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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASERNA / Hans Hellmut Kirst
A CASERNA / Hans Hellmut Kirst

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASERNA

 

Números pares, fora da forma!  berrou o sargento-ajudante Schulz, a quem chamavam habitualmente o brigadas. A sua voz retumbante encheu a parada e repercutiu-se nas paredes da caserna. Era uma voz potente, gorda, contente de si mesma, que a cerveja e o fumo dos charutos tinham lubrificado ao mesmo tempo que a tornavam mais rude: Schulz gostava de ouvi-la.

 

Os números pares saíram rapidamente; os ímpares cerraram automaticamente as fileiras. O artilheiro Vierbein, apanhado no atropelo, tentou defender-se à cotovelada, desistiu e imobilizou-se logo, empertigado como uma estaca.

 

Como autênticas estátuas!  exclamou o brigadas. Como se fossem bonecos! Não quero ver mexer nem o dedo mínimo.

 

Deitou um rápido olhar para as janelas da sua habitação e viu que sua mulher, Lore, se encontrava atrás das cortinas. Ficou persuadido de que ela o estava admirando.

 

Os segundos-sargentos de serviço, reunidos atrás dele, esforçavam-se por não sorrir. Conseguiram-no porque não eram poucas as vezes que tinham para se exercitarem nesse trabalho.

 

Vierbein olhava a direito, na sua frente. Fitava uma janela da caserna onde se distinguia o rosto de Lore Schulz, mas procurava não ver senão o alizar da janela. O sargento-ajudante passou diante dele como numa fita de cinema. Durante um instante esteve no campo de visão de  Vierbein, tal como um corpo estranho na luz de um farol de automóvel; depois saiu dele para entrar noutros campos de visão.

 

De pernas afastadas, o brigadas postou-se diante dos seus homens. Era grande como um armário de colunas. O seu rosto, redondo, resplandecente de saúde, alongou-.se. A boca enorme abriu-se.

 

Agora é que vamos ver!  exclamou numa voz penetrante.

 

Todas as tardes de sábado eram reservadas à limpeza. Três horas estavam previstas para ela, três horas que Schulz, quando isso o divertia, era capaz de prolongar até cinco. E isso divertia-o, geralmente.

 

Aos sábados à tarde era ele quem governava. O capitão Derna consagrava-se à família; o alferes Wedelmann à sua namorada de ocasião. Até mesmo Luschke, o Batata, comandante da praça, tinha o costume de festejar o fim de semana. O brigadas esforçava-se, então, não sem resultado, por demonstrar aos soldados «quem era realmente o chefe».

 

Descansar!  gritou o sargento-ajudante.

 

Num gesto automático, os soldados avançaram o pé esquerdo. Schulz observou-os com atenção durante um instante, para ver se algum se atrevia a falar, pois que, para ele, «Descansar!» não significava licença para falar. Para tal era necessária uma permissão especial. Ninguém disse palavra.

 

Podem falar!  disse com ar protector.

 

Os soldados preferiram conservar-se em silêncio. Alguns riam sem ruído; outros olhavam o brigadas com uma expressão servil. Apenas o segundo-cabo Asch falou, ao mesmo tempo que empurrava energicamente de lado o soldado Wagner:

 

Não tomes tanto espaço, cara de linguiça!

 

Não berre dessa maneira, Asch!  gritou o brigadas. Se alguém berra aqui, sou eu.

 

Perfeitamente,  meu  ajudante!  trombeteou   Asch com entusiasmo.

 

O sargento-ajudante decidiu generosamente não dar pela provocação. Chamou o segundo-sargento de semana e entregou-lhe os homens que não estavam de faxina. Estes apressaram-se a desaparecer, para irem matar o tempo nas camaratas ou nas arrecadações. O cabo Asch dirigiu-se com o passo de um veterano ao seu lugar habitual, na arrecadação da roupa, onde tinha o hábito de jogar ao vinte-e-um com o primeiro-sargento Werktreu, abstendo-se de ganhar de maneira excessiva.

 

Quanto aos outros soldados, deviam limpar o quartel, do sótão à cave, da secretaria à lavandaria. O artilheiro Vierbein fazia parte do grupo encarregado de lavar as latrinas. Achava isso natural; não esperava outra coisa. A lavagem das latrinas era a sua especialidade: desde que estava na bateria que lhe fixavam, regularmente, aquele trabalho.

 

Submisso, quase indiferente, mantinha-se ali, pronto a saltar automaticamente, quando a ordem fosse dada, à voz de sentido, seguida de «Destroçar!». Todos os homens de faxina se precipitariam para as camaratas, agarrariam nas vassouras, nos baldes e nos esfregões e se dirigiriam a toda a pressa para os locais onde deviam trabalhar. Eram aí geralmente esperados por um jovem segundo-sargento ou por um segundo-cabo digno de confiança.

 

Vierbein, enquanto se preparava para essa sequência normal, notou que o sargento-ajudante o observava com atenção. Ficou apavorado, porque lhe pareceu descobrir-lhe no olhar uma certa benevolência. Ora, a experiência demonstrara-lhe que quando os superiores se ocupavam com demasiada atenção dos seus subordinados as coisas acabavam sempre mal. Tudo o que daí podia resultar desfilou diante dele como uma fita de cinema gasta, esmaecida: prolongamento da limpeza até à noite, cólera injustificada, supressão da dispensa de domingo, inscrição no livro de notas do brigadas, o que implicava automaticamente uma privação de saída. Consequência: impossibilidade de ver Ingrid.

 

Vierbein, para a esquerda!  gritou o brigadas. Vierbein correu para a esquerda, parou e ali ficou, perturbado.

 

com uma única palavra, o sargento-ajudante esvaziou a parada. As botifarras ressoaram no empedrado. Daí a pouco ouvia-se ao longe o ruído de centenas de botas batendo nas escadas e nos corredores. Sozinho. Vierbein permanecia no recinto cimentado.

 

Schulz virara-se lentamente. Caminhava na direcção dele, bamboleando o corpo com ar prometedor.

 

Vierbein  disse, e a sua voz potente estava como que  lubrificada  de  benignidade.  Queres  dar-me  um prazer?

 

Vierbein teve a impressão de que empalidecera.

 

Sim, meu ajudante  bradou corajosamente.

 

Se não quiseres, não és obrigado. Não se trata de uma ordem, Vierbein. Se não te agradar, di-lo à vontade. Nesse caso irás lavar as latrinas. Queres?

 

Sim, meu ajudante.

 

O quê? Lavar as latrinas?

 

O que me ordenar, meu ajudante.

 

Assim é que está bem  declarou o brigadas com satisfação.  É exactamente o que eu esperava. Vai apresentar-te a minha mulher para bateres os tapetes.

 

O sargento-ajudante Schulz percorria os corredores a passos largos. Em toda a parte onde ele aparecia o ardor no trabalho aumentava visivelmente, o que lhe causava real satisfação, se bem que a sua alma de cão de quartel o achasse absolutamente natural. O que teria sido surpreendente é que tal coisa se não verificasse.

 

Schulz tinha um sexto sentido para tudo o que estivesse sujo. A dez metros de distância via se os interstícios do pavimento estavam perfeitamente limpos. Se não o estavam, divertia-se a raspá-los com a unha do polegar, reunindo assim um montinho de imundícies, que esfregava no nariz do soldado negligente, o que, bem entendido, implicava uma inscrição no caderno de notas  o «caixote do lixo».

 

Assim deambulava, feliz por espalhar a inquietação através da parte da bateria que lhe estava reservada. Mas desta vez não sentia uma alegria profunda, se bem que tivesse conseguido, em pouco tempo, encontrar «graves negligências». Por esse dia chegavam. Schulz era bastante inteligente para, nos seus sete anos de serviço, se ter certificado de que exagerar as punições, e portanto o número de castigados, só servia para tornar estes indiferentes. Uma hábil dosagem era o segredo do êxito.

 

Parou junto do quadro de serviço e admirou por um momento a sua elegante assinatura... Afastou-se, tirou do bolso o caderno de notas, abriu-o e contou uma vez mais os punidos, para ficar bem certo: onze. Um a menos que o número que se tinha proposto. Escrupuloso como era e como o exigiam as suas funções, contou outra vez. Não se enganara.

 

Bastante descontente, fechou o caderno, perguntando a si mesmo onde poderia encontrar o décimo segundo que faltava. Decidiu-se pelas latrinas, o que lhe permitia juntar o útil ao agradável.

 

Sabia que o respeitavam, mas a sua felicidade não era completa. No serviço era como um carvalho: inabalável. Mas na vida íntima... Aí não lhe faltavam as preocupações. Não que o seu rol no cantineiro, embora anormalmente carregado, o inquietasse. O cantineiro devia considerar-se feliz por o sargento-ajudante da 3.ª bateria ali ir beber, elevando, desse modo, o nível de frequência da cantina, o que, certamente, contribuía para fazer subir o consumo.

 

O que influía na satisfação de Schulz, e mesmo de maneira considerável, era a atitude da mulher. Contudo, elevara-a até si, a essa Lore que ainda há pouco tempo vendia flores à porta do cemitério. Fora há perto de dois anos, quando apenas era primeiro-sargento. No princípio tudo correra bem. Mas desde que ali estava na qualidade de sargento-ajudante, com alojamento no quartel, as coisas pareciam cada vez mais inquietantes. Porque seria?

 

Trate de afastar as gâmbias quando eu passar diante de você  gritou a um soldado que, de joelhos, limpava o pavimento do corredor.

 

Esta Lore era verdadeiramente impossível de compreender. Desde há algum tempo que se tornara fria em relação a ele: fria como o gelo que pusera na cerveja, na cantina, para refrescar. Dantes era completamente diferente, lembrava-se bem, mas de há algum tempo para cá diminuíra muito. E, com tristeza, perguntava a si mesmo como era possível que ele, que gozava de geral consideração, fosse tão pouco respeitado pela sua própria mulher.

 

com um pontapé, Schulz abriu a porta das latrinas e olhou. O artilheiro Hermann limpava uma das tábuas das retretes. Imediatamente o brigadas viu que estava ali a pessoa de quem precisava. Nas últimas três semanas Hermann não fora inscrito uma só vez. Era agora a altura.

 

Ah! Ah! Seu porcalhão!  exclamou o brigadas num tom jovial, ao mesmo tempo que dizia para consigo: «Já cá estás.» E com a ponta do dedo indicador raspou entre dois tijolos envernizados de verde-claro. Sorriu. A sua demonstração era convincente. Hermann compreendeu logo que a sua hora havia soado.  Pediste por acaso uma saída para domingo?

 

Sim, meu ajudante.

 

Mas não tens ainda a dispensa?

 

Não, meu ajudante.

 

Muito bem  concluiu o brigadas, abrindo o caderno. Escreveu qualquer coisa e afastou-se.

 

Noutros tempos tudo isto lhe causava o maior prazer; agora só o fazia por obrigação. Cumpria a sua tarefa. E, entretanto, pensava na mulher, lamentando, sobretudo, que ela não o compreendesse. Lore nem sequer era capaz de lhe dar o robusto rapaz que ele desejava. E Schulz desconfiava mesmo de que ela o enganava... A ele!

 

E não era tudo. Se ela o fazia (do que, em virtude do estado de coisas, da sua experiência e do seu conhecimento dos homens, ele a julgava, sem dificuldade, capaz), era provavelmente com rapazes da sua bateria. E não só com os subalternos, o que, até certo ponto, teria sido aceitável, mas talvez até com subordinados. E isto, dizia ele consigo mesmo, estremecendo de indignação, era uma coisa que pregava com o mais forte em terra!

 

Até aí não tinha qualquer prova e, no entanto, julgava-se certo da coisa. Em primeiro lugar notava a desesperante indiferença da mulher quanto aos mais elementares deveres conjugais, o que era mais que suspeito. com um cocheiro de praça podia-se proceder assim, mas não com um brilhante sargento-ajudante como ele era.

 

Quinze dias antes, voltando mais cedo que o costume da sua partida de jogo dos paulitos, surpreendera-a com o primeiro-sargento Werktreu, seu camarada e pretenso amigo, sentados no divã, perto um do outro, às onze da noite. E Werktreu tinha tartamudeado qualquer coisa acerca de um inventário. Não fosse a sua necessidade de que Werktreu lhe fornecesse três mudas de roupa de baixo novas e ter-lhe-ia dado uma boa sova como ao último dos magalas.

 

E, na semana anterior, tendo mandado à mulher um soldado para a lavagem das vidraças, não vira este tentando introduzir-lhe a mão pelo decote, sem que ela se opusesse? Pregara um bom par de bofetadas no soldado, aplicara-lhe uns pontapés no rabo, suprimira-lhe todas as dispensas e arranjara as coisas de maneira que o mandassem para a caserna mais desagradável: uma miserável caserna composta de barracões, uma aldeia ainda mais miserável, duas ou três mulheres e, normalmente, seiscentos a setecentos soldados.

 

Tais são os problemas que o inquietam. Dizer que estas coisas lhe tinham de suceder, a ele, que no tempo do seu esplendor fizera a felicidade de quatro noivas sucessivas! Quando se casara, o que por aí fora de lágrimas e ranger de dentes! Falara-se até duma tentativa de suicídio. Lore deveria ter ficado encantada por ganhar a corrida. Ele sempre era alguém. Que imaginava, afinal de contas, essa mulher? Casara com um soldado ambicioso e considerado, de quem nem sequer o comandante Luschke o Batata tinha que dizer... Sendo assim, porque não se sentia feliz e satisfeita? Na verdade, ela não tinha o sentido da superioridade.’

 

O primeiro-sargento Platzek, o Pele de Vaca, bem conhecido como o melhor instrutor de homens do regimento, atravessou o corredor em passo ágil, pronto para sair. Trazia luvas brancas e pusera mesmo um colarinho novo. Saudou amavelmente.

 

Oh! Oh!  exclamou o brigadas.  Onde é a ida esta noite?

 

Platzek teve um riso atrevido.

 

Vens ao Bismarck? Teremos outra vez uma bela partida. Há mais de quinze dias que não te vemos no nosso café.

 

bom desejo tenho  disse o brigadas.

 

Aquele que não tem desejo não conta  declarou Platzek com a sua jovialidade habitual; depois fez a continência e afastou-se num passo firme.

 

Schulz seguiu-o com o olhar. «Isto é que é vida», pensou com amargura. «Este não é casado: pode fazer o que quiser. Mas eu também faço o que quero, porque sou um tipo verdadeiramente homem. Por agora», disse consigo, «não há perigo em casa. Reconhecer um mal é já impedi-lo. Neste momento é Vierbein quem está com Lore, e ele é apenas um pobre diabo... um garoto que ainda treme nos seus calções. Um filhinho da sua mamã. Um burro que deixaria que lhe cortassem as orelhas, de preferência a arriscar um olhar para Lore.»

 

Por consequência, disse Schulz consigo mesmo, agora, que tinha terminado o seu trabalho e tomado nota das suas doze cabeças-de-turco, podia muito bem dar-se ao luxo de ir jogar duas ou três partidas de vinte-e-um com o primeiro-sargento   Werktreu   na   arrecadação  da   roupa  e mesmo mais algumas, se estivesse em maré de ganhar.

 

O segundo-cabo Herbert Asch já não se deixava impressionar poncoisa alguma: era pelo menos o que julgava. Não fazia mais do que as circunstâncias lhe impunham. Não gostava da fadiga e sabia com bastante exactidão o que tinha de fazer para levar boa vida.

 

O seu princípio de sabedoria consistia em evitar todos os riscos. O que, em termos vulgares, podia exprimir-se assim: não vás buscar lã, se não queres vir tosquiado. E a verdade é que a lã é que o ia procurar!...

 

O motivo estava em que o cabo Asch tinha um pai notável que possuía um café-restaurante onde os subalternos do 1.º esquadrão do regimento de artilharia se reuniam habitualmente. O pai Asch tinha reputação de generoso, e seu filho, o cabo, parecia querer imitá-lo. Quando, nas noites de grande afluência, trocava, com a cumplicidade geral, o blusão feldgrau pelo casaco branco de criado de café e servia a cerveja, podia-se ter a certeza de que ele velaria por que os copos dos subalternos da sua bateria não levassem colarinho postiço, o que criava simpatias. Acrescentava-se a isto a circunstância de o rapaz pagar, muitas vezes, uma rodada sem levantar dificuldades, concedia crédito de bom grado e até emprestava dinheiro, discretamente, respeitando da maneira mais estrita a disciplina que se tem o direito de esperar de um subordinado em qualquer ocasião.

 

Entre os clientes preferidos encontrava-se o primeiro-sargento Werktreu, o «guarda-traças». Este retribuía as amabilidades que frequentemente lhe faziam, reclamando com regularidade o cabo Asch para as faxinas da rouparia. Fechavam-se por dentro e, nos dias de semana, passavam o tempo a trabalhar sem se fatigarem ou a ressonar a sono solto. Ao sábado, geralmente a pedido de Werktreu, jogavam o vinte-e-um.

 

Asch trapaceava descaradamente e se quisesse teria levado o sargento à ruína. Mas não era essa a sua intenção. Acontecia-lhe até fazer batota em proveito do adversário. Antes de começar a jogar, Asch pensava na importância que lhe queria deixar ganhar. Dependia ela das horas de descanso que Werktreu lhe proporcionara durante a semana que acabava. A quantia oscilava entre dois e cinco marcos.

 

Werktreu nunca teria imaginado que um subordinado pudesse fazer batota com ele. Em primeiro lugar, porque supunha ser de primeira força no vinte-e-um. A prova estava no facto de ganhar quase sempre. Em segundo lugar, acreditava ter chorado na barriga da mãe: a sua carreira militar, que o tinha quase directamente levado ao alto posto de «guarda-traças», devia ser considerada extremamente brilhante. Além de tudo isto, ele próprio fazia batota. Também com descaro e até com bastante falta de jeito.

 

Asch aceitava isto com um sorriso. Estendeu mesmo uma quarta carta a Werktreu. Sabia exactamente o que fazia: segundo os seus cálculos, o sargento devia ter mais de vinte e um pontos: precisamente vinte e oito. Perdera, portanto.

 

As pálpebras de Werktreu franziram-se. Fungou energicamente e, com uma pontaria perfeita, atirou uma cusparada para o escarrador cheio de cinza, situado a três metros de distância. Reflectia intensamente: devia reconhecer-se vencido ou fazer desaparecer uma carta?

 

Ao mesmo tempo que olhava o letreiro em que estava escrito «É proibido fumar», Asch aspirava o fumo do cigarro. Deixava o sargento à vontade. Depois, quando notou que este se preparava para escamotear uma carta, perguntou-lhe, amável:

 

Tem necessidade de quatro cartas?

 

Era evidente que o cabo contara as cartas distribuídas; o sargento estava furioso, mas não o podia deixar transparecer. Procurava freneticamente outras possibilidades de trapacear, sem as encontrar de momento. Apesar disso, não queria reconhecer ainda que perdera.

 

De súbito, bateram à porta com violência.

 

Werktreu aproveitou a circunstância para atirar as cartas em monte sem contar os pontos.

 

Quem é?  gritou.  Agora não tenho tempo. Estou cheio de trabalho.

 

Vamos, abre!

 

O cabo reconheceu logo a voz do sargento-ajudante, mas não quis avisar Werktreu.

 

Quem é a dar?  perguntou, solícito.

 

Abre, imbecil  berrou o brigadas. Werktreu apressou-se a pôr termo aos gritos:

 

Entra  disse amavelmente, enquanto abria a porta. Estamos justamente a emparceirar peúgas.

 

Schulz acenou a cabeça com ar de quem percebera. Deitou um olhar sisudo para o cabo, que, depois de ter metido no bolso as cartas e a caixa do dinheiro, se dispunha a acabar com a jogatina.

 

E então  perguntou , quem é que está a ganhar?

 

Sou eu, bem entendido  declarou orgulhosamente Werktreu, sem hesitação.

 

Eu  também  podia  jogar  uma  partidinha  disse Schulz com afabilidade. E sentou-se num monte de capotes, perto de Asch, esfregando as mãos com um ar empreendedor.

 

O sargento voltou a fechar a porta à chave; o cabo tirou as cartas da algibeira e o sargento-ajudante começou.

 

Se me enrolar, Asch  disse cordialmente , deixaremos de ser amigos.

 

Muito bem, meu ajudante  respondeu Asch, pouco satisfeito com a visita e percebendo que esta benevolência inquietante e ruidosa lhe ia custar à volta de dois marcos... Dois, pelo menos.

 

O sargento-ajudante ganhou a primeira mão e mesmo a segunda. Depois da quinta partida já embolsara quatro marcos. A sua afabilidade aumentava de maneira inquietadora. À sexta partida, tendo Asch escamoteado duas cartas, Schulz perdeu de uma assentada três, marcos, e, num instante, voltou a ser o chefe normal.

 

Meu caro Asch  disse, com uma ligeira ameaça na voz , já tem a sua dispensa para domingo?

 

Não, meu ajudante  respondeu o soldado no tom mais correcto, deixando precipitadamente Schulz ganhar dois marcos.

 

Que faz a tua mulher?  perguntou Werktreu, descontente por já não lhe correr de feição o jogo. Era Schulz agora quem ganhava partida sobre partida. Werktreu queria a todo o custo ter a sua parte de sorte e era bastante inexperiente para pensar que o conseguiria levando a conversa para o lado da mulher do sargento-ajudante.

 

O brigadas não se deixou desorientar. Mas percebeu bem a alusão de Werktreu. «Meu honrado amigo», dizia consigo, furioso e cheio de superioridade, «nada tens que ver com a minha mulher. Sei bem que andas atrás dela, mas nada conseguirás: vou muito simplesmente isolá-la, à minha deliciosa mulher. Mesmo que a tenha de fechar à chave, a essa cabra! Não posso tolerar que me ponham os cornos: sobretudo alguém da minha bateria; e sobretudo um dos meus subordinados.»

 

Deixou escapar uma praga porque acabara de perder dois marcos. Decidiu fazer uma curta pausa, mas sem abandonar o jogo.

 

Diga-me cá, Asch: Vierbein, esse bebé, é da sua secção, não é?

 

Sim, meu ajudante.

 

O cabo olhou Schulz com curiosidade. Não via com clareza por que associação de ideias viera esta pergunta. Gostava de saber como aquele homem passava do jogo de cartas para a mulher e desta para o artilheiro Vierbein.

 

É um filhinho da sua mãezinha, não é verdade? prosseguiu Schulz.  Um pobre tipo, hem? Saberá ele sequer o que é o amor?  E, firmemente persuadido de que  era  a  experiência   que  o  fazia  falar,  continuou:

 

. Aposto que nem sabe mesmo que há dois sexos. Tenho

 

a certeza de que ainda acredita que as crianças vêm de França num cesto.

 

O sargento Werktreu relinchava de alegria: dir-se-ia que acabara de ouvir uma boa piada. Asch achou preferível rir também. O brigadas estava encantado com o seu papel de gracejador.

 

Suponhamos  disse, num tom sensual  que lhe meto na cama uma rapariga nua. Que pensam que ele fará? Vamos! Pois bem: tapa-a com o lençol.

 

Não sei  disse Asch, reservado.  Creio que ele é absolutamente normal.

 

Resolveu tomar a defesa do seu camarada. Tinha dó dele. No fundo, tratava-se de um pobre diabo a quem um dia ou outro frigiriam os miolos. Asch sabia com quem lidava; sabia exactamente a que é que os superiores davam atenção, o que se lhes impunha, aquilo a que chamavam virilidade.

 

Foi por isso que avançou, em passos macios.

 

Vierbein  disse, não é tão ingénuo como isso. Água dormente, sim, mas por isso mesmo mais profunda. Um verdadeiro maroto. E é galante, muito galante. Isto agrada às mulheres.

 

O brigadas pousou lentamente as cartas. Primeiro apenas ficou surpreendido; depois começou a tirar conclusões do que acabara de ouvir, conclusões que o impressionaram muito desagradàvelmente.

 

Histórias  disse com uma voz vaga, que não tinha o vigor habitual.  Está a inventar tudo isso, como sujo que é.

 

O cabo fingiu automaticamente não ter ouvido o insulto. Não podiam injuriá-lo pela razão muito simples de que decidira que não o podiam fazer. Apenas sentia um desejo: valorizar Vierbein, esse pobre diabo. Desatou, portanto, a inventar e contou pequenas, histórias brejeiras. Em suma, improvisou uma das conversas grosseiras em uso na caserna. Contou:

 

O artilheiro Wagner, o nosso herói de pura raça ariana e germânica, levou três semanas para conquistar uma criada. Pois bem! Vierbein conseguiu-o em três horas. À hussardo! Nós espreitámos pelo buraco da fechadura, porque se tratava duma aposta.

 

O primeiro-sargento Werktreu meneava a cabeça, complacente. Mas Schulz estava agora nervoso. O efeito maravilhoso da história que acabara de inventar surpreendeu muito o cabo. Mas este não teve tempo para gozar a surpresa.

 

O brigadas levantou-se dum salto, decidido.

 

Tenho de voltar já para casa  declarou.

 

O artilheiro Vierbein não era nem um idiota nem um pobre diabo; era um rapaz absolutamente normal, com algumas características particulares. Possuía mesmo uma certa dose daquilo a que se costuma chamar bom senso; quanto às forças físicas, bastavam elas amplamente para as necessidades do serviço militar. O que lhe causava dificuldades era o seu sentimentalismo.

 

O pai, um polícia um tanto rude de entendimento, boa pessoa, com experiência, bem o tinha previsto. Seu filho Johannes era um tanto degenerado: não muito, mas mesmo assim era-o incontestavelmente. com efeito, Johannes lia. E o pai Vierbein não se lembrava de ter visto alguma vez um livro na sua família ou na da sua mulher, com excepção talvez da Bíblia, do livro de Cânticos e do Anuário da Marinha.

 

Quanto ao mais, Johannes Vierbein fora rapaz muito prometedor: sempre tivera boas notas de aproveitamento e quase sempre de comportamento. Ajudava a mãe na limpeza da casa e transportava os livros do seu professor de Alemão, a quem muito estimava. Portava-se sempre de maneira cavalheiresca em relação às pessoas do sexo feminino, sem nunca estabelecer diferenças, fosse qual fosse a idade delas. Batia-se com os camaradas, era fraco em Matemática e sofrível em Instrução Religiosa. O Canto era para ele uma tortura; o Desporto uma alegria total; em Alemão sempre fora, de longe, o primeiro da sua aula. E era isto mesmo que inquietava os seus: Johannes Vierbein dava-se ao luxo de ter ideias verdadeiramente pessoais.

 

Uma vez soldado, compreendeu em vinte e quatro horas que tudo o que até aí aprendera «nada mais era que merda». Só agora, finalmente, ia ser «um homem». Era bastante sensato para se divertir prudentemente com uma teoria tão primitiva de educação para uso de adultos e o seu vigor físico permitia-lhe esta largueza de ideias. Contudo, não tardou a sucumbir ao sistema mecânico que é o espírito da caserna. Sucumbiu perfeitamente consciente disso.

 

Depressa reconheceu que a submissão proporcionava vantagens, sobretudo vantagens materiais. Reconheceu também que quando uma multidão de homens é reunida num pequeno espaço é preciso ordem. O que o fazia sofrer era o constrangimento, esse constrangimento que de um modo geral parecia ridículo, que obrigava a saudar de uma certa maneira, a usar uniforme, a marchar a passo certo, a cantar em coro, a falar duma maneira empolada. Ele, que podia citar páginas inteiras de clássicos, era, decerto, um idealista ardente, mas desejava que esse idealismo se exprimisse porque ele o queria e não porque a isso o constrangessem estupidamente.

 

Por esta razão, Johannes Vierbein fora sempre um soldado submisso, mas nunca feliz. Era obediente. Executava o que exigiam dele, nem mais nem menos. Fazia o possível para que não reparassem nele. Tinha numerosos camaradas, mas não amigos. Havia apenas um a quem desejaria ter como tal: o segundo-cabo Asch. Porque este tinha uma irmã que muito agradava a Vierbein. Chamava-se ela Ingrid.

 

Batia o tapete da Sr.ª Schulz, cujo marido era o sargento-ajudante da sua bateria. Fazia-o com uma precisão mecânica. O seu blusão de tecido grosseiro estava-lhe um pouco largo e flutuava-lhe em volta do tronco; as calças eram um pouco estreitas e colavam-se-lhe à pele. Vierbein suava, e o seu rosto juvenil, ligeiramente corado, de expressão séria, reluzia.

 

Lore Schulz, encostada à janela, olhava-o. Tinha um vestido leve e quase nada por baixo, porque fazia calor. A culpa era do Verão, ou de todo o trabalho que tinha, ou ainda do seu sangue demasiado ardente, ou de qualquer outra coisa ignorada. Talvez também apenas pretendesse poupar a roupa branca.

 

Já chega  gritou para Vierbein.traga o tapete.

 

Muito bem, minha senhora.

 

 Uma ordem é uma ordem  e Vierbein enrolou o tapete. Trabalhava bem, sem ruído. Pacientemente, sem descanso, sempre com o desejo de não se fazer notar. £ ali, no terreno relvado, diante dos edifícios da bateria, tinha umas cinquenta janelas que o contemplavam, e atrás de cada uma delas podia estar um dos superiores. Não era garantido, mas era possível. Qualquer deles. Talvez mesmo o Batata, o comandante, célebre pelo seu prazer em fazer surpresas.

 

Johannes Vierbein pôs o tapete ao ombro e, em passos tranquilos, nem demasiado lentos nem demasiado rápidos, dirigiu-se para a porta de entrada do edifício, com a intenção de fazer uma pequena pausa para respirar no degrau inferior da escada. Mas Lore Schulz estava de pé, na soleira da porta, esperando-o.

 

Ele percorreu o pequeno corredor, entrou na sala e, ali, deixou escorregar, com cuidado, o tapete para o chão.

 

Ajude-me a estendê-lo  disse Lore.  Ajoelhou-se mesmo ao lado de Vierbein, cujo olhar podia, assim, mergulhar-lhe no decote.

 

Sim,   minha   senhora  respondeu,   ajoelhando-se perto dela.


Lore Schulz vira bem para onde ele olhava, mas como sabia que tinha lá coisas agradáveis de ver não se opôs. Não era a primeira vez que os homens a olhavam com cobiça. Isso dava-lhe prazer: um prazer estranho, misterioso, picante. Não era raro que ela o provocasse. Vestia-se com esmero, e quando os homens da bateria estavam alinhados saía do edifício e, saracoteando-se, passava diante das fileiras. De há algum tempo para cá, porém, o marido, o sargento-ajudante, proibira-lhe que o fizesse. Antigamente orgulhava-se de a mostrar, agora procurava escondê-la.

 

Lore era essencialmente diferente do que parecia ser. No fundo, não era mais que uma rapariguinha de coração nostálgico. Tivera sete irmãos e irmãs e durante dez anos dormira com dois deles na mesma cama. Depois tornara-se vendedeira numa florista, perto do cemitério. Gostava de cinema e dos discursos do Fiihrer. E havia sempre nela uma nostalgia: fazer uma viagem à Itália, ter um marido proprietário de um automóvel, possuir uma casa sua. Lia até a «página feminina» dos jornais e pedia emprestadas revistas de modas.

 

Schulz, ainda sargento, conquistara o seu coraçãozinho logo na primeira noite. Ele era verdadeiramente irresistível e apertava-a com tanta força enquanto dançavam que ela esqueceu a Itália e o automóvel. Escusado seria dizer que não era o primeiro a quem ela pertencia; mas até aí nunca estivera assim tão apaixonada. Schulz soube apreciar este pormenor. Gostava muito dela e saboreava particularmente o prazer que ela lhe dava. Desposou-a e tornou-se sargento-ajudante. E ela teve a sua casa.

 

Mas ele não tivera o dom de lhe fazer esquecer as suas nostalgias ou de satisfazê-las. Parecia bastar-lhe o achar-se ele próprio satisfeito. Depressa mostrou conhecê-la tão bem como aos seus canhões e, como era ambicioso, não queria ficar eternamente simples «chefe de peça»  era esta a sua expressão. Tinha o hábito de formar homens e deixá-los partir... Eis porque, quase automaticamente, prócurou outros «campos de manobras» além de Lore. Não era ele, bem vistas as coisas, como o proclamava muitas vezes, um garanhão de primeira?

 

Então a Sr.ª Schulz sentiu renascerem as suas nostalgias secretas. A Itália e o automóvel significavam para ela, ao mesmo tempo, o amor e a sua realização. Procurou-os nos romances, sem os encontrar. Experimentou, então, com prudência, enganar o marido com alguns subalternos da bateria e achou-os a todos apressados, ávidos e pobres de sentimento. Metidos nos seus uniformes, assemelham-se todos uns aos outros, como obuses do mesmo calibre.

 

Mas quando olhava jovens como este Vierbein o desejo oprimia-a, um desejo que não era isento de sentimentalidade. «Também eu», dizia consigo, «fui jovem como ele; há dois, três anos, era exactamente como ele, assim jovem; agora estou casada, quase gasta, sem frescura. O meu corpo já não tem elasticidade; os meus lábios já não são brandos e cheios; a minha pele torna-se mole. Já... já.»

 

Como se chama?  perguntou numa voz doce, aproximando-se do homem de blusão.

 

Vierbein  respondeu   ele,   prudentemente.  Artilheiro Vierbein.

 

Lore aproximou-se mais. Estavam agora muito perto um do outro, de joelhos no tapete. Ele via nitidamente os contornos do corpo de Lore. E ela notou que o blusão cheirava a sabonete.

 

Não é como os outros  disse com uma surpresa quase pueril.  Os seu cabelos são diferentes, muito mais flexíveis. E as suas mãos são mais estreitas, mais delicadas. Mostre-me as mãos.

 

Johannes hesitava. Olhava com atenção os olhos de Lore, que brilhavam docemente: eram pequenos e pareciam tristes. Estendeu-lhe a mão e disse com gentileza:

 

Está a atrasar-me no meu trabalho.

 

Lore teve um sorriso tímido:

 

É assim tão grave?  perguntou.

 

Não, decerto  respondeu e!e. E quase sem o querer acrescentou:  com a condição de que tome a responsabilidade.

 

Ela reflectiu no que devia responder. Não encontrava as palavras necessárias. Queria dizer: «A responsabilidade?... Em relação a quem? E porquê, essa responsabilidade? Responsabilidade de quê? E em relação a quem?» Mas não disse uma palavra. Contemplava-lhe o rosto resplandecente de juventude, os olhos claros e bons, a testa sem rugas, o queixo que não denunciava a menor brutalidade.

 

Lore deixou cair a mão de Vierbein; sentou-se no tapete, estendeu as pernas e espreguiçou-se.

 

Tem namorada?  perguntou.

 

A pergunta perturbou o rapaz. Corou um pouco ao pensar em Ingrid, a irmã do cabo Asch. E, imediatamente, viu com clareza que não tinha o direito de pensar nela naquele momento. Respondeu num tom decidido:

 

Não.

 

Esta resposta pareceu dar prazer a Lore. Abrira ligeiramente os lábios, e entre os dentes um pouco fortes, mas muito sãos, aparecia, curiosa, uma pequena língua cor-de-rosa. Queria começar a rir, mas não o fez. Porque a porta acabava de abrir-se e o sargento-ajudante aparecera à entrada.

 

Vierbein  disse o brigadas, numa voz cuja doçura era inquietante , desapareça imediatamente e apresente-se ao sargento Lindenberg para que ele o mande limpar as latrinas do corredor de baixo.

 

Sim, meu ajudante  respondeu Vierbein, levantando-se docilmente.

 

Suma-se daqui para fora!  gritou Schulz brutalmente.  Voltaremos a encontrar-nos!

 

O segundo-sargento Lindenberg, chefe da 2.ª secção, à qual pertenciam o cabo Asch e o artilheiro Vierbein, era um homem enérgico, ambicioso e, por consequência, cheio de futuro. Estava firmemente decidido a formar defensores da pátria. Não o ocultava, e os seus superiores, mesmo os que mais favoravelmente o consideravam, escutavam-no meneando ligeiramente a cabeça.

 

Com 24 anos sólidos e reforçados, fazia o que exigia dos outros. Era o primeiro a comparecer no seu posto e o último a deixá-lo; o seu uniforme estava sempre em perfeito estado; sabia de cor todos os regulamentos; ele próprio limpava o seu calçado no corredor de maneira demonstrativa, aos olhos de todos, e ninguém o fazia brilhar tão bem.

 

Mas não era apenas um chefe rigoroso; não havia tarefa     | para que não se apresentasse como voluntário. E esperava, exigia, reclamava dos «seus soldados» que lhe seguissem o     exemplo: admitia mesmo que o ultrapassassem, o que, bem entendido, não acontecia, pois ele atingia 1,5 m no salto em, altura, fazia 35 km com todo o equipamento às costas, sem   que a voz se lhe alterasse; era campeão da equipa de natação de bruços e o segundo atirador do regimento...

 

Ninguém duvidava de que Lindenberg viria um dia a ser oficial. As suas altas qualidades não podiam ser ignoradas. E exploravam-lhe largamente, em nome da camaradagem, a sua boa vontade para prestar serviço. De resto, como não se interessava pelas mulheres, nem pelo álcool, nem pelo cinema, estava sempre pronto para substituir durante o fim de semana os seus camaradas em casos urgentes.

 

Era um subalterno como não se podia imaginar melhor. Para ele uma ordem era sagrada. Os seus conhecimentos militares eram grandes e muito acentuada a sua consciência de soldado, como lhe chamava.

 

Quando o artilheiro Vierbein se lhe apresentou, conforme a ordem recebida, para a limpeza das latrinas, Lindenberg recebeu-o numa atitude perfeita e examinou-o, em primeiro lugar, da cabeça aos pés. Não havia grande coisa a criticar: apenas os cabelos não tinham sido penteados com cuidado bastante. Mas o profundo sentido que o sargento tinha da justiça fê-lo pensar que o homem acabava de terminar um outro trabalho.

Que fizeste até este momento,  artilheiro?  perguntou.

Bater tapetes, meu sargento. Para o sargento-ajudante.

O subalterno não deixou manifestar que desaprovava esta actividade, cujo sentido profundo procurava em vão. O seu sentimento de disciplina impedia-o de criticar um superior.

À frente de Vierbein, dirigiu-se para as latrinas. Tudo estava de um asseio meticuloso. O sargento notou-o com satisfação. Examinou tudo corn competência. Apenas a torneira do lavatório não brilhava suficientemente. Deu ordem a Vierbein para poli-la até que ela ficasse como ouro.

Depois regressou ao seu gabinete. Asch esperava-o e pôs-se tão correctamente em sentido que Lindenberg não pôde deixar de fazer um gesto de satisfação; e, pondo-se também em sentido, retribuiu-lhe correctamente a continência.

Asch sabia muito bem como devia proceder com Lindenberg. Proferiu numa voz clara:

Meu sargento, peço licença para falar.

Vamos  disse Lindenberg.

Permita-me,  meu  sargento  articulou o  soldado numa voz forte, enérgica mas submissa, que pergunte se posso ter a minha dispensa de domingo.

Acabou o seu serviço?

Sim, meu sargento. O sargento Werktreu deixou-me sair.

E as suas coisas? O armário? A carabina? O cinturão?

Tudo está em ordem, meu sargento.  Asch mentia descaradamente. Sabia bem que nada estava em condições de agradar aos olhos incorruptíveis do superior. Mas sabia também que este não tinha tempo para proceder, em rélação a cada dispensado, a uma visita de material tão séria como era seu hábito.

 

O sargento parecia reflectir, o que muito inquietava o cabo. Asch decidiu-se a fazer imediatamente um novo assalto.

 

Permito-me chamar-lhe a atenção, meu sargento, para a circunstância de ser hoje que o nosso grupo de futebol joga contra o Sport Clube Hansa.

 

Também isto não era verdade. O desafio só se realizaria daí a quinze dias. Mas Asch esperava que Lindenberg, que pouco se interessava por este desporto, não o soubesse. Se assim não fosse, podia dizer que se enganara.

 

Mas Lindenberg não sabia. Fez um gesto de assentimento e disse:

 

Muito bem, cabo. Gosto de que se interessem pelos acontecimentos desportivos. O desporto é uma saudável preparação para o serviço militar. E espero que vençamos os civis.

 

com certeza, meu sargento.

 

Lindenberg sentou-se e abriu o caderno das dispensas. Tirou os documentos de dispensa e pôs-se a percorrê-los. O telefone retiniu. Levantou o auscultador e respondeu: «3.ª bateria, sargento de semana Lindenberg. Perfeitamente, meu ajudante», disse depois. «Está na cantina? Muito bem, vou já, meu ajudante. com o livro das dispensas.» Pousou o auscultador e pôs-se outra vez a folhear os documentos de dispensa.

 

Meu   sargento  disse  Asch,   numa  inspiração, quer dar-me igualmente a dispensa do artilheiro Vierbein? E vendo que o subalterno hesitava acrescentou:  Permito-me insistir porque foi ele quem me lembrou o nosso jogo.

 

Sim?  exclamou Lindenberg,  surpreendido.  Foi ele quem o lembrou? Agrada-me saber. Nunca teria suposto que se interessasse por essas coisas. Bem! Levará também a dispensa dele.

 

Agradeço  respondeu Asch, espontaneamente, ao

 

mesmo tempo que sentia ter cometido uma falta.

 

com efeito, Lindenberg deitou-lhe um olhar terrivelmente severo e, com uma voz forte mas igual, respondeu:

 

Não tem que me agradecer. Apenas faço o meu dever. Como é natural.

 

No entanto, contra toda a expectativa, entregou a Asch as duas dispensas e disse com frieza:

 

Pode retirar-se. Espero que esta noite, em uniforme, dará um bom exemplo aos civis.

 

O cantineiro Bandurski pertencera ao 13.º regimento de artilharia. Servira na Reischwehr e conhecia perfeitamente os subalternos. Por esse motivo não lhes dedicava particular afeição, ainda que noutro tempo tivesse usado os mesmos galões. Presentemente nada mais era que comerciante. Logo nas primeiras semanas descobriu que era com os soldados que mais tinha a ganhar. No princípio fora bastante ingénuo para mostrar aos subalternos o pouco caso que deles fazia. Eles jogavam às cartas, proferiam grandes discursos, bebiam cerveja e faziam dívidas. A maior parte dos soldados, pelo contrário, compravam e gastavam o soldo todo. A proporção entre o lucro com os soldados e o lucro com os subalternos era de cinco para um.

 

Mas não tardou a notar que uma boicotagem sistemática e dissimulada por parte dos subalternos fazia perigar o negócio. Era o sargento-ajudante Schulz o instigador destes métodos pérfidos. Bandurski depressa o descobrira, e o próprio brigadas o reconhecera duma vez em que bebera bastante. Bandurski ofereceu, portanto, uma «noite de cerveja» a todo o corpo de subalternos do regimento. Quase se arruinou, mas a partir desse dia o negócio tornou-se florescente. Bandurski não esquecera, é certo, o que Schulz lhe fizera, mas tratava-o com atenções particulares e não hesitava, conforme as circunstâncias, em fazer marchar a cerveja ou os álcoois. E a criada, Elisabeth, recebera instruções que cumpria fielmente, embora sem entusiasmo.

 

Schulz examinava-a com agrado. Era mais alta do que a mulher, mais delgada também. Tinha as formas menos acentuadas, o que não deixava de ter encanto. Havia muitas raparigas que se compraziam em ser tomadas por rapazes. E, depois, que importava a moda? Tratava-se de aproveitar a ocasião. Um verdadeiro soldado não é um monge.

 

Quanto a sua mulher, essa Lore, essa cabra, que se rebolava no tapete com um miserável artilheiro! Que diabo lhe teria passado pela cabeça? «Se isto se soubesse, estaria liquidado», pensava. «Terá ao menos aquele pedaço de asno suficiente sentido da honra para calar a boca? É possível. É provável. Aliás, não tardará muito que ele veja com que lenha me aqueço!»

 

Então,   ajudante  perguntou   Elisabeth   sorrindo com os seus olhos de reflexos verdes, que posso servir-lhe?

 

«Nada má, esta franga!», pensava o brigadas. «Terá ela temperamento? com certeza. Tem a pele branca, e as mulheres deste género são, segundo parece, verdadeiras campeonas. Pelo menos foi o que li em qualquer parte.»

 

Traga-me um bagaço, mas do autêntico, e bem cheio. Depois meia caneca de cerveja, sem colarinho postiço.

 

Elisabeth obedeceu. E Schulz arregalou os olhos à vista dos seus ombros largos, das ancas sólidas, das longas pernas bem feitas. «Lore», pensava, «é mais pequena, mais rechonchuda, mais manejável. Esta tarde, assim tão pouco vestida, pensar que ela se rebolava no tapete, no meu tapete, com um artilheiro!»

 

Levantou-se bruscamente.

 

Tenho de telefonar  disse , volto já.

 

Pediu a ligação com o subalterno de serviço da sua bateria.

 

Entretanto, Elisabeth Freitag enchia os copos. Tinha a sua opinião acerca dos homens. Nem boa, nem má. Sabia distingui-los.

 

Sabia-o porque conhecia Herbert Asch, o cabo. Herbert atraíra a sua atenção, ou, melhor, fizera o que era necessário para atraí-la. Era diferente dos outros, muito diferente; o seu rosto, mesmo sob o bivaque, não era o de toda a gente. A sua inteligência era perfeita e sabia servir-se dela. Elisabeth observara-o muitas vezes disfarçadamente, com uma alegria secreta; e verificara que ele raramente dizia o que pensava, mas que, contudo, chegava sempre ao que queria.

 

Depois de terminar a conversa ao telefone o sargento-ajudante retomara o seu lugar à mesa e observava, com igual satisfação, Elisabeth e os copos que ela enchera.

 

Que faz esta noite?  perguntou-lhe.

 

Porquê? Quererá por acaso sair comigo?

 

Porque não? Que diria se assim fosse?

 

E sua mulher?

 

Ela precisa de descansar  respondeu Schulz, com um gesto que afastava o assunto.  Fecho-a em casa.

 

Elisabeth franziu os lábios como se quisesse rir. Mas, sem rir, respondeu:

 

Para esta noite já tenho um encontro, no Bismarck.

 

Schulz preparava-se para dizer-lhe que poderiam encontrar-se Já, quando o sargento Lindenberg se pôs diante dele em sentido, bateu os tacões e disse:

 

Subalterno Lindenberg, às ordens!

 

O brigadas conhecia-o bem e não gostava dele. Mas respeitava-o. Sabia que com este bocado de gelo uniformizado qualquer conversa pessoal era impossível. Por isso foi logo direito ao fim:

 

Já entregou folhas de dispensa?

 

Sim, meu ajudante. Sete.

 

Esse porco do Vierbein estará incluído no número delas?

 

O artilheiro Vierbein recebeu a dispensa por intermédio do segundo-cabo Asch.

 

A substituição de «porco» por «artilheiro» era uma censura que não escapou a Schulz.

 

Teve dificuldade em reter um berro, embora soubesse que Lindenberg não se impressionaria com ele. com este tinha de proceder doutra maneira.

 

Eu julgava  disse, com aparente surpresa  que o artilheiro Vierbein estava a limpar as latrinas de baixo.

 

Já acabou, meu ajudante. E, como não havia outras ordens ou outras instruções, não vi motivo para não lhe entregar a dispensa. Tanto mais que ele desejava assistir ao desafio entre o grupo do regimento e o Sport Clube Hansa.

 

Mas o jogo é só daqui a quinze dias!  exclamou o brigadas com ar triunfante.  Deixou-se enrolar, Lindenberg. Esse vadio levou-o como a um garoto. Você, Lindenberg! Como ao último dos caloiros!

 

O sargento permanecia imóvel, semelhante a uma estátua de bronze e vermelho como um tomate.

 

Quais  são as suas ordens, meu ajudante?  perguntou, numa voz abafada.

 

O brigadas sentia de maneira prodigiosa a consciência da sua superioridade. O erro manifesto do sargento modelo fazia-lhe bem. Deu um soco na mesa e, aparentando o maior contentamento, perguntou:

 

Quando deu a dispensa?

 

Agora, meu ajudante...  Mais ou menos há cinco minutos.

 

Esses gajos estavam já com o uniforme de sair? Não, meu ajudante. Estavam em fato de trabalho.

 

O artilheiro Vierbein não deve ter deixado o serviço das latrinas há mais de três minutos.

 

Muito bem, Lindenberg. É certo que teve um espalhanço colossal, mas eu vou reparar a sua azelhice. Deixe-me agir, senão irá fazer ainda mais idiotices. vou simplesmente passar a revista.

 

O sargento-ajudante dirigiu-se sem demora ao local: um banco exactamente à entrada do bloco da artilharia.

 

Quem quer que entrasse ou saísse tinha de passar ali. Não havia outro meio de alcançar a porta do quartel.

 

O brigadas instalou-se à vontade, pousou o caderno de notas ao lado e esperou impacientemente Vierbein. Entretanto distraía-se inspeccionando os homens que saíam: asseio das unhas, das peúgas, da camisa, das orelhas, dos pés.

 

Executava este trabalho com visível satisfação e era com uma alegria profunda que simulava não perceber que um grande número de homens o espreitavam por entre as vidraças e se divertiam a ver como ele sabia notavelmente variar a sua acção.

 

Mas nem o cabo Asch nem o artilheiro Vierbein apareciam. Pouco a pouco Schulz perdia a paciência. Por fim tornou-se visivelmente nervoso. Depois deu ordem para procurarem os dois homens. Não se conseguiu encontrá-los.

 

Ambos tinham deixado a bateria, foi a comunicação que lhe fizeram. E o sargento-ajudante perguntava a si mesmo, extremamente surpreendido e quase tremendo de indignação, que caminho teriam eles tomado para sair. Porque o caminho normal, aquele que passava diante de si, não era possível que o tivessem utilizado.

 

Tinham feito em pleno dia o que geralmente só se ousa fazer de noite: saltaram o muro. Seguindo o conselho de Herbert, que previa sempre tudo e ganhara o hábito de recorrer aos métodos que apresentassem menos resistência, tinham utilizado, para sair, uma janela da cave que, pelas traseiras, dava para o jardim, e daqui treparam para a muralha.

 

Uma vez lá em cima, ao olharem para a rua, viram com grande susto um subalterno doutra bateria que se encaminhava lentamente para a cidade. Ele viu-os logo, mas fez de conta que nada notara. Virando-lhes as costas, simulou admirar com atenção a paisagem, insignificante. Um primeiro-cabo que se encontrava ali perto apressou-se a ajudá-los.

 

Agradeceram-lhe e convidaram-no a beber um copo de cerveja, o que ele recusou. Saudaram muito correctamente, ao passarem, o subalterno que fingira não os ver saltar do muro. Ele riu e isso agradou-lhes.

 

Apressaram-se para chegar a casa de Herbert, onde tinham sido convidados a tomar café. Vierbein prometia a si mesmo passar uma óptima tarde com Ingrid e o irmão. Caminhando, fez a continência muito correctamente a um primeiro-sargento de infantaria. Absorto na conversa, Asch não o vira aproximar-se. Foi já com um certo atraso que, por sua vez, fez a continência, num gesto automático e, de certo modo, desinteressado.

 

Este sargento, que seguia acompanhado por uma espécie denoiva, era bom tipo. Mas não podia suportar que lhe faltassem ao respeito, sobretudo em público. Perguntava a si mesmo o que diriam disto os seus superiores, os civis, a noiva, que o considerava, com justa razão, um homem de importância. Ele próprio fazia sempre a continência de acordo com o regulamento; portanto, devia e podia exigir que sempre o saudassem também regulamentarmente.

 

Parou, pois, com ar decidido no meio da rua e gritou «Olá!»

 

Alguns transeuntes pararam. Os dois soldados prosseguiram o seu caminho. Vierbein tentou convencer o camarada a parar, mas este não via razão para o fazer. Além disso, não se chamava «Olá!» e não se julgava visado pelo que podiam berrar-lhe atrás das costas. Sabia por experiência que bem poucos subalternos sentiam a necessidade de exercitar na rua os seus talentos de campo de manobras. Só os coriáceos se obstinavam.

 

O sargento de infantaria pertencia a esta categoria dos coriáceos. Deixou ficar a noiva e, em passos largos, alcançou os dois soldados, ultrapassou-os e colocou-se diante deles.

 

Vierbein ficou aterrorizado. O cabo Herbert não se deixava surpreender por coisa alguma. Esta situação não era nova para ele. Sabia muito bem o que tinha a fazer para se safar da dificuldade.

 

O sargento perguntou-lhe severamente:

 

Porque não fez a continência?

 

Asch desempenhou com perfeição o papel que se devia desempenhar em casos como este. Empertigado como se estivesse na caserna, com uma voz ao mesmo tempo submissa e enérgica, os olhos fitos com nobreza e lealdade no subalterno, respondeu:

 

Peço desculpa, meu sargento, mas eu fiz a continência.

 

E, ao mesmo tempo, fez uma continência que teria arrancado um sorriso de satisfação ao instrutor mais exigente.

 

O subalterno não ficou apenas surpreendido: ficou estupefacto... e perplexo. A experiência dizia-lhe que tinha na frente um excelente soldado, um soldado modelo. Mas sabia também, e com toda a certeza, que havia um que não o saudara como devia. Era um dos dois e iria jurar que se tratava do cabo.

 

Asch notou claramente o efeito produzido pelo seu método. Não esperava outra coisa; nunca lhe custava muito vencer com as suas próprias armas este sistema de educação forçada instituído pelo Estado. Mas, se contara com a estupidez do sargento, não contara com a sua malignidade, qualificada pelo próprio de sentido da responsabilidade. com efeito, o sargento pensava: «Não é seguramente o cabo, mas é com certeza um dos dois; e se não é ele, tem de ser o outro.» Virou-se portanto para Vierbein e interrogou-o severamente e não sem impaciência:

 

Porque   não   fizeste   a   continência   regulamentarmente? Que pensas tu que és, meu enfezado? Como te chamas?

 

Artilheiro Vierbein  respondeu este, surpreendido e submisso ao mesmo tempo. Nem sequer conseguiu, durante um segundo que fosse, divertir-se com esta ordem ridícula que o obrigava a declarar que se chamava artilheiro. Como poderia um homem normal chamar-se artilheiro? Mas não era isto que pensava naquele momento. Tinha a impressão de ter sido esmagado.

 

Não fora isto que Herbert quisera. Nem mesmo previra que tal coisa pudesse acontecer. Por esse motivo disse, muito menos regulamentarmente que antes:

 

O artilheiro fez a continência antes de mim, posso jurá-lo. Eu saudei um pouco mais tarde.

 

Alguns transeuntes em volta deles começavam a inquietar-se. Uns a maior parte agruparam-se em redor do sargento e parecia que todos eles tinham feito o serviço militar com êxito ou, pelo menos, que estavam predestinados a fazê-lo. Os outros a minoria começavam a aborrecer-se. Uma mulher disse mordazmente: «O que aí vai de chicanas! Deixe os rapazes tranquilos...» A noiva do sargento aproximara-se também, hesitando, e dizia-lhe: «Vamos, vem...»

 

O sargento sentiu claramente que era preferível arrumar a questão depressa. Não tinha vontade nenhuma de dar explicações de serviço a vulgares paisanos. Mas sabia também que não podia ceder sem arrancar, pelo menos de aparência, um triunfo indiscutível. Perguntou, portanto: «O nome?»

 

Asch compreendeu logo que o sargento tinha pressa. Descaradamente, respondeu. «Segundo-cabo Kasprowitz,

1.ª bateria, regimento de artilharia...»

 

O sargento fez um gesto de mau humor e escreveu o nome. Não tinha qualquer motivo para pedir a caderneta militar. De resto, também não tinha tempo. Disse simplesmente:

 

- Falaremos depois  e foi-se embora.

 

Isso querias tu  murmurou Herbert a meia voz, ao mesmo tempo que lhe dirigia um amável sorriso.

 

O pai de Herbert era proprietário de um restaurante e, em consequência da sua profissão, estava acostumado à paciência. Enchia pequenos copos de álcool, sem se preocupar com os motivos por que os bebiam. Olhava com a mesma indiferença namorados e pessoas de luto, políticos e pedagogos, os que bebiam por hábito e os que o faziam por delicadeza.

 

Em princípio, era amigo do exército, porque ele fazia subir o valor do negócio; não era hostil ao Partido Nacional-Socialista, que não o incomodava. Era-lhe até favorável, porque fora graças ao chefe do distrito que aquele buraco da província tinha sido transformado em guarnição. Em primeiro lugar tinham construído as casernas, e os arquitectos frequentavam-lhe a loja, enquanto fornecia de bebidas os operários no local das obras. Depois vieram um batalhão de infantaria e uma bateria de artilharia. Ficou muito aborrecido por ver estabelecerem-se as cantinas, mas consolou-se desse facto quando conseguiu atrair ao estabelecimento uma parte do corpo de subalternos.

 

Aceitava tudo o que não era contrário às leis em vigor. Pouco lhe importava o que cantassem no estabelecimento, desde que o bom humor tivesse a sua parte, quer fosse uma ária nazi ou uma canção composta pelo judeu Heinrich Heine. O principal era que o nível do negócio se mantivesse.

 

Mas punha o maior rigor em separar com nitidez os negócios da sua vida particular. Nas salas do 1.º andar, as da habitação, reinava um ambiente agradável, de boa vida burguesa: os móveis eram sólidos e dum meticuloso asseio. Um retrato a óleo de sua mulher, falecida há muito tempo, estava pendurado na sala de jantar, e quando o velho o observava era com simpatia e tristeza. Porém, geralmente, sentava-se de maneira a virar as costas ao retrato.

 

Porque não conservaste o uniforme?  perguntou ele a Herbert.

 

Estavam sentados à mesa, onde a irmã do proprietário lhes servia o café. Era ela quem dirigia a casa do irmão. Desempenhava-se bem da missão e punha nela um zelo tenaz, porque, pelo menos uma vez por mês, o dono do restaurante ameaçava pô-la na rua. Não tinha o menor desejo de o fazer, mas a ameaça não deixava nunca de produzir o seu efeito. O Sr. Asch estava sentado em frente de Ingrid; à sua direita sentara-se Vierbein, à esquerda o filho. Este despira o casaco do uniforme e, de mangas arregaçadas, mostrava achar-se muito à vontade.

 

Meu caro pai  perguntou Herbert, com uma expressão amável , alguma vez usaste uniforme?

 

Naturalmente  respondeu o pai.  Prestei serviço militar em 1914: os meus certificados de serviço estão pendurados, como sabes, ao lado do aparador.

 

Claro, claro, penduraste-os em 1933... Mas durante a guerra parece que eras ordenança na messe dos oficiais.

 

Bem entendido!  exclamou Asch, indignado. Também fui ordenança, mas só depois de ter sido ferido duas vezes. Tinha estado, antes, na frente, em Verdun, e assim sucessivamente.

 

És um herói, papá, um pai heróico.  E isto era dito num tal tom que se podia acreditar que estava sendo sincero.

 

O Sr. Asch não soube que responder. Preferiu fingir que acreditava tratar-se duma homenagem e continuou:

 

Depois estive para entrar para os S. A.1.

 

Bem sei... Mas decerto isso não teria sido necessário, pois nessa altura já os S. A. frequentavam o estabelecimento.

 

Claro  respondeu o Sr. Asch com orgulho, deitando ao filho um olhar de compreensão.  Afinal de contas, não sou um idiota.

 

E eu, como vês, sou teu filho  disse Herbert.

 

Não têm vergonha?  exclamou Ingrid, que os escutava com um nervosismo crescente e se esquecia de cuidar do seu convidado ou, para falar com mais exactidão, do convidado do irmão. Ele contemplava-a com entusiasmo e achava-a maravilhosamente bela.  Deviam ter vergonha  repetiu.  Esquecem em que tempo vivemos.

 

Mas antes pelo contrário  respondeu Asch sem se mostrar impressionado, por pouco que fosse.

 

Se não existisse o Fiihrer  declarou Ingrid com convicção , não teríamos nem o Sarre nem a Áustria. Seríamos um pequeno país.

 

Sim, sim  disse o velho.  É muito verdade isso. Noto-o na importância do negócio. Desde 1933 o lucro líquido aumenta todos os anos. Hoje ganho quase quatro vezes mais que antigamente.

 

O entusiasmo de Ingrid crescia:

 

E a juventude? Somos tomados a sério. Somos uma parte importante do Estado. E os operários fazem, com a Força pela Alegria, viagens à Noruega e à Itália.

 

Isso não é indispensável  observou o Sr. Asch. Também podiam gastar o salário no meu estabelecimento.

 

Sem o Fiihrer  continuou Ingrid, sempre com o mesmo entusiasmo  também não teríamos exército. Não é verdade, Sr. Vierbein?

 

Sim, é verdade, tem razão.

 

Estava entusiasmado, mas o seu entusiasmo dirigia-se à rapariga: podia ela dizer fosse o que fosse, dar-lhe-ia sempre razão.

 

Idiota!  exclamou Herbert, num tom convicto.

 

O pai, por sua vez, recusando-se a prosseguir a discussão, levantou-se e disse:

 

Tenho de descer. Hoje há muito que fazer. Esta tarde é a Associação das Mulheres que se reúne cá em baixo; esta noite são os subalternos. O sábado é para mim o dia mais fatigante da semana.

 

E despedindo-se de Vierbein acrescentou:

 

Volte quando quiser, se a nossa casa lhe agradou. Depois de ter deitado um olhar preocupado aos filhos, que compreendiam tão mal a sua maneira saudável de encarar os negócios, saiu.

 

Johannes Vierbein ficou com o irmão e a irmã. Sentia-se desamparado, a mais. A atmosfera estava inquietante. Ingrid permanecia imóvel na cadeira: estava vexada e não o ocultava. Herbert não se mostrava preocupado.

 

Venha  disse Ingrid  a Vierbein.  vou mostrar -lhe fotografias, quer?

 

com todo o gosto  respondeu ele, pressuroso. com todo o gosto.

 

Vais ver  preveniu-o Herbert.  Ela vai mostrar-te fotografias do acampamento das Juventudes Hitlerianas. Esses veadinhos brincam às guerrazinhas com o mesmo entusiasmo com que os fedelhos brincam aos polícias e ladrões.

 

Ingrid não se dignou olhá-lo sequer. Arrastou Vierbein para o divã do canto da sala de jantar e agarrou um dos álbuns que ali se achavam.

 

O nosso acampamento!  anunciou.

 

Vierbein examinava com uma crescente surpresa toda aquela multidão de mulheres. Muitas delas eram bonitas, muito bonitas até, mas Ingrid era a mais bela de todas. Incomparavelmente bela. Isso era visível sobretudo numa fotografia que a mostrava saindo da água em fato de banho. Decidiu pedir-lhe este retrato no momento oportuno, mas afastou imediatamente este projecto, convencido de que ela não lho daria. Depois pensou: «Tirá-la-ei, muito simplesmente.»

 

Agrada-lhe   esta   fotografia?  perguntou   Ingrid, curiosa.  E o meu álbum agrada-lhe também?

 

Antes de responder afirmativamente, como desejava, Vierbein perguntou com prudência:

 

Diga-me,  menina  Ingrid,  era  feliz  neste  acampamento?

 

Feliz?  perguntou ela,  estupefacta.  Mas não é isso que importa!... Trata-se da colectividade, da experiência em comum.

 

Compreendo-a  disse Johannes, solícito.  compreendo-a muito bem. A experiência em comum. Também eu acho isso maravilhoso.

 

Herbert soltou uma gargalhada.

 

Sei muito bem, meu velho  exclamou , o que queres dizer. Vamos, não cores. Sobre esse ponto as nossas ideias são as mesmas. As experiências que duas pessoas têm juntas podem ser belíssimas. Até amigos as podem ter, até uma família. Mas o que a minha cara irmã pensa é outra coisa. É o uniforme para as mulheres.

 

Não fales deste assunto  gritou Ingrid, furiosa.  Não tens o direito de falar assim a este respeito.

 

Quem é  que  mo  proibiria?  perguntou  Herbert com energia.  A rapariga que me agradar há-de ser uma rapariga à parte e não um artigo de confecção. Mulheres de uniforme,  ah!  raios as partam!  O mesmo passo, o mesmo penteado, os rostos deslavados, fatigados. As mesmas saias, as mesmas blusas, e em todas as cabeças os mesmos pensamentos! Que o Céu me defenda dessa mercadoria uniforme da Grande Alemanha!

 

Os belos olhos de Ingrid estavam dilatados. Resplandeciam, húmidos. Devagar, algumas lágrimas rolaram no seu rosto abrasado. Nada disse. Chorava silenciosamente.

 

Herbert olhava a irmã sem se comover. Gostava muito dela, mas não via motivo para o mostrar. «Hei-de conseguir sacudi-la», pensava furioso; «expulsarei dela este romantismo de fogueira de acampamento. Precisava de um marido  nem um bruto nem um fraco , um marido verdadeiro que a segurasse entre os braços, a apertasse contra o peito, para que ela dissesse por fim: «Só há duas pessoas neste mundo: ele e eu.» E este homem deveria ter a força de mantê-la apertada contra si toda a vida.»

 

Não chore, peço-lhe- disse Johannes com ternura, desajeitadamente. Estava embaraçado e não sabia nem o que devia nem o que podia fazer.

 

Herbert meneou lentamente a cabeça. «Não», pensava, «este Johannes Vierbein não é, decerto, o homem que eu tinha pensado. Isto não é um homem. É um garoto a quem se pretende transformar num adulto, à força. É demasiado mole. com um pouco mais, choramingaria como ela. É feito de cera, e daqui a não muito tempo tê-lo-ão transformado em soldado de chumbo».

 

Não chore, peço-lhe  dizia Johannes em voz baixa. E mais baixo ainda, numa voz quase imperceptível, acrescentou:  A menina é uma rapariga à parte. Sem dúvida. Uma rapariga excepcional.

 

O alferes Wedelmann, encarregado da instrução dos recrutas da 3.ª bateria, esperava a sua promoção ao posto de tenente. Era um oficial de carreira; nascera em qualquer parte da Alemanha do Sul e prestava serviço há perto de seis anos.

 

Quisera, ao princípio, estudar Direito, mas, a pedido do pai e por motivos de ordem financeira, entrara para o exército, onde o tempo de formação era mais curto e menos caro. Além disso, o pai parecia não encarar com desagrado a perspectiva de ver um dia seu filho estatuificado na sua cidade natal sob a forma de um general de bronze.

 

Instintivamente, e a priori, o alferes não esperava grande coisa desta vida militar, a que davam tanto valor. Não podia portanto ter uma decepção. Reconheciam-lhe com agrado as suas boas aptidões físicas; a sua clara inteligência não o prejudicava muito. No primeiro dia o seu entusiasmo não tinha ainda reservas. Na primeira semana trambolhou do céu de glória, de esplendor e de imortalidade onde, como todos sabem, ascendem os heróis mais notórios das nações orgulhosas, e com quem os rapazinhos de todos os países sonham desde a infância. Seis anos mais tarde tinha adquirido uma espécie de cinismo discreto e quase distinto, razão por que na sua roda o consideravam espirituoso.

 

Não tardara a descobrir o sistema vertical: para sete soldados um subalterno, para sete subalternos um oficial, para sete oficiais um comandante de regimento, para sete comandantes de regimento um general. Os algarismos não eram os mesmos em toda a parte: mudavam até de um instante para o outro, mas, com pouca diferença, o princípio era esse. A pirâmide da disciplina. Ser chefe consistia em velar por que houvesse sempre sete outros continuamente «sob pressão». Assim a máquina podia trabalhar. Assim a sólida combinação de matemática e de humanidade não era fácil de derrubar.

 

O que Wedelmann também não tardou a descobrir é que os soldados eram a roda motriz e os subalternos o motor que a punha em movimento. Um general podia facilmente dar-se ao luxo de ser familiar com todos, salvo talvez com os seus comandantes de regimento. Os oficiais faziam bem em prender curto os subalternos: tornar-se simpático aos soldados rasos era recomendável, prático e fácil.

 

É verdade que isto acontecia geralmente à custa dos subalternos, mas era extremamente eficaz e eram estes que lhe suportavam as consequências; eram sempre eles que pagavam as favas. Por isso os superiores os consideravam a coluna vertebral do exército; os soldados consideravam-nos o traseiro.

 

E o alferes, tendo percebido que o seu papel consistia essencialmente em deitar óleo na máquina, chegou à conclusão seguinte: nada fazer que pudesse travar a roda motriz; fazer, acidentalmente, qualquer coisa para acelerar a marcha. A isto se chamava ser chefe.

 

Não lhe foi preciso muito tempo para descobrir que o serviço assim compreendido deixava, a quem não fosse absolutamente tapado, muitas possibilidades de repouso. Estava disposto a aproveitá-las, mas nesta cidade de guarnição bastante pequena não era possível, na verdade, dispor do seu tempo como teria desejado. Na messe via sempre as mesmas caras, pertencentes, na maior parte, aos seus superiores. Na cidade havia duas dúzias de famílias, no máximo, que podia frequentar sem se comprometer. Acolhiam-no com prazer, na sua qualidade de alferes, como reclame, como queridinho de categoria para damas em idade madura ou como candidato ao casamento para jovens inocentes de qualidade.

 

Isto agradava-lhe pouco; dizer que o achava repugnante seria algum tanto exagerado. Restavam-lhe, apesar de tudo, algumas possibilidades. Ir passar o fim de semana à capital do distrito, mas uma só dessas viagens custava-lhe quase todo o soldo do mês. Na messe podia jogar as cartas ou o bilhar com oficiais que se aborreciam como ele ou embebedar-se, mas isto repugnava-lhe. Podia lutar em qualquer momento contra o aborrecimento improvisando incursões militares: inspecção das sentinelas, revisão dos armários, revistas inesperadas; mas ele havia sido simples soldado, e este seis últimos anos não tinham conseguido fazer-lhe esquecer o estado de espírito em que se achava então. Considerava normal ter assim conservado essa recordação. Não sabia que para um militar isso era qualquer coisa de fenomenal.

 

Passou, portanto, esta tarde de sábado como passava todas as tardes de sábado. Começou por dormir uma sesta. Depois vestiu o seu fato civil, que era nada menos que elegante, e saiu a passear. Procurava uma «franga», mas não a achou. Acontecia assim há três anos. Contudo, tinha um rosto agradável: quase o podiam tomar por um primeiro-caixeiro, muito desportivo, de um grande armazém. Mas havia nele qualquer coisa que não marchava, e a maior parte das raparigas sentiam-na imediatamente. Farejavam o uniforme. As que não gostavam da farda não gostavam também dos que a usavam; aquelas que, pelo contrário, lhe davam valor preferiam vê-lo uniformizado, o que ele não queria fazer. Depois de ter tomado o café numa pastelaria, foi até ao cinema.

 

Em seguida, devagar, dirigiu-se ao restaurante Zehner, onde mandou vir um jantar abundante e uma garrafa de bom vinho. Demorou-se, folheou alguns jornais, que davam todos eles as mesmas notícias nos mesmos termos, olhou com enfado as pinturas murais. Depois pediu a conta e declarou que pagaria no princípio do mês, o que o criado, que o conhecia, achou absolutamente razoável.

 

Wedelmann não estava sem dinheiro. Mas não queria gastar tudo, porque o fim de semana estava longe do termo e não sabia ainda como ele se passaria. Além disso, decidira ir primeiro ao bar Excelsior. Ali não teria crédito, se bem que ainda há pouco tempo tivesse estado ligado muito intimamente com Inge, uma das criadas daquele luxuoso estabelecimento. Presentemente Inge estava zangada com ele e exigia que pagasse logo.

 

O Excelsior era, por assim dizer, o único estabelecimento da localidade que se assemelhava a um bar. Inge e Erika serviam; Paul, o proprietário, estava à caixa. Desconfiava-se de que ele fosse homossexual, o que não lhe diminuía em nada a importância do negócio. Os homens que frequentavam o estabelecimento vinham quase todos por causa de Inge e Erika; achavam muito agradável não terem de contar com o ciúme do patrão nas suas tentativas de conquista, quase sempre afortunadas.

 

Paul tinha uma acentuada inclinação pelo alferes Wedelmann, o que apenas quer dizer que tinha por ele simpatia. Aproximou-se, portanto, com prazer, do seu cliente, a quem tratava como camarada, pois também fizera o serviço militar; fora um soldado aceitável e afirmava de bom grado muitas vezes que se dera muito bem na caserna.

 

Wedelmann simulou não notar os manejos daquele bajulador e sentou-se num dos bancos, em frente de Inge.

 

Olha,   o  meu   alferezinho!  exclamou  ela.  Até que enfim apareces outra vez!

 

Dá-me uma Nikolaschka  respondeu ele.

 

Põe na minha conta  disse Paul num tom meloso. Sinto-me feliz de que se ache bem aqui, meu alferes.

 

Wedelmann deitou-lhe um olhar frio; mas Paul sorria da maneira mais amável deste mundo. Inge tinha uma expressão irónica. E o alferes estremeceu um pouco: este representante dos homens-mulheres repugnava-lhe.

 

Debruçou-se sobre o balcão e perguntou a Inge, alto bastante para que o patrão ouvisse:

 

E nós, que fazemos esta noite?

 

Wedelmarm percebeu que a rapariga ficara surpreendida com estes modos tão brutais. Ele próprio se espantava. Mas aquele tipo viscoso tinha-o provocado. Teve a satisfação de o ver afastar-se, consternado.

 

Inge mirava-o com ar descontente:

 

Que foi que te deu?  perguntou.  É a caserna que te põe nesse estado? Não estou livre esta noite. De resto, não tenho o menor desejo de ser tratada como uma «pega». Bem vistas as coisas, há outros homens além de ti nesta aldeola.., E não são os uniformes que faltam.

 

Wedelmann bebeu o seu cocktail e pediu outro:

 

Que pretendes?  perguntou.  Que casem contigo?

 

Seja como for, não com um alferes. Não vou com menos que um comandante.

 

Muito bem, muito bem!  disse Wedelmann, desanimado.

 

Doía-lhe a cabeça, sentia necessidade de respirar ar puro. Pagou e saiu.

 

Caminhava na frescura da noite sem saber para onde. Estava aborrecido, indiferente, vazio. Não tinha amigos, apenas tinha camaradas, que eram, uns seus subordinados, outros seus superiores. Não tinha uma amiga, porque as raparigas que conhecia eram enfadonhas e queriam casar; e as que tinham temperamento eram caras. Mas o amor? Quem pode amar um alferes? Ou elas também gostavam do uniforme e ele não as queria, ou não gostavam e, nesse caso, não podiam igualmente gostar de quem o usasse.

 

Lentamente, dirigiu-se para o quartel. Parou numa taberna, onde bebeu uma cerveja e um copo de aguardente. Ninguém lhe dava atenção. Perguntou a si mesmo se devia comprar uma garrafa de álcool e embebedar-se no quarto. Depois pensou em deitar uma olhadela à messe. Mas nada o satisfazia, porque, se era verdade que não queria estar sozinho, também não queria estar com os superiores...

 

O restaurante Bismarck, diante do qual passou, estava todo iluminado. Música de dança ouvia-se através da escuridão e o ruído das vozes demonstrava que os clientes estavam de bom humor. Uma rapariga ria às gargalhadas... Uma voz forte gritou: «À vossa!» Depois a música parou, ao mesmo tempo que o deslizar dos passos dos dançarinos. Aplaudiram com ruído e imperiosamente e logo a música recomeçou...

 

Sem hesitar, o alferes Wedelmann entrou. Embora estivesse à paisana, o proprietário reconheceu-o à primeira vista. Saudou-o amavelmente e convidou-o a sentar-se à mesa onde alguns graduados, entre os quais o sargento-ajudante Schulz, bebiam à sua custa.

 

Wedelmann recusou polidamente. Entrou no salão e, ao olhar o balancear rítmico dos dançarinos, sentiu-se penetrado de satisfação. Vendo Herbert Asch sentado sozinho a uma mesa, encaminhou-se para ele:

 

Há ainda  um lugar?  perguntou,  esforçando-se, com êxito, por falar em tom muito amável.

 

Herbert pensou que, uma vez que Wedelmann estava à paisana, era preferível tratá-lo como tal; e, depois de ter absorvido um longo trago de cerveja, respondeu:

 

Não é o lugar que falta.

 

O restaurante Bismarck, com jardim e sala de baile, era o local frequentado pelos graduados da 1.ª divisão do regimento de artilharia. Tinha várias vantagens, algumas devidas à localização: estava situado na orla da cidade, no local onde acabava a rua principal, a cerca de quatrocentos metros da entrada da caserna. Quem quer que viesse da cidade e se dirigisse ao quartel tinha de passar por ali.

 

Era o domínio dos soldados de todos os postos, soldados arvorados ou cabos. De bom grado admitiam os simples artilheiros; os subalternos eram recebidos, igualmente, com a condição, bem entendido, de não incomodarem os primeiros.

 

Ao sábado dançava-se. As raparigas afluíam de toda a parte, os homens chegavam atrás delas: atraía-os a longa noite, e a certeza de não estarem de serviço no dia seguinte tornava-os ousados. Nessas noites os soldados arvorados e os cabos tinham muito que fazer, porque deviam vigiar, não só os militares de qualquer categoria, mas também os civis, é certo que na sua maior parte bem insignificantes, e os soldados de infantaria.

 

Nesse sábado havia desordem na atmosfera, porque os soldados de infantaria eram em número bastante superior aos artilheiros. O primeiro-cabo Kowalski, o mais célebre desordeiro da cidade, percorria nervosamente o local. Deixara a sua namorada de ocasião à mesa, sob uma boa guarda, e reunia os camaradas de combate.

 

Despacha-te, Asch  disse.  Prepara-te. Há aí alguns que é preciso atirar pela porta fora.

 

Asch fez um gesto de assentimento. Estava sentado a uma mesa de lado com Vierbein e Elisabeth, aquela Elisabeth que servia habitualmente na cantina. Era Vierbein quem vigiava os copos de cerveja enquanto Elisabeth e Herbert dançavam juntos. Era feliz. Não se preocupava com as numerosas raparigas que estavam ali para passar uma boa noite. Mal as via. Pensava em Ingrid. E quando Elisabeth e Herbert estavam bastante longe tirava a fotografia que subtraíra e que representava uma graciosa rapariga em fato de banho ao sair da água, espreguiçando-se, com a mão sobre a nuca.

 

Quando Kowalski, o primeiro-cabo combativo, se afastou, Johannes perguntou, interessado:

 

Que te queria ele?

 

Posso   imaginar  disse   Elisabeth,   aquecida   pela dança e cujos grandes olhos resplandeciam.  Têm sede e querem refrescar-se juntos.

 

Poderei ir?  disse Vierbein, que parecia ter notado que qualquer coisa se preparava e que, por espírito de camaradagem, queria pôr-se à disposição de Herbert.

 

Não!  respondeu este num tom firme.  Tu ficas aqui. Não podemos deixar Elisabeth sozinha.

 

Vierbein submeteu-se, portanto, e convidou Elisabeth para dançar. Enquanto evolucionavam, Asch olhava-os. Achava Elisabeth soberba, bem melhor que todas as que encontrara até aí. Depois, fortificado por esta visão, preparou-se para ir dar a Kowalsky a ajuda prometida.

 

Foi nesse momento que o alferes Wedelmann lhe veio perguntar se havia lugar à mesa.

 

O oficial sentou-se, puxou um pouco o colarinho, demasiado apertado, e disse:

 

Ah! Eu queria dizer-lhe, Asch, que estou aqui como simples particular... Fazia questão de lho dizer. Proceda como se eu não estivesse aqui.

 

Era mesmo essa a minha intenção, meu alferes respondeu Herbert tranquilamente.

 

Muito   bem-disse   Wedelmann,   que,   até   certo ponto, não se sentia à vontade.

 

Meu alferes  acrescentou Herbert, depois de ter feito um sinal a Kowalsky, que esperava à entrada da sala, queria aconselhá-lo, uma vez que está à paisana, a proceder como um civil.

 

Que quer isso dizer?

 

Quero dizer, meu alferes, que não convém entrar numa desordem quando se está à paisana. Deve-se até ficar encantado por não se estar uniformizado, ficar no seu canto e proceder como se o que se passa não nos dissesse respeito.

 

Não compreendo.

 

Por enquanto ainda não, meu alferes. Mas não tardará a compreender, decerto. O meu conselho não é mau: beber a cerveja e proceder como um civil. Isto evitará talvez aborrecimentos.

 

O alferes não compreendia, mas parecia-lhe que Herbert lhe queria ser agradável. Isso dava-lhe prazer. Também tinha simpatia por este rapaz. «É um belo moço», pensava. «Não é como os outros. Não é um autómato, um simples número, um lambe-botas: é alguém. Daria talvez um bom oficial... Em todo o caso, não o perderei de vista. Há, actualmente, a tendência para empurrar para a frente os que não fizeram estudos secundários.»

 

Asch afastou-se. O alferes não ficou muito tempo sozinho. Acabada a dança, Vierbein e Elisabeth voltaram aos seus lugares. O artilheiro ficou perturbado ao reconhecer o superior:

 

Dá-me licença, meu alferes?  começou.

 

Mas Elisabeth não via motivo para complicar as coisas.

 

A mesa é nossa  disse.  Nós estamos aqui com o cabo Asch.

 

Mas, com certeza! Asch autorizou-me a sentar-me aqui e eu espero que não vejam inconveniente.

 

Wedelmann ia pôr-se a falar. Um ruído terrível veio da primeira sala: a desordem tinha começado. A música recomeçou mais forte e os outros soldados arvorados e os cabos apressaram-se a deixar a sala do fundo.

 

O alferes ia saltar para a frente quando se lembrou do que Herbert lhe acabara de dizer. Reflectiu um instante no que devia fazer. Depois, com ar decidido, levantou-se, mas não foi para ir tomar parte na batalha do fim de semana. Inclinando-se diante de Elisabeth, convidou-a para a próxima dança.

 

Entretanto, o primeiro-cabo Kowalski tinha quase conduzido as suas tropas à vitória. E as’tropas auxiliares, isto é, o patrão, o criado e a encarregada dos lavabos, tomavam as suas disposições para pôr termo ao combate tão depressa quanto possível.

 

Como sempre, a coisa tinha começado bem inocentemente. Kowalski e os seus reuniram-se em grupo, cercaram os «trapeiros», nome por que eram conhecidos os soldados de infantaria, que de nada suspeitavam; entretanto despejavam rapidamente um copo de bagaço atrás da gravata para se fortificarem. Os que traziam cinto apertaram-no um furo, outros desacolchetaram o colarinho do dólman.

 

Em seguida Kowalski começara os preliminares da sua guerra-relâmpago. Agarrou o primeiro soldado de infantaria que lhe apareceu e gritou:

 

Não consinto que me insultes, pedaço de soldado manhoso!

 

Depois duma tal entrada no assunto era evidente que ia haver tempestade. Imediatamente foram tomadas as medidas necessárias para evitar o pior. Segundo o seu temperamento ou a sua pressa, os subalternos presentes trataram de desaparecer para a sala de baile ou para os lavabos, uma vez que uma lei não escrita lhes proibia imiscuírem-se numa questão que se passava no local reservado aos soldados arvorados e aos cabos. Por outro lado, a disciplina não lhes permitiria assistirem como simples testemunhas. O patrão tirou tudo o que se encontrava em cima do balcão e pôs em segurança as garrafas caras. O criado mais robusto abriu de par em par as portas de saída e calçou-as bem. A encarregada do vestiário amontoou tudo o que pertencia aos soldados de infantaria.

 

Só o soldado provocado e os seus camaradas não tinham compreendido. O primeiro respondeu:

 

Quem é que te insultou?

 

E dizendo isto tentou passar à frente de Kowalski.

 

És tu que me insultas  gritou este, pronto para a rixa.  É o teu focinho que me ofende.

 

O soldado acenou a cabeça e tentou passar outra vez. Um outro soldado meteu-se entre eles e perguntou:

 

Que se passa? Quererão vocês briga, seus apanhadores de bosta?

 

Proíbo-te que digas isso!  gritou Kowalski seriamente indignado.  Nós somos motorizados.

 

Outros soldados de infantaria intervieram; os artilheiros, agrupados em cunha, penetravam pouco a pouco na aglomeração. Lentamente, formou-se uma balbúrdia perigosa.

 

Um dos «trapeiros» compreendeu, de súbito, de que se tratava.

 

Vocês querem pôr-nos lá fora!  exclamou com ar de surpresa.

 

Kowalski, radiante, exclamou:

 

Adivinhaste.  E dirigindo-se para ele acrescentou: E é por isso que vais ser o primeiro.

 

Um outro tentou harmonizar as coisas:

 

Vamos, camaradas  disse sejam razoáveis. Que significa isto? Nós podemos beber a nossa cerveja aqui, tão bem como vocês.

 

Quem decide o que podem ou não podem fazer somos nós. Mas, se têm necessidade de explicações, aí vão: há exactamente quinze dias um dos nossos soldados arvorados foi desancado no vosso sítio na Fossa dos Cervos e posto fora.

 

Tinha feito bastante para isso.

 

Pois então nós não esperaremos que vocês o façam.  E o colossal Kowalski agarrou o primeiro soldado de infantaria e atirou-o para a porta, onde Emil, o criado, se apoderou dele e o levou para mais longe, como um fardo.

 

Foi o sinal da batalha que daí a pouco se travava em volta do balcão. Estalavam pedaços de madeira, os homens arquejavam, as raparigas gritavam, soavam ordens, os pés batiam no soalho; de vez em quando um corpo caía com um ruído surdo. Na sala de baile a música redobrava de barulho.

 

Em dez minutos tudo acabou. O local de reunião dos artilheiros estava livre de todos os soldados de infantaria. Soldados arvorados e cabos gozavam o triunfo com uma dignidade viril; não notavam, ou já o tinham esquecido rapidamente, que a seu favor haviam tido a superioridade do número. E os subalternos que regressavam não pouparam os cumprimentos.

 

Apenas o sargento-ajudante Schulz mostrava má cara e não tomava parte na vitória da sua arma. Estava muito descontente e queria que o vissem assim. com efeito, quisera dar um pé de dança quando a desordem ainda não começara, mas antes que conseguisse convidar Elisabeth já esta estava nos braços de Vierbein  justamente nos braços dele!

 

Depois lembrou-se de que o subalterno Lindenberg lhe dissera ter sabido pelo cabo Asch que, segundo Vierbein, havia nesse dia um desafio de futebol. Ora esse desafio somente se realizaria quinze dias mais tarde. Era a prova categórica de que tinham mistificado um superior. Sem esperar mais, mandou o artilheiro para a caserna.

 

O que lhe foi penoso é que, apesar do que fizera, Elisabeth se recusou a dançar com ele. Mais penosa ainda era a circunstância de o alferes Wedelmann estar sentado à mesa dela, à paisana, fitando-o com um olhar gelado.

 

Com mil diabos! Não havia, então, ninguém que tivesse o sentido da disciplina?

 

Elisabeth Freitag era uma rapariga de inteligência viva e que possuía uma boa quantidade de saudável desconfiança! com a idade de 22 anos, sabia, muito melhor do que as mulheres o sabem geralmente por experiência, que os homens diferem uns dos outros mesmo quando trazem idêntico uniforme. Elisabeth observava o rosto e as mãos, o andar e a escrita. Destes pormenores e de muitos outros resultavam as ideias que deles fazia. Mas não admitia na sua galeria senão poucos exemplares, escolhidos com cuidado.

 

Seu pai era contramestre nas oficinas do caminho de ferro: um homenzinho de rosto astuto de raposa, especialista muito experiente, socialista por raciocínio, gostando de fazer pequenos trabalhos em casa. Sua mãe era parteira: alta e robusta, cheia de bondade e de devoção pelo marido. Ambos, à força de economia e de privações, tinham adquirido uma casinha. Mais de uma locomotiva do parque de reparações devia ao pai Freitag estar ainda ao serviço; quase toda a jovem geração da florescente cidadezinha fora trazida ao mundo pela mãe.

 

A irmã mais velha de Elisabeth estava casada há dois anos. Casara com um honesto marceneiro, que não só era um operário competente, mas também um marido modelo. O irmão mais novo cumpria o seu segundo ano de serviço militar em Koenigsberg, nos tanques. Deste modo, Elisabeth possuía o seu próprio quarto, que os pais lhe tinham entregue vazio. Ficou ao cuidado dela mobilá-lo a seu gosto, «porque», dizia-lhe o pai, «deves aprender cedo a tratar da tua vida como entenderes. Ninguém permanece eternamente criança».

 

Os pais davam-lhe toda a liberdade. «Sei bem que não abusarás dela», dissera-lhe o pai, como de passagem. Ele e a mãe tinham-lhe enchido constantemente o espírito de pensamentos sãos e sensatos. «A vida, Elisabeth, não é uma brincadeira de crianças. Pode ser brutal, e é bom que isto se saiba. E, contudo, também pode ser bela. Mas não é difícil conformar-nos.»

 

Não se opuseram ao desejo de Elisabeth de se empregar como criada na cantina do regimento de artilharia. O salário era bom, o trabalho não exagerado, as horas de serviço estritamente fixadas e, além disso, o local não era muito afastado da casa dos Freitag. «Porque não?», dissera o velho ferroviário. «Tu saberás livrar-te de embaraços com os homens.»

 

Ela livrou-se de embaraços, não se deixando levar, o que deu o maior prazer ao Sr. e à Sr.ª Bandurski. Sabiam por experiência que nesta profissão só havia duas possibilidades: deitar-se com toda a gente ou com ninguém. Mas, sobretudo, não ter preferência por um ou por outro, sob pena de descontentar a multidão dos desfavorecidos.

 

Elisabeth fazia o seu serviço com a mesma gravidade que outras punham na barrela ou no trabalho em cadeia. Conservava os olhos abertos e mantinha-se a distância. E quando olhava algum de mais perto era sempre o homem que ela observava e não o uniforme.

 

Foi este também o caso de Herbert Asch. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, o pai e a mãe: dele tinha a inteligência dissimulada, dela a robustez saudável. Muito simplesmente, sem complicações, apaixonou-se por Herbert. Respondia «sim», sem se fazer rogada, quando ele lhe perguntava se queria sair. Nesse dia tinham dado um passeio e jantaram juntos. Depois passaram uma hora a remar na lagoa do castelo, falando do bom tempo, da sua infância e do amor em geral.

 

Encontraram depois Vierbein, que vinha do cinema. Dirigiram-se para o Bismarck, onde dançaram, beberam, disseram não poucas tolices, para não revelarem quão seriamente pensavam um no outro. A disposição em que se achavam era maravilhosa.

 

Elisabeth achava isto natural. Pouco lhe importava onde estava, desde que Herbert estivesse junto de si. Os uniformes numerosos não a embaraçavam: mal os via. Distinguia jovens e sorridentes rostos, ouvia vozes claras que se esforçavam por adquirir um tom viril. A alegria rodeava-a, mas esta alegria não se assemelhava ao bom humor feliz e calmo do pai Freitag. A vida que sentia em redor tinha um ritmo rápido e brusco, era ardente e ameaçava transbordar.

 

Asch rodeava-a duma ternura rude; era desajeitado e violento. Mas isso não a chocava. Não hesitava em mostrar-lhe quanto estava ligada a ele. Sentia-se confiante nos seus braços e olhava-o sem inquietação.

 

Dançou igualmente com Vierbein. Sabia por Herbert quanto ele estava apaixonado por Ingrid. Pensava, portanto, que devia ser gentil.

 

O alferes à paisana que se sentara à sua mesa não a perturbava. Conhecia-o vagamente e achava-o simpático. E quando viu que ele não procurara transtornar a boa harmonia da noite com conversas acerca do serviço aceitou-o com agrado.

 

com o sargento-ajudante Schulz as coisas passaram-se doutra maneira. Até aí não tinha muito a censurar-lhe; era-lhe, até, totalmente indiferente. Mas quando ele veio detê-los a meio da dança, e se permitiu mandar Vierbein para a caserna, convidando-a logo a seguir para dançar. deitou-lhe um olhar furioso e virou-lhe as costas.

 

Regressou à mesa onde estavam sentados Wedelmann e Asch. Este perguntou:

 

Que fizeste de Vierbein, Elisabeth?

 

Mandaram-no para a caserna  respondeu ela, indignada.  Assim mesmo.  Foi o sargento-ajudante.  Isto são maneiras?

 

Não é assim tão grave como isso  declarou Wedelmann,  sinceramente desejoso de a acalmar.  Todos os dias essas coisas acontecem.

 

- Infelizmente  disse Herbert.

 

Não as devemos levar ao trágico  disse o alferes com um gesto desdenhoso.

 

Demasiadamente pouco as levamos a sério.

 

É uma questão de disciplina.

 

Não. É uma questão de delicadeza.

 

Wedelmann deitou-lhe um olhar contrariado. Achava que a expressão era pesada. Pensou na sua patente. Era fácil ver quanto isto lhe desagradava.

 

Quer dizer que o sargento-ajudante se portou de maneira inconveniente?

 

Não, meu alferes  respondeu Herbert sem hesitar. Preferia   evitar   uma   conversa,   qualquer   que   fosse,

 

acerca de serviço, com um oficial à paisana. Via-se bem que ela não teria sentido algum. Eles não podem esquecer o que julgam dever representar.

 

Levantou-se, inclinou-se levemente diante de Elisabeth e convidou-a a dançar. Ela ergueu-se imediatamente. O alferes ficou só.

 

Estava descontente, descontente consigo mesmo. E quanto mais se dava conta disso mais o seu descontentamento aumentava. Sentia que não tinha razão. Não que as suas ideias fossem erradas, mas a forma imperiosa que lhes dera deveria ter sido evitada.

 

Não estava de serviço; além do mais, encontrava-se à paisana e tinha sido acolhido com gentileza pelas pessoas com quem estava à mesa. Tudo isto o obrigava a uma certa condescendência.

 

Aliás, na sua opinião, o sargento-ajudante deixara-se arrastar para uma atitude arbitrária, que ele devia cobrir com a sua autoridade, mas que francamente deplorava. Um baile não é o melhor local para se fazerem estas coisas a claro.

 

O cabo não estava de todo fora da razão. Mas o sargento era seu superior, com razão ou sem ela. «É a mim», pensava Wedelmann, «que compete dizer quem a tem.»

 

E levantando-se, decidido, abriu caminho até à mesa a que Schulz, visivelmente furioso, estava sentado. Chamou-o.

 

Ouça  disse-lhe.  Tenho a impressão de que já bebeu um pouco de mais. Devem ser horas de recolher ao quartel.

 

Sim, meu alferes  respondeu Schulz, consternado, lançando dos olhos centelhas de cólera.

 

Wedelmann voltou ao seu lugar. Não se sentia à vontade. Batera o brigadas com as suas próprias armas, mas perguntava a si mesmo se isso não viria a tornar-se perigoso.

 

Bebeu devagar. «São gentis, ambos», pensava. «Para mim é tudo de tal maneira complicado! Eles sabem tornar a vida naturalmente agradável. Tudo é claro e simples para eles. Quem sabe se me vão compreender?»

 

Bem vê, meu caro Asch  disse, o exército não pode marchar se as ordens não forem executadas. Quaisquer que elas sejam, sem distinção.

 

Mesmo se são estúpidas?

 

Claro  respondeu Wedelmann, não muito convencido do que dizia.  Não há ordens estúpidas. Há-as que o parecem ser. Mas aquele que as recebe não está em condições de julgá-las... a obediência absoluta será sempre a necessidade primeira. Uma ordem tem de ser sempre executada.

 

E se for um simples meio de perseguir as pessoas?

 

Mesmo assim, é preciso obedecer.  Wedelmann estava no seu elemento; sentia que tinha de convencer para não se tornar ridículo:  Uma ordem é uma ordem, ainda que se trate de simples chicana... Um soldado tem sempre o direito de se queixar... mas depois, meu caro amigo, depois.

 

Já viu algum queixar-se? E, sobretudo, já viu alguma vez dar-se andamento a uma queixa?

 

Não  reconheceu o oficial,  apressando-se a continuar:  Mas reflicta um pouco. Qual a razão por que assim é? Ninguém se queixa. Isto mostra claramente que em geral não há motivo para a reclamação.

 

Eu vejo as coisas doutra maneira, meu alferes disse Asch, meneando a cabeça.  Mas não quero aumentar os mal-entendidos.

 

Elisabeth pensou ter chegado o momento de pôr fim a esta conversa um pouco árdua.

 

Para que estamos aqui?  perguntou num tom de censura.  Acho que uma sala de baile não é lugar bem escolhido para histórias de caserna. Ou não conhecerão outros assuntos?

 

Mas, decerto!  disse o alferes em tom amável.

 

Graças a Deus!  aacrescentou Herbert.  Dançamos?

 

Com todo o gosto.

 

E eu não quero incomodá-los mais. Volto para o quartel.  E, levantando-se, acrescentou, com uma voz resignada e mesmo  um pouco triste:  Instintivamente descobriu o que nós tentamos esquecer, o que por vezes queremos esquecer. Divirtam-se muito.

 

A caserna nunca dormia. À noite era um animal enorme, inquieto, sempre pronto a abrir os olhos e a saltar. Toda ela era comprimento: seis blocos de pedra furados por janelas, algumas iluminadas. A luz não indicava apenas as salas onde os soldados que tinham entrado depois do toque de recolher mudavam de roupa, comiam à pressa um bocado, contavam uns aos outros as suas aventuras e engoliam o que lhes restava de álcool. A luz ardia também nos longos corredores, nos gabinetes dos subalternos de serviço e no corpo da guarda. Uma lâmpada iluminava o portão onde uma sentinela verificava as dispensas.

 

O artilheiro Vierbein regressava lentamente. Perguntava a si mesmo se devia aborrecer-se com aquele bruto do brigadas, que o mandara sair no meio de uma dança. Perguntava-se se devia ter medo exactamente porque o sargento-ajudante agira daquela maneira. Mas não encontrava resposta a estas perguntas. Dizia consigo: «Hoje é sábado, amanhã é domingo, o serviço só recomeça depois de amanhã. Quem sabe o que acontecerá segunda-feira?» E surpreendia-se por ter tais pensamentos... que poderiam muito bem ser de Herbert Asch.

 

Fazia a continência a todos os que encontrava, a todos os que ultrapassava, a todos os que via parados. Não queria correr o risco de ser uma vez mais repreendido ou castigado por «falta de respeito a um superior». Fez a continência regulamentarmente a um subalterno que estava encostado a uma árvore e cujos galões brilhavam vagamente. Este não correspondeu: sem dúvida não o vira. E, mesmo que o tivesse visto, não se encontrava em condições de lhe responder. com efeito, apertava nos braços uma rapariga e as suas mãos acariciavam-na sensualmente.

 

Vierbein fingiu nada ter visto. Não queria sequer pensar naquilo. Repugnava-lhe. Esforçava-se por pensar em Ingrid, naquela fotografia que trazia no bolso, sobre o coração. Como era puro tudo o que se relacionava com ela, como tudo era claro, asseado! Como a água e o sol, como o lago onde ela se banhava, como as florestas que a rodeavam e que a tinham visto.

 

Será preciso que te faça correr?  gritou o homem da guarda.

 

Aqui está a minha dispensa  respondeu Vierbein. Dispensa de domingo.

 

Não digas asneiras, meu palerma! Bem vejo que é uma dispensa de domingo. Vamos, some-te.

 

Quero que o subalterno de serviço anote a hora da minha entrada no quartel.

 

Porquê?

 

Recebi ordem de entrar sem demora.

 

O homem, um segundo-cabo, observou-o com piedade.

 

Pobre  velho  disse  apenas.  Tem  pouca  graça, hem?

 

O subalterno de serviço dormia na sua cadeira. O cabo acordou-o e Vierbein repetiu que desejava que fosse anotada na sua dispensa a hora exacta do regresso. O subalterno fez um sinal afirmativo, de mau humor, olhou o relógio, escreveu um número, o seu nome, a patente, e, descansando outra vez a cabeça na mesa, retomou logo o sono.

 

Vierbein dirigiu-se ao edifício da 3.ª bateria. Ia agora mais devagar que antes. «Que vida esta!», pensava. «Um superior ordena e há que obedecer, qualquer que seja a ordem dada. Senão é uma desobediência e o conselho de guerra.» Obedecendo, evitará este último. Pelo menos por agora, porque quem saberia o que o esperava ainda?

 

Estava no quartel. Aliás, não lamentava ter saído do baile. Nunca lá deveria ter entrado. Ao deixar Ingrid devia ter regressado à caserna. Sim, ainda bem que o sargento-ajudante o expulsara, muito simplesmente, da sala.

 

Que noite! O céu estava distante e azul como um pedaço de seda pesada e sombria docemente iluminada. O ar era leve como um sopro e acariciava-o como o hálito duma rapariga amada. O portão da caserna foi fechado com grande ruído. Ao longe vociferavam bêbados. Ouviu-se um autoclismo.

 

É o Sr. Vierbein?  perguntou uma voz hesitante que vinha da janela aberta do alojamento do sargento-ajudante.

 

Johannes, de pé diante da porta do bloco da sua bateria, levantou os olhos. Reconheceu os contornos duma mulher inclinada para fora da janela: Lore Schulz, a mulher do brigadas.

 

Boa noite, minha senhora  disse Vierbein já sem saber se devia afastar-se. A voz da mulher era muito amável, mas, mais do que isso, reservada, prudente, como se estivesse doente.  Uma belíssima noite.

 

Venha até aqui mais perto  disse Lore , se ainda tem tempo... para mim.

 

Vierbein obedeceu. Subiu para o relvado que rodeava o edifício. Olhou a janela aberta onde Lore se debruçava para ele.

 

Lore estremecia de ternura. E nessa noite a ternura era para si uma voz, um ser, um corpo de quem podia sentir o odor aspirando profundamente. E era o que fazia.

 

Foi dançar?  perguntou.  com a sua amiguinha?

 

Oh, não!

 

Acredito em si  disse Lore, satisfeita por encontrar alguém com quem conversar.  Se assim fosse, não teria vindo tão cedo. Ou dar-se-á o caso de que não tenha uma amiguinha?

 

Lore não ficou contrariada por ele não responder. Achou mesmo que era uma boa maneira de responder. Teve um riso leve. Ouviu-se rir, com surpresa. «Ainda sou capaz de rir», disse consigo, «apesar de não ter qualquer motivo para isso. Nem o mais pequeno motivo.»

 

com a maior simplicidade, o marido fechara-a à chave. Experimentou beber, mas não deu resultado. Depois ouviu a rádio, mas o programa era aborrecido e todos os postos emitiam a mesma coisa. Então tentou escrever a carta que há algumas semanas devia aos pais. Mas não foi capaz de ir mais longe que: «Meus queridos pais, isto vai bem, como sempre.» Amachucou o papel e atirou-o, feito numa bola, para o cesto; depois foi buscá-lo, meteu-o no fogão e queimou-o. Durante muito tempo deixou-se ficar à janela; a luz atrás de si, estava apagada, e os seus olhos depressa se habituaram às trevas.

 

Esperava. O que esperava não o saberia dizer. Entravam soldados que não conhecia; uns estavam bêbados, outros simplesmente fatigados. Pela meia-noite viu o subalterno Lindenberg atravessar o quartel num passo enérgico. Ia entregar, com certeza, o caderno das dispensas no corpo da guarda. Regressou pouco depois no mesmo passo enérgico, regulamentar. A seguir foi a vez de Vierbein, a quem logo reconheceu.

 

Dê-me a sua mão  disse ela, e parecia que se afundava num oceano de tristeza e que procurava agarrar-se. Além disso, esta era a sua hora sentimental: os soluços dos violinos ter-lhe-iam feito brotar as lágrimas, uma mão ardente sobre o seu dorso tê-la-ia feito estremecer de volúpia. Quando olhava a Lua durante muito tempo sentia que os olhos se lhe tornavam húmidos.  Dê-me a sua mão repetiu.

 

Vierbein obedeceu sem hesitar, sem reflectir, e ficou surpreendido com a força com que ela lha segurava.

 

Lore inclinou-se. Apertava-lha como se se agarrasse a uma bóia de salvação. Acariciava docemente os dedos do rapaz e dizia: «Como você é novo!» E parecia mortificada, quase desencorajada. Adivinhava-se nela um desespero profundo e vivos desgostos.

 

Vierbein sentiu instintivamente a confusão dolorosa deste ser que lhe segurava a mão. Adivinhava que ela construíra castelos em Espanha, feitos de nostalgia e de desentendimento, de solidão e de amor-próprio  e não era suficientemente enérgico para rasgar com uma mão brutal estes sonhos sentimentais. Sentia de súbito por ela uma terna e fraternal afeição. Sempre desejara uma irmã, da sua idade, uma irmã que lhe agradaria, de quem a sua roda sentiria ciúmes, de quem se orgulharia. Sairia com ela, mostrá-la-ia, teria sido feliz graças a ela. Mas sempre fora sozinho. Sempre.

 

Aprisionados na noite sedosa e nas trevas dos seus mutuos desejos, não repararam na aproximação de uma personagem gorda e larga que se pôs de repente a berrar. «Que é isto?», gritava o sargento-ajudante Schulz. «Vejam-me estes novos métodos!»

 

A sua voz poderosa ressoava na noite, repercutida pelas paredes da caserna: dir-se-ia que subia até às estrelas. Era uma voz que, sem custo, parecia encher todo um mundo. Soava pesada de cerveja e de cólera.

 

Você  aqui,   seu  vadio!  gritava  Schulz  a  Vierbein.  Suma-se! Tornaremos a encontrar-nos!

 

Vierbein fez a continência, afastou-se rapidamente na direcção da bateria e desapareceu. E, através do silêncio atento e ameaçador, adivinhava-se que subia a escada a quatro e quatro, como se fosse perseguido.

 

O brigadas ouvia os passos que se afastavam. Não se lhe podia ver o rosto. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os seus ombros poderosos caídos. Endireitou-se ao ouvir passos atrás de si.

 

O alferes Wedelmann passou diante dele.

 

Não berre dessa maneira em plena noite, sargento-ajudante  disse num tom amigável.

 

Sim, meu alferes  respondeu o sargento, que, de má vontade, se pôs em sentido.

 

Mal se podia já dominar, espumava de raiva, estava a ponto de rebentar. «Este... este...» Mas achou preferível guardar para si as suas ideias espantosamente revolucionárias e não mostrar, com uma clareza que seria perigosa, o que desde sempre dormitava no seu subconsciente: «Estes sujos destes oficiais! Não compreendem nada de nada e metem o nariz em tudo. Sobretudo este...»

 

Custou ao sargento-ajudante libertar-se destes pensamentos tumultuosos. Acudiam-lhe constantemente, mas tratava de não os manifestar, ainda que estivesse persuadido de que eram fundados. Era ele, com os seus subalternos, quem fazia todo o serviço. Os oficiais apenas fiscalizavam e, na maior parte das vezes, deviam reconhecer que não tinham necessidade de o fazer: tudo estava em ordem, precisamente porque eles, o sargento-ajudante e os seus subalternos, velavam por isso.

 

Schulz nunca apreciara muito o alferes Wedelmann. Sabia agora porquê. Esse tipo procurava ser bem visto pelos soldados, à custa dos subalternos...

 

«Quando eu for oficial, as coisas não se passarão assim.»

 

Mas este orgulho tão agradável não se manteve muito tempo. Levantou os olhos para as janelas do seu alojamento, donde vinha luz agora. O coração encheu-se-lhe, de súbito, de amargura.

 

Esta Lore era uma praga! Não era digna de si. Levantara-a da valeta, por assim dizer, fizera dela sua mulher, arranjara-lhe uma casa. Era agora a mulher de um sargento-ajudante! A mulher de um homem a quem estritamente obedeciam vinte e dois subalternos e cento e trinta soldados.

 

Mas ela não pensava nisto. Explicara-lhe o que tal facto representava, muitas vezes, em pormenor, mas ela nunca daí tirara as necessárias consequências.ou então esquecera-as. Era indigna dele!

 

Lentamente, procurou o molho de chaves no bolso, escolheu a chave da casa. Lentamente, remexeu na fechadura de segurança, depois na fechadura principal. Tudo isto levou tempo e deu-lhe ocasião para prosseguir nos seus pensamentos.

 

«A raiz de todo o mal», pensava, «estava em não ter a mulher a exacta noção do seu posto na hierarquia militar.» Devia mostrar-se orgulhosa dele. Ora o orgulho dá aprumo e o aprumo é alguma coisa de importante. Mas ela era medíocre e vingativa e  o que mais é  não tinha dignidade. Absolutamente sem dignidade.

 

Que tivesse procurado enganá-lo com o sargento Werktreu, ainda podia passar... Eram quase da mesma patente. Lembrava um pouco aquela anedota picante da mulher do coronel que fora apanhada em flagrante delito atrás duma sebe com um tenente da 2.ª bateria, quando da festa do Verão. Achava-se graça, mas piscava-se o olho.

 

Mas o que Lore acabava de fazer era imperdoável! «Comprometer-se com os soldados! com um simples artilheiro! com um artilheiro da sua bateria! com um ser de pernas torcidas, de peito estreito, tão pouco soldado quanto era possível. com mil raios, era de enraivecer!»

 

Resolveu aplicar à mulher uma surra exemplar. Ao menos por alguns dias faria efeito.

 

A manhã está sempre à espreita do momento em que a caserna retoma a sua actividade. Nunca espreita em vão. Só ao domingo o ruído diário é mais surdo e começa com duas horas de atraso.

 

Nesse dia, Lindenberg, o subalterno de serviço da 3.ª bateria, foi o primeiro a levantar-se. Oficialmente a alvorada era às oito horas. Lindenberg conhecia os hábitos pouco propícios à disciplina de todos os outros subalternos e deplorava-os. Ao domingo, por volta das oito horas, lançavam alguns gritos, que eram considerados a alvorada; depois tornavam a deitar-se. Pelas dez horas mandavam fazer uma limpeza rápida, e era tudo.

 

Diferente era a maneira de agir de Lindenberg. Cingia-se rigorosamente à ordem do dia, e toda a gente o sabia. Não começava também a dar o sinal de despertar no minuto exacto fixado pelo regulamento, mas sim vinte minutos mais cedo, a fim de todos estarem prontos a tempo. Também isto se sabia. Os soldados aceitavam Lindenberg como uma calamidade da natureza, como a chuva, por exemplo, ou o vento, o que o enchia de um orgulho modesto, invisível do exterior.

 

Onde quer que se encontrasse, estava sempre de serviço. Os que não gostavam dele diziam que mesmo quando dormia conservava os braços esticados ao lado do corpo e que até na retrete o seu porte era sempre perfeito. O caso é que para estar «no seu posto» nunca precisava de mais que alguns segundos. A alvorada não acabara ainda de soar e já ele estava no meio do quarto a fazer ginástica. Enquanto fazia os movimentos lembrou-se de que decidira tomar nota do nome de Vierbein. Vierbein tinha com efeito induzido Asch a fazer uma falsa declaração, que lhe valera a ele, subalterno Lindenberg, uma observação do sargento-ajudante, coisa que nunca lhe acontecia.

 

Vestiu o equipamento desportivo e, sozinho, saiu. Correndo sem parar, dirigiu-se para o campo de manobras. Chegado lá, deu, em passo mais rápido, três voltas ao campo, o que equivalia a cerca de seis quilómetros. Enquanto corria tirou a camisa e viu que o tronco reluzia de suor. Ficou satisfeito. Estava em forma.

 

Depois tomou um duche, barbeou-se, lavou os dentes e, com cuidado, espalhou sete gotas de brilhantina no cabelo, que se pôs a brilhar suavemente. Calçou as botas, que engraxara na véspera à noite, e às oito horas menos vinte minutos exactamente estava pronto. Antes de começar o serviço deitou ainda um olhar para o espelho grande fixado perto da porta de entrada. Corrigiu um vinco que o cinturão causara, depois deu um jeito ao bivaque um pouco para a direita. A imagem que via no espelho era perfeita.

 

A primeira camarata que acordou era a da sua esquadra, onde se encontrava Vierbein. Abriu a porta, deu três apitadelas breves e enérgicas e gritou numa voz máscula: «De pé!» Os soldados levantaram-se; o primeiro de todos foi Vierbein, o que Lindenberg notou com uma certa satisfação. Da entrada da porta observou os homens fatigados que, abafando uma praga, rolavam para fora das camas. Depois gritou: «Arejar», e fechou a porta.

 

com uma precisão espantosa, repetiu esta operação dezoito vezes. Às oito horas exactas todos os homens da 3.a bateria estavam completamente acordados.

 

Às oito horas e dez minutos começou a segunda ronda, depois de ter permanecido cerca de sete minutos na retrete, o que não lhe disse nada de novo nem de importante acerca de si mesmo.

 

Inspeccionou outra vez camarata após camarata, verificou que toda a gente estava levantada, que todos intentavam fazer a cama, que se aplicavam conscienciosamente nas abluções e que pareciam decididos a libertar-se do torpor que a noite precedente lhes havia deixado.

 

Em cada camarata pediu um homem para a limpeza e dois duma vez só naquela onde se alojava a sua esquadra: Asch e Vierbein. Verificou que o primeiro, por ter os pais na cidade, não voltara.

 

Lindenberg gostava dos domingos em que toda a bateria lhe pertencia. Nesses dias trabalhava-se até perto das dez horas. Alguns minutos antes dessa hora Vierbein ainda não tinha acabado. Por mais que se esforçasse, o subalterno achava sempre, sem se fatigar por pouco que fosse, que havia pontos que não correspondiam ao seu ideal de asseio cem por cento.

 

Entretanto soubera-se que um homem estava doente. Apesar de não se ignorar que tinha de entrar de guarda nessa noite, não se podia supor que se tratasse de simulação. Lindenberg interrogou-o seriamente antes de o mandar à enfermaria, onde lhe fizeram tomar primeiro uma aspirina. Foi só à tarde que o homem foi transportado para o hospital com uma apendicite.

 

Era preciso, portanto, completar a guarda. Por esse motivo, pelas dez horas, o subalterno foi tocar à porta da casa do brigadas. Este, sob o peso das várias fadigas dessa noite dera primeiro à mulher uma boa sova, depois sentira necessidade de lhe provar que não renunciava aos seus privilégios conjugais, abriu a porta, bocejando.

 

Meu ajudante, um homem da guarda falta à chamada. É preciso substituí-lo.

 

Schulz olhou Lindenberg com uma expressão esgazeada. Sem se constranger, bocejou outra vez enquanto o olhava.

 

Pois bem! Leve o artilheiro Vierbein  disse.

 

Muito bem, meu ajudante.  E nada na sua expressão permitia que se visse quanto esta decisão do seu superior lhe dava prazer.

 

O artilheiro Johannes yierbein recebeu com certo alívio a ordem de entrar de guarda nesse dia, domingo, à noite. Esperava ser punido. Ignorava porquê, mas estava resignado.

 

«Estar de guarda», pensava, «não é o pior: duas horas de pé, duas horas sentado, duas horas de sono, e isto durante um dia.» Era fácil desempenhar as obrigações da guarda; os sarilhos eram, por assim dizer, impossíveis. Dificilmente haveria um outro serviço que pudesse ser considerado tão tranquilo quanto este.

 

Era pena, somente, que não pudesse ver Ingrid. Tinha um encontro com ela às dezassete horas. Mas às dezassete horas e trinta minutos a guarda devia estar diante do edifício da bateria para ser passada em revista. Às dezoito horas exactas rendiam a guarda. Pediria a Herbert, no dia seguinte, que o desculpasse junto da irmã. Serviço era serviço. .. ninguém podia fugir a ele. E Ingrid compreenderia muito bem, tinha a certeza.

 

De tarde dormiu três horas de avanço, a contar com a noite. Pelas dezasseis horas começou a preparar-se. Escovou o uniforme, o uniforme da guarda, poliu o cinturão, a cartucheira e as botas. Limpou a espingarda. Às dezassete horas estava pronto para a chamada.

 

O chefe do posto era o subalterno Schwitzke, a quem geralmente chamavam o Lagarto. Era o descanso personificado. Ninguém sabia como pudera chegar a subalterno e toda a gente estava convencida de que nunca seria primeiro-sargento. A sua expressão favorita era: «Um velho soldado não é um rápido.»

 

Isto não excluía, contudo, que Schwitzke, quando ordenava: «Descansar!», só pensava em si mesmo. Era o trabalho organizado e, se necessário, ininterrupto dos outros que lhe garantia a tranquilidade. Nunca gritava: dava as suas ordens descansadamente, com precisão, com um instinto seguro do que tinha de fazer para cumprir as obrigações normais do serviço com o mínimo de fadiga possível. Deixava-se ficar sentado... e tomava as suas precauções. Fazia o que era absolutamente indispensável, mas dava sempre a impressão de estar seriamente ocupado: quando lia um romance policial camuflava-o habilmente com o caderno da guarda e conservava a caneta na mão.

 

Possuía ainda um talento maravilhoso para conhecer as pessoas. Sabia escolher com toda a precisão, entre os subordinados, aquele que oporia menos resistência. Este nunca mais deixava de trotar. Escusado seria dizer que a vítima escolhida enquanto fazia a guarda foi Vierbein.

 

Este cumpriu sem murmurar todas as ordens que lhe foram dadas. Foi à cantina buscar que beber para o subalterno; tinha fósforos prontos para que Schwitzke pudesse acender os cigarros. Mas, coisa surpreendente, não tentaram amestrá-lo, não o fizeram rolar na lama, não ouviu injúrias. Estar de guarda era quase uma distracção, pelo menos com Schwitzke.

 

As melhores horas foram as de patrulha. Vierbein fazia então tranquilamente a sua ronda ao longo das paliçadas que rodeavam a caserna, ao longo dos depósitos de armas, através do campo de manobras. Verificava as fechaduras das caixas de munições e os selos de chumbo das bocas de incêndio. Não receava as rondas porque os oficiais de serviço tinham adoptado o hábito, há algumas semanas, de se darem a conhecer bastante antes de se aproximarem. Devia-se isto, sem contestação, ao primeiro-cabo Kowalski, que disparara antes que o oficial de ronda tivesse tempo de pronunciar a senha.

 

Quando Vierbein, com a espingarda ao ombro, carregada e travada, se encontrava sozinho com os seus pensamentos, tomava-se por um autêntico soldado. Ele velava... e os outros podiam dormir em paz. Os seus camaradas estavam na cama, os canhões nos depósitos, as munições arrumadas nas caixas: ele olhava por tudo isto. E se alguém viesse, espião ou sabotador, dispararia contra ele para defender o grande segredo pelo qual tinha o privilégio de velar. Havia cinco balas na culatra, quinze na cartucheira. Cumpriria o seu dever.

 

E enquanto ia andando pela noite clara, tranquilo, confiante, no silêncio, enquanto o cascalho rangia sob os pés e o cano da espingarda batia marcialmente contra o capacete de aço, continuava a reflectir. Por que razão, perguntava a si mesmo, era o burro de carga dos subalternos, ele, que tanto se esforçava? Fazia, na verdade, tudo o que lhe mandavam e até mais: estava sempre disposto, apresentava-se sempre como voluntário, nunca resmungava, era sempre solícito a fazer o seu serviço. Ninguém apreciava isto. Pelo contrário, os aborrecimentos perseguiam-no. Se algum se fazia notar, era ele, sempre ele. Os outros podiam mandriar durante horas, ninguém se preocupava; mas, se ele experimentava retomar fôlego por alguns segundos, todos os superiores num raio de cem metros o descobriam.

 

Mas, como nada havia a fazer, achou preferível não pensar mais em tal. Dirigiu-se à porta de trás e verificou se estava fechada à chave. Seguia pela paliçada: os arames farpados, renovados pouco tempo antes, brilhavam à claridade da Lua. Depois Vierbein pensou nos pais, sobretudo no pai, que decerto se orgulharia dele se o pudesse ver. Acudiu-lhe então ao espírito Ingrid e pensou que àquela hora ela devia estar dormindo.

 

Algumas horas mais tarde encontrava-se de serviço ao portão. Ia e vinha do corpo da guarda à entrada da caserna, duas vezes doze passos, de cada vez que alguém pedia para entrar. Recebia as dispensas e prestava as honras militares aos subalternos. Por vezes deixava-se ficar um pouco mais, debaixo do candeeiro perto do portão aberto, dava dois ou três passos na rua, olhando na direcção do Bismarck, donde regressavam os últimos dispensados.

 

Devagar, muito devagar, o dia vinha chegando. No horizonte longínquo, um clarão acinzentado, fusco, aparecia. Os nevoeiros da manhã pareciam formar-se.

 

O primeiro-sargento Platzek, o Pele de Vaca, cambaleava na direcção do quartel. Estava bêbado e, por consequência, de bom humor.

 

Abra o portão todo, seu imbecil!  gritou, gaguejando.  Se eu não conseguir passar, será por tua culpa, percebeste?

 

Sim, meu sargento  respondeu Vierbein, automaticamente.

 

Pele de Vaca agarrou-se ao portão:

 

Um de nós está bêbado! Isso é garantido! Qual é? Vierbein fez nova continência, mas não respondeu.

 

Há um que está bêbado  repetia Platzek.  Vamos, diz, pedaço de asno, cretino, palerma, sou eu que estou bêbado?

 

Vierbein via perfeitamente que não podia responder: «Sim, meu sargento, está bêbado como um cacho.» Sabia o que Platzek queria ouvir. Por isso respondeu:

 

Não, meu sargento.

 

Pele de Vaca olhou o artilheiro com os seus olhos pequenos enquanto se apoiava, para recobrar fôlego, ao batente do portão:

 

bom!  exclamou numa voz pastosa.  Não sou eu o bêbado. Mas um de nós é. Nesse caso és tu! Está claro?

 

Sim, meu sargento.

 

Não tens vergonha? O rapaz está de guarda e está bêbado?

 

Deu alguns passos cambaleando, parou outra vez e deitou um olhar em volta.

 

Vou inscrever o teu nome na participação  disse, a custo.

 

Depois dirigiu-se para a caserna, fazendo largas curvas.

 

Vierbein não se lembrou de rir. Seguiu o subalterno com o olhar e encolheu os ombros. Não percebia. Já estava a fechar o portão para voltar ao corpo da guarda quando uma voz conhecida o chamou: «Vierbein», diziam a meia voz, prudentemente, «há perigo?».

 

O soldado compreendeu logo que era. Herbert Asch. Saiu e olhou na direcção donde vinha a voz.

 

Que se passa? Onde estás?

 

Há aí alguém?  perguntou Asch como resposta.

 

Não.

 

Então, escapo. Abre o portão, aí vou.

 

O cabo saiu da sombra e Vierbein viu que ele tinha por única roupa a camisa. Balbuciou, prevendo já as mais terríveis complicações:

 

Mas tu não podes entrar assim. Tenho de participar. Isto vai-me levar a um conselho de guerra.

 

Cala a boca, meu velho!  respondeu Herbert sem parar.  Fecha os olhos e deixa-me cá. Amanhã te contarei tudo.

 

Vierbein empurrou o portão, tremendo. «Oxalá isto acabe bem!» Era tudo o que se achava capaz de pensar. E sondava com inquietação as trevas, que pareciam ter engolido o cabo em camisa. Primeiro tudo permaneceu tranquilo, duma calma inquietante. Depois, na caserna envolvida na noite, ergueu-se um grito triunfal.

 

Que é isto?  berrava Platzek com o entusiasmo do bêbado. Vomitara, com certeza. Encostara-se a uma parede, aliviara-se e estava exactamente a recuperar a consciência quando notara um homem em camisa. Nunca se tinha visto tal coisa.  Está em fralda, o rapaz. Donde vem você, Asch? Donde vem você, seu maroto?

 

Vierbein ouviu-o. Sentiu frio na espinha e depois calor. Agarrou a chave e sentiu distintamente que a mão estava húmida de suor. Via-se já em frente de um conselho de guerra, condenado a prisão...

 

Mas eis que ouviu a voz calma e sonora do amigo ressoar na obscuridade, essa voz reconfortante que dava sempre a impressão de que aquele que falava se divertia secreta e longamente. Dizia ela:

 

Meu sargento, eu sou sonâmbulo.

 

Pele de Vaca pareceu ficar supreendido para além de todos os limites. Passou-se bastante tempo antes que se ouvisse a sua voz gorda, pesada de cerveja:

 

É de cair de rabo no chão! Tem de me contar isso.

 

Sim, meu sargento  respondeu Herbert.

 

E ambos se afastaram em boa harmonia. Não se ouviu mais nada. Uma vez ainda, somente, ressoou uma gargalhada formidável, que provinha, sem dúvida, de Platzek. Depois foi o silêncio.

 

Vierbein já nem sequer tinha força para se mexer. «Oxalá isto acabe bem. Oxalá nada venha a acontecer!»

 

O amor dos soldados era diferente do dos donos de fábricas e em nada se assemelhava ao amor dos carteiros ou dos moços de hotel. Tinha as suas características especiais. Claro que em certa altura o amor era o mesmo para todos. Mas nos pormenores exteriores, nas formas, nos manejos, separavam-se as classes, os grupos, as patentes.

 

Herbert conhecia o amor. Até certo ponto pela sua própria experiência, mas também pelo que dele vira e ouvira. Sabia que este amor era apressado, rápido, sem considerações, nem mesmo muito delicado na escolha do seu objecto. As noites eram encurtadas pela duração das dispensas. Era o acaso que guiava a escolha. Os resultados eram geralmente levados ao conhecimento de todos, nos seus pormenores e com numerosos exageros, durante as grosseiras conversas apreciadas na caserna. Muitas vezes com o endereço exacto.

 

Asch conhecia o amor na grade do jardim, encostado ao muro do cemitério, na sala do jogo da laranjinha do Bismarck, nos jardins das casas e ao longo do muro do quartel. Sabia o que tais palavras significavam quando um camarada dizia: «Desapareçam por dez minutos. Tenho uma coisa para dizer à minha namorada.» Ou então quando um subalterno declarava, piscando o olho: «Não me incomodem esta tarde!» Compreendia o que se passava quando no quarto de Wedelmann a luz se apagava depois de se terem ouvido discos de canções francesas.

 

Sempre um lapso de tempo fixado de antemão ditava os folguedos amorosos e abreviava os preliminares: o toque de recolher, o fim da dispensa, a alvorada. Era a pressa que regulava as operações.

 

A isto acrescentava-se o sentimento angustioso de ter de estar sempre pronto: qualquer um dos milhares e milhares de superiores podia aparecer de repente ali perto; as sereias de alarme desenlaçavam os abraços; era possível que na hora seguinte se desse uma transferência; a unidade inteira podia, de um momento para o outro, ser deslocada. Finalmente podia-se imaginar que seria preciso ir outra vez libertar qualquer país ou, então, que rebentava a bomba com a qual há anos se brincava. Ora a guerra não significava somente a renúncia ao amor, mas talvez até a renúncia à vida.

 

Daí esta necessidade ardente de viver, de amar. Havia-os que nunca pensavam assim: Vierbein, por exemplo; Lindenberg, também, sem dúvida, se é que este alguma vez pensava nas mulheres. Havia-os também que nem sempre pensavam assim: Asch, por exemplo, enquanto nessa noite suave de domingo esteve com Elisabeth.

 

Tinha decidido firmemente portar-se com juízo. Amava a rapariga mais do que a si mesmo e queria que este amor fosse duradouro. Queria guardá-lo para dias mais belos, melhores, mais livres, para uma época que deixaria um lugar à grandeza inquietante dos seus sentimentos para com Elisabeth.

 

Segurava-a pela mão; deitado junto dela na erva, contemplava o céu e imaginava o futuro: Elisabeth e ele teriam tomado conta do café, enquanto o pai, contente por haver-se desembaraçado desse fardo, nada mais faria que percorrer uma vez por outra as salas e saudar as autoridades que representassem o Governo no Poder. Duas crianças brincariam alegremente, e Herbert, quando estivesse particularmente de bom humor, contaria os seus dois anos de serviço militar e as engraçadas coisas que se passavam.

 

Em que pensas?  perguntou Elisabeth, olhando-o. E porque é que estás tão contente?

 

Penso nas crianças... E regozijo-me por pensar que não usarão uniforme.

 

Acreditas nisso a sério?  perguntou ela num tom céptico.

 

É evidente... Ou o universo inteiro vem a ser nosso, e nesse caso não teremos necessidade de exército, ou então viremos a ser engolidos pelo universo, e, com muito mais razão, não teremos igualmente necessidade de exército.

 

Elisabeth tornou a deitar-se ao comprido e, meneando a cabeça, replicou num tom pensativo:

 

Não sei. O que tu dizes dizia-o também meu pai, palavra por palavra, quando era muito novo, em 1913.

 

Ah, sim, nessa altura! Mas a grande catástrofe não se dera ainda. Hoje a experiência tornou-nos mais ajuizados. As nossas guerras são frias.

 

Elisabeth abafou uma risada.

 

Tens toda a razão  disse , tu és um guerreiro frio.

 

Pois vou mostrar-te qual de nós é frio. E deu-lhe um beijo violento.

 

Elisabeth deixou de rir. As suas mãos agarraram os ombros de Herbert; este sentiu-lhe o calor do corpo. Ela perdera as forças: estava ali, calma, tranquila, abandonada.

 

Elisabeth!  disse Herbert, enquanto as suas mãos escorregavam até às ancas da rapariga.

 

Nesse momento ela arrancou-se-lhe dos braços. Repeliu-o e levantou-se de um salto. Apesar das trevas, ele via-lhe o rosto ardente.

 

Desculpa  disse  Herbert,   levantando-se  também. Ela tornou a rir.

 

Vem  disse, agarrando-lhe o braço com naturalidade. Tenho de voltar para casa... Não nos podemos divertir aí a fazer tolices.

 

Não, minha querida.

 

Mais tarde  disse ela, com ternura.  Teremos o tempo todo para as fazermos.

 

Sim, minha querida.

 

Enquanto caminhavam libertou devagar o braço que ela segurava e agarrou-a firmemente pelos ombros. Não só ela o tolerou como ainda se colou a ele. Era difícil andar assim, além do aspecto imensamente ridículo que tinha. Mas a eles agradava-lhes. Amavam-se.

 

Asch procurava caminhos desviados para evitar encontrar superiores. E enquanto a sua mão, sem que Elisabeth se opusesse, deslizava debaixo do braço dela e avançava tacteando até à base dos seiozinhos duros, Herbert não deixava de examinar as cercanias a fim de evitar encontros.

 

Por muito tempo caminharam assim, no meio da noite, estreitamente apertados um contra o outro. Quase não falavam, mas era como se dissessem, sem abrir a boca, muitas coisas. Ambos tinham os mesmos pensamentos.

 

Tens de ir  disse ela.

 

Sim, Elisabeth.

 

Estavam a uns quarenta metros da casa dos Freitag, debaixo duma tília, apertados um contra o outro.

 

Não posso ir agora  disse ele, e dir-se-ia que não

 

tinha ânimo.

 

As mãos de Elisabeth, como que incertas, acariciavam a fazenda grosseira do uniforme. O seu corpo ardia, mas as suas mãos estavam imóveis.

 

Elisabeth  disse ele, e os seus lábios deslizaram-lhe sobre o pescoço.  Elisabeth...

 

Vem  murmurou ela.

 

Agarrou a mão de Herbert e arrastou-o para casa. Caminharam como que embriagados, através da noite.

 

Elisabeth ia à frente. Abriu a porta e fê-lo entrar. Atrás deles a porta fechou-se por si mesma, devagar. O quarto

 

acolheu-os.

 

Elisabeth  disse Herbert.  Amo-te.

 

Tira o uniforme  murmurou ela.

 

Caíram nos braços um do outro. A Lua brilhava por cima deles e dir-se-ia que era feliz. >Eles jaziam esgotados um ao lado do outro e sorriam de felicidade. Docemente, tocavam-se mutuamente com as pontas dos dedos. Estavam encantados um com o outro, contentes de si mesmos e do mundo. Até o amor do soldado conhece destes momentos, em que parece que o universo se detém. Mas o universo do soldado gira mais depressa que o dos outros mortais. Ela dormia; ele velava, pensando nela e em si mesmo, e reflectia no caminho que deveria seguir para chegar a tempo à caserna.

 

Além disso, sentia um desejo intenso de satisfazer uma necessidade natural. Levantou-se pois com cuidado, enfiou a camisa, saiu, descalço, dizendo consigo que o mais simples era ir defronte da casa. Abriu a porta e saiu. Atrás dele a fechadura, docemente, voltou a fechar-se.

 

Só deu por isso quando pretendia entrar. A porta tinha uma fechadura de mola e não se podia abrir de fora senão com a chave.

 

Foi só ao fim de um bom bocado que compreendeu o que aquilo significava para ele. Não podia entrar sem bater ou tocar. Elisabeth dormia e levaria muito tempo, com certeza, antes que notasse a sua ausência e viesse procurá-lo. Além disso, tinha de evitar ruído, por pequeno que fosse. Não devia fazer nada que pudesse comprometer Elisabeth  a sua Elisabeth!

 

Conclusão: voltar ao quartel. Tal como estava. Não podia fazer outra coisa. Por causa de Elisabeth. Talvez tivesse sorte e pudesse voltar à bateria sem obstáculos. E se tivesse muita sorte cairia sobre Vierbein, que estava de guarda.

 

A sua decisão foi reforçada por várias circunstâncias. Primeiro, começava a arrefecer; depois, o dia não parecia vir muito longe, uma vez que o horizonte já se estava aclarando; finalmente, ouvia falar dentro da casa dos Freitag. Partiu portanto a toda a pressa.

 

A voz que ouvira era a do pai de Elisabeth. O ruído do trinco ao fechar-se acordara-o; parecia-lhe ter já ouvido a porta fechar-se havia pelo menos uma hora. Bateu à porta de Elisabeth.

 

Estás aí?  perguntou.

 

Sim  respondeu Elisabeth, espavorida.

 

Entraste agora?

 

Não. Entrei há muito tempo. Já estava a dormir.

 

Então está bem. Dorme, pequena  disse Freitag, num tom paternal. E para consigo acrescentou: «No entanto, tinha-me parecido...» Depois voltou para o quarto e tornou a deitar-se, mas foi-lhe preciso muito tempo para voltar a adormecer, porque tinha a sensação nítida de que qualquer coisa acontecera que devia dar-lhe que pensar.

 

Entretanto, Elisabeth, sentada na cama, escutava as pancadas do seu coração. Não sabia exactamente o que se passara e não podia imaginar o que ia acontecer. Sentia-se cansada, como se estivesse partida, e desesperada porque no soalho do quarto via dispersas as roupas e o equipamento de Herbert: cuecas, peúgas, calças e dólman, botas, bivaque e cinturão. Apenas faltava a camisa. E o pai ouvira o trinco fechar-se.

 

Por fim recuperou a serenidade. Imaginou Herbert fora, sem roupa. O pai era capaz de voltar e não devia, custasse o que custasse, encontrar as roupas no quarto. Juntou-as e fez um embrulho, que levou para fora e foi depor, cautelosamente, diante da porta.

 

Foi ali que o pai Freitag, de manhã, o foi encontrar ao dirigir-se para o trabalho. Parou, estupefacto, sem acreditar nos próprios olhos, e reflectiu longamente. Depois, agarrando o embrulho, levou-o para casa e depô-lo na mesa da cozinha, onde a mulher e a filha estavam justamente a tomar o café.

 

Sem olhar para ninguém, disse:

 

Um soldado deve ter perdido isto em qualquer parte. Não é uma coisa frequente, mas mesmo assim pode acontecer. Penso que faremos bem em não chamar a atenção para o facto. Devolveremos muito simplesmente todas estas coisas.

 

O canto regozija o coração do homem, fortifica-lhe os pulmões e aumenta a sede. No exército é utilizado ainda para tornar a marcha mais divertida e para impedir os homens de tagarelarem uns com os outros.

 

Vinte vozes cantavam no andar de cima. Era segunda-feira, pouco depois das cinco horas da manhã, e havia reunião para festejar entre camaradas o aniversário do Pele de Vaca, o primeiro-sargento Platzek. Empoleirado em cima de um banco, Werktreu marcava o compasso. Reunidos em volta do brigadas, os subalternos rodeavam o alegre chefe do depósito de fardamentos.

 

Estavam sumariamente vestidos: a maior parte deles tinham-se contentado em enfiar por cima da camisa de noite umas calças de treino; os cabelos despenteados estavam eriçados; os pés, geralmente grandes, metidos em pantufas ou sapatos de ginástica. Apenas o sargento Lindenberg trazia um uniforme completo, regulamentar: o uniforme de desporto. Todos tinham os olhos fitos na porta atrás da qual se encontrava o festejado e cantavam ruidosamente com manifesto fervor.

 

Devagar, a porta abriu-se, e o sargento Platzek, que em virtude da sua noite de bebida mal podia abrir os olhos, saudou-os cheio de alegria, mas com uma expressão viril. Depois a porta abriu-se mais e no meio da mesa viram-se, no pequeno quarto, duas caixas de cerveja e quatro garrafas de aguardente.

 

Em coro, os subalternos cantavam: Obrigado, meu Deus, por ter sido tão bom!

 

E quando o coro terminou, na solene alegria de todos, Schulz avançou para Platzek e disse-lhe:

 

Meu caro camarada Platzek, felicitamos-te pelo teu aniversário. E agora diz-nos qual é a tua canção preferida.

 

Pelos campos, pela planície  respondeu sem hesitar Platzek.

 

Sabia que esta pergunta viria e tinha-se preparado para ela de antemão. Gostava pouco de cantar e, além disso, cantava em falsete, mas sabia que Pelos campos, pela planície, era a canção preferida do sargento-ajudante.

 

«Um, dois, três!», berrou Schulz, dando o tom; os outros começaram a cantar e, enquanto se desenrolavam as estrofes desta alegre canção, todos os subalternos, segundo a antiguidade, foram apertar a mão a Platzek e receber, cada um, para começar, a sua garrafa de cerveja. O quarto estava cheio. Schulz, Platzek e Werktreu, o chefe da banda, estavam sentados no leito de campanha; outros subalternos tinham trepado para a secretária ou ocupado as duas cadeiras; os mais novos haviam tido o cuidado de trazer bancos. Fumavam e limpavam os dentes com aguardente; depressa o quarto ficou cheio do odor forte da cerveja, do álcool, do fumo e do suor.

 

Como sempre, era o brigadas o centro da reunião. O canto de aniversário era ideia sua. O seu primeiro-amanuense tinha uma lista especial para este efeito. Três dias antes da festa chamava-se a atenção daqueles que festejavam e daquele que era festejado, a fim de que este pudesse fazer os seus preparativos. As cerimónias, executadas com precisão, começavam antes da alvorada por um coro  sempre o mesmo. Depois o brigadas aproveitava o momento favorável e o sentido de solidariedade excitado pela quantidade de álcool ingerido em jejum para trabalhar na sua política interna.

 

-No tiro de canhão  revelou ele ao auditório somos a melhor bateria do regimento. É sobretudo a ti que isto se deve, Platzek. À tua saúde! Ah, como é bom!... Não, ninguém nos ultrapassa no tiro de canhão. Até o comandante Luschke, o Batata, o disse no outro dia ao coronel, na minha presença. E se o comandante Luschke o diz, isso vale mais que ser-se citado na ordem do dia do exército. Podemos estar orgulhosos. Mas quanto à disciplina em geral, é uma porcaria! Há um certo número de tipos na nossa bateria que estão abaixo de tudo. Abaixo de tudo, é o que vos digo. Esse Vierbein, por exemplo.

 

Alguns subalternos aprovam ruidosamente. Outros, reunidos em volta de Werktreu, fazem menção de querer cantar, sem dúvida para evitar a conversa. Mas Schulz está firmemente resolvido a manter toda a gente à sua roda... intelectualmente.

 

Esse Vierbein  repete  é uma calamidade. Não é você que o tem na sua esquadra, Lindenberg?

 

Sim, meu ajudante  respondeu este, regulamentar como sempre.

 

E então, Lindenberg?

 

Perfeitamente, meu ajudante, o artilheiro Vierbein é uma calamidade. Toda a minha esquadra é constituída por calamidades.

 

Antes que Schulz tivesse tido tempo para atenuar a última frase, que demolia todo o seu plano, o sargento Platzek intervém:

 

Isso é verdade! Lindenberg só tem imbecis. É na verdade uma esquadra divertida. Esta manhã encontrei um deles que passeava em fralda de camisa. Um sonâmbulo!

 

Numerosos foram os que simularam achar a história muito divertida e riram à gargalhada. Alguns aproveitaram para beber. Um deles exclamou: «Inacreditável!»

 

O subalterno Lindenberg, sentado, erecto, num banco que trouxera, perguntou:

 

Posso perguntar-lhe, meu sargento, de que soldado da minha esquadra se trata?

 

Era o cabo Asch.

 

Não estará enganado, meu sargento?

 

Não consegue perceber. Conhece Asch. É saudável, sólido, absolutamente normal. Impossível acreditar que seja justamente ele...

 

Como se permite?  perguntou Platzek, descontente. Levantara-se e fixava o segundo-sargento com um olhar velado.  Que significa isso? Pretenderá insinuar que eu estava bêbado?

 

Mas  não,  decerto  respondeu Werktreu para o acalmar.  Até eu fiquei surpreendido quando disseste esse nome. Asch nunca foi sonâmbulo.

 

Pois é-o  afirmou Platzek, teimoso.

 

O sargento-ajudante procura evitar a disputa, tanto mais que não quer deixar-se afastar do seu assunto.

 

Deixemos    isso  disse.  Falemos   de   Vierbein, desse veneno. Servindo-se dum falso pretexto, arranjou uma dispensa no sábado. Esse cretino queria ir ao desafio de futebol. Ora a verdade é que não havia desafio. Não é verdade isto, Lindenberg?

 

Sim, meu ajudante.

 

Além disso  continua Schulz, num tom de requisitório , esse sujo deixou a caserna por um caminho não regulamentar.

 

Saltou o muro!

 

Idiotice! Em pleno dia!

 

Quanto a mim  continua o brigadas, num tom convicto , sempre estive persuadido de que esse Vierbein é um real perigo para a disciplina. Vai ser preciso chegar-lhe o fogo ao rabo.

 

Até agora  observou corajosamente Lindenberg tem-se portado perfeitamente. Não era um bom soldado, mas também não era um soldado mau. Procurava acertar e mostrava-se sempre cheio de boa vontade.

 

Que significa isso?  perguntou Schulz, numa voz lenta e mostrando-se surpreendido.  Estará a pôr em dúvida o meu parecer, Lindenberg?

 

Não, meu ajudante.

 

Espero   que   assim   seja  respondeu   o   brigadas olhando em redor e verificando com satisfação que todos se mostravam de acordo.  E para que tenha tempo de pensar, meu caro Lindenberg, como foi possível ter-se deixado enrolar, no sábado de tarde, por um descarado artilheiro, será você que se encarregará de dirigir esta manhã os exercícios desportivos.

 

Muito bem, meu ajudante.

 

E depois vigiará a limpeza do seu sector.

 

Sim, meu ajudante.

 

«Isto era necessário», pensava Schulz. «É preciso, de tempos a tempos, dar-lhes para trás quando eles se salientam. Tem de haver disciplina mesmo quando se bebe. Sobretudo quando se bebe. É claro! Eles achariam óptimo esvaziar as garrafas e refilar. E tudo a coberto da camaradagem. Isso querias tu! com Schulz não pega.»

 

O sargento-ajudante registava com muita exactidão as reacções dos seus subalternos. Verificou que, desta vez ainda, dera no vinte. Para onde quer que olhasse, toda a gente o aprovava. Era o resultado da sua táctica. Escolhera bem o seu alvo: não era difícil triunfar de um Lindenberg: não era muito estimado e tinha a reputação de ser um causador de dificuldades. «Um tipo antipático! Se apenas dependesse dele, os subalternos, comigo, Schulz, à cabeça, deveriam comportar-se duas vezes mais irrepreensivelmente que os soldados. Impossível!»

 

Temos de nos auxiliar uns aos outros  disse Schulz. Não estamos na escola infantil. Os incapazes, como esse Vierbein, precisam que de vez em quando lhes sacudamos as pulgas. É preciso fazer-lhe compreender que não pode troçar de nós.

 

Deixa-o comigo  disse Platzek num tom que prometia.  Eu me encarrego de lhe pôr as nádegas no seu lugar.

 

E agora  exclamou o brigadas de bom humor, vamos cantar uma! Pelos campos, pela planície! Um, dois, três!

 

A alma do empreendimento era a disciplina, o seu  coração chamava-se regulamento. A disciplina era o motor,  o regulamento, o mecanismo. O chefe supremo queria um exército invencível, os generais queriam exércitos capazes de funcionar, os oficiais superiores fixavam os objectivos a atingir, os subalternos atingiam-nos.

 

A coisa mais natural era a disciplina, a mais decisiva o quadro de serviço. O coronel mandava elaborá-lo nas suas linhas gerais pelos oficiais de ordenança, o chefe da bateria encarregava o sargento-ajudante de lhe dar a última demão.

 

Conforme a tradição, Schulz fixava para a manhã de segunda-feira o exercício mais penoso da semana: duas horas cheias. Todos os membros da bateria deviam tomar parte nele, até mesmo o sargento amanuense e os seus auxiliares, incluindo os que estavam de serviço. Oficialmente, segundo o regulamento, era o comandante da bateria, o capitão Derna, quem comandava pessoalmente o conjunto. No entanto, quase sempre ele se fazia substituir pelo alferes Wedelmann e só aparecia na parada da caserna lá para o fim do exercício.

 

Eram estas, para a bateria considerada no seu conjunto, as duas horas mais desagradáveis da semana; para o sargento-ajudante eram as mais tranquilas. Tinha o hábito de inspeccionar a bateria alinhada e escrevia no seu caderno de notas pelo menos três nomes, nunca mais que sete. Depois entregava a bateria aos cuidados de Wedelmann, que, por sua vez, dava o comando ao primeiro-sargento de promoção mais antiga e ordenava a partida na direcção do campo de manobras, ao som do canto.

 

O sargento-ajudante, em sentido, seguia com o olhar a bateria; depois ia almoçar. Não estava de muito bom humor. É certo que os manejos de armas e os movimentos tinham sido perfeitos e que o seu relatório fora, como sempre, feito com precisão: possuía, como era do conhecimento de todos,, a mais bela voz de comando de todo o regimento. O que estragara a sua disposição fora a circunstância de o artilheiro Vierbein ter brilhado pela ausência. Bem podia ele, sargento-ajudante, ter dado corda aos seus subalternos: o outro de nada se apercebia e fazia tranquilamente a guarda. Até às seis horas da tarde. E fazer guarda, pelo menos durante o dia, era uma verdadeira sinecura.

 

Enquanto se dirigia para casa reflectiu um pouco, perguntando a si mesmo se a precisão metódica com que vigiava Vierbein proviria de razões unicamente pessoais. Não. A sua consciência neste ponto estava pura. O que sucedia, muito simplesmente, é que esse Vierbein não era, aos seus olhos, um soldado  e aí estava o único motivo por que não o podia suportar.

 

Sentou-se confortàvelmente à mesa e pediu:

 

O meu café!

 

A mulher pousou-lhe a cafeteira na frente. Estava zangada, era evidente, e não tinha vontade de falar com ele.

 

Schulz não via nisso inconveniente. O silêncio que o rodeava não o entristecia em nada: achava-o agradável. Prosseguia os seus pensamentos, que, mesmo nas situações mais íntimas, nunca se desviavam completamente dos problemas e das necessidades do serviço.

 

Deita!  ordenou.

 

Lore encheu-lhe a chávena, sentou-se perto dele e olhou-o fixamente.

 

Sobretudo, não me fales agora  preveniu o marido.  Tu não percebes nada do serviço. Nem sequer sabes fazer café! Isto é água de lavar a louça, tem gosto de sabão!  E empurrou a chávena tão brutalmente que a virou.  A toalha está nojenta  acrescentou.

 

Levantou-se e saiu, assobiando uma vaga melodia. Verificou a sua apresentação no grande espelho do corredor de baixo e sorriu: estava contente consigo mesmo. Pensava: «Disse-lhe uma vez mais a minha maneira de pensar. E não há dúvida de que foi com razão, porque esta senhora, que pretende ser minha mulher, a mulher do sargento-ajudante, é uma porcalhona. Dantes não era assim, antes pelo contrário. Foi neste último mês e nas últimas semanas que se relaxou de uma maneira inquietante. Tinha sem dúvida uma vida demasiadamente boa, mas isso não é difícil de mudar. Uma boa sacudidela de tempos a tempos e depressa descobrirá de que lado sopra o vento.»

 

Chegando ao seu gabinete, sentou-se, acendeu um dos charutos do chefe, estendeu as pernas e pôs-se a reflectir. Ao longe ouviam-se vozes de comando, na calçada marchavam grupos em passo certo. À parte isto, um silêncio divino reinava à sua volta. Automaticamente agarrou no caderno onde se encontravam as dispensas de domingo, num lápis de tinta e assinou sem verificar. Estava sempre em ordem, e se o não estivesse ter-lhe-iam feito uma participação.

 

O telefone tocou, mas ele não se apressou a levantar o auscultador. Pousou o charuto no cinzeiro e disse em seguida:

 

«3.ª bateria, sargento-ajudante Schulz.»

 

Apesar de bocejar, a sua voz dava a impressão de que estava muito atarefado.

 

Mas imediatamente mudou de expressão e se endireitou. Falava com o Batata, o comandante Luschke, chefe do destacamento. E este era como uma bomba que a todo o momento podia explodir.

 

«Sim, meu comandante», respondia o sargento-ajudante.

 

A voz enervante e doce do Batata silvava-lhe no ouvido como um rastilho que estivesse ardendo.

 

«Não, meu comandante», exclamou o sargento-ajudante.

 

Um estalido na linha pôs fim à conversa. O Batata desligara bruscamente. E Schulz, preocupado, interrogava-se sobre a razão desta chamada. O comandante informara-se de coisas absolutamente secundárias; quisera saber se os soldados de guarda traziam o protector de boca numa cartucheira vazia; se se tinham notado diferenças de hora entre os relógios da caserna.

 

Qual seria a intenção do Batata ao fazer semelhantes perguntas? Talvez tivesse querido apenas divertir-se. Ou esconderia com elas uma armadilha habilmente combinada e cujas consequências seriam impossíveis de prever? Uma coisa e outra eram admissíveis. Tudo era admissível com Luschke. Do Batata vinham sempre surpresas.

 

Depois de ter pensado longamente no assunto, Schulz chegou à única conclusão possível: o Batata quisera vigiá-lo, quisera saber se ele estava no seu posto. «Pois bem! Ali estava, como sempre!»

 

Estas ideias alegraram Schulz e restituíram-lhe o seu bom humor das segundas-feiras de manhã. O telefone tocou segunda vez.

 

Desta vez o sargento-ajudante apressou-se a responder: era possível que o comandante voltasse a falar. Mas logo às primeiras palavras retomou a sua expressão enfastiada, superior, a sua expressão de secretaria.

 

«Não», respondeu, «não é conhecido aqui nenhum cabo Kasprowitz. Nunca aqui houve nenhum com esse nome.»

 

Estava a conversar com um primeiro-sargento de infantaria e esta razão bastava para que a sua voz não fosse particularmente amável. Depois apurou o ouvido:

 

«Perfeitamente», disse, com visível interesse, «temos um artilheiro Vierbein. Fez ele. alguma patifaria?»

 

com pesar, soube que se tratava duma continência não regulamentar e que o culpado não era, como esperava e supunha, o artilheiro Vierbein, mas o seu companheiro, um cabo, que tinha declarado chamar-se Kasprowitz.

 

«Talvez seja mesmo Vierbein», disse Schulz. «Ele é capaz de tudo.» E, respondendo ao que lhe propunha o seu colega de infantaria, acrescentou: «É excelente. Vamos atrapalhá-lo. Faz uma participação ao teu batalhão e manda-me o teu sargento. Vierbein está de guarda, será mesmo ali que o vamos pôr na grelha.» E não sem indignação acrescentou, esfregando as mãos: «Sempre este Vierbein para onde quer que se olhe. É tempo de pôr este tipo no bom caminho.»

 

Abriu o armário e tirou alguns dossiers. Havia duas propostas de promoção que tinha de passar a limpo nesse dia. Era a altura de propor Kowalski e Asch para o posto de subalternos. Falara longamente do caso com o capitão e, mais ou menos, eis o que pensava: «Nem Kowalski nem Asch eram uns meninos de coro: o primeiro era um desordeiro, o segundo tinha uma lata danada, mas ambos se distinguiam dos seus camaradas: eram guias, personalidades de chefes. Uma vez aclimatados, não dariam maus subalternos.»

 

O sargento-ajudante encheu os questionários e as folhas sinaléticas e começou a redigir o seu parecer. Eis o que escreveu acerca de Herbert:

 

1) Carácter:  Digno de confiança e sério. Personalidade de chefe, é certo que ainda não muito desenvolvida. Respeitoso para com os superiores. com muita aptidão para se desenvolver.

 

2) Qualidades   físicas:  Resistente,   boa   aptidão para os desportos. Capaz de suportar a fadiga. bom nadador.

 

3) Conhecimentos técnicos:  Espingarda 98  B e K; pistola 08; espingarda-metralhadora 08/15; metralhadora 08; 8,8 cm.

 

4) Características particulares: Soldado simpático, promete ser um bom chefe.

 

5) Apto para subalterno.

 

Schulz verificou o seu trabalho da manhã e achou-o satisfatório. Levou os dossiers para a secretária do capitão Derna.

 

Um pouco antes das dez horas ouviu a bateria que regressava. Era o alferes Wedelmann quem comandava, sinal evidente de que o capitão estava lá. Dirigira-se decerto directamente ao campo de manobras e assistira aos exercícios durante o último quarto de hora. As botas ressoavam no asfalto do pátio em passo de escola. O brigadas pôs-se à janela e a sua alegria foi total à vista dos uniformes, do suor e da exactidão dos movimentos. «É pena que esse miserável cretino do Vierbein não tenha ido; duas horas com o sargento Platzek ter-lhe-iam feito bem. Mas adiar não é esquecer.»

 

As vozes de comando de fim de exercício soaram. «A voz deste alferes Wedelmann é demasiado aguda», pensou Schulz. «Parece que vai desafinar.»

 

Depois a bateria deslocou-se e os corredores e as escadas ressoaram sob os passos de duzentos e sessenta pés. O sargento-ajudante, no seu gabinete, escutava, sonhador, esta algazarra, e um sorriso beatífico iluminava-lhe o rosto liso, cheio e, contudo, de traços acentuados. Depois abriu dois dossiers e uma relação, distribuiu as folhas pela mesa  e dir-se-ia que estava trabalhando intensamente.

 

O capitão Derna, comandante da bateria, entrou. O sargento-ajudante, exemplar como sempre, fez o seu relatório:

 

Sem novidade, meu capitão.

 

O oficial agradeceu, desapareceu no gabinete e fechou com cuidado a dupla porta calafetada. O brigadas sabia por experiência que durante um quarto de hora o superior devia ser deixado em paz: tirava as botas e trocava o seu calção de montar pelas calças.

 

Depois dele foi o alferes Wedelmann quem apareceu. O sargento-ajudante contentou-se em fazer-lhe a continência, esperando durante alguns segundos ordens que de ordinário não vinham.

 

Wedelmann aproximou-se e disse, hesitando:

 

Ah! Queria dizer-lhe... Durante a noite de sábado para domingo ordenou a um artilheiro que estava na sala de baile que retirasse para a caserna.

 

Sim, meu alferes  declarou Schulz, sem se levantar. Sentia-se sólido e o «Ah! Queria dizer-lhe» do alferes mostrara-lhe que não devia contar com extraordinárias dificuldades.  O artilheiro Vierbein conseguiu uma dispensa fazendo declarações inexactas.

 

Sim?  perguntou Wedelmann, céptico.

 

O subalterno Lindenberg é testemunha. Wedelmann sabia que Lindenberg, se na verdade era

 

testemunha, podia ser considerado acima de qualquer suspeita. Lindenberg deixar-se-ia matar de preferência a prestar um falso testemunho, ainda que se tratasse dum subordinado.

 

Apesar disso  disse o alferes, reservado , não é conveniente. Não se fazem coisas dessas, sargento-ajudante. O serviço é o serviço, mas o tempo livre é uma coisa à parte.

 

Embora dita com uma certa delicadeza, tratava-se, indiscutivelmente, duma ensaboadela. O sargento suportou-a com custo. «E tudo por causa desse Vierbein», pensava. «Sempre ele! Felizmente ninguém está presente para ouvir como se trata aqui um sargento-ajudante.»

 

Sim, meu alferes  disse num tom claramente ofendido.  Mas eu queria explicar...

 

Não são precisas explicações  declarou o alferes, afastando-se.

 

O sargento-ajudante seguiu-o com o olhar e dispensou-se, uma vez que o alferes não se voltou, de lhe fazer a continência. Sentia-se ofendido. Este alferes não o tinha escutado. Cortara-lhe a palavra como a um garoto. E tudo por causa de Vierbein.

 

O primeiro-cabo Kowalski era, segundo se afirmava, o modelo de bom tipo, mas de um bom tipo que, na realidade, tinha a finura duma raposa. Não fazia caso algum de tudo o que dizia respeito ao serviço militar. Tudo o que lhe mandavam fazer fazia-o. Nunca mais do que isso. Passava por taciturno e digno de confiança. Trabalhava com o sargento espingardeiro, e, como este não podia conservar perto de si quem quer que pudesse perturbar a tranquilidade da sua existência, entendia-se maravilhosamente com ele.

 

Kowalski era filho de um camponês; vigiava o depósito das armas, e durante o seu tempo livre bebia copiosamente, metia-se com raparigas e utilizava o resto da sua força extraordinária em rixas formidáveis, que depressa o tornaram célebre.

 

Quanto a Herbert Asch, com quem partilhava a camarata, era seu amigo. É claro que este não se lhe podia comparar como desordeiro, mas era mais inteligente e flexível, o que se dispensava bem de evidenciar  modéstia que era a pedra fundamental da sua comunidade de interesses.

 

Kowalski ignorava o que era vida interior. Se lho tivessem perguntado, responderia sem dúvida: «Estou-me nas tintas.» Mas nessa segunda-feira tinha a impressão nítida de que qualquer coisa não corria bem ao amigo. Não lhe fez qualquer pergunta; contentou-se em observá-lo. Notou que Herbert estava menos conversador que de costume, que nem sequer fazia qualquer observação a meia voz acerca dos superiores durante o exercício. Concentrava-se no serviço e este facto, só por si, excitava a desconfiança de Kowalski.

 

Que tens tu?  perguntou.

 

Nada.

 

É justamente isso o que me surpreende.

 

Depois do exercício a pé vinha, segundo o quadro de serviço, das dez horas e quinze minutos às doze horas, o exercício com os canhões. Durante esse tempo era Herbert quem vigiava o depósito das peças. Sentado num canto sobre as caixas de munições, tinha junto de si um obus e um esfregão e olhava o vácuo. Pensava em Elisabeth e no que se passara com ela. E Kowalski, que vinha trazer-lhe sem motivo uma lata de óleo, nunca poderia imaginar que uma rapariga, fosse ela qual fosse, pudesse perturbar o espírito de um homem.

 

Queres que vá dar uma sova em alguém, em teu lugar?  perguntou num tom amigável.

 

Sim, em mim! Portei-me como um sujo.

 

Ah! E então?!... Que tem isso de extraordinário? Herbert não respondeu. Levantou a tampa de um cesto

 

de munições cuja charneira de couro estava estragada. Pô-lo ao ombro e dispôs-se a deixar o trabalho.

 

Idiota!  gritou-lhe Kowalski.  Isso não vai assim. Ele conhecia a música: transportando um objecto qualquer para reparar podia-se percorrer a caserna em todos os sentidos sem que um superior se lembrasse de fazer perguntas estúpidas. Molhou com óleo o local estragado, estendeu-o com o polegar e disse:  Aí está. Toda a gente acreditará agora que já é tempo de reparar isto.

 

Tanto melhor!  Espero que desta maneira ficarás tranquilo!

 

E de que maneira! Entretanto, dormirei aqui uma sonecazinha.

 

Com o cesto às costas Herbert percorreu uma parte da caserna. Depois, sem hesitar, penetrou na cantina e pediu meia caneca.

 

O cantineiro Bandurski, antigo subalterno ele próprio, achou um pouco duro de roer vir assim alguém beber um copo em pleno dia, durante o exercício. No seu tempo tal coisa não teria sido possível. Mas lembrou-se de que negócios são negócios e, sem pestanejar, deitou a meia caneca pedida.

 

A menina Elisabeth não está cá?  perguntou Herbert.

 

Não. Não veio esta manhã.

 

Talvez esteja doente...

 

Sabe-se  lá  que doença  será. .  respondeu  Bandurski com um riso de segunda intenção.

 

Asch pagou sem responder, saiu, e preparava-se para regressar ao depósito quando viu em companhia do sargento-ajudante o primeiro-sargento de infantaria a quem havia saudado de maneira não regulamentar na antevéspera e a quem dera um nome falso. Esquivou-se o mais depressa que pôde para sair do seu campo de visão. Escondido atrás duma esquina, verificou que o subalterno de infantaria se dirigia com o brigadas para o corpo da guarda, onde se encontrava Vierbein. Isto inquietou-o muito.

 

Apesar do calor, regressou a correr ao depósito, o que lhe valeu um sorriso aprovador do sargento Platzek. Mal chegou, gritou a Kowalski:

 

Despacha-te, meu velho! Vai já ao corpo da guarda. Evita que Vierbein faça asneiras. Raspa-te, calaceiro! Eu não posso mostrar-me.

 

Lá you, lá you!

 

E, agarrando numa lata de óleo, Kowalski partiu a galope. O seu olhar exercitado verificou imediatamente que nada de essencial acontecera ainda: toda a gente esperava e Vierbein não estava ali.

 

Kowalski parou e, para evitar um interrogatório estúpido, disse:

 

Tenho de lubrificar os gonzos das portas e das janelas.

 

Não fale tanto, Kowalski, e trabalhe  disse o sargento-ajudante.

 

Depois pôs-se outra vez a esperar o regresso de Vierbein, a quem o sargento Schwitzke mandara comprar cigarros.

 

Entretanto Kowalski tinha tirado muito cerimoniosamente as janelas. com um trapo retirava o óleo, despejava outro óleo, retirava-o de novo.

 

Vierbein apareceu e fez a continência.

 

É ele!  exclamou o primeiro-sargento de infantaria.

 

Perfeitamente!  proferiu o sargento-ajudante, satisfeito.  Mas tenhamos calma.

 

O artilheiro, que ficara à porta, olhava de um lado para o outro com ar perplexo. Todos o observavam, fingindo indiferença. Apenas Kowalski, de pé atrás de toda a gente, lhe fazia sinais amigáveis e encorajadores.

 

Ora bem  começou o sargento-ajudante, empertigando-se.  Considerava-se como um juiz encarregado de descobrir a verdade:  Foste tu, Vierbein, que no sábado à tarde passaste na Rua Goethe com um segundo-cabo, não é verdade?

 

Sim, meu ajudante.

 

Quem era ele?

 

Mas eu fiz a continência regulamentarmente  disse Vierbein para evitar responder.

 

Perfeitamente  afirmou o de infantaria.  Mas o outro não, aquele que deu o nome falso. Disse-me que se chamava Kasprowitz, mas em toda a artilharia não há um só que tenha esse nome.

 

Kowalski compreendeu então completamente a situação. Via agora o que se tinha passado. Asch fizera outra vez a continência de qualquer maneira e dera um nome falso: era arriscado, mas regular!

 

Vamos!  exclamou o brigadas com insistência. Quem era esse cabo?

 

O artilheiro sentiu que suava. «Que fazer, meu Deus?» Olhou, em busca de socorro, para trás do sargento-ajudante, e viu que Kowalski encolhia os ombros com energia, o que, incontestavelmente, significava: «Não sei.»

 

Nada   sei,   meu   ajudante  respondeu   maquinalmente.

 

Olha, olha!  exclamou o sargento-ajudante, num tom  claramente  ameaçador.  O  cavalheiro já  não  se lembra?

 

Vierbein suava em bica. Disse com rapidez:

 

Não conhecia esse cabo. Não era da nossa bateria. Encontrei-o por acaso e fizemos parte do caminho juntos.

 

Kowalski fez sinal de que estava de acordo. Levantou os braços afastando as mãos, como se dissesse: «Bem vêem que é assim.»

 

O brigadas desconfiou de qualquer coisa de ambíguo.

 

Se é uma recusa a responder, Vierbein, previno-o de que terá o conselho de guerra. Já tem às costas não poucas histórias. A minha paciência não tardará a esgotar-se. Se o apanho a fazer qualquer maroteira, meto-o no buraco sem piedade...

 

Reconheceria esse cabo se o pusessem diante dele? perguntou o sargento de infantaria.  Ou se, por acaso, o encontrasse em qualquer parte na caserna?

 

Não sei  gaguejou Vierbein.  Creio que sim.

 

Eu por mim  disse o brigadas, num tom muito expressivo  sei muito bem o que devo pensar de ti.

 

Tenho de lubrificar também a porta?  perguntou Kowalski em voz muito alta.

 

Não meta o nariz no que estamos a tratar!  gritou Schulz.  Ninguém lhe pediu a sua opinião. Faz-me perder o fio das ideias.

 

O contramestre Freitag, pai de Elisabeth, era socialista por convicção, mas sem nada de romanesco. Durante toda a vida trabalhara dura e lealmente. Exercia a sua profissão com consciência e amava a família com um devotamento silencioso. Nada que fosse humano lhe era estranho. A acção era uma necessidade para ele. Desde a juventude tivera de trabalhar, e a partir daí então nunca parara. Era o primeiro na oficina e o último a dirigir-se à cantina. À noite e nos dias de repouso trabalhava na casa que tinha adquirido economizando, aumentava o telheiro, tratava do jardim, construía no sótão um quarto para os amigos.

 

Vira envelhecer a mulher e crescer os filhos. Mesmo aos 50 anos não esquecera as tolices da sua juventude ou a tendência que tivera para cometê-las, e quando encontrava circunstâncias semelhantes às que não lhe tinham sido poupadas antigamente esforçava-se, inteligentemente, por modificá-las. Amava a honestidade, mas era bastante compreensivo para não rejeitar imediatamente como desonesto tudo o que parecia não estar de acordo com aquilo a que se dá o nome de conveniências.

 

Nunca se apressava: sabia que a fabricação das melhores obras de arte exige tempo em proporção. Reflectia longa e profundamente antes de se deitar a uma tarefa. Mas, uma vez isso feito, trabalhava rapidamente, com segurança e método.

 

Nessa manhã de segunda-feira deixou a oficina duas horas mais cedo que de costume. O fiscal, encantado por poder ser agradável ao seu melhor operário, concedeu-lhe de bom grado licença para sair.

 

Freitag lavou-se cuidadosamente, como se fosse a uma festa, e, em seguida, mudou de roupa diante do armário. Agarrou na maleta que se encontrava dentro deste, colocou-a sobre a mesa e examinou-lhe o conteúdo: era o fato de um certo Herbert Asch, cabo da 3.ª bateria do regimento de artilharia. Todas estas indicações e ainda outras, como data e lugar do nascimento, altura, cor dos olhos, características particulares era possível lê-las quase em cada peça de roupa. Havia mesmo uma fotografia de Herbert onde se via um indivíduo de uniforme, de aspecto bastante estúpido, a quem se poderia dar o último sacramento sem confissão, no que não se distinguia da maior parte dos recrutas.

 

Freitag fechou a maleta. Não era muito imaginativo, mas era-o bastante para pensar que as peças deste uniforme tinham alguma relação com os ruídos nocturnos que ouvira em sua casa. Não procurara obter de Elisabeth uma explicação. Não queria fazê-lo, além de que não sentia necessidade disso. Se Elisabeth tivesse vindo, por si mesma, falar-lhe, tê-la-ia ouvido de bom grado e não sem benevolência. Mas supunha compreender o seu silêncio e respeitava as razões que a levavam a aguardá-lo. Durante a vida há, com efeito, coisas  e, entre elas, certas noites  em que os pais não têm o direito de participar sem as destruir. É era apenas porque disto estava convencido que decidira fingir nada saber.

 

Freitag subiu para a bicicleta e dirigiu-se para a caserna de artilharia. Sentia-se um pouco perturbado pela circunstância de o indivíduo capaz de fazer perder o equilíbrio a sua filha Elisabeth usar uniforme. Não gostava do uniforme e não conseguia perceber porque podia um homem normal, trabalhador, perder o seu tempo em ocupações cujo objectivo final era destruir, aniquilar, matar. Mas numa época em que já ninguém podia decidir-se livremente toda a gente podia estar oculta debaixo deste uniforme: idealistas e sádicos, indiferentes e pessoas constrangidas, entusiastas e adversários, inteligentes, idiotas, e homens provisoriamente enclaustrados. O cabo Herbert Asch podia pertencer a um destes grupos: a qual, era o que tinha importância saber-se.

 

O contramestre apresentou-se ao subalterno de guarda, o Lagarto.

 

Onde  quer  ir?  perguntou  Schwitzke  num  tom arisco.

 

À 3.a bateria.

 

Como se chama?

 

Freitag.

 

Schwitzke preencheu um livre-trânsito e estendeu-lho.

 

Um soldado vai acompanhá-lo  disse depois, sem se preocupar mais com o visitante.

 

Em seguida recomeçou a pensar na sua Thusnelda, na noite que com ela passara no parque, no banco escondido, mas muito cómodo, debaixo da sebe das silindras onde, muitas vezes já, conhecera copiosamente o amor com a sua Thusnelda  aliás nem sempre a mesma...

 

Freitag seguiu o soldado ao gabinete do sargento-ajudante. Este interrompeu o trabalho, aparentemente considerável a todas as horas, e virou-se para ele com ar condescendente. Os civis traziam sempre um pouco de mudança de ambiente.

 

Deixe-me ver o seu livre-trânsito. Muito bem. Está onde pretendia. A 3.a bateria sou eu.

 

Freitag sorriu levemente.

 

Não é naturalmente o senhor que desejo ver. Queria falar com um cabo que se chama Herbert Asch.

 

E que quer dele?

 

Falar-lhe.

 

O sargento-ajudante aproximou-se, interessado. Olhou o homem e a maleta onde, pensou logo instintivamente, havia bastante lugar para meter um uniforme e os seus acessórios...

 

Chama-se Freitag  repetiu.  Será aparentado com a menina Elisabeth Freitag, que faz serviço na cantina dos subalternos?

 

É minha filha.

 

O brigadas tornou-se mais amável um grau. Esforçou-se mesmo, sem o conseguir, por fazer nascer um ambiente familiar, cordial.

 

Ah! Tenho muito gosto em conhecê-lo  declarou, estendendo-lhe a mão, que o operário apertou, hesitante.

 

Então, posso falar a Herbert Asch?

 

Claro. Um homem irá acompanhá-lo. E, como lhe disse, fiquei satisfeito por o conhecer.

 

Estendeu-lhe a sua larga pata, que Freitag agarrou a contragosto outra vez. Depois este seguiu o soldado encarregado de conduzi-lo.

 

O brigadas está sentado. Fuma, afasta um bocado de papel no qual está escrito em grandes letras um único nome: «Vierbein», e reflecte. «com que então, é o pai da elegante Elisabeth! E traz uma mala, e vem ver Herbert Asch, esse cabo que nesta mesma noite foi encontrado na caserna apenas com uma camisa vestida. E se...»

 

Não. Repele esta ideia... de momento. Mas a sua imaginação não o deixa tranquilo. Não era desagradável imaginar...

 

Sacudiu-se: volúpia ou repugnância? Quem sabe? Claro, aquela Elisabeth era a primeira na sua lista: uma mulher espantosa, pela qual se podia bem arriscar qualquer coisa. Quanto ao cabo Asch, era tabu: ele próprio o propusera para subalterno e o capitão tinha aprovado e assinado... E, depois, tinha outras preocupações  esse Vierbein, por exemplo.

 

E os pensamentos de Schulz puseram-se a girar de roda: Elisabeth  Asch em camisa às três horas da madrugada o pai Freitag e a sua maleta  Vierbein a fazer a guarda.

 

Levantou o auscultador e pediu ligação para o corpo da guarda.

 

«Schwitzke», perguntou brutalmente, «quem é que estava de guarda ao portão entre as duas e as quatro horas da manhã?» E, de súbito, uma vaga de alta satisfação se lhe espalhou no rosto, que tinha forma de batata. Era Vierbein! «Está bem», disse, e desligou.

 

Puxou a ficha na qual escrevera o nome de Vierbein e acrescentou: «De guarda ao portão das duas às quatro horas.» Sublinhou. E, satisfeito, recomeçou a fumar.

 

Entretanto, o contramestre Freitag esperava, com alguma emoção, na sala de leitura, o soldado Herbert Asch. Este chegou, vestido com um blusão e o bivaque na mão. Tinham-lhe dito que havia uma visita para si. Mas não se sabia de quem se tratava.

 

Asch examinou o seu visitante e este, por sua vez, examinou-o a ele. Este primeiro exame pareceu satisfazê-los a ambos e tranquilizar Asch.

 

Bom dia  disse.

 

Bom dia. Trago-lhe as suas roupas. Encontrei-as... na rua.

 

Herbert estava visivelmente embaraçado.

 

Sim  disse , é muito amável.  E, a um gesto do seu interlocutor, abriu a maleta e verificou o conteúdo.

 

Muito bem  disse , está tudo.  E, sentindo o seu embaraço aumentar, acrescentou:  Agradeço-lhe, senhor. ..

 

Freitag. Chamo-me Freitag.

 

Herbert deixou cair o sapato que acabava de tirar da maleta. Sentou-se.

 

Não   sei  começou  até   que   ponto...  Depois parou e disse numa voz firme:  Creio que lhe devo uma explicação, Sr. Freitag.

 

Este começou a sorrir:

 

Não é preciso. Eu também fui jovem. Até fui mesmo soldado. Posso perfeitamente imaginar o que se passou. A noite estava bonita e a rapariga também lhe pareceu bonita. A ocasião era favorável e aproveitou-a, ou antes: cedeu-lhe. É assim que acontece! A quem quer atribuir a culpa? À Lua? Ao seu sangue? À ocasião favorável?...

 

Encontrei mais tarde a roupa na rua... Alegre-se por ter sido eu quem a encontrou... e não o pai da pequena.

 

Asch deu um passo à retaguarda. Via bem que este homem, sentado muito à vontade na sua frente, estava longe de ser um imbecil. Era o pai de Elisabeth. E gostava dele. Asch adivinhava claramente que o homem sabia ou supunha mais do que dizia. Queria facilitar-lhe as coisas; não queria que um eventual erro, um desvario, fossem levados até às suas mais longínquas consequências. Era ele, o pai de Elisabeth, quem lhe dava a sua oportunidade.

 

Devo  disse Herbert num tom decidido, devo dar-lhe pormenores. Quero que saiba...

 

Não, não  disse o contramestre, levantando-se. Tenho muito pouco tempo agora. Mas, se quiser, pode fazer-me uma visita amanhã à noite. Jantará connosco... se quiser.

 

com todo o prazer  respondeu Herbert, confuso.

 

Poderá então, se quiser, conhecer a minha família.

 

Irei com certeza.

 

Ficarei satisfeito  disse Freitag com simplicidade. E despediu-se.

 

Neste momento alguém empurrou a porta. O sargento-ajudante olhou a mesa onde se encontrava a maleta aberta com as roupas.

 

Continuem!  exclamou num tom protector. Depois fechou a porta.

 

Então, até amanhã  disse o contramestre Freitag. Se quiser.

 

A guarda estava acabada. Os soldados deram uma meia volta regulamentar, seguraram a espingarda debaixo do braço e dirigiram-se para a bateria. Vierbein viu o subalterno Lindenberg sentado, semelhante a uma estátua de pedra, a uma janela do 2.º andar aberta de par em par.

 

Acelerou o passo. Estava certo de que era ele quem Lindenberg esperava. Isto oprimia-o. Porque este interesse visível que o seu sargento lhe dedicava apenas podia significar uma cadeia de complicações intermináveis de que não tinha necessidade, sobretudo hoje,,em que marcara um encontro com Ingrid.

 

Enquanto subia a escada a quatro e quatro olhou o relógio. Tinha ainda perto de duas horas até à hora fixada por Ingrid. Mas que eram duas horas para o sargento Lindenberg? Se este quisesse  e tudo indicava que assim era, podia sem dificuldade prolongar a inspecção, sempre com motivo, até ao recolher. A expressão de Vierbein tornou-se triste  esperava tudo.

 

Diante da porta estava Herbert, que o saudou, dizendo: Tu safaste-te muito bem com o asno da infantaria.

 

Lindenberg parece estar à minha espera.

 

Percebi isso. É a reacção em cadeia. O brigadas manda para a pista os seus melhores cavalos. O mais seguro para ti é desaparecer imediatamente.

 

Sim, mas ele pode aparecer aqui de um momento para o outro.

 

Não o fará  respondeu Herbert, que sabia do que falava.  Lindenberg sabe o que deve fazer. Nunca faz nada que não esteja justificado pelo regulamento ou pelas prescrições -de serviço. Tu estiveste de guarda, e agora ele deixa-te a possibilidade de pores em ordem as tuas coisas, incluindo a espingarda. Só então o verás aparecer, para te demonstrar que nada puseste em ordem.

 

Bem sei  disse Vierbein, resignado.  E então será a zaragata.

 

Mas nós não o deixaremos  disse Herbert, rindo francamente.  Tu ajudaste-me há pouco, sou eu que te ajudo agora. Encarrego-me das tuas coisas e garanto-te que ficarão limpas. E tu vai mudar de roupa a toda a velocidade nos lavabos.

 

Lindenberg ficará furioso.

 

Não. Ele não. Sabe dominar-se. Ficará fulo, com certeza, mas não o mostrará. E amanhã de manhã estará de novo calmo.

 

Julgas isso?

 

Estou convencido. Vamos, raspa-te! vou buscar-te o teu uniforme de saída.

 

Asch empurrou Vierbein para o fundo do corredor, onde se encontravam as retretes. Vierbein fechou-se e começou a despir-se a toda a pressa. O capacete de aço e a espingarda chocaram com um ruído forte. Vierbein teve medo. Verificou rapidamente, à fraca luz, se a espingarda ficara marcada. com grande alívio, nada encontrou. Pouco depois Asch batia-lhe à porta.

 

Aqui estão as tuas coisas: o fato de saída, o quépi, as botas, o cinturão número um. Há mais alguma coisa?

 

Agradeço-te.

 

Não há de quê.

 

Vierbein vestiu-se rapidamente.

 

Se não me tivesses ajudado  dissenunca poderia sair hoje.

 

Ainda não estás lá fora. E se continuas a dar à língua dessa maneira perdes um tempo precioso.

 

Tenho um encontro esta tarde com tua irmã... Espero que não vejas inconveniente.

 

Asch não respondeu logo. Depois, arrastando as palavras, disse:

 

Se eu soubesse que era isso...

 

Não me terias ajudado, nesse caso?

 

Não. Preferiria deixar-te nas mãos de Lindenberg. É menos perigoso que minha irmã.

 

Não compreendo.

 

Porque és um idiota  declarou Herbert, amigavelmente.  Mas quando vires mais claro perceberás. Esperemos que nessa altura não seja demasiado tarde.

 

Vierbein saiu da retrete. Sentia-se um pouco desconcertado e, também, melindrado. Entregou as coisas ao seu camarada.

 

Herbert examinou-o sem nada encontrar de repreensível.

 

Tens tudo?  perguntou.  A caderneta? Dinheiro? Lenço?

 

Sim.

 

Então, agora, é preciso ver se há perigo.

 

Pelo corredor, quase vazio, Asch deslizou até à porta de dois batentes e deitou um olhar para a escada.

 

Meteu a cabeça para dentro imediatamente e disse a meia voz para Vierbein, que espreitava à porta dos lavabos: «Aí vem Lindenberg.»

 

Depois, aparentemente muito correcto, abriu de par em par os dois batentes e corrigiu a sua posição perfeitamente.

 

O subalterno Lindenberg passou diante dele na atitude exemplar que lhe era natural em todos os momentos: correspondeu à continência de Herbert da maneira mais correcta possível. Depois o ruído das suas pesadas botas cardadas ressoou nas lajes de pedra. com um ar decidido, mas sem manifestar a menor pressa, dirigiu-se para a porta atrás da qual pensava encontrar o artilheiro Vierbein.

 

Mal ele entrou na camarata, Asch fez sair o seu camarada dos lavabos:

 

Despacha-te, meu velho! Vamos! A galope! É o momento!

 

Sem mais hesitar, Vierbein atirou-se pela escada abaixo e foi ao seu encontro com Ingrid.

 

Herbert deu um vigoroso empurrão aos dois batentes da porta, que oscilaram, rangendo. Depois encaminhou-se também para a camarata.

 

Lindenberg estava ali, de pé, de pernas afastadas, e como que petrificado. Pela primeira vez se lhe descobria no rosto uma sombra de nervosismo: estava estupefacto. Interrogara todos os presentes, um após outro, e todos tinham afirmado nada saberem de Vierbein. Ora, aos olhos de Lindenberg isto tinha de ser uma enorme mentira, uma vez que ele próprio vira Vierbein entrar no edifício em uniforme de trabalho: devia pois estar ali, não podia deixar de estar.

 

Lindenberg supunha portanto que o estavam enganando, o que o indignava menos do que o surpreendia. Não conseguia perceber que o pudessem enganar.

 

Também não sabe nada?  perguntou ao cabo Asch quando ele entrou.

 

Não, meu sargento.

 

Mas não sabe nada de quê?

 

De nada, meu sargento.

 

com mil raios!  trovejou Lindenberg. Ele próprio estava surpreendido por se ouvir gritar. Viu que os homens da sua esquadra, alinhados em sentido diante dele, se haviam amedrontado: isto restituiu-lhe a calma. Então também você, Asch,  sustenta que o artilheiro Vierbein, depois de ter deixado a guarda, não entrou nesta camarata? Ousa afirmá-lo?

 

Sim, meu sargento  respondeu Herbert, o que aliás era conforme à verdade.

 

O subalterno desapareceu, batendo a porta atrás de si: parou no corredor para retomar fôlego. Incapaz de compreender o que se passava, precipitou-se como um zangão através da caserna à procura de Vierbein.

 

Apanhou um bom abalo  disse Herbert tranquilamente aos seus camaradas.  Quase se tornou humano.

 

Vierbein e Ingrid encontram-se diante duma relojoaria da Praça Grande e Johannes pôde convencer-se da pontualidade da rapariga.

 

Encontraram um grande número de superiores, e o artilheiro, que viera para conversar com uma rapariga, fazia-lhes paciente e regulamentarmente a continência. A cidade inteira parecia compor-se apenas de superiores. Dir-se-ia que não tinham mais nada a fazer no mundo que esperar as continências.

 

Quando for oficial  disse a rapariga  tudo será mais cómodo.

 

Mas eu não quero vir a ser oficial  declarou o soldado com um gesto de recusa.

 

Não?  perguntou Ingrid, surpreendida.  No entanto, tem a sua carta de curso superior!

 

Claro. Mas não para vir a ser oficial. Quero ser engenheiro.

 

Sim,   sim...   também   não   está   mal  respondeu Ingrid.

 

Vierbein ficou surpreendido por notar que ela tinha um ar desiludido. Convidou-a a tomar uma chávena de café e a comer um bolo.

 

Com todo o gosto; vamos ao Liedtke. Há lá uma torta excelente.

 

Johannes concordou e fez o possível por se mostrar contente, o que não era fácil, pois a pastelaria Liedtke era cara e o seu porta-moedas estava magro. Além disso, dizia-se, era ali que os oficiais iam com as suas mulheres ou as suas amigas.

 

Havia pouca gente, mas as pessoas presentes tinham um ar «bem». Ingrid sentia-se perfeitamente à vontade, o que regozijava o seu companheiro. Declarou que não gostava de torta e não manifestou qualquer perturbação ao vê-la devorar logo de entrada dois bocados com muito apetite. Os olhos de alguns oficiais examinaram-no um instante e pareceram admiti-lo depois.

 

Então quer ser engenheiro?  recomeçou Ingrid. Quando terá o seu doutorado?

 

Provavelmente   nunca  respondeu   Johannes. Quero ser engenheiro-arquitecto.

 

Não viu o efeito que isto produziu na sua companheira, porque um oficial-pagador passava nesse momento entre as mesas. Vierbein procurou fazer a saudação virando a cabeça e ficando imóvel: conseguiu-o e o oficial fez-lhe um gesto amável.

 

E se ao menos fosse oficial de reserva?  insistiu Ingrid.

 

O oficial, que em vão procurara um lugar, tornou a passar diante deles e Vierbein viu-se obrigado a saudar outra vez.

 

Vamos passear um pouco?  perguntou.  A qualquer parte onde haja menos luz.

 

Menos luz?

 

Quero dizer: onde não haja necessidade de fazer a continência continuamente.

 

A mim não me embaraça... O que tem de ser tem de ser... Mas, se faz questão, tomaremos um barco e vamos passear no lago.

 

Com prazer  respondeu Vierbein, calculando que um passeio de barco lhe ia custar mais dois-marcos pelo menos. Mas para Ingrid nada lhe parecia demasiado caro. O mais importante era que tivesse dinheiro suficiente.

 

Dirigiram-se para o parque. As lâmpadas davam pouca luz A noite, que começava a descer, envolvia-os de calor. Contemplando Ingrid, Vierbein esqueceu-se de fazer a continência. Felizmente o superior que ele não vira estava ocupado da mesma maneira.

 

O alugador de barcos mirou o artilheiro e a sua companheira.

 

Pode levar um barco. Dois marcos por hora e dez marcos de garantia.  E vendo Vierbein hesitar, acrescentou, sorrindo:     Se por acaso não tem dez marcos, contentar-me-ei com o seu cartão de identidade.

 

Vierbein hesitava ainda e Ingrid disse, um pouco contrariada:

 

Não temos necessidade de andar de barco.

 

Mas já o soldado tirara do bolso o seu cartão e o entregava ao alugador de barcos, se bem que isto fosse proibido.

 

E dois marcos adiantados, se faz favor  disse o homem.

 

O bote que receberam chamava-se Raio de Sol. Ingrid sentou-se ao leme,

 

O barqueiro entregou-lhes solenemente dois remos:

 

Não me queira mal  disse, com ar bonacheirão. Quanto ao cartão, não posso fazer outra coisa. Temos tantasmaçadas... Há sempre quem se raspe sem pagar, sobretudo soldados. Há dois anos houve um que se suicidou no barco... Não havia cartão de identidade, e aí fiquei eu sem saber o que havia de fazer do cadáver.

 

Está bem  disse Vierbein, largando.

 

Em grandes remadas dirigiu-se para o meio do lago. Queria estar só com Ingrid. Ao fim de alguns minutos deixou de remar. O barco deslocava-se sobre a água calma.

 

Ingrid, debruçada sobre a borda, contemplava a superfície sombria e luzidia do lago. Molhou uma das mãozinhas. Riu.

 

Joahnnes sentiu-se feliz. Contemplava-a com ternura e parecia-lhe que nessa noite a via pela primeira vez. Vestia um vestido branco de Verão com grandes flores vermelhas erguidas sobre as ancas e muito decotado. Quando ele se inclinava para a frente respirava-lhe o calor do corpo, um doce perfume, o odor pesado do lago. Estava como que embriagado.

 

É belo isto aqui  disse.

 

Olhava para longe, para além do cordão de luz que as lâmpadas da margem projectavam no espelho da água. Sentia-se amparado e não estava sozinho. E formulava o voto de que isto durasse sempre assim e não acabasse ao fim de uma breve hora.

 

Deixe-me remar um pouco  disse ela.

 

Ele tentou protestar, como homem bem educado.

 

Dar-me-á prazer  disse ela.

 

Mudaram de lugar com cuidado. Ele agarrou-lhe delicadamente o braço para a ajudar. A mão escorregou e foi tocar-lhe na axila. Experimentou um grande prazer. E ficou contente por haver pouca luz: sem isso Ingrid teria visto que ele corava. Sentia muito calor e pediu-lhe licença para desacolchetar o casaco. Ela nada tinha a opor.

 

Estava sentada. Os pés, calçados de sandálias leves, apoiavam-se nas travessas contra as paredes interiores do barco. Houve um momento em que ele teve a impressão de que a via estendida diante de si. E pensou na fotografia que lhe tirara e que a mostrava saindo da água no seu fato de banho molhado.

 

O bote deslizava rápido, assobiando sobre a água. Ingrid, com os lábios entreabertos, respirava com força.

 

Ah!  exclamou.  Isto faz bem.

 

Johannes admirava-a sem reserva. Depois ela deixou de remar, tão subitamente como começara. Encolheu as pernas e olhou-o com os olhos brilhantes. E ele surpreendeu-se a querer agarrá-la nos braços e corou outra vez.

 

Porque não?  perguntou ela, pensativamente.

 

Como?

 

Porque não há-de vir a ser oficial?

 

Ele teve um movimento de recuo. Estava surpreendido. E disse, com mais seriedade do que desejaria:

 

Esta profissão não me convém.

 

Espero que nada tenha contra ela  respondeu Ingrid, imperiosamente.

 

Aprecia-a muito?  perguntou ele.  Agradam-lhe estes uniformes, o tom que reina neste meio, o género de vida que aqui se impõe?

 

Podia pelo menos vir a ser oficial de reserva.

 

com que fim? Quero ser engenheiro-arquitecto. É também um objectivo a atingir na vida... Não acha?

 

Não quero ofendê-lo  disse ela num tom mais amável. Mas sempre estive convencida de que tinha ideias diferentes das de meu irmão.

 

Seu irmão parece-me ter muito boas ideias.

 

Não. Ele não é patriota.

 

Ele tem muito bom senso, menina Ingrid. E, depois, nem toda a gente pode ser patriota.

 

Pelo contrário, pelo contrário!  replicou ela com entusiasmo, lealmente, sem o menor desejo de o ofender. Aquele que não é patriota não tem qualquer valor. Num tempo como o nosso, em que tudo dependerá da maneira como nos impusermos, não consigo compreender que um homem normal, um homem com ideias sãs e sentimentos honestos, possa defender teorias semelhantes, por pouco que sejam, às de meu irmão.

 

Seu irmão não ficaria, sem dúvida, satisfeito de saber o que pensa dele.

 

Ele sabe perfeitamente o que penso. E de todos aqueles que são como ele. Mas você, Johannes, não é como ele. Sei-o, sinto-o. Não é verdade? Não é assim?

 

Tenho de voltar  disse o soldado.  Tenho de voltar à caserna. Não tenho dispensa para a noite.

 

Está aborrecido comigo?  perguntou ela, ingenuamente.

 

Como podia estar aborrecido?

 

Está triste?

 

Estou quase sempre triste.

 

Desiludi-o?

 

De maneira nenhuma.

 

Deve reconhecer que tenho razão.

 

Naturalmente tem razão  respondeu ele num tom    fatigado.

 

 De maneira enternecedora, ela esforçou-se por convencê-lo. Acreditava firmemente no que dissera. E com todo o  seu jovem  irradiante idealismo, tinha fé nestas nobres coisas que lera e ouvira repetir sempre de novo e que se resumiam nisto: o homem é o protector da mulher e da criança, o defensor da sua honra, o promotor do seu bem -estar. Só o guerreiro é verdadeiramente um homem. Ela  queria um que assim fosse ou, então, nenhum. Não suspei tava de que, formando-se guerreiros, se faziam escravos. I Ele conduziu-a à margem, entregou o bote, recebeu o  cartão de identidade e preparou-se para se despedir.  Infelizmente não posso dispor do meu tempo. Sou  soldado. Não tenho ordens a dar. Apenas tenho de obedecer.

 

     Compreendo-o  afirmou Ingrid.

 

Será sempre assim, enquanto for soldado. Porque é  provável que eu não venha nunca a ser oficial. Até à vista!

 

       Eu não queria dar-lhe desgosto  respondeu a rapariga desamparada.

 

     Acredito. Mas talvez seja justamente isso o que me entristece.

 

Separou-se dela bruscamente e afastou-se. Estava prófundamente desiludido. Sentia-se enganado, repelido, abandonado.

 

Correu, sem o querer, para a caserna. Esta já o esperava.

 

Para o subalterno Lindenberg qualquer ordem era sagrada: regulamentos e instruções eram palavras do Evangelho. Ignorava os compromissos: apenas obediência absoluta. E a todo o momento estava pronto a fazer o que exigia dos outros.

 

Recebera de Schulz ordem formal de verificar rigorosamente a limpeza das roupas e peças de uniforme utilizadas por Vierbein enquanto estivera de guarda, o que na linguagem vulgar do brigadas se exprimira assim: «Chegue-lhe energicamente o fogo ao rabo.»

 

Era uma ordem tão precisa quanto de execução possível. E como Lindenberg, com surpresa sua, não conseguira executá-la imediatamente, era preciso ou anulá-la ou esperar ter mais tarde possibilidade de cumpri-la.

 

Lindenberg começou, pois, por visitar a 3.a bateria do sótão à cave, sem resultado, claro. Chamou desesperadamente, mas Vierbein não se apresentou. Por várias vezes voltou à camarata da sua esquadra e deu a conhecer o que tão vivamente desejava. Mas os homens davam-lhe sempre a mesma resposta negativa, e ele teve a vaga impressão de que não o viam aparecer com satisfação.

 

Era bastante correcto para compreender isto. O tempo livre é o tempo livre, e o bom soldado não só o ganhara bem como também o devia ter, tanto mais que uma decisão do comandante supremo, é certo que bastante vaga, fizera alusão a esse «direito».

 

A ordem recebida dizia respeito a ele só! Apenas ele devia executá-la. Porque o seu primeiro dever era dar o exemplo. Todavia, tinha a intenção de ir nessa tarde à piscina, a fim de treinar-se para a medalha de salvamento.

 

Se não encontrasse Vierbein dentro de pouco tempo, esta hora, tão importante para si, estaria perdida.

 

Hesitou muito antes de se decidir a dirigir-se ao sargento-ajudante. Escusado seria dizer que não lhe podia comunicar que não executara a sua ordem: era impossível. Só havia que fazer admitir ao superior o atraso causado à execução. com isto talvez ele renunciasse.

 

Lindenberg completou a sua apresentação pondo o quépi, o cinturão e as botas e dirigiu-se ao alojamento de Schulz. Tocou com o Yitmo prescrito para os subalternos.

 

Schulz abriu ao fim de alguns minutos. Um roupão de banho, vermelho-vivo, cobria o seu corpo possante. Vendo Lindenberg, as suas feições tomaram uma expressão amável.

 

Então  perguntou numa voz sonora, puxou-lhe as orelhas conscienciosamente?

 

Em termos escolhidos, mas notavelmente concisos, Lindenberg expôs o seu infortúnio. Viu o brigadas abrir e fechar a boca e a ponto, aparentemente, de tomar a mesma cor que o roupão.

 

Que quer isto dizer?  perguntou depois de um silêncio ameaçador.  Esse porco nem sequer pôs os pés na camarata depois da guarda? Cavou, muito simplesmente?

 

Sim, meu ajudante.

 

Mas é uma loucura.

 

Sim, meu ajudante.

 

E você é um idiota.

 

Lindenberg não julgou oportuno confirmar esta afirmação com um ruidoso «Sim, meu ajudante». É claro que não estava nada ofendido. Nem sequer tinha vontade de protestar. «Idiota» era uma palavra do calão militar, não punível, tal como se podia concluir lendo o regulamento.

 

Furioso, Schulz bateu bruscamente com a porta no nariz de Lindenberg, que se viu obrigado a admitir que a ordem não fora revogada e que devia verificar, o mais cedo possível, o equipamento e o uniforme que Vierbein usara para fazer a guarda.

 

Uma vez mais, a quinta, se dirigiu à camarata da sua esquadra. Escusado é dizer que Vierbein ainda ali não se encontrava. Lindenberg mantinha-se pensativo diante do armário do seu artilheiro, fechado por um grosso cadeado. Lamentava que as suas instruções não lhe permitissem abri-lo. «As melhores instruções», pensava, «têm lacunas.»

 

Não lhe restava, portanto, outra coisa a fazer que renunciar à sua hora de treino. Ele, um subalterno, tinha de esperar um simples soldado. Esperou: uma hora, duas horas, três horas, quatro horas. Nervoso, sentara-se no quarto, com um Manual de Instrução Militar sobre a mesa, incapaz de se concentrar suficientemente para aprender de cor as fórmulas de tiro.

 

Aproximou-se da janela e olhou a parada. Depois voltou a sentar-se. Em seguida dirigiu-se ao corredor. Fez algumas elevações na barra fixa. Depois disto limpou as botas, o cinturão e os dentes. Mais tarde ainda escovou o seu uniforme de saída, se bem que ele estivesse dum asseio perfeito.

 

Pareceu-lhe sentir um certo nervosismo: sensação nova em si e que o inquietava. Tirou, não sem desgosto, a conclusão de que era o artilheiro Vierbein que lhe afectava os nervos. Pensou que não podia ser assim. Devia ser sempre correcto, imparcial, exemplar. Mas não era fácil.

 

Um pouco antes do recolher dirigiu-se novamente à camarata da sua esquadra: era a nona vez. Três homens jogavam as cartas, dois outros comiam, um estava nos lavabos, os outros estavam deitados. Vierbein continuava a não estar presente. Lindenberg olhou o relógio e verificou: «Ainda vinte minutos.»

 

Não voltou para o seu quarto. Ficou no corredor. Enquanto ia e vinha sentia a cólera apertar-lhe a garganta. «Não», disse consigo, «isto não pode ser.» Esforçou-se por respirar profundamente. E dez minutos passaram ainda.

 

Depois Vierbein apareceu, ofegante. O rosto brilhava-lhe: tinha corrido, decerto. Apressava-se na direcção da camarata e quase empurrou o sargento.

 

Vierbein  disse este, num tom correcto, regulamentar (custava-lhe a dominar-se, mas conseguiu-o), esteve de guarda esta manhã?

 

Sim, meu sargento.

 

Não ignora que existe um regulamento escrito segundo o qual um soldado, deixando a guarda, deve pôr o seu equipamento e o seu uniforme em perfeito estado? Conhece-o?

 

Sim, meu sargento.

 

Nesse caso, mostre-me o seu cinturão, a cartucheira, o porta-baioneta.

 

Falava com moderação e sobriedade. Não fazia uma conferência, não proferia uma acusação, não se manifestava em suposições: queria deixar falar os factos, e estes deviam, tinha a certeza, falar uma linguagem clara.

 

Ainda ofegante, Vierbein correu para o armário, tirou do bolso a chave que o cabo Asch acabara de lhe entregar sub-reptíciamente e abriu o cadeado. Puxou bruscamente a porta. Lindenberg deitou um olhar impaciente lá para dentro. À primeira vista, tudo estava suficientemente em ordem.

 

As cartucheiras, suspensas dos seus ganchos, reluziam O cinturão, enrolado no seu lugar, brilhava. O porta-baioneta estava estendido com a baioneta num pano cuidadosamente desdobrado. Tudo resplandecia.

 

O subalterno teve necessidade de vários segundos para recuperar o domínio de si próprio. Vierbein sentiu-se tranquilizado: os seus camaradas, tinham, como se via, feito convenientemente o que era preciso. Na sua cama, Herbert ria.

 

As botas  disse Lindenberg.

 

Puseram-lhas debaixo do nariz. Estavam engraxadas. Levantou-as e olhou as solas: tinham sido cuidadosamente lavadas. Procurou se havia lama entre as grossas cardas. Inútil. Sentiu que isto o irritava desmedidamente.

 

A espingarda  disse, dominando-se a custo.

 

Vierbein precipitou-se para o armeiro e retirou a sua espingarda. Segurou-a regulamentarmente, com a culatra virada para o observador. O subalterno passeou o olhar da boca à coronha. Nada a criticar.

 

Tire o protector de boca, a culatra e o carregador.

 

Queria examiná-los em pormenor. Estava decidido a encontrar qualquer coisa e sabia que não existia espingarda onde não houvesse um defeito quando se estava resolvido a encontrá-lo.

 

Nesse momento, Asch, da sua cama, disse numa voz amável:

 

Permito-me observar-lhe, meu sargento, que já tocou o recolher.

 

Lindenberg não compreendeu logo o que isto significava. Perguntou num tom consternado:

 

Que se passa?

 

É o recolher  disse Herbert, agitando a roupa da cama.

 

E o cabo Kowalski, deitado no canto do fundo, procedeu como se estivesse já meio adormecido e não soubesse o que se passava; exclamou, bocejando:

 

Nunca mais se calam neste bordel? Lindenberg compreendeu. Sabia que era proibido fazer

 

trabalhar os homens desde o recolher até à alvorada; sabia também que os homens o não ignoravam. É certo que nunca esperara ver algum deles chamar a sua atenção, mesmo indirectamente, para este ponto. Isto transtornou imenso o seu equilíbrio. Sentiu a cólera subir dentro de si e só a muito custo se dominou.

 

Encontrar-nos-emos amanhã  disse, desaparecendo, enquanto o cabo Herbert Asch lhe gritava amavelmente:

 

Boa noite, meu sargento.

 

O pai Freitag era madrugador. O seu serviço no caminho de ferro começava às oito horas, mas ele levantava-se às cinco e punha-se logo a trabalhar, a fim de ganhar, dizia, apetite para a refeição da manhã.

 

Vestido com uma camisa e umas calças, dirigia-se ao jardim. Era partidário da rega matinal.

 

A essa hora parecia-lhe estar sozinho no mundo. Não havia vizinhos para lhe fazerem perguntas estúpidas, ninguém da família para lhe pedir que fizesse outra coisa ele só e as suas flores, as suas árvores de fruto, os seus legumes. Distante, a caserna começava a acordar com grande ruído.

 

Já ali habitava muito tempo antes de se ter construído a caserna. Havia mais de dez anos que comprara este terreno fora da cidade. Mas a cidade alongara-se atrás dele e a caserna parecia ter surgido ali de um dia para o outro, como um vulcão que entrasse em actividade.

 

Da caserna vinha o som dos apitos de ordenança. Pequenos grupos munidos de canecas reuniam-se diante dos diversos edifícios. Alguns faziam desporto: exercícios de flexibilidade, corridas em fila na praça de armas. Ordens isoladas chegavam incompletas até Freitag, que, quase imóvel, regava o seu jardim.

 

Acabado isto, dirigiu-se ao telheiro da ferramenta, onde construíra uma bancada de trabalho. Talhou novos dentes de madeira para um ancinho. As suas mãos sólidas trabalhavam habilmente. Entretanto ia cantando numa voz rude -, e baixa.

 

Por volta das seis horas acordou a mulher. Dirigiu-se à casa da barrela, onde tinha instalado para seu prazer um duche. Barbeou-se tranquilamente e fez cair água sobre si em abundância. Depois foi à cozinha e pôs-se a serrazinar a mulher, gordinha e sempre de bom humor. Ela ria às escondidas e fingia zangar-se, o que divertia sempre o marido. Ajudou-a a preparar o almoço, encheu o «termo» e deitou uma vista de olhos ao livro de contas da casa.

 

Às sete horas foi a vez de Elisabeth acordar. Depois Freitag e a mulher prepararam a mesa para a primeira réfeição. Às sete horas e um quarto todos os três estavam sentados. Elisabeth serviu o café.

 

O pai observava a filha afectuosamente.

 

Não achas, mãezinha  disse ele, francamente, que Elisabeth está agora uma verdadeira mulher? Madura como uma maçã que se colhe da árvore.

 

Não tens outro assunto de conversa?  respondeu a mulher.

 

Deixa-o falar, mãezinha  disse Elisabeth.  Eu sei muito bem que não posso continuar sempre criança.

 

Deixar de ser criança significa muitas vezes ter uma criança.

 

Elisabeth olhou-o, espantada. A mãe indignou-se sinceramente:

 

Tu não tens realmente outro assunto para conversar?

 

Bom, bom!  exclamou o pai Freitag, rindo francamente. Se tu julgas... Que temos para o jantar esta noite?

 

Hoje é terça-feira  respondeu a mulher, satisfeita por ver que o marido não continuava com os seus gracejos pesados, mas pouco amável mesmo assim, porque queria mostrar que não apreciava este género de brincadeira. Todas as terças-feiras, cá em casa, há ervilhas com toucinho. Há dez anos. Foste tu que o desejaste.

 

Eu que o desejei? Porque dizes isso? Tu é que quiseste.

 

Eu? Mas eu não gosto assim tanto de ervilhas com toucinho.

 

Nem eu.

 

E eu que sempre pensei que te dava prazer preparando-te este prato!

 

E eu que sempre pensei que te dava prazer comendo-o!

 

Ambos se olharam estupefactos & rebentaram a rir. Elisabeth associou-se igualmente, numa voz clara, onde se adivinhava felicidade. Amava ternamente os pais e desejava viver como eles um dia.

 

Somos uns espantosos malucos  disse o pai Freitag.  Mas a minha opinião é que continuemos a comer todas as terças-feiras ervilhas com  toucinho.  Chamar-lhe-emos a sopa dos malucos. E, bem entendido, fá-la-emos hoje; somente, será necessário fazer mais. Espero um convidado, um convidado especial.

 

E é a nossa sopa de malucos que lhe queres servir?

 

Exactamente. É preciso que ele nos conheça tal como somos. Portanto, nada de banquete.

 

Quem é?  perguntou a mulher.  Alguém do teu trabalho?

 

Não  respondeu Freitag, olhando a filha afectuosamente.  É alguém do trabalho de Elisabeth.

 

Esta pousou a chávena e levantou a cabeça, surpreendida:

 

-- Quem é, paizinho?

 

Um rapaz muito interessante. Conheci-o ontem. Julgo, mãezinha, que te agradará. Quanto a Elisabeth, sei que já lhe agrada. É um cabo de artilharia. Chama-se Asch, Herbert Asch.

 

Elisabeth endireitou-se. Olhava o pai muito séria. Não estava muito surpreendida, preparada como sempre se achava para os ressaltos das ideias do pai.

 

Foste tu que o convidaste a vir cá?  perguntou. Forçaste-o por acaso indirectamente a vir?

 

A mãe Freitag não compreendia absolutamente nada do que se passava e isso picava a sua curiosidade.

 

Tu conhece-lo, Elisabeth?  perguntou.

 

Porque não havia de conhecê-lo?  disse  Freitag, como se se tratasse da coisa mais natural deste mundo. Faz serviço na caserna onde ela trabalha. Há lá apenas oitocentos soldados. Porque não o conheceria ela?

 

Paizinho  disse  Elisabeth num   tom   decidido   e muito sério , reconheço que fiz mal em nada lhe ter dito.

 

Não és obrigada a dizer-me tudo  disse ele, abanando energicamente a cabeça.

 

Mas que é que se passa?  perguntou a Sr.a Freitag, arregalando os ”olhos.

 

Nada que não seja natural, mãezinha. É o rapaz de quem eu encontrei a roupa ontem de manhã na rua  respondeu Freitag.

 

E tu conheces um rapaz desses, Elisabeth?  perguntou a mãe num tom seco.

 

Sim, mãezinha, conheço-o.

 

E eu não vejo mal nisso  disse o pai.

 

Contudo, não quero vê-lo  acrescentou Elisabeth, a meia-voz mas claramente.

 

Muito bem!  exclamou a mãe Freitag esforçando-se por se mostrar enérgica, o que não conseguiu, porque era a melhor das mulheres.

 

Que tens a censurar-lhe?  perguntou o pai.

 

Muitas coisas.

 

Sempre foi assim?

 

Porque me perguntas isso, paizinho? Sabes bem o que se passou.

 

A mãe continuava a não compreender. Não tinha bastante imaginação, sobretudo para supor o mal. Para ela, Elisabeth era uma criança e sempre continuaria uma criança.

 

Não quererás dizer-me o que significa tudo isto? perguntou ao marido.

 

com todo o gosto. Convidei o cabo Herbert Asch, que a Elisabeth conhece.  Ele vem ver-nos.  As coisas arranjaram-se assim. Nem eu o forcei nem ele fez nada para se fazer convidar... Não posso dizer ainda se me agrada, mas considero-o digno de interesse.

 

E eu nada mais quero com ele |exclamou Elisabeth num tom que se sentia ser sincero.

 

Julgava-se enganada. Tinha-a, muito simplesmente, abandonado. Fora-se embora. Na véspera, em todo o dia, não fizera o menor esforço para lhe falar. Esquecera-a. Pusera-a numa situação terrivelmente penosa e, depois, sem mais nada, esquecera-a. E era preciso que o pai o obrigasse a comparecer à força. Não queria isto. Fazia-a corar. Não esperava que tal coisa acontecesse e não queria que ela acontecesse.

 

Quase me convenço  disse o velho Freitag, num tom pensativo  de que não o conheces bem.

 

Conheço-o perfeitamente.

 

Receio que apenas conheças uma parte dele, a parte pela qual os homens menos diferem uns dos outros. Crês provavelmente que se trata de uma cabeça doida, um rapaz pronto a agarrar tudo o que lhe passe ao alcance. Não é assim. Se queres acompanhar-me um bocado, porque já é tempo que eu parta para o meu trabalho, dir-te-ei o que me leva a pensar que este rapaz tem todas as tendências para vir a ser um homem honesto.

 

Vão-se embora!  exclamou a mãe Freitag, furiosa e decidida.  Estou farta dos vossos segredos.

 

O pai deu-lhe uma palmadinha bem humorada nas costas rechonchudas. Ela ronronou como uma gata, ao mesmo tempo que fazia olhos de descontente. Freitag colocou as suas sanduíches e o «termo» na pasta. Depois piscou o olho para a filha, que fazia o possível para lhe evitar o olhar.

 

Esta noite  disse o pai  aparecerá aqui um uniforme dentro do qual se encontrará um homem que se julga esperto e mesmo astuto, mas que tem ainda quase uma alma de criança. Tenho de dizer-te isto, mãezinha: ele fez uma coisa que se poderia qualificar de leviandade ou de estupidez e, mais de doze horas depois, portanto não apanhado em flagrante e sem que fosse possível intimá-lo a cumprir o seu dever, estava pronto a tirar do seu acto todas as consequências, com tudo o que o nosso código de honra prevê. Que quer isto dizer? Ou não fez tolice ou então possui consciência e carácter.

 

Está bem, está bem  disse a Sr.ª Freitag, empurrando-o.  Parte de uma vez, ou chegarás atrasado. E esse rapaz terá esta noite um puré de ervilhas...

 

Penso, paizinho, que não tens necessidade de o elogiar. Conheço-o melhor que tu.

 

Minha filha, não reparas que não o estou a elogiar. Esse rapaz conduziu-se talvez como um grosseiro, como um estúpido, como um soldado brutal, mas tem a sensibilidade de um garoto e o idealismo escondido e perigosíssimo de um adolescente. Não encontrei nele sinal de realismo. Parece-me ser um daqueles que, uma vez recebido o impulso necessário, são capazes de ir atirar-se contra as asas de um moinho. Li isto num livro acerca de um espanhol...

 

Decide-te de uma vez  disse a mulher.  Em toda a tua vida nunca disseste tantas tolices como esta manhã. Mas eu não te preveni já? Isso provém de leres de mais!

 

E empurrou o marido para a porta. Seguiu-o com o olhar, enquanto ele descia a rua em companhia da filha, falando com animação. Abanou a cabeça, dizendo:

 

É doido, mas é um bom homem.

 

O sargento-ajudante não precisou de muito tempo para se convencer de que o subalterno Lindenberg, no fundo, não era mais que um falhado. Era pura e simplesmente um telhudo, um «monstro» como militar. Não tinha nada do instrutor de categoria: era incapaz de «rodar» os homens.

 

Não tinha imaginação; agarrava-se estritamente às instruções, queria ser «correcto» e não era mais que um idiota. Não sabia interpretar nem, sobretudo, improvisar. Não era capaz de imaginar tudo o que se podia fazer com o simples pretexto de «manter a disciplina».

 

O brigadas fora, portanto, forçado a reconhecer, contrariado, que Lindenberg não era o homem capaz de «chegar o fogo ao rabo» aos homens da sua esquadra. Isto causava-lhe graves preocupações. Convocou-o para apelar uma vez mais para a sua consciência.

 

Ontem à noite, Lindenberg, deixou-se enrolar pelo mais sujo dos seus homens.

 

Permito-me observar, meu ajudante, que agi com uma correcção perfeita. O uniforme e o equipamento do artilheiro Vierbein estavam em ordem. Não tinha motivo algum para o repreender, nem, sobretudo, para o incluir na participação.

 

Deixou-se enrolar na farinha como um pastel. Sabe-o melhor que ninguém. Esse porco do Vierbein foi vadiar  com uma mulher, sem dúvida  e entretanto os outros limparam-lhe as coisas.

 

O que se poderá qualificar de acto de camaradagem.

 

Você é um papalvo, Lindenberg. Ainda não compreendeu do que se trata. Os gajos só agiram como «camaradas» para os lixar, a vocês, subalternos. É preciso ser desaparafusado para chamar a isto camaradagem. Eu chamo-lhe preparação colectiva para a sedição.

 

Lindenberg conservou-se em silêncio. A sua opinião, como muitas vezes sucedera já, não concordava com a do seu superior, mas ele tinha bastante espírito militar para não lhe responder grosseiramente. Desta vez, contudo, esforçou-se por defender o seu ponto de vista, um tanto diferente.

 

Até agora  declarou  nunca tive, mesmo indirectamente, nenhuma recusa de obediência.

 

Porque não conhece as astúcias desses gajos exclamou o sargento-ajudante,  verdadeiramente indignado por tanta cegueira.  Saberá, por acaso, o motivo por que Kowalski e Asch deram parte de doente esta manhã?

 

Um tem diarreia e o outro vertigens.

 

Ambos querem escapar aos exercícios de infantaria, pedaço de tapado. Eles conhecem melhor que você, Lindenberg, as regras do jogo. Sabem exactamente o que vai suceder. Porque eles são feitos para subalternos. Enquanto você é apenas uma máquina de assinaturas.

 

Lindenberg, melindrado, conservou-se calado. Não merecera isto. Era um dos melhores subalternos do regimento com certeza um dos mais correctos, sabia-o bem. Era incorruptível e fazia rigorosamente o seu dever. Neste momento sentia-se profundamente ofendido.

 

O sargento-ajudante despediu-o com um gesto. Esta conversa fizera-lhe bem. Esperava que ela daria os seus frutos. Antes de mais, uma atitude enérgica de Lindenberg: «rodagem» e não apenas instrução. Durante as duas horas seguintes a esquadra de Lindenberg ia «babar-se». Toda a esquadra. Era o seu princípio. Todos os soldados deviam sentir que era por causa de Vierbein, por causa dele somente, que lhes davam um pontapé no rabo. Só assim o ajudariam, pelo menos moralmente, a metê-lo no bom caminho, para ficarem de novo tranquilos.

 

Tinha, pois, revigorado a fundo Lindenberg. Mas era ainda possível que isto não bastasse para reduzir a guia a esquadra e, por consequência, Vierbein. Era uma sorte extraordinária que a direcção do serviço de infantaria estivesse inteiramente nas mãos hábeis do primeiro-sargento Platzek. Por alguma coisa lhe chamavam Pele de Vaca e não era por acaso que era amigo de Schulz. Platzek actuaria como convinha para fazer a barba a esses gajos, e particularmente a Vierbein.

 

Este último repugnava ao brigadas. Era para ele o tipo exacto do que não é militar, indisciplinado, torcido, civil, numa palavra. Não era só porque estendera as sujas patas para a mulher, não por isso somente, pois já nessa atitude via uma prova de irreverência.

 

Estes pensamentos profundos lembraram-lhe prontamente a mulher e a sua intenção de lhe mostrar a todo o momento que o senhor era ele. Entrou em casa e reclamou uma chávena de café. Lore fez o possível para atendê-lo rapidamente.

 

Queres desembaraçar-te de mim depressa?  perguntou ele.

 

Lore não respondeu. Sabia que se tivesse procedido com lentidão ele teria achado igualmente que dizer. Mas para satisfazê-lo passou a trabalhar mais devagar.

 

Não podes andar mais depressa?perguntou Schulz. -Tenho mais que fazer.

 

Bebeu apressado e partiu, não sem ter rapidamente procurado e descoberto poeira na prateleira superior da cozinha, o que lhe deu prazer.

 

Isto acontece  disse  quando se tem sempre outras ideias na cabeça.

 

Depois dirigiu-se à sua bateria e, da janela do 2.º andar, examinou a praça de armas. Balançou a cabeça com satisfação. A esquadra de Lindenberg estava à parte e fazia exercícios com espingarda complicados e muito fatigantes. O subalterno, sem dúvida para dar o exemplo, executava energicamente os movimentos. A esquadra compreendia dez homens. Isto fez lembrar a Schulz que Kowalski e Asch haviam tido o cuidado de dar parte de doente. Teve um riso sarcástico, pois conhecia a astúcia. Queriam simplesmente escapar à instrução de infantaria, mas não tinham contado com ele. Correu ao gabinete e pediu ligação para o serviço de saúde.

 

Entretanto, Lindenberg fazia com a sua esquadra os seus legendários exercícios com espingarda. E para não merecer a reputação de «carrasco» não se contentava em demonstrar os exercícios  executava-os com os seus homens.

 

A sua especialidade eram as flexões de pernas em oito tempos, com os braços estendidos segurando a espingarda

Excelente exercício, que fazia tremer os braços e vacilar as pernas. Em voz alta, onde mal se notava a fadiga, corrigia os movimentos. Entre outros, notou Vierbein, que transpirava já abundantemente e começava a tornar-se vermelho. Não foi com triunfo que,o verificou, mas antes com uma certa inquietação. Era-lhe desagradável ver quão pouco resistentes eram os homens que lhe haviam confiado. Estava, contudo, decidido a fazê-los suar.

 

O sargento Platzek, o Pele de Vaca, aproximou-se com ar interessado. Olhou durante um certo tempo, visivelmente insatisfeito.

 

Demasiado mole, Lindenbergdeclarou, finalmente. Não particularizou quem era visado por esta expressão,

 

que muito estimava. Em todo o caso, o subalterno esforçou-se por acelerar o ritmo dos exercícios e de altear de um tom as suas vozes de comando. Conseguiu-o. Quanto aos soldados, redobravam eles de zelo e de precisão, porque sabiam por experiência que não era bom provocar o sargento Platzek. Suavam, ofegantes.

 

Mas adivinhavam também que todos os esforços seriam inúteis. Sentiam quase corporalmente que Platzek estava firmemente decidido a empurrá-los até ao esgotamento. Este dizia agora:

 

Que torto é este Vierbein, que torto! Uma pêra mole. Quem sabe onde vocês foram ainda vadiar ontem à noite? Tudo por causa desse Vierbein. Para a paliçada, em frente, marche!

 

Começou então uma das «sessões solenes» de Platzek. Deixou muito simplesmente Lindenberg suspenso e perseguiu a esquadra através das partes mais afastadas da praça de armas. Os soldados atiravam-se com resignação para a lama, esforçando-se todavia por poupar as forças o mais possível. Apenas Vierbein se encarniçava em executar cada ordem de maneira exacta e com a maior rapidez. Saltava como uma flecha através da praça de armas e enterrava-se na lama como uma granada. Tudo era absolutamente inútil. .. Durante todo o tempo ressoou, para lhe dar coragem, o grito de Platzek: «Tudo isto por causa desse Vierbein!»

 

Uma hora mais tarde os soldados começaram a cambalear como pessoas que dançam em sonho. Os olhos de Vierbein estavam cheios de clarões fortes e penetrantes. A voz de Platzek enrouquecia pouco a pouco. Erecto e descontente, Lindenberg mantinha-se atrás. «Isto não é aplicar os regulamentos», pensava. No seu foro íntimo desaprovava o que via.

 

Uma vez rouco e começando a recear pela sua voz, Platzek passou a operar com um apito. Uma apitadela substituía uma ordem. A sequência era a seguinte: uma apitadela: deitar; uma apitadela: levantar, em frente, marche; uma apitadela: de joelhos; uma apitadela: levantar, em frente marche; uma apitadela: sentar; uma apitadela: levantar, em frente, marche; duas apitadelas: meia volta; três apitadelas: sentido; uma longa apitadela, mas isso era raro: descansar! Depois de dez minutos deste jogo Vierbein tombou pela primeira vez e foi transportado para um canto.

 

Uma pêra mole!  exclamou Platzek em tom de desprezo.

 

E podia-se ver que estava contente consigo mesmo.

 

O capitão Derna, comandante da 3.ª bateria, era, de algum modo, uma contribuição viva do povo irmão austríaco para a ideia defensiva da Grande Alemanha. Pertencera com êxito antigamente ao exército imperial e real; depois fora ocasionalmente comerciante, geómetra-agrimensor e angariador de seguros.

 

Após o «Anschluss» a Wehrmacht acolhera-o de braços abertos: tornou a ser oficial e encontrou-se no meio de prussianos.

 

Derna possuía a sedução vienense, uma voz doce e agradável e movimentos graciosos. Para os oficiais prussianos era, segundo a delicada expressão destes, um «vomitório»; contudo, suportavam-no e, mesmo na messe, não o consideravam realmente desagradável. Permitiam-lhe que tomasse parte nas suas manifestações de camaradagem ou regozijavam-se até por verem que ele se esforçava por igualá-los.

 

Derna movia-se nesta caserna prussiana como num campo de minas: sempre pronto a saltar. Procurava fazer o menor ruído possível; comportava-se sempre e em tudo segundo o exemplo dos outros oficiais e sentia-se feliz quando eles nada tinham a dizer dele próprio e das suas decisões.

 

Tudo era novo para ele. Durante os últimos meses da guerra de 1914 tinha comandado uma bateria de obuses quase intacta. Depois debatera-se para obter uma pensão e postos civis. Não conhecia as regras da caserna, nem, sobretudo, a instrução à prussiana. Para o serviço exterior dependia inteiramente do alferes Wedelmann e dos oficiais instrutores; para o serviço interno, do sargento-ajudante Schulz, Wedelmann aceitava-o como ele era, mas Schulz aplicava-se a prepará-lo como um cozinheiro «prepara» um ganso de consoada.

 

O brigadas compreendera imediatamente de que espécie era o espírito militar do novo capitão austríaco que regressara ao serviço activo. Admitia a necessidade de se sentir apoiado que este vienense, caído no meio de prussianos, mostrava. Sabia exactamente o que se lhe exigia e o que se esperava dele: declarara-lho logo ao princípio. Ocupava-se sozinho da papelada: elaborava os quadros de serviço, redigia as folhas sinaléticas, aprovava os projectos de licença  e Derna assinava tudo o que lhe apresentava o seu sargento-ajudante.

 

Este era esperto bastante para não fazer sentir ao seu capitão quanto lhe era superior; o capitão esforçava-se o mais que podia por mostrar ao seu sargento-ajudante quanto era grande a confiança que nele depositava. Viviam como numa lua-de-mel. Ultrapassavam-se um ao outro em amabilidades e acreditavam ter todos os motivos para, reciprocamente, se certificarem de tempos a tempos da estima que tinham um pelo outro.

 

bom dia, meu capitão  berrou Schulz em sentido, num tom alegre.

 

Abriu de par em par a porta do seu superior e fez a continência com uma precisão onde se reflectia Derna disso estava persuadido  o verdadeiro espírito prussiano. Resplandecia de dedicação ao agarrar a mão que lhe era estendida

 

Derna ficou dez minutos sozinho. Sentado à sua secretária, assinou a participação diária do sargento-ajudante, antes mesmo de a ler. Esforçou-se por fixar na memória os números: efectivo previsto  efectivo real  em serviço de licença  doentes. Podia acontecer que o comandante Luschke acreditasse ter um motivo para lhe fazer perguntas a esse respeito. Entre os Prussianos, assim lho dera a entender Schulz, devem conhecer-se estes números de cor.

 

O telefone retiniu gentilmente e pôs fim aos leais esforços de Derna para se aproximar do espírito de serviço prussiano. A sua voz era absolutamente cortês quando respondeu.

 

O timbre nasal e sibilante, mas muito penetrante e muito claro, do comandante fez-se ouvir. E Luschke, a quem toda a gente, à excepção, bem entendido, de Derna, chamava o Batata, quis saber, em primeiro lugar, se o seu comandante de bateria tinha realmente a sensação de se encontrar no café.

 

«Não, meu comandante», respondeu Derna, num tom ao mesmo tempo amável e surpreendido.

 

Luschke explicou-lhe então que esta impressão lhe vinha da circunstância de Derna, de cada vez que atendia ao telefone, ter o ar de quem estava a encomendar um charuto a um criado. Derna devia ter ouvido decerto em qualquer parte que não era aquele o tom que convinha a uma caserna.

 

«Sim, meu comandante», respondeu Derna, resignado.

 

O Batata queria saber também se Derna notara que os homens da sua bateria davam parte de doente geralmente à segunda-feira ou, pelo menos, quando havia serviço de infantaria de manhã. Nunca reparara?

 

«Não, meu comandante», respondeu Derna, desolado. «Mas vou, sem demora...»

 

Luschke interrompeu-o para lhe dizer docemente que devia de futuro preocupar-se com todos estes pormenores antes do seu comandante. «Tentar emendar depois estava talvez em moda em Viena, mas não entre os Prussianos. E, além disso, que queria dizer: vou, sem demora...»? Duvidaria Derna por acaso do que lhe dizia o seu superior?»

 

Sim  disse Derna num tom pensativo, tamborilando sobre a secretária.  É aborrecido.

 

Abriu a caixinha colocada diante de si e tirou um dos cigarros que ele próprio enrolava.   Schulz ofereceu-lhe lume.

 

Sim  disse outra vez Derna, que sentia nitidamente que o brigadas queria a sua vítima. Estava firme e bem decidido. Seria difícil fazê-lo mudar de opinião. E seria ainda mais difícil justificar de maneira plausível aos olhos de Luschke uma punição disciplinar.

 

O capitão sentia-se como que esmagado pelo peso de algumas toneladas. Até a sua sedução desaparecia. Estava pronto a tornar-se desagradável, mas lembrou-se a tempo de que seria uma loucura, quase um suicídio, zangar-se por uma bagatela com Schulz, que sabia tudo e sem quem não se podia passar.

 

Traga-me esse homem  disse. Schulz pensou: «Porque não fez ele isto logo?» Fez a continência regulamentar e desapareceu. Bem humorado, deu ordem para chamarem Vierbein. Agora é que ele ia ver!

 

Entretanto Derna folheava os regulamentos relativos às punições. Achava-os complicados, pouco claros, incompletos. Telefonou ao oficial ordenança do comandante e, após algumas amáveis palavras de introdução, soube que durante os últimos seis meses nenhuma pena disciplinar fora aplicada no sector do comandante Luschke.

 

O patrão é pela disciplina  disse o oficial ordenança, não pelas punições disciplinares.

 

Derna achou notável esta maneira de pensar, mas, ao mesmo tempo, pouco cómoda. De bom grado teria dado ao seu sargento o prazer que ele reclamava, com a condição de que fosse justificado. Mas não podia anular muito simplesmente um princípio enunciado pelo seu chefe. Seria suicidar-se. Tinha de nadar com prudência. À inflexibilidade prussiana devia opor a flexibilidade austríaca e procurar fundi-las de maneira harmoniosa.

 

Com toda a frieza de que era capaz, mirou à sua entrada o artilheiro Vierbein, atrás de quem o sargento-ajudante se colocara com toda a sua altura.

 

Conservou-se primeiro em silêncio, pois tinham-lhe ensinado que o silêncio era significativo, ameaçador, esmagador. Percorreu com um olhar investigador o rosto pálido do soldado, que, sob o enorme capacete de aço, parecia pequeno e doente.

 

Ele tem uma cor doentia  disse o capitão.

 

É por causa da vida desregrada que leva  declarou o sargento, do fundo do gabinete.

 

Devias ter vergonha  continuou Derna, dirigindo-se ao artilheiro.  Tens a honra de ser soldado e de vestir uniforme e portas-te como... como...

 

Como um porco  acrescentou Schulz, pressuroso. Derna acenou afirmativamente. Achava, decerto, que

 

a afirmação do subalterno ia demasiado longe, mas preferiu não a rectificar, sobretudo na presença de um subordinado. Examinou com atenção o pálido Vierbein: não tinha o ar de um revoltado, mas sim de um mau soldado. E em presença deste pobre diabo Derna sentiu-se grande e forte. O seu orgulho manifestava-se uma vez mais. O orgulho de pertencer à Wehrmacht, de ser um austríaco em terra prussiana, depois de anos de privação e de quase degradação. Sentia-se infinitamente superior e isto tornava-o benevolente.

 

Que faz o teu pai?  perguntou.

 

O sargento sentiu uma penosa impressão. «Que quer isto dizer?», pensava. «Quererá conversar ou aplicar um castigo? Ocupa-se da família agora, quando do que se trata é apenas de mostrar autoridade.»

 

É empregado na Polícia, meu capitão  respondeu Vierbein.

 

Derna olhou-o surpreendido, como se visse as sete maravilhas do mundo.

 

Ora aí está uma coisa inacreditável  declarou, meneando a cabeça.  Teu pai é um funcionário digno, merecedor de confiança, um sustentáculo da ordem, de algum modo um modelo público. E tu? Que és tu? És um mau soldado, extremamente mau, tal como o sargento-ajudante teve o desgosto de me dizer. Teu pai ficaria muito triste se pudesse ver-te aqui. Não tens vergonha?

 

Estás a ouvir, Vierbein?  perguntou o brigadas, furioso.  O capitão pergunta-te se tens vergonha.

 

Sim, meu capitão.

 

Derna esforçava-se por deixar transparecer uma severidade implacável.

 

Se teu pai soubesse quanto tu és mau soldado, também ele coraria. Tome nota, ajudante, que devo pensar se escreverei uma carta ao Sr. Vierbein.

 

Sim, meu capitão  disse Schulz, de má vontade. Também ele tinha a impressão de que devia corar, mas

 

por causa do capitão Derna. Em lugar de aplicar uma punição tesa, falava em escrever uma carta. «Isto não é um chefe, é um capelão. De resto, que poderia vir de bom da Áustria?»

 

O nosso sargento-ajudante  acrescentou Derna, deitando para o lado um olhar benévolo, na direcção de Schulz  viu-se obrigado a pôr-me ao corrente das tuas faltas. Fê-lo contra vontade, mas era o seu dever.

 

O brigadas, ao fundo, perdeu por completo a presença de espírito. Chegou mesmo a abanar a cabeça. Não acreditava nos seus ouvidos. com efeito, isto não podia acontecer. Não podia ser verdade. Estavam na caserna, e não numa escola infantil.

 

Pensei em aplicar-te uma severa punição disciplinar declarou Derna.  Fica certo de que apanharias um forte castigo de calabouço, mas quero uma vez ainda ser clemente, tendo em atenção, sobretudo, que é esse o desejo do sargento-ajudante.

 

Meu capitão!  exclamou Schulz, protestando polidamente.

 

É  claro  acrescentou  Derna,   à   pressa  que   a coisa não acabará assim. Quinze dias de proibição de saída do quartel é o menos que posso aplicar-te. Tome nota, sargento-ajudante.

 

Sim, meu capitão. Quinze dias.

 

E se acontecer alguma coisa, por pequena que seja declarou Derna, tentando inutilmente berrar, será a prisão! Sem dó nem piedade. Dou-te a minha palavra.

 

O sargento-ajudante resmungava: «Que comédia! Enfim, o patrão comprometeu-se. Se acontecer qualquer coisa, mete-o na prisão. Ora, isso pode muito bem acontecer. Não terá de esperar muito tempo para cumprir a sua promessa.»

 

Vierbein pôde retirar-se. Afastou-se sentindo que as pernas lhe vacilavam. Tinha a sensação de que acabavam de esvaziar-lhe o estômago. Cambaleando, dirigiu-se aos lavabos e vomitou.

 

Entretanto, o capitão, sorrindo a custo, dizia num tom enérgico ao seu sargento-ajudante:

 

Será uma boa lição.

 

O brigadas não se dignou responder.

 

Ambos estavam descontentes consigo mesmos e olhavam-se um ao outro com uma secreta censura. O capitão receava perder a tão agradável dedicação do subordinado. O ajudante temia perder a sua influência decisiva sobre o superior. E cada um deles, de mau humor, pensava: «Tudo por causa desse Vierbein!»

 

Ingrid Asch não tivera uma noite má. Não estava nervosa nem mesmo particularmente triste: estava apenas surpreendida. Até aí quase sempre a tinham amimado. Sabia que era bonita e recebia impassivelmente todas as homenagens. Mas que alguém pudesse virar-lhe as costas e fugir, eis o que não podia compreender. Nunca tal lhe sucedera.

 

Atribuía o que se passara à influência do irmão, cuja afeição consistia, como era evidente, em pretender levá-la pelo beiço e em roubar-lhe o prazer das coisas grandes e belas. Ele conseguira, sem dúvida, pensava, transmitir as opiniões que tinha acerca dela a Vierbein, esse estranho amigo. Era lamentável, pois Vierbein não lhe desagradava. Era realmente pena que este se deixasse arrastar na peugada daquele irmão sem ideal.

 

Ingrid punha em ordem as facturas da véspera. Os negócios corriam bem. Podia-se ter orgulho da receita do Café Asch. Coisa estranha: há algum tempo que o fornecimento de produtos para a pastelaria apresentava certas dificuldades. As autoridades do distrito, que se haviam informado das razões junto do ministro dos Abastecimentos, haviam recebido como resposta que as restrições se tinham tornado necessárias, por um lado em virtude do alargamento dos territórios do Reich, por outro lado pelo incessante aumento das reservas da Wehrmacht, que devia manter-se pronta para qualquer eventualidade.

 

Ingrid afastou as facturas e pôs-se a reflectir. A palavra «eventualidade» exercia nela uma mágica força de atracção. Imaginava o irmão e o seu amigo Vierbein na guerra. Estava firmemente persuadida de que ambos se portariam como heróis. Os louvores, as promoções e as condecorações estavam-lhes assegurados. Seria, assim se lhe afigurava também, um tempo de harmonia completa e de bons pensamentos, em que haveria cartas encorajadoras e dias de licença em comum cheios de beleza e de afeição sem reserva. I,era isto e acreditava que assim fosse.

 

Um pouco agitada por estes pensamentos, acabou mais cedo que de costume o seu trabalho quotidiano. Desceu ao restaurante e dirigiu-se ao pai:

 

- Posso sair agora?  perguntou.

 

Claro!  exclamou o Sr. Asch.  Onde queres ir? Fazer compras? Ao cinema? À escola infantil da tua Associação das Raparigas Alemãs?

 

Peço-te, pai, que não fales dessa maneira da nossa Associação.

 

Desculpa  respondeu  o  pai,   amavelmente.  Esqueço-me sempre de que a A. R. A. de hoje será amanhã a Associação das Mulheres, e tu conheces a simpatia que sinto por essas damas, que são nossas clientes assíduas.

 

Quero ir à caserna, pai.

 

Quererás tu fazer exercício? Ou vais visitar o teu irmão?

 

Ingrid preferiu não responder a qualquer destas perguntas. Declarou:

 

Tu também foste soldado.

 

O pai, de pé atrás da mesa, perto do ascensor, olhou em volta. O café apenas estava meio, porque eram já cinco horas, momento em que começava a diminuir a multidão da tarde. As criadas estavam ocupadas. Podia, portanto, tagarelar um momento à sua vontade.

 

Há algum tempo que te interessas muito pelos militares  observou.

 

Interesso-me por homens que usam acidentalmente um uniforme. Todos os homens deviam usá-lo, se não são estropiados ou, de qualquer modo, fisicamente diminuídos.

 

O pai olhou-a sem surpresa. Conhecia esta maneira de conceber as «grandes coisas» e já não podia espantar-se. Por causa do seu negócio, e porque sua mulher morrera prematuramente, tivera muito menos tempo para ocupar-se da filha que as organizações nazis. Desta circunstância provinha o que ouvia.

 

Ontem à noite deste um passeio de barco com um soldado. Contou-me um dos meus empregados.

 

Era o Sr. Vierbein, o amigo de Herbert, paizinho. Opões-te?

 

Absolutamente nada  respondeu o pai num tom ligeiro.  Podes dar com ele todos os passeios que quiseres. Aos meus olhos esse não é um soldado.

 

Porque o diminuis?  perguntou Ingrid,  sinceramente irritada.

 

Mas eu nem por sombras estou a diminuí-lo  respondeu Asch, surpreendido.  É um elogio que lhe faço. É sempre possível fazer a guerra com tipos como Vierbein, mas para a vida regular da caserna não é bastante primitivo.

 

Não te compreendo.

 

Infelizmente. Mas talvez fosse bom que reflectisses nisto antes que seja demasiado tarde  sabe-se lá para quem?

 

Ingrid deixou o pai, descontente. Era decerto um bom comerciante; era também, tanto quanto lhe era possível, um bom pai. Mas não se podia dizer com segurança que fosse um bom alemão. Não lhe queria mal por isso, mas o facto entristecia-a um pouco. O que a perturbava era terem ideias tão diferentes, tão opostas, sobre a coisa mais simples e clara do mundo: ser soldado. Em consequência disto tudo se complicava. Tudo se embrulhava mesmo perigosamente. E acontecia justamente que Vierbein, que ela desejava correspondesse ao seu ideal, parecia muito mais complicado que todos os outros.

 

Dirigiu-se ao seu quarto para mudar de roupa. Mirou-se ao espelho. Tinha um corpo delicado, mas já com características próprias: as coxas eram talvez um pouco delgadas e as ancas não suficientemente fortes. No curso de higiene da Associação das Raparigas Alemãs tinham-lhe explicado, com tacto, que viria sem dúvida a sentir dificuldades, mais tarde, para ter filhos. Mas não via motivo para levar isto ao trágico. Em compensação, os seios eram cheios e sólidos e sobressaíam orgulhosamente: muitos olhares de homens se tinham pousado neles pensativamente.

 

Penteou-se com paciência, até que os cabelos ficassem sedosos, lisos e brilhantes. Escolheu um vestido de seda, simples, verde-acinzentado, que lhe valorizava as formas. Depois saiu.

 

Atravessou devagar a Praça do Mercado, a Praça das Armas, a Rua da Liberdade, em direcção aos subúrbios.

 

Não tinha pressa, porque não sabia exactamente o que queria fazer. Gostaria de ver Vierbein, de lhe falar, de lhe fazer compreender que estava disposta a perdoar-lhe a fuga precipitada da véspera. Era o que desejava, sem saber como proceder.

 

Passou diante do Bismarck, cuja má reputação não lhe era desconhecida, e atingiu a calçada que ladeava a caserna. Nesse sítio a cidade diminuía notavelmente de importância e de altura. Viam-se aqui e além pequenos quintais, uma exploração de horticultura até, casas isoladas de operários. E à direita, escondendo o horizonte, grande, imponente e cinzenta, a caserna de artilharia: seis alas perpendiculares ao caminho, duas paralelas e, ao fundo, pavilhões e a praça de armas.

 

Ingrid diminuiu mais o passo. Avançava, hesitante. Destes edifícios de três andares vinham um rumor de fábrica, canções isoladas, vozes secas de comando. Às janelas apareciam rostos crestados que a contemplavam. Viu mesmo um binóculo assestado sobre si. Dois sondados riram, fazendo-lhe sinais. Ela apressou o passo.

 

Para não ser mais olhada assim, dirigiu-se para o portão, que se encontrava aberto. Mas a sentinela olhou-a também: supôs que o fazia por razões de serviço.

 

Amavelmente, o soldado indicou-lhe o corpo da guarda, onde estava sentado um subalterno, que a mirou igualmente. Via-se claramente que estava pensando: «Que visita catita!» Num tom amável, perguntou:

 

Quem deseja ver, menina?

 

O segundo-cabo Herbert Asch, da 3.ª bateria.

 

O subalterno olhou lentamente o relógio pendurado na parede do corpo da guarda e disse:

 

São quase seis horas. A bateria está normalmente de serviço até às seis e meia.

 

Não demorarei muito tempo, com certeza. Sou a irmã de Herbert Asch.

 

Ah, bem!  exclamou o subalterno, manifestamente desiludido.  Trata-se duma questão urgente de família, não?

 

Sem hesitar, ela confirmou esta suposição e recebeu um livre-trânsito. Um homem da guarda acompanhou-a e conduziu-a ao subalterno de serviço da 3.a bateria, que a mandou esperar na sala de leitura.

 

Encontrava-se ali o alferes Wedelmann, folheando revistas enfastiadamente. Segundo a ordem de serviço, devia vigiar a limpeza das espingardas. Não podia, portanto, fazer outra coisa que não fosse esperar em qualquer parte. Geralmente entregava o caso ao cuidado dos subalternos e matava o tempo na sala de leitura, então vazia, percorrendo imagens mais ou menos decentes de mulheres nuas ou de carros de guerra blindados.

 

Quando viu Ingrid levantou-se e inclinou-se sem nada dizer. Parecia-lhe ver surgir viva, diante de si, uma das bonitas imagens que acabara de olhar. Num só relance de olhos verificou que a rapariga era extraordinária. O seu dia, habitualmente tão vazio, recebia deste modo, inesperadamente, um esplendor feliz. Era homem para o apreciar: teve um sorriso amável mas reservado.

 

Ingrid sentiu-se algum tanto lisonjeada. Retribuiu o cumprimento do alferes com um leve sinal de cabeça. Depois esforçou-se por não o ver mais. E o oficial teve tacto bastante para não tentar aproximar-se grosseiramente dela.

 

Ingrid teve de esperar, pois procuravam Herbert. Folheou algumas revistas militares que ninguém parecia ter aberto ainda. O alferes trouxe-lhe revistas mais interessantes -e ela agradeceu com uma expressão reservada. Cerca de um quarto de hora decorreu antes que o cabo aparecesse.

 

Asch precipitou-se, hesitou e pareceu ter sido logrado:

 

És tu!  exclamou.

 

Esperavas outra pessoa?

 

Claro.

 

Depois, vendo Wedelmann, fez-lhe uma continência suficientemente regulamentar. O outro retribuiu-lhe a saudação, mas com um ar desaprovador. Asch compreendeu logo porquê: Wedelmann vira-o com Elisabeth no sábado à noite no Bismarck e devia supor que o cabo estava em vias de constituir um harém. E, por causa de Elisabeth, Herbert não queria que pensassem isso dele.

 

Foi por amor do teu irmão que me vieste ver? perguntou.  Ou foi o pai quem te mandou?

 

O alferes levantou-se imediatamente. Neste momento o seu sorriso era amigável e atraente.  Não quero estorvar este encontro familiar  declarou gentilmente. Inclinou-se diante de Ingrid e fez um sinal a Herbert. Depois saiu e deixou-se ficar no corredor.

 

Que queres tu?  perguntou Asch com amabilidade. Vens incomodar-me gravemente. Estava muito ocupado no depósito de fardamento e lá ficaria na mais perfeita tranquilidade até às sete horas. A essa hora já o banzé terá acabado aqui, pensei eu. Mas não: tu vens até cá e pões em movimento o sargento Werktreu. Leva-lo a fazer o que só aconteceria às sete horas: põe-me fora do depósito. E eis-me obrigado a tomar parte em todas as histórias da noite, contra as quais eu julgara ter-me posto em segurança. Que imaginas tu? Que vens cá fazer?

 

Não te compreendo. - O contrário espantar-me-ia.

 

A verdade é que eu queria falar com o teu camarada Vierbein.

 

Palavra?  exclamou Herbert, sufocado por tanta ingenuidade.  Tu querias ver Vierbein? E pensas que ele te espera? Depois de tudo o que, aparentemente, lhe fizeste ontem é provável que ele caia a teus pés só pela alegria de ver-te. Ora diz-me: que imaginas tu? Pensas que Vierbein não é mais que uma boneca de pano com a qual podes jogar o futebol à vontade? Estimo-o de mais para o entregar às tuas ideias de estufa idealista. Não lhe toques’ com os teus dedos bem tratados, se não és capaz de o tratar como é preciso.

 

Tu não compreendes, Herbert  disse ela, desconcertada.  Não sou como tu julgas. Não quero sê-lo. Poderei falar-lhe?

 

Herbert examinava a irmã com uma expressão pensativa e desconfiada. Ela queria ver Vierbein, Vierbein, que, nesse mesmo momento, fatigado, vencido, pálido, metido num uniforme de trabalho demasiado grande para ele, limpava a espingarda, Vierbein, a quem, durante todo o dia, tinham partido conscienciosamente os ossos um a um. Era ele, esse perseguido, que devia apresentar-se diante da resplandecente Ingrid.

 

Não  retorquiu numa voz dura.

 

Muito bem.

 

Com a impressão de ter sido desdenhada, Ingrid levantou-se e deixou a sala. No corredor chocou com o alferes Wedelmann, que a esperava. Este sorriu amavelmente.

 

Dá-me licença que lhe indique o caminho?  perguntou.

 

Se faz favor  respondeu a rapariga. E foi como se acabasse de tomar uma enérgica decisão.

 

A esquadra de Lindenberg devia ter ainda nessa tarde a sua parte, pronta e abundante. O sargento-ajudante combinara uma sessão especial e sentia-se orgulhoso da sua riqueza de invenção e imaginação.

 

É certo que o ponto de partida fora, indirectamente, Lore, sua mulher, que, depois de o ter ajudado a tirar as botas, o convidara a lavar os pés «de uma vez para sempre». Escusado seria dizer que esta expressão «de uma vez para sempre» era exagerada, mas a palavra «lavar» provocou nele um notável encadear de pensamentos, pela seguinte ordem: lavar, tomar banho, nadar, natação livre.

 

Schulz propôs, portanto, ao capitão Derna que se fizesse praticar intensamente o ensino da natação, muito descurado até aí, com vista à formação de uma bateria de nadadores.

 

O comandante exprimiu várias vezes este desejo. Encantado com o zelo do seu brigadas e desejoso de

 

lhe assegurar a sua confiança depois do incidente da manhã, o capitão respondeu:

 

É uma excelente ideia, meu bom Schulz. A estação é igualmente bem escolhida. Pode começar.  E, prudentemente, acrescentou:  Mas sem precipitações.

 

Ao que Schulz respondeu:

 

Começarei por grupos pequenos.

 

O primeiro destes «grupos pequenos» foi, como era natural, a esquadra de Lindenberg, que acabava de passar com bastante propriedade um dia infernal. Toda a gente estava fatigada; Vierbein, que tinha sido particularmente perseguido, estava quase no limite das forças. Inclinados sobre as espingardas, os homens limpavam-nas devagar. O subalterno Lindenberg, que compreendia isto, embora o desaprovasse, encontrava-se à janela e parecia olhar para fora com atenção.

 

Era um homem de disciplina, mas não um carrasco. Tivera, como se esperava dele, um dia rude, mas não maltratara moralmente os seus homens. Espremera-os como limões, mas não os arrastara pela lama. Obrigara-os por mais de uma vez a prestar todo o serviço possível, de infantaria, nas peças, desportos, tudo isto seguido de corridas, mas era uma fadiga razoável, um esforço do corpo, o que, na sua opinião, nada tinha que ver com o desejo sistemático de «liquidar» homens.

 

Agora, enquanto, já perto da noite, se limpavam as armas, estava firmemente persuadido de que fizera o seu dever e de ter levado, com energia, a fazê-lo os homens que lhe estavam confiados. Um sentimento de orgulho lhe enchia o coração: a sua tarefa diária fora cumprida de maneira exemplar. Deplorava os excessos do primeiro-sargento Platzek, considerando sobretudo que neles podia ver uma expressão de desconfiança em relação a si mesmo. O sargento-ajudante Schulz entrou na camarata da esquadra de Lindenberg um pouco antes do fim da limpeza das armas. Irradiava contentamento, o que a todos inquietou.

 

Quem é que já fez a prova de natação livre? perguntou num tom jovial.

 

De todos os soldados presentes, responderam sete, entre os quais Vierbein. Asch, que regressava da sala de leitura, onde recebera a visita da irmã, meteu-se num canto, contrariado. Adivinhava já o que parecia preparar-se e maldizia, interiormente, esta visita, que o obrigara a sair do depósito de fardamento, onde estava mais ou menos em segurança.

 

Apenas   sete   homens?!exclamou   o   brigadas, sempre de bom humor. Sabia que a natação tinha sido gravemente descurada na  sua bateria e nisto estava  a armadilha onde podia apanhar todos os que quisesse.  E os outros? Você, Asch!

 

Eu? Eu fi-la o ano passado.

 

Isso não conta, claro  disse o brigadas, rindo. Quem me garante que ainda sabe nadar? É evidente que esta prova deve ser repetida todos os anos. Um bom soldado deve saber nadar. Aqui está. Não é assim, sargento Lindenberg? Sabe nadar bem?

 

Eu sou salvador, meu ajudante  respondeu Lindenberg secamente.

 

Aí tem. Não posso deixar de felicitar a esquadra. Há algum dos seus homens que não saiba nadar?

 

Não,  meu  ajudante  declarou  Lindenberg  com segurança.

 

Fizera aproveitar a sério as poucas horas de exercício de natação de que se pudera dispor.

 

Muito bem! Muito bem!  exclamou Schulz, pressuroso.  Nesse caso, não esperemos mais. A sua esquadra vai fazer hoje prova de natação livre.

 

Hoje?  perguntou o subalterno, sinceramente espantado.

 

Dar-se-á o caso que seja surdo?  perguntou Schulz, de mau modo.  Pouco passa das seis horas;  só por volta das oito e meia fará escuro. Até lá podem fazer a prova três vezes cada um.

 

Lindenberg não estava de acordo. E a diferença entre a sua maneira de ver e a do sargento-ajudante era, desta vez, tão grande que se atreveu a fazer uma objecção:

 

Seria bom que eles se treinassem antes, meu ajudante.

 

Os homens da esquadra, com excepção de Vierbein, que olhava resignado na sua frente, seguiam com uma certa emoção este diálogo, que não era para eles habitual. Asch chegou a avançar até à primeira fila para ver melhor.

 

Quer  fazer  treinos?  perguntou   o   sargento-ajudante, cuja voz não traía a menor irritação.  Pois pode fazê-los. Acho mesmo excelente a sua proposta. Organize antes de mais nada meia hora de movimentos em seco. Digamos: das seis e meia às sete horas. Depois mandará fazer uma pequena corrida até à piscina militar. Às sete e um quarto começará a prova de natação livre. O primeiro-sargento Platzek vigiará. Eu também lá estarei. compreendido?

 

Sim, meu ajudante  respondeu Lindenberg, a custo.

 

Schulz afastou-se, radiante, não sem antes ter examinado severamente e de maneira significativa o artilheiro Vierbein. Em seguida foi ter com Platzek para discutir os pormenores mais eficazes.

 

Os homens da esquadra de Lindenberg remoíam sombrios pensamentos. Alguns esperavam com curiosidade uma declaração do seu subalterno. Mas este conservou-se em silêncio. Para ele uma ordem era uma ordem. Não tinha que criticar. Era incapaz de comentar os actos dos superiores diante dos seus subordinados.

 

Parem a limpeza  ordenou.  Preparem-se para os movimentos em seco. Tragam o equipamento de banho.

 

Os homens obedeceram de má vontade. Vierbein, esgotado, fechou os olhos, respirando profundamente. Os seus movimentos eram quase automáticos. Asch murmurou:

 

Que borrada!

 

Disse alguma coisa, Asch?  perguntou Lindenberg em voz severa.

 

Sim, meu sargento. Disse: esperemos que a água não esteja demasiado fria.

 

Lindenberg aceitou esta explicação. Olhava Vierbein com inquietação. Não lhe agradava o aspecto dele. Não mostrava bastante resistência.

 

Não  fraquejes,   Vierbein  disse.  Encoraja-te   e suportarás ainda esta.

 

O artilheiro já nem sentia os ossos. Parecia-lhe ter diante dos olhos um’ véu e caminhava como se pisasse sabão. Os seus movimentos eram automáticos e sem vigor. Mudou de roupa, preparou o cavalete e, extenuado, encostou-se ao armário.

 

Asch viu-o. Foi até ele, apertou-lhe os braços e disse-lhe:

 

Cerra os dentes e conta comigo.  Vierbein acenou que sim, maquinalmente. Quase já não era capaz de pensar com clareza. O dia fora demasiado violento. O Pele de Vaca ocupara-se quase exclusivamente dele. A reprimenda do capitão enchera-o de inquietação; presentemente tinha de recear não só as repreensões mas também a prisão. Durante a pausa do meio-dia tivera de trabalhar na cozinha por ordem do sargento-ajudante. Depois haviam-no obrigado a fazer, interminavelmente, exercícios de elevação na trave, saltos de plinto, subida de corda, ginástica com e sem obstáculos, enfim, lutar e correr. Estava esgotado. Quando encontrava um momento para reflectir pensava em Ingrid, por quem se julgava incompreendido.

 

Lindenberg tocou o apito. Os soldados agarraram os cavaletes e foram alinhar-se no pátio. Vierbein deixou-se arrastar. Tropeçava nos degraus e teria caído se Asch o não tivesse segurado.

 

O sargento Platzek esperava-os já para os movimentos em seco. Tinha um riso sensual. Fê-los desdobrar em linha de atiradores, como para os exercícios de flexibilidade, deitou um olhar orgulhoso para as janelas guarnecidas de soldados  e começou.

 

Os homens instalaram os cavaletes e lançaram-se-lhes em cima ao toque do apito. Sob o comando monótono de «um dois, um dois», faziam os movimentos de natação.

 

Isto durou alguns minutos com regularidade. Não era fácil conservar o equilíbrio; era mais difícil mover com precisão os braços e as pernas. Os músculos de Vierbein doíam-lhe.

 

Esse Vierbein  berrava Platzek, resplandecente de alegria  mexe-se como um caranguejo bêbado. Por causa dele vai ser preciso continuar assim durante horas.

 

Johannes Vierbein empregava para se mover as suas últimas forças. Tentava fazer os movimentos com precisão, mas os braços e as pernas oscilavam desesperadamente em volta do cavalete. Por baixo dele via o cimento cinzento do chão: grosseiro, deslavado, gasto. Parecia-lhe que o pavimento subia em vagas contra ele.

 

Levanta a cabeça,  Vierbein!  gritou-lhe Platzek.

 

Quererás tu fazer uma soneca?

 

Vierbein esforçou-se por erguer a cabeça. Os músculos da nuca forçavam-na para baixo. Esticou o pescoço. Deixou de olhar o pavimento. Viu a erva rala, o muro baixo, a alta paliçada feita de barras de ferro e, por detrás, a rua que conduzia à cidade. Viu soldados que passavam nela. Viu o alferes Wedelmann com uma rapariga e esbugalhou os olhos. Uma dor penetrante, ardente, se apossou dele e foi como se os últimos véus que lhe flutuavam diante dos olhos se dissipassem: a rapariga que caminhava ao lado do alferes era Ingrid. Como se tivesse sido fulminado, deixou-se tombar.

 

Não dei ordem de mergulhar!  bramiu Platzek.

 

Vê se te levantas, molengão!

 

Vierbein conseguiu ainda vencer este momento difícil. Os seus membros moviam-se como peças de uma máquina mal lubrificada, trabalhando, por isso, lentamente. Asch, que fazia, ao fundo, vagos movimentos, estava pronto a correr em seu auxílio, mas não foi necessário.

 

Às sete horas exactas reuniram os cavaletes. Lindenberg pôs-se à frente da esquadra e dirigiu-se à piscina em passo moderado. O sargento Platzek seguia-os de bicicleta, assobiando.

 

O sargento-ajudante precedera-os e esperava-os já. Impacientou-se ao ver que Lindenberg demorava a ordem para se iniciar a prova de natação livre. O segundo-sargento, que não perdia de vista Vierbein, que se mostrava aniquilado, esgotado, arrastando-se mais que maquinalmente, fez questão de que os homens da esquadra pudessem repousar, friccionar o corpo, tomar duche. E só depois se declarou pronto a fazer começar o exercício.

 

O brigadas olhou o relógio.

 

Vamos  disse.  Vinte minutos de natação correcta,  começando por um mergulho do trampolim de um metro e acabando por um mergulho à vontade do trampolim de três metros. À ordem de «Saltar!»

 

Os soldados mergulharam uns atrás dos outros. Tiveram de nadar em fila indiana, em linha e em círculo. De pé sobre a segunda ponte estava Schulz e perto dele Lindenberg. Ambos observavam atentamente, embora por razões diferentes, o mesmo homem: Vierbein.

 

Depois de os soldados terem nadado dez minutos, Schulz olhou o relógio e gritou em voz jovial.

 

Já passaram cinco minutos!

 

Quase todos tinham dificuldade em nadar. Haviam tido um dia fatigante e isso não deixara de ter consequências. Um deles fez menção de desistir, mas Schulz largou a rir ruidosamente e gritou.

 

Nadarás até ires ao fundo! Lá iremos pescar-te!

 

Asch deu duas voltas lentamente e de maneira satisfatória. Era bom nadador, mas não admitia que fosse necessário fatigar-se. Além disso, queria velar pelo companheiro. Observava com atenção o sargento-ajudante e o subalterno e, no momento propício, deixou o círculo, nadou por baixo da balaustrada onde se encontravam os dois superiores, agarrou-se a uma das vigas e pôs-se a descansar.

 

Vierbein avançava com dificuldade. Já não via distintamente. Nos ouvidos rugia-lhe uma tempestade, diante dos seus olhos vibrava um nevoeiro de água avermelhada. Um peso formidável o arrastava docemente para o fundo.

 

Parecia-lhe que estava a decompor-se e a dissolver-se. Depois afundou-se como um prego.

 

Lindenberg, que vira aproximar-se este .momento, subiu para a balaustrada da ponte. Schulz quis retê-lo:

 

O tipo está a representar. Já torna a subir.

 

Mas o subalterno não o ouviu, não o queria ouvir. Saltou para a água e rapidamente nadou para Vierbein. Asch deixara também a sua viga. Ambos arrastaram Vierbein para a borda.

 

Ora   aí  está  disse Schulz,  furioso.  Não  tem força, não tem energia. É uma pêra mole, um mandrião. Quando muito, bom para as patuscadas e para estender as suas mãos sujas para as mulheres dos outros. Mas nós conseguiremos fazer-lhe passar o desejo.

 

Em casa dos Freitag comia-se à hora certa, mas Herbert Asch, o convidado, não apareceu. O velho Freitag olhou por cima do jornal que inutilmente se esforçara por ler e olhou o relógio de parede. Depois simulou ler outra vez.

 

Bem vês  exclamou Elisabeth, agressiva  que espécie de homem é! Não cumpre as promessas que faz.

 

Talvez não seja por culpa dele  disse o contramestre.  Um soldado nem sequer é senhor do seu tempo livre. Isto tornou-se regra.

 

A Sr.a Freitag estava junto do fogão, inquieta.

 

O jantar está pronto  declarou.  Se demorarmos mais tempo, deixará de ter gosto.

 

Nesse   caso   podemos   começar   tranquilamente disse o pai.

 

Sim, mas se ele não pôde vir mais cedo?  perguntou Elisabeth, um pouco nervosa.

 

Freitag sorriu. Achava absolutamente normal esta agitação, que ela só com dificuldade dissimulava. Primeiro atacara Herbert, depois defendia-o: era incoerente, mas perfeitamente compreensível. Freitag lembrava-se com muita precisão de que era este um dos sintomas do amor. Sentia-se feliz porque assim fosse. A indiferença teria sido para ele qualquer coisa de terrível.

 

Esperamos mais um quarto de hora?  propôs Elisabeth, hesitando.

 

Não, vamos começar  decidiu o pai.  Creio que ele não iria supor que adaptámos a nossa vida privada aos costumes da caserna. Ou tu não poderás comer sem ele, Elisabeth?

 

Não devemos esperar nem mais um minuto  respondeu ela. ”

 

O jantar foi servido. Tinha um cheiro forte e agradável. Freitag pediu os pratos e encheu-os com solenidade.

 

Queremos trabalhar com vontade  declarou ele, mas também queremos comer o suficiente. Queremos um sono tranquilo e que o futuro não traga preocupações demasiado graves.

 

Começaram a comer. Engoliam, quase sem falar, o puré de ervilhas espesso e suculento. O apetite era sólido. Apenas Elisabeth comia pouco e olhava a cadeira vazia ao lado da mesa.

 

Mas antes que Freitag começasse a encher os pratos pela segunda vez, Asch chegou. Vinha um tanto esbaforido. Freitag facilitou-lhe a entrada. Indicou-lhe o lugar vazio e tratou-o como se ele ali estivesse já há muito tempo e tivesse sido muitas vezes seu convidado.

 

A Sr.ª Freitag notou que Asch não era antipático, talvez ruidoso em demasia, pouco cerimonioso, mas não desagradável. Elisabeth evitava olhá-lo. O pai Freitag perguntou:

 

O serviço durou assim tanto tempo?

 

Tive ainda de fazer a toda a pressa a prova de natação livre.

 

Devia ser urgente...  notou Freitag, acenando a cabeça com ar compreensivo.

 

Exactamente  confirmou Herbert.

 

A comida pareceu-lhe excelente e assim o declarou.

 

Particularizou mesmo em quê e porquê lhe agradava, e a Sr.ª Freitag achou que ele percebia bastante de cozinha, o que valia a pena ser registado.

 

Elisabeth mantinha-se reservada. Não se dirigiu a Herbert, que, por sua vez, procedeu do mesmo modo. Não sabiam se convinha tutearem-se em frente dos pais; pensavam igualmente em que não podiam dizer um ao outro o que desejariam. Preferiram, portanto, conservar-se em silêncio.

 

Depois de Herbert ter engolido, com grande satisfação sua e prazer da Sr.ª Freitag, a terceira pratada, o contramestre convidou-o a dar uma volta pelo jardim para fumarem um cigarro. Enquanto as mulheres na cozinha lavavam a louça, passearam ao longo dos canteiros.

 

No seu tempo era realmente como hoje?  perguntou Asch.  Suponho que fez o serviço militar...

 

Antes da guerra mundial  disse o velho.  Mas a que se refere a sua pergunta? Às humilhações diárias destinadas, como se dizia, a favorecer a disciplina? Meu pobre amigo, tenho muitas vezes a impressão de que vocês vivem num sanatório!

 

Era ainda pior?

 

Era muito mais consequente. Queria dizer: mais natural. Era qualquer coisa como um jogo brutal de homens. Havia muitos que se entregavam a ele com prazer, porque os seus corpos eram sólidos e a cultura não os polira. Só um  número  relativamente pequeno deles  se revoltava. Hoje é muito mais complicado. O que então ainda podia ser considerado uma espécie de prazer rude e másculo é agora uma violação de almas. Os homens tornaram-se mais sensíveis, razão por que esses «desbastadores» têm muito mais trabalho. Têm de impor-se com mais brutalidade e é por isso que os contrários se chocam violentamente.

 

E, contudo, ninguém compreendeu  a  brutalidade dessa «desbastagem»?!

 

Não é tão fácil como isso. Pode-se dizer que antigamente o adestramento era, até certo ponto, inteligente, ou, pelo menos, útil. Eu próprio fui testemunha de um caso desses em 1914. No decorrer de um contra-ataque, um grupo de soldados em que eu me encontrava foi acometido de pânico. Os primeiros atiraram as espingardas para a lama e iam fugir quando um cão de quartel se ergueu, descompôs os fugitivos e obrigou-os a fazer exercícios em pleno campo de batalha. Os soldados acalmaram, o que quer dizer que enfrentaram o inimigo.

 

E depois  perguntou Asch.  Que prova isso? No tempo de Frederico, o Grande, as tropas marchavam para a batalha como se estivessem num campo de manobras. Mas o tempo não pára.

 

Os pequenos chefes de 1914 são os grandes chefes de hoje. O cão de quartel de então é hoje, provavelmente, coronel. E todos esses tipos querem fazer a próxima guerra com a experiência que tiraram da última. As suas ideias não se inclinam para o futuro, mas para o passado. Não se adaptam; contentam-se em aplicar, tanto quanto é possível, os métodos antigos. Se virmos as coisas de maneira exacta, todos esses tipos faliram, mas encontram sempre imbecis para, uma vez mais, lhe concederem crédito ilimitado.

 

E nós é que pagamos a conta  disse Herbert num tom amargo.

 

Pelo adestramento  acrescentou Freitag, prudentemente  chega-se a obter bastante da maneira mais cómoda. Sempre assim foi. O adestramento é o paraíso dos medíocres. As naturezas superiores e mais complicadas são niveladas: aqui está todo o segredo.

 

E nada se pode fazer contra isso?

 

Se algum revolucionário se tornasse general  respondeu Freitag, que achava o assunto divertido , talvez fosse possível. Mas não consigo imaginar o resultado que poderiater. Antes da guerra de 1914 aconteceu entre nós que um soldado convidou um sargento a lamber-lhe o traseiro. Levaram-no a conselho de guerra. Mas o soldado declarou que nunca dissera semelhante coisa e o tribunal acreditou nele. Não havia testemunhas. O soldado era bem considerado e ninguém podia imaginar que um indivíduo normal pudesse, não só pensar tal coisa, mas, menos ainda, dizê-la.

 

Suponho que esse soldado se chamava Freitag...

 

Entremos agora  disse o contramestre,  sorrindo. Começa a arrefecer. E as mulheres esperam-nos.

 

Sentaram-se de novo em volta da grande mesa.

 

Vamos beber uma garrafa de xarope de groselha. Não é nada de extraordinário, mas fomos nós que o fizemos com as groselhas do nosso quintal.

 

Provaram-no e Herbert achou que não seria mau se o xarope tivesse fermentado uns quinze dias menos.

 

Acaba de tirar-me o que ainda me restava de autoridade  disse Freitag, piscando o olho.  Apoiou minha mulher, que, efectivamente, queria engarrafar o xarope quinze dias mais cedo, ao contrário do que eu dizia.

 

Era sua esposa quem tinha razão  afirmou Herbert.

 

A Sr.a Freitag resplandecia de simpatia. O soldado não era desagradável. Era até encantador. Um rapaz de boas maneiras, não pretensioso, mas também não cerimonioso: portava-se como se estivesse em sua própria casa. Isto agradava-lhe. Nem todos os que usavam uniforme eram insolentes, ruidosos, petulantes.

 

Foi com prazer que beberam a garrafa de xarope de groselha e abriram outra. Os dois jovens continuavam a esforçar-se por se ignorarem um ao outro. Um pouco antes das dez e meia Asch despediu-se:

 

Tenho de ir.

 

Gostava de o acompanhar  declarou  Freitag, mas tenho de levantar-me cedo amanhã. Elisabeth o acompanhará de bom grado, tenho a certeza.

 

Se fazes questão  disse ela, parecendo hesitar.

 

Oh! Eu não te obrigo  disse o pai, sorrindo-lhe. A Sr.ª Freitag ria amavelmente. Asch estava embaraçado. O que o tranquilizava era que Elisabeth estava ainda mais comprometida que ele. Despediu-se, recebeu autorização para voltar quando quisesse e prometeu que sim. Lentamente dirigia-se para a caserna. Elisabeth caminhava ao lado, preocupada em manter as distâncias.

 

Elisabeth  perguntou Herbert, parando, em que é que te ofendi?

 

Tu não me ofendeste. Não te preocupaste comigo e eu fiz o mesmo.

 

Não tive tempo. Acredita que não tive tempo.

 

Nunca estive a mais que poucas centenas de metros de ti. Podias ter ido ver-me, se o quisesses.

 

Ontem foi-me impossível apanhar-te. Tentei várias vezes falar-te. Foi só à tarde que soube que não tinhas ido trabalhar à caserna.

 

Estava em casa, que não é no fim do mundo. Bastam dez minutos para ir da caserna a nossa casa.

 

Não podia ir a tua casa... depois do que se passou...

 

Que é que se passou?  perguntou ela, com frieza. E para impedi-lo de responder apressou-se a acrescentar: Mas hoje estive todo o dia na caserna e nem sequer tentaste ver-me.

 

Hoje estive ocupado o tempo todo. Tive de me deixar «desbastar», ou, melhor, só com dificuldade escapei. Não tive um momento para repousar. Dou-te a minha palavra.

 

Foi por causa de mim?  perguntou ela, chegando-se para Herbert, com a voz traindo uma certa inquietação.  Tiveste aborrecimentos por causa da noite de sábado para domingo?... Quero dizer: foi por causa de teres abandonado o uniforme?

 

Isso até foi cómico  respondeu Asch, não podendo impedir-se de rir e notando com surpresa que ela fazia o mesmo.

 

Ambos nesta altura começaram a rir às gargalhadas. Ele segurou-a pelo braço. Elisabeth consentiu e Herbert sentia através da fazenda a sua carne quente e firme.

 

Mesmo assim, foi um mau bocado, não achas?

 

Ela acenou que sim, com simplicidade.    Havia demasiadas coisas entre eles para que Elisabeth se mantivesse aborrecida durante muito tempo. Herbert não era muito terno, muito menos do que sonhara, mas amava-o.

 

Diz-me  acrescentou ele, teu pai notou alguma coisa? Quero dizer: sabe o que se passou?

 

Inquieta-te isso?  respondeu ela, afastando-se, desconfiada. É a única coisa que te interessa? Nesse caso posso tranquilizar-te. Podes continuar a viver como se nada tivesse acontecido. Meu pai nada sabe e eu já esqueci tudo.

 

Compreendeste-me mal  disse Herbert, à pressa. Olhou o relógio. Só tinha o tempo estritamente necessário para voltar à caserna.

 

Podes ir descansado  disse ela num tom aborrecido. Nem sequer te compreendi mal. Não se passou absolutamente nada. E, se isso te pode tranquilizar, nunca te vi. E se alguém me perguntasse se conheço o homem que se deitou comigo responderia que não. Podes ter a certeza.

 

Mas, vejamos, Elisabeth... Eu... Amanhã te explicarei. Agora tenho de ir.

 

Vai para a caserna, vai  disse ela,   é o teu lugar.

 

Meu Deus! Como tu podes ser parva!  exclamou Asch indignado.

 

E, virando-lhe as costas, largou a correr.

 

O dia começava. O artilheiro Vierbein estava estendido na cama como morto. O toque de apito do subalterno de serviço fê-lo endireitar-se. Os membros eram como chumbo e parecia-lhe que a cabeça estava rodeada de círculos, que o ar em sua volta refervia em vagas espessas e fétidas.

 

Os soldados saíam lentamente das camas, o que aos seus olhos representava um considerável progresso. com efeito, alguns meses antes, quando ainda não eram mais que galuchos, saltavam como autómatos. Hoje eram veteranos e, por consequência, faziam as coisas com tempo, tanto mais que era o segundo-sargento Schwitzke, o Lagarto, quem estava de serviço. Schwitzke não torcia o pescoço a ninguém, a não ser que para isso tivesse um motivo especial ou uma ordem expressa.

 

Entre dois bocejos iniciavam-se as conversas edificantes da manhã. Dois homens discutiam para determinar até que ponto se” podia abrir as portas dos armários sem incomodar os mais. Um outro abria as janelas de par em par, fazendo observações verdadeiramente ofensivas, aprovadas pelos que se alojavam nos cantos e desaprovadas pelos que estavam em frente das janelas.

 

O segundo-cabo Asch e o primeiro-cabo Kowalski faziam um pequeno sono suplementar, o que para eles quase não tinha perigo, pois as suas camas estavam escondidas atrás dos armários e não podiam ser vistas logo.

 

Vierbein estava ainda. sentado na cama, moído. Não tinha forças para se mexer. O ruído da camarata era para ele como um fumo espesso de tabaco, que lhe provocava violentas dores de cabeça. Parecia cambalear.

 

O sargento Schwitzke abriu brutalmente a porta para verificar, como lhe competia, se todos estavam levantados. Ia fechá-la quando notou Vierbein sentado, como um ídolo, na cama.

 

Sempre este Vierbein!  exclamou num tom triunfante.

 

O sargento Schwitzke, o Lagarto, era um perfeito cretino, posto por Deus na Wehrmacht para aí Viver sem se fatigar. Mas sabia de que lado vinha o vento; tinha um sexto sentido que lhe permitia adivinhar aquilo a que os seus superiores directos mais importância davam. Embora nunca fizesse grande coisa, tudo quanto fazia era calculado e perfeitamente adequado às circunstâncias. Ninguém melhor que ele obtinha o máximo de benevolência dos superiores com o mínimo de rendimento. Sabia perfeitamente que Vierbein era o ponto doloroso, o calcanhar de Aquiles, se assim se podia dizer, do sargento-ajudante.

 

Vierbein saltou da cama e, em camisa, tentou pôr-se em sentido. Cambaleou de novo e foi obrigado a sentar-se. Tinha um aspecto extenuado. Os olhos estavam baços.

 

Esta lesma nem mesmo é capaz de abrir os olhos

 

declarou Schwitzke com satisfação.  Deve ter passado outra vez a noite a sonhar amor, hem?.’  Olhou em redor, esperando ouvir risos aprovadores. Ninguém se ouviu.

 

Vou sacudir-te as pulgas, meu dorminhoco. Apresentas-te daqui a pouco para a faxina da limpeza.

 

Sim,   meu   sargento  respondeu   Vierbein,   docilmente.

 

Schwtizke mirou-o com um ar meio a sério, meio a brincar, gritou-lhe: Simulador, e deixou a camarata, satisfeito. Decidiu pôr Vierbein num trabalho em que seria forçosamente visto pelo sargento-ajudante, ou, pelo menos, pelo sargento Platzek, o que não deixaria de lhes agradar.

 

Vierbein enfiou as calças e precipitou-se para o lavatório. Mergulhou a cabeça na água fria, o que o refrescou maravilhosamente, sem contudo suprimir a fadiga.

 

Entretanto Kowalski e Asch tinham-se levantado. O ar jovial do subalterno acordara-os definitivamente. Ao olharem-se piscaram o olho.

 

O caso  disse Asch  é que é Vierbein quem está de serviço à camarata.

 

Percebo  respondeu Kowalski.  vou designar outro. É o que há de mais natural.

 

Vierbein mal teve tempo de se vestir para a faxina da limpeza. Ao toque do apito, agarrou a vassoura, a pá e o balde e correu para a praça de armas, ao mesmo tempo que abotoava a sua blusa de tecido grosseiro.

 

Schwitzke procedeu como se Vierbein chegasse atrasado, mas era demasiado preguiçoso para o descompor seriamente. Contentou-se em dizer:

 

Retretes, corredor de baixo.

 

Era um local situado perto do seu gabinete, e que portanto, podia vigiar sem custo. Além disso, podia esperar-se que o sargento-ajudante, que gostava de mostrar-se de manhã, por ali passasse. Bem entendido que o brigadas possuía privada em sua casa, mas sabia-se que ele tinha o hábito de aproveitar todas as ocasiões para aparecer em serviço, o que lhe permitia, neste caso, juntar o útil ao agradável.

 

Mas Schwitzke, fosse por falta de energia, fosse por indulgência, não pensou em Vierbein. Se o brigadas tivesse aparecido, Schwitzke não deixaria de representar a comédia, mas na sua ausência fechou os olhos e deixou o pobre diabo executar a tarefa sem mais aborrecimentos desta vez.

 

Não obstante, Vierbein, que esperava tudo, trabalhara exemplarmente. De gatas, ofegante, manejando a escova e o esfregão, fizera correr torrentes de água. Uma vez o trabalho acabado, como Schwitzke não aparecia, dirigiu-se à pressa à camarata.

 

A esquadra tomava a refeição da manhã e engolia o seu café de cevada morno. Contavam-se histórias apimentadas.

 

O melhor  disse Asch a Kowalski  é Vierbein dar parte de doente.

 

Boa ideia. Se o não fizer, arrancam-lhe a pele das costas. Mas que poderá ele ter?

 

Arranja-se. A verdade é que se foi abaixo duas vezes ontem.

 

Hum! Podia-se chamar a isso, vulgarmente, vertigens ou acessos de fraqueza. Não dará bom efeito.

 

Digamos, então, crises cardíacas. É quase a verdade. Além disso, é difícil de provar e necessita de exames complicados. Entretanto, talvez eles se acalmem.

 

De acordo.  Kowalski dirigiu-se então a Vierbein, que ia começar a comer.  Escuta-me, rapazinho  disse. Tens de dar parte de doente. Acabamos de decidi-lo.

 

Mas eu não estou doente.

 

Se recusas, isso já prova que o estás.  Kowalski não admitia contradição quando supunha ter razão.  Raspa-te já e vai dar parte de doente. Crises cardíacas. Fazes uma ideia do que se vai passar hoje ainda? Exercício de tiro. Não é fatigante. Meu velho, alguns haverá que terão tempo para se ocuparem de ti. E para ir ao campo de tiro e voltar tu é que serás o burro de carga. Aposto que seremos nós, a esquadra de Lindenberg, quem carregará com o equipamento todo, e, se fores, serás tu quem carregará a maior parte. É tão certo como se já tivesse acontecido. Vamos, raspa-te.

 

Vierbein foi, portanto, ter com Schwitzke para dar parte de doente. O sargento, que dormitava, olhou-o:

 

Que estás a pensar, meu pedaço de torto? Não sabes que a parte de doente deve ser dada de manhã, quando o subalterno de serviço passa pela segunda vez?

 

Sim, meu sargento. Mas...

 

Ah, então sabes, imundo? Olhem-me para isto. Tu sabes?... Muito bem. Que foi que te passou pela cabeça para caíres aqui como um pacote de trampa? Vamos, idiota! Querias comer-me as papas na cabeça, hem? Tens de procurar noutro lado um imbecil.

 

Vierbein tentou abrir a boca, mas Schwitzke não o deixou. Agarrou no caderno das participações.

 

Olha para aqui, imbecil! Que é que está escrito aqui? «Não há doentes.» É ou não claro? Não deste parte de doente na altura devida. Tens de esperar até amanhã, meu triplo palerma.

 

O artilheiro ia retirar-se, mas Schwitzke, sinceramente indignado pela circunstância de alguém ter ousado perturbar-lhe brutalmente a sesta matinal e, ainda por cima, ter tido a petulância de esperar que ele modificasse a participação, recobrara toda a sua actividade.

 

Limpaste bem as latrinas de baixo?  perguntou. Quero ver isso.

 

Acompanhado de Vierbein, dirigiu-se aos lavabos, examinou-os em pormenor e achou que o trabalho não satisfazia em nada. Ordenou uma nova limpeza e decidiu mesmo assistir a ela. Uma excelente ideia lhe ocorrera. Contaria ao brigadas a história de um artilheiro que, sem dúvida para madracear, quisera dar parte de doente, mas que não o conseguira, e que, ao contrário, fora por ele obrigado a andar de gatas nas retretes. O brigadas torcer-se-ia de riso ouvindo isto.

 

Esta ideia de uma história matinal alegrou de tal maneira o Lagarto que este deu liberdade a Vierbein um pouco mais cedo do que fora sua intenção. Ardia em pressa de ir contar a sua história de doença e latrinas. Vierbein fugiu como uma flecha.

 

De caminho olhou o relógio e verificou que já não tinha tempo de almoçar. De resto, não sentia fome. Foi ter com Kowalski e Asch e comunicou-lhes o que se passara. Eles olharam um para o outro e este olhar dizia muitas coisas. Depois Vierbein preparou-se para o tiro. Enquanto o fazia aproximou-se de Herbert.

 

Gostaria de ter falado contigo ontem à noite.

 

Não pude... Estive quase a irritar-me.

 

E, pretextando um trabalho importante, escondeu-se com o armário. Não podia olhar o rosto pálido, extenuado, do amigo; em certo sentido sentia-se responsável para com ele.

 

Vi a tua irmã ontem à tarde  disse Vierbein numa voz fraca e sem vibração, como que dolorosa.

 

Ah!  exclamou Herbert, interrompendo o seu trabalho, mas sem se endireitar.  Então viste-a?

 

Sim. com o alferes Wedelmann.

 

Asch endireitou-se lentamente. «Pobre rapaz», pensava, «infeliz, inquieto, nada lhe será, então, poupado!»  Viste-a!  E acrescentou:  Não te apoquentes, Johannes. As mulheres são assim mesmo. E Ingrid está longe de ser uma excepção.

 

Está bem  disse Vierbein.

 

Asch não achava que estivesse bem. Não queria poupar o seu camarada, queria endurecê-lo. Não o queria ver asfixiar-se no lamaçal de um banal sentimentalismo. Tão brutalmente quanto podia acrescentou:

 

Não merece que tu deites uma lágrima por ela. É uma tipa fria, vaidosa, egoísta. Uma flor de estufa da Grande Alemanha. Quanto mais alta é a patente maior é o seu amor. Quando fores general desmaiará diante de ti.

 

Vierbein, apesar dos seus sinceros esforços, não conseguiu encontrar uma resposta. Asch virou-lhe as costas. Nesse momento chegou o correio, enquanto o sargento Schwitzke, no corredor, apitava e gritava jovialmente:

 

Preparar para sair!

 

Vierbein agarrou no cinturão e na cartucheira. Entregaram-lhe uma carta. Era da mãe. Fechou o armário, rasgou o sobrescrito e leu as primeiras linhas. Dizia: «Meu querido e bom pequeno, desejaria poupar-te isto, mas não posso suportar esta vida mais tempo. Estou decidida a separar-me de teu pai...»

 

Lá fora a voz do subalterno de serviço berrava:

 

Sair!

 

Vierbein dobrou a carta e meteu-a no bolso. Estava branco como um lençol. As mãos tremiam-lhe. Deixou-se arrastar pelos outros.

 

O sol dava nas travessas da carreira de tiro. O ar parecia vidro fundido.

 

As operações de tiro decorriam com regularidade. A bateria fora dividida em três grupos, cada um dos quais ocupava uma carreira. Todos os que já haviam feito fogo estavam deitados na relva atrás do armazém dos acessórios. Um dia como este era, como todos sabiam, um dia de repouso, salvo para aqueles que não tinham merecido descansar, os que serviam de indicadores, arrastavam os alvos, transportavam as munições, varriam as carreiras, limpavam as espingardas dos subalternos e faziam manejo de armas, quando tinham atirado particularmente mal.

 

Quase ninguém, aliás, se preocupava com os outros. O principal era que as operações se desenrolassem sem paragens. Não se ligava grande importância ao que este ou aquele fizessem antes ou depois, a não ser que precisassem dele cedo. Não era o caso de Vierbein: tinham precisado dele antes e depois do tiro, e o brigadas fizera o que convinha para que o seu privilegiado não tivesse tempo de se aborrecer.

 

No campo de tiro, Schulz estava no seu elemento, pois era um atirador notável. No campo de manobras pouco o viam, ou, melhor, mal o viam; na piscina, mais frequentemente; no tiro, sempre. E como nesse dia se devia disputar o campeonato da bateria, de que ele fazia ponto de honra ganhar, fazia-se notar por uma alegria especial. Estava em toda a parte e respirava a certeza do triunfo; isto ocupava-o de- tal maneira que se passavam quartos de hora inteiros durante os quais esquecia completamente Vierbein e o deixava em qualquer parte pouco menos que desocupado.

 

Antes de se decidirem a desaparecer para dormir, o primeiro-cabo Kowalski e o segundo-cabo Asch tinham escolhido postos pouco fatigantes. Um deles escriturava o registo de tiro, o outro distribuía as munições. Era Platzek quem vigiava as carreiras e o tiro. Toda a gente se dava à boa vida porque o primeiro mandamento de todo o soldado no tiro é: repouso, repouso e mais repouso!

 

O carrasco Platzek, que, em virtude dos seus dez anos de serviço, estava sempre à altura das circunstâncias, fizera mesmo trazer por Vierbein um balde de água para acalmar os espíritos aquecidos. Quem hesitava devia mergulhar ali a cabeça, o que divertia consideràvelmente o sargento.

 

De cada vez avançavam cinco homens, mostravam ao cabo Asch a cartucheira vazia e recebiam cada um seis cartuchos. Depois, um após outro, passavam diante de Kowalski para lhe darem o nome, a fim de que o número de tiros disparados e os respectivos resultados pudessem ser inscritos no registo. Feito isto, cada atirador apresentava-se a Platzek e podia começar.

 

Tudo funcionava como uma máquina lubrificada. A tripla verificação adormecia automaticamente a atenção dos três verificadores: cada um descansava no outro, tanto mais que não se tratava de tiro obrigatório, mas de um concurso. Só podia haver um vencedor: só o grupo que estava à frente é que podia, portanto, suscitar interesse.

 

Isto ia tão longe que os subalternos, todos bons atiradores, que habitualmente determinavam entre si quem teria o primeiro lugar, não ligavam uma importância extrema aos êxitos dos seus subordinados com medo de criarem assim uma desagradável concorrência. Disparados os seis tiros, o soldado eclipsava-se e o seguinte substituía-o. O resultado só interessava se era demasiado bom. Mesmo os «falhados», em lugar de desencadearem a cólera, como de costume, só provocavam nesse dia um sorriso de desprezo.

 

O sargento Platzek bocejava de tal modo que desarticulava o maxilar. Pouco se interessava pelo que atrás dele se fazia. Quando necessário dirigia ao atirador um gracejo jovial e sorria com ar protector quando conseguia impedi-lo de apontar bem.

 

No grupo que ia fazer fogo achava-se Vierbein. Asch examinou-o com atenção, mas o outro evitou-lhe o olhar. Tinha um ar desesperado. Depois de lhe ter entregue os seis cartuchos, Asch foi trocar algumas palavras com Kowalski.

 

Os tiros ouviam-se com regularidade. Ao fundo, o sargento-ajudante berrava.

 

Pouco depois Asch voltou-se para dirigir a Vierbein duas ou três palavras de encorajamento. Mas ele já não estava ali; afastara-se sem que ninguém o visse.

 

Asch apenas teve necessidade de alguns segundos para adivinhar o que isto significava. Kowalski, notando a atitude do amigo, precisou de um pouco mais de tempo, compreendeu também e disse em voz baixa:

 

Isso pode dar um belo sarilho.

 

Asch fez um gesto de concordância e dirigiu-se a Platzek:

 

Dá-me licença que me afaste por um momento?

 

Se quiser. Mas não se demore muito tempo. O primeiro-cabo Kowalski vai substituí-lo.

 

Asch correu para a entrada da carreira e Platzek, de bom humor, gritou-lhe:

 

Vai apertado, hem?

 

Mas Herbert não o ouviu. Procurava o amigo.

 

Abrindo caminho por entre os soldados que esperavam, esteve prestes a derrubar o alferes Wedelmann, que, reconhecendo-o, se contentou em sorrir amavelmente. Asch prosseguiu a corrida e viu Vierbein, de pé entre as árvores, atrás de um paiol de munições.

 

Vierbein!  gritou.

 

O outro teve um sobressalto e voltou-se. Os seus olhos brilhavam, febris, no rosto pálido. Pareceu querer recuar.

 

O cabo dirigiu-se para ele, esforçando-se por recobrar o fôlego. Sentia o bater do coração. Avançava como um autómato.

 

Vierbein  disse,   finalmente, dá-me   essas   munições.

 

O artilheiro não respondeu. Um pouco curvado, continuava ali, sem forças. Tinha a espingarda suspensa da mão esquerda.

 

Dá-me essas munições, Vierbein.

 

Não!  respondeu este.

 

Asch parou. O rosto pálido do amigo estava molhado de suor e lágrimas. Os lábios não tinham cor. A boca estava aberta.

 

Asch ficou perturbado. Vagas de piedade o inundavam. Abafava e sentia-se prestes a soluçar. Mas disse:

 

Não tens vergonha! Miserável medroso!...

 

Não posso mais. Deixa-me.

 

Parto-te o focinho se não me dás imediatamente essas munições.

 

Não posso mais!  exclamou Vierbein, despedaçado pela dor.

 

»Num salto formidável, Asch lançou-se sobre ele e deitou-o por terra. A espingarda caiu com estrondo. com a mão esquerda Asch esmagava o soldado, que se torcia debaixo dele, e com a direita esmurrava-o.

 

Vierbein deu um grito. Asch batia com toda a força.

 

Vierbein gritou outra vez.

 

Asch cravou um joelho no peito ofegante do amigo, arrancou-lhe a cartucheira, tirou os seis cartuchos e meteu-os no bolso.

 

Porco!  gritava.  Querias meter uma bala na cabeça, hem? Mas isso não vai assim. Comigo, não.

 

Viu em baixo os olhos esbugalhados de Vierbein. Viu o sangue que corria pela pele lívida e levantou-se.

 

Respirava com violência e quando olhou em volta viu que estavam rodeados de soldados. Um deles, mais longe, gritou:

 

Ele vai matá-lo!

 

Asch sorria dolorosamente.

 

O sargento-ajudante aproximava-se em grandes passadas. Afastou os homens.

 

Que é que se passa?  gritou.

 

Um pequeno ajuste de contas  disse Asch.

 

Ajoelhou-se, inclinou-se para Vierbein e tentou levantá-lo. Penosamente, o outro pôs-se de pé, cambaleando, e depois endireitou-se.

 

Sempre ele!  exclamou o brigadas.

 

Arranjei-lhe  o focinho  disse Asch.  Era   uma questão particular. De homem para homem. Não é verdade, Vierbein?

 

Sim  respondeu este.

 

O brigadas acenou a cabeça com satisfação. Não era decerto homem para tolerar semelhantes coisas. Normalmente isto daria motivo para uma participação, ou, pelo menos, uma rabecada de primeira ordem, com relâmpagos e trovões, e por aí adiante. Mas neste caso particular tudo estava em ordem e de acordo com os seus sentimentos.

 

Desta vez, Asch  disse, deu no vinte.

 

com um prazer mal disfarçado, Schulz mirou Vierbein, espancado e sangrento. Deu a Herbert uma palmada amigável no braço. Estava tão contente que não notou que o cabo recuara.

 

Bravo, Asch  acrescentou num tom de satisfação. Foi bem feito.

 

E afastou-se.

 

Aquele a quem acabara de louvar assim seguiu-o durante muito tempo com o olhar.

 

Tu serás o segundo a passar por isto  disse em voz baixa.

 

Foi assim que começou a revolta do cabo Asch.

 

O concurso de tiro da 3.a bateria aproximava-se lentamente do fim. Parecia que o vencedor se achava designado. Uma surpresa era já pouco provável. O brigadas ia já recebendo, com uns modos de afectação masculina, as primeiras felicitações.

 

Ao meio-dia uma cozinha rolante distribuía cevadinha e toucinho. Vierbein teve de servir, lavar os utensílios, esfregar as marmitas. Fê-lo com bastante decisão; as suas feições não se mostravam já dolorosas, mas pensativas. Dir-se-ia que o conflito com Herbert lhe restituíra a razão que parecia tê-lo por vezes abandonado.

 

Arranjei-te bem  disse-lhe o amigo, olhando-o afectuosamente.

 

Bateste-me como se eu fosse um saco de areia.

 

Fiz o melhor que podia.

 

Quando Vierbein ria, o seu rosto maltratado e tumificado fazia-o sofrer. Teve um pobre sorriso. Não era capaz de se adaptar ao tom amigável de Herbert, mas não se achava em condições de lhe querer mal.

 

Não conseguias dominar-te. Batias-me sem parar, mesmo quando eu deixei de me defender. Parecias bêbado.

 

Sim  disse Asch,  com  uma fina ironia, nem toda a gente pode ser tão senhora de si, tão reflectida como tu.

 

Desculpa-me  articulou Vierbein, em voz rouca.

 

Adiante, adiante, não falemos mais nisso. Herbert queria afastar-se, mas Joahnnes seguiu-o. Agarrou-o timidamente por um braço e perguntou:

 

Crês verdadeiramente que eu... que eu queria suicidar-me?

 

Não creio coisa nenhuma. Nem creio mesmo no que vi. E, neste caso, nada vi. Se assim quiseres, tratou-se para mim de uma medida preventiva. Ou ainda, se preferires, quis simplesmente acalmar os nervos. Não há nada mais natural! Para isso é sempre aos amigos que escolhemos... Para que serviriam eles, então?

 

Herbert  disse Vierbein em voz baixa, mas sem mostrar vergonha , foi exactamente o que tu adivinhaste. Foi isso mesmo o que eu queria fazer. Estava nas últimas.

 

Não penses mais em tal.

 

Nunca mais esquecerei. Mas creio que não tentarei recomeçar.

 

É o que importa, Johannes. Não vale a pena. Por quem o farias tu? Quem podia merecer semelhante coisa? Se alguém te disser que compreende o que querias fazer, essa pessoa merece ser morta.

 

Tinha  confessou Vierbein  a impressão de ser empurrado brutalmente e conscientemente. Já não tinha vontade. Havia demasiadas coisas ao mesmo tempo.

 

Deixaste-te arrastar como uma pena ao vento. E por quem? Por doidos atacados de megalomania e domadores profissionais.

 

Johannes teria querido dizer que isso não era tudo. Que outras coisas se tinham juntado, que se sentira completamente abandonado, repelido, afastado. Que estivera como que insensibilizado, sem vontade, sem coragem, gasto; e que não tivera mais que um desejo: separar-se, suprimir-se, entrar no repouso. E, lançando olhares em redor, acrescentou:

 

Fiz o que podia. Tentei tudo o que estava nas minhas possibilidades. Esforcei-me lealmente. Mas não posso conformar-me com este mundo, com este mundo cheio de soldados.

 

Mas este mundo  respondeu Asch, rindo  não é todo o universo, por mais numerosos que sejam os que o apresentam como o único verdadeiro entre todos os mundos. Duma maneira ou doutra, tens, no entanto, de te conformar, ou senão será ele que te liquidará.

 

É um bom pensamento e fácil de exprimir  respondeu Vierbein com amargura.

 

Talvez se encontre alguém  disse Herbert com uma indiferença bem estudada  para te demonstrar que não tens razão. Chegou sem dúvida o momento de mostrar que uma caserna não é uma instituição divina.

 

O cabo deixou o amigo e voltou ao campo de tiro. Apenas poucos soldados não tinham ainda atirado. Apresentavam-se os últimos grupos. Até o capitão Derna lá estava. Não tomava parte nas provas porque não era um atirador brilhante. Acompanhado e protegido pelo sargento-ajudante, simulava um vivo interesse, pedia para ver o registo de tiro e verificava, não sem satisfação, que o seu caro Schulz estava nitidamente à frente.

 

Parabéns  disse jovialmente, de modo a ser ouvido bastante longe.  Vêem-se bem os que possuem qualidades militares.

 

As provas ainda não acabaram, meu capitão defendeu-se o brigadas, mostrando presença de espírito.

 

Não obstante, não receava a menor concorrência. Os melhores atiradores da bateria tinham já tentado a sua sorte, sem atingirem, bem entendido, a sua pontuação. Em

72 pontos possíveis fizera 64, em seis tiros. A seguir vinham Lindenberg, com 62, e Platzek, com 61. Era um resultado que antecipadamente se podia esperar.

 

Entre os poucos soldados que tinham ainda de atirar encontrava-se também o cabo Asch. Sentia-se maravilhosamente em forma. Além disso, como quase ninguém reparava nele, podia fazer fogo sem ser incomodado. Estava firmemente decidido a fazer o melhor que pudesse.

 

Antes que ele se pusesse em posição Kowalski manifestou um desejo urgente de falar com ele em particular, cochichando.

 

Tiraste os cartuchos ao Vierbein?

 

Quais?  perguntou o outro, fazendo-se idiota.

 

Não te faças desentendido. Se faltam seis tiros no fim, há aí alguns que, de cólera, arrancarão a pele do rabo.

 

Que arranquem. O que importa é que não nos possam acusar de nada.

 

Não podem  declarou Kowalski com uma careta. Dei tudo o que restava de munições a um outro, logo que Vierbein se safou. Era um desses idiotas vulgares e recebeu tudo com a maior confiança. O que quer dizer que era demasiado preguiçoso ou demasiado estúpido para contar. Foi por volta das onze horas. À uma hora veio um terceiro, às três horas, outro. Até este momento ninguém notou.

 

Eles vão fazer uma cara, hem?...

 

Quando descobrirem  disse  Kowalski,   regozijando-se antecipadamente  cairão de rabo no chão.

 

Foi neste estado de contentamento que Herbert começou a atirar. O sargento Platzek, que continuava a vigiar a carreira e os atiradores, mal lhe deu atenção. Asch não era uma criança a quem houvesse necessidade de vigiar constantemente.

 

Os dois primeiros tiros deviam ser disparados na posição de deitado, o terceiro e o quarto de joelhos no chão e os dois últimos de pé. Asch estendeu-se comodamente, respirou fundo, apontou rapidamente e premiu o gatilho. O primeiro tiro foi de 12 pontos.

 

Puro acaso  declarou Platzek, que de nada suspeitava.

 

Pela segunda vez Asch atirou com a maior atenção. Saiu-se bem: 10 pontos.

 

Não vai mal  disse Platzek, que começava a inquietar-se

 

Asch pôs um joelho em terra. O seu cotovelo esquerdo estava solidamente apoiado. A respiração calma. A bala bateu com um som seco e breve no alvo.

 

- Outra vez 12!  exclamou Platzek, pasmado.

 

Entretanto tinham-se reunido espectadores curiosos. Alguns subalternos começavam a discutir energicamente. com a rapidez do relâmpago espalhou-se a notícia de que no último momento o record do dia estava ameaçado. Schulz aproximava-se em passo de ginástica.

 

O cabo fizera já o seu quarto tiro. Fora outra vez um

12. Sorria friamente e enxugava o suor da testa.

 

É inacreditável!  exclamou Platzek com visível descontentamento.

 

Ainda dois tiros igualmente bem colocados e o primeiro prémio, que até aí estivera exclusivamente reservado aos subalternos, passava a um soldado qualquer. E, coisa mais grave, se este cabo tivesse o primeiro prémio, ele, Platzek, que até então se encontrava em terceiro lugar, desapareceria imediatamente da lista dos vencedores.

 

Virou-se para o brigadas:

 

Este parece estar hoje em maré de sorte  disse, com inquietação.

 

Schulz inclinara-se para o registo. Uma ligeira vermelhidão começava a colorir o queimado do seu rosto. Tentou gracejar:

 

Uma galinha cega pode perfeitamente encontrar uma vez por outra um grão de milho.

 

Platzek esforçou-se por rir. Vários subalternos aproximavam-se, inquietos. Alguns soldados rasos, cheios de uma alegria séria, tagarelavam ao desafio.

 

Silêncio   no   bordel!  gritou-lhes  Schulz  nervoso.

- Façam favor de calar a boca!

 

Todos se calaram. De pé, pronto a disparar os seus dois últimos tiros, Asch sentia quase fisicamente o silêncio impaciente à espreita atrás dele. Fechou os olhos e respirou fundo. Concentrava-se com todas as suas forças.

 

Inclinando-se para a frente, apoiou a coronha na concavidade do seu ombro direito. Lentamente o cano da espingarda moveu-se, depois parou. Ouvia-se a respiração do cabo. Depois fez fogo e no quadro dos resultados apareceu o número 11.

 

Com mil raios!  exclamou Platzek, no cúmulo da surpresa. Sentia-se o seu nervosismo. Correu para o balde da água, meteu-lhe uma caneca e bebeu. Bastava um 8 para o primeiro prémio. Bastava mesmo um 5, não mais que um 5, para o atirar ao ar a ele, Platzek.

 

Esta é forte!  disse o brigadas, desconcertado.

 

Os soldados riam sem constrangimento; um deles, exclamou jovialmente: «Anda, Asch!», o que provocou em Schulz um sobressalto.

 

O sargento Lindenberg não se movia: uma verdadeira estátua. Ter o primeiro ou segundo lugar era-lhe quase indiferente. Era dos primeiros. Além disso, lisonjeava-o um tanto ver alguém da sua secção, um homem formado por ele, prestes a tornar-se o melhor atirador da bateria. Apenas a atitude crispada do sargento-ajudante o inquietava; sofria quase fisicamente de ser testemunha de um gesto indigno de um militar, que não podia impedir.

 

Pretextando serviço, o primeiro-cabo Kowalski dirigiu-se a Herbert. Enquanto apanhava as cápsulas murmurou:

 

Cuidado, meu velho. Se o ridicularizas, arranjas um inimigo mortal. Lembra-te das munições.

 

Asch fez um sinal imperceptível de assentimento. Olhou em volta, viu os rostos tensos dos subalternos, verificou que Schulz perdera um pouco das suas belas cores, notou os risos satisfeitos dos soldados e a leal inquietação de Kowalski. Pensou nas munições subtraídas por Vierbein, que se achavam nesse mesmo momento no seu bolso, e compreendeu que não podia dar-se ao luxo de provocar a cólera do brigadas. Ficaria para mais tarde.

 

Meteu a arma à cara num gesto decidido, apontou rapidamente e premiu o gatilho. Um pouco de poeira se ergueu, não longe do alvo.

 

Falhou!  gritou Platzek, aliviado.

 

O brigadas avermelhou de alegria como uma luz de retaguarda de automóvel. Recobrou o sangue-frio com notável rapidez. Estava certo agora de obter o primeiro prémio. com ar protector sorriu para Herbert, enquanto lhe batia no ombro.

 

Não foi mal de todo, meu caro! Não foi mal. É claro que ainda falta qualquer coisa para que possa competir com um velho soldado. Mas isso virá. Tem tudo o que é preciso. Eu sempre disse: é feito para vir a ser subalterno. Continue.

 

Bateu no ombro de Herbert, olhou-o com benevolência e gritou depois;

 

Fim do exercício de tiro! Desmontem as carreiras. Tragam-me os números para verificar. Partida dentro de meia hora.

 

Asch dirigiu-se a Kowalski e, irritado, atirou a espingarda para a erva. Sentou-se e olhou o camarada com uma expressão interrogadora.

 

O malandro não merece isto  disse.

 

Não, mas o que tu fizeste vai render  respondeu o primeiro-cabo, que sabia com que devia contar.

 

Os soldados de faxina, entre os quais Vierbein se encontrava naturalmente, desmontavam as carreiras, transportavam os alvos furados, apanhavam os bocados de papel, varriam e raspavam. Os primeiros-sargentos de serviço contavam os resultados do tiro. Os outros soldados juntavam-se e dispunham-se a voltar à caserna.

 

Fora um dia calmo; tinham disparado seis tiros de espingarda ao ar livre. Depois, sem mais preocupações, haviam passado pelo sono e conversado, jogado as cartas e fugido habilmente a qualquer tarefa suplementar. Agora iam regressar; haveria ainda uma hora de limpeza de armas e depois seria a pândega. Não havia dificuldades a recear, porque o brigadas vivia na alegria do triunfo e, de resto, nessa noite, os subalternos festejariam os campeões de tiro.

 

Entretanto a partida demorava. As carreiras l e 3 haviam feito o seu relatório, mas a carreira 2 não o acabava. O sargento Platzek contava e recontava, sem conseguir chegar a um resultado satisfatório. Faltavam-lhe seis cartuchos.

 

O sargento-ajudante largou uma praga quando lhe comunicaram a coisa. Por fim ele próprio fez o cálculo. Mas nada pôde modificar no total: seis cartuchos faltavam.

 

É um caso inaudito  declarou. Não devia haver faltas. As munições eram rigorosamente contadas e tinha de se dar conta exacta de cada tiro. O sargento-ajudante previa enormes complicações.  Que pulhice é esta, Platzek?

 

Este retorcia-se, atrapalhado. O que acabava de se passar, e logo com ele, era mais que aborrecido, era perigoso, podia ter consequências imprevisíveis. Via-se já perante o conselho de guerra, preso, degradado. O brigadas olhava-o friamente.

 

Platzek iniciou um inquérito provisório. Mandou alinhar todos os que haviam tido relações com a sua carreira. Entre estes encontravam-se Kowalski e Asch. Fez perguntas difíceis, sem poupar suspeitas maciças.

 

Mas vejamos, Platzek, isso é ridículo!  exclamou o brigadas, impaciente.  É idiota.

 

Dirigiu a Kowalski e a Asch em particular um gesto amigável.

 

Não te permito que suspeites dos meus melhores soldados. Vamos regressar e voltarás ao registo. Refaz todos os cálculos, na caserna. Compara as inscrições no registo com os buracos dos alvos.

 

O brigadas fez um gesto de mau humor e acrescentou:

 

O mais tardar amanhã de manhã as contas têm de estar certas. Arranja-te como quiseres, isso é contigo. Mas eu quero a minha conta. Senão, verás o que acontece.

 

O alferes Weldelmann estava descontente consigo mesmo e com o mundo, e este descontentamento que o torturava parecia ser nele constante. Fizesse o que fizesse ou se achasse obrigado a fazer, não tinha verdadeiro prazer em coisa alguma. O que lhe faltava era o ardor necessário, um excitante qualquer, uma pequena guerra mundial, uma mulher de certa categoria.

 

É certo que cumpria regularmente o seu serviço, mas fazia-o num considerável estado de aborrecimento. Acontecia-lhe com frequência nos últimos tempos passear tristemente pela caserna e cumprir as suas obrigações com indiferença, quase de má vontade ou com aversão. Não estivera mais que duas horas no campo de tiro. O zelo particularmente ostensivo dos subalternos, a superioridade petulante deles e a sua própria insuficiência de atirador tornavam-lhe antipática a menor intervenção. Tudo isto o indispunha.

 

Acabado o serviço, foi sentar-se na messe dos oficiais. Num canto da sala de leitura folheou revistas, examinou o desenho da cobertura da mesa, contou as franjas dos tapetes.

 

Depois procurou escapar ao comandante Luschke, que procurava um parceiro de classe e resistente para uma partida de xadrez. Não era fácil escapar a Luschke.

 

O que particularmente entristecia Wedelmann era a circunstância de não ter amigos. Na companhia só havia três outros alferes da sua promoção e todos tinham a sua maneira própria de ocupar o tempo livre. Um divertia-se com raparigas pouco dispendiosas; o segundo encontrava uma satisfação evidente em prestar serviço; o terceiro estava quase noivo. Eis porque Wedelmann estava muitas vezes sozinho e não tinha, praticamente, outro recurso senão esperar que um dos superiores lhe dirigisse amavelmente a palavra.

 

Enterrou-se numa poltrona e estendeu as pernas. O que lhe faltava era uma rapariga. Não uma rapariga qualquer para beber o seu café, jogar o ténis ou dar um passeio, mas uma rapariga autêntica, que sentisse uma alegria sincera quando a tivesse nos braços e que gostasse dele de verdade. Não uma «pega» barata, fácil, venal, mas uma mulher autêntica, com mãos suaves e um coração amável. Mas isto !Só se encontrava nos romances e nos magazines. E todas as que lhe apareciam eram demasiado jovens para ele, demasiado pervertidas, demasiado velhas ou casadas com demasiada solidez. Ignorava ainda em que categoria devia incluir Ingrid.

 

Esta parecia-lhe surpreendente: um rosto como os dos quadros, bem feita, nada estúpida. Podia até mostrar-se ao lado dela em grande uniforme. Sentia uma verdadeira agitação ao pensar nela.

 

Quer jogar  uma partida de xadrez?perguntou Luschke, que se aproximara sem que Wedelmann se apercebesse.

 

O Batata fazia aquele trejeito fisionómico cheio de suficiência que geralmente fazia perder as estribeiras aos mais velhos capitães.

 

O alferes deu um salto. Estava um pouco perturbado: Luschke perturbava-o sempre. Nunca sabia se amava ou receava este homem impenetrável.

 

Não se incomode  acrescentou o comandante, naquela sua voz suave que parecia cortar a atmosfera como uma lâmina de navalha de barba.  Não tenho intenção de fazer exercício consigo. Quero simplesmente saber se joga uma partida de xadrez.

 

Decerto, meu comandante  respondeu Wedelmann, olhando Luschke com dedicação.

 

Não, meu caro  retorquiu este num tom seco. Não o vejo com aspecto de se encontrar no estado de

 

ispírito conveniente. É evidente que tem necessidade de tomar ar.

 

E em passos firmes afastou-se, fazendo estalar os dedos alegremente.

 

O alferes seguiu-o com um olhar admirativo. «Que homem! Não se lhe pode esconder nada!»

 

Wedelmann dirigiu-se ao telefone e marcou o número do Café Asch. Atendeu-o uma empregada. Mandou chamar a menina Ingrid. A voz desta era agradável, quente e, ao que pareceu a Wedelmann, sensual.

 

«Queria apenas perguntar-lhe se tem tempo e lhe apetece sair comigo esta tarde. Proponho o Café Liedtke, mas estou, escusado será dizer, às suas ordens. Se achar bem, irei fardado.»

 

Ingrid hesitou um instante, o que Wedelmann tomou por coquetismo. Depois aceitou. Estava de acordo em que ele fosse de uniforme; Liedtke convinha-lhe: serviam um bolo esplêndido. Mas pediu que o irmão fosse avisado do local onde se encontravam, porque era possível que ele quisesse falar-lhe.

 

«com certeza. Mandar-lho-ei dizer já. Sinto-me feliz por ir vê-la. Dentro de meia hora?... Bem, dentro de uma hora no Liedtke.»

 

Wedelmann pousou o auscultador, dirigiu a si mesmo no espelho um gesto de satisfação e foi para o seu quarto para se arranjar. Encarregou o subalterno de serviço de prevenir Herbert.

 

Tomou um duche cantando O Sole mio, barbeou-se, esfregou as faces com água-de-colónia, olhou-se no espelho e achou que tinha diante de si um rapaz absolutamente digno de atenção.

 

Encontrou Ingrid no Café Liedtke, no 1.º andar, onde havia amplas poltronas e onde iam as esposas dos oficiais. Reconheceu a mulher de um capitão do estado-maior e saudou-a respeitosamente. Ela respondeu-lhe com condescendência e examinou Ingrid com olhares críticos.

 

Esta trazia um vestido de Verão muito colorido, alegre, sem mangas e com grande decote. Wedelmann achou que tudo nela valia a pena ser visto. Inclinou-se com interesse.

 

Para que não haja mal-entendido  declarou Ingrid, reservada, eu vim  apenas para conversar um pouco consigo.

 

Naturalmente  respondeu Wedelmann.

 

Espero que este encontro não implique da minha parte nenhum compromisso.

 

Como podia eu supor?...protestou o oficial um pouco perplexo.

 

A verdade é que estou quase noiva  acrescentou ela espontaneamente, logo surpreendida por tê-lo dito.

 

Ah!... É compreensível. Seria preciso que os homens fossem cegos para que não lhe fizessem tais propostas. E pensou: «Esta encantadora rapariga não tem um ar assim tão fácil; pertence sem dúvida à categoria rara e fora de moda das que querem o anel no dedo antes de experimentarem o amor.» E acrescentou:  Mas decerto não está ainda comprometida definitivamente?!

 

Claro. Tivemos até ultimamente alguns desentendimentos sérios.

 

Isso acontece... E acho que é até natural. É nova, mesmo muito nova. Tem ainda tempo de se ligar definitivamente. Não é da minha opinião?

 

Ingrid não respondeu. Dir-se-ia que não estava ali. Olhava com atenção a parede em frente. Wedelmann seguiu-lhe o olhar. Um soldado acabava de se sentar naquele ponto. Conhecia-o. Pertencia à sua bateria e chamava-se Vierbein.

 

Desculpe  disse Ingrid , creio  que meu  irmão quer qualquer coisa de mim.

 

Levantou-se sem esperar resposta e dirigiu-se ao soldado, que a olhava.

 

Wedelmann sentia-se pouco à vontade, pois a mulher do capitão, sentada duas mesas mais longe, examinava-o com visível atenção, e, com surpresa, parecia-lhe que com curiosidade e desaprovação. De um trago bebeu o café e pediu um conhaque.

 

Cheio de manifesta desconfiança, quase de irritação, observava a rapariga e Vierbein. Sentados muito perto um do outro, falavam com animação, ou antes, era Ingrid quem falava quase todo o tempo. O soldado ouvia-a sem pestanejar e, de vez em quando, dizia algumas palavras, como que para se justificar. «Assemelham-se pouco a um casal de namorados», pensou o alferes.

 

Provou o seu copo de conhaque, que lhe pareceu detestável, sem gosto, sem calor nem perfume. Bebeu-o e pediu outro.

 

Wedelmann achava que Vierbein tinha um aspecto lastimoso. Na face esquerda via-se-lhe um pedaço de adesivo; uma farda demasiado larga e que fazia rugas no peito. Depois viu que Ingrid lhe agarrava quase ternamente no braço. Depois ela pôs a mão na dele e deixou-a ficar.

 

Era demasiado para Wedelmann. Gritou: «Rapaz, a conta!» Mas Ingrid não o ouviu: continuava a falar com o seu artilheiro, que, por sua vez, não cessava de se aproximar dela.

 

Wedelmann esforçou-se por sorrir. Não! Quando se comparava a Vierbein e punha aquela rapariga entre os dois não conseguia compreender o mundo. Provavelmente apenas servira de isca, tornara possível um encontro com o rapaz por intermédio do cabo... Desempenhara um papel grotesco!

 

Pagou e saiu sem que nenhum deles notasse. E isto mortificou-o ainda mais.

 

Uma vez na rua, olhou em redor. A noite caíra. O anúncio sangrento de néon do Excelsior atraiu-o.

 

O proprietário regozijou-se visivelmente ao vê-lo e pareceu disposto a abraçá-lo. Wedelmann repeliu-o. Sentou-se ao balcão, perto de Erika, e bebeu, um após outro, quatro copos de gim. Erika deu-lhe a entender que estaria pronta a «distraí-lo» depois do encerramento. Ele pareceu não se opor, mas o impudor com que ela procedia dissipou-lhe as ilusões

 

Enjoado, deixou o Excelsior e decidiu ir embebedar-se para o Bismarck. Mas logo à entrada o proprietário observou-lhe com tacto que ele estava fardado.

 

Está bem  respondeu, irritado , embrulhe-me uma garrafa de conhaque. Beberei no meu quarto.

 

Entregaram-lhe uma garrafa bem embrulhada. Quase hesitando, lançou-se nas trevas.

 

A noite parecia-lhe cheia de nostalgia, uma noite terna, morna, abafadora. Envolvia-o, como um nevoeiro espesso. Um par passou, estreitamente abraçado.

 

Com mil raios! É tempo de acontecer qualquer coisa. Se não me caso depressa, acabarei no bordel!

 

A sentinela abriu-lhe o portão. Wedelmann entrou e fez a continência automaticamente. «Tenho de me embebedar», pensava. «Far-me-á bem, porque então esquecerei que para me eliminar basta um Vierbein.»

 

Num passo arrastado dirigiu-se para a 3.ª bateria, onde tinha o seu alojamento, no 1.º andar, por cima do sargento-ajudante.

 

Boa noite, Sr. Alferes  disse uma voz um pouco rouca.

 

Wedelmann, surpreendido, ergueu a cabeça. Era Lore Schulz, à janela, que olhava a noite.

 

Boa noite, Sr.ª Schulz. Ainda a pé?

 

Não posso dormir. Meu marido festeja o seu prémio com os subalternos. Durará com certeza até de manhã.

 

Eu também não posso dormir. vou embebedar-me.

 

Boa ideia  disse-lhe Lore, rindo silenciosamente. Também a mim me apetecia.

 

Quer que nos embebedemos juntos?

 

Porque não? Entre.

 

O grande banzé começou muito tempo depois da meia-noite. Até aí tudo se mantivera nos limites da normalidade. A festa era digna da tradição dos subalternos.

 

O primeiro-cabo Kowalski e o segundo-cabo Asch tiveram a honra de servir de ordenanças. O brigadas julgara-os dignos de assistirem ao seu triunfo, justificando a sua decisão do modo seguinte: «É claro que se trata de uma distinção especial. Mas vocês serão também um dia, esperemos que dentro de pouco tempo, subalternos. Não quero dizer com isto que estejam nomeados, mas é bem possível que eu já vos tenha proposto.»

 

Afastou-se piscando o olho. Asch e Kowàlski entreolharam-se e o segundo-cabo disse:

 

Podia esmurrar-lhe aquele focinho durante horas.

 

Para que queres perder o teu tempo?  observou o amigo sem insistir.

 

Dar-se-á o caso que desejes ser subalterno?

 

Porque não? Dorme-se mais tempo, ganha-se mais, anda-se mais bem arreado e não temos necessidade de nos fatigar tanto.

 

Tudo isto me dá vontade de vomitar.

 

Também não é esta colecção que me seduz. Mas sei, antecipadamente, que não poderei mudar nada.

 

Se toda a gente assim pensa, não conseguiremos grande coisa.

 

E mesmo que milhares de pessoas pensem como tu não iremos mais longe. «Conserva-te afastado e trata de mastigar o mais que puderes» é a divisa dos soldados que conservam um pouco de caco.

 

Nesse caso  perguntou Herbert, com insistência , que acontecerá se me resolver a mostrar a estes tipos o que penso deles? Diz!

 

Encomendarei uma coroa para a tua sepultura.

 

Podes encomendá-la. Veremos depois onde pô-la. Enquanto assim falavam trabalhavam de acordo com as indicações do sargento-ajudante. Instalaram uma mesa em forma de ferradura, receberam do furriel lençóis, que estenderam na mesa, e colocaram vinte e três assentos, dos quais sete cadeiras para os primeiros-sargentos e uma poltrona para o sargento-ajudante. Um artilheiro, jardineiro na vida civil, decorou a sala com flores cultivadas nos relvados a expensas da bateria.

 

Em seguida transportaram da cantina um barril de quarenta e oito litros de cerveja, instalaram-no e abriram-no.

 

Depois de terem feito uma saúde, dispuseram os copos e as garrafas de aguardente e vestiram os casacos brancos que lhes haviam trazido da messe.

 

Temos de fazer tudo nós dois?  perguntou Kowalski.  O brigadas podia bem ter-nos dado um soldado para nos ajudar, um para cada um de nós.

 

Havia um designado... Um tal Vierbein. Dei-lhe feriado. É que não quero um oficial como cunhado e muito menos como amante de minha irmã. Esperemos que ele não se porte outra vez como um palerma.

 

Se a sova que recebeu de ti esta manhã não lhe basta, então não há nada a esperar dele.

 

Um pouco antes das oito horas reuniram-se os subalternos. O primeiro-sargento Waber, o mais antigo depois de Schulz, indicou a cada um o seu lugar.

 

Sentem-se onde quiserem, desde que fiquem ordenados conforme as patentes.

 

Às oito horas em ponto apareceu o sargento-ajudante. Exibia ares de camaradagem. Fizeram-lhe o relatório. Agradeceu. Sentou-se, fez sinal aos outros para se sentarem e disse:

 

Podemos começar.

 

Kowalski e Asch encheram as canecas.

 

Ao que nós amamos!  exclamou o brigadas. Prost! Ex!.

 

Os subalternos sentaram-se e esvaziaram os copos; até Lindenberg, que habitualmente não bebia, cumpriu sem pestanejar.

 

Ah!  exclamou o brigadas.  Aqui está o que dá prazer ao filho de minha mãe!

 

Kowalski e Asch puseram-se a encher as canecas a toda a pressa. A pausa daí resultante foi preenchida com canções. Potentes e bem ensaiadas, as vozes entoaram a canção preferida dos subalternos da 3.ª bateria: Como a soberba águia.

 

A saúde! Virar!

 

Antes da segunda copla os dois ordenanças tinham conseguido encher os copos. À quarta já havia um copo de aguardente em cada lugar. O brigadas fez um gesto de satisfação: os rapazes aplicavam-se para não o desiludir. Era bom material. Ao quinto copo de cerveja o ritmo diminuiu um pouco.

 

E depois beberam outra vez; cantaram e beberam de novo. Nuvens de fumo e gritos enchiam a atmosfera. Viam-se amplas bocas abrindo-se e fechando-se, em perfeita concordância. Era uma máquina de divertimento bem lubrificada.

 

O brigadas fazia questão de dar o tom; a sua incomparável voz de comando fazia-se ouvir sem custo. Mas enquanto cantava ia observando com os seus olhinhos vivos o seu corpo de subalternos.

 

O primeiro-sargento Waber, amigo declarado das artes, cantor de escol, lançava antes de cada estrofe um enérgico: «Dois, três!» e entregava-se todo à sua função. Os outros subalternos também; apenas Platzek não conseguia pôr-se logo em diapasão: o pensamento dos seis cartuchos perdidos oprimia-o. Os outros cantavam como se os tivessem pago para isso. E Lindenberg era, como sempre, modelar.

 

Depois da terceira canção, da quinta cerveja e da quarta aguardente, Waber recebeu de Schulz autorização para fazer um discurso em honra do campeão de tiro da bateria.

 

Fê-lo com o seu humor habitual, sem esquecer contudo as frases sérias, como: «Pela obra se conhece o artista», ou então: «um Guilherme Tell, um Schulz.» Finalmente, chegado ao ponto culminante, falou de «orgulho» de «medrosos», para quem não havia lugar entre eles, e do Fiihrer, a quem tudo se devia. Para concluir levantou o copo à saúde do sargento-ajudante.

 

Schulz, visivelmente comovido, agradeceu. Começou numa voz surda, falou dos «seus caros subalternos», do «espírito de camaradagem», mas depois, como se já tivesse dito demasiado bem e para evitar que caísse na familiaridade, acrescentou:

 

Mas a minha alegria da vitória e o orgulho que sinto pelos meus camaradas também têm pontos escuros, porque há sempre aqueles que apagam a boa impressão que produz o nosso corpo de subalternos, e isso é uma vergonha. Não me olhe tão estupidamente, Asch. Trate antes de encher os copos. Onde é que eu ia?

 

Na «vergonha»  exclamou Waber, que supunha ter a consciência tranquila.

 

Isso mesmo. Infelizmente, é essa a minha opinião. Mirou Werktreu, o D. Juan  Não vejo mal em haver quem seduza mulheres em série. Pode ser mesmo um desporto. Mas que não se atirem às mulheres dos subalternos da sua própria bateria. Isto já não é camaradagem.  Depois, assestando os olhares em Platzek, que não lograva tranquilizar-se, acrescentou:  E quando um primeiro-sargento perde seis cartuchos aí está uma coisa que não consigo compreender; nunca isto sucedeu desde que estou no serviço. Tal coisa não pode acontecer. Ou os cartuchos aparecem ou se demonstra onde eles ficaram: a dignidade da corporação não admite outra coisa. Asch, não lhe disse já que não deve olhar-me como um idiota? Você ainda não é subalterno.

 

O brigadas fortificou-se com um copázio de cerveja sem convidar os outros a imitá-lo, uma vez que ainda não tinha terminado o seu discurso.

 

Além disso, não encontro entre vocês o espírito de corporação em todas as situações. Se antigamente o meu brigadas me tivesse dito que não queria mais ver Vierbein, a corporação de subalternos tê-lo-ia suprimido; se tivesse dito que Vierbein respirava com força demasiada, um minuto mais tarde deixaria de respirar. Isto, camaradas, era disciplina. Viva o Fíihrer! Prost! Ex Bier! Ex Schnaps! Uma canção!

 

O primeiro-sargento Waber deu o tom e gritou: «Dois, três!» Cantaram.

 

Asch disse:

 

Na próxima cerveja cuspo-lhe dentro.

 

Não serve de nada. Mesmo que urinasses, depois do quinto copo já eles não notam finezas desse género.

 

A parte oficial da festa terminara. Agora vinha a parte divertida. Toda a gente se pôs a falar ao mesmo tempo. Os ordenanças receberam ordem de encher todos os copos vazios e passou-se às saúdes.

 

Segundo as regras tradicionais, uma saúde só podia ser feita por um superior; quando muito, os da mesma patente podiam beber à saúde um do outro. Mas era impossível imaginar que um subordinado se permitisse fazê-lo.

 

Schulz começou:

 

Platzek disse, bebo à tua saúde e espero que venhas a arrumar perfeitamente a história dos seis cartuchos. Prostl

 

Mal aflorou o copo com os lábios, mas Platzek teve de esvaziar o seu, não sem cólera, mas como soldado disciplinado.

 

Desforrou-se imediatamente à sua maneira bebendo duas vezes à saúde de Lindenberg, exprimindo o desejo de que ele quisesse mostrar o que era capaz de fazer como instrutor, sobretudo no que dizia respeito a esse inepto do Vierbein.

 

A partir de agora  disse Asch a Kowalski, o Pele de Vaca só receberá cerveja misturada com aguardente.

 

Com o sargento-ajudante faço-o desde o princípio.

 

Graças a isto, a atmosfera aqueceu rapidamente. Em três horas chegou à ebulição. Depressa o segundo-sargento Lindenberg foi vomitar às retretes. Kowalski deu-lhe várias colheres de carvão e azeite, o que tinha a reputação de ser um meio infalível contra a embriaguez prematura.

 

Além disso, a partir desse momento, o copo de Lindenberg foi sempre cheio de água, com um pouco de cerveja e muita espuma. Lindenberg, sensibilizado por esta atenção, jurou em segredo mostrar-se reconhecido.

 

Um pouco antes da meia-noite puseram-se a brincar, sob a direcção do primeiro-sargento Waber, ao jogo do Tru-lá-lá. Havia algumas dúzias de variantes, todas começando de maneira inocente. Waber trepou para uma cadeira, cantando: «Venham ver acolá acolá, Trudiral-lá-lá; venham ver acolá, acolá, Tru-lá-lá!» E todos subiram para as cadeiras, cantando este mesmo texto com ardor. Para a segunda variante todos desceram das cadeiras, subiram para a mesa, tiraram os sapatos, o casaco, desceram as calças, mas ficaram em camisa. E Waber, entusiasmado, cantou: "Levantem-me esse coiso, vá, Trudiral-lá-lá; levantem-me esse coiso, vá, Tru-lá-lá!»

 

Ah! Era na verdade um jogo bem divertido! E os subalternos, que já cambaleavam fortemente, berravam com frenesi, levantando a camisa. Platezek, completamente bêbado, e procurando com desespero divertir-se, tentou até acariciar com o traseiro nu o rosto do brigadas, o que provocou uma alegria sem limites.

 

Parece que queres assassinar algum  disse Kowalski ao seu camarada.  É imprudente. Conserva pelo menos uma cara diferente se te recusas a rir de entusiasmo.

 

De futuro não poderei vê-los senão em fralda.

 

Isso é velho. Há muito tempo que os vejo assim. Um pouco antes da uma hora anunciou-se o primeiro

 

«afogado», o que foi saudado com grandes gritos de alegria. Um subalterno estava estendido, perdido de bêbado, no corredor, não longe dos lavabos. Era e toda a gente ficou surpreendida o primeiro-sargento Platzek, em quem a aguardente misturada na cerveja tivera um desastroso efeito. Ali estava, estatelado como um esfregão atirado para um canto.

 

O brigadas deu imediatamente ordem para se proceder ao «funeral nacional». Os quatro mais jovens segundos-sargentos treparam, berrando, ao 2.º andar, onde Platzek tinha o quarto. Regressaram, cantando canções obscenas, à sala dos duches. Waber desempenhava as funções de mêstre de cerimónias. Platzek foi colocado debaixo de um duche, que abriram completamente.

 

Ao princípio o sargento continuou a dormir; depois, em sacudidelas, como uma boneca mecânica, endireitou-se e olhou em redor, furioso e estupefacto. Depois cambaleou para fora da cama e caiu nos ladrilhos. Praguejava como um carroceiro. Os subalternos berravam de alegria; um dele esteve mesmo prestes a ser acometido de um acesso de riso irreprimível.

 

Depois continuou-se a beber. A barrica de quarenta e oito litros esvaziava-se e a provisão de garrafas chegava ao fim. Lindenberg desapareceu sem ser notado. O «serão de honra» acabava em vagas, de barulho, de fump e baforadas de cerveja. Às duas horas da manhã não havia mais que uns poucos sobreviventes. Kowalski e Asch começaram a levantar a mesa e a pôr as coisas em ordem até onde era possível.

 

O brigadas e o primeiro-sargento Werktreu foram os últimos. Estavam frente a frente e conversavam numa língua pastosa. Estavam apertadamente enlaçados e, bem entendido, falavam de mulheres.

 

A tua mulher, Lore  dizia Werktreu custosamente, é uma bela mulher, a verdade diga-se. É uma rica mulher.

 

Não posso dizer o contrário  respondeu-lhe Schulz. Sei bem o que faço com ela.

 

Eu também.

 

Que queres tu dizer com isso?  perguntou o brigadas, empertigando-se.

 

Eu sou teu amigo. Sou ou não sou? Ou não acreditas que eu seja teu amigo?

 

És meu amigo.

 

Tudo o que é meu é teu. E vice-versa.

 

És meu amigo. Mas agora vou-me deitar. Minha mulher deve estar à minha espera fielmente.

 

Eu também  declarou Werktreu.  Eu também me vou deitar.

 

Schulz levantou-se com dificuldade. Contemplou com um olhar satisfeito o campo de batalha da camaradagem alegremente regado. Viu toalhas manchadas, cadeiras tombadas, copos meio vazios, restos de cinza e garrafas partidas. Estava convencido de que a festa fora um completo êxito: isso o tornava indulgente.

 

Ponham tudo em ordem, rapazes  gaguejou ele. E depois durmam um bom bocado. Trabalharam bem. Serão um dia bons subalternos. Não é difícil... com um chefe como eu.

 

C... no seu corpo de subalternos  respondeu Herbert.

 

O brigadas riu de maneira rude mas cordial. No estado de espírito em que se encontrava tomava a frase por um gracejo, um pouco forte como é próprio entre homens.

 

Seu maroto!  disse pesadamente.

 

Depois fez um gesto de adeus e saiu aos ziguezagues, de braço dado com Werktreu, em direcção à messe dos subalternos.

 

Com mil  raios!  exclamou  Kowalski  respirando profundamente.  Que sorte de porco tiveste!

 

Na próxima vez será este porco que eu sangrarei.

 

Lore Schulz arrependeu-se logo da audácia que tivera em convidar o alferes Wedelmann. Tinha medo. E em primeiro lugar do que ela própria desejava. Mas desta vez não lhe era fácil dissimular o que tinha feito.

 

Foi hesitando que Wedelmann entrou em casa do sargento-ajudante. Lore conduziu-o à sala de jantar. Ele sentou-se numa das quatro cadeiras dispostas em volta da mesa. Tinha uma expressão um pouco embaraçada.

 

Vendo bem, já é muito tarde, não acha?

 

Quer ir-se embora já?

 

Se não vê inconveniente, ficarei de boa vontade um quarto de hora.  Pousou na mesa a garrafa de conhaque que trouxera.  Arranja-se um saca-rolhas e copos?

 

É já  declarou Lore, satisfeita por ter um pretexto para se afastar durante um momento.

 

Olhou-se no espelho da cozinha: tinha os cabelos um pouco em desordem, mas isso tornava-se pitoresco e até mesmo ousado. A pele brilhava, mas a água fria remediou o caso. O vestido estava amarrotado, é certo, mas era um vestido de que gostava porque lhe valorizava bem as formas. Bastaria apagar a lâmpada do tecto para que estes ligeiros defeitos se tornassem menos visíveis.

 

Entretanto Wedelmann examinava o mobiliário. Era uma mobília de sala de jantar feita em série, sombria e um pouco pesada, imitando o carvalho. Na parede, enquadrada por uma moldura pretensiosa, estava dependurada uma oleografia. Taças de desporto e de tiro, bugigangas cómicas e vasos de vidro grosso estavam dispostos no aparador, numa mesa redonda e numa credência. No divã havia uma colecção de almofadas bordadas e pintadas, onde se reconheciam cogumelos, trevos de quatro folhas, rosas, um moinho num regato.

 

Lore regressou e Wedelmann notou que ela se perfumara abundantemente de violeta.

 

A luz é muito forte, não acha?

 

Como queira.

 

Ela apagou a lâmpada do tecto. Um candeeiro de mesa lançava sobre eles uma luz doce. O tiquetaque do relógio de parede ouviu-se mais.

 

Wedelmann desrolhou a garrafa de conhaque e disse:

 

Tem uma bonita casa.

 

Comprámos os móveis já feitos. Tínhamos algumas economias, o bastante para a primeira prestação. Devemos pagar ainda todos os meses durante um ano, até Agosto de 1939. Bem sabe: um sargento-ajudante não ganha sequer tanto como um alferes. E os alferes não são casados.

 

Há-os também que o são.

 

São raros. Você também não é casado. Porquê?

 

Não depende de mim, bem vê. Não encontro a mulher que me conviria. E quando por acaso uma mulher me agrada já está casada, como a senhora, por exemplo.

 

Não sou mulher para um alferes  disse ela, lisonjeada, mas embaraçada ao mesmo tempo.

 

Não diga isso  disse Wedelmann, enchendo-lhe o copo.

 

Lore bebeu o conhaque de um trago. Estendeu-se à vontade no divã. O peito opulento avultava. Durante alguns momentos ficou a pensar.

 

Gostava disto. Tinha uma imaginação muito activa. Ansiava por viver e sabia o que era a fome de vida. Ambiciosa, não tinha energia, bastante para realizar a sua ambição. Era igualmente arrebatada, mas a mediocridade da sua vida ensinara-lhe até a economizar os sentimentos.

 

Na   minha  juventude  declarou  vivia  com  os meus pais e os meus irmãos e irmãs em dois quartos que davam para um pátio, no 3.º andar. Durante muito tempo dormi numa cama com as minhas duas irmãs mais novas. Meu pai era um honesto homem, mas pouco inteligente. Não ganhava sequer o bastante para se dar ao luxo de uma bebedeira todos os meses. Quando estava de mau humor batia-nos, e o universo não parecia existir senão para o encolerizar.

 

Meu pai  disse Wedelmann  era empregado dos correios. Carteiro, para dizer as coisas como elas são. Sou filho único. «Ninguém se pode permitir mais de um filho», dizia ele constantemente. Comíamos mais de uma vez por semana batatas com casca e arenques; de manhã tínhamos pão com marmelada. Nunca me bateu. Era um homenzinho gasto, que falava muito. Por vezes até pela noite dentro.

 

Lore e o alferes Wedelmann bebiam e olhavam-se. A situação parecia-lhes estranha. Fazia calor e o álcool amolecia-os. A tentação que a obscuridade fizera nascer dissipara-se. Parecia-lhes necessário explicarem-se um ao outro, a fin de melhor compreenderem porque estavam ali juntos.

 

Eu  disse Lore, foi aos 14 anos que ganhei o meu primeiro dinheiro. Trabalhava com um horticultor. Depois vendi flores por conta dele, à porta do cemitério. Dormia por detrás da loja e tinha uma cama só para mim. Quando olhava pela janela via os túmulos. Não me incomodava, mas era bastante solitário. Todos os sábados ia dançar. Foi no baile que encontrei Schulz, que, nessa altura, era apenas primeiro-sargento. Casei com ele porque para mim era uma melhoria de situação.

 

Eu vivi com os meus pais. Nunca conheci mais que duas casas: a nossa sala de jantar, onde dormia, e a sala de aula. Aos 18 anos findei o liceu; depois, como meu pai não podia arranjar o dinheiro necessário para entrar para a Universidade, fui para o exército. E é tudo.

 

E aqui estamos.

 

Bebamos a este encontro.

 

Ele não pôs o copo na mesa. Deixou-se ficar a brincar com ele.

 

Não somos felizes, nem um nem outro, não é verdade?  perguntou Wedelmann.

 

De que está a falar?

 

Lore agarrou a garrafa e encheu os copos, de um modo tão brusco que o conhaque saltou para o tapete.

 

Não pensemos nisso. Tentemos esquecer.

 

Pode então esquecer que sou alferes e, ainda por cima, alferes da bateria em que seu marido é o sargento-ajudante?

 

E que eu sou mulher desse sargento?

 

Exactamente, que eu sou superior dele.

 

E que não é decente, claro, que a mulher de um subordinado esteja sentada à meia-noite, sozinha, com o superior do marido e, o que é mais, na casa deste. Não é isto? Não é isto que devo esquecer?

 

E não pode?

 

Quero esquecer... Não o sente?Olhava Wedelmann com angústia e ao mesmo tempo com desejo.  Venha. Sente-se ao pé de mim. A não ser que tenha medo.

 

Ele acenou negativamente, levantou-se, contornou a mesa e sentou-se perto dela.

 

Mais perto  disse Lore numa voz rouca.  Mais perto ainda. Eu não mordo.

 

Wedelmann aproximou-se. Rodeou-a com o braço e tocou-lhe a carne firme. Ela tremia. Apertou-se contra ele num gesto desajeitado. Fechou os olhos e levantou a cabeça. Ele deu-lhe um beijo.

 

Os lábios de Lore estavam rígidos e foi só depois de uma hesitação que cederam. Estava nos braços dele como morta. Wedelmann olhava a parede forrada de verde, uma fotografia representando o sargento-ajudante, orgulhoso e dominador, numa motocicleta.

 

Lentamente, Wedelmann levantou-se e afastou-a.

 

Bebamos  disse.

 

Submissa, ela encheu os copos e disse:

 

Nem sempre sou assim.  Depois acrescentou em voz baixa:  Nunca fiz isto...  Teve um riso breve e acrescentou:  Infelizmente.

 

Porque não?  perguntou ele.  Não sãos os homens que faltam na caserna.

 

Não para mim. Não sou feita para estas coisas. Não sou o que pareço... Tenho medo, muito simplesmente.

 

Experiências mal sucedidas?

 

Verdadeiramente, nenhuma.

 

A sua voz era agora um pouco surda; a alegria dissipara-se. Enquanto falava conservava os olhos quase fechados; dir-se-ia que sonhava, sorrindo.

 

Tenho medo  disse , medo de mim mesma e dos homens. Não tive muitas experiências, mas as que tive tiraram-me toda a esperança. O primeiro foi o inspector do cemitério. Tinha muito que fazer por causa dele, porque era um bom cliente. Perseguia-me constantemente. Aconteceu aquilo no meu quarto, em cima de um monte de coroas. Antes que soubesse o que me sucedia já tinha acabado: tive a impressão de ter sido emporcalhada. É essa a única recordação que conservo. O segundo foi um vendedor, entre duas portas: tinha ainda mais pressa que o outro. O terceiro foi meu marido.

 

E com ele, como se passou?

 

Tive a impressão de haver sido comprada, de ser uma peça do equipamento... Compreende? Uma coisa que deve estar sempre à mão quando se tem necessidade dela. Mas você deve compreender isto: é homem, e soldado como meu marido.

 

O caso  disse Wedelmann, à laia de explicação  é que temos uma profissão à parte, e é daí que isso deve vir. Não sabemos o que é a «vida privada». O serviço está antes de tudo. Sempre. Inculcaram-nos esta ideia; nunca nos desembaraçaremos dela. Não há circunstância alguma em que a possamos esquecer completamente.

 

Talvez seja assim  disse Lore,  outra vez calma.

 

Agora também assim é, não é verdade?

 

Wedelmann despejou o seu copo num gesto violento. Tirou o casaco e atirou-o para cima duma cadeira.

 

Dá-me licença?

 

Ora essa  disse ela, solícita.  O meu marido também assim faz sempre. Está-se mais à vontade quando se não está fardado.

 

Sinto-me mais livre  disse o oficial. Contudo, tinha a impressão de asfixiar. Agarrou a garrafa: estava vazia.

 

Já chegou ao fim  declarou.

 

No aparador, em baixo, há algumas garrafas. Nada de excepcional, mas escolha. Tenho muito calor. vou vestir outra coisa. Posso?

 

Decerto  respondeu-lhe   Wedelmann,   perturbado.

 

Vá.

 

Ela entrou no quarto de dormir. Tirou febrilmente o vestido, as meias e a cinta. Olhou-se no espelho e achou que parecia fatigada, sem brilho, desencorajada. «Não sou feita para isto», pensava. «Quero sempre e não posso. Falta-me a coragem. Sempre assim foi.»

 

Enfiava  à  pressa  o   roupão,  que   raramente  usava.

 

Quando o cingia bem, recuava os ombros e deixava as mangas caírem molemente, parecia-lhe elegante, se bem que fosse feito de um tecido bastante medíocre que se enrugava facilmente. Esperava que ele agradasse a Wedelmann; desejava-o porque queria parecer-lhe bela ou até mesmo atraente, ou, se mais não pudesse ser, apetecível, ainda que somente por essa noite. Sentia-se atraída para Wedelmann porque adivinhava que ele se encontrava solitário ou desiludido.

 

Lore regressou à sala de jantar. Tentou ler nos olhos do seu visitante: pareceu-lhe descobrir neles desejo, talvez mesmo simpatia. Sentou-se perto dele e tocou-lhe nas mãos.

 

Estou bem assim?  perguntou.

 

Muito bem.

 

Que há para beber?

 

Vinho. Um vinho qualquer. Pouco importa, aliás, o que se beba.

 

Entreabriu o roupão de Lore. com a mão esquerda aflorou-lhe delicadamente e quase com timidez o peito. Ela deitou-se. Beijaram-se longamente, de olhos fechados.

 

De súbito ela endireitou-se e repeliu Wedelmann.

 

Não faças isso  disse.

 

E pareceu apurar o ouvido para-escutar qualquer coisa.

 

Que tens?  perguntou ele.

 

Não  repetiu Lore, com violência, abanando a cabeça.  Não devemos fazer isto. Não posso.

 

Mas porque não?  perguntou ele, tentando acalmá-la.

 

Não posso fazer isto. Não compreendes?  Segurou o copo e esvaziou-o. Depois tornou a enchê-lo e bebeu outra vez.  Tens as mesmas mãos que ele. Todos os homens têm as mãos iguais.

 

Vejamos, não fales assim, peço-te.  Estava embaraçado.  E, no entanto, eu gosto de ti  acrescentou numa voz terna.

 

Gostas de mim?

 

-Sim.

 

Ela fechou os olhos. Durante um curto instante foi feliz.

 

Nesse caso  disse  tudo me é indiferente

 

Que é que te é indiferente?

 

Tudo. Tudo o que virá depois. Tudo o que possa acontecer. Tudo.

 

Mas que é que pode acontecer?

 

Ele ergueu a cabeça e apurou o ouvido. Novamente o seu olhar caiu sobre a fotografia dependurada na parede Pensou que nesta casa vivia um dos seus subordinados, um homem a quem estava ligado pelo uniforme.

 

Talvez tenhas razão  disse Wedelmann, e o rosto traía o seu desalento.  Talvez seja melhor para ambos não fazermos isto.

 

Olhavam-se. A lâmpada, que não dava mais que uma luz esbatida, parecia agora clara e implacável, Lore apertou o roupão sobre os ombros como se tivesse frio. O homem bebeu.

 

É   sempre  assim  disse.  Não   sou   um   homem como os outros. Sou um graduado. Chamo-me Wedelmann, mas dizem-me: «meu alferes». As mulheres que encontro só podem amar-me se a minha patente lho permitir.

 

Amo-te verdadeiramente  disse Lore, desolada.

 

É certo? Mas não tens o direito de amar-me. Pertences a um homem que está sob as minhas ordens. Se eu fosse inspector dos cemitérios, seria mais fácil; mas sou alferes. Por toda a parte onde olho vejo uniformes. A Alemanha está cheia deles. E a cada uniforme pertence uma rapariga. Umas pertencem aos meus subordinados, outras aos meus superiores. Que devo fazer? Nada. Embebedar-me. Porque eu tomo a minha profissão a sério. Só a tenho a ela. Mas é difícil como diabo. Difícil como diabo!

 

Esvaziou o copo; bebeu ainda outro, mas já não sentia o álcool. E não via que a mulher perto dele chorava sem ruído. Quando pousou ternamente a mão no braço de Lore ela repeliu-o.

 

Ambos se calaram, acabrunhados. Olhavam a luz. O tiquetaque do relógio parecia dividir duramente o tempo. O vinho exalava um cheiro ácido.

 

Através do silêncio distinguiu-se claramente o rumor do trinco ao fechar-se. Passos ruidosos se aproximaram. O sargento-ajudante Schulz estava de pé à entrada, cambaleando, encostado à ombreira da porta, com o rosto crispado, sem acreditar nos seus próprios olhos.

 

O alferes levantou-se. Cambaleou e caiu contra a mesa. Depois endireitou-se e disse:

 

Boa noite!

 

Schulz não respondeu. Lore permaneceu sentada, imóvel. Wedelmann disse:

 

Fiz companhia a sua mulher, ajudante.

 

Schulz conservou-se calado. O cérebro, enevoado pela embriaguez, não conseguia apreender o que os olhos viam. O alferes vestiu o casaco e abotoou-o.

 

Espero  acrescentou  que não irá interpretar mal a situação.

 

Esperou durante alguns segundos uma resposta que não veio. Esforçou-se por manter a presença de espírito.

 

Dá-me licença que me retire?  perguntou a Lore. Segurou-lhe  a  mão  e  inclinou-se.   Depois,  passando

 

diante do brigadas, imóvel, saiu. A porta fechou-se atrás de si.

 

Schulz aproximou-se, cambaleando, da mulher e esbofeteou-a.

 

A primeira vítima da revolta do cabo Asch foi o sargento cozinheiro. A batalha não foi muito difícil nem a vitória muito grande. Pensando bem, não foi mais que um ensaio geral.

 

O dia começou com um pequeno intermédio. À alvorada o primeiro-cabo Kowalski e o segundo-cabo Asch recusaram-se a levantar-se. Foi só à segunda ordem do sargento de semana, dada num tom um tanto ameaçador, de que «lhes daria ar ao rabo», que explicaram, resmungando, que o sargento-ajudante lhes dera autorização, para não dizer que ordenara, que fizessem um sono suplementar para repouso do trabalho da noite.

Qlaro que não era assim, ou, pelo menos, tratava-se de um engano. Mas o subalterno não queria deixar supor que não tinha em consideração as ordens do seu superior directo. Retirou-se a resmungar e deixou Kowalski e Asch dormirem até perto do meio-dia.

Como compensação, o subalterno pô-los de serviço à cozinha.

com todo o gosto  declarou Herbert, pressuroso.

Dirigiram-se à cozinha n.º II. onde chegaram com notável atraso. O sargento cozinheiro, que aliás era o mais idulgente de todos, mas que por volta do meio-dia se aplicava, geralmente em vão, a transformar a cozinha em campo de manobras, acolheu-os com manifesta acrimónia.

Assente nas pernas afastadas, tirou o relógio e disse:

Já é meio-dia e vinte.

Asch puxou igualmente pelo relógio, olhou-o muito sério e disse:

Exactamente.

O subalterno teve um sobressalto. A sua voz oleosa cresceu:

Quero dizer que vêm atrasados!

Assim  é  respondeu  Asch.  Não  pudemos  vir mais cedo. Tivemos de acabar o nosso sono.

O primeiro-cabo, achando que o seu camarada ia um pouco longe de mais, entendeu dever dar uma explicação:

Fomos chamados para a festa dos subalternos ontem à noite. Durou até de manhã. Fomos autorizados a dormir mais tempo.

A atitude relativamente correcta de Kowalski tranquilizou um pouco o sargento. Aceitou o motivo do atraso. Era também subalterno e compreendia isto. .   Muito bem  declarou. vamos ao trabalho. Você vigiará o pessoal auxiliar da cozinha e você, Asch, o do refeitório.

Aos olhos do sargento tratava-se duma verdadeira degradação para Asch. com efeito, na cozinha podiam-se receber rações suplementares; no refeitório só se achavam restos.

Mas, com surpresa do sargento, Asch não pareceu ficar melindrado, por pouco que fosse, pelo trabalho sujo do refeitório. Foi só mais tarde que o sargento viu em que atoleiro se metera.

Ao princípio Asch trabalhou relativamente bem, se não mesmo bem. com os seus quatro ajudantes tinha de transportar a sopa e preparar os pratos; depois, logo que o primeiro grupo tivesse comido, e enquanto o segundo se empurrava lá fora, limpar as mesas e lavar os pratos. Tudo isto foi feito rapidamente.

Mas no primeiro intervalo Asch pôs-se a riscar um mapa. Depois pediu emprestada uma balança decimal na cantina próxima. E então aconteceu qualquer coisa que primeiramente cortou a palavra ao sargento e logo depois lhe fez subir ao rosto o rubor da cólera. Asch pesava as rações de carne e escrevia os resultados no seu mapa.

Semelhante a uma pantera prestes a saltar, o sargento aproximou-se:

Que está a fazer aí?  gritou.

Peso  respondeu Asch com simplicidade.

Quem lhe deu ordem?

Ninguém. Tenho o direito de verificar se as rações dadas concordam com aquelas que estão indicadas.

Isso não lhe diz respeito. Quererá por acaso insinuar que eu meto a unha?

Por enquanto ainda não o posso dizer  declarou o cabo amavelmente.  Os números de comparação não são suficientes. Em todo o caso, é evidente que há uma certa percentagem abaixo do que deveria haver.

Esse assunto não lhe diz respeito  berrou de novo o sargento.

 

Já lho ouvi dizer.

 

Dir-se-ia que o outro ia saltar de raiva. Ossoldados, em volta deles, riam com prazer. Estavam radiantes com o que acontecia ao cozinheiro. Toda a gente sabia que as rações eram geralmente inferiores ao peso estabelecido, mas até então ninguém tivera a ideia de o verificar friamente.

 

O sargento respirou fundo. Asch escreveu um número no mapa. O sargento fechou a boca, que já tinha aberta. Este mapa inquietava-o. Se o cabo conseguisse fazer chegar aos superiores o que notara, coisa possível, apesar de tudo, isso podia acarretar-lhe aborrecimentos.

 

Começou por simular não levar a questão a sério:

 

com certeza nunca ouviu falar em desperdícios.

 

Sim  respondeu Asch delicadamente.  É uma noção que conheço perfeitamente. Mas, segundo os regulamentos, esse desperdício não deve ultrapassar os dez por cento. A porção de carne distribuída deve ser de cento e cinquenta gramas;   umas  pesarão mais,  outras pesarão menos.

 

E então, seu pedaço de asno, que quer você?

 

É só quando tivermos médias utilizáveis que poderemos determinar o desperdício geral. Até agora pesei trinta e oito rações; pararei nas cinquenta. Mas os primeiros números são já muito sugestivos. Assim, dez rações deveriam pesar mil e quinhentos gramas; o desperdício seria de cento e cinquenta gramas. Ora elas não chegam a pesar mil e duzentos gramas. O desperdício é, portanto, superior a vinte por cento, ao passo que só dez por cento são autorizados. Já se poderia falar de fraude.

 

Vou participar!  exclamou o sargento, tremendo de cólera.

 

Precipitou-se para o gabinete e ligou para o sargento pagador. Explicou-lhe o que se passara.

 

O sargento pagador ficou, a princípio, silencioso. Depois, cautelosamente, perguntou:

 

«Há alguma coisa que não esteja bem no seu serviço?»

 

«Ora essa!», resmungou o outro. «Tudo está em ordem, bem entendido.»

 

«Espero que assim seja», declarou o sargento pagador num tom frio. «Nesse caso, não tem que inquietar-se com o que faz o cabo.»

 

«Claro... Mas não posso, de qualquer maneira, consentir que alguém pese as minhas rações.»

 

«Se tudo está em ordem, pode deixá-lo proceder à vontade...»

 

«Mas a disciplina!...»

 

«Isso já não é da minha competência», respondeu o sargento pagador desligando.

 

O sargento cozinheiro ficou pouco satisfeito com esta conversa telefónica. Competência! Os assuntos da cozinha eram da competência do sargento pagador, mas ele receava as complicações. Para o cabo Asch a pessoa competente era o sargento-ajudante, mas este opunha-se por princípio a tudo o que o sargento cozinheiro fazia, porque ele próprio tentara em vão obter aquele posto importante para um subalterno da sua bateria. Tinha, portanto, de se desembaraçar sozinho. Não devia ser difícil.

 

O sargento cozinheiro conhecia o método geralmente infalível: ocupar as pessoas, amassá-las, reduzi-las a migalhas. Mostrar que não estava disposto a deixar-se levar pelo beiço. E, depois, chegara o momento de mostrar claramente às mulheres da cozinha que se tinham acabado os escalopes, as salsichas, as especialidades. Os mapas semelhantes ao que o cabo traçara eram um verdadeiro perigo para as pessoas tranquilamente instaladas na vida.

 

O sargento cozinheiro saiu do gabinete, regressou à cozinha e pelo postigo que servia para passar os pratos deitou um olhar para o refeitório. Asch abandonara, ou, pelo menos, interrompera, a escrituração do mapa. Mandava despejar os restos nos baldes e trazer água quente para a lavagem dos pratos. Trabalhava, pois, e quem trabalha não tem maus pensamentos. Tinha de lhe arranjar outras ocupações.

 

Com este fim o sargento mandou embora Kowalski e os ajudantes de cozinha. Depois desapareceu na copa para arranjar uma sanduíche de presunto. Resolveu abrir uma lata de conserva de pêssegos, a fim de verificar a qualidade dos frutos. Mas antes que o fizesse ouviu bater violentamente à porta.

 

Que temos?  perguntou num tom irritado.

 

Sai  disse uma voz clara de mulher.

 

Era uma das mulheres da cozinha, Lisbeth, uma rapariga entroncada, que lhe arrumava normalmente o quarto e, quando ele o desejava, se ocupava também dele.

 

Abriu

 

Não berres dessa maneira  resmungou.  Ninguém te faz mal.

 

Trata de subir. O cabo continua com histórias.

 

O sargento trepou como um relâmpago. No refeitório, Asch e os ajudantes almoçavam tranquilamente. As mulheres da cozinha rodeavam-nos agitadas.

 

O subalterno deitou um olhar em volta. À primeira vista nada achou de extraordinário.

 

Que é que esse animal está a fazer ainda?  perguntou.

 

Considerando que não era a ele que estas palavras eram dirigidas, Asch continuou a comer descansadamente. Uma das mulheres explicou, febril:

 

Recusa-se a limpar o refeitório.

 

O sargento postou-se diante do cabo.

 

Recusa?  perguntou.

 

Claro. Não sabia ainda que as mulheres da cozinha podiam dar ordens aos soldados.

 

Pois então sou eu que lhe dou a ordem.

 

Permite-me que lhe observe que se trata de uma ordem que nada tem que ver com o serviço? Percorri o regulamento das cozinhas, que está ali pendurado. Segundo ele, os soldados de faxina têm apenas de limpar as mesas, lavar os pratos, recolher os restos e despejá-los nas latas do lixo.

 

A limpeza do refeitório, e, por consequência, a lavagem do pavimento, é com as mulheres da cozinha.

 

Os soldados ajudaram-nos sempre até agora!  exclamou uma mulher, redonda como um tonel.

 

Se foram bastante estúpidos para o fazer, isso é com eles. Connosco não vai da mesma maneira.

 

O sargento, que até aí fora o senhor indiscutido da cozinha, um semideus para as mulheres da limpeza, um subalterno orgulhoso do seu posto, apaixonado pela disciplina, esteve prestes a rebentar.

 

Pedaço de asno! Que pensas tu, meu malandro? Que julgas tu, meu idiota? Não sabes a quem falas?

 

Sei  respondeu Asch, olhando-o com curiosidade.

 

Então levante-se, peço-lhe. E ponha-se em sentido quando um subalterno lhe fala. E abra um pouco as orelhas.  Ordeno-lhe que varra imediatamente o refeitório. I-me-di-a-ta-men-te! Senão, participo: recusa à obediência!

 

Asch estava bem decidido a não se deixar perturbar. Não lhe era fácil. Sentia os joelhos fraquejarem, o que era verdadeiramente incómodo. Mas concentrou as suas forças e obrigou-se a permanecer imperturbável.

 

Recusa-se a obedecer à minha ordem?

 

Se faz questão, executá-la-ei, embora não exista nenhum motivo de serviço. Mas advirto-o de que apresentarei uma reclamação.

 

Há-de pagar-me isto!  berrou o sargento.

 

É uma ameaça?

 

Vou participar... vou pedir um castigo.

 

E fazendo meia volta afastou-se a passos largos. Asch voltou a sentar-se.

 

Continuemos a comer  disse para os soldados. Quando tivermos acabado vamo-nos embora.

 

E o refeitório?  perguntou uma voz furiosa.

 

Isso é convosco. Bem vistas as coisas, é para isso que vos pagam.

 

O sargento cozinheiro correu a procurar o sargento-ajudante. Achou-o a calcular o emprego das munições da véspera. Não dava certo. Sempre a mesma coisa. E isto irritava-o para além de todos os limites.

 

Ouviu bastante distraidamente a participação do subalterno: não podia suportar este intruso, que tirara à sua bateria um posto tão importante. Levantou os olhos do registo de tiro, que não conseguia arrumar, e começou a sorrir: um sorriso céptico e sem amabilidade.

 

Conte-me isso mais uma vez  pediu.

 

O sargento refez de novo a participação, que ele supunha ser de natureza a fazer eriçar os cabelos da cabeça. Mas Schulz interrompeu-o num tom acerbo:

 

Você é maluco, sargento. O segundo-cabo Asch é um dos meus melhores soldados, um dos mais dignos de confiança.

 

Mas ele pesou segunda vez as rações e recusou-se a varrer o chão.

 

Verei isso. Se faz questão, eu verei isso. Mas, ai de si, sargento, se eu vier a descobrir que você procura implicar com os soldados da minha bateria. E se, além disso, o peso das rações não é exacto, se os meus soldados são obrigados a fazer o trabalho das suas mulheres da limpeza, farei uma participação ao destacamento e você irá ao ar... Vamos, pense bem. Faz questão de que eu verifique?

 

Mas, meu ajudante, esse cabo...

 

Sim ou não?

 

O sargento suava. Abanou a cabeça. Depois ficou empertigado como uma estátua de cera. Pareceu-lhe que não podia mais adaptar-se a esta vida. Numa voz estrangulada declarou:

 

Retiro a participação.

 

Elisabeth Freitag ora se sentia transportada por uma vaga de contentamento ora se afundava numa doce melancolia. Nunca experimentara isto antes e aceitava-o agora com uma surpresa maravilhada. Uma rapariga mais sentimental teria dito: «Estou apaixonada.» Ela apenas dizia: «Há qualquer coisa que não vai como de costume.»

 

O seu trabalho na caserna, que geralmente lhe parecia monótono, afigurava-se-lhe agora extremamente divertido e mesmo um pouco excitante. Enquanto ia lavando os copos pensava: «A todo o momento a porta pode abrir-se, e qualquer coisa surpreendente, extraordinária e, decerto, agradável vai acontecer. Em suma: Herbert Asch vai aparecer.»

 

Herbert apareceu um pouco antes do fim do descanso do meio-dia. Elisabeth ficou convencida de que corara, o que não era o caso, bem entendido, e simulou indiferença.

 

Uma visita rara!  exclamou. Ele apertou-lhe a mão.

 

Tenho de me ir já embora  afirmou.  Queria apenas dizer-te que irei a tua casa esta noite.

 

Que honra!  exclamou Elisabeth pouco satisfeita por aquela pressa evidente e por tão pouca ternura.  Será preciso pôr uma grinalda de flores à entrada?

 

Vamos, vamos!  disse Herbert.  Não faças cara de ofendida. Não tenho tempo. Passa-se uma quantidade de coisas.

 

Também me parece  respondeu ela, picada.  Tens imenso que fazer. Sinto-me profundamente sensibilizada por ver que, apesar disso, arranjaste um minuto para me dizeres bom dia».

 

Talvez ainda passe outra vez. Senão, ver-nos-emos esta noite, em tua casa. Peço-te que digas a teu pai que preciso de falar-lhe.

 

Não tens outras incumbências para mim? Não? E porque queres tu falar a meu pai? Espero que não seja a meu respeito.

 

Mas Herbert estava já junto da porta. Sorriu enquanto a olhava; contudo, Elisabeth notou perfeitamente que neste sorriso nada havia da despreocupada ternura dos outros dias.

 

Não, não é a teu respeito que quero falar-lhe. Creio que já não é muito necessário.

 

Já me riscaste dos teus papéis? Ou julgarás que és já o meu senhor?

 

Tenho pressa. Quando dispuser de mais tempo falaremos disso em pormenor.

 

E quando será?

 

Espero que seja em breve, Elisabeth. Quando tudo o que se passa neste momento tiver acabado.

 

Que queres dizer?

 

Tenho de ir. Até à vista, Betty.

 

Eu não sou nenhum cavalo!  gritou ela, furiosa. Betty é nome de cavalo. Voltas a passar por aqui?

 

Se for possível, com todo o gosto, Betty! E fechou a porta atrás dele.

 

Ela ouviu o ruído das botas cardadas na escada de pedra. Abanou a cabeça. Não sabia exactamente o que devia pensar dele. E logo descobriu que não podia querer-lhe mal por isso, o que a exasperava.

 

Pôs em ordem os talões de mercadorias vendidas que se tinham acumulado durante o descanso do meio-dia. O negócio parecia ter caminhado melhor que de costume. Os oficiais subalternos da 3.ª bateria, sobretudo, tinham comido muito e bebido mais ainda, principalmente bebidas refrescantes. A avaliar pelas suas palavras, parecia que a festa da noite anterior não os fatigara pouco.

 

O cantineiro Bandurski entrou na sala, agora vazia. Afectava jovialidade, o que era inquietante; sorriu familiarmente para a empregada e perguntou:

 

Então, menina Elisabeth, quanto já fez?

 

Até agora 38 marcos e 40.

 

Não está mal  disse Bandurski, satisfeito.  Está mesmo muito bem. A menina Elisabeth é a minha melhor empregada. Ficaria desolado se a perdesse.

 

Só me perderá se me mandar embora.

 

Minha querida menina Elisabeth  declarou Bandurski prontamente, estendendo os braços como para repelir uma suspeita --, se eu fizesse isso, seria para mim uma perda sensível. Digo-lhe com franqueza. Não posso despedi-la, não penso nisso sequer; mas é preciso que não me obrigue a fazê-lo.

 

Que devo compreender no que me diz?

 

O cantineiro, ao mesmo tempo que parecia observar com interesse os talões que Elisabeth lhe entregara, foi dizendo:

 

Que se passa, realmente, com esse cabo da 3.ª bateria? Asch, creio que é o nome dele. Vi-o bastantes vezes consigo nestes últimos tempos.

 

Isso, Sr. Bandurski, não lhe diz respeito.

 

Não interprete mal a minha pergunta. Não tenho a menor intenção de me meter nas suas questões íntimas. Mas gosto pouco de complicações.

 

Sei o que faço.

 

Decerto, decerto. Mas isto aqui é a cantina dos subalternos, e quando a menina aqui trabalha é para os subalternos. O negócio antes de tudo.

 

Tenho descurado o meu trabalho?

 

Ah, não! De modo algum! É um verdadeiro modelo. E eu faço questão de que as coisas se mantenham assim. No entanto, receio aborrecimentos se continua a ocupar-se desse cabo.

 

Porquê?

 

Menina Elisabeth, eu sou um antigo soldado. Conheço a vida da caserna como a palma das mãos. E não me deixo levar com facilidade. Ganho bem a minha vida. Só houve uma altura em que isto caminhou mal, quando o sargento -ajudante procurou deitar-me abaixo a todo o custo; foi só por uma unha negra que não vi o negócio perdido. Não quero voltar a passar por isso.

 

Mas que relação tem com o cabo Asch?...

 

Muita, minha querida menina. Esse cabo teve o atrevimento de fazer hoje uma coisa que eu nunca tinha visto: pediu emprestada a balança para verificar o peso das rações. Depois provocou uma questão com o sargento da cozinha, e isso já era uma sublevação. Dou-lhe a minha palavra de honra que nunca vi tal coisa.

 

Mas porque o fez ele?  perguntou Elisabeth, incrédula.

 

Pergunta bem  respondeu o cantineiro. encolhendo os ombros.  Julga que a questão ficará por aqui? E, mesmo, se ficar, quem sabe o que virá a suceder agora? Escolher este rapaz entre mil soldados é pouca sorte para mim, para si e para não sei quem mais.

 

Vê as coisas muito negras.

 

Esperemos que tenha razão. Não posso fazer mais que preveni-la. E peço-lhe um favor, menina Elisabeth: pense na minha casa. Se não pode renunciar a esse rapaz, leve-o ao bom caminho. Ficaria verdadeiramente desolado se a perdesse.

 

Bandurski parecia realmente inquieto. Fez um gesto amigável à empregada, como para lhe dar coragem, e saiu.

 

Elisabeth estava um pouco alarmada, um pouco surpreendida, um pouco divertida. Não julgara Herbert capaz do que tinham acabado de contar-lhe. Era evidente que ele tinha qualidades que ainda não lhe descobrira. Isto excitava-lhe a curiosidade.

 

Era perto das três horas. Nesse momento só alguns subalternos da administração vinham à cantina. Das cinco às oito horas haveria outra vez gente e às oito horas vinha o cantineiro pessoalmente substituí-la.

 

Pensava em Herbert. Sabia muitas coisas dele, mas não tudo; vivera com ele momentos de absoluta lealdade e, no entanto, ele permanecia um enigma. Elisabeth sorria e pensava que ainda bem que assim era: teria sempre qualquer coisa a adivinhar, nunca se aborreceria perto dele. Fora mais ou menos o que sua mãe lhe dissera um dia em que pedira que lhe falasse do pai.

 

Pouco depois das três horas Schulz chegou à cantina.

 

Parecia estar com um humor execrável. Deixou-se cair numa cadeira, gritando:

 

Tenho a cabeça como um caixote do lixo. Que é que se pode fazer contra isto?

 

Elisabeth, achando oportuno falar amavelmente a este cliente difícil, quanto mais não fosse por causa de Herbert, respondeu:

 

As senhoras idosas tomariam uma aspirina. Mas o senhor, tal como o conheço, do que precisa é duma caneca bem cheia.

 

Isso  mesmo!  exclamou  o  brigadas  examinando Elisabeth com um olhar afável.

 

Ela agradava-lhe ainda, continuava a agradar-lhe. Era atraente e contudo parecia honesta, o que era raro. «com esta é que eu deveria ter casado, e não com aquela gata vadia.»

 

Elisabeth trouxe-lhe a cerveja e disse: «À sua saúde», e, contrariamente ao seu costume, deixou-se ficar junto da mesa, sorrindo com amabilidade.

 

Schulz sorveu uma boa golada, primeiro com uma expressão séria, depois com visível regozijo.

 

Ah!  exclamou, radiante , isto espuma!  Pousou o copo e pareceu mais amável um grau:  Não quer sentar-se ao pé de mim?  perguntou.  Eu não mordo.

 

Nem eu me deixo morder  disse Elisabeth, esforçando-se por se mostrar alegre.  Sento-me com gosto perto de si um momento. Uma vez que não há outros clientes, posso fazê-lo.

 

Por mim pode pôr lá fora um letreiro: «Fechado por motivo de festa de família»  disse Schulz com riso breve.

 

Elisabeth sentou-se perto dele. Inclinando-se, perguntou:

 

Aborrecimentos?

 

Aborrecimentos, como sempre  respondeu ele, acenando com a cabeça.  Em parte é inevitável. Nem todos os subalternos são águias; a maior parte são uns pobres diabos.

 

Mas mesmo assim o senhor sai-se bem.

 

Lá isso!  exclamou ele, engolindo sem pestanejar este cumprimento maciço.

 

A simpatia e a confiança desta gentil criatura sentada perto dele faziam-lhe bem. «com ela pode-se conversar. É uma mulher que me compreende, sente-se logo.»

 

Outra cerveja.  Bebeu e limpou a boca à manga do casaco.  Sim  continuou , nem sempre é cómodo. Às vezes os melhores falham o tiro. Agora faltam-nos seis cartuchos. Imagine bem: seis cartuchos! Impossível saber onde se meteram.

 

Talvez os tenham perdido.

 

Perdido?perguntou, sorrindo da ingenuidade. Isso não acontece, não pode acontecer. Esteja descansada que os encontraremos. E se preciso for eu me ocuparei do caso.

 

Não será assim tão grave como isso.

 

Também o espero... Consigo pode-se conversar acrescentou familiarmente.

 

Pôs uma das suas grossas patas no braço de Elisabeth e verificou com satisfação que ela não se esquivava. Tomou isto por bom sinal e sentiu um verdadeiro prazer.

 

Diga-me  perguntou, de súbito, acha-me antipático? Ou não?

 

Surpreendida, Elisabeth recuou um pouco, esforçando-se por não o deixar ver.

 

Que pergunta tão esquisita  disse.  Decerto que o acho simpático, mesmo muito.

 

É o que eu queria saber  disse ele, segurando-lhe docemente o braço. Ela consentiu, o que o tornou feliz. Pode realmente imaginar que alguém me engane, quero dizer, que uma mulher me possa enganar?

 

A sua?

 

Não. Falo duma maneira geral. Teoricamente, por assim dizer. Vejamos, pode imaginar isso?

 

Não, de modo algum. As mulheres são muito, mais fiéis do que se pensa.

 

Acha?

 

Estou convencida. As mulheres gostam de brincar. Sentem-se felizes quando o homem a quem amam se mostra ciumento. Vêem nisso um sinal de verdadeira afeição.

 

Ah! Ah! Pensa que isso existe?

 

Schulz olhou a porta que acabava de abrir-se. Apareceu um cabo, que se deixou ficar, olhando.

 

Quer alguma coisa, Asch?  perguntou o brigadas. Elisabeth retirou rapidamente o braço. Parecia muito

 

embaraçada. Schulz sorriu.

 

Procuro o alferes Wedelmann  respondeu Asch habilmente.

 

Aqui não está  exclamou Schulz.  Era só o que me faltava...

 

Quando Herbert fechou a porta Schulz virou-se para Elisabeth:

 

Não esteja inquieta. Este rapaz é um moço decente.

 

Não me custa acreditar. Vê-se bem que conhece os homens.

 

Decerto  respondeu o brigadas modestamente. No que respeita às mulheres é que nem sempre assim é. São tão complicadas! E daí talvez não. Talvez não sejam senão estúpidas.

 

Em amor isso acontece-nos muitas vezes  disse Elisabeth amavelmente. ”

 

Não a preocupava muito o ter sido vista assim com Schulz. Esperava que Herbert se tornasse um pouco ciumento, o que só lhe faria bem. Além disso, sentia-se muito satisfeita por saber que o sargento-ajudante nada tinha contra o seu amigo e que, pelo contrário, o elogiava.

 

Schulz continuava a pensar na noite anterior. Não conseguia acalmar-se, fizesse o que fizesse.

 

A verdade  dizia ele  é que eu sou alguém. Serei talvez um dia oficial. Se houver guerra, por exemplo. Sei mais que muitos capitães e posso mais que eles. A mim não me enrolam.

 

Decerto que não.

 

Não me enganaria, a menina?

 

Se o amasse, não.

 

Schulz acenava afirmativamente com ar convicto. Olhou outra vez para a porta que acabava de abrir-se.

 

O alferes Wedelmann apareceu à entrada. O sargento-ajudante endireitou-se e fitou-o. Wedelmann hesitou: não sabia se devia avançar ou não.

 

Aqui é a cantina dos subalternos  disse Schulz com

 

uma voz glacial.

 

Queria falar à menina Freitag  disse o outro, embaraçado.

 

Há pessoas  disse Schulz para Elisabeth, em voz baixa, mas sem procurar dissimular a cólera , há pessoas que metem o nariz en toda a parte.

 

O  alferes «encaixou» sem abrir a boca.  Inclinou-se diante de Elisabeth e retirou-se.

 

Mas o  senhor  disse Elisabeth,  assustada  não pode tratar assim um oficial.

 

Posso... com este posso fazer muitas coisas, se quiser... E quero.

 

O primeiro-sargento Platzek, Platzek Pele de Vaca, suava sangue e água. Os seis cartuchos que faltavam provocavam-lhe infernais tormentos. Impossível encontrá-los, impossível saber o que tinham feito deles. Por mais trabalho que tivesse, tudo parecia inútil.

 

Os registos eram documentos oficiais que não podiam ser suprimidos. Neles se podia ler o número exacto das munições distribuídas e utilizadas. Daí se concluía o número de cartuchos que não tinham servido e que, consequentemente, deviam voltar ao depósito. Mas o total definitivo não batia certo: faltavam-lhe seis cartuchos.

 

Platzek via-se já a limpar as retretes do presídio militar. A sua bem conhecida atitude presunçosa fora substituída por um profundo abatimento. Tinha um aspecto sombrio, berrava contra todos os que lhe cruzavam o caminho e parecia até um pouco nervoso.

 

O que mais o irritava era ver que ninguém queria aliviá-lo ao menos de uma parte do seu fardo. E não deixava de qualificar isto de falta de espírito de camaradagem. Nessa quinta-feira a sua concepção assaz simplista da vida militar foi fortemente abalada. O que o perturbava era verificar que ele, o instrutor modelo, muitas vezes imitado, nunca igualado, fora abandonado a si mesmo na sua primeira encrenca. Dera cem, talvez cem mil provas, da sua capacidade. Isso não contava. Uma única asneira, e ei-lo em maus lençóis.

 

Ouve-me, Schulz, eu bem sei que é uma vigarice, mas não se poderia simplesmente fazer desaparecer o registo, ou arranjar outra maneira qualquer? Ou então nada fazer até ao próximo exercício de tiro e lançar nessa altura os seis cartuchos que faltam? Que dizes tu a isto?

 

Não ouvi o que acabaste de dizer, não quero ter ouvido. Espero o registo. Tenho de o apresentar ao capitão, mas não esperarei muito tempo. É preciso que tudo esteja em ordem, senão haverá o diabo. Quando desaparecerem munições tem de se apresentar uma participação. Queria poupar-te a isso.

 

Vejamos, Schulz; por causa de seis desgraçados cartuchos!

 

Sou sargento-ajudante. com seis cartuchos desgraçados podem ser abatidos seis subalternos.

 

Platzek foi ter com o sargento espingardeiro, de quem o primeiro-cabo Kowalski era encartado ajudante. O primeiro-sargento mostrou-se tal como andava: descontente e inquieto. Pele de Vaca pareceu pouco surpreendido por verificar que a sua visita não era considerada uma honra, mas antes um contratempo.

 

O subalterno e o seu ajudante estavam sentados no chão, no meio das armas. Cheirava a óleo e também um pouco a tabaco, embora fosse estritamente proibido fumar. Mas Platzek não pensava nesse momento em protestar contra esta infracção à disciplina.

 

Ouçam-me  começou ele com a sua voz grossa, para disfarçar o seu estado de espírito, vocês sabem a chatice que me aconteceu com os cartuchos.

 

Uma verdadeira espiga  disse Kowalski, mostrando-se compadecido.

 

O segundo-sargento parecia reflectir. Não era muito amigo de Platzek, porque este por mais duma vez, o havia causticado segundo todas as regras da arte, quando não era ainda segundo-sargento. E não considerava isto uma agradável recordação.

 

Que pensa disto, sargento? Será possível arrumar esta questão?

 

Que questão?  perguntou o outro fazendo-se imbecil, o que, aliás, lhe calhava à maravilha.

 

É muito simples. Preciso de seis cartuchos. Ora você tem com certeza alguns surripiados...

 

É-se castigado quando se surripiam munições. Tinha-os, bem entendido, mas não para um indivíduo como Platzek.

 

E os seus colegas das outras baterias? Ou o tipo que está encarregado do depósito da divisão? Deve haver com certeza alguém que tenha posto de parte alguns cartuchos...

 

O segundo-sargento teve um sorriso para o seu camarada Kowalski. Os outros também metiam a unha. Mas não para Platzek.

 

Esses também não se arriscarão a ser punidos.

 

O papel de suplicante não agradava muito ao sargento. Sentia-se diminuído, o que ofendia o seu orgulho.

 

Você não quer, não é?  perguntou, furioso.

 

O outro compreendeu que havia nesta frase uma ameaça séria. Reflectiu na maneira de responder. Pensou em arranjar os seis cartuchos a Platzek, que, com isso, lhe ficaria a dever um favor. Quem sabia a utilidade que daí poderia vir a tirar?

 

Mas antes que, com todas as reservas necessárias, fizesse uma promessa, Kowalski interveio:

 

No fim de contas, a coisa não é assim tão complicada, meu sargento. Só tem de emendar o registo.

 

Não pode ser respondeu o sargento. Está tudo escrito a tinta.

 

Há, contudo, modificações feitas pelo auxiliar e que o sargento de serviço na carreira confirma com a sua assinatura.

 

Isso já é possível  disse Platzek, que via despontar um clarão salvador.

 

Se tal coisa se sabe  notou o sargento espingardeiro , é uma falsificação de documentos.

 

Como será possível saber-se?

 

Se se fizer com habilidade  declarou Kowalski, ninguém irá pensar. Admitamos, por exemplo, que o primeiro atirador procedeu por ordem inversa da que o regulamento prescreve, quer dizer: primeiro, de pé; segundo, de joelhos, e, terceiro, deitado. Isto pode acontecer. Ele dá outros seis tiros e os primeiros seis são riscados. São estes muito simplesmente, os seis que faltam.

 

Não é má ideia  reconheceu Platzek.

 

É até muito simples  afirmou Kowalski.  Basta convencer quem escriturou o registo ao princípio a escrever essa... hum.’... essa modificação. E o cabo Asch não é tão mesquinho que se recuse, se se proceder com habilidade.

 

Encarrego-me   disso  replicou   Platzek,   radiante. Que diz a isto, sargento?

 

Eu cá não sei nada. Nunca ouvi falar em tal.

 

Eu também não  declarou Kowalski.

 

Espero que assim seja  concluiu Platzek, que recobrara já boa parte da sua confiança em si mesmo.

 

Saiu do depósito de armas e pôs-se à procura de Herbert.

 

Este encontrava-se, como sempre, com o primeiro-sargento Werktreu no depósito de fardamento. Arranjara maneira de ter consigo o artilheiro Vierbein, a quem queria dar uma lição sobre o modo de lidar com os superiores. Mas não conseguia fazer sair o sargento da sua calma.

 

O trabalho que nós fazemos aqui  disse Asch com ar provocante  é nojento.  Verificou com prazer que Vierbein apurava o ouvido.  Um trabalho estúpido, só bom para idiotas.

 

- É por isso mesmo que lho mandam fazer  respondeu Werktreu em tom pacífico. Não imaginava que aquelas palavras pudessem aplicar-se a ele. Pensava na «pega» com quem tinha um encontro marcado nessa noite: bem carnuda, sempre satisfeita e estúpida como uma porta, qualquer coisa de perfeito para um amor sólido.

 

Mas o cabo não largava o seu bocado:

 

O senhor não é um autêntico soldado, mas sim uma espécie de antiquário, um trapeiro um pouco mais distinto.

 

Podia bem poupar-me a essas observações  disse o sargento sem se deixar perturbar.

 

Asch olhava Vierbein que o observava com um espanto sem limites. Este nunca ouvira dizer -semelhantes coisas a um superior desde que usava uniforme. Tinha medo pelo amigo.

 

Mas Werktreu, na previsão das alegrias da noite, e que, além disso, tinha necessidade de dinheiro para preparar a sua ofensiva, não pensava em formalizar-se.

 

Que diz a uma partidinha?  perguntou.

 

Quer depenar outra vez um dos seus subordinados?

 

Hoje está para brincadeiras, já vi.

 

A não ser que me queira cravar com algum empréstimo...

 

Talvez. Mas antes de mais nada joguemos algumas partidas de vinte-e-um. Se eu perder, pode abrir o seu porta-moedas. E que diz a uma garrafa por preço reduzido, se for com a minha boneca ao seu café?

 

Ainda por cima, quer mendigar?

 

Vamos primeiro a uma partida. Aqui estão as cartas. Eu é que fico com a caixa. Venha.

 

Na verdade, nada havia a esperar de Werktreu. Isto não era um chefe. Quando muito, um compincha de bebedeirografia.

 

Asch quis ainda fazer uma tentativa antes de renunciar a fazer sair dos gonzos o sargento. Sentou-se, bateu nas cartas e disse:

 

Não jogo com estas. Estão viciadas.

 

Nem esta desonrosa acusação conseguiu fazer saltar Werktreu: precisava de «massa» para essa noite, o resto não interessava.

 

Bem, bem!  respondeu.  vou buscar outras. Vierbein aproximou-se do amigo:

 

Tu não podes falar dessa maneira  disse num ton reprovador.  Não é assim que se procede com um su. perior.

 

Se não tens outras preocupações...

 

É preciso prudência. Essas coisas não se fazem

 

Mas que foi que te deu? Serás tu maluco? Primeiro conduzes-te como um cagarola, agora metes-te a pregar moral. És verdadeiramente incorrigível.

 

Impediste-me de fazer uma grossa asneira  disse Vierbein, lealmente.  Estou-te reconhecido. Compreendi que tinha de aguentar.  Compreendi-o perfeitamente E estou um homem diferente. Doravante farei o meu dever, por penoso que ele seja, mesmo que esteja convencido de que são injustos comigo. E não posso suportar que trates dessa maneira um superior.

 

Sabes o que tu és? Um olho do cu  respondeu Herbert grosseiramente.

 

Esta conversa foi interrompida porque Werktreu reapareceu com as novas cartas. Herbert estava furioso. Sentia-se capaz de ”dar um pontapé no traseiro do amigo, de lhe partir a cara. «Que natureza servil! Escravo de caserna! Pigmeu de uniforme! E é por cagarolas destes que a gente se revolta? Não! Se a gente se revolta é para impedir que o número de medrosos aumente. Também e uma tarefa.»

 

Você,  seu espertalhão,  perdeu outra  vez  disse Werktreu, que começara já a jogar.  Ganho dois marcos Outra partida.

 

Mas o jogo, tão bem começado e que prometia trazer um agradável suplemento ao seu capital de festa, foi muito desagradàvelmente interrompido. O primeiro-sargento Platzek apareceu gritando:

 

Está aqui, cabo? Preciso absolutamente de si. Werktreu defendeu-se resolutamente:

 

Nem pensar! Preciso dele!

 

Ordem   do   sargento-ajudante!  declarou   Platzek com impudência.  Venha, Asch.

 

O cabo seguiu-o sem se fazer rogar. Já não podia ver a cara de Vierbein, além de que estava encantado por se ver livre de Werktreu, com quem nada se podia fazer e que lhe ganhara já perto de dez marcos.

 

Platzek, com uma delicadeza pouco habitual nele, levou Asch para o seu quarto, fê-lo sentar-se, perguntou-lhe se desejava um copo de aguardente, ou um cigarro, ou uma cerveja. «Não?»

 

Falando noutra coisa: como vai isso, meu caro? perguntou. Soube que foi proposto para segundo-sargento. Parabéns. Estou absolutamente de acordo.

 

Que  quer  de  mim?  perguntou Herbert  calmamente.

 

Platzek estendeu sobre a cama o registo de tiro que escondera debaixo da almofada.

 

Foi você quem o escriturou?

 

Sim  respondeu Asch, que compreendeu imediatamente o que se ia passar.  As primeiras inscrições são minhas.

 

O cálculo não está exacto  disse Platzek com familiaridade.  Faltam seis tiros. Que diz a isto?

 

Basta simplesmente acrescentar esses seis tiros. Platzek irradiava satisfação. Estava convencido de ter

 

achado o que precisava.

 

É  um  rapaz inteligente.  Um verdadeiro sargento nato. Quer fazer essa emenda? É preciso que seja da mesma mão. Depois porei por baixo a minha assinatura.

 

Porque não?  perguntou Asch, indiferente na aparência.  Dê cá!

 

Ambos se inclinaram sobre o registo do tiro. Platzek estava fora de si de contentamento. A coisa caminhava melhor do que pensara, muito melhor do que jamais esperara. Este cabo Asch era na verdade uma maravilha!

 

Asch procedeu exactamente consoante as indicações do sargento. Fê-lo com calma, concentrando-se. Riscou seis números e acrescentou seis. Escreveu a seguinte nota: «Números riscados porque haviam sido erradamente inscritos. O soldado disparou por ordem inversa da determinada pelo regulamento e teve de recomeçar. Assinado... (primeiro-sargento).»

 

Esplêndido!  disse Platzek esfregando as mãos. Agora a minha assinatura.

 

Assinou duas vezes com cuidado e clareza e fez um belo floreado final. Depois sorriu, satisfeito. Parecia liberto dum pesadelo.

 

Ora aí está! Fizemos o que era necessário.

 

Asch endireitou-se. Piscou o olho e disse negligentemente:

 

É aquilo a que se chama uma falsificação de documentos oficiais.

 

Uma  pequena  modificação  disse Platzek,  rindo como um conjurado que fizesse passar a taça em volta.

 

Não, uma falsificação  insistiu o cabo.  Uma falsificação prevista no Código Criminal Militar.

 

Deixe-se . de  brincadeiras  disse  Platzek.   ligeiramente perturbado.  E que seja! No fim de contas, você é meu cúmplice, camaradinha.

 

Está enganado. O que eu escrevi não tem qualquer valor. Só a sua assinatura é que conta.

 

Não diga asneiras.

 

Quer experimentar? Por mim, estou pronto quando quiser.

 

O primeiro-sargento Platzek, o homem de ferro, Pele de Vaca, o tirano que todos temiam, estava perplexo. Lentamente descobrira que tinha trocado um cavalo zarolho por um cavalo cego. Ao princípio indignou-se:

 

Como se permite falar-me? Fala-me num tom que...

 

É justamente o que queria dizer-lhe  declarou Herbert friamente.  Parece não compreender a situação em que se meteu.

 

Malandro!  berrou Platzek, fazendo menção de se atirar   ao   interlocutor.  Miserável!  Depois   calou-se, com a boca escancarada, sem que o menor som se ouvisse.

 

Diga... Não se acanhe  aconselhou o cabo.

 

Platzek não era muito inteligente; ele próprio se considerava um homem de acção. Mas não era um imbecil. Era até bastante finório. Não teve ilusões: caíra numa ratoeira.

 

Nesse dia todo um mundo desabara à sua volta. Os seus camaradas tinham-no abandonado. E eis que um descarado subordinado o assassinava moralmente e o tratava como um papel de limpar o rabo. Era de mais! Um homem corajoso não podia suportar isto. E, no entanto, assim era

 

Platzek baixou a cabeça e deixou-se cair na cama, desesperado.

 

Prefiro-o assim  disse Asch, impiedoso.

 

Platzek tremia de raiva. Em todo ele vibrava o desejo de se atirar ao seu antagonista e esmagá-lo. Mas Asch não era um alfenim; também não era cobarde, como acabava de demonstrar. E depois seria um acto de violência contra um subordinado. E se o caso do registo de tiro fosse conhecido era o conselho de guerra, a degradação, a prisão... Cerrou os dentes.

 

Ora aí está!  disse Asch, sem no entanto pôr nas suas  palavras   a   menor   acentuação  de   triunfo.  Está pronto a fazer não importa o quê para conservar o seu posto. Quer ser um modelo. Quer estar bem visto pelos superiores. E para tanto está disposto a fazer tudo! Tudo. Perseguir as pessoas, falsificar documentos, empurrar soldados para o suicídio. Este é um dos lados da medalha. E o reverso é executar as ordens.

 

Que quer de mim?  perguntou Platzek numa voz surda.

 

De momento quero que se comporte como um ser mais ou menos civilizado, e não como um carniceiro enfurecido. O resto far-lho-ei saber na devida altura.

 

Foi nesse dia que dispararam o primeiro tiro.

 

O Sol pusera-se. Nuvens carregadas de chuva cobriam o céu e absorviam a luz do dia. Eram vinte horas e dezoito minutos.

 

Um pouco antes o sargento-ajudante Schulz estava confortàvelmente sentado no seu gabinete. Gostava às vezes de trabalhar durante muito tempo depois das horas de serviço. E tratava sempre de proceder de modo que os soldados o vissem: trabalhava com todas as janelas abertas e com uma iluminação de festa. Quem quer que passasse diante do gabinete podia vê-lo à mesa.

 

Escusado seria dizer que, se o quisesse, poderia ter terminado muito mais cedo a sua tarefa. Mas a questão é que ele não queria. Durante as horas de serviço rodava pela caserna, ia à cantina ou ia ter com a mulher. Logo que o serviço acabava, começava a trabalhar, ou, pelo menos, a fingir que trabalhava.

 

Recebeu o registo das mãos de Platzek, folheou-o, leu as emendas, depois olhou o camarada, que se mantinha diante dele em silêncio e com sombria expressão.

 

Foi à justa! Isto impressiona bem.

 

Então o caso está arrumado?  perguntou o outro num tom de mau humor.

 

Parece que sim. O registo está em ordem. Para mim é o principal. Esperemos que os seis cartuchos não reapareçam.

 

Que queres tu dizer?

 

Quê quero dizer? É muito simples Suponhamos que esses cartuchos, ou alguns deles, reaparecem. Alguém que se suicida, ou mata um rival, ou abate um paisano a quem deva dinheiro, ou arrefece o céu da boca a uma tipa que lhe tenha pegado a sífilis... que sei eu? Pode muito bem acontecer. Inquérito. E então descobre-se que a bala foi subtraída na carreira de tiro vigiada por um certo Platzek. E depois?

 

Não faças tu, também, as coisas mais feias do que já são.

 

Eu também? Quem é que já as fez mais feias do que são?

 

Platzek não respondeu. Fitava com um olhar embrutecido o brigadas, afundado na sua cadeira. Depois disse:

 

Então posso retirar-me?

 

Se quiseres  respondeu Schulz, convencido de que o humilhara.

 

Isto não podia fazer-lhe mal.

 

Repimpado diante da mesa, o brigadas mostrava cada vez mais a sua superioridade. Tinha na mão Wedelmann, esse arrogante pretensioso. A mulher arrulhava à sua volta. Vierbein saltava como um coelho. O sargento cozinheiro fora de pernas ao ar e fazia já as bagagens, substituído por um sargento da 3.ª bateria.

 

Schulz levantou o auscultador, chamou o sargento de semana e disse-lhe:

 

«O ordenança do alferes Wedelmann é substituído imediatamente por Wagner.»

 

Ouviu a resposta sorrindo e acrescentou:

 

«Que Wagner seja incapaz ou não, é a mim que isso respeita. A não ser que o sargento-ajudante seja você... Bem, então... Ponha-se a mexer e vá comunicar ao alferes Wedelmann o que eu decidi, dizendo-lhe expressamente que fui eu quem decidiu assim. Percebido?»

 

Esfregou as mãos e fez estalar os dedos. Também tinha destas pequenas satisfações.

 

Abriu a gaveta da secretária, tirou um rolo de papel higiénico e rasgou três grandes bocados, que dobrou cuidadosamente um sobre o outro. Depois, levantou-se com um ar dominador, deitou um rápido olhar para a escuridão que caía e, num passo marcial, deixou o gabinete. Contudo não se dirigiu logo para as retretes do corredor de baixo, onde, duas vezes por dia, desaparecia por detrás da porta «Só para subalternos». À entrada da sua casa gritou:

 

Às oito e meia uma cerveja, um charuto e o jornal. Lore, a quem esta ordem se dirigia, não respondeu.

 

Percebido?

 

Sim, percebido  respondeu ela num tom pouco amável.

 

O sargento-ajudante fechou a porta e dirigiu-se aos lavabos. Eram oito horas e um quarto. Podia portanto demorar-se, ler o Jornal do Soldado que ali estava pendurado e, calhando, ouvir o que se dizia nas retretes ao lado.

 

Antes de entrar acendeu um cigarro, à janela, e atirou fora o fósforo, prometendo a si mesmo verificar na manhã seguinte se o teriam varrido.

 

Depois encaminhou-se para a terceira porta, de que ele próprio possuía a chave. De súbito ouviu um ruído seco, semelhante a uma chicotada. Um vidro estilhaçou-se e caiu com um som claro. Houve um esboroar de estuque.

 

Schulz deu um salto, abriu a porta, parou. Uma vidraça estava partida. O tecto aparecia largamente esfolado. A porta das retretes abriu-se bruscamente e Schwitzke, o Lagarto, apareceu.

 

Que se passa?  perguntou num tom importante. Foi só então que reconheceu o homem que abotoava o fato.

 

Foi o senhor quem atirou, meu ajudante?

 

Foi sobre mim que atiraram  respondeu Schulz atordoado, o que Schwitzke notou com surpresa.  Pela janela. Veja se há alguém.

 

Não há ninguém  declarou o sargento.

 

Deve haver alguém, com certeza!  berrou o brigadas.

 

_  Se alguém disparou dali  objectou Schwitzke não é de supor que tenha lá ficado.

 

O Lagarto estava muito descontente consigo mesmo. Secretamente maldizia a ideia que tivera de ver o que se passara. Estava no corredor quando o tiro soara. Devia ter simplesmente desaparecido e fingir que nada ouvira. A experiência demonstrara que era sempre o que havia de melhor a fazer. Pelo menos evitava contrariedades. Pois fora meter-se nas patas do brigadas!

 

É preciso fechar a caserna  disse o sargento-ajudante, evitando aproximar-se da janela aberta.

 

Porquê?  perguntou Schwitzke.  Para que pode servir isso?

 

Foi um atentado.

 

O Lagarto era um mestre na arte de tratar as coisas como bagatelas quando se tratava de evitar comoções e trabalho.

 

Vejamos,  meu  ajudante  respondeu   ingenuamente, quem poderia disparar contra si?

 

Tem razão, evidentemente  disse Schulz, hesitante.

 

Isso não deve ter importância. Alguém que limpava a espingarda.

 

Idiota... Limpar a espingarda. Lá fora, às escuras... E o cartucho?

 

Talvez uma sentinela. Acontece. As sentinelas têm cartuchos. Podem ter disparado um tiro por acaso. Já o ano passado aconteceu.

 

Corra  ao  corpo  da  guarda  ordenou  Schulz. Veja se as suas suposições são exactas.

 

Schwitzke não o fez. Iria gastar pelo menos um quarto de hora.

 

O tiro também pode provir duma pistola  disse. Os oficiais têm munições. Divertem-se a atirar todo o dia.

 

São bem capazes disso  disse Schulz.  Sobretudo Wedelmann.

 

Exactamente... Não pode ser senão isso. Que tenham disparado contra si, meu ajudante, é que deve ser completamente excluído.

 

Parece-me evidente  disse o brigadas, fazendo cara de convencido, embora o não estivesse, ao mesmo tempo que dizia consigo: «Isto não pode ser, isto não pode ser, isto não pode acontecer.»

 

Contudo  recomeçou , temos   de  ter  a  certeza. Arranje um segundo-sargento para o ajudar e venha ter comigo depois à entrada.

 

Muito bem, meu ajudante  respondeu Schwitzke, pouco se esforçando por esconder o seu despeito.

 

Foi procurar o sargento Lindenberg, que estava sempre disposto a prestar serviço.

 

Achou-o a estudar o regulamento.

 

É preciso vires já  disse-lhe.  O brigadas reclama-te.

 

Lindenberg levantou-se sem hesitar, enfiou as botas, vestiu o casaco, pôs o cinturão e o quépi e saiu a correr.

 

Schulz estava à entrada. Tomava nota de todos os que entravam e saíam e fazia-lhes perguntas embaraçosas. Via agora com clareza como era preciso tratar este caso extraordinário e quase perigoso.

 

Um tiro de espingarda havia sido disparado de fora. Era fácil de imaginar donde provinha o cartucho. Tratava-se de descobrir se o atirador pertencia à 3.ª bateria. Se assim fosse, não seria difícil saber de que espingarda se servira. Os armeiros onde se encontravam as espingardas estavam nos corredores.

 

Lindenberg apresentou-se; discretamente, Schwitzke mantinha-se à retaguarda.

 

Muito   bem  disse   o   sargento-ajudante.  Você, Lindenberg, encarrega-se do 1.º andar. Você, Schwitzke, do rés-do-chão.   Verifiquem  todas   as  espingardas.   Tomem nota das que faltarem. Se alguém, por acaso, estiver a limpar a sua arma, mandem-mo imediatamente aqui. compreendido? E você, Schwitzke  não, antes você, Lindenberg , mande-me cá o sargento espingardeiro. Depressa!

 

Os dois subalternos afastaram-se rapidamente. Schulz ficou ali para vigiar. As idas e vindas eram raras. Estava pensativo. «Isto não tem importância, decerto», repetia consigo para se tranquilizar. «Não se pode pensar outra coisa. Era absurdo. Ou então...» Schwitzke regressou:

 

As espingardas do corredor de baixo estão verificadas. Os canos estão perfeitamente limpos. Falta uma.

 

Pouco depois Lindenberg fez, por sua vez, a sua participação:

 

As espingardas do corredor do meio estão verificadas. Os canos estão perfeitamente limpos. Faltam duas.

 

Um pouco mais tarde apareceu o primeiro-cabo Kowalski:

 

O sargento espingardeiro saiu. Mas eu posso informar.

 

O sargento-ajudante pensava: «Nenhum soldado da bateria estava de guarda nesse dia. Os de licença deviam ter entregue as suas armas ao espingardeiro e retirado, conforme o regulamento, o seu nome do armeiro. Os que estavam de faxina tinham tirado a espingarda e, igualmente, o seu nome. Ora, faltavam três espingardas.»

 

Quantas espingardas tem em reparação?  pergutou o sargento-ajudante.

 

Três  foi a resposta imediata. Schulz respirou.

 

Não pode ter sido nenhum dos nossos  disse, reconfortado. E acrescentou:  Teria sido o fim de tudo.

 

Às vinte horas e vinte e um minutos o cabo Herbert Asch deixou a caserna. Levava vestido o seu uniforme de saída; o vinco das calças era irrepreensível, o calçado resplandecia. Tinha um ar mais empreendedor que nunca.

 

Sobre a cidade planavam sombras azul-negras. A Lua estava pálida. Na obscuridade crescente as janelas deitavam uma luz brutal e nítida. A caserna tinha o ar de um animal imobilizado pela vergonha. O vento da noite brincava nervosamente. Parecia anunciar-se uma tempestade.

 

Asch passou o portão e dirigiu-se para o bairro operário, que começava a algumas centenas de metros de distância. Procurou a casa do contramestre Freitag. Era um pouco diferente das outras; não maior nem mais original, mas rodeada por um jardim bem tratado, onde se erguiam curiosas árvores novas, cercado por uma alta paliçada semelhante a um muro.

 

Mesmo na escuridão era impossível confundir esta casa: ela enchia um canto do céu maior que todas as outras! O pai Freitag, que fumava encostado à porta do jardim, abriu. Parecia que eram íntimos há já alguns anos.

 

Entre  disse Freitag.  Estamos à sua espera.

 

Na verdade só quero dizer boa-noite e levá-lo comigo.

 

Aonde?

 

A minha casa, Sr. Freitag.

 

Não estará a tomar-me pela minha filha?

 

De modo nenhum. Conheço bem as diferenças. Espero que ela terá, mais tarde, bastantes ocasiões de ir a minha casa. Hoje é de si que preciso, porque quero explicar certas coisas a meu pai.

 

Hum!  resmungou  Freitag,   com   uma  expressão pensativa.  Seu pai é dono de um restaurante, portanto comerciante. Eu sou operário. Custa-me a crer que tenha prazer em conversar comigo.

 

Seja como for, está preparado. Telefonei-lhe. Está agora com curiosidade de o ver e de ouvir o que tenho para lhe confiar.

 

Nesse caso... Mas não espere de mim que esteja orgulhoso ou comovido. Estou simplesmente surpreendido. Mal nos conhecemos e já o vejo a dispor de mim.

 

Tenho de cumprimentar os seus  observou Herbert.

 

Entraram. A Sr.* Freitag estava radiante. Elisabeth mostrou-se reservada.

 

Chegas outra vez tarde  disse ela.  Tens de voltar antes do recolher?

 

Não. Tenho dispensa para esta noite. Até à uma hora.

 

Magnífico!  disse ela ironicamente.

 

Infelizmente, não posso ficar mais tempo. Tenho de ir falar com meu pai.

 

Ah!  exclamou Elisabeth, lograda.

 

E eu vou com ele  anunciou Freitag. Elisabeth estava deprimida e não fazia o menor esforço

 

para o ocultar. Perguntava a si mesma o que podia ter levado Herbert a evitá-la tão ostensivamente. Achava várias explicações, mas nenhuma a satisfazia.

 

Vem, mãezinha  disse Freitag.  Tenho de mudar de roupa.

 

Podes muito bem fazer isso sozinho.

 

Decerto. Mas, no fim de contas, tu também deves ter que fazer na cozinha.

 

A Sr.» Freitag compreendeu. Não precisavam de si e os dois jovens deviam ficar sozinhos.

 

É claro, é claro!  disse ela.

 

Elisabeth corou um pouco desta manobra um tanto deselegante.

 

Por mim  disse claramente , podes ficar,  mãe. Não me incomodas.

 

No entanto, se tiver que fazer na cozinha  interveio Herbert, amavelmente,não quero impedi-la...

 

Os pais deixaram a sala de jantar. Através da porta fechada ouviram-nos rir. Tinham o ar de estar bastante divertidos.

 

Elisabeth observava Herbert com um olhar descontente, cheio de censuras. Ele levantou-se e dirigiu-se para ela, que lhe mostrou, de maneira categórica, que esta tentativa de aproximação lhe desagradava.

 

Não me toques!  exclamou.

 

Ele rodeou-a com os braços. Elisabeth fez que se defendia, mas os seus esforços não eram muito enérgicos e não impediram Herbert de fazer o que queria. E ela deixou-se beijar de bom grado.

 

Que se passa?  perguntou.  Saberás tu ainda o que queres? ”~

 

Muito claramente. Mas atraso um pouco a realização dos meus desejos. Voltarei a eles na devida altura.

 

As coisas deviam ser diferentes. Depois do que se passou, tudo deveria ser diferente entre nós.

 

Tens   razão  disse  Herbert   pousando-lhe  ternamente a mão no ombro.  E eu desejo a mesma coisa que tu. Mas agora não posso fazer o que quero. Não sou senhor do meu tempo. Vendo as coisas exactamente, nem sequer tenho o direito de ser senhor do que quero.

 

Não compreendo.

 

Também não é necessário. Não quero mesmo dizer que seja uma questão de homens; mas, bem vês, não é normal, não é natural. Pensando bem, é arbitrário, contrário à natureza  não é humano.

 

Continuo a não te compreender.

 

Elisabeth  disse ele a custo , sabes que não posso ser terno; pelo menos, não o posso ser com palavras. Não posso dizer-te «amo-te», mesmo sendo verdade, mesmo pensando-o a toda a hora. Acho ridículas todas as palavras enfáticas. Não digo «até à morte». Nem «para toda a vida». Não falo da honra como se falasse duma salsicha; não utilizo a palavra «fidelidade» ao mesmo tempo que as palavras «pão com manteiga».

 

Que quer dizer tudo isso, Herbert?

 

Quero casar contigo, Elisabeth.

 

Herbert!

 

Não já. Não esta semana. Um pouco mais tarde, quando tudo estiver mais claro.

 

A que te referes?

 

Tu verás. E eu verei como tu o aceitas. Mas o que acabo de dizer-te não o podia calar. Era preciso que o soubesses. O que vai acontecer agora não modificará em nada os meus sentimentos em relação a ti. Se o mesmo suceder contigo, ficarei satisfeito. Se assim não for, tu me dirás porquê e será para mim uma razão.

 

Herbert, tu assustas-me.

 

Tenho de ir agora. Meu pai espera-nos. Apertou-lhe o braço com força. Depois saiu rapidamente.

 

O pai Freitag estava já pronto. Juntos partiram para a cidade, sem dizerem grande coisa. Caminhavam a passo certo.

 

O Café Asch estava brilhantemente iluminado. Numerosos frequentadores estavam reunidos. A um canto encontrava-se sentado o primeiro-sargento Werktreu com uma rapariga bem carnuda. Fez um sinal amistoso ao cabo.

 

Surpreende-me ver como é bem visto pelos seus superiores disse Freitag de bom humor.

 

Custa-me bastante caro. Mas descobri que com o tempo semelhante investimento de fundos não dava nada.

 

Atravessaram a sala. Asch cumprimentou com um aceno de cabeça os empregados.

 

- Ali ao fundo, no canto, à direita, é minha irmã quem está sentada.

 

Bonita rapariga!

 

Sim, mas o cérebro dela é como uma árvore” de Natal: bolas de cores, luzes e coros sentimentais.

 

E o soldado que está ao pé?

 

Chama-se Vierbein. É o indispensável Pai Natal. Ingrid olhava o irmão. Vierbein quis levantar-se para o  cumprimentar.   Mas  Herbert  contentou-se  em   dizer:

 

Continuem. Vocês têm com certeza ainda qualquer coisa a fazer para envenenarem completamente o cérebro um ao outro.

 

Sem esperar resposta e caminhando à frente de Freitag, abriu a porta do fundo. Subiram uma escada e numa sala ampla encontraram o pai de Herbert.

 

O Sr. Asch pusera a refrescar três garrafas de bom vinho  Boxbeutel, Kitzinger, Mmtdeite 37  e abrira uma caixa de charutos. Examinou o seu visitante com atenção, como se pensasse em comprá-lo. Não pareceu descobrir exactamente o valor dele e mostrou-se polido, sem mais nada.

 

Sentaram-se todos três em volta da mesa, acenderam um charuto, saborearam o vinho. Asch e Freitag observavam-se à socapa; Herbert dava-lhes o tempo necessário para isso.

 

Não sou entendido em vinhos  declarou finalmente o velho Freitag.  Não sei portanto o que me serviu. É sempre possível que seja água de lavar a louça, com um gosto agradável. Em todo o caso, agrada-me.

 

O que está a dizer a respeito de água de lavar a louça  perguntou Asch, inclinando-se um pouco para a frente  é a sério? Julga-me capaz?...

 

Porque não? Só aos bons clientes é que se dá vinho de primeira qualidade. Como sei eu se sou bem-vindo a sua casa?

 

É um dos meus melhores vinhos. Os mais raros são para os dias de grande festa: casamentos, baptizados, enterro do Fuhrer.

 

Estas últimas palavras tinham-lhe escapado. Ficou aborrecido, mas nada fez para emendar. Antes pelo contrário: esperou com impaciência a reacção da sua visita.

 

Nesse  caso  disse  Freitag,   tranquilamente. espero que tenha depressa ocasião de beber o seu melhor vinho, quando do terceiro acontecimento que citou.

 

Está de antemão convidado para esse dia  declarou o Sr. Asch, jovial.  Entretanto, espero que não tenhamos de esperar tanto tempo e que eu possa antes disso atacar as minhas reservas para um casamento. À sua, Sr. Freitag!

 

Beberam em pequenos goles; deixavam o vinho fundir-se sobre a língua.

 

É pesado, seco, perfumado, com o cheiro das maçãs bem maduras, bem assente  disse Freitag gravemente.

 

Exacto!  exclamou o Sr. Asch com convicção. É exactamente isso! Devia ter sido proprietário dum restaurante.

 

Isso nunca!  protestou Freitag.  Eu próprio seria o meu melhor cliente.

 

Compreendiam-se bem. Tinham muito mais pontos comuns do que haviam suposto. E o pai Asch confessou que era ele quem fazia todos os pequenos trabalhos em casa, apenas pelo prazer que nisso tinha. Só com o frigorífico grande é que não acertava: este deixava correr a água e não atingia temperaturas bastante baixas.

 

Freitag declarou-se logo pronto a repará-lo. Asch aceitou sem hesitar. Estavam já prontos a despir os casacos. Herbert teve dificuldade em dissuadi-los.

 

Fica para outra vez  disse.  Não é para isso que aqui estamos.

 

Nós estamos aqui para eu travar conhecimento com o teu sogro. Já está feito. Agrada-me. Agora podemos tranquilamente fazer o que nos apetecer.

 

Um momento  disse o velho Freitag, surpreendido. Quem é o sogro aqui? E de quem? É a última novidade que eu sei.

 

Peço-lhe que me desculpe  disse Herbert, embaraçado.  Meu pai interpretou mal uma alusão que fiz.

 

Ora!  exclamou o Sr. Ach, para quem a questão era  desagradável.  Sogro  ou  não,  compreendemo-nos. Para que estamos aqui, afinal?

 

Queria tentar explicar-te uma coisa, pai.

 

Mas espero que nada tenha que ver com a minha família  disse o pai Freitag num tom decidido.  Não gosto muito de que disponham de mim sem me consultarem.

 

És um pateta  disse o Sr. Asch, descontente com o filho.  Embaraças dois homens de idade. Não me queira mal por isto, Sr. Freitag.

 

Não falemos mais no assunto.

 

Então, Herbert, que queres de nós?

 

Foste soldado, não é verdade, pai?

 

Escusado será dizer.

 

E agradava-te a caserna?

 

Se me agradava? Que quer dizer isso? Fiz os meus dois anos, como toda a gente.

 

E o Sr. Freitag?

 

Faço minhas as palavras do orador antecedente.

 

Era bom tempo, esse, um tempo maravilhoso?

 

Ah, que tempo! exclamou o Sr. Asch ironicamente.

 

E os dois veteranos olharam-se, rindo com uma expressão embaraçada, ergueram o copo e beberam.

 

Um dos nossos vinha lá do seu estábulo  disse Freitag.  Batia os tapetes em casa da mulher do capitão, e isso entusiasmava-o. O outro era cocheiro; chegou a primeiro-sargento e, em vez de quatro bestas, teve, de um momento para o outro, trinta homens para obedecerem à sua voz. Um terceiro era demasiado estúpido para distinguir o centeio da cevada, mas o seu passo de ganso era espantoso, e um general, um autêntico general, perguntou como ele se chamava. A estes agradava bastante.

 

E depois foi a guerra  continuou Asch.  Um carregador deu uma passeata em França à custa do Estado. Julgou ter estado no Paraíso. Quando regressou sabia três palavras de francês, que repetia trinta vezes numa noite, quando estava tocado, e contava as suas recordações. Um carvoeiro, que nem sequer fora capaz de comprar um fato para vestir ao domingo, deitou abaixo três casas, dois canhões, quatro camiões e umas dúzias de pessoas. Um professor primário adjunto do fundo da Pomerânia era plantão num estado-maior: quando o coronel estava bêbado chamava-lhe Emil. Estes também não se davam mal.

 

No fundo, hoje é exactamente a mesma coisa  disse Herbert.  É a evasão. Dum momento para o outro um tipo assim dispõe de munições e pode matar! Tem subordinados, pode maltratá-los. Pode desempenhar o papel do Destino. E não hesita em se arrogar esse direito.

 

Talvez  disse o velho Freitag em tom pensativo exista uma tendência pré-histórica e hereditária para a vida militar. É uma tendência primitiva, não só para o assinato e para o domínio, mas também a necessidade de defender o corpo e a vida da mulher e dos filhos, dos doentes e dos fracos. Contra as feras selvagens, os bandidos, os loucos, os inimigos.

 

Talvez. Mas há também  opôs o Sr Asch - ideologias que dessa tendência primitiva e justificada fazem um excelente negócio. Um quer o que o outro possui. Então declara muito simplesmente que o outro é um animal feroz, um bandido, um louco, um inimigo. São sempre precisos dois partidos para fazer a guerra, e ambos contam geralmente com a bênção da Igreja; ambos pretendem ter razão, afirmam-se pessoas honradas, lutar pela paz e não fazer mais que defenderem-se. E contudo um deles tem de ser criminoso. A menos que ambos o sejam.

 

A   profissão   militar  interpôs   Freitag  não   se torna realmente um mal senão em razão da má causa pela qual não se deixa de bater-se. Admitamos que esse Hitler empreenda uma guerra, simplesmente por prazer, depois de ter reflectido bastante. Então os melhores soldados tornar-se-ão automaticamente membros de uma horda de assassinos. Mas a profissão militar é, na minha opinião, uma coisa muito diferente.

 

E aí está  exclamou Herbert Asch com indignação  porque um homem deve -deixar-se precipitar na lama, executar como uma ordem de Deus não importa que decisão dum pintor de tabuletas megalómano, admitir que o liquidem moralmente, que lhe sequem o cérebro, evacuar quando a ordem de serviço lho consente, imobilizar-se quando,uma cabeça de toucinho lhe fala, parar quando queria andar. Tem de se transformar num ser abjecto se quer viver.

 

Quem pretende que deva assim ser sempre e em todas  as  circunstâncias?  perguntou Freitag com violência.

 

Nós sempre nos safámos segundo todas as regras da arte  confessou o pai de Herbert, sorrindo.  Quem .quer que fosse um pouco fino ou atrevido conseguia enrolar qualquer subalterno. Há-os que ainda hoje riem do que fizeram. Na realidade, as boas recordações da caserna não são mais que as partidas que se pregaram.

 

Tudo vem da estrutura das coisas disse Freitag. Isto provém simplesmente da circunstância de se querer, não homens, mas uma máquina de guerra. Ora as pessoas já não querem ser tratadas como simples números. Ao mesmo tempo que o nível de vida, elevam-se as exigências do espírito. Quase não há já analfabetos. O mais insignificante trabalhador, o mais insignificante motorista de táxi; o mais insignificante guarda-livros, é hoje muito mais inteligente que um oficial de carreira.

 

Mas os métodos em uso no exército são os mesmos que antes da guerra mundial, ou até piores. Maltratam-nos para nos levarem a obedecer cegamente. Domesticam-nos para suprimirem em nós toda a reacção pessoal. Humilham-nos a toda a hora para quebrarem todo o individualismo. O soldado vive como os seus superiores lhe permitem que viva, como lhes apraz, de acordo com a sua disposição do momento. É assim e não doutro modo.

 

Impede-o  disse o pai num tom resignado.

 

É exactamente o que estou a fazer, pai  disse Herbert fitando-o nos olhos.

 

Que queres dizer? Quererás vir a ser general e reformar o exército?

 

Direi o que penso e agirei como achar bem. Enquanto durar.

 

Tu és louco  disse o Sr. Asch.  Queres revoltar-te?

 

Eu compreendo-o  disse o Sr. Freitag.  Quer dar um exemplo.

 

Completamente maluco! Pura loucura. Eu julgava-te capaz de muitas coisas, Herbert, mas não disso.

 

Não posso fazer outra coisa. Todos esses bandidos me dão vontade de vomitar.

 

Então não olhes para eles.

 

É tempo de alguém lhes dar para baixo.

 

Mas porque hás-de ser tu?

 

Alguém tem de ser. Um que comece. Talvez seja realmente idiota, mas não posso agir doutra maneira. Eu tinha um amigo, pai. Um bom rapaz, inteligente, de espírito aberto, honesto. Eles deitaram-no sistematicamente abaixo: quebraram-lhe a espinha como se quebra um pedaço de pau no joelho. Empurraram-no para o suicídio.

 

Está bem. Faz o que quiseres.

 

Queria que tu soubesses o que se ia passar, pai. E queria também, por razões particulares, que o Sr. Freitag o soubesse.

 

Compreendo, Herbert  disse o contramestre.

 

E que julgas tu que irá passar-se?

 

Não sei ainda  respondeu Herbert tranquilamente. Contudo, não me comportarei como um elefante numa loja de louça. Esforçar-me-ei antes por vencê-los com os seus próprios métodos. Eles têm lados extremamente frágeis. Já comecei a atingi-los por aí, em parte, com um êxito surpreendente. Apesar disso, é muito provável que venha a acabar num presídio militar.

 

Riria de vontade  disse o velho Freitag com um sorriso fino se no fim de contas acabasse por ser nomeado subalterno. A Deus e aos Prussianos nada é impossível.

 

O sargento Lindenberg caminhava para a hora mais penosa da sua vida, da sua vida de soldado, e escusado será dizer que o fazia numa atitude exemplar. Marchava para ela como os heróis de cinema o fazem na tela, impávido e firme, de espírito acanhado e cego. E a seriedade quase sagrada que o envolvia não o abandonava.

 

Nessa sexta-feira o seu despertador tocou um pouco depois das cinco horas. Lindenberg era o único subalterno da bateria que possuía um despertador. E não era um objecto vulgar, mas sim um despertador especial, com certificado de garantia e toque de repetição. Sempre que saía fechava-o no armário, porque se o não fizesse os outros dois segundos-sargentos que eram obrigados a partilhar do mesmo quarto teriam certamente destruído o «monstro», como lhe chamavam.

 

O monstro tocou. Lindenberg acordou logo. Sentou-se, espreguiçou-se, repeliu a roupa da cama e saltou para o tapete. Saltitou, fez algumas flexões das pernas para restabelecer a circulação.

 

O monstro tocou outra vez, com mais força. À terceira vez seria o desencadear infernal das três campainhas.

 

Idiota  gritou  um  sargento  arrancado  ao  sono. Pára esse chinfrim, ou isto dará mau resultado!

 

Às apalpadelas procurava a pantufa para deitar abaixo o monstro, mas não a encontrou.

 

Com um dedo firme, Lindenberg travou o despertador.

 

Peço-vos desculpa  disse -com toda a correcção. Deplorava a incompreensão dos camaradas, mas tinha bastante ponderação para não o mostrar.

 

Uma vez por semana Lindenberg inspeccionava a sua secção imediatamente após a alvorada, a fim de demonstrar aos subordinados directos que estavam sempre de serviço e que deviam esperar vê-lo a cada momento, de improviso. «Mesmo nas retretes», dissera, com a maior seriedade.

 

Embora com a natural discrição, gostava destes primeiros minutos do dia: repouso antes da tempestade, silêncio antes da primeira descarga, paragem antes da grande caminhada.

 

Insidiosamente, o novo dia avançava. Pálido, cobria as paredes; silencioso, esperava. Depressa os soldados começariam a agitar-se e, através dos cubos de betão, a força desperta da artilharia ia começar a ressoar, pronta para o combate, semelhante a um motor potente que acabasse de ser ligado.

 

Lindenberg sorriu com satisfação. Dominava-o sempre nestes momentos a alegria embriagadora de ser soldado. Era para isto que ele vivia, era para isto que valia a pena viver.

 

Saltitando, dirigiu-se ao lavabo, barbeou-se cuidadosamente, tomou um duche. Depois vestiu o uniforme de serviço e examinou-se outra vez no espelho. Não achou nada que criticar.

 

Cinco minutos antes da alvorada estava no corredor, diante da porta atrás da qual dormia, sem de nada suspeitar, a sua secção. Regozijava-se com a surpresa que ia fazer aos seus soldados.

 

O sargento de semana passou a correr. Não fizera ainda a barba, o que Lindenberg notou escandalizado, e bocejava até às orelhas.

 

Olha, olha! exclamou, sem espanto.  Os teus rapazes vão ter um alegrão!...

 

Espero que sim  respondeu Lindenberg em tom reservado.

 

O sargento empurrou uma porta após outra, deu uma apitadela penetrante e gritou: «De pé!»

 

Lindenberg apalpou o cinturão, examinou com um olhar as suas luvas de couro cinzento, entrou e deteve-se junto da porta.

 

Em fralda de camisa, os homens içaram-se para fora das camas. Um deles bocejou, produzindo ruídos semelhantes aos de um estábulo.

 

Vierbein foi o primeiro a descobrir o sargento. Gritou: «Sentido!», e pôs-se na respectiva posição. Os outros imobilizaram-se, indiferentes, na posição em que estavam. Dir-se-ia que prosseguiam de pé o sono interrompido.

 

O primeiro-cabo Kowalski, com gosto ou sem ele, levantou-se, examinou a camarata do seu canto e disse:

 

Sem novidade.

 

O sargento mantinha-se imóvel, tal como a disciplina lhe prescrevia, e levou a mão ao quépi.

 

Muito bem!exclamou.Descansar.  Continuem. E ele próprio tomou a posição de repouso.

 

Os soldados conheciam as manias de Lindenberg. Haviam tido dúzias de inspecções deste género às primeiras horas do dia. Sabiam que queria ver se eles se comportavam como, na sua opinião, o deviam fazer soldados no início de um novo dia: sempre prontos a cumprir o seu dever.

 

Kowalski desempenhava o seu papel de chefe de camarata com uma segurança maquinal:

 

Não há doentes?  perguntou. E não recebendo resposta, como de costume, gritou:  Não há doentes!

 

Lindenberg acenou aprovativamente. Kowalski gritou então:

 

Wagner e Volkmann, serviço de limpeza!

 

O primeiro quis reclamar: estivera já na véspera de faxina à limpeza e na antevéspera de serviço de camarata. Mas na presença de Lindenberg não podia protestar. Furioso, atirou a camisa para cima da cama, mostrou o traseiro a Kowalski e obedeceu.

 

Kowalski gritou outra vez:

 

Serviço de camarata, artilheiro Vierbein!

 

Este respondeu imediatamente: «Serviço de camarata!» Lindenberg teve um sorriso de satisfação. Olhava Vierbein com certa benevolência. Verificava que cada um dos seus movimentos era exacto e bastante enérgico. Isto agradava-lhe. Isto confirmava a sua teoria. Sempre considerara Vierbein um soldado razoável. Ainda um pouco mole, decerto, ainda um pouco sentimental, sem dúvida, mas não se podia negar que tinha boa vontade e era a ele, Lindenberg, a ele só, que isto se devia.

 

Artilheiro Vierbein  chamou o sargento.

 

Às suas ordens, meu sargento!  exclamou o soldado, precipitando-se para ele.

 

Mostre-me o seu pente e as suas escovas.

 

A navalha de barba.

 

A escova e o copo dos dentes.

 

Está bem. Continue assim.

 

Após este extraordinário elogio notou, não sem emoção, que Vierbein se mostrava feliz.

 

De pé, perto da porta, quase imóvel, o sargento registava tudo o que via. E como quase tudo se apresentava em ordem, estava cheio de satisfação. De novo se sentiu repleto da felicidade de ser soldado.

 

Todo o resto era mesquinho, com menos importância, lastimável ou mesmo sórdido. Só aqui se encontrava a felicidade. Não com as mulheres: não cheiram bem e são moles ao tacto. Não na igreja, nem nos livros, nem na natureza. Só a carreira militar satisfazia o verdadeiro homem.

 

Onde está o cabo Asch?  perguntou de súbito Lindenberg.

 

Não o vira ainda. Recordou todos os que já observara nessa manhã. Não, não vira ainda o cabo.

 

Os soldados julgaram mais vantajoso deixar a camarata, coisa aliás normal. Agarraram a toalha, o sabonete, a navalha de barba, a pasta dentífrica, etc., e dirigiram-se para os lavabos. Teria sido estúpido exporem-se por mais tempo aos olhares inquisitoriais do sargento.

 

Onde está o cabo Asch?  repetiu Lindenberg. Nada de resposta. O próprio Kowalski julgou preferível calar-se. A camarata estava quase vazia.

 

Lindenberg hesitava em acreditar no que se via forçado a supor. Dirigiu-se para o canto onde, entre dois armários, se encontrava a cama de Herbert. Ficou ali longos segundos, imóvel.

 

Asch estava deitado, as mãos sob a nuca, e observava o seu superior. Tinha uma expressão satisfeita e sorria.

 

O sargento a custo escondeu a surpresa. O que via parecia-lhe inaudito. O cabo ousara ignorar durante perto de um quarto de hora a presença de um superior. Era verdadeiramente inaudito. Nunca lhe acontecera isto. E, francamente, nunca teria imaginado, mesmo em sonho, que tal coisa pudesse vir a acontecer.

 

Lindenberg esforçou-se por aparentar calma e perguntou:

 

Não quer levantar-se, Asch?

 

O meu posto é cabo  disse o outro calmamente.

 

O subalterno, graças ao seu maravilhoso sentido de correcção absoluta, compreendeu que cometera uma falta. Por ordem do Fuhrer todo o subordinado devia ser tratado pela patente e pelo nome. Era uma falta de tacto terem-lho lembrado, mas Asch tinha esse direito.

 

Emendou pois e repetiu:

 

Não quer levantar-se, cabo Asch?

 

Não se trata de querer, meu sargento  respondeu Herbert com amabilidade.

 

O primeiro-cabo Kowalski, única testemunha desta conversa, corou. Impossível saber-se se era de alegria ou de assombro. Hesitou em ir juntar-se aos outros ou ficar no seio da batalha. Por fim, ficou.

 

O rosto de Lindenberg corara igualmente. Endireitou-se e ordenou numa voz rouca:

 

Cabo Asch, levante-se imediatamente.

 

Isso já é outra coisa  respondeu Asch endireitando-se metodicamente.  É uma ordem concreta. Não me recuso a executar as ordens concretas e justificadas. O resto era simplesmente uma pergunta, quando muito um convite, mas mal exprimido.

 

Lindenberg aceitou também essa censura. E enquanto o cabo se levantava e tirava a camisa de dormir, disse:

 

O regulamento exige que todos se levantem logo após a alvorada. Não o fez, cabo Asch. Infringiu o regulamento.

 

Asch estava completamente nu. Não se pôs em sentido, o que neste caso parecia natural. Disse:

 

Meu sargento, há conceitos a propósito dos quais se pode discutir. «Logo» é um deles. Que significa «logo»? Um segundo? Três minutos? Ou um quarto de hora? Isso não está no regulamento. Cada um pode, portanto, interpretar à sua maneira, e foi o que eu fiz.

 

Logo... dez segundos, um minuto o máximo.

 

Qualquer pode dizer isso depois...

 

Lindenberg cerrou os dentes. Arrependia-se já de ter encetado uma discussão. Mas agora queria impor a sua maneira de ver.

 

Eu não sou qualquer  disse secamente.  Sou o seu chefe. E estou convencido de que infringiu o regulamento. Merece um castigo.

 

Meu sargento, como é possível punir uma coisa que foi expressamente aprovada por si?

 

O quê?

 

Estive na cama na sua presença. Desde o levantar que aqui está. E não me dirigiu nem uma censura, nem um convite, nem, sobretudo, uma ordem. Supus, portanto, meu sargento, que aprovava expressamente a minha maneira de proceder.

 

Não quero falar-lhe mais, cabo Asch  disse Lindenberg, estremecendo como se tivesse recebido no crânio uma violenta pancada.

 

-É pena, meu sargento.

 

Vou participar de si.

 

É desolador tudo o que se passa na sua secção, meu sargento  disse Asch, aparentemente com uma tristeza sincera.

 

Lindenberg não podia acreditar nos seus ouvidos. Procurava uma explicação e não a encontrava.

 

Ouça-me, cabo Asch  disse por fim.  Não se sente bem? Está doente? Que se passa?

 

Sinto-me perfeitamente normal, se é isso que quer dizer. Mas sinto-me importunado, importunado por si, meu sargento.

 

Pense no que está a dizer!  gritou Lindenberg, nervoso.

 

Kowalski tomara providências para que continuassem sozinhos. Os soldados que tinham acabado de se lavar mantinham-se no corredor, nus até à cintura, e faziam suposições. Esperavam o pior.

 

Reflecti perfeitamente no que lhe disse  declarou Herbert.  Sinto-me importunado por si, meu sargento. É tudo. Porque não nos deixa levantar tranquilamente e preparar-nos para o serviço? Nós não somos autómatos. Queremos ter a nossa vida íntima, mesmo fora do sono. Mas aqui tratam-nos como servos. E o senhor não é um instrutor, mas sim um guarda de galés.

 

Tomo nota  disse Lindenberg.

 

Esperemos que sim. E se guarda de galés não lhe chega, pode substituir por negreiro.

 

Negreiro!  exclamou   Lindenberg   desorientado   e profundamente ofendido.  Isso basta. É o fim de tudo.

 

Se lhe basta, acabei  acrescentou Asch cem uma expressão cortês.

 

Lindenberg estava branco como um lençol. Reprimia-se para não passar a vias de facto. E considerava isto muito meritório. Mas era proibido com a maior severidade maltratar um subordinado e ele tinha na devida conta todas as proibições.

 

Numa voz que supunha brusca, mas que era apenas aguda disse:

 

Cabo Asch, isto custar-lhe-á caro.  Depois, dando bruscamente meia volta, dirigiu-se para Kowalski e disse: É testemunha.

 

Testemunha de quê?  perguntou o primeiro-cabo fazendo-se imbecil com o êxito habitual.

 

Mas Lindenberg não o notou. Empertigado como uma estaca, afastou-se. O único pensamento o acompanhava: a espantosa coisa que acabara de suportar devia ter o seu castigo. Senão, seria o fim do mundo!

 

Vestida apenas com a sua roupa de baixo cor-de-rosa, Elisabeth deteve-se no meio do quarto. Pensava. Depois pareceu ter tomado uma resolução. Abriu o guarda-vestidos e, deliberadamente, escolheu um vestido de Verão, de seda verde, que sabia ficar-lhe bem.

 

Enquanto se vestia viu as horas. Daí a vinte minutos seriam oito horas; dentro de cinco minutos, o máximo, o pai Freitag ia bifurcar-se na sua bicicleta para se dirigir à oficina. Habitualmente gostava de ir a pé de manhã, mas quando se atrasava, como nesse dia, recuperava de bicicleta o tempo perdido.

 

Agora já não podia adiar. Tirou o baton da mala de mão e serviu-se dele com cuidado. Para quê? Os seus lábios eram bastante vermelhos e cheios, a curvatura suficientemente bela. Penteou-se com esmero; depois olhou de novo o relógio. Dez minutos tinham passado e o pai ainda não saíra de casa.

 

Não podia esperar mais. Levantou-se e saiu. Na porta da rua esbarrou com o pai.

 

Onde vais?  perguntou ele.

 

À caserna.

 

Estás de serviço esta manhã?

 

Não. Oficialmente,, não. Mas quero fazer outra vez as minhas contas e verificar as reservas. De manhã tenho mais tranquilidade para este trabalho.

 

E além disso que vais fazer?

 

Não vou ver Herbert Asch, se é nisso que estás a pensar.

 

Bem  disse o pai, parecendo tranquilizado.  Se o dizes, é porque é verdade. Sei que não me mentes. Nunca.

 

Porque insistes nisso, pai?

 

Porque desejaria que tudo ficasse entre nós como estava. E porque desejaria que não tentasses influir em Herbert Asch em relação a coisas que dizem respeito ao seu serviço. É claro que não daria resultado, mas perturbá-lo-ias certamente.

 

Preocupas-te muito com ele?

 

Porque me preocupo contigo. É o único motivo. Mas não quero reter-te. Refaz as contas, verifica as reservas e evita encontrar Herbert hoje.

 

Devo portanto manter-me como simples testemunha. Devo esperar que aconteça qualquer coisa de que nada sei.

 

Não é isso que deves fazer  respondeu Freitag em tom decidido.  Não deves esperar nem, sobretudo, ser testemunha. É preciso ficar de parte.

 

E pensas que é assim tão fácil?

 

Elisabeth, tu prometeste-me que não ias ter com Herbert!

 

Cumprirei a minha promessa, pai.

 

Elisabeth afastou-se. Dirigia-se inquieta para a caserna, e quanto mais se aproximava mais os seus passos se tornavam rápidos. Por várias vezes olhou o relógio. Eram quase oito horas: era mais que tempo. Não podia chegar demasiado tarde.

 

Sem hesitar, encaminhou-se para a 3.ª bateria. Subiu ao 1.º andar e parou diante da porta onde estava afixado um cartão de visita: «Wedelmam, alferes.» Tocou.

 

A porta abriu-se logo. com ar de enfado, o novo ordenança, Wagner, perguntou.

 

Então? Que é que deseja?

 

Posso falar ao alferes Wedelmann?

 

Que lhe quer?

 

Assunto particular.

 

Particular?  Wagner pareceu surpreendido e disse: Um alferes está sempre de serviço.

 

Nesse caso, quero falar-lhe por causa duma questão de serviço.

 

Uma questão de serviço? Que diabo poderá ser? Elisabeth estava desesperada. Este sujeito punha-a num extraordinário embaraço. Não podia ficar mais tempo na escada. Lentamente o número de soldados que se tinham agrupado em volta dela aumentava. Expremiam a seu respeito opiniões competentes. A todo o momento Asch podia aparecer, ou Kowalski, ou Vierbein. E nenhum destes três devia saber que ela estava ali. Ia ter de retirar-se.

 

Contudo, antes de se decidir, ouviu a voz do oficial:

 

Que se passa, Wagner? Está aqui para tagarelar ou para me engraxar os sapatos?

 

Está aqui uma pessoa  respondeu Wagner.

 

Wedelmann aproximou-se. Ao ver Elisabeth, ficou desconcertado. Deitou um olhar para as peúgas de lã verde e para os calções de montar que trazia vestidos.

 

Desculpe a minha apresentação  disse.  Em que posso ser-lhe útil, menina Elisabeth?

 

Posso falar-lhe?

 

Aqui? A esta hora?

 

Peço-lhe.

 

Dê-se ao incómodo de entrar.

 

Wedelmann adiantou-se e abriu-lhe a porta do seu gabinete de trabalho.

 

Queira sentar-se, peço-lhe. Volto já. vou acabar de vestir-me.

 

A sala, não muito grande, estava mobilada com bastante mediocridade: uma secretária, uma estante, três cadeiras, uma pequena mesa, um candeeiro. Nas paredes, diplomas, duas aguarelas, muitas fotografias. Um tapete verde com pontos brancos; nas janelas, cortinas muito desbotadas ou ligeiramente empoeiradas. Na secretária, um livro aberto, um monte de jornais, duas instruções policopiadas, pontas de cigarro, uma garrafa de aguardente e um copo.

 

Wedelmann regressou fardado. Olhou Elisabeth com simpatia e perguntou:

 

Que a traz a minha casa tão cedo?

 

Espero que não tenha vindo incomodá-lo. -Nunca me incomoda.

 

Gostava de olhá-la. Estava bela, mesmo naquela luz crua do sol matinal: muito mais bela do que lhe parecera no Bismarck ou na cantina.

 

Não venho roubar-lhe tempo?

 

Disponha de mim e do meu tempo.

 

Queria pedir-lhe que me ajudasse.

 

De que maneira?  perguntou ele, solícito.

 

Ela agradava-lhe. Sempre lhe agradara. Era muito menos complicada que Ingrid Asch e mais segura que Lore Schulz, sem falar, bem entendido, das jovens burguesas à procura de situação e das «pegas» ávidas. Tinha um espírito são e era capaz de se portar convenientemente fosse qual fosse a circunstância.

 

Quero ser absolutamente sincera consigo  disse Elisabeth  e creio poder sê-lo...  Depois, após uma curta hesitação:  Sabe, sem dúvida, que eu sou... que o cabo Asch e eu... Esteve à nossa mesa no sábado, não é verdade?

 

Decerto. Não precisa dizer...

 

Custou-lhe a esconder a sua decepção. Dizia consigo: «Ora aqui está, é sempre assim. Passam-me todas debaixo do nariz e escapam-se uma após outra. Um alferes é um pobre diabo, sobretudo nestas questões. E eu sou um dos mais desafortunados, porque sou demasiado honesto para aproveitar até as melhores ocasiões.»

 

Tive nesse momento a impressão  disse ela abertamente de que o senhor apreciava Herbert e até, se assim me posso exprimir e se tal sentimento pode existir entre um subordinado e os seus superiores, que lhe tinha amizade.

 

Com certeza  declarou Wedelmann com convicção. Isso existe.

 

Herbert também lhe é muito dedicado. Aprecia-o. Tem mesmo deferência por si, Sr. Alferes.

 

Isso dá-me prazer  disse Wedelmann com um certo orgulho.

 

O que acabara de ouvir enchia-o de alegria.

 

Também eu estimo muito o cabo Asch, mesmo como soldado, embora o não considere modelar. Mas como homem é-me muito simpático, e também um pouco por sua causa. Mas não sei ainda porque veio... Contudo, se.ele se recusasse a suportar as consequências da sua atitude em relação a si, podia contar comigo...

 

Calou-se. Elisabeth olhava-o com uma expressão interrogativa. Dissera ele tolices, por acaso? Era possível. Não ficaria surpreendido, mas desagradava-lhe.

 

Sr. Alferes  disse a rapariga, com delicadeza, não se trata aqui da minha vida particular nem da de Herbert...

 

Ah! Ah!  exclamou Wedelmann com satisfação. Sentiu-se logo mais seguro.  Trata-se, então, estritamente duma questão de serviço?

 

Creio que sim.

 

Crê, apenas? Não tem a certeza?

 

Suponho que é.

 

E que é que supõe?

 

Elisabeth começou a contar. Foi absolutamente sincera. Não sabia grande coisa, mas não dissimulou nada do que sabia. Manifestou as suas suspeitas.

 

O alferes escutava-a com atenção; o seu nervosismo desaparecera. Sentia-se quase materialmente quanto ele se achava seguro de si mesmo. Encontrava-se agora em terreno conhecido.

 

O que acaba de afirmar, ou, antes, o que supõe disse ele após um momento de reflexão, parece absurdo. No entanto, creio que é possível.

 

Pensa que ele seria capaz?

 

Sim, em certas circunstâncias é possível. Os motivos que conhece ou supõe parecem-me plausíveis. Se eu tivesse um amigo e se ele fosse levado diante dos meus olhos quase ao suicídio, então... Mas eu não tenho amigos.

 

Fui eu que arquitectei tudo isto, sozinha  disse Elisabeth francamente.  Não sei se é verdade, se é sequer verosímil. Talvez eu esteja enganada, talvez seja outra coisa muito mais inocente. Mas tinha de vir falar-lhe, só a si, porque não tenho confiança em mais ninguém.

 

Vou tentar com toda a lealdade não a desiludir.

 

O senhor é maravilhoso. Gosto muito de si. Wedelmann corou.

 

Não, não  declarou.  Assim não. Não me considere como um benfeitor ou mesmo como um homem de bem. Procedo com toda a frieza. Elimino todos os meus sentimentos pessoais. Era escusado dizer.

 

É escusado dizer  repetiu Elisabeth, lançando-lhe um olhar resplandecente de confiança.

 

Wedelmann levantou-se para não lhe ver os olhos.

 

Se tomo esta questão a meu cargo  disse, não o faço senão por razões de serviço. O que me interessa é apenas a disciplina, o bom renome do exército, se assim se pode dizer. Ou, mais simplesmente, não posso admitir na bateria onde presto serviço porcarias perigosas. No fim de contas, era sobre mim que recairiam.

 

Merecia ser amado, Sr. Wedelmann.

 

Vamos, vamos!  exclamou o alferes fazendo calar a sua comoção.  Conservemo-nos práticos. Devemos esperar que Asch cometa loucuras. Até agora nada pode ter acontecido ainda. São apenas oito horas e meia, os exercícios com as peças começaram há pouco.  Das sete às oito horas a bateria tinha instrução de primeiros socorros em caso de acidente. Mas agora era o exercício com os canhões; podia tornar-se perigoso se Asch tivesse seriamente essa intenção.

 

Que vai fazer, Sr: Wedelmann?

 

Simplesmente colocar o cabo Asch de parte. Posso, por exemplo, fechá-lo todo o dia no depósito de fardamento. Poderá dormir ou jogar as cartas com o sargento Werktreu. Aliás, parece que o fazem bastantes vezes.

 

Não sei como agradecer-lhe.

 

Arranjarei   qualquer   maneira  disse   Wedelmann cheio de bom humor.  Pode, por exemplo, convidar-me para o seu casamento.

 

Está convidado, com todo o gosto.

 

Sempre desejei igualmente ser padrinho.

 

com uma silenciosa alegria notou que Elisabeth corara levemente. Achava enternecedor falar assim a alguém com o coração aberto. Confessou a si mesmo que sempre o desejara.

 

Mas por agora  acrescentou  é preciso parar a avalancha.

 

Elisabeth agarrou-lhe a mão e apertou-lha com força. E disse:

 

Oxalá não vamos chegar demasiado tarde.

 

O sargento-ajudante Schultz, logo de manhã, fazia uma conferência a sua mulher, Lore, acerca do bom porte. Evitava dirigir-se directamente a ela, mas Lore tinha de saber o que ele pensava dela e o que dela esperava.

 

A mulher dum sargento-ajudante  dizia  tem deveres a que não pode fugir. Perde dignidade quando se compromete com subordinados do marido e prejudica a disciplina quando se deixa ir com os superiores.

 

Quais são então as patentes permitidas?  perguntou ela num tom pouco amável.

 

Irado, mas digno, Schulz pousou a chávena de café ruidosamente. Olhou a mulher com uma expressão de pesada censura. Lore, bem entendido, não fora convidada a sentar-se junto dele à mesa.

 

No fim de contas  disse, ainda por cima te sentes orgulhosa do que fizeste?

 

Que devo fazer então?  perguntou ela furiosa e desesperada. Cair de joelhos? Deitar grossas lágrimas e pedir-te perdão, torcendo as mãos? E de quê, afinal? De ter sido abandonada por ti? De tu não seres normal?

 

Schulz observava-a com ar de censura. Ela chorava; isto incitava o marido ao perdão, pois via naquilo uma prova da sua superioridade. Moralmente estava aniquilada, e isso é que importava.

 

Perdoar-te-ei um dia  disse-lhe ele , quando tiver a certeza de que realmente melhoraste.

 

Saboreou o café, olhou outra vez as horas, para ver se a mulher acertara a pêndula pelo relógio da caserna. Eram oito horas e dez minutos. Levantou-se e saiu.

 

De bom humor dirigiu-se ao gabinete. Lindenberg, o sargento de semana e o artilheiro Wagner esperavam-no Ao vê-lo puseram-se em sentido, fizeram a continência e, à sua ordem, voltaram à posição de repouso.

 

Que quer você, seu torto?  perguntou a Wagner.

 

O alferes Wedelmann pede que eu seja substituído imediatamente.

 

Schulz teve uma expressão de triunfo. «Isto ia mais depressa do que tinha imaginado. Este alferes era um ’ás. Espantoso!»

 

E porquê?  perguntou amavelmente.

 

O alferes disse que eu era um idiota  declarou Wagner sem o menor constrangimento.

 

Schulz estava encantado.

 

Diz ao alferes que toda a minha bateria se compõe de idiotas como tu. É completamente inútil: substituir-te. Continuarás a ser ordenança do alferes Wedelmann. E raspa-te. Leva-lhe esta feliz notícia.

 

Depois da saída de Wagner o brigadas ouviu o relatório do sargento amanuense, percorreu as ordens recebidas, deitou um olhar ao correio e disse:

 

Muito bem. Sempre as mesmas idiotices. O seguinte. O sargento de semana fez o seu relatório:

 

Dispensas da noite, completas. Dois doentes. Prejuízos das latrinas, reparados. Nada mais a assinalar.

 

O sargento-ajudante apoderou-se do registo dos relatórios e verificou as indicações inscritas. «Prejuízos das latrinas, reparados», leu com ar pensativo.

 

De acordo com as ordens recebidas, os operários da bateria colocaram um vidro e estucaram os pontos atingidos.

 

Encontraram a bala?

 

Sim, meu ajudante  disse o sargento puxando dum lenço bastante sujo, donde tirou um bocado de chumbo e aço esmagado, da grossura duma ponta de cigarro.  Uma bala de espingarda  acrescentou.

 

Tem a certeza de que é uma bala de espingarda? perguntou Schulz muito excitado.

 

Absoluta. Espingarda 98 K. É também a opinião do espingardeiro.

 

Schulz agarrou no pequeno bocado de metal com descontentamento, quase com repugnância. Colocou-o sobre o mata-borrão. Perguntava a si mesmo: «Será possível?... Seria monstruoso. As consequências, imprevisíveis. Não deveria ter feito desaparecer os sinais. Mas isto era estúpido.»

 

Está bem  disse,  arrancando-se aos seus pensamentos.  Os dois farsantes que deram parte de doente devem vir à minha presença. Vamos estabelecer isto como regra.  Virou-se para o sargento amanuense.  Redija uma ordem a este respeito para a bateria: «De futuro, quem der parte de doente deverá vir participar-mo após a visita, a não ser que se trate de sarna ou doença infecciosa.»

 

Sim, meu ajudante  disse o sargento com bastante moleza. Do ponto de vista militar era um zero, mas inestimável como escrevinhador.

 

Entretanto Schulz verificava se os seus lápis estavam aparados, alinhados e dispostos de acordo com as suas instruções. Estavam mesmo. O sargento de semana, considerando-se livre, fez a continência e desapareceu. Apenas o sargento Lindenberg continuava ainda ali, direito como um I.

 

Então?... E você?...  perguntou o brigadas num tom maligno. com quem quer agora armar sarilhos?

 

Uma participação, meu ajudante.

 

Deixe cá ver o papel.

 

Lindenberg depôs na secretária uma folha onde se alinhavam correctamente grandes letras.

 

O sargento-ajudante percorreu-a num relance, teve um sobressalto, olhou Lindenberg, que suportou o exame sem pestanejar. Depois releu em pormenor, palavra por palavra. Eis o que lia:

 

Participação

Peço para o segundo-cabo Herbert Asch uma punição disciplinar porque esta manhã, um quarto de hora depois da alvorada, estava ainda deitado de maneira provocativa, e porque, interrogado por mim, teve uma atitude contrária à disciplina, permitindo-se não me tratar na terceira pessoa, mas empregando, ao dirigir-se a mim, palavras como «guarda de galés» e «negreiro», e isto na presença doutros soldados.

LINDENBERG, segundo-sargento.

 

O sargento-ajudante conservou-se durante muito tempo em silêncio. Depois disse:

 

A margem da sua participação é muito estreita. Não posso arquivar o papel no classificador.

 

O sargento não respondeu e não deixou sequer ver quanto esta observação profundamente o afectava. Esta censura formal era o que menos esperava, e decerto o que não merecia. Claro que a margem da esquerda devia ser de cinco centímetros, mas ele apostaria a cabeça em como a margem da sua participação não tinha menos de quatro centímetros.

 

Além disso  perguntou o brigadas , que entende você por «deitado de maneira provocativa»?

 

Algumas partes do corpo estavam a descoberto e ele desafiava-me com o olhar.

 

Schulz abanou a cabeça com ar descontente. Atirou a participação para cima da mesa e bateu-lhe com a palma da mão.

 

Pode afirmá-lo sob juramento?

 

Sim, meu ajudante  respondeu Lindenberg com firmeza. De resto, tenho testemunhas.

 

Quem?

 

O primeiro-cabo Kowalski.

 

E quem mais?

 

Só ele, meu ajudante.

 

Então  disse Schulz numa voz forte  fez uma declaração falsa... Vejo aqui escrito: «...na presença doutros soldados.» Outros são alguns... Se o que se supõe ter acontecido não está provado ainda  fosse na presença de alguns soldados, seria um acto sedicioso. Diante dos soldados reunidos! Mas vai-se a ver e só havia um. Que imagina você, Lindenberg?

 

Este sentiu-se derrotado. Não era capaz de resistir aos processos do sargento-ajudante: e, ainda que o fosse, o seu profundo sentido da disciplina tê-lo-ia sem dúvida impedido de o mostrar. Conservando com dificuldade o aprumo, disse:

 

Isso não modifica em nada os termos que o cabo Asch deixou escapar.

 

Quer dar-me uma lição?

 

Não, meu ajudante.

 

O brigadas bateu de novo sobre a participação.

 

Um caso bicudo!  exclamou, furioso.  Está certo de não se ter enganado?

 

Não, meu ajudante.

 

Então não tem a certeza de não se ter enganado?

 

Não me enganei.

 

Schulz levantou-se e aproximou-se do sargento:

 

Lindenberg  disse, com familiaridade , esse cabo Asch é, apesar de tudo, um óptimo soldado. Nunca fez uma coisa dessas. Não o teria provocado? Teria compreendido bem o que ele disse? Ele deve ter querido dizer outra coisa.

 

Não, meu ajudante.

 

Ouça-me bem, Lindenberg. Eu não ligo grande importância a uma participação deste género. Podemos arranjar isto doutra maneira. Se quiser, mande-o fazer exercício até que ele não saiba onde se meter, até que se dobre em dois como um canivete. Ajudá-lo-ei nisso com todo o gosto. Vamos! Que diz, Lindenberg? Mantém a sua participação?

 

Sim, meu ajudante.

 

Mesmo se, retirando-a, me prestar um favor pessoal?

 

Lamento, meu ajudante  disse Lindenberg inabalável.  Mas o meu dever é manter a participação.

 

Então, está bem!  berrou o brigadas.  vou tratar da questão. Uma vez que não quer que se arrume doutra maneira, vamos examinar o assunto de mais perto. Mas ai de si se a participação não é absolutamente exacta! E agora desapareça e traga-me aqui Kowalski e Asch. Mas depressa!

 

Lindenberg fez uma das suas legendárias continências e desapareceu com a velocidade dum relâmpago.

 

O sargento-ajudante correu para o telefone. O sargento amanuense, que o vigiava à socapa, sabia muitíssimo bem o motivo por que Schulz desejava evitar a participação. E estava certo de que era com o sargento-ajudante do destacamento que ele queria falar.

 

«Ligue-me ao estado-maior do destacamento. O sargento-ajudante Kõhler... Aqui, Schulz, 3.ª bateria. Ouve, Kõhler. Há alguns dias mandei para o comandante umas propostas para promoção a subalternos... Perfeitamente. Essas... Não posso reavê-las?... O processo já está no comandante? Pois então tira-lho, muito simplesmente. Tenho de corrigir umas coisas... Já não é possível?... O comandante viu-as?... Já estão assinadas?... Vai ser talvez uma espiga, Kõhler. Foi exactamente no pior momento. Mas mesmo assim eu arranjarei isso.»

 

Schulz pousou o auscultador. «Que sarilho!» Deixou-se cair na cadeira, fitando sobre a secretária o provocativo bocado de metal que fora uma bala e que alguém disparara com uma 98 K. «Mas quem? E contra quem? São preocupações em série.»

 

Líndenberg reapareceu, anunciando que Kowalski e Asch esperavam no corredor.

 

Mande entrar Kowalski primeiro  ondenou Schulz. Logo que este entrou no gabinete, com um sorriso bem disposto,   perguntou-lhe   bruscamente.  Ouviu   o   cabo Asch tratar o sargento Lindenberg de «guarda de galés» e de «negreiro»?

 

Não, meu ajudante  disse Kowalski com ar cândido.

 

Mas   você   estava   lá,   primeiro-cabo!  exclamou Lindenberg fora de si.

 

Onde é que eu estava?

 

Esta manhã, na camarata.

 

Não se meta nisto enquanto eu não o interrogar, Lindenberg  disse o sargento-ajudante num tom desabrido.

 

A maneira como a conversa começava agradava-lhe muito. Era exactamente o que desejava. Sentia prazer ao ver o sargento perder o sangue-frio e mudar de cor.


Então como foi, meu caro Kowalski?  perguntou o  brigadas.  Não  ouviu  nada  que  se  parecesse  com isto?

 

Não ouvi absolutamente nada, meu ajudante  disse o primeiro-cabo com um  sorriso irresistível.  Nenhum pormenor, pelo menos. O sargento falou bastante vivamente com o cabo Asch, é certo, mas ignoro de que se tratava. Não vou assim sem mais nem menos meter-me nas conversas dos outros.

 

Mas  é  impossível  que  não  tenha  ouvido!  exclamou Lindenberg numa voz aguda.

 

Porquê, meu sargento?

 

A voz de Lindenberg quebrou-se. Despejou.

 

Infame mentiroso, você... você...

 

Sargento  interveio   o   brigadas   severamente, proíbo-lhe que pronuncie essas injúrias na minha  presença. Perdeu a serenidade? Está doente?

 

Mas, meu ajudante... Eu não posso... Não posso admitir.

 

Quem faz o inquérito sou eu, sargento Lindenberg. Proíbo-o de se meter no assunto.  Será isto disciplina? Está fora de si. Recolha imediatamente ao seu quarto, sargento Lindenberg, e espere as minhas ordens.

 

Lindenberg saiu, todo encolhido. O brigadas seguiu-o com um olhar de indescritível satisfação. Estava certo de ter alcançado um grande triunfo. Devagar, acenou a cabeça com prazer.

 

Meu caro Kowalski  disse para o primeiro-cabo, que não tinha perdido uma única palavra da cena , o seu depoimento é preciosíssimo para mim. É claro que está pronto a repeti-lo sob juramento em qualquer ocasião?...

 

Naturalmente, meu ajudante.

 

Muito bem, meu caro. Nesse caso, pode retirar-se. Mas não se afaste. Talvez ainda precise de si.  Mande entrar o cabo Asch.

 

Kowalski desapareceu, Asch entrou.

 

Aproxime-se  disse o brigadas com benevolência. Tenho aqui uma participação do subalterno Lindenberg. Conhece o conteúdo? bom! Lindenberg afirma que você o tratou por «guarda de galés» e por «negreiro». Que responde a isto?

 

É exacto, meu ajudante  disse Herbert com uma amabilidade um pouco afectada.

 

Schulz deu um salto:

 

É exacto?

 

Chamei ao sargento Lindenberg «guarda de galés» e «negreiro». É o que ele é.

 

Ouço com  certeza  mal!  exclamou  o  brigadas, estupefacto para além de todos os limites.  Não está decerto a falar seriamente.

 

Sim. Falo seriamente. E é a verdade.

 

Advirto-o...

 

De quê? Ninguém dispararia contra mim.

 

O quê?

 

Mas quando dispararem contra si outra vez, e é provável que não tenha de esperar muito tempo, pode acontecer que façam melhor pontaria. Não deve ser difícil atingi-lo. É um bom alvo. Mas que tem? Sente-se mal? Se eu estivesse no seu lugar, sentir-me-ia mal muitas vezes. Sentir-me-ia nojento.

 

O sargento-ajudante Schulz levantou-se e, estendendo o braço como para pronunciar uma sentença de desterro, disse:

 

Está preso.

 

E isto era quase solene.

 

O capitão Dema, ocupado a tomar «uma chàvenazinha de café»  o que queria dizer cinco chávenas a transbordar, olhava nervosamente o relógio.

 

O meu carro ainda não chegou?  perguntou.

 

A sua hospedeira, a viúva Behrends, tranquilizou-o:

 

O carro vem sempre a horas. São apenas nove menos um quarto.

 

Cinco minutos antes da hora é a pontualidade militar respondeu o capitão.

 

Apanhara e retivera recentemente este ditado de origem alemã, para não dizer prussiana. Gostava dele, e o seu coração de letrado regozijava-se ao verificar que rimava... quase.

 

De pé, junto da janela, observava a rua. A viúva Behrends, que velava dedicadamente pela vida íntima deste encantador austríaco, reprovava este nervosismo matinal; teria preferido notá-lo noutro momento e noutra situação.

 

Mas Derna todas as manhãs entrevia um novo dia cheio de dificuldades. Dissabores, inépcias, asneiras.

 

Não era fácil para ele ser um prussiano. Devia  era assim que se dizia ali?  «puxar com força ao varal» para não ser notado. Tinha de pilotar entre recifes a barca que lhe estava confiada; o melhor método para chegar a bom porto era esperar o vento favorável e conduzi-la com cuidado. E evitar o mais possível o comandante Batata.

 

Chegou o carro  disse a Sr.ª Behrends. ?recipitou-se para Derna com a escova, à procura de

 

poeira, cabelos, pequenos fios. Escovou-o com amor, desde os ombros bem enchumaçados até ao sólido traseiro.

 

Derna já não era muito jovem, mas era ainda notável a agilidade com que desceu a escada, caminhou para o automóvel e correspondeu à continência do motorista. Tencionava fazer-lhe um reparo, mas absteve-se porque, na verdade, ele não vinha atrasado. E depois teria sido imprudente, qualquer coisa como uma tentativa de suicídio, deixar-se arrastar a uma repreensão severa: o homem podia perder a serenidade, assustar-se, e um grave acidente poderia suceder.

 

Para a caserna  disse o capitão Derna.  Mas antes passe por casa do Dr. Sàmig.

 

Sim, meu capitão  respondeu o motorista. Considerava inútil esta ordem, que lhe era repetida

 

todas as manhãs nos mesmos termos.

 

Derna, empertigado dentro do carro, parecia estar ali atarraxado. O médico militar esperava-o defronte de casa.

 

Bom dia, meu camarada  gritou-lhe Derna cordialmente, como todas as manhãs.

 

Bom dia, capitão  respondeu o médico não menos cordialmente.

 

Subiu com rapidez, sentou-se à esquerda de Derna, e o automóvel partiu.

 

O capitão, que sempre se sentira um tanto solitário «neste áspero Norte», dedicara-se a conquistar a amizade do médico, e parecia tê-lo conseguido. Por ser vienense não era tomado muito a sério pelos outros oficiais. O Dr. Samig não o era mais porque pertencia a uma categoria inferior de oficiais e não passava, consequentemente, do segundo plano. Era lamentável, mas fácil de compreender. Foi assim que ambos se encontraram e se apoiaram um ao outro.

 

Belo dia  disse Derna.

 

Não haverá muitos doentes  disse Samig.

 

O automóvel deixara o centro da cidade e rolava na estrada que levava à caserna. O capitão e o médico sentiam que se compreendiam bem, mesmo falando pouco. O motorista pisou o acelerador para chegar mais depressa. Queria desembaraçar-se da carga que levava, a fim de consagrar o resto do dia a lavar e limpar o carro, o que equivalia a dormir tranquilamente.

 

O soldado de guarda abriu o portão e deixou passar o carro sem o inspeccionar. Pela janela do corpo da guarda gritou:

 

Capitão da 3.ª bateria e médico militar! Imediatamente o telefone de alarme entrou em acção. O automóvel parou diante da divisão para aí deixar o

 

Dr. Samig. Mas antes que este tivesse tempo de despedir-se do capitão abriu-se uma janela por cima deles e Luschke, o Batata, apareceu.

 

’dia, meus senhores  gritou-lhes.

 

Depois esperou para ver o que ia passar-se em baixo.

 

Derna, compreendendo logo que não era possível fazer a continência ao comandante do fundo do automóvel, levantou-se rapidamente e desceu. Foi só então que, com a cabeça levantada para o 1.º andar, fez a continência. O médico fez o mesmo.

 

Luschke sorriu. Esperava tranquilamente, sem fazer nada. Contentava-se em olhar.

 

O capitão estava visivelmente embaraçado. Não sabia o que fazer. O Dr. Samig também não. Fazer nova continência e partir, uma vez que o comandante não parecia tencionar conversar com eles? Ou esperar que o comandante, que lhes dirigira primeiro a palavra, os despedisse?

 

Luschke, o imprevisível, gozava visivelmente o embaraço dos seus dois oficiais.

 

Então o capitão teve uma ideia que lhe pareceu absolutamente prussiana. Anunciou:

 

3.ª bateria, sem novidade.

 

Como sabe, capitão?  perguntou com voz suave Luschke, radiante.  Tem telefone em sua casa? O sargento-ajudante foi já ter consigo? Ou veio já ao quartel?

 

Não, meu comandante  balbuciou Derna,  esforçando-se por não perder o aprumo.

 

Ah!  exclamou o Batata,  encantado.  Então  é bruxo, com certeza!

 

Derna, apanhado de surpresa, conservou-se em silêncio. Queria desaparecer pelo chão abaixo. Este comandante era para ele um perpétuo flagelo, uma fonte constante de humilhações, uma cadeia sem-fim de surpresas.

 

Em todo o caso  disse da janela o comandante, desta vez achou qualquer coisa para dizer. É um evidente progresso. Ao passo que o nosso médico parece ter perdido a língua.  É preciso examinar-se a esse respeito, doutor.

 

E o Batata, rindo duma maneira inimitável, saiu da janela, deixando os dois homenzinhos perplexos. O motorista, que ouvira tudo, ria sem disfarce.

 

O médico despediu-se correctamente.

 

Muito obrigado, meu caro capitão  disse.

 

Tive todo o prazer, meu caro camarada  respondeu Derna. Tentou inclinar-se com a inimitável elegância dos antigos gentis-homens austríacos, mas desta vez não o conseguiu completamente. Depois disse ao motorista: Para a bateria.  

 

O motorista não pensou em confirmar a ordem recebida. Nem sequer acenou a cabeça. Continuando a sorrir, mal esperou que o capitão se instalasse. E, bruscamente, parou à entrada da 3.a bateria.

 

Obrigado, meu amigo  disse Derna, que tinha finalmente recuperado a presença de espírito.

 

Deitou um olhar para o céu, magnificamente azul, um outro para o relvado verde, um terceiro para o pavimento recentemente varrido. Tudo lhe pareceu em perfeita ordem.

 

Num passo ágil subiu os poucos degraus que o levavam ao seu gabinete. O alferes Weddmann encontrava-se ali e fez-lhe a continência.

 

bom dia, meu caro alferes  disse o capitão com o tom de um bom camarada.  Sinto-me contente por vê-lo.

 

bom dia, meu capitão  respondeu Wedclmann, rígido. Posso falar-lhe?

 

Mas, com certeza, meu caro. Venha ao meu gabinete.  E depois, um pouco inquieto, acrescentou.  Espero que nada seja de desagradável!...

 

Infelizmente, assim é, meu capitão  disse Wedelmann.  Lamento bastante.

 

Derna, que estava justamente a esquecer as manobras do Batata, sentiu-se outra vez pouco à vontade. Desapontado, levantou os olhos para a clara luz do Sol que penetrava pela janela do corredor.

 

Venha  disse.

 

Entraram no gabinete. O sargento-ajudante esperava-os. Alguns soldados estavam presentes. O brigadas gritou: «Sentido!», e bateu os tacões. Depois despejou o seu relatório e concluiu:

 

Segundo-cabo Asch, preso.

 

Ah!   Ah! exclamou   Derna   para   dizer   alguma coisa. Tirou do bolso um lenço duma brancura deslumbrante, mas não se serviu dele. Olhou em volta: Schulz postara-se diante dele, semelhante ao deus da vingança; o sargento amanuense espreitava com ar hipócrita; o segundo-sargento Lindenberg mantinha-se erecto como uma estátua; num canto encontrava-se o cabo Asch.  Ah! Ah! repetiu o capitão.

 

Venho  por  causa  do  mesmo  assunto  declarou Wedelman.

 

Derna amarrotou nervosamente o lenço; estava mais que aborrecido, estava apavorado. Mas não o queria reconhecer. Evitou primeiro tomar posição: não era apenas a experiência que lho aconselhava; fazia-o principalmente porque não achava nada para dizer.

 

Sigam-me  ordenou.

 

Wedelmann e Schulz juntaram-se a ele. Ninguém falou.

 

O capitão atirou as luvas para cima da secretária, tirou o quépi, que entregou ao sargento-ajudante; depois desapertou o cinturão, sentou-se, tirou um cigarro: Schulz apressou-se a dar-lhe lume. O alferes colocara-se perto da janela e fingia olhar para fora. Um silêncio pesado reinava.

 

O capitão reconheceu então que não podia continuar calado e que devia fazer perguntas:

 

Ouvi bem? Prendeu o cabo Asch?

 

Antes que Schulz respondesse, o alferes declarou:

 

É estúpido tê-lo prendido. Para tanto seriam precisos motivos sérios ou uma ordem concreta. Mas neste caso não há nem uma coisa nem outra. Considero isto um abuso de poder. Pode até qualificar-se de sequestro.

 

O sargento-ajudante quis protestar, mas Derna levantou a mão para o acalmar, ao mesmo tempo que limpava rapidamente o suor que fazia reluzir o seu amável rosto de frequentador de café.

 

- Meu caro alferes Wedelmann  disse, num tom perfeitamente cortês, aprecio imenso os seus notáveis conhecimentos. Mas antes de recorrer a eles permita-me, peço-lhe, que proceda metodicamente. Exponha, sargento-ajudante, o que o levou a prender o cabo Asch.

 

Não se trata, evidentemente, duma verdadeira prisão, com algemas e cela, meu capitão. O cabo Asch está no meu gabinete, sem vigilância; não lhe tocaram sequer num cabelo da cabeça.

 

Chamo a  sua  atenção  interveio  Wedelmann para a circunstância de que, do ponto de vista jurídico, a palavra «prisão» basta. A partir deste momento o indivíduo preso encontra-se sob um regime de direito essencialmente diferente e, por assim dizer, mais rigoroso. Por exemplo, se tentasse evadir-se podia-se fazer uso das armas contra ele sem aviso. Não é necessário algemá-lo ou encarcerá-lo.

 

Eu não disse: «Está preso»  protestou Schulz, furioso. Disse  simplesmente:  Vou  mandá-lo  prender.»

 

Nem sequer tem o direito de dizer isso  replicou Wedelmann.  De resto, o cabo Asch pretende que o senhor disse: «Está preso.»

 

Meu capitão  perguntou o brigadas fora de si , quem é mais digno de confiança aqui: um sargento-ajudante ou um cabo?

 

Um posto superior não equivale necessariamente a qualidades   superiores   de   carácter  disse   Wedelmann, agressivo.

 

Vejamos, meus senhores!  exclamou Derna, ten. tando acalmá-los. Enxugou outra vez a testa, a cara, o pescoço.  Devem admitir que eu queira saber o que se passou. Vamos, sargento-ajudante, em que funda a sua convicção de que poderia eventualmente ser oportuno prender o cabo Asch?

 

Meu capitão  respondeu Schulz, que só com dificuldade conseguia dominar a sua irritação , houve primeiro uma participação do sargento cozinheiro acerca da atitude indisciplinada do cabo Asch. Considerei insignificante essa participação e recusei-a.

 

O que mostra claramente  disse Wedelmann  que nem mesmo o senhor acredita em tudo quanto aqui diz.

 

Por favor, alferes Wedelmann  implorou Derna. O sargento-ajudante conseguiu ignorar Wedelmann e as suas observações.

 

A participação do sargento cozinheiro será apresentada declarou.  Além disso, há uma participação do segundo-sargento Lindenberg. Aqui está.

 

Hesitando, Derna agarrou o papel que Schulz depusera na secretária. Leu-o de má vontade e exclamou:

 

Ah! Ah!

 

É preciso notar a esse respeito  explicou Wedelmann  que a pretensa testemunha de grande importância, o primeiro-cabo Kowalski, afirma nada ter ouvido do que pretende o subalterno Lindenberg na sua participação.

 

O primeiro-cabo Kowalski é um imbecil  disse o brigadas, ao passo que o segundo-sargento Lindenberg é o melhor subalterno da bateria, para não dizer do regimento. Ponho as mãos no lume por ele. Pode ter-se absoluta confiança.

 

É um indivíduo limitado  respondeu Wedelmann e que não vê mais longe que as instruções mais próximas. Tem um espírito acanhado. Tropeça ao menor obstáculo.

 

É talvez a opinião do Sr. Alferes  disse o brigadas num tom maldoso.E é sempre interessante para nós, subalternos, saber o que um alferes pensa a nosso respeito.

 

Peço-lhe... disse Derna numa voz rouca, sem precisar a quem se dirigia a observação. Fizera-o habilmente; pelo menos, assim o pensava.

 

Meu capitão  disse então Schulz , o mais importante é que, de qualquer modo, o cabo Asch não nega ter empregado as palavras «guarda de galés» e «negreiro»...

 

Meu capitão  disse o alferes , o cabo Asch não é responsável pelo que pretendem ter ele dito ou pelo que disse. Foi provocado, provocado até à sua exasperação. Reage agora como um touro, e há uma espécie de instrutores que são para ele como a capa vermelha para o touro. Deve-se deixá-lo tranquilo. Se o fizerem, a questão arrumar-se-á por si mesma. Evite-se muito simplesmente reduzi-la a escrito. Estou mesmo em dizer que o cabo Asch, no caso presente, é irresponsável.

 

Ah! Ah!  exclamou o capitão, perturbado.

 

Posso ir buscá-lo, se o deseja  propôs o brigadas. Poder-se-á ver assim se ele é louco ou não.

 

Não aconselho isso  disse Wedelmann num  tom extraordinariamente grave.

 

Eu aconselho  replicou o sargento-ajudante. Derna torcia nervosamente os dedos. Esmagou um cigarro, tirou outro, acendeu-o.

 

Não consigo compreender  disse  por que razão o cabo Asch devia ser preso em consequência desta participação.

 

Não é tudo, meu capitão. Esse indivíduo disparou contra mim ontem à noite.

 

O senhor diz asneiras, sargento-ajudante!  exclamou Wedelmann brutalmente.

 

Assustado, o capitão deixou cair o cigarro que fumava.

 

Que disse?  perguntou.  Ele disparou contra si? E só agora é que sei? Como é isso possível? Onde arranjou ele as munições?

 

O senhor não dormiu o suficiente  disse Wedelmann a Schulz num tom de desprezo.

 

Sem dúvida melhor que o senhor, meu alferes  respondeu o outro com insolência.  De minha casa não saiu nenhuma rapariga às oito horas.

 

Está doido!  gritou Wedelmann.

 

Sei muito bem o que digo  replicou o brigadas fora de si.  Não tenho necessidade de lhe lembrar o que se permitiu fazer durante a noite de quarta para quinta-feira.

 

Basta!  Derna tentou gritar, mas a sua voz quebrou-se. Senhores, peço-lhes que meçam as suas  pálavras. Compreendo muito bem a vossa exaltação, mas deixem que eu forme a minha opinião. Até agora não sei nada, absolutamente nada. Deixem-me agir com método. Que diriam se mandasse comparecer o cabo Asch?

 

Derna, contava com um protesto, mas ele não veio. Wedelmann, enfadado, virava as costas e olhava pela janela. Schulz só podia estar satisfeito com esta conclusão. Abriu a porta e gritou:

 

O cabo Asch ao capitão!

 

Asch entrou e olhou em volta. Achou natural que Wedelmann evitasse olhá-lo e natural também que o brigadas parecesse querer devorá-lo. Depois observou o capitão.

 

Cabo Asch  disse este. tenho aqui uma participação do sargento Lindenberg. Conhece o que ela diz?

 

A participação é exacta. Se quiserem, estou pronto a explicar.

 

Responda só ao que lhe perguntarem  disse o brigadas severamente.

 

Quem é que interroga aqui?  perguntou Asch. O senhor ou o capitão?

 

Sou eu  disse Derna.  E peço-lhe que me diga se reconhece ter disparado contra o sargento-ajudante.

 

Aquele que o afirma  disse Asch  não é mais que um imundo mentiroso.

 

Atreve-se a negar?  rosnou Schulz num tom ameaçador.  Tem a insolência de me querer fazer passar por mentiroso aos olhos do meu superior?

 

Não há nisto nenhuma insolência.

 

E, de resto, como sabe que dispararam?  perguntou Schulz, retomando a condução do interrogatório.

 

Derna não teve tempo de protestar. Quanto a Wedelmann, esse adivinhava que as coisas iam correr mal para Schulz, o que o encantava.

 

Vamos! Como sabe?

 

Toda a bateria o sabe. Fala-se disso por toda a parte.

 

E como sabe que foi contra mim que dispararam?

 

O senhor era o único que se encontrava no campo de visão. Além disso, acho natural que tenha sido contra si. Quase todos os membros da bateria são da minha opinião. E muitos deles exprimiram, como eu, a esperança de que o atirador aponte melhor na próxima vez.

 

Então desejam um assassinato?

 

De modo algum. Não falando em que não se trataria de um assassinato, mas sim duma espécie de acto de legítima defesa, nós não queremos que a sua pele seja tocada. Só ligamos importância ao facto de ver o seu medo aumentar. Porque o senhor deve sentir medo ao pensar que o odeiam de tal maneira que haja alguém capaz de o tomar como ponto de mira, e que haja uma multidão que ache isso bem feito, e um bom número de pessoas que se regozijem.

 

Ouve, meu capitão?  gritou Schulz, espumando de raiva.É uma quadrilha de assassinos!

 

Somos, quando muito, o resultado da vossa educação. Isto deveria obrigá-los a reflectir. Tirem, portanto, aproveitamento do que se passa. Valerá a pena.

 

Basta!  gritou o capitão Derna.  Já é de mais! As mãos tremiam-lhe. O seu rosto brilhava de suor e ele já não pensava em enxugá-lo. Parecia-lhe ter um véu diante dos olhos. Sentia-se esgotado.

 

Saia, cabo Asch  disse Wedelmann. Herbert deitou-lhe um olhar preocupado. Depois, aparentemente indiferente, deixou o gabinete. Encostou-se à parede. Estava extenuado, mas sorria.

 

Uma situação impossível  disse Derna em voz débil.  Uma situação absolutamente impossível.

 

Proponho que se lavre um auto de acusação  disse o sargento-ajudante.

 

Estúpido  respondeu  Wedelmann.  Não  há  elementos suficientes.

 

Só o que ele disse sobre os tiros basta para o levar a conselho de guerra.

 

Não basta. Ouvi com atenção. Não houve uma única afirmação, e ainda menos uma confissão. Tudo o que ele disse não foram mais que hipóteses, reflexões, desejos.

 

Uma situação absolutamente inextricável  repetiu o capitão. Estava desamparado e não procurava sequer escondê-lo.

 

Seria bom saber-se quem fez nascer esta situação, meu capitão.

 

Quem, senão esse cabo?  perguntou Schulz, acusador.

 

Não sou da sua opinião  disse Wedelmann secamente.  Não é Asch quem está em causa.

 

Talvez seja eu.

 

Não  acredita  que  assim   seja,   sargento-ajudante. Contudo, desta vez acertou.

 

O capitão abanou a cabeça e disse:

 

Uma situação extremamente penosa. E propusemos nós este rapaz para o posto de segundo-sargento!...

 

Nunca  se  viu  tal coisa exclamou  Wedelmann, para quem isto era uma novidade de primeira ordem. Quem teve a ideia?

 

Eu  disse simplesmente o sargento-ajudante. Wedelmann rebentou às gargalhadas. Riu até às lágrimas. Depois, deliciado, disse, ofegando:

 

Esta é a melhor piada que ouvi em toda a minha vida.

 

Derna e Schulz conservaram-se calados e olhavam com uma gravidade terrível o alferes.

 

Enganámo-nos, e é tudo  disse o brigadas.  É lamentável. Agora não devemos ter isso em consideração.

 

Wedelmann limpou os olhos.

 

E que se passará se o comandante tiver já assinado a promoção, tornado-a, assim, oficial? Que vão fazer se essa promoção aparecer hoje na ordem do dia do destacamento?

 

Nesse caso a promoção terá de ser anulada.

 

Conhecem mal o comandante. com o major Luschke essas coisas não se fazem.

 

Trata-se, no entanto, de um soldado que perdeu a razão  insistiu Schulz.  O senhor mesmo, meu alferes, disse que ele era um irresponsável.

 

É a solução-disse o capitão, parecendo acordar dum longo e profundo sono.  É exactamente essa a solução  disse com uma convicção  crescente.

 

Que quer isso dizer?  perguntou Wedelmann, desconfiado.

 

O que se passou aqui  disse o capitão com vivacidade já não é normal. Concordará comigo. As prescrições existentes não permitem resolver a questão. Se tomarmos  tudo em  consideração,   haverá  um  escândalo enorme. Mas se conseguirmos demonstrar que o cabo Asch é vítima duma perturbação cerebral...

 

Meu capitão...  interrompeu Wedelmann.

 

.. .que é vítima duma perturbação cerebral passageira, quer dizer, de um desvio facilmente compreensível, se pudermos provar isto, desembaraçamo-nos airosamente do caso.

 

Como está a imaginar isso, meu capitão?

 

Mas é muito simples!  Derna estava já corado de excitação. Via enfim a margem. Achava genial a sua descoberta. Ora vejamos,  meus senhores!disse jovialmente. Posso gabar-me de estar ligado por laços de afectuosa camaradagem ao Dr. Sámig, o nosso médico. vou simplesmente pedir-lhe que examine com atenção o cabo Asch e lhe aplique os socorros médicos necessários. Não protestem, meus senhores. É a melhor solução. E o nosso inquérito fica suspenso até se conhecer o resultado do exame médico... Então?... Que acham?

 

Nem o alferes nem o sargento responderam.

 

«Meu caro capitão», respondeu o Dr. Sámig, ao telefone, «enquanto não tiver visto o doente não posso fazer, como é natural, o meu diagnóstico. Por outro lado, o caso que acaba de me descrever interessa-me vivamente do ponto de vista médico. É certo que sou cirurgião, mas, meu caro capitão, os fenómenos psíquicos, que sempre foram minimizados, são objecto da minha particular atenção.»

 

O médico sorriu amável e pretenciosamente. Acenava a cabeça a tudo o que o capitão Derna julgava oportuno dizer-lhe. Compreendia muito bem de que se tratava: previra casos como este e preparava-se para eles.

 

«É importante», disse o Dr. Sàmig, «não assustar o paciente. Recomendo um tratamento tão discreto quanto possível, por mais difícil que seja. O nome da doença não deve ser pronunciado, nem sequer designado por expressões populares. Trata-se aqui unicamente  e é preciso que o paciente esteja disso persuadido  dum exame vulgar, absolutamente natural, por exemplo para saber se ele pode suportar a detenção ou se tem qualquer doença venérea.»

 

O médico não deixava de sorrir ao telefone. Era para ele, conforme deixava compreender, uma honra poder auxiliar o capitão Derna; e era, de algum modo, para si, uma alegria  dizia-o sem vergonha  curar por métodos novos um caso anormal ou, pelo menos, dar dele um completo diagnóstico.

 

«Peço-lhe que me mande esse doente.»

 

Sámig pousou com delicadeza o auscultador. Regozijava-se discretamente. E pensava que tinha esse direito. Finalmente ia poder interromper o seu trabalho quotidiano, tão enervante como fatigante, e mostrar de que era capaz. Talvez então o médico-chefe viesse a interessar-se pelo seu trabalho e lhe confiasse de futuro tarefas mais honrosas.

 

O Dr. Sàmig adquirira muito novo as suas primeiras noções de cirurgia, durante os últimos meses da guerra mundial. Serrava ossos com ou sem anestesia, com maior ou menor êxito. Era o tempo em que os pensos eram de papel e os medicamentos verdadeiros tesouros. Depois da guerra fizera a sua medicina, fora assistente em qualquer parte, mas sempre tivera a pouca sorte de dar com chefes incapazes de apreciar a sua capacidade. Entrara então para o exército e ficara como médico da tropa. Chamou o primeiro-sargento enfermeiro:

 

A câmara de isolamento está livre?

 

Sim, senhor doutor, a cela está livre.

 

Vai ser ocupada daqui a pouco. Prepare tudo. Uma ficha especial. À parte isso, os exames habituais: altura, peso, temperatura, pulso, urina. O doente chama-se Asch, segundo-cabo da 3.ª bateria.

 

Muito bem,  Sr.  Doutor  respondeu  o sargento, retirando-se para transmitir as ordens a um segundo-sargento enfermeiro.

 

Sâmig levantou-se, olhou com desdém os manuais de cirurgia que conhecia e não admirava já. Ultrapassara este estádio. Esforçara-se por reformar militarmente o serviço sanitário. Mandara até preparar uma câmara de isolamento, com rede de arame e ferrolho duplo.

 

Trouxe para a mesa dois grossos volumes. Na capa do primeiro podia-se ler: Psicanálise Aplicada, c na do outro: Elementos da Psicologia do Indivíduo.

 

Disto é que precisava. Isto é que lhe enchia o espírito. Não o queriam como cirurgião; pois ele não queria contentar-se em examinar membros viris em série... Queria fazer melhor. A psicanálise seduzira-o. Era uma ciência relativamente nova, em geral desprezada na Alemanha... Fora descoberta, segundo parecia, ou, pelo menos, aperfeiçoada, por um judeu. «Como diabo se chamava ele? Ah, sim! Freud!» Aliás, isto não era verdade, evidentemente.

 

Sámig abriu os livros. Não era partidário daquilo a que se chamava a psicologia do desejo ou do instinto; considerava antes verdadeira a psicologia dos complexos, ampliada pelas comprovações raciais. Ele próprio imaginara o «teste de complexos Sãmig», que experimentara prudentemente nos seus doentes e com o qual obtivera um resultado muito claro: quase todos tinham afirmado agir mais por reflexão que por instinto.

 

Mas todos estes ensaios não eram mais que aproximações; o que lhe faltara até aí era o caso que só pela psicanálise podia ser resolvido. com este cabo Asch parecia-lhe ir ter enfim o caso de que precisava. Preparou-se para ele com alegria e não sem algum nervosismo.

 

Levantou-se e dirigiu-se à câmara de isolamento. O doente estava sentado na cama; um segundo-sargento contava-lhe as pulsações.

 

É o cabo Asch?  perguntou o médico, olhando-o com um interesse mal disfarçado.

 

Que vim eu aqui fazer?  respondeu Asch.  Eu não estou doente.

 

O Dr. Sámig teve um sorriso aliciante. Anotou: «Necessidade de se fazer valer. Impossível determinar ainda-se esta necessidade é exagerada.» E disse:

 

Ninguém está de perfeita saúde. E um exame médico nunca fez mal a ninguém.

 

Então porque não examina o corpo de subalternos? O Dr. Sámig anotou: «Sentimento de ódio mal dissimulado.» Disse amavelmente:

 

Cada coisa a seu tempo. De momento é de si que se trata.  Depois interrogou o enfermeiro:  Pulso calmo? Normal? bom. Tome nota e deixe-nos.

 

O sargento completou a ficha, que entregou ao médico. Depois retirou-se.

 

O doutor estudava a ficha. Fazia-o com cuidado. Para outros tratar-se-ia de elementos banais; para ele eram indicações significativas. Estava em condições de deduzir da constituição física as capacidades intelectuais. Os anões sofriam muitas vezes de complexos de inferioridade, os gigantes de megalomania; os magros eram tenazes, os gordos fleumáticos.

 

É claro que se tratava apenas de elementos de base.

 

No entanto, eram princípios de classificação fáceis < observar.

 

Deite-se tranquilamente  disse o médico em tom encorajador.  Ponha-se à vontade. Relaxe os músculos Não pense em nada.

 

Sr. Doutor, se faz questão de que eu durma aqui não me oponho. Mas não gosto que me olhem enquanto durmo.

 

Sámig continuava a sorrir. O extraordinário caso qi tinha diante de si pusera-o num estado de nervosismo alegre. Estava como que metamorfoseado.

 

Primeiro, vamos ainda conversar um pouco; podremos dormir mais tarde.

 

Nós?  perguntou Asch, desconfiado.  Quer do mir aqui também?

 

O sorriso de Sàmig imobilizou-se. Custou-lhe a não deixar desaparecer completamente. Mas registou: Extraordinàriamente instável. Imaginação dominada por imagens pouco convenientes; não está ainda assente se se trata dum estado permanente; a eventualidade de complexos < inferioridade compensados não deve ser afastada.»

 

Estas reflexões restituíram-lhe o bom humor. O caso parecia mais interessante do que antes supusera.

 

É brincalhão  disse.  Isso surpreende-me.

 

Também o senhor me surpreende.  Em tudo o que o cabo dizia era impossível descobrir quais os sentimentos que o animavam. Mas as suas palavras tinham um tom desagradável e a sua ironia era pesada.  Geralmente representam-no,  Sr. Doutor, obstinado em achar toda gente de saúde, inimigo dos indolentes, pesadelo para doentes. A sua alcunha é, segundo creio, Raspador Ossos.

 

Ah!  exclamou Sámig, pouco lisonjeado.

 

Outros também dizem Serrador de Crânios. Porqê não sei. Até agora sempre me deu a impressão de não ser muito perigoso.

 

O Dr. Sámig estava estupefacto. O seu doente tinha expressões quase insultantes. Verdadeiras provocações, a que normalmente teria respondido pondo o sujeito na rua. Mas lembrou-se a tempo de que era nestas divagações que tinha de procurar o ponto de partida da doença.

 

Meu   caro   amigo  perguntou sofre   de   fortes dores de cabeça?

 

Não. E o senhor?

 

Custou ao médico fazer de conta que não ouvira. Já não queria mais preocupar-se com combates de vanguarda, mas sim atacar sem rodeios o problema central. Uma vez mais recapitulou o que sabia do homem: necessidade espantosamente exagerada de se fazer notar, manifestando-se em relação aos superiores por uma estúpida falta de disciplina; tendência para demolir barreiras. Seria vandalismo intelectual? Necessidade de êxitos aparentes? Reacção contra complexos ainda mal definidos? A alma, campo de batalha? Obsessão de recalcado?

 

Teve talvez uma infância infeliz, não?  sugeriu o médico.  Alimentação insuficiente?  O espaço onde viviam era pequeno? Ainda sente o frio da calçada e o vazio do estômago? Continua a ver os filhos do vizinho comendo com apetite uma fatia de pão mole coberta de manteiga e mel, de que não lhe davam nada? Durante as noites compridas ficava acordado; o vento zunia e você encolhia-se porque o cobertor era muito pequeno, não é verdade? Sua mãe chorava frequentemente? Seu pai batia-lhe, a si?

 

Oh, não! Nada me faltou na minha juventude. Não éramos ricos, mas vivíamos à vontade.  Uma vez, pelo Natal, comi terrivelmente: foi a única vez que sofri do estômago. Nunca vi chorar minha mãe e meu pai nunca me bateu. A que vêm essas idiotices?

 

Calma!  disse Sámig,  que começava, também,  a agitar-se.  As minhas perguntas não são feitas no ar. Indisposições de criança, insignificantes na aparência, são muitas vezes o prelúdio de graves doenças que se manifestam bruscamente em pessoas que se julgam de perfeita saúde.

 

Na   minha   juventude  respondeu   Asch  nunca estive doente de maneira que mereça atenção. Uma vez, tinha eu onze anos, torci um pé ao tomar banho. E foi tudo.

 

Essa espécie de doenças interessam-me pouco. Deixe-se estar deitado tranquilamente. Falemos doutras coisas. Alguma vez um amigo o desiludiu intensamente ou o traiu? Ou mesmo o prejudicou? Não? Achou-se alguma vez numa situação que tenha feito nascer em si o medo? Sozinho num quarto escuro? Ou de noite numa floresta? Em perigo de vida no mar? Também não? Viu alguma coisa que o tenha impressionado excessivamente? Por exemplo, pessoas lutando até se ferirem, ou que diante de si tenham... Enfim, sabe o que quero dizer? Também não? Teve alguma vez desejo de atacar alguém, de o torturar, de o assassinar?

 

Sim.

 

Ah! Cá está! Conte-me isso. Pode ter absoluta confiança em mim. Sou médico. Quando sentiu esse desejo de matar alguém?

 

Agora.

 

O Dr. Sàmig endireitou-se e recuou a cadeira. Os seus olhos, de um azul-pálido, estavam dilatados. Fechara os punhos, mas molemente.

 

Não diga disparates  disse a meia voz.

 

Que significam, então  perguntou Asch num tom agressivo, as tolices que sou obrigado a ouvir?

 

Quero examiná-lo.

 

Já me examinou. A temperatura é normal; o meu coração bate com regularidade; vou à retrete com a frequência necessária. Não tenho doenças venéreas, nem os pés chatos. É provável que não haja sedimento na minha urina; não tenho ’pólipos nem varizes. O cérebro também funciona bem. Não tenho nenhum complexo importante e não sou um nevrótico. Estou absolutamente normal. Mande-me pôr em liberdade, Sr. Doutor.

 

Eu é que sou responsável pelos meus doentes  disse

 

Sàmig, crispado.  Eu é que decido se está doente ou não.

 

Nesse caso, porque estou eu aqui nesta cela?

 

Não é uma cela, é uma câmara de isolamento. É para aqui que trazem os doentes que devem ser tratados à parte, ou os que têm uma doença contagiosa.

 

Quer dizer, doutor, que estou atingido por uma doença contagiosa?

 

Basta que haja suspeita.

 

Sr. Doutor  disse Asch com toda a seriedade, previno-o de que apresentarei uma reclamação sobre a sua maneira de me tratar. Ordene que me tragam papel e tinta. Queixar-me-ei de ter sido sequestrado. Além disso, exijo que escreva o seu diagnóstico, seja ele o primeiro ou o último com indicação exacta dos motivos que o levaram a mandar-me meter na câmara de isolamento. Peço igualmente para ser examinado por outro médico.

 

O Dr. Sàmig assustou-se;

 

Calma!disse, a custo Calma! Parece que tem febre. Dou-lhe um conselho: durma primeiro. Depois voltarei. E nós veremos o que se há-de fazer.

 

O cabo Asch estava estendido no leito da câmara de isolamento e olhava fixamente o tecto. Não era capaz de dormir. Em cima dum banco, a sua comida permanecia intacta. Diante da rede da janela aberta, o sol da tarde que começava a brilhar, baço e devorador.

 

O quarto, mobilado duma maneira primitiva, rodeava-o com a sua indiferença. A cor era de um branco sujo, velho. A cama, o banco, a mesa de cabeceira, a cadeira, a mesa. as paredes, tudo tinha sido branco anteriormente; tudo estava hoje sujo, velho.

 

Então? Como vai a batalha?  perguntou de fora uma voz cordial.

 

Era o primeiro-cabo Kowalski, que passara a cabeça pelas malhas largas da rede.


 Não há decisão ainda  respondeu Asch, depois de se ter sentado. Vens lamentar-me ou dar-me coragem?

 

Venho trazer-te de comer  anunciou Kowalski.

 

Estou a fazer greve da fome  disse o cabo. abanando a cabeça.

 

É justamente por isso. É o que deves fazer. Oficialmente fazes greve da fome: é um novo escândalo que os ameaça e que vai abater alguns ainda mais do que já estão. Extra-oficialmente eu abas”teço-te. Que queres tu? Morcela, presunto ou salsicha?

 

É-me indiferente.

 

Sim?  exclamou   Kowalski,   surpreendido.  Não dás a impressão de estar muito satisfeito.

 

Começo a sentir-me farto. No fundo, tudo isto é tão ridículo como os meios de arranjar uma sinecura. Todo o sistema está podre. Não há nada a esperar.

 

E é isso que te faz perder a coragem?

 

Cansa-me.

 

A mim, não. Sabes o que estou a fazer? A limpar a minha espingarda. Depois de tudo isto ainda temos cinco cartuchos de reserva.

 

Mete-os   na  pia  recomendou  Asch,   indiferente. Não iremos mais longe com eles. Esta gente está definitivamente enterrada... O que não lhes agrada não existe. Mas se isto não muda seriamente perderemos muito mais que a confiança... detestar-nos-emos. E dessa maneira é impossível manter um exército.

 

Continua a dormir  disse Kowalski.  Entretanto, eu preparo tudo.

 

E desapareceu.

 

Asch deixou-se cair na cama. Estava descontente. Esperava uma reacção completamente diferente. Esperava fazer saltar uma barrica de pólvora e apenas conseguira tocar num pântano borbulhante. Queria ouvir rugir o leão e apenas carneiros tinham entrado em acção. Nenhum deles se deixava provocar; nenhum saltava de indignação. Werktreu era demasiado apático para isso, Platzek demasiado vil, Lindenberg demasiado correcto, Schulz demasiado esperto, Derna demasiado mole, Wedelmann demasiado decente. E todos tinham má consciência. E nenhum sabia onde se encontravam os limites.

 

Uma chave girou na fechadura. Puxaram um ferrolho. O alferes Wedelmann entrou.

 

Não espero que modifique a sua posição  disse ele.

 

Portanto, se julga poder ofender-me ou provocar-me ficando preguiçosamente deitado, engana-se. Está aqui como doente e eu procedo de acordo com esse facto.

 

Vem visitar-me na minha qualidade de doente, meu alferes?

 

Encarreguei-me do seu caso. Resolvi desempenhar de algum modo o papel de defensor oficioso. Além disso, fui encarregado de o interrogar pelo comandante da bateria. Como sabe, é um oficial quem deve proceder ao interrogatório. Mas temos tempo; a questão não é urgente; ficará para mais tarde. E enquanto você aqui estiver não poderá fazer nada a ninguém, e nenhum outro tiro será disparado, suponho. Em primeiro lugar vamos esclarecer tudo o que pode ser esclarecido sem custo e sem prejuízo.

 

Diga-me, meu alferes, porque se mete nisto? Por que motivo trava os acontecimentos? Se não estivesse presente no gabinete do capitão, eu teria talvez alcançado o que queria. Como soube tão depressa o que ia passar-se aqui?

 

Felizmente para si, fui avisado pela menina Elisabeth.

 

Herbert nada disse. Olhou o alferes com uma expressão interrogadora. Depois baixou a cabeça e disse, como se estivesse esgotado:

 

Ora aí está. É claro que eu não podia saber isso.

 

A menina Elisabeth teve razão em fazer o que fez

 

disse Wedelmann com vivacidade.  E sobretudo em tê-lo feito a tempo. Reconhecerá que assim é. Só por isso a catástrofe pôde ser evitada. É impossível imaginar o que teria acontecido se eu não tivesse podido intervir na altura própria.
 

Está a lisonjear-se  disse Asch num tom mordaz.

 

Sei com exactidão o que tencionava fazer. É claro que não poderei nunca aprová-lo, mas creio poder compreendê-lo. Excitou até à exasperação certas pessoas e divertiu-se ao ver com que facilidade podia enraivecê-las. Mas, se considerarmos bem as coisas, nada fez que mereça verdadeiramente punição. Em todos os casos, seria difícil provar fosse o que fosse. Aí está o seu truque. Mas não lhe serviu de muito; não alcançará o que desejava.

 

-Seja como for, as participações acumulam-se umas sobre as outras. Não conseguirão acalmar Lindenberg e Schulz berra para ter a sua vítima. O capitão não pode deixar de consentir em tudo quanto lhe exigirem. Além disso, estou aqui. Seja o que for que decidam contra mim, e será necessário que decidam qualquer coisa  seja uma punição disciplinar ou um auto de acusação , chegar-se-á sempre a uma decisão impossível de justificar inteiramente, portanto a uma decisão falhada. E eu defender-me-ei.

 

E eu não permitirei que as coisas cheguem a esse ponto  assegurou Wedelmann.  Comigo os seus truques não pegam. Porque a verdade, meu bom amigo, é que não recusou obedecer, não provocou um motim e também não chegou a vias de facto com um superior.

 

Ainda pode acontecer.

 

Não, não irá até esse ponto, porque não é imbecil: não agirá tão desastradamente assim; se o fizesse, os seus adversários ficariam a ganhar. E a demonstração que pretende fazer não seria mais que um acto de violência. Ora a sua finalidade não é essa.

 

Deixe-me tranquilo. Estou sob vigilância do médico; tudo o que me possa excitar me é proibido.

 

Ouça-me  bem,  meu  caro Asch  disse o alferes amavelmente e aproximando a sua cadeira da cama.  Não sei se já reparou que tenho um fraco por si. Como pessoa é-me extraordinariamente simpático. No entanto, mesmo que assim não fosse, eu seria capaz de compreendê-lo. Tem razão. Há muitas coisas podres, e não é só de hoje que o sei. com efeito, o soldado não é uma máquina, a caserna não é uma fábrica para produzir defensores da Pátria. Como as coisas estão actualmente, não são apenas falsas, são também perigosas. Mas estes métodos revoltantes de séculos ultrapassados são, de todos, os mais cómodos. Sabe-o quem quer que pretenda pôr um exército em pé de guerra. As máquinas de pulverizar ossos trabalham excelentemente; reduzem os caracteres mais fortes e quebram toda a originalidade.

 

Não é a mim que tudo isso deve ser dito. Sei que é assim, e é porque o sei que fiz o que fiz, aquilo que o meu alferes não queria agora que tivesse sido feito.

 

Não derrubará essas máquinas.

 

. Pelo menos terei deitado um pouco de areia nas engrenagens. Fazê-las ranger. Talvez haja alguém que pergunte porque rangerão elas.

 

Meu caro Herbert, faça o que fizer, não irá longe. A minha opinião é também a de que é preciso destruir essas máquinas, mas no lugar delas será necessário colocar outra coisa. Qualquer coisa que seja essencialmente diferente. Uma reforma.

 

Bravo!  exclamou Asch ironicamente.  Não o detenho. Corra depressa ao seu trabalho. É urgente.

 

Seja sensato  disse Wedelmann, insistindo.  Pare. Quero tentar fazê-lo sair mais ou menos são e salvo desta história totalmente falhada.

 

Esperarei aqui até que me peçam desculpa.

 

Também isso!  exclamou o alferes, sinceramente desolado.  Seja sensato. E se não quiser ouvir, pense, pelo menos, na menina Elisabeth.

 

O que aqui se passa nada tem que ver com Elisabeth. Diga-lho, se por acaso ela tentar levá-lo de novo a sentimentos humanos.

 

Wedelmann não se sentia ofendido. Apenas estava inquieto. Imaginara a sua missão muito mais fácil. Este cabo era um terrível cabeçudo; não queria de modo algum admitir que nenhum sistema era perfeito e que era sensato, que era ajuizado, considerar as imperfeições inevitáveis.

 

Seu pai está inquieto como eu.

 

Como sabe?

 

Telefonei-lhe.

 

A sua solicitude não hesita diante de coisa alguma. Que lhe respondeu meu pai?

 

Pediu-me que lhe dissesse que esperava de si que não o desiludisse.

 

Pobre velhote!  disse Asch a meia voz.

 

Infelizmente, ele não pôde vir falar-lhe pessoalmente. Mas sua irmã está ali.

 

Herbert levantou os olhos, surpreendido. Depois disse, calmamente:

 

Mande-a embora.

 

Wedelmann procurava a todo o custo desempenhar com êxito a missão de que se encarregara.

 

Porque não quer falar-lhe?  perguntou num tom persuasivo. Decerto não tem a intenção de evitá-la?!

 

O lugar dela é ao pé das panelas da cozinha, e não junto do caldeirão das bruxas.

 

Está à espera no corredor. vou mandá-la entrar disse  Wedelmann, levantando-se  e dirigindo-se  para  a porta.  Faz favor, menina Ingrid. Seu irmão está satisfeito por vê-la...

 

Ingrid entrou na câmara de isolamento. Examinou o irmão com curiosidade e ficou um pouco chocada ao ver que ele ria, olhando-a sem a menor amabilidade. Não esperava isto.

 

Deixo-os agora  disse Wedelmann cortesmente. Normalmente eu deveria vigiar esta conversa... Assim se fará. Preciso apenas de ir buscar papel e lápis. Calculo que levarei meia hora a encontrar o que preciso.

 

Herbert  disse Ingrid logo que o alferes saiu, não devias ter feito isto.

 

Não te metas na minha vida, peço-te  disse Asch num tom rebarbativo.  Eu também não me meto na tua, embora tenha muito mais razões para o fazer.

 

Não te compreendo.

 

Também não contava que compreendesses.

 

Tu nunca tiveste consideração por nós. Quando o pai soube pelo alferes Wedelmann o que se tinha passado, agarrou numa garrafa de conhaque e fechou-se no seu gabinete.

 

À tua saúde! E a tua consciência não pôde ficar tranquila enquanto não pudeste deitar um olhar aos bem-amados olhos do teu querido irmão.

 

Peço-te que não fales dessa maneira. Se vivesses sozinho em qualquer parte, podias fazer o que quisesses. Mas não tens o direito de esquecer que estás nesta cidade, onde todos te conhecem, onde teu pai tem o seu negócio, onde vivo eu também. Tudo o que te permites fazer recai sobre nós. Temos de suportar os ditos, vão apontar-nos a dedo, vão deixar de frequentar o nosso café.

 

Sinto cada vez mais a tua dedicação de irmã por mim.

 

E tu sempre te portaste como irmão? Basta pensar em Vierbein. Também o tens a ele na consciência, por assim dizer.

 

Foi o rapazinho quem te disse isso?  perguntou friamente Herbert.

 

Tenho olhos para ver  respondeu a irmã, nervosa. E conheço-te. Tu não recuas diante de nada. Nada é sagrado para ti. Fizeste perder completamente o equilíbrio a Johannes Vierbein. Ele mal sabia ainda o que fazia. Tu excitaste-o e quiseste impeli-lo a fazer coisas como as que tu fizeste. Graças a Deus, ele recuperou o seu equilíbrio. É finalmente sensato. Sabe presentemente qual é o seu dever.

 

E eu sei finalmente o que é uma estúpida. Há já muito tempo que te considerava uma rapariga estrambótica, Ingrid, mas só agora vejo que estás atacada de monomania. Tens a doença dos heróis, minha filha. O teu pequeno cérebro considera uma honra tudo o que lhe apontarem como tal. Confundes Fuhrer e chefe. Aos teus olhos de parva quem quer que esteja no poder é um eleito. Quem quer que use um uniforme, um nobre defensor da Pátria. Quem quer que esteja na prisão é, por definição, um malandro; quem quer que esteja sentado no seu Mercedes, um homem de carácter. Ora vai ver se eu estou lá fora!

 

Fazes-me vergonha  disse ela, desolada.

 

Aí está uma bela palavra!  exclamou Herbert. Faço-te vergonha, mas também Vierbein te pode envergonhar. Tens todos os motivos para isso, porque o que nós somos vou dizer-to: o homem que é teu irmão e aquele com quem virás talvez a casar um dia, nós dois e algumas centenas de milhares de outros, atiramo-nos para a lama quando no-lo ordenam, rastejamos de barriga no chão ou enfiamos a cabeça nas retretes. Deixamo-nos insultar e maltratar e permanecemos em sentido quando nos tratam de cães, de porcos, de olhos do cu. Berramos: «Sim, meu ajudante», quando se propõem quebrar-nos a espinha. O nosso sentimento de honra é a chateza; manifestamos o nosso carácter lambendo botas. Assim é o teu irmão e assim é o homem a quem amas. Cora olhando para nós!

 

Herbert!  exclamou Ingrid desconcertada.

 

Vai-te embora! Sai daqui! Volta para o teu Vierbein, para esse anão, e lança-te no seu peito de herói. Poderás soluçar aí pensando na caricatura de homem que te deixaram.

 

Asch levantou-se, agarrou Ingrid pelos ombros, abriu a porta e empurrou a irmã para o corredor, onde se encontrava o Dr. Sãmig.

 

Chega em boa altura  disse Asch, voltando a atirar-se para cima da cama.

 

A maneira como trata a sua irmã --disse o médico, fechando a porta  é uma nova prova para mim.

 

Uma prova? De quê? Que é que pretende provar? O Dr. Sãmig cria mais firmemente que nunca na necessidade do diagnóstico que estabelecera. Conversas pormenorizadas com Derna, o seu amável camarada, com o bravo sargento-ajudante Schulz, com o subalterno modelo que era Líndenberg, tinham-no convencido de que se tratava dum caso tão grave que não podia ser unicamente tratado pela delicada psicanálise.

 

Redigiu o seu diagnóstico?  perguntou-lhe  Asch Preveniram outro médico? A minha reclamação foi enviada a quem de direito?

 

Não é assim que se fala a um superior  disse o Dr. Samig com ar altivo.  Tome nota disto para o futuro, peço-lhe.

 

Asch verificou com surpresa esta nova atitude do médico. Sentou-se, na expectativa do que ia seguir-se. A agitação que fizera nascer nele o que julgara dever dizer à irmã não queria acalmar-se. Os olhos brilhavam-lhe friamente.

 

Aqui está  disse o Dr. Sámig tirando um papel do punho da manga.  Pus por escrito o que era necessário que pusesse. Pode estar satisfeito, é vantajoso para si. Falando claramente, isto implica que você é posto fora da questão.

 

Que quer dizer?  perguntou Herbert, espiando o rosto do médico.

 

Você não é responsável pelo que fez,., não é inteiramente responsável. É a melhor solução. Desta maneira desembaraça-se optimamente da questão e a história acaba.

 

Que quer isso dizer? Significa por acaso que me declara irresponsável?

 

Exactamente  disse Sàmig, satisfeito.  Não é responsável pelos seus actos.

 

Escreveu isso? Escreveu que eu não sou responsável pelos meus actos? Isso quer dizer, por conseguinte, que sou louco.

 

Tal qual  disse o Dr. Sámig acenando a cabeça, satisfeito.

 

Posso ler?  O médico entregou-lhe a folha, que ele leu com atenção e devolveu.  Mas, vejamos, isso é uma brincadeira. Não se pode fazer semelhante coisa.

 

Não podemos fazer semelhante coisa?  perguntou Sámig.  Pois bem, se você fosse esperto, compreendia logo a sorte que este bocado de papel representa para si.

 

Mantém o que escreveu?

 

No seu próprio interesse.

 

- Muito bem. Será como quer.

 

Levantou-se devagar. Depois atirou-se ao médico, deitou-o ao chão e começou a esmurrá-lo. Levantou-o, lançou-o como uma trouxa de roupa de um canto do quarto para o outro. Não era muito fatigante, pois fisicamente Herbert era muito superior ao adversário.

 

Este arquejava, procurava recobrar fôlego, e pôs-se a gritar. Nos seus olhos esbugalhados lia-se uma terrível angústia. Arrastou-se para a porta, ofegando.

 

Ora aqui está  disse Asch, «nquanto limpava as mãos.  Não me podem fazer nada. O seu diagnóstico declara-me irresponsável pelos meus actos.

 

Na sexta-feira à noite foi disparado o segundo tiro. Desta vez os relógios da caserna marcavam também vinte horas e dezoito minutos. A noite profunda avançava.

 

Em cima do sargento-ajudante Schulz, que se encontrava nesse momento no seu gabinete, caiu estuque. Este cobriu em parte as participações que deviam servir para arruinar o cabo Asch. O tinteiro estava virado: a tinta ressumava através dos papéis.

 

Schulz atirou-se ao chão. Colado à parede em que se encontrava a janela, agachou-se, maldizendo a sua confiança habitual que o fazia trabalhar em plena luz e com as janelas escancaradas. Para não se colocar no campo de visão do atirador, que queria evidentemente atentar contra a sua vida, arrastou-se com prudência, de gatas, até ao interruptor.

 

Apagada a luz, Schulz correu para uma das janelas e examinou com cuidado a praça de armas, que, se os seus olhos o não enganavam, estava deserta. «Grande cobarde!», murmurou. Era evidente que esperava ver o atirador ficar no seu lugar até que o sargento-ajudante pudesse identificá-lo.

 

Schulz sentia-se tremer, consequência do terror que se apoderara dele e da cólera que sentia ferver dentro de si. Em três passadas atravessou o gabinete e berrou no corredor: «Alerta! Todos os subalternos no meu gabinete! Os homens diante da porta das camaratas!»

 

Berrou estas ordens quase maquinalmente, sem pensar. Mas estes berros, só por si, foram para ele um alívio. Contudo, nada de decisivo aconteceu. Alguns soldados saíram das camaratas para ver o que se passava; pareciam estar cheios duma alegre animação.

 

O sargento de semana tentou então fazer executar as ordens do sargento-ajudante. O seu apito ressoou por todos os corredores.

 

Os subalternos no gabinete do sargento-ajudante! Os soldados alinhados no corredor!

 

Entretanto os subalternos tinham-se reunido. Schulz deu-lhes logo que fazer:

 

Fechem a entrada da caserna à chave. Quem quer que queira entrar ou sair será detido na passagem... Você vigie as traseiras do edifício, para que ninguém saia pelas janelas... Você vá ao corpo da guarda e detenha todos os soldados da nossa bateria que queiram ainda sair... Você e você examinem o terreno em volta da bateria; você reviste o terreno dos barracões; você rebusque o campo de manobras. Ser-lhes-ão enviados reforços logo que houver mais subalternos.

 

A bateria assemelhava-se já a uma colmeia cujas entradas tivessem sido tapadas. Os homens acumulavam-se nos corredores e discutiam ruidosamente. Tinham formado por esquadras, em duas filas, e esperavam com impaciência os acontecimentos.

 

O brigadas precipitara-se para o telefone e pedira ligação com a enfermaria.

 

«Verifique imediatamente se o cabo Asch continua na câmara de isolamento.»

 

Esperou nervosamente a resposta, ao mesmo tempo que observava o subalterno que, de conformidade com as suas ordens, olhava pela janela do gabinete.

 

«Não está enganado?», perguntou ruidosamente o brigadas ao telefone. «Tem a certeza, a certeza absoluta, de que o cabo Asch se encontra na câmara de isolamento?... Não terá saído durante o último quarto de hora?... Sei tão bem como você que a porta tem um ferrolho e uma fechadura de segurança. Não é preciso dizer-mo. Mas ele pode ter ido aos lavabos... Que faz ele! Joga ao vinte-e-um com o sargento enfermeiro e por essa simples razão não pode... Que bordel!»

 

Schulz colocou brutalmente o auscultador no descanso. Cerrou os punhos, para que ninguém notasse como as suas mãos tremiam. Deitou a mão a um dos sargentos reunidos à sua volta e disse-lhe:

 

Galope até à enfermaria e veja se é exacto o que diz esse pica-nádegas.

 

Dito isto, ficou durante alguns segundos de pé, com as pernas afastadas, aparentemente reflectindo. Dirigiu-se então ao espingardeiro:

 

É preciso ir procurar o patrão. O capitão Derna deve ser posto ao corrente do que se passa. O melhor é ires num automóvel a casa dele. Na volta podes dar-lhe conhecimento do que sabes.

 

Vou já  respondeu Waber afastando-se a correr. O brigadas, depois de ter contado os que restavam, decidiu:

 

Um primeiro-sargento e um segundo-sargento tomam o comando de cada grupo de três esquadras. É preciso que saibam o que cada homem fez durante esta última hora. Quem quer que seja suspeito, por pouco que o seja, de ter deixado o edifício pelas vinte horas, tenha ido despejar o lixo ou à cantina, será trazido aqui. Verifiquem também as espingardas, mas com mais cuidado que da última vez.

 

Os primeiros-sargentos e os segundos-sargentos distribuíram-se pelos corredores. O brigadas andava febrilmente à volta do gabinete; dir-se-ia um leão numa jaula estreita, torturado pelo calor e devorado pela fome. O sargento encarregado de espreitar pela janela estava imóvel.

 

O alferes apareceu em roupão de banho.

 

Que se passa?  perguntou.

 

Dispararam   outra   vez   contra   mim  respondeu Schulz com uma desenvoltura reprovadora.

 

E falharam outra vez?

 

A bala quase me roçou. Estava sentado à secretária. O projéctil assobiou muito perto de mim.

 

Wedelmann examinou o ponto de choque, no alto da parede. Depois olhou para fora. Muito mais abaixo que o gabinete do sargento-ajudante só havia a praça de armas e a calçada.

 

Passam-se coisas engraçadas  disse o alferes com um riso sarcástico.  Ou o atirador planava a dois metros do solo, ou trouxe uma escada, ou então a bala fez realmente uma grande curva para poder roçá-lo.

 

Schulz conservou-se num silêncio hostil. Era astucioso bastante para não tomar posição contra a teoria do alferes, que era indiscutível.

 

Isto é o resultado  disse  de se tratarem estes homens como meninas. Dá-lhes más ideias...

 

Acho  disse o alferes  que este tiro disparado contra si é um sinal certo da simpatia de que goza.

 

Também se diz  respondeu o outro num tom equívoco que já se serviram deste método para fazer desaparecer pessoas que dificultavam aventuras amorosas.

 

Ah! Sim?disse o alferes, simulando ter percebido mal o sargento-ajudante.  Fez tentativas desse género? Isso simplifica as coisas, evidentemente. O número de interessados não deve ser muito grande. Seja como for, está destruída a sua teoria de que o cabo Asch tentou matá-lo.

 

Eu sempre disse, aliás, que esse rapaz não perderia o seu tempo com semelhantes bagatelas.

 

Wedelmann saiu satisfeito: a certeza de que o sargento-ajudante o seguia com uns olhos furiosos enchia-o de alegria. Perguntou a si mesmo, durante um momento, se não iria fazer uma visita a Lore Schulz, aliás sem intenções definidas: só por ir, só para enraivecer Schulz ainda mais. Mas resolveu não o fazer e estimou-se por isso.

 

Dirigiu-se então para o corredor central, onde se encontrava a secção de Lindenberg. Os soldados reunidos abriram caminho e gritaram: «Sentido!» Ura primeiro-sargento precipitou-se para ele e fez-lhe o seu relatório.

 

Continue  disse Wedelmann.  Não se incomode. Depois encaminhou-se para Lindenberg, que estava a «pentear» sistematicamente a sua esquadra.  Se não vê inconveniente, Lindenberg, ficarei a vê-lo um momento.

 

Sim,  meu  alferes!  exclamou  Lindenberg,  lisonjeado.

 

O sargento fazia andar os seus homens numa roda-viva. Afadigava-se como um podengo num rasto fresco. Rebuscava os armários, mandava deslocar as camas, virar a mesa; subiu para o parapeito da janela e tacteou o varão que suportava as cortinas; apalpava os soldados e desapareceu durante muito tempo num armário de vassouras.

 

Que é que procura, realmente?  perguntou o oficial com amabilidade.

 

Munições, meu alferes.

 

E acredita que vai encontrar munições em poder dos seus soldados?  perguntou com curiosidade.

 

Decerto que não, meu alferes.

 

No entanto, mesmo assim continua a procurar.

 

Sim, meu alferes  respondeu Lindenberg com uma maravilhosa convicção.  É a ordem que tenho.

 

Então não se atrase por minha causa  disse o alferes olhando em redor.

 

Contou os presentes. A secção de Lindenberg compunha-se de doze homens. Só estavam presentes sete.

 

Quem é que falta?  perguntou.

 

O artilheiro Vierbein, a quem se dirigia a pergunta, respondeu:

 

Cinco homens. Um no comando, dois na cidade, fora desde as sete horas, o segundo-cabo Asch na enfermaria, o primeiro-cabo Kowalski ainda no serviço.

 

 Onde trabalha ele?

 

No depósito de armas, meu alferes. Wedelmann tomou uma expressão desprendida e afastou-se.

 

Continue, Lindenberg  gritou ainda.

 

Depois dirigiu-se ao seu alojamento, deitou um grande copo de conhaque e bebeuo, sorrindo.

 

Entretanto o sargento-ajudante Schulz examinara os soldados que tinham sido detidos à saída. Eram honestos rapazes, de quem não se podia suspeitar. Dois deles estavam na cantina a beber desde as sete e meia. Às vinte horas e vinte minutos, ou seja dois minutos depois do momento em que o tiro fora disparado, haviam pago a despesa. O cantineiro Bandurski estava pronto a afirmá-lo sob juramento. Três outros dispunham-se a sair. Haviam deixado a camarata alguns minutos antes das vinte horas e trinta minutos: toda a esquadra podia declarar que até então tinham estado sentados na camarata ou a barbear-se. Um sexto soldado devia ir buscar cigarros para o primeiro-sargento Platzek: também ele se pusera a caminho depois do tiro.

 

Schulz praguejou. O subalterno que fora ao corpo da guarda regressou também sem resultado. Schulz praguejou. Os sargentos que haviam rebuscado as imediações da bateria, o terreno em volta dos barracões e o campo de manobras voltaram igualmente de mãos a abanar. Schulz praguejou.

 

Pouco a pouco toda a caserna se agitava. Os batedores do sargento-ajudante pareciam ter-se movimentado como elefantes numa loja de louça. Em pouco tempo toda a caserna soube que na 3.ª bateria fora disparado um tiro com a intenção de matar o brigadas. Na 5.ª bateria falava-se já dum grave ferimento, enquanto na cantina corria o boato de que havia um cadáver na 3.ª

 

O primeiro a telefonar foi o chefe de posto; depois foi da enfermaria e o oficial de dia; bastante mais tarde, o adjunto do comandante. Schulz respondeu furioso e até com grosseria. O oficial repreendeu-o vigorosamente. Schulz, que se enganara, desculpou-se de lastimável maneira. O adjunto reclamou um relatório imediato. Schulz prometeu-o, tremendo.

 

Era neste estado de espírito que se encontrava quando o primeiro-sargento Platzek cruzou o seu caminho.

 

Platzek  disse Schulz’, a minha paciência está esgotada.

 

Compreendo-te facilmente  assegurou o outro.

 

É preciso acabar por explicar donde vieram os cartuchos com que disparam contra mim, e sobretudo quem os recebeu.

 

Mas...  balbuciou Platzek.

 

Não   respondas  disse   Schulz,   implacável.  Foi um dos horoans que atiraram na tua carreira. É por eles que se devem começar as investigações.

 

Mas nesse caso estou perdido.

 

Estares perdido tu não é com certeza tão grave como estar morto eu. Ou julgarás, por acaso, que vou esperar com toda a tranquilidade que esses patifes tenham descarregado contra mim o resto das suas munições?

 

Schulz virou costas a um Platzek definitivamente aniquilado e correu ao encontro do capitão Derna, cujo automóvel ouvira chegar. Queria fazer-lhe uma participação o mais depressa possível.

 

Apesar da obscuridade, Derna parecia pálido. Schulz teve a impressão de que devia ajudá-lo a descer; mas a sua sagacidade em relação aos superiores competentes fê-lo compreender que valia mais abster-se.

 

Mas como é isso possível?  perguntou Derna.     Schulz despejou o seu imponente relatório. H

 

Entremos para o meu gabinete  disse Derna. Uma vez ali, olhou com ar perplexo o seu sargento-ajudante e perguntou:

 

Que vamos nós fazer agora?

 

O major Luschke, comandante do destacamento, era considerado por todos, e não apenas pelos seus subordinados imediatos, como um homem cujas decisões eram impossíveis de adivinhar. O Batata vinha quando queria, ia quando lhe aprazia, fazia precisamente o que lhe passava pela cabeça. Mas o que parecia desordenado tendia rigorosamente para um objectivo: Luschke semeava a inquietação em redor, com êxito e não sem satisfação. Podia-se vê-lo surgir a cada momento, a cada minuto do dia e da noite.

 

Consequentemente, dava grande importância à pontualidade dos seus subordinados. Os quadros de serviço aprovados por ele e os horários que lhes eram anexos deviam ser respeitados como coisas sagradas. Trazia consigo dois relógios; tinha sobre a secretária um outro; e dependurado na parede havia ainda outro.

 

Luschke deixara a bateria na tarde de sexta-feira, cedo, sem prevenir, bem entendido, o seu oficial ordenança. Fora convidado para uma caçada pelo proprietário duma serração. Isto podia significar que o comandante aparecia na caserna no sábado, ou logo de manhã ou com um grande atraso. Mas isto não passava duma suposição. Luschke podia igualmente chegar no momento em que, conforme as suas ordens, devia começar o trabalho do seu estado-maior. Era verdadeiramente impossível prever os actos do Batata.

 

O oficial chefe de posto, que depressa perdera o hábito de procurar adivinhar a hora de chegada ou da desaparição do seu comandante baseando-se no cálculo das probabilidades, apareceu, pois, como sempre, às oito horas no comando do destacamento. Escusado será dizer que Luschke não estava. Mas o oficial achava-se persuadido de que se tivesse chegado atrasado três minutos o comandante estaria à sua espera com uma expressão irónica.

 

Enquanto com uma ligeira e constante apreensão se preparava para a chegada do seu superior, o oficial ordenança punha em ordem as instruções recebidas, as participações, os relatórios, os inventários. Nada havia de extraordinário. O oficial não esperava outra coisa. Quem quer que fosse mais ou menos normal devia aplicar-se honestamente a não atrair sobre si a atenção do comandante. E como não havia ainda participação escrita sobre o que se passara na véspera à noite na 3.ª bateria, o oficial ordenança resolveu, obedecendo à sua experiência, «nada saber», a não ser que Luschke o interrogasse expressamente a esse respeito, o que não era impossível.

 

Às oito horas e um quarto entrou o capitão Derna. Parecia extenuado. Cumprimentou o oficial ordenança com um mole aperto de mão. Depois começou a fazer a sua participação e tirou do bolso um monte de papéis.

 

Que pensa que o comandante irá dizer de tudo isto?  perguntou.

 

O oficial ordenança tornara-se mais inquieto ainda. Encolheu os ombros.

 

Toma-me por um vidente extralúcido?  perguntou.

 

Depois, quase sem falar, ambos esperaram que o comandante aparecesse. O oficial ordenança fazia nervosamente o trabalho que lhe cabia. De pé, à janela, o capitão Derna vigiava a entrada da caserna, espreitando a chegada de Luschke.

 

De súbito abriu-se do lado de dentro a porta do gabinete do comandante. O major Luschke alongou o nariz em forma de batata para o gabinete do oficial ordenança. Viera, portanto, como muitas vezes acontecia, por caminhos desviados.

 

Nos lavabos da 2.ª bateria  disse  há uma vidraça partida. E já há três dias. A primeira porta do barracão da 5.ª bateria está lascada e levou uma pancada. Na enfermaria esqueceram-se de apagar a lâmpada da entrada. Tomou nota de tudo? Ao meio-dia quero em cima da minha secretária uma participação dos responsáveis. Compreendido?

 

Sim, meu comandante. Até ao meio-dia participação escrita.

 

Luschke, o Batata, fez um gesto aprovador com a cabeça.

 

Era um homenzinho atarracado, de movimentos calmos, harmoniosos. A sua voz era suave, o que se tornava absolutamente assustador. Os olhinhos sagazes, frios, brilhavam de penetração.

 

Que o traz por cá,  capitão Derna?  perguntou. Tê-lo-ei, por acaso, convocado?...  Não me recordo.

 

Um incidente muito penoso, meu comandante.

 

Penoso?... Para quem? Tudo o que é penoso é, duma maneira ou doutra, uma porcaria. Ora no meu destacamento, capitão Derna, não há porcarias.

 

Derna, que na presença do comandante se sentia ainda menos à vontade que de costume, achou que o que tinha de melhor a fazer era não recorrer a um longo discurso, mas deixar que os factos falassem por si mesmos. Apresentou ao comandante, uma após outra, as participações.

 

Luschke leu-as devagar duma ponta à outra, sem fazer, primeiro, qualquer comentário. Parecia que se tinha enraizado junto da secretária do oficial ordenança. O seu rosto, inclinado para os papéis, estava vermelho, mas isso não provinha do seu estado de espírito: era, sim, devido aos raios de sol que tinham conseguido chegar-lhe a alguns pontos do seu rosto, apesar do enorme quépi que trazia habitualmente.

 

O comandante leu página após página sem sequer pestanejar. O oficial ordenança contemplava-o com resignação. O capitão Derna espiava febrilmente as eventuais reacções do comandante. Luschke mantinha-se impenetrável. Um silêncio angustioso reinava na sala. Só quando o comandante colocava uma participação sobre outra se ouvia o papel fazer um ruído enervante. Depois Luschke disse numa voz doce.

 

Idiotas!

 

Os seus olhinhos, que brilhavam friamente, contemplaram durante muito tempo o capitão Derna. Este estava rubro. Mantinha-se aprumado, mas a sua atitude era infeliz e crispada.

 

O comandante atirou as participações para cima da secretária do oficial ordenança.

 

Isto  disse ele, batendo-lhes com a palma da mão é como se não existisse. Compreende, capitão Derna? Semelhante coisa não acontece, sobretudo no meu destacamento.

 

Sim, meu comandante  balbuciou Derna.  Também sou da mesma opinião, meu comandante, mas...

 

Como é possível haver um «mas», uma vez que somos do mesmo parecer, capitão?

 

Os subalternos, meu comandante, e especialmente o sargento-ajudante Schulz...

 

São os subalternos que, na sua bateria, decidem o que deve ser feito?

 

As sobrancelhas de Luschke ergueram-se, cheias de estupefacção. Os olhos brilhavam. Estendia o queixo para a frente e sorria com desprezo.

 

O oficial ordenança, que conhecia perfeitamente esta expressão inquietante do rosto do superior, adivinhou que a situação do capitão Derna não era cor-de-rosa.

 

Desconcertado, o chefe da 3.ª bateria não achou resposta. Dava uma impressão desastrosa, estava como que esmagado... O seu encanto vienense, a sua amabilidade imperial e real austro-húngara, tinham-se esmagado contra a dureza de pedra de Luschke.

 

Se bem o compreendo  disse o comandante, não consegue dominar os seus homens.

 

Posso assegurar-lhe, meu comandante, que tentei tudo...

 

Não duvido, capitão  disse Luschke com uma mansidão desconcertante. – Isso também pode ser definido como incapacidade. Em todo o caso, é a mim que vem estas questões. Pois bem! vou mostrar-lhe como se tratam semelhantes... bagatelas.

 

O oficial ordenança permitiu-se fazer uma observação.

 

Ontem à noite  disse  o alferes Wedelmann assegurou-me igualmente pelo telefone que se tratava de bagatelas.

 

Interessante  disse Luschke.  É provável que esse alferes tenha compreendido logo o que um capitão não apreende.  Mas Wedelmann foi formado por mim,  ao passo que o senhor, capitão, está apenas destacado aqui.

 

Luschke voltou a agarrar nas participações enquanto deitava a Derna um olhar desdenhoso.

 

Vamos a isto...  Mandem vir o segundo-sargento Lindenberg, o primeiro-sargento Platzek, o sargento-ajudante Schulz e o médico militar, Dr. Sámig. O alferes Wedelmann que venha igualmente.

 

O. oficial ordenança precipitou-se para o telefone e transmitiu as ordens do comandante. Derna permanecia ali como um móvel inútil. O comandante relia as participações enquanto esfregava voluptuosamente o queixo.

 

Asch  dizia, apelando para a sua maravilhosa memória.  Segundo-cabo Asch. Já ouvi este nome nos últimos dias.  Depois os seus olhos rebrilharam.  Não o propôs para o posto de subalterno, capitão Derna?

 

Sim, meu comandante  balbuciou o capitão. Luschke desviou-se dele murmurando: «Que lástima!»

 

Depois deu ordem para o alferes Wedelmann entrar.

 

Este apareceu. E, como todos os que penetravam nesta sala onde estava o comandante, parou à entrada, fez uma rigorosa continência e disse:

 

Alferes Wedelmann, às ordens.

 

Aproxime-se, meu caro Wedelmann  rosnou Luschke docemente.  Na semana passada estava à janela observando a praça de armas. Havia exercício de infantaria sob a sua vigilância. Num dos grupos um homem foi atormentado de tal maneira que perdeu a cabeça e teve, ao que me pareceu, uma espécie de crise epiléptica. Parecia que ía atirar-se ao subalterno. Que fez o senhor? Diga.

 

- Afastei-me imediatamente, meu comandante – disse Wedelmann de acordo com a verdade.

E porquê?

 

Há coisas de que é preferível não tomar conhecimento quando se é inteligente, meu comandante. Geralmente arrumam-se por si mesmas. Mas se nos metemos nelas aumentamos,-lhes, em geral, a gravidade.

 

A minha escola - disse Luschke, encantado. Depois perguntou:  Conhece, meu caro Wedelmann, as participações feitas contra o cabo Asch? Que pensa delas?

 

Conheço-as todas, meu comandante, e não lhes dou a menor importância. Para quê tanto -barulho quando a questão se pode tratar doutra maneira?

 

Luschke deitou a Derna um olhar fulminante. Depois deu uma palmada no braço de Wedelmann. O oficial ordenança respirou mais à vontade e pôs uma certa, distância entre si e o infeliz chefe da 3.ª bateria.

 

O comandante pediu a Wedelmann informações sobre os homens a quem tinha convocado. O alferes respondeu com brevidade, mas de forma completa. O comandante aprovou com um aceno de cabeça e disse:

 

O segundo-sargento Lindenberg.

 

Este apresentou-se e olhou o seu comandante fixamente nos olhos, como determinava o regulamento. Estava convencido de que este era um dos grandes momentos da sua vida e de que se mostraria perfeitamente à altura da situação.

 

Sargento Lindenberg  disse o comandante , tem a reputação de ser digno de confiança e correcto. A minha surpresa é portanto grande ao verificar que se deixa arrastar a longas conversas, para não dizer discussões, com os seus subordinados. O regulamento não as prevê. Tem de dar ordens claras, que não possam ser mal compreendidas.

 

Os seus subordinados têm de obedecer. Se não o fazem, é recusa de obediência. Só então é que deve apresentar uma participação. Impor-se é uma questão de autoridade pessoal. Compreendeu, sargento Lindenberg?

 

Sim, meu comandante.

 

Se compreendeu bem, sabe que a sua participação é uma pura tolice. Cesto dos papéis! Pode retirar-se, sargento.

 

Lindenberg bateu os tacões e desapareceu como uma estrela cadente. Para Luschke era natural: não julgou oportuno deitar em volta um olhar satisfeito.

 

O primeiro-sargento Platzek.

 

Platzek ficou especado, semelhante a uma rocha vazia. Via aproximar-se a sua última hora. «Daqui», pensava, «vou direito ao presídio militar».

 

Acabo de ler, sargento Platzek, que desapareceram munições que estavam a seu cargo. É claro que se trata duma idiotice. Não há sargento que deixe desaparecer munições. Pelo menos no meu destacamento. Quanto à falsificação, não falaremos. É uma loucura.  Ou não terei razão?

 

Sim, meu comandante.

 

Nesse caso, não faltam munições e o registo foi escriturado como devia. É assim?

 

Sim, meu comandante.

 

Portanto, esta participação é nula e vai acabar no cesto dos papéis. Pode retirar-se, sargento.

 

Platzek já nem sabia onde estava. Tinha pressa de deixar o gabinete. Saiu quase de um salto, fazendo uma cara extremamente estúpida.

 

Este homem será transferido na primeira oportunidade  prescreveu Luschke.  E agora mandem entrar o sargento-ajudante Schulz.

 

Este entrou, semelhante a um carro blindado. Parou bruscamente no meio da sala, como um bloco, e esperou.

 

Luschke examinou-o um momento, perguntando a si mesmo qual seria o melhor método para o vergar. Mas não procurou combinações ousadas e escolheu o método mais fácil.

 

Tem a intenção  perguntou na sua voz doce  de renunciar ao seu posto de sargento-ajudante?

 

Schulz ficou visivelmente aterrorizado. Empalideceu, depois corou, olhou fixamente o comandante e conservou-se em silêncio.

 

Seria pena,  é claro  acrescentou  Luschke,  com amabilidade.  Tem sido um sargento-ajudante útil, pelo menos até anteontem. Não gostaria de o perder, mas posso substituí-lo. Sabe que sargento-ajudante não é uma patente, mas apenas uma atribuição. Descose simplesmente os galões, deixa o seu alojamento e volta a ser primeiro-sargento. Apenas isto.

 

O capitão Derna atreveu-se a imiscuir-se:

 

Meu comandante...

 

Capitão, não me lembro de lhe ter pedido a sua opinião...

 

Derna fechou a boca e recuou. Schulz corara outra vez. Wedelmann e o oficial ordenança trocaram prudentemente um sorriso. Luschke dominava soberanamente a batalha.

 

Um sargento-ajudante  disse o comandante  deve ser uma personalidade. Mas uma personalidade impõe-se. Uma participação como esta é sempre um sintoma de desorientação.

 

Meu comandante  disse o brigadas com esforço , peço-lhe que tenha em consideração que dispararam contra mim.

 

Luschke acenou ligeiramente a cabeça. Aí é que estava o escolho, não o ignorava, mas era preciso evitá-lo também.

 

Como quer demonstrar que foi precisamente contra si que dispararam? No fim de contas, uma bala deve ir ter a qualquer parte. Aconteceu-lhe a si estar justamente na trajectória dela. Pode acontecer. Um homem, um verdadeiro homem, não faz nas cuecas só por isso. De resto, donde proviria o cartucho? com certeza não da carreira De Platzek: ele acaba justamente de o afirmar. Nesse caso, donde?

- Nós fizemos fogo, ontem à noite, meu comandante, atrás da messe dos oficiais.

Luschke olhou o alferes Wedelmann com surpresa. Esta observação, absolutamente inesperada, permitia-lhe evitar sem custo o escolho deste debate. O comandante piscou o olho de prazer. Não era o feliz auxílio que lhe provocava tanta satisfação – mesmo sem ele se teria desembaraçado sozinho -, mas a atitude de Wedelmann. A sua escola! Sabia que era compreendido

 

Alferes Wedelmann  disse Luschke com satisfação evidente, peço-lhe, assim como aos outros oficiais, que sejam mais prudentes de futuro quando fizerem exercício de tiro, e que, tanto quanto possível, utilizem a carreira.

 

Sim, meu comandante  respondeu Wedelmann. Luschke virou-se depois para o sargento-ajudante:

 

Este caso está portanto encerrado. Não me oponho absolutamente a que se manifeste zelo no serviço. Mas desta vez foi demasiado pronto. Reconhece que assim é ou não liga qualquer importância ao facto de continuar a ser sargento-ajudante?

 

Sim, meu comandante.

 

Sim, o quê?

 

Reconheço-o, meu comandante.

 

Porque não já?  Luschke agarrou nas participações de Schulz, manteve-as um momento por cima do cesto dos papéis e deixou-as cair.

 

Acabou  disse.  Pode retirar-se.

 

O brigadas desapareceu sem hesitar. Uma vez cá fora respirou a plenos pulmões.

 

com mil raios!  disse consigo mesmo em voz alta. com um pouco mais isto acabava mal.  Sim, estava contente por este caso ter acabado. E o respeito que sentia por Luschke aumentara infinitamente.

 

Entretanto o comandante ocupava-se do médico militar. Manteve-se rigorosamente oficial e evitou com habilidade estender a mão ao seu visitante. Também lhe não ofereceu uma cadeira, mas fê-lo de modo que se podia     ter quase a impressão de se tratar dum esquecimento. Luschke sabia muito bem que não podia agir como desejaria com o Dr. Sàmig. Este estava simplesmente destacado ali: como oficial dependia de si, mas não como médico. Contudo, o respeito pelo oficial do activo tomara em Sãmig um grande lugar e em grande parte fora o       próprio Luschke quem nele desenvolvera esse sentimento. .       Que acabo eu de  saber?  disse  Luschke  acentuanndo a sua amabilidade.  Trava alegres combates de luta com os seus doentes?

 

-Atacaram-me  disse Sámig com amargura.

 

Escolhe mal as suas palavras  disse o comandante, e de repent a sua voz ganhara um tom frio e ligeiramente ameaçador. - Um oficial não se deixa atacar. Isso não pode acontecerTome bem nota. Porque, se realmente se chegar a esseponto, aquele que é atacado deve ficar morto; ou então o official não é mais que um fracalhote.

 

O Dr. Sãmig abriu muito os seus olhos, dum azul deslavado. Olhou em volta como para procurar socorro, mas ninguém se preocupou com ele.

 

Às vezes  disse Luschke  ouço histórias que me põem os cabelos em pé, mas não acredito nelas. O meu simples bom senso me diz que não tenho o direito de lhes dar crédito. Se existe um médico que, não sei por que motivo, declara louco um indivíduo normal, ’sabe o que ele merece?... Uma tareia! Uma sólida tareia. E ao soldado que lha desse, sabe o que faria dele? Felicitá-lo-ia. De todo o coração. Mas isto não acontece. E se acontecesse, o corpo de oficiais inteiro riria a bom rir, se tivesse bom senso. Disse alguma coisa, Sàmig?     

 

Não, meu comandante.

 

E esta participação que aqui tenho,.. não pode ser outra coisa senão um gracejo. Pois nós rimos ao lê-la. Para o cesto. )

 

E, dizendo isto, o comandante Luschke atirou fora igualmente o último papel. Esfregou as mãos e olhou em redor com os seus olhos brilhantes. Mas não se lia neles o triunfo.

 

Alferes Wedelmann  disse o comandante , a 3.ª bateria tem, como é evidente, necessidade duma organização mais sensata, mais hábil. Precisa de um homem, e não de um fantoche. As instruções só por si não bastam, é preciso acrescentar-lhes um pouco de miolo. Acha que poderemos estar seguros contra outra surpresa do mesmo género?

 

Decerto, meu comandante.

 

E o cabo Asch?

 

Ponho as mãos no fogo por ele.

 

Apesar do que se passou?

 

Precisamente pelo que se passou, meu comandante.

 

Está bem  disse Luschke.  Então encarregue-se da bateria, alferes Wedelmann. O capitão Derna vai pedir a sua licença: eu arranjarei a coisa. E sabe o que vai fazer agora, alferes Wedelmann?

 

Não, meu comandante.

 

Vamos ambos ter com o cabo Asch. Comunicar-lhe-emos que é nomeado subalterno.


EPÍLOGO

Tudo se fez conforme o programa. Cansado dum combate que considerava sem saída, o cabo Herbert Asch aceitou a promoção, ingenuamente, propôs-se viver, como subalterno, da maneira como achava que deviam portar-se os subalternos. Mas não tardou a verificar que era em grande parte o servilismo de certos homens que conduzia os superiores compreensivos à megalomania.

 

O alferes Wedelmann tomou conta da 3.ª bateria, mas por muito pouco tempo, pois não estava ainda colocado bastante acima no Anuário pára. poder assumir funções independentes. Mas logo no início da segunda guerra mundial foi colocado em chefe de bateria. Serviram-se dele com vantagem em todas as frentes: os soldados amavam-no e os seus superiores sentiam-se felizes por vê-lo o menos possível. Em 1945, capitão, várias vezes ferido, não muito condecorado, céptico e enfastiado, deixou a tropa. Voltou ao princípio e pôs-se a estudar Direito; acabou por ser procurador-geral numa grande cidade da Alemanha Ocidental.

 

O comandante Luschke, o chefe do destacamento, não parou de subir no decurso da guerra. Em 1944, quando era então general de brigada e comandante de divisão, foi preso em consequência da conspiração anti-hitleriana de

20 de Julho. Mas não era homem para agir irreflectidamente: nada puderam provar contra ele. No entanto, em virtude das suas opiniões extremistas, fora sempre, e com razão, suspeito em certos meios. No fim da guerra o Batata despiu o uniforme com um sorriso de desprezo e enfiou o fato-macaco de montador mecânico. Três anos depois era chefe de vendas duma fábrica de camiões bem conhecida. Quando lhe perguntaram se tinha a intenção de voltar a pegar no uniforme respondeu: «Sim, com uma pinça.» E acrescentou: «A não ser que o sistema seja modificado de alto a baixo.»

 

Fiel às suas convicções, o sargento Lindenberg consagrou ao trabalho o pouco tempo que ainda lhe restava para viver. Tombou no terceiro dia da guerra, na Polónia, perto duma aldeia que só nas cartas especiais se encontra. Tombou ceifado por uma rajada de metralhadora, como tombam geralmente os heróis dos. livros de leitura escolares: em plena batalha, a espingarda na mão esquerda e na direita uma granada, que explodiu no momento em que o seu rosto bateu nela. Só pela placa de identidade foi possível identificá-lo. Era um excelente soldado: apenas se tinha esquecido de desenvolver nele da mesma maneira as suas qualidades de homem.

 

O primeiro-sargento Platzek, o Pele de Vaca, morreu também da morte dos heróis, noutras condições, é certo, e muito tempo depois. Até 1943 manteve-se como instrutor na guarnição da sua cidade natal, condecorado com a Cruz de Ferro de 1.ª classe. Algumas centenas de soldados lhe tinham passado pelas mãos e, como afirmava muitas vezes, tinham-se tornado, graças a ele, «homens». Quando soou a hora do seu destino estava justamente a afastar-se da muralha do Atlântico. Sem parar, precedia a sua tropa. Foi sepultado por bombas numa cave, em Dreux. Uma grande pipa de vinho esmagou-se sobre ele.

 

O terceiro que ficou fiel «até à morte» ao seu juramento de soldado foi o artilheiro Vierbein. Tornara-se naquilo a que geralmente se chama «um bom soldado». Os seus superiores estavam satisfeitos com ele porque cumpria perfeitamente as ordens que recebia. Em quatro anos conquistou o posto de segundo-sargento. Possuía a Cruz de Ferro de 1.ª classe e fora mesmo proposto, aliás sem resultado, para a Cruz de Cavaleiro. Em compensação, foi o seu comandante quem a recebeu mais tarde, o que Vierbein achou absolutamente natural... Morreu na Rússia, no seu posto, que não quisera abandonar.

 

Ingrid Asch, que se podia gabar de ter fortemente contribuído para a exemplar atitude do noivo, vestiu o luto com a dignidade conveniente a uma noiva de guerra. Obedecendo à ordem segundo a qual era preciso fazer tudo para o triunfo final, partiu como auxiliar da Wehrmacht para as províncias baltas. Aí conheceu um capitão que trabalhava no comando local e casou com ele. Acabada a guerra, profundamente desiludida e considerando-se vergonhosamente enganada, deixou o marido e divorciou-se. Tornou-se então ardente democrata, e depressa voltou a casar com um negociante de madeiras por grosso que, a instâncias dela, se candidatou à Dieta provincial por um partido muito liberal.

 

O segundo-sargento Werktreu, amigo das mulheres e «guarda-traças», passou através da guerra sem estorvo. Encontrava-se em geral nos pontos em que não havia tiros. Nascera para guardar equipamentos, munições e pessoas. Pouco depois da conquista da Polónia apareceu ali e depressa se tornou para as populações dos arredores de Cracóvia uma personalidade característica como comprador. Mais tarde acompanhou a França um contingente de abastecimentos e parece ter-se tornado conhecido como criador de algumas casas públicas de categoria. Pouco antes do fim da guerra fez-se transferir para a Normandia, onde trabalhou momentaneamente em casa duma hospedeira um pouco murcha. Depois da guerra dirigia em Hamburgo um florescente negócio de «mercado negro» de meias de seda. Quatro anos depois possuía a sua própria fábrica.

 

O capitão Derna, após uma longa licença, foi reformado. Dirigiu-se a Viena, onde trabalhou por conta duma sociedade de seguros. Mais tarde, «a Pátria apelou de

novo para ele. Tornou-se chefe de um campo de prisioneiros, não longe de uma fábrica de munições. O comandante do acantonamento, oficial de reserva de Stettin, tratava-o como os prussianos tratam geralmente os austríacos quando usam o mesmo uniforme. Derna sofria terrivelmente com isso. Lamentava vivamente ter aplaudido a ligação da Áustria à Alemanha. Quando a guerra chegou ao fim respirou. A sua sociedade de seguros vienense recebeu-o outra vez. Nos seus cartões de visita lê-se: comandante reformado.

 O sargento-ajudante Schulz abriu caminho, como se esperava. Como havia grande necessidade de novos oficiais, mandaram-no para uma escola militar, donde saiu 1.º classificado, graças à sua tenacidade e à sua ambição desenfreada. Em pouco tempo relativamente chegou à patente de capitão. Depois dum combate contra os blindados perto de Orei foi citado de maneira especial. É certo que mais tarde se disse que os números dados não podiam ser exactos, que três blindados, pelo menos, deviam ter sido contados duas vezes e que Schulz não se encontrava na frente junto dos canhões, no momento indicado, mas na retaguarda, perto de um trem de subsistências. Ditos de invejosos, claro. Schulz terminou a guerra com quatro malas e dois camiões cheios de artigos de vestuário cuidadosamente escolhidos e produtos alimentícios concentrados. Foi oficial de diligências da Câmara Municipal de Hesse, depois empregado da Repartição do Trabalho e, finalmente director da mesma Repartição. Quanto a Lore, sua mulher, depois de ter obtido o divórcio, casou com um americano e emigrou com ele para o Texas.

 

Apenas o cabo Kowalski era ainda primeiro-cabo quando a guerra chegou ao fim. Ignorara muito simplesmente a sua nomeação a segundo-sargento, e os seus superiores tinham-se posto de acordo para a considerarem também nula e de nenhum efeito. Kowalski parecia invulnerável. Dois capacetes de aço e uma máscara de gás foram furados por balas; atirou um camião contra uma
árvore, um outro para umprecipício, um terceiro sobre uma mina; mesmo a seu  lado explodiu um  monte de munições e ele achou-se de pé, sorrindo, em camisa, sem um arranhão. Servira em vinte e quatro unidades diferentes e executara 68 funções diversas. Passara três vezes pelo conselho de guerra sem que nunca se pudesse provar nada contra ele. Depois da guerra aderiu a um partido de esquerda e veio a ser conselheiro municipal de um grande centro industrial; é considerado  pelo seu grupo como futuro prefeito da polícia.

O velho Asch e o velho contramestre Freitag tornaram-se inseparáveis. Faziam juntos os seus pequenos trabalhos, esvaziavam juntos numerosas garrafas e regozijavam-se com a felicidade dos filhos. Quando, em virtude do seu passado nacional-socialista, Asch se achou muito comprometido pouco depois do fim da guerra, o velho Freitag moveu céus e terra para evitar aborrecimentos a um amigo que aprendera a amar. As suas opiniões, bem entendido, eram muito opostas; contudo, entendiam-se às mil maravilhas e havia um ponto no qual estavam perfeitamente de acordo: tudo o que se relacionava com a carreira militar provocava neles o emprego de palavras que não se acham em nenhum dicionário. Nunca lhes ocorreu a ideia de que se possa modificar seja o que for neste domínio.

 

Elisabeth Freitag casou com Herbert Asch. Haviam-se apressado um pouco, pois seis meses após o casamento já tinham o seu primeiro filho, que teve o primeiro-cabo Kowalski por padrinho. Durante os seis anos que se seguiram tiveram mais quatro filhos, e os sogros discutiam muitas vezes, à porfia, para decidir quem construiria para eles. Os dois esposos foram perfeitamente felizes, se bem que a guerra lhes impusesse longos intervalos cheios de angústia. Asch chegou a primeiro-tenente e foi condecorado com a Cruz de Ouro alemã. Os seus soldados diziam dele que era «o último dos civis». Foi sem o menor pesar que despiu o uniforme. Sem falar, beijou a mulher, que chorava de alegria, e tomou a direcção do Café Asch.

A caserna continua ali. A cidade aumentou e avançou pouco a pouco até às paliçadas que a rodeiam. O destacamento de artilharia do comandante Luschke partiu para a guerra. Puseram lá então grupos de reserva, depois um hospital e barracas de prisioneiros. De súbito ficou vazia, e, no dia seguinte, os soldados voltaram a ela como prisioneiros. Substituíram-nos os refugiados, depois as tropas de ocupação e, presentemente, repõem-na em ordem, limpam-na, reparam-na.

 

                                                                                            Hans Hellmut Kirst

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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