas nunca extinta. O espírito de Deus anima essa luz e quem pode apagá-la? Sam sabia disso e sabe ainda melhor agora. Está num lugar maior onde trabalhará alegre e incessantemente com muitos outros para realizar o seu sonho.
Olhou para o dia que declinava e sorriu.
— Trabalhe, Sam. Reze, Sam. Nós rezaremos com você, dando-lhe nossas preces fracas e incertas, nossas débeis esperanças. Velaremos com você, guardando a luz que você nos deu. Não nos esqueceremos. Não nos esqueça, Sam. Esteja conosco quando fraquejarmos e nossos olhos ficarem cegos de desespero. Não nos esqueça. Esteja conosco porque nós o amamos.
Stuart teve um sorriso triste e apontou a sepultura:
— É ali que ele está e em mais lugar nenhum. Você sabe muito bem disso apesar de toda a sua conversa piedosa.
— Não —, disse o padre firmemente. — Ele não está ali. Está conosco, em torno de nós. Não pode senti-lo, Stuart? Quando falei perto da sepultura dele, vi-o claramente, mas muito mais moço e mais forte e com os olhos cheios de paz. Cheguei a ouvir-lhe a voz. Ele orou comigo.
— Acredito que sinta o que diz, Grundy, mas para mim ele está completamente morto. Nunca duvidei disso. E espero que esteja mesmo morto. É a única paz que ele poderá ter. Se ele se lembrasse de tudo o que aconteceu, seria intolerável para ele.
O padre nada disse e Stuart continuou:
— Tenho uma maneira muito melhor de provar que não me esqueci do que murmurar preces inúteis sobre uma sepultura. Veja isto.
Entregou um cartaz impresso ao Padre Houlihan.
O padre leu:
"Dez mil dólares de prêmio por qualquer informação que leve à prisão e condenação dos assassinos de Samuel Berkowitz, que foi morto em Grandeville, Estado de Nova York, no dia 18 de setembro de 1863. (a.) Stuart Coleman, Estrada do Rio, Grandeville."
— Mandei imprimir cinco mil cartazes desses e mandarei imprimir mais. Serão espalhados por todo o Estado e mais na Pensilvânia e em Ohio. O mesmo anúncio será publicado em vinte jornais nas cidades principais. Tenho também uma "convicção". Sei que isso vai dar resultado.
— Dez mil dólares — disse o padre. — Quem pode resistir a dez mil dólares? Sim, Stuart, isso vai dar resultado e Deus permita que dê.
Stuart murmurou, porém, com ódio:
— A princípio, quando se abriu o testamento de Sam e eu soube que ele me deixara esse dinheiro se morresse antes da compra da Ilha do Rio, pensei em prosseguir com os planos de Sam sobre a ilha. Mas, como sabe, ela foi imediatamente vendida àquela víbora, Allstairs. O imundo não teve o menor escrúpulo em fechar imediatamente a transação. Desse modo, não adiantava. Não podia gastar esse dinheiro comigo. Reservei-o para pagar a quem me desse informações sobre os assassinos de Sam.
Embora precisasse muito desse dinheiro, pensou o Padre Houlihan. Pousou a mão no braço de Stuart e disse:
— Fez muito bem. E vai ter resultados — disse o padre. — Foi muito bom que Sam tivesse deixado para nós dois as suas ações nas lojas, divididas igualmente. Ele sabia que nós precisávamos de aumentar o hospital. Usarei a renda de minhas ações para construir uma nova sala de operação e para pagar o salário de um cirurgião de Nova York, um especialista que Sam conhecia muito bem, o Dr. Israel Goodman. Já escrevi a ele convidando-o.
Stuart sorriu amargamente, mas não disse ao padre que não devia contar muito com essa "renda", que se tornava de dia para dia mais duvidosa.
Ficaram de novo em silêncio olhando para a sepultura de Sam. Por fim, o Padre Houlihan disse:
— Há sempre períodos de irracionalidade, crueldade e intolerância da humanidade, durante os quais a raça humana parece atacada de loucura. São coisas que, como tempestades, se elevam do poço insondável do inferno e se espalham pelo mundo. Em cada geração, essas tempestades se abatem sobre o mundo, devastando e destruindo. Mas, depois que passam, Deus e os homens continuam, estes exaustos e ensanguentados, mas ainda com fé e ainda com esperança. Nada pode destruir o sonho de Deus, um sonho de paz eterna, de amor, de trabalho e de fraternidade no mundo. Devemos saber e compreender isso. "Direi do Senhor que é meu refúgio e minha fortaleza, meu Deus em Quem confio. Sua verdade será teu abrigo e teu escudo.
Não terás medo do terror à noite, nem da flecha que voa durante o dia, nem da peste que anda nas trevas, nem da destruição que devasta ao meio-dia." Sam era um soldado nos Exércitos do Senhor, Stuart. Caiu na batalha, é verdade. Mas não lutou em vão. O sonho dele, o sonho de todos os homens bons, continua em marcha, triunfante. Algum dia, será realizado na terra e o mundo inteiro será um abrigo e um refúgio, cheio de compreensão e fraternidade.
— Só sei de certo é que Sam está morto —, disse Stuart.
— E eu sei que ele está vivo —, afirmou o padre.
Caminharam juntos para as portas do cemitério. Voltaram-se para um último olhar para a sepultura de Sam, coberta de rosas e envolta na luz da tarde.
O padre ergueu a mão e murmurou:
"O Senhor te abençoe e te guarde,
O Senhor faça Seu rosto brilhar sobre ti
E mostre graça por ti;
O Senhor erga o Seu semblante sobre ti
E te dê paz."
Stuart murmurou, porém, com ódio:
— Não esquecerei, Sam! Eu os encontrarei. Dez mil dólares farão o que a justiça não pôde fazer!

CAPÍTULO 68
Desde que o homem tem tendência, no seu egocentrismo antropomórfico, a acreditar que a própria natureza participa de seus cataclismos raciais e acompanha as suas paixões, acreditando que os "sinais" do céu têm a ele por objetivo, os habitantes da região do Norte suspeitaram vagamente de que os terríveis rigores do inverno do período 1863-1864 foram de algum modo uma manifestação das forças da natureza convulsionadas pelas convulsões humanas.
De qualquer modo, o povo foi de opinião que "nunca tinha havido tão terrível inverno". Inquietos, alarmados, sofrendo privações e até fome, aterrados ante as perspectivas de uma guerra interminável que acabaria por tirar-lhes filhos, dinheiro, propriedades e segurança, além dos pequenos confortos e até das necessidades mínimas da vida, tiveram de enfrentar um inverno que em miséria, inclemência e desolação era um prolongamento da angústia em que viviam.
O carvão era escasso, começava a haver falta de viveres, as lojas estavam quase vazias de tudo, o dinheiro havia misteriosamente desaparecido e sempre, sempre os jovens partiam nas suas fardas azuis e não voltavam mais.
Mas o hospital que Stuart construíra estava cheio de feridos e moribundos e as freiras trabalhavam de rosto pálido e exausto, mãos delicadas e vozes que não se queixavam. O ódio e a revolta tinham acabado por vencer a apatia do povo. Eram muitos os que odiavam o Presidente e o culpavam da guerra que lhes infligia tanto sofrimento. Mas odiavam o Sul ainda mais como a causa da guerra. Dentro desse ódio universal, as questões básicas da guerra eram esquecidas e o povo se ajustava sombriamente .ao sofrimento, às privações e à desesperança. A sobrevivência da União, a Proclamação da Emancipação, a suspensão do direito de habeas corpus, os novos impostos pesados e o recrutamento eram considerados com profunda apatia.
— Se não pudermos fundir esses espíritos e corações estrangeiros —, disse o Prefeito Cummings a Robbie Cauder uma noite —, se não conseguirmos tirar das consciências as recordações da Europa e o apego a línguas e costumes estrangeiros, a República irá de novo correr mortal perigo repetidas vezes. Devemos fazê-los compreender, por meios que estão acima de minha compreensão, que este país é habitado por uma nova raça composta de todas as raças reunidas num só povo e que qualquer lealdade estrangeira não só é uma traição, mas implica na dissolução deste país e no desmoronamento de um grande sonho.
Entretanto, a verdade era que o povo se preocupava mais com os seus sofrimentos e com o terrível inverno do que com as questões em jogo na "luta gigantesca e sangrenta".
O inverno tinha chegado cedo. Em outubro, tinham caído as primeiras e violentas nevadas, os primeiros ventos cortantes sopraram dos Lagos e as primeiras sombras cobriram a terra. Em dezembro, a cidade estava isolada pela neve e transformada num longo cemitério branco de dunas e montes brancos, batida por ventos tão violentos e cortantes como chicotadas, que abalavam as chaminés, arrancavam árvores e enchiam as ruas de detritos que as tornavam intransponíveis.
Até nas casas da Rua Principal, da Avenida Delaware, da Rua Franklin, da Avenida Porter e da Avenida Richmond, havia frio. Só se aquecia uma sala e nela as famílias se reuniam em torno das lareiras, tremendo de frio e de medo. Quanto aos pobres, reuniam-se junto ao fogão da cozinha e, quando este se apagava, iam todos tremendo para a cama.
Joshua Allstairs tinha carvão suficiente. A sua lareira era um braseiro esplendente de calor e de conforto. Pensava no porão de sua casa onde mais de dez toneladas estavam bem guardadas. Chegavam de sobra para o inverno e até para o inverno seguinte, se fosse necessário. A lareira estava acesa em seu quarto também. Quanto aos criados, ele generosamente permitia que enchessem de brasa pequenos fogareiros a fim de levá-los para os seus quartos enregelantes. Era preciso tratar bem os criados em tempos como aqueles. Havia no ar uma perigosa fermentação que Joshua não deixava de sentir.
O braço estava tardando a sarar e ele ainda o levava numa tipoia de seda preta. Tinha-lhe sobrevindo também uma paralisia permanente de modo que a grande cabeça branca se balançava num ritmo constante e leve. Nunca se recuperara por completo do terror daquela noite em que Stuart o fora procurar para matá-lo. Um lado do rosto estava imobilizado num esgar petrificado e, como que em compensação, o outro lado do rosto mostrava uma expressão mais maligna e terrível do que nunca.
Sorriu benevolamente para o seu visitante. Mas esse visitante, que raramente via os outros objetivamente ou até subjetivamente, não era insensível ao aspecto aterrador do homem que o recebia. Angus não podia compreender como um homem tão velho, quase à beira da morte, podia conservar um ódio tão ávido, uma malevolência tão vigilante.
Mas isso não lhe dizia respeito. Chegava a respeitar Joshua pela vitalidade que demonstrava. Quanto à sua vitalidade pessoal, que nunca fora muito grande, andava muito baixa e exausta. As dores de cabeça eram quase constantes. De vez em quando, mascava rebuçados que lhe tinham sido recomendados em virtude de "sua ação sobre o sistema nervoso". Eram indicados como soporíferos. Serviam apenas, porém, para amortecer a dor cruciante, de modo que suas faculdades mentais pudessem emergir brevemente. Nesses intervalos, sentia a inteligência como uma faca desembainhada e rebrilhante ao longo do gume. Podia realmente visualizar essa faca. Quando a visão se tornava muito nítida, mascava às pressas outro rebuçado com uma espécie de terror.
Joshua estava falando de um modo calmo e até simpático:
— Assim sendo, temos todos os fatos diante de nós, meu caro Angus. Nosso amigo Stuart possui agora 55% das ações da loja, graças ao judeu que lhe deixou a metade dos 40% que tinha. Graças também ao judeu, aquele abominável padre possui 20%. Nas condições atuais, essas ações não têm valor e isso compreende, por mais que me pese dizê-lo, os 25% que pertencem a sua mãe, meu jovem.
"Sabemos agora que as dívidas pessoais de Stuart sobem a vinte mil dólares em notas promissórias dadas por ele a bancos de Nova York a Chicago, dinheiro esse que ele dissipou com mulheres indignas, joias, objetos de arte, sua casa e a sua extravagante maneira de viver acima de suas posses.
Enquanto Joshua fazia essa enumeração, tocando cada um dos dedos da mão esquerda com o indicador da mão direita, os dedos estalavam secamente. Angus sentiu um estremecimento, mas seu rosto não se alterou.
— O Sr. Schnitzel, seu prezado e inteligente sogro, emprestou-lhe o dinheiro para comprar essas notas no valor de vinte mil dólares. Comprou também a hipoteca sobre a casa de Stuart e fez-lhe presente dela. Stuart ainda não sabe de nada disso. Certo?
— Está certo sim, Sr. Allstairs —, disse Angus na sua voz neutra e sem eco. Levou a mão à testa, viu que estava úmida e enxugou-a com o lenço.
— Dou-lhe parabéns pela generosidade do Sr. Schnitzel, Angus. Isso também demonstra uma fé inabalável em você. Mas vamos continuar. A falência das lojas será decretada. Não só o interesse de Stuart nelas perderá todo o valor, mas o seu também. Você sabe muito bem disso.
"Aqui está minha proposta. Eu lhe adiantarei o dinheiro para pagar a seus credores ou, melhor, aos credores de Stuart — negociantes, industriais e importadores — a 50%. Em troca, serei seu sócio nas lojas. Essa guerra não pode durar muito mais tempo. Não terei qualquer participação ativa na gerência do estabelecimento. Você será o gerente e administrador único, mediante um salário ou uma retirada que se ajustará amigavelmente entre nós. A condição única para mim é que você force Stuart Coleman a sair por completo das lojas. Você está de posse das promissórias assinadas por ele e da hipoteca da casa. Não terá muita dificuldade em conseguir isso, meu bom jovem!
Recostou-se na cadeira e sorriu angelicamente. Angus olhou para ele e sentiu uma repulsa íntima. O seu rosto estava tão frio e fixo como se ele tivesse passado semanas exposto à neve.
Angus sacudiu a cabeça e disse:
— Sinto muito, Sr. Allstairs, mas não foi assim que planejei as coisas. Não pense que sou insensível à sua bondade. De modo algum. Ao contrário, tenho muita admiração pela sua generosidade. Mas não pode ser assim e vou fazer-lhe outra proposta.
O rosto de Joshua se contraiu malevolamente. Chupou os lábios para dentro e agarrou o castão da bengala. Mas disse com voz branda:
— Muito bem, sou um homem cordato. Pode dizer qual é a sua proposta.
Angus franziu a testa e olhou para o fogo, imerso em profunda meditação. Começou então a falar, como se estivesse pensando em voz alta:
— Tenho muita amizade por aquelas lojas, Sr. Allstairs. Posso mesmo dizer uma profunda amizade. Elas são toda minha vida. Não conheço nada mais. Há anos que venho sonhando em possuí-las sozinho. Não quero sócios, nem mesmo um sócio capitalista que não intervenha na gerência. As lojas têm de estar inteiramente em minhas mãos. Venho trabalhando para isso há muitos anos.
Joshua, que no começo tinha mostrado impaciência, passara a escutar atentamente. Havia uma espécie de respeito em seus olhos de abutre. Descansou o queixo no castão da bengala e olhou para Angus sem pestanejar. Refletiu que havia até um toque de paixão naquela voz de morto. Era um tremor, um movimento como que de vida.
— O Sr. Schnitzel —, continuou Angus —, é mais que generoso. É magnânimo. Está disposto a adiantar-me qualquer importância necessária. Entretanto, tem também enfrentado dificuldades com esta guerra e os vinte mil dólares que me emprestou para comprar as notas de Stuart, a fim de que ele possa ser afastado das lojas, é tudo de que pode dispor no momento.
"Vamos supor, Sr. Allstairs, que o senhor decida agir por conta própria e execute as lojas. Não receberá senão dívidas. Não haverá nem um gerente. A Comissão de Comércio, recém-criada em Nova York para defender o interesse dos negociantes, tomará tudo. Quanto lhe devem as lojas, Sr. Allstairs? Dezoito mil dólares? Se agir judicialmente, perderá todo esse dinheiro.
"Mas suponhamos que, ao contrário, depois que eu tiver afastado Stuart, o senhor aceite promissórias minhas para serem amortizadas durante um período de tempo razoável dos lucros obtidos das lojas, a juros de 8%, o que é quase ilegal. Como disse, essa guerra não pode durar muito. Com dinheiro na mão, poderei sortir de novo as lojas nos negociantes de Nova York e Chicago. Posso ter as lojas numa base próspera, apesar da guerra, dentro de seis meses. Não retirarei delas um só centavo para minhas despesas pessoais até que tudo esteja equilibrado.
"Creio que, com sua ajuda monetária, poderei liquidar os débitos de Stuart numa base de 50%. Já sondei discretamente a Comissão, que está estudando o assunto e não pode deixar de concordar. Do contrário, perderá tudo. Sabe que se vender em leilão o que resta do estoque no caso de liquidação total receberá no máximo 5%.
Joshua nada disse. Mas fazia sinais afirmativos com muito interesse.
Angus constatou sem a menor emoção:
— Reorganizarei completamente a firma. Terá o nome de Cauder & Companhia. Serei o proprietário único. Talvez seja uma obsessão comigo. Mas eu sei que deve ser assim. O senhor está a par dos fatos. Sabe que as lojas devem 75 mil dólares aos bancos e negociantes, aos atacadistas, industriais e importadores. Sabe de que eu preciso. Já lhe expus meus planos. Está inteiramente em suas mãos agora decidir o que deve ser feito.
Houve um longo silêncio na sala. Mas o fogo crepitava fortemente na lareira. Joshua se encolheu em sua cadeira, passando a língua pelos lábios e olhando fixamente para Angus.
Estendeu a mão trêmula para a campainha e perguntou:
— Vamos tomar um pouco de chá? Um chá reforçado talvez?
Angus fez um sinal afirmativo e disse em seguida firmemente:
— Há ainda outra coisa que eu quero discutir com o senhor. Peço-lhe que me escute atentamente, porque, pensando bem, isso deve agradar-lhe. Precisarei de um gerente. Pretendo oferecer a Stuart o cargo de gerente das lojas com um salário, vamos dizer, de trezentos dólares mensais. Afinal de contas, é meu parente. Não receberá, porém, qualquer outra remuneração. Não poderá recusar. Se assim fizer, morrerá de fome. Sinto que é meu dever religioso e cristão oferecer-lhe isso. É claro que, se ele recusar, estarei dispensado de fazer mais qualquer coisa por ele.
O rosto escuro de Joshua resplandeceu de perverso prazer enquanto todas as possibilidades das palavras de Angus lhe passavam pelo espírito. Começou a rir e exclamou:
— Ah! Assim caem os poderosos! Que fim! Que justiça! Que justa punição! Se isso me vai agradar? Meu caro Angus, esse será o toque final e magistral, a última vingança, a justiça decisiva! Como eu gostaria de estar presente quando você propusesse isso e ele aceitasse! Seria a justificação de meu longo sofrimento às mãos daquele ímpio e mostraria como Deus é justo!
Angus retesou o corpo, parecendo mais alto e mais magro em sua cadeira. Levou de novo a mão à fronte e fechou os olhos num espasmo de dor. Disse então:
— Não posso absolutamente concordar com isso, Sr. Allstairs. Sou um homem honesto. Creio na justiça e, por isso, acho que deverei ser justo com Stuart. As lojas foram dele. Ele as amou, tinha orgulho delas e vivia para elas. O que lhe vou oferecer, por misericórdia e compaixão cristã, ele não poderá recusar. Em caso contrário, verá as lojas se desmoronarem em torno dele e a sua casa perdida para sempre, ao mesmo tempo que será reduzido à penúria. Ele pensará nas lojas e na casa. Pensará também na sua negligência em relação às lojas, sem tomar conhecimento das contas e das dívidas. Sei que assim procedeu por medo, dominado por uma invencível relutância a conhecer das consequências e enfrentar a realidade. Talvez não tivesse pensado que o dia do ajuste de contas sempre chega. Quanto às suas prodigalidades, seus pecados, suas loucuras e suas desonestidades, isso cabe ao julgamento final de Deus.

CAPÍTULO 69
O Padre Houlihan não conseguia dormir. Ouvia o sibilar da neve nas vidraças. Ouvia os roncos de Walsh, estendido à frente de sua porta. O vento uivava, fazendo tremer as vidraças. As árvores estalavam ante a constrição de ferro do gelo. A vida parecia ter-se retirado do mundo.
Havia uma profunda angústia na alma do padre. Não conseguia nem rezar. Era como se até seu espirito estivesse cercado de gelo, no fundo da fenda escura de uma geleira. Eram intoleráveis a solidão e a desolação que sentia. Tinha-se levantado uma dezena de vezes e se ajoelhara diante do crucifixo. Mas não tinha palavras nem fervor. A alma parecia embotada. Não podia chorar; não podia nem sequer pensar. Sentia-se sozinho dentro de um universo hostil, batido pelos ventos do espaço escuro e infinito.
Sofria assim desde vários dias e evitava até seu amigo Stuart. O mal que o afligia não tinha nome. Sabia apenas que desejava a morte, coisa que nunca lhe havia acontecido em toda sua longa vida.
Estava cheio de medo e desespero. Estava estendido rigidamente em sua cama estreita, fria como a morte apesar de uma verdadeira montanha de cobertores. Mas tinha no cérebro um braseiro ardente, que palpitava e queimava.
Não era dado a analisar-se. Não podia identificar o início daquela doença mortal em sua alma. Teria sido a morte de Sam? Seriam as amargas preocupações com que estava lutando Stuart? O afastamento de seus paroquianos ricos? A frieza com que o tratava o bispo? A guerra? Cada um desses pensamentos fazia mais vivo o braseiro em seu cérebro. Talvez o que sentia fosse a soma de tudo isso. Mas por que Deus o abandonara? Por que a prece não lhe vinha aos lábios? Sentia-se cercado pelo ódio da cidade. Não havia remédio para ele.
Espontânea e aterradoramente, as palavras de Jó lhe surgiram no espírito em letras de fogo: "Se: falo, nem por isso se aplaca minha dor; se calo, estará ela consolada? A cólera de Deus me fere e me persegue: ele range os dentes contra mim. Meus inimigos dardejam os olhos contra mim. Abrem a boca para me devorar; batem-me na face para me ultrajar, rebelam-se todos contra mim. Deus me entrega aos perversos, joga-me nas mãos dos malvados. Meu rosto está vermelho de lágrimas, a sombra da morte estende-se sobre minhas pálpebras. Entretanto, não há violência em minhas mãos e minha oração é pura."
A sua profunda angústia se aguçou e foi como um gosto de cinzas e vitríolo em sua boca. Sabia agora a fonte de seu mal. Percebia o ódio do povo, mesmo das pessoas que ele havia ajudado, que agora o cercava como uma nuvem de insetos venenosos a ferroá-lo e enchê-lo de sofrimento. Lembrava-se das dezenas de cartas anônimas cheias de insultos e calúnias que tinha recebido. Via os rostos contorcidos de raiva e de ódio das pessoas com quem se encontrava na rua. Via os bancos cada vez mais vazios de sua igreja, ouvia as vozes e mãos que se levantavam contra ele. Por quê? Não havia culpa nele, assim esperava. Pensava humildemente que só havia tentado fazer a vontade de Deus. Por que então era tão odiado?
De repente, o padre se levantou com os olhos cheios de lágrimas. Que tinha dito Jesus na Cruz? "Pai, Pai, por que me abandonais?" Ele também sofrera aquela angústia e aquele terror, aquele desespero e aquele abandono! No fim, mesmo a sua divindade não bastara para impedir Seu triste apelo a Deus, Sua consciência de excessiva maldade dos homens! Por que então devia ele, Michael Houlihan, mostrar-se tão receoso, tão ignorante, tão aterrado? Ele, que era menos que pó aos pés de Cristo! Se o próprio Deus podia sentir-Se assim no último e supremo momento de angústia, desolação e abandono, nessa última compreensão da monstruosidade humana, por que iria ele, um miserável padre, sentir tamanha culpa na sua angústia?
Ajoelhou-se diante do crucifixo, com os olhos cheios de lágrimas. Mas estava sorrindo e murmurou em prece:
— Perdoa-me, Pai porque sou apenas um pobre homem miserável. Não aceitei o ódio, o mesmo ódio que Te seguiu. Pensei na minha ignorância e presunção que poderia ser amado por fazer em pequena escala o que Tu fizeste e pelo que Te pagaram com ódio! Eu devia ser amado enquanto Tu foste odiado! Que presunção de minha parte, que loucura, que pecado! Perdoa-me, Pai!
Ficou por muito tempo ajoelhado no frio cortante do quarto, com a cabeça entre as mãos. Mas estava em paz e cheio de uma pura e trêmula alegria. O universo não estava mais repleto de mal, mas de amor e ternura com a presença de Deus.
Ouviu de repente gritos, correrias e sinos que tocavam. Levantou a cabeça, assustado. Ouviu o Padre Billingsley que batia na sua porta e o chamava nervosamente. Então, a porta se abriu e o jovem padre apareceu tremendo, pálido como um fantasma, embrulhado num robe. Abriu a boca, mas não pôde falar. O Padre Houlihan levantou-se lentamente, sentindo de novo o frio invadir-lhe o corpo todo. O Padre Billingsley apontou para a janela e o Padre Houlihan voltou para lá os olhos, vendo então um clarão vermelho no céu.
Era a igreja! A bela igrejinha branca, que Stuart construíra com tanto amor e com tão imprudentes despesas.
— Meu Deus! — exclamou o Padre Houlihan. — Meu Deus!
Virou-se, como num pesadelo, para o outro padre. Mas o Padre Billingsley não estava mais ali. Saíra correndo e o Padre Houlihan lhe ouviu o grito:
— A Eucaristia! É preciso salvar a Eucaristia!
As chamas envolviam a brancura de neve da igreja. A cruz de ouro se tornara uma cruz de fogo. Todos os vitrais mostravam um fundo vermelho. Os incendiários tinham feito bem o seu trabalho. Não era possível salvar a igreja. E não foi possível salvar o Padre Billingsley que rompeu o círculo dos bombeiros atordoados e entrou na igreja para morrer diante do altar em chamas com os braços abertos.

CAPÍTULO 70
Stuart levou o avaliador de Nova York para o armário boule que tanto apreciava e esperou enquanto o homem examinava minuciosamente o móvel. Tinha os lábios apertados e a testa franzida. A atenção do avaliador foi atraída por algumas belas estatuetas de porcelana francesa no armário e apertou os olhos pensativamente. Havia também um leque de marfim que pertencera a Maria Antonieta e ao qual o homem não foi insensível.
Pouco depois, Stuart tinha nas mãos um cheque de sete mil dólares. Não olhou para o canto onde tinha estado seu armário e seus tesouros. Guardou o cheque no bolso, jogou o capote sobre os ombros, puxou o chapéu para cima e saiu, pedindo que lhe aprontassem a carruagem. Foi levado para a casa do Padre Houlihan. Do mesmo modo que não tinha olhado para o canto vazio onde tinha estado o armário em toda a sua glória, não olhou para as ruínas enegrecidas da igrejinha perto da casa do padre.
Chegou à casa e foi recebido pela Sra. O’Keefe, que tinha envelhecido muito naquelas últimas semanas e cujos olhos viviam inchados de tanto chorar. Stuart olhou para ela de testa franzida e com o coração compungido.
— Está frio aqui —, disse ele. — Por que não me disse? Mandei uma ordem de oito toneladas de carvão. Ainda não chegaram? Neste caso, eu poderia mandar um pouco de carvão de minha casa. Isso é tolice.
Mas havia um pequeno fogo aceso no quarto do padre. Quando Stuart entrou, o Padre Houlihan voltou a cabeça com esforço da cama onde estava deitado. Tentou sorrir. As mãos ainda estavam enfaixadas e uma queimadura lhe marcava o rosto. Stuart sentou-se perto dele e disse sorrindo:
— Trouxe-lhe um excelente vinho do Porto, Grundy. Tome três cálices grandes por dia com um ovo, não se esqueça. Só isso basta para tirá-lo dessa cama.
— Stuart —, murmurou o padre e não pôde mais falar, pelo aperto que sentia na garganta. Os olhos estavam amortecidos pelas lágrimas e pela angústia.
Sim, refletiu Stuart, o mundo se tinha tornado intolerável para aquele velho inofensivo e bom. Falou, porém, desdenhosamente.
— Você tem de se levantar, Grundy. Não pode ficar aí deitado para sempre. Que é que seu novo assistente vai pensar quando chegar amanhã? Você sempre teve muito ânimo, amigo velho. E ainda tem. Malone diz que não há razão alguma para que você não esteja de pé andando por aí.
O padre nada disse. Olhava para Stuart como se o amigo fosse uma fonte de vida e de consolação.
Stuart tirou o cheque do bolso e colocou-o em cima da cama.
— Aí estão sete mil dólares. O bastante para recomeçar a construção de uma igreja. Esta vai ser maior e mais bonita, Grundy. Vai ser de pedra desta vez com belas portas italianas. Já encomendei as portas. Ninguém poderá vencê-lo, meu velho Grundy!
O padre pegou o cheque com as mãos enfaixadas, olhou-o e começou a chorar.
— Santo Deus! exclamou Stuart, limpando-lhe as lágrimas com o lenço. — Isso é lá maneira de receber um presente? Para mim, Grundy, você tem o vício do choro como um bêbado tem o vício do uísque. Seja homem, Grundy, senão vou sair neste instante.
— Onde foi que você conseguiu esse dinheiro, Stuart? — perguntou o padre, falando com dificuldade. — Não posso aceitar, meu amigo. Você precisa mais do que eu. Onde foi que conseguiu?
— Que importância tem isso? Foi... um dinheiro que recebi sem esperar. Arrisquei algum dinheiro na Wall Street e recebi isso sem esperar. É tudo seu. Não preciso disso, palavra de honra.
O padre sacudiu a cabeça, tão emocionado que não podia falar.
— Não seja idiota, Grundy! Escute aqui. Você sempre teve vontade de me levar para sua igreja. Vou fazer um trato com você. Quando a igreja estiver pronta, eu serei o primeiro a me sentar num banco, o da frente, está bem? Pode pregar a mim à vontade e eu lhe garanto que não vou bocejar uma só vez. Pode dizer o que quiser e eu ouvirei com todo o respeito. De joelhos até, se você quiser.
As lágrimas do Padre Houlihan rolaram mais copiosamente. De repente, começou a sorrir. Por fim, quando Stuart o olhou surpreso, chegou a rir. Ao ouvir esse som estranho a que já estava desabituada, a Sra. O’Keefe apareceu, espantada. O riso do Padre Houlihan redobrou e ele olhou para a irmã, sacudindo o cheque na mão. Ela pegou o cheque e começou a chorar.
Stuart levantou-se.
— Claro que não vou ficar aqui para me afogar em lágrimas. Não se esqueça, Sarah. Três cálices grandes de vinho do Porto com um ovo batido. E deixe as preocupações de lado, Grundy. Vou resolver tudo por você. Só quero vê-lo é fora dessa cama. Temos muito que andar juntos, meu velho. Primeiro, você me aguenta e, depois, eu o aguentarei. Ainda vamos vencê-los todos, Grundy. Quando eu voltar aqui amanhã, espero vê-lo lá embaixo, todo animado, recebendo o seu assistente com toda a dignidade.
O rosto do Padre Houlihan se fechou e ele balbuciou:
— Stuart, eu não posso. . .
— Chega de conversa. Você precisa de descansar. Já não lhe disse que vou resolver tudo por você? Não há motivo algum para que você fique preocupado. Ora essa, Grundy, você bem sabe que eu daria a alma para ajudá-lo, embora eu duvide muito de que minha alma valha alguma coisa. Já deve estar hipotecada ao diabo há muito tempo.
Mas a expressão do padre tinha mudado novamente e se mostrava solene e terna. Levantou a mão enfaixada e chamou Stuart. Então, fez muito delicadamente o sinal da Cruz sobre ele e sussurrou:
— Deus o abençoe e proteja, Stuart. Se há uma hipoteca sobre sua alma, Deus está com ela e irá resgatá-la.
Fazia frio também na casa do bispo, apesar de todo o seu discreto conforto e sua austera dignidade. O bispo tinha distribuído com os pobres quase todo o seu carvão. Mas estava sentado diante de um fogo diminuto, um pouco magro com seu rosto ascético e seus olhos vivos. A pedra de seu anel brilhou à luz das velas enquanto ele batia com a mão no braço da cadeira. Olhou para Stuart e disse:
— Não acha, Sr. Coleman, que é um pouco de impertinência de sua parte, vir a esta casa pedindo, exigindo mesmo, o que chama de "consideração" pelo Padre Houlihan? Não percebe a impropriedade de seu... pedido? Não posso lembrar-me em toda a minha vida, que tem sido muito longa, de uma situação parecida. O senhor é protestante. Creio que nem mesmo um católico seria tão presunçoso num assunto que só pode interessar a mim e ao Padre Houlihan. Eu poderia até chamar isso de insolência se não soubesse que apenas sua ignorância da etiqueta eclesiástica determinou a sua visita.
— Oh... — murmurou Stuart com impaciência e se conteve a tempo. Lembrou-se de que sua irritação nenhum bem poderia fazer a seu amigo. Dominou-se, mas ficou muito vermelho, literalmente engasgado com as palavras.
— Além disso —, continuou severamente o bispo —, não me agradou o fato de que me tivesse mandado uma delegação composta do Prefeito, de seu parente o Juiz Cauder e de vários dignitários e pessoas importantes de Grandeville. Dá a entender em todos os seus atos que eu sou incapaz de dirigir os negócios desta diocese. Ou, pior, que eu sou pessoalmente hostil ao Padre Houlihan. Na verdade, isso é insultuoso. Desejo lembrar-lhe, Sr. Coleman, que os assuntos desta diocese são meus e não seus e, embora eu não seja insensível às suas generosidades ou à sua amizade ao Padre Houlihan, é natural que não me agrade essa impertinência.
— Impertinência, bolas! — exclamou Stuart, que não se podia mais conter. — Todas essas frases estudadas não querem dizer nada. O que sei é que nunca foi capaz de compreender o bom padre. Tem sido severo demais para com ele. Nunca o considerou um cavalheiro e sempre ficou descontente com as atividades dele. Escreveu-me cartas de agradecimento e chamou-me aqui para me agradecer pessoalmente o que considerou generosidade à sua Igreja. Nunca lhe ocorreu que o pouco que eu fiz foi feito exclusivamente por Grundy...
— Grundy?
— Sim, Grundy. Tenho um motivo pessoal para chamá-lo assim. Por favor, deixe-me acabar. Já me ouviu dezenas de vezes chamá-lo de Grundy e não sei por que só agora se espanta. Pois bem, não ajudei Grundy porque ele fosse padre, mas apesar de ser padre. Gosto dele. Acho-o um velho camarada formidável. É maravilhoso. É um santo. Reverencio o chão em que ele pisa. Tudo o que fiz — a igreja, a escola, o convento, o hospital — foi por ele que fiz e não por sua Igreja. Dezenas de outras pessoas, que não são católicas, têm ajudado sua Igreja, a meu pedido e insistência. Essas pessoas amam também e prezam muito o velho Grundy. Sabem que ele é um homem bom, sincero e integro. Já lhe falei de meus planos para uma nova igreja. Se insistir em remover o bom velho, cancelo minha proposta. Rasgarei as plantas já feitas e lhe prometo que sua Igreja não terá mais a ajuda de meus amigos também. Terá contra a sua pessoa todos os homens de bem da cidade, católicos e protestantes.
— Está-me ameaçando, Sr. Coleman? — exclamou o bispo, muito vermelho. — Atreve-se a ameaçar-me?
— Sou capaz de atrever-me a tudo pelo velho Grundy! E aviso a Vossa Reverendíssima que, se o mandar para algum convento ou coisa que o valha em nome da "disciplina", vai-se arrepender amargamente disso. Lutarei até à morte pelo pobre homem cujo único pecado é ter amado uma humanidade que não presta, acreditando nela e lutando por ela!
O bispo estava quase sem poder falar. Procurou recuperar o fôlego. Era-lhe difícil controlar-se e manter a dignidade. Falou por fim com a voz embargada:
— Não lhe devo explicações, Sr. Coleman. Não tenho necessidade de dizer-lhe coisa alguma. Poderia pedir-lhe que saísse imediatamente desta casa. Mas em atenção à sua bondade e generosidade, estou sendo paciente com o senhor.
"Venho há anos advertindo o Padre Houlihan de abster-se de atividades perigosas. Não cabe a um padre empenhar-se em agitações populares e seculares. O trabalho do padre é salvar almas e administrar corretamente a sua paróquia. Mas o Padre Houlihan tem sido culpado de falar a diversos grupos de operários recomendando-lhes que exijam o que ele chama de "melhores salários e condições de vida melhores". Tem sido um verdadeiro agitador, tratando de causas que não podem, nem devem interessar-lhe. Enfurece com isso homens influentes nesta cidade, tanto católicos quanto protestantes. Chegou a ponto de pregar abertamente contra aquilo que ele gosta de chamar de intolerância, ódio e opressão. Já o adverti muitas vezes...
Stuart levantou-se de um salto e exclamou:
— Quer que ele se limite a "salvar almas"? Que vem a ser na realidade "salvar almas"? Jogar água benta em homens que estão morrendo de fome, proferir piedosas imbecilidades a respeito de crianças que morrem de subnutrição, aconselhar trabalhadores oprimidos a que sofram com paciência o jugo da sua exploração? Já ouviu falar em revoluções, Reverendíssima? A despeito dos padres, tem havido sangrentas revoluções porque o povo não pôde mais suportar os sofrimentos, a fome e as crueldades de seus senhores. E a Igreja tem sofrido com essas revoluções porque se absteve de ficar ao lado dos humildes e dos desesperados, e quem Cristo amou, e contra aqueles a quem Ele detestou e atacou. Já pensou na potência que a Igreja seria se se levantasse contra os assassinos, os tiranos e os opressores? O mundo está cheio de ateus, de descrentes, de inimigos da religião porque os homens de Deus só de raro em raro acham que é de seu dever defender os que sofrem e combater os que infligem esse sofrimento!
O bispo, com o rosto alterado, tentou levantar-se, mas ante as palavras apaixonadas de Stuart, deixou-se cair de novo na cadeira, mudo e petrificado.
— Pode dar prazer a um grupo de bastardos, de patifes, se remover o velho Grundy de sua paróquia, onde tem servido com tanta fidelidade e tanta ternura. Sim, a estes poderá agradar. Mas vai "enfurecer" de verdade dez mil amigos de Grundy e estes também são influentes e têm poder. Já levou isso em consideração? Já pensou nos sentimentos que vão ter contra sua pessoa e contra sua Igreja?
O bispo ficou em silêncio. Olhou firmemente para Stuart e então suas mãos começaram a tremer. Esfregou o queixo e disse com voz bem calma:
— Há muita verdade no que diz, Sr. Coleman. Eu sabia decerto que havia uma grande amizade entre o senhor e o Padre Houlihan. Não sabia era que fosse tão grande. Creio que não pode deixar de ter muito valor um padre capaz de inspirar sentimentos tão fervorosos, especialmente entre aqueles que não são de sua Igreja. Levarei esse fato em consideração na solução final do caso do Padre Houlihan. Madre Mary Elizabeth intercedeu também por ele, o que me surpreendeu, pois eu não sabia que ela tivesse grande apreço por ele.
O bispo sorriu e Stuart teve uma grande sensação de alívio. Balbuciou:
— Obrigado, obrigado. Excelência, peço perdão de minha veemência e de alguma palavra menos respeitosa. Mas é que eu perco a cabeça quando... Se pudesse tê-lo visto hoje como eu o vi muitos dias depois daquela calamidade, teria tido uma pena imensa dele. Se Vossa Reverendíssima pudesse mandar-lhe uma palavrinha por meu intermédio ou talvez uma carta com alguma frase amável...
— Por favor, Sr. Coleman. Não preciso de sugestões.
— Asseguro a Vossa Reverendíssima que não houve impertinência de minha parte. Mas eu sei a alegria que isso daria a Grundy. Se receber uma palavra sua, terá um grande consolo.
O sorriso do bispo era um pouco menos severo. Sacudiu a cabeça delicadamente.
— Deve permitir que eu dirija os assuntos de minha diocese à minha maneira.
— Sem dúvida, sem dúvida. Não falei por mal. — Stuart hesitou e seu rosto abatido assumiu de repente a animação simples da mocidade. — Outra coisa, Excelência. Sei que tem conversado muitas vezes com Grundy a respeito do meu ingresso em sua Igreja. Devo-lhe confessar que não tenho fé em coisa alguma e provavelmente nunca terei. Mas se Vossa Excelência quiser e tiver um pouco de bondade para com o velho Grundy, terei prazer em fazer parte de sua Igreja...
O bispo arregalou os olhos. Em seguida, embora procurasse conter-se, começou a rir, a princípio fracamente, mas em ritmo crescente. Stuart o olhava com a testa franzida e, quando o bispo parou a fim de tomar fôlego, disse com dignidade:
— Tenho prazer em ver que despertei o bom humor de Vossa Reverendíssima, mas devo confessar que não compreendo por quê.
— Não consideramos as almas mercadorias para serem negociadas, Sr. Coleman —, disse o bispo com alguma emoção na voz. — Não é possível dizer: "Se fizer isto ou aquilo por mim eu lhe permitirei que salve a minha alma". Um homem deve sentir um impulso irresistível de todo o seu ser para entrar na Igreja. Não pode comprar favores com sua alma. A alma não lhe pertence para ser usada como moeda de suborno.
Mas estendeu a mão para Stuart e olhou-o com afetuosa curiosidade e especial consideração.
— O senhor me deu muito o que pensar, ainda que não saiba de que maneira. Não se preocupe inutilmente com seu amigo. Com a ajuda de Deus, encontrarei uma solução misericordiosa.

CAPÍTULO 71
Stuart, de volta a casa, sentiu mais paz e mais esperança do que sentia desde muitos meses. Tinha a firme certeza de que nada de aflitivo iria acontecer a seu amigo. O seu primeiro impulso tinha sido correr para a casa do padre a fim de dar-lhe a boa notícia, mas sentiu-se tolhido por uma reserva rara nele. Talvez o velho Grundy ficasse escandalizado e apavorado com as notícias. Absurdo, mas aqueles homens do clero sempre hesitavam antes de tomar o caminho direto. Preferiam os rodeios, os circunlóquios, os desvios, como se estivessem dançando um complicado minueto e era preciso ter cuidado para fazer os gestos certos e as reverências exigidas sem perder o compasso. Tudo isso era muito divertido.
Marvina e Mary Rose eram esperadas em casa na semana seguinte. Stuart, jogando a bengala, o chapéu e o sobretudo numa cadeira, ficou muito contente em encontrar uma carta da filha, cheia de amor infantil e da alegria em voltar dentro em breve para casa e para o pai. Havia muitas outras cartas que traziam nos envelopes o timbre de advogados de Nova York. Como sempre, Stuart deixou-as de lado e cobriu-as com o jornal do dia. Uma vez fora da vista, não tinham muita possibilidade de aborrecê-lo. Havia também uma carta de Laurie. Abriu-a impacientemente e começou a lê-la.
"Meu querido Stuart", escrevera Laurie e, embora a sua caligrafia não fosse propriamente nervosa, não era possível deixar de perceber uma leve alteração. "Como já lhe disse, sinto de todo o coração as coisas que o afligem e só desejo é que pudesse fazer alguma coisa para aliviá-las. Sua última carta tinha doze páginas e nove continham a descrição dos sofrimentos de seu amigo, o padre, e imprecações contra os que causaram esses sofrimentos e a morte do pobre Sam Berkowitz. Comovem-me muito essas provas da generosidade de seu coração e de sua lealdade a seus amigos e sinto muito que até agora não tenha havido resposta a seus anúncios. Mas, sem dúvida alguma, haverá. Como você disse, "Quem pode resistir a dez mil dólares?" Entretanto, ainda que eu lhe tivesse escrito sobre minhas críticas, mandando-lhe recortes, e lhe descrevesse os aplausos que recebi por ocasião de minhas últimas atuações, você não me disse nada a respeito de tudo isso. Sei muito bem que assuntos mais importantes lhe absorvem a atenção, mas a verdade é que minha vaidade foi gravemente ferida. Afinal de contas, seus elogios valem mais para mim que os aplausos de milhares de pessoas e a adoração de estranhos. Mas já lhe disse isso tantas vezes que você deve achar até enfadonho.
"Você diz que antes de ir buscar Marvina e Mary Rose nas montanhas, virá a Nova York. Que maravilha! Desde o Natal que não o vejo. Será uma alegria excepcional para mim. Aqui em Nova York, acredita-se firmemente que a guerra terminará no começo do verão deste ano e, neste caso, não haverá motivo para que eu não vá de novo para a Europa. Não desisti ainda de poder convencê-lo a ir comigo ou, antes, a acompanhar-me durante três meses. Mas discutiremos isso quando nos virmos de novo e eu só desejo é que isso aconteça quanto antes. Posso dizer-lhe, para terminar, que uso constantemente o broche e os brincos de brilhantes e pérolas que você me deu de presente de Natal e ouço muitos elogios por eles. Como sempre, seu gosto é impecável."
Stuart suspirou, guardando a carta no bolso. Até mulheres como Laurie não se podem desligar de seus imediatos e exigentes desejos pessoais. Tinha sentido uma frieza na carta dela, uma estranheza majestosa, uma ofensa alheada. Sentiu-se de repente sozinho, abandonado, cheio de uma cansada e dolorosa solidão. Parecia que até o amor era uma emoção ávida e não tinha compreensão nem ternura pelos tormentos da alma da pessoa amada.
Uma criada estava tentando chamar-lhe a atenção e olhou-a com impaciência.
— O Sr. Cauder está esperando na sala —, disse ela. — O Sr. Angus Cauder.
Diabo, pensou Stuart, franzindo a testa. Que será que aquele cadáver ambulante quer de mim? Sem a menor ideia do que fosse, Stuart dirigiu-se para a sala, com a cara mais fechada do que nunca. Parou à porta e olhou através da extensão dos tapetes, com considerável desprezo e repulsa.
— Muito bem, Angus. Espero que não seja algum problema que o traz aqui.
Angus estava sentado diante do fogo. Levantou-se ao ouvir a voz de Stuart, vestido de preto como sempre e com o rosto ainda mais branco nas sombras do crepúsculo de março. Não sorriu e disse:
— Infelizmente, Stuart, creio que o problema é por demais grave.
Stuart esqueceu o seu antagonismo e avançou para o outro, perguntando num tom mais quente e mais preocupado:
— Bertie? Alguma coisa aconteceu a Bertie?
Angus ficou um momento em silêncio e disse então friamente:
— Não, Stuart, felizmente não é nada com Bertie. O problema é com você, Stuart. Achei que devia vir falar-lhe aqui e não no escritório. É um assunto extremamente reservado e urgente.
É Laurie então, pensou Stuart, e sorriu desdenhosamente. Sentou-se, tirou um charuto do bolso e acendeu-o demoradamente.
— Mas sente-se, homem, sente-se. Não há ainda nenhum cadáver nesta sala. Ou estarei enganado?
— De certo modo —, murmurou Angus, sentando-se.
— Hem? Que foi que você disse? — exclamou Stuart.
Mas Angus se sentou rigidamente numa cadeira em frente e olhava apenas para Stuart. Tinha uma pasta sobre os joelhos.
— Que é? — perguntou Stuart. — Diga logo. Deve ser coisa muito importante.
Quis infundir na voz uma nota de ironia, mas até a ele essa nota pareceu falsa.
— É muito importante, —disse Angus, sem qualquer inflexão na voz.
Abriu a pasta e tirou um maço de contas. Stuart reconheceu imediatamente que se tratava de contas. Não as vinha jogando na cesta havia meses? Sentiu um baque no coração e uma onda de sangue lhe inundou o rosto. Mas levantou arrogantemente a cabeça e assumiu uma pose altiva.
— Essas coisas aí serão por acaso contas? — perguntou ele, com pesado desprezo.
— São contas, sim, Stuart —, respondeu Angus, com absoluta calma. — São contas que não podem mais ser desprezadas. Importam num total de setenta e cinco mil dólares e algumas já estão vencidas há mais de um ano, sendo devidas a atacadistas, industriais e importadores de Chicago e Nova York. Há também avisos urgentes de vários bancos. Gostaria de verificar, Stuart?
Angus estendeu os papéis para Stuart, mas este não fez a menor menção de recebê-los. O coração tinha começado a bater aceleradamente.
Angus, que ainda estendia os papéis com a mão magra, disse:
— Em vista das preocupações destes últimos meses, você não deu a devida atenção a estas contas, Stuart. Posso compreender perfeitamente isso. Mas elas se tornaram tão prementes que eu tive de vir até aqui para discutir a situação com você.
Stuart olhou para Angus demoradamente e disse numa voz um pouco surda:
— Isso é assunto para ser discutido no escritório. Peço-lhe que não insista. Sabe muito bem que eu não trato de negócios aos domingos.
Angus sorriu, mas não guardou as contas.
— O caso é tão urgente, Stuart, que devemos deixar de lado o fato de que hoje é domingo. As coisas não podem mais ser adiadas.
— Você está sendo bem impertinente, sabe? É apenas meu gerente. Torno a dizer que não vou discutir coisa alguma com você hoje em minha casa.
Angus colocou as contas sobre os joelhos. O fogo crepitava na lareira. Uma tempestade estava começando e os primeiros flocos de neve batiam nas vidraças. Disse então:
— Tenho aversão também a tratar de negócios aos domingos. Mas desde que certas coisas têm de ser resolvidas amanhã o mais tardar, sou obrigado a discuti-las com você hoje.
Stuart sentiu de repente um ódio violento de Angus. Esse ódio se misturava com o desejo de fugir, de sair correndo daquela casa, de fugir de tudo como havia muito estava fazendo. As contas nas mãos de Angus pareciam-lhe sentenças de morte. Se ele pudesse ao menos botar aquele cadáver para fora da casa com suas contas e fechar a porta, talvez lhe fosse possível esquecer o terror que lhe atormentava as noites e o seguia durante o dia; poderia esquecer como sempre esquecia.
— Temos de discutir tudo —, disse Angus. Tornou a abrir a pasta e tirou um maço menor de papéis. — Tenho aqui, Stuart, notas promissórias assinadas por você num total de vinte mil dólares. Comprei-as com desconto. Está em condições de resgatá-las por vinte mil dólares?
Stuart firmou-se na cadeira, pois tinha dificuldade em respirar e sentia a sala rodar.
Angus guardou as promissórias na pasta com os movimentos precisos de um carrasco que prepara o machado.
— Minha pergunta foi pura formalidade, é claro —, disse ele. — Não tem possibilidade de resgatar estas promissórias.
Depois de dizer isso, recostou-se na cadeira. Começou a falar com voz mais forte ou que assim pareceu a Stuart.
— Já está vendo, Stuart, por que vim procurá-lo. A Comissão de Comércio de Nova York quer forçá-lo à falência e está disposta a requerê-la dentro do prazo de dez dias.
A voz de Angus era a única e terrível realidade naquela sala sombria. Stuart ouvia as palavras fatais que o destruíam, que o arruinavam, que subvertiam toda a sua vida como a convulsão final de um terremoto. A voz calma e neutra de Angus continuava sem pressa nem emoção como a voz de um juiz que condenasse Stuart Coleman à morte.
— Deve compreender, Stuart, que seus direitos ou os de qualquer outro acionista não têm o menor valor desde que, no caso de falência, nada restará. Por conseguinte, de amanhã em diante, estará absolutamente sem dinheiro e deverá aceitar as propostas que lhe vou fazer. Não terá outro remédio.
"Se tentar lutar comigo, por vaidade insensata ou obstinação infantil, exigirei o pagamento destas promissórias e penhorarei esta casa. Se proceder acertadamente, e não tenho dúvida de que é o que você fará depois de pensar bem no caso, compreenderá que a proposta que lhe vou fazer é mais do que generosa, mais do que lhe seria possível esperar de mim.
"Você desprezou as lojas comercialmente. A ruína se aproximou a passos firmes e você fugiu dela. Várias vezes Berkowitz tentou discutir a situação com você e você o fazia calar-se com meia dúzia de palavrões. Por fim, ele viu que nada poderia fazer. Compreendeu que era inútil, como eu também compreendi. Mas ele não sabia o que devia fazer e eu sabia. Fiz tudo o que me foi possível. Agora, faço-lhe a proposta de trezentos dólares por mês, o que o ajudará a manter a sua casa, cuja hipoteca está em minhas mãos. Acertarei tudo com você dentro do bom senso e com um pouco de piedade porque você é meu parente e teve algumas gentilezas para comigo. — Ao dizer isso, os lábios de Angus se contorceram, mas o seu tom de voz não se alterou. — Como meu gerente, você não terá de tomar conhecimento de detalhes que sempre lhe foram onerosos e não terá as responsabilidades das quais há anos procura fugir. Não terá responsabilidades, mas terá apenas trezentos dólares por mês. Com jeito, poderá manter esta casa. Mas seu estilo de vida terá de ser essencialmente modificado. O problema é seu. Você terá de fazer os seus ajustamentos. Só lhe estou dando um conselho.
Tornou a guardar as contas na pasta. Stuart não se movia. Continuava jogado na cadeira como se tivesse sido fulminado.
Angus descansou as mãos entrelaçadas na pasta e olhou para o homem que havia abatido de maneira tão calma e impiedosa. Não havia em suas feições paradas o menor sinal de compaixão, de arrependimento ou de pesar.
— Pode recusar a minha proposta de ser meu gerente com o salário mensal de trezentos dólares. É o único caminho que lhe resta. E eu acho que seria um excelente gerente. Tem um jeito com a freguesia que eu confesso que não tenho. Mas, se recusar, não terá outra renda e, para proteger minha hipoteca, eu seria obrigado a penhorar sua casa. Você não me deixaria outro recurso.
"Stuart, você tem dito muitas vezes que eu sou um avarento, um sujeito sem coração e sem emoções humanas. Mas tive sempre o maior apego às lojas e foi por isso que convenci... bem, uma parte interessada, a me emprestar o dinheiro para liquidar os débitos das lojas com a Comissão de Comércio numa base de 50%. A minha proposta já foi aceita. Pode-me chamar de insensível, mas sempre tive um sentimento pelas lojas e agora estou mostrando que tenho também por você.
Esperou uma resposta, mas Stuart continuou calado.
— Outra coisa, Stuart. Sam Berkowitz deixou 20% de suas ações nas lojas para o Padre Houlihan. O padre deve perder qualquer renda proveniente dessas ações se eu prosseguir nos meus planos. Mas, para comprar a boa vontade da comunidade católica e dos outros que possam ter alguma simpatia pelo padre, vou fazer-lhe uma oferta generosa: dar-lhe-ei cinco mil dólares pelas ações que não valem praticamente nada. Não sou obrigado a fazer isso, como sabe muito bem.
Pela primeira vez, Stuart se moveu. Era como se sentisse o impacto de uma faca nas entranhas e se debatesse. Levou as mãos à garganta como se estivesse sendo estrangulado. Por mais estranho que fosse, esse gesto despertou alguma reação em Angus que também levantou as mãos de repente e comprimiu fortemente as têmporas.
Stuart murmurou então:
— Há anos que você vem planejando isso, sempre à espera de uma oportunidade. Fez isso comigo deliberadamente.
Angus apertou com mais força as têmporas. O longo corpo magro contorceu-se na sua agonia particular. A sua respiração era mais alta e sibilava no silêncio da sala.
— Sempre, através dos anos —, continuou Stuart —, você conspirou contra mim, cheio de ódio. Esperou muito tempo. Mas podia esperar. Teve a paciência das serpentes. Teve a paciência de todos os homens maus.
Angus levantou a cabeça. O rosto branco estava reluzente de suor.
— Você me chama de "mau". Mas você é que é o mau, Stuart Coleman. Você não merece de mim nenhuma consideração, nenhuma piedade, nenhuma compaixão. Mas, justamente porque não sou mau, dei-lhe tudo isso. Está de acordo com sua natureza acusar-me daquilo que você realmente é. Não há nada de bom em você. Você é um homem ímpio e lascivo! Seus amigos são pessoas perversas e inconfessáveis! Seu nome é motivo de escândalo e de desprezo para os homens justos que respeitam as leis de Deus e do homem.
"Se eu fosse na verdade mau, aproveitaria este momento para arruiná-lo por completo e para expulsá-lo daqui com a aprovação de todos os homens bons de Grandeville. Tenha cuidado, Stuart. Não me force a esse extremo.
Levantou-se. Mas teve de apoiar-se nas costas da cadeira, porque cambaleava um pouco. A dor em sua cabeça era violenta e quase o cegava.
— Levei em consideração sua mulher e sua filha, vítimas naturais e inocentes de sua iniquidade e prodigalidade. Sendo você o que é, não mostraria essa piedade para com os outros, não teria esse espírito de piedade cristã. Mas tenho compaixão por você e já lhe fiz minha proposta. Aceite ou recuse. Fico dispensado de mais atenções para com você.
Abriu a boca de repente para tomar ar e agarrou com mais força as costas da cadeira. Stuart olhava-o firmemente, do fundo de seu tormento.
Foi então que aconteceu uma coisa estranha. Stuart começou a sorrir. Mas não era um sorriso de depressão, de crueldade ou de ódio. Havia até nele alguma coisa de gentil e muito triste. Era incompreensível, porque só a intuição e o coração inspiravam Stuart. Disse então com voz baixa e muito clara:
— Vá, Angus. Siga o seu caminho. E que Deus se compadeça de sua alma.

CAPÍTULO 72
— Mortificação? — disse Stuart sorrindo para o Padre Houlihan. — Talvez eu devesse estar-me sentindo mortificado, humilhado, insultado, furioso. Mas, por mais estranho que seja, não estou. Não sei por quê. Acho que foi o rosto dele. Você devia ter visto o rosto , dele. Só pude foi ter pena.
Mas o Padre Houlihan estava olhando para o rosto de Stuart. Este percebeu o olhar de amizade e de tristeza e disse de repente, involuntariamente:
— Estou cansado.
Arrumou de novo as rosas de estufa que levara para o amigo e murmurou:
— Nunca me senti tão cansado quanto agora, nunca. Talvez esteja ficando velho. Não sei. Mas nada mais me parece ter muita importância, a não ser descobrir os assassinos de Sam e vê-los punidos.
Virou-se para o padre.
— Não olhe para mim como se eu fosse digno de lástima, Grundy. Nunca pude tolerar que tivessem pena de mim. Além disso, vamos ser lógicos. As lojas foram salvas. E eu tenho trezentos dólares por mês. Não tenho mais preocupações, nem responsabilidades, nem encargos. E salvei minha casa. Quando Sam estava lá, era diferente. Mas agora, perdi todo o estímulo.
Tentou sorrir com bom humor ao ver a expressão de tristeza do amigo.
"Acabaram-se os colares de brilhantes, os objetos artísticos, as bengalas de castão de ouro, as garrafas de conhaque Napoleon, os bons cavalos. Pensa que eu estou arrasado? Não, estou é cansado. Acha que mostro com isso falta de amor-próprio?
Mas o padre perguntou:
— Não tem ódio de Angus?
— Ódio? Não! Pois se eu lhe estou dizendo que vi o rosto dele!
O Padre Houlihan estendeu a mão para o amigo e Stuart a apertou com muito afeto.
— Sempre disse que você era um homem bom, Stuart É preciso que um homem tenha Deus dentro do coração para ter pena de quem o destruiu.
— Não, Grundy, ninguém me destruiu. Eu mesmo é que me destruí. Mas pouco me importa. Levei uma boa vida. Muito boa mesmo.
O Padre Houlihan não acreditava muito em Stuart Na opinião dele, Stuart estava querendo enganar-se. No momento, sentia-se exausto, atordoado e muito desolado para experimentar uma reação correspondente à enormidade do que acontecera. E tinha uma obsessão: descobrir os assassinos de Sam Berkowicz.
— Vou ficar ausente por duas semanas ou mais. Cuide-se, ouviu, Grundy? Quando voltar, trarei um projeto do melhor estilo arquitetônico para sua igreja. A antiga vai parecer até um brinquedo. Você vai ver.
Saiu e desamarrou seu cavalo. Seguiu através da neve suja que enchia as ruas. Levava a mão por um instante ao chapéu quando passava por algum conhecido, indiferente aos comentários que sua presença suscitava. Estava muito cansado. Sentia o cansaço como cinza seca no corpo, na boca, nos olhos.
Olhou para sua bela casa e pela primeira vez o coração lhe bateu um pouco mais depressa. Ah, ainda tinha sua casa. Não tinha mais receio de perdê-la. Pagaria cem dólares por mês a Angus pela maldita hipoteca. Ficaria com duzentos. Teria de dispensar quase todos os empregados. As cocheiras teriam de ser fechadas. Mas a babá de Mary Rose teria de ficar e uma cozinheira. Os olhos de Stuart se encheram de alegria. Em breve, teria a filha a seu lado em sua casa. Pensando bem, tudo poderia ser muito pior.
Quando entrou na casa, depois de limpar cuidadosamente as botas enlameadas, encontrou o carcereiro que o esperava, muito ansioso.
— Sr. Coleman, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. Depois, talvez o senhor queria ir até à cidade comigo. Aquele prêmio ainda está em vigor?
Angus estava sentado ao lado de Joshua Allstairs no luxuoso gabinete particular do banco. Todos os papéis tinham sido assinados. Joshua se recostou na sua cadeira e teve uma risadinha.
— O dia que espero há quinze anos Chegou afinal, meu caro Angus. É um dia lindo, muito lindo. A vingança de Deus sobre um homem mau me foi entregue nas mãos. A probidade e a piedade cristãs foram reconhecidas. Fosso morrer em paz.
Angus assentiu. Juntou os papéis com sua meticulosidade costumeira e disse:
— Vejo aqui um documento muito interessante. Segundo ele, na hipótese de seu... de seu passamento, o seu interesse na firma deverá passar, com todo o resto de seus bens, para um fundo a ser administrado em benefício de sua filha, a Sra. Coleman, e de sua neta, a Srta. Mary Rose. Mas isso só se verificará se a Sra. Coleman se separar do marido dentro de sessenta dias depois de seu... passamento. Se isso não acontecer o que é bem pouco possível, todos os bens serão administrados em benefício da Srta. Mary Rose até que ela complete trinta anos e esteja casada. Excelentes disposições!
Joshua tomou a rir.
— Marvina é uma idiota. Sempre foi. Tive pouca dificuldade em convencê-la a me visitar secretamente. E adoro aquela filhinha dela. Tenho certeza de que Marvina abandonará aquele homem abominável. Já discuti até o assunto com ela. Ela concorda com tudo. Sempre concorda com tudo.
Um tentáculo de dor se estendeu pela testa de Angus. Levou a mão à testa e esfregou o lugar. Aquelas últimas semanas tinham-no tornado mais pálido e mais magro, de modo que ele parecia mais do que nunca um cadáver. Joshua o olhou com uma curiosidade e um interesse cruéis.
— A Sra. Coleman é muito feliz em ter um pai como o senhor —, disse gravemente Angus —, homem que sabe perdoar, que é generoso e amoroso.
Joshua assentiu benignamente.
— Mas eu imagino que você será também um pai assim, Angus. Sua filhinha é muito linda. É uma pena que a mãe dela não esteja mais viva para vê-la crescer.
O rosto de Angus se alterou. Guardou os papéis em sua pasta. Pensou em sua filha, Gerda, que estava começando a andar. Nada sentia no coração ao pensar nela. A menina tinha os cabelos claros e os olhos azuis da mãe. Era filha dos avós e não dele. Sabia que a menina não gostava dele e nem sequer o tolerava. Também por Gretchen, que tinha já seis meses de morta, não sentia qualquer emoção.
Tinha ostensivamente morrido de uma "febre dos pulmões" quando a filha tinha três meses. Mas Angus sabia, como sabia o médico, que ela morrera de tanto comer. Tinha sido uma morte odiosa.
Joshua observou o rosto parado de seu jovem amigo e perguntou com falso interesse:
— Como vão suas dores de cabeça, meu jovem?
Angus sorriu lividamente.
— Continuam a afligir-me. Devia usar óculos, mas sempre me esqueço. Mas posso dizer que estou um pouco melhor. Minha sogra costuma aplicar uma compressa de ervas à noite e isso me alivia consideravelmente a dor. Tenho esperança de que com o tempo tudo isso passe.
Olhou firmemente para Joshua. Ali estava um homem velho, mas ainda muito poderoso. E tinha sido muito generoso. Além disso, era um "cristão" piedoso e devoto. Angus tinha um enorme respeito por ele. Sorriu e disse:
— Mais uma vez, Sr. Allstairs, muito obrigado por tudo. Sem sua ajuda, eu nunca poderia ter realizado as esperanças e os desejos de minha vida.
Joshua estendeu a garra que lhe servia de mão.
— Meu jovem, durante toda a minha vida nunca me enganei com um homem. Soube desde o início quem era você. Iremos longe juntos, assim espero!
Apertaram-se as mãos. Angus pegou o sobretudo e o chapéu.
— Vai jantar comigo, como de costume, na sexta-feira? — perguntou Joshua. — É uma coisa que espero sempre com ansiedade.
— Sem dúvida. Será um grande prazer para mim —, disse Angus.
Voltou-se para a porta. Mas esta se abriu de repente e mostrou o rosto assustado de um empregado do banco. O empregado foi vigorosamente afastado e, então, Stuart e o Xerife deram entrada no gabinete.
Joshua deu um pequeno grito e se apoiou nos braços da cadeira como se quisesse levantar-se. O seu rosto se contraíra numa expressão simiesca de ódio antigo e de medo. Angus recuou da porta, muito vermelho.
O rosto de Stuart, apesar de seu sorriso desvairado, estava terrível. Estuava de ódio, de vitória, de louca exultação. Entrou na sala e disse ao Xerife, apontando Joshua:
— Ali está o seu assassino, o seu prisioneiro! Leve-o quanto antes!
Joshua se encolhia na cadeira como um montão de ossos trêmulos. Mas os olhos pareciam duas brasas. Olhava para Stuart e não para o Xerife. Este trazia um documento na mão e disse com ar severo:
— Sr. Joshua Allstairs, tenho aqui um mandado de prisão pela sua cumplicidade no assassinato de Samuel Berkowitz. Queira acompanhar-me imediatamente.
Houve um grito na sala, mas ninguém o ouviu. Partira de Angus que se encostava a uma parede, agarrando convulsivamente a pasta. Olhava para Joshua e via o mal e o terror no rosto do velho.
— Que está dizendo? — exclamou Joshua. — Está louco?
— De modo algum, Sr. Allstairs —, disse o Xerife. — Prendemos hoje de manhã um homem chamado Wul Dobson. Foi perseguido no pátio da estação quando procurava tomar um trem de carga para sair da cidade. Nessa ocasião, caiu sob a roda de um vagão e ficou terrivelmente ferido. Com medo de morrer e querendo ficar em paz com sua consciência, mandou-me chamar e confessou que na noite de 12 de setembro de 1863 foi contratado com um tal Fred Engels para assaltar Berkowitz. O homem que os contratou foi o senhor, Joshua Allstairs. Disse-nos onde poderíamos encontrar Engels e nós já o prendemos. Engels confessou também a sua participação no crime. Declarou que ele e seu companheiro receberam de sua mão para matar Berkowitz a importância de cinco mil dólares em dinheiro.
Joshua se agitava a cadeira com o rosto contorcido numa máscara horrenda. Apontou violentamente para Stuart, embora olhando para o Xerife:
— É mentira, uma abominável mentira! Não tenho nada a ver com isso! Se há um assassino nesta sala, ali está ele! Se está bem lembrado, foi ele que encontrou o judeu, seu amigo, mas a quem ele devia quatorze mil dólares! Xerife, exijo que os cúmplices dessa infame conspiração contra mim sejam forçados a confessar quem é o verdadeiro assassino!
Cheio de raiva, Stuart avançou com os punhos cerrados para seu velho inimigo. Mas o Xerife lhe segurou o braço e disse:
— Calma, Stuart. Não adianta negar, Sr. Allstairs. Os dois homens confessaram e assinaram as suas confissões. Forneceram todos os detalhes. Terá de acompanhar-me.
Joshua começou a gritar e a bater desvairadamente nos braços da cadeira. Praguejou. Foi abalado por uma convulsão de terror, de ódio e de demência. O Xerife esperava. Stuart esperava, olhando para seu velho inimigo. Mas estava aterrado. Fechou os olhos. Não podia olhar para aquela cara, que era a cara de um demônio.
O Xerife, calmo embora pálido, esperava, enquanto Joshua chorava, gemia, gritava, torcia as mãos sem sair da cadeira. Corria os olhos em torno como um animal acuado à procura de uma oportunidade de fugir.
O Xerife disse então:
— Há outro crime que lhe é atribuído também, Sr. Allstairs. Trata-se do incêndio da igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Os dois homens confessaram isso ao mesmo tempo que o outro e mais terrível crime. Só lhe estou dizendo isso para que veja que não tem possibilidade de escapar à justiça desta vez.
Joshua voltou a murmurar e sua voz era como o ondular de uma cobra sobre a relva seca.
— Exijo a presença de meu advogado. Tenho de ver meu advogado. Reclamo justiça.
— E terá justiça —, disse o Xerife —, mas diante de um júri de seus pares. E agora, se me permite, está-me fazendo perder tempo. Peça imediatamente sua carruagem.
Houve um súbito e horrível silêncio na sala, quebrado apenas pelo murmurar incoerente de Joshua, que tinha uma ponta de demência. Encolhia-se na cadeira, torcendo as mãos. Os olhos chamejantes fuzilavam, sem nada ver. Os lábios se moviam incessantemente. Falava de coisas estranhas, carregadas de ódio, de loucura e de fúria.
Por fim, os olhos dele focalizaram Stuart. Teve um sobressalto. Os dois homens se olharam no tremendo silêncio. Stuart disse então com voz trêmula:
— Você tem levado uma longa vida de maldade e abominação. Roubou, destruiu, arruinou. E matou. Mas é um velho. Tenho pena de você de todo o meu coração.
Ao ouvir isso, Joshua deu um monstruoso grito estridente, uivante, inumano. Stuart recuou e se afastou.
— Seja maldito, maldito até ao fundo do inferno! — gritou Joshua. — Que todos os tormentos do inferno o despedacem e devorem! Que você apodreça e morra em suplícios! Que todos os demônios o dilacerem para sempre!
Stuart disse:
— Deus se compadeça de você, que é um velho.
Foi então que Joshua começou a proferir pavorosas pragas e blasfêmias. Batia freneticamente as mãos nos joelhos e pisava o chão com os pés em cadência de tambor. Perdeu então o juízo e começou a uivar.
— Que horror! — exclamou o Xerife. — Não posso suportar isso. Quer ir pedir auxílio na polícia, Stuart?
Então, tão de súbito como ficara alucinado, Joshua se calou. Baixou os olhos para o chão. Começou a sorrir. Riu. Convulsões de riso sacudiram-lhe o corpo mirrado. Encolheu-se ainda mais na cadeira. Estava completamente em silêncio. Apareceu então uma carranca de demônio em seu rosto cinzento e enrugado. A carranca aumentou. O silêncio na sala era completo.
Stuart curvou-se para a frente a fim de examiná-lo. E então exclamou:
— Meu Deus! Acho que ele morreu! Conseguiu fugir!

CAPÍTULO 73
Stuart teve entrada no quarto de Angus. Entrou desconfiado, relutante e inquieto. Quando Angus o mandara chamar, sentira a princípio incredulidade e, depois, apreensão. Ora, não tinha importância. Se o pobre imbecil petrificado pensava que poderia amontoar novas calamidades sobre Stuart, ia ter uma decepção. Acreditava que o outro nada mais poderia fazer-lhe. Tinha deixado de temer calamidades. Era irritante que Angus ainda estivesse tramando novas artes contra seu parente, mas era uma perda de tempo, no que tangia a Stuart. Estava imune a novas devastações.
Não obstante, embora sorrisse melancolicamente ao entrar no quarto de Angus, preparou-se. Pensou vagamente que havia um limite para a capacidade de tolerância de um homem.
Angus estava reclinado sobre os travesseiros. Uma enfermeira andava em torno dele na penumbra do quarto. Estava imóvel, com as mãos caídas sobre a colcha de seda. O quarto estava tão escuro que Stuart não pôde a princípio ver do rosto do outro senão as cavidades escuras dos olhos.
— Ora, ora —, disse Stuart com uma falsa tentativa de jovialidade —, pelo que vejo, temos um inválido aqui.
Angus moveu um pouco a cabeça e disse com uma voz estranhamente forte e pausada:
— Boa tarde, Stuart. Srta. Crump, quer ter a bondade de sair do quarto? Tenho alguns assuntos para discutir em particular com o Sr. Coleman.
Stuart não sabia o que fazer com o chapéu e a bengala que não lhe tinham sido tomados pela empregada que lhe abrira a porta. Equilibrou-os nas pernas e tentou sorrir para Angus. Que coisa! O pobre-diabo estava acabado. Não sentia animosidade por Angus, mas apenas compaixão. Se o infeliz queria gozar o seu triunfo ou ampliá-lo e isso pudesse dar-lhe alguma satisfação, que lhe fizesse muito bom proveito. Já era castigo bastante para ele viver naquela horrível casa com um casal de salsicheiros. Se alguma coisa poderia dar-lhe alegria, muito bem. A morte do velho Joshua fora evidentemente um choque para ele. Stuart sorriu subitamente triste.
Angus viu esse sorriso e perguntou:
— Você me odeia, não é mesmo, Stuart?
— Odiar você? Não, Angus. Por quê? Você agiu de acordo com sua consciência. — E acrescentou com intuitiva astúcia: — Não foi?
Angus não falou. A visão de Stuart já se estava habituando à escuridão e ele viu até que ponto Angus estava abatido e exausto. Mas ainda havia nele um espírito inumano e indomável.
Stuart falou então com franqueza:
— Não sei por que você me mandou chamar em vista das circunstâncias. Achei isso muito estranho. Mas não sou capaz de recusar uma visita a um doente e quando soube de sua enfermidade fiquei muito preocupado. Deve ter sido um choque muito grande ver o velho Allstairs morrer à sua frente. Mas a verdade, Angus, é que ele se livrou do pior. Você, como amigo dele, devia estar satisfeito com isso.
Angus disse então em voz bem baixa:
— Soube que Marvina deixou você. Disseram-me hoje de manhã.
— É verdade. Foi uma condição imposta no testamento do pai. Ela se mostrou muito simpática e amável. Não pude deixar de dar-lhe razão. Afinal de contas, eu não podia esperar que, em vista das circunstâncias, ela desistisse de uma fortuna por minha causa. Há muitos anos que não vivemos como marido e mulher. Vivi inteiramente à minha moda. Ela me disse que prefere voltar para a velha casa da mãe na Pensilvânia, onde tem parentes. Mas é claro que nada disso lhe interessa, Angus. Será que tem mais notícias más para mim?
— Não está sentido então? — perguntou Angus. — E Mary Rose?
— Concordei em não contestar qualquer ação de divórcio que Marvina requeira. Em troca, Mary Rose poderá viver comigo, caso a sua saúde permita, tantos meses no ano quantos quiser. Tudo muito amigável, como vê. — Fez uma pausa, sorriu ironicamente e acrescentou: — Se está preocupado com meus assuntos particulares, Angus, eu lhe agradeço muito o interesse. Mas se pretende discuti-los comigo, devo recusar. Não posso admitir que sejam de sua conta.
— Vai-se casar com Laurie, Stuart?
Stuart levantou-se. Ficou de pé ao lado da cama por muito tempo em silêncio. Falou por fim com voz delicada e firme:
— Sinto muito que esteja doente, Angus. Mas não o cansarei mais. Só lhe posso dizer o seguinte: Seja o que for que Laurie e eu decidirmos, e isso ainda vai demorar muito, será coisa que só diz respeito a nós dois.
Angus o olhou imperturbavelmente. Stuart pensou que talvez fosse a doença que dava a Angus aquela aparência. Os planos e ângulos do rosto branco pareciam menos duros e acentuados.
 — Sente-se por favor, Stuart.
Stuart tornou a sentar-se, perplexo. Que era que o pobre-diabo podia querer dele? No mesmo instante, a sua intuição começou a trabalhar. Havia mais alguma coisa! Angus queria dizer alguma coisa e não tinha palavras! Aproximou-se do outro e exclamou impulsivamente:
— Por que está com tantos rodeios, Angus? Que é que você quer-me dizer? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
— Fale comigo, Stuart. Basta que fale comigo. Diga-me o que quiser. Diga-me tudo o que está pensando...
— Sobre quê? — perguntou Stuart.
Ficou então em silêncio. A intuição lhe estava falando bem alto, tão alto que podia ouvir-lhe o clamor, mas não as instruções.
Angus fechou os olhos e murmurou
— Você foi muito bom para mim. Ainda me lembro de como eu me sentia infeliz e sozinho quando era garoto. Você encontrou a mim e a Laurie no jardim. Laurie sentou-se no seu colo e você lhe contou uma história. Depois, nós jantamos com você. Era uma bela noite de abril. Nós nos sentíamos tão sozinhos.
— Lembro-me como se fosse hoje. Eu... eu gostava muito de você, Angus. Parecia tão infeliz naquele tempo. Gostaria de ter tido mais sensibilidade.
Mas Angus continuou a falar com os olhos fechados.
— Você foi muito bom. Só agora vejo como você foi bom. Sempre foi bom. É muito difícil de dizer. Faltam-me as palavras, Stuart.
Stuart sentiu uma leve fraqueza nas pernas e disse:
— Pode falar, Angus. Diga-me tudo o que quiser. Estou escutando.
Mas via claramente a grande pedra que pesava sobre o peito de Angus, esmagando-lhe a alma e abafando-lhe as palavras. Percebia a luta de Angus para afastar aquela pedra, para libertar-se dela, daquilo que crescera com ele através da vida e o estava matando. Via muitas coisas terríveis e arrasadoras e estava estarrecido.
— Fale, Stuart —, disse Angus. — Sobre qualquer coisa. Seus amigos. Sua vida.
— Mas nada há em minha vida que não seja sórdido, inútil ou frívolo —, disse Stuart, consumido pela compaixão. — Não tive nem sucesso na vida. Só posso apontar como uma realização a minha casa.
— Nunca soube que você tinha tantos amigos. Você não faz uma ideia de quanto sou odiado por sua causa.
Stuart ficou admirado, mas disse prontamente:
— Tolice. Todos o acham inteligente, capaz, admirável. Se eu estava atravessado em seu caminho, a culpa era minha. Mereci o que aconteceu. Você salvou as lojas. E por isso eu lhe sou muito grato. A princípio, não. Houve até uma hora em que tive vontade de matá-lo e teria feito isso com prazer. Mas agora não. Isso passou.
Mas Angus disse:
— Fale-me daquilo em que você pensa, Stuart. Fale-me de tudo.
— Ora, Angus, penso em muitas coisas. Mas são na realidade coisas de pouca importância. Penso como foi bom ter Sam Berkowitz como amigo, seu irmão Robbie, que é mais homem do que eu pensava, e o velho Grundy. Penso como tenho orgulho de Laurie e como quero bem a minha filha. Penso nos anos que passei nas lojas e como as consegui formar. Penso nas camas macias em que dormi, nas belas mulheres que conheci, na música que ouvi, nos vinhos que bebi, nas cartas que joguei. Penso também nas boas gargalhadas que dei na vida, pois tenho rido mais do que o comum dos homens. Ora essa, meus pensamentos são os de qualquer outro homem. Nada de muito importante, de emocionante ou com qualquer significação.
Angus deu um suspiro e murmurou:
— E eu penso nos passeios que você deu comigo quando eu era garoto. Penso nas coisas que você me disse. Não me esqueci de nenhuma. Lembra-se da primeira noite em que me levou à casa do Padre Houlihan?
— Lembro-me, sim. Você levou a Bíblia com você e ficou escandalizado quando nós fomos jogar.
Ficou surpreso ao ouvir o som que partia de Angus. Com toda a certeza, não ouvira direito! Não podia ter sido um riso! Mas Angus estava sorrindo, ainda que se tratasse do fantasma de um sorriso. Stuart não podia acreditar no que seus olhos viam. Perguntou então:
— Como vai da cabeça, Angus?
Mas Angus estava falando:
— Toda a minha vida, minha mãe me incutiu a ideia de que o dinheiro era tudo e nada havia que se comparasse ao dinheiro. Era o poder que dominava o mundo, conquistava amigos e admiradores, impunha respeito até aos reis, cercava uma pessoa de uma muralha impenetrável, enchendo-a de honras até diante de Deus. Quando um homem não tinha dinheiro é porque era merecidamente amaldiçoado pelo céu.
Stuart pensou que esses conceitos eram muito infantis e ficou um pouco confuso. Disse então:
— Bem, o dinheiro não deixa de ter o seu lugar...
Angus se moveu nervosamente na cama.
— Há coisas que eu não posso dizer. Não posso nem sequer pensá-las com alguma coerência. São grandes demais para mim. Sinto sempre essa dor na cabeça. Não sei o que há de errado comigo. Nunca sei. Não há ninguém para me dizer, absolutamente ninguém. Você não pode, Stuart. Nunca teve pensamentos como os meus.
Foi a intuição de Stuart que o fez dizer:
— Vou mandar o velho Grundy para você, Angus. Amanhã. Pode esperá-lo.
Levantou-se, numa precipitação febril.
— Vou falar agora mesmo com ele! Talvez possa vir ainda hoje. Ele sempre gostou de você, Angus. Falava muito de... de sua capacidade de sacrifício. Lembra-se de como você tinha vontade de ser médico?
Angus não respondeu. Mas olhava de repente sem nenhuma reserva para Stuart e havia em seu rosto um fulgor como se alguma luz incidisse em cheio sobre ele.
— Grundy costumava dizer que você tinha um ardente desejo, Angus... sacrificar-se pelos outros, viver para os outros. Não sei se ele estava certo ou não. Vê às vezes coisas que eu não vejo. Mas é um homem muito bom. Vou mandá-lo falar com você, Angus. Hoje mesmo. Dentro de uma hora.
Depois de alguma hesitação, colocou a mão nos dedos frios e rígidos que estavam sobre a colcha. Foi para ele uma completa surpresa ver Angus cobrir com a outra mão a de Stuart. Os seus olhos se enevoaram e ele sentiu um aperto na garganta.
— Fique esperando Grundy, Angus. Só ele pode ajudá-lo e Deus sabe como você precisa de ajuda.

CAPÍTULO 74
— Deve compreender que sua entrada nesta casa está ocorrendo sob protesto e apenas por extrema tolerância —, disse a Sra. Schnitzel cheia de majestade e olhando para o Padre Houlihan do alto de sua aversão e indignação.
— Minha senhora —, replicou calmamente o Padre Houlihan —, não posso ficar aborrecido quando se ressente da minha entrada numa casa onde Jesus nunca foi admitido.
A Sra. Schnitzel não era particularmente brilhante e nem mesmo sofrivelmente perceptiva, de modo que teve de remoer durante duas horas essa frase perfeitamente clara antes de perceber-lhe todo o impacto e ficar indignada. Mas, quando isso ocorreu, o Padre Houlihan já tinha saído são e salvo.
Notou ela, porém, no momento, que o tom dele era pacífico e impregnado de amável reserva, de modo que permitiu que ele seguisse na sua esteira até o quarto de Angus, segurando as enormes saias pretas como se receasse algum contágio. Escancarou a porta de Angus e anunciou em voz alta:
— Meu caro, o... o senhor que queria ver está aqui. Lembre-se de que não pode receber visitas por muito tempo. Daqui a pouco, eu volto.
O Padre Houlihan entrou no quarto, esperou que a desconfiada Sra. Schnitzel se retirasse e se aproximou da cama de Angus. Sorriu para ele, dissimulando a sua dolorosa surpresa diante do rosto abatido e dos olhos angustiados.
— Ora, meu rapaz, é triste ver você assim de cama —, disse ele com voz trêmula. — Mas, dentro em pouco, estará de novo de pé andando por aí, não é mesmo?
— Tenha a bondade de sentar-se, Padre —, disse Angus, movendo a mão num gesto débil. A cabeça estava envolta em compressas molhadas. O padre sentou-se com um suspiro, mas ainda sorrindo bravamente.
— É sua cabeça então? — perguntou ele. — Não está melhor?
— Isso não tem importância —, disse Angus num tom apático, tocando as compressas.
O padre hesitou. O rosto velho e cansado estava levemente luminoso na penumbra do quarto. Os seus olhos azuis eram bondosos e calmos, repletos de luz.
— Já me disseram que eu tenho algum jeito com dores de cabeça. Posso tentar, Angus?
Angus nada disse. Fechou os olhos. O Padre Houlihan olhou com tristeza para o rosto pálido e magro. Ficara surpreso quando Stuart fora procurá-lo, instando com ele para que fosse ver imediatamente Angus, mas ficara também, ainda que incrédulo, exultante. Stuart tinha-o feito entrar à força em sua carruagem e o fizera seguir, de modo que de fora levado até aquela casa dentro de uma verdadeira névoa de confusão, prece e conjecturas. Stuart tinha falado incoerentemente e ele não pudera saber grande coisa por ele. Angus mandara mesmo chamá-lo ou isso era apenas uma ideia de Stuart? Não podia saber.
Sabia apenas que tinha à sua frente um homem enfermo e que sofria desesperadamente. E tanto a doença quanto o sofrimento provinham de uma alma atormentada. Deixou de lado suas conjecturas, sua objetividade. Sentia e pensava com o coração. Livrou-se de toda a trepidação, de toda a incerteza, de toda a confusão.
— Deixa-me tentar, Angus?
Angus moveu fracamente a cabeça numa impaciência exausta. O padre levantou-se, tirou cuidadosamente as compressas e pousou as mãos nodosas na testa do jovem. Angus recebeu tudo isso, como se estivesse inconsciente. Padre Houlihan tocou suavemente a testa palpitante, mas tinha os olhos fechados e rezava em silêncio. Sentia um impulso particular, mas já conhecido, como se estivesse recebendo forças de alguma fonte externa e misteriosa e dirigisse o foco dessas forças para suas mãos e, delas, para a cabeça de Angus. Sentia-se cheio de vibrações. Os momentos passaram. A vibração foi diminuindo até que cessou e a força desapareceu. O padre sentiu-se um pouco fraco e tornou a sentar-se. Angus continuava imóvel na cama e parecia dormir.
Abriu por fim os olhos e fixou-os como se estivesse escutando alguma coisa. Mostrou então uma expressão de surpresa e disse:
— A dor passou.
O padre passou as costas da mão pela testa, sorriu tremulamente e disse:
— Deus é misericordioso.
Angus teve um sobressalto. Olhou-o e disse:
— Tinha esquecido de que estava aqui, Padre.
— Mas queria me ver, Angus?
Angus ficou calado por alguns momentos. Disse afinal em voz alta e apressadamente:
— Sim. Sim. Quero sempre vê-lo! Sempre!
Levantou um pouco o corpo nos travesseiros. Parecia galvanizado por uma força estranha. Apoiou-se num cotovelo. Começou a falar e suas frases eram entrecortadas e desconexas. Mas o padre compreendia. Da confusão das palavras que ouvia, pôde reconstituir o retrato de corpo inteiro de uma alma torturada, que se libertava dos limites que a confinavam e contemplava a sua insensatez e a sua angústia.
O Padre Houlihan tinha ouvido muitas confissões estranhas, mas nenhuma tão estranha quanto aquela. Tinha ouvido confissões de homens que tinham lutado contra as forças do mal e as circunstâncias e tinham sido derrotados. Tinha ouvido confissões de fraquezas, de perfídias, de traições, de imbecilidades. Mas nunca tinha ouvido a confissão de um homem que escolhera com deliberação, frieza e cálculo o mal dentro de si mesmo sabendo que era o mal, mas racionalizando-o ao ponto de transformá-lo num bem maligno. Aceitara a avareza, a crueldade, a falta de remorsos e a traição, sublimando tudo isso em virtudes justificadas por Deus, favorecidas pelo céu, aprovadas pelo homem e sancionadas pela alma.
Escutava a voz de Angus e compreendia que ali estava um homem traído não pelas próprias fraquezas, nem por outros homens, mas por si mesmo, tudo isso acompanhado de frases nobres, textos piedosos e virtude rígida. Sem dúvida, pensou o padre, o mundo está cheio de homens assim, mas este é o primeiro que encontro. Estava profundamente aterrado. Sentia os seus valores desmoronados num montão informe. Era possível um homem chegar a esses extremos sem ficar louco? Sim, podia iludir-se de maneira tão completa sem chegar à loucura. O padre estava horrorizado. Haveria salvação para almas assim? Essas almas eram blindadas pela mais rigorosa virtude, armadas de integridade, encouraçadas de um senso forte e desviado de justiça. Faziam coisas más e julgavam-nas boas, considerando-se puros aos olhos dos anjos.
Não poderia dizer a Angus que ele era mentiroso e hipócrita porque isso não era verdade. Angus era cheio de integridade; não sabia o que queria dizer hipocrisia. As forças do mal tinham-no destruído com palavras sagradas e gestos de santidade e o haviam tornado impenetrável à misericórdia, à bondade, ao amor e à própria santidade.
— Não compreendo! — exclamou Angus. — Ainda não compreendo. E não há ninguém que me possa dizer! Que foi que eu fiz de mau? Mas sei que tudo o que fiz foi errado e torcido. Sei disso, mas não posso ver onde, nem como!
Eu estava naquela sala quando Allstairs morreu ... e foi então que soube disso pela primeira vez, embora já tivesse uma ideia através de todos esses anos. Ouvi ele, Stuart, dizer: "Deus se compadeça de sua alma". O amigo dele tinha sido assassinado por Allstairs.
Fora arruinado por Allstairs. Allstairs perseguiu-o implacavelmente. Apesar disso, ele disse: "Deus se compadeça de sua alma". Por que ele disse isso, Padre? Quando ele disse isso, vi as coisas mais terríveis. Vi a mim mesmo. Por que Stuart disse isso?
Havia lágrimas nos olhos do padre e ele disse, profundamente comovido:
— Porque Stuart é um homem bom. Você não pode compreender isso, não é, Angus? Você não pode compreender que há uma bondade do coração que não tem relação alguma com os atos de um corpo fraco ou as palavras de uma boca licenciosa. Há em alguns homens uma bondade que o bom Deus chamou de "caridade", o amor dos homens que é maior que a esperança, maior que a fé e que é mais amada por Deus entre todas as virtudes. Stuart pode ser o que for, mas é cheio de amor, de compaixão e de caridade. Aos meus olhos e, como sei no fundo do coração, também aos olhos de Deus, Stuart é um homem bom e abençoado e eu não tenho o menor receio por ele.
— E eu —, disse Angus, com uma calma neutra e de olhos voltados para o teto —, fazia coisas más e dizia que eram virtuosas.
Apontou uma pasta que estava numa mesa ao lado da cama.
— Quer fazer o favor de pegar aquela pasta, Padre?
O Padre apanhou a pasta e colocou-a em cima da cama. Tornou a sentar-se. Não podia compreender o tremor que lhe agitava o corpo, como se coisas portentosas estivessem acontecendo naquele quarto.
Angus segurou a pasta e voltou a cabeça para seu velho amigo.
— Eu queria ser médico.
— Eu sei, Angus —, disse o padre com ansiedade, inclinando-se para a frente.
— É muito tarde agora. Estudei um pouco. Fiz visitas ao hospital. Mas é muito tarde agora para tudo isso. O pouco conhecimento que eu tenho deve bastar.
— Bastar para que, Angus?
Os olhos de Angus se mostraram de repente cheios de vitalidade e de força.
— Para o que eu quero fazer! Para o serviço que eu quero prestar! Só o senhor pode ajudar-me, Padre!
Espantado, incrédulo, o padre escutou, umedecendo os lábios ressecados ao impulso de suas emoções descontroladas. Sentia o tremor de seu coração enquanto escutava Angus, que falava com rapidez e com força cada vez maior. Várias vezes se benzeu e pensou como eram estranhos e maravilhosos os caminhos de Deus. Às vezes, sacudia a cabeça e pensava que não era possível e que ele devia estar sonhando. E murmurava intimamente: Graças Te sejam dadas, Pai! Sentia-se estuar de ardente alegria e de profunda humildade.
Angus tinha parado de falar. Estava de novo reclinado nos travesseiros. Mas sorria com o rosto iluminado e de novo com aparência jovem e gentil. Estendeu a mão e o padre a tomou.
— Não me rejeitará? — perguntou ele com uma voz que era a de uma criança.
— Eu? Quem sou eu para rejeitá-lo? Deus recebe você, meu filho. Mas tenho de pensar. Vou ter de falar com o bispo... Mas tudo será resolvido. O que Deus deseja não pode ser frustrado.
Angus abriu a pasta e tirou um papel que entregou ao padre.
— Leia isso, Padre, e diga-me se está direito.
O padre procurou os óculos com as mãos trêmulas. Leu o longo documento escrito com a letra miúda e firme de Angus. Leu até que a cabeça começou a rodar.
Depois, largou o papel e olhou demoradamente para Angus. Os dois se sorriram.
Então, o padre se ajoelhou ao lado da cama e rezou. Angus escutou. Quando o padre acabou e continuou ajoelhado e de cabeça baixa, Angus dormia como havia muito tempo não dormia.

CAPÍTULO 75
Parece-me, pensou Stuart ao chegar à casa de Janie na Avenida Porter, que não faço outra coisa agora senão visitas para consolar os outros. Será que virei ministro ou padre? Não é do meu temperamento e eu detesto isso.
A atmosfera sombria da casa envolveu-o, apagando a lembrança do quente dia de maio que brilhava lá fora. A casa estava muito fria e úmida, com todas as cortinas das janelas e todas as portas fechadas. Havia luto na casa e Stuart se aborrecia com o ar sombrio e a pesada solenidade.
A criada lhe falou em voz baixa. Stuart subiu a escada atrás dela em direção aos aposentos de Janie. Não havia o menor som dentro da casa. Entrou na sala de Janie e sentiu o cheiro forte de cânfora e alfazema. Vinha do sol forte lá fora e só momentos depois percebeu Janie na cama, imóvel, tendo ao lado o filho Robbie e a chorosa esposa deste, Alice.
Robbie levantou-se ao ver Stuart entrar e estendeu-lhe a mão. Estava muito pálido, com os olhos vermelhos de falta de sono e de aflição. Mas, como sempre, estava calmo e controlado, embora a mão estivesse fria e inerte.
Stuart, cheio de constrangimento e compaixão, cumprimentou Alice com a cabeça e olhou ansiosamente para Janie. Fez uma pergunta a Robbie, apontando-a. Robbie encolheu os ombros.
— Está inconsolável —, disse ele. — É natural. Bertie era seu predileto.
E você, pensou Stuart, não está menos sentido. Procurou incertamente uma cadeira e, quando Robbie lhe indicou uma, sentou-se, sentindo-se mal e quase um intruso naquele quarto de luto.
Alice enxugou os olhos. O seu belo rosto estava banhado de lágrimas. Robbie sentou-se ao lado dela, passando-lhe o braço pelo ombro. Não olhou para a mãe. Mas olhou para a esposa com triste paixão e devoção como se a estivesse vendo pela primeira vez.
Calma, meu bem —, disse ele. — Você bem sabe que essa agitação não lhe faz bem.
De fato, Alice convalescia de uma forte gripe e só pouco antes se levantara da cama.
Ela descansou a cabeça no ombro do marido e tentou conter os soluços. Os dois se abraçavam com muita ternura e de vez em quando se beijavam.
Stuart mostrou muito interesse por isso e ficou satisfeito. Observou-os com a curiosidade contente de uma criança e se esqueceu de Janie.
Quando se lembrou dela, foi com remorso. Levantou-se, foi na ponta dos pés até à cama e olhou para sua velha prima, sua velha amiga, sua velha companheira de infância e sua velha inimiga. Janie tinha envelhecido. Estava dormindo sob o efeito de um sedativo prescrito pelo médico. Era uma velha bruxa arruinada. Suspirava e murmurava no seu sono letárgico. Os cabelos ruivos se espalhavam desgrenhados pelo travesseiro e o grande nariz estava pontudo e trêmulo.
Pobre coitada, pensou Stuart, cheio de pena. É duro para você que nunca amou mais ninguém. Você percorreu uma longa estrada, pobre Janie. Devemos ser melhores amigos agora. Não lhe resta mais ninguém. Você nunca amou a ninguém senão a Bertie e, por isso, todos a deixaram e têm apenas algumas lágrimas relutantes por você. Sim, devemos ser melhores amigos agora e seremos amigos quer você queira, quer não... Lembra-se, Janie, do tempo em que assávamos batatas nas folhas secas do outono? E de como fazíamos planos para conquistar o mundo inteiro? E como ríamos! Você tinha umas pernas danadas de magras, mas era ágil e trepava nas árvores como uma macaquinha. E como corríamos pelos campos! Temos muito para lembrar, Janie, e lembraremos juntos, rindo.
Saiu do quarto em companhia de Robbie e Alice.
— É a primeira vez que ela dorme em duas noites —, disse Robbie quando chegaram à sala de estar embaixo.
Stuart foi até às janelas e abriu reposteiros e cortinas. O sol de maio entrou de roldão na sala. Ouviram-se vozes de crianças na rua. Uma criada trouxe uma bandeja com cálices de vinho e bolos. Stuart entregou um cálice a Robbie e outro a Alice. Sorriu para eles e disse:
— À saúde do velho Bertie, que cumpriu o seu dever.
Alice disse numa voz entrecortada de lágrimas:
— Viu a carta do Presidente, Stuart? Uma bela carta! Diz que Bertie morreu em ação heroicamente, depois de salvar cinquenta homens da morte certa. Uma carta maravilhosa! Temos orgulho de Bertie!
Estendeu a mão para o marido que a apertou imediatamente e sorriu para ela com uma triste ternura. Ela olhou para ele e disse:
— Temos muito orgulho dele, não é, Robbie? Era assim que ele queria morrer. Era um ótimo homem e nós o amávamos muito.
Robbie levou a mão dela aos lábios. Alice continuou a falar com um brilho nos olhos.
— Houve uma medalha também do Presidente. "Por bravura em ação." Quando a pobre mãe estiver melhor, poderá compreender tudo e sentir-se orgulhosa também.
Stuart tinha dúvidas a esse respeito. Seria preciso mais que uma medalha para consolar a pobre Janie. O coração dela estava em algum ponto da Virgínia e nunca mais sairia de lá. De qualquer maneira, não falaria mais em voltar para a Inglaterra. Ficaria para sempre nos Estados Unidos, onde Bertie tinha vivido e morrera em ação heroicamente.
Pensou por um instante em Bertie. Mas ele sempre fora um enigma para ele e Stuart encolheu os ombros.
Robbie não queria falar do irmão. Estava muito tranquilo e disse apenas:
— Desde o início, eu sabia que nunca mais iríamos vê-lo. Por isso, meu choque não foi muito grande.
Olhou à frente sem ver. Mas ainda segurava a mão de Alice e de vez em quando a beijava não mecanicamente, mas com terna paixão.
— Talvez fosse melhor para Bertie —, disse ele, como se estivesse pensando em voz alta. — Foi melhor, sim. Não posso sentir muito.
Olhou então para Stuart e não pôde deixar de sorrir.
— Como vai a vida, Stuart? Creio que devo dar-lhe parabéns.
Stuart procurou não parecer muito satisfeito naquela casa enlutada.
— Muito bem. Foi muito bom o que Angus fez, mas ainda não compreendo. Deixar-me 30% das ações das lojas, com controle completo das mesmas. Para sua mãe ficaram 40%, cabendo os outros 30% à Igreja. E quem podia saber que ele queria ser católico? Está acima de minhas forças e eu vejo que não compreendo absolutamente as pessoas.
— Quando Mamãe tiver tempo para pensar, vai haver uma explosão —, disse Robbie. -— Imaginem Angus entrar para um convento disposto a ser um missionário para cuidar de leprosos. Ela vai ter motivo para conversar durante muitos anos.
— Foi tão estranho o que Angus fez —, disse Alice. — A bem dizer, eu nunca conheci Angus. Mas se isso lhe dá felicidade, nada mais importa. Contudo, não deixa de ser muito estranho.
— Nem tão estranho assim —, disse Stuart de repente. — Ele realmente quis fazer uma coisa assim toda a sua vida. Ele tinha a vocação do sacrifício. O velho Grundy me disse isso um dia. E eu estou começando a compreender as coisas, não com muita clareza ainda, mas já tenho alguns vislumbres.
Robbie olhou-o com oculta e polida curiosidade. Que idade teria Stuart? Cerca de quarenta e cinco. Mas tinha o aspecto mais jovem do que nunca. É verdade que tinha uma expressão de reserva nos olhos e uma sugestão de cansaço e tristeza. Era a expressão de um homem que tinha sofrido muito e não podia esquecer o sofrimento. Entretanto, o rosto parecia mais liso e mais jovem e dele estavam desaparecendo as marcas da dissipação. A pele tinha uma cor melhor e mais sadia. Robbie refletiu que havia alguns homens que eram como crianças ou possuíam uma vitalidade insuspeitada. Seria uma questão de consciência tranquila? Ou de absoluta falta de consciência? Robbie tinha sempre acreditado que Stuart era um homem bom, talvez um pouco estourado e violento, caprichoso, exaltado e indisciplinado. Mas, sempre, o destino intervinha nos momentos mais críticos de sua vida, como se o destino fosse um pai amoroso, indulgente e compreensivo.
— Não me julgue impertinente, Stuart —, disse ele. — Mas agora tenha mais cuidado com as lojas.
Stuart riu.
— Como é que eu poderia deixar de ter cuidado se Angus, previdentemente, subordinou ao seu visto toda a contabilidade das lojas, Robbie? E eu não gostei nada disso, fique sabendo! — Mas não havia desagrado em seus olhos. — É, ainda, estou de certo modo contente. Isso me tira muitas responsabilidades dos ombros, especialmente desde que você tem de aprovar todas as compras que eu fizer e fiscalizar todas as contas!
— Como vai Mary Rose? — perguntou Robbie.
— Muito melhor, graças a Deus. O velho Grundy tem rezado muito por ela. Afinal, está um pouco mais corada. Vai ficar comigo até ao outono, quando voltará para a casa da mãe na Pensilvânia. Acho muito bom isso. Ela não pode suportar nossos invernos aqui no Norte.
Fez uma pausa durante a qual seu rosto se tornou mais brando ao pensar na filha e disse:
— Por favor, diga a Janie, sua mãe, que eu estive aqui e que sinto muito. Virei amanhã de novo. Ela deve reagir. Tem uma boa cabeça, é forte e acabará tendo orgulho de nosso caro Bertie.
Robbie acompanhou-o até à porta. Viram carruagens que chegavam com amigas de Janie que iam visitá-la.
Robbie colocou a mão no braço de Stuart e disse:
— Fico satisfeito de vê-lo tão bem, Stuart. Não está muito aborrecido com o divórcio de Marvina?
— Não, meu caro. Você conduziu tudo de maneira magistral e eu lhe sou muito grato por isso.
— Perdoe-me, Stuart, mas, afinal de contas, Laurie é minha irmã.
— Já escrevi a Laurie. Não sei o que é que você tem com isso, mas não me importo de lhe dizer. Ela está querendo que eu abandone tudo e vá viver com ela em Nova York depois de nosso casamento. Não quer que eu pense mais nas lojas. Não compreende que eu tenho também a minha vida. Não sou um lacaio, Robbie. Escrevi-lhe, portanto, para dizer que a carreira dela é essencial e que eu a desejo mais que tudo e que ela não me deve levar absolutamente em conta. Depois de nos casarmos, continuarei aqui e ela virá passar uns tempos comigo nos intervalos das temporadas. Sempre que puder, irei vê-la em Nova York. Assim é que deve ser. Não sei se ela vai concordar ou não.
— Vai, sim, Stuart —, disse Robbie. — E vai respeitá-lo por isso. Não sei é se o invejo. Laurie é muito difícil, embora sempre tivesse gostado muito de você. Felicidades, Stuart.
Stuart sorriu.
— Muito obrigado, Robbie. Sim, acho que ela poderá concordar. Um homem deve ter também o seu amor-próprio. Laurie pode ter mau gênio, Robbie. Mas há nela alguma coisa que só eu descobri É muito gentil e boa por baixo de toda aquela aparência. Acabará concordando.
Robbie ficou olhando Stuart que descia a estreita escada de pedra. Pobre diabo! E, ainda mais, nas mãos de Laurie! Robbie não tinha ilusões a respeito da irmã. Sabia que era uma pessoa difícil e autoritária. Haveria entre os dois brigas tremendas, recriminações, violências, acusações e acessos de raiva. Mas não haveria tédio. Os dois se amavam, aqueles dois tipos estranhos. Laurie faria o que quisesse quando estivesse cantando, e não falaria do que tivesse visto ou feito. Seria muito discreta e Stuart não faria perguntas. Queria apenas que ela o amasse. Tinha idade bastante para ser pai dela, mas ela era uma mulher e ele seria sempre uma criança, sempre jovem.
As visitas vinham subindo a escada e olharam para Stuart com um misto de curiosidade e simpatia. Robbie viu-as chegar. O pesar que a presença de Stuart havia de certo modo dissipado, envolveu-o de novo.
Mas havia nele também uma estranha e vaga paz.

CAPÍTULO 76
A ilha repousava nas suas névoas purpúreas. Algumas copas verdes de palmeiras emergiam da névoa e se agitavam contra o céu matinal. A pequena povoação amontoada e branca ainda estava em silêncio. O céu era ainda de um azul-escuro e carregado e a leste o frágil crescente da lua emergia do mar que era com de alfazema pálida franjada de prata. As vozes dos pássaros começaram a quebrar o silêncio vazio num clamor ressoante de canto.
Acima da lua, uma estrela brilhava pura e viva.
Havia um navio no mar, mas ancorado a alguma distância da ilha. Dele foi baixado um bote com um marinheiro e um homem que vestia um hábito de monge. Estava sentado na proa do bote e olhava para a ilha. Alguns rolos de fumaça se elevavam das chaminés escondidas. As névoas começavam a dissipar-se. A ilha era uma joia de heliotrópio, verde e ouro.
O bote abicou à praia de coral. O monge desembarcou e olhou para o marinheiro que lhe fez uma saudação. Retribuiu a saudação, sorrindo. O rosto era belo, pálido e muito doce à luz matinal.
Viu o bote afastar-se de volta ao navio. Voltou-se então e olhou para a povoação. Levou alguns minutos contemplando o lugar onde iria viver até à morte. A alegria lhe brilhou de repente nos olhos.
Subiu a ladeira para a povoação. Levantou o rosto para o céu e começou a cantar. O velho frade que se apressava para ir ao encontro de seu novo assistente parou atônito ao ouvir a voz maviosa.
Era o Hino à Estrela da Manhã de Robin Cauder.

 

 

                                                                 Taylor Caldwell

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades