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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Casadinha de Fresco / Artur Azevedo
A Casadinha de Fresco / Artur Azevedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Casadinha de Fresco

Ópera  cômica em três atos

 

PERSONAGENS


O Capitão General Manuel de Souza O Morgado de São Gabriel Teobaldo Bento Um Mudo Um Alfaiate Um Viajante Outro Um  Soldado Outro Carlos Gabriela Gertrudes Beatriz Uma Costureira

Viajantes, peões, camaradas, estancieiros, oficiais  de lanceiros, soldados, criados, povo, etc.

 

A  cena passa-se, o primeiro ato em Viamão e o segundo em Porto Alegre, província  do Rio Grande do Sul. Tempos coloniais.

 

ATO  PRIMEIRO

 

Pátio de uma estalagem. Portão  ao fundo. Portas aos lados.

 

CENA  I

BENTO, BEATRIZ, viajantes, estancieiros, camaradas,  depois peões. (Os viajantes comem e bebem, sentados defrontes de pequenas  mesas. BENTO e BEATRIZ andam azafamados de um lado para o outro, servindo-os.)

 

Introdução

 

CORO  -

Mais presteza! Ligeireza! É petiscar e  partir! A carreta com certeza sem demora vai sair.

UM ESTANCIEIRO  - Olá senhor!

OUTRO - Olá senhora!

OUTRO - É  despachar!

BENTO -

Não val’zangar: inda  tendes muita demora.

BEATRIZ - Podeis com vagar

mastigar

BENTO  (A um viajante.) - Provai desta botelha.

BEATRIZ (A outro.) -  Que belo pastelão!

BENTO (A outro.) - Eis uma pinga velha!

BEATRIZ  (A outro.) - Não quer que o sirva, não?

CORO - Mais  presteza! etc.

(Ouve-se o rodar de um carro, e o barulho dos guizos dos  animais.)

UM VIAJANTE - Atenção, rapaziada!

Os guizos  ouvi!

CORO - Os guizos ouvi

da tal carreta abençoada.

(Entrada  ruidosa de oito peões.)

CORO DE PEÕES - Hop! Hop! Hop!

Bonitos  peões, lampeiros, ligeiros, ligeiros, lampeiros... Hop! Hop!  Hop! vos dizem: Patrões, é já seguir sem tugir nem mugir. Eis os peões ligeiros, lampeiros!

(Aprontam-se  todos para seguir viagem.)

BENTO -

Escutai! Um  costumezinho, ao qual convém vos conformar, a Beatriz, neste instantinho, vai, a cantar, vos explicar...

CORO - Pois venha lá mais essa!

BENTO  - Beatriz, escarra e começa.

 

Canção

I

BEATRIZ  -

Há muito já, fregueses meus, abriu-se  a nossa hospedaria; tem sido um - louvar a Deus - lá no que toca  à freguesia; mas a razão plausível é: desde  que abriu-se esta casita a estalajadeira é bonita e o vinho é  velho como a Sé. O vinho é bom! Mais um almude! Convém  os copos esgotar! Da estalajadeira a saúde bebei! bebei! É  de virar!

TODOS - O vinho é bom, etc.

BEATRIZ -

Ah!  Portugal! Quem negará que o deus das vinhas o protege? A sua uva  é um maná! deixai-lhe que o mundo lha inveje. Se, quanto  a mim, formosa sou, é que aqui, nesta casita, a estalajadeira é  bonita o vinho é... um vinho avô O vinho é bom, etc.

Repetição  do Coro

Hop! Hop! Hop! etc

(Saída geral  e animadíssima. Carlos aparece ao fundo e observa inquieto a cena.)

 

CENA  II

Carlos, depois um alfaiate e uma costureira

 

CARLOS  -

Enfim! Foram-se enfim! Afinal! Se alguém  aqui me viu! É hora do sinal...

(Chamando alguém da esquerda.)

Olá!

UMA  VOZ - Olá!

CARLOS (Examinando a cena.) - Oh! meu Deus! se  alguém deu por mim...

O ALFAIATE -Psiu!

CARLOS - Psiu!

AMBOS  - Silêncio!

CARLOS - ‘Stá pronto?

O ALFAIATE - Já  pronto está.

CARLOS (Apontando para a direita.) - Entre para  lá...

O ALFAIATE - Já sei: por acolá (Vai saindo.)

CARLOS  -

Falar não vá Hein? ... Olhe lá! Psiu!, etc.

(Carlos conduz o Alfaiate à direita, e volta depois  para a esquerda.)

Oh! meu Deus! Se acaso alguém me viu!

(Chamando.) Olá!

UMA VOZ - Olá!

(Aparece à esquerda a  Costureira, também com um embrulho.)

CARLOS - Psiu! etc.

(Mesmo  jogo de cena que com o Alfaiate. Carlos, depois de ter feito entrar a Costureira  para a esquerda, dirige-se para o fundo, inquieto, sempre como se esperasse ainda  alguém, e sai. Cessa a música.)

 

CENA III

BENTO,  BEATRIZ, depois CARLOS

(Bento e Beatriz, que reapareceram  à porta, acompanharam todo o jogo de cena.)

 

BEATRIZ - Titio?

BENTO  - Minha sobrinha?

BEATRIZ - Vossa Mercê viu?

BENTO - Tu reparaste?

BEATRIZ  - O que quer isto dizer?

BENTO - Sei cá! este estrangeiro, que aqui  chegou há oito dias, em companhia de um velhote e de sua filha, não  me inspira lá muita confiança.

BEATRIZ - No entanto o velhote  tem cara de boa pessoa e a menina é bem simpática.

BENTO -  Sim, não duvido; mas o moço tem assim uns modos...

BEATRIZ  - Tem uns modos assim... É um foguete; não pára! Preocupado,  sombrio! Além disso, titio, dos viajantes moços que tem aqui pousado,  é o único que ainda não me deu sequer um beijo...

BENTO  - Como é lá isso? Pois ele não te beijou ainda?

BEATRIZ  (Suspirando.) - Não, titio! E creio que se irá embora sem  cumprir essa formalidade!

BENTO - Oh! Oh! Um homem que não beija  a sobrinha do estalajadeiro! A coisa é mais séria do que eu supunha!  Se fossem conjurados?!

BEATRIZ - O moço é estrangeiro: não  deve conjurar.

BENTO - Quem nos diz a nós que não é  tão brasileiro como tu? Estes conjurados de tudo se lembram! Uma conjuração  em minha casa! Não me faltava mais nada!

BEATRIZ - O Senhor Capitão-general  dizem que não é para graças!

BENTO - Estou perdido!  O desembargo do paço manda-me enforcar como toda a certeza!

BEATRIZ  - É preciso sabermos ao certo que gente é esta!

BENTO - Tens  razão... tens razão...

BEATRIZ - Mas como há de ser?

BENTO  - Muito simplesmente; vendo e ouvindo. Olha, vai espiar aquela porta e eu esta.  (Vai espreitar à direita; a sobrinha faz o mesmo à esquerda.)

CARLOS  (Entrando.) - E o meu amigo, nada de aparecer! Queira Deus que não  me deixe a ver navios! (Vendo Bento e Beatriz.) Hein? O que é aquilo?  (Aproxima-se de Bento e dá-lhe um pontapé.) Ah! patife!

BENTO  (Gritando.) Ai!

BEATRIZ (Voltando-se.) - Viu alguma coisa,  titio?...

BENTO (Esfregando a parte ofendida.) - Não! Isto  é , vi estrelas.

CARLOS (Agarrando-o pela orelha) - O que  fazia você ali? Musque-se!

BENTO (Tremendo.) - Sim, meu fidalgo.  Anda daí Beatriz!

BEATRIZ - Vamos, titio!

BENTO - Aqui anda  maroteira, e grande maroteira! (Saem Bento e Beatriz.)

 

CENA  IV

CARLOS, só

 

[CARLOS]  - É isto! ando cercado de espiões. De um momento para outro tudo  se descobrirá, e então... Começo a arrepender-me de haver  dado esse passo! É o diabo! Quem me mandou sair de Lisboa? (O Alfaiate  e a Costureira entram. Música.) Ah! finalmente deram conta do recado... (Dá-lhes dinheiro. O Alfaiate e a Costureira saem.)

 

CENA  V

CARLOS, depois GABRIELA

 

CARLOS  - Ninguém os viu entrar nem sair... Muito bem! (Ao público.) Se eu disser que estes dois indivíduos, que assim envolvo no mais tenebroso  mistério, são simplesmente... Qual! Ninguém acredita! São  simplesmente um alfaiate e uma costureira que trazem a roupa de noivado de meu  futuro sogro e de minha futura mulher... (Com terror.) Ó céus!  falei tão alto! Creio que ninguém me ouviu! (Olhando em volta  de si.) Não... Ninguém... Respiro! (A porta de Gabriela abre-se  lentamente.) Vem alguém! Calma, sangue frio!

GABRIELA (Entrando.) - Aqui estou, meu queridinho!

CARLOS (À parte.) - Gabriela!  E como vem vestida!

Dueto

GABRIELA - Eis-me  afinal, ó meu marido!

CARLOS (À parte.) - Ó  céus! já seu marido...

GABRIELA - Querido amor!

CARLOS  - Anjo querido!

GABRIELA - Vem para mais perto de mi...

CARLOS - De  ti?

GABRIELA - De mi...

CARLOS (Aproximando-se, receoso). -  Eis-me aqui.

 

Coplas

I

GABRIELA  -

Venho mostrar-me ao noivo meu, quase a chegar o f’liz  momento, a ver se sou do agrado seu, vestida já pro casamento. Saber do meu futuro quis se este vestido é do seu gosto, e se achas  a cor destes rubis d’acordo coa cor do meu rosto. É mui suspeita  a opinião daquele que por mim palpita; mas diga lá, por  compaixão, se a noivazinha está bonita.

II

-  Mas, oh! meu Deus! que quer dizer este ar assim tão inquieto? Pois  não lhe dá nenhum prazer coroado ver nosso afeto? Acaso  ao gosto seu não ‘stou? Repare bem... não viu direito... Do mesmo parecer não sou, pois o vestido está bem feito. Aflito esteja, meu senhor; mas se não quer me ver aflita, diga-me  lá, faça o favor, se a noivazinha está bonita.

(Carlos  volta a cabeça; Gabriela afasta-se despeitada.)

Amor, então,  já me não tem?

CARLOS - Juro fazer quanto em mim caiba

para  que sejas feliz porém,

convém, amor, que ninguém saiba...

GABRIELA  - Como ninguém?...

CARLOS -

Ninguém!  Ninguém! Eu te falo sério... Não duvides, não! Lá no coração guardemos o mistério deste ardente  amor... Ninguém seja sabedor deste amor...

GABRIELA - Só  posso então dizer que te amo...

CARLOS - Bem devagar.

GABRIELA  - Bem devagar?

Pois assim seja: eu não reclamo.

CARLOS (À  meia voz.) - Eu te amo!

GABRIELA (No mesmo.) - Eu te amo

JUNTOS  -

Eu te falo!...................  Tu me falas sério Não duvides ................ Não duvido não Lá no coração, etc.

GABRIELA - Mas por que todo este mistério? Quem se casa corre perigo?

CARLOS  - O casamento é um perigo para os homens em geral, e para mim em particular...  Oh!

GABRIELA - O que receias tu? Não gozas de tanta influência?  Não é o privado do Capitão-general?

CARLOS - O Capitão-general!  Oh! não pronuncieis esse nome, Gabriela! Se ele soubesse...

GABRIELA  - O quê?

CARLOS - Não me perguntes mais nada! Amas-me, não  é assim? Casemo-nos.

GABRIELA - Decerto! Isso é coisa resolvida!  (Ouve-se rumor de fora.) Jesus! Aí vem papai! Ele é que não  está nada satisfeito com estas reservas!

CARLOS - É teu pai?  Aí vem ele deitar a casa abaixo! E todo mundo vai ouvi-lo!

 

CENA  VI

Os mesmos e CASTELO BRANCO

 

CASTELO  BRANCO (Entrando de muito mau humor.) Palavra d’honra! Isto não  se comenta! (Vendo Carlos.) Ah! é Vossa Mercê, Monsiu? Quisera vê-lo no inferno, e ao seu casamento absurdo!

CARLOS  - Então! tenha calma, senhor meu sogro.

GABRIELA  - O que é papai? o que é?

CASTELO BRANCO -  O que é? O que é? Não é nada! (Com toda a calma.)  Ah! falta-me um botão. (Zangado.) Quando digo que tudo me chega!

GABRIELA  - É só isso? Descanse: hei de pregá-lo, papai.

CASTELO  BRANCO - Pois bem, pois bem. Mas não me posso conter! Quero desabafar!  por que cargas d’alhos, eu, Antônio Pedro Salema Coutinho Castelo Branco,  morgado de São Gabriel e podre de rico, consenti no casamento de minha  filha com Vossa mercê, que não é meu compatriota, nem tem,  nem pode ter posição oficial definida?

GABRIELA  - Eu sempre gostei muito do Senhor Carlos, papai.

CASTELO  BRANCO - Não é um motivo plausível!

GABRIELA  - Pois não é?

CASTELO BRANCO - O motivo foi  outro. Já lhes disse que sou podre de rico, e, por conseqüência,  proprietário de muitas propriedades. Uma dessas propriedades, e justamente  aquela que ligo mais apreço, de tal modo está situada, que tira  a vista do rio ao palácio do Capitão-general. Muitas vezes chegou  a dizer-me o Capitão-general: "Morgado de São Gabriel, você  não quer vender-me o cochicholo." recusei sempre ceder-lhe o cochicholo.  Então, vai um belo dia e diz-me o Capitão-general: "Morgado  de São Gabriel, você não quer vender-me o cochicholo? hei  de possuí-lo sem gastar um real. Vou mandar arbitrá-lo pela municipalidade,  e babau!"

CARLOS - Mas não sei que relação  possa haver...

CASTELO BRANCO - Espere! Um dia pareceu-me  que a rapariga tinha certa inclinação por Vossa mercê.

GABRIELA  - Oh! muita, muita, muita, papai!

CASTELO BRANCO - Não  insistas, rapariga. Inclino-me a crer que, de seu lado, Vossa Mercê tinha  também certa inclinação pela rapariga. Iam ambos por um plano  inclinado! Vai uma vez, convidei-o para jantar. No dia seguinte Vossa mercê  apresentou-se, também para jantar, mas desta vez sem ser convidado. Assim  aconteceu durante um mês inteiro. Vocês iam numa desfilada...

GABRIELA  - Numa grande desfilada!

CASTELO BRANCO - Não insistas,  rapariga. O mal estava feito. O que não tem remédio...

CARLOS  - Mas a que conclusão deseja chegar o senhor meu sogro?

CASTELO  BRANCO - A que conclusão? pois Vossa Mercê não compreendeu  o meu plano? Eu dissera com os meus botões: o Carlos é privado do  Capitão-general: se lhe dou a rapariga, eis-me sogro do privado; excelente  meio de não ser privado de minha propriedade.

GABRIELA  (Curiosa.) - Como assim? Pois o papai casa-me para segurança de  sua propriedade?

CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga!  Infelizmente o resultado foi nulo, pois o Monsiú declarou ser preciso  que o casamento se efetue clandestinamente!

GABRIELA - Mas,  papai, eu já lhe disse que tanto me faz clandestinamente como às  claras.

CASTELO BRANCO - A ti, tanto faz assim como assado;  mas a mim? O que lucro eu com semelhante casamento? serei o sogro do privado,  é certo; mas de que serve tudo isso, se hei de ser um sogro anônimo?

CARLOS  - Enfim, onde quer chegar?

CASTELO BRANCO - Quero desabafar,  eis o que eu quero! Vamos, não percamos mais tempo! Toca para a matriz!  Acabemos com isto, acabemos com isto!

GABRIELA - Sim, sim,  eu acho bom!

CARLOS - Um momento: estou à espera  de...

CASTELO BRANCO - De quem?

CARLOS  - Precisamos de dois padrinhos... Um deles já está lá dentro...  É um mudo!

CASTELO BRANCO - Um mudo!

CARLOS  - Tenho certeza de que não há de dar com a língua nos dentes.  Infelizmente não pude arranjar dois mudos. Escrevi a um amigo íntimo  e seguro. Já devia aqui estar.

CASTELO BRANCO - Se  convidarmos o dono da estalagem?

GABRIELA - É verdade;  dir-lhe-emos que meta esse serviço na conta.

CARLOS  - Deus me defenda! Um homem curiosíssimo que anda a espreitar às  portas! Iria apregoar por toda a parte meu casamento! Nunca! Nunca!...

CASTELO  BRANCO - Portanto...

GABRIELA - Se o tal amigo tardar?

CARLOS  - Esperaremos.

CASTELO BRANCO (De mau humor.) - Oh!  mas isto é demais, senhor Monsiú! Isto é demais!

CARLOS  - Senhor Morgado de São Gabriel!

CASTELO BRANCO -  Há oito dias que Vossa Mercê parece estar a caçoar comigo  e com a rapariga. É demais!

GABRIELA - Papai!

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga! (A Carlos.) Convidamos o estalajadeiro?

CARLOS  - Não! não e não!

CASTELO BRANCO -  Tome sentido Monsiú: eu posso desmanchar a igrejinha!

CARLOS  (Encolhendo os ombros.) - Pois desmanche: é o mesmo.

GABRIELA  - Hein! Pois é o mesmo?

CASTELO BRANCO - Mas devo  observar-lhe que se não devia meter de gorra em minha casa!

CARLOS  - Diga antes que me armou uma ratoeira!

CASTELO BRANCO -  Por que razão vinha jantar comigo?

CARLOS - Se não  fosse convidado...

CASTELO BRANCO - Por que aceitava os  meus convites?

CARLOS - Que culpa tenho de que sua filha  me pespegasse como um cáustico?

GABRIELA (Furiosa.) - Um cáustico, papai, um cáustico!...

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga! (A Carlos.) Estava em suas mãos  desviá-la.

GABRIELA - A culpa foi sua.

CARLOS  - Minha!

TERCETO

CARLOS  - Tão amável não fosse a senhora...

GABRIELA - Não  me houvesse jurado afeição...

CASTELO BRANCO -

Meu  genro não seria agora, se não gabasse tanto a sua posição!

CARLOS  - ... de certo a não teria amado!

GABRIELA - ... não me teria  apaixonado!

CASTELO BRANCO - Eu não havia de lembrar

de o convidar  para jantar!

GABRIELA - Mas o senhor é tão galante...

CARLOS  - Mas a senhora é tão chibante...

CASTELO BRANCO - Tal posição!

GABRIELA  - Ai! que ilusão!

JUNTOS

CASTELO BRANCO GABRIELA  E CARLOS

- Estou  despeitado! ................-  Fui de seu agrado Que sogro eu sou! ..........................e  já não sou! ‘Stá tudo acabado...  ..............‘Stá tudo acabado... Tudo entre nós acabou! ........Tudo entre nós acabou!

CARLOS -

Oh! Felizmente inda podemos sanar o mal  que feito está!

GABRIELA -

O dito por não  dito demos! A mim bem pouco se me dá!

CASTELO BRANCO - Tudo entre  nós acabará!

CARLOS - Pois não, senhor morgado! É  já!

CASTELO BRANCO - Isto é, se for do seu agrado...

CARLOS  - Senhor, não vai ficar zangado...

CASTELO BRANCO - Tudo acabou!

GABRIELA  e CARLOS - Tudo acabou!

CASTELO BRANCO - Já despir este fato vou!

GABRIELA  e CARLOS - Tudo acabou!

CASTELO BRANCO - Meu genro, tudo acabou!

(Silêncio.  Cada um toma direção diversa.)

GABRIELA - Adeus, senhor!

CARLOS  - Adeus, minha senhora!

GABRIELA (Parando à porta, à parte.) - Porém...

CARLOS (Mesmo jogo de cena, no fundo.) - Porém...

JUNTOS  -

Meu Deus! quero-lhe bem! Quem o negará? Ninguém!  Ninguém!

CARLOS (Voltando.) - De novo o coração  se humilha...

GABRIELA - De novo o meu também se humilha...

CASTELO  BRANCO - Então, minha filha?

CARLOS - Meu anjo!

GABRIELA -  Meu amor!

CASTELO BRANCO - Voltam ao velho estado?

GABRIELA - Meu  amor!

CARLOS - Meu anjo!

JUNTOS - ‘Stá tudo arranjado.

CASTELO  BRANCO - Nada acabou?

CARLOS e GABRIELA - Nada acabou!

CASTELO BRANCO  - Oh! já não está cá quem falou!

CARLOS e GABRIELA  - Nada acabou!

CASTELO BRANCO - Meu genro, nada acabou!

JUNTOS

CASTELO  BRANCO GABRIELA E CARLOS

- Não estou despeitado! -  Fui de seu agrado

Que sogro eu sou! E ainda sou!

Nada  está acabado... Nada está acabado...

Nada entre  nós acabou! Nada ente nós acabou!

CASTELO BRANCO (Rosnando  sempre.) - Está bem, está bem; fique de parte o estalajadeiro.  Esperaremos...

GABRIELA - Vê se arranja isso depressa.

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga! Vamos. Até logo, senhor meu genro.

CARLOS  - Fale mais baixo...

CASTELO BRANCO (Baixinho.) - Até logo,  senhor meu genro. (Vai saindo com Gabriela.)

CARLOS (Idem.) - Até logo, senhor meu sogro.

GABRIELA (Voltando, baixinho.) - Veja se arranja isso depressa. (Sai.)

 

CENA VII

CARLOS,  BENTO e BEATRIZ

 

CARLOS - E o outro padrinho que não  aparece? Haveria algum transtorno?

BENTO (Que entra pelos fundos com  Beatriz, baixinho.) - Olha, ele fala sozinho... Oh! estes estrangeiros!

BEATRIZ  - Estes conjurados!

CARLOS (Vendo-os.) - Ainda vocês! o que  há?...

BENTO - Não vos zangueis! Vínhamos prevenir-vos...

BEATRIZ  - Que vieram agora mesmo...

BENTO - Neste instante...

BEATRIZ - Não  há cinco minutos...

BENTO - Qual cinco minutos...

CARLOS -  Então? Então?

BEATRIZ - Trazer esta cartinha...

CARLOS  - Está bem! Dê cá!

BENTO (A Beatriz.) Vai tu,  vai levar-lhe. Eu sou capaz de apanhar outro pontapé, e tu não!

BEATRIZ  (Aproximando-se com precaução.) Aqui tem... (Dá-lhe  a carta e retira-se vivamente.)

BENTO (Levando-a) - Anda daí...  Credo! Um conjurado.

CARLOS (Que abriu e leu a carta.) - Oh! Sapristi!  Isto só a mim acontece! O padrinho não pode vir: estou reduzido  ao mudo. Todavia é preciso outro... Hei de arranjá-lo por força.

 

CENA  VIII

CARLOS e MANUEL DE SOUZA

 

MANUEL  DE SOUZA (Fora.) - Estou muito apressado! Façam com que meu cavalo  coma a galope! Não me posso demorar! (Entra.)

CARLOS  - Um estancieiro!...

MANUEL DE SOUZA - Três dias de  atraso! Gertrudes deve estar furiosa!

CARLOS (Observando.)-  Esta cara não me é estranha!

MANUEL DE SOUZA  (No mesmo.) - Não me engano! É ele...

CARLOS  (Dirigindo-se a ele.) - Não é por ventura o Senhor Manuel  de Souza?

MANUEL DE SOUZA - Não é ao Monsiú  Carlos que tenho a honra de...

CARLOS - Exatamente.  Foi pelo ano passado...

MANUEL DE SOUZA - Tomávamos  banhos no rio... em Porto Alegre.

CARLOS - Eu nadava como  um peixe...

MANUEL DE SOUZA - Eu nadava como uma pedra...

CARLOS  - Tu andavas em uma barquinha..

MANUEL DE SOUZA - De repente  a barquinha virou-se, e bumba...

CARLOS - Ias morrer afogado,  quando agarrei-te pelos cabelos e trouxe-te à tona d’água.

MANUEL  DE SOUZA - Eu estava salvo! Devo-te a vida, meu bom Carlos.

CARLOS  - Ora este Manuel de Souza! (À parte.) Tenho padrinho (Alto.) Não fazes idéia do prazer que me causa a tua presença! Tu  vais bem, não vais?

MANUEL DE SOUZA - Menos mal...  Isto é, eu casei-me...

CARLOS - Casaste-te? pois,  aqui onde me vês, vou fazer outro tanto!

MANUEL DE  SOUZA - Oh! diabo!

CARLOS - E mesmo a esse respeito, preciso  muito de ti, é indispensável que me prestes um serviçozinho.

MANUEL  DE SOUZA - Tenho a observar-te que estou com muito pressa.

CARLOS  - Apenas uma hora.

MANUEL DE SOUZA - Uma hora! Sinto muito  não te poder ser útil, meu caro, mas minha mulher está à  minha espera.

CARLOS - Ela que espere mais uma hora. Que  inconveniente há nisso?

MANUEL DE SOUZA - Que inconveniente?  Ah! bem se vê que não sabes quem é Gertrudes! Que mulher,  meu amigo! ela me tem um amor, mas que amor tão veemente que, não  me lembra sob que pretexto, fui obrigado a ausentar-me de casa. Devia estar de  volta no fim de quinze dias, e há dezoito que saí de casa. Faz tu  idéia da recepção que me aguarda! Além de tudo, Gertrudes  tem um péssimo costume.

CARLOS - Qual é?

MANUEL  DE SOUZA- Como gosta muito de montar a cavalo, tem sempre uma chibatinha na mão...  e quando zanga-se comigo... zás...

CARLOS - E tu  consentes nisso?

MANUEL DE SOUZA - Que queres tu? Ela tem-me  um amor!

CARLOS - E tu temes a chibatinha! Pois bem: uma  vez que já estás habituado a semelhante sistema, algumas carícias  de mais ou de menos, para servires um amigo que te salvou a vida...

MANUEL  DE SOUZA - Mas...

CARLOS - É absolutamente preciso  que me sirvas de padrinho.

MANUEL DE SOUZA - De padrinho!  Pois ainda não estás batizado?

CARLOS - Padrinho  de casamento...

MANUEL DE SOUZA - Pois é para isso?  Por que não agarras tu outro sujeito, que tenha menos pressa?

CARLOS  - Porque o meu casamento deve ser ignorado por todos... Já arranjei um  mudo. Preciso de outro... Manuel de Souza, esse outro mudo hás de ser tu.

MANUEL  DE SOUZA - Mas por quê?

CARLOS - Por quê...  queres tu saber?

MANUEL DE SOUZA - Sim... não! tenho  muita pressa.

CARLOS - Pois bem! Escuta... e treme!

MANUEL  DE SOUZA (À parte.) - Diabo! uma história... Quanto mais  pressa, mais vagar...

CARLOS - Como muito bem sabes, Manuel  de Souza, eu sou há muito tempo, o amigo... o privado do Capitão-general.  Vim com ele de Lisboa, e até hoje tenho-me conservado sempre ao seu lado.  Hoje esse tirano está viúvo, mas, antes disso, era casado...

MANUEL  DE SOUZA - Ah! (Lembrando-se.) Naturalmente, pois se é viúvo...

CARLOS  - Muito bem! A mulher do Capitão-general, uma italiana de temperamento  de fogo, de sangue cálido, de alma ardente e vulcânica...

MANUEL  DE SOUZA - Como Gertrudes...

CARLOS - Era admiravelmente  formosa... eu andava pelo beicinho...

MANUEL DE SOUZA -  Como eu...

CARLOS - Era inevitável o escândalo...  Um belo dia, ou antes um mau dia, o Capitão-general surpreendeu-nos em  um colóquio que...

MANUEL DE SOUZA - Não deites  mais na carta...

CARLOS - Em meu lugar, outro qualquer abriria  a janela, e deixar-se-ia escorregar pela goteira. Eu fui sublime! Fiquei! Coloquei-me  entre a mulher e o marido ultrajado, e exclamei: "Perdoai-lhe, senhor! É  de sangue que precisais! Aqui tendes o meu! É vosso!"

MANUEL  DE SOUZA - Foste muito nobre, mas um tanto estúpido...

CARLOS  - "Um escândalo, respondeu ele, para dar lugar a que, ainda em cima,  zombem de mim! Não! Minha vingança há de ser mais calma.  Tranqüiliza-te. Tu és o meu privado; continua a sê-lo, sê-lo-ás  para todo o sempre!"

MANUEL DE SOUZA - Ora ali está  um homem comedido!

CARLOS - Ouve o resto. "Era teu  amigo; de hoje em diante o serei mais que nunca, porém..."

MANUEL  DE SOUZA - Ah! temos um porém...

CARLOS - "Algum  dia te hás de casar... Emprazo-te para lá... Nesse dia, meu amigo,  ajustaremos contas, e então, dente por dente, olho por olho. Fizestes das  tuas, eu farei das minhas. Entendeste?" "Sim". "Muito bem!  Vai amanhã jantar comigo. Seremos os mesmos um para o outro". - Como  de fato, desde esse momento, nem mais uma palavra a respeito... "Diante do  mundo, o sorriso das salas; no fundo. o ódio e a vingança!"

MANUEL  DE SOUZA - Tudo isso que me acabas de contar é muito interessante; mas...  Adeus. meu amigo, estou com muita pressa.

CARLOS (Detendo-o.)  - Bem sei o que me queres dizer: nesta situação restava-me tomar  um partido muito simples: não casar-me nunca..

MANUEL  DE SOUZA - É verdade!

CARLOS - Disso lembrei-me eu...  Estava resolvido a ficar solteiro toda a minha vida, ou toda a vida do Capitão-general,  se fechasse o olho primeiro que eu... Infelizmente, porém, o homem é  um ser incompleto, que, por ser incompleto, cedo ou tarde sente a necessidade  de completar-se.

MANUEL DE SOUZA - E é hoje que te  completas?

CARLOS- Como vês. O meu casamento deve  ser efetuado no mais profundo segredo. Para mais segurança fiz com que  alguns médicos de Porto Alegre me recomendassem os ares do campo a um reumatismo  que não tenho. Desde que aqui estou, tenho escrito ao Capitão-general,  dizendo-lhe que vou cada vez pior, a fim de que ele não desconfie de minha  prolongada estada em Viamão. Ontem mesmo (vê tu que excesso e precaução!)  mandei-lhe dizer que estava quase a bater a bota. Tal é, Manuel de Souza,  a narração exata e dolorosa que tinha a fazer. Convirás que  é absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. Ficas, não é  assim?

MANUEL DE SOUZA - Homem... é que... Como já  tive ocasião de dizer-te, Gertrudes... Gertrudes não é nada,  mas a chibatinha...

CARLOS - Só uma hora!

MANUEL  DE SOUZA - Uma hora! É muito, meu amigo, é muito!

CARLOS  - Vamos! Uma hora, Manuel de Souza!

MANUEL DE SOUZA - Pois  vá lá! Ora adeus! Diga Gertrudes o que quiser! Fico!

CARLOS  - Ah! eu logo vi! Obrigado, muito obrigado! (Aperta-lhe a mão com efusão.)

 

CENA  IX

Os mesmos, BENTO, BEATRIZ, depois CASTELO  BRANCO, GABRIELA e o mudo

 

BEATRIZ (Entrando  com Bento, a Manuel de Souza.) - Está pronto o cavalo.

CARLOS  - Deixe-o estar. Não é preciso por ora.

BEATRIZ - Sim, senhor.

BENTO  (Examinando a Manuel de Souza.) - É outro que tal! Decididamente  isto não é uma estalagem; é um valhacouto de conjurados...

BEATRIZ  - Estamos bem aviados, titio. (Saem.)

CARLOS - Agora, mãos  à obra! (Indo à porta de Castelo Branco.) Olá Senhor  Morgado de São Gabriel! Gabriela!

CASTELO BRANCO (Entrando com  a filha.) - Podemos ir?

CARLOS - Sim, senhor. (Apresentando Manuel  de Souza.) Meu padrinho, o Senhor Manuel de Souza, a quem salvei a vida. (Cumprimentos.)

MANUEL  DE SOUZA - Estou com muita pressa. Vamos ligeiro, hein?

CARLOS - A demora  não há de ser por mim. Vou buscar o mudo. (Chamando para dentro.) Oh! Senhor Mudo... Psiu! Venha cá! (Entra o Mudo e cumprimenta a todos.)

MANUEL  DE SOUZA - Então você é mudo? (O Mudo faz sinal afirmativo.)  Não pode dizer com a boca? É preciso estar a ... (Arremedando  o Mudo, ri-se bestialmente - a Carlos.) Saiu-te ao pintar, hein?

CARLOS  - E baratinho... Vinte cruzados só... Mas vamos, vamos embora!

TODOS  - Vamos embora!

QUINTETO

CARLOS -

É  já safar, sem mais tardar sem haver demora!

GABRIELA -

Com  precaução, com prontidão! vamo-nos embora!

TODOS  É já safar, etc.

MANUEL DE SOUZA - É já partir  com todo o afã!

O MUDO - An, an, an, an!

CARLOS -

Cautelosos pressurosos convém sairmos daqui!

MANUEL DE SOUZA - Tempo é  de andar daí!

O MUDO - Hi, hi, hi, hi!

GABRIELA -

Com  prudência, com cadência, partamos sem tardar!

TODOS  - Sem demorar!

Já, já, já, já!

O MUDO  - Ah! Ah! Ah! Ah!

(Saem todos. O Mudo fica só em cena continuando  mentalmente o motivo da saída. Vendo que está só.)

O  MUDO (Confidencialmente.) - Eu sou mudo de profissão; mas se isto  só me render o ajuste, mudo de profissão! (Sai a correr.)

 

CENA  X

BENTO, BEATRIZ, depois GERTRUDES

 

BENTO  - Então, minha sobrinha?

BEATRIZ - Então,  titio?

BENTO - Não é o que te digo? Aqueles  desgraçados vão revoltar o interior da província!

BEATRIZ  - Ah! titio! O que será de nós!...

GERTRUDES  (Entrando bruscamente com uma chibatinha na mão.) Olá! Oh!  de casa! Venha alguém! (Vendo Bento e Beatriz.) - Olá velhote,  olá rapariga!

BEATRIZ (Voltando-se.) - Uma  senhora!

BENTO (Com solicitude.) - Oh! minha senhora,  vós...

GERTRUDES (Sem lhe dar tempo de falar.) - Nem claro, nem moreno...

BENTO - Senhora...

GERTRUDES  (No mesmo.) - Nem alto, nem baixo...

BENTO - Senh...

GERTRUDES  (No mesmo.) - Nem gordo, nem magro; figura insignificante, boca sem expressão;  sorriso desenxabido; mas com um certo ar de distinção... Nem muito  nem muito pouco... São estes os seus sinais. Viram-no? (Passeia agitando  a chibata).

BEATRIZ - O que diz ela?

BENTO  - Nem muito, nem muito pouco... (Com uma idéia.) Ah! é a  senha... a senha dos conjurados... Senhora, também pertence a ...

GERTRUDES  -A quê, homem de Deus?

BENTO - Bem sabe... (Baixo.)  À conjuração..

GERTRUDES - Você  é um tolo! Quem foi que lhe falou em conjuração? É  meu marido, é o meu Manuel de Souza que procuro.

BENTO  - Seu marido!

GERTRUDES - Não percebem? Meu marido!  Só tenho aquele e não me faz conta perdê-lo!

ÁRIA

O  meu amor, meu tudo, o grande cabeçudo, grandíssimo infiel, - meu belo Manuel; o meu gentil marido, meu confidente infido, - de  casa se ausentou; sozinha me deixou! Ai! quanto é mau, embora belo! O Manuel de mim já se esqueceu! Pra ele todo meu desvelo, pra mim  o esquecimento seu... Mas se o ciúme me maltrata o desvairado coração, (Agitando a chibata.) vinga-me, olé! me vinga esta chibata, a fustigar o maganão. Olá! Toma lá! Olá! Meu sandeu! Toma lá que te dou eu, judeu! À vez primeira  em que nos vimos, amor veemente aqui brotou; os nossos corações  unimos: ai, meu Deus! foi quanto bastou. pouco depois de a ele unida (recordação que mal me faz), Manuel fez-me uma partida... Eu estava armada... Ah! meu rapaz!... Olá!, etc. (Com uma expressão  langorosa.) Ah! Ah! Ah! O meu amor, meu tudo, etc.

BENTO  - Ah! a senhora anda à procura de seu Manuel?

GERTRUDES  - Ele está cá, pois não está! Ah! meu senhor estalajadeiro,  diga-me, diga-me que ele está cá.

BENTO -  Sinto muito dizê-lo, senhora, mas... nunca o vi mais gordo.

GERTRUDES  - Aquele monstro! Aquele miserável! Semelhante conduta! Aposto que ele  neste momento engana-me com mulheres, talvez!... Ah! senhor estalajadeiro, se  você soubesse a história do retrato...

BENTO  - Que retrato!

GERTRUDES (Mostrando um medalhão  que tira d’algibeira.) - Deste que trago sempre aqui, na algibeira... uma  senhora de Porto Alegre por quem ele andou outrora apaixonado. (Abrindo o medalhão.) Você conhece por acaso alguma senhora de Porto Alegre, que se pareça  com isto?

BENTO - Não...

BEATRIZ  - Nunca a vi mais gorda...

GERTRUDES (Fechando o medalhão  com cólera.) - Ó raiva! Sempre que me lembro de semelhante velhacada,  fico de tal forma impressionada... Senhor estalajadeiro, segure-me... eu... (Finge  que desmaia nos braços de Bento.)

BENTO - Então  o que é isto, minha senhora? o que é isto?...

GERTRUDES  (A Beatriz, com voz sumida.) - Menina?

BEATRIZ -  Senhora?

GERTRUDES - Quero tomar alguma coisa... alguma  coisa quente!

BEATRIZ - Quer ir lá para dentro?

GERTRUDES  - Não sei! Estou tão fraca! Vou experimentar... (Dá alguns  passos sustida por Bento e Beatriz; depois endireita-se bruscamente e entra na  estalagem, agitando a chibata.) - Ah! velhaco! alma de cão! Se te apanho...  (Beatriz segue-a.)

BENTO (Só.) - Com  certeza esta senhora tem uma aduela de menos! (Rodar de carruagem fora.) Hein? uma carreta. (Vai ver ao fundo.) Que vejo! Soldados! Misericórdia!  A conjuração foi descoberta! Vão ser presos os conjurados,  e aqui estou eu comprometido.

CAPITÃO-GENERAL (Fora.)  - Anda daí, Teobaldo.

TEOBALDO (Fora.) Pronto!

 

CENA XI

BENTO, CAPITÃO-GENERAL  e TEOBALDO

 

CAPITÃO-GENERAL  (Entra, acompanhado por Teobaldo.) - Muito bem! Esperem lá fora!  (A Bento.) Você que é o dono desta estalagem?

BENTO  - Eu é que sou o dono desta estalagem. (À parte.) Estou arranjadinho...

CAPITÃO-GENERAL  - Aproxime-se

BENTO (Tremendo.) - Às vossas  ordens.

CAPITÃO-GENERAL - Viajo incógnito;  mas como sei o que são estas estalagens, julgo conveniente preveni-lo que  sou o Capitão-general...

BENTO (Aterrado.) - O Capitão-general!!! Céus! ... (À parte.) Estou  aqui, estou enforcado...

CAPITÃO-GENERAL - Você  tem um quarto desocupado?

BENTO (Balbuciando.) -  Senhor...

TEOBALDO - Sua Excelência pergunta se você  tem um quarto desocupado!...

BENTO (Atrapalhado.) - Posso mandar preparar a sala de espera...

CAPITÃO-GENERAL  - Mas a tal sala de espera é mais cara?

BENTO (Sorrindo  amavelmente.) - Saiba Vossa Excelência que sim.

CAPITÃO-GENERAL  - Não importa: hei de lha pagar baratinho.

BENTO  (Sorrindo amargamente.) - Vossa Excelência manda.

CAPITÃO-GENERAL  - Mas vamos ao que aqui me traz, e responda sem circunlocuções!

BENTO  (Intimidado) - Senhor...

TEOBALDO - Sem circunlocuções!

BENTO  - Sem circun... Como?

CAPITÃO-GENERAL - Como vai  ele?

BENTO - Mas...

CAPITÃO-GENERAL  - Você não tem aqui um doente?

BENTO (Surpreso.) - Ah! (Mudando de tom.) Ah! Sim. Sim. (À parte.) Ele quer  sondar-me...

CAPITÃO-GENERAL - Ele passou melhor  a noite?

BENTO (Atrapalhado.) - Saiba Vossa Excelência  que... isto é...

TEOBALDO (Batendo-lhe no ombro.)  - Sua Excelência pergunta se ele passou melhor a noite!

BENTO  - Oh! Oh! não bata no púlpito!

CAPITÃO-GENERAL  (Vivamente.) - Mas ao menos não morreu??

BENTO  - Oh! não! Não!

CAPITÃO-GENERAL - Respiro!

BENTO  (À parte.) - Se eu percebo...

CAPITÃO-GENERAL  - Mande dar palha aos meus animais, ande!

BENTO - Saiba  Vossa excelência que nesta ocasião só há cevada de  muito boa qualidade...

CAPITÃO-GENERAL - É  mais cara?

BENTO (Sorrindo amavelmente.) - Saiba  Vossa Excelência que sim...

CAPITÃO-GENERAL  - Não importa! hei de lha pagar baratinho.

BENTO  (Sorrindo amargamente.) - Vossa Excelência manda.

CAPITÃO-GENERAL  - Musque-se!

BENTO - Vossa Excelência manda. (Sai)

 

CENA  XII

O CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO, depois CARLOS

 

CAPITÃO-GENERAL  - Ora esta! Esqueci-me de perguntar a este tolo onde é o quarto de Carlitos,  vai tu saber , Teobaldo.

TEOBALDO (Saindo.) - Num abrir e fechar  d’olhos.

CAPITÃO-GENERAL (Só). - Carlitos assustou-me  com este bilhete! (Lendo.) "Sinto-me fraco. tenho medo de não  amanhecer com vida". - Mal recebi hoje pela manhã estas letras, corri...  Deus queira que haja esperanças de salvá-lo!

CARLOS (Entrando.)  - Eis-me finalmente casado. (Dá alguns passos e acha-se cara a cara  com o Capitão-general.) Ah!

CAPITÃO-GENERAL (Admirado.) - Pois quê! És tu?!...

CARLOS (À parte.) - O  Capitão-general! E Gabriela que...

CAPITÃO-GENERAL - Eu julgava  encontrar-te em posição horizontal!

CARLOS - Vossa Excelência  bem sabe... O reumatismo agudo é uma moléstia que vai e vem, vem  e vai...

CAPITÃO-GENERAL - Um reumatismo agudo é grave! mas  estás com muita cara... teu último bilhete sobressaltou-me sobremodo.  Corri! Voei!

CARLOS (À parte.) - Desalmado! Pintei o meu estado  feio demais. (Alto, procurando levá-lo para fora.) Vossa Excelência  tomou aposentos?

CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo anda a tratar disso.  Ah! meu querido Carlitos, quanto folgo por encontrar-te em posição  vertical!

CARLOS (Cada vez mais inquieto e à parte.) - Gabriela  está aí, está a chegar...

CAPITÃO-GENERAL -  É que... como não ignoras, tua vida é-me preciosa como a  minha. (Batendo-lhe no ombro amigavelmente.) Hein? Negarás que a  tua vida é-me tão preciosa...

CARLOS (Inquieto sempre) - Sim... sim...

CAPITÃO-GENERAL - Felizmente estás muito moço  ainda; tens o futuro diante de ti. Mais dia menos dia, casas-te (Movimento  de Carlos.) Tomara eu já! Há de ser grande a alegria! E aqui  estou eu, que desde já prometo assistir às tuas bodas!

RONDÓ

-  Um dia, olé! te casarás... Muito m’hei de rir... Tu verás... Mais do que tu ‘starei contente... Bem certo estou: procurarás e com certeza encontrarás para mulher - mulher ardente... - Um  dia, olé! te casarás... Muito m’hei de rir... Tu verás... Mais do que tu ‘starei contente
De minha mão receberás Tua mulher pura, inocente; muito feliz então serás! com  que fervor a adorarás! Mas o fervor que sentirás Não  será muito mais fervente Que o meu fervor seguramente.
Ah!  Ah!
- Um dia, olé! te casarás... Muito m’hei de rir...  Tu verás... Mais do que tu ‘starei contente

CARLOS - Não  duvido que assim seja... Oh! mas esse dia ainda está muito longe. (À  parte.) Quem não está longe é Gabriela.

CAPITÃO-GENERAL  - Veremos! Tudo chega!

CARLOS (À parte.) - Quem vai chegar  é ela. (Ouve-se a voz de Castelo Branco.) Eles vêm aí!  Agora é que são elas!

 

CENA XIII

Os  mesmos, CASTELO BRANCO e GABRIELA

 

CASTELO BRANCO  (Entrando com Gabriela.) - Senhor Monsiú, Senhor Monsiú!  Vossa mercê veio a correr!

CARLOS (À parte.) - Antes  não viesse!

CASTELO BRANCO - E despediu-se à francesa... Não  admira, é francês.

GABRIELA - Onde é que se meteu?

CAPITÃO-GENERAL  - Ó que linda mulher!

CASTELO BRANCO - O Capitão-general!  (Inclinando-se, a Gabriela.) Cumprimenta, rapariga.

CARLOS (À  parte.) - Estou em brasas!

CAPITÃO-GENERAL - Oh! mas se não  me engano, é o morgado de São Gabriel, que tão obstinadamente  recusa a ceder-me o cochicholo...

CASTELO BRANCO - É uma recordação  de família, senhor...

CAPITÃO-GENERAL - Bem! bem! Senhor Morgado!  O que lhe digo é que o cochicholo há de ser meu! (À parte.) Manda quem pode...

CASTELO BRANCO (À parte.) - Ó raiva!  não passo de um sogro anônimo!

CAPITÃO-GENERAL - Esta  encantadora senhora é sua filha, Senhor Morgado?

CASTELO BRANCO -  Nossa. (A Gabriela.) Cumprimenta, rapariga.

CAPITÃO-GENERAL  - É linda como os anjos! (Cumprimentado-a.) Minha senhora...

GABRIELA  - Senhor Capitão!

CASTELO BRANCO (Acotovelando-a.) - General...  General...

GABRIELA - Senhor General...

CASTELO BRANCO ( No mesmo.) - Capitão-general.

GABRIELA - Senhor Capitão-general.

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

CAPITÃO-GENERAL - Que ricos  vestidos! Afigura-se uma noiva...

CASTELO BRANCO - E noiva é...

CAPITÃO-GENERAL  - Ah! acaba de casar-se porventura?

CARLOS (Sem saber o que diz.) Precisamente  não... casou-se assim sem se casar...

GABRIELA - Como?!

CARLOS  - Isto é... sim... quero dizer que seu marido...

CAPITÃO-GENERAL  - E o feliz marido de tão interessante menina é?

CARLOS (Atrapalhado  e à parte.) Meu Deus! (Alto.) É... é...

CAPITÃO-GENERAL  - Quem?

CARLOS (Incomodadíssimo.) É... é...

 

CENA  XIV

Os mesmos e MANUEL DE SOUZA

 

MANUEL  DE SOUZA (A Carlos.) - Meu caro, venho dizer-te adeus...

CARLOS  (À Parte.) - Ele! Oh! que idéia. (Apresentando-o.) Ei-lo, o Senhor Manuel de Souza.

GABRIELA e CASTELO BRANCO  - Hein?

GABRIELA (À parte.) - Meu marido!  Ele?

CASTELO BRANCO (Idem.) - Meu genro! Ele?

MANUEL  DE SOUZA - Senhor Capitão-general...

GABRIELA (A  Carlos.) - O que quer isto dizer!

CARLOS (Baixo.) - Cala-te, em nome do céu! O capitão-general não se demora  muito; já vê pois que...

CAPITÃO-GENERAL  (A Manuel de Souza.) - Meus parabéns, Senhor Manuel de Souza: é  muito linda!

MANUEL DE SOUZA - Quem?

CAPITÃO-GENERAL  - Quem há de ser? (Apontando.) Ela...

CARLOS  - Ela...

CASTELO BRANCO - Ela...

GABRIELA  - Eu...

CASTELO BRANCO - Não insista, rapariga!

MANUEL  DE SOUZA - Ah! realmente é muito linda... é...

CAPITÃO-GENERAL  (À parte.) Hão de ir morar no meu palácio, quer queiram,  quer não queiram! (Alto a Manuel de Souza.) Tenho as melhores informações  sobre Vossa mercê, Senhor Manuel de Souza. Em meu palácio de Porto  Alegre tenho um pequeno estado-maior de oficiais de lanceiros. Quero elevá-lo  provando-lhe assim a consideração que...

MANUEL  DE SOUZA - Mas...

CAPITÃO-GENERAL - Hesita? Já  sei quem o impede... (Com malícia.) Sua senhora; não é?

MANUEL  DE SOUZA - Minha mulher?! Quem disse a Vossa Excelência?...

CAPITÃO-GENERAL  - Pois bem : Vossa Excelência levá-la-á consigo.

MANUEL  DE SOUZA - Minha mulher?

CAPITÃO-GENERAL - Os oficiais  do meu estado-maior são quase todos casados e moram, em meu palácio  com suas respectivas metades. Tenho acomodações para mais um casal.  Estou certo que sua senhora não se negará a acompanhá-lo.  (A Gabriela.) Não é assim, minha senhora?

MANUEL  DE SOUZA - Como! Mas não é esta que...

CARLOS  (Tapando-lhe a boca.) Cala-te! É tua mulher... provisoriamente.

MANUEL  DE SOUZA - Hein?

CAPITÃO-GENERAL - Então está  dito?

MANUEL DE SOUZA - É que...

CASTELO  BRANCO - Com licença... Vou por tudo em pratos limpos!

GABRIELA  - Sim, é preciso que se saiba que...

CAPITÃO-GENERAL  - Deixem-me disso! Nada de agradecimentos! Estamos de acordo!

CASTELO  BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA - Sim...

CAPITÃO-GENERAL  - Preparem-se, enquanto vou dispor tudo para a nossa partida. (A Castelo Branco.) Morgado, acompanhe também sua filha a Porto Alegre. (A Manuel de Souza...) Quanto à Vossa mercê...

CARLOS - Ah! Vamos  preparar-nos também...

CAPITÃO-GENERAL - Tu  não... Para que hás de ir, Carlitos? Fica, fica... Lembra-te de  teu reumatismo...

GABRIELA e CASTELO BRANCO (À  parte.) - Pois ele fica?...

CAPITÃO-GENERAL (A  Gabriela.) Vão... vão...

CASTELO BRANCO  (Levando a filha.) - Sim, senhor Capitão-general. Vamos, rapariga!

GABRIELA  - Ah! papai, em que há de dar tudo isto?... (Saem)

 

CENA  XV

MANUEL DE SOUZA E CARLOS

 

MANUEL  DE SOUZA - Então, então? Agora, que estamos sós, é  preciso que me expliques...

CARLOS - Não tenho tempo  agora. Os acontecimentos precipitam-se... Não receies coisa alguma. Tudo  se há de arranjar!

MANUEL DE SOUZA - Mas Gertrudes,  minha mulher,. minha verdadeira mulher?...

CARLOS - Ora  adeus! Está longe...

MANUEL DE SOUZA - Longe... Isso  é o que não sabemos...

 

CENA XVI

Os  mesmos e GERTRUDES

 

GERTRUDES (Entrando, consigo.) Ah! Sinto-me mais forte agora. Não há dúvida. O velhaco do  meu marido cá não está. Andei por todos os quartos. remexi  armários, gavetas, prateleiras... (Vendo Manuel de Souza.) Ah!...

MANUEL  DE SOUZA (Dando um salto.) Ah! Minha mulher!

GERTRUDES (Agitando  a chibata.) - Aqui!

MANUEL DE SOUZA (Hesitando.) - Pois quê!  És tu, minha boa amiga?

GERTRUDES (No mesmo.) - Aqui! Não  ouve?...

MANUEL DE SOUZA - Aqui me tens, aqui me tens! (Aproximando-se  timidamente.) Como tens passado, Gertrudinha? bem?...

GERTRUDES (No  mesmo.) - Manuel de Souza, há dois dias que ando à tua procura!

MANUEL  DE SOUZA (Recuando.) - Eu também tenho andado à tua procura...

GERTRUDES  - Mentes!

MANUEL DE SOUZA (Recuando.) - Olha, pergunta aqui ao Carlos...  Ele que te diga... (Mudando de tom e com volubilidade.) Tenho o prazer  de apresentar-te o meu amigo Monsiú Carlos. (Empurrando-o para  sua frente.) Ele que te diga... Não é assim, Carlos?

CARLOS  - É...

GERTRUDES (Com força.) - Não é!

CARLOS  (Espantado.) - Olé! Olé! (À parte.) Que mulherzinha!

MANUEL  DE SOUZA - Juro-te, juro-te, Gertrudinhas! Olha, estou tão satisfeito por  te tornar a ver...

GERTRUDES - Você sente o que está a dizer?

MANUEL  DE SOUZA - Oh! se sinto!

CARLOS - Oh! se sentimos!

GERTRUDES - Manuel,  quem me dera poder acreditá-lo!

MANUEL DE SOUZA (Querendo tirar-lhe  a chibata.) - Olha, põe isto de parte...

GERTRUDES (Repelindo.) - Não! (Com calma.) Manuel?

MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas!

GERTRUDES  - Você não me enganou?

MANUEL DE SOUZA - Não, coração!

GERTRUDES  - Ah! (Abre-lhe os braços.)

MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas!

GERTRUDES  - Manuel (Abraçam-se.)

MANUEL DE SOUZA - Olha, põe  isto de parte...

GERTRUDES (Severa.) Não! (Com calma.) Manuel?

MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas!

GERTRUDES 0 Nunca mais havemos  de nos separar!

MANUEL DE SOUZA - Nunca mais!

GERTRUDES - ...ca mais!

MANUEL  DE SOUZA (A Carlos.) Belíssima situação!

CARLOS  (O mesmo a Manuel de Souza.) - Sê prudente, e deixa o resto por minha  conta. (Gritos de - Viva o Capitão-general.)

 

CENA  XVII

Os mesmos, povo, o CAPITÃO-GENERAL, depois GABRIELA e CASTELO BRANCO, depois TEOBALDO

 

FINAL

 

CORO  -

A correr bem pressurosos, neste dia festival, nós bradamos jubilosos: - Viva o Capitão-general! (Bis.)

CAPITÃO-GENERAL  -

Ah! para um Capitão-general, é bom gozar  popularidade! Tendes para comigo essa bondade, ó filhos do Brasil  e Portugal!

CORO - A correr, etc.

(Durante o coro entram castelo  Branco e sua filha.)

CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.) - Já pronto está?

(A Castelo Branco e Gabriela) - Prontos  estão?

MANUEL DE SOUZA (Atrapalhado.) - Mas senhor... (À  parte.) Ai! que aflição!

CAPITÃO-GENERAL -

Pra  Porto Alegre vou, e digo: o senhor me acompanhará!

GERTRUDES  (Admirada.) - Pra lá!

CAPITÃO-GENERAL -

E  irá com sua esposa, amigo.

GABRIELA (À parte, com tristeza.)  - Comigo!

GERTRUDES (À parte, com alegria.) - Comigo!

Concertante

CAPITÃO-GENERAL  -

Pasmados de surpresa a todos vendo estou! Este  anjo de beleza por pouco não chorou! Que vida folgada - não  há mais que ver- embora casada com ela vou ter!

TODOS - Eu  confundido estou!

CARLOS,CASTELO BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA

-  De terror, de surpresa .......-  De terror, de surpresa a morrer quase estou! ...........a  morrer quase estou! Há que ver, com certeza ........Ó  que grande afoiteza no que aqui ver vou! ..............eu  ver agora vou! Com esta embrulhada, ..........Com  esta embrulhada, das duas - é ver - ..................não  há mais que ver; à força levada ........................à  força levada qual é que há de ser! .............à  força vou ser!

GERTRUDES  -

Com ele levada, que vida vou ter! Que vida folgada! Não há que dizer! Mui considerada agora vou ser!

(O  Capitão-general sobe ao fundo para dar ordens.)

GERTRUDES (A  Manuel de Souza.) -

Com gentileza agradecer vou  já um favor de tal natureza...

MANUEL DE SOUZA (Vivamente.)  - Não! Não! agradecer não vá!

GABRIELA (A  Carlos.) -

Esta fineza eu recusar vou já, mas com toda a delicadeza.

CARLOS (Vivamente.) - Não! Não!  oh! recusar não vá!

CASTELO BRANCO - Que grande maçada!

CARLOS  - Que grande embrulhada!

MANUEL DE SOUZA - Oh! que trapalhada!

OS  TRÊS -

Com ambos casada como é que há  de ser!

REPETIÇÃO DO CONCERTANTE - De terror, etc.

TEOBALDO  (Aparecendo ao fundo.) - Vossa carreta pronta está!

GERTRUDES  - Vamos embora, já e já!

CAPITÃO-GENERAL -

Meus  senhores e senhora, não pode haver demora!

(A Manuel de Souza.)  Senhor, quando quiser...

MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - Está  tudo perdido!

CARLOS - Toma sentido!

MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - E minha mulher?

CARLOS - Não faças ruído! Eu cá já sei o que farei...

CAPITÃO-GENERAL -

Meus  senhores e senhora, já, já nos vamos sem demora embora! Não mais esperarei!

CORO - Partamos sem demora!

A correr, etc.

(Gabriela,  o Capitão-general, Castelo Branco e Manuel de Souza saem pelo fundo.)

GERTRUDES  (Não reparou na saída do marido e desespera, vendo-se abandonada.) Então?! Deixam-me aqui? Manuel! Manuel! Ah! (Desmaia nos braços  de Carlos, que a entrega a Bento, que entra espavorido. Todos no fundo agitam  lenços e chapéus.)

[(Cai o pano)]

 

ATO SEGUNDO

 

Jardim,  no palácio do Capitão-general. À direita, primeiro plano,  pequeno pavilhão, para o qual se sobe por uma escada dupla. À esquerda,  segundo plano, um banco de mármore, com recosto. Avenida em perspectiva.

 

Cena  I

Oficiais de Lanceiros, soldados, depois Teobaldo, depois  Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza

 

Introdução

 

CORO  -

Qual é, qual a razão de sermos convidados pr’esta reunião? De tal convocação, estamos espantados! Qual é, qual a razão desta reunião?...

TEOBALDO  (Saindo do pavilhão.) -

Olé! parabéns  por tal pontualidade! É muito natural que ao capitão agrade o vosso zelo pelo serviço militar.

CORO - Mas  queira confessar qual é, qual a razão, etc.

TEOBALDO - 

Vosso, silêncio agora, amigos meu, reclamo; de  vossa parte espero um pouco de atenção: por isso que vos vou  dar comunicação de uma resolução de nosso  ilustre amo.

TODOS (Gritando.)

Viva o sem rival Capitão-general!

TEOBALDO Bico calado; lá não está...

TODOS  (Reprimindo o entusiasmo) - Bico calado: não está lá

TEOBALDO  - Psiu, psiu!

Eu principio.

(Abre um folha de papel e lê)

"Nós, Capitão-general nesta cidade de Porto Alegre,  por Sua Majestade Fidelíssima, a quem Deus guarde, fazemos saber a todos  os oficiais e mais funcionários residentes em nosso palácio, que  nesta data havemos por bem nomear Manuel de Souza capitão do regimento  de lanceiros,e Dona Gabriela, sua mulher, nossa leitora."

TODOS  (Gritando) - Viva o sem rival

Capitão-general!

TEOBALDO  - Bico calado: lá não está...

TODOS (Como acima.) - Bico calado: não está lá...

TEOBALDO -

Em  breve os novos nomeados vereis aqui chegar, amigos meus; eu lhes vou dar  os tít’los seus, para poderem ser empossados. De vós nenhum convém deixar de fazer zunzum

TODOS -

De fazer  um zunzum é não deixar de modo algum!

(Murmúrio  prolongado, durante o qual entram Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza,  revestidos com os uniformes de seus novos cargos)

GABRIELA,CASTELO BRANCO  e MANUEL DE SOUZA

- Vós com tais atenções, cativais  corações

TODOS -

Ilustres recém-nomeados se amigos sois do Capitão, Também sereis afeiçoados aos cavalheiros que cá estão! Ilustres recém-nomeados!

TEOBALDO  -

Agora vou (vós ides ver, senhores meus, formosa  dama) sem mais aquela proceder ao que estabelece o programa.

(A  Gabriela.) De pro meu lado vir faça o favor.

GABRIELA - Aqui  estou, meu senhor.

TEOBALDO -

O Capitão-general vos nomeia sua leitora.

GABRIELA - Que profissão maçadora.

TEOBALDO  -

É muito especial, é muito original!

TODOS  -

É muito original, é muito especial!

TEOBALDO  -

Ao Morgado agora vou dar um decreto.

CASTELO  BRANCO - Aqui estou.

TEOBALDO -

Feito está  Capitão-mor, que é das honras a maior.

TODOS -

Feito  está Capitão-mor, que é das honras a maior.

CASTELO  BRANCO - Oh que bom! Eu vos agradeço!

TEOBALDO -

A  cerimônia recomeço. Senhor Manuel de Souza, eu quero dar-lhe  alguma cousa.

(Trazem uma espada, que Teobaldo apresenta a Manuel de  Souza.)

TEOBALDO e OFICIAIS -

Capitão,  não suponha que esta luzente espada é chanfalho vulgar, não pode alguém matar. Ela não envergonha ninguém,  desembainhada: quem a tiver na mão dizima um batalhão! Ela é longa, é pontuda, e de puro metal! Espada sem rival luzente e pontiaguda!

TODOS - Ela é longa, etc.

TEOBALDO e  OFICIAIS -

No auge da batalha precisa um belo dia ver morto aos seus pés pimpões aos seis, aos dez? - Conte  que ela não falha! Em um segundo enfia barrigas a valer: é  só - tirar, meter!... Ela é longa, etc

(Repetição  do Coro)

- Ilustres recém-nomeados, etc.

(Saem  todos, com exceção de Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza.)

 

CENA II

GABRIELA, CASTELO BRANCO e MANUEL  DE SOUZA

 

MANUEL DE SOUZA - Foram-se?

GABRIELA  - Sim...

MANUEL DE SOUZA - Muito bem, Agora, meu caro Senhor  Morgado e minha excelente senhora, a trapalhada fica por vossa conta e risco.

CASTELO  BRANCO - Como por nossa conta e risco?

GABRIELA - Dar-se-á  o caso que o Senhor Manuel de Souza nos queira abandonar?

MANUEL  DE SOUZA - Há uma hora chegamos, há uma hora procuro ocasião  para escafeder-me.

GABRIELA - Mas isso é impossível!

CASTELO  BRANCO - Abandonar-nos! Era o que faltava!

GABRIELA - Que  havemos nós dizer ao capitão-general, quando não o vir conosco?

MANUEL  DE SOUZA - É isso justamente o que fica por vossa conta e risco. Cada um  responde por si. Minha mulher com certeza veio ao nosso encalce, e, de um momento  para o outro, cai aqui como um raio, bumba! Oh! bem a conheço! É  capaz de deitar abaixo este palácio! prefiro não esperar pela catástrofe,  e despedir-me... Tenho a honra de.... (Dá alguns passos)

GABRIELA  (Pegando-o pelo braço.) Não, não, não! Não  há de ir assim sem mais nem menos, Ajude-me, papai.

CASTELO  BRANCO - Sim, rapariga. (Pegando-o pelo outro braço.) Vossa Mercê  não se há de ir embora, Senhor Manuel de Souza.

MANUEL  DE SOUZA (Tentando livrar-se) - Oh! mas isto é um violência.  Já vos disse que...

CASTELO BRANCO - Não se  há de ir embora, Senhor Manuel de Souza!

GABRIELA  - Não se há de ir embora, Senhor Manuel de Souza!

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

 

CENA III

Os  mesmos e CARLOS

 

CARLOS (Aparecendo  ao fundo.) - O que é isto? o que é isto?

TODOS  - Carlos!

GABRIELA (Correndo para ele.) - Ai! o meu  queridinho!

CARLOS - Silêncio. Podem ouvir-te. Ah!  meus amigos, estou morto... morto! Segui-vos toda a viagem a cavalo, à  distância de meia hora!

GABRIELA - Coitado do querido"

CASTELO  BRANCO - Quer sentar-se? (Indica-lhe o banco.)

CARLOS  - Não, não, obrigado!

CASTELO BRANCO - Melhor!  (À parte.) Tolo fui eu em lho oferecer.

CARLOS  - Agora, quero saber em duas palavras de tudo que se tem passado... O Capitão-general...

GABRIELA  - Logo que desceu da carreta, entregou-nos ao ajudante de ordens e ordenou-lhes  que nos apresentasse todo o estado-maior.

CASTELO BRANCO  - Estamos no maior estado de satisfação; o capitão-general  confundiu-nos com dignidades! A rapariga está feita leitora.

CARLOS  - Leitora? Que diabo de dignidade é essa?

CASTELO  BRANCO - Ali o Senhor Manuel de Souza é capitão de lanceiros, e  eu Capitão-mor não sei de onde.

CARLOS - Ele,  porém, de nada desconfia...

GABRIELA - Nada...

CARLOS  (Respirando.) - Ah! sinto-me melhor!

GABRIELA - O  que há é que o Senhor Manuel de Souza queria por força ir-se  embora!

CARLOS - Ir-se embora!

CASTELO  BRANCO - E deixar-nos ao Deus dará!

MANUEL DE SOUZA  - Meu amigo, tu bem sabes: eu tenho muita pressa... Além disso tu cá  estás; arranja-te como puderes. (Estendendo-lhe a mão.) Até  mais ver, meu bom Carlos.

CARLOS - É irrevogável  essa resolução? Queres ir-te embora?

MANUEL  DE SOUZA - Quero ir-me embora!

CARLOS - Seja (Estendendo-lhe  a mão.) - Até mais ver, Manuel de Souza.

MANUEL  DE SOUZA - Até mais ver.

CARLOS (Apertando sempre  a mão de Manuel de Souza.) Mas olha lá... Tu ainda não  sabes a conseqüência do que vais fazer. O teu procedimento é...  é grave.

MANUEL DE SOUZA (Inquieto.) - Grave?..

CARLOS  - Decerto! Agora que estás feito capitão, safares-te sem ao menos  dizer água-vai é simplesmente cometer crime de deserção.  Expõe-te a acabar teus dias em um aljube.

MANUEL  DE SOUZA (Saltando.) -Hein?

CARLOS - Enfim, isso  é lá contigo. (Estendendo-lhe a mão.) Até mais  ver, Manuel de Souza...

GABRIELA (No mesmo) - Até  mais ver, Manuel de Souza!

CASTELO BRANCO (A Gabriela.) Não insistas, rapariga! (Imitando os outros.) Até mais ver,  Manuel de Souza!

MANUEL DE SOUZA - Deixe-me estar! Não  me aborreçam! Então estou obrigado a ficar aqui... E minha mulher?

CARLOS  - Não te dê isso cuidado... Tua mulher, por enquanto, não  pode deitar água na fervura.

MANUEL DE SOUZA - Como  assim?

CARLOS - Eis o caso: no momento em que partiste,  Dona Gertrudes desmaiou nos meus braços... (A Manuel de Souza.) Tu não sabes, Manuel de Souza, o que é ter tua mulher nos braços.

MANUEL  DE SOUZA - Como não sei? Ora! Quantas vezes!

CARLOS  - Fi-la transportar para um dos quartos da estalagem e mandei procurar um médico...  Infelizmente não há médicos em Viamão... Veio um alveitar. 

TODOS - Um alveitar!

CARLOS - Um  alveitar, que prometeu-me fazer com que a moléstia durasse oito dias, pelo  menos...

GABRIELA - E nós? e nós?

CASTELO  BRANCO - Continuamos a representar esta farsa? É preciso que resolvamos  alguma coisa!

CARLOS - Eu sei... mas resolver o quê?  Enfim, verei, verei... Primeiro que tudo, quero estudar a situação...  se o Capitão-general...

GABRIELA - Ele aí  vem... O melhor seria talvez confessar-lhe tudo.

CARLOS  - Confessar-lhe tudo! Nunca! Silêncio e prudência!

 

CENA  IV

Os mesmos e o CAPITÃO-GENERAL

 

CAPITÃO-GENERAL  - Sou eu; incomodo-os talvez?

MANUEL DE SOUZA - Qual incomodar-nos!

GABRIELA  - Pelo contrário...

CASTELO BRANCO - Vossa Excelência  dá-nos sempre muito prazer...

CARLOS - Não  se quer sentar? não se quer sentar?

CAPITÃO-GENERAL  - Carlitos! Mas o que é isto? Ficaste no campo, em convalescença,  e, apenas chegado, encontro-te aqui!

CARLOS - Vossa Excelência  sabe? o reumatismo precisa de exercício. Mas se Vossa Excelência  quiser, volto...

CAPITÃO-GENERAL - Fica. Eu sempre  gostei de ver-te a meu lado. Mas permite: deixa-me dar atenção aos  noivos. (A Gabriela.) Então? Está satisfeita?

GABRIELA  - Satisfeitíssima.

CASTELO BRANCO - Senhor Capitão-general,  estamos todos satisfeitíssimos; não é assim meu genro? (Vendo  que Manuel de Souza não lhe responde, dá-lhe uma cotovelada.) Não é assim, meu genro?

MANUEL DE SOUZA -  Ah! Sou eu que... (Vivamente) Sim... sim...

CARLOS  - É como Vossa Excelência vê: estão todos satisfeitíssimos.  Baixo a Manuel de Souza.) Presta mais atenção, desalmado!

GABRIELA  - Satisfeitíssimos.

CASTELO BRANCO - Não insistas,  rapariga!

CAPITÃO-GENERAL - Agora temos de tratar  das acomodações da família.

GABRIELA  - Da nossa acomodação?

CAPITÃO-GENERAL  - Sim. Lembrei-me daquele pavilhão. É pequenino, mas ao pintar para  uma lua-de-mel. Uma saleta, um quarto pequenino...

GABRIELA  - Oh! papai! um quarto pequenino!...

CARLOS - Como um quarto  pequenino? (Baixo a Manuel de Souza.) Protesta, protesta, Manuel de Souza!

MANUEL  DE SOUZA - (Baixo.) Homem, olha: há situações que  tem suas exigências...

CARLOS (À parte) - Velhaco!

CAPITÃO-GENERAL (A Gabriela.) -  Então? não me agradece?

GABRIELA - É  quê... Senhor Capitão-general...

CAPITÃO-GENERAL  - É quê... o quê? Vejamos...

GABRIELA  - Um quarto pequenino...

CAPITÃO-GENERAL - E então...

GABRIELA  - Preferiria dois grandes...

CASTELO BRANCO - Muito grandes...

CARLOS  - Enormes!!!

GABRIELA - Enormíssimos!!!

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

CAPITÃO-GENERAL  - Esta agora!

CARLOS - Mas é o mesmo... Manuel de  Souza acaba de dizer-me que ficará com a saleta, e Dona Gabriela tomará  conta do quarto pequenino...

CAPITÃO-GENERAL - Como?!  Separados?! Já?! E casou-se esta manhã? Oh! Senhor Manuel de Souza!

MANUEL  DE SOUZA - Perdão, Senhor Capitão-general; mas não sou eu  que...

CARLOS - Sim, é um costume de família!

CAPITÃO-GENERAL  - Ah!

CARLOS - É tradicional dos Manuéis de  Souza a separação de leitos.

CAPITÃO-GENERAL  - Deveras?...

CARLOS - E o costume tem sucedido de pais  a filhos!

CAPITÃO-GENERAL - Ah! (À parte.) - É original! (A Carlos.) - Já estarão frios?

CARLOS  - Frios? Não! Calmos, estão calmos...

CAPITÃO-GENERAL  - (À parte.) - Vai tudo às mil maravilhas! (Alto.) Vou dizer ao meu ajudante que se ponha inteiramente às suas ordens. Até  logo.

TODOS - Até logo, Senhor Capitão-general

CAPITÃO-GENERAL  (À parte.) Vai tudo às mil maravilhas.

(Apenas  desaparece o Capitão-general, Carlos, Gabriela e Castelo Branco voltam-se  para Manuel de Souza às gargalhadas.)

 

CENA V

Os  mesmos, menos o CAPITÃO-GENERAL

 

MANUEL  DE SOUZA (A Carlos.) - Fizeste-a bonita. Agora peço-te eu que me  digas o que vai aquele homem pensar a meu respeito.

CARLOS  - Pense lá o que quiser. Eis-nos livres do primeiro perigo: estou mais  sossegado sobre a nossa situação.

MANUEL DE  SOUZA - Como assim?

GABRIELA - Como assim?

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

CARLOS - Muito simplesmente.  Agora que o Capitão-general engoliu a pílula, convém que  permaneçamos algum tempo no status-quo.

MANUEL  DE SOUZA - Como no status-quo?... Queres então que eu fique sendo  marido de tua mulher?

CARLOS - Decerto, isto é, oficialmente.

MANUEL  DE SOUZA - Está visto: na salinha. Mas, vem cá, e minha mulher?

CARLOS  - E tu a dares com tua mulher! Tua mulher! Confessar-lhe-emos tudo, e, logo que  haja cá entre nós certa combinação, verás que  vidinha...

MANUEL DE SOUZA - Como assim?

CASTELO  BRANCO - Como assim?

GABRIELA - Como assim?

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

CARLOS - Como assim!  Como assim! Parece-me que me expliquei perfeitamente, apesar de falar mal o português.  Vejamos! Manuel de Souza é teu marido, é certo... Vamos, porém,  estabelecer uma distinção: ele não passa de um marido para  o mundo, de uma marido... honorário...

GABRIELA -  E daí?

CARLOS - Daí que ele é teu marido  das nove horas da manhã às dez da noite...

GABRIELA  - Mas...

CARLOS - E das dez horas da noite às nove  da manhã cede o lugar a outro, o verdadeiro, o legítimo...

GABRIELA  - Oh!...

MANUEL DE SOUZA - Tu ficas com o melhor...

CARLOS  - Pudera!

GABRIELA - Sim: mas ouve cá! Eu preferia  ser tua mulher tanto de noite como de dia...

CARLOS - De  noite como de dia! Para quê, meu amor? Basta-nos a noite... Queres tu saber?

COPLAS

I

-  Bem vês: de dia, anjo querido, há cem mil coisas que arranjar: nem a mulher, nem o marido, ocasião têm pra conversar. Enquanto  o esposo o tempo gasta a dirigir negócios mil, no toucador a esposa  casta faz-se-lhe aos olhos mais gentil. Para lidar com o deus Cupido nunca ninguém ‘stá de maré de dia, ó meu anjo  querido...

GABRIELA - Mas nem sempre assim é...

II

-  O bom marido e a mulher sua vão passear desde o arrebol, pois quem  se ama à luz da lua, bem pode amar-se à luz do sol. Dos  calendários dos casados tire-se o dia, e me dirão o que  será dos desgraçados!... Horas de amor lhes faltarão... Não sendo assim, eu te afianço, hei de zangar-me muita vez: a noite fez-se pro descanso...

CARLOS - Pas toujours... Tem seus  quês...

GABRIELA (Ao pai) - O que diz a isto, papai?

CASTELO  BRANCO - Eu não digo nada, rapariga: estou por tudo contanto que me deixem  ser Capitão-mor. É quanto quero! Assim tenho a propriedade segura.

GABRIELA  - Papai não pensa em outra coisa.

CASTELO BRANCO - Ora essa! Eu cá  não sou namorado: sou proprietário.

CARLOS - Está dito!  Manuel de Souza está por tudo! (Oferecendo o braço a Gabriela.) Vem daí...

MANUEL DE SOUZA - Onde vais tu?

CARLOS - Dar uma  volta pelo jardim.

MANUEL DE SOUZA - Com a minha mulher!

CARLOS -  Com a minha!

MANUEL DE SOUZA - Que é minha para o mundo; de sorte  que se ele os encontrar...

CARLOS - Eles quem?

MANUEL DE SOUZA - O  mundo...

CARLOS - Ora!

MANUEL DE SOUZA - Há de supor...

CASTELO  BRANCO - Quem?

MANUEL DE SOUZA - O mundo...

CARLOS - Ora!

MANUEL  DE SOUZA - Há de supor que sou algum...

CARLOS (Dando o braço  a Gabriela.) Deixa-o supor. Tens a consciência tranqüila... é  quanto te basta.

GABRIELA - É quanto lhe basta, Senhor Manuel de  Souza. (Carlos e Gabriela saem a rir.)

CASTELO BRANCO (Batendo-lhe  no ombro.) - A consciência... é tudo!

MANUEL DE SOUZA -  Não insista, Senhor Morgado!

CASTELO BRANCO (Rindo.) - Ah!  ah! ah! Pobre Manuel de Souza. (Sai pelo lado oposto àquele por onde  saíram Carlos e Gabriela.)

 

CENA VI

MANUEL  DE SOUZA e depois GERTRUDES

 

MANUEL  DE SOUZA (Só.) - Ainda em cima zombam de mim... ingratos! Mas enfim  eles não sabem o perigo que todos corremos! Gertrudes ainda não  se pronunciou em tudo isso, e quando se pronunciar, bumba! Lá se vai tudo  quanto Marta... (neste momento Gertrudes, que apareceu ao fundo, tem-se aproximado  e dá-lhe uma chibatada nas pernas.) Ah! Gertrudes... Pronunciou-se!

GERTRUDES  (Atira fora a chibata e cruza os braços.) - Monstro!

MANUEL  DE SOUZA - Minha querida amiga...

GERTRUDES - Cão!

MANUEL  DE SOUZA - Minha querida amiga...

GERTRUDES - Cachorro!

MANUEL  DE SOUZA - Queridinha (Á parte.) Mau! desço de cão  a cachorro!

GERTRUDES - Saltimbanco!

MANUEL  DE SOUZA - Meu anjo! (À parte.) Bem! Agora subi a homem!

GERTRUDES  - Você não me esperava, não é assim?

MANUEL  DE SOUZA - Oh! pelo contrário... Quero dizer... eu to digo... Estava já  um pouco impacientado... Já havia dito com os meus botões: Gertrudinhas  não vem! Gertrudinhas não vem!

GERTRUDES -  Bárbaro! Abandonar-me em uma estalagem no campo, safando-se com outra mulher  às minhas barbas!

MANUEL DE SOUZA - Atende, santinha...

GERTRUDES  - Pérfido!

 

DUETO

GERTRUDES  - Ah! tudo isto me exaspera!

MANUEL DE SOUZA - Mas isto  o quê?

GERTRUDES - Todo nervoso meu se altera!

MANUEL  DE SOUZA - Porém por quê?

GERTRUDES - Nós  somas todas mil extremos...

MANUEL DE SOUZA - Pois não,  pois não!

GERTRUDES - Que recompensa recebemos?

MANUEL  DE SOUZA - A ingratidão!

GERTRUDES -

Enquanto  estou no lar querido a trabalhar, pobre mulher! - por fora o bom de meu  marido façanhas faz e quantas quer! ‘Stou danada!

MANUEL  DE SOUZA - Vê tu lá!

GERTRUDES - ‘Stou danada!

MANUEL  DE SOUZA - Vê tu lá!

GERTRUDES - Danada! danada!

Em  minha mão não está!

Zás!

(Dá-lhe  uma bofetada.)

MANUEL DE SOUZA - Ah!

GERTRUDES  (Soltando um suspiro de satisfação.) - Consolada!

GERTRUDES  MANUEL DE SOUZA - Ai! que bom bofetão - Meu Deus! que bofetão

Não  estava mais em minha mão! Porém, amor, não tens razão!

MANUEL  DE SOUZA - Eu vou explicar-te tudo em duas palavras: não conheço  essa mulher...

GERTRUDES - Não a conheces?

MANUEL  DE SOUZA - Quero dizer: conheço-a sem conhecer. O Carlitos foi que me pediu  para... Não vês que o capitão-general... entendes?

GERTRUDES  - Não!

MANUEL DE SOUZA - Fui obrigado a dizer que  ela é minha mulher; mas, no fundo, é de Carlitos.

GERTRUDES  - Do Carlitos?

MANUEL DE SOUZA - Palavra!

GERTRUDES  - Falas verdade, Manuel de Souza!

MANUEL DE SOUZA - Já  te dei a minha palavra de honra, Gertrudinhas!

GERTRUDES  - Pois bem: seja, acredito; mas pelo sim, pelo não, levo-te comigo... Assim  estarei mais sossegada. Vamos! passa adiante; voltemos para casa.

MANUEL  DE SOUZA - Tem paciência, Gertrudinha; mas isso agora é que fia mais  fino...

GERTRUDES - Então você quer levar toda  sua vida aqui? Fazendo fosquinhas às mulheres, não é assim?  Ao diabo da sujeita do retrato, talvez?

MANUEL DE SOUZA  - Oh! Gertrudinhas! Eu todos os dias me retrato do diabo da sujeita! E tu a dares!  Não se trata agora disso... Já vejo que não reparaste em  mim... vê como estou vestido... Olha esta farda, esta espada! Aqui onde  me vês, sou o Senhor Capitão!

GERTRUDES - Capitão?  É verdade! Não tinha feito reparo! (À parte, examinando-o.) E como lhe fica bem a farda!

MANUEL DE SOUZA - Já  tu vês que não me posso ir embora. Mas descansa: quando não  houver serviço, estarei ao teu ...

GERTRUDES - Ao  meu o quê?

MANUEL DE SOUZA - Serviço... de  manhã ao meio-dia, à noite, sempre, sempre, sempre...

GERTRUDES  (Com ternura.) Manuel de Souza!

MANUEL DE SOUZA -  Estão feitas as pazes?

GERTRUDES (Apresentando-lhe  as faces) - Toma! (Ele beija-a.)

MANUEL DE SOUZA  (À parte.) - Apre! Custou...

GERTRUDES - Manuel  de Souza, estou muito cansada... Quero descansar... Onde é o meu quarto?

MANUEL  DE SOUZA (À parte.) - Onde diabo há de ser?

GERTRUDES  - Mais um beijinho!...

MANUEL DE SOUZA - Dois e três  se quiseres. (Saem aos beijos pela direita.)

 

CENA  VII

O CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO

 

CAPITÃO-GENERAL  - Que vejo! Manuel de Souza aos beijos com uma mulher! Já!...

TEOBALDO  - O novo capitão está a fazer o seu pé-de-alferes.

CAPITÃO-GENERAL  - Ah! Agora compreendo a frieza de hoje pela manhã, Vamos! Vamos, o momento  é favorável. Teobaldo, vai dizer a Dona Gabriela que lhe desejo  falar.

TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general. (Sai.)

CAPITÃO-GENERAL  (Só) - O que vou praticar é simplesmente uma velhacada. Dona  Gabriela é linda como os amores; e como o marido é um Manuel de  Souza, proponho-me um candidato. É muito engenhoso o meio que pretendo  empregar para a conquista. Nomeio-a minha leitora. É caso virgem semelhante  nomeação; mas ora Deus! por que não pode ter um capitão-general  sua leitora? Eu não gosto de leitura; mas é que os livros têm  tanta influência sobre as mulheres, como as mulheres sobre os livros. Hei  de mandar pedir para a Europa bons autores. Na minha biblioteca nada tenho que  sirva para o fim que almejo. Encontrei uma coleção de contos italianos,  mas italianos! (Tirando uma enorme folha de papel do bolso.) Escolhi um  dos mais divertidos, e traduzi-o para o português... Conseguirei alguma  coisa? Ela aí vem.

CENA VIII

O  CAPITÃO-GENERAL e GABRIELA

 

CAPITÃO-GENERAL  - Aproxime-se minha senhora.

GABRIELA - Vossa Excelência mandou-me  chamar?

CAPITÃO-GENERAL - Tenho necessidade de seus serviços...

GABRIELA  - É que... Eu tomo a liberdade de confessar a Vossa Excelência...

CAPITÃO-GENERAL  - O quê?

GABRIELA - Eu não gosto da leitura...

CAPITÃO-GENERAL  - Tampouco eu!

GABRIELA - Tem graça.

CAPITÃO-GENERAL  - Mas é o mesmo. Havemo-nos de habituar. Então, comecemos... Ali,  debaixo daquele caramanchão... (Toma-lhe a mão.)

Dueto

CAPITÃO-GENERAL  -

Dê-me a sua alva mão... Sob a folhagem  escura, proceda-me a leitura lá no caramanchão. É  bela esta verdura; a brisa aqui murmura melíflua canção. Ai, vamos lá! não tema, não.

GABRIELA -

Vossa  Excelência quer que eu leia lá, para onde me conduz? Mande  buscar uma candeia, pois eu não posso ler sem luz.

CAPITÃO-GENERAL  -

Ai! não me faça cara feia! O que receia?

Juntos

CAPITÃO-GENERAL  - Dê-me a sua alva mão, etc.

GABRIELA -

Ó  céus! que posição a minha! Convém ter toda discrição: cautela e caldo de galinha... Não devo ir pro caramanchão.

(O  Capitão-general quer arrastá-la para o caramanchão: Gabriela,  com um gesto designa-lhe o banco de pedra. Ele inclina-se e fá-la sentar-se,  conservando-se de pé.)

CAPITÃO-GENERAL -

Então,  minha leitora? Comece a dobadoura! O que vai ler é bom...

(Dizendo  isto, apresenta-lhe a enorme folha de papel escrita.)

GABRIELA - Que  grande cartapácio!

CAPITÃO-GENERAL - É lê-lo  alto e bom som.

GABRIELA (Lendo.) -

"Um  conto de Bocácio." Por quê, não me dirá? Em manuscrito está?

CAPITÃO-GENERAL -

De  um livro bom e decente o traduzi literalmente. Verá que sã  moral! que conto original! Se gostar dele, presto, apenas em um mês, eu lhe prometo o resto verter pro português. Queira pois ler o conto: eu para ouvir ‘stou pronto.

GABRIELA (Lendo.) - "O Rouxinol.

Conto I - Lá na România, o bom país, era uma vez um  cavalheiro; tinha uma filha, a história o diz, dos corações  o cativeiro. Vai senão quando um mocetão apaixonou-se da  donzela, e tanto fez o maganão, que certa noite a nossa bela, presa do amor no doce anzol, disse ao papai com ar tranqüilo: "Canta  no bosque o rouxinol, de perto já quero ir ouvi-lo..."

(Ergue-se  e vai maquinalmente deixando cair o papel que o Capitão-general toma-lhe  das mãos.)

Ah!ah!ah!

(Afasta-se.  O Capitão-general coloca o papel diante dos seus olhos. Ela continua a  ler como que sem saber o que faz.)

"Dos bosques  entre a sombra, o rouxinol cantou, e, sob a verde alfombra, a bela  o escutou..."

JUNTOS Dos bosques entre a sombra, etc.

(O  Capitão-general apresenta-lhe de novo o papel. Ela hesita um momento e,  afinal, decide-se e continua a leitura.)

II
" O pai da moça (valha-o Deus) como sucede em toda a história, era um sandeu entre os sandeus e tinha uma alma bem simplória; eis que, porém, desconfiou, não sei por quê, do passarinho, e tanto fez, tanto pensou, que ao bosque foi devagarinho... A lua tendo  por farol, descobre o pai um desaforo: o mavioso rouxinol tinha um  bigode espesso e louro!"

(Deixa cair o papel. O Capitão-general  ergue-o e guarda-o.)

GABRIELA -

Ah!ah!ah! Dos bosques entre a sombra, etc.

CAPITÃO-GENERAL - Então,  minha encantadora menina? O que diz desta história; não é  tão bonita?

GABRIELA (Perturbada.) - Sim... Sim... mas...  (À parte.) Fez-me medo este homem! (Alto.) Perdão,  Senhor Capitão-general, mas não me posso demorar.

CAPITÃO-GENERAL  - Pois já?

GABRIELA - Meu marido está à minha espera.  (Cumprimentando-o.) Senhor Capitão-general! (Dirigindo-se ao  pavilhão e à parte.) É muito arriscado semelhante emprego  de leitora. (Sai.)

 

CENA IX

O  CAPITÃO-GENERAL, depois CARLOS

 

CAPITÃO-GENERAL  (Só.) - Foi-se... O conto produziu algum efeito. Vai tudo às  mil maravilhas! (Vendo Carlos, que chega.) Ah! és tu, Carlitos?  chegas muito a propósito...

CARLOS - Ainda bem! Em  que posso ser útil a Vossa Excelência?

CAPITÃO-GENERAL  - Aqui onde me vês estou contente como se me houvessem feito rei! Quero  que te aproveite a minha alegria!

CARLOS - De que modo?

CAPITÃO-GENERAL  - O que dirias tu, se me esquecesse do passado?

CARLOS -  Como?

CAPITÃO-GENERAL - Se te perdoasse?

CARLOS  - Se me...

CAPITÃO-GENERAL - Se te dissesse: casa-te,  Carlitos, e nada temas. CARLOS -(Muito alegre.) - Oh! que coração  o de Vossa Excelência. Muito obrigado, Senhor Capitão-general! muito  obrigado!

CAPITÃO-GENERAL - Só te peço  em troca um pequeno serviço...

CARLOS - Um pequeno  serviço?

CAPITÃO-GENERAL - Quase nada. Vais  ver. (Tomando-o pelo braço.) Meu amigo, primeiro que tudo, convém  saberes de uma circunstância: eu estou apaixonado!

CARLOS  - Ah! Sim?

CAPITÃO-GENERAL - Por uma adorável  mulher. Aposto que já adivinhaste quem é?

CARLOS  - Não sei quem seja...

CAPITÃO-GENERAL - Pois  quem há de ser senão a mulher do Manuel de Souza?

CARLOS  (À parte.) - Gabriela!

CAPITÃO-GENERAL  - Então, não tenho bom gosto?...

CARLOS (Atônito.) - Mas, senhor...

CAPITÃO-GENERAL - Não é  linda?

CARLOS - Sim... sim... linda... (À parte.) Não me faltava mais nada!

CAPITÃO-GENERAL  - Quanto ao serviço que te falei... aposto também que já  adivinhaste de que se trata? Conto com o teu auxílio...

CARLOS  - Com o meu auxílio?... E é de mim que Vossa Excelência vem  exigir semelhante coisa?

CAPITÃO-GENERAL - Então,  por quê?

CARLOS - De mim... de mim... que sou tão  amigo de Manuel de Souza...

CAPITÃO-GENERAL - Pois  bem, por isso mesmo... como tens intimidade com a família, não te  custará nada deixar de quando em quando escapar um elogio... Hein? Está  dito?

CARLOS - Pelo contrário! Hei de fazer o possível  para frustrar os desígnios de Vossa Excelência. Ora esta! Manuel  de Souza! Um amigo daquela ordem!

CAPITÃO-GENERAL  - E eu não era também teu amigo?

CARLOS (Caindo  em si.) - É verdade.

CAPITÃO-GENERAL -  Já vês que...

CARLOS - Vamos lá! Vossa  Excelência disse aquilo a brincar! não é capaz de semelhante  atentado à honra alheia!

CAPITÃO-GENERAL -  Com que calor a defendes! Parece que se trata de tua mulher!

CARLOS  - Ora! Eu gosto tanto daquele Manuel de Souza!

CAPITÃO-GENERAL  - E eu também; mas gosto mais de Dona Gabriela. (Pausa.) Decididamente  não me prestas o teu auxílio?

CARLOS - desculpe,  Vossa Excelência, mas não posso...

CAPITÃO-GENERAL  - Pois bem! Olha, aí vem Manuel de Souza; verás que vou preparar  tudo sem o teu auxílio.

 

CENA  X

Os mesmos e MANUEL DE SOUZA

 

CAPITÃO-GENERAL  - Capitão, vá buscar oito praças...

MANUEL  DE SOUZA (Inquieto.) Hein?

CAPITÃO-GENERAL  - E parta com eles para São Tomé. O Capitão-mor requisitou  um destacamento de lanceiros contra os índios Guaicurus!

MANUEL  DE SOUZA - Guaicurus! (À parte.) E Gertrudes vai ficar à  minha espera!

CARLOS (Inquieto e à parte.) - Quais serão as suas tenções?

MANUEL  DE SOUZA - Vossa Excelência há de permitir que lhe lembre que estou  designado para comandar a patrulha que tem de rondar o palácio...

CAPITÃO-GENERAL  - Não lhe dê isso cuidado... Eu substitui-lo-ei... Vá, ande.

MANUEL  DE SOUZA - E Gertrudes? Hei de preveni-la por um bilhetinho. (Sai. Começa  a anoitecer.)

CAPITÃO-GENERAL (A Carlos.)  - Compreendes, não? Enquanto o marido é destacado para Guaicurus,  eu...

CARLOS - Basta! basta! Aceito!

CAPITÃO-GENERAL  - O quê?

CARLOS - Quero auxiliar a Vossa excelência.  (À parte.) É o único meio de impedir...

CAPITÃO-GENERAL  - Nada! Tarde piaste... Já te declaraste amigo do homem. És suspeito.

CARLOS  - Portanto...

CAPITÃO-GENERAL - Nada! Além  disso, não quero perder o direito que tenho sobre ti.

CARLOS  - Mas...

CAPITÃO-GENERAL - O dito por não  dito... Façamos de conta que nada houve ainda há pouco entre nós.  Olha: já é noite. Adeus, Carlitos... Boa noite, hein? Muito boa  noite. (Sai.)

 

CENA XI

CARLOS,  e depois GABRIELA

 

CARLOS (Só.) - Bonito! Vejam se há criatura mais infeliz do que eu! Sabendo que basta  que minha mulher seja minha mulher, para que ma queira roubar o maldito Capitão-general,  faço-a passar por mulher alheia, e eis que ma querem roubar da mesma forma.  Oh! não! não! Mas o que devo fazer? Só há um meio:  a fuga! Consentirá ela? (Aproximando-se do pavilhão.) Gabriela!  Gabriela!

GABRIELA (Fora.) - És tu, Carlitos?

CARLOS  - Sim: sou eu. Vem depressa; não tardes!

GABRIELA  (Entrando.) - Aqui estou.

CARLOS - Deus queira que  ela queira! (Correndo à esposa, que sai do pavilhão.) Gabriela,  tu amas-me, não é assim?

GABRIELA - Por quê?

CARLOS  - Adoras-me?

GABRIELA - Meu amigo...

CARLOS  - A tua adoração por mim não tem limites; hein? Oh! responde,  responde! O que ter vou propor, só devemos propor a quem nos consagrar  uma adoração sem limites...

Gb (Muito depressa.) - Pois bem, pois bem: a minha adoração por ti não tem limites!

CARLOS  - Queres tu fugir comigo?

GABRIELA - Fugir?

CARLOS  - Sim! Fugir como salteadores, no meio da noite através de mil perigos...  Queres!? Oh! não me diga que não queres!

GABRIELA  - Se quero! Decerto! Uma fuga foi sempre o meu ideal, um rapto o meu sonho dourado!

DUETO  E COPLAS

CARLOS - Tu partirás?

GABRIELA  - Eu partirei.

CARLOS - Seguir-me-ás?

GABRIELA - Seguir-te-ei.

JUNTOS  -

Depressa! depressa! Fujamos, amor, antes que apareça qualquer maçador. Quais negros fugidos da vil servidão, vivamos metidos no meio do sertão.

CARLOS - É bem longa  a viagem!

GABRIELA - Com muito gosto irei.

CARLOS - Preciso é  ter coragem!

GABRIELA - Pois bem: eu a terei.

CARLOS - E se nos perseguirem?

GABRIELA  - Deixá-los perseguir!

CARLOS - Meu Deus! se nos seguirem?

GABRIELA  - Não hão de nos seguir.

JUNTOS - Depressa! depressa! etc.

I

GABRIELA  -

Que originalidade! quem vê tal evasão logo se persuade que dois amantes são. De um pai ou de um marido feroz e destemido fugindo pro sertão, provavelmente vão. Pois bem! não há tal: conhecido que tudo fique é mister: é uma mulher que vai fugir com seu marido; é um marido que foge com sua mulher!

JUNTOS - É uma mulher, etc.

GABRIELA  -

Ninguém achar procure novidades, porquê, embora cheire ou fure, de novo nada vê! Pois neste mundo antigo, já disse e ora redigo: É tudo rococó, qual meu tataravô. Fato, porém desconhecido venha cá ver quem quiser: É  uma mulher, etc.

JUNTOS - É uma mulher, etc.

(No fim do  dueto tem anoitecido completamente.)

CARLOS - Vamos; é noite  fechada; não percamos tempo... Vou preparar tudo para a nossa partida.  Entra e espera-me.

GABRIELA - Não te demores!

CARLOS - Em cinco  minutos estarei de volta.

GABRIELA- Achar-me-ás pronta. (Entra  no pavilhão. Carlos sai a correr.)

 

CENA XII

GERTRUDES, e depois CARLOS

 

GERTRUDES - Acabo  de receber de Manuel de Souza este bilhete, no qual diz-me: "Minha pomba.  Não posso, como te havia prometido, ficar no pombal esta noite. A pátria  precisa do meu braço. Teu pombo, Manuel de Souza". Aqui anda maroteira.  Ai! dele, se me engana! (Sai.)

CARLOS (Volta envolvido  numa capa.) - Gabriela estará pronta? (A ronda aproxima-se.) Ai! meu Deus! é a patrulha! E é o Capitão-general que a comanda!  Ocultemo-nos... (Oculta-se.)

 

CENA  XIII

CARLOS, oculto, o CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO e rondantes

(O Capitão-general conduz a patrulha e traz na  mão uma lanterna furta-fogo.)

 

Coro dos Rondantes

-  Mal começa a noite aparece a ronda; ninguém cá se  acoite, ninguém cá se esconda. Ofender a sã moral que não venha algum pascácio do Capitão-general, no respeitável palácio, pois quem vai para a prisão sem mais remissão nem apelação!

(A ronda percorre  o teatro. Ao passar defronte do pavilhão, o Capitão-general lança-lhe  um olhar significativo.)

 

CENA XIV

CARLOS,  depois GERTRUDES, depois GABRIELA

 

CARLOS  - Não percamos tempo. (Corre ao pavilhão.) Gabriela, Gabriela,  estás pronta?...

GABRIELA(Fora.) - Aí  vou, aí vou.

GERTRUDES (Aparecendo.) - Parece-me  que ouvi... Sim; não me engano... Está ali alguém. Oh! aquele  manto! É ele, é ele! ... o que fará ali?...

CARLOS  - Despacha-te.

GERTRUDES (Consigo.) - Com quem fala  ele?...

GABRIELA (Sai do pavilhão embrulhada em  um manto, com uma trouxa na mão.) Aqui estou, aqui estou!

GERTRUDES  - Uma mulher! E tratou-a por tu! Oh! Vamos rir! vamos rir!

CARLOS  - Vem! vem! (Dirigem-se para o fundo.)

GERTRUDES  (Pondo-se-lhes na frente.) - Um momento...

CARLOS  e GABRIELA (Atônitos.) - Ah!

GERTRUDES - Não  me esperavam, não é assim?

GABRIELA - Mas,  senhora...

CARLOS - Silêncio! Silêncio!

GERTRUDES  - Apanhei-te com a boca na botija!

GABRIELA (Querendo  fugir.) - Mas...

GERTRUDES - Aqui ninguém passa!

GABRIELA  (Escapando-se.) Oh! Acharemos meio de escapulir!

GERTRUDES  (Tomando-lhes a passagem.) - Aqui ninguém passa!

CARLOS  -Ah! ele é isso? (Atira-lhe a capa sobre a cabeça. Vem, Gabriela...

GERTRUDES  (Tentando desembaraçar-se da capa.) - Aqui-del-rei! Socorro! Aqui-del-rei!

CAPITÃO-GENERAL  (Fora.) Que bulha é esta?...

CARLOS - Aí  vem a patrulha! estamos perdidos!

 

CENA  XV

Os mesmos, CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO e rondantes

 

CAPITÃO-GENERAL  - O que há? o que há?

GERTRUDES - O que há,  Senhor Capitão-general? Um escândalo, um escândalo inaudito!  este senhor ia fugir com esta senhora! (Chorando.) Monstro! mal empregado  tanto amor!

CAPITÃO-GENERAL - Vejamos! (Alumiando  o rosto de Carlos com a lanterna.) Carlitos! (Vendo Gabriela.) Ela!...

TODOS  - Hein?

GERTRUDES (Estupefata.) - Não era  Manuel de Souza! (A Carlos,) Ah! senhor, peço-lhe mil perdões:  foi um erro involuntário...

CARLOS - Vá para  o diabo!

CAPITÃO-GENERAL - Ah! tu querias fugir com  a mulher de um amigo daquela ordem!

CARLOS - Senhor...

GABRIELA  - Deixe-me dizer-lhe, Senhor Capitão-general: este senhor me havia simplesmente  oferecido o braço para darmos uma volta pelo jardim...

CAPITÃO-GENERAL  - Assim vestidos! a estas horas!... e com uma trouxa!... (Gabriela lança  fora a trouxa com despeito.) Bem! Bem! (Baixo a Carlos.) Por isso é  que ainda há pouco a defendias com tanto calor! Querias guardá-la  para ti. Muito bem! Deixa estar que eu te ensinarei...

CARLOS  - Oh!

CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo!

TEOBALDO  - Pronto!

CAPITÃO-GENERAL - Manda tocar a rebate!...

TEOBALDO  - Sim, Senhor Capitão-general...

CARLOS - O que vai  fazer Vossa Excelência?

CAPITÃO-GENERAL - Prevenir  o marido... Ele é que me há de vingar.

TODOS  - O marido!... (Toques de cornetas e tambores.)

 

CENA  XVI

Os mesmos, MANUEL DE SOUZA, CASTELO BRANCO, OFICIAIS  DE LANCEIROS e LANCEIROS.

 

FINAL

 

TEOBALDO  e RONDANTES - Alerta! Alerta! Alerta!

OFICIAIS E MANUEL DE SOUZA (Aparecendo  de todos os lados.)

- Por que se me desperta? Estou  de boca aberta!... (A cena ilumina-se.)

CAPITÃO-GENERAL  (A Manuel de Souza.)

- Espada em punho, capitão!

MANUEL  DE SOUZA (Desembainhando a espada.) - Cá está!

CAPITÃO-GENERAL  -

Sem mais hesitação espete este sujeito!

AS  MULHERES - Ó céus!

MANUEL DE SOUZA - Carlitos!

CARLOS  - Eu não!

CAPITÃO-GENERAL -

Espetar!  espetar! espetar! e despachar!

TODOS -

Espetar!  espetar! espetar! e despachar!

CARLOS (Desembainhando a espada.) - Espetar-me! Não é má!

MANUEL DE SOUZA - Olé!  Armado está!

CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.)

-  É mais leal! Vá! Dito e feito! ‘Stá contrafeito?...

GERTRUDES  (A Manuel de Souza.) - Não, não! Tu não te baterás!

MANUEL  DE SOUZA - Não, não! Eu não me baterei!

GABRIELA (A  Carlos.) - Não, não! Tu não te bater-te-ás!

CARLOS  -

Não, não! Eu não fraquejarei! Tu bater-te-ás

JUNTOS -

Não, não  não baterás Eu me baterei fraquejarei

MANUEL DE SOUZA  (Com energia.) - Não, não! Eu não me baterei!

CAPITÃO-GENERAL  -

Saiba que aquele machacaz Senhor Manuel de Souza, raptava sua esposa!

MANUEL DE SOUZA - Raptava minha esposa!...

TODOS  -

Que cousa!.... Espetar! espetar! Espetar e despachar!

MANUEL  DE SOUZA -

Ouçam lá! Vou tudo pôr em pratos limpos.

CARLOS (A parte.) - Traidor!

MANUEL DE SOUZA  (Apontando a Gabriela.)

- Eu marido não sou  desta senhora, mas sim daquela que lá está! (Apontando  para Gertrudes.)

CORO - Ah!

GERTRUDES (Apontando Manuel de  Souza.) - Eis meu marido!

GABRIELA (Apontando para Carlos.) -  Eis meu marido!

TODOS -

Que trocas baldrocas!

CAPITÃO-GENERAL  -

Ah! ah! ah! ah! ah! O moço é casado! Ah! ah! ah! ah! Que caso engraçado!

CORO -

Olaré! Olaré! O moço é casado! Olaré! Olaré! Que caso engraçado! Casadinho o moço é! Ó  que papel desgraçado fazer vai, olé!...

CAPITÃO-GENERAL  (A Carlos.) - Então querias me enganar?

Carlitos, hás  de me pagar...

CARLOS -

Oh! senhor, minha desventura está em vossa mão! Ela é tão tímida, tão  pura... ai! tende compaixão!

CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixão!

CAPITÃO-GENERAL  - Verei... verei...

CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixão!

CAPITÃO-GENERAL  - Terei... terei...

CORO ( Às gargalhadas.) -

Ah!  ah! ah! ah! ah! ah! Olaré Olaré, etc.

CAPITÃO-GENERAL  (A Carlos)

- Mais tarde pensaremos na vingança agora não; como eu te prometi, vai entre nós haver aqui muito prazer, muita folgança...

CAPITÃO-GENERAL (A meia  voz)

Um dia, olé! te casarás. muito  m’hei de rir; tu verás...

CARLOS - Mas senhor....

CAPITÃO-GENERAL  -

Tu verás... (Aos oficiais.) - À  f’licidade conjugal vamos beber deste casal!

GABRIELA (A Carlos.)  -

Fazias tanto espanto... tanto... tanto... O capitão é até bem folgazão!

CARLOS - Oh!  muito folgazão!

(Alguns lacaios trazem vasos e taças.)

CAPITÃO-GENERAL  (De taça em punho.)

Bebei do vinho do Porto; bebei, porque dá conforto!

TODOS - Bebei do vinho do Porto, etc.

(O  Capitão-general oferece uma taça a Gabriela.)

Canção

I

GABRIELA  -

Dizia meu tataravô que o casório é um regalório que nunca lhe desagradou; os meus bisnetos tataranetos hão de casar, bem certa estou... Meus folgazões! das libações o momento já se avizinha! Bebei! bebei! cantai! dizei! Viva a formosa noivazinha!

TODOS (Menos Carlos.) - Viva a formosa noivazinha!

CAPITÃO-GENERAL (A Carlos, declamando.) - Então tu, Carlitos!

CARLOS (Contrariado.) - Viva a formosa  noivazinha!

CAPITÃO-GENERAL (Arremedando-o.) - Viva a formosa  noivazinha!

TEOBALDO, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES (Simultaneamente.)  - Viva a formosa noivazinha GABRIELA -

Olé!  tirolé! lé! É bom bom bom bom bom! O casamento, olé! o casamento é bom!

CORO Olé! tirolé! lé! etc.

II

GABRIELA  -

Dizem que a vida conjugal - é encantadora, - é maçadora; é mel e fel - regra geral! Eu tenho  dito e hoje repito que não lhe vejo nenhum mal! Meus folgazões das libações o momento já se avizinha! bebei, bebei cantai, dizei: Viva a formosa noivazinha!

TODOS (Menos Carlos) - Viva a formosa noivazinha!

CAPITÃO-GENERAL (A Carlos, declamando.)

-  Então não bebes! não cantas? O que tens, meu amigo?

CARLOS  (Contrariado.) -Viva a formosa noivazinha!

CAPITÃO-GENERAL  (Arremedando-o.) - Viva a formosa noivazinha!

TEOBALDO, MANUEL DE  SOUZA e GERTRUDES (Simultaneamente.) - Viva a formosa noivazinha CORO  -

Olé! tirolé! lé! É bom  bom bom bom bom! O casamento, olé! o casamento é bom!

[(Cai  o pano)]

 

ATO TERCEIRO

 

Varanda,  ocupando os dois ou três primeiros planos do teatro, e separada ao fundo  por ligeiras colunas de um terraço donde se vê o panorama da cidade  de Porto Alegre. Portas à direita e á esquerda.

 

CENA  I

MANUEL DE SOUZA, e soldados

 

(Ao erguer o pano,  desponta a aurora. Os soldados estão deitados na varanda e no terraço  em posições diversas. Manuel de Souza ressona em uma cadeira colocada  contra a porta da direita. No fundo vela um soldado. Música na orquestra,  acompanhada pelo ressonar dos que dormem. Ouve-se ao longe rufar o tambor. Alguns  soldados levantam a cabeça.)

 

INTRODUÇÃO

 

 

CORO  -

Plã! rataplã! Do regimento é  o tambor! Já nos desperta o maçador! Plã! rataplã! É cara ter de não o ouvir e que se dorme é já  fingir. Plã! rataplã!

(Tornam a deitar-se  e desatam de novo a ressonar. Novo rufo.)

MANUEL DE SOUZA (Acordando.) -

Plã! rataplã! Alerta! Alerta! É  o tambor que nos desperta...

(Erguem-se todos. Os tambores  entram em cena precedidos de um tambor mor. Pleno dia.)

Coro  geral

- Rataplã! rataplã! É  o tambor! Que maçador!

(No fim do coro, estão  todos alinhados à boca da cena.)

 

MANUEL  DE SOUZA (Esfregando os olhos e espreguiçando-se.) - Brrr! Está  fresco, está. Fiz mal em dormir. Façamos a reação!  (Começa a percorrer velozmente a cena. Para em frente aos soldados e  brada em voz de comando.) Ombro armas! Apresentar armas! Isso... Desmanchar  fileiras!... (Ninguém se mexe. Manuel de Souza tira o chapéu  e diz com toda cortesia.) Os senhores fazem-me o especial obséquio  de desmanchar fileiras?...

TODOS - Am... (Dispersam-se.)

MANUEL  DE SOUZA - Hein? Que disciplina! Como obedecem! É porque eu cá não  lhes dou confiança! Não vê! Eles já me conhecem!

1º  SOLDADO (Aproximando-se de Manuel de Souza e apoiando-se-lhe no ombro.) - Diga-me cá, ó capitão.

2º SOLDADO  (Fazendo o mesmo do outro lado.) - Ó capitão, diga-me cá.

MANUEL  DE SOUZA - Então! que liberdade é esta!? (Olhando a sorrir para  eles.) Vocês são uns grandíssimos velhacos!

1º  SOLDADO - Ó capitão, faça o favor de dizer-nos por que motivo  ficamos aqui de guarda durante toda a noite.

MANUEL DE SOUZA  - O que vocês querem sei eu: desejam saber por que o Capitão-general,  depois de haver bebido ontem à saúde do francesito e de sua cara  metade, separou-os, cada um em seu quarto... É isso ou não é?

TODOS  - Sim, sim!

MANUEL DE SOUZA - E nos ordenou que guardássemos  as portas dos ditos quartos até nova ordem?

2º SOLDADO  - É isso mesmo.

MANUEL DE SOUZA - É isso que  vocês querem saber?

TODOS - Sim!

MANUEL  DE SOUZA - Ora! a razão é muito simples...

TODOS  (Esperançosos.) - Ah!

MANUEL DE SOUZA - A  razão sei eu...

TODOS (O mesmo.) - Ah!

MANUEL  DE SOUZA - Mas vocês é que não hão de saber....

TODOS  (Com despeito.) - Oh!

MANUEL DE SOUZA - Vocês  são muito novos ainda...

1º SOLDADO - Ora, meu capitãozinho,  diga-nos...

TODOS - Capitãozinho, capitãozinho!  (Cercam-no.)

MANUEL DE SOUZA - Andem lá! Vocês  são os meus pecados! Pois bem! Vá lá! Vou dizer-lhes tudo:  ouviram? (Toma um soldado em cada braço, e dá alguns passos,  como que dispondo-se a entabular conversação com eles.) Meus  amigos, meus bons amigos, meus excelentes companheiros d’armas, saibam todos que  o Monsiú Carlos...

 

CENA  II

Os mesmos e GERTRUDES

 

GERTRUDES  (Fora.) - Obrigado! Não é preciso! Eu mesmo vou ter com ele...

MANUEL  DE SOUZA (Desembaraçando-se dos dois soldados.) Depressa! Cerrar  fileiras! (Enfileiram-se.) Sentido! Ombro armas!

GERTRUDES  (Que entra com um pequeno cesto debaixo do braço, contemplando-o.) - Como ele é bonito a comandar! (Indo a ele.) Manuel de Souza!

MANUEL  DE SOUZA - Gertrudinhas! Estavas aí?

GERTRUDES -  Sim, Manuel. Como sabes lidar com esta gente! Quem foi que te ensinou estas manobras?...

MANUEL  DE SOUZA - Isto é instinto: eu tenho a bossa das armas... (À  parte.) Sou muito boçal... sou... (Alto.) Além disso  não dou confiança a esta gente. Vê tu lá que disciplina!  Faz gosto, hein, Gertrudinhas?... (Voltando-se, vê que estão todos  debandados.) Então?... Cerrar fileiras!... (Ninguém se mexe.) Cerrar fileiras!... (Com cortesia.) Meus senhores, fazem-me o especial  obséquio de cerrar fileiras?... (Enfileiram-se.) Estás vendo?  E agora ... Meia volta à esquerda... não! quero dizer à direita...  à... Ora! meia volta à direita ou onde muito bem quiserem. Volver!  Ordinário, marche! (Desfilada; passo redobrado.Os soldados saem depois  de haverem desfilado.)

MANUEL DE SOUZA (Ao fundo,  satisfeito, vendo-os sair.) Isto é que é vida! Isto é  que é vida!

GERTRUDES - Aqui te trago o almoço.

MANUEL  DE SOUZA - Quem o traga sou eu. (Gertrudes tira do cesto um bolo e uma pequena  cafeteira.) Quanto és boa, Gertrudinhas!

GERTRUDES  - Toma, bebe...

MANUEL DE SOUZA (Comendo.) - Estou  te desconhecendo, Gertrudinhas! essa ternura não é natural em ti...  Aposto que queres me pedir alguma coisa?

GERTRUDES - Apostas  muito bem...

MANUEL DE SOUZA - Ah! eu cá sou muito  perspicaz! Vamos lá! O que temos?

GERTRUDES - Manuel  de Souza, quero voltar para a estância contigo... Faz idéia como  andará aquilo, entregue, como está, em mãos alheias.

MANUEL  DE SOUZA - Homem! já não me lembrava que, antes de ser capitão,  era estancieiro!

GERTRUDES - Além disso, tu aqui  corres muito risco...

MANUEL DE SOUZA - Eu?...

GERTRUDES  - Sim. Tu és um rapaz bonito... (Manuel vai protestar, Gertrudes grita.) Não me digas o contrário! És um bonito rapaz... Em Porto  Alegre as mulheres dão o beicinho pelos militares... Enfim, Manuel de Souza,  tenho medo... tenho medo...

MANUEL DE SOUZA - Ora o que  te havia de lembrar?!

GERTRUDES - Não fiques, sim?

MANUEL  DE SOUZA - Mas...

GERTRUDES - Recusas! Tens então  motivo para ...

MANUEL DE SOUZA - Pois, Gertrudinhas, queres  que eu parta a minha espada?

GERTRUDES - Preferes partir-me  o coração?

MANUEL DE SOUZA - Pois bem! parto.

GERTRUDES  - Partes-me o coração?

MANUEL DE SOUZA - Não!  Parto, isto é, vou-me embora!

GERTRUDES - Oh! ainda  bem!

MANUEL DE SOUZA - Mas olha que isto tem suas formalidades,  hein? Eu não posso arredar pé daqui sem licença do Capitão-general.

GERTRUDES  - Hei de pedir-lhe a tua baixa; expor-lhe-ei minhas razões. Anda daí.

MANUEL  DE SOUZA - Qual anda daí nem meio anda daí. Eu não posso  arredar-me...

GERTRUDES - De quê?

MANUEL  DE SOUZA - De quê, meu anjo? da guarda! E o meu dever de soldado? Pois não  sabes que estou de serviço? (Põe-se a percorrer a cena.)

GERTRUDES  - Mas...

MANUEL DE SOUZA - Passe de largo!

GERTRUDES  - Meu Deus! que rigor! (Pausa. Manuel percorre a cena. Gertrudes põe-se  a imitá-lo, subindo quando ele desce e vice-versa.) É verdade...  Ainda ali está metida aquela pobre moça... E quando me lembro que  sou eu a culpada....

MANUEL DE SOUZA - Se não fosses  tão ciumenta...

GERTRUDES - Pobrezinha! Como deve  ter sofrido! Para nós, mulheres, o amor é sofrimento.

MANUEL  DE SOUZA - Bravo! Gostei! Continue! (À parte.) Dá-lhe às  vezes para isto!.

CENA III

Os mesmos  e CASTELO BRANCO

 

CASTELO BRANCO (Entrando.) -  Minha filha! Onde está a rapariga?... (A Manuel de Souza.) É  ali o seu aposento, senhor capitão?

MANUEL DE SOUZA  - Sim, mas não pode entrar, Senhor Morgado.

CASTELO  BRANCO - Chame-me antes Capitão-mor.

MANUEL DE SOUZA  (Emendando.) - Senhor Capitão-mor.

CASTELO  BRANCO - Homem! Ás nove horas! Enfim! Ora imaginem que ontem, no momento  em que todos se retiravam, achamo-nos separados, não sei como, nem como  não... Eu queria despedir-me dela, pois pretendia partir hoje muito cedo...  Sosseguei, porque, enfim, a rapariga estava sob salvaguarda do seu marido!

GERTRUDES  e MANUEL DE SOUZA - Hein? Ele não sabe de nada!

CASTELO  BRANCO - Agora, porém, já são mais que horas de... (Chamando.) Gabriela? Ó rapariga, olha que são horas!

MANUEL  DE SOUZA - Silêncio! Passe de largo!

GABRIELA (Fora.) - Ah! papai!... papai!... Abra!

CASTELO BRANCO - Como?!...

GABRIELA  (Fora.) - Estou aqui fechada!

CASTELO BRANCO - Fechada!  A rapariga fechada!

MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor Morgado...

CASTELO  BRANCO - Chame-me antes Capitão-mor.

MANUEL DE SOUZA  - Sim, senhor Capitão-mor. (Baixo.) E sozinha...

CASTELO  BRANCO - Sozinha! Esta agora! E o marido?

MANUEL DE SOUZA  - Ah! O marido anda por outra freguesia.

CASTELO BRANCO  - Como por outra freguesia?...

GERTRUDES - O marido passou  a noite em outro quarto.

CASTELO BRANCO - Hein?...

GERTRUDES  - O Capitão-general foi que assim quis!

CASTELO BRANCO  - O Capitão-general?!

GABRIELA (Fora.) Papai!

CASTELO  BRANCO - Já vou, já vou! Não insistas, rapariga! (A Manuel  de Souza.) Então solta-se ou não a pequena?

GERTRUDES  - Aquilo corta o coração... Vou abrir a porta...

MANUEL  DE SOUZA - Mas é que...

GERTRUDES - Ora! Se está  preso o marido, que inconveniente pode haver em soltar a mulher? (Abrindo a  porta da direita.) Vamos... saia... (Gabriela sai triste, com os olhos  pisados.)

 

CENA IV

Os mesmos e  GABRIELA

 

CASTELO BRANCO - Minha  filha!

GABRIELA - Ah! papai, papai! Eu sou muito caipora!

CASTELO  BRANCO - Então o que há?...

GABRIELA - Se papai soubesse...  Ora, ouça.

Quarteto

GABRIELA -

Naquele  quarto entrei sozinha, supondo que lá fosse ter o meu amor logo  à noitinha, porque assim costuma ser.

GERTRUDES - Costume ser...

CASTELO  BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Costuma ser...

GABRIELA -

O  pranto meu correu a fios, por semelhante ingratidão...

GERTRUDES  -

Ela ficou a ver navios... que decepção!

CASTELO  BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Que decepção!

GABRIELA  - A hora passou...

GERTRUDES - A hora passou...

GABRIELA  - E meu amor não se chegou!

GERTRUDES - E seu amor  não se chegou!

GABRIELA - Ah! não tem jeito!

JUNTOS  -

Ah! é mal feito! Não faz-se isto a ninguém! Ah! não tem jeito! Qual jeito! qual jeito! Qual! Jeito não  tem!

GABRIELA -

Cansada, enfim, de ver navios não tendo com que me entreter, de um sofá nos coxins macios eu procurei adormecer.

GERTRUDES - Adormecer...

CASTELO BRANCO e MANUEL  DE SOUZA - Adormecer...

GABRIELA -

Na minha funda  mágoa imersa o sono meu fugir eu vi.

GERTRUDES (A Manuel de  Souza.)

- Hein? foi por causa bem diversa que eu  não dormi...

MANUEL DE SOUZA - Que eu não  dormi...

GABRIELA - A hora passou, etc.

CASTELO  BRANCO - Vamos, vamos! Não te aflijas tanto! Teu marido é impossível  que esteja perdido! Havemos de achá-lo!

GABRIELA  - Confundi-lo

CASTELO BRANCO - Repreendê-lo!

GABRIELA  - Repreendê-lo!

CASTELO BRANCO - Não insistas,  rapariga! Vem, vem comigo! Pobre pequena! é mesmo muito caipora!

GABRIELA  - Muito...

CASTELO BRANCO - Não insistas... (Saem.)

 

CENA  V

GERTRUDES, MANUEL DE SOUZA, depois o CAPITÃO-GENERAL  e TEOBALDO

 

GERTRUDES - Veja, Manuel  de Souza! Mire-se naquele espelho! Aquilo sim; aquilo é que se chama de  amor, afeição, dedicação, resolução...

MANUEL  DE SOUZA - E tudo que acaba em ão.

GERTRUDES - Você  era lá capaz de andar à minha procura, se me houvesse perdido?

MANUEL  DE SOUZA - Ora, pois julgas... (À parte.) Seria preciso que me houvesse  perdido também o juízo!

CAPITÃO-GENERAL  (Entra seguido por Teobaldo que traz uma ruma de livros.) - Deita tudo  isto cá, Teobaldo...

TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general!  (Depõe os livros e sai.)

 

CENA VI

Os  mesmos, menos TEOBALDO, depois CARLOS.

 

MANUEL  DE SOUZA - O Capitão-general... (Encaminha-se para ele, e cumprimenta.) Senhor...

CAPITÃO-GENERAL - Viva! viva! Traga-me  cá o Carlitos.

MANUEL DE SOUZA - É já...

GERTRUDES  (Baixo a Manuel.) - Boa ocasião para pedir-lhe a tua baixa. (Indo  ao capitão.) Preciso muito falar a Vossa Excelência.

CAPITÃO-GENERAL  (Preocupado.) - Mais tarde.

GERTRUDES - A respeito  de meu marido...

CAPITÃO-GENERAL - Não tenho  tempo agora...

GERTRUDES (Seguindo-o.) - Ele anda  doente, e este serviço continuado...

CAPITÃO-GENERAL  - Já lhe fiz ver que não tenho tempo agora... (A Manuel de Souza.) Vá buscar o homem!

GERTRUDES (À parte.) - Fica para outra vez... (Manuel de Souza abre a porta da esquerda.)

CARLOS  (Saindo, a Manuel de Souza.) Ah! Meu amigo, o que se tem passado aqui?  Onde está minha mulher? O que me contas de novo?...

MANUEL  DE SOUZA - Cala-te! Olha o Capitão-general!

CARLOS  - Oh!

CAPITÃO-GENERAL - Deixem-nos sós.

GERTRUDES  (À parte, saindo com Manuel de Souza) - Fica para outra vez! (Saem.)

 

CENA  VII

O CAPITÃO-GENERAL e CARLOS

 

(Momento  de silêncio. O Capitão-general, a esfregar as mãos, passeia  em redor de Carlos, que o examina inquieto, de soslaio.)

 

CAPITÃO-GENERAL  (Cantarolando.) - Um dia, olé! te casarás!...

CARLOS  (À parte.) - Parece estar satisfeito...

CAPITÃO-GENERAL  (O mesmo.) - Um dia, olé... (Momento de silêncio.)

CARLOS  (À parte.) Oh! meu Deus! dar-se-á caso que... Eu tremo...

CAPITÃO-GENERAL  (Parando.) - Bom dia, Carlitos; como passaste a noite?

CARLOS  - Mas...

CAPITÃO-GENERAL - Eu passei muito bem, muito  bem...

CARLOS - Meu Deus!

CAPITÃO-GENERAL  - Está tranqüilo... Não é ainda o que supões!

CARLOS  (Suspirando.) - Ah!

CAPITÃO-GENERAL - Mas  deixa estar, deixa estar... Isso há de ser um dia... não tenho pressa...

CARLOS  (Vivamente.) - Nem eu...

CAPITÃO-GENERAL -  À noite passada refleti maduramente sobre o caso, já tenho o meu  plano.

CARLOS - Ah!

CAPITÃO-GENERAL  - Vou continuar da mesma maneira que encetei... Vê estes livros?

CARLOS  - Sim. Vejo.

CAPITÃO-GENERAL - Tua mulher os lerá  um por um, sentada ao meu lado...

CARLOS - Todos?!

CAPITÃO-GENERAL  - Todos e outros muitos. Minha biblioteca é imensa! Afinal de contas, terás  uma mulher ilustrada...

CARLOS - Muito ilustrada! Oh! mas  como estou prevenido, defender-me-ei.

CAPITÃO-GENERAL  (Arremedando.) - Defender-me-ei!... Tem graça! pois já não  te fiz ver que o meu plano está feito?... Naquele tempo (lembras-te) eu  não me defendi... de nada sabia... Já vês que convém  restabelecer o equilíbrio. (Chamando.) Teobaldo! (Teobaldo aparece.) Vai buscar o Capitão Manuel de Souza!

TEOBALDO -  Sim, Senhor Capitão-general. (Sai.)

CARLOS  - O que vai Vossa Excelência fazer?

CAPITÃO-GENERAL  - Vais ver... Trata-se de restabelecer o equilíbrio...

 

CENA  VIII

Os mesmos, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES

 

GERTRUDES  (Correndo, ao Capitão-general.) - Vossa Excelência mandou-nos  chamar? Foi sem dúvida para ouvir o que tenho para dizer a Vossa Excelência.  É a coisa mais simples desta vida, Senhor Capitão-general: meu marido...

CAPITÃO-GENERAL  - Não se trata disso...

GERTRUDES (À parte.) - Fica para outra vez.

CAPITÃO-GENERAL (A Manuel  de Souza.)- Capitão, leve este senhor ao pavilhão amarelo, onde  o guardará à vista até nova ordem.

CARLOS  - Preso!

CAPITÃO-GENERAL - Não faças  disto um bicho-de-sete-cabeças. Aquilo não é uma prisão,  é um ninho. (A Manuel de Souza.) - Vá!...

MANUEL  DE SOUZA - Mas Senhor Capitão-general, é que...

CAPITÃO-GENERAL  - O quê?

MANUEL DE SOUZA - Minha mulher...

GERTRUDES  - Deixa-me falar! Excelentíssimo Senhor, eu sou um pouco ciumenta. meu  marido teve um passado tempestuoso!

MANUEL DE SOUZA - Tu  exageras, Gertrudinhas!

GERTRUDES - Cala-te, escalda-favais!

CAPITÃO-GENERAL  - E então?

GERTRUDES - O que mais me incomoda é  a história do retrato. Havia nesta cidade uma sujeita por quem ele andou  apaixonado, não duvido que ela ainda esteja em Porto Alegre...

CAPITÃO-GENERAL  - E?...

GERTRUDES - E, para evitar um encontro, quero carregar  daqui o meu Manuel de Souza! Assim, pois peço a Vossa Excelência  que lhe mande dar baixa..

CAPITÃO-GENERAL - Por enquanto  seu marido me faz muita falta. Mais tarde falaremos...

GERTRUDES  - Mas...

CAPITÃO-GENERAL - Basta!

GERTRUDES  (À parte.) - Fica para outra vez.

CAPITÃO-GENERAL  - Capitão, cumpra as minhas ordens. (Sai.)

MANUEL  DE SOUZA - Sim, senhor. (Indo a Carlos, rindo-se.) - Ah! ah! ah! ah! Pobre  Carlos ! O caso não é para rir, porque enfim és muito meu  amigo, mas... Ah! ah! ah! não posso... (A Gertrudes, sério.) É muito meu amigo!

GERTRUDES (Não podendo  conter o riso.) - Ah! ah! ah! é muito teu amigo.

CARLOS  (Despeitado.) - Muito riso, pouco siso...

MANUEL  DE SOUZA - Ah! ah! ah! meu amigo... Dá cá a tua espada. Gertrudinhas,  dá-lhe o braço... (Gritando.) - Meia volta à esquerda!  Não, não! Como quiserem! Vamos! (Gertrudes toma um braço  e Manuel de Souza e levam Carlos às gargalhadas.)

 

CENA  IX

O CAPITÃO-GENERAL, depois GABRIELA e CASTELO  BRANCO

 

CAPITÃO-GENERAL (Só.) - Vai tudo às mil maravilhas!

GABRIELA (Aparecendo  com o pai.) - Venha, papai! Meu pobre maridinho preso! Oh! hão de mo  restituir, olé!

CAPITÃO-GENERAL - Ei-la!

GABRIELA  - O Capitão! (Ao pai.) Vai ver como lhe falo!

CAPITÃO-GENERAL  (À parte.) - É agora! (Alto.) Minha amável  leitora...

GABRIELA (Ao pai.) - Já não  me atrevo...

CASTELO BRANCO - Anda, desembucha.

GABRIELA  (Timidamente.) - Preciso falar a Vossa Excelência.

CAPITÃO-GENERAL  - Já sei o que vem me pedir. É inútil! Está preso,  e preso ficará!

GABRIELA - Oh! ,meu pobre maridinho!  Quero-lhe tanto! É tão lindo, tão terno, tão generoso...  (Mudando o tom.) Por que Vossa Excelência mandou prender?

CAPITÃO-GENERAL  - Porque... porque havia motivos.

GABRIELA - Mas que motivos?...

CAPITÃO-GENERAL  - Isso é que não lhe direi!

GABRIELA - E se  eu pedisse a Vossa Excelência que esquecesse desses motivos?

CAPITÃO-GENERAL  - É impossível!

GABRIELA - Impossível!

CASTELO  BRANCO (Baixo.) - Insiste, rapariga, insiste!

GABRIELA  - Se suplicasse de mãos postas...

CAPITÃO-GENERAL  - Não! não!

CASTELO BRANCO (Como acima.) - Insiste, rapariga, insiste.!

GABRIELA - Meu bom Capitão-generalzinho!

CAPITÃO-GENERAL  (À parte.) Hein?

GABRIELA (Com as mãos  nos ombros do Capitão-general.) - Dá-me o meu maridinho, sim?

CASTELO  BRANCO (Colocando-se ao lado do Capitão-general.) - Então?  Faça a vontade da rapariga! (Dá-lhe uma cotovelada. O Capitão-general  encara-o com severidade.) Oh! Perdão!

CAPITÃO-GENERAL  (A Gabriela.) - Não posso, não posso! Só dando-me...  (Filando-a.) uma compensação...

GABRIELA  - Uma compensação? Então quer Vossa Excelência que  eu lhe dê uma compensação?...

CAPITÃO-GENERAL  - Sim...

GABRIELA - É que... (Tendo uma idéia.) Ah! achei!

CAPITÃO-GENERAL (Vivamente.) -  Deveras?

GABRIELA - Decerto... a tal propriedade de papai,  que tira a vista do rio a Vossa Excelência.

CASTELO  BRANCO - O meu cochicholo!

GABRIELA - Dou-lhe em troca da  liberdade de meu marido.

CAPITÃO-GENERAL (Desapontado.) - Ora!

CASTELO BRANCO - Mas o que é lá isso?  O cochicholo! Não insistas, rapariga!

GABRIELA (Ao  Capitão-general.) - Então está dito?

CAPITÃO-GENERAL  - O cochicholo... É que... não digo que...

GABRIELA  (Afagando-o.) - Oh! como eu agradecerei a Vossa Excelência...

CAPITÃO-GENERAL  (Comovido, à parte.) - Então? A pequena não me está  entendendo? (Alto.) Não é essa a compensação...

GABRIELA  - Pois não é essa?... (Quase a chorar.) Não vejo mais  nada...

CAPITÃO-GENERAL (Levando-a a parte.) - Pois bem... ei quero... eu que...

GABRIELA (Fitando-o  com simplicidade.) - O quê?

CAPITÃO-GENERAL  (Vencido pelo olhar da moça.) - Não! Seria um sacrilégio!  É tão inocente! (Alto.) Nada, nada, minha filha, nada quero.  (Chamando.) Ó Teobaldo.

TEOBALDO (Aparecendo.) - Excelentíssimo..

CAPITÃO-GENERAL - Mande  que ponham o Senhor Carlos em liberdade e tragam-no cá.

GABRIELA  (Alegre.) - Ah!

CAPITÃO-GENERAL - Vê?  Satisfaço seu pedido... Mas imponho uma condição...

GABRIELA  - Qual?

CAPITÃO-GENERAL - Há de jurar-me que  não dirá a seu marido o meio que empregou para obter a liberdade  dele.

GABRIELA - Juro!

CAPITÃO-GENERAL  (À parte.) - A pequena desarmou-me... Mas as aparências vingar-me-ão!  (Alto.) Então? Agora estás bem comigo?...

GABRIELA  (Muito alegre.)- Pudera não!

CAPITÃO-GENERAL  - Seremos amigos! Venha de lá um abraço!

GABRIELA  - Com mil desejos! (Salta ao pescoço do Capitão-general e abraça-o;  neste momento, Carlos aparece ao fundo.)

 

CENA X

Os  mesmos e CARLOS

 

CARLOS - Ah!

CAPITÃO-GENERAL  (Com Gabriela ainda nos braços.) - Meu amigo, chegaste muito a propósito.  Tenho uma excelente nova a dar-te: estás livre, absolutamente livre!

CARLOS  (Aterrado.) - Ah! estou livre...

CAPITÃO-GENERAL  - Não te fiz esperar muito tempo... Então, não vais abraçar  tua mulher?

GABRIELA (Indo a ele.) - Meu amigo...

CARLOS  (Repelindo-a e descendo à direita.) - Não! não!

GABRIELA  (Surpresa.) - Como!

CAPITÃO-GENERAL (Indo  a Carlos.) - Meu Deus! com que cara estás tu!

COPLAS

- Ter um marido essa cara em plena lua de mel, na  verdade é coisa rara! Faz um ridíc’lo papel! Porventura  arrependido do casamento estarás? Esse todo aborrecido de todo  mostra que estás.

Porém tu, não  tens motivo: sem adulação ela tem, maganão... maganão... maganão... milhares de atrativos!...

II

Aqui, que ninguém nos ouve, namoradeira  ela é; mas, não sei se alguém já houve que  fizesse aqui filé. Tem paciência, meu caro, pois que muito  vale, crê, ver certas coisas a claro e fazer que se as não  vê.

Mas não sejas vingativo: sem adulação,  etc.

CAPITÃO-GENERAL - Bem. Eu deixo-te, meu bom Carlitos. Até  logo! (A Gabriela.) Até logo, minha senhora. (Rindo.) Ah!  Ah! Ah! (Saindo.) Maganão...

 

CENA XI

GABRIELA,  CARLOS e CASTELO BRANCO

(Carlos está desviado dos  mais, sombrio e abatido.)

 

CASTELO BRANCO (Indo a  ele.) - Estou-o estranhando, senhor meu genro! Vossa Mercê devia estar  alegre...

CARLOS - Alegre eu!

GABRIELA  (Indo a ele.) - Agora que o Capitão-general já cá  não está, abraça-me!

CARLOS - Abraça-la!  tinha graça!

GABRIELA (Aflita.) - Oh! papai!...  papai! Ele não me quer abraçar!

CASTELO BRANCO  - Pois não insistas, rapariga. (A Carlos.) Vossa Mercê é  um ingrato. Saiba que a ela é que deve a graça que acaba de obter!

CARLOS  - Mas foi com a minha desgraça que se pagou semelhante graça! Abraçá-la!  Tinha graça!

GABRIELA (Ao pai.) - Então,  ele já sabe do cochicholo...

CASTELO BRANCO - Provavelmente  foi o ajudante de ordens que lho disse.

GABRIELA - Pois  bem! já que sabe de tudo, diga-me: não foi uma boa idéia?

CASTELO  BRANCO - Sim?

CARLOS (Levantando as mãos para  o céu.) - Uma boa idéia. Que cinismo!

CASTELO  BRANCO (A Gabriela.) - Vês? está contrariado! A culpa foi  tua... Eu bem te disse: Não insistas, rapariga... Devias consultá-lo...

GABRIELA  - Pois preferias ficar na prisão por amor de uma insignificância?

CASTELO  BRANCO - E deixe dizer-lhe: ele já estava um tanto estragado, velho, sujo...

CARLOS  - É o requinte do cinismo!

GABRIELA - Vamos lá!  A intenção era boa... Só deves olhar para a intenção...  (Com meiguice.) Então, meu queridinho?...

CARLOS  (Desabridamente.) - Eu não sou seu queridinho!...

CASTELO  BRANCO (À parte.) - Palavra d’honra! Nunca o supus tão agarrado  ao dinheiro! (Alto, a Gabriela.) Não insistas, rapariga!

GABRIELA  - Isto não tem jeito!

COPLAS

-  Para livrar-te de medonha prisão, astúcias empreguei, e  tu me fazes carantonha... qual a razão? Não sei... não  sei... Pois deves estar satisfeito! quem mais fará por ti? Ninguém! Anda lá, foi pra teu bem que fiz o mal que já ‘stá feito.

Deixe estar que te ensinarei... Eu nada mais por ti farei!

II

Os bens que eu trouxe em casamento menos valor,  bem sei, vão ter; porém nem todas, rabugento, mesmo esse  pouco hão de trazer. Ó céus! que cara enfarruscada! Ó céus! que olhar feroz! feroz! Não tens razão,  pois, entre nós, o mal que eu fiz não vale nada...

Deixe estar que te ensinarei Eu nada mais por ti farei!

GABRIELA  (Vendo que Carlos está calado.) - Então, não me dizes  nada?...

CASTELO BRANCO - Deixa-o lá rapariga...  não insistas, não insistas... vem para junto de teu pai...

CARLOS  - Oh! pode-a levar para sempre! Restituo-lha!

GABRIELA -  Hein?

CASTELO BRANCO - Restitui-ma!

GABRIELA  - Como? Por causa de uma bagatela?

CARLOS (Amargamente.) - Sim, minha senhora, por causa de uma bagatela.

GABRIELA  (Aflita.) - Ah! papai!

CASTELO BRANCO - Não  insistas, rapariga! (A Carlos com dignidade.) - Está bem, tomo conta  outra vez da minha filha... Seu velho pai cá está para ampará-la...  Coragem, Gabriela, coragem!

GABRIELA (Com esforço.) - Hei de tê-la, papai, hei de tê-la! Adeus, senhor...

CARLOS  (Secamente.) - Adeus! (Sobe a cena e dirige-se à esquerda.)

CASTELO  BRANCO Meu genro... quero dizer: senhor, eu não o cumprimento, ouviu? Vamos  rapariga! (Sai. Gabriela vai para sair também, mas deixa-se cair em  uma cadeira e desata a chorar. Carlos, que tinha parado no fundo, volta-se e dá  com ela.)

 

CENA XII

GABRIELA  e CARLOS

 

CARLOS (Voltando, à parte.) - Ela chora...

GABRIELA (Vendo-o.) - Ele! Oh! Não quero que  veja estas lágrimas! (Passando diante de Carlos, enxuga os olhos vivamente.)

DUETO

CARLOS - Tu choras, meu amor?!

GABRIELA  - Não choro, não, senhor...

e se chorar, oh! não se  importe!

CARLOS - Queres em vão parecer forte!

Tu choras, meu  amor...

GABRIELA - Chorar! Eu? Não, senhor.

CARLOS -

Chorando  me desarmas! de ti quero fugir, porém a essas armas não  posso resistir!

Juntos

CARLOS - Chorando  me desarmas! etc.

GABRIELA -

As lágrimas são  armas que devo lhe encobrir... Convém não avistar-mas, pois quero resistir! Por que tamanha inquietação?... Veja,  senhor: não choro, não!

CARLOS - Mas...

GABRIELA - Quê...

CARLOS  - Estás bem certa disso?

GABRIELA - O pranto meu não desperdiço.

CARLOS  -

Com que então, não choras, não?

GABRIELA  -

Chorar! Por quem? Por ti? Oh! tinha graça... Dar pranto e receber ingratidão. Choramingar! Ai! que chalaça! Não, não, senhor, não choro não!

CARLOS (Vivamente.) - Tu choras!

GABRIELA (Fracamente.) - Eu não choro, não.

CARLOS  - Tu choras!

GABRIELA (Mais fracamente.) - Eu não choro, não.

CARLOS  - Tu choras!

GABRIELA (Desatando a chorar.) - Eu não choro,  não...

Juntos

CARLOS - Chorando me desarmas, etc.

GABRIELA  - As lágrimas são armas, etc.

CARLOS - Gabriela!

GABRIELA  - Carlos!

CARLOS - Jura que não me enganaste!

GABRIELA - Enganar-te  eu! Pois supuseste!...

CARLOS - Sim. sim! Não é possível!  Onde tinha eu a cabeça?! É que este perdão dado de repente...  Dize como o obtiveste.

GABRIELA - Não posso...

CARLOS (Mudando  de tom) - Não podes?

GABRIELA - Fiz um juramento...

CARLOS  - Não ousas confessar! Já não duvido de coisa alguma! Tenho  plena certeza de tudo!

GABRIELA - Então, meu queridinho!

CARLOS  - Cale-se!... Eu não sou seu queridinho! Deixe-me! deixe-me! Eu enlouqueço,  meu Deus! (Deixa-se cair em uma cadeira à direita.)

GABRIELA  (Fazendo o mesmo em outra cadeira à esquerda.) - Afinal de contas,  o que lucro eu com o haver feito sair da prisão?

 

CENA  XIII

Os mesmos e o CAPITÃO-GENERAL

 

CAPITÃO-GENERAL  (A Carlos.) - Então o que é isto, Carlitos? Ainda arrufados?

CARLOS  (Erguendo-se.) - Ah! Vossa Excelência não me dirá?...

CAPITÃO-GENERAL  - Não te direi absolutamente nada. És muito curioso!

GERTRUDES  (Fora.) - O Senhor Capitão-general! Onde está o Senhor Capitão-general?

CAPITÃO-GENERAL  - Que bulha é esta?

 

CENA XIV

Os  mesmos, GERTRUDES, MANUEL DE SOUZA, TEOBALDO, CASTELO BRANCO, OFICIAIS DE  LANCEIROS e SOLDADOS.

 

GERTRUDES (Aparece ao fundo  trazendo Manuel de Souza arrastado e seguida por todos.) - Ah! ei-lo ali!  Venha! venha!

MANUEL DE SOUZA - Mas, Gertrudinhas...

GERTRUDES - Cale-se!  (Ao Capitão-general.) Agora, Excelentíssimo Senhor, não  pode ficar para outra vez! Ela cá está!

CAPITÃO-GENERAL  - Ela quem?

GERTRUDES- Ela, a original do retrato.

CAPITÃO-GENERAL  - Então, deve ser ele! Ela o original! É original!

GERTRUDES  - A amante de meu marido! Ainda não há dois minutos, passando por  uma das salas do palácio, vi pendurado á parede... O quê?  O mesmo retrato em ponto grande... Tal e qual este, Excelentíssimo Senhor.  (Tira o retrato da algibeira e mostra-o.)

CAPITÃO-GENERAL  (Olhando, dá um grito.) - Que vejo! (Á parte.) Minha  mulher! (Vendo Manuel de Souza.) Vamos! Decididamente a defunta não  merecia a minha vingança. (Alto a Carlos.) Carlitos, podes abraçar  tua mulher, dou-te minha palavra de honra...

CARLOS e GABRIELA - Oh! (Abraçam-se.)

CARLOS  (Baixo a Gabriela.) - Mas o perdão? Como o obtiveste?

GABRIELA  - Dei-lhe o cochicholo de papai.

CAPITÃO-GENERAL (A Gertrudes.) - Pode carregar com seu marido.

GERTRUDES - Ah! Manuel de Souza!

CAPITÃO-GENERAL  - Está terminada a comédia. (A Gabriela.) Minha senhora,  compete-lhe cantar o couplet final.

GABRIELA - Mas, Senhor Capitão-general...

CASTELO  BRANCO - Não insistas, rapariga!

GABRIELA (Ao público.)

Ai!  que vidinha! que vidão! com meu marido estremecido agora eu  vou ter, verão! Somente resta no fim da festa, saber se a peça  agrada ou não... É pois mister que eu, a tremer, vos  fale e peça o que vos peço: mil palmas sai, assegurai À Casadinha um bom sucesso!

TODOS (Simultaneamente.)

À  Casadinha um bom sucesso!

GABRIELA -

Olé!  tirolé! lé! é bom bom bom bom O casamento, olé!

TODOS  - Olé! tirolé! lé!, etc.

[(Cai o  pano)]

 

FIM

 

 

                                                                                               Artur Azevedo

 

Carlos Cunha Arte & Produção Visual

 

 

 

 

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