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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA VAZIA / Rosamunde Pilcher
A CASA VAZIA / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA VAZIA

 

Eram três horas numa tarde de segunda-feira, em Julho, um dia soalheiro e quente, o ar impregnado de feno arrefecido por uma brisa marítima que vinha do norte. Desde o alto da colina, onde a estrada fazia uma curva em Cam Edvor, a terra descia até penhascos distantes; terrenos cultivados, enfeitados com faixas de tojo amarelo, interrompidos por saliências graníticas, qual manta de retalhos com dezenas de pequenos campos. ”Tal como uma colcha”, pensou Virginia, que viu os campos de pastagem como recortes de veludo verde, o ouro-esverdeado do feno recém-cortado que parecia cetim brilhante, o ouro-rosado do milho que se assemelhava a algo suave e peludo no qual apetecia tocar e fazer festas.

 

Estava tudo muito calmo. Mas quando ela fechou os olhos, os sons da tarde de Verão ressaltaram, destacando-se um a um, exigindo a atenção dela. O zumbido do vento, suave nos seus ouvidos, agitou os fetos. Um carro subiu a grande colina de Porthkerris, reduzindo as mudanças, e ficou visível. De longe veio aquele agradável som do Verão, o zumbido das ceifeiras-debulhadoras. Abriu os olhos e contou três, todas reduzidas ao tamanho de brinquedos devido à distância, escarlates e minúsculas como as miniaturas que Nicholas empurrava no tapete do seu quarto.

 

O carro que se aproximava apareceu no topo da colina, avançando muito lentamente, com os seus ocupantes, incluindo o condutor, a observar pelas janelas abertas o fantástico panorama. Tinham os rostos vermelhos do sol, óculos cintilantes, braços saídos de blusas de manga curta; o carro parecia transbordar de humanidade. Ao passar pelo miradouro onde Virgínia deixara o seu carro, uma das mulheres do banco traseiro olhou para cima e viu-a a observá-los do lado da colina. Os seus olhos encontraram-se durante um segundo, e em seguida o carro desapareceu, contornando a curva e seguindo para Land’s End.

 

Virginia olhou para o relógio. Três e um quarto. Suspirou e levantou-se, sacudiu a erva e os raminhos das suas calças de ganga brancas e desceu a colina, dirigindo-se para o carro. O assento de cabedal estava a ferver, devido ao sol. Fez inversão de marcha e voltou para Porthkerris, a imaginação perdida por imagens vagas. De Nicholas e de Cara, fechados no seu quarto pouco familiar em Londres, todos os dias levados pela ama a passear aos Jardins de Kensington; e pela avó paterna ao Jardim Zoológico e ao Museu do Traje e a filmes adequados. Devia estar calor em Londres, o ar abafado, sem correr uma aragem. Perguntou-se se teriam cortado o cabelo a Nicholas. Perguntou-se se lhe deveria comprar uma miniatura de uma ceifeira-debulhadora e enviar-lha, juntamente com uma carta maternal adequada e informativa.

 

”Hoje vi três destas a trabalharem nos campos de Lanyon, e pensei em ti e achei que gostarias de uma miniatura, para poderes ver como funciona.”

 

Uma carta para Lady Keile ler aprovadoramente em voz alta, porque Nicholas, um rapaz em cada poro, não via por que razão haveria de tentar decifrar as cartas da mãe se a avó estava apta e disposta a lê-las em voz alta. Pensou noutra carta, uma mais sentida.

 

”Meu querido filho, sem ti e sem a Cara eu sinto-me desnorteada, sem objectivos. Farto-me de conduzir porque não consigo lembrar-me de outra coisa para fazer, e o carro leva-me a lugares que outrora conheci, e eu observo e pergunto-me quem é a pessoa que conduz a gigantesca ceifeira-debulhadora, construindo fardos de feno quadrados e fortes como embrulhos bem-feitos.”

 

As velhas quintas, com os seus grandes celeiros e outros edifícios exteriores, estendiam-se pelos oito quilómetros de costa como pedras mal recortadas num colar tosco, pelo que era difícil dizer onde acabavam os campos de Penfolda e começavam os da próxima quinta. E as ceifeiras-debulhadoras estavam tão distantes que era impossível identificar quem as conduzia, ou quem caminhava atrás delas, fazendo medas - com a ajuda de forquilhas - que deveriam secar ao sol do Verão.

 

Ela até nem tinha a certeza de que ele ainda morava ali, se ainda cultivava Penfolda, e no entanto não o conseguia imaginar a viver noutra parte do mundo. Deixou que a sua mente vagueasse, qual lente potente, por sobre a animada cena. As figuras humanas ficaram nítidas, enormes e distintas, e ali estava ele, alto, ao volante da ceifeira-debulhadora, mangas arregaçadas, deixando ver os braços morenos, o cabelo revolvido pelo vento. E porque era perigoso aproximar-se tanto, Virginia forneceu-lhe uma esposa, imaginando-a a atravessar os campos com um cesto, jarros com chá, e talvez um bolo de frutas, envergando um vestido de algodão cor-de-rosa e um avental azul, as longas pernas nuas e bronzeadas.

 

Mrs. Eustace Philips. Mr. e Mrs. Eustace Philips de Penfolda.

 

O carro parou quase no cume da colina, e a baía, as praias brancas e os distantes promontórios estendiam-se à sua frente, e lá em baixo, em torno do cálice azul do porto, viam-se casas muito juntas umas às outras e a torre da igreja normanda de Porthkerris.

 

Wheal House, onde os Lingard viviam, e que era também onde Virginia estava, situava-se do outro lado de Porthkerris. Se ela fosse uma estranha, nova na região e visitando-a pela primeira vez, teria seguido pela estrada principal, que conduzia ao centro da povoação e a atravessava para o outro lado, e ficado, consequentemente, perdida no tráfego abundante e nas hordas de turistas que transbordavam dos passeios estreitos ou que se postavam nas esquinas estratégicas a comer gelados, a escolher postais e a observar as montras cheias de duendes de latão e sereias de barro e outros horrores considerados adequados como souvenirs.

 

Mas, uma vez que conhecia bem aquele local, Virginia saiu da estrada antes de as casas começarem, entrando numa estradita estreita ladeada por sebes altas que subia a colina que se encontrava na parte da cidade mais afastada do mar. Era um longo caminho até casa, de modo nenhum um atalho, e a certa altura voltava ajuntar-se à estrada principal, através de um túnel de rododendros e a menos de trinta metros da entrada principal de Wheal House.

 

Havia um portão branco e um caminho de cascalho que seguia por entre sebes de escalónias cor-de-rosa. O caminho continuava por entre relvados bem tratados e canteiros, que emanavam um forte aroma a goivos, e enquanto Virginia estacionava o carro à sombra da casa ouviu-se o ladrar intenso de um cão, e Dora, a velha spaniel de Alice Lingard, surgiu vinda da porta da frente, onde estivera deitada no chão polido do vestíbulo, devido à temperatura agradável que ali se fazia sentir.

 

Virginia parou para lhe fazer uma festa e falar com ela e entrou em casa, tirando os óculos escuros, porque depois da claridade exterior a casa parecia escura como breu.

 

Do outro lado do vestíbulo, as janelas que davam para o pátio encontravam-se abertas. Aquele era o local preferido de Alice durante quase todo o ano, pois estava voltado para sul e era banhado pelo sol todo o dia. Hoje, devido ao calor, ela desenrolara os toldos de verga, e as cadeiras de tela, juntamente com as mesas baixas, já a postos para o chá, pareciam riscadas pela sombra projectada por eles.

 

Na mesa situada no meio do vestíbulo encontrava-se o correio da tarde. Duas cartas para Virginia, ambas com carimbo de Londres. Ela pousou a mala e os óculos escuros e pegou nelas. Uma era de Lady Keile e a outra de... Cara. As letras em itálico, que a filha aprendera na escola, haviam sido traçadas com bastante esforço e eram-lhe bem familiares.

 

Mrs. A. Keile

 

A/c Mrs. Lingard, Wheal House, Porthkerris, Cornualha.

 

Não havia enganos, nem erros. Virginia perguntou-se se a filha a teria escrito sozinha ou com o auxílio da ama. Com os sobrescritos na mão, atravessou o vestíbulo, dirigindo-se para junto da sua anfitriã, graciosamente reclinada numa espreguiçadeira, com a costura no regaço. Estava a fazer o forro de uma almofada, bordando com linha cor-de-rosa em torno de um quadrado de veludo cor de coral, e a cor fazia lembrar no seu regaço uma grande pétala de rosa caída.

 

Ela ergueu o olhar.

 

- Já chegaste! Estava a pensar no que é que te teria acontecido. Julguei que tinhas ficado presa num engarrafamento.

 

Alice Lingard era uma mulher morena e alta, já perto dos quarenta anos, tinha braços e pernas esguios e um corpo robusto. Era aquilo que Virginia sempre considerara uma amiga de meia-idade, não de meia-idade na verdadeira acepção do termo, mas pertencente àquela geração intermédia entre a de Virginia e a de sua mãe. Ela era, aliás, uma amiga de longa data da família, e há muitos anos fora uma pequena dama de honor no casamento da mãe de Virginia.

 

Ela própria tinha casado, há dezoito anos, com Tom Lingard, nessa altura um jovem prestes a tomar conta do modesto negócio familiar da Lingard Sons, que era especializada na manufactura de equipamento de engenharia pesado na povoação vizinha de Fourbourne. A firma expandira-se e prosperara sob a liderança de Tom e, após várias aquisições de muito sucesso, fazia agora negócios entre Bristol e St. Just, incluindo direitos de exploração mineira, um pequeno comércio de armadores e a venda de máquinas agrícolas.

 

Nunca haviam tido filhos, mas Alice desviara os seus talentos domésticos naturais para a casa e para o jardim, e ao longo dos anos transformara o que antes fora um espaço pouco imaginativo numa encantadora casa com um jardim que estava constantemente a ser fotografado e falado pelas revistas da especialidade. Há dez anos, quando Virginia e a mãe vieram à Cornualha passar a Páscoa com os Lingard, o trabalho apenas começara. Desta vez, e sem ter visitado Wheal House nos anos subsequentes, Virginia mal reconhecera o local. Tudo fora subtilmente alterado, linhas direitas haviam sido encurvadas, os contornos e os limites miraculosamente retirados. As árvores tinham crescido, lançando sombras nos relvados bem tratados, que pareciam estender-se até ao alcance da vista. O velho pomar fora transformado num jardim selvagem entremeado com as mais belas das antigas rosas, e onde antes houvera carreiros de feijão-trepador e framboesas viam-se agora magnolias com pétalas claras e azaleas com um cheiro intoxicante, mais altas do que o braço erguido de um homem.

 

Mas, a nível doméstico, o pátio era o projecto mais bem-sucedido de Alice, que não era nem casa nem jardim, mas possuía o encanto combinado de ambos. Os gerânios tombavam dos vasos, e numa parede com gelosias começava a crescer uma clematite com folhas purpúreas. Nos últimos tempos, ela desejava também cultivar uma videira, fazendo inúmeras perguntas às amigas e lendo livros especializados, a fim de decidir qual a melhor maneira de o fazer. A sua energia parecia ser infinita.

 

Virginia puxou de uma cadeira e atirou-se para cima dela, surpreendida por descobrir como estava cansada e a transpirar. Tirou as sandálias e colocou os pés em cima de um banco que estava mesmo ali a jeito.

 

- Não fui a Porthkerris.

 

- Não? Mas eu pensava que tinhas ido aos correios.

 

- Só queria comprar uns selos. Posso adquiri-los noutra ocasião. Havia gente suada e aos empurrões e tantos autocarros que eu comecei a sentir claustrofobia e decidi não parar. Continuei a conduzir.

 

- Posso emprestar-te alguns selos - disse Alice. - Deixa-me servir-te um chá. - Pousou a costura e sentou-se para chegar ao bule. O vapor ergueu-se da chávena delicada, perfumado, refrescante.

 

- Leite ou limão?

 

- Limão, se fazes favor.

 

- É muito mais refrescante, acho eu, num dia tão quente como o de hoje. - Entregou a Virginia a chávena e tornou a encostar-se.

- Até onde é que foste?

 

- Hum? Até ao outro lado...

 

- Land’s End?

 

- Não cheguei lá. Só fui até Lanyon. Parei o carro numa berma mais larga, subi um pouco a colina, sentei-me e admirei a vista.

 

- É muito bonita - disse Alice, enfiando a linha na agulha.

 

- Estão a ceifar o feno nas quintas.

 

- Sim, é altura disso.

 

- Aquilo nunca muda, pois não? Quero dizer, Lanyon. Não há casas novas, não há estradas recentes, não há lojas, não há parques de campismo para roulottes. - Bebeu um gole do chá a escaldar e em seguida, com cuidado, pousou a chávena e o pires no chão. Alice, o Eustace Philips ainda cultiva Penfolda?

 

Alice parou de coser e levantou uma mão para tirar os óculos escuros e olhar para Virginia. Franziu o sobrolho e fez uma expressão intrigada.

 

- O que é que sabes acerca do Eustace Philips? Como é que o conheces?

 

-Alice, tens uma memória muito curta. Foste tu própria que me levaste lá, tu e o Tom, para um grande churrasco nos penhascos de Penfolda. Deviam lá estar pelo menos umas trinta pessoas e já não sei quem a organizou, mas assámos salsichas numa fogueira e bebemos a cerveja de um barril. Oh, é claro que te lembras, e depois Mistress Philips serviu-nos o chá na cozinha!

 

- Sim, já me lembro. Estava um dia muito frio mas muito bonito e vimos a Lua aparecer em Boscovey Head. Já me lembro. Mas quem é que terá organizado a festa? De certeza que não foi o Eustace, ele andava sempre muito ocupado a ordenhar as vacas. Devem ter sido os Barnet: ele era escultor e teve um estúdio durante alguns anos em Porthkerris, antes de regressar a Londres. A mulher dele fazia cestos, cintos ou uma coisa do género, muito popularucha, e tinham muitos filhos que nunca calçavam sapatos. Eram eles quem organizavam sempre as festas mais originais. Devem ter sido os Barnet... Extraordinário! Já há uns bons anos que não pensava neles. E fomos todos para Penfolda. - Mas aqui a memória falhou-lhe. Olhou para Virginia com uma expressão de vazio.

- Será que fomos? Quem é que foi a essa festa?

 

- A minha mãe não foi. Disse que não era o seu género...

 

- Como ela tinha razão!

 

- Mas eu, tu e o Tom fomos.

 

- É claro. Cheios de camisolões e meias. Não sei se terei levado um casaco de peles. Mas estávamos a falar do Eustace. Que idade tinhas, Virgínia? Dezassete? É engraçado como te lembras do Eustace Philips após todos estes anos.

 

- Não respondeste à minha pergunta. Ele ainda mora em Penfolda?

 

- Uma vez que a quinta pertenceu ao pai dele, ao avô e tanto quanto sei ao bisavô, achas realmente que ele faria a trouxa e partiria?

 

-Acho que não. É só porque andavam a ceifar o feno esta tarde e eu me perguntei se seria ele que andava a conduzir uma das ceifeiras-debulhadoras. Costumas vê-lo, Alice?

 

- Poucas vezes. Não porque não o queiramos, compreende, mas ele é um indivíduo muito trabalhador, e o Tom anda tão ocupado em ser um magnata que raramente se encontram. Mas às vezes encontram-se na caça da lebre, ou num feriado qualquer... sabes como é... Virginia pegou na chávena de chá e no pires, e observou atentamente a rosa pintada nele.

 

- Ele é casado - disse ela.

 

- Dizes isso como se estivesses a declarar uma verdade irrefutável.

 

- E não estou?

 

- Não. Ele nunca casou. Sabe Deus porquê. Sempre o achei tão atraente, parecido com o D. H. Lawrence, mas mais moreno... Deve ter havido muitas mulheres em Lanyon a suspirar por ele, mas ele resistiu a todas. Deve gostar de viver assim.

 

A mulher de Eustace, tão rapidamente imaginada, desapareceu com igual celeridade, um espectro que se esfumou com o vento frio da realidade. Em vez dela, Virginia viu a cozinha de Penfolda, pouco alegre e desarrumada, com os restos da última refeição deixados sobre a mesa, pratos no lava-louças, um cinzeiro cheio de beatas.

 

- Quem é que olha por ele?

 

- Não sei. Acho que a mãe lhe morreu há alguns anos... Não sei o que é que ele faz. Talvez tenha uma governanta muito sexy, ou uma amante domesticada... Sinceramente não sei.

 

E nem estava nada interessada - deixava transparecer o seu tom de voz. Acabara de bordar; deu uns pontos mais firmes e partiu a linha com um pequeno puxão.

 

- Pronto, já está! Não é uma cor magnífica? Mas está muito calor para costurar. - Pôs de lado o trabalho. - Bem, acho que vou até lá dentro ver o que há para jantar. O que dizes a uma lagosta fresquinha?

 

- Digo, ”prazer em ver-te”!

 

Alice levantou-se, erguendo-se em toda a sua altura.

 

- Viste as tuas cartas?

 

- Sim, tenho-as aqui.

 

Alice inclinou-se para pegar no tabuleiro.

 

- Vou deixar-te para as leres sossegada.

 

Deixando o melhor para o fim, Virginia abriu primeiro a carta da sogra. O sobrescrito era azul-escuro. O papel era grosso, com a morada escrita a negro no cimo da folha.

 

       32 Welton Fardens, S. W. 8

     ”Minha querida Virginia,

Espero que estejas a aproveitar este tempo magnífico, uma vaga de calor que ontem passou dos trinta graus. Espero que estejas a nadar na piscina da Alice, é tão bom não ser preciso ir até à praia de cada vez que se quer nadar! As crianças estão muito bem e mandam beijinhos. A ama leva-as todos os dias ao parque e prepara-lhes um lanche, que comem lá. Levei a Cara ao Harrods esta manhã para que ela comprasse uns vestidos novos, está a ficar tão alta e os antigos começavam a não lhe servir. Um deles é azul e tem umas aplicações de flores, o outro é cor-de-rosa com um folhinho. Acho que ias gostar! Amanhã vão lanchar com os Manning-Preston. A ama está ansiosa por poder coscuvilhar um bocadinho com a ama deles e a Susan tem a idade certa para a Cara. Era bom que fossem amigas. Os meus cumprimentos à Alice, e avisa-me quando voltares para Londres, mas não estamos a ter qualquer problema, e não queremos interromper as tuas férias por uma razão qualquer. Estavas mesmo a precisar delas.

         Com muito carinho,

         Dorothea Keile”

 

Leu a carta duas vezes, dividida pelas emoções. Podia ler-se nas entrelinhas das frases bem redigidas e meticulosamente escritas. Via os seus filhos no parque, a relva de Londres já amarela devido ao calor, exaustos, e rodeados por cães. Viu o céu claro e quente da manhã sobre os telhados e uma menina enfiada em vestidos dos quais não gostava, mas que delicadamente não rejeitava. Viu a grande casa com terraço dos Manning-Preston, com o jardim empedrado nas traseiras, onde Mrs. Manning-Preston dava os seus famosos cocktails, e para onde Cara e Susan iam brincar enquanto as amas falavam acerca dos vários tipos de malhas. E viu a filha calada, paralisada pela vergonha, e Susan Manning-Preston a tratá-la com desprezo por ela usar óculos e a achar uma pateta.

 

E ”não estamos a ter qualquer problema”. A afirmação parecia a Virgínia bastante ambígua. Quem era o ”nós”? A ama e a avó? Ou incluiria as crianças, os filhos de Virginia? Será que deixavam Cara dormir com o seu velho ursinho que a ama dizia ser anti-higiénico? Ter-se-iam lembrado de deixar a luz acesa para que Nicholas pudesse ir à casa de banho durante a noite? E será que eram deixados sozinhos, mal-arranjados, sujos, a jogar jogos secretos e sem qualquer sentido nos pequenos cantos do jardim, talvez com uma noz ou uma folha, e todo o imaginário contido nos seus cérebros pequenos, inteligentes e espantosos?

 

Viu que tinha as mãos a tremer. Era uma idiotice da parte dela ficar naquele estado. A ama cuidava das crianças desde que elas haviam nascido. Conhecia todas as suas idiossincrasias, e ninguém melhor do que ela para lidar com os repentinos ataques de fúria de Nicholas.

 

(Mas será que ele ainda os tinha? Aos seis anos não lhe deveriam já ter passado? Que frustração os desencadeava?)

 

E a ama era meiga para com Cara. Fazia-lhe vestidinhos para as bonecas e com restos de lã tricotava cachecóis e camisolas para os ursinhos. E deixava Cara empurrar o carrinho das bonecas até ao parque, passando pelo Albert Memorial. (Mas será que lhe lia os livros que ela gostava de ouvir? Os Pedintes, As Crianças do Caminho-de-Ferro e cada palavra de O Jardim Secreto! Será que ela amava as crianças, ou as possuía apenas?)

 

Estas eram interrogações que ultimamente surgiam com uma frequência cada vez maior na mente de Virginia. Mas que nunca eram respondidas. Sabendo que estava a fugir a um assunto da máxima importância, ela punha de parte a sua ansiedade sempre com uma desculpa. ”Agora não posso pensar no assunto, estou demasiado cansada. Daqui a uns anos, quando o Nicholas for para a escola preparatória, talvez eu diga à minha sogra que já não preciso da ama; direi à ama que chegou a altura de ela partir, de procurar outro bebé para cuidar. E talvez agora eu esteja demasiado sensível, não seria boa para as crianças; estão melhor com a ama: afinal de contas, há quarenta anos que ela toma conta de crianças.”

 

As desculpas, já gastas, surgiam como um sedativo habitual, ferindo a consciência pesada de Virginia. Colocou a folha azul de novo no interior do seu sobrescrito e virou-se, aliviada, para o segundo. Mas o alívio foi de curta duração. Cara servira-se do papel da avó, mas desta vez as frases não estavam meticulosamente escritas nem bem redigidas. A tinta tinha esborratado e as linhas estavam tortas, inclinadas para baixo, na margem direita, como se as palavras estivessem a cair.

 

     ”Querida mãe,

Espero que te estejas a divertir. Espero que o tempo esteja bom. Em Londres faz calor. Tenho de ir lanchar com a Susan

Maning-Preston. Não sei a que é que vamos jogar. A noite paçada o Nicholas gritou e a ama teve de lhe dar um comprimido. Ficou todo vermelho. Um dos olhos da minha boneca caiu e não o consigo encontrar. Escreve-me depressa, por favor, quando puderes, e diz-me quando é que voltamos para Kirkton.

       Beijinhos da Cara.

  1. - Não te esqueças de escrever.”

Virginia dobrou a carta e pô-la de parte. Do outro lado do jardim, do outro lado dos relvados, a piscina azul de Alice brilhava como uma jóia. O ar refrescante estava impregnado de cantos de aves e de aromas florais. Conseguia ouvir a voz de Alice proveniente do interior da casa, onde conversava com Mrs. Jilkes, a cozinheira, sem dúvida acerca da lagosta que iam comer ao jantar.

 

Sentiu-se impotente. Pensou em pedir a Alice que a deixasse trazer os filhos para ali, mas sabia que isso era impossível. A casa de Alice não fora feita a contar com crianças, a sua vida não comportava a sua inclusão. Ficaria extremamente irritada quando Cara se esquecesse de tirar as botas de borracha, ou quando Nicholas atirasse a bola para os canteiros de flores cuidadosamente arranjados ou por fazer ”desenhos” no papel de parede. Sem a ama as coisas iriam ser muito difíceis, porque ele costumava portar-se muito pior quando ela não estava por perto.

 

Sem a ama. Aquelas eram as palavras-chave. Sozinha. Teria de estar sozinha com eles.

 

E no entanto a ideia assustava-a. O que faria com eles? Onde iriam? Como sondas, os seus pensamentos vaguearam à procura de ideias. Um hotel? Mas os hotéis deviam estar cheios com os turistas e ser muito caros. Para além disso, o Nicholas num hotel deveria causar tantos estragos como o Nicholas em Wheal House. Pensou em alugar uma roulotte, ou acampar com eles na praia, como a migração estival dos hippies, que acendiam fogueiras com pedaços de madeira arrastados para a costa e dormiam enrolados na areia gelada.

 

Claro que havia sempre Kirkton. Teria de lá voltar algum dia. Mas o seu instinto retraía-se com a perspectiva de regressar à Escócia, à casa onde vivera com Anthony, o lugar onde os seus filhos haviam nascido, o único lugar a que chamavam ”lar”. Ao pensar em Kirkton, Virginia viu as sombras das árvores projectadas nas paredes claras, a fria luz do Norte reflectida nos tectos brancos, o som dos seus próprios pés nas escadas polidas, sem alcatifa. Pensou nas claras tardes de Outono, quando os primeiros bandos de gansos voavam frente à casa, descendo na direcção do rio profundo e rápido...

 

Não. Ainda não. A Cara teria de esperar. Mais tarde, talvez, voltariam a Kirkton. Ainda não. Atrás de Virginia, uma porta bateu e ela voltou à realidade com a chegada de Tom Lingard, que regressava do trabalho. Ouviu-o chamar por Alice, depois pousar a pasta na mesa do vestíbulo e sair para o pátio à procura da esposa.

 

- Olá, Virginia! - dobrou-se e deu-lhe um beijo na nuca. Estás sozinha? Onde está a Alice?

 

- A entrevistar uma lagosta na cozinha.

 

- Recebeste carta dos miúdos? Está tudo bem? Óptimo, ainda bem... - Uma das características de Tom era que ele nunca se incomodava em esperar pelas respostas às perguntas que fazia. Virginia interrogava-se se seria esse o segredo do seu enorme sucesso. O que é que fizeste durante o dia? Apanhaste muito sol? Isso é que é vida. Que tal vires nadar comigo? O exercício far-te-ia bem depois de toda essa preguiça. Convidamos também a Alice... - Lá foi ele, ágil e cheio de vitalidade, de regresso à casa e dirigindo-se à cozinha à procura da mulher. E Virginia, grata por receber indicações sobre o que fazer, levantou-se, pegou na correspondência e entrou em casa, obediente, em direcção ao seu quarto, no piso superior, para vestir um biquini.

Os advogados chamavam-se Smart, Chirgwin e Williams. Pelo menos aqueles eram os nomes que estavam na placa de bronze junto à porta, uma placa que fora polida durante tanto tempo e com tanta força que as letras haviam perdido os seus contornos, dificultando assim a leitura. Na porta havia uma maçaneta de bronze, tão macia e brilhante como a placa, e, quando Virginia a fez girar e abriu a porta, entrou para um vestíbulo estreito com linóleo castanho polido no chão e tinta creme brilhante nas paredes, e ocorreu-lhe que a mulher-a-dias devia fazer um esforço muitíssimo grande para ter tudo tão limpo.

 

Lá dentro havia um guiché, tal como numa daquelas bilheteiras antigas, com um letreiro a dizer ”Informações”, e uma campainha. Virginia premiu-a e a janela do guiché foi subida.

 

-Sim?

 

Perplexa, Virginia disse ao rosto do guiché que desejava ver Mr. Williams.

 

- Tem hora marcada?

 

- Sim. Sou Mistress Keile.

 

- Aguarde um momento, por favor.

 

A janela voltou a ser descida e o rosto desapareceu. Mais tarde abriu-se uma porta e o rosto reapareceu, juntamente com um corpo robusto e um par de pernas que acabavam nuns sapatos de atacadores.

 

- Não se importa de me acompanhar, Mistress Keile?

 

O edifício que alojava o escritório de advogados estava situado no topo da colina que dava para a saída de Porthkerris, mas mesmo assim Virginia ficou deslumbrada com a vista que se lhe deparou ao entrar na sala. A secretária de Mr. Williams ficava no centro da alcatifa e este estava precisamente a levantar-se. Mas, para lá dele, uma grande janela emoldurava, como se de um belo quadro se tratasse, o panorama encantador da parte velha da cidade. Telhados de casas, chaminés de ardósia em cores esbatidas ou muito brancas surgiam sem seguir qualquer padrão, desordenados, estendendo-se colina abaixo. Aqui uma porta azul, acolá uma janela amarela; além uma janela cujo peitoril se encontrava carregado de gerânios, uma corda com roupa que se agitava como bandeiras, ou as folhas de uma árvore insuspeitada e normalmente invisível. Para lá dos telhados e muito abaixo deles havia o porto, com maré cheia e brilhante do sol. Os barcos balançavam ancorados, e um deles, branco, afastava-se para lá do molhe do porto, dirigindo-se para a linha do horizonte onde os dois azuis se fundem. No ar ecoavam os gritos das gaivotas, o céu era rasgado pelas suas grandes asas, e enquanto Virginia ali esteve os sinos da torre normanda tocaram as onze horas.

 

- Bom-dia - cumprimentou Mr. Williams, e Virginia apercebeu-se de que já era a segunda vez que ele o fazia. Desviou a sua atenção da janela e tentou concentrar-se nele.

 

- Oh, bom-dia. Eu sou Mistress Keile, e... - Mas era impossível. - Como é que consegue trabalhar numa sala com uma vista destas?

 

- É por isso que me sento de costas para ela...

 

- É arrebatadora!

 

- Sim, e muito característica. Os pintores perguntam-nos várias vezes se podem pintar o porto aqui da janela. Consegue ver-se toda a silhueta da cidade, e as cores são sempre diferentes, sempre muito belas. Excepto, é claro, num dia de chuva. Agora... - Os seus modos mudaram bruscamente como se estivesse ansioso por começar a trabalhar e deixar de perder mais tempo. - Em que posso ajudá-la? - Aproximou uma cadeira dela.

 

Tentando manter o olhar afastado da janela e concentrar-se no assunto que a trazia ali, Virginia sentou-se.

 

- Bem, talvez tenha vindo ter com a pessoa errada, mas não consegui encontrar um agente imobiliário na cidade. Procurei no jornal uma casa para alugar, mas parece não haver nada disponível. Foi então que vi o vosso nome na lista telefónica e pensei que talvez me pudessem ajudar.

 

- Ajudá-la a encontrar casa? - Mr. Williams era jovem, bastante moreno, olhos sinceramente interessados na mulher atraente que tinha na sua frente.

 

- Só para alugar...

 

- Por quanto tempo?

 

- Um mês... Os meus filhos regressam às aulas na primeira semana de Setembro.

 

- Estou a ver. Bem, não tratamos exactamente deste tipo de assunto, mas posso perguntar a Miss Ledra se há alguma coisa que ela possa sugerir. É claro que estamos na época alta e a cidade já está apinhada de turistas. Mesmo se chegar a encontrar alguma coisa, desconfio que tenha de pagar uma renda bastante elevada.

 

- Não me importo.

 

- Bem, aguarde um momento, por favor.

 

Ele levantou-se e saiu da sala, e Virginia ouviu-o a falar com a mulher que lhe abrira a porta. Levantou-se também e dirigiu-se para a janela, abriu-a de par em par e riu-se quando uma gaivota furiosa levantou voo do peitoril onde estava a repousar. A brisa vinda do mar era fresca. Um barco de recreio cheio de turistas começou a sair do porto, e de repente Virginia desejou também ir nele, sem preocupações, bronzeada, tendo na cabeça um chapéu a dizer ”beija-me” e gritando de prazer quando as primeiras ondas agitassem o barco.

 

Mr. Williams regressou.

 

- Importa-se de esperar um pouco? Miss Ledra está a fazer uns telefonemas...

 

- Sim, com certeza. - Virginia voltou a sentar-se.

 

- Está a passar uns dias em Porthkerris? - perguntou o advogado para puxar conversa.

 

- Sim. Estou em casa de uns amigos. Os Lingard, de Wheal House.

 

Os modos dele anteriormente não haviam sido nem muito distantes nem muito familiares, mas tornaram-se de um momento para o outro mais deferentes.

 

- Oh, sim, claro. É um sítio encantador.

 

- Sim. Alice tornou-o delicioso.

 

- Já lá tinha estado antes?

 

- Sim. Há uns dez anos. Mas durante este tempo não voltei lá.

 

- Os seus filhos estão consigo?

 

- Não, ficaram em Londres com a avó. Mas quero tê-los aqui comigo, se isso for possível.

 

- Mora em Londres?

 

- Não, a minha sogra é que mora lá. - Mr. Williams ficou à espera. - A minha casa..., quero dizer, moramos na Escócia.

 

Ele pareceu ficar encantado... Virginia não conseguia perceber a causa daquela reacção só por ela viver na Escócia.

 

- Mas que maravilha! Em que zona?

 

- Perthshire.

 

- É a mais bonita. A minha mulher e eu passámos lá as férias no ano passado. É tão calmo, as estradas sempre sem trânsito, aquela paz... Como é que suporta ter saído de lá?

 

Virginia abria a boca para lhe responder quando a conversa foi misericordiosamente interrompida pela chegada de Miss Ledra, que trazia na mão algumas folhas.

 

- Aqui está, Mister Williams. Bosithick. E a carta de Mister Kernow a dizer que se encontrarmos um inquilino para Agosto ele está disposto a alugar. Mas só a um inquilino adequado, Mister Williams. Ele é muito peremptório a esse respeito.

 

Mr. Williams recebeu as folhas e sorriu para Virginia.

 

- A senhora é uma inquilina adequada, Mistress Keile?

 

- Depende daquilo que me está a oferecer, não acha?

 

- Bem, não é mesmo em Porthkerris... Obrigado, Miss Ledra... Mas não é muito longe... Aliás, é em Lanyon...

 

- Lanyon!

 

Virginia deve ter parecido assustada, porque Mr. Williams começou logo a defender o local.

 

- Mas é um sítio encantador, na verdade o pedacinho de costa mais bonito desta região.

 

- Não quis dizer que não gostava. Fiquei apenas surpreendida.

 

- Sim? Porquê?

 

Ele era demasiado directo, como uma ave de rapina.

 

- Por nada. Fale-me da casa.

 

Ele assim fez. Era uma velha vivenda, bastante vulgar, mas relativamente célebre devido a saber-se que um famoso escritor lá tinha vivido e trabalhado durante os anos 20.

 

- Qual? - perguntou Virginia.

 

- Desculpe?

 

- Qual escritor famoso?

 

- Oh, perdão. Aubrey Crane. Não sabia que ele viveu durante alguns anos nesta região?

 

Virginia não sabia. Mas Aubrey Crane fora um dos muitos autores reprovados pela sua mãe. Lembrava-se da expressão gélida da velha senhora, lábios esticados, de cada vez que havia uma referência àqueles livros; lembrou-se de que eles eram rapidamente devolvidos à biblioteca antes de ela lhes poder dar uma olhadela. De algum modo, esse facto tornava a vivenda chamada ”Bosithick” ainda mais desejável.

 

- Continue - pediu Virginia.

 

Mr. Williams continuou. Apesar da sua antiguidade, Bosithick fora até certo ponto modernizada - possuía agora uma casa de banho e um fogão eléctrico.

 

- A quem é que pertence? - indagou Virginia.

 

- Mister Kernow é sobrinho da antiga dona da casa. Ela deixou-lha, mas ele mora em Plymouth e só lá vai nas férias. Este ano tencionava cá vir no Verão com a família, mas a esposa adoeceu e não podem fazer a viagem. Como somos os advogados de Mister Kernow, ele encarregou-nos de tratar do assunto, recomendando que, se realmente alugássemos a casa, teria de ser a um inquilino de confiança, que cuidasse dela.

 

- De que tamanho é?

 

Mr. Williams deu uma olhadela às folhas.

 

- Vamos ver, uma cozinha, uma sala de estar, uma casa de banho no rés-do-chão, um vestíbulo e três quartos no primeiro andar.

 

- Tem jardim? -Não.

 

- É muito distante da estrada?

 

- Tanto quanto me lembro, fica a uns cem metros de um caminho que conduz a uma quinta.

 

- E posso alugá-la de imediato?

 

- Não vejo porque não. Mas tem de a ver primeiro.

 

- Sim, com certeza... Quando posso lá ir?

 

- Hoje? Amanhã?

 

- Amanhã de manhã.

 

- Eu levo-a lá.

 

- Obrigada, Mister Williams. - Virginia levantou-se e dirigiu-se para a porta, pelo que o advogado teve de se apressar para a abrir antes que ela o fizesse.

 

- Só mais uma coisa, Mistress Keile. -Sim?

 

- Não perguntou de quanto era a renda.

 

- Não, pois não? Adeus, Mister Williams.

 

Virginia não contou nada a Alice e a Tom. Não queria colocar em palavras aquilo que era, na melhor das hipóteses, apenas uma ideia muito vaga. Não queria ser obrigada a discutir, não queria ser persuadida de que as crianças estavam melhor em Londres com a avó ou que Alice poderia ignorar a possível destruição causada por elas em Wheal House e insistiria em as ter ali. Quando Virginia encontrasse um local onde todos pudessem viver, apresentaria a Alice um facto consumado. E nessa altura, Alice poderia ajudá-la com a tarefa mais difícil, ou seja, convencer a avó a deixar vir as crianças até à Cornualha sem a ama. Virginia ficava um pouco assustada com a perspectiva, mas havia também outros obstáculos mais pequenos que era necessário ultrapassar primeiro, e ela estava decidida a solucionar as coisas sem a intervenção de outrem.

 

Alice era a anfitriã perfeita. Quando Virginia lhe disse que iria estar ausente de manhã nem sequer lhe passou pela cabeça perguntar à amiga o que tencionava fazer.

 

- Vens almoçar? - limitou-se ela a perguntar.

 

- Acho que não... É melhor não contares comigo.

 

- Então vemo-nos ao lanche. Depois podemos nadar um pouco.

 

- Excelente ideia - concordou Virginia. Deu um beijo a Alice e saiu. Entrou no carro e dirigiu-se para Porthkerris. Deixou o carro junto à estação e encaminhou-se para o escritório de Mister Williams.

 

- Mistress Keile, lamento imenso, mas não vou poder levá-la a Bosithick. Tenho de ficar aqui para receber uma velha cliente que vem de Truro; espero que compreenda! Mas as chaves da casa estão aqui e desenhei-lhe um mapa relativamente pormenorizado do trajecto a percorrer... Acho que não se vai enganar. Importa-se de ir sozinha, ou gostaria de levar Miss Ledra consigo?

 

Virginia imaginou a presença perturbadora de Miss Ledra e garantiu a Mr. Williams que se desenvencilharia sozinha. Deram-lhe um molho de chaves enormes, cada uma com a sua etiqueta em madeira: ”porta da frente”, ”cabana”, ”quarto da torre”.

 

- Tem de estar atenta ao caminho aconselhou Mr. Williams enquanto se encaminhavam para a porta. - Está em bastante mau estado, e como não é possível fazer inversão de marcha junto ao portão de Bosithick, tem de continuar; há-de chegar a um velho pátio e aí poderá dar a volta. Bom, tem a certeza de que não vai ter dificuldades? Lamento imenso o sucedido, mas estarei aqui, é claro, à espera de saber a sua opinião acerca da casa. Oh, mais uma coisa, Mistress Keile... Já há alguns meses que está fechada. Tente não se deixar influenciar pela sujidade. Abra algumas janelas e imagine uma bela lareira acesa.

 

Ligeiramente desencorajada por aqueles comentários, Virgínia regressou ao carro. As chaves da casa desconhecida pesavam como chumbo dentro da sua mala. De repente, desejou estar acompanhada e considerou por breves momentos a hipótese de voltar a Wheal House, contar a verdade a Alice e convencê-la a ir com ela a Lanyon, para lhe dar apoio moral. Mas isso seria ridículo. Era apenas uma pequena vivenda, que ia ser inspeccionada, e depois alugada ou rejeitada. Qualquer idiota... até mesmo Virgínia... seria capaz de fazer isso.

 

O tempo ainda estava bom e o trânsito continuava horrível. Numa enorme fila de carros, Virginia foi até ao centro da cidade e atravessou-a para o outro lado. No sítio da colina onde a estrada se bifurcava, o trânsito diminuía ligeiramente e ela conseguiu aumentar um pouco a velocidade e ultrapassar uns veículos mais lentos. Ao subir e passar pelos pântanos, com o mar lá em baixo, sentiu-se mais animada. A estrada serpenteava através do campo coberto de fetos; à sua esquerda estendia-se a grande planície de Cara Edvor, manchada de púrpura devido às urzes, e à direita o campo descia em direcção ao mar, com a habitual manta de retalhos dos campos e das quintas, que ela observara dois dias antes.

 

Mr. Williams dissera-lhe para procurar um aglomerado de pilriteiros inclinados pelo vento à beira da estrada. A seguir a eles havia uma curva apertada e depois aparecia o caminho estreito que conduzia ao mar. Virginia encontrou-o e meteu-se por ele; não era mais do que um caminho empedrado com umas sebes de silvas bastante altas. Meteu a segunda e desceu com cuidado, tentando evitar os altos e baixos e esforçando-se por não pensar nos estragos que os arbustos espinhosos provocavam na pintura do carro.

 

Não havia sinais de qualquer casa, até que Virginia virou numa curva apertada e se viu de repente diante dela. Um muro de pedra e por trás uma empena e um telhado de ardósia. Virginia parou o carro, pegou na mala e saiu. Vindo do mar, fazia-se sentir um vento fresco e salitroso e um odor a tojo. Tentou abrir o portão, mas os gonzos estavam partidos e teve de o levantar antes de conseguir enfiar-se por ali dentro. Havia um caminho que ia dar a um lanço de degraus de pedra, ou melhor ainda, à casa, e Virginia reparou que esta era comprida e baixa, com empenas a norte e a sul, e que na extremidade norte, a que dava para o mar, fora acrescentado mais um quarto, com uma torre quadrada por cima. A torre concedia à casa um aspecto estranhamente santificado, que Virginia achou arrepiante. Não havia qualquer jardim, mas, a sul, um bocado de relva por cortar agitava-se ao vento e duas estacas inclinadas suportavam o que anteriormente fora a corda da roupa.

 

Ela desceu as escadas e seguiu pelo caminho húmido que ladeava a casa, na direcção da porta da frente. Esta já fora pintada de vermelho-escuro e a tinta estava cheia de bolhas provocadas pelo sol. Virginia pegou na chave, enfiou-a na fechadura e rodou-a simultaneamente com a maçaneta, e logo a porta se abriu, sem qualquer ruído. Avistou um minúsculo lanço de escada, degraus gastos e tábuas descobertas; sentiu um cheiro a bafio e a... ratos? Engoliu em seco. Odiava ratos, mas já que tinha ido até ali restava-lhe subir os dois degraus gastos e transpor a soleira da porta com ousadia.

 

Não demorou muito a observar a parte velha da casa, a dar uma olhadela à minúscula cozinha com o seu fogão inadequado e lava-louças manchado; a sala de estar encontrava-se repleta de cadeiras que não condiziam entre si. No interior da enorme lareira estava colocado um aquecedor, como um animal selvagem à porta da sua toca. Nas janelas havia cortinados de algodão fino bastante sujos e perto delas encontrava-se uma cómoda repleta de chávenas, copos e pratos de todos os tamanhos e feitios em muito mau estado.

 

Já sem esperança, Virginia subiu as escadas. Os quartos eram escuros, com janelas pequenas, e tinham mobiliário inadequado. Voltou para o patamar e subiu mais um lanço de escadas, indo ter a uma porta fechada. Abriu-a e, depois da escuridão do resto da casa, o raio de luz que a inundou era deslumbrante. Meio atordoada, ela entrou numa sala espantosa, pequena, completamente quadrada, com janelas em três paredes, bem acima do nível do mar, como a ponte de um barco, com uma vista da costa que se devia estender por vinte quilómetros.

 

Junto à janela do lado norte havia um banco cujo tecido já estava desbotado. Uma mesa e um velho tapete debruado faziam também parte da decoração, e no centro da sala, como a tampa de um poço decorativa, via-se o corrimão de ferro trabalhado de uma escada em caracol que dava directamente para a sala de baixo, o vestíbulo referido por Mr. Williams.

 

Virginia desceu com cuidado para uma sala dominada por uma enorme lareira arte nova. Fora da sala encontrava-se a casa de banho; depois outra porta, e deu por si no sítio onde tinha começado, na escura e deprimente sala de estar.

 

Era uma casa extraordinária e terrível. Envolvia-a, esperando que ela tomasse uma decisão, desprezando a sua fraqueza. Para dar a si própria algum tempo, Virginia regressou ao quarto da torre, sentou-se junto da janela e abriu a mala à procura do tabaco. Só tinha um cigarro. Teria de comprar mais. Acendeu-o e olhou para a mesa vazia, para as cores esbatidas do tapete, e soube que aquele tinha sido o gabinete de Aubrey Crane, o local onde ele tinha congeminado todas aquelas histórias de amor picantes que Virginia nunca fora encorajada a ler. Viu-o, com barba e patilhas, um aspecto convencional que ocultava as paixões do seu coração rebelde. Talvez no Verão ele tivesse escancarado as janelas para apanhar todos os odores e ruídos do campo, o rugido do mar, o assobiar do vento. Mas no Inverno seria muitíssimo frio, e ele teria de se enrolar em cobertores e escrever dolorosamente, com dedos enregelados enluvados com lã...

 

Algures na sala esvoaçava uma mosca, esbarrando contra a vidraça. Virginia encostou a testa ao vidro frio e olhou sem ver para a paisagem, começando com um dos seus intermináveis monólogos que já a acompanhavam há uns anos.

 

Não posso vir para aqui.

 

Porque não?

 

Detesto isto. É assustador. Tem uma atmosfera terrível.

 

Isso é apenas a tua imaginação.

 

Esta casa está fora de questão. Nunca poderia trazer para cá os miúdos. Nunca viveram num sítio como este. Para além disso, não há um local onde possam brincar.

 

Eles têm o mundo inteiro para brincarem. Os campos, os penhascos e o mar.

 

Mas como tomar conta deles... Lavar a roupa, passar a ferro, cozinhar... E não há frigorífico, e onde é que eu ia aquecer a água?

 

Julgava que a única coisa importante era teres as crianças junto de ti, longe de Londres.

 

Estão melhor em Londres, com a ama, do que a viver numa casa como esta.

 

Não foi isso que pensaste ontem.

 

Não os posso trazer para cá. Não iria saber por onde começar. Sozinha não conseguiria.

 

Então o que é que vais fazer?

 

Não sei. Falar com a Alice. Talvez já devesse ter falado com ela. Não tem filhos, mas vai entender. Talvez saiba de outra casa mais pequena. Ela vai entender. Vai ajudar. Tem de o fazer.

 

Lá se vão as grandes resoluções, disse a sua própria voz, calma e sarcástica.

 

Irritada, Virginia atirou com o cigarro ainda meio por fumar para o chão, esmagou-o com o calcanhar, levantou-se, desceu as escadas, pegou nas chaves e fechou a porta atrás de si. Voltou pelo mesmo caminho, até ao portão, atravessou-o e fechou-o. A casa observava-a, as pequenas janelas dos quartos como olhos escarninhos. Afastou-se a custo daquele olhar e regressou à segurança do carro. Precisava de comprar tabaco e não estavam a contar com ela para o almoço em Wheal House. Por isso, depois de ter virado o carro e regressado de novo à estrada principal, dirigiu-se para o lado oposto de Porthkerris até chegar a Lanyon. Finalmente parou o carro numa praça empedrada que de um lado tinha o adro da igreja e do outro um pequeno pub pintado de branco chamado Mermaid’s Arms.

 

Como o tempo estava bom, havia mesas e cadeiras na rua, bem como chapéus-de-sol de cores garridas e vasos com chagas cor de laranja. Um homem e uma mulher estavam sentados a beber cerveja, e o filho de ambos brincava com um cachorrinho. Quando Virginia se aproximava, ergueram o olhar e cumprimentaram-na, sorrindo, e ela retribuiu da mesma forma, passando por eles e entrando, não sem instintivamente baixar a cabeça ao passar pelo lintel enegrecido.

 

O interior era apainelado, com um tecto baixo, mal iluminado por janelas minúsculas cobertas por cortinas de renda; havia um odor agradável, fresco e bafiento. Algumas pessoas, pouco visíveis na escuridão, encontravam-se sentadas junto à parede ou em tomo de pequenas mesas vacilantes, e atrás do balcão, emoldurado por filas de canecas penduradas, o barman, em camisa e pulôver axadrezado, polia alguns copos.

 

- Não sei o que se passa, William - dizia ele a um cliente sentado na outra extremidade do balcão, empoleirado num banco alto, com um cigarro cuja cinza precisava de ser deitada fora e um copo de bitter’ -, mas tu pões os caixotes do lixo na rua e ninguém mete nada neles...

 

- Hum... - grunhiu William, acenando tristemente e fazendo cair cinza na cerveja.

 

- O lixo espalha-se pela estrada. Os tipos da Câmara puseram aquelas latas, mas nem sequer as vêm despejar. Estávamos melhor sem elas. Safávamo-nos muito bem antes de as termos cá... -Acabou de polir o copo, pousou-o de repente e virou-se para atender Virginia. - Faça favor, minha senhora.

 

Era tipicamente um homem da Cornualha, na voz, no aspecto, na cor. Um rosto vermelho e curtido pelo vento, olhos azuis, cabelo preto.

 

Virginia pediu tabaco.

 

- Só temos maços de vinte cigarros. Serve? - Virou-se para os tirar da prateleira e rasgou o celofane com uma unha do polegar já experiente. - Belo dia, não acha? Está de férias?

 

- Sim. - Já há muitos anos que Virginia não ia a anpub. Na Escócia, as mulheres nunca lá entravam. Já se esquecera da atmosfera, da agradável camaradagem. - Tem Coca-Cola!

 

Ele pareceu ficar surpreendido.

 

- Sim, tenho. Encomendo-a para as crianças. Quer uma? -Sim.

 

Ele foi buscar uma garrafa, abriu-a com elegância e empurrou-a na direcção dela.

 

- Estava a dizer aqui ao William que a estrada para Porthkerris está uma desgraça... - Virginia puxou um banco e instalou-se para ouvir a conversa. -Aquele lixo todo espalhado. Os turistas parecem

 

1 Cerveja inglesa, com uma tonalidade mais escura e bebida à temperatura ambiente. (N. do T.)

 

não saber o que fazer com o seu lixo. A gente julga que quando vêm para um sítio bonito como este as pessoas têm mais juízo e levam para casa a porcaria que fazem, não a deixando à beira da estrada. Andam para aí a falar da conservação e da ecologia, mas, valha-me Deus...

 

O barman estava embrenhado naquilo que era obviamente o seu tema favorito, a julgar pelos grunhidos de assentimento provenientes de todos os cantos da sala. Virginia acendeu um cigarro. Lá fora, na praça soalheira, um carro parou, o motor foi desligado e uma porta bateu. Ela ouviu a voz de um homem dizer ”Bom-dia”, e depois passos através da porta que se dirigiam para o balcão atrás dela.

 

- Já escrevi ao deputado acerca do assunto. Perguntei-lhe quem é que ia limpar aquele chiqueiro, ele respondeu-me que isso era responsabilidade da Câmara, mas eu retorqui... - Por sobre a cabeça de Virginia ele apercebeu-se do recém-chegado. - Olá, rapaz! Já há muito que não te via!

 

- Ainda falas das latas do lixo, Joe?

 

- Já me conheces, rapaz, falo de uma coisa até me chatear de morte. O que é que vais tomar?

 

- Uma bitter.

 

Joe começou a tirar a cerveja para um copo, e o recém-chegado aproximou-se para se instalar entre Virginia e o lúgubre William, e ela reconhecera imediatamente a voz, assim que ele abrira a boca, tal como reconhecera o seu andar, ao atravessar a soleira da porta do Mermaid’s Arms.

 

Bebeu um gole de Coca-Cola e pousou o copo. De repente, o cigarro ficou amargo; apagou-o no cinzeiro, virou a cabeça na direcção do homem e viu a camisa azul, as mangas enroladas, deixando ver os antebraços castanhos, os olhos muito azuis e o cabelo muito curto e áspero. E como não havia mais nada a fazer ela tomou a iniciativa.

 

- Olá, Eustace.

 

Perplexo, ele rodou a cabeça e a sua expressão era a de um homem que fora repentinamente agredido com um murro no estômago, confundido e sem palavras.

 

- Sou mesmo eu - continuou ela rapidamente, e Eustace esboçou um sorriso, incrédulo, triste, como se soubesse que tinha feito figura de parvo.

 

- Virginia.

 

- Olá - disse ela de novo, estupidamente.

 

- Que diabo estás aqui a fazer?

 

Virginia tinha consciência de que todos no pub aguardavam a sua resposta.

 

- A comprar cigarros - respondeu ela descontraída. - E a beber.

 

- Não quis dizer aqui. Referia-me à Cornualha. A Lanyon.

 

- Estou de férias, em casa dos Lingard, em Porthkerris.

 

- Quando é que chegaste?

 

- Há uma semana...

 

- E o que é que vieste cá fazer?

 

Mas antes de ela ter tempo de responder, o barman empurrou a caneca de Eustace sobre o balcão, e este distraiu-se ao tentar descobrir uns trocos dentro do bolso das calças.

 

- Então são velhos amigos, não é verdade? - perguntou Joe, olhando para Virginia com renovado interesse.

 

- Sim, acho que pode dizer isso - respondeu ela.

 

- Já não a via há uns dez anos - esclareceu Eustace, colocando as moedas em cima do balcão. Olhou para o copo de Virginia.

- O que é que estás a beber?

 

- Coca-Cola.

 

- Traz a bebida lá para fora, é melhor sentarmo-nos ao sol. Ela seguiu-o, sem reparar nos olhares fixos pousados nela;

 

na curiosidade insaciável. Lá fora, ele pousou os copos de ambos em cima de uma mesa de madeira e sentaram-se, lado a lado, num banco, com o sol sobre as suas cabeças e de costas voltadas para a parede branca do pub.

 

- Não te importas que eu te tenha trazido para aqui, pois não? De outra forma tudo o que disséssemos seria espalhado pela região em menos de meia hora.

 

- Prefiro estar cá fora.

 

Meio voltado na sua direcção, ele sentou-se tão perto de Virginia que ela conseguia distinguir a textura áspera e curtida pelo tempo da sua pele, a rede de pequenas linhas em torno dos seus olhos, as primeiras cãs naquele espesso cabelo castanho. ”Estou novamente com ele”, pensou.

 

- Conta-me - pediu Eustace.

 

- Conto-te o quê?

 

- O que te aconteceu. - E acrescentou rapidamente: - Como te casaste.

 

- Sim. Quase imediatamente.

 

- Bem, isso foi a recompensa da saison londrina que receavas tanto.

 

- É verdade.

 

- E o baile de apresentação à sociedade.

 

- Em vez disso tive um casamento.

 

- Mistress Anthony Keile. Vi a notícia no jornal. - Virginia permaneceu em silêncio. - Onde é que vives agora?

 

- Na Escócia. Temos lá uma casa...

 

- Filhos?

 

- Sim. Dois. Um casal.

 

- Que idade têm? - Ele estava realmente interessado, e ela lembrou-se de como as pessoas daquela região gostavam de crianças, como Mrs. Jilkes ficava sempre de lágrima no olho de cada vez que via um dos seus sobrinhos-netos ou uma sobrinha.

 

- A menina tem oito e o rapaz seis.

 

- Eles vieram contigo?

 

- Não. Ficaram em Londres com a avó.

 

- E o teu marido? Também veio? O que está ele a fazer agora? A jogar golfe?

 

Virginia olhou para ele, aceitando pela primeira vez o facto de que uma tragédia pessoal é apenas isso. Pessoal. A nossa existência pode estilhaçar-se, mas isso não significa necessariamente que o resto do mundo saiba, ou se importe. Não havia motivo para o Eustace saber.

 

Colocou as mãos na extremidade da mesa, alinhando-as, como se isso fosse da maior importância.

 

- O Anthony morreu - disse ela.

 

As suas mãos pareceram de repente desvanecer-se, ficar quase transparentes, os pulsos demasiado finos, as longas unhas em forma de amêndoa, pintadas de cor-de-rosa, tão frágeis como pétalas. Virginia desejou de repente, com fervor, que elas não fossem assim, mas fortes e castanhas e hábeis, com terra entranhada, e as unhas partidas por causa da jardinagem, de descascar batatas e de raspar cenouras. Sentia o olhar de Eustace posto nela. Não suportava que ele sentisse pena de si.

 

- O que aconteceu? - perguntou ele.

 

- Morreu num acidente de viação. Afogou-se. -Afogou-se?

 

- Em Kirkton há um rio, sabes... é aí que vivemos, na Escócia. O rio corre entre a casa e a estrada, temos de atravessar uma ponte. Ele dirigia-se para casa e derrapou, ou fez mal a curva e o carro derrubou a vedação de madeira e caiu na água. Tinha chovido muito, o rio ia cheio e o carro foi para o fundo. Teve de lá ir um mergulhador, com um cabo. A Polícia içou-o mais tarde... -A voz fugiu-lhe.

 

- Quando? - perguntou ele com suavidade.

 

- Há três meses.

 

- Há pouco tempo.

 

- É verdade. Mas há tanto a fazer, tanta coisa de que tenho de me ocupar. Não sei o que é que aconteceu ao tempo. E depois apanhei um vírus, uma espécie de gripe, não me conseguia livrar dela, por isso a minha sogra sugeriu que as crianças fossem para Londres e eu viesse passar uns dias com a Alice.

 

- Quando é que partes?

 

- Não sei.

 

Ele ficou em silêncio. Passado algum tempo, pegou no copo e despejou a cerveja.

 

- Estás com carro? - perguntou ele ao pousá-lo.

 

- Sim. - Virginia indicou o lugar onde ele se encontrava. O Triumph azul.

 

- Então acaba lá de beber isso e vamos até Penfolda. - Virginia olhou para ele surpresa. Bem, o que é que há nisso de tão extraordinário? São horas de almoço. Tenho umas tartes no forno. Queres vir comer uma comigo?

 

- Sim.

 

- Então anda daí. Trouxe o meu Land Rover. Podes vir atrás

 

de mim.

 

- Está bem.

 

Ele levantou-se.

 

- Então anda.

 

Ela fora uma vez a Penfolda, apenas uma vez, à fresca meia luz de uma noite de Primavera, dez anos antes.

 

- Fomos convidados para uma festa - dissera Alice naquele dia ao almoço.

 

A mãe de Virginia ficou imediatamente intrigada. Era uma mulher com uma grande vida social e com uma filha de dezassete anos que urgia apresentar à sociedade, pelo que a simples menção de uma festa era suficiente para lhe despertar a atenção.

 

- Que bom! Onde? Com quem?

 

Alice riu-se. Era uma das poucas pessoas que se podiam rir de Rowena Parsons sem que daí adviesse algum mal, mas tal era compreensível, porque ambas já se conheciam havia muitos anos.

 

- Não fiques tão excitada. Na realidade não é muito o teu género de festa.

 

- Minha querida Alice, não sei do que estás a falar. Explica-te!

 

- Bem, é um casal chamado Barnet. Amos e Fenella Barnet. Talvez tenhas ouvido falar deles. Ele é escultor, muito moderno, muito vanguardista. Ocuparam um dos velhos estúdios de Porthkerris e têm um grande número de filhos muito pouco convencionais.

 

- Porque não vamos até lá? - perguntou Virginia sem precisar de ouvir o resto. Parecia ser exactamente o tipo de pessoas que ela ansiava por conhecer.

 

Mrs. Parsons permitiu que uma ligeira ruga aparecesse entre as suas sobrancelhas perfeitamente alinhadas.

 

-A festa é no estúdio? - perguntou ela, suspeitando obviamente de bebidas alcoólicas e cigarros com droga.

 

- Não, é em Lanyon, numa quinta chamada Penfolda, uma espécie de churrasco nos penhascos. Uma fogueira e salsichas fritas...

- Alice apercebera-se de que Virginia estava ansiosa por ir. - Acho que pode ser muito divertido.

 

- A mim parece-me uma coisa terrível - retorquiu Mrs. Parsons.

 

- Já calculava que não quisesses aceitar o convite. Mas eu e o Tom somos capazes de ir e levamos a Virginia connosco.

 

Mrs. Parsons virara o olhar frio para a filha.

 

- Queres ir a um churrasco? Virginia encolhera os ombros.

 

- Talvez seja divertido. -Aprendera há muito a não se mostrar demasiado entusiasta com as coisas.

 

- Muito bem - disse a mãe, servindo-se de uma fatia de pudim de limão. - Se é essa a tua ideia de uma noite divertida e se a Alice

 

e o Tom não se importarem de te levar... Mas por amor de Deus veste qualquer coisa quente. Dizem que vai estar muito frio. Demasiado frio, seria normal pensar, para um piquenique.

 

Ela tivera razão. Estava frio.

 

Uma clara noite cor de turquesa com a vertente de Carn Edvor recortada contra o céu a oeste e um vento gelado vindo do interior. No carro, ao subir a colina, já a sair de Porthkerris, Virginia olhou para trás e viu as luzes da cidade a brilharem lá em baixo, as águas escuras do porto repletas de reflexos tremeluzentes. Do outro lado da baía, um farol enviava o seu sinal de alerta. Um clarão. Uma pausa. Um clarão. Uma pausa maior. Cuidado. Há perigo.

 

A noite que aí vinha parecia estar cheia de promessas. Repentinamente excitada, Virginia virou-se e inclinou-se para a frente, descansando o queixo nos braços cruzados, que se apoiavam nas costas do banco de Alice. O gesto não premeditado foi desajeitado e espontâneo, um reflexo natural de alegria de quem normalmente estava soterrada sob a influência de uma mãe dominadora.

 

- Alice, onde é o sítio para onde vamos?

 

- Em Penfolda. Uma quinta, do lado de cá de Lanyon.

 

- Quem é que lá mora?

 

- Mistress Philips. É viúva. E o filho dela, o Eustace.

 

- O que é que ele faz?

 

- É agricultor, tontinha. Já te disse que era uma quinta.

 

- São amigos dos Barnet?

 

- Presumo que sim. Há muitos artistas a viverem nesta zona. Embora não faça ideia de como é que se podem ter conhecido.

 

- Provavelmente no Mermaid’s - alvitrou Tom.

 

- O que é o Mermaid’s? - indagou Virginia.

 

- The Mermaid’s Arms, o pub de Lanyon. No sábado à noite, todos os homens e as suas esposas vão até lá para beber um copo e se reunirem.

 

- Quem mais é que vai à festa?

 

- Sabemos tanto como tu.

 

- Não fazem sequer uma pequena ideia?

 

- Bem... -Alice esforçou-se. -Artistas, escritores, poetas, hippies e agricultores, e talvez uma ou duas pessoas bastante aborrecidas e convencionais como nós.

 

Virgínia deu-lhe um abraço.

 

- Vocês não são nem aborrecidos nem convencionais. São incríveis!

 

- Lá para o fim da noite talvez não nos aches assim tão incríveis. Talvez detestes a festa, por isso cala-te e guarda a tua opinião para mais tarde.

 

Virginia recostou-se, na escuridão do carro, envolvendo-se com os braços. ”Não vou detestar a festa.”

 

Viam-se luzes que pareciam pirilampos, vindas de todas as direcções, convergindo para Penfolda. Da estrada conseguia ver-se a casa, resplandecente de luz. Juntaram-se à fila de carros que seguia

aos altos e baixos, descendo por um caminho estreito até chegarem a um pátio que se transformara temporariamente em parque de estacionamento. O ar estava repleto de vozes e risos, amigos cumprimentavam amigos, e já havia bastantes pessoas a dirigir-se para os

penhascos, passando por um muro de pedra e atravessando as pastagens. Algumas estavam embrulhadas em mantas, outras levavam

lanternas bastante antigas, outras, ainda - Virginia alegrou-se novamente por a mãe não ter vindo -, uma ou duas garrafas a retinir.

 

- Tom, o que estás aqui a fazer? - gritou alguém, e Tom e Alice ficaram para trás a aguardar pelos seus amigos. Virgínia continuou, adorando a sensação de solidão. Em seu redor, o ar suave e negro cheirava a turfa, a maresia e a fumo. O céu ainda tinha alguma luz, e o mar apresentava uma tonalidade de azul tão escura que mais parecia preto. Ela passou por uma fenda no muro e viu, mais abaixo, no fundo do campo, as chamas douradas da fogueira, já envolta por lanternas, vultos e sombras de cerca de trinta pessoas. À medida que se aproximava, os rostos foram-se tornando nítidos, iluminados pelo lume, rindo-se e conversando, toda a gente conhecendo toda a gente. Havia um barril de cerveja em cima de um suporte de madeira, a partir do qual se enchiam continuamente os copos cintilantes, e havia no ar o cheiro de batatas assadas e gordura a crepitar.

 

Alguém trouxera uma guitarra e começara a tocar, e, aos poucos, algumas pessoas foram-se juntando em seu redor, começando a cantar com vozes incertas. Pelo mar navega um navio, cheio vai até não mais poder.

Mas não tão cheio como eu de amor por ti...”

 

Um jovem, correndo para ultrapassar Virginia, tropeçou no escuro e chocou com ela.

 

- Desculpe. -Agarrou-a pelo braço, para se apoiar e para a amparar. Ergueu a lanterna, iluminando o rosto dela. - Quem é você?

 

- Virginia.

 

- Virginia quê?

 

- Virginia Parsons. - Ele tinha cabelo comprido e usava uma fita na cabeça. Parecia um apache.

 

- Pareceu-me ver uma cara nova. Veio sozinha?

 

-N... não. Vim com a Alice e o Tom... mas... - Olhou para trás.

- Perdi-os... Eles devem estar a aparecer... algures...

 

- Chamo-me Dominic Barnet. -Oh... A festa é sua...

 

- Não, do meu pai... Pelo menos foi ele quem pagou o barril de cerveja, o que torna a festa dele, e a minha mãe comprou as salsichas. Venha daí... Vamos beber qualquer coisa. - E agarrou-a pelo braço ainda com mais firmeza, conduzindo-a até ao círculo de actividade, agitado e barulhento. - Eh, pai... Há aqui uma pessoa que ainda não bebeu nada...

 

Uma grande figura de barba, com um aspecto medieval naquela estranha luz, endireitou-se junto à torneira do barril.

 

- Bem, está aqui uma bebida - disse ele, e Virgínia deu consigo a agarrar uma enorme caneca de cerveja.

 

- E aqui está uma salsicha. - O jovem tirou com elegância uma do tabuleiro e entregou-lha, presa a um palito. Virginia pegou nela, e estava prestes a embrenhar-se numa conversa trivial quando Dominic viu outro rosto familiar no círculo de luz, gritou ”Mariana!” ou outro nome qualquer e afastou-se, deixando Virgínia sozinha mais uma vez.

 

Ela procurou os Lingard na escuridão, mas não foi capaz de os encontrar. Como todos se tinham sentado, ela fez o mesmo, com a enorme caneca numa mão e a salsicha, que ainda estava demasiado quente para ser comida, na outra. A fogueira aquecia-lhe o rosto, o vento soprava frio nas suas costas e empurrava-lhe o cabelo para a cara. Bebeu um gole de cerveja. Nunca antes provara aquela bebida e teve de imediato vontade de espirrar. Assim fez, e com grande estrondo.

 

- Santinha - disse alguém atrás dela, bastante divertido.

 

- Obrigada - agradeceu Virginia depois de ter recuperado do espirro. Olhou para cima, para ver quem falara, e viu um jovem corpulento com calças de bombazina, botas de borracha e um camisolão de lã. Ele sorria-lhe e a luz da fogueira emprestava ao seu rosto a tonalidade do cobre. - Foi a cerveja que me fez espirrar esclareceu ela.

 

Ele agachou-se a seu lado, pegou suavemente na caneca e pô-la no chão entre ambos.

 

- Pode espirrar outra vez, e iria entorná-la, o que seria um desperdício.

 

- É verdade.

 

- Deve ser amiga dos Barnet.

 

- Porque diz isso?

 

- Nunca a vi antes.

 

- Não, não sou. Vim com os Lingard.

 

- A Alice e o Tom? Eles também vieram?

 

- Sim, estão algures por aí.

 

Ele parecia tão satisfeito com o facto de os Lingard terem ido que Virginia esperava que ele fosse à procura deles. Em vez disso, o jovem instalou-se confortavelmente na relva a seu lado, e contentou-se em ficar calado, observando, algo divertido, o resto das pessoas. Virginia comeu a salsicha e, ao acabar, vendo que ele ainda não tinha dito nada, decidiu tentar de novo.

 

- Você é amigo dos Barnet?

 

- Hum... - Ao ser interrompido nos seus pensamentos, ele olhou para ela com uns olhos azul-claros. - Desculpe?

 

- Estava só a perguntar se você é amigo dos Barnet. Ele riu-se.

 

- Espero que sim. São as minhas terras que eles estão a profanar!

 

- Então você deve ser Eustace Philips.

 

- Sim - disse ele passado algum tempo. - Acho que devo ser. Logo de seguida alguém o chamou... Uma das suas vacas

 

tinha fugido de um terreno vizinho e uma rapariga tresloucada que já bebera demasiado vinho pensou que estava a ser atacada por um touro e teve um ataque de histeria. Eustace teve de voltar a restabelecer a ordem e Tom e Alice foram ter com Virginia. Apesar de ter passado o resto da noite à procura de Eustace Philips, não o voltou a ver.

 

A festa foi memorável e teve bastante sucesso. Perto da meia-noite, com a cerveja esgotada, as garrafas de um lado para o outro, sem restar comida e a fogueira aumentada até as chamas atingirem seis metros de altura, Alice sugeriu que talvez fosse boa ideia irem andando.

 

- A tua mãe há-de estar acordada, a pensar que foste violada ou caíste ao mar. O Tom também tem de estar amanhã no escritório

 

às nove horas e, para além disso, está um frio de rachar. O que te parece? Já chega? Divertiste-te?

 

- Bastante - respondeu Virginia, com pena de se ir embora. Mas eram horas de partir. Caminharam em silêncio, afastando-se da fogueira e do barulho e subindo na direcção da casa.

 

Agora só havia luz numa janela do rés-do-chão, mas a Lua, que já ia alta, estava cheia, redonda como um prato, enchendo o ar de uma luz prateada. Ao atravessarem o muro para o pátio, abriu-se uma porta na casa e a luz amarela espalhou-se pelo empedrado.

 

- Tom! Alice! Entrem e bebam um café ou um chá, algo que vos aqueça para a viagem! - chamou uma voz.

 

- Olá, Eustace! - Tom entrou em casa. - Pensámos que já te tinhas ido deitar.

 

- Nunca fico lá nos penhascos até de madrugada, isso é garantido. Queres beber alguma coisa?

 

- Um uísque - respondeu Tom.

 

- E eu um chá - pediu Alice. - Que boa ideia! Estamos gelados. De certeza que não te estamos a maçar?

 

- A minha mãe ainda está a pé, e gostaria de vos ver. Tem a chaleira ao lume...

 

Todos seguiram Eustace até um vestíbulo de tecto baixo e painéis nas paredes, com um chão de lajes de lousa coberto com tapetes de cores vivas. As vigas do tecto ficavam a pouca distância da cabeça de Eustace Philips.

 

Alice desabotoou o casaco.

 

- Eustace, já conheces a Virginia? Ela está a passar uns dias connosco em Wheal House.

 

- Sim, já nos cumprimentámos - respondeu ele, mas mal olhou para a rapariga. - Venham até à cozinha, lá está mais quente do que no resto da casa. Mãe, estão aqui os Lingard. A Alice gostaria de uma chávena de chá. O Tom quer um uísque e... - Baixou os olhos para Virgínia. - O que é que você quer?

 

- Pode ser um chá.

 

Alice e Mrs. Philips meteram mãos à obra, a segunda com o bule e com a chaleira, a primeira a tirar das prateleiras do armário as chávenas e os pires. Enquanto o faziam, comentavam a festa dos Barnet, rindo-se da rapariga que pensava que a vaca era um touro, e os dois homens instalaram-se na mesa da cozinha com copos, um sifão com soda e uma garrafa de uísque.

 

Virginia sentou-se também, no lugar à cabeceira da mesa junto à janela, ouvindo, sem prestar atenção, o agradável murmúrio das vozes. Reparou que estava cheia de sono, atordoada pelo calor e pelo conforto da cozinha de Penfolda, depois do frio lá de fora, e ligeiramente tonta devido à cerveja, à qual não estava habituada.

 

Mergulhada nas dobras do seu casaco, mãos enfiadas nos bolsos, olhou em volta e teve a sensação de nunca ter estado num local tão acolhedor, tão seguro. Havia traves no tecto, com velhos ganchos de ferro para defumar presuntos, e janelas com grandes parapeitos, cheios de gerânios em flor. A chaleira fumegava sobre um fogão enorme, havia uma cadeira de verga onde um gato se havia enroscado, um calendário, cortinas de algodão axadrezado e o agradável cheiro de pão acabado de cozer.

 

Mrs. Philips era pequena, de cabelos grisalhos, mas elegante. Parecia que nunca parara de trabalhar desde o dia em que nascera e que não gostava que isso se modificasse, e enquanto ela e Alice se movimentavam pela cozinha, hábeis e rápidas, coscuvilhando acerca dos pouco convencionais Barnet, Virginia observava-a e desejava poder ter uma mãe assim. Calma, de bom humor, com uma grande cozinha acolhedora e a chaleira sempre ao lume para uma chávena de chá.

 

Quando o chá ficou pronto, as duas mulheres juntaram-se aos outros à mesa. Mrs. Philips encheu uma chávena e deu-a a Virginia, que se endireitou, tirou as mãos dos bolsos e pegou nela, lembrando-se de agradecer.

 

- Estás cheia de sono - comentou Mrs. Philips a rir.

 

- Eu sei - disse Virginia. Todos a observavam, mas ela mexeu o chá e não levantou o olhar, pois não queria encontrar aqueles olhos azuis e desconcertantes.

 

Chegou a altura de partir. Já com os casacos vestidos, dirigiram-se para o vestíbulo. Os Lingard e Mrs. Philips já estavam junto à porta quando Eustace dirigiu a palavra a Virginia, por trás dela.

 

- Adeus.

 

- Oh! - Confusa, ela voltou-se. - Adeus. - Estendeu a mão, mas talvez ele não tivesse visto, porque não a apertou. - Obrigado por me teres deixado vir à festa.

 

Ele fez um ar divertido.

 

- Foi um prazer. Tens de voltar outra vez.

 

E durante todo o caminho para casa, ela acarinhou aquelas palavras como se elas tivessem sido um presente magnífico que ele lhe tivesse dado. Mas Virginia nunca regressou a Penfolda.

 

Até àquele dia, dez anos depois, numa tarde de Julho extremamente bela. As bermas da estrada estavam enfeitadas de tussilagem amarelo-viva, o tojo brilhava e os cumes verdejantes pareciam esmeraldas contra um céu de Verão da cor dos jacintos.

 

Ela estivera tão absorta nas suas actividades do dia - ir buscar as chaves, procurar a vivenda em Bosithick e preocupar-se com assuntos tão práticos como tachos, frigoríficos, lençóis e louças que toda a manhã se passara quase sem ela dar por isso. Mas agora isto fazia parte do que repentinamente acontecera e Virginia lembrou-se de como há anos o farol brilhara sobre o mar escuro, e ela se havia sentido, sem razão aparente, excitada com uma antecipação maravilhosa.

 

”Mas já não tens dezassete anos. És uma mulher de vinte e sete anos e independente, com dois filhos, um carro e uma casa na Escócia. A vida já não tem dessas surpresas. Tudo é diferente. Nada fica na mesma.”

 

No cimo do caminho que conduzia a Penfolda, encontrava-se uma plataforma de madeira para as latas do leite, e o caminho descia íngreme e sinuoso por entre os altos muros de pedra. Os pilriteiros inclinavam-se devido aos ventos de Inverno e enquanto Virginia seguia o Land Rover de Eustace até perto da casa surgiram dois collies, brancos e pretos, ladrando e provocando um tão grande alarido que as galinhas começaram a cacarejar e precipitaram-se em busca de protecção.

 

Eustace estacionara o jipe à sombra do celeiro e já tinha saído de dentro dele, afastando delicadamente os cães. Virginia parou atrás dele e também saiu, e os collies dirigiram-se-lhe de imediato, ladrando e saltando, tentando colocar as patas da frente nos joelhos dela e esticando-se para lhe lamberem o rosto.

 

- Para baixo... para baixo, seus marotos! - disse ele.

 

- Não me importo. - Ela acariciou as cabeças esguias, o pêlo grosso. - Como se chamam?

 

- Beaker e Ben. Este é o Beaker e este é o Ben... Vá, cala-te! Fazem sempre isto...

 

Os seus modos eram firmes e agradáveis como se durante a curta viagem ele tivesse decidido ser aquela a melhor atitude a tomar se não queriam que o resto do dia fosse passado a lamentar Anthony Keile. E Virginia, que não queria nada que isso acontecesse, pegou agradecida na deixa. As barulhentas boas-vindas dos cães ajudaram a quebrar o gelo, e foi com à-vontade que percorreram juntos o caminho empedrado na direcção da casa.

 

Já lá dentro, ela viu as vigas, o chão de lajes, os tapetes. Tudo igual.

 

- Lembro-me disto.

 

Havia no ar um odor a tartes que fazia crescer água na boca. Ele dirigiu-se para a cozinha, foi até ao fogão, agarrou numa pega, inclinou-se e abriu o forno. Virgínia seguiu-o.

 

- Não estão queimadas, pois não? - perguntou ela com ansiedade. Do forno saía algum fumo.

 

- Não estão no ponto - respondeu ele, fechando a porta do forno e erguendo-se.

 

- Foste tu que as fizeste?

 

- Eu? Deves estar a brincar.

 

- Então quem foi?

 

- A senhora Thomas, a minha governanta... Queres uma bebida? - Dirigiu-se para o frigorífico e tirou da porta uma lata de cerveja.

 

- Não, obrigada.

 

- Não tenho Coca-Cola - disse ele a sorrir.

 

- Não quero beber nada.

 

Enquanto falava, Virginia olhava à sua volta, apavorada por que alguma coisa naquela magnífica cozinha tivesse sido alterada, que Eustace tivesse mudado algo, deslocado os móveis, pintado as paredes. Mas estava tal e qual como ela se lembrava. A mesa colocada junto à janela, os gerânios no parapeito, o armário com louça. Depois de todos aqueles anos, permanecia a cozinha ideal, o coração da casa.

 

Quando tinham comprado a casa de Kirkton e a estavam a arranjar, desde a cave ao sótão, ela tentara fazer uma cozinha como a de Penfolda. Um sítio confortável e quente onde a família se pudesse reunir, beber chá e conversar em torno da mesa.

 

- Quem é que quer ir para uma cozinha? - perguntara Anthony, sem perceber a ideia.

 

- Toda a gente. A cozinha de uma quinta é como uma sala de estar.

 

- Bem, eu não vou para a cozinha, digo-te já.

 

E encomendara acabamentos em aço inoxidável e balcões de formica branca, com um chão preto e branco onde se notavam todas as nódoas e era difícil de manter limpo.

 

- Receei que isto estivesse diferente, mas está na mesma comentou Virginia, inclinando-se sobre a mesa.

 

- Porque é que haveria de ter mudado?

 

- Não sei. Mas estava com receio disso. As coisas mudam.

 

Eustace, a Alice disse-me que a tua mãe tinha falecido... Os meus pêsames.

 

- Obrigado. Sim, morreu há dois anos. Caiu. Apanhou uma pneumonia. - Atirou a lata vazia para o balde do lixo e virou-se para ela, encostando-se ao lava-louças. - E a tua mãe?

 

A voz dele não tinha qualquer entoação; ela não conseguiu detectar uma nota de sarcasmo ou de desagrado.

 

- Morreu, Eustace. Ficou muito doente uns anos depois de eu e o Anthony termos casado. Foi horrível, porque a doença se arrastou por muito tempo. E também foi difícil, porque ela estava em Londres e eu em Kirkton... Não pude estar sempre com ela.

 

- E ela não tinha mais ninguém?

 

- Não. E isso fazia parte do problema. Eu visitava-a sempre que podia, mas no fim acabámos por levá-la para a Escócia. Mais tarde ela foi para um lar em Relkirk e morreu aí.

 

- É pena.

 

- Pois é. E era tão nova... É uma coisa esquisita quando a nossa mãe morre. Só crescemos depois de isso acontecer. Pelo menos suponho que é isso que algumas pessoas sentem - acrescentou ela.

 

- Tu já eras adulto muito antes de isso acontecer.

 

- Não sei - disse ele. - Mas compreendo o que queres dizer.

 

- Seja como for, acabou-se tudo há uns anos. Não vamos agora pôr-nos a falar de coisas tristes. Fala-me de ti e da senhora Thomas. Sabes que a Alice Lingard me disse que ou tinhas uma amante domesticada ou uma governanta sexy! Estou ansiosa por a conhecer.

 

- Bem, vais ter oportunidade disso. Ela foi a Penzance visitar a irmã.

 

- Vive aqui?

 

- Mora na vivenda na outra extremidade da casa. Isto dantes eram três vivendas, sabes, nos velhos tempos, antes de o meu avô comprar a quinta. Viviam cá três famílias que cultivavam alguns hectares. Provavelmente tinham meia dúzia de vacas para a ordenha e mandavam os filhos para as minas para terem alguma coisa que comer.

 

- Há dois dias, fui até Lanyon e parei no cimo da colina e dali avistei três ceifeiras-debulhadoras e alguns homens a fazer medas

 

- disse Virginia. - Lembrei-me que tu podias ser um deles.

 

- Se calhar até era.

 

- Pensei que te tinhas casado.

 

- Mas não casei.

 

- Eu sei. A Alice Lingard disse-me que não.

 

Depois de ele ter acabado a cerveja, abriu uma gaveta e tirou de lá garfos e facas, começando a pôr a mesa. Virginia interrompeu-o.

 

-Aqui está tudo tão arrumado... Não podemos comer as tartes no jardim?

 

Eustace ficou admirado, mas anuiu e foi buscar um cesto para os talheres, pratos, sal, pimenta e copos. Tirou as tartes do forno, colocando-as num grande prato de porcelana às flores, e saíram ambos para o sol e para o pequeno jardim meio selvagem. A relva precisava de ser cortada, os canteiros estavam demasiado cheios e havia roupas estendidas numa corda - fronhas e lençóis brancos.

 

Eustace não tinha mobiliário de jardim. Por isso sentaram-se na relva, cheia de margaridas e bananas-de-são-tomé, com os pratos do piquenique espalhados em seu redor.

 

As tartes eram enormes, e Virginia tinha apenas comido metade da sua e desistira de prosseguir quando Eustace, recostado sobre um cotovelo, já limpara o prato.

 

- Não consigo comer mais - disse ela, e deu-lhe o que sobrara da tarte, que ele aceitou e comeu com a maior das facilidades.

 

- Se eu não tivesse tanta fome, obrigava-te a comê-la, para ver se engordavas um bocado - disse ele entre duas dentadas de tarte e batatas.

 

- Eu não quero ser gorda.

 

- Mas és demasiado magra. Sempre foste elegante, mas agora até parece que voarias com uma rabanada de vento mais forte. E cortaste o cabelo. Dantes era comprido, até meio das costas, esvoaçante. - Ele estendeu a mão e com o indicador e o polegar rodeou-lhe o pulso. - Estás um esqueleto.

 

- Talvez tenha sido por causa da gripe.

 

- Eu pensei que havias de estar gordíssima depois de tantos anos a comer papas de aveia, arenques e bucho de carneiro recheado.

 

- Isso é o que se come na Escócia.

 

- Foi o que me disseram.

 

Ele soltou-lhe o pulso, acabou de comer tranquilamente e começou a recolher a louça no cesto, levando tudo para casa. Virginia levantou-se, para ajudar, mas ele mandou-a estar quieta, e ela obedeceu, deitando-se na relva e contemplando o telhado direito e cinzento do celeiro, as gaivotas pousadas nele e as nuvens brancas de bom tempo impelidas pelo vento que soprava do mar no céu incrivelmente azul.

 

Eustace regressou, com tabaco, maçãs e um termo com chá. Virginia não se mexeu. Ele atirou-lhe uma maçã e depois sentou-se de novo ao lado dela, desenroscando a tampa do termo.

 

- Fala-me da Escócia.

 

Virginia fez girar a maçã, fresca e macia, nas mãos.

 

- O que queres que eu diga?

 

- O que fazia o teu marido?

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Ele não trabalhava?

 

- Não propriamente. Pelo menos não tinha um emprego das nove às seis. Tinha recebido aquela propriedade...

 

- Kirkton?

 

- Sim, Kirkton... depois da morte de um tio. Uma casa enorme e quatro quilómetros quadrados de terra. Depois de termos posto a casa operacional, as terras ocupavam-lhe a maior parte do tempo. Plantou árvores, arou a terra... quero dizer, tinha um feitor que vivia na quinta, Mister McGregor. Era ele quem fazia a maior parte do trabalho, mas o Anthony andava sempre ocupado. Quero dizer, ele conseguia manter-se ocupado - acabou ela pouco à vontade.

 

A caçar cinco vezes por semana quando abria a época, a pescar e a jogar golfe. Ia até ao Norte andar a cavalo, passava uns meses em St. Moritz todos os Invernos. Não era muito aconselhável descrever um homem como Anthony Keile a um homem como Eustace Philips. Pertenciam a mundos diferentes.

 

- E o que é feito de Kirkton agora?

 

- O feitor toma conta das coisas.

 

- E a casa?

 

- Está vazia. Bem, a mobília está lá, mas ninguém lá vive.

 

- Vais voltar para essa casa vazia?

 

- Acho que sim. Algum dia.

 

- E os miúdos?

 

- Estão em Londres, com a mãe do Anthony.

 

- Porque não estão contigo? - perguntou Eustace, não em tom de crítica, mas apenas com curiosidade, como se apenas desejasse saber.

 

- Pareceu-me uma boa ideia eu vir até aqui sozinha. A Alice escreveu a convidar-me e pareceu-me boa ideia.

 

- Porque não trouxeste os teus filhos?

 

- Oh, não sei... - Mesmo a si própria a sua voz parecia demasiado casual, pouco convincente. -AAlice não tem filhos e a casa dela não foi construída a pensar em crianças... Quero dizer, tem muitas coisas especiais e raras, que se partem com muita facilidade. Sabes como é.

 

- Na realidade não sei, mas continua.

 

- Bem, por outro lado, Lady Keile gosta de os ter com ela...

 

- Lady Keile?

 

- A mãe do Anthony. E a ama gosta de lá ir porque está habituada a trabalhar para ela. Foi a ama do Anthony quando ele era miúdo.

 

- Mas eu pensava que os teus filhos já eram grandes.

 

- A Cara tem oito anos e o Nicholas seis.

 

- Mas porque têm eles uma ama? Por que motivo não tomas tu conta deles?

 

Já há anos que Virginia fazia esta pergunta a si mesma, vezes sem conta, e não conseguia arranjar qualquer resposta. Contudo, o facto de Eustace lhe ter dado voz encheu-a de ressentimento.

 

- O que é que queres dizer?

 

- Apenas o que disse.

 

- Eu tomo conta deles. Quero dizer, vejo-os muito...

 

- Se eles acabaram de perder o pai, é lógico que a pessoa de quem mais precisam seja a mãe, não uma avó nem uma ama herdada. Pensam que toda a gente os está a abandonar.

 

- Não pensam nada!

 

- Se tens tanta certeza disso, porque te estás a exaltar?

 

- Porque não gosto que te estejas a meter no assunto, dando opiniões acerca de coisas que desconheces.

 

- Eu conheço-te.

 

- Conheces-me?

 

- Conheço a tua infinita capacidade de ser manipulada.

 

- Quem é que me manipula?

 

- Isso não sei ao certo. - Ela apercebeu-se, com alguma surpresa, de que, de uma maneira distante, ele estava a ficar tão irritado como ela. - Mas posso calcular que a tua sogra o faça. Talvez ela tenha retomado o que a tua mãe abandonou!

 

- Não te atrevas a falar assim da minha mãe!

 

- Mas é verdade, não é?

 

- Não, não é.

 

- Então vai buscar os teus filhos. É desumano deixá-los em Londres nas férias grandes, com um tempo destes, quando eles deviam andar por aí a correr, junto ao mar. Faz alguma coisa, telefona à tua sogra e diz-lhe para os meter no comboio. Se a Alice não os quiser em Wheal House, porque tem medo que os bibelôs se partam, leva-os para um pub, ou aluga uma vivenda...

 

- É exactamente isso que tenciono fazer, e não precisei de ti para mo dizeres.

 

- Então é melhor começares à procura de uma.

 

- Já comecei.

 

Ele ficou calado por alguns momentos e ela pensou satisfeita: ”Desta é que não estavas à espera.” Mas só por uns momentos.

 

- Descobriste alguma coisa?

 

- Fui ver uma casa esta manhã, mas não a acho adequada.

 

- Onde?

 

-Aqui. Em Lanyon. - Ele ficou à espera que ela dissesse mais alguma coisa. - Chama-se Bosithick - disse ela, relutante.

 

- Bosithick? - Ele parecia encantado. - Mas essa casa é espectacular!

 

- É horrível.

 

- Horrível? - Eustace não acreditava no que ouvia. - Estás a referir-te à vivenda lá em cima, onde Aubrey Crane viveu? Aquela que os Kernow herdaram da tia velhota?

 

- Exactamente, mas é assustadora e horrível.

 

- Assustadora como? Assombrada?

 

- Não sei. Assustadora.

 

- Se estiver assombrada com o fantasma do Aubrey Crane, podes vir a divertir-te um bocado. A minha mãe lembrava-se dele, dizia que era muito simpático. E que gostava muito de crianças acrescentou ele num tom que pareceu a Virginia de provocação.

 

- Não me interessa que tipo de homem ele era, não vou ficar com a casa.

 

- Porquê?

 

- Porque não.

 

- Dá-me três boas razões.

 

Virginia perdeu a paciência.

 

- Oh, por amor de Deus!

 

Fez menção de se levantar, mas Eustace, surpreendentemente rápido para um homem tão grande, agarrou-a pelo pulso e puxou-a de novo para a relva. Ela olhou-o nos olhos, irritada, e viu-os frios como pedras azuis.

 

- Três boas razões - repetiu ele.

 

Ela olhou para a mão dele no seu braço. Parecia não ir sair dali tão cedo.

 

- Não tem frigorífico.

 

- Eu empresto-te um. Segunda razão.

 

- Já te disse. Tem um ambiente assustador. Os miúdos nunca viveram num sítio assim. Ficariam assustados.

 

- Não ficam, a menos que tenham cérebro de galinha como a mãe. Agora, a número três.

 

Ela tentou desesperadamente pensar numa razão forte, algo que fosse suficiente forte para convencer Eustace do seu medo inominável em relação à casa. Mas apenas se lembrou de desculpas esfarrapadas, cada uma menos convincente que a outra.

 

- É muito pequena, está suja, e onde é que eu lavava as coisas dos miúdos, e nem sei se há um ferro de engomar ou um corta-relva. E não tem jardim, apenas um sítio para tratar da roupa, e lá dentro a mobília é tão deprimente e...

 

Ele interrompeu-a.

 

- Isso não são razões, Virgínia, e tu sabe-lo perfeitamente. São apenas umas desculpas esfarrapadas.

 

- Desculpas esfarrapadas para quê?

 

- Por não teres coragem de enfrentar a tua sogra ou a velha ama, ou possivelmente as duas. Por fazer um escândalo e impores-te e educares os teus filhos à tua maneira.

 

A raiva que sentia dele fez-lhe aparecer um nó na garganta. Sentiu-se corar, começou a tremer, mas, embora ele se deva ter apercebido, continuou a falar com toda a calma, dizendo todas aquelas coisas terríveis que aquela voz na sua cabeça lhe dizia há anos, mas a que ela nunca dera ouvidos, por não ter coragem.

 

- Não creio que te importes com os teus filhos. Não queres que eles te chateiem. Houve sempre alguém que lhes lavasse a roupa e a passasse a ferro, e não é agora que vais começar a fazê-lo. És demasiado ociosa para os levares a piqueniques e lhes leres uma história ao deitar. Não tem nada a ver com Bosithick. Qualquer que seja a casa que vejas, vais sempre encontrar-lhe algum defeito. Qualquer desculpa serve, desde que nunca tenhas de admitir que te estás nas tintas para cuidar dos teus próprios filhos.

 

Antes de Eustace terminar já Virginia se tinha levantado, libertando-se dele.

 

- Não é verdade! Nada disso é verdade! Eu quero-os. Desde que cheguei aqui que os quero ter comigo!...

 

- Então manda-os vir ter contigo, minha tontinha! - Ele também se levantara, e, apenas a um metro de distância, em cima da relva, estavam os dois aos gritos como se estivessem no deserto.

 

- É isso que vou fazer. É exactamente isso que vou fazer.

 

- Só acredito quando vir.

 

Ela virou-se e correu para o carro. Quando lá chegou, lembrou-se de que tinha deixado a mala em cima da mesa da cozinha. Lavada em lágrimas, saiu do carro e foi buscá-la, antes que Eustace a alcançasse. De regresso ao carro, virou-o irada e de forma perigosa no apertado espaço do pátio, dirigindo-se para a estrada, com o motor a roncar e a levantar cascalho.

 

- Virginia!

 

Através das lágrimas e do espelho retrovisor, ela viu-o ficar para trás. Carregou no acelerador e guinou para a estrada principal sem se incomodar a parar e ver se vinham outros carros. Felizmente a estrada estava desimpedida, mas ela não abrandou até chegar a Porthkerris, atravessar a cidade e estacionar o carro num local proibido, em frente do escritório do advogado, desatando a correr.

 

Desta vez não tocou à campainha nem esperou por Miss Ledra. Em vez disso, entrou disparada pelo escritório, dirigindo-se ao gabinete de Mr. Williams, interrompendo-o de modo grosseiro no decorrer de uma entrevista a uma velha senhora de Truro, acerca da última alteração ao seu testamento.

 

Tanto Mr. Williams como a senhora, emudecidos pela surpresa, ficaram boquiabertos a olhar para ela. O advogado, que foi o primeiro a recuperar, começou a levantar-se.

 

- Mistress Keile!

 

Mas antes que ele conseguisse dizer mais alguma coisa, Virginia atirou as chaves de Bosithick para cima da secretária, dizendo:

 

- Fico com ela. Imediatamente. E logo que cheguem os meus filhos, mudo-me para lá!

- Desculpa, Virginia - pediu Alice -, mas acho que estás a cometer um grande erro. Para além disso, é um erro típico de muitas pessoas que se encontram de repente sozinhas no mundo. Estás a agir por impulso, não pensaste ainda bem no assunto...

 

- Pensei, sim senhora.

 

- Mas tu sabes que as crianças estão bem, felizes com a ama e a tua sogra. A vida que os teus filhos estão a levar é simplesmente uma extensão da de Kirkton, de todas as coisas que conhecem e os ajudam a sentir-se seguros. O pai deles morreu, e nada vai voltar a ser o mesmo outra vez. Mas se tiver de haver mudanças, deixa-as ao menos acontecer devagar, gradualmente; deixa a Cara e o Nicholas habituarem-se a elas.

 

- Eles são meus filhos.

 

- Mas nunca tomaste conta deles. Nunca os tiveste sozinha, excepto uma vez por outra, quando a ama vai de férias. Eles vão-te arrasar de cansaço, e francamente, Virginia, de momento acho que não estás fisicamente apta para tal. Afinal de contas, foi por isso que vieste até cá, para recuperares daquela gripe horrorosa, para teres um pouco de paz e sossego e tempo para ultrapassares as coisas terríveis que te têm acontecido. Não fiques sem isso. Vais precisar de todas as tuas forças quando mais tarde voltares para Kirkton, refizeres a tua vida e aprenderes a viver sem o Anthony.

 

- Eu não vou voltar para Kirkton. Vou para Bosithick. Já paguei a primeira semana de renda.

 

A expressão no rosto de Alice deixou de ser paciente e tornou-se exasperada.

 

- Mas isso é tão ridículo! Olha, se queres mesmo ter os teus filhos contigo, então manda-os vir, faz o que quiseres e podem ficar todos aqui, mas por amor de Deus deixa a ama vir também.

 

Ainda na véspera tal ideia teria sido tentadora. Mas agora Virginia nem queria pensar em tal coisa.

 

- Já tomei uma decisão.

 

- Mas porque não me disseste? Porque é que não discutiste o assunto comigo?

 

- Não sei. Acho que era uma coisa que eu tinha de fazer sozinha.

 

- E onde fica Bosithick?

 

- Na estrada que vai para Lanyon... Não se consegue ver da estrada, mas tem uma espécie de torre...

 

- A casa onde o Aubrey Crane vivia? Mas, Virginia, é um sítio horrendo. Só lá há charneca, vento e penhascos. Vais ficar completamente isolada!

 

Virginia tentou fazer daquilo uma piada.

 

- Então vais ter de me ir visitar. Para teres a certeza de que eu e os miúdos não estamos a enlouquecer lentamente.

 

Mas Alice não se riu, e Virgínia, ao ver a carantonha e o trejeito desaprovador da boca dela, lembrou-se imediatamente da sua mãe. Era como se Alice já não fosse contemporânea de Virginia, sua amiga, mas tivesse recuado uma geração e dessa altura majestosa estivesse a dizer à pequena Virginia que ela estava a ser uma idiota. Mas talvez, afinal de contas, aquilo não fosse assim tão estranho. Ela conhecera Rowena Parsons muito antes de Virginia nascer, e o facto de não ter filhos seus com que lidar significava que as suas atitudes e opiniões continuavam rigidamente imutáveis.

 

- Não que eu queira intervir, sabes isso muito bem - disse ela finalmente. - Mas conheço-te desde que nasceste, e não posso afastar-me e deixar-te fazer essa maluquice.

 

- O que é que há de maluquice no facto de eu querer que os meus filhos passem as férias comigo?

 

- Não é só isso, Virginia, e sabe-lo bem. Se os afastas de Lady Keile e da ama sem o seu consentimento, o que duvido muito que consigas, vais ter bastantes sarilhos.

 

Virginia sentiu-se enjoada ao pensar no assunto.

 

- Sim, eu sei.

 

- A ama vai com certeza ficar muito ofendida e irá alterar a sua atitude para contigo.

 

- Eu sei...

 

- A tua sogra fará o que puder para te dissuadir da ideia.

 

- Também sei isso.

 

Alice olhou para ela como se estivesse a olhar para uma estranha. Depois, de repente, encolheu os ombros e riu-se, como que conformada.

 

- Não percebo. O que é que te fez de repente ficar tão determinada?

 

Virginia não lhe contara nada acerca do seu encontro com Eustace Philips, nem tencionava fazê-lo.

 

- Nada. Nada de especial.

 

- Deve ser do ar do mar - disse Alice. - É espantoso o que ele faz às pessoas. -Apanhou do chão um jornal e começou a dobrá-lo meticulosamente. - Quando é que vais a Londres?

 

- Amanhã.

 

- E Lady Keile?

 

- Telefono-lhe esta noite. Alice, desculpa. E obrigada por seres tão amável.

 

- Não tenho sido amável, mas sim crítica e desaprovadora. Eu ainda continuo a considerar-te uma menina indefesa. Sinto-me responsável por ti.

 

- Já tenho vinte e sete anos. E não sou indefesa. E sou responsável por mim própria.

 

A ama atendeu o telefone.

 

- Está lá?

 

- Nanny? -Sim.

 

- Fala Mistress Keile.

 

- Oh, como está? Deseja falar com Lady Keile?

 

- Ela está aí?

 

- Vou chamá-la, só um momento.

 

- Nanny... -Sim?

 

- Como é que estão as crianças?

 

- Oh, perfeitamente. Estão a divertir-se muito. Acabaram de se deitar. - Isto foi dito como que por acaso, para a eventualidade de Virginia querer falar com qualquer dos miúdos.

 

- Está calor?

 

- Oh, sim! Um tempo magnífico, perfeito. Aguarde um pouco que eu vou chamar Lady Keile.

 

Ouviu-se o ruído da ama a pousar o auscultador, dos seus passos a atravessar o vestíbulo, da sua voz distante.

 

- Lady Keile!

 

Virginia aguardou. ”Se eu fosse uma pessoa que costumasse beber, teria agora na minha mão um copo de qualquer coisa. Talvez um grande copo de uísque.” Mas não era e sentia o estômago contraído com a desgraça iminente.

 

Mais passos, nítidos, inconfundíveis. O auscultador foi de novo levantado.

 

- Virginia?

 

- Sim, sou eu.

 

A situação era terrivelmente complicada pelo facto de Virginia nunca ter sabido como tratar a sogra. ”Chama-me mãe”, dissera ela com amabilidade logo que Virginia e Anthony se casaram, mas isso era impossível. E ”Lady Keile” era ainda pior. Virginia chegara a um acordo ao dirigir-se a ela por postal ou telegrama e utilizando o ”você”.

 

- É muito bom voltar a ouvir-te, minha querida. Como tens passado?

 

- Muito bem...

 

- E o tempo? Acho que está por aí a passar uma vaga de calor.

 

- Sim, incrível. Ouça...

 

- Como vai a Alice?

 

- Perfeitamente...

 

-As crianças hoje foram nadar; os Turner têm uma belíssima piscina no jardim e convidaram a Cara e o Nicholas da parte da tarde. É pena eles já estarem deitados; porque é que não ligaste mais cedo?

 

- Tenho uma coisa para lhe dizer - começou Virgínia. -Sim?

 

Ela apertou o auscultador com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

 

- Encontrei uma vivendazinha muito engraçada perto daqui. Fica junto ao mar, e pensei que era bom para os miúdos virem até cá para passarmos juntos o resto das férias. - Fez uma pausa, aguardando um comentário, mas não ouviu nada. - A questão é que está um tempo magnífico e eu me sinto muito culpada a gozá-lo sozinha... e seria bom para eles virem apanhar um pouco do ar do mar antes de voltarmos todos para a Escócia e as aulas começarem.

 

- Uma vivenda? - perguntou Lady Keile. - Mas pensei que estavas a passar estes dias com a Alice Lingard!

 

- E estou. Tenho estado. Estou a ligar-lhe de Wheal House. Mas aluguei esta vivenda.

 

- Não percebo.

 

- Quero que os meus filhos venham até cá e passem o resto das férias comigo. Amanhã vou aí para os buscar.

 

- Mas que tipo de vivenda?

 

- Apenas uma vivenda, para passar férias...

 

- Bem, se é isso que queres... - Virgínia começou a respirar de alívio... - Mas acho que não vai ser muito agradável para a ama. Não é frequente ela conseguir passar uns dias em Londres e visitar as amigas.

 

O suspiro de alívio desapareceu. Virginia voltou ao ataque.

 

- A ama não precisa de vir. Lady Keile pareceu ficar confusa.

 

- Desculpa, não te estou a ouvir lá muito bem. Parece que disseste que a ama não precisava de ir.

 

- É verdade. Eu posso tomar conta das crianças. Por outro lado, também não há espaço para ela. Quero dizer, não há um quarto para ela e ao mesmo tempo aposentos para as crianças... é um sítio muito isolado e ela ia detestar.

 

- Queres dizer que queres tirar as crianças à ama? -Sim.

 

- Mas ela vai ficar muito abalada.

 

- Sim, receio bem que sim, mas...

 

- Virginia - a voz de Lady Keile parecia perturbada, aborrecida -, não podemos falar deste assunto ao telefone.

 

Virgínia imaginou a ama no patamar de cima a ouvir o lado de lá da conversa.

 

- Nem precisamos. Amanhã vou para Londres. Estarei aí por volta das cinco horas. Nessa altura podemos falar.

 

- Acho que isso seria o melhor - disse Lady Keile, desligando. Na manhã seguinte, Virgínia foi até Penzance, deixou o carro

 

no parque de estacionamento da estação e apanhou o comboio para Londres. Estava outra manhã quente e sem nuvens. Ela não tivera tempo de reservar um lugar, e, apesar de ter conseguido falar com o revisor e lhe ter dado uma boa gorjeta, ele só lhe conseguiu arranjar um cantinho numa carruagem que já estava desconfortavelmente cheia. Os outros passageiros regressavam a casa após as férias anuais, rabugentos e desconsolados ao pensarem que tinham de voltar ao trabalho, e ressentidos por terem de abandonar o mar e as praias num dia tão bonito.

 

Havia uma família: o pai, a mãe e dois filhos. O bebé dormia tranquilo nos braços da mãe, mas à medida que o Sol subia no céu claro e o comboio chocalhava para norte através do calor tremeluzente de um meio-dia de Verão, o filho mais velho começou a ficar mais rebelde, queixando-se, choramingando, irrequieto, e pisando Virginia com as suas sandálias de cada vez que queria espreitar pela janela. A certa altura, para manter a criança calada, o pai comprou-lhe um refresco, mas logo que a garrafa foi aberta o comboio deu um solavanco e o conteúdo foi todo para cima do vestido de Virginia.

 

A criança foi logo esbofeteada pela irritada mãe e começou a gritar. O bebé acordou e juntou o seu choro ao do irmão.

 

- Vês o que fizeste? - perguntou o pai, dando um abanão ao filho. E Virginia, tentando limpar-se com lenços de papel, disse que não fora nada, que não se tinha podido evitar, que não fazia mal.

 

Depois de muito chorar, a criança abrandou para um soluçar. Enfiaram-lhe um biberão na boca. Ele chupou um pouco, e depois parou, tentou sentar-se e vomitou.

 

Virginia acendeu um cigarro, olhou decidida pela janela e rezou em silêncio: ”Não permitas que a Cara e o Nicholas se comportem assim numa viagem de comboio, senão eu fico completamente louca.”

 

Londres estava abafada, a grande caverna da Estação de Paddington horrenda, ruidosa, atafulhada de multidões apressadas e sem destino. Logo que desceu do comboio, Virginia, levando a mala, e imunda e amarrotada no seu vestido peganhento e cheio de nódoas, atravessou o cais até às bilheteiras e, tal como um agente secreto que assegura a sua viagem de regresso, reservou três lugares no Riviera para a manhã do dia seguinte. Só depois é que foi para a praça de táxis. Esperou bastante tempo na enorme fila, e finalmente apanhou um que a levasse a casa.

 

- Melton Gardens, número trinta e dois, por favor. Kensington.

 

- Certo, entre lá.

 

Seguiram pelos Jardins Sussex, atravessando o parque. A relva castanha estava apinhada de famílias a fazerem piqueniques, crianças com pouca roupa, casais entrelaçados à sombra das árvores. Na Brompton Road, as janelas tinham vasos cheios de flores, as montras encontravam-se repletas de roupas ”para viajar”, a primeira avalancha da multidão da hora de ponta (uma corrente estável de humanidade) estava a ser sugada pelo metro, em Knightsbridge.

 

O táxi virou para a zona de praças tranquilas que ficava atrás de Kensington High Street, passou por estradas estreitas cheias de carros estacionados e finalmente virou para Melton Gardens.

 

- É a casa junto ao marco do correio.

 

O táxi parou. Virginia saiu, pousou a bagagem no chão e tirou da mala o dinheiro. O condutor agradeceu e arrancou, e Virginia pegou na mala e virou-se para a casa. Ao fazê-lo, a porta preta abriu-se e a sogra ficou à espera que ela entrasse.

 

Era alta, elegante, muito bonita. Mesmo num dia abafado como aquele, ela parecia fresca, sem uma ruga no vestido de linho, sem um cabelo fora do sítio.

 

Virginia subiu os degraus na sua direcção.

 

- Como é que soube que eu tinha chegado?

 

- Estava na janela da sala. Vi chegar o táxi.

 

A sua expressão era amigável, sorridente, mas implacável, como a enfermeira-chefe de um hospital psiquiátrico quando vem admitir um novo paciente. Beijaram-se.

 

- Fizeste boa viagem? - Fechou a porta atrás de ambas. O vestíbulo bege, fresco, cheirava a cera de abelhas e a rosas. Do outro lado havia uns degraus que conduziam a uma porta de vidro e para lá dela via-se o jardim, o castanheiro, o balouço das crianças.

 

- Não, foi horrível. Sinto-me imunda e uma criança horrorosa entornou-me sumo de laranja para cima. - A casa estava silenciosa. - Onde é que estão os miúdos?

 

Lady Keile começou a subir as escadas em direcção à sala de estar.

 

- Foram dar uma volta com a ama. Achei que era o melhor. Não demoram muito, talvez mais uma meia hora. Isso dá-nos tempo para falarmos.

 

Seguindo atrás dela, Virginia manteve-se em silêncio. Lady Keile subiu as escadas, atravessou um pequeno patamar e entrou na sala de estar. Virginia seguiu-a e, apesar da sua ansiedade, ficou encantada, como sempre, com a beleza intemporal da sala, com as proporções perfeitas das janelas que davam para a rua, hoje abertas, com as belas cortinas que se agitavam. Havia longos espelhos que enchiam o aposento de luz reflectida, os quais devolviam as imagens da mobília antiga muito bem polida, as vitrinas altas com pratos Meissen azuis e brancos e as flores com que Lady Keile sempre se rodeava.

 

Enfrentaram-se sobre a alcatifa clara.

 

- É melhor pormo-nos à vontade - disse Lady Keile, sentando-se, direita como uma vara, num sofá.

 

Virginia imitou-a, mas sentando-se na beira do sofá, e tentando não se sentir como uma empregada doméstica a ser entrevistada pela eventual futura patroa.

 

- Não há nada para falar - disse ela.

 

- Eu pensei ter entendido mal o que me disseste ontem ao telefone.

 

- Não, não entendeu mal. Há dois dias decidi que quero ter os meus filhos comigo. Achei que era ridículo eu estar na Cornualha e eles em Londres, especialmente durante as férias grandes. Por isso fui falar com um advogado e arranjei aquela casinha. Já paguei a renda e já tenho as chaves. Posso instalar-me lá imediatamente.

 

- A Alice Lingard está ao corrente da situação?

 

- É claro que sim. Ela ofereceu-se para ter os miúdos lá em casa, mas nessa altura eu já me tinha comprometido e não podia voltar atrás.

 

- Mas, Virginia, com certeza não pensas levá-los sem a ama, pois não?

 

- Sim, penso.

 

- Mas não vais conseguir desenvencilhar-te.

 

- Terei de tentar.

 

- Queres dizer que queres as crianças para ti... -Sim.

 

- Não achas que estás a ser um pouco... egoísta?

 

- Egoísta?

 

- Sim, egoísta. Não estás a pensar nas crianças, pois não? Só em ti.

 

- Talvez esteja a pensar em mim, mas também penso nas crianças.

 

- Não podes dizer isso se as queres tirar da ama.

 

- Já falou com ela?

 

- Tive de o fazer, é claro. Ela tinha de saber das tuas intenções. Mas eu esperava conseguir fazer com que mudasses de ideias.

 

- O que disse ela?

 

- Não falou muito. Mas era óbvio que estava muito aborrecida.

 

- Sim, com certeza...

 

- Tens de pensar na ama, Virginia. Aquelas crianças são a vida dela. Tens de ter isso em conta.

 

- Com a melhor das boas vontades, não vejo para que é que ela é para aqui chamada.

 

- É claro que ela é para aqui chamada. É chamada para tudo o que fazemos. Ela é da família, já está connosco há muitos anos, desde que o Anthony era pequeno... e como ela cuidou dos teus filhos, dedicou-se a eles. E ainda dizes que ela não é para aqui chamada!

 

- Ela não foi minha ama - retorquiu Virginia. - Não tomou conta de mim quando eu era pequena. Não pode esperar que eu sinta por ela o mesmo que vocês.

 

- Estás a falar a sério quando dizes que não sentes por ela alguma lealdade? Depois de deixar que ela educasse os teus filhos? Depois de viveres com ela durante quase oito anos em Kirkton? Devo dizer que me enganaste. Sempre pensei que havia entre vós uma atmosfera agradável.

 

- Se a havia era devido a mim. Eu cedia a tudo para manter as coisas calmas. Porque se ela não conseguia o que queria, fazia birra durante uma data de dias e eu não estava para aturar isso.

 

- Sempre pensei que fosses a patroa na tua casa.

 

- Bem, enganou-se. Não era. E mesmo se eu tivesse arranjado coragem para discutir com a ama, o Anthony nem quereria falar no assunto. Ele achava-a o máximo.

 

Ao ouvir falar no filho, Lady Keile empalideceu um pouco. Endireitou os ombros, e colocou as mãos apertadas no regaço.

 

- E calculo que isso agora já não tenha de ser levado em conta - disse ela com frieza.

 

Virginia sentiu-se logo arrependida.

 

- Não quis dizer isso. Sabe bem que não. Mas agora estou sozinha. Só tenho os meus filhos. Talvez esteja a ser egoísta, mas preciso deles. Preciso muito de os ter comigo. Tenho sentido a falta deles.

 

Lá fora, do outro lado da rua, um carro travou, uma voz de homem começou a discutir, uma mulher ripostou-lhe zangada, com a voz aguda. Como se não conseguisse suportar o barulho, Lady Keile levantou-se e fechou a janela.

 

- Eu também terei saudades deles - disse ela.

 

”Se tivéssemos sido mais chegadas, eu podia agora abraçá-la e dar-lhe o apoio de que ela necessita”, pensou Virginia. Mas isso não era possível. Entre elas existia afecto e respeito. Mas não amor nem familiaridade.

 

- Sim, sei-o bem. Tem sido óptima para eles, e para mim. E desculpe-me.

 

A sogra virou-se da janela, de novo fria, tendo já controlado a emoção.

 

- Acho - começou ela, puxando o cordão da campainha junto da lareira - que seria boa ideia tomarmos um chá.

 

As crianças regressaram às cinco e meia. A porta da frente abriu-se e fechou-se, e as suas vozes elevaram-se no vestíbulo. Virginia pousou a chávena e ficou imóvel. Lady Keile esperou que os passos se fizessem ouvir na sala, na direcção dos seus aposentos. Depois levantou-se, atravessou a sala e abriu a porta.

 

- Cara, Nicholas.

 

- Olá, avó.

 

- Está aqui uma pessoa que vos quer ver.

 

- Quem?

 

- É uma bela surpresa. Venham ver.

 

Mais tarde, depois de as crianças terem subido para tomarem banho e comerem, a própria Virginia ter tomado banho e mudado para um vestido de seda fresco, e antes de o gongo tocar para o jantar, ela dirigiu-se para o piso de cima, para os aposentos das crianças, para ver a ama.

 

Encontrou-a sozinha, a arrumar a louça do jantar das crianças, antes de se instalar para ver a sua sessão diária de televisão.

 

Não que o quarto precisasse de ser arrumado, mas a ama não conseguia descontrair-se enquanto todas as almofadas não estivessem direitas, todos os brinquedos arrumados, as roupas sujas das crianças enviadas para onde as lavassem, e outras limpas aprontadas para o dia seguinte. Ela sempre fora assim, seguindo um padrão ordenado na sua rígida rotina. E sempre tivera o mesmo aspecto, uma solteirona de boa aparência, já com mais de sessenta anos, mas com poucos cabelos brancos na sua cabeleira escura, que usava presa num coque. Parecia não ter idade, daquele tipo de pessoas que vai continuar imutável até envelhecer, até se tornar subitamente senil e morrer.

 

Ela ergueu o olhar para Virginia quando esta entrou na sala, e desviou-o de imediato.

 

- Olá, Nanny.

 

- Boa-noite.

 

Os seus modos eram gelados. Virginia fechou a porta e sentou-se no braço do sofá. Só havia uma maneira de lidar com a ama: entrar logo no assunto.

 

- Peço desculpa por isto, Nanny.

 

- Não sei do que está a falar.

 

- Estou a falar de levar os meus filhos comigo. Amanhã de manhã vamos para a Cornualha. Já reservei lugares no comboio. A ama dobrou uma toalha axadrezada em quadrados perfeitos. Lady Keile disse que tinha falado contigo.

 

- Ela disse-me qualquer coisa acerca de um plano estouvado... mas foi difícil acreditar que estava a ouvir bem.

 

- Estás zangada comigo por eu os levar, ou por não vires?

 

- Quem é que está zangada? Ninguém, tenho a certeza...

 

- Então achas que é uma boa ideia?

 

- Não, não acho. Mas parece que a minha opinião já não tem grande interesse.

 

Abriu uma gaveta, colocou lá dentro a toalha, e em seguida fechou-a com um ligeiro baque, que traiu imediatamente a sua ira acumulada. Mas o rosto permaneceu calmo, a boca direita.

 

- Sabes bem que a tua opinião interessa. Fizeste muito pelas crianças. Não deves julgar que não te estou grata. Mas elas já não são bebés.

 

- E o que quer isso dizer?

 

- Que agora posso tomar conta deles.

 

A ama virou-se. Pela primeira vez. Olhou para Virginia. Enquanto ambas se mediam, Virginia viu a vermelhidão da ira a aparecer no pescoço da ama, a subir-lhe pelo rosto, até ao começo do cabelo.

 

- Está a despedir-me?

 

- Não, não era essa a minha intenção. Mas já agora que estamos a falar no assunto, talvez não fosse má ideia. Para teu bem, como para o de toda a gente.

 

- E porque é que havia de ser para o meu bem? Dei toda a minha vida a esta família, tomei conta do Anthony logo desde o início, e não havia motivo para ir até à Escócia tomar conta dos seus filhos. Nunca quis ir, mas Lady Keile pediu-me, e, porque era a família, eu fui, fiz um grande sacrifício, e esta é a minha paga...

 

- Nanny - Virginia interrompeu-a suavemente quando ela fez uma pausa para recuperar o fôlego -, é por esse motivo que será melhor para ti. Não achas que é melhor despedirmo-nos de uma forma agradável, e ires talvez à procura de outro bebé para tomares conta, de uma nova família pequena? Sabes bem que sempre disseste que um quarto de crianças não era o mesmo sem um bebé, e o Nicholas já tem seis anos...

 

- Nunca pensei que este dia chegasse...

 

- E se não te apetecer fazer isso, porque não falas com Lady Keile? Podes chegar a um acordo com ela. Dão-se tão bem as duas, e tu gostas de viver em Londres, com todas as tuas amigas...

 

- Muito obrigada, mas não preciso que me dê sugestões... dediquei os melhores anos da minha vida... a educar os seus filhos... nunca esperei um agradecimento... isto nunca teria acontecido se o pobre Anthony... se ele fosse vivo...

 

A lengalenga continuou, e Virginia escutou, deixando que as invectivas caíssem sobre si. Disse a si própria que era o mínimo que podia fazer. Estava tudo acabado, tudo resolvido, e ela estava livre. Nada mais importava. Esperar delicadamente que a ama acabasse não era mais do que um gesto de respeito, um tributo pago pelo vencedor ao vencido depois de uma batalha sangrenta mas leal.

 

Depois disso, foi dar as boas-noites aos filhos. Nicholas já dormia, mas Cara ainda estava a ler. Quando a mãe entrou no quarto, ela levantou devagar o olhar, afastando os olhos da página impressa. Virginia sentou-se na beira da cama.

 

- O que estás a ler?

 

- Os Caçadores de Tesouros - respondeu Cara, mostrando-lhe o livro.

 

- Oh, lembro-me dele. Onde é que o encontraste?

 

- Na estante dos livros da nossa sala.

 

Com cuidado, colocou entre as páginas um marcador bordado a ponto cruz que ela própria fizera, fechou o livro e colocou-o em cima da mesa-de-cabeceira.

 

- Estiveste a falar com a ama? -Sim.

 

- Ela tem estado esquisita o dia todo.

 

- Ah sim, Cara?

 

- Passa-se alguma coisa?

 

Era difícil uma criança de oito anos ser tão perspicaz, tão sensível ao que a rodeava. Especialmente se fosse tímida e não muito bonita e tinha de usar óculos de metal que a faziam parecer com um mocho.

 

- Oh, nada de especial. Apenas uma coisa diferente. E nova.

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Bem, amanhã de manhã vou regressar à Cornualha de comboio e vou-te levar, mais ao Nicholas. Que achas da ideia?

 

- Queres dizer - Cara ergueu o rosto - que vamos ficar em casa da tia Alice?

 

- Não, vamos ficar sozinhos numa casa. Uma casinha muito engraçada chamada Bosithick. E vamos ter de ser nós a tratar de tudo, a cozinhar...

 

- A ama não vai?

 

- Não. Ela fica cá.

 

Houve um longo silêncio.

 

- Importas-te? - perguntou Virginia.

 

- Não, não me importo. Mas calculo que ela se importe. É por isso que tem andado tão estranha.

 

- Não é fácil para a ama. Tu e o Nicholas foram criados por ela desde que nasceram. Mas acho que já estão demasiado grandes para isso, tal como já estão demasiado grandes para certos casacos e vestidos... Já são os dois suficientemente crescidos para tomarem conta de vós próprios.

 

- Queres dizer que a ama já não vai voltar a viver connosco? -Não.

 

- Onde é que ela irá viver?

 

- Pode ser que vá à procura de outro bebé de quem possa tomar conta. Ou talvez fique aqui com a avó.

 

- Ela gosta de Londres - disse Cara. - Foi ela que me contou. Gosta muito mais disto do que da Escócia.

 

- Estás a ver?

 

Cara pensou durante algum tempo no que acabara de ouvir.

 

- Quando é que vamos para a Cornualha? - perguntou ela finalmente.

 

- Já te disse. Amanhã, e vamos no comboio.

 

- A que horas? - Ela gostava de saber todos os pormenores.

 

- Por volta das nove e meia. Vamos de táxi até à estação.

 

- E quando é que regressamos a Kirkton?

 

- Quando as férias acabarem. Quando vocês tiverem de regressar à escola.

 

Cara ficou em silêncio. Era impossível saber o que ela estava a pensar.

 

- São horas de ir dormir - disse Virginia. - Amanhã temos um longo dia pela frente.

 

Inclinou-se para a frente, tirou com cuidado os óculos à filha e beijou-a.

 

Mas quando se dirigia para a porta, Cara falou de novo.

 

- Mãezinha...

 

-Sim?

 

- Vieste.

 

Virginia franziu o sobrolho, sem compreender.

 

- Vieste - repetiu Cara. - Eu disse-te para me escreveres, mas em vez disso tu vieste.

 

Virginia lembrou-se da carta de Cara, o catalisador que despoletara tudo. Sorriu.

 

- Sim - disse ela. - Vim. Achei que era melhor.

 

Saiu do quarto e desceu as escadas, para suportar a provação de um jantar silencioso na companhia de Lady Keile.

 

Virginia acordou lentamente, com um sentimento de realização pouco comum. Sentia-se forte e cheia de objectivos, duas sensações tão estranhas que valia a pena ficar na cama mais um pouco, tranquila, a saboreá-las. Rodeada de almofadas na cama dos hóspedes, enfiada em lençóis bordados e cobertores fofos, observou o sol de mais uma bela manhã de Verão a espreitar por entre os ramos frondosos do castanheiro. As coisas más tinham desaparecido, ultrapassados os temidos obstáculos, e dentro de algumas horas ela e os filhos estariam a caminho. Disse a si mesma que depois da noite anterior nunca mais teria medo de resolver as coisas, nenhum problema era inultrapassável, nenhum problema era demasiado difícil. Deixou que a sua imaginação vogasse com cautela pelas semanas que se avizinhavam, pela dificuldade de tomar sozinha conta da Cara e do Nicholas, pelo desconforto e pela inconveniência da casa que ela alugara tão impetuosamente, mas mesmo assim não perdeu a sua boa disposição. Ultrapassara um obstáculo. Dali em diante tudo seria diferente.

 

Eram sete e meia. Levantou-se, festejando o magnífico tempo, o som do canto dos pássaros, o agradável e distante ecoar do tráfego. Tomou banho, vestiu-se, fez as malas, ajeitou a cama e foi para baixo.

 

A ama e as crianças tomavam sempre o pequeno-almoço nos seus aposentos e Lady Keile no seu quarto, mas aquela casa era muito bem gerida e Virginia encontrou café em cima da mesa da sala de jantar e um lugar na cabeceira da mesa polida.

 

Bebeu duas chávenas de café bem quente e comeu tostas com doce. Em seguida pegou na chave que se encontrava em cima da mesa, saiu pela porta da frente, para as calmas ruas da manhã, e dirigiu-se para a pequena mercearia frequentada por Lady Keile. Aí comprou provisões suficientes para uma refeição, para quando chegassem a Bosithick. Pão, manteiga, bacon, ovos, café, cacau, feijões em lata (que Nicholas adorava mas que a ama proibia), sopa de tomate e bolachas de chocolate. Teriam de comprar o leite e os vegetais quando chegassem ao destino, a carne e o peixe podiam vir depois. Pagou a despesa, o merceeiro colocou-lhe tudo dentro de uma caixa de cartão e regressou a Melton Gardens com o seu fardo, o qual segurava com os dois braços.

 

Encontrou as crianças e Lady Keile já cá em baixo; não havia sinal da ama. Mas as malinhas, sem dúvida com a roupa muito bem dobrada, estavam alinhadas no vestíbulo, e Virginia pousou a caixa das mercearias junto a elas.

 

- Olá, mãezinha!

 

- Olá. - Beijou-os. Estavam lavados e bem arranjados, prontos para a viagem, Cara com um vestido azul de algodão e Nicholas em calções e camisa às riscas, o cabelo penteado e alisado com uma escova.

 

- O que andaste a fazer? - quis ele saber.

 

- Fui à mercearia comprar umas coisas. Provavelmente não teremos tempo de fazer compras quando chegarmos a Penzance; não seria agradável não termos alguma coisa para comer.

 

- Só fiquei a saber esta manhã, quando a Cara me contou. Só quando acordei é que soube que íamos andar de comboio.

 

- Desculpa. Estavas a dormir ontem à noite quando eu fui ao vosso quarto, e não te quis incomodar.

 

- Quem me dera que o tivesses feito. Só soube ao pequeno-almoço. - Ele estava muito ressentido.

 

Sorrindo para o filho, Virginia olhou para a sogra. Lady Keile estava calada e pálida. De resto, apresentava-se, como de costume, muito composta, a dominar perfeitamente a situação. Virginia perguntou-se se ela teria chegado a pregar olho.

 

- Devias chamar um táxi - disse Lady Keile. - Com certeza não queres arriscar-te a perder o comboio. É sempre melhor chegar um pouco adiantada. O número está ao pé do telefone.

 

Desejando ter pensado naquilo, Virginia foi fazer o que lhe mandaram. O relógio no vestíbulo deu as nove e um quarto. Dez minutos depois, chegou o táxi e estavam todos prontos para partir.

 

- Mas temos de nos despedir da ama! - exclamou Cara.

 

- Sim, com certeza - anuiu Virginia. - Onde é que ela está?

 

- Lá em cima. - Cara dirigiu-se para as escadas.

 

- Não! - impediu-a Virginia.

 

Cara virou-se e olhou para ela, chocada com o tom pouco normal da voz da mãe.

 

- Mas temos de nos despedir.

 

- Com certeza. A ama vem cá abaixo ver-vos partir. Eu vou lá acima dizer-lhe que já estamos de saída. Preparem as coisas.

 

Encontrou a ama ocupada numa tarefa completamente desnecessária.

 

- Nanny, vamos já partir.

 

- Ah, sim.

 

- As crianças querem despedir-se. Silêncio.

 

Na noite anterior, Virginia sentira pena dela. Tinha-a, de certo modo, respeitado. Mas agora só lhe apetecia agarrar nela pelos ombros e abaná-la até que aquela cabeça estúpida caísse.

 

- Nanny, isto é ridículo. Não podes deixar que as coisas acabem desta maneira. Vem lá abaixo e despede-te deles.

 

Foi a primeira ordem directa que ela deu à ama. ”A primeira e a última”, pensou Virginia. Tal como Cara, a ama estava muito abalada. Durante um momento não se mexeu; abriu a boca, parecendo estar à procura de alguma desculpa. Virginia viu-a olhar para si e aguentou o olhar. A ama tentou desviá-lo, mas foi derrotada, baixando os olhos. Foi o triunfo final.

 

- Muito bem, minha senhora - disse a ama, que seguiu Virginia até ao vestíbulo, onde as crianças correram para ela, a abraçaram e a beijaram como se ela fosse a única pessoa no mundo que elas amassem. Em seguida, depois de terminada esta manifestação de afecto, correram para a porta e entraram no táxi.

 

- Adeus - disse Virginia à sogra. Não havia mais nada a dizer. Beijaram-se de novo, encostando as faces e beijando o ar. - E adeus, Nanny. - Mas a ama já estava a dirigir-se para o piso superior, com o lenço na mão, a assoar-se. Só se viam as suas pernas, a subir os degraus, e em seguida ela virou-se no patamar e desapareceu de vista.

 

Virginia não precisava de se ter preocupado com o comportamento dos filhos. A novidade da viagem de comboio não os excitou, só os acalmou. Tinham ido para fora de férias poucas vezes, e nunca para o mar, e quando viajavam para Londres, para ficar com a avó, eram colocados no comboio da noite, já em pijama, e dormiam durante toda a viagem.

 

Agora, observavam pela janela a paisagem que desfilava veloz como se nenhum deles tivesse visto campos, quintas, vacas ou cidades. Passado algum tempo, quando o encanto da novidade passou, Nicholas abriu a prenda que Virgínia lhe comprara na estação e sorriu de satisfação ao ver o pequeno tractor vermelho.

 

- É como aquele que tínhamos em Kirkton - disse ele. - Mister McGregor tinha um Massey Fergusson igualzinho a este. - Fez girar as rodas e emitiu ruídos de tractor, calcorreando o assento para cima e para baixo com o brinquedo.

 

Mas Cara nem sequer abriu o livro de banda desenhada. Estava ainda no seu regaço, e ela continuava a olhar pela janela, com os olhos atentos atrás dos óculos, sem perder pitada.

Ao meio-dia e meia hora foram almoçar, e isso foi outra aventura, avançar pelo corredor, passar pelas ligações entre as carruagens antes que elas se soltassem. O vagão-restaurante era encantador, com mesas e pequenas velas, o empregado de mesa indulgente, e o receber a ementa nas mãos, como um adulto, era fantástico.

 

- O que deseja a senhora? - perguntou o empregado, e Cara ficou corada e atrapalhada, rindo-se quando se apercebeu de que o empregado se lhe dirigia, e teve de ser ajudada a pedir sopa de tomate e peixe frito, e decidir a questão fulcral: haveria de comer gelado branco ou cor-de-rosa?

 

”Como é novidade para eles, é novidade para mim”, pensou Virginia ao observar os rostos dos filhos. ”As coisas mais triviais e vulgares tornam-se especiais porque eu as vejo com os olhos da minha filha. E se o Nicholas me perguntar algo que eu não saiba, tenho de ir procurar a resposta nalgum lado, e ficarei uma pessoa informada, sabedora e uma brilhante conversadora.”

 

A ideia era engraçada e riu-se subitamente. A filha olhou para ela e riu-se também, sem saber qual era a piada, mas encantada por a estar a partilhar com a mãe.

 

- Quando é que vieste à Cornualha de comboio pela primeira vez? - perguntou Cara.

 

- Quando tinha dezassete anos. Há dez anos.

 

- Não vieste cá quando eras da minha idade?

 

- Não. Costumava ir para casa de uma tia, em Sussex.

 

Já era de tarde e tinham o compartimento só para eles. Nicholas, encantado com a aventura que era o corredor, preferira ficar aí, e permanecia de pernas abertas, tentando equilibrar o seu pouco peso no balançar do comboio.

 

- Fala-me disso.

 

- De quê? De Sussex?

 

- Não, da tua vinda à Cornualha.

 

- Bem, viemos. Eu e a minha mãe, para ficarmos com a Alice e o Tom Lingard. Eu acabara as aulas, a Alice escreveu a convidar-nos e a minha mãe achou que era boa ideia ter umas férias.

 

- Foi nas férias grandes?

 

- Não, foi na Páscoa. Na Primavera. Os narcisos já estavam todos à mostra e a linha do comboio encontrava-se ladeada de primaveras.

 

- Estava calor?

 

- Nem por isso. Mas fazia sol, e estava muito mais calor do que na Escócia. Lá nunca temos uma Primavera em condições, pois não? Um dia é Inverno e no dia seguinte as folhas nascem e estamos no Verão. Pelo menos foi o que sempre me pareceu. Na Cornualha, a Primavera é uma estação bastante comprida... É por isso que eles conseguem criar tantas flores bonitas e enviá-las para Covent Garden, a fim de serem vendidas.

 

- Nadaste?

 

- Não, o mar devia estar gelado.

 

- E na piscina da tia Alice?

 

- Naquela altura ela ainda não tinha piscina.

 

- Vamos nadar na piscina da tia Alice?

 

- Claro.

 

- E no mar?

 

- Também; havemos de descobrir uma praia muito bonita e nadaremos lá.

 

- Eu... eu não sei nadar lá muito bem.

 

- É mais fácil nadar no mar do que na água doce. O sal ajuda-nos a flutuar.

 

- Mas as ondas não nos salpicam a cara?

 

- Um bocadinho, mas isso também é engraçado.

 

Cara considerou a informação. Não gostava de ficar com o rosto molhado. Sem os óculos, as coisas ficavam pouco nítidas e ela não podia nadar com os óculos.

 

- Que mais fizeram?

 

- Oh, costumávamos andar de carro, ir às compras. E se estava calor, sentávamo-nos no jardim. A Alice convidava amigos para o chá e para o jantar. E às vezes dávamos passeios a pé. Há aqui uns sítios lindíssimos. Podemos subir a colina atrás da casa, ou descer até Porthkerris. As ruas são todas íngremes e estreitas, tão estreitas que os carros mal cabem nelas. E havia muitos gatinhos vadios, e o porto, com os barcos de pesca e os velhotes sentados em roda a desfrutar o sol. E às vezes a maré estava alta e todos os barcos flutuavam na água azul-escura, e outras vezes estava baixa, e só lá ficava a areia dourada, e os barcos todos de lado.

 

- Não se viravam?

 

- Acho que não.

 

- Porquê?

 

- Não faço ideia - respondeu Virginia.

 

Houvera um dia especial, um dia de Abril cheio de vento e de sol. Nesse dia a maré estava alta, Virginia lembrava-se do seu cheiro salgado, misturado com os odores evocativos de alcatrão e de tinta fresca.

 

Na zona abrigada do porto, a água ondulava suavemente, como um espelho, cristalina e profunda. Mas para lá desse refúgio o mar estava agitado, escuro, cheio de carneirinhos, e do outro lado da baía as águas agitavam-se e batiam nas rochas onde assentava o farol, lançando espuma branca que quase o ultrapassava em altura.

 

Passara-se uma semana desde o churrasco de Lanyon e, contra o costume, Virginia estava sozinha. Alice fora até Penzance assistir à reunião de uma comissão, Tom Lingard estava em Plymouth, Mrs. Jilkes, a cozinheira, tinha folga da parte da tarde e fora visitar, com um grande chapéu, a mulher do primo, e Mrs. Parsons estava ocupada com a visita semanal ao cabeleireiro.

 

- Tens de te entreter - disse ela a Virginia durante o almoço.

 

- Não se preocupe.

 

- O que tencionas fazer?

 

- Não sei. Qualquer coisa.

 

Na casa vazia, com a tarde livre à sua frente, qual prenda inesperada, ela considerara algumas possibilidades. Mas aquele dia maravilhoso era demasiado belo para ser desperdiçado, e ela saíra e começara a andar. Os seus pés levaram-na pelo caminho estreito que conduzia aos penhascos, e depois desceu-os até à areia branca da praia. No Verão, o local estaria apinhado de tendas coloridas, barracas de gelados e veraneantes barulhentos, com bolas e chapéus-de-sol, mas em Abril eles ainda não haviam começado a chegar, a areia estava limpa, lavada pelas tempestades de Inverno, e os seus passos deixavam nela impressões muito nítidas e precisas.

 

No extremo mais afastado, havia um caminho que seguia colina acima, e em breve ela deu por si perdida num labirinto de ruas estreitas entre casas antigas desbotadas pelo sol. Descobriu degraus de pedra e becos insuspeitos e seguiu-os para baixo, até que de repente virou uma esquina e se viu no porto. Sob o sol ofuscante, viu os barcos pintados de cores vivas e a água esverdeada. As gaivotas gritavam e esvoaçavam lá no alto, as suas asas enormes como velas brancas contra o azul do céu, e por todo o lado havia agitação e alarido, pois estava a proceder-se à habitual limpeza da Primavera. As fachadas das lojas estavam a ser caiadas, as montras limpas, as cordas enroladas, os conveses esfregados, as redes remendadas.

 

Na extremidade do cais havia-se instalado um vendedor optimista com a sua barraquinha alva, com o seguinte letreiro: ”Fred Hoskings - os melhores gelados caseiros da Cornualha”. E Virginia sentiu de repente vontade de comer um, desejando ter trazido dinheiro. Sentar-se ao sol num dia como aquele e comer um gelado parecia, de repente, a melhor coisa do mundo. Quanto mais pensava nisso mais vontade tinha de o fazer, e revistou todos os bolsos na esperança de encontrar uma moeda esquecida. Mas não tinha nenhuma, nem um tostão.

Sentou-se no poste de amarração e olhou desconsolada para o convés de um barco de pesca onde um jovem com um fato-macaco manchado de salitre fazia chá com o auxílio de uma lamparina. Tentava não pensar no gelado, quando, como que em resposta às suas preces, ouviu uma voz atrás de si.

 

-Olá.

 

Virginia olhou para trás, afastando os cabelos castanhos da cara, e viu-o ali, de frente para o vento, com um embrulho debaixo do braço e com um pólo azul que o fazia parecer um marinheiro.

 

Ela levantou-se.

 

-Olá.

 

- Pensei que era você - disse Eustace Philips -, mas não tinha a certeza. O que faz por aqui?

 

- Nada... quer dizer... vim só dar um passeio, e parei para olhar para os barcos.

 

- Está um belo dia. -Sim.

 

Os seus olhos azuis brilhavam, divertidos.

 

- Onde está a Alice Lingard?

 

- Foi a Penzance... faz parte de uma comissão...

 

- Então está sozinha? -Sim.

 

Ela trazia uns ténis azuis já um pouco gastos, calças de ganga e uma blusa de renda, e teve a sensação de que a sua ingenuidade era dolorosamente visível não apenas nas suas roupas mas também na falta de assunto para uma conversa.

 

Olhou para o embrulho que ele trazia.

 

- E o que está você aqui a fazer?

 

- Vim buscar uma nova cobertura para as medas. Ontem à noite o vento rasgou a velha.

 

- Calculo que siga já para casa.

 

- Já, não. E você?

 

- Eu não tenho nada para fazer. Estou só a fazer uma exploração.

 

- Não conhece a cidade?

 

- Nunca vim até tão longe.

 

- Então venha daí, que eu lhe mostro o resto. Começaram a andar ao longo do porto, sem pressa, com os

 

passos em sincronia. Ele viu a barraca dos gelados e parou para dar dois dedos de conversa.

 

- Olá, Fred.

 

O homem dos gelados, resplandecente na sua casaca imaculada, parecendo um árbitro de críquete, virou-se e viu-o. Esboçou um sorriso nas suas feições bronzeadas e enrugadas como uma noz.

 

- Olá, Eustace. Como é que tens passado?

 

- Bem. E tu?

 

- Oh, mais ou menos. Não te vejo muitas vezes por aqui. Como é que vão as coisas em Lanyon?

 

- Bem. Muito trabalho. - Eustace enfiou a cabeça na barraca.

- Começaste cedo. Ainda não há cá ninguém para comprar gelados.

 

- Ora, eu costumo dizer que quem vem primeiro apanha a freguesia.

 

Eustace olhou para Virginia.

 

- Quer um gelado?

 

Ela não conseguiu lembrar-se de alguém que lhe tivesse oferecido tão repentinamente aquilo que mais desejava.

 

- Adorava, mas não tenho dinheiro. Eustace sorriu.

 

- Dá-me o maior que tiveres - disse ele a Fred, e levou a mão ao bolso das calças.

 

Levou-a ao longo do cais, subindo por ruas empedradas, cuja existência ela nunca teria adivinhado, através de praças pequenas e surpreendentes, onde as casas tinham portas amarelas e vasos nos peitoris das janelas, passando por pequenos pátios cheios de roupa estendida e degraus de pedra, onde os gatos apanhavam sol e se lambiam uns aos outros. Saíram finalmente para uma praia a norte, que apanhava o vento de frente, e as ondas na rebentação enrolavam-se com um tom de jade, com o sol por detrás. O ar cheirava a espuma.

 

- Quando eu era mais novo - começou Eustace, elevando a voz por causa do vento - costumava vir para aqui com uma prancha de surf. Uma pequena tábua de madeira que o meu tio me fez, com uma cara pintada. Mas agora há para aí essas pranchas de Malibu, feitas de fibra de vidro, e o pessoal faz surf durante todo o ano, Verão e Inverno.

 

- Não têm frio?

 

- Usam fatos térmicos.

 

Chegaram ao quebra-mar que tapava o vento, onde havia um banco de madeira, e Eustace, aparentemente achando que já haviam andado o suficiente, instalou-se, de costas para a parede e com o rosto virado para o Sol, as longas pernas estendidas.

 

Virginia, acabando o gigantesco gelado, sentou-se a seu lado. Ele observou-a.

 

- Gostou? - perguntou quando ela deu a última dentada e limpou os dedos às calças de ganga. Tinha uma expressão séria, mas os olhos sorriam. Ela não se importou.

 

- Estava uma delícia. Devia ter comido um.

 

- Sou muito grande e muito velho para andar na rua a comer gelados.

 

- Eu nunca serei demasiado grande ou velha.

 

- Que idade tem?

 

- Dezassete anos, quase dezoito.

 

- Já acabou o liceu?

 

- Sim, o ano passado.

 

- O que é que faz agora?

 

- Nada.

 

- Vai para a faculdade?

 

Ela sentiu-se lisonjeada por ele pensar que ela era inteligente.

 

- Credo, não!

 

- Então o que é que tenciona fazer?

 

Virginia desejou que ele não o tivesse perguntado.

 

- Bem, acho que, durante o próximo Inverno, vou aprender a cozinhar ou a estenografar ou uma coisa do género. Está a ver, a minha mãe tem a mania que o Verão tem de ser passado em Londres, a frequentar todas as festas, a conhecer as pessoas certas para ter uma vida social muito agitada.

 

- Acho que chamam a isso ”fazer a estação” - disse Eustace. O seu tom de voz indicava uma opinião idêntica à de Virginia acerca do assunto. - É difícil de acreditar que hoje em dia ainda há pessoas que se preocupam com isso.

 

- Eu sei, é incrível, mas preocupam-se. E a minha mãe é uma delas. Já conheceu algumas das outras mães e tem tido com elas uns lanches horrorosos. Até já me arranjou um par para um baile, mas vou fazer os possíveis para ela desistir da ideia. Consegue imaginar coisa pior do que um baile de debutantes?

 

- Não, não consigo, mas também não sou uma menina de dezassete anos. - Virginia olhou para ele de cenho franzido. - Se é essa a sua opinião, porque é que não se impõe e diz à sua mãe que prefere que ela lhe dê dinheiro para uma viagem de ida e volta à Austrália, ou qualquer coisa do género?

 

- Já o fiz. Pelo menos tentei. Mas você não conhece a minha mãe. Ela nunca ouve o que lhe digo, diz apenas que é muito importante conhecer as pessoas certas, ser convidada para as festas certas e ser vista nos locais certos.

 

- Podia tentar que o seu pai estivesse do seu lado.

 

- Não tenho pai. Pelo menos nunca o vejo; eles divorciaram-se quando eu era criança.

 

- Estou a ver. - Ele acrescentou, sem grande convicção: - Vá lá, anime-se. Quem sabe se não vai gostar?

 

- Vou detestar cada bocadinho.

 

- Como é que sabe?

 

- Porque eu sou uma desgraça em festas; não consigo entabular conversa com estranhos e nunca arranjo nada para dizer aos rapazes.

 

- Já se fartou de me dizer coisas - notou Eustace.

 

- Mas você é diferente.

 

- Diferente como?

 

- Bem, é mais velho. Quero dizer, não é novo. - Eustace começou a rir-se e Virginia sentiu algum embaraço. - Quero dizer, não é muito novo, não tem vinte e um ou vinte e dois anos. - Ele ainda se estava a rir. Ela franziu o sobrolho. - Que idade tem?

 

- Vinte e oito - informou ele. - No próximo aniversário faço vinte e nove.

 

- Tem sorte. Quem me dera ter vinte e oito.

 

- Se tivesse - disse Eustace -, provavelmente não estaria agora aqui.

 

De repente o tempo mudou. Ficou escuro e começou a fazer frio. Virginia estremeceu, olhou para cima e viu que o Sol desaparecera atrás de uma grande nuvem cinzenta, a primeira de uma série delas, provenientes de oeste.

 

-Acabou-se - disse Eustace. - Lá se vai o bom tempo. Esta noite deve chover. - Olhou para o relógio. - São quase quatro horas, é altura de ir para casa. Como é que vai?

 

-A pé.

 

- Quer boleia?

 

- Tem carro?

 

- Tenho um Land Rover que está estacionado ao pé da igreja.

 

- Não vai fazer um grande desvio por minha causa?

 

- Não. Posso regressar a Lanyon pela charneca.

 

- Bem, se não se importa...

 

Na viagem para Wheal House, Virginia ficou calada. Mas era um silêncio natural e agradável, que não tinha nada a ver com a timidez ou a falta de assunto. Ela não se conseguia lembrar de se sentir tão à vontade com uma pessoa - e certamente nunca com um homem que acabara de conhecer. O Land Rover já era antigo, os bancos gastos e cheios de pó, e havia pedacinhos de palha no chão e um cheiro vago a estrume. Virginia não se sentiu nada incomodada - pelo contrário, apreciava tudo porque aquilo fazia parte de Penfolda. Apercebeu-se de que queria, mais do que tudo, voltar lá. Ver a quinta e os campos à luz do dia, ver o gado, talvez ser convidada a ver o resto da quinta e a tomar chá naquela cozinha magnífica. Coisa que aceitaria de bom grado.

 

Chegaram ao cimo da colina à saída da cidade, onde as casas da velha zona residencial haviam sido transformadas em hotéis, com jardins convertidos em parques de estacionamento, e varandas envidraçadas. Havia solários e palmeiras, tristes sob o céu cinzento, e canteiros cheios de narcisos.

 

Bem acima do nível do mar, a estrada ficava plana. Eustace meteu a quarta.

 

- Quando é que regressa a Londres? - perguntou ele.

 

- Não sei, dentro de uma semana.

 

- Gostaria de voltar a Penfolda?

 

Era a segunda vez naquele dia que Eustace lhe oferecia aquilo que ela mais desejava. Interrogou-se se ele não teria poderes extra-sensoriais.

 

- Sim, gostaria imenso.

 

-A minha mãe simpatizou bastante consigo. Não é todos os dias que vê uma cara nova. Ela haveria de gostar que fosse lanchar com ela.

 

- Com muito prazer.

 

- Como é que iria até Lanyon? - perguntou Eustace, com os olhos postos na estrada.

 

- Podia pedir o carro emprestado à Alice. Tenho a certeza de que se lho pedisse ela não dizia que não. Eu teria muito cuidado.

 

- Sabe guiar?

 

- Claro. Se não soubesse não podia pedir o carro emprestado. Ela sorriu-lhe. Não porque o que acabara de dizer tivesse piada, mas porque se sentia bem.

 

- Bem, eu depois digo-lhe qualquer coisa - retomou Eustace.

- Vou falar com a minha mãe, para ver quando é que lhe dá mais jeito, e depois dou-lhe uma apitadela. Que lhe parece?

 

Ela imaginou-se à espera do telefonema, a recebê-lo, a ouvir a voz dele ao telefone. Quase se abraçou de prazer.

 

- Acho óptimo.

 

- Qual é o número de telefone?

 

- Porthkerris três, dois, cinco.

 

- Não me esqueço.

 

Chegaram a casa. Ele virou para os portões brancos de Wheal House e subiu pelo caminho de acesso, ladeado de sebes de escalónias.

 

- Cá estamos! - Ele parou um pouco bruscamente, fazendo saltar o cascalho. - Sã e salva, mesmo a horas do lanche.

 

- Muito obrigada.

 

Ele inclinou-se para o volante, a sorrir.

 

- De nada.

 

- Quero dizer, por tudo. Pelo gelado e por tudo.

 

- Não tem de quê.

 

Esticou-se e abriu-lhe a porta. Virginia saiu e, ao fazê-lo, a porta da casa abriu-se e surgiu Mrs. Parsons, com um fato de lã vermelho-amora e uma blusa de seda branca, com um laço ao pescoço.

 

- Virginia!

 

Virginia virou-se. A mãe aproximou-se deles, imaculada como sempre, mas o cabelo, curto e escuro, esvoaçava ao vento, indicando que não vira o cabeleireiro naquela tarde.

 

-Mãe!

 

- Onde é que estiveste? - Exibia um sorriso amigável e interessado.

 

- Pensei que tinha ido ao cabeleireiro.

- A rapariga que me costuma atender está de cama com uma constipação. É claro que sugeriram outra no lugar dela, mas como normalmente a vejo a varrer o cabelo do chão declinei. - Ainda a sorrir, olhou por sobre Virginia, para o local onde Eustace se encontrava. - E quem é o teu amigo?

 

- Oh. É o Eustace Philips...

 

Eustace resolvera sair do carro e aproximou-se da frente do Land Rover para ser apresentado. E, detestando-se por isso, Virginia viu-o através dos olhos da mãe; os ombros largos e musculosos sob o pólo à marinheiro, o rosto bronzeado, as mãos fortes e calosas.

 

Mrs. Parsons aproximou-se, graciosa.

 

- Muito prazer.

 

- Olá - cumprimentou Eustace, olhando-a sem pestanejar. Ela estendera a mão para o cumprimentar, mas ou ele não a viu ou decidiu ignorá-la. A mão de Mrs. Parsons voltou ao lugar. Os seus modos tornaram-se, subtilmente, mais frios.

 

- Onde é que a Virginia o conheceu? - A pergunta era inofensiva, até divertida.

 

Eustace encostou-se ao Land Rover e cruzou os braços.

 

- Eu moro em Lanyon, na quinta Penfolda...

 

- Oh, claro, o churrasco. Sim, já me contaram. E que engraçado terem-se encontrado hoje de novo.

 

- Foi um acaso - esclareceu Eustace com firmeza.

 

- O que é ainda mais engraçado! - Ela sorriu. - Nós vamos lanchar, Mister Philips. Quer fazer-nos companhia?

 

Eustace abanou a cabeça. Nunca desviou o olhar dela.

 

- Tenho à minha espera setenta vacas que precisam de ser ordenhadas. Acho melhor ir andando...

 

- Oh, com certeza. Não gostaria de o afastar do seu trabalho.

- O tom da sua voz era o de uma patroa a despachar o jardineiro, mas continuava a sorrir.

 

- Eu não lho permitiria - disse Eustace e entrou no carro. Adeus, Virginia.

 

- Oh, adeus - disse Virginia com vima voz sumida. - E obrigada pela boleia.

 

- Telefono-lhe um dia destes.

 

- Sim, não se esqueça.

 

Abanou a cabeça em jeito de despedida, ligou o carro, meteu a mudança e, sem olhar para trás, arrancou, descendo o caminho de acesso e desaparecendo de vista, deixando Virginia e a mãe paradas, a olhar para uma nuvem de pó.

 

- Credo! - exclamou Mrs. Parsons, rindo-se mas claramente mortificada.

 

Virginia não disse nada. Parecia não haver nada a dizer.

 

- Mas que jovem tão simplório! Aqui uma pessoa encontra todo o tipo de gente. Para que é que ele te vai telefonar?

 

O tom da sua voz indicava que ela considerava Eustace Philips uma piada, que ela e Virginia partilhavam.

 

- Ele pensou que talvez eu pudesse ir até Lanyon lanchar com a mãe dele.

 

- Mas que interessante! Uma tarde na quinta! - Começou a chover. Mrs. Parsons olhou para o céu baixo e estremeceu. - O que estamos aqui a fazer ao frio? Vamos entrar, o chá está à espera...

 

Virginia não voltou a pensar no estremecimento da mãe, mas na manhã seguinte ela queixou-se de que se sentia mal, estava constipada, dizia ela, tinha dores de estômago, e ia ficar dentro de casa. Como o tempo estava desagradável, ninguém achou estranho, e Alice acendeu a lareira da sala. Mrs. Parsons recostou-se no sofá com um cobertor de angora sobre as pernas.

 

- Eu fico perfeitamente - assegurou ela a Virginia -, e tu e a Alice devem partir e não se preocupar comigo.

 

- O que é que quer dizer com isso de partirmos? Partirmos para onde?

 

- Para Falmouth. Para almoçar em Pendrane. - Virginia olhou-a confusa. - Oh, querida, não faças essa carinha de tonta, Mistress Menheniot convidou-nos já há imenso tempo. Quer mostrar-nos o jardim.

 

- A mim ninguém disse nada - comentou Virginia, que não estava nada interessada em ir. Demoraria o dia inteiro a ir e voltar, almoçar e ver a maçada do jardim. Ela queria ficar ali, sentar-se ao pé do telefone à espera da chamada de Eustace.

 

- Bem, estou a dizer-te agora. Vais ter de mudar de roupa. Não podes ir ao almoço com essas calças de ganga. Porque é que não vestes aquela linda blusa azul que te comprei? Ou o kilt2! De certeza que Mistress Menheniot iria gostar do teu kilt.

 

Se ela fosse outro género de mãe, Virginia pedir-lhe-ia que atendesse o telefone e tomasse nota do recado. Mas a mãe não gostava de Eustace. Achava-o mal-educado e inculto, e a sua referência irónica à tarde na quinta colocava nele o selo oficial de desaprovação. Desde que ele partira que o seu nome não era pronunciado e, embora durante o jantar da noite anterior Virginia tivesse tentado mais do que uma vez contar a Alice e a Tom o seu encontro casual, a mãe metera-se na conversa, interrompendo-a se necessário, conduzindo-a para canais mais apropriados. Enquanto mudava de roupa, Virginia debatia-se com o que fazer.

 

Acabou por vestir o kilt e uma blusa amarelo-canário, e com o cabelo penteado e a brilhar foi até à cozinha ter com Mrs. Jilkes. A cozinheira era uma nova amiga. Numa tarde chuvosa ensinara Virginia a fazer scones, ao mesmo tempo que lhe contava as novidades acerca da saúde e longevidade dos seus muitos familiares.

 

- Olá, Virginia.

 

Estava a estender massa. Virginia pegou num bocado e, distraída, começou a comê-lo.

 

- Ora, não se ponha a comer isso! Vai ficar cheia e depois não tem fome para o almoço.

 

Tipo de saia escocesa, axadrezada. (N. do T.)

 

- Quem me dera não ter de ir. Mistress Jilkes, se vier alguma chamada para mim, importa-se de ficar com o recado?

 

Mrs. Jilkes semicerrou os olhos.

 

- Está à espera de uma chamada? Será de algum rapaz? Virginia corou.

 

- Bem, sim, é. Mas toma nota do recado, não toma?

 

- Não se preocupe, minha querida. Oh, Mistress Lingard já a está a chamar... é altura de partir. E tomo conta da sua mãe, e levo-lhe o almoço no tabuleiro.

 

Só regressaram às cinco e meia. Alice foi logo para a sala de estar, para perguntar pelo estado de saúde de Rowena Parsons e para lhe contar o que haviam feito e visto. Virginia fingira dirigir-se para as escadas, mas logo que a porta da sala se fechou virou-se e correu até à cozinha.

 

- Mistress Jilkes!

 

- Já voltou?

 

- Houve alguma chamada?

 

- Sim, duas ou três, mas foi a sua mãe que as atendeu.

 

- A minha mãe?

 

- Sim, pediu que lhe ligassem o telefone para a sala. Vai ter de lhe perguntar se houve algum recado para si.

 

Virginia saiu da cozinha, atravessou o vestíbulo e entrou na sala. Por sobre a cabeça de Alice Lingard, os seus olhos encontraram os olhos frios da mãe. Em seguida Mrs. Parsons sorriu.

 

- Querida! Já ouvi as novidades. Divertiste-te?

 

- Mais ou menos.

 

Ficou à espera, dando à mãe a oportunidade de lhe contar se houvera ou não um telefonema.

 

- Mais ou menos? Só isso? O sobrinho de Mistress Menheniot não estava lá?

 

- Sim.

 

Ela já mal se lembrava do aspecto daquele enfezado. Talvez Eustace telefonasse no dia seguinte. Não o devia ter feito naquele dia. Virginia conhecia a mãe. Sabia que, por muito que desaprovasse, Mrs. Parsons seria meticulosa com obrigações sociais como tomar nota dos telefonemas. As mães eram assim. Tinham de ser.

 

Porque, se não vivessem segundo o código de comportamento que pregavam, perdiam todo o direito a merecer a confiança dos filhos. E sem confiança não podia haver afecto. E sem afecto, nada.

 

No dia seguinte, choveu. Durante a manhã, Virginia esteve junto à lareira do vestíbulo, a fingir que lia um livro e a voar para o telefone de cada vez que este tocava. Nunca era para ela; nunca era Eustace.

 

Depois de almoço, a mãe pediu-lhe que fosse à farmácia, em Porthkerris, aviar uma receita. Virgínia disse que não queria ir.

 

- Está a chover a potes.

 

- Um bocadinho de chuva não te vai fazer mal. Para além disso, o exercício faz-te bem. Tens estado toda a manhã dentro de casa a ler esse livreco.

 

- Não é um livreco...

 

- Bem, seja como for estiveste a ler. Calça umas botas de borracha e veste uma gabardina, e vais ver que nem reparas na chuva...

 

Não valia a pena discutir. Virgínia fez uma expressão de resignação e foi à procura da gabardina. Arrastando-se ao longo da estrada na direcção da cidade, pelo pavimento escuro e cinzento, por entre as árvores encharcadas, ela tentou enfrentar a possibilidade impensável de que Eustace nunca iria telefonar.

 

É claro que ele dissera que o faria, mas tudo parecia depender da resposta de sua mãe, de quando é que teria tempo, quando é que Virgínia conseguiria ter o carro e dirigir até Lanyon.

 

Talvez Mrs. Philips tivesse mudado de ideias. Talvez tivesse dito: ”Oh, Eustace, não tenho tempo para lanches... em que é que estavas a pensar quando lhe disseste que ela podia vir até cá?”

 

Talvez, ao ter conhecido a mãe de Virginia, Eustace tivesse mudado de opinião acerca da jovem. Costumava dizer-se que, se se queria saber como é que uma jovem se tornava depois de casada, bastava olhar para a mãe dela. Talvez Eustace tenha visto e não tenha gostado do que viu. Recordou-se do desafio dos seus olhos azuis, que não pestanejaram, e daquela amarga troca final de palavras.

 

”Não gostaria de o afastar do seu trabalho.”

 

”Eu não lho permitiria.”

 

Talvez ele se tivesse esquecido de telefonar. Talvez tivesse pensado duas vezes. Ou talvez - e isso era terrível - Virginia tivesse interpretado erradamente a sua simpatia, ao falar dos seus problemas, fazendo-o ter pena dela. Talvez fosse só isso. Ele tinha pena dela.

 

Mas ele disse que telefonava. Disse que telefonava.

 

Aviou a receita e dirigiu-se para casa. Ainda estava a chover. Em frente da farmácia havia uma cabina telefónica. Estava livre. Seria tão simples! Não levaria tempo quase nenhum a procurar o número dele na lista e a marcá-lo. Tinha a carteira no bolso, com moedas para pagar a chamada. ”É a Virginia”, diria ela, e levaria as coisas na desportiva, brincando com ele. ”Pensei que você me ia telefonar!”

 

Quase atravessou a rua. Na beira do passeio, hesitou, tentando reunir a coragem para tomar a iniciativa numa situação que estava fora do seu controlo.

 

Imaginou a conversa.

 

”Eustace?”

 

”Sim.”

 

”É a Virginia.”

 

”Que Virginia?”

 

”Virginia Parsons.”

 

”Ah, sim. Virginia Parsons. O que deseja?”

 

Mas nesta altura a coragem faltou-lhe, e Virginia não chegou a atravessar a rua para entrar na cabina telefónica; em vez disso, continuou a subir a colina, com a chuva a bater-lhe no rosto e os comprimidos da mãe no bolso da gabardina.

 

Ao entrar pela porta da frente de Wheal House, ouviu tocar o telefone, mas quando acabou de tirar as botas de borracha, ele já tinha deixado de tocar. Ao entrar disparada na sala de estar, a mãe estava a pousar o auscultador.

 

Elevou as sobrancelhas ao olhar para a filha esbaforida.

 

- O que é que se passa?

 

- Eu... Pensei que era para mim.

 

- Não. Foi engano. Trouxeste os meus comprimidos, querida?

 

- Sim - respondeu Virginia, triste.

 

- Foste muito querida. E o passeio fez-te bem, vê-se. Estás de novo coradinha.

 

No dia seguinte, Mrs. Parsons anunciou inesperadamente que tinham de voltar para Londres. Alice ficou perplexa.

 

- Mas, Rowena, pensei que tinhas dito que iam ficar mais uma semana.

 

- Minha querida, adoraríamos, mas, sabes, temos aí um Verão muito atribulado, e é necessário tratar de muitas coisas e providenciar outras. Acho que não podemos ficar para aqui sem fazer nada durante mais uma semana. Por muito que eu adorasse.

 

- Está bem, mas fica ao menos o fim-de-semana!

 

”Sim, fique o fim-de-semana”, rezou Virginia. ”Por favor, por favor, fique o fím-de-semana.” Mas não serviu de nada.

 

- Oh, eu gostaria muito, mas temos de ir... Sexta-feira o mais tardar. Tenho de reservar bilhetes para o comboio.

 

- Bem, é uma pena, mas se estás mesmo decidida...

 

- Sim, minha querida, estou decidida.

 

”Permita que ele se lembre. Que ele telefone. Não haveria tempo para ir a Penfolda, mas pelo menos eu poderia despedir-me, saberia que ele estava a falar a sério... talvez eu pudesse dizer que lhe escrevia, talvez lhe pudesse dar a minha morada.”

 

- Querida, gostava que começasses a fazer a mala. Não te esqueças de nada. Seria uma maçada para a coitada da Alice mandar as coisas pelo correio. Já arrumaste a gabardina?

 

”Esta noite. Ele vai ligar esta noite. Dirá, peço desculpa, mas não estive cá; tenho estado tão ocupado que não houve tempo; estive doente.”

 

- Virginia! Anda escrever o teu nome no livro das visitas! Ali, debaixo do meu. Oh, Alice, minha querida, que belas férias nos deste! Uma maravilha! Adorámos, não adorámos, Virginia? Custa-nos imenso partir.

 

E lá foram. Alice levou-as de carro à estação, acompanhou-as até à carruagem de primeira classe, aos lugares do canto reservados. O carregador foi muito deferente, devido às bagagens caras de Mrs. Parsons.

 

- Volta em breve - convidou Alice quando Virginia se debruçou da janela para se despedir dela.

 

- Está bem.

 

- Gostámos muito de te ter connosco...

 

Era a última oportunidade. ”Diz a Eustace que eu tive de partir. Diz-lhe adeus por mim.” O apito soou, o comboio começou a andar. ”Telefona-lhe quando chegares a casa.”

 

- Adeus, Virginia!

 

”Manda-lhe beijos. Diz-lhe que eu o amo.” Em Truro, a sua tristeza era tão óbvia, devido aos suspiros, aos soluços e às lágrimas, que a mãe já não podia fazer que ignorava.

 

- Oh, querida. - Pousou o jornal. - O que se passa?

 

- Nada... - Virginia estava à janela, com a cara inchada, sem ver nada da paisagem.

 

- Tem de se passar alguma coisa. - Estendeu o braço e colocou a mão, suavemente, no joelho da filha. - É por causa daquele rapaz?

 

- Qual rapaz?

 

- Aquele rapaz do Land Rover, Eustace Philips? Apaixonaste-te por ele? - Virginia, a chorar, não conseguiu responder. A mãe prosseguiu, tranquilizadora, delicada. - Eu se fosse a ti não ficava assim. É a primeira vez que te sentes magoada por um homem, mas garanto-te que não é a última. Eles são umas criaturas muito egoístas, sabes?

 

- O Eustace não era assim. -Não?

 

- Era amável. Foi o único homem de quem eu realmente gostei.

- Assoou-se com ruído. - A mãe não gostava dele, pois não?

 

Mrs. Parsons ficou momentaneamente atordoada por aquela frontalidade pouco habitual.

 

- Bem... Digamos que nunca gostei muito do género dele.

 

- Quer dizer que não gostou dele por ele ser um agricultor?

 

- Nunca disse isso.

 

- Mas é isso que quer dizer. Só gosta de moscas-mortas como o sobrinho de Mistress Menheniot.

 

- Eu não conheço o sobrinho de Mistress Menheniot.

 

- Pois não, mas havia de gostar dele. Mrs. Parsons não respondeu de imediato.

 

- Esquece-o, Virginia - disse ela passado algum tempo. - Todas as raparigas têm de ter um romance infeliz antes de encontrarem finalmente o homem certo, assentarem e casarem. E neste Verão vamos divertir-nos muito. Era uma pena estragares tudo, pondo-te a lamentar uma coisa que se calhar nunca existiu.

 

- Sim - anuiu Virgínia” limpando os olhos e guardando o lenço encharcado na algibeira.

 

- Assim é que é. Agora, basta de lágrimas.

 

E, satisfeita por ter deitado água na fervura, Mrs. Parsons voltou a encostar-se no seu banco e a pegar no jornal. Pouco depois, inquieta, perturbada com qualquer coisa, baixou o jornal e viu que a filha a observava, sem pestanejar - uma expressão nos seus olhos escuros que ela nunca tinha visto.

 

- O que é?

 

- Ele disse que me telefonava. Prometeu que me telefonava.

 

- E então?

 

- Telefonou? Sei que não gostava dele. Será que atendeu o telefonema e não me deu o recado?

 

A mãe não hesitou um momento.

 

- Céus! Que acusação! É claro que não. Com certeza não pensaste...

 

- Não - interrompeu Virginia, triste quando viu o último raio de esperança a desaparecer. - Não, nunca pensei.

 

E voltou-se para encostar a testa ao vidro lambuzado, e o campo que passava veloz, juntamente com tudo o que acontecera, desapareceu, para sempre, no passado.

 

Estava-se em Abril. Em Maio, Virginia encontrou-se de novo com uma antiga colega, que a convidou para a sua casa de campo num fim-de-semana.

 

- É o meu aniversário, querida, e é fantástico. A mãezinha diz que posso convidar quem eu quiser, se calhar tu vais ter de dormir no sótão, mas não te importas, pois não? Somos uma família tão desorganizada!

 

Virginia, ficando desde logo de pé atrás, aceitou o convite.

 

- Como é que lá chego?

 

- Bem, podias apanhar o comboio, e alguém podia ir buscar-te, mas isso seria uma maçada. Olha, o meu primo se calhar também vai, ele tem carro, e talvez me dê boleia. Vou falar com ele e ver se ainda há lugar para ti. Se calhar vais ter de ir no meio das malas ou em cima da alavanca das mudanças, mas tudo é melhor do que furar a multidão de Waterloo...

 

Surpreendentemente, ela organizou tudo. O carro era um Mercedes coupé azul-escuro, e assim que as malas de Virginia se arrumaram no porta-bagagens superlotado, ela foi convidada a encaixar-se no banco da frente, entre a amiga e o primo. Este era alto e louro, com pernas compridas, um fato cinzento e cabelo ondulado, que surgia espetado sob a aba do chapéu de feltro castanho inclinado para a frente.

 

Chamava-se Anthony Keile.

 

Cansada da viagem e ainda tendo de enfrentar todos os problemas de Bosithick, Virginia saiu do comboio em Penzance, encheu os pulmões com o agradável ar do mar, e ficou contente por estar de volta. A maré estava baixa, no ar pairava um forte cheiro a algas. Do outro lado da baía, o monte de St. Michael surgia dourado ao sol da tarde, e as areias molhadas apresentavam uma tonalidade azul nos locais onde pequenos fios de água do mar e minúsculas piscinas reflectiam a cor do céu.

 

Facto extraordinário, havia um carregador.

 

- É aqui que vamos ficar? - perguntou Nicholas, enquanto o seguiam para o exterior da estação.

 

- Não, seguimos ainda até Lanyon.

 

- Como é que vamos?

 

- Já vos disse, deixei aqui o meu carro.

 

- Como é que sabes que não o roubaram?

 

- Porque o estou a ver, à nossa espera.

 

Demoraram algum tempo a acomodar as malas no porta-bagagens do Triumph, mas acabaram por conseguir amontoar as coisas, ficando no cimo a caixa da mercearia. Virginia deu uma gorjeta ao carregador e entraram acomodando-se todos no banco da frente, com Cara ao meio, e a porta do lado de Nicholas bem trancada.

 

Virginia baixara a capota e atou um lenço à cabeça, mas o vento agitava os cabelos de Cara, fazendo-os ir para o seu rosto.

 

- Quanto tempo levamos a chegar lá?

 

- Pouco, cerca de meia hora.

 

- Como é que é a casa?

 

- Porque não esperas e vês?

 

Pararam o carro no cimo da colina e olharam para trás, a fim de apreciar a paisagem, a curvatura da baía, calma e azul, e o dia a chegar ao fim. Em seu redor havia pequenos campos e valas azuis com escabiosas selvagens. Prosseguiram, descendo na direcção de um pequeno vale cheio de velhos carvalhos com um riacho que passava sob uma ponte. Também visíveis eram um velho moinho, uma aldeola. Depois a estrada subia às curvas, de volta à charneca, e de um momento para o outro o horizonte azulado do oceano Atlântico estendia-se a seus pés, brilhando a oeste com o reflexo do sol.

 

- Pensei que o mar estava atrás de nós - comentou Nicholas.

- Será outro mar?

 

- Talvez.

 

- É este o nosso mar? É nele que vamos nadar? -Sim.

 

- Há alguma praia?

 

- Não tive tempo de procurar. Mas há muitos penhascos íngremes.

 

- Eu quero uma praia. Com areia. Quero que me compres uma pá e um balde.

 

- A seu tempo - retorquiu Virginia. - Que tal fazer uma coisa de cada vez?

 

- Quero comprar uma pá e um balde amanhã.

 

Entraram na estrada principal e viraram para leste, avançando em paralelo com a costa. Passaram por Lanyon e pela estrada que levava a Penfolda, subiram uma elevação e chegaram junto de um feixe de pilriteiros que marcavam o desvio para Bosithick.

 

- Chegámos!

 

- Mas não há nenhuma casa!

 

- Calma!

 

Aos solavancos e chocalhando, o carro e os seus ocupantes desceram o caminho. Debaixo do carro ouviam-se sons sinistros de pancadas, os grandes maciços de tojos debruçaram-se sobre eles e Cara, temendo pela sua comida, estendeu uma mão para a caixa das mercearias. Passaram pela última curva com um solavanco, deslizaram pela relva e pararam com um solavanco final. Virginia puxou o travão de mão e desligou o motor. As crianças ficaram no carro a olhar para a casa.

 

Em Penzance não houvera vento, o ar estivera quente. Aqui havia uma certa frieza. A corda da roupa rasgada agitava-se ao vento e a enorme relva por cima da sebe de pedras encontrava-se achatada como um casaco de peles quando lhe passamos com a mão por cima.

 

E havia ainda outra coisa. Algo estava errado. Virgínia olhou durante algum tempo, tentando ver o que seria. Foi Cara quem descobriu.

 

- Há fumo na chaminé.

 

Virginia estremeceu, ligeiramente pouco à vontade, como se um fio de água fria lhe tivesse percorrido as costas. Era como se tivessem apanhado a casa de surpresa, como se não fossem esperados pelos seres estranhos que normalmente a habitavam.

 

Cara sentiu a sua perturbação.

 

- Passa-se alguma coisa?

 

- Não, claro que não. - Parecia mais convicta do que na realidade estava. - Fiquei apenas admirada. Vamos lá investigar.

 

Saíram do carro, deixando lá ficar as bagagens e a comida. Virginia empurrou o portão, abrindo-o, e pôs-se de lado para deixar que os filhos entrassem, enquanto procurava as chaves na mala.

 

Eles precederam-na, Nicholas a correr, para investigar o que estava a seguir à esquina mais afastada da casa, mas Cara avançou com cautela, como se estivesse a invadir propriedade alheia, evitando um velho pano, um vaso partido, com as mãos uma na outra, como que receando tocar nalguma coisa. Juntas abriram a porta da frente.

 

- Achas que foram os ciganos? - perguntou Cara. -Ha?

 

- Quem acendeu o lume.

 

- Vamos ver...

 

O cheiro a ratos e a humidade desaparecera. Em vez disso havia um odor a limpo e um calor agradável, e quando entraram na sala viram-na iluminada pela lareira. Todo o aspecto da casa se alterara, já não era depressiva e sombria... Pelo contrário, tornara-se bastante acolhedora. O aquecedor tinha desaparecido e junto à lareira encontrava-se um cesto de juncos cheio de troncos.

 

Com o lume e o sol do fim da tarde a entrar pela janela do lado oeste, a sala estava muito quente. Virginia dirigiu-se para uma janela e, através da porta aberta da cozinha, viu em cima da mesa uma tigela cheia de ovos e um fervedor de esmalte cheio de leite. Foi até lá e ficou especada a olhar. Alguém ali estivera e limpara tudo, o lava-louças brilhava e as cortinas haviam sido lavadas.

 

Cara ficou atrás dela, ainda com um certo receio.

 

- Parece que foram fadas.

 

- Não foram fadas - retorquiu Virginia, com um sorriso. - Foi a Alice.

 

- A tia Alice Lingard?

 

- Sim, não foi amorosa? Fingiu não gostar da ideia de virmos para aqui e depois faz uma coisa destas! Mas isso é típico dela. É uma pessoa muito bondosa. Amanhã temos de ir agradecer-lhe. Eu ligava-lhe, mas não temos telefone.

 

- Não faz mal, eu detesto telefones. Quero ir visitá-la. Quero ver a piscina.

 

- Se levares o fato-de-banho podes tomar uma banhoca. Cara ficou a olhar para a mãe. Virginia julgou que ela ainda

 

estava a pensar no banho e ficou admirada quando a ouviu.

 

- Como é que ela entrou?

 

- Quem?

 

- A tia Alice. Nós é que temos a chave.

 

- Oh! Bem, calculo que ela tenha pedido outra chave a Mister Williams ou coisa no género. Agora, o que vamos fazer em primeiro lugar?

 

Nicholas apareceu à porta.

 

- Eu vou observar a casa toda e depois quero lanchar. Estou esfomeado!

 

- Leva a Cara.

 

- Eu quero ficar contigo.

 

- Não. - Virginia empurrou-a com suavidade. - Vai ver e diz-me o que achas do resto da casa. Verás que a irás achar a casa mais engraçada que alguma vez viste na vida. Eu vou ligar a chaleira e cozer uns ovos, e depois disso descarregamos o carro, desfazemos as malas e fazemos as camas.

 

- As camas ainda não estão feitas?

 

- Não, temos de as fazer. Agora estamos por nossa conta. Ao fim da tarde conseguiram ter tudo em ordem, mas levaram muito tempo a descobrir onde se acendia o reservatório para a água quente, onde estavam guardados os lençóis e a ver quem ficava em que cama. Nicholas quis jantar feijões em molho de tomate e torradas, mas como não encontraram a torradeira e o grelhador do fogão falhava teve de comer pão simples.

 

- Precisamos de detergente e de uma esfregona, de chá e café...

- Virginia encontrou um pedaço de papel e um lápis e começou a fazer uma lista.

 

- E de sabonete para a casa de banho e um produto para limpar a banheira, porque está sujíssima - acrescentou Cara.

 

- E de uma pá e um balde - disse Nicholas.

 

- E vamos ter de comprar um frigorífico - continuou Cara. Não temos um sítio para guardar a comida e vai ficar cheia de bolor se a deixarmos ficar para aí.

 

- Talvez possamos pedir um emprestado - disse Virginia, lembrando-se em seguida de quem se oferecera para lhe emprestar um. Franziu o sobrolho e baixou o olhar para a lista.

 

Quando o minúsculo reservatório da água finalmente aqueceu, tomaram banho, Nicholas e Cara juntos, e depois Virginia, rapidamente, antes que a água quente acabasse. De roupão, junto à lareira, fizeram cacau...

 

- Nem sequer temos televisão.

 

- Ou um rádio.

 

- Ou um relógio - comentou Nicholas, contente. Virginia sorriu e olhou para o seu relógio.

 

- Se querem saber, são nove e dez.

 

- Nove e dez! Já devíamos estar na cama há muito.

 

- Não faz mal - tranquilizou ela.

 

- Não faz mal. A ama havia de ficar furiosa!

 

Virginia encostou-se na cadeira, esticou as pernas e mexeu os dedos dos pés junto ao lume.

 

- Eu sei - disse ela.

 

Depois de estarem na cama, lhes ter dado as boas-noites, ter deixado a porta entreaberta e lhes ter explicado como funcionava o interruptor, deixou-os, passou pelo corredor estreito e subiu os dois degraus que levavam ao quarto da torre.

 

Estava frio. Sentou-se à janela e olhou para os campos tranquilos e cheios de sombras, viu o mar calmo que ficara perlado ao crepúsculo, e o céu, com o que restava do pôr do Sol, riscado por tons de coral. As nuvens acumulavam-se a oeste. Agrupadas no horizonte, reflectiam tons dourados e rosados, mas, gradualmente, mesmo estes resquícios de luz desapareceram e as nuvens ficaram negras. A leste surgiu uma pequena lua nova, como uma pestana, flutuando no céu.

 

Uma a uma, as luzes começaram a brilhar na escuridão ao longo de toda a costa, nas quintas, nas vivendas e nos celeiros. Aqui, brilhava uma janela quadrada. Acolá, uma luz iluminava as medas. Numa estrada surgiram faróis que avançavam para a estrada principal, na direcção de Lanyon, e Virginia interrogou-se se não seria Eustace Philips, a dirigir-se para o Mermaid’s Arms, e se ele não viria ver como é que eles estavam ou se ficaria taciturno à espera que Virginia dissesse alguma coisa. Ela disse a si própria que talvez valesse a pena fazê-lo, pelo prazer de ver a expressão dele quando soubesse que ela, Cara e Nicholas se estavam a desenvencilhar às mil maravilhas.

 

Mas o dia seguinte estava diferente.

 

Durante a noite, o vento levantara-se e as nuvens negras, que haviam estado agrupadas no horizonte, encontravam-se agora por sobre a terra, trazendo consigo uma chuva forte. O som das goteiras a pingar e o matraquear das gotas contra as vidraças das janelas foram os sons que acordaram Virginia. O seu quarto estava tão escuro que foi necessário acender a luz para olhar para o relógio. Oito horas.

 

Levantou-se e fechou a janela. As tábuas do soalho estavam encharcadas. A chuva obscurecia tudo e ela só conseguia ver a alguns metros de distância. Era como se estivesse num barco, abandonado num mar de chuva. Desejou que as crianças só acordassem muito mais tarde.

 

Vestiu umas calças e a camisola mais grossa que tinha e foi até ao andar de baixo. Descobriu que a chuva entrara pela chaminé e apagara a lareira, pelo que a sala estava húmida e gelada. Havia fósforos, mas não material inflamável; madeira, mas nenhuns gravetos. Vestiu a gabardina e saiu para a chuva, curvada, na direcção da cabana do jardim. Aí descobriu um pequeno machado, rombo devido à idade e aos maus tratos. No degrau de pedra junto à porta de casa, Virginia cortou um tronco em pedaços, correndo o risco de se magoar. Em seguida pegou no papel que vinha na caixa das mercearias e acendeu a lareira. Os paus crepitaram e estalaram, e o fumo, depois de uma ou duas reviravoltas carrancudas pela sala, subiu pela chaminé. Virginia empilhou os troncos e deixou que o calor se espalhasse.

 

Cara apareceu quando ela fazia o pequeno-almoço.

 

- Mãezinha!

 

- Bom-dia, minha querida. - Inclinou-se para a beijar. Cara trazia uns calções azul-celestes, uma T-shirt amarela e um casaco de malha bastante fino. - Estás suficientemente agasalhada?

 

- Não - respondeu a filha. O seu belo cabelo liso fora preso com um travessão e os óculos estavam tortos. Virginia endireitou-os.

 

- Então vai vestir mais qualquer coisa. O pequeno-almoço ainda não está pronto.

 

- Mas não há mais nada. Quero dizer, na minha mala. A ama não mandou mais nada.

 

- Não posso crer! - Olharam uma para a outra. - Queres dizer que não vieram calças de ganga, gabardinas ou botas de borracha?

 

Cara abanou a cabeça.

 

- Penso que ela julgou que ia estar calor.

 

- Sim, calculo que sim - disse Virginia com suavidade, amaldiçoando a ama no seu íntimo. - Mas seria de esperar que ela soubesse o suficiente sobre fazer malas para juntar uma gabardina.

 

- Bem, temos uma espécie de gabardinas, mas não são nada de jeito.

 

Parecia tão preocupada que Virginia sorriu.

 

- Não te preocupes.

 

- O que vamos fazer?

 

- Temos de comprar roupa.

 

- Hoje?

 

- Porque não? Não podemos fazer mais nada com um tempo destes!

 

- E que tal irmos visitar a tia Alice e tomar um banho na piscina?

 

- É melhor guardarmos isso para quando o tempo estiver melhor. Ela não se vai importar. Com certeza que compreenderá.

 

Foram sob o dilúvio até Penzance. No cimo do monte, o nevoeiro era cerrado e cinzento, fazendo pequenos remoinhos, devido ao vento, abrindo ligeiramente para deixar vislumbrar um pouco da estrada e espessando em seguida, fazendo com que Virginia mal conseguisse ver o que estava à frente do capot.

 

Penzance estava cheia de chuva, de trânsito e de veraneantes desconsolados, que devido ao mau tempo haviam sido privados da sua ocupação diária: sentarem-se junto ao cais ou irem até à praia. Enchiam os passeios, postavam-se à entrada dos estabelecimentos, rondando sem objectivo definido os balcões das lojas, à procura de algo para comprar. Podiam ser vistos através dos vidros embaciados dos cafés e das geladarias, apinhados em minúsculas mesas, chupando, lambendo, mastigando com toda a lentidão; mexendo, fazendo as coisas durar, como que para adiarem o momento inevitável do retorno à chuva.

 

Virginia andou às voltas durante dez minutos antes de conseguir estacionar. Por entre a chuva, percorreram as ruas até encontrarem uma loja que vendia impermeáveis para pescadores, enormes botas de borracha que chegavam à coxa, lanternas e cordas, e entraram. Compraram calças de ganga para Cara e para Nicholas, camisolas de malha escuras, impermeáveis pretos e chapéus do mesmo material, que, na cabeça das crianças, faziam lembrar apagadores de candeeiros. Eles vestiram de imediato os impermeáveis e colocaram os chapéus, mas o resto das coisas foi embrulhado em papel castanho. Virginia pegou nas compras, pagou, e com os filhos, que mais pareciam robôs, de tão rígidos nas novas fatiotas, e meio cegos devido às abas dos chapéus, saiu de novo para a rua.

 

Ainda chovia a bom chover.

 

- Vamos para casa - sugeriu Cara.

 

- Bem, já que aqui estamos, podemos comprar um pouco de carne e peixe. Também não temos batatas, cenouras ou ervilhas. Talvez haja para aí um supermercado.

 

- Eu quero uma pá e um balde - disse Nicholas.

 

Virginia ignorou-o. Encontraram um supermercado, e juntaram-se à multidão, fazendo filas, escolhendo, esperando e pagando, guardando as compras e transportando-as para fora da loja.

 

As goteiras gorgolejavam, a água saía das sarjetas.

 

- Cara, podes com isso?

 

- Sim... - respondeu Cara, toda inclinada para um lado, devido ao peso do saco.

 

- Dá uma asa ao Nicholas.

 

- Eu quero uma pá e um balde - insistiu ele.

 

Mas Virginia ficara sem dinheiro. Estava quase a dizer-lhe que aquilo teria de ficar para a próxima, mas ele ergueu o rosto, mostrando o beicinho e os olhos lacrimejantes.

 

- Eu quero uma pá e um balde.

 

- Está bem, vamos comprar isso. Mas primeiro temos de encontrar um banco e levantar um cheque, para termos dinheiro.

 

As lágrimas desapareceram, como por magia.

 

- Eu vi um banco!

 

Encontraram o banco, cheio de gente.

 

As crianças sentaram-se num sofá de cabedal, exaustas, como dois velhotes, com os queixos caídos e as pernas esticadas, sem se importarem que alguém pudesse tropeçar. Virginia esperou pela sua vez e entregou o cheque ao caixa.

 

- Está de férias? - perguntou o jovem. Virginia interrogou-se como é que ele ainda conseguia estar de bom humor no final de uma manhã como aquela.

 

- É verdade.

 

- Vai ver que amanhã o tempo já está melhor.

 

- Espero bem que sim.

 

O balde vermelho e a pá azul foram as últimas aquisições. Carregados, percorreram o longo caminho de regresso até ao carro, que por sinal era a subir. Nicholas, a bater com a pá no balde como se estivesse a tocar tambor, seguia atrás. Virginia teve de esperar mais de uma vez por ele, incitando-o a andar mais depressa. Finalmente perdeu a paciência.

 

- Nicholas, vê lá se te despachas.

 

Uma mulher que passava apercebeu-se do tom de irritação na sua voz e olhou para trás, com uma expressão desaprovadora para aquela mãe tão pouco paciente.

 

E ainda só passara uma manhã.

 

Continuava a chover. Chegaram finalmente ao carro, carregaram o porta-bagagens com as compras e com os impermeáveis molhados, sentaram-se e fecharam as portas, gratos por finalmente estarem sentados sem apanhar chuva.

 

- Sabem o que é que eu quero? - perguntou Nicholas, ainda a bater com a pá no balde.

 

Virginia olhou para o relógio. Era quase uma da tarde.

 

- Comer? - tentou ela adivinhar.

 

”Do que eu gostava era de regressar a Wheal House e de saber que Mistress Jilkes tinha o almoço pronto, que na sala a lareira estava acesa e não houvesse mais nada para fazer durante o resto da tarde para além de ler muitos jornais e revistas.”

 

- Sim, isso. Mas também outra coisa.

 

- Não faço ideia.

 

- Tens de adivinhar. Dou-te três hipóteses.

 

- Bem. - Pôs-se a pensar. - Queres ir à casa de banho?

 

- Não. Pelo menos ainda não.

 

- Queres... um copo de água? -Não.

 

- Desisto.

 

- Quero ir à praia esta tarde e cavar. Com a minha nova pá e com o meu novo balde.

 

O caixa do banco acertara acerca da previsão meteorológica. Nessa tarde, o vento mudou para norte, dispersando as nuvens.

 

A princípio apareceram pequenos pedaços de céu, e depois estes foram ficando cada vez maiores e mais brilhantes até que finalmente o Sol da tarde despontou para se pôr, em triunfo, numa miscelânea de tons rosa e vermelhos.

 

- Quando o pôr do Sol é desta cor, no dia seguinte vai estar bom tempo - disse Cara quando se deitava. - Amanhã vai estar um dia lindo.

 

E estava.

 

- Hoje quero ir para a praia cavar com a minha pá e o meu balde - disse Nicholas.

 

- Descansa que vais - assegurou Virginia -, mas antes temos de ir visitar a tia Alice Lingard, senão ela pensa que somos as pessoas mais mal-educadas e mal-agradecidas que ela conhece.

 

- Porquê? - inquiriu Nicholas.

 

- Porque ela preparou a casa para nós e ainda nem sequer lhe agradecemos... acaba de comer o ovo, Nicholas, senão fica frio.

 

- Quem me dera comer cornflakes...

 

- Havemos de os comprar - disse Virginia, e Cara pegou no lápis e na lista de compras e adicionou cornflakes a seguir a ”palha-d’aco, manteiga de amendoim, açúcar, gelados, gelatina, sabão em pó e queijo”. Virginia nunca tinha feito tantas compras na sua vida.

 

Mandou-os brincar lá para fora enquanto lavava a louça e fazia as camas. O quarto dos miúdos tinha roupas espalhadas por toda a parte. Virginia sempre pensara que eles eram muito arrumadinhos, mas percebeu que era a ama que arrumava tudo o que eles deixavam espalhado. Juntou as roupas, sem saber se estavam limpas ou sujas, tirou uma meia de cima da cómoda e não tocou num saco de papel todo amarrotado que continha dois doces peganhentos.

 

Também havia um álbum de fotografias. Pertencia a Cara e fora metido na mala pela ama, com uma intenção que Virginia não percebia. Um dos lados estava repleto de pequenas fotografias, muitas das quais haviam sido tiradas pela própria Cara, pelo que não eram muito boas: a fachada da casa, um pouco delapidada; os cães, os agricultores nos tractores; uma vista aérea de Kirkton e um ou dois postais. Do outro lado via-se um grande retrato de Anthony, só a cabeça e os ombros, bem iluminado, o que fazia realçar o seu cabelo louro, o queixo quadrado e determinado. A impressão dada pela fotografia era a de um homem forte, mas Virginia conhecia bem os olhos estreitos e a boca fraca e bonita. E viu o colarinho às riscas da camisa Turnbull and Asher, o padrão discreto da gravata de seda italiana, e lembrou-se de como as roupas eram importantes para Anthony; tal como eram importantes o carro, a mobília da casa e o modo de vida. Virginia sempre imaginara que aquelas considerações eram secundárias e eram moldadas pelo carácter do indivíduo. Mas com Anthony Keile era precisamente o contrário, e ele sempre dera a prioridade aos mais pequenos pormenores, como se se apercebesse de que eles eram os adereços atrás da sua imagem, e sem os quais a sua frágil personalidade se desmoronaria.

 

Levando uma braçada de roupa, Virgínia desceu as escadas e lavou-a na pequena bacia. Quando a levou lá para fora, para a pendurar toda amarrotada na corda da roupa cheia de nós, deparou-se-lhe Nicholas, sozinho, a brincar com o tractor vermelho, algumas pedras e um pouco de relva. Vestia a sua camisola de malha nova e já estava todo vermelho do calor, mas Virginia sabia que não era boa ideia sugerir que ele a despisse.

 

- A que estás a brincar?

 

- A nada de especial.

 

- A relva serve de palha?

 

- Mais ou menos.

 

Virginia pendurou o último par de calças.

 

- Onde está a Cara?

 

- Lá dentro.

 

- Calculo que esteja a ler - comentou Virgínia, indo à procura dela.

 

Mas Cara não estava a ler; encontrava-se no quarto da torre, junto à janela, a olhar por cima dos campos, para o mar, mas sem o ver. Quando Virgínia apareceu à porta, ela virou a cabeça devagar, confundida.

 

-Cara...

 

Atrás das lentes, os olhos focaram-se. Ela sorriu.

 

- Olá. Já é altura de irmos andando?

 

- Quando quiseres. - Virgínia sentou-se ao lado da filha. - O que estás a fazer? A pensar ou a admirar a paisagem?

 

- Ambas as coisas.

 

- Em que pensavas?

 

- Estava a perguntar-me quanto tempo é que iremos ficar aqui...

 

- Oh, acho que mais ou menos um mês. Aluguei a casa por um mês.

 

- Mas depois temos de ir para a Escócia, não temos? Temos de voltar a Kirkton.

 

- Sim, é claro que temos de voltar. Por causa das tuas aulas. Calou-se. - Não te apetece ir?

 

- A ama vai connosco?

 

- Acho que não.

 

- Vai ser esquisito estar em Kirkton sem o paizinho e a ama. A casa é tão grande só para nós os três! Acho que é por isso que gosto desta casa. Tem o tamanho ideal.

 

- Pensei que não gostavas dela.

 

- Adoro-a. E adoro este quarto. Nunca vi um assim parecido, com as escadas ao meio e tantas janelas e o céu. - Era óbvio que não receava os fantasmas. - Mas porque é que não há mobília?

 

- Acho que foi construído para ser uma sala de trabalho. Há cerca de cinquenta anos viveu cá um homem. Escrevia livros e era muito famoso.

 

- Qual era o aspecto dele?

 

- Não sei. Acho que tinha uma barba, e talvez fosse muito desarrumado e se esquecesse de ajustar as ligas das meias e abotoasse os casacos todos mal. Os escritores são geralmente muito distraídos.

 

- Como é que ele se chamava?

 

- Aubrey Crane.

 

- Tenho a certeza de que era simpático - disse Cara - uma vez que fez um quarto tão bonito. Podemos estar aqui sentados e ver tudo o que se passa.

 

- Sim - concordou Virginia, e ambas observaram a manta de retalhos dos campos, as vacas que pastavam tranquilas, a relva verde-esmeralda depois da chuva, os muros de pedra e os postes dos portões cobertos de pequenos troncos, que, dentro de um ou dois meses, estariam carregados de fruta madura. E a oeste ouvia-se o ruído de um tractor. Virginia virou a cabeça, encostando a cabeça ao vidro, e viu o veículo vermelho-vivo como um marco de correio, e o homem ao volante, com uma camisa tão azul como o céu.

 

- Quem é aquele homem? - perguntou Cara.

 

- É o Eustace Philips.

 

- Conhece-lo?

 

- Sim. Cultiva Penfolda.

 

- Estes campos são todos dele?

 

- Acho que sim.

 

- Quando é que o conheceste?

 

- Há muitos anos.

 

- Ele sabe que estás aqui?

 

- Acho que sim.

 

- Então um dia há-de vir beber qualquer coisa connosco. Virginia sorriu.

 

- Sim, talvez venha. Agora vai pentear esse cabelo para nos irmos embora. Vamos visitar a Alice Lingard.

 

- Achas que leve o fato-de-banho? Podemos nadar na piscina?

 

- Boa ideia.

 

- Quem me dera que tivéssemos uma piscina.

 

- Onde, aqui? No jardim não há espaço.

 

- Não, em Kirkton.

 

- Bem, acho que podíamos ter uma - disse Virginia sem pensar.

- Se quiseres mesmo ter uma. Mas vamos embora, senão daqui a pouco são horas de almoço e ainda não fizemos nada.

 

Mas quando chegaram a Wheal House só encontraram Mrs. Jilkes. Virginia tocara à campainha apenas por uma mera formalidade e abrira de imediato a porta, entrando no vestíbulo, seguida dos filhos. Esperou ouvir o cão a ladrar, a voz de Alice a perguntar ”Quem é?” e vê-la aparecer na porta da sala. Mas deparou-se-lhe apenas um silêncio que era somente quebrado pelo tiquetaque do relógio que estava sobre a lareira.

 

- Alice?

 

Algures abriu-se e fechou-se uma porta. Em seguida surgiu Mrs. Jilkes, vinda da cozinha, como um barco a todo o vapor, com o seu avental branco engomado.

 

- Quem é?

 

Parecia bastante zangada até ver Virginia e os filhos. Sorriu.

 

- Oh, Mistress Keile, não imaginava que fosse a senhora. E estes são os seus meninos? São muito bonitos. Vocês são muito bonitos, não são? - perguntou ela a Cara, a quem nunca tinham posto semelhante questão. Esta pensou se haveria de dizer ”não”, uma vez que sabia que não era bonita, mas era demasiado tímida para abrir a boca. Em vez disso, olhou apenas para Mrs. Jilkes.

 

- Tu és a Cara, não és? E tu és o Nicholas. Também trouxeram os vossos fatos-de-banho, estou a ver. Querem dar um mergulho na piscina? - Virou-se para Virginia. - Mistress Lingard não está cá.

 

- Oh, que pena.

 

- Está fora desde que a senhora partiu. Mister Lingard teve de ir a uma reunião importante em Londres, por isso Mistress Lingard decidiu ir também. Disse que já há muito tempo lá não ia. Mas regressa esta noite.

 

Virginia ficou a matutar no que ouvira.

 

- Quer dizer que ela se foi embora na quinta-feira?

 

- Sim, na quinta-feira à tarde.

 

- Mas... Bosithick... Quando lá chegámos a lareira estava acesa, e estava tudo limpo e havia ovos e leite à nossa espera... pensei que fora Mistress Lingard.

 

Mrs. Jilkes fez um ligeiro sorriso.

 

- Não foi ela. Mas posso dizer-lhe quem foi.

 

- Quem?

 

- O Eustace Philips.

 

- O Eustace!

 

- Bem, não faça essa cara, até parece que ele fez alguma coisa de mal.

 

- Mas como é que sabe que foi ele?

 

- Porque ele me telefonou - disse Mrs. Jilkes com um ar importante. - Ou melhor, ele telefonou para Mistress Lingard, mas como ela estava em Londres fui eu que o atendi. Ele perguntou se alguém ia fazer alguma coisa por causa do seu regresso a Bosithick com as crianças, e eu disse-lhe que Mistress Lingard estava fora, e ele disse: ”Então não se preocupe, eu trato de tudo.” E foi assim. Fez um bom trabalho?

 

- Quer dizer que ele foi até lá e limpou a casa toda?

 

- Oh, não! O Eustace não sabe sequer o que é um espanador. Deve ter sido Mistress Thomas. Ela até arrancava as lajes do chão se a deixássemos.

 

Cara deu a mão a Virginia.

 

- É o senhor que vimos hoje no tractor?

 

- Sim - respondeu Virginia, perturbada.

 

- E ele não achará que somos muito mal-educados? Nem lhe agradecemos.

 

- Pois não. Temos de o visitar esta tarde. Quando regressarmos, vamos até Penfolda e explicamos.

 

Nicholas ficou furioso.

 

- Mas tu disseste que eu podia ir cavar na praia com a minha pá e o meu balde!

 

Mrs. Jilkes reconhecia uma voz rebelde quando a ouvia. Inclinou-se para Nicholas, com as mãos apoiadas nos joelhos, o rosto perto do dele, com uma voz tentadora.

 

- Porque é que não vais até à piscina tomar uma bela banhoca? E quando acabares, tu, a tua mãezinha e a tua mana podem vir comer uma tarte à cozinha com Mistress Jilkes...

 

- Oh, mas Mistress Jilkes...

 

- Não. - A senhora abanou a cabeça quando Virginia a interrompeu. - Não é maçada nenhuma. Já a fiz e está à espera de ser comida. E eu já estava a começar a achar que a casa se encontrava muito vazia para o meu gosto. - Olhou para Cara. - A ideia agrada-te, não é verdade, minha querida?

 

Era tão amável que a timidez de Cara desapareceu.

 

- Oh, sim - respondeu ela.

 

Naquela quente tarde de domingo, atravessaram os campos cheios de restolho até Penfolda, onde havia apenas uma semana Virginia vira as ceifeiras-debulhadoras em acção; passaram pelos prados verdejantes, indo de campo em campo através de passagens feitas com degraus de granito por cima das valas. Ao aproximarem-se da quinta, viram os celeiros, o pátio de cimento para o gado, as manjedouras. Abrindo e fechando cuidadosamente os portões por onde passavam, atravessaram o pátio e chegaram ao espaço empedrado junto à porta. Ouvia-se o som de alguém a esfregar cerdas molhadas na pedra, e Virginia dirigiu-se para a porta aberta do que parecia um estábulo, com algumas boxes, e encontrou um homem, não o Eustace, a limpar o local. Trazia um boné azul-escuro desbotado inclinado para trás, na sua cabeça de cabelos grisalhos encaracolados, e umas calças com suspensórios.

 

Ao vê-la ele interrompeu o que estava a fazer.

 

- Desculpe, procuro Mister Philips - disse Virginia.

 

- Ele anda por aí algures... nas traseiras da casa...

 

- Vamos ver se o encontramos.

 

Passaram por um portão e seguiram pelo carreiro que ia da casa até ao pequeno jardim onde ela e Eustace haviam partilhado a tarde. Na soleira da porta, ao sol, encontrava-se um gato malhado. Cara agachou-se para lhe fazer uma festa e Virginia bateu à porta. Ouviram-se passos e a porta abriu-se, surgindo uma mulher pequenina e rechonchuda, com um vestido preto e um avental colorido. Atrás dela, vindo da cozinha, vinha um aroma bastante agradável, a memória de um bom almoço de domingo.

 

-Sim?

 

- Sou Virginia Keile... De Bosithick...

 

- Oh, sim...

 

Um sorriso alegrou a face corada, fazendo subir as duas bochechas.

 

- A senhora deve ser Mistress Thomas.

 

- Exactamente... E estes são os seus filhos, não é verdade?

 

- Sim. A Cara e o Nicholas. Vimos pedir desculpas por não lhe termos agradecido antes. Quero dizer, por ter limpo a casa e deixado os ovos e o leite, e a lareira e tudo.

 

- Oh, isso não fui eu. Eu só dei uma pequena limpeza, abri algumas janelas. O Eustace é que levou a lenha, no tractor... e ao mesmo tempo deixou lá os ovos e o leite. Pensámos que não tivesse muito tempo de arrumar as coisas antes de ir para Londres... não é muito agradável chegar a uma casa suja; não podíamos permitir que isso acontecesse.

 

- Já teríamos vindo mais cedo, mas pensámos que tivesse sido Mistress Lingard...

 

- Quer falar com o Eustace, não é verdade? Ele está na horta lá atrás, foi buscar um balde de batatas. - Sorriu para Cara. - Gostas da gatinha?

 

- Sim, é amorosa.

 

- Ela tem os filhinhos ali no celeiro. Que tal irmos vê-los?

 

- Acha que ela se importa?

 

- Não. Venham daí. Vou mostrar-vos onde eles estão.

 

Dirigiu-se ao celeiro, com as crianças atrás; estas nem sequer

 

olharam para a mãe, tão desejosas estavam de ver os gatinhos. Abandonada, Virginia avançou pelo carreiro, passando por um portão de verga coberto de hera. Viu a camisa azul de Eustace atrás das ervilhas, dirigiu-se para lá e deu com ele a apanhar batatas com uma forquilha. Eram redondas e brancas como seixos do mar, envoltas em terra da mesma cor e consistência de um bolo de chocolate.

 

- Eustace.

 

Ele olhou para trás e viu-a. Virginia esperou que Eustace sorrisse, mas ele não o fez. Perguntou-se se teria ficado ofendido. Ele endireitou-se, apoiado no cabo da forquilha.

 

- Olá - cumprimentou ele, como se tivesse ficado surpreendido por a ver ali.

 

- Vim agradecer-te. E pedir desculpa. Ele mudou o utensílio para a outra mão.

 

- Pedir desculpa de quê?

 

- Não me apercebi de que tinhas sido tu que levaste a lenha, acendeste a lareira e fizeste as outras coisas. Pensei que tinha sido a Alice Lingard. Foi por isso que ainda não viemos cá.

 

- Oh, isso... - disse ele, e ela perguntou-se se haveria mais alguma coisa pela qual devesse pedir desculpa.

 

- Foi muito amável da tua parte. O leite, os ovos e tudo. Fez muito jeito. - Calou-se, com medo de parecer pouco sincera. - Mas como é que entraste lá em casa?

 

Eustace enterrou os dentes da forquilha na terra e avançou para ela.

 

- Nós temos uma chave. Quando a minha mãe se casou, costumava ir lá acima de vez em quando fazer algumas coisas a Mister Crane. A mulher dele estava doente e a minha mãe fazia a limpeza da casa. Ele deu-lhe uma chave, e é desde essa altura que a temos. Aproximou-se de Virginia e ficou parado a olhar para ela. De repente sorriu, os olhos azuis franzidos de divertimento, e ela soube que os seus receios eram infundados e ele não guardava ressentimentos.

 

- Então afinal decidiste ficar com a casa - disse ele.

 

- Sim - respondeu Virginia.

 

- Eu fiquei um pouco arrependido por te ter dito aquelas coisas e te ter feito zangar. Perdi a cabeça, mas não o devia ter feito.

 

- Tinhas razão. Era disso que eu precisava para tomar uma decisão.

 

- Foi por isso que lá fui pôr a lenha e o resto... Achei que era o mínimo que podia fazer. Vais precisar de mais leite...

 

- Achas que podíamos ter leite fresco todos os dias?

 

- Se o vierem cá buscar, sim.

 

- Eu podia vir, ou um dos miúdos. Não me tinha apercebido de que vindo pelos campos é muito perto.

 

Tinham começado a dirigir-se ao portão.

 

- Trouxeste os teus filhos?

 

- Sim. Foram com Mistress Thomas ver os gatinhos. Eustace deu uma gargalhada.

 

- Vão-se apaixonar por eles, é melhor estares preparada. O pai é um siamês, por isso é que os filhotes são tão bonitos. - Abriu o portão para que Virginia passasse. - Têm olhos azuis e...

 

Ele interrompeu-se. Olhando por sobre a cabeça dela, viu Cara e Nicholas a avançarem devagar, com cuidado, vindos do celeiro, com as mãos junto ao peito, transportando cada um o seu gatinho, as cabeças inclinadas em adoração.

 

- Não te disse?

 

As crianças avançaram para a relva, que lhes chegava até aos joelhos, cheia de bananas-de-são-tomé e grandes margaridas brancas.

 

De repente, Virginia viu-os com novos olhos, como os olhos de Eustace, como se os estivesse a ver pela primeira vez. A cabeça loura e a morena, os olhos azuis e os castanhos. E o sol reflectia-se nos óculos de Cara, fazendo-os brilhar como os faróis de um carro, e as novas calças de ganga de ambos, demasiado grandes, haviam escorregado para baixo das ancas, e Nicholas tinha as fraldas da camisa de fora, por sobre o seu rabinho redondo e firme.

 

Virginia sentiu um nó na garganta, e por pouco não conteve as lágrimas, ao pensar no amor que sentia por eles. Eram tão indefesos, tão vulneráveis, e, por uma qualquer razão estranha, era importante que causassem boa impressão a Eustace.

 

Nicholas viu-a.

 

- Olha o que temos aqui, mãezinha: Mistress Thomas disse que os podíamos trazer cá para fora.

 

- Sim - continuou Cara -, são pequeninos e têm olhos... - Viu Eustace atrás da mãe e ficou imóvel, com o rosto virado para cima, os olhos observando-o por detrás dos óculos.

 

Mas o Nicholas continuou.

 

- Olha, mãezinha, tens de ver. Tem muito pêlo e umas garras pequeninas. Mas não sei se é menino ou menina. Mistress Thomas diz que não sabe ver isso. - Levantou a cabeça, viu Eustace, e sorriu-lhe. - Mistress Thomas diz que já não mamam, a mãe estava a ficar muito magra, e ela dá-lhes um pires de leite, e eles lambem-no com as suas linguazinhas - contou ele a Eustace.

 

Este estendeu um longo dedo castanho e acariciou a cabeça do gatinho.

 

- Nicholas, este é Mister Philips, deves cumprimentá-lo.

 

- Olá. Mistress Thomas disse que se nós quiséssemos podíamos ficar com um, mas tínhamos de te pedir autorização. Tu não te importas, pois não, mãezinha? Ele é tão pequenino e podia dormir na minha cama e eu tomava conta dele...

 

Virginia deu consigo a lembrar-se dos habituais argumentos que os pais apresentam aos filhos quando se vêem na mesma situação.

 

”São muito novos para serem afastados da mãe. Ainda precisam dela para ficarem quentes. Só estamos em Bosithick nas férias, não achas que ele iria detestar a viagem de comboio até à Escócia?”

 

Eustace pousara o balde das batatas e fora ter com Cara, que agarrava no gatinho. Virginia viu-o baixar-se até ficar à altura dela, soltando-lhe os dedos com delicadeza.

 

- Não o apertes muito, senão ele não consegue respirar.

 

- Tenho medo de o deixar cair.

 

- Não deixas. Ele quer espreitar e ver o que se passa no mundo. Nunca viu um sol tão brilhante como este. - Sorriu para o gato e para Cara. Passado algum tempo, e devagar, ela sorriu-lhe, e quem a olhasse esquecia os óculos, a testa saliente e o cabelo liso, vendo apenas a doçura da sua expressão.

 

Pouco tempo depois, Eustace mandou-os pôr os gatos outra vez no celeiro, e, dizendo a Virginia para ficar ali ao sol, foi até dentro de casa com as batatas para Mistress Thomas. Regressou com um maço de cigarros e um chocolate. Sentaram-se onde se haviam sentado anos antes, na relva comprida, acompanhados pelas crianças.

 

Deu-lhes o chocolate, mas falou-lhes como se eles fossem adultos. O que têm andado a fazer? O que fizeram ontem com aquela chuvada? Já foram nadar?

 

Eles contaram-lhe tudo, as vozes de ambos atropelando-se. Cara, tendo já perdido a timidez, estava tão desejosa de lhe contar como Nicholas.

 

- Comprámos impermeáveis e ficámos encharcados. E a mãezinha teve de ir ao banco buscar mais dinheiro, e o Nicholas comprou uma pá e um balde.

 

- Mas ainda não fui à praia para cavar.

 

- E hoje nadámos em casa de Mistress Lingard. Na piscina dela. Mas ainda não nadámos no mar.

 

Eustace ergueu as sobrancelhas.

 

- Ainda não nadaram no mar e ainda não foram à praia? Mas isso não pode ser!

 

- A mãezinha disse que ainda não tivemos tempo...

 

- Mas ela prometeu-me - lembrou Nicholas, mostrando-se irritado. - Ela disse que hoje eu podia cavar com a pá, mas ainda não vi um grão de areia.

 

Virginia começou a rir-se e o filho ficou, naturalmente, ainda mais irritado.

 

- Ora, é verdade, e isso é o que eu desejo mais do que tudo.

 

- Bem - disse Eustace -, se desejas isso mais do que tudo, o que é que estamos aqui a fazer sentados a tagarelar?

 

Nicholas olhou embasbacado para Eustace, semicerrando os olhos, suspeito.

 

- Quer dizer que podemos ir à praia?

 

- Porque não?

 

- Agora? - Nicholas não acreditava no que ouvia.

 

- Ou preferes fazer outra coisa.

 

- Não. Nada. - Levantou-se de um pulo. - Onde é que vamos? Vamos a Porthkerris?

 

- Não, aí não, está cheio de gente. Vamos até à nossa praia privativa, que mais ninguém conhece, e que pertence a Penfolda e a Bosithick.

 

Virginia ficou perplexa.

 

- Não sabia que tínhamos uma praia. Pensei que só havia penhascos.

 

Eustace já se levantara.

 

- Eu mostro-vos... venham daí, vamos no Land Rover.

 

- A minha pá e o meu balde ficaram em casa.

 

- Vamos buscá-los de caminho.

 

- E os nossos fatos-de-banho.

 

- Trazemo-los também.

 

Entrou em casa para ir buscar as suas coisas, gritar algo a Mrs. Thomas, e saiu. Assobiou e os cães, a ladrar, vieram a correr de um dos lados do celeiro, sabendo que o assobio significava um passeio, cheiros, coelhos, talvez um banho. Todos, incluindo os cães, subiram para o Land Rover, e Cara, já nada tímida, gritava de prazer enquanto avançavam aos solavancos pelo caminho até à estrada principal.

 

- É muito longe? - perguntou ela a Eustace.

 

- Não, é perto.

 

- Como se chama a praia?

 

- Enseada de Jack Carley. E não é um sítio para bebés, só para meninos crescidos que sabem tomar conta de si próprios e descer o penhasco.

 

Eles asseguraram-lhe prontamente que se enquadravam naquela categoria. Virginia observou o rosto de Nicholas, e viu nele satisfação por poder, enfim, fazer aquilo por que mais ansiava. E fazê-lo de imediato. Não lhe disseram talvez, ou amanhã, ou que esperasse e fosse paciente. E ela sabia exactamente o que ele sentia, pois há muitos anos Eustace fizera o mesmo com ela, levando a cabo o mesmo milagre com a pequena Virgínia; comprara-lhe o gelado que ela desejava e depois, de um momento para o outro, convidara-a para ir a Penfolda.

 

Deixaram o Land Rover no terreiro deserto abaixo de Bosithick e começaram a descer para o mar. A princípio, enquanto atravessavam os campos, iam lado a lado, Eustace dando a mão a Nicholas porque este tinha tendência para ficar para trás. Mas depois os campos deram lugar a amoras silvestres e a fetos e começaram a seguir em fila indiana, com Eustace à frente; passaram por muros de pedra a ruir, atravessaram um riacho, onde os juncos atingiam a altura de uma pessoa de pequena estatura. Depois outro muro, e o caminho desapareceu sob uma selva de fetos verdes. Abriram caminho através dela, por entre o tojo. De um momento para o outro o chão surgiu muito íngreme debaixo dos pés deles, e o caminho seguia em ziguezague pela vegetação rasteira, indo até mesmo ao rebordo do penhasco. E para lá dele havia o espaço. O ar azul. Viam-se gaivotas que planavam e gritavam, e ouvia-se o som distante do mar.

 

Naquela parte, a costa acabava em promontórios recortados, compostos por grandes afloramentos graníticos. Entre eles, a turfa era verde e muito macia, salpicada de urze purpúrea, e o carreiro prosseguia as suas reviravoltas passando por eles, e, à medida que se avançava tornava-se visível uma pequena enseada, protegida e fechada, lá em baixo. O mar era profundo e calmo, purpúreo junto às rochas e verde-jade sobre a areia. A praia era minúscula, e viam-se os restos de um velho molhe. Para lá dele a terra erguia-se, formando a cunha verde do penhasco, através do qual corria, com uma série de minúsculas quedas-d’agua, um riacho. E por sobre o molhe, aninhada no sopé do penhasco, via-se uma casinha; em mau estado, com janelas partidas e telhas de ardósia arrancadas.

 

Ficaram os quatro em fila, saboreando o vento suave enquanto olhavam para baixo. Era uma sensação perturbadora. Virginia perguntou-se se os filhos sofreriam de vertigens, mas nenhum deles parecia estar minimamente afectado pelo vazio da grande altitude.

 

- Há ali uma casa - disse Cara.

 

- Era onde vivia o Jack Carley.

 

- Onde é que ele vive agora? -Acho que com os anjos.

 

- Conheceu-o?

 

- Sim, conheci-o. Ele era já velhote quando eu era miúdo. Não gostava que as pessoas viessem até aqui. Tinha um grande cão que ladrava muito e que as afugentava.

 

- Mas deixava-o vir a si?

 

- Oh, sim, deixava-me vir. - Eustace sorriu para Nicholas. Queres que te leve, ou consegues desenrascar-te?

 

Nicholas espreitou para baixo. O caminho serpenteava para baixo e desaparecia de vista. Nicholas permaneceu imperturbável.

 

- Não. Não quero que me leve, obrigado. Mas gostava que fosse à frente.

 

Contudo, foram os cães que seguiram à frente, sem receio, seguros no andar, mais parecendo cabras. Os humanos seguiram-nos a uma velocidade mais prudente, mas Virginia achou que o carreiro não era tão perigoso como parecia. Devido ao tempo seco, o solo estava duro e firme sob os pés, e nos locais mais íngremes havia degraus feitos com cimento ou restos de madeira provenientes do mar.

 

Viram-se lá em baixo em segurança mais cedo do que pensavam. Acima, pairava o penhasco, escuro e frio à sombra. Mas quando chegaram à praia e foram para o sol, a areia estava quente.

 

Sentia-se o cheiro do alcatrão vindo da pequena casa e os únicos sons que se ouviam eram os das gaivotas, do mar e do riacho.

 

Havia qualquer coisa de irreal na pequena enseada, como se tivessem viajado no tempo ou no espaço. O ar estava calmo e o sol quente; a areia era branca e a água, verde, parecia um espelho. As crianças despiram-se, pegaram no balde e na pá de Nicholas e dirigiram-se de imediato para a beira-mar, onde começaram a construir um castelo de areia, com fossos e torres em forma de balde.

 

- Se a maré subir fará desaparecer o castelo - disse Cara.

 

- Não senhora, porque vamos construir uns fossos muito grandes, onde a água vai ficar.

 

- Mas se a maré subir até mais acima do que o castelo, vai fazê-lo desaparecer. Tal como aconteceu ao rei Canuto3.

 

Nicholas meditou no que acabara de ouvir.

 

- Bem, não irá desaparecer tão depressa.

 

Era o género de dia de que eles se iriam lembrar até ao fim da sua vida. Virginia imaginou-os, de meia-idade, a recordar, nostálgicos.

 

”Havia uma pequena enseada e uma casa em ruínas e não estava lá mais ninguém para além de nós. E havia dois cães e tivemos de descer por um caminho suicida.

 

Quem é que nos levou?

 

Eustace Philips.

 

Mas quem era ele?

 

Não me consigo lembrar... devia ser um agricultor, algum vizinho.”

 

E discutiriam por causa dos detalhes.

 

”E havia um riacho.

 

Não, era uma queda-d’agua.

 

Canuto, o Grande, rei de Inglaterra, Dinamarca e Noruega, apôs ter vencido Santo Olavo, construiu no mar do Norte um grande reino, que a sua morte depressa desapareceu (N do T)

 

Era um riacho que corria pelo meio da praia. Lembro-me perfeitamente. E fizemos uma barragem com areia.

 

Mas também havia uma queda-d’agua. E eu tinha uma pá nova.”

 

Quando a maré subiu, foram todos nadar; a água era límpida, salgada, verde e muito fria. Virginia esquecera-se da touca e o seu cabelo escuro colava-se-lhe à cabeça. A sua sombra deslocava-se sobre os seixos do fundo como uma nova e estranha variedade de peixe. Agarrando Cara, ela flutuou, pairando entre o mar e o céu, com os olhos encadeados pelo brilho da água e do sol; o ar estava repleto dos gritos das gaivotas e como ruído de fundo ouvia-se o murmúrio das ondas que rebentavam.

 

Ficou cheia de frio. No entanto, as crianças pareciam não sentir o mesmo, e ela deixou-as com Eustace, saiu da água e sentou-se na areia seca.

 

Não trouxera uma manta nem toalhas grandes. Nem pente, nem baton, nem bolachas, nem malha, nem um termo com chá, nem uma camisola a mais. Nem sequer bolo de ameixa ou bolachas de chocolate, nem dinheiro para o passeio nos burros ou para o homem dos gelados.

 

Cara juntou-se-lhe, a tiritar. Virginia enrolou-a numa toalha e começou a enxugá-la devagar.

 

- Por este andar, depressa te fazes uma boa nadadora.

 

- Que horas são? - perguntou Cara. A mãe olhou para o Sol.

 

- Acho que devem ser umas cinco... Não sei.

 

- Ainda não lanchámos.

 

- Pois não. E acho que nem vamos lanchar.

 

- Não lanchamos!

 

- Uma vez não faz mal. Comemos mais logo, ao jantar.

 

A rapariga fez uma careta, mas não levantou objecções. Mas Nicholas exaltou-se quando se apercebeu de que Virginia não lhe havia trazido nada.

 

- Mas eu tenho fome.

 

- Lamento.

 

- A ama levava sempre montes de coisas e tu não trazes nada!

 

- Eu sei. Esqueci-me. Estávamos com tanta pressa que nem me lembrei das bolachas.

 

- Então o que é que eu vou comer?

 

Eustace apanhou o resto da conversa ao sair da água.

 

- O que se passa? - perguntou ele, apanhando uma toalha.

 

- Eu estou cheio de fome e a mãezinha não trouxe nada para comermos.

 

- Azar - disse Eustace, sem pena nenhuma.

 

Nicholas lançou-lhe um olhar longo e duro, e virou-lhe as costas, para regressar amuado para as suas escavações, mas Eustace agarrou-o pelo braço e puxou-o devagar. Segurou-o contra os joelhos e enxugou-o pensativo com a toalha, como se estivesse a acariciar um dos cães.

 

Virginia quis deitar água na fervura.

 

- De qualquer modo, daqui a pouco também temos de nos ir embora.

 

- Porquê? - perguntou Eustace.

 

- Pensei que tinhas dito que precisavas de ordenhar as vacas.

 

- O Bert está a fazer isso.

 

- O Bert?

 

- O que estava hoje em Penfolda, a limpar o estábulo.

 

- Ah, sim.

 

- Costumava trabalhar para o meu pai, já se reformou, mas domingo sim domingo não vai dar-me uma ajuda. Gosta de o fazer. Mistress Thomas dá-lhe uma boa refeição e eu tenho algumas horas para mim.

 

Nicholas irritou-se com a conversa fiada. Voltou-se para Eustace e levantou um rosto furioso para ele.

 

- Tenho fome.

 

- Também eu - disse Cara ansiosa e quase tão veemente.

 

- Escutem - disse Eustace.

 

Escutaram. E ouviram, por cima do barulho das gaivotas e do mar, outro som. O trabalhar suave de um motor aproximando-se cada vez mais.

 

- O que é?

 

- Esperem e vejam.

 

O som ficou cada vez mais forte. A um canto viram aproximar-se um pequeno barco, branco com uma risca azul, montando as ondas e espalhando espuma. Ao leme via-se um corpo volumoso. Virou para o abrigo da enseada e o motor quase que se calou, ficando apenas um leve ronronar.

 

Todos o contemplaram.

 

-Aí está ele! - exclamou Eustace, presumido como um ilusionista que conseguiu efectuar um truque difícil.

 

- Quem é? - perguntou Virginia.

 

- O Tommy Bassett, de Porthkerris. Veio buscar os covos das lagostas.

 

- Mas não deve trazer bolachas - disse Nicholas, que nunca se deixava desviar do assunto que o preocupava.

 

- Não, mas pode trazer outra coisa. Querem que eu vá ver?

 

- Está bem. - Mas pareciam todos cheios de dúvidas. Desviou Nicholas e regressou à água, mergulhando no meio de

 

uma onda cor de pena de pavão e começando a nadar com vigor, até alcançar o barco. Os covos das lagostas já estavam a ser içados. O pescador despejou um e voltou a colocá-lo no sítio. Em seguida viu Eustace a aproximar-se, e ficou à espera, atento.

 

- Olá, rapaz! - A sua voz era transportada pelas águas. Viram Eustace agarrar-se à amurada, ficar pendurado durante

 

alguns momentos e içar-se para o barco.

 

- Ainda é uma distância grande para nadar - comentou Cara.

 

- Espero que ele não traga uma lagosta - disse Nicholas.

 

- Porque não?

 

- As lagostas têm garras.

 

No barco conversava-se. Finalmente, Eustace levantou-se, e viram que ele transportava uma espécie de embrulho. Saltou para a água e iniciou o caminho de regresso, nadando agora mais devagar, devido ao fardo misterioso. Veio a saber-se que era um saco de corda que continha doze luzidias cavalas.

 

Nicholas abriu a boca para dizer, ”Não gosto de peixe”, mas viu o olhar de Eustace, fechou a boca e ficou calado.

 

- Lembrei-me de que ele devia trazer algumas - disse-lhes Eustace. - Geralmente deita a linha quando vem ver os covos. Sorriu para Cara. - Já alguma vez comeste cavalas?

 

-Acho que não. Mas - disse ela - é engraçado ver como o outro senhor lhe deu um saco. - Aos olhos dela, isso era ainda mais estranho que a oferta de cavalas. - Ele não o quer de volta?

 

- Não falou nisso.

 

- Temos de as levar para Bosithick?

 

- Para quê?... Não, cozinhamo-las já aqui... Vá lá, mexam-se e ajudem.

 

Pegou em seis ou sete grandes pedras, redondas e lisas, dispô-las em círculo, pegou em fósforos e no resto de um maço de cigarros, alguns pedaços de madeira e palha, acendeu uma fogueira e mandou as crianças buscarem mais madeira, e em breve as chamas já iam altas.

 

E quando as brasas ficaram suficientemente altas, cinzentas e vermelhas quando se lhes soprava, ele colocou lá o peixe, enfileirado, e libertou-se um aroma delicioso.

 

- Mas não temos garfos nem facas - disse Cara.

 

- Os dedos foram feitos antes dos garfos.

 

- Mas o peixe deve estar quente.

 

Cara e Nicholas ajoelharam-se junto à fogueira, envergando apenas os fatos-de-banho e uma camada de areia. Pareciam dois selvagens, e muito satisfeitos.

 

Cara observou as mãos habilidosas de Eustace.

 

- Já fez isso antes?

 

- O quê, afiar um pau?

 

- Não, fazer uma fogueira e assar peixe.

 

- Sim, e muitas vezes. É a única maneira de se preparar a cavala e de a comer, ainda fresquinha.

 

- Costumava fazer isto quando era novo? -Sim.

 

- O velhote estava vivo? O Jack Carley?

 

- Sim. Ele costumava vir cá para fora, sentava-se na praia e juntava-se ao grupo. Trazia com ele uma garrafa de rum e um velho cachimbo fedorento e sentava-se aqui a contar longas histórias, tão assustadoras que nunca sabíamos se elas eram verdadeiras.

 

- Que espécie de histórias?

 

- Oh, aventuras... Ele já correra mundo, fizera de tudo. Fora lenhador e cozinheiro num petroleiro, construíra estradas e vias-férreas, trabalhara em minas. Fora minerador de estanho. Esteve no Chile, trabalhou lá cinco anos ou mais, e regressou um homem rico, mas gastou o dinheiro todo num ano, e teve de partir.

 

- Mas voltou.

 

- Sim, voltou. Para a enseada de Jack Carley. - Cara estremeceu. - Tens frio?

 

-A ama diz que é um fantasma a passar pelo sítio onde vai ficar a nossa campa.

 

- Então veste uma camisola para manteres os fantasmas afastados, e depois serão horas de lanchar.

 

E vendo-o com as crianças, Virgínia lembrou-se de Anthony e do que ele perdera por nunca ter querido fazer nada em conjunto com os filhos. Se Cara fosse bonita, talvez ele lhe tivesse prestado atenção... Cara, que precisava de carinho e amor e julgava ter o pai mais maravilhoso do mundo. Mas não era bonita, era tímida e usava óculos, e ele nunca tentara esconder que tinha vergonha dela.

 

Quanto a Nicholas... com ele as coisas podiam ter sido diferentes. Quando ele tivesse idade suficiente, Anthony ensiná-lo-ia a caçar, a jogar golfe e a pescar, ficariam amigos e sairiam juntos. Mas agora Anthony estava morto, nada disso iria acontecer e ela sentiu pena porque eles nunca se lembrariam de ter nadado com ele, nunca se ajoelhariam em redor de uma fogueira a ouvir as suas histórias e a observar as suas mãos habilidosas a afiar bocados de madeira que serviam de garfos.

 

O Sol desceu no horizonte, brilhando directamente sobre eles, e o mar encandeava. Em breve cairia a noite. E Jack Carley vivera ali tal como Aubrey Crane vivera em Bosithick. Não se viam. Não se ouviam. Mas sabia-se que eles ainda andavam por ali.

 

Era perturbadora esta percepção do passado, mas de alguma forma natural, e por isso não muito assustadora. E não era possível viver naquela parte do mundo sendo-se uma pessoa tímida ou nervosa, pois sob a beleza havia uma terra selvagem, e o perigo espreitava em todo o lado. No mar, profundo e traiçoeiro, com as suas contracorrentes submarinas. Nos penhascos e nas grutas, tão velozmente esculpidos e submersos pelas marés. Até os campos tranquilos que eles haviam descido ocultavam horrores impensáveis; minas abandonadas, abismos profundos, negros como breu, escondiam-se sob o feto. E os tufos de pêlo e penas, os ossos esbranquiçados, testemunhavam a presença das raposas, que construíam os seus covis nos buracos sob o tojo.

 

Depois do cair da noite, o mocho dava início à sua caçada predadora, e o texugo emergia para fazer túneis e escavar. A excitação da caçada não era para ele. Ficava satisfeito em empurrar a tampa de um caixote a meio da noite, fazendo um grande estardalhaço e assustando a mulher do agricultor.

 

- Mãezinha, já está pronto. - A voz de Cara interrompeu os seus pensamentos. Levantou o olhar e viu a filha com um pau na mão, trazendo precariamente espetado na ponta um pedaço de peixe. -Anda cá buscá-lo depressa antes que ele caia!

 

Estava assustada, e Virginia levantou-se, sacudindo a areia do fato-de-banho, e foi juntar-se ao piquenique.

 

Nos últimos raios de sol, com o vento fresco nos seus rostos, subiram vagarosamente o penhasco. Depois do banho, as crianças estavam sonolentas e silenciosas. Nicholas já não foi tão orgulhoso que não aceitasse ir às cavalitas de Eustace, e Virginia transportava as roupas e as toalhas molhadas no saco de corda onde tinham vindo as cavalas, ajudando Cara com a outra mão. Estavam cheios de areia e sal, desgrenhados, exaustos. O carreiro era íngreme, e avançar pelo feto e pela folhagem rasteira era algo de muito extenuante. Finalmente chegaram ao topo, e depois disso a caminhada foi mais fácil. Atrás deles encontrava-se o mar, luminoso, no crepúsculo, reflectindo todas as cores do céu, e adiante via-se Bosithick, aninhada na curva da colina, com a estrada atrás a brilhar, de vez em quando, com os faróis de um carro.

 

Algumas das vacas de Eustace haviam fugido por um buraco da vedação. Vagueavam por ali ao pôr do Sol, mugindo agradavelmente, levantando as cabeças para ver passar a pequena procissão.

 

- Vai até lá a casa connosco? - perguntou Nicholas, inclinando-se para a frente, a fim de falar ao ouvido de Eustace.

 

- Já são horas de eu ir andando para casa - retorquiu ele a sorrir.

 

- Gostávamos que jantasse connosco.

 

- Vocês já jantaram.

 

- Eu pensei que aquilo era o lanche.

 

- Não me digas que ainda têm espaço para mais comida! Nicholas bocejou.

 

- Não, talvez não.

 

- Eu faço-te um cacau quente e podes bebê-lo na cama - disse Virginia.

 

- Sim - anuiu o filho. - Mas seria bom se o Eustace fosse falar um bocadinho connosco enquanto tomávamos banho...

 

Cara juntou-se-lhe.

 

- Sim, e depois a mãezinha preparava-nos o cacau e você podia conversar connosco.

 

- Até faço mais - disse Eustace. - Esfrego-vos as costas para tirar a areia.

 

As crianças deram uma gargalhada como se aquilo tivesse muita graça, e mal se apanharam em casa correram para a casa de banho a fim de abrir as torneiras. Através da porta ouviam-se grandes chapinhadelas, e Eustace, arregaçando as mangas, avançou para acabar com aquilo.

 

-Agora quietos, senão afundam o navio - ouviu-o Virginia dizer.

 

Deixando-o a tomar conta de tudo, ela levou o saco de corda até à cozinha, despejou as toalhas e os fatos-de-banho cheios de areia no lava-louças, enxaguou-os, espremeu-os, levou-os para o jardim escuro e, tacteando, encontrou a corda da roupa, pendurou-os, deixando-os a adejar como fantasmas na escuridão.

 

De novo na cozinha, colocou leite num tacho, pô-lo ao lume e ficou a olhar para ele, encostada ao fogão, a bocejar. Levou a mão aos olhos e reparou que tinha a cara cheia de areia. Tirou da mala um espelhinho e uma escova, colocou o espelho em cima de uma das prateleiras do armário e tentou fazer alguma coisa do cabelo, mas este estava duro e seco do sal e cheio de areia. Pensou que se tivesse ali um chuveiro o teria lavado, mas a perspectiva de meter a cabeça debaixo da torneira não era muito aliciante. Na pouca luz, viu o seu reflexo no espelho redondo e havia sardas no nariz, mas os olhos estavam ensombrados, escuros como dois buracos no seu rosto.

 

O leite começou a ferver. Preparou duas canecas de cacau, colocou-as sobre um tabuleiro e dirigiu-se para o primeiro andar. Viu que a casa de banho estava vazia e havia marcas de pés e toalhas molhadas a caminho do piso superior. Ouviu vozes, avançou pelo corredor e notou que a porta do quarto dos filhos estava aberta.

 

Estavam os três lá dentro, mas não a viram. Ela quedou-se a observá-los. Eustace encontrava-se sentado na cama de Cara, de costas para ela, e as crianças instaladas na cama de Nicholas. Com as três cabeças juntas, Eustace estava a fazer uma visita guiada através das fotografias pela mão de Cara.

 

- E este é o paizinho. Esta grande aqui. Ele é muito atraente, não acha? - Quem falava era Cara, agora bastante conversadora, como se estivesse com alguém que já há muito tempo conhecesse.

- E esta é a nossa casa na Escócia, este é o meu quarto, este é o quarto do Nicholas, aqui é o quarto onde brincávamos lá em cima... - Este é o meu quarto!

- Eu já disse que era, tontinho! E este é o quarto da ama; este é o quarto da mãezinha, mas não se consegue ver a extremidade dos quartos, que é redonda. E esta é uma vista aérea...

 

- Foi um homem que a tirou de um avião...

 

- E aqui é o jardim e o rio. E este é o jardim murado.

 

- E este é Mister McGregor no seu tractor. Este é o Bob e este é o Fergie.

 

Eustace começava a perder o fio à meada.

 

- Vamos com calma: quem são o Bob e o Fergie?

 

- Bem, o Bob ajuda Mister McGregor e o Fergie ajuda o jardineiro. O Fergie sabe tocar gaita-de-foles. E sabe quem lhe ensinou? O tio dele. E sabe como se chama o tio? Muncle! exclamou Nicholas, triunfante.

 

- Tio Muncle - repetiu Eustace.

 

- E aqui é o paizinho a fazer esqui em Saint-Moritz e aqui somos nós na caça ao galo-silvestre; pelo menos não participámos no piquenique, não subimos a colina. Aqui é a parte do rio onde costumamos nadar, mas nem sempre é muito seguro, e as pedras magoam-nos os pés. Mas a mãezinha disse que podemos ter uma piscina, ela disse que quando regressarmos a Kirkton podemos ter uma piscina, tal como a tia Alice Lingard...

 

4 Trocadilho intraduzível: a palavra inglesa para tio é uncle. O resultado seria ”uncle Muncle”. (N. do T)

 

- E este é o carro do paizinho, um grande Jaguar. É um... Nicholas ficou sem voz. - Era um grande Jaguar. - Conseguiu acabar a frase. - Verde.

 

- Aqui está o vosso cacau - anunciou Virginia.

 

- Oh, mãezinha, estávamos a mostrar ao Eustace todas as fotografias de Kirkton...

 

- Sim, eu ouvi.

 

- Foi muito agradável - disse Eustace. - Agora sei tudo sobre a Escócia.

 

Levantou-se, como para sair da frente de Virginia, e colocou o álbum de fotografias em cima da cómoda. As crianças subiram para as suas camas.

 

- Tem de voltar para nos visitar. Tem de voltar e ficar cá uns dias. Não tem, mãezinha? Pode dormir no quarto que está livre, não pode?

 

- Talvez - respondeu Virginia. - Mas o Eustace é um homem muito ocupado.

 

- É isso - concordou Eustace. - Ocupado. Tenho sempre muito que fazer. Bem... -Avançou para a porta. - Despeço-me: boa-noite.

 

- Oh, boa-noite, Eustace. E obrigado por nos ter levado àquele belo sítio.

 

- Não sonhem com o Jack Carley.

 

- Mesmo se sonhar não vou ter medo.

 

- Assim é que é. Boa-noite, Nicholas.

 

- Boa-noite. Até amanhã.

 

- Não vás ainda - disse-lhe Virginia. - Eu desço já.

 

O cacau foi bebido com alguma lentidão, entre bocejos. Os olhos das crianças estavam cada vez mais pesados. Finalmente deitaram -se e Virginia deu-lhes um beijo de boas-noites. Mas quando beijou Nicholas, ele fez algo de surpreendente. Sendo um miúdo pouco afectuoso, colocou os seus braços em torno do pescoço da mãe, encostando o rosto dela ao seu.

 

- O que é? - perguntou ela com carinho.

 

- Era um sítio muito bonito, não era?

 

- Estás a referir-te à praiazinha?

 

- Não. À casa onde o Eustace mora.

 

- Penfolda.

 

- Vamos lá outra vez?

 

- Com certeza.

 

- Adorei aquele gatinho.

 

- Eu sei.

 

- O Eustace está lá em baixo. -Sim.

 

- Vou ouvir-vos falar. - A voz dele encheu-se de satisfação. Vou ouvir-vos falar, falar, falar.

 

- Vais sentir-te melhor assim?

 

- Acho que sim - respondeu Nicholas.

 

Eles estavam quase a dormir, mas Virginia ficou mais algum tempo no quarto, de um lado para o outro, apanhando as roupas espalhadas, dobrando-as e colocando-as, tão direitas como a ama, em duas cadeiras pouco firmes. Depois disso, fechou um pouco a janela, porque o ar estava a arrefecer, e puxou as minúsculas cortinas. O quarto, visto à ténue luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira, aparentava aconchego, segurança. Estava cheio de sombras e o único som que se ouvia era o tiquetaque do relógio de Cara e a respiração de ambos.

 

Nesse momento, Virginia sentiu-se invadida de amor. Pelos seus filhos; por aquela estranha casinha; pelo homem que esperava por ela lá em baixo. E apercebeu-se também de uma maravilhosa sensação de perfeição, de rectidão. ”Será a primeira vez”, pensou ela, ”que eu e o Eustace estamos sozinhos, com todo o tempo do mundo. Só nós os dois.” Ela iria acender a lareira, correria as cortinas e faria uma caneca de café para ele. Se o desejassem, podiam falar toda a noite. Podiam estar juntos.

 

Cara e Nicholas já dormiam. Ela apagou a luz e desceu as escadas rumo à escuridão inesperada e surpreendente. Durante um breve momento pensou que Eustace tinha mudado de ideias e partido, mas depois viu-o junto à janela, a fumar, contemplando o fim do pôr do Sol. Um pouco desta luz iluminava o seu rosto, mas ao ouvir passos ele voltou-se e Virginia não conseguiu ver a expressão do seu rosto, apenas sombras.

 

- Pensei que já te tinhas ido embora - disse ela.

 

- Não, ainda aqui estou.

 

A escuridão perturbava-a. Acendeu o candeeiro que se encontrava em cima da mesa. Entre eles jorrou uma luz amarela. Ela esperou que ele falasse, mas ao ver que não dizia nada, limitando-se apenas a ficar ali parado, a fumar, Virginia começou a encher o silêncio de palavras.

 

- Eu... Eu não pensei ainda no jantar. Queres comer alguma coisa? Nem sei que horas são.

 

- Eu estou bem.

 

- Podia fazer-te um café...

 

- Não tens uma lata de cerveja?

 

- Não, Eustace. Lamento. Não costumo comprar. Nunca bebo.

 

- Aquilo soava a puritanismo, como se ela não aprovasse a cerveja.

 

- Quero dizer, não gosto do sabor. - Sorriu, tentando fazer daquilo uma piada.

 

- Não faz mal.

 

O sorriso desapareceu. Virginia engoliu em seco.

 

- Tens a certeza de que não queres um café?

 

- Não, obrigado. - Olhou em redor à procura de um cinzeiro. Ela encontrou um pires e colocou-o em cima da mesa e Eustace apagou a beata como se tivesse algo contra ela.

 

- Tenho de me ir embora. -Mas...

 

Ele virou-se para ela, à espera do resto da frase. Ela perdeu a coragem.

 

- Sim, foi um dia muito agradável. Foi muito amável da tua parte teres estado hoje connosco e nos teres mostrado a enseada e... o resto. - A sua voz era aguda e formal como se estivesse a abrir um leilão. - Os miúdos adoraram.

 

- São uns miúdos simpáticos.

 

- Sim. Eu...

 

- Quando é que regressas à Escócia?

 

A pergunta abrupta e a voz gelada chocaram-na. Sentiu frio de repente, e percorreu-a um arrepio de apreensão.

 

- Eu... ainda não sei. - Agarrou-se às costas de uma das cadeiras de madeira, apoiando-se nela. Eustace estava à espera que ela se fosse embora, queria mesmo que ela partisse. - Em breve, é claro. Afinal de contas, é a minha casa. A casa dos miúdos - ouviu-se ela dizer, num tom bastante ligeiro.

 

- Só hoje é que me apercebi de que era uma propriedade bastante considerável...

 

- Oh, queres dizer, as fotografias da Cara...

 

- Mas deves ter muita gente a ajudar-te a geri-la.

 

- Eu não mando nela, Eustace.

 

- Mas devias. Aprende umas coisas de agricultura. Vais ver que ficas admirada com o que há. Devias pedir um empréstimo, começar algo de novo. Criares uma manada de vacas. O teu marido alguma vez pensou numa coisa dessas? No mercado de Perth consegue-se vender uma vaca por bom dinheiro.

 

Aquela conversa parecia um pesadelo, louca e sem qualquer objectivo.

 

- Ah sim? - disse ela, mas tinha a boca seca e as palavras mal se ouviram.

 

- Com certeza. E, quem sabe, um dia podes ter construído algo de grande para deixares ao teu filho.

 

-Sim.

 

- Tenho de me ir embora - disse ele de novo. Esboçou um ligeiro sorriso. - Foi um dia agradável.

 

Mas Virginia lembrou-se de um ainda melhor, o dia que passara com Eustace, aquela tarde de Primavera cheia de sol e vento em que ele lhe comprara o gelado e finalmente a levara a casa. E prometera telefonar-lhe, e depois esquecera-se, ou talvez tivesse mudado de ideias. Virginia apercebeu-se de que esperara toda a tarde que ele lhe contasse o que na verdade acontecera. Contara que ele falasse no assunto, talvez como uma história que as crianças pudessem partilhar, ou que devesse ser lembrada com uma ponta de nostalgia inofensiva ao longo dos anos por dois velhos amigos. Mas ele não dissera nada. E agora ela nunca iria saber.

 

- Sim. - Virginia largou a cadeira e endireitou-se, envolvendo-se com os braços como se pretendesse ficar quente. - Um dia especial. Daqueles que nunca se esquecem.

 

Ele avançou na direcção dela, contornando a mesa, e Virginia virou-se, indo abrir a porta. O ar fresco, com um odor doce e húmido, inundou-a, proveniente de uma noite estrelada com um céu de safira. Na escuridão, um maçarico lançou o seu longo lamento.

 

Ele encontrava-se ao seu lado.

 

- Boa-noite, Virginia.

 

- Boa-noite, Eustace.

 

E já ia a descer os degraus, afastando-se dela, passando o muro e atravessando os campos na direcção do velho pátio onde deixara o jipe. O crepúsculo engoliu-o. Ela fechou a porta e foi até à cozinha lavar as canecas dos filhos, lenta e cuidadosamente. Ouviu o Land Rover roncar ao passar pelo portão, subir o caminho na direcção da estrada principal, ouviu o som do motor a afastar-se na noite calma, sem nunca desviar o olhar daquilo que estava a fazer. Quando as canecas já estavam secas, o pano dobrado e não havia mais nada para fazer, Virginia apercebeu-se de que estava exausta. Apagou as luzes, subiu lentamente as escadas e deitou-se. O seu corpo jazia inerte, mas o interior da sua cabeça comportava-se como se ela tivesse andado uma semana a viver de cafeína.

 

”Ele não te ama.

 

Nunca pensei que me amasse.

 

Mas começavas a pensar que talvez ele te amasse. Depois do que se passou hoje.

 

Estava iludida. Não há futuro possível entre nós. Ele deixou isso bastante explícito.

 

O que é que pensavas que ia acontecer?

 

Pensei que ele fosse falar do que aconteceu há dez anos.

 

Não aconteceu nada. Porque haveria ele de se lembrar?

 

Porque eu me lembrei. Porque o Eustace foi a pessoa mais importante, a coisa mais importante que alguma vez me aconteceu.

 

Não te lembraste. Casaste com o Anthony Keile.”

 

Casaram em Londres, em Julho; Virginia com um vestido bege de cetim com uma cauda de dois metros e um véu que pertencera à avó de Lady Keile, e Anthony num fraque cinzento. Saíram da Igreja de St. Michael, em Chester Square, com os sinos a repicar e um pequeno séquito de damas de honor cheias de fitas que provocavam ”ohs” e ”ahs” de admiração de um grupo de mulheres curiosas que se tinham apercebido de que ali havia um casamento, e haviam ficado à espera para ver o que dali iria sair.

 

A excitação, o champanhe, os prazeres de ser adorada, felicitada e beijada mantiveram Virginia num bom estado de espírito até ser altura de subir as escadas e mudar de roupa. A mãe estava lá, laboriosa, eficiente, para correr o fecho do vestido, desprender a tiara emprestada e o véu fino.

 

- Oh, minha querida, correu tudo tão bem, e tu estavas encantadora, embora talvez eu não devesse dizer uma coisa tão presunçosa acerca da minha própria filha... Meu anjo, estás a tremer, será que tens frio?

 

- Não. Não tenho frio.

 

- Então calça outros sapatos, que eu te ajudo a vestir.

 

O vestido era cor-de-rosa, com um minúsculo chapéu cheio de pétalas a condizer, um conjunto encantador mas inútil que ela nunca mais tornaria a vestir. Imaginou-se a regressar da lua-de-mel, ainda a usar a seda e as pétalas cor-de-rosa, já um pouco murchas, a ficarem castanhas nas pontas. (Mas é claro que elas não podiam ficar castanhas, porque não eram a sério, eram pétalas a fingir...)

 

- E a tua mala está no porta-bagagens do carro do Anthony. É uma boa ideia irem de táxi até ao apartamento e só lá pegarem no carro, assim livram-se daquelas brincadeiras idiotas das latas e das pinturas.

 

No lado de fora do quarto ouviu-se um ruído forte, um som de pés. A voz de Anthony elevou-se, cómica, parecendo uma trombeta de caça.

 

- Aí está! Parece que ele já está pronto. - Beijou Virginia, apressada. - Diverte-te, minha querida.

 

A porta escancarou-se e Anthony apareceu, com o fato que escolhera para levar e um grande chapéu na cabeça. Estava consideravelmente bêbado.

 

- Aqui está ela! Vamos para o Sul da França, meu amor, é por isso que trago este chapéu.

 

Mrs. Parsons, rindo-se com indulgência, tirou-o, ajeitando-lhe o cabelo com os seus dedos compridos e endireitando-lhe a gravata. Podia ser ela a noiva, não Virginia, que ficou especada a observar aquela pequena cerimónia com um rosto inexpressivo. Anthony estendeu-lhe a mão.

 

- Anda - disse ele. - São horas de partirmos.

 

O táxi, cheio de confetes, levou-os de regresso ao apartamento dos Parsons, onde o carro de Anthony os aguardava. O plano era eles meterem-se logo dentro dele e arrancarem para o aeroporto, mas Virginia trazia a chave de casa e, em vez disso, entraram, foram até à cozinha, ela colocou um avental sobre o vestido cor-de-rosa e Anthony sentou-se à mesa, observando-a enquanto ela lhe fazia um café.

 

Para a lua-de-mel haviam alugado uma vivenda em Antibes. No segundo dia, Anthony encontrara um velho amigo; no fim da primeira semana, já conhecia toda a gente. Virginia disse a si mesma que era daquilo que estava à espera, que era aquilo que queria. Os instintos gregários de Anthony faziam parte do seu encanto, e foram uma das coisas que a haviam atraído logo nele. Para além disso, depois do primeiro dia, tornou-se evidente que seria difícil arranjarem coisas para dizer um ao outro. As conversas à mesa eram pouco fluentes. Só nessa altura Virginia se apercebeu de que nunca haviam estado sozinhos antes.

 

Havia outro casal, a Janey e o Hugh Rouse; ele era escritor e haviam alugado uma casa em Cap Ferrat. Janey era mais velha do que Virginia e esta gostava bastante dela, pois era uma pessoa com quem era fácil conversar. Certo dia, estando ambas no terraço da casa dos Rouse, à espera que os homens regressassem da praia, Janey perguntara:

 

- Há quanto tempo conheces o Anthony?

 

- Não há muito. Conheci-o em Maio.

 

- Amor à primeira vista, hem?

 

- Não sei. Acho que sim.

 

- Que idade tens?

 

- Dezoito.

 

- Isso é muito cedo para assentar. Não estou a ver o Anthony a assentar antes de passados uns bons anos.

 

- Mas vai ter de o fazer - disse Virginia. - Sabe, vamos viver na Escócia. Deixaram uma propriedade ao Anthony, Kirkton... era de um tio solteirão. E nós vamos viver para lá.

 

- Queres dizer que achas que o Anthony irá passar o tempo a andar de um lado para o outro num fato de tweed com lama nas botas?

 

- Não exactamente. Mas não acho que viver na Escócia seja o mesmo do que viver em Londres.

 

- Não é - disse Janey, que já lá estivera. - Mas não esperes uma vida muito simples, senão ficas desiludida.

 

Contudo, Virginia esperava uma vida simples. Nunca vira Kirkton, aliás, nunca fora à Escócia, mas já uma vez passara as férias da Páscoa com uma amiga que vivia em Northumberland e imaginava que a Escócia fosse assim, e que Kirkton fosse uma casa de pedra com tectos baixos, coberta de trepadeiras, com chão de lajes e tapetes turcos usados e uma sala de estar com uma grande lareira e quadros de caça nas paredes.

 

Em vez disso viu-se confrontada com uma casa alta, quadrada, elegantemente proporcionada, com janelas de guilhotina onde o sol se reflectia, e um lanço de escadas de pedra que conduzia desde o solo até à porta principal.

 

Para lá do cascalho havia relva, depois um valado e em seguida um parque, com faias gigantescas, inclinando-se suavemente até à curva prateada do rio.

 

Fascinada, silenciosa, Virginia seguira Anthony pelos degraus e através da porta. A casa era antiquada e estava vazia. Tinham de a mobilar. Para Virginia essa parecia ser uma tarefa assustadora, mas, quando o disse a Anthony, este arranjou uma solução rápida.

 

- Mandamos o Philip Sayer fazer tudo, ele é o decorador de interiores que a minha mãe arranjou para tratar da nossa casa em Londres. Senão, cometemos uns erros horrorosos e a casa fica uma desgraça.

 

Em segredo, Virginia achava preferíveis os seus próprios erros horrorosos ao gosto impecável de outra pessoa - o resultado era mais caseiro, mais acolhedor; mas não disse nada.

 

- Aqui é a sala, e além a biblioteca e a sala de jantar, e lá em baixo é a cozinha.

 

A sala fazia eco, os prismas dos candelabros de cristal brilhavam, pendentes do tecto ornamentado. Havia painéis e cornijas maravilhosas sobre as janelas altas.

 

Subiram ao primeiro andar por uma escadaria em curva, larga e elegante, os seus passos ecoando no chão polido e na casa vazia. Lá em cima estavam os quartos, cada um com a sua casa de banho, quartos de vestir, os aposentos da criada, até mesmo um boudoir.

 

- Para que quero eu um boudoirl - quis saber Virginia.

 

- Podes ir para lá fazer birra. Oh, vá lá, não faças essa cara... Imagina que te estás a divertir.

 

- É que a casa é tão grande...

 

- Até parece que estás a falar do Palácio de Buckingham.

 

- Nunca estive numa casa tão grande. E muito menos pensei

 

que viveria numa assim.

 

- Pois bem, mas vais viver, por isso é melhor que te habitues a ela.

 

Mais tarde foram lá para fora, ficando junto do carro. Observaram a parte da frente mais elevada, com janelas a espaços regulares. Virginia enfiou as mãos bem no fundo dos bolsos.

 

- Onde é que fica o jardim?

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Estou a referir-me aos canteiros e a essas coisas. A um jardim. Mas o jardim ficava distanciado setecentos metros, cercado

 

por um muro. Foram de carro até lá, entraram e encontraram um jardineiro e filas de árvores de frutos e legumes enfileirados, como soldados, à espera de serem apanhados.

 

- O jardim é aqui - disse Anthony.

 

- Oh! - exclamou Virginia.

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Nada. Apenas ”oh!”.

 

O decorador de interiores chegou. Seguiram-se-lhe carrinhas e camiões, pedreiros, estucadores, pintores, homens com alcatifas, homens com cortinas, homens em carrinhas que traziam enormes quantidades de móveis que parecia não ir ter fim.

 

Virginia não mexeu uma palha. ”Sim”, respondia ela, concordando com a tonalidade do veludo sugerida por Philip Sayer. Ou ”sim” quando ele se referia a armações de bronze vitorianas para a cama do quarto dos hóspedes ou a colchas grossas de croché.

 

- O estilo rural vitoriano é muito elegante, minha querida.

 

A única vez que levantara objecções fora acerca da cozinha. Queria que fosse igual àquela de que ela se lembrava, a magnífica cozinha de Penfolda, com o seu ar de estabilidade, a sugestão de que havia algo de bom a ser cozinhado, o gato na cadeira e os gerânios no parapeito da janela.

 

- A cozinha de uma quinta. É isso que eu quero. A cozinha de uma quinta é como uma sala de estar.

 

- Bem, eu não vou para a cozinha, digo-te já.

 

E ela deixara que Anthony levasse a sua avante, porque, afinal de contas, era o dinheiro dele que pagava os lava-louças de aço inoxidável, o chão preto e branco e o fogão que se limpava sozinho, com o grelhador ao nível dos olhos e um espeto para assar frangos.

 

As obras acabaram e Virginia ficou grávida.

 

- Que bom para a ama! - exclamou Lady Keile.

 

- Porquê?

 

- Bem, querida, ela está em Londres, a fazer um trabalho temporário, mas está ansiosa por um novo bebé. É claro que não estará muito disposta a sair de Londres, mas está determinada a fazer amigos, sabes bem como ela é, trava logo amizades. E o último andar da casa está destinado a ser ocupado pelos aposentos das crianças. Pode ver-se isso pelo portão no cimo das escadas e as barras nas janelas. É muito soalheiro. Que tal o azul-pálido? Para as alcatifas, quero eu dizer, e cortinas de chintz...

 

Virginia tentou impor-se. Dizer ”Não, eu vou tomar conta do meu filho”. Mas teve uma gravidez tão difícil, esteve tão fraca e doente, que quando voltou a sentir-se de novo forte, para se poder de novo levantar e tratar de tudo, os aposentos das crianças já haviam sido decorados e a ama estabelecera-se lá, rígida, inamovível.

 

”Deixo-a ficar. Só até o bebé nascer e me conseguir ter nas pernas. Pode ficar um mês ou dois, e em seguida digo-lhe que pode voltar para Londres, porque quero ser eu a cuidar do meu bebé.”

 

Mas nessa altura, surgiram outras complicações. A mãe de Virginia, em Londres, adoeceu, queixando-se de dores e de cansaço; julgou estar a perder peso. Virginia foi imediatamente até ao Sul, para a ver, e depois disso dividiu-se entre a filha, na Escócia, e a mãe, em Londres. Viajando para baixo e para cima, de comboio, apercebeu-se de que seria uma loucura mandar a ama embora até Mrs. Parsons recuperar. Mas é claro que ela não recuperou, e quando o pesadelo chegou ao fim já Nicholas tinha nascido e, com duas crianças para se ocupar, a ama estava lá de pedra e cal.

 

Em Kirkton, num raio de dezasseis quilómetros, estavam rodeados por um grande número de vizinhos alegres. Jovens casais com tempo e dinheiro, alguns com filhos como os próprios Keile, todos com interesses semelhantes aos de Anthony.

 

Para salvar as aparências, ele passou a ocupar-se algum tempo com a quinta, falando com McGregor, o feitor, descobrindo o que ele achava que devia ser feito, e depois mandando-o fazer isso. Tinha o resto do dia para si, e preenchia-o ao máximo, fazendo exactamente o que queria. A Escócia é um país destinado aos prazeres dos ricos, e havia sempre alguma caçada, galos-silvestres no Verão, perdizes e faisões no Outono e no Inverno. Havia rios onde se podia pescar, campos de golfe e uma vida social ainda mais alegre do que aquela que ele deixara em Londres.

 

Virginia não pescava nem jogava golfe e Anthony nunca a iria convidar para se lhe juntar, mesmo que ela o quisesse. Ele preferia a companhia dos seus amigos e ela só devia estar presente quando o convite tivesse sido endereçado ao casal. Num jantar ou num baile, ou talvez num almoço antes de uma corrida de cavalos entre duas localidades, depois de ter passado horrores a decidir o que havia de vestir, Virginia aparecia inevitavelmente com o que estivera na moda no ano anterior.

 

Ainda era tímida. E não bebia, pelo que não tinha nenhuma maneira artificial de ultrapassar esse terrível defeito. Os homens, os amigos de Anthony, consideravam-na uma chata. E as mulheres deles, embora amáveis e simpáticas, apavoravam-na com as suas piadas particulares e as suas referências incompreensíveis a lugares e pessoas e acontecimentos apenas do seu conhecimento. Pareciam um grupo de raparigas que frequentaram a mesma escola.

 

Uma vez, ao regressarem a casa depois de um jantar, eles discutiram. Virginia não o tencionava fazer, mas sentia-se cansada e infeliz e Anthony bebera de mais. Ele parecia sempre beber demasiado nas festas, como se fosse um gesto que todos esperavam dele. Nessa noite estava agressivo e de mau humor.

 

- Então, divertiste-te?

 

- Nem por isso.

 

- Pelo menos tinhas cara de quem não se estava a divertir nada.

 

- Sentia-me cansada.

 

- Estás sempre cansada. No entanto, nunca pareces fazer nada.

 

- Talvez seja por isso que estou cansada.

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Oh, nada.

 

- Tem de ser alguma coisa.

 

- Está bem, sinto-me aborrecida e sozinha.

 

- A culpa não é minha.

 

- Ai não? Nunca estás em casa... Às vezes estás fora o dia inteiro. Almoças no clube, em Relkirk... Nunca te vejo.

 

- Está bem. Eu e mais uma centena de tipos. O que achas que as mulheres deles fazem? Sentam-se e não fazem nada?

 

- Já me interroguei várias vezes acerca disso. Conta-me lá.

 

- Bem, andam por aí. Visitam-se umas às outras, levam os filhos ao Pónei Clube, jogam brídege; fazem jardinagem, acho eu.

 

- Eu não sei jogar brídege - começou Virginia -, as crianças não querem montar póneis, e eu gostaria de fazer jardinagem. Só que em Kirkton não há um jardim, apenas uma prisão para as flores e um jardineiro que nem sequer me deixa cortar um ramo de gladíolos sem lhe pedir primeiro autorização.

 

- Oh, por amor de Deus...

 

- Eu observo as outras pessoas. Os casais normais, aos sábados, em Relkirk. Vão juntos às compras à chuva ou ao sol, e levam os filhos com eles, a chuparem gelados, e colocam todos os embrulhos em carrinhos pequenos, e vão para casa, e têm um ar feliz, todos juntos.

 

- Que horror. Não podes querer isso para ti.

 

- Não quero estar sozinha.

 

- A solidão é um estado de espírito. Só tu é que podes fazer alguma coisa acerca disso.

 

- Nunca te sentiste sozinho, Anthony?

 

- Não.

 

- Então não te casaste comigo para teres companhia. E não casaste comigo por causa da minha brilhante conversa.

 

- Não. - Anuindo friamente, o seu perfil era de pedra.

 

- Então porquê?

 

- Eras bonita. Tinhas um certo encanto de corça. Eras encantadora. A minha mãe achava-te encantadora, achava a tua mãe encantadora. Achou tudo encantador.

 

- Mas não te casaste comigo porque a tua mãe mandou.

 

- Não, mas vês, eu tinha de casar com alguém, e tu apareceste numa altura extremamente oportuna.

 

- Não percebo.

 

Ele não respondeu. Conduziu em silêncio durante algum tempo, talvez impedido de lhe contar a verdade por alguns resquícios de decência. Mas já que chegara tão longe, Virginia cometeu o erro de o pressionar.

 

-Anthony, não percebo. - E ele perdeu a paciência e contou-lhe.

 

- Porque herdei Kirkton com a condição de me casar quando fosse para lá viver. O tio Arthur pensou que eu nunca mais iria assentar, que dava cabo do sítio se lá vivesse solteiro... não sei o que ele pensava, mas estava decidido a fazer-me casar para me deixar viver em Kirkton.

 

- Então foi por isso! Anthony franziu o sobrolho.

 

- Ficaste ofendida?

 

- Acho que não. Deveria estar?

 

Ele procurou a mão dela com a sua... o carro derrapou um pouco enquanto cruzava os dedos nos dela.

 

- Não faz mal. O nosso casamento pode não ser melhor, mas também não é pior do que muitos outros casamentos. Às vezes é bom sermos francos e honestos um com o outro. É melhor saber em que pé estão as coisas.

 

- Já alguma vez te arrependeste? - perguntou ela. - De ter casado comigo, quero eu dizer.

 

- Não, nunca me arrependi. Só tenho pena de que tudo tenha acontecido quando éramos ainda tão novos.

 

Um dia ela deu por si sozinha em casa. Completamente só. Era sábado, da parte da tarde. Mr. McGregor, o feitor, fora a Relkirk, tendo levado consigo a mulher. Anthony estava a jogar golfe e a ama, juntamente com as crianças, haviam ido dar um passeio. A casa estava vazia e nada para fazer. Sem roupa para lavar, sem bolos para fazer, sem roupa para passar, sem um jardim para cuidar. Virginia caminhou por ela, indo de aposento em aposento, como se fosse uma estranha que tivesse pago para uma visita guiada. Os seus passos ecoavam na escadaria polida, ouvia-se o tiquetaque do relógio e por todo o lado reinava a ordem, a arrumação. Era aquilo de que Anthony gostava. Fora aquilo que ele criara. Fora por isso que casara com ela. Virginia acabou a visita no vestíbulo, abriu a porta da frente e desceu os degraus até ao cascalho, pensando talvez em poder observar a ama e as crianças à distância; iria ter com eles, correria e tomaria Cara nos braços, abraçá-la-ia, apertando-a, como se para provar que ela realmente existia, que não era um bebé de sonhos que Virginia imaginara, qual solteirona frustrada.

 

Mas não havia sinal da ama e, passado algum tempo, tornou a subir os degraus e a entrar em casa, porque não havia mais sítios onde ir.

 

Havia uma rapariga muito bonita chamada Liz, casada com um jovem advogado que trabalhava em Edimburgo. Viviam apenas a uns dois quilómetros de Kirkton, num antigo presbitério convertido, com um jardim selvagem cheio de narcisos na Primavera e um cercado para os póneis.

 

Ela tinha filhos, cães, um gato e um papagaio numa gaiola, mas - talvez por sentir saudades do marido, que estava toda a semana em Edimburgo, ou talvez porque fosse uma rapariga que gostava de pessoas - tinha sempre a casa cheia. As mães das outras crianças passeavam por ali nos póneis, enchiam a sala de jantar à hora do lanche, faziam jogos na relva. Se não tinha famílias inteiras a viver com ela, tinha famílias inteiras a passarem lá o dia. Alimentava-as com enormes quantidades de carne e tartes de rim, maravilhosos pudins e gelado caseiro. O seu bar, que devia sofrer grandes desfalques provocados pelas hordas que passavam pela sua porta hospitaleira, estava sempre aberto, sempre à mão para qualquer convidado que necessitasse de uma bebidazinha.

 

- Serve-te - dizia ela através da porta aberta, enquanto preparava uma refeição de três pratos para dez visitantes inesperados. Há gelo no frigorífico se o balde estiver vazio.

 

Anthony adorava-a, como seria de esperar. Namoriscava com ela abertamente. Havia grandes cenas de ciúmes quando chegavam os fms-de-semana e o marido estava em casa.

 

- Expulsa aquele homem horrível cá de casa - dizia ele a Liz, e ela ria-se deliciada, tal como fazia quem o estivesse a ouvir.

 

Virginia sorria, e por sobre as cabeças deles trocava um olhar com o marido de Liz. Era um jovem muito calmo, e, embora se encontrasse ali, de copo na mão, a sorrir, era praticamente impossível adivinhar o que ele estaria a pensar.

 

- Tens de ter cuidado com o teu marido - dizia uma das outras mulheres a Virginia.

 

- Há anos que tenho - limitava-se ela a responder, e mudava de assunto ou virava-se para falar com outra pessoa.

 

Uma certa terça-feira, Anthony ligou do clube em Relkirk.

 

- Virginia, olha, estou embrulhado num jogo de póquer, e não faço ideia de quando irei para casa. Mas não fiques à minha espera. Eu como qualquer coisa por aqui. Até logo.

 

- Está bem. Não percas muito dinheiro.

 

- Vou ganhar e depois compro-te um casaco de vison.

 

- É mesmo disso que eu preciso.

 

Ele chegou a casa depois da meia-noite, tropeçando nos degraus. Virginia ouviu-o mexer-se no quarto de vestir, ouviu-o deixar cair coisas, a abrir e fechar gavetas, a praguejar com algum botão de punho.

 

Passado algum tempo, ouviu-o deitar-se e a luz apagou-se, ficando só a escuridão. E Virginia perguntou-se se ele teria decidido ficar a dormir no quarto de vestir por consideração a si, ou se haveria outra razão mais sinistra.

 

Em breve ficou a saber. A sociedade que frequentavam, o pequeno grupo, era demasiado restrita para que houvesse segredos.

 

- Virginia, minha querida, eu bem te disse para teres cuidado com o teu marido.

 

- O que fez ele agora?

 

- És fantástica, nunca te irritas. Com certeza estás a par de tudo.

 

- De tudo o quê?

 

- Minha querida, do jantar íntimo que ele teve com a Liz...

 

- Oh..., sim, é claro. Na passada terça-feira.

 

- Ele é muito manhoso. Deve ter pensado que nenhum de nós iria descobrir. Mas a Midge e o Johnny Gray decidiram de repente ir jantar ao Strathtorrie Arms, sabes, que mudou de gerência, e é muito escuro e elegante e pode comer-se uma excelente refeição. Bom, eles lá foram e é claro que viram o Anthony e a Liz, todos enroscados a um canto. E tu sempre soubeste!

 

-Sim.

 

- E não te importas? -Não.

 

Isso era o mais terrível. Ela não se importava. Estava apática, aborrecida com Anthony, e o encanto colegial que ele possuía já há muito que havia desaparecido, pelo menos para Virginia. Já acontecera antes e iria sem dúvida tornar a acontecer, mas mesmo assim era assustador olhar para o futuro e ver-se amarrada àquele Peter Pan entediante. Era um homem com tão pouco discernimento que se envolvia de ânimo leve numa relação clandestina, e no entanto fazia as coisas mesmo nas barbas de toda a gente.

Ela pensou no divórcio, mas sabia que nunca iria divorciar-se de Anthony, não apenas por causa das crianças, mas por ser a Virginia, e não podia meter-se voluntariamente em tal empreendimento, tal como não podia ir até à Lua.

 

Não era feliz, mas de que serviria publicitar a sua tristeza, a sua desilusão ao resto do mundo? Anthony não a amava, nunca a amara. Mas ela também nunca o amara. Se ele casara com Virginia para deitar as mãos a Kirkton, então ela casara com Anthony por não haver alternativa, num estado emocional de grande tristeza, numa tentativa desesperada de escapar à temporada londrina que a mãe tinha planeado para si, culminando no último grande pesadelo do baile de debutantes.

 

Ela não era feliz, mas, apesar de tudo, tinha o que queria. Uma bela casa, um marido bonito e os filhos. Estes valiam tudo. Por eles ela aguentaria o casamento em ruínas e criaria para eles um mundo de segurança que nunca iriam voltar a ver.

 

Anthony estivera com Liz na noite em que morreu. Tinha aparecido no velho presbitério para beber um copo no caminho de regresso a casa e fora convidado para jantar.

 

Telefonou a Virginia.

 

-A Liz tem cá os Cannon. Quer que eu coma cá para jogarmos brídege os quatro. Não sei a que horas volto. Escusas de ficar à minha espera.

 

O armário de Liz com a garrafa de uísque estava aberto, como sempre. E como sempre, Anthony servira-se generosamente. Só às duas da manhã é que saiu de casa de Liz, numa noite escura e chuvosa. Já havia alguns dias que chovia e o rio ia cheio. Mais tarde a Polícia apareceu com a fita métrica e bocados de giz e medira as marcas da derrapagem, pendurou os restos do parapeito da ponte e contemplou as águas lamacentas em turbilhão. E Virginia ficou junto deles, no dilúvio, observando os mergulhadores, e houve um sargento simpático que lhe disse várias vezes para ir para casa, mas ela não foi, porque tinha de estar ali, porque ele havia sido o seu marido e o pai dos seus filhos.

 

E lembrou-se do que ele havia dito naquela noite em que lhe contara tudo. ”Só tenho pena de que tudo tenha acontecido quando éramos ainda tão novos.”

 

A noite calma passou lentamente, os segundos, os minutos, as horas, medidos pelo tiquetaque do relógio de pulso de Virginia, que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira. Ela pegou-lhe e viu que eram quase três horas da manhã. Levantou-se, enrolou-se na colcha e foi sentar-se no chão junto da janela aberta. A madrugada aproximava-se, mas tudo estava ainda escuro e silencioso. Podia ouvir, a cerca de um quilómetro, o movimento suave do mar, quase como um murmúrio. Ouvia os mugidos suaves das vacas, pastando dois ou três hectares mais adiante; ouvia o restolhar das sebes e o piar do mocho.

 

Descobriu que estava atormentada com a recordação de Liz. Esta fora ao funeral de Anthony com uma expressão de dor e culpa tão visível que todos se afastavam instintivamente dela, não querendo presenciar tamanho sofrimento. Pouco tempo depois, o marido levara-a a passar umas férias no Sul da França, e Virginia não voltara a vê-la.

 

Mas agora sabia que tinha de regressar à Escócia, e o mais depressa possível, nem que fosse só para deixar as coisas bem claras com Liz. Para a convencer a não se culpar de nada, para ficarem de novo amigas, tanto quanto fosse humanamente possível. Pensou em regressar a Kirkton, e desta vez a sua imaginação não começou a divagar, encarando a viagem com calma e sem temor. Saiu da estrada, desceu pela ponte até ao rio, passando pelo caminho dos prados verdejantes. Chegou à curva do rio em frente à casa e subiu os degraus, entrando pela porta da frente, e já não havia aquela sensação familiar de solidão, de clausura. Apenas uma tristeza relativamente às vidas daqueles que haviam habitado aquela bela casa por não terem adquirido uma coesão duradoura, desfiando-se como um tecido mal fiado, que finalmente se rasgou.

 

Iria vender a casa. Algures, há algum tempo, o seu subconsciente havia tomado aquela decisão e apresentava-a agora ao consciente como um facto consumado. Até que ponto estaria aquele fenómeno relacionado com Eustace, Virginia não sabia dizer. Mais tarde, sem dúvida, tudo se resolveria. De momento, o alívio era enorme, como se lhe tivessem tirado um enorme peso dos ombros, e ela sentiu-se grata, como se outra pessoa tivesse entrado em acção e houvesse tomado a decisão por ela.

 

Iria vender Kirkton. Compraria outra casa, mais pequena... Algures. Mais tarde tudo se resolveria. Iria construir um novo lar, faria novos amigos, teria um jardim, compraria um cachorrinho, um gatinho, um canário numa gaiola. Procuraria escolas para os filhos, encheria as férias com os prazeres que anteriormente fora demasiado acanhada para desfrutar. Aprenderia a esquiar; iriam fazer férias na neve todos juntos. Construiria papagaios e arranjaria bicicletas, deixaria Cara ler todos os livros que quisesse, e iria aos encontros desportivos de Nicholas com o chapéu adequado, e conseguiria coisas maravilhosas como ganhar a corrida do ovo e da colher.

 

E tudo aconteceria porque ela faria com que as coisas acontecessem. Já não havia mais Eustace, mais sonhos, mas outras coisas boas eram constantes. Tal como o orgulho, e a resolução, e os filhos. Os filhos. E ela sorriu, sabendo que, como a agulha de uma bússola, que aponta sempre para norte, apesar do que fizesse e de como se comportasse, ficaria sempre virada naquela direcção.

 

Começou a sentir frio. Estavam a surgir os primeiros clarões da madrugada. Levantou-se do chão, tomou um comprimido para dormir e um copo de água e foi até à cama. Quando voltou a abrir os olhos, a luz do Sol, que já ia alto no céu, brilhava directamente no seu rosto e do andar de baixo vinha um barulho terrível, umas pancadas na porta da frente e uma voz que chamava por ela.

 

- Virginia! Sou eu. A Alice! Acorda, ou será que vocês morreram todos?

 

Atordoada com o choque e com o sono, Virginia arrastou-se para fora da cama, cambaleou até à janela e abriu-a.

 

- Alice! Vê lá se paras com a barulheira. As crianças ainda estão a dormir.

 

Alice, atrapalhada, virou o rosto surpreso para o local de onde vinha a voz. Começou a murmurar.

 

- Estava a começar a pensar que vocês tinham morrido todos. Já passa das nove. Vem até cá abaixo e deixa-me entrar!

 

A bocejar, com uma grande preguiça, Virginia vestiu o roupão, calçou uns chinelos e desceu as escadas, fazendo uma pausa no caminho em frente à porta aberta do quarto dos filhos. Para sua surpresa, eles ainda estavam a dormir, não tendo sido perturbados pelos gritos de Alice. ”Devemos ter-nos deitado ontem muito tarde”, pensou ela. ”Muito mais tarde do que eu me apercebi.”

 

Destrancou a porta, para deixar entrar o sol e Alice. Esta trazia um vestido de linho azul e um lenço de seda na cabeça. Já estava bem acordada.

 

- Vocês costumam levantar-se a esta hora?

 

- Não, mas... - Virginia reprimiu um bocejo. - Ontem à noite tive dificuldade em adormecer. Tomei um comprimido que me deve ter deixado grogue.

 

- E os teus filhos?

 

- Não lhes dei comprimidos, mas ainda estão a dormir. Ontem à noite deitámo-nos tarde e estivemos todo o dia fora de casa. -

 

Bocejou de novo, obrigando-se a manter os olhos abertos. - Que tal um café?

 

Alice parecia divertida.

 

- Tu estás mesmo a precisar de um. Olha, eu faço-o, enquanto tu acabas de acordar e vestes qualquer coisa. Não serve de nada falar contigo quando estás nesse estado. - Pôs a mala em cima da mesa. -Afinal, a casa nem é má de todo, pois não? E aqui é a cozinha. É um bocadinho apertada, mas serve perfeitamente...

 

Virginia encheu a banheira, entrou nela e lavou a cabeça. Depois, foi até ao primeiro andar, enrolada numa toalha, tirou roupa lavada de uma gaveta e um vestido de algodão ainda por estrear do armário. Calçou umas sandálias, penteou-se, e, sentindo-se lavada e estranhamente esfomeada, voltou para junto de Alice.

 

Encontrou-a toda organizada, a chaleira ao lume, a cafeteira já com café, as canecas em cima da mesa.

 

- Oh, estás aí... está quase pronto... pensei que talvez fosse boa ideia bebermos um café como deve de ser; não aprecio nada água suja, e tu?

 

Virginia sentou-se na ponta da mesa.

 

- Quando é que regressaste de Londres?

 

- Ontem à noite.

 

- E que tal foi? Divertiste-te?

 

- Sim, mas não vim cá para falar de Londres.

 

- Nesse caso, o que te trouxe aqui numa segunda-feira de manhã, quase às dez horas?

 

- Curiosidade - respondeu Alice. - Mera curiosidade.

 

- Acerca de mim?

 

-Acerca de Eustace Philips!

 

- Não percebo - disse Virginia.

 

- Mistress Jilkes contou-me. Mal eu acabei de entrar em casa, ela desbobinou a história toda. Disse que o Eustace lhe tinha telefonado enquanto eu estive fora a perguntar se alguém ia preparar Bosithick para a tua chegada e a das crianças. Ela respondeu que eu estava em Londres, e que ele disse para não nos incomodarmos, que ele tratava de tudo.

 

- Sim, é verdade... Foi o que ele fez...

 

- Mas, Virginia... Falaste-me do Eustace, mas não me disseste que o tinhas encontrado.

 

- Não? - Virginia franziu o sobrolho. - Não disse, pois não?

 

- Mas quando é que estiveste com ele?

 

- No dia em que vim ver a casa. Lembras-te? Eu disse que não ia almoçar. Fui ao pub de Lanyon comprar tabaco e encontrei-o lá.

 

- Mas porque é que não me contaste nada? Havia alguma razão especial para não quereres que eu soubesse?

 

- Não. - Ela tentou lembrar-se. - Mas calculo que não me apetecesse falar dele. - Sorriu. - E também não foi um reencontro muito agradável. Aliás, tivemos uma grande discussão.

 

- Mas tencionavas encontrá-lo?

 

- Não. Foi por acaso.

 

- E ele lembrou-se de ti? Depois de tantos anos? Mas ele só te vira daquela vez no churrasco.

 

- Não - retorquiu Virginia. - Eu voltei a estar com ele.

 

- Quando?

 

- Uma semana depois do churrasco. Encontrei-o em Porthkerris. Passámos a tarde juntos e ele levou-me a Wheal House. Tu não o viste porque não estavas em casa. Mas a minha mãe estava lá. Soube do que se passara.

 

- Mas porque é que guardaram segredo?

 

- Não era segredo, Alice. A minha mãe é que não gostava do Eustace. Devo dizer que ele não se esforçou muito para a impressionar, foi até mal-educado e o Land Rover estava coberto de pedaços de palha, lama e estrume... Não era nada o género dela. Tratou o incidente como se fosse um episódio banal, mas eu sabia que ele a irritara e que ela não gostava dele.

 

- Mas podias ter-me falado dele. Afinal de contas, fui eu que to apresentei.

 

- Tentei-o. Mas de cada vez que começava, a minha mãe metia-se na conversa ou mudava de assunto ou interrompia-me de qualquer maneira. E... não te podes esquecer do seguinte, Alice, tu eras amiga dela, não minha. Eu era apenas a rapariguinha acabada de sair da creche. Nunca sequer imaginei que pudesses tomar o meu partido contra o dela.

 

- Era uma questão de tomar partido?

 

- Sim. Sabes bem como ela era snobe.

 

- Oh, sim, mas isso era inofensivo.

 

- Não, Alice, não era. Era até bastante perigoso. O snobismo afectava tudo o que ela fazia. Deformava-a.

 

- Virginia! - Alice ficou chocada.

 

- Foi por isso que voltámos à pressa para Londres. Ela adivinhou imediatamente que eu estava apaixonada pelo Eustace.

 

A água da chaleira começou a ferver. Alice encheu a cafeteira, e a cozinha encheu-se de um delicioso cheiro a café. Alice mexeu suavemente o seu.

 

- E estavas? - perguntou ela por fim. - Apaixonada pelo Eustace?

 

- Claro que estava. Quem é que não estaria, aos dezassete anos?

 

- Mas casaste com o Anthony Keile. -Sim.

 

- Amava-lo?

 

- Eu... casei com ele.

 

- Foste feliz?

 

- Fui solitária...

 

- Mas, Virginia, sempre pensei... Quero dizer, a tua mãe sempre disse... Eu pensei que tu eras bastante feliz - finalizou Alice, confusa.

 

- Não. Mas a culpa não era só do Anthony. Também era minha.

 

- Lady Keile sabia disso?

 

- Não. - Nem sabia as circunstâncias da morte do filho. Nem nada acerca da Liz. Nem nunca iria saber. - Porque haveria de saber? Às vezes passava uns dias connosco, mas nunca mais de uma semana de cada vez. Não era difícil dar-lhe a ilusão de um casamento idilicamente feliz. Era o mínimo que podíamos fazer por ela...

 

- Admira-me que a ama nunca lhe tenha dito nada.

 

- A ama nunca viu o que não queria. E para ela o Anthony era perfeito.

 

- Não deve ter sido fácil.

 

- Não, mas, tal como disse, a culpa não era só do Anthony.

 

- E o Eustace?

 

- Alice, eu tinha dezassete anos; era uma criança à espera de alguém que lhe comprasse um gelado.

 

- Mas agora já não...

 

- Não, agora sou uma mulher de vinte e sete anos e mãe de dois filhos. E já deixei de estar à espera de gelados.

 

- Isto é, ele já não tem mais nada para te dar.

 

- E não precisa de nada de mim. É auto-suficiente. Tem a sua própria vida. Tem Penfolda.

 

- Já falaste disso com ele?

 

-Oh, Alice...

 

- Pelos vistos não. Então como é que podes ter tanta certeza?

 

- Porque há muitos anos ele disse que me telefonava. Disse que queria que eu fosse a Penfolda lanchar, ou qualquer coisa no género, para ver a mãe dele outra vez. E eu ia pedir-te o carro emprestado para ir até lá. Mas ele nunca telefonou. Eu fiquei à espera, mas ele nunca telefonou. E antes de ter tido tempo de saber porquê, ou de fazer alguma coisa, a minha mãe já me tinha levado para Londres.

 

- E como é que sabes que ele nunca telefonou? - perguntou Alice, que começava a ficar impaciente.

 

- Porque sei.

 

- Talvez a tua mãe tenha atendido o telefonema.

 

- Eu perguntei-lhe. E ela disse que não.

 

- Mas, Virginia, ela era perfeitamente capaz de tomar nota do recado e não te dizer nada. Especialmente se não gostava dele. Com certeza já te apercebeste disso.

 

O tom da sua voz era enérgico e prático. Virginia olhou-a embasbacada, mal podendo acreditar nos seus ouvidos. A Alice a dizer uma coisa daquelas acerca da Rowena Parsons - a Alice, a melhor amiga da sua mãe. Ela, que aparecia com uma verdade obscura que Virginia nunca tivera a coragem de descobrir. Lembrou-se do rosto da mãe, a sorrir na carruagem do comboio, do seu protesto. ”Céus! Que acusação! É claro que não. Com certeza não pensaste...”

 

E Virginia acreditara nela.

 

- Pensei que ela estava a dizer a verdade. Não julguei que ela fosse capaz de mentir.

 

- Digamos que ela era uma pessoa determinada. E tu eras filha única. Ela sempre teve grandes planos para ti.

 

- Tu sabias. Sabias que ela era assim e continuavas a ser amiga dela.

 

- Os amigos não são pessoas de quem gostamos por uma razão especial. Gostamos das pessoas por serem nossas amigas.

 

- Mas se ela estava a mentir, então o Eustace deve ter pensado que eu não o queria voltar a ver. Durante todos estes anos tem pensado que eu o abandonei.

 

- Mas ele escreveu-te uma carta - disse Alice.

 

- Uma carta!

 

- Oh, Virginia, não sejas tão obtusa. Aquela carta que te era dirigida. Na véspera de ires para Londres. - Virginia continuava sem perceber. - Eu soube que veio uma carta, no correio da tarde, e estava em cima da mesa do vestíbulo. Até me lembro de ter pensado que ias gostar, pois não era hábito receberes muitas cartas. E depois saí para fazer qualquer coisa e quando voltei a carta tinha desaparecido. Calculei que a tivesses levado.

 

Uma carta. Virginia viu-a. Imaginou o sobrescrito branco, as letras negras, dirigido a ela. Miss Virginia Parsons. Ali abandonado, vulnerável em cima da mesa redonda que ainda estava no meio do vestíbulo de Wheal House. Viu a mãe vir da sala, talvez a caminho do andar de cima, fazer uma pausa para inspeccionar o correio. Vestia o fato de lã vermelho-amora e a blusa de seda branca, e, quando estendeu a mão para pegar na carta, as unhas estavam pintadas com o mesmo tom vermelho-amora, e a pesada pulseira de ouro retinia, fazendo lembrar sinos.

 

Via-a franzir o sobrolho ao ver a letra negra, nitidamente masculina, ao inspeccionar o carimbo, hesitar talvez durante um segundo e em seguida enfiar o sobrescrito no bolso do casaco, continuando o que estava a fazer, imperturbável, como se nada tivesse acontecido.

 

- Alice, eu nunca recebi nenhuma carta - afirmou Virginia.

 

- Mas ela estava lá!

 

- Não vês? A minha mãe deve tê-la levado. Rasgou-a. Era bem capaz disso. Diria: ”É tudo para o bem da Virginia. Para a felicidade da Virginia.”

 

As ilusões desapareceram para sempre, o véu rasgou-se. Podia olhar para o passado de forma calma, objectiva, e ver aquilo que a mãe fora na realidade, não apenas snobe e determinada, mas também traiçoeira. De certa forma, isso era um alívio. Fora necessário algum esforço para, ao longo dos anos, sustentar a lenda de uma mãe irrepreensível, embora Virginia só se tivesse estado a enganar a si própria. Recordada agora, ela parecia muito mais humana.

 

Alice parecia aborrecida, como se já estivesse arrependida de ter falado na carta.

 

- Talvez não fosse do Eustace. -Era.

 

- Mas como é que sabes?

 

- Porque se tivesse sido de outra pessoa ela ter-ma-ia dado, com uma desculpa qualquer por a ter aberto.

 

- Mas não sabemos o teor da carta. Virginia saltou da mesa.

 

- Pois não, mas eu vou descobrir. Agora mesmo. Ficas aqui até os miúdos acordarem? Dizes-lhes que eu não me demoro?

 

- Mas onde é que vais?

 

- Vou ter com o Eustace, naturalmente - gritou Virginia, já da porta.

 

- Mas ainda não bebeste o teu café. Fiz-te café e nem sequer o bebeste. E o que lhe vais dizer? Como é que te vais justificar?

 

Mas Virginia já partira. Alice estava a falar para uma cozinha vazia, para uma porta aberta. Exasperada, pousou a caneca e foi até à porta chamar por Virginia, mas esta já ia longe, a correr como uma criança pela erva alta, atravessando os campos na direcção de Penfolda.

 

Foi pelo carreiro porque teria demorado muito pegar no carro, virá-lo e ir até à estrada principal. E o tempo era demasiado precioso para ser perdido.

 

Virgínia corria numa manhã de cheiros adocicados, margaridas brancas e erva que batia nas suas pernas nuas. O mar estava escuro, azul-purpúreo, com uns riscos de turquesa, e o horizonte prometia calor. Ela corria, dando grandes passadas, saltando as valas dos campos de restolho pintalgados de papoilas vermelhas. O ar estava cheio de pétalas amarelas de tojo, sopradas em rebuliço, quais confetes, pelo vento do mar.

 

Chegou a um espaço de onde pôde ver Penfolda erguer-se à sua frente, com a casa, os grandes celeiros e o pequeno jardim, protegido do vento por muros. Ultrapassou o último troço que conduzia à horta e ao portão e viu a gata e as crias meio siamesas ao sol à entrada da porta. Chamou por Eustace e a casa pareceu-lhe muito escura depois da claridade do exterior.

 

- Quem é?

 

Era Mrs. Thomas, com um espanador, a espreitar pelo corrimão.

 

- Sou eu. A Virginia. Virginia Keile. Estou à procura do Eustace.

 

- Ele deve estar a vir da ordenha...

 

- Oh, obrigada.

 

Sem se preocupar com explicações, voltou a sair, e atravessou o pátio a correr, na direcção dos estábulos. Mas ele apareceu nesse instante, a passar pelo portão que dava para a parte mais distante do jardim. Estava em mangas de camisa, com um avental, botas de borracha, trazendo na mão um balde de alumínio com o leite. Virginia ficou estática. Ele fechou o portão, olhou para cima e viu-a.

 

Ela pretendera ser bastante razoável. Dizer, calmamente: ”Quero fazer-te umas perguntas acerca da carta que me escreveste.” Mas as coisas não aconteceram assim. Tudo foi dito naquele longo momento, enquanto se olhavam, e em seguida Eustace pousou o balde e avançou para ela, e ela percorreu a distância que a separava dos braços dele, rindo-se, o rosto enterrado na camisa dele.

 

- Está tudo bem, está tudo bem - dizia ele, como se ela estivesse a chorar e não a rir.

 

- Amo-te - disse Virginia, e começou em pranto.

 

- É claro que telefonei. Três ou quatro vezes. Mas tu nunca estavas em casa. Era sempre a tua mãe que atendia e eu sentia-me cada vez mais idiota quando ela dizia que te iria dar o recado e que tu me telefonarias. E eu pensei que talvez tivesses mudado de opinião. Pensei que talvez tivesses achado que tinhas coisas mais interessantes para fazer do que vir lanchar comigo e com a minha mãe. Pensei que talvez a tua mãe te tivesse dado a volta. Ela não gostou de mim desde a primeira vez que me viu. Mas tu sabias isso, não é verdade?

 

- Sim, sabia. E ficava a pensar. Uma vez quase te liguei. Pensei que talvez te tivesses esquecido... e depois perdi a coragem. E depois, de um momento para o outro, ela disse que tínhamos de regressar a Londres e já não tive tempo para nada. E no comboio perguntei-lhe directamente se tu tinhas ligado alguma vez e ela disse que não. E acreditei nela. Isso é que era terrível, eu acreditava sempre nela. Devia ter sabido. A culpa foi minha, eu devia ter sabido. Oh, Eustace, porque é que eu era tão idiota?

 

Tinham ido para dentro de casa, à procura de um lenço para Virginia, e, sem qualquer razão aparente, haviam ficado por ali, acabando, como é óbvio, por ir parar à cozinha. Ficaram sentados à mesa, com o ar cheio do odor do pão de açafrão que cozia no forno. O único som que se ouvia era o do velho relógio de pêndulo.

 

- Não eras idiota - disse Eustace. - Tinhas dezassete anos. Essa era outra das coisas que me incomodavam. Teria sido fácil persuadir-te, dar-te a volta, mesmo ainda antes de teres tempo de ter crescido e tomares as tuas próprias decisões. Era isso que eu dizia na carta. Quando vi que não me telefonavas, pensei que estivesses com medo. Por isso eu dizia que se tu quisesses esperar alguns anos eu também estaria disposto a esperar, para vermos o que sentíamos depois. - Ele sorriu, com pesar. - Foi difícil escrever aquilo tudo. Nunca dissera aquelas coisas a uma rapariga, nem voltei a dizer.

 

- E pensaste que eu nem sequer me dava ao trabalho de responder?

 

- Não sabia o que pensar... E depois, passado pouco tempo, vi no jornal que te ias casar.

 

- Eustace, se eu tivesse recebido aquela carta, não teria voltado para Londres. Ter-me-ia recusado.

 

- Não podias recusar. Eras menor.

 

- Teria tido um ataque de histeria. Um esgotamento nervoso. Faria umas cenas horrorosas. Adoeceria.

 

- Mas mesmo assim terias ido.

 

Ela sabia que ele tinha razão.

 

- Mas teria sabido que estavas à minha espera. E nunca teria casado com o Anthony. Nunca teria ido para a Escócia. Não teria perdido todos aqueles anos.

 

Eustace ergueu as sobrancelhas.

 

- Perdido? Não foram perdidos. Então a Cara e o Nicholas?

 

Os olhos de Virgínia encheram-se de lágrimas.

 

- Agora é tudo muito complicado.

 

Ele abraçou-a, limpou-lhe as lágrimas com beijos, afastou-lhe o cabelo do rosto.

 

- As coisas aconteceram da maneira que tinham de acontecer. Tudo tem um objectivo. Olhamos para trás e vemos qual é. Nada acontece sem um motivo. Nada é impossível, tal como as pessoas encontrarem-se de novo. Entrei no Mermaid’s Arms e vi-te ali sen-

 

tada, como se nunca te tivesses ido embora. Como um milagre.

 

- Não te comportaste como se fosse um milagre. Passado algum tempo, já estavas aos gritos comigo.

 

- Tive medo de sofrer pela segunda vez. Tive medo de me ter enganado a teu respeito, de que todas as coisas que eram importantes para a tua mãe se tivessem tornado importantes para ti.

 

- Eu disse-te. Elas nunca foram importantes. Ele pegou-lhe na mão.

 

- Ontem, depois do piquenique, pensei que tudo ia voltar a ficar bem. Depois de ter estado contigo, com a Cara e com o Nicholas, ter nadado e assado o peixe, e ao ver que vocês se estavam a divertir, pensei, enquanto subíamos o penhasco, que era como se voltássemos ao princípio. E pensei que seria capaz de falar do passado, da altura em que regressaste a Londres e como eu fiquei sem saber o que acontecera. Pensei que podíamos ter falado sobre o assunto, começar de novo.

 

- Mas eu pensava exactamente o mesmo, meu parvinho, mas tu só me disseste para voltar para a Escócia e aprender a ser uma agricultora. Eu quero ser mulher de um agricultor, não quero ser uma agricultora. E não percebo nada de vacas.

 

Eustace sorriu de novo, ligeiramente envergonhado.

 

- Eu disse-te: foram as fotografias da Cara. Durante o dia parecemos tão próximos, e de um momento para o outro percebi que não estávamos próximos, pertencíamos a mundos diferentes. Sempre pertencemos, Virginia. Um sítio como Kirkton e uma quintazinha como Penfolda, bem, não têm comparação possível. E de repente pareceu-me uma loucura imaginar que te podia pedir para abandonares tudo, só para estares comigo. Porque é só isso que tenho para oferecer.

 

- E é isso que eu quero. É o que sempre quis. Kirkton era a casa do Anthony. Sem ele para tomar conta dela, não tem vida. Seja como for, vou vendê-la. Decidi ontem à noite. Terei de lá voltar, é claro, para dar a notícia a toda a gente, e pôr as coisas na mão do advogado...

 

- Já pensaste nos miúdos?

 

- Nunca deixo de pensar neles. Vão compreender.

 

- É a casa deles.

 

- Penfolda vai ser a casa deles. - Ela sorriu ao pensar nisso, e Eustace agarrou-lhe nos ombros com as suas grandes mãos, inclinando-se para beijar a sua boca sorridente e aberta. - Uma casa nova e um novo pai - terminou ela quando recuperou o fôlego.

 

Mas Eustace parecia não a estar a ouvir.

 

- Fala-se no diabo...

 

E Virgínia ouviu as vozes agudas dos filhos enquanto atravessavam o jardim.

 

- Olha, aqui estão os gatinhos. Olha, estão ao sol e ainda não beberam o leite.

 

- Oh, deixa-os em paz, Nicholas. Estão a dormir.

 

- Este aqui não está a dormir. Tem os olhos abertos. Olha. Os olhos dele estão abertos.

 

- Onde estará a mãezinha? Mãezinha!

 

-Aqui! - gritou Eustace.

 

- Mãezinha, a tia Alice Lingard quer saber se vais voltar para casa. - Cara entrou na cozinha, com os óculos tortos, o cabelo fora do travessão. - Deu-nos ovos com bacon, mas esperámos e esperámos, e ela disse que Mistress Jilkes havia de pensar que ela tivera um acidente e morrera...

 

                                                                                Rosamunde Pilcher  

 

                      

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