Não existe modo de trocar informação sem formular opiniões.
Axioma Bene Gesserit
Do balcão de seus aposentos privados, Jessica observou sua antiquada dama de companhia, com suas bochechas rosadas como maçãs, no pátio de práticas próximo ao posto de guarda oeste. Olhou enquanto a mulher ofegante conversava com Thufir Hawat e observou que utilizava muitos gestos para falar. Ambos olharam para sua janela.
O Mentat acredita que sou estúpida?
Durante o mês em que Jessica estava vivendo em Caladan, tinham satisfeito suas necessidades com fria precisão, como uma hóspede respeitada, mas nada mais. Thufir Hawat se ocupou em pessoa de velar por seu conforto, e a instalara nos antigos aposentos de lady Helena Atreides. depois de ficarem fechadas durante tantos anos, as habitações precisaram ser arejadas, mas os belos móveis, o enorme banheiro e o solário eram mais do que Jessica necessitava. Uma Bene Gesserit precisava de poucos luxos e comodidades.
O Mentat também lhe tinha destinado uma dama de companhia, que revoava a seu redor como uma mariposa e sempre encontrava tarefas que lhe exigissem estar perto de Jessica. Era óbvio que se tratava de uma espiã de Hawat.
Jessica tinha despedido a mulher naquela mesma manhã, sem nenhuma explicação. Sentou-se para esperar as repercussões. Viria o Mestre de Assassinos em pessoa, ou enviaria um representante? Compreenderia sua mensagem implícita? Não me subestime, Thufir Hawat.
Do balcão, viu que concluía sua conversa com a mulher. Afastou-se do posto de guarda com movimentos enérgicos e confiantes, em direção ao castelo.
Um homem estranho, aquele Mentat. Enquanto estava na Escola Materna, Jessica tinha estudado o histórico do Mentat, e descoberto que tinha passado a metade de sua vida em um centro de preparação Mentat, primeiro como estudante e depois como filósofo e tático teórico, antes de ser adquirido para o recém renomado duque Paulus Atreides, o pai de Leto.
Jessica utilizou seus poderes de observação Bene Gesserit para estudar aquele homem flexível e seguro de si mesmo. Hawat não era como os outros graduados das escolas Mentat, os tipos introvertidos que fugiam do contato pessoal. Este homem mortífero era agressivo e ardiloso, com uma lealdade fanática à Casa Atreides. Em alguns aspectos, sua natureza letal era similar a do Mentat pervertido pelos tleilaxu, Piter De Vries, mas Hawat era o oposto ético do Mentat Harkonnen. Tudo era muito curioso.
De forma similar, tinha observado que o Mestre de Assassinos a esquadrinhava através de seu filtro lógico Mentat, processava dados sobre ela e chegava a conclusões não confirmadas. Hawat podia ser muito perigoso.
Todos queriam saber por que estava ali, por que a Bene Gesserit a tinha enviado e quais eram suas intenções.
Jessica ouviu um forte golpe na porta e foi abrir. Agora veremos o que tem a dizer. Chega de jogos.
Os lábios de Hawat estavam molhados de suco de safo, e os olhos afundados expressavam preocupação e nervosismo.
— Faça o favor de explicar por que não aceitou a criada que escolhi para você, minha senhora.
Jessica usava um vestido de sooraso lavanda, que realçava as curvas de seu corpo esbelto. Sua maquiagem era mínima, apenas um pouco de lavanda ao redor dos olhos e tintura de lábios. Sua expressão não tinha a menor amabilidade.
— Tendo em conta suas proezas lendárias, pensei que seria um homem mais sutil, Thufir Hawat. Se for me espionar, escolhe a alguém mais competente.
O comentário o surpreendeu, e olhou para a jovem com maior respeito.
— Sou o responsável pela segurança do duque, minha senhora, ocupo-me de sua segurança pessoal. Devo tomar as medidas que me pareçam necessárias.
Jessica fechou a porta, e ambos ficaram na entrada, perto o bastante para que qualquer deles desse um golpe mortal no outro.
— Mentat, o que sabe da Bene Gesserit?
Um leve sorriso se insinuou em seu rosto enrugado.
— Só o que a Irmandade permite saber aos forasteiros.
— Quando as reverendas madres me trouxeram aqui — disse Jessica em voz mais alta —, ele também se transformou em meu senhor. Acha que represento um perigo para ele? Que a Irmandade agiria diretamente contra um duque do Landsraad? Na história do Império, conhece um só exemplo de que algo semelhante tenha acontecido? Significaria o suicídio para a Bene Gesserit. — Dilatou as aletas do nariz —. Pense, Mentat! Qual é sua projeção?
— Não tenho informações de que exista tal exemplo, minha senhora — disse Hawat ao cabo de um momento.
— E mesmo assim, encarregou essa puta estúpida de me vigiar. Por que me teme? Do que suspeita? — evitou utilizar a Voz, coisa que Hawat jamais perdoaria. Em vez disso, acrescentou uma ameaça com voz mais serena —: Um aviso, não tente mentir...
Deixe-o pensar que sou uma Reveladora da Verdade.
— Peço desculpas pela indiscrição, minha senhora. Talvez seja um pouco... exagerado quando tenho que proteger meu duque.
Esta jovem é forte, pensou Hawat. O duque poderia ter recebido alguém muito pior.
— Admiro sua devoção para com ele. — Jessica observou que os olhos do Mentat se acalmaram, mas sem sinal de medo, somente transparecessem um pouco mais de respeito —. Estou aqui a pouco tempo, enquanto que você serviu três gerações de Atreides. Tem na perna uma cicatriz de um touro salusano, de uma das primeiras tarefas do duque, não é? Não é fácil para você se adaptar a algo novo. — Afastou-se um passo dele, e deixou que um pingo de ressentimento se insinuasse em sua voz —. Até o momento, seu duque me tratou mais como a uma parente distante, mas espero que não me ache desagradável no futuro.
— Não a acha desagradável, minha senhora, mas já escolheu como par Kailea Vernius. Ela é a mãe do seu filho.
Jessica não demorara para descobrir que existiam problemas na sua relação.
— Por favor, Mentat, ela não é a concubina que lhe estava destinada, e tampouco sua esposa. Em qualquer caso, não concedeu ao menino o direito de primogenitura. Que mensagem temos que extrair disto?
Hawat ficou rígido, parecia ofendido.
— O pai de Leto o ensinou a utilizar o matrimônio para conseguir vantagens políticas para a Casa Atreides. Tem muitas pretendentes no Landsraad. Ainda não decidiu qual é o melhor partido... embora esteja pensando.
— Porque continua pensando. — Jessica indicou que a conversa tinha terminado. Esperou que o homem desse meia volta e então acrescentou —: A partir de agora, Thufir Hawat, escolherei minhas próprias damas de companhia.
— Como quiser.
Depois que o Mentat se foi, Jessica analisou sua situação, pensou nos planos a longo prazo mais que na missão que recebera da Irmandade. Podia aumentar sua beleza usando técnicas de sedução Bene Gesserit, mas Leto era orgulhoso e individualista. O duque podia adivinhar suas intenções, e não gostaria de ver-se manipulado. Mesmo assim, Jessica tinha um trabalho a fazer.
Em alguns momentos fugazes observara que ele olhava para elas com culpa, sobretudo depois de suas discussões com Kailea. Sempre que Jessica tentava aproveitar esses momentos, Leto voltava para sua frieza habitual.
Tampouco ajudava o fato de ocupar os antigos aposentos de lady Helena, que Leto era reticente a visitar. Depois da morte de Paulus Atreides, a inimizade entre Leto e sua mãe tinha alcançado extremos radicais, e Helena tinha ido “descansar e meditar” em um remoto retiro religioso. Para Jessica cheirava a castigo, mas não encontrou motivos claros nos registros Atreides. Ocupar aquelas habitações podia significar uma barreira emocional entre ambos.
Leto Atreides era, sem dúvida, elegante e atraente, e para Jessica não haveria nenhum problema em aceitar sua companhia. De fato, desejava estar com ele. Repreendia-se sempre que essas sensações a invadiam, pois acontecia com excessiva freqüência. Não podia permitir que os sentimentos a dominassem. O amor não servia de nada à Bene Gesserit.
Tenho um trabalho a fazer, recordou-se. Jessica esperaria o momento oportuno.
O infinito nos atrai como um farol na noite, nos cega aos excessos que pode infligir ao finito.
Meditações desde Bifrost Eyrie
texto budislâmico.
Quatro meses depois do desastre da avalanche, Abulurd Harkonnen e sua mulher embarcaram em uma visita, de que se fez muita publicidade, à cidade das montanhas. A tragédia de Bifrost Eyrie tinha estremecido o coração de Lankiveil e unido o povo.
Emmi e ele, fiéis companheiros, tinham demonstrado sua força combinada. Durante anos, Abulurd preferira ser um governante discreto que nem sequer reclamava o título a que tinha direito. Queria que as pessoas de Lankiveil governassem a si mesmos, se ajudassem mutuamente conforme lhes ditasse o coração. Considerava os aldeãos, caçadores e pescadores uma grande família com interesses comuns.
Depois, falando com serena confiança, Emmi convenceu seu marido de que uma peregrinação pública como governador planetário atrairia a atenção sobre a tragédia da cidade perdida nas montanhas. O burgomestre, Onir Rautha-Rabban, daria-lhes as boas-vindas.
Abulurd e Emmi foram em transporte oficial, flanqueados por criados e servos, muitos dos quais nunca se afastaram dos povoados baleeiros. Os três ornitópteros passaram com parcimônia sobre geleiras e montanhas cobertas de neve, para a linha de penhascos onde se achava a cidade monastério.
Quando o sol se refletiu na neve e os cristais de gelo das cúpulas, o mundo pareceu um lugar antigo e pacífico. Sempre otimista, Abulurd esperava que os habitantes de Bifrost lutariam por um futuro melhor. Tinha escrito um discurso que transmitia basicamente a mesma mensagem. Embora não tivesse muita experiência em dirigir a palavra a multidões numerosas, Abulurd queria ler sua mensagem. Já tinha ensaiado duas vezes diante de Emmi.
A comitiva do governador aterrissou em uma meseta situada em frente aos penhascos de Bifrost Eyrie, e Abulurd e seu séquito desembarcaram. Emmi caminhava ao lado do seu marido, com uma capa azul que lhe dava um aspecto majestoso. Ele segurava seu braço.
As equipes de construção tinham feito progressos assombrosos. Tinham cortado a cunha de neve invasora e escavado os edifícios enterrados. Como a maior parte da maravilhosa arquitetura tinha sido destruída ou desfigurada, os edifícios afetados estavam cobertos com uma rede de andaimes. Peritos trabalhavam dia e noite para colocar bloco sobre bloco, reconstruir e dar glória ao retiro. Bifrost Eyrie nunca voltaria a ser a mesma, mas possivelmente seria melhor que antes, como um ave fênix que renascesse da neve.
O corpulento Onir Rautha-Rabban saiu para recebê-los, vestido com roupas douradas forradas de pele de baleia sabre. O pai de Emmi barbeou sua volumosa barba grisalha depois do desastre. Sempre que se olhava em um espelho, queria recordar as perdas que sua cidade sofrera. Desta vez, a cara larga e quadrada parecia contente, iluminada por um fogo que não estava presente da última vez que tinham estado juntos.
Quando o governador planetário chegou, os operários desceram dos andaimes e se dirigiram para a praça. Uma vez finalizados, os muito altos edifícios olhariam para a praça como deuses das alturas. Mesmo sem terminar, as obras eram impressionantes.
O tempo tinha colaborado desde a avalanche, mas dentro de um ou dois meses a chegada do inverno os obrigaria a cessar seus esforços e a refugiar-se dentro dos edifícios de pedra durante meio ano. Bifrost Eyrie não seeia terminada nesta temporada. Tendo em conta a magnitude das obras, possivelmente nunca acabariam, mas as pessoas continuariam construindo, embelezando sua oração de pedra aos céus do Lankiveil.
Uma vez reunida a multidão, Abulurd levantou as mãos para falar, enquanto ensaiava o discurso em sua mente uma vez mais. Mas todas as palavras se apagaram de sua mente, devido ao nervosismo. Emmi, que parecia uma rainha ao seu lado, tocou-lhe o braço para lhe dar seu apoio. Depois lhe sussurrou as primeiras frases para ajudá-lo a recordar o que devia dizer.
— Meus amigos — disse Abulurd em voz alta, sorrindo para dissimular a vergonha —, os ensinos budislâmicos respiram a caridade, trabalho duro, e ajuda aos necessitados. Não pode haver melhor exemplo de sentida colaboração que o trabalho dos voluntários para reconstruir...
Os reunidos começaram a murmurar, apontaram para o céu e sussurraram entre si. Abulurd vacilou de novo e olhou para trás. Nesse momento Emmi gritou.
Uma formação de naves negras apareceu no céu azul em direção às montanhas, aparelhos de ataque com o grifo da Casa Harkonnen. Abulurd franziu o sobrecenho, mais confuso que alarmado. Olhou para sua mulher.
— O que significa isto, Emmi? Eu não chamei nenhuma nave.
Mas ela não sabia mais que ele.
Sete caças perderam altura, e os motores açoitaram o ar com detonações sônicas. Abulurd sentiu um brilho de irritação, temeroso de que os ruídos estrondosos provocassem novas avalanches... até que os canhões das naves se abriram. As pessoas começaram a correr de um lado para outro aos gritos. Alguns em disparada, outros procuravam refúgio. Abulurd não entendia nada.
Três naves penderam sobre a praça, com os canhões preparados.
Abulurd agitou as mãos para atrair a atenção do piloto.
— O que estão fazendo? Tem que haver algum engano.
Emmi o afastou do estrado, onde era um alvo perfeito.
— Não há engano.
Os aldeãos procuravam refúgio enquanto as naves se preparavam para aterrissar na praça. Abulurd estava convencido de que os pilotos teriam aterrissado sobre a multidão se os espectadores não se afastassem.
— Fique aqui — disse para Emmi enquanto corria para três das naves para exigir respostas.
As quatro naves restantes descreveram um círculo no ar e retornaram. Raios laser começaram a cortar a rede de andaimes, como um pescador estripando a suas presas.
— Alto! — gritou Abulurd para os céus, ao mesmo tempo em que fechava os punhos, mas nenhum soldado podia ouvi-li. Eram tropas Harkonnen, leais a sua família, mas estavam atacando seu povo, os cidadãos de Lankiveil —. Alto! — repetiu, mas teve que retroceder devido às ondas de choque.
Emmi afastou-se para um lado quando uma das naves voou tão baixo que lançou uma corrente de ar quente atravessou seu caminho.
Mais raios laser foram disparados, desta vez contra a massa de gente. A descarga abateu dúzias de pessoas.
Pedaços de gelo se desprenderam das geleiras, blocos branco-azulados cristalinos que caíram com um brilho de vapor, cauterizados da massa principal. Edifícios ficaram esmagados sob a avalanche.
As quatro naves de ataque voltaram pela terceira vez, enquanto outros veículos se estabilizavam no chão. As comportas se abriram com um vaio para dar passagem a soldados Harkonnen, com uniformes de combate azul escuro com isolamento térmico.
— Sou Abulurd Harkonnen e ordeno que parem!
Depois de rápidos olhares em sua direção, os soldados o ignoraram.
Então, Glossu Rabban desceu do aparelho. Usava o cinturão repleto de armas, e tinha os ombros e o peito cobertos de insígnias militares. Um capacete negro iridescente lhe dava aspecto de gladiador.
Ao reconhecer seu neto, Onir Rautha-Rabban correu para ele, com as mãos enlaçadas, suplicante. Seu rosto refletia ira e horror.
— Basta, por favor! Glossu Rabban, por que faz isto?
Do outro lado da praça, as tropas terrestres abriram fogo com seus rifles contra os aldeãos aterrorizados, que não tinham escapatória. Antes que o ancião burgomestre pudesse chegar o Rabban, uns soldados o levaram arrastado.
Abulurd correu para Rabban com expressão irada. Tropas Harkonnen se dispuseram a interceptá-lo, mas ele gritou:
— Deixem-me passar!
Rabban olhou para ele com frios olhos metálicos. Seus grossos lábios formavam uma linha satisfeita sobre seu queixo quadrado.
— Pai, seu povo tem que aprender que existem coisas piores que os desastres naturais. — Ergueu um pouco o queixo —. Se encontrarem desculpas para não pagar seus dízimos, enfrentarão um desastre sobrenatural: eu.
— Ordene que parem! — Abulurd ergueu a voz, embora se sentisse completamente impotente —. Eu sou o governador deste lugar e este é meu povo.
Rabban olhou-o com asco.
— E necessitam de um castigo para que entendam o comportamento que se espera deles. Não se trata de um tema complicado, mas é evidente que você não proporciona a inspiração necessária.
Soldados Harkonnen arrastaram Onir Rabban para a beira de um penhasco. Emmi compreendeu suas intenções e gritou. Abulurd se voltou e viu que tinham conduzido seu sogro até o precipício, que terminava em uma sopa de nuvens.
— Não pode fazer isto! — disse Abulurd, estupefato —. Esse homem é o líder legal deste povo. É seu avô.
Sorridente, Rabban sussurrou as palavras sem emoção, sem tom de comando.
— Ah, esperem. Chega.
Os soldados não podiam ouvi-lo. Já tinham recebido suas ordens.
Os guardas Harkonnen agarraram o burgomestre por ambos os braços e o sustentaram como um saco na beirada. O pai do Emmi gritou, agitando braços e pernas. Olhou para Abulurd, com o rosto contraído de incredulidade e horror. Seus olhos se encontraram.
— Oh, por favor, não — sussurrou Rabban de novo, com um sorriso que curvou seus lábios.
Então, os soldados deram um empurrão no ancião, que desapareceu no vazio.
— Muito tarde — disse Rabban dando de ombros.
Emmi caiu de joelhos, tomada por náuseas. Abulurd, que não sabia se a consolava ou se esbofeteava seu filho, continuou paralisado.
Rabban deu uma palmada.
— Já basta! Entrem!
As naves que tinham aterrissado emitiram sinais sonoros. Com precisão militar, as tropas Harkonnen voltaram para suas naves formando filas perfeitas. Abandonaram aos sobreviventes, que corriam entre os cadáveres, procuravam companheiros, entes queridos, qualquer um que necessitasse de assistência médica.
Rabban estudou seu pai da rampa da nave insígnia.
— Agradeça por eu fazer o trabalho sujo. Você foi muito mole com esta gente, e se tornaram preguiçosos.
As quatro naves que voavam completaram outra passada de ataque, derrubando outro edifício. Depois se afastaram e voltaram a agrupar-se no céu.
— Se me obrigar a intervir de novo, terei que ser mais explícito... tudo em seu nome, é claro.
Rabban se voltou e entrou em sua nave.
Abulurd, consternado e desorientado, contemplou com absoluto horror a destruição, os incêndios, os cadáveres carbonizados. Ouviu um grito ingovernável, como um cântico funerário, e compreendeu que surgia de sua própria garganta.
Emmi tinha avançado cambaleante até o bordo do precipício e chorava, enquanto esquadrinhava as nuvens onde seu pai tinha desaparecido.
As últimas naves Harkonnen se elevaram no céu mediante suspensores, e chamuscaram a terra da clareira que se estendia em frente a cidade devastada. Abulurd caiu de joelhos, mergulhado em um desespero total. Sua mente estava invadida por um zumbido ensurdecedor de incredulidade e dor, dominado pela expressão satisfeita de Glossu Rabban.
— Como pude gerar semelhante monstro?
Sabia que nunca encontraria resposta para essa pergunta.
O amor é o maior lucro que um ser humano pode aspirar. É um sentimento que dá lugar à máxima profundidade de coração, mente e alma.
Sabedoria zensunni da Peregrinação.
Liet-Kynes e Warrick passaram uma noite juntos perto de Rocha Estilhaçada, na Depressão Hagga. Tinham assaltado uma das antigas estações de experimentos botânicos, em busca de equipamento utilizável, e além disso tinham feito um inventário de algumas ferramentas e documentos que o deserto tinha conservado durante séculos.
Durante os dois anos posteriores a sua volta das regiões do pólo sul, os jovens tinham acompanhado Pardot Kynes de sietch em sietch para verificar os progressos de novas e antigas plantações. O planetólogo mantinha uma cova estufa secreta na Depressão de Gelo, um éden cativo que demonstrava as futuras possibilidades do Duna. A água dos precipitadores de orvalho e armadilhas de vento irrigava arbustos e flores. Muitos fremen tinham recebido amostras vindas do projeto da Depressão de Gelo. Tomavam pedaços de fruta como se fosse a sagrada comunhão, fechavam os olhos e respiravam profundamente, saboreando o gosto.
Tudo isto tinha sido promessa de Pardot Kynes... e tudo isto ele lhes dera. Estava orgulhoso de que suas visões estivessem se transformando em realidade. Também estava orgulhoso de seu filho.
— Um dia, você será o planetólogo imperial de Duna, Liet — dizia, e assentia com solenidade.
Embora falasse com paixão sobre o despertar do deserto, contribuindo com ervas e biodiversidade para um ecossistema auto-suficiente, Kynes não podia ensinar nenhuma matéria de uma forma ordenada ou estruturada. Warrick estava atento a cada uma de suas palavras, mas o homem costumava começar por um tema, e depois divagava sobre outros segundo seu capricho.
— Todos fazemos parte de uma grande tapeçaria, e cada um tem que seguir seu próprio caminho — dizia Pardot Kynes, mais satisfeito com suas palavras do que deveria.
Com freqüência, voltava a narrar anedotas de quando tinha vivido em Salusa Secundus, e explorado territórios ermos que não interessavam a ninguém. O planetólogo tinha passado anos em Bela Tegeuse, para ver como a vida vegetal florescia com a fraca luz do sol e do chão ácido. Também tinha viajado a Harmonthep, III Delta Kainsing, Gammont, Poritrin, e a deslumbrante corte de Kaitain, onde o imperador Elrood IX lhe tinha nomeado planetólogo de Arrakis.
Enquanto Liet e Warrick se afastavam de Rocha Estilhaçada, elevou-se um vento forte, um heinali ou empurra homens. Liet indicou o abrigo de um afloramento rochoso.
— Vamos procurar refúgio ali.
Warrick, que tinha o cabelo recolhido em um chapéu que caía sobre seus ombros, avançou com dificuldade, a cabeça curvada, ao mesmo tempo em que tirava a mochila. Trabalharam em uníssono, e não demoraram para improvisar um acampamento protegido e camuflado. Ficaram conversando até bem entrada a noite.
Durante esses dois anos, os jovens não tinham falado a ninguém de Dominic Vernius e sua base de contrabandistas. Tinham dado sua palavra ao homem, e guardado o segredo...
Ambos tinham dezoito anos e esperavam casar-se logo, mas Liet, aturdido pelos hormônios próprios de sua idade, não conseguia escolher. Cada vez se sentia mais atraído para Faroula, a filha de Heinar, o naib do sietch da Muralha Vermelha, uma moça de olhos grandes e corpo flexível como um junco, embora de caráter imprevisível. Faroula tinha sido educada na sabedoria da botânica, e algum dia seria uma curadora respeitada.
Por sua desgraça, Warrick também desejava Faroula, e Liet sabia que seu irmão de sangue tinha mais possibilidades de reunir coragem para pedir a mão da filha do naib antes que ele conseguisse decidir-se.
Os dois amigos dormiram ouvindo os suaves arranhões da areia contra sua tenda...
No dia seguinte, quando saíram, Liet contemplou a extensão da Depressão Hagga. Warrick piscou, deslumbrado pela potente luz.
— Kull wahad!
A tormenta de vento noturna tinha varrido o pó de uma ampla praia branca, os restos salobres de um antigo mar seco. O leito do lago brilhava por causa do calor.
— Uma planície de gesso. Algo que poucas vezes se vê — disse Liet, e murmurou —: Meu pai a exploraria e faria a análise.
Warrick falou em voz baixa e admirada.
— Dizem que quem vê um Biyan, as Terras Brancas, pode pedir um desejo que lhe será concedido.
Guardou silêncio e moveu os lábios para expressar seus desejos mais ocultos e desejados.
Liet o imitou para não ficar em desvantagem.
— Pedi que Faroula seja minha esposa! — anunciou seu amigo.
Warrick lhe dedicou um sorriso pensativo.
— Má sorte, irmão de sangue: eu pedi o mesmo. — Soltou uma gargalhada e bateu nas costas de Liet —. Parece que nem todos os desejos se tornam realidade.
Ao anoitecer, os dois receberam Pardot Kynes quando chegou ao sietch da Rocha do Seio. Os mais velhos do lugar lhe dedicaram uma cerimônia de boas-vinda, muito satisfeitos com o que tinha obtido. Kynes aceitou sua comemoração com brusca amabilidade, e ignorou muitas das respostas oficiais em sua ânsia por inspecionar tudo.
O planetólogo foi estudar as plantas que cresciam debaixo de brilhantes globos luminosos que simulavam a luz do sol, no interior de fendas rochosas. A areia tinha sido fertilizada com produtos químicos e sedimentos humanos, afim de criar um chão rico. Os habitantes da Rocha do Seio cultivavam mesquita, salvia, coelheiras e saguaros de tronco em forma de acordeão, rodeados de mato. Grupos de mulheres vestidas com mantos iam de planta em planta, como se estivessem celebrando uma cerimônia religiosa, e as regavam com copos de água.
As paredes de pedra do canyon obstruído da Rocha do Seio conservavam um pouco de umidade a cada manhã. Precipitadores de orvalho situados na parte superior do canyon recapturavam o vapor de água perdida e o devolviam às plantas.
De noite, Kynes passeou de plantação em plantação, e se agachou para estudar folhas e caules. Já tinha esquecido que seu filho e Warrick tinham ido recebê-lo. Sua escolta, Ommun e Turok, montavam guarda, desejosos de sacrificar suas vidas se algo ameaçasse seu Umma. Liet reparou na intensa concentração de seu pai, e se perguntou se alguma vez percebeu a lealdade absoluta que inspirava naquela gente.
Na boca do estreito canyon, onde alguns pedras brutas e rochas constituíam a única barreira contra o deserto, os meninos fremen tinham prendido globos luminosos que se refletiam na areia. Cada menino esgrimia uma varinha metálica dobrada, encontrada em um esgoto de Carthag.
Liet e Warrick, que desfrutavam de do silêncio da noite, se agacharam sobre uma rocha para observar os meninos. Warrick farejou o ar e examinou o sol artificial que iluminava as plantas e cactos.
— Os pequenos Criadores se sentem atraídos para a umidade como aparas de ferro para um ímã.
Liet já tinha observado a atividade antes, tinha-a praticado quando criança, mas ainda lhe fascinava ver os pequenos tentando capturar trutas de areia.
— Picam com facilidade.
Uma menina se inclinou para deixar cair uma gota de saliva no extremo de sua vara metálica. Depois estendeu o artefato sobre a areia. Os globos luminosos lançavam profundas sombras sobre o terreno irregular. Algo se agitou sob a superfície e surgiu do pó.
As trutas de areia eram animais carnudos sem forma, macios e escorregadios. Seus corpos eram flexíveis quando estavam vivos, mas se tornavam duros e flexíveis quando morriam. Encontravam-se muitos Criadores mortos nos lugares onde se produzia uma explosão de especiaria. Muitos mais perfuravam o chão para capturar a água liberada, e a retinham para proteger ao Shai-Hulud.
Uma truta de areia estendeu um pseudópodo para o extremo reluzente da vara. Quando tocou a saliva da menina, esta girou o pau de metal e o ergueu no ar, junto com a truta de areia. Os outros meninos riram.
Um segundo menino se apoderou de outra truta de areia, e os dois correram para as rochas, onde brincaram com suas presas. Podiam aguilhoar e beliscar a carne macia, até extrair umas gotas de calda de açúcar, uma guloseima que tinha encantado Liet quando era menino.
Embora sentisse a tentação de juntar-se ao jogo, Liet se recordou que já era um adulto, um membro de pleno direito da tribo. Era o filho do Umma Kynes. Outros fremen franziriam o sobrecenho se o vissem envolvido em atividades tão frívolas.
Warrick estava sentado na rocha a seu lado, absorto em seus pensamentos. Olhava para os meninos e pensava em sua futura família. Ergueu a vista para o céu púrpura.
— Dizem que a estação das tormentas é a época mais apropriada para fazer amor.
Enrugou o sobrecenho e apoiou seu estreito queixo sobre as mãos, muito concentrado. Deixara crescer uma barba espaçada.
Liet sorriu. Ele ainda não tinha que barbear-se.
— Chegou o momento de escolhermos uma esposa, Warrick.
Os dois estavam obcecados por Faroula, e a filha do naib os deixava fazer a corte, fingindo indiferença ao mesmo tempo em que recebia satisfeita seus cuidados. Liet e Warrick lhe levavam tesouros especiais do deserto sempre que podiam.
— Talvez devêssemos fazer nossa opção segundo o costume dos fremen. — Warrick extraiu de seu cinturão um par de lascas de osso largos como facas —. Atiramos paus de contas para ver quem corteja Faroula?
Liet também possuía um par dos ditos objetos. Seu amigo e ele tinham passado muitas noites de acampamento desafiando-se mutuamente. Os paus de contas eram talhas finas com uma escala de números aleatórios gravados nos lados, os números altos mistuados com os baixos. Os fremen lançavam os paus para cravá-los na areia, e depois liam o número. Quem conseguisse a cifra mais alta, ganhava. Necessitava tanto destreza como sorte.
— Se jogarmos os paus de contas ganharei, é claro — disse Liet com absoluta segurança.
— Duvido.
— Em qualquer caso, Faroula nunca aceitaria esse método. — Liet se recostou contra a fria parede rochosa —. Possivelmente chegou o momento da cerimônia ahal, mediante a qual uma mulher escolhe seu par.
— Acha que Faroula me escolheria? — perguntou Warrick, com mais desejo que esperança.
— Claro que não.
— Em quase tudo confio em seu bom julgamento, meu amigo... mas nisto não.
— Talvez eu pergunte quando voltar — disse Liet —. Não poderia desejar melhor marido que eu.
Warrick riu.
— Em quase todos os desafios é um homem valente, Liet-Kynes, mas quando enfrenta uma mulher formosa é um covarde ignominioso.
Liet bufou indignado.
— Fiz um poema de amor para ela. Tenho a intenção de escrevê-lo em uma folha de papel de especiaria e deixá-lo em sua habitação.
— Ah, é mesmo? — zombou Warrick —. Teria a audácia de assiná-lo com seu nome? Qual é esse belo poema que escreveu?
Liet fechou os olhos e recitou:
Muitas noites sonho junto à água, e escuto os ventos passar ao alto;
muitas noites me estendo junto a um ninho de víboras
e sonho com Faroula no calor do verão;
vejo-a assar pão de especiaria sobre pranchas de ferro ao vermelho vivo;
e trançar anéis de água em seu cabelo.
A fragrância âmbar de seu busto estremece meus sentidos mais íntimos;
embora me atormente e tiranizar, eu não gostaria que fosse diferente.
Ela é Faroula, e é meu amor.
Um vento tempestuoso ruge em meu coração.
Contempla a água transparente do qanat, mansa e trêmula.
Liet abriu os olhos como se despertasse de um sonho.
— Já ouvi coisas melhores — disse Warrick —. Eu escrevi coisas melhores. Deveria encontrar uma mulher que o aceitasse, apesar de tudo. Mas nunca Faroula.
Liet fingiu ofender-se. Em silêncio, os dois contemplaram as crianças fremen, que continuavam capturando trutas de areia. Sabia que seu pai, nas profundidades do canyon, estava tentando imaginar novas formas de potencializar o crescimento das plantas, de acrescentar vegetação suplementar para aumentar o rendimento e reter os nitratos no chão. Suponho que nunca brincou com uma truta de areia em sua vida, pensou.
Warrick e ele pensaram em outras coisas e se concentraram em esquadrinhar a noite. Por fim, depois de um longo silêncio, ambos falaram em uníssono, o que os fez rir.
— Sim, perguntaremos quando voltarmos ao sietch da Muralha Vermelha.
Enlaçaram as mãos, confiantes... mas aliviados em segredo por ter deixado a decisão em outras mãos.
Os fremen do sietch de Heinar celebraram com alvoroço a volta de Pardot Kynes.
A jovem Faroula cruzou os braços, enquanto via o grupo desfilar através das portas impermeáveis. Seu longo cabelo escuro pendia em cachos sedosos, presos com anéis de água, até seus ombros. Seu rosto era estreito, como o de um elfo. Seus grandes olhos eram atoleiros negros. Um ligeiro rubor dançava sobre suas bochechas bronzeadas.
Primeiro olhou para Liet, e depois para Warrick. Uma expressão séria aparecia em seu rosto, seus lábios mal demonstravam que estava satisfeita em segredo, mais que ofendida, pelo que os dois jovens acabavam de lhe pedir.
— E por que deveria escolher um? — Faroula contemplou os dois pretendentes durante um longo momento, conseguiu que se retorcessem devido à agonia da impaciência —. De onde vem tanta confiança?
— Mas... — Warrick deu um golpe no peito —. Combati muitos soldados Harkonnen. Cavalguei em um verme de areia até o pólo sul...
Liet o interrompeu,
— Fiz o mesmo que Warrick, e além disso sou o filho do Umma Kynes, seu herdeiro e sucessor como planetólogo. Talvez chegue um dia em que abandone este planeta para visitar a corte imperial de Kaitain. Sou...
Faroula desprezou com um gesto impaciente suas bravatas.
— E eu sou a filha do naib Heinar. Posso escolher o homem que quiser.
Liet emitiu um grunhido gutural e seus ombros caíram. Warrick olhou para seu amigo, mas se ergueu em toda sua estatura e procurou recuperar sua arrogância.
— Bem, então... escolha!
Faroula riu, tampou a boca e voltou a adotar sua expressão severa.
— Ambos possuem qualidades admiráveis... ao menos algumas. Além disso, suponho que se não tomar uma decisão o quanto antes, acabarão se matando para se exibirem para mim, se pedisse provas como essa. — Agitou a cabeça, e seu longo cabelo tilintou com o movimento dos anéis de água. Levou um dedo aos lábios enquanto refletia. Um brilho travesso apareceu em seus olhos —. Concedam-me dois dias para decidir. Devo meditar. — Como viu que nenhum dos dois se mexia, sua voz adotou um tom mais crispado —: Não fiquem me olhando como cordeiros degolados! Têm trabalho para fazer. Digo-lhes uma coisa: nunca me casarei com um marido preguiçoso.
Liet e Warrick quase tropeçaram quando se esforçaram por ocupar-se em algo que parecesse importante.
Depois de esperar durante dois longos e torturantes dias, Liet descobriu uma nota envolta em sua habitação. Abriu o papel de especiaria, com o coração acelerado e abatido ao mesmo tempo: se Faroula tivesse escolhido a ele, por que não o havia dito em pessoa? Mas quando seus olhos leram as palavras que tinha escrito, seu fôlego se paralisou em sua garganta.
“Espero você na longínqua Cova das Aves. Entregarei-me ao primeiro homem que chegar.”
Era tudo que a nota dizia. Liet olhou para ela durante vários segundos e depois correu pelos corredores do sietch até os aposentos de Warrick. Afastou as cortinas e viu que seu amigo estava preparando freneticamente uma bolsa e uma mochila.
— Ela lançou um desafio — disse Warrick sem voltar.
Era uma prova em que os jovens fremen demonstravam sua virilidade. Os dois se olharam, paralisados por um momento.
Depois, Liet deu meia volta e correu para seus aposentos. Sabia muito bem o que devia fazer.
Era uma corrida.
É possível embriagar-se com a rebelião pela rebelião em si.
Dominic Vernius
Lembranças de Ecaz.
Nem sequer dois anos em um poço de escravos Harkonnen dominou o caráter de Gurney Halleck. Os guardas o consideravam um prisioneiro difícil, distinção que ele considerava uma medalha de honra.
Embora o espancassem com regularidade, até lhe deixar a pele arroxeada, os ossos quebrados e a carne rasgada, Gurney sempre se recuperava. Chegou a conhecer muito bem o interior da enfermaria, e a compreender os métodos milagrosos a que os médicos recorriam para remendar feridas e conseguir que os escravos voltassem a trabalhar.
Depois de sua captura na casa de prazer tinha sido jogado no interior das minas de obsidiana e os poços de gentil, onde se viu obrigado a trabalhar com mais afinco que quando cavava sarjetas para plantar tubérculos krall. De todos os modos, Gurney não sentia falta daqueles tempos. Ao menos morreria sabendo que tinha tentado lutar.
Os Harkonnen não se incomodaram em interrogá-lo a respeito de quem era ou por que tinha ido até ali. Consideravam-no mais um corpo produtivo. Os guardas acreditavam que o tinham domesticado, e não lhes importava nada mais...
A princípio, Gurney tinha sido atribuído aos penhascos do monte Ebony, onde seus companheiros de equipe e ele utilizavam detonadores sônicos e perfuratrizes a laser para cortar pedaços de obsidiana azul, uma substância translúcida que parecia absorver a luz do ar. Gurney e seus companheiros estavam presos uns aos outros mediante grilhões capazes de expulsar fio shiga, que seccionava seus membros se lutassem.
A equipe de trabalhadores subiam por caminhos estreitos na montanha na manhã gelada, e trabalhava durante longos dias de sol abrasador. Ao menos uma vez na semana, alguns escravos morriam ou ficavam mutilados por causa de cristais vulcânicos soltos. Os capatazes e guardas não se importavam. Faziam batidas periódicas ao longo de Giedi Prime para recrutar mais escravos.
Depois de sobreviver nos penhascos, Gurney foi transferido para uma equipe de trabalho menor nos poços de processamento, onde chapinhava em soluções emulsionantes para preparar peças pequenas de obsidiana destinadas a embarques. Protegido apenas com calças curtas grossas, trabalhava mergulhado até a cintura em um líquido gelatinoso pestilento, uma espécie de leite abrasivo ao qual se acrescentava um componente algo radiativo que ativava o cristal vulcânico. O tratamento conseguia que o produto terminado emitisse uma aura de um azul escuro como a meia-noite.
Amarga ironia, descobriu que só os mercadores de jóias de Hagal vendiam a muito escassa e valiosa “obsidiana azul”. Embora se supunha que procedia das minas de Hagal, sua origem era um segredo zelosamente guardado. A casa Harkonnen era a fornecedora do cristal vulcânico, o que lhe proporcionava grandes lucros.
O corpo de Gurney se transformou em uma tapeçaria de pequenos cortes e arranhões. Sua pele desprotegida absorvia a fedorenta e ácida solução. Não havia dúvida de que o mataria dentro de poucos anos, mas suas possibilidades de sobreviver nos poços de escravos também eram escassas. Depois do sequestro de Bheth, seis anos antes, tinha deixado de fazer planos a longo prazo. Não obstante, enquanto chapinhava no líquido e removia os pedaços de obsidiana, afiados como facas, conservava a cabeça erguida para o céu e o horizonte, enquanto os outros escravos tinham a vista cravada na mistura imunda.
Uma manhã, o supervisor subiu a seu estrado com filtros antiodor metidos no nariz. Usava uma túnica azul que deixava à mostra seu peito esquelético e uma barriga avultada.
— Parem de sonhar acordados aí em baixo. Escutem todos. — Ergueu a voz, e Gurney captou algo estranho no timbre das palavras —. Um nobre convidado deve inspecionar nossas instalações. Glossu Rabban, designado pelo barão como seu herdeiro, fiscalizará nossas cotas de produção, e é muito provável que exija mais trabalho de vocês, vermes preguiçosos. Se esforcem hoje, porque amanhã desfrutarão de férias enquanto ele os inspeciona.
O supervisor franziu o sobrecenho.
— E não pensem que não é uma honra. Surpreende-me que Rabban aceite suportar seu fedor.
Gurney entreabriu os olhos. O ignominioso assassino Rabban vinha para cá? Começou a cantarolar uma canção para si, uma das ácidas melodias satíricas que tinha cantado no bar de Dmitri antes do primeiro ataque Harkonnen:
Rabban, Rabban, o bruto fanfarrão,
nem um grama de cérebro em sua cabeça, só fruta podre.
Seus músculos, sua força,
conseguem que um homem inteligente boceje.
Sem o barão, é um indigente!
Gurney não pôde reprimir um sorriso, mas manteve o rosto oculto do supervisor. Não lhe valeria de nada deixar que o homem observasse uma expressão divertida no rosto de um escravo.
Desejava se encontrar cara a cara com aquele criminoso.
Quando Rabban e sua escolta chegaram, carregavam tantas armas que Gurney teve que conter uma gargalhada. Do que tinham medo? De uma turma de prisioneiros extenuados pelo trabalho, obrigado à submissão durante anos?
Os guardas tinham ativado os núcleos dos grilhões e algemas, de modo que o fio shiga mergulhava em seus punhos, para recordá-los que um movimento brusco podia cortar a carne até o osso. A intenção era que os prisioneiros se mostrassem passivos, possivelmente até respeitosos, diante de Rabban.
O ancião preso a Gurney tinha umas articulações tão angulosas que parecia um inseto. Tinha perdido o cabelo e tremia devido a uma desordem neurológica. Não compreendia o que acontecia ao seu redor. Gurney sentiu compaixão pelo indivíduo e se perguntou se esse era o destino que o aguardava um dia... se vivesse tanto.
Rabban usava um uniforme negro de pele, acolchoado para acentuar seus músculos e ombros largos. Um grifo azul Harkonnen adornava o lado esquerdo do seu peito. Suas botas negras estavam tão polidas que resplandeciam, e rebites de latão adornavam seu cinturão grosso. O rosto largo de Rabban tinha uma aparência corada, como se tomasse sol com excessiva freqüência, e usava um capacete militar que cintilava à nebulosa luz do sol. Carregava uma pistola de dardos embainhada sobre seu quadril, junto com munição de reserva.
Um desagradável chicote de tintaparra111 pendia do seu cinto. Sem dúvida Rabban procuraria uma oportunidade de utilizá-lo. Um líquido vermelho negro preso no longo chicote corria como sangue vivo e fazia que as caudas providas de pontas se retorcessem e enrolassem. O líquido (uma substância venenosa que possuía propriedades comerciais como tintura e branqueador) podia causar dores temíveis.
Rabban não pronunciou nenhum discurso diante dos escravos. Seu trabalho não era inspirá-los, devia aterrorizar os capatazes para que obtivessem mais produtividade. Já tinha visto os poços de escravos, e agora passou ante a fileira de prisioneiros, sem lhes dar atenção.
O supervisor o seguia, tagarelando com uma voz aflautada pelos filtros encaixados em suas fossas nasais.
— Fizemos todo o possível por aumentar a eficácia, lorde Rabban. Alimentamos-lhes apenas com o necessário para que continuem trabalhando no máximo rendimento. Suas roupas são trocadas, mas resistentes. Duram anos, e voltamos a utilizá-las quando os prisioneiros morrem.
O rosto pétreo de Rabban não mostrou a menor satisfação.
— Poderíamos instalar maquinaria — sugeriu o superintendente — para algumas das tarefas mais simples. Isso melhoraria nossa produção...
O homem corpulento o fulminou com o olhar.
— Nosso objetivo não é só aumentar a produção. Destruir estes homens é tão importante quanto isso.
Olhou para eles de um ponto próximo a Gurney e ao prisioneiro espasmódico. Os olhos de Rabban se cravaram no patético prisioneiro. Sacou a pistola de dardos e disparou a queima-roupa. O prisioneiro mal teve tempo de erguer os braços em um gesto de proteção. A chuva de projéteis terminados em agulhas chapeadas atravessou suas mãos e se cravou em seu coração. Caiu morto sem emitir um grito.
— Os fracos esbanjam nossos recursos.
Rabban se afastou um passo.
Gurney não teve tempo de pensar nem fazer planos, mas compreendeu em um impulsivo instante o que podia fazer para devolver o golpe. envolveu os punhos com parte da camisa do prisioneiro morto, para impedir que o fio cortasse sua pele, ergueu-se com um rugido e puxou com todas as suas forças. O fio shiga encontrou o obstáculo de seus punhos protegidas e seccionou os punhos do morto.
Utilizou uma das mãos cortadas do morto como manga e se lançou para um atônito Rabban, esgrimindo o fio shiga, afiado como uma navalha. Antes de que Gurney pudesse alcançar o jugular do homem, Rabban reagiu com velocidade surpreendente. Gurney perdeu o equilíbrio e só conseguiu atirar ao chão de um golpe a pistola de dardos.
O supervisor gritou e retrocedeu. Rabban, ao ver que tinha perdido a pistola, fustigou a bochecha e a mandíbula de Gurney com seu chicote. Uma das caudas espinhosas esteve a ponto de cravar-se em um olho.
Gurney nunca imaginara que um chicote pudesse fazer tanto estrago, mas quando os cortes se registraram em seus nervos, o líquido agiu como um ácido potente. Sua cabeça explodiu em uma bomba de dor que atravessou seu crânio e mergulhou no centro da sua cabeça. Deixou cair a mão do ancião, que ficou pendurada do fio shiga enrolado em um dos seus pulsos.
Gurney recuou, cambaleante. Os guardas se lançaram sobre ele. Outros prisioneiros fugiram gritando de terror. Os guardas se prepararam para matar ao Gurney, mas Rabban levantou uma mão para detê-los.
Gurney apenas sentia a dor em sua bochecha e pescoço, quando o rosto de Rabban se materializou a frente de seus olhos. Não demorariam para matá-lo, mas por enquanto, podia agarrar-se ao ódio que sentia por este... este Harkonnen.
— Quem é este homem? Por que está aqui e por que me atacou?
Rabban fulminou o supervisor com o olhar, este pigarreou.
— Bem... terei que consultar os arquivos, meu senhor.
— Pois vá. Descubra de onde veio. — Rabban sorriu —. E descubra se tem familiares vivos.
Gurney evocou em sua mente a insípida letra de sua canção sarcástica: Rabban, Rabban, o bruto fanfarrão...
Mas quando ergueu os olhos e viu a cara feia do sobrinho do barão, compreendeu que Glossu Rabban riria por último.
O que é cada homem, além de uma lembrança para os que o seguem?
Duque Leto Atreides
Uma noite, o duque Leto e sua concubina estavam discutindo aos gritos por mais de uma hora, e Thufir Hawat estava preocupado. Achava-se na asa ducal, perto da porta fechada do dormitório de Leto. Se um dos dois saisse, Hawat se esquivaria por um dos passadiços laterais que perfuravam o castelo. Ninguém conhecia melhor os corredores e caminhos secretos que o Mentat.
Algo se chocou contra o chão da habitação. A voz de Kailea se impôs ao tom enfurecido do duque. Hawat não compreendia o que diziam, mas tampouco era necessário. Como chefe de segurança, era responsável pelo bem-estar pessoal do duque. Não queria intervir, mas nas atuais circunstâncias sua principal preocupação era a possibilidade de que Leto e sua concubina se agredissem.
— Não penso me passar a vida discutindo sobre coisas que não podem mudar! — gritou Leto, exasperado.
— Então por que não ordena que matem a mim e ao Victor? Essa seria a melhor solução. Ou nos envie a um lugar onde não tenha que pensar em nós... como fez com sua mãe.
Hawat não ouviu a resposta de Leto, mas sabia muito bem por que o jovem duque tinha banido lady Helena.
— Você não é o homem por quem me apaixonei, Leto — continuou Kailea —. É por causa da Jessica, não é? Essa bruxa te seduziu?
— Não seja ridícula. Não visitei sua cama nenhuma só vez desde que chegou, faz um ano e meio, embora tenha todo o direito de fazê-lo.
Seguiram-se alguns segundos de silêncio. O Mentat esperou, tenso.
— A mesma história de sempre — disse por fim Kailea, com um suspiro sarcástico —. Jessica vive aqui só por uma questão política. Não casar-se comigo é só política. Ocultar sua implicação com Rhombur e os rebeldes de IX é só política. Estou farta de sua política. É tão intrigante como qualquer dirigente do Império.
— Eu não sou um intrigante. São meus inimigos que conspiram contra mim.
— As palavras de um verdadeiro paranóico. Agora entendo por que não se casou comigo nem nomeou Victor como seu legítimo herdeiro. É uma conspiração Harkonnen.
O tom razoável de Leto deu passagem a uma explosão de raiva.
— Nunca prometi o matrimônio, Kailea, mas por você não tomei outra concubina.
— E que me importa, se nunca serei sua esposa? — Uma seca gargalhada sublinhou o desprezo das palavras da Kailea —. Sua “fidelidade” é apenas mais uma tentativa de aparentar respeitabilidade... só política.
Leto respirou fundo, como se as palavras tivessem sido um golpe físico.
— Possivelmente tenha razão — admitiu com uma voz tão gélida como o inverno de Lankiveil —. Para que me incomodar tanto? — A porta do dormitório se abriu de repente, e Hawat se fundiu com as sombras —. Não sou seu animal doméstico, nem um idiota, Kailea, sou o duque.
Leto se afastou pelo corredor, murmurando e amaldiçoando. Atrás da porta entreaberta, Kailea rompeu a chorar. Não demoraria para chamar Chiara, e a anciã gordinha a consolaria por toda a noite.
Hawat seguiu o duque sem ser visto por um corredor atrás de outro, até que Leto entrou nos aposentos de Jessica sem chamar.
Advertida imediatamente por seu treinamento Bene Gesserit, Jessica acendeu um globo azul.
O duque Leto!
Levantou-se na cama com baldaquino que tinha sido de Helena Atreides, mas não fez o menor tentativa de cobrir-se. Usava uma camisola rosa de seda merh, muito decotada. Um tênue aroma de lavanda pendia no ar, vindo de um emissor de feromonas oculto na junta do teto. Esta noite, como todas, preparara-se com supremo cuidado... com a esperança de que ele viria.
— Meu senhor? — Viu sua expressão furiosa e preocupada quando entrou no círculo de luz —. Aconteceu algo?
Leto passeou a vista ao redor e respirou fundo, para tentar controlar a adrenalina, a insegurança, a decisão que tinha surgido em seu interior. Gotas de suor cobriam sua testa. Sua jaqueta negra pendia torcida, como se a tivesse posto rapidamente sobre os ombros.
— Vim pelos motivos menos adequados — disse o duque.
Jessica desceu da cama e jogou uma bata verde sobre os ombros.
— Nesse caso, devo aceitar esses motivos e me sentir agradecida. Posso lhe servir algo? No que posso ajudá-lo?
Embora fizesse meses que o esperava, não experimentou nenhuma sensação de triunfo, só preocupação por vê-lo tão agitado.
Leto tirou a jaqueta e se sentou na beira da cama.
— Não estou em condições de me apresentar a uma dama.
Ela lhe massageou os ombros.
— É o duque e está em seu castelo. Pode se apresentar como quiser. — Tocou seu cabelo escuro e acariciou suas têmporas com movimentos sensuais.
Como se imaginasse um sonho, Leto fechou os olhos. Jessica percorreu sua bochecha com um dedo e o apoiou sobre seus lábios para silenciar qualquer palavra. Seus olhos verdes dançaram.
— Seu estado é perfeitamente aceitável para mim, meu senhor.
Quando afrouxou os fechos de sua camisa, Leto suspirou e deixou que o levasse para a cama. Esgotado de mente e corpo, esmigalhado pela culpa, estendeu-se de bruços sobre os lençóis que cheiravam a pétalas de rosa e coriandro. Parecia que se afundava no tecido suave, e se deixou arrastar.
As delicadas mãos de Jessica deslizaram por sua pele nua, e massageou os músculos tensos de suas costas, como se o tivesse feito milhares de vezes. Para a Jessica foi como se aquele momento estivesse programado desde o começo dos tempos.
Por fim, Leto se virou para olhá-la. Quando seus olhos se encontraram, ela viu fogo de novo neles, mas desta vez sem ira. Tampouco se apagou. Tomou-a em seus braços e se fundiram em um beijo apaixonado.
— Me alegro de que tenha vindo, meu duque — disse ela, recordando todos os métodos de sedução que a Irmandade lhe ensinara, mas descobriu que o queria, que falava sério.
— Não deveria ter esperado tanto, Jessica — disse o duque.
Enquanto Kailea chorava, sentia mais ira por seu fracasso que pena por deixar Leto escapar. Ele a decepcionara muito. Chiara lhe tinha recordado uma e outra vez seu berço nobre, o futuro que merecia. Kailea temia que essas esperanças se esfumaçassem para sempre.
A Casa Vernius não estava totalmente morta, e sua sobrevivência talvez dependesse dela. Era mais forte que seu irmão, cujo apoio aos rebeldes era pouco mais que ilusões. Sentia a absoluta convicção de que a Casa Vernius só sobreviveria graças a seus esforços, e à larga por meio do seu filho Victor.
Estava decidida a conseguir para ele a posição social que lhe correspondia por direito de nascimento. Todo seu amor, todos seus sonhos, dependiam do futuro do menino.
Por fim, já bem entrada a noite, mergulhou em um sono inquieto.
Durante as semanas seguintes, Leto procurou Jessica cada vez com maior freqüência e começou a considerá-la sua concubina. Às vezes irrompia em sua habitação sem dizer uma palavra e fazia amor com feroz intensidade. Depois, satisfeito, abraçava-a durante horas e falava.
Graças a seus talentos Bene Gesserit, Jessica o estudara durante dezesseis meses, e conhecia os problemas de Caladan. Conhecia as dificuldades diárias que Leto Atreides enfrentava como governador do planeta, administrador de uma Grande Casa, membro do Landsraad, sempre atento às maquinações políticas e diplomáticas do Império.
Jessica sabia muito bem o que devia dizer, como o aconselhar sem insistir... Pouco a pouco, Leto começou a considerá-la algo mais que uma amante.
Jessica tentava não pensar em Kailea Vernius como uma rival, mas a outra mulher se equivocara ao tentar dobrar a vontade do nobre. Ninguém podia obrigar o duque Atreides a fazer nada.
Às vezes, Leto lhe falava de sua difícil convivência com Kailea enquanto davam longos passeios pelos caminhos do escarpado.
— Têm todo o direito, meu senhor. — O tom da jovem era suave, como uma brisa do verão sobre o mar de Caladan —. Mas parece muito triste. Oxalá pudéssemos fazer algo por ela. Ela e eu poderíamos ser amigas.
Leto olhou-a com expressão perplexa, enquanto o vento desordenava seu cabelo escuro.
— Você é muito melhor que ela, Jessica. Kailea só sente ódio por você.
Jessica tinha visto a profunda dor da mulher ixiana, as lágrimas que tentava conter, os olhares envenenados que lhe lançava.
— É possível que as circunstâncias distorçam seu ponto de vista. Desde a queda da Casa Vernius, sua vida foi difícil.
— E eu procurei facilitá-la. Pus em perigo a fortuna de minha família quando alojei ela e Rhombur quando sua Casa foi declarada renegada. Tive muita consideração com Kailea, mas ela sempre quer mais.
— Em uma época sentiu afeto por você — disse Jessica —. É a mãe de seu filho.
Leto sorriu com ternura.
— Victor... Ai, esse menino tem feito que valessem a pena todos os momentos passados com sua mãe. — Contemplou o mar em silêncio —. Sua sabedoria é superior a sua idade, Jessica. Possivelmente eu tente uma vez mais.
Ela não sabia o que lhe tinha acontecido, por que lhe tinha enviado de novo aos braços de Kailea. Mohiam a teria repreendido por isso. Mas como podia deixar de animá-lo a pensar com afeto na mãe de seu filho, uma mulher que amara? Apesar de seu treinamento Bene Gesserit, que exigia um controle absoluto sobre as paixões, Jessica se sentia muito unida com seu amante. Talvez demais.
Mas também existisse outra ligação, que remontava a muito tempo atrás. Graças a suas habilidades reprodutivas Bene Gesserit, poderia ter manipulado o esperma de Leto e seus óvulos durante a primeira noite que passaram juntos, para assim conceber a filha que suas superioras lhe tinham ordenado engendrar. Por que não tinha completado as ordens? Por que estava adiando?
Jessica experimentava um torvelinho interior que nublava sua percepção do problema. Acreditava que diversas forças lutavam por assumir o controle. Por um lado, sem dúvida, a Bene Gesserit, uma presença sussurrante que exigia que cumprisse suas obrigações, seus votos. Mas qual era a força oposta? Não era Leto. Não, era algo muito maior e importante que o amor de duas pessoas em um imenso universo.
Mas não tinha nem idéia do que era.
No dia seguinte, Leto visitou Kailea nos aposentos da torre, onde passava quase todo o tempo, aumentando o abismo que os separava. Quando entrou, ela se virou para ele, disposta a outra explosão de ira, mas Leto se sentou em um sofá, a seu lado.
— Sinto que nossos pontos de vista sejam diferentes, Kailea. — Segurou suas mãos com firmeza —. Não posso mudar de opinião sobre o casamento, mas isso não significa que não a queira.
Ela se soltou, desconfiada.
— O que aconteceu? Jessica o chutou da sua cama?
— Absolutamente. — Leto pensou em contar a Kailea o que a outra mulher lhe havia dito, mas desprezou a idéia. Se Kailea pensasse que Jessica estava por trás daquela decisão, não a aceitaria —. Tomei medidas para te enviar um presente, Kailea.
Ela sorriu, bem a seu pesar. Passara muito tempo desde que Leto a presenteara com quinquilharias caras.
— O que é? Jóias?
Estendeu a mão para o bolso da jaqueta, onde Leto costumava esconder anéis, broches, braceletes e colares para ela. Nos primeiros tempos, ele a tinha animado a procurar novos presentes em sua roupa, um jogo que costumava levar a outras coisas.
— Desta vez não — disse ele com um sorriso agridoce —. Você está acostumada a um lar muito mais elegante que meu austero castelo. Lembra da sala de baile do Grande Palácio de IX, com suas paredes cor anil?
Kailea olhou para ele perplexa.
— Sim, uma obsidiana de um azul muito peculiar. Faz anos que não vejo nada semelhante. — Sua voz adquiriu um tom nostálgico e distante —. Lembro que quando era menina, com meu vestido de baile, olhava-me nas paredes translúcidas. As numerosas camadas faziam os reflexos parecerem fantasmas. As luzes das aranhas brilhavam como estrelas na galáxia.
— Decidi instalar um revestimento de obsidiana azul na sala de baile do castelo de Caladan — anunciou Leto —, e também em seus aposentos. Todos saberão que o fiz por você.
Kailea não sabia o que pensar.
— É para acalmar sua consciência? — Era um desafio a que a contradissesse —. Acha que é tão fácil?
Ele negou com a cabeça lentamente.
— Superei a ira, Kailea, e só sinto afeto por você. Sua obsidiana azul já foi encomendada a um mercador de Hagal, embora demore alguns meses para chegar.
Caminhou para a porta e se deteve. Ela o seguiu em silêncio. Por fim, respirou fundo como se falar lhe custasse um grande esforço.
— Obrigado — disse quando ele saía.
Um homem pode lutar contra o maior inimigo, empreender a viagem mais longa, sobreviver à ferida mais grave, e não obstante sentir-se indefeso nas mãos da mulher que ama.
Sabedoria zensunni da Peregrinação
Liet-Kynes, quase sem fôlego devido à impaciência, obrigou-se a agir com calma, a não cometer erros. Embora entusiasmado por obter a mão de Faroula, se não se preparasse como devia para o desafio, podia encontrar a morte em vez de uma esposa.
Com o coração palpitante, colocou seu traje destilador e verificou as conexões e fechos para não perder nenhuma gota de umidade. Fez a bagagem, incluindo água e comida extra, e levou fez um inventário dos objetos que continha em seu mochila: tenda destiladora, parabússola, manual, mapas, snork de areia, ferramentas de compressão, faca, binóculos, estojo de reparos.
Por fim, Liet acrescentou os ganchos do produtor e batedores de areia que necessitaria para chamar um verme que o transportasse através da Grande Extensão e do Erg Habbanya, até a Crista Habbanya.
A Cova das Aves era um local de parada isolado para os fremen que viajavam, para os que não tinham um sietch permanente. Faroula teria partido dois dias antes, depois de convocar um verme, algo que poucas mulheres fremen eram capazes de fazer. Saberia que a cova estava vazia. Estaria ali esperando Liet, ou Warrick, ao que chegasse primeiro.
Liet se preparava no quarto contiguo aos aposentos de seus pais. Sua mãe ouviu seus movimentos frenéticos a uma hora muito avançada e afastou as cortinas.
— Por que está se preparando para viajar, meu filho?
Ele a olhou.
— Vou ganhar minha esposa, mãe.
Frieth sorriu.
— Então Faroula lançou o desafio.
— Sim, e tenho que me apressar.
Frieth checou os fechos de seu traje destilador e prendeu a mochila em suas costas, enquanto Liet desdobrava mapas impressos em papel de especiaria, afim de revisar a geografia que só os fremen conheciam. Estudou a topografia do deserto, os afloramentos rochosos, as depressões salgadas. Relatórios climáticos mostravam as zonas mais propícias a tormentas e furacões.
Sabia que Warrick tinha vantagem, mas seu amigo impetuoso não teria tomado tantas precauções. Warrick se lançaria ao desafio e confiaria em suas habilidades fremen, mas os problemas inesperados exigiam tempo e recursos para resolvê-los, e Liet investiu aqueles minutos de atraso em economizar tempo mais tarde.
Sua mãe o beijou na bochecha.
— Lembre-se que o deserto não é seu amigo nem seu inimigo... é apenas um obstáculo. Utilize-o em seu proveito.
— Sim, mãe. Warrick também sabe disso.
Não encontraram Pardot Kynes em nenhuma parte, coisa muito normal. Liet podia ir e vir do sietch da Muralha Vermelha antes que o planetólogo começasse a compreender a importância da luta de seu filho.
Quando saiu do sietch e parou sobre a colina escarpada, Liet examinou as areias iluminadas pelas luas. Ouviu a vibração de um batedor de areia longínquo.
Warrick já tinha posto mãos à obra.
Liet desceu correndo o penhasco íngreme até a depressão, mas se deteve uma vez mais. Os vermes de areia possuíam amplos territórios que defendiam ferozmente. Warrick já estava chamando um dos gigantescos animais, e passaria muito tempo antes que Liet pudesse atrair um segundo verme para a mesma zona.
Em conseqüência disso, subiu a colina e desceu pelo outro lado, em direção a uma depressão pouco profunda. Liet confiava em procurar uma besta melhor que a de seu amigo.
Enquanto descia o penhasco, usando os pés e mãos, Liet estudou a paisagem que se estendia a frente dele e descobriu uma longa duna virada para o deserto. Seria um bom lugar para esperar. Plantou um batedor e o pôs em funcionamento sem temporizador. Teria vários minutos para atravessar a areia e subir a duna. Na escuridão seria difícil ver as ondulações que indicavam a aproximação de um verme.
Quando ouviu o tump tump tump do artefato, tirou ferramentas da mochila, estendeu as varas fustigadoras e os ganchos do produtor e finalmente rodeou os espetos em suas costas. Em todas as ocasiões anteriores em que tinha convocado vermes, tinha contado com vigias e auxiliares, gente que o ajudava se surgissem dificuldades, mas desta vez Liet-Kynes tinha que fazê-lo sozinho. Completou cada fase segundo o ritual familiar, e se dispôs a esperar.
Do outro lado da colina, Warrick já teria montado e correria através da Grande Extensão. Liet confiava em que poderia recuperar o tempo perdido. Demoraria dois, talvez três dias para chegar a Cova das Aves... e nesse tempo podiam acontecer muitas coisas.
Afundou os dedos na areia e adotou uma imobilidade absoluta. Não soprava vento, não se ouvia outra coisa além do batedor, até que por fim percebeu o vaio estático da areia em movimento, o estrondo do gigante que rastejava sob as dunas, atraído pelo batimento do coração regular do batedor. O verme foi se aproximando, precedido por uma crista de areia.
— Shai-Hulud enviou um grande Criador — disse Liet com um longo suspiro.
O verme se desviou para o batedor. Seu enorme lombo segmentado se erguia sobre a areia, coberto de refugos.
Liet ficou paralisado por mais um momento, e depois correu com os ganchos do produtor em ambas as mãos. Mesmo com os filtros do traje destilador, sentiu o cheiro de sulfureto, rocha queimada e dos potentes ésteres acres da melange que gotejava do verme.
Correu junto ao animal, enquanto este engolia o batedor. Antes que o verme pudesse enterrar-se de novo, Liet jogou um dos ganchos e cravou sua ponta reluzente na beira de um segmento. Puxou com todas as suas forças e abriu o segmento, para deixar ao descoberto a carne rosada, muito delicada para tocar as areias abrasivas. Depois se agarrou bem.
Para evitar irritações na ferida aberta entre os segmentos, o verme rodou para cima, arrastando Liet com ele. Estendeu a outra mão, cravou um segundo gancho e o afundou mais no segmento. Puxou de novo para alargar a brecha.
O verme se ergueu em reflexo, acovardado por aquela nova ofensa.
Geralmente, no caso de haver outros cavaleiros fremen, estes abriam mais segmentos, mas Liet estava sozinho. Afundou as botas na carne dura do Shai-Hulud, ergueu-se um pouco mais e depois plantou separadores para manter aberto o segmento. O verme surgiu da areia, e Liet deu sua primeira aguilhada para obrigar o verme a dar meia volta e dirigir-se para a Grande Extensão.
Liet segurou suas cordas, terminou de plantar seus ganchos, ficou em pé e olhou para o sinuoso arco do verme. O Criador era enorme! Possuía um ar de dignidade, de grande antigüidade, que remontava às raízes do planeta. Jamais tinha visto um ser semelhante. Poderia montá-lo durante muito tempo, a grande velocidade.
Talvez ultrapassasse Warrick...
Seu verme corria sobre as areias enquanto as duas luas se erguiam no céu. Liet estudou seu curso, com a ajuda das estrelas e das constelações, seguindo a cauda do desenho de um camundongo conhecido como Muad'Dib, “o que assinala o caminho”, de maneira que sempre sabia orientar-se.
Cruzou o rastro ondulante do que talvez fosse outro grande Criador que tinha atravessado a Grande Extensão. Era muito provável que se tratasse do verme de Warrick, pois Shai-Hulud poucas vezes viajava sobre a superfície, a menos que o provocassem. Liet confiava que a sorte estivesse ao seu lado.
Depois de muitas horas, a corrida adquiriu uma monótona familiaridade, e foi invadido por um grande torpor. Poderia cochilar se se amarrasse ao verme, mas Liet não se atreveu. Tinha que permanecer acordado para guiar o monstro. Se Shai-Hulud se desviasse do caminho correto, Liet perderia tempo, e não podia permitir isso.
Cavalgou no lombo do monstro durante toda a noite, até que a aurora tingiu o céu e apagou as estrelas. Vigiava a aparição de algum tóptero Harkonnen, embora as patrulhas não costumassem cruzar a linha dos sessenta graus.
Continuou cavalgando durante a manhã, até que ao chegar ao ponto mais quente do dia, o enorme verme tremeu, revolveu-se e combateu toda tentativa de continuar. Estava à beira do esgotamento. Liet não se atreveu a insistir. Os vermes podiam correr até morrer, e isso seria um mau presságio.
Desviou o animal para um arquipélago de rochas. Soltou os ganchos e os separadores, correu ao longo dos segmentos anelados e saltou para terra, segundos antes que o verme mergulhasse na areia. Liet se precipitou para as rochas, a única franja de cor escura em uma monotonia de brancos, torrados e amarelos, uma barreira que separava uma enorme depressão de outra.
Se agachou sob uma manta de camuflagem que repelia o calor e dispôs o temporizador da mochila para que despertasse depois de uma hora. Embora seus instintos e sentidos externos continuassem alerta, seu sonho foi profundo e reparador.
Quando despertou, subiu pela barreira de rochas até chegar à beira do imenso erg Habbanya. Liet plantou um segundo batedor e chamou outro verme, muito menor, mas de qualquer modo um animal formidável que lhe permitiria prosseguir viagem. Cavalgou durante toda a tarde.
No final da tarde, os olhos penetrantes de Liet distinguiram uma tênue mancha nas ladeiras em sombras das dunas, um verde cinza onde brincos de erva entrelaçavam suas raízes para estabilizar as dunas deslizantes. Os fremen tinham plantado sementes naquele lugar, tinham cuidado delas. Embora só uma dentre mil brotasse e vivesse o suficiente para reproduzir-se, seu pai estava fazendo progressos. Um dia, Duna voltaria a ser verde.
Durante o hipnótico estrondo do avanço do verme, hora atrás de hora, ouviu os sermões de seu pai: “Ancorem a areia, e arrebataremos do vento uma de seus melhores armas. Em alguns dos cinturões climáticos deste planeta, os ventos não superam os cem klics por hora. É o que chamamos “lugares de risco mínimo”. As plantações dos lados orientados a favor do vento alimentarão as dunas, criarão amplas barreiras e aumentarão o tamanho destes lugares de mínimo risco. Dessa forma, daremos outro pequeno passo para nosso objetivo.”
Liet, meio adormecido, meneou a cabeça. Mesmo aqui, sozinho neste deserto imenso, não posso escapar da voz do grande homem... de seus sonhos, de suas lições.
Mas para Liet ainda restavam horas de viagem. Ainda não tinha visto Warrick, mas sabia que havia muitas rotas. Não diminuiu a velocidade. Por fim, distinguiu uma mancha oscilante no horizonte: a Crista Habbanya, onde se achava a Cova das Aves.
Warrick libertou seu último verme e correu com energias renovadas para as rochas, subindo por um caminho não marcado. As rochas eram de um negro esverdeado e um vermelho ocre, reaquecidas e erodidas pelas tormentas de Arrakis. A areia empurrada pelo vento tinha erodido a face do penhasco. De onde estava não via a entrada da cova, mas era de esperar, pois os fremen não podiam correr o risco de que olhos forasteiros a localizassem.
Tinha viajado bem e conseguido bons vermes. Não tinha descansado em nenhum momento, pois experimentava a imperiosa necessidade de encontrar Faroula antes de qualquer coisa, de pedir sua mão... mas também de superar seu amigo Liet. Poderia contar uma bela história a seus netos. Nos sietch fremen já estariam falando da grande corrida, de que Faroula tinha lançado um desafio incomum para seu ahal.
Warrick subiu com as mãos e os pés até chegar a um rebordo. Perto da abertura camuflada, descobriu um estreito rastro de bota feminina. Faroula o fizera, sem dúvida. Nenhum fremen teria deixado essa marca por acidente. Ela o tinha feito de propósito. Avisava que estava ali, esperando.
Warrick titubeou e respirou fundo. Tinha sido uma longa viagem, e esperava que Liet estivesse bem. Havia a possibilidade de que seu irmão de sangue estivesse se aproximando, já que altas rochas impediam Warrick de ver o deserto circundante. Não queria perder seu amigo, nem mesmo por esta mulher. Confiava que não tivessem que brigar.
Mas queria chegar primeiro.
Warrick entrou na Cova das Aves, formou uma clara silhueta perto da borda da entrada. As sombras do interior o cegaram. Por fim, ouviu uma voz de mulher, palavras sedosas que deslizavam pelas paredes da cova.
— Já era hora — disse Faroula —. Estava esperando.
Não disse seu nome, e por um momento Warrick ficou petrificado. Depois Faroula foi a seu encontro, com a cara de elfo, os braços e as pernas longos e musculosos. Seus grandes olhos pareciam cravar-se em seu interior. Cheirava a ervas doces e potentes aromas, além da melange.
— Bem-vindo, Warrick... meu marido.
Pegou sua mão e o conduziu para o interior da cova.
Warrick, nervoso, sem encontrar as palavras adequadas, manteve a cabeça alta e tirou os filtros do nariz, enquanto Faroula desatava os nós de suas botas.
— Cumpro a promessa que fiz — disse, utilizando as palavras rituais da cerimônia matrimonial fremen —. Verto doce água sobre ti neste lugar ao abrigo do vento.
Faroula continuou com a próxima frase.
— Que nada exceto a água prevaleça sobre nós.
Warrick se aproximou um pouco mais.
— Viverá em um palácio, meu amor.
— Seus inimigos serão destruídos — prometeu ela.
— Conheço-o bem.
— É muito certo.
E disseram em uníssono:
— Percorremos este caminho juntos, que meu amor traçou para ti.
Ao final da bênção e da oração, trocaram um sorriso. O naib Heinar celebraria uma cerimônia oficial quando retornassem ao sietch da Muralha Vermelha, mas ante Deus e seus corações, Warrick e Faroula já estavam casados. olharam-se nos olhos durante um longo momento, e depois se internaram nas frias profundezas da caverna.
Liet chegou ofegante, suas botas espalhavam calhaus no caminho enquanto subia para a abertura da cova, mas parou quando ouviu movimentos em seu interior, vozes. Imaginou que Faroula tivesse levado uma acompanhante, talvez uma criada, ou uma amiga... até que reconheceu a segunda voz, masculina.
Warrick.
Ouviu que terminavam a oração matrimonial e soube que, de acordo com a tradição, haviam se casado. Ela era agora a esposa do seu amigo. Por mais que Liet desejasse Faroula, apesar do pedido que tinha feito ao ver o misterioso Biyan branco, a tinha perdido.
Deu meia volta em silêncio e se sentou nas sombras das rochas, protegidas do sol. Warrick era seu amigo e aceitou a derrota com elegância, mas também com uma tristeza profunda. Necessitaria de tempo e forças para superar esse golpe.
Liet-Kynes esperou uma hora com a vista cravada no deserto. Depois, sem aventurar-se no interior da cova, desceu até a areia e chamou um verme para que o levasse de volta para casa.
Os líderes políticos não reconhecem os usos práticos da imaginação e das idéias inovadoras, até que mãos ensanguentadas as plantam em frente aos seus narizes.
Príncipe herdeiro RAPHAEL CORRINO
Discursos sobre a liderança galáctica.
Nos estaleiros dos Cruzeiros, situados nas profundas cavernas de IX, globos luminosos lançavam sombras e reflexos ao longo das vigas mestras. As vigas brilhavam através da neblina de uma fumaça cáustica, produto de solda queimado e ligas fundidas. Os capatazes gritavam ordens. Pranchas estruturais eram soldadas com um estrépito que ressoava nas paredes rochosas.
Os operários escravizados trabalhavam o mínimo possível, impediam os progressos e diminuíam os lucros dos tleilaxu. Mesmo transcorridos vários meses desde o início da fabricação, o Cruzeiro não era mais que um armação esquelética.
C'tair tinha se juntado à equipe de fabricação, soldava vigas e armações de apoio que reforçavam a enorme área de carga. Hoje tinha que sair para a gruta, para ver o teto artificial.
Onde poderia contemplar o último estágio do seu plano desesperado...
Depois da série de explosões que Miral e ele tinham desencadeado dois anos antes, os tleilaxu tinham adotado um comportamento ainda mais repressivo, mas os ixianos eram imunes a mais penalidades. O exemplo daqueles dois resistentes tinha proporcionado ao povo força para agüentar. “Rebeldes”, que agissem sozinhos ou em pequenos grupos com a determinação adequada, constituíam um exército formidável, uma força que nenhuma repressão podia deter.
O príncipe Rhombur, carente de informação sobre a situação interna de IX, continuava enviando explosivos e outros fornecimentos à resistência, mas só uma mínima quantidade dos embarques tinha chegado às mãos de C'tair e Miral. Os tleilaxu abriam e inspecionavam cada contêiner. Os operários do canyon do porto de entrada tinham sido trocados, e os pilotos das naves substituídos. C'tair perdera todos os seus contatos secretos e voltara a ficar isolado.
De qualquer modos, Miral e ele se alegravam quando viam janelas quebradas, carregamentos internos interrompidos e a produtividade diminuída. Apenas uma semana antes, um homem apolítico, que nunca tinha chamado a atenção, tinha sido surpreso pintando letras em um corredor muito freqüentado: MORTE AOS INSETOS TLEILAXU!
C'tair deslizou com agilidade sobre uma viga mestra para chegar até uma plataforma flutuante, onde recolheu um soldador sônico. Subiu em elevador no alto do esqueleto do Cruzeiro e olhou para baixo. Módulos de vigilância se esquivavam do esqueleto da nave e vigiavam as equipes de operários sob as luzes da caverna. Outros membros da equipe de C'tair continuavam com suas tarefas, ignorantes do que ia acontecer. Um soldador coberto com um macacão se aproximou de C'tair, e ao olhar de esguelha percebeu que era Miral, disfarçada. ocupariam-se disto juntos.
Em qualquer momento.
Os holoprojetores embutidos no céu artificial cintilaram. Nuvens do planeta natal dos tleilaxu estavam semeadas de ilhas arranha-céu projetadas para baixo, profusamente iluminadas. Em outro tempo, esses edifícios tinham parecido estalactites de cristal. Agora, pareciam dentes estilhaçados cravados na rocha.
C'tair se agachou sobre a viga, escutando os ruídos de martilo que ressoavam com um estrondo metálico. Parecia um lobo olhando para a lua. À espera.
Depois, a imagem fictícia do céu oscilou, distorceu-se e mudou de cor, como se nuvens alienígenas estivessem se reunindo para produzir uma falsa tormenta. Os holoprojetores piscaram e projetaram uma imagem muito diferente, tomada na longínqua Caladan. O primeiro plano de um rosto invadiu o céu, como se fosse a cabeça de um deus.
Rhombur tinha mudado muito durante seus dezoito anos de exílio. Parecia muito mais amadurecido, muito mais majestoso, com um olhar endurecido e uma grande determinação em sua voz grave.
— Sou o príncipe Rhombur Vernius — trovejou a projeção, e todos ergueram a vista, atemorizados. Sua boca era tão grande como uma fragata da Corporação, seus lábios se abriam e fechavam para emitir palavras que pareciam ordens celestiais —. Sou o legítimo governante de IX, e voltarei para libertá-los dos seus sofrimentos.
Os ixianos lançaram vivas e exclamações entrecortadas. De sua posição elevada, C'tair e Miral viram que os Sardaukar se moviam de um lado a outro tomados pela confusão, e o comandante Garon gritou para suas tropas imporem a ordem. Os tleilaxu saíram das galerias e gesticularam. Os guardas entraram nos edifícios administrativos.
C'tair e Miral desfrutavam do momento, e se permitiram o luxo de trocar um sorriso de alegria.
— Conseguimos — disseram, palavras que só eles ouviram na confusão reinante.
Tinham dedicado semanas a estudar os sistemas para sabotar os controles dos projetores. Não tinha passado pela cabeça de niguém tomar precauções para evitar tal manobra, tal manipulação do ambiente cotidiano.
No único embarque que chegara a suas mãos, Rhombur Vernius lhes tinha enviado a mensagem gravada, com a esperança de que pudessem difundi-la entre os ixianos leais. O príncipe tinha sugerido disseminar pôsteres falados ou mensagens codificadas nos sistemas de comunicação habituais da cidade subterrânea.
Mas o casal de guerrilheiros se decidiu por fazer algo muito mais memorável. Tinha sido idéia de Miral, e C'tair aperfeiçoara muitos detalhes.
O rosto de Rhombur era largo e quadrado, seus olhos brilhavam com uma paixão que qualquer líder exilado invejaria. Seu cabelo vermelho e alvoroçado lhe conferia um aspecto nobre, embora informal. O príncipe aprendera muito sobre política durante os anos vividos na Casa Atreides.
— Devem se rebelar e derrotar seus opressores. Eles não têm direito de lhes dar ordens nem de manipular suas vidas. Acabem com esta enfermidade chamada Bene Tleilax. Unam-se e utilizem os meios necessários para...
As palavras de Rhombur foram interrompidas quando alguém manipulou os controles do complexo administrativo principal, mas a voz do príncipe continuou, insistente:
—... voltarei. Só espero o momento oportuno. Vocês não estão sozinhos. Minha mãe foi assassinada. Meu pai desapareceu graças ao Império. Mas ainda restamos minha irmã e eu, e vigio IX. Minha intenção é...
A imagem de Rhombur se apagou e desapareceu por fim. Uma escuridão mais negra que a noite tomou conta da gruta. Os tleilaxu tinham preferido desconectar todo o céu a permitir que o príncipe Rhombur terminasse seu discurso.
Mas C'tair e Miral continuavam sorrindo na penumbra. Rhombur tinha falado o suficiente, e seus ouvintes imaginariam mais do que o príncipe exilado poderia dizer.
Ao fim de poucos segundos, os globos luminosos se acenderam, luzes de emergência que brilharam dentro da caverna. Soaram alarmes, mas os ixianos já estavam conversando entre si, entusiasmados. Atribuíam as explosões ao poder do príncipe Rhombur Vernius. Tinham visto as constantes interrupções nas atividades, e o discurso projetado era o gesto mais importante. Era verdade, pensavam. Até era possível que o príncipe Rhombur estivesse entre eles, disfarçado! A Casa Vernius retornaria e expulsaria os malvados tleilaxu. Rhombur devolveria a felicidade e a prosperidade a IX.
Até os suboides estavam alegres. Com amarga ironia, C'tair recordou que aqueles operários fruto da bioengenharia eram também responsáveis pela queda do conde Vernius. Seu descontentamento estúpido, combinado com sua confiança nas promessas dos tleilaxu, tinha provocado o golpe de estado.
A C'tair pouco importava. Aceitaria qualquer aliado que quisesse lutar.
As tropas Sardaukar irromperam e ordenaram que todos voltassem para suas casas. Alto-falantes ensurdecedores decretaram medidas enérgicas e a lei marcial. As rações seriam reduzidas pela metade e os turnos de trabalho aumentariam. Os tleilaxu já tinham feito isso muitas vezes antes.
C'tair seguiu Miral e outros e desceu das vigas do Cruzeiro até a segurança do chão da caverna. Quanto mais os invasores oprimiam, mais os ixianos se indignavam, até que chegariam ao ponto de erupção.
O comandante Cando Garon, chefe das forças imperiais em IX, deu ordens em um projetor de voz com linguagem de batalha. Os Sardaukar dispararam para o ar para assustar os trabalhadores. C'tair se moveu entre seus companheiros e permitiu que o conduzissem até uma zona de arresto temporário. Alguns seriam detidos e interrogados, mas ninguém poderia demonstrar sua implicação, nem a de Miral. Mesmo que os dois fossem executados por isso, suas façanhas haviam valido a pena.
C'tair e Miral, separados na multidão, obedeceram as ordens iracundas dos guardas Sardaukar. Quando C'tair ouviu que os operários repetiam entre sussurros as palavras do Rhombur Vernius, sua alegria e confiança chegaram ao máximo.
Algum dia, muito em breve, IX seria devolvido a seu povo.
Os inimigos se fortalecem, os aliados se enfraquecem.
IMPERADOR ELROOD IX
Pensamentos no leito de morte.
Depois de recuperar-se dos açoites, Gurney Halleck trabalhou durante dois meses com uma sensação de terror, pior que a experimentada nos poços de escravos. Uma feia cicatriz avermelhada corria ao longo de sua mandíbula, e ainda doía. Embora a ferida tivesse cicatrizado, os resíduos tóxicos ainda pulsavam com um fogo neural, como se um raio intermitente estivesse sepultado dentro de sua bochecha e mandíbula.
Mas era apenas dor. Gurney podia suportá-la. As feridas físicas significavam muito pouco para ele. Transformaram-se em parte de sua existência.
Estava mais apavorado pelo fato de que o castigo tivesse sido tão pequeno depois de atacar Glossu Rabban. O Harkonnen o açoitara, e os guardas lhe tinham dado uma surra a seguir, de modo que ficou internado por três dias na enfermaria, mas tinha sofrido castigos piores por infrações muito menores. O que lhe estavam reservando?
Recordava o brilho de calculada crueldade nos olhos de Rabban. “Investigue os arquivos, descubra de onde é. E se há algum familiar vivo.” Gurney temia o pior.
Passava os dias como um autômato junto com os outros escravos, cada vez mais impaciente e com um nó de medo no estômago. Trabalhava uns dias nos penhascos do monte Ebony e outros nos tanques de processamento da obsidiana. Naves de carga aterrissavam perto da guarnição e os poços de escravos, e levavam contêineres cheios de cristal vulcânico que seria entregue à Casa Hagal.
Um dia, um par de guardas o tiraram bruscamente dos tanques. Seminu, derramando gotas do líquido oleoso sobre os uniformes dos guardas, Gurney foi conduzido aos trancos até a praça onde Glossu Rabban tinha inspecionado os prisioneiros, onde Gurney o atacara.
Viu uma plataforma baixa e, diante dela, uma cadeira. Nem cadeias nem cordas de linho shiga... só a cadeira. assustou-se. Não tinha nem idéia do que o esperava.
Os guardas o sentaram na cadeira e depois se retiraram. Um médico da enfermaria estava em posição de sentido perto, e um grupo de soldados Harkonnen entrou na praça. Os outros escravos continuavam trabalhando nos poços e tanques, e Gurney compreendeu que o aguardava um espetáculo reservado exclusivamente para ele. O que tornava a situação fora imensamente pior.
Quanto mais Gurney demonstrava seu nervosismo, mais satisfeitos ficavam os soldados ao negar-se a lhe responder. Guardou silêncio, enquanto o espesso líquido de processamento formava um frágil filme sobre sua pele.
O médico se aproximou, segurando um pequeno frasco amarelo provido de uma diminuta agulha em um extremo. Gurney tinha visto aqueles frascos amarelos na enfermaria, guardados em um estojo transparente, mas nunca lhe tinham administrado nenhum. O doutor golpeou a ponta contra a garganta do prisioneiro, como se estivesse esmagando uma vespa. Gurney deu um salto, com a garganta e os músculos tensos.
Um quente formigamento se estendeu por todo seu corpo. Seus braços e pernas pesaram como pedaços de chumbo. Remexeu-se várias vezes, e depois não pôde mais se mover. Não podia girar o pescoço, fazer caretas, piscar nem mover os olhos.
O doutor moveu a cadeira e virou a cabeça de Gurney como se fosse um manequim, obrigando-o a olhar para a plataforma situada a frente dele. Gurney compreendeu de repente o que era.
Um cenário. E o obrigariam a ver algo.
Glossu Rabban saiu de um edifício anexo, engalanado com seu melhor uniforme e acompanhado do supervisor, que também se vestiu para a ocasião um uniforme escuro. Tinha prescindido de seus filtros nasais.
Rabban se colocou a frente de Gurney, que não desejava outra coisa que ficar em pé de um salto e estrangular o homem. Mas não podia mover-se. A droga o paralisava por completo, de maneira que tentou concentrar em seus olhos tanto ódio quanto pôde.
— Prisioneiro — disse Rabban, com um sorriso obsceno em seus lábios grossos —. Gurney Halleck, do povoado de Dmitri. Depois que me atacou, tivemos o cuidado de localizar a sua família. O capitão Kryubi nos informou sobre as canções zombeteiras que cantava no bar. Embora fizesse anos que ninguém o via no povoado, nenhum aldeão tinha pensado em denunciar seu desaparecimento. Alguns, antes de que morreram torturados, disseram que supunham que o tínhamos seqüestrado durante a noite. Idiotas.
Gurney sentiu pânico, como asas revoando em sua mente. Quis exigir respostas sobre seus cansados e conservadores pais... mas temia o que Rabban ia dizer de qualquer modo. Mal podia respirar. Seu peito sofria espasmos, para combater a paralisia. Enquanto seu sangue fervia e sua fúria aumentava, era quase incapaz de respirar. Começou a enjoar devido a falta de oxigênio.
— Então todas as peças se encaixaram. Descobrimos que sua irmã tinha sido destinada a uma de nossas casas de prazer... e que você não queria aceitar a ordem natural das coisas. — Rabban encolheu seus ombros largos, enquanto seus dedos acariciavam de maneira significativa o látego, mas não o usou —. Todo mundo conhece seu lugar em Giedi Prime, mas parece que você não. portanto, decidimos dar-lhe um aviso muito particular. — Exalou um suspiro afetado para sublinhar sua decepção —. Infelizmente, minhas tropas foram muito... entusiastas quando pediram a seus pais que se reunissem conosco. Temo que seus pais não sobreviveram à visita. Não obstante...
Rabban levantou uma mão, e os guardas se apressaram a cumprir sua ordem. Gurney, fora de seu campo visual, ouviu uma resistência e um grito de mulher, mas não pôde virar a cabeça. Sabia que era Bheth.
Seu coração se paralisou por um instante ao saber que continuava com vida.
Tinha imaginado que os Harkonnen a haviam matado depois que o capturaram na casa de prazer. Mas agora sabia que a tinham reservado para algo muito pior.
Arrastaram-na, apesar da sua resistência, até a plataforma de madeira. Usava apenas uma camisa rasgada. Tinha o cabelo comprido e desgrenhado, os olhos arregalados de medo, e ainda mais quando viu seu irmão. Gurney voltou a fixar-se na cicatriz em sua garganta. Tinham roubado de Bheth a capacidade de falar ou cantar... e tinham destruído sua capacidade de sorrir.
Seus olhares se encontraram. Bheth não podia falar. Gurney, paralisado, não podia lhe dizer nada, nem sequer se mover.
— Sua irmã sabe qual é seu lugar — disse Rabban —. De fato, serviu-nos bastante bem. Examinei os registros para descobrir o número exato. Esta menina proporcionou prazer a quatro mil, seiscentos e vinte soldados.
Rabban afagou o ombro de Bheth. Ela tentou mordê-lo. Rabban lhe tirou a camisa com um puxão.
Os guardas a estenderam sobre a plataforma, nua. Gurney quis fechar os olhos, mas a paralisia o impediu. Embora soubesse muito bem o que a tinham obrigado a fazer durante os últimos seis anos, ver de novo sua nudez o consternou e ofendeu. Tinha o corpo machucado, e sua pele era uma tapeçaria de cores escuras e cicatrizes.
— Poucas mulheres destinadas a nossas casas de prazer duram tanto como ela — disse Rabban —. Esta tem muita vontade de viver, mas seu tempo acabou. Se pudesse falar, confessaria-nos sua felicidade ao render este último serviço à Casa Harkonnen, ao mesmo tempo em que serve de lição para você.
Gurney tentou mover os músculos. Seu coração martelava e a ira estremecia seu corpo. Mas não pôde mover nem um dedo.
O supervisor foi o primeiro. Abriu-se as vestimentas, e Gurney não teve outro remédio senão olhar enquanto aquele homem pançudo violava sua irmã sobre o cenário. Seguiram-no os cinco guardas, que obedeceram a cada ordem de Rabban. O cruel Harkonnen observava tanto Gurney como o espetáculo que se desenvolvia no cenário. Gurney fervia de raiva, desejava desmaiar com todas as suas forças, mas não lhe estava permitida essa opção.
Rabban foi o último, e obteve o maior prazer. Foi enérgico e brutal, embora então Bheth quase tivesse caído na inconsciência. Quando terminou, Rabban fechou as mãos ao redor do pescoço de Bheth, ao redor da cicatriz branca. A jovem se debateu uma vez mais, mas Rabban lhe torceu a cabeça e a obrigou a olhar para seu irmão enquanto apertava sua garganta. Penetrou-a uma vez mais, com muita brutalidade, e depois os músculos de seus braços se esticaram. Apertou mais, e os olhos de Bheth saíram das órbitas.
Gurney foi obrigado a vê-la morrer na sua frente...
Rabban, duplamente satisfeito, levantou-se e voltou a vestir o uniforme. Sorriu para suas duas vítimas.
— Deixem seu corpo aqui — ordenou —. Quanto tempo durará a paralisia dele?
O médico se aproximou, indiferente ao que tinha presenciado.
— Uma hora, duas no máximo, com essa dose tão pequena. Um pouco mais de kirar o teria posto em estado de hibernação, coisa que não teria satisfeito seus desejos, senhor.
Rabban meneou a cabeça.
— Deixemos que a veja até que possa se mover outra vez. Quero que reflita sobre sua má conduta.
Rabban riu e partiu, seguido pelos guardas. Gurney ficou sozinho, sentado na cadeira, sem grilhões. Não podia evitar de olhar a forma imóvel de Bheth, com as pernas abertas sobre a plataforma. Saia sangue da sua boca.
Mas nem a paralisia que prendia seu corpo pôde impedir que escorressem lágrimas de seus olhos...
O mistério da vida não é um problema que se possa resolver, mas uma realidade que se deve experimentar.
Meditações desde Byfrost Eyrie
texto budislâmico
Durante um ano e meio Abulurd Harkonnen foi um homem destroçado. Ocultava seu rosto, envergonhado do horror que tinha visto seu filho cometer. Aceitava sua parte de culpa, mas não suportava ver os olhos perturbados da boa gente de Lankiveil.
Tal como temia, depois da matança de baleias Bjondax em Tula Fjord, a pesca tinha sido ruim. Os povoados foram abandonados, e os pescadores e caçadores de baleias se mudaram para outra parte. As aldeias de madeira ficaram vazias, uma réstia de povoados fantasma em baías rochosas.
Abulurd tinha se despedido de seus criados. Emmi e ele fecharam o pavilhão principal, como uma lápide em memória de uma forma de vida idílica em outro tempo. Abandonaram o edifício com a esperança de que os bons tempos voltariam. Por enquanto, sua esposa e ele viviam em uma pequena dacha, em uma língua de terra isolada que entrava nas águas tintas de sangue do fiorde.
Emmi, que tinha sido tão alegre e viva, parecia agora velha e cansada, como se descobrir a natureza corrupta de seu filho lhe tivesse roubado a energia. Sempre estivera ancorada na realidade, mas seus alicerces se romperam.
Glossu Rabban tinha quarenta e um anos, era um adulto responsável por seus atos. Não obstante, Abulurd e Emmi temiam ter cometido algum erro, não ter instilado nele o sentido de honra e amor por seus súditos...
Rabban em pessoa tinha dirigido o ataque que destruiu Bifrost Eyrie. Abulurd tinha sido testemunha de sua indiferença quando os guardas jogaram seu avô no abismo. Devido à matança de baleias em Tula Fjord, ele sozinho tinha acabado com a economia de toda a costa. Por meio de um representante da CHOAM, descobriram que Rabban se deleitava em torturar e assassinar vítimas inocentes nos imundos poços de escravos de Giedi Prime.
Como este homem pode ser carne de minha carne? Durante o tempo passado em sua dacha solitária, Emmi e Abulurd tentaram conceber um filho. Tinha sido uma decisão difícil mas sua esposa e ele compreenderam por fim que Glossu Rabban já não era seu filho. Afastara-se para sempre do seu amor. Emmi tinha tomado uma decisão, e Abulurd não pôde negar seu pedido.
Embora não pudessem emendar os danos provocados por Rabban, possivelmente poderiam ter outro filho, ao qual educariam bem. Emmi, embora forte e sã, já era velha, e a linhagem Harkonnen nunca tinha dado muitos filhos.
Vitória, a primeira esposa de Dmitri Harkonnen, só tinha lhe dado um filho, Vladimir. Depois de um divórcio amargo, Dmitri tinha contraído matrimônio com a jovem e bela Daphne, mas seu primeiro filho, Marotin, tinha sido um deficiente mental falecido com a idade de vinte e oito anos. O segundo filho de Daphne, Abulurd, foi um menino brilhante que se transformou no favorito do seu pai. Tinham rido, lido e jogado juntos. Dmitri tinha instruído Abulurd nas artes da política, e lhe tinha lido os tratados históricos do príncipe herdeiro Raphael Corrino.
Dmitri nunca passava muito tempo com seu primogênito, mas sua amargurada ex-esposa, Vitória, ensinava-lhe muitas coisas. Embora filhos do mesmo pai, Vladimir e Abulurd não podiam ser mais diferentes. Infelizmente, Rabban tinha saído mais ao barão que a seus próprios pais...
Depois de meses de isolamento auto-imposto, Abulurd e Emmi foram de navio até o próximo povoado da costa, onde tinham a intenção de comprar peixe fresco, verduras e provisões que os armazéns da dacha não tinham. Usavam xales tecidos em blusas acolchoadas, sem as jóias cerimoniais ou os adornos de sua posição.
Quando Abulurd e sua esposa atravessaram o mercado, foram imaginando que os tratariam como a simples aldeãos e ninguém os reconheceria. Mas o povo de Lankiveil conhecia muito bem seu líder. Deram-lhe as boas-vindas e os receberam afetuosamente.
Durante os meses seguintes, Emmi falou com as mulheres dos povoados. Elas sabiam do desejo do seu governador de ter outro filho, alguém que seria educado aqui, e não como um Harkonnen. Emmi se negava a se desesperar.
Um dia, enquanto foram às compras, para encher seus cestos de verduras frescas e peixe defumado envolto em folhas de kelp salgadas, Abulurd reparou em uma anciã parada no final do mercado. Usava o hábito azul claro de uma monja budislâmica. Os bordados de ouro e as campainhas de cobre que pendiam de seu pescoço significavam que tinha alcançado a posição mais elevada de sua religião, coisa que poucas mulheres conseguiam. Estava rígida como uma estátua, embora não fosse mais alta que outros aldeãos. Não obstante, sua presença a fazia destacar como um monólito.
Emmi olhou para ela com seus olhos escuros, fascinada, e avançou com a esperança e o assombro refletidos em seu rosto.
— Ouvimos falar de você.
Abulurd olhou para sua mulher, sem saber a que se referia.
A monja tirou o capuz e revelou um crânio recém raspado, rosado e pintalgado, como se não estivesse acostumado à exposição ao frio. Quando franziu o sobrecenho, a pele apergaminhada de seu rosto largo se enrugou como papel. Não obstante, falou com uma voz que possuía qualidades hipnóticas.
— Sei o que deseja, e sei que Budalá concede em algumas ocasiões desejos àqueles que considera dignos. — A anciã se aproximou mais, como se fosse compartilhar com eles um segredo. As campainhas de cobre tilintaram tenuemente —. Suas mentes são puras, suas consciências limpas, e seus corações merecedores de tal recompensa. Já sofreram muita dor. — Seus olhos se endureceram como os de um ave —. Mas devem desejar um filho com todas as suas forças.
— Isso é verdade — disseram Abulurd e Emmi em uníssono. olharam-se e sorriram nervosos. Emmi pegou a mão do seu marido.
— Sim, vejo sua sinceridade. Um começo importante.
A mulher murmurou uma bênção. Depois, como um sinal do próprio Budalá, a sopa de nuvens cinzas se entreabriu, e um raio de sol iluminou o povoado. Os clientes do mercado olharam para Abulurd e Emmi com expressão esperançosa e curiosa.
A monja introduziu a mão em seu hábito e extraiu vários pacotes. Sustentou-os no alto, segurando as bordas com os dedos.
— Extratos de molusco — disse —. Madrepérola moído com pó de diamante, ervas secas que só crescem durante o solstício de verão nos campos de neve. São extremamente potentes. Use-o bem. — Entregou três pacotes a Abulurd e outros tantos a Emmi —. Fervam com chá e bebam antes de fazer amor, mas não esbanjem as energias. Vigiem as luas, ou consultem seus calendários se as nuvens forem muito espessas.
A monja explicou com precisão quais eram as fases mais favoráveis da lua, as épocas do ciclo mensal mais adequadas para conceber um filho. Emmi assentiu e pegou os pacotes como se fossem um grande tesouro.
Abulurd se sentiu bastante cético. Tinha ouvido falar de remédios populares e outras superstições, mas a expressão alegre e esperançosa de sua mulher era tal que não se atreveu a manifestar suas dúvidas. Prometeu em silêncio que, por ela, faria tudo o que aquela estranha mulher tinha sugerido.
Com voz ainda mais baixa, mas sem o menor sinal de vergonha, a mulher lhes explicou detalhadamente certos rituais que deviam executar para potencializar o prazer sexual e aumentar as possibilidades de que o esperma se unisse com um óvulo fértil. Emmi e Abulurd escutaram e concordaram em seguir as instruções.
Antes de voltar para seu navio e abandonar a aldeia, Abulurd comprou um calendário de um mascate.
Ao cair a noite, iluminaram as habitações de sua dacha isolada com velas e acenderam um bom fogo na chaminé, até que seu lar se encheu de uma brilhante luz alaranjada. No exterior, o vento tinha dado espaço para um profundo silêncio, como se contivesse o fôlego. A água do fiorde era um espelho escuro que refletia as nuvens. Os picos das montanhas se perdiam no céu nublado.
Ao longe, na curva da baía, distinguiram a silhueta do pavilhão principal, com as janelas e portas fechadas. As habitações estariam geladas, os móveis cobertos com tecidos, as despensas vazias. Os povoados abandonados eram silenciosos avisos dos buliçosos tempos anteriores à derrota das baleias.
Abulurd e Emmi se estenderam na cama de sua lua de mel, feita de madeira de Elacca, dourada e âmbar, belamente esculpida. Envolveram-se em peles macias e fizeram amor com parcimônia e mais paixão do que tinham experimentado em anos. O sabor amargo do estranho chá da monja perdurava em suas gargantas e os excitava como se voltassem a ser jovens.
Depois, abraçados, Abulurd escutou a noite. Ao longe acreditou ouvir os cânticos das baleias Bjondax, na entrada da baía.
Ambos consideraram um bom presságio.
Uma vez cumprida sua missão, a reverenda madre Gaius Helen Mohiam se livrou de seu hábito budislâmico, envolveu as campainhas decorativas que tinha pendurado em sua garganta e guardou tudo. Picava-lhe o couro cabeludo, mas o cabelo não demoraria a crescer.
Tirou as lentes de contato que disfarçavam a cor de seus olhos e a maquiagem que a tinha envelhecido. A seguir esfregou com loções a pele áspera do rosto para protegê-la dos ventos fortes e do frio de Lankiveil.
Estava a mais de um mês no planeta, tempo que empregara para recolher dados e estudar Abulurd Harkonnen e sua mulher. Em uma ocasião, quando estavam no povoado, repetindo sua rotina mais que previsível, entrara em sua dacha para apoderar-se de cabelos, fragmentos de pele e pedaços de unhas cortadas, algo que a ajudasse a determinar a bioquímica precisa de ambos. Tais elementos lhe proporcionaram toda a informação que necessitava.
As peritas da Irmandade haviam analisado todas as possibilidades e estabelecido a forma de aumentar as probabilidades de que Abulurd Harkonnen tivesse outro filho, um varão. O programa de reprodução do Kwisatz Haderach necessitava desta linha genética, e os atos de Glossu Rabban tinham demonstrado que era muito ingovernável, além de velho, para constituir o par perfeito da filha que Jessica teria de Leto Atreides, tal como lhe tinha sido ordenado. A Bene Gesserit necessitavam de outra alternativa Harkonnen masculina.
Foi ao espaçoporto de Lankiveil e esperou a próxima lançadeira. Por uma vez, ao contrário de com o malvado barão, não obrigava outros a ter um filho que não desejavam. Abulurd e sua esposa desejavam outro filho mais que qualquer outra coisa, e Mohiam estava contente de utilizar a experiência da Irmandade para manipular suas probabilidades.
Este novo filho, o irmão menor de Glossu Rabban, tinha um destino importante pela frente.
A tarefa que nos impusemos é a liberação da imaginação, e a submissão da imaginação à criatividade física do homem.
FRIEDRE GINAZ
Filosofia do mestre espadachim.
Um entardecer em outra ilha de Ginaz, com extensões de terra verde inclinada, vales de rochas de lava negra e ganho. Cabanas de bálago e folhas de palmeira se elevavam em clareiras salpicadas de montículos de erva que o vento agitava. Havia canoas nas praias. Os pontos brancos das velas salpicavam as lacunas.
As barcos de pesca fizeram que Duncan Idaho pensasse com saudade em Caladan, seu lar.
Os estudantes que restavam tinham passado por um dia muito pesado dedicado às artes marciais, praticando a arte do equilíbrio. Os alunos lutavam com facas curtas, entre afiadas estacas de bambu cravadas no chão. Dois de seus companheiros de classe tinham sofrido feridas graves ao cair sobre as estacas. Duncan tinha aberto a mão, mas ignorou o corte avermelhado. Ele iria sarar. “As feridas dão melhores lições que os discursos”, tinha comentado o mestre espadachim.
Os estudantes tiveram um descanso para receber o correio. Duncan e seus companheiros esperaram ao redor de uma plataforma de madeira, situada em frente a seus barracões provisórios, a que Jeh-Wu, um de seus primeiros professores, chamasse-os pelo nome e distribuísse cilindros de mensagens e pacotes de entropia nula. A umidade fazia os longos cachos negros de Jeh-Wu penderem como trepadeiras ao redor de sua cara de iguana.
Tinham passado dois anos desde a terrível noite em que Trin Kronos e outros estudantes de Grumman foram expulsos da Escola de Ginaz. Segundo os escassos informes que chegavam aos alunos, o imperador e o Landsraad chegaram a um acordo sobre o castigo que Grumman devia receber pelo seqüestro e assassinato de dois membros da família ecazi. O visconde Moritani, desmedido, continuava com sua política agressiva, enquanto outras Casas aliadas iniciavam sutis maquinações para apresentá-lo como a parte ofendida do litígio.
O nome do duque Atreides se mencionava cada vez mais com admiração. À princípio, Leto tinha tentado mediar o conflito, mas agora apoiava sem reservas ao arquiduque Ecaz, e tinha impulsionado um acordo entre as Grandes Casa para frear a agressão de Grumman. Duncan estava orgulhoso de seu duque, e gostaria de saber mais sobre o que acontecia na galáxia. Desejava voltar para Caladan e apoiar o duque Leto.
Durante seus anos em Ginaz, Duncan tinha se tornado amigo de Hiih Resser, o único grumman que tivera coragem de condenar a agressão de seu planeta. A Casa Moritani cortara todos os vínculos com Resser pelo que considerava uma traição. A cota de Resser era paga agora graças a uma reserva de recursos imperiais, pois seu adotivo o repudiara em público ante a corte do visconde.
Enquanto Duncan esperava junto ao ruivo, estava claro que o jovem não ia receber nenhuma mensagem do exterior, nem então nem nunca.
— Possivelmente você tenha uma surpresa, Hiih. Não tem alguma antiga namorada que te escreva?
— Depois de seis anos? Impossível.
Depois da expulsão dos moritani, Duncan e Resser passavam juntos a maior parte de seu tempo livre. Jogavam xadrez piramidal e pôquer inverso, viajavam ou nadavam no mar bravo. Duncan escrevera ao duque Leto para sugerir que o jovem aluno de Grumman fosse admitido na Casa Atreides.
Resser, como Duncan, era órfão desde os dez anos. Tinha sido adotado por Arsten Resser, um dos principais conselheiros do visconde Hundro Moritani. Resser nunca se deu bem com seu filho adotivo, sobretudo durante a adolescência. Seguindo uma tradição familiar que se cumpria em gerações alternadas, o ruivo tinha sido enviado a Ginaz. Arsten Resser estava convencido de que a academia quebrantaria o espírito do seu filho adotivo rebelde. Em vez disso, Hiih Resser estava em sua melhor forma e tinha aprendido muito.
Quando ouviu seu nome, Duncan se adiantou para receber um pacote pesado.
— Pasteizinhos de melange de sua mãezinha? — zombou Jeh-Wu.
Antes, Duncan teria se enfurecido e atacado ao homem por sua provocação, teria lhe cortado um cacho atrás de outro como caules de aipo. Agora, em vez disso, utilizou palavras diferentes.
— Minha mãe foi assassinada por Glossu Rabban em Giedi Prime.
Jeh-Wu pareceu muito incomodado. Resser apoiou uma mão no ombro de Duncan e o devolveu à fila.
— Algo de sua casa? — Afundou os dedos no pacote —. É uma sorte ter alguém que se preocupe com você.
Duncan olhou para ele.
— Caladan é meu lar, depois do que os Harkonnen me fizeram.
Recordou o que Leto havia lhe dito na última manhã, durante o café, quando o duque tinha lhe dado a espada maravilhosa: “Nunca se esqueça da compaixão.”
Duncan, guiado por um impulso, estendeu o pacote e olhou para o brasão do falcão vermelho no pacote.
— Fique com o que tiver. A comida, ao menos. As holofotos e mensagens são para mim.
Resser aceitou o pacote com um sorriso, enquanto Jeh-Wu continuava distribuindo cilindros.
— Possivelmente a compartilhe com você, ou não.
— Não me desafie para um duelo, porque perderá.
— Claro, claro — murmurou seu amigo, risonho.
Os dois se sentaram em uma escada dos barracões e contemplaram as barcos de pesca no lago. Resser rasgou o pacote com mais entusiasmo do que Duncan teria usado. Extraiu vários contêineres fechados e olhou através do plaz transparente para as partes de cor laranja que continham.
— O que é isto?
— Melão paradan! — Duncan estendeu a mão para o contêiner, mas Resser o afastou de seu alcance e o examinou com ar cético —. Não ouviu falar deles? O manjar mais doce do Império. Meu favorito. Se soubesse que me enviavam isto... — Resser lhe devolveu o contêiner e Duncan o abriu —. Faz um ano que não via um. As colheitas foram danificadas por causa de um plâncton invasor.
Estendeu uma fatia de fruta em conserva para Resser, que deu uma pequena dentada e se obrigou a engoli-lo.
— Muito doce para meu gosto.
Duncan comeu outro pedaço, e depois mais dois, antes de fechar o contêiner. Para alegria de Resser, encontrou deliciosos bolos de Baía feitos a base de arroz pundi e mel, envoltos em papel de especiaria.
Por fim, descobriu três mensagens no fundo do pacote, escritos a mão sobre um pergaminho que tinha o selo da Casa Atreides. Saudações de Rhombur, animando-o a não se desesperar; uma nota de Thufir Hawat em que expressava quanto ansiava por sua volta ao castelo de Caladan; uma mensagem de Leto, em que prometia considerar a possibilidade de destinar Hiih Resser a Guarda da Casa Atreides, desde que o ruivo completasse com êxito seu treinamento.
Apareceram lágrimas nos olhos de Resser quando seu amigo deixou que lesse as notas. Voltou a cabeça para que Duncan não as visse.
— Faça a Casa Moritani o que fizer — disse Duncan, rodeando as costas de seu amigo com um braço —, você terá um lugar. Quem se atreveria a desafiar a Casa Atreides, sabendo que tem a dois mestres espadachins?
Naquela noite, Duncan sentia tanta saudade de seu lar que não conseguiu dormir, de modo que pegou a espada do velho duque, saiu para o exterior e praticou à luz das estrelas, batendo-se em duelo com inimigos imaginários. Tinha passado muito tempo desde que vira os ondulantes mares azuis de Caladan pela última vez, mas ainda se recordava do lar que escolhera, e quanto devia à Casa Atreides.
A natureza se moveu de uma maneira inexplicável para trás e para frente para produzir a maravilhosa e sutil especiaria. Alguém se sente tentado a sugerir que só a intervenção divina pôde produzir uma substância que, por um lado, prolonga a vida humana, e pelo outro, abre as portas interiores da psique aos prodígios do Tempo e da Criação...
HlDAR FEN AJIDICA
Notas de laboratório sobre a natureza de Melanie
No espaçoporto subterrâneo de Xuttuth, o pesquisador chefe Hidar Fen Ajidica viu que a nave de Fenring se afastava da parede do canyon, uma larga fissura na casca do planeta. Em teoria uma pitoresca garganta vista de cima, a fissura permitia o acesso aos mundos seguros do subsolo. A nave de Fenring se transformou em um ponto luminoso no frio céu azul.
Me livrei de boa! Sempre podia esperar que o intrometido observador imperial morresse em uma explosão aérea, mas infelizmente a nave alcançou sua órbita sem problemas.
Ajidica voltou para os túneis e tomou um elevador que desceu às profundezas. Já tivera bastante ar fresco e espaços abertos.
A inesperada visita do ministro da Especiaria tinha consumido dois dias... tempo perdido, no que dizia respeito ao pesquisador chefe. Estava ansioso por retornar para seus experimentos para obter especiaria artificial, que estavam se aproximando da fase final.
Como vou conseguir algo com esse homem me pisando os calcanhares?
Para piorar a situação, um representante tleilaxu chega dentro de uma semana. Agora, parecia que os compatriotas de Ajidica não confiavam nele. Enviavam seus relatórios aos Amos do sagrado planeta natal, que os comentava no kehl geral, o conselho mais sagrado de seu povo. Mais inspeções. Mais interferências.
Mas quase alcancei meu objetivo...
Seguindo as minuciosas instruções do pesquisador chefe, os ajudantes do laboratório tinham preparado uma importante modificação nos novos tanques de axlotl, os sagrados receptáculos biológicos em que se cultivavam variações de especiaria. Com esses ajustes poderia avançar até a próxima fase: experimentos reais, e depois a produção de amal.
No interior do pavilhão de pesquisa, Hidar Fen Ajidica e sua equipe tinham conseguido mais sucessos do que se atrevia a revelar ao inseto do Fenring, e também ao seu povo. Dentro de um ano, dois no máximo, esperava solucionar o escorregadio quebra-cabeças. E então colocaria em prática o plano que já pusera em ação, roubar o segredo do amal e utilizá-lo em benefício próprio.
Quando chegasse esse momento, nem sequer as legiões de Sardaukar estacionadas em segredo poderiam detê-lo. Antes que percebessem, Ajidica desapareceria com seu troféu, e depois destruiria os laboratórios. E ficaria com a especiaria artificial.
Havia outras coisas que podiam interferir nos planos de Ajidica, é claro, mas as desconhecia. Havia espiões em Xuttuh. Os Sardaukar e a força de segurança da Ajidica tinham descoberto e executado mais de uma dúzia enviados por diferentes Grandes Casas. Mas também corriam rumores de que uma agente da Bene Gesserit se infiltrara no planeta. Oxalá aquelas bruxas se ocupassem de seus assuntos.
Enquanto voltava de trem para suas instalações de alta segurança, o pesquisador chefe meteu uma pastilha vermelha na boca e a mastigou. A medicação, que tratava sua fobia do mundo subterrâneo, tinha sabor de carne de bacer podre tirada de um tanque fedido. Perguntou-se por que os farmacêuticos não fabricavam medicamentos que tivessem um gosto melhor. Não devia ser mais que uma questão de aditivos.
O pavilhão de investigações era composto de quinze edifícios brancos ligados por passagens elevadas, correias transportadoras e sistemas de vias, todos rodeados por poderosos mecanismos defensivos e janelas reforçadas unidirecionais. Tropas Sardaukar protegiam o complexo.
Ajidica tinha adaptado a ciência genética tleilaxu às instalações de fabricação avançadas que a Casa Vernius tinha abandonado depois de sua derrota. Os vencedores se apropriaram de montes de materiais brutos e, graças a intermediários, tinham obtido recursos adicionais de outros planetas. Em troca de suas vidas, certo número de diretores de fábricas e cientistas ixianos colaboraram no processo de reciclagem.
O vagão parou em frente as paredes do pavilhão. Depois de atravessar os sistemas de segurança, Ajidica subiu em uma plataforma branca. Dali tomou um elevador até a seção maior, onde novas “candidatas” se adaptavam a tanques de axotl modificados. Todo sobrevivente ixiano queria saber o que ocorria no interior da instalação secreta, mas ninguém tinha provas. Só suspeitas, e um medo cada vez maior.
No pavilhão de pesquisas, Ajidica contava com a instalação de fabricação mais avançada do Império, incluindo complexos sistemas de manipulação de materiais para transportar amostras. A natureza experimental do Projeto Amal exigia um amplo leque de produtos químicos e espécimes, assim como a eliminação de enormes quantidades de resíduos tóxicos, tudo o que Ajidica realizava com eficácia sem par. Jamais tinha tivera acesso a algo tão avançando, nem mesmo no próprio Tleilax.
Ajidica atravessou uma porta de biosegurança, entrou em uma imensa sala onde os operários estavam terminando de instalar as conexões preliminares no chão, em preparação dos novos tanques de axotl, ainda vivos, que seriam transportados ao pavilhão.
Meus experimentos devem continuar. Depois que eu tiver descoberto o segredo, controlarei a especiaria e poderei destruir todos esses demônios que dependem dela.
A liberdade é um conceito escorregadio. Alguns homens se consideram prisioneiros mesmo quando possuem o poder de fazer o que quiserem e irem onde desejarem, enquanto que outros são livres em seus corações, embora estejam presos.
Sabedoria zensunni da Peregrinação.
Gurney Halleck rompeu de propósito o mecanismo da Cuba de processamento de obsidiana, o que provocou uma rachadura no contêiner. O líquido se derramou sobre o chão sujo. Preparou-se para o castigo que o aguardava.
O primeiro passo em seu desesperado e frio plano de fuga. Como era de esperar, os guardas vieram correndo, com os porretes neurônicos e as manoplas preparadas. Dos dois meses transcorridos desde o assassinato de Bheth, os Harkonnen estavam seguros de ter apagado todo hálito de resistência naquele homem de cabelo loiro. Gurney ignorava por que não o tinham matado. Não porque admirassem sua têmpera nem porque fosse um homem duro. O mais provável era que obtivessem um prazer sádico em atormentá-lo e deixar que voltasse a receber mais.
Precisava receber feridas graves, que precisassem de atenção médica. Queria que os guardas lhe fizessem mais dano que de costume, talvez um par de costelas quebradas. Depois, os médicos o tratariam na enfermaria e se esqueceriam dele enquanto sarava. Então seria quando Gurney agiria.
Lutou com os guardas quando atacaram. Outros prisioneiros teriam se rendido em seguida, mas se Gurney não tivesse lutado teria despertado suas suspeitas. Resistiu com ferocidade, mas os guardas o golpearam, chutaram e amassaram a cabeça contra o chão.
Sentiu-se invadido pelo negrume e dor, à beira das náuseas, mas os guardas, animados pela descarga de adrenalina, não pararam. Sentiu que seus ossos se quebravam. Cuspiu sangue.
Enquanto Gurney perdia a consciência, temeu ter ido muito longe. Talvez desta vez o matassem...
Durante dias, os trabalhadores dos poços de escravos estiveram carregando um embarque de obsidiana azul. O transportador de carga, protegido por uma cerca, esperava no campo de aterrissagem, com as pranchas do casco erodidas devido às numerosas viagens de ida e volta à órbita. Um grupo de guardas vigiavam o carregamento, mas não prestavam muita atenção. Nenhum homem ia por vontade própria ao coração de um poço de escravos, e os guardas estavam convencidos de que nenhum tesouro tentaria o ladrão mais ambicioso do universo.
O abundante embarque tinha sido encomendado pelo duque Leto Atreides, através de mercadores de Hagal. Inclusive Gurney sabia que os Atreides tinham sido durante gerações adversários da Casa Harkonnen. Rabban e o barão se regozijaram ao saber que vendiam um embarque tão caro ao seu maior adversário.
A Gurney só importava que o embarque partisse logo... e isso significava segui-lo para muito longe dos poços de escravos.
Quando recuperou por fim a consciência, descobriu que se encontrava em uma cama da enfermaria. Os lençóis estavam manchados dos pacientes anteriores. Os médicos dedicavam poucos esforços em manter os prisioneiros vivos. Não era econômico. Se os prisioneiros feridos pudessem ser curados com um mínimo de tempo e cuidado, eram devolvidos ao trabalho. Se morressem, as incursões Harkonnen conseguiam substitutos rapidamente.
Gurney permaneceu imóvel e procurou não gemer nem chamar a atenção. Em um beliche adjacente, um homem se retorcia de dor. Com os olhos entreabertos, Gurney viu que a bandagem do coto do braço direito estava empapado de sangue. perguntou-se por que os médicos se incomodaram. Assim que o supervisor barrigudo visse o escravo mutilado, ordenaria sua execução.
O homem gritou, devido a dor horrível ou por ter tomado consciência do seu destino. Dois médicos o seguraram e injetaram um pulverizador. Não era um mero tranqüilizador. Ao fim de poucos momentos, emitiu um gorgolejo e emudeceu. Meia hora depois, homens uniformizados levaram o corpo, enquanto cantarolavam uma marcha militar, como se repetissem aquele ritual todo o dia.
Um médico se aproximou de Gurney, examinou-o e explorou. Embora emitisse os gemidos apropriados, fingiu que continuava inconsciente. O doutor bufou e se afastou. Com os anos, os médicos já tinham dedicado tempo demais para curar as repetidas feridas de Gurney Halleck.
Quando as luzes se apagaram no complexo, a enfermaria mergulhou em um pesado silêncio. Os médicos se livraram de seus vícios químicos, semuta ou outras drogas dos armazéns farmacêuticos. Realizaram um último exame superficial do paciente semicomatoso. Gurney grunhiu, fingindo estar mergulhado em um pesadelo. Um médico se inclinou sobre ele com uma agulha, provavelmente um sedativo, mas depois meneou a cabeça e partiu. Talvez quisesse que Gurney suasse e despertasse em plena noite.
Assim que os médicos se foram, Gurney abriu os olhos e tocou as bandagens para fazer uma idéia de suas feridas. Vestia apenas uma bata de hospital, remendada e puída, como seu corpo.
Tinha muitas contusões, assim como várias costuras. Sua cabeça doía: uma fratura no crânio, ou ao menos uma comoção cerebral. Entretanto, enquanto lutava, Gurney tinha sabido proteger seus membros. Ainda podia se mover.
Pousou os pés sobre o chão frio e imundo da enfermaria. Teve um acesso de náusea, mas passou. Quando aspirou uma profunda baforada de ar, suas costelas doeram como se o tivessem esfaqueado. Mas ele sobreviveria.
Atravessou a habitação com passo vacilante. Os médicos tinham deixado globos acesos como luzes de emergência. Os pacientes roncavam ou gemiam na noite, mas ninguém reparou nele. Também doía a cicatriz produzida pelo chicote, o que ameaçava lhe provocar uma terrível dor, mas Gurney a ignorou. Agora não.
Plantou-se em frente ao estojo de primeiro socorros e viu uma prateleira com ampolas de kirar, a droga que Rabban utilizara para deixá-lo paralisado e indefeso durante a prolongada violação e assassinato de Bheth.
Gurney abriu a tampa do estojo de primeiro socorros e rompeu o fecho. Tentou disfarçar os danos para que os médicos não o descobrissem em seguida.
Como ignorava qual era a dose apropriada, pegou um punhado de ampolas amarelas terminadas em uma agulha. Cada frasco parecia com uma vespa, feita de polímeros macios. Deu meia volta, mas se deteve. Se alguém reparasse no armário forçado e nas ampolas desaparecidas, possivelmente adivinharia o que pretendia, de modo que se apoderou de outras drogas potentes, calmantes e alucinógenos, que atirou no incinerador. Guardou alguns calmantes, para o caso de precisar. Os Harkonnen suporiam que tinha roubado diversas drogas, não só o kilar.
Procurou roupas, encontrou um uniforme de cirurgião manchado de sangue e decidiu que era melhor que sua bata. Vestiu-se, mesmo com as dores que atormentavam seu corpo, e depois descobriu algumas cápsulas energéticas, mas não comida sólida. Engoliu os tabletes ovalados, sem saber quanto tempo necessitaria delas para se alimentar. Agachou-se, forçou a porta da enfermaria e saiu para a escuridão, uma sombra entre sombras.
Gurney contornou as cercas eletrificadas que rodeavam o complexo, um sistema destinado mais a intimidar que a reforçar a segurança. Era bastante fácil atravessar as barreiras. Globos luminosos lançavam poças de luz brilhante sobre a zona de aterrissagem, mas os globos estavam sintonizados e colocados aleatoriamente, de maneira que deixavam longas ilhas de escuridão.
Gurney aproveitou os espaços escuros para se aproximar dos volumosos contêineres cheios de obsidiana, que ninguém vigiava. Abriu uma trava metálica que rangeu. Vacilou, mas qualquer atraso podia ser fatal, de modo que se jogou pelo conduto. Deixou que a trava se fechasse imediatamente.
Deslizou por uma rampa metálica onde suas roupas se engancharam e rasgaram, até aterrissar sobre os montes de obsidiana azul tratada quimicamente. Suas bordas eram cristais afiados, mas para Gurney pouco importava mais alguns cortes e arranhões, tendo em conta o que já tinha sofrido. De qualquer modo, procurou evitar cortes profundos.
Afundou-se ainda mais. Cada pedaço de obsidiana era do tamanho de seu punho ou maior, mas eram irregulares e desiguais. Muitas peças eram longas placas reluzentes. O contêiner estava quase cheio, e as equipes o esvaziariam pela manhã antes que o transportador decolasse. Gurney tentou ocultar-se para que não o vissem.
O peso do cristal vulcânico o oprimiu quando o empurrou por cima de sua cabeça. Mal podia respirar. Sua pele ardia por causa dos cortes, mas foi se aprofundando pouco a pouco, até encolher-se em um canto, de maneira que ao menos dois lados eram de metal sólido. Tentou rodear-se de peças que sustentassem o peso acima. O peso pioraria quando jogassem mais obsidiana sobre ele, mas sobreviveria... e mesmo que não sobrevivesse, aceitaria o risco. Morrer tentando escapar dos Harkonnen era melhor que viver sob seu jugo.
Quando conseguiu colocar alguns pedaços grandes de obsidiana sob peça em que se refugiava, cessou em seus esforços. Não via nada, nem mesmo o tênue brilho azul do cristal ativado. Respirar era quase impossível. Mexeu o braço para extrair as ampolas amarelas de kirar. Encheu seus pulmões de ar.
Apenas uma dose da droga não o colocara em um coma bastante profundo, mas três possivelmente o matariam. Segurou-as com uma mão e cravou duas ampolas em sua coxa ao mesmo tempo. Guardou as outras a seu lado, caso necessitasse de mais uma dose durante a viagem.
A paralisia percorreu seus musculares como uma exalação. A droga o mergulharia em estado de hibernação, diminuiria o ritmo de sua respiração e suas necessidades corporais quase até as portas da morte. Talvez, com sorte, o mantivesse vivo...
Embora o duque Atreides ignorasse que tinha um vagabundo no embarque, Gurney Halleck devia sua fuga de Giedi Prime ao governador de Caladan, o inimigo dos Harkonnen.
Se conseguisse sobreviver até chegar ao centro de distribuição de Hagal, Gurney confiava em escapar enquanto descarregassem a obsidiana azul para ser cortada, polida e transportada. Fugiria e encontraria um modo de sair do planeta, caso necessário. Depois de sobreviver em Giedi Prime durante tantos anos, duvidava de encontrar um lugar pior no Império.
Gurney conjurou a imagem de seu benfeitor involuntário, o duque da Casa Atreides, e notou que um sorriso se formava em seu rosto antes que a hibernação se apoderasse de seu corpo.
O paraíso tem que ser o som da água ao correr.
Provérbio fremen.
Liet-Kynes retornou à base de contrabandistas antártica três anos depois que Warrick e ele a descobriram por acaso. Agora que tinha perdido toda esperança de conseguir à mulher que amava, não tinha nada a perder. Por fim, a intenção de Liet era reclamar o pagamento que Dominic Vernius tinha prometido. Pediria ao contrabandista que o tirasse do Duna, que o levasse a outro planeta, longe de casa.
Antes que um orgulhoso e sorridente Warrick voltasse da Cova das Aves com sua bela esposa, Liet desejara desesperadamente esforçar-se por felicitar o casal. Quando os vigias postados no penhasco que dominava o sietch anunciaram a chegada de um verme de areia com dois cavaleiros, Liet se retirou para seus aposentos para meditar e rezar. Amava seu irmão de sangue, e também a Faroula, e não guardava ressentimento ou rancor. Os fremen tinham um ditado: “Todo pensamento ruim, por ínfimo que seja, tem que ser eliminado imediatamente, antes de que arraigue.”
Abraçara Warrick na entrada do sietch da Muralha Vermelha, indiferente ao pó e ao forte aroma de especiaria e suor, produto de muitas horas no lombo de um verme. Observou que uma aura de felicidade rodeava seu amigo.
Por sua vez, Faroula parecia contente. Saudou Liet com formalidade, tal como correspondia a uma mulher recém casada. Liet sorriu para os dois, mas sua recepção agridoce se perdeu na avalanche de felicitações de outros, incluindo a voz áspera de Heinar, pai de Faroula e naib do sietch.
Poucas vezes Liet-Kynes se aproveitou da fama de seu pai, mas para a celebração nupcial tinha conseguido uma cesta de fruta fresca do estufa da Depressão de Gelo: laranjas, tâmaras e figos, assim como um cacho de bagos Li, procedentes de Bela Tegeuse. Tinha depositado o presente na habitação vazia que Warrick e Faroula compartilhariam, e os esperava quando se retiraram para dormir.
Graças a tudo isso, Liet-Kynes se transformou em um homem mais forte.
Entretanto, durante os meses seguintes, não pôde fingir que não houveram mudanças. Seu melhor amigo estava preso agora a outros compromissos. Tinha uma esposa, e logo, pela graça do Shai-Hulud, uma família. Warrick já não podia dedicar muito tempo aos ataques dos comandos que açulavam os Harkonnen.
Mesmo depois de um ano, sua dor não tinha diminuído. Liet ainda desejava Faroula mais que a qualquer outra mulher, e duvidava que se casasse, agora que a tinha perdido. Se continuasse vivendo no sietch da Muralha Vermelha, sua tristeza se transformaria em amargura, e não queria sentir inveja de seu amigo.
Frieth compreendia os sentimentos de seu filho.
— Liet, vejo que precisa abandonar este lugar durante algum tempo.
O jovem assentiu, enquanto pensava na longa viagem até as regiões polares.
— Seria melhor que me dedicasse a... outras tarefas.
Apresentou-se como voluntário para entregar o próximo suborno de especiaria a Rondo Tuek, uma árdua travessia que poucos empreendiam de boa vontade.
— Diz-se que não só os ouvidos captam os ecos — disse Frieth —. Os ecos da memória se escutam com o coração. — Sua mãe sorriu e apoiou uma mão magra em seu ombro —. Vá aonde precisar. Eu explicarei tudo ao seu pai.
Liet se despediu do sietch, de Warrick e Faroula. Os outros fremen intuíram seu desassossego e desgosto.
— O filho do Umma Kynes deseja partir em hajj — disseram, como se sua viagem fosse uma espécie de peregrinação santa. E talvez fosse, uma busca de paz interior, de um propósito definido. Sem Faroula, precisava encontrar outra obsessão que o impulsionasse.
Tinha vivido à sombra de Pardot Kynes por toda sua vida. O planetólogo tinha preparado Liet para que fosse seu sucessor, mas o jovem nunca tinha esquadrinhado seu coração para decidir se esse era o caminho que desejava seguir.
Os jovens fremen escolhiam freqüentemente a profissão de seus pais, mas nem todos. O sonho de despertar Duna era poderoso, e inspirava, e exigia, paixões intensas. Mesmo sem seu filho de dezenove anos, Umma Kynes ainda contava com seus fiéis lugares-tenentes Stilgar, Turok e Ommun, assim como com os líderes secundários. O sonho não morreria, com independência do que Liet decidisse.
Algum dia, seria seu chefe, mas só se se entregasse de todo coração ao problema. Irei e tentarei compreender o propósito que arde no coração de meu pai.
Tinha decidido voltar a ver Dominic Vernius.
Com a habilidade fremen para seguir rastros por terrenos abruptos ou carentes de sinais, Liet-Kynes contemplou a extensão antártica. Já tinha entregue sua carga de essência de especiaria destilada, que seria transportada em segredo aos agentes da Corporação. Mas em vez de retornar a seu sietch, em vez de ir inspecionar os palmeirais, tal como se esperava dele, Liet mergulhou nas regiões polares, em busca dos contrabandistas.
Sob a tênue luz inclinada, tentou distinguir irregularidades na parede da geleira que lhe indicassem o labirinto de cavernas. Agradou-lhe ver que os contrabandistas tinham feito todas as modificações sugeridas por Warrick e ele. Sob a alta linha de rocha impregnada de gelo encontraria um profundo precipício, em cujo fundo descansavam as naves de Dominic.
Encaminhou-se para a base do penhasco. Suas mãos estavam congeladas, e suas bochechas ardiam por causa do frio. Como ignorava como entrar na base, procurou uma passagem e confiou que os refugiados o veriam e o convidariam a entrar, mas ninguém apareceu.
Liet investiu uma hora tentando fazer que o vissem, gritou e agitou os braços, até que por fim uma pequena rachadura se abriu com um rangido e vários homens saíram apontando fuzis laser.
O jovem Liet-Kynes ergueu o queixo com calma.
— Vejo que continuam tão vigilantes como sempre — disse sarcasticamente —. Parece que necessitam de minha ajuda mais do que eu imaginava. — Como os homens continuassem apontando as armas, Liet franziu o sobrecenho e apontou para o homem com o rosto picado de varíola e que lhe faltava uma sobrancelha, e para o veterano de cabelo grisalho —. Johdam, Asuyo, não me reconhecem? Estou mais velho e mais alto, com um pouco de barba, mas não tão diferente de antes.
— Todos os fremen se parecem — grunhiu Johdam.
— Então todos os contrabandistas são míopes. Vim ver Dominic Vernius.
Agora teriam que matá-lo por saber demais ou levá-lo para dentro. Liet entrou nos túneis, e os contrabandistas fecharam a porta a suas costas.
Quando passaram em frente ao muro de observação, Liet olhou para o fundo do precipício, onde se achava o campo de aterrissagem. Grupos de homens corriam de um lado para outro como formigas, carregando fornecimentos nas naves.
— Estão preparando uma expedição — disse Liet.
Os dois veteranos olharam para ele sem pestanejar. Asuyo, com o cabelo branco mais arrepiado que nunca, inchou o peito para exibir novas medalhas e insígnias que tinha acrescentado a seu uniforme... mas ninguém parecia impressionado, exceto ele. A expressão de Johdam continuava amargurada e cética, como se já tivesse perdido muitas coisas e só esperasse acabar logo.
Desceram por um elevador a base da fenda e pisaram no cascalho da depressão. Liet reconheceu a figura imponente de Dominic Vernius. Sua calva brilhava sob a tênue luz polar. O líder dos contrabandistas viu o traje destilador do visitante e o reconheceu imediatamente. Agitou uma mão e se aproximou.
— Caramba, moço, voltou a se perder? Foi mais difícil encontrar nosso esconderijo, agora que nos ocultamos melhor?
— Foi mais difícil conseguir que seus homens me vissem — disse Liet —. Seus sentinelas deviam estar dormindo.
Dominic riu.
— Meus sentinelas estão muito ocupados carregando as naves. Temos que subir a um Cruzeiro, onde já reservamos e pagamos pelo espaço de amarração. O que posso fazer por você? Neste momento estamos muito apressados. Liet respirou fundo.
— Você me prometeu um favor. Vim solicitá-lo.
Mesmo surpreso, os olhos de Dominic cintilaram.
— Muito bem. Quase todos que espera um pagamento não demoram três anos para tomar uma decisão.
— Possuo muitas habilidades, e posso ser um membro valioso de sua equipe — disse Liet —. Leve-me com você.
Dominic pareceu espantado, mas depois sorriu. Deu uns tapinhas no ombro de Liet.
— Suba a bordo de minha nave capitânia e falaremos do assunto.
Apontou para a rampa que subia a uma fragata muito velha.
Dominic tinha espalhado tapetes e outros objetos por seu camarote particular para que parecesse um lar. O conde renegado indicou a Liet que se sentasse em uma das poltronas de suspensão. O tecido estava puído e manchado, por décadas de muito uso, mas Liet não se importou. Em um lado do escritório de Dominic brilhava uma holofoto sólida de uma bela mulher.
— Explique-se, rapaz.
— Você disse que um fremen seria útil para reforçar a segurança de sua base em Salusa Secundus.
Dominic enrugou o sobrecenho.
— Um fremen me seria de grande ajuda. — Virou-se para a imagem da mulher, que brilhou como se sorrisse para ele não importava para onde se deslocasse —. O que você acha, Shando, meu amor? Deixamos o menino vir conosco?
Dominic olhou para o holo como se esperasse uma resposta. Liet sentiu um calafrio. O conde ixiano se voltou para ele, sorridente.
— É claro que sim. Fiz um trato, e seu pedido é muito razoável... embora se pudesse duvidar da sua prudência. — Dominic secou uma gota de suor da têmpora —. Qualquer um que deseje ir ao planeta-prisão do imperador necessita de um pouco mais de felicidade em sua vida.
Liet apertou os lábios, mas não entrou em detalhes.
— Tenho meus motivos.
Dominic não insistiu.
Anos antes, seu pai havia se sentido muito afetado pelo que vira em Salusa Secundus, pelas cicatrizes do planeta que ainda perduravam séculos depois do holocausto. Liet precisava ir até ali para compreender suas próprias motivações e fixar o rumo de sua vida. Talvez se passasse uma temporada em Salusa Secundus, entre as rochas escarpadas e as feridas abertas, compreendesse o que tinha despertado em seu pai o interesse pela ecologia.
O contrabandista apertou a mão de Liet.
— Muito bem, trato feito. Qual seu nome?
— Para os forasteiros, Weichih.
— De acordo, Weichih, se for membro de nossa equipe terá que trabalhar como os outros.
Dominic o guiou até a rampa e depois para o exterior.
Os contrabandistas suavam e grunhiam, sem fôlego.
— Antes de terminar o dia partiremos para Salusa Secundus.
Olhe em seu interior e verá o universo.
Aforismo zensunni
Arrakis. Terceiro planeta do sistema Canopus. Um lugar muito intrigante.
O Navegante da Corporação D'murr olhava através das janelas de plaz de sua câmara, um simples ponto luminoso no interior do gigantesco Cruzeiro. Muito longe de sua nave, sob um véu marrom de pó açoitado pelo vento, estava Arrakis, única fonte de melange que lhe permitia orientar-se nos intrincados caminhos do universo.
A especiaria me proporciona um imenso prazer.
Uma diminuta lançadeira vinda do pólo sul atravessou a atmosfera do planeta, libertou-se de sua atração e chegou a grande nave em órbita. Quando a lançadeira atracou, uma câmara de vigilância mostrou a D'murr um grupo de passageiros que desembarcava nas zonas comunitárias de atmosfera controlada do Cruzeiro.
Embora a tripulação fosse composta por muitas pessoas, D'murr, como Navegante, tinha que vigiar tudo, o tempo todo. Esta era sua nave, seu lar e seu lugar de trabalho, sua responsabilidade.
No interior de sua câmara selada, o vaio familiar do gás de melange alaranjado mal era audível. Com seu corpo tão deformado, D'murr jamais poderia caminhar pelo planeta deserto, jamais poderia abandonar, de fato, a segurança de sua tanque. Mas só estar estar perto de Arrakis o acalmava. Com seu cérebro de superior tentou desenvolver uma analogia matemática para explicar esta sensação, mas não chegou a defini-la.
Antes de entrar a serviço da Corporação, D'murr Pilru deveria ter vivido mais, quando ainda era humano. Mas agora era muito tarde. A Corporação tomara conta dele rapidamente, de maneira inesperada, assim que tinha passado no exame de admissão. Não tivera tempo para despedir-se como deveria, para dar por concluídos seus assuntos humanos.
Humano.
Que definição abrangia a palavra? A Bene Gesserit tinha passado gerações lutando com essa mesma pergunta, com todos os matizes, categorias intelectuais e emocionais, as conquistas, os erros. A forma física de D'murr tinha modificado significativamente desde que ingressara na Corporação, mas até que ponto isso importava? Os outros Navegantes e ele haviam transcendido a condição humana, até transformarem-se em algo completamente diferente?
Ainda sou humano. Já não sou humano. Escutou seus próprios pensamentos, confusos e vacilantes.
D'murr observou os novos passageiros através da câmera de vigilância, homens toscos vestidos em roupas escuras, que entravam no salão de passageiros principal. Bolsas de viagem flutuavam atrás deles. Um dos homens, de feições coradas, bigode volumoso e cabeça raspada, lhe pareceu muito familiar...
Ainda lembrava de coisas.
Dominic Vernius. Onde estivera por todos estes anos?
O Navegante emitiu uma ordem com sua diminuta boca em forma de V pelo cintilante alto-falante similar a um globo. A tela mostrou os nomes dos passageiros, mas nenhum lhe era conhecido. O exilado conde Vernius viajava com nome falso, graças as promessas de absoluta confidencialidade da Corporação.
Ele e seus acompanhantes se dirigiam a Salusa Secundus.
Soou um alarme no interior da câmara de navegação. Todas as lançadeiras estavam seguras em seus ancoradouros. Tripulantes da Corporação fecharam as escotilhas de entrada e verificaram os motores Holtzmann. Um exército de peritos preparou o Cruzeiro para sua decolagem da órbita polar.
Pensava nos tranqüilos dias de IX, a época bucólica que havia passado com seus pais e seu irmão gêmeo no Grande Palácio do conde Vernius.
Refugos inúteis da mente.
Como Navegante, efetuava cálculos complexos e se divertia com matemática dimensional. Pilotava Cruzeiros cheios de passageiros e mercadorias por distâncias imensas.
Mas de repente descobria bloqueado, distraído, incapaz de funcionar. Seu cérebro complexo perdia a concentração no meio de preciosas equações. por que sua mente, os restos de seu antigo eu, insistiam em reconhecer aquele homem? Emergiu uma resposta, como um ser que surgisse das profundezas de um oceano escuro: Dominic Vernius representava uma parte importante do passado de D'murr Pilru. Seu passado humano...
Quero dobrar o espaço.
Em vez disso, imagens de um IX desaparecido cruzavam sua mente: cenas do esplendor da corte de Vernius com seu irmão C'tair. Belas moças sorridentes, com trajes caros. A adorável filha do conde. Kailea. Seu cérebro, o grande bastante para abranger o universo, era um armazém de tudo que ele tinha sido, e de tudo aquilo em que se converteria.
Não terminei que evoluir.
Os rostos das moças ixianas se alteraram, transformaram-se nos semblantes carrancudos de seus instrutores da Escola de Navegação da Junção. Suas câmaras herméticas se agruparam a seu redor, seus diminutos olhos escuros o fulminaram por seu fracasso.
Tenho que dobrar o espaço!
Para D'murr esta era a experiência sensual definitiva, de seu corpo, mente e das múltiplas dimensões disponíveis. Entregou-se à Corporação, do mesmo modo que os sacerdotes e monjas da antigüidade se entregaram a Deus, renunciando às relações sexuais.
Por fim, abandonou suas lembranças humanas e se expandiu para abranger os sistemas estelares, para chegar a eles e mais à frente. Enquanto D'murr guiava o Cruzeiro através do espaço dobrado, a galáxia se transformou em sua mulher... e fez o amor com ela.
Um estado de guerra incessante origina suas próprias condições sociais, que foram similares ao longo de todas as épocas. Uma delas é um estado de alerta permanente para repelir um ataque. Outra é o governo autocrático.
CAMMAR PILRU, embaixador ixiano no exílio,
Tratado sobre a queda de governos injustos.
Para C'tair, os prazeres de sua vida com Miral Alechem duraram pouco. depois da holoprojeção de Rhombur, separaram-se por motivos de segurança e encontraram esconderijos diferentes para viver. Confiavam em aumentar as possibilidades de que um deles, ao menos, sobrevivesse e continuasse sua tarefa. Só se encontravam com regularidade para trocar olhares furtivos e palavras afogadas na cafeteria onde ela trabalhava.
Em uma ocasião, entretanto, quando chegou à hora combinada, havia uma mulher diferente substituindo Miral na esteira de distribuição de comida. Agarrou seu prato de matéria vegetal cortado em pedaços e se sentou à mesa que costumavam compartilhar.
C'tair vigiou a esteira, mas Miral não apareceu. Comeu em um silêncio. Por fim, quando levou os pratos vazios para o lugar onde os operários os lavavam para o turno seguinte, perguntou a uma empregada da cafeteria:
— Onde está a mulher que estava aqui faz três dias?
— Foi embora — foi a resposta brusca. A mulher de rosto quadrado franziu o sobrecenho —. Por que quer saber?
— Não queria incomodar.
Inclinou a cabeça e se afastou um passo. Um guarda tleilaxu o observava. Seus olhos de roedor se entreabriram, e C'tair se afastou cautelosamente para não chamar mais a atenção.
Algo tinha acontecido a Miral, mas não se atrevia a insistir. Não podia perguntar a ninguém.
Quando o guarda foi falar com a garçonete, C'tair acelerou o passo o suficiente para perder-se entre a multidão, depois se desviou por um poço lateral, desceu para os túneis dos suboides e correu até perder-se de vista. Intuía que algo terrível o espreitava.
Algo muito grave tinha acontecido. Tinham capturado Miral, e agora C'tair estava sozinho novamente, sem uma resistência organizada, sem alguém que lhe servisse de cobertura e ajudasse em sua rebelião particular. Sem recursos exteriores, que chances tinha? Enganara-se durante todos estes anos?
Já tinha trabalhado sozinho antes, tinha dissimulado suas emoções, mas agora seu coração estava cheio de desejo por ela. Às vezes desejava não ter se apaixonado por Miral, porque agora sua preocupação pela jovem era constante. Mas nas horas tranquilas, sozinho em sua cama, agradecia os momentos de amor compartilhados.
Não voltou a vê-la viva.
Como vespas enfurecidas que protegessem uma colméia, os tleilaxu tomaram medidas mais repressivas. Executaram a milhares de operários apoiando-se em simples suspeitas, com o único pretexto de reforçar seu reinado de terror. Depois ficou evidente que para os invasores pouco importava se exterminassem toda a população ixiana. Podiam trazer para sua própria gente: gholas, Dançarinos Faciais, o que quisessem.
Logo, o espírito de rebelião ixiano foi esmagado de novo. C'tair não dava um golpe há seis meses. Tinha escapado por pouco de uma armadilha Sardaukar, e isso porque os surpreendera com uma pistola de dardos. Temeroso de que seguissem o rastro de seus rastros digitais ou mapas genéticos, vivia no temor constante de ser detido.
As coisas não melhoraram.
Depois de projetar a mensagem do príncipe Rhombur, as comunicações com o exterior tinham sido cortadas com mais zelo que antes. Não se permitia a entrada de observadores nem mensagens. Todos os capitães de embarque independentes e operários de transporte eram rechaçados. Não tinha a menor possibilidade de enviar uma mensagem a Rhombur em seu exílio de Caladan. IX se transformou pouco mais que uma caixa negra que produzia tecnologia para os clientes da CHOAM. Sob a supervisão tleilaxu, quase toda a produção era de qualidade inferior e os cancelamentos eram freqüentes, o que tinha afetado de maneira adversa os lucros vindos das vendas. Um pequeno consolo para C'tair.
Isolado novamente, era incapaz de encontrar aliados, incapaz de roubar o equipamento que necessitava. Só tinha uns quantos componentes em seu novo esconderijo, talvez suficientes para utilizar seu transmissor rogo uma ou duas vezes mais. Enviaria um desesperado pedido de ajuda ao seu irmão.
Ao menos, C'tair se jurou que alguém devia saber o que estava acontecendo em IX. Miral Alechem tinha sido seu único brilho de amizade ou ternura, e tinha desaparecido de sua vida. Temia que lhe tivesse ocorrido o pior...
Tinha que transmitir sua mensagem, tinha que encontrar um ouvinte. Apesar do seu entusiasmo, Rhombur não tinha feito grande coisa. Talvez D'murr, com seus talentos de Navegante da Corporação, poderia localizar o desaparecido conde de IX, Dominic Vernius...
As roupas sujas de C'tair cheiravam a graxa e suor. Fazia muito tempo que seu corpo não desfrutava de um bom descanso ou uma comida decente. Faminto, se encolhei no fundo de um contêiner blindado que possuía gavetas herméticas de cronômetros ixianos rechaçados, objetos para medir o tempo que podiam ser programados para funcionar em qualquer planeta do Império. Tinham afastado os instrumentos para calibrá-los de novo, e tinham acumulado pó durante anos. Os tleilaxu não estavam interessados em brinquedos tecnológicos frívolos.
Trabalhando sob a luz tênue de um globo, C'tair voltou a montar os componentes de seu transmissor rogo. Sentia o gelo do medo no sangue, não pela possibilidade de que os detetives tleilaxu o descobrissem, mas por temor que a rogo não funcionasse. Tinha transcorrido um ano desde que tentara utilizar o aparelho de comunicação, e este era seu último jogo de varinhas de cristal de silício.
Secou uma gota de suor de seu cabelo e introduziu as varinhas no receptáculo. O transmissor tinha sido reparado muitas vezes. Cada vez que o utilizava, C'tair forçava os sistemas até o limite.
Quando eram jovens, seu gêmeo e ele tinham compartilhado uma relação perfeita, uma cumplicidade fraterna que lhes tinha permitido terminar as frases do outro, olhar-se de um extremo a outro de uma habitação e saber o que o outro estava pensando. Às vezes, seu desejo de recuperar aquela empatia era quase insuportável.
Desde que D'murr tinha se transformado em Navegante, os irmãos foram se distanciando cada vez mais. C'tair tinha feito o impossível por manter aquele vínculo frágil, e o transmissor rogo permitia que as duas mentes encontrassem um terreno comum. Mas o rogo ia falhando com o passar dos anos, e estava a ponto de desmoronar-se por completo... assim como C'tair.
Introduziu a última varinha, apertou a mandíbula e ativou a fonte de energia. Confiava que as paredes blindadas do contêiner impedissem qualquer radiação que os exploratórios tleilaxu pudessem detectar. Depois de ativar os discos explosivos, dois anos antes, já não contava com uma habitação a prova de exploratórios. Como resultado, o perigo que corria aumentava dia após dia.
Estava sendo procurado pelo comandante Garon e seus Sardaukar, e a outros como ele, estreitavam o cerco, aproximavam-se cada vez mais.
C'tair apertou os receptores contra o crânio e aplicou uma capa de gel para melhorar o contato. Tentou estabelecer uma conexão mental com D'murr, procurou os mapas mentais que em outro tempo tinham sido idênticos aos seus. Embora ainda compartilhassem de uma origem comum, D'murr tinha mudado muito... ao ponto de os gêmeos quase parecerem agora ser membros de espécies diferentes.
Sentiu um comichão em sua consciência, e depois um surpreso mas preguiçoso reconhecimento.
— D'murr, você tem que me escutar. Tem que escutar o que vou dizer.
Sentiu certa receptividade nas imagens, e viu em sua mente o rosto de seu irmão, de cabelo escuro, olhos grandes, nariz esmagado, sorriso agradável. Tal como C'tair o recordava dos dias no Grande Palácio, quando tinham assistido a cerimônias diplomáticas e flertado com Kailea Vernius.
Mas depois da imagem familiar, o estupefato C'tair viu uma forma estranha e disforme, uma sombra enorme de seu irmão, de crânio alargado e membros atrofiados, suspenso eternamente em um tanque de gás de melange.
C'tair rechaçou a imagem e se concentrou de novo no rosto humano de seu gêmeo, com independência de que fosse real.
— D'murr, pode ser que esta seja a última vez que falamos.
Queria perguntar a seu irmão se tinha notícias do Império. Sabia algo de seu pai, o embaixador Pilru, exilado em Kaitain? Estava vivo ainda, o embaixador continuaria tentando encontrar apoios, teorizou C'tair, mas depois de tantos anos seria uma causa perdida, quase patética.
C'tair não tinha tempo para conversar. Precisava comunicar a urgência e o desespero do povo ixiano. Todas as outras formas de comunicação tinham sido cortadas, mas D'murr, por meio de seus contatos com a Corporação, gozava de um tênue vínculo com o cosmos.
Alguém tem que compreender como é desesperada nossa situação!
C'tair falou sem parar, descreveu tudo o que os tleilaxu tinham feito, enumerou os horrores infligidos pelos guardas Sardaukar e pelos fanáticos aos cativos ixianos.
— Tem que me ajudar, D'murr. Encontre alguém que defenda nossa causa perante o Império. — Rhombur Vernius já estava informado da situação, e embora o príncipe tivesse feito tudo quanto pudera, com o apoio secreto dos Atreides, não tinha sido suficiente —. Localize Dominic Vernius. Ele pode ser nossa única chance. Se te lembrar de mim, se recordar da sua família e seus amigos humanos... do seu povo..., rogo que nos ajude. É a única esperança que resta.
Diante dele, quase sem ver, porque sua mente estava muito longe, projetada pelos caminhos do espaço dobrado até seu irmão, C'tair observou que surgia fumaça do transmissor rogo. As varinhas de cristal de silício começaram a tremer e romper-se.
— Por favor, D'murr!
Segundos depois, as varinhas se partiram. Surgiram faíscas de ranhuras abertas no transmissor, e C'tair afastou os conectores de suas têmporas.
Meteu-se o punho na boca para afogar um grito de dor.
Seus olhos se encheram de lágrimas, nascidas da pressão que espremia seu cérebro. Tocou o nariz, as orelhas, e descobriu sangue que brotava dos seios paranasais. Soluçou e mordeu os dedos com força, mas a agonia demorou um tempo para passar.
Por fim, depois de horas de aguda dor, contemplou os cristais enegrecidos de seu transmissor e secou o sangue em seu rosto. levantou-se e esperou a que a dor desaparecesse, mas descobriu que sorria, apesar da dor e do rogo avariado.
Estava seguro de que desta vez tinha conseguido. O futuro de IX dependia do que D'murr fizesse com a informação.
Sob um planeta, em suas rochas, terra e capas sedimentárias, encontra-se a memória do planeta, a completa explicação de sua existência, sua memória ecológica.
PARDOT KYNES
Um manual de Arrakis
Em apertada formação, naves-prisão imperiais saíram do hangar do Cruzeiro e desceram para o planeta purulento, como uma procissão funerária.
Até do espaço, Salusa Secundus parecia gangrenado, com crostas escuras e uma fina capa de nuvens que recordava um sudário esmigalhado. Segundo os comunicados de imprensa oficiais, os sentenciados enviados a Salusa tinham uma taxa de mortalidade de sessenta por cento no primeiro Ano Padrão.
Depois que o novo carregamento de prisioneiros e fornecimentos partisse para pontos de descarga, os tripulantes da Corporação Espacial mantiveram as portas do hangar abertas pelo tempo suficiente para que outra fragata e duas lanchas rápidas sem distintivos saíssem. Dominic Vernius e seus homens, sem documentar sua passagem, descenderam ao planeta através de um oco na rede de satélites de vigilância.
Liet-Kynes estava sentado em um assento de passageiros da fragata, com os dedos apoiados contra a fria janela de plaz. Estava com os olhos arregalados, como os meninos fremen quando montavam pela primeira vez em um verme. Salusa Secundus!
O céu era de um laranja doentio, com franjas de nuvens pálidas inclusive em pleno meio-dia. O céu estava sulcado por raios, como se titãs invisíveis estivessem jogando boliches elétricos.
A fragata de Dominic se esquivou das balizas de detecção imperiais e se dirigiu para a zona de aterrissagem. Cruzaram extensões de rocha vitrificada que cintilavam como lagos, embora fossem poças de granito cristalizado. Mesmo depois de tantos séculos, uma espaçada erva marrom crescia nos campos arrasados, como os dedos tortos de homens enterrados vivos.
Liet compreendeu por que seu pai havia se sentido tão comovido pelas feridas abertas daquele lugar maldito. Emitiu um som gutural. Quando Dominic se voltou para ele com expressão de curiosidade, Liet se explicou.
— Em tempos remotos, o povo Zensunni (os fremen) viveu escravizado aqui durante nove gerações. — Contemplou a paisagem ressecada e acrescentou em voz baixa —: Alguns dizem que ainda se pode ver o chão manchado com seu sangue e ouvir seus gritos arrastados pelo vento.
Os ombros largos de Dominic caíram.
— Weichih, Salusa padeceu mais dor e desdita do que merecia.
Aproximaram-se dos subúrbios de uma cidade em outros tempos extensa, que agora parecia uma cicatriz arquitetônica. Cotos de edifícios e colunas de mármore leitoso enegrecidas jaziam como os restos do esplendor que tinha reinado naquele lugar. Para as colinas escarpadas, uma nova muralha ziguezagueava ao redor de uma zona de edifícios intactos até certo ponto, os restos de uma cidade abandonada que tinha sobrevivido ao holocausto.
— Essa muralha foi erguida com o propósito de manter a população cativa — explicou Dominic —, mas quando caiu e os prisioneiros escaparam, os funcionários e administradores a ergueram de novo e se mudaram para cá, onde se sentiam protegidos. — Soltou uma gargalhada amarga —. Quando os prisioneiros perceberam que estavam melhor em um lugar onde ao menos os alimentavam e vestiam, tentaram entrar pela força. — Meneou sua cabeça calva —. Agora, os mais duros aprenderam a viver ali fora. Outros morrem. Os Corrino importaram animais perigosos, tigres Laça, touros salusanos e outros espécimes, para manter os sobreviventes controlados. Os criminosos condenados são abandonados aqui. Ninguém espera que partam.
Liet estudou a paisagem com olho de planetólogo, e tentou recordar tudo que seu pai lhe ensinara. Percebeu um aroma de umidade acre no ar, mesmo naquele lugar desolado.
— Parece que há bastante potencial, bastante umidade. Poderia haver pequenas plantas, colheitas, ganho. Alguém poderia mudar este planeta.
— Os malditos Corrino não permitiriam. — O rosto de Dominic se escureceu —. Gostam assim, como castigo merecido para os que ousam desafiar o Império. Assim que os prisioneiros chegam começa um jogo cruel. O imperador gosta de saber quem se endurece mais, quem sobrevive mais tempo. Em seu palácio, os membros da corte apostam nos prisioneiros famosos, em quem sobreviverá e quem não.
— Meu pai não me contou isso — disse Liet —. Viveu alguns anos aqui, quando era jovem.
Dominic lhe dedicou um pálido sorriso, mas seus olhos seguiram sombrios e preocupados.
— Seja quem for seu pai, garoto, não devia saber de tudo. — O exilado guiou a fragata sobre as ruínas da cidade exterior até um hangar cujo teto mergulhou em uma teia de vigas oxidadas.
— Como conde de IX, prefiro viver sob o chão. Aí não há por que preocupar-se com as tormentas da aurora.
— Meu pai também me falou das tormentas da aurora.
A fragata entrou no oco escuro do hangar, e continuou descendo para as zonas de armazenamento cavernosas.
— Isto era um depósito imperial, reforçado para armazenar fornecimentos durante muito tempo.
Dominic acendeu as luzes de navegação da fragata e fachos amarelos perfuraram o ar. Uma nuvem de pó que se estava pousando se assemelhava com uma chuva cinza.
As duas lanchas se adiantaram à fragata e aterrissaram antes. Outros contrabandistas saíram da base escondida para bloquear a nave. Descarregaram materiais, ferramentas e provisões. Os pilotos das naves pequenas correram à rampa da fragata, para esperar Dominic.
Enquanto seguia o líder, Liet farejou o ar. Ainda se sentia nu sem o traje destilador e os filtros nasais. O ar cheirava a seco e queimado, impregnado de dissolventes e ozônio. Liet sentia falta do calor da rocha natural, como um sietch confortável. A seu redor, muitas paredes estavam cobertas de folhas artificiais de metal ou plas-pedra, para ocultar as habitações que encerravam.
Um homem musculoso apareceu sobre uma rampa que rodeava a zona de aterrissagem. Saltou ao chão de uma escada com uma agilidade felina, embora seu corpo fosse disforme e de aspecto pesado. Uma cicatriz avermelhada desfigurava seu rosto quadrado, e seu cabelo loiro pendia em um ângulo estranho sobre seu olho esquerdo. Parecia um homem desmontado e voltado a montar sem instruções.
— Gurney Halleck! — A voz de Dominic ressonou na zona de aterrissagem —. Venha conhecer nosso novo camarada, nascido e criado entre os fremen.
O homem esboçou um sorriso lupino e se aproximou com surpreendente rapidez. Estendeu uma palma longa e tentou apertar a mão de Liet. Citou uma passagem que Liet reconheceu da Bíblia Católica Laranja.
— Receba a todos aqueles que quer ter como amigos, e lhe dê as boas-vindas tanto com seu coração como com sua mão.
Liet lhe devolveu o gesto e replicou com uma resposta fremen tradicional, no antigo idioma Chakobsa.
— Gurney veio de Giedi Prime — disse Dominic —. Escapou escondido em um carregamento destinado a meu velho amigo o duque Leto Atreides, depois mudou de nave em Hagal, perambulou por centros comerciais e espaçoportos, até que encontrou a pessoa adequada, um dos nossos.
Gurney deu de ombros. Estava suando, e sua roupa estava desalinhada porque estivera praticando com a espada.
— Pelos infernos, me escondi em lugares cada vez mais miseráveis durante meio ano, até que por fim encontrei estes valentões... no lugar mais fedido.
Liet entreabriu os olhos desconfiado, ignorando a brincadeira.
— Você vem de Giedi Prime? O planeta Harkonnen? — Seus dedos se desviaram para seu cinturão, onde levava sua faca crys embainhada —. Matei centenas de demônios Harkonnen.
Gurney captou o movimento, mas cravou a vista no fremen barbudo.
— Então você e eu seremos grandes amigos.
Mais tarde, quando Liet se sentou com o bando de contrabandistas no bar da base subterrânea, escutou as discussões, as gargalhadas, as histórias que contavam, as fanfarronices e as mentiras descaradas.
Abriram catas garrafas de uma colheita muito especial e foram passando copos de um potente licor âmbar.
— Conhaque imperial, rapaz — disse Gurney, ao mesmo tempo que estendia um copo para Liet, que teve problemas para engolir o líquido espesso —. A remessa privada de Shaddam, vale dez vezes seu peso em melange. — O homem das cicatrizes lhe piscou um olho com ar conspirador —. Tomamos emprestado de um embarque vindo de Kirana, pegamos a reserva destinada ao imperador e a substituímos por garrafas de vinagre. Suponho que logo saberemos dos resultados.
Dominic Vernius entrou na sala e todos os contrabandistas o saudaram. Usava um colete feito de seda merh marrom, forrado de pele de baleia negra. Várias holoimagens de sua amada esposa flutuavam perto dele como fantasmas, para que pudesse vê-la em qualquer direção em que se movesse.
Estava à vontade na fortaleza oculta, mas Liet esperava sair para explorar a paisagem salusana, como seu pai tinha feito. Primeiro, não obstante, Liet prometera utilizar suas habilidades fremen para estudar a base secreta, ajudar a camuflá-la e protegê-la de observadores, embora concordasse com Dominic Vernius quando dizia que pouca gente se incomodaria em procurar um esconderijo naquelas paragens.
Ninguém vinha por vontade própria a Salusa Secundus.
Na parede da sala de jantar, Dominic guardava um antiquísimo mapa de como tinha sido o planeta em seus dias de glória, quando era a capital de um império interestelar. As linhas estavam riscadas com metal dourado, os palácios e as cidades marcados com jóias, calotas polares feitas de opala de fôlego de tigre, e mares traçados de madeira azul elaccana petrificada.
Dominic afirmava (produto de sua imaginação mais que de provas documentais) que o mapa tinha pertencido ao príncipe herdeiro Raphael Corrino, o lendário estadista e filósofo que vivera milhares de anos antes. Dominic expressou seu alívio pelo fato de que Raphael (“o único Corrino bom da turma”) não tivesse vivido para ver o que tinha acontecido com sua amada capital. Toda aquela magnificência de conto de fadas, todos aqueles sonhos, visões e boas obras tinham sido arrasados pelo fogo nuclear.
Gurney Halleck pulsou as cordas de seu baliset novo e entoou uma canção triste. Liet prestou atenção à letra, sensível e perturbadora, pois evocava imagens de pessoas e lugares desaparecidos.
Oh, pelos dias dos tempos passado,
acaricia com doce néctar
meus lábios outra vez.
Lembranças amadas saboreadas e sentidas...
Os sorrisos e beijos de deleite, inocência e esperança.
Mas só vejo véus e lágrimas,
e as tenebrosas e sombrias
profundezas da dor,
da fadiga e da desesperança.
É mais prudente, meu amigo,
olhar para outra parte,
para a luz, e não para a escuridão.
Cada homem extraiu sua própria interpretação da canção, e Liet viu lágrimas nos olhos de Dominic, que tinha a vista cravada nos holorretratos de Shando. Liet se encolheu ao presenciar tanta emoção, pouco frequente entre os fremen.
O olhar distante de Dominic só estava concentrada em parte no mapa da parede.
— Em algum lugar dos arquivos imperiais, sem dúvida coberto de pó, está o nome da família renegada que utilizou aqueles artefatos atômicos proibidos para devastar um continente.
Liet estremeceu.
— No que estavam pensando? Por que, mesmo sendo renegados, fizeram algo tão terrível?
— Fizeram o que deviam fazer, Weichih — Johdam disse com brutalidade, enquanto esfregava a cicatriz da sobrancelha —. Desconhecemos o preço do desespero.
Dominic se afundou ainda mais em sua cadeira.
— Alguns Corrino, malditos sejam e seus descendentes, saíram ilesos. O imperador sobrevivente, Hassik III, transferiu sua capital para Kaitain... e o Império continua. Os Corrino continuam. E obtiveram um irônico prazer ao transformar o inferno de Salusa Secundus em seu planeta prisão particular. Cada membro daquela família renegada foi capturado e jogado aqui para receber uma morte horrível.
O veterano Asuyo assentiu com seriedade.
— Diz-se que seus fantasmas ainda passeiam pelo lugar, não é?
Liet, surpreso, compreendeu que o exilado conde Vernius se identificava com aquela família desesperada, já esquecida depois de tantos séculos. Embora Dominic parecesse bondoso, Liet tinha descoberto os padecimentos sofridos por aquele homem: sua mulher assassinada, seus súditos esmagados sob a tirania dos tleilaxu, seu filho e sua filha obrigados a viver exilados em Caladan.
— Aqueles renegados... — disse Dominic com uma luz estranha nos olhos —. Eu não teria sido tão descuidado como eles na hora do extermínio.
Um duque tem que tomar sempre o controle de seu lar, pois se não governar a seus íntimos, não poderá governar um planeta.
Duque PAULUS ATREIDES
Pouco depois da refeição de meio-dia, Leto estava sentado no chão atapetado do quarto de jogos. Balançava seu filho de quatro anos e meio sobre o joelho. Embora fosse grande para aquele jogo, Victor ainda gritava de alegria. O duque via através das janelas de plaz blindadas o céu azul de Caladan, que beijava o mar no horizonte, sobrevoado por nuvens brancas.
Kailea o observava da porta.
— Ele é muito grande para isso, Leto. Para de tratá-lo como um bebê.
— Parece que Victor não concorda.
Lançou o menino ainda mais para o alto, o que provocou mais gargalhadas.
A relação de Leto com Kailea tinha melhorado nos últimos seis meses, desde que tinham instalado as fabulosas paredes de obsidiana azul. Agora, a sala de jantar e os aposentos privados de Kailea rivalizavam em esplendor com o Grande Palácio. Não obstante, o humor de Kailea tornou a azedar nas últimas semanas, enquanto refletia (sem dúvida açulada por Chiara) sobre quanto tempo passava com Jessica.
Leto já não se importava com suas queixa. Escorregavam-lhe como chuva da primavera. Em contraste, Jessica não lhe pedia nada. Sua ternura e sugestões ocasionais lhe enchiam de energia e permitiam que cumprisse seus deveres de duque com compaixão e retidão.
Pelo bem de Kailea, e pelo de Victor, Leto não danificou a reputação da concubina. O povo amava seu duque, e este deixava que acreditasse na felicidade de conto de fadas que reinava no castelo, assim como Paulus tinha fingido um plácido matrimônio com lady Helena. O velho duque o chamava “política do dormitório”, a aflição de todos os líderes do Império.
— Ai, por que me esforço em falar com você, Leto? — disse Kailea, sem se mover da porta —. É como discutir com uma pedra!
Leto deixou de balançar Victor e olhou para ela com dureza. Manteve um tom neutro.
— Não tinha percebido que estava fazendo um esforço.
Kailea resmungou um insulto e se afastou pelo corredor. Leto fingiu perceber.
Kailea viu seu irmão, carregando um baliset ao ombro, e correu para alcançá-lo. Ao vê-la, Rhombur sacudiu a cabeça. Ergueu uma mão para deter a inevitável corrente de lamentos.
— O que foi agora, Kailea? — Tocou com uma mão as cordas do baliset. Thufir Hawat lhe ensinava a tocar o instrumento de nove cordas —. Encontrou um novo motivo de irritação, ou estou errado?
Seu tom a deixou atônita.
— É assim que saúda sua irmã? Faz dias que me evita.
Seus olhos esmeralda cintilaram.
— Porque não faz outra coisa além de se queixar. Leto não se casará com você... Suas brincadeiras com Victor são muito bruscas... Er, passa muito tempo com Jessica... Deveria te levar a Kaitain com mais frequência... Não sabe utilizar bem o guardanapo. Estou farto de tentar mediar a relação dos dois. — Meneou a cabeça —. Para cúmulo, parece te irritar que eu seja feliz com Tessia. Pare de culpar os outros, Kailea. É você a responsável por sua felicidade.
— Perdi muito nesta vida para ser feliz.
Kailea ergueu o queixo.
Rhombur se enfureceu.
— Você é tão egocêntrica que não vê que perdi tanto quanto você? Mas eu não deixo que isso me corroa a cada dia.
— Não tivemos por que perdê-lo. Ainda pode fazer mais pela Casa Vernius. — Kailea estava envergonhada da ineficácia do seu irmão —. Fico feliz que nossos pais não estejam aqui para ver isto. Você é um péssimo príncipe, irmão.
— Agora fala um pouco como Tessia, embora ela o diga de uma maneira menos insultante.
Kailea emudeceu quando Jessica saiu de um passadiço e se desviou para o de quarto de jogos. Kailea fulminou a outra concubina com o olhar, mas Jessica sorriu. Depois de entrar no quarto de jogos, fechou a porta.
Kailea se vorou para seu irmão.
— Meu filho Victor é o futuro e a esperança de uma nova Casa Atreides — disse com brutalidade —, mas você não pode entender este simples fato.
O príncipe ixiano se limitou a sacudir a cabeça, entristecido.
— Tento ser agradável com ela, mas é inútil — disse Jessica —. Mal me dirige a palavra, e a forma que me olha...
— Basta. — Leto exalou um suspiro de cansaço —. Sei que Kailea está prejudicando minha família, mas não posso expulsá-la daqui. — Estava sentado no chão, enquanto seu filho brincava com carros e ornitópteros de brinquedo —. Se não fosse por Victor...
— Chiara está sempre cochichando em seu ouvido. Os resultados são evidentes. Kailea é um barril de pólvora a ponto de explodir.
O duque Leto, que sustentava um tóptero de brinquedo nas mãos, olhou-a como se estivesse interessado.
— Ela só está demonstrando rancor, Jessica. Você me decepcionou. — Seu rosto se endureceu —. As concubinas não governam esta Casa.
Como sabia que Jessica tinha sido treinada durante anos na Bene Gesserit, surpreendeu-se ao ver que toda cor desaparecia de seu rosto.
— Meu senhor, eu... não disse por isso. Sinto muitíssimo.
Fez uma reverência e saiu da habitação. Leto contemplou o brinquedo, e depois o menino. Sentia-se desorientado.
Um momento depois, oculta como uma sombra, Jessica observou Kailea no vestíbulo do castelo, falando aos sussurros com Swain Goire, o guarda que dedicava quase todo seu tempo a vigiar Victor. A lealdade e dedicação de Goire ao duque sempre tinham sido evidentes, e Jessica tinha comprovado quanto adorava seu pequeno tutelado.
Goire parecia violentado pelos cuidados que recebia da concubina ducal. Como por acidente, os seios da Kailea roçaram seu braço, mas o homem se afastou.
Como tinha sido adestrada nas complexidades da natureza humana pela Bene Gesserit, Jessica só se sentiu surpresa que Kailea tivesse demorado tanto em tentar vingar-se de Leto.
Duas noites depois, sem que nem mesmo Thufir Hawat soubesse, Kailea entrou silenciosamente no dormitório de Goire.
Criamos nosso futuro graças a nossas crenças, que controlam nossas ações. Um sistema de crenças forte o bastante, uma convicção poderosa o bastante, pode conseguir algo. Assim criamos nossa realidade consensuada, incluídos nossos deuses.
Reverenda madre RAMALLO
Sayyadina dos fremen.
A sala de práticas da nova ilha de Ginaz era tão luxuosa que não teria desafinado em nenhuma sede do Landsraad, nem sequer no palácio imperial de Kaitain.
Quando Duncan Idaho pisou no reluzente chão de madeira dura, um revestimento de pranchas claras e escuras polidas à mão, olhou ao redor, maravilhado. Uma dúzia de imagens refletidas olharam para ele dos espelhos que iam do chão ao teto, com marcos de ouro forjado. Tinham se passado sete anos desde que estivera em um cenário tão elegante, o salão dos Atreides onde Thufir Hawat o treinava.
Ciprestes inclinados pelo vento rodeavam por três lados a magnífica instalação de treinamento, com uma praia de pedras no quarto. O ostentoso edifício era surpreendente por seu contraste com os primitivos barracões dos estudantes. Dirigido pelo mestre espadachim Whitmore Bludd, um homem calvo com uma marca de nascimento púrpura na testa, a ornamentação da sala teria feito Mord Cour rir.
Apesar de ser um consumado duelista, o afetado Bludd se considerava um nobre e se rodeava de coisas formosas, mesmo naquela remota ilha de Ginaz. Abençoado com uma fortuna familiar inesgotável, Bludd investira seu dinheiro em transformar aquela instalação no lugar mais “civilizado” do arquipélago.
O professor era descendente direto do Porce Bludd, que lutara com valentia durante a Jihad Butleriana. antes das façanhas que lhe tinham proporcionado fama e facilitado sua vida, Porce Bludd transportava meninos órfãos de guerra a planetas refugio, pagando os enormes custos com sua enorme herança. Em Ginaz, Whitmore Bludd nunca esquecia sua herança, nem tampouco permitia que outros a esquecessem.
Enquanto Duncan esperava com outros no salão, que cheirava a limão e azeite da Carnaúba, todo aquele luxo lhe pareceu muito estranho. Retratos de nobres com aspecto mal-humorado eram exibidos nas paredes. Uma enorme chaminé, digna de um pavilhão de caça real, erguia-se até o teto. Um arsenal continha filas de espadas e outros elementos de esgrima. O cenário palaciano implicava um exército de servos, mas Duncan não viu ninguém mais além dos alunos, dos ajudantes de instrução e do próprio Whitmore Bludd.
Depois de permitir que os estudantes ficassem boquiabertos e vacilantes, o professor Bludd se plantou a frente deles. Vestia calças lavanda, rodeadas nos joelhos, e meias embutidas em umas curtas botas negras. O cinturão era largo, com uma fivela quadrada do tamanho de sua mão. A blusa tinha um pescoço alto e fechado, mangas largas, punhos estreitos e adornos de encaixe.
— Eu lhes ensinarei esgrima, senhores — disse —. Nada de brutalidades absurdas com escudos corporais, facas kindjal e transformadores de energia. Não, sob nenhum conceito! — Desembainhou uma espada fina como um látego, com um punho em forma de sino e uma seção transversal triangular. Açoitou o ar com ela —. A esgrima é o esporte, não, a arte de manobrar uma espada de folha cega. É uma dança de reflexos mentais tanto como corporais.
Embainhou a espada e ordenou aos estudantes que trocassem suas roupas por um elegante uniforme de esgrima: arcaicos trajes de mosqueteiro com botões cravejados, punhos rendados, volantes e outros adornos.
— O mais apropriado para exibir a beleza da esgrima — disse Bludd.
A essas alturas, Duncan tinha aprendido que jamais devia vacilar na hora de seguir instruções. Calçou umas botas de pele de bezerro altas até os joelhos com esporas de cavaleiro, e ficou uma jaqueta de veludo azul, com pescoço de encaixe e volumosas mangas brancas. Por fim, vestiu um galhardo chapéu de feltro de aba larga, adornado com uma pluma rosa de peru de Parella.
Hiih Resser e ele trocaram olhares e caretas de um extremo a outro da sala, divertidos. O traje parecia mais apropriado para um baile de máscaras que para um duelo.
— Senhores, aprenderão a lutar com graça e astúcia. — Whitmore Bludd passeava de um lado a outro, satisfeito com a elegância que o rodeava —. Compreenderão a arte de um duelo. Transformarão cada movimento em uma forma de arte. — O afetado mas corpulento professor sacudiu um fio de sua camisa franzida —. Agora que só resta um ano de treinamento, cabe pensar que estão muito por cima de disputas de taberna e reações instintivas. Aqui não nos rebaixaremos à barbárie.
O sol da manhã se filtrava por uma janela alta e estreita e se refletia nos botões de estanho de Duncan. Como se sentia ridículo, examinou-se no espelho de parede. Logo ocupou seu posto habitual na formação.
Quando os outros estudantes se alinharam, o professor Bludd inspecionou seus uniformes, emitindo suspiros e ruídos de desaprovação. Alisou rugas, ao mesmo tempo que repreendia aos jovens por punhos mau abotoados e criticava seu traje com surpreendente severidade.
— A esgrima dos mosqueteiros terranos é a décima quinta disciplina de luta que aprenderão. Entretanto, conhecer os movimentos não significa que compreendam o estilo. Hoje lutarão entre si, com toda a graça e sentido cavalheiresco que a esgrima exige. Suas espadas não terão um botão na ponta, e não usarão máscaras protetoras.
Indicou fileiras de espadas situadas entre cada fila de espelhos, e os estudantes avançaram para pegá-las. Todas as espadas eram idênticas, de noventa centímetros de comprimento, flexíveis e afiadas. Os estudantes as esgrimiram. Duncan desejava utilizar a espada do velho duque, mas a lendária arma fora feita para outro tipo de combate.
Bludd bufou e agitou sua espada no ar para captar sua atenção.
— Têm que lutar com a máxima habilidade, mas insisto que não devem ferir ou fazer sangrar o adversário. Nem sequer um arranhão. Não, sob nenhum conceito! Tampouco poderão danificar a indumentária. Aprendam o ataque perfeito e a defesa perfeita. Estocada, parada, estocada. Pratiquem o controle supremo. Cada um será responsável por seus camaradas. — Seu gélido olhar azul escorregou sobre os alunos e a marca de nascimento de sua testa escureceu —. Qualquer homem que me falta, qualquer um que provoque uma ferida ou se deixe ferir, será eliminado da próxima rodada de competições.
Duncan inspirou lentamente e se concentrou no desafio.
— Isto será uma demonstração de sua arte — disse Bludd, enquanto percorria a sala com suas botas negras —. É o delicado balé do combate pessoal. O objetivo consiste em tocar seu adversário com a maior quantidade de vezes possíveis sem o ferir.
O professor pegou seu chapéu e o vestiu.
Indicou retângulos de combate marcados no chão de parquet.
— Preparados para o combate.
Duncan não demorou para derrotar três competidores, em teoria fáceis, mas seu quarto adversário, Iss Opru (um hábil estilista de Dha-nab), foi um rival difícil. Mesmo assim, não estava versado o bastante em técnicas ofensivas e defensivas, e Duncan o venceu por um ponto.
Em um retângulo de combate próximo, um estudante caiu de joelhos, sangrando por uma ferida no flanco. Os ajudantes se apressaram a tirá-lo em uma maca. Seu oponente, um terrazi de cabelo comprido até os ombros, contemplou sua espada à espera do castigo. Whitmore Bludd lhe arrebatou a espada e lhe açoitou as costas, como se fosse um látego de metal.
— Ambos são uma desgraça para sua escola, ele por se deixar ferir e você por não saber se conter.
O terrazi se encaminhou sem pigarrear para o banco dos perdedores.
Dois servis com libré, os primeiros que Duncan via, precipitaram-se a limpar o sangue e polir o parquet, em preparação para o próximo combate. A luta continuou.
Duncan Idaho, junto com Resser e outros dois finalistas suados, esperava ofegante no centro da sala. Frustrados e incomodados, tinham chegado a detestar seus trajes extravagantes, mas até o momento nenhum dos finalistas tinha recebido nem um arranhão, e suas roupas continuavam incólumes.
— Idaho e Resser, venham aqui! Eddin e Kaba, ali! — gritou o professor Bludd, indicando seus respectivos retângulos de combate.
Os estudantes tomaram posições. Resser olhou para Duncan, mais como adversário que como amigo. Duncan se agachou, flexionou os joelhos e se balançou sobre os calcanhares. inclinou-se com o braço um pouco dobrado, estendeu a espada para Resser e lhe dedicou uma breve saudação. O ruivo grumman o imitou, com expressão confiante. Bateram-se muitas vezes com uniforme de proteção, providos de outras armas, sempre muito igualados. A velocidade de Duncan costumava compensar a estatura e alcance superiores do larguirucho Resser. Entretanto, agora deviam obedecer as regras de esgrima de Bludd, sem infligir nem receber arranhões, nem sequer danificar os trajes caros e anacrônicos.
Duncan não disse nada, balançando-se sobre seus pés. A flexível espada falaria por ele. O suor empapava seu cabelo negro sob o chapéu de feltro e a ridícula pluma de peru. Cravou a vista em seu adversário sardento.
— En Garde — disse Bludd. Seus olhos azuis cintilaram quando ergueu a espada.
Ao sinal de início, Resser se lançou para frente. Duncan desviou a espada do seu inimigo com um som de sinos cantarinas, deu meio passo à direita e respondeu com uma estocada precisa, que o alto grumman desviou com perícia. As espadas entrechocaram com estrépito.
Os dois homens estavam suados e ofegantes, com o rosto inexpressivo enquanto se moviam dentro dos limites marcados no parquet. Até o momento, Resser não tinha feito nada estranho, como de costume. Duncan confiava valer-se dessa característica para derrotar seu adversário.
Como se lesse os pensamentos de seu amigo, de repente o ruivo atacou com a fúria de um guerreiro possuído, tocou uma, duas vezes em Duncan, com o cuidado de não feri-lo, mas também confiante em que Duncan apresentaria uma defesa perfeita.
Duncan nunca tinha visto tal energia em seu amigo, e esquivou com esforço uma série de estocadas bem dirigidas. Retrocedeu, à espera de que Resser se cansasse. O suor escorria por suas bochechas.
Não obstante, Resser insistiu em seu ritmo frenético, como sob a influência de um estimulante. Suas espadas entrechocaram de novo. Duncan não podia desviar sua atenção nem um ápice para observar os progressos do outro par, mas ouviu um grito e um último entrechocar de espadas, sinal de que os outros dois opositores tinham finalizado.
O professor Bludd dedicou toda sua atenção ao combate entre Duncan e Resser.
A ponta do ruivo o tocou na camisa acolchoada, e segundos depois na testa. Resser ia acumulando pontos, sem deixar arranhões, conforme mandavam as normas. Quatro pontos, e com cinco ganharia a aposta. Se tivesse sido um duelo de morte, já estaria morto.
Bludd, como um ave de rapina a espera de um festim, vigiava cada movimento.
Sob a pressão de Resser, parecia que os músculos de Duncan o traiam e impediam de pôr em prática suas habilidades costumeiras. Olhou para a espada que empunhava na mão direita e procurou recursos e energia em seu interior, para logo recorrer a tudo que tinha aprendido nos sete anos de treinamento em Ginaz. Luto pela Casa Atreides. Posso ganhar.
Resser dançava a seu redor e o punha em ridículo. Duncan diminuiu a velocidade de sua respiração, assim como a dos batimentos de seu coração. Maximize o chi, pensou, e viu em sua mente a energia que fluía por caminhos precisos em seu corpo. Devo ser um mestre espadachim para defender meu duque. Não quero fazer só uma bela exibição para agradar meus instrutores.
Resser não obteve nenhum ponto mais, pois Duncan se esquivava. O chi aumentou, acumulou pressão, à espera do momento preciso em que deveria liberar-se. Duncan concentrou a energia e a dirigiu a um objetivo preciso...
E atacou. Confundiu o larguirucho ruivo com movimentos sintetizados de diferentes técnicas de luta. Girou sobre si mesmo, lançou chutes, utilizou sua mão livre como uma arma. Por um momento ambos saíram dos limites do retângulo. Duncan atacou de novo. Um murro na têmpora de Resser, que lhe tirou o chapéu, um chute no estômago, e tudo sem derramar sangue.
Resser, aturdido, caiu ao chão. Duncan afastou a espada de seu rival com um chute, saltou sobre ele e apoiou a ponta de sua arma na garganta do grumman. Vitória!
— Deuses do inferno! O que está fazendo? — O professor Bludd apartou Duncan com um tranco —. Caipira! — Atirou a espada para um lado e esbofeteou Duncan duas vezes —. Isto não é uma briga de rua, idiota! Hoje estamos praticando a esgrima dos mosqueteiros.
Duncan esfregou o rosto. No calor do combate tinha lutado pela sobrevivência, ignorando as frívolas restrições impostas pelo instrutor.
Bludd esbofeteou Duncan várias vezes mais, cada vez com mais força, como se o estudante lhe tivesse insultado. Resser não parava de protestar.
— Não houve nada. Não estou ferido. Ele demonstrou sua superioridade e eu não soube me defender. Duncan retrocedeu, humilhado.
A raiva de Bludd não se apaziguou.
— Talvez pense que é o melhor estudante da classe, Idaho, mas para mim é um fracasso.
Duncan se sentia como um menino pequeno, encurralado em um canto por um adulto provido de um cinturão. Quis revoltar-se, enfrentar aquele homem de aspecto ridículo, mas não se atreveu.
Recordou que o colérico Trin Kronos tinha utilizado o mesmo raciocínio com o obeso professor Riwy Dinari. Se o rodearem com regras absurdas, serão derrotados por qualquer inimigo disposto a quebrar as normas. Seu objetivo principal era defender seu duque de qualquer ameaça possível, não brincar de espadachins disfarçado.
— Pense no motivo de ser um fracasso — trovejou Whitmore Bludd —, e depois me explique.
Pergunte aos soldados mortos do lado perdedor. Duncan se espremeu os miolos. Não queria ser um eco do malcriado Kronos, embora sua ideologia lhe parecesse muito mais coerente que antes. As normas podiam ser interpretadas de maneira diferente, segundo o propósito a que servissem. Em algumas situações não existia o bem ou o mal absoluto, apenas simples pontos de vista. Em qualquer caso, sabia o que seu instrutor desejava ouvir.
— Sou um fracasso porque minha mente é imperfeita.
Sua resposta pareceu surpreender o homem musculoso, mas um sorriso estupefato se formou pouco a pouco no rosto de Bludd.
— Muito correto, Idaho — disse —. Agora, vá para lá com os perdedores.
Adivinhação: O tempo?
Resposta: Uma jóia brilhante multifacetada.
Adivinhação: O tempo?
Resposta: Uma pedra escura, que não reflete nenhuma luz visível.
Sabedoria fremen, do jogo das adivinhações.
Rhombur Vernius, com o baliset pendurado no ombro por uma correia de pele, descia o caminho em ziguezague que conduzia até a base do penhasco negro. O castelo de Caladan se abatia sobre a rocha e estendia suas torres para os amontoados e o céu cerúleo. Uma forte brisa acariciava seu rosto.
Em uma daquelas torres, sua irmã passava muito tempo refletindo. Quando parou para olhar para trás, viu Kailea em seu balcão. Agitou a mão em saudação com alegria forçada, mas ela não respondeu. Fazia meses que mal se dirigiam a palavra. Desta vez, sacudiu a cabeça e decidiu não permitir que seu desprezo o incomodasse. As expectativas de sua irmã não eram coerentes com sua realidade.
Era um quente dia da primavera, e gaivotas cinzas sobrevoavam a espuma. Igual a um pobre pescador, Rhombur vestia uma camisa de manga curta com listras azuis e brancas, calças de pescador e boina azul sobre seu cabelo loiro. As vezes Tessia passeava pela borda com ele, mas em outras ocasiões deixava que refletisse a sós.
O príncipe ixiano, preocupado com o mau gênio de Kailea, desceu uma escada de madeira que corria paralela ao escarpado. Prestou atenção à parte escorregadia, coberta de musgo, do caminho. Era uma rota traiçoeira, mesmo quando fazia bom tempo. Um passo em falso, e se precipitaria para as rochas. Arbustos verdes se aferravam às rachaduras da parede rochosa. O duque Leto, assim como seu pai antes dele, preferia deixar o caminho tal como estava, com uma manutenção mínima. “A vida de um líder não deve ser muito branda”, costumava dizer os Atreides.
Em vez de comentar suas preocupações com Tessia, Rhombur decidiu relaxar em um barco, navegando sozinho e tocando o baliset. Como não confiava em seu talento musical, preferia praticar longe de Caladan, onde nenhum ouvido crítico poderia escutar.
Depois de chegar ao desembarcadouro principal, desceu por uma escada de madeira até um mole onde uma lancha a motor balançava a mercê da maré. Uma insígnia ixiana púrpura e cobre se destacava na proa, sobre letras que davam à embarcação o nome de seu pai desaparecido: Dominic.
Cada vez que Rhombur via o nome, sonhava que seu pai ainda estava vivo em algum lugar do Império. O conde da Casa Vernius tinha desaparecido, e com o passar do tempo toda esperança de localizá-lo desapareceu. Dominic nunca tinha enviado uma nota, não entrara em contato com ninguém. Tem que estar morto.
Rhombur deixou o instrumento sobre o mole. Uma vela da popa tinha perdido um parafuso, de maneira que subiu a bordo e abriu uma caixa de ferramentas que guardava na cabine, onde encontrou outro parafuso e um chave de fenda.
Gostava de cuidar da manutenção de seu barco, e às vezes lhe dedicava horas de trabalho. Lixava, pintava, envernizava, substituía acessórios, instalava novos aparelhos eletrônicos e acessórios de pesca. Tudo era muito diferente da vida tranquila que tinha em IX. Quando voltou para mole e se ocupou do reparo simples, Rhombur desejou ser o líder que seu pai tinha sido.
As probabilidades disso eram virtualmente nulas.
Embora Rhombur se esforçasse por ajudar os misteriosos rebeldes de IX, fazia mais de um ano que não recebia notícias deles, e lhe haviam devolvido sem entregar embarques de armas e explosivos que tinha enviado, graças aos subornos pagos aos trabalhadores. Nem mesmo os mais cotados contrabandistas tinham conseguido entregar o material na cidade subterrânea.
Ninguém sabia o que acontecia em IX. C'tair Pilru, seu principal contato com os lutadores pela liberdade, tinha emudecido. Como Dominic, era muito possível que C'tair tivesse morrido e que a valente revolta tivesse sido esmagada. Rhombur carecia de meios para saber, para quebrar a inexpugnável segurança tleilaxu.
Rhombur ouviu passos no mole e se surpreendeu ao ver que sua irmã se aproximava. Kailea usava um vestido dourado e prateado. Um broche de rubis rodeava seu cabelo castanho avermelhado. Rhombur observou que tinha as duas panturrilhas arranhadas e arroxeadas, e que a prega do vestido estava sujo de terra.
— Tropecei no caminho — explicou.
Devia ter corrido atrás dele para alcançá-lo.
— Não devia descer aos moles. — Rhombur forçou um sorriso —. Você gostaria de passear de barco comigo?
Kailea negou com a cabeça.
— Vim me desculpar, Rhombur. Lamento ter sido tão rude com você. Evitei-o, mal nos vimos.
— E me fulminou com o olhar — acrescentou o príncipe.
Os olhos esmeralda de Kailea cintilaram, mas se conteve a tempo.
— Isso também.
— Desculpas aceitas.
Terminou de prender a vela e entrou na cabine de Dominic para guardar as ferramentas. Ele a esperou no mole.
— Rhombur. — Kailea começou com aquele tom queixoso que significava que queria algo, embora sua cara só refletisse inocência —. Tessia e você estão tão unidos... Oxalá minha relação com o Leto fosse igual.
— As relações necessitam de manutenção — disse Rhombur —. Er, como este barco. Com tempo e carinho poderia diminuir suas diferenças.
A boca de Kailea se torceu em uma careta.
— É que não pode influenciar mais o Leto? Isto não pode continuar assim eternamente.
— Influenciar Leto? Fala como se quisesse se desfazer dele.
Sua irmã não lhe deu uma resposta direta.
— Victor deveria ser seu herdeiro legal, não um bastardo sem sobrenome, sem título nem propriedades. Deveria dizer algo diferente a Leto, tentar outra coisa.
— Infernos vermelhos, Kailea! Tentei cinqüenta vezes e de cinqüenta maneiras diferentes, e sempre recebo um “não” como resposta. Por sua culpa é possível que tenha perdido meu melhor amigo.
O sol sobre a pele de Kailea parecia o brilho de um fogo longínquo.
— E o que importa a amizade, quando estamos falando do futuro da Casa Vernius, a Grande Casa de nossos antepassados? Pense nas coisas importantes, Rhombur.
O príncipe adotou uma expressão impenetrável.
— Você transformou esta situação em um problema que nunca deveria ter sido suscitado. Você sozinha, Kailea. Se não podia aceitar as limitações, por que concordou em ser a concubina de Leto? Os dois pareciam muito felizes a princípio. Por que não lhe pede perdão? Por que não aceita a realidade de uma vez? Por que não faz um esforço? — Rhombur sacudiu a cabeça e contemplou o anel em sua mão direita —. Não penso questionar as decisões de Leto. Pode ser que não concorde com suas razões, mas as compreendo. Ele é o duque Atreides, e temos que respeitar seus desejos.
A expressão de Kailea se transformou em um sorriso desdenhoso.
— Você não é um príncipe. Chiara diz que nem sequer é um homem.
Levantou um pé e chutou o baliset, mas cega pela raiva perdeu o equilíbrio e só o roçou. O instrumento caiu na água.
Rhombur soltou um xingamento e se inclinou sobre o bordo do mole para recuperá-lo, ao mesmo tempo que Kailea partia. Enquanto o jovem secava o instrumento com uma toalha, viu que sua irmã subia rapidamente o íngreme atalho que conduzia ao castelo. Tropeçou, recuperou o equilíbrio e seguiu seu caminho, tentando conservar a dignidade.
Não era de estranhar que Leto preferisse à serena e inteligente Jessica. Kailea, antes tão doce e terna, transformara-se em uma mulher dura e cruel. Não a conhecia mais. Suspirou. Eu a amo, mas não gosto do que se tornou.
Desafiar à sabedoria aceita sobre a qual descansa a paz social exige um tipo de valentia desesperado e solitário.
Príncipe herdeiro RAPHAEL CORRINO
Em defesa da mudança ante a tradição.
Os altos edifícios governamentais de Korrinth, a capital de Kaitain, ergueram-se ao redor de Abulurd Harkonnen como uma fantasia induzida pelas drogas. Nem em seus sonhos mais desmedidos tinha imaginado tantos arranha-céu, incrustações de jóias e lajes de pedra preciosa.
Em Giedi Prime, onde tinha crescido sob o olhar vigilante de seu pai, Dmitri, as cidades estavam superpovoadas, com instalações funcionais mais dedicadas à indústria que à beleza. Mas aqui tudo era muito diferente. Bandeiras de cores brilhantes presas aos altos edifícios se retorciam na brisa sob um céu sempre azul. Cintas prismáticas sulcavam os céus e projetavam arco-íris sobre as lajes do chão. Era evidente que Kaitain estava mais preocupada com a aparência que com o conteúdo.
Passada uma hora, a luz cegante dos céus perfeitos aturdiu Abulurd, e sentiu uma incomoda dor na nuca. Tinha saudades dos céus fechados de Lankiveil, as brisas úmidas que impregnavam os ossos e o quente abraço de Emmi.
Mas lhe aguardava uma importante tarefa, uma entrevista na reunião diária do conselho do Landsraad. Parecia uma mera formalidade, mas estava decidido a cumpri-la, pelo bem de sua família e de seu filho recém-nascido, e mudaria sua vida para sempre. Abulurd estava impaciente por viver nos dias vindouros.
Percorreu o passeio caminhando rapidamente, sob as bandeiras das Casas Grandes e Pequenas, que a suave brisa agitava. Os imponentes edifícios pareciam ainda maiores e majestosos que os escarpados dos fiordes de Lankiveil.
Tinha tomado a precaução de levar sua melhor capa de pele de foca, adornada com pedras preciosas e amuletos esculpidos à mão. Abulurd tinha ido a Korrinth como representante legal da Casa Harkonnen para reclamar seu título de governador do subdistrito de Rabban-Lankiveil. Sempre estivera em seu direito, mas nunca tinha se importado.
Como apareceu sem escolta ou séquito de aduladores, os funcionários e empregados não deram atenção a Abulurd. Olharam pelas janelas, continuaram sentados nos balcões ou perambularam de um lado para outro com documentos importantes escritos em folhas de cristal riduliano. Para eles era invisível.
Ao se despedir no espaçoporto de Lankiveil, Emmi o obrigara a ensaiar seu discurso. Segundo as normas do Landsraad, Abulurd tinha autoridade para solicitar uma audiência e apresentar seus documentos no registro. Outros nobres considerariam insignificante seu pedido, até mesmo corriqueiro. Mas significava muito para ele, e o tinha atrasado por muito tempo.
Durante os meses de gravidez de Emmi, feliz de novo, haviam retornado a abrir o pavilhão principal e tentado contribuir com vida e cor a sua existência. Abulurd subvencionava indústrias, enchia as águas de peixes para que os pescadores subsistissem até que as baleias Bjondax decidissem retornar.
Cinco meses antes, Emmi tinha dado a luz no maior segredo a um menino são. Chamaram-no de Feyd-Rautha, em parte para honrar a memória de seu avô Onir Rautha-Rabban, o burgomestre assassinado de Bifrost Eyrie. Quando Abulurd segurou seu filho nos braços, viu uns olhos vivos e inteligentes e uma curiosidade insaciável, feições deliciosas e uma voz forte. No fundo de seu coração, era seu único filho.
Emmi e ele procuraram à velha monja budislâmica responsável pela gravidez. Queriam lhe agradecer e pedir que abençoasse o bebê, mas não a encontraram.
Abulurd desejava fazer algo em Kaitain que beneficiasse seu novo filho, mais do que a bênção de uma monja pudesse obter. Se tudo corresse bem, o pequeno Feyd-Rautha gozaria de um futuro diferente, não poluído pelos crimes da dilatada história da Casa Harkonnen. Seria educado para transformar-se em um bom homem.
Abulurd, erguido em toda sua estatura, entrou na Sala da Oratória do Landsraad, e passou sob uma arcada de coral jaspeado que se elevava sobre sua cabeça como uma ponte cruzando um abismo montanhoso. Depois de chegar a capital, tinha marcado uma entrevista com um escriba imperial para acrescentar seu nome à agenda. Quando Abulurd se negou a subornar o funcionário, o secretário de entrevistas foi incapaz de encontrar um horário até o final de uma longa sessão, três dias depois.
E Abulurd esperou. Desprezava a corrupção burocrática e preferia padecer desconfortos a ter que render-se aos infaustos costumes da corte de Shaddam IV. Desagradavam-lhe as viagens longas, preferia ficar em casa e ocupar-se de seus problemas, ou entreter-se em jogos de mesa com Emmi e os servos, mas as exigências da nobreza o obrigavam a fazer muitas coisas que lamentava.
Talvez hoje conseguisse mudar a situação a seu favor.
Na Sala de Oratória, as reuniões se celebravam com representantes das Casas Grandes e Menores, diretores da CHOAM e outros funcionários importantes que careciam de títulos de nobreza. Os assuntos do Império não paravam nunca.
Abulurd imaginava que sua aparição despertaria pouca espera. Não tinha avisado de antemão o seu meio-irmão, e sabia que o barão se zangaria quando soubesse, mas Abulurd se internou na enorme sala, orgulhoso e confiante, e mais nervoso que nunca. Vladimir teria que aceitar os fatos.
O barão tinha outros problemas e obrigações. Sua saúde tinha decaído muito com os anos, e tinha engordado a tal ponto que caminhava com ajuda de suspensores. Abulurd ignorava como o barão continuava em frente, pois pouco sabia das motivações do seu meio-irmão.
Abulurd se sentou em silencio na galeria e conectou a agenda para ver as reuniões que estavam com uma hora de atraso, tal como era de esperar, supôs. Aguardou, com as costas erguida no banco de plastipedra, escutou as aborrecidas resoluções comerciais e as emendas carentes de importância a leis que não fingia apoiar, nem sequer compreender.
Face à luz que entrava pelas vidraças e pelas estufas montadas sobre a pedra fria, aquela enorme sala lhe parecia muito estéril. Só queria voltar para casa. Quando anunciaram por fim seu nome, Abulurd devolveu sua atenção à realidade e avançou para o estrado dos oradores. Seus joelhos tremiam, mas tentou disfarçar.
Os membros do Conselho estavam sentados em seus bancos elevados, vestidos com roupas cinzas oficiais. Abulurd olhou para trás e viu assentos vazios na seção reservada aos representantes Harkonnen. Ninguém tinha se incomodado em assistir essa insignificante sessão matutina, nem sequer Kalo Whylls, o embaixador de Giedi Prime. Ninguém tinha pensado em informar a Whylls que os assuntos do dia implicavam à Casa Harkonnen.
Perfeito.
Titubeou ao recordar a última vez que tinha tentado dirigir a palavra a um grupo de gente, os cidadãos que estavam reconstruindo Bifrost Eyrie, e os horrores de que tinham sido objeto antes que pudesse pronunciar seu discurso. Respirou fundo e se preparou para dirigir a palavra ao presidente, um homem magro de cabelo preso em tranças e olhos fundos. Não recordava de que Casa era.
Entretanto, antes que Abulurd pudesse falar, o Moderador debulhou seu nome e títulos de uma longa e aborrecida lista. Abulurd ignorava que tantas palavras seguissem seu nome, já que era uma pessoa de pouca importância no sistema. Não obstante, parecia impressionante.
Por outra parte, nenhum dos sonolentos membros do Conselho parecia muito interessado. Passaram os papéis entre eles.
— Senhorias — começou —, senhores, vim apresentar uma solicitação oficial. Preenchi os formulários apropriados para reclamar o título a que tenho direito como governador do subdistrito de Rabban-Lankiveil. Na prática o exerci durante anos, mas nunca havia... entregue os documentos pertinentes.
Quando começou a especificar seus raciocínios e justificações com voz apaixonada, o presidente do Conselho ergueu uma mão.
— Seguiu os procedimentos oficiais para solicitar uma audiência, e as comunicações oficiais foram enviadas. — Remexeu os documentos que tinha a frente —. Vejo que o imperador também recebeu a comunicação.
— Exato — disse Abulurd, sabendo de que a mensagem enviada a seu meio-irmão tinha seguido uma rota lenta e tortuosa a bordo de um Cruzeiro, uma destreza necessária.
O presidente ergueu uma folha de pergaminho.
— Segundo este documento, foi expulso de seu posto em Arrakis pelo barão Harkonnen.
— Sem que eu protestasse, Senhoria. E meu meio-irmão não apresentou objeções a meu comparecimento hoje. — O que era verdade. A mensagem ainda não tinha chegado a seu destinatário.
— Tomamos nota, Abulurd Harkonnen. — O presidente baixou a vista —. Tampouco vejo que o imperador tenha apresentado objeções.
O pulso de Abulurd se acelerou quando viu que o presidente estudava os papéis, as notificações oficiais. Esqueci de algo?
Por fim, o presidente elevou a vista.
— Tudo está em ordem. Aprovado.
— Trago... uma segunda solicitação — anunciou Abulurd, um pouco aborrecido pela rapidez e facilidade com que se desenvolviam os acontecimentos —. Desejo renunciar oficialmente a meu sobrenome Harkonnen.
Aquilo causou certo alvoroço entre os presentes.
Armou-se de coragem para pronunciar as palavras que tinha ensaiado tantas vezes com o Emmi, e a imaginou ao seu lado.
— Não posso aprovar os atos dos membros de minha família — disse, sem nomeá-los —. Tenho um filho recém-nascido, Feyd-Rautha, e desejo que cresça sem mácula, sem a mancha negra do sobrenome Harkonnen.
O presidente do Conselho se inclinou para frente, como se visse Abulurd pela primeira vez.
— Tem consciência do que está dizendo, senhor?
— Completamente — disse Abulurd, surpreso pela energia de sua voz. Seu coração se inchou de orgulho —. Cresci em Giedi Prime. Sou o segundo filho de meu pai, Dmitri Harkonnen. Meu meio-irmão, o barão, governa todas as propriedades Harkonnen como deseja. Só peço conservar Lankiveil, o lugar que considero meu lar.
Sua voz se suavizou, como se pensasse que um raciocínio compassivo pudesse comover os homens que o escutavam.
— Não quero participar da política galáctica nem governar planetas. Servi vários anos em Arrakis e descobri que eu não gostava daquilo. Não me interessa a riqueza, o poder ou a fama. Que tais coisas continuem controladas por aqueles que as desejam. — Sua voz se quebrou —. Não quero que minhas mãos voltem a se manchar de sangue, nem tampouco as de meu filho recém-nascido.
O presidente se levantou com solenidade e se elevou em toda sua estatura.
— Renuncia a toda relação com a Casa Harkonnen definitivamente, incluindo os direitos e privilégios que lhe correspondem?
Abulurd assentiu com vigor, sem se importar com os murmúrios que se erguiam na sala.
— Completamente, e sem a menor hesitação.
Aquela gente teria assunto durante dias, mas pouco lhe importava. Então, já estaria a caminho de casa, para reunir-se com Emmi e seu filho. Não desejava outra coisa que uma vida normal e tranqüila, plena de felicidade. O resto do Landsraad podia continuar sem ele.
— A partir de agora adotarei o honorável sobrenome de minha esposa, Rabban.
O presidente do Conselho descarregou seu martelo sônico, que ressoou na sala.
— Tomamos nota. O Conselho aprova seu pedido. Enviaremos imediatamente um aviso a Giedi Prime e ao imperador.
Enquanto Abulurd ficava atônito por sua boa sorte, o moderador chamou o próximo representante, e foi despedido sem mais.
Saiu do edifício rapidamente, deixando a Sala da Oratória a suas costas. O sol banhou seu rosto de novo e ouviu o tinido de fontes e a música das cometas. Caminhava com passo vivo e sorria como um idiota.
Outros teriam tremido ao tomar essa decisão, mas Abulurd Rabban não sentia medo. Tinha conseguido tudo que esperava, e Emmi também se sentiria satisfeita.
Correu para meter na bagagem as poucas posses que havia trazido e se encaminhou para o espaçoporto, ansioso por retornar ao tranqüilo e isolado Lankiveil, onde poderia começar uma vida nova e melhor.
Não existe o que se denominam leis da natureza. Trata-se tão somente de uma série de leis relativas à experiência prática do homem com a natureza. São leis das atividades do homem. Mudam à medida que as atividades do homem mudam.
PARDOT KYNES
Um manual de Arrakis
Depois de seis meses em Salusa Secundus, a paisagem indomável e inquietante, as ruínas antigas e as profundas feridas ecológicas assombravam ainda Liet-Kynes. Tal como seu pai havia dito, era fascinante.
Nesse ínterim, em seu esconderijo subterrâneo, Dominic Vernius estudava a documentação e analisava informes roubados sobre as atividades da CHOAM. Gurney Halleck e ele tinham estudado manifestos de carga da Corporação Espacial para decidir a melhor forma de sabotar entendimentos comerciais, de forma que prejudicassem mais ao imperador. Seus contatos e espiões ocasionais, que lhe tinham proporcionado poucos. detalhes sobre a situação em IX, desapareceram. De vez em quando tinha recebido informes sobre seu lar ancestral, mas até essa fonte secara.
Os olhos avermelhados e a testa sulcada de rugas de Dominic demonstravam o pouco que dormia ultimamente.
Por sua vez, Liet viu por fim além das intrigas do povoado do deserto e as rivalidades entre os clãs por controlar as areias repletas de especiaria. Estudou a política praticada entre as Casas Grandes e Menores, os magnatas navais e as famílias poderosas. O Império era muito mais imenso do que tinha imaginado.
Também começou a perceber a magnitude do que seu pai tinha conseguido em Duna, e sentiu um maior respeito por Pardot Kynes.
Liet imaginava o que seria devolver Salusa Secundus a glória que tinha desfrutado tanto tempo antes, no momento gélido do Império. Havia muitas coisas que devia compreender, muitas perguntas sem resposta.
Com algumas instalações meteorológicas estrategicamente situadas, além de colonos dispostos a voltar a plantar pradarias e bosques, Salusa Secundus voltaria a viver e respirar de novo. Mas a Casa Corrino se negava a investir nessas atividades, mesmo face as possíveis recompensas. De fato, parecia que seus esforços eram dirigidos a conservar Salusa tal como tinha sido durante séculos.
Por que?
Como forasteiro no planeta, Liet passava a maior parte do seu tempo livre com uma equipe de sobrevivência, vagava pela paisagem arrasada, se esquivava das ruínas das cidades destruídas, cujos antigos edifícios governamentais do Império estavam habitados por prisioneiros: altos museus, salões enormes, grandes câmaras com os tetos caídos. Durante todos os séculos que Salusa tinha sido um planeta-prisão ninguém tinha tentado reconstruí-lo. As paredes estavam inclinadas ou ruídas. Os tetos apresentavam enormes buracos.
Liet dedicara suas primeiras semanas a estudar a base subterrânea dos contrabandistas. Ensinou aos endurecidos veteranos a apagar os sinais de sua presença, a alterar o hangar para que parecesse habitado por um punhado de ferozes refugiados, afim de não atrair mais que um olhar superficial. Quando os contrabandistas ficaram ocultos sem perigo algum e Dominic ficou satisfeito, o jovem fremen saiu para explorar sozinho, como seu pai tinha feito...
Liet, que procurava mover-se sem deixar rastros de sua passagem, subiu em um penhasco que dominava uma depressão. Com os binóculos viu gente perambulando sob o sol abrasador, soldados com uniformes de cor torrada e parda, camuflagem para o deserto utilizado pelos Sardaukar do imperador. Jogos de guerra extravagantes, para variar.
Uma semana antes, tinha visto os Sardaukar desalojar um refúgio de prisioneiros entrincheirados em ruínas isoladas. Liet passeava pelas cercanias e viu os Sardaukar atacar providos de escudos corporais, lança-chamas e outras armas primitivas, que utilizaram contra os sentenciados. A batalha se prolongou durante horas, enquanto Sardaukar bem preparados lutavam corpo a corpo com prisioneiros que saíam de seu refúgio.
Os homens do imperador tinham matado muitos prisioneiros, mas alguns tinham combatido muito bem, e tinham abatido vários Sardaukar, recolhido suas armas e prolongado a batalha. Quando só restavam algumas dúzias dos melhores lutadores, dispostos a morrer, os Sardaukar plantaram uma bomba atordoante. Depois que as tropas se refugiaram atrás das barricadas, um farol de luz intensa, combinado com a força motivacional de um campo Holtzman, deixou inconscientes os prisioneiros sobreviventes e permitiu que os Sardaukar invadissem sua fortaleza improvisada.
Liet tinha se perguntado por que os soldados imperiais não tinham plantado um atordoante desse o primeiro momento. Mais tarde, perguntou-se se o propósito dos Sardaukar não seria o de fazer um crivo dos prisioneiros e selecionar os melhores candidatos.
Dias depois, alguns cativos sobreviventes se achavam na depressão, vestidos com objetos puídos, os restos de uniformize de prisioneiros. Os Sardaukar formavam suas fileiras ordenadas ao redor, uma armadilha humana. Armas e peças de equipamento pesado estavam situadas em posições estratégicas ao redor do perímetro, unidas com puas e cadeias metálicas.
Parecia que os homens estavam treinando, tanto prisioneiros como Sardaukar.
Agachado no alto do penhasco, Liet se sentia vulnerável sem seu traje destilador. O sabor seco da sede arranhava sua garganta, recordava-lhe o deserto, seu lar, mas não levava um tubo de água no pescoço para beber algumas gotas do líquido precioso.
Na primeira hora daquele dia tinham distribuído outro carregamento de melange tirado de contrabando de Duna e o tinham vendido aos prisioneiros fugitivos que odiavam os Corrino tanto como Dominic. Na sala de descanso, Gurney Halleck tinha levantado uma taça de café enfeitada com melange para saudar seu líder.
Tocou as cordas de seu baliset e cantou com sua voz rouca e descarada (se não melódica, ao menos exuberante):
Oh, taça de especiaria
que me transporta
além de minha carne
até uma estrela longínqua.
Melange, chamam-na...
Melange! Melange!
Os homens prorromperam em vivas e Bork Qazon, o cozinheiro, serviu-lhe outra taça de café especiado. O corpulento Scien Traf, antigo engenheiro ixiano, de tapinhas nas costas de Gurney, e Pen Barlow, em outros tempos comerciante, sempre com um sorriso na boca, soltou uma gargalhada estentórea.
A canção tinha despertado em Liet o desejo de caminhar pelas areias de especiaria, de saborear o intenso aroma de canela que projetava o verme de areia sobre quem o montava. Talvez Warrick quisesse acompanhá-lo até o sietch da Muralha Vermelha, uma vez que retornassem de Salusa. Ao menos esperava. Fazia muito tempo que não via seu amigo e irmão de sangue.
Warrick e Faroula tinham casados há quase um ano e meio. Talvez ela já estaria grávida. A vida de Liet teria sido diferente se tivesse conseguido sua mão...
Agachado nas rochas de um penhasco elevado de um planeta diferente, enquanto espiava os misteriosos movimentos das tropas imperiais, Liet ajustou as lentes de alta definição, afim de obter a melhor vista possível. Enquanto os Sardaukar atravessavam a depressão, estudou a velocidade e precisão com que se moviam.
De qualquer modo, pensou Liet, um grupo desesperado de fremen bem armados poderia derrotá-los.
Por fim, os prisioneiros sobreviventes foram conduzidos até o campo de treinamento preparado em frente aos novos barracões Sardaukar, tendas de liga amontoadas como bunkers sobre o chão plano, e cujos lados metálicos refletiam a luz do sol. Parecia que os soldados estavam pondo a prova os prisioneiros, desafiando-os a realizar os exercícios tão bem como eles. Quando um homem vacilava, os Sardaukar o matavam com um raio púrpura de fuzil laser. Os outros continuavam.
Liet-Kynes desviou a vista para o céu bilioso, que mostrava sinais que lhe tinham ensinado a reconhecer. O ar parecia espesso como uma sopa, enquanto se tingia de um laranja intenso bordejado de franjas verdes, como o produto de uma indigestão. Massas de raios sulcavam o céu. Blocos de estática semelhantes a gigantescos flocos de neve guiavam o fluxo de vento para a depressão.
Liet, graças a histórias relatadas por Gurney Halleck e outros contrabandistas, conhecia os perigos de expor-se a uma tormenta da aurora, mas uma parte dele, a parte curiosa herdada de seu pai, contemplava fascinado a perturbação elétrica e radiativa que se aproximava. A tempestade vinha acompanhada por nuvens de cor exótica, ar ionizado e funis em forma de cone conhecidos como o vento martelador.
Inquieto, descobriu rachaduras no afloramento rochoso que tinha abandonado. As fendas proporcionavam refúgio a qualquer fremen provido de recursos, mas as tropas careciam de proteção. Acaso se consideravam capazes de sobreviver a um poder tão elementar?
Ao ver que as nuvens e as descargas se aproximavam, os prisioneiros esfarrapados começaram a romper filas, enquanto as tropas uniformizadas continuavam em posição de sentido. O comandante ladrou ordens, talvez que voltassem para seus postos. Segundos depois, uma poderosa rajada de vento precursor esteve a ponto de derrubar o homem de sua plataforma de suspensão. O comandante ordenou que todo mundo se refugiassem em seus bunkers metálicos.
Os Sardaukar desfilaram em filas escuras. Alguns prisioneiros tentaram imitar os soldados, enquanto outros fugiam em direção aos refúgios reforçados.
A tormenta da aurora se desencadeou segundos depois que a última tenda se fechou. Como um ser vivo, assolou a depressão, projetando raios multicoloridos. Um gigantesco punho de vento golpeou o chão. Outro esmagou uma das tendas, junto com todos os seus ocupantes.
Um ar crepitante se precipitou para o penhasco. Embora não estivesse em seu planeta, Liet tinha intuído a natureza mortífera das tormentas desde que era menino. Mergulhou na fenda rochosa. Ao fim de alguns momentos ouviu o uivo demoníaco, o estalo do ar, as descargas de raios, os embates do vento martelador.
Pela estreita fresta de céu visível entre as rochas, Liet viu um caleidoscópio de cores cegantes. Se encolheu em seu refúgio, mas pressentiu que estava a salvo.
Respirou com calma, esperou com paciência a que a tormenta se afastasse e contemplou a frenética intensidade do fenômeno atmosférico. Salusa tinha muitas semelhanças com Duna. Os dois eram planetas cruéis, com terras implacáveis e céus implacáveis. Em Duna, tormentas ferozes também podiam remodelar a paisagem, esmagar um homem ou esfolá-lo.
Ao contrário, neste lugar, aqueles ventos terríveis tinham sentido para ele, vinculados como estavam ao mistério e a grandeza de Duna.
Liet desejava abandonar Salusa Secundus, retornar a seu planeta natal com Dominic Vernius. Precisava voltar a viver no deserto, seu lar.
Quando chegou o momento oportuno, Dominic Vernius embarcou parte de seu bando a bordo da fragata, acompanhado por duas lanchas menores. Dominic pilotava sua nave capitania, e a estacionou em seu ancoradouro do Cruzeiro da Corporação.
O conde renegado foi para seu camarote para relaxar e pensar. Embora estivesse manobrando às sombras do Império a anos, um simples mosquito que incomodava Shaddam IV, nunca tinha dado um golpe claro e decisivo. Sim, tinha roubado um embarque das medalhas comemorativas do imperador. Sim, fizera flutuar o hilariante globo caricato sobre o estádio piramidal de Harmonthep. Sim, tinha gravado a mensagem de cem metros de altura na parede de granito do canyon (“Shaddam, descansa bem sua coroa sobre sua cabeça bicuda?”), e tinha desfigurado dúzias de estátuas e monumentos.
Mas com que fim? IX continuava perdido, e não tinha recebido novas notícias sobre a situação do planeta.
No princípio do seu exílio auto-imposto, Dominic tinha reagrupado suas tropas, homens selecionados devido a sua lealdade em campanhas passadas. Ao recordar como tinham derrotado anos antes os rebeldes de Ecaz, tinha dirigido uma pequena força, bem armada e preparada, em um ataque contra os tleilaxu.
Com armas e a vantagem da surpresa, Dominic acreditara poder abrir caminho e derrotar os invasores. No canyon do porto de entrada, seus homens tinham saído das naves, disparando fuzis laser, mas tinham topado com a inesperada defesa dos Sardaukar do imperador. Os malditos Corrino! Por que tinham enviado suas tropas a IX?
Anos atrás, o elemento surpresa se virou contra Dominic, e os soldados imperiais tinham matado uma terça parte de seus homens. Ele mesmo tinha sido ferido nas costas por metralha e dado por morto. Só Johdam o tinha arrastado até uma de suas naves, e tinham batido em desesperada retirada.
Na fortaleza secreta de Dominic escondida no pólo sul de Arrakis, seus homens lhe haviam devolvido à vida. Como tinha tomado precauções para ocultar a identidade da força atacante vingadora (afim de evitar repercussões negativas para o povo ixiano se o ataque fracassasse, ou para seus filhos em Caladan), os tleilaxu nunca tinham sabido quem era o autor da tentativa fracassada.
Como resultado da derrota, Dominic tinha jurado a seus homens que jamais tentaria recuperar seu planeta hereditário em uma ação militar que só poderia terminar de maneira lamentável.
Por pura necessidade, Dominic tinha decidido utilizar outros meios.
Entretanto, suas sabotagens e atos de vandalismo não tinham servido de grande coisa. Shaddam IV nem sequer sabia que o conde Vernius estava comprometido. Embora prosseguisse a luta, Dominic se sentia pior que morto: era irrelevante. Tombou-se no camarote da fragata, analisou tudo que tinha obtido... e tudo que tinha perdido. Com um holorretrato sólido de Shando sobre um pedestal próximo, podia olhá-la e quase imaginar que estava com ele.
Sua filha Kailea devia ser uma jovem atraente a estas alturas. perguntou-se se teria se casado, talvez com alguém da corte de Leto Atreides... mas não com o duque, certamente. A ênfase Atreides sobre os matrimônios políticos era bem conhecida, e a princesa de uma Casa renegada carecia de dote. Do mesmo modo, embora Rhombur fosse velho o bastante para transformar-se em conde da Casa Vernius, o título não tinha valor algum.
Contemplou o holograma de Shando, afligido pela tristeza. E em meio a sua dor, alguém falou.
— Dominic... Dominic Vernius. Conheço sua identidade.
Levantou-se, estupefato, e se perguntou se tinha mergulhado em algum abismo de loucura. A boca de Shando se movia mecanicamente. O holo de seu rosto se virou, mas sua expressão não mudou. Seus olhos não se concentraram nele. Continuou falando.
— Uso esta imagem para me comunicar com você. Devo te transmitir uma mensagem de IX.
Dominic tremeu ao se aproximar da imagem.
— Não, sou o Navegante deste Cruzeiro. Escolhi falar mediante esta holoimagen porque é difícil comunicar-me de outra maneira.
Dominic, que resistia a acreditar isso, reprimiu um pavor supersticioso. Ver a imagem de Shando se mover, ver como o rosto ganhava vida de novo, produziu-lhe um temor visceral.
— Seja lá quem for, o que quer de mim?
— Meu irmão C'tair Pilru, envia estas palavras de IX. Suplica-me que lhe transmita esta informação. Não posso fazer outra coisa além de informar.
A holoimagen de Shando moveu os lábios com mais rapidez e utilizou uma voz diferente desta vez, para repetir as palavras que C'tair tinha enviado em sua mensagem desesperadora seu irmão Navegante. Dominic escutou, cada vez mais horrorizado, e descobriu a natureza exata dos danos que os usurpadores tleilaxu tinham infligido a seu amado planeta e a seu povo.
A ira se apoderou dele. Quando suplicara ajuda durante os primeiros ataques tleilaxu, o maldito imperador Elrood IX tinha ignorado o assunto, garantindo assim a derrota da Casa Vernius. Amargurado por sua perda, Dominic só lamentava que o ancião tivesse morrido antes de ter descoberto uma forma de assassiná-lo.
Mas agora Dominic percebia que o plano imperial era muito mais amplo e insidioso. No fundo, toda a conquista tleilaxu tinha sido uma conspiração imperial, apoiada por tropas Sardaukar quase vinte anos depois. Elrood tinha planejado o conflito desde o começo, e seu filho Shaddam perpetuava o esquema ao oprimir os súditos da Casa Vernius.
A voz de Shando mudou de novo, retornando às palavras mais desconexas do Navegante.
— Em minha rota, posso deixá-lo em Xuttuh, antes conhecido como IX.
— Faça isso — disse Dominic com ódio no coração —. Desejo ver os horrores com meus próprios olhos, e depois eu... — levou-se a mão ao peito, como se fizesse um juramento a Shando —. Eu, lorde Dominic, conde da Casa Vernius, vingarei os sofrimentos do meu povo.
Quando o Cruzeiro entrou em órbita, Dominic se reuniu com Asuyo, Johdam e os outros.
— Retornem a Arrakis. Vão a nossa base e continuem nosso trabalho. Eu vou em uma lancha. — Contemplou o pedestal como se visse sua esposa sobre ele —. Tenho coisas a fazer.
Os dois veteranos expressaram surpresa e confusão, mas Dominic descarregou um murro sobre a mesa.
— Nada de discussões! Tomei uma decisão.
Fulminou seus homens com o olhar, que ficaram assombrados ao ver aquela transformação de sua personalidade.
— Mas para onde vai? — perguntou Liet —. O que pensa em fazer?
— Vou para IX.
O poder é utilizado com muita suavidade. Aferrar-se a ele com excessiva força equivale a deixar-se dominar pelo poder, e assim transformar-se em sua vitima.
Axioma Bene Gesserit
O barão não recebeu nada bem as notícias referentes a seu irmão.
No espaçoporto de Harko City, alguns homens estavam carregando sua fragata particular com as comodidades, provisões e pessoal que necessitaria para a viagem a Arrakis. Afim de que a coleta de especiaria fosse realizada sem interrupções, tinha que passar meses no inferno do deserto, afim de impor sua lei e evitar que os contrabandistas e os malditos fremen roubassem tudo. Não obstante, depois dos prejuízos que Abulurd tinha causado anos antes, o barão tinha transformado o planeta mais importante do Império de um ponto de vista econômico em uma gigantesca fábrica de dinheiro. Seus lucros não paravam de aumentar.
E agora, quando parecia que tudo ia bem, defontava-se com aquilo. Abulurd, apesar da sua estupidez, tinha o incrível talento de colocar tudo a perder quando menos devia.
Piter De Vries, que intuía o desgosto de seu superior, aproximou-se silenciosamente, para ajudá-lo ou ao menos dar essa impressão. Mas sabia que não devia aproximar-se muito. Tinha sobrevivido durante anos graças a capacidade de evitar a ira do barão, mais que qualquer outro Mentat anterior do seu amo. Quando era mais jovem e magro, Vladimir Harkonnen era capaz de saltar como uma cobra e golpear uma pessoa na laringe para deixá-la sem respiração. Mas agora se tornara tão gordo e corpulento que De Vries podia ficar fora de seu alcance com toda facilidade.
O barão estava sentado na sala de contabilidade da fortaleza. Sua mesa ovalada de plaz negro estava tão polida que se poderia patinar sobre ela. Um enorme globo de Arrakis se erguia em um canto, um objeto artístico que qualquer família nobre teria cobiçado. Entretanto, em vez de exibi-lo nas reuniões do Landsraad ou em acontecimentos sociais, o barão o guardava em seus aposentos privados para que ninguém mais pudesse desfrutar do globo.
— Piter, o que vou fazer? — Apontou para um montão de cilindros recém chegados por meio de um Mensageiro —. A CHOAM exige uma explicação, e me adverte em termos muito pouco sutis que esperam continuar recebendo os carregamentos de pele de baleia, apesar da “mudança de liderança”. — Bufou —. Como se tivesse reduzido nossas cotas! Recordam-me que a produção de especiaria em Arrakis não é o único produto vital que a Casa Harkonnen controla. Ameaçaram revogar meu cargo de diretor da CHOAM se não conseguir cumprir minhas obrigações.
Jogou um cilindro mensageiro contra a parede. O objeto deixou uma marca branca na pedra.
Agarrou um segundo cilindro.
— O imperador Shaddam quer saber por que meu meio-irmão renunciou ao sobrenome Harkonnen e tomou o controle do governo do subdistrito.
Lançou o cilindro contra a parede. chocou-se com um ruído ainda mais forte que o anterior, ao lado da primeira marca branca. Agarrou um terceiro.
— A Casa Moritani de Grumman oferece apoio militar encoberto no caso de que decida lançar uma ação direta. — O terceiro cilindro foi parar contra a parede —. A Casa Richese, a Casa Mutelli... Todos mortos de curiosidade, todos divertindo-se às minhas costas!
Continuou jogando cilindros até deixar a mesa vazia. Um dos tubos rodou até Piter, que o recolheu. — Não abriu este, meu senhor.
— Bem, faça-o por mim. Dirá o mesmo que outros.
— É claro. — O Mentat cortou com uma de suas longas unhas o selo da cápsula e tirou a tampa. Extraiu uma folha de papel instroy, leu-a, e sua língua apareceu entre os lábios —. De nosso agente em Caladan.
O barão se animou.
— Espero que sejam boas notícias.
De Vries sorriu enquanto traduzia a mensagem cifrada.
— Chiara se desculpa por não ter enviado mensagens antes, mas está fazendo progressos com a concubina Kailea Vernius, colocando-a contra o duque.
— Bem, é alguma coisa. — O barão esfregou sua queixo —. Preferia receber a notícia do assassinato de Leto. Essa sim teria sido uma boa nova!
— Chiara gosta de fazer as coisas a sua maneira, sem precipitar-se. — A mensagem instroy desapareceu. De Vries fez uma bola e o atirou a um lado, junto com o cilindro —. Não estamos seguros se chegará muito longe, meu senhor, pois se atem a certas... normas... em questões reais. Espionar é uma coisa. Assassinar, outra muito distinta, e é a única que poderia burlar a segurança de Thufir Hawat.
— De acordo, de acordo. — Já tinham discutido sobre o assunto em outras ocasiões. O barão ficou em pé —. Ao menos estamos incomodando o duque em sua própria casa.
— Talvez devêssemos fazer algo mais que isso com Abulurd.
Auxiliado pelo sistema suspensor preso à cintura, o obeso barão calculou mal a força de seus braços e esteve a ponto de cair. De Vries não disse nada, mas assimilou o dado para realizar uma análise Mentat assim que seu amo pedisse.
— Talvez. — A cara do barão avermelhou —. O irmão mais velho de Abulurd era um idiota. Literalmente, quero dizer. Um demente babão que nem sequer era capaz de vestir-se, embora sua mãe aceitasse tudo com um sorriso, como se valesse a pena investir tantos recursos em mantê-lo com vida.
Sua cara bochechuda se tingiu de raiva.
— Agora parece que Abulurd é tão demente quanto o outro, mas de uma maneira mais sutil.
Descarregou sua palma sobre a negra superfície oleosa e deixou uma marca que foi apagada lentamente pelos sistemas de autolimpeza do móvel.
— Nem sequer sabia que a pura estava grávida. Agora Abulurd tem outro filho, um doce bebê, e roubou o que lhe corresponde por direito de nascimento. — O barão sacudiu a cabeça —. Esse menino poderia ser um líder, outro herdeiro Harkonnen... mas o idiota de seu pai lhe toma tudo.
De Vries tomou mais precauções que de costume para manter-se afastado do barão, no lado oposto da mesa ovalada.
— Meu senhor, pelo que sei, Abulurd se ateve escrupulosamente às leis. Segundo as normas do Landsraad, está autorizado a solicitar e receber uma concessão que poucos de nos teríamos parado para pensar. Possivelmente não o consideremos sensato, mas Abulurd tinha direito como membro da Casa Harkonnen...
— Eu sou a Casa Harkonnen! — rugiu o barão —. Ele não tem nenhum direito, a menos que eu o diga. — Rodeou a mesa. O Mentat temeu que o corpulento barão o atacasse. Em troca, caminhou para a porta da câmara —. Vamos ver Rabban.
Percorreram os corredores da fortaleza até um elevador blindado onde desceram até uma arena fechada. Glossu Rabban trabalhava com o guarda da Casa para preparar o combate de gladiadores previsto para a noite, uma tradição que o barão tinha estabelecido como prelúdio de todas as suas longas viagens a Arrakis.
No arena, escravos silenciosos limpavam os assentos e varriam o lixo. Os espetáculos do barão sempre atraíam multidões, e os utilizava para impressionar os convidados de outras Grandes Casas. As portas de aço do poço dos gladiadores estavam fechadas. Atrás delas aguardavam os animais enjaulados. Hirsutos trabalhadores de torso nu passavam a mangueira por redis vazios de bestas ou escravos mortos, e depois pulverizavam inibidores de cheiro.
Suado, embora não parecesse fazer grande coisa, Rabban se destacava em meio aos homens. Vestia um colete de couro sem mangas. Contemplava a atividade com os braços cruzados e os grossos lábios apertados. Outros trabalhadores rastelavam a areia da arena para recolher fragmentos de osso e espadas quebradas.
Kryubi, o capitão da guarda, dirigia seus soldados. Decidia onde colocar cada homem armado afim de proporcionar uma presença militar impressionante, em vista às festividades iminentes.
O barão desceu a cascata de degraus graças a seu cinturão suspensor, atravessou uma cancela de ferro e saiu à arena. Seus pés mal tocavam o chão, e se movia com a graça de uma bailarina. Piter De Vries o seguia com um passo similar.
Kryubi avançou e o saudou.
— Meu barão — disse —, tudo está preparado. O acontecimento desta noite será espetacular.
— Como sempre — disse De Vries, enquanto um sorriso deformava seus lábios manchados de safo.
— Quantas bestas temos? — perguntou o barão.
— Dois tigres Laça, meu senhor, um urso deka e um touro salusano.
O barão inspecionou a pista com olhos cintilantes e assentiu.
— Esta noite estou cansado. Não quero um combate longo. Solte as bestas e cinco escravos escolhidos ao mesmo tempo. Será uma luta geral.
Kryubi saudou militarmente.
— Como desejar, meu senhor.
O barão se voltou para seu Mentat.
— O sangue escorrerá esta noite, Piter. Possivelmente me distrairá de pensar no que eu gostaria de fazer a Abulurd.
— Prefere só se distrair, meu barão? — perguntou o Mentat —. Ou prefere... satisfação? Por que não se vingar de Abulurd?
Um momento de hesitação.
— A vingança me sentaria muito bem, Piter. Rabban!
Seu sobrinho se virou e os viu. Atravessou a pista de areia em direção aos dois homens.
— Piter te contou o que o idiota do seu pai nos fez agora?
O rosto de Rabban mudou.
— Sim, tio. Às vezes me pergunto como consegue semelhante idiota consegue se manter vivo.
— É certo que não compreendemos Abulurd — disse De Vries —, mas uma das leis mais importantes da política sugere que para esmagar um inimigo tem que o compreender, descobrir suas fraquezas. Descobrir onde pode lhe fazer mais mal.
— A fraqueza de Abulurd reside em seu cérebro — resmungou o barão —. Ou talvez em seu coração sentimental.
Rabban soltou uma risada estridente.
O Mentat ergueu um dedo comprido.
— Pense nisto. Seu filho recém-nascido, Feyd-Rautha Rabban, é agora seu ponto mais vulnerável. Abulurd deu um passo extraordinário afim de, e citarei suas palavras, “educar o menino tal como é devido”. Pelo visto, isto significa muito para ele.
O barão olhou para seu sobrinho.
— Nós não gostaríamos que o irmãozinho de Rabban saísse como Abulurd, não é?
Rabban lançou um olhar furioso ao pensar na possibilidade.
De Vries continuou, com voz tão suave como gelo.
— Portanto, o que é o mais terrível que poderia acontecer a Abulurd nestas circunstâncias? O que lhe causaria maior dor e desespero?
Um sorriso frio cruzou o rosto do barão.
— Brilhante pergunta, Piter. Por isso viverá outro dia. Dois dias, de fato. Hoje me sinto generoso.
A expressão de Rabban não mudou. Ainda não tinha compreendido. Por fim, começou a rir.
— O que deveríamos fazer, tio?
A voz do barão adquiriu um tom sinistramente doce.
— Todo o possível para conseguir que seu novo irmãozinho seja “educado como é devido”. Claro que, sabendo das decisões equivocadas que seu pai tomou, não podemos permitir que Abulurd Rabban corrompa este pirralho. — Olhou para o Mentat —. Por conseguinte, nós temos que educá-lo.
— Prepararei os documentos imediatamente, meu senhor barão — disse De Vries com um amplo sorriso.
O barão gritou para que Kryubi se aproximasse e se voltou para seu sobrinho.
— Pegue todos os homens que necessitar, Rabban. E não seja muito discreto. Abulurd tem que compreender claramente as conseqüências dos seus atos.
Ninguém determinou ainda o poder da espécie humana... o que pode realizar com o instinto, e o que é capaz de obter com a determinação racional.
Análise objetivo Mentat das capacidades humanas
Pilotada por Dominic Vernius, a lancha deslizou sob a rede de detecção ixiana, oculta atrás de nuvens. Sobrevoou a baixa altura a antiga superfície de seu planeta natal perdido, absorveu a vista das montanhas e cascatas, os sombrios bosques de pinheiro que se aferravam aos penhascos de granito.
Como antigo senhor de IX, Dominic conhecia mil maneiras de entrar. Confiava que ao menos uma funcionasse.
Reprimiu lágrimas de medo e seguiu adiante, concentrado em seu ponto do destino. IX era conhecido no Império por sua indústria e tecnologia, pelos maravilhosos produtos que exportava e a CHOAM distribuía. Muito tempo antes, a Casa Vernius tinha decidido deixar a superfície impoluta, sepultar clandestinamente as instalações de produção, o que aumentava a segurança e protegia os valiosos tesouros ixianos.
Dominic recordava os sistemas defensivos que ele mesmo tinha desenhado e estabelecido, assim como os colocados gerações antes. A ameaça de espionagem tecnológica de rivais como Richese sempre tinha bastado para que os ixianos estivessem em guarda. Os usurpadores tleilaxu teriam montado seus próprios dispositivos de segurança, mas não teriam descoberto todos os truques pessoais de Dominic. Tinha-os oculto muito bem.
Um comando de assalto organizado estava condenado ao fracasso, mas o conde Vernius confiava em que poderia infiltrar-se em seu planeta. Tinha que vê-lo com seus próprios olhos.
Embora cada uma das entradas secretas ao reino subterrâneo significasse um ponto fraco no sistema de segurança geral, Dominic tinha compreendido a necessidade das saídas de emergência e rotas secretas que só ele e sua família conheciam. No coração da cidade de Vernii, sua amada capital, havia numerosas câmaras protegidas com escudos de força, túneis ocultos e saídas de fuga. Os filhos de Dominic, junto com o jovem Leto Atreides, tinham-nas utilizado durante a revolta sangrenta. Dominic utilizaria agora uma das portas secretas para entrar.
Conduziu o aparelho sobre uma série de poços de ventilação mau escondidos, dos quais surgia vapor como gêiseres termais. Nas planícies se abriam amplos poços e plataformas de carga para o embarque de materiais, com destino a outros planetas. Neste profundo canyon repleto de árvores, estreitos salientes e terrenos baixos permitiam que aterrissassem naves de vez em quando. Dominic esquadrinhou o terreno até que localizou os sinais sutis, as árvores caídas, as manchas em escarpadas paredes rochosas.
A primeira porta camuflada estava selada, e o túnel cheio do que deviam ser metros de plasmento sólido. Na segunda porta havia armadilhas explosivas, mas Dominic localizou as conexões antes de introduzir sua contra-senha. Não tentou desarmar o engenho, mas continuou seu caminho.
Dominic temia o que podia encontrar em sua cidade, antes tão bela. Além da horripilante mensagem que o patriota ixiano C'tair Pilru tinha irradiado, seus próprios investigadores subornados ecoaram os rumores sobre as condições em IX. Não obstante, tinha que saber o que os tleilaxu e os malditos Corrino faziam a seu amado planeta.
Então, todos pagariam caro.
Em seguida, Dominic pousou a lancha em uma pequena fenda rodeada de abetos escuros. Com a esperança de manter-se dentro da rede de vigilância, saiu e permaneceu imóvel, cheirou o ar limpo, o aroma das agulhas de pinheiro, a umidade da água que corria perto. Nas grutas que se estendiam sob quilômetros de rocha, o ar seria morno e estaria poluído pelos produtos químicos. Quase podia ouvir e sentir sons familiares, um leve frenesi de atividade, uma vibração quae imperceptível sob seus pés.
Localizou a comporta de entrada coberta de arbustos do poço de escape, e manipulou os controles depois de cuidadosa inspeção. Se os tleilaxu tinham descoberto esta, tinham sido muito minuciosos. Mas não encontrou sinais de armadilhas nem explosivos. Aguardou, com a esperança de que os sistemas funcionassem.
Por fim, depois que o vento fresco arreliou sua pele, subiu a um elevador autoguiado, programado para transportá-lo à rede de covas e um armazém secreto situado na parte posterior do que tinha sido o Grande Palácio. Era uma das diversas estadias que tinha preparado para “contingências” em sua juventude. Isso tinha sido antes da revolta ecazi, antes que se casasse, muito antes da conquista tleilaxu. Era segura.
Dominic sussurrou o nome de Shando e fechou os olhos. O elevador desceu a velocidade aterradora, e esperou que as sabotagens de C'tair não tivessem prejudicado estes sistemas ocultos. Respirou fundo várias vezes, evocou imagens de seu passado na tela de projeção de suas pálpebras. Ansiava retornar à mágica cidade subterrânea, mas também temia a crua realidade que o aguardava.
Quando o elevador se deteve, Dominic saiu armado com um fuzil laser. Também carregava uma pistola de dardos na cintura. O armazém cheirava a pó e mofo da inatividade. Ninguém tinha entrado ali fazia muito tempo.
Avançou com cautela, aproximou-se do armário oculto onde tinha guardado um par de macacões como os que utilizavam os operários de nível médio. Com a esperança de que os tleilaxu não tivessem imposto mudanças drásticas nos uniformes de trabalho, vestiu-se e deslizou a pistola laser em uma capa presa a sua pele, sob a roupa.
Assim disfarçado, consciente de que não podia voltar atrás, Dominic percorreu os escuros passadiços e localizou uma plataforma de observação com paredes de plaz. depois de duas décadas, olhou pela primeira vez à cidade subterrânea remodelada.
Piscou, incrédulo. O esplêndido Grande Palácio tinha sido despojado de todo seu mármore resplandecente, e uma explosão tinha destruído uma asa completa. O enorme edifício parecia um armazém com sombras disformes de grandeza, transformado em uma feia coelheira de escritórios burocráticos. Pelas janelas de plaz viu repugnantes tleilaxu dedicados a seus assuntos se movimentando como baratas.
No céu projetado viu aparelhos oblongos cobertos de luzes piscantes, que seguiam rotas aleatórias e espiavam todos os movimentos. Módulos de vigilância. Equipamento militar desenhado pelos ixianos para ser enviado a zonas de batalha. Agora, os tleilaxu utilizavam a mesma tecnologia para espionar seu povo, para mantê-lo atemorizado.
Dominic, enojado, mudou-se para outras plataformas de observação situadas no teto da gruta, atravessando grupos de gente. Contemplou seus olhos arregalados e rostos gastos, tentou recordar-se que era seu povo, e não imagens de um pesadelo. Teve vontade de falar com eles, assegurar que logo faria algo, mas não podia revelar sua identidade. Ainda não sabia muito bem o que tinha acontecido desde que sua família e ele tinham sido declarados renegados.
Estes ixianos leais tinham dependido de Dominic Vernius, seu conde por direito próprio, mas ele tinha falhado. Tinha fugido, abandonando-a a própria sorte. Uma sensação de culpa o inundou. Sentiu um nó no estômago.
Dominic examinou a cidade, procurou os melhores pontos de observação, localizou as instalações industriais fortemente guardadas. Algumas estavam fechadas e abandonadas, outras rodeadas de campos de segurança. No chão da gruta, suboides e habitantes ixianos trabalhavam juntos como escravos.
Acenderam-se luzes nos balcões do alterado Grande Palácio. Os alto-falantes retumbaram. As palavras ressoaram, sincronizadas, de modo que os ecos se propagaram como ondas de força pela gruta.
— Povo de Xuttuh — disse uma voz com forte sotaque em galach —, continuamos descobrindo parasitas em nosso meio. Faremos o que for preciso para extirpar este câncer de conspiradores e traidores. Os Bene Tleilax têm atendido suas necessidades com generosidade, e lhes concedemos um papel em nossa sagrada missão. Portanto, castigaremos aqueles que se afastarem de suas sagradas tarefas. Devem compreender e aceitar seu novo lugar no universo.
Dominic viu como esquadrões de soldados rodeavam as equipes de trabalhadores. As tropas usavam os uniformes cinza e negro Sardaukar, e mortíferas armas imperiais. Shaddam já nem tentava dissimular sua implicação. Dominic teve que controlar sua ira.
Em um balcão do Grande Palácio, um par de aterrorizados prisioneiros flanqueados pelos Sardaukar foram empurrados por senhores tleilaxu. O alto-falante retumbou de novo.
—-Estes dois foram capturados no ato de cometer sabotagem contra indústrias essenciais. Durante o interrogatório identificaram outros conspiradores. — Seguiu uma pausa —. Podem contar que haverá mais execuções ao longo da semana.
Ouviram-se gritos isolados de protesto. Os guardas Sardaukar empurraram os prisioneiros para a beira do balcão.
— Morte a nossos inimigos!
Os guardas imperiais os jogaram pela borda do balcão, e a multidão se afastou. As vítimas caíram com gritos horríveis que cessavam bruscamente.
Dominic contemplou a cena com fúria e horror. Muitas vezes fora até aquele mesmo balcão para rezar. Dirigiu-se a seus súditos dali, elogiando-os por seu trabalho, tinha prometido recompensas maiores pela produtividade. O balcão do Grande Palácio deveria ser um lugar para que as pessoas vissem a bondade de seus líderes, não uma plataforma de execuções.
No chão, os Sardaukar dispararam seus fuzis laser para sossegar as vozes de protesto e impôr ordem entre o povo enfurecido.
A voz imaterial anunciou um castigo final.
— Durante as próximas três semanas, as rações serão reduzidas em vinte por cento. A produtividade não mudará, do contrário se imporão novas restrições. Se houver voluntários para identificar mais conspiradores, nossa recompensa será generosa.
Os senhores tleilaxu deram meia volta com uma revoada de seus hábitos e seguiram os guardas Sardaukar ao interior do palácio profanado.
Dominic, enfurecido, teve vontade de abrir fogo sobre os Sardaukar e os tleilaxu, mas só conseguiria um ataque simbólico, e preferiu não revelar sua identidade com um gesto tão inútil.
Doía-lhe a mandíbula de tanto apertar os dentes. Apertou o corrimão e percebeu que estivera nessa mesma plataforma de observação, muito tempo antes, com sua nova esposa lady Shando. Tinham contemplado a enorme caverna de mãos dadas. Ela olhava tudo com olhos brilhantes, vestida com roupas elegantes da corte imperial de Kaitain.
Mas o imperador nunca tinha esquecido o insulto de ser abandonado. Elrood tinha esperado muitos anos pelo momento de vingar-se, e IX tinha pago por isso.
O peito de Dominic se esticou. Tivera tudo: riqueza, poder, um planeta próspero, uma esposa perfeita, uma família maravilhosa. Agora, a cidade subterrânea apresentava profundas feridas e não restava nada de seu antigo esplendor.
— Ai, olhe o que fizemos, Shando — sussurrou com voz entristecida, como se estivesse com ela —. Olhe o que fizemos.
Permaneceu na cidade de Vernii por tanto tempo como ousou, enquanto as rodas da vingança giravam em sua mente. Quando estava preparado para partir, Dominic Vernius sabia exatamente o que faria para devolver o golpe.
A história nunca esqueceria sua vingança.
O poder e o engano são ferramentas da política, sim. Mas lembre-se que o poder engana quem o exerce. Faz-lhe acreditar que pode superar os defeitos de sua ignorância.
Conde FLAMBERT MUTELU
Discurso na Sala da Oratória do Landsraad.
Uma vez mais, Abulurd desfrutava das plácidas noites de Lankiveil. Não lamentava ter renunciado a seus poderosos contatos familiares. Estava contente.
Os fogos que ardiam nas chaminés das grandes estadias esquentavam o pavilhão principal de Tula Fjord, restaurado e redecorado. Emmi e ele, acomodados na sala comunal contigua a grande cozinha, sentiam-se satisfeitos, com o estômago cheio depois da comida que tinham compartilhado com os criados para celebrar o reencontro. Tinham localizado e recuperado quase todo o pessoal antigo. Por fim, Abulurd olhava o futuro com esperança.
Naquela mesma manhã, duas baleias Bjondax tinham sido avistadas na boca do fiorde. Os pescadores informavam que as pescas recentes tinham sido as melhores do ano. O tempo, geralmente rude, tinha dado passagem a uma brusca queda de temperatura que havia coberto os penhascos com uma fina capa de neve. Sob os céus noturnos nublados, sua brancura acrescentava um tom azulado às sombras.
Feyd-Rautha estava sentado em um tapete tecido a mão ao lado de Emmi. De caráter alegre, o menino era propenso às risadas e variadas expressões faciais. Feyd agarrou um dedo de sua mãe quando esta o sustentou erguido e deu seus primeiros passos, pondo a prova seu equilíbrio. O alegre menino já possuía um pequeno vocabulário, que empregava com freqüência.
Para continuar a celebração, Abulurd estava pensando em tirar alguns instrumentos antigos e tocar música popular, mas então se ouviu um ruído desagradável, o zumbido de motores.
— São navios?
Quando os criados se calaram, distinguiu o som de motores náuticos.
A cozinheira tinha entrado com uma bacia grande na sala de estar contigüa à zona comunal, onde utilizava uma faca plana para abrir ostras e jogar seu conteúdo em uma panela de caldo. Ao ouvir o ruído, secou as mãos em uma toalha e olhou pela janela.
— Luzes. Navios estão chegando. Estão muito rápido, em minha opinião. Lá fora está escuro. Podem se chocar contra algo.
— Acendam os globos da casa — ordenou Abulurd —. Temos que dar as boas-vindas a nossos visitantes.
Uma grinalda de luz rodeou o edifício de madeira e lançou um brilho quente sobre os moles.
Três embarcações se dirigiam para o pavilhão principal, paralelas à borda. Emmi agarrou o pequeno Feyd. Seu rosto largo, geralmente serena, tingiu-se de inquietação, e olhou para seu marido. Abulurd fez um gesto para aplacar seus temores, embora sentisse um nó em seu estômago.
Abriu as grandes levas de madeira quando navios couraçados atracaram no mole. Soldados Harkonnen uniformizados desembarcaram, e suas pesadas botas ressoaram. Abulurd retrocedeu um passo quando as tropas subiram pela escada para ele, com as armas penduradas ao ombro mas preparadas para ser utilizadas.
Abulurd pressentiu que sua paz estava a ponto de terminar. Glossu Rabban saltou ao mole. Seguiu à vanguarda de seus homens com passos ágeis.
— Emmi, é... é ele.
Abulurd não pôde pronunciar o nome de seu filho. mais de quatro décadas separavam Glossu Rabban de seu irmão pequeno, em quem seus pais tinham depositado todas as suas esperanças. O bebê parecia muito vulnerável. A casa de Abulurd carecia de defesas.
Guiado por um impulso irracional, Abulurd fechou a pesada porta e a trancou, o que só serviu para provocar os soldados, que abriram fogo e a destruíram. Abulurd retrocedeu para proteger sua mulher e filho. A velha madeira se estilhaçou com um som aterrador, como o da tocha do verdugo.
— É assim que me dá as boas-vindas, pai?
Rabban soltou uma sonora gargalhada enquanto abria caminho entre a fumaça e os restos chamuscados.
Os criados começaram a correr de um lado para outro. Atrás da panela de caldo, a cozinheira segurava sua faca como uma arma patética. Dois criados saíram de outras habitações armados de arpões e facas de pesca, mas Abulurd levantou as mãos para que mantivessem a calma. Os soldados Harkonnen os matariam a todos, como em Bifrost Eyrie, se não dirigisse a situação com diplomacia.
— É assim que pede as boas-vindas, filho? — Abulurd indicou os restos da porta —. Com soldados armados e navios militares que irrompem em plena noite?
— Meu tio me ensinou a me apresentar como é devido.
Os soldados permaneciam imóveis, com as armas à vista de todos. Abulurd não sabia o que fazer. Olhou para sua esposa, que continuava sentada junto ao fogo, abraçando o bebê. A julgar pelo brilho angustiado de seus olhos, Abulurd sabia que se arrependia de não ter escondido o menino em alguma parte do pavilhão.
— Esse é meu novo irmão Feyd-Rautha? Parece muito efeminado. — Rabban deu de ombros —. Mas é sangue do meu sangue... Suponho que tenho que amá-lo.
Emmi abraçou o menino com mais força e afastou o cabelo para trás dos ombros, cabelo que era ainda negro apesar da sua idade avançada. Olhou para Rabban furiosa, irada pelo que via e torturada pelos restos do amor que sentia por seu filho.
— Esperemos que seja só sangue o que compartilhem. Não aprendeu a ser cruel nesta casa, Glossu. Nem de mim nem de seu pai. Sempre o amamos, apesar da dor que nos causou. — Levantou-se e deu um passo para ele, e Rabban avermelhou de ira quando retrocedeu um passo sem querer —. Como é possível que tenha se tornado assim?
Ele a fulminou com o olhar.
Emmi baixou a voz, como se estivesse formulando a pergunta para si mesma, não a ele.
— Onde nós erramos? Não entendo.
Seu rosto largo e simples adotou uma expressão de amor e compaixão, mas se endureceu quando Rabban soltou uma gargalhada cruel para dissimular sua confusão.
— Não? Vocês também me decepcionaram. Meus próprios pais, e nem sequer me convidam para a cerimônia de batismo de meu irmão pequeno. — Avançou uns passos —. Deixe-me abraçar o pirralho.
Emmi retrocedeu para proteger o filho bom do mau. Rabban fingiu tristeza e se aproximou mais. Os soldados Harkonnen ergueram as armas.
— Deixe sua mãe em paz! — disse Abulurd. Um dos soldados levantou uma mão para impedir que se precipitasse para frente. Rabban se virou para ele.
— Não posso ficar de braços cruzados e permitir que um demente intrometido como você corrompa meu irmão, pai. O barão Vladimir Harkonnen, seu meio-irmão e chefe de nossa Grande Casa, já apresentou os documentos e recebeu a plena aprovação do Landsraad para educar Feyd-Rautha em sua casa em Giedi Prime. — Um guarda tirou um cilindro de pergaminho e o jogou aos pés de Abulurd, que se limitou a olhá-lo —. Adotou o menino formal e legalmente.
Rabban sorriu ao ver a expressão horrorizada de seus pais.
— Do mesmo modo que já me adotou. Sou seu herdeiro designado, o na-barão. Sou um Harkonnen de pura cepa, como o barão. — Estendeu seus braços grossos. As tropas prepararam suas armas, mas Emmi retrocedeu para o fogo —. Como vêem, não têm nada com que se preocupar.
Rabban moveu a cabeça e fez um sinal a dois dos homens mais próximos, que abriram fogo sobre a cozinheira, que sustentava ainda a pequena faca curva. Durante a breve estadia de Rabban no pavilhão, a mulher lhe tinha preparado muitos pratos, mas os raios de fuzil a abateram antes que pudesse pestanejar. A mulher deixou cair a faca e caiu sobre a bacia. Ostras e água se derramaram sobre o chão de madeira.
— A quantos mais me obrigará a matar, mãe? — disse Rabban, quase em tom queixojo, com as mãos ainda estendidas —. Sabem que o farei. Me entregue meu irmão.
O olhar de Emmi se desviou de Rabban para os criados aterrorizados, depois para o menino e por fim pousou em Abulurd, que não teve a coragem de olhá-la aos olhos. Só pôde emitir um grito afogado.
Embora sua mãe não desse sinais de render-se, Rabban arrebatou o menino. Ela não opôs resistência por temor que assassinassem a toda a gente da casa, como os soldados Harkonnen tinham massacrado os inocentes trabalhadores de Bifrost Eyrie.
Incapaz de suportar que arrebatassem a seu filho, Emmi emitiu um soluço, como se as âncoras que sempre lhe tinham proporcionado energia e estabilidade se partissem. O menino rompeu a chorar ao ver o rosto inexpressivo de seu irmão maior.
— Não pode fazer isto! — exclamou Abulurd, a quem os soldados seguiam sem deixar acontecer —. Sou o governador deste planeta. Denunciarei-o ao Landsraad.
— Já não tem direitos legais. Não denunciamos seu título absurdo de governador planetário, mas quando renunciou ao sobrenome Harkonnen perdeu seu título. — Rabban segurava o menino o mais longe possível, como se não soubesse o que fazer com uma criança. O documento de pergaminho continuava aos pés de Abulurd —. Você não é nada, pai. Absolutamente nada.
Voltou para a porta destroçada sem soltar o menino. Abulurd e Emmi, afligidos de dor, lançaram-se atrás dele gritando, mas os guardas apontaram as armas.
— Não, não matem mais ninguém — disse Rabban —. Quando partirmos, eu gostarei de escutar os lamentos de toda a casa.
Os soldados desceram para os moles e subiram aos navios couraçados. Abulurd segurava Emmi com força, balançava-a de um lado para outro, e se sustentaram mutuamente como duas árvores caídas. Seus rostos estavam sulcados de lágrimas, seus olhos totalmente abertos e frágeis. Os criados lançavam gritos de angústia.
Os navios cruzaram as águas negras de Tula Fjord. Abulurd ofegou, incapaz de respirar. Emmi se estremeceu em seus braços e ele tentou consolá-la, mas se sentia impotente, inútil e esmagado. Emmi olhava para suas mãos abertas e calosas, como se esperasse ver o menino nelas.
Ao longe, embora soubesse que era sua imaginação, Abulurd acreditou ouvir os soluços do menino por cima do rugido dos navios.
Nunca procure a companhia de alguém com quem não queira morrer.
Provérbio fremen
Quando Liet-Kynes retornou de Salusa Secundus para a base dos contrabandistas no pólo sul de Duna, encontrou seu amigo Warrick esperando.
— Olhe para você! — disse com uma gargalhada o fremen mais alto. Warrick jogou para trás seu capuz e correu sobre o cascalho que cobria o fundo da gruta escondida. Abraçou Liet e deu tapas rudes em suas costas —. Está repleto de água... e limpo. — Enrugou o nariz —. Não vejo as marcas do traje destilador. Limpou-se completamente do deserto?
— Nunca tirarei o deserto do meu sangue. — Liet apertou a mão do seu amigo —. E você... você amadureceu.
— A felicidade da vida de casado, meu amigo. Faroula e eu temos um filho que se chama Liet-chih em sua honra. — deu um murro na palma —. E continuei lutando contra os Harkonnen a cada dia, enquanto você se tornava macio e mimado entre esses forasteiros.
Um filho. Liet sentiu uma pontada de tristeza por ele, mas foi substituída por uma sensação de autêntica alegria por seu amigo e de gratidão pela honra do nome.
Os contrabandistas descarregaram sua carga com pouca conversa e brincadeiras. Estavam inquietos e preocupados porque Dominic Vernius não os acompanhara a Arrakis. Johdam e Asuyo gritavam ordens para que guardassem o material trazido de Salusa Secundus. Gurney Halleck ficara em Salusa para fiscalizar as operações dos contrabandistas.
Warrick estava a cinco dias na base antártica. Comia a comida dos contrabandistas e os ensinava a sobreviver nos desertos de Duna.
— Acho que nunca aprenderão, Liet — sussurrou com desprezo —. Por mais tempo que vivam aqui, sempre serão forasteiros.
Enquanto entravam nos túneis principais, Warrick lhe deu notícias. Tinha levado duas vezes o suborno de especiaria a Rondo Tuek para tentar descobrir quando seu amigo retornaria. Tinha lhe parecido uma eternidade.
— O que te impulsionou a ir a um lugar como Salusa Secundus?
— Era uma viagem que devia fazer — respondeu Liet —. Meu pai cresceu ali, e falava dele muito freqüentemente. Mas agora retornei, e minha intenção é ficar. Duna é meu lar. Salusa foi... uma distração interessante.
Warrick coçou seu cabelo comprido, emaranhado e encaracolado pelas muitas horas utilizando o capuz do traje destilador. Não havia dúvida de que Faroula guardava seus aros de água, como qualquer esposa deveria fazer. Liet se perguntou qual seria o aspecto atual da jovem.
— Então voltará para o sietch da Muralha Vermelha, para seu lar? Faroula e eu sentimos sua falta. Entristeceu-nos que se afastasse de nós.
— Fui um estúpido — admitiu Liet —. Queria passar um tempo a sós para pensar em meu futuro. Muitas coisas mudaram, e aprendi muito. — Forçou um sorriso —. Acredito que agora compreendo melhor meu pai.
Os olhos azuis de Warrick se de arregalaram.
— Quem duvidaria de Umma Kynes? Fazemos sua vontade.
— Sim, mas ele é meu pai, e queria compreendê-lo.
Da altura em que se encontravam, contemplaram os aterros da calota polar.
— Quando estiver preparado, meu amigo, chamaremos um verme e voltaremos para o sietch. — Warrick umedeceu os lábios com expressão irônica —. Se é que ainda se lembra de como pôr um traje destilador.
Liet soprou e foi a seu armário, onde tinha guardado o equipamento do deserto.
— Pode ser que tenha me vencido na corrida até a Cova das Aves — olhou de soslaio para seu amigo —, mas ainda posso chamar um verme maior.
Despediram-se dos outros contrabandistas. Embora os endurecidos homens tivessem sido companheiros de Liet durante quase um ano, não se sentia unido a eles. Eram militares, leais a seu chefe e acostumados à vida militar. Falavam sem cessar de outras épocas e de batalhas em outros planetas, de façanhas ao lado do conde Vernius pela glória do Império. Não obstante, suas paixões se amarguraram, e agora se limitavam a fazer o que podiam para incomodar Shaddam...
Liet e Warrick cruzaram a extensão gelada, mas evitaram o pó e a terra das indústrias do mercador de água. Warrick se voltou para olhar o terreno frio, desprovido de marcas características.
— Vejo que lhes ensinou algumas coisas, mais do que lhes ensinamos na primeira vez. Seu esconderijo já não é tão evidente como antes.
— Você percebeu, não é? — disse Liet, satisfeito —. Com um bom professor fremen, até eles podem aprender o evidente.
Chegaram por fim à fronteira do deserto, plantaram o batedor e chamaram um verme. Ao fim de pouco, dirigiam-se para os territórios indômitos em que o pó, as tormentas e as caprichosas tempestades climáticas sempre tinham desalentado às patrulhas Harkonnen.
Enquanto suas montarias sulcavam a areia em direção às regiões equatoriais, Warrick falou pelos cotovelos. Parecia mais feliz, mais informado de histórias e anedotas humorísticas que nunca.
Liet, que ainda sentia uma dor surda no coração, escutou-o falar de Faroula e de seu filho, de sua vida em comum, de uma viagem que tinham feito ao sietch Tabr, do dia que tinham passado em Arrakeen, da ocasião em que quiseram ir ao projeto da estufa da Depressão de Gelo...
Enquanto isso, a mente de Liet vagava. Se tivesse chamado um verme maior, ou se apressado mais, ou descansado menos, talvez tivesse chegado primeiro. Os dois jovens tinham pedido o mesmo desejo no Biyan, o leito do lago que tinha ficado a descoberto, tanto tempo antes (casar-se com a mesma garota), e o desejo só tinha sido concedido a Warrick.
Era a vontade do Shai-Hulud, como diziam os fremen. Liet tinha que aceitar.
Acamparam ao cair a noite. Sentaram-se sobre a cúpula de uma duna e contemplaram as estrelas na escuridão. Depois se meteram na tenda destiladora. Com o contato suave do deserto, Liet-Kynes dormiu melhor que em muitos meses...
Viajaram com rapidez. Dois dias depois, Liet descobriu que tinha saudades do sietch da Muralha Vermelha, saudar sua mãe, Frieth, contar a seu pai o que tinha visto e feito em Salusa Secundus.
Mas naquela tarde, Liet reparou em uma mancha parda no horizonte. Tirou os filtros e inalou ozônio, e a eletricidade estática do ar arrepiou seu pêlo.
Warrick franziu o sobrecenho.
— É uma grande tormenta, Liet, e se aproxima rapidamente. — Deu de ombros com otimismo forçado —. Talvez seja apenas um vento heinali. Poderemos superá-lo.
Liet guardou seus pensamentos para si, pois não desejava mencionar suas desagradáveis suspeitas. Mencionar más possibilidades podia atrair o mal.
Mas quando o fenômeno se aproximou e se ergue poderosamente no céu, Liet disse o evidente.
— Não, meu amigo, é uma tormenta Coriolis.
Recordou sua experiência de anos atrás no módulo meteorológico com seu pai, e ainda mais recente, a tormenta de aurora de Salusa Secundus. Mas isto era pior, muito pior.
Warrick olhou para ele e se agarrou ao lombo do verme.
— Hulasikali Wala. O vento do demônio em pleno deserto.
Liet estudou a nuvem que se aproximava. Nos níveis superiores, a escuridão era causada por diminutas partículas de pó lançadas a grandes altitudes, enquanto que perto do chão os ventos levantavam a areia, mais pesada e abrasiva. Hulasikali Wala, pensou. Era o termo fremen que designava as mais poderosas tormentas Coriolis. O vento que come a carne.
O verme de areia começou a mostrar-se agitado e inquieto, reticente a continuar. Quando a mortífera tormenta se aproximasse, o animal mergulharia sob o chão, por mais ganchos e separadores que aplicassem a seus segmentos.
Liet examinou as dunas que se estendiam como um oceano interminável em todas as direções. Nada além de deserto.
— Nem montanhas nem abrigo.
Warrick não respondeu, e continuou procurando alguma irregularidade na penumbra que os rodeava.
— Ali! — ergueu-se sobre o lombo do verme e apontou com um dedo —. Um pequeno afloramento rochoso. Vamos.
Liet forçou a vista. O vento já lhe lançava pó no rosto. Só via um diminuto ponto negro pardo, uma proeminência rochosa, como um pedra bruta perdida que se sobressaía da areia.
— Não parece grande coisa.
— É o único que há, meu amigo.
Warrick obrigou o verme a desviar-se para o pequeno afloramento antes que a tormenta explodisse.
A areia, empurrada a grande velocidade, açoitou seus rostos e irritou seus olhos. Colocaram os filtros bem encaixados nas fossas nasais e a boca fechada, e cobriram o rosto com capuzes, mas Liet ainda experimentava a sensação de que a areia penetrava pelos poros de sua pele.
O vento rouco sussurrou em seus ouvidos, e depois aumentou de volume, como o fôlego de um dragão. Os campos elétricos lhe produziram náuseas e dor de cabeça, que só diminuiria se se cobrisse bem sobre a areia. Algo impossível naquela desolação.
Quando se aproximaram do afloramento rochoso, o coração de Liet deu um salto. Tratava-se de uma simples curva de lava endurecida, exposta aos ventos abrasivos. Do tamanho apenas de uma tenda destiladora, com bordas rugosas, rachaduras e fendas. Não era grande o bastante para alojar os dois.
— Warrick, isto não vai nos servir. Temos que encontrar outra maneira.
Seu companheiro se virou para ele.
— Não há outra maneira.
O verme resistia a tomar a direção que Warrick lhe açulava. Quando se aproximaram mais de seu improvável refúgio, a tormenta se ergueu sobre eles como um gigantesco muro marrom no céu. Warrick liberou os ganchos.
— Agora, Liet! Temos que confiar em nossas botas, em nossas habilidades e no Shai-Hulud.
Liet soltou seus ganchos. O verme mergulhou na areia e Liet se deixou cair para não ser apanhado no redemoinho.
A tormenta Coriolis se precipitava para eles com um som seco e sibilante, remexia a areia e uivava como um animal enfurecido. Liet já não podia diferenciar o céu do deserto.
Lutaram contra o vento e subiram à rocha. Só havia uma rachadura que podia alojar um homem encolhido, protegido por sua capa.
Warrick a examinou e voltou para a tormenta. Ergueu a cabeça.
— Tem que aproveitar o refúgio, meu amigo. É seu.
Liet se negou.
— Impossível. Você é meu irmão de sangue. Tem uma esposa e um filho. Tem que voltar para eles.
Warrick lhe dirigiu um olhar frio e distante.
— E você é o filho de Umma Kynes. Sua vida é mais valiosa que a minha. Aproveite o refúgio antes que a tormenta mate nós dois.
— Não deixarei que sacrifique sua vida por mim.
— Não o deixarei escolher.
Warrick deu meia volta, mas Liet o agarrou pelo braço.
— Não! Como escolhem os fremen em situações como esta? Como decidimos a melhor maneira de guardar a água para nossa tribo? Eu digo que sua vida é mais valiosa que a minha, porque tem uma família. Você diz que eu sou mais valioso por ser meu pai quem é. Não temos tempo para solucionar este problema.
— Então, Deus escolherá — disse Warrick.
— De acordo. — Liet tirou um pau do cinto —. E tem que obedecer a decisão. — Quando Warrick franziu o sobrecenho, Liet engoliu em seco —. E eu também.
Ambos tiraram seus paus, voltaram-se para a duna e protegeram o ângulo de lançamento do vento. A tormenta se aproximava, um universo rodopiante de escuridão eterna. Warrick foi o primeiro a lançar, e a ponta bicuda do seu dardo se afundou na superfície macia. Sete.
Quando Liet lançou seu pau, pensou que ganhasse seu amigo morreria. E se perdesse, morreria ele. Mas não lhe ocorria outro método.
Warrick se ajoelhou no lugar onde os paus se afundaram. Liet correu para seu lado. Seu amigo não o enganaria, porque isso era um anátema para os fremen. Mas tampouco confiava nos olhos nublados de Warrick, irritados pelo pó. Seu pau estava inclinado em um ângulo, e revelava a cifra: nove.
— Você ganhou. — Warrick se voltou para ele —. Tem que entrar no refúgio, meu amigo. Não temos tempo para discutir, nem para nos atrasar.
Liet piscou e estremeceu. Falhavam-lhe os joelhos, e estava a ponto de desabar por causa do desespero.
— Isto não pode ser. Nego-me a aceitar.
— Não tem alternativa. — Warrick o empurrou para a rocha —. São os caprichos da natureza. Ouviu seu pai falar do assunto com bastante freqüência. O meio ambiente tem seus riscos, e hoje a sorte não nos favoreceu.
— Não posso fazer isso — gemeu Liet, ao mesmo tempo que afundava os saltos na areia, mas Warrick o empurrou com violência para as rochas.
— Vá! Não me obrigue a morrer inutilmente!
Liet avançou para a rachadura como se estivesse em transe.
— Entre comigo. Compartilharemos o refúgio.
— Não há espaço suficiente. Olhe bem.
O uivo da tormenta alcançou o clímax. Pó e areia os aguilhoavam como balas. Ambos se falavam com gritos, apesar de estarem separados por uma distância ínfima.
— Tem que cuidar de Faroula — disse Warrick —. Se discutir comigo e morrer aqui, quem cuidará dela e do meu filho?
Liet abraçou seu amigo, consciente de que estava derrotado, de que não podia fazer nada mais. Warrick o empurrou para o interior da rachadura. Liet tentou acomodar-se, com a esperança de que sobrasse espaço para Warrick.
— Pegue minha capa! Cubra-se. Ela o protegerá.
— Cale-se, Liet. Precisará dela para sobreviver. — Warrick olhou para ele. O vento furioso agitava seu traje destilador e a capa —. Pense assim: serei um sacrifício para Shai-Hulud. Talvez minha vida alcance sua misericórdia.
Liet se esmagou contra as rochas, quase incapaz de mover-se. Sentiu o aroma da eletricidade atmosférica provocada pela tormenta de areia, viu seus chiados no muro de areia que se aproximava. Era a manifestação mais violenta que Duna podia oferecer, muito pior que qualquer outro fenômeno de Salusa Secundus, nada comparável em todo o universo.
Liet estendeu a mão. Warrick a apertou sem pronunciar palavra. Liet já sentia a pele corroída. O vento o mordiscava como dentes diminutos. Quis se aproximar de Warrick, lhe proporcionar um pouco de abrigo na rachadura, mas seu amigo se negou. Já tinha tomado sua decisão e não havia alternativa.
O furacão lançou suas garras. Liet não podia manter os olhos abertos e tratou de encolher-se mais dentro da rachadura.
Quando a tormenta aumentou de intensidade, a mão de Warrick se soltou da sua. Liet tentou recuperá-la mas a força do vento o esmagou contra a rocha. Só via as forças do Coriolis. O pó o cegava.
Nem sequer pôde ouvir o grito de Warrick.
Depois de horas naquele inferno, Liet saiu. Seu corpo estava coberto de pó, com os olhos avermelhados e quase cego, as roupas rasgadas por causa das rochas e dos dedos do vento. Ardia-lhe a testa, sentia-se doente e chorou de desespero. A seu redor, o deserto parecia limpo, renovado. Liet chutou o chão com suas botas temag, desejou destruí-lo, impulsionado pela raiva e dor. E então se voltou.
Embora fora impossível, viu a figura de um homem, uma silhueta que se erguia sobre uma duna, com uma capa puída que batia as asas a seu redor. O furacão tinha destroçado parte de seu traje destilador.
Liet ficou petrificado, perguntou-se se seus olhos o enganavam. Uma miragem? Acaso o fantasma de seu amigo havia retornado para atormentá-lo? Não, era um homem, um ser vivo que lhe dava as costas.
Warrick.
Liet gritou e correu pela areia, deixando profundos rastros. Subiu a duna, rindo e chorando ao mesmo tempo, incapaz de acreditar em seus olhos.
— Warrick!
O outro fremen continuou imóvel. Não se precipitou para receber seu amigo, mas sim continuou olhando para o norte, para seu lar.
Liet era incapaz de imaginar como Warrick tinha sobrevivido. A tormenta Coriolis destruía tudo que encontrava em seu caminho, mas aquele homem continuava de pé. Liet gritou uma vez mais e chegou aos tombos na cúpula da duna. Recuperou o equilíbrio e agarrou o braço de seu amigo.
— Warrick! Você está vivo!
Warrick se virou lentamente para ele.
O vento e a areia lhe tinham arrancado a metade da pele. O rosto de Warrick estava esfolado em parte, e as bochechas deixavam à mostra seus dentes. Tinha perdido as pálpebras e seu olhar cego contemplava sem piscar a luz do sol.
Os ossos apareciam no dorso de suas mãos, e os tendões de sua garganta subiram e desceram como polias e cabos quando moveu a mandíbula e falou com uma voz monstruosa, mutilada.
— Sobrevivi, e vi. Mas talvez tivesse sido melhor morrer.
Se um homem for capaz de aceitar seus pecados, sobreviverá. Se um homem não pode aceitar seus pecados, sofre consequências insuportáveis.
Meditações desde Byfrost Eyrie
Texto budislâmico.
Abulurd Harkonnen esteve a ponto de enlouquecer durante os meses posteriores ao seqüestro do seu filho. Isolou-se do mundo uma vez mais. Todos os criados foram despedidos. Sua esposa e ele carregaram em um ornitóptero suas mais apreciadas posses.
Depois reduziram a cinzas o pavilhão principal. As paredes, teto e vigas arderam como velas. A madeira rugiu e chispou como uma pira funerária. O edifício de madeira tinha sido o lar de Abulurd e Emmi durante décadas, um refúgio de felicidade e belas lembranças. Mas o abandonaram sem vacilar.
Emmi e ele voaram sobre as montanhas até aterrissarem em uma das silenciosas cidades da montanha, um lugar chamado Veritas, que significa “verdade”. A comunidade budislâmica, que parecia uma fortaleza, tinha sido construída sob um saliente de granito, uma plataforma rochosa que sobressaía da massa montanhosa. Ao longo dos séculos, os monges tinham escavado uma rede de túneis e celas onde os devotos podiam alojar-se e meditar.
Abulurd Harkonnen tinha que meditar muito, e os monges o aceitaram de bom grado.
Embora não fossem religiosos e nem sequer observassem os princípios do budislam, Abulurd e Emmi passavam muito tempo juntos em silêncio. Consolavam-se mutuamente, depois de tanta dor e sofrimento. Queriam compreender por que o universo se empenhava em atormentá-los, mas nenhum dos dois encontrou resposta.
Abulurd acreditava que era bondoso, que no fundo era um bom homem. Tentava fazer tudo certo. Não obstante, encontrava-se mergulhado em um poço de demônios.
Um dia estava sentado em sua câmara de paredes de pedra, onde a luz era tênue e piscava, vinda de velas que projetavam uma fumaça perfumada. Estufas ocultas em nichos nas rochas esquentavam a habitação. Vestia roupas simples e folgadas, e estava mergulhado em seus pensamentos.
Emmi, ajoelhada a seu lado, acariciou a manga de sua blusa. dedicava-se a escrever poesia, os versos descobertos nos sutras budislâmicos, mas as palavras e metáforas eram tão incisivas e dolorosas que Abulurd não podia lê-los sem sentir a ardência das lágrimas. Emmi deixou em um lado os pergaminhos e as plumas.
Os dois contemplaram as velas oscilantes. Os monges cantavam em algum salão, e a pedra propagava a vibração de seus cânticos. Os sons apagados se transformaram em tons hipnóticos.
Abulurd pensava em seu pai, um homem com quem se parecia muito, de cabelo comprido, pescoço grosso e corpo esbelto. O barão Dmitri Harkonnen sempre usava roupa folgada para parecer mais impressionante do que na realidade era. Tinha sido um homem duro, que tomara decisões difíceis para aumentar a fortuna familiar. Cada dia constituía um esforço por aumentar a riqueza da Casa Harkonnen, por elevar a posição de sua família no Landsraad. Receber o feudo siridar de Arrakis tinha engrandecido o sobrenome Harkonnen entre as famílias nobres.
Ao longo das eras transcorridos desde a batalha de Corrin, a linhagem Harkonnen ganhou uma reputação de crueldade, mas Dmitri tinha sido muito menos duro que a maioria de seus antecessores. Daphne, sua segunda esposa, tinha-lhe abrandado grandemente. Mais adiante, Dmitri mudou de maneira perceptível, ria de boa vontade, demonstrava amor por sua nova esposa e dedicava muito tempo a seu filho menor Abulurd. Até amava ao atrasado mental Marotin, quando em gerações anteriores dos Harkonnen teriam acabado com a vida do menino em um simulacro de piedade.
Infelizmente, quanto mais afetuoso Dmitri se tornava, mais desumano se mostrava seu filho mais velho Vladimir, como em resposta. A mãe de Vladimir, Vitória, fazia todo o possível por inculcar uma ânsia infinita de poder em seu filho.
Somos tão diferentes.
Enquanto meditava, concentrado nas cores das chamas das velas, Abulurd não se arrependeu de ter se negado a seguir os passos de seu meio-irmão. Carecia de coração e estômago para executar as atrocidades que tanto deleitavam o barão.
Enquanto escutava as vibrações longínquas da música dos monges, Abulurd pensou em sua árvore genealógica. Nunca tinha entendido por que seu pai lhe tinha posto o nome de Abulurd, um nome tingido de desprezo e infâmia desde o desenlace da Jihad Butleriana. O primeiro Abulurd Harkonnen tinha sido repudiado por covardia depois da batalha de Corrin, caído para sempre em desgraça.
Tinha sido a vitória final dos humanos contra as máquinas pensantes. Na última batalha, ocorrida na lendária ponte de Hrethgir, o insultado Abulurd fizera algo que lhe rendera a censura de todas as partes vitoriosas. Tinha gerado a milenar inimizade entre os Harkonnen e os Atreides. Mas os detalhes eram escassos e não existiam provas.
O que meu pai sabia? O que fez o outro Abulurd na batalha de Corrin? Que decisão tomou na ponte?
Talvez Dmitri não o considerasse motivo de opróbrio. Talvez os vitoriosos Atreides se limitaram a reescrever a história, mudado o relato dos fatos depois de tantos séculos para denegrir a reputação dos Harkonnen. Desde a Grande Revolta, os mitos tinham deformado a história e oculto a verdade.
Abulurd estremeceu, respirou fundo, aspirou o aroma do incenso que as velas emitiam.
Ao perceber a inquietação do seu marido, Emmi lhe acariciou a nuca e lhe deu um sorriso agridoce.
— Demorará certo tempo — disse —, mas acredito que neste sagrado lugar encontraremos um pouco de paz.
Abulurd assentiu e engoliu em seco.
Agarrou a mão de Emmi e beijou a pele áspera de seus dedos.
— Pode ser que me tenham despojado de minha riqueza e poder, querida minha, pode ser que tenha perdido meus dois filhos... mas ainda tenho você. E você vale mais que todos os tesouros do Império. — Fechou seus olhos azuis —. Oxalá pudéssemos fazer algo por compensar Lankiveil, para compensar toda essa gente que sofreu tanto por ser como sou.
Apertou os lábios e seus olhos se cobriram de uma fina capa de lágrimas que não podia ocultar as imagens: Glossu Rabban coberto de sangue de baleia peluda e piscando à luz do foco que iluminava o mole... Bifrost Eyrie arrasado pelas tropas de Rabban... a expressão de incredulidade de Onir Rautha-Rabban pouco antes de ser jogado no abismo pelos guardas... até a pobre cozinheira. Abulurd recordava o cheiro de carne queimada, o ruído da panela derrubada ao cair, a água derramada sobre o chão de madeira, absorvida pelo avental da mulher morta quando caiu sobre ele. O menino chorando...
Quanto tempo fazia que a vida não era agradável e plácida? Quantos anos tinham transcorrido desde que tinha ido caçar baleias com os cordiais pescadores, quando tinham caçado a uma baleia albina...
Recordou de repente do iceberg artificial, o enorme e ilegal depósito de especiaria oculto nas águas árticas. Um tesouro Harkonnen inimaginável. Não havia dúvida de que seu meio-irmão tinha escondido esse depósito diante do seu nariz.
Levantou-se e sorriu. Olhou para sua esposa, que não compreendia sua alegria.
— Já sei o que podemos fazer, Emmi!
Aplaudiu, entusiasmado pela perspectiva. Ao menos tinha descoberto uma forma de compensar seu povo, a quem sua própria família tinha tratado com tanta crueldade.
A bordo de um cargueiro quebra-gelo que não tinha anunciado seu curso nem irradiado sinal de localização, Abulurd se encontrava no comando de um grupo de monges budislâmicos, uma tripulação baleeira e os antigos criados de sua casa. Sulcavam as águas cobertas de massas de gelo, escutando o ruído dos fragmentos gelados ao roçarem-se, como pedras de argamassa.
Uma neblina noturna de cristais de gelo suspensos derivava sobre as águas e esfumava os faróis da embarcação, que procurava a ancoragem do iceberg artificial. Utilizavam sonares e exploratórios, e riscavam um mapa dos montículos flutuantes. Assim que descobrissem o que procuravam, localizar ao falso seria muito simples.
Nas horas anteriores ao amanhecer, a embarcação amarrou junto à escultura de poliéster que tanto se parecia com gelo cristalino. Assombrando os operários, baleeiros e monges se internaram como intrusos nos corredores que se estendiam sob a água. Dentro, intocados durante anos, descansavam contêineres da preciosa especiaria melange, transportada em segredo desde Arrakis para ser armazenada em Lankiveil. O resgate de um imperador.
No princípio de seu prolongado reinado, Elrood IX tinha promulgado severas restrições contra reservas como essa. Se alguma vez a descobrissem, o barão seria castigado severamente, deveria pagar uma multa imensa e talvez perderia seu cargo de diretor da CHOAM, e inclusive seu quase feudo de Arrakis.
Durante alguns momentos de desesperada esperança, Abulurd tinha pensado em chantagear seu meio-irmão e exigir que devolvessem seu filho, sob a ameaça de revelar a reserva de especiaria ilegal. Como já não era um Harkonnen, Abulurd não tinha nada a perder, mas sabia que a longo prazo não serviria de nada. Esta era a única forma de extrair algum bem do pesadelo.
A equipe furtiva utilizou plataformas suspensoras e uma fileira de homens para carregar o navio de melange. Mesmo caído em desgraça, Abulurd ainda conservava seu título de sub-governador do distrito. Sondaria seus contatos anteriores. Encontraria contrabandistas e mercadores que o ajudariam a desprender-se da reserva. Demoraria meses, mas a intenção de Abulurd era obter bons Solaris em troca dela, que distribuiria como lhe parecesse justo. Tudo em benefício de seu povo.
Emmi e ele tinham considerado, mas descartado, a idéia de investir em um bom sistema defensivo para Lankiveil. Mesmo com toda aquela especiaria, era impossível construir algo capaz de opor-se ao poder da Casa Harkonnen. Não, tinham uma idéia melhor.
Enquanto meditavam na cela do monastério, Emmi e ele tinham desenvolvido um complexo plano. Distribuir tamanha riqueza constituiria uma tarefa monumental, mas Abulurd contava com colaboradores de confiança e sabia que conseguiria.
O dinheiro da especiaria seria enviado a cidades e povoados, distribuído em centenas de cidadelas montanhosas e aldeias de pescadores. As pessoas reconstruiriam seus templos budislâmicos. Substituiriam seus antigos equipamentos de pesca por outros melhores, alargariam ruas e moles. Todos os pescadores nativos receberiam uma barco novo.
O dinheiro seria distribuído em milhares de peças pequenas para que fosse impossível recuperá-lo. A reserva de especiaria aumentaria o nível de vida da pobre gente desse planeta, seus súditos, proporcionaria-lhes comodidades que jamais tinham imaginado.
Quando o barão descobrisse o que seu meio-irmão tinha feito, jamais poderia reclamar sua fortuna perdida. Seria como tentar capturar o mar com um copo...
Enquanto o quebra-gelo voltava para as aldeias do fiorde, Abulurd se erguia na proa, sorria face à gelada névoa e estremecia de impaciência. Sabia o bem que faria com seu esforço daquela noite.
Pela primeira vez em anos, Abulurd Harkonnen se sentiu muito orgulhoso.
A capacidade de aprender é um dom; a faculdade de aprender é uma aptidão; a vontade de aprender é uma opção.
REBEC DE GINAZ
Hoje, os aprendizes de mestre espadachim viveriam ou morreriam em função do que tinham aprendido.
De pé junto a um variado mostruário de armas, o lendário Mord Cour conferenciava em voz baixa com o professor Jeh-Wu. O campo de provas estava úmido e escorregadio devido à chuva caída ao amanhecer. As nuvens ainda não tinham se afastado.
Logo serei um mestre espadachim, de corpo e mente, pensou Duncan.
Aqueles que superassem (sobrevivessem?) esta fase ainda deveriam enfrentar uma intensa bateria de exames orais, que abrangiam a história e a filosofia das disciplinas de luta que tinham estudado. Depois, os vencedores retornariam à ilha principal, contemplariam os restos sagrados de Jool-Noret e voltariam para casa.
Como mestres espadachins.
— Um tigre em um braço e um dragão no outro — gritou Mord Cour. Seu cabelo prateado tinha crescido dez centímetros desde que Duncan o tinha visto pela última vez na ilha vulcânica —. Os grandes guerreiros encontram uma forma de superar qualquer obstáculo. Só um verdadeiro grande guerreiro é capaz de sobreviver ao Corredor da Morte.
Dos cento e cinqüenta alunos que tinham começado na classe, só restavam cinqüenta e um, e cada baixa ensinava uma nova lição a Duncan. Hiih Resser e ele, em teoria os dois melhores estudantes, erguiam-se lado a lado, como faziam a anos.
— O Corredor da Morte?
Resser tinha perdido o lóbulo da orelha esquerda em um exercício de luta com facas. Como pensava que a cicatriz lhe dava aspecto de guerreiro veterano, o ruivo tinha recusado qualquer cirurgia plástica que reparasse os danos.
— Uma mera hipérbole — disse Duncan.
— Acha mesmo?
Duncan respirou fundo e se concentrou na presença consoladora da espada do velho duque em sua mão. A corda rodeada ao pomo cintilava à luz do sol. Uma espada orgulhosa. Tinha jurado ser digno dela, e estava contente de empunhá-la agora.
— Depois de oito anos, é muito tarde para desistir — disse.
O percurso exterior de treinamento, rodeado por uma cerca de força, estava oculto dos alunos. Para sobreviver aos obstáculos e chegar ao final do percurso deveriam enfrentar meks assassinos, holoilusões sólidas, armadilhas explosivas e outros artefatos. Seria sua última prova física.
— Adiantem-se e escolham suas armas! — gritou Jeh-Wu.
Duncan prendeu duas facas curtas ao cinturão, além da espada do velho duque. Agarrou uma pesada maça, mas a trocou por uma longa lança de batalha.
Jeh-Wu agitou seus longos cachos escuros e avançou alguns passos. Embora sua voz fosse dura, aparecia nela um ápice de compaixão.
— Talvez alguns considerem cruel esta última prova, pior que qualquer situação de combate real. Mas os guerreiros têm que temperar-se na forja dos verdadeiros perigos.
Enquanto esperava, Duncan pensou em Glossu Rabban, que não tinha mostrado a menor compaixão quando caçava homens em Giedi Prime. Os monstros verdadeiros como os Harkonnen podiam inventar exercícios sádicos muito piores que os imaginados por Jeh-Wu. Inalou uma profunda baforada de ar, tentou dominar o medo e se imaginou sobrevivendo à odisséia.
— Quando Ginaz entrega um mestre espadachim a uma Casa nobre — continuou o velho Mord Cour —, dele dependem suas vidas, sua segurança, sua fortuna. Como carregam esta responsabilidade, nenhuma prova pode ser muito difícil. Alguns de vocês morrerão hoje. Não tenham dúvida. Nossa obrigação é entregar somente os melhores lutadores ao Império. Não há volta.
As comportas se abriram. Os ajudantes gritaram os nomes de um em um, foram lendo de uma lista, e vários alunos desapareceram atrás da barreira sólida. Resser foi um dos primeiros a ser chamado.
— Boa sorte — disse Resser. Duncan e ele se despediram com o semiaperto de mãos do Império e, sem olhar para trás, o ruivo atravessou o detestável portal.
Oito anos de rigoroso treinamento culminavam naquele momento.
Duncan esperou atrás de outros estudantes, alguns cobertos de suor nervoso, outros lançando bravatas. Mais alunos atravessaram a porta. Sentiu um nó de impaciência no estômago.
— Duncan Idaho! — gritou por fim um dos ajudantes.
Através da abertura, Duncan viu que o estudante anterior se esquivava se armas jogadas contra ele vindas de todas as direções. O jovem desapareceu de sua vista entre obstáculos e meks.
— Venha, venha. É fácil — grunhiu o ajudante —. Hoje já temos um par de sobreviventes.
Duncan rezou uma oração silenciosa e se precipitou para o desconhecido. A porta se fechou a suas costas com um estalo.
Concentrado no que estava fazendo, com a mente travada em um estado temporal de reações fotos instantâneas, ouviu um murmúrio de vozes que enchiam sua cabeça: Paulus Atreides lhe dizia que podia obter tudo que se propusesse; o duque Leto o aconselhava a não desistir, seguir o caminho da moralidade e jamais esquecer a compaixão; Thufir Hawat o aconselhava a vigiar todos os pontos do perímetro hemisférico que rodeava seu corpo.
Dois meks espreitavam a cada lado do corredor, monstros metálicos com sensores que seguiam todos os seus movimentos. Duncan pôs-se a correr, parou-se de repente, fez uma finta, lançou-se para frente e deu uma cambalhota.
Vigie todos os pontos. Duncan deu meia volta, atacou com sua lança, ouviu que golpeava metal, desviando uma arma dos meks, um dardo que lhe tinham lançado. Perímetro perfeito. Balançou sobre os pés, pronto a sair disparado em qualquer direção.
Recordou as palavras de seus instrutores: o encaracolado Mord Cour, Jeh-Wu, com sua cara de iguana, o obeso Riwy Dinari, o pomposo Whitmore Bludd, e mesmo o severo Como Reed, guardião da ilha prisão.
Sua professora de tailandês-chi tinha sido uma jovem atraente, com um corpo tão flexível que parecia composto inteiramente de fibra. Sua voz doce tinha um tom duro. “Espere o inesperado.” Palavras simples mas profundas.
As máquinas de combate continham mecanismos ativados por sensores óticos que seguiam seus movimentos, tanto se fossem rápidos como cautelosos. Não obstante, de acordo com as normas butlerianas, os meks não podiam pensar como ele. Duncan afundou a ponta de sua lança em um mek, deu meia volta e aplicou o mesmo tratamento ao outro. Virou-se e se esquivou por pouco das facas empaladoras que lançavam.
Enquanto avançava, examinava o caminho de madeira que pisava com seus pés nus, em busca de botões de pressão. As pranchas estavam manchadas de sangue. A um lado do caminho viu um corpo mutilado. Não parou para identificá-lo.
Mais adiante, jogou facas contra os olhos de outros meks para cegá-los. Derrubou outros com chutes vigorosos. Quatro eram só holoprojeções, o que percebeu ao observar sutis diferencia de luz e reflexo, um truque que Thufir Hawat lhe ensinara.
Um de seus instrutores tinha sido um rapaz com cara de menino e instintos assassinos, um guerreiro ninja que ensinava métodos silenciosos de assassinato e sabotagem, a suprema habilidade de fundir-se com as sombras e atacar no silêncio mais absoluto. “Às vezes pode fazer a declaração mais dramática com um toque invisível”, o ninja havia dito.
Duncan, depois de sintetizar oito anos de treinamento, traçou paralelismos entre as diversas disciplinas, similaridades de método e diferenças. Algumas técnicas eram muito úteis para suas circunstâncias atuais, e sua mente começou a selecionar os métodos apropriados para cada desafio.
Deixou para trás o último mek morto. Seu coração martelava em seu peito. Duncan desceu até a borda escarpada, seguindo os indicadores, ainda limitado pela cerca de força. Suspensores vermelhos o guiaram sobre um lago branco-azulado de gêiseres e águas termais vulcânicas, mas as ondas do mar transparente lambiam a borda da concha rochosa e esfriavam um pouco a água.
Mergulhou e nadou até túneis de lava submarinos onde borbulhava água mineral. Quase a ponto de afogar-se, sulcou as águas reaquecidas até emergir em outro lago de águas termais, onde meks de aspecto feroz se lançaram para ele.
Duncan lutou como um animal selvagem até que compreendeu que sua missão era atravessar aquele Corredor da Morte, não derrotar todos os adversários. Parou chutes, repeliu os meks e continuou correndo pelo caminho, para as terras altas selvagens e a próxima fase...
Uma ponte de corda estava estendida sobre um profundo abismo, um teste difícil de equilíbrio, e Duncan sabia que pioraria. Apareceram holobestas sólidas projetadas em metade do caminho, prontas para atacá-lo. Agitou sua lança e as golpeou.
Mas Duncan não caiu. O pior inimigo de um aprendiz é sua mente. Concentrou sua mente, ofegante. O desafio é controlar o medo. Jamais devo esquecer que não são adversários reais, por mais sólidos que pareçam seus golpes.
Tinha que utilizar todas as aptidões aprendidas, sintetizar as diversas técnicas e sobreviver, como em uma batalha real. A Escola de Ginaz podia ensinar métodos, mas não havia duas situações de combate idênticas. As armas principais de um guerreiro são a agilidade física e mental, combinada com a adaptabilidade.
Concentrou-se na rota direta que saltava o abismo, deu um passo atrás de outro. Utilizou sua lança para derrubar seus adversários irreais e chegou ao extremo da ponte, suado e esgotado, quase desmaiando.
Mas seguiu adiante. Até o final.
Correu por uma breve garganta rochosa (o lugar ideal para uma emboscada). Viu poços e rampas. Quando ouviu uma salva de disparos, rolou, e depois voltou a ficar em pé. Um dardo voou para ele, mas usou a lança comi vara e saltou sobre o obstáculo.
Quando pousou os pés no chão, um torvelinho de movimento se precipitou para seu rosto. Ergueu a lança na horizontal ante seus olhos e sentiu dois fortes impactos na madeira. Um par de diminutos meks voadores se incrustaram na lança, como pontas de flecha autoguiadas.
Viu mais sangue no chão, e outro corpo mutilado. Embora não devesse pensar nos companheiros caídos, lamentou a perda de outro estudante com talento que tinha investido tanto tempo e esforços no treinamento... apenas para tombar ali, no último desafio. Tão perto.
Às vezes vislumbrava observadores de Ginaz do outro lado da cerca de força, que seguiam seus passos, e outros professores, muitos dos quais recordava. Duncan não se permitiu pensar em como seus companheiros tinham se saído. Ignorava se Resser continuava vivo.
Até o momento tinha utilizado as facas e a lança, mas não a espada do velho duque. Era uma presença tranqüilizadora, como se Paulus Atreides o acompanhasse em espírito e sussurrasse conselhos ao longo do caminho.
“Um jovem com colhões tão grandes como os seus tem que fazer parte da minha casa”, havia-lhe dito o velho duque.
Duncan enfrentou ao obstáculo final, um enorme caldeirão fundo de óleo fervente que bloqueava todo o caminho. O final do Corredor da Morte.
Tossiu por causa da fumaça acre e tampou a boca e o nariz com sua camisa, mas não podia ver. Piscou para conter as lágrimas e estudou o caldeirão enterrado, que parecia a boca de um demônio furioso. Um estreito rebordo rodeava o caldeirão, escorregadio por causa do óleo derramado, que desprendia vapores nocivos.
O obstáculo final. Duncan devia ultrapassá-lo, fosse como fosse.
Atrás dele, uma alta cancela metálica se ergueu no caminho para impedir que voltasse. Estava trancada com fio shiga e não havia forma de subir por ela.
Tampouco tinha intenção de voltar.
“Nunca discuta com seus instintos, rapaz”, tinha-lhe aconselhado Paulus Atreides. O duque, guiado por seu instinto, tinha dado refúgio ao jovem em sua casa, apesar de saber que Duncan tinha vindo de um planeta Harkonnen.
Duncan se perguntou se poderia saltar sobre o caldeirão, mas não viu o outro lado por causa das chamas e da fumaça. E se o caldeirão não fosse redondo, mas de forma irregular, para enganar um estudante que acreditasse nisso? Truques e mais truques.
Tratava-se de uma holoprojeção? Mas sentia o calor, a fumaça o fazia tossir. Jogou sua lança, que ricocheteou com um ruído metálico contra um flanco metálico.
Ouviu o chiado de placas metálicas a suas costas, voltou-se e viu que a enorme cancela avançava para ele. Se não se movesse, a barreira o empurraria para o caldeirão.
Desembainhou a espada do velho duque e esfaqueou o ar. A arma lhe pareceu inútil. Pense!
Espere o inesperado.
Estudou a cerca de força que tinha à direita. Recordou suas sessões em Caladan com Thufir Hawat. A espada lenta penetra o escudo corporal, mas tem que mover-se à velocidade precisa, nem muito depressa nem muito devagar.
Agitou a espada no ar para praticar. Poderia romper a barreira e atravessá-la? Se uma espada lenta penetrava o escudo, a energia da barreira podia deslocar-se, mudar. A ponta afiada da espada podia distorcer o campo, abrir um oco. Mas quanto tempo permaneceria alterado um escudo se uma espada o penetrasse? Poderia atravessar a abertura temporária antes que o escudo se fechasse de novo?
A porta metálica continuava aproximando-se, empurrava-o para o caldeirão. Mas não se decidia a agir.
Duncan pensou em como por em prática o que tinha pensado. Suas opções eram limitadas. Avançou para a barreira e se deteve quando cheirou o ozônio e sentiu o estalar da energia em sua pele. Tentou recordar uma oração que sua mãe lhe cantava, antes que Rabban a assassinasse, mas só conseguiu recuperar fragmentos sem sentido.
Segurou a pesada espada do velho duque e atravessou a cerca de força como se fosse uma parede de água, moveu a espada para cima e sentiu as ondulações do campo. Era como estripar um peixe.
Depois se impulsionou para frente, seguiu a ponta da espada, dominou a resistência e caiu sobre uma superfície de lava negra, bastante aturdido. Rolou e ficou em pé, ainda com a espada, pronto para enfrentar aos mestres caso tivesse quebrantado as regras. De repente, viu-se livre do perigo do caldeirão fumegante e da porta móvel.
— Excelente! Temos outro sobrevivente.
Como Reed, liberado de suas obrigações na ilha prisão, correu para apertar Duncan em um abraço de urso.
O mestre Mord Cour e Jeh-Wuno estavam muito longe, com expressões satisfeitas. Duncan nunca os tinha visto tão risonhos.
— Era a única saída? — perguntou enquanto tentava recuperar o fôlego e olhava para o professor Cour.
O ancião explodiu em gargalhadas.
— Você descobriu uma das vinte e duas, Idaho.
Outra voz interveio.
— Quer voltar para descobrir as outras possibilidades?
Era Resser, que sorria de orelha a orelha. Duncan embainhou a espada do velho duque e abraçou seu amigo.
Como definir o Kwisatz Haderach? O varão que está em todas partes ao mesmo tempo, o único homem capaz de transformar-se no ser humano mais poderoso de todos, que combina antepassados masculinos e femininos tornando-os inseparáveis.
Libero Azhar
da Bene Gesserit.
Sob o palácio imperial, em uma rede de canais de água e lagos ligados, duas mulheres nadavam com trajes de banho negros. A mais jovem nadava lentamente, atrasava-se para ajudar a anciã caso ela se cansasse. Seus trajes impermeáveis, escorregadios como óleo e quentes como um útero, ofereciam flexibilidade e conforto, pois cobriam o peito, o estômago e as coxas.
Apesar de algumas mulheres Bene Gesserit utilizarem roupas normais, e mesmo vestidos deliciosos em ocasiões especiais como bailes imperiais e acontecimentos festivos, eram aconselhadas a cobrirem seu corpo sempre. Contribuía para alimentar a mística e diferenciava as Irmãs.
— Já não... posso... nadar como antes — resfolegou a reverenda madre Lobia, enquanto Anirul a ajudava a entrar no maior dos sete lagos, um oásis de água fumegante de vapor, perfumada com ervas e sais. Não fazia muito tempo, a reveladora da verdade Lobia sempre fora capaz de superar Anirul com toda facilidade, mas agora, superados os cento e setenta anos de idade, sua saúde tinha declinado. Uma morna condensação gotejava do teto de pedra arqueado, como chuva tropical.
— Está indo muito bem, reverenda madre.
Anirul segurou o braço da anciã e a ajudou a subir a escada de pedra.
— Nunca minta para uma Reveladora da Verdade — disse Lobia com um sorriso enrugado. Seus olhos amarelados dançaram, mas ofegava em busca de ar —. Sobretudo à Reveladora da Verdade do imperador.
— Não acha que a esposa do imperador merece um pouco de indulgência?
A anciã riu.
Anirul a ajudou a acomodar-se em uma cadeira de forma adaptável e lhe entregou uma toalha. Lobia se estendeu com a toalha em cima dela e apertou um botão que ativava a massagem corporal da cadeira. Suspirou quando os campos elétricos acariciaram seus músculos e centros nervosos.
— Estão fazendo os preparativos para minha substituição — disse Lobia com voz sonolenta, por cima do zumbido da cadeira —. Vi os nomes das candidatas. Será estupendo voltar para a Escola Materna, embora duvide que volte a vê-la. Em Kaitain o clima é perfeito, mas sinto falta do frio e da umidade de Wallach IX. Não lhe parece estranho?
Anirul se sentou na beira da cadeira, viu a idade no rosto da Reveladora da Verdade e ouviu o murmúrio onipresente das vidas acumuladas em seu interior. Por ser a mãe Kwisatz secreta, Anirul vivia com uma clara e estridente presença da Outra Memória em sua cabeça. Todas as vidas do longo caminho de sua herança falavam nela, contavam-lhe coisas que a maioria das Bene Gesserit ignoravam. Lobia, apesar da sua idade avançada, não sabia tanto a respeito da idade como Anirul.
Minha sabedoria é superior a minha idade. Não era arrogância, mas uma sensação do peso da história e dos acontecimentos que a acompanhava.
— O que o imperador fará sem você a seu lado, reverenda madre? Depende de você para saber quem mente e quem diz a verdade. Não é uma Reveladora da Verdade comum, sob nenhum conceito.
Lobia, relaxada pela massagem, adormeceu ao seu lado.
Anirul refletiu sobre as camadas de segredo da Irmandade, a estrita divisão em categorias de informação. A Reveladora da Verdade adormecida era uma das mulheres mais poderosas do Império, mas nem mesmo Lobia conhecia a verdadeira natureza da missão de Anirul; de fato, sabia muito pouco sobre o programa Kwisatz Haderach.
Do outro lado dos lagos subterrâneos, Anirul viu que seu marido Shaddam saía de uma sauna, molhado e envolto em uma toalha. Antes que a porta se fechasse viu suas acompanhantes, duas concubinas nuas do harém real. Todas as mulheres começavam a parecer iguais, mesmo com seus poderes de observação Bene Gesserit.
Shaddam não tinha muito apetite sexual por Anirul, embora ela conhecesse técnicas para agradá-lo. Seguindo as ordens da madre superiora, tinha dado a luz recentemente uma quarta filha, Josifa. Shaddam tinha ficado mais furioso a cada menina que nascia, e agora procurava exclusivamente às concubinas. Ao compreender que Shaddam vivia sob o entristecedor peso do longo reinado de Elrood, Anirul se perguntou se seu marido mantinha tantas concubinas para tentar competir com o fantasma do seu pai. Ele era competente?
Enquanto o imperador caminhava pomposo da sauna até um dos lagos de água fria, deu as costas a sua esposa e mergulhou com um leve chapinhar. Emergiu e nadou vigorosamente para os canais de água. Gostava de percorrer a nado o perímetro do palácio dez vezes ao dia, no mínimo.
Oxalá Shaddam dedicasse tanta atenção a governar o Império como com suas diversões. De vez em quando, Anirul o punha a prova sutilmente e descobria que sabia menos que ela a respeito das alianças interfamiliares e das manipulações que aconteciam ao seu redor. Uma falha grave. Shaddam tinha aumentado o número de Sardaukar, embora não o bastante, e sem nenhum plano global. Gostava de usar o uniforme, mas carecia do aspecto, a visão militar e mesmo do talento para mover seus soldadinhos de brinquedo pelo universo de uma maneira produtiva.
Anirul ouviu um grito agudo e viu uma diminuta forma negra nas colunas de pedra que se erguiam sobre os canais. Um morcego distrans voou para ela com outra mensagem de Wallach IX. O diminuto animal tinha sido transportado até Kaitain e deixado em liberdade. Lobia nem se moveu, e Anirul sabia que Shaddam não retornaria antes de meia hora. Estava sozinha.
A mãe Kwisatz ajustou suas cordas vocais e imitou o grito do morcego. Pousou sobre sua palma úmida. Examinou seu focinho, os dentes afiados, os olhos parecidos com diminutas pérolas negras. Anirul concentrou sua atenção e emitiu outro chiado, e o morcego respondeu com um guincho, um estalo de sinais comprimidos codificados no sistema nervoso do roedor.
Anirul o decifrou em sua mente. Nem sequer a Reveladora da Verdade Lobia conhecia o código.
Era um relatório da madre superiora Harishka, que lhe comunicava a culminação de noventa gerações de cuidadoso planejamento genético. A irmã Jessica, filha secreta de Gaius Helen Mohiam e do barão Vladimir Harkonnen, não conseguia realizar sua sagrada missão de gerar uma filha Atreides. Negava-se, prorrogava o acontecimento de propósito? Mohiam havia dito que a jovem era fogosa e leal, embora às vezes teimosa.
Anirul imaginava que a próxima filha no caminho genético já estaria concebida a estas alturas, a penúltima filha, que seria a mãe da arma secreta. Jessica deitava-se a algum tempo deitando-se com Leto Atreides, mas ainda não ficara grávida. Algo intencional de sua parte? As análise tinham demonstrado que a jovem era fértil, e além disso era uma sedutora treinada. O duque Leto Atreides já tinha um filho.
Por que demora tanto?
Não era uma boa notícia. Se a tão esperada filha dos Harkonnen e os Atreides não nascesse logo, a madre superiora chamaria Jessica de volta a Wallach IX e descobriria o motivo.
Anirul considerou a possibilidade de libertar o morcego, mas decidiu não correr o risco. Rompeu com um movimento dos dedos o frágil pescoço do animal e jogou o pequeno cadáver no reciclador de matéria que havia atrás do lago.
Anirul deixou Lobia dormindo em sua cadeira de massagem e voltou correndo para o palácio.
Abra feridas em minha carne e escreve nelas com sal!
Lamento fremen.
Apesar de Liet-Kynes ter apenas um estojo de primeiros socorros em sua mochila, Warrick sobreviveu.
Liet, cego de dor e culpa, amarrou seu amigo no lombo de um verme. Durante a longa viagem de volta ao sietch, Liet compartilhou sua água e fez o que pôde por reparar o traje destilador de Warrick.
Quando chegaram ao sietch da Muralha Vermelha, houve muitos lamentos e choro. Faroula, mestra no uso das plantas medicinais, nunca se afastou do seu marido. Cuidou dele hora após hora, enquanto ele seguia curvado em um torpor cego, agarrando-se à vida.
Embora tivessem enfaixado seu rosto, a pele de Warrick nunca se regeneraria. Liet tinha ouvido que os magos genéticos dos Bene Tleilax podiam criar novos olhos, novos membros, nova pele, mas os fremen nunca aceitariam esse milagre, nem para salvar um dos seus. Os anciões do sietch e as crianças faziam sinais protetores perto das cortinas que cobriam os aposentos de Warrick, para repelir um feio demônio.
Heinar, o naib torto, foi ver seu genro desfigurado. Faroula, ajoelhada junto ao leito de seu marido, parecia transida de dor. Seu rosto de elfo, antes sempre disposto a sorrir ou a lançar uma resposta inteligente, estava gasto. A impotência se refletia em seus grandes olhos. Embora Warrick não tivesse morrido, usava um lenço nezhoni amarelo, a cor do duelo.
O naib, orgulhoso e aflito, convocou um conselho de anciões no qual Liet-Kynes contou o que tinha acontecido, para que os fremen pudessem compreender e honrar o grande sacrifício de Warrick. O jovem deveria ser considerado um herói. Terei que escrever poemas e canções em sua honra. Mas Warrick tinha cometido um terrível erro: não morrera.
Heinar e o conselho fizeram os preparativos para um funeral fremen. Era apenas questão de tempo, disseram. O homem mutilado não podia sobreviver.
Mas o fez.
Cobertas de emplastros, as feridas de Warrick pararam de sangrar. Faroula lhe deu de comer, freqüentemente com o Liet a seu lado, ansioso por ser útil. Mas nem sequer o filho de Umma Kynes pôde fazer o milagre que seu amigo necessitava. O filho de Warrick, Liet-chih, muito pequeno para compreender, tinha ficado aos cuidados de seus avós.
Embora Warrick parecesse um cadáver, não cheirava a infecção, as feridas não supuravam, não se via nem sinais de gangrena. Estava se curando, mesmo com os fragmentos de osso que estavam ao descoberto. Seus olhos cegos nunca podiam fechar-se para dormir em paz, embora a noite da cegueira sempre o acompanhasse.
Liet sussurrava para seu amigo, contava-lhe histórias de Salusa Secundus, recordava os tempos em que tinham atacado as tropas Harkonnen, quando tinham se oferecido como isca para matar os exploradores inimigos que tinham envenenado os poços de Bilar Camp.
Warrick continuava imóvel, hora após hora, dia após dia.
Faroula abaixou a cabeça e falou com uma voz que mal conseguia escapar de sua garganta.
— O que fizemos para ofender o Shai-Hulud? Por que nos castigou assim?
Durante o silêncio pesado em que Liet tentava encontrar uma resposta para essas perguntas, Warrick se remexeu no cama de armar. Faroula lançou uma exclamação afogada e deu um passo atrás. Seu marido se levantou. Seus olhos carentes de pálpebras se moveram como se enfocassem a parede do fundo.
E falou, movendo os tendões que sustentavam suas mandíbulas. Seus dentes e língua formaram palavras.
— Tive uma visão. Agora sei o que devo fazer.
Durante dias, Warrick coxeou, lenta mas decididamente, pelos passadiços do sietch. Cegado pela areia, orientava-se pelo tato, via com olhos interiores místicos. Pego às sombras, parecia a paródia de um cadáver. Falava com voz lenta e tênue, mas suas palavras transmitiam uma energia premente.
As pessoas queriam fugir, mas não podiam afastar-se quando ele entoava:
— Quando a tormenta me engoliu, no momento em que deveria ter encontrado a morte, uma voz me sussurrou do vento carregado de areia. Era Shai-Hulud em pessoa, e me contou por que devia suportar esta tribulação.
Faroula, ainda de amarelo, tentava arrastar seu marido até seus aposentos.
Embora os fremen evitassem falar com ele, sentiam-se compelidos a escutar. Se um homem podia receber uma visão sagrada, por que não Warrick, depois do que tinha padecido no coração da tormenta? Era uma simples coincidência que tivesse sobrevivido ao impossível? Ou demonstrava que Shai-Hulud tinha planos para ele, um fio na tapeçaria cósmica? Se alguma vez tinham visto um homem meio doido pelo dedo de fogo de Deus, esse era Warrick.
Entrou sem vacilar na sala onde Heinar estava reunido com o conselho de anciões. Os fremen emudeceram, sem saber como reagir. Warrick ficou na soleira.
— Têm que afogar um Criador — disse —. Chame à a Sayyadina para que presencie a cerimônia da Água de Vida. Tenho que transformá-la para poder continuar meu trabalho.
Deu meia volta e se afastou arrastando os pés. Heinar e seus companheiros ficaram confusos e pasmos.
Nenhum homem tinha tomado a Água de Vida e sobrevivido. Era uma substância para reverendas madres, uma poção mágica e venenosa para a qual não estava preparado.
Warrick entrou em uma sala comunal onde os adolescentes introduziam especiaria pura em tubos. As mulheres solteiras coalhavam melange destilada para a produção de plástico e combustível. Um tear elétrico apoiado contra uma parede emitia um ritmo hipnótico. Outros fremen reparavam e verificavam os complexos mecanismos de trajes destiladores avariados.
Cozinhas esquentavam papa e purê de batatas, que os membros do sietch tomavam a meio-dia como frugal refeição. Comidas mais fortes eram servidas depois do ocaso, quando a temperatura do deserto descia. Um ancião de voz nasal debulhava um triste lamento que narrava os séculos de peregrinação que os Zensunni tinham suportado antes de chegar ao planeta deserto. Liet estava sentado com dois guerrilheiros de Stilgar e bebia café especiado.
Toda atividade se interrompeu quando Warrick chegou e começou a falar.
— Vi um Duna verde, um paraíso. Nem sequer Umma Kynes conhece a grandeza que Shai-Hulud me revelou. — Sua voz era como um vento frio que soprasse através de uma cova —. Ouvi a Voz do Mundo Exterior. Tive uma visão do Lisam ao-Gaib aquele que esperamos. Vi o caminho, tal como promete a lenda e a Sayyadina.
Sua audácia levantou murmúrios entre os fremen. Conheciam a profecia. As reverendas madres a tinham ensinado durante séculos, e a lenda tinha passado de tribo a tribo, de geração em geração. Os fremen tinham esperado tanto tempo que alguns eram céticos, mas outros estavam convencidos...,e aterrados.
— Devo beber a Água de Vida. Vi o caminho.
Liet conduziu seu amigo até seus aposentos, onde Faroula estava falando com seu pai. Quando levantou a vista, tinha uma expressão resignada e os olhos avermelhados de tanto chorar. Seu filho, sentado em um tapete próximo, rompeu a chorar.
Ao ver Liet e Warrick juntos, o velho naib se voltou para sua filha.
— Assim tem que ser, Faroula — disse Heinar —. Os anciões decidiram. É um sacrifico tremendo, mas se ele for o único, se na verdade é o Lisan ao-Gaib, temos que fazer o que diz. Daremo-lhe a Água de Vida.
Liet e Faroula tentaram dissuadir Warrick de sua obsessão, mas o jovem persistiu em sua crença. Olhou-os com seus olhos cegos.
— É meu mashad e meu mihna. Minha prova espiritual e minha prova religiosa.
— Como sabe que não foram apenas ruídos estranhos o que ouviu no vento? — insistiu Liet —. Warrick, como sabe que não está se enganando?
— Porque sei.
E vendo seu beatífica expressão de convicção não tiveram outra alternativa senão acreditar.
A reverenda madre Ramallo viajou de um sietch longínquo para presidir a cerimônia e encarregar-se dos preparativos. Os homens fremen se apoderaram de seu pequeno verme cativo, de só dez metros de comprimento, e o afogaram em água extraída de um qanat. Quando o verme morreu e exalou sua bílis venenosa, os fremen verteram o líquido em uma jarra flexível e o prepararam para a cerimônia.
Em meio daquele revôo, o planetólogo Kynes retornou de suas plantações, tão absorto em suas preocupações que não compreendeu o significado do acontecimento, só que era importante. Balbuciou desculpas desajeitadas a seu filho e expressou tristeza pelo que tinha acontecido a Warrick, mas Liet percebeu que os cálculos e análises em escala planetária continuavam ocupando sua mente. Seu projeto de terraformação não podia deter-se nem um momento, nem sequer pela possibilidade de que Warrick fosse o Messias anunciado que transformaria e unificaria os fremen em uma força de combate.
A população do sietch da Muralha Vermelha se reuniu em sua enorme sala de reuniões. Warrick se adiantou na plataforma elevada de onde Heinar dirigia a palavra a sua tribo. O homem desfigurado ia acompanhado pelo naib e pela poderosa Sayyadina que tinha servido esta gente durante gerações. A anciã Ramallo parecia tão endurecida e apergaminada como um lagarto do deserto.
A Sayyadina chamou os mestres de água e recitou as palavras rituais. Os fremen as repetiram, mas com maior angustia que de costume. Alguns acreditavam com convicção que Warrick era tudo que afirmava. Outros se limitavam a ter fé.
Desta vez, não obstante, os fremen sabiam o que estava em jogo.
Contemplaram a face mutilada de Warrick, que se erguia impassível e decidida. Olhavam com medo e esperança, perguntavam-se se aquele jovem mudaria suas vidas... ou sofreria um fracasso horripilante, como outros homens em gerações anteriores.
Liet estava ao lado de Faroula e seu filho, observando de uma fila avançada. Faroula tinha os lábios apertados, os olhos fechados. Liet sentia o medo que projetava, e sentiu vontade de consolá-la. Temia que o veneno matasse seu marido, ou que sobrevivesse e continuasse sua penosa vida cotidiana?
A Sayyadina Ramallo terminou sua bênção e estendeu um frasco a Warrick.
— Deixemos que Shai-Hulud julgue agora se sua visão é correta, se é o Lisan ao-Gaib, a quem durante tanto tempo aguardamos.
— Vi o Lisan ao-Gaib — disse Warrick, e baixou a voz para que só a mulher pudesse ouvir —: Não disse que era eu.
Os ossos e tendões da mão de Warrick se moveram quando segurou a boquilha flexível e a inclinou para seus lábios. Ramallo apertou os flancos da bolsa, e deixou cair um jorro de veneno na boca de Warrick.
O jovem engoliu convulsivamente.
Os fremen guardaram silêncio, uma multidão que tentava compreender. Liet acreditou ouvir todos os corações pulsando em uníssono. Experimentou o sussurro de cada inalação, intuiu o sangue que pulsava em seus próprios ouvidos. Esperou e observou.
— O falcão e o camundongo são um — disse Warrick, enquanto esquadrinhava o futuro.
Ao fim de alguns momentos, a Água de Vida começou a exercer seu efeito.
Todos os sofrimentos anteriores de Warrick, toda a terrível angustia padecida durante a tormenta e depois, eram só o prólogo da morte horrível que o aguardava. O veneno impregnou as células de seu corpo e as acendeu.
Os fremen acreditavam que a visão espiritual do homem desfigurado tinha lhe enganado. Delirava e se agitava.
— Não sabem o que criaram. Nascido da água, morre na areia!
A Sayyadina Ramallo retrocedeu, como um ave predadora que visse a presa voltar-se contra ela. O que significa isto?
— Acreditam que podem controlá-lo... mas se enganam. — A mulher escolheu as palavras com cautela, interpretou-as por meio de seu antigo filtro da Panoplia Propheticus —. Diz que pode ver o que outros não. Viu o caminho.
— Lisan ao-Gaib! Será tudo que sonhamos. — Warrick padeceu de náuseas tão violentas que suas costelas rangeram como ramos. Saiu sangue de sua boca —. Mas não era o que esperávamos.
A Sayyadina levantou suas mãos como garras.
— Viu o Lisan ao-Gaib. Ele já vem, e será tudo o que tínhamos sonhado.
Warrick gritou até ficar sem voz, agitou-se, esperneou e contorsionou-se até perder o domínio dos músculos, até que seu cérebro foi devorado. Os habitantes de Bilar Camp tinham consumido a Água de Vida muito diluída, e mesmo assim tinham padecido uma agonia terrível. Para Warrick, uma morte tão cruel teria parecido uma bênção.
— O falcão e o camundongo são um!
Incapaz de ajudá-lo, os fremen só podiam olhar, abatidos. As convulsões de Warrick se prolongaram durante horas e horas, mas Ramallo ainda demorou mais em interpretar as inquietantes visões do jovem.
A pedra é pesada e a areia também, mas a ira de um louco é mais pesada que ambas.
Duque LETO ATREIDES
Quando um sombrio e nervoso Dominic Vernius retornou à base polar de Arrakis, seus homens correram para receber. Não obstante, ao ver sua expressão souberam que seu líder não trazia boas notícias.
Sob a cabeça calva e a testa, seus olhos estavam afundados e perturbados. Sua pele tinha envelhecido prematuramente, como se lhe tivessem despojado de toda cor e energia, deixando só uma vontade de ferro. Seu último vestígio de esperança desapareceu e a vingança ardia em seu olhar.
O veterano Asuyo, vestido com uma pesada jaqueta de pele sintética, aberta na frente para revelar seu peito coberto de pêlo branco, estava na plataforma de aterrissagem, com expressão preocupada. Coçou a cabeça.
— O que aconteceu, Dom? O que aconteceu?
Dominic Vernius continuou com a vista cravada nas paredes do precipício, que se ergueram como fortalezas a seu redor.
— Vi coisas que nenhum ixiano deveria presenciar. Meu amado planeta está tão morto como minha esposa.
Saiu de sua nave vazia, aturdido, e se internou no labirinto de passadiços que seus homens tinham escavado nas paredes geladas. Mais contrabandistas saíram para recebê-lo e pedir notícias, mas ele continuou sem responder. Os homens sussurraram entre si, confusos.
Dominic vagou de um passadiço a outro, sem seguir uma direção concreta. Deixou escorregar os dedos sobre as paredes, ao mesmo tempo que imaginava as covas de IX. deteve-se, respirou fundo e entreabriu os olhos. Por pura força de vontade, tentou recriar em sua mente a glória da Casa Vernius, as maravilhas da cidade subterrânea de Vernii, o Grande Palácio, os edifícios invertidos como estalactites, de arquitetura cristalina.
Apesar de séculos de feroz competição com Richese, os ixianos tinham sido os mestres indiscutíveis da tecnologia e inovação. Mas em apenas alguns anos os tleilaxu tinham arruinado aqueles lucros, cortado o acesso a IX, e até mesmo expulso o Banco da Corporação, o que forçava os financistas a negociar em lugares escolhidos pelos tleilaxu.
Na juventude, durante a revolta de Ecaz, Dominic Vernius tinha dado tudo por seu imperador. Tinha lutado, suado e sangrado para defender a honra dos Corrino. Tinha transcorrido tanto tempo, como se fosse em outra vida...
Naquele tempo, os separatistas ecazi tinham tido muito sonhos mau aconselhados, violentos mas ingênuos guerrilheiros que tive que esmagar para que não abrissem um mal precedente em outros planetas instáveis do império galáctico.
Dominic tinha perdido muitos homens bons naquelas batalhas. Tinha enterrado camaradas. Tinha presenciado as horríveis mortes de soldados que seguiam suas ordens. Recordou ter atravessado o campo, semeado de tocos de um bosque queimado junto ao irmão de Jodham, um homem inteligente e valente. Gritando, tinham disparado contra o grupo de resistentes. O irmão de Jodham tinha caído. Dominic pensou que tinha tropeçado em uma raiz enegrecida, mas quando se abaixou para levantá-lo, só encontrou um fumegante coto onde devia estar a cabeça, conseqüência de um disparo de artilharia fotônica.
Dominic tinha ganho a batalha naquele dia, ao custo de quase um terço de seus homens. Suas tropas tinham conseguido aniquilar os rebeldes ecazi, e por isso recebeu muitas condecorações. Os soldados caídos receberam fossas comuns em um planeta muito distante de seus lares.
Os Corrino não mereciam esses sacrifícios.
Graças a suas façanhas, a importância da Casa Vernius na junta diretiva da CHOAM tinha aumentado. Nas celebrações da vitória, com um arquiduque de Ecaz muito jovem sentado de novo no Trono de Mogno, tinha sido um convidado de honra em Kaitain. Ao lado de Elrood, Dominic tinha percorrido corredores transbordantes de cristal, metais preciosos e madeira polida. Sentou-se em mesas que pareciam ter quilômetros de comprimento, enquanto no exterior as massas aclamavam seu nome. Ergueu-se com orgulho sob o Trono do Leão Dourado, enquanto o imperador lhe punha a Medalha de Valor, e prendia outras nas jaquetas de seus lugares-tenentes.
Dominic tinha se transformado em um herói como resultado dessas batalhas, ganhara a lealdade de seus homens, que a tinham demonstrado durante anos, mesmo neste lugar miserável. Não, os Corrino não mereciam nada disso.
No que está pensando, Dominic? A voz pareceu sussurrar em sua cabeça, um doce tom melodioso que lhe pareceu estranhamente familiar, embora quase esquecido.
Shando. Mas era impossível. No que está pensando, Dominic?
— O que vi em IX eliminou meus últimos vestígios de medo. Matou minha contenção — disse em voz alta, embora ninguém o ouvisse, exceto a etérea presença de sua dama adorada —. Decidi fazer algo, meu amor, algo que deveria ter feito vinte anos.
Durante o dia antártico, que se prolongava por meses, Dominic não consultava a passagem das horas ou semanas em seu cronômetro. Pouco depois de retornar de IX, com planos formados em sua mente, partiu sozinho. Vestido com roupas de operário, solicitou uma audiência com o mercador de água Rondo Tuek.
Os contrabandistas pagavam com generosidade pelo silêncio de Tuek, e o barão industrial estabelecia contatos secretos com a Corporação para mandar transportes a outros planetas. A Dominic nunca tinha interessado obter lucros, e só roubava Solaris do tesouro imperial para incomodar os Corrino, de forma que nunca se arrependeu de pagar os subornos. Gastava o que era necessário para fazer o que desejava.
Nenhum dos habitantes de outros planetas que trabalhavam na fábrica de processamento de água o reconheceram, embora alguns lançassem olhares de desaprovação para Dominic quando entrou no complexo e insistiu em ver o mercador de água.
Tuek o reconheceu, mas não conseguiu dissimular sua surpresa.
— Passaram alguns anos desde a última vez que se deixou ver por aqui.
— Necessito da sua ajuda — disse Dominic —. Quero comprar mais serviços.
Rondo Tuek sorriu e seus olhos cintilaram. Coçou a espessa mecha de cabelo que crescia em um lado da cabeça.
— Sempre me sinto feliz de vender. — Indicou um corredor —. Acompanhe-me, por favor.
Quando dobraram uma esquina, Dominic viu que um homem se aproximava. Sua pesada parka branca estava aberta na frente e carregava um pacote de expedientes de plex, que folheava enquanto andava. Tinha a cabeça inclinada.
— Lingar Bewt — disse Tuek —. Tome cuidado ou tropeçará com você.
Embora Dominic tentasse se esquivar, o homem não prestava atenção e o roçou. Bewt se abaixou para recuperar um expediente que tinha caído. Seu rosto, fofo e redondo, estava muito bronzeado. Tinha papada e pança. Não era material militar.
Enquanto o absorto homem continuava seu caminho, Tuek disse:
— Bewt se encarrega de toda minha contabilidade e embarques. Não sei o que faria sem ele.
Já no interior do escritório privado de Tuek, Dominic mal olhou para os tesouros e obras de arte.
— Necessito de um transportador pesado, sem identificação. Tenho que subir a bordo de um Cruzeiro sem que se mencione meu nome.
Tuek enlaçou as mãos e piscou várias vezes. Um leve tic em seu pescoço fazia sua cabeça se mover de um lado a outro.
— Descobriu um bom veio, não é? Quanta especiaria tirou? — O homem rechonchudo se inclinou para frente —. Posso ajudá-lo a vender. Tenho contatos...
Dominic o interrompeu.
— Não se trata de especiaria. E não haverá uma porcentagem para você. Isto é um assunto pessoal.
Decepcionado, Tuek se reclinou em seu assento com os ombros caídos.
— De acordo. Por um preço. Podemos negociar, conseguirei um transportador grande. Proporcionaremos o que precisar. Deixe-me entrar em contato com a Corporação e conseguir lugar a bordo do próximo Cruzeiro. Qual é seu destino final?
Dominic desviou a vista.
— Kaitain, é claro... a casa dos Corrino. — Piscou e se sentou muito rígido —. Em qualquer caso, não é assunto seu, Tuek.
— Não — admitiu o mercador de água, e meneou a cabeça —. Não é assunto meu. — A preocupação cruzou seu rosto, e se esqueceu de seu hóspede para remexer papéis e atender os assuntos que enchiam seu escritório —. Volte dentro de uma semana, Dominic, e lhe entregarei todo o equipamento que necessitar. Fixamos o preço agora?
Dominic nem sequer olhou para elr.
— Cobre o que considerar justo.
Dirigiu-se para a porta, ansioso por retornar a sua base.
Dominic convocou seus homens na sala maior da base e falou com voz sombria e lúgubre, enquanto descrevia os horrores que tinha presenciado em IX.
— Faz muito tempo que os trouxe para cá, arrebatei-os de seus lares e vidas, e concordaram em se unir a mim. Aliamo-nos contra os Corrino.
— Sem lamentar, Dom — interrompeu Asuyo.
Dominic continuou com sua voz monótona.
— Queríamos nos transformar em lobos, mas somos apenas mosquitos. — Apoiou sua mão na mesa e respirou fundo —. Mas isso vai mudar.
Sem mais explicações, o conde renegado abandonou a sala. Sabia onde tinha que ir e o que devia fazer. Seus homens o seguiriam ou não. Eles escolheriam, porque se tratava de sua batalha pessoal. Tinha chegado o momento de saldar contas com os Corrino.
Internou-se na fortaleza, percorreu corredores escuros cujo piso estava coberto de areia e pó. Pouca gente entrava ali. Tinham passado anos desde a última vez que tinha pisado nos armazéns blindados.
Não faça isso, Dominic. A voz sussurrante aguilhoou de novo sua mente. Um calafrio percorreu sua espinha. Parecia-se muito com a de Shando. Sua consciência tentava fazer que reconsiderasse a decisão. Não faça isso.
Mas o momento de tomar uma decisão firme naquele assunto tinha passado muito tempo antes. Os milhares de anos de governo Corrino depois da Jihad Butleriana haviam deixado uma cicatriz profunda na história. A Casa Imperial não merecia estar no poder. Na linha divisória com o antigo Império, aquela outra família renegada, fosse qual fosse seu sobrenome, fossem quais fossem suas motivações, não tinha terminado o trabalho. Embora Salusa Secundus continuasse destruída, os outros renegados não se esforçaram o suficiente.
Dominic daria um passo mais no caminho da vingança.
Ao chegar às portas seladas do armazém mais profundo, teclou o código correto antes de apoiar a palma sobre a placa do exploratório. Ninguém mais tinha acesso a esta câmara.
Quando as comportas se abriram, viu a coleção de armas proibidas, os artefatos atômicos que tinham sido o último recurso da Casa Vernius, guardados durante milênios. A Grande Convenção proibia de maneira terminante a utilização de tais engenhos, mas Dominic já não se importava. Não tinha nada a perder.
Absolutamente nada.
Depois da conquista tleilaxu, Dominic e seus homens tinham recuperado as reservas secretas de uma lua situada no sistema ixiano, para depois as transportar para cá. Percorreu com o olhar toda a parafernália. Encerrados em contêineres selados havia ogivas de combate, mataplanetas, queimadores de pedra, engenhos que incendiariam a atmosfera de um planeta e transformariam Kaitain em uma pequena estrela de vida curta.
Tinha chegado a hora. Em primeiro lugar, Dominic iria a Caladan para ver seus filhos pela última vez e despedir-se deles. Até agora não quisera correr o risco de chamar a atenção sobre eles ou incriminá-los. Rhombur e Kailea tinham sido beneficiados com uma anistia, no entanto ele continuava a ser um fugitivo procurado.
Mas os visitaria uma única vez, com a maior discrição. Era justo fazê-lo depois de tantos anos. Depois descarregaria seu golpe final e seria o vencedor definitivo. Toda a estirpe corrupta dos Corrino se extinguiria.
Mas a voz de Shando, que ressoava em sua consciência, estava cheia de tristeza e pesar. Apesar de tudo o que tinham sofrido, não concordava. Você sempre foi um homem teimoso, Dominic Vernius.
A inovação e a ousadia criam heróis. A adesão insensata a normas periclitadas sozinho cria políticos.
Visconde Hundro Moritani
Na noite seguinte à prova do corredor da morte, os mestres espadachins se reuniram em uma longa sala de jantar com os quarenta e três sobreviventes da classe original de cento e cinqüenta. Os estudantes foram tratados como colegas, pois por fim ganharam o respeito e a camaradagem dos seus instrutores. Mas a que preço...
Serviram saborosa cerveja de especiaria fria. Havia peças extraplanetarias em pratos de porcelana. Os instrutores orgulhosos passeavam entre os alunos que haviam modelado durante oito anos. Duncan Idaho pensou que a alegria desmedida dos estudantes revelava certa histeria. Alguns pareciam atordoados, se moviam pouco, enquanto outros bebiam e comiam sem controle.
Em menos de uma semana se reagrupariam no edifício de administração do edifício principal, onde até teriam que superar uma rodada de exames, uma comprovação formal do conhecimento intelectual que haviam adquirido dos professores. Mas depois da mortífera corrida de obstáculos, responder a algumas perguntas parecia pouco emocionante.
Duncan e Resser, liberados da tensão contida, beberam muito. Durante anos de rigoroso treinamento só haviam comido o suficiente para fortalecer-se e não toleravam o álcool. A cerveja de especiaria lhes subiu à cabeça.
Duncan ficou sentimental quando recordou o esforço, a dor, os companheiros caídos.
Resser se regozijava de seu triunfo. Sabia que seu pai adotivo esperava que fracassasse. Depois de separar-se de seus compatriotas grumman e negar-se a abandonar o treinamento, o ruivo tinha ganho tanto as batalhas físicas como psicológicas.
Muito depois de as luas amarelas terem passado sobre suas cabeças, deixando um rastro de estrelas piscantes, a festa terminou. Os estudantes (contundidos, cheios de cicatrizes e bêbados) foram-se de um em um, dispostos a enfrentar encarniçada batalha contra a ressaca. dentro das cabanas principais havia pratos e copos quebrados. Não restava nada de comida ou bebida.
Hiih Resser saiu descalço com Duncan para o negrume da noite. Encaminharam-se para as cabanas onde se alojavam com passo vacilante.
Duncan apoiava a mão sobre o ombro de seu amigo em gesto de amizade, mas também para não perder o equilíbrio. Não compreendia como o enorme professor Riwy Dinari caminhava com tanta agilidade.
— Bem, quando tudo isto tiver acabado, virá comigo ver o duque Leto? — Duncan formou as palavras com cautela —. Lembre-se que a Casa Atreides agradeceria a chegada de dois mestres espadachins, se Moritani não o quiser.
— A Casa Moritani não me quer, não depois que Trin Kronos e outros abandonaram a escola — disse Resser.
Duncan não viu lágrimas nos olhos de seu amigo.
— Que estranho — disse —. Poderiam ter celebrado conosco esta noite, mas escolheram outro caminho.
Os dois amigos desceram o penhasco até a praia. As cabanas pareciam muito longínquas, e apagadas.
— Mas tenho que voltar para lá, enfrentar minha família, para mostrar o que consegui.
— Pelo que sei do visconde Moritani, isso parece perigoso. Suicida até.
— Mesmo assim, tenho que fazê-lo. — voltou-se para Duncan nas sombras, mais animado —. Depois irei ver o duque Atreides.
Duncan e ele esquadrinharam a escuridão, tentaram acostumar sua vista à penumbra enquanto tropeçavam.
— Onde estão essas cabanas?
Ouviram ruído de gente mais adiante e o entrechocar de espadas. Sinais de alarme dispararam na mente nublada de Duncan, mas com muita lentidão para que reagisse.
— Aí estão Resser e Idaho.
Uma luz cegante feriu seus olhos como puas de gelo luminosas, e levantou a mão para protegê-los do brilho.
— Peguem-nos!
Duncan e Resser, desorientados e surpreendidos, tropeçaram quando se voltaram para lutar. Um grupo de guerreiros irreconhecíveis vestidos de negro caiu sobre eles, providos de armas e paus. Duncan, que estava desarmado, apelou para as habilidades que Ginaz lhe ensinara e se defendeu lado a lado com seu amigo. A princípio se perguntou se se tratava de mais uma prova, uma última surpresa que os professores tinham preparado depois de tratar com atenção os estudantes com a celebração.
Então, uma espada lhe produziu uma leve ferida no ombro, e não se conteve mais. Resser gritou, não de dor mas de ira. Duncan girou sobre si mesmo com mãos e pés. Ouviu que um braço se quebrava e sentiu que uma de suas unhas rasgava uma garganta.
Mas os inimigos lhe golpearam a cabeça e os ombros com varas atordoantes. Um atacante lhe golpeou a nuca com um pau. Resser caiu ao chão com um grunhido, e quatro homens se jogaram sobre ele.
Duncan tentou repelir seus atacantes para ajudar seu amigo, mas lhe alcançaram as têmporas com os varas atordoantes. Uma negrume absoluto inundou sua mente.
Quando recuperou a consciência, preso e amordaçado, Duncan viu uma barco perto da borda. Mais longe, sem luzes de navegação, o casco em sombras de uma embarcação muito maior balançava na maré. Seus captores o jogaram sem cerimônias a bordo do barco. A forma imóvel de Hiih Resser caiu a seu lado.
— Não tente se soltar desses nós de fio shiga, se não quiser perder os braços — grunhiu uma voz profunda em seu ouvido. Sentiu que a fibra mordia sua pele.
Duncan apertou os dentes, e tentou rasgar a mordaça. Viu poças de sangue na praia, arma quebradas e abandonadas na maré. Os atacantes subiram as formas envoltas de onze cadáveres a bordo do barco. Resser e ele tinham lutado bem, portanto, como verdadeiros mestres. Possivelmente não eram os únicos cativos.
Os homens levaram Duncan aos trancos até uma abarrotada e fedorenta coberta inferior, onde tropeçou com outros homens jogados sobre as pranchas, alguns companheiros de classe. Na escuridão, viu medo e raiva em seus olhos. Muitos estavam arroxeados, e as piores feridas estavam enfaixadas com trapos.
Resser despertou a seu lado com um leve gemido. A julgar pelo brilho de seus olhos, Duncan compreendeu que o ruivo também tinha analisado a situação. Como se pensassem o mesmo, rolaram no fundo do barco, costas contra costas. Com dedos inchados manipularam os nós que prendiam o outro, para tentar se soltar. Um dos homens amaldiçoou e lhes separou com um chute.
Na parte dianteira do barco, os homens falavam em voz baixa com forte sotaque. Sotaque grumman. Resser continuou lutando com suas ligaduras, e um dos homens lhe deu outro chute. O motor foi ligado, um fraco ronronar, e a pequena embarcação sulcou as ondas.
O detestável navio escuro os esperava.
Com quanta facilidade a dor se transforma em ira, e a vingança se impõe à discussão.
Imperador PADISHAH HASSIK III
Lamento por Salusa Secundus
Em uma câmara de teto abobadado em sua residência de Arrakeen, Hasimir Fenring contemplava um quebra-cabeças complicado: uma holo-representação de formas geométricas, linhas, cones e esferas que se encaixavam e balançavam perfeitamente, mas só quando todos os eletropotenciais estavam separados por distâncias iguais.
Durante sua juventude se divertira com jogos similares na corte imperial de Kaitain. Fenring ganhava com freqüência. Naqueles anos tinha aprendido muito de política e poderes em conflito; de fato, tinha aprendido mais que Shaddam. E o príncipe herdeiro percebera.
“Hasimir, você é muito mais valioso para mim longe da corte imperial — havia dito Shaddam quando o tirou de cena —. Quero-o em Arrakis, vigiando esses patifes Harkonnen para que não diminuam a cota de especiaria que recebo, ao menos até que os malditos tleilaxu terminem suas investigações.”
A brilhante luz de sol amarela se filtrava pelas janelas da cúpula, distorcida pelos escudos da casa que paravam o calor, ao mesmo tempo que protegiam a mansão de possíveis ataques das turfas. Fenring não suportava as temperaturas elevadas de Arrakis.
Durante dezoito anos, Fenring tinha construído sua base de poder em Arrakis. Na residência vivia com todas as comodidades e prazeres que podia extrair daquela terrina de pó. Sentia-se bastante satisfeito.
Colocou uma vara cintilante sobre um tetraedro e ajustou a peça na posição correta.
Willowbrook, o chefe da sua guarda, escolheu aquele momento para entrar e pigarrear, o que quebrou a concentração de Fenring.
— O mercador de água Rondo Tuek solicita audiência, meu senhor conde.
O conde, aborrecido, desconectou o quebra-cabeças antes que as diversas peças caíssem sobre a mesa.
— O que ele quer, hummm?
— “Assuntos pessoais”, ele disse. Mas acrescentou que era importante.
Fenring tamborilou com seus longos dedos sobre a mesa, no lugar onde antes tinha brilhado o quebra-cabeças. O mercador de água nunca solicitara uma audiência particular. Para que Tuek viera? Deve querer algo.
Ou sabe de algo.
O mercador assistia a todo tipo de banquetes e reuniões sociais. Como sabia onde residia o poder em Arrakis, proporcionava à mansão de Fenring extravagantes quantidades de água, mais di que os Harkonnen recebiam em Carthag.
— Hummm, despertou minha curiosidade. Faça-o entrar, e procure impedir que nos incomodem durante quinze minutos. — O conde umedeceu os lábios —. Hummm, depois decidirei se ele deve ser dispensado.
Momentos depois, Tuek entrou na câmara com passo vivo, oscilando os braços enquanto andava. Ajeitou seu cabelo cinza, e depois fez uma reverência. Parecia cansado depois de subir tantos degraus. Fenring sorriu, pois aprovava a decisão de Willowbrook de obrigá-lo a subir a pé em vez de lhe oferecer o elevador privado que o teria conduzido até esse nível.
Fenring continuou onde estava, mas não indicou a seu visitante que se sentasse. O mercado de água usava seu manto prateado oficial, com um pesado colar de platina esculpido com areia, sem dúvida uma tentativa desajeitada de arte típica de Arrakis.
— Têm algo para mim? — perguntou Fenring ao mesmo tempo que dilatava as aletas do nariz —. Ou deseja algo de mim, hummm?
— Posso lhe dar um nome, conde Fenring — disse Tuek —. Quanto ao que desejo em troca... — deu de ombros —. Espero que me pague o que considerar justo.
— Desde que nossas expectativas estejam em proporção. Qual é esse nome... e por que deveria me interessar?
Tuek se inclinou para frente como uma árvore a ponto de cair.
— É um nome que não ouviu falar em anos. Suspeito que o considerará interessante. Sei que o imperador também.
Fenring esperou com impaciência. Tuek continuou.
— O homem procura não chamar a atenção em Arrakis, embora faça o possível por perturbar suas atividades. Deseja vingar-se de toda a Casa Imperial, embora sua disputa tenha sido com Elrood IX.
— Oh, todos tinha disputas com Elrood — disse Fenring —. Era um abutre odioso. Quem é este homem?
— Dominic Vernius — respondeu Tuek.
Fenring se levantou de sua cadeira, com os olhos arregalados.
— O conde de IX? Acreditava que tinha morrido.
— Seus caçadores de recompensas e Sardaukar nunca o pegaram. Esteve escondido aqui, em Arrakis, com alguns contrabandistas. Faço pequenos negócios com ele de vez em quando.
Fenring bufou.
— Não me informou imediatamente? Desde quando sabe?
— Meu senhor Fenring — disse Tuek —, Elrood assinou os documentos contra a Casa renegada, e está morto a muitos anos. Em minha opinião, Dominic parecia inofensivo. Já perdeu tudo... e outros problemas exigiam minha atenção. — O mercador de água respirou fundo —. Agora, entretanto, a situação mudou. Considero meu dever informá-lo, porque sei que é o braço direito do imperador.
— E o que mudou, hummm?
As engrenagens da mente de Fenring tinham começado a girar. A Casa Vernius tinha desaparecido muito tempo antes. Os Sardaukar tinham assassinado lady Shando. Exilados em Caladan, os filhos de Vernius não eram considerados nenhuma ameaça.
Mas um Dominic Vernius furioso e vingativo podia causar desastres, sobretudo tão perto das areias ricas em especiaria. Fenring devia refletir.
— O conde Vernius solicitou um transporte pesado. Parecia... muito transtornado, e pode ser que planeje algum ataque. Em minha opinião, isto poderia significar um plano para assassinar o imperador. Por isso vim aqui vê-lo.
Fenring arqueou as sobrancelhas e sua testa se enrugou.
— Porque pensa que lhe pagaria mais que a soma de todos os subornos de Dominic?
Tuek estendeu as mãos e respondeu com um sorriso de indiferença, mas não negou as acusações. Fenring sentiu respeito por ele. Ao menos, agora os motivos estavam claros.
Passou um dedo por seus finos lábios, enquanto continuava meditando.
— Muito bem, Tuek. Me digam onde se encontra o esconderijo do barão renegado. Detalhe explícitos, por favor. E antes de ir, passe por minha tesouraria. Faça uma lista de tudo o que quiser, todos os desejos ou recompensas que possa imaginar, e eu escolherei. Concederei algo equivalente ao valor de sua informação.
Tuek fez uma reverência.
— Obrigado, conde Fenring. É um prazer servi-lo.
Depois de lhe dar os detalhes que conhecia sobre a base antártica dos contrabandistas, Tuek retrocedeu para a porta, exatamente quando Willowbrook voltava a entrar, completado o prazo de quinze minutos.
— Willowbrook, leve meu amigo às salas do tesouro. Sabe o que tem que fazer, hummm? Deixe-me em paz durante o resto da tarde. Tenho que pensar muito.
Depois que os homens saíram e a porta da habitação se fechou, Fenring passeou de um lado para outro, cantarolando para si. Sorria algumas vezes e em outras franzia o sobrecenho. Por fim, voltou a ligar o quebra-cabeças. Ajudaria a relaxar e concentrar sua mente.
Fenring adorava as maquinações, as conspirações. Dominic Vernius era um adversário inteligente e pletórico de recursos. Tinha se esquivado da detecção imperial durante anos, e Fenring pensava que seria muito satisfatório deixar que o conde renegado tivesse parte ativa em sua própria destruição.
O conde Fenring manteria os olhos abertos, estenderia a teia, mas deixaria que Vernius desse o próximo passo. Assim que o renegado tivesse seus planos prontos, Fenring interviria.
Seria um prazer dar corda suficiente ao nobre fugitivo para que se enforcasse...
O Paraíso a minha direita, o Inferno a minha esquerda, e atrás o Anjo da Morte.
Adivinhação fremen
Fiel a sua palavra, o mercador de água conseguiu um transportador sem registro para Dominic Vernius. Lingar Bewt o pilotou desde Carthag até a instalação antártica, e entregou o cartão de controle da nave com um tímido sorriso. Dominic, acompanhado de seu lugar-tenente Johdam, voou com a nave até o campo de aterrissagem secreto do precipício. O antigo conde de IX guardou silêncio durante a maior parte da viagem.
O transportador era velho e emitiu estranhos ruídos quando atravessaram a atmosfera. Johdam amaldiçoou-o e deu uma palmada sobre os painéis de controle.
— Maldita porcaria. Com certeza não funcionará por mais de um ano, Dom. É sucata.
Dominic lhe dirigiu um olhar distante.
— Será suficiente, Johdam.
Anos antes, estava ao lado de Johdam quando uma chama lhe queimou a face. Depois, o veterano tinha salvado a vida de Dominic durante o primeiro ataque abortado contra IX. A lealdade de Johdam nunca fraquejaria, mas tinha chegado o momento que Dominic lhe devolver a liberdade.
Quando Johdam avermelhou de ira, a malha da cicatriz adquiriu um tom pálido e cerúleo.
— Sabe quantos Solaris Tuek nos cobrou por este lixo? Se tivéssemos um equipamento como este em Ecaz, os rebeldes teriam nos vencido a pedradas.
Tinham quebrado juntos a lei imperial durante muitos anos, mas Dominic tinha que fazer o resto sozinho. Sentia-se estranhamente satisfeito com a decisão que tomara, e falou com voz serena e segura.
— Rondo Tuek sabe que não lhe pagaremos mais os subornos habituais. Quer ganhar o máximo possível.
— Mas está zombando de nós, Dominic!
— Escute. — Aproximou-se mais de seu lugar-tenente. O transporte vibrou quando se preparou para aterrissar —. Não importa. Nada importa. Tenho o suficiente... para fazer o que devo fazer.
O suor molhava a testa de Johdam quando a nave se deteve no fundo da fissura. O lugar-tenente baixou a rampa de aterrissagem com movimentos tensos e espasmódicos. Dominic percebeu insegurança e impotência no rosto do homem. Sabia que Johdam não só estava furioso pelo que o mercador de água tinha feito, mas também pelo que Dominic Vernius pensava em fazer.
Dominic desejava libertar IX e seu povo, fazer algo positivo para compensar todas as maldades cometidas pelos conquistadores tleilaxu e os invasores Sardaukar. Mas não podia fazer isso. Agora não.
Só possuía a capacidade de destruir.
O antigo embaixador ixiano Cammar Pilru tinha dirigido repetidas súplicas ao Landsraad, mas se transformara em uma piada tediosa. Nem sequer os esforços de Rhombur (realizados com o apoio secreto dos Atreides) tinham servido de nada. Preciso destruir a raiz do problema.
Dominic Vernius, antigo conde de IX, enviaria uma mensagem que o Império não esqueceria.
Depois de tomar sua decisão, Dominic guiara seus homens até as profundezas da fortaleza e aberto a câmara blindada. Ao contemplar os artefatos atômicos acumulados, os contrabandistas ficaram petrificados. Todos tinham temido este dia. Tinham servido sob as ordens do conde renegado por tempo suficiente para não necessitar de explicações detalhadas.
— Primeiro irei a Caladan e depois a Kaitain, sozinho — Dominic anunciara —. Escrevi uma mensagem para meus filhos, e quero vê-los uma vez mais. Passou muito tempo, e preciso fazer isto. — Olhou para os contrabandistas de um em um —. São livres para fazer o que desejarem. Sugiro que liquidem nossas reservas e abandonem esta base. Voltem com Gurney Halleck para Salusa, ou retornem para suas famílias. Troquem de nome, apaguem tudo rastro de sua passagem por aqui. Se eu triunfar, nosso bando não terá motivos para existir.
— E todo o Landsraad pedirá aos gritos nosso sangue — grunhiu Johdam.
Asuyo tentou dissuadir Dominic, utilizando um tom militar, um oficial raciocinando com seu comandante, mas o conde não quis escutar. Não tinha nada a perder e estava ansioso por vingança. Talvez se aniquilasse o último dos Corrino, seu fantasma e o de Shando poderiam descansar em paz.
— Carreguem estas armas a bordo do transportador — disse —. Eu mesmo o pilotarei. Um Cruzeiro da Corporação chega dentro de dois dias.
Olhou para seus homens, inexpressivo.
Alguns pareciam emocionados. Havia lágrimas em seus olhos, mas sabiam que era inútil discutir com o homem que os guiara em inúmeras batalhas, o homem que em outro tempo dirigira as indústrias de IX.
Sem brincadeiras nem conversa, os homens começaram a carregar as armas atômicas lentamente, pois temiam o momento de finalizar a tarefa.
Dominic observou os progressos durante todo o dia, sem comer nem beber. Ogivas de combate fechadas em contêineres metálicos foram colocadas sobre plataformas e transportadas por túneis até o campo de aterrissagem da fissura.
Dominic imaginava que via Rhombur e falava com ele sobre liderança. Queria conhecer as aspirações de Kailea. Seria maravilhoso voltar a vê-los. Tentou imaginar o aspecto dos seus filhos, seus rostos, quão altos eram. Tinham família própria, seria avô? Tinham passado mais de vinte anos desde que os vira pela última vez, depois da queda de IX.
Seria perigoso, mas Dominic tinha que arriscar-se. Eles queriam que o fizesse. Tomaria todas as precauções possíveis. Sabia como seria difícil que do ponto de vista emocional, e prometeu para si mesmo que seria forte. Se Rhombur descobrisse o que tramava (devia contar a seu filho?), o príncipe desejaria acompanhá-lo e combater em nome de IX. Qual seria a reação de Kailea? Tentaria dissuadir seu irmão de que o acompanhasse? Talvez.
Dominic decidiu que seria melhor não revelar seus planos a seus filhos, porque poderia lhes causar problemas. O melhor seria não dizer nada.
Havia outro filho, que também desejava localizar. Sua amada Shando tinha dado a luz um filho antes de casar-se com Dominic. O menino, gerado em segredo quando era concubina no palácio imperial, era de Elrood, mas o tinham tirado pouco depois de nascer. Em sua posição, Shando não pudera conservar seu filho, e apesar de seus persistentes pedidos de informação nunca descobriram o que tinha acontecera com ele. Tinha desaparecido.
Asuyo e Johdam, incapazes de presenciar os preparativos, ocuparam-se de dividir os tesouros e provisões entre os homens. Asuyo se despojou em público de suas medalhas e insígnias, que jogou no chão. Todos deveríamos abandonar a base imediatamente e dispersar pelo Império.
Johdam fazia o inventário da especiaria acumulada, e com dois homens conduziu uma expedição até as instalações do mercador de água, com a intenção de transformar a mercadoria em dinheiro, que utilizariam para comprar passagens, identidades e lares.
Nas últimas horas Dominic esvaziou seus aposentos, abandonou tesouros inúteis, conservou muito poucas coisas. Os holo-retratos de Shando e as lembranças de seus filhos significavam mais para ele que qualquer riqueza. Ele os devolveria a Rhombur e Kailea, para que tivessem uma lembrança de seus pais.
Dominic cheirou a fria solidão que tinha sido seu lar durante tantos anos e se fixou em detalhes que não tinha captado desde que construíra a fortaleza. Estudou rachaduras nas paredes, pontos amassados do chão e do teto... mas por dentro só sentiu fracasso e vazio. Só conhecia uma maneira de enchê-lo: com sangue. Os Corrino pagariam.
Depois, seus filhos e o povo de IX sentiriam orgulho dele.
Quando só restavam três ogivas de combate e um queimapedras para carregar, Dominic saiu para o pálido sol antártico, uma fatia de luz que penetrava na fissura. Tinha planejado cada passo de seu ataque à capital imperial. Seria uma surpresa absoluta. Shaddam não teria tempo de esconder-se debaixo do Trono do Leão Dourado. Dominic não pronunciaria discursos grandiosos e eloquentes, não se regozijaria do seu triunfo. Ninguém saberia de sua chegada. Até o final.
Elrood IX já tinha morrido, e o novo imperador Padishah só tinha uma esposa Bene Gesserit e quatro filhas pequenas. Não seria difícil exterminar à estirpe Corrino. Dominic Vernius sacrificaria sua vida para destruir a Casa Imperial que tinha governado durante milhares de anos, desde a batalha de Corrin, e para ele seria um prazer.
Respirou fundo. Voltou a cabeça, olhou para as alturas da fissura e viu que a lançadeira de Johdam aterrissava, de volta da fábrica de água de Tuek. Ignorava quanto tempo ficara imóvel como uma estátua, enquanto seus homens se moviam ao seu redor.
Uma voz o tirou de sua concentração. Johdam corria para ele com o rosto congestionado.
— Fomos traídos, Dom! Fui até as instalações do mercador de água e as abandonaram. Todos os trabalhadores se foram. A fábrica está fechada. Partiram a toda pressa.
— Não querem estar nas cercanias, senhor — acrescentou Asuyo, ofegante —, porque sabem que algo vai acontecer.
Seu porte tinha mudado. Inclusive sem medalhas, Asuyo parecia outra vez um oficial do exército, preparado para enfrentar um combate sangrento.
Alguns contrabandistas gritaram de raiva. A expressão de Dominic se tornou impenetrável e sombria. Deveria ter imaginado. Depois de tantos anos de colaboração e assistência, não podia confiar em Rondo Tuek.
— Recolham o que puderem. Vão para Arsunt, Carthag ou Arrakeen, mas partam antes que termine o dia. Troquem de identidade. — Dominic apontou para o velho transportador —. Quero carregar as últimas ogivas e decolar. Não penso em renunciar minha missão. Meus filhos estão me esperando.
Menos de uma hora depois, durante os preparativos finais de evacuação e partida, chegaram naves militares, todo um esquadrão Sardaukar em tópteros de ataque, em vôo rasante. Lançaram bombas de choque que racharam as paredes geladas. Grossos raios laser reduziram os penhascos a pó e vapor, liberaram gelo e lançaram rochas ao ar.
As naves Sardaukar mergulharam como peixes predadores no abismo. Lançaram mais explosivos e destruíram quatro naves de transporte estacionadas sobre o cascalho solto.
Asuyo correu para o tóptero mais próximo e saltou dentro. Ligou os motores, como se já confiasse em receber outra medalha de coragem. Quando subiu, as torres de armamento se acenderam. Asuyo amaldiçoou pelo comunicador a traição de Tuek, e também dos Sardaukar. Antes de que pudesse fazer um só disparo, as naves imperiais o volatilizaram no céu.
Transportes de tropas aterrissaram e homens armados saíram como insetos enlouquecidos, armados com facas e pistolas.
Os Sardaukar transformaram em escória os tanques dos motores. As armas atômicas ficaram presas dentro da nave. Agora, o conde renegado nunca poderia decolar, nem chegar a Kaitain. Ao ver o enxame de tropas imperiais, Dominic compreendeu que nem ele nem seu bando de contrabandistas poderiam fugir.
Johdam rugiu como um comandante militar e conduziu sua última carga. O homem correu sem se proteger, disparando contra os Sardaukar. Os homens do imperador, utilizando facas ou as mãos nuas, aniquilavam todos os contrabandistas que encontravam. Para eles, esta atividade era como um treinamento, e parecia que o faziam por puro prazer.
Johdam retrocedeu com os poucos sobreviventes até os túneis, onde se protegeram e defenderam. Em um déjà vu aterrador da rebelião ecazi, Dominic viu que um Sardaukar vaporizava a cabeça de Johdam, como tinha acontecido com seu irmão.
Dominic só contava com uma oportunidade. Não seria a vitória que tinha sonhado, e Rhombur e Kailea nunca saberiam, mas frente a alternativa do fracasso total se decidiu por outra medida desesperada. De qualquer modo, seus homens e ele iriam morrer.
Por honra, queria lutar ao lado de seus homens, combater até a morte com cada um deles, no que, ao final, seria um gesto inútil. Eles sabiam, e ele também. Os Sardaukar eram representantes do imperador, o que proporcionava a Dominic Vernius a oportunidade de dar um simbólico golpe mortal. Por IX, por seus filhos, por ele.
Quando o fogo concentrado começou a derrubar as paredes do precipício, Dominic voltou para a base. Alguns dos seus homens seguiram-no, com a confiança de que os conduziria a um refúgio. Silencioso e sombrio, não lhes assegurou nada.
Os Sardaukar entraram na instalação e avançaram em formação de ataque pelos passadiços, abatendo tudo o que cruzava seu caminho. Não era necessário fazer prisioneiros para interrogar.
Dominic retrocedeu até os corredores interiores, para a câmara blindada. Era um corredor sem saída. Os homens aterrorizados que o seguiam compreenderam suas intenções.
— Nós os conteremos enquanto pudermos, Dom — prometeu um homem. Seu companheiro e ele tomaram posições em ambos os lados do corredor, com suas quase inúteis arma preparadas —. Daremos o tempo suficiente.
Dominic se deteve por um momento.
— Obrigado. Não falharei.
— Nunca o fez, senhor. Todos conhecíamos os riscos quando nos unimos a você.
Chegou à porta aberta da câmara justo quando uma forte explosão soava atrás dele. As paredes caíram, seus homens e ele ficaram presos. Mas tampouco tinha intenção de ir a parte alguma.
Os Sardaukar atravessariam a barreira em poucos minutos. Tinham farejado o sangue de Dominic Vernius e não parariam até apanhá-lo.
Permitiu-se um sorriso sem alegria. Os homens de Shaddam teriam uma surpresa.
Dominic utilizou a fechadura de palma para fechar as portas da câmara, apesar de ver a barricada interior ardendo. As paredes afogaram os sons do exterior.
Dominic se voltou e olhou para os restos do seu arsenal atômico. Escolheu um queima-pedras, uma arma pequena cuja potência podia ser calibrada para destruir todo um planeta, ou só arrasar uma zona determinada.
Os Sardaukar começaram a golpear a pesada porta, enquanto tirava o queima-pedras do seu estojo e estudava os controles. Nunca pensou que conheceria o funcionamento daquelas armas. Eram engenhos cataclísmicos que nunca deveriam ser utilizados, cuja mera existência deveria bastar para desencorajar qualquer agressão. Segundo a Grande Convenção, o uso de armas atômicas reuniria as forças militares combinadas do Landsraad para destruir a família atacante.
Os homens do corredor já estavam mortos. Dominic não tinha nada a perder.
Preparou o mecanismo ativador do queima-pedras para que só vaporizasse as cercanias da base. Não era necessário aniquilar todos os inocentes de Arrakis.
Isso era próprio dos Corrino.
Sentia-se como um antigo capitão de navio que afundava com sua embarcação. Dominic só lamentava uma coisa: que não tivesse a oportunidade de despedir-se de Rhombur e Kailea, de lhes dizer quanto os amava. Teriam que seguir adiante sem ele.
Com os olhos nublados pelas lágrimas, pensou em ver de novo uma imagem tremula de Shando, seu fantasma... ou talvez fosse só seu desejo. A dama moveu a boca, mas Dominic não soube se o estava repreendendo por sua imprudência ou estava dando as boas-vindas.
Os Sardaukar abriram caminho através da parede de gelo, desinteressando-se pela porta. Quando entraram na câmara, satisfeitos e vitoriosos, Dominic não disparou sobre eles. Limitou-se a olhar para o tempo que restava no queima-pedras.
Os Sardaukar também viram.
Depois tudo ficou vermelho vivo.
Se Deus desejar que pereça, consegue guiar seus passos até o lugar de seu falecimento.
Cântico do Shariat.
Apesar de todos os atentados que C'tair Pilru cometera durante seus vinte anos de guerrilheiro em IX, nunca se atrevera a disfarçar-se de Mestre Tleilaxu. Até agora.
Só e desesperado, não lhe ocorreu outra coisa. Miral Alechem tinha desaparecido. Os outros rebeldes estavam mortos, e tinha perdido todo contato com os apoios exteriores, os contrabandistas, os oficiais de transporte ansiosos por aceitar subornos. As jovens continuavam a desaparecer, e os tleilaxu agiam com absoluta impunidade.
Odiava todos eles.
C'tair esperou em um corredor deserto dos níveis administrativos e matou o Mestre mais alto que pôde encontrar. Preferia não recorrer ao assassinato para conseguir seus objetivos, mas não se incomodou com isso. Algumas ações eram necessárias.
Comparados com o sangue que manchava as mãos dos tleilaxu, seu coração e sua consciência estavam limpos.
Roubou as roupas e os cartões de identidade do homem, e se preparou para descobrir o segredo do pavilhão de investigações dos Bene Tleilax. Por que IX era tão importante que o imperador enviava seus Sardaukar para dar apoio aos invasores? Para onde tinham levado todas as mulheres cativas? Tinha que ser algo mais que uma questão política, mais que a mesquinha vingança do pai de Shaddam contra o conde Vernius.
A resposta devia estar no laboratório de alta segurança.
Miral suspeitava há muito tempo que se tratava de um projeto biológico ilegal, com apoio secreto imperial, talvez algo que violasse as normas da Jihad Butleriana. Por que, se não fosse isso, os Corrino arriscavam tanto durante tanto tempo? Por que tinham investido tanto no planeta conquistado, ao mesmo tempo que os lucros ixianos diminuíam?
Decidido a descobrir as respostas, vestiu o hábito do Mestre tleilaxu assassinado. Depois jogou o cadáver nos poços que conduziam ao núcleo fundido do planeta, onde se eliminava o lixo.
Em um armazém secreto aplicou produtos químicos em seu rosto e mãos para tornar sua pele mais pálida, e outras substâncias no rosto para adotar o tom cinzento e a aparência enrugada de um Mestre tleilaxu. Usava sandálias de sola fina para diminuir a estatura, e caminhava um pouco curvado. Não era um homem grande, e o fato de os tleilaxu não serem muito observadores isso o ajudava. C'tair precisava ter muito cuidado com os Sardaukar.
Consultou seus arquivos, aprendeu de cor as contra-senhas e ordens que lhe tinham gritado durante anos. Seus cartões de identidade e os perturbadores de sinais deveriam lhe bastar para superar qualquer exame. Mesmo ali.
Adotou um ar altivo para completar o disfarce, saiu de sua câmara oculta e entrou na gruta maior. Subiu a bordo de um transporte. Depois de passar seu cartão pelo exploratório da porta, teclou as coordenadas do pavilhão de investigações.
A bolha se fechou e o separou do resto do transporte. O veículo cruzou o vazio sobre os caminhos entrecruzados dos módulos de vigilância. Nenhuma câmara se voltou para ele. A bolha de transporte reconheceu seu direito a viajar até o complexo do laboratório. Não soaram alarmes. Ninguém lhe deu atenção.
Abaixo, os operários se dedicavam a suas tarefas, vigiados por um número de Sardaukar cada vez mais elevado. Não se incomodavam em observar os transportes que atravessavam o céu da gruta.
C'tair passou por sucessivas portas guardadas e campos de segurança, e por fim entrou na labiríntica massa industrial. As janelas estavam fechadas, uma luz alaranjada brilhava nos corredores. O ar era quente e úmido, com um leve cheiro de carne podre e resíduos humanos.
Continuou andando e procurou dissimular o fato de que estava desorientado e inseguro a respeito de seu destino. C'tair ignorava onde se encontravam as respostas, mas não se atreveu a vacilar ou aparentar confusão. Não queria chamar a atenção de ninguém.
Tleilaxu cobertos com seus hábitos foram de habitação em habitação, absortos em seu trabalho. Mantinham o capuz, e C'tair os imitou, contente pela camuflagem. Agarrou uma folha de cristal riduliano, escrita em um código estranho que não pôde decifrar, e fingiu estudá-los.
Escolhia corredores aleatoriamente, mudava de rota cada vez que ouvia gente aproximar-se. Vários homens de pouca estatura cruzaram com ele, falando com veemência em seu idioma tleilaxu, ao mesmo tempo que gesticulavam com suas mãos de dedos longos. Não lhe deram atenção.
Localizou os laboratórios biológicos, as instalações de pesquisa com mesas de plaz e cromo e exploratórios cirúrgicos, visíveis através de portas abertas que pareciam protegidas por aparelhos de detecção especiais. Suado e atemorizado, seguiu os corredores principais que conduziam ao coração do pavilhão de pesquisas.
Por fim, C'tair descobriu um nível mais elevado, uma galeria de observação com janelas. O corredor que corria sob seus pés estava deserto. O ar tinha um aroma metálico, de produtos químicos e desinfetantes, um ambiente esterilizado.
E um tênue mas indubitável aroma de canela.
Olhou pela janela para a enorme galeria central do complexo do laboratório. A imensa câmara era tão grande como um hangar de naves espaciais, com mesas e contêineres que pareciam ataúdes... fila após fila de “espécimes”. Contemplou horrorizado as tubulações e tubos de ensaio, todos os corpos. Todas as mulheres.
Mesmo sabendo como os tleilaxu eram maus, nunca imaginara tal pesadelo. A surpresa secou suas lágrimas, que se transformaram em ácido urticante. Abriu e fechou a boca, mas não pôde formar palavras. Sentia vontade de vomitar.
No gigantesco complexo viu por fim o que os tleilaxu estavam fazendo com as mulheres de IX. E uma delas, mal reconhecível, era Miral Alechem.
Afastou-se da janela, enojado. Tinha que escapar. O peso do que tinha visto ameaçava esmagá-lo. Era impossível, impossível, impossível! Tinha o estômago revirado, mas não ousou manifestar nenhuma fraqueza.
De repente, um guarda e dois pesquisadores tleilaxu apareceram por uma esquina e avançaram para ele. Um dos investigadores disse algo em seu idioma gutural. C'tair não respondeu. Afastou-se, cambaleante.
O guarda, alarmado, gritou com ele. C'tair se desviou por um corredor lateral. Ouviu um grito, e seu instinto de sobrevivência se impôs ao seu mal-estar. Depois de ter chegado tão longe, tinha que escapar. Nenhum forasteiro suspeitava do que acabava de ver com seus próprios olhos.
A verdade era muito pior do que imaginara.
C'tair, perplexo e desesperado, voltou para os níveis inferiores, em direção às redes de segurança externas. Atrás dele, vários guardas correram para as galerias de observação que acabava de abandonar, mas os tleilaxu ainda não tinham dado o alarme. Talvez não quisessem interromper a rotina diária, ou eram incapazes de acreditar que um escravo demente tivesse conseguido penetrar em sua zona de segurança mais restrita.
Tinham reconstruído a asa do pavilhão de pesquisa destruída com discos explosivos três anos antes, mas a rede de vias autoguiadas tinha sido transferida para um portal diferente. Correu nessa direção, com a esperança de encontrar um sistema de segurança mais leve.
Chamou uma bolha de transporte, entrou com a ajuda de seu cartão de identidade roubada e afastou brutalmente um guarda que tentou interrogá-lo. Depois se afastou da instalação secreta em direção ao complexo de trabalho mais próximo, onde poderia livrar-se do seu disfarce e misturar-se com os outros operários.
Ao fim de pouco tempo, uma estridente sirene soou atrás dele, mas então já tinha escapado do complexo e da polícia secreta tleilaxu. Só ele tinha uma pista do que os invasores estavam fazendo, o motivo da conquista de IX.
De qualquer modo, saber disso não o consolava. Jamais, desde o começo de sua luta solitária, havia se sentido tão desesperado.
A traição e o pensamento veloz derrotarão as normas rígidas. Por que deveríamos ter medo de aproveitar as oportunidades que se apresentam?
Visconde, HUNDRO MORITANI
Resposta aos requerimentos do tribunal do Landsraad.
Na coberta do navio misterioso, um gigante de olhos arregalados olhou para os cativos.
— Observe esses supostos mestres espadachins! — Riu com tanta força que perceberam seu hálito pútrido —. Adoentados e covardes, debilitados pelas normas. Contra algumas varas atordoantes e um punhado de soldados mau treinados, do que servem?
Duncan estava ao lado de Hiih Resser e outros quatro estudantes de Ginaz, feridos e contundidos. Tinham solto suas ligaduras de linho shiga, mas um pelotão de soldados armados até os dentes, uniformizados com as librés amarelas de Morítani, vigiavam-nos de perto. O céu nublado trouxe a noite uma hora antes do habitual.
A coberta do navio estava limpa, como uma sala de exercícios, embora escorregadia por causa da espuma do mar. Os alunos mantinham o equilíbrio, como se fosse mais um exercício, enquanto seus captores grumman se seguravam a velas e corrimões. Alguns pareciam enjoados. Entretanto, Duncan tinha vivido uma dúzia de anos em Caladan, e se sentia muito à vontade a bordo de um navio. Não viu nada que pudesse servir de arma aos prisioneiros.
O detestável navio atravessava os canais do arquipélago. Duncan se perguntou como os grumman tinham ousado cometer tamanha afronta, mas a Casa Moritani já tinha desprezado todas as normas do Império e lançado ataques traiçoeiros contra Ecaz. Era evidente que, depois de que a Escola de Ginaz tivesse expulso os estudantes de Grumman, sua ira explodira. Como era o único que restava, Hiih Resser sofreria um tratamento mais atroz que seus companheiros. Quando olhou para o rosto torcido e contundido do ruivo, Duncan compreendeu que Resser também sabia.
O homem gigantesco que se erguia a frente deles tinha uma barba presa em tranças que iam dos maçãs do rosto até o queixo, e cabelo escuro que caía sobre seus ombros largos. Jóias de fogo em forma de lágrima pendiam de suas orelhas. Tinha entrelaçadas em sua barba fios de um verde intenso parecidos com ramos pequenos. Nos extremos ardiam lentamente brasas que lançavam uma fumaça fedorenta, que rodeava seu rosto. Estava armado com duas diminutas pistolas maula, encaixadas em seu cinturão. Identificou-se como Grieu.
— Do que lhes serviu todo este treinamento? Embebedam-se, abrandam-se e deixam de ser super-homens. Fico feliz que meu filho se retirasse antes, sem perder mais tempo.
Outro jovem robusto com a blusa amarela moritani saiu dos camarotes. Duncan reconheceu Trin Kronos, quando parou ao lado do barbudo.
— Retornamos para ajudá-los a celebrar o fim de seu treinamento, e para ensiná-los que nem todo mundo necessita de oito anos para aprender a lutar.
— Vamos ver como combatem — disse Grieu —. Minha gente precisa praticar um pouco.
Os homens e mulheres moritani se moveram com agilidade felina. Usavam espadas, facas, lanças, arcos e até mesmo pistolas. Alguns estavam vestidos com uniformes de artes marciais, outros como mosqueteiros da Velha Terra ou piratas, como se zombassem dos costumes de Ginaz. Como brincadeira, jogaram duas espadas de madeira para os cativos. Resser se apoderou de uma, e Klaen, um estudante de Ghusuk aficionado à música, agarrou a outra. Eram brinquedos pouco adequados para enfrentar pistolas maula, pistolas de dardos e flechas.
A um sinal do hirsuto Grieu, Trin Kronos se plantou a frente dos estudantes de Ginaz e os olhou com ar depreciativo. Deteve-se em frente a Resser, depois a frente de Duncan e por fim continuou até o próximo estudante, Iss Opru, um nativo do-Dhanab. — Este será o primeiro. Como aquecimento.
Grieu emitiu um grunhido de aprovação. Kronos tirou Opru da fila com um tranco, e o empurrou até o centro da coberta. Os outros alunos ficaram tensos.
— Me dêem uma espada — disse Kronos sem se virar. Tinha os olhos cravados em Opru. Duncan viu que o estudante tinha adotado uma posição de combate perfeita, agachado e preparado para reagir. Os grumman acreditavam que tinham a vantagem do seu lado.
Assim que esgrimiu a espada, Trin Kronos provocou o cativo, agitou a ponta a frente de seu rosto e lhe cortou alguns cabelos com um golpe.
— O que vai fazer agora, espadachim? Eu tenho uma arma, e você não.
Opru nem sequer se encolheu.
— Eu sou uma arma.
Quando Kronos continuou a acossá-lo, Opru se agachou de repente sob a espada e golpeou o punho de Kronos com o canto da mão. O jovem convencido gritou e deixou cair a arma. Opru se apoderou do pomo antes que a arma tocasse o chão, rodou sobre a coberta e ficou em pé de um salto.
— Bravo — disse o gigante, enquanto Kronos uivava e massageava a mãi —. Filho, você tem que aprender. — Grieu afastou o jovem com um empurrão —. Afaste-se, para que não lhe façam mais mal.
Opru segurava sua espada, com os joelhos flexionados, pronto para lutar. Duncan ficou tenso, com Resser a seu lado, enquanto esperava para ver o desenlace do jogo. Outros cativos se prepararam para atacar.
Opru descreveu um círculo no centro da coberta. Erguia-se nas pontas dos pés, com a vista cravada no gigante barbudo.
— O que é bonito? — Grieu imitou seus movimentos para observá-lo melhor. Uma fumaça acre surgia das brasas de sua barba —. Observem sua postura perfeita, tirada de um livro de texto. Se tivessem ficado na escola, e agora se pareceriam com ele.
Trin Kronos extraiu uma pistola maula do cinturão de seu pai com o braço são.
— Por que preferir a forma ao resultado? — Apontou a pistola —. Eu prefiro ganhar.
E disparou.
Nesse instante os cativos compreenderam que seriam executados. Sem vacilar, antes que o corpo do Opru tocasse a coberta, os estudantes se lançaram à ofensiva com violência. Dois grumman morreram com o pescoço quebrado antes de perceber o que acontecera.
Resser rodou a sua direita, ao mesmo tempo um projétil ricocheteava na coberta e saía disparado para as ondas. Duncan se precipitou na direção oposta, enquanto os soldados moritani disparavam suas armas.
O grosso dos combatentes grumman se reuniu atrás do gigantesco Grieu, e depois rodearam os cativos restantes. Alguns se separaram do grupo para atacar os estudantes que se encontravam no centro, e depois retrocederam sob uma chuva de golpes e chutes.
O gigante assobiou em sinal de brincadeira.
— Isso é estilo.
Klaen, o estudante de Chusuk, correu com um grito estremecedor, e se precipitou sobre os dois homens mais próximos armados com arcos. Levantou a espada de madeira para desembaraçar-se das flechas, e depois deu um golpe de flanco que arrancou os olhos de um inimigo. O grumman desabou sobre a coberta gritando. Atrás de Klaen, um segundo estudante, Hiddi Aram de Balut, utilizou o nativo de Chusuk como escudo para repetir um exercício que tinham praticado um ano antes. Desta vez, Klaen soube que ia ser sacrificado.
Os dois homens providos de arcos dispararam várias vezes. Sete flechas se cravaram nos ombros, peito, estômago e pescoço de Klaen, mas seu impulso o empurrou para frente, e enquanto desabava Hiddi Aram saltou sobre seu camarada caído e se chocou contra o arqueiro mais próximo. Com uma velocidade vertiginosa, arrebatou o arco de mãos de seu atacante. Restava uma flecha no arco, e virou-se para cravá-la no pescoço do segundo arqueiro.
Atirou o arco vazio e agarrou o segundo antes que tocasse a coberta, mas o barbudo Grieu perfurou a testa do estudante de Balut com um projétil de sua segunda pistola maula.
Produziu-se um confuso tiroteio e Grieu gritou como um possesso:
— Não disparem uns nos outros, idiotas!
A ordem chegou muito tarde. Um grumman caiu com um projétil no peito.
Antes que Hiddi Aram parasse de se mover, Duncan se lançou para o estudante de Chusuk, arrancou uma flecha de seu corpo e se precipitou para o moritani mais próximo. O inimigo o atacou com uma espada larga, mas Duncan foi mais veloz e afundou a flecha ensangüentada sob o queixo do inimigo. Ouviu um movimento, agarrou o homem agonizante e o fez girar para que suas costas recebessem o impacto de três disparos.
Hiih Resser, armado só com sua espada de madeira, emitiu um grito aterrador e agitou a arma. Com seus potentes músculos golpeou a cabeça do grumman mais próximo, com tal força que lhe abriu o crânio, ao mesmo tempo que a folha de madeira se estilhaçava e partia. Quando o grumman desabou, Resser virou-se e afundou o extremo quebrado da espada de brinquedo no olho de outro atacante.
O outro estudante sobrevivente (Wod Sedir, sobrinho do rei de Niushe) fez voar pelos ares de um chute uma pistola maula fumegante. Seu inimigo a tinha disparado repetidas vezes, mas tinha errado. Wod Sedir lhe quebrou o pescoço com o calcanhar, apoderou-se da pistola e se voltou para os outros grumman, mas a pistola estava descarregada. Ao fim de poucos segundos várias pistolas de dardos o atingiram.
— Isso demonstra que a pistola sempre vence à espada — disse Grieu Kronos.
Transcorridos menos de trinta segundos, Duncan e Resser se encontraram lado a lado, encurralados no extremo do navio. Eram os únicos sobreviventes.
Os assassinos moritani se aproximaram deles, providos de um arsenal de armas. Vacilaram e olharam para seu líder à espera de ordens.
— Sabe nadar, Resser? — perguntou Duncan, enquanto jogava um olhar para as altas e escuras ondas.
— Mais que me afogar — disse o ruivo.
Viu que os homens sacavam suas pistolas de projéteis, sopesou a possibilidade de agarrar um inimigo e lançá-lo sobre a coberta, mas chegou à conclusão de que era impossível.
Os grumman apontaram de uma distância prudente. Duncan empurrou Resser sobre o corrimão e se lançou atrás dele. Ambos caíram ao mar enfurecido, longe de qualquer margem visível, no momento exato que começava o tiroteio. Os dois jovens mergulharam a grande profundidade e desapareceram.
Os atacantes correram em volta da amurada do navio e esquadrinharam o mar, mas não viram nada. A corrente do fundo devia ser terrível.
— Esses dois estão perdidos — disse Trin Kronos, carrancudo, enquanto massageava a mão.
— Sim — respondeu o barbudo Grieu —. Teremos que jogar os cadáveres dos outros onde possam ser encontrados.
Toda tecnologia é suspeita e tem que ser considerada potencialmente perigosa.
JlHAD BUTLERIANA,
Manual para nossos netos.
Quando a terrível noticia chegou à base dos contrabandistas em Salusa Secundus, Gurney Halleck passava o dia sozinho, na cidade-prisão destruída. Estava sentado sobre os restos de um antigo muro, enquanto tentava compor uma balada com seu baliset. Os tijolos que o rodeavam tinham se transformado em curvas vitrificadas depois da explosão atômica.
Cravou a vista em uma elevação e tentou imaginar o elegante edifício imperial que se elevou sobre ela. Sua rouca mas potente voz acompanhava os tom do baliset. Procurou obstinadamente por um tom menor.
As nuvens de cor doentia e o ar nebuloso o deixavam no estado de ânimo adequado. De fato, sua música melancólica devia-se muito ao clima, embora os homens ocultos na fortaleza subterrânea amaldiçoassem as tormentas caprichosas.
Aquele inferno era melhor que os poços de escravos de Giedi Prime.
Um ornitóptero cinza se aproximou do sul, um aparelho sem identificação que pertencia aos contrabandistas. Gurney olhou pela extremidade do olho quando aterrissou do outro lado das ruínas.
Concentrou-se nas imagens que desejava evocar em sua balada, a pompa e a cerimônia da corte real, os seres exóticos que tinham viajado até ali vindos de planetas longínquos, a elegância de seus objetos e maneiras. Tudo desaparecido. Esfregara a cicatriz da mandíbula. Ecos de tempos passados começaram a tingir as trevas perpétuas de Salusa com suas cores gloriosas.
Ouviu gritos longínquos e viu que um homem subia correndo o penhasco até ele. Era Bork Qazon, o cozinheiro, que agitava os braços e gritava. Manchas de molho cobriam seu avental.
— Gurney! Dominic morreu!
Pendurou o baliset no ombro, estupefato, e saltou para o chão. Gurney estremeceu quando Qazon lhe contou a trágica notícia que o tóptero havia trazido: Dominic Vernius e todos os seus camaradas tinham morrido em Arrakis, vítimas de um incidente atômico, ao que parecis quando eram atacados pelos Sardaukar.
Gurney não quis acreditar.
— Os Sardaukar... utilizaram armas atômicas?
Assim que a notícia chegasse a Kaitain, os Mensageiros Imperiais a espalhariam para satisfação de Shaddam. O imperador escreveria sua história falsa, transformaria Dominic em um criminoso odioso, fugitivo durante décadas.
O cozinheiro meneou a cabeça, boquiaberto, com os olhos avermelhados.
— Eu diria que Dominic o fez. Pensava utilizar o arsenal da família para um ataque suicida contra Kaitain.
— Isso é uma loucura. — Estava desesperado.
— Armas atômicas... contra os Sardaukar do imperador. — Gurney sacudiu a cabeça e compreendeu que era preciso tomar decisões —. Tenho a sensação de que isto não terminou, Qazon. Temos que abandonar este acampamento, e depressa. Temos que nos dispersar. Eles nos perseguirão para se vingar.
A notícia da morte de seu líder emocionou os homens. Assim como aquele planeta ferido jamais recuperaria sua glória, tampouco o fariam os restos do bando de contrabandistas. Os homens não poderiam continuar sem Dominic. O conde renegado era sua força motriz.
Quando escureceu, sentaram-se ao redor de uma mesa e discutiram sobre seus planos. Alguns sugeriram que Gurney Halleck fosse seu novo líder, agora que Dominic, Asuyo e Johdam tinham morrido.
— Continuar aqui é perigoso — disse Qazon —. Não sabemos o que os imperiais descobriram a respeito de nossas operações. E se fizeram prisioneiros e os interrogaram?
— Temos que fundar uma nova base para continuar nosso trabalho — disse outro homem.
— Que trabalho? — Perguntou um dos veteranos —. Nos unimos porque Dom nos chamou. Vivemos por ele. Não está mais entre nós.
Enquanto os contrabandistas discutiam, os pensamentos de Gurney iam para os filhos do líder caído, que viviam como hóspedes da Casa Atreides. Quando sorriu, notou uma dor residual na cicatriz. Afastou-a de sua mente e pensou na ironia: o duque Atreides também o resgatara do poço de escravos Harkonnen sem saber, ao encomendar um embarque de obsidiana azul no momento certo...
Tomou uma decisão.
— Não irei com vocês a uma base nova. Vou para Caladan. Penso em oferecer meus serviços ao duque Leto Atreides, e me reunir com Rhombur e Kailea.
— Está louco, Halleck — disse Scien Traf, enquanto mordiscava uma lasca resinosa —. Dom insistiu em que nos mantivéssemos afastados de seus filhos, para não colocá-los em perigo.
— O perigo morreu com ele — disse Gurney —. Passaram-se vinte anos desde que a família foi declarada renegada. — Entreabriu seus olhos azuis —. Em função da rapidez com que o imperador deve reagir, verei os dois meninos antes que ouçam a versão deformada dos acontecimentos. Os herdeiros de Dominic têm que saber a verdade sobre o acontecido a seu pai, não o lixo que transmitirão os Mensageiros oficiais.
— Já não são crianças — disse Bork Qazon —. Rhombur tem mais de trinta anos.
— Sim — disse Pen Barlow. Deu uma profunda baforada em seu cachimbo e exalou fumaça escura —. Recordo quando eram pequenos, como animaizinhos que brincavam de correr pelo Grande Palácio.
Gurney se levantou e apoiou o baliset sobre o ombro.
— Irei para Caladan e explicarei tudo. — Cabeceou em direção a seus companheiros —. Alguns de vocês continuarão o negócio, não tenho dúvida. Fiquem com o resto dos equipamentos, com minha bênção... Não quero mais ser um contrabandista.
Quando chegou ao espaçoporto municipal de Caladan, Gurney Halleck levava apenas uma bolsa com algumas mudas, um montão de Solaris (sua parte dos lucros do bando de contrabandistas) e seu amado baliset. Também levava notícias e lembranças de Dominic Vernius, suficientes, confiava, para ganhar o acesso ao castelo ducal.
Durante a viagem tinha bebido muito e jogado nos cassinos do Cruzeiro, seduzido por aeromoças Wayku. Tinha conhecido uma atraente mulher de Poritrin, que tinha concluído que as canções e o bom humor de Gurney compensavam seu rosto sulcado de cicatrizes. Alojou-se com ele por vários dias, até que o Cruzeiro entrou na órbita de Caladan. Por fim, Gurney lhe deu um beijo de despedida e embarcou na lançadeira.
No frio e úmido Caladan gastou seu dinheiro rapidamente para tornar-se apresentável. Sem país nem família, nunca tivera motivos para economizar. “O dinheiro foi inventado para ser gasto”, dizia sempre. Seria um conceito estranho para seus pais.
Depois de atravessar uma série de pontos de segurança, Gurney se encontrou por fim no salão de recepções do castelo. Viu que um homem corpulento e uma bela jovem se aproximavam dele. Distinguiu uma semelhança com Dominic em suas feições.
— Vocês são Rhombur e Kailea Vernius?
— Sim.
O homem tinha cabelo loiro ondulado e um rosto largo.
— Os guardas disseram que têm notícias de nosso pai — interveio Kailea —. Onde ele esteve por todos estes anos? Por que não nos enviou nenhuma mensagem?
Gurney segurou seu baliset, para criar coragem.
— Ele foi assassinado em Arrakis, durante um ataque dos Sardaukar. Dominic era o chefe de uma base de contrabandistas nesse planeta, e de outra em Salusa Secundus.
Nervoso, pulsou uma corda sem querer, e depois outra.
Rhombur se jogou em uma cadeira e esteve a ponto de cair, mas recuperou o equilíbrio. Com a vista cravada à frente, sem deixar de piscar, estendeu a mão para segurar a de Kailea. Ela a apertou.
Gurney continuou.
— Eu trabalhava para seu pai e... e agora não tenho para onde ir. Pensei que devia vir vê-los e explicar onde esteve durante estas duas últimas décadas, o que fez... por que teve que manter-se afastado. Só pensava em protegê-los.
Lágrimas correram pelas faces de ambos os filhos. Depois do assassinato de sua mãe, acontecido anos antes, a notícia se amoldava a um roteiro muito familiar. Rhombur abriu a boca para dizer algo, mas as palavras não surgiram, e voltou a fechá-la.
— Minha habilidade com a espada é comparável a de qualquer homem da guarda da Casa Atreides — afirmou Gurney —. Vocês têm inimigos poderosos, mas não permitirei que lhes façam nenhum mal. É o que Dominic desejava.
— Faça o favor de ser mais concreto. — Outro homem apareceu por uma entrada lateral situada à direita de Gurney, alto e magro, de cabelo escuro e olhos cinzas. Vestia uma jaqueta militar negra com a insígnia de um falcão vermelho na lapela —. Queremos ouvir toda a história, por mais dolorosa que seja.
— Gurney Halleck, este é o duque Leto Atreides — disse Rhombur depois de secar as lágrimas —. Ele também conhecia meu pai.
Leto recebeu um vacilante aperto de mão do áspero visitante.
— Lamento ser portador de notícias tão terríveis — disse Gurney. Olhou para Rhombur e Kailea —. Recentemente, Dominic voltou a lIX, depois de receber espantosas notícias. E o que viu ali o horrorizou tanto que voltou transformado em um homem destroçado.
— Havia muitas formas de entrar — disse Rhombur —. Pontos de acesso de emergência que só a família Vernius conhecia. Eu também me lembro delas. — Voltou-se para Gurney —. O que ele tentava fazer?
— Pelo que sei, preparava-se para atacar Kaitain com as armas atômicas da família, mas os Sardaukar descobriram o plano e fizeram uma emboscada em nossa base. Dominic ativou um queima-pedras e destruiu a todos.
— Nosso pai esteve vivo por todo este tempo — disse Rhombur, e olhou para Leto. Seu olhar esquadrinhou as entradas arqueadas, os largos salões do castelo, como se esperasse ver Tessia —. Estava vivo, mas nunca nos procurou. Oxalá eu pudesse lutar a seu lado, ao menos uma vez. Oxalá tivesse estado com ele.
— Príncipe Rhombur, se é que posso chamá-lo assim, todos os que estavam com ele morreram.
O mesmo transporte que tinha trazido Gurney Halleck tinha levado também a uma Mensageiro oficial do arquiduque Armand Ecaz. A mulher tinha cabelo marrom muito curto, e vestia o respeitado uniforme da terceira idade com galões e dúzias de bolsos.
Chegou até o salão de banquetes onde se encontrava Leto, conversando com um criado que estava dando brilho às caras paredes de obsidiana azul. Graças a Gurney Halleck, Leto sabia agora que a obsidiana azul não procedia de Hagal, mas dos poços de escravos Harkonnen. Mesmo assim, Gurney lhe tinha pedido que não as retirasse.
Leto se voltou e saudou a Mensageira, mas a mulher procedeu com presteza a identificar-se e lhe entregou um cilindro selado, para depois esperar a que o duque o abrisse. Falou muito pouco.
Temendo mais más notícias, como sempre que chegava um Mensageiro, Thufir Hawat e Rhombur apareceram de portas opostas. Leto respondeu seus olhares de interrogação com o cilindro fechado.
O duque aproximou uma das pesadas poltronas da mesa de jantar, que arranhou o chão de pedra. Os trabalhadores continuaram dando brilho à parede de obsidiana. Leto suspirou, sentou-se na poltrona e abriu o cilindro. Seus olhos cinzas leram a mensagem, enquanto o príncipe e o Mentat aguardavam em silêncio.
Por fim, Leto olhou para o retrato do velho duque pendurado na parede, frente à cabeça dissecada do touro salusano que o matara na arena.
— Bem, aqui há matéria para refletir.
Não deu mais explicações, como se preferisse receber conselho do finado Paulus.
Rhombur se remexeu, nervoso.
— O que aconteceu, Leto?
Ainda tinha os olhos avermelhados.
O duque deixou o cilindro sobre a mesa e o agarrou antes que rolasse.
— A Casa Ecaz sugeriu oficialmente uma aliança matrimonial com os Atreides. O arquiduque Armand oferece a mão de sua segunda filha, Ilesa. — Bateu no cilindro com o dedo que usava o anel de selo ducal. A filha mais velha do arquiduque tinha sido assassinada pelos grumman de Moritani —. Também inclui uma lista das posses ecazi e um dote.
— Mas não há imagem da filha — disse Rhombur.
— Já a vi. Ilesa é bastante bonita.
Falava em tom distraído, como se tais detalhes não influíssem em sua decisão.
Dois servos deixaram de dar brilho aos móveis, estupefatos para ouvir a notícia, e depois voltaram para sua tarefa com energias renovadas.
Hawat franziu o sobrecenho.
— Não há dúvida de que as renovadas hostilidades também preocupam o duque. Uma aliança com os Atreides tornaria Ecaz menos vulnerável a uma agressão Moritani. O visconde pensaria duas vezes antes de enviar tropas grumman.
Rhombur meneou a cabeça.
— Er, eu disse que a simples intervenção do imperador nunca solucionaria o conflito entre essas duas Casas.
Leto tinha o olhar cravado na distância, enquanto sua cabeça girava.
— Ninguém disse o contrário, Rhombur. No momento, não obstante, acredito que os grumman estão mais irritados com a Escola de Ginaz. As últimas notícias que recebi dizem que a Escola provocou o visconde Moritani no Landsraad, quando o chamou de cão covarde.
A expressão de Hawat era grave.
— Meu duque, não deveríamos nos distanciar disto? A disputa se prolonga há anos. Quem sabe o que farão a seguir?
— Já fomos muito longe, Thufir, não só por nossa amizade com Ecaz, mas também com Ginaz. Não posso continuar neutro. Depois de ter examinado os informes sobre as atrocidades grumman, somei minha voz a um voto de censura do Landsraad. — Permitiu-se um sorriso. Além disso, naquele momento estava pensando em Duncan.
— Temos que estudar a oferta de matrimônio com muita cautela — insistiu o Mentat.
— Minha irmã não vai gostar disto — murmurou Rhombur. Leto suspirou.
— Faz anos que Kailea não gosta de nada. Sou um duque. Tenho que pensar no que mais convém à Casa Atreides.
Leto convidou Gurney Halleck para jantar com eles.
Pela tarde, durante horas, o fanfarrão refugiado tinha desafiado e trocado bravatas com vários dos melhores guerreiros Atreides, e tinha vencido a quase todos.
Agora, nas horas de repouso, Gurney demonstrou ser um grande contador de histórias, e relatou as façanhas de Dominic Vernius a seus ansiosos ouvintes. Estava sentado na longa mesa do salão de banquetes, entre a cabeça do touro salusano e o quadro do velho duque, vestido de matador.
Com voz sombria, o contrabandista falou de seu ódio visceral pelos Harkonnen. Voltou a falar do embarque de obsidiana azul, parte do qual adornava o salão, que tinha facilitado sua fuga dos poços de escravos.
Mais tarde, em outra demonstração de seu domínio da esgrima, Gurney utilizou uma espada do velho duque para lutar contra um adversário imaginário. Carecia de elegância, mas contava com considerável energia e notável precisão.
Leto assentiu para si mesmo e olhou para Thufir Hawat, que umedeceu os lábios em sinal de aprovação.
— Gurney Halleck — disse Leto —, se desejar ingressar no guarda da Casa Atreides, consideraria-o uma honra.
— Dependendo de uma profunda investigação de suas origens, é claro — acrescentou Hawat.
— Nosso perito em armamento, Duncan Idaho, está em uma escola de Ginaz, embora esperemos que retorne logo. Poderá ajudá-lo em algumas de suas tarefas.
— Está se preparando para ser um mestre espadachim? Não serei eu quem se intrometerá em seu trabalho. — Gurney sorriu. Estendeu uma mão para Leto —. Por minhas lembranças de Dominic, eu gostaria de servir aqui, junto aos filhos de Vernius.
Rhombur e Leto apertaram sua mão, e deram as boas-vindas a Gurney Halleck à Casa Atreides.
Os centros do poder tentam indevidamente aproveitar qualquer novo conhecimento para satisfazer seus desejos. Mas o conhecimento não pode ter desejos arraigados, nem no passado nem no futuro.
DMITRI HARKONNEN
Lições para meus filhos.
O barão Vladimir Harkonnen tinha dedicado toda sua vida à busca de novas experiências. Satisfazia-se em prazeres hedonistas (mantimentos saborosos, drogas exóticas, homossexualidade), em descobrir coisas que nunca tinha feito.
Mas um bebê na fortaleza Harkonnen... Como ia controlar isso?
Outras Casas do Landsraad adoravam as crianças. Uma geração antes, o conde Libam Richese se casara com uma filha imperial e gerado onze filhos. Onze! O barão escutara canções insípidas e sentimentais relatos que alimentavam uma falsa impressão da alegria que proporcionavam as risadas das crianças. Custava-lhe entender, mas por fidelidade a sua Casa, pelo futuro dos negócios Harkonnen, jurou fazer o impossível. Seria um modelo para o pequeno Feyd-Rautha.
O menino, que logo que contava um ano, confiava muito em sua habilidade para caminhar, atravessava as habitações dando tombos, corria muito antes de dominar seu sentido de equilíbrio, e era o teimoso bastante para continuar avançando mesmo que tropeçasse com algo. Feyd possuía uma curiosidade insaciável, investigava cada habitação, cada armário. Agarrava o primeiro objeto que encontrava e o metia na boca. O menino se assustava com facilidade e chorava sem parar.
Às vezes, o barão o esbofeteava e tentava obter uma resposta que não fossem gorjeios absurdos. Em vão.
Um dia, depois de tomar o café da manhã, levou a menino a um balcão elevado de uma torre alta da fortaleza. O pequeno Feyd viu o sol avermelhado, filtrado através de uma neblina produzida pela fumaça, que iluminava a abarrotada cidade industrial. Do outro lado das fronteiras de Harko City, povoados mineiros e agrícolas produziam o material bruto que fazia funcionar Giedi Prime, mas o povo continuava descontente, e o barão tinha que exercer um controle férreo, dar exemplo, impor a disciplina necessária.
Enquanto o barão deixava vagar seus pensamentos, esqueceu-se do menino. Feyd, com uma rapidez assombrosa, correu para a beira do balcão, e se inclinou entre os barrotes. O barão, indignado, precipitou-se, e conseguiu agarrar o menino antes que Feyd se inclinasse muito sobre o precipício.
Gritou com o bebê e o ergueu à altura de seus olhos.
— Como pode fazer essa estupidez, idiota? Não entende as conseqüências? Se cair ficará em pedaços!
Todo aquele sangue Harkonnen, cultivado com tanto esmero, desperdiçado...
Feyd-Rautha olhou para ele com olhos arregalados e emitiu um som grosseiro.
O barão levou a menino para dentro. Como medida de precaução, tirou um globo suspensor de seu cinturão e o prendeu às costas do bebê. Embora agora caminhasse com mais dificuldade, e sentisse a tensão em seus músculos degenerados e os membros pesados, ao menos tinha controlado Feyd. O menino, que flutuava ao meio metro do chão, parecia achar isso interessante.
— Venha comigo, Feyd — disse o barão —. Quero te mostrar os animais. Você vai gostar.
Feyd seguiu seu tio, que ofegava e resfolegava, por corredores e lances de escada descendentes, até chegar ao nível do circo. O menino ria enquanto flutuava. O barão o empurrava de vez em quando para que continuasse em movimento. Os braços e pernas de Feyd se agitavam no ar como se nadasse.
Na zona das jaulas que rodeava a arena, o barão Harkonnen puxou o menino por túneis baixos feitos de vime e argamassa, uma construção primitiva que dotava o lugar com a aparência de uma guarida. Recintos protegidos com barrotes continham palha podre e excrementos de animais criados e treinados para lutar contra as vítimas escolhidas pelo barão. Os rugidos dos animais torturados ressoavam nas paredes. Garras afiadas arranhavam o piso de pedra. Bestas enfurecidas se lançavam contra os barrotes.
O barão sorriu. Era bom manter a raia os predadores.
Era uma delícia contemplar as bestas. Com seus dentes, chifres e garras podiam destroçar um homem. De qualquer modo, os combates mais interessantes tinham lugar entre competidores humanos, soldados profissionais contra escravos desesperados aos quais se prometera a liberdade, embora nenhum a conseguisse. Valia a pena conservar a vida de qualquer escravo capaz de derrotar um assassino Harkonnen treinado, para que lutasse várias vezes.
Enquanto continuava avançando pelos túneis mal iluminados, o barão contemplou o rosto fascinado do pequeno Feyd. Viu nele todo um futuro de possibilidades, outro herdeiro da Casa Harkonnen que talvez superasse a seu irmão Rabban, o qual era malvado e cruel,as carecia da mente tortuosa que o barão preferia.
Em qualquer caso, seu sobrinho ainda era útil. De fato, Rabban tinha executado muitas tarefas brutais que desagradavam até mesmo o barão. Com muita freqüência, agia como uma massa de carne sem cérebro.
O estranho par se deteve ante uma jaula, onde um tigre Laça passeava de um lado a outro, com os olhos entreabertos e o nariz triangular dilatado, quando farejou carne tenra e sangue quente. Aquelas bestas ferozes eram as preferidas nos combates de gladiadores, fazia séculos. O tigre era uma massa de músculos, e cada fibra estava cheia de uma energia assassina. Seus tratadores o alimentavam, mas só para conservar sua força... afim de que o tigre se deleitasse com a carne rasgada de suas vítimas.
De repente, o animal se precipitou para os barrotes da jaula com as presas à mostra. Estendeu uma pata cheia de garras afiadas.
O barão se afastou, sobressaltado, e puxou Feyd. O menino, que oscilava sobre seu globo de suspensão, continuou flutuando até se chocar contra a parede, o que o surpreendeu ainda mais que a fúria do predador. Feyd uivou com tal energia que seu rosto avermelhou.
O barão segurou seu sobrinho pelos ombros.
— Calma, calma — disse em tom brusco mas tranqüilizador —. Não aconteceu nada. — Mas Feyd continuava gritando, o que enfureceu seu tio —. Já mandei se calar! Não há motivo para chorar.
O menino não pensava o mesmo.
O tigre rugiu e se lançou de novo contra os barrotes.
— Silêncio, eu disse! — O barão não sabia o que fazer. Nunca lhe tinham ensinado a cuidar de bebês —. Chega!
Só fez Feyd chorar com mais entusiasmo.
Pensou nas duas filhas que tinha gerado com a bruxa Bene Gesserit, Mohiam. Durante seu desastroso enfrentamento com as bruxas em Wallach IX, há sete anos, tinha exigido que devolvessem sua filha, mas agora compreendeu a bênção de as reverendas mães terem criado esses... esses seres imaturos.
— Piter! — gritou a plenos pulmões, e se lançou para o comunicador da parede. Esmagou-o com o punho —. Piter De Vries! Onde está meu Mentat?
Gritou até que a voz anasalada do Mentat respondeu pelo alto-falante.
— Já vou, meu barão.
Feyd continuava chorando. Quando o barão o pegou de novo, descobriu que o menino urinara e defecara nas fraldas.
— Piter!
Momentos depois, o Mentat apareceu pelos túneis. Devia estar perto, à espreita do barão, como sempre.
— Sim, meu barão?
Enquanto o menino continuava mugindo sem pausa, o barão o depositou nos braços de Piter.
— Cuide dele. Obrigue-o a parar de chorar.
O Mentat, pego de surpresa, olhou para o pequeno Harkonnen e piscou várias vezes.
— Mas meu barão, eu...
— Faz o que mandei! É meu Mentat. Tem que saber tudo o que eu peço.
O barão apertou as mandíbulas e reprimiu um sorriso de satisfação ao ver o desconcerto do Mentat.
Piter De Vries segurou Feyd-Rautha bem longe de si, como se fosse um espécime estranho.
— Não me desaponte, Piter.
O barão se afastou, coxeando um pouco devido à ausência de um globo de suspensão.
De Vries ficou com o menino nos braços, sem saber como acalmar seu choro.
Os presunçosos não fazem outra coisa além de construir muros de castelos, atrás dos quais tentam esconder suas dúvidas e temores.
Axioma Bene Gesserít
Kailea, encerrada em seus aposentos privados do castelo de Caladan, onde chorava a morte do seu pai, apoiou os dedos sobre a pedra fria do parapeito de uma janela e contemplou o mar cinza.
Dominic Vernius era um enigma para ela, um líder valente e inteligente que permanecera oculto durante vinte anos. Tinha fugido da rebelião, abandonado sua esposa a mercê dos assassinos imperiais renunciado ao que correspondia a seus filhos por direito de nascimento, ou tinha lutado na clandestinidade durante todo esse tempo para devolver o poder à Casa Vernius? E agora estava morto. Seu pai. Um homem forte, vital. Custava acreditar. Kailea compreendeu que jamais poderia retornar a IX nem recuperar o que era dele.
E para finalizar, Leto estava pensando em casar-se com outra filha de Ecaz, a irmã mais nova da que tinha sido raptada e assassinada pelos grumman. Leto não respondia as perguntas que Kailea lhe fazia. Era uma “questão de estado”, havia lhe dito na noite anterior em tom arrogante. Não era um assunto que pudesse discutir com uma simples concubina.
Fui sua amante durante mais de seis anos. Sou a mãe de seu filho, a única que merece ser sua esposa.
Seu coração se transformou em um lugar vazio, uma cavidade negra que só lhe proporcionava desespero e sonhos quebrados. Isso terminaria algum dia? Depois que assassinaram a filha mais velha de Ecaz, Kailea tinha acreditado que Leto se entregasse a ela, por fim, em corpo e alma. Mas ainda sonhava com uma aliança matrimonial que reforçasse o poder político, militar e econômico da Casa Atreides.
Abaixo, os escarpados negros estavam molhados pela névoa que as ondas lançavam. As gaivotas gritavam e mergulhavam em busca de peixes. Manchas verdes de algas se aferravam aos ocos das rochas. Os recifes faziam as águas se transformarem em espuma, como um caldeirão fervente.
Minha vida é amaldiçoada, pensou. Roubaram-me tudo o que era meu.
Voltou-se quando Chiara entrou em seus aposentos privados sem chamar. Kailea ouviu o tinido de taças e pratos sobre uma bandeja, cheirou o café especiado que a mulher tinha preparado. A dama de companhia se movia ainda com uma velocidade e agilidade impróprias para sua aparência. Chiara deixou a bandeja sem fazer ruído, levantou a cafeteira e encheu duas taças. Acrescentou açúcar à sua e nata e a de Kailea.
A princesa ixiana pegou a taça e tomou um gole delicado, procurando dissimular seu prazer. Chiara bebeu sem reprimir-se e se sentou em uma cadeira, como se fosse uma igual a concubina do duque.
Kailea fez uma careta.
— Você toma muitas liberdades, Chiara.
A dama de companhia olhou para a jovem, que deveria ser uma candidata matrimonial de primeira categoria para qualquer Grande Casa.
— Prefere uma acompanhante, lady Kailea, ou um criado mecânico? Sempre fui sua amiga e confidente. Por acaso sente saudades dos meks autônomos de que dispunha em IX?
— Não se gabe de conhecer meus desejos — disse Kailea com voz afligida —. Choro a morte de um grande homem, vítima da traição imperial.
Os olhos de Chiara cintilaram quando respondeu.
— Sim, e sua mãe também foi assassinada por eles. Não pode contar com seu irmão para nada, exceto para falar. Nunca recuperará seu reino. Você, Kailea — a mulher agitou seu dedo grosso em direção a ela —, é o que resta da Casa Vernius, a alma e o coração de sua grande família. — Acha que não sei?
Kailea se voltou e olhou pela janela de novo. Não podia encarar a anciã, nem a ninguém, nem sequer a seus temores íntimos.
Se Leto se casar com a filha do arquiduque... Sacudiu a cabeça, furiosa. Seria ainda pior que conviver com a puta da Jessica.
O mar de Caladan se estendia para o horizonte, e o céu estava coberto de nuvens que pressagiavam a escuridão do inverno. Pensou em sua precária posição com Leto. Ele a tinha colocado sob sua proteção quando era pouco mais que uma menina, a protegera depois da destruição do seu mundo... mas aqueles tempos eram coisa do passado. O afeto, o amor, que tinha florescido entre eles estava morto e enterrado.
— Teme que o duque aceite a proposta e contraia matrimônio com Ilesa Ecaz, é claro — acrescentou Chiara com voz doce, compassiva como uma faca longa e afiada. Sabia exatamente como tocar seu ponto mais fraco.
Embora envolvido com Jessica, Leto ainda ia a seu leito de vez em quando, como por obrigação. E a aceitava, como se fosse seu dever. Sua honra Atreides nunca permitiria repudiá-la completamente, por mais que seus sentimentos tivessem mudado. Leto tinha escolhido um método de castigo mais sutil, ao conservá-la a seu lado, mas impedindo que alcançasse a glória que merecia.
Oh, quanto ansiava viajar a Kaitain! Kailea desejava usar trajes elegantes, jóias preciosas e trabalhadas. Desejava ser atendida por dúzias de donzelas, em vez de uma só acompanhante que ocultava uma língua afiada com voz de mel. Quando olhou para Chiara, reparou no reflexo impreciso das feições da anciã, o cabelo primorosamente penteado que potencializava sua aparência nobre.
A resplandecente parede de obsidiana azul de Kailea, adquirida pelo Leto por um preço exorbitante, tinha sido um maravilhoso complemento ao castelo de Caladan. Leto a chamava sua “superfície comtemplativa”, onde Kailea via sombras apagadas do mundo que a rodeava e pensava em suas implicações. A obsidiana azul era tão pouco freqüente que poucas Casas do Landsraad exibiam se quer um só adorno, mas Leto tinha comprado toda aquela parede, assim como as pedras do salão de jantar.
Kailea franziu o sobrecenho. Chiara dizia que Leto apenas tinha tentado comprar sua satisfação, obrigá-la a aceitar a situação e silenciar suas queixas.
E agora Gurney Halleck havia lhe dito que aquela estranha substância procedia de Giedi Prime. Ai, a ironia! Sabia que a notícia devia ter ferido o coração infiel do duque.
Chiara estudou a expressão de sua senhora, adivinhou os pensamentos, com freqüência verbalizados, que corroíam sua mente, e compreendeu que estratégia devia utilizar.
— Antes que Leto possa casar-se com a filha do arquiduque Ecaz, deve ter em conta suas prioridades dinásticas, minha senhora.
Estava de pé junto ao muro de obsidiana azul, e seu reflexo estava distorcido, uma figura retorcida que parecia presa no interior do brilho impreciso do cristal vulcânico.
— Esqueça do seu irmão e do seu pai, até mesmo de você. Têm um filho do duque Leto Atreides. Seu irmão e Tessia não têm filhos, de maneira que Victor é o verdadeiro herdeiro da Casa Vernius, e em potencial, da Casa Atreides também. Se algo acontecesse ao duque antes que pudesse contrair matrimônio e gerar outro filho, Victor se transformaria na Casa Atreides. E como o menino só tem seis anos, você seria regente durante muitos anos, minha senhora. Tudo se encaixa.
— O que quer dizer com “se algo acontecesse ao Leto”? — Seu coração deu um salto. Sabia muito bem o que a anciã estava sugerindo.
Chiara terminou seu café, e se serviu de uma segunda taça sem pedir permissão.
— O duque Paulus morreu por causa de um acidente durante uma tourada. Vocês estavam presentes, não é?
Kailea recordou da aterradora imagem do velho duque lutando com um touro salusano na arena. O trágico acontecimento tinha feito que Leto ocupasse o trono ducal antes do tempo. Ela era uma adolescente naquele tempo.
Chiara estava insinuando que não fora um acidente? Kailea tinha escutado rumores, mas os tinha considerado simples produtos de ciúmes. A anciã não insistiu no tema.
— Sei que não deve levar a ideia a sério, querida. Falei por falar.
Entretanto, Kailea era incapaz de expulsar aqueles pensamentos insidiosos de sua cabeça. Não lhe ocorria outra maneira de seu filho se tornar o líder de uma Grande Casa do Landsraad. Do contrário, a Casa Vernius se extinguiria. Fechou os olhos com força.
— Se Leto concordar em casar-se com Ilesa Ecaz, ficarão sem nada. — Chiara pegou a bandeja pronta para partir. Tinha plantado as sementes e completado sua missão —. Seu duque já passa a maior parte do seu tempo com a puta Bene Gesserit. Vocês não significam nada para ele. Duvido que se lembre das promessas que fez em momentos de paixão.
Kailea piscou, surpresa, e se perguntou como Chiara podia saber dos segredos de quarto que lhe tinha sussurrado ao ouvido. Mas a idéia do duque Atreides acariciando a jovem e ruiva Jessica, com sua boca viciosa e cara ovalada, transformou sua irritação pela rabugice da Chiara em ódio para com Leto.
— Devem se fazer uma pergunta difícil, minha senhora. A quem deve lealdade? Ao duque Leto ou a sua família? Como ele não lhe deu seu sobrenome, sempre será uma Vernius.
A anciã levantou a bandeja e partiu sem se despedir, sem perguntar a sua senhora se necessitava de algo mais.
Kailea contemplou as bagatelas que restavam das terríveis perdas que tinha padecido: sua nobre Casa, a elegância do Grande Palácio, as possibilidades de integrar-se na corte imperial. Com uma pontada no coração, viu um dos desenhos que tinha feito de seu pai, o que lhe recordou a risada de Dominic, as lições que lhe tinha dado sobre a arte dos negócios. Depois, com igual desgosto, pensou em seu filho Victor e em tudo o que jamais possuiria.
Para Kailea, o mais duro era tomar a horrível decisão. Depois, tudo seria questão de detalhes.
O indivíduo é a chave, a efetiva unidade definitiva de todo processo biológico.
PARDOT KYNES
Durante anos, Liet-Kynes tinha desejado a bela Faroula com todo seu coração. Mas quando por fim confrontou a perspectiva de casar-se com ela, só sentiu um grande vazio e o peso da obrigação. Para guardar as formas, esperou que transcorressem três meses da morte de Warrick, embora Faroula e ele soubessem que sua união estava selada.
Fizera um juramento de morte a seu amigo.
Segundo o costume fremen, os homens tomavam as esposas e filhos daqueles a quem venciam em duelos de facas ou em combate singular. Entretanto, Faroula não era um ghanima, um troféu de guerra. Liet tinha falado com o naib Heinar, tinha declarado seu amor e dedicação, chamado as solenes promessas que tinha feito a Warrick, no sentido de que cuidaria de sua esposa como a mais apreciada das mulheres, e aceito a responsabilidade de adotar seu filho pequeno.
O ancião Heinar o examinara com seu único olho. O naib sabia o que tinha acontecido, conhecia o sacrifício que Warrick fizera durante a tormenta Coriolis. Para os anciões do sietch da Muralha Vermelha, Warrick tinha perecido no deserto. As visões que, segundo ele, tinha recebido de Deus, demonstraram-se falsas, porque não tinha superado a prova. Heinar deu sua permissão e Liet-Kynes se preparou para contrair matrimônio com a filha do naib.
Sentado em sua habitação, atrás das cortinas de fibra de especiaria tingida, Liet meditava sobre seu matrimônio iminente. A superstição fremen não permitia que visse Faroula durante dois dias antes da cerimônia oficial. O homem e a mulher deviam submeter-se a rituais de purificação mendi. Esse tempo era dedicado ao embelezamento e a escrever declarações de devoção, promessas e poemas de amor que mais tarde compartilhariam.
Agora, não obstante, Liet estava imerso em seus pensamentos, perguntava-se se era o causador da tragédia. Foi por culpa do fervente desejo que havia verbalizado ao ver o Biyan branco? Tanto Warrick como ele tinham desejado casar-se com a jovem. Liet tinha tentado aceitar seu fracasso com elegância na Cova das Aves, reprimido a voz interior egoísta que nunca lhe permitia esquecer quanto a tinha desejado.
Meus desejos secretos causaram essa tragédia?
Agora, Faroula seria sua esposa... mas era uma união nascida da tristeza.
— Perdoe-me, Warrick, meu amigo.
Continuou sentado em silêncio, deixando transcorrer o tempo, até que chegasse a hora da cerimônia. Dadas as circunstâncias, não a esperava ansiosamente.
As cortinas se afastaram e a mãe de Liet entrou. Frieth sorriu com compaixão e compreensão. Levava um frasco fechado muito adornado, feito de peles e selado com resina de especiaria impermeável. Segurava-o como se fosse um tesouro, um presente de valor incalculável.
— Trouxe-lhe algo, querido, em preparação para o casamento.
Liet afastou seus pensamentos perturbados.
— Nunca tinha visto isso.
— Diz-se que quando uma mulher acredita que um destino especial aguarda seu filho, quando pressente que ele fará grandes coisas, ordena às parteiras que destilem e conservem o líquido amniótico do parto. Uma mãe tem que entregá-lo a seu filho no dia de suas bodas. — Estendeu-lhe o frasco —. Guarde-o bem, Liet. É a mistura definitiva de sua essência e da minha, do tempo em que compartilhamos um corpo. Agora, misturará sua vida com outra. Dois corações, quando se unem, podem produzir a força de mais de dois.
Liet, tremulo de emoção, aceitou o frasco.
— É o maior presente que posso te fazer — disse Frieth —, neste dia importante mas tão difícil.
Liet olhou-a nos olhos. Os sentimentos que a mãe captou em seu olhar a sobressaltaram.
— Não, mãe. Você me deu a vida, e essa é a maior bênção.
Quando o casal se deteve em frente aos membros do sietch, a mãe de Liet e as mulheres mais jovens esperaram nos lugares designados enquanto os anciões se adiantavam para falar em nome do jovem. Liet-chih, o filho de Warrick, esperava em silencio ao lado da sua mãe.
Pardot Kynes, que tinha suspendido nesse dia o trabalho de terraformação, sorria como nunca. Surpreendia-se com o orgulho que sentia de que seu filho se casasse.
Kynes recordava seu próprio casamento, celebrado nas dunas à noite. Isto ocorrera muito tempo antes, pouco depois de sua chegada a Arrakis, e tinha passado a maior parte do tempo distraído. As garotas fremen solteiras tinham dançado como dervixes e cantado sobre a areia. A Sayyadina tinha pronunciado as palavras da cerimônia.
Seu matrimônio com Frieth tinha ido muito bem. Tinha um filho estupendo, ao qual educara para que um dia continuasse seu trabalho. Kynes sorriu para Liet, cujo nome procedia, recordou de repente, do assassino Uliet, a quem Heinar e os anciões tinham enviado a para matá-lo, quando os fremen o consideravam um forasteiro, um estranho de costumes e sonhos aterradores.
Mas aquele assassino compreendera a grandeza da visão do planetólogo e se jogado sobre sua própria faca. Os fremen viam presságios em tudo, e após esse fato dispensaram a Pardot Kynes os recursos de dez milhões de fremen. A transformação de Duna (as plantações e a conquista do deserto) tinha acontecido em um ritmo notável.
Ao ver que Liet olhava com olhos afogueados para sua futura esposa, Pardot se sentiu perturbado pela exibição de seu coração ferido. Amava seu filho de uma maneira diferente, como uma extensão de si mesmo. Pardot Kynes queria que Liet assumisse a tarefa de planetólogo quando chegasse o momento.
Ao contrário de seu pai, Liet parecia muito vulnerável aos sentimentos. Pardot amava sua esposa, pois cumpria seu papel tradicional de companheira fremen, mas seu trabalho era mais importante que a relação matrimonial. Sonhos e idéias lhe tinham cativado. Sentia paixão pela transformação do planeta em um éden exuberante. Mas nunca havia se sentido absorvido por uma pessoa.
O próprio naib Heinar oficiou a cerimônia, pois a velha Sayyadina não pudera realizar a viagem. Enquanto Kynes escutava o casal pronunciar seus votos, experimentou uma estranha sensação, uma grande preocupação pelo estado mental de seu filho.
— Satisfaça-me como seus olhos, e eu te satisfarei como seu coração — disse Liet.
— Satisfaça como seus pés, e eu te satisfarei como suas mãos — respondeu Faroula.
— Satisfaça-me como seu sonho, e eu te satisfarei como sua vigília.
— Satisfaça-me como seu desejo, e eu te satisfarei como sua necessidade.
Heinar segurou as mãos dos noivos, juntou-as e levantou-as, para que todo o sietch o visse.
— Agora estão unidos na Água.
Iniciou-se um coro de vivas, que aumentou de intensidade até ressoar nas paredes. Liet e Faroula pareciam aliviados.
Mais tarde, depois da celebração, Pardot se encontrou com seu filho em um corredor. Segurou os ombros de Liet desajeitadamente, numa paródia de abraço.
— Estou muito feliz por você , filho. — Procurou as palavras adequadas —. Deve estar muito feliz. Há muito tempo que desejava essa garota, não é?
Sorriu, mas um brilho de ira cruzou os olhos de Liet, como se seu pai tivesse lhe dado uma bofetada injusta.
— Por que me atormenta, pai? É que ainda não fez o suficiente?
Pardot, estupefato, retrocedeu e soltou seu filho.
— O que quer dizer? Estou felicitando-o por seu casamento. Não é a mulher que sempre desejou? Pensei...
— Assim não! Como posso ser feliz com essa sombra que pende sobre nós? Possivelmente desaparecerá dentro de alguns anos, mas agora sinto muita dor.
— Liet, meu filho...
A expressão de Pardot revelou a Liet tudo que precisava saber.
— Não entende nada, não é, pai? O grande Umma Kynes. — Soltou uma amarga gargalhada —. Com suas plantações, dunas, suas estações meteorológicas, e seus mapas climáticos. Está tão cego... Sinto pena de você.
O planetólogo se esforçou em encontrar algum significado nessas palavras enfurecidas, como as peças de um quebra-cabeças.
— Warrick... seu amigo. — Fez uma pausa —. Morreu em um acidente, não é? Durante a tormenta...
— Pai, você não sabe de nada. — Liet abaixou a cabeça —. Tenho orgulho de seus sonhos para Duna, mas vê todo nosso planeta como um experimento, um campo de provas onde brinca com teorias, onde coleciona dados. Não percebe que não são experimentos? Que não são peças de provas, mas pessoas? São fremen. Aceitaram-no, deram-lhe uma vida, deram-lhe um filho. Eu sou fremen.
— Bem, e eu também — disse Pardot em tom indignado.
— Só os está utilizando! — replicou Liet com voz oca.
Pardot, surpreso, não respondeu.
A voz de Liet aumentou de volume. Sabia que os fremen ouviriam fragmentos da discussão, e a fricção entre o profeta e seu herdeiro os inquietaria.
— Falou-me durante toda a vida, pai. Não obstante, quando recordo de nossas conversas, só o vejo recitando relatórios sobre estações botânicas e discutindo novas fases da vida vegetal adaptada. Você disse alguma vez algo sobre minha mãe? Falou-me alguma vez como pai, em vez de como a um... colega?
Liet deu um golpe no peito.
— Compartilho seu sonho. Vejo os prodígios que alcançou nos cantos ocultos do deserto. Compreendo o potencial que aguarda sob as areias de Duna. Mas mesmo que consiga tudo o que deseja, perceberá? Tenta pôr um rosto humano em seus planos e olhe quem receberá os benefícios de seus esforços. Olhe para o rosto de um menino. Olhe para os olhos de uma anciã. Viva a vida, pai!
Pardot, impotente, deixou-se cair sobre um banco apoiado contra a parede.
— Eu... Minhas intenções eram boas — disse com voz estrangulada. Seus olhos brilhavam com lágrimas de vergonha e confusão —. Você é na verdade meu sucessor. Em alguns momentos me perguntei se chegaria a aprender suficiente sobre planetologia... mas agora vejo que estava errado. Compreende mais coisas das que eu jamais saberei.
Liet se sentou ao lado do seu pai. O planetólogo, vacilante, apoiou uma mão sobre o ombro de seu filho, desta vez com mais sentimento. Liet lhe tocou a mão e contemplou com assombro fremen as lágrimas que escorriam pelas bochechas de seu pai.
— Você é na verdade meu sucessor como planetólogo imperial — disse Pardot —. Você compreende meu sonho, mas contigo ele será ainda maior, porque tem coração além de visão.
A boa liderança é quase invisível. Quando tudo funciona corretamente, ninguém percebe o trabalho de um duque. Por isso tem que dar ao povo algo que o regozije, algo do que falar, algo que recordar.
Duque PAULUS ATREIDES
Kailea viu sua oportunidade durante um interminável jantar familiar celebrado na sala de banquetes do castelo de Caladan. Leto estava sentado no trono ducal com aspecto feliz, na cabeceira da longa mesa onde os criados depositavam sopeiras cheias de guisado de pescado especiado, o mais apreciado pelas classes inferiores de pescadores e aldeãos.
Leto comia com apetite. Talvez lhe recordasse sua infância, quando andava solto pelos moles, subia a bordo dos navios de pesca e saltava seus estudos sobre a liderança de uma Grande Casa. Na opinião de Kailea, o velho duque Paulus tinha permitido a seu único herdeiro passar muito tempo com plebeus, sem lhe inculcar a sabedoria dos matizes políticos. Para ela, estava muito claro que o duque Leto nunca tinha aprendido a governar sua casa e a lutar com forças tão díspares como a Corporação, a CHOAM, o imperador e o Landsraad.
Victor estava sentado ao lado de seu pai, em uma cadeira acolchoada um pouco elevada para que pudessem comer à mesma altura. O menino sorvia sua sopa, imitando seu pai, no entanto Leto se esforçava em fazer ainda mais ruído. Naquele ambiente elegante, incomodava em especial a Kailea que seu filho tentasse imitar as maneiras grosseiras do pai. Algum dia, quando o menino se transformasse no verdadeiro herdeiro Atreides e Kailea fora regente, educaria-o para que soubesse apreciar as obrigações de seu cargo. Victor herdaria o melhor da Casa Atreides e da Casa Vernius.
Outros comensais partiam pedaços de pão e bebiam cerveja amarga do Caladan, embora Kailea soubesse que havia excelentes vinhos na adega. Não participava das conversas, mas comia com lentidão. A vários assentos de distância, Gurney Halleck havia trazido seu novo baliset e os entreteria durante a sobremesa. Como este homem tinha sido íntimo de seu pai, sentia-se satisfeita com sua companhia, embora Gurney não se mostrasse muito amistoso com ela.
Sentado em frente a ela, Rhombur parecia muito feliz com sua concubina Tessia e tratava de comer ainda mais que Leto. Em sua cadeira, Thufir Hawat estava mergulhado em seus pensamentos, estudava os comensais e esquecia sua comida. O olhar do Mentat deslizava de rosto em rosto, e Kailea tentou evitar o contato visual.
No meio da mesa se sentava Jessica, para demonstrar que eram iguais. Que cara mais dura! Kailea tinha vontade de estrangulá-la. A bela Bene Gesserit comia com movimentos comedidos, tão segura em sua posição que não exibia o menor acanhamento. Viu que Jessica estudava o rosto de Leto, como se fosse capaz de ler todos os matizes de sua expressão com a mesma facilidade que as palavras impressas em um carretel de linho shiga.
Naquela noite, Leto os convocara para jantar juntos, embora Kailea não lembrasse de nenhuma ocasião especial, aniversário ou festividade queria celebrar. Suspeitava que o duque tinha tramado algum plano impossível, que insistiria em levar a cabo por mais conselhos que ela ou quem quer que fosse lhe desse.
Globos luminosos flutuavam sobre a mesa como elementos decorativos, e rodeavam os braços invertebrados do detector de venenos que pendia sobre a comida, como um inseto. O detector era um artefato necessário, tendo em conta a retorcida política do Landsraad.
Leto terminou sua terrina e secou a boca com um guardanapo de linho bordado. Reclinou-se em sua cadeira com um suspiro de satisfação. Victor o imitou, embora ainda restassem dois terços de guisado em sua pequena terrina. Depois de ter decidido que canção tocaria depois de jantar, Gurney Halleck olhou para seu baliset de nove cordas apoiado contra a parede.
Kailea observou os olhos cinzas de Leto, viu que se desviavam de um extremo do salão a outro, do retrato de Paulus Atreides até a cabeça de touro dissecada, com os chifres ainda manchados de sangue. Ignorava o que o duque estava pensando, mas quando olhou para o outro lado da mesa, os olhos verdes de Jessica se encontraram com os seus, como se soubesse o que Leto estava a ponto de fazer. Kailea desviou a vista e franziu o sobrecenho.
Quando Leto se levantou, Kailea soltou um suspiro. Estava a ponto de iniciar algum de seus intermináveis discursos ducais, tentando inspirá-los sobre as boas coisas da vida. Mas se a vida era tão boa, Por que seus dois pais tinham sido assassinados? Por que seu irmão e ela, herdeiros de uma Grande Casa, continuavam no exílio, em vez de desfrutar do que deveria ser dele?
Dois criados correram para retirar os pratos e o pão restante, mas Leto os despediu com um gesto, para poder falar sem que o interrompessem.
— A semana que vem é o vigésimo aniversário da tourada em que meu pai morreu. — Olhou para o retrato de matador —. Em conseqüência, estive pensando nos grandes espetáculos que o duque Paulus oferecia aos seus súditos. Amavam meu pai por isso, e acredito que já é hora de que eu também ofereça um esplêndido espetáculo, como seria de esperar de um duque de Caladan.
Imediatamente, Hawat ficou em guarda.
— Qual é sua intenção, meu duque?
— Nada tão perigoso como uma tourada, Thufir. — Leto sorriu para Victor, e Rhombur —. Mas quero fazer algo do que a gente fale durante muito tempo. Parto logo para o Conselho do Landsraad, em Kaitain, para iniciar uma nova missão diplomática no conflito entre os moritani e os ecazi, sobretudo agora que talvez formemos uma aliança mais forte com Ecaz.
Calou-se por um momento, parecia envergonhado.
— Como despedida, nosso maior dirigível realizará um magnífico desfile sobre os campos. Meu povo verá as bandeiras e a nave, e desejará boa sorte a seu duque na missão. Passaremos sobre as frotas de pesca e depois voaremos terra adentro, sobre as colheitas de arroz pundi.
Victor aplaudiu, enquanto Gurney assentia em sinal de aprovação.
— Será um espetáculo maravilhoso!
Rhombur apoiou os cotovelos na mesa e descansou sua mandíbula quadrada nas mãos.
— Er, Leto, Duncan Idaho não volta logo de Ginaz? Estará fora quando chegar, ou poderemos combinar sua volta com a mesma celebração?
Leto meneou a cabeça.
— Faz tempo que não sei de nada. Não o esperamos até dentro de um par de meses.
Gurney deu uma palmada sobre a mesa.
— Deuses do inferno! Se voltar como um mestre espadachim de Ginaz depois de oito anos de treinamento, esse homem merece uma recepção para ele sozinho, não acham?
Leto riu.
— É claro que sim, Gurney! Haverá tempo para isso quando eu voltar. Com você, Thufir e Duncan como protetores, jamais precisarei temer nem um arranhão de um inimigo.
— Um inimigo pode atacar de outras formas, meu senhor — disse Jessica em tom de advertência.
Kailea ficou rígida, mas Leto não percebeu. Em vez disso olhou para a bruxa.
— Sou muito consciente disso.
As engrenagens já giravam na mente de Kailea. Ao terminar o jantar, desculpou-se e foi ver Chiara para lhe contar o que o duque Leto pensava fazer.
Naquela noite, Leto dormiu em uma cama de armar do hangar do espaçoporto municipal de Caladan, enquanto os criados de sua casa faziam os preparativos do acontecimento, enviavam convites e reuniam provisões. Ao fim de poucos dias, o dirigível iniciaria seu majestoso e colorido desfile.
Só em seus aposentos, Kailea chamou Swain Goire e o seduziu, como tinha feito em numerosas ocasiões. Fez amor com ele com uma paixão feroz que surpreendeu e esgotou o capitão da guarda. Parecia-se muito com Leto, mas era um homem muito diferente. Depois, quando adormeceu a seu lado, roubou-lhe uma diminuta chave codificada de um bolso oculto em seu grosso cinturão de couro. Embora a utilizasse poucas vezes, passaria muito tempo antes que Goire se desse conta de seu desaparecimento.
Na manhã seguinte, apertou o pequeno objeto na palma da mão de Chiara e fechou os dedos da anciã sobre ele.
— Isto lhe dará acesso ao arsenal Atreides. Tome cuidado.
Os olhos negros de Chiara cintilaram, e guardou a chave em dobras secretas de suas roupas.
— Eu me encarregarei do resto, minha senhora.
A guerra, como principal desastre ecológico de qualquer era, só reflete o estado em grande escala dos assuntos humanos, onde o organismo total chamado “humanidade” encontra sua existência.
PARDOT KYNES
Reflexões sobre o desastre de Salusa Secundus.
Na ilha administrativa de Ginaz, os cinco mestres espadachins mais prestigiosos se encontravam e julgavam aos outros estudantes na fase do exame oral, fazendo-lhes perguntas de história, filosofia, táticas militares, haiku, música e mais, segundo os requisitos e tradições da escola.
Mas se estava vivendo uma ocasião trágica e sombria.
Todo o arquipélago vivia tomado pela agitação, indignada e dolorida pelos seis estudantes assassinados. Os grumman, para aumentar sua barbárie, tinham jogado quatro cadáveres na corrente, perto do centro de treinamento principal, os quais tinham sido arrastados até a praia. Aos outros dois, Duncan Idaho e Hiih Resser, estavam desaparecidos no mar.
No último piso da torre central, os mestres estavam sentados, com suas espadas cerimoniosas estendidas a frente deles sobre a superfície com a ponta para fora, como os raios de um sol. Cada estudante que parava em frente da mesa via as pontas ameaçadoras enquanto respondia a perguntas severas.
Todos tinham sido aprovados. Karsty Toper e a administração da escola dariam os passos necessários para que os estudantes aprovados retornassem a seus lares, onde poriam em prática o que tinham aprendido. Alguns já tinham partido para o espaçoporto.
E os mestres ficaram para analisar as conseqüências.
O gordo Riwy Dinari estava sentado no centro, com a espada do duque Paulus Atreides e uma faca moritani incrustada de jóias, encontradas entre as posses de Idaho e Resser. A seu lado, Mord Cour tinha inclinada sua cabeça grisalha.
— Muitas vezes enviamos os objetos pessoais dos estudantes caídos, mas nunca tinha acontecido algo assim.
O robusto professor Como Reed, embora endurecido pela vigilância de sua ilha-prisão durante anos, não podia deixar de chorar. Meneou a cabeça.
— Se os estudantes de Ginaz morrem, deveria acontecer durante o treinamento, nunca nas mãos de assassinos.
Ginaz tinha apresentado protestos oficiais, proferido insultos e censuras elegantes, mas nada disso tinha impressionado o visconde Hundro Moritani. Nunca tinha compensado de maneira satisfatória seus brutais ataques contra Ecaz. O Landsraad e o imperador estavam deliberando sobre a melhor forma de reagir, e os líderes de muitas Grandes Casa viajavam a Kaitain para falar com o Conselho. Mas nunca tinham ido além de censuras, multas e reprimendas, mesmo com um “cão louco” como o visconde.
Os grumman acreditavam que sempre podiam sair-se bem com seus atos.
— Sinto-me... violado — disse Jeh-Wu, com os cachos pendendo desordenadamente —. Ninguém jamais ousou fazer algo semelhante a um mestre espadachim.
O afetado Whitmore Bludd se sentou muito rígido e brincou com os botões de sua camisa.
— Proponho darmos o nome dos estudantes assassinados a seis de nossas ilhas. A história recordará o crime covarde, e honraremos os seis.
— Honra? — Riwy Dinari deu uma palmada na mesa e as espadas tilintaram —. Como pode utilizar essa palavra neste contexto? Ontem à noite estive três horas junto à câmara funerária de Jool-Noret, rezando e perguntando o que ele faria em uma situação parecida.
— E ele respondeu? — Jeh-Wu se levantou com o sobrecenho franzido e foi olhar pela janela, para o espaçoporto e os recifes espumantes —. Jool-Noret nunca deu lições a ninguém, nem sequer em vida. afogou-se em uma marejada e seus discípulos tentaram imitá-lo. Se Noret não ajudou seus seguidores mais próximos, menos nos ajudará.
Bludd soprou, ofendido.
— O grande homem ensinava mediante o exemplo. Uma técnica muito válida para os que são capazes de aprender.
— E tinha honra, como os antigos samurais — disse Dinari —. Depois de dezenas de milhares de anos, tornamo-nos menos civilizados. Esquecemos.
Mord Cour olhou para o professor obeso.
— Está esquecendo a história, Dinari. Pode ser que os samurais tivessem honra, mas assim que os britânicos chegaram ao Japão com canhões, os samurais se extinguiram ao cabo de uma geração.
Como Reed elevou a vista, com o rosto enxuto desolado sob a capa nevada de cabelo emaranhado.
— Por favor, não adianta discutirmos entre nós, ou os grumman terão nos vencido.
Jeh-Wu bufou.
— Já nos venceram...
Um alvoroço na porta os interrompeu. Voltou-se, e os outros quatro professores ficaram em pé, surpresos.
Duncan Idaho e Hiih Resser, sujos e desalinhados, empurraram três empregados uniformizados que tentavam impedir sua passagem e irromperam na sala, espancados e mancando, mas ainda com fogo nos olhos.
— Chegamos tarde? — perguntou Resser com um sorriso torcido.
Como Reed correu para abraçar Duncan, e depois a Resser.
— Estão vivos, meus filhos!
Até Jeh-Wu esboçou um sorriso de assombro e alívio em sua cara de lagarto.
— Um mestre espadachim não faz gracinhas — comentou, mas Como Reed o ignorou.
O olhar de Duncan se iluminou quando viu a espada do velho duque sobre a mesa semicircular. Avançou um passo e olhou para o sangue que saia de um corte na tíbia esquerda e ensopava a perna da sua calça.
— Resser e eu não estudamos muito durante os últimos dias, mas pusemos em prática os conhecimentos adquiridos.
Resser mal podia se manter em pé, mas Duncan o segurou. Depois de beber copos de água que Mord Cour lhes deu, explicaram que tinham saltado pela amurada em alto mar, que nadaram e se ajudaram mutuamente para se afastar do grande navio escuro. Tinham permanecido flutuando durante horas, graças a todo o aprendizado durante oito anos de rigoroso treinamento. Procuraram guiar-se pelas estrelas, até que por fim as ondas e as correntes os transportaram até uma das numerosas ilhas, civilizada, por sorte. Ali tinham obtido auxílio e roupa seca, assim como transporte.
Embora a odisséia tivesse afetado em parte seu bom humor, Resser ainda conseguiu levantar o queixo.
— Queremos solicitar oficialmente um adiamento de nossos exames finais, senhores...
— Um adiamento? — Perguntou Como Reed, outra vez com lágrimas nos olhos —. Sugiro uma dispensa. Não há dúvida de que este par demonstrou sua coragem e valor para nossa inteira satisfação.
Whitmore Bludd, indignado, puxou sua barba.
— Temos que seguir as normas.
O velho Mord Cour olhou-o incrédulo.
— Por acaso os grumman não nos ensinaram a estupidez de obedecer as normas cegamente?
Os outros quatro professores se voltaram para Riwy Dinari para ouvir sua opinião.
Por fim, o professor corpulento ficou em pé e olhou para os estudantes desalinhados. Apontou a espada do velho duque e a faca cerimoniosa moritani.
— Idaho, Resser, empunhem suas armas.
Os mestres pegaram suas armas. Duncan levantou a espada do velho duque, e Resser a faca. Os cinco professores formaram um círculo, incluindo os dois estudantes, e estenderam suas folhas para o centro, uma sobre outra.
— Apóiem as pontas sobre as outras — disse Mord Cour.
— Vocês agora são mestres espadachins — anunciou Dinari com sua paradoxal voz fina. O homenzarrão embainhou a espada, tirou o lenço vermelho e o amarrou à cabeça de Duncan. Como Reed rodeou o seu no cabelo vermelho de Resser.
Depois de oito anos, a onda de triunfo e alívio esteve a ponto de custar a Duncan um desmaio, mas imobilizou suas pernas com esforço e continuou de pé. Resser e ele se deram as mãos para celebrar seu triunfo, tingido de tragédia. Duncan desejava retornar a Caladan.
Eu não falhei, duque Leto.
Então ouviram um som como o de ar ao rasgar-se, uma sucessão de estalos sônicos de uma nave que penetrava na atmosfera. Inesperadas sirenes se dispararam dos recifes que rodeavam a ilha central. Muito perto uma explosão ressoou nas paredes dos edifícios da administração.
Os professores correram para o balcão que dominava o complexo. Nuvens de fumaça se erguiam de duas ilhas próximas, do outro lado do canal.
— Naves couraçadas! — disse Como Reed. Duncan viu formas negras predadoras que desciam para lançar sua carga de explosivos, e depois se afastavam.
Jeh-Wu falou, enquanto coçava o cabelo.
— Quem ousaria nos atacar?
Para Duncan, a resposta era evidente.
— A Casa Moritani não terminou ainda conosco.
— Eles se opõe a toda guerra civilizada — disse Riwy Dinari —. Não a declararam, não seguiram as formas prescritas.
— Depois do que fizeram a Ecaz, e a nós, já sabemos que o visconde Moritani não se importa com as normas — disse Resser, enojado —. Não entendem como funciona sua mente.
Mais bombas explodiram.
— Onde está nossa defesa anti-aérea? — Whitmore Bludd parecia mais irritado que indignado —. Onde estão nossos tópteros?
— Nunca ninguém atacou a Escola de Ginaz — disse Como Reed —. Somos neutros em política. Nossa escola serve a todas as Casas.
Duncan compreendeu que suas normas, regras e estruturas tinham cegado os professores. Arrogância! Nunca tinham pensado em seus pontos vulneráveis, face ao que ensinavam a seus estudantes.
Dinari apoiou um binóculo contra as dobras de gordura em seu rosto. Ajustou as lentes e, ignorando a nave couraçada que voltava, examinou a praia da ilha administrativa.
— Comandos inimigos invadiram a praia, estão aterrissando em frente ao espaçoporto. Aproximam-se com artilharia portátil.
— Devem ter chegado em um submarino — disse Jeh-Wu —. Não se trata de um ataque improvisado. Investiram muito tempo preparando-o.
— Esperavam uma desculpa — acrescentou Reed, com o cenho carregado.
As naves atacantes se aproximaram mais, finos discos negros cujos escudos defensivos brilhavam.
Para Duncan, os mestres pareciam indefesos, quase patéticos, ante esta situação inesperada. Seus exercícios hipotéticos eram muito diferentes da realidade. Pegou a espada do velho duque.
— Essas naves não tem tripulação, são fabricadas para lançar bombas e artefatos incendiários — disse Duncan com frieza, enquanto uma chuva de bombas caía dos discos. Os edifícios situados ao longo da praia se incendiaram.
Os professores orgulhosos gritaram e saíram correndo do balcão, com Duncan e Resser entre eles.
— Temos que chegar a nossos postos de guarda, organizar a defesa! — gritou Dinari.
— O resto dos novos licenciados está no espaçoporto — recordou Resser —. Poderão nos ajudar.
Como Reed, Mord Cour e Jeh-Wu, desorientados mas tentando recuperar-se, sobretudo diante dos espavoridos funcionários e administradores, correram pelo corredor principal, enquanto Riwy Dinari demonstrava a velocidade com que podia mover seu corpo volumoso. Desceu rapidamente por uma escada e saltou de patamar em patamar. Whitmore Bludd o seguia.
Depois de trocar um olhar rápido, Duncan e Resser seguiram os dois professores que tinham utilizado a escada. Uma explosão próxima sacudiu o edifício administrativo, e os dois jovens cambalearam, mas seguiram adiante. O ataque continuava no exterior.
Os novos mestres atravessaram uma porta e entraram no vestíbulo central, onde se reuniram com Dinari e Bludd. Duncan viu através das janelas de plaz os edifícios que ardiam lá fora.
— Temos que chegar a seu centro de comando — disse a seus mestres —. Necessitamos de armas para lutar. Há tópteros de ataque no espaçoporto?
Resser empunhou sua faca cerimonial.
— Eu lutarei aqui mesmo, se se atreverem a enviar alguém contra nós.
Bludd parecia nervoso. Tinha deixado cair sua capa na escada.
— Não se conformarão com isso. Qual é seu objetivo? A câmara, é obvio! — Apontou para um ataúde negro situado sobre uma plataforma que dominava o vestíbulo —. Os restos de Jool-Noret, o objeto mais sagrado de todo Ginaz. Não há pior insulto para nós. — Voltou-se para seu enorme companheiro com a cara congestionada —. Seria como se os grumman nos tivessem atingido no coração.
Duncan e Resser se olharam, perplexos. Conheciam as histórias sobre o lendário guerreiro, mas enfrentando este ataque sanguinário, as bombas que explodiam, os gritos dos civis que corriam em busca de refúgio nas ruas da ilha, a nenhum dos dois se importava muito com a antiga relíquia.
Dinari cruzou o vestíbulo como uma nave de batalha, a toda velocidade.
— À câmara! — gritou. Bludd e os outros tentaram alcançá-lo.
A famosa câmara mortuária estava rodeada de plaz blindado transparente e um campo Holtzman. Os dois professores, esquecendo toda presunção de arrogância, subiram a escada correndo e apoiaram a palma contra um painel de segurança. O escudo desapareceu e as barreiras de plaz blindado se ergueram.
— Carregaremos o sarcófago — gritou Bludd para Duncan e Resser —. Temos que conservá-lo a salvo. É a alma da Escola de Ginaz.
Sem deixar de olhar ao redor, para o caso de aparecerem atacantes, Duncan balançou a espada do velho duque.
— Peguem a múmia se quiserem, mas se apressem.
Resser se plantou a seu lado.
— Temos que sair daqui e encontrar naves para contra-atacar.
Duncan confiava que outros defensores de Ginaz já teriam reagido contra os atacantes.
Enquanto os professores de maior idade, ambos homens robustos, levantavam o ataúde adornado e o transportavam para a duvidosa segurança do exterior, Duncan e Resser lhes deram passagem. Lá fora, os discos negros continuavam lançando sua chuva indiscriminada de bombas.
Um tóptero com o distintivo da escola aterrissou na praça, diante do edifício administrativo. Fechou as asas até antes que os motores deixassem de zumbir. Meia dúzia de professores saltaram do aparelho, vestidos com uniformes e lenços vermelhos, com rifles laser pendurados do ombro.
— Temos o corpo de Noret! — Bludd gritou com orgulho e pediu ajuda aos gestos —. Venham em seguida.
Soldados com o uniforme amarelo de Moritani atravessaram a praça correndo. Duncan gritou uma advertência, e os professores dispararam contra os atacantes. Os soldados responderam com suas armas. Dois professores foram acertados, incluído Como Reed. Quando uma bomba lançada do ar explodiu, Mord Cour caiu ao chão, ferido nos braços e no torso por fragmentos de pedra que tinham saído disparados. Duncan ajudou o instrutor a ficar em pé e o meteu no tóptero.
Quando Cour entrou, um atacante golpeou Duncan nas pernas. O jovem mestre caiu ao chão, rolou e ficou em pé de um salto. Antes que pudesse sacar sua espada, uma mulher grumman com um gi amarelo de artes marciais mergulhou sob sua guarda e o cortou com facas parecidas com garras fixas em seus dedos. Como não podia utilizar a espada a uma distância tão pequena, agarrou a atacante pelo cabelo e puxou-a para trás com violência, até que ouviu seu pescoço se partir. A assassina desabou inerte.
Mais grumman atacaram o tóptero.
— Vão! — Gritou Resser —. Leve o maldito ataúde!
Duncan e ele enfrentaram o outro inimigo.
Um homem barbudo atacou com uma lança elétrica, mas Duncan esquivou o golpe e saltou para um lado. Sua mente acelerou quando seus oito anos de treinamento lhe proporcionaram a resposta correta. A raiva ameaçou dominá-lo ao recordar os estudantes assassinados a bordo do navio escuro. Suas retinas ardiam com as imagens vividas das bombas, do fogo e dos inocentes assassinados.
Mas recordou a advertência de Dinari: com a ira chega o erro. Em um instante uma reação fria, quase instintiva o inundou. Com a força de sua vontade, Duncan Idaho golpeou com dedos de aço o peito do homem e lhe destruiu o coração.
Então, um jovem cauteloso se afastou da luta, magro e musculoso, com sua mão direita engessada. Trin Kronos. O grumman segurava uma katana na mão sã.
— Pensei que os dois estariam alimentando os peixes, como os outros quatro exemplos que demos.
Olhou para os bombardeiros. Outra enorme explosão destruiu um edifício baixo.
— Enfrente a mim, Kronos — disse Resser, ao mesmo tempo que desembainhava sua faca cerimonial —. Ou é muito covarde sem seu pai e uma dúzia de guardas armados?
Trin Kronos brandiu sua katana, mas pensou melhor e a jogou para um lado.
— Uma arma muito boa para um traidor. Teria que me livrar dela depois de sujá-la com seu sangue. — Tirou uma faca —. Uma adaga é mais fácil de substituir.
As bochechas de Resser avermelharam, e Duncan retrocedeu para observar o combate.
— Jamais teria renunciado à Casa Moritani se me tivessem dado algo em que acreditar — disse Resser.
— Acredite no aço frio de minha folha — replicou Kronos com um sorriso cruel —. Sentirá que é muito real quando atravessar seu coração.
Os dois descreveram círculos cautelosos, sem deixar de observar-se. Resser levantou sua arma com uma sólida postura defensiva, Kronos lançava navalhadas agressivas mas ineficazes.
Resser atacou, retrocedeu e deu um chute violento que teria derrubado seu inimigo, mas Kronos se esquivou como uma serpente. Resser virou-se e recuperou o equilíbrio, ao mesmo tempo que parava uma navalhada.
A zona que rodeava os dois combatentes estava limpa. Nas ruas próximas, outros atacantes grumman continuavam sua ofensiva, e disparavam projéteis das janelas elevadas. No tóptero, o mestre espadachim tentava subir o sarcófago ao aparelho enquanto repelia outros atacantes.
Kronos fez uma finta, atacou os olhos de Resser com a ponta de sua arma e depois procurou sua garganta. Resser se jogou para um lado, mas seu pé escorregou em uma parte de rocha solta e caiu ao chão.
Kronos se jogou sobre ele como um leão, mas Resser parou um golpe mortal com sua faca e desviou a adaga de seu atacante. A seguir cravou sua faca no bíceps de Kronos e lhe fez um corte do cotovelo até o antebraço.
Kronos retrocedeu com um grito e contemplou o rio escarlate que escorria para sua mão ilesa.
— Bastardo traidor!
Resser ficou em pé de um salto e recuperou o equilíbrio.
— Sou órfão, mas bastardo não. — Seus lábios se curvaram em um sorriso fugaz.
Kronos compreendeu que tinha perdido a luta de facas. Sua expressão se endureceu. Golpeou o gesso da sua mão com o pomo da faca. O gesso se partiu pela metade e uma pistola de dardos saltou para sua mão. Kronos sorriu e apontou a arma preparada para disparar toda a carga de dardos no peito de Resser.
— Ainda insiste em seguir suas regras absurdas, não é?
— Eu não — disse Duncan Idaho de trás, enquanto dava um cutilada com a espada do velho duque, que se afundou entre as omoplatas de Trin Kronos e saiu por seu peito, atravessando seu coração. Kronos vomitou sangue e estremeceu, surpreso pelo objeto afiado que tinha brotado de seu esterno.
Quando Kronos desabou morto, Duncan arrancou a espada. Contemplou a sua vítima e a arma.
— Os grumman não são os únicos a quebrar as normas.
Resser tinha empalidecido depois de compreender a inevitabilidade de sua morte assim que viu a pistola escondida no gesso de Kronos.
— Duncan... você o matou pelas costas.
— Salvei a vida de um amigo — replicou Duncan —. Nas mesmas circunstâncias, faria o mesmo quantas vezes fossem necessárias.
Dinari e Bludd conseguiram subir por fim a sagrada relíquia a bordo do tóptero. Raios laser sulcavam o céu, enquanto os defensores de Ginaz disparavam com pontaria mortal. Os dois jovens estavam esgotados, mas os professores os subiram a bordo do tóptero.
O aparelho se ergueu no ar. As asas se desdobraram em toda sua envergadura e levaram os passageiros e o cadáver de Jool-Noret para longe dos edifícios principais. Enquanto Duncan se agachava sobre a plataforma metálica, Riwy Dinari lhe rodeou as costas com um braço.
— Demonstraram seu valor, rapazes.
— Qual é a causa do ataque? Orgulho ferido? — perguntou Duncan, tão encolerizado que sentia vontade de cuspir —. Um motivo absurdo para iniciar uma guerra.
— Há poucos motivos lógicos para iniciar uma guerra — disse Mord Cour.
Whitmore Bludd tamborilou sobre o plaz transparente.
— Olhem.
Um enxame de naves de Ginaz disparavam raios laser contra os aparelhos inimigos e as tropas terrestres.
— Nossos novos mestres espadachins retomaram o controle junto com seus companheiros do espaçoporto — disse Cour.
Depois de um disparo direto, uma das naves sem tripulação explodiu e caiu. Os professores levantaram os punhos dentro do tóptero.
O aparelho se transformou em uma bola de fogo ao tocar o chão, e uma segunda nave caiu no mar. Outras naves foram alcançadas por raios laser. O tóptero de Duncan se lançou contra um esquadrão de comandos grumman e os volatilizou. O piloto deu a volta para atacar de novo.
— Os grumman esperavam um trabalho fácil — comentou Whitmore Bludd.
— E o demos — grunhiu Jeh-Wu.
Duncan contemplou a carnificina e procurou não compará-la com toda a elegância aprendida durante seus oito anos na escola de Ginaz.
Vigie as sementes que semeia e as colheitas que colhe. Não amaldiçoe a Deus pelo castigo que inflige a si mesmo.
Bíblia Católica Laranja
Kailea, mediante o emprego de uma atitude indignada da qual até lady Helena teria se sentido orgulhosa, convenceu Leto a não incluir seu filho no grande desfile.
— Não quero que Victor se exponha a nenhum perigo. Esse dirigível não é seguro para um menino de seis anos.
Thufir Hawat se transformou em um aliado inesperado, e apoiou as preocupações de Kailea, até que Leto se rendeu. Tal como ela tinha esperado...
Depois da capitulação do duque, Kailea ajudou Rhombur a salvar a situação.
— Você o tio do Victor. Por que não partem em uma... expedição de pesca? Pegue um navio e navegue perto da costa, sempre acompanhado de um bom número de soldados. Estou segura de que o capitão Goire adoraria acompanhá-los.
Rhombur sorriu.
— Talvez vamos colher jóias coralinas outra vez.
— Com meu filho não — Kailea se apressou a retificar.
— Er, de acordo. Levarei-o às fazendas flutuantes de melões paradan, e talvez a algumas áreas onde possamos olhar os peixes.
Swain Goire se encontrou com Rhombur nos moles e ambos limparam a adega da pequena e bem preparada lancha a motor Dominic. Como iam passar vários dias fora, proveram-se de sacos de dormir e comida. No espaçoporto, a tripulação do duque trabalhava para aprontar o enorme dirigível. Impaciente por partir, Leto estava absorto nos preparativos finais.
Enquanto o trabalho continuava no navio, o entusiasmo de Victor foi diminuindo. A princípio, Rhombur pensou que o menino ainda se recordava do encontro com o elecrán, mas depois percebeu que Victor olhava sem cessar para a plataforma onde seu pai estava a ponto de embarcar. Bandeiras Atreides ondeavam ao vento, gallardetes verdes e negros que refletiam o sol.
— Preferiria estar com meu papai — disse Victor —. Pescar é divertido, mas ir em um dirigível é melhor.
Rhombur se apoiou contra a amurada do navio.
— Concordo com você, Victor. Oxalá houvesse alguma forma de irmos com ele.
O duque Leto ia pilotar a nave, acompanhado por uma escolta de cinco soldados leais. Com o limite de peso permitido no aparelho, mais ligeiro que o ar, precisava ser prudente.
Swain Goire deixou cair uma caixa de provisões sobre coberta, secou o suor da testa e sorriu para o menino. Rhombur sabia que o capitão era mais leal ao menino que a qualquer lei ou amo. A adoração pelo filho de Leto apareceu no belo rosto de Goire.
— Er, capitão, me permita pedir sua opinião. — Rhombur olhou para Victor e depois para Goire —. Foi responsabilizado pela segurança deste menino, e nenhuma só vez evitou seu dever nem dedicou menos que toda a atenção a sua missão.
Goire ruborizou, envergonhado. Rhombur continuou.
— Você apóia os temores de minha irmã, Victor correria perigo se acompanhasse Leto a bordo do dirigível?
Goire riu, ao mesmo tempo que desprezava a idéia com um gesto.
— Certamente que não, meu senhor príncipe. Se existisse algum perigo, Thufir Hawat não permitiria que o duque fosse, e eu tampouco. Hawat me encarregou da supervisão da segurança do dirigível antes de sua partida, ao mesmo tempo que seus homens e ele checam a rota de vôo para descartar emboscadas. Apostaria minha vida nisso.
— Eu penso o mesmo. — Rhombur esfregou as mãos e sorriu —. Portanto, existe algum motivo concreto que explique a insistência de Kailea para irmos pescar, em vez de seguir com nossos planos?
Goire umedeceu os lábios e meditou na pergunta. Evitou os olhos de Rhombur.
— Às vezes lady Kailea se mostra... excessiva em sua preocupação pelo menino. Acredito que imagina ameaças onde não existem.
O pequeno Victor passeava seu olhar entre os dois homens, sem compreender os matizes da discussão.
— Se posso falar com total sinceridade, capitão, não entendo por que não o promoveram ainda. — Rhombur baixou a voz —. Por que não permitimos que Victor se reúna ao pai em segredo? Não deveria perder este magnífico desfile. Afinal, ele é o filho do duque. Tem que participar dos acontecimentos importantes.
— Estou de acordo... mas há o problema do peso. O dirigível tem uma capacidade limitada de passageiros.
— Bem, se não existir nenhum perigo, retiremos dois membros da guarda de honra, para que meu querido sobrinho — Rhombur apertou o ombro de Victor — e eu nos reunamos ao duque. Ainda ficam três guardas, e eu também sei lutar, caso necessário.
Goire, embora se sentisse inquieto, não encontrou motivos para desprezar a sugestão, sobretudo depois de ver a expressão satisfeita de Victor. Sua resistência desapareceu.
— O comandante Hawat não gostará da mudança de planos, e lady Kailea tampouco.
— É certo, mas você está encarregado da segurança da nave, não é? — Rhombur desprezou com um gesto a preocupação —. Além disso, Victor não sera um bom líder se o superproteger desta maneira. Tem que sair para o mundo e aprender da vida, diga minha irmã o que disser.
Goire se agachou em frente ao menino e o tratou como a um homenzinho.
— Victor, me diga a verdade, quer ir pescar, ou...
— Quero ir no dirigível. Quero estar com meu pai e ver o planeta. — lia-se uma firme determinação em seus olhos.
Goire se levantou. Por um momento sustentou o olhar de Victor. Desejava fazer tudo que estivesse ao seu alcance para que fosse feliz.
— Essa é a resposta que necessitava. Está decidido. — Olhou para o espaçoporto, onde o dirigível esperava —. Vou cuidar dos preparativos.
Temerosa de que sua conduta a delatasse, Kailea se fechou em uma das torres do castelo, com a desculpa de que estava doente. Despediu-se oficialmente de um preocupado Leto e partiu a rapidamente antes que pudesse olhá-la nos olhos... embora a verdade fosse que ele não lhe dava muita atenção.
Uma multidão festiva contemplava o desfile, que ao fim de pouco tempo se elevaria no céu do castelo de Caladan. O falcão Atreides estava pintado em um vermelho brilhante sobre o volumoso flanco do dirigível, ao qual seguiam diversas naves menores mas de desenho similar, todas muito adornadas. O dirigível desdobrou velas para captar o vento e se esticou contra seus cabos como uma gigantesca abelha. A brisa leve agitava as bandeiras Atreides.
O vulto da nave era espaço vazio, bolsas fechadas de gás, mas tinham enchido de provisões o diminuto compartimento de passageiros na barriga da nave. Velas guia ondeavam como asas de mariposa nos lados. Thufir Hawat tinha explorado em pessoa a rota proposta, percorrido estradas e enviado guardas e inspetores para verificar se nenhum assassino se postara no caminho.
Kailea mordeu o lábio enquanto olhava pela janela. Embora mal ouvisse a fanfarra de despedida de Leto, viu figuras de pé em estrados, que saudavam antes de subir ao dirigível.
Sentiu um nó no estômago.
Repreendeu-se por não ter conseguido binóculos, mas isso teria levantado suspeitas. Uma preocupação absurda. Os criados da casa teriam suposto que queria ver seu “amado” duque partir. O povo de Caladan ignorava tudo sobre o lado escuro de sua relação. Em sua ingenuidade, só imaginava histórias românticas.
Kailea viu que a equipe de trabalhadores soltava os cabos. O dirigível, com a ajuda de bóias de suspensão, deixou-se levar pelas correntes de ar. A nave contava com sistemas de propulsão para serem utilizados em caso de emergência, mas Leto preferia que a gigantesca nave se movesse a favor dos ventos sempre que fosse possível.
Embora estivesse sozinha, Kailea tentou apagar toda expressão de seu rosto, toda emoção de sua mente, e tampouco quis recordar os bons momentos compartilhados com seu amante. Tinha esperado muito tempo, e sempre soubera que as coisas não sairiam como desejava.
Rhombur, apesar de seus contatos com alguns rebeldes, não tinha obtido nada em IX. E tampouco seu pai em todos seus anos de suposta luta clandestina contra a Casa Corrino. Dominic tinha morrido e Rhombur se conformava em ser o parceiro anônimo de Leto, enfeitiçado por sua mulher Bene Gesserit. Carecia de ambições.
Kailea não podia aceitar isso.
Agarrou o parapeito de pedra, enquanto o glorioso desfile de aeronaves sobrevoava Baía City em direção às terras baixas. Os aldeãos estariam afundados até os joelhos em seus campos pantanosos, e levantariam a vista para ver seu duque passar. Os lábios de Kailea formaram uma linha reta e apertada. Aqueles cultivadores de arroz pundi desfrutariam de um espetáculo que não esperavam...
Chiara lhe contara os detalhes do plano só depois de tê-lo posto em marcha. Como em outro tempo tinha sido a amante de um perito em munições, Chiara tinha disposto uma armadilha, com explosivos roubados do arsenal Atreides. Não haveria chances de sobrevivência nem esperança de resgate.
Kailea fechou os olhos, assustada. As engrenagens estavam em marcha e não podia fazer nada para impedir o desastre. Nada. Depois, seu filho seria o novo duque e ela a mãe regente. Ai, Victor, faço isto por você.
Ouviu passos, e se surpreendeu de ver Jessica aparecer na porta de sua habitação, recém retornada do lançamento da nave. Kailea olhou para sua rival com expressão impenetrável. Por que ela não tinha acompanhado Leto? Isso teria solucionado todos os seus problemas.
— O que quer? — perguntou Kailea.
Jessica era magra e delicada, mas Kailea sabia que nenhuma jovem treinada pela Bene Gesserit podia ser inofensiva. Não havia dúvidas de que era bruxa e poderia matar Kailea em um instante com suas artes. Prometeu a si mesma se livrar daquela sedutora assim que o peso e a responsabilidade da Casa Atreides recaíssem sobre seus ombros. Serei regente por meu filho.
— Agora que o duque se foi e nos deixou sozinhas, chegou o momento de conversarmos. — Jessica observou a reação de Kailea —. Já postergamos isso durante muito tempo.
Kailea teve a sensação de que estavam direcionando cada nervo do seu rosto e dos dedos, cada tic e cada gesto. Diziam que as Bene Gesserit podiam ler a mente, embora elas o negassem. Kailea estremeceu e Jessica avançou um passo.
— Vim aqui porque necessito privacidade — disse Kailea —. Meu duque partiu e quero estar a sós.
Jessica franziu o sobrecenho. Seus olhos verdes a olharam com intensidade, como se tivessem detectado algo. Kailea se voltou, porque se sentia nua. Como aquela jovem podia deixá-la em evidência com tanta facilidade?
— Pensei que seria melhor falar com toda franqueza — continuou Jessica —. É possível que Leto resolva casar-se logo. E não será com nenhuma de nós.
Mas Kailea não queria ouvir nada disso. Deseja fazer as pazes comigo? Pedir permissão para amar Leto? A idéia lhe provocou um fugaz sorriso.
Antes que Kailea pudesse responder, voltou a ouvir passos, desta vez de pés calçados com botas. Swain Goire entrou na habitação. Parecia preocupado, e estava com o uniforme desarrumado. Deteve-se por um momento quando viu Jessica na habitação, como se fosse a última pessoa que tivesse esperado encontrar com Kailea.
— Sim, capitão, o que houve? — disse Kailea com brutalidade.
O homem se esforçou por encontrar as palavras adequadas, tocou seu cinturão e moveu a mão para o diminuto bolso onde guardava sua chave codificada do arsenal.
— Temo que... perdi algo.
— Capitão Goire, por que não está com meu filho? — Kailea desviou sua ira para ele, com a esperança de distrair Jessica —. Você e o príncipe Rhombur deviam ter partido horas atrás na excursão de pesca.
O guarda evitou seu olhar, enquanto Jessica os observava e tomava nota de cada movimento. O coração de Kailea palpitou: Suspeita de algo? E nesse caso, o que fará?
— Acredito que... perdi uma peça importante de meu uniforme, minha senhora — balbuciou Goire, envergonhado —. Não pude encontrá-la e me sinto preocupado. Queria procurá-la em todos os lugares possíveis.
Kailea se aproximou dele com o rosto ruborizado.
— Não respondeu a minha pergunta, capitão. Os três deveriam ter ido pescar. Atrasaram a viagem de meu filho para que pudesse ver seu pai partir? — Levou um dedo aos lábios apertados —. Sim, entendo que Victor teria gostado de ver o desfile. Leve-o já. Eu não gostaria que perdesse a excursão de pesca com o tio. A perspectiva o tinha entusiasmou.
— Seu irmão solicitou uma ligeira mudança de planos, minha senhora — disse Goire, incomodado com a presença de Jessica e por ter sido pilhado em falta —. Programamos outra excursão de pesca para a semana que vem, mas Victor desejava muito acompanhar o duque Leto. Não há muitos desfiles como este. Não tive coragem de negar.
Kailea virou-se, horrorizada.
— O que quer dizer? Onde está Victor? Onde está Rhombur?
— A bordo do dirigível, minha senhora. Informarei Thufir Hawat...
Kailea se precipitou para a janela, mas a enorme nave e seus acompanhantes já se perdiam de vista. Golpeou repetidas vezes com o punho o plaz transparente e lançou um estremecedor uivo de desespero.
Todos os homens sonham com o futuro, mas nem todos o veremos.
TlO HOLTZMAN,
Especulações sobre o tempo e espaço
A bordo do dirigível, Leto relaxou no assento de comando. A nave sobrevoava a cidade e se encaminhava para as zonas agrícolas circundantes. Reinava uma grande paz. Moveu os lemes, mas deixou que os ventos a empurrassem a seu capricho. Viu largos rios, espessos bosques e pântanos.
Victor olhava com atenção pelas janelas, apontava coisas e fazia centenas de perguntas. Rhombur respondia, mas deixava que Leto o fizesse quando um acidente geográfico ou uma aldeia ultrapassavam seus conhecimentos.
— Me alegro de que esteja aqui, Victor.
Leto remexeu o cabelo do menino.
Havia três guardas a bordo, um no camarote principal e outros nas saídas de proa e popa. Usavam uniformes negros, com os galões que ostentavam o falcão vermelho da guarda de honra Atreides. Como tinha substituído um dos membros, Rhombur vestia o mesmo uniforme. Até Victor, que também tinha substituído um guarda devido às limitações de peso, levava os mesmos galões em sua réplica da jaqueta negra do duque. Eram muito grandes para seu tamanho, mas tinha insistido em usá-las, a nave era fácil de manejar, pois fora desenhada para viagens de lazer. Leto se prometeu que viajaria mais com o menino. Quem sabe traria Jessica com ele, e Kailea também.
Sim, Kailea... Victor deveria ver seus pais passar mais tempo juntos, apesar das suas diferenças políticas ou dinásticas. Leto ainda sentia afeto por ela, apesar de Kailea o rechaçar em cada ocasião. Ao recordar como seus pais tinham sido cruéis um com o outro, não desejou deixar tal herança a Victor.
A princípio tinha sido um descuido, piorado por sua teimosia quando Kailea se empenhou em exigir que contraísse matrimônio com ela, mas compreendeu que ao menos teria que tê-la nomeado como sua concubina oficial e dado a seu filho o sobrenome Atreides. Leto ainda não tinha decidido aceitar a oferta oficial de matrimônio do arquiduque Ecaz com Ilesa, mas um dia encontraria uma consorte aceitável do ponto de vista político entre as candidatas do Landsraad.
Rhombur começou a entoar canções populares, versos que tinha aprendido dos nativos. Nos últimos meses, Gurney Halleck e ele tinham feito duetos de baliset, cantando melodias e baladas. Naquele momento, Rhombur cantarolava com sua voz pouco afinada, sem nenhum acompanhamento.
Quando ouviu uma canção famosa, um dos guardas se uniu a ele. O homem se criara nos campos de arroz pundi antes de ingressar no exército Atreides, e ainda recordava das canções que seus pais lhe tinham ensinado. Victor tentou cantar com eles e se juntou ao estribilho quando pensou que recordava da letra.
Ao final, aborrecido de canções e da pouca velocidade do dirigível, Victor voltou o olhar para ver as velas que ondeavam no exterior. Leto lhe cedeu o controle por alguns segundos. O menino ficou fascinado quando viu que a nave obedecia as suas ordens.
Rhombur riu.
— Algum dia você será um grande piloto, rapaz, mas não deixe que seu pai lhe ensine. Eu sei mais de pilotar que ele.
Victor passeou o olhar entre seu tio e seu pai, e Leto soltou uma gargalhada quando o viu meditar seriamente sobre o comentário.
— Victor, pergunte a seu tio como fez para incendiar nosso bote, e como o encalhou nos recifes.
— Você me disse que o encalhasse nos recifes — se defendeu Rhombur.
— Estou com fome — disse Victor, o que não surpreendeu Leto. O menino gozava de um insaciável apetite, e cada dia ficava mais alto.
— Vá olhar nas despensas da parte posterior da ponte — disse Rhombur —. Guardamos ali nossos lanches.
Victor obedeceu, ávido por explorar.
O dirigível passou sobre os campos de arroz pundi, campos verdes alagados separados por canais. Por eles navegavam barcaças cheias de sacos de grão. O céu estava espaçoso, os ventos eram suaves. Leto não podia imaginar um dia melhor para voar.
Victor subiu por um saliente para alcançar os armários mais altos, e procurou nas prateleiras. Estudou as imagens icônicas das etiquetas. Não sabia ler todas as palavras em galach, mas reconheceu letras e compreendeu o propósito de certas coisas. Descobriu carnes secas e uluus, bolos de bagos envoltos que foram servir de prostre para a noite. Escolheu um pacote de uluus, que saciou sua fome, mas continuou explorando.
Com a curiosidade própria de um menino, Victor se aproximou de uma fileira de receptáculos abertos na parte inferior da parede da casquinha, que se apoiava contra a massa do dirigível. Identificou o símbolo vermelho e soube que eram medicamentos de primeiros socorros. Tinha visto essas coisas antes, e contemplado com estupor os médicos da Casa enfaixar cortes e arranhões.
Abriu o primeiro receptáculo e extraiu fornecimentos médicos. Uma placa solta no fundo emitia um ruído intrigante, de modo que a afastou e descobriu outro compartimento. Atrás dos fornecimentos de emergência, Victor descobriu algo que tinha luzes piscantes, um contador luminoso, mecanismos de transferência de impedância conectados com grupos de caixas vermelhas que armazenavam energia, e tudo preso junto.
Olhou-o durante um longo tempo, fascinado.
— Tio Rhombur! Venha ver o que encontrei!
Rhombur sorriu e cruzou a coberta, disposto a explicar ao menino o que tivesse descoberto.
— Aí, atrás dos estojos de primeiro socorros. — Victor apontou com um dedo —. É luminoso e bonito.
Rhombur se agachou para olhar. Victor, orgulhoso, afundou a mão ainda mais.
— Olhe como piscam todas essas luzes. Peguei para que o veja melhor.
O menino pegou o engenho, e Rhombur respirou fundo de repente.
— Não, Victor! É uma...
O filho do duque Leto puxou dos condutores de impedância, e ativou o temporizador. Os explosivos detonaram.
O conhecimento é implacável.
Bíblia Católica Laranja
Quando as chamas brotaram na popa da cabine, a onda de choque golpeou Leto como um meteoro.
Uma massa de carne queimada e destroçada se chocou contra a janela que havia a seu lado e caiu ao chão. Muito grande para ser um menino, muito pequeno para ser um homem (um homem inteiro), deixou uma mancha de fluidos corporais enegrecidos.
Um calor abrasador se elevou ao seu redor. A parte posterior do dirigível foi engolida por chamas alaranjadas.
Leto lutou com os lemes, enquanto a nave ferida estremecia. Não parava de olhar pela extremidade do olho a forma irreconhecível que havia a seu lado.
Agitou-se. Quem era? Não sabia.
Um desfile de imagens espantosas passou por suas retinas, mas mal duraram uma fração de segundo. Ouviu um grito que mudou brutalmente, e depois desapareceu quando a silhueta convulsa de um homem foi absorvida por um buraco aberto na parte inferior da cabine. Todo o corpo do homem estava em chamas. Tinha que ser Rhombur ou um dos três guardas.
Victor se encontrava no centro da explosão...
Nunca mais o verei.
A nave começou a cair quando o gás inflamável foi consumido dentro do corpo do dirigível. O tecido se rasgou e as chamas branco-amarareladas alcançaram maior virulência. A cabine se encheu de fumaça.
Leto sentia a pele arder, e compreendeu que seu uniforme negro não demoraria para queimar. Atrás dele, os restos do corpo emitiram um miado de dor... Não identificou o número de braços e pernas, e seu rosto era uma massa sanguinolenta de pele retorcida, irreconhecível.
A nave ia cair.
Abaixo, os campos de arroz pundi se estendiam entre rios sinuosos, represas e plácidas aldeias. As pessoas se reuniram, agitavam gallardetes para saudar sua passagem. Mas quando viram a bola de fogo, como o martelo de Deus, correram para procurar refúgio. As naves de escolta davam voltas ao redor do dirigível em chamas, mas não podiam fazer nada.
Leto arrancou sua mente da paralisia (Rhombur! Victor!) Quando viu de repente que a nave se precipitava para um povoado. Cairia no meio da gente reunida.
Lutou como um possesso com os lemes para mudar o ângulo de descida, mas as chamas consumiam os sistemas hidráulicos e devoravam o esqueleto. Quase todos os aldeãos se dispersaram tomados pelo pânico. Outros se limitaram a continuar olhando, conscientes de que não poderiam escapar a tempo.
Leto, que no fundo do seu coração sabia que Victor estava morto, sentiu-se tentado a deixar-se mergulhar nas chamas e na explosão. Podia fechar os olhos e reclinar-se no assento, deixar que a gravidade e o calor o esmagassem e incinerassem. Seria tão simples render-se...
Mas quando viu toda aquela gente ali embaixo, continuou lutando com os controles. Tinha que haver alguma forma de alterar o curso e salvar o povoado.
— Não, não, não... — gemeu com voz gutural.
Leto não sentia dor física, só uma pena que atravessava seu coração como uma faca. Não suportava pensar em tudo o que perdera, não podia desperdiçar nenhum momento de reflexos e habilidade. Estava lutando pelas vidas da gente que acreditava e confiava nele.
Por fim, um dos lemes girou e o nariz do aparelho se elevou um pouco. Abriu um painel de emergência situado debaixo dos controles, e viu que suas mãos estavam vermelhas e cobertas de bolhas. As chamas se aproximavam cada vez mais. Entretanto, puxou as alavancas vermelhas com todas as suas forças, com a esperança de que os controles e cabos continuassem ativos.
À medida que o incêndio se propagava, braçadeiras de metal se abriram. O dirigível se soltou da cabine. As velas guia se romperam e foram arrastadas pelo vento, algumas chamuscadas, outras em chamas, semelhantes a cometas sem fios.
A cabine caiu, e os restos da bolsa do dirigível, livre repentinamente do peso dos passageiros e da cabine, ergueram-se como um cometa ardente no céu. A cabine se inclinou em um ângulo mais pronunciado. estenderam-se asas e frearam o descida. Os mecanismos de suspensão danificados tentaram funcionar.
Leto empurrou com força a barra de controle. O ar quente estava fundindo seus pulmões cada vez que respirava. As árvores que ladeavam as ilhas dos pântanos se ergueram para ele. Seus ramos eram dedos rígidos com pontas afiadas, um bosque de garras. Emitiu um uivo sem palavras...
Nem mesmo o fim do velho duque na praça de touros seria considerado mais espetacular que seu último brilho de glória...
No último instante, Leto arrancou um pouco de potência dos motores e suspensores danificados. Roçou o povoado, chamuscou telhados e caiu nos campos de arroz.
A cabine golpeou o solo molhado como um antigo projétil de artilharia. Barro, água e árvores quebradas saltaram pelos ares. As paredes se torceram e caíram.
O impacto jogou Leto de seu assento para a janela dianteira e caiu ao chão. Água marrom penetrou pelas aberturas da cabine, até que por fim, com um estridente estrépito, os restos da cabine pararam.
Leto deslizou para uma escuridão piedosa...
Os maiores e mais importantes problemas da vida não podem ser solucionados. Só podem ser curados com o tempo.
Irmã JESSICA
anotação em seu diário pessoal.
Sob uma ligeira chuva tropical, os mestres espadachins sobreviventes passeavam pelo que tinha sido a histórica praça central da Escola de Ginaz.
Duncan Idaho, já curtido na batalha, estava entre eles. Tinha atirado a blusa destruída. A seu lado, Hiih Resser conservava a camisa, embora estivesse empapada em sangue, sobretudo de suas vítimas. Agora, os dois eram mestres de pleno direito, mas não desejavam celebrar seu triunfo.
Duncan só desejava voltar para casa, para Caladan.
Embora tivesse transcorrido mais de um dia desde o ataque grumman, os bombeiros e as equipes de resgate continuavam trabalhando entre as ruínas, com a ajuda de cães e furões treinados, mas os sobreviventes sepultados eram poucos.
A metralha tinha destruído a outrora bela fonte da praça. Por toda parte se viam escombros fumegantes. O cheiro de morte e fogo pendia no ar, e nem as brisas marinhas o tinham dissipado.
Os soldados moritani tinham tentado um golpe. Não tinham feito preparativos (nem tinham fôlego) para uma batalha prolongada. Pouco depois que os guerreiros de Ginaz tomaram suas armas para se defender, os grumman abandonaram seus mortos. Desprezaram suas naves danificadas e correram para as fragatas que os esperavam. Sem dúvida, o visconde Moritani já estaria justificando seus atos vis, e celebrando em privado seu ataque covarde, por mais sangue de seus homens que se derramasse.
— Estudamos e ensinamos técnicas de combate, mas Ginaz não é um planeta militar — disse Whitmore Bludd. Suas roupas elegantes estavam sujas de fuligem e barro —. Nos esforçamos por ser independentes das questões políticas.
— Deixamo-nos levar pelas hipóteses e nos surpreenderam dormindo — disse Jeh-Wu, dirigindo por uma vez seu habitual sarcasmo contra si mesmo —. Teríamos matado qualquer estudante novo por tamanha arrogância. E nós somos culpados dela.
Duncan, muito cansado, olhou para aqueles homens que tinham sido tão orgulhosos e viu seu aspecto derrotado.
— Ginaz nunca deveria ter sido o objetivo de uma agressão. — Rivvy Dinari se agachou para recolher uma parte de metal que tinha feito parte de uma escultura ornamental —. Supusemos...
— Supuseram... — interrompeu Duncan, e não souberam o que responder.
Duncan e seu amigo ruivo pegaram o cadáver de Trin Kronos e o jogaram nas ondas, perto do centro de treinamento principal, o mesmo lugar onde os seqüestradores tinham jogado os cadáveres de suas outras quatro vítimas. O gesto parecia justo, a reação simbólica apropriada, mas não obtiveram a menor satisfação.
Os guerreiros menearam a cabeça, desalentados, enquanto inspecionavam o edifício administrativo danificado. Duncan jurou não esquecer jamais a arrogância dos professores, que tantos problemas tinha causado. Até os antigos compreendiam o perigo da presunção, do orgulho à queda. Por acaso os homens não tinham aprendido nada em milhares de anos?
— Confiávamos que a lei imperial nos protegeria — disse o ferido Mord Cour com voz fraca. Parecia muito diferente do homem que tinha ensinado poesia épica, cujas histórias lendárias faziam chorar os estudantes. Estava com os dois braços enfaixados —. Mas os grumman a ignoraram. profanaram nossas tradições mais sagradas, cuspiram nos alicerces do Império.
— Ninguém luta respeitando as regras — disse Duncan, incapaz de reprimir sua amargura —. O próprio Trin Kronos nos disse isso. Mas não o escutamos.
A face bochechuda de Riwy Dinari avermelhou.
— A Casa Moritani receberá uma palmada na mão — disse Jeh-Wu, com os lábios apertados —. Serão multados, talvez sofram um embargo, mas continuarão rindo de nós.
— Como vão respeitar as proezas de Ginaz? — lamentou-se Bludd —. A escola caiu em desgraça. O dano infligido a nossa reputação é imenso.
Mord Cour ergueu a vista para o céu nebuloso, e seu longo cabelo cinza pendeu como um sudário ao redor de sua cabeça.
— Temos que reconstruir a escola. Como fizeram os seguidores de Jool-Noret, depois de que o professor se afogou.
Duncan estudou o velho professor, recordou sua tumultuosa vida depois que seu povoado fora arrasado, quando vivera como um animal nas montanhas de Hagal, para depois retornar, unir-se aos bandidos que tinham assassinado seus vizinhos e sua família e aniquilá-los. Se alguém era capaz de realizar uma tarefa tão drástica, esse era Cour.
— Nunca mais ficaremos tão indefesos — prometeu Riwy Dinari com voz rouca de emoção —. Nosso primeiro-ministro prometeu estacionar duas unidades de combate aqui, e vamos comprar um esquadrão de minisubs para patrulhar as águas. Somos mestres espadachins, retos em nossa missão, e o inimigo nos pegou de surpresa. Estamos envergonhados. — Deu uma patada em uma parte de metal —. A honra está se extinguindo. Para onde irá parar o Império?
Duncan, abismado em seus pensamentos, rodeou uma poça de sangue que brilhava sob a chuva. Resser se agachou para examiná-la, como se pudesse obter alguma informação, se quem caíra era inimigo, aliado ou civil.
— Teremos que fazer muitas perguntas — disse Bludd com tom desconfiado —. Temos que averiguar o que aconteceu na realidade. — Inchou o peito —. E o faremos. Sou um soldado antes de ser um educador.
Seus companheiros emitiram grunhidos de aprovação.
Duncan viu algo que brilhava em uma pilha de escombros e se agachou para recolhê-lo. Era um bracelete de prata, e o limpou em sua manga. Dele pendiam espadas, Cruzeiros da Corporação e ornitópteros em miniatura. Duncan o entregou a Dinari.
— Esperemos que não fosse de uma menina — disse o homem corpulento.
Duncan já tinha visto quatro crianças mortas desenterradas dos escombros, filhos e filhas de empregados da Escola. A cifra final de vítimas se elevaria a vários milhares. Podia ser conseqüência do único insulto da expulsão dos estudantes de Grumman, um ato justificável em resposta ao odioso ataque da Casa Moritani contra inocentes civis ecazi, provocado pelo assassinato de um embaixador em um banquete celebrado em Arrakis que por sua vez tinha sido atiçado por suspeitas sobre sabotagem de colheitas?
Mas os estudantes de Grumman tinham escolhido entre ficar ou partir. Tudo era absurdo. Trin Kronos tinha perdido a vida por isso, e muitos com ele. Quando tudo isso terminaria?
Apesar de tudo, Resser queria voltar para Grumman, embora parecesse um ato suicida. Ali devia enfrentar seus próprios demônios, mas Duncan esperava que sobrevivesse e que se unisse ao duque Leto. Afinal, era um mestre espadachim.
Alguns professores sugeriram sem muita convicção oferecer seus serviços como mercenários a Ecaz. Outros insistiram que primeiro tinham que recuperar a honra. Em Ginaz se necessitavam de guerreiros treinados para reconstruir a Escola destruída. A prestigiosa academia demoraria anos para recuperar-se.
Mas, embora Duncan experimentasse uma profunda sensação de desolação e ira pelo acontecido, devia sua lealdade ao duque Leto Atreides. Durante oito anos, Duncan tinha se forjado em fogo como a folha de uma espada. E esta espada tinha jurado defender à Casa Atreides.
Voltaria para Caladan.
Quem busca significados onde eles não existem? Seguiria um caminho que não conduz a nenhuma parte?
Interrogadores da escola Mentat
Os pesadelos eram horríveis, mas despertar era muito pior.
Quando Leto recuperou a consciência no hospital, o enfermeiro da noite o saudou, disse-lhe que era afortunado por estar vivo. Leto não se sentiu tão afortunado. Ao ver sua expressão abatida, o enfermeiro disse:
— Há uma boa notícia. O príncipe Rhombur sobreviveu.
Leto respirou fundo e teve a impressão de que engoliu cristal moído. Sentiu o gosto de sangue no paladar.
— E Victor?
Mal pôde pronunciar as palavras. O enfermeiro sacudiu a cabeça.
— Sinto muito. — Depois de uma sombria pausa acrescentou —: O senhor necessita de mais descanso. Não quero perturbá-lo com detalhes sobre a bomba. Haverá tempo depois. Thufir Hawat está investigando. — Colocou a mão no bolso da sua bata —. Vou lhes dar um tranquilizante.
Leto negou com a cabeça.
— Dormirei sem ajuda.
Victor morreu!
O enfermeiro concordou a contra gosto, mas lhe disse que não saísse da cama. Uma unidade de chamada que se ativava mediante a voz flutuava sobre a cama. Leto só tinha que falar.
Victor morreu. Meu filho! Leto já sabia, mas agora devia enfrentar a terrível realidade. Uma bomba. Quem pôde fazer semelhante coisa?
Mesmo com as ordens do médico, o teimoso duque viu que o enfermeiro da noite entrava em um quarto do outro lado do corredor para atender outro paciente. Rhombur? De sua cama, Leto só podia ver um pedaço da porta aberta.
Levantou-se na cama, indiferente à dor. Com os movimentos de um mek avariado, afastou os lençóis que cheiravam a suor e remédios e baixou as pernas para o frio chão.
Onde estava Rhombur? Todo o resto podia esperar. Tinha que ver seu amigo. Alguém matou meu filho! Leto experimentou uma onda de ira e sentiu uma aguda pontada na cabeça.
Enfocou os olhos, deu um passo e depois outro... Tinha as costelas enfaixadas e seus pulmões queimavam. O bálsamo de plaspel o fazia sentir o rosto rígido, como se fosse de pedra macia. Não se olhou em um espelho para investigar o alcance de suas feridas. Não lhe preocupavam as cicatrizes, absolutamente. Nada podia curar os danos irreparáveis que sua alma tinha sofrido. Victor estava morto. Meu filho, meu filho!
Por incrível que parecesse, Rhombur tinha sobrevivido, mas onde estava?
Uma bomba no dirigível.
Leto avançou um passo mais, afastando-se do aparelho de diagnóstico colocado junto a sua cama. Lá fora, uma tormenta desabou, e gotas de chuva se cochavam contra as janelas. As luzes do hospital estavam ao mínimo. Saiu da habitação, cambaleante.
Ao chegar à habitação em frente, apoiou-se contra a ombreira para não cair, e piscou antes de avançar para a luz intensa do interior, onde brilhavam globos luminosos mais brancos e frios. Era uma habitação grande, dividida por uma cortina escura que oscilava nas sombras. Sentiu aromas penetrantes de produtos químicos e sistemas de purificação de ar.
Desorientado, não pensou em conseqüências nem implicações. Só sabia com certeza, como um sino que dobrasse em sua mente, que Victor estava morto. Seria uma conspiração criminosa dos Harkonnen contra a Casa Atreides? Um ataque vingativo dos tleilaxu contra Rhombur? Alguém quisera eliminar o herdeiro de Leto?
Era difícil que o duque pudesse analisar esses temas devido aos medicamentos que tinham lhe dado e ao atordoamento provocado pela dor. Mal era capaz de conservar a energia mental suficiente para passar de um momento ao próximo. O desespero era como uma manta ensopada que o asfixiava. Apesar da sua determinação, Leto se sentiu tentado a mergulhar em um consolador poço de rendição. Tenho que ver Rhombur.
Abriu a cortina e entrou. A tênue luz, um módulo de cuidados intensivos em forma de ataúde estava conectado com tubos e cabos. Leto concentrou seus esforços e avançou trabalhosamente, ao mesmo tempo que amaldiçoava a dor que entorpecia seus movimentos. Um fole mecânico bombeava oxigênio na câmara selada. Rhombur jazia dentro.
— Duque Leto!
Sobressaltado, reparou na mulher que se erguia junto ao aparelho envolta no hábito Bene Gesserit, escuro como as sombras. O rosto de Tessia estava desprovido de seu humor agudo e da beleza serena, desprovido de vida.
Perguntou-se quanto tempo a concubina de Rhombur o estava acompanhando. Jessica tinha lhe falado das técnicas Bene Gesserit, que permitiam às irmãs permanecer acordadas durante dias. Leto percebeu que nem sequer sabia quanto tempo tinha transcorrido desde que o tinham tirado dos restos do dirigível. A julgar pelo aspecto de Tessia, duvidava que tivesse descansado um momento desde o desastre.
— Vim... ver Rhombur — disse.
Tessia retrocedeu um passo e apontou para o módulo. Não ajudou Leto, e ao final o duque se aproximou do sarcófago. apoiou-se contra as juntas metálicas.
Leto inclinou a cabeça, mas fechou os olhos até que superou o enjôo e a dor diminuiu... e até que se armou de coragem para ver o que tinha acontecido ao seu amigo.
Abriu os olhos. E se encolheu de horror.
Tudo que restava de Rhombur Vernius era uma cabeça esmagada, assim como quase toda a coluna vertebral e parte do peito. O resto (membros, pele, alguns órgãos) tinha sido arrancado pela força da explosão ou reduzido a cinzas pelas chamas. Por sorte estava em coma. Era a massa de carne rasgada que tinha visto na coberta do dirigível.
Leto tentou pensar na oração apropriada da Bíblia Católica Laranja. Sua mãe teria sabido o que dizer, embora sempre lhe tivesse aborrecido a presença dos filhos de Vernius. Lady Helena afirmaria que era um castigo de Deus, porque Leto tinha ousado dar asilo a exilados de uma Casa sacrílega.
Os sistemas de manutenção de sinais vitais e os transformadores conservavam Rhombur vivo, prendiam sua alma atormentada no interior daqueles restos corporais que ainda se aferravam à existência.
Por que? Perguntou-se Leto. Por que aconteceu isto? Quem nos tem fez isto?
Ergueu a vista e viu a expressão impenetrável de Tessia. Devia estar usando todo seu treinamento Bene Gesserit para dominar sua angústia.
Embora fosse uma concubina de conveniência, Rhombur a amava com todo seu coração. Os dois tinham deixado florescer sua união, ao contrário de Leto e Kailea, e ao contrário de seus pais, cujo matrimônio nunca tinha gerado um afeto verdadeiro.
— Thufir Hawat e Gurney Halleck estiveram no lugar do acidente durante dias — disse Tessia —. Estão investigando os restos para descobrir o culpado. Sabe da bomba?
Leto assentiu.
— Thufir encontrará as respostas. como sempre. — Obrigou-se a pronunciar as palavras, a formular a pergunta que mais temia —: E o cadáver de Victor...?
Tessia afastou a vista.
— Encontraram... seu filho. O capitão da guarda, Swain Goire, esforçou-se em conservar todo o possível... embora não sei para que. Goire também amava o menino.
— Sei — disse Leto.
Contemplou a estranha forma vermelha e rosa contida dentro do aparelho que a mantinha com vida, incapaz de reconhecer seu amigo. O módulo se assemelhava tanto com um ataúde, que Leto quase se imaginou enterrando-o. Possivelmente seria o melhor.
— Posso fazer algo por ele... ou se trata de um exercício inútil?
Viu que os músculos se esticavam nas bochechas de Tessia, e seus olhos sépia se endureceram e cintilaram. Sua voz se transformou em um sussurro.
— Nunca abandonarei a esperança.
— Meu senhor duque! — A voz alarmada do enfermeiro da noite adquiriu um tom de repreensão quando entrou na habitação —. Não deve se levantar, senhor. Têm que recuperar suas forças. Sofreu graves ferimentos e não posso permitir...
Leto levantou uma mão.
— Não me fale de feridas graves quando estou ao lado do módulo de manutenção vital de meu amigo.
O rosto magro do enfermeiro avermelhou, e assentiu, mas tocou a manga de Leto com uma mão delicada.
— Por favor, meu senhor. Não vim comparar feridas. Meu dever é procurar que o duque da Casa Atreides se cure o quanto antes. Esse também é seu dever, senhor.
Tessia tocou o aparelho de manutenção vital e olhou para Leto.
— Sim, Leto. Ainda têm responsabilidades. Rhombur jamais permitiria que jogasse tudo pela amurada por causa de seu estado.
Leto deixou que o tirassem da habitação, caminhando com cuidado. Sabia que devia recuperar as forças, mesmo que fosse apenas para compreender o desastre.
Meu filho, meu filho! Quem cometeu esta canalhice?
Kailea, fechada em seus aposentos, esperou durante horas. Não falou com ninguém, não foi ver o duque, seu irmão nem a ninguém. Não podia enfrentar a verdade, a culpa monstruosa, a vergonha irredimível.
Seria só questão de tempo até que Thufir Hawat descobrisse sua culpa. Até o momento ninguém havia verbalizado suspeitas dirigidas a ela... mas logo começariam os falatórios, as fofocas, ao longo do castelo. As pessoas se perguntariam por que evitava o duque Leto.
E por isso, depois de descobrir o horário das medicações e calcular quando poderia Leto detectar a culpa assassina em seus olhos, Kailea abriu a porta de seus aposentos e caminhou com passo inseguro para o hospital. Ao cair do sol, a luz visível através das janelas tinha tingido de vermelho as massas de nuvens, como seu cabelo. Mas não viu nenhuma beleza no ocaso, só sombras entre as paredes.
Os médicos lhe deram passagem, e se retiraram da habitação para lhe facilitar intimidade com o duque. A compaixão que expressavam seus rostos lhe partiu o coração.
— Ele sofreu uma recaída, lady Kailea — disse o doutor —. Tivemos que lhe administrar mais calmantes, e é possível que esteja muito adormecido para falar.
Kailea manteve sua altivez. Seus olhos inchados se secaram quando se armou de coragem.
— Não obstante, verei-o. Ficarei ao lado de Leto todo o tempo que puder, com a esperança de que esteja consciente de minha presença.
O doutor se recordou que devia fazer algo em outro lugar.
Kailea se aproximou da cama com passo lento, como se seus pés pesassem muito. A habitação cheirava a feridas e dor, a medicamentos e desespero. Olhou para o rosto arroxeado e queimado de Leto e tentou de recordar a raiva que sentia por ele. Pensou de novo nas coisas terríveis que Chiara lhe havia dito, as variadas formas com que Leto Atreides tinha traído todas as suas esperanças, destruído seus sonhos.
Mesmo assim, recordava perfeitamente a primeira vez que tinham feito amor, quase acidentalmente, depois de o duque ter bebido muita cerveja de Caladan com Goire e os guardas. Leto tinha derramado uma jarra sobre si, rindo, e depois saiu tropeçando pelo corredor. Ali topou com Kailea, que não conseguia dormir e estava vagando pelo castelo. Ao reparar em seu estado, tinha repreendido o duque com afeto e o conduzido a seus aposentos privados.
Sua intenção era fazê-lo deitar e partir. Nada mais, embora tivesse fantasiado com isso muitas vezes. A atração que Leto sentia por ela era evidente fazia muito tempo... depois de tudo o que tinham passado, como pudera acreditar que o odiava?
Enquanto olhava para ele, indefeso e ferido, recordou o quanto gostava de brincar com seu filho. Ela tinha se negado a aceitar o quanto adorava seu filho, porque não queria acreditar.
Victor! Fechou os olhos com força e apertou as mãos contra o rosto. As lágrimas escorregaram sobre suas palmas.
Leto se remexeu, meio adormecido, e olhou para ela com seus olhos avermelhados. Demorou um longo tempo, mas ao final a reconheceu. Seu rosto pareceu livre de barreiras e do peso da liderança, e só revelava emoção.
— Kailea! — grasnou.
A jovem mordeu o lábio, sem atrever-se a responder. O que podia dizer? Ele a conhecia muito bem... Ele descobriria!
— Kailea... — Uma terrível angustia embargava sua voz —. Oh, Kailea, mataram Victor! Alguém matou nosso filho. Oh, Kailea, quem pôde fazer semelhante coisa? Por que?
Esforçou-se por conservar os olhos abertos, combatendo a bruma dos medicamentos. Kailea levou o punho à boca e mordeu os dedos até que sangraram.
Incapaz de suportar seu olhar por mais um momento, deu meia volta e saiu da habitação.
Swain Goire, cego de raiva, subiu os largos degraus que conduziam aos aposentos isolados da torre. Dois guardas estavam apostados na porta.
— Afastem-se — Goire ordenou.
Os guardas se negaram.
— Lady Kailea nos deu ordens — disse o oficial Levenbrech da esquerda, com a vista baixa, temeroso de opor-se a seu superior —. Deseja sofrer sua pena em solidão. Não comeu nem aceitou visitas. Ela...
— Quem lhe dá ordens, Levenbrech? Uma concubina, ou o chefe das tropas de nosso duque?
— Você, senhor — respondeu o soldado da direita, olhando para seu companheiro —. Mas nos põem em uma situação delicada.
— Estão dispensados — ladrou Goire —. Vão agora mesmo. Eu assumo a responsabilidade. — E em voz mais baixa acrescentou como se falasse consigo mesmo —: Sim, eu assumo a responsabilidade.
Abriu a porta, entrou e a fechou com estrépito.
Kailea vestia uma velha camisola clara. Seu cabelo avermelhado pendia desalinhado e tinha os olhos avermelhados e inchados. Estava ajoelhada sobre o chão de pedra, indiferente ao frio úmido que penetrava pela janela aberta. A lareira estava apagada.
Em suas bochechas havia arranhões vermelhos, como se tivesse tentado arrancar os olhos e tivesse perdido a coragem. Olhou para ele com uma expressão de patética esperança, quando viu alguém que talvez lhe oferecesse compaixão.
Kailea se levantou, pouco mais que o fantasma de si mesma.
— Meu filho morreu, meu irmão foi mutilado até ficar irreconhecível. — Seu rosto parecia uma caveira —. Swain, meu filho morreu.
Deu um passo para ele e estendeu as mãos como em busca de consolo. Sua boca esboçou uma paródia de sorriso suplicante, mas o homem não se moveu.
— Roubaram-me a chave do arsenal — disse —. A tiraram do cinturão do meu uniforme pouco depois que Leto anunciou seus planos para o desfile.
Kailea se deteve a um metro do seu amante.
— Como pode pensar nessas coisas quando...
— Thufir Hawat descobrirá o que aconteceu! — Rugiu Goire —. Agora sei quem pegou a chave, e sei o que significa. Seus atos a condenam, Kailea. — Estremeceu, desejando arrancar-lhe o coração com as mãos nuas —. Seu próprio filho! Como pôde fazer isso?
— Victor morreu — soluçou Kailea —. Como pode pensar que eu planejei isso?
— Queria matar o duque, não é? Vi seu pânico quando descobriu que Rhombur e Victor estavam com ele no dirigível. Quase todos os servos já suspeitam que estava envolvida.
Seus olhos flamejaram e seus músculos se esticaram, mas continuou imóvel como uma estátua.
— E você me transformou também em responsável. A segurança do dirigível era minha responsabilidade, mas demorei para compreender a importância da chave desaparecida. Tentei me convencer de que a perdera, neguei-me a considerar outras possibilidades... Deveria ter dado o alarme. — Abaixou a cabeça e continuou falando com a vista cravada no chão —. Devia ter confessado nossa relação ao duque a muito tempo, e agora você manchou minhas mãos de sangue, assim como as tuas. — Fez uma careta quando olhou para ela, enojado, e sua vista se tingiu de púrpura. A habitação girou ao seu redor —. Traí meu duque muitas vezes, mas esta foi a pior. Poderia ter impedido a morte de Victor se... pobre menino.
Kailea o atacou de repente e se apoderou da faca que Goire levava no cinto. Extraiu-a da bainha e a ergueu com os olhos chamejantes.
— Se está se sentindo tão mal, Swain, jogue-se sobre sua própria arma como um bom guerreiro, como um leal soldado Atreides. Pegue-a. Afunda a folha em seu coração, e assim não sentirá mais dor.
Goire olhou para faca mas não se moveu. Ao fim de um comprido momento, deu meia volta, como se convidasse Kailea a cravar-lhe a faca nas costas.
— A honra exige justiça, minha senhora. Verdadeira justiça, não uma saída fácil. Confessarei meus atos ao duque. — Olhou para trás enquanto se encaminhava para a porta —. Preocupe-se com sua própria culpa.
Kailea ficou com a faca na mão. Quando fechou a porta, Goire ouviu Kailea chorando, suplicando-lhe que voltasse. Mas o capitão a ignorou e partiu da torre.
Quando Kailea pediu ver sua dama de companhia, Chiara entrou na habitação, aterrorizada mas sem ousar atrasar-se. O vento assobiava através da janela aberta da torre, pela qual também penetrava o som das ondas que se quebravam contra as rochas longínquas. Kailea tinha a vista cravada na distância, e a brisa agitava sua camisola como um sudário.
— Me... chamou, minha senhora?
A anciã ficou perto da porta, e deixou que seus ombros caíssem para aparentar submissão. Arrependeu-se de não ter trazido uma bandeja com café de especiaria ou os doces favoritos de Kailea, uma oferenda de paz para acalmar os fogos instintivos da mulher.
— Vamos falar do seu plano estúpido, Chiara?
A voz de Kailea soou oca e fria. voltou-se com uma expressão que anunciava a morte.
Os instintos da dama de companhia lhe aconselharam a fugir do castelo, a desaparecer em Baía City e tomar um transporte para Giedi Prime. Podia solicitar a clemência do barão Harkonnen e gabar-se da angústia que causara ao duque, embora só com êxito parcial. Mas Kailea a paralisara, como uma serpente quando hipnotiza sua presa.
— Eu... sinto muitíssimo, minha senhora. — Chiara inclinou a cabeça e adotou um tom implorante —. Choro o sangue inocente que foi derramado. Ninguém poderia prever que Victor e Rhombur se juntassem ao desfile. Não deviam...
— Silêncio! Não quero desculpas. Sei tudo o que aconteceu, tudo o que saiu errado.
Chiara emudeceu. Estava muito nervosa, pois sabia que estavam sozinhas na habitação. Se os guardas se mantivessem em seus postos, tal como tinha ordenado, se tivesse pensado em armar-se antes de vir...
Não tinha previsto muitas coisas.
— Quando penso em todos estes anos, Chiara, lembro dos comentários que fez, todas aquelas insinuações insidiosas. Agora, seu significado está transparente, e o peso da evidência é uma avalanche contra você.
— O que... o que quer dizer, minha senhora? Só me dediquei a servi-la desde...
Kailea a interrompeu.
— Foi enviada aqui para semear a discórdia, não é? Tentou me voltar contra Leto desde o dia em que nos conhecemos. Para quem trabalha? Os Harkonnen? A Casa Richese? Os tleilaxu? — Os olhos fundos e as bochechas arranhadas se destacavam em seu rosto pálido e inexpressivo —. Tanto faz, o resultado é o mesmo. Leto sobreviveu e meu filho morreu.
Avançou um passo para a anciã, que utilizou seu tom de voz mais compassivo como um escudo.
— Sua dor a impulsiona a dizer e pensar coisas terríveis, querida minha. Tudo foi um terrível equívoco.
Kailea se aproximou mais.
— Agradeça uma coisa, Chiara. Durante muitos anos a considerei minha amiga. Victor morreu imediatamente e sem sofrer dor. Por isso lhe garanto uma morte misericordiosa.
Extraiu a faca que tinha arrebatado de Swain Goire. Chiara retrocedeu, e ergueu as mãos para se proteger.
Mas Kailea não vacilou. Precipitou-se para frente e afundou a faca no peito de Chiara. Tirou-a e voltou a cravá-la para assegurar-se de que atravessava o coração da mulher traiçoeira. Depois deixou cair a faca ao chão, enquanto Chiara desabava como um saco sobre as lajes.
O sangue salpicou a bela parede de obsidiana azul, e Kailea se ergueu e olhou seu reflexo. Não gostou do que viu.
Kailea se aproximou da janela aberta. O frio picou sua pele, mas sentia o corpo úmido, como se estivesse coberto de sangue. Segurou a pedra do parapeito e cravou a vista no horizonte, onde se fundia com o mar. As ondas lambiam a base do escarpado.
A maravilhosa cidade estalactite de IX iluminou em sua mente. Tinha passado muito tempo desde que dançava nos salões do Grande Palácio, com seus maravilhosos vestidos de seda merh. Junto com seu irmão e os gêmeos Pilru tinha admirado a enorme gruta onde os Cruzeiros eram construídos.
Como uma oração, Kailea Vernius recordou tudo o que tinha lido e todas as imagens vistas na corte imperial de Kaitain, o espetacular palácio, os jardins, os fogos musicais. Tinha desejado passar a vida no encantamento que correspondia a seu título, princesa de uma Grande Casa do Landsraad. Mas, Kailea nunca tinha alcançado as alturas ou os prodígios que desejava.
Por fim, deixando atrás de si só amargas lembranças, subiu no parapeito e estendeu os braços para voar...
Os humanos não devem comportar-se como animais.
Doutrina Bene Gesserit
Embora Abulurd conservasse oficialmente o título de governador do subdistrito de Lankiveil, ao menos em teoria, Glossu Rabban controlava o planeta e sua economia. Divertia-lhe deixar que seu pai mantivesse o título, pois não mudava a realidade de quem detinha o poder.
De qualquer modo, o que o velho louco podia fazer, encerrado em um monastério das montanhas?
Rabban desprezava os céus melancólicos, as baixas temperaturas e a gente primitiva, com seu peixe fedorento. Odiava-o porque o barão o obrigara a passar anos aqui, depois de sua fracassada missão em Wallach IX. Mas sobretudo odiava o planeta porque a seu pai gostava tanto dele.
Por fim, Rabban decidiu inspecionar o remoto armazém clandestino de especiaria, oculto décadas antes. Gostava de olhar seus tesouros de vez em quando, para comprovar que estavam seguros. Todos os registros documentários tinham sido apagados, todas as testemunhas eliminadas. Não existia a menor prova de que o barão tivesse acumulado tanta melange em segredo durante seus primeiros tempos em Arrakis.
Rabban montou uma expedição e desceu sobre a zona continental do norte, onde tinha passado dois anos nas cidades portuárias industriais e nas fábricas de processamento de pele de baleia. Acompanhado por dez soldados, navegou pelos mares do norte em um navio confiscado de uma pescaria. Seus exploratórios e técnicos sabiam onde procurar o iceberg artificial. Rabban os deixou trabalhar enquanto se acomodava em seu camarote e bebia muito conhaque kirana. Sairia a coberta quando o objetivo estivesse à vista, mas não tinha nenhum interesse em cheirar a névoa salgada ou congelar as pontas dos dedos até que fosse necessário.
O iceberg sintético era perfeito como qualquer outro bloco ártico, flutuante. Quando o navio jogou âncora, Rabban subiu a bordo do iceberg, abriu a escotilha secreta e entrou nos túneis azuis.
Só para encontrar o enorme armazém completamente vazio. Quando Rabban gritou, o som ressoou nos túneis.
— Quem fez isto?
Mais tarde, o navio se afastou do iceberg. Rabban se erguia na proa, tão furioso que o frio e a umidade já não o afetavam. O navio se encaminhou para os fiordes rochosos, onde os soldados Harkonnen invadiram os patéticos povoados pesqueiros. Pareciam muito mais bonitos do que Rabban recordava: as casas novas, os equipamentos brilhantes e funcionais. Os barcos de pesca e os arranjos, assim como os armazéns, eram modernos e bem cuidados.
Os soldados se apoderaram imediatamente dos aldeãos e os torturaram um após outro, até que a mesma resposta se repetiu uma e outra vez. Rabban tinha suspeitado antes de ouvir o nome balbuciado entre lábios ensangüentados e dente quebrados.
Abulurd.
Deveria ter adivinhado.
Na cidade de Veritas desabou um forte vento invernal. Os monges budislâmicos utilizavam água pura das fontes montanhosas para reforçar a estrutura e beleza de seu belo monastério. O coração ferido de Abulurd se recuperou tudo que era possível. Vestido com casaco e grossas luvas, segurava uma mangueira e molhava a beira da abertura da cova.
Seu fôlego se condensava em vapor, e a pele gelada de suas bochechas parecia a ponto de rachar, mas sorria enquanto movia a mangueira e acrescentava volume a prismática muralha de gelo. A barricada crescia pouco a pouco, como uma cortina ao redor da gruta, uma cúpula que cintilava ao sol, ao mesmo tempo que parava os ventos que assobiavam ao redor dos penhascos. Carrilhões e veletas tilintavam no exterior da gruta e ao longo dos penhascos. Contribuíam com energia e criavam música ao mesmo tempo.
Abulurd cortou a água para que os monges pudessem aproximar-se com pedaços de cristal colorido, que dispuseram na água gelada para criar um caleidoscópio de tons brilhantes. retiraram-se, e Abulurd jogou água de novo, afim de cobrir as lascas de cristal. À medida que a cortina gelada crescia, as jóias pintavam de arco-íris a cidade que se estendia sob o saliente.
Depois que a barreira de gelo se estendeu meio metro mais, o abade de Veritas tocou um gongo para dar por terminado o trabalho. Abulurd cortou a água e se sentou, esgotado mas orgulhoso de seu trabalho.
Tirou as luvas grossas e sacudiu a jaqueta acolchoada para romper a crosta de gelo. Depois, entrou em uma cozinha portátil fechada com janelas de plaz transparente.
Quando vários monges chegaram para servir os trabalhadores, Emmi se aproximou dele com uma terrina de pedra cheia de sopa. Abulurd aplaudiu o banco, e sua mulher se sentou com ele. O caldo era delicioso.
De repente, pelas janelas viram que uma rajada de raios laser estilhaçavam a barreira de gelo. Depois de uma segunda salva, uma nave de assalto Harkonnen apareceu diante do saliente, com as armas ainda fumegantes, e limpou a zona para poder passar sob o teto.
Os monges se dispersaram, gritando. Os trabalhadores deixaram cair uma mangueira e a água se espalhou sobre o chão de pedra.
Abulurd experimentou uma horrível sensação de déjà vu. Emmi e ele tinham vindo a Veritas para viver em paz, em segredo. Não queriam nenhum contato com o mundo exterior, sobretudo com os Harkonnen. Sobretudo com seu filho mais velho.
A nave arranhou o chão rochoso quando aterrissou. A escotilha se abriu com um vaio, e Glossu Rabban foi o primeiro a sair, flanqueado por soldados armados até os dentes, embora nenhum monge de Veritas tivesse recorrido à violência, nem sequer para defender um dos seus. Rabban brandia seu chicote.
— Onde está meu pai? — perguntou, enquanto guiava seus homens para a cozinha. Sua voz soou como duas rochas se entrechocando. Os intrusos rasgaram a fina porta de plaz, e um vento frio penetrou no interior.
Abulurd se levantou, e Emmi o agarrou com tal brutalidade que derrubou o prato de sopa. Caiu ao chão e se quebrou. Ergueu-se vapor do caldo derramado.
— Estou aqui, filho — disse Abulurd, erguido em toda sua estatura —. Não precisa quebrar nada mais.
Tinha a boca seca de medo. Os monges se afastaram, e se alegrou de que nenhum tentasse falar, porque Glossu Rabban, seu filho demoníaco, não tinha escrúpulos de disparar contra inocentes.
O homem virou-se. Franziu suas espessas sobrancelhas, e seu rosto se escureceu ainda mais. Avançou com os punhos fechados.
— O que fez com o depósito de especiaria? Torturamos as pessoas de sua aldeia de pescadores. — Seus olhos brilharam de prazer —. Todos deram seu nome. E depois torturamos mais alguns, só para ter certeza.
Abulurd se adiantou, afastando-se de Emmi e dos outros monges. Seu cabelo grisalho e loiro pendia sobre suas orelhas, empapado no suor do seu trabalho.
— Usei o depósito para ajudar o povo de Lankiveil. Depois de todos os danos que causou, eu lhes devia.
Tinha tentado preparar-se para esta eventualidade, montar um sistema de defesa passiva eficaz que lhes protegesse da ira Harkonnen. Tinha acreditado que Rabban não descobriria o roubo da especiaria até que tivesse preparado os monges. Mas não tinha atuado com rapidez suficiente.
Emmi correu para ele, com o rosto avermelhado e o cabelo negro jogado para trás.
— Basta! Deixe seu pai em paz.
Rabban não virou a cabeça nem afastou seus olhos de Abulurd. Estendeu seu braço musculoso e golpeou sua mãe. A mulher retrocedeu, cambaleante, e segurou o nariz enquanto o sangue escorria entre seus dedos e por sua bochecha.
— Como ousa bater em sua mãe?
— Baterei em quem me der vontade. Parece que você não compreende quem manda aqui. Não sabe o idiota patético que é.
— Estou envergonhado do que você se tornou.
Abulurd cuspiu no chão, enojado. Sua reação não impressionou Rabban.
— O que fez com nosso depósito de especiaria? Para onde o levou?
Os olhos de Abulurd despediram fogo.
— Ao menos uma vez, o dinheiro Harkonnen serviu para algo bom, e você nunca o recuperará.
Rabban se adiantou com a velocidade de uma víbora e agarrou a mão de Abulurd. Puxou-o para ele.
— Não vou perder tempo com você — disse, com voz profunda e ameaçadora. Retorceu o dedo indicador de Abulurd e o quebrou como um ramo seco. Depois, quebrou-lhe o polegar.
Abulurd sentiu náuseas de dor. Emmi ficou em pé e gritou. O sangue cobria sua boca e queixo.
— O que fez com a especiaria?
Rabban quebrou dois dedos da outra mão de seu pai.
Abulurd olhou para seu filho sem pestanejar, agüentando a dor que atormentava suas mãos.
— Distribuí todo o dinheiro através dúzias de intermediários. Gastamos os créditos aqui, em Lankiveil. Construímos novos edifícios, compramos maquinaria nova, mantimentos e remédios de comerciantes extraplanetarios. transportamos parte de nossa gente para outros planetas, para lugares melhores.
Rabban não acreditava em seus ouvidos.
— Gastou tudo?
Havia melange suficiente para financiar várias guerras em grande escala.
A risada de Abulurd foi um som leve, quase histérico.
— Cem Solaris aqui, mil ali.
Rabban estava a ponto de explodir, porque sabia que seu pai era capaz de ter feito o que afirmava. Nesse caso, o tesouro de especiaria estava perdido. Rabban nunca o recuperaria. Sim, poderia obter algo dos aldeãos, mas nunca recuperaria tudo o que tinha perdido.
As ondas de raiva ameaçavam arrebentar um vaso sangüíneo do cérebro de Rabban.
— Eu o matarei por isso. — Disse com absoluta segurança.
Abulurd contemplou o rosto de seu filho deformado pelo ódio, um completo desconhecido. Apesar de tudo o que Rabban tinha feito, depois de tanta corrupção e maldade, Abulurd ainda lembrava dele como um menino travesso, ainda recordava quando era um bebê nos braços de Emmi.
— Não, você não me matará. — A voz de Abulurd era mais forte do que tinha imaginado —. Por mais vil que seja, mesmo com as maldades que o barão tenha lhe ensinado, não pode cometer um ato tão atroz. Sou seu pai. Você é um ser humano, não uma besta.
Aquelas palavras desencadearam a última avalanche de emoções descontroladas. Rabban agarrou a garganta de seu pai com ambas as mãos. Emmi gritou e se jogou sobre seu filho psicótico, mas foi como tentar derrubar uma árvore. As poderosas mãos de Rabban apertaram e apertaram.
Os olhos de Abulurd saíram de suas órbitas, e tentou de defender-se com seus dedos quebrados.
Os grossos lábios de Rabban se curvaram em um sorriso. Esmagou a laringe de Abulurd e lhe quebrou o pescoço. Soltou-lhe com uma careta de desagrado, e o corpo de seu pai caiu ao chão de pedra, enquanto os monges e sua mãe gritavam.
— De agora em diante me chamarão de A Besta.
Satisfeito com o novo nome que tinha escolhido, Rabban indicou a seus homens que o acompanhassem. Depois voltaram para as naves.
Evitar morrer não é o mesmo que “viver”.
Ditado Bene Gesserit
Até a habitação mais tétrica do castelo de Caladan era uma melhora comparada com o hospital, e Leto tinha sido transportados à deliciosa suíte Paulus. A mudança de lugar, graças as lembranças que despertava, tinha a intenção de contribuir para sua recuperação.
Mas cada dia parecia o mesmo, cinza, interminável e desesperado.
— Chegaram milhares de mensagens, meu duque — disse Jessica com forçada alegria, embora seu coração sofresse por ele. Utilizou o toque mínimo de Voz manipuladora. Apontou para os cartões, cartas e cubos de mensagem que descansavam sobre uma mesa próxima. Ramos de flores adornavam a habitação, combatiam o cheiro dos medicamentos. Algumas crianças tinham feito desenhos para o duque —. Seu povo sofre com você.
O corpo queimado e mutilado de Rhombur continuava conectado a um módulo de manutenção vital no hospital. O príncipe ainda se agarrava à vida, embora estivesse melhor no depósito de cadáveres. Sobreviver assim era pior que a morte.
Ao menos, Victor está em paz. E Kailea também. Só sentia pena por ela, repugnância pelo que tinha feito.
Leto voltou a cabeça em direção a Jessica. Seu rosto expressava uma profunda tristeza.
— Os médicos fizeram o que ordenei? Tem certeza?
Obedecendo as ordens do Leto, o cadáver de seu filho tinha sido posto em suspensão criogênica no depósito de cadáveres. Era uma pergunta que fazia todo dia. Parecia esquecer a resposta.
— Sim, meu duque. — Jessica ergueu um pacote que um de seus súditos enviara, com a intenção de afastar sua mente da dor insuportável —. É de uma viúva do continente oriental. Diz que seu marido era funcionário a seu serviço. Note na holofoto. Ela segura uma placa que lhe deram, em honra aos serviços que seu marido prestou à Casa Atreides. Agora, seus filhos anseiam trabalhar para você. — Jessica acariciou seu ombro, e depois tocou o sensor que desconectava a holofoto —. Todos desejam que se recupere.
Os cidadãos tinham depositado velas e flores pelo caminho que subia até o castelo de Caladan. Montanhas de flores se amontoavam debaixo das janelas, para que a brisa do mar transformasse o perfume. As pessoas cantavam onde pudesse ouvi-las. Alguns tocavam a harpa ou o baliset.
Jessica desejava que Leto saísse e saudasse a multidão. Queria que se sentasse em seu trono do pátio e escutasse os pedidos, queixas e elogios do povo. Levaria os objetos de seu cargo, pareceria maior que qualquer outro ser humano, como o velho duque lhe tinha ensinado. Leto precisava distrair-se e seguir adiante, e talvez o ritmo da vida cotidiana começasse a curar seu coração destroçado. O ofício da liderança.
Seu povo necessitava dele.
Jessica ouviu um grasnido em frente a janela, e viu que era um falcão marinho, com cabos atados a suas patas. Um adolescente segurava o cabo, e olhava esperançoso para a diminuta janela do castelo. Jessica tinha visto Leto falando com o rapaz em uma ocasião, um dos aldeãos amigo do duque. O falcão passou de novo em frente a habitação de Leto, esquadrinhou o interior, como se a multidão concentrada abaixo pudesse ver através dos olhos da ave.
O rosto do duque mergulhou em uma profunda melancolia, e Jessica olhou-o com amor. Não posso protegê-lo do mundo, Leto. Sempre tinha se assombrado com sua fortaleza de caráter. Agora, preocupava-se com a fragilidade de seu espírito. Embora teimoso e inflexível, o duque Leto Atreides tinha perdido a vontade de viver. O homem que tanto admirava estava morto na prática, apesar de seu corpo estar se recuperando.
Não podia permitir que morresse, não só porque a Bene Gesserit lhe tinha ordenado que concebesse uma filha dele, mas porque ansiava ver Leto recuperado e feliz de novo. Em silêncio, prometeu que faria todo o possível por ele. Murmurou uma oração Bene Gesserit.
— Grande Mãe, cuide daqueles que são dignos de ti.
Durante os dias seguintes se sentou e conversou com Leto repetidamente. O duque respondeu aos serenos e generosos cuidados de Jessica, e começou a melhorar pouco a pouco. A cor retornou a seu rosto magro. Sua voz adquiriu maior energia, e as conversas ficaram cada vez mais longas.
Mesmo assim, seu coração estava morto. Tinha sido informado da traição de Kailea, do assassinato de sua dama de companhia, e de que a mulher a que amara se jogou por uma janela. Mas não sentia raiva por ela, nem obsessão por vingar-se... só uma tristeza doentia. A faísca de amor e paixão tinha desaparecido de seus olhos.
Mas Jessica não se rendia, nem deixava que ele o fizesse.
Pôs um alimentador de aves no balcão, e Leto via freqüentemente carriças, pardais e tentilhões. Deu nome aos pássaros que vinham com freqüência. Para um homem sem o treinamento Bene Gesserit, a capacidade do duque para distinguir animais tão similares impressionava Jessica.
Uma manhã, quase um mês depois da explosão do dirigível, Leto disse a Jessica:
— Quero ver o Victor. — Sua voz era peculiar, carregada de sentimento —. Agora sou capaz de fazê-lo. Me leve até ele, por favor.
Sustentou seu olhar. Jessica viu em seus olhos que nada poderia dissuadi-lo.
Tocou-lhe o braço.
— Ele está... muito pior que Rhombur. Não precisa fazer isso, Leto.
— Sim, Jessica... Devo fazê-lo.
Na cripta, Jessica pensou que o cadáver de Victor parecia quase plácido, conservado no ataúde criogênico. Talvez fosse porque Victor, ao contrário de Rhombur, estava a salvo em um lugar onde a dor não podia alcançá-lo.
Leto abriu a tampa e estremeceu quando introduziu a mão entre a névoa gelada. Apoiou a mão direita sobre o peito envolto do menino. E falou com seu filho morto, fez isso mentalmente, porque não pronunciou qualquer palavra. Seus lábios mal se moveram.
Jessica testemunhou a dor de Leto. Victor e ele não poderiam mais passar momentos juntos. Nunca poderia ser o pai que o menino merecia.
Apoiou a mão sobre o ombro de Leto para consolá-lo. Seu coração se acelerou e procurou acalmá-lo, com técnicas Bene Gesserit. Entretanto, não conseguiu. Ouviu um murmúrio e uma agitação dentro de sua psique, nas profundezas mais recônditas de sua mente. O que era? Não podiam ser os ecos da Outra Memória, porque ainda não era uma reverenda madre. Mas intuiu que as antigas irmãs estavam preocupadas com algo muito grave, que transcendia os limites normais. O que está acontecendo aqui?
— Agora já não tenho a menor duvida — disse Leto, como se estivesse em transe —. A Casa Atreides está amaldiçoada... e esteve assim desde os tempos de Agamenon.
Quando levou Leto do depósito de cadáveres, Jessica teve que tranquilizá-lo, dizer que estava equivocado. Quis recordar ao duque tudo o que sua família tinha obtido, o respeito que alcançara por todo Império.
Mas não encontrou as palavras. Tinha conhecido Rhombur, Victor e Kailea. Não podia discutir com os temores de Leto.
Somos humanos e carregamos todo o peso de ser humano.
Duque LETO ATREIDES
A chuva repicava nas janelas da habitação de Leto, enquanto pensamentos encadeados desfilavam por sua mente. A tormenta fazia eco com seu estado de ânimo.
Leto tremia em uma cadeira alta que parecia diminuí-lo. Com os olhos fechados, imaginou o rosto de Victor, o cabelo e as sobrancelhas negras do menino, a curiosidade insaciável, a risada pronta e exuberante... a jaqueta ducal infantil e os galões muito grandes que usava no momento de sua morte.
Os olhos de Leto se acostumaram à escuridão. Imaginou que as sombras adotavam formas. Por que não pude ajudar meu filho?
Abaixou a cabeça e falou em voz alta, conversou com fantasmas.
— Se pudesse fazer algo por Victor, por menor que fosse, venderia todas as posses da Casa Atreides.
Sua dor ameaçava enlouquecê-lo.
Ouviu alguém batendo na porta com força. Devia ser Thufir Hawat. Leto se moveu lentamente, sem forças. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Em qualquer outro momento teria a cortesia de receber seu Mestre de Assassinos como merecia... mas agora não, em plena noite.
Hawat abriu a porta.
— Meu duque — disse. Cruzou a habitação e estendeu um cilindro de mensagem prateada —. Este documento acaba de chegar ao espaçoporto.
— Mais condolências? Pensei que todas as Casas do Landsraad as tinham enviado. — Leto não conseguia focar seus olhos —. Não me atrevo a esperar que sejam boas notícias.
— Não, meu duque. — O rosto enrugado de Hawat pareceu afrouxar-se —. É dos Bene Tleilax.
Depositou o cilindro nas mãos tremulas de Leto.
Leto rompeu o timbre com o cenho franzido e leu a mensagem, perversa em sua simplicidade, espantoso pela promessa. Tinha ouvido falar de tais possibilidades, práticas sinistras que provocavam calafrios de repugnância em qualquer ser humano normal. Oxalá fosse certo. Tinha evitado pensar nos tleilaxu, mas agora os anões apresentavam a oferta.
Hawat esperava, disposto a servir seu duque, e mal dissimulava seu medo.
— Thufir... Eles se oferecem para cultivar um ghola do Victor, ressuscitá-lo de suas células mortas, para que... volte a viver.
Nem mesmo o Mentat pôde ocultar seu estupor.
— Meu senhor! Não deve nem pensar...
— Os tleilaxu poderiam faxê-lo, Thufir. Poderia recuperar meu filho.
— A que preço? Acaso mencionam? Isto cheira mau, senhor. Esses homens odiosos destruíram IX. Ameaçaram matá-lo durante o Julgamento por Confisco. Jamais ocultaram seu ódio pela Casa Atreides.
Leto contemplou a mensagem.
— Ainda acreditam que disparei contra suas naves dentro do Cruzeiro. Agora, graças a Bene Gesserit, sabemos quem foi o verdadeiro culpado. Poderíamos contar aos tleilaxu sobre os Harkonnen e sua nave invisível...
O Mentat ficou rígido.
— Meu senhor, a Bene Gesserit se negou a nos entregar provas. Os tleilaxu nunca acreditariam sem provas.
Leto falou com voz tênue e desesperada.
— Mas não existe outra chance. Por meu filho negociarei com quem for, pagarei qualquer preço.
Desejava ouvir de novo a voz do menino, ver seu sorriso, sentir o contato de seu mão.
— Devo lembrá-lo que, embora um ghola possa ser uma cópia exata em todos os aspectos, o novo menino não possuiria as lembranças de Victor, nem sua personalidade.
— Mesmo assim, não seria melhor que ter só lembranças e um cadáver? Desta vez o nomearei como meu herdeiro legítimo.
A idéia o encheu de um pesar incomensurável. Um ghola de Victor cresceria normalmente, ou estaria influenciado pelo conhecimento do que era? E se os Bene Tleilax, tão hábeis em criar Mentats pervertidos, manipulassem a estrutura genética do menino? Um complô secreto para atacar o duque através da pessoa que mais amava.
Não obstante, Leto correria o risco de condenar-se por Victor. Estava impotente ante a decisão. Não tinha alternativa.
Hawat falou com voz rouca e tensa.
— Meu senhor, como seu Mentat, como seu amigo, aconselho contra esta decisão precipitada. É uma armadilha. Sabe que os tleilaxu pretendem apanhá-lo em seu teia venenosa.
Leto se aproximou mais do Mestre de Assassinos. Hawat retrocedeu quando percebeu a fúria demente que brilhava nos olhos de Leto. Parecia não ter escutado seus protestos.
— Thufir, não posso confiar esta missão a outra pessoa senão a você. — Respirou fundo. O desespero ardia como fogo em sua corrente sangüínea —. Entre em contato com os tleilaxu. Diga-lhes que desejo... — mal pôde pronunciar as palavras — conhecer suas condições. — Seu sorriso provocou um calafrio em Hawat —. Pense nisso, Thufir. Recuperarei meu filho!
O velho guerreiro apoiou uma mão robusta sobre o ombro de Leto.
— Descanse, meu senhor, e reflita nas implicações do que sugere. Não devemos oferecer nossas gargantas aos Bene Tleilax. Imagine o preço. O que pedirão em troca? Aconselho-o a rechaçar esta idéia como impossível.
— Eu sou o duque da Casa Atreides — gritou Leto —. Só eu dito o que é possível aqui.
O tortura de sua vida destruída nublou sua concentração. Havia círculos escuros sob seus olhos.
— Estamos falando de meu filho, meu filho morto, e ordeno que me obedeça. Entre em contato com os tleilaxu.
O dia da chegada de Duncan Idaho deveria ter sido celebrado por todo o planeta, mas a tragédia do dirigível tinha entristecido a todo Caladan.
Um Duncan muito mudado desembarcou no espaçoporto municipal de Caladan e aspirou uma profunda baforada de ar salgado. Olhou ao redor com olhos faiscantes e expressão ansiosa. Viu Thufir Hawat, com o uniforme negro adornado com medalhas militares, à frente de uma guarda de honra. Quantas formalidades! Ajudantes com uniformes vermelhos avançaram para a rampa para escoltar os passageiros até as alfândegas.
Hawat mal reconheceu o recém-chegado. Os cachos negros juvenis de Duncan se transformaram em cabelo espesso e áspero, e sua tez estava bronzeada e avermelhada. O jovem, muito mais musculoso que antes, movia-se com graça atlética, com cautela mesclada com confiança. Usava com orgulho calças cáqui de Ginaz e um lenço vermelho. A espada do velho duque pendia a seu lado, um pouco mais usada, mas recém polida e afiada.
— Thufir Hawat, você não mudou nada, velho Mentat!
Duncan correu a apertar a mão do guerreiro.
— Você, entretanto, mudou muito, Duncan Idaho. Ou devo chamá-lo de mestre espadachim Idaho? Me lembro do pirralho que se entregou à mercê do duque Paulus. Acredito que está um pouco mais alto.
— E mais sábio, espero.
O Mentat fez uma reverência.
— Temo que os acontecimentos nos obrigaram a adiar uma celebração de boas-vindas em sua honra. Permita que um de meus homens o acompanhe ao castelo. Leto se alegrará ao ver sua cara de novo. Sargento Vitt, acompanhe Duncan, por favor.
Hawat subiu a rampa e abordou a lançadeira, afim de partir para o Cruzeiro em órbita. Ao ver a expressão perplexa do jovem, Hawat compreendeu que Duncan não sabia nada a respeito da tragédia. Não tinha conhecido o filho de Leto, embora não havia dúvida de que soubesse da existência do menino através da correspondência.
— O sargento Vitt lhe explicará tudo — acrescentou o Mentat com o mais lúgubre dos tons.
O sargento, um homem corpulento com cavanhaque, concordou.
— Temo que será a história mais triste que contei.
Sem mais explicações, Hawat entrou na lançadeira, carregando uma bolsa de documentos que o duque enviava aos tleilaxu.
O Mentat passou a língua pelo interior da boca e tocou uma zona dolorosa onde lhe tinham implantado um minúsculo injetor. O aparelho projetava um minúsculo mas potente jorro de anti-sépticos, antitoxinas e antibióticos cada vez que mastigava algo. Tinham-lhe ordenado que se reunisse cara a cara com os tleilaxu, e nem sequer um Mestre de Assassinos podia imaginar as enfermidades e venenos que aquela gente odiosa podia utilizar contra ele.
Hawat estava decidido a não permitir que se aproveitassem da situação, face às rigorosas instruções do duque Leto. Discordava com veemência da decisão de Leto, mas devia tirar o máximo partido da situação.
Nas masmorras do castelo de Caladan, depois de um campo de contenção, Swain Goire tinha a vista cravada na escuridão, pensava em outros tempos, em outros lugares. Vestido com um magro uniforme de prisioneiro, tremia por causa da umidade.
Por que sua vida tinha mudado de maneira tão drástica? Tinha lutado por melhorar sua situação. Tinha jurado lealdade ao duque. Tinha amado tanto o pequeno Victor...
Sentado em seu beliche, embalava o hipoinjetor em sua mão, acariciava com o polegar a fria superfície de plaz da manga. Gurney Halleck o tinha passado às escondidas, para facilitar ao capitão da guarda caído em desgraça uma saída honrosa. A qualquer momento, Goire podia injetar veneno nas veias. Se tivesse a coragem... ou a covardia...
Em sua mente, os anos se fundiram como se estivessem derretidos por um raio laser. Goire recordou que tinha crescido na pobreza em Impregna Bay, ganho dinheiro para sua mãe e duas irmãs menores como pescador. Nunca tinha conhecido seu pai. Com a idade de treze anos, Goire conseguira um emprego nas cozinhas do castelo de Caladan, limpando fornos e despensas, esfregado chão. O chef era severo mas bondoso, e o ajudara ao jovem.
Quando Goire fez dezesseis anos, pouco depois da morte do velho duque, ingressou na guarda e foi subindo de patente até transformar-se em um dos homens de confiança do duque Leto. O duque e ele diferiam poucos meses, e por diferentes caminhos amaram a mesma mulher: Kailea Vernius.
E Kailea tinha arruinado suas vidas antes de lançar-se de uma janela.
Durante o minucioso interrogatório de Thufir Hawat, Goire não tinha dado desculpas. Confessou tudo, até mesmo como tinha contribuído com delitos adicionais para aumentar sua culpa, com a esperança de sobreviver à dor, ou morrer dela. Devido a sua loucura, tinha permitido a Kailea o acesso a chave do arsenal, e assim Chiara obteve os explosivos. Nunca conspirou para matar o duque, pois o amava e ainda era assim.
Depois, Gurney Halleck lhe entregara o veneno.
— Aceite a única alternativa que resta — disse, sem a menor sombra de compaixão —. A alternativa da honra.
Deixou o hipoinjetor na cela de Goire e se foi.
Goire acariciou com um dedo a agulha. Com apenas uma espetada, poria fim a sua vida arruinada. Respirou fundo, fechou os olhos. Lágrimas correram sobre suas bochechas.
— Espere, Swain.
Faixas de luz se acenderam no teto. Abriu os olhos e viu a agulha afiada. Suas mãos tremiam. Voltou-se pouco a pouco para a voz.
O campo de contenção se apagou, e o duque Atreides entrou, seguido de Halleck, que parecia aborrecido. Goire ficou petrificado, com o injetor estendido a frente dele. Apenas a visão do duque, ainda enfaixado, mal recuperado de suas piores feridas, esteve a ponto de lhe matar. Aguardou resignado o castigo que Leto decretasse.
O duque fez o pior que podia imaginar. Apoderou-se do injetor.
— Swain Goire, é o homem mais digno de compaixão — disse Leto em voz baixa, como se lhe tivessem arrebatado a alma —. Amava meu filho e jurou protegê-lo, mas contribuiu para a morte dele. Amava Kailea, e me traiu com minha própria concubina que afirmava me amar. Agora Kailea morreu, e jamais poderá recuperar minha confiança.
— Nem a mereço.
Goire olhou para os olhos de Leto, atormentado pela angústia.
— Gurney quer que eu o execute... mas não vou permitir isso — disse Leto, cada palavra como um murro —. Swain Goire, sentencio-o a viver... a viver com o que fez.
O homem guardou silêncio durante um longo momento, estupefato. Brotaram lágrimas de seus olhos.
— Não, meu duque. Não, por favor.
Gurney Halleck o fulminou com o olhar.
— Swain, não acredito que volte a trair a Casa Atreides, mas seus dias no castelo de Caladan terminaram. Enviarei-o ao exílio. Irá sem nada, além de seus crimes.
Halleck não pôde mais se conter.
— Mas, senhor, não pode deixar este traidor vivo, depois de tudo o que fez! Isso é justiça?
Leto lhe dirigiu um olhar frio e duro.
— Gurney, isto é justiça no mais puro sentido da palavra... E um dia meu povo compreenderá que não havia castigo mais apropriado.
Goire se deixou cair contra a parede. Respirou fundo e conteve um gemido.
— Um dia, meu senhor, eles o chamarão de Leto o Justo.
Nenhuma pessoa pode saber o que há no coração de outra. Todos somos Dançarinos Faciais no fundo da alma.
Manual secreto tleilaxu
Sob o sol de Thalim, os Bene Tleilax fechavam seus planetas aos forasteiros, mas permitiam que representantes seletos aterrissassem em zonas de quarentena específicas, onde não haviam objetos sagrados. Assim que Thufir Hawat partisse, os tleilaxu desinfetariam cada superfície que houvesse meio tocado.
A cidade principal de Bandalong distava cinqüenta quilômetros do complexo do espaçoporto, construída em uma planície desprovida de estradas e vias férreas. Quando a lançadeira desceu, Hawat estudou a imensa extensão e calculou que Bandalong albergava milhões de pessoas. Mas o Mentat, um forasteiro, não podia ir à cidade. Conduziria seus assuntos em um dos edifícios do espaçoporto. E depois, voltaria para Caladan.
Hawat estava entre a dúzia de passageiros da lançadeira, a metade dos quais eram tleilaxu. Os outros pareciam homens de negócios que iam comprar produtos biológicos, como olhos novos, órgãos sãos, Mentats pervertidos, ou um ghola, assim como Hawat.
Quando saiu para a plataforma, um homem de pele cinzenta correu para interceptá-lo.
— Thufir Hawat, Mentat dos Atreides? — O diminuto homem exibiu uns dentes afiados quando sorriu —. Sou Wykk. Acompanhe-me.
Sem lhe apertar a mão nem esperar resposta, Wykk conduziu Hawat por uma passarela em espiral até uma rede de rios subterrâneos, onde abordaram um barco automático. De pé na coberta, agarraram-se aos corrimões quando a embarcação acelerou na água lamacenta, deixando uma considerável esteira atrás.
Depois de desembarcar, Hawat se abaixou para seguir seu guia até um vestíbulo imundo, em um dos edifícios periféricos do espaçoporto. Três tleilaxu estavam falando. Outros atravessavam o vestíbulo a bom passo. Não viu mulheres em nenhuma parte.
Uma máquina mensageira (de fabricação ixiana?) deteve-se ante o tleilaxu. Este recolheu um cilindro metálico de uma bandeja e o entregou ao Mentat.
— A chave de sua habitação. Deve ficar no hotel.
Hawat observou hieróglifos no cilindro que não reconheceu, e um número em galach imperial.
— Dentro de uma hora se encontrará com o Mestre aqui. — Wykk indicou uma das portas, através da qual se viam várias mesas alinhadas —. Se não se apresentar à entrevista, enviaremos investigadores para buscá-lo.
Hawat estava muito rígido, resplandecente em seu uniforme militar.
— Serei pontual.
Sua habitação consistia de uma cama, lençóis manchados e dejetos de inseto nos parapeitos das janelas. Thufir analisou a habitação com um exploratório manual em busca de microfones ou câmaras ocultas, mas não descobriu nenhum, o que devia significar que eram muito sutis para que seu exploratório o detectasse, ou de fabricação esotérica.
Apresentou-se à entrevista dez minutos antes e viu que o restaurante estava ainda mais sujo que a habitação: toalhas manchadas, serviços de mesa sem lavar, copos rachados. Um murmúrio de conversa flutuava no ar, em um idioma que não entendeu. Todos os aspectos do lugar tinham sido pensados para que os visitantes se sentissem incomodados, para forçá-los a partir o mais rápido possível.
Essa era a intenção de Hawat.
Wykk saiu detrás de um mostrador e o conduziu até uma mesa situada junto a uma ampla janela de plaz. Já havia outro homem diminuto sentado à mesa, que tomava colheradas de sopa. Vestido com uma jaqueta vermelha, calças largas e sandálias, levantou a vista sem se incomodar em secar a sopa que gotejava do seu queixo.
— Mestre Zaaf — disse Wykk, e indicou uma cadeira do outro lado da mesa —, apresento-lhe Thufir Hawat, representante dos Atreides. Em relação a nossa proposta.
Hawat limpou migalhas da cadeira antes de sentar-se à mesa muito pequena para um homem de seu tamanho. Reprimiu qualquer amostra de nojo.
— Em honra a nossos convidados de outros planetas, preparamos uma deliciosa sopa de bacer — disse Zaaf.
Um escravo mudo chegou com uma sopeira e verteu o líquido em uma terrina. Outro escravo deixou cair pedaços de carne sanguinolenta diante de ambos os homens. Ninguém se incomodou em identificar a carne.
Sempre consciente da segurança, Hawat olhou ao redor e não viu detectores de veneno. Suas defesas lhe bastariam.
— Não tenho muita fome, considerando a mensagem difícil que trago de meu duque.
O Mestre Zaaf ficou esmiuçando um pedaço de carne com suas pequenas mãos, e o meteu na boca. Fez ruídos grosseiros enquanto comia, como se tentasse ofender Hawat.
Zaaf limpou o queixo com a manga. Olhou para o Mentat com os olhos negros cintilantes.
— É habitual compartilhar a comida durante este tipo de negociações. — Trocou seu prato e a terrina pelos de Hawat, e começou outra vez —. Coma, coma!
Hawat utilizou uma faca para cortar uma parte pequena de carne. Só comeu o que a cortesia exigia, e sentiu que o injetor implantado em sua boca funcionava com cada pedaço. Engoliu com dificuldade.
— Trocar os pratos é uma antiga tradição — disse Zaaf —, nossa maneira de mostrar se a comida está envenenada. Neste caso, você, como convidado, devia ter insistido, não eu.
— Não esquecerei disso — respondeu Hawat, e se ateve a suas instruções —. recebemos recentemente uma oferta dos tleilaxu para cultivar um ghola do filho de meu duque, falecido em um terrível acidente. — Hawat extraiu um documento dobrado do bolso da jaqueta, passou-o por cima da mesa, e este se manchou imediatamente de gordura e sangue —. O duque Atreides me pediu que pergunte suas condições.
Zaaf mal olhou para o documento, e depois o deixou a um lado para concentrar-se em sua carne. Comeu tanto quanto quis, e depois a mudou de um lugar a outro com um líquido turvo de uma taça. Agarrou o documento e ficou em pé.
— Agora que confirmamos seu interesse, decidiremos o preço que consideramos aceitável. Fique em sua habitação, Thufir Hawat, e aguarde nossa resposta.
Aproximou-se mais do Mentat, e Hawat distinguiu o ódio mais encarniçado para os Atreides atrás de suas pupilas.
— Nossos serviços não são baratos.
Os humanos são propensos a exigir coisas impossíveis de nosso universo, a formular perguntas absurdas. Com excessiva freqüência, fazemos tais perguntas depois de adquirir uma experiência dentro de um marco ou referência que mantém escassa ou nula relação com o contexto onde se formula a pergunta.
Observação zensunni
Em uma de suas poucas tardes de descanso, enquanto tomava sol no pátio de sua propriedade richesiana, a mente do doutor Wellington Yueh seguia preocupada com mapas nervosos e diagramas de circuitos. O laboratório artificial que era a lua de Korona sulcava o céu em uma órbita baixa, coisa que fazia duas vezes ao dia.
Depois de oito anos, Yueh quase tinha esquecido suas experiências desagradáveis com o barão Vladimir Harkonnen. O médico Suk tinha alcançado muitos lucros no ínterim, e suas pesquisas eram mais interessantes que uma simples enfermidade.
Yueh tinha investido o pagamento extravagante do barão nas instalações do laboratório que rodeavam sua nova propriedade em Richese, e conseguira grandes avanços no desenvolvimento de cyborgs. Assim que tivesse solucionado o problema do receptor eletronervoso biológico, daria novos passos com rapidez. Novas técnicas, novas tecnologias e, para alegria dos richesianos, novas oportunidades comerciais.
O primeiro-ministro Ein Calimar já tinha obtido humildes benefícios do projeto, e vendia em segredo os desenhos de Yueh para mãos, pés, ouvidos e olhos ópticos-sensores biônicos. Era o empurrão que a economia richesiana necessitava.
O agradecido primeiro-ministro tinha recompensado o médico com uma elegante vila e uma imensa extensão de terreno na península da Manhã, junto com toda uma dotação de criados. Wanna, a mulher de Yueh, desfrutava da casa, sobretudo da biblioteca e dos lagos de meditação, enquanto o médico passava a maior parte de seu tempo nas instalações de pesquisa.
Depois de tomar um gole de chá de flores, o médico viu que um ornitóptero branco e dourado aterrissava sobre uma ampla extensão de grama situada junto à beira da água. Um homem vestido com um traje branco desceu e subiu um suave pendente em sua direção, com passo ligeiro apesar da sua avançada idade. A luz do sol se refletiu nas lapelas douradas.
Yueh se levantou da cadeira e inclinou a cabeça.
— A que devo a honra de sua visita, primeiro-ministro Calimar?
O corpo envelhecido de Yueh era magro e robusto, e seu longo cabelo escuro estava preso em um rabo-de-cavalo por um só aro de prata.
Calimar se sentou a uma mesa sombreada. Enquanto escutava cantos de pássaros gravados que emitiam alto-falantes ocultos nos arbustos, despediu com um gesto um criado que chegava com uma bandeja de bebidas.
— Doutor Yueh, eu gostaria que refletisse sobre o problema Atreides, e sobre Rhombur Vernius, que está gravemente ferido.
Yueh acariciou seu longo bigode.
— Trata-se de um caso infeliz. Muito triste, pelo que me contou minha esposa. A concubina de Rhombur também é uma Bene Gesserit, como minha Wanna, e sua mensagem era muito desesperada.
— Sim, e talvez pudesse ajudá-lo. — Os olhos de Calimar cintilaram por trás de seus óculos —. Estou seguro de que obteria um preço extravagante.
O pedido não agradava Yueh, que se sentia satisfeito em sua propriedade, mas recordou quanto havia por fazer. Não queria mudar suas instalações, sobretudo para o chuvoso Caladan, mas tinha começado a aborrecer-se neste planeta tão parecido com um parque, ainda mais porque não encontrava outros desafios além do trabalho iniciado há anos.
Pensou nas lesões de Rhombur.
— Jamais realizei uma substituição tão completa de um corpo humano. — passou um dedo pelo bigode —. Será uma tarefa formidável, e exigirá grande parte de meu tempo. Talvez tenha que me instalar em Caladan.
— Sim, e o duque Atreides pagará com generosidade. — Os olhos de Calimar continuavam brilhando atrás de seus óculos —. Não podemos desperdiçar uma oportunidade como esta.
O salão principal do castelo de Caladan parecia muito grande, assim como o trono ducal, do qual Paulus Atreides tinha administrado justiça durante tantos anos. Leto parecia incapaz de encher os imensos espaços que o rodeavam, ou o de seu coração. De qualquer modo, tinha saído de seus aposentos. Era um progresso, ao menos.
— Duncan Idaho me informou que algo a preocupa muito, Tessia. — Leto olhou para a esbelta mulher que se erguia diante dele, de cabelo castanho muito curto —. Pediu que viesse um médico Suk, um especialista em cyborgs?
Tessia, que vestia um manto de veludo resplandecente, remexeu-se sobre seus pés e assentiu. Não afastou seus olhos sépia dele, os quais projetavam uma determinação quase desafiante.
— Disseram-me que encontrasse uma forma de ajudá-lo. Foi o que fiz. É a única chance de Rhombur. —Seu rosto se ruborizou —. Por que negar-lhe isso?
Duncan Idaho, o novo mestre espadachim, vestido com o uniforme negro e vermelho Atreides, franziu o cenho.
— Falou em nome do duque, fez promessas sem avisá-lo antes? Não é mais que uma concubina...
— Meu duque me deu permissão para dar os passos necessários. — Tessia se voltou para Leto —. Prefere que Rhombur continue como está, ou quer pedir aos tleilaxu que cultivem partes do corpo substitutivas? Meu príncipe preferiria morrer, se essa fosse a única alternativa. Os experimentos com cyborgs do doutor Yueh nos oferecem outra possibilidade.
Enquanto Duncan continuava carrancudo, Leto assentiu sem perceber. Estremeceu ao pensar nas mudanças que o corpo de seu amigo sofreria.
— Quando o médico Suk deve chegar?
— Dentro de um mês. Rhombur continuará em manutenção vital até esse momento, e o doutor Yueh necessita tempo para construir os componentes que compensarão as... perdas de Rhombur.
Leto respirou fundo. Tal como seu pai tinha insistido muitas vezes, um líder sempre devia manter o controle, ou dar a impressão de que o fazia. Tessia agira impulsivamente, falado em seu nome, e Duncan Idaho tinha razão em zangar-se. Mas Leto jamais se oporia a pagar todos os Solaris necessários para ajudar Rhombur.
Tessia se ergueu em toda sua estatura, e o amor que brilhou em seus olhos era autêntico.
— Há complexidades políticas que devem ser levadas em conta, senhor — advertiu Duncan Idaho —. Vernius e Richese foram rivais durante gerações. Pode se tratar de uma conspiração.
— Minha mãe era uma Richese — disse Leto —, e portanto, eu também, embora pelo ramo feminino. O conde Libam, um simples pavão de Richese, não se atreveria a nos atacar.
Duncan franziu o sobrecenho.
— Os cyborgs se compõem de partes vivas, uma mescla de corpo e máquina.
Tessia não recuou.
— Enquanto nenhuma das partes imitar o funcionamento de uma mente humana, não temos nada a temer.
— Sempre há algo que temer — disse Duncan, pensando na inesperada emboscada e matança de Ginaz. Desejava falar como Thufir Hawat, que ainda não tinha retornado das negociações com os tleilaxu —. Os fanáticos não examinam as provas com racionalidade.
Leto ainda não se recuperara totalmente de suas feridas. Exalou um suspiro de cansaço e ergueu uma mão para silenciar o jovem, antes que continuasse discutindo.
— Basta, Duncan, Tessia. Claro que pagaremos. Se houver uma possibilidade de salvar Rhombur, nós a aproveitaremos.
Em uma tarde nublada, Leto estava sentado em seu estúdio tentando concentrar-se nos negócios de Caladan. Durante anos, mesmo quando sua relação se deteriorara, Kailea tinha trabalhado mais do que Leto tinha suspeitado. Suspirou e voltou a repassar os números.
Thufir Hawat irrompeu na habitação, recém-chegado do espaçoporto. Muito preocupado, o Mentat deixou cair um cilindro de mensagem selada sobre a mesa e retrocedeu, enojado.
— Dos tleilaxu, senhor. Suas condições.
O duque Leto levantou o cilindro, olhou com ar pensativo para Hawat, em busca de alguma pista, alguma reação. Atemorizado de repente, abriu o cilindro. Uma folha de papel caiu com tanta suavidade como se fosse feita de pele humana. Leu as palavras rapidamente, e seu pulso se acelerou.
“Aos Atreides: depois do seu ataque contra nossas naves de transporte e sua tortuosa fuga através da justiça, os Bene Tleilax aguardaram a oportunidade da desforra.”
As palmas das suas mãos se umedeceram de suor quando continuou. Leto sabia que Thufir Hawat discordava da idéia de oferecer aos tleilaxu informação sobre a nave de ataque invisível Harkonnen. Se muita gente soubesse da perigosa tecnologia, podia cair em mãos erradas. Por enquanto, os restos pareciam a salvo com as Bene Gesserit, que não tinham aspirações militares.
Não obstante, uma coisa era certa: os tleilaxu nunca acreditariam sem provas.
“Podemos lhe devolver seu filho, mas em troca de um preço. Não serão Solaris, especiaria, nem outros produtos valiosos. Exigimos que nos entregue o príncipe Rhombur, o último membro da linhagem Vernius e a única pessoa que continua ameaçando nossa posse do Xuttuh.”
— Não... — sussurrou Leto. Hawat observava-o como uma estátua sombria.
Continuou lendo.
“Garantimos que Rhombur não sofrerá danos físicos, mas têm que tomar uma decisão. Só assim recuperará seu filho.”
Hawat fervia de cólera quando Leto terminou de ler.
— Deveríamos ter suspeitado. Eu deveria ter previsto.
Leto estendeu o pergaminho a frente dele e falou com voz quase inaudível.
— Deixe-me pensar, Thufir.
— Pensar? — Hawat indagou surpreso —. Meu duque, não pode nem cogitar...
Ao ver o olhar do Leto, o Mentat emudeceu. Fez uma reverência e saiu do estúdio.
Leto contemplou as terríveis condições até que seus olhos arderam. Durante gerações, a Casa Atreides tinha defendido a honra, pelo bem da justiça e da integridade. Sentia uma profunda obrigação para com o príncipe exilado.
Mas por Victor... Victor.
De qualquer forma, não seria preferível que Rhombur tivesse morrido? Sem substitutos cyborg desumanos? Enquanto Leto refletia sobre isto, sentiu um silêncio escuro em sua alma. A história o julgaria severamente por vender Rhombur para seus inimigos? Seria conhecido como Leto o Traidor, em vez de Leto o Justo? Era uma alternativa impossível.
A intensa solidão da liderança o envolveu.
No fundo de sua alma, no núcleo onde só ele podia encontrar a verdade absoluta, o duque Leto Atreides vacilou.
O que é mais importante, meu filho ou meu melhor amigo?
O ego é apenas um fragmento da consciência que nada no oceano das coisas escuras. Somos um enigma para nós mesmos.
O Manual Mentat
Jessica estava em seus aposentos deitada junto ao duque Leto em sua ampla cama, e tentava acalmar seus pesadelos. Certo número de cicatrizes em seu peito e pernas necessitavam de mais curativos de nova pele para curá-las completamente. Quase todo o corpo de Leto tinha curado, mas a tragédia o devorava, além da terrível decisão que devia tomar.
Seu amigo ou seu filho?
Jessica tinha certeza de que ver um ghola de Victor todos os dias aumentaria sua dor, mas até o momento fora incapaz de dizer o que pensava. Procurava as palavras adequadas, o momento adequado.
— Duncan está zangado comigo — disse Leto, e desviou a vista de seus olhos verdes —. E Thufir também, e até é provável que Gurney. Todos se opõe às minhas decisões.
— São seus conselheiros, meu senhor — disse a jovem com cautela —. Essa é a função deles.
— Neste assunto tive que lhes dizer que calassem suas opiniões. Sou eu quem deve tomar a decisão, Jessica, mas o que devo fazer? — O rosto do duque se nublou de ira, e seus olhos se escureceram —. Não tenho mais opções, e só os tleilaxu podem fazê-lo. Sinto muitas saudades de meu filho. — Seus olhos suplicaram compreensão, apoio —. Como posso escolher? Como posso negar? Os tleilaxu me devolverão Victor.
— Ao preço de Rhombur... e talvez ao preço de sua alma. Sacrificar seu amigo por uma falsa esperança... Temo que será sua perdição. Não faça isso, Leto, rogo-lhe.
— Rhombur devia ter morrido quando a nave caiu.
— Talvez, mas isso estava nas mãos de Deus, não nas suas. Ele ainda vive. Apesar de tudo, ainda possui a vontade de viver.
Leto meneou a cabeça.
— Rhombur nunca se recuperará de suas feridas. Nunca.
— Os experimentos com cyborgs do doutor Yueh lhe darão uma oportunidade.
Leto a fulminou com o olhar, na defensiva de repente.
— E se as partes robóticas não funcionarem? E se Rhombur as recusar? Possivelmente estaria melhor morto.
— Se o entregar aos tleilaxu, nunca lhe proporcionariam uma morte piedosa. — Jessica fez uma pausa e sugeriu em tom suave —: Talvez deveria ir vê-lo outra vez. Olhem para seu amigo e escute o que seu coração lhes diz. Olhe para Tessia, esquadrinhe seus olhos. Depois, fale com Thufir e Duncan.
— Não preciso lhes dar explicações, nem a eles nem a ninguém. Sou o duque Leto Atreides!
— Sim, você é. E também é um homem. — Jessica se esforçou por controlar suas emoções. Acariciou-lhe o cabelo —. Leto, sei que age impulsionado pelo amor, mas às vezes o amor guia uma pessoa pelo caminho errado. O amor pode cegá-lo para a verdade. Segue o caminho errado, meu duque, e no fundo de seu coração sabe disso.
Embora ele lhe desse as costas, não desistiu.
— Nunca deve amar os mortos mais que aos vivos.
Thufir Hawat, preocupado como sempre, acompanhou o duque ao hospital. O módulo de manutenção vital de Rhombur estava coberto de tubos intravenosos, cateteres e exploratórios. O zumbido da maquinaria ressoava na habitação. Hawat baixou a voz.
— Isto só pode conduzir à sua ruína, meu duque. Aceitar a oferta dos tleilaxu seria uma traição, uma ação desonrosa.
Leto cruzou os braços sobre o peito.
— Você serviu à Casa Atreides durante três gerações, Thufir Hawat, e se atreve a pôr em dúvida minha honra?
O Mentat insistiu.
— Os médicos tentam estabelecer um sistema de comunicação com o cérebro de Rhombur. Logo poderá falar de novo, e lhe dirá com suas próprias palavras...
— Sou eu quem deve tomar a decisão, Thufir. — Os olhos de Leto pareciam mais escuros que de costume —. Fará o que eu disser, ou terei que conseguir um Mentat mais dócil?
— Como ordenar, meu duque. — Hawat fez uma reverência —. Não obstante, seria melhor deixar que Rhombur morresse agora, antes de permitir que caia nas mãos dos tleilaxu.
O doutor Yueh e sua equipe tinham concordado em adiantar sua chegada para começar o complicado processo de reconstruir Rhombur parte por parte. Em um amálgama de engenharia e tecnologia médica, o médico Suk entrelaçaria máquina com tecido, e tecido com máquina. Novo e velho, duro e macio, capacidades perdidas restauradas. Se Leto desse permissão, o doutor Yueh e sua equipe brincariam de ser Deus.
Brincariam de ser Deus.
Os Bene Tleilax também faziam isso. Mediante outras técnicas, podiam devolver o perdido, o morto. Só necessitavam de umas poucas células, conservadas com supremo cuidado...
Leto respirou fundo e se aproximou do módulo. Olhou o horror enfaixado, os restos queimados de seu amigo. Tocou a escorregadia superfície de cristal, com uma estranha mescla de medo e fascinação. As lágrimas escorreram por suas bochechas.
Um cyborg. Rhombur o odiaria por isso, ou lhe agradeceria? Ao menos, conservaria a vida. Mais ou menos.
O corpo de Rhombur estava tão retorcido e mutilado que não parecia mais humano. Tinham adaptado objetos de vestir à massa de carne e osso, estreitos fragmentos de malha sobressaíam pelos tubos e as capas. Tinha uma parte da cabeça e do cérebro esmagados, e só restava um olho injetado em sangue... desfocado. A sobrancelha era loira, a única sugestão de que se tratava na verdade do príncipe Vernius.
Nunca devem amar os mortos mais que aos vivos.
Leto apoiou uma mão sobre a barreira de plaz transparente. Viu os cotos dos dedos e a fusão de carne e metal onde tinha usado seu anel de jóias de fogo.
— Não o decepcionarei, amigo — Leto prometeu num sussurro —. Conte comigo.
Nos barracões da guarda, dois homens estavam sentados a uma mesa de madeira, enquanto iam consumindo uma garrafa de vinho de arroz pundi. Embora a princípio não se conhecessem, Gurney Halleck e Duncan Idaho já conversavam como amigos de toda a vida. Tinham muitas coisas em comum, sobretudo um intenso ódio pelos Harkonnen... e um amor sem limites por Leto.
— Estou muito preocupado com ele. Esse assunto do ghola... — Duncan meneou a cabeça —. Não confio em gholas.
— Nem eu, amigo.
— Esse ser seria um pálido aviso da pior época que Leto viveu, sem lembranças de sua existência anterior.
Gurney bebeu um longo gole de vinho, levantou o baliset e começou a tocar.
— E o preço... Sacrificar Rhombur! Mas Leto não quis me escutar.
— Leto já não é o mesmo de antes.
Gurney parou de tocar.
— E quem seria... depois de tanto sofrimentos?
O Mestre tleilaxu Zaaf chegou a Caladan, acompanhado de dois guarda-costas com armas escondidas. Altivo e desdenhoso, caminhou até Thufir Hawat, que esperava no salão principal do castelo, e elevou a vista para o Mentat, muito mais alto.
— Vim buscar o corpo do menino, afim de prepará-lo para nosso tanque de axotl. — Zaaf entreabriu os olhos, confiante de que Leto se renderia a suas exigências —. Também tenho tudo preparado para transportar a unidade de manutenção vital de Rhombur Vernius até as instalações médicas e experimentais de Tleilax.
Ao observar o rictus de sua boca, Hawat soube que aqueles monstros cometeriam atrocidades com o corpo destroçado de Rhombur. Experimentariam, cultivariam clones das células vivas, e talvez torturassem também os clones. Com o tempo, a terrível decisão atormentaria Leto. A morte seria melhor para seu amigo que isto.
O representante tleilaxu cutucou mais a ferida.
— Meu povo pode fazer muitas coisas com a genética das famílias Atreides e Vernius. Temos em perspectiva muitas... opções.
— Aconselhei o duque Leto contra esta decisão.
Hawat sabia que deveria enfrentar a ira de Leto, mas como o velho Paulus costumava dizer, “qualquer homem, inclusive o próprio duque, tem que antepor o bem da Casa Atreides ao seu próprio”.
Hawat se demitiria, caso necessário.
Naquele momento, Leto entrou na sala, com um ar de confiança em si mesmo que Thufir não tinha observado fazia muitas semanas. Gurney Halleck e Jessica o seguiam. O duque, com uma inexplicável energia em seu rosto, olhou para Hawat e dedicou uma inclinação mal esboçada ao embaixador tleilaxu, tal como mandavam as formalidades diplomáticas.
— Duque Atreides — disse Zaaf —, é possível que este acordo comercial crie uma ponte sobre o abismo entre sua Casa e nosso povo.
Leto olhou para o homenzinho.
— Infelizmente, esse abismo nunca será transposto.
Hawat ficou em guarda quando o duque se aproximou mais de Zaaf. Gurney Halleck também parecia disposto ao assassinato. Trocou olhares nervosos com Hawat e Jessica. Quando os guarda-costas tleilaxu ficaram tensos, o guerreiro Mentat se preparou para uma batalha dura e sangrenta.
— Recusa nosso acordo? — perguntou o representante tleilaxu, carrancudo.
— Não há acordo a recusar. Decidi que seu preço é muito alto, para Rhombur, para Victor e para minha alma. Sua viagem foi em vão. — A voz do duque era forte e firme —. Não cultivarão um ghola de meu filho primogênito, e não se apropriarão de meu amigo, o príncipe Vernius.
Thufir, Hawat e Jessica, estupefatos, contemplaram a cena...
Uma determinação implacável se refletia no rosto de Leto.
— Compreendo seu contínuo e mesquinho desejo de vingança contra mim, embora o Julgamento por Confisco me exonerou de toda culpa. Jurei que não ataquei suas naves dentro do Cruzeiro, e a palavra de um Atreides vale mais que todas as leis do Império. Sua negativa em acreditar demonstra sua estupidez.
O tleilaxu pareceu indignar-se, mas Leto continuou com uma voz fria e cortante, que deteve Zaaf antes de emitir o menor som.
— Encontrei a explicação para o ataque. Sei quem o fez, e como, mas por carecer de provas materiais, informar-lhe não serviria de nada. Em qualquer caso, a verdade não interessa aos Bene Tleilax, só o preço que podem me tirar. E não o pagarei.
Hawat assobiou, e os guardas, sempre alertas, entraram para controlar os guarda-costas tleilaxu, enquanto Gurney e Hawat se colocavam a cada lado do furioso Amo Zaaf.
— Receio que não necessitamos dos serviços dos tleilaxu. Nem hoje nem nunca — disse Leto, e deu meia volta, despedindo-se do embaixador sem cerimônia —. Volte para casa.
Hawat acompanhou com supremo prazer o homenzinho até as portas do castelo.
O indivíduo é afligido pela assustadora descoberta de sua mortalidade. A espécie, entretanto, é diferente. Não precisa morrer.
PAKDOT KYNES
Um manual do Arrakis.
De todos os projetos de demonstração ecológica que Pardot Kynes tinha criado, a estufa oculta na cova da Depressão de Gelo era seu favorito. Kynes reuniu uma expedição para visitar o lugar, junto com seu lugar-tenente Ommun e quinze seguidores fremen.
Embora não fizesse parte de sua agenda habitual de plantações ou inspeções, Pardot queria ver a cova, com sua água, colibris, umidade que caía do teto, frutas frescas e flores coloridas. Todo isso representava sua visão do futuro de Duna.
O grupo de fremen chamou um verme para que os conduzisse até além da linha de sessenta graus que rodeava as zonas habitadas do norte. Apesar dos anos em que vivia no planeta, Kynes nunca aprendera a montar um verme, de modo que Ommun lhe trouxe um palanquim. O planetólogo montava como uma velha, mas sem a menor vergonha. Não tinha nada a demonstrar.
Em uma ocasião, muito tempo atrás, quando Liet era um menino de um ano, Pardot tinha a sua esposa e o menino à Depressão de Gelo. Frieth, uma mulher que poucas vezes expressava assombro ou estupor, ficou estupefata ao ver a estufa,
A espessa folhagem, as flores e as aves. Pouco antes, entretanto, a caminho da caverna secreta, uma patrulha Harkonnen os atacara. Frieth, graças a seu treinamento fremen e sua rapidez de pensamento, tinha salvo seu marido e seu filho.
Kynes parou de pensar e coçou a barba, enquanto se perguntava se algum dia tinha lhe agradecido...
Desde o dia do casamento do seu filho com Faroula, quando Liet lhe tinha admoestado por sua distração e frieza inconsciente, Kynes tinha pensado muito e repassado as realizações de sua vida: seus anos em Salusa Secundus e Bela Tegeuse, suas audiências com Elrood na corte em Kaitain, suas décadas em Duna como planetólogo imperial...
Tinha dedicado sua carreira a encontrar explicações, a examinar a complexa tapeçaria do ambiente. Compreendia os ingredientes, o poder da água, do sol e do clima, até os organismos do chão, plâncton, liquens, insetos... Como tudo se relacionava com a sociedade humana. Kynes compreendia como as peças se juntavam, ao menos em termos gerais, e estava entre os melhores planetólogos do Império. Chamavam-lhe “leitor de planetas”, e o imperador o escolhera para esta missão tão importante.
E não obstante, como podia se considerar um observador imparcial? Como podia se excluir complexa rede de interações que se formava em cada planeta, em cada sociedade? Ele mesmo era uma peça do projeto global, não um pesquisador imparcial. Os cientistas sabiam a milhares de anos que um observador influi no resultado de um experimento... e Pardot Kynes tinha influenciado nas mudanças de Duna.
Como podia tê-lo esquecido?
Depois que Ommun o ajudou a desmontar do verme, a pouca distância da Depressão de Gelo, conduziram-lhe até o penhasco verde e negro que rodeava a cova. Kynes imitou seus movimentos erráticos, até que suas pernas começaram a doer. Nunca seria um verdadeiro fremen, ao contrário de seu filho. Liet possuía todos os conhecimentos de planetologia que seu pai lhe tinha legado, mas o jovem também compreendia a sociedade fremen. Liet era o melhor de ambos os mundos. Pardot só desejava que os dois levassem a melhor.
Ommun subiu o penhasco a grandes pernadas. Kynes nunca teria sido capaz de encontrar o atalho que corria entre as rochas, mas tentou apoiar os pés nos mesmos salientes, nas mesmas pedras lisas, como fazia seu lugar-tenente.
— Depressa, Umma Kynes. — Ommun estendeu sua mão —. Não devemos permanecer muito tempo à descoberto.
Fazia muito calor, e o sol queimava o penhasco. Recordou que tinha fugido de uma patrulha Harkonnen fazia muito tempo, com Frieth. Quantos anos tinham se passado?
Kynes pôs o pé em um amplo saliente e rodeou uma curva de pedra parda, até que viu a entrada camuflada que impedia a migração da umidade da cova. Atravessaram-na.
Kynes, Ommun e os quinze fremen golpearam suas botas temag contra o chão e sacudiram o pó de seus trajes destiladores. Imediatamente, Kynes tirou os filtros do nariz. Outros fremen o imitaram, inalaram grandes baforadas de umidade e cheiro de plantas. Conservou os olhos entreabertos, aspirou a ambrósia das flores, frutos e fertilizantes, das grossas folhas verdes e polens dispersos.
Quatro membros da expedição nunca tinham ido até a caverna, e se precipitaram para frente como peregrinos atrás de um altar venerado. Ommun olhou ao seu redor, respirou fundo, orgulhoso de ter participado daquele projeto sagrado desde o primeiro momento. Cuidava de Kynes como uma mãe, e procurava garantir que o planetólogo tivesse sempre o que necessitava.
— Estes trabalhadores substituirão os que estão aqui — disse Ommun —. Estabelecemos turnos menos numerosos, porque este lugar sobreviveu, como você disse. A Depressão de Gelo é um ecossistema independente. Agora, não precisa de tanto trabalho para conservá-lo.
Kynes sorriu orgulhoso.
— Como estava previsto. Algum dia, todo Duna será assim, auto-suficiente. — Soltou uma breve gargalhada —. Então, o que os fremen farão para se manter ocupados?
As aletas do nariz de Ommun se dilataram.
— Este planeta ainda não nos pertence. Antes, teremos que nos desfazer dos malditos Harkonnen.
Kynes piscou e assentiu. Mal pensava nos aspectos políticos do processo. Para ele se tratava apenas de um problema ecológico, não humano. Outra coisa que tinha ignorado. Seu filho tinha razão. O grande Pardot Kynes tinha uma visão limitada, vislumbrava o caminho que conduzia a um futuro... mas sem ver as armadilhas que o espreitavam.
Entretanto, tinha realizado o trabalho ecológico importante. Tinha sido o instigador, o motor da mudança.
— Eu gostaria de ver todo este planeta envolto em uma rede de plantas — disse.
Ommun murmurou um som de aprovação. Tudo que Kynes dissesse era importante, e valia a pena recordar. Entraram na caverna para ver os jardins.
Os fremen conheciam sua missão, e continuariam plantando durante séculos, se fosse necessário. Graças às qualidades geriátricas de sua dieta rica em especiaria, alguns membros da geração mais jovem possivelmente veriam a culminação do grande plano. Kynes se conformava em ver os indícios da mudança.
O projeto da Depressão de Gelo era uma metáfora de todo Duna. Seu plano estava tão internalizado na psique fremen, que continuaria em frente mesmo sem seu guia. Aquela gente assumira o sonho, e o sonho não morreria.
Dali em adiante Kynes seria pouco mais que um símbolo, o profeta da transformação ecológica. Sorriu para si mesmo. Talvez agora tivesse tempo para ver as pessoas que o rodeavam, conhecer sua esposa, com quem tinha casado vinte anos antes, e passar mais tempo com seu filho...
No interior da caverna, examinou árvores anãs carregadas de limões, limas e as laranjas redondas conhecidas como portyguls. Ommun caminhava a seu lado, inspecionava os sistemas de irrigação, os fertilizantes, os progressos das plantações.
Kynes se recordava de ter mostrado a Frieth os portyguls, na primeira vez que tinham visitado a cova, e o olhar de prazer no rosto de sua esposa quando provou a fruta doce como o mel. Tinha sido uma das experiências mais maravilhosas de toda sua vida. Kynes contemplou a fruta e decidiu que levaria alguns exemplares para ela.
Quando foi a última vez que lhe dei um presente? Não se lembrava.
Ommun se aproximou das paredes de pedra calcária, tocou-as com os dedos. A rocha cretácea era macia e úmida, pois não estava acostumada a tanta umidade. Distinguiu com seus olhos agudos linhas preocupantes no teto e na parede, rachaduras que não deveriam existir.
— Umma Kynes — disse —, estas rachaduras me preocupam. A integridade desta cova não é... confiável, diria eu.
Enquanto os dois homens olhavam, uma das rachaduras se abriu visivelmente.
— Tem razão. É possível que a água faça que a rocha se expanda e assente... Há quantos anos?
O planetólogo arqueou as sobrancelhas.
Ommun calculou.
— Vinte, Umma Kynes.
Uma rachadura se espalhou pelo teto com um som estrondoso. Outras a seguiram, como uma reação em cadeia. Os fremen levantaram a vista atemorizados, e depois olharam para Kynes, como se o grande homem pudesse evitar o desastre.
— Acho que deveríamos sair da caverna. Agora. — Ommun segurou o braço do planetólogo —. Temos que evacuar o lugar até ter certeza que é seguro.
Outro estrondo ressoou no coração da montanha, quando fragmentos de rocha se deslocaram e tentaram encontrar um novo ponto estável. Ommun puxou o planetólogo, enquanto outros fremen fugiam para a saída.
Mas Kynes vacilou, liberou seu braço do aperto do lugar-tenente. prometera a si mesmo que levaria alguns portyguls para Frieth, para lhe mostrar que a amava de verdade... mesmo após muitos anos sem lhe dar atenção.
Correu para a árvore e arrancou algumas frutas. Ommun se precipitou para ele. Kynes apertou os portyguls contra o peito, muito contente de ter se lembrado de algo tão importante.
Stilgar deu a notícia a Liet-Kynes.
Em seus aposentos, Faroula estava sentada à mesa com seu filho Liet-chih, enquanto catalogava os potes de ervas que tinha reunido ao longo dos anos. Isolava os potes com resina e verificava a potência das substâncias. Liet-Kynes, sentado em um banco perto de sua esposa e seu filho adotivo, lia um documento que detalhava o inventário da especiaria e as reservas Harkonnen.
Stilgar afastou a cortina e ficou imóvel como uma estátua. Cravou a vista na parede do fundo, sem piscar.
Liet intuiu imediatamente que algo acontecera. Tinha lutado ao lado deste homem, atacado armazéns Harkonnen, matado inimigos. Ao ver que o homem não falava, Liet se levantou.
— O que aconteceu, Stil? O que ocorreu?
— Terríveis notícias — respondeu por fim o homem —. Seu pai, Umma Kynes, morreu na caverna da Depressão de Gelo. Ommun, ele e a maioria dos trabalhadores foram apanhados quando o teto desabou. A montanha caiu sobre eles.
Faroula soltou uma exclamação afogada. Liet descobriu que não podia pronunciar a menor palavra.
— Isso é impossível — disse por fim —. Restava muito trabalho por fazer. Havia...
Faroula deixou cair um dos potes. Ele quebrou-se em mil pedaços e espalhou folhas verdes sobre o chão.
— Umma Kynes morreu entre as plantas que eram seu sonho — disse.
— Um final digno — disse Stilgar.
Liet continuou sem fala durante um momento. Lembranças e desejos desfilaram por sua mente enquanto escutava sua esposa e Stilgar. Soube naquele momento que o trabalho de Pardot Kynes devia continuar.
O Umma tinha treinado bem seus discípulos. Liet-Kynes continuaria seguindo seus passos. A julgar pelo que Faroula acabava de dizer, supôs que a história da trágica morte do profeta, seu martírio, seria transmitida de geração em geração. E não deixaria de aumentar.
Um final digno, com efeito.
Recordou algo que seu pai havia dito: “O simbolismo de uma crença pode sobreviver mais que a própria crença.”
— Não pudemos recolher a água dos mortos para nossa tribo — disse Stilgar —. Muita terra e rocha cobria os cadáveres. Temos que deixá-los em sua tumba.
— Como deve ser — disse Faroula —. A Depressão de Gelo será um altar. Umma Kynes morreu com seu lugar-tenente e seus seguidores, entregou a água de seu corpo ao planeta que amava.
Stilgar entreabriu os olhos e olhou para Liet.
— Não permitiremos que a visão do Umma morra com ele. Tem que continuar sua obra, Liet. Os fremen escutarão o filho do Umma. Obedecerão suas ordens.
Liet-Kynes assentiu, aturdido, e se perguntou se sua mãe já sabia da notícia. Tentou ser valente, ergueu os ombros, enquanto as implicações abriam caminho em sua mente. Não só continuaria a ser o emissário dos fremen no projeto de terraformação... Tinha uma responsabilidade ainda maior. Seu pai apresentara os documentos pertinentes fazia muito tempo, e Shaddam IV os aprovara sem comentários.
— Agora eu sou o planetólogo imperial — anunciou —. Juro que a transformação de Duna continuará.
O homem quando enfrenta uma decisão de vida ou morte tem que comprometer-se, ou do contrário continuará preso no pêndulo.
De Na casa de meu pai
da princesa Irulan.
A estátua do bisavô paterno de Leto, o duque Miklos Atreides, erguia-se no pátio do hospital de Baía City, manchada pelo tempo, musgo o guano. Quando Leto passou em frente a imagem de seu antepassado, que não tinha conhecido, inclinou a cabeça em sinal de respeito e depois subiu uma escada com degraus de mármore.
Embora coxeasse um pouco, Leto tinha se recuperado quase completamente das feridas físicas. Uma vez mais, podia enfrentar cada novo dia sem a negrume do desespero. Quando chegou ao último piso do centro médico, não estava cansado.
Rhombur tinha acordado.
O médico pessoal do duque, que continuara tratando Rhombur até a iminente chegada do médico Suk, recebeu-o.
— Começamos a nos comunicar com o príncipe, meu duque.
Enfermeiros com bata branca aguardavam ao redor da unidade de manutenção vital. As máquinas zumbiam, como faziam todos os dias há meses. Mas agora era diferente.
O médico deteve o Leto antes que se precipitasse para a unidade.
— Como já sabe, ele sofreu graves traumatismos na parte direita da cabeça do príncipe, mas o cérebro humano é um instrumento muito notável. O cerebelo do Rhombur já transferiu as funções de controle para outras regiões. A informação flui através de atalhos neurais. Acredito que isto facilitará grandemente a tarefa da equipe cyborg.
Tessia se inclinou sobre a unidade e esquadrinhou o interior.
— Eu o amo, Rhombur. Não deve preocupar-se com isso.
Em resposta, palavras sintetizadas surgiram de um alto-falante.
— Eu... também... te... amo... e... sempre... o... farei.
As palavras eram claras e precisas, inconfundíveis, mas com uma breve pausa entre cada uma, como se Rhombur ainda não tivesse se acostumado aos processos da linguagem.
O duque ficou transtornado. Como pude pensar sequer por um momento em entregá-lo aos tleilaxu?
A unidade estava aberta, revelava os restos de Rhombur, cobertos de tubos, cabos e conexões.
— A princípio — disse o médico —, só pudemos falar com ele utilizando um código ixiano, pulsações e golpes. Mas agora, conseguimos conectar o sintetizador de voz com seu centro da linguagem.
O único olho do príncipe estava aberto, e mostrava vida e consciência. Durante longos momentos, Leto contemplou o rosto quase irreconhecível, e não soube o que dizer.
O que está pensando? Desde quando está consciente do que lhe aconteceu?
Palavras sintetizadas surgiram pelo alto-falante.
— Leto... amigo... Como... estão... os... leitos... de... jóias... coralinas... este... ano? Já... foi... mergulhar... ?
Leto riu, quase enjoado de alívio.
— Melhor que nunca, príncipe. Iremos juntos... logo. — De repente, as lágrimas alagaram seus olhos —. Eu sinto muito, Rhombur. Só merece a verdade.
Os restos do corpo do Rhombur não se moveram, e Leto só observou um músculo espasmódico que se agitava sob sua pele. A voz artificial do alto-falante não comunicava sentimentos nem inflexões.
— Quando... for... um... cyborg... criaremos... um... traje... especial. Iremos... mergulhar... outra... vez. Você... Verá.
Fosse como fosse, o príncipe exilado tinha aceito as dramáticas mudanças sofridas por seu corpo, até a perspectiva dos substitutos cyborg. Seu bom coração e otimismo contagiante tinham ajudado Leto a superar os piores momentos posteriores à morte do velho duque. Agora, Leto lhe devolveria o favor.
— Notável — disse o médico.
O olho de Rhombur não se separava do Leto.
— Quero... uma... cerveja... Harkonnen.
Leto riu. Tessia lhe apertou o braço. O príncipe ainda deveria suportar oceanos de dor, tanto físicos como psíquicos.
Rhombur pareceu intuir o pesar de Leto, e sua fala melhorou um pouco.
— Não... fique... triste... por mim. Alegre-se. Aguardo... com ânsia... minhas... partes cyborg. — Leto se aproximou mais —. Sou... ixiano... Estou... acostumado... às máquinas.
Tudo parecia muito irreal a Leto, impossível. E não obstante, estava acontecendo. Ao longo dos séculos, as tentativas de construir um cyborg sempre tinham falhado, quando o corpo rejeitava as partes sintéticas. Os psicólogos afirmavam que a mente humana se negava a aceitar uma intrusão mecânica tão drástica. O medo introjetado remontava aos horrores da era pré-butleriana. Em teoria, o médico Suk, com seu intensivo programa de pesquisa em Richese, tinha solucionado estes problemas. Só o tempo o diria.
Mas embora os componentes funcionassem como se prometia, Rhombur funcionaria pouco melhor que os antigos meks ixianos. A adaptação não seria fácil, e um controle delicado nunca seria possível. Em vista das feridas e sequelas, Tessia o abandonaria e retornaria à Irmandade?
Desde pequeno, Leto tinha escutado fascinado as histórias que Paulus e seus soldados veteranos contavam sobre homens gravemente feridos que tinham realizado façanhas incríveis. Leto nunca tinha presenciado com seus próprios olhos.
Rhombur Vernius era o homem mais corajoso que Leto conhecera.
Duas semanas depois, o doutor Wellington Yueh chegou de Richese, acompanhado por sua equipe de vinte e quatro homens e mulheres, e duas lançadeiras carregadas com equipamento médico e fornecimentos.
O duque Leto Atreides fiscalizou em pessoa o desembarque do grupo. O esquelético Yueh mal teve tempo de apresentar-se, pois imediatamente foi cuidar da descarga das caixas cheias de instrumentos e próteses.
Caminhões terrestres transportaram o pessoal e o carregamento até o centro médico, onde Yueh insistiu em ver o paciente imediatamente. O médico Suk olhou para Leto quando entraram no hospital.
— Deixarei-o novo, senhor, embora demorará certo tempo para acostumar-se com seu novo corpo.
— Rhombur o obedecerá em tudo.
Tessia não se apartou do lado de Rhombur. Yueh avançou agilmente para a unidade, estudou as conexões, as leituras de diagnósticos. Depois, olhou para o príncipe, que o contemplou com seu único olho, mergulhado em carne rasgada.
— Prepare-se, Rhombur Vernius — disse Yueh acariciando seu longo bigode —. Tenho a intenção de fazer a primeira intervenção cirúrgica manhã.
A voz sintética de Rhombur flutuou na habitação, mais suave agora que a estava controlando.
— Desejo... apertar... sua mão.
O amor é uma força antiquísima, que cumpriu um propósito em seu tempo, mas já não é essencial para a sobrevivência da espécie.
Axioma Bene Gesserit
Leto olhou do alto do escarpado e viu que a guarda havia sido dobrada na praia, tal como tinha ordenado, sem mais explicações. Preocupado com o estado mental do duque, Gurney, Thufir e Duncan o espiavam como falcões Atreides, mas Leto sabia como escapar dele.
O sol brilhava em um céu azul espaçoso, mas uma sombra pendia sobre ele. O duque vestia uma blusa branca de manga curta e calças azuis, roupa confortável sem os distintivos de sua posição. Respirou fundo e olhou ao longe. Talvez pudesse ser apenas um homem durante um breve momento.
Jessica correu até alcançá-lo, embelezada com um vestido decotado.
— No que está pensando, meu senhor?
Seu rosto mostrava uma profunda preocupação, como se temesse que saltasse para o abismo, assim como Kailea. Talvez Hawat a tivesse enviado para vigiá-lo.
Ao ver os homens agrupados na praia, Leto sorriu. Sem dúvida tentariam segurá-lo com seus braços se caísse.
— Estou distraindo os homens, para poder me exercitar. — Olhou para o rosto ovalado de sua concubina. Não seria fácil enganar Jessica, com seu treinamento Bene Gesserit, e sabia que não devia tentar —. Já estou farto de conversa, conselhos e pressões... Tenho que escapar para encontrar um pouco de paz.
Ela tocou seu braço.
— Se não os distrair, insistirão em enviar um cortejo de guardas para que me acompanhem. — Duncan Idaho começou a treinar as tropas em técnicas que tinha aprendido na escola de Ginaz. Leto se virou para ela—. Agora, poderei escapar.
— Ah! Para onde vamos? — perguntou Jessica sem a menor vacilação. Leto franziu o sobrecenho, mas ela o interrompeu antes que pudesse protestar —. Não permitirei que vá sozinho, meu senhor. Prefere ir com todo o corpo de guarda, ou só comigo?
Leto meditou e, com um suspiro, apontou para o hangar de tópteros situado na beira das pistas de aterrissagem próximas.
— Suponho que é melhor que todo um exército.
Jessica o seguiu. Leto ainda sentia ondas de dor. O fato de ter pensado em pagar o execrável preço exigido pelos tleilaxu em troca de um ghola de Victor demonstrava como estivera perto da loucura. Mas no final, Leto tomara a decisão correta.
Confiava em que fosse o primeiro passo para a cura.
Dentro do hangar havia diversos ornitópteros, alguns com as cobertas dos motores abertas. Os mecânicos trabalhavam sobre plataformas de suspensão. Leto se encaminhou para um tóptero de casco esmeralda com os falcões vermelhos Atreides na parte inferior das asas. Tinha uma cabine com dois assentos, um atrás do outro.
Um homem com macacão cinza tinha a cabeça colocada dentro do compartimento dos motores, mas a tirou quando o duque se aproximou.
— Alguns ajustes finais, meu senhor.
Tinha o lábio superior barbeado e uma barba grossa rodeava seu rosto, o que lhe dava um aspecto simiesco.
— Obrigado, Keno. — Distraído, o duque acariciou o flanco da nave —. O tóptero de corridas do meu pai — explicou a Jessica —. Ele o chamava de Falcão Verde. Eu aprendi a pilotar com ele. — Permitiu-se um sorriso agridoce —. Thufir ficava uma fera ao ver o duque e seu único filho correndo perigo conscientemente. Acredito que meu pai fazia isso só para irritá-lo.
Jessica examinou o estranho aparelho. Suas asas eram estreitas e curvadas para cima, com o focinho dividido em duas seções aerodinâmicas. O mecânico terminou seus ajustes e fechou a coberta do motor.
— Preparado para partir, senhor.
Depois de ajudar Jessica a acomodar-se no assento de trás, o duque Leto subiu ao da frente. Um cinto de segurança lhes rodeou pela cintura automaticamente. As turbinas rugiram, e conduziu o tóptero até uma ampla pista de asfalto. Keno os saudou com a mão. Um vento quente revolveu o cabelo de Jessica, até que a coberta de plexplaz da cabine se fechou.
Leto manipulou os controles com perícia, ignorando a presença de Jessica. As asas verdes se dobraram para a decolagem, e suas delicadas folhas encaixaram entre si. As turbinas rugiram, e o aparelho ergueu vôo.
Leto estendeu um pouco as asas, girou com brutalidade à esquerda e desceu até a praia, onde seus soldados aguardavam em formação. Levantaram a vista com expressão surpreendida quando viram seu duque passar.
— Verão que voamos para o norte costeando a borda — gritou Leto para Jessica —, mas quando nos perdermos de vista, iremos para oeste. Não poderão... não poderão nos seguir.
— Estaremos sozinhos.
Jessica confiava que o estado de ânimo do duque melhoraria com esta viagem improvisada, mas ela ficaria com ele apesar de tudo.
— Sempre me sinto sozinho — respondeu Leto.
O ornitóptero sobrevoou campos de arroz pundi e pequenas fazendas. As asas se estenderam ao máximo e começaram a bater como os apêndices de um grande pássaro. Viram hortas, o estreito rio Syubi e uma modesta montanha do mesmo nome, o ponto mais elevado da planície.
Voaram em direção oeste por toda tarde sem divisar nenhum outro avião. A paisagem mudou, tornou-se mais escarpada e montanhosa. Depois de divisar um povoado situado junto a um lago alpino, Leto examinou os instrumentos e mudou de direção. Ao fim de pouco tempo, as montanhas deram lugar a planícies cobertas de erva e canyons abruptos. Leto reduziu a extensão das asas e se desviou à direita para desceer para um desfiladeiro profundo.
— O canyon de Agamenon — disse Leto —. Vê os terraços? — Apontou para um lado —. Foram construídas pelos primeiros habitantes de Caladan, cujos descendentes ainda vivem aí. Os forasteiros quase nunca os vêem.
Jessica distinguiu um homem de pele marrom, rosto estreito e escuro, antes que se escondesse em um oco rochoso.
Leto continuou descendo, para um largo rio de água transparente. À luz do dia que desfalecia, voaram, sobre a corrente, entre as paredes da garganta.
— É muito bonito — disse Jessica.
O rio minguava em um canyon lateral, flanqueado por praias arenosas. O ornitóptero pousou sobre uma das bordas com suavidade.
— Meu pai e eu vínhamos pescar aqui.
Leto abriu uma escotilha lateral do tóptero e tirou uma espaçosa autotenda, que se montou e estabilizou com estacas na areia. Baixaram um colchão pneumático e um saco de dormir duplo, assim como sua bagagem e rações alimentícias.
Ficaram sentados por um momento na borda, conversando, enquanto as sombras do entardecer pousavam sobre a garganta e a temperatura caia. Se encolheram juntos, e Jessica apoiou seu cabelo avermelhado contra seu pescoço. Grandes peixes saltavam em direção contrária à corrente.
Leto teimou em seu silêncio sombrio, o que fez Jessica esquadrinhar seus grandes olhos cinzentos. Quando notou que os músculos de sua mão se esticavam, deu-lhe um longo beijo.
Contra seu treinamento na Irmandade, de todos os sermões que Mohiam tinha lhe dado, Jessica tinha quebrado uma das principais normas da Irmandade. Apesar das suas intenções, apesar da sua lealdade à Irmandade, apaixonara-se por este homem.
Abraçaram-se, e Leto contemplou o rio durante um longo momento.
— Vejo Victor, Rhombur... as chamas. — Apoiou a cabeça contra suas mãos —. Pensei que poderia escapar dos fantasmas se viesse aqui. — Olhou para ela, com expressão desolada —. Não devia permitir que me acompanhasse.
O vento começou a soprar com força no canyon estreito, açoitou a tenda, e grossas nuvens apareceram no céu.
— É melhor entrarmos antes que a tormenta chegue.
Correu para fechar a escotilha do tóptero, e quando retornava começou a chover com força. Escapou da água por pouco.
Compartilharam uma ração alimentícia quente dentro da tenda, e mais tarde, quando Leto se deitou para dormir, ainda preocupado, Jessica se aproximou e começou a beijar-lhe o pescoço. A tormenta desabou com toda sua violência, como se exigisse sua atenção. A tenda batia e matraqueava, mas Jessica se sentia a salvo e quente.
Quando fizeram amor, Leto se agarrou a ela como um náufrago a uma balsa, com a esperança de encontrar uma ilha de segurança no furacão. Jessica respondeu ao seu desespero, com medo da sua intensidade, quase incapaz de estar à altura daquela explosão de amor. Leto parecia uma tormenta também, descontrolada e elementar.
A Irmandade nunca tinha lhe ensinado a dominar algo assim.
Jessica, rasgada emocionalmente, mas decidida, deu a Leto o presente mais prezado que podia oferecer. Manipulou a química do seu corpo ao modo Bene Gesserit, imaginou a fusão do esperma de Leto e seu óvulo... e se permitiu conceber um filho.
Embora tivesse recebido instruções explícitas da Irmandade de conceber apenas uma filha, Jessica tinha atrasado o momento e refletido durante meses antes da sua decisão. Compreendeu que não podia continuar sendo testemunha da angústia de Leto. Tinha que fazer isto por ele.
O duque Leto Atreides teria outro filho.
Como meus filhos me recordarão?
Esta é a verdadeira medida de um homem.
ABULURD HARKONNEN
A nave industrial se erguia no céu plúmbeo, a pouca distância da fortaleza do barão. Dentro da área de carga da nave, Glossu Rabban pendia com os braços e pernas aberto. Suas mãos e tornozelos estavam presos por grilhões, nada mais impedia que caísse nas ruas de Harko City. Seu uniforme azul estava rasgado, e tinha o rosto contundido e ensanguentado por causa da luta com os soldados do capitão Kryubi, os quais o tinham preso seguindo as ordens do barão. Foram necessários sete ou oito dos guardas mais fortes para controlar a Besta, e não tinham sido cuidadosos. Agora, preso, o homem puxava de um lado a outro, em busca de algo que morder, algo em que cuspir.
O barão Harkonnen se apoiou contra um corrimão, enquanto o vento penetrava pela escotilha aberta, e olhou friamente para seu sobrinho. Os olhos negros do barão eram como poças profundas.
— Dei permissão para matar meu irmão, Rabban?
— Era apenas seu meio-irmão, tio. Era um imbecil! Pensei que seria melhor...
— Nunca tente pensar, Glossu. Não serve para isso. Responda a minha pergunta. Dei permissão para matar um membro da família Harkonnen?
Como a resposta não veio com a velocidade necessária, o barão moveu uma alavanca do painel de controle. O grilhão do tornozelo esquerdo de Rabban se abriu, e uma perna ficou pendurada sobre o abismo. Rabban se retorceu e gritou, incapaz de fazer qualquer coisa. O barão considerava a técnica primitiva mas eficaz, um bom método de aumentar o medo.
— Não, tio, não me deu permissão!
— Não o que?
— Não, tio... Quero dizer, meu senhor!
O homem corpulento fez uma careta de dor quando se esforçou por encontrar as palavras corretas, pois não conseguia compreender o que seu tio desejava.
O barão falou por uma unidade de comunicação com o piloto da nave.
— Leve-nos sobre minha fortaleza e fique a cinqüenta metros sobre o terraço. Creio que o jardim de cactos precisa de um pouco de fertilizante.
Rabban olhou para ele com expressão aflita.
— Matei meu pai porque era um ser fraco. Durante toda sua vida, seus atos desonraram a Casa Harkonnen.
— Quer dizer que Abulurd não era forte... como você e eu.
— Não, meu senhor barão. Não estava à altura de nós.
— E agora decidiste se chamar Besta. É isso correto?
— Sim. Er, quero dizer, sim, meu senhor.
Através da escotilha aberta, o barão Harkonnen viu as agulhas da fortaleza. Bem abaixo havia um jardim onde às vezes se dava de presente esplêndidos banquetes, em meio àquelas plantas do deserto.
— Se olhar para baixo, Rabban... sim, acredito que agora tem uma boa perspectiva, verá certas modificações que fizemos no jardim esta manhã.
Enquanto falava, os extremos metálicos de lanças do exército surgiram da terra, entre saguaros espinhosos.
— Está vendo o que plantei para você?
Rabban, que pendia dos três grilhões restantes, retorceu-se para olhar. Seu rosto expressou um horror absoluto.
— Observe que as lanças estão dispostas formando um alvo no seu centro. Se o jogar bem, você se empalará exatamente no centro. Se errar um pouco, ainda podemos ganhar pontos, porque cada lança há um número escrito nela. — acariciou o lábio superior —. Hummm, talvez poderíamos jogar escravos em nossos espetáculos. Um conceito emocionante, não acha?
— Meu senhor, não me faça isto, por favor. Precisa de mim!
O barão olhou para ele sem a menor emoção.
— Por que? Já tenho seu irmão, Feyd-Rautha. Nomearei-o como meu herdeiro. Quando tiver sua idade, não cometerá tantos erros como você, tenho certeza.
— Tio, por favor!
— Tem que aprender a prestar atenção no que digo, sempre e em todo momento, Besta. Nunca falo em vão.
Rabban se retorceu e as cadeias tilintaram. Um ar frio penetrava no hangar, enquanto tentava desesperadamente pensar em algo a dizer.
— Quer saber se é um bom jogo? Sim, er, meu senhor, é muito engenhoso.
— Assim sou um homem inteligente por tê-lo inventado? Muito mais inteligente que você, não é?
— Imensamente mais inteligente.
— Então, nunca tente se opor a mim. Compreendeu? Sempre estarei dez passos a sua frente, preparado com surpresas que jamais poderia imaginar.
— Compreendo, meu senhor.
— Muito bem — disse o barão, que sentia prazer com o terror que via no rosto do seu sobrinho —. Agora o soltarei.
— Espere, tio!
O barão tocou um botão do painel de controle, e os grilhões de ambos os braços se abriram, deixando Rabban suspenso de cabeça para baixo no ar, preso apenas pelo grilhão do tornozelo direito.
— Caramba. Acho que me enganei de botão?
— Não! — Gritou Rabban —. Está me dando uma lição!
— E a aprendeu?
— Sim, tio! Deixe-me voltar. Farei sempre o que disser.
— Leve-nos a nosso lago privado — disse o barão pelo comunicador.
A nave sobrevoou a propriedade até parar sobre as águas pestilentas de um lago artificial. Seguindo ordens, o piloto desceu a uma distância de dez metros da água.
Ao ver o que o esperava, Rabban tentou agarrar o grilhão restante.
— Isto não é necessário, tio! Eu aprendi...
O resto da frase de Rabban se perdeu em um ressoar de correntes quando o outro grilhão se abriu. O homem caiu na água, agitando braços e pernas.
— Acredito que nunca tive a chance de perguntar — gritou o barão enquanto Rabban se precipitava no lago —. Sabe nadar?
Os homens de Kryubi estavam postados ao redor do lago com equipes de resgate, para o caso de necessidade. Afinal o barão não podia pôr em perigo a vida de seu único herdeiro preparado. Embora jamais admitisse isso a Rabban, estava satisfeito com a perda de sei irmão Abulurd, ele era muito mole. Era necessário ter colhões para matar o próprio pai, colhões e falta de escrúpulos. Boas características Harkonnen.
Mas eu sou ainda mais desumano, pensou o barão enquanto a nave se dirigia para a pista de aterrissagem. Acabo de demonstrar isso, para impedir que tente me matar. A Besta Rabban só tem que perturbar os fracos. E só quando eu o mandar.
Mesmo assim, o barão enfrentava um desafio muito maior. Seu corpo continuava degenerando a cada dia que passava. Tinha tomado complementos energéticos que colaboravam para manter afastados a fraqueza e o inchaço, mas cada vez era necessário consumir mais e mais pastilhas para obter o mesmo resultado, sem conhecer os efeitos secundários.
O barão suspirou. Era muito difícil automedicar-se, quando não havia bons médicos à mão. A quantos tinha matado por incompetência? Tinha perdido a conta.
Alguns dizem que a espera por algo é melhor que esse próprio algo. Em minha opinião, trata-se de uma completa tolice. Qualquer idiota é capaz de imaginar uma recompensa. Eu prefiro o tangível.
HASIMIR FENRING, Cartas de Arrakis
A mensagem confidencial chegou à residência de Arrakeen por uma rota tortuosa, de um Mensageiro a outro, de Cruzeiro a Cruzeiro, como se o pesquisador chefe Hidar Fen Ajidica quisesse atrasar a entrega da notícia a Hasimir Fenring.
Muito estranho, já que os tleilaxu estavam vinte anos atrasados.
Ansioso por ler o conteúdo do cilindro, ao mesmo tempo que já pensava em uma série de castigos se Ajidica se atrevesse a dar mais desculpas, Fenring correu para seu estúdio privado, situado no piso mais alto da mansão.
A que mentiras chorosas recorrerá agora esse anão?
Atrás das janelas protegidas por escudos de força, que suavizavam o brilho do sol, Fenring se entregou ao tedioso processo de decodificar a mensagem, enquanto cantarolava para si mesmo. O cilindro tinha sido codificado geneticamente para que só respondesse a seu tato, uma técnica tão sofisticada que se perguntou se os tleilaxu lhe estavam fazendo uma demonstração de suas habilidades. Os anões não eram incompetentes... só irritantes. Supôs que a carta estaria infestada de mais pedidos de material de laboratório, assim como de mais promessas vazias.
Até decodificadas, as palavras careciam de sentido, e Fenring compreendeu que precisavam de uma segunda decodificação. Experimentou uma de onda de impaciência, e depois passou outros dez minutos lutando com as palavras.
Quando o verdadeiro texto saiu à luz por fim, Fenring o contemplou com seus grandes olhos. Piscou duas vezes, e voltou a ler a nota de Ajidica. Assombroso.
O chefe da guarda, Willowbrook, apareceu na porta, picado pela curiosidade. Conhecia as freqüentes conspirações e a missão secreta do conde, mas também era consciente de que não devia fazer muitas perguntas.
— Quer que peça um café, senhor Fenring?
— Afaste-se — disse Fenring sem se virar —, do contrário ordenarei que o transfiram para o quartel general dos Harkonnen em Carthag.
Willowbrook afastou-se rapidamente.
Fenring se sentou com a mensagem nas mãos, memorizou cada palavra e destruiu o papel. Adoraria transmitir a notícia ao imperador. Finalmente. Seus lábios se curvaram em um sorriso.
O plano fora posto em andamento antes mesmo da morte do pai de Shaddam. Agora, depois de décadas, o trabalho tinha dava resultados.
“Conde Fenring, temos a satisfação de informar que a seqüência final de desenvolvimento parece satisfazer nossas expectativas. Estamos seguros de que o Projeto Amal culminou em êxito, e a próxima rodada de análises o demonstrará. Esperamos iniciar a produção em grande escala dentro de poucos meses.
“O imperador não demorará a contar com seu fornecimento de melange barato e inesgotável, um novo monopólio que porá a seus pés os grandes poderes do Império. Todas as operações de coleta de especiaria em Arrakis perderão importância.”
Fenring tentou conter um sorriso de satisfação. Aproximou-se da janela e contemplou as ruas poeirentas de Arrakeen, a aridez e o calor impossíveis. Entre as massas de gente, viu soldados Harkonnen com seu uniforme azul, mercadores de água vestidos com cores vivas e equipamentos de recoletores de especiaria, altivos pregadores e mendigos esfarrapados, uma economia apoiada em um só recurso: a especiaria.
Logo nada disso importaria a ninguém. Arrakis, e a melange natural, passariam a ser uma curiosidade histórica. O planeta deserto não interessaria a ninguém... e ele poderia dedicar-se a coisas mais importantes.
Aspirou uma profunda baforada de ar. Seria estupendo afastar-se desta rocha.
Embora a morte cancele tudo, a vida neste mundo é algo glorioso.
Duque PAULUS ATREIDES
Um homem não deveria assistir ao funeral de seu filho.
De pé na proa da barcaça funerária Atreides, o duque Leto usava um uniforme branco, com todos os distintivos que simbolizavam a morte de seu filho. A seu lado, Jessica tinha posto o hábito negro da Bene Gesserit, que não podia ocultar sua beleza.
Atrás, um cortejo de embarcações seguia à barcaça funerária, todas adornadas com flores e cintas coloridas para celebrar a vida de um menino cujos dias tinham finalizado de forma trágica. Soldados Atreides flanqueavam as cobertas dos navios de escolta, com escudos cerimoniais metálicos que cintilavam quando raios de sol atravessavam a capa de nuvens.
Leto tinha a vista fixa no horizonte, e protegia os olhos com a mão. Victor tinha amado o mar. Ao longe, onde as águas se fundiam com o horizonte curvo, Leto viu tormentas elétricas e fragmentos de céu, talvez uma congregação de elecrans que tinham ido para acompanhar a alma do menino até um novo lugar sepultado sob as ondas...
Durante gerações de Atreides, a vida tinha sido reverenciada como a bênção máxima. Os Atreides tinham se importavam com o que um homem fazia quando estava vivo, acontecimentos que podiam experimentar com clareza e desfrutar com todos os seus sentidos. As realizações de uma pessoa possuíam muito maior significado que qualquer vida futura duvidosa. O tangível era mais importante que o intangível.
Oh, como sinto falta de meu filho.
Durante os poucos anos que tinha compartilhado com Victor, tinha tentado instilar energia no menino, como seu pai tinha feito com ele. Cada pessoa devia ter a capacidade de contar com seus próprios recursos, afim de confiar em seus camaradas mas nunca demais.
Hoje necessito de toda a minha energia.
Um homem não deveria assistir ao funeral de seu filho. A ordem natural se quebrara. Embora Kailea não fosse sua esposa, e Victor não fosse o herdeiro ducal oficial, Leto não podia pensar em nada mais terrível que pudesse acontecer a uma pessoa. Por que tinha sobrevivido, por que devia suportar aquela horrível sensação de perda?
O cortejo de barcos se dirigiu para os leitos de jóias coralinas, onde Leto e Rhombur tinham ido mergulhar anos atrás, onde Leto teria levado seu filho algum dia. Mas Victor não lhe tinha concedido o tempo suficiente. Leto nunca poderia cumprir as promessas que fizera ao menino, com palavras e com o coração...
A barcaça funerária Atreides tinha várias cobertas de altura, um monumento flutuante impressionante. Na coberta superior, faróis de concha de kabuzu gigantes, de quinze metros de altura, queimavam óleo de baleia. O cadáver de Victor jazia em um ataúde dourado rodeado de suas coisas favoritas, um touro salusano de pelúcia, uma vara com plumas e ponta de borracha, videolivros, jogos, conchas marinhas que colecionava. Representantes de muitas Grandes Casas tinham enviado presentes. As lembranças e presentes quase ocultavam o corpinho conservado do menino.
Flores coloridas, pendões verdes e negros e cintas adornavam as fileiras de cadeiras douradas. Quadros doados e retratos mostravam um orgulhoso duque Leto sustentando sobre sua cabeça o menino recém-nascido, e mais tarde ensinando i menino a tourear... Pescando em um mole... protegendo-o do ataque do elecrán. Outras imagens mostravam Victor sobre o regaço de sua mãe, na escola ou correndo com um cometa branco. E depois, vários painéis vazios, que representavam o que Victor não tinha feito em sua vida nem jamais poderia fazer.
Ao chegar aos recifes, os tripulantes baixaram âncoras para imobilizar a barcaça. Outros navios rodearam à barcaça funerária. Duncan Idaho, que pilotava uma pequena lancha a motor, dirigiu-se para a proa e a amarrou ao lado.
Os soldados começaram a golpear seus escudos cerimoniais, até alcançar um crescendo que as ondas transportaram. O duque Atreides e Jessica estavam juntos, com a cabeça baixa. O vento açoitava seus rostos, irritava os olhos de Leto, agitava o hábito escuro de Jessica.
Ao fim de um longo momento, o duque levantou a cabeça e respirou fundo para rechaçar uma onda de lágrimas. Olhou para a última coberta da barcaça, onde jazia seu filho. Um raio de sol cintilou sobre o ataúde dourado.
Pouco a pouco, Leto ergueu as mãos para o céu.
O ruído dos escudos cessou, e o silêncio se fez entre os presentes. As ondas lambiam os barcos, e um ave solitária gritou no alto. O motor da lancha de Duncan Idaho ronronava sem cessar.
O duque segurava em uma mão um transmissor, o qual ativou. Os faróis acesos se inclinaram para Victor e verteram óleo fervente sobre o ataúde. Ao fim de poucos segundos, a coberta superior da barcaça ficou envolta em chamas.
Duncan ajudou Jessica a subir à lancha a motor, e depois subiu Leto. Desamarraram da barcaça funerária e se afastaram, enquanto o fogo se propagava.
— Parece — disse Leto sem apartar os olhos das chamas, enquanto Duncan conduzia a barco de volta a seu posto no círculo de embarcações —. Nunca conseguirei pensar com carinho em Kailea — murmurou Leto para Jessica, enquanto contemplava a pira funerária que consumia a barcaça —. Agora só você pode me dar a força e a vontade para sobreviver.
Já tinha escrito ao arquiduque Armand Ecaz para declinar a oferta de matrimônio com sua filha Ilesa, ao menos no momento, e o arquiduque tinha retirado com discrição a oferta.
Jessica, muito comovida com suas palavras, prometeu que nunca insistiria que Leto assumisse um compromisso que não desejasse. Bastava-lhe a confiança do duque que amava. E você é meu único homem, pensou.
Não se atrevia a informar à Irmandade sobre o menino que levava em seu útero, até que fosse muito tarde e não pudessem intrometer-se. Mohiam lhe dera instruções explícitas, sem revelar os planos da Bene Gesserit, para a filha que Jessica devia dar a luz.
Mas Leto desejava com todas suas forças outro filho... Depois do funeral, Jessica lhe disse que estava grávida, e nada mais. Ao menos, merecia saber, para que abrigasse a esperança de outro filho.
Enquanto se afastavam da barcaça funerária em chamas, o duque Leto sentiu que a determinação se fortalecia em seu coração. Embora acreditasse e confiasse em Jessica, embora a amasse, possuía muitas cicatrizes das tragédias, e sabia que devia manter sempre uma distância digna.
Seu pai lhe ensinara que um duque Atreides sempre vivia em um mundo diferente ao de suas mulheres. Como líder de uma Grande Casa, a principal obrigação de Leto era para com seu povo, e não podia se permitir o luxo de ter muita intimidade com ninguém.
Sou uma ilha, pensou.
Brian Herbert & Kevin J. Anderson
O melhor da literatura para todos os gostos e idades